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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÁSSARO VERMELHO / Stephanie Grace Whitson
PÁSSARO VERMELHO / Stephanie Grace Whitson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PÁSSARO VERMELHO

 

Esse Everett Higgenbottom! Empoleirada na beira da cadeira no salão da Escola Preparatória Chouteau, em St. Louis, no Missouri, Carrie Brown fez um pequeno movimento com a mão esquerda para repelir Everett. Ele tinha se inclinado em sua dire­ção para cochichar algo, mas quando ela levantou sua pequena mão vestida com a luva, ele se sentou bruscamente, resistindo ao desejo de arrumar um dos cachinhos vermelhos que tinham caído de seu abundante cabelo preso.

Dia de formatura e ele vai me cochichar alguma coisa boba, pensou Carrie. "O céu é só um reflexo de seus olhos hoje, Carrie. Hones­tamente." Carrie dava batidinhas nervosas no chão, com seu pé calçado em uma elegante bota. O mais disfarçadamente possível, virava a cabeça de um lado para o outro, procurando algo na mul­tidão. Quando o orador da formatura começou a falar, Carrie endireitou-se, arrumando o cabelo. Pegou o buquezinho de flores de sua lapela, inalando o doce perfume do lírio do vale, sem per­ceber que Everett observava, num estado de adoração, cada um de seus movimentos - interpretando erroneamente a causa de seu nervosismo. O orador finalmente concluiu seu discurso. Ao le­vantar-se para cantar um hino, Everett inclinou-se na direção dela, sorvendo o aroma de verbena e lírio do vale que acompanhava Carrie durante toda a manhã. Ela sentiu a respiração dele em seu pescoço enquanto ele cochichava: "Relaxe, Carrie. Você vai falar bem. Seu discurso está perfeito".

Carrie virou-se para encará-lo, mas um movimento da multi­dão no fundo da sala chamou sua atenção. Ela era baixa demais para ver quem havia acabado de chegar, mas com certeza alguém estava atrasado para a formatura. Carrie parou de cantar e seu coração disparou. LisBeth falou que viria e traria uma surpresa - al­guém que me deixaria muito feliz.

O hino terminou. Everett cutucou Carrie por trás e ela se vi­rou para ele furiosa. Mas Everett simplesmente deu-lhe um sorri­so e apontou para o palco. Carrie enrubesceu com embaraço, per­cebendo que era hora de seu discurso pela classe. Apressou-se em direção ao palco, mas, quando chegou lá, gastou um tempinho olhando os rostos familiares até o fim do salão, na esperança de ver LisBeth ... "mas LisBeth não estava lá.

Os olhos de Carrie procuraram seus avós. Eles estavam sen­tados na fileira da frente, sorrindo para encorajá-la. Olhando seus colegas de classe, pensou em quão rapidamente o tempo havia passado no Chouteau. Entre os colegas estava Clara Delacroix, tão orgulhosa de seus pais terem sido uns dos pioneiros franceses a fundar St. Louis. Philip Canard, que contava piadas todos os dias e nunca parecia se importar com sua própria linhagem, aliás, muito mais nobre que a de Clara. E Everett. Clara deu uma passa­da de olhos em Everett, que, percebendo, devolveu com uma piscadinha. Pobre Everett. Tudo em Everett era comprido - desde o seu nome, que mal coube no diploma, até seus braços, que pas­savam dos limites das camisas e casacos. As pessoas o aprecia­vam, mas também caçoavam dele sem dó; ele até mesmo recebera o apelido de Dan por ter o rosto comprido e os dentes protuberantes como outro "Dan" da cidade - um cavalo.

Carrie pensou em Everett, mas apenas por um rápido mo­mento antes de lançar-se à façanha pela qual tinha agonizado durante semanas. Enquanto falava, continuava procurando na multidão, ainda esperançosa de que LisBeth - e sua surpresa - aparecessem.

Quando terminou seu discurso, Carrie sentou-se no meio dos colegas, desatenta aos aplausos e à expressão radiante de seus avós, sentados na primeira fileira.

O desapontamento tomou conta dela. De repente, já não lhe importava mais ter sido a escolhida para fazer o discurso. Afinal de contas, ele não tinha vindo. E ela tivera tanta certeza de que ele estaria ali... Tinha sonhado com isto durante semanas. Logo que a carta de LisBeth fora lida, prometendo um convidado surpresa, Carrie acreditava, imaginava e ficava com falta de ar só de pensar nisso. Agora, enquanto ela se sentava empertigadamente e enfurecida, Everett inclinava-se em sua direção, tocando seu om­bro timidamente e murmurando palavras de elogio. Carrie corou de emoção com as atenções de Everett. Esse Everett Higgenbottom!

Ela planejara este momento durante semanas... quando ele chegasse, de braços dados com LisBeth. Provavelmente estaria vestido com um terno. Mas isto não importava. Ele olharia ape­nas para ela durante toda a cerimônia de formatura, e quando terminasse ele estaria ali, sorrindo, vindo em sua direção, maravi­lhado com o fato de eía estar tão crescida e linda.

Ela sabia o que ia fazer. Faria seu discurso sorrindo para ele, mostrando-lhe que se lembrava de tudo. Iria apresentá-lo a Everett - e à metida Clara Delacroix. E assim eles ficariam admirados, um pouco amedrontados e sem fala, pois sua colega, a pequena Carrie Brown, estaria sentada ao lado de um verdadeiro e lindo lakota, com o nome de Águia que Voa Alto.

Mas o discurso havia terminado e apenas Everett estava pre­sente para admirá-la. Suspirando mais uma vez, Carrie resignou- se com a ausência de Águia que Voa Alto. Caminhou mecanica­mente até a frente para receber seu diploma. Logo que a cerimô­nia acabou, recebeu os cumprimentos dos avós e o pedido de Everett para levá-la, em sua carruagem, até a casa dos avós, onde aconteceria a recepção para toda a classe.

Everett dirigiu vagarosamente até a Avenida Chouteau, in­quieto com o silêncio incomum de Carrie. Ela não reagiu quando ele, todo poético, comentou sobre como a primavera tinha "assal­tado" o rio de St. Louis. Enquanto a carruagem passava pela rua ao longo da margem do rio, a luz do sol cintilava na torre da catedral. Um barco a vapor balançava as cordas que o prendiam ao ancoradouro. A luz dançava na superfície das águas. Carrie per­manecia indiferente à beleza ao seu redor.

Everett tentou outro assunto. "Você fez um trabalho maravi­lhoso, Carrie. O discurso da formatura."

Carrie balançou a cabeça evasivamente.

"Você parecia meio distraída. Fiquei preocupado que tivesse esquecido alguma parte." Everett falou, mantendo os cavalos an­dando.

"Ah, não foi nada - só que alguns amigos de Nebraska falaram que viriam e eu esperei", Carrie corou. "Fiquei desapontada, só isso."

Finalmente Carrie tentou livrar-se de seu mau humor. Forçando um sorriso animado, deu uns tapinhas nas costas de Everett e ba­lançou a cabeça em direção ao cavalo que puxava a carruagem, fa­lando: "O Mazie esqueceu como se trota ou há alguma razão para chegarmos por último em minha festa de formatura?". Ainda espe­rançosa de que algum encontro "surpresa" estivesse à sua espera, Carrie levantou uma sobrancelha e olhou para Everett.

Everett resmungou de volta: "Só estou aproveitando o fato de ter você aqui - comigo". Eles tinham virado o último quartei­rão para a rua que subia a colina até uma casa bonita, com vistas para o rio. Everett viu os avós de Carrie esperando na área da frente, acenando alegremente enquanto o casal se aproximava. Segurando as rédeas levemente, Everett instigou Mazie a um tro­te. A carruagem chegou ao mesmo tempo que outra se aproxima­va da casa pela direção oposta.

Everett pulou para fora da carruagem e foi ajudar Carrie a descer. Mas ela não viu Everett. Ficou parada, maravilhada, olhan­do para os ocupantes da outra carruagem. LisBeth gritou: " Que pena que perdemos a cerimônia, sr. Jennings, sra. Jennings, o trem atrasou". LisBeth olhou para além do senhor e da senhora Jennings, reconhecendo a outra carruagem e Carrie. Rindo, ela gritou para Carrie carinhosamente: "Mas espero ser desculpada por isto. Como pode ver, trouxe uma surpresa para você".

Carrie balançou a cabeça, muda.

Everett pegou em sua mão. "Carrie..."

Ao ouvir a voz de Everett, Carrie "ligou-se" e baixou os olhos até ele. Mordendo os lábios, correu para longe da carruagem à espera de que sua surpresa desembarcasse.

Everett passou os olhos por LisBeth e estremeceu levemente quando ela completou sua fala. "Sr. Jennings, sra. Jennings, vou apresentar-lhes meu irmão, Jeremias Águia que Voa Alto. Ele aca­bou determinar seu curso em John Knox, Illinois, e a Sociedade dos Amigos pediu que ele pregasse para algumas pessoas da congregação de St. Louis. O Jim não pode vir por causa do plantio e assim meu irmão me acompanhará enquanto eu estiver aqui."

Jeremias Águia que Voa Alto deu um passo à frente e incli­nou-se num cumprimento.

Everett Higgenbottom moveu-se para pegar o braço de Carrie, mas ela se afastou em direção ao visitante.

Carrie não confiava em sua voz. Virando uma de suas mãos, levantou dois dedos e moveu-os em direção ao céu. Águia que Voa Alto respondeu com o mesmo sinal e finalmente os cantos de sua boca ergueram-se levemente. "Você se lembrou, Pássaro Ver­melho!"

Carrie assentiu com a cabeça e seu coração transbordou. Ba­lançando a cabeça com admiração, virou-se para LisBeth, que pre­encheu o silêncio. "Bem, Carrie, graças a um trem atrasado perde­mos seu discurso na cerimônia de formatura, mas estamos aqui para compartilhar de sua alegria. Sei que seus avós estão muito orgulhosos de você." A voz de LisBeth ficou mais suave. "E sua mãe, Carrie. Tenho certeza de que ela a está olhando do céu... e, sem dúvida, está muito contente pela forma como você se saiu."

A porta da casa se abriu e os colegas de Carrie saíram fazen­do barulho. Para alegria de Carrie, Clara Delacroix voltou-se de olhos arregalados para Águia que Voa Alto e ficou atônita. A avó de Carrie e LisBeth começaram a subir as escadas, seguidas pelo sr. Jennings e por Águia que Voa Alto. Carrie tomou o braço que Everett oferecia e seguiu-os, mal resistindo ao impulso de tocar na trança que caía pelas costas de Águia que Voa Alto.

"Ele está aqui. Ele veio... para mim."

 

O Senhor é a minha força e o meu cântico; ele me foi por salvação; este é o meu Deus, portanto eu o lou­varei; ele é o Deus de meu pai, por isso o exaltarei.

               Êxodo 15:2

 

Ele tinha estado no meio de um estouro de búfalos, montado num cavalo, quando um passo em falso significaria morte certa. Tinha lutado em batalhas contra soldados com armas e mon- tarias melhores. Mas nada do que já tinha encarado havia feito os joelhos de Águia que Voa Alto tremer mais do que quando ele subiu ao púlpito da Igreja Congregacional de St. Louis, no Missouri, numa manhã de primavera, em 1883. O reverendo Hodge concordara com alguma relutância em checar se Águia que Voa Alto causaria melhor impressão usando suas roupas típicas. Ao subir ao púlpito, as contas e os penduricalhos da bata de couro tilintaram. O barulho delicado espalhou-se pela igreja, enquanto os membros assentados admiravam-se com aquilo que era, para muitos deles, o primeiro contato com um "índio vivo, real".

Enquanto o reverendo Hodge afastou-se para sentar de fren­te para a congregação, Águia que Voa Alto virou-se para a audi­ência. Agarrando-se às bordas do púlpito para esconder as mãos trêmulas, fez um aceno com a cabeça, esperando que as palavras lhe chegassem e implorando a Deus que acalmasse seu coração disparado e o ajudasse a dizer as coisas certas.

Quando levantou a cabeça, seus olhos procuraram o rosto da irmã, que sorriu encorajando-o. Perto dela estava Carrie Brown, sorridente. Ela vestia uma toga azul que realçava ainda mais o vermelho de seu cabelo e o brilho de seus olhos azuis. Com um sorrisinho nos lábios, ela levantou a mão direita fazendo o sinal de "Amigo". Carrie notou um relaxamento quase imperceptível dos músculos ao redor da boca de Águia que Voa Alto e assim sabia que ele estava sorrindo interiormente.

Com o sinal de amizade, Águia que Voa Alto encontrou as palavras para começar sua fala. Olhou para a congregação e fez o sinal "Amigo". Explicou: "É isso o que significa esse sinal. A Socie­dade dos Amigos pediu-me para vir até aqui falar-lhes, na espe­rança de que, pela graça de Deus, possamos nos tornar amigos". Apertando as laterais do púlpito, Águia que Voa Alto fez uma pausa e, dando uma olhada para os olhos azuis, continuou: "Não tenho nenhum plano complicado para resolver os numerosos pro­blemas que o meu povo sofre. Ao contrário, vim orando para que, se vocês e eu pudermos nos entender, talvez possamos viver em paz".

Águia fez uma pausa antes de continuar. "Há alguns dentre seu povo que acham que os índios são quase como animais. Li que um de seus grandes guerreiros acredita que 'o único índio bom é aquele que está morto'. Espero que, após me escutarem, vocês possam enxergar as coisas de outra forma."

Parando de apertar o púlpito, Águia deu uma olhada nas pessoas. Várias estavam com os braços cruzados e as mandíbulas contraídas devido à sua presença. Outras pareciam mais recepti­vas. Concentrando-se no último grupo, ele continuou, com sua voz grave e forte assumindo um tom suave.

"Deixem-me contar a vocês sobre a primeira branca que co­nheci. Ela foi morar com meu povo quando eu ainda era um bebê. Ela começou a nos amar e eu a chamava de Ina, que quer dizer mãe, em sua língua. Esta boa mulher lia a Bíblia para mim. Ela me ensinou sobre Deus. O conhecimento desta boa mulher branca e as palavras que ela leu para mim da Bíblia formam o início da estrada que me trouxe até vocês hoje."

Águia olhou para a multidão e lançou o maior desafio ao acrescentar: "Quando percebi pela primeira vez que aquela mi­nha forma de vida estava no fim - que eu não mais teria aquela terra para caçar e morar também, fiquei cheio de raiva e amargu­ra. Acho que vocês também ficariam com raiva se alguém viesse até seus lares e dissesse que vocês tinham de morar em outro lu­gar e aprender outro estilo de vida". Abaixando o tom de voz acres­centou: "Essa raiva se transformaria em ódio se a pessoa a dar tal ordem também matasse sua família".

Um ouvinte revoltado piscou os olhos e desviou o olhar de Águia que Voa Alto. Algumas mulheres enxugaram as lágrimas.

Águia que Voa Alto continuou como se não tivesse percebido nada. "Isto faz parte do meu passado e o apóstolo Paulo diz para nos 'esquecermos das coisas que para trás ficam'. Estou contando es­tas coisas só para vocês conseguirem entender a raiva que mora no coração do meu povo. Como vocês, nós também sofremos, lamentamos e choramos as perdas, pois amamos nossas famílias."

"Como já falei, quando percebi que nunca mais poderia vi­ver como sempre vivera, fiquei cheio de amargura e ódio. E foi assim, há sete anos, que cheguei à Escola Normal de Treinamento Santee. Lá conheci outros brancos e fiquei observando seu jeito de viver e esperando que eles revelassem seus verdadeiros sentimen­tos em relação aos índios, pois achava que apenas fingiam gostar de nós. Mas não era bem assim. Lá pude ver crianças aprendendo a viver no novo mundo e também brancos, como minha própria mãe, que conseguiam olhar para além da cor da pele, para dentro do coração."

Águia que Voa Alto procurou os olhos de Carrie. "Certa vez uma menininha da escola me deu de presente uma cruz de papel branco onde estava escrito 'Jesus ama Águia que Voa Alto'. De­morou bastante tempo, mas finalmente pude compreender aque­la verdade. Consegui entender que Jesus me amava através da bondade das pessoas de Santee e da leitura da Bíblia. Hoje sei que pertenço a Jesus e, mesmo que meu povo seja fraco diante deste novo mundo em que vocês nos colocaram, Jesus é forte e vai nos ajudar."

"É difícil para os lakotas mais velhos como nós mudarmos, mas a mensagem do amor de Jesus pode transformar cada ho­mem, inclusive um lakota. É por isso que estou aqui, diante de vocês, falando que meu povo precisa de sua ajuda para viajar por esta nova estrada, que os tirará da caça nas campinas e os levará para uma nova vida. Oro para que possamos deixar para trás toda a raiva e começar a trilhar esta nova estrada. E só vamos conse­guir isto se nos lembrarmos de que Jesus ama a todos nós e pode nos ajudar a amar nossos irmãos, mesmo que eles tenham uma cor diference da nossa e que sua forma de vida seja estranha para nós."

Águia que Voa Alto colocou os braços ao lado do corpo e deu um passo para trás. Calmamente concluiu: "Oro pela paz do meu povo e desejo a paz para todos vocês". Sentou-se ao lado do reve­rendo Hodge, que terminou o culto com o anúncio de que esta­vam angariando roupas e alimentos para levar a Santee e com uma rápida oração.

No meio das pessoas que se dirigiram à frente para cumpri­mentar Águia que Voa Alto, estava aquele homem do olhar duro, segurando pela mão um menino. De repente o menino soltou-se da mão do pai, correu até Águia que Voa Alto e perguntou bem alto: "Você tem algum escalpo para eu ver?".

Uma mulher engasgou e todos ficaram em silêncio. O pai do menino aproximou-se com uma exclamação de censura, mas Águia que Voa Alto sentou-se rapidamente no degrau da plataforma do púl­pito e começou a conversar com o menino: "Como você se chama?".

"Benjamin Whipple."

Com uma olhadela para o pai, Águia que Voa Alto pergun­tou com muita paciência: "Por que você me pergunta sobre escalpos se eu já falei que vim em paz?".

O menino mexeu o queixo para a frente e respondeu: "Meu tio viajou com o Custer e eu li tudo o que saiu no jornal sobre isto. Os índios escapelam as pessoas".

Orgulhoso por estar recebendo atenção, o menino apontou a camisa de Águia que Voa Alto e disse: "Olha os cabelos grudados na sua camisa, devem ser de escalpos, o meu pai que falou".

Diante disso, o pai demonstrou embaraço, mas Águia que Voa Alto continuou calmo, balançando a cabeça enquanto expli­cava: "Bem, vou contar a verdade para você, Benjamin. Você está pronto para ouvir a verdade?".

O menino balançou a cabeça, dizendo: "Estou". O pai mexia-se nervosamente, tendo de agüentar olhares reprovadores de muitos adultos, inclusive da própria esposa.

Águia que Voa Alto respondeu com muito cuidado: "A ver­dade, Benjamin Whipple, é que estes pêlos na minha roupa são das caudas dos meus pôneis preferidos. E alguns dos cabelos são de pessoas queridas que já partiram para a outra vida". Sua voz enfraqueceu-se quando ele acrescentou: "Quando aprendi a amar Jesus, parei de matar. Não tenho escalpos, somente estas lembran­ças da minha vida antiga e das pessoas que amei".

Desapontado, Benjamin fez uma careta e virou-se para o pai.

Águia que Voa Alto chamou a atenção de um grupo de meni­nos amontoados no púlpito dizendo: "E vocês, meninos, têm al­guma pergunta? Se seus pais deixarem, podem perguntar. Vou contar a vocês tudo o que puder".

Imediatamente um menino perguntou, quase gritando: "Por que você tem essa cicatriz? É de alguma luta com os soldados?".

Águia que Voa Alto apontou a cicatriz no lado esquerdo de sua face e começou a história: "Quando eu era um menino, assim, da idade de vocês, meu pai me levou para a minha primeira gran­de caçada. Uma caçada daquelas, na minha idade, era uma honra enorme e eu estava muito empolgado". Águia que Voa Alto conti­nuou descrevendo a caçada, conduzindo sua audiência infantil na história de como Cavalga o Vento era habilidoso para rastrear animais. "Aquela caçada não servia apenas para caçar animais, mas para que meu lugar na tribo fosse determinado e para que eu aprendesse a ser um homem." Águia que Voa Alto parou por um breve instante e continuou a história. "Quando voltávamos para casa, com nossos pôneis carregados de caça e passando pela gar­ganta entre as montanhas, avistamos duas águias e paramos para observar enquanto elas voavam para seus ninhos."

Passando a mão nas penas que enfeitavam seu cabelo preto e brilhante, Águia que Voa Alto prosseguiu: "Como todo homem lakota, eu desejava capturar uma águia e arrancar suas penas. Então meu pai me ajudou a descer até o ninho, mas uma tempes­tade nos pegou e as duas águias começaram a nos atacar. Meu pai desceu até o meu lado para me ajudar, mas uma das águias bicou seu pescoço". Águia que Voa Alto levantou a cabeça e apontou o pescoço. "Ele começou a perder muito sangue, mas mesmo assim conseguiu matar as duas águias adultas antes de ficar inconscien­te. A tempestade continuava forte e lá estava eu, um menino, no alto de um rochedo com dois filhotes de águia olhando para mim e meu pai morrendo ao meu lado."

Águia que Voa Alto olhou nos olhos de cada menino e falou baixo: "Então eu tive de arrumar uma saída".

Um menino perguntou num cochicho: "E o que você fez?"

"Orei. Orei para aquele que eu conhecia como o Grande Mis­tério. Orei para aquele que minha mãe chamava de Deus. Pedi socorro. Existe uma lenda lakota que conta a história de um guer­reiro que foi carregado de um rochedo por duas águias."

Os meninos se entreolharam com descrédito, mas Águia que Voa Alto balançou a cabeça dizendo: "E, muito longe de mim, lá embaixo no cânion havia água - era bem fundo e eu sabia que aquela era a única chance de eu salvar meu pai - e a mim mesmo também. Então agarrei cada uma das avezinhas pelas pernas". Águia que Voa Alto fechou as mãos, levantando-as mais alto que sua cabeça. "E então pulei."

Depois de uma pausa dramática, ele concluiu: "As águias abriram as asas e voamos juntos até as águas profundas. Nadei para cima, saí das águas e corri em busca de ajuda". Ele tocou a cicatriz em sua face e continuou: "Meu pai foi salvo e minha mãe costurou bem o corte em minha bochecha".

"... e você conseguiu suas penas de águia", gritou Benjamim Whipple.

Águia que Voa Alto disse sorrindo: "Naquele tempo eu não conhecia o Grande Mistério, não acreditava que Ele me amasse, que tinha enviado Seu Filho único para morrer por mim. Mas en­tendi que Alguém tinha ajudado aquelas águias a me tirar do alto do rochedo, e é por isso", continuou Águia que Voa Alto, "que tenho essa cicatriz em meu rosto."

"Quem sabe poderíamos organizar uma reunião mais infor­mal para o Águia que Voa Alto responder às perguntas?", sugeriu o reverendo Hodge.

Águia que Voa Alto assentiu com a cabeça e Carrie Brown falou imediatamente: "Tenho certeza de que meus avós ficariam muitos felizes em oferecer sua casa para essa reunião".

Águia que Voa Alto levantou-se e estendeu o braço a LisBeth. As pessoas começaram a espalhar-se e os adultos murmuravam enquanto se afastavam.

O reverendo Hodge disse animadamente que a reunião tinha sido um sucesso: "Você conseguiu mais amigos para o seu povo nesta noite do que pode imaginar, Águia que Voa Alto. Os pais destas crianças jamais teriam coragem de fazer tais perguntas, mas pode ter a certeza de que estavam pensando nelas. Seu trabalho foi ótimo, excelente!".

Enquanto o pequeno grupo saía da igreja, Carrie caminhava rapidamente ao lado de LisBeth, falando sobre os planos para uma recepção a Águia que Voa Alto. "Vou providenciar tudo o que for necessário", disse ela.

Mas Everett Higgenbottom, para o seu desapontamento, a interrompeu: "E eu vou acompanhar Carrie até em casa".

 

Ouve o conselho, e recebe a instrução, para que se­jas sábio nos teus dias por vir.

               Provérbios 19:20

 

"Eu estava alienado e envolvido nos feitos malignos. Deus reconciliou-se comigo através da morte de Cristo. Hoje es­tou lutando para manter minha fé firme e jamais me afastar da esperança do evangelho que ouvi." Águia que Voa Alto, vestido num terno preto, com suas tranças caindo pelas costas, estava sen­tado na sala de visitas de Lucy e Walter Jennings, concluindo a história da transição de sua vida no campo selvagem para a Uni­versidade. Embora sua intenção tivesse sido dar uma rápida au­to-biografia, sua fala tomou a maior parte da noite, após o que os homens começaram a fazer uma pergunta após a outra, algumas das quais cochichadas nos ouvidos por suas fascinadas esposas.

Finalmente o grande grupo ficou resumido a apenas alguns membros mais influentes da igreja e a conversa tornou-se mais íntima e relacionada ao sustento de Águia que Voa Alto no futuro. Águia que Voa Alto deu uma olhada pelo salão e falou baixo: "Se vocês quiserem mudar a agressividade dos índios, dêem-lhes Jesus Cristo. Somente Jesus pode mudar o coração e dar um novo rumo à vida de um homem". Ele parou o olhar no reverendo Hodge enquanto concluía: "Espero ser um dos que levará a mensagem do evangelho ao meu povo".

Um dos ouvintes falou: "Acho que os missionários estão fa­zendo um bom trabalho nesta área, sr. Águia. Parece que o me­lhor que o senhor poderia fazer é dar palestras para grupos de pessoas como nós - que querem ajudar, mas não sabem como. Nem preciso falar sobre a influência que sofremos ao ver um índio edu­cado como você. Você fala muito bem sobre o lado espiritual, mas seu povo precisa de alguém com um bom discurso para influenci­ar as pessoas a enviarem dinheiro para a escola, roupas para as crianças, livros, seja lá o que for necessário. Em minha opinião, o senhor é esse homem".

Águia que Voa Alto balançou vagarosamente a cabeça, di­zendo: "Respeito sua opinião, amigo, mas que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Concordo que haja necessidades físicas a serem atendidas, mas fazer o homem exte­rior obedecer sem ter mudança de coração não traz nada dura­douro para o índio". Ele fez uma pausa momentânea antes de acres­centar: "Eu poderia ter sido forçado a cortar meu cabelo e a me vestir como o homem branco, mas qual a vantagem disto? Qual a vantagem das roupas, das casas de madeira e da educação, se não houver esperança no coração? A necessidade de missionários para compartilharem o evangelho, de pastores para ensinarem o povo, é tão desesperadora quanto a necessidade de socorro material".

"Mas você não pode negar que as necessidades físicas são uma realidade."

Lembrando-se de suas botas com solas já tão desgastadas, Águia que Voa Alto balançou a cabeça concordando e disse: "A necessidade é real, mas é preciso haver equilíbrio. Os lakotas crê­em que a terra é sua mãe, que há um equilíbrio para todas as coi­sas e assim também há um equilíbrio nesta questão. E claro que as necessidades físicas precisam ser supridas, mas...".

LisBeth interrompeu delicadamente: "Acho que o que Águia que Voa Alto está tentando dizer é que o chamado pessoal dele é pela alma das pessoas".

Águia que Voa Alto sorriu para a irmã e aprovou com a cabeça.

Carrie Brown interrompeu: "Mas, sinceramente, Águia que Voa Alto, veja como você é necessário aqui, para falar da forma como você falou, pois tenho certeza de que a arrecadação de rou­pa e comida será um sucesso simplesmente porque você está aqui".

O reverendo Hodge apoiou: "Nossa menina Carrie deve ser a mais nova aqui, mas preciso dizer que concordo com ela. Os Amigos dos índios estavam procurando um orador e acho que já o encontramos".

Menina Carrie Brown. Carrie, que estava em pé, perto da por­ta, escutava e batia o pé com impaciência - bem sobre o pé de Everett Higgenbottom. Ele tinha ficado atrás dela a noite toda e na sala onde estava o ponche, insistindo para "beberem algo refrescante" juntos. Quando ela se dirigiu ao jardim, esperando en­contrar Águia que Voa Alto, Everett apareceu, tomou o seu braço e deu-lhe um botão de rosa. Agora, no momento em que Carrie lhe dera uma pisada no pé deixando-o branco, ela cochichou: "Ai, por favor, Everett!" e passou por ele. Escapando para o jardim, passou pela lateral da casa e subiu os degraus da escada na porta da cozinha e as escadas posteriores, até seu quarto. Ela tremia de raiva e frustração.

Nada está funcionando do jeito que eu queria. Nada. Carrie olhou ao redor de seu quarto, observando furtivamente pela janela a porta da frente, até que quase todos os convidados tivessem saí­do.

"Está tudo bem com você, Carrie?" Uma batida na porta e a voz preocupada de LisBeth afastaram-na da janela.

"Ah, LisBeth, não vá embora você também. Ainda não, por favor. Entre."

LisBeth concordou, acomodando-se no banquinho da pente­adeira. Levantando um espelho de moldura de prata, LisBeth co­mentou: "Nossa, você ganhou alguns presentes lindos pela for­matura, não?". Ela colocou o espelho no lugar antes de continuar: "Seu moço ficou chateado por não vê-la na hora de ir embora. Ele estava bem preocupado, com medo que você estivesse doente".

"Meu moço?", Carrie balançou a cabeça. "Ah, o Everett." Sentou-se em sua cama e falou: "Ele não é o meu moço."

LisBeth deu uma risadinha: "Com certeza não por falta de tentativa, não é?"

"Ele é tão criança."

"Da sua idade."

Carrie corou. "Você não entende o que eu quero dizer: Everett é bom, mas ainda precisa terminar os estudos e tem muito que crescer. Ele fica o tempo inteiro em volta de mim, LisBeth e eu de­testo isso!"

De repente LisBeth ficou séria e perguntou: "Você está preci­sando conversar sobre alguma coisa, Carrie?".

Carrie ergueu os joelhos e os abraçou, levantando e abaixan­do a cabeça.

"Você parece tão deslocada, infeliz. Há algo errado? Seus avós também estão preocupados. A sra. Jennings mencionou isto on­tem, à hora do chá."

Carrie levantou a cabeça abruptamente: "Eles não precisam se preocupar. É só que... falta tanto tempo ainda para eu...", ela suspirou. "Quando a mamãe e eu saímos de Santee, prometi que voltaria. Quero voltar a Santee, LisBeth, para dar aulas na missão, para... ", apertou os lábios.

LisBeth sorriu com indulgência: "Acho seu plano bom, Carrie", ela se sentou ao lado de Carrie antes de continuar. "Mas você já orou por estes planos? Já pensou nos seus avós? No Everett?"

Com a menção do nome de Everett, Carrie bufou: "Não preci­so orar sobre isso, LisBeth. Sei o que quero fazer. Sei o que preciso fazer. Tenho de ir para a Universidade para ser professora. Então poderei voltar a Santee". Carrie reclamou: "O problema é que tudo isso vai levar tanto tempo... As coisas mudaram, Águia que Voa Alto mudou e devo chamá-lo de sr. King... Vai levar anos até eu poder fazer qualquer coisa" .

LisBeth tentou entender a referência a Águia que Voa Alto na conversa de Carrie, mas não conseguiu. Então respondeu, cuida­dosamente: "Entendo sua impaciência, Carrie. Águia que Voa Alto também experimentou os mesmos sentimentos. Ora, essa noite mesmo ele estava lamentando os anos fora de Nebraska enquan­to é treinado para o pastorado".

Carrie sentou-se de prontidão e indagou: "Ele está saindo de lá para estudar? Saindo de lá de novo?".

"É, não é maravilhoso?", LisBeth retrucou, ignorando o desa­pontamento na voz de Carrie. "O reverendo Hodge disse esta noi­te, depois que você saiu, que entrou em contato com o dr. Riggs em Santee. Os dois têm certeza de que poderão conseguir uma bolsa para os próximos estudos dele, em teologia e treinamento pastoral. Tudo o que Águia que Voa Alto tanto precisa para continuar sua vida. E enquanto ele estiver estudando, poderá viajar para os Ami­gos e falar sobre as necessidades dos índios. Não é maravilhoso?'"

"Quanto tempo? Quanto tempo ele vai ficar fora?"

"Acho que por dois anos..."

Dois anos, pensou Carrie. Esperei metade de minha vida e agora terei de esperar pelo menos mais dois anos. E se... Seu coração bateu mais rápido ao considerar o horror de seu pensamento: E se ele encontrar outra pessoa? Ah, não, não pode ser. Deus não deixaria isto acontecer, depois de todo este tempo que esperei. Não, Deus não deixaria.

Carrie notou, de repente, que LisBeth tinha parado de falar e a observava com curiosidade, perguntando: "Há algo errado, Carrie?".

"Não, é claro que não. Não há nada errado. Estou feliz por Águia que Voa Alto. Será maravilhoso. E que..." A pouca idade tomou conta e Carrie perdeu a batalha ao tentar esconder seus sentimentos. "Dois anos é muito tempo, e se..."

Os olhos negros de LisBeth arregalaram-se repentinamente e ela entendeu. Admirada, disse: "Carrie Brown! Você está com medo que ele encontre alguma pessoa, é isso?".

Carrie ficou vermelha e LisBeth riu: "Minha nossa, menina, eu não imaginava que você tivesse uma queda...".

Carrie estremeceu e a interrompeu: "Não é uma queda, e eu não sou uma menina. Tenho dezessete anos". Carrie levantou, mostrando seu pequeno corpo de não mais de um metro e meio, e olhou aflita para LisBeth, que se apressou em corrigir.

"Desculpe-me, Carrie. Eu não tive a intenção..."

Carrie a interrompeu: "Ah, LisBeth, teve sim, bem como to­dos os outros. Ninguém me leva a sério. Sou nova e mimada, por isso ninguém me leva a sério, nem mesmo o Everett Higgenbottom, que me trata como se eu fosse uma bonequinha para ser arruma­da e levada a festas".

Carrie caminhou pisando duro pelo quarto e ficou olhando para fora, pela janela. Controlando a voz que tremia ela continuou: "Mas vou mostrar a todos eles. Vou ser uma mulher que dará or­gulho para Águia que Voa Alto. Vou para a escola enquanto ele estuda e estarei preparada para ensinar aos índios quando retornarmos. Vamos formar o nosso lar e vamos... ajudá-los!".

Virando-se para encarar LisBeth, Carrie, com os olhos azuis faiscando, repetiu: "Todo o mundo fala que sou uma bonequinha de porcelana linda, e isso me deixa doida da vida! Não sou uma boneca de porcelana, LisBeth, sou uma mulher". Parou por um ins­tante e quando continuou já havia se recomposto. Sua voz tornou- se mais macia ao falar: "LisBeth, eu era uma menininha quando encontrei Águia que Voa Alto pela primeira vez e achei-o o homem mais lindo do mundo. Naquele dia em que ele chegou à missão, em seu pônei velho, todos ficaram com medo, pois parecia selvagem e perigoso. Mas mesmo assim eu não conseguia entender por que eles tinham medo. Percebi o quanto ele estava cansado e machuca­do e, quando pedi que me deixasse ver aquele medalhão da sua mãe, pude vê-lo sorrindo por dentro, daquele jeito dele".

"Orei por ele durante estes anos todos e Deus fez algo dentro de mim neste tempo. Comecei a amá-lo mais. Primeiramente achei que eu amasse apenas a lembrança dele, mas agora em que o vi novamente e conversei com ele, amo-o mais do que nunca e...", Carrie corou e deu uma risada clara e feliz. "E ainda acho que ele é o homem mais lindo do mundo." Suas bochechas ficaram ver­melhas e ela escondeu as mãos pequenas antes de cochichar para LisBeth: "Quero me casar com ele, LisBeth".

LisBeth piscou, admirada. Carrie sentou-se na beirada da cama e pediu: "Você não vai contar isso para ninguém, não é, LisBeth? Todos iriam rir". Suspirou miseravelmente e prosseguiu: "Até Águia que Voa Alto vai dar risada se souber, mas quando eu for uma universitária formada e estiver lecionando no oeste, en­tão sei que ele me olhará como uma mulher e se esquecerá da menininha".

LisBeth abriu a boca para falar algo, mas fechou-a deliberadamente e balançou a cabeça antes de dizer: "Não vou contar para ninguém, Carrie, prometo".

Impulsivamente Carrie colocou sua mão sobre as mãos de LisBeth e apertou-as. "Você falou sobre orar a respeito destas coi­sas e está certa. Você vai orar por mim, por nós, LisBeth?"

Ela assentiu e respondeu: "E claro que vou, Carrie. Tenho orado por você durante anos e não vou parar agora, com certeza".

As duas mulheres desceram as escadas para a sala, e Águia que Voa Alto, olhando para cima, disse: "Está tudo bem com o meu pequeno Pássaro Vermelho?".

Carrie ficou vermelha de raiva e respondeu: "Seu pequeno Pássaro Vermelho cresceu e voou, sr. Jeremias Águia que Voa Alto King. E no lugar dele ficou Carrie Brown - formada na escola mé­dia - e aspirante a aluna da Universidade de Nebraska, se tudo correr conforme o planejado".

Com o anúncio súbito o avô de Carrie levantou as sobrance­lhas e soprou furiosamente o cachimbo. A avó tirou os olhos de seu tricô admirada, e Carrie apertou os lábios nervosamente es­perando por uma resposta deles.

LisBeth limpou a garganta propositadamente e Águia que Voa Alto levantou para se retirar. Depois que Águia que Voa Alto ajudou sua irmã a entrar na carruagem e pulou para perto dela, LisBeth observou que ele deu um longo olhar para as escadas da casa dos Jennings onde Carrie, parada, olhava a carruagem afas­tar-se até sair de vista.

 

O caminho do insensato aos seus próprio olhos parece reto, mas o sábio dá ouvido aos conselhos.

               Provérbios 12:15

 

Obrigada por ter vindo, sra. Callaway", disse Lucy Jennings enquanto recebia LisBeth em sua casa, cruzando a sala de visitas e levando-a até o jardim. "Espero não tê-la incomodado tanto." A sra. Jennings conduziu-a até um caramanchão mais afas­tado e as duas sentaram-se em um banco enquanto ela continuou: "É que hoje é o único dia antes de você partir em que podemos conversar sem a Carrie estar perto. Ela saiu com alguns dos cole­gas para um piquenique, se não me engano. Everett veio buscá-la em sua carruagem e não voltarão logo".

LisBeth sentou-se em silêncio, escutando Lucy Jennings di­vagar sobre alguns assuntos. Era claro que Lucy tinha algo de gran­de importância para discutir. Mesmo assim, ela dirigia a conversa para vários assuntos formais e sem importância até que, finalmen­te, as duas ficaram quietas, num silêncio desconfortável.

Após alguns momentos admirando cada tipo de flor do jar­dim, LisBeth perguntou: "Está tudo bem, sra. Jennings? A senho­ra mencionou que era importante a Carrie não participar desta conversa. Espero não haver nenhum problema com ela, mas se houver e eu puder ajudar de alguma forma...".

"Problema?", a sra. Jennings respondeu com um tremor na voz. "Problema? Com a Carrie? Não, não é nenhum problema." E continuou, escolhendo cuidadosamente as palavras: "A Carrie nunca foi um problema, sra. Callaway. Ela tem sido uma alegria para seu avô e para mim desde o dia em que chegou aqui". Deu uma risadinha. "É claro que é uma alegria cheia de energia e eletri­cidade, mas nunca tivemos um momento de dificuldade com ela." A sra. Jennings suspirou e levantou-se antes de continuar. Come­çou a andar devagar para lá e para cá sob o caramanchão. Colheu uma rosa e começou a virá-la na mão enquanto concatenava seus pensamentos.

"LisBeth, posso chamá-la de LisBeth?", perguntou a sra. Jennings, que continuou a falar, quando LisBeth concordou com a cabeça: "Como eu já disse, Carrie tem sido uma alegria na nossa vida. No entanto, nunca foi uma criança fácil. Foi sempre ativa, cheia de energia, que fazia milhões de perguntas e nem sempre aceitava as respostas recebidas. Acho que ela tem tido uma vida feliz conosco". A sra. Jennings sentou-se novamente ao lado de LisBeth e continuou: "Mas ela sempre manteve o sonho de um dia voltar para a Missão Santee. No início Walter e eu pensávamos que era apenas coisa de criança, já que a única casa que ela teve foi lá; um desejo natural de ter a vida do jeito que sempre tinha sido, um desejo de retornar ao lugar onde a memória de sua mãe estaria mais viva. No entanto, à medida que Carrie foi amadurecendo, sempre nos lembrou de que um dia voltaria para Santee".

A sra. Jennings derrubou a rosa no chão e virou-se para LisBeth, com seus olhos castanhos apertados, falando honesta­mente: "O Walter e eu somos cristãos sinceros, LisBeth. E a idéia de um de nossos filhos ou netos entregarem sua vida ao Senhor nos agrada. Normalmente nós encorajaríamos a Carrie a ir em fren­te". Ela fez uma pausa antes de continuar: "Mas neste caso estamos preocupados que o seu motivo possa não ser o simples desejo de servir ao Senhor aonde Ele a mandar".

LisBeth assentiu com a cabeça. "Acho que sei o que vai dizer, sra. Jennings. A Carrie não se entregou sinceramente para servir ao Senhor onde quer que Ele desejar usá-la, mas já decidiu que o Senhor vai usá-la em Santee."

Lucy Jennings olhou para LisBeth e deu um longo suspiro an­tes de prosseguir: "Ela é uma menina forte demais naquilo que quer, LisBeth, e eu já a aconselhei a orar pedindo a direção de Deus...".

LisBeth interrompeu a sra. Jennings: "E ela argumenta que não precisa orar, pois já sabe o que o Senhor deseja para sua vida".

A sra. Jennings balançou a cabeça, concordando, e continuou: "Vejo que já conversou com ela. Eu deveria ter imaginado que ela compartilharia seus planos com você". Com dificuldade a sra. Jennings prosseguiu, escolhendo bem cada palavra: "A Carrie mencionou outros planos a você, LisBeth?".

LisBeth hesitou, com dúvida quanto ao que deveria falar.

"Posso falar francamente, LisBeth?" Lucy Jennings abaixou a voz e, quando LisBeth assentiu com a cabeça encorajando-a, pros­seguiu: "Creio que Carrie quer retornar a Santee, pois crê que será capaz de fazer seu irmão apaixonar-se por ela". Como LisBeth não demonstrou surpresa com a revelação, Lucy Jennings foi em frente: "Acho que a memória do seu irmão tornou-se uma obses­são para ela, que criou um contos de fadas". De repente Lucy es­tremeceu e pegou na mão de LisBeth, apertando-a. "Por favor, LisBeth, não me entenda mal, pois não há intolerância alguma de minha parte. Pelo que tenho ouvido e observado, o sr. King é um homem bom. No entanto..."

LisBeth interrompeu-a: "No entanto, Águia que Voa Alto nunca demonstrou interesse por Carrie e a senhora está preocu­pada que ela esteja correndo para Nebraska para encontrar uma decepção. Talvez fazer-se de boba e prejudicar seu relacionamen­to imaturo com Deus".

Lucy balançou a cabeça com tristeza. "E essa última preocu­pação é a maior, LisBeth. Walter e eu mimamos demais a Carrie, admito isso. Não conseguimos agir diferente. Ela é uma menina agradável, linda, talentosa, doce, tudo o que os avós desejam. No entanto, temo que nós a tenhamos prejudicado não a preparando para a realidade da vida. Ela crê em Deus, LisBeth mas é um Deus que..." Lucy suspirou, "acho que Deus para a Carrie é bem como o avô dela - um velho educado que se agrada em dar tudo o que ela quer." A sra. Jennings pausou e olhou para LisBeth seriamente: "Tenho medo do que possa acontecer com a Carrie quando Deus não fizer o seu conto de fadas tornar-se realidade".

LisBeth concordou: "Será um choque, com certeza". Mudan­do um pouco o foco da conversa, LisBeth acrescentou: "Sei que Águia que Voa Alto gosta muito da Carrie, sra. Jennings, mas só percebo uma sincera amizade". LisBeth pausou antes de continu­ar. "Acho que a senhora tem razão quanto aos sentimentos da Carrie e também tenho medo de uma decepção." Colocando uma mão sobre o braço da sra. Jennings, LisBeth acrescentou: "O que posso fazer para ajudar?".

A sra. Jennings abaixou-se para pegar a rosa. Algumas péta­las caíram no chão e, enquanto o perfume da rosa enchia o ar, ela prosseguiu: "Você estava aqui quando a Carrie anunciou seus pia­nos de ir para Nebraska de uma forma tão abrupta neste outono. Ela quer entrar na Universidade lá e então retornar a Santee como conselheira ou professora. Para seu espanto, ela parece perceber que é nova demais e inexperiente, que ainda precisa crescer. Mas quer estar em Nebraska, perto de Santee. Ela já escreveu para a Universidade e até para Augusta Hathaway pedindo um empre­go no hotel novo dela".

A sra. Jennings sorriu diante do olhar de surpresa de LisBeth e acrescentou: "Eu lhe disse que a Carrie tem um jeito de conse­guir tudo o que deseja. Ela já tinha tudo tão bem planejado antes de falar comigo e com Walter que não sabíamos o que dizer, e ela entendeu nosso silêncio como uma permissão".

LisBeth pensou bem a respeito da revelação antes de respon­der com sinceridade: "Tia Augusta é a pessoa perfeita para cuidar da Carrie, sra. Jennings. Ela a fará trabalhar o suficiente para mantê- la distante de qualquer travessura e cuidará para que a Carrie par­ticipe da igreja", disse rindo, "e ela é capaz de intimidar o bastante qualquer companhia inadequada que tente aproximar-se de Carrie".

Lucy Jennings sorriu. "E bom ouvir isso, LisBeth. O Walter e eu esperávamos que a Carrie fosse ficar em St. Louis e freqüentar uma escola particular. Nós temos os fundos para isto, mas a Carrie fica impassível no momento em que o assunto é trazido à baila. Além de tudo, acho que é exigir demais da sra. Hathaway."

LisBeth riu. "Tia Augusta vai adorar, sra. Jennings. Desde a fundação da Universidade por lá ela tem sido uma grande auxiliadora e vai adorar ser responsável por uma aluna do sexo feminino. Vai adorar também ter alguém tão agradável como a Carrie sob suas asas maternais. Se há alguém para conseguir lidar com a Carrie, sra. Jennings, é a Augusta."

"Espero que você possa estar em contato com a Carrie, LisBeth", Lucy fez uma pausa, com dúvida. "Seu irmão a visita com freqüência?"

LisBeth balançou a cabeça negativamente. "Ele nunca foi à nossa casa e ficará longe para estudar durante pelo menos dois anos. O dr. Riggs disse que providenciará trabalho no tempo do verão, para ajudar nas finanças de Águia que Voa Alto. Jim e eu geralmente visitamos Santee duas vezes por ano e a Carrie vai querer ir, mas não haverá muita possibilidade para ela..." LisBeth hesitou antes de continuar: "Vamos fazer o melhor que pudermos para acompanhar a Carrie, sra. Jennings. O fato de ela freqüentar a Universidade lhe abrirá os horizontes. O nosso pastor é muito interessado em jovens e sei que ele causará um impacto na Carrie também. Ela terá muita oportunidade mesmo de encontrar uma verdadeira - é, uma verdadeira sabedoria do coração". LisBeth abai­xou a voz e continuou: "Lembro-me de como era para mim acre­ditar nas coisas porque eu tinha crescido sendo ensinada a acredi­tar nelas, sra. Jennings, e acho que é isto o que está acontecendo com a Carrie", LisBeth deu uns tapinhas na mão da sra. Jennings. "Mas a Carrie tem um exemplo maravilhoso na senhora e no se­nhor Jennings, e nosso Senhor Deus usará isso. Além do mais, não tenho dúvida de que no momento apropriado Ele levará a Carrie a um entendimento mais pleno do que significa segui-Lo."

Lucy Jennings ficou admirada com as lágrimas que, de re­pente, encheram seus olhos. Formulou uma resposta: "Espero que você esteja certa, LisBeth, e oro diariamente por isto".

LisBeth assegurou-lhe: "A senhora está fazendo a coisa certa pela Carrie, sra. Jennings. A Universidade de Lincoln ainda é nova, com poucos alunos, mas com homens excelentes, pelo menos é o que tia Augusta diz. E a Carrie terá uma boa formação lá e não estará infeliz como ficaria caso estivesse em St. Louis. E haverá tempo para Deus trabalhar na vida dela, fazendo-a crescer no co­nhecimento do plano d'Ele e abandonar o seu próprio plano".

"Espero que você esteja certa, LisBeth. Meu marido e eu te­mos orado por direção e parece que a única forma de evitar uma revolta é permitir que ela vá para Nebraska. Poderemos manter contato. Pelo que você está dizendo, a sra. Hathaway é bem capa­citada para o desafio de cuidar de uma jovem e...", a sra. Jennings suspirou, "... tenho medo de que a Carrie esteja assumindo desa­fios muito grandes antes de ser ainda uma mulher. É tão difícil largar dos sonhos de criança e dar os passos em direção às respon­sabilidades de adulto..."

LisBeth respondeu com sinceridade: "Vamos fazer tudo o que pudermos, sra. Jennings; a senhora pode ficar tranqüila".

 

No dia em que iriam deixar St. Louis, LisBeth e Águia que Voa Alto foram convidados para tomar o café da manhã na casa da família Jennings. Carrie conversou alegremente sobre seus pla­nos de estudar em Nebraska e insistiu para que ela e seus avós acompanhassem LisBeth e Águia que Voa Alto até a estação.

Durante o café Águia que Voa Alto permaneceu quieto e dis­tante. Na estação ele evitou o máximo possível ficar no meio do grupo e somente no último momento antes da partida ele reapa­receu. Ele cumprimentou a família Jennings e Carrie curvando-se formalmente e depois ajudou LisBeth a entrar no trem. Ao cruzar correndo os trilhos para entrar no seu próprio trem, deu um ace­no aos Jennings. Carrie, usando um vestido azul que fazia seus olhos brilhar, estava silenciosa ao lado dos avós. Só quando o trem partiu e os avós viraram-se para sair é que ela apertou os lábios com os dedos e mandou um beijo na direção dele.

Águia que Voa Alto isolou-se no vagão e nem viu a Estação da União desaparecer na distância, pois apressou-se para um banco vazio, abriu seu Novo Testamento e começou a ler. Mas logo as palavras começaram a dissipar-se e sua mente ficou vagando, com a imagem da uma pequena figura bem vestida em uma roupa azul, mandando um beijo. Jeremias Águia que Voa Alto King pertur­bou-se ao perceber que tinha sentido prazer ao pensar naquela cena.

 


A ira se abriga no íntimo dos insensatos.

             Eclesiastes 7:9

 

O trem balançou. Águia que Voa Alto levantou os olhos de sua leitura e percebeu que teria problemas. No outro lado do corredor estava sentado um homem grisalho e gordo, com um pedaço de tabaco na boca e manchas de várias refeições na frente toda de sua camisa. O homem arrotou alto, espreguiçou-se e, en­quanto acendia um cigarro, deu uma olhada para ele. Seus olhos se apertaram enquanto observava Águia que Voa Alto.

Rapidamente Águia que Voa Alto colocou o Novo Testamen­to no bolso e "armou-se" com um jornal. Mas nestes casos jornais não ajudam muito.

Gilbert Slater já tinha percebido algumas qualidades no ou­tro passageiro que, em sua visão, não combinavam nada. Um ín­dio impecavelmente vestido era algo que não fazia sentido em sua mente.

Logo que Águia que Voa Alto abriu o jornal, Slater puxou-o. Deu uma tragada em seu charuto e aspirou a fumaça em direção ao rosto de Águia que Voa Alto, que piscou para não deixar escor­rer lágrimas e conseguiu segurar a tosse.

"Bem", Slater quase gritou para ninguém em particular, "ve­jam só um índio aqui tentando ser branco." Salter olhou os deta­lhes da vestimenta de Águia que Voa Alto com atenção especial para as botas lustrosas. "Eu não sabia que iria fazer minha viagem para Chicago com um fugitivo da reserva", gritou Slater raspan­do a sujeira de sua botas de forma que caísse nos pés de Águia que Voa Alto.

Como Águia que Voa Alto não fez nenhum movimento, Slater esticou-se para trás, deu outra tragada e ficou em silêncio por um momento. Em sua obtusidade, tinha de esforçar-se para encon­trar as palavras corretas para montar outro insulto. Naquele mo­mento Águia que Voa Alto deu uma olhada pelo trem tentando encontrar pessoas simpáticas - alguém que fingisse conhecer - para ter uma desculpa e mudar-se de lugar. Infelizmente os únicos olhos simpáticos no trem eram femininos e há muito tempo ele apren­dera a não se dirigir a uma mulher a quem não tivesse sido pre­viamente apresentado. Então preparou-se para o que viria e Slater não o desapontou.

"Você entende o que eu falo, menino?", Slater perguntou, soltando fumaça no rosto de Águia que Voa Alto. "Você fala in­glês, ou só parece com branco?"

"Falo inglês."

"Ele fala inglês!", Slater gritou para todos do vagão. "Veste- se como branco e fala como branco. Próxima parada, vamos ver se ele luta como branco também." Jogando cinzas nas botas de Águia que Voa Alto, Slater desafiou-o: "Que tal, selvagem? Você luta que nem branco? Ou se esconde detrás de um branco e atira nele en­quanto ele não está olhando, que nem o resto dos seus irmãos?".

Águia que Voa Alto falou baixo: "Não tenho conversa com você".

O comentário deixou Salter ainda mais bravo. Seu rosto avermelhou-se e os olhos apertaram-se enquanto falava: "Bem, eu tenho uma conversa com você, selvagem. Antes de eu te baixar do serviço militar, fiquei cheio de ganhar as batalhas contra você e os do seu tipo".

Águia que Voa Alto respirou profundamente. Tinha coloca­do uma mão em cada joelho e ao apertá-los orava pedindo poder sobrenatural para controlar sua raiva. Estava surpreso e um pou­co assustado com a ira que crescia dentro dele. Deu uma olhada ao redor, orando para que encontrasse alguma forma de escapar. Alguém estava parado no corredor e com uma voz grave falou: "Com licença, senhor, acho que minha irmã e eu ouvimos sua palestra em St. Louis". Enquanto Salter ficou olhando, o estranho apertou a mão de Águia que Voa Alto dizendo: "Woodward. George Woodward". O estranho virou-se e continuou: "E esta é a minha irmã, Julia". Após uma rápida pausa, Woodward acrescen­tou: "O senhor se importaria de fazer-nos companhia num café, no vagão restaurante?".

Balançando a cabeça em acordo e gratidão, Águia que Voa Alto levantou-se e seguiu George Woodward e sua irmã Julia até o va­gão restaurante. Logo que se sentaram Águia que Voa Alto apertou a mão de George novamente dizendo: "Jeremias Águia que Voa Alto King. Obrigado por me tirar daquela situação. Geralmente consigo evitá-las, mas hoje tive de embarcar minha irmã no outro trem e cheguei tarde demais para poder escolher um assento com critério. Acho que eu deveria ter ficado lá. Às vezes é preferível viajar no espaço entre os vagões a encontrar homens como esse".

Os olhos castanhos e calorosos de Julia Woodward demons­travam raiva quando ela comentou: "Você quer dizer que esse tipo de coisa sempre acontece?"

"O suficiente", foi a resposta.

Julia olhou para o irmão e explodiu: "Olha só, George, é isso o que eu queria dizer na semana passada; há selvagens ignoran­tes em todas as culturas!". Mas no mesmo instante em que soltou as palavras desejou que elas não tivessem saído de sua boca. Ver­melha de raiva, ela se desculpou: "Ai querido, me desculpe, eu não tinha a intenção...".

George interrompeu: "Julia e eu somos membros do comitê dos Amigos dos índios de Boston, sr. King. Minha irmã partici­pou de uma discussão particularmente calorosa na semana passa­da com um cavalheiro, não diferente desse que encontramos aqui". Woodward sorriu carinhosamente para a irmã.

Águia que Voa Alto disse: "Desculpem-me se não me lembro de vocês em minhas palestras em St. Louis pois eu estava sobre­carregado lá, com tantas pessoas novas".

Julia comentou rindo: "Ah, você falou em St. Louis?". Deu uma piscadinha para o irmão: "George e eu armamos uma trama para tirá-lo daquela situação difícil".

"Então estou duplamente em débito com vocês", replicou Águia que Voa Alto. Enquanto o café foi servido, ele contou sobre sua presença em St. Louis.

"Você vai falar em Boston também?", George quis saber.

"Na verdade, vou passar o verão em Wisconsin, trabalhando em uma fazenda. O plano eu chegar a Boston só em tempo para a matrícula do curso e para o começo dos meus estudos em Harvard. Acho que não haverá muito tempo para palestras embora eu este­ja desejando que Deus me proporcione oportunidades para isso."

Os três pediram o almoço e enquanto esperavam George per­guntou: "Você poderia pagar seu débito contando-nos como foi o processo de sair do oeste para St. Louis?".

Julia deu uma risada baixa e calorosa: "George Woodward, se eu tivesse feito essa pergunta você ia me condenar a noite toda pela curiosidade". Virando-se para Águia que Voa Alto, ela acres­centou, com muita conotação: "E eu estou em débito com meu irmão por poupar-me de ser indiscreta. Por favor, sr. King, o se­nhor nos perdoa?".

Grato por mais uma desculpa para postergar sua volta à com­panhia de Slater, Águia que Voa Alto contou mais uma vez sua ida até Santee. "Quando terminei meus estudos em Santee, ansia­va por aprender mais - mais sobre Deus e mais para entender o mundo novo que havia sido jogado à minha frente. O dr. Riggs conseguiu matricular-me no departamento preparatório do Beloit College, em Winconsin. Dou graças por ele ter conseguido tam­bém uma bolsa do governo para ajudar com minhas despesas. Fiquei três anos em Beloit, onde estudei Geografia, História, Ma­temática, Gramática, Biblioteconomia e Inglês. Observava como os outros alunos se vestiam e falavam e estudei as pessoas tanto quanto os livros."

George deu um sorriso largo e falou: "Bem, eu poderia dizer que seu estudo sobre as pessoas foi bem-sucedido já que você con­seguiu um tour de palestras".

Águia que Voa Alto disse: "Era tanta coisa para aprender... eu estava numa cultura alienígena. Eu tinha até de escrever bilhetinhos para mim mesmo com o que falar ao ser apresentado a alguém, para lembrar-me de apertar a mão das pessoas ao cumprimentá-las, com frases para quando alguém estava sain­do...".

A voz de Julia soou com simpatia: "Você devia sentir-se pés­simo".

Os olhos de Águia que Voa Alto sorriram calorosamente e ele concordou, balançando a cabeça. "Solitário, mas não péssimo, pois o Senhor ajudava a refugiar-me em Sua Palavra. Foi um tempo difí­cil, mas de crescimento. Fiquei mais perto de Deus e talvez um pouco mais perto do tipo de homem que Ele deseja usar no mundo."

O almoço foi servido e George, ignorando a comida, pergun­tou: "E o que aconteceu depois de Beloit?".

"Outra escola. O dr. Riggs mostrou-me o que fazer e arru­mou tudo para que eu fosse para o John Knox College, em Illinois."

"E o que você estudou em John Knox, sr. King?", Julia quis saber.

Águia que Voa Alto limpou a garganta e hesitou: "Havia muitas coisas para eu aprender em John Knox".

"Tenho certeza disso," falou Julia com um sorrisinho, virando-se para George e fazendo um comentário sobre o fato de John Knox ser uma Universidade mista.

Foi somente após umas duas horas que os Woodwards e Águia que Voa Alto finalmente colocaram os guardanapos sobre a mesa e voltaram ao vagão de passageiros. Aliviado, Águia que Voa Alto viu que Gilbert Slater roncava alto, com a cabeça encos­tada na janela suja do vagão. Quando os Woodwards insistiram para que Águia que Voa Alto se assentasse em um lugar vazio, ele pegou seu jornal e alegremente dirigiu-se para o final do vagão onde George se assentara à frente da irmã, de forma que Águia que Voa Alto não teve outra escolha que não se sentar ao lado dela.

Finalmente o trem fez sua primeira parada e Águia que Voa Alto esperou até que o último passageiro desembarcasse para en­tão levantar-se e sair do trem. Desceu a escada que acabava ao longo dos trilhos, em frente à plataforma, mas sua tentativa de evitar um encontro com Gilbert Slater falhou.

"Esqueci de dizer que eu era um rastreador no exército", rosnou Slater, pressionando Águia que Voa Alto contra a lateral do vagão.

"Não tenho conversa com o senhor", Águia que Voa Alto disse grosseiramente.

"É aí que cê você engana, selvagem", Slater falou apertando os lábios.

"Por que você quer brigar comigo? Não fiz nada para agredir você."

"Tenho tanta coisa para acertar com você que levaria a noite inteira", foi a resposta. "Mas isso aqui só dá para uns vinte minu­tos e tenho de cuidar do meu serviço. Aqueles amigos dos selva­gens não estão por aqui para livrar você?"

Bem no momento em que Águia que Voa Alto levantou a mão para tentar argumentar novamente, Slater a agarrou e jogou-o de costas no chão. Esfregando o nariz, Slater ficou em pé sobre Águia que Voa Alto e cuspiu fumo no rosto dele.

Slater deu um chute nas costelas de Águia que Voa Alto fa­lando: "Este é pelo meu irmão que vocês, selvagens, mataram". Dobrou-se sobre Águia que Voa Alto, colocou a mão no rosto dele e chutou-o novamente completando: "E esse é pelos dois dedos faltando aqui na minha mão, que perdi congelados no inverno de 68. Estava rastreando um bando de corvos nas montanha quando a temperatura ficou quarenta graus negativos. Metade da minha companhia teve partes do corpo amputadas e dois morreram" . Slater agarrou a camisa de Águia que Voa Alto e puxou-o, apertando-o contra o trem. Fechou o punho e bateu forte no... lado do vagão. Águia que Voa Alto tinha desaparecido.

Slater urrou de dor quando dois braços vindos de trás o cer­caram e torceram os seus braços. Espremendo o ar para fora do corpo gordo de Slater, Águia que Voa Alto cochichou com raiva: "Não vou brigar com você. Você falou que tem uma lista de pesso­as que quer vingar". Águia que Voa Alto apertou mais ainda e Slater gemeu. "Você quer que eu dê a minha lista? Quer que eu lhe conte sobre o dia em que estava dormindo em minha tenda e os soldados foram até minha tribo, passando por uma bandeira ame­ricana que nosso cacique tinha levantado em honra a um tratado que acabara de fazer, e começaram a atirar? Quer o nome das mi­nhas irmãs, mães, crianças, de todos que morreram?"

Águia que Voa Alto apertou Slater mais e mais forte, perce­bendo que estava quase quebrando as costas do homem em seu joelho. Com um esforço tremendo obrigou-se a soltar Slater, ba­tendo seu corpo contra o vagão e fazendo-o girar pelo braço. Co­locou seu próprio rosto pertinho do rosto de Slater e ainda apertando-o contra o trem falou: "Poderia contar mais para você. Mas há uma forma melhor que a vingança".

Slater cuspiu novamente no rosto de Águia que Voa Alto res­mungando palavrões imundos. Com o ódio despertado, Águia que Voa Alto liberou um pouco da raiva que estava represada em seu interior. Apertando Slater pela garganta, ele cochichou agourentamente: "Quero que saiba de uma coisa. Estou vestido como branco e estou indo para uma escola de branco, creio no mesmo Deus dos brancos, mas ainda sou um lakota". Apertou mais ainda, fazendo que o restante do ar de Slater saísse. "Lem­bro-me muito bem de como matar um homem". Águia que Voa Alto apertou momentaneamente a passagem de ar antes de soltar o homem. Slater escorregou para o chão, tossindo, puxando ar e esfregando o pescoço.

Águia que Voa Alto abaixou-se ao lado de Slater e falou bai­xinho: "Estou voltando para o trem e vou para Chicago. Provavel­mente jantarei com meus amigos no vagão restaurante. Não quero vê-lo novamente".

Águia que Voa Alto levantou-se e limpou a poeira do casaco. Virou-se de costas para Slater e subiu a escada. Cruzando a plata­forma, foi até a estação, onde tentou limpar qualquer vestígio do encontro.

Quando os passageiros voltaram, Julia insistiu para que Águia que Voa Alto sentasse ao lado dela novamente. Ela e o irmão per­ceberam que Slater não estava no trem e fizeram um comentário alegre a respeito. Águia que Voa Alto ficou quieto e somente quan­do os três se levantaram para irem jantar é que George imaginou que Águia que Voa Alto tinha alguma coisa que ver com a ausên­cia de Slater. Águia que Voa Alto movia-se cuidadosamente, man­cando visivelmente ao puxar a cadeira para Julia no vagão restau­rante. Sentou-se devagar, tentando proteger as costelas machucadas. Cruzando o olhar com George, ele encontrou enten­dimento e respeito no olhar brilhante do novo amigo.

 

Sede mutuamente hospitaleiros sem murmuração.

                 I Pedro 4:9

 

Carrie Brown embarcou no trem Chicago, Burlington & Quincy para Lincoln, Nebraska, no dia 15 de junho de 1883. Walter e Lucy Jennings acompanharam a neta na viagem, pois não queriam que ela seguisse para tão longe sozinha. Quando o trem parou na nova estação gótica de Lincoln, Nebraska, Augusta Hathaway os esperava. Ela ordenou que um jovem carregasse a bagagem deles até o hotel. Carrie parou na estação para, sem po­der acreditar, fitar o hotel de três andares do outro lado da rua. O prédio era de tijolo com cártulas sobre cada janela e uma entrada muito imponente que causava boa impressão nos hóspedes da Casa Hathaway.

Augusta deleitou-se com a admiração de Carrie. "Esse é o meu novo hotel, Carrie. É completamente diferente daquele que você lembrava, não é?". Augusta não se preocupou em esconder a satisfação e continuou: "Temos três andares e podemos acomodar trezentos hóspedes, e ainda me arrependi de não ter feito mais quartos". Augusta virou-se para o casal: "Lincoln está se tornan­do quase uma metrópole. Cerca de vinte trens de passageiros che­gam aqui a cada dia e o número está crescendo a cada mês. Temos telégrafo e estou numa lista de espera para conseguir um telefone brevemente. Aquecimento a vapor, luzes a gás - tudo o que é mo­derno chegou a Lincoln desde que você saiu daqui, Carrie. Não estamos mais numa vila do campo. É claro que não somos uma St. Louis ainda, mas estamos caminhando rapidamente". Os três atra­vessaram a rua enquanto Augusta explicava: "Alguns como eu crêem que em menos de dez anos teremos cem mil habitantes. As escolas estão crescendo e o comércio é bom".

Já do outro lado da rua larga, Augusta apontou os progressos explicando: "Isso ali, em volta da estação, virava um mar de lama quando chovia. Mas a pavimentação acabou com o problema e as calçadas melhoraram ainda mais". O grupo entrou no hotel e pa­rou rapidamente para que Augusta apresentasse Silas Kellum.

"Silas se auto-intitula 'meu modesto secretário', mas está aprendendo tudo sobre como administrar um hotel para comprá-lo de mim quando eu ficar velha."

Silas fez uma saudação vigorosa e deu uma sapateada dizendo: "Sim, senhora, é isso mesmo". Abaixou a mão então e curvou-se com pompa para cumprimentar o casal: "Bem-vindos à Casa Hathaway. Nós lhes garantimos satisfação ou seu dinheiro de volta".

Augusta concordou balançando a cabeça: "Bom menino. Esta é a lição número um nos negócios, Silas. O hóspede tem sempre razão. No dia em que eu esquecer que o bem-estar de meus hós­pedes é minha maior preocupação, a Casa Hathaway estará cami­nhando para...".

"Caminhando para perder o lugar para o Hotel Lindell", com­pletou rapidamente Silas.

"Morda a língua, jovem!", ordenou Augusta fingindo-se de brava. "Nosso hotel é o maior de Nebraska, porém com o serviço mais informal. A Kate Martin do Lindell está atrás dos políticos há anos, mas eles ainda se reúnem na minha sala de jantar."

Silas acrescentou: "Enquanto tivermos as irmãs Schlegelmilch na cozinha".

Augusta finalmente parou de vangloriar-se e conduziu a fa­mília Jennings para a parte do fundo do hotel, entrando por uma porta onde se lia: "Privativo".

"Este é o meu apartamento", explicou ela. "Eu vivo falando que vou arrumar uma casa na cidade, mas na verdade não quero mudar. Moro no hotel há tantos anos que nem sei o que faria se não ouvisse meus hóspedes andando para lá e para cá e se não pudesse eu mesma coordenar o refeitório."

A família entrou nos domínios particulares de Augusta e foi bem recebida pelo cheirinho de batatas fritas e rosbife.

"Que cheirinho bom!", observou Walter.

"E a comida da Cora, sr. Jennings. Nós estamos no fundo do hotel e a cozinha não fica longe. Deus tem me abençoado com duas irmãs que estão entre as melhores cozinheiras de Lincoln", explicou Augusta. 'Acho que vocês gostariam de ver o quarto da Carrie primeiro, depois vou lhes mostrar a parte de cima e vocês poderão se acomodar antes do jantar."

Augusta levou os três a um quarto que dava diretamente na sala de estar dela. No mesmo lado da única janela do quarto havia uma cama de nogueira e uma penteadeira do mesmo jogo, com mármore em cima. Enquanto Carrie olhava o quarto, Augusta fa­lou: "Eu ia mandar trazer um acolchoado e travesseiros novos, Carrie, mas achei que seria melhor você mesma escolher do seu gosto. E se as cortinas não combinarem, podemos colocar outra. Isso tudo faz parte da minha recepção a você". No centro do quar­to havia sido colocada uma mesa redonda. "Quando quiser, po­derá estudar aqui, longe das distrações. Achei que só uma escrivaninha seria pouco." Augusta afastou-se do quarto deixando o casal e Carrie apreciar o recinto, o que eles fizeram rapidamente antes de começarem os comentários elogiosos.

Augusta continuou: "Conversaremos sobre os detalhes mais tarde, Carrie, mas você pode reunir colegas aqui no hotel quando quiser; é só me avisar uns dias antes caso planeje um encontro para um grupo maior de colegas. Eu tinha pensado em lhe dar um quarto permanente na parte de cima, que seria maior, mas sou egoísta e quero você por perto". Augusta sorriu com sinceridade, acrescentando: "Tenho me sentido sozinha desde que LisBeth e Sarah saíram e estava esperando ansiosamente por uma jovem que eu pudesse mimar de novo, e espero poder ter bastantes jo­vens aqui para me distrair".

Lucy e Walter tinham ficado chateados com Augusta, mas agora estavam visivelmente relaxados e pensando, cada um de­les, que afinal a idéia de permitirem que Carrie retornasse a Nebraska era boa. Depois de alguns rápidos mas sinceros comen­tários a Augusta, eles aceitaram a sugestão de subir para o quarto deles, desfazer as malas e dormir um pouco antes do jantar.

Carrie voltou a seu quartinho e começou a desfazer a baga­gem, arrumando as coisas com entusiasmo enquanto Augusta lia algumas mensagens deixadas para ela durante a espera do trem na estação. Quando voltou para seu apartamento, deu uma olhadinha no quarto de Carrie e viu-a sentada à pequena escrivaninha de nogueira circassiana, colocada embaixo da janela que ficava sobre a entrada de serviço do hotel.

Quando Augusta apareceu em sua porta, Carrie olhou-a com um sorriso brilhante e disse: "Sra. Hathaway, não tenho como agradecer por tudo o que já fez por mim. Quero que saiba que tenho a intenção de trabalhar muito e não a deixarei arrepender- se de ter me recebido aqui".

Atravessando a pequena distância entre que as separava, Augusta deu um tapinha no ombro de Carrie e disse: "Sei que você fará tudo de uma forma maravilhosa. Fiquei bem impressio­nada pelo fato de você ter tomado a iniciativa de escrever-me e procurar uma colocação antes de matricular-se na Universidade. Isto mostra muito bem que você quer encontrar seu próprio cami­nho neste mundo".

"Quando começarei a trabalhar, sra. Hathaway?"

"Bem, achei que você gostaria de se divertir um pouco em Lincoln antes de começar, Carrie. Quero levar vocês para conhe­cerem a cidade, passar por todas as construções da nossa metró­pole em formação, mostrar a seus avós tudo o que eu puder antes de voltarem e então, jovem, você começará a trabalhar. Há muita coisa a ser feita: lavanderia, limpeza dos móveis, lavagem das ja­nelas, serviço de mesa, de cozinha... a lista não tem fim. No mo­mento preciso desesperadamente de alguém para deixar a recep­ção e o refeitório impecáveis. Mais tarde conversaremos sobre os detalhes, querida. No momento divirta-se arrumando suas coi­sas. Seus avós descerão daqui a uma hora mais ou menos e combi­nei com o Joseph para nos levar para um tour pela cidade."

 

O idoso Joseph Freeman dirigiu a carruagem que transporta­va os Jennings por Lincoln, Nebraska. Foram ao lado leste, na rua P, virando para o lado norte na décima esquina e avistando assim, pela primeira vez, a Universidade. Era uma construção de três andares, sobressaindo por sobre as casas que apenas recentemen­te começavam a aproximar-se da propriedade da Universidade que funcionava, naqueles dias de 1883, como pasto para duas va­cas leiteiras.

Augusta riu comentando: "Há um movimento por parte dos que são de fora para que coloquem cerca e evitem isso. Mas a Universidade é como tudo mais por aqui. Começou a partir do desejo de um povo que se recusa a admitir que Nebraska é um 'deserto inútil'. E como tudo mais, a Universidade protege a pai­sagem rural natural. Duas fileiras de árvores haviam sido planta­das há anos, mas os gafanhotos as destruíram em uma tarde. No momento estamos tirando o capim do solo e tentando manter o gado fora. Mas o prédio é bom, tem uma capela e vocês gostarão de saber que a participação nos cultos é obrigatória". Augusta contava nos dedos enquanto enumerava as qualidades do prédio da Universidade. "Há vinte salas de aulas, uma sala de leitura, salas para a sociedades literárias, música e pintura, um laborató­rio, uma recepção para mulheres e uma sala de impressão", to­mou um ar, "e um lugar chamado cabine, onde eles conservam as espécies biológicas, geológicas e botânicas."

Walter Jennings disse: "Estou impressionado, sra. Hathaway, não tanto pela Universidade, mas pelo seu conhecimento em rela­ção à sua fundação e funcionamento".

"Sou uma cidadã muito participante, sr. Jennings, e a funda­ção da Universidade enfrentou muitas controvérsias", explicou Augusta. "Na década de 70, quando os gafanhotos acabaram com tudo, muitos insistiam que era desnecessário ter uma Universida­de aqui. A associação estadual de professores até mesmo tomou a resolução de tentar usar os fundos destinados à Universidade para o ensino fundamental público. Eu tomei parte de toda esta luta - pela Universidade, é claro. Nosso primeiro reitor, Allen Benton, fez um grande trabalho: viajou pelo Estado inteiro buscando re­cursos e recrutando alunos. E em apenas onze anos a Universida­de cresceu tanto que já emprega setenta professores e tem quase trezentos alunos. Posso dizer que a luta foi válida."

Carrie balançou a cabeça numa apreciação ao edifício da Universidade: "Olha, vovó, olha vovô, eu disse a vocês que teria uma boa formação aqui. Gosto da idéia de estudar num câmpus com apenas um prédio e poucos alunos". Carrie fez uma pausa para explicar à Augusta: "Em St. Louis eu ficaria num câmpus enorme". Carrie levou a mão à testa e fez um gesto de enfado: "Eu seria apenas um pontinho a mais no mar da humanidade".

"Bem, Carrie", riu Augusta, "você é um pontinho, mas nesta Universidade você terá muita atenção individual por parte dos professores e muitas oportunidades de ensinar. Há muitas escolas rurais nos arredores de Lincoln implorando por professores. É comum alunos universitários deixarem os estudos por um ou dois semestres para lecionarem e aumentarem seus fundos bancários."

Carrie assentiu com a cabeça: "Pensei em ficar um ano fora para lecionar após meu primeiro ano aqui, se você acha que uma escola rural me aceitará. Gostaria de ter a experiência o mais rápi­do possível. Isso me fez lembrar, sra. Augusta, que eu ficaria feliz em aceitar a classe de alunos das reuniões da Sociedade Cristã, se for possível".

Diante dos olhares surpresos do casal, Augusta explicou: "Quando a Carrie me escreveu sobre seu desejo de lecionar o mais rápido possível, mencionei nossa Escola Dominical, que tem cres­cido juntamente com a cidade, e sugeri que ela pegasse uma clas­se de crianças".

Walter e Lucy Jennings balançaram a cabeça aprovando.

"Acho que você descobrirá que os alunos aqui nesta escola são mais velhos e mais sérios que nas instituições do leste. Muitos deles estão aqui porque querem realmente uma educação de nível superior. Sei de um homem que no ano passado andou sessenta e quatro quilômetros para matricular-se aqui. Pelo que tenho visto, a maioria precisa trabalhar para manter-se na Universidade; eles trabalham muito e têm pouco tempo para atividades extracurriculares."

Carrie estava prestando muita atenção a cada palavra de Augusta, divertindo-se com o quadro imaginário de si mesma tra­balhando demais e enfraquecida, mas ainda assim vencendo, re­cebendo seu diploma de professora e indo para o querido povo lakota que perecia na ignorância. A carruagem sacudiu-a com os solavancos enquanto Joseph a virava para afastar-se da Universi­dade e Augusta continuava seu discurso sobre a Universidade. Andaram por uma fileira de casas semelhantes, com jardins divi­didos por cercas de madeira, e Augusta explicou que eram casas de alunos e professores.

"Há outra residência estudantil de três andares a três quar­teirões do campus. E mista, quer dizer, cerca de setenta alunas recebem quarto e alimentação e cerca de oitenta alunos recebem alimentação. Carrie será a única aluna morando na Casa Hathaway, é claro. É raro eu ter um quarto livre com tantos imigrantes cho­vendo em Nebraska, vindos de todos os lugares. A companhia ferroviária oferece acomodação de graça na Casa do Emigrante e mesmo assim a Casa Hathaway está sempre cheia. Nem todos os imigrantes são pobres, sabe? Os menonitas alemães têm vindo e eles têm fortunas consideráveis; já ouvi falar que terão o seu pró­prio jornal brevemente."

Augusta parou e apontou um prédio: "Esse é o Café do Co­merciante, Carrie, e você fará muito bem se recusar qualquer con­vite para ir até lá. É que eles vendem um vale-refeição de dois dólares que serve para vinte e uma refeições. Os alunos chamam de 'amostra de refeição' pois as porções são pequenas demais. Silas costumava comer lá antes de vir trabalhar comigo. Ele me disse que sobreviveu porque pegava todas as porções de pão que via e enchia a tigelinha de leite o mais rápido que conseguia".

A carruagem rodava vagarosamente de volta para o sul, a parte mais movimentada da cidade. "Vire para o lado dos Braddocks, Joseph. Não vejo a Abigail faz uma semana e a Sarah pediu que eu levasse a Carrie lá para elas se reencontrarem."

O casal se entreolhou quando Joseph virou a carruagem, pas­sou por um pavimento de pedras, atravessou um enorme portão e entrou em um terreno impecavelmente arrumado e cercado por um alto muro de pedras. Augusta explicou rapidamente sobre a c hegada de Sarah e Tom Biddle a Lincoln como órfãos fugitivos, como eles foram para a casa dela com Jesse King e a oportunidade subseqüente de Sarah ser treinada como governanta de Abigail Hraddock e seu filho David. "Sarah progrediu muito", disse Augusta enquanto descia da carruagem. "Tenho orgulho dela, e ela ficará muito satisfeita em rever você, Carrie."

 

Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros.

               Filipenses 2:4

 

Sarah Biddle afastou-se do calor do forno aberto e limpou o suor da testa com o avental. Torceu o osso da coxa do enor­me peru que estava assando há horas e ele se soltou facilmente. Satisfeita, Sarah balançou a cabeça e colocou-o de volta no forno, deixando-o aberto enquanto se dirigia à despensa para pegar uma travessa. Bem nesse momento ouviu o som de uma carruagem chegando. Não esperou os convidados bater, e Augusta quase caiu pela porta aberta da cozinha.

"Sarah! Finalmente chegaram!", Augusta quase empurrava Carrie e os Jennings para dentro da cozinha. "Já faz cinco anos e a pequena Carrie Brown finalmente voltou a Nebraska. A Carrie, tle quem você se lembra, Sarah, e estes são Walter e Lucy Jennings. Esta é a senhorita Sarah Biddle, a melhor governanta que já cui­dou de uma casa."

Sarah corou embaraçada, rindo nervosa e cumprimentando com um aperto de mãos os visitantes. Augusta dirigiu-se para a parte da frente da casa perguntando: "Onde está Abigail, Sarah? liu sei que deveria ter telefonado de manhã para combinar esta visita, mas adoraria que ela conhecesse Carrie e seus avós".

Sarah balançou a cabeça negativamente. "Desculpem-me, tia Augusta, Carrie, sr. e sra. Jennings, mas a sra. Braddock não se sentiu bem para descer hoje." O rosto de Sarah brilhou quando falou: "Mas o sr. Braddock voltará de uma reunião no banco logo o o Tom chegará da escola a qualquer momento. Acho que vocês gostariam de uma limonada, não?"

Havia algo na voz de Sarah de que Augusta não gostou. Ela olhou em direção à frente da casa, e então para cima, para o quar­to de Abigail. "Nós adoraríamos uma limonada, Sarah, mas dei­xe-me ajudá-la a preparar senão você vai atrasar seu jantar."

Os Jennings foram conduzidos a outra sala e depois a uma área onde pés de dulcamaras subiam pelas treliças formando uma sombra e de onde se avistava o jardim de rosas maravilhosamen­te podadas.

"Nossa, como é que ela consegue estas rosas? Gostaria de saber", disse Lucy Jennings admirada, sentando-se confortavelmente em um banco de balanço junto com Walter. Carrie aprovei­tou para andar pelo jardim.

Na cozinha, Augusta e Sarah ficaram quietas enquanto Augusta preparava a limonada e Sarah andava de lá para cá pre­parando o jantar. Nesse momento, Tom, de doze anos de idade, chegou da escola. Subiu pelas escadas posteriores vagarosamen­te, mancando com sua perna esquerda mais do que o normal. Fez uma careta ao chegar em cima, mas ao ver Augusta desviou o pensamento da dor e deu um sorriso, cumprimentando-a. "Tia Augusta!", gritou, correndo para abraçá-la.

"Então, Tom, como a Hortense Griswall está tratando você?"

Tom começou uma lista com as reclamações cuidadosamente decoradas da srta. Griswall, mas Sarah fê-lo parar: "Tom, você sabe que a senhorita Griswall força você por saber que você con­segue. Ela quer que você trabalhe bastante para entrar na Univer­sidade. Se quer ser advogado, terá de ser um dos bons".

O discurso de Sarah era bem ensaiado e Tom atravessou a cozinha servindo-se de uma maçã da fruteira sem dar muita aten­ção aos comentários.

Ela lhe ordenou: "Leve esses bolinhos lá fora para nossas vi­sitas, Tom". Deu uma olhada meio suspeita para Augusta: "Eu preciso fazer mais algumas coisinhas. Você acha que eles se im­portarão? Voltarei num minutinho".

"Claro que não, Sarah, pode continuar com seus afazeres. Nós é que estamos sendo mal educados chegando assim, a esta hora, sem avisar. Mas eu não poderia passar sem entrar aqui."

Sarah virou-se para colocar uma porção de batatas fatiadas em uma chapa de ferro antes de voltar-se para Augusta e, com um sorriso, falou carinhosamente: "Fico muito feliz que tenham vin­do, tia Augusta, pois nestas últimas semanas temos estado um pouco solitários". Virou-se de repente e Augusta franziu a testa levemente enquanto levava a limonada para a varanda. Voltou e sem uma palavra de Sarah começou a escolher feijão e colocá-los numa tigela arredondada azul e grande.

"Como a sra. Braddock está, Sarah? Na outra noite o dr. Gilbert jantou conosco e falou alguma coisa sobre Abigail, meio ingenua­mente acho. Bem, não falou muita coisa mas garanto que está bem preocupado."

Os olhos azuis de Sarah tornaram-se frios e ela desviou o olhar antes de responder: "Não muito bem. Na verdade, não está bem mesmo, infelizmente". Sarah parou, escolhendo cuidadosamente suas próximas palavras: "Ela não está bem o suficiente para des­cer estes dias. Mas estamos com esperança. O David - o sr. Braddock está bem atento".

A voz de Augusta tornou-se mais carinhosa ao dizer: "Fico satisfeita por vocês terem encontrado um lar como este, Sarah. Mas admito que me preocupo com você, que pode ficar doente de tanto cuidar da Abigail".

Sarah levantou os olhos rapidamente: "Bobagem. A sra. Braddock fez muito por mim, tia Augusta. Vocês duas fizeram. E eu farei o que for preciso para cuidar dela, para que sua casa con­tinue do mesmo jeito que ela gosta e para que ela se sinta confor­tável até, até melhorar".

Sarah mudou de assunto abruptamente: "Obrigada por tra­zer a Carrie aqui tão rapidamente, tia Augusta. E incrível como ela cresceu! Sabia que ela tinha crescido, é claro, mas foi uma sur­presa vê-la". Sarah virou as batatas e abaixou o fogo. "Acho que posso dar uma saidinha agora para receber direito as visitas." Bem no momento em que as duas mulheres se dirigiam ao quintal, uma campainha tocou lá dentro.

"É a sra. Braddock, tia Augusta. A senhora me desculpe." Ti­rando o avental, abriu um guarda-louça perto da porta copa e pe­gou um vidro. Ao sair da cozinha gritou: "Diga aos Jennings que estou chateada, para me desculparem, espero que entendam". Sua voz foi sumindo enquanto ela subia as escadas posteriores para o quarto de Abigail.

Na pressa de atender à campainha, Sarah deixou a porta do guarda-louça aberta e Augusta foi fechá-la. Uma das prateleiras estava cheia de vidros e na outra havia a cópia de um livro. Sen­tindo-se só um pouquinho culpada, Augusta pegou o livro de capa de couro intitulado: Guia para as mulheres sobre saúde e doenças, de J. H. Kellog, M.D. Havia um pedaço grosso de papel marcando uma página. Augusta abriu o livro e ficou sem respiração. A pági­na tinha sido muito bem lida, estava manchada e várias linhas estava grifadas sob o subtítulo "Loções para uso no câncer de seio... Extrato de Beladona, dosagem 1, Extrato de Estramônio, dosagem 1, Vaselina, 1... para ser usado como ungüento... excelente para aliviar dores do crescimento rápido...". Augusta levantou os olhos para a prateleira e viu dois vidros com as etiquetas de Extrato de Beladona e Extrato de Estramônio.

Alcançando um outro vidro, Augusta pulou quando Sarah falou: "A primeira receita ainda está dando um pouco de alívio. O dr. Gilbert já me ensinou a preparar...". Sua voz falhou e ela respi­rou fundo. "O dr. Gilbert já me ensinou a preparar o remédio que precisaremos depois."

"Sarah, eu não imaginava. Abigail nunca mencionou, eu nun­ca imaginei."

Os olhos de Sarah encheram-se de lágrimas, mas ela as enxu­gou e respirou profundamente. "Ninguém sabe, tia Augusta. Nem mesmo o sr. Braddock, pois ela não quis. Não quer causar nenhu­ma preocupação, nenhum problema."

Augusta fechou o livro que estava aberto no balcão e colo­cou-o junto dos vidros. Fechou o armário, abraçou Sarah, sentin­do o corpo magro tremer pela emoção. "Então, há quanto tempo você estava carregando esse peso, sozinha?"

Sarah balançou os ombros e afastou-se respondendo: "Não faz muito tempo e ainda estamos nas primeiras fases. O remédio ajuda, e a sra. Braddock ainda tem tido dias bons; talvez esta noite ela até desça para jantar. Sarah olhou corajosamente para Augusta e falou: "Ela está precisando de mim agora e estou feliz por estar aqui para ajudá-la".

"Mas, Sarah, você não deveria agüentar isso sozinha."

"Não estou agüentando sozinha, tia Augusta. O dr. Gilbert é muito bom para cuidar disso e todas as tardes o Tom lê algo para ela". Sarah abaixou a voz como se estivesse compartilhando al­gum segredo: "Nós começamos a chamá-la de Mamãe Braddock e parece que ela gostou. Enquanto o Tom lê, eu faço colchas de reta­lhos e às vezes sinto como se estivesse de volta ao hotel com a senhora e a tia Jesse".

Augusta justificou-se: "Eu não queria intrometer-me, só fui fechar o armário que você deixou aberto e vi o livro, fiquei curio­sa... Deveria simplesmente ter fechado e pronto! Por favor, per­doe-me".

"É um alívio ter mais alguém sabendo, tia Augusta, alguém que possa orar comigo." Lágrimas rolaram dos olhos de Sarah, enquanto continuava: "Acho que tenho me sentido como que car­regando um fardo sozinha".

Augusta pegou nas mãos de Sarah e falou baixinho: "Vou orar todos os dias, Sarah, mais de uma vez. Se eu puder ajudar...".

Sarah balançou a cabeça num movimento negativo, dizendo: "Não, a senhora não pode fazer nada. Só não conte para ninguém e ore". As lágrimas novamente encheram os olhos dela: "Não sei o que vai acontecer com o sr. Braddock quando descobrir. Ele já está suspeitando de que alguma coisa está muito mal. Sempre viveu tão perto da mãe!".

Pegando o avental, Sarah aproximou-se do fogão para levan­tar as tampas das panelas e mexer na comida. "Ele vai voltar logo. Espero que a senhora venha nos visitar de novo logo, tia Augusta. A senhora pode explicar para os Jennings? Eles devem estar me achando uma sem-educação."

"Será que amanhã você poderia jantar conosco, Sarah?"

Ela abriu o forno e retirou o peru, colocando-o no balcão e respondendo: "Posso, eu prometi para o Tom. O sr. Braddock fica aqui com a mãe. Ela sabe disso e ficará muito brava se eu não for".

Augusta balançou a cabeça, satisfeita: "Bem, agora vamos embora. Mando o Tom trazer a jarra de limonada e os copos, queri­da. Nem precisa ir lá se despedir. Nós já vamos sair e amanhã estaremos esperando você à noite, certo?".

Tom voltou para a cozinha com os copos e a jarra, e Sarah ouviu os passos das visitas saindo da varanda e dando a volta pelos fundos da casa até onde Joseph esperava na carruagem. Quando Tom estava lavando os copos, Augusta abriu a porta e disse baixinho: "Até mais, queridos, Deus os abençoe. Estou oran­do". Fechou a porta delicadamente, juntou-se ao outros na carru­agem e todos partiram.

Tom perguntou à irmã: "Pelo que ela vai orar?".

"Por nós, pela Mamãe Braddock."

"Que bom, ela precisa mesmo de oração."

"Todos nós precisamos, Tom. Agora ajude-me a arrumar a mesa para o jantar. O David vai chegar a qualquer momento."

"Por que você fala David quando está comigo e nas outras horas você fala sr. Braddock?"

"Porque ele é meu patrão e isso mostra respeito."

"Você não o respeita quando está com ele então?", argumen­tou Tom. "Porque quando você está com ele, também fala David."

Sarah ficou vermelha e respondeu: "É porque ele me pediu isso. Do mesmo jeito que a sra. Braddock nos pediu para chamá-la de Mamãe Braddock, ele me pediu para chamá-lo de David".

"Ah, eu gosto disso porque parece que somos uma família de verdade."

Eles foram até a sala de jantar e começaram a pôr a mesa para quatro pessoas, com porcelana fina e apenas dois garfos e duas taças apropriados para um jantar simples.

"A Mamãe Braddock vai descer para jantar?"

"Acho que sim, pois o remédio está ajudando mesmo."

"Tomara que ela fique boa logo."

"Eu também espero, Tom." O som das rodas da carruagem no piso de pedra trouxe um sorriso aos lábios de Sarah, que co­mentou: "O David chegou. Agora, termine isso aqui e eu vou dar uma olhada na Mamãe Braddock".

 

David Braddock subiu vagarosamente as escadas laterais de sua mansão, parando fora da porta de vidro para tirar o chapéu. Passou uma mão no cabelo de cachos grossos que o chapéu tinha amassado e então abriu a porta e entrou. Colocando o chapéu em um pequeno canapé, virou-se para a esquerda e foi diretamente à cozinha, onde puxou uma das duas cadeiras da mesa branca pe­quena no canto e sentou-se esperando.

Sarah e Tom entraram na cozinha no mesmo momento. Quan­do David levantou o olhos para ela, Sarah disse a Tom: "Tom, vá ver se a Mamãe Braddock precisa de ajuda para descer, está bem? Vou começar a servir o jantar". Ela ficou parada sem nenhuma expressão, olhando cuidadosamente para David.

Tom saiu da cozinha e finalmente David pôde falar, com sua voz suave mas tensa: "Encontrei o dr. Gilbert hoje". Seus olhos demonstraram sofrimento e ele abaixou a cabeça e cobriu-a com as mãos.

Sarah atravessou o chão impecavelmente branco da cozinha c pôs uma mão no ombro dele. Com o toque, ele respirou fundo e então envolveu-a com os dois braços. Ele a segurava tão apertado que ela mal podia respirar. Ela acariciou seus cachos escuros.

Quando finalmente David a soltou, olhou-a nos olhos cheios de lágrimas e disse: "Você sabia".

"Sabia."

"Por que não me contou?"

"Prometi que não ia contar, por enquanto."

David levantou-se. Ele não era um homem alto e seus olhos estavam quase no nível dos de Sarah. "Vou precisar ir para a Fila­délfia neste ano..."

Sarah não o deixou terminar. "Você deve ir o mais rápido possível, fazer o que precisa e voltar logo para casa para estar aqui quando..."

Ele levantou dois dedos e tocou nos lábios dela. "Irei daqui a duas semanas, pois precisarei de algum tempo para arrumar as coisas aqui. Vou contratar meu primo Ira para cuidar das coisas lá na Filadélfia e não vai demorar muito." Pegando uma das mãos de Sarah, ele falou baixinho: "Quando eu voltar, vamos nos casar. Mamãe poderá participar". Ele olhou para Sarah com dúvida e perguntou: "Você acha que poderá?".

Sarah mordeu os lábios e não respondeu.

David sentou-se de repente, passando a mão no cabelo de novo. Sarah começou a afastar-se, mas ele agarrou sua mão e fa­lou: "Não foi um pedido de casamento apropriado, Sarah. Na ver­dade foi péssimo, desculpe-me".

"Tudo bem, David, eu entendo."

Davi olhou para ela com esperança, indagando: "Você me ama, Sarah Biddle?".

"Acho que Lincoln não aprovará sua escolha, David."

"Não dou a mínima para o que Lincoln pensa."

Sarah sorriu para ele. "Esta é uma das coisas que adoro em você."

Tom falou, das escadas, que a sra. Braddock estava descendo para o jantar.

"Vamos contar para a mamãe hoje?"

"Acho que não, David."

"Por que não?"

"Porque você precisa estar bem seguro antes de contar para a Mamãe Braddock."

"Sarah Biddle", ele falou com a voz zangada, fazendo Sarah olhar para ele surpresa com a emoção, "você é a menina mais doce, mais humilde, mais capacitada que já conheci. Sou velho demais para um romance forte, mas tenho certeza absoluta de que quero casar-me com você. E então, você quer ou não?"

Sarah passou os olhos em toda a cozinha, com dúvida, e res­pondeu: "Acho que pertenço à cozinha e não à sala de estar".

David virou o rosto dela para ele. "Não olhe para a casa, Sarah, olhe para mim". Sua voz adquiriu um tom bem seguro: "Todos os homens que conheço já comentaram uma ou mais vezes que que­riam que suas filhas fossem tão delicadas como você é".

"Não tenho um passado que..."

"Você não precisa de um passado para ser minha esposa."

"Não é isso o que seus amigos vão dizer."

"Então eles não são meus amigos."

"Não seja imaturo, David."

"Vou ser imaturo se eu quiser!"

Sarah pegou a travessa com o peru e dirigiu-se para a sala de jantar, com os olhos faiscando de raiva: "Então você será imaturo sozinho porque o Tom, a Mamãe Braddock e eu vamos jantar ago­ra!".

David entrou de cabeça baixa na sala exatamente quando Sarah e Tom se assentavam. Beijou a mãe na face e assentou-se na ponta da mesa, abrindo seu guardanapo, nervoso, e colocando-o no peito.

Os olhos de Abigail Braddock brilharam com malícia enquan­to dizia inocentemente: "Será que o que eu ouvi foi parte de uma discussão, vinda da cozinha?"

As faces de Sarah ficaram vermelhas e os olhos de David faiscaram enquanto ele pegou um pedaço de peru e colocou na boca, prevenindo-se de ter de dar qualquer resposta.

Abigail deu uma risadinha: "Meus filhos, tanta discussão por causa de um noivado".

Sarah largou o garfo na mesa e levantou a cabeça.

Tom abaixou o copo de água e soltou um alto: "O quê?"

A voz suave de Abigail continuou: "Vamos fazer a cerimônia na sala de estar. Vou chamar Elsie Thornburn ainda esta semana para conversarmos sobre o vestido de noiva. A Sarah vai querer uma cerimônia simples... sem muito exagero". Abigail virou-se para David: "Mas faço questão que você anuncie nos jornais da Filadélfia e me mude para o quarto do outro lado do hall para que o meu quarto seja decorado especialmente para vocês dois".

Sarah começou a protestar, mas Abigail levantou sua mão magra. "Meus filhos, dentre todas as coisas que poderiam ter acon- lecido para mim hoje, essa é a mais feliz". Ela sorriu carinhosa­mente para Sarah e perguntou: "Foi isso mesmo que aconteceu, não c?". Olhando bondosamente para David, ela falou: "E você, sr. Kraddock, tenha a paciência. Fazer um pedido de casamento na cozinha?". Fazendo um barulhinho com a língua, ela perguntou: "Menino, você não é nem um pouquinho romântico?" Ela se vi­rou para Sarah e continuou: "Igualzinho ao pai. E só negócio. Co­munica-se com a esposa como se estivesse tratando de negócios com um banqueiro". Abigail deu uma risadinha, acrescentando: "Pense bem se você vai agüentar, hein, Sarah!?".

Tom Biddle ficou tão admirado que nem conseguiu dizer nada. Foi uma ocasião rara para Sarah formular uma resposta que partisse do coração. Olhando longamente para David Braddock, (leu um tapinha nas costas da mão dele e respondeu à pergunta de Abigail: "Uma mulher pode agüentar muitas coisas quando ama um homem, Mamãe Braddock".

Pouco romântico como era, David teve sabedoria naquele momento. Pegou a mão de Sarah e não largou mais.

 

O Senhor está convosco... se o buscardes, ele se deixará achar.

                   II Crônicas 15:2

 

Trovões enormes rolavam no céu no dia em que Carrie Brown foi à estação de trem despedir-se dos avós. Muitíssimos pas­sageiros juntavam-se lá, naquela manhã, para conseguir lugar no trem, e Carrie tentava apressar os avós enquanto falava: "Bem, não se preocupem; já conheceram a sra. Hathaway e gostaram dela. Já viram que ela tem um serviço bom e um quarto gostoso para mim. Antes de começar o semestre, terei algumas semanas para trabalhar. Vou conseguir facilmente juntar dinheiro suficien­te para iniciar o ano letivo".

Walter Jennings olhou em direção ao céu escuro antes de res­ponder asperamente: "Não entendo por que todas essas contas, Carrie. Já falamos que concordamos com sua decisão e o fato de lermos visitado Lincoln e a Universidade, e encontrado a sra. Hathaway, foi suficiente para ignorarmos as dúvidas que tínha­mos quanto a sua vinda para cá. Mas Carrie", ele implorou, "você sabe que podemos pagar a mensalidade da Universidade e suas despesas aqui. Não entendo por que você precisa trabalhar."

"Vovô", disse Carrie delicadamente, "já conversamos muitas e muitas vezes sobre isso; eu quero pagar, eu quero conseguir por mim mesma. Tenho de crescer, vovô, encontrar o meu caminho."

Um barulho forte de trovão soou e, com resmungos e grunhidos, Walter dobrou-se para beijar sua única neta, esfregando uma lágrima que escorria por sua face.

Lucy Jennings rendeu-se e chorava baixinho enquanto sor­ria, encorajando Carrie: "Nós dois estamos muito orgulhosos de você, querida; sabemos que vai dar tudo certo. Não deixe de es­crever, certo? E comunique-nos sobre qualquer necessidade. Vol­te para passar o Natal conosco...". Sua voz falhou e ela colocou um lenço contornado com laços na face.

Mais um estouro de trovão lembrou os Jennings de que eles precisavam apressar-se. Lucy Jennings recompôs, levantou os ombros, deu uma puxada na cabeça e disse: "Minha nossa! Que coisa, até parece que nunca a criamos para esse momento". Suspi­rou profundamente. "Ele chegou rápido demais, Carrie. Vamos lá, deixe-me olhar você". Colocando as mãos enluvadas sobre cada ombro de Carrie, Lucy Jennings olhou atentamente, com amor, para a neta e disse: "Fizemos o melhor que pudemos e agora...". A emoção tomou conta novamente e Lucy abraçou Carrie enquanto cochichava: "Que o Senhor a abençoe e guarde, filha querida".

Depois que Lucy soltou Carrie, esta olhou para a avó com seriedade nos olhos e prometeu: "Vou batalhar, vovó, e vou escre­ver como a senhora pediu, e tudo vai dar certo".

Walter interrompeu murmurando: "Prometa-nos que vai se­guir em frente com a classe da Sociedade Cristã, Carrie. Não há melhor treinamento do que servir ao Senhor. Você sabe, minha neta, que nosso maior desejo é que você ande com Deus, que trans­fira sua dependência de sua avó e de mim para Deus. Se isso acontecer aqui em Lincoln, tudo mais estará bem para nós".

O apito do trem soou no mesmo instante em que a chuva começou a cair. Walter Jennings agarrou Carrie, rodou-a e abraçou-a apertado, falando baixinho: "Deus a abençoe, minha neta".

Lucy Jennings começou a chorar novamente e Walter entrou no trem. Carrie escondeu-se sob a cobertura da estação, de onde ficou observando pelas janelas do trem seus avós caminhando entre os passageiros e sentando-se. Lucy esforçou-se em vão para abrir a janela, mas a chuva aumentou e eles saíram de vista, ace­nando fortemente.

No momento em que os perdeu de vista, Carrie sentiu um aperto de solidão - como que um medo, um pânico. Estou sozinha, pensou ela, agora depende só de mim fazer algo para mim mesma. A imensidão de seus primeiros passos de independência pesou so­bre ela enquanto caminhava, sob a chuva, de volta para o hotel, satisfeita por Augusta estar ocupada em algum outro lugar e não poder observar suas frágeis tentativas de segurar as lágrimas.

O verão de 1883 foi um dos períodos mais difíceis na vida de Carrie Brown. Ela havia pedido emprego a Augusta Hathaway nem se dar conta do que estava fazendo. Na casa de seus avós, quando criança, ela "ajudara" os empregados a limpar janelas e a tirar o pó dos móveis. Quando a governanta de Augusta mostrou Carrie o que era uma faxina, ela ficou surpresa.

Norah Murphy ficava na porta da sala de jantar repetindo: "Querida, três vezes ao dia levante as cadeiras sobre as mesas, vnrra o chão, tire o pó... Você sabe como tirar o pó, não sabe?".

Carrie garantiu-lhe que sabia tirar o pó.

Norah sorriu dizendo: "Que bom. Então, quando suas aulas começarem, você terá apenas de tirar o pó de manhã e de noite. Outra menina vai tirar o pó na hora do almoço e assim você terá o dia livre para estudar".

Quando Norah presenciou a primeira tentativa de Carrie para tirar o pó, interrompeu-a imediatamente. "Não sei como é que fazem em St. Louis, mas aqui em Lincoln fazemos diferente", fa­lou, tirando o espanador das mãos de Carrie e demonstrando, "para fora e para trás, em cima e para trás - Ai!" Norah ficou segurando o espanador e continuou: "Você não varreu primeiro, var­reu, srta. Brown?".

Carrie corou e ficou embaraçada, mas após a refeição seguinte o chão foi bem varrido antes de ela tirar o pó. Norah inspecio­nou e aprovou.

"Então, srta. Brown, agora vamos acrescentar as janelas à sua agenda. A sra. Hathaway quer que sejam lavadas duas vezes por semana. Você pode fazer isso depois de ter tirado o pó, após o lantar. Não use sabão em pedra, mas sim um pano limpo e água pura." Norah havia trazido da cozinha um balde com água no qual mergulhou o pano que estava em sua mão. "Molhado mas nao pingando, srta. Brown. É lavagem a seco, venha tentar." Carrie pegou o pano e começou a esfregar o vidro. "Isso, depois é preciso lustrar com um pano seco. Lave o pano e troque a água quantas vezes for necessário." Norah Murphy deu uma risadinha acrescentando: "Você vai fazer muitas viagens de ida e volta para a cozinha. Uma vez por mês as janelas precisam ser lustradas. Misture amido de milho com água até ficar na consistência de um creme. Lave as janelas com isso e deixe secar, então esfregue com papel úmido. Dá bastante brilho e não risca".

Na manhã seguinte ao primeiro polimento das janelas, os braços de Carrie doíam tanto que ela mal conseguia arrumar o cabelo. Arrastou-se para a limpeza matinal sentindo-se grata com a chegada do almoço. A limpeza da recepção do hotel, naquela tarde, tinha sido acrescentada à sua agenda de serviço.

"Silas Kellum vai ajudá-la a pendurar os tapete lá fora, srta. Brown. Todos os sábados eles deverão ser batidos para ficarem limpos. Toda a quarta-feira à noite, depois que os hóspedes se retirarem, você joga sal sobre os tapetes e então pode varrê-los. Isso tem de ser feito dos dois lados. Assegure-se de varrer as esca­das, lustrar o corrimão de madeira e todos os abajures diariamen­te. Não use espanadores de pena, srta. Brown." Norah olhou com ar de suspeita continuando: "Eles usam espanadores de penas em St. Louis?".

Carrie fez que sim com a cabeça, meio em dúvida: "Usamos, acho que usamos espanadores de penas lá".

Norah balançou a cabeça de um lado para o outro: "Bem, srta. Brown, o objetivo de tirar o pó aqui na Casa Hathaway é removê-lo e não apenas mudá-lo de um lugar para outro. Use isso aqui". Norah passou um tecido de algodão com a bainha perfeita para Carrie. "Comece no canto da recepção e vá em frente, tirando muito bem todo o pó de tudo. Não se esqueça das escadas e do corrimão. Os cantinhos nos trilhos são bem mais difíceis. Comece pelas par­tes mais altas e retire o pó com o pano; não apenas esfregue, sra. Brown. Lembre-se: o objetivo é fazer com que todo o pó fique no pano. Você terá de chacoalhar o pano lá fora várias vezes, mas faça isso na porta dos fundos, por favor. Não queremos que nossos hóspedes sejam atingidos no rosto pelo pó, não é? Quanto tiver terminado, lave o pano e pendure-o para secar no varal do fun­do."

Norah Murphy caminhou para fora resmungando consigo mesma suas dúvidas quanto à falta de experiência de Carrie Brown e a "eterna paciência da sra. Hathaway com a geração atual."

Apesar do serviço difícil, Carrie Brown divertiu-se no verão. Sempre fazia o Silas cair na gargalhada ao imitar, com perfeição, Norah, mas aprendeu a limpar tão bem que até mesmo Norah Murphy ficou satisfeita.

"Olhe, olhe, é uma caipira, com certeza."

"Diretamente do sítio; olha só o vestido dela!"

Os comentários e as caçoadas cruéis continuaram até que Carrie, que estava parada na fila para fazer sua matrícula na Uni­versidade, não resistiu e deu uma olhada no objeto de atenção dos colegas de classe. Havia uma menina na fila, perto de Carrie, vestida com roupas fora de moda, com uns fiapos de palha gruda­dos na parte de trás dos cabelos. Era magra, loira e estava parada, fitando o chão e com uma bolsa gasta à qual apertava seus dedos. Carrie sabia que a menina tinha ouvido os comentários maldosos e, embora estivesse tentando segurar as lágrimas, continuava em seu lugar na fila.

Quando outro comentário cruel foi cochichado, Carrie saiu de seu lugar na fila e chegou perto da novata. "Há alguma coisa em você", disse com um sorriso e já puxando os pedaços de palha do cabelo da menina.

"Ai!", falou a menina levando as mãos aos cabelos. Ela pis­cou e agradeceu baixinho: "Obrigada".

Carrie colocou uma mão em seu ombro, dizendo: "Aqui, olha, vire um pouquinho". Rapidamente ela limpou toda a palha tam­bém da roupa da menina.

"Obrigada", repetiu a menina antes de esticar a mão e apre­sentar-se: "Myrtle Greer".

"Carrie Brown", respondeu Carrie. "Você é de Lincoln?"

"Não, eu não", ela falou timidamente. "Venho de muitos qui­lômetros a oeste."

A fila caminhou e Carrie permaneceu perto de Myrtle, que lalou: "Você vai perder seu lugar na fila, você estava na minha frente".

"Ah, não faz mal", respondeu Carrie. "Eu também venho de longe, de St. Louis. Trabalhei aqui durante o verão para economi­zar e pagar a faculdade."

Myrtle balançou a cabeça para cima e para baixo dizendo: "Tenho economizado dinheiro durante anos para vir para cá e fi­nalmente consegui o suficiente para pagar o primeiro semestre". Ela tocou os cabelos e deu uma risadinha ao contar: "Só que eu não tinha dinheiro para a passagem do trem, por isso peguei uma carona com um vizinho que estava trazendo uma carga de feno para vender no mercado. Pensei que tivesse me limpado bem...".

"Você viajou sessenta e quatro quilômetros num carroção para chegar aqui?"

Myrtle assentiu com a cabeça.

"Você economizou dinheiro durante anos?"

Myrtle mais uma vez balançou a cabeça concordando. A fila andou novamente e Myrtle perguntou: "Você falou que trabalhou durante o verão aqui; não sabe onde eu poderia conseguir um serviço?".

"Podemos perguntar à sra. Hathaway. Ela é dona de um hotel grande aqui na cidade, onde eu estou trabalhando. Caso ela não pre­cise de ninguém no momento, pode conhecer alguém que precise. Você poderia voltar comigo depois de nossa matrícula."

Carrie apresentou Myrtle a Augusta Hathaway, que disse: "John Cadman precisa de ajudante na cozinha, srta. Greer". Ob­servando as roupas gastas de Myrtle, Augusta acrescentou: "E caso ele já tenha empregado alguém, volte aqui para falar comigo; va­mos encontrar um lugar para você". Virando-se para Carrie, Augusta falou: "Agora vocês duas dêem um pulo na cozinha e peçam para a Cora dois pedaços bem grandes de torta de limão e um café quente".

Enquanto saboreavam a torta e o café, Myrtle e Carrie desco­briram que, apesar do horário idêntico na Universidade, elas ti­nham poucas coisas mais em comum. Carrie tinha sido filha úni­ca e Myrtle crescera numa fazenda, numa família em que era a mais velha de doze filhos. Enquanto Carrie vivera numa casa onde tinha poucas responsabilidades, a outra apenas recentemente ha­via sido liberado dos afazeres domésticos. Duas de suas irmãs já estavam grandes o suficiente para ajudar e os pais de Myrtle fi­nalmente cederam à sua pressão constante para estudar na Uni­versidade. Ela estudara à luz de lampião até muito tarde nas noi­tes para conseguir seu certificado do curso elementar. Tinha cos­turado para os vizinhos e até mesmo trabalhado numa colheita somente para aumentar suas pequenas economias destinadas ao primeiro semestre da faculdade. Quando finalmente tinha ajunta- do uma quantia, que seus pais achavam impossível que ela conse­guiria, eles a viram com relutância arrumar seus dois vestidos e partir no carroção do vizinho para Lincoln.

Myrtle contou sobre sua vida como se fosse algo muito normal, mas no final declarou com firmeza: "E não planejo voltar até conseguir meu diploma de professora. Não vou ficar na fazenda sendo usada no serviço até morrer como minha mãe...". Myrtle levantou os olhos timidamente e mudou de assunto.

Nas primeiras semanas de aula, Myrtle e Carrie ficaram ocu­padas demais com os estudos de forma que não tiveram chance de aprofundar sua amizade. Carrie reclamou para Augusta uma noite: "É incrível, mas acho que eles esperam que nós decoremos cada palavra que dizem".

"E isso é possível, querida?", Augusta quis saber.

"Não como Roscoe Pound, como ele não dá. A senhora o co­nhece?"

Augusta balançou a cabeça afirmativamente: "Conheço a fa­mília dele. É interessante, a sra. Pound mesmo é que ensina seus lillios em casa. Sempre teve dúvidas quanto às habilidades das escolas locais. Passei uma tarde de domingo na casa deles; a famí­lia lê a Bíblia em voz alta, em grego".

Carrie balançou a cabeça: "É isso mesmo o que ouvi dizer; o filho deles, que tem apenas doze anos, já vai se formar em 87 como bacharel em biologia, sra. Augusta. Fala fluentemente alemão e a srta. Smith não o detesta!". Carrie acrescentou: "Nós admiramos nossos professores, a senhora sabe disso, e não me chateio com o professor Collier, mas admirar uma velha rabugenta daquelas é quase impossível para mim".

"Carrie!", repreendeu-a Augusta, "a srta. Smith é uma professora excelente. Lembro-me de quando ela foi contratada; foi ela que criou o departamento de latim."

"Pode ser, sra. Hathaway", falou Carrie com dúvida. "Mas cada vez que tento falar de cor, olho para ela, fazendo cara feia para mim, e me dá um branco. Silas Kellum tem tentado me aju­dar, mas acho que sou um caso perdido. E a única salvação é estu­dar e ficar bem preparada para cada aula da srta. Smith."

A "única salvação" de Carrie falhou na aula matutina com a srta. Smith. Carrie tinha estudado bastante, mas Myrtle Greer atrasou-se para a aula e, quando finalmente chegou, parecia mais magra ainda e bem doente. Carrie, preocupada, cochichou para Myrtle e srta. Smith falou alto: "Em Nebraska, srta. Brown, os alunos nao conversam enquanto os professores estão dando aula". Carrie ficou vermelha e afundou-se em sua cadeira. Seu embaraço só foi aliviado quando a srta. Smith se aproximou de outro aluno, fun­gou alto e disse: "Jovem, o senhor precisa de um banho, pode vol­tar à aula quando isso tiver ocorrido". O aluno saiu esgueirando- se pela porta.

No final da aula, Carrie interrogou a colega: "Myrtle, o que está acontecendo?". Myrtle olhou confusa para Carrie, responden­do: "Acontecendo? Como assim? Não está acontecendo nada".

"Você não parece bem, Myrtle."

"Está tudo bem, Carrie; trabalhei muito e estudei até tarde da noite, só isso."

"Você está magra. Está comendo naquele Café do Comerci­ante, é? Eu falei para você que era muito ruim."

Myrtle olhou para Carrie: "Você me disse, Carrie, mas é o único que posso pagar e vai ter de ser assim".

"Mas Myrtle..."

Myrtle despediu-se com um aceno de Carrie e saiu apressa­da. Como ela não assistisse às outras aulas do dia Carrie contou sua preocupação para Augusta, que tomou uma atitude imediata. "Vou mandar o dr. Gilbert lá agora mesmo, Carrie. Myrtle terá de conversar com ele."

Myrtle conversou mesmo com o médico, que conversou com Augusta. E Augusta conversou com a srta. Smith, a cruel professora de latim. Para surpresa de Carrie, Myrtle retornou às aulas uma se­mana mais tarde, com as faces coradas e uma casa nova. "Dá para acreditar, Carrie? A srta. Smith foi me procurar na pensão e simples­mente me implorou para ir morar na casa dela. Disse que a emprega­da dela tinha saído sem aviso prévio e que ela simplesmente não conseguia lecionar e fazer todo o serviço de casa. Deu-me um quarto gostoso e me disse para primeiro cuidar dos estudos e..."

Carrie ficou parada, admirada. "Myrtle, tudo o que você está falando é sobre a srta. Smith? A própria, do latim?"

Myrtle fez que "sim" com a cabeça e disse: "E, Carrie, ela é muito boa mesmo. Mora sozinha em uma casa bem arrumadinha a poucos quarteirões do campus. Comparado ao trabalho com onze irmãos e irmãs, comida para os empregados da fazenda, o trabalho de cozinha e limpeza na casa da srta. Smith não é nada. Não dá para acreditar, Carrie, simplesmente não dá para acreditar".

Carrie também não podia acreditar naquilo e ficou observan­do a srta. Smith durante muitos dias após Myrtle ter lhe contado a história. Foi preciso muito esforço de sua parte, mas finalmente ela viu evidências do segredo bem guardado da srta. Smith. Às vezes ela pedia coisas quase impossíveis, mas então um aluno conseguia realizar a tal tarefa; e, quando o aluno sorria triunfante, uma luz brilhava nos olhos da srta. Smith e um sorriso lhe aparecia nos lábios, e assim Carrie descobriu o segredo. Por debaixo da frieza exterior, a srta. Elvira Smith guardava amor verdadeiro por seus alunos.

 

Sede fortes e corajosos: não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o Senhor vosso Deus é quem vai convosco: não vos deixará nem vos desamparará.

                           Deuteronômio 31:6

 

No verão em que Carrie Brown trabalhou como empregada na Casa Hathaway em Lincoln, Águia que Voa Alto traba­lhou em uma fazenda leiteira em Wisconsin. A fazenda pertencia a amigos da família Riggs que também faziam parte da Sociedade dos Amigos dos índios e sempre empregaram alunos da Escola de Treinamento Santee. Águia que Voa Alto foi muito bem recebi­do e manteve-se em forma física com todo o trabalho da fazenda. Passou o verão transportando feno, levando o gado para o campo e de volta à fazenda e usando o tempinho livre para estudar línguas como inglês, latim e o Novo Testamento em grego. Sentia saudade dos campos abertos de sua terra natal, mas o serviço ao ar livre lhe oferecia alguma compensação, de modo que, quando o outono che­gou e ele tomou o trem para Boston, sentia-se pronto para enfrentar as demandas da vida acadêmica em uma cidade grande.

Não houve nenhum encontro desagradável ao longo da via­gem de Chicago a Boston. Águia que Voa Alto manteve seus li­vros sempre por perto e usou a viagem para estudar. Raramente ol hava para os passageiros próximo a ele até que um homem que sentou-se do outro lado do corredor, após uma parada na Pensilvânia, perguntou: "Jeremias King, creio eu?".

Águia que Voa Alto, surpreso, olhou para o estranho que lhe estendia a mão: "R. J. Painter, da Agência de Comunicação de St. Louis". Painter sentou-se num lugar livre perto de Águia que Voa Alto e continuou: "Acho que o ouvi falar em St. Louis na prima­vera passada".

"É possível", replicou Águia que Voa Alto. "Eu estava em alguns cultos, com minha irmã."

"O senhor poderia me dar uma entrevista? Tenho tentado seguir de perto as novidades do oeste, interesse pessoal meu. Gos­taria de escrever um artigo sobre a Escola de Treinamento Santee, sobre o valor do ensino do vernáculo ou apenas o ensino do in­glês aos índios. Gostaria de conhecer seu ponto de vista sobre isso."

Águia que Voa Alto respirou fundo e relutantemente colocou de lado o anonimato que lhe tinha favorecido durante o verão inteiro no norte de Wisconsin. Mais uma vez tomou nas mãos a missão de ser o símbolo dos índios Sioux para a Escola de Treina­mento Santee e a Sociedade dos Amigos dos índios. Era um fardo pesado que, em breve, ele se sentiria cansado de carregar.

Em Boston, Águia que Voa Alto passou do trem para o meio de uma massa humana que quase o sufocou. Homens e mulheres apressados empurravam-se e abriam caminho para passar. Carre­gadores de malas gritavam e xingavam, meninos e vendedores anunciavam sanduíches e jornais, e parecia que cada um fazia uma pausa momentânea para olhar Águia que Voa Alto. Ele tentou permanecer calmo enquanto andava no meio da multidão, com o coração começando a disparar. Sentiu que seu colarinho apertava e o desabotoou, conseguindo finalmente sair do meio do povo. Encostado em uma coluna, tentava em vão lembrar os nomes que Alfred Riggs tinha lhe dito. E se não viessem à sua cabeça? Se não lembrasse os nomes, ficaria sozinho em Boston.

"Jeremias King, bem-vindo a Boston!", falou um homem bai­xinho, careca, com um chapéu ridículo, que abria caminho no meio da multidão. Ele apertou a mão de Águia que Voa Alto com entu­siasmo, virando-se para puxar uma mulher alta e magra atrás de si. "Sou Robert Davis e esta é minha mulher, Nancy." Sem mais cerimônia, Davis justificou-se: "Desculpe-nos por não estarmos aqui no momento em que desembarcou, sr. King. O tráfico está intenso hoje e eu não consegui...".

"Não precisa ser elegante, sr. Davis", soou uma voz familiar. "Você atrasou-se porque eu não conseguia encontrar um chapéu que desse certo em mim".

Águia que Voa Alto levantou os olhos por sobre a cabeça de Nancy Davis e viu Julia Woodward. O chapéu em questão era enorme, contornado com o tom certo de verde-esmeralda que acentuava seus olhos escuros. Sua capa de seda esmeralda era amarra­da com um laço preto. Águia que Voa Alto não ouviu realmente o que ela havia dito, mas Julia o cumprimentou apertando-lhe a mão, tomou-o pelo braço e lhe deu boas vindas a Boston, guiando-o pelo meio da multidão. Robert e Nancy Davis se entreolharam percebendo algo e os seguiram.

Julia explicou: "George esperou com a carruagem para que pudéssemos pegá-lo mais rápido. Vamos mandar alguém buscar sua bagagem. Você vai ficar com o sr. e a sra. Davis", falou Julia, virando e dando um sorriso vencedor para Nancy Davis.

Quando os quatro já estavam sentados na carruagem dos Woodwards, Julia ficou quieta, olhando contente para Águia que Voa Alto. Ele estava sentado na ponta e seus olhos moviam-se continuamente da rua para as lojas e para o topo dos prédios. Na casa dos Davis as coisas não foram diferentes. Todas as pessoas estavam sentadas ao redor de uma mesa enorme na sala de jantar. Serviu-se um jantar elegante, com alimentos preparados e dispos­tos de maneira sofisticada. Águia que Voa Alto sentou-se na pon­ta de sua cadeira e respondeu às perguntas com monossílabos sem muito sentido, tentando lembrar as lições de etiqueta que tivera no passado.

Como anfitriã, Nancy sempre tentava antecipar-se a qualquer necessidade de seus convidados. Ela estava ciente do desconforto de Águia que Voa Alto e finalmente conseguiu um razão para verificar algo na cozinha. Ao passar pelo lugar onde estava o mari­do, parou e cochichou alguma coisa. Robert Davis imediatamente parou de pressionar Águia que Voa Alto a participar da conversa. Virou-se para George e Julia Woodward e, com grande habilida­de, desviou o assunto para o planejamento dos detalhes de uma de suas palestras na Sociedade dos Amigos.

Não sendo mais o centro da conversa, Águia que Voa Alto comeu mais alguma coisinha e pediu licença para deixar a mesa. Levantou-se e foi até a janela, observando o tráfico lá embaixo e pensando em sua reação de surpresa na estação de trem. Nada que as pessoas haviam falado o preparara para Boston. Ele já li­nha ido a St. Louis e Chicago, mas aparentemente em períodos de férias. Ele estava, de alguma forma, perplexo com o sentimento de pânico total que experimentara ao ser confrontado com um número tão grande de estranhos. Tentava entender seus sentimen­tos, mas não conseguia nenhuma explicação. Como é que eles po­dem viver assim... tão separados da terra? Sorriu pesarosamente, res­pirou fundo e orou: Ajude-me, Senhor, a suportar isso. Os meses de aula... os prédios altos que escondem o céu... Quero fazer a coisa certa, Pai. Mas, por favor, leve-me de volta para o campo antes que se passem muitas luas.

Águia que Voa Alto virou-se e ficou de costas para a janela. Uma tela a óleo sobre a lareira chamou sua atenção e, como os Davis e os Woodwards continuavam sua conversa animada, ele atraves­sou o pequeno hall e foi examinar o quadro na sala de estar.

"Shhhhhhhhhhhh", fez uma voz de criança. "Fique quieto, Sam."

"Mas ele está aqui, Sterling. Não era para ele vir aqui. A ma­mãe disse que poderíamos olhar se ficássemos quietos. Então shhhhhhh."

Os cochichos vinham detrás das cortinas pesadas de uma ja­nela ao lado direito do quadro. Águia que Voa Alto aproximou-se da pintura e ficou observando a cena de uma vila indígena mon­tada ao pé de uma montanha. Olhou cada detalhe e concluiu que o artista realmente tinha visitado o lugar, pois era a reconstituição perfeita do "He Sapa", a brincadeira preferida de inverno em sua infância.

As vozes se calaram, mas ainda se percebia um pequeno movimento atrás das cortinas. Águia que Voa Alto sentou-se em uma cadeira perto da cortina e esperou. Esperou... Esperou.

"Ah-tiuu!", Águia que Voa Alto deu um pequeno grito fin­gindo terror. Em voz baixa, ordenou para as cortinas: "Saiam de trás das cortinas!". Dois meninos apareceram, com o rosto bran­co, os olhos arregalados, aterrorizados.

Águia que Voa Alto sentou-se de volta e cruzou os braços, encarando os meninos e perguntando: "Quem são vocês e por que estão me espiando?".

"Samuel Davis, senhor", falou um menino de estrutura cor­poral forte, rosto redondo e bochechas gordas quase tão verme­lhas quanto os cabelos flamejantes.

"S-St-Sterling D-D-avis, senhor", disse o outro menino. Era só um pouco menor que seu irmão e também tinha as bochechas redondas e os cabelos vermelhos como fogo.

Os meninos ficaram lado a lado, com o olhar fixo de Águia que Voa Alto. Tremiam, e Sterling deu uma cotovelada no irmão. Era o sinal, e os dois saíram correndo. Mas Águia que Voa Alto foi mais rápido que eles e num pulo rapidíssimo agarrou-os pela cin­tura. Como estavam assustados demais para lutar, ficaram dependurados como dois sacos vazios, de olhos fixos um no outro, es­perando seu destino.

"A mamãe vai ficar brava com a gente, senhor. Ela disse para sermos educados e não perturbarmos ninguém. Ela vai ficar bra­va mesmo."

"Cale a boca, Sterling. Ela vai ficar mais que brava. Provavel­mente vai nos matar."

Águia que Voa Alto colocou os meninos no chão e eles se afastaram, sentando-se de costas para umas almofadas enormes que enfeitavam um sofá, sem se atreverem a um movimento se­quer, enquanto ele se fingia de bravo: "Isso é um costume dos brancos de Boston? Eles sempre matam seus filhos desobedientes?".

Sterling, o menor deles, falou: "Nãão, ela não vai matar a gen­te de verdade, mas vai ficar muito brava. Nós perturbamos uma visita e isso é contra as regras da casa".

Águia que Voa Alto deu um sorriso muito leve, que abran­dou sua expressão: "E se vocês não tiverem perturbado uma visita, mas, na verdade, tiverem libertado a visita?". Águia que Voa Alto olhou de Samuel para Sterling e sentou-se no chão com eles, cru­zando as pernas e inclinando-se para a frente para apoiar os coto­velos nos joelhos. "Eu estava justamente desejando estar em casa, ao redor da fogueira, contando histórias para os meninos da mi­nha tribo." Apontou o quadro e continuou: "Quando muda para o acampamento de inverno, minha tribo é desse jeitinho". Samuel e Sterling relaxaram um pouco e, cruzando as pernas, sentaram- se como a visita, enquanto Águia que Voa Alto prosseguia: "Sei que vocês não são lakotas, mas acho que todos os meninos, de qualquer lugar, gostam de ouvir histórias. Posso contar uma para vocês?".

Samuel e Sterling Davis assentiram balançando a cabeça.

"Então", falou Águia que Voa Alto, "vou lhes contar sobre uma vez em que desobedeci à minha mãe e o sobre que aconteceu comigo por ter espiado um estrangeiro que nos visitava."

Meia hora depois Samuel e Sterling ainda estavam paralisa­dos em seus lugares, sentados sobre o tapete junto com Águia que Voa Alto. No entanto, eles tinham dado tantas gargalhadas que Nancy Davis disparou pelo hall até a sala de estar pronta para agarrá-los. Quando viu a cena, em frente à lareira, voltou-se para os convidados que a acompanharam até a porta da sala.

Águia que Voa Alto, sentado no chão com Samuel e Sterling, estava bem à vontade, totalmente relaxado. Seu rosto demonstrava ânimo e os olhos brilhavam enquanto descrevia os cenários e as per­sonagens na história de sua adolescência. Ele se mexia e fazia gestos para ilustrar suas histórias com lendas lakotas e verdades bíblicas.

De repente Sterling e Samuel olharam para além de Águia que Voa Alto e, pela expressão dos dois, ele parou de falar e virou o rosto para trás. Sterling e Samuel ficaram em pé repentinamen­te. Águia que Voa Alto se colocou atrás deles, pousando as mãos sobre os ombros de cada um e dizendo: "Seus filhos fizeram-me sentir bem-vindo em Boston, sra. Davis".

Nancy Davis respondeu fingindo preocupação: "Então aca­baram de livrar-se de um aperto, posso dizer. Bem, Samuel, Sterling, vocês já nos ouviram falar do sr. Jeremias King, que fica­rá morando conosco neste ano para estudar em Harvard. Agora que já o encontraram, é hora de se retirarem".

Robert Davis interferiu: "Meninos, o sr. King foi muito baca­na divertindo vocês logo depois de chegar e sem dúvida deve es­tar cansado de encontrar pessoas novas. Subam imediatamente e lembrem-se das regras".

"Sim, senhor", os dois responderam como num eco, dirigin­do-se para a escada. "Não entrem no quarto dele, não o interrom­pam quando estiver falando e não façam perguntas grosseiras."

Seguindo os meninos escada acima, Nancy Davis deu umas palmadinhas neles e cochichou com firmeza: "Seu pai não pediu que recitassem as regras, meninos...".

Robert Davis virou-se para Águia que Voa Alto e disse: "Es­pero que não tenham aborrecido muito você".

Águia que Voa Alto balançou a cabeça negativamente: "Não, de jeito nenhum. Samuel e Sterling nunca vão me aborrecer. Eles me deixaram falar de meu lar e eu gosto de contar histórias".

Robert balançou a cabeça em sinal de aprovação enquanto acompanhava George e Julia Woodward para se sentarem na sala.

Ao sentar-se riu e comentou: "Bem, uma coisa é certa, sr. King, o senhor fez com que Samuel e Sterling sejam os meninos mais po­pulares na escola amanhã. Quando eles contarem aos colegas que passaram a noite sentados no chão escutando histórias verdadeiras de um índio de verdade...". Robert deu uma risadinha: "Quem sabe o sucesso os faça até mesmo gostarem da escola - por uma hora mais ou menos!"

 

Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustenta- me com um espírito voluntário.

                   Salmo 51:12

 

Devido a seu horário bastante ocupado com os estudos, Águia que Voa Alto não podia passar muito tempo com Samuel e Sterling, porém conseguiu visitar certa vez a escola dos garotos. Quando chegou vestido em suas roupas típicas, Samuel e Sterling ficaram emocionados. Os dois seguraram o amigo pelas mãos e o levaram para a frente da sala de aula, fazendo uma introdução já ensaiada e quase explodindo de orgulho.

Águia que Voa Alto contou sobre sua vida antes de ir para Santee e de sua conversão ao cristianismo. O discurso foi rápido, pois ele queria deixar bastante tempo para que as crianças fizes­sem perguntas. E não ficou desapontado, já que os alunos o diver­tiram com sua naturalidade e curiosidade sincera.

Quando a reunião terminou, Samuel e Sterling mais uma vez conduziram seu amigo para fora da classe até uma carruagem que o esperava. "Quando chegarmos em casa, você me mostra aquele jogo do qual falou?", Samuel queria saber. "Aquele em que você atira a bola?"

Assim que chegaram em casa, o trio foi até um pequeno quin­tal gramado no fundo da residência dos Davis. Águia que Voa Alto explicou: "Este jogo se chama Tapa Wankayeyapi. Se estivésse­mos na colina, arrancaríamos um pedaço de grama para simboli­zar o centro do universo. Mas seus pais não gostariam que arran­cássemos a grama aqui, então...". Águia que Voa Alto pegou Sterling pelos ombros e disse: "Você fica aqui, no centro...". Sterling concordou e Águia que Voa Alto continuou a explicar: "Precisarí­amos de mais quatro meninos, um no norte, outro no sul, um no oeste e outro no leste. Mas como somos só o Samuel e eu, o Samuel...", Águia que Voa Alto gesticulou, orientando Samuel a ficar do lado oposto, com Sterling no meio. "Quando o Sterling lançar a bola, vamos ver qual de nós dois consegue pegá-la." Sterling jogou a bola para cima e Águia que Voa Alto fingiu esforçar-se para pegá-la, assegurando-se porém de que Samuel a pe­gasse.

"Agora", Águia que Voa Alto explicou, "este jogo é sagrado para o meu povo. Foi ensinado pela Mulher do Búfalo Branco, que nos falou que a bola representa Deus saindo do meio do povo e depois voltando para ele." Águia que Voa Alto olhou com serie­dade para os meninos e continuou: "Como cristãos, sabemos que Deus nunca se afasta de nós, mas às vezes nós nos afastamos d'Ele. Isso é algo que nunca devemos fazer".

Ele jogou a bola para cima e a pegou novamente: "Quando a bola retorna para a terra, quer dizer que nós nos unimos com Deus, que recebemos conhecimento. Todos os participantes do jogo de­vem esforçar-se ao máximo, mostrando o quanto querem ficar perto de Deus e receber conhecimento".

Águia que Voa Alto estava mais interessado na aplicação do jogo do que no próprio jogo, mas logo percebeu que Samuel e Sterling esperavam impacientemente que ele parasse de filosofar e começasse a jogar. Então Águia que Voa Alto parou de falar re­pentinamente e lançou a bola para Sterling, iniciando uma brin­cadeira divertida que acabou com os três deitados no chão, olhan­do para o céu, quase sem fôlego.

Tarde da noite, bem depois que os meninos tinham se retira­do para dormir, Águia que Voa Alto estava sentado em seu quar­to, estudando um texto de filosofia para a aula do dia seguinte, quando ouviu uma batida na porta. Era Robert Davis, que parado no corredor falou: "Jeremias, eu só queria agradecer por você gas­tar tanto do seu tempo com os meninos".

"Eu é que deveria agradecer ao senhor, sr. Robert, por me deixar morar em sua casa. Seus filhos são ótimos."

Robert assentiu com um movimento da cabeça: "É, Deus tem nos abençoado; mas às vezes eles são exigentes e bagunceiros de­mais. Sei que eles têm interrompido seus estudos e agradeço pela sua paciência".

Águia que Voa Alto mostrou a pilha de livros em sua escriva­ninha. Colocou o livro cuidadosamente sobre ela e falou: "Não é preciso paciência de minha parte para conversar com o Samuel e o Sterling, Robert. Se todas as pessoas com quem convivo fossem boas e honestas como eles, acho que a 'questão indígena' já teria sido resolvida há muito tempo. Então todos esses livros de filoso­fia poderiam ser colocados de lado, eu poderia ir para minha casa e talvez ter os meus próprios filhos".

Robert Davis limpou a garganta e disse: "Bem, mesmo assim, quero que você saiba que Nancy e eu apreciamos muito sua aten­ção para com eles". Robert fechou a porta atrás de si e Águia que Voa Alto voltou aos estudos.

A noite seguinte encontrou Águia que Voa Alto dirigindo-se para mais uma importante reunião dos Amigos dos índios. Julia e George Woodward, Nancy e Robert Davis sentaram-se quase na primeira fileira do auditório. Assim que Águia que Voa Alto foi apresentado e passou para o púlpito por uma pequena porta, o auditório silenciou e as pessoas, curiosas quanto ao que iriam ouvir, ficaram observando as roupas nativas de alguém que, segundo tinham ouvido, era um índio Sioux aculturado.

"Convidados de honra", começou ele, projetando sua voz por todo o salão, "obrigado por terem vindo ouvir-me. Estou aqui para falar sobre a Escola de Treinamento Santee, em Nebraska. Ela foi fundada pelo Conselho Americano da Comissão para Missões Estrangeiras, com o propósito de levantar pregadores, professo­res, intérpretes, homens de negócio e mães modelos para a Nação Dakota. Ouvindo-me nesta noite vocês poderão avaliar se eles têm sido bem ou mal sucedidos."

"Este ano, a Casa Dakota para Meninas junto com a Casa dos Jovens, em Santee, alcançarão setenta pessoas com o evangelho de Jesus Cristo e com a instrução de que precisarão para a nova vida delas e de suas famílias."

Águia que Voa Alto deu um passo até a beirada da plataforma para que sua roupa pudesse ser mais bem observada pela audiên­cia. "Quando fui para Santee, vestia-me desse jeito que estou agora. Montava um pônei e levava uns poucos pertences comigo, incluin­do uma profunda raiva no coração contra aquilo que estava aconte­cendo com a minha vida. Em Santee aprendi que havia pessoas como vocês, que olhavam os índios com compaixão."

Águia que Voa Alto continuou a compartilhar sua conversão a Cristo antes de destacar as vantagens da escola Santee no treinamento de crianças. "Santee está situada bem no portal das terras selvagens, agora habitadas pelos Sioux. A equipe de Santee co­nhece e compreende a personalidade do índio. Lá é possível tra­balhar a educação do índio mais diretamente e com resultados melhores do que em instituições distantes do território indígena."

"Só vocês podem opinar quanto ao sucesso de Santee. Preci­sam ouvir o que tenho para dizer e julgar por si mesmos. Já lhes contei sobre minha vida anterior e agora vocês me conhecem. Santee obtém sucesso porque lá os índios ouvem o evangelho de Cristo e nenhuma influência pode fazer tanto efeito na civilização dos índios quanto o evangelho de Cristo."

"O governo quer responsabilizar-se pela educação indígena e diz que o índio não pode ser ensinado em sua própria língua. Mas um bom conhecimento da língua inglesa não serve para trans­formar um índio mau em um bom branco. O índio precisa de um coração novo, da mesma forma que o branco, e somente o Espírito Santo, através do evangelho de Jesus Cristo, pode fazer isso. O único caminho efetivo para civilizar o índio é levando-o a Jesus."

"Foram formadas algumas igrejas como resultado do traba­lho em Santee. Elas cobrem apenas uma pequena parte do leste do Estado que vocês chamam de Nebraska. Mas a luz delas está se espalhando, os Sioux cristãos estão tentando cumprir seu de­ver, e a esperança de levar o evangelho a toda a nação Sioux nun­ca esteve tão acesa. Os corações estão abertos à verdade. Agora é o momento de trabalhar."

"Um número enorme de tribos, sob a liderança de Nuvem Vermelha, Cauda Manchada e Touro Sentado, ainda não tem pro­fessores cristãos. Eles só estarão preparados para receber o evan­gelho e ser beneficiados por ele quando tiverem professores cris­tãos. Estamos ansiosos por despertar seu interesse para que nos ajudem a levar o evangelho à parte selvagem da nação Sioux."

Águia que Voa Alto concluiu com um forte apelo: "Homens, irmãos, irmãs, seguidores de Cristo - pelo amor de nosso Senhor ressurrecto que nos envia -vamos! Vamos aos índios não com ba­las, mas com Bíblias. Substituam a 'teoria do extermínio' pelo evan­gelho de Cristo".

Enquanto Águia que Voa Alto saía da plataforma para vestir sua "roupa de Boston" e retornar à discussão, podia ouvir o hino cantado pela congregação.

George Woodward e Robert Davis juntaram-se a ele na plata­forma do púlpito. Tão logo a reunião terminou, Águia que Voa Alto acompanhou Nancy Davis e Julia Woodward para casa.

"Foi um discurso excelente, Jeremias", falou Nancy Davis. Como Águia que Voa Alto parecia não escutá-la, Julia Woodward repetiu a mesma coisa que Nancy. Mas as duas mulheres logo desistiram de tentar uma conversa com o amigo.

A esperança nunca brilhou tanto... Os corações estão se transfor­mando... Agora é o momento de trabalhar. Águia que Voa Alto sentia suas próprias palavras emergindo para condená-lo. De repente sua falta de descanso das semanas passadas e sua infelicidade vi­eram à mente. O Senhor está me conduzindo a fazer algo mais com minha vida, Deus?

A resposta veio enquanto Águia que Voa Alto imaginava Deus o desafiando. Há alguém melhor para levar o evangelho aos Sioux sel­vagens do que um autêntico Sioux? Esta noite você implorou por ajuda. Falou de cristãos nativos levando o evangelho ao povo do Touro Sentado. Eu o chamei para Santee, onde você aprendeu sobre Mim. Agora eu lhe pergunto: Quem está mais preparado para levar o evangelho à aldeia de Touro Sentado que Águia que Voa Alto?

Quando a carruagem chegou à casa dos Davis, Águia que Voa Alto automaticamente despediu-se de Julia Woodward. Ig­norando a mão dela estendida, seguiu Nancy Davis até a casa e subiu as escadas para seu quarto, onde passou a noite inteira sem dormir, inquieto, refletindo sobre suas responsabilidades de representar a Escola Normal de Treinamento Santee ao povo do leste.

Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus. O versículo motivou-o a orar e a estudar, e Águia que Voa Alto co­meçou a fazer as duas coisas. E durante as semanas que se segui­ram cresceu seu desejo de retornar ao lar, no oeste, e cresceu tam­bém o peso pelo seu próprio povo. A carga tornou-se tão pesada que ele a sentia fisicamente.

Querido Pai, ele finalmente orou, quero voltar para casa, mas sou um filho novo ainda. Como poderei ter certeza de que esse é o Seu desejo? Peço, Pai, que o Senhor me mostre se isto vem do Senhor. Não vou falar com ninguém sobre isto, mas apenas com o Senhor. Por favor, Pai, diga ao Alfred Riggs o que preciso fazer; para mim, parece bom confiar nos conselhos dele.

Águia que Voa Alto continuou dando palestras e estudando. Sua saudade da campina crescia tanto que diariamente ele tinha de travar a batalha contra a melancolia. As pessoas ao seu redor perceberam e ficaram preocupadas.

"Não sei, Julia", George Woodward comentou certo dia, "tal­vez tenhamos esperado muito dele. Os estudos exigem demais e talvez ele precise de uma folga. Seja lá o que for, estou preocupa­do."

"Ele está sozinho, George", disse Julia.

"Sozinho? Tem tantos amigos que nem sabe o que fazer com eles. Eles praticamente brigam para ver quem vai entretê-lo."

"Ele não está precisando de entretenimento, George; está pre­cisando de companhia."

George olhou com suspeita para a irmã: "Você quer dizer com­panhia feminina, não é?".

Julia Woodward não respondeu ao irmão.

"Tome cuidado, Julia. Tome muito cuidado!"

 

Mas o que modera os seus lábios é prudente.

             Provérbios 10:19

 

Esse Everett Higgenbottom! Parada na recepção da Casa Hatha­way, Carrie Brown ficou parada, admirando uma nota em sua mão. Levantando os olhos para Silas Kellum, gaguejou: "Mas... não pode ser. Simplesmente não pode ser".

Silas Kellum virou o livro de registros na direção de Carrie e apontou o nome de Everett. "Aqui está, srta. Brown, ele deu en­trada há uma hora e deixou este bilhete para você. Disse que esta­ria na sala de jantar". Com um sorriso, Silas brincou: "Qual o pro­blema, criança? Amor perdido de St. Louis? Ele deve estar apaixo­nado para vir atrás de você até Nebraska".

"Silas Kellum", retorquiu Carrie, "só porque está me monitorando em latim e só porque salvou-me de cair nas mãos da srta. Smith algumas vezes..., isso não lhe dá o direito, repito, não lhe dá o direito de ser impertinente comigo." Carrie jogou o car­tão de volta na gaveta do balcão e dirigiu-se à sala de jantar onde, segundo o cartão, ela encontraria Everett Higgenbottom.

Lá estava ele, com as longas pernas cruzadas sob a pequena mesa disponível no canto, ao lado das janelas da Rua P. Ao ver Carrie, ele pulou, batendo com tanta força na beirada da mesa que até virou seu copo de água.

"Espere, Everett, eu ajudo você", disse Carrie, agarrando a toalha de uma bandeja por perto e enxugando os lugares respingados. Everett ficou vermelho e começou a falar com empolgação desde o instante em que avistou Carrie, até que finalmente a moça ordenou que ele se assentasse. Carrie colocou sobre a mesa um copo de água para cada um e perguntou-lhe diretamente: "O que você veio fazer aqui em Lincoln, Everett Higgenbottom? E a Uni­versidade de Washington?"

Everett balançou a cabeça de um lado para o outro, respon­dendo: "Odeio-a. Estou fazendo minha transferência. O sr. Kellum disse que a sra. Hathaway não aluga quartos para estudantes, mas aluga para você, Carrie. Quem sabe você poderia convencê-la a me alugar um também?".

Ele está aqui, vindo para a Universidade daqui, e quer um quarto aqui, na Casa Hathaway. Carrie apoiou a testa em sua mão e ponderou so­bre o pedido. Então balançou a cabeça negativamente: "Não, Everett, não posso. A sra. Hathaway não aluga quartos para estudantes por uma única razão: custa muito caro. Moro aqui porque trabalho para ela e também porque é uma amiga de nossa família". Carrie olhou para Everett Higgenbottom, convicta: "Mas sei que você não espera que ela faça um preço mais barato. Isso eu não poderia pedir".

"Não, ela não precisa abaixar o preço, Carrie. Posso pagar minha estadia. Minha mãe fez o que pôde para que eu não viesse; bem, você pode imaginar que ela faria mesmo, não é? Mas quan­do percebeu que eu não arredava pé e que ela não podia fazer nada mesmo, desistiu de me impedir." Everett deu um sorriso: "Acho que ela até ficou um pouco feliz por saber que o curso aqui é tão mais barato que o de lá".

"Mas Everett, esta Universidade nem mesmo tem um depar­tamento de música."

"Sei disso, Carrie", Everett falou com um sorrisinho de vitó­ria, mas foi ficando sério. "Nunca quis ser um pianista, Carrie. Minha mãe é que colocou isso na cabeça."

"Mas por que vir até aqui, Everett, quando há tantas outras instituições mais antigas e provavelmente melhores? Por que você não foi para o leste?"

"Tudo bem, há escolas boas no leste", concordou Everett, "mas nenhuma dessas outras escolas tem uma coisa."

"O quê, Everett?"

"Uma aluna chamada Carrie Brown."

"Ai, Everett", Carrie gemeu.

"Eu sei, eu sei, Carrie, você vai crescer, dar aulas para os índi­os e casar-se com Jeremias King."

Carrie passou os olhos pela sala de jantar. "Shhhhhhh, Everett. Você não tem de falar isso onde alguém possa ouvir."

Everett deu uma risada: "É, certo, Carrie. Você está certa, mas escute-me". Seus olhos acinzentados ficaram sérios quando ele falou: "Você sonha com isto e eu sei. Sei também que sou apenas seu amigo, Carrie. Mas sou seu amigo e isso já é alguma coisa... Quem sabe?". Everett balançou os ombros ossudos e continuou, com ar de esperança: "Talvez você comece a gostar de mim, talvez alguma coisa aconteça, algo que a faça mudar de planos".

"Everett Higgenbottom, no segundo grau você me seguia como, como... bem", Carrie hesitou antes de continuar. "Everett, isso que vou falar é para o seu próprio bem - você me seguia na escola como um cachorrinho. E não quero ser seguida aqui em Lincoln."

Everett Higgenbottom sorriu radiante para Carrie. Sua devo­ção a ela era tão grande que ele nem se acanhava. "Não vou se­guir você, Carrie, mas de vez em quando você precisará de um acompanhante, e aquele índio não está morando aqui em Lincoln, está?"

"Águia que Voa Alto está em Boston, estudando em Harvard. Acho que não vou vê-lo por muito tempo."

"Ótimo."

Carrie concordou: "E, Everett, é ótimo mesmo. Tenho estu­dos sérios a fazer, tenho de crescer em algumas áreas sérias e le­cionar seriamente também antes que Águia que Voa Alto me leve a sério. Mas ele vai me levar a sério, Everett, algum dia vai".

Everett agarrou a mão de Carrie e disse: "Escute, Carrie, fico preocupado com você. O que vai acontecer se isso não funcionar do jeito que você quer?".

Carrie puxou sua mão e respondeu: "Isso vai funcionar, Everett. Não estou considerando a possibilidade de derrota".

"Carrie, vou falar uma coisa que vai deixá-la furiosa. E vou falar só uma vez, mas alguém precisa fazer você encarar os fatos realisticamente. Você está construindo uma esperança futura ba­seada numa lembrança do passado. Desde garota você nunca retornou a Santee. Então como pode saber que gostará de lá? Como pode saber que vai querer morar lá? As coisas mudam, Carrie, bem como as pessoas. Suas lembranças são do tempo de criança, quando você brincava e se divertia. Mas sua mãe, que Deus a te­nha, teve um trabalho que basicamente a levou à morte. Você já pensou no que significa ser uma missionária, já imaginou a imensidão de trabalho? Ou...", Everett mordeu o lábio. "Você já pensou em tudo isto? Ou só tem na cabeça o quadro romântico do lindo maridão pele-vermelha que dá palestras e viaja? É um qua­dro romântico, Carrie, eu admito. Mas e se não funcionar desse jeito?"

"Às vezes as coisas simplesmente não funcionam, Carrie. O que você vai fazer se não funcionarem? E se você detestar a vida numa escola missionária? Você não está acostumada a uma vida difícil, nós dois sabemos. E se não gostar de lecionar? E se este Águia que Voa Alto encontrar outra pessoa em Boston?" Everett balançou uma mão na frente de Carrie. "Tudo bem, srta. Brown, tudo bem. Não é preciso explodir. Sei que você está furiosa comi­go agora, mas pense nisso tudo, Carrie. Pense e lembre-se de que", ele falou com um sorriso brilhante, "se as coisas não acontecerem do seu jeito, simplesmente me chame para, bem, para fazer o que for preciso. Eu me preocupo muito, Carrie, realmente me preocu­po muito."

"Everett, por que você realmente veio de tão longe para Nebraska?"

"Vim mesmo para estar perto de você, Carrie." De repente Everett riu. "Enquanto isso, planejo conseguir um diploma em alguma coisa. Isso pode ser útil para o futuro, não é mesmo?"

"Um diploma de quê, Everett?"

"Não sei ainda. Acho que isto não tem muita importância. Não sou bonitão, Carrie, mas sou bem esperto. Acho que vou ten­tar algumas coisas até saber o que quero realmente. De uma coisa eu sei bem: Não serei músico."

Everett Higgenbottom conseguiu ficar na Casa Hathaway, fato que o tornou imediatamente conhecido no câmpus como aluno rico o suficiente para pagar a hospedagem num hotel e o curso na Universidade sem precisar trabalhar. Ele foi útil para acompanhar Carrie Brown a cada palestra noturna a que ela desejasse assistir. Tornou-se também popular entre os colegas de classe. Era genui­namente bom, ajudava sempre que podia e participava de tantas brincadeiras até quase ser expulso. (Foi o Everett Higgenbottom que idealizou o caso todo do Dia de Ações de Graças, quando os cadetes colocaram um canhão na Praça Haymarket e atiraram em protesto à política universitária que requeria treinos militares a cada estudante do sexo masculino.)

Everett fazia parte da equipe do Hesperian, o jornal dos estu­dantes. Tocava na orquestra e era o preferido nos grupos de debates. Everett Higgenbottom era um sucesso em tudo o que fazia, exceto em uma coisa - não conseguia fazer Carrie Brown apaixonar-se por ele.

 

Embora Carrie tivesse ficado furiosa com o ataque de Everett dos seus planos futuros, finalmente admitiu a si mesma que ele tinha trazido à tona alguns pontos importantes. Ela nunca havia voltado a Santee desde criança e não sabia se realmente gostaria de lecionar. Armou-se para superar tais obstáculos.

Quando Jim e LisBeth Callaway foram a Lincoln, no dia de Ações de Graças, surgiu a oportunidade de Carrie visitar Santee. Logo que LisBeth sentou-se no sofá, na sala de Augusta, esta co­meçou a contar os planos da coleta de roupas da primavera para Santee: "Vamos juntar muitos barris de roupas, LisBeth. Vocês terão muita coisas para levar para a missão".

LisBeth limpou a garganta e disse: "Bem, tia Augusta, acho i|ue não poderei ir nesta primavera".

Augusta lançou-lhe um olhar penetrante e perguntou: "Não vai? Você sempre vai para Santee na primavera, LisBeth".

LisBeth corou e falou calmamente: "É, eu vou, mas nesta pri­mavera estarei meio indisposta".

"LisBeth Callaway, você quer dizer que...?" LisBeth concor­dou com um gesto e Augusta apertou-a com um abraço. "Louva­do seja! Vou ser tia-avó!"

LisBeth contou: "Esperamos tantos anos, tia Augusta, que eu já estava perdendo a esperança. Mas acabamos de sair do dr. Gilbert e ele confirmou". LisBeth ficou pensativa. "Não vou po­der ir para Santee, é claro, mas..."

"Eu ajudarei em Santee, LisBeth." Carrie Brown tinha per­manecido no quarto e agora estava parada à porta. Então desculpou-se: "Não quero me intrometer, mas a voz da sra. Hathaway chegou ao meu quarto e não pude deixar de ouvir".

Carrie entrou na sala de Augusta para explicar melhor. "Nun­ca voltei a Santee desde que era criança, sra. Hathaway, e adoraria retornar e ver tudo lá. Ver se as coisas são do jeito que me lembro, rever as pessoas..." Virou-se para LisBeth: "Quero voltar para le­cionar, LisBeth, mas os amigos dizem que não tenho uma visão realista de lá, e talvez estejam certos. Se eu for para lá com o sr. Callaway, poderei checar tudo isso e também ajudar. Sei que po­derei ajudar".

LisBeth assentiu com a cabeça: "E, Carrie, você pode ajudar e eu concordo que, se quer trabalhar com os índios, quanto mais cedo voltar para lá, melhor".

"Por favor, só peça para o Jim avisar-me uns dias antes para que eu possa arrumar minhas coisas e a sra. Hathaway possa pro­videnciar alguém para me substituir." Carrie hesitou: "Tudo bem, sra. Hathaway?".

Augusta consentiu de coração e Carrie deu os parabéns para LisBeth, voltando ao quarto com o coração disparado de alegria. O trimestre de inverno voou enquanto Carrie preparava sua via­gem de volta a Santee. Ela não conseguia pensar em nada mais. Everett Higgenbottom estava aborrecido com a preocupação de Carrie e passou a evitar encontrá-la para não ouvir nada sobre a viagem.

Quando a manhã da partida chegou, Everett despediu-se de Carrie com um olhar desesperançado.

Carrie estava radiante: "Você vai voltar para casa para um verão maravilhoso, Everett, e eu simplesmente vou seguir seu conselho - vou descobrir o que acho de Santee e o que realmente significa trabalhar entre os índios. Vou abandonar todas aquelas noções românticas pelas quais você me criticou".

Enquanto o carroção dirigia-se para o norte, Carrie Brown sentava-se atrás para ler, jamais imaginando que o objeto de suas "noções românticas" estava, naquele momento embarcando em um trem, em Boston, para escapar de um romance.

 

Porque o Senhor não vê como vê o homem. O ho­mem vê o exterior, porém o Senhor, o coração.

                 I Samuel 16:7

 

         Amigos,

Participei do Dia de Ações de Graças entre o povo bran­co, na casa do sr. George Woodward. Eles serviram mais comi­da do que teríamos em muitas festas em Santee. Embora as pessoas de Boston tenham sido boas para mim, enquanto eu me sentava à mesa com eles, meu desejo era estar com os ami­gos em Santee novamente e vencer a neve para chegar na cele­bração do Dia de Ações de Graças.

Recebi uma carta do Pastor Nuvem de Trovão pedindo-me oração pelas igrejas dakotas. Mas acho que as igrejas aqui em Boston, onde tenho falado, também deveriam orar por isso. Copiei a carta para vocês. Orem para que aquelas igrejas sejam consagradas ao trabalho de salvar as almas; orem pelo reavivamento profundo e genuíno nas igrejas em Boston; orem para que Cristo seja formado em todos os cris­tãos e o Espírito Santo desça sobre eles com tal poder dos céus que vão a todos os lugares e contem a história da Cruz a todos os dakotas selvagens nas campinas, levando-os a Cristo.

Os Amigos daqui dizem que, quando eu falo, ajudo vocês, pois as pessoas doam mais e os barris ficam mais cheios. Gos­taria que escrevessem para mim dizendo se estão recebendo mais barris de Boston.

Do amigo,

Jeremias Águia que Voa Alto King

 

Durante os meses de outono e inverno, Águia que Voa Alto orou, estudou e fez palestras. Quando as cartas do dr. Riggs o en­corajavam a continuar estudando, ele tentava ficar contente. Mes­mo assim, a saudade e o desejo de retornar a Nebraska foram au­mentando. Ele passava várias horas na sala de estar da casa dos Davis, até bem depois que a família se recolhia para dormir, olhan­do o quadro de tendas indígenas.

Numa noite de dezembro, Águia que Voa Alto estava com Julia e George Woodward e este apresentou-lhe um documento, dizendo: "Leia-o, amigo, acho que vai ficar satisfeito. O comitê finalmente realizou algo concreto".

Com um gesto floreado, George entregou para Águia um documento com letras cuidadosamente desenhadas e intitulado Plataforma dos Princípios Representativos de Nossa Política Indígena. Águia que Voa Alto leu-o e, ao terminar, colocou o papel na beira da mesa e tomou um longo gole de água.

"Não vai comentar nada, Jeremias?", perguntou George visi­velmente desapontado.

Águia que Voa Alto balançou a cabeça.

Julia falou: "Jeremias, pensamos que você fosse ficar satisfeito".

"Satisfeito." Águia que Voa Alto quase não conseguia segu­rar sua raiva. "Tenho falado e dado palestras há meses. Todo o mundo diz que minha fala resultará em ajuda para os índios. Mas eu pergunto: Têm sido enviados mais barris para Santee? Não. Mais comida tem sido enviada? Não. Alguns destes homens de Boston que ficam sentados, com um sorriso afetado, para me ou­vir, já se converteram a Cristo? Pelo menos uma pessoa foi à fren­te comprometendo-se a levar o evangelho às campinas? Não. Você coloca esse documento em minhas mãos e espera que eu fique satisfeito. Mais palavras em papéis não significa progresso. Nós, lakotas, conhecemos tudo sobre palavras em papéis. Elas fazem os brancos sentir-se bem consigo mesmos. Mas não realizam nada para os índios."

A voz de Águia que Voa Alto tremia de raiva enquanto ele abria o documento e o lia em voz alta: "1. índios são homens, não muito diferentes dos outros, com os mesmos desejos e governados por impulsos semelhantes". Com sarcasmo ele comentou: "Fico muito satisfeito em saber que foram necessários apenas cinco meses para vocês aprenderem isto comigo".

Continuou a leitura: "2. Em seu estado nativo, os índios não têm leis e precisam ser contidos pela força. 3. É mais econômico alimentar os índios que lutar contra eles, e é também mais humano e cristão". "Eu esperava", Águia que Voa Alto frisou, "que a motivação cristã vi­esse antes da econômica. Perdoem-me por ter tido tanta expecta­tiva com as igrejas de Boston."

Águia que Voa Alto entregou o documento a George, dizen­do: "O parágrafo final deveria ser o conteúdo inteiro do docu­mento, George. Leia-o alto, por favor. Quero ouvir você lendo".

George Woodward obedeceu: "Para que se realizem com suces­so os objetivos enumerados a seguir - civilizá-los, envolvê-los, educá-los e levá-los a um estilo de vida de seres humanos - buscamos os ensinamentos do evangelho do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo como indispensá­veis e portanto exigimos que o trabalho de missionários entre os índios seja um imperativo".

Águia que Voa Alto assentiu com a cabeça. Curvando-se em direção a George, falou: "Acho, George, que o seu comitê precisa passar mais tempo no trabalho missionário e não na execução de documentos". Levantando-se repentinamente, Águia que Voa Alto curvou-se para George e Julia: "Com licença, mas acho que não posso mais continuar essa conversa e ainda assim honrar ao Se­nhor meu Deus. Boa noite". Jogou o guardanapo com irritação e saiu apressado da sala de jantar.

Já era quase meia-noite quando Águia que Voa Alto subiu a rua dos Davis e entrou em casa. Estava tudo quieto e, ao começar a subir as escadas, parou de repente. Em vez de continuar, foi para a sala de estar e sentou-se mais uma vez diante do quadro da al­deia indígena, nas Montanhas Negras. Encostando a cabeça na poltrona, com os olhos quase fechados, ficou recordando. Podia quase ouvir as batidas dos bumbos, sentir o cheiro do assado na fogueira e a maciez do couro de búfalo enrolado em seus ombros.

Ficou sentado por um longo tempo, lembrando-se, sentindo saudades de... Águia que Voa Alto sentou-se repentinamente e olhou melhor a pintura. De repente percebeu que sua saudade tinha se cristalizado em desejos específicos que ele podia nomear e colocar em suas orações. A leitura do documento que George Woodward lhe apresentara com tanto orgulho era um pouco res­ponsável por seu desapontamento - a insatisfação que vinha sen­tindo há semanas.

Senhor Deus, orou Águia que Voa Alto, quero retornar ao meu povo. Quero levar-lhes o evangelho. Tenho orado por isso há semanas e ainda não recebi resposta nenhuma.

O dr. Riggs encoraja-me a ficar aqui e pedi que o Senhor me mostrasse Seu desejo através dEle. Se eu devo ficar aqui, tentarei ter paciência. Mas, Deus, sinto-me tão sozinho.

Outro desejo específico cristalizou-se. Há outras coisas tam­bém, Pai. O Senhor criou-me como homem, meu Pai. Os brancos aqui me aceitam como um "índio educado". Mas para eles sou apenas um objeto de interesse e não um homem. Senhor, quero uma esposa.

Fixando os olhos no quadro, Águia que Voa Alto pensou em Winona. Ela o amara, mas o seu coração estava tão cheio de raiva e ódio que ele nem dera espaço para o amor. Começou a pensar em outra mulher que tinha conhecido. Senhor Deus, quero embru­lhar alguém em meu couro de búfalo. Alguém que entre em minha vida, que se torne parte de minha alma, que entenda as coisas que eu não con­sigo falar. O Senhor me criou, Deus. Será que não fez uma mulher para mim?

Em suas lembranças, Águia que Voa Alto viu crianças correndo ao redor da aldeia, brincando com cachorros, gritando alegremente. Senhor Deus, eu quero ter filhos. Antes de conhecer o Senhor, achava que jamais colocaria filhos neste mundo. Mas agora quero ter filhos. Quero levar um filho para caçar, como meu pai fez comigo. Quero contar histórias para uma filha, montar brinquedos. Águia que Voa Alto lembrou-se da bone­ca de sabugo de milho que ainda estava em sua bolsa lá em Nebraska. Lembrou-se de uma menininha embrulhando-a e embalando-a com tanto cuidado como se fosse uma boneca de porcelana daquelas que tinha visto nas vitrines de lojas em Boston.

Águia que Voa Alto ficou sentado em frente ao quadro da sala dos Davis orando, enquanto lágrimas de solidão e desespero rolavam em sua face. Por quê, Deus, por quê? Por que o Senhor me deixa ter esses desejos quando não há ninguém para satisfazê-los? O dr. Riggs diz que eu devo ficar aqui. Eu devo ficar aqui, Pai, onde meu espí­rito está morrendo?

Finalmente Águia que Voa Alto levantou-se e subiu para o quarto, onde mergulhou num sono exausto.

O Ano Novo passou e Águia que Voa Alto aproveitou o cli­ma frio para estudar mais. Tinha poucas palestras para fazer e isto lhe deu mais oportunidades de fazer visitas informais aos lares de várias pessoas influentes. Ele se empenhava muito durante estas visitas, fazendo o melhor que podia para pacientemente respon­der a perguntas tolas, e voltava ao seu quarto com uma melancolia sem fim.

Samuel e Sterling Davis saíram de férias com a mãe e ficaram inuito doentes nessa época. As cartas tranqüilizaram o pai deles e Águia que Voa Alto de que as crianças se restabeleceriam, mas só poderiam retornar para casa quando o clima mais ameno da pri­mavera e o ar mais saudável chegassem a Boston.

A única luz na vida de Águia que Voa Alto era sua amizade com Julia e George Woodward. Julia, que tomava seu braço e o guiava em situações incertas de tal forma que ele parecia ser o líder. Julia, tão linda, que uma vez, após alguns dias de separação, chegou a deixá-lo sem fala ao reencontrá-la. Julia, que o fitava com alguma coisa nos seus olhos negros que lhe causava um arre­pio tão profundo a ponto de assustá-lo.

Após a surpresa inicial com a reação de Águia que Voa Alto diante do documento, George e Julia desculparam-se com o amigo: "Queremos entender, Jeremias. Deixamos passar alguma coisa. Será que você pode ajudar os pobres e ignorantes habitantes de Boston aqui a entender?". George disse isso com uma sinceridade tão paté- lica que Águia que Voa Alto explodiu numa gargalhada.

Sorrindo para os dois amigos, balançou a cabeça afirmativa­mente e disse: "Vou tentar, amigos. Mas primeiro vocês precisam fazer algo muito difícil".

"Faremos qualquer coisa", assegurou-lhe Julia Woodward.

"Tentem ver o que significa o que vocês chamam de 'proble­ma do índio' para os homens, as mulheres e as crianças afetados por este problema. Deus pode ajudá-los nisso." Águia que Voa Alto colocou açúcar em seu café e mexeu-o enquanto prosseguia: "Vocês têm boa intenção e eu percebo isto, mas não podem solu­cionar o 'problema do índio". É isso o que tenho tentado dizer durante todos estes meses".

Tomou um gole de café e prosseguiu: "Deixem o governo preocupar-se com as leis e propostas. Enquanto eles lutam para escrever documentos e políticas, vocês e seus amigos podem en­viar ajuda real ao povo. Recolham mais roupas, enviem mais di­nheiro, desafiem seus jovens a ser missionários. Gastem seu tem­po com isso e não escrevendo documentos e propostas".

Águia que Voa Alto inclinou-se para a frente em sua cadeira e olhou diretamente para George e Julia: "Se algum dia pudessem ver Santee, as crianças recebendo aulas, entenderiam a razão de minha impaciência. Vidas podem ser mudadas para melhor ago­ra, para a glória de Deus. Vocês não têm de ficar esperando um documento que lhes dê permissão para ajudar. Vocês podem fa­zer diferença em tudo isso, George e Julia". Águia que Voa Alto fez uma pausa e suspirou: "Mas estes papéis que vocês escrevem não fazem diferença positiva para meu povo. Falei com raiva na­quele dia, mas repito agora: nós, Sioux, já vimos muitos papéis bem escritos que prometeram mundos e fundos e aprendemos a ignorá-los".

Fazendo outra pausa, Águia que Voa Alto concatenou os pen­samentos antes de continuar: "Não é tão difícil assim, amigos. Co­mecem comigo. Pensem por um instante que significado tenho para vocês? Após todos esses meses ainda sou 'o índio'? Ou sou um ho­mem conhecido de vocês que por acaso é um índio?". Após mais um suspiro, seguiu adiante: "Vocês precisam olhar para além dos problemas e questões, amigos. Vejam o homem, vejam o povo que eu represento. Quando nos virem como pessoas, e não como parte de um problema, então começarão a ajudar realmente".

Águia que Voa Alto abaixou a voz e desviou o olhar de George para Julia. Enquanto concluía, seus olhos fixaram-se em Julia, que o ouvia com atenção. Nesse instante os olhos dela deixaram o ros­to de Águia que Voa Alto e foram para os ombros e depois para as mãos do irmão. Ela abaixou os olhos e sua face adquiriu com um brilho rosado.

George Woodward limpou a garganta e tirou um pedaço de papel do bolso. "Para evitar que você arme uma tempestade no­vamente, eu mesmo gostaria de ler uma coisa para você. Falou que, se pudéssemos nós mesmos ver Santee, seria muito bom. Na noite passada o comitê escreveu outra resolução. Acho que você gostará desta". George passou o papel para Águia que Voa Alto, que leu:

Os planos de uma visita do comitê aos dakotas e às mis­sões foram oficializados. O comitê do reverendo dr. A. C. Johnson, Robert Davis e George Woodward será acompanha­do pela sra. Davis e pela srta. Julia Woodward. Planejamos sair de Boston no dia 18 de abril. Encontraremos o rev. Nu­vem de Trovão, de Santee, que concordou em acompanhar-nos até as outras missões. De Santee iremos para o Fort Sully, para Sisseton e por último para Berthold.

Julia Woodward falou primeiro: "Veja, Jeremias, alguns de nós têm escutado o que você fala. Mas levou um tempo para con­vencer o Comitê a planejar a viagem", Julia sorriu empolgada. "Quando virem a olhos nus o trabalho, então reagirão de outra forma e entenderão melhor a questão".

Julia Woodward balançou a cabeça para cima e para baixo: "É isso mesmo. O comitê arrumou até mesmo um jornalista para acompanhar a viagem. Ele nos encontrará em St. Louis. Lembra- se de R. J. Painter? Você o impressionou, Jeremias. Ele ouviu no comitê de St. Louis sobre o nosso plano e ofereceu-se para pagar seus gastos se pudesse ir conosco".

O jantar terminou enquanto Águia que Voa Alto tentava pre­parar George e Julia Woodward para sua primeira ida às campi­nas. Ao escutar Águia que Voa Alto naquela noite, os dois irmãos perceberam que algo estava acontecendo entre eles e o amigo lakota. Ele descreveu o oeste e, pela primeira vez, eles viram aquela terra não como um lugar distante, mas como o lar de um povo. Águia que Voa Alto riu e gesticulou, descrevendo aldeias e pesso­as, transformando os indígenas, que, na visão dos Woodward, eram selvagens incapazes, em homens e mulheres necessitados de muitas coisas, mas acima de tudo de um Salvador.

"Vejam bem, amigos, nossos corpos podem ser mal alimen­tados e vestidos, mas se progredirmos em viver vidas verdadei­ras, em ser homens e mulheres melhores, isso nos fará mais feli­zes e nos levará para mais perto e Deus. Isso só pode ser realizado através do evangelho. Algum dia as coisas ao nosso redor ruirão e ficaremos face a face com o Real e Eterno. Podemos perder alguns pequenos prazeres desta vida. Quando passarmos pela porta eter­na, precisaremos ouvir o 'Você fez bem', que nos conduzirá ao portão da outra vida."

Julia Woodward enxergou o oeste através dos olhos de Águia que Voa Alto e ficou surpresa ao ver-se enxugando as lágrimas enquanto contemplava o apelo espiritual de uma nação inteira sem o evangelho de Cristo.

George Woodward saiu da sala de jantar alguns minutos an­tes e foi pegar os casacos para voltar, na carruagem fria, para casa.

Enquanto esperavam, Águia que Voa Alto e Julia Woodward cur­tiram a presença um do outro, sem nada dizer, mas sorrindo com a nova compreensão. Águia que Voa Alto olhava para Julia e fica­va pensando se aquela mulher seria, afinal de contas, a resposta de Deus às suas orações por uma esposa. Julia, por sua vez, perce­beu que não estava mais buscando as atenções de Jeremias King, o índio. Ela se levantou da mesa de jantar e sorriu calorosamente enquanto segurou o braço de Jeremias King, um homem muito atraente que, por acaso, era um índio lakota. Aí está a diferença, pensou Julia enquanto atravessavam a sala de jantar juntos. Ela olhou de uma nova forma para Jeremias King. Águia que Voa Alto olhou para Julia e sorriu, cobrindo as mãos dela com as suas.

 

Foge, outrossim, das paixões da mocidade. Segue a justiça, a fé, o amor e a paz com os que, de coração puro, invocam o Senhor.

               II Timóteo 2:22

 

George, eu não sei sobre o que você está falando", Julia Woodward alisou seu guardanapo adamascado e deu uma mordidela no pão, em seu café da manhã.

A voz de George mostrou-se cansada: "Julia, seu interesse anterior pela Sociedade dos Amigos foi muito pequeno. Sua posi­ção como secretária é puramente decorativa - ou pelo menos era, até a chegada de Jeremias King". George tomou um gole de café quente antes de continuar: "De repente você vai a todas as reuniões, a todos os estudos, já não paquera tanto, está lendo livros diferentes... Você está diferente, Julia. Ora, creio que você realmente ouviu o sermão do rev. Johnson no último domingo de manhã!".

Julia dobrou cuidadosamente seu guardanapo antes de res­ponder: "E você não pode pensar que já era hora de isso aconte­cer, George? Há algumas semanas ouvi Nancy Davis falando so­bre mim. Ela dizia: 'Essa mulher só se preocupa com as nervuras e não com as roupas'". George riu mas Julia continuou: "Fiquei fu­riosa, mas ela estava certa. Sempre me interessei pelas causas que satisfaziam meus caprichos... como acrescentar uma nervura a um vestido. Então escolhia o melhor acompanhante para a ocasião e fazia de mim mesma um perfeito enfeite para ele. Fazia o que fos­se necessário, sem pensar na 'roupa' mesmo. Não sei por que este tipo de coisa já não parece bom para mim".

Julia respirou fundo e deu um sorriso: "Estou admirada por descobrir que realmente me interesso pelas questões que discuti­mos nas reuniões dos Amigos. É admirável que uma moça como eu, de repente, se torne seriamente interessada em questões na­cionais como o problema indígena". Julia olhou gravemente para George e continuou: "Mas, veja bem, aprendi algo sobre mim mesma, George. Tenho uma mente muito boa e quando a uso da forma correta as pessoas me levam a sério, ouvem o que tenho para dizer. As vezes mudam de atitudes e até mesmo agem a par­tir de suas atitudes mudadas". Julia acrescentou: "Gosto disso, George".

Julia voltou à sua irreverência característica: "É claro que ainda não gosto tanto disso quanto de ser acompanhada por um ho­mem lindo, mas gosto sim". Deu uma risada baixinho e prosse­guiu: "Acho que você poderia dizer que estou mais preocupada com roupas e menos com nervuras agora".

"Mas você não precisou desistir do acompanhante lindo." George balançou a cabeça: "Julia, talvez seja de seu interesse sa­ber que há certa preocupação com relação a você e Jeremias. O comitê já conversou sobre isso".

Julia irritou-se: "Como se atrevem?".

"Eles se atrevem, minha querida, porque conhecem os seus, hã, antigos interesses. Eles se atrevem porque é dever deles prote­gerem Jeremias e terem certeza de que ele terminará seus estudos e realizará o propósito pelo qual Deus o enviou para cá. Eles se atrevem porque têm consciência da atração mútua entre vocês dois. E querem deixar claro que ambos devem manter um nível de con­duta irrepreensível."

Julia balançou a mão no ar e disse: "Tudo bem, George, você não precisa continuar. Com certeza você sabe que eu jamais...".

"Certamente", George disse num suspiro. "Vamos nos certifi­car de que nossa conduta permaneça impecável. Os costumes soci­ais de Boston são um território totalmente novo para Jeremias, que nunca teve a oportunidade de aprender sobre estes relacionamen­tos. E ele não é bobo e sabe que deve ser cuidadoso. Portanto, devo acrescentar, você deve fazer o mesmo, para o bem de Jeremias."

"Mas, e se ele gosta de mim, se gosta mesmo e simplesmente não sabe como nós agimos com essas coisas?" De repente Julia incitou o irmão: "Não há um jeito de você fazê-lo saber que não sou avessa às atenções dele?".

George suspirou: "Você realmente pensa que os homens são tontos, não é Julia? O Jeremias seria um cego se pensasse que você não é 'avessa às atenções dele', conforme sua colocação tão deli­cada. Mais uma vez pergunto, Julia: O que você está querendo?"

Julia respondeu, levantando seu delicado queixo: "Qualquer coisa, George, qualquer coisa que ele queira".

"Céus, Julia!". George estava quase perdendo a calma: "Você realmente quer atraí-lo, mesmo sabendo que ele vai retornar a Nebraska? Desculpe-me, querida, mas não consigo enxergá-la fa­zendo café no fogareiro de uma cabana ou seja lá o nome que dão àquelas choupanas de barro". George começou a rir mais alto, deixando Julia aflita.

"Pare, George, pare de rir." O tom de voz ofendido de Julia fez com que George parasse de rir abruptamente e Julia concluiu a conversa: "Tudo bem, George, entendi. Você não vê um futuro para mim e Jeremias King e por isso não vai intervir. Muito bem".

 

Abril, 1884

Queridos amigos,

Parece que chove e neva há semanas. Quando andei na chuva, peguei uma gripe. A família Davis foi muito boa, cha­mou um médico e agora estou bem novamente.

Ou seja, meu corpo está forte novamente, mas meu espí­rito está fraco e acho que é porque sinto falta de ver as colinas ao redor de Santee. Penso no meu quartinho na casa de Tiago e Marta Asa Vermelha. Como estará a mula escura, de que o Tiago falou que cuidaria para mim? Gostaria de estar num lugar onde eu pudesse pegar a mula e cavalgar até as colinas para assistir às campinas desabrochando à vida novamente, após esse longo inverno. Aqui em Boston os prédios escondem o céu e há pouca vegetação.

Não pensem que estou sozinho aqui. Robert e Nancy Davis são muito bons para mim. Os filhos deles estavam do­entes, mas já melhoraram e querem de novo que eu lute com eles. Isso me faz lembrar dos meninos em Santee e de uma brincadeira que faziam: tentavam andar escondidos atrás de mim para me agarrar. Acho que fiquei mais lento e talvez ago­ra eles conseguissem agarrar-me. Estou esquecendo o jeito de ser indígena.

George Woodward e sua irmã Julia visitarão Santee breve­mente, junto com Robert, Nancy Davis e o reverendo Johnson. Acho que vocês gostarão dessas pessoas. Eles realmente se preo­cupam com os índios e têm tentado entender nossas necessida­des reais. Quando eles forem, mostrem tudo aí. Se colocarem as necessidades diante deles, sei que poderão fornecer grande aju­da. Compartilhem bastante as necessidades e as lutas.

Minhas aulas logo terminarão. Obrigado por terem acer­tado minha ida a Wisconsin. Sei que estão fazendo isso para o meu bem e estou tentando não desapontá-los.

Seu amigo,

Jeremias Águia que Voa Alto King

 

Alfred Riggs leu a carta de Águia que Voa Alto com preocu­pação. Notou angústia em cada linha, e seu coração sofreu pelo jovem que tanto tentava agradar seu mentor, mas obviamente se sentia deprimido e com saudade do lar. No momento em que re­cebeu a carta, pegou a caneta para escrever a Águia que Voa Alto pedindo que voltasse para Santee. A carta, porém, foi desnecessá­ria. Na noite após Águia que Voa Alto ter escrito a carta, aconte­ceu algo que o fez voltar à casa dos Davis, arrumar as malas e sair de Boston no primeiro trem para o oeste.

 

Quando ouviu os passos de Águia que Voa Alto no hall, Julia Woodward levantou-se da cadeira em frente à lareira. A emprega­da que tinha introduzido Águia que Voa Alto pegou seu chapéu e retirou-se. Julia, com um gesto, cumprimentou-o em voz alta: "Por favor, Jeremias, entre". Águia que Voa Alto sentou-se em frente dela, que então explicou: "Infelizmente George não estará conosco esta noite, Jeremias. Ele esqueceu que tinha um compromisso em algum lugar". Ela despejou chá para os dois antes de completar suas notícias. Com o toque apropriado de lástima em sua voz, ela disse: "Os Johnsons pediram desculpas também, algo com uma indisposição do sr. Johnson".

Águia que Voa Alto levantou imediatamente para retirar-se e não tentou esconder o desapontamento em sua voz quando disse: "O George tem me ajudado muito ensinando algumas regras de sua cultura. Aprendi que nunca devo conversar com uma mulher a quem não fui apresentado e aprendi que jamais devo ficar sozinho com uma mulher. Estas regras não fazem parte de sua cultura?".

Julia evitou responder diretamente às perguntas: "Não seja ridículo; dois amigos podem, com certeza, tomar uma xícara de chá em frente à lareira sem causar nenhum estrago à reputação de ninguém. Planejamos há dias esta reunião e não sei por que você e eu não poderíamos conversar a respeito da viagem do Comitê, mesmo com o George e os Johnsons ausentes. Certamente levarei a eles suas sugestões".

Observando o olhar de dúvida de Águia que Voa Alto, Julia tentou tranqüilizá-lo: "E não estamos sozinhos. Os empregados estão na casa. De fato, Molly logo virá pegar a louça do chá. Se você está preocupado, posso chamá-la e pedir-lhe que fique na sala". Julia levantou uma sobrancelha e Águia que Voa Alto per­cebeu que ela estava caçoando.

"Por favor, fique", ela implorou. "Você esteve doente e não tivemos o prazer de sua companhia, parece que faz semanas... George voltará mais tarde e ficará desapontado ao saber que você veio aqui e não o esperou." Julia pegou sua xícara de chá. "Vou gastar pelo menos duas horas com algumas perguntas atrevidas que nunca pude fazer-lhe. Depois do nosso jantar, naquele dia, sinto-me, bem..." Ela abaixou os olhos por um instante e então olhou novamente para Águia que Voa Alto: "Sinto-me mais perto de você agora".

Águia que Voa Alto mexeu-se na cadeira. Uma voz interior dizia para ele levantar-se e ir embora, mas ele a ignorou. Em vez de obedecer à voz, ele pegou uma xícara de chá.

"Não se preocupe", Julia riu, "não são perguntas impróprias, somente algumas que seriam consideradas atrevidas para a socie­dade de Boston. Gostaria de saber mais sobre a sua vida antes que as coisas mudassem tão drasticamente. Mais do que você conta para todo o mundo." Julia sentou-se confortavelmente em sua cadeira, apoiando a cabeça no espaldar. Águia que Voa Alto no­tou seu pescoço longo e elegante.

"Entendi, pelos seus comentários, que a maioria das coisas escritas hoje em dia sobre os índios não são precisas. Vi como você ficou bravo no último domingo à noite, na casa dos Johnson.

quando o assunto dos shows do oeste selvagem veio à tona. Você não aprova muito a imagem que fazem dos índios, não é?"

Águia que Voa Alto nunca tinha estado sozinho na companhia de uma mulher antes. Estava fazendo o máximo que podia para prestar atenção ao que Julia dizia, mas essa não era uma tarefa fácil.

Consciente da luta interior de Águia que Voa Alto, Julia ofe­receu: "Você teve um dia estressante. Talvez um copo de vinho o ajude a relaxar". Enquanto falava, atravessou a sala até o armário de vinhos.

Águia que Voa Alto balançou a cabeça: "Não. Quando eu era pequeno, meu pai me fez prometer que nunca tomaria aquilo que ele chamava de 'coisa demoníaca dos comerciantes'".

Julia arrependeu-se imediatamente, fechando o armário e voltando em direção à lareira. Águia que Voa Alto lutou com a tentação de pensar na graça de Julia movimentando-se. Julia jo­gou um braço sobre o espaldar da cadeira e ficou parada. A luz das estrelas brilhou pela janela atrás de Julia, acentuando seus ombros delicados.

Águia que Voa Alto tomou um gole de chá, levantou-se e fi­cou num lugar onde sua própria cadeira se levantava como uma barreira entre ele e Julia. Ápertando as costas da cadeira, ele disse mais uma vez: "Preciso ir".

Julia sorriu, dizendo: "Seu pai o fez prometer que nunca beberia vinho. Também o fez prometer que jamais estaria sozinho com uma mulher solteira?".

Balançando a cabeça, Águia que Voa Alto olhou fixamente a fogueira.

"Conte-me sobre ele. Conte-me sobre o seu pai, Jeremias."

"Ele me ensinou tudo o que eu precisava saber para viver no nosso mundo. Não me preparou para as mudanças que viriam, mas tentou transmitir-me sua fé em Deus. Acho que ele sabia que esse era o melhor caminho para preparar seu filho para o futuro." Concluiu com tristeza: "Ele não viveu o suficiente para me ver aceitar o seu Deus".

Julia sentou-se novamente em frente ao fogo: "Se não for doloroso demais para você, eu gostaria muito de saber como era a sua vida antes, antes de tudo tornar-se uma, uma bagunça".

Águia que Voa Alto passou os olhos pela sala, pensando em como começar a explicar a vida nas campinas para uma represen­tante típica da sociedade de Boston. Seus olhos voltaram-se para Julia Woodward. Ela o olhou diretamente nos olhos. Não havia resquício de flerte nos olhos ou na voz dela, apenas um interesse genuíno por sua vida, por seu passado. A solidão arremessou-se sobre ele, que percebeu que desejava compartilhar mais de si mes­mo com Julia Woodward.

Ele estava procurando um ponto por onde começar sua saga quando a resposta apareceu bem a seus pés, na forma de um tape­ie de pele de urso estendido à frente da lareira. Sentando-se sobre o tapete, Águia que Voa Alto cruzou as pernas confortavelmente.

"Uma vez matei um destes", falou, passando a mão ao longo da cabeça do urso. "Acho que o urso que matei era ainda maior. Precisei de três flechas."

"Só três?", Julia exclamou, demonstrando surpresa.

Diante da admiração na voz dela, Águia que Voa Alto balan­çou a cabeça: "Três ou duas flechas já é muito. Eu deveria ter ma­tado apenas com a primeira. Na terceira flecha eu estava no topo de uma árvore muito alta. Meu coração disparou e tive certeza de que haveria um lugar vazio ao redor da fogueira na minha aldeia, naquela noite. O meu lugar".

Julia levantou o pé, colocou-o sobre uma banqueta recoberta com renda e pegou um trabalho manual enquanto pedia: "Por favor, Jeremias, me conte mais. Quero saber tudo, tudo sobre você".

Alguma coisa soou como um alarme na mente de Jeremias, mas ele ignorou: "Você já ouviu muitas das histórias mais empol­gantes".

"Não quero essas histórias, Jeremias. Quero aquelas que você não conta quando fala para os grupos de pessoas." Julia colocou o trabalho no colo e empurrou-se para a beirada da cadeira. "Con­te-me sobre um dia normal. Como era um dia normal em sua al­deia? O que você comia? O que você usava? Só as coisas do dia-a-dia, Jeremias." Julia respirou fundo antes de concluir: "Quero sa­ber o que fez Jeremias King ser quem ele é. O que existe na sua alma, Jeremias?".

Sentado no tapete de pele de urso na sala de Julia Woodward, Águia que Voa Alto começou a falar. Descreveu um dia típico em sua aldeia, um dia em que havia fartura de carne de búfalo, quan­do não havia soldados a quem enfrentar. Falou sobre os cavalos de seu pai e da preocupação de sua mãe quando eles partiam para uma longa caçada. Descreveu a mãe com carinho especial. E falou do pai com tanto orgulho que Julia sentiu sua angústia ao relatar a corrida pela campina até encontrar a mãe ajoelhada ao lado do corpo destruído pelo choque com o enorme touro búfalo.

Em um ponto da história de Águia que Voa Alto, Julia largou o trabalho que estava fazendo, escorregou da cadeira e sentou-se ao seu lado, no tapete de pele de urso. Quando o homem concluiu seu monólogo, ela tinha colocado os joelhos sob o queixo e estava fitando o fogo. Águia que Voa Alto passou as costas da mão no cabelo dela. De repente a imagem de Julia, vestida como estava, sentada ao redor do fogo em sua tenda, o fez rir.

Antes que ele pudesse tirar sua mão, ela a segurou. "Conte- me o que eu fiz para você rir", disse Julia. "Assim sempre que estiver sozinho, poderei fazê-lo rir." Ela levou a mão dele até sua própria face e murmurou: "Gosto de ouvir sua risada".

"Eu estava pensando", respondeu ele baixinho, "em você, vestida assim como está, tentando acender o fogo na tenda." Ele puxou sua mão e ficou apoiado em um só braço. "O quadro fez-me pensar em como deve ter sido a imagem de minha mãe, na primeira vez em que Cavalga o Vento a levou para nossa aldeia. Eu era um bebê ainda, mas ouvi a história muitas vezes. Aparte preferida dele era descrevê-la tentando acender o fogo." Águia que Voa Alto deu uma risadinha e continuou: "Durante um tem­po eles a chamaram de Mulher que Não Faz Fogo. Ela teve de trabalhar muito". Águia que Voa Alto agachou-se em frente ao fogo, fazendo umas caretas para Julia do jeito que seu pai fazia.

Julia riu com ele. Ao vê-lo rir, ela perguntou de repente: "Você já teve alguém?"

Águia que Voa Alto sentou-se ao lado dela e respondeu bai­xinho: "Não, nunca tive ninguém". Quando ela se virou em sua direção, ele corrigiu: "Há muito tempo havia uma moça muito nova que gostava de mim". Fez uma pausa antes de continuar: "No último inverno, a família dela mudou-se para o norte, para o Canadá".

"No último inverno?"

"No último inverno naquele tempo da minha vida."

Julia abraçou os joelhos e apertou-os ao queixo. "E você nun­ca mais a viu?"

"Nunca."

"E não houve nenhuma outra?"

"As coisas mudaram rápido demais." Águia que Voa Alto sorriu para ela. "Havia muitas outras coisas com que me preocu­par. Muito para estudar, e nunca tive tempo para aprender as re­gras sobre homens e mulheres neste seu mundo." Ele balançou os ombros dizendo: "Enquanto eu for apenas Jeremias King, o índio, não é necessário".

"Você não conhece ninguém que olhe para você de forma di­ferente?", Julia apertou mais ainda seus joelhos, sabendo que es­tava tremendo.

No momento em que as palavras escaparam de seus lábios, Águia que Voa Alto viu a imagem de um vestido azul e um cabelo vermelho, a estação de trem de St. Louis e um beijo sendo manda­do para ele. Respondeu com honestidade para Julia. "Há uma pessoa". Começou a contar a Julia sobre Carrie Brown, mas ela não o deixou terminar.

"Não, Jeremias, há duas. Não sei nada sobre a menina de Nebraska, mas eu estou aqui. Agora."

Águia que Voa Alto nunca tinha beijado uma mulher antes. O perfume de seus cabelos, a maciez da seda de sua roupa, tudo relacionado a ela era tão atraente que a emoção que caiu sobre ele no momento em que se beijaram deixou-o aterrorizado. Instantaneamente aquela coisa que estava tentando tirá-lo dali a noite toda conseguiu tocar Jeremias King. Saia daqui. Saia agora, ou vai transformar tudo o que você disse até agora sobre Deus, sobre afée sobre a vida verdadeira em uma mentira.

Foi preciso mais força do que jamais usara em sua vida para Águia que Voa Alto empurrar Julia Woodward para longe de seus braços. Ele quase correu para a porta. Ouviu-a chamar seu nome, mas nem olhou para trás. Não olhe para trás. Você não é forte o sufici­ente para olhar para trás e não ficar. Não olhe para trás. Simplesmente vá até a porta. Vá até a porta, Águia que Voa Alto.

Águia que Voa Alto seguiu a voz de sua consciência até o outro lado da porta, pelas ruas de Boston e até a casa dos Davis. Ouviu quando a voz falou: Você não pode ficar em Boston. Está soli­tário demais, e ela é muito linda. Vá embora para Santee, Águia que Voa Alto. Acerte os seus sentimentos. Peça direção a Deus. Converse com o dr. Riggs. Não deixe isto acontecer sem você ter refletido antes. Se tiver de ser, será. Na hora de Deus. Não desse jeito. Escreva uma carta puni m.

Davis e para os Woodwards. Explique-lhes que está com muita saudade de casa. Eles entenderão, pois sabem que você anda deprimido. Eles fica­rão desapontados por você sair assim tão abruptamente, mas entenderão.

A aurora surgiu na manhã seguinte com o primeiro brilho de sol, o que Boston não via há semanas. Os raios entraram na sala de estar da casa de George e Julia Woodward, onde Julia continu­ava sentada, de olhos fixos nas cinzas da lareira.

A luz entrou na copa da família Davis, onde Sterling e Samuel tomavam o café da manhã sozinhos, tendo acabado de receber a notícia de que o hóspede preferido deles havia partido.

Os raios de sol derramaram-se no vagão do trem em que Águia que Voa Alto viajava. Mas ele estava compenetrado demais para perceber.

 

Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos.

                   Salmo 116:15

 

O dr. Gilbert falou com a voz que aprendera a usar quando tinha de dizer a coisa que mais detestava para pessoas que admirava. Falou vagarosamente e com clareza, usando seu tom mais suave, tentando confortar e ao mesmo dizer para Sarah o que estava porvir.

"Está perto do final", fez uma pausa e continuou: "É difícil para ela. Farei o que puder. Vou ensiná-la a administrar a morfina. Precisamos orar para que Deus a leve antes que sofra demais".

Sobre os ombros do médico, Sarah podia ver a porta do quar­to da sra. Braddock; porta que sempre estivera aberta para ela, convidando-a a entrar, dando-lhe infinitos presentes, presentes para uma filha, não para uma empregada. Sarah fitou a porta por um instante antes de fixar os olhos no dr. Gilbert e dizer calma­mente: "Vou ficar bem, dr. Gilbert. Só cuide dela apropriadamen­te. Não se preocupe comigo. Farei tudo o que o senhor mandar e licarei bem". Sarah teve esperança de parecer mais confiante do que na realidade estava.

"Provavelmente você precisará de ajuda no final", o doutor disse gentilmente, dando um tapinha nos ombros dela.

Sarah balançou a cabeça negativamente: "Vou arrumar al­guém para ajudar-me com a casa se for necessário, mas eu mesma cuidarei da Mamãe Braddock". Olhando para o dr. Gilbert: "Devo muito a ela, doutor. O mínimo que posso fazer é ser aquela...". Seus lábios tremeram e ela parou. A porta bateu lá embaixo.

O dr. Gilbert balançou a cabeça e apertou a mão de Sarah. "Abigail Braddock é uma boa mulher, srta. Biddle, e você é uma boa amiga. Moro perto, é só você mandar o Tom me chamar sem­pre que precisar e virei no mesmo instante." Mexendo dentro de sua maleta médica, entregou outro vidro a Sarah. "Continue com a aplicação que já discutimos, mas logo será preciso acrescentar esse aqui." Pegou uma receita médica da maleta e entregou-a para Sarah, na qual estava prescrito: Hidrato cloral, 5 gr., Vaselina, 1 co­lher/sopa, para diminuir o mau cheiro e aliviar a dor. "Qualquer dúvi­da que tiver, não hesite em perguntar." Ele desceu apenas três ou quatro degraus antes de olhar para Sarah e acrescentar: "Você não está sozinha nisto, srta. Biddle, estamos juntos".

Com as mãos trêmulas, Sarah colocou o vidro e a receita na mesa do hall. Ficou olhando durante alguns minutos para a porta que a separava de Abigail Braddock e do inevitável. Então, com a ajuda de Deus, armou um sorriso nos lábios e entrou pela porta de Mamãe Braddock.

Em poucos dias teve de mandar Tom até o dr. Gilbert. "Sei que se passaram poucos dias, dr. Gilbert, mas já tentei tudo que o senhor falou, como chá de tamarindo e leite de arroz, mas o estô­mago dela não tolera nada; e já dei várias injeções. Ela ainda con­tinua perdendo peso e", a voz de Sarah tremeu, "está com muita dor. Sinto isso até quando estou fora do quarto."

"Quando o sr. Braddock vai chegar?", quis saber o médico.

"Ele embarcou ontem e deve chegar amanhã."

A expressão de dr. Gilbert ficou sombria e ele apenas disse: "Que bom". Pegou sua maleta e, quando Sarah começou a subir as escadas, ele a deteve dizendo: "Tenho certeza de que você fez tudo direito, srta. Biddle. Isso era previsto. Você está exausta; que­ro que vá para a sala de estar e fique lá deitada enquanto estou com a sra. Braddock. Vou aplicar uma injeção para que ela durma a tarde toda. Enquanto ela estiver dormindo, quero que você re­pouse naquele sofá, ou, melhor ainda, vá para o seu quarto". Ele olhou para Sarah com preocupação e continuou: "Você precisará de toda a força do seu ser nas próximas horas ou nos próximos dias. Ainda devemos orar por um milagre, mas precisamos estar preparados para o curso natural da doença. Agora fique na sala que eu a avisarei quando ela estiver dormindo".

Deixando Sarah, o dr. Gilberto subiu as escadas. Agradecida, Sarah foi para a sala e tombou em uma cadeira. As persianas esta­vam fechadas e ela se satisfez com a escuridão, dando vazão às lágrimas que havia retido durante semanas.

"David!", Abigail gemeu, "quando você vai chegar, David? Já esperei tanto. Estou cansada." Abigail virou o rosto para o lado oposto ao de Sarah e começou a agitar-se.

Sarah colocou a mão fria na testa de Abigail. Com o toque, a mulher parou. "O David está chegando, Mamãe Braddock. Man­dou um telegrama ontem, lembra-se? Falou que estava embar­cando no próximo trem de Filadélfia. Logo estará aqui. Sinto mui­to a senhora ter de esperar e sofrer assim."

Abigail abriu os olhos. O embaçamento causado pela dor cla­reou-se por um momento e ela sorriu levemente. Com esforço murmurou: "É, querida, eu lembro, o David está chegando". Fe­chou os olhos novamente e murmurou: "Vou esperar o David che­gar para depois...". Ela se encolheu e apertou a mão de Sarah: "Vou esperar o David chegar para eu partir".

Sarah levantou delicadamente a cabeça de Abigail, incenti- vando-a a tomar um pouco de chá. O líquido continha um sedati­vo fraco, que, combinado com uma injeção, fez um efeito rápido e Abigail caiu em profundo sono. Mesmo dormindo, a senhora ge­mia e mexia a cabeça. Sarah ficou sentada ao seu lado na cama, recolocando compressas frias na cabeça daquela mulher tão que­rida e tentando afofar os travesseiros para acomodar as juntas magras. No momento de trocar a roupa de Abigail, as mãos de Sarah tremeram e ela orou o tempo inteiro para que pudesse es­quecer o que estava vendo e fosse capaz de continuar aquele tra­balho de amor.

Quando terminou, Sarah sentou-se imóvel em uma cadeira, com sua própria roupa molhada de suor e o rosto pálido. Assistin­do a Abigail lutar pela vida para esperar David, refletiu sobre o espírito que permanecia vivo por tanto tempo enquanto o corpo já estava tão próximo da morte.

Lá pelo meio da noite, Sarah pressentiu que Abigail perderia a batalha de viver para ver o filho David pela última vez. Tom correu para chamar o dr. Gilbert, que veio rapidamente, com a barra da camisa mal enfiada na calça e os cabelos pretos despenteados. Os gemidos de Abigail tinham, aumentado até que ela deu um grito que causou frio na espinha de Sarah. O dr. Gilberl t irou da maleta um frasco com líquido azul. Virando-se para Sarah, disse: "Eu não queria fazer isso, Sarah, mas não podemos deixá-la sofrer mais. Isso vai tirar a dor, mas vai deixá-la inconsciente. Pro­vavelmente não perceberá quando o David chegar".

Da cama, uma voz notavelmente lúcida disse: "Não, não quero isso. Quero estar consciente quando o David chegar".

Sarah e o dr. Gilbert viraram-se para o corpo frágil de Abigail Braddock. Sarah olhou para além da face acinzentada e murcha, para dentro dos olhos brilhantes que estavam vivos e sorrindo.

Com o olhar surpreso no rosto de Sarah, Abigail falou: "Es­tou morrendo, querida Sarah, eu sei. Mas realmente quero espe­rar o David. Quando você acha que ele chegará?"

"Tenho certeza de que estará aqui pela manhã, Mamãe Braddock", Sarah mentiu.

"Então vou esperar até de manhã. Tenho lutado com esta coi­sa no meu corpo por muito tempo, mas vencerei mais esta bata­lha." Sem virar a cabeça, Abigail falou baixinho: "Dr. Gilbert, gos­taria que o senhor ficasse aqui, no caso de eu não agüentar... Mas, por favor, sinto-me melhor agora e não quero nada a não ser, a não ser...".

O dr. Gilbert interrompeu a paciente dizendo: "Fico aqui o quanto a senhora quiser, sra. Braddock. E esperarei David chegar para aplicar-lhe mais sedativos".

Abigail suspirou e pareceu relaxar. "Sarah", chamou ela, ba­tendo a mão na beirada da cama ao seu lado, "fique aqui, querida, onde posso vê-la."

Sarah obedeceu e Abigail começou a falar: "Você sempre me deixou tão satisfeita, Sarah. Foi uma filha muito querida, já lhe disse isso? Só o dr. Gilbert está aqui e ele não vai contar nada a ninguém. Fico muito feliz, pois o David terá você para cuidar dele quando eu partir. Ele gosta muito de você, Sarah, como eu". De repente ela mudou de assunto. "O Tom. Faça com que ele termine os estudos. Onde está o Tom?"

Sarah buscou o irmão, que entrou no quarto com a relutância comum a qualquer criança que teme as mudanças trazidas pelas doenças para os queridos mais velhos. Mas quando Tom ficou parado ao lado da cama e olhou os olhos azuis, ele viu a sra. Braddock, e a doença e os odores ruins desapareceram.

A sra. Braddock sorriu amorosamente, procurando a mão dele: "Tom querido, tenho grandes planos para você. Então estude bas­tante e seja o meu orgulho. Vou olhar por você, homenzinho. Es­pero grandes coisas. Estou deixando dinheiro suficiente para você terminar seu curso e ir para a Universidade. Um dia, quando for um grande advogado, lembre-se de mim, Tom. Faça algo bom com o seu sucesso e reparta com as pessoas. Lembre-se, Tom, quando Deus nos abençoa, espera que passemos esta bênção para os ou­tros".

Tom murmurou um "sim, senhora" antes de abaixar-se es­pontaneamente para beijar a face afundada da senhora.

"Ai está um bom menino", murmurou Abigail. "Agora vá. A juventude não tem de assistir a uma velha morrer."

Quando Tom saiu, Abigail suspirou novamente e começou a conversar com Sarah: "Sinto muito, querida, não estar por perto para mimar meus netos. Diga à Augusta Hathaway que espero que ela mime o suficiente por nós duas".

"Está bem, Mamãe Braddock, vou falar", Sarah esforçou-se para manter a voz calma, negando a realidade do momento para que Abigail pudesse atravessá-lo em paz.

"E não deixe o David ficar se remoendo. Tive uma vida boa e estou esperando muito encontrar o William. Lembre-o disso. Du­rante toda a minha vida, esperei para encontrar o William nova­mente."

"Sim, Mamãe Braddock."

"Há alguns membros da família que não são muito bons, Sarah. Talvez sejam grosseiros com você, mas simplesmente lem­bre-se de que Abigail Braddock a amava, querida. E você é mere­cedora do nome Braddock como qualquer outra pessoa. Lembre- se disso."

"Sim, Mamãe Braddock."

Abigail deu um suspiro agudo e acrescentou com os dentes cerrados: "Agora acho que terei de descansar de novo, querida. Já é de manhã?".

Sarah olhou pela janela para o céu escuro e mentiu mais uma vez: "É, Mamãe Braddock. Acho que a manhã estará logo aqui".

"A manhã e David", suspirou Abigail, perdendo a consciên­cia.

Sarah apertou forte a mão dela e sentou-se no chão, descan­sando a cabeça na beirada do colchão até o dr. Gilbert chegar e insistir para ela descansar.

"Eu chamo você, Sarah, no momento em que alguma coisa acontecer."

Sarah balançou a cabeça replicando: "Não, dr. Gilbert, não vou sair daqui". Sarah arrastou uma cadeira de balanço para o lado da cama e colocou a mão magra de Abigail na sua, forte. "Não vou sair até o David chegar ou..."

A noite passou e o inimigo de Abigail se armou novamente e começou a atingir seu corpo mais uma vez. A dor retesou seu cor­po e o som dela escapava pelos lábios pálidos. Por fim o dr. Gilbert foi forçado a aplicar-lhe morfina. Abigail caiu na inconsciência, onde sua mente já não reconhecia mais a agonia do corpo.

Quando a manhã realmente chegou, alguém bateu na porta da frente. Sarah levantou-se fracamente da cadeira de balanço e dirigiu-se ao hall. Ainda na parte de cima das escadas, ela parou e olhou para o Tom, que fechava a porta e tinha um telegrama na mão.

"É de Iowa, Sarah", disse Tom, entristecido e mancando es­cada acima. Sarah abriu o telegrama e caiu ao chão, sentando-se nos degraus da escada. Não acreditando, ela lia e lia mais e mais vezes. Afundou a cabeça nos joelhos e começou a chorar. Então, por trás dela veio o som da voz de Abigail gritando o nome do filho e o de Sarah.

Sarah correu de volta ao quarto. Ajoelhando-se à beira da cama, ela mentiu para Abigail: "Mamãe Braddock, Mamãe Braddock, é o David, ele está chegando. Por favor, espere, Mamãe Braddock, ele vai chegar em um minuto".

Mas Mamãe Braddock não podia esperar David. Seu corpo lutara contra a dor o máximo que pudera. Mamãe Braddock esta­va sendo chamada para além da dor, para a eternidade. Abriu seus olhos e um sorriso iluminou sua face. "David!", ela gritou, admirada. E morreu.

Sarah caiu na cadeira de balanço ao lado da cama, tremendo e apertando o telegrama. O dr. Gilbert sentou-se muito quieto ao lado de sua paciente por alguns momentos antes de olhar para Sarah. Lágrimas rolavam pelo rosto dela, enquanto balançava a cadeira para frente e para trás, batendo carinhosamente na mão fria de Abigail.

"Mamãe Braddock, Mamãe Braddock, por favor, espere. O David..." De repente parou de falar. Já não era mais necessário mentir. E isso era uma mentira, pois o David não estava chegan­do. O telegrama apertado na mão de Sarah dizia que o sr. David Braddock havia morrido em um acidente de trem, em Iowa, no dia anterior. Sarah balançava a cadeira, acariciando a mão de Abigail com a própria mão esquerda, enquanto a direita apertava o telegrama.

O dr. Gilbert pegou o telegrama da mão de Sarah e leu-o. "Ó, minha querida, pobre, pobre, querida. Ele pegou sua maleta e pre­parou sais de cheiro."

Sarah olhou abobalhada para ele. Tom estava na porta quan­do viu o rosto de Sarah; chegou-se a ela e abraçou-a. Ela se incli­nou nos ombros pequenos do irmão e chorou.

"E o David, Tom. O David foi embora. Morreu. Um acidente de trem em Iowa."

Tom disse, esperançoso: "Talvez o tenham confundido com outra pessoa, Sarah".

Sarah balançou a cabeça fracamente: "Não, Tom, eu sinto isso. Ele foi embora".

Então seu rosto iluminou-se. "Dr. Gilbert", falou com espe­rança, "o senhor acha que a Mamãe Braddock viu o David? O senhor acha que depois de tudo ele veio encontrá-la? Será que é por isso que ela gritou o nome dele?"

O dr. Gilbert era um homem da ciência e como tal não era dado a pressuposições absurdas sobre o pós-morte. Mas o dr. Gilbert era também um homem de Deus e como tal era dado a bondades e a uma crença humilde de que em relação à questão pós-morte havia muitas coisas que só Deus conhecia. Assim, ele pôs sua mão carinhosa no ombro de Sarah, que tremia, e disse calorosamente: "Acho que deve ter sido isso, Sarah. O bom Deus deixou o David vir aqui encontrar sua mãe. Eles estão juntos. Que Deus dê descanso às suas almas".

Sarah ponderou a explicação e confortou-se. Sentiu-se mais velha. A dor começava a apertar-lhe o coração. Mesmo assim, em meio à dor, ainda ouvia aquela vozinha que tinha conhecido tão bem desde que fora recebida na família adotiva de Augusta Hathaway. Era a voz da esperança. E enquanto a dor continuava fresca em Sarah e Tom Biddle, a esperança tinha sido a proteção de suas vidas.

 

Não sofra, porém, nenhum de vós... como quem se intromete em negócio e outrem.

                 I Pedro 4:15

 

Deus estendeu a mão sobre os fazendeiros de Nebraska na primavera de 1884, enviando muita chuva que resultou qua­se num recorde de colheita. Mas o chuvisco fino e contínuo, ale­gria dos fazendeiros, era um obstáculo mal recebido por Carrie Brown, pois a impedia de explorar os lugares freqüentados assiduamente no passado, em Santee. Durante os dois primeiros dias de sua visita, choveu quase sem parar, transformando o solo da escola em puro barro e tornando-o intransitável. A lama encalha­va as rodas dos carroções e os cavalos patinavam, tornando as viagens verdadeiros pesadelos. As crianças da escola raspavam seus sapatos nas beiradas de cada entrada de prédios, formando paredes finas de barro que endureciam e tinham de ser derruba­das com uma enxada.

Carrie teve de adiar seus planos exploratórios e juntar-se à supervisora Charity Bond na guerra contra a lama. O barro junta­va-se na entrada da casa Ninho dos Pássaros, grudando de tal forma nos sapatos que era impossível raspá-lo. Charity ordenou que as crianças tirassem os sapatos na porta de entrada. A lama grudava nas saias das meninas, deixando o barrado todo sujo. Charity encontrava as meninas já na porta e avisava: "Tirem as saias e subam rápido as escadas. Não deixem a lama pingar. Ti­rem rápido e dêem as saias para mim. Vou lavar as barras. Agora troquem de roupa e não saiam mais". Charity parava, embaraçada, e desejava o encanamento interno que sua mãe contara vaidosa, por carta, ter instalado em sua casa lá longe, em Lincoln. "Ah, acho que você também deve ter Um, não é? Bem, fique na calçada e segure a saia para não sujar de lama!" Virando-se para Carrie, lamentava: "Se pelo menos tivéssemos dinheiro suficiente para comprar mais trocas de roupa!".

Charity deixava as roupas dos meninos em uma tina que fi­cava permanentemente na cozinha. Toda a noite uma equipe dife­rente de meninas se juntava após o jantar, fervia a água e atacava a lama que deixava manchas nas roupas já bem puídas. Charity avisava as meninas para não esfregarem demais. "Você trouxe es­tes barris com doações bem na hora, Carrie. Estas roupas não vão agüentar muitas lavagens mais."

As crianças da escola estavam ficando inquietas, levantando os olhos dos trabalhos em direção às suas casas nas campinas, esperando o dia em que iriam ajudar os pais a cultivar as escassas sementes no solo fraco.

Em seu terceiro dia em Santee, Carrie acordou empolgada, pois seria seu dia de folga. Reclamando preguiçosamente, ela cobriu a cabeça com o travesseiro numa tentativa de silenciar o barulho ininterrupto da chuva. Quando, após mais meia hora de sono, percebeu que a chuva não parara, Carrie arrastou-se esca­da abaixo à luz da manhã que estava quase chegando. Acenden­do uma lamparina, leu um texto bíblico, rindo para si mesma quando seus olhos se detiveram na frase "o gotejar contínuo da chuva".

Desistindo relutantemente de seus planos de explorar os an­tigos lugares preferidos na missão, Carrie atacou a pilha de rou­pas para serem consertadas. Conseguiu pregar uma carreira intei­ra de botões até acordar de verdade e dirigir-se para a cozinha.

Acendeu o fogão, colocou água para o café e sentou-se, entreabrindo a porta e inalando a promessa da primavera. O ar esta­va quente, e a chuva antes forte tinha se transformado em chuvisco. Mesmo assim os estragos estava feitos. Os buracos na lama tinham ficado cheios de água e os carroções formavam uma tre­menda confusão.

Carrie suspirou pensando nos resultados infelizes que teria de suportar se tentasse arrastar os nove metros de chita de sua saia, mais três saiotes, pela campina. Vou ficar ensopada até os ossos antes de chegar à metade do caminho do riacho.

Terminou de beber meia xícara de café, desconsolada com a perspectiva de mais um dia de chuva, mais um dia de lama, mais um dia de lavanderia. Jim Callaway voltaria a Lincoln dentro de poucos dias. Ele estava ansioso para voltar para casa, preocupado em deixar LisBeth sozinha, com um bebê a caminho. Descansan­do o queixo na mão, Carrie contornou o desenho de um olho de nó da mesa. Então seus olhos fitaram a resposta ao seu dilema.

Elas estavam dependuradas do lado interno da porta, cinco delas, todas limpas e remendadas, prontas para os meninos vesti­rem. Carrie alisou uma calça e uma camisa e retirou-se ao quarto. Andou cuidadosamente, feliz de não ouvir barulho nenhum no quarto de Charity. Não queria ter de explicar sua súbita preferên­cia por roupas masculinas.

Saí para passear. Obrigada pelo dia de folga. Ela rabiscou um bi­lhete e acabou rapidamente seu café, prendendo o pequeno peda­ço de papel com uma xícara limpa. Atravessou um pátio e, abai- xando-se, entrou no depósito, onde mexeu em uma pilha de rou­pas rejeitadas, saindo finalmente com um chapéu coco mordido por ratos e um par de botas de cano alto que não tinha servido para nenhuma das crianças da escola. Os meninos rolaram de rir quando tiraram o chapéu do barril de doações, passando de uma cabeça a outra, correndo em volta do carroção e então jogando-o de volta. Carrie tinha ficado vermelha de raiva com o presente mal pensado e prometeu a si mesma escolher pessoalmente as roupas doadas antes que os barris de doações saíssem para a mis­são. Fico pensando que algum banqueiro de Filadélfia deve estar batendo no próprio peito pela sua generosidade com os pobres selvagens, pensou ela amargamente, chutando o chapéu.

No entanto, naquela manhã, Carrie ficou grata pelo chapéu fora de moda e pelas botas que não serviam para mais ninguém. Sabia que estava ridícula, mas não tinha planos de ser vista, e o chapéu protegeria seu pescoço e cabelo da chuva.

Atravessando a porta do depósito, Carrie viu fumaça saindo pelas chaminés da cabana da família Riggs e da Casa dos Pássa­ros. Apertou as mãos nos bolsos, passou rápido por trás do depó­sito e subiu para o lado norte quase correndo, apressada para ini­ciar sua aventura matutina.

Apesar do chuvisco, a manhã foi uma diversão após o traba­lho sem fim no Ninho dos Pássaros. Carrie sentou-se ao lado do riacho e lembrou-se das tardes de domingo com sua mãe e de seus pezinhos afundando na areia branca que cobria a margem. Sen tiu-se aliviada por ter crescido em Santee, em meio à beleza da paisagem natural à beira do córrego; recordou sua admiração pelo Sioux lakota que miraculosamente lhe permitiu ser sua amiga.

Mastigando uma casca de pão que tinha guardado no bolso naquela manhã, Carrie caminhou pelo território familiar até ou­tro de seus lugares preferidos. Bem antes de chegar lá, viu que o gigantesco choupo tinha sido atingido por um raio. Um galho enorme lá do alto tinha se quebrado, rasgando o tronco da árvore quando caiu. Carrie tremeu levemente, olhando para a casca pre­ta, imaginando a antiga árvore queimando-se em meio à tempes­tade. Caminhou até a árvore e encostou-se nela com os braços es­tendidos que mal alcançavam o meio do tronco.

Virando-se de costas para a árvore, Carrie olhou para cima e viu uma réstia de céu azul em meio às nuvens. Sentou-se na terra e tirou o chapéu molhado; balançando o cabelo e debruçando-se sobre os joelhos, falou alto: "Gostaria que você pudesse falar, árvore. Poderia dizer-me como era isso aqui. Antes. Antes de nós virmos para cá e bagunçarmos tudo. Antes de haver mortes e ódio". Deixou a modorra tomar conta dela e sua mente vagou, imaginando um círculo de tendas sob a sombra da grande árvore. Ficou imaginando...

Um trovão interrompeu seus pensamentos e ela mal teve tem­po de enfiar os cabelos no chapéu antes que a chuva começasse a cair torrencialmente. A pequena réstia de céu azul já não era mais visível e um vento forte soprava cúmulos enormes e escuros de trovão pelo céu.

Carrie lamentou-se: Preciso correr de volta à missão. Mas o des­tino verdadeiro de seu passeio ainda não tinha sido alcançado e ela estava determinada a chegar lá, ficasse ou não ensopada.

Posso acender uma fogueira e me secar. Ela correu em meio à tempestade, grata pelo chapéu de abas que lhe permitia enxergar e grata por não precisar correr tanto até que o telhado e a cocheira estivessem à vista.

Os Asas Vermelhas tinham saído há uma semana para visitar um pequeno grupo de cristãos na Reserva Yankton, a oeste. Carrie sabia que eles tinham mesmo viajado, e isso lhe dava a oportuni­dade de certa forma ficar perto de Águia que Voa Alto.

Eu não deveria fazer isto, pensou ao abrir a porta da cabana dos Asas Vermelhas. Estava escuro lá dentro. Carrie tremeu e acen­deu um fogo na lareira. Um brilho quente espalhou-se pelo cômo­do e ela se sentou para tirar as botas e o casaco. Colocou-os perto do fogo, virou-se para olhar a porta do quarto que ela mais queria ver. Tiago Asa Vermelha e Águia que Voa Alto tinham construído um quarto na cabana deles para Águia que Voa Alto.

Suas mãos tremiam quando ela abriu a porta do quarto. Ele dava para o lado sul e uma pausa na tempestade proporcionou luz suficiente para que ela visse tudo lá dentro. Um catre baixo em uma parede, coberto com uma colcha amarelada de retalhos que LisBeth tinha devolvido a Águia que Voa Alto logo depois que eles finalmente se encontraram face a face. Carrie conhecia a história da colcha de retalhos e passou a mão sobre sua superfície tentando imaginar a estrada pela qual a colcha tinha viajado, des­de o carroção emigrante de Jesse King até a aldeia indígena e a índia lakota que se tornara amiga de Jesse. Então o filho adotivo de Jesse, Águia que Voa Alto, que tinha dado a colcha à sua meio-irmã quando finalmente a conheceu já adulto.

Carrie sentou-se no catre e olhou ao redor do quarto. Ao lado do catre havia uma escrivaninha bem rudimentar feita com alguns caixotes e uma tábua. Sobre ela havia uns poucos livros. Carrie leu os títulos, sorrindo um pouco ao imaginar Águia que Voa Alto sen­tado à escrivaninha, estudando. Os diplomas emoldurados e dependurados sobre a escrivaninha chamaram sua atenção. Um mos­trava que Jeremias Águia que Voa Alto King tinha cumprido todos os requisitos para a graduação completa na Escola Normal de Trei­namento de Santee, Nebraska. Outro parecido declarava a conclu­são de seu curso no Beloit College, em Winconsin.

O que ela tinha ido procurar não estava à vista. Tirando o catre e a escrivaninha, o quarto era espartano. Será que não esta­ria embaixo do catre? Ela se ajoelhou e suas mãos tocaram o couro cru e duro de uma velha caixa no momento exato em que ouviu uma voz ríspida retumbando na porta: "O que você pensa que está fazendo?".

Com um susto, Carrie virou-se e olhou gaguejando, culpada: "Eu-eu...".

"Pássaro Vermelho?" A voz suavizou-se e Carrie a reconhe­ceu. Sentada no chão, ela se curvou e colocou as mãos na face que queimava.

Antes que pudesse formular uma desculpa por sua intromis­são, Águia que Voa Alto estendeu a mão para ela e disse: "Suas coisas estão quase secas, mas você não está. Venha".

Carrie obedientemente pegou em sua mão e levantou-se, se- guindo-o até o cômodo principal. Sentada no chão novamente, ela calçou as meias e as botas. Quando Águia que Voa Alto aca­bou de falar, ela gaguejou: "Eu, eu vim para Santee com Jim Callaway para a distribuição de roupas. Hoje era meu dia de exploração, mas a chuva...".

Águia que Voa Alto apontou para os trajes dela: "Parece que você encontrou um jeito de explorar mesmo com essa chuva".

Carrie olhou para si mesma e ficou vermelha: "Eu sabia que não poderia afundar saiotes e saia em um campo molhado. Devo estar ridícula". Olhou para cima e sorriu triunfantemente: "Mas funcionou e eu fiz o que queria".

Águia que Voa Alto olhou em direção ao seu quarto. "Acho que você não fez tudo ainda, Pássaro Vermelho". Depois de uma pausa ele fitou Carrie: "Eu ainda a tenho". Levantou-se e foi para seu quarto. Ajoelhado, puxou sua velha caixa de couro que estava embaixo do catre. Abriu-a e tirou algo de dentro, embrulhado em peles. Deixando a caixa no chão Águia que Voa Alto, voltou para o outro cômodo, sentou-se em frente ao fogo e deu o embrulho para Carrie.

"Eu disse que iria guardá-la até você voltar."

Enquanto falava, Carrie desamarrou as tiras de couro e, com nervosismo, desembrulhou um pacotinho e, no seu colo, do mes­mo jeito que se lembrava, lá estava Ida Mae, a boneca de espiga de milho.

"Parece que faz tanto tempo que minha mãe e eu tivemos de sair daqui." Carrie tocou o pequeno cachecol que ela tinha pren­dido ao redor da 'cabeça' da boneca. "Este tecido era de um vesti­do que mamãe tinha feito para mim", abaixou a voz, "e eu tenho até hoje lá em St. Louis." Carrie limpou a garganta e levantou os olhos para Águia que Voa Alto. "Desculpe-me por mexer nas suas coisas, Águia que Voa Alto." Seus olhos azuis brilhavam com sin­ceridade.

De repente ele riu alto. Começou no fundo de sua garganta, mas ele não conseguia segurar e então estourou numa gargalhada que encheu a cabana e surpreendeu Carrie, que poucas vezes o tinha visto rir daquela forma.

"Achei que você era um joão-ninguém. Se não fosse tão pe­quena, eu teria dado uma pancada em você sem fazer nenhuma pergunta." Ao pensar nisso, ele riu de novo e Carrie juntou-se a ele, embora com menos entusiasmo.

Ele se levantou e falou: "Vou fazer um café. Você precisa se­car-se e ir embora. Se quiser, podemos ir juntos a cavalo. Explico que a salvei da tempestade. Preciso conversar com o dr. Riggs". Ele saiu para buscar água no poço. Quando voltou, dependurou o balde em um gancho e puxou-o para cima do fogo.

Carrie disse: "Não sabia que você viria para Santee nesta pri­mavera, Águia que Voa Alto. LisBeth falou que você iria direta­mente para Beloit logo que as aulas acabassem". Carrie parou re­pentinamente: "Desculpe-me, Águia que Voa Alto, isso não é da minha conta".

Águia que Voa Alto andou pelo cômodo até um caixote onde Marta Asa Vermelha guardava suas coisas. Voltou com duas cane­cas e sentou-se à frente dela antes de responder: "Eu só tinha uma disciplina para terminar, com uma dissertação, que posso fazer aqui mesmo". Tomou um gole de café e olhou para Carrie en­quanto dizia: "Eu precisava voltar a Santee. Fiquei muito tempo vendo o céu tomado pelos prédios", sorriu tristemente. "Acho que estava com saudade de casa."

"Você sentiu muita solidão lá?"

Águia que Voa Alto balançou a cabeça: "Nem tanta. Fiquei com Robert e Nancy Davis. Eles têm dois meninos, Sterling e Samuel, que são maravilhosos".

"Você arrumou amigos lá?"

Águia que Voa Alto olhou o fogo e respondeu cuidadosamen­te: "Encontrei muitas pessoas".

Carrie balançou a cabeça. "Encontrar um monte de pessoas não é mesma coisa que ter amigos, é? Conheço muita gente em Lincoln, mas acho que tenho só dois amigos verdadeiros lá - LisBeth e Everett."

"Everett?"

"Everett Higgenbottom. Você o conheceu em St. Louis."

Águia que Voa Alto sorriu baixinho. "Então o Everett Higgenbottom seguiu o meu pequeno Pássaro Vermelho até Nebraska." Olhou para Carrie e balançou a cabeça completando: "Ele é um bom amigo, Carrie, e gosta de você".

"Você não me respondeu, Águia que Voa Alto. Você fez amigos em Boston?"

"Conhecidos. Pessoas interessadas em ajudar os índios", pen­sou por um momento antes de responder. "Ah, é verdade, come­cei a fazer amigos. George Woodward estava tentando ser meu amigo. George e Julia, sua irmã."

"As crianças sempre gostam de você, Águia que Voa Alto."

Águia que Voa Alto riu de novo. Colocou a caneca de café no chão deliberadamente e não disse mais nada. Levantou-se de re­pente, empurrando a cadeira para trás e dizendo: "Seria bom você voltar para a escola, Pássaro Vermelho. Eles podem ficar preocu­pados".

Carrie levantou-se relutantemente. Abaixou o chapéu até co­brir as orelhas. "Obrigada por não ter ficado zangado, Águia que Voa Alto. Eu não deveria ter vindo aqui, sei disto. Mas não achava que iria vê-lo de novo por algum tempo e, bem, eu precisava mes­mo saber se..."

"Falei que guardaria a Ida Mae, Pássaro Vermelho. Quando digo que vou fazer algo, eu faço." Águia que Voa Alto pegou a boneca da mesa, embrulhou-a e entregou-a para Carrie.

Carrie balançou a cabeça. "Não, quero que você fique com ela."

Águia que Voa Alto abriu a porta para Carrie e perguntou: "Tem certeza de que não quer ir a cavalo?".

"Tenho. Gosto de caminhar. A tempestade passou."

Ela saiu da cabana, virando-se ao ouvir Águia que Voa Alto chamar seu nome. "Pássaro Vermelho, ninguém sabe que voltei para Santee. Acho que você também deveria parecer surpresa quan­do eu chegar na missão amanhã."

Carrie inclinou a cabeça para trás e olhou diretamente para ele por baixo da aba do chapéu enorme. Concordou com a cabeça. Ele já tinha quase fechado a porta quando ela chamou: "Águia que Voa Alto, obrigada por não ter ficado zangado. Acho que você tinha motivos para isso, mas estou contente por não ter ficado. E não há problema se eu ainda o chamar de Águia que Voa Alto? Jeremias King parece estranho para mim".

Águia que Voa Alto inclinou-se contra a porta da cabana, con­siderando: "Águia que Voa Alto é o meu nome, Pássaro Verme­lho. Gosto de ouvi-lo". Ele ficou parado à porta olhando até Carrie desaparecer depois de uma ladeira.

A chuva continuou. A lama aumentou ainda mais. No cami­nho, as botas de Carrie foram ficando mais pesadas e suas roupas ensoparam; ela tremia no momento em que subiu furtivamente as escadas para seu quarto.

Tinha sido um dia de folga maravilhoso. Ele ainda tem a Ida Mae. Guardou-a durante todos estes anos. E falou que ainda posso chamá- lo de Águia que Voa Alto.

 

Disponde, pois, agora o vosso coração e a vossa alma para buscardes ao Senhor vosso Deus.

           I Crônicas 22:19

 

Águia que Voa Alto andava para frente e para trás diante da escrivaninha de Alfred Riggs, desabafando meses de confu­são e aperto no coração. "Quero ir para o oeste, dr. Riggs. Quero ver os campos abertos e caçar e, se for da vontade de Deus, ajudar algumas pessoas a encontrar o caminho até Ele. Estou cansado de ficar na frente de multidões e de ser um 'bom exemplo da minha raça' para o mundo. Estou cansado de usar colarinhos e sapatos que apertam. Estou cansado de responder a perguntas sobre escalpos para meninos intrometidos e de fugir de brigas com seus pais ignorantes."

O dr. Riggs inclinou-se na cadeira e esperou Águia que Voa Alto concatenar seus pensamentos. Águia que Voa Alto sentou- se perto de Jim Callaway, olhou para o dr. Riggs e continuou quase com desespero em sua voz. "Quero levar alguns outros lakotas comigo para o céu, dr. Riggs. Não quero mais fazer dis­cursos. Meus discursos não têm ajudado nenhuma alma lakota a encontrar seu caminho para o céu, dr. Riggs. Não posso voltar a Boston. Meu povo está morrendo enquanto estou em hotéis, to­mando chá com pessoas brancas cujo único interesse é ver 'Jeremias King, o índio educado'". Ele olhou para o lado, con­cluindo: "Sei que o estou decepcionando, mas simplesmente não posso voltar a Boston".

Os olhos de Alfred Riggs brilharam cheios de compaixão. "Jeremias, você não está me decepcionando". Tirou uma carta de dentro da escrivaninha e passou-a para Águia que Voa Alto. "Esta carta é do meu irmão Thomas, Jeremias. Por favor dê uma lida nela."

 

Natal de 1883

Hoje o reverendo Nuvem de Trovão e eu fomos até o novo povoado dakota lá para cima, no rio Cheyenne. À noite fomos até uma cabana de um velho comerciante. Enquanto nos divertíamos e conversávamos, chegou um convite para nós das tendas dos dakotas. Estes dakotas moram todos juntos em um aldeia às mar­gens do rio. O território ao redor é cheio de colinas, como no Missouri, e a água é clara e boa. Quando chegamos, fomos para a tenda e um homem chamado Alcança as Nuvens fez o seguinte discurso: "Meus amigos, somos um povo de coração benevolente. Deixamos para trás nosso costume de perambular e queremos que vocês venham aqid e nos ensinem. Não gostamos quando alguém vem nos ensinar, mas só fica durante o inverno e depois vai embora. Quando um homem faz isso, mesmo que nos ensine, quando vai embora esquecemos tudo. Queremos um homem para ficar sempre aqui conosco. Esse território é bom para se plantar. O solo é bom. Na última primavera, nós plantamos e tudo nas­ceu. O homem branco deu sementes de milho, feijão e nabo. Plan­tamos tudo e elas cresceram bem. O milho ficou mais alto que um homem. Meus amigos, queremos muito aprender a ler. Escuta­mos que as pessoas que aprendem a ler prosperam. Vamos valori­zar muito vocês se mandarem alguém para nos ensinar".

Estamos muito ansiosos para que alguém fique no meio deste povo. Estão implorando por professores e certamente Deus não nos negaria esta oportunidade de trabalhar no meio de um povo ainda não alcançado. A cabana do comerciante pode com­portar suficientemente dois obreiros assim que forem designa­dos. Vamos orar, todos nós, para que alguém escute o chamado de Deus para alcançar os dakotas no rio Cheyenne.

 

Águia que Voa Alto leu vagarosamente a carta, cada linha com o coração explodindo de empolgação. Ao terminar a leitura, depositou-a na escrivaninha do dr. Riggs com as mãos trêmulas, forçando-se para esperar o dr. Riggs falar.

"Parece, Jeremias", falou o dr. Riggs, "que Deus respondeu à carta do Thomas. Creio que sua infelicidade em Boston foi causa­da por Deus porque Ele pretendia chamá-lo daquelas casas de chá para a cabana do comerciante à beira do rio Cheyenne. Você concorda com isso?"

"Não sei, dr. Riggs. Espero que seja isso mesmo."

"Por que você hesita, Jeremias?"

Águia que Voa Alto olhou seriamente de Jim Callaway para o dr. Riggs e respirou fundo. "Talvez o senhor não me ache quali­ficado." Fez uma pausa, continuando com dificuldade: "Em Boston havia uma, havia uma mulher chamada Julia, Julia Woodward".

O dr. Riggs inspirou audivelmente antes de dizer: "Conti­nue, Jeremias".

Jim Callaway preparou-se para a confissão esperada.

Águia que Voa Alto descreveu com detalhes Julia Woodward. Contou sobre o encontro deles e sobre a amizade subseqüente. Então continuou até contar sobre sua última noite em Boston. Fa­lou pensando em cada palavra, tentando ao máximo fazer um re­latório real, sem justificativas. Concluiu num tom de voz deplorá­vel: "Então saí de lá. Eu estava fraco demais para ficar, dr. Riggs. Fraco demais para ficar e terminar as aulas. Estava sozinho e com saudades de casa, mas estas não são desculpas para meu compor­tamento. Tive de sair de Boston para prevenir a possibilidade de...".

"É, é, Jeremias, eu sei", o dr. Riggs interrompeu Águia que Voa Alto num movimento com a mão. Pegando a Bíblia que sempre mantinha no canto da escrivaninha, abriu em II Timóteo e leu: "Foge, outrossim, das paixões da mocidade. Segue a justiça, a fé, o amor e a paz, com os que, de coração puro, invocam o Senhor. Jeremias, a mim me parece que você simplesmente fez o que Paulo instruiu ao jovem pastor Timóteo. Você reconheceu uma situação perigosa e fugiu". O dr. Riggs sorriu para o aluno vitorioso: "Jeremias, não concordo com sua auto-avaliação. Você não caiu em Boston. Reconheceu a tentação e, pelo que posso dizer, reagiu biblicamente. Certamente agora você está buscando seguir a justiça e a fé, o amor e a paz".

O dr. Riggs fechou a Bíblia e recolocou-a em seu canto. Bateu com os dedos na escrivaninha, pensativo, antes de continuar: "Lembrei-me de um momento em minha vida, Jeremias", fez uma pausa. "Séculos atrás, é claro, eu era muito mais jovem e tolo. Mas realmente beijei uma mulher com quem eu não era casado." Os olhos do dr. Riggs brilharam e um canto de sua boca levantou-se. "Não acho que isto tenha me desqualificado para o ministério naquele tempo nem no futuro. Pelo contrário, levou-me a com­partilhar com ela nossa vida de trabalho. Não acho que um beijo desqualifique você para o ministério, Jeremias."

Águia que Voa Alto respondeu rápido: "Eu não vou casar-me com Julia Woodward, dr. Riggs".

Jim Callaway falou pela primeira vez: "Como você pode ter tanta certeza, Águia que Voa Alto? Você não falou que ela está vindo para cá com o Comitê? Parece que ela está realmente inte­ressada no trabalho".

Águia que Voa Alto balançou a cabeça. "Quando o senhor a vir, entenderá, dr. Riggs. Ela não é o tipo de mulher para se levar para o oeste, para uma cabana", suspirou. "Tenho orado para Deus me dar uma esposa, dr. Riggs. E acho que Ele está me chamando para o rio Cheyenne. Não conheço nenhuma mulher que compar­tilharia esse tipo de vida comigo."

Alfred Riggs respondeu: "Então você precisa orar ainda mais, Jeremias. A Bíblia diz que 'uma esposa prudente vem do Senhor'. O Deus que o chama para o oeste é o mesmo Deus que criou o homem e disse que não seria bom que ele estivesse sozinho. O Senhor pode lhe prover uma esposa que irá compartilhar o peso de levar seu povo a Deus".

No final da reunião, os três homens abaixaram a cabeça para orar. O dr. Alfred Riggs agradeceu a Deus pelo Seu trabalho na vida de Águia que Voa Alto e pediu direção e uma esposa. Jim Callaway agradeceu a Deus pelo Seu trabalho na vida de Águia que Voa Alto e pediu direção e uma esposa. Águia que Voa Alto também agradeceu a Deus e pediu direção e uma esposa, enfatizando o último pedido.

 

Quando as crianças e a equipe da Escola Normal de Treinamen­to de Santee entraram na capela para o culto da tarde, o dr. Riggs já estava atrás do púlpito. Águia que Voa Alto estava assentado à sua direita. Ele observava as crianças entrando na capela e sentando-se nos lugares habituais, meninos à esquerda e meninas à direita. Após a leitura da Bíblia, começaram a cantar hinos. Águia que Voa Alto cantou com as crianças um hino de louvor que dizia: Jesus waste made - hee waste, Jesus waste - piwecida ya (Jesus me ama - isso é bom, Jesus é bom - eu agradeço a Ele). Enquanto cantava, seus olhos correram pelas filei­ras das crianças até lá atrás, onde Carrie Brown estava sentada, ten­tando ao máximo não olhar para ele. O hino continuou: Miye awektonja nunu waun, Iye tehiya amkita ce, Heca nakaes owakida kta (Eu O esqueço - vagueando, Ele com dificuldade me procura, Então eu mesmo O procurarei), e finalmente os olhos azuis como as flores da centáurea moveram-se em sua direção. Ao ver que Águia que Voa Alto olhava para ela, Carrie fingiu derrubar alguma coisa e abaixou-se.

O hino terminou e o dr. Riggs levantou-se dizendo: "Hoje está aqui conosco Jeremias Águia que Voa Alto King, que se for­mou nesta escola. O sr. King cursou o Beloit College, em Wisconsin, e a Universidade John Knox, em Illinois. Mais recentemente, foi aluno de Harvard, em Boston, onde fez muitas palestras a respeito de nossa escola. Agora voltou para uma temporada de serviço e espero que vocês escutem o que ele tem para dizer".

Águia que Voa Alto aproximou-se do atril e começou a falar com simplicidade: "Quando cheguei a Santee, tive de aprender muitas coisas difíceis. Primeiro, a nova língua, depois", ele olhou para os meninos sorrindo, "as terríveis lições de geografia e mate­mática." Os meninos se entreolharam e balançaram a cabeça afirmativamente. Águia que Voa Alto virou-se para as meninas e con­tinuou: "Eu ficava muito feliz por não ter de aprender a costurar". Elas soltaram risinhos.

Águia que Voa Alto sorriu e então ficou sério. "Mas o maior desafio para mim foi aprender a ser um homem. Lembro-me de dizer a Tiago Asa Vermelha que no lugar de onde eu viera era fácil ser homem. Eu só tinha de caçar e lutar bem. Mas quando vim para cá tudo mudou e eu já não sabia mais ser um homem." Abrin­do sua Bíblia, Águia que Voa Alto disse: "Então conheci Jesus Cristo e um dia em que lia a Bíblia vi palavras que me mostraram como ser um homem. Eu estava lendo o primeiro livro dos Reis e lá estava o que Deus dizia o que um homem devia fazer. Eis aqui", disse Águia que Voa Alto iniciando sua leitura:

Se ouvires tudo o que eu te ordenar, e andares nos meus caminhos, e fizeres o que é reto perante mim, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos, como fez Davi, meu servo, eu serei contigo, e te edificarei uma casa estável...

"Quando li estas palavras, entendi o que era ser um homem. Eu tinha de aprender o que Deus dizia em Seu Livro para que pudesse andar nos Seus caminhos e prosperasse "sendo o que Deus diz que um homem é". Ele levantou a Bíblia para que as crianças pudessem ver. "Quando vocês olham para este Livro, podem ver que a capa está gasta. Tenho tentado estudar este Livro. Ao ler o Livro, aconteceu comigo uma coisa que aconteceu com outro ho­mem chamado Jeremias. Jeremias, do Velho Testamento, diz: Acha­das as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para o meu coração, pois pelo teu nome sou chamado, ó Senhor, Deus dos Exércitos. Deus me fez amar este Livro. Quando o leio, meu coração se enche de alegria e regozijo e quero estudá-lo mais e mais e ensinar ao meu próprio povo para mostrar-lhes tudo o que ele diz sobre Deus e Seu amor por eles."

"Quando achei que Deus estava me chamando para levar Sua Palavra ao meu povo, fiquei com medo. Do mesmo modo que o outro Jeremias, eu disse: Ah, Senhor Deus, eis que não sei falar; por­que não passo de... um lakota. Mas então li o que Deus respondeu ao outro Jeremias: Não digas: Não passo de uma criança, Águia que Voa Alto, não digas: Não passo de um lakota, porque a todos a quem eu te enviar irás; e tudo quanto eu te mandar, falarás." Águia que Voa Alto passou os olhos pela capela antes de continuar: "Enquanto eu es­tudava em Boston, meu coração foi ficando pesado. Eu lia sobre as necessidades do meu próprio povo e comecei a pensar que de­veria estar com eles, contando-lhes sobre Cristo. Voltei a Santee para pedir a direção de Deus". Águia que Voa Alto afastou-se repentinamente do pedestal e disse: "Crianças, peço que orem por mim e eu vou orar por vocês, para que continuem seus estudos, aprendam os caminhos de Deus, aprendam a amar o Seu Livro e voltem às suas famílias, para lhes falar de Jesus". Desceu e sen- tou-se ao lado de Jim Callaway, na primeira fileira de bancos.

O dr. Riggs levantou-se para dizer: "Hoje de manhã reuni- me com o sr. King. Após uma temporada orando, decidimos que ele não retornará a Boston, conforme os planos anteriores. Cre­mos que Deus está chamando nosso amigo Jeremias para um novo ministério e, logo que encontrarmos um parceiro e houver supor­te financeiro, ele irá para o território do rio Cheyenne com a espe­rança de estabelecer ali um ponto missionário permanente com o seu povo. Vamos orar por essa nova orientação".

No momento em que o dr. Riggs deu essa notícia, Carrie, que ainda fitava o chão a seus pés, levantou os olhos repentinamente. Se é que ela tinha ouvido corretamente, se aquela decisão tinha sido tomada, então o futuro de Águia que Voa Alto seria drasticamente diferente do que ela havia imaginado. Não haveria viagens pelo país para palestras e levantamento de doações para os índios; não haveria multidões de admiradores nem publicidade em jornais. Ela se sentiu envergonhada ao admitir que tinha divagado com as fo­tos imaginárias em jornais do dr. Jeremias King (na foto também estava a sra. King, Carrie Brown quando solteira, de St. Louis).

Não pode ser, pensou Carrie, não é possível que seja isso mesmo. Ele é tão bom para discursar. Vi a multidão em St. Louis, a forma que as pessoas reagiram à sua fala. Com certeza ele não desistirá disso para... Carrie ficou pensando em Águia que Voa Alto em uma cabana sem mobília, preparando um sermão à luz de uma lamparina de querosene. Ela tentava acrescentar ao quadro sua própria imagem morando em uma cabana, sentada no primeiro banco de uma pe­quena igreja, mas não conseguia.

O culto terminou com um hino. Carrie seguiu Charity e as cri­anças para fora da capela, observando dois dos meninos mais velhos que puxavam Águia que Voa Alto e imploravam a ele que fosse ver a nova oficina de madeira e de pintura. Com uma olhada para o lado de Carrie, Águia que Voa Alto colocou uma mão no ombro de cada menino e os seguiu em direção às oficinas. Carrie voltou para a cape­la e sentou-se em um banco de trás para pensar. Everett estava certo, pensou ela. Ele me disse que eu não tinha considerado a realidade - que eu estava construindo uma fantasia de viajar e ser a esposa do dr. Jeremias King. Carrie inclinou a cabeça e apoiou a testa no banco da frente. Todo o meu sonho foi construído em cima de uma idéia romântica, e não de um homem real. Ele não se preocupa com educação ou artigos em jornal, muito menos com dinheiro. Quer apenas ir para casa e pregar ao seu povo. Eu nem mesmo tinha considerado o que Águia que Voa Alto poderia desejar o que Deus poderia querer para ele. Não sou melhor que o povo de St. Louis com quem eu costumava ficar tão irada, as pessoas que o olharam com cu­riosidade, nunca como um homem real, mas somente como "o índio". Em lodo este tempo, eu nunca o conheci realmente. Everett estava certo.

"Algum problema, Carrie?", perguntou Jim Callaway.

Carrie pulou: "Não, Jim, está tudo bem. Eu só estava pensan­do no que o Águia que Voa Alto falou hoje. Você, você precisa de alguma coisa, Jim?".

"Águia que Voa Alto voltará em poucos minutos. Ele me pe­diu para falar a você que não fosse a lugar nenhum pois ele quer dar um alô."

"Ele está diferente."

"Como assim?", Jim perguntou enquanto se sentava ao lado dela. "Ele está mais fluente, eu acho, mas não percebi nenhuma mudança mesmo, não no homem."

"Quero dizer que ele parece tão decidido quanto ao que quer, tão determinado."

"Não mais determinado do que qualquer missionário real­mente comprometido com o Senhor", disse Jim. "Acho que Deus o tem guiado nesta direção o tempo todo. Só que levou um tempo até o Águia que Voa Alto perceber."

A voz de Águia que Voa Alto soou à porta: "Como vai o meu pequeno Pássaro Vermelho? Estão lhe ensinando coisas boas na Universidade de Lincoln?". Tocou o ombro dela antes de sentar- se na fila à frente de Carrie e Jim.

Com a chegada de Águia que Voa Alto, a conversa mudou de rumo. Carrie fez um comentário rápido sobre a Universidade e seu trabalho no hotel, concluindo com seus planos de lecionar em uma escola rural durante o outono e inverno.

"Quanto tempo você vai ficar em Santee?", quis saber Águia que Voa Alto.

Carrie olhou para Jim, que falou: "Preciso voltar para o plan­tio da primavera. Espero poder voltar amanhã, se tudo der certo".

"Àmanhã?", Carrie não conseguiu esconder o desapontamento.

Jim assentiu com a cabeça. "Não quero deixar LisBeth..."

"É claro, o bebê."

Os olhos de Águia que Voa Alto brilharam de alegria. "Então finalmente vou ser tio. Quando vai nascer?"

Jim sorriu. "Só mais algumas semanas, eu acho, por isso pre­ciso voltar."

"Bem, então, fico contente por ter vindo hoje e ter visto meu amigo e meu pequeno Pássaro Vermelho." Águia que Voa Alto levantou-se para sair. Andou até a porta e então voltou-se para Jim: "Jim Callaway, acho que gostaria de dar um presente para sua criança. Quando voltar para perto de minha irmã, gostaria que levasse a égua preta com você".

Jim protestou: "E muita bondade sua, Águia que Voa Alto. Ela será a base da sua tropa".

Águia que Voa Alto balançou a cabeça: "Não, não precisarei de uma tropa no lugar para onde estou indo. Fico contente de saber que a Lakota terá um bom lar com minha irmã, minha famí­lia. Fale para o bebê que o Ieksi, que quer dizer tio, irá até lá e ensinará ela ou ele a cavalgar".

Então virou-se para Carrie e disse: "Pássaro Vermelho, estu­de bastante na Universidade. Diga ao Everett Higgenbottom que o Jeremias King deseja que ele cuide bem de você. E lembre-se", falou ele baixinho, "você sempre ocupará um lugar especial em meu coração".

 

Até quando estarei eu relutando em minha alma, com tristeza no coração cada dia?

                   Salmo 13:2

 

Sarah e Tom Biddle enfrentaram tão bem a morte de Abigail e David Braddock que ninguém em Lincoln suspeitou de que o relacionamento deles tivesse ido além do de empregados e patrões. Ao mesmo tempo que Tom Biddle não entendia a insis­tência da irmã em guardar segredo quanto ao noivado com David, ficava feliz por ela ter confiado a ele algo tão importante para ela.

Sarah também pedira segredo ao dr. Gilbert. "Não há neces­sidade de que ninguém saiba disto, dr. Gilbert. Não tem impor­tância."

"Mas você tem direito a pelo menos parte dos bens, srta. Biddle."

"Não acho direito que os Braddocks tenham de ir aos tribu­nais. Não vou deixar isso acontecer. Não quero o nome de David em uma corte por causa de coisas materiais, dr. Gilbert", insistiu Sarah. "Mamãe Braddock me contou sobre os outros membros da família. Não quero nenhum problema. Farei o meu dever por David e pela Mamãe Braddock. Vou cuidar bem da casa e, quan­do os outros chegarem, simplesmente cumprirei suas ordens."

"E provavelmente será mandada embora", interrompeu o dr. Gilbert.

Sarah balançou a cabeça. "Não, dr. Gilbert, irei para a casa da tia Augusta". Lágrimas caíram em seu rosto. "Enquanto Augusta Hathaway estiver viva, Tom e eu sempre teremos um lugar que poderemos chamar de lar." Sarah recompôs-se e continuou: "Tia Augusta já está achando que voltaremos. A noite passada ela dis­se que tinha dois quartos à nossa espera. Até mesmo se desculpou por não ter quartos perto do seu próprio apartamento. Mas há dois quartos grandes no terceiro andar e Tom e eu ficaremos lá. Tom receberá a sua herança".

"E você não vai receber nada. Nada por todos os anos de tra­balho, pelos últimos meses de inferno".

Os olhos de Sarah abrandaram-se quando ela discordou: "Ah, não, dr. Gilbert. Não é assim. Posso não ter coisas para mostrar, mas tenho a lembrança do sorriso da Mamãe Braddock e sua con­fiança em mim. Aprendi com ela a me comunicar, a cuidar de uma casa e muitas outras coisas. Sou capaz de conseguir uma boa posição agora, tenho certeza. Tenho pensado até mesmo em alugar uma casinha para o Tom e eu, tão logo encontre um emprego. Até então ficaremos com tia Augusta".

O dr. Gilbert sorriu carinhosamente dizendo: "Você tem firme­za de caráter, Sarah Biddle, posso lhe dizer isso. Teria sido uma ótima esposa para David Braddock. Espero que ele soubesse disso".

"Ele sabia, dr. Gilbert." E Sarah não disse mais nada, pois fosse o que fosse que tivesse existido entre ela e David Braddock, estava sendo deixado de lado para sempre. Ela na verdade tinha escondido e enterrado essa história onde não a machucasse mais.

E assim dr. Gilbert manteve sua promessa a Sarah e perma­neceu calado sobre o noivado dela com David Braddock. Quando Ira, o "outro Braddock", chegou em Lincoln para acertar a heran­ça, Tom e Sarah Biddle já tinham voltado para a Casa Hathaway. Sarah, com seu vestido mais fino, encontrou-o na mansão. Ira foi o único dentre os "outros Braddocks" a viajar de Filadélfia para "fechar as coisas". Quando Sarah abriu a porta da mansão, segu­rou à força um sorriso diante da imagem do primeiro humano que ela já tinha visto com aparência de galo de briga.

Com movimentos delicados e deliberados, Sarah mostrou cada cômodo a Ira. Quando perguntada, ela sugeria a melhor for­ma de dispor as coisas finas que tinha arrumado e limpado com tanto amor. Com graça, aceitou o desdenho esnobe de Ira Braddock por Nebraska. Pacientemente explicou sobre aquilo que tinha agra­dado David e Abigail Braddock em Lincoln. Ela não mencionou o interesse de Abigail por Tom e ficou muito satisfeita ao presenciar a exclamação de choque que escapou dos lábios de Ira Braddock quando o testamento foi lido, e Tom Biddle foi designado herdei­ro incontestável de uma grande soma que daria tranqüilamente para pagar seus estudos em uma boa Universidade no leste (em­bora Tom insistisse teimosamente em que a Universidade de Nebraska era a única que ele iria freqüentar na vida). Quando o "outro Braddock" foi notificado por seu advogado de que o testa­mento de Abigail era irreversível, ele sorriu indulgentemente, fez um comentário sobre as idiossincrasias de seus parentes, levan­tou seu pincenê e adotou sua posição de superior do universo.

No último dia em que Ira Braddock visitou a mansão, numa demonstração de ostentação, fez uma oferta para que Sarah ficas­se com alguma recordação: "Pegue o que quiser da casa, srta. Biddle. Pegue alguma coisa para lembrar os Braddocks, querida". Ao dizer isso, esticou-se em sua estatura de 1 metro e 65 centíme­tros, conseguindo, de alguma forma, olhar para baixo de seu na­riz, para Sarah, com seu 1 metro e 78 centímetros.

Sarah olhou para ele com seus olhos cinza inflexíveis e des­pediu-se: "Estou indo, sr. Braddock". Pegou sua corrente de prata de lei, usada à cintura, e entregou a Ira Braddock. "As chaves de todas as portas e armários estão aqui. E o único molho completo de chaves, por isso tome cuidado para não perdê-las."

Sarah abriu a porta da frente, desceu a escadaria larga e atra­vessou com passos firmes e de mãos vazias o portão frontal. Espe­rando mesmo que Ira Braddock estivesse observando sua saída, ela caminhou para o lado norte, na Rua 17, sem um único olhar para trás.

Sarah Biddle administrou bem cada decisão a ser tomada nas semanas que se seguiram sem uma alusão sequer ao peso da tris­teza que se abatera sobre sua vida. Tom continuou suas aulas com a srta. Griswall, e Sarah substituiu vários empregados do hotel em suas ausências, inclusive Carrie Brown. Sempre ia para Roca ajudar LisBeth a bordar fraldas e cueiros, e preenchia suas noites ajudando Tom nas lições ou trabalhando com uma colcha de reta­lhos para o bebê de LisBeth. Estava excepcionalmente quieta e introspectiva, mas Augusta achava aquilo natural. Afinal de con­tas, Sarah tinha convivido muito de perto com Abigail Braddock.

Sarah sempre pedia para usar a carruagem de Augusta, que concordava prontamente, sem jamais imaginar que aquela carru­agem rodaria até o cemitério de Wyuka, onde Sarah chorava so­bre dois túmulos. O corpo de David Braddock tinha sido enterra­do na região do acidente do trem, mas Sarah havia pago, em se­gredo, um túmulo ao lado do de sua mãe. Augusta atribuíra o segundo memorial a algum gesto de compaixão despercebido de Ira Braddock. Sarah ficara grata por não terem feito nenhuma per­gunta.

Mas chegou um dia na vida de Sarah Biddle em que a perda tanto de seu noivo quanto de sua benfeitora quase a afundaram no desespero. Chegou o dia em que Augusta Hathaway finalmente percebeu a dor maior de Sarah, fortemente guardada.

Certo dia, Sarah voltou do cemitério bem no momento em que Asa Green arrastava uma enorme mala pela porta dos cômo­dos de Augusta. Augusta saiu rapidamente da cozinha e chamou Sarah. "Acabou de chegar, Sarah". O Fred da estação mandou um bilhete perguntando o que eu achava que ele deveria fazer com isso. Eu disse que não poderia despachar para a mansão, mesmo que quisesse, pois até o depósito das carruagens está bem tranca­do. Ira não deixou instruções ou chaves, deixou?"

Sarah balançou a cabeça. "O Cropsey provavelmente tem um molho de chaves no seu escritório. Acho que ele ficou responsá­vel pela venda. Poderíamos ver com ele."

"Sarah, tem o nome do David Braddock aqui e...", Augusta desdobrou uma folha de papel, "... o Frank deu-me isso. E um pedido de desculpas da companhia de estrada de ferro. Aparente­mente o David Braddock estava trazendo isso no trem quando..."

O rosto de Sarah ficou pálido e ela se sentou.

Augusta continuou: "É do David, Sarah. Parece errado sim­plesmente devolver isso a uma casa vazia. E, francamente, queri­da, não quero que Ira Braddock tenha o prazer de pôr suas mãos em mais nada. Pelo menos vamos abrir isso. Como governanta, você faria isto de qualquer maneira. Sei que a Abigail e o David aprovariam sua decisão sobre o uso do que quer que seja".

Sarah concordou com um suspiro: "Está certo, Abigail. De acordo. Mas não há chave nenhuma".

Com um brilho de travessura nos olhos, Augusta retirou um grampo do cabelo e ajoelhou-se ao lado da mala. Em um minuto a mala estava aberta. Um perfume delicado de rosas encheu o quar­to, e Augusta inclinou-se para inspecionar o conteúdo, soltando uma exclamação de surpresa e sentando-se abruptamente.

Sarah, que já estava sentada, ficou mais pálida ainda. Fixou os olhos em Augusta e então na mala. Finalmente, com as mãos trêmulas, aproximou-se da mala e tocou o mais exuberante vesti­do de noiva que já tinha visto em toda a sua vida. Só uma parte estava aparecendo, mas ela puxou o vestido para fora da mala, e foi desdobrando o cetim pesado, que caía como uma cascata ao chão. Ele tinha sido embrulhado com pétalas secas de rosa. Sem fala, Sarah apertou o vestido contra si mesma, olhando Augusta exclamar algo sobre o conteúdo restante no baú.

"É um enxoval, Sarah, um enxoval completo! O David devia estar com planos de se casar. Fico feliz em saber que finalmente ele tinha encontrado alguém." Augusta falou rápido, balançando a cabeça: "Que fim trágico!". De repente ela percebeu que Sarah Biddle não tinha dito nada por vários minutos. Virando-se de cos­tas para a mala, ficou paralisada por uma possibilidade imprová­vel.

Sarah Biddle estava sentada na beira do divã de Augusta. Tinha dobrado o vestido de noiva na cintura e o alisava de forma que ele estava quase sobre o seu corpo, com as mangas caindo ao lado dela. E a cauda caía sobre o chão a seus pés. Sarah inclinou-se vagarosamente para pegar um par de luvas com fitas que havi­am rolado no chão. Com extremo cuidado, vestiu uma e depois a outra. Manteve as mãos levantadas à sua frente, esticou os dedos, examinando os lindíssimos desenhos de rosa nas fitas. Correu o dedo indicador pelo decote alto, depois pelas fileiras de pregas finas e até um ramalhete de botões de rosa num tom levemente rosado na cintura do vestido.

"Ah, minha querida", falou Augusta delicadamente, "queri­da, minha querida Sarah." Augusta sentou-se perto de Sarah e pousou sua mão enrugada sobre a mão fechada de Sarah. Com um braço ao redor dos ombros dela, Augusta abraçou-a tão forte que quebrou todas as barreiras que Sarah Biddle tinha erguido ao redor de seu segredo.

"Por quê, Sarah?", Augusta perguntou baixinho, "por que você não contou para ninguém?"

"Não precisava."

"Mas Sarah, você tinha autoridade para isto."

"Autoridade nada, tia Augusta." Sarah afastou-se de Augusta e levantou-se segurando o vestido nos braços. Ao tirar uma das luvas, disse tristemente: "Quem é que acreditaria, tia Augusta? O sr. David Braddock, de Filadélfia, casando-se com uma governanta órfã". Sarah olhou séria para Augusta: "Eu disse a ele que as pessoas não aprovariam. De alguma forma eu sabia que não era para ser eu. O Tom e o dr. Gilbert prometeram jamais contar a nin­guém". Dispondo o vestido sobre o divã de Augusta, Sarah ajoe­lhou-se ao lado do baú e começou a dobrar o enxoval, dizendo: "Ninguém jamais precisará saber".

Augusta ficou séria: "Sarah, você não precisa ficar com isto dentro de você. Passou por uma perda terrível e precisa encará-la, sofrer por ela e então continuar a vida. Não tente enganar que não está ferida, Sarah".

Quando Sarah olhou para a mala, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Com carinho, ela puxou o vestido de noiva em sua direção, apertando-o contra o seu corpo. Alisando o tecido, do­brou-o delicadamente e guardou-o de volta no baú.

"Não estou dizendo que não dói, tia Augusta. Estou dizendo que não vou deixar ninguém saber, pois foi algo bom e verdadei­ro que não quero que estranhos comentem e façam chacotas a res­peito." Fechando a tampa do baú, Sarah falou baixinho: "Eu agra­deceria se o Asa pudesse levá-lo para o meu quarto, tia Augusta". Ela sorriu tristemente enquanto as lágrimas caíram e, dirigindo-se à porta, voltou-se para Augusta.

"Não estou negando a dor, tia Augusta. Simplesmente não posso...", respirou fundo e parou. Ficou estática, com a mão no trinco por um longo momento antes de soltar: "Simplesmente não encontro as palavras certas. Não há palavras".

Sarah Biddle subiu para seu quarto. Asa Green bateu na por­ta e ela lhe pediu que colocasse o baú no meio do quarto. Quando Tom Biddle chegou da escola naquele dia, Augusta foi ao seu en­contro com uma lista de tarefas que o manteve ocupado durante a noite. "Deixe a Sarah sozinha, Tom. Ela não estava se sentindo muito bem esta tarde e mandei-a ficar deitada. Não é nada sério, mas acho que ela não deve ser incomodada." Bem mais tarde, Augusta deixou Tom subir, mas recomendando que não pertur­basse Sarah.

Tom atravessou o hall, mancando até o seu quarto, mas não resistiu a dar uma olhadinha na irmã. Abriu a porta do quarto dela sem fazer nenhum barulho. Augusta tinha falado que ela es­tava de cama, mas não estava. Obviamente estava tão afundada em seus pensamentos que nem percebeu que Tom abrira a porta. A tristeza profunda de sua face fez Tom franzir as sobrancelhas, preocupado. Acho que ela não deve ser incomodada. O aviso de Augusta revestiu-se de nova autoridade e alguma coisa conven­ceu Tom de que ele deveria obedecer e deixar a irmã sozinha. Fe­chando a porta, ele deixou a irmã sentada à janela, de olhos fixos no conteúdo de um baú aberto.

 

Sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor.

               Gálatas 5:13

 

Augusta Hathaway olhava com atenção o jornal junto com Sarah Biddle. As duas mulheres tinham se retirado para o apartamento de Augusta. Esta, para ler o jornal, e Sarah, para au­mentar a pilha sempre crescente de blocos de remendos em sua cesta de costura. Sarah trabalhava vagarosamente, fazendo sem­pre uma pausa para inclinar-se para trás em sua cadeira. Parecia estar meio dormindo, mas Augusta sabia que o cansaço de Sarah era daquele tipo que geralmente impede o sono.

"Você não tem dormido bem, Sarah", Augusta falou baixinho.

Sarah assustou-se com a voz de Augusta. Levantando os olhos, respondeu com certa dose de culpa: "Sinto muito, tia Augusta. Minhas descidas para a cozinha no meio da noite têm acordado a senhora?".

"Que besteira, querida", Augusta disse, dobrando seu jor­nal. "De jeito nenhum, mas sei que você não tem dormido. A Cora disse que você já está na cozinha quase todas as manhãs antes de ela chegar. Ela contou que sua costura geralmente está por perto, mas você não está costurando quando ela chega." Augusta fez uma pausa e acrescentou gentilmente: "Estou preocupada com você, querida. Posso ajudar de alguma forma?"

Sarah olhou para o trabalho de costura no seu colo e sorriu sem entusiasmo, balançando a cabeça.

"Nós deveríamos guardar o baú que está no seu quarto em algum lugar, algum lugar fora da vista, Sarah. Acho que não faz bem ficar olhando para ele dia após dia."

Sarah olhou penetrantemente para Augusta e disse: "Não quero que tirem o baú de lá".

Augusta desdobrou o jornal e Sarah pegou sua costura. Após alguns minutos Augusta perguntou: "Sarah, você poderia ir dar uma olhada na LisBeth para mim amanhã?" Fui lá três vezes des­de que o Jim viajou. Acho que faria bem para ela uma companhia mais jovem".

"Ah, tia Augusta", protestou Sarah, "eu não sou a compa­nhia apropriada para a LisBeth. Não no momento."

Augusta olhou por sobre o jornal para Sarah. "Talvez não seja, Sarah, mas ela certamente será uma boa companhia para você. Lem­bre-se, Sarah, não faz tanto tempo que LisBeth foi ferida pelos mes­mos sentimentos seus. Você precisa saber que ela entenderá."

"Não preciso de ninguém que me entenda, tia Augusta", Sarah disse mansamente. "Só preciso esquecer."

"Não", Augusta retrucou com firmeza, "você não precisa es­quecer. Precisa lembrar-se de cada coisa boa de David e Abigail Braddock. E, minha querida", acrescentou Augusta, "precisa lem­brar que, mesmo que agora você não sinta, é muito amada pelo Senhor."

Sarah ficou em silêncio, concentrada na costura.

"Sarah", Augusta argumentou com delicadeza, "você pode conversar com a LisBeth. Só vocês duas. Ninguém mais precisará saber. LisBeth será capaz como ninguém de entender sua tristeza."

Como Sarah não se convencesse, Augusta mudou a aborda­gem. "Sarah, eu realmente preciso ficar na cidade amanhã. Há uma reunião da comissão do Lar para os Desamparados, lá no do Red Ribbon Club. A dra. Huff, médica que trabalha para o Lar, estará falando no clube. Ela me pediu para liderar a discussão sobre a solicitação de apoio para o município e para o Estado e do que realmente precisamos para fazer o Lar funcionar. Temos qua­se cem crianças morando lá no momento e, como você sabe, as contribuições particulares não estão sendo suficientes para as des­pesas."

Sarah tirou os olhos da costura. "Não há problema, tia Augusta. A senhora sabe que não recuso nada quando se trata do Lar para os Desamparados". Ela suspirou e continuou: "Tudo bem, irei à casa da LisBeth para que a senhora fique aqui para a reu­nião. Mas não espere que eu abra meu coração para a LisBeth, tia Augusta. Quando eu disse que não queria falar sobre o assunto, estava falando sério".

"Faça o que achar melhor, Sarah; não posso forçar você." Quando Sarah subia vagarosamente os degraus para o seu quar­to, Augusta aconselhou: "Se a LisBeth quiser que você fique lá, não se preocupe em voltar correndo. Nós nos viramos bem aqui e a LisBeth está sozinha. Estas últimas semanas de gravidez não têm sido fáceis, principalmente com o Jim em Santee".

Sarah não pôde ir à igreja na manhã seguinte para partir para a fazenda dos Callaways. A velha égua que Asa atrelou para ela se arrastava pesadamente pela estrada e Sarah não fez nada para npressá-la. A despeito de sua própria situação, ela começou a apre­ciar a paisagem do campo verdejante, o cheiro de terra úmida, o cantar dos pássaros que retornavam do sul para construir seus ninhos ao longo da estrada suja.

Em um ponto da estrada, Sarah começou a conversar com Deus. O Senhor sabe, Deus, o que mais machuca é que o Senhor me deixou ter as expectativas e então as tirou de mim. Quando eu era uma órfã, nunca esperei ser amada ou cuidada por alguém. Quando tia /esse e tia Augusta me recolheram, eu não esperava ser nada. Mas então fui Irabalhar para a sra. Braddock e um mundo novo se descortinou à minha frente. Achei então que talvez pudesse fazer alguma coisa que valesse a pena. Talvez poderia até dar alguma educação para o Tom. Então veio o David. Bem, Senhor, essa foi uma expectativa que nunca tive. Mas ele quase me fez acreditar que eu poderia ser uma boa esposa, mesmo sendo ele um cidadão de posição de destaque e eu apenas uma governanta. Eu já estava quase me acostumando à idéia de que talvez realmente pudesse ser uma dama. Gostei disso. Se o Senhor não ia deixar acontecer, por que permitiu que eu construísse este sonho para então destruí-lo? Não en­tendo, Deus. Por que o Senhor simplesmente não deixou o Tom e eu sermos empregados dos Braddocks? Já era suficiente, Deus. Teria sido suficiente.

Sarah entrou na fazenda não menos deprimida do que quan­do saiu de Lincoln. LisBeth acenou para ela detrás da cerca de balaústre que Jim tinha erguido no outro lado da estrada, oposto à casa. "Sarah! Que maravilha ver você!" LisBeth apertou uma das mãos nas costas. "Será que você poderia ajudar uma amiga muito indisposta a terminar de semear aqui?"

Sarah desceu da carruagem e aproximou-se de LisBeth, que estava dentro do cercado de balaústre, onde havia três pedras com as palavras Mamãe, Papai e Mac. "Augusta tinha me falado sobre este pequeno terreno, LisBeth, mas eu não sabia que o Jim se em­penhara para deixá-lo tão bonito."

LisBeth encostou-se na cerca. "A primeira coisa que ele fez quando veio para cá foi limpar os túmulos do Papai e da Mamãe Baird. MacKenzie teria gostado de saber que alguém estava cui­dando dos túmulos."

Sarah inclinou-se sobre a pedra encravada Mac. "Lembro-me de Augusta contar sobre o dia em que você veio aqui com Mamãe Braddock e David. Eles visitaram este lugar e o Jim incluiu aquela pedra para o MacKenzie embora o verdadeiro lugar de descanso dele fosse lá no campo de batalha onde ele morreu."

LisBeth balançou a cabeça e disse mansamente: "O Jim que­ria dar-me um lugar para visitar o Mac". LisBeth levantou os olhos. "É claro que nenhum de nós dois sabia naquele época que eu me casaria novamente, menos ainda com o Jim. Mas no dia em que vi esta pedra, percebi que o Jim era um homem especial."

LisBeth suspirou, voltando de suas próprias lembranças. "Sarah, sinto muito pela sra. Braddock e pelo David. Gostaria de pelo menos ter ido ao culto."

Ajoelhada perto da cerca para arrancar algumas ervas dani­nhas, Sarah conseguiu dizer um "muito obrigada". Mudou de as­sunto abruptamente e sugeriu: "Deixe eu acabar, LisBeth. Você está parecendo muito cansada".

LisBeth respondeu honestamente: "Estou cansada, Sarah. Cansada de esperar, mas sei que valerá a pena quando o bebê chegar".

"Fique sentada ali na sombra; não falta muito para acabar e eu vou terminar isso." Sarah abaixou-se para arrancar a grama alta que tinha crescido em volta das três pedras.

"Espero que você possa ficar aqui comigo", disse LisBeth, esperançosa.

"O dia todo. Tia Augusta disse que não precisaria de mim durante o dia. De fato", Sarah disse, puxando os últimos galhinhos com semente e esticando-se, "ela até me encorajou a dormir aqui - se você quiser minha companhia."

LisBeth ficou radiante. "Eu adoraria sua companhia, Sarah. Tivemos tão pouca chance de conversar sobre o que aconteceu com, bem...", ela não conseguiu continuar, "e então quando a sra. Braddock adoeceu, a morte de David, a saída da casa..." LisBeth não percebeu que Sarah tinha se virado repentinamente em dire­ção à casa. "Parece impossível ele ter morrido. E os dois morre­ram." LisBeth seguiu Sarah para fora do cercado de túmulos e em direção à casa. "Fico pensando... quem será que vai comprar aquela casa?", ela refletiu.

Sarah não respondeu, mas se virou em direção à carruagem. "Volto num minuto, LisBeth. Preciso desatrelar a Sadie, já que vou passar a noite aqui".

Sarah soltou Sadie e deixou-a na cocheira. Momento depois encontrou-se com LisBeth, que ainda seguia esfregando as costas enquanto esperava a água ferver para fazer um café.

"Não vou demorar agora, LisBeth", Sarah assegurou-lhe. "Estou quase terminando o acolchoado do seu bebê. Eu o trouxe para trabalhar aqui." Ela deu uma risadinha e continuou: "Talvez eu consiga terminá-lo enquanto estiver aqui, se conversarmos até de madrugada como costumávamos fazer. Quer vê-lo?"

LisBeth sentou-se à mesa da cozinha com um gemido. "Que­ro demais ver o acolchoado, Sarah. Mas vamos conversar no meu quarto? Preciso deitar-me pelo menos por alguns minutos. Mi­nhas costas estão me matando." Sem esperar a resposta de Sarah, I -isBeth atravessou a sala de estar e foi até o quarto.

Sarah foi buscar sua bolsa na carruagem. Quando começou a voltar em direção à casa, ouviu o barulho de um carroção subindo a estrada. Perscrutando na direção da estrada, viu um par de per­nas de cavalo compridas e um homem de cabelo vermelho. Sarah correu para dentro da casa, gritando: "LisBeth, o Jim está chegando!"

Não houve resposta. Sarah sorriu para si mesma. Ela caiu no sono. Mas LisBeth não estava dormindo. Estava curvada na cama, segurando as costas com ambas as mãos. Levantou os olhos para Sarah, com um brilho de medo nos olhos. "Vai ser logo, Sarah. Mas eu acho..." LisBeth fechou os olhos bem apertados e gemeu: "Acho que o bebê está nascendo. Avise o Jim...".

Sarah não esperou LisBeth terminar, pelo contrário correu para encontrar Jim, que acabava de descer do carroção e lhe saudou com um sorriso. Uma olhada no rosto de Sarah fez Jim disparar para dentro de casa. Deu um beijo na face de LisBeth e disse: "Es­tou saindo para chamar o dr. Gilbert, LisBeth. Os cavalos estão cansados. Vou no Buck. De qualquer forma, ele é mais rápido".

LisBeth apertou as costas e novamente gemeu: "Vá rápido, Jim, por favor, rápido".

Sarah seguiu Jim até a porta do fundo e disse: "Jim, é o pri­meiro filho e vai demorar um pouco. Sempre demora, pelo menos é o que o dr. Gilbert falou. Ele sempre ia dar uma olhada na sra. Braddock quando alguma outra mulher estava prestes a dar à luz. Calma, está bem? E não vá quebrar o pescoço no caminho. Nós estaremos bem aqui".

Sarah falou isso com muito mais confiança do que realmente sentia. Mesmo assim, seu tom de voz causou o efeito desejado em Jim Callaway. Um pouco da preocupação desapareceu de sua face enrugada e ele até esboçou um sorriso. "Fico feliz por você estar aqui ajudando a LisBeth, Sarah. Diga a ela que voltarei logo com o dr. Gilbert. Diga que... ", Jim hesitou.

"Que você a ama?", Sarah perguntou sorrindo.

Jim concordou, embaraçado. Sarah entrou na casa. No mo­mento em que os dois se separaram, a calma que um tinha de­monstrado ao outro terminou. Jim saiu em disparada da fazenda, cavalgando Buck, e Sarah correu até a cozinha para colocar água para ferver e arrumar panos limpos.

Antes mesmo que a água estivesse morna, LisBeth entrou cambaleando na cozinha. Seus olhos negros estavam arregalados de terror e ela disse abruptamente: "Não dá tempo, Sarah, não dá tempo para o doutor...". Ela proferiu a última palavra e então uma contração deixou-a pálida e sem respiração, e os nós de seus de­dos ficaram brancos quando ela agarrou no espaldar de uma ca­deira.

Logo que LisBeth relaxou, Sarah ajudou-a a voltar para a cama. Ela mal conseguiu afastar a colcha para que LisBeth se deitasse, lutando com outra contração. LisBeth lutava com as dores do par­to enquanto Sarah corria até a cozinha para pegar uma faca e a chaleira com a água quente. Chateada, notou que havia derrubado um pouco de água no tapete novo de lã de LisBeth enquanto corria pela sala de estar.

LisBeth a chamava, e Sarah correu para o seu lado. "LisBeth", Sarah chamou, colocando a chaleira no chão que ela limpou com um pano. "LisBeth!", Sarah repetiu, virando o rosto de LisBeth para o seu lado e olhando nos olhos aterrorizados. "Escute, escute-me: não precisa ficar com medo de nada, pois eu sei o que fazer.

Ajudei minha mãe quando minha irmã Emma nasceu. Não preci­sa ficar com medo de nada. Está me escutando?"

LisBeth parou de gemer e a esperança brilhou em seus olhos.

"Escute, LisBeth, vamos fazer o seguinte", Sarah deu uma parada e conscientemente encheu sua voz com um tom de confi­ança. "Com a ajuda de Deus nós podemos fazer o parto. Você é jovem e saudável, e parir não é coisa de outro mundo. Simples­mente fique calma e segure na minha mão, LisBeth. Vou ficar bem aqui, não vou sair para lugar algum..." Enquanto falava, Sarah orava: Querido Deus, que isso seja verdade. Faça com que o bebê nasça fácil. Por favor, Deus, ajude-me a saber o que fazer. Ajude-me a lembrar o que mamãe me mandou fazer.

Não havia mais tempo para orar, pois logo que um brilho de confiança encheu os olhos de LisBeth e um sorriso leve apareceu em seus lábios, outra contração chegou, e ela e Sarah foram trans­portadas ao mundo em que o nascimento e o vale das sombras caminham sempre juntos.

LisBeth Callaway iria caçoar de Sarah pelo resto da vida por suas palavras "Parir não é coisa de outro mundo". Ambas desco­briram nas horas seguintes que, na verdade, o processo era bem mais complicado. LisBeth fez força para agüentar, apertando tan­to a mão fina de Sarah que parecia que ia arrebentar. Nos interva­los das contrações, LisBeth gemia e reclamava de sua terrível dor nas costas, que Sarah tentou, em vão, aliviar.

Quando o momento mesmo do bebê nascer chegou, o instin­to tomou conta de LisBeth, que nem precisou de instruções de Sarah quanto ao que fazer. Ela fez força e empurrou e gritou com todo o vigor que lhe restava enquanto Sarah esperava, com as mãos estendidas, para receber o milagre. O milagre chegou chorando forte no seu novo terreno. Sarah cortou o cordão umbilical com as mãos desajeitadas, amarrando-o com um fio e embrulhan­do imediatamente o bebê em uma flanela vermelha encontrada apressadamente.

Os olhos de LisBeth brilhavam com lágrimas enquanto ela to­mava o milagre das mãos de Sarah. Ela abaixou os olhos para a face do bebê, passando o dedo no furinho do queixo e murmurando: "Você é a cara do seu tio, menino...". Com o som de uma voz fami­liar, o bebê parou de chorar e olhou para a mãe. LisBeth exclamou: "Exceto os olhos lindos verde acinzentados. Estes são do papai".

O bebê levantou os bracinhos fracos no ar, encolheu-se e deu outro grito. LisBeth não hesitou. Imitando a voz suave de Sarah, falou baixinho: "Não é coisa do outro mundo, Tiago Windrider Callaway", levando o bebê ao peito.

Quando Jim Callaway e o dr. Gilbert chegaram à fazenda um tempo depois, o dr. Gilbert foi logo explicando: "Sei que está ansi­oso, sr. Callaway, mas a Sarah Biddle é realmente uma enfermeira capacitada e, como já disse, é o primeiro filho de sua esposa e sem dúvida não vai nascer antes da...".

O discurso do dr. Gilbert foi interrompido por um grito forte e suspeito, como o choro de um bebê recém-nascido. Jim pulou da carruagem ainda em movimento e correu para dentro da casa. O dr. Gilbert demorou um pouco puxando o cavalo. Deixando a maleta preta na carruagem, seguiu Jim para dentro, onde foi en­contrado por Sarah Biddle.

"Que bom que o senhor finalmente chegou. Acho que está tudo bem com ela, dr. Gilbert." Deixando a etiqueta de lado, ela descreveu o trabalho de parto de LisBeth, o nascimento e o que tinha feito na ausência do doutor.

O dr. Gilbert ficou impressionado. "Temos uma mãe fraca e uma criança saudável, srta. Biddle. Eu diria que você foi formidá­vel." Dirigindo-se ao quarto, o dr. Gilbert foi agraciado por um dos momentos prometidos que o levaram à escola de medicina: a cena de uma mãe cansada e um pai estático admirando a maravi­lha de seu amor vir ao mundo.

 

Após uma detalhada observação tanto da mãe quanto da cri­ança, o dr. Gilbert reassegurou a Sarah que ela tinha feito um traba­lho admirável. "Srta. Biddle", ele falou quando, mais tarde, deixa­va a fazenda, "não sei quais são seus planos para o futuro, mas você daria uma ótima enfermeira. Lincoln está crescendo tão rapidamente com as novas famílias que eu gostaria de ter alguém confiável que pudesse recomendar para o caso de cuidados neces­sários no parto. Caso você tenha algum interesse, vá até meu con­sultório quando voltar a Lincoln; gostaria de conversar a respeito disso com você." O dr. Gilbert não esperou nenhuma resposta de Sarah antes de sair trotando em sua égua, em direção à cidade.

Sarah Biddle ficou na fazenda dos Callaways por muitos dias cuidando de LisBeth e de T. W. Callaway, cozinhando e limpan­do. Ela só foi perceber o que a ajuda dela à amiga estava provo­cando em sua própria vida quando retornou a Lincoln. Quando chegou à cidade, dirigiu Sadie para o leste e então para o norte ao longo de uma rua familiar e finalmente até um lugar onde havia dois portões enormes num muro alto de pedras. Andando lenta­mente diante dos altos portões, Sarah ponderou a realidade de perder o acesso à mansão do outro lado do muro. Ficou chocada ao perceber que, embora a tristeza se prolongasse, a dor aguda tinha amainado. E no lugar dela havia a consciência de que nas semanas anteriores ela tinha participado de dois eventos tremen­dos: Ajudei Mamãe Braddock a sair deste mundo e então ajudei T. W. Callaway a entrar nele. Sarah olhou os portões e sorriu. Tudo o que aprendi cuidando da Mamãe Braddock, perdendo o David e tra­zendo ao mundo T. W. Callaway pode ser usado. Posso usar tudo isso para construir um futuro para Tom e eu.

Na manhã seguinte Sarah Biddle visitou o dr. Miles Gilbert.

 

Onde não há conselho fracassam os projetos, mas com os muitos conselheiros, há bom êxito.

                       Provérbios 15:22

 

Acho que você deve ir", Everett Higgenbottom falou decididamente a Carrie Brown, na sala de jantar da Casa Hathaway. Carrie tinha acabado de lhe mostrar uma carta de Charity Bond convidando-a para ir à Conferência das Missões Dakotas. Carrie ficou surpresa: "Você quer que eu vá para tão longe?"

"É claro que eu, pessoalmente, não gosto da idéia de você va­guear pela metade do país para ir a uma conferência em uma igre­ja, mas definitivamente é de seu maior interesse ir." Everett batia na mesa o dedo indicador fino enquanto falava: "Escute, Carrie, sou seu amigo, não sou?".

"Everett, você tem sido um dos melhores amigos que eu po­deria ter."

"Você concordou comigo que esta sua idéia sobre o futuro tinha algo que ver com, bem, seu passado."

Carrie apertou os lábios. "O que eu disse, Everett, foi que você estava certo sobre minha impressão de Águia que Voa Alto. Eu estava vivendo um conto de fadas. Agora já aceitei que ele não ficará viajando pelo país dando palestras." Carrie acrescentou com sinceridade: "Isso não muda meus sentimentos por ele. O que acon­teceu é que conhecer o futuro dele, de uma forma mais definida, amadureceu meus sentimentos, fez-me aceitar uma visão mais realista".

Everett interrompeu-a: "Realista, certo. Escute, Carrie, você não tem a mínima noção do que é a vida na fronteira". Carrie respirou profundamente, como que para interromper, mas Everett apressou-se: "Agora, espere um minuto. Sei que você cresceu em Santee. Sei também que a escola era bem organizada antes de sua mãe ir para lá. Não sei muito sobre trabalho missionário, mas é óbvio que morar em uma escola missionária organizada e ir para um território inexplorado são duas coisas diferentes. Como você pode saber se quer fazer isto se não participar de uma conferência no oeste? Pelo menos encontrará algumas pessoas envolvidas no trabalho. Por isso eu digo: vá com Charity Bond, já que ela pediu, e aprenda tudo o que puder".

Everett fez um pausa. "Carrie, há mais uma coisa."

"Vá em frente, Everett, fale tudo o que tem para falar."

"Não sou um grande cristão, mas os missionários não devem receber um tipo de 'chamado' ou coisa do tipo? O que quero dizer é que você está encarando isso como se fosse uma profissão que você pode escolher."

Carrie mexeu-se desconfortavelmente em sua cadeira. "Everett, eu sou cristã. Será que sou tão fraca assim que você acha " que não posso trabalhar no serviço missionário?"

Everett limpou a garganta: "Carrie, você é uma menina fabu­losa". Deu um sorriso: "Por que você pensa que eu a segui até Nebraska e passei os últimos anos tentando fazer você me amar?". Depois de uma pausa, prosseguiu: "Você faz tudo direito, é uma pessoa boa, honesta, tudo o que um cristão deve ser. Só que...". Everett hesitou.

"Só que o quê, Everett?"

"Ouça, Carrie. Fui a uma reunião de reavivamento na sema­na passada na igreja metodista, com a Myrtle Greer. Simplesmen­te não posso descrever. Pelo que você diz, a Charity Bond tem esse dom para trabalhar com crianças. Águia que Voa Alto tam­bém tem, ou ele não iria dar as costas a bons hotéis e palestras para ir morar em cabanas no oeste, na pobreza. Mas você, Carrie, é diferente. Você está se preparando para fazer isso de uma forma técnica. É como se estivesse planejando uma estratégia para in­vestir em uma propriedade. Compra a propriedade, constrói uma casa, casa-se com este homem. Mas e então, Carrie? E se tudo isso acontecer? Então terá de viver como uma missionária. Tenho a impressão que uma pessoa precisa de um chamado para viver como missionária, uma paixão." Everett encostou-se no espaldar da cadeira e continuou: "Desculpe-me, Carrie, mas você não tem esse dom para o serviço missionário, por isso acho que deve ir lá com a Charity e ver como as coisas são". Sua voz estava suave quando ele acrescentou: "Eu gosto de você, Carrie. Não quero que tenha um sonho e depois descubra que não era bem o que que­ria".

Carrie ficou em silêncio por um tempo, refletindo. "Everett, nem tenho mesmo certeza de que isto aconteceria. Já faz muito tempo que esta fantasia de criança começou. Águia que Voa Alto cresceu e mudou muito desde a primeira vez que o vi. Estou co­meçando a crer que ele jamais me verá como alguém mais que a 'pequena Carrie Brown'."

Everett de repente ficou mais sério. "Veja bem, Carrie. Sou apenas um estudante universitário no início da caminhada, mas vou lhe dizer uma coisa. Sou inteligente o suficiente para saber que, quando uma menina como você presta atenção em um ho­mem, ele nota. E, se Águia que Voa Alto tiver uma chance com você e não aproveitar, é porque é um tonto."

Carrie riu e fingiu uma reverência. "Muitíssimo obrigada, senhor Higgenbottom!"

"Pode rir o quanto quiser, Carrie. Sou capaz de apostar que Águia que Voa Alto conhece os seus sentimentos. Em St. Louis você praticamente gritava isso para ele cada vez que o olhava."

"Então por que ele..."

"Carrie, nenhum homem de valor faria promessas a uma menina como você sem ter um plano de como sustentá-la. E Águia que Voa Alto não é exatamente um graduado do seu nível procu­rando um trabalho. Dê um crédito ao cavalheiro, Carrie. Dê-lhe algum tempo. Dê um tempo para você mesma. Vá com a Charity e veja o que acontece. Ou você vai voltar mais determinada do que nunca ou", Everett riu maliciosamente, "vai cair na realidade e descobrir que a vida com alguém como Everett Higgenbottom de repente parece muito atraente."

"Parece que você está desejando muito livrar-se de mim", disse Carrie, fingindo-se ferida.

Everett ficou sério. "Carrie, quero que você seja feliz. Isso é tudo. Acho que nós poderíamos ser felizes, você e eu. Mas não se você ficar comigo tendo desistido de algo que pensa ser melhor. Não quero uma esposa que passe os seus dias desejando estar em outro lugar. Não sou bonito nem charmoso, Carrie, mas também não sou tolo. Serei um bom advogado. Você pode lucrar mais não se casando comigo. Vou esperar. Tenho ainda três anos de Univer­sidade pela frente. Não vou a lugar nenhum. E você voltará no ou­tono". Everett empurrou sua cadeira para trás e sentou-se à vonta­de: "Disse para a Myrtle que vou acompanhá-la esta noite. O Oscar Wilde dará uma palestra na Casa da Ópera hoje. Quer ir também?"

Carrie balançou a cabeça. "Não, obrigada, Everett. É melhor eu escrever para meus avós sobre isto e também ver o que a sra. Hathaway acha."

Lucy e Walter Jennings escreveram a Carrie expressando suas dúvidas quanto a uma viagem para tão longe de Lincoln. Saben­do das dúvidas dos avós, Augusta Hathaway hesitou em encora­jar Carrie. Mas, quando LisBeth e Jim Callaway foram para Lincoln a fim de apresentar T. W. Callaway para toda a audiência disponí­vel, Carrie ganhou apoio para o seu plano.

Jim parou na cocheira de Joseph Freeman para deixar os dois cavalos desatrelados durante o dia. Joseph deixou seu pequeno quarto no fundo da cocheira, andando vagarosamente. Apesar da idade avançada, sua voz soou como a de um jovem quando ele disse: "Finalmente! Deixe-me dar uma olhada no menino! Ai, ai". O homem abriu-se em sorrisos, agarrando T. W. e apertando-o contra si mesmo. "Então, LisBeth, vá lá encontrar a Augusta e diga a ela que vamos ficar com o menino aqui um pouco. Seu papai e eu vamos mostrar-lhe a cocheira. Nunca é cedo demais para co­meçar a conhecer cavalos."

LisBeth riu. "Pode mimá-lo o quanto quiser. Depois o papai vai passar a noite toda acordado com ele!" Dando um beijo na face de Jim, LisBeth dirigiu-se à calçada nova que ligava a cocheira à Casa Hathaway. Entrou pela porta da cozinha, feliz em encon­trar Sarah Biddle com as mangas arregaçadas e os braços finos sovando uma massa enorme.

"Onde está o menino?", quis saber Sarah.

"Na cocheira, tendo sua primeira lição sobre cavalos", res­pondeu LisBeth com uma risadinha e mudando de assunto. "E então, Sarah? Você vai dar ouvidos ao dr. Gilbert, vai para a escola de enfermagem?"

Sarah balançou a cabeça. "Tenho de fazer o Tom estudar pri­meiro, LisBeth. Depois poderei pensar nisto. Por enquanto", con­tou com ar feliz, "estou ajudando o dr. Gilbert nos casos que exi­gem cuidados nas casas. De fato, acabei de voltar do outro lado da cidade, ajudando uma nova mãe de gêmeos!"

"'É bom vê-la sorrindo, Sarah. Encontrou o remédio para sua dor bem antes do que eu encontrei quando o Mac se foi." LisBeth tirou o chapéu e passou a mão no cabelo. "Bem, você vem tomar um chá comigo e com a tia Augusta?"

"Logo que deixar a massa de pão crescendo. Vá primeiro. Diga a tia Augusta que logo estarei lá. Ela está nervosa! Talvez você consiga acalmá-la."

"Nervosa por quê?"

"Deixarei que ela mesma conte. Quero ouvir o que você acha disso."

LisBeth franziu a testa e passou da cozinha para a recepção e então para o apartamento de Augusta. As duas mulheres mal se encontraram quando Augusta falou preocupada: "Escute, LisBeth, a Charity Bond escreveu para a Carrie. As igrejas dakotas estão fazendo sua conferência anual em Yankton dentro de algumas semanas. Charity pediu para Carrie ir com ela. Haverá um Comi­tê de Boston na visita, e, de acordo com Charity, a conferência promete ser excelente, com todos os pastores, missionários, pro­fessores, obreiros nativos - todas as pessoas envolvidas na missão dakota. Se tudo correr conforme o planejado, Charity irá para o território do rio Cheyenne ajudar o início do trabalho por lá. Ela vai com a Marta e o Tiago Asa Vermelha. Quer que a Carrie vá com eles para ajudar. Ficarão lá por algumas semanas".

LisBeth não hesitou: "Parece uma oportunidade maravilho­sa para ela".

Augusta assentiu com a cabeça: "Talvez. No entanto, há um problema. Carrie escreveu para os avós e eles não concordam de jeito nenhum com isto".

"E a senhora está dividida."

"De certa forma, estou." Sarah entrou silenciosamente en­quanto Augusta explicava: "Os Jennings estão contando comigo para dizer que não posso ficar sem ela aqui no hotel. Querem que ela termine os estudos e..."

"Esqueça a idéia de trabalho missionário", LisBeth terminou a frase de Augusta. Passaram-se alguns segundos de silêncio an­tes de LisBeth continuar: "Tia Augusta, a senhora lembra a noite em que Agnes Bond entrou na cozinha exigindo que convencês­semos Charity a não ser supervisora em Santee?"

Augusta balançou a cabeça afirmativamente.

"Bem, tia Augusta, a senhora está na mesma situação agora." LisBeth serviu-se de chá. "Estão pedindo que a senhora convença alguém a não fazer o que deseja fazer. Carrie Brown disse que queria voltar a Nebraska e trabalhar com os índios desde que era criança. Ela tem a mesma idade que a Charity Bond tinha quando decidiu servir ao Senhor em Santee. Tem a mesma idade que eu tinha quando me casei com o Mac e fui para o oeste como esposa de um militar. Acho que está na hora de todos nós pararmos de proteger a 'pequena Carrie Brown' e deixá-la encontrar o seu ca­minho na vida. Ela não irá sozinha, a Charity estará lá também. E apenas uma conferência missionária, tia Augusta. Ela estará no meio em que tem vontade de estar. O Águia que Voa Alto estará lá também. Ele jamais deixaria alguma coisa acontecer a Carrie." Como Augusta continuava em silêncio, LisBeth perguntou: "En­tão este é o problema?".

Augusta despejou o chá em sua xícara e respondeu com cui­dado: "Eu tenho responsabilidade diante dos Jennings, LisBeth. Prometi a eles que seria uma protetora adequada".

"A senhora é uma protetora adequada, tia Augusta. A Carrie desabrochou com sua vida aqui e com a Universidade. Ela ama­dureceu, aprendeu e, sem dúvida alguma, divertiu-se bastante nes­te processo todo. Está na hora de deixá-la bater as asas. Esta é a oportunidade perfeita para ela mesmo ver o que significa fazer parte de uma missão. Deixe-a ir, tia Augusta. Os Jennings preci­sam saber que a 'pequena Carrie' já cresceu e é quase uma mulher adulta, com sua vontade própria desenvolvida."

LisBeth deu uma risadinha. "Se a senhora está preocupada com alguma coisa, que seja com o Águia que Voa Alto. Não sei como ele lidará com a Carrie quando ela estiver no território de seu lar. Foi bem difícil quando estavam em St. Louis."

Augusta ficou chocada. "Relaxe, tia Augusta", LisBeth disse acenando a mão no ar e balançando a cabeça. "Eu não deveria ter falado assim. O que quero dizer é que acho que todos nós deve­mos parar de interferir. O Senhor tem Seu próprio desígnio para a Carrie e Águia que Voa Alto. Mamãe ficaria horrorizada por estarmos até mesmo pensando em tentar manipular as coisas. Acho que precisamos ajudar a Carrie e orar para que Deus lhe dê dire­ção."

LisBeth virou-se abruptamente para Sarah dizendo: "E você, Sarah? O que você pensa?".

Sarah pensou por um longo tempo antes de responder: "Acho, LisBeth, que cada uma de nós sabe que Deus geralmente nos guia por alguns caminhos que jamais imaginamos passar. Mas Ele o faz pelo nosso próprio bem. E concordo com você, LisBeth. A Carrie disse que tem o sonho de trabalhar entre os índios". Sarah levantou os olhos e sua face corou levemente. "Este sonho também in­clui alguém que todos nós conhecemos. Sinto que estas duas pes­soas merecem nossa confiança. Não temos o direito de decidir o que é melhor para elas ou tentar determinar o que acontecerá. Precisamos orar com diligência pela vontade de Deus para a Carrie... e para essa outra pessoa."

Augusta suspirou com alívio e perguntou: "E ajudar a Carrie a arrumar as malas?". Quando Sarah e LisBeth balançaram a ca­beça mostrando acordo, Augusta bateu palmas e disse: "Que seja feito. Justamente o que eu tinha certeza de que vocês diriam. Ago­ra, qual das duas se dispõe a escrever aos Jennings?"

 

Como o abrir-se da represa, assim é o começo da contenda; desiste, pois, antes que haja rixas.

                 Provérbios 17:14

 

A Conferência Anual da Missão Dakota será em Yankton, no território dakota, de 13 a 18 de junho de 1884, Julia Woodward; leu no jornal World Carrier enquanto o trem que levava o Comitê de Boston seguia para o oeste. Seu objetivo é avançar na causa de Cristo, estimulando os obreiros nativos e melhorando sen conhecimento, pieda­de e eficiência. Programa:

 

Sexta-feira, 15 horas

Sermão de abertura pelo rev. João Nuvem de Trovão

Apresentação dos tópicos

Organização da conferência

 

Sábado

10 horas - Tema: Apoio pastoral

15 horas - Tema: Visita pastoral

 

Domingo

9 horas - Um modelo de aula bíblica

 

Segunda-feira

10 horas - Tema: Ensinando o vernáculo

15 horas - Tema: Iapi Oaye

Notícias dos comitês e gerais

19 horas - Sermão de encerramento com o pastor interino Jeremias King

 

A Junta das Mulheres Lakotas também se reunirá durante a confe­rência. Um programa separado estará disponível após o sermão de abertu­ra.

 

O interesse de Julia no restante do jornal decresceu quando seus olhos leram o nome do pregador do sermão de encerramento. Ela olhou para o irmão e para o rev. e a sra. Johnson. Eles estavam envolvidos em suas próprias leituras. Apenas R. J. Painter levantou os olhos quando Julia dobrou o jornal e colocou-o no colo.

"A senhorita se incomoda, srta. Woodward?", perguntou Painter, indicando o jornal.

"De forma alguma, sr. Painter", ela respondeu, entregando- lhe o jornal.

  1. J. Painter abriu o jornal e começou a ler a página de trás, tentando descobrir a razão pela qual um anúncio de uma confe­rência de missões tinha dado ao lindo rosto da srta. Julia Woodward uma nova cor.

"Bem-vindos a Santee, senhoras e senhores." O dr. Alfred e a sra. Mary Riggs deram um passo na área de sua casa em direção à carruagem que trazia a Santee o comitê de visitas de Boston e o jornalista R. J. Painter. "A sra. Riggs preparou um refresco para vocês. Por favor, entrem e sentem-se." Os visitantes andaram pela área, gratos pela sombra e pelos copos de água que Mary Riggs rapidamente levou para fora.

Logo que os visitantes se assentaram na sala de jantar, numa conversa que se prolongou, R. J. Painter começou a fazer pergun­tas a Alfred e Mary. O dr. Riggs explicou: "A sra. Riggs e eu chega­mos aqui em 69. Junto com o Tiago e a Marta Asa Vermelha, cons­truímos uma cabana e uma escola. Deus tem nos abençoado".

O dr. Johnson balançou a cabeça em sinal de aprovação. "O senhor formou uma pequena cidade, dr. Riggs."

"O prédio maior é, claro, o da escola. A Casa Dakota, lá da­quele lado", o dr. Riggs apontou na direção leste, "é a nossa resi­dência para as meninas. O Ninho dos Pássaros, um pouco além, para o leste, é para as meninas mais novas. Vocês podem ver tam­bém um prédio novo, que acabamos de começar a construir, para os meninos mais novos. Acrescentamos duas alas à escola e uma capela e uma oficina de trabalhos manuais. Os prédios menores são a oficina de impressão, a casa do ferreiro e a casa do sapateiro.

Estamos tentando ensinar aos alunos habilidades manuais úteis."

O dr. Johnson balançou a cabeça em acordo enquanto J. R. Painter escrevias suas anotações furiosamente. Ele tinha desenha­do grosseiramente uma planta do lugar e estava tentando nomear os prédios enquanto o dr. Riggs continuava: "Crescemos muito nos últimos anos. Menos de cinco anos atrás tínhamos cerca de oitenta alunos. Agora temos mais de cem. Nos últimos meses al­guns alunos precisaram ser enviados de volta. Simplesmente não temos recursos para todos eles".

"Talvez o Comitê de Boston pudesse ajudar", ofereceu George Woodward. "Quais são as necessidades mais urgentes?"

"Três alunos adiantados foram enviados para estudos mais avançados. Vocês tiveram o prazer de encontrar um dos melho­res, Jeremias King", o dr. Riggs declarou. "Consegui levantar fun­dos monetários para o sustento de Jeremias e dois outros colegas de classe, mas sonhamos em estabelecer um fundo de bolsas de estudo. Jeremias foi para a conferência com o Pastor Nuvem de Trovão. Talvez vocês queiram discutir melhor isto com ele depois. Certamente como aluno ele poderia passar a vocês uma perspec­tiva do que ajudaria mais."

A sra. Riggs sorriu docemente ao marido. "Agora, cavalheiros, com a sua permissão, as senhoras vão se retirar para os seus apo­sentos e preparar-se para o jantar." Só então Charity e Carrie saíram do Ninho dos Pássaros. A sra. Riggs as chamou: "Esta é a srta. Bond e sua assistente. Será um prazer para elas acompanhar vocês até o Ninho dos Pássaros, onde poderão desfazer suas malas".

Depois de terem arrumado as coisas no quarto, Julia e a sra. Johnson encontraram Charity e Carrie na sala do Ninho dos Pás­saros. Julia pediu: "Por favor, conte-nos sobre vocês. Como se en­volveram neste trabalho?".

Charity, cujas mãos nunca ficavam desocupadas, pegou um vestido do cesto de consertos ao lado de sua cadeira e começou a pregar um botão enquanto respondia, relatando sua conversão e o desejo crescente por uma vida de serviço. "Cada artigo do World Carrier partia meu coração. Eles imploravam ajuda e Deus usou isto para me chamar. Vim com medo e tremor, mas descobri a vida mais recompensadora que uma mulher pode imaginar."

Julia Woodward olhou para Carrie. "E você, senhora...?" "Brown. Carrie Brown." Carrie retirou uma blusa do cesto e começou a pregar um remendo na parte de trás enquanto falava: "Cresci em Santee. Minha mãe era supervisora. Vivemos aqui no Ninho dos Pássaros. Então minha mãe ficou doente e fui obrigada a ir embora".

Julia abaixou o copo de limonada e inclinou-se para a frente. "Srta. Brown, sinto como se já a conhecesse. Jeremias King me falou de você, é claro que era você, em Boston, uma noite. Estáva­mos jantando. Ele com certeza gostava muito da 'pequena Carrie Brown'. Que bom encontrar a criança de quem ele falou."

Charity adiantou-se: "A srta. Brown vai nos acompanhar até a conferência, srta. Woodward. Então, se o Senhor desejar, nós duas acompanharemos o Tiago, a Marta Asa Vermelha, o sr. King e outro missionário até as aldeias do rio Cheyenne para começar um trabalho lá. A Carrie e eu esperamos montar uma escola diur­na para as crianças. E talvez uma Sociedade Feminina de Costura e uma escola noturna para adultos, conforme a direção do Senhor".

A sra. Johnson perguntou: "Diga-me, srta. Bond, como fun­ciona a Sociedade Feminina de Costura por aqui?".

"Nosso encontro semanal envolve reunião de oração e então duas horas de trabalhos manuais. Fazemos vestidos, chapéus, aventais. Os amigos de muitos lugares nos mandam remendos já prontos só para completarmos. As mulheres são muito ousadas. Vendem seu trabalho para o nosso próprio povo ou para outros que aparecem por aqui. No ano passado conseguimos ajudar nas finanças do World Carrier. Este ano o projeto será enviar Jeremias King para o campo do rio Cheyenne."

Após alguns minutos, a sra. Johnson levantou-se e disse: "Bem, srta. Bond, srta. Brown, vocês nos ajudaram bastante. Para­béns às duas pela dedicação. Agora precisam-nos desculpar mas vamos jantar com o dr. e a sra. Riggs e precisamos ir até lá para ver se podemos ajudar a sra. Riggs".

"Vou em um minuto, sra. Johnson", comunicou Julia Woodward. "Gostaria de um tempinho só para andar um pouco por aqui. A srta. Brown faria a gentileza de me acompanhar?"

 

"Então, srta. Brown, esta será a sua primeira conferência também?" "Depois que retornei, sim. Minha mãe e eu sempre participá­vamos das conferências." Carrie falava com entusiasmo: "Você gostará da conferência, srta. Woodward. Sei que é uma longa via­gem de Boston, e não temos o conforto com o qual vocês estão acostumados, mas os índios virão de quilômetros de distância, na região. Haverá jovens comprometendo-se com a igreja, cânticos, sermões... Talvez haja até casamento. E um tempo maravilhoso. Sei que a Charity tem sempre falado que, justo quando estava mais desanimada no ano passado, ela participou da conferência. Bem, você precisa vê-la descrevendo. Mas sei que a ajudou muito".

"O trabalho mais ao oeste é muito difícil, srta. Brown?"

"Será minha primeira experiência em um trabalho novo, srta. Woodward."

"Você deve estar muito empolgada."

"Certa vez prometi a uma pessoa que eu voltaria a Santee. Esperei a vida inteira por isto. Ainda não terminei a Universida­de, mas quando Charity convidou-me para acompanhá-la, achei que seria uma oportunidade maravilhosa de checar se realmente sou talhada para a vida missionária. Na verdade, nunca pensei em fazer nada diferente..."

Julia entrou na varanda do Ninho dos Pássaros e inclinou-se sobre o limpador de sapatos. "Se isto é um quadro desse tipo de vida, srta. Brown, fico admirada com a dedicação de uma jovem como você, desistindo de tudo mais para adotá-la. Não posso me imaginar vivendo em um lugar tão lamacento."

Carrie ficou animada: "Ah, mas não é lamacento, srta. Woodward. Não quando você conhece o lugar. Isso aqui é lindo! Não da mesma forma que Boston e St. Louis são lindas. Na prima­vera, quando a campina renasce, fica tudo colorido. As meninas chegam com os braços cheios de flores do campo. E o céu, então! Às vezes é como se pudéssemos alcançar o céu sobre a próxima colina. Quando saímos para andar e o mundo parece abrir-se à nossa fren­te, somos forçados a perceber nosso espaço no Universo".

Julia riu. "Bem, você com certeza é ótima em propaganda, srta. Brown. Quase me faz desejar ficar morando aqui! Jeremias costumava falar sobre a terra aqui do mesmo jeito. Ele faz a pes­soa querer vir até aqui e ver o lugar."

O coração de Carrie parou quando Julia Woodward pronun­ciou o nome "Jeremias". Será que ela tinha dito de propósito ou seria comum falar de Águia que Voa Alto de forma tão natural? O que exatamente ele tinha contado a Julia Woodward sobre a "pequena Carrie Brown"?

"É verdade, ele tem um jeito de fazer isto, de fazer a pessoa respeitar sua terra natal e desejar conhecê-la pessoalmente."

Julia deu um sorriso brilhante. "Acho que nós duas teremos a oportunidade de fazer isto dentro de poucos dias, não é, srta. Brown? E olhe só, o Jeremias estará lá para nos fazer lembrar a beleza e a história por trás de tudo o que virmos."

 

Sacrifícios agradáveis ao Senhor são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito não o desprezarás, ó Deus.

                 Salmo 51:17

 

Cerca de cem pessoas juntaram-se na pequena igreja feita de troncos, em Yankton, Dakota do Sul, para o culto de abertu­ra da Conferência Missionária Dakota de 1884. Três pessoas ti­nham consciência de suas tendências emocionais secretas. Uma sentia-se miserável. Carrie Brown viu Julia Woodward chegar vestida em uma estonteante roupa de seda xadrez com a sombri­nha combinando. Viu Julia caminhar pelo corredor central da igreja até a fileira de bancos designada ao Comitê Visitante, de Boston. Seu irmão George a conduzia pelo braço.

Carrie viu o Comitê sendo apresentado aos missionários e pastores. A reação de um pastor interino foi o que preocupou Carrie. Quando Águia que Voa Alto viu Julia Woodward, curvou- se e pegou em sua mão de forma solene. Mas Carrie viu a luz em seus olhos e notou a leve curva de sua boca ao sorrir.

Ela se afundou no banco em uma das fileiras do fundo, perto de Charity Bond, olhando Julia ao lado do irmão tomar parte nas con­versas dos pastores e do comitê. De repente Carrie percebeu que Julia estaria em todos os cultos, todos os jantares e todos os eventos em que Carrie poderia ver e conversar com Águia que Voa Alto.

Carrie viu Julia balançar a cabeça diante de algo dito pelo dr. Riggs. Quando ela se mexia, as penas de seu chapéu tão em moda balançavam para cima e para baixo. Julia inclinou-se para dizer algo ao irmão e então sorriu alegre para Águia que Voa Alto. Abai­xando os olhos para seu próprio vestido simples de morim azul, Carrie percebeu o pó que havia se juntado na barra e a sujeira sob suas unhas. Ela empurrou os cachos vermelhos que escapavam de seu penteado bem-feito e caíam em sua testa.

Abrindo seu hinário dakota, Carrie fingia ler. Sua cabeça es­tava abaixada, mas os olhos dirigiam-se para cima, procurando o rosto de Águia que Voa Alto e sua reação à srta. Julia Woodward. O Comitê estava se assentando. Julia Woodward entrou rapida­mente em uma fileira à esquerda, com o irmão ao lado. Águia que Voa Alto saiu da ponta do banco e passou para o lado dela. Ao sentar-se, Julia lançou um olhar para Águia que Voa Alto. Ele tam­bém olhou para ela com um sorriso que fez Carrie fechar os olhos e conter as lágrimas. Ela nunca tinha visto este sorriso.

O culto começou com um hino. Julia Woodward comparti­lhou seu hinário com Águia que Voa Alto. Este se levantou para apresentar o Comitê Visitante de Boston, aproveitando para agra­decer ao rev. e à sra. Johnson, ao sr. George Woodward e ã sua irmã Julia pela hospitalidade bondosa enquanto ele estudou em Boston. O Pastor Nuvem de Trovão apresentou o programa da conferência, lendo os tópicos de discussão, entre os quais havia um intitulado "A aliança de casamento". Anunciou também que os irmãos Woodwards, de Boston, tinham oferecido Novos Testa­mentos para todos os alunos da missão que se comprometessem com a primeira parte do Sermão do Monte. Apresentou Jeremias Águia que Voa Alto King como pastor interino que, juntamente com David Nuvem Cinza, começaria um novo trabalho no rio Cheyenne.

"A srta. Charity Bond e a srta. Carrie Brown...", Charity cutu­cou Carrie e puxou-a pelo braço. O Pastor Nuvem de Trovão apresentou-as como assistentes para os Asas Vermelhas que ajudari­am a organizar uma escola no novo território. "A srta. Bond é bem conhecida por seu trabalho como supervisora em Santee. A srta. Brown veio nos auxiliar por um breve período antes de retornar a Lincoln, Nebraska, onde completará seus estudos para o magisté­rio."

Enquanto o Pastor Nuvem de Trovão falava, Carrie deu uma olhada em Águia que Voa Alto. Ele estava cochichando alguma coisa para Julia. Quando finalmente viu Carrie, balançou a cabeça em sinal de afirmação e disso algo mais para Julia. As saudações fizeram Carrie sentir-se ainda pior. O sermão do Pastor Nuvem de Trovão intitulava-se "Achamada para alcançar a nação Sioux". A mensagem balançou o coração daqueles que a ouviram, mas o coração de Carrie estava insensível à mensagem, enquanto ela, em seu banco, lutava contra as lágrimas, crente de que seu cora­ção estava se quebrando.

Centenas de índios, a cavalo, da distância de até quatrocen­tos quilômetros, foram chegando à conferência à medida que a semana ia passando. Orações e cânticos, sermões na língua nati­va, encontros de mulheres, discussões e comunhão ocuparam cada participante. Aquilo que podia ser um tempo de reavivamento para cada participante fazia Carrie sentir-se mais solitária, mais alienada e mais deprimida. Depois do primeiro dia, quando Águia que Voa Alto disse um rápido olá, ela o evitou, sabendo que ele estava quase sempre na companhia do Comitê Visitante de Boston.

Charity atribuiu o silêncio incomum de Carrie ao excesso de gente nova e ao seu esforço de lembrar a língua dakota. "Faz anos que você falou dakota. Tenha paciência que a fluência vai voltar. Oras, nestes poucos dias já percebi seu progresso."

Carrie balançava os ombros e suspirava: "Jesus wastemada weksuya ye (Jesus me ama - isso é bom). É a única coisa que lembro com certeza, Charity. Minha mãe e eu cantávamos esta música toda manhã. Mas todas as outras frases e a gramática estão enter­radas bem no fundo da minha mente fraca. Não sei se algum dia vou conseguir lembrá-las".

Elas estavam sentadas em suas barracas depois de um culto noturno. Charity descansava sobre seu catre, penteando o cabelo. Começou a cantar bem baixinho: "Jesus wastemada hee waste, Jesus waste, Piwecida ye" (Jesus me ama - isso é bom, Jesus é bom - eu agrade­ço a Ele). De repente parou. "Você acredita nestas palavras, Carrie?"

Carrie estava desamarrando o sapato quando Charity fez a pergunta. Ela tirou um sapato e começou a massagear o pé. "Se eu acredito em quê, Charity?"

"Que Jesus a ama, que Ele é bom."

"Que pergunta, Charity! Não foi isso o que aprendi desde que era um bebê? É claro que sei que Jesus me ama. É claro que creio nisso. Por que você está fazendo essa pergunta?"

Charity fez uma oração rapidíssima aos céus antes de responder. Então falou devagar: "Sabe, Carrie, esta conferência geralmente é um encorajamento para nós, que trabalhamos nos diversos pontos da missão, principalmente por vermos o crescimento dos pastores nativos. Lembro-me, por exemplo, de quando o pas­tor Falcão Amarelo fez seu primeiro sermão". Charity riu: "Foi o sermão que mais fez alguém sofrer. Mesmo agora sua fala não flui tão bem como a de alguns outros. Mas fica claro que ele tem o dom de alcançar o significado das passagens bíblicas. O pastor Riggs explica que ele é um ótimo estudante da Bíblia. O que eu acho mais encorajador, no entanto, é algo que sua esposa Priscila falou outra noite na reunião de oração das mulheres. Disse que a vida do marido é de acordo com o que ele prega. Ele não prega nada que não pratique. Não é uma coisa linda para uma esposa poder falar do marido? É uma bênção imensa ver como Deus está trabalhando na vida das pessoas".

"Pense nisto, Carrie. Quase trezentas destas pessoas que eram selvagens se assentam conosco à mesa do nosso Senhor, e Ele é o Senhor delas também." A voz de Charity estava carregada de emoção. "Na noite passada sentada lá na capela, enquanto obser­vava ao meu redor e escutava o pastor Falcão Amarelo, não ape­nas orei 'Venha o Teu reino', mas acrescentei do fundo do meu coração 'Aleluia, ele está vindo. Já começou!' E pensar, Carrie, que de alguma forma estou envolvida em levar o reino a essas pesso­as." Charity parou abruptamente, por demais tomada de emoção para continuar. Após um momento, ela se sentou perto de Carrie e pegou na mão dela.

"Mas e você, Carrie? Você tem estado tão calada a semana inteira. Parece deprimida. Acho que deve haver uma razão espiri­tual." Com um suspiro profundo, Charity continuou: "Carrie, sei que você cresceu aprendendo a crer em tudo o que tem ouvido nesta semana. Mas às vezes fico pensando: Será que você crê por­que faz parte de sua alma? Ou crê porque cresceu aprendendo a crer? Você pode mesmo cantar aquela música sabendo que Ele a ama? Ele é real para você? Você ora a Ele, certa de que Ele respon­derá? Você está buscando a vontade d'Ele para sua vida?".

Lágrimas escorreram pelo rosto de Carrie até as mãos de Charity. Colocando os braços ao redor de Carrie, Charity pergun­tou delicadamente: "O que está acontecendo, Carrie? Você não vai me falar? Sei que há algo errado".

Carrie soluçou, falando de seu desapontamento e de sua dor. "Pensei que estivesse fazendo a coisa certa, Charity. Ver como é a vida missionária, como seria o futuro se..." Carrie livrou-se dos braços de Charity e enxugou as lágrimas. "Ah, de qualquer forma não faz mal e, já que não vai ser deste jeito, é melhor eu superar logo." Ela inclinou a cabeça sobre o ombro de Charity, murmu­rando: "Everett tinha razão. Mais uma vez". Ela sorriu, mas sem esconder a amargura: "Detesto quando ele tem razão. Mas pelo menos ele não se satisfaz com o meu mal. Quando eu voltar, ele falará as coisas certas para que eu me sinta melhor".

"Carrie, você não respondeu à minha pergunta ainda, sobre Cristo, seu relacionamento com Ele", Charity insistiu com bonda­de.

Carrie sentou-se e respondeu sem hesitação: "Se você quer saber se sou cristã, a resposta é sim, Charity. Creio de verdade. Mas admito que não tenho passado muito tempo pensando no que Deus quer que eu faça com a minha vida". Carrie fez uma pausa. "Engraçado, não? Fui criada por uma missionária, meus avós são ativos no evangelismo e passei a vida inteira achando que seria missionária também. Acho que tenho de encarar o fato de que isto não vai acontecer."

Carrie olhou para Charity, com seus olhos azuis brilhando. "Águia que Voa Alto foi uma presença muito forte, muito forte mesmo em minha vida, Charity Era meu único herói quando cri­ança. Que menina não ficaria admirada com um índio Sioux que se preocupa em ser seu amigo? É algo bastante romântico, não?" Ela pensou um instante antes de continuar: "Eu sempre tive certe­za de que ele estaria me esperando quando eu estivesse pronta. Enquanto crescia, acreditei que o amava. Não poderia imaginar ninguém o amando tanto quanto eu...". Lágrimas escorreram, mas Carrie ficou firme e prosseguiu: "Mas não orei consultando a vontade de Deus, jamais considerei a possibilidade de a vontade de Deus ser diferente da minha". Carrie abaixou a cabeça e sussur­rou: "Fui uma tola, Charity. O tempo todo eu ficava sentida quan­do as pessoas me chamavam de 'pequena Carrie Brown', mas foi assim mesmo que eu me comportei. Como uma criança que sem­pre faz o que quer. Águia que Voa Alto nunca fez nada que indi­casse gostar de mim de outra forma a não ser como amigo". Carrie olhou para Charity com seriedade: "Finalmente falei. Sempre sou­be, mas nunca me admiti". Ela começou a chorar novamente. "Isto dói, Charity, dói, dói muito mesmo."

Charity pegou sua Bíblia e perguntou: "Carrie, posso com­partilhar alguns versículos que tem falado muito ao meu cora­ção?". Quando Carrie assentiu balançando a cabeça, Charity abriu no livro de Jó e leu:

 

Bem-aventurado é o homem a quem Deus disciplina; não desprezes, pois, a disciplina do Todo-poderoso. Porque ele faz a ferida e ele mesmo a ata; ele fere, e as suas mãos curam.

                 Jó 5:17-18

 

"Carrie, não sei nada sobre a srta. Julia Woodward e Águia que Voa Alto, exceto que ela é linda e parece mesmo gostar de Águia. Mas sei que Deus está usando a presença de Julia aqui na conferência para falar com você. Talvez você tenha de, à for­ça, contemplar algo além dos seus planos a fim de que possa ver os planos de Deus para você." Charity deu uns tapinhas na mão de Carrie. "Já estive na mesma situação, Carrie. Isso dói mesmo."

Quando Carrie levantou os olhos cheios de surpresa para Charity, esta sorriu. "Você acha que vim para Santee por que não tinha nenhum outro lugar para ir?" Charity desviou o olhar por um momento. "Bem, querida, não foi assim que aconteceu, mas Deus tinha me chamado para Santee, Carrie. Eu não poderia ir para nenhum outro lugar a não ser para onde Deus tinha me enviado. Eu teria ficado muito mal. Carrie, se você pertence a Deus, também ficará muito mal se for para qualquer outro lugar que não aquele que Ele reservou para você. Você não pode cons­truir seu próprio sonho, Carrie. Deus simplesmente não permite isso para seus filhos. Ele sabe o que é melhor para nós, e, mesmo quando arranca algo que amamos de nossas mãos, é para o nos­so bem."

Charity virou as páginas da Bíblia e leu alto outra passagem:

 

Confia no Senhor efaze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do Senhor e ele satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia.

               Salmo 37:3-6

 

"Carrie, aprendi que estes versículos não dizem que, se fizer­mos alguma coisa certa, Deus nos dará o que queremos. Mas, se nos concentrarmos em confiar no Senhor e fazer o bem, então Ele molda­rá nossos desejos para que sejam o Seu desejo, que Ele nos concede graciosamente. Fará sobressair a tua justiça como a luz... é o resultado desejado por Deus. Esse é o resultado que devemos desejar."

Confia no Senhor,faze o bem, habita na terra, alimenta-te da verdade. Agrada-te do Senhor. Confia nEle. Enquanto Carrie ponderava essas palavras, seu coração foi quebrado. Senhor, nunca realmente confiei no Senhor. Achei que tinha de fazer estas coisas acontecer por mim mesma. Sempre quis fazer o tipo de bem que me levaria para perto de Águia que Voa Alto. Na verdade, nunca me alimentei da verdade ou me agradei do Senhor, nem jamais entreguei meu caminho ao Senhor. Tive meus próprios caminhos e planos. Senhor, não sei se posso confiar no Senhor. Quase nun­ca fiz isso. Ajude-me, Senhor, a desistir deles. De todos os planos. Ajude- me a habitar o lugar que o Senhor quer. Mostre-me que posso confiar no Senhor. Ajude-me a alegrar-me no Senhor e não em Águia que Voa Alto. Não sei se sou capaz disso, Senhor, mas quero tentar.

Naquela noite Carrie Brown dormiu um sono de alguém emocionalmente exausto. Quando o sol nasceu e ela se vestiu para o último dia da Conferência Missionária Dakota, percebeu admi­rada que sua depressão tinha passado. Fez o melhor que pôde para concentrar-se em praticar o bem durante o dia, ajudando nos preparativos da refeição e organizando um jogo para as crianças. Forçou-se a não olhar para Águia que Voa Alto nem inspecionar o guarda-roupa de Julia.

No culto de encerramento, quando Jeremias Águia que Voa Alto King se levantou e saiu do lado de Julia Woodward para dar uma palavra, Charity pegou na mão de Carrie. Águia que Voa Alto havia escolhido um texto de I Samuel para ler, que dizia:

 

Não vos desvieis; pois seguiríeis cousas vãs, que nada aprovei­tam, e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são... Tão-so­mente, pois, temei ao Senhor, e servi-o fielmente de todo o vosso coração; pois vede quão grandes cousas vos fez.

             I Samuel 12:21,24

 

Quando ele concluiu a mensagem e voltou para sentar-se ao lado de Julia, Carrie percebeu, com muita emoção, que Deus tinha feito algo interessante em sua vida. Ele havia aberto seu coração e arrancado Águia que Voa Alto de dentro. Mas também tinha pre­enchido o espaço com Ele mesmo e com muita alegria - alegria que a inundou e fluiu, irrompendo em lágrimas enquanto ela can­tava o último hino com a congregação.

 

Jesus wastemada - hee waste (Jesus me ama - isso é bom)

Jesus waste - piwecida ye. (Jesus é bom - eu agradeço a Ele)

Miye awektonja nuni waun (Eu O esqueço - vagueando)

Iye tehiya amakita ce (Ele com dificuldade me procura)

Heca nakaes owakida kta (Então eu mesmo O procurarei)

Jesus wastemade weksuya ya. (Jesus me ama, eu me lembro)

 

Confia os teus cuidados ao Senhor, e ele te susterá: jamais permitirá que o justo seja abalado.

Salmo 55:22

 

Uma brisa prematura de verão soprou no vale do rio Cheyenne, fazendo a relva da campina balançar numa dança rítmica. Sentada perto de David Nuvem Cinza em um carroção lotado, Carrie Brown empurrou seu chapéu para descobrir o rosto. Levantou o queixo, fechou os olhos e inspirou profundamente. Aper­tou a beirada do carroção, tentando balançar-se ao ritmo do trote dos cavalos. Mais à frente, Marta Asa Vermelha e Charity Bond caminhavam ao lado do carroção dos Asas Vermelhas. Águia que Voa Alto cavalgava bem à frente dos dois carroções, montado em um cavalo malhado.

"Acho que nosso amigo Águia que Voa Alto faria estes carroções voar se pudesse", David caçoou.

"Quantos dias ainda faltam para chegarmos às cabanas dos comerciantes?", Carrie quis saber.

"Pelo que o Pastor Nuvem de Trovão falou, acho que chega­remos lá amanhã à noite."

Bem na frente Águia que Voa Alto virou seu cavalo e voltou em direção aos dois carroções. Carrie conteve o impulso de chamá-lo, mas ele dirigiu seu cavalo para o lado do carroção dela. "Nós chama­mos aquele rio ali de 'rio Bom', Pássaro Vermelho. Ao sul está o Shicha Wakpa, o 'rio Ruim', que transborda com água fresca na primavera mas fica quase sempre seco no verão. Agora estas planícies estão ver­des", ele mostrou, apontando com o dedo para o sul, "mas ficam secas e marrons. Então, mais tarde, os fogos vêm iluminar o céu à noite. A campina torna-se preta, mas das cinzas floresce vida nova."

Águia que Voa Alto fez uma pausa e David zombou: "Você está treinando a introdução de seu primeiro sermão entre os lakotas?". David cutucou os cavalos e, quando eles deram uma investida, ele gargalhou. "'Vida nova das cinzas.' Gostei, amigo, e acho que nossos amigos lakotas vão escutar."

Águia que Voa Alto deu um rápido sorriso. "Oro para que você esteja certo, David." Ele continuou silencioso ao lado do carroção por um momento e o tempo todo Carrie orava: Senhor Deus, quanto mais perto do rio Cheyenne, mais ele sorri e mais jovem parece. Ó Senhor, ele é lindo, mas não é meu. Ajude-me, Senhor, a me concentrar em servir ao Senhor. Carrie puxou seu chapéu de volta e virou a cabeça de forma que a aba escondesse Águia que Voa Alto de sua vista. Talvez eu não devesse ter vindo, afinal de contas.

Os viajantes pararam ao meio-dia. Tiago Asa Vermelha afir­mou: "Pelo que o Pastor Nuvem de Trovão disse, creio que chega­remos às cabanas dos comerciantes amanhã à noite".

"Foi o que eu disse à srta. Brown", falou David. O grupo rapi­damente consumiu sua escassa refeição e deixou que os animais descansassem menos de uma hora antes de reiniciar a viagem. Os Asas Vermelhas foram à frente com seu carroção, seguidos por Águia que Voa Alto e Charity Bond. David Nuvem Cinza seguiu no cava­lo malhado, ficando ao lado do carroção e conversando com Charity.

Carrie andou ao lado do carroção dos Asas Vermelhas quase a tarde inteira. Chegando a noite, Águia que Voa Alto perguntou-lhe: "Pássaro Vermelho, você quer cavalgar comigo até o topo da colina mais próxima? Podemos procurar um lugar para acampar­mos à noite".

No mesmo momento em que Águia que Voa Alto falou, David pulou do cavalo e passou a rédea para Carrie, pulando para o lado de Charity sem que Águia que Voa Alto tivesse chance de se mexer. Antes que Carrie dissesse alguma coisa, Águia que Voa Alto já tinha levantado do lombo do cavalo e pulado para trás dela. Com Carrie agarrada na crina do cavalo os dois cavalgaram até a colina mais próxima.

Águia que Voa Alto disse: "O homem branco fica imaginan­do como podemos viver nestas colinas altas, com tanto vento, Pássaro Vermelho". Enquanto falava, Carrie fechou os olhos. Paz, é isso. Ouço uma paz nova em sua voz. E alegria, que alegria.

Carrie abriu os olhos e viu a campina vasta.

"Pássaro Vermelho?" A voz de Águia que Voa Alto trouxe-a para o presente.

Carrie inclinou-se para a frente, tentando não sentir a proxi­midade. Limpou sua garganta: "Eu estava justamente pensando, Águia que Voa Alto, não importa o que eu escrever para casa, em St. Louis, vovô e a vovó jamais conhecerão o sentimento que toma conta de nós neste lugar. A não ser que alguém fique nesta colina e olhe ao redor, para os quilômetros e mais quilômetros de campo que se estendem até onde a vista alcança". Eles tinham chegado ao topo de uma colina e Águia que Voa Alto pulou e ficou parado ao lado do cavalo. Carrie disse mansamente: "É rude e selvagem, vasto e infinitamente sem fim, mas tão lindo!".

Observando os olhos azuis de Carrie correr os quilômetros no horizonte, Águia que Voa Alto percebeu que ela realmente sen­tia o que havia dito. Ele colocou uma mão na sela e disse triste­mente: "Este era o meu lar, Pássaro Vermelho. O que você está vendo aqui e além da próxima colina e mais além ainda. E um lugar rude, onde o homem precisa encher-se de vida para não perecer". Com a voz tensa de emoção, Águia que Voa Alto ergueu os olhos para ela e disse: "E nunca me senti mais cheio de vida do que neste momento".

 

Conforme as expectativas de Tiago Asa Vermelha e David Nuvem Cinza, os dois carroções chegaram balançando em uma cabana bem estragada de dois cômodos na noite seguinte. A caba- na do comerciante tinha sido erguida em uma pequena colina de onde se avistava o encontro do riacho Cherry e do rio Cheyenne.

Depois de uma rápida olhada dentro da cabana, Tiago resol­veu armar uma barraca para as mulheres e disse: "Esta noite os homens dormirão ao lado da fogueira e amanhã começaremos a trabalhar na reforma das cabanas". Virando-se para a esposa, sor­riu: "E uma cabana boa, Marta, com dois quartos e", virando-se para Charity e Carrie, acrescentou, "um sótão para as meninas".

Demoraram poucos dias na reforma e limpeza da cabana e logo os homens começaram a selecionar madeira para construir outra cabana no lado norte da cabana dos comerciantes, às mar­gens do riacho Cherry. Quando a primeira árvore foi derrubada, os missionários se juntaram no lugar onde seria construída a nova escola e oraram pedindo as bênçãos de Deus para a Estação Esperança, nome que fora sugerido pelo dr. Riggs. Seis vozes junta­ram-se para entoar a música:

 

Jesus Cristo nitowashte kin (Jesus Cristo, dá a mim)

Woptecashni mayaqu... (Sua bondade amorosa sem fim)

 

Águia que Voa Alto caminhou ao encontro de um cavaleiro que apareceu ao longe. O jovem guerreiro fez o sinal de paz antes de comentar: "Faz muito tempo que não há nenhum homem bran­co aqui".

Águia que Voa Alto assentiu com um balanço de cabeça e disse: "Somos professores da religião de Jesus. João Nuvem de Trovão esteve com o seu povo no mês em que Os Veados Trocam Seus Chifres. Ele nos disse que vocês queriam alguém para ficar com vocês. Então viemos".

"Sou o Trovão em Movimento", apresentou-se o jovem, "e conheço esse João Nuvem de Trovão. O povo ficará feliz por vocês terem vindo." Virou-se e afastou-se num galope, mas no dia se­guinte voltou com muitos outros índios. Ficaram sentados em seus cavalos observando David, Tiago e Águia que Voa Alto cortar madeiras e trabalhar na construção da cabana.

"Aqui vamos construir uma escola", explicou Tiago, "e um lugar onde vocês poderão aprender sobre Jesus."

Trovão em Movimento perguntou alto: "Aquela de cabelo da cor do sol poente vai ensinar? Se ela vai ensinar, então virei apren­der".

No dia em que a construção da escola terminou, Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza foram a cavalo pelas margens do rio Cheyenne visitar as aldeias. Carrie suspirou aliviada. Agora posso me concentrar no meu serviço aqui. Embora não ficasse olhando para Águia que Voa Alto, ela ficava pensando nele. Mas resolveu convergir os pensamentos em orações pelo trabalho de Águia que Voa Alto nas aldeias. A admoestação de Paulo para "orar sem cessar" adquiriu novo significado para ela.

David e Águia que Voa Alto viajaram por vários dias procu­rando as pessoas que tinham recebido bem o encorajamento de João Nuvem de Trovão para ir à escola. Sempre que a recepção era favorável, Águia que Voa Alto transmitia a mesma mensagem: "Jesus é o Servo - o Filho de Deus. Veio ao mundo e morreu para que o homem possa mais uma vez pertencer a Deus. Ele ressusci­tou e, embora os homens destruam a si mesmos diante de Deus pelas coisas más que praticam, aquele que conhecer o significado do nome de Jesus e se preocupar com sua própria alma, encontra­rá misericórdia e ficará perto de Deus. Jesus, o Servo, salva os ho­mens, e Ele salvará você".

Os dois jovens missionários gastavam incontáveis horas ao redor das fogueiras. Falavam sobre o tempo que passaram entre os brancos. Contavam as histórias de sua própria conversão a Cris­to. E balançavam a cabeça inconformados diante do descaso de seu próprio povo, mas continuavam firmes no evangelho, insis­tindo que a religião que tinham aprendido com os brancos era verdadeira e o único caminho para a liberdade.

Tiago Asa Vermelha ficou com as mulheres preparando-se para a inauguração da escola e ensinando lakota para Carrie e Charity. Os lakotas começaram a descer o rio para olhar a cabana e a escola, saudar os recém-chegados e fazer perguntas. Quando finalmente a escola foi aberta para seu primeiro trabalho, os mis­sionários receberam uns doze alunos.

Carrie e Charity separaram as meninas e começaram a ensi­nar costura. Enquanto as meninas, com muita vontade, recebiam lições de como cuidar das roupas que tinham ganhado, riam de­mais das tentativas de Carrie e Charity falarem lakota. Mas após algumas semanas foi possível travar alguma conversa. Então as mulheres passaram a ensinar música. Tinham preparado já com antecedência traduções de hinos. As meninas acharam a cadência dos hinos atraente e, mesmo não entendendo o impacto das le­tras, em pouco tempo suas vozes se ergueram em um só canto:

 

Jehowa Mayooha, nimayakiye (Jeová, meu Mestre, Tu me salvaste)

Notowashita iwadowan (Canto a Tua bondade)

 

Um dia após Carrie ter assumido as aulas de inglês de Tiago, Trovão em Movimento apareceu e deslizou sobre um banco no fun­do da sala. Tinha pintado seu rosto e costurado contas em todas as laterais de suas perneiras. Pedaços compridos de capim caíam por sobre seus ombros e pelo corpo. Ele ficou prestando atenção en­quanto Carrie se esforçava para disfarçar sua admiração ao vê-lo tentar enxugar o suor do rosto sem estragar a pintura. Quando ela se apresentou, Trovão em Movimento falou: "Meu amigo Águia que Voa Alto disse que você se chamava Pássaro Vermelho".

Sentindo o rosto corar, Carrie limpou a garganta e respon­deu: "É verdade. Alguns me chamam assim". Olhando ao redor da classe, falou suavemente: "Você também pode me chamar por esse nome se quiser". E assim a 'pequena Carrie Brown' tornou-se Pássaro Vermelho para o povo das terras do rio Cheyenne.

 

"Eu nunca deveria ter vindo", confessou Carrie, deitada so­bre o colchão de capim no sótão da cabana dos Asas Vermelhas, no escuro.

"O que você está dizendo, Carrie?", perguntou Charity.

"É isso mesmo, Charity. Eu jamais deveria ter vindo."

"Mas por quê?"

Carrie respirou fundo e falou bem baixinho: "Porque falhei, Charity".

Charity sentou-se repentinamente e forçou sua visão no es­curo em direção a Carrie. "Que besteira, Carrie. Você está muito mais fluente na língua lakota que eu. As crianças adoram você. Marta diz que não sabe o que faria sem você - sem nós." Charity se pôs sobre um tornozelo e continuou: "Ainda não tivemos ne­nhuma conversão, mas é muito cedo, Carrie. Você não falhou, tem ajudado demais no começo de um trabalho muito promissor".

Quando Carrie ficou em silêncio, Charity deitou-se. Estava quase dormindo quando Carrie sussurrou: "Mas, Charity, não importa nem um pouco o quanto eu ore nem minha determinação em ficar fora disto".

"Águia que Voa Alto", Charity adivinhou.

Carrie suspirou. "Águia que Voa Alto. Eu sei que ele só tem ami­zade por mim. Sei que ele tem planos com a srta. Woodward. Mas..."

"Ele é admirável", afirmou Charity.

Após um silêncio entre as duas, Charity perguntou: "Carrie, o que você acha do trabalho missionário?".

Carrie não hesitou em responder: "Adoro. Amo estas crian­ças e o desafio. Adoro a campina, o aspecto selvagem, o vento. Amo tudo isto. Posso dizer com honestidade que entendo o que o Águia que Voa Alto queria dizer quando falava que nunca se sen­tira tão cheio de vida como quando morava aqui".

"Ele falou isso quando estava olhando para você, srta. Brown."

"Ele falou isso com respeito a voltar aqui, onde nasceu."

Charity não discutiu, mas perguntou abruptamente: "Então o que você vai fazer?".

"Voltarei a Lincoln, que é o meu lugar por enquanto, para terminar meus estudos. Vou esperar o Águia que Voa Alto casar- se com a srta. Julia Woodward. Vou orar para que Deus me envie a algum lugar onde eu possa ser útil entre os lakotas e...", acres­centou miseravelmente, "vou assegurar-me de que não seja onde eu tenha de testemunhar a alegria da esposa Julia King." Inespe­radamente as lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto.

Charity escutou um soluço de Carrie e colocou a mão no seu ombro. "Alegra-te do Senhor, Carrie Brown, e Ele satisfará os de­sejos do seu coração."

Carrie comentou: "Para mim isso queria dizer que eu conse­guiria tudo o que quisesse se fosse uma menina obediente. Hoje sei que, quando coloco o Senhor em primeiro lugar, Ele faz com que os meus desejos coincidam com os d'Ele". Após outro soluço, ela lamentou: "Estou tentando alegrar-me no Senhor, Charity. Então, quando é que Ele vai mudar meus desejos em relação ao Águia que Voa Alto? Quando?".

Charity deu uns tapinhas em suas costas: "Quando você vol­tar a Lincoln será mais fácil, pode acreditar". Depois de mais al­guns momentos de silêncio, Charity sugeriu: "Nos próximos dias eles ficarão fora a maior parte do tempo, Carrie. Não será tão difí­cil evitar ficar perto dos dois quando estiverem aqui. Ofereça-se para cozinhar ou dar umas aulas extras, assim terá sempre uma razão para ficar ocupada em um lugar diferente. É a única coisa que acho que pode ajudá-la".

Na escuridão Carrie Brown concordou, balançando a cabeça, sem proferir nenhuma palavra. Decidiu seguir a sugestão de Charity e evitar a presença de Águia que Voa Alto, trabalhando mais do que nunca, orando com mais diligência para que seus desejos fossem os do Senhor e partindo para Lincoln na primeira oportunidade.

"Pássaro Vermelho, fiz algo que a deixasse magoada?"

Carrie pulou quando a voz familiar de Águia que Voa Alto soou na porta de sua pequena cabana. As aulas daquele dia ti­nham acabado e, quando as crianças foram para fora, brincar à luz do sol, Carrie começou a planejar as aulas do dia seguinte. Levantou os olhos de sua escrivaninha e respondeu cuidadosa­mente: "É claro que não, Águia que Voa Alto. Por que você está perguntando isso?".

"Você está aqui com a Charity Bond há semanas. Sei que o trabalho tem sido muito pesado. O David Nuvem Cinza e eu te­mos passado muitas horas nas aldeias. Mas parece que, cada vez que eu me aproximo", ele fez uma pausa e sorriu para ela, "bem, parece que meu Pássaro Vermelho voa para longe sempre que eu chego aqui."

"Desculpe-me, Águia que Voa Alto. Não percebi isso." Carrie olhou para o outro lado rapidamente antes de acrescentar: "Você não fez nada que me magoasse, Águia que Voa Alto. Tem sido um tempo difícil para mim. Você tem o seu trabalho e eu o meu, com as crianças".

Águia que Voa Alto passou os olhos pela sala. "Você não tem nenhum trabalho agora. Por favor, venha para fora, quero conver­sar com você."

Juntos saíram da escola e dirigiram-se para um banco rústico de madeira onde Marta Asa Vermelha estivera preparando a mai­or parte das refeições para o grupo.

"Você trabalha bem mesmo, Pássaro Vermelho." Ele deu uma risada suave e continuou: "Fiquei observando num dia de des­canso meu. Às vezes não dá para saber quem é a aluna e quem é a professora". Ele dobrou os braços e inclinou-se para olhar nos olhos de Carrie. "Um dia escutei os alunos conversando. Eles adoram você."

Carrie riu para ele. "No primeiro dia de aula, quando olhei para cima, para alguns daqueles meninos, fiquei aterrorizada. Mas todos demonstram querer aprender de verdade. Tem sido muito fácil amá-los." Carrie suspirou: "Vou sentir saudade dos alunos quando partir".

Águia que Voa Alto franziu as sobrancelhas. "Vai ser logo?"

"Na próxima semana. Quando o Tiago for buscar suprimen­tos para o inverno, irei com ele."

"Pensei que...", Águia que Voa Alto mudou o que iria dizer no meio da sentença. "Parecia que você estava feliz trabalhando aqui."

Carrie suspirou. "Sim, estou feliz aqui. Mas a Charity e eu temos orado sobre isto e realmente acho que Deus deseja que eu volte para a Universidade, para ter mais aulas, mais prática de ensino. Sou inexperiente ainda. Vou terminar o curso na Univer­sidade e então..." Fez uma pausa. "Bem, então vou orar pedindo a direção de Deus mais uma vez."

"Houve um tempo em que você só falava de retornar a Santee."

"Houve um tempo em que eu era uma menina muito teimo­sa e boba que conhecia bem pouco sobre a vida segundo a vonta­de de Deus."

"A menina se foi."

Carrie olhou fortemente para ele. "É, acho que sim. E já foi tarde."

"Quando isto aconteceu, Pássaro Vermelho?"

"Na Conferência Missionária Dakota."

Águia que Voa Alto balançou a cabeça. "Foi um tempo bom, boa comunhão, boas reuniões."

Carrie riu. "Não prestei muita atenção às reuniões."

Com o olhar de surpresa de Águia que Voa Alto, Carrie ba­lançou a cabeça. Formulou suas próximas palavras cuidadosamen­te: "Águia que Voa Alto, sei que você passou pela experiência de ter as coisas mais queridas arrancadas de sua vida e mais tarde substituídas por algo ainda maior". Carrie abaixou a voz: "Isto aconteceu comigo na conferência". Ela olhou para ele seriamente. "Foi muito doloroso, mas necessário."

"E seja o que for, quer dizer que nossa amizade mudou."

Carrie riu: "Você não acha que já estava na hora de mudar mesmo? Você devia ficar cheio com aquela menina boba, de cabe­lo vermelho, em volta de você o tempo inteiro". Carrie enrubesceu.

"Nunca fiquei cheio disto", falou Águia que Voa Alto baixinho.

"Bem, a srta. Woodward certamente deve ter ficado."

Ao ouvir o nome de Julia Woodward, Águia que Voa Alto franziu a testa. "A srta. Woodward?"

"Sei que vocês não anunciaram ainda, Águia que Voa Alto, mas você disse que somos amigos." Carrie limpou a garganta. "Desejo que você seja feliz, Águia que Voa Alto. Espero que seja muito feliz".

Águia que Voa Alto ficou admirado: "Sobre o que você está falando?".

"De você e da srta. Julia Woodward. Na conferência dava para ver que vocês pensam muito um no outro. Eu simplesmente ima­ginei..."

"Então é isto o que você pensa. Foi isto o que causou a mudan­ça entre nós." Águia que Voa Alto balançou a cabeça e inclinou-se para a frente, colocando os ombros nos joelhos. Pegou um graveto e começou a rabiscar a terra. Depois de um instante, jogou o graveto de lado e falou: "A srta. Julia Woodward voltou a Boston com o Comitê e espero que lá ela continue a fazer um bom trabalho pe­los índios. Mas, Pássaro Vermelho, pense bem... A srta. Julia Woodward numa cabana na campina". Águia que Voa Alto deu uma risadinha: "Não, Pássaro Vermelho, não vou me casar com a srta. Julia Woodward". Parou de falar bruscamente.

Marta Asa Vermelha saiu da cabana carregando uma enorme panela de ferro em direção ao fogão rústico de lenha. Águia que Voa Alto apressou-se em ajudá-la enquanto Carrie entrou na ca­bana e voltou com uma bacia cheia de feijões verdes. Sentou-se no banco e começou a escolher os feijões enquanto Águia que Voa Alto acendia o fogo.

"E esta coisa de que você desistiu na conferência, Pássaro Vermelho..."

"Por favor, Águia que Voa Alto, não me deixe embaraçada por ter de falar nisso."

A fumaça que saía da lenha começou a formar círculos e Águia que Voa Alto mexia-se rapidamente para ativar o fogo. "Por que você ficaria embaraçada em gostar de alguém? O fato de você gos­tar de mim é que me levou a Cristo, Pássaro Vermelho."

"E me fez agir como boba."

"E agora você acha que o sonho de casar com um homem muito mais velho que você, que quer viver no meio dos Sioux selvagens, é um sonho bobo?"

"Percebi que criar meu próprio futuro sem consultar a Deus é besteira. Não tem nada que ver com a idade do homem ou o lugar onde ele quer morar."

Águia que Voa Alto afastou-se do fogo e sentou-se perto de Carrie. "Pássaro Vermelho", ele começou e então parou, "deixe- me contar uma história para você. Um dia eu estava na aldeia e o Trovão em Movimento chegou a cavalo. Ele tinha se embrulhado com tranças de capim cheiroso e pintado as faces de uma forma muito interessante. Quando o chamei, ele disse que estava a cami­nho da escola. Achei que era um jeito estranho de alguém se ves­tir para ir à escola e, quando perguntei-lhe se haveria alguma ce­lebração, ele não quis contar nada. Mas então o seu amigo disse que o Nuvem em Movimento tinha decidido conquistar a professora. O Trovão em Movimento ficou muito bravo com o amigo, mas então admitiu que era verdade. Disse que tinha decidido que a melhor forma de entrar no mundo novo era casar com uma mulher branca, e a professora seria uma ótima candidata."

Carrie parou de escolher os feijões e ficou escutando com admiração sincera. Quando Águia que Voa Alto fez uma pausa, ela esclareceu: "Nunca, jamais o encorajei. O que eu deveria ter feito?".

"Você não precisa fazer nada, Pássaro Vermelho. As atenções do menino se desviaram agora para outra menina da aldeia."

"Então, por que você está me contando essa história?"

"O Trovão em Movimento é um jovem bonito. Algum dia ele será um bom marido. Tem um coração bondoso, mas quando me disse que estava vindo aqui para conquistar a professora de cabe­lo parecido com o sol poente...", Águia que Voa Alto fez uma pausa antes de continuar, "não gostei."

Carrie terminou de escolher os feijões antes de dizer suave­mente: "E o que você quer dizer com isso, Águia que Voa Alto?".

"Quero dizer, Pássaro Vermelho, que eu a vi através dos olhos de um jovem que não conhecia nada da pequena Carrie Brown. Ele a viu como uma jovem mulher." Limpou a garganta e prosse­guiu: "E quando pensei em você daquela forma, então realmente não gostei da idéia de alguém cortejá-la".

Carrie ponderou o comentário antes de falar: "Everett Higgenbottom nunca o incomodou".

Águia que Voa Alto deu uma resfolegada. "O Everett Higgenbottom não é para você, Pássaro Vermelho."

"É verdade", falou Carrie baixinho, "eu sei. Vou dizer isso a ele de uma vez por todas quando voltar a Lincoln." Carrie levantou-se, com a bacia cheia de feijões nos braços. "Se eu não o vir antes de partir, Águia que Voa Alto, por favor saiba que estarei orando por você e pelo serviço aqui. Você também vai orar por mim, não vai? Para que eu tenha a força de seguir a Deus aonde quer que Ele me guie." Ela caminhou em direção à cabana, mas Águia que Voa Alto a chamou pelo nome.

"Pássaro Vermelho."

Quando Carrie se virou, viu Águia que Voa Alto parado no meio do caminho que levava ao seu cômodo. Ele fazia o sinal de "Amigo". Ela respondeu com o mesmo gesto e apressou-se para dentro.

 

Nas palavras do sábio há favor, mas ao tolo os seus lábios o devoram.

                     Eclesiastes 10:12

 

"Pois é, Everett, você estava certo - em tudo. Tinha razão quando disse que eu não conhecia nada do Águia que Voa Alto. Eu o via como um herói criado em minha mente. Quando o vi como um homem, continuei amando-o e respeitando-o. Mas en­tão percebi uma segunda coisa: que eu não tinha uma visão realis­ta sobre o trabalho missionário." Carrie parou um instante para mexer seu café e continuou: "Mas tudo isto estava escondendo o verdadeiro problema, Everett. Eu não tinha um relacionamento correto com Deus. Sabia as respostas de cada pergunta, mas realmente não tinha entregado minha vida a Deus".

Carrie tinha convidado Everett para jantar com ela na pri­meira noite após sua chegada do rio Cheyenne. Havia passado o jantar inteiro perguntando ao amigo sobre a escola, contando suas experiências e evitando a coisa mais importante que tinha para dizer. Os dois terminaram a sobremesa e estavam tomando café, e Carrie ainda não tinha achado coragem para abordar o assunto sobre o qual realmente queria conversar.

"E tudo isto mudou?", queria saber Everett.

Carrie passou o dedo na borda da caneca de café enquanto pensava nas próximas palavras: "Mudou. Ah, não quer dizer que eu tenha descoberto todo o 'sentido da vida', Everett. Mas sei de uma coisa. Tive de desistir dos meus próprios planos e desejo fa­zer a vontade de Deus. No momento tenho certeza de que Ele quer que eu termine os estudos. Depois disso, não sei. Adorei mesmo dar aulas para os indiozinhos. Não vou fingir que não gostei. Ainda acho que gostaria de trabalhar em alguma missão dakota, em algum lugar. Mas isto é para o futuro, não para agora. Por enquanto, estou satisfeita em ser uma estudante".

"E o Águia que Voa Alto?"

"Acho que ele continuará no rio Cheyenne algum tempo. O trabalho combina com ele. Ele tem o dom de evangelismo e o Se­nhor o está usando realmente." Carrie levantou os olhos para Everett: "Antes de eu partir, tivemos uma boa conversa sobre mi­nhas tolices. Acho que ainda podemos ser amigos. Eu gostaria que fosse algo mais do que isso, mas ele realmente se acha muito velho para mim. Há também uma relutância em pedir uma mu­lher em casamento, pois ele escolheu um tipo de vida que será indubitavelmente de pobreza e sacrifício. Por enquanto, estou sa­tisfeita em entregar tudo isso a Deus. Mas não o chamei aqui para falar sobre o Águia que Voa Alto, Everett".

"Que bom, Carrie, porque temos de conversar sobre nós dois." Everett inclinou-se para a frente por sobre a mesa. "Carrie, sei que a tenho aborrecido, andando atrás de você e até mesmo cruzado o país para isto."

"Você não tem sido um aborrecimento, Everett. Na verdade, tem sido um grande amigo mesmo quando o tratei de forma ruim. Mas Everett..."

"É, eu sei, Carrie. Tenho sido um amigo e só isso." Everett limpou a garganta e continuou: "Bem, Carrie, estou feliz por você ter me convidado para jantar, pois tenho algo para lhe dizer sobre isto". Após uma rápida pausa, Everett levantou os olhos e deu uma risadinha. "Pedi a Myrtle em casamento enquanto você esta­va fora, Carrie, e vamos nos casar assim que eu terminar meu cur­so."

Carrie ficou chocada. "Myrtle Green!"

Everett sorriu e balançou a cabeça afirmativamente, dando tempo para Carrie absorver a idéia antes de dizer: "Ela é uma me­nina incrível, Carrie. Espero que fique feliz por nós. Sei que você nunca gostou de mim. Então imaginei que não seria tão chocante para você, mas queria contar-lhe pessoalmente antes de qualquer outra pessoa".

Carrie sentou-se mais para trás em sua cadeira e ficou pen­sando na perspectiva de Everett e Myrtle Higgenbottom. Passado o choque, ela estendeu a mão para Everett, dizendo: "Everett, nada me deixaria mais feliz por você do que saber que estará junto com a Myrtle. Ela é incrível e merece uma vida melhor do que já teve até agora. Espero que vocês sejam muito felizes".

"Obrigado, Carrie. Eu sabia que você receberia desta forma."

"Vou sentir saudades de você, Everett. Sempre me deu bons conselhos."

"Os quais você raramente levou em consideração, srta. Brown."

"Bem, agora estou mais velha e sábia, Everett. Considerei to­dos os seus conselhos dos últimos anos em uma única dose. Acho que estou curada da doença, dr. Higgenbottom. Do egoísmo e da cabeça dura. Seria esta a palavra certa? E de muitas outras coisas. Estou tentando muito mesmo vencê-las todas."

Everett levantou-se para partir. "Você começou bem, Carrie. Desejo o melhor para você. E agora preciso pedir licença pois vou levar a Myrtle para a Casa da Opera esta noite. Vamos comemorar nosso noivado. Myrtle ficará aliviada em saber que você está feliz por nós."

Carrie não hesitou em replicar: "Estou mesmo. Por favor, diga isso a Myrtle por mim. Só quero ter direito a uma coisa, Everett. Quando for um advogado famoso, contarei a todo o mundo que você treinou suas habilidades de argumentação comigo!"

 

Durante as estações do outono e inverno Carrie dedicou-se totalmente aos estudos e trabalho. Tinha aula de matemática às nove horas, de história às dez e de línguas às onze, quando apresentava as lições memorizadas. Não havia aulas durante a tarde e assim ela podia trabalhar na Casa Hathaway. As noites e os sábados eram reservados para preparar as aulas. Carrie logo percebeu que, para cada hora de apresentação, ela gastava duas horas de preparo. Es­perava-se que os alunos memorizassem as palestras dos profes­sores e ruminassem todas as informações com perfeição.

Em algum lugar de sua juventude, Carrie encontrou armaze­nada a energia para participar da Sociedade Palladian que tinha sido fundada para "ajudar a formar e aperfeiçoar as capacidades morais e intelectuais bem como as qualidades sociais" dos alunos universitários. As reuniões da Sociedade às sextas-feiras envolvi­am discursos, declamações de poesias originais e debates. A Soci­edade se posicionava em relação a todos os assuntos, desde "a proibição da formação de fraternidades secretas na Universidade" até "o direito ao voto feminino - simples questão de justiça". O debate ajudava Carrie a estabelecer suas próprias opiniões e buscá-las em algum lugar além de em suas emoções.

O noivado de Everett Higgenbottom com Myrtle Greer pri­vou Carrie de um acompanhante regular para as palestras notur­nas. Ela foi "salva" pelo "cinza", um livreto com o nome dos mem­bros do sexo feminino da Sociedade. O livro circulava durante a semana através de um "carregador do cinza" oficial, até que algum cavalheiro escrevesse seu nome ao lado do nome de uma moça, comprometendo-se a acompanhar aquela que desejasse par­ticipar da reunião da sexta-feira.

Logo no início de janeiro, Carrie foi a uma reunião acompa­nhada por Charles E. Field, que iria debater com ela "a questão indígena - devem os índios ser cristianizados e civilizados?". Charles E. Field levantou argumentos negativos contra a cristianização e civilização dos índios, concluindo que, por natureza, o índio era um selvagem, não civilizado, e seria melhor deixá-lo em seu estado natural sem Deus, o que acarretaria eventualmente o fim da nação indígena e o desfecho natural do Problema do índio.

Na hora de apresentar sua posição, Carrie levantou-se tão irritada que mal conseguia falar. Prosseguiu apresentando seu argumento afirmativo e terminando com as palavras: "É óbvio para esta argumentadora que seu oponente teria grande dificul­dade em distinguir entre um índio Sioux e um cágado selvagem". A audiência caiu numa gargalhada enquanto o mestre de cerimô­nias introduzia rapidamente a srta. Mollie Runyan para apresen­tar sua parte musical do programa. O sr. Field, que deveria ter acompanhado Carrie para casa, não viu nem sinal da moça quan­do a reunião noturna terminou. A srta. Brown caminhou para a Casa Hathaway em tempo recorde, acordando tia Augusta ao fe­char a porta de seu quarto com uma batida.

Convidados por Augusta Hathaway, Jim e LisBeth Callaway participaram da Quinta Exibição Anual da Sociedade Literária Palladian, numa sexta-feira à noite. A exibição tinha sido planeja­da como o último programa do ano escolar, e Carrie estaria envol­vida num debate sobre o voto da mulher. Quando terminou, Carrie acompanhou os Callaways e Augusta de volta ao hotel, onde a discussão política continuou e eventualmente passou para os pro­blemas dos fazendeiros de Nebraska.

Jim balançava a cabeça dizendo: "A deflação simplesmente tem de ser barrada, Augusta. Não sei o que vai acontecer, mas quando pagamos nossas contas com o dólar valendo mais do que o que emprestamos para comprar nossa terra, é difícil acreditar que conseguiremos saldar as dívidas com o banco. Graças a Deus, LisBeth e eu não devemos nada ao banco, mas muitos dos nossos vizinhos devem. Ben Carter disse-me que, se este ano o trigo não estiver melhor que no ano passado, ele vai se dar mal".

Augusta o interrompeu: "Conheço o Ben Carter. Ele conti­nuou firme mesmo no tempo da praga do gafanhoto. Nebraska precisa de homens como ele".

"O Ben Carter sustenta dez meninos e está dando para notar seu enfraquecimento. O distrito está tão quebrado que perderão a professora das crianças depois deste semestre. Na última vez em que o Ben e eu viemos a Lincoln fazer uma entrega de porcos, ele entregou tudo para o Bassefs Hall e deu de sinal metade do seu dinheiro líquido antes que eu pudesse convencê-lo a voltar para casa comigo."

Augusta balançou a cabeça. "Detesto ver isto. Amanhã en­contrarei a sra. Carter. Talvez eu possa ajudar de alguma forma, quem sabe? O que podemos fazer para ajudar o fazendeiro, Jim? T. W. Callaway é o mais próximo de ser um neto meu e quero fazer tudo o que puder para assegurar seu futuro. Ele vai ser um fazendeiro, não vai?"

Jim deu uma risadinha: "Estou dando um pouquinho da ter­ra de Nebraska para ele comer todos os dias. Assim posso ter cer­teza de que ele terá isso no sangue!".

"Que tal um debate ou uma palestra no Clube Red Ribbon?", sugeriu Carrie. "Por que não levar os problemas da agricultura para o público? Sei que haveria pessoas interessadas. A proposta de uma faculdade de agricultura tem sido colocada em pauta nos últimos tempos. Os alunos da Universidade acham a idéia ridícu­la. Muitos saíram da fazenda para conseguir educação e não ouço ninguém falando em voltar. Um debate poderia fazê-los lembrar que o trabalho em fazendas é um meio de vida honroso e que algumas pessoas o escolhem por gostar disso e não por serem in­capazes de fazer outra coisa. Além disso, eles poderiam saber de que os fazendeiros de Nebraska são parte importante da economia da nação."

"É uma idéia maravilhosa, Carrie. Vou fazer essa proposta." Augusta virou-se para Jim e LisBeth e perguntou: "Vocês dois participariam?".

Jim assentiu imediatamente, comentando: "Nós precisamos mesmo de uma faculdade de agricultura. Os fazendeiros precisam de ajuda. A maioria dos que conheço não nasceu aqui, veio do leste, onde há abundância de rios e árvores, minas de água e pra­ticamente não há campo. Agora, nós lutamos com a campina, pouca água, não há madeira e a grama é tão espessa que dá para cons­truir casas com ela. Algum dia poderemos alimentar o mundo, mas não sem ajuda - ajuda dos bancos no controle da deflação, ajuda da estrada de ferro para levar nossos produtos para os mer­cados a um preço razoável. E precisamos de uma faculdade de agricultura para pesquisar e ensinar as melhores formas de lidar com esta terra".

"Se você falar desse jeito, Jim Callaway, conseguirá que se comece alguma coisa. Traga o Ben Carter e outros fazendeiros vi­zinhos seus." Augusta virou-se para LisBeth: "E assegure-se de que a esposa do Ben Carter venha com ele. Vou planejar uma re­cepção para as mulheres dos fazendeiros após a reunião. Precisamos de gente para discutir o assunto. Vamos fazer algumas pes­soas influentes ver os homens e as mulheres jovens que estão lu­tando por este Estado!".

LisBeth balançou a cabeça em acordo: "Eu virei, tia Augusta. E tenho certeza de que a sra. Carter também virá".

"Bem, LisBeth", Carrie falou com sinceridade, "a mão que ba­lança o berço é a mão que dirige o mundo. Esta é uma citação de um de nossos últimos debates. Aquilo que é preocupação das mu­lheres é o que recebe cuidado. Ainda não temos o direito de votar, mas isso não quer dizer que não podemos participar do governo."

Augusta já mexia na escrivaninha à procura papel e caneta para fazer os planos da recepção. Falava sobre marcas de chá e tipos de bolo quando Jim começou a caçoar: "Que os céus nos ajudem se as mulheres conseguirem mesmo votar algum dia. Elas já fazem as coisas acontecer mesmo. Então, por que passeatas para tornar isto oficial?".

LisBeth protestou, exaltada: "Jim Callaway! Que vergonha! Já ouvi você dizer milhões de vezes que é um crime o Joseph Freeman não poder votar. Ficou tão chateado com o debate da Carrie esta noite que quase correu até o palco para apoiar a Carrie em favor dos índios. Por que você acha que as mulheres não de­vem votar? É uma simples questão de justiça, Jim, como falou a Carrie".

Carrie entrou na conversa: "As mulheres são tão inferiores assim que devem seguir regras diferentes?".

"Não precisa ficar brava, LisBeth. Não foi isso o que eu quis dizer."

LisBeth deu uma resfolegada, dizendo: "Você quis dizer isso sim, Jim Callaway".

Jim mudou de assunto repentinamente: "Carrie, esquecemos de perguntar uma coisa. Você estaria interessada em dar aulas no próximo semestre no distrito ao norte da nossa fazenda? O Ben Carter comentou que a professora atual aceitou um cargo no Missouri. Como eu já disse, o distrito não tem condições de pagar muito".

Carrie interrompeu: "O pagamento não precisa ser alto, Jim. Estou com saudade de dar aulas. Vou orar por isso, mas para mim parece excelente".

"Você pode morar conosco, Carrie", LisBeth sugeriu. "Ado­raríamos ter você conosco em casa."

LisBeth ficou mais quieta que o normal o resto da noite. Su­biu para o quarto bem antes de Jim terminar sua discussão sobre agricultura com tia Augusta. Quando Jim se deitou ao lado da esposa, ela continuou de costas para ele e bem pertinho da beira­da da cama.

Jim colocou as mãos atrás da cabeça e ficou deitado de olhos fixos no forro por muito tempo antes de dizer: "Fiquei contente da Carrie dizer que adoraria lecionar no outono. Com certeza ela amadureceu neste ano. Foi bom ouvi-la falar sobre orar a respeito de uma decisão em vez de simplesmente aceitar de cara a propos­ta. A escola fez maravilhas na vida dela. Ela estava incrível no debate desta noite. Fiquei orgulhoso dela como se fosse um irmão mais velho".

Silêncio.

"Ela colocou o caso muito bem."

Silêncio.

"Parece que ela, de alguma forma, abrandou-se em relação ao assunto de voto feminino. No ano passado parecia que ela saiu marchando pelas ruas de Lincoln. Ela está mais assentada, parece saber melhor o que quer para o futuro e realmente parece bem compromissada a seguir o Senhor."

Finalmente Jim colocou a mão nos cabelos de LisBeth e acari­ciou-os. "Perdoe-me, LisBeth. Perdoe-me, pois o que eu falei so­bre o voto feminino demonstra superioridade e hipocrisia." Não houve resposta vinda da beirada da cama e Jim aproximou-se mais: "E que eu só consigo fazer uma coisa de cada vez. Será que a cau­sa do voto feminino não pode esperar até conseguirmos auxílio para a faculdade de agricultura? Então encabeço a passeata em Lincoln se você quiser".

Ele sentiu um abrandamento por parte dela. "Vou escrever uma confissão a ser publicada no State Journal: 'Marido tonto en­xerga a luz. Percebe que sua esposa tem cérebro e deseja comprar um também'".

Uma risada abafada fez a cama balançar um pouco. Perce­bendo a vitória, Jim colocou uma mão no ombro de LisBeth e che­gou-se mais perto. Cochichou no ouvido da esposa: "Você pode se candidatar a governadora se quiser, amor. Mas me perdoe". Beijou sua orelha. "Vamos fazer uma reunião de planejamento." Beijou seu pescoço. "Amanhã."

 

Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do Senhor, e ele satisfará aos desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará.

                   Salmo 37:3-5

 

"Srta. Brown!", chamou Silas Kellum. "Há uma carta aqui para a sra. e o sr. Callaway. Acho que quem escreveu não sabia que podia mandar para Roca. Agora eles têm a sua própria agência de correios. Você não está indo para lá em breve?"

"Amanhã, Silas", Carrie respondeu, pegando a carta e pren­dendo a respiração ao ver o remetente. "Será um prazer entregar a carta." Carrie levou a missiva para seu quarto, sentou-se à beira da cama com ela na mão por alguns momentos antes de abrir a tampa do baú e colocá-la em cima da pilha de livros recentemente arrumados.

No dia seguinte, por volta do meio-dia, Jim Callaway chegou para levar Carrie ao sul de Roca. Sarah Biddle e Augusta Hathaway estavam ali para se despedir de Carrie.

"Então, não vá esquecer, Carrie", Augusta falou, "o Joseph ou o Asa irão lá sempre que você quiser e a trarão de volta para Lincoln. Se isto não funcionar, simplesmente avise-nos que nós a traremos imediatamente de volta para casa."

"Tenho certeza de que funcionará, sra. Hathaway. Se eu con­segui controlar uma turma de mestiços de Sioux meio selvagens e já crescidinhos, com certeza vencerei o desafio colocado pela co­munidade dos agricultores de Nebraska."

Jim deu uma risadinha: "Você já começa mostrando capaci­dade - quase como uma raposa velha, srta. Brown".

Carrie respondeu: "Contanto que eles joguem apenas cobras e sapos em mim, estarei bem, Jim. Pelo menos acho que estarei bem".

"Na semana que vem vamos descer até lá para uma visitinha", falou Sarah um pouco envergonhada. "Não agüento ficar sem ver o T. W. Callaway muito tempo. Ele está crescendo rápido demais e quero ser a primeira a ver cada uma de suas traquinagens. As cartas não são suficientes.

"Cartas! Jim, estou levando uma carta do Águia que Voa Alto no meu baú. O Silas deu para mim ontem. Acho que o Águia que Voa Alto não deve saber que Roca tem uma agência. Ele sempre escreve?"

Jim balançou a cabeça negativamente: "Espero que não haja problemas. Faz um tempão que ele não escreve. A LisBeth sempre conta para ele as novidades daqui, mas temos notícias de Águia que Voa Alto no máximo duas vezes por ano, quando muito".

Carrie mexeu-se para entrar no carroção e pegar a carta, mas Jim a deteve. "Não é preciso, Carrie, eu não a leria sem LisBeth. As cartas são especiais para a LisBeth e leremos juntos quando chegarmos lá."

Depois de abraços e mais promessas de ficarem em contato, Carrie subiu e sentou-se ao lado de Jim para viajarem em direção à fazenda de Jim, ao sul, durante as próximas duas horas. No ca­minho Jim parou para mostrar a Carrie a construção da escola situada ao pé de uma colina. "O pessoal vai mudá-la para o alto da colina antes do outono", ele explicou.

Quando Carrie quis saber por quê, Jim balançou os ombros: "Já disse a eles que é bobagem. Lá em cima venta demais, mas eles querem a escola lá em cima, onde o som do sino se espalha melhor e", ele acrescentou com um sorriso, "os Smiths são os do­nos do dinheiro aqui no distrito e eles acham que os filhos andam demais para chegar à escola. Falaram que será mais 'equilibrado' se mudarem a escola uns oitocentos metros mais para o sudeste."

Durante o restante da viagem, Jim passou contando a Carrie sobre os alunos que ela encontraria no primeiro dia de aula. Ter­minou seu monólogo prevenindo-a sobre Ned Carter, Matthew Glenn e outro chamado Philip, cujo sobrenome Carrie não conse­guia lembra.

Logo que chegaram à fazenda, Jim entrou rapidamente para levar a carta de Águia que Voa Alto a LisBeth.

Carrie seguiu-o gritando: "Já vou arrumar minhas coisas no meu quarto, LisBeth - se o Jim puder carregar o baú para mim".

"Bobagem, Carrie, você será parte da nossa família e não pre­cisa sair só porque vamos ler uma carta do Águia que Voa Alto.

Afinal, ele é como parte da família para você também. Sente-se aqui e relaxe", LisBeth fez um aceno mandando Carrie entrar na sala e começou a ler:

A cada dia gosto mais das pessoas aqui. A aldeia mudou bastante. Alguns mudaram para um local mais acima, na mar­gem do rio, e o povo do Alce Corredor mudou para a aldeia. Não há tantas pessoas como havia no começo, mas a aldeia ainda é grande. Todos parecem muito felizes com nossa presença aqui. Agradecemos a Deus pelo que Ele tem feito e oramos para que nossa luz brilhe e muitas outras pessoas possam ver nosso tra­balho e glorificar a nosso Pai que está nos céus.

Charity Bond voltou a Santee e assim o trabalho com as mulheres está nas mãos da Marta Asa Vermelha, o que é de­mais para ela. Oramos para que outra mulher logo venha jun­tar-se à Marta, que está constantemente sobrecarregada.

Se a Carrie Brown for morar com vocês enquanto estiver lecionando, por favor diga a ela que poderá usar a Lakota para facilitar sua viagem até a escola. A Lakota é uma mula muito inteligente. Aprenderá o caminho até a escola e de volta para casa rapidamente, deforma que se houver neve ou tempestade a Carrie poderá confiar nela para chegar em casa.

Eu gostaria muito de conhecer Tiago Cavalga o Vento. Se for da vontade de Deus, na próxima primavera estarei com vocês e então ele poderá ver seu tio índio e ouvir histórias so­bre o seu povo.

 

Jim falou: "Quando ele vier na primavera terá um potrinho para treinar. A Lakota vai parir em abril. Não se esqueça de escre­ver isto quando responder a carta. No momento", Jim falou, olhan­do para Carrie, "parece que você não precisará andar até a escola, afinal de contas - como se pretendêssemos que você andasse."

Carrie respondeu rapidamente: "É mesmo muita bondade do Águia que Voa Alto pensar em mim. Espero conseguir montar na Lakota. Não sou muito boa nisso. Agora, desculpem-me, mas pre­ciso arrumar minhas coisas para ajudar a LisBeth com o jantar". Carrie saiu desejando que LisBeth não tivesse reparado que seu rosto ficara vermelho. Minha nossa, ela pensou consigo mesma, achei que já tivesse superado esta bobagem. Na verdade, não pensei no Águia que Voa Alto durante meses. Então Carrie interrompeu este pensamento. Isso não é verdade, Carrie Brown. Não é verdade. Você não falou no Águia que Voa Alto durante meses, mas pensou nele muitas vezes.

Lá longe, às margens do rio Cheyenne, Águia que Voa Alto também estava pensando em muitas coisas, dentre as quais esta­va Carrie Brown.

 

Em seu primeiro dia de aula, Carrie mais uma vez tinha de olhar para cima para ver mais da metade dos alunos que se enfileiravam no único cômodo da escola. Atrás de sua escrivani­nha, ela observava a classe com honesto terror, percebendo que muitos dos alunos mais velhos não eram apenas muito maiores do que a professora como também tinham quase a sua idade. Eles estavam sentados na última fileira, obviamente desgostosos por estar na escola. Duas meninas mais velhas cochichavam alternan­do cutucões e rindo das caretas feitas por um menino de meia idade sentado na fileira ao lado.

Quando Carrie limpou a garganta para falar, a sala ficou num silêncio de morte. Um dos meninos raspou sua bota pesada no chão, mal conseguindo encaixar as pernas compridas sob a cartei­ra. Carrie abriu a gaveta de sua mesa para tirar a lista de chamada e pulou para trás com um fraco "Ai!". A fileira do fundo ria antecipando a iminente desistência da professora.

"Thamnophis sirtalis sirtalis", Carrie falou como se nada tives­se acontecido. "Cobra pequena, não venenosa, de listas amarelas. Nativa da região." Passou a cobra de uma mão para outra, dei­xou-a enrolar-se em seus dedos, escorregando-a de uma para a outra mão e novamente de volta para a primeira enquanto dava a volta em sua escrivaninha, visivelmente calma e sorrindo para a fileira do fundo. "Não venenosa. Ótima para acabar com os inse­tos da horta." Fazendo uma pausa, olhou para os alunos e per­guntou: "Qual é a mãe que tem a maior horta?".

Uma mão levantou-se, é claro, na última fileira. A voz mas­culina falhou no meio da sentença, causando um coro de risadas de vozes femininas. "A minha, dona. Somos em dez irmãos aqui. Precisa muita horta para nos sustentar."

Carrie caminhou em direção à fileira do fundo, perguntando: "Dez? Todos meninos?".

"Dez meninos e uma menina, a minha irmã Tess. Ela não vem à escola ainda porque minha mãe fala que ela é pequena demais."

"E como você se chama, jovem?"

"Carter, Ned Carter."

"Bem, Ned Carter, acho que poderia levar esta nossa colega para a horta de sua mãe. Quando tivermos tempo de construir uma caixa apropriada, você poderá trazê-la de volta e estudare­mos as cobras. Este estudo chama-se herpetologia, e tenho certeza de que todos vocês, meninos mais velhos, vão gostar disto. Quan­do chegar a hora, vocês terão de trazer uma Pituophis melanoleucus sayi. A cobra búfalo. Enorme, de aproximadamente um metro e uns vinte centímetros de comprimento. Mas, quando for a hora, eu aviso."

Ned Carter aceitou a cobra das mãos estendida de Carrie. "Guarde-a em sua carteira, Ned. Ela ficará bem aí até a aula termi­nar." Então, Carrie virou-se e voltou para a frente da sala. "Como vocês sabem, meu nome é srta. Brown e aprendi a amar cobras, sapos e ratos. Adoro brincar com estes animais. Na verdade, ado­ro tudo o que dizem que supostamente assusta os professores."

Deu uma olhada para o fundo e então abriu um sorriso radi­ante. "Tenho certeza de que vamos nos dar bem. Não acredito em alunos que devem ser castigados e tenho certeza de que vocês, cavalheiros, também não acreditam em senhoritas medrosas. Te­nho certeza de que vamos nos dar bem. A chamada, então. Eu sou a primeira. Srta. Carrie Brown, professora. Presente."

Até o meio-dia Carrie já sabia o nome dos quinze alunos. Sa­bia onde moravam, a que nível de estudo tinham chegado e quantos irmãos e irmãs tinham. O que ela não sabia é que durante o recreio Ned Carter juntou seus companheiros de "tropa" para votar a favor de proteger a nova professora de qualquer outra brin­cadeira.

Dando uma mordida num enorme pedaço de seu lanche, Ned declarou: "Ela vai ensinar coisas boas para nós. Além disso, nun­ca tivemos uma professora bonita. Vamos mantê-la aqui".

Matt e Phil assentiram com a cabeça e o clube que tinha pla­nejado vários atos de terrorismo contra a nova professora foi su­mariamente dissolvido.

O Distrito 117 tinha crianças em várias séries exceto uma, até a quarta semana, quando uma menininha de cabelo louro pálido foi levada para a escola por seu irmão mais velho. Ned Carter passava para os outros a mensagem de seu pai: "Ensine-os e faça com que sejam fortes. Se for preciso, dê uma surra, mas ensine".

Carrie recebeu calorosamente Tess Carter e logo descobriu que não seria preciso "surrar" a menina mais doce que já tinha conhecido. Tess, de seis anos, ficava sentada em silêncio na pri­meira fileira, incapaz de alcançar o chão com os pés até que Carrie colocou o dicionário no chão para apoiá-los.

"Obrigada, madame", cochichou Tess com sinceridade. Carrie inclinou-se sobre ela e respondeu: "Aprendi a manter um dicio­nário ou uma banqueta em cada sala quando eu estava crescen­do!".

"A senhora não cresceu muito, professora", Tess acrescentou com honestidade.

Carrie deu uma risadinha em resposta. "Você tem razão a este respeito, Tess. E ainda mantenho dicionários e banquetas por perto!" Carrie deu uma piscadela para sua nova aluna e mandou os alunos da primeira série repetir de cor a lição. Quando deram um passo à frente, ela percebeu que Tess repetia tudo com eles. Ao ser questionada, a menina respondeu: "Ned me ensinou as letras, madame. Ele escrevia as letras na terra e eu aprendi". Carrie fez uma anotação mental para trabalhar gramática com Tess e Ned Carter e então continuou seu serviço.

Com o passar das semanas, Carrie aprendeu algo sobre si mesma. Era uma professora inata. Amava os alunos e adorava preparar as aulas. Os poucos pais que tinham reclamado de Carrie não ter terminado o curso na Universidade começaram a ver os resultados de um ensino apaixonado e passaram a temer o fim do semestre, quando Carrie voltaria a Lincoln.

Quando o outono acabou, os alunos do Distrito 117 convida­ram seus pais para uma noite de exposição de lições e aprendiza­dos. Carrie e as crianças trabalharam bastante o dia todo, limpan­do e varrendo, fazendo correntes de papel e decorando a sala com dulcamaras.

Na noite do programa, os alunos e seus familiares preenche­ram cada pedacinho disponível da pequena escola. Cada criança apresentou parte de uma lição. Para encerrar a noite, os alunos cantaram várias músicas de Natal. Quando Tess Carter levantou-se e falou de cor o primeiro capítulo do Livro de Lucas, todos aplaudiram.

Jim Callaway inclinou-se para Carrie e falou baixinho: "A senhora fez um ótimo trabalho, srta. Brown".

Carrie agradeceu com orgulho. Senhor, orou silenciosamente, acho que finalmente sei o que vou ser quando crescer. Quero ser professora.

 

Com a sua voz troveja Deus maravilhosamente; faz grandes cousas, que nós não compreendemos. Por­que ele diz à neve: Cai sobre a terra... Então elas [as nuvens], segundo o rumo que ele dá, se espalham para uma e outra direção, para fazerem tudo que lhes ordena sobre a redondeza da terra. E tudo isso faz ele vir para disciplina, se convém à terra, ou para exercer a sua misericórdia.

                           Jó 37: 5,6,12,13

 

O dia 12 de janeiro nasceu morno e lindo. Grandes flocos de neve caíam delicadamente ao chão, mas não estava frio, e Carrie decidiu cavalgar com Lakota até a escola. A pequena mula relinchou e balançou a cabeça alegremente quando Carrie a arreou.

"Vamos dar um passeio gostoso nesta manhã, Lakota", Carrie dirigiu-se à mula, "e então vamos ouvir Tess Carter recitar. Você precisa ver, Lakota. Ela já sabe tudo sobre a batalha de Gettysburg[1]. Fica em pé, com as mãos fechadas à sua frente, tão séria que pare­ce que estar anunciando o final de uma guerra. Ela é maravilhosa em suas declamações."

Saindo da fazenda, Carrie apressou Lakota num galope. A mula correspondeu com muita vontade e ganhou a estrada, até que Carrie impulsivamente a fez pular um cercado de madeira e as duas ter­minaram os últimos quilômetros até a escola, pelo campo.

Lakota trotou até o alto da colina, para onde a escola tinha sido transferida recentemente. Carrie apeou, surpresa ao ver fu­maça na chaminé. Ao ouvir o trotar e relinchar de Lakota, Ned Carter foi até a porta da escola e ofereceu-se: "Deixe que eu cuido da Lakota para a senhora. Vim mais cedo para acender o fogo".

"Obrigada, Ned", Carrie agradeceu sorrindo e escorregando do lombo de Lakota. "Você está tentando agradar a professora, hein!?"

Carrie entrou, dependurou seu casaco na parte interna da por­ta e dirigiu-se para sua escrivaninha, onde Tess Carter tinha dei­xado um bilhetinho que dizia: "Srta. Brown, bom dia". Carrie le­vantou os olhos do papel bem a tempo de ver a menina escapan­do para fora. Começou a ler as lições do dia. Somente uns doze alunos foram à escola naquele dia.

"O pai disse que talvez haja uma tempestade", justificou Matthew Glenn, "mas mesmo assim ele nos deixou vir porque moramos perto. A Bet, os Millers e os Dawsons ficaram em casa por causa do tempo ruim."

Carrie sabiamente conteve-se para não criticar os Millers e os Dawsons em voz alta, mas em seu interior ficou imaginando por que eles tinham mantido as crianças em casa. Isso aqui é Nebraska, tenha a paciência, pensou ela, alguns centímetros de neve não deveriam impedir que viessem à escola.

Ned tinha puxado a irmã Tess até a escola num trenó e no recreio as crianças brincavam de escorregar. Carrie os observava pensativamente e, no recreio da tarde, que começou mais cedo que de costume, as crianças convidaram Carrie para juntar-se a elas na brincadeira.

"Ah, venha também, srta. Brown", insistiu Ned. "A senhora não é tão mais velha que nós. E parece gostar de escorregar."

"Bem", hesitou Carrie. E só foi preciso um pouquinho mais de encorajamento das crianças para que ela admitisse: "Escorre­gar é mesmo uma das minha brincadeiras preferidas".

Carrie arrancou suas polainas de feltro e saiu da escola. Cor­reu lá fora, pulou no trenó e escorregou colina abaixo. Chegou ao pé da colina quase sem ar e rindo muito.

Mal tinha subido a pé quando Ned a chamou: "Srta. Brown, é melhor vir ver uma coisa".

Carrie subiu o que faltava rapidamente e olhou para o noro­este. O céu estava preto. Tinha nevado durante toda a manhã, flo­cos grandes quase do tamanho de uma noz. Mas, desde a hora do almoço, já não nevava mais.

Carrie olhou para Ned: "O que isso significa, Ned? Você cres­ceu nesta região. Eu sou do oeste".

Ned parecia preocupado. "Acho que vai haver uma tempes­tade daquelas, srta. Brown. Durante o dia inteiro o vento está vin­do do sul. Ele podia soprar a tempestade para o norte, mas agora não está ventando; está tudo parado demais. O vento pode mu­dar muito rápido."

"Bem, então é melhor acendermos a lareira. Há carvão sufici­ente na caixa de carvão."

"Nós podemos manter tudo quente, srta. Brown. Esse não é o problema. O vento vem e pode arrancar da escola aqueles tijolos. Daí nós vamos congelar."

Carrie perguntou, meio em dúvida: "Você acha mesmo que pode ser perigoso?".

Dois ou três alunos mais velhos aproximaram-se dos dois. "A senhora já viu nevar de lado, srta. Brown?".

 

Não muito tempo depois de Carrie ter dispensado os alunos da aula, os pais começaram a chegar para levar seus filhos. "A senhora fez bem", comentou um dos pais. "Isso pode ser muito perigoso. Não gosto do jeito daquelas nuvens nem um pouco. A senhora deve ir para casa o mais rápido que puder, certo?"

Em menos de uma hora, todas as crianças tinham sido leva­das, exceto Ned e Tess Carter. O paredão negro parecia aproxi- mar-se rapidamente vindo da direção norte e Carrie foi ficando cada vez preocupada.

"O pai foi para Lincoln hoje para pegar algumas madeiras", Ned explicou. "Ele foi com o Jim Callaway e não sabia a que horas ia voltar. Disse para nós não esperarmos para jantar." Ned garantiu à professora: "Podemos ir para casa sozinhos, srta. Brown. Não fica tão longe assim. Pode ir que não há problema".

Carrie já tinha ouvido falar sobre as idas de Ben Carter a Lincoln. Geralmente eles começavam com a venda de algo e termi­navam em um dos vários "estabelecimentos" onde os "grupos de discussão" estavam tentando ao máximo encerrar as atividades. "Ned, você é um jovem forte e normalmente eu o deixaria ir, mas não posso assumir a responsabilidade de deixá-los sozinhos. Não num momento como este, em que vocês terão de caminhar direto para aquele paredão de nuvens. E se vocês fossem para casa comigo? Podem dormir na casa da família Callaway. Vou deixar um hi lhete na lousa para o seu pai saber que vocês estão bem. Além dis­so, Ned, eu ficaria mais tranqüila tendo companhia para voltar para casa, no caso de eu ser pega pela tempestade em Nebraska."

Com a possibilidade de tornar-se o protetor da professora, Ned rapidamente concordou em acompanhá-la até a casa dos Callaways. Carrie insistiu para que Ned e Tess montassem Lakota. "Ela me co­nhece melhor, Ned", insistiu Carrie. "Se começar a nevar, ela me se­guirá até em casa sem nenhum problema. E talvez não queira seguir vocês." Lakota balançou a cabeça, como concordasse com Carrie.

Com relutância, Ned colocou Tess na sela e subiu atrás da irmã, segurando as rédeas. O trio dirigiu-se para o lado sul, em direção à fazenda dos Callaways, e mal entrou na estrada quando a tempestade começou.

De repente um vento terrível bateu na cerca viva de maclura, no lado oeste da estrada, levantando a neve do chão e fazendo-a rodopiar no ar. Era como se uma enorme cortina branca tivesse sido arrastada sobre a estrada. Carrie virou-se para encorajar as crianças, mas o vento batia tão forte que o som de sua voz sumiu antes de alcançá-las. Colocando a mão no focinho de Lakota, Carrie chegou mais perto das crianças. Já não conseguia enxergá-las. Foi tocando no pescoço de Lakota até alcançar Tess.

Ned inclinou-se para ouvir. Carrie gritou: "Ned, desabotoe seu casaco e envolva a Tess com ele também. Segure firme. Não vá cair. Aconteça o que for, não caia".

Carrie voltou a mão até a cabeça de Lakota e seguiu em frente. Eles estavam perdidos em uma nuvem de vapor espessa, totalmen­te branca, que cobria tudo ao redor. Carrie foi tomada pelo medo enquanto pensava: Como é que pode estar escuro se tudo, tudo está branco? Ela se esforçava para segurar a rédea de Lakota enquanto prendia o cachecol em volta do rosto. As narinas de Lakota esta­vam ficando duras com o gelo. Quando Carrie virou-se para o lado do vento, para tirar o gelo, a neve cobriu sua face também, tão rapi­damente que ela temeu que seus olhos congelassem fechados.

Seu único senso de direção era o vento. Sabia que a tempesta­de tinha vindo do noroeste, então ficou de costas para esse lado, orando para que estivessem caminhando na direção certa. A cerca de maclura tinha sumido de vista há muito tempo. Eles estavam rodeados por uma parede alta e branca. De fato era uma luta enor­me mover-se pela neve que afundava.

Esforçaram-se por alguns momentos quando Lakota come­çou a puxar a rédea. Finalmente, com um relincho fino, ela parou totalmente e então refez-se voltando-se para o lado de Carrie. Confie no cavalo, Pássaro Vermelho. O cavalo sempre sabe o caminho de volta para casa. Quem lhe tinha ensinado isso? Águia que Voa Alto. Com certeza o amigo sabia mais sobre as tempestades de Nebraska do que ela. Ele próprio tinha domado Lakota. Ele tinha certeza de que o animal era dotado de bom senso. Confie no cavalo.

Suas luvas estavam congeladas e presas à rédea. Tirou-as e enrolou a rédea no pescoço de Lakota. Caminhando ao lado do animal, ela tocava as pernas das crianças meio congeladas e grita­va no meio do vento. "Não consigo enxergar o caminho, mas a Lakota vai nos levar até em casa. Vou segurar no rabo dela e deixá- la nos levar para casa." Carrie dirigiu-se para trás de Lakota, agar­rando sua cauda e segurando firme. No minuto em que ficou li­vre, Lakota virou para a direção oposta e começou a fazer seu ca­minho pelo meio da neve que parecia querer engolir todos eles.

 

Jim Callaway tinha saído de Lincoln com sua compra logo que reparou nas nuvens ao norte. Seu acompanhante de viagem, Ben Carter, tinha ficado - totalmente bêbado - em um bar da cida­de. Jogando duas moedas na mesa de jogos, Jim pediu ao garçom que arrumasse uma cama para Ben passar a noite. "O céu está horrível. Tenho de voltar para casa. Minha mulher e meu filho estão sozinhos. Diga ao Ben que vou passar na escola para pegar as crianças. Elas podem ficar em minha casa até ele voltar."

O paredão de neve atingiu Jim quando ele estava a apenas uns oitocentos metros da escola, que ficava bem no caminho de sua fazenda. Jim ficou contente ao ler a mensagem deixada por Carrie na lousa: "Todas as crianças foram mandadas para casa antes que a tempestade começasse. O Ned e a Tess estão comigo. Fomos para a casa dos Callaways quatro quilômetros ao sul". Muito bem, Carrie. Pelo menos sei que LisBeth não está sozinha.

Um quilômetro ao sul da escola, o vento virou o carroção de Jim como se fosse de brinquedo, deixando toda a compra coberta de neve quase imediatamente. Jim lutou no meio do vento cortan­te e tentou ajudar seus dois cavalos a voltar para perto do carroção.

Quando se tornou óbvio que não eles conseguiriam, Jim rapida­mente os desatrelou. Com os dedos congelados, usou a rédea com­prida para amarrar-se nos cavalos. Gritando "Vamos, vamos", se­guiu-os na noite escura, confiante de que eles o levariam para casa.

 

Nas estrada, apenas três quilômetros à frente de Jim, a pe­quena mula Lakota fazia o melhor que podia para caminhar no meio dos montões de neve. As duas crianças balançavam-se so­bre seu lombo, encolhidas para evitar o vento, agarradas à sua crina, meio inconscientes devido ao frio, terror e pavor. Atrás de Lakota, Carrie caminhava tropeçando e escorregando pela neve, agarrada à cauda preta com a mão direita congelando-se rapida­mente. A barra de seu vestido era ornamentada com uma fileira dupla de fios trançados e contas. A neve tinha entrado pelo casa­co e juntava-se nas fileiras de trançado, criando um rolo enorme de neve na altura de seus calcanhares. Era quase impossível ca­minhar a não ser que levantasse a saia do vestido. A neve trans­formou-se de flocos úmidos em um pó seco, mas o frio intenso congelara a roupa de Carrie, formando uma armadura sólida ao seu redor. Já há algum tempo ela tinha parado de tremer, de pen­sar e de orar. No momento tudo o que conseguia fazer era con­centrar-se no esforço inacreditável que estava sendo necessário para colocar um pé à frente do outro - mais um passo - e um último passo.

De repente Carrie afundou em um monte enorme. Tremen­do, ela tentou alcançar a cauda de Lakota, que tinha desapareci­do. O paredão branco fechou seus olhos e ela estava sozinha. Carrie chamou as crianças, gritou seus nomes, mas não houve resposta. Mexa-se, Carrie, mexa-se. Num esforço supremo Carrie colocou o pé à sua frente e de alguma forma conseguiu caminhar um pouco mais. Já não sabia mais se estava indo na direção certa da fazenda. Ficou patinando na neve durante o que pareceram horas até al­cançar alguma coisa. Pensando finalmente ter alcançado Lakota, ela começou a chorar aliviada, mas o animal que ela havia encon­trado era uma vaca solitária encolhida em um monte de feno. Feno! Com o que restava de suas forças, Carrie dirigiu-se centímetro a centímetro para o lado sul do monte de feno, onde a neve não estava tão alta e o vento não batia tão forte. Em desespero, ela abriu caminho com as mãos, chegando ao centro do monte de feno. Uma vez "enterrada" no meio do feno, ela começou a chorar. Ah, Deus, bom Deus, as crianças! As crianças! Mostre à Lakota como encon­trar o caminho, Senhor. Soluçou e orou alto até que suas bochechas congeladas começaram a doer demais. Então ela orou interiormen­te até que o som abafado do vento, como uma canção de ninar, embalou-a num sono anormal.

 

Os cavalos de Jim Callaway encontraram o caminho para casa. Galoparam em direção à parede oeste do estábulo e pararam. Cam­baleando no meio deles, Jim conseguiu sentir a parede do estábu­lo e bradou gritos de louvor. Arrastando-se pela parede, chegou ao portão do curral, que já estava aberto. Jim levou os cavalos para dentro do estábulo. A neve entrara em cada buraco da pare­de do estábulo, acumulando-se nos cantos, cobrindo o feno e sal­picando a criação com um pó fino e gelado.

Jim colocou as mãos nos joelhos, tentando reativar a circula­ção para poder passar a mão sobre os cavalos e livrá-los a neve, mas o som de um gemido baixo como o de um ser humano o fez virar-se. Lakota olhava para ele do lado extremo do estábulo. E ainda balançando em seu lombo havia duas crianças.

 

No momento em que a tempestade começara. LisBeth Callaway tinha acendido e colocado vários lampiões em cada ja­nela da casa. Ela se alternava entre preocupação e tranqüilidade, orando para que Jim tivesse ficado em Lincoln e para que Carrie Brown tivesse tido a perspicácia de manter as crianças na escola. T. W. Callaway passou a noite brincando alegremente até que o vento arrancou a persiana com toda a força. Então o bebê ficou choramingando enquanto sua mãe abria a porta para prender a persiana. A força do vento empurrou-a de volta para a sala e foi necessário empregar toda a sua força para fechar novamente a porta. Nos poucos minutos em que a porta ficou aberta, a neve entrou e espalhou-se pelo chão. Já com a porta fechada, LisBeth raspou a neve com a mão e colocou-a numa panela e no fogão para derreter, com medo de abrir outra porta. Arrancou o acolchoado grosso de uma cama e pregou-o na janela sem a persiana antes de pegar T. W. e confortá-lo.

Algum tempo depois de o bebê ter caído no sono, LisBeth fez um café com a água da neve e sentou-se à mesa da cozinha com sua Bíblia. Estava tentando ler e orar quando um som estranho a atraiu até os fundos. A porta já estava escancarada e Jim cambale­ava arrastando duas crianças.

O alívio, as lágrimas e as palavras de gratidão duraram ape­nas alguns momentos. Enquanto as crianças eram liberadas de suas roupas congeladas, Ned balbuciou: "A srta. b-B-Brown. Ela está perdida. Ela estava agarrada na cauda da Lakota; ela falou que ia segurar; falou que a Lakota ia nos trazer para casa".

"Vou encontrá-la", falou Jim decidido, "mantenha estes lam­piões acesos, LisBeth." Entrando rapidamente no quarto, Jim tirou as roupas congeladas e vestiu camada após camada roupas secas, o velho casaco e as luvas de pele de búfalo. Arrancou um chapéu forrado com pele de um gancho perto da porta da cozinha, carre­gou seu rifle e saiu pela porta, para o meio da tempestade.

LisBeth procurou acalmar as crianças enquanto tentava descongelá-las. O vento soprou forte o bastante para trazer para dentro neve que encheu duas vasilhas. "Crianças, coloquem as mãos e os pés nesta neve. Precisamos descongelá-los vagarosa­mente. Vocês estão com fome?"

Tess chorava de dor enquanto seus dedos dos pés e das mãos começavam a descongelar. Mesmo assim, seus olhos brilharam quando LisBeth levou para as crianças pão com manteiga e carne de frango fria. Tess e Ned comeram com apetite voraz e beberam quase meio litro de leite morno cada um, enquanto LisBeth rea­bastecia as bacias com neve.

LisBeth manteve as duas crianças acordadas o máximo que pôde, descongelando-os cuidadosamente, mas não demorou muito para a exaustão tomar conta delas e quase fazê-las cair da cadeira. Então LisBeth as colocou na cama quase enterrando-as em meio a tantos acolchoados e cobertores. Ambas caíram no sono e suas bochechas já tinham uma cor rosada e brilhante que mostrava a LisBeth que de alguma forma elas haviam escapado da tempesta­de selvagem sem ulcerações.

LisBeth retornou à cozinha, lavou a louça e as bacias, fez mais café e sentou-se novamente perto da janela esperando por Jim. Por favor, Deus, ajude o fim a encontrar Carrie. O Senhor sabe onde ela está, Pai. Ajude o Jim a encontrá-la. LisBeth orou muitas e muitas vezes. Levou um susto que a fez despertar completamente quando a porta dos fundos se abriu. Uma forma irreconhecível entrou na cozinha. Só quando ela quebrou a crosta sólida de gelo que recobria o corpo in­teiro do homem, inclusive seu rosto, é que ela reconheceu o marido.

Sua voz estava desesperada. "Não consigo encontrá-la, LisBeth. Nem um sinal. Não consigo ver nada e é impossível ca­minhar na neve. O vento deve estar a uns oitenta quilômetros por hora e parece que estamos cinqüenta graus abaixo de zero."

LisBeth olhou dentro dos olhos verdes acinzentados. Esta­vam nervosos, feridos e amedrontados - os mesmos olhos que ela tinha visto quando Jim voltara pela primeira vez à fazenda, as­sombrado pelo seu passado. Ela abraçou o marido, tentando consolá-lo: "Você fez o que pôde, Jim". Os soluços de Jim juntaram-se aos de LisBeth, e ambos ficaram parados por longo tempo na cozinha da velha casa da fazenda, abraçados.

 

A tempestade durou até a luz do dia. Logo que o vento parou, o silêncio acordou a todos na fazenda dos Callaway. Ned e Tess levan­taram-se sonolentos, esfregando os olhos, esquecidos de como ti­nham chegado naquele lugar que não conheciam. T. W. engatinhou na cama, espreguiçou-se e empurrou e bateu no acolchoado. Piscou ao ver Ned e Tess, surpreso com as duas faces estranhas ao seu lado. Olhando ao redor do quarto, viu a mãe na porta e balbuciou feliz.

"Bom dia para os três", murmurou LisBeth. "A tempestade acabou. Venham ver." LisBeth pegou o bebê e disse a Ned e Tess: "Não se preocupem, podem ficar aqui até seu pai vir buscá-los".

"Cadê a srta. Brown?"

LisBeth parou no meio da passagem da porta e olhou de vol­ta para dois pares de olhos que a encararam seriamente antes de Ned repetir: "Cadê a srta. Brown?".

LisBeth limpou a garganta e disse: "Bem, a srta. Brown não...". Um nó se formou em sua garganta: "Jim não conseguiu encontrá-la".

O significado desta afirmação chocou a todos. Tess piscou os olhos várias vezes e começou a chorar. Ned limpou as próprias lágrimas para poder confortar a irmã. "Ah, Tess, tudo vai dar cer­to. Provavelmente ela ficou em alguma outra casa, só pode ser."

"Não existe nenhuma outra casa entre a escola e aqui, Ned, você sabe disso!"

LisBeth interrompeu: "Jim saiu esta manhã para procurar a srta. Brown". Ela respirou bem fundo: "Tenho certeza de que ele a trará de volta".

Ned e Tess Carter estavam sentados à mesa da cozinha to­mando o café da manhã quando Jim Callaway chutou a porta e correu para dentro com algo que parecia um monte de trapos em seus braços. Sem nenhuma palavra, correu passando ao lado de LisBeth em direção ao quarto deles. LisBeth o seguiu e voltou cor­rendo à cozinha atrás das tesouras. Firmemente ordenou às crian­ças: "Fiquem aqui na cozinha que está bem quente. Ned, não desgrude os olhos do T. W. para mim".

LisBeth e Jim tiveram de cortar as roupas congeladas de Carrie para livrá-la. Enquanto trabalhavam, trocavam olhares. "Ela esta­va se arrastando na neve pois não conseguia andar", explicou Jim.

As bochechas e o nariz de Carrie estavam pretos devido às ulcerações. Parecia ser impossível que falasse, e suas mãos e pés estavam terrivelmente pretas. Mas seus olhos azuis olhavam para os dois amigos com gratidão enquanto eles faziam o serviço. Jim arrastou uma banheira enorme para dentro do quarto e encheu-a de neve. Colocou os pés e mãos de Carrie dentro da neve tentan­do descongelá-los vagarosamente. A dor começou quando a cir­culação voltou ao seu rosto e mãos, e Carrie mordia os lábios para não chorar.

LisBeth trabalhou durante horas até Carrie cair num sono exausto. Mesmo assim, LisBeth continuou com seus cuidados, la­vando os pés de Carrie com querosene, tentando lembrar-se de cada remédio que tinha aprendido a usar no caso de ulcerações.

Ned e Tess Carter mostraram-se crianças hábeis. Distraíram T. W. e prepararam seu próprio almoço. Brincaram em silêncio na sala e observavam pela janela da cozinha em direção à cocheira. A neve se amontoara em todo o lado norte da casa, de forma que as janelas e portas estavam totalmente bloqueadas. Com uma pancada na frente da cocheira, seria possível dar um passo para fora do monte de feno no sótão e então escorregar até o chão sem se machucar. Jim escavou abrindo uma passagem até o poço e a cocheira. Ele e LisBeth discutiram algo aos cochichos na cozinha, e depois disto Ned e Tess viram Jim sair novamente. Foram até a janela da cozinha e viram Jim montar em seu cavalo castanho e partir em direção a Lincoln. Para surpresa deles, Jim dirigiu o ca­valo para cima e para o lado da cerca da fazenda, sem ter de que­brar nenhum monte de neve.

"Jim foi para Lincoln buscar o dr. Gilbert", explicou LisBeth. "Ele virá examinar a Carrie. Jim também vai contar ao seu pai que vocês dois estão a salvo. Seu pai ficou em Lincoln durante a tem­pestade."

Tess e Ned Carter se entreolharam como se dissessem a LisBeth que não precisavam de nenhuma outra explicação.

"Podemos ver a srta. Brown?", Ned quis saber.

"Ela está dormindo, Ned."

"Ela vai ficar bem?"

LisBeth respondeu com honestidade: "Não sei, Ned. Espero que sim. Estava terrivelmente frio ontem à noite e ela ficou com as mãos e os pés congelados. Precisamos esperar o doutor ".

Quando o dr. Gilbert chegou de Lincoln, disse algo que mu­daria a vida de Carrie Brown.

 

Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso res­peito, diz o Senhor; pensamentos de paz, e não de mal, para vos dar o fim que desejais.

               Jeremias 29:11

 

"Não, o senhor não pode fazer isto. Eu não vou deixá-lo fazer isto!" Carrie Brown puxou o acolchoado em sua cama até o queixo e olhou para além do dr. Gilbert, onde estava Sarah Biddle, com a mão na porta. "Sarah, você é uma boa enfermeira. Caso contrário, o dr. Gilbert não a teria trazido aqui para me ver. Você e eu podemos cuidar de minha mão."

Mas o problema da mão de Carrie estava fora do alcance da medicina. Não havia o que fazer. No final do dia, Carrie tinha perdido dois dedos da mão esquerda. O dr. Gilbert fez a cirurgia rápida e eficientemente. Com algumas instruções para Sarah Biddle, ele se foi, levando Ned e Tess Carter para entregá-los em sua casa no caminho para Lincoln.

Enquanto Carrie dormia, LisBeth e Sarah sentaram-se na co­zinha, tomando café e conversando baixinho. "Ela sabe? O dr. Gilbert discutiu..." LisBeth não conseguia pronunciar as palavras.

Sarah balançou a cabeça. "Não. Ele achou que seria demais para ela por hoje. Ele disse que podemos esperar algum tempo ainda. Há algumas coisas que posso fazer nos próximos dias. Ela está em condições sofríveis para ser transportada até Lincoln e, se ele precisar fazer outra cirurgia, prefere que ela esteja lá, mais per­to, para que possa acompanhá-la."

LisBeth deu uns tapinhas na mão de Sarah: "Estou contente por você estar aqui, Sarah. É um grande conforto. Sei que Deus dá graça onde ela é necessária, mas estou grata por não precisar fazer este trabalho de enfermaria sozinha. Você acha que ela per­cebe o quanto seus pés ficaram congelados? Você acha que ela desconfia?".

"Acho que ela pensa que a cirurgia necessária foi feita e com o tempo tudo voltará ao normal."

"Quando o dr. Gilbert vai saber exatamente?"

"Ele me mostrou o que preciso observar e voltará dentro de alguns dias."

"Então precisamos preparar a Carrie para o pior e esperar que isso não aconteça."

Mas o pior que LisBeth e Sarah podiam imaginar aconteceu. Quando o dr. Gilbert retornou para examinar a mão de Carrie, que estava se recuperando bem, ele desatou seus pés e balançou a cabeça tristemente. Sentando-se ao lado da cama de Carrie, ele enrolou novamente seus pés, procurando encontrar uma forma de dizer à paciente o que precisaria ser feito.

"O senhor está escondendo algo de mim, dr. Gilbert", Carrie falou, observando-o cuidadosamente. Sarah entrou devagarinho no quarto enquanto o dr. Gilbert mexia à toa em sua maleta. LisBeth entrou com uma bandeja com sopa e chá, mas, em vez de sair do quarto, sentou-se no canto da cama.

Olhando de Sarah para LisBeth, Carrie encostou novamente em seu travesseiro. Com uma voz pateticamente corajosa, ela pe­diu com firmeza: "Contem-me".

O dr. Gilbert suspirou. Colocando as mãos nos joelhos, ele começou: "Srta. Brown, fiz tudo o que era possível com o seu pé. A srta. Biddle e a sra. Callaway seguiram minhas instruções dei­xadas por escrito. Você tem sido uma paciente excelente. No en­tanto, a circulação parece ter sido cortada permanentemente".

"E não vai melhorar?", Carrie quis saber. "Com o tempo não vai ficar bom?"

"Infelizmente não."

Carrie ponderou a informação e seus olhos arregalaram-se com o peso do que lhe estava sendo dito. Ela mal conseguiu for­mular a pergunta: "O Senhor está me dizendo que precisa... am­putar?" Uma vez pronunciada, o terror da palavra quase a aba­teu. Ela prendeu a respiração. Seu queixo começou a tremer. Sarah andou pelo quarto, pegando em sua mão e afagando-a delicada­mente. LisBeth deitou uma mão no joelho de Carrie e inclinou a cabeça, escondendo suas próprias lágrimas.

"Não totalmente, srta. Brown", o dr. Gilbert concentrou-se na in­formação clínica que precisava transmitir-lhe. "Só a parte da frente."

Carrie fixou nele os olhos nervosos e aterrorizados. "Eles vão sarar, vão melhorar. O sangue vai circular de novo. As coisas vão melhorar." Retorcendo-se de dor, ela lutou para sentar-se.

O dr. Gilbert balançou a cabeça tristemente: "Não, srta. Brown, acho que não".

"Como o senhor pode ter tanta certeza?", ela desafiou com a voz tremida, numa mistura de raiva e quase pânico.

Sarah entrou na conversa: "Escute o dr. Gilbert, Carrie. Ele é o melhor médico que temos em Lincoln. Jamais faria alguma coi­sa se não tivesse certeza".

O dr. Gilbert continuou: "Se demorarmos um pouco mais, srta. Brown, corremos o risco de enfrentar uma gangrena. No momento os tecidos vivos estão saudáveis". A face do dr. Gilbert era como uma máscara de compaixão enquanto ele se esforçava para explicar as coisas à jovem paciente. "Você é uma mulher co­rajosa e determinada, srta. Brown, mas está sofrendo muito. O termo científico é isquemia, ou seja, os vasos sangüíneos nas pon­tas de seus dedos foram congelados e já não conseguem carregar o sangue para os tecidos. No lugar onde não há circulação de san­gue, srta. Brown, os tecidos morrem. Precisamos agir para preser­var o tecido saudável no seu pé e remover a parte que não conse­guiu sobreviver, antes que a inflamação se espalhe." O dr. Gilbert fez uma pausa e depois prosseguiu: "Esperamos o quanto pude­mos, srta. Brown. Eu tinha esperança de que melhorasse, mas há o que nós chamamos de 'gangrena seca, delimitada'. Não há uma inflamação ativa. A pele está saudável acima daquela linha. Mas precisamos agir antes que suas condições piorem".

"Não-não-não!", Carrie gritou. Virou-se com lágrimas escor­rendo pela face.

Sarah falou novamente: "Vou ajudá-la, Carrie. Todos nós ire­mos ajudá-la. Estamos imensamente gratos por você ter sobrevivi­do, Carrie. Estamos começando a ouvir as histórias de muitos que não conseguiram. Foi uma tempestade trágica, realmente trágica".

O médico acrescentou: "Ainda é jovem, srta. Brown. Forte. Logo, logo poderá andar e ter vida normal".

Carrie gemeu: "Eu vou ficar mancando por aí com muletas, não é isto o que o senhor quer dizer? Um monte de algodão nas pontas de meus sapatos e mancando como uma velha". Gemem Io de dor, ela suplicou: "Saiam, me deixem sozinha".

Colocando a mão no ombro de Carrie, o dr. Gilbert tentou consolá-la: "A vida é dura, srta. Brown. Ela joga coisas que não queremos na nossa frente. Eu entendo mesmo o que sente, mas não vou deixá-la morrer. Você tem muito pelo que viver. Sei que bem no fundo de seu ser você sabe disto também. Sei também que você tem coragem para enfrentar esta situação". O dr. Gilbert foi até a porta acrescentando: "Precisa ter coragem, srta. Brown. Mui­tos outros, pegos pela tempestade, não tiveram a sua sorte. Mui­tos perderão mais do que dedos. Muitos morreram".

Do fundo dos travesseiros surgiu uma resposta abafada: "Eu preferia ter morrido também, dr. Gilbert". Carrie levantou a cabe­ça do travesseiro e fixou os olhos no médico, com lágrimas de raiva rolando pela face. "Não sei por que Deus simplesmente não me deixou morrer. Eu teria ficado melhor."

O dr. Gilbert balançou a cabeça. "É aí que você se engana, srta. Brown. Tenho certeza de que Deus tem um plano maior para sua vida. Ele lhe deu força para chegar ao feno. Ele levou Jim Callaway até você quando você não conseguia andar. E Ele provi­denciou para que você fosse muito bem cuidada pelas pessoas que a amam. Deus teve muito trabalho para que você fosse salva, Carrie. E eu vou observar para saber o que Ele fará com a sua vida quando você estiver bem."

Carrie tinha virado as costas e coberto o rosto. O dr. Gilbert viu a cama tremer com os soluços dela. Voltou e sentou-se ao seu lado, tentando novamente transmitir-lhe segurança. "Você terá de usar muletas, mas só no começo. Talvez aprenda a andar sem elas. Vou ajudá-la, e a srta. Biddle e a sra. Hathaway também vão. Pen­se nisso, srta. Brown. Ore a respeito. Quero levá-la para Lincoln para fazer tudo lá. A sra. Hathaway está quase louca de preocupa­ção e quer que você fique com ela." O dr. Gilbert levantou-se. "Agora descanse um pouco enquanto arrumamos tudo para transportá-la para Lincoln. Durma um pouco, se conseguir. Então voltarei e poderemos conversar um pouco mais, se quiser."

Jim estava parado à porta tentando não ser visto enquanto os outros conversavam sobre Carrie. Na primeira menção ao transporte de Carrie, ele fez um sinal para LisBeth, que se levantou e chegou até a porta. "Diga ao dr. Gilbert que estou arrumando o carroção, LisBeth. Já atrelei os cavalos e vou colocar no piso do carroção uma camada mais grossa de feno e aquela pele de búfalo velha."

LisBeth assentiu com a cabeça. "Podemos colocar também o colchão de penas do T. W. Vou pegar no baú da mamãe alguns acolchoados e aquecer alguns tijolos no forno. Vamos deixá-la o mais confortável possível." Jim saiu para a cocheira enquanto Sarah e LisBeth seguiam o dr. Gilbert até a sala, fechando a porta do quarto de Carrie e dirigindo-se para a parte extrema da sala, onde se assentaram em círculo, conversando em voz baixa.

"A Carrie poderia ficar aqui, dr. Gilbert", LisBeth protestou.

"E sei que seria bem cuidada, sra. Callaway, mas a senhora tem de tomar conta de um filho pequeno e de uma fazenda. A sra. Hathaway já avisou os avós da Carrie e eles virão assim que a estrada de ferro for desobstruída. Seria bem melhor operar Carrie agora. O frio forte pode durar ainda várias semanas. Hoje há sol e, se conseguirmos conservá-la aquecida, o ar fresco lhe fará bem. Ela tem sido forte, mas sei que está sentindo muitas dores. Ficará surpresa ao perceber o quanto se sentirá melhor depois que fizer­mos a cirurgia. E o melhor tratamento emocional para sua recupe­ração será ficar cercada pelos colegas da Universidade e pela família."

"Será que ela vai conseguir...", LisBeth mordeu os lábios e não quis continuar.

"Se ela cooperar em sua recuperação, será capaz de fazer tudo o que fazia antes."

"Exceto usar um anel de casamento", lembrou-se Sarah. "Esta foi a primeira coisa que ela mencionou quando voltou da primei­ra cirurgia."

O dr. Gilbert continuou: "Ela poderá andar, talvez sem mule­tas depois de algum treino. Se tudo correr bem, ela estará em pé, tentando aprender a andar em duas semanas. Casos deste tipo geralmente têm boa recuperação e oferecem prognósticos exce­lentes. Pelo que entendi, ela estava fazendo planos para lecionar. Não vejo razão alguma para ela não se tornar uma excelente pro­fessora. Se ela tiver este objetivo, será uma pessoa ainda mais for­te. Precisamos orar para que isto aconteça. Vocês...", o médico fa­lou olhando seriamente para LisBeth e Sarah, "vocês precisam fa­zer tudo o que puderem para que ela vença a amargura e autopiedade. Realmente não temos outra opção de tratamento."

O dr. Gilbert saiu e foi ajudar Jim arrumar o carroção enquanto LisBeth e Sarah foram preparar Carrie para a viagem até Lincoln. Jim Callaway levantou Carrie da cama sem muito esforço, mas o peso dos cobertores sobre seu machucado fizeram Carrie apertar o ombro de Jim. E chorar de dor.

O dr. Gilbert falou: "Depois de amanhã não vai doer quase mais nada, srta. Brown."

Com os dentes cerrados, ela murmurou: "Isto não me confor­ta muito no momento, dr. Gilbert". Enterrou o rosto nos ombros de Jim e segurou forte enquanto Jim a transportava para a parte traseira do carroção. Ali ela quase afundou em meio a tantos co­bertores.

"Posso sentar, dr. Gilbert?", ela perguntou.

"É claro que sim, srta. Brown."

Sarah ajudou Carrie, ajuntando travesseiros de penas e feno em suas costas até que ela pudesse enxergar para fora do carroção. Sarah subiu para sentar ao lado do dr. Gilbert. Bem no momento em que iam partir, LisBeth saiu correndo de dentro de sua casa com T. W. nos braços e um livro na mão.

"Quando estava desembrulhando os acolchoados da mamãe, pensei em lhe dar isto, Carrie. É a Bíblia de mamãe que tem todos os versículos preferidos dela grifados. Águia que Voa Alto nos mandou a Bíblia quando T. W. nasceu. Achou que deveríamos dá- la ao nosso filho mais velho. Acho que Águia que Voa Alto a usou bastante quando estava aprendendo a ler." A voz de LisBeth fa­lhou enquanto ela colocou a Bíblia sobre os acolchoados.

"Carrie, este acolchoado que está por cima é o que mamãe fez quando Cavalga o Vento morreu. Peça para tia Augusta contar a história inteira para você; talvez lhe traga algum conforto. E te­nho certeza de que esta Bíblia trará, se você a ler." LisBeth limpou as lágrimas. "Carrie. não desista. Nem por um minuto. Sei que Deus ama você. Sei que Ele cuida de você. No momento não pare­ce, mas Ele cuida."

"Obrigada, LisBeth", murmurou Carrie. "Não sei o que dizer neste instante, mas obrigada."

"Não precisa dizer nada, Carrie", Jim consolou-a delicadamen­te. "Simplesmente faça tudo o que puder para ficar boa, e saiba que estamos orando por você diariamente. As crianças do Distrito 117 vão querer que a professora volte o mais rápido possível."

O dr. Gilbert chicoteou os cavalos com o relho, e o carroção deslizou suavemente. LisBeth, com T. W. nos braços, ficou parada ao lado de Jim, acenando até o carroção sumir de vista. Carrie fechou os olhos, apertando-os bem devido ao brilho do sol, sor­vendo o ar fresco e gelado e escutando o cantar dos pássaros. Não tinham andado muito quando ouviu uma voz familiar. Carrie qua­se podia ouvir a voz da mãe dizendo: Escute isso, Carrie. Ele está lhe dizendo que você é linda-linda-linda. Piscando devido ao brilho do sol, Carrie viu um lampejo vermelho brilhante. O cardeal voava de ga­lho em galho na copa de uns arbustos ao longo da estrada, devo­rando vorazmente as cerejas queimadas pelo sol. A lembrança da mãe impressionou-a profundamente. Mamãe, a senhora perdeu sua beleza e sua saúde, mas continuou sempre servindo a Deus.

Baixando o olhar para o acolchoado que a cobria, Carrie pen­sou: A mãe de LisBeth, Jesse King... Lembro-me de Águia que Voa Alto falar sobre a senhora. Enterrou seu primeiro filho e o marido, perdeu Ágida que Voa Alto e ainda continuou amando a Deus.

Enquanto a fazenda dos Callaways desaparecia à distância, Carrie pesou: LisBeth, Mac morreu, mas você voltou para casa e conti­nuou a vida. E Augusta Hathaway veio para Lincoln quando isto não era nada ainda. Ela já era uma viúva. Encontrou sozinha o seu destino. No caminho todo para Lincoln, Carrie Brown foi tomada pela percepção das decepções e tristezas que todos ao seu redor haviam enfrentado. Ga­ranto que o dr. Gilbert tem algumas decepções, só que nós não as conhe­cemos. Todo o mundo que conheço passou por provações, mas a maioria não deixou que elas acabassem com suas vidas. Carrie piscou rejeitando as lágrimas. Por que eu não teria provações? O pássaro vermelho deu um trinado de novo, parando momentaneamente na neve. Preciso decidir. Posso deixar que isto me transforme numa pessoa amargurada e cheia de ódio, ou posso aceitar e continuar a vida. O dr. Gilbert diz que ainda poderei lecionar. Isso é algo bom. Diz que poderei andar. E se não pudesse? Pense em quão terrível seria.

Sob os acolchoados, Carrie juntou as mãos e sentiu as faixas em sua mão esquerda. A imagem do dedo onde se coloca o anel de casamento ausente a tomou de assombro. Bem, terei de encarar o fato de que talvez eu não... Lágrimas surgiram novamente. Carrie fez força para não pensar naquilo. Uma coisa de cada vez, Carrie. Hoje você tem de encarar uma cirurgia e o fato de que terá de aprender n andar novamente. Sofrimento suficiente para hoje. Vamos fazer as coisas um dia de cada vez. Não é isto o que o dr. Gilbert disse, e a LisBeth e a Sarah também?

Carrie chamou Sarah: "Sarah, será que poderíamos cantar ou fazer alguma coisa para passar o tempo?".

Sarah olhou para o dr. Gilbert admirada antes de responder: "É claro, Carrie. Pensei que você estivesse dormindo. O que você quer cantar?".

"Ah, qualquer coisa. Não, qualquer coisa não. O hino prefe­rido da mamãe. Vamos cantar Rocha Eterna."

A voz insegura de Sarah juntou-se à de Carrie e as duas can­taram suavemente:

 

               Rocha Eterna, separada para mim,

               Deixa esconder-me em Ti;

               Deixa a água e o sangue, fluídos do Teu lado,

               para a cura do pecado.

               Salva-me da culpa e do poder.

               Nada trago em minhas mãos,

               Apenas em Tua cruz seguro;

               Nu, chego-me a Ti para receber vestimentas;

               Sem ajuda, procuro a Tua graça;

               Ferido, para Tua fonte vou:

               Lava-me, Salvador, senão morrerei.

 

Quando terminaram o hino, Carrie pediu para o dr. Gilbert explicar-lhe novamente como seria a cirurgia. Conservou sua mente ocupada fazendo perguntas e antecipando sua recuperação, falando até que o barulho dos cascos dos cavalos e a monotonia da paisagem cheia de neve trouxeram-lhe o repouso abençoado do sono.

 

Quando os cavalos de Jim Callaway chegaram à porta da co­zinha do hotel, Silas Kellum já esperava para levar Carrie ao seu quarto, no apartamento de Augusta. Esta andava, mexia, alisava os travesseiros de Carrie, abria as sacolas, prometendo-lhe o me­lhor jantar que Cora Schlegelmilch pudesse preparar.

"Sarah", chamou Carrie. "Não se esqueça do acolchoado do carroção e da Bíblia que a LisBeth me deu. Não estou dormindo totalmente." Carrie virou-se para Augusta: "Dormi durante me­tade do caminho e acho que gostaria de ler um pouco".

Quando Sarah entrou pela porta do quarto carregando o acolchoado rasgado e a Bíblia de Jesse King, Augusta exclamou: "Como é que a LisBeth conseguiu pensar nisto?".

"Ela estava colocando todos os acolchoados, colchas e cober­tores disponíveis no carroção, preocupada em me aquecer", ex­plicou Carrie. "E disse para eu pedir que a senhora me contasse a história desta colcha. Será que a senhora poderia contar antes...?"

Augusta pulou para a cadeira de balanço perto da cama de Carrie. "É claro que posso, querida. Começa no ano de 1843, quan­do Jesse King cruzava o Estado de Nebraska com seu marido Homer e seu bebê Jacob. Homer King era um homem teimoso... " Augusta passou os trinta minutos seguintes contando mais uma vez tudo sobre Jesse King e o início da colcha de retalhos que ago­ra estava sobre a cama de Carrie Brown. Quando terminou, lim­pou as próprias lágrimas e falou suavemente: "Então, veja bem, Carrie, esta colcha é uma grande herança. É lógico que está toda rasgada, mas ela representa dor e cura. Tenho certeza de que é isto o que a LisBeth quis que você entendesse, Carrie. É por isso que todos nós estamos orando. Para que esta dor em sua vida seja curada e você continue a viver para ser uma bênção na vida de outros do mesmo jeito que Jesse King foi".

Carrie pensou muito antes de concluir: "Eu diria que tenho muitos exemplos a seguir quando se trata de cura de feridas, Augusta. Vou tentar deixar todos vocês orgulhosos de mim".

Augusta Hathaway ficou parada aos pés da cama de Carrie, balançando a cabeça satisfeita.

"Estou com um pouco de medo pelo que acontecerá ama­nhã", Carrie confessou, olhando para Augusta. "Mas o fato de me preocupar não ajudará nada, não é?" Carrie suspirou: "Então, é isso". Tentando sorrir, perguntou: "Posso jantar?".

Augusta foi até a cozinha do hotel, onde dr. Gilbert dava mais algumas instruções à Sarah. "Nestas horas desejo desesperadamente um hospital. No próximo ano minha clínica estará pronta. Mas, por enquanto, a srta. Brown terá de recuperar-se aqui. Ainda bem que meu consultório não é longe e podemos transportar a paciente facilmente." O dr. Gilbert virou-se para Augusta e disse: "Já que a srta. Biddle se ofereceu para ficar à disposição para os cuidados pós-operatórios, poderemos trazer a srta. Brown para cá assim que for concluída a cirurgia, e tenho certeza de que não haverá hemorragia após a amputação. Se tudo correr conforme o previsto, a srta. Brown voltará para seus novos aposentos ama­nhã à tarde".

Sarah levou o jantar para Carrie e sentou-se na cadeira de balanço enquanto a menina comia. De repente falou: "Acho que você está reagindo muito bem a tudo isto, Carrie, mas mesmo as­sim não vou deixá-la sozinha, pelo menos esta noite. Você não precisa dizer nem uma palavra para mim se não quiser. Vou tra­zer alguma costura e ficar bem quietinha. Caso você queira con­versar, estarei aqui. Não posso dizer que sei como você está se sentindo, Carrie, porque não sei mesmo. Mas entendo de perda e dor".

Augusta verificou se tudo estava bem, antes de deitar-se. Sarah levou para o quarto seu cesto de costura e colocou, ao lado, uma pilha de remendos prontos para montar uma colcha de reta­lhos. Acendeu o lampião a gás na escrivaninha de Carrie e ficou costurando quietinha, enquanto Carrie dormia.

Com o passar das horas Carrie começou a se mexer. Os so­nhos tornaram-se seus inimigos e ela acordou chorando e tremen­do, aterrorizada. Sarah segurou-a delicadamente: "Está tudo bem, Carrie, está tudo bem. Você é uma menina corajosa - todos nós sabemos disso -, mas mesmo os corajosos sentem medo. Fale-me sobre seu medo, quero ajudá-la".

"Não posso falar sobre isto, soluçou Carrie, não posso. Estou tentando confiar de verdade, Sarah, estou mesmo."

"Você está confiando, Carrie, e isso não quer dizer que você não deva derramar nenhuma lágrima ou ter medo."

Carrie levantou os olhos para Sarah. "Obrigada por ficar aqui comigo. Será que pode ler para mim? Aquela Bíblia da LisBeth; alguma coisa para preencher esta silêncio. Alguma coisa que me faça pensar nas coisas boas."

"Você não quer falar sobre o que a está perturbando?"

Carrie ficou quieta por um instante. Sarah pegou a Bíblia e abriu em sua passagem preferida quando Carrie começou a falar: "As pessoas vão ficar me olhando".

"É, acho que vão mesmo. Mas elas já não olham mesmo para você, Carrie? Você é uma mulher linda."

"Vou ser diferente."

"É, vai."

"Isto vai me deixar magoada." "Imagino que sim."

Depois de um longo silêncio, Carrie perguntou baixinho: "Você acha que um homem poderia amar...". Parou bruscamente. "Não importa."

"Eu acho", Sarah respondeu prontamente, "que um homem que tiver a grande sorte de ser amado por você será um tolo se deixar que alguma coisa o afaste de você."

"Como foi para você, Sarah? Quer dizer, não é horrível ficar sozinha?"

"Não, Carrie, não é horrível. É diferente, mas não horrível. É maravilhoso ajudar o dr. Gilbert a cuidar de um doente ou ajudar alguém a recuperar-se depois de uma doença grave. Esse tipo de coisa me deixa muito alegre. Tenho aprendido que existem outras coisas além do casamento, Carrie, que podem preencher a vida de uma mulher." Sarah insistiu: "Mas você nunca deve assumir que este acidente impedirá você de casar. Você vai se recuperar com­pletamente e poderá ter uma vida normal".

Carrie balançou a cabeça vagarosamente. "É, espero que sim. E acho que vou lidar com cada coisa a seu tempo. Não adianta ficar lutando com isto agora. Por favor, Sarah, leia para mim". Carrie afundou-se nos travesseiros enquanto Sarah começou a ler vagarosamente:

 

Quero trazer à memória o que me pode dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumi­dos porque as suas misericórdias não têm fim, renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade... pois, ainda que entristeça a alguém, usará de compaixão segundo a grandeza de sua misericórdia.

               Lamentações 3:21-23, 32

 

Enquanto Sarah lia, o rosto de Carrie foi relaxando e ela caiu no sono. Sarah continuou a ler texto após texto da Bíblia, os que estavam grifados ou pintados de alguma cor. Durante muito tem­po Sarah leu alto, com sua voz macia preenchendo o silêncio do quarto, afastando os sonhos que tinham assustado Carrie Brown, sonhos de rejeição, sonhos de uma vida sem marido, sem filhos, sonhos de uma vida de solidão.

 

Dá-me a conhecer, Senhor, o meu fim e qual a soma dos meus dias, para que eu reconheça a minha fra­gilidade. Deste aos meus dias o comprimento de alguns palmos; à tua presença o prazo da minha vida é nada. Na verdade, todo homem, por mais firme que esteja, é pura vaidade.

                         Salmo 39:4-5

 

A mesma tempestade que mudou a vida de Carrie assolou o vale do rio Cheyenne com ventos tão terríveis e tanta neve, que os indícios de civilização desapareceram quase totalmente. Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza viram a tempestade, junto com Marta e Tiago Asa Vermelha, em sua cabana, gratos pelo fogo abundante e pela comida que tinham ali. Quando a tem­pestade acabou, os Sioux que viviam na aldeia cavaram passa­gens na neve entre as tendas, mas à distância esses túneis eram praticamente invisíveis. Os únicos sinais de vida era evidenciados pela fumaça das fogueiras das tendas.

Dois dias após a tempestade, Águia que Voa Alto e David Nu­vem Cinza foram para o norte da aldeia a cavalo. Encontraram um inimigo que levaria à morte muito mais pessoas da congregação em crescimento do que a tempestade. Junto com uma pessoa vinda do Forte Randall, a varíola chegou à aldeia. Quando Aquele que Troveja primeiramente caiu de cama, reclamando que seus ossos estavam pegando fogo, ninguém se preocupou. Aquele que Troveja fora sem­pre um reclamador. Sua mulher cuidou dele de todas as formas. Ela já tinha começado a sentir seus ossos pegando fogo quando perce­beu que o rosto do marido estava coberto de manchas vermelhas. As manchas se espalharam e ficaram maiores, encheram-se de pus e então estouraram. Aquele que Troveja morreu, mas não antes de infectar toda a família. A doença espalhou-se rapidamente pela al­deia. Os que não estavam doentes começaram a ir embora. Os mem bros da família infectados eram deixados para trás.

Em meio ao terror e ao caos, Tiago Asa Vermelha foi buscar um médico. Águia que Voa Alto, David Nuvem Cinza e Marta Asa Vermelha, que tinham sido vacinados contra a varíola em Santee, fizeram o melhor que puderam para confortar os que es­tavam à beira da morte e assegurar-se de que entrariam na nova vida como cristãos. Improvisaram uma clínica numa tenda gran­de que tinha sido abandonada. Os doentes e os que estavam à morte eram carregados para ela, que logo ficou cheia. Eles gemi­am de dor e gritavam pedindo ajuda, enquanto Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza trabalhavam febrilmente tentando preservar a todos, mas sabendo que poucos seriam salvos.

Os dias se passaram, e não se ouvia falar de Tiago Asa Ver­melha. Quando uma mulher idosa e febril ofereceu sua sacola com remédios, Águia que Voa Alto ficou assombrado ao ver que havia nela Peshuta natiazilia. "Nós fervemos isto e então banhamos as feridas, David. Queria ter mais. Este aqui é chamado de poipie e ajuda a combater a febre. Fazemos chá com ele. Espero que o mé­dico chegue logo. Talvez ele traga algo melhor. Enquanto isto va­mos trabalhar à moda antiga."

Mas a moda antiga pouco alívio dava ao sofrimento causado pela doença que os Sioux nunca tinham enfrentado. Sem vacinas e imunidade, eles se tornavam-se vítimas indefesas do vírus da varíola. Dia após dia mais pessoas morriam. Dia após dia mais índios partiam tentando escapar da morte. Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza trabalharam da fadiga inicial até a exaustão, limpando as feridas, orando, tentando cada remédio caseiro que Marta conseguia lembrar.

Trovão em Movimento seguia os dois homens em toda a par­te, tentando ajudar de alguma forma. "Não estou com medo de morrer", ele explicava. "Encontrei Jesus e Ele virá para mim na hora em que eu tiver de partir. Acho que gostaria de ir para o céu. Agora tudo está triste demais para o meu povo".

Quando Águia que Voa Alto escutou este discurso simples, levantou-se da cabeceira de seu paciente e cambaleou para fora. Meio inconsciente, foi batendo nos montes de neve até encontrar a pequena escola que tinha ajudado a construir na trilha que vi­nha da cabana dos Asas Vermelhas. Entrou na cabana e prostrou-se no chão frio, gritando: "Deus, meu Deus, eles são o meu povo e estão morrendo". Começou a soluçar: "Ajude-me a salvá-los, meu Deus. O Senhor não enxerga dentro do meu coração? Está parti­do! O Senhor não vê o que está acontecendo aqui, Deus? Ou será que o Senhor não se importa com os poucos Sioux aqui do rio Cheyenne? Estão doentes, quase morrendo de fome. Como posso dizer que o Senhor os ama se o Senhor os deixa morrer?".

Águia que Voa Alto levantou-se, inclinado contra a parede da escola. "Espírito Santo, intercede por mim. Já não tenho mais palavras". E ficou ali, sentado no chão durante o que lhe parece­ram horas. Não tinha certeza se estivera dormindo, mas só perce­beu que o tempo havia passado quando escutou cascos de cavalo batendo no chão, rédeas arrastando-se e vozes. Olhando pelo ca­minho, viu que Tiago Asa Vermelha finalmente retornara. Apa­rentemente trazia um médico, pois havia um homem montado numa mula carregada com caixas e pacotes nas laterais.

Águia que Voa Alto disparou pelo caminho e seguiu Tiago para dentro da cabana. "Desde que você partiu, dez pessoas morreram", relatou tristemente. "Há pelo menos mais trinta contaminadas."

Um olhar em Águia que Voa Alto foi suficiente para Tiago Asa Vermelha perceber que seu amigo estava no fim de suas for­ças. "Você trabalhou bastante, Águia que Voa Alto. O dr. Harvey e eu iremos até a aldeia. Vamos mandar o David Nuvem Cinza para cá também. Vocês precisam descansar."

"Há mortos que precisam de cuidados."

"Vamos cuidar de tudo, Águia que Voa Alto. Fique aqui e durma um pouco."

Águia que Voa Alto não discutiu. Enquanto Tiago e o médico foram para a aldeia, Marta preparou uma refeição para Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza. Eles comeram mecanicamente e subiram a escada do sótão. David caiu em seu colchão de feno com um gemido. Águia que Voa Alto inclinou-se para tirar seus mocassins revestidos de pele. Depois disso, a única coisa que lem­brava era o cheiro de carne frita e café. Ao seu lado, David se esti­cou e resmungou: "Você sabe que horas são?".

Quando Águia que Voa Alto balançou a cabeça, David per­guntou a Marta. "Vocês dois subiram a escada do sótão ontem de manhã. Hoje é um novo dia e o sol está alto", ela respondeu.

David e Águia que Voa Alto se entreolharam sem acreditar Levantando-se vagarosamente, desceram a escada. Estava frio, mas o sol já brilhava e na distância era possível ver fumaça na aldeia.

Águia que Voa Alto sentou-se à mesa e perguntou: "O que foi feito para ajudar o povo?".

"O médico vacinou todos os que restaram e trouxe remédios para tentar curar os outros."

Marta colocou duas canecas de café diante dos dois homens. "Mais dez morreram ontem à noite. Muitos outros foram embora. Os únicos que ficaram foram os doentes ou os que estão morren­do. Em poucos dias estarão mortos ou prontos a seguir com suas famílias. Tiago disse que vamos ficar aqui para cuidar de todos. Então acha que devemos voltar para Santee até a primavera. Tiago acha que na primavera as pessoas voltarão. Este é um lugar bom para montar acampamento e viver. Quando souberem que a do­ença acabou, retornarão. Nós também precisamos de descanso e de tempo para planejar."

Com a perspectiva de retornar ao seu quarto na casa dos Asas Vermelhas, Águia que Voa Alto experimentou um sentimento de alívio. "Pensei que fosse perder a fé em Deus", falou baixinho.

"Isto é coisa de exaustão, meu amigo", a voz de Tiago Asa Vermelha soou na porta. "Até mesmo Cristo precisou descansar e passar um tempo sozinho na presença de Seu Pai. Desde que chegamos aqui, você não teve tempo para isso. A fé enfraquece quando o corpo não está revigorado. Nenhum de nós é incansá­vel, Águia que Voa Alto. A Marta sempre me lembra de que a fadiga nos torna vulneráveis à ronda do leão." Tiago sentou-se ao lado de Águia que Voa Alto e deu uns tapinhas em seu om­bro. "Deus tem consciência de que somos apenas pó. Não deseja que nos acabemos com excesso de trabalho. Você precisa lem­brar isto, certo?"

Marta Asa Vermelha completou: "Ou arrume uma mulher para lembrá-lo disto!".

David Nuvem Cinza e Águia que Voa Alto riram um para o outro timidamente. Para alívio geral, o dr. Harvey entrou na caba­na nesse momento. "Fizemos o que foi possível", ele falou. "Pre­ciso voltar ao Forte. Vou fazer meu relatório e a recomendação para que mandem um médico trabalhar aqui em tempo integral, começando na primavera."

Com algumas outras sugestões para os quatro missionários de como tratar os índios que haviam restado ali, o médico tocou seu cavalo e saiu em galope na direção sul.

Nos dias seguintes, os Asas Vermelhas, David Nuvem Cinza e Águia que Voa Alto completaram sua primeira temporada entre os Sioux do rio Cheyenne. A aldeia de quase cem pessoas tinha ficado vazia. Águia que Voa Alto e David Nuvem Cinza enrola­ram os últimos corpos mortos e encontraram lugares para colocá-los no alto das árvores voltadas para o vale do rio.

"O exército não aprovaria isto", observou Nuvem Cinza en­quanto puxava o último corpo para a forquilha de uma árvore.

"O exército ordenaria que deixássemos os corpos para os lo­bos ou queimássemos a aldeia inteira", resmungou Águia que Voa Alto. Olhou para Nuvem Cinza lá em cima e falou: "Graças a Deus não trabalhamos para o exército".

Os dois continuaram a trabalhar juntos em silêncio. Final­mente Águia que Voa Alto disse: "Não consigo entender nada disso que aconteceu aqui neste inverno. Pensei que tivéssemos iniciado um trabalho que iria perdurar. Mas um inimigo invisível chegou e levou as almas embora. Não consigo entender. Jamais conseguirei".

"Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos", citou Nuvem Cinza. "Voltaremos ao rio Cheyenne, Águia que Voa Alto. E, quando retornarmos, haverá almas esperando para ouvir sobre o Salvador. Vamos começar de novo."

Águia que Voa Alto virou-se para ir embora. "Não sei se te­nho forças para recomeçar. No momento só consigo pensar em voltar para o meu quartinho em Santee."

Enquanto os dois caminhavam para a cabana dos Asas Ver­melhas, Águia que Voa Alto falou: "Em Boston eu odiava estar cercado por prédios. Nunca via o céu, a campina... só conseguia pensar em voltar para o lugar que eu conhecia. Nunca imaginei que fosse olhar para isto", incluiu o grande vale do rio em seu gesto, "e sentir-me sozinho. Conheço estas montanhas, árvores e vales. Conheço o lugar bom para passar o inverno e para caçar". Ele parou na trilha. "Diga-me, David Nuvem Cinza, por que me sinto do mesmo jeito de quando estava em Boston? Voltei à terra de minha infância e ainda não estou satisfeito."

De volta à cabana, os dois montaram em cavalos e, juntamente com Tiago e Marta, começaram a caminhar ao longo do vale. Quando a trilha se alargou, David Nuvem Cinza apressou o cavalo para ficar ao lado do de Águia que Voa Alto. "Sei que as coisas não saíram como você planejou, meu amigo. Nós dois estamos decepcionados. Mas o trabalho continuará. O que está errado conosco não é a dificuldade com o trabalho." Águia que Voa Alto franziu a testa sem nada dizer. David sorriu e continuou: "O dr. Riggs disse o que precisamos fazer. E Marta Asa Vermelha deu o seu conselho. Àcho que nós dois deveríamos admitir que temos uma necessidade absoluta e urgente de esposas".

Águia que Voa Alto abriu a boca para responder, mas David o interrompeu: "Você me falou que tem pensado nisso. Pare de pensar tanto, amigo. Faça alguma coisa. Ou você acha que Deus deveria colocar uma mulher na sua frente com uma placa na testa escrita 'Para Ágtiia que Voa Alto'?".

Águia que Voa Alto deu uma risadinha forçada e balançou os ombros.

Eles caminharam em silêncio por um tempo e então David falou: "Não deveria ser tão difícil para você, Águia que Voa Alto. Posso citar pelo menos três candidatas nos vários postos da mis­são entre este lugar e Santee caso você precise de ajuda. E", acres­centou Nuvem Cinza, meio brincando, "quando a Charity Bond e a Carrie Brown estavam aqui no outono, percebi que a Carrie Brown já está bem crescidinha, numa idade aceitável."

Com a surpresa de Águia que Voa Alto, David riu de novo e com gosto, de forma que sua risada encheu o vale e ecoou pelas margens. Com a risada de David, as corças que bebiam água no rio a pouco mais de um quilômetro levantaram as cabeças juntinhas, como se fossem um único animal, e ficaram escutando. Uma águia voando no alto ficou observando suspeitosamente o cânion. E os missionários de Santee caminharam como pequenos ponti­nhos movendo-se ao longo da margem do ribeiro enquanto o sol brilhava na neve intacta.

 

O que acha uma esposa acha o bem, e alcançou a benevolência do Senhor.

                       Provérbios 18:22

 

Quando os viajantes do rio Cheyenne entraram em Santee, apearam em frente da casa de Alfred Riggs e entraram em fila, enfraquecidos. O dr. Riggs os elogiou pelo trabalho de fé e con­cordou que, após uma temporada, David Nuvem Cinza e Águia que Voa Alto deveriam retornar, talvez com a ajuda de mais pessoas.

"Enquanto isso", o dr. Riggs aconselhou, "voltem para casa e descansem. Tiago e Marta, nós vamos orar por outro casal que continue o trabalho que vocês começaram. Nesta primavera, a fa­zenda de vocês precisará de cuidados. Jeremias disse que gostaria de visitar a irmã e conhecer o sobrinho. Acho uma boa idéia. Se arranjássemos, você gostaria de falar em umas duas igrejas em Lincoln, Jeremias?"

Águia que Voa Alto fez que sim balançando a cabeça. "É cla­ro. O senhor não tem nada para eu fazer aqui em Santee?"

"Sabe, Jeremias, acho que você deveria gastar este tempo des­cansando e lendo a Palavra de Deus. Todas as pessoas precisam de um tempo de lazer. Mal posso imaginar a exaustão física pela qual vocês passaram. É preciso cuidar-se para não entrar em exaustão espiritual similar a esta."

Os missionários juntaram-se ao dr. Riggs para orar e levanta­ram-se para sair. Quando se preparavam para deixar o escritório, David Nuvem Cinza voltou-se para perguntar: "Dr. Riggs, será que o senhor tem um tempinho para eu lhe fazer uma pergunta particular?".

Águia que Voa Alto e os Asas Vermelhas montaram em seus cavalos para ir até sua casa. Ao passar pelo Ninho dos Pássaros, Charity Bond aproximou-se correndo. "Águia que Voa Alto, eu estava olhando para fora e os vi. Há uma carta da LisBeth para você. Já faz um bom tempo que chegou, mas não havia como enviá- la." Charity chegou até ele e entregou a missiva. "As últimas notí­cias que tive da LisBeth foram do mesmo tempo em que esta carta foi colocada no correio. Quero que você saiba que tudo está bem lá. Provavelmente lerá algo que irá preocupá-lo, mas está tudo bem. Não vou falar mais nada." Charity virou-se para ir embora, mas parou e disse: "Estou feliz por terem voltado a salvo. Temos orado por vocês. Por favor, Marta, se eu puder ajudar em alguma coisa para vocês se reinstalarem, procure-me, certo? Haverá uma reunião da Sociedade de Costura na sexta-feira. Se você puder participar, vai ser maravilhoso".

Marta Asa Vermelha garantiu a Charity que estaria presente na reunião e seguiu Tiago e Águia que Voa Alto até a trilha para sua casa. Descobriram que um animalzinho do tipo de um quati tinha morado ali durante sua ausência. Os três passaram a maior parte do dia limpando a cabana para que ficasse como Marta a tinha deixado alguns meses atrás. Já era noite quando Águia que Voa Alto acendeu o lampião em seu pequeno quarto e, deitado de costas em sua cama, abriu a carta de LisBeth.

Só tinha lido algumas linhas quando se sentou bruscamente agarrando e balançando a carta fortemente, lendo e relendo-a.

 

Oramos para que você estivesse dentro da cabana, a salvo no momento da tempestade. Por favor, tente escrever o mais rápido que puder para me dizer se está bem. Jim estava no meio do caminho para casa, vindo de Lincoln quando foi pego pela tempestade, mas como grudou em seu cavalo, conseguiu chegar a salvo sem nenhum ferimento.

Carrie Brown não teve a mesma sorte. Ela conseguiu sal­var dois de seus alunos usando sua mula esperta. Lakota os trouxe para casa. Mas Carrie ficou perdida na neve, passou a noite em um monte defeno que Deus miraculosamente provi­denciou quando ela já não tinha mais forças.

O dr. Gilbert e Sarah Biddle cuidaram dela de uma forma excelente, mas foi necessário...

 

Águia que Voa Alto piscou os olhos e leu novamente. Colo­cou a carta no chão e limpou as lágrimas. Pássaro Vermelho - pega por uma tempestade - Pássaro Vermelho - com medo e sozinha - machucada - agora recuperando-se, mas jamais a mesma.

Charity Bond tinha dito que as coisas estavam bem, que ele leria algumas notícias ruins, mas tudo estava certo agora. Como ela sabia? Como era tarde, Águia que Voa Alto esperou uma noite inteira sem dormir antes de cavalgar até Santee. Ele estava obser­vando e reparou quando uma luz se acendeu na cozinha do Ni­nho dos Pássaros.

Charity pulou com o barulho da batida na porta. Águia que Voa Alto não esperou resposta para abrir a porta. "Você disse que tudo está bem. O que está bem? Conte-me o que você ficou saben­do." Seu rosto estava marcado pela tristeza, e a voz estava dife­rente da que Charity sempre conhecera.

"LisBeth escreveu que a Carrie voltou para Lincoln, que a cirurgia foi um sucesso e que ela está recuperando-se muito bem, Águia que Voa Alto. Não precisa se preocupar. LisBeth diz que o progresso dela tem sido incrível. Ela está planejando retornar à escola para lecionar o mais rápido possível."

Charity tinha começado a acender o fogo para aquecer água para o café. Com a preocupação na voz de Águia que Voa Alto, ela parou e olhou para ele. Ele estava parado logo após a porta do fundo, com um olhar que Charity nunca vira. "Sente-se, Águia que Voa Alto, por favor. Vou fazer um café para você."

Águia que Voa Alto obedeceu mecanicamente. Enquanto Charity tentava juntar seus pensamentos, Águia que Voa Alto dis­se: "Foi a preocupação dela comigo que me levou a Cristo".

"É, eu sei", Charity falou suavemente.

"O espírito dela sempre...", ele explicou desajeitadamente, "esteve aqui." Ele indicou seu coração. De alguma forma ela sem­pre esteve comigo, uma menininha que olhou para um índio sel­vagem. Ele parou e olhou para Charity. "Sei que é bobagem mi­nha falar desta forma", levantou e continuou, "mas eu só queria saber se ela estava bem."

Olhando para Águia que Voa Alto, Charity Bond sabia o que deveria dizer. "Águia que Voa Alto, acho que você deve visitar pessoalmente a Carrie e ver como ela está. A LisBeth escreveu que você quer conhecer seu sobrinho. Ele já deve estar andando. Tal vez já seja hora de visitá-lo". Acrescentou com certa intenção: "A ele e a Carrie".

"É, acho que você tem razão." Águia que Voa Alto levantou- se tão bruscamente quanto entrara.

Logo que ele saiu, David Nuvem Cinza apareceu no portão e convidou-se para um café. "Já que seu primeiro pretendente não ficou para o café, posso acompanhá-la?"

Um pouco embaraçada, Charity convidou David para entrar e serviu-lhe café. "Lá vai um homem torturado", disse David apon­tando para Águia que Voa Alto.

"Torturado?"

"Precisa de uma mulher e parece não perceber. Eu, ao contrá­rio, sou um homem sábio, tenho a sabedoria do meu povo." Colo­cando a caneca na mesa, David Nuvem Cinza levantou os olhos para Charity. "Por favor, srta. Bond, poderia sentar-se?"

Charity sentou-se com uma expressão de dúvida.

"Você gostou de seu trabalho no rio Cheyenne, srta. Bond?"

Charity sorriu com sinceridade: "Sim, é claro".

"E estaria interessada em voltar lá na primavera para traba­lhar durante mais uma temporada?"

"O dr. Riggs falou que eu preciso ir? Preciso escrever para a Carrie e ver se ela pode ir. Trabalhamos tão bem juntas!"

"Srta. Bond, tenho outro parceiro em mente para você."

"Quem?"

"Eu."

"Você?"

"Eu."

Charity olhou para David Nuvem Cinza admirada. "Mas..."

"Esta idéia a deixa revoltada?"

Charity corou. "De forma alguma, mas..."

"Podemos orar durante uma temporada e ver o que Deus

fará?"

Ela hesitou. "Não sei muito bem o que dizer, David."

"Não diga nada, Charity, simplesmente ore. O dr. Riggs dis­se-me há bastante tempo para eu encontrar uma esposa. Esta é uma forma nada romântica de começar, mas muitos casamentos bons começaram de formas estranhas".

"É. Acho que sim." Como solteira e coordenadora em Santee, há muito tempo Charity tinha aprendido a comportar-se de ma­neira irrepreensível diante dos homens. De repente ela olhou para David Nuvem Cinza com os olhos de uma mulher. Gostou do que viu. Ela sempre gostava do que via quando David Nuvem Cinza entrava em uma sala, mas nunca conseguira admitir. Percebeu que iria orar mesmo por aquilo durante a temporada. Mas ela tinha a leve sensação de que a temporada seria muito curta até perceber que poderia amar David Nuvem Cinza.

 

E não somente isto, mas nos gloriemos nas própri­as tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a esperança não con­funde, porque o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado.

                   Romanos 5:3-5

 

Carrie Brown acordou cedo após uma noite quase sem dor­mir e caminhou vagarosamente até a cozinha dos Callaways, onde tentou em vão acender o fogo para ferver água para o café sem acordar LisBeth. Logo que se sentou numa cadeira, LisBeth estava à porta perguntando: "Você está bem, Carrie?"

Carrie levantou os olhos da Bíblia aberta na mesa e suspirou: "Desculpe-me, LisBeth. Não queria acordá-la".

"Ouvido de mãe, Carrie. Na verdade, não foi você que me acordou. T. W. deve ter tido um sonho ruim. Agora voltou a dor­mir." Com um sorriso, LisBeth olhou para fora em direção ao les­te. "É quase dia, de qualquer forma. Já era hora de eu me levantar também." Despejou café em sua caneca e sentou-se em frente de Carrie. "Você está nervosa pelo dia de hoje?"

"Morrendo de medo", admitiu Carrie, com mais medo do que naquele primeiro dia no último outono. Tomou um gole de café. "Gostaria de ter aprendido a andar sem as muletas. Seria mais fácil para as crianças e", ela admitiu, "muito mais fácil para mim. Poderíamos fingir que não havia nada diferente por alguns minutos."

"Carrie", LisBeth disse com sinceridade, "se você não agir com preconceito em relação à mudança, então aá crianças imita­rão a líder. Tire o mistério de todas as coisas. Simplesmente seja aberta e honesta. Deixe-as perguntar o que quiserem. Você se sairá bem."

LisBeth debruçou-se sobre a mesa e deu um tapinha na mão de Carrie. "E rião esqueça, Carrie, você é a nossa heroína local. Salvou a vida de Tess e Ned Carter."

Carrie balançou a cabeça. "Acho que esta honra é da Lakota. Esta pequena mula não desistiu. Quando fui para o lado errado, ela empacou. Eu não tive mesmo outra escolha a não ser deixá-la guiar." Carrie sorriu. "Quem poderia imaginar que Deus usaria esta pequena mula de tal forma?"

Carrie olhou para fora da janela o céu tingido de rosa. "Eu quase podia ouvir a voz de Águia que Voa Alto dizendo: Siga o cavalo, Carrie, siga o cavalo. Eu jamais pensaria em fazer isto. Tería­mos andado em círculos na tempestade e morrido. Preciso escre­ver e agradecer ao Águia que Voa Alto."

"Você não precisa escrever, Carrie. Pode dizer-lhe pessoal­mente, pois a qualquer dia ele chegará."

O rosto de Carrie ficou sem expressão, mas ela tirou a mão esquerda da de LisBeth e colocou-a embaixo da lapela, mexendo-se nervosamente na cadeira.

LisBeth explicou-lhe: "Você chegou tão tarde ontem da cida­de que me esqueci de contar. Jim trouxe uma carta da Charity. Ela escreveu que o Águia que Voa Alto e os outros tinham acabado de voltar do rio Cheyenne". LisBeth levantou-se e saiu da cozinha voltando em seguida com uma carta na mão. "Graças a Deus ago­ra sabemos que eles estão salvos. Aqui, Carrie, você precisa ler esta parte".

Carrie leu as notícias de Charity sobre o problema no rio Cheyenne e os planos de retornarem na primavera. Seu coração doeu ao pensar em Águia que Voa Alto e nos outros trabalhando tanto e perdendo tantas pessoas para a varíola. Então leu algo que fez seu coração bater um pouco mais forte.

Eles chegaram de manhã e reuniram-se com o dr. Riggs. Dei sua carta para o Águia que Voa Alto quando eles passa­vam aqui em frente em direção à casa dos Asas Vermelhas. Disse a ele que eu ia escrever e contar a você que ele estava bem. Mas, quando acendi o lampião na manhã seguinte, ele estava lá fora, esperando. Ele deve ter ficado esperando até eu acordar. Nunca o vi tão triste. Na verdade ele tinha lágrimas nos olhos quando falou sobre Carrie.

Espero não ter me intrometido, mas encorajei-o a ir visi­tar Carrie. Em seu rosto está a marca do trabalho desta tempo­rada. Ele está com rugas de preocupação e de certa forma não parece feliz. Estou contente por ele estar indo visitar vocês. Acho que algumas semanas com o T. W. com a sua comidinha e ajudando o Jim no trabalho ao ar livre, longe das preocupa­ções do trabalho missionário, lhe farão muito bem.

É claro que você vai querer prepará-lo para as mudanças físicas de Carrie. Mas as mudanças espirituais dela que li em sua carta me encorajaram bastante. É uma bênção saber que ela está se adaptando à vida nova sem amargura. Sei que de alguma forma isso se deve ao fato de você ter compartilhado a Bíblia de sua mãe com ela, LisBeth. Louvo a Deus, que colocou isto em seu coração para tirar a atenção de Carrie de si mesma e colocá- la no seu Senhor.

Esta manhã li I Pedro 4:19: "Por isso também os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem as suas al­mas ao fiel Criador, na prática do bem". Todos nós vimos este versículo vivenciado por Carrie Brown e espero que você a dei­xe ler esta carta para que ela saiba o quanto estou sendo encorajada pelo testemunho dela. Continuo orando para que ela possa retornar conosco para o rio Cheyenne nesta primavera.

Você perguntou como vão as coisas conosco. Bem, esta é a outra notícia que preciso compartilhar com você. Logo depois que Águia que Voa Alto saiu do Ninho dos Pássaros, advinha quem é que entrou em minha cozinha? O David Nuvem Cin­za. E adivinha o que ele queria? Ele tinha conversado com o dr. Riggs, que aparentemente o encorajou a falar comigo. LisBeth, ele me pediu para pensar em retornar ao rio Cheyenne como sua esposa! Então, caso você tenha ficado admirada, saiba que não ficou mais admirada do que eu. Sempre pensei que minha vida seria dedicada exclusivamente às crianças em Santee. Deixei de sonhar com o casamento há muito tempo. Não é in­teressante que, bem quando desistimos dos nossos próprios pla­nos, Deus, "que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos, ou pensamos...", atua? Você não acha que Ele só quer que abandonemos os planos e paremos de tentar fazer as coisas acontecer por nós mesmos, para então Ele derramar as bênçãos? Teologicamente não entendo estas coisas, porém uma vez mais fico boquiaberta e humilho-me diante de Seus feitos.

Você ficará mais admirada ainda em saber que aceitei consi­derar o pedido. Sei que não é muito romântico, mas acho que muitos casamentos felizes acontecem entre bons amigos, e David Nuvem Cinza está se tornando, rapidamente, um grande amigo meu. Te­mos muitos meses para construir esta amizade. E na verdade ad­mito que, quando o vi subindo o caminho para tomar café comigo (à vista de todo mundo, é claro), alguma coisa aconteceu a este velho coração. Ele me faz rir e até mesmo disse que me admira.

Sempre penso no dia em que minha mãe pediu para você e Augusta me convencerem a não vir para Santee. Será que ela imaginou que eu seria cortejada por um Sioux de Santee? Prova­velmente teria me amarrado a uma cama! Mas Deus tem o seu tempo para cada coisa e, quando finalmente me enchi-me de cora­gem para escrever a ela contando sobre o David, ela quis saber apenas se havia alguma possibilidade de ela também ir para o rio Cheyenne. Ela escreveu o seguinte: "Você acha que uma mulher velha pode servir para alguma coisa num trabalho deste? Fico com o coração partido ao pensar em você aí tão longe e eu sozinha aqui em Lincoln. Ainda tenho boa saúde e talvez possa ajudar com coisas como costurar - ou até mesmo lidar com a horta".

Dá para acreditar? Minha mãe, que nunca cuidou de sua pró­pria horta e jamais desejou que sua filha única saísse de Lincoln, agora se oferece para seguir afilha e o genro índio até o oeste selvagem e cuidar da horta deles! Acho que Deus fez um milagre em todos nós, não é? Por favor, ore por nós, que estamos esperando Sua direção. Estou começando a ter dificuldades em orar objetivamente. David Nuvem Cinza pode não ser tão lindo quanto Águia que Voa Alto, mas tem uma luz nos olhos e alguma coisa em seu sorriso.

 

Carrie devolveu a carta à LisBeth sem fazer comentário al­gum. Jim entrou na cozinha e ela perguntou: "Jim, não quero in­comodar, mas assim que você puder... eu gostaria de chegar à es­cola antes das crianças". Olhou para LisBeth e continuou: "Gosta­ria de estar sentada à escrivaninha no primeiro dia até que eles se acostumem às coisas".

Jim interrompeu-a com uma voz encorajadora: "Por favor, Carrie, você não precisa preocupar-se nem um pouco com as cri­anças. Você é a heroína para cada uma delas. O que você fez pela Tess e pelo Ned, sacrificando a própria vida...".

"Mas estou um pouco nervosa e sinto-me melhor desta forma."

Jim assentiu com a cabeça e foi até a porta. "Só vou levar uns minutinhos para atrelar os cavalos. Quando eu voltar, faço o que preciso aqui."

"Obrigada, Jim." Carrie sentou-se à mesa esfregando as costas da mão, perdida em seus pensamentos, e passou o dedo na cicatriz no lugar onde o dr. Gilbert removera dois dedos congelados. Não queria admitir, mas um nó começava a se formar em seu estômago com a perspectiva de ver mais uma vez Águia que Voa Alto. Por que ele se apressou tanto? Se tivesse esperado mais tempo na primavera, eu já poderia estar sem as muletas. Examinou a si mesma. E por que isto me preocupa? É apenas um amigo vindo ver uma amiga. Então, por que me preocupar?

O barulho do carroção aproximando-se da casa a fez desper­tar de seus pensamentos. Foi até o fundo da casa, vestiu seu casa­co e as luvas.

"O dia vai ser bonito, Carrie", LisBeth falou. "Não tenha medo, tudo vai dar certo."

Carrie abanou a cabeça sem dizer nada e mancou vagarosa­mente até a porta e então pela varanda. Jim levantou-a até o ban­co do carroção. Ela respirou fundo. "Obrigada, Jim. Gostaria de encontrar uma forma de subir no carroção sem precisar de ajuda."

"Um cavalheiro sempre ajuda uma mulher a subir e a descer de um carroção, srta. Brown." Jim chicoteou os cavalos com o relho e eles correram em direção à escola. Cinco quilômetros respirando o ar da primavera ajudaram bastante Carrie a relaxar. Ela olhou para a chami­né da escola e ficou aliviada ao ver que ninguém tinha chegado mais cedo para fazer uma surpresa à professora, acendendo o fogo.

"Você se incomoda em pegar alguns gravetos para mim, Jim? Nos próximos dias vou pedir voluntários para esta tarefa."

"Não é problema nenhum, é um prazer." Jim direcionou o carroção para a porta da escola. "Olhe, Carrie, já que isto incomo­da você, vou tentar aproximar-me o máximo dos degraus. Talvez dê para encostar..." Jim manobrou o carroção de forma que Carrie pudesse descer sozinha, pisando no segundo degrau de cima.

Ela agradeceu sorrindo. "Obrigada, Jim."

Um minuto antes de Carrie descer do carroção, Ned Carter gritou de seu lugar na porta da escola para avisar os colegas que a srta. Brown estava chegando. "Eles estão vindo!", ele avisou, cor­rendo da porta e ficando em seu lugar na frente da classe, onde os alunos estavam enfileirados atrás da mesa da professora.

A srta. Brown estava tão concentrada no manejo das mule­tas, casaco, luvas e chapéu que nem deu uma olhada em direção à frente da sala. Tirou o casaco e pendurou-o, quando algo a fez olhar para sua escrivaninha. Havia duas fileiras de rostos radian­tes encarando-a.

Carrie corou, furiosa, e andou mancando, tentando tirar a saia da frente para poder manejar melhor as muletas. Antes que pu­desse virar completamente, os alunos começaram uma canção. As vozes infantis, como gorjeados incertos, terminaram de cantar com uma nota afinada, mas somente depois que Carrie já tinha ouvido muitas outras músicas lindas. Ela piscava para impedir que as lágrimas caíssem e murmurava nervosamente agradecimentos aos alunos, que nem escutaram, pois se amontoavam no meio do cor­redor e ao seu redor disputando para ajudar-lhe.

Tess Carter alcançou e cobriu a mão de Carrie com a sua pró­pria. "Posso ajudá-la a andar até a frente, srta. Brown?"

"Não!", protestou Matthew Glenn. "Você é muito pequena. Eu vou ajudar a professora."

"Não, eu."

"Você disse que eu podia ajudar!"

"Crianças!", Carrie quase gritou fingindo-se de brava. Quan­do silenciaram, ela agradeceu docemente. "Muito obrigada mes­mo, Matthew, Philip, Tess e Ned. Mas vocês vão se sentar agora." Ela mal tinha acabado de falar e as crianças obedientemente to­maram seus lugares. Viraram-se para olhar Carrie.

Carrie deu pequenos passos no corredor, mantendo as costas eretas, colocando as muletas no chão cuidadosamente e esperan­do. Olhando para a gaveta de sua mesa, Carrie perguntou com suspeita: "Ned Carter, se eu abrir esta gaveta vou encontrar algu­ma surpresa?".

As crianças riram e Ned ficou vermelho, parado. "Não, se­nhora, as cobras ainda tão hibernando, senhora."

Quando as risadas cessaram, Carrie ficou repentinamente séria. "Sou muito grata ao nosso querido Senhor por cada um de vocês estar de volta na escola. Naquele dia da tempestade, en­quanto estava caída no monte de feno, fiquei orando para que Deus cuidasse de cada um de vocês." Carrie esforçou-se para con­tinuar: "Agora todos sabem que tive de passar por uma cirurgia depois da tempestade. Ainda estou andando de muletas, mas o médico diz que, se eu me esforçar bastante, logo, logo poderei deixá-las de lado. Espero que todos vocês estejam aqui no dia em que eu queimá-las neste fogo. O que me faz lembrar que ninguém ainda começou a acender o fogo".

Jim entrou pela porta de trás com os braços cheios de lenha no momento em que Carrie pedia: "Ned, você nos daria a honra hoje? Então, preciso de voluntários".

Várias mãos levantaram-se e a lista de alunos para acender o fogo logo foi completada. De trás da sala Jim deu uma batidinha no chapéu e balançou a cabeça para Carrie, saindo por trás para voltar aos trabalhos da fazenda.

Carrie perguntou: "Então, se vocês não tiverem nenhuma outra pergunta...".

Tess Carter levantou a mão.

"Tess, você quer fazer uma pergunta?"

Tess balançou a cabeça seriamente e levantou-se de sua ca­deira. Aproximou-se da mesa de Carrie e fitou com os olhos arre­galados a mão esquerda da professora. Carrie resistiu ao ímpeto de envolvê-la e colocá-la sob lapela. Limpando a garganta, Carrie perguntou suavemente: "O que você quer perguntar, Tess? Tudo bem, não precisa ter medo".

Delicadamente Tess afagou a mão de Carrie. Seus olhos encheram-se de lágrimas e seu pequeno queixo tremeu quando ela perguntou num cochicho: "Isso dói, srta. Brown?". Ela levantou os olhos amorosos e esperou a srta. Brown responder. A garganta de Carrie ficou grossa ao tentar explicar: "Não, Tess. Não dói nem um pouco". Tess não ficou satisfeita. Balançou a cabeça num mo­vimento afirmativo, mas uma lágrima escorreu pela bochecha. "Eu fiquei pensando, srta. Brown, se o Ned e eu não tivéssemos mon­tado a Lakota naquele dia, a senhora tinha, a senhora tinha..." A voz de Tess ficou mais baixa e ela começou a soluçar: "Desculpe-me, srta. Brown. Nós não queríamos que a senhora...".

Carrie quase se descontrolou. Pegou a mãozinha de Tess e apertou-a puxando a menina para seus braços. "Ah, Tess. Doçura, querida Tess. Jamais pense, nem por um momento, que eu me arrependi de levar você e o Ned comigo. O Ned não deixou você quentinha dentro do casaco dele? E a Lakota não os levou para casa? Então, não foi culpa sua. Eu fui muito boba de ficar seguran­do na cauda da Lakota. E Deus não providenciou um monte de feno quando precisei? Então, Tess, ainda posso andar e dar aulas e, veja, Tess...", Carrie levantou sua mão e correu o dedo de Tess pela cicatriz. "Veja, querida, não dói nada. Ainda posso andar e consigo fazer praticamente tudo o que fazia com esta mão. Tam­bém posso fazer a coisa mais importante, Tess. Ainda posso abra­çar meus alunos!" Carrie abraçou Tess. Olhando para o restante dos alunos, ela falou: "Aprendi que a melhor forma de lidar com o medo é falar sobre ele. Então se você ou qualquer outro aluno quiserem conversar sobre alguma coisa, podem me falar. Não fi­quem com medo de me pedir isto, certo?".

Nenhuma mão se levantou, e assim Carrie começou sua aula.

"Nesta manhã", ela começou, "acho que vamos começar es­crevendo uma redação. Vai se chamar 'A tempestade de 1886' e quero que cada um de vocês escreva tudo o que lembrar sobre ela: como você se sentiu, como ela afetou sua família, tudo o que pu­derem lembrar. Vamos colocar nossas redações num livro e algum dia, quando alguém quiser saber como foi, poderá ler muitas lem­branças nossas. Agora podem começar. Vamos trabalhar durante vinte minutos e então teremos um intervalo rápido e depois vol­taremos ao estudo da Guerra Revolucionária." Um barulho veio da fileira do fundo. Carrie olhou para Philip Damrow. "Isto me lembra, Philip, que você ia justamente falar de cor o preâmbulo da Constituição no dia em que precisamos dispensar os alunos mais cedo. Estude e prepare-se para a sexta-feira."

A Escola do Distrito 117 em Roca, Nebraska, estava de volta às aulas.

 

Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará.

                   Isaías 14:24

 

Jim Callaway estava ajuntando o feno na cocheira de Lakota quando a viu levantar a cabeça lá no lugar onde estava fun­gando em meio ao feno fresco. A mula parou de mascar por um momento. Suas orelhas pequenas levantaram-se para a frente e ela se pôs a escutar atentamente. Jim parou de mexer no feno com o rastelo e inclinou a cabeça tentando escutar alguma coisa. Um cavalo descia pela estrada. O barulho dos cascos foi ficando mais alto à medida que o cavalo entrava na fazenda. Jim foi até a porta do estábulo e espiou para fora bem a tempo de ver Águia que Voa Alto apear do cavalo e levá-lo até o poço.

No mesmo instante em que Jim deixava a cocheira, LisBeth saiu da casa. "Como você nos encontrou? Como descobriu onde morávamos?"

"Encontrei o estábulo em Lincoln e Joseph Freeman me ensi­nou a chegar aqui."

"Mas como você encontrou Lincoln?"

Águia que Voa Alto terminou de puxar o balde cheio de água do poço fundo. Colocou-o no chão para o cavalo beber e encos­tou-se na parede do poço, empurrando o chapéu para trás e lim­pando o suor do rosto com as costas da mão. "A planície de sal", ele disse, com a maior naturalidade. Como LisBeth não entendes­se, ele balançou a cabeça e explicou: "Você acha que os brancos que fundaram a cidade de Lincoln foram os primeiros a ver as planícies de sal? Os Sioux e outras tribos as conhecem muito antes de qualquer branco imaginar que existissem. Eu conhecia o cami­nho até as planícies de sal. Depois de chegar lá, segui os trilhos do trem até a estação e o estábulo em frente. Por tudo o que você me contou sobre o Joseph Freeman, eu sabia que ele iria me ajudar a encontrar você".

Jim pegou a rédea do cavalo. "Vou providenciar o descanso para o seu cavalo, Águia que Voa Alto. Você pode ir entrando com a LisBeth. Sei que quer ver o T. W.". Jim virou-se para o lado do estábulo e Águia que Voa Alto seguiu a irmã para dentro de casa e pela cozinha até o quarto onde T. W. dormia.

"Ele ainda tira uma soneca toda manhã", cochichou LisBeth, "mas logo acordará."

Águia que Voa Alto olhou o bebê dormindo e murmurou: "Ele tem o queixo de nosso pai".

Os dois voltaram para a cozinha, onde LisBeth respondeu: "É, pensando no que você me contou, eu também acho que tem. Os olhos são verdes como os do pai dele".

Águia que Voa Alto foi até a porta. "Vou ajudar o Jim com o cavalo." Saiu sem esperar a resposta de LisBeth.

No estábulo, Jim tinha acomodado o cavalo de Águia que Voa Alto e o escovava. No caminho fora do estábulo havia uma caixa de couro e um saco de viagem. Quando Ágüia que Voa Alto entrou, Jim comentou balançando a cabeça: "Parece que você Vai ficar um bom tempo conosco. Fico feliz com isto".

"O dr. Riggs acha que preciso daquilo que ele chama de 'tem­po de refrigério'."

"Pelo que ouvimos de Charity Bond sobre a sua viagem ao rio Cheyenne, o dr. Riggs está certo", Jim respondeu. Ele estava acariciando a cauda do cavalo e quase levou um coice. Com uma risadinha, caçoou: "Pelo jeito você não domou este cavalo, hein?".

Águia que Voa Alto sorriu: "Não, não domei. Mas pretendo acabar com esse vício dele de dar coices quando estou perto". Então arrumou um monte de feno no chão.

Jim começou a pentear meticulosamente a crina do cavalo, arrancando com os dedos carrapichos imaginários; depois pegou uma escova e começou a escovar o pêlo já brilhante. Quando já não havia mais razão nenhuma para esfregar o cavalo, Águia que Voa Alto ainda estava lá, parado ao lado do feno.

Jim andou em direção à porta do fundo do estábulo. "Desça para cá, Águia que Voa Alto. Vamos trabalhar um pouco com as tachas." Os dois caminharam para a área aberta e então na dire­ção das cocheiras, ao norte, onde a luz do sol entrava por uma porta aberta. Jim puxou uma pilha de arreios, abriu um sabão de limpar selas e começou a trabalhar. Águia que Voa Alto juntou-se a ele.

Bruscamente Jim falou: "Você é bem-vindo pelo tempo que quiser, Águia que Voa Alto. Com certeza eu poderia aproveitar sua ajuda aqui".

Águia que Voa Alto levantou o olhar, surpreso.

Jim balançou os ombros e disse: "Faz muito tempo que luto neste lugar, amigo. Mas lembro-me de uma época em que precisei de um lugar quieto - um lugar para simplesmente ficar parado, até conseguir acertar as coisas em minha cabeça".

"Posso dormir no estábulo."

"Fique o tempo que quiser, Águia que Voa Alto. Se tiver ca­beça, poderá me ajudar com a plantação da primavera. A Lakota está prestes a parir. Na próxima semana o Joseph Freeman vai trazer alguns cavalos. Prometi que ajudaria a domá-los para se­rem usados na cidade."

Águia que Voa Alto perguntou de repente: "A Carrie Brown está bem?".

Jim pôs sua ferramenta de lado e inclinou-se para a frente. "Ela está bem, Águia que Voa Alto. Está mesmo. Ela deixou todo mundo surpreso com sua reação. Recuperou-se mais rápido do que o médico previa. Os avós voltaram para St. Louis há três se­manas. E ela já estava andando."

"Mas e aqui?", Águia que Voa Alto apontou a testa. "E aqui?"

Jim esfregou o pescoço com as costas da mão. "Pelo que todo mundo observa, ela está muito bem. Por que você não vai até lá para vê-la? Ela começou a dar aulas hoje." O olhar surpreso de Águia que Voa Alto fez Jim sorrir. "É. É isso mesmo. Na verdade, você passou pertinho da escola onde ela leciona. Vá até lá."

"Por qual caminho?", quis saber.

Jim apontou: "Fica uns cinco quilômetros ao norte. A escola fica bem no alto de uma colina, antes do lugar em que o ribeiro faz uma curva para o leste. Há uma cerca ao longo da estrada".

Águia que Voa Alto mexeu em sua caixa de couro e então saiu.

Jim falou: "Vá com a Lakota; ela é sua mesmo".

Águia que Voa Alto balançou a cabeça de um lado ao outro. "Não, vou caminhando". Parou para tomar água no poço e se guiu em direção à estrada.

LisBeth o viu caminhando para a estrada e foi até o estábulo. "Está tudo bem?", quis saber.

Jim balançou a cabeça. "Não sei, LisBeth. Ele vai ficar um tempo aqui e ajudar-me."

LisBeth sorriu com prazer. "Maravilhoso. Ele vai acompanhar o crescimento do T. W.". Andou até o final do estábulo e abriu uma porta. "Você acha que podemos arrumar este cômodo para ele, Jim?", ela gritou de onde estava.

Jim fez que "sim" com a cabeça. "Você adivinhou. Vou lim­par tudo e depois colocaremos uma cama."

LisBeth inspirou-se fazendo planos. "Vou pegar um tecido e fazer uma cortina. Foi em direção a Jim, quase tropeçando na cai­xa de couro. "O que é isso?"

"Foi Águia que Voa Alto que trouxe. Ele não explicou. Acho que deve ser importante para ele."

LisBeth controlou-se para não abrir a caixa. Em vez disso, foi até a casa para pegar limpador de pó e rodo, escova e sabão para limpar o quarto no estábulo para seu irmão, que neste mo­mento descia a estrada em direção à escola, com um pacotinho sob o braço.

 

Durante o recreio na escola, Carrie ficou surpresa ao ver um carroção chegar. Ben e Ellie Carter desceram e aproximaram-se da escola, onde Carrie sentava-se à porta. "Olá, srta. Brown", Ellie falou timidamente, entregando um cesto a Carrie. "Trouxe isto para dizer muito obrigada pelo que você fez para o Ned e a Tess." Ellie se afastou quase escondendo-se atrás de Ben. Carrie deu uma olhadinha embaixo do guardanapo e puxou uma guirlanda de maçãs secas e vagens enfiadas em um cordão.

"Ora, obrigada, sra. Carter", foi tudo o que ela conseguiu di­zer porque de repente outro carroção aproximava.

Jim Carter explicou: "Nós, pais, decidimos dar boas vindas apropriadas para você, srta. Brown. Se não se importar, gostaría­mos de fazer um pequeno piquenique na hora do almoço aqui com você e as crianças".

Carrie sorriu e assentiu com a cabeça e logo viu vários carroções chegando. Neles havia tábuas e cavaletes para montar mesas para os pais e alunos também. Quando Carrie Brown vaga­rosamente desceu a escada da escola e cruzou uma distância curta até o lugar de honra na mesa, os pais e os filhos aplaudiram. Carrie ficou muito vermelha e sem saber o que dizer.

Ben Carter falou: "Este é um dia especial para o Distrito 117. Nossa professora está de volta e todos os alunos que foram pegos pela tempestade chegaram salvos em casa". Ben firmou-se em um pé e depois no outro antes de continuar. "Srta. Brown, alguns de nós criticavam uma professora sem o diploma da faculdade." Olhou firmemente para os pais de Philip Damrow. "Mas na ver­dade, srta. Brown, nós queremos a senhorita aqui. Recebi autori­zação para oferecer-lhe um aumento se quiser ficar aqui no próxi­mo ano."

Pega de surpresa, Carrie não sabia o que responder. Já tinha discutido suas opções com Augusta Hathaway e estava pensando numa forma de terminar a Universidade apesar das mudanças físicas. Agora já não tinha tanta certeza de que gostaria de seguir aquele plano.

"Obrigada, sr. Carter. Eu...", fez uma pausa. "Eu certamente vou considerar sua oferta." Enquanto isto pensava: Talvez eu pu­desse freqüentar as aulas de verão, com uma carga horária dupla. Conti­nuou considerando uma forma de terminar seu curso na Univer­sidade e ao mesmo tempo continuar ensinando aquelas crianças.

Durante a hora seguinte as crianças brincaram e Carrie con­versou com seus pais. Então, como se um sino tivesse tocado, os pais levantaram-se e limparam tudo do piquenique, guardaram as mesas nos carroções e voltaram para casa. Os carroções segui­ram para diversas direções enquanto Carrie subia as escadas e tocava o sino para terminar a aula.

Ela sorriu feliz ao notar outra surpresa em sua mesa. Mas, ao andar pelo corredor, seu coração começou a bater mais forte. Pa­recia - não podia ser - mas era mesmo. Um pacotinho enrolado em uma pele macia de corça e amarrado com uma tira de couro! An­dou o mais rápido que pôde até a porta da pequena escola en­quanto as crianças entravam e ocupavam seus lugares.

Carrie deu um passo para fora da porta e olhou no quintal da escola, para as árvores, para o horizonte. Não havia sinal algum. Mesmo assim, parecia que alguém estava ali - espiando, esperando.

"O que está fazendo, srta. Brown?", Tess Carter perguntou da porta. "Está tudo bem, srta. Brown?"

Carrie virou-se. "Está, está, Tess. Tudo bem. É só que..." Sem terminar a frase, ela se virou para entrar. Em sua mesa, escutou cada pergunta curiosa dos alunos e explicou com simplicidade: "Isto é uma coisa de minha infância". Com as mãos tremendo, ela desembrulhou e segurou Ida Mae. "Esta foi minha primeira bone­ca. Eu a dei para um amigo", parou de falar. "Realmente não con­sigo explicar, crianças. Vamos continuar a lição. A primeira série venha para a frente para a aula de Aritmética."

Quando Águia que Voa Alto retornou à fazenda e foi para o estábulo, ouviu um chorinho. O som veio de um pequeno quarto lá no fim do corredor. E exatamente quando ele entrou no corre­dor, um menininho saiu andando cambaleante, com uma escova nas mãos. Olhou para Águia que Voa Alto com os olhos enormes, pretos, e ficou observando-o cuidadosamente. Águia que Voa Alto não se aproximou do menino, mas apenas agachou e ficou olhan­do para ele sem se mexer. Depois de hesitar por um breve mo­mento, a criança deu um sorriso aberto e correu em sua direção. Parou ao ver a caixa de couro, inclinou-se e deu uma batida na tampa dura de couro cru, abrindo caminho para passar. T. W. en­tão tropeçou no feno, batendo a cabeça na beirada da cocheira. O sorriso transformou-se instantaneamente em lágrimas.

LisBeth correu para pegar T. W., mas Águia que Voa Alto já tinha levantado o menino e cochichado alguma coisa em seu ou­vido. A criança parou de chorar imediatamente, agarrou o cabelo comprido do tio e começou a puxá-lo fortemente. Águia que Voa Alto riu e T. W. riu também.

LisBeth encolheu os braços e voltou para dentro do quarto, parando na porta e dizendo: "Você já o conquistou, hein?".

"Ele é um bom menino, minha irmã."

"Bom como o tio, o pai e o avô também."

Jim aproximou-se. "Está na hora de ir buscar Carrie. Você gostaria de ir?" Olhou para Águia que Voa Alto que, para sua sur­presa, balançou a cabeça dizendo que não. Embaraçado, Jim an­dou até o lugar onde os cavalos esperavam, presos a uma coluna.

Águia que Voa Alto carregou T. W. para fora. "Eles tiveram um tipo de piquenique na escola."

Jim assentiu com a cabeça. "Os pais me falaram sobre isto. Queriam fazer uma surpresa para ela. Dar-lhe as boas vindas."

Águia que Voa Alto colocou T. W. em um cavalo.

"O que é isto, Águia que Voa Alto? O que está perturbando você?"

"Ela está se recuperando bem?"

"Eu disse a você que sim. Não conversou com ela?"

Águia que Voa Alto balançou a cabeça, e Jim abaixou-se sob o pescoço de um dos cavalos e olhou o arreio do outro lado para ver se estava tudo certo. Levantou-se abruptamente e questionou: "Por que não?".

"Deixei um presente na mesa dela, mas ela não me viu." Águia que Voa Alto colocou suas próprias mãos sobre as mãozinhas de T. W., abrindo-as e encorajando-o a segurar a crina do cavalo. Jim fingia arrumar um arreio que precisava de reparo e Águia que Voa Alto continuou: "Tudo o que aconteceu comigo, aconteceu por uma razão. Eu aceito e suporto. Leio os versículos da Bíblia e sei que são verdadeiros. Todos os seus caminhos são justiça. Ele é jus­to e reto. Ele fere e ele cura. Foi bom para mim ser afligido, pois conheci os Seus caminhos. Águia que Voa Alto levantou os olhos que ex­pressavam dor para Jim. "Aceito Sua vara para mim, Sua direção para mim. Eu me humilhei e tentei aprender, através do que acon­teceu no rio Cheyenne, para crescer e estar mais preparado para o futuro. Mas não posso..." Ele hesitou por instante, mas então as palavras fluíram: "Não consigo pensar que o meu pequeno Pássa­ro Vermelho...", as palavras saíram revelando o estado de choque em que se encontrava Águia que Voa Alto. Bruscamente ele pu­xou T. W. do cavalo e virou-se. "Nunca conseguirei suportar a idéia de seu sofrimento e..." e olhou para Jim com os olhos cheios de lágrimas. "Não sei se posso agüentar vê-la agora. Vim até aqui para me certificar de que a alma dela está em paz, de que o coração dela está bem. E descubro que minha própria alma e meu próprio coração estão feridos."

"Você precisa ver a Carrie, meu amigo", disse Jim. "Porque quando conversar com ela, verá que não precisa ficar questionam do a razão de Deus ter permitido que ela fosse pega naquela tempestade. A resposta está escrita no rosto dela, Águia que Voa Alto. LisBeth ficava preocupada pela forma como a Carrie costumava montar seus esquemas para conseguir o que queria. Agora ela está feliz, contente e mais perto do Senhor do que nunca esteve." Jim balançou a cabeça à procura de palavras. "Ela é uma mulher e tanto, Águia que Voa Alto." Jim passou a rédea para Águia que Voa Alto, dizendo: "Vá ver você mesmo". Pegou T. W. dos braços de Águia que Voa Alto e afastou-se.

Com relutância, Águia que Voa Alto subiu no carroção e dirigiu-se para a escola.

 

A mulher graciosa alcança honra.

         Provérbios 11:16

 

Ela viu quem era a pessoa que estava dirigindo o carroção e, se pudesse, voaria para longe. Tinha colocado o pacotinho com Ida Mae embaixo do braço, apertando-o contra seu corpo para liberar as mãos e segurar as muletas. Sentiu que ele estava escor­regando, mas não queria derrubar uma muleta na frente de Águia que Voa Alto.

Quando o carroção entrou no terreno da escola, ele levantou a mão para fazer um cumprimento. Desceu e vagarosamente empur­rou uma enorme caixa que estava no fundo do carroção. Colocou a caixa no chão e olhou para ela. "Jim falou que você não gosta de ser carregada para o carroção. Não dirijo tão bem quanto ele para colo­car o carroção bem pertinho para você, mas deste jeito..."

Carrie balançou a cabeça. Seu coração tinha disparado. "É. Boa idéia. Obrigada." Ela começou a descer as escadas, e ele subiu até o seu lado, tentando desajeitadamente pegar no braço dela, mas sem saber o que fazer. "Se você carregar a Ida Mae para mim, posso fazer o resto sozinha."

Águia que Voa Alto pegou o pacote e colocou-o sob o banco do carroção. Virou-se bem quando Carrie estava dando o passo para a caixa. Esta balançou um pouco e, quando ele a segurou para firmá-la, bateu na muleta e derrubou-a. Para não cair, Carrie segurou no ombro dele. E ao entrar no carroção sorriu para ele. "Obrigada, Águia que Voa Alto. Você é muito paciente."

Águia que Voa Alto tomou a muleta no chão e colocou-a na parte de trás do carroção. Deu a volta por trás e sentou-se ao lado de Carrie. Segurou o relho e tocou os cavalos. "Obrigada por ter trazido Ida Mae. Foi uma surpresa muito boa."

"Não quis interromper o piquenique."

"Como conseguiu entrar sem ser visto?"

"Pela janela."

Carrie balançou a cabeça. O carroção passou ao lado da cerca viva na estrada e cruzou o ribeiro. Então Carrie disse: "A Charity Bond escreveu contando que talvez você viesse. Não achei que seria antes do final da primavera".

"Eu queria...", e parou no meio da frase. "O dr. Riggs achou que eu deveria vir agora."

"Fiquei muito triste pelo ocorrido no rio Cheyenne. Tenho certeza de que nesta primavera o trabalho será melhor."

Ele levantou e abaixou os ombros. "Parei de tentar entender os caminhos de Deus."

Carrie ficou quieta. A tarde estava quente e ela sentiu as pal­mas das mãos suar. Tirou as luvas, apertando bem o banco do carroção para esconder as mãos.

"O T. W. não é um menino maravilhoso?"

Águia que Voa Alto fez que sim, balançando a cabeça. "Ele gostou de puxar meu cabelo."

Carrie riu. "O meu também. LisBeth é uma mãe maravilho­sa..." Ficou quieta de repente por sentir um desconforto ao men­cionar a maternidade na presença de Águia que Voa Alto.

"Você parece bem."

"É, estou bem." Ela tentou preencher o silêncio entre os dois. "Parece que já consigo fazer tudo, exceto montar a Lakota."

"Por que não consegue montar a Lakota?"

Carrie arrependeu-se de mencionar isto. Agora teria de ex­plicar. Mordeu os lábios. "Não sou forte o suficiente para ele­var-me até o seu lombo e com as pontas de meus pés..." Parou e acrescentou: "Bem, parece que não consigo equilibrar-me o suficiente para montar. De qualquer forma, se algum dia eu cair, ficarei empacada no lugar. Como você viu lá na escola, ainda não estou bem preparada para os cinco quilômetros de estrada".

Águia que Voa Alto pensou por um momento. "Posso ensiná- la a montar melhor."

"Então, você vai ficar na casa dos Callaways?"

"Por enquanto. Vou ajudar o Jim com o plantio da primave­ra. Quero ver a cria da Lakota."

Carrie falou suavemente: "Eu gostaria muito de conseguir montar melhor".

Águia que Voa Alto começou a pensar em um jeito de ajudar Carrie Brown a montar sem ajuda de ninguém. A conversa termi­nou repentinamente, mas a comunicação não. Carrie Brown e Jeremias Águia que Voa Alto King estavam bem conscientes de que o espaço entre os dois estava cheio de palavras não faladas.

Águia que Voa Alto começou a trabalhar com Lakota na ma­nhã seguinte. Levantou-se ao nascer do sol, fazendo-a andar impecavelmente e mudar de marcha, trocando de direção ao seu co­mando, parando, trotando, galopando, tudo na primeira ordem.

No sábado de manhã Carrie foi até o estábulo mal conseguin­do respirar de tanta empolgação. Quando Águia que Voa Alto a levantou até a sela, ela ficou desajeitada com os estribos, tentando em vão posicionar os pés corretamente. Águia que Voa Alto pren­deu os estribos na sela dizendo: "Disseram-me que não é apropri­ado falar esta palavra", sorriu e continuou, "mas eu preciso dizer. Aperte os joelhos, Carrie. Você precisa aprender a montar sem usar os estribos."

Depois da primeira lição, Carrie se queixou enquanto volta­va para casa, mas o cansaço que estava sentindo a deixava feliz. Com o passar do tempo, seus músculos jovens começaram a rea­gir às novas ordens e ela descobriu que podia mesmo montar sem usar os estribos, o que significava que o problema causado com a cirurgia estava resolvido. Ela raramente colocava o peso nos estri­bos, pois os músculos da perna estavam mais fortalecidos.

"Mas ainda preciso de ajuda para subir no cavalo", disse a LisBeth numa noite após o jantar. "Não sei muito bem o que fazer a respeito."

"Jim não se importa de levá-la para a escola, Carrie. No ano que vem vamos ter uma carruagem. Então você mesma vai poder dirigir."

Carrie balançou a cabeça. "Eu sei, eu sei, mas mesmo assim ainda gosto de poder ir e vir sozinha. Gosto de ser útil, LisBeth, e não um peso."

"Você não é um peso, Carrie."

Naquele momento Jim entrou pela porta da cozinha. "Venham aqui fora, madames. Temos uma coisa para mostrar a vocês."

Águia que Voa Alto e Jim estavam parados perto da porta do fundo, com a Lakota arreada. Carrie e LisBeth saíram. Jim fez um sinal para Carrie. "Venha aqui, Carrie, do lado de montar."

Jim passou-lhe o chicote. "Agora, Carrie, toque na coxa dela e diga: 'Abaixe, Lakota, abaixe'." Carrie obedeceu e, para sua sur­presa, Lakota dobrou as pernas dianteiras e ajoelhou-se.

"Você consegue colocar-se sozinha na sela, Pássaro Verme­lho?", Águia que Voa Alto perguntou suavemente.

Carrie assentiu com um sinal de cabeça e montou.

Jim instruiu: "Agora, quando estiver pronta, toque no flanco dela com o chicote e diga: 'Levante, Lakota, levante"'. No momen­to em que Carrie pronunciou as palavras, Lakota levantou-se.

LisBeth bateu palmas com as mãos levantadas na altura do queixo e balançou a cabeça. "Eu jamais acreditaria numa coisa destas! Como conseguiram que a Lakota fizesse isto? Carrie sem­pre disse que a Lakota era teimosa!"

Águia que Voa Alto sorriu: "Eu sou mais teimoso que a Lakota. Ela não gostou de aprender, mas aprendeu. E vai obedecer sem­pre que for preciso". Deu uma palmadinha em Lakota e olhou para Carrie. "Agora você pode ir até a escola sozinha. Não precisa de ajuda, exceto a da Lakota."

Carrie segurava as lágrimas. "Não sei como agradecer", dis­se quase num sussurro. Abruptamente ela se abaixou e beijou o rosto de Águia que Voa Alto. "Obrigada, Águia que Voa Alto, obri­gada." Segurando a rédea, ela convidou: "Vamos cavalgar comi­go?". Águia que Voa Alto balançou a cabeça em acordo e entrou na cocheira. Rapidamente colocou uma rédea em seu cavalo, pu­lou em seu lombo e juntou-se a Carrie para um passeio noturno.

Quando Carrie Brown e Águia que Voa Alto voltaram do passeio, Jim e LisBeth tinham ido para a cama, deixando um lam­pião na janela e café sobre o fogão. Águia que Voa Alto pegou as rédeas de Lakota, mas Carrie balançou a cabeça dizendo: "Não, se você me der um tempo, eu gostaria de escová-la".

Juntos levaram os cavalos à cocheira, esfregaram e escova­ram, limparam os cascos sem conversar muito, até que Águia que Voa Alto foi olhar os cascos traseiros do Urso. Com um movimen­to de giro, Urso levantou Águia que Voa Alto do chão e fê-lo voar. Ele tombou com um barulho surdo e um olhar de surpresa, que fizeram Carrie cair na gargalhada.

"Se você disse que gastou bastante tempo ensinando a Lakota a ajoelhar-se, acho que não gastou tempo suficiente ensinando boas maneiras para o Urso."

Águia que Voa Alto levantou-se esfregando as calças e riu.

Carrie sentou-se num monte de feno e ficou olhando Águia que Voa Alto pegar o casco de Urso vezes e mais vezes até ele parar de dar coices.

Caminharam juntos até a casa. "Já foram dormir", Carrie fa­lou baixinho. "O lampião está na janela."

"Sente-se aqui comigo", convidou Águia que Voa Alto, sen­tando-se na área e encostando-se na parede.

Carrie sentou-se na frente de Águia que Voa Alto. Mais uma vez, palavras não faladas estavam presentes. Águia que Voa Alto começou: "Fiquei revoltado com Deus pelo que aconteceu com você.

"Comigo?"

"Não achei que era certo Ele deixar acontecer... na tempestade."

Carrie ficou quieta por um longo tempo. Finalmente disse: "Eu também fiquei revoltada por um tempo também. Não achei que era justo".

"Mas já não está mais revoltada."

Na escuridão, Carrie balançou a cabeça num sinal negativo. "Não, não estou mais."

"Por quê?"

Ela concatenou os pensamentos e disse cuidadosamente: "Bem, acima de tudo, pelo Senhor. Mas vencer a revolta começou com sua mãe".

Ele ficou surpreso. "Minha mãe?"

Carrie fez que sim com a cabeça e começou a contar a Águia que Voa Alto sobre a viagem a Lincoln para a cirurgia, sobre o momento em que percebeu que todos tinham suas provações e finalmente sobre a leitura da Bíblia de Jesse. "Você gostaria de ouvir algumas das coisas que mais me tocaram?"

Foi a vez de Águia que Voa Alto fazer um sinal afirmativo com a cabeça, ali à meia-luz. Voltou-se para ela com olhos curio­sos. Isso fez o coração de Carrie bater um pouco mais forte. Ela olhou para o lado e começou a falar de cor: "Quem fez a boca do homem? Ou quem fez o mudo, ou o surdo, o que enxerga ou o cego? Por acaso não fui eu, o Senhor? Eu realmente não gostei deste versículo. Mas ali estava ele e eu precisava encará-lo. Ele era ou não o Se­nhor? Será que Ele não poderia ter me resgatado da tempestade? Certamente que sim. Mas não o fez. Por que não? Eu não sei, mas sei que Ele é o Senhor. Tem um propósito e não é obrigado a explicá- los. Se Ele não explicou o porquê a Jó, o homem mais justo do mundo, certamente não tem de explicar nada à pequena Carrie Brown".

"Uma passagem que realmente tem me desafiado é a de Ro­manos, que diz: Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para áo mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para desonra?" Ela riu nervosa: "Posso ter desistido daquela idéia ridícula do Sioux sel­vagem, mas ainda havia muito da teimosia da Carrie Brown que precisava ser arrancada, penso eu". Ela refletiu um momento an­tes de falar mansamente: "É uma batalha tremenda ser grata a Deus. Depois da tempestade olhei à minha volta e vi uma multi­dão de pessoas, cada qual com suas provações tão duras quanto a minha, se não maiores, e saindo-se vitoriosas. Elas juntaram os pedaços de suas vidas, cantaram louvores ao Senhor e continua­ram para serem úteis. Decidi que queria ser uma destas pessoas boas. Assim estou tentando 'humilhar-me diante da mão podero­sa de Deus' e continuar a servi-Lo da melhor forma que eu pu­der".

Águia que Voa Alto segurou a mão dela. A mão esquerda, sem os dois dedos, e ela inconscientemente a fechou e tentou puxá-la. Mas ele não deixou, e Carrie parou de resistir. Delicadamente ele forçou sua mão, abriu-a e beijou cada dedo e a cicatriz. "Carrie Brown", ele falou suavemente, "Jim Callaway estava certo. Você ficou uma mulher muito linda."

Ele segurou o queixo dela com uma de suas mãos. "O ho­mem que ganhar seu coração ganhará um tesouro." Afastando-se de Carrie, ele se virou e voltou para o estábulo.

Carrie foi vagarosamente até seu quarto e esticou-se na cama. Por que isto está acontecendo agora, Senhor? Bem no momento em que eu estava contente em ser uma professora. Bem no momento em que pude dizer a mim mesma que tinha desistido do Sioux selvagem, ele beija mi­nha mão, e meu coração dispara, e ainda sinto que há muito para ser dito. Mas as palavras ficam escondidas. Parece que não consigo encontrá-las.

No estábulo, Águia que Voa Alto pegou uma escova de cava­lo e começou a escovar Lakota. Quando terminou, saiu para fora, olhou as estrelas e orou.

 

O meu amado fala e me diz: Levanta-te, querida minha, formosa minha, e vem. Porque eis que pas­sou o inverno, cessou a chuva e se foi; apareceram as flores na terra, chegou o tempo de cantarem as aves, e a voz da rola ouve-se em nossa terra. A fi­gueira começou a dar seus figos e as vides em flor exalam o seu aroma; levanta-te, querida minha, for­mosa minha, e vem.

             Cantares de Salomão 2:10-13

 

"E então, você vai?", Jim perguntou a Águia que Voa Alto. Eles estavam trabalhando juntos no preparo da terra para o novo plantio.

Águia que Voa Alto olhou para ele perguntando: "Vai aon­de?".

"Vai casar-se com a Carrie?"

Águia que Voa Alto olhou para baixo em seu trabalho e sor­riu. "Uma pergunta melhor seria 'Carrie Brown vai se casar comigo?'."

"Não acho que este seja o problema, meu amigo. Você a pede em casamento e ela responde 'sim'."

"Você tem tanta certeza assim?"

"Sabe, Águia que Voa Alto, às vezes não consigo definir bem se você tenta ser estóico, um selvagem nobre 'tentando esperar em Deus' ou se simplesmente é lerdo. Faz três semanas que você está aqui. Será que é cego? Você está apaixonado por ela, Águia que Voa Alto. Então acabe com esse negócio logo", Jim disse dan­do uma risadinha e jogando um trapo no amigo. "A não ser, é lógico, que você queira esperar o T. W. se formar."

Águia que Voa Alto ficou repentinamente sério. "Sou muito mais velho que a Carrie."

"O meu pai era mais velho que minha mãe. E o Cavalga o Vento era mais velho que a Jesse. Isso não é problema. Ela ama você, Águia que Voa Alto. Vejo isto. E, se você é tonto o suficiente para não perceber, fique tranqüilo pois a LisBeth confirmou mi­nhas suspeitas."

"Bem", Águia que Voa Alto ponderou. "Tenho orado por isto."

"E como você espera que Deus vá responder à sua oração se você não pedir a mulher em casamento? Olhe aqui, Águia que Voa Alto, Carrie Brown ama você desde que era criança. Ela vive, come, bebe, respira e sonha com Águia que Voa Alto. Ela ficou uma mulher linda que ama realmente o Senhor e deseja servi-Lo. Então, o que é que falta?"

Águia que Voa Alto deu uma risadinha. "Um homem com coragem para pedi-la em casamento."

Jim riu. "Deixe-me entender esta coisa direito. Você pulou de um rochedo confiando que dois filhotes de águia o fariam aterris­sar com segurança. Lutou ao lado de Touro Sentado. Foi para a escola em Boston. Já falou diante de uma platéia composta de militares que o odiavam. Mas agora, de repente, está com medo de pedir em casamento a pequena de cabelo vermelho, que pesa menos de cinqüenta quilos?" Jim jogou sua ferramenta no chão e levantou-se. "Eu desisto, amigo. Você vai morrer solitário."

Jim saiu bravo do estábulo, caminhou a passos firmes para casa e entrou feito um raio dentro de casa, onde pegou T. W. no colo e abraçou LisBeth com força.

"Você falou com ele?", LisBeth quis saber.

Jim Balançou a cabeça num sinal afirmativo. "E acho que não adiantou nada. Para um guerreiro, LisBeth, seu irmão é bem covarde."

Mas Águia que Voa Alto estava prestes a vencer seu medo. Enquanto Carrie dava aula, ele passou o resto do dia orando. À tarde LisBeth e Jim o viram saindo da fazenda cavalgando o Urso. Ele vestia suas roupas e mocassins de cerimônia e montava a pêlo.

Carrie Brown usava um vestido de morim azul naquele dia. Ela permaneceu em sua escrivaninha por um bom tempo depois que os alunos se foram, preparando um jogo de desafio com voca­bulário para o dia seguinte. Escrevia na lousa virada de costas para a porta. Com seus mocassins, Águia que Voa Alto pôde subir as escadas, entrar na escola e caminhar até a última fileira de car­teiras, onde se assentou sem ser notado. Ficou em silêncio, ob­servando a concentração dela e tornando-se mais consciente de sua pulsação que disparara. Quando finalmente ela se virou e o viu, deu um sorriso amigável que se transformou ao perceber, quando Água que Voa Alto levantou, que ele vestia uma roupa de cerimônia.

Ele colocou a mão cruzada no peito cheio de contas e tomou coragem: "Tenho uma história para lhe contar, Carrie, uma histó­ria dos lakotas". Limpou a garganta e começou a falar: "Era uma vez um menino lakota que era medroso e bravo. Tinha perdido seu caminho no mundo. Mas, enquanto caminhava, um pequeno pássaro vermelho voou de uma árvore. O pássaro disse para ele não ter medo e guiou-o em meio a muitas coisas que o assusta­vam. Quando o pássaro precisou voar para ir embora, deixou um pedaço de si mesmo no coração do menino. E, sempre que ele tinha medo, pensava no pássaro".

"O menino lakota cresceu e viu que o pássaro amigo tinha se tornado uma linda moça. Uma moça tão linda que ele queria tomá- la nos braços e mantê-la para si mesmo. Mas ele pensava: Você é velho demais, pobre demais. Sua vida é difícil. Não pode pedir para uma coisa tão linda descer tanto e viver com você. Então o moço foi embo­ra. Outras mulheres tentaram cativá-lo, mas ele só pensava na moça."

"Então um dia o homem lakota ficou sabendo que a moça estava doente. Estava muito longe e ele não podia ajudá-la a ficar curada. Mas quando a encontrou, ela já estava bem novamente e ainda mais bonita. E o homem lakota continuava com medo. Você é velho demais, é pobre demais. Sua vida é difícil. Não pode pedir para uma coisa linda descer tanto e viver com você."

Carrie andou até a beirada da mesa e cochichou: "E como termina a história, Águia que Voa Alto?".

"Bem, o homem lakota fez muitas coisas para mostrar à moça que gostava dela. Mesmo assim, toda vez em que estavam juntos as palavras não eram faladas, mas ficavam flutuando no ar como uma neblina. Um dia o amigo do homem lembrou-o de que, se ele não falasse, iria morrer sozinho, velho e sem jamais ter encontra­do a alegria."

Águia que Voa Alto caminhou vagarosamente no corredor e levantou os olhos para Carrie. Ela nunca tinha visto aquela luz nos olhos dele, aquele olhar, e seu coração disparou quando ele disse: "Diga-me, Carrie Brown. Se uma águia convidasse um pás­saro vermelho para ir morar em seu ninho, será que ele aceitaria? Será que o pássaro ficaria no ninho quando o vento soprasse, quan­do a comida fosse pouca, quando o ninho ficasse pobre, quando o rochedo fosse alto demais? Será que ele desejaria compartilhar esse tipo de vida ou a águia estaria pedindo demais? Se ele fosse para o ninho da águia, que tipo de filhos...".

A pergunta sobre filhos foi interrompida por um choro de ale­gria de uma pequena mulher de cabelos vermelhos que corria para os braços de seu amado que vinha de Deus. Mas foi respondida.

Jesse Águia Vermelha King, alto e atlético, era quieto e pensativo. Ele estudava Direito.

Alfredo Águia Vermelha King, magro e fortíssimo, estudava em Wyoming.

Walter Águia Vermelha King, o brilhante, seguia seu cami­nho na Universidade de Nebraska quando contraiu difteria e morreu.

A tão conhecida hoteleira de Lincoln, Augusta Hathaway, providenciou que Walter fosse enterrado no Cemitério Wyuka, ao lado de sua avó materna, Jesse King.

John Asa Vermelha King foi para o leste, na Universidade de seu pai, em Beloit, e mais tarde tornou-se pastor de uma pequena igreja em Dakota.

Rachel Asa Vermelha King, a primeira filha, viveu apenas três dias.

LisBeth Asa Vermelha King acompanhou seu marido no tra­balho missionário na China.

E seus pais viveram e trabalharam e se amaram em uma pe­quena aldeia ao lado do rio Cheyenne, com poucas pessoas tendo conhecimento ou preocupando-se com as batalhas travadas, ga­nhas ou perdidas para os corações de uns poucos Sioux lakotas feridos pela pobreza.

Quando Carrie Brown King finalmente descansou ao lado de seu amado Águia que Voa Alto, apenas uns poucos lakotas juntaram-se aos filhos já crescidos, que viajaram para casa para visitar o túmulo da mãe. Suas vozes levantaram-se em hinos de louvor, pois era isto o que ordenara a sra. King.

"Não lastimem minha perda", ela dissera. "Cantem louvo­res. Águia que Voa Alto disse que me esperaria logo depois do portão. Vou encontrar o Walter e a Rachel. Não lastimem." Carrie olhara para os filhos e dera um sorriso com os olhos azuis bri­lhando. Então olhara para além dos filhos, para o alto, e morrera.

Todos os que velavam terminaram de cantar os hinos e jun­tos encheram o túmulo de terra. Quando acabaram, o vento da campina soprou, balançando o oceano de relva que começava na beirada do cemitério e ia para as colinas no lado sul. Quando a sombra cobriu o túmulo, seus filhos protegeram os olhos com as mãos e os levantaram para observar uma águia voar na distância.

Jesse murmurou: "Mamãe e Papai adorariam ver isto. Eles sempre adoraram observar os pássaros voar com o vento".

 

[1] N. R.: Gettysburg, cidade na Pensilvânia, Estados Unidos, palco de san­grenta batalha entre os sulistas e os nortistas, que saíram vencedores (1869).

 

                                                                                Stephanie Grace Whitson  

 

                      

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