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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÁSSAROS FERIDOS -P.2 / Colleen McCullough
PÁSSAROS FERIDOS -P.2 / Colleen McCullough

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Vira-o seis vezes nos dezoito meses do seu exílio, e pensara com freqüência, embora desconhecesse de todo a existência da homossexualidade, que Luke deveria ter casado com Arne, já que vivia com ele e manifestava decidida preferência pela sua companhia. Eles agora eram sócios e andavam de um lado para outro dos dois mil e seiscentos quilômetros de costa, seguindo a colheita da cana e vivendo, ao que tudo indicava, exclusivamente para o trabalho. Quando Luke ia visitá-la, não tentava nenhuma espécie de intimidade. conversava uma ou duas horas com Luddie e Anne, levavaa para dar uma volta, dava-lhe um beijo amistoso e partia de novo.

 

 

 

 

Os três, Luddie, Anne e Meggie, passavam lendo todo o tempo livre. Himmelhoch possuía uma biblioteca bem maior que as poucas estantes de Drogheda, muito mais erudita e picante, e Meggie aprendeu muita coisa enquanto lia.

Num domingo de junho de 1936, Luke e Arne apareceram juntos, satisfeitíssimos consigo mesmos. Tinham vindo, diziam, proporcionar a Meggie um verdadeiro regalo, pois iam levá-la a um ceilidh

À diferença da tendência geral que tinham os grupos étnicos na Austrália de espalhar-se e australianizar-se, as várias nacionalidades da península de North Queensland — chineses, italianos, alemães, escoceses e irlandeses. Os quatro grupos que formavam o grosso da população —, tendiam a preservar com ferocidade suas tradições E quando os escoceses organizavam um ceihdh, todo escocês, por mais longe que morasse, fazia questão de estar presente

Para assombro de Meggie, Luke e Arne apareceram usando saiote escocês e estavam, pensou ela ao recobrar o raciocínio, positivamente magníficos. Nada é mais másculo num homem que um saiote, pois oscila, com passo largo e decidido, numa agitação de pregas atrás e permanece perfeitamente imóvel na frente, ao passo que a bolsa de pele protege as partes, e, abaixo da bainha que chega à metade do joelho, vêem-se as pernas fortes e bonitas realçadas por meias enxadrezadas e sapatos afivelados. Como estivesse muito quente, não usavam o manto nem o paletó, contentando-se com uma camisa branca aberta no peito, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos.

— Mas que é um ceihdh, afinal? — perguntou ela quando partiram

— É um termo gaélico que significa reunião, arrasta-pé

— E por que cargas d’água vocês estão usando saiotes?

— Porque não nos deixarão entrar sem eles, e somos bem conhecidos em todos os ceihdhs que se realizam entre Bns e Cairns

— Ah, é! Imagino que devem mesmo ir a muitos, pois, de outro modo, não consigo imaginar Luke desembolsando dinheiro para comprar um saiote! Não é verdade, Arne?

— Um homem precisa ter alguma distração — disse Luke, na defensiva

O ceihdh realizava-se numa choça com jeito de celeiro, caindo aos pedaços, no meio dos mangues que apodreciam junto à embocadura do Rio Dungloe. Puxa, que região era aquela em matéria de cheiros!, pensou Meggie com desespero, ao que suas narinas se contraíam em contato com outro aroma indescritivelmente nauseante. Melaço, mofo, dunnies e, agora, o cheiro dos mangues. Todos os fétidos aflúvios da beira-mar reunidos num cheiro só.

Todo homem que chegava à choça usava saiote, quando eles entraram e ela olhou à sua volta, Meggie compreendeu como a pavoa deve sentir-se descolorida e deslumbrada pela grandiosidade do companheiro. As mulheres tinham sido relegadas a uma quase inexistência, impressão que as fases ulteriores da noitada só iriam acentuar.

Dois tocadores de gaita de foles, que ostentavam o xadrez escocês complexo, de fundo azul-claro, do clã Anderson, em pé num estrado mal seguro na extremidade do recinto, tocavam uma alegre música escocesa em perfeita sincronia, o cabelo ruivo revolto, o suor a escorrer-lhes pelos rostos vermelhos.

Alguns pares dançavam, mas a maior parte da ruidosa atividade parecia concentrar-se num grupo de homens que distribuíam copos do que só podia ser uísque escocês. Meggie viu-se atirada a um canto com outras mulheres, e contentou-se em ali ficar, fascinada. Nenhuma delas usava o tecido axadrezado característico de um clã, pois, de fato, as escocesas não usam saiote, só o manto, mas estava quente demais para enrolar uma peça grande e pesada de tecido em torno dos ombros. Por isso as mulheres vestiam seus deselegantes vestidos de algodão de North Queensland, tímidos e silenciosos ao lado dos berrantes saiotes dos homens. Havia o vermelho e o branco

resplandecentes do clã Menzie, o preto e o amarelo alegres do clã MacLeold de Lewis, o azul translúcido e os xadrezes vermelhos do clã Skene, a viva complexidade do clã Ogilvy, o vermelho, o cinzento e o preto do clã MacPherson. Luke ostentava as cores do clã MacNeil, e Arne, o padrão distintivo dos jacobitas de Sassenach. Lindo!

Luke e Arne eram obviamente conhecidos e queridos. Quantas vezes teriam vindo sem ela? E que bicho os mordera para quererem trazê-la naquela noite? Suspirando, encostou-se à parede. As outras mulheres olhavam-na, curiosas, fixando-se sobretudo nos anéis em seu dedo nupcial, Luke e Arne eram objeto de muita admiração feminina, e ela, objeto de muita inveja feminina. Eu gostaria de saber o que elas diriam se eu lhes contasse que o grandalhão moreno, meu marido, me viu exatamente duas vezes nos últimos oito meses, e nunca me vê com a idéia de ir para a cama! Olhem bem para os dois, os presunçosos montanheses almofadinhas! Nenhum deles é realmente escocês, e estão apenas representando porque sabem que ficam bem de saiote e gostam de ser o centro das atenções. Que magnífico par de impostores! Tão apaixonados por si mesmos que não querem o amor de mais ninguém e nem precisam dele.

Àmeia-noite, foram obrigadas a ficar em pé à volta das paredes, os tocadores de gaita de fole executaram os primeiros acordes de ”Caber Feidh” e a dança séria começou. Durante o resto de sua vida, sempre que ouvia o som de uma gaita de fole, Meggie voltava mentalmente àquela choça. Até o rodopio de um saiote escocês produzia esse efeito; a fusão ideal do som e da imagem, da vida e da brilhante vitalidade, que caracteriza as lembranças tão penetrantes e tão fascinantes que nunca se perdem.

Colocaram-se no chão as espadas cruzadas; dois homens com saiote do clã MacDonald de Sleat ergueram os braços acima da cabeça, entortando as mãos como dançarinos de bale e, muito gravemente, como se as espadas devessem finalmente mergulhar em seus peitos, puseram-se a escolher o seu caminho delicado entre as lâminas.

Ouviu-se um grito alto e estridente acima do gracioso tremular das gaitas, a melodia passou a ser a de ”Todos os Escoceses Além da Fronteira”, recolheram-se os sabres e todos os homens na sala se puseram a dançar, unindo e desunindo os braços, os saiotes brilhando. Tocaram-se vários ritmos escoceses, mais ou menos impetuosos, e os homens dançaram todos eles. O barulho dos pés que sapateavam nas tábuas do soalho ecoava entre os caibros do telhado, as fivelas dos sapatos cintilavam e, cada vez que o ritmo se alterava, alguém atirava a cabeça para trás e emitia o grito estridente, ululante, dando início a uma sucessão de gritos de outras gargantas exuberantes. As mulheres, esquecidas, observavam.

Eram quase quatro horas da manhã quando o ceilidh terminou; lá fora não havia o frescor adstringente de Blair Atholl nem de Skye, mas o torpor de uma noite tropical, a lua grande e pesada arrastava-se ao longo das cintilantes extensões do firmamento, e pairava sobre a paisagem o miasma fétido dos mangues. Todavia, quando Arne os levava embora no velho Ford resfolegante, a última coisa que Meggie ouviu foi o lamento arrastado e cada vez mais distante de ”Flores da Floresta”, despedindo-se dos foliões e mandando-os de volta para casa. Casa. Onde era a sua casa?

— E então, gostou? — perguntou Luke.

— Eu teria gostado mais se tivesse dançado mais — respondeu ela.

— Ora essa! Num ceilidh! Deixe disso, Meg! Só os homens podem dançar. Nós, aliás, fomos até muito condescendentes com vocês, mulheres, deixando-as dançar um pouquinho!

— O que me parece é que só os homens fazem muitas coisas, principalmente quando são coisas boas, agradáveis!

— Então me desculpe! — revidou Luke, formalizando-se. — Aqui estava eu, pensando que você talvez gostasse de uma mudançazinha, e por isso a trouxe. Afinal, eu não tinha nenhuma obrigação de fazê-lo, e você sabe disso! E, se não se mostrar agradecida, não a trarei de novo.

— Provavelmente, você não tem nenhuma intenção de fazê-lo — respondeu Meggie. — Não lhe convém me admitir em sua vida. Aprendi muita coisa nestas últimas horas, mas não creio que seja o que você pretendia me ensinar. Está ficando cada vez mais difícil me enganar, Luke. Na verdade, estou farta de você, farta da vida que levo, farta de tudo!

— Shhh! — sibilou ele, escandalizado. — Não estamos sós!

— Então fiquemos sós! — respondeu ela. — Quando terei a oportunidade de vêlo a sós por mais do que alguns minutos?

Arne parou no sopé da colina de Himmelhoch, sorrindo compreensivamente para Luke.

— Vá, companheiro — disse ele. — Vá com ela até lá em cima; esperarei aqui por você. Não se apresse.

— Estou falando sério, Luke! — disse Meggie, assim que se viram fora do alcance de Arne. — Minha paciência está acabando, entendeu? Sei que prometi lhe obedecer, mas você também prometeu me amar e me tratar com carinho, de modo que somos dois mentirosos! Quero voltar para Drogheda!

Ele pensou nas duas mil libras por ano que deixariam de ser depositadas em seu nome.

— Oh, Meg! — disse, com expressão consternada. — Ouça, querida, não será para sempre, prometo! E neste verão vou levá-la a Sydney, palavra de um O’Neill! Vai vagar um conjunto de quartos na casa da tia de Arne, e ali poderemos viver três meses, e passar uma temporada maravilhosa! Deixe-me cortar cana por mais um ano, ou coisa que o valha, que depois compraremos nossa propriedade e nos instalaremos, tá?

A lua iluminou o rosto dele; Luke parecia sincero, perturbado, ansioso, contrito. E muito parecido com Ralph de Bricassart.

Meggie abrandou-se, pois ainda queria os filhos dele.

— Está bem — concordou ela. — Mais um ano. Mas vou lhe cobrar a promessa de Sydney, Luke; por isso não se esqueça!

Uma vez por mês, Meggie escrevia uma carta respeitosa à mãe e aos irmãos, cheia de descrições de North Queensland, num tom cuidadosamente bem-humorado, nunca aludindo a quaisquer divergências entre ela e Luke. Sempre o velho orgulho. Pelo que constava em Drogheda, os Muellers eram amigos de Luke, em cuja casa ela se hospedava porque Luke viajava muito. Sua genuína afeição ao casal transparecia em cada palavra que escrevia sobre os dois, de modo que ninguém em Drogheda ficou preocupado. Só os entristecia o fato de que ela nunca os visitava. Mas como poderia ela contar-lhes também que o seu casamento com Luke O’Neill assumira aspectos tão lamentáveis?

De vez em quando, criava coragem e inseria uma pergunta casual sobre o Bispo Ralph, e com freqüência ainda menor Bob se lembrava de transmitir o pouco que sabia, por intermédio de Fee, a respeito do Bispo. Até que, um belo dia, recebeu uma carta cheia de notícias suas.

”Ele chegou um dia inesperadamente, Meggie”, dizia a carta de Bob, ”parecendo meio perturbado e abatido. Devo dizer que ficou desconcertado quando não a encontrou. E ficou louco da vida porque não lhe contamos nada sobre você e Luke, mas, quando mamãe lhe disse que você fez pé firme e não nos deixou contar-lhe, calou-se e não disse mais nada. Creio que sentiu mais falta de você do que de qualquer um de nós, e imagino que isso seja muito natural, porque você passou mais tempo com ele do que todos nós, e acho que ele sempre pensou em você como uma irmãzinha. Ele andava por aí, coitado, como se não pudesse acreditar que você não apareceria de um momento para outro. Também não tínhamos um único retrato seu para mostrar-lhe, e nunca pensei no caso até que ele pediu para vê-los, mas agora me parece engraçado que você não tenha tirado nenhum retrato do casamento. Ele perguntou se você tem filhos e eu disse achar que não. Você não tem, não é, Meggie? Quanto tempo faz agora que está casada? Já não vai para dois anos? Deve ser isso, porque estamos em julho. O tempo voa, não é mesmo? Espero que você tenha logo alguns filhos porque, na minha opinião, o Bispo gostará de saber disso. Ofereci-me para dar-lhe o seu endereço, mas ele não quis. Disse-me que não adiantaria nada porque vai passar algum tempo em Atenas, na Grécia, em companhia do Arcebispo com quem trabalha. Um nome italiano de quatro metros de comprimento, que nunca consigo lembrar. Você pode imaginar, Meggie, que eles foram de avião? Pois é verdade! De qualquer maneira, depois que descobriu que você não estava em Drogheda para passear com ele, não ficou muito tempo, andou apenas uma ou duas vezes a cavalo, rezou a missa para nós todos os dias e foi embora, seis dias depois de ter chegado.”

Meggie abaixou a carta. Ele sabia, ele sabia! Afinal, ele sabia. Que pensara ele, quanto se afligira? E por que a impelira a fazê-lo? Isso não melhorara as coisas. Ela não amava Luke, nunca o amaria. Luke não passava de um substituto, um homem que lhe daria filhos semelhantes no tipo aos que poderia ter tido com Ralph de Bricassart. Oh, Senhor, que confusão!

O Arcebispo di Contini-Verchese preferiu hospedar-se num hotel secular a aceitar os aposentos que lhe tinham sido oferecidos num palácio ortodoxo de Atenas. Sua missão era muito delicada e de alguma importância; fazia muito tempo que certos assuntos deviam ter sido discutidos com os principais prelados da Igreja Ortodoxa grega, tendo o Vaticano uma afeição pela ortodoxia grega e russa que não poderia ter pelo protestantismo. Afinal de contas, a Igreja Ortodoxa era um cisma, não uma heresia; seus bispos, como os de Roma, remontavam a São Pedro numa linha ininterrupta.

Sabia o arcebispo que sua designação para essa tarefa era uma prova diplomática, um degrau que lhe permitiria ascender a maiores alturas em Roma. Mais uma vez lhe valera o talento para línguas, pois fora o seu grego fluente que fizera pender a balança em seu favor. Eles tinham mandado buscá-lo na Austrália, e dali o tiraram de avião.

E era inconcebível que fosse sem o Bispo de Bricassart, pois, com o passar dos anos, aprendera a contar cada vez mais com esse homem assombroso. Um Mazarino, um verdadeiro Mazarino; Sua Excelência admirava muito mais o Cardeal Mazarino do que o Cardeal Richelieu, de modo que a comparação representava um grande elogio. Ralph tinha tudo o que a Igreja apreciava nos seus altos dignitários. A teologia e a ética conservadoras, o cérebro rápido e sutil, o rosto que não traía o que lhe ia no íntimo, e a notável aptidão para agradar às pessoas que estavam com ele, quer as apreciasse, quer as abominasse, quer concordasse com elas, quer divergisse delas. E não era um hipócrita, era um diplomata. Se chamasse repetidamente para si a atenção dos hierarcas do Vaticano, sua ascensão seria certa. E isso agradaria muito a Sua Excelência o Arcebispo di Contini-Verchese, que não queria perder contato com o Bispo de Bricassart.

Estava muito quente, mas o Bispo Ralph não fazia caso do ar seco de Atenas depois da umidade de Sydney. Caminhando depressa e envergando, como sempre, botas, calças e batina, subiu a rampa rochosa que conduzia à Acrópole, transpôs o sombrio Propileu, passou pelo Erecteion, continuou pelo aclive acima com suas toscas pedras escorregadias até o Partenão, e guiou para o muro, mais além e mais abaixo.

Ali, com o vento a agitar-lhe o escuro cabelo encaracolado, que já se agrisalhava ao nível das têmporas, parou e olhou, por cima da cidade branca, para as colinas brilhantes e a clara e surpreendente água-marinha do Mar Egeu. Logo abaixo dele estava a Plaka com seus cafés nos telhados das casas, suas colônias de boêmios e, mais para o lado, um grande teatro envolvia a rocha. A distância, avistou colunas romanas, fortalezas do tempo das cruzadas e castelos venezianos, mas nenhum sinal dos turcos. Povo surpreendente, esses gregos. Odiavam tanto a raça que os governara durante setecentos anos que, assim que se libertaram, não deixaram em pé um minarete nem uma mesquita. E tão antigos, tão cheios de riquíssima herança. Os normandos, de que provinha o bispo, eram bárbaros cobertos de peles quando Péricles vestiu de mármore o topo da rocha, e Roma, uma aldeia tosca.

Só agora, a dezoito mil quilômetros de distância, se sentia capaz de pensar em Meggie sem ter vontade de chorar. Mesmo assim, as colinas distantes se embaraçaram momentaneamente antes que ele assumisse o controle das emoções. Como poderia censurá-la, se ele mesmo lhe dissera que o fizesse? Compreendeu logo por que ela se negara a contar-lhe: não queria que ele conhecesse o marido, nem que fizesse parte de sua nova vida. Em tese, naturalmente, Ralph presumira que ela traria o cônjuge a Gillanbone, se não à própria Drogheda, e continuaria vivendo onde ele a sabia segura, livre de cuidados e perigos. Mas, de tanto pensar nisso, percebeu ser essa a última coisa que ela desejaria. Não, Meggie teria de partir e, enquanto ela e esse Luke O’Neill estivessem juntos, não voltaria. Bob dissera que eles estavam economizando para comprar uma propriedade em Western Queensland, e essa notícia fora a derradeira pá de cal. Meggie não tinha nenhuma intenção de voltar. No que dizia respeito a ele, pretendia estar morta.

Mas você é feliz, Meggie? Ele é bom para você? Você o ama, você ama esse Luke O’Neill? Que espécie de homem é ele, para que você me deixasse por ele? Que havia nele, um pastor comum, que a fez preferi-lo a Enoch Davies, ou a Liam O’Rourke, ou a Alastair MacQueen? Seria o fato de eu não o conhecer, de eu não poder fazer comparações? Você fez isso para torturar-me, Meggie, para vingar-se de mim? Mas por que não há filhos? Que é que faz esse homem percorrer o estado de norte a sul, como um vagabundo, obrigando-a a morar com amigos? Não admira que você não tenha filhos; ele não fica com você o tempo suficiente. Meggie, por quê? Por que casou com esse Luke O’Neill?

Voltando, desceu da Acrópole e caminhou pelas ruas movimentadas de Atenas. Demorou-se nos mercados ao ar livre, em torno da Rua Evripidou, fascinado pelas pessoas, pelas cestas imensas de calamares e peixes que tresandavam ao sol, pelas verduras e chinelos de brocatel pendurados lado a lado; as mulheres divertiam-no com os galanteios que lhe dirigiam, descarada e abertamente, legado de uma cultura muito diversa da sua cultura puritana. Se a atrevida admiração delas fosse lúbrica (ele não conseguia achar um termo melhor), ele teria ficado profundamente constrangido, mas ele a aceitava com o espírito em que ela se manifestava, como prêmio outorgado à extraordinária beleza física.

O hotel, muito luxuoso e caro, ficava na Praça Omonia. O Arcebispo di ContiniVerchese sentara-se numa cadeira, ao pé das janelas do seu balcão, e refletia tranqüilamente; quando o Bispo Ralph entrou, virou a cabeça, sorrindo.

— Você chegou na hora, Ralph. Eu estava querendo rezar.

— Imaginei que tudo estivesse resolvido. Complicações inesperadas, Excelência?

— Não desse gênero. Recebi hoje uma carta do Cardeal Monteverdi, expressando os desejos do Santo Padre.

O Bispo Ralph sentiu os ombros apertados, um curioso formigamento da pele em torno das orelhas.

— Conte-me.

— Assim que as conferências terminarem... e elas já terminaram... devo dirigirme a Roma. Lá serei abençoado com o barrete de cardeal, e continuarei meu trabalho em Roma, sob a direta supervisão de Sua Santidade.

— E eu?

— Você será nomeado Arcebispo de Bricassart e voltará à Austrália para ocupar meu lugar como Legado Papal.

A pele que formigava em torno das orelhas ficou vermelha; sua cabeça rodopiou. Ele, um não-italiano, agraciado com uma legação papal! Nunca se ouvira falar numa coisa dessas! Não havia dúvida, ele ainda seria Cardeal de Bricassart!

— É evidente que você, primeiro, terá de ser treinado e instruído em Roma. Isso levará, aproximadamente, uns seis meses, durante os quais estarei ao seu lado para apresentá-lo aos meus amigos. Quero que o conheçam, porque chegará o momento em que o mandarei chamar, Ralph, para ajudar-me em meu trabalho no Vaticano.

— Nunca poderei agradecer-lhe o bastante, Excelência! Devo a Vossa Excelência essa grande oportunidade.

— Deus permita que eu seja suficientemente inteligente para ver quando um homem capaz deve sair da obscuridade, Ralph! Agora ajoelhemo-nos e rezemos. Deus é muito bom.

Seu rosário e seu missal estavam sobre uma mesa próxima; com mão trêmula, o Bispo Ralph procurou alcançar o rosário e derrubou o missal. Quando este caiu no chão, abriu-se ao meio. O arcebispo, mais perto dele, apanhou-o e olhou, curioso, Para a forma escura, fina como tecido, que fora uma rosa.

— Que coisa extraordinária! Por que guarda isso? Uma lembrança de sua casa, de sua mãe, talvez?

Os olhos que viam através da fraude e da dissimulação estavam fixos nele, e não havia tempo para disfarçar a emoção nem a apreensão.

— Não — redargüiu o Bispo Ralph com uma careta. — Não quero lembranças de minha mãe.

— Mas esta rosa deve significar muito para você, que a guarda com tanto amor entre as páginas do seu livro mais querido. De que fala ela?

— De um amor tão puro quanto o que consagro a Deus, Vittorio. Uma coisa que só traz honra ao livro.

— Isso eu já havia deduzido, porque o conheço. Mas esse amor, porventura, não porá em risco o seu amor à Igreja?

— Não. Pela Igreja renunciei a ela e pela Igreja sempre renunciarei a ela. Já fui tão longe adiante dela que nunca mais poderei voltar.

— Agora, sim, entendo a tristeza! Querido Ralph, isso não é tão ruim quanto você pensa, não é, não. Você viverá para fazer bem a muita gente, e será amado por muita gente. E a ela, que tem o amor contido numa velha e flagrante lembrança como esta, nada lhe faltará. Porque você conservou o amor ao lado da rosa.

— Não creio que ela compreenda nada disso.

— Há de compreender. Se não fosse uma mulher capaz de compreendê-lo, você não a teria amado dessa maneira. Já a teria esquecido e jogado fora esta relíquia há muito tempo.

— Tem havido momentos em que só as horas passadas de joelhos me impediram de deixar meu posto e correr para ela.

O Arcebispo levantou-se com cuidado da sua poltrona e foi ajoelhar-se ao lado do amigo, o belo homem que ele amava como amara poucas coisas além do seu Deus e da sua Igreja, para ele indivisíveis.

— Você não deixará seu posto, Ralph, e sabe-o muito bem. Você pertence à Igreja, sempre pertenceu e sempre pertencerá. Sua vocação é uma vocação verdadeira. Rezemos agora, e eu acrescentarei a Rosa às minhas orações para o resto de minha vida. Nosso Senhor nos envia muitos desgostos e muita dor em nossa caminhada para a vida eterna. Precisamos aprender a sofrê-los, eu tanto quanto você.

No fim de agosto, Meggie recebeu uma carta de Luke dizendo que se achava no Hospital de Townseville com a moléstia de Weil, mas que não corria perigo de vida e logo receberia alta.

”Por isso, parece que não teremos de esperar até o fim do ano para tirar nossas férias, Meg. Só poderei voltar para a cana quando estiver cem por cento fisicamente, e a melhor maneira de consegui-lo é tirar umas férias decentes. Portanto, irei buscá-la dentro de uma semana, mais ou menos. Passaremos duas semanas no Lago Eacham, no Planalto de Atherton, até eu ficar suficientemente bom para voltar ao trabalho.”

Meggie mal pôde acreditar naquilo, e não sabia se queria ou não estar com ele, agora que se lhe oferecia a oportunidade. Embora a dor do espírito tivesse levado muito mais tempo para passar do que a dor do corpo, a lembrança do que fora para ela a lua-de-mel no hotel de Dunny tinha sido expulsa do seu pensamento havia tanto tempo que perdera o poder de aterrorizá-la e, graças às suas leituras, compreendia melhor agora que grande parte da provação se devera à ignorância, sua e de Luke. Oh, Senhor, tomara que essas férias significassem um filho! Se ela tivesse um bebezinho para amar, tudo seria muito mais fácil. Anne não se importaria de ter uma criança de colo pela casa, até gostaria disso. E Luddie também. Eles lhe haviam dito uma centena de vezes, esperando que, numa de suas visitas, Luke ficasse o tempo suficiente para dar um pouco de cor à existência triste e sem amor da esposa.

Quando ela lhes contou o que dizia a carta, ficaram encantados, mas, intimamente, céticos.

— Tão certo como dois mais dois são quatro, aquele desgraçado encontrará uma desculpa para partir sem ela — disse Anne a Luddie.

Luke conseguira um automóvel emprestado e foi apanhar Meggie de manhã cedinho. Estava magro, enrugado, amarelo, como se tivesse sido conservado em salmoura. Impressionada, Meggie deu-lhe a mala e subiu no carro ao seu lado.

— Em que consiste a moléstia de Weil, Luke? Você disse que não corria risco de vida, mas agora me parece que esteve realmente muito doente.

— É uma espécie qualquer de icterícia, que a maioria dos cortadores apanha, mais cedo ou mais tarde, transmitida pelos ratos da cana. Pega-se a doença através de um talho ou de uma ferida. Como eu estava bem de saúde, não fiquei tão ruim como outros que apanharam a mesma doença. Os charlatas me disseram que estarei em perfeitas condições num abrir e fechar de olhos.

Subindo por uma grande garganta coberta de mata, a estrada se adentrava no país. Um rio cheio rugia e corria com ímpeto, embaixo e, a certa altura, uma esplêndida cascata caía de algum lugar, em cima, para juntar-se ao rio ao lado da estrada. Passaram entre o rochedo e a água, que ali formava um ângulo, sob um arco molhado e fúlgido, de luzes e sombras fantásticas. E, à medida que subiam, o ar esfriava deliciosamente. Meggie se esquecera da sensação maravilhosa que o ar frio poderia proporcionar-lhe. A mata inclinava-se dos dois lados da estrada, tão fechada que ninguém se atrevia a Penetrá-la. Disfarçava-lhe a magnitude o peso de trepadeiras folhosas, cujas algas se estendiam do cimo de uma árvore ao cimo de outra, contínuas e intermináveis, como Um vasto lençol de veludo verde atirado sobre a floresta. Pelas raras aberturas da folhagem, Meggie entrevia flores e borboletas admiráveis, teias avantajadas como rodas de carroças com grandes e elegantes aranhas multicores imóveis no centro, fungos fabulosos saindo de troncos musgosos, pássaros com longas e roçagantes caudas vermelhas ou fulvas.

O Lago Eacham ficava no topo do chapadão, idílico em seu cenário intacto. Antes que a noite caísse, eles foram para a varanda da pensão a fim de contemplar a paisagem. Meggie desejava observar os enormes morcegos frutívoros, chamados raposas voadoras, que se aproximavam em círculos, como precursores do Juízo Final, aos milhares, à procura de alimento. Apesar de monstruosos e repulsivos, eram singularmente tímidos e não faziam mal a ninguém. Vê-los chegar por um céu incandescente em lençóis escuros, palpitantes, apavorava; Meggie nunca deixava de ir vê-los da varanda de Himmelhoch.

E era divino deitar-se numa cama fofa e fria, sem ter de ficar deitada, imóvel, até que o lugar se encharcasse de suor, e depois mover-se com cuidado para um novo lugar, sabendo que o anterior não secará de maneira alguma. Luke foi buscar um pacote achatado e pardo da mala, dele tirou um punhado de pequenos objetos redondos e colocou-os em fila sobre a mesinha-de-cabeceira.

Meggie estendeu a mão para pegar um deles a fim de inspecioná-lo.

— Que é isso? — perguntou, curiosa.

— Uma camisa-de-vênus. — Esquecera-se da decisão, tomada dois anos antes, de não dizer a ela que praticava a contracepção. — Coloco-a em mim antes de entrar em você. Se não fizer isso, poderei estar dando origem a um bebê, e não podemos ter filhos enquanto não tivermos conseguido nossa terra. — Sentado como estava, nu, na beira da cama, notava-se-lhe a magreza nas costelas e quadris salientes. Mas seus olhos azuis brilhavam, e ele estendeu a mão para apertar a dela, que segurava a camisa-de-vênus. — Estamos chegando lá, Meg, estamos chegando lá! Calculo que com mais cinco mil libras poderemos comprar a melhor propriedade que existe a oeste de Charters Towers.

— Então você já as tem — disse ela, com voz absolutamente calma. — Posso escrever ao Bispo de Bricassart e pedir-lhe o dinheiro emprestado. Ele nem cobrará juros.

— Você não fará nada disso! — retrucou ele, com brusquidão. — Que diabo, Meg, onde está o seu orgulho? Trabalharemos para conseguir o que quisermos, não pediremos nada emprestado! Nunca devi nada a ninguém em toda a minha vida e não é agora que vou começar a fazê-lo.

Ela mal o ouviu, fixando nele o olhar feroz, através de uma névoa vermelha e brilhante. Nunca estivera com tanto ódio em sua vida! Impostor, mentiroso, egoísta! Como se atrevia ele a fazer isso com ela, enganando-a para não lhe dar um bebê, tentando fazê-la acreditar que tivera algum dia a intenção de tornar-se fazendeiro! Ele encontrara o seu ideal, com Arne Swenson e a cana-de-açúcar.

Escondendo tão bem a raiva que ela mesma se surpreendeu, voltou sua atenção para a rodelinha de borracha que tinha na mão.

— Fale-me a respeito dessas camisas-de-vênus. Como é que elas me impedem de ter um filho?

Ele postou-se atrás dela, e o contato dos seus corpos fê-la estremecer de excitação, pensou ele; de nojo, sentiu ela.

— Você não sabe nada, Meg?

— Não — mentiu ela. O que era exato, aliás, no tocante às camisas-de-vênus; não se lembrava de ter lido nenhuma referência a elas.

As mãos dele brincavam com os seios dela, tocando-os de leve.

— Veja bem, quando acabo, eu produzo este... não sei... este negócio, e se eu estiver dentro de você sem a camisa-de-vênus, o negócio fica lá dentro. E quando ele fica lá dentro o tempo suficiente ou as vezes suficientes, faz um bebezinho.

Então era isso! Ele usava a coisa, como a pele de uma salsicha! Impostor!

Apagando a luz, Luke puxou-a para a cama e, pouco depois, estava tateando à procura do seu dispositivo anticoncepcional; ela o ouviu fazendo os mesmos ruídos que fizera no quarto do hotel de Dunny; sabia agora que ele estava colocando a camisa-de-vênus. Impostor! Mas como evitá-lo?

Tentando não deixar que ele percebesse o quanto a estava machucando, ela suportou-o. Por que teria de doer assim, se era coisa natural?

— Não adianta, não é, Meg? — disse ele depois. — Você deve ser muito miúda para que ele continue a machucá-la assim depois da primeira vez. Bem, não tornarei a fazê-lo. Você não se incomoda se eu fizer no seio?

— Que importância tem isso? — perguntou ela, em tom cansado. — Se quer dizer que não vai me machucar, está bem!

— Você poderia ser um pouco mais entusiástica, Meg!

— Para quê?

Mas ele começava a levantar-se outra vez; fazia dois anos que não tinha tempo ou energia para isso. Sim, era gostoso estar com uma mulher, excitante e proibido. Não se sentia de modo algum casado com Meg; aliás, o mesmo era pegar uma garota no Pasto atrás do bar de Kynuna, ou trepar com a arrogante Srta. Carmichael encostada na parede do barracão de tosquia. Meggie tinha seios bonitos, firmes depois de tanto cavalgar, exatamente como ele os apreciava, e ele sinceramente preferia conseguir o seu prazer no seio dela, gostando da sensação do pênis imprensado entre duas barrigas. As camisas-de-vênus tiravam grande parte da sensibilidade do homem, mas deixar de pô-las quando ia enfiar-se nela era procurar encrenca.

Tateando, puxou-lhe as nádegas, fê-la deitar-se sobre ele, depois agarrou um mamilo com os dentes, sentindo-lhe a ponta escondida intumescer-se sobre sua língua. Um grande desprezo por ele tomara conta de Meggie; que ridículas criaturas eram os homens, grunhindo, chupando e esforçando-se daquele jeito. Ele estava ficando mais excitado, apertando-lhe as costas e as nádegas, arquejando como um gatinho que, embora crescido demais, voltasse às escondidas para a mãe. Seus quadris principiaram a mover-se de um jeito rítmico, espasmódico, e, esparramada sobre ele desajeitadamente, porque detestava ter de ajudá-lo, sentiu entre as pernas a ponta do pênis desprotegido.

Como não participasse do ato, ainda era dona dos seus pensamentos. E foi então que lhe surgiu a idéia. Tão lenta e discretamente quanto pôde, manobrou-o até deixálo exatamente na sua parte mais dolorida; depois, respirando fundo para não perder a coragem, trincando os dentes, forçou o pênis a entrar. Doeu, mas já doeu muito menos. Sem a bainha de borracha, o membro, mais escorregadio, era mais fácil de introduzir e mais fácil de tolerar.

Luke abriu os olhos. Tentou afastá-la de si, mas oh, Deus! Inacreditável o que sentia sem a camisa-de-vênus; nunca estivera dentro de uma mulher sem o preservativo, nunca imaginara a diferença que havia. Achava-se tão próximo do orgasmo, tão excitado que, por mais que tentasse, não conseguia empurrá-la com força suficiente e acabou enlaçando-a com os braços, incapaz de prosseguir em sua atividade no seio. Embora não fosse másculo gritar, não pôde impedir que o ruído partisse dele. Depois beijou-a suavemente.

— Luke?

— O quê?

— Por que não podemos fazer isso sempre? Se o fizéssemos, você não precisaria pôr a camisa-de-vênus.

— Não deveríamos ter feito isso dessa vez, Meg, quanto mais outras vezes! Eu estava bem dentro de você quando acabei.

Ela inclinou-se sobre ele, acariciando-lhe o peito.

— Mas você não vê? Eu estou sentada! A coisa não fica lá dentro, está escorrendo tudo para fora outra vez! Oh, Luke, por favor! É tão mais gostoso, e machuca muito menos. Tenho certeza de que não faz mal, porque sinto que está escorrendo. Por favor!

Qual foi o ser humano que já resistiu à repetição do prazer perfeito oferecido de forma tão razoável? À semelhança de Adão, Luke consentiu, pois, àquela altura, estava muito menos bem informado do que Meggie.

— Talvez seja verdade o que você está dizendo, e é muito melhor para mim quando você não luta. Está bem, Meg, de agora em diante faremos sempre desse jeito.

No escuro, Meggie sorriu, contente. Porque nem tudo escorrera para fora. No momento em que o sentira afastar-se, ela retesara todos os músculos internos, escorregara de cima dele até ficar deitada de costas, erguera para o ar, casualmente, os joelhos cruzados e aferrara-se com toda a sua determinação ao que sobrara Oh, meu belo cavalheiro, deixe estar que darei um jeito nisso! Você não perde por esperar, Luke O’Neill! Ainda terei o meu filho, nem que isso me mate!

Longe do calor e da umidade do litoral, Luke restabeleceu-se depressa. Comendo bem, começou a recuperar os quilos que perdera, e sua pele mudou de cor, passando do amarelo doentio para o moreno de sempre. Com a tentação de uma Meggie desejosa e sensível na cama, não foi muito difícil persuadi-lo a prolongar para três as duas semanas originais, e depois para quatro. Mas, ao cabo de um mês, ele se rebelou.

— Já não há desculpas, Meg. Sinto-me melhor do que nunca. Estamos aqui, sentados no topo do mundo, como um rei e uma rainha, gastando dinheiro. Arne precisa de mim

— Você não quer pensar melhor, Luke? Se quisesse, compraria agora mesmo a nossa fazenda.

— Vamos continuar mais um pouquinho do jeito que estamos, Meg.

Ele recusava-se a reconhecê-lo, naturalmente, mas o fascínio do açúcar estava em seus ossos, a estranha atração que alguns homens sentem pelo trabalho total E, enquanto lhe durasse a força da juventude, Luke permaneceria fiel ao açúcar. A única coisa em que Meggie poderia contar para obrigá-lo a mudar de idéia era dar-lhe um filho, um herdeiro para a propriedade nos arredores de Kynuna

Por isso ela voltou para Himmelhoch a fim de aguardar e esperar. Por favor, por favor, que haja um bebê! Um bebê resolveria tudo! Por favor, deixe que haja um bebê!

E houve. Quando ela deu a notícia a Anne e Luddie, eles exultaram. Luddie sobretudo revelou-se um tesouro. Fazia os mais lindos trabalhos de franzidos e bordados, duas habilidades que Meggie nunca tivera tempo de dominar E enquanto ele empurrava uma agulha minúscula através do tecido delicado com as mãos calosas e mágicas, Meggie ajudava Anne a arrumar o quarto do bebê.

A única dificuldade era que a criança não estava numa boa posição e Meggie não sabia ao que poderia atribuí-lo, se ao calor, se à sua infelicidade. O enjôo matinal durava o dia inteiro e persistiu por muito tempo depois que já devia ter parado, a despeito do escasso aumento de peso, ela principiou a sofrer muito em virtude do excesso de iluido nos tecidos do corpo, e sua pressão sangüínea subiu a ponto de deixar o Dr Smith apreensivo. A princípio, ele falou num hospital em Cairns para o resto da gravidez, mas, depois de muito pensar na sua situação, sem marido e sem amigos, concluiu que ela ficaria melhor em companhia de Luddie e Anne, que se interessavam por ela. Nas três ultimas semanas de gestação, entretanto, teria de ir para Cairns.

— E procure fazer com que o marido venha vê-la — rugiu, dirigindo-se a Luddie.

Meggie escrevera logo para comunicar a Luke que estava grávida, com a costumeira convicção feminina de que, uma vez que o indesejado era um fato incontestável, Luke ficaria doido de alegria. A carta que ele mandou em resposta acabou com suas ilusões. Estava furioso. Para ele, tornar-se pai significava simplesmente ter duas bocas ociosas para alimentar, em vez de uma. Foi uma pílula bem amarga para Meggie engolir, mas ela a engoliu; não tinha escolha. A criança que se anunciava ligava-a agora a ele tão estreitamente quanto o seu orgulho.

Mas ela se sentia mal, indefesa, totalmente desamada; nem o bebê a amava, pois não queria ser concebido nem queria nascer. Percebia nas entranhas os frágeis protestos da débil e minúscula criatura contra a sua transformação num ser. Se ela fosse capaz de suportar os três mil e duzentos quilômetros que a separavam de casa, teria regressado a Drogheda, mas o Dr. Smith sacudiu a cabeça com firmeza. Viajar de trem uma semana ou mais, ainda que a viagem se fizesse por etapas, equivaleria a perder a criança. E, embora se sentisse desapontada e infeliz, Meggie não prejudicaria deliberadamente o bebê. Entretanto, à proporção que o tempo se escoava, o entusiasmo e o desejo ardente de ter alguém seu para amar definhavam nela; e a criança opressora pendia mais pesada, mais ressentida.

O Dr. Smith sugeriu uma mudança antecipada para Cairns; não tinha certeza de que Meggie sobreviveria a um parto em Dungloe, que só possuía uma enfermaria em precárias condições. Sua pressão sangüínea recalcitrava, o fluido continuava a aumentar; ele falou em toxemia e eclâmpsia, outras longas palavras médicas que assustaram Anne e Luddie e os forçaram a concordar, por mais que quisessem ver o bebê nascer em Himmelhoch.

No fim de maio só restavam quatro semanas para que Meggie pudesse libertar-se do seu fardo intolerável, aquele filho ingrato. Ela estava aprendendo a odiar o próprio ser que tanto quisera antes de descobrir as dificuldades que ele causaria. Por que presumira ela que Luke esperaria ansioso a vinda da criança depois que sua existência fosse uma realidade? Nada em sua atitude nem em sua conduta depois do casamento indicava que ele agiria assim.

Já estava na hora de admitir que o casamento fora um desastre, renunciar ao seu orgulho tolo e tentar salvar das ruínas o que pudesse. Eles se haviam unido por todos os motivos errados: ele pelo dinheiro dela, ela, para fugir de Ralph de Bricassart, ao mesmo tempo que tentava reter Ralph de Bricassart. Nunca houvera sequer uma simulação de amor, e só o amor os teria ajudado, a ela e a Luke, a superar as enormes dificuldades criadas por suas metas e desejos divergentes.

Por mais estranho que fosse, ela parecia incapaz de odiar Luke, embora se surpreendesse a odiar Ralph de Bricassart com freqüência cada vez maior. No entanto, no cômputo geral, Ralph tinha sido muito mais bondoso e muito mais justo com ela do que Luke. Nem uma vez a animara a sonhar com ele em papéis que não fossem o de padre e o de amigo, pois, até nas duas ocasiões em que a beijara, a iniciativa partira dela.

Por que, então, ficar tão zangada com ele? Por que odiar Ralph e não odiar Luke? A culpa era dos seus próprios temores e deficiências, do imenso e ultrajado ressentimento que lhe inspirara a sistemática rejeição dele, quando ela o amava e queria tanto. E a culpa era do impulso estúpido que a levara a desposar Luke O’Neill. Uma traição a si mesma e a Ralph. Não importava que nunca tivesse podido casar com ele, dormir com ele, ter um filho dele. Não importava que ele não a quisesse, e ele não a queria. Persistia o fato de que era ele quem ela queria, e nunca deveria ter-se contentado com menos.

Mas o fato de reconhecer os erros não os alterava. Luke O’Neill continuava sendo o homem que ela desposara, e continuava sendo de Luke O’Neill o filho que ela carregava. Como poderia dar-lhe felicidade a idéia do filho de Luke O’Neill, se nem ele queria saber da criança? Depois que nascesse, pelo menos, esta seria o seu próprio pedaço de humanidade, e poderia ser amada como tal. Que não daria ela pelo filho de Ralph de Bricassart? O impossível, o que nunca seria. Ralph servia a uma instituição que insistia em apoderar-se de tudo o que era dele, até a parte que para ela não tinha o menor valor, sua virilidade, que a Madre Igreja exigia dele como um sacrifício ao seu poder institucional e assim o desperdiçava, esmagava-lhe o ser, para que ele, quando parasse, parasse para sempre. Só que um dia a Igreja teria de pagar pela sua ganância. Um dia já não haveria Ralphs de Bricassart, porque todos teriam dado à sua virilidade valor suficiente para perceber que o sacrifício dela era inútil, totalmente sem sentido...

De repente, Meggie se levantou e dirigiu-se à sala de estar, onde Anne, sentada, lia um exemplar clandestino do romance interditado de Norman Lindsay, Redheap, e obviamente se deliciava com cada palavra proibida.

— Anne, creio que o seu desejo vai se realizar. Anne ergueu os olhos com expressão ausente.

— Que foi, meu bem?

— Telefone para o Dr. Smith. vou ter esse desgraçado bebê aqui e agora.

— Oh, meu Deus! Vá para o quarto e deite-se... Para o seu quarto não, para o nosso!

Maldizendo os caprichos do destino e a determinação dos bebês, o Dr. Smith saiu disparado de Dungloe em seu calhambeque com a parteira local no assento de trás e todo o equipamento que pôde carregar do seu hospitalzinho improvisado. Não adiantava levá-la para lá; ele poderia fazer o mesmo por ela em Himmelhoch. Era em Cairns que ela devia estar.

— Vocês avisaram o marido? — perguntou ele enquanto subia com esforço a escada da frente, seguido pela parteira.

— Mandei-lhe um telegrama. Ela está no meu quarto; achei que lá o senhor teria mais espaço.

Manquejando atrás dos dois, Anne entrou no quarto. Deitada na cama, de olhos arregalados, Meggie não dava nenhum sinal de dor a não ser um espasmo ocasional das mãos, um encolhimento do corpo. Virou a cabeça a fim de sorrir para Anne, e esta percebeu que seus olhos estavam muito amedrontados.

— Ainda bem que não fui para Cairns — disse ela. — Minha mãe nunca precisou de hospital para ter filhos, e papai contou certa vez que ela passou muito mal com Hal. Mas sobreviveu, e eu também sobreviverei. Nós, mulheres da família Cleary, somos duras na queda.

Somente horas depois o médico foi ter com Anne na varanda.

— Será um trabalho demorado e duro para ela. Os primeiros filhos raramente são fáceis, mas este não está em boa posição e a coitada só consegue arrastar-se sem chegar a parte alguma. Se estivesse em Cairns poderíamos fazer uma cesariana, mas isso aqui está fora de cogitação. Ela terá de dar à luz pelos próprios meios.

— Está consciente?

— Está, sim. É valente a mulherzinha, não grita nem se queixa. Na minha opinião, são sempre as melhores que passam pior. Não pára de me perguntar se Ralph já chegou, e sou obrigado a mentir, dizendo que o Johnstone transbordou. Pensei que o nome do marido fosse Luke.

— E é.

— Hum! Então é por isso que ela está querendo o tal de Ralph, seja lá quem for. Parece que Luke não é um grande consolo.

— Luke é um cretino.

Anne inclinou-se para a frente, com as mãos na balaustrada da varanda. Vindo da estrada de Dunny, um táxi enveredara pelo caminho que conduzia a Himmelhoch. Sua vista excelente acabara de distinguir un homem de cabelo preto no assento traseiro, e ela soltou uma exclamação de alívio e alegria.

— Não acredito no que estou vendo, mas parece que Luke, finalmente, se lembrou de que tem mulher!

— Então é melhor que eu vá ter com ela. Você fica aqui para se entender com ele, Anne. Não direi nada a ela, pois talvez não seja ele. Se for, dê-lhe uma xícara de chá e deixe o pior da história para contar depois. Ele vai precisar.

O táxi parou; surpresa, Anne viu o motorista descer, dirigir-se à porta de trás e abri-la para o passageiro. Joe Castiglione, chofer do único carro de praça de Dunny, não era dado a cortesias.

— Himmelhoch, Excelência — disse ele, inclinando-se profundamente.

Um homem que envergava uma longa e bem-talhada batina preta, com uma faixa de gorgorão púrpura na cintura, desceu do carro. Quando ele se voltou, Anne supôs, por um momento, que Luke O’Neill estivesse fazendo alguma brincadeira. Depois viu que o homem era muito diferente e tinha, pelo menos, dez anos mais do que ele Meu Deus, pensou, quando a garbosa figura subiu a escada de dois em dois degraus, é o sujeito mais bonito que já vi em toda a minha vida! E arcebispo, ainda por cima! Que há de querer um arcebispo católico em casa de um casal de velhos luteranos como Luddie e eu?

— Sra Mueller? — perguntou ele, sorrindo-lhe com os olhos azuis, gentis e distantes Como se já tivessem visto muita coisa que teriam dado tudo para não ver e conseguido deixar de sentir havia muito tempo

— Sim, sou Anne Mueller

— Sou o Arcebispo Ralph de Bricassart, legado de Sua Santidade na Austrália. Segundo me consta, a senhora tem uma Sra Luke O’Neill hospedada em sua casa.

— Tenho, sim, senhor Ralph! Ralph! Será esse Ralph?

— Sou um velho amigo dela. Posso vê-la, por favor?

— Tenho a certeza de que ela ficaria encantada, Arcebispo — não, não estava certo, não se dizia Arcebispo, dizia-se Excelência, como Joe Castiglione — em circunstâncias normais, porém Meggie acaba de entrar nas dores do parto, e está passando mal

Ela viu, então, que ele não conseguira, absolutamente, deixar de sentir e apenas disciplinara os sentimentos, que se mantinham em canina abjeção no fundo da sua mente. Os olhos dele eram tão azuis que ela pensou afogar-se neles, e o que neles via agora fê-la perguntar a si mesma o que era Meggie para ele e o que era ele para Meggie.

— Eu sabia que alguma coisa estava errada! Tenho sentido que alguma coisa está errada há muito tempo, mas, ultimamente, minha preocupação tornou-se obsessão! Por favor, deixe-me vê-la! Se a senhora precisar de uma razão, sou padre!

Anne jamais tencionara impedi-lo de vê-la.

— Venha, Excelência, por aqui, por favor.

E enquanto ela se arrastava, devagar, entre as duas muletas, não cessava de pensar: A casa está limpa e arrumada? Já tirei o pó hoje? Já jogamos fora aquele velho e fedido pernil de carneiro, ou ele continua recendendo pela casa toda? Que momento para um homem importante como este fazer uma visita! Luddie, você vai ou não vai tirar essa bunda gorda do trator e entrar? O menino já devia tê-lo encontrado há horas!

Ele passou pelo Dr Smith e pela parteira como se não existissem e foi cair de joelhos ao lado da cama, enquanto sua mão se estendia para a dela.

— Meggie!

Ela emergiu do sonho pavoroso em que afundara e viu o rosto amado perto do Seu, o denso cabelo preto agora com duas mechas brancas em seu negrume, os belos traços aristocráticos um pouco mais acentuados, mais pacientes se possível, e os olhos azuis fixos nos dela com amor e desejo. Como pudera confundir Luke com ele? Não havia ninguém como ele. Luke era o lado escuro do espelho; Ralph era esplêndido como o sol, e igualmente remoto. Como era bom vê-lo!

— Ralph, ajude-me — disse ela.

Ele beijou-lhe a mão apaixonadamente, depois encostou-a no seu rosto.

— Sempre, minha Meggie, você sabe disso.

— Reze por mim e pelo bebê. Se alguém pode nos salvar, esse alguém é você. Está muito mais perto de Deus do que nós. Ninguém nos quer, ninguém nunca nos quis, nem mesmo você.

— Onde está Luke?

— Não sei e não quero saber.

Ela fechou os olhos e rolou a cabeça sobre o travesseiro, mas os dedos dela, entrelaçados com os dele, não queriam deixá-lo partir.

Nesse momento, o Dr. Smith tocou-lhe o ombro.

— Excelência, creio que deve sair agora.

— Se a vida dela correr perigo, o senhor me chamará?

— Imediatamente.

Luddie chegara finalmente do canavial, frenético porque não conseguia ver ninguém e sem coragem de entrar no quarto.

— Anne, ela está bem? — perguntou, no momento em que sua esposa saiu em companhia do Arcebispo.

— Por enquanto. O doutor não quer se comprometer, mas creio que tem esperanças. Luddie, temos visita. Este é o Arcebispo Ralph de Bricassart, velho amigo de Meggie.

Mais entendido do que a esposa, Luddie dobrou um joelho e beijou o anel da mão que lhe estendiam.

— Sente-se, Excelência, e converse com Anne. vou ferver um pouco d’água para fazer chá.

— com que, então, o senhor é Ralph — disse Anne, encostando as muletas numa mesa de bambu, enquanto o sacerdote se sentava defronte dela, com as pregas da batina caindo à sua volta, deixando claramente visíveis as botas pretas e lustrosas de montar, pois cruzara as pernas. Era um gesto afeminado para um homem, mas, em se tratando de um padre, não tinha importância; não obstante, havia nele qualquer coisa intensamente máscula, com as pernas cruzadas ou descruzadas. E ele não devia ser tão velho quanto ela supusera a princípio; teria, quando muito, uns quarenta e poucos anos. Que desperdício!

— Sim, sou Ralph.

— Desde que principiaram as dores de parto de Meggie, ela tem perguntado por alguém chamado Ralph. Devo confessar que estou abismada. Não me lembro de tê-la visto mencionar uma única vez esse nome.

— Ela não o mencionaria, mesmo.

— Como é que Vossa Excelência conhece Meggie? Há quanto tempo?

O padre sorriu obliquamente e juntou as mãos, finas e belíssimas, formando com elas um teto pontudo de igreja.

— Conheço Meggie desde os seus dez anos de idade, quando fazia apenas alguns dias que ela desembarcara da Nova Zelândia. A senhora pode dizer, sem mentir, que a conheço através da inundação, do incêndio e da fome emocional, através da morte e da vida. Através de tudo que temos de suportar. Meggie é o espelho em que sou forçado a ver minha mortalidade.

— O senhor a ama? — Havia surpresa no tom de Anne.

— Sempre a amei.

— É uma tragédia para os dois.

— Eu esperava que fosse apenas para mim. Fale-me a respeito dela, conte-me o que lhe aconteceu depois que se casou. Faz muitos anos que não a vejo, mas não me sinto feliz a respeito dela.

— Eu lhe contarei, mas só depois que o senhor me falar de Meggie. Não me refiro a coisas pessoais, apenas à espécie de vida que ela levava antes de vir para Dunny. Não sabemos absolutamente nada sobre ela, Luddie e eu, a não ser que costumava viver em algum lugar perto de Gillanbone. Gostaríamos de saber mais, porque lhe somos muito afeiçoados. Mas ela nunca se dispôs a nos contar coisa alguma... por orgulho, creio eu.

Luddie trouxe uma bandeja com chá e muita comida, e sentou-se enquanto o padre lhes fazia um esboço da vida de Meggie antes de casar com Luke.

— Eu nunca teria adivinhado, nem em um milhão de anos! Pensar que Luke O’Neill teve a temeridade de tirá-la de tudo isso e fazê-la trabalhar como empregada doméstica! E a desfaçatez de estipular que os salários dela fossem depositados no banco, na conta dele! Sabe que a pobrezinha nunca teve um tostão na bolsa para gastar consigo desde que está aqui? Pedi a Luddie que lhe desse uma gratificação em dinheiro no último Natal, mas, nessa ocasião, ela já estava precisando de tanta coisa que gastou tudo num dia, e nunca mais aceitou nada de nós.

— Não tenham pena de Meggie — disse o Arcebispo Ralph em tom ligeiramente áspero. — Creio que nem ela sente pena de si mesma, e muito menos por não ter dinheiro. O dinheiro, afinal, não lhe trouxe muitas alegrias. Ela sabe onde encontrá-lo se não puder passar sem ele. Eu diria que a aparente indiferença de Luke a magoou muito mais que a falta de dinheiro. Minha pobre Meggie!

Anne e Luddie traçaram juntos um esboço da vida de Meggie, enquanto o Arcebispo de Bricassart, sentado, com as mãos unidas formando um campanário, tinha o olhar perdido no belo leque majestoso de uma palmeira, lá fora. Nenhum músculo de seu rosto se moveu, mudança alguma se registrou nos olhos belos e distantes. Ele aprendera muito desde que entrara para o serviço de Vittorio Scarbanza, Cardeal di Contini-Verchese.

Quando os dois concluíram a narrativa, ele suspirou e transferiu o olhar para os rostos ansiosos dos donos da casa.

— Bem, parece que temos de ajudá-la, já que Luke se nega a fazê-lo. Se Luke realmente não a quer, ela estará melhor em Drogheda. Sei que os senhores não querem perdê-la, mas, por amor dela, procurem persuadi-la a voltar para casa. Eu lhes mandarei um cheque de Sydney para ela, para poupar-lhe o constrangimento de pedir dinheiro ao irmão. Depois, quando estiver em casa, ela dirá à família o que bem entender. — Olhou para a porta do quarto e mexeu-se, inquieto. — Meu Deus, fazei com que a criança nasça!

Mas a criança só nasceu dali a vinte e tantas horas, e Meggie quase morreu de cansaço e dor. O Dr. Smith dera-lhe copiosas doses de láudano, que, na sua opinião antiquada, ainda era a melhor coisa; ela parecia vogar à deriva, turbilhando através de pesadelos espiralados, em que coisas de fora e de dentro se rompiam e rasgavam, arranhavam e cuspiam, uivavam, lamuriavam e rugiam. As vezes, o rosto de Ralph entrava em foco por breve momento, mas logo se dissipava numa onda de dor cada vez maior; a lembrança dele, no entanto, persistia e, enquanto ele estivesse ali vigiando, Meggie sabia que nem ela nem o bebê morreriam.

Deixando a parteira sozinha, no comando da situação, para poder comer alguma coisa, tomar um bom gole de rum e verificar se nenhum dos seus outros pacientes tivera a desconsideração de pensar em morrer, o Dr. Smith ouviu sobre a história tudo o que Anne e Luddie acharam conveniente contar-lhe.

— Você tem razão, Anne — disse ele. — O fato de ter andado tanto a cavalo é provavelmente um dos motivos das dificuldades de hoje. O desaparecimento do silhão foi um mal para as mulheres que precisam cavalgar muito. O jeito de montar feito homem desenvolve os músculos errados.

— Pois eu ouvi dizer que isso era superstição — comentou o Arcebispo brandamente.

O Dr. Smith olhou maliciosamente para ele. Não gostava de padres católicos e julgava-os uma turma carola de tolos babosos.

— Pense o que quiser — disse ele. — Mas diga-me, Excelência, se se tratasse de escolher entre a vida de Meggie e a vida da criança, que aconselharia a sua consciência?

— A Igreja é inflexível nesse ponto, doutor. Nenhuma escolha poderá ser feita. Jamais. Não se pode sacrificar a criança para salvar a mãe, nem a mãe para salvar a criança. — Ele retribuiu o sorriso do Dr. Smith com a mesma dose de malícia. —Mas se chegássemos a esse ponto, doutor, eu não hesitaria em dizer-lhe que salvasse Meggie. e a criança que fosse para o diabo.

O Dr. Smith arquejou, riu-se e deu-lhe uma palmada nas costas.

— Boa, Excelência! Não tenha medo, que não espalharei o que nos disse. Mas a criança está viva, por enquanto, e não vejo razão para matá-la.

Anne, contudo, estava pensando: eu gostaria de conhecer a sua resposta se a criança fosse sua, Arcebispo.

Umas três horas depois, quando o sol da tarde escorregava, tristonho, pelo céu na direção do vulto enevoado do Monte Bartle Frere, o Dr. Smith saiu do quarto.

— Acabou-se — disse, com alguma satisfação. — Meggie tem uma longa estrada à sua frente para transpor, mas ficará boa, se Deus quiser. E a criança é uma menina magrinha, ranzinza, de dois quilos e duzentos e sessenta gramas, com uma cabeça enorme e um gênio que combina com o mais abominável cabelo ruivo que já vi num bebê recém-nascido. Não se poderia matar aquele carrapato nem com um machado, e sei o que estou dizendo, porque quase tentei fazê-lo.

Exultante, Luddie foi buscar a garrafa de champanha que estivera guardando, e os cinco se ergueram com os copos transbordantes; o padre, o médico, a parteira, o fazendeiro e a aleijada brindaram à saúde e ao bem-estar da mãe e do seu bebê gritador e excêntrico. Era o dia primeiro de junho, o primeiro dia do inverno australiano.

Para substituir a parteira, chegara uma enfermeira, que ficaria até que Meggie fosse declarada fora de perigo. O médico e a parteira despediram-se, e Anne, Luddie e o Arcebispo foram ver Meggie.

Ela parecia tão pequenina e abatida na cama de casal que o Arcebispo Ralph teve de guardar outra dor separada no fundo da sua mente, para ser destacada, examinada e sofrida mais tarde. Meggie, minha lacerada e surrada Meggie... eu a amarei sempre, mas não posso dar-lhe o que Luke O’Neill lhe deu, por maior vontade que tivesse de dá-lo.

O pedacinho de humanidade responsável por tudo aquilo estava deitado num berço de vime na parede oposta, muito pouco satisfeito com a atenção que lhe dispensava a gente reunida à sua volta e que não se cansava de mirá-lo. A recém-nascida berrou para expressar seu ressentimento, e continuou berrando. No fim, a enfermeira levantou-a, com berço e tudo, e a instalou no quarto designado para ela.

— Podemos ter certeza de que os seus pulmões estão em boas condições.

O Arcebispo Ralph sorriu, sentou-se na beira da cama e pegou na mão pálida de Meggie.

— Não creio que ela goste muito da vida — disse Meggie, respondendo-lhe ao sorriso. Como ele parecia mais velho! Em boa forma e ágil como sempre, mas infinitamente mais velho. Ela virou a cabeça para Anne e Luddie, e estendeu-lhes a outra mão.

— Meus queridos e bons amigos! Que teria feito sem vocês? Já tivemos notícias de Luke?

— Recebi um telegrama dizendo que ele estava muito ocupado para vir, mas desejando-lhe boa sorte.

— Muito gentil — disse Meggie.

Anne inclinou-se depressa para beijar-lhe o rosto.

— Vamos deixá-la agora conversando com o Arcebispo, minha querida. Estou certa de que têm muita coisa para contar um ao outro. — Inclinando-se por sobre Luddie, fez sinal com o dedo à enfermeira, que olhava embasbacada para o religioso, como se não pudesse acreditar nos próprios olhos. — Vamos, Nettie, venha tomar uma xícara de chá. Sua Excelência a chamará se Meggie precisar de você.

— Que nome dará à barulhenta da sua filha? — perguntou ele quando a porta se fechou e os dois ficaram a sós.

— Justine.

— É muito bom, mas por que o escolheu?

— Li-o em algum lugar, e gostei dele.

— Você não a quer, Meggie?

O rosto dela, minguado, parecia feito apenas de olhos; olhos suaves, cheios de uma luz nebulosa, sem ódio, mas também sem amor.

— Acho que a quero. Sim, quero-a. Fiz muitos planos para consegui-la. Mas, enquanto a carregava, não pude sentir nada por ela, a não ser que ela não me queria. Não creio que Justine algum dia venha a ser minha, nem de Luke, nem de ninguém. Acho que sempre pertencerá a si mesma.

— Preciso ir, Meggie — disse ele meigamente.

Os olhos agora ficaram mais duros, mais brilhantes; a boca retorceu-se, assumindo uma forma desagradável.

— Eu esperava isso. É engraçado como todos os homens em minha vida desaparecem, não é?

Ele estremeceu.

— Não seja amarga, Meggie. Não suporto a idéia de partir pensando em você desse jeito. Apesar do que lhe aconteceu no passado, você sempre conservou sua doçura e essa, para mim, é a sua qualidade mais cativante. Não se modifique, não se torne dura por causa disso. Sei que deve ser terrível pensar que Luke não lhe teve amor bastante para vir, mas não se modifique. Você já não seria a minha Meggie.

Mas ela continuava a encará-lo como se o odiasse.

— Ora, deixe disso, Ralph! Eu não sou a sua Meggie, e nunca fui! Você não me queria, você me mandou para ele, para Luke. Que acha você que sou, uma espécie de santa, uma freira? Pois não sou, não senhor! Sou um ser humano comum, e você estragou minha vida! Durante tantos anos eu o amei, não quis ninguém senão você, esperei por você... Tentei desesperadamente esquecê-lo, mas acabei casando com outro homem porque se parecia um pouquinho com você, e ele também não me quer, nem precisa de mim. Será pedir demais a um homem esperar que precise de nós e que nos queira?

Ela principiou a soluçar, mas dominou-se; havia linhas finas de sofrimento em seu rosto, que Ralph vira, e ele conheceu que elas não pertenciam à espécie que o repouso e a volta da saúde poderiam apagar um dia.

— Luke não é um mau homem, nem um homem que não se possa amar — prosseguiu ela. -- É apenas um homem. Vocês são todos iguais, grandes mariposas peludas que se arrebentam e despedaçam no encalço de uma chama tola, atrás de um vidro tão claro que seus olhos não vêem. E quando conseguem entrar, aos trancos e barrancos, no interior do vidro para chegar à chama, caem ao chão queimados e mortos. Enquanto isso, lá fora, na noite fresca, há comida, amor e mariposinhas para fazer. Mas vocês vêem essas coisas? Querem essas coisas? Não! É atrás da chama que voltam, até perderem os sentidos e morrerem queimados por ela!

Ele não sabia o que dizer, pois nunca vira esse lado dela. Fora sempre seu, ou crescera provocado pelas suas terríveis dificuldades e pelo seu abandono? Meggie dizendo essas coisas? Ele mal as ouvia, e estava tão transtornado por ouvi-las da sua boca, que não compreendeu que tudo aquilo era fruto da solidão dela e do sentimento de culpa dele próprio.

— Lembra-se da rosa que me deu na noite em que saí de Drogheda? — perguntou ele, com ternura.

— Lembro-me, sim. — A vida se fora da voz, a luz dura desaparecera dos olhos. Estas fitavam-no agora como uma alma sem esperança, tão destituídos de expressão e vidrados quanto os olhos de sua mãe.

— Ainda a conservo, no meu livro de orações. E, todas as vezes que vejo uma rosa daquela cor, penso em você. Meggie, eu a amo. Você é a minha rosa, a mais bela imagem humana e o mais belo pensamento humano de minha vida.

Os cantos da boca de Meggie voltaram a descair, e seus olhos voltaram a brilhar com o tenso e coruscante ardor que encerrava também um travo de ódio.

— Uma imagem, um pensamento! Uma imagem humana e um pensamento humano! Sim, está certo, isso é tudo o que sou para você! Você não passa de um tolo romântico e sonhador, Ralph de Bricassart! Sabe tanto o que é a vida quanto a mariposa com que o comparei! Não admira que se fizesse padre! Você não poderia viver com tudo o que a vida tem de comum, se fosse um homem comum, tanto quanto Luke, o homem comum, também não pode! Você diz que me ama, mas não tem a menor idéia do que é o amor; está apenas pronunciando palavras que memorizou porque acha bonito o som delas! O que me desconcerta é que vocês homens ainda não nos dispensaram de todo, a nós, mulheres, e é justamente o que gostariam de fazer, não é? Vocês deviam encontrar um jeito de casar uns com os outros, pois assim seriam divinamente felizes!

— Meggie, não fale assim! Por favor, não fale assim!

— Ora, vá embora! Não quero olhar para você. E você se esqueceu de uma coisa a respeito das suas preciosas rosas, Ralph... elas têm espinhos, espinhos feios e recurvos!

Ele saiu do quarto sem olhar para trás.

Luke não se deu ao trabalho de responder ao telegrama que o informava de que ele era o pai orgulhoso de uma menina de dois quilos e duzentos e sessenta gramas, chamada Justine. Pouco a pouco, Meggie foi melhorando e a garotinha principiou a encorpar. Se Meggie tivesse podido alimentá-la, talvez conseguisse estabelecer um melhor relacionamento com a coisinha geniosa e magricela, mas não tinha leite nenhum nos seios abundantes, que Luke tanto gostara de sugar. Eis aí uma justiça irônica, pensou. Ela trocava as fraldas e dava a mamadeira conscienciosamente ao pedacinho de gente de cabeça e cara vermelhas, exatamente como o costume lhe ordenava que fizesse, esperando pelo início de alguma emoção maravilhosa, que depois cresceria. Mas a emoção não vinha; ela não sentia o desejo de abafar com beijos o minúsculo rostinho, nem de morder-lhe os dedinhos, nem de fazer qualquer uma das mil coisas tolas que as mães adoram fazer aos filhos. Ela não parecia ser sua filha e a pequena não precisava dela nem a queria, como ela não a queria nem precisava dela.

Luddie e Anne nunca imaginaram que Meggie não adorasse Justine, que não sentisse por Justine o que sentira por qualquer um dos filhos menores de sua mãe. Todas as vezes que Justine chorava, Meggie corria para pegá-la, cantarolava para ela, embalava-a, e nunca houve bebê mais sequinho nem mais confortável. O estranho era que Justine não parecia querer colo nem cantorias; ficava quieta muito mais depressa se a deixassem em paz.

À medida que o tempo foi passando, ela foi melhorando de aspecto. A pele de bebê perdeu a vermelhidão, adquiriu a transparência riscada de veias azuis que tantas vezes acompanha o cabelo vermelho, e os bracinhos e perninhas foram se enchendo, até atingir um agradável aspecto roliço. O cabelo principiou a encrespar-se, a adensarse e a adquirir para sempre o tom violento que Paddy, o avô, possuíra. Todos estavam ansiosos por ver a cor que iriam adquirir os olhos. Luddie apostou que seriam azuis, como os do pai, Anne, que seriam cinzentos como os da mãe, e Meggie não quis opinar. Mas os olhos de Justine eram decididamente singulares e desalentadores, para não dizer outra coisa. Quando a menina completou seis semanas de vida, eles começaram a mudar e, por volta da nona semana, já tinham a cor e a forma finais. Em torno da orla externa da íris havia um anel cinza muito escuro, mas a própria íris era tão pálida que não se poderia dizer que fosse azul nem cinzento, a descrição mais aproximada da cor seria, nesse caso, uma espécie de branco-escuro. Olhos penetrantes, inquietantes, inumanos, que se diriam cegos, mas, com o passar do tempo, tornou-se óbvio que Justine via muitíssimo bem com eles.

Embora não o mencionasse, o Dr Smith ficara preocupado com o tamanho da cabeça dela ao nascer, e não deixou de observá-la com atenção nos primeiros seis meses de vida, pusera-se a imaginar, sobretudo depois de ver-lhe os olhos estranhos, se ela não teria o que ele ainda chamava de água no cérebro, embora os compêndios já lhe chamassem hidrocefalia. Ao que tudo indicava, no entanto, Justine não sofria de nenhuma espécie de disfunção ou conformação anômala do cérebro, só tinha uma cabeça muito grande e, à proporção que cresceu, o resto se harmonizou, mais ou menos, com a cabeça.

Luke continuou longe. Meggie lhe escrevera repetidamente, mas ele não respondeu nem foi ver a filha. De certo modo, ela ficou contente, não teria sabido o que dizer a ele, e não acreditava que ele viesse a sentir-se extasiado diante da estranha criaturinha que era sua filha. Se Justine fosse um rapagão robusto, é possível que o tivesse abrandado, mas Meggie sentiu um feroz contentamento por ter tido uma menina. Justine constituía a prova viva de que o grande Luke O’Neill não era perfeito, pois, se o fosse, só geraria filhos homens.

A criança vingou melhor do que a mãe e recobrou-se mais depressa do parto. Quando completou quatro meses já não chorava tanto e já se divertia, deitada no bercinho, brincando com as fieiras de contas coloridas, colocadas ao alcance de sua mãozinha. Mas nunca sorria para ninguém, nem mesmo sob o disfarce das dores provocadas pelos gases.

A chuva veio cedo, em outubro, e foi uma chuva muito molhada mesmo. A umidade subiu para cem por cento e ali ficou, todos os dias por horas a fio, a chuva rugia e fustigava Himmelhoch, derretendo o solo vermelho, encharcando os canaviais, enchendo o amplo e profundo Rio Dungloe, embora não o fizesse transbordar, pois o seu curso era tão pequeno que a água ia logo para o mar. Enquanto Justine, sentada no berço, contemplava o seu mundo através daqueles olhos estranhos. Meggie, apática, via Bartle Frere desaparecer atrás de um muro de chuva densa, e depois reaparecer.

O sol saía, arrancando do solo véus retorcidos de fumaça, fazendo o canavial tremular e lançar prismas de brilhantes e dando ao rio o aspecto de uma grande cobra de ouro. Depois, estendendo-se de um lado a outro da abóbada celeste, um duplo arco-íris se materializava, perfeito em toda sua extensão, tão rico no colorido sobre o fundo azul-escuro das nuvens que teria deixado pálida e pequena qualquer outra coisa, menos uma paisagem de North Queensland E, como se tratava de North Queensland, seu brilho etéreo não desluzia o que quer que fosse, e Meggie achou que descobrira por que a paisagem de Gillanbone era tão parda e cinzenta: North Queensland também lhe usurpara a cota da paleta.

Um dia, no princípio de dezembro, Anne saiu para a varanda e sentou-se ao lado dela, observando-a. Ela estava tão magrinha, tão sem vida! Até o lindo cabelo de ouro se deslustrara.

— Meggie, não sei se fiz a coisa errada, mas o caso é que a fiz e, seja como for, quero que você me ouça primeiro antes de dizer não.

Meggie desviou os olhos dos arco-íris, sorrindo.

— Você está falando com um jeito tão solene, Anne! O que é que você quer que eu ouça?

— Luddie e eu estamos preocupados. Você não se recuperou direito depois que Justine nasceu e, agora que a chuva chegou, até parece pior. Não come e está emagrecendo. Nunca acreditei que você se desse bem com o clima daqui, mas, enquanto nada aconteceu para debilitá-la, você conseguiu enfrentá-lo com maior ou menor galhardia. Agora, entretanto, achamos que você não está bem e, se não se fizer logo alguma coisa, ficará doente de verdade. — Interrompeu-se para respirar. — Por isso, há umas duas semanas, escrevi a uma amiga, que trabalha numa agência de turismo, e marquei umas férias para você. Não comece a protestar por causa das despesas; elas não abalarão as finanças de Luke nem as nossas. O Arcebispo nos mandou um grande cheque para você, e seu irmão mandou outro, como contribuição de todos em Drogheda, para você e para a criança... Tenho a impressão de que ele sugere que você vá passar uns tempos em casa... Mas, depois de conversar sobre o assunto, chegamos à conclusão de que o melhor que poderíamos fazer era gastar um pouco desse dinheiro numas férias para você. E não creio que uma estada em Drogheda seja o tipo certo de férias. Luddie e eu achamos que você precisa agora de tempo para pensar. Sem Justine, sem nós, sem Luke, sem Drogheda. Você já ficou sozinha alguma vez, Meggie? Pois está na hora de experimentar. Por isso lhe reservarnjís uma cabana na Ilha Matlock por dois meses, desde princípio de janeiro até princípio de março. Luddie e eu cuidaremos de Justine. Você sabe que não lhe acontecerá mal nenhum, mas, à menor preocupação que ela nos der, tem a nossa palavra de que será informada no ato. A ilha tem telefone, de modo que você estaria aqui num abrir e fechar de olhos.

Os arco-íris tinham ido embora, e o sol também; a chuva preparava-se para cair outra vez.

— Anne, se não fosse por você e por Luddie nestes últimos três anos, eu teria ficado louca. E você sabe disso. As vezes acordo de noite e começo a perguntar a mim mesma o que teria sido de mim se Luke me tivesse colocado numa casa de pessoas menos bondosas. Vocês cuidaram muito melhor de mim do que o próprio Luke.

— Isso é bobagem! Se Luke a tivesse colocado em casa de gente antipática, você teria voltado para Drogheda e, quem sabe, essa não teria sido a melhor solução?

— Não, não foi agradável o que se passou entre mim e Luke, mas foi muito melhor para mim ficar aqui e resolver o assunto.

A chuva começara a avançar aos poucos pelo canavial, que se toldava, obscurecendo tudo atrás de si, como um machado cinzento.

— Você tem razão, eu não estou bem — concordou Meggie. — Não tenho passado bem desde que Justine foi concebida. Tentei reagir, mas chega um ponto em que já não temos energias para fazê-lo. Oh, Anne, estou tão cansada e desanimada! Não sou nem mesmo uma boa mãe para Justine, e tinha obrigação de o ser, pois se ela existe a culpa é minha; ela não pediu para nascer. Mas estou desanimada, principalmente porque Luke não quer me dar nem a oportunidade de fazê-lo feliz. Não quer viver comigo nem me deixar fazer um lar para ele; não quer nossos filhos. Eu não o amo... nunca o amei como a mulher deve amar o homem que ela desposa, e ele talvez o tenha percebido desde o princípio. Se eu o tivesse amado, é possível que ele agisse de forma diferente. De modo que não posso culpá-lo. Creio que só posso culpar-me a mim mesma.

— É o Arcebispo que você ama, não é?

— Desde garotinha! Tratei-o com dureza quando ele esteve aqui. Pobre Ralph! Eu não tinha o direito de dizer-lhe o que lhe disse, porque ele nunca me animou. Espero que tenha tido tempo para compreender que eu estava sofrendo, esgotada e terrivelmente infeliz. A única coisa que eu conseguia pensar era que a criança devia era ser filha dele, mas nunca seria, nunca poderia ser. Não é justo! O clero protestante pode casar, por que o católico não pode? E não tente me dizer que os ministros não cuidam dos seus rebanhos como os padres, porque não acreditarei em você. Já conheci padres sem coração e ministros maravilhosos. Mas por causa do celibato dos padres tive de afastar-me de Ralph, construir meu lar e minha vida com outra pessoa, ter o filho de outra pessoa. E quer saber de uma coisa, Anne? Isso, para mim, é um pecado tão revoltante quanto Ralph descumprir seus votos, ou pior ainda. O que me deixa indignada é saber que a Igreja considera pecaminoso meu amor a Ralph ou o amor dele por mim!

— Saia um pouco, Meggie. Descanse, coma, durma e pare de afligir-se. Depois, quando voltar, talvez possa persuadir Luke, de um modo ou de outro, a comprar a tal fazenda em lugar de ficar falando nela. Sei que você não o ama, mas, se ele lhe der a metade de uma oportunidade, creio que poderá ser feliz com ele.

Os olhos cinzentos eram da cor da chuva que caía, em lençóis, em toda a volta da casa; suas vozes tinham-se elevado e agora eram gritos para se poderem ouvir acima do incrível estrépito que o aguaceiro fazia no telhado de ferro.

— Mas é precisamente isso, Anne! Quando Luke e eu fomos para Atherton, compreendi afinal que ele não deixará a cana enquanto tiver forças para cortá-la. Ele ama essa vida, ama-a realmente. Gosta de estar ao lado de homens fortes e independentes como ele; gosta de andarilhar de um lado para outro. Agora compreendo que sempre foi um nômade. Quanto a precisar de mulher, nem que seja apenas pelo prazer, a cana o esgota demais. E como posso explicar uma coisa dessas? Luke pertence à espécie de homens que realmente não se importam de comer numa lata e de dormir no chão. Você não percebe? Não se pode apelar para ele como se apela para o homem que aprecia as coisas boas, porque ele não as aprecia. Às vezes, até acredito que ele despreze as coisas boas, as coisas bonitas. São delicadas e poderão deixá-lo delicado. Positivamente não tenho atrativos suficientes para afastá-lo do seu tipo atual de vida.

Ela olhou com impaciência para o teto da varanda, como se estivesse cansada de gritar.

— Não sei se terei força bastante para aceitar a solidão de viver sem lar nos próximos dez ou quinze anos. Anne, ou no tempo que Luke levar para se cansar, seja ele qual for. É adorável estar aqui com vocês; e não me julgue uma ingrata. Mas eu quero um lar. Quero que Justine tenha irmãos e irmãs, quero tirar a poeira dos meus móveis, fazer as cortinas para as minhas janelas, cozinhar no meu fogão para o meu homem. Oh, Anne! Sou exatamente esse tipo comum de mulher; nem ambiciosa, nem inteligente, nem culta, e você sabe disso. Só quero um marido, filhos, meu próprio lar. E um pouco de amor de alguém.

Anne tirou o lenço, enxugou os olhos e tentou rir.

— Que boa dupla de choronas estamos nos saindo! Mas eu compreendo, Meggie, compreendo realmente. Estou casada com Luddie há dez anos, os únicos realmente felizes de minha vida. Tive paralisia infantil aos cinco, e a doença me deixou desse jeito. Eu estava convencida de que ninguém jamais olharia para mim. E Deus sabe que era a pura verdade. Quando conheci Luddie, eu tinha trinta anos, e ganhava a vida lecionando. Ele era dez anos mais moço do que eu, de modo que não pude levá-lo a sério quando me disse que me amava e queria casar comigo. Que coisa terrível, Meggie, arruinar a vida de um homem tão moço! Durante cinco anos tratei-o com as piores demonstrações de maldades gratuitas que você possa imaginar, mas ele voltava sempre. Por isso casei com ele, e tenho sido feliz. Luddie jura que também é, mas não sei. Ele precisou desistir de muita coisa, incluindo filhos, e hoje até parece mais velho do que eu, pobrezinho.

— É a vida, Anne, o clima.

A chuva cessou tão repentinamente quanto começara; o sol tornou a brilhar, e os arco-íris reapareceram em toda a sua glória no céu cheio de vapores. O Monte Bartle Frere surgiu, lilás, por entre as nuvens que o vento impelia.

Meggie voltou a falar.

— Eu irei. Fico muito grata a vocês por pensarem nisso, é possível que seja exatamente do que estou precisando. Mas você tem certeza de que Justine não lhes dará muito trabalho?

— É claro que não! Luddie já planejou tudo. Anna Maria, que costumava trabalhar para mim antes de você vir, tem uma irmã menor, Annunziata, que quer trabalhar como enfermeira em Tòwnsville. Mas só completará dezesseis anos em março, e termina a escola dentro de alguns dias. Assim sendo, enquanto você estiver fora, ela ficará aqui. Além disso, é também uma boa mãe de criação. Existem hordas de bebês no clã Tesoriero.

— Ilha Matlock. Onde fica isso?

— Perto da Passagem de Whitsunday, no Recife da Grande Barreira. É muito quieto e isolado e, se não me engano, um sítio tradicional de luas-de-mel. Você sabe como é... cabanas em lugar do hotel central. Você não precisará jantar num salão cheio de gente, nem ser cortês com um monte de gente que prefere não conhecer. Nesta época do ano, aliás, o lugar é quase deserto, por causa do perigo dos ciclones de verão. A cheia não é problema, mas parece que ninguém se dispõe a ir para o recife no verão. Provavelmente porque a maioria das pessoas que vai para lá é de Sydney ou de Melbourne, onde o verão, gostoso, não obriga ninguém a viajar. Para junho, julho e agosto, sim, os sulinos reservam lugares com dois ou três anos de antecedência.

No último dia de 1937, Meggie tomou o trem para Townsville. Embora suas férias mal tivessem começado, já se sentia muito melhor, pois deixara para trás o mau cheiro do melaço de Dunny. Sendo o maior aglomerado humano de North Queensland, Townsville era uma cidade próspera de vários milhares de habitantes que viviam em casas brancas de madeira construídas sobre estacas. Uma rápida conexão entre o trem e o barco não lhe deu tempo para explorar a cidade, mas, de certo modo, Meggie não se lastimou por ter de correr para o desembarcadouro sem ter tido a oportunidade de pensar; depois da viagem medonha em que atravessara o Mar de Tasman dezesseis anos antes, ela não aguardava com muito prazer uma viagem de trinta e seis horas num barco bem menor do que o Wahine.

Mas as coisas então foram muito diferentes, um deslizar sussurrante sobre águas cristalinas; além disso, ela já fizera vinte e seis anos, não tinha apenas dez. O ar era o do intervalo entre os ciclones, o mar estava esgotado; embora fosse apenas meio-dia, Meggie deitou a cabeça no travesseiro e dormiu um sono sem sonhos até que o camaroteiro a acordou, às seis horas da manhã seguinte, com uma xícara de chá e um prato de biscoitos.

Em cima, no convés, havia uma nova Austrália, mais uma vez diferente. Num céu alto e claro, delicadamente incolor, um brilho róseo e nacarado foi-se difundindo aos poucos, vindo da orla oriental do oceano, até que o sol subiu acima do horizonte, a luz perdeu sua vermelhidão neonatal e fez-se dia. O navio resvalava silenciosamente por uma água límpida, tão translúcida que se podiam ver, várias braças abaixo, grutas de púrpura e as formas dos peixes lestos que passavam como relâmpagos ao lado do navio. Visto a distância, o mar era uma água-marinha de matizes esverdeados, salpicada de manchas escuras, cor de vinho, onde ervas daninhas ou corais cobriam o chão, e de todos os lados se tinha a impressão de que ilhas com praias de areia branca e brilhante, cheias de palmeiras, surgiam espontaneamente como cristais na sílica — ilhas montanhosas e cobertas de matas, ou ilhas rasas, de vegetação rasteira, quase ao rés da água.

— As ilhas rasas são as verdadeiras ilhas de coral — explicou um tripulante — Quando têm formato de anel e encerram uma lagoa, chamam-se atóis, mas quando são um simples fragmento de recife que se ergue acima do nível do mar, chamam-se bancos de coral. As ilhas montanhosas são cumes de montanhas, mas também têm seu anel de recifes e suas lagoas.

— Onde fica a Ilha Matlock?

Ele a encarou curiosamente, uma mulher sozinha que ia passar as férias numa ilha de lua-de-mel como Matlock era uma contradição.

— Estamos passando agora por Whitsunday Passage, depois rumaremos para a orla pacífica do recife. O lado de Matlock que dá para o oceano é surrado pelas ondas de rebentação, que percorrem quase duzentos quilômetros do Pacífico profundo como trens expressos, fazendo tamanho estardalhaço que não podemos sequer ouvir nossos pensamentos — Ele suspirou, pensativo — Estaremos em Matlock antes do pôr-do-sol, minha senhora.

E uma hora antes do ocaso o barco abriu caminho por entre as maretas da rebentação, cuja espuma se erguia como alto muro nevoento no céu oriental. O quebra-mar sobre estacas compridas e finas cambaleava literalmente numa extensão de oitocentos metros de um lado a outro de um recife exposto pela maré vazante, atrás dele, estendia-se alto e escarpado contorno litorâneo, que não se ajustava às expectativas de Meggie de esplendor tropical. Um homem idoso, que a estava esperando, ajudou-a a saltar do navio para o molhe e tirou suas malas que estavam nas mãos de um tripulante.

— Como vai, Sra O’Neill? — disse ele — Sou Rob Walter. Espero que seu marido também possa vir, mais tarde. Não há muita companhia em Matlock nesta época do ano, pois a ilha, na realidade, é um balneário de inverno.

Caminharam juntos pelos pranchões incômodos. O coral exposto derretia-se ao sol poente e o mar espantoso era uma glória refletida e tumultuosa de espuma carmesim.

— Ainda bem que a maré está baixa, pois, do contrário, teriam tido uma viagem menos calma. Está vendo a névoa no nascente? Lá é a orla do próprio Recife da Grande Barreira. Aqui em Matlock tudo depende dele, sente-se a ilha tremer constantemente por causa das ondas que quebram lá — E continuou, depois de ajudá-la a subir num carro — Este é o lado de Matlock que está a barlavento de aspecto meio selvagem e rebarbativo, não lhe parece? Mas espere para ver o lado que fica a sotavento. Ali, sim, a coisa muda de figura.

Partiram com a velocidade displicente natural no único carro de Matlock, descendo uma estrada estreita de ossos esmigalhados de coral, através de filas de palmeiras e densa vegetação rasteira, enquanto um morro alto se erguia de um lado, uns seis quilômetros e meio além da lomba da ilha.

— Que beleza! — disse Meggie.

Haviam emergido em outra estrada, que acompanhava as curvas praias arenosas do lado da lagoa, vazias e em forma de crescente. Ao longe havia mais borrifos brancos, onde o oceano se quebrava em rendas deslumbrantes sobre as bordas do recife da lagoa, mas dentro do abraço de coral a água era imóvel e calma, um espelho de prata polido e tingido de bronze.

— A ilha tem seis quilômetros e meio de largura e quase treze quilômetros de comprimento — explicou o guia. Passaram por um solitário edifício branco com uma varanda funda e janelas que pareciam lojas.

— O armazém — disse ele com um floreio de proprietário. — É aqui que eu vivo com a patroa, e asseguro-lhe que ela não se sente muito feliz com a chegada de uma mulher desacompanhada. Acha que serei seduzido. Pelo menos foi o que ela disse. Ainda bem que a agência recomendou que lhe déssemos paz e tranqüilidade, porque a patroa ficou um pouco mais satisfeita quando a coloquei no chalé mais afastado que temos. Não ha uma única alma naquelas bandas; o único casal que está aqui ficou do outro lado. A senhora pode andar por aí sem nada no corpo... que ninguém a verá. A patroa não me deixará sair da vista dela enquanto a senhora estiver aqui. Mas, quando precisar de alguma coisa, use o telefone que eu lhe levarei. Não há necessidade de fazer toda a caminhada até aqui. E, queira ou não a patroa, passarei pelo seu chalé uma vez por dia, à hora do poente, para me certificar de que a senhora está bem. É melhor que esteja em casa nessa hora... e use um vestido decente, pois a patroa é capaz de querer me acompanhar no passeio.

Construção térrea, com três cômodos, o chalé tinha sua própria praia branca particular entre duas pontas de morro que mergulhavam no mar, e aqui a estrada terminava. Dentro de casa era tudo muito simples, mas confortável. A ilha gerava a própria energia, de modo que havia um pequeno refrigerador, luz elétrica, o prometido telefone e até um aparelho de rádio. A privada tinha descarga, o banheiro tinha água fresca; maiores comodidades modernas do que Drogheda ou Himmelhoch, pensou Meggie, divertida. Era fácil ver que quase todos os fregueses vinham de Sydney ou Melbourne, e se achavam tão habituados à civilização que não podiam passar sem ela.

Ficando sozinha enquanto Rob corria para junto da suspeitosa patroa, Meggie desfez a mala e inspecionou os seus domínios. A grande cama de casal era muito mais confortável do que o fora seu próprio leito nupcial. Pois sendo aquele um autêntico paraíso de lua-de-mel, uma das coisas que os clientes exigiriam seria, por certo, uma cama decente; e os hóspedes do hotelzinho de Dunny andavam geralmente tão bêbedos que não faziam objeções a molas causadoras de hérnias. Tanto a geladeira quanto os armários superiores estavam abarrotados de alimentos e, sobre a mesa, via-se uma grande cesta de bananas, maracujás, abacaxis e mangas. Não havia motivo para que ela não dormisse e comesse bem.

Durante a primeira semana, Meggie pareceu não fazer outra coisa senão comer e dormir, não percebera o quanto estava cansada, nem que o clima de Dungloe fora a verdadeira causa da sua falta de apetite. Dormia assim que se deitava na bonita cama, dez a doze horas seguidas, e a comida tinha para ela um atrativo que não tivera desde Drogheda. Ela parecia comer todos os minutos em que estava acordada, chegando a levar mangas para a água. Na verdade, aliás, tirando a banheira, este era o lugar mais lógico para comer mangas, cujo suco escorria por todos os lados. Como a sua minúscula praia ficasse dentro da lagoa, o mar tinha ali a calma de um espelho, era muito raso e estava totalmente livre de correntes. Meggie adorou tudo isso porque não sabia nadar. Mas na água tão salgada, que parecia sustentá-la, começou a fazer experiências, quando conseguia boiar dez segundos de uma vez, ficava encantada. A sensação de estar livre da atração da terra fazia-a desejar poder mover-se com a facilidade de um peixe.

Por isso, só sentiu a falta de companhia porque teria gostado de ter alguém que a ensinasse a nadar. Tirando isso, que maravilha ficar sozinha! Como Anne tivera razão! Durante toda a sua vida vivera cercada de gente. Não ter ninguém ao seu redor era um alívio tão grande, de uma tranqüilidade tão absoluta! Não se sentia solitária, não sentia falta de Anne, nem de Luddie, nem de Justine, nem de Luke e, pela primeira vez em três anos, não sentia saudades de Drogheda. O velho Rob nunca lhe perturbava a solidão. Todas as tardes, ao pôr-do-sol, chegava de automóvel a um ponto da estrada de onde podia certificar-se de que o amistoso aceno que ela lhe fazia da varanda não era um sinal de que estava em apuros. Em seguida, virava o automóvel e voltava devagar, acompanhado de perto pela severa, mas surpreendentemente bonita, patroa. Uma ocasião, ele telefonou-lhe para dizer que ia levar o outro casal residente na ilha a um passeio em seu barco de fundo de vidro e perguntou-lhe se não gostaria de ir também.

Meggie teve a impressão de haver ganho um ingresso para um planeta completamente diferente, quando olhou, através do vidro, para aquele mundo fervilhante, encantadoramente frágil, cujas formas delicadas eram sustentadas e amparadas pela amorosa intimidade da água. Descobriu que o coral vivo não tinha o espalhafatoso colorido, com certeza artificial, dos espécimes expostos no balcão de souvenirss da loja. De um róseo suave, ou bege, ou azul-cinza, em torno de cada excrescência e de cada ramo, um maravilhoso arco-íris, como aura visível. Grandes anêmonas de trinta centímetros de largura agitavam franjas de tentáculos azuis, vermelhos, alaranjados ou purpurinos, mariscos brancos estnados, do tamanho de rochas, convidavam os exploradores incautos a dar uma espiada lá dentro, com vislumbres de coisas coloridas e irrequietas, vistas através de lábios plumosos, leques de renda vermelha oscilavam aos ventos da água, fitas de ervas de um verde brilhante dançavam frouxas e à deriva. Nenhum

dos quatro tripulantes do barco ficaria surpreso se visse uma sereia; um brilho de peito polido, uma cintilação torcida de cauda, nuvens de cabelo a girar, preguiçosas, um sorriso feiticeiro zombando do fascínio que exercia sobre os marujos. Mas os peixes! Jóias vivas, disparavam aos milhares, redondos como lanternas chinesas, esguios como balas, vestidos de cores que rutilavam com vida e com a decomposição da luz conferida pela água, alguns em chamas, com as escamas de ouro e escarlate, outros frios, de um azulprateado, outros assemelhando-se a sacos de trapos a nadar, mais vistosos que papagaios. Havia peixes-agulhas de focinho pontudo, peixes-sapos de focinho amassado, barracudas dentuças, uma garoupa de papo cavernoso emboscada e visível só pela metade numa gruta e, certa vez, um grande cação-lixa cinzento e luzidio, que pareceu levar uma eternidade para passar debaixo deles.

— Mas não se preocupem — disse Rob. — Estamos aqui muito ao sul para que apareçam águas-vivas, de modo que, se alguma coisa tiver de matá-los no recife, o mais provável é que seja um mangangá. Nunca passeiem pelos corais sem sapatos.

Meggie gostou do passeio. Mas não sentia vontade de repeti-lo, nem de fazer amizade com o casal que Rob trouxera. Mergulhava no mar, caminhava e deitava-se ao sol. Por curioso que pareça, nem sequer lamentou a falta de livros para ler, pois sempre parecia haver alguma coisa interessante para observar.

Aceitara o conselho de Rob e deixara de usar roupas. A princípio, tendera a portar-se como um coelho, que sente o cheiro do dingo trazido pela brisa e foge para esconder-se, quando um galhinho estalava ou um coco caía de um coqueiro como bala de canhão. Mas, depois de vários dias de manifesta solidão, começou realmente a sentir que ninguém se aproximaria, que aquele era, como dissera Rob, um domínio inteiramente particular. A timidez não tinha razão de ser. E, caminhando pelos atalhos, deitada, na areia, brincando na água quente e salgada, principiou a sentir-se como um animal nascido e criado numa jaula e solto, de repente, num mundo ameno, ensolarado, espaçoso e hospitaleiro.

Longe de Fee, dos irmãos, de Luke, da inexorável e irracional dominação de toda a sua vida, Meggie descobriu o lazer puro; todo um caleidoscópio de modelos de pensamento se teciam e desteciam, formando novos desenhos em sua mente. Pela primeira vez na vida, não mantinha o eu consciente absorto em pensamentos de trabalho deste ou daquele feitio. Surpresa, compreendeu que a atividade física é o bloqueio mais eficaz que os seres humanos podem erguer contra a atividade totalmente mental.

Anos antes, o Padre Ralph lhe perguntara em que é que ela pensava, e Meggie respondera: em papai e mamãe, Bob, Jack, Hughie, Stu, os pequenos, Frank, Drogheda, a casa, o trabalho, a chuva. Ela não o citara, mas ele encabeçava a lista, como sempre. Agora cumpria acrescentar-lhes Justine, Luke, Luddie, Anne, a cana, as saudades de casa, a chuva. E sempre, naturalmente, a salvadora libertação que encontrava nos livros.

Tudo viera e se fora em massas e cadeias tão emaranhadas e desconexas; nenhuma oportunidade, nenhum treinamento que lhe permitisse sentar-se calmamente e pensar quem era exatamente Meggie Cleary, Meggie O’Neill! Que queria ela? Por que supunha que fora posta nesta terra? Lamentou a falta de treinamento, pois nenhuma quantidade de tempo que gastasse consertaria essa omissão. Entretanto, aqui estavam o tempo, a paz, a indolência do bem-estar físico ocioso; ela poderia deitar-se na areia e tentar.

Bem, havia Ralph. Uma risada desdenhosa, sem esperanças. Não seria um bom lugar para começar, mas, em certo sentido, Ralph era como Deus; tudo começava e terminava nele. Desde o dia em que ele se ajoelhara no pátio empoeirado da estação de Gilly, num entardecer, para tomá-la entre as mãos, houvera Ralph, e ainda que ela nunca mais tornasse a vê-lo enquanto vivesse, tudo levava a crer que o seu último pensamento do lado de cá do túmulo seria dele. Como era assustador que uma pessoa pudesse significar tanto, tantas coisas!

Que havia dito a Anne? Que seus desejos e necessidades eram absolutamente comuns — um marido, filhos, um lar. Alguém para amar. Seria, acaso, pedir muito? Afinal, a maioria das mulheres o conseguia. Mas quantas mulheres que o tinham conseguido se sentiam realmente satisfeitas? Meggie supunha que se sentiria, já que para ela as coisas eram tão difíceis de obter.

Aceite os fatos, Meggie Cleary, Meggie O’Neill. O alguém que você quer é Ralph de Bricassart, e esse você não pode ter. Como homem, porém, parece que ele a inutilizou para qualquer outro. Está bem, então. Suponha que o homem e o alguém para amar sejam impossíveis. Você terá de amar seus filhos, e o amor que receber virá deles. O que, por sua vez, significa Luke, e os filhos de Luke.

Oh, meu Deus, meu Deus! Meu Deus? Não! O que foi que Deus já fez por mim, senão privar-me de Ralph? Deus e eu não gostamos muito um do outro. E Você sabe de uma coisa, Deus? Você não me assusta mais como costumava me assustar. Como eu tinha medo de Você, do Seu castigo! Durante toda a minha vida andei direito com medo de Você. E o que foi que isso me valeu? Absolutamente nada mais do que se eu tivesse infringido todas as regras que constam do Seu livro. Você é um impostor, Deus, um demônio do medo. Trata-nos como a crianças, acenando com o castigo. Mas Você já não me assusta. Porque não é Ralph que eu devia estar odiando, é Você. A culpa é toda Sua, e não do pobre Ralph. Ele apenas vive com medo de Você, como sempre vivi. Que ele possa amá-lo é coisa que não consigo entender. Não vejo em Você o que seja digno de amor.

Entretanto, como posso deixar de amar um homem que ama a Deus? Por mais que o tente, não consigo fazê-lo. Ele é a lua e eu choro por ela. Pois bem, a única coisa que você pode fazer é parar de chorar por ela, Meggie O’Neill. Contente-se com Luke e com os filhos de Luke. Por bem ou por mal, você o tirará da maldita cana e viverá com ele lá onde não existem árvores. Dirá ao gerente do banco de Gilly que sua renda futura ficará em seu nome, e a usará para ter em seu lar sem árvores os confortos e comodidades que Luke não pensará em lhe proporcionar. Irá usá-la para educar convenientemente os filhos de Luke e para ter a certeza de que nunca lhes faltará coisa alguma.

E isso é tudo o que se pode dizer sobre o assunto, Meggie O’Neill. Eu sou Meggie O’Neill, não sou Meggie de Bricassart. Até soa ridículo, Meggie de Bricassart. Teria de ser Meghann de Bricassart, e sempre detestei Meghann. Oh, quando deixarei de lamentar que eles não sejam filhos de Ralph? Aí é que a coisa pega, não é? Diga a si mesma, uma e muitas vezes: sua vida é sua, Meggie O’Neill, e você não a desperdiçará sonhando com um homem e com filhos que nunca poderá ter.

Pronto! Assim é que se fala! Não adianta pensar no que passou, no que precisa ser enterrado. O importante é o futuro, e o futuro pertence a Luke, aos filhos de Luke. Não pertence a Ralph de Bricassart. Ralph é o passado.

Meggie rolou sobre a areia e chorou como não chorara desde os três anos de idade: lamentos ruidosos, e só os caranguejos e os pássaros lhe ouviram o desconsolo.

Anne Mueller escolhera a Ilha de Matlock deliberadamente, planejando mandar Luke para lá assim que pudesse. No momento em que Meggie embarcou, telegrafou a Luke dizendo que Meggie precisava desesperadamente dele, e implorando-lhe que viesse. Ela não era dada, por natureza, a interferir na vida dos outros, mas amava Meggie, tinha pena dela, e adorava a coisinha difícil e caprichosa que Meggie dera à luz e Luke gerara. Justine precisava de um lar e dos dois pais. Muito a magoaria vê-la partir, mas antes isso do que a atual situação.

Luke chegou dois dias depois. Estava a caminho das CSR em Sydney, de modo que não levou muito tempo para desviar-se do seu caminho. Já era tempo de ver o bebê; se tivesse sido um menino, teria vindo quando ele nascera, mas a notícia de uma menina o desapontara amargamente. Se Meggie insistia em ter filhos, que estes fossem pelo menos capazes de gerir, um dia, a fazenda de Kynuna. Meninas não tinham utilidade alguma; davam um trabalho de matar e, depois de crescidas, iam trabalhar para outra pessoa em vez de ficar em casa como os meninos e trabalhar para o velho pai nos seus últimos anos de vida.

— Como vai Meg? — perguntou, ao subir pela varanda da frente. — Espero que não esteja doente.

— Você espera. Não, não está doente. Mas venha ver primeiro sua bela filha. Ele olhou o bebê, divertido e interessado, mas sem nenhum envolvimento emocional, pensou Anne.

— Ela tem os olhos mais esquisitos que já vi — disse ele. — De quem os terá herdado?

— Segundo Meggie, ao que ela sabe, de ninguém da família dela.

— Nem da minha. Este trocinho gozado é uma reversão a um tipo passado. E não parece muito feliz da vida, parece?

— E como poderia parecer feliz? — atalhou Anne, conservando de propósito o mau humor. — Nunca viu o pai, não possui um lar de verdade e não tem muitas probabilidades de vir a ter algum antes de crescer, se você continuar vivendo como vive!

— Estou poupando, Anne! — protestou ele.

— Besteira! Eu sei quanto dinheiro você tem. Amigos meus em Charters Towers mandam-me de vez em quando o jornal do lugar, de modo que tenho visto os anúncios de propriedades muito mais próximas do que Kynuna, e muito mais férteis. Estamos numa crise, Luke! Você conseguiria uma beleza de propriedade por muitíssimo menos do que o que tem no banco, e sabe disso.

— Pois é por isso mesmo! Estamos numa crise e, a oeste das montanhas, há uma seca terrível entre Junee e o Isa. Já vai para o segundo ano que não chove de jeito nenhum, nem uma gota. Agora mesmo aposto que Drogheda está passando por maus bocados. Nessas condições, como supõe você que estejam as coisas em volta de Winton e Blackall? Não, acho que devo esperar.

— Esperar que o preço da terra volte a subir numa boa temporada de chuvas? Deixe disso, Luke! Agora é que é hora de comprar! com as duas mil libras por ano de Meggie garantidas, você poderá agüentar, sossegado, até dez anos de seca! Basta que não abasteça a propriedade. Viva com as duas mil libras até chegarem as chuvas e depois, sim, compre a criação que quiser.

— Ainda não estou preparado para deixar a cana — tornou ele, teimoso, enquanto continuava a olhar para os estranhos olhos claros da filha.

— Essa, afinal, é a verdade, não é mesmo? Por que não a admite, Luke? Você não quer ser casado, prefere viver como está vivendo agora, durão, no meio dos homens, trabalhando como um condenado, exatamente como a metade dos australianos que conheço. O que é que há neste bendito país para que seus homens prefiram a companhia de outros homens à vida no lar com a esposa e os filhos? Se a vida de solteiro é o que realmente desejam, por que cargas d’água experimentam o casamento? Você sabe quantas esposas abandonadas existem só em Dunny, dando duro para sobreviver e tentando educar os filhos sem pais? Oh, ele está trabalhando um pouco nos canaviais, mas voltará, naturalmente, é só por algum tempo. E em todos os dias de correspondência lá estão elas no portão, aguardando o carteiro, na esperança de que o cretino lhes tenha mandado algum dinheiro. Na maioria das vezes não manda, mas às vezes manda... não o suficiente, mas alguma coisa que dá para ir levando!

Ela tremia de raiva, ao passo que os seus meigos olhos castanhos brilhavam.

— Sabe que li no Brísbane Mail que a Austrália tem a maior percentagem de esposas abandonadas em todo o mundo civilizado? É a única coisa em que conseguimos superar todos os outros países... e não é uma superioridade de que podemos nos orgulhar!

— Devagar, Anne! Eu não abandonei Meg; ela está bem e não passa fome. O que é que há com você?

— Estou cansada de vê-lo tratar sua mulher desse jeito, é isso o que há! Pelo amor de Deus, Luke, cresça, assuma suas responsabilidades por algum tempo! Você tem esposa e filha! Devia estar fazendo um lar para elas... Seja marido e pai e não um maldito estranho!

— Eu serei, eu serei! Mas ainda não posso; tenho de continuar o trabalho do açúcar por mais uns dois anos. Por uma questão de segurança. Não quero que digam que estou vivendo à custa de Meg, que é exatamente o que eu estaria fazendo enquanto as coisas não melhorassem.

Anne ergueu o lábio num trejeito desdenhoso.

— Ora, bolas! Você casou com ela por dinheiro, não casou?

Um rubor escuro tingiu-lhe o semblante moreno. Ele não quis encará-la.

— Reconheço que o dinheiro ajudou, mas casei porque gostava mais dela do que de qualquer outra pessoa.

— Gostava dela! E quanto a amá-la?

— Amor! Que é o amor? Nada mais que uma invenção da cabeça das mulheres, só isso. — Ele desviou os olhos do bercinho de vime e dos olhos perturbadores, sem ter muita certeza de que a dona de uns olhos assim não pudesse compreender o que se dizia. — E se você já terminou o sermão, diga-me: onde está Meg?

— Ela não estava passando bem. Mandei-a embora por algum tempo. Não, não se assuste! Não foi com o seu dinheiro. Eu estava esperando poder persuadi-lo a ir ter com ela, mas vejo que é impossível.

— Fora de cogitação. Arne e eu partiremos para Sydney esta noite.

— Que devo dizer a Meggie quando ela voltar? Ele encolheu os ombros, louco por sair dali.

— Pouco me importa. Diga-lhe que se agüente ainda por algum tempo. Agora que ela já começou com esse negócio de constituir família, eu não me incomodaria de ter um filho.

Apoiando-se na parede para não cair, Anne inclinou-se sobre o cesto de vime e ergueu a menina nos braços. Em seguida, arrastou os pés até à cama e sentou-se. Luke não fez movimento algum para ajudá-la, nem para pegar a criança; parecia ter medo da filha.

— Vá embora, Luke! Você não merece o que tem. Não agüento mais olhar para a sua cara. Volte para o maldito Arne e para a maldita cana e para a quebradeira de costas.

À porta, ele estacou.

— Que nome ela deu à filha? Até já me esqueci.

— Justine, Justine,Justine!

— Que nome estúpido — disse ele. E saiu.

Anne colocou Justine na cama e desatou a chorar. Todos os homens podiam ir para o inferno, todos, menos Luddie! Seria, acaso, o traço meigo, sentimental, quase feminino, da personalidade de Luddie que o fazia capaz de amar? Luke teria razão? Seria o amor uma simples invenção da cabeça das mulheres? Ou seria alguma coisa que só as mulheres eram capazes de sentir? Mulheres ou homens que tivessem uma mulherzinha dentro de si? Mulher alguma conseguiria jamais segurar Luke, nenhuma o conseguira. Não havia mulher que lhe pudesse dar o que ele queria.

No dia seguinte, mais calma, já não achava que sua tentativa fora inútil. Naquela manhã chegara um cartão-postal de Meggie, em que ela se referia com entusiasmo à Ilha de Matlock e dizia estar passando muito bem. Afinal, aquilo tudo redundara em algo bom. Meggie estava melhor. Voltaria quando as monções diminuíssem e ela se sentisse capaz de enfrentar a sua vida. Anne resolveu não lhe falar de Luke.

Por isso, Nancy, abreviatura de Annunziata, carregou Justine para a varanda da frente, enquanto Anne se arrastava com dificuldade, levando presa entre os dentes uma cestinha com as coisas necessárias ao bebê: fralda limpa, lata de talco e brinquedos. Instalou-se numa cadeira de vime, tirou a menina de Nancy e principiou a alimentá-la com a mamadeira de Lactogênio que Nancy aquecera. Era muito agradável, a vida era muito agradável; ela fizera o possível para colocar um pouco de juízo na cabeça de Luke e, se falhara, isso pelo menos significava que Meggie e Justine permaneceriam em Himmelhoch mais algum tempo. Sabia que, no fim, compreendendo que já não havia esperança de salvar o seu relacionamento com Luke, Meggie voltaria para Drogheda. Mas Anne nem queria pensar nesse dia.

Um carro esporte inglês rugiu pela estrada de Dunny e subiu o longo aclive íngreme; novo e caro, tinha o capo preso embaixo por uma tira de couro, canos de escapamento niquelados e pintura reluzente. A princípio, não reconheceu o homem que saltou sobre a porta baixa, envergando o uniforme de Queensland: um short e nada mais. Que bonito sujeito, francamente!, pensou, observando-o apreciativamente e percebendo nele algo familiar quando ele se pôs a subir a escada de dois em dois degraus. Eu quisera que Luddie não comesse tanto; não lhe faria mal nenhum um pouco do estado físico desse camarada. Não, já não é nenhum frangote — vejam só as maravilhosas têmporas grisalhas —, mas nunca vi um cortador de cana em melhor forma.

Quando os olhos calmos, alheados, se fixaram nos dela, Anne reconheceu-o.

— Meu Deus! — exclamou, e deixou cair a mamadeira da menina.

Ele a apanhou, entregou-a a Anne e encostou-se na balaustrada da varanda, diante dela.

— Está tudo bem. O bico não encostou no chão; pode dá-la ao bebê assim mesmo.

Justine estava começando a fazer beicinho. Anne enfiou-lhe a chupeta na boca e conseguiu recobrar o fôlego e falar.

— Francamente, Excelência, que surpresa! — Os olhos dela examinaram-no divertidos. — Confesso que o senhor me parece tudo, menos um arcebispo. Não que se parecesse com um algum dia, mesmo com os trajes apropriados. Sempre imaginei os arcebispos de qualquer denominação religiosa como homens gordos e satisfeitos consigo mesmos.

— No momento não sou arcebispo, sou apenas um padre em gozo de merecidas férias, por isso pode me chamar de Ralph. Foi esta coisinha que deu tanto trabalho a Meggie quando aqui estive pela última vez? Posso pegá-la? Creio que conseguirei segurar a mamadeira no ângulo certo.

Sentou-se numa cadeira ao lado de Anne, pegou a criança e a mamadeira e continuou a alimentá-la, com as pernas cruzadas de modo casual.

— Meggie deu-lhe o nome de Justine?

— Deu.

— Pois gosto dele. Santo Deus, olhem para a cor do cabelo dela! É o avô escarrado.

— É o que diz Meggie. Espero que este pobre carrapatinho não venha a ter um milhão de sardas mais tarde, mas creio que as terá.

— Bem, Meggie também é meio ruiva e não tem sarda nenhuma. Embora sua pele tenha uma contextura diferente e uma cor mais opaca. — Depôs a mamadeira, fez a menina sentar-se ereta sobre o seu joelho, olhando para ele, inclinou-a para a frente e pôs-se a esfregar-lhe as costas ritmicamente, com força. — Entre as minhas obrigações consta a de visitar orfanatos católicos, de modo que sei lidar com bebês. Madre Gonzaga, do meu orfanato favorito, diz sempre que esta é a única maneira de fazer uma criança arrotar. Quando lhes seguramos no ombro, não deixamos que o corpo se flexione direito para a frente, o arroto não escapa com tanta facilidade e, quando chega lá em cima, costumam chegar com ele também grandes quantidades de leite. Como estou fazendo agora, o bebê se dobra ao meio, retendo o leite no estômago e deixando escapar o gás.

Como se quisesse provar o que estava dizendo, Justine arrotou imensamente várias vezes, mas reteve o que tinha no estômago. Ele riu-se, tornou a esfregá-la e, depois, quando nada mais aconteceu, instalou-a confortavelmente na curva do seu braço.

— Que olhos fabulosamente exóticos! Magníficos, não? Sou de opinião que Meggie teve um bebê singular.

— Não mudando de assunto, que grande pai o senhor teria dado, padre!

— Gosto de bebês e de crianças. Sempre gostei. É muito mais fácil para mim apreciá-las, visto que não tenho nenhuma das obrigações desagradáveis que têm os pais.

— Não é isso, não, o senhor é como Luddie. Tem um pouco de mulher em seu íntimo.

Justine, que sempre se mostrava tão arredia, retribuiu-lhe aparentemente a simpatia: adormeceu. Ralph instalou-a mais confortavelmente e tirou um maço de Capstans do bolso do short.

— Dê-me os cigarros. Acenderei um para o senhor.

— Onde está Meggie? — perguntou ele, pegando um cigarro aceso das mãos dela. — Obrigado. E desculpe-me, faça o favor de tirar um também.

— Não está aqui. Ela não conseguia se recobrar dos maus bocados por que passou quando Justine nasceu, e a chuva parece ter sido a gota d’água. Por isso, Luddie e eu a mandamos embora por dois meses. Estará de volta lá pelo dia primeiro de março; daqui a sete semanas.

No momento em que falou, Anne se deu conta da mudança operada nele; como se todo o seu propósito e a promessa de algum prazer muito especial se houvessem desvanecido de repente.

Ele respirou fundo.

— Esta é a segunda vez que venho para me despedir e não a encontro... Atenas, e agora. Naquela ocasião estive um ano fora e poderia ter ficado muito mais; mas eu não sabia. Nunca mais pus os pés em Drogheda depois da morte de Paddy e Stu e, no entanto, quando chegou a hora, descobri que não podia deixar a Austrália sem ver Meggie. Mas ela casara e partira. Eu quis segui-la, porém compreendi que isso não teria sido justo para ela nem para Luke. Desta vez vim porque sabia que não poderia prejudicar o que não existe.

— Para onde vai?

— Para Roma, para o Vaticano. O Cardeal di Contini-Verchese assumiu os encargos do Cardeal Monteverdi, que morreu há pouco tempo. E me chamou, como eu sabia que me chamaria. É uma grande honra, mas é também mais do que isso. Não posso me recusar a ir.

— Quanto tempo ficará longe?

— Muito tempo, creio eu. Há rumores de guerra na Europa, embora isso pareça tão longe visto daqui. A Igreja em Roma necessita de todos os diplomatas que possui e, graças ao Cardeal di Contini-Verchese, fui designado como diplomata. Mussolini aliou-se intimamente a Hitler, são ambos farinha do mesmo saco, e o caso é que o Vaticano precisa conciliar duas ideologias que se opõem, o catolicismo e o fascismo. Não será fácil. Falo alemão muito bem, aprendi grego quando estive em Atenas e italiano quando estive em Roma. Também falo francês e espanhol fluentemente.

Suspirou. — Sempre tive jeito para línguas, e cultivei-o. Era inevitável que eu fosse transferido.

— Bem, Excelência, a menos que viaje amanhã, ainda poderá ver Meggie.

As palavras lhe saíram da boca antes que a própria Anne tivesse podido pensar. Por que não haveria Meggie de vê-lo uma vez ainda, antes que ele se fosse? Ainda mais como ele parecia pensar, se devia ausentar-se por tanto tempo?

A cabeça dele voltou-se para ela. Belos e distantes, os olhos azuis eram muito inteligentes e muito difíceis de enganar. Oh, sim, ele nascera diplomata! Sabia com exatidão o que ela estava dizendo, e cada uma das razões escondidas no fundo da sua mente. Anne já se arrependia da sua resposta, mas, durante muito tempo, o padre não disse nada, ficando a olhar, por cima do canavial verde-esmeralda, para o rio cheio até às bordas, com o bebê esquecido na dobra do braço. Fascinada, ela contemplou-lhe o perfil — a curva da pálpebra, o nariz reto, a boca reservada, o queixo resoluto. Que forças estaria ele mobilizando enquanto contemplava a paisagem? Que complicados contrapesos de amor, desejo, dever, conveniência, poder da vontade, desejo veemente, pesava ele em seu espírito, e quais contra quais? A mão ergueu o cigarro até os lábios; Anne reparou-lhe nos dedos, que tremiam, e respirou sem fazer o menor ruído. Ali estava uma prova de que ele não era indiferente.

Durante uns dez minutos, talvez, ele não disse nada; Anne acendeu-lhe outro Capstan, estendeu-lho, em vez da guimba queimada do anterior. Ele também o fumou calmamente, sem levantar a vista uma vez sequer das montanhas distantes e das nuvens de monções, que diminuíam o céu.

— Onde está ela? — perguntou num tom de voz perfeitamente normal, atirando a segunda guimba por sobre a balaustrada da varanda, atrás da primeira.

E do que ela respondesse dependeria sua decisão; era a vez de Anne pensar. Justificava-se que alguém empurrasse outros seres humanos num rumo que ninguém sabia para onde levava, nem com que fim? Sua lealdade era toda de Meggie; pouco lhe importava, sinceramente, o que acontecesse àquele homem. A seu modo, ele não era melhor do que Luke. Perseguia um ideal exclusivamente masculino, sem ter o tempo ou a vontade de colocar uma mulher acima dele, sempre no encalço de um sonho que provavelmente só existia em sua cabeça confusa, sem mais substância que a fumaça da usina que se dissipava no ar passado, carregado de melaço. Mas era o que ele queria, e ele se exaurira e exauriria a vida correndo atrás dela.

Ele não perdera o juízo, por mais importante que Meggie lhe fosse. Nem mesmo por ela — e Anne começava a acreditar que ele a amava mais do que a qualquer outra coisa, exceto o seu estranho ideal — comprometeria ele a oportunidade de alcançar, um dia, o que tanto almejava. Por isso, se ela respondesse que Meggie estava em algum abarrotado hotel de balneário, onde ele poderia ser reconhecido, não iria. Ninguém sabia melhor do que ele que não pertencia à espécie capaz de continuar anônimo no meio da multidão. Ela molhou os lábios com a língua, recuperando a voz.

— Meggie está numa cabana na Ilha de Matlock.

— Onde?

— Na Ilha de Matlock. Um balneário que fica defronte de Whitsunday Passage, especialmente destinado aos que querem isolar-se. De mais a mais, numa época como esta, será difícil encontrar alguém por ali. — Ela não resistiu à tentação de acrescentar: — Não se preocupe, ninguém o verá!

— Muito tranqüilizador. — com extrema delicadeza, ele tirou do braço o bebê adormecido e entregou-o a Anne. — Obrigado — disse, encaminhando-se para a escada. Depois voltou-se, e em seus olhos se lia um apelo patético. — Está muito enganada. Só quero vê-la, nada mais. Nunca envolverei Meggie em coisa alguma que possa pôr em perigo a sua alma imortal.

— Nem a sua, não é? Nesse caso, é melhor ir embora como Luke O'Neill; ele está sendo esperado. Dessa maneira, terá a certeza de não criar um escândalo, nem para Meggie, nem para si.

— E se Luke aparecer?

— Não há a menor possibilidade. Foi para Sydney e só voltará em março. Só poderia ter sabido que Meggie está em Matlock por meu intermédio, e eu não lhe contei, Excelência.

— Meggie está esperando Luke? Anne sorriu ironicamente.

— De jeito nenhum — disse ela.

— Não lhe farei mal — insistiu ele. — Só quero vê-la, mais nada.

— Estou perfeitamente ciente disso, Excelência. Mas também não deixa de ser verdade que Vossa Excelência lhe faria muito menos mal se quisesse algo mais — disse Anne.

Quando o automóvel do velho Rob apareceu roncando na estrada, Meggie, na varanda do chalé, com a mão levantada, fazia sinal de que tudo estava bem e de que não precisava de coisa alguma. Ele parou no lugar de costume para virar o carro, mas, antes disso, um homem de short, camisa e sandálias saltou do carro, com a mala na mão.

— Viva, Sr. O'Neill! — gritou Rob ao partir.

Meggie nunca mais os confundiria, Luke O'Neill e Ralph de Bricassart. Aquele não era Luke; nem mesmo a distância e à luz que se dissipava rapidamente ela se deixou iludir. Permaneceu em silêncio onde estava e esperou que ele descesse a estrada em sua direção. Ralph de Bricassart. Ele concluíra, afinal, que a queria. Não poderia haver outra razão para que viesse procurá-la num lugar assim, fazendo-se passar por Luke O’Neill.

Nada nela parecia estar funcionando, nem as pernas, nem a mente, nem o coração. Aquele era Ralph, que viera reivindicá-la; por que não conseguia sentir? Por que não corria pela estrada ao seu encontro, para atirar-se-lhe nos braços, tão completamente feliz por vê-lo que nada mais importava? Aquele era Ralph e ele era tudo o que ela já quisera da vida; não passara mais de uma semana tentando arrancar esse fato do seu espírito? Maldito fosse, maldito fosse! Por que diabo teria ele de vir quando ela estava começando a excluí-lo dos seus pensamentos, se não do seu coração? Oh, tudo ia recomeçar! Aturdida, suando, colérica, ficou esperando, estupidamente, observando a forma graciosa aumentar de tamanho à proporção que se aproximava.

— Alô, Ralph — disse entre os dentes apertados, sem olhar para ele.

— Alô, Meggie.

— Traga a mala para dentro. Gostaria de tomar uma xícara de chá? Enquanto falava, ela entrou, na frente dele, na sala de estar, ainda sem fitá-lo.

— Seria ótimo — disse ele, em tom tão artificial quanto o dela.

Ele seguiu-a até a cozinha e ficou observando-a ligar uma cafeteira elétrica, encher o bule com a água de um pequenino aquecedor acima da pia e ocupar-se em tirar xícaras e pires do guarda-comida. Quando ela lhe estendeu a grande lata de biscoitos Arnotts, ele tirou dois punhados de biscoitos e colocou-os num prato. A cafeteira ferveu, ela despejou a água quente do bule, deitou uma colher de chá solto dentro dela e encheu-a de água borbulhante. E, enquanto levava o prato de bolinhos e o bule, ele a seguiu com as xícaras e os pires, de volta à sala de estar.

Os três aposentos haviam sido construídos um ao lado do outro, de modo que o quarto de dormir se abria de um lado da sala de estar e a cozinha se abria do outro; o banheiro ficava além da cozinha. Isso queria dizer que a casa tinha duas varandas, uma que dava para a estrada, outra para a praia. O que, por sua vez, significava que cada um deles tinha um lugar para onde olhar, sem ter de olhar um para o outro. A noite caíra com uma brusquidão tropical, mas o ar que passava através das portas de correr escancaradas vinha cheio do barulho das águas, da rebentação distante no recife, das idas e vindas do vento quente e suave.

Tomaram o chá em silêncio, embora nenhum deles conseguisse comer um biscoito, e o silêncio prolongou-se depois que o chá se acabou, ele desviando o olhar para ela, ela mantendo o seu fixado na exuberância de uma palmeira-anã, do outro lado da varanda que dava para a estrada.

— Que aconteceu, Meggie? — perguntou ele, com tanta suavidade e ternura que o coração dela se pôs a bater, frenético, e parecia morrer de tanta dor. Era a velha pergunta do homem à menininha. Ele não viera a Matlock ver a mulher. Viera ver a criança. Amava a criança, não a mulher. Odiara a mulher desde que esta principiara a existir.

Os olhos dela buscaram os dele, atônitos, ultrajados, furiosos; mesmo agora, mesmo agora! Parada no tempo, ela olhou para ele de tal modo que ele foi obrigado a ver, com a respiração presa, assombrado, a mulher adulta nos olhos de vidro. Os olhos de Meggie. Meu Deus, os olhos de Meggie!

Ele fora sincero no que dissera a Anne Mueller; só queria vê-la, nada mais. Embora a amasse, não pretendia ser seu amante. Só viera vê-la, conversar com ela, ser seu amigo, dormir no sofá da sala de estar, enquanto tentasse, mais uma vez, desenterrar a raiz principal do eterno fascínio que ela exercia sobre ele, supondo que, se pudesse vê-lo totalmente exposto, obteria os meios espirituais para erradicá-lo.

Fora-lhe difícil ajustar-se a uma Meggie com seios, cintura, ancas; mas fizera-o porque, ao olhar para os olhos dela, via luzir neles, como na chama da lamparina de um santuário, a sua Meggie. Uma mente e um espírito de cuja atração nunca mais se libertara desde que a vira pela primeira vez, ainda inalterada no interior daquele corpo tristemente alterado; mas, enquanto lhe visse no olhar a prova da sua continuada existência, aceitaria o corpo alterado, disciplinaria sua atração por ele.

E, examinando seus próprios desejos e sonhos em relação a ela, nunca duvidara de que ela quisesse fazer o mesmo, até o dia em que ela se voltara contra ele, como uma gata ferida, por ocasião do nascimento de Justine. Mesmo então, depois que a cólera e a mágoa morreram nele, atribuíra-lhe a explosão ao sofrimento, mais espiritual do que físico. Mas agora, vendo-a por fim como ela era, foi-lhe possível localizar no tempo e no espaço o momento em que ela se desfizera das lentes da infância e colocara as de mulher: o intervalo no cemitério de Drogheda, depois da festa de aniversário de Mary Carson, quando ele lhe explicara por que não podia dar-lhe nenhuma atenção especial, pois as pessoas poderiam imaginá-lo interessado nela como homem. Ela o fitara com uma expressão nos olhos que ele não compreendera, depois desviara a vista e, quando se voltara, a expressão se fora. E ele via agora que, a partir daquele momento, ela pensara nele de modo diferente; ao beijá-lo, não o fizera movida por uma fraqueza passageira, para depois voltar a pensar nele como sempre, como ele pensava nela. Ele perpetuara as próprias ilusões, alimentara-as, guardara-as em seu inalterado estilo de vida da melhor maneira possível, usara-as como instrumento de tortura. Ao passo que, durante todo esse tempo, ela sublimara o amor que lhe votava com objetivos de mulher.

Sim, ele o reconhecia, desejara-a fisicamente desde o primeiro beijo, mas o desejo nunca o atormentara como o atormentara o amor; via-os separados e distintos, não como facetas da mesma coisa. E ela, pobre criatura incompreendida, nunca sucumbira a esse tipo de loucura.

Naquele momento, se houvesse algum modo de sair da Ilha de Matlock, ele teria fugido dela como Orestes das Eumênides. Mas não era possível deixar a ilha, e ele teve a coragem de permanecer diante dela em lugar de pôr-se a andar sem destino pela noite afora. Que posso fazer? Como reparar o que fiz? Eu a amo! E se a amo, amo-a tal como é agora e não como foi numa fase juvenil de sua vida. São as coisas de mulher que sempre amei nela; o modo de carregar o fardo. Portanto, Ralph de Bricassart, tire os seus antrolhos, veja-a como ela realmente é e não como era há muito tempo. Há dezesseis anos, há dezesseis longos anos... Tenho quarenta e quatro e ela, vinte e seis; nenhum dos dois é criança, mas sou muito mais imaturo do que ela.

Você julgou que tudo estava resolvido no minuto em que desci do carro de Rob, não é verdade, Meggie? Supôs que eu acabara cedendo. E a primeira coisa que fiz, antes que você tivesse tempo de tomar fôlego, foi lhe mostrar que estava completamente enganada. Rasguei o tecido da sua ilusão como se rasga um trapo velho e sujo. Oh, Meggie! Que foi que lhe fiz? Como pude ser tão cego, tão egocêntrico? Só consegui, vindo vê-la, cortála em pedacinhos. Todos esses anos temos nos amado sem nos entendermos.

Ela continuava olhando para os olhos dele com os seus cheios de vergonha, mas, à proporção que as expressões se sucediam no rosto de Ralph, até a última, de piedade sem esperanças, ela pareceu compreender a magnitude do seu erro, o horror do seu engano. E mais do que isso: compreendeu que ele estava a par de tudo.

Vá, corra! Corra, Meggie, saia daqui com o resto de orgulho que ele lhe deixou! O mesmo foi pensar que agir: Meggie levantou-se da cadeira e voou para fora.

Mas antes que chegasse à varanda ele a segurou, de modo que o ímpeto da sua fuga fê-la girar sobre si mesma e ela acabou batendo nele com tanta força que ele cambaleou. Nesse momento, a luta estafante para conservar a integridade de sua alma e a longa pressão feita pela vontade para sufocar o desejo perderam toda a importância; em alguns instantes ele vivera existências. Toda essa força jazia latente, adormecida, e necessitava apenas do detonar de um toque para provocar um caos em que a mente se submetia à paixão e a vontade da mente se extinguia diante da vontade do corpo.

Os braços dela subiram para cingir-lhe o pescoço, os braços dele envolveram-na as costas, em espasmos; ele inclinou a cabeça, tateou com a boca à procura dos lábios dela, encontrou-os. Lábios que já não eram uma lembrança inoportuna, indesejável, mas algo real; braços que o enlaçavam, como se ela não pudesse suportar a idéia de deixá-lo partir; o modo com que ela parecia perder até a sensação dos próprios ossos; e ela, escura como a noite, lembrança e desejo entrelaçados, lembrança indesejável e desejo inoportuno. Os anos que ele devia ter ansiado por aquilo, ansiado por ela e negando-lhe o poder, guardando-se até a idéia de que ela fosse mulher!

Carregou-a para a cama, ou ambos caminharam até lá? Ele supunha que devia tela carregado, mas não podia ter certeza, só sabia que ela estava lá, em cima da cama, e que ele estava lá, em cima da cama, a pele dela sob as mãos dele, a pele dele sob as mãos dela. Oh, Deus! Minha Meggie, minha Meggie! Como foi possível que me criassem desde pequeno com a idéia de que você era a profanação?

O tempo parou de bater e pôs-se a fluir, arremessou-se a ele até perder o significado, transmudado na profundidade de uma dimensão mais real do que o tempo real. Ele a sentia e, no entanto, não a sentia, pelo menos não a sentia como entidade separada, desejando fazer dela finalmente e para sempre uma parte de si mesmo, um enxerto que era ele próprio, e não uma simbiose em que ela figurasse como elemento distinto. Nunca mais ignoraria o arfar dos seios, da barriga e das nádegas, nem as dobras e as fendas existentes entre elas. Ela fora feita para ele, pois ele a fizera, por dezesseis anos a afeiçoara e modelara, sem saber que o fazia e, muito menos, por que o fazia E esqueceu-se de que um dia se desfizera dela, que outro homem mostrara a ela o fim do que ele começara para si, do que ele sempre pretendera para si, pois ela era sua ruína, sua rosa, sua criação. Um sonho de que ele jamais despertaria, enquanto fosse homem e tivesse um corpo de homem. Oh, meu Deus! Eu sei, eu sei! Eu sei por que a guardei como idéia e como criança dentro de mim, depois de tanto tempo em que ela, crescendo, deixara de ser idéia e criança. Mas por que essas coisas têm de ser aprendidas desse jeito?

Porque ele compreendia finalmente que o que ambicionara ser não era um homem. Não era um homem, nunca um homem, senão algo muito maior, que transcendia o destino do homem. Apesar disso, seu destino estava aqui, debaixo de suas mãos, palpitante e vivo com ele, o seu homem. Um homem, um homem para sempre. Senhor, não poderias ter-me evitado isto? Sou um homem, nunca serei Deus, foi uma ilusão a vida em busca da divindade. Seremos, os padres, todos iguais, ansiando por ser Deus, abjurando o único ato que prova irrefutavelmente que somos homens?

Envolveu-a com os braços e contemplou com os olhos marejados de lágrimas o rosto imóvel, fracamente iluminado, viu abrir-se-lhe a boca como um botão de rosa, arfar, tornar-se um círculo indefeso e maravilhado de prazer. Os braços e as pernas dela o envolviam, cordas vivas que o ligavam a ela, e que o atormentavam, sedosas e insinuantes. Ele colocou o queixo no ombro dela e encostou o rosto na suavidade do seu rosto, entregou-se ao impulso alucinante, exasperante, do homem engalfinhado com o destino. Sua mente girou, escorregou, tornou-se inteiramente escura e ofuscantemente luminosa. Por um momento se sentiu dentro do sol, depois o brilho foi diminuindo, acinzentou-se e esvaeceu-se. Isso era ser homem. Não poderia ser mais. Não era essa, porém, a origem da dor. A dor estava no momento final, no momento finito, na percepção vazia e desolada. O êxtase é fugaz. Ele não poderia deixá-la ir, agora que a tinha, fizera-a para si. Por isso agarrou-se a ela como o náufrago se aferra a um pedaço de tábua no mar solitário e, logo, animado, subindo de novo com a maré que se lhe tornara rapidamente familiar, sucumbiu ao destino inescrutável que é o destino do homem.

Que era o sono?, Meggie refletia. Uma bênção, uma trégua da vida, um eco da morte, um pesadíssimo fardo? Fosse o que fosse, ele se entregara ao sono e jazia com o braço sobre ela e a cabeça ao lado do ombro dela, possessivo até nessa hora. Ela também estava cansada, mas recusava-se a dormir. De certo modo, temia que, se afrouxasse o domínio sobre a consciência, ele talvez já não estivesse lá quando ela tornasse a ativá-la. Dormiria mais tarde, depois que ele despertasse e a bela boca reservada pronunciasse as primeiras palavras. Que lhe diria ele? Lamentaria o que acontecera? O prazer que ela lhe dera fora digno do que ele abandonara? Durante tantos anos ele o combatera e fizera-a combater com ele, que mal podia acreditar que ele tivesse afinal deposto as armas. Mas ouvira coisas ditas por ele no meio da noite e no meio da dor que lhe apagavam a longa negação dela.

Meggie sentia-se imensamente feliz, mais feliz do que se lembrava de já ter sido alguma vez. Desde o momento em que ele a puxara da porta fora tudo um poema corporal, uma coisa de braços, de mãos, de pele e de prazer total. Fui feita para ele, e só para ele... Por isso sentia tão pouco com Luke! Sustentada, além dos limites de resistência, pela maré do seu corpo, só podia pensar que dar a ele tudo o que pudesse era mais necessário a ela do que a própria vida. Cumpria que ele nunca o lamentasse, apesar do seu sofrimento! Momentos houvera em que ela acreditara senti-lo, como se o sofrimento fosse seu. O que só contribuía para a sua felicidade, pois havia alguma justiça no sofrimento dele.

Ralph estava acordado. Ela olhou para os olhos dele e, no azul desses olhos, viu o mesmo amor que a aquecera, que lhe dera um propósito desde a infância; e, com ele, um grande, um nublado cansaço. Não do corpo, mas da alma.

Ele estava pensando que, durante toda a sua vida, nunca despertara na mesma cama ao lado de outra pessoa; aquilo, de certo modo, era mais íntimo que o ato sexual que o precedera, uma indicação explícita de vínculos emocionais, um aderir a ela. Leve e vazio como o ar tão inebriante, cheio de maresia e de vegetação inundada de sol, ele deixou-se levar por algum tempo nas asas de uma espécie diferente de liberdade: o alívio de renunciar à missão de combatê-la, a paz de ter perdido uma guerra longa e incrivelmente sangrenta, achando a rendição muito mais doce do que as batalhas. Travei com você uma tremenda luta, minha Meggie! No fim, todavia, não são os seus fragmentos que tenho de colar uns aos outros, mas os cacos desconjuntados de mim mesmo.

Você foi colocada em minha vida para me mostrar o quanto é falso e presunçoso o orgulho de um padre da minha espécie; como Lúcifer, aspirei ao que pertence somente a Deus e, como Lúcifer, caí. Eu tinha a castidade, a obediência e até a pobreza antes de Mary Carson. Mas, até hoje cedo, jamais conhecera a humildade. Senhor, se ela não significasse nada para mim, isso seria mais fácil de suportar, mas, às vezes, acho que a amo muito mais do que a Ti...? e isso também faz parte da Tua punição. Não duvido dela; mas de Ti...? Um truque, um fantasma, uma pilhéria. Como posso amar uma pilhéria? E, contudo, amo.

Se eu pudesse recobrar minhas energias, iria nadar um pouco e depois prepararia o desjejum — disse ele, louco por dizer alguma coisa, e sentiu o sorriso dela de encontro ao peito.

— Encarregue-se da natação que eu me encarrego do desjejum. E olhe que aqui não há necessidade de vestir roupa nenhuma. Não aparece ninguém.

— É mesmo o paraíso! — Ele pôs os pés fora da cama, sentou-se e espreguiçou-se. — Uma linda manhã. Eu gostaria de saber se isso não será um presságio.

Já a dor da separação, só porque ele saltara da cama; ela permaneceu deitada, a observá-lo, enquanto ele se dirigia às portas de correr que abriam para a praia, transpôs-lhes a soleira e se deteve. A seguir, voltou-se e estendeu a mão.

— Não vem comigo? Podemos preparar juntos o desjejum.

A maré estava alta, o recife coberto, o sol matutino aquecia, mas o vento irrequieto do verão era frio; a relva grosseira emitia tentáculos pelo meio da areia que se desfazia e que era tão pouco parecida com areia, onde caranguejos e insetos disparavam depois de pequenos furtos.

— Sinto como se nunca tivesse visto o mundo antes — disse ele, arregalando os olhos.

Meggie agarrou-se à sua mão; sentia-se confortada, e achava este resultado ensolarado mais incompreensível que a realidade cheia de sonhos da noite. Seus olhos demoraram-se nele, doendo. Um tempo imemorial, um mundo diferente.

Por isso ela disse:

— Este mundo, não. Como poderia já tê-lo visto? Este é o nosso mundo, e o será enquanto durar.

— E Luke, como é? — perguntou ele, ao desjejum. Ela inclinou a cabeça para um lado, refletindo.

— Menos parecido com você do que eu costumava achar porque, naqueles dias, eu sentia mais a sua falta, não me acostumara a viver sem você. Creio que o desposei por causa da semelhança. De qualquer maneira, eu decidira casar com alguém, e ele estava bem acima do resto. Não me refiro ao valor, nem à gentileza, nem a nenhuma dessas coisas que se supõe que as mulheres gostam de encontrar no marido, mas a algo que não consigo definir direito. A não ser talvez que ele é como você. Também não precisa de mulheres.

O resto dele contraiu-se.

— É assim que me vê, Meggie?

— Quer que eu seja franca? Creio que sim. Nunca compreenderei por quê, mas creio que sim. Qualquer coisa em Luke e em você faz todos acreditarem que precisar de mulher é uma fraqueza. Não estou falando em dormir com ela; estou falando em precisar, em precisar de verdade.

— E compreendendo isso você ainda assim nos quer? Ela deu de ombros e sorriu, com ar de piedade.

— Ora, Ralph! Não digo que não é importante, e isso decerto me causou muita infelicidade, mas assim são as coisas. Eu seria uma boba se me consumisse tentando erradicar o que não pode ser erradicado. O melhor que posso fazer é explorar a fraqueza, e não ignorar-lhe a existência. Porque eu gosto e preciso também. E, aparentemente, gosto e preciso de gente como você e Luke, pois, do contrário, não me teria ralado por vocês como me ralei. Teria casado com um homem direito, bom, simples como meu pai, alguém que gostasse e precisasse de mim Mas creio que há um quê de Sansão em todo homem. E em homens como você e Luke esse quê é mais pronunciado.

Ele não parecia absolutamente insultado; estava sorrindo.

— Minha sábia Meggie!

— Isso não é sabedoria, Ralph. É apenas bom senso. Não sou muito sábia, e você sabe disso. Mas veja meus irmãos. Duvido que os mais velhos acabem casando algum dia, ou mesmo que tenham namoradas. São extremamente tímidos, têm pavor do poder que uma mulher possa exercer sobre eles, e estão totalmente concentrados em mamãe.

Os dias seguiram-se aos dias, as noites seguiram-se às noites. Até as pesadas chuvas de verão eram belas quando eles as arrostavam nus, a passear, ou ficavam a ouvi-las batendo no telhado de ferro, tão quentes e cheias de carícias quanto o sol. E quando o sol saía, passeavam também, ou na praia, ou nadavam; pois ele a estava ensinando a nadar.

Às vezes, quando ele não se sabia observado, Meggie observava-o e tentava desesperadamente imprimir-lhe o rosto no cérebro, lembrando-se de que, apesar do amor que dedicara a Frank, a imagem dele, o jeito dele, se nublara com o passar dos anos. Havia os olhos, o nariz, a boca, as assombrosas mechas brancas no cabelo preto, o corpo longo e rijo que conservara a esbeltez e a tensão da mocidade, embora estivesse um pouco mais duro, menos elástico. E ele se voltava e a surpreendia a observá-lo, com uma expressão de pesar acossado, um olhar condenado. Ela compreendeu a implícita mensagem, ou supôs havê-la compreendido; ele precisa ir, voltar à Igreja e às suas obrigações. Nunca mais com o mesmo espírito, talvez, porém mais capaz de servir. Pois só os que tropeçam e caem conhecem as vicissitudes do caminho.

Um dia, quando o sol descera o suficiente para ensangüentar o mar e manchar a areia de coral de um amarelo enevoado, e anbos continuavam deitados na praia, ele voltou-se para ela.

— Meggie, nunca fui tão feliz, ou tão infeliz.

— Eu sei, Ralph.

— Acredito que saiba. Será porque a amo? Você não é muito fora do comum, Meggie e, todavia, não é nada comum. Terei percebido isso, durante todos esses anos? Creio que sim. Minha paixão pelo cabelo ticianesco! Mal sabia eu aonde me levaria. Eu a amo, Meggie.

— Você vai partir?

— Amanhã. É preciso. Meu navio zarpa para Gênova daqui a menos de uma semana.

— Gênova?

— Roma, para ser mais exato. Por muito tempo, talvez para o resto da vida. Não sei.

— Não se preocupe, Ralph. Eu o deixarei partir sem estardalhaço. Meu prazo também se está esgotando. vou deixar Luke e voltar para Drogheda.

— Oh, meu Deus! Mas não por causa disso, por minha causa?

— Não, é claro que não — mentiu ela. — Eu já tomara a decisão antes de você chegar. Luke não me quer nem precisa de mim, não sentirá minha falta. Mas eu preciso de um lar, de algo meu, e creio que Drogheda será sempre esse lugar. Não é justo que a pobre Justine cresça numa casa em que sou a criada, embora eu saiba que Anne e Luddie não me consideram uma criada. Mas é assim que me considero e assim Justine me considerará quando tiver idade suficiente para compreender que não tem um lar normal. De certo modo, ela nunca terá um lar normal, mas preciso fazer por ela tudo o que me for possível. Por isso voltarei para Drogheda.

— Eu escreverei, Meggie.

— Não, não escreva. Acha que preciso de cartas depois disto? Não quero que haja entre nós nada que possa pô-lo em perigo, caindo em mãos de pessoas sem escrúpulos. Por isso, sem cartas. Se você um dia estiver na Austrália, será natural e normal que visite Drogheda, embora eu o esteja advertindo, Ralph: pense muito antes de fazê-lo. Pois só há dois lugares no mundo em que você me pertence antes de pertencer a Deus: aqui, em Matlock, e em Drogheda.

Ele puxou-a para junto de si e aninhou-a entre os braços, acariciando-lhe o cabelo cintilante.

— Meggie, eu queria de todo coração poder casar com você, e nunca mais me separar de você. Não quero deixá-la... E, de certo modo, nunca voltarei a me libertar de você. Seria melhor se não tivesse vindo a Matlock. Mas não podemos mudar o que somos, e talvez seja melhor assim. Conheço agora coisas a meu respeito que jamais conheceria nem enfrentaria se não tivesse vindo melhor lutar com o conhecido do que com o desconhecido. Amo-a. Sempre a amei e sempre a amarei. Nunca se esqueça disso.

No dia seguinte, Rob apareceu pela primeira vez desde que ali deixara Ralph, e esperou, paciente, que eles se despedissem. Não eram, obviamente, recém-casados, visto que ele chegara depois dela e estava partindo antes. Mas não deviam ser amantes; eram casados, e isso estava escrito flagrantemente neles. Queriam-se muito um ao outro, muito mesmo. Como ele e a sua patroa; uma grande diferença de idade, que, aliás, contribuía para aprimorar o casamento.

— Adeus, Meggie.

— Adeus, Ralph. Cuide-se.

— Eu me cuidarei. E você também.

Ele inclinou-se para beijá-la; apesar da sua resolução, ela agarrou-se a ele, mas, quando ele tirou as mãos dela do seu pescoço, ela as colocou rigidamente nas costas e ali as conservou.

Ralph entrou no automóvel e sentou-se enquanto Rob dava marcha à ré para virar o carro. Em seguida, ficou olhando para a frente pelo pára-brisa, sem olhar para trás uma única vez. Poucos homens poderiam fazer isso, refletiu Rob, que nunca ouvira falar em Orfeu. Seguiram em silêncio pela floresta tropical e chegaram, por fim, ao lado de Matlock que olhava para o mar e para o comprido desembarcadouro. Quando apertaram as mãos um do outro, Rob olhou para o rosto dele, espantado. Nunca vira olhos tão humanos, nem tão tristes. O alheamento desaparecera para sempre do olhar do Arcebispo Ralph.

Quando Meggie voltou a Himmelhoch, Anne logo compreendeu que a perderia. Sim, era a mesma Meggie — mas, de certo modo, muito mais ela. Fosse o que fosse que o Arcebispo Ralph tivesse dito a si mesmo antes de ir para Matlock, as coisas ali se haviam passado afinal do jeito de Meggie, e não do jeito dele. Antes tarde do que nunca.

Ela tomou a filha nos braços como se só então compreendesse o que significava ter Justine, e pôs-se a embalá-la enquanto corria a vista pela sala, sorrindo. Seus olhos, tão vivos, tão brilhantes de emoção, encontraram os de Anne, que sentiu os seus cheios de lágrimas recíprocas da mesma alegria.

— Nunca lhe agradecerei o suficiente, Anne.

— Ora essa! Por quê?

— Por ter mandado Ralph. Você devia estar sabendo que, depois disso, eu deixaria Luke e, portanto, agradeço-lhe mais ainda, querida. Você não faz idéia do que esses dias representaram para mim! Eu já decidira ficar com Luke. Pois agora vou voltar para Drogheda e nunca mais sairei de lá.

— Detesto vê-la partir e detesto sobretudo ver Justine partir, mas alegro-me por vocês duas, Meggie. Luke só lhe dará infelicidade.

— Sabe onde ele está?

— Já voltou das CSR. Está cortando cana perto de Ingham.

— Terei de ir vê-lo, diga isso a ele. E, por mais que abomine a idéia, terei de dormir com ele.

— O quê?

Os olhos de Meggie brilharam.

— Estou duas semanas atrasada, e nunca me atrasei um dia sequer. A única outra vez em que isso aconteceu, Justine estava começando. Estou grávida, Anne, sei que estou.

— Misericórdia! — Anne olhou boquiaberta para Meggie como se nunca a tivesse visto antes; e talvez não tivesse mesmo. Molhou os lábios e gaguejou: — Mas pode ser um alarme falso.

Meggie abanou decididamente a cabeça.

— Não é, não. Estou grávida. Há coisas que a gente sabe.

— Nesse caso, você está num mato sem cachorro — murmurou Anne.

— Não seja cega, Anne! Não vê o que isso significa? Nunca poderei ter Ralph, e sempre soube que nunca o poderia ter. Mas tenho-o, tenho-o! — Riu-se, apertando Justine com tanta força que Anne ficou com medo de que a criança berrasse. Estranhamente, porém, ela não berrou. — Tenho a parte de Ralph que a Igreja nunca poderá ter, a parte dele que subsistirá, geração após geração. Através de mim ele continuará a viver, porque sei que será um filho! E esse filho terá filhos, que também terão filhos... Ainda acabarei ganhando de Deus. Amo Ralph desde os dez anos de idade, e creio que continuarei a amá-lo se viver cem anos. Mas ele não é meu, ao passo que o filho dele o será. Meu, Anne, meu!

— Oh, Meggie! — disse Anne, atarantada.

A paixão morreu, morreu a animação; ela voltou a ser a Meggie de sempre, calma e suave, mas com o tênue veio de ferro, a capacidade de suportar muito. Só que Anne agora andava cautelosa, perguntando a si mesma o que fizera ao mandar Ralph de Bricassart à Ilha de Matlock. Seria possível que alguém mudasse tanto? Ela achava que não. Aquilo, com certeza, lá estivera o tempo todo, tão bem escondido que raro lhe suspeitavam da presença. Havia muito mais em Meggie do que um tênue veio de ferro; ela era feita de aço sólido.

— Meggie, se você gosta de mim, por favor tente se lembrar de uma coisa. Por mim.

Os olhos cinzentos enrugaram-se nos cantos.

— Tentarei!

— com o passar dos anos, acabei lendo quase todos os tomos de Luddie, depois de haver concluído a leitura dos meus. Principalmente os que trazem as antigas histórias gregas, que me fascinam. Dizem que os gregos têm uma palavra para tudo, e que não existe nenhuma situação humana que eles não tenham descrito.

— Eu sei. Também li alguns livros de Luddie.

— Então deve estar lembrada. Dizem os gregos que é pecar contra os deuses amar alguma coisa mais do que manda a razão. E lembra-se do que eles dizem quando alguém é amado assim? Que os deuses, invejosos, abatem o objeto desse amor na plenitude da sua força? Há uma lição nisso, Meggie. É profano amar demais.

— Profano, Anne, é a palavra-chave! Não amarei o filho de Ralph profanamente mas com a pureza da própria Mãe Santíssima.

Os olhos cinzentos de Anne estavam muito tristes.

— E teria ela amado puramente? O objeto do seu amor foi abatido na plenitude da Sua força, não foi?

Meggie colocou Justine no bercinho.

— O que tem de ser, será. Não posso ter Ralph, mas posso ter o filho dele. Sinto... como se houvesse, afinal, um propósito em minha vida! Essa tem sido a pior coisa nos últimos três anos e meio, Anne. Eu já estava começando a pensar que minha vida não tinha finalidade. — Sorriu com vivacidade e decisão. — Protegerei esta criança de todas as maneiras que puder, por mais que isso me custe. E a primeira coisa é que ninguém, incluindo Luke, insinuará que ele não faz jus ao único nome que tenho liberdade para lhe dar. A simples idéia de dormir com Luke me deixa nauseada, mas eu o farei. Dormiria com o diabo se isso favorecesse o futuro desta criança. Depois irei para Drogheda e espero nunca mais tornar a ver Luke. — Afastou-se do berço. — Você e Luddie irão nos ver? Drogheda tem sempre um quarto para os amigos.

— Uma vez por ano, por quantos anos você nos quiser. Luddie e eu desejamos ver Justine crescer.

Só a idéia do filho de Ralph sustentou a coragem vacilante de Meggie enquanto o trenzinho balançava e sacolejava durante os longos quilômetros que a separavam de Ingham. Não fora a nova vida que, tinha a certeza, crescia dentro dela, ir de novo para a cama com Luke teria sido o maior dos pecados contra si mesma; mas pelo filho de Ralph ela se entenderia de fato até mesmo com o próprio tinhoso.

Sabia, aliás, que até do ponto de vista prático a coisa não seria fácil. Mas traçara seus planos com a maior dose possível de previsão e, por estranho que pareça, ajudada por Luddie. Não pudera esconder muita coisa dele que, além de ser demasiado astuto, era o confidente habitual de Anne. Ele olhara com tristeza para Meggie, sacudira a cabeça, e passara a dar-lhe alguns conselhos excelentes. Claro está que a verdadeira finalidade da sua missão não fora mencionada, mas Luddie estava tão acostumado a somar dois mais dois quanto a maioria das pessoas que têm o hábito de ler tomos maciços.

— Você não quererá dizer a Luke que vai deixá-lo quando ele estiver caindo de cansaço, depois do corte da cana — principiou Luddie delicadamente. — Será muito melhor apanhá-lo de bom humor, não lhe parece? Pois, então, veja-o no sábado à noite ou no domingo da semana em que ele tiver sido escalado para cozinhar. Segundo se diz por aí, Luke é o melhor cozinheiro do circuito dos cortadores... Aprendeu a cozinhar quando era aprendiz de tosquiador, e os tosquiadores têm o paladar mais exigente que os cortadores. Isso quer dizer que a cozinha não o derruba, entende? Provavelmente acha o trabalho do fogão tão fácil quanto desviar-se de um tronco de árvore que vai cair. Esse, portanto, é o jeito, Meggie. Dê-lhe a notícia quando ele estiver realmente bem, depois de uma semana na cozinha do acampamento.

Meggie tinha a impressão, ultimamente, de que andavam bem longe os dias em que costumava corar; sustentou com firmeza o olhar de Luddie, sem que o seu rosto se avermelhasse.

— Você poderia descobrir para mim a semana em que Luke cozinha, Luddie? Ou haverá um meio pelo qual eu possa descobri-lo, se você não puder?

— Isso é canja — disse ele, jovialmente. — Tenho o meu sistema particular de informações. Deixe comigo.

Já ia em meio a tarde de sábado quando Meggie entrou na hospedaria de aparência mais respeitável de Ingham. Todas as cidades de North Queensland eram famosas por uma coisa: tinham hospedarias nos quatro cantos de cada quarteirão. Deixou a maleta no quarto, depois voltou ao pouco atraente saguão em busca de um telefone. Achava-se na cidade um time da Liga de Rugby, que se preparava para um jogo-treino antes da temporada, e os corredores estavam cheios de jogadores seminus, completamente bêbedos, que lhe saudaram o aparecimento com gritos e palmadinhas afetuosas nas costas e mais embaixo. Quando pôs a mão no telefone, ela tremia de medo; tudo naquela aventura lhe parecia um suplício. Mas, apesar da algazarra e dos rostos bêbedos que avultavam à sua volta, obteve uma ligação para Braun’s, isto é, a fazenda em que a turma de Luke estava cortando cana e pediu que lhe dessem um recado: sua esposa estava em Ingham e desejava vê-lo. Notando-lhe o medo, o hospedeiro escoltou-a de volta ao quarto e ficou esperando até ouvi-la dar volta à chave.

Meggie encostou-se na porta, sentindo-se mole e aliviada; ainda que isso significasse que só tornaria a comer outra vez quando regressasse a Dunny, não se aventuraria à sala de jantar. Felizmente o dono da hospedaria a colocara ao lado do banheiro das senhoras, de modo que não lhe era preciso andar muito para chegar lá. No momento em que supôs que as pernas a sustentariam, aproximou-se, cambaleante, da cama e sentou-se nela, com a cabeça baixa, olhando para as mãos, que tremiam.

Durante toda a viagem pensara na melhor maneira de fazer o que tinha de ser feito, e tudo nela gritava: Depressa, depressa! Até ir viver em Himmelhoch, nunca lera a descrição de uma sedução, e mesmo agora, armada de várias histórias dessa natureza, não estava certa da sua capacidade de levar a cabo a tarefa que se impusera. Mas era isso o que viera fazer, pois sabia que, depois que tivesse começado a falar com Luke, estaria tudo acabado. Sentia cócegas na língua para dizer-lhe o que pensava dele.

Porém, mais forte do que isso, consumia-a o desejo de voltar a Drogheda com o filho de Ralph em perfeita segurança.

Tremendo no ar mormacento e de cheiro enjoativo, tirou a roupa e deitou-se na cama, de olhos fechados, lutando por não pensar em nada senão na conveniência de prover à segurança do filho de Ralph.

Os jogadores de Rugby não causaram preocupação a Luke quando este entrou na hospedaria, sozinho, às nove horas; a essa altura, a maioria estava insensível e os que ainda conseguiam ficar em pé, muito mais pra lá do que pra cá, pareciam incapazes de ver alguma coisa além dos copos de cerveja.

Luddie acertara em cheio; no fim da semana em que fizera as vezes de cozinheiro, Luke, descansado, estava louco por uma mudança e esbanjava boa vontade. Quando o filho mais moço de Braun’s levou o recado de Meggie ao acampamento, ele estava acabando de lavar os últimos pratos do jantar e planejando ir de bicicleta a Ingham para juntar-se a Arne e aos companheiros na costumeira farra dos sábados à noite. A perspectiva de Meggie era uma alternativa muito agradável; depois das férias no Atherton, surpreendera-se a desejá-la de vez em quando, a despeito da sua exaustão física. Só o horror à lengalenga dela tentando persuadi-lo a começar a vida como chefe de família o afastara de Himmelhoch todas as vezes que chegava mais perto de Dunny. Agora, porém, ela viera procurá-lo e ele não era, de modo algum, avesso a uma noite na cama. Acabou de lavar os pratos depressa, e teve a sorte de conseguir carona num caminhão depois de haver pedalado, quando muito, uns oitocentos metros. Mas, enquanto dirigia a pé a bicicleta pelos três quarteirões que mediavam entre o lugar em que o deixara o caminhão e a hospedaria de Meggie, parte do seu antegozo diminuiu. Todas as farmácias estavam fechadas, e ele não tinha camisas-de-vênus. Parou, olhou para uma vitrina cheia de chocolates roídos de mariposas e manchados de sol e varejeiras mortas, e encolheu os ombros. Teria de arriscar-se. Seria apenas uma noite e, se viesse um filho, com um pouco de sorte seria homem desta vez.

Meggie saltou nervosamente da cama quando ouviu as batidas, e aproximou-se da porta.

— Quem é? — perguntou.

— Luke — chegou-lhe a voz.

Ela virou a chave, entreabriu a porta e foi postar-se atrás da folha quando Luke a abriu mais. Assim que ele entrou, Meggie bateu a porta e ficou olhando para ele. Ele olhou para ela; para os seios maiores, mais redondos, mais sedutores do que nunca, cujos mamilos haviam perdido o tom rosa-pálido e assumido uma cor vermelho-escura, por causa do bebê. Se ele estivesse precisando de estímulos, aqueles seriam mais do que adequados; ele estendeu os braços, pegou-a e carregou-a para a cama.

Ao romper do dia ela ainda não pronunciara uma palavra, embora o seu contato o houvesse acolhido de um modo que despertara nele um desejo febril que ele nunca experimentara antes. Agora estavam longe e curiosamente divorciados um do outro.

Ele espreguiçou-se voluptuosamente, bocejou, limpou a garganta

— O que é que a traz a Ingham, Meg? — perguntou

A cabeça dela voltou-se, ela fixou nele dois olhos grandes e desdenhosos

— Então, o que a traz aqui? — repetiu ele, mortificado

Nenhuma resposta. Apenas o mesmo olhar fixo, pungente, como se ela não quisesse dar-se ao trabalho de responder. O que era ridículo depois daquela noite. Os lábios dela se abriram, Meggie sorriu.

— Vim dizer-lhe que vou voltar para Drogheda — disse ela

Por um momento ele não acreditou no que ouvira, depois olhou com mais atenção para o rosto dela e percebeu que estava falando sério

— Por quê? — perguntou

— Eu lhe disse o que aconteceria se você não me levasse para Sydney. O assombro dele era absolutamente genuíno

— Mas, Meg! Isso já faz dezoito meses! E eu lhe dei umas férias! Passamos quatro malditas semanas caríssimas no Atherton! Eu não estava em condições de levá-la a Sydney depois disso!

— Você esteve em Sydney duas vezes depois disso, e as duas sem mim — tornou ela, teimosa. — A primeira vá lá, eu já estava esperando Justine, mas Deus é testemunha de que andei bem precisada de umas férias longe da Chuva em janeiro último.

— Oh, Cristo!

— Você é um grandessíssimo pão-duro, Luke — continuou ela suavemente — Recebeu de mim vinte mil libras, dinheiro meu, muito meu, e, no entanto, chora as poucas e miseráveis libras que lhe teria custado levar-me a Sydney. Você e o seu dinheiro! Você me enoja!

— Não toquei nele — defendeu-se Luke, debilmente — Ele está lá, intacto, e mais ainda!

— Sim, eu sei! Parado no banco, onde sempre estará! Você não tem nenhuma intenção de gastá-lo, tem? Quer adorá-lo, como a um bezerro de ouro! Reconheça, Luke, você é um unha-de-fome! E, além disso, um idiota imperdoável! Tratar sua mulher e sua filha como você nunca sonharia tratar dois cachorros, ignorar-lhes a existência, quanto mais as necessidades! Seu calhorda egoísta e metido a besta!

Lívido, trêmulo, Luke quis falar. Ver Meg voltar-se contra ele, sobretudo depois daquela noite, era como ser mortalmente mordido por uma borboleta. A injustiça das acusações estarrecia-o, mas, pelo visto, não havia jeito de fazê-la compreender a pureza das suas intenções. Como todas as mulheres, ela só via o óbvio, incapaz de apreciar o grandioso projeto que havia por detrás de tudo aquilo.

Por isso disse:

— Oh, Meg! — O tom era de assombro, desespero e resignação — Nunca a maltratei. — acrescentou — Não, positivamente não a maltratei! Ninguém poderá dizer que fui cruel um dia com você. Ninguém! Você sempre teve o suficiente para comer, um teto sobre a cabeça, meu calor...

— Oh, sim — atalhou ela. — Quanto a isso, dou meu braço a torcer: nunca senti tanto calor em minha vida. — Sacudiu a cabeça, riu. — Qual!, não adianta! É como falar com uma parede.

— Eu poderia dizer o mesmo!

— E por que não diz? — tornou Meggie, em tom gélido, pulando da cama e pondo a calcinha. — Não vou me divorciar de você — continuou. — Não quero casar outra vêz. Se você desejar o divórcio, saberá onde me encontrar. Juridicamente falando, quem errou fui eu, não fui? Estou abandonando o lar... ou, pelo menos, é assim que os tribunais deste país verão o caso. Você e o juiz poderão chorar no ombro um do outro a perfídia e a ingratidão das mulheres.

— Nunca a abandonei — sustentou ele.

— Pode ficar com as minhas vinte mil libras, Luke. Mas não receberá de mim nem mais um tostão. Usarei minha renda futura para sustentar Justine, e talvez outro filho, se tiver sorte.

— Ah! Então é isso! — disse ele. — A única coisa que você queria era outro maldito bebê, não era? Foi para isso que veio aqui... Um canto do cisne, um presentinho meu para você levar de volta a Drogheda! Outro maldito bebê, eu não! Nunca fui eu, não é mesmo? Para você, não passo de um garanhão! Cristo, que grande vigarice!

— A maioria dos homens não passa disso para a maioria das mulheres — disse ela, maldosa. — Você tem o dom de despertar o que há de pior em mim, Luke, de um modo que jamais compreenderá. Mas coragem! Nestes últimos três anos e meio ganhei mais dinheiro para você do que a cana-de-açúcar. Se vier outro filho, você não terá nada com isso. A partir deste minuto, não quero vê-lo nunca mais.

Ela já estava vestida. Depois de pegar a blusa e a maleta ao pé da porta, voltou-se, com a mão no trinco.

— Deixe-me dar-lhe um conselho, Luke. Para o caso de você, algum dia, arranjar outra mulher, quando já estiver velho e cansado demais para continuar cortando cana. Você não sabe nem beijar. Abre demais a boca, engole a mulher inteira como se fosse uma sucuri. Saliva é bom, mas não um dilúvio dela. — Passou rancorosamente o dorso da mão pela boca. — Você me dá vontade de vomitar! Luke O’Neill, o grande, o tal! Você não é nada!

Depois que ela se foi, ele sentou-se na beirada da cama com os olhos postos por muito tempo na porta fechada. A seguir, deu de ombros e começou a vestir-se. Processo não muito demorado em North Queensland: apenas um short. Se se apressasse, ainda voltaria de caminhão para o acampamento com Arne e os rapazes. O bom e velho Arne. Querido e velho companheiro. Quanta tolice havia num homem! O sexo era muito bom, mas os companheiros de um homem eram outros quinhentos.

 

                     1938-1953 — FEE

Não desejando que ninguém soubesse do seu regresso, Meggie foi para Drogheda no caminhão da correspondência com o velho Bluey Williams e Justine colocada numa cesta sobre o banco, ao seu lado. Bluey alegrara-se ao vê-la e ardia de curiosidade por saber o que ela fizera nos últimos quatro anos, mas, quando se aproximaram da sede, calou-se, adivinhando-lhe o desejo de regressar à casa em paz.

De volta ao castanho e à prata, de volta à poeira, de volta à pureza e à frugalidade maravilhosas que tanta falta faziam a North Queensland. Ali não havia crescimentos desregrados, não se apressava a decadência para dar lugar a mais; apenas uma lenta e girante inevitabilidade, como as constelações. Cangurus, mais numerosos do que nunca. Lindas e pequenas wilgas simétricas, redondas e matronais, quase recatadas. Cacatuas que se erguiam em ondas cor-de-rosa acima do caminhão. Emas em plena disparada. Coelhos que saltavam para fora da estrada levantando pufes de pó branco. Esqueletos alvejados de árvores mortas na relva. Miragens de árvores no distante horizonte curvo, ao atravessarem a planura de Dibban-Dibban, quando apenas as linhas azuis instáveis que as cortavam por baixo indicavam que as árvores não eram reais. O som de que sentira tanta falta, embora nunca imaginasse poder senti-la, o grasnar desolado dos corvos. Baços véus castanhos de poeira açoitados pelo vento seco do outono como chuva suja. E o capim, o capim bege-prateado do Grande Noroeste, que se estendia até o céu, como uma bênção.

Drogheda, Drogheda! Eucaliptos e sonolentas e gigantescas aroeiras-moles a fervilhar de abelhas. Potreiros, currais e edifícios de arenito amarelo, estranho gramado verde em torno da casa-grande, flores outonais no jardim, goivos e zínias, marianas e dálias, cravos-de-defunto e malmequeres dos jardins, crisântemos, rosas, rosas. O saibro do pátio dos fundos, a Sra. Smith em pé, de boca aberta, depois a rir, a chorar, Minnie e Cat correndo, velhos braços fibrosos como cadeias em torno do seu coração. Pois Drogheda era o lar, e ali estava o seu coração, para sempre.

Fee saiu para ver a causa de tanto rebuliço.

— Olá, mamãe. Voltei para casa.

Os olhos cinzentos não se alteraram, mas com sua alma nova e crescida Meggie compreendeu: sua mãe estava contente; só não sabia demonstrar o contentamento.

— Você deixou Luke? — perguntou Fee, entendendo que a Sra. Smith e as criadas tinham tanto direito quanto ela de saber o que acontecera.

— Deixei. Nunca mais voltarei para ele. Ele não queria um lar, não queria os filhos, não me queria.

— Filhos?

— Sim. vou ter outro bebê.

Gritos de júbilo das criadas, e Fee a expressar o seu julgamento com a voz comedida, disfarçando a alegria.

— Se ele não a quer, fez muito bem de voltar para casa. Cuidaremos de você aqui. O seu velho quarto, que dava para o Home Paddock, os jardins. E um quarto ao lado para Justine e o novo bebê quando chegasse. Era tão bom estar em casa!

Bob também se alegrou ao vê-la. Cada vez mais parecido com Paddy, estava ficando musculoso e um pouco curvado à proporção que o sol lhe cozinhava a pele e os ossos até secá-los. Possuía a mesma força generosa de caráter, mas, talvez porque nunca tivesse sido genitor de uma família numerosa, faltava-lhe o semblante paternal de Paddy. E era também como Fee: calmo, reservado, pouco dado a expressar sentimentos e opiniões. Devia orçar pelos trinta e tantos anos, pensou Meggie com súbita surpresa, e ainda assim não casara. Depois entraram Jack e Hughie, duplicatas de Bob sem a sua autoridade, com seus sorrisos tímidos a dar-lhe as boas-vindas. Deve ser isso, refletiu; eles são tão acanhados por causa da terra, que não precisa de quem saiba expressar-se nem de galas sociais. Precisa apenas do que eles lhe dão, o amor silencioso e a fervorosa fidelidade.

Os Clearys estavam todos em casa naquela noite, para descarregar um caminhão de milho que Jims e Patsy haviam comprado na AML & F, em Gilly.

— Nunca vi uma seca como essa, Meggie — disse Bob. — Não chove há dois anos, nem uma gota. E os coelhos são uma praga pior do que os cangurus; comem mais capim do que carneiros e cangurus juntos. Vamos tentar alimentá-los à mão, mas você sabe como são os carneiros.

Meggie sabia até bem demais como eram os carneiros. Idiotas, incapazes de compreender até os rudimentos da sobrevivência. O pequenino cérebro, que o animal original devia ter possuído algum dia, fora inteiramente eliminado à medida que se desenvolveu a raça desses aristocratas lanudos. Os carneiros não comiam outra coisa senão capim, ou o mato cortado do seu ambiente natural. Mas acontece que não havia mãos suficientes para cortar o mato em quantidade capaz de satisfazer a mais de cem mil carneiros.

. Você não tem serviço para mim? — perguntou ela.

É claro que tenho! Você trabalhando, teremos mais um homem para cortar a comida dos carneiros. Basta que se encarregue dos pastos internos, como costumava fazer.

Fiéis à sua palavra, os gêmeos tinham voltado de vez para casa. Aos catorze anos, deixaram Riverview para sempre, ansiosos por regressar o mais depressa possível às planícies de solo negro. Os dois já pareciam Bobs, Jacks e Hughies juvenis, e substituíam, aos poucos, a sarja e a flanela antiquadas e cinzentas, do uniforme de fazendeiro do Grande Noroeste, por calças de algodão branco, camisa branca, chapéu de feltro cinzento de copa chata e aba larga, e botas rasas de montar, que chegavam até o tornozelo, com elástico dos lados. Só o punhado de mestiços que vivia nas favelas de Gilly imitava os vaqueiros do Oeste norte-americano, com botas extravagantes de salto alto e chapéus Stetson usados ao jeito dos cowboys. Para o homem da planície de solo negro tais acessórios eram uma afetação inútil, parte de uma cultura diferente. Ninguém poderia andar pelo mato com botas de salto alto, e os homens, muitas vezes, tinham de andar pelo mato. E um chapéu de cowboy era muito quente e pesado.

A égua castanha e o cavalo preto haviam morrido; as cocheiras estavam vazias. Meggie insistiu em montar um cavalo de lida, mas Bob foi até à fazenda de Martin King para comprar dois animais de um quarto de sangue — uma égua creme, de crina e cauda pretas, e um cavalo castanho de patas compridas. Por uma razão qualquer, a perda da velha égua castanha calou mais fundo em Meggie do que a partida de Ralph, numa espécie de reação retardada; como se ela acentuasse mais claramente a separação dos dois. Mas era tão bom estar de novo nos pastos, cavalgar com os cachorros, comer a poeira de um rebanho balante de carneiros, contemplar os pássaros, o céu, a terra!

Tudo se achava terrivelmente seco. O capim de Drogheda sempre conseguira sobreviver às secas de que Meggie se lembrava, mas isto era diferente. O pasto agora estava cheio de falhas; entre os tufos de capim via-se a terra escura, rachada numa fina rede de gretas abertas como bocas ressequidas, o que se devia agradecer principalmente aos coelhos. Durante os seus quatro anos de ausência eles se haviam multiplicado repentina e desordenadamente, embora ela supusesse que já fossem uma praga muitos anos antes disso. Mas, quase da noite para o dia, o número deles atingira cifras muito superiores ao ponto de saturação. Estavam em toda parte e também comiam o precioso capim.

Ela aprendeu a armar mundéus para os coelhos, detestando, de um lado, ver aquelas coisinhas fofas estraçalhadas por dentes de aço, mas não podendo, de outro, como pessoa da terra, deixar de fazer o que tinha de ser feito. Matar em nome da sobrevivência não era crueldade.

— Maldito seja o imigrante inglês saudoso da sua terra que mandou vir da Inglaterra os primeiros coelhos — disse Bob, amargo.

Eles não eram nativos da Austrália e sua importação sentimental revolucionara o equilíbrio ecológico do continente, equilíbrio esse não perturbado pelos carneiros e pelo gado, cientificamente apascentados desde o momento da sua introdução. Não havia um predador australiano natural para controlar o número de coelhos, e as raposas importadas não vingaram. O homem teria de ser o predador antinatural, mas os homens eram poucos e os coelhos eram muitos.

Depois que ficou muito pesada para cavalgar, Meggie passava os dias na sede, em companhia da Sra. Smith, de Minnie e de Cat, costurando ou tricotando para a coisinha que se contorcia dentro dela. Ele (ela sempre pensava num menino) fazia parte dela como Justine nunca fizera; Meggie não enjoou, não se sentiu deprimida e aguardava com ansiedade o dia do parto. Talvez Justine fosse inadvertidamente responsável, em parte, por isso; agora que a coisinha de olhos pálidos se estava transformando, de um bebê indiferente, numa menina inteligentíssima, Meggie sentiu-se fascinada pelo processo e pela criança. Fazia muito tempo que se sentira indiferente à filha, e ansiava por prodigalizar-lhe amor, apertá-la entre os braços, beijá-la, rir-se com ela. Ao ver-se polidamente repelida, sentiu um choque, mas era assim que Justine reagia a cada uma de suas expansões de afeto.

Quando Jims e Patsy deixaram Riverview, a Sra. Smith julgara que os teria de novo debaixo de suas asas, mas ficou desapontada ao descobrir que eles viviam nos pastos a maior parte do tempo. Por isso voltou-se para Justine, e viu-se tão firmemente rejeitada quanto a própria Meggie. Dir-se-ia que Justine não desejava que a abraçassem, nem que a beijassem, nem que a fizessem rir.

Começou a andar e a falar depressa, aos nove meses. Sabendo utilizar os pés e comandando uma língua capaz de expressar-se com muita clareza, passou a ir aonde queria e a fazer o que desejava. Não que fosse barulhenta ou desafiadora; acontecia apenas que era feita de um metal realmente muito duro. Meggie não sabia nada acerca de genes, mas, se soubesse, teria pensado melhor nas conseqüências de uma mistura de Cleary, Armstrong e O’Neill. Aquilo não poderia dar outra coisa senão uma sopa humana muito forte.

Mas o que mais consternava os outros era a obstinada recusa de Justine de sorrir ou de rir. Todo mundo em Drogheda fazia palhaçadas incríveis na tentativa de arrancar dela o germe de um sorriso, mas em vão. No tocante à solenidade inata, ela superava a própria avó.

No dia primeiro de outubro, quando Justine completava precisamente 16 meses de vida, nasceu em Drogheda o filho de Meggie. Ele se adiantara quase quatro semanas e ainda não era esperado; houve duas ou três contrações violentas, soltou-se o fluído e o garoto nasceu nas mãos da Sra. Smith e de Fee poucos minutos depois que elas telefonaram chamando o médico. Meggie mal tivera tempo para a dilatação. A dor foi mínima, e o parto consumou-se tão depressa que quase não existiu; apesar dos pontos que precisou levar por haver sido tão precipitada a entrada dele no mundo, Meggi sentia-se maravilhosamente bem. Secos para Justine, seus seios agora transbordavam. Desta vez não havia necessidade de mamadeiras nem de latas de Lactogênio.

E era tão bonito! Comprido e esguio, com um topetinho de cabelo cor de linho em cima do craniozinho perfeito, e vivos olhos azuis que não davam nenhuma indicação de que mudariam, mais tarde, de cor. Como haveriam de mudar? Eram os olhos de Ralph, assim como eram as mãos de Ralph, o nariz e a boca de Ralph e até os pés de Ralph. Meggie carecia suficientemente de escrúpulos para sentir-se muito grata pelo fato de Luke possuir quase a mesma constituição e a mesma cor de Ralph e de serem os seus traços muito parecidos com os dele. Mas as mãos, o modo como cresciam as sobrancelhas, o bico-de-viúva penugento, a forma dos dedos das mãos e dos pés, eram muito mais de Ralph que de Luke! bom seria que ninguém lembrasse qual dos dois possuía tudo isso.

— Você já decidiu a respeito do nome? — perguntou Fee; o menino parecia fasciná-la.

Meggie observou-a enquanto ela, em pé, segurava o neto e sentiu-se agradecida. A mãe amaria outra vez; talvez não como amara Frank, mas, pelo menos, sentiria alguma coisa.

— vou chamá-lo de Dane.

— Que nome esquisito! Por quê? Por acaso é algum nome da família O’Neill? Pensei que você não quisesse ter mais nada com os O’Neills.

— Isso não tem nada que ver com Luke. É o nome dele e de mais ninguém. Odeio nomes de família; é como desejar enxertar um pedaço de alguém diferente numa nova pessoa. Chamei Justine de Justine simplesmente porque gostei do nome, e estou chamando Dane de Dane pela mesmíssima razão.

— O nome soa bem — admitiu Fee.

Meggie estremeceu; seus seios estavam cheios demais.

— É melhor me dar o menino, mamãe. Espero que ele esteja com fome! E espero que o velho Blue se lembre de trazer a bomba para o seio. Se não se lembrar, você terá de ir buscá-la em Gilly de automóvel.

Ele estava com fome, e puxava o bico com tanta força que a boquinha viscosa machucava. Contemplando-lhe os olhos fechados, os cílios escuros de ponta de ouro, as sobrancelhas plumosas, as minúsculas faces que não paravam de trabalhar, Meggie amava-o tanto que o amor a machucava mais que a própria sucção.

Ele é suficiente; tem de ser suficiente, pois não terei outro. Mas por Deus, Ralph de Bricassart, pelo Deus que você ama mais do que a mim, nunca saberá o que roubei de você... e d’Ele. Nunca lhe direi nada a respeito de Dane. O meu bebê! Mexeu nos travesseiros a fim de colocá-lo mais confortavelmente no ângulo do seu braço, para ver melhor o rostinho perfeito. Meu bebê! Você é meu, e nunca o darei a quem quer que seja. Muito menos a seu pai, que é um padre e não pode reconhecê-lo. Isso não é maravilhoso?

O navio entrou no porto de Gênova no princípio de abril. O Arcebispo desembarcou numa Itália que explodia em plena primavera mediterrânea, e tomou um trem para Roma. Se o tivesse solicitado, teriam vindo recebê-lo para conduzi-lo a Roma num carro do Vaticano, mas ele receava sentir a Igreja de novo muito próxima; queria adiar esse momento o quanto pudesse. A Cidade Eterna. Era realmente isso, pensou, olhando, pelas janelas do automóvel, para os campanários e domos, as praças repletas de pombos, os chafarizes ambiciosos, as colunas romanas com suas bases profundamente enterradas nos séculos. Para ele tudo isso era supérfluo. O importante era a parte de Roma chamada Vaticano, suas suntuosas salas públicas, e suas salas particulares, que seriam tudo, menos suntuosas.

Um monge dominicano, envergando uma batina preta e creme, conduziu-o através de corredores de mármore, entre figuras de bronze e de pedra dignas de um museu, no meio de grandes quadros ao estilo de Giotto, Rafael, Botticelli, Fra Angélico. Eram as salas públicas de um grande cardeal e, sem dúvida, a rica família Contini-Verchese contribuíra com muita coisa para realçar o ambiente em que vivia o seu augusto descendente.

Numa sala de marfim e ouro, rica de colorido graças às tapeçarias e aos quadros, com tapetes e móveis franceses, toques de carmesim em toda parte, estava sentado Vittorio Scarbanza, Cardeal di Contini-Verchese. A mão pequena e lisa, em que cintilava o anel de rubi, foi-lhe estendida em sinal de boas-vindas; contente por poder abaixar os olhos, o Arcebispo Ralph cruzou o aposento, ajoelhou-se e tomou a mão para beijar o anel. E encostou o rosto na mão, sabendo que não podia fazê-lo, embora até o momento em que seus lábios tocaram aquele símbolo de poder espiritual e de autoridade temporal, tencionasse reerguer-se.

O Cardeal Vittorio pôs a outra mão sobre o ombro inclinado, dispensando o monge com um aceno de cabeça; depois, quando a porta se fechou mansamente, sua mão subiu do ombro ao cabelo, descansou-lhe na escura espessura, alisou-o ternamente para trás, a partir da testa semidesviada. O cabelo mudara; logo já não seria preto, mas cor de ferro. A espinha curvada endireitou-se, os ombros recuaram, e o Arcebispo Ralph encarou diretamente o rosto do seu chefe.

Houvera uma mudança! A boca se apertara, conhecera a dor e ficara mais vulnerável; os olhos, tão belos na cor, na forma e no engaste, eram muito diferentes dos olhos de que ele ainda se lembrava, como se nunca o tivesse deixado fisicamente. O Cardeal Vittorio sempre imaginara que os olhos de Jesus tivessem sido azuis e parecidos com os de Ralph: calmos, distantes do que Ele via e, portanto, capazes de abranger tudo, compreender tudo. Mas sua imaginação talvez o houvesse enganado. Como pode alguém sentir e sofrer sem que isso lhe transpareça nos olhos?

— Venha, Ralph, sente-se.

— Eminência, preciso me confessar.

— Mais tarde, mais tarde! Primeiro falaremos, e em inglês. Há ouvidos em toda parte nos dias de hoje, mas, graças ao nosso querido Jesus, são ouvidos que não falam inglês. Sente-se, Ralph, por favor. É tão bom vê-lo! Tenho sentido falta dos seus pareceres criteriosos, da sua racionalidade, do seu perfeito companheirismo. Não me deram ninguém de quem eu goste a metade sequer do que gosto de você.

Ele sentia o cérebro ajustar-se à formalidade, sentia que os próprios pensamentos assumiam em sua mente um aspecto mais elevado; mais que a maioria das pessoas, Ralph de Bricassart sabia tudo a respeito da mudança que se opera em nós de acordo com a nossa companhia, de acordo até com a nossa fala. Não era para aqueles ouvidos a fluência fácil do inglês coloquial. Por isso se sentou não muito longe, defronte da figura delgada em seu moiré escarlate, cuja cor mudava, e tinha uma qualidade que lhe permitia aos contornos fundir-se com o ambiente em vez de destacar-se dele.

O cansaço desesperado que conhecera durante semanas parecia estar-se levantando um pouco dos seus ombros; admirou-se de que houvesse temido tanto aquele encontro, quando sabia em seu íntimo que seria compreendido e perdoado. Mas não era isso, não era nada disso. Era por sua própria culpa que havia falhado, por ser menos do que aspirava a ser, por desapontar um homem que se interessara por ele, que fora tremendamente bondoso, um verdadeiro amigo. E agravava sua culpa estar diante dessa presença pura quando ele mesmo já não era puro.

— Ralph, somos padres, mas somos algo diferente antes disso; algo que éramos antes de sermos padres, e do qual não podemos escapar, a despeito do nosso caráter exclusivo. Somos homens, com as fraquezas e defeitos dos homens. Não há nada que você possa contar-me capaz de alterar as impressões que formei a seu respeito durante os anos que passamos juntos, nem há nada que você possa me contar que me faça tê-lo em menor conta, nem gostar menos de você. Por muitos anos eu soube que você escapara à percepção da nossa fraqueza intrínseca, da nossa humanidade, mas também sabia que você chegaria a tê-la, pois todos a temos. Até o Santo Padre, o mais humilde e humano de todos nós.

— Quebrei meus votos, Eminência. Isso não se perdoa com facilidade. É um sacrilégio.

— O voto de pobreza você violou há alguns anos, quando aceitou a herança da Sra. Mary Carson. Restam, portanto, o da castidade e o da obediência, não é assim?

— Nesse caso, os três foram violados, Eminência.

— Eu gostaria que você me chamasse de Vittorio, como antigamente! Não estou chocado, Ralph, nem desapontado. É como Nosso Senhor Jesus Cristo quer, e creio que você talvez tenha recebido uma grande lição que não pode ser aprendida de nenhum modo menos destrutivo. Deus é misterioso, Seus motivos transcendem nossa pobre compreensão. Mas creio que o que você fez não o fez levianamente, nem se desfez dos seus votos como de coisa sem valor. Conheço-o muito bem. Sei que é orgulhoso, está muito apaixonado pela idéia de ser padre, muito cônscio do seu caráter exclusivo. É possível que precisasse dessa lição para abater o seu orgulho, fazê-lo compreender que você é primeiro que tudo um homem e, portanto, menos exclusivo do que supõe. Não é assim?

— De fato. Eu carecia de humildade e acredito que, de certo modo, aspirava a ser o próprio Deus. Pequei muito grave e indesculpavelmente. Não posso me perdoar e, nessas circunstâncias, como esperar o perdão divino?

— O orgulho, Ralph, o orgulho! Ainda não entendeu que não é a você que cabe perdoar? Só Deus pode fazê-lo. Só Deus! E Ele perdoará se o arrependimento for sincero. Ele já perdoou pecados maiores de santos muito maiores, e você sabe disso, bem como de pecadores muito maiores. Você pensa que o Príncipe Lúcifer não foi perdoado? Mas foi, perdoado no instante em que se rebelou. O seu destino como governador do Inferno é seu, não é obra de Deus. Não foi ele quem disse ”É melhor governar o Inferno do que servir no Céu”? Lúcifer não conseguia superar o seu orgulho, não suportava a idéia de sujeitar sua vontade à vontade de Outrem, mesmo que esse Outrem fosse o próprio Deus. Não quero vê-lo incidir no mesmo erro, caríssimo amigo. A humildade era a única qualidade que lhe faltava, e é exatamente a qualidade que faz o grande santo... ou o grande homem. Enquanto você não puder deixar o assunto do perdão com Deus, não terá adquirido a verdadeira humildade.

O rosto forte contraiu-se.

— Sim, sei que você está certo. Preciso aceitar o que sou sem discussão e apenas lutar por melhorar sem me orgulhar do que sou. Arrependo-me e, portanto, confessarei e esperarei o perdão. Arrependo-me, sim, amargamente.

Ele suspirou; seus olhos traíram o conflito que suas palavras comedidas não trairiam, pelo menos naquela sala.

— E, no entanto, Vittorio, de certo modo não havia outra coisa que eu pudesse fazer. Ou eu a arruinava, ou tomaria a ruína sobre mim. Na ocasião não parecia haver escolha possível, porque a amo. Não foi por culpa dela que eu não quis que o amor se estendesse a um plano físico. O destino dela tornou-se mais importante do que o meu, entende? Até aquele momento eu sempre pensara primeiro em mim, como mais importante do que ela, porque sou um padre e ela, um ser inferior. Mas percebi que eu era responsável pelo que ela é... Eu devia tê-la deixado afastar-se quando ainda criança, mas não deixei. Conservei-a em meu coração e ela o sabia. Se eu a tivesse realmente arrancado de mim, ela o teria sabido também, e ter-se-ia transformado em alguém capaz de fugir à minha influência. — Ele sorriu. — Como vê, tenho muito de que me arrepender. Fiz uma tentativa no terreno da criação.

— Foi a Rosa?

O Arcebispo Ralph atirou a cabeça para trás e olhou para o teto com seus lavores primorosos e para o candelabro barroco de Murano.

— Poderia ter sido outra pessoa? Ela é minha única tentativa de criação.

— E a Rosa ficará bem? Você não lhe terá causado maior dano com isto do que ao repudiá-la?

— Não sei, Vittorio. Oxalá o tenha feito! Na ocasião parecia apenas a única coisa que eu podia fazer. Não possuo o dom da antevisão prometéica, e o envolvimento emocional faz de nós pífios juizes. De mais a mais, isso apenas... aconteceu! Mas creio que ela talvez precisasse muitíssimo do que lhe dei, o reconhecimento de sua identidade como mulher. Não digo que ela não soubesse que era mulher. Digo que eu não sabia. Se a tivesse conhecido como mulher, é possível que as coisas fossem diferentes, mas conheci-a criança durante muitos anos.

— Você me parece presumido, Ralph, e ainda despreparado para o perdão. Isso dói, não dói? Que você tenha sido tão humano que cedeu a uma fraqueza humana. Ou o terá realmente feito com esse espírito de nobre auto-sacrifício?

Espantado, ele fitou os líquidos olhos escuros e viu-se refletido neles como dois minúsculos manequins de insignificantes proporções.

— Não — disse. — Sou um homem e, como homem, encontrei nela um prazer com cuja existência eu nem sonhara. Eu não sabia que o sabor de uma mulher fosse assim, nem que ela pudesse ser causa de uma alegria tão profunda. Desejei nunca mais precisar deixá-la, não só por causa do seu corpo, mas também porque me agradava estar com ela... falar com ela, e não falar para ela, comer as comidas que ela cozinhava, sorrir-lhe, participar dos seus pensamentos. Sentirei falta dela enquanto viver.

Havia qualquer coisa no pálido rosto ascético que o fazia inexplicavelmente lembrar-se do rosto de Meggie no momento de partir; a vista de um fardo espiritual sendo levantado, a intrepidez de um caráter capaz de prosseguir em sua marcha apesar das cargas, dos pesares, da dor. Que conhecera ele, o cardeal de seda vermelha cuja única inclinação humana parecia ser a sua lânguida gata abissínia?

— Não posso me arrepender do que tive com ela assim — continuou Ralph vendo que Sua Eminência permanecia em silêncio. — Arrependo-me de ter transgredido votos tão solenes e proibitivos quanto minha vida. Nunca mais poderei encarar meus deveres sacerdotais à mesma luz, com o mesmo zelo. Arrependo-me disso amargamente. Mas Meggie?

A expressão do rosto dele ao pronunciar o nome dela fez o Cardeal Vittorio desviar o seu para enfrentar os próprios pensamentos.

— Arrepender-me de Meggie seria assassiná-la. — Passou a mão com gesto cansado pelos olhos. — Não sei se isto está muito claro ou se se aproxima sequer do que quero dizer. Parece que, por mais que eu me esforce, não consigo expressar adequadamente o que sinto por Meggie. — Inclinou-se para a frente na cadeira quando o cardeal tornou a voltar-se, e viu suas imagens gêmeas aumentarem um pouquinho. Os olhos de Vittorio eram como espelhos; devolviam o que viam e a ninguém permitiam um vislumbre do que ia por detrás deles. Os de Meggie eram exatamente o oposto; desciam, desciam, desciam, até chegar-lhe à alma. — Meggie é uma bênção — disse ele. — É uma coisa sagrada para mim, uma espécie diferente de sacramento.

— Compreendo — suspirou o Cardeal. — Ainda bem que você sente isso. Aos olhos de Nosso Senhor creio que o sentimento atenuará o grande pecado. Em seu próprio benefício, acho melhor você se confessar com o Padre Giorgio e não com o Padre Guillermo. O Padre Giorgio não interpretará erroneamente os seus sentimentos e o seu raciocínio. Verá a verdade. O Padre Guillermo, menos perceptivo, pode julgar discutível o seu arrependimento, que sei verdadeiro. — Tênue sorriso cruzou-lhe a boca fina como uma sombra mais fina ainda. — Também são homens, meu Ralph, os que ouvem as confissões dos grandes. Nunca se esqueça disso enquanto viver. Só no exercício do seu sacerdócio são vasos que contêm Deus. Em tudo o mais são homens. E o perdão que conferem vem de Deus, mas os ouvidos que ouvem e julgam pertencem a homens.

Ouviu-se discreta batida à porta; o Cardeal Vittorio silenciou e observou a bandeja de chá ser trazida para uma mesa com embutiduras de metal e carapaça de tartaruga.

— Está vendo, Ralph? Desde os dias que passei na Austrália, apeguei-me ao hábito do chá da tarde. Fazem-no muito bem em minha cozinha, embora nem sempre fosse assim. — Estendeu a mão quando o Arcebispo Ralph fez menção de mover-se na direção do bule. — Ah, não! Eu mesmo o servirei. Agrada-me fazer o papel de ”mamãe”.

— Vi grande quantidade de camisas pretas nas ruas de Gênova e de Roma — disse o Arcebispo Ralph enquanto o Cardeal Vittorio servia o chá.

São as cores especiais do Duce. Teremos dias muito difíceis pela frente, meu Ralph. O Santo Padre é inflexível na determinação de evitar o rompimento entre a Igreja e o governo secular da Itália, e tem razão, como tem razão em todas as coisas. Aconteça o que acontecer, precisamos continuar livres para prestar serviços a todos os nossos filhos, ainda que uma guerra signifique a divisão de nossos filhos, de modo que uns combatam os outros em nome de um Deus católico. Onde quer que estejam nossos corações e nossas emoções, precisamos tentar sempre conservar a Igreja afastada de ideologias políticas e rixas internacionais. Eu quis trazê-lo para cá porque posso fiar-me de que seu rosto não revelará o que seu cérebro estiver pensando, seja o que for que seus olhos estiverem vendo, e porque você possui o espírito mais diplomático que já encontrei num sacerdote.

O Arcebispo Ralph sorriu com tristeza.

— Você favorece minha carreira apesar de mim mesmo, não é verdade? Eu gostaria de saber o que me teria acontecido se não o tivesse conhecido.

— Você se teria tornado Arcebispo de Sydney, um belo posto e muito importante — retrucou Sua Eminência e sorriu, mostrando um dente de ouro. — Mas os caminhos de nossas vidas não estão em nossas mãos. Nós nos conhecemos porque tínhamos de nos conhecer, como tínhamos agora de estar trabalhando juntos para o Santo Padre.

— Pois não vejo luz no fim do túnel — disse o Arcebispo Ralph. — Creio que o resultado será o eterno resultado da imparcialidade. Ninguém gostará de nós e todos nos condenarão.

— Sei disso, e Sua Santidade também sabe. Mas não podemos fazer outra coisa. E nada nos impede de rezar em segredo pela rápida queda do Duce e do Fíihrer, não é mesmo?

— Acredita realmente que haverá guerra?

— Não vejo possibilidade alguma de evitá-la.

A gata de Sua Eminência saiu altivamente do canto ensolarado em que estivera dormitando e saltou, um tanto canhestra, pois estava velha, para o colo escarlate e cintilante.

— Ah, Sheba! Diga alô ao seu velho amigo Ralph, que você costumava preferir a mim.

Os satânicos olhos amarelos olharam com altivez para o Arcebispo Ralph e fecharam-se. Os dois homens puseram-se a rir.

Drogheda possuía um aparelho de rádio. O progresso chegara finalmente a Gillanbone na forma de uma estação de rádio da Australian Broadcasting Commission, e assim surgia alguma coisa para rivalizar com a linha telefônica como entretenimento de massa. O aparelho propriamente dito era um objeto feio, metido numa caixa de nogueira e colocado sobre um armariozinho encantador na sala de estar, ficando as baterias de automóvel, que eram a sua fonte de energia, escondidas dentro do armário.

Todas as manhãs, a Sra. Smith, Fee e Meggie ligavam-no para ouvir as notícias do distrito de Gillanbone e a previsão do tempo, e todas as noites Fee e Meggie o ligavam para ouvir as notícias nacionais da ABC. Como era estranho ver-se instantaneamente em contato com o que ia lá fora; ouvir falar em inundações, incêndios, chuvas em toda parte do país, numa Europa intranqüila, na política australiana, sem a ajuda de Bluey Williams e dos seus jornais velhos.

Quando o noticiário nacional de sexta-feira, dia primeiro de setembro, anunciou que Hitler invadira a Polônia, somente Fee e Meggie estavam em casa para ouvi-lo, e nenhuma das duas lhe prestou atenção. Durante meses houvera especulações nesse sentido; além disso, a Europa ficava a meio mundo de distância. Nenhuma relação com Drogheda, que era o centro do universo. Mas no domingo, 3 de setembro, todos os homens tinham vindo dos pastos para ouvir o Padre Watty Thomas dizer missa, e estavam interessados na Europa. Nem Fee nem Meggie pensaram em contar-lhe as notícias de sexta-feira, e Padre Watty, que o poderia ter feito, saiu apressado para Narrengang. Como sempre, o rádio estava sintonizado, naquela noite, no noticiário nacional. Mas em vez de entonação britânica e decidida do locutor, ouviu-se a voz polida e indisfarçavelmente australiana do Primeiro-Ministro Robert Gordon Mensies.

”Concidadãos australianos. Tenho o melancólico dever de informá-los oficialmente de que, em conseqüência da invasão da Polônia pela Alemanha, a Grã-Bretanha declarou guerra a esse país e, em resultado disso, a Austrália também está em guerra...

«Pode-se presumir que a ambição de Hitler não é unir todo o povo alemão sob um governo só, mas colocar sob esse governo tantos países quantos puder sujeitar pela força. A continuar esse estado de coisas, não poderá haver segurança para a Europa nem paz para o mundo... Não haja dúvida de que, onde estiver a Grã-Bretanha, lá estarão os povos de todo o mundo britânico...

”Nossa capacidade de resistir, bem como a da Mãe Pátria, será fortalecida se conservarmos nossa produção, se continuarmos com nossos entretenimentos e negócios, se mantivermos os atuais níveis de emprego e, com tudo isso, a nossa força. Sei que, apesar das emoções que nos invadem, a Austrália está pronta para ir até o fim.

”Conceda Deus, em Sua misericórdia e compaixão, que o mundo se liberte logo dessa agonia.”

Houve um longo silêncio na sala de estar, interrompido pelos tons megafônicos de um discurso em ondas curtas de Neville Chamberlain dirigido ao povo britânico; Fee e Meggie olharam para os seus homens.

— Se contarmos Frank, somos seis — disse Bob no meio do silêncio. — Todos nós, exceto Frank, trabalhamos na terra, o que quer dizer que não nos deixarão servir. Dos nossos pastores atuais, calculo que seis queiram ir e dois queiram ficar.

— Eu quero ir — disse Jack com os olhos brilhantes.

— Eu também — disse Hughie, sôfrego.

— E nós também — disse Jims, em seu nome e no do silencioso Patsy. Mas todos olharam para Bob, que era o patrão.

— Temos de ser sensatos — tornou ele. — A lã é artigo de primeira necessidade numa guerra, e não serve apenas para roupas. Usa-se também no acondicionamento de munições e de explosivos e para uma porção de coisas estranhas, que nem imaginamos. Além disso, temos gado de corte, que fornece carne, e as ovelhas e carneiros velhos, que dão peles, cola, sebo, lanolina... todos artigos de primeira necessidade em tempo de guerra.

”Por isso não podemos sair e abandonar Drogheda à própria sorte, seja o que for que desejemos fazer. com uma guerra em andamento já será dificílimo substituir os pastores que perdermos. A seca chegou ao terceiro ano, nós já começamos a cortar o fato, e os coelhos estão nos deixando loucos. Por enquanto, nosso lugar é aqui em Drogheda; menos emocionante talvez do que entrar em ação, mas igualmente necessário.”

Os rostos masculinos esmoreceram, os femininos se iluminaram.

— E se isso durar mais do que o velho Bob Ferro-Gusa acha que vai durar? — Perguntou Hughie, dando ao Primeiro Ministro o seu apelido nacional.

Bob pensou intensamente e o rosto marcado pelas intempéries encheu-se de rugas.

— Se as coisas piorarem e continuarem por muito tempo, calculo que, enquanto tivermos dois pastores, poderemos poupar dois Clearys, mas só se Meggie estiver disposta a voltar ao trabalho e incumbir-se dos pastos internos. Será terrivelmente difícil e, numa época boa, seria totalmente impossível, mas, com esta seca, acredito que cinco homens e Meggie, trabalhando sete dias por semana, darão conta de Drogheda. Entretanto, isso é pedir muito a Meggie, que já tem dois filhos pequenos.

— Se tiver de ser feito, Bob, terá de ser feito — disse Meggie. — A Sra. Smith não se incomodará de fazer a parte dela tomando conta de Justine e de Dane. Quando você disser que sou necessária para manter Drogheda em plena produção, passarei a me encarregar dos pastos internos.

— Então somos nós dois os que podem ser poupados — disse Jims, sorrindo.

— Não, somos Hughie e eu — atalhou Jack, depressa.

— Pensando bem, devem ser Jims e Patsy — disse Bob lentamente. — São os mais moços e menos experientes como pastores, ao passo que, como soldados, seremos todos igualmente inexperientes. Mas vocês agora só têm dezesseis anos, rapazes.

— Quando as coisas piorarem, teremos dezessete — interveio Jims. — Parecemos mais velhos do que somos, de modo que não nos será difícil alistar-nos se levarmos uma carta sua com o aval de Harry Gough.

— Bem, por enquanto ninguém vai a parte alguma. Vamos ver se conseguimos aumentar a produção de Drogheda, apesar da seca e dos coelhos.

Saindo da sala em silêncio, Meggie subiu ao quarto das crianças. Dane e Justine estavam dormindo, cada qual num berço pintado de branco. Ela passou pela filha e parou ao lado do filho, contemplando-o por um longo momento.

— Graças a Deus você é apenas um bebê — disse ela.

Passou-se ainda quase um ano antes que a guerra invadisse o pequeno universo de Drogheda, um ano durante oqual os pastores, um por um, deixaram a fazenda, os coelhos continuaram a multiplicar-se e Bob lutou com denodo para que os livros mostrassem resultados dignos de um esforço de guerra. Mas, no princípio de junho de 1940, chegaram as notícias de que a Força Expedicionária Britânica evacuara o continente europeu em Dunquerque; voluntários para a Segunda Força Imperial Australiana apareceram aos montes nos centros de recrutamento e, entre eles, Jims e Patsy.

Quatro anos percorrendo os pastos de baixo para cima e de cima para baixo, com chuva e com sol, haviam tirado o aspecto juvenil dos rostos e dos corpos dos gêmeos, substituindo-o pela calma sem idade das rugas nos cantos dos olhos e das linhas que desciam do nariz à boca. Eles apresentaram suas credenciais e foram aceitos sem comentários. Os homens do interior eram populares. Costumavam atirar bem, conheciam o valor da obediência e eram rijos.

Jims e Patsy tinham-se alistado em Dubbo, mas o acampamento seria Ingleburn, nos arredores de Sydney, de modo que todos foram vê-los partir no noturno da correspondência. Cormac Carmichael, o filho mais moço de Éden, estava no mesmo trem pela mesma razão, e destinava-se ao mesmo acampamento. As duas famílias instalaram os seus meninos num compartimento de primeira classe por ali e ficaram, sem jeito, morrendo de vontade de chorar, de beijar e de ter algo quente para lembrar, mas contidos pela peculiar aversão britânica à expansividade. A grande locomotiva C-36 a vapor mugiu tristemente e o chefe da estação principiou a soprar no seu apito.

Meggie inclinou-se para beijar os irmãos no rosto, contrafeita, depois fez o mesmo com Cormac, parecidíssimo com o irmão mais velho, Connor; Bob, Jack e Hughie apertaram três mãos jovens diferentes; chorando, a Sra. Smith foi a única que deu os beijos e abraços que todos estavam loucos para dar. Éden Carmichael, a esposa e a filha ainda bonitona, embora já começasse a envelhecer, passaram pelas mesmas formalidades. Depois todos se viram fora da plataforma de Gilly, quando o trem deu os primeiros arrancos, os pára-choques dos carros bateram uns nos outros e a composição iniciou sua marcha.

— Até breve, até breve! — diziam todos, agitando grandes lenços brancos, até que o trem se converteu num rastro de fumaça na distância bruxuleante do poente.

Juntos, como haviam solicitado, Jims e Patsy foram incluídos na crua e semitreinada Nona Divisão Australiana e embarcados para o Egito no princípio de 1941, a tempo de participarem da debandada desordenada de Bengazi. O recém-chegado General Erwin Rommel ajuntara seu peso formidável à ponta da gangorra em que se achava o Eixo e encetara a primeira inversão de direção nas grandes e cíclicas investidas para um lado e para outro da África do Norte. E, enquanto o resto das forças britânicas fugia ignominiosamente à frente do novo Afrika Korps de volta ao Egito, a Nona Divisão Australiana foi incumbida de ocupar e defender Tobruque, posto avançado no território ocupado pelo Eixo. A única coisa que tornava viável o plano era o fato de ser ainda a cidade acessível por mar e poder receber suprimentos enquanto os navios britânicos pudessem mover-se no Mediterrâneo. Os Ratos de Tobruque ali ficaram escondidos em suas tocas durante oito meses, e viram Rommel atirar periodicamente contra eles tudo o que tinha nas mãos, sem conseguir desalojá-los.

— Vocês sabem por que estão aqui? — perguntou o soldado Col Stuart, lambendo o papel do cigarro e enrolando-o com displicência.

O sargento Bob Malloy empurrou para cima o seu chapéu Digger a fim de poder ver o homem que formulara a pergunta.

— Não, não sei — disse, sorrindo; era uma pergunta que se fazia amiúde.

— Bem, é melhor do que limpar perneiras na maldita cadeia — disse o soldado Jims Cleary, puxando um pouco para baixo os shorts do irmão gêmeo de modo que pudesse descansar a cabeça confortavelmente na barriga macia e quente.

— É, mas na cadeia a gente não ficava levando tiros — objetou Col, atirando o palito apagado de fósforo num lagarto que estava tomando sol.

— De uma coisa estou certo, companheiro — disse Bob, recolocando o chapéu na posição anterior, para proteger os olhos do sol. — Prefiro levar um tiro a morrer de tédio.

Eles estavam confortavelmente instalados num abrigo de trincheira, seco e forrado de cascalhos, defronte do campo minado e das cercas de arame farpado que cortavam o canto sudoeste do perímetro; do outro lado, Rommel se agarrava, obstinado, ao seu único pedaço do território de Tobruque. Uma grande metralhadora Browning, calibre 50, partilhava do abrigo com eles, com as suas caixas de munição bem-arranjadas ao lado, mas ninguém parecia muito enérgico nem muito interessado numa possibilidade de ataque. Os fuzis estavam encostados na parede e as baionetas cintilavam ao sol brilhante de Tobruque. Moscas zumbiam em toda parte, mas, para os quatro, camponeses australianos, Tobruque e o Norte da África não reservavam surpresas em matéria de calor, poeira ou moscas.

— Ainda bem que vocês são gêmeos, Jims — disse Col, atirando pedras no lagarto, que não parecia disposto a arredar pé. — Até parecem dois baiacus amarrados um no outro.

— Você está é com inveja — sorriu Jims, batendo na barriga do irmão. — Patsy é o melhor travesseiro de Tobruque.

— Sim, está muito bem para você, mas o que diz o pobre Patsy? Vamos, Harpo, diga qualquer coisa — provocou Bob.

Os dentes brancos de Patsy apareceram num sorriso, mas, como sempre, ele permaneceu em silêncio. Todos haviam tentado fazê-lo falar, mas ninguém conseguira arrancar-lhe mais do que um»sim ou um não essenciais; em conseqüência disso, quase toda a gente o chamava de Harpo, por causa do irmão Marx que também não falava.

— Vocês souberam da novidade? — perguntou Col de repente.

— Qual?

— O pessoal da Sétima foi liquidado pelos oitenta e oito em Halfaia. O único canhão no deserto suficientemente grande para acabar com um australiano. Fura aqueles tanques enormes como uma criança enfiando o dedo no bolo.

— Essa, não! Conta outra! — disse Bob, cético. — Sou sargento e não soube de nada. Você, simples soldado, sabe de tudo? Pois ouça, companheiro, os alemães ainda não têm nada com força suficiente para liquidar uma brigada australiana.

— Eu estava na tenda de Morshead, aonde fui levar uma mensagem do comandante, quando ouvi a notícia pelo rádio. É verdade — sustentou Col.

Durante algum tempo ninguém falou; cada habitante de um posto avançado sitiado como Tobruque precisava acreditar implicitamente que o seu lado tinha força militar bastante para tirá-lo dali. A notícia de Col não foi muito bem recebida, sobretudo porque nenhum soldado em Tobruque fazia pouco de Rommel. Eles haviam resistido aos seus esforços para expulsá-los por acreditar tacitamente que o único combatente capaz de ombrear com o australiano era um gurca e, se a fé são nove décimos da força, eles se haviam, sem dúvida, revelado formidáveis.

— Malditos ingleses — disse Jims. — O que precisamos na África do Norte é de mais australianos.

O coro de assentimentos foi interrompido por uma explosão na orla do abrigo, que converteu o lagarto em pó e fez os quatro soldados mergulharem à procura da metralhadora e dos fuzis.

— Granada italiana vagabunda, é só barulho — disse Bob com um suspiro de alívio. — Se fosse uma especial de Hitler, a esta hora estaríamos tocando harpa, para alegria de Patsy, não é mesmo, Harpo?

No início da Operação Cruzada, a Nona Divisão Australiana foi evacuada e levada por mar ao Cairo, depois de um assédio cansativo e sangrento que parecia não ter realizado coisa alguma.

Entretanto, enquanto a Nona estivera enfiada nos buracos de Tobruque, as fileiras das tropas britânicas no Norte da África, que não paravam de engrossar, se haviam transformado no Oitavo Exército Britânico e seu novo comandante era o General Bernard Law Montgomery.

Fee usava um brochezinho de prata em que se via o emblema do sol nascente da AIF; presa a duas correntes debaixo dela, balançava uma barra de prata, sobre a qual luziam duas estrelas de ouro, uma para cada filho combatente. O broche dizia a todas as pessoas com as quais se encontrava que ela também estava contribuindo para o esforço de guerra do país. Como nem o marido nem o filho eram soldados, Meggie não tinha o direito de usar um broche igual. Chegara-lhe uma carta de Luke mformando-a de que continuaria cortando cana; ele achava que ela gostaria de sabêlo, para o caso de vir a preocupar-se com a hipótese do seu alistamento. Não havia a menor indicação de que ele se lembrasse de uma única palavra do que ela lhe dissera, naquela manhã, na hospedaria de Ingham. Rindo-se com expressão de cansaço e sacudindo a cabeça, ela deixou cair a carta no cesto de papéis de Fee, perguntando a si mesma, ao fazê-lo, se Fee se preocupava com os filhos que tinham pegado em armas. O que pensava ela realmente sobre a guerra? Mas Fee nunca dizia uma palavra, embora usasse o broche o dia inteiro, todos os dias.

Às vezes chegava uma carta do Egito, que se esfrangalhava quando era aberta sobre a mesa, porque as tesouras do censor a haviam enchido de buraquinhos retangulares bem-feitinhos, onde antes figuravam os nomes de lugares ou de regimentos. A leitura das cartas consistia, em grande parte, no ajuntar pedacinhos tirados virtualmente do nada, mas servia a um propósito que eclipsava todos os outros: enquanto chegassem as cartas, os meninos estavam vivos.

Não choveu. Dir-se-ia que os elementos divinos conspirassem para frustrar a esperança, pois 1941 foi o quinto ano de uma seca desastrosa. Meggie, Bob, Jack, Hughie e Fee estavam desesperados. A conta de Drogheda no banco era grande e daria para comprar toda a forragem necessária à conservação dos carneiros, mas estes, em sua maioria, não queriam comer. Cada rebanho tinha um líder natural, o Judas; só quando se conseguia persuadir o Judas a comer é que se podia ter alguma esperança de que os outros o imitassem, mas, às vezes, nem mesmo a vista de um Judas mastigando bastava para incutir no resto do rebanho o desejo de emulá-lo.

De modo que Drogheda, malgrado seu, também estava tendo a sua quota de sangria. Todo o capim se fora, o solo era agora uma terra inculta, escura e rachada, aliviada apenas por grupos cinzentos e castanhos de árvores. Além das espingardas, eles agora levavam facas para os pastos; e, quando viam um animal caído, alguém lhe cortava o pescoço a fim de poupar-lhe uma morte prolongada, depois que os corvos lhe arrancassem os olhos. Bob trouxe mais gado para a fazenda e estabulou-o, para manter o esforço de guerra de Drogheda. Não se poderia nem pensar em lucro com o preço da forragem, pois as regiões agrárias mais próximas estavam sofrendo tanto com a falta de chuvas quanto as regiões pastoris mais distantes. O rendimento das colheitas era baixíssimo. Chegara, contudo, ordem de Roma para que eles fizessem todo o possível, sem atentar para o custo.

O que Meggie mais lamentava era o tempo que perdia trabalhando nos pastos. Drogheda conseguira reter apenas um dos seus pastores e, por ora, não se tinham feito substituições; a grande escassez da Austrália sempre fora a mão-de-obra. Por isso, a menos que Bob lhe notasse a irritabilidade e a fadiga e lhe desse um domingo de folga, Meggie mourejava nos pastos sete dias por semana. Entretanto, para poder dar-lhe uma folga, Bob precisava trabalhar dobrado, de modo que ela procurava não demonstrar sua exaustão. Nunca lhe ocorreu que poderia simplesmente recusar-se ao trabalho de pastor, apresentando os filhos como desculpa. Eles estavam sendo muito bem tratados e Bob precisava mais dela do que eles. Faltava-lhe a intuição para compreender que seus bebês também tinham necessidade dela, e supunha que o seu desejo de estar com ela era puro egoísmo, visto que eles se achavam tão bem-cuidados por mãos amorosas e familiares. O seu desejo era egoísta, dizia entre si. Nem possuía ela a espécie de confiança capaz de persuadi-la de que, aos olhos dos filhos, ela era tão importante quanto eles o eram para ela. Por isso se esfalfava nos pastos e, por semanas a fio, só via os filhos depois que estes, deitados, já se preparavam para dormir.

Todas as vezes que Meggie olhava para Dane, seu coração pulava. Era uma linda criança, até os estranhos nas ruas de Gilly o notavam quando Fee o levava à cidade. Qom uma expressão sempre risonha, possuía uma natureza curiosa, misto de tranqüilidade e felicidade profunda e segura, parecia ter crescido, assumido sua identidade e adquirido o conhecimento de si mesmo que a nenhum dos filhos da dor é dado ter, pois raro se enganava em relação às pessoas ou às coisas, e nada o exasperava nem assombrava. Para a mãe, sua semelhança com Ralph era, às vezes, assustadora, mas, aparentemente, ninguém mais a notara. Fazia muito tempo que Ralph saíra de Gilly e, embora Dane lhe possuísse os traços e a constituição, uma grande diferença tendia a confundir a semelhança. Seu cabelo não era preto como o de Ralph, mas de um ouro pálido, e não da cor do trigo nem do poente, mas da cor do capim de Drogheda, isto é, ouro com tons prateados e bege.

Desde o momento em que pôs os olhos nele, Justine passou a adorar o irmãozinho. Nada era bom demais para Dane, nada era muito difícil de ir buscar ou de trazer para ele. Depois que o menino principiou a andar, ela nunca mais saiu do seu lado, o que deixou Meggie muito agradecida, pois já a preocupava a idade da Sra Smith e das criadas, que estavam ficando velhinhas e não podiam manter uma estreita vigilância sobre o garotinho. Num dos seus raros domingos de folga, Meggie pôs a filha no colo e falou-lhe seriamente sobre a tarefa de cuidar de Dane.

— Não posso ficar aqui na sede para vigiá-lo — disse ela —, de modo que tudo depende de você, Justine. Ele é o seu irmãozinho e você precisa estar sempre atenta, zelando para que ele não corra perigo e não se meta em encrencas.

Os olhos claros, muito inteligentes, nada tinham da atenção instável típica das crianças de quatro anos. Justine fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— Não se preocupe, mamãe — disse, enérgica — Sempre tomarei conta dele para você.

— Eu mesma queria poder fazê-lo — suspirou Meggie.

— Eu não — tornou a filha, presunçosa — Gosto de ter Dane só para mim. Por isso, não se preocupe. Não deixarei que nada lhe aconteça.

Meggie não se sentiu confortada com a afirmação, por mais tranqüilizante que fosse. Aquela coisinha precoce ia roubar-lhe o filho e não havia meio de evitá-lo. Ela voltaria aos pastos, enquanto Justine protegeria Dane. Despojada pela própria filha, que era um monstro. A quem, diabo, havia ela puxado! Não fora a Luke, não fora a ela, não fora a Fee!

Pelo menos nesses dias ela já sorria e já ria. Só depois dos quatro anos começou a achar graça em algumas coisas, o que deveu provavelmente a Dane, que se ria desde criancinha. Vendo-o rir, ela também se pôs a rir. Os filhos de Meggie viviam aprendendo um com o outro. Mas era mortificante saber que poderiam passar perfeitamente sem a mãe. Quando este maldito conflito terminar, pensou Meggie, ele estará velho demais para sentir o que deveria sentir por mim. Sempre se entenderá melhor com Justine. Por que será que todas as vezes em que penso ter conseguido o controle da minha vida, acontece alguma coisa? Eu não pedi esta guerra nem esta seca, mas as duas acabaram chegando para mim.

Talvez fosse uma boa coisa o período difícil por que Drogheda estava passando. Se tudo tivesse sido mais fácil, Jack e Hughie já se teriam alistado há muito tempo. Mas do jeito como iam as coisas, não lhes restava outra alternativa senão lutar e salvar o que pudessem da seca, que viria a chamar-se a Grande Seca. Mais de dois milhões e meio de quilômetros quadrados de terra de cultura e de pastagens tinham sido afetados, desde Victoria no sul, até as invernadas de Mitchell, onde o capim atingia a cintura de um homem, no Território do Norte.

Mas a guerra rivalizava com a seca em termos de despertar a atenção. com os gêmeos na África do Norte, a gente da fazenda seguia, com dolorosa ansiedade, a luta que ora avançava, ora recuava na Líbia. Descendentes de operários, ardentes apoiadores do trabalhismo, todos detestavam o governo atual, liberal no nome, porém conservador por natureza. Quando, em agosto de 1941, Robert Gordon Menzies renunciou ao cargo, reconhecendo que não poderia governar, eles exultaram, e quando, no dia 3 de outubro, o líder trabalhista John Curtin recebeu convite para formar um governo, essa notícia foi a melhor que Drogheda ouviu em muitos anos.

Durante os anos de 1940 a 1941 crescera a intranqüilidade a respeito do Japão, principalmente depois que Roosevelt e Churchill lhe cortaram os fornecimentos de petróleo. A Europa ficava muito longe, e Hitler teria de fazer seus exércitos marcharem dezenove mil e tantos quilômetros para invadir a Austrália, mas o Japão era a Ásia, parte do Perigo Amarelo colocado como um pêndulo sobre o poço rico, vazio e subpovoado da Austrália. Por isso mesmo os australianos não se surpreenderam quando os japoneses atacaram PearTTlarbor; estavam simplesmente esperando que isso acontecesse, em algum lugar. De repente, a guerra surgia muito próxima e poderia até estender-se ao quintal deles. Não havia grandes oceanos entre a Austrália e o Japão, somente grandes ilhas e pequenos mares.

No dia de Natal de 1941, Hong Kongcaiu; mas os japoneses jamais conseguiriam tomar Singapura, diziam todos, aliviados. Depois chegaram as notícias dos desembarques nipônicos na Malaia e nas Filipinas; a grande base naval no extremo da península malaia mantinha seus imensos canhões apontados para o mar e sua frota de prontidão. Mas, no dia 8 de fevereiro de 1942, os japoneses cruzaram o acanhado Estreito de Johore, desembarcaram no lado setentrional da Ilha de Singapura e atingiram a cidade por trás dos canhões impotentes. Singapura caiu sem lutar.

E depois a grande notícia! Todas as tropas australianas que se achavam na África do Norte voltariam para casa. O Primeiro Ministro Curtin enfrentou, impávido, as ondas de cólera de Churchill, insistindo na primazia dos direitos da Austrália sobre os australianos. A Sexta e a Sétima Divisões embarcaram depressa em Alexandria; a Nona, que ainda se recuperava no Cairo do assédio de Tobruque, embarcaria assim que fosse possível arranjar mais navios. Fee sorriu, Meggie delirou de alegria. Jims e Patsy voltariam para casa.

Mas não voltaram. Enquanto a Nona esperava seus navios-transporte de tropas, a gangorra tornou a virar; o Oitavo Exército voltou a bater em retirada desde Bengazi. O Primeiro-ministro Churchill fez uma barganha com o Primeiro-ministro Curtin. A Nona Divisão Australiana permaneceria no Norte da África e uma divisão norte-americana embarcaria para defender a Austrália. Pobres soldados, mandados de um lado para outro por decisões tomadas em salas que nem sequer pertenciam aos próprios países. Toma lá, dá cá.

Mas foi um choque duro para a Austrália descobrir que a Mãe Pátria estava expulsando do ninho todos os seus pintinhos do Extremo Oriente, e até um peruzinho gordo e promissor como a Austrália.

Na noite de 23 de outubro de 1942, o deserto estava muito sossegado. Patsy mexeu-se de leve, encontrou o irmão no escuro e encostou-se, como um bebê, bem na curva do seu ombro. O braço de Jims enlaçou-o e eles ficaram sentados, juntos, num silêncio agradável. O sargento Bob Malloy chamou a atenção do soldado Col Stuart e sorriu.

— Dois molóides — disse ele.

— Vá para o inferno, você também — disse Jims.

— Vamos, Harpo, diga alguma coisa — murmurou Col.

Patsy dirigiu-lhe um sorriso angélico visto apenas pela metade no escuro, abriu a boca e produziu uma excelente imitação da gaita de Harpo Marx. Toda a gente numa distância de várias jardas assobiou, intimando-o a calar-se; estava em vigor uma ordem de silêncio absoluto.

— Cristo, esta espera está me matando — suspirou Bob. Patsy deu um berro:

— É o silêncio que me mata!

— Seu palhaço de uma figa, quem vai te matar sou eu! — rosnou Col, rouco, estendendo a mão para pegar a baioneta.

— Pelo amor de Deus, fiquem quietos! — chegou o murmúrio do capitão. — Quem é o idiota que está berrando?

— Patsy — disse, em coro, meia dúzia de vozes.

O fragor das gargalhadas pairou, tranqüilizante, sobre os campos de minas e morreu numa torrente de palavrões pronunciados em voz baixa pelo capitão. O sargento Mal olhou para o relógio; o ponteiro dos segundos chegava rapidamente a 9:40 da noite.

Oitocentos e oitenta e dois canhões e obuses britânicos falaram juntos. O céu vacilou, o solo levantou-se, expandiu-se, não pôde assentar, pois a barragem continuava sem diminuir um segundo o volume do ruído enlouquecedor. Não adiantava enfiar o dedo no ouvido; o estrondo apocalíptico subia pela terra e chegava ao cérebro através dos ossos. Em suas trincheiras, os soldados da Nona só puderam imaginar o efeito produzido nas linhas de frente de Rommel. Geralmente era possível distinguir o tipo e o tamanho de uma peça de artilharia da outra, mas, naquela noite, suas gargantas de ferro faziam um coro uníssono e retumbavam à proporção que os dois minutos passavam.

Não se iluminou o deserto com a luz do dia, mas com o fogo do próprio sol; vasta nuvem de pó encapelada ergueu-se como espiral de fumaça por centenas de metros, luzindo com os clarões das bombas e minas que explodiam, das concentrações maciças de caixotes de munições que detonavam, lançando chamas ondulantes, das cargas que se incendiavam. Tudo o que Montgomery possuía estava apontado para os campos de minas — canhões, obuses, morteiros. E tudo o que Montgomery possuía era arremessado tão depressa quanto as turmas de artilheiros, encharcadas de suor, conseguiam atirar, escravos a encher o bucho de suas armas como pequenos pássaros frenéticos que alimentassem um cuco enorme; o revestimento externo dos canhões se aquecia, o tempo que mediava entre o coice e o reabastecimento era cada vez menor, à medida que os artilheiros se empolgavam com o próprio ímpeto. Frenéticos, enlouquecidos, dançavam uma dança estereotipada manejando seus canhões de campanha.

Era belo, maravilhoso — o ponto alto da vida de um artilheiro, que ele vivia e revivia em sonhos, acordado ou dormindo, pelo resto de seus dias banais e tediosos. E ansiava por ter de volta aqueles quinze minutos com os canhões de Montgomery.

Silêncio. Silêncio que cala, absoluto, a quebrar-se em ondas de encontro às membranas distendidas do tímpano; silêncio insuportável. Cinco minutos para as dez, exatamente. A Nona levantou-se e saiu das trincheiras, na terra de ninguém, fixando baionetas, tateando à procura de pentes de balas, soltando travas de segurança, inspecionando cantis, rações de reserva, relógios, capacetes de aço, verificando se os cordões das botas estavam bem amarrados, onde se localizavam os portadores de metralhadoras. Era fácil ver, ao clarão medonho das rajadas e da areia incandescente e desfeita em vidro, e a mortalha de poeira, que se erguia entre o inimigo e eles, dava-lhes segurança. Por enquanto. À beira do campo de minas estacaram, esperando.

Dez horas da noite, em ponto. O sargento Malloy pôs o apito na boca e emitiu silvo estrídulo, que percorreu as fileiras da companhia; o capitão gritou a ordem avançar. Numa frente de mais de três quilômetros, a Nona penetrou nos campos minas e os canhões recomeçaram a mugir atrás dela. Os soldados enxergam o caminho como se fosse dia claro, pois os obuses, percorrendo uma trajetória menor, estouravam poucos metros adiante deles. De três em três minutos a artilharia acrescentava cem metros à sua mira; e os soldados transpunham aqueles cem metros rezando para encontrar apenas minas antitanques, ou para que as minas-S, isto é, as destinadas a eles já tivessem explodido graças aos canhões de Montgomery. Ainda havia alemães e italianos no campo, postos avançados de metralhadoras, de artilharia leve de cinqüenta milímetros, de morteiros. Às vezes, um homem pisava uma mina-S que ainda não explodira e via-a saltar da areia antes de ser cortado ao meio por ela.

Não havia tempo para pensar, não havia tempo para fazer coisa alguma senão correr em sintonia com os canhões, cem metros de três em três minutos, rezando. Barulho, luz, poeira, fumaça, terror que diluía as tripas. Campos de mina sem fim, quatro, cinco quilômetros minados até o outro lado, sem poder voltar. Às vezes, numa pausa rapidíssima entre as barragens, chegava pelo ar escaldante e cheio de areia o guincho agudo, distante e fantástico de uma gaita de foles; à esquerda da Nona Divisão Australiana, os escoceses da Cinqüenta e Cinco avançavam pelos campos de minas com um tocador de gaita a guiar cada comandante de companhia. Para o escocês, o gemido da gaita de foles conduzindo-o à batalha era o mais doce atrativo do mundo e, para o australiano, um som amistoso e confortante. Mas, em compensação, deixava de cabelo em pé os alemães e os italianos.

A batalha continuou por doze dias, e doze dias são uma batalha muito longa. A princípio, a Nona teve sorte; suas baixas foram relativamente pequenas através dos campos de minas nos primeiros dias de avanço continuado pelo território de Rommel.

— Sabem que prefiro ser eu mesmo e levar um tiro a bancar o sapador? — disse Col Stuart inclinado sobre a pá.

— Não sei, não, companheiro; acho que eles ficam com a melhor parte — resmungou o sargento. — Esperam atrás das linhas que tenhamos feito todo o serviço, e só então saem engatinhando com os seus removedores de minas a fim de abrir caminho para os malditos tanques.

— A culpa não é dos tanques, Bob, é do cara que os distribui — disse Jims, batendo de leve com o dorso da pá na terra da parte superior da nova trincheira. — Cristo, como eu gostaria que eles decidissem nos deixar no mesmo lugar durante algum tempo! Já cavei mais terra nos últimos cinco dias do que um maldito tamanduá.

— Continue cavando, companheiro — disse Bob, indiferente.

— Olhe, vejam! — gritou Col, apontando para o céu. Dezoito aviões leves de bombardeio da RAF desciam em perfeita formação de vôo, deixando cair suas bombas entre os alemães e italianos com precisão mortal.

— Que beleza! — exclamou o sargento bom Malloy, cujo pescoço comprido lhe inclinava a cabeça na direção do céu.

Três dias depois, estava morto; um enorme pedaço de sbrapnel arrancou-lhe o braço e metade do lado do corpo num novo avanço, mas ninguém teve tempo de parar a não ser para arrancar o apito do que lhe sobrara da boca. Os homens agora caíam como moscas, cansados demais para manter o nível inicial de vigilância e presteza; mas aferravam-se ao miserável solo nu que conquistavam, a respeito da acirrada defesa da mata de um exército magnífico. Aquilo se transformara para eles apenas numa recusa taciturna e obstinada em ser derrotados.

A Nona deteve a Graf von Sponeck e Lungerhausen, ao mesmo tempo que os tanques irrompiam ao sul. Finalmente, Rommel foi derrotado. No dia 8 de novembro ele tentava reorganizar-se além da fronteira egípcia, e Montgomery ficou senhor de todo o campo. A Segunda Alamein representou uma vitória tática importantíssima; Rommel fora obrigado a deixar para trás um sem-número de tanques, canhões e equipamento. A Operação Tocha podia encetar com maior segurança sua investida no rumo nascente, a partir de Marrocos e da Argélia. Ainda havia muito espírito de luta na Raposa do Deserto, mas boa parte da sua cauda ficara no solo de El Alamein. Travara-se a maior e mais decisiva batalha do teatro de operações da África do Norte, e seu vencedor era o Marechal-de-Campo Visconde Montgomery de Alamein.

A Segunda Alamein foi o canto do cisne da Nona Divisão Australiana no Norte da África. Seus componentes voltariam finalmente para casa a fim de lutar com os japoneses na Nova Guiné. Desde março de 1941 eles praticamente não se haviam afastado da linha de frente; e, tendo chegado mal treinados e mal equipados, voltavam agora para casa com uma reputação só excedida pela da Quarta Divisão Indiana. E com a Nona voltaram Jims e Patsy, sãos e salvos.

É claro que obtiveram licença para ir a Drogheda. Bob foi de automóvel a Gilly a fim de apanhá-los quando chegassem pelo trem de Goondiwindi, pois a Nona tinha sua base em Brisbane e partiria para a Nova Guiné depois do treinamento especial de selva. Quando o Rolls tomou a estrada que levava à casa-grande, todas as mulheres estavam em pé no gramado esperando. Jack e Hughie um pouco mais atrás, mas igualmente ansiosos por ver os irmãos mais moços. Todos os carneiros que ainda estivessem vivos em Drogheda poderiam cair mortos, se fosse o caso, mas aquele era um feriado.

Mesmo depois que o carro parou e eles desceram, ninguém se moveu. Os rapazes estavam tão diferentes! Dois anos passados no deserto lhes haviam estragado os uniformes originais; vestiam um novo estampado verde-escuro e pareciam dois estranhos. Em primeiro lugar, dir-se-ia que tivessem crescido muitos centímetros, o que não deixava de ser verdade; os últimos dois anos do seu desenvolvimento ocorrera longe de Drogheda, e os tornara mais altos que os irmãos mais velhos. Já não eram meninos eram homens, embora não do tipo de Bob, Jack e Hughie; as provações, a euforia das batalhas e a morte violenta tinham feito deles algo que Drogheda jamais poderia fazer. O sol norte-africano os secara e escurecera, deixando-lhes a pele da cor de um mogno róseo, e lhes arrancara, uma a uma, todas as camadas da infância. Sim, era possível acreditar que aqueles dois homens, de uniformes simples e chapéus desabados, que ostentavam, acima da orelha esquerda, a insígnia do sol nascente da AIF, haviam matado seus semelhantes. Isso estava nos olhos deles, azuis como os de Paddy, mas sem a sua brandura.

— Meus meninos, meus meninos! — gritou a Sra. Smith, atirando-se a eles, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Não, não importava o que tinham feito, o quanto haviam mudado; ainda eram os seus bebezinhos, que ela lavara, trocara, alimentara, cujas lágrimas secara, cujas feridas beijara. Só que as feridas que traziam agora lhe desafiavam a capacidade de curar.

Depois todos os cercaram, deixando de lado a reserva britânica, rindo, chorando, e até a pobre Fee lhes batia nas costas, tentando sorrir. Depois da Sra. Smith havia Meggie para beijar, Minnie para beijar, Cat para beijar, Mamãe para abraçar, muito sem jeito, Jack e Hughie para dar a mão, com a voz entalada na garganta. A gente de Drogheda nunca saberia o que era voltar para casa, nunca saberia o quanto esse momento fora desejado, o quanto fora temido.

E como comiam os gêmeos! A xepa do exército não era assim, diziam, a rir. Lindos bolos róseos e brancos, lamingtons mergulhados em chocolate e enrolados em coco ralado, pudins fumegantes, refrescos gelados de maracujá e creme feito com o leite das vacas de Drogheda. Lembrando-se dos seus estômagos de antes, a Sra. Smith persuadiu-se de que eles passariam mal durante uma semana, mas, como houvesse chá em quantidade suficiente para levar embora a comida, eles pareceram não ter dificuldade alguma com suas digestões.

— Bem diferente do pão wog, não é, Patsy?

— É.

— Que quer dizer wogl — perguntou a Sra. Smidi.

— Wog é árabe, assim como wop é italiano. Certo, Patsy?

Esquisito. Eles falavam ou, pelo menos, Jims falava, horas a fio, sobre a África do Norte: as cidades, o povo, a comida, o museu do Cairo, a vida a bordo de um navio-transporte de tropas, o acampamento de repouso. Mas, por mais perguntas que lhes fizessem, ninguém conseguia tirar deles mais do que respostas vagas e evasivas, acerca de como havia sido a luta de verdade, como haviam sido Gazala, Bengazi, Tobruque, El Alamein. Mais tarde, quando a guerra se acabou, as mulheres constatavam amiúde uma coisa: os homens que tinham estado no mais aceso das batalhas nunca abriam a boca para falar sobre elas, recusavam-se a participar de clubes e ligas de ex-combatentes, não queriam saber de instituições que perpetuassem a lembrança da guerra.

Drogheda deu uma festa em homenagem a eles. Alastair MacQueen também estava na Nona e também se achava em casa, de modo que, naturalmente, Rudna Hunish deu uma festa Os dois filhos mais moços de Dominic O’Rourke serviam na Sexta na Nova Guiné e, mesmo assim, embora não pudessem estar presentes, Dibban-Dibban também deu uma festa. Todas as propriedades do distrito que tinham um filho de uniforme fizeram questão de comemorar o regresso dos três rapazes da Nona. As mulheres e as moças não lhes davam trégua, mas os Clearys que tinham voltado heróis lhes fugiam sempre que podiam, mais amedrontados do que nos campos de batalha.

com efeito, Jims e Patsy pareciam não querer saber de mulheres; era a Bob, Jack e Hughie que se agarravam. Tarde da noite, depois que as mulheres se recolhiam, sentavam-se para conversar com os irmãos que tinham ficado para trás, abrindo-lhes seus corações doloridos e cheios de cicatrizes. E percorriam a cavalo os pastos ressequidos de Drogheda, que já ia no sétimo ano de seca, contentes por estarem à paisana.

Mesmo esfolada e torturada, a terra para eles era inefavelmente bela, os carneiros confortadores, as últimas rosas do jardim um perfume vindo do céu. E, de certo modo, sentiam a necessidade de beber de tudo aquilo em haustos tão profundos que nunca mais o esquecessem, pois a primeira partida fora descuidada; não tinham a menor idéia do que encontrariam pela frente. Mas, quando saíssem dessa vez, levariam cada momento entesourado para o poder recordar e prezar, com as rosas de Drogheda apertadas nas mochilas e umas poucas hastes de escasso capim da fazenda. Tratavam Fee com bondade e compaixão, mas Meggie, a Sra. Smith, Minnie e Cat com amor e muita ternura. Elas tinham sido suas verdadeiras mães.

O que mais deliciava Meggie era o jeito com que tratavam Dane, brincando com ele por horas e horas, levando-o nos passeios a cavalo, rindo-se com ele, fazendo-o rolar e rolando com ele pelo gramado. Justine parecia assustá-los; mas também era verdade que eles se encabulavam diante de qualquer criatura do sexo oposto que não conhecessem tão bem quanto as mulheres mais velhas de Drogheda. Além disso, a pobre Justine sentia-se furiosamente enciumada do modo com que eles monopolizavam a companhia de Dane, deixando-a sem o companheiro de brinquedos.

— É um sujeitinho e tanto, Meggie — disse Jims à irmã quando esta apareceu, um dia, na varanda; sentado numa cadeira de bambu, ele divertia-se vendo Patsy e Dane brincarem na grama.

— É uma belezinha, não é mesmo? — Meggie sorriu e foi sentar-se onde pudesse ver o irmão mais moço. A piedade enternecia seus olhos; eles também tinham sido seus bebês. — O que aconteceu, Jims? Você não pode me contar?

Ele a fitou com os olhos infelizes, que não conseguiam esconder um pesar profundo mas sacudiu a cabeça, como se não se sentisse sequer tentado a falar.

— Não, Meggie. Não é nada que eu possa contar a uma mulher.

— E depois, quando tudo acabar e você casar? Não contará nem à sua esposa?

— Nós, casarmos? Não acredito. A guerra tira tudo isso de um homem. Estávamos loucos para ir, mas estamos mais maduros agora. Se casarmos, teremos filhos, e para quê? Para vê-los crescer, para vê-los fazer o que fizemos, e ver o que vimos?

— Não, Jims, não!

O olhar dele seguiu o dela, na direção de Dane, exultante porque Patsy o segurava de cabeça para baixo.

— Não o deixe sair de Drogheda, Meggie. Nunca. Em Drogheda nada de mal poderá lhe acontecer — disse Jims.

O Arcebispo de Bricassart atravessou correndo o belo e alto corredor, sem se preocupar com os rostos espantados que se voltavam para vê-lo; irrompeu na sala do cardeal e deteve-se. Sua Eminência conversava com Monsieur Papée, embaixador do governo polonês no exílio junto à Santa Sé.

— Por caridade, Ralph! Que aconteceu?

— Aconteceu, Vittorio. Mussolini foi deposto.

— Jesus! O Santo Padre já sabe?

— Eu mesmo telefonei para Castel Gandolfo, embora o rádio deva dar a notícia dentro de um minuto. Um amigo no quartel-general alemão me avisou.

— Espero que o Santo Padre tenha as malas prontas — disse Monsieur Papée com um leve, um levíssimo prazer.

— Se o disfarçarmos de franciscano mendicante, ele talvez consiga sair, mas de outro modo não — disse o Arcebispo Ralph. — Kesselring tem a cidade inteiramente nas mãos.

— Mas ele não iria de qualquer maneira — interveio o Cardeal Vittorio. Monsieur Papée levantou-se.

— Preciso deixá-lo, Eminência. Represento um governo inimigo da Alemanha. Se Sua Santidade não está a salvo, eu o estou menos ainda. Há papéis e documentos em minha sala que preciso examinar primeiro.

Cerimonioso e preciso, diplomata até à ponta dos dedos, Monsieur Papée deixou os dois sacerdotes.

— Ele estava aqui intercedendo pelo seu povo perseguido?

— Estava. Pobre homem, preocupa-se tanto com o seu povo!

— E nós não nos preocupamos?

— É claro que sim, Ralph! Mas a situação é mais difícil do que ele supõe.

— A verdade é que não acreditam nele.

— Ralph!

— E não é isso mesmo? O Santo Padre passou seus primeiros anos em Munique e apaixonou-se pelos alemães e ainda os ama, apesar de tudo. Se se colocassem diante dos seus olhos, como prova, esses pobres corpos mirrados, ele diria que isso deve ter sido obra dos russos. E nunca dos seus caríssimos alemães, povo tão culto e tão civilizado!

— Ralph, você não é membro da Sociedade de Jesus, e só está aqui porque prestou um juramento pessoal de fidelidade ao Santo Padre. Tem o sangue quente dos seus antepassados irlandeses e normandos, mas eu lhe suplico, seja sensato! Desde setembro último temos esperado a queda do Eixo, rezando para que o Duce ficasse e nos defendesse de uma represália germânica. Adolf Hitler tem um curioso traço de contradição em sua personalidade, pois existem duas coisas que ele sabe serem suas inimigas, mas que deseja, sendo possível, preservar: o Império Britânico e a Santa Igreja Católica Romana. Mas quando se viu obrigado, fez o possível e o impossível para esmagar o Império Britânico. Você acha que ele não nos esmagará também se o forçarmos a isso? Uma palavra nossa de denúncia sobre o que está acontecendo na Polônia e ele, com certeza, nos esmagará. E que benefício acredita você que nos traria o denunciálo, meu amigo? Não temos exércitos, não temos soldados. As represálias seriam imediatas, e o Santo Padre seria mandado para Berlim, que é o que ele teme. Não se lembra dos títeres que foram papas em Avinhão há tantos séculos? Quer que o nosso papa seja um títere em Berlim?

— Sinto muito, Vittorio, mas não vejo as coisas desse jeito. Digo que precisamos denunciar Hitler, proclamar-lhe a barbárie do alto de todos os telhados! Se ele nos matar, morreremos mártires, o que seria mais eficaz ainda.

— Você não costuma ser obtuso, Ralph! Ele não nos mandaria matar. Compreende o impacto do martírio tão bem quanto nós. O Santo Padre seria mandado para Berlim e nós, para a Polônia, Ralph, Polônia. Quer morrer na Polônia de mãos mais amarradas do que agora?

O Arcebispo Ralph sentou-se, cruzou as mãos entre os joelhos, olhou com expressão de rebeldia para as pombas que voavam, douradas, ao sol poente, na direção do pombal. Aos quarenta e nove anos, um pouco mais magro, envelhecia esplendidamente, como fazia quase tudo.

— Ralph, nós somos o que somos. Homens, sim, mas apenas como consideração secundária. Antes de mais nada, somos padres.

— Não foi assim que você enumerou nossas prioridades quando voltei da Austrália, Vittorio.

— Eu estava falando em outra coisa naquela ocasião, e você sabe disso. Não banque o desentendido. Digo agora que não podemos pensar como homens. Precisamos pensar como padres, por ser esse o aspecto mais importante de nossas vidas. O que quer que possamos pensar ou querer fazer como homens, devemos fidelidade à Igreja, e a nenhum poder temporal! Nossa lealdade pertence apenas ao Santo Padre! Você fez voto de obediência, Ralph. Deseja transgredi-lo de novo? O Santo Padre é infalível em todos os assuntos que dizem respeito ao bem-estar da Igreja de Deus.

— Mas ele está errado! O seu julgamento é parcial. Todas as suas energias se concentram no combate ao comunismo. Vê a Alemanha como o maior inimigo do comunismo, o único fator real que impede a disseminação do comunismo no Ocidente. Quer que Hitler permaneça firme na sela alemã, e está satisfeito com o governo de Mussolini na Itália.

— Acredite-me, Ralph, há coisas que você não sabe. Ele é o papa, ele é infalível. Se você negar essa verdade, estará negando sua própria fé.

A porta abriu-se, discreta mas rapidamente.

— Eminência, Herr General Kesselnng.

Os dois prelados se levantaram, sorridentes, sem nenhum vestígio das últimas divergências.

— Que imenso prazer, Excelência! Não quer sentar-se? Aceita uma chávena de chá?

A conversação fazia-se em alemão, idioma falado por inúmeros membros mais velhos do Vaticano. O Santo Padre gostava muito de falar e ouvir falar alemão.

— Obrigado, Eminência, aceito. Não há nenhum outro lugar em Roma em que se possa beber um chá tão soberbamente inglês.

O Cardeal Vittorio sorriu com a maior inocência.

— Este é um hábito que adquiri quando era legado papal na Austrália e, a despeito de toda a minha italianidade, ainda não logrei desfazer-me dele.

— E Vossa Excelência Reverendíssima?

— Sou irlandês, Herr General. E os irlandeses também crescem tomando chá.

O General Albert Kesselnng sempre respondia ao Arcebispo de Bricassart como um homem a outro, depois dos prelados italianos superficiais e suntuosos, achava-o sumamente revigorante, um homem sem sutileza e sem astúcia, um homem franco.

— É como sempre, Excelência, assombra-me a pureza com que fala o alemão — cumprimentou ele.

— Tenho jeito para línguas, Herr General, o que quer dizer que isso, como todos os talentos, não merece elogios.

— Que é que podemos fazer por Vossa Excelência? — perguntou o Cardeal suavemente.

— Presumo que, a esta altura, Vossa Eminência já saiba do destino do Duce.

— Sim, Excelência, já soubemos.

— Então saberá, em parte, por que estou aqui. Para assegurar-lhe que tudo está bem e rogar-lhe a fineza de transmitir esse recado aos veraneantes de Castel Gandolfo. Estou tão ocupado neste momento que me é impossível visitar Castel Gandolfo péssoalmente.

— O recado será transmitido. Mas Vossa Excelência está muito ocupado?

— Naturalmente. Vossa Eminência há de compreender que este, agora, é um país inimigo para nós, alemães.

— Este, Herr General? Isto não é solo italiano e nenhum homem aqui é inimigo, exceto os maus.

— Peço-lhe que me perdoe, Eminência. Eu me referia, naturalmente, à Itália e não ao Vaticano. Mas no que concerne à Itália, tenho de acatar as ordens do meu Führer. A Itália será ocupada, e minhas tropas, que até aqui estiveram presentes como aliadas, doravante serão policiais.

Sentado confortavelmente e dando a impressão de que jamais conhecera uma luta ideológica em sua vida, o Arcebispo Ralph observava, atento, o visitante. Saberia ele o que o seu Führer estava fazendo na Polônia? E como poderia não saber?

O Cardeal Vittorio imprimiu ao rosto uma expressão de ansiedade.

— Meu caro General, não se refere a Roma, com certeza? Ah, não! Roma, com sua história, suas obras de arte inestimáveis? Se trouxer soldados para dentro das sete colinas, haverá luta, destruição. Eu lhe suplico, não faça isso!

O General Kesselring parecia contrafeito.

— Espero que as coisas não cheguem a esse ponto, Eminência. Mas também prestei um juramento. Também obedeço a ordens. Terei de agir de acordo com a vontade do meu Führer.

— Mas Vossa Excelência tentará por nós, não é verdade, Herr General? Por favor, é preciso! Estive em Atenas há alguns anos — acudiu rapidamente o Arcebispo Ralph, inclinando-se para a frente, com os olhos encantadoramente arregalados, um anel de cabelo caído sobre as sobrancelhas; percebendo o efeito que produzia no general, usou-o sem escrúpulo. — Vossa Excelência já esteve em Atenas?

— Já, já estive — disse o general em tom seco.

— Então estou certo de que conhece a história. De como homens de tempos relativamente modernos destruíram edifícios no topo da Acrópole? Herr General, Roma está como sempre foi, é um monumento a dois mil anos de cuidados, atenção e amor. Por favor, eu lhe suplico! Não ponha Roma em perigo.

O general olhou para ele com surpresa admiração; o uniforme lhe assentava muito bem, mas não melhor do que a batina, com o seu toque de púrpura imperial, assenta ao Arcebispo Ralph. Ele também tinha jeito de soldado, um corpo magro e belo de soldado, e um rosto de anjo. Assim devia ter sido o Arcanjo Miguel; não um suave ialicebo da Renascença, mas um homem perfeito que principiava a envelhecer, que amara Lúcifer, combatera-o, banira Adão e Eva, matara a serpente e ficava à mão direita de Deus. Saberia ele qual era o seu aspecto? Ali estava um homem que precisava ser lembrado.

— Farei tudo o que puder, Excelência, prometo-lhe. Reconheço que, até certo ponto, a decisão é minha. Sou, como deve saber, um homem civilizado. Mas Vossa Excelência Reverendíssima está-me pedindo muito. Se eu declarar Roma cidade aberta, não poderei mandar para os ares as suas pontes nem converter seus edifícios em fortalezas, e isso talvez redunde em detrimento da Alemanha. Que garantias terei de que Roma não pagará com aleivosias a bondade que eu usar para com ela?

O Cardeal Vittorio mordeu os lábios e fez ruídos de beijo para a sua gata, que era agora uma elegante siamesa; sorriu gentilmente e olhou para o arcebispo.

— Roma nunca pagaria a bondade com a traição, Herr General. Estou certo de que, quando tiver tempo para visitar os veraneantes de Castel Gandolfo, Vossa Excelência receberá as mesmas garantias. Aqui, Kheng-see, minha namorada! Que linda garota é você!

E suas mãos a apertaram no regaço escarlate, acariciando-a.

— Um animal incomum, Eminência.

— Uma aristocrata, Herr General. Tanto o arcebispo quanto eu temos nomes antigos e veneráveis, mas, ao lado da linhagem dela, as nossas não são nada. Agrada-lhe o nome? Quer dizer ”flor de seda” em chinês. Adequado, não é mesmo?

O chá chegara, estava sendo arrumado; permaneceram todos em silêncio até a irmã leiga sair da sala.

— Vossa Excelência não lamentará a decisão de declarar Roma cidade aberta — disse o Arcebispo Ralph com um sorriso melífluo ao novo senhor da Itália. Em seguida, voltando-se para o cardeal, deixou cair por terra todo o seu charme, como um manto que tivesse despido, por desnecessário no trato com aquele homem tão querido. — Vossa Eminência pretende ser ”mãe”, ou faço eu as honras?

— ”Mãe”? — perguntou o General Kesselring, atônito. Riu-se o Cardeal di Contini-Verchese.

— É uma piadinha de celibatários. Chamamos ”mãe” àquele que serve o chá. Um modo de dizer inglês, Herr General.

Nessa noite o Arcebispo Ralph sentiu-se cansado, inquieto, nervoso. Parecia não estar fazendo nada para ajudar a acabar com aquela guerra, senão regatear a preservação de antigüidades, e acabara abominando a inércia vaticana. Embora fosse conservador por natureza, às vezes a cautela e a lentidão dos ocupantes das mais altas posições da Igreja desagradavam-lhe sobremodo. Tirando as freiras e os padres humildes, que faziam as vezes de criados, havia semanas que ele não falava com uma pessoa comum; alguém que não tivesse um interesse político, espiritual ou militar pessoal. A própria oração parecia chegar-lhe menos facilmente nesses dias, e Deus se diria a muitos anosluzes de distância, como se se houvesse retirado a fim de dar às Suas criaturas humanas plena liberdade para destruir o mundo que fizera para elas. O que ele precisava, pensou, era de uma boa dose de Meggie e Fee, ou uma boa dose de alguém que não estivesse interessado no destino do Vaticano nem de Roma.

Sua Excelência Reverendíssima desceu a escada particular para a grande basílica de São Pedro, aonde suas andanças sem destino o tinham levado. As portas da igreja se fechavam nesses dias assim que anoitecia, sinal da paz cheia de apreensões que pairava sobre Roma, mais eloqüente que as companhias de alemães de uniforme cinzento que marchavam pelas ruas da Cidade Eterna. Um brilho tênue, fantasmagórico, iluminava a abside ampla e vazia; seus passos ecoaram surdamente no chão de pedra enquanto ele andava, parava e se fundia com o silêncio ao ajoelhar-se diante do altar-mor, para depois recomeçar. A certa altura, entre o ruído do impacto de um pé e o seguinte, ouviu um respirar convulsivo. A lanterna em sua mão iluminou-se; dirigiu o feixe de luz no rumo do som, menos assustado que curioso. Aquele era o seu mundo; podia defendê-lo seguro contra o medo.

O raio luminoso deteve-se no que se tornara aos seus olhos a mais bela peça de escultura de toda a criação: a Pietà de Miguel Ângelo. Abaixo das figuras inanimadas, postas sobre a base do pedestal, outro rosto, feito não de mármore mas de carne, surgiu-lhe, ensombrado e cadavérico.

— Ciao — disse Sua Excelência Reverendíssima, sorrindo.

Não houve resposta, mas ele notou que os trajos eram os de um soldado alemão de infantaria da mais baixa classe. Seu homem comum! O fato de ser alemão pouco lhe importava.

— Wiegeht’s? — perguntou, sorrindo ainda.

Um movimento fez o suor rebrilhar de repente, apesar da sombra, numa testa ampla e intelectual.

— Du bist krank? — perguntou ele então, imaginando que O rapazinho, pois não era mais que um rapazinho, talvez estivesse doente.

Chegou-lhe, afinal, a voz do outro:

— Nein.

O Arcebispo Ralph colocou a lanterna no chão, adiantou-se, pôs a mão debaixo do queixo do soldado e ergueu-o a fim de olhar para os olhos escuros, mais escuros na escuridão.

— Que aconteceu? — perguntou, em alemão, e riu-se. — Pronto! — continuou, ainda em alemão. — Você não sabe, mas essa tem sido minha principal função na vida-- perguntar às pessoas o que aconteceu. E, deixe-me dizer-lhe, é uma pergunta que me valeu muita encrenca no meu tempo.

Vim rezar — disse o rapazinho com voz demasiado profunda para a idade e pronunciado sotaque bávaro.

— E ficou preso aqui dentro?

— Fiquei, mas não é disso que se trata.

Sua Excelência Reverendíssima pegou a lanterna.

— Bem, você não pode passar a noite aqui, e não tenho a chave das portas. Venha comigo. — Recomeçou a andar na direção da escada particular que conduzia ao palácio papal, falando com voz lenta e suave. — Na verdade, também vim rezar. Graças ao seu Alto Comando, tive um mau dia. Isto é, até agora... Esperemos que os guardas do Santo Padre não suponham que fui preso, mas vejam que sou eu quem o escolta, e não o contrário.

Depois disso caminharam por mais dez minutos em silêncio, percorrendo corredores, atravessando pátios e jardins, cruzando vestíbulos, subindo escadas; o alemãozinho não parecia ansioso por deixar o seu protetor, pois andava rente com ele. Por fim, Sua Excelência abriu uma porta e introduziu o garoto extraviado numa saleta de estar parca e modestamente mobiliada, acendeu uma lâmpada e fechou a porta.

Os dois ficaram a olhar um para o outro. O soldadinho alemão viu um homem muito alto com um belo rosto e olhos azuis e discernentes; o Arcebispo Ralph viu uma criança a envergar a farda que toda a Europa achava terrível e aterradora. Uma criança; não teria mais que dezesseis anos, com certeza. De altura média e juvenilmente magro, possuía uma constituição que prometia um corpo grande e forte, e braços muito compridos. O feitio do rosto, italianizado, moreno e patrício, era muito atraente; olhos grandes, castanho-escuros, longos cílios negros, cabeça magnífica aureolada de cabelos pretos e ondeados. Afinal de contas, não havia nele nada de usual nem comum, ainda que o seu papel fosse um papel comum; e, como ansiasse por conversar com um homem médio, comum, Sua Excelência Reverendíssima sentiu-se interessado.

— Sente-se — disse ao menino, dirigindo-se a uma arca e dela tirando uma garrafa de vinho Marsala. Despejou um pouco do vinho em dois copos, deu um deles ao rapazinho e levou o outro até uma poltrona de onde poderia observar a seu bel-prazer o rosto fascinante. — Já estão recrutando crianças para lutar por eles? — perguntou, cruzando as pernas.

— Não sei — disse o menino. — Eu estava num orfanato, de modo que logo seria recrutado, de qualquer maneira.

— Como se chama, rapaz?

— Rainer Meerling Hartheim — respondeu o garoto, pronunciando o com grande orgulho.

— Magnífico nome — disse o padre, gravemente.

— É, não é? Eu mesmo o escolhi. Chamavam-me de Rainer Schmidt no orfanato, mas, quando fui para o exército, troquei-o pelo nome que sempre desejei.

— Você era órfão?

— As Irmãs me chamavam de filho do amor.

O Arcebispo Ralph procurou não sorrir; agora que perdera o medo, o menino revelava muita dignidade e domínio de si mesmo. Mas o que era que o havia assustado? Não ser encontrado, ou ver-se fechado na basílica?

— Por que estava tão amedrontado, Rainer?

O menino bebericou o vinho com extremo cuidado e ergueu a vista com uma expressão de prazer.

— Bom, é doce. — Instalou-se mais confortavelmente na poltrona. — Eu queria ver São Pedro porque as Irmãs costumavam falar nela e mostrar-nos fotografias. Por isso, quando nos mandaram para Roma, fiquei contente. Chegamos aqui esta semana. Assim que pude, vim para cá. — Franziu o cenho. — Mas não foi como eu esperava. Julguei que me sentiria mais perto de Nosso Senhor, por estar na Sua igreja. Em vez disso, só vi uma coisa enorme e fria. Não O senti.

O Arcebispo Ralph sorriu.

— Eu sei o que você quer dizer. Mas acontece que São Pedro não é realmente uma igreja. Pelo menos no sentido em que o é a maioria das igrejas. São Pedro é a Igreja. Lembro-me de que levei muito tempo para acostumar-me a isso.

— Eu queria rezar por duas coisas — disse o menino, acenando com a cabeça para indicar que ouvira, mas que não ouvira o que desejava ouvir.

— Pelas coisas que o amedrontam, Rainer?

— E. Pensei que o fato de estar em São Pedro poderia ajudar,

— Que é que o amedronta, Rainer?

— Que decidam que sou judeu, e que o meu regimento seja mandado para a Rússia.

— Entendo. Não admira que esteja amedrontado. Existe realmente a possibilidade de que decidam que você é judeu?

— Ué, olhe para mim! — disse o menino simplesmente. — Quando estavam tomando nota das informações a meu respeito, disseram que teriam de averiguar. Não sei se podem ou não, mas acredito que as Irmãs saibam mais a meu respeito do que o que me contaram.

— Se souberem, não divulgarão o que sabem — afirmou Sua Excelência Reverendíssima confortadoramente. — Elas compreenderão por que estão sendo interrogadas.

Acha realmente isso? Tomara que assim seja!

A idéia de ter sangue judeu nas veias o perturba?

O que o meu sangue é não tem a mínima importância — respondeu Rainer.

Nasci alemão, e essa é a única coisa que me importa. Só que eles não vêem o caso desse jeito, não é assim?

-É.

E a Rússia? Agora não há necessidade de preocupar-se com a Rússia. Afinal de contas, você está em Roma, na direção oposta.

Hoje cedo ouvi nosso comandante dizer que poderíamos acabar sendo mandados para a Rússia. Parece que as coisas por lá não vão bem.

Você é uma criança — disse o Arcebispo Ralph de repente. — Devia estar na escola.

Eu não estaria mesmo, de qualquer jeito. — O menino sorriu. —Já fiz dezesseis anos, de modo que estaria trabalhando. — Suspirou. — Mas teria gostado de continuar freqüentando a escola. Aprender é importante.

O Arcebispo Ralph principiou a rir, depois se levantou e tornou a encher os copos.

Não ligue para mim, Rainer. Não estou sendo muito sensato. São só pensamentos, um depois do outro. Esta é a hora que reservo para eles, os pensamentos. Não sou grande coisa como anfitrião, não é verdade?

— Você é boa praça — concedeu o menino.

— Muito bem — disse Sua Excelência Reverendíssima. — Defina-se, Rainer Moerling Hartheim.

Um orgulho curioso estampou-se no rosto jovem.

— Sou alemão e católico. Quero fazer da Alemanha um lugar onde raça e religião não signifiquem perseguição, e pretendo consagrar minha vida a essa finalidade, se viver.

— Rezarei por você... para que viva, e seja bem-sucedido.

— É mesmo? — perguntou o menino, acanhado. — Rezaria por mim pessoalmente, dizendo o meu nome?

— É claro. Em verdade, você me ensinou alguma coisa. Que no meu ofício só existe uma arma à minha disposição... a oração. Nem tenho outra função.

— Quem é você? — perguntou Rainer, a quem o vinho principiava a fazer pestanejar, sonolento.

— Sou o Arcebispo Ralph de Bricassart.

— Oh! Pensei que fosse um padre comum.

— Sou um padre comum. Nada mais.

— Pois vou propor-lhe um trato — acudiu o menino, com os olhos faiscantes. — Reze por mim, padre, que eu, se viver o tempo suficiente para conseguir o que desejo voltarei a Roma a fim de mostrar-lhe o que suas orações tiverem conseguido.

Os olhos azuis sorriram com ternura.

— Feito. É um trato. E quando você vier, eu lhe direi o que eu acho que aconteceu às minhas orações. — Levantou-se. — Fique aí mesmo, seu politiquinho, vou ver se arranjo alguma coisa para você comer.

Os dois conversaram até que a aurora repontou em torno dos domos e campanários e as asas dos pombos ruflaram do lado de fora da janela. Depois o Arcebispo conduziu o hóspede pelas salas públicas do palácio, observando-lhe com deleite o terror respeitoso, e fê-lo sair para o ar fresco e frio da manhã. Embora ele não o soubesse, o menino de nome esplêndido iria, com efeito, para a Rússia carregando consigo uma lembrança estranhamente suave e tranqüilizadora: a de que, em Roma, na própria Igreja de Nosso Senhor, um homem rezava por ele todos os dias, pelo nome.

Na ocasião em que a Nona Divisão se aprontava para embarcar com destino à Nova Guiné, já estava tudo acabado, menos a operação de limpeza da área. Desapontada, a divisão mais seleta da história militar australiana só poderia esperar que ainda houvesse alguma glória a conquistar em outra parte, caçando os japoneses e obrigando-os a bater em retirada através da Indonésia. Guadalcanal desfizera todas as esperanças japonesas concentradas no avanço sobre a Austrália. E, todavia, como os alemães, eles cediam terreno amargurados e ressentidos. Embora os seus recursos estivessem lastimosamente no fim e seus exércitos fracassassem por falta de suprimentos e reforços, eles obrigavam os americanos e australianos a pagar caro cada centímetro de solo reconquistado. Em sua retirada, os japoneses abandonaram Buna, Gona, Salamaua, e subiram pela costa setentrional até chegar a Lae e Finschafen.

No dia 5 de setembro de 1943, a Nona Divisão desembarcou a leste de Lae. Fazia calor, a umidade atingira cem por cento e chovia todas as tardes, embora a chuva só fosse esperada dali a dois meses. A ameaça de malária significava que todo mundo tomava Atabrine, e as pastilhazinhas amarelas produziam um terrível mal-estar, como se a pessoa já tivesse adquirido a moléstia. A umidade constante significava botas e meias permanentemente úmidas; os pés tornavam-se esponjosos, a carne entre os dedos, cheia de feridas, sangrava. As picadas de mosquitos e outros insetos inflamavam e ulceravam-se.

Em Porto Moresby tinham visto o estado lastimável dos nativos da Nova Guiné, e se estes não podiam suportar o clima sem contrair o boubo, o beribéri, a malária, a pneumonia, as moléstias crônicas da pele, e sem ficar com o fígado e o baço dilatados, eram bem menores as esperanças em relação ao homem branco. Havia também sobreviventes de Kokoda em Porto Moresby, vítimas não tanto dos japoneses quanto da própria Nova Guiné, descarnados, ulcerados, delirantes de febre. Um número dez vezes maior de combatentes morrera de pneumonia a dois mil e setecentos metros de altitude, num frio enregelante, usando um fino tecido tropical que se diria herdado dos japoneses. Lama úmida e gordurosa, florestas sobrenaturais que brilhavam com uma luz fria, pálida e espectral depois do escurecer, em razão de fungos fosforescentes, íngremes subidas sobre um entrelaçamento nodoso de raízes expostas, o que significava que bastava a um homem erguer a vista por um segundo para transformar-se no alvo fácil de um atirador de tocaia. Tudo tão diferente da África do Norte! A Nona não se sentia aborrecida por haver participado das duas batalhas de Alamein em vez de lutar na Trilha de Kokoda.

Lae era uma cidade litorânea no meio de prados densamente semeados de matas, longe dos três mil e trezentos metros de altitude do interior do país, e muito mais salubre como campo de batalha do que Kokoda. Umas poucas casas européias, uma bomba de gasolina e uma coleção de choças nativas. Os japoneses, intrépidos como sempre, porém reduzidos em número e empobrecidos, estavam tão alquebrados pela Nova Guiné quanto os australianos que vinham combatendo, e eram igualmente atormentados pelas doenças. Depois do material bélico maciço e da extrema mecanização da África do Norte, os componentes da Nona estranhavam a total ausência de morteiros e canhões de campanha; apenas canhões Owen e fuzis, com baionetas caladas o tempo todo. Jims e Patsy gostavam da luta corpo a corpo, gostavam de entrar juntos na refrega, defendendo-se um ao outro. Embora fosse, sem dúvida, uma humilhação terrível depois do Afrika Korps. Homenzinhos amarelos, todos uns tampinhas de óculos e dentes salientes ou, pelo menos, assim pareciam. Não tinham, de forma alguma, o garbo marcial de outros soldados.

Duas semanas depois que a Nona desembarcou em Lae, já não havia japoneses. Para a primavera da Nova Guiné o dia era muito bonito. A umidade caíra vinte pontos, o sol brilhava num céu repentinamente azul, em lugar do eterno branco enfumaçado, e a linha divisória de águas erguia-se verde, purpurina e lilás, além da cidade. Relaxara-se a disciplina, todos pareciam estar tirando o dia de folga para jogar críquete, passear, provocar os nativos no intuito de fazê-los rir e mostrar as gengivas vermelhas e desdentadas, resultado do hábito de mascar noz de areca. Jim e Patsy estavam passeando, fora da cidade, pelo capim alto que lhes recordava Drogheda, pela mesma cor branca e castanha e pelo mesmo comprimento depois de uma época de chuvas pesadas.

— Agora não demorará muito para voltarmos, Patsy — disse Jims. — Pusemos os japas para correr e os boches também. Voltaremos para casa, Patsy, voltaremos para Drogheda!,Mal posso esperar.

— É — disse Patsy.

Caminhavam ombro a ombro, muito mais próximos um do outro do que o permissível entre homens comuns; tocavam-se, às vezes, um ao outro, não conscientemente, mas como um homem toca o próprio corpo, a fim de aliviar uma coceira sem importância ou assegurar-se, num movimento impensado, de que ela ainda está lá. Como era gostoso sentir no rosto o sol autêntico em lugar de uma bola derretida numa sauna! De quando em quando, levantavam os narizes para o céu, abriam as narinas para aspirar o cheiro da luz quente no capim, tão parecido com o de Drogheda, e sonhar que estavam de volta à fazenda, caminhando na direção de uma wilga no aturdimento do meio-dia, deitando-se ali e ali ficando durante os piores momentos do calor, lendo um livro. Rolando no chão, sentindo a terra amiga e bela através da pele, percebendo um vasto coração a bater debaixo de algum lugar, como bate o coração materno para o bebê adormecido no útero.

— Jims! Olhe! Um periquito de Drogheda! —exclamou Patsy, tão impressionado que se esqueceu de que não costumava falar.

É possível que os periquitos também fossem nativos da região de Lae, mas a atmosfera do dia e a lembrança inesperada do lar desencadearam de súbito uma alucinada exultação em Patsy. Rindo, sentindo as cócegas que o capim lhe fazia nas pernas nuas, saltou atrás do periquito, arrancando o chapéu desabado e desmantelado da cabeça e agitando-o como se realmente acreditasse poder capturar o pássaro que desaparecia. Sorrindo, Jims ficou a contemplá-lo.

Ele estaria talvez a uns vinte metros de distância, quando a metralhadora cortou o capim, retalhou-o e espalhou-o à sua volta; Jims viu o irmão erguer os braços e viu-lhe o corpo rodopiar de sorte que os braços pareciam estendidos numa súplica. Da cintura aos joelhos era só sangue, sangue brilhante, sangue de vida.

— Patsy, Patsy! — berrou Jims, que sentia as balas em todas as células do próprio corpo, sentindo-se refluir, morrer.

Suas pernas abriram-se num passo enorme, ele ganhou impulso para correr, mas a cautela militar levou a melhor e o fez mergulhar de ponta-cabeça no capim, no momento em que a metralhadora voltava a pipocar.

— Patsy, Patsy, você está bem? — gritou estupidamente, depois de ter visto todo aquele sangue.

No entanto, coisa incrível!, ouviu uma resposta fraca:

— Estou.

Centímetro por centímetro, Jims arrastou-se para a frente, através da relva fragrante, prestando atenção ao vento, ao farfalhar do próprio avanço.

Quando alcançou o irmão, encostou a cabeça no ombro nu e desatou a chorar.

— Deixe de bobagem — disse Patsy. — Ainda não morri.

— Como está isso? — perguntou Jims, puxando o short empapado de sangue para a carne ensangüentada, tremendo.

Seja como for, não me sinto como se fosse morrer.

Homens foram surgindo em torno deles; os jogadores de críquete ainda usavam defesas das pernas e as luvas; alguém voltou para buscar uma padiola, e o resto se ocupou de silenciar a metralhadora, no extremo oposto da clareira, com uma crueldade um pouco maior que a normal, pois todos gostavam muito de Harpo. Se alguma coisa lhe acontecesse, Jims nunca mais seria o mesmo.

Era um belo dia; fazia muito tempo que o periquito se fora, mas outros pássaros gorjeavam e pipilavam sem medo, silenciados apenas pela batalha real.

— Patsy teve muita sorte — disse o médico a Jims, algum tempo depois. — Deve haver pelo menos uma dúzia de balas dentro dele, mas a maioria se enfiou nas coxas. As duas ou três que atingiram pontos mais altos parecem ter-se encastoado no osso pélvico ou no músculo. Pelo que pude julgar, os intestinos estão intactos, e a bexiga também. A única coisa é que...

— A única coisa é o quê? — interrompeu-o Jims com impaciência; ainda estava tremendo e tinha a boca orlada de azul.

— É muito difícil dizer qualquer coisa com absoluta certeza a esta altura dos acontecimentos, pois não sou nenhum cirurgião de gênio, como alguns que há em Moresby. Eles, sim, poderão dizer a você muito mais do que eu. Mas a uretra foi danificada, como foram danificados muitos nervinhos do períneo. Estou convencido de que será possível remendá-lo e deixá-lo como novo, com exceção talvez dos nervos. Infelizmente, é muito difícil remendar os nervos. — O médico limpou a garganta. — O que estou tentando dizer é que ele talvez nunca mais tenha muita sensibilidade na região genital.

Jims deixou pender a cabeça e olhou para o chão através de uma cortina de lágrimas.

— Mas, pelo menos, está vivo — disse, por fim.

Concederam-lhe licença para voar até Porto Moresby com o irmão, e ficar ao seu lado até que Patsy fosse declarado fora de perigo. Os ferimentos haviam sido quase milagrosos. As balas tinham-se espalhado por toda a parte inferior do abdome, mas sem penetrá-lo. Entretanto, o médico da Nona Divisão tivera razão; a sensibilidade pélvica inferior estava muito comprometida. E ninguém se achava em condições de dizer até que ponto lhe seria possível recuperá-la mais tarde.

— Isso não tem muita importância — disse Patsy já na maca em que faria o vôo Para Sydney. — Nunca tive mesmo muita vontade de casar. Agora, o que quero é que você se cuide, Jims, está-me ouvindo? Detesto ter de me separar de você.

— Pode deixar que eu me cuido, Patsy. Meu Deus! — sorriu Jims, segurando com força a mão do irmão. — Imagine só que azar! Passar o resto da guerra sem o

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meu melhor companheiro. Escreverei para lhe dizer como vai isto aqui. Diga alô à Sra Smith, a Meggie, a mamãe e aos irmãos por mim, sim? Você é que tem sorte, rapaz, que Pode voltar para Drogheda.

Fee e a Sra. Smith tomaram o avião para Sydney a fim de estar lá quando chegasse o aparelho norte-americano que trazia Patsy de Townsville; Fee demorou-se poucos dias, mas a Sra. Smith hospedou-se no Hotel Randwick, próximo do hospital militar Príncipe de Gales, onde Patsy ficou internado durante três meses. A parte que lhe cabia desempenhar na guerra estava terminada. A Sra. Smith derramara muitas lágrimas, mas havia também muita coisa que lhe era preciso agradecer. De certa maneira, ele nunca poderia viver totalmente, mas, em compensação, poderia fazer quase tudo: andar a cavalo, caminhar, correr. Como quer que fosse, dir-se-ia que as uniões matrimoniais não constituíam a especialidade da família Cleary. Quando Patsy recebeu alta do hospital, Meggie transportou-o de Gilly no Rolls, e as duas mulheres o instalaram confortavelmente entre cobertores e revistas no assento de trás, rezando ambas para que acontecesse mais um milagre: que Jims também voltasse para casa.

Foi só depois que o delegado do Imperador Hirohito assinou a rendição oficial do Japão, que Gillanbone acreditou que a guerra finalmente se acabara. A notícia chegou no domingo, dia 2 de setembro de 1945, exatamente seis «anos depois que a guerra começara. Seis anos torturantes. Tantos lugares vazios, que nunca mais seriam preenchidos: Rory, filho de Dominic O’Rourke, John, filho de Horry Hopeton, Cormac, filho de Éden Carmichael. O filho mais moço de Ross MacQueen, Angus, nunca mais andaria, David, filho de Anthony King, poderia andar mas nunca mais veria aonde ia, e Patsy, filho de Paddy Cleary, nunca teria filhos. E havia aqueles cujos ferimentos não se viam, mas cujas cicatrizes eram igualmente profundas; que tinham partido alegres, esperançosos, risonhos, e voltado calados, falando pouco e rindo menos ainda. Quem teria imaginado, quando ela começou, que duraria tanto tempo ou exigiria um tributo tão pesado?

Gillanbone não era uma comunidade particularmente supersticiosa, mas até o mais cínico dos seus habitantes estremeceu naquele domingo, 2 de setembro. Pois no dia em que a guerra acabou, acabou também a mais longa seca da história da Austrália. Durante quase dez anos não caíra sequer uma chuva que se aproveitasse, mas, naquele dia, nuvens de centenas de metros de espessura encheram tetricamente o céu, racharam, abriram-se e verteram trezentos milímetros de chuva sobre a terra sedenta. Talvez vinte e cinco milímetros de chuva não signifiquem a interrupção de uma seca, talvez não sejam seguidos de mais nada, mas trezentos milímetros de chuva significam capim.

Meggie, Fee, Bob, Jack, Hughie e Patsy, em pé, na varanda, contemplavam-na através da escuridão, aspirando o perfume insuportavelmente doce da chuva sobre o chão crestado, que estremecia. Cavalos, carneiros, vacas e porcos esparramavam as pernas no solo que se derretia debaixo deles e deixavam que a água lhes caísse sobre os corPOS contraídos; a maioria nascera depois que a última chuva igual àquela desabara sobre o seu mundo. No cemitério, a chuva lavou a poeira, branqueou tudo, limpou o pó acumulado sobre as asas estendidas do delicado anjo de Botticelli. O arroio produziu um macaréu, e a sua torrente, que rugia, misturou-se ao estrondo da tempestade: Chuva, chuva! Chuva. Como uma bênção que alguma vasta mão inescrutável negara por muito tempo, mas, finalmente, concedera. A abençoada, a maravilhosa chuva. Porque chuva era capim, e capim era vida.

Surgiu um cotãozinho verde-pálido, empurrou suas laminazinhas na direção do céu, ramificou-se, lançou rebentos, assumiu um tom verde mais escuro à proporção que se estendia, depois desbotou, cresceu, encorpou e converteu-se no capim bege prateado, que chegava até à altura do joelho de Drogheda. O Home Paddock parecia um campo de trigo, ondulando a cada lufada de vento, e os jardins da sede explodiram numa orgia de cores, grandes botões desabrochando, os eucaliptos de repente brancos e verdes outra vez, depois de nove anos de sujeira. Pois, embora a insana proliferação de tanques de água de Michael Carson ainda contivesse o suficiente para manter vivos os jardins da sede, a poeira se instalara havia muito em cada folha e em cada pétala, turvada num tom de castanho. E constatara-se que uma velha lenda era um fato comprovado: Drogheda tinha, com efeito, água suficiente para sobreviver a dez anos de seca, mas só na sede.

Bob, Jack, Hughie e Patsy voltaram aos pastos, e começaram a estudar a melhor maneira de repovoar a fazenda; Fee abriu um vidro novinho de tinta preta e, selvagemente, tampou para sempre o vidro de tinta vermelha; Meggie viu chegar o fim da sua existência de amazona, pois Jims não tardaria a voltar para casa e logo surgiriam homens à procura de trabalho.

Depois de nove anos, sobravam pouquíssimos carneiros e pouquíssimo gado, além dos reprodutores escolhidos, que viviam estabulados, núcleo da raça de campeões, carneiros e touros. Bob viajou para leste, para o topo das Vertentes Ocidentais a fim de comprar ovelhas de boa raça em propriedades menos atormentadas pela seca. Jims voltou para casa. Acrescentaram-se oito pastores à folha de pagamento de Drogheda. Meggie pendurou a sela.

Pouco tempo depois disso, Meggie recebeu uma carta de Luke, a segunda desde que ela o deixara.

”Calculo que agora não vai demorar muito”, dizia ele. ”Mais alguns anos na cana, e pronto. As velhas costas andam meio doloridas, mas ainda posso cortar como os melhores, oito ou nove toneladas por dia. Arne e eu temos doze grupos cortando para nós, todos bons sujeitos. O dinheiro está entrando fácil, pois a Europa quer todo o açúcar que possamos produzir e o mais depressa possível. Estou fazendo mais de cinco mil libras por ano e economizando quase tudo. Agora, Meg, logo estarei instalado perto de Kynuna. Quando eu arrumar tudo, você talvez queira voltar para mim. Conseguiu o garoto que queria? É engraçado como as mulheres fazem questão de filhos. Imagino que foi isso que nos separou, não foi? Mande-me dizer como vai passando e como Drogheda agüentou a seca. Do seu, Luke.”

Fee apareceu na varanda, onde Meggie segurava a carta na mão, o olhar ausente perdido no verde brilhante dos pastos da sede.

— Como vai Luke?

— Como sempre, mamãe. Não mudou nem um pouquinho. Continua com a mania de ficar mais um pouco na maldita cana e fala no lugar que comprará, um dia, perto de Kynuna.

— Acha que ele acabará comprando mesmo o tal lugar?

— Acho que sim. Um dia.

— E você voltaria para ele, Meggie?

— Nem daqui a um milhão de anos.

Fee sentou-se numa cadeira de bambu ao lado da filha, empurrando-a até ficar onde pudesse vê-la direito. Não muito longe, homens gritavam, martelos malhavam; finalmente as varandas e o andar de cima estavam sendo fechados por uma tela fina de arame a fim de impedir a entrada das moscas. Durante anos Fee resistira, teimosa. Por maior que fosse a quantidade de moscas, recusava-se a estragar as linhas da casa com a feiúra das telas. Mas, quanto mais se prolongava a seca, piores ficavam as moscas, até que, duas semanas antes das chuvas, Fee resolvera ceder e contratara um empreiteiro para cercar de tela todos os edifícios da fazenda, isto é, a casa-grande, as casas do pessoal e os barracões.

Mas não quis saber da eletricidade, embora desde 1915 um ”burrinho”, como os tosquiadores o chamavam, fornecesse energia ao barracão de tosquia. Drogheda sem a suave difusão dos lampiões? Nem pensar numa coisa dessas. Entretanto, havia lá um dos novos fogões de gás, que queimavam o gás vendido em bujões, e uma dúzia dos novos refrigeradores de querosene; a indústria australiana ainda não recuperara o ritmo de produção dos tempos de paz, mas os novos aparelhos acabariam chegando.

— Meggie, por que não se divorcia de Luke e se casa outra vez? — perguntou Fee, de repente. — Enoch Davies a desposaria num abrir e fechar de olhos; ele nunca olhou para mais ninguém.

Os lindos olhos de Meggie examinaram, pasmados, o rosto materno.

— Misericórdia, mamãe! Até parece que você está mesmo falando comigo de mulher para mulher.

Fee não sorriu; Fee raramente sorria.

— Bem, se você ainda não é uma mulher, nunca mais o será. E eu diria que não lhe faltam as qualificações necessárias. Devo estar ficando velha; sinto-me tagarela.

Meggie sorriu, encantada com a iniciativa materna e ansiosa por não estragar a nova atmosfera.

— É a chuva, mamãe. Tem de ser. Oh, não é maravilhoso ver o capim de novo em Drogheda, e pastos verdes em toda a volta da sede?

— É claro que sim. Mas você está fugindo da pergunta. Por que não se divorcia de Luke e se casa outra vez?

— Porque isso é contra as leis da Igreja.

— Besteira! — exclamou Fee, mas em tom gentil. — Eu sou metade de você, e não sou católica. Não me venha com essa, Meggie. Se realmente quisesse casar, já se teria divorciado de Luke.

— Acho que sim. Mas acontece que não quero casar outra vez. Estou muito feliz com meus filhos e com Drogheda.

Um riso reprimido, muito parecido com o seu, fez-se ouvir no interior da moita de cavalinhas que havia ali por perto, mas a pessoa que rira continuava escondida pela densa folhagem da planta.

— Ouça! Lá está ele, é Dane! Sabe que, nessa idade, ele já monta a cavalo tão bem quanto eu? — Meggie inclinou-se para a frente. — Dane! Que é que você está fazendo? Saia daí imediatamente!

Ele saiu, rastejando, de baixo da cavalinha mais próxima, com as mãos cheias de terra preta e manchas pretas suspeitas em torno da boca.

— Mamãe! Você sabia que a terra tem gosto bom? Tem mesmo, mamãe, sinceramente!

Ele aproximou-se e foi postar-se diante dela; aos sete anos de idade, alto, esguio, graciosamente forte, possuía um rosto de delicada beleza de porcelana.

Justine apareceu e foi colocar-se ao lado dela. Também era alta, porém mais magra do que esguia, e atrozmente sardenta. Dificilmente se lhe distinguia o desenho dos traços debaixo das pintas castanhas, mas os olhos impressionantes continuavam tão pálidos quanto na infância, e as sobrancelhas e os cílios, demasiado ruivos, não se destacavam das sardas. As madeixas furiosamente vermelhas de Paddy rebelavam-se numa massa de cachos em torno do rosto, que mais se diria um rosto de duende. Ninguém poderia considerá-la uma criança bonita, mas ninguém a esquecia, não só por causa dos olhos, mas também por sua força notável de caráter. Inflexível, decidida e obstinadamente inteligente, Justine pouco ligava para o que os outros pensavam dela. Só uma pessoa lhe era muito chegada: Dane. Ainda o adorava e o considerava propriedade sua.

O que fora causa de muitos conflitos entre ela e Meggie. Justine levara um grande choque quando esta pendurara a sela e voltara a ser mãe. Em primeiro lugar, Justine não parecia precisar de mãe, pois estava convencida de que tinha razão em tudo. Nem pertencia à espécie de meninas que necessitam de uma confidente ou de uma aprovação calorosa. No que lhe dizia respeito, a mãe, na maioria das vezes, era apenas alguém que interferiria no prazer que Dane lhe proporcionava. Dava-se muito melhor com a avó, exatamente o tipo de pessoa que merecia a sua entusiástica aprovação: mantinhae a distância e partira do pressuposto de que todos possuíam um pouco de bom senso.

— Eu disse a ele para não comer terra — declarou Justine.

— Bem, isso não o matará, Justine, mas também não lhe fará bem algum. — Meggie voltou-se para o filho. — Por que fez isso Dane?

Ele considerou gravemente a pergunta.

— Ela estava lá, por isso a comi. Se me fizesse mal, teria mau gosto, não teria? E o gosto é bom.

— Não necessariamente — interrompeu Justine, atrevida. — Eu desisto de você, Dane, desisto mesmo. Algumas das coisas mais gostosas são também as mais venenosas.

— Por exemplo? — desafiou ele.

— Melado! — disse ela, triunfante.

Dane passara muito mal depois de achar uma lata de melado na despensa da Sra. Smith e papar a lata inteira. Ele admitiu a estocada, mas contra-atacou.

— Mas ainda estou aqui, por isso não pode ser tão venenoso assim!

— Porque você vomitou. Se não tivesse vomitado, agora estaria morto.

Isso era incontestável. Os irmãos tinham a mesma altura; ele enfiou o braço no braço dela e os dois cruzaram calmamente o relvado na direção da casinhola que os tios haviam construído para eles, seguindo-lhes as instruções, entre os galhos pendentes de uma aroeira-mole. O perigo das abelhas provocara muita oposição adulta ao local, mas, no fim, verificou-se que as crianças tinham razão. As abelhas conviviam com elas pacificamente. Pois, diziam as crianças, as aroeiras-moles eram as melhores de todas as árvores, pois proporcionavam muita intimidade. Exalavam um perfume seco e intenso e os seus cachos de minúsculos glóbulos cor-de-rosa convertiam-se em flocos vivos, acres e róseos quando espremidos na mão.

— Dane e Justine são tão diferentes um do outro e, no entanto, dão-se tão bem — disse Meggie. — Isso nunca deixa de me espantar. Creio que nunca os vi brigar, embora não compreenda como Dane consegue viver em paz com uma pessoinha tão decidida e teimosa quanto Justine.

Mas Fee tinha outra coisa na cabeça.

— Ele é a imagem viva do pai — comentou, vendo o neto enfiar-se debaixo das frondes mais baixas da aroeira-mole e desaparecer.

Meggie sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo, resposta reflexa que nem todos os anos em que ouvira tantas vezes repetida a mesma frase tinham conseguido eliminar. Era apenas a sua consciência pesada naturalmente. As pessoas sempre se referiam a Luke. Por que não? Havia semelhanças básicas entre Luke O’Neill e Ralph de Bricassart. Mas, por mais que ela tentasse, jamais conseguia ser completamente natural quando se comentava a semelhança de Dane com o pai.

Tomou fôlego, procurando parecer casual.

— Você acha, mamãe? — perguntou, balançando o pé com displicência. — E mesmo não consigo vê-lo. Dane não se parece nada com Luke, nem no temperamento, nem na atitude para com a vida.

Fee riu. A risada lhe saiu como se bufasse, mas era autêntica. Seus olhos, que tinham empalidecido com a idade e com a catarata que principiava a invadi-los, pousaram, implacáveis e irônicos, no rosto assustado de Meggie.

— Acha que sou boba, Meggie? Não me refiro a Luke O’Neill. O que quero dizer é que Dane é a imagem viva de Ralph de Bricassart.

Chumbo. Seu pé era feito de chumbo. Caiu sobre os ladrilhos espanhóis, o corpo de chumbo bambeou, o coração de chumbo dentro do peito lutou contra o seu peso enorme, tão grande que quase o impedia de bater. Bata, maldito, bata! Você precisa continuar batendo pelo meu filho!

— Ora essa, mamãe — a voz também era plúmbea. — Como pode dizer uma coisa tão absurda assim? Padre Ralph de Bricassart?

— Quantas pessoas com esse nome você conhece? Luke O’Neill nunca gerou esse menino; ele é filho de Ralph de Bricassart. Eu o soube no momento em que o tirei de você, quando ele nasceu.

— Então... por que não disse alguma coisa? Por que esperou que ele completasse sete anos para fazer uma acusação tão louca e tão sem fundamento?

Fee estendeu as pernas para a frente e cruzou graciosamente os tornozelos.

— Estou envelhecendo, Meggie. E as coisas já não me machucam tanto. Você não sabe a bênção que pode ser a velhice! É tão bom ver Drogheda renascer. Sinto-me melhor por dentro por causa disso. Pela primeira vez em muitos anos, tenho vontade de falar.

— E devo dizer que, quando decide falar, sabe escolher o assunto! Você não tem o direito, mamãe, de dizer uma coisa dessas. Não é verdade! — bradou Meggie, desesperada, sem saber ao certo se a mãe se sentia propensa à tortura ou à comiseração.

De repente, Fee estendeu a mão, que foi pousar no joelho de Meggie, e a filha viua sorrir — não amarga nem desdenhosamente, mas com uma curiosa simpatia.

— Não minta para mim, Meggie. Minta para quem você quiser, mas não minta para mim. Ninguém jamais me convencerá de que Luke O’Neill gerou esse menino. Não sou boba, tenho olhos. Não há nada de Luke nele e nunca houve, porque não poderia haver. Ele é a imagem do padre. Olhe para as mãos, para a maneira como cresce o cabelo, formando um bico-de-viúva, veja a forma do rosto, as sobrancelhas, a boca. Até o jeito de andar. Ralph de Bricassart, Meggie, Ralph de Bricassart.

Meggie cedeu, e a enormidade do seu alívio se evidenciou no modo com que se sentou, agora frouxamente, relaxada.

— A distância entre os olhos. É o que eu mesma noto acima de tudo. Mas será tão óbvio assim? Você acha que todo mundo sabe, mamãe?

— É claro que não — retrucou Fee em tom positivo. — As pessoas contentam-se em ver a cor dos olhos, a forma do nariz, a constituição geral — muito parecidas com a cor dos olhos, a forma do nariz e a constituição geral de Luke. Mas eu soube porque andei observando você e Ralph de Bricassart durante anos. Bastaria que ele lhe tivesse feito um aceno com o dedinho para que você se atirasse correndo em seus braços. Por isso, não me convenceu a sua frase: ”é contra as leis da Igreja”, quando falei em divórcio. Você estava louca por violar uma lei da Igreja muito mais séria do que a que proíbe o divórcio. Desavergonhado, Meggie, é o termo para o seu procedimento. Desavergonhado! — Uma certa dureza envolvia-lhe a voz. — Mas ele era um homem teimoso. Estava decidido a ser um padre perfeito; você ocupava um reles segundo lugar nos seus pensamentos. Quanta idiotice! De que valeu tudo isso a ele? Foi apenas uma questão de tempo para que alguma coisa acontecesse.

No outro canto da varanda alguém deixou cair um martelo e soltou uma série de imprecações; Fee encolheu-se e estremeceu.

— Juro que ficarei muito contente quando terminar esse serviço das telas! — Logo voltou ao assunto. — Você acredita que me enganou quando não quis que Ralph de Bricassart a casasse com Luke? Eu sabia. Você o queria como noivo, não como sacerdote. Depois, quando ele veio a Drogheda antes de partir para Atenas e não a encontrou, entendi que, mais cedo ou mais tarde, ele sairia à sua procura. O homem andava por aí tão perdido quanto um menininho na Real Exposição de Páscoa de Sydney. Casar com Luke foi o passo mais inteligente que você deu, Meggie. Enquanto soube que você suspirava por ele, Ralph não a quis, mas assim que você passou a pertencer a outro homem, ele exibiu todos os sinais clássicos do empata, embora estivesse persuadido, naturalmente, de que o seu afeto por você era tão puro quanto a neve. Subsistia, porém, o fato de que ele precisava de você. Você lhe era necessária como nenhuma outra mulher já o fora ou, desconfio eu, virá a ser. E estranho — disse Fee com sincera perplexidade na voz. — Nunca atinei com o que ele viu em você, mas suponho que as mães são sempre um pouco cegas em relação às filhas até ficarem velhas demais para ter ciúme da mocidade. Você está para Justine como eu estive para você.

Ela inclinou-se para trás, balançando ligeiramente a cadeira, com os olhos entrefechados, mas observando Meggie como um cientista observaria o seu espécime.

— Seja lá o que for que ele viu em você — prosseguiu ela —, viu-o no primeiro dia em que a conheceu, e nunca deixou de se encantar com isso. Para ele, o mais difícil de enfrentar foi o fato de você ter crescido, e ele o enfrentou quando esteve aqui e soube que você partira, casada. Pobre Ralph! Não lhe restava alternativa senão sair à sua procura. E ele a encontrou, não encontrou? Percebi-o quando você voltou para cá antes de Dane nascer. Depois que teve Ralph de Bricassart, você já não precisava de Luke.

— Sim — disse Meggie, suspirando. — Ralph me encontrou. Mas isso não resolveu nada para nós, resolveu? Eu sabia que ele nunca renunciaria ao seu Deus. Por isso decidi ter a única parte dele que me seria possível conseguir. Seu filho. Dane.

— Isso é como ouvir um eco — disse Fee, soltando a sua risada gutural. — Quando você diz isso, tenho a impressão de ouvir a mim mesma.

— Frank?

A cadeira rangeu; Fee levantou-se, deu alguns passos sobre os ladrilhos, voltou e olhou com firmeza para a filha.

— Então é assim? Olho por olho, dente por dente, Meggie? Há quanto tempo você sabia?

— Desde pequena. Desde que Frank fugiu.

— O pai dele já era casado. Bem mais velho do que eu, um político importante. Se eu lhe dissesse o nome, você o reconheceria. Há ruas com o nome dele em toda a Nova Zelândia, e uma ou duas cidades provavelmente. Para todos os efeitos, vou chamá-lo Pakeha. É uma palavra maori que significa ”homem branco”, mas servirá ao nosso propósito. Ele agora está morto, naturalmente. Possuo traços de sangue maori, a metade do sangue do pai de Frank era maori. Isso transparecia em Frank, que o herdou de nós. Oh, como amei aquele homem! Talvez fosse a voz do nosso sangue, não sei. Ele era bonito. Um homenzarrão com uma cabeleira preta e os olhos negros mais brilhantes e mais risonhos que já vi. Era tudo o que Paddy não era... culto, sofisticado, encantador. Amei-o até à loucura. E achei que nunca mais amaria ninguém; chafurdei nessa ilusão por tanto tempo que, quando me desfiz dela, já era tarde demais, tarde demais! — Quebrou-se-lhe a voz. Ela voltou-se para contemplar o jardim. — Tenho contas a prestar de muita coisa, Meggie, acredite em mim.

— Era por isso, então, que você gostava mais de Frank do que de todos nós — disse Meggie.

— Pensei que gostasse, por ele ser filho de Pakeha e o resto pertencer a Paddy. — Ela sentou-se e fez um ruído estranho, lamentoso. — Quer dizer que a história se repete. Garanto-lhe que ri por dentro quando pus os olhos em Dane.

— Mamãe, você é uma mulher extraordinária!

— Você acha? — A cadeira rangeu; ela inclinou-se para a frente. — Deixe-me sussurrar-lhe um segredinho, Meggie. Extraordinária ou apenas ordinária, o certo é que sou uma mulher muito infeliz. Por uma ou por outra razão, fui infeliz desde o dia em que conheci Pakeha. Principalmente por minha culpa. Eu o amava, mas o que ele me fez não deveria acontecer a mulher nenhuma. E havia Frank... Continuei a agarrarme a Frank e a ignorar vocês. Ignorando Paddy, que foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Só que não o percebi. Eu estava muito ocupada comparando-o com pakeha. Sentia-me grata a ele, é claro, e não podia deixar de ver o homem excelente que ele era... — Ela encolheu os ombros. — Bem, mas isso pertence ao passado. Eu só queria dizer que você está errada, Meggie. Sabe que está, não sabe?

— Não, não sei. Pelo meu jeito de ver as coisas, quem está errada é a Igreja, esperando tirar isso também dos seus padres.

— Engraçado, sempre supomos que a Igreja é feminina. Você roubou um homem de uma mulher, Meggie, exatamente como eu.

— Ralph não deve lealdade a mulher alguma, mamãe, a não ser a mim. A Igreja não é uma mulher. É uma coisa, uma instituição.

— Não perca tempo querendo se justificar diante de mim. Conheço todas as respostas. Naquele tempo, eu também pensava como você. O divórcio, para ele, estava fora de cogitação. Ele foi uma das primeiras pessoas da sua raça que alcançou a grandeza política; teve de escolher entre mim e o seu povo. Que homem resistiria a uma oportunidade dessas de ser nobre? Assim como o seu Ralph optou pela Igreja. Por isso pensei: que me importa? Pegarei dele o que puder, terei pelo menos o filho dele para amar.

De repente, porém, Meggie se sentiu odiando a mãe, que se apiedava dela, Meggie, baseando-se na convicção equivocada de que a filha metera os pés pelas mãos, fazendo das coisas uma mixórdia terrível. E disse:

— Só que eu ganhei longe de você em sutileza, mamãe. Meu filho tem um nome que ninguém poderá lhe tirar, nem mesmo Luke.

A respiração de Fee silvou-lhe entre os dentes.

— Insolente! Como você é sonsa, Meggie! Até acredita em Papai Noel, não é mesmo? Pois bem, meu pai comprou meu marido para dar um nome a Frank e livrar-se de mim: aposto que você não sabia disso! Como soube do resto?

— Isso é assunto meu.

— Você vai pagar, Meggie. Acredite no que lhe estou dizendo, você vai pagar. Não se sairá bem disso, como eu não me saí. Perdi Frank da pior maneira que uma mãe pode perder um filho; não posso nem vê-lo, embora o deseje tanto... Você não perde por esperar! Também perderá Dane.

-— Não, se eu puder evitá-lo. Você perdeu Frank porque ele não se deixou atrelar Por papai. Consegui fazer com que Dane não tivesse um pai que pudesse atrelá-lo. Eu, sim, o atrelarei, mas a Drogheda. Por que supõe que já estou tentando convertê-lo num pastor? Ele estará seguro em Drogheda.

— E seu pai estava? Stuart estava? Não existe lugar seguro. E você não poderá segurar Dane aqui se ele quiser partir. Seu pai não quis atrelar Frank. Aí é que está. Frank não poderia ser atrelado por ninguém. E se você, uma mulher, se julga capaz de atrelar o filho de Ralph de Bricassart, está muitíssimo enganada. É lógico, não é? Se nenhuma de nós conseguiu segurar o pai, como pode esperar segurar o filho?

— Só poderei perder Dane se você abrir a boca, mamãe. E olhe que a estou avisando: juro que a matarei primeiro.

— Não se preocupe, que não valho a pena de uma preocupação. Seu segredo estará seguro comigo; não passo de uma espectadora interessada. com efeito, é isso mesmo o que sou. Uma espectadora.

— Oh, mamãe! O que é que pode tê-la deixado assim? Por que assim, tão relutante em dar?

Fee suspirou.

— Coisas que aconteceram anos antes de você nascer — disse ela, em tom patético.

Meggie, porém, sacudiu o punho com veemência.

— Oh, não, isso é que não! Depois do que acaba de me contar? Não vai se safar tentando simplesmente renovar meu interesse por um assunto já esquecido! Porcaria, porcaria, porcaria! Está ouvindo, mamãe? Você chafurdou nela durante a maior parte da sua vida, como uma mosca perdida no melaço!

Os lábios de Fee se abriram num sorriso largo, de autêntico prazer.

— Eu costumava pensar que ter uma filha não era tão importante quanto ter um filho, mas estava enganada. Eu a aprecio, Meggie, como nunca poderia apreciar meus filhos. Uma filha é uma igual. Os filhos não, e você sabe disso. Não passam de bonecos sem defesa que nós erguemos para derrubar a nosso bel-prazer.

— Você é implacável. Diga-me, então, onde foi que erramos?

— Nascendo — disse Fee.

Os homens estavam voltando para casa aos milhares, desfazendo-se dos uniformes caqui e dos chapéus desabados e trocando-os por trajes civis. E o governo trabalhista, que ainda estava no poder, olhou bem e longamente para as grandes propriedades das planícies ocidentais e para algumas das maiores fazendas mais próximas. Não era direito que uma quantidade tão grande de terra pertencesse a uma família só, quando homens que se tinham sacrificado pela Austrália precisavam de espaço para os seus pertences e o país necessitava de uma exploração mais intensiva da terra. Seis milhões de pessoas para encher uma área tão grande quanto a dos Estados Unidos da América, mas um simples punhado desses seis milhões usufruindo de vastas áreas sob um punhado de nomes. As maiores propriedades teriam de ser subdivididas, e parte da sua extensão seria cedida aos veteranos de guerra.

Bugela passou de cento e cinqüenta mil acres para setenta mil; dois soldados que voltaram da frente de combate ganharam quarenta mil acres cada um das terras de King. Rudna Hunish tinha cento e vinte mil acres e, portanto, Ross MacQueen perdeu sessenta mil, e outros dois soldados que voltaram da frente foram contemplados com eles. E assim por diante. Claro está que o governo compensou os fazendeiros, embora lhes pagasse menos do que o preço que teriam obtido no mercado aberto. E aquilo doía. Doía, sim. Não valeram argumentos para Camberra; propriedades do tamanho de Bugela e Rudna Hunish seriam divididas. Era manifesto que homem nenhum precisa de tanta terra, visto que o distrito de Gilly possuía inúmeras fazendas prósperas com menos de cinqüenta mil acres.

O que mais doía era saber que, desta vez, ao que tudo indicava, os veteranos não desistiriam. Depois da Primeira Guerra Mundial, a maioria das grandes fazendas sofrera a mesma reassunção parcial, mas a coisa fora mal feita e os criadores incipientes não tinham treinamento nem experiência; pouco a pouco, os proprietários readquiriram os seus acres dos veteranos desalentados a preços mínimos. Desta vez o governo estava preparado para treinar e ensinar à sua própria custa os novos colonos.

Quase todos os proprietários eram membros do Partido Agrário e, por princípio, sentiam aversão pelo governo trabalhista, identificando-o com os operários das cidades industriais, os sindicatos e os intelectuais marxistas incapazes. O pior de tudo foi descobrir que os Clearys, reconhecidamente trabalhistas, não perderiam um único acre da formidável extensão de Drogheda, que, sendo propriedade da Igreja Católica, estava naturalmente isenta de qualquer subdivisão. Os gritos de raiva, ouvidos em Camberra, foram ignorados. Foi muito duro para os fazendeiros, que se tinham na conta do lobby mais poderoso da nação, descobrir que o homem que brandia o chicote em Camberra fazia o que lhe dava na telha. O verdadeiro governo da Austrália era o federal, e os governos estaduais, virtualmente, não tinham poder algum.

Dessa forma, como um gigante num mundo liliputiano, Drogheda continuou intacta, com o seu quarto de milhão de acres.

A chuva ia e vinha, às vezes em quantidades adequadas, às vezes excessiva, as vezes escassa, mas, graças a Deus, nunca se repetiu a Grande Seca. Gradualmente, o número de carneiros foi crescendo e a qualidade da lã se aprimorou, tornando-se superior, em qualidade, à das épocas anteriores à seca, o que não deixava de ser um feito notável. A criação era o mais importante. Toda a gente falava em Haddon Rig, perto de Warren, que começara a competir ativamente, sob a direção do proprietário, Max Falkiner, pelos primeiros prêmios da Exposição Real da Páscoa de Sydney. E o preço da lã principiou a aumentar, depois subiu vertiginosamente. A Europa, os Estados Unidos e o Japão tinham fome de cada pedacinho de boa lã que a Austrália fosse capaz de produzir. Outros países forneciam lãs mais rústicas para tecidos pesados, tapetes, feltros; mas só as longas fibras sedosas dos merinos australianos podiam produzir um tecido de lã tão fino que escapa por entre os dedos, como a mais delicada cambraia. E esse tipo de lã atingia o seu ponto mais alto nas planícies de solo negro no noroeste da Nova Gales do Sul e no sudoeste de Queensland.

Dir-se-ia que, depois de todos os anos de tribulação, tivesse chegado uma justa recompensa. Os lucros de Drogheda elevaram-se além de tudo o que se podia imaginar. Milhões de libras por ano. Sentada à sua mesa, Fee irradiava contentamento. Bob acrescentou mais dois pastores aos empregados já registrados nos livros. Não fossem os coelhos, e as condições pastoris teriam sido ideais, mas os coelhos continuavam a ser a praga de sempre.

Na sede, a vida tornou-se, de súbito, muito agradável. As telas de arame tinham excluído as moscas de todos os interiores de Drogheda. Agora que estavam colocadas e toda a gente se acostumara com a sua aparência, não havia quem não se admirasse de haver sobrevivido sem elas. Pois havia muitas compensações para o enfeiamento causado por elas, como, por exemplo, poder comer ao ar livre, na varanda, quando fazia muito calor, debaixo da treliça coberta por glicínias.

Os sapos também gostavam das telas. Eram figurinhas verdes, com um delicado revestimento de ouro lustroso. com pés que pareciam ventosas, subiam pelo lado de fora das telas e ficavam olhando, imóveis, para os que jantavam, muito solenes e dignos. De repente, um deles dava um salto, apanhava uma mariposa quase maior do que ele, e voltava à inércia anterior com dois terços da mariposa a agitar-se, desesperada, fora da sua boca demasiado cheia. Dane e Justine divertiam-se cronometrando o tempo que levava um sapo para engolir completamente uma mariposa grande, enquanto olhava gravemente através da tela e, de dez em dez minutos, engolira mais um pedacinho do inseto. Este durava um tempão e, muitas vezes, ainda esperneava quando era tragado o derradeiro pedaço da ponta da asa.

— Puxa! Que destino! —comentava Dane com um risinho divertido. — Imagine só a metade da gente estar viva enquanto a outra metade está sendo digerida.

A avidez pela leitura — a paixão de Drogheda — dera aos dois pequenos O’Neill um excelente vocabulário numa idade precoce. Inteligentes, sempre atentos, manifestavam interesse por tudo. A vida lhes era particularmente agradável. Tinham os seus pôneis puro-sangue, cujo tamanho aumentava à medida que eles cresciam; faziam suas lições por correspondência à mesa verde da cozinha da Sra. Smith; brincavam na casinhola construída na aroeira-mole, tinham gatos, cachorros e até um lagarto de estimação, que caminhava sobre uma trela e atendia quando o chamavam pelo nome. Mas o seu bichinho predileto era um porquinho cor-de-rosa, tão inteligente quanto qualquer cachorro, chamado Iggle-Piggle.

Vivendo, como viviam, tão afastados da congestão urbana, contraíram poucas moléstias e nunca apanhavam resfriados nem gripe. Aterrorizada pelo fantasma da paralisia infantil, da difteria, de qualquer coisa que pudesse aparecer de repente, vinda não se sabe de onde, para levá-los, Meggie aplicava aos filhos todas as vacinas que aparecessem. Era uma existência ideal, cheia de atividade física e estimulação mental.

Quando Dane completou dez anos e Justine onze, foram os dois para um internato em Sydney, Dane para Riverview, como o exigia a tradição, e Justine para Kincoppal. Ao colocá-los no avião pela primeira vez, Meggie observou-lhes os rostinhos brancos, valentes e compostos a olhar pela janela, enquanto as mãos agitavam lenços; nunca tinham saído de casa. Ela quisera acompanhá-los, vê-los instalados, mas todos se mostraram tão contrários à sua ida, que acabou cedendo. Desde Fee até Jims e Patsy, os outros achavam que as crianças estariam muito melhor se se aviassem sozinhos.

— Não os mime — disse Fee, severa.

Mas ela, na verdade, se sentiu como duas pessoas diferentes quando o DC-3 decolou numa nuvem de poeira e vibrou no ar tremeluzente. A idéia de perder Dane apertava-lhe o coração, ao passo que a idéia de perder Justine desafogava-o. Não havia ambivalência em seus sentimentos para com Dane que, sempre alegre e bem-humorado, dava e aceitava amor tão naturalmente quanto respirava. Mas Justine era um amável e horrível monstrinho, que era preciso amar, porque havia nela muita coisa digna de amor: sua força, sua integridade, sua autoconfiança — inúmeras coisas. Mas o diabo é que ela não aceitava o amor como Dane, nem dera jamais a Meggie a maravilhosa sensação de ser necessária. Não era afável nem travessa e tinha o hábito desastroso de repelir as pessoas, sobretudo a mãe, segundo lhe parecia. Meggie encontrou nela muita coisa que a exasperara em Luke, mas, pelo menos, reconhecia que Justine não era tacanha. E sentia-se grata por isso.

A existência de uma próspera companhia de aviação significava que as crianças poderiam passar em Drogheda todas as férias, até as mais curtas. Entretanto, após um período inicial de adaptação, os dois começaram a apreciar a experiência escolar. Dane sentia sempre saudades de casa depois de uma visita a Drogheda, mas Justine afeiçoou-se a Sydney como se nunca tivesse saído de lá, e passava as férias em Drogheda ansiando por voltar à cidade. Os jesuítas de Riverview ficaram encantados; Dane era um aluno maravilhoso, tanto na sala de aulas quanto no recreio. As freiras de Kincoppal, por outro lado, não ficaram encantadas; nenhuma pessoa que tivesse os olhos de Justine e a sua língua ferina poderia esperar ser popular. Um ano mais adiantada do que Dane, ela talvez fosse melhor aluna do que ele, mas só na sala de aulas.

O número de 4 de agosto do SydneyMoming Herald era muito interessante. O jornal raramente estampava na primeira página mais de uma fotografia, geralmente da cintura para cima, relativa à história mais importante do dia. E, naquele dia, a fotografia era um belo retrato de Ralph de Bricassart.

Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo Ralph de Bricassart, atualmente auxiliar do Secretário de Estado da Santa Sé de Roma, foi hoje elevado à dignidade cardinalícia por Sua Santidade o Papa Pio XII.

Ralph Raoul, Cardeal de Bricassart, tem uma longa e ilustre associação com a Igreja Católica Romana na Austrália, desde a sua chegada como padre recém-ordenado, em julho de 1919, até a sua partida para o Vaticano em março de 1938.

Nascido a 23 de setembro de 1893 na República da Irlanda, o Cardeal de Bricassart é o segundo filho de uma família cuja ascendência remonta ao Barão Ranulfo de Bricassart, que aportou à Inglaterra no séquito de Guilherme, o Conquistador. Por tradição, o Cardeal de Bricassart esposou a Igreja. Entrou para o seminário aos dezessete anos de idade e, assim que recebeu as ordens sacras, foi mandado para a Austrália. Seus primeiros meses passou-os a serviço do finado Bispo Michael Clabby, da diocese de Winnemurray.

Em junho de 1920 foi transferido para a paróquia de Gillanbone, no noroeste da Nova Gales do Sul, como seu titular. Nomeado Monsenhor, continuou em Gillanbone até dezembro de 1928. A partir de então, foi secretário particular de Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo Cluny Dark, e secretário particular do arcebispo e legado papal, Sua Eminência o Cardeal di Contini-Verchese. Durante esse tempo foi elevado à condição de bispo. Na ocasião em que o Cardeal di Contini-Verchese, transferido para Roma, encetou sua notável carreira no Vaticano, o Bispo de Bricassart, nomeado Arcebispo, voltou à Austrália como Legado Papal, cargo que exerceu até transladar-se para Roma em 1938; a partir desse momento sua ascensão dentro da hierarquia central da Igreja Católica Romana tem sido espetacular. Agora, aos 58 anos de idade, consta que ele é um dos poucos homens ativamente envolvidos na determinação da política papal.

Um representante do Sydney Morning Herald entrevistou ontem alguns exparoquianos do Cardeal de Bricassart na área de Gillanbone. Todos se lembram dele com muita afeição. No rico distrito lanígero predomina a população católica.

”O Padre de Bricassart fundou a Sociedade Bibliófila Santa Cruz dos Campos”, disse o Sr. Harry Gough, prefeito de Gillanbone. ”Foi — sobretudo para a época — um serviço notável; muito bem amparado financeiramente, a princípio pela finada Sra. Mary Carson e, após a sua morte, pelo próprio cardeal, que nunca nos esqueceu nem esqueceu nossas necessidades.”

”O Padre de Bricassart foi o homem mais bem-parecido que já vi em minha vida”, disse a Sra. Fiona Cleary, atual decana de Drogheda, uma das maiores e mais prósperas fazendas de Nova Gales do Sul. ”Durante o tempo em que esteve em Gilly, representou um grande apoio espiritual para os seus paroquianos e, particularmente, para nós de Drogheda, a qual, como se sabe, hoje pertence à Igreja Católica. Durante as inundações, ajudou-nos a remover nossos rebanhos, durante os incêndios acudiu em nosso auxílio, nem que fosse para sepultar nossos mortos. Foi, com efeito, um homem extraordinário em todos os sentidos, e dono de um carisma que não encontrei em nenhum outro. Via-se que estava destinado a grandes coisas. Lembramo-nos dele, com efeito, embora se tenham passado mais de vinte anos depois que nos deixou. Sim, creio que se pode dizer, sem faltar à verdade, que há pessoas no distrito de Gilly que ainda sentem muito a sua falta.”

Durante a guerra, o então Arcebispo de Bricassart serviu a Sua Santidade leal e inabalavelmente e atribui-se-lhe o mérito de haver influído na decisão do Marechal-de-Campo Albert Kesselring de manter Roma como cidade aberta, depois que a Itália passou a ser inimiga da Alemanha. Florença, que pleiteara em vão idêntico privilégio, perdeu muitos dos seus tesouros, só restaurados mais tarde porque a Alemanha perdeu a guerra. No período que se seguiu imediatamente ao conflito, o Cardeal de Bricassart ajudou milhares de pessoas deslocadas a encontrar asilo em novos países, e empenhou-se vigorosamente em fomentar o programa australiano de imigração.

Conquanto irlandês de nascimento e, embora pareça que não exercerá na Austrália sua influência como Cardeal de Bricassart, ainda assim nos parece que a Austrália pode, com muita justiça, reivindicar como seu esse homem notável.

Meggie devolveu o jornal a Fee e sorriu para a mãe com expressão pesarosa.

— Precisamos lhe dar os parabéns, como eu disse ao repórter do Herald. Eles não imprimiram isso, imprimiram? Embora tivessem transcrito o seu elogiozinho quase na íntegra. Puxa! Que língua farpada você tem! Pelo menos já sei de quem Justine herdou a dela. E fico me perguntando quantas pessoas saberão ler nas entrelinhas o que você disse!...

— Ele saberá, se chegar a ler a reportagem.

— Será que se lembra de nós? — perguntou Meggie, suspirando.

— É claro que sim. Afinal de contas, ele ainda acha tempo para administrar Drogheda. É evidente que se lembra de nós, Meggie. Como poderia esquecer?

— É verdade, eu tinha-me esquecido de Drogheda. Estamos na ponta em matéria de lucros, não estamos? Ele deve andar muito satisfeito. com a nossa lã ao preço que está no mercado, o cheque da lã de Drogheda, este ano, deve ter deixado as minas de ouro com dor de cotovelo. E por falar em ouro, mais de quatro milhões de libras, só com a barba dos nossos carneirinhos!

— Não seja cínica, Meggie, isso não lhe assenta bem — disse Fee; sua maneira de tratar Meggie nesses dias, embora um tanto intimidante, era temperada de respeito e afeto. — Nós nos saímos muito bem, não foi mesmo? Não se esqueça de que temos recebido nosso dinheiro todos os anos, bons ou maus. Além disso, ele deu a Bob cem mil libras de gratificação e a cada um de nós cinqüenta mil. Se nos pusesse amanhã para fora de Drogheda, estaríamos em condições de comprar Bugela, apesar da inflação dos preços das terras. E quanto foi que deu a seus filhos? Milhares e milhares. Seja justa com ele.

— Mas meus filhos não sabem disso, e nem saberão. Dane e Justine crescerão pensando que precisam abrir seu próprio caminho no mundo, sem os favores do querido Ralph Raoul, Cardeal de Bricassart. Gozado o segundo nome dele ser Raoul! Bem normando, não é?

Fee levantou-se, dirigiu-se para a lareira e jogou a primeira página do Herald no fogo. Ralph Raoul, Cardeal de Bricassart, estremeceu, piscou para ela e, logo depois, encarquilhou-se todo.

— Que fará você se ele voltar, Meggie? Meggie fungou.

— É pouco provável!

— Mas é possível — teimou Fee, enigmática.

E ele voltou, em dezembro. Silenciosamente, sem que ninguém soubesse, dirigindo um Aston Martin esportivo desde Sydney. Nem uma palavra acerca da sua presença na Austrália chegara à imprensa, de modo que ninguém em Drogheda tinha a mais remota suspeita da sua vinda. Quando o automóvel parou na área coberta de cascalho num dos lados da casa, não havia ninguém por perto e, aparentemente, ninguém o ouvira chegar, pois ninguém assomou à varanda.

Ele sentira os quilômetros percorridos desde Gilly em cada célula do seu corpo, aspirara os cheiros do campo, dos carneiros, do capim seco que brilhava, exuberante, ao sol. Cangurus e emus, cacatuas e lagartos, milhões de insetos que zumbiam e se moviam aos pulos, formigas que cruzavam a estrada marchando, em fila indiana, carneiros gordos e atarracados em toda parte. Era assim que ele gostava da paisagem, que se conformava, num aspecto curioso, com o que ele amava em todas as coisas; os anos que passavam mal pareciam tocá-la.

A única diferença era a tela contra as moscas, mas ele reparou, divertido, que Fee não permitira fosse a varanda da casa-grande, fronteira à estrada de Gilly, telada como o resto; só se viam telas nas janelas que abriam para ela. Ela estava certa, naturalmente; uma grande extensão de tela estragaria as linhas da linda fachada georgiana. Quanto tempo duravam os eucaliptos? Aqueles deviam ter sido transplantados do interior de Dead Heart oitenta anos atrás. As buganvílias, nos galhos mais altos, eram uma massa deslizante de cobre e púrpura.

Já chegara o verão, só faltavam duas semanas para o Natal, e as rosas de Drogheda estavam no auge. Havia rosas em toda parte, róseas, brancas e amarelas, carmesins como o sangue do coração, escarlates como a sotaina de um cardeal. No meio das glicínias, agora verdes, rosas trepadeiras dormitavam, róseas e brancas, caíam do telhado da varanda até a tela de arame, agarravam-se, amorosas, às venezianas pretas do segundo andar, estendiam gavinhas por elas na direção do céu. A vegetação que cobria os tanques e os próprios tanques não se podiam ver. E em toda parte havia uma cor entre as rosas, um róseo-acinzentado pálido. Cinzas de rosas? Sim, era esse o nome da cor. Meggie deveria tê-las plantado, tinha de ser Meggie.

Ele ouviu-lhe a risada e permaneceu imóvel, aterrado. Em seguida, obrigou os pés a andarem na direção do som, que se convertera agora em deliciosas gargalhadas. Exatamente o modo com que ela costumava rir quando garotinha. Era lá! Mais adiante, atrás de uma grande massa de rosas de um róseo-acinzentado, perto de uma aroeira-mole. Empurrou com a mão, para o lado, os ramos de flores, enquanto a cabeça rodava por efeito do perfume das flores e do riso.

Meggie, todavia, não estava lá. Só viu um menino acocorado na grama viçosa, arreliando um porquinho cor-de-rosa, que dava umas corridas idiotas na sua direção, afastava-se a galope, voltava às escondidas. Sem ter consciência de que era observado, o menino atirou a cabeça loura para trás e riu-se. O riso de Meggie, saindo de uma garganta que não lhe era familiar. Sem querer, o Cardeal Ralph soltou as rosas, deixandoas voltar aos seus lugares e passou pelo meio delas, sem atentar para os espinhos. O menino, que teria uns doze ou catorze anos, à beira da puberdade, ergueu os olhos, surpreso; o porquinho guinchou, enrolou com firmeza o rabinho e saiu correndo.

Descalço, o menino vestia um velho short caqui e nada mais; com a pele sedosa, de um castanho-dourado, o corpo esguio já sugeria a força que teria mais tarde na amplitude dos jovens ombros quadrados, nos músculos bem-desenvolvidos das panturrilhas e das coxas, na barriga achatada, nos quadris estreitos. O cabelo, um pouco longo e frouxamente anelado, tinha exatamente a cor esbranquiçada do capim de Drogheda, e os olhos, através dos cílios absurdamente grossos e negros, eram de um azul intenso. Dir-se-ia um anjo muito jovem que tivesse fugido.

— Olá — disse o menino, sorrindo.

— Olá — disse o Cardeal Ralph, achando impossível resistir ao encanto daquele sorriso. — Quem é você?

— Sou Dane O’Neill — respondeu o menino. — Quem é o senhor?

— Eu me chamo Ralph de Bricassart.

Dane O’Neill. Filho de Meggie, portanto. O que queria dizer que ela não deixara Luke O’Neill, voltara para ele, dera à luz aquele formoso rapaz que poderia ter sido seu, se ele não tivesse desposado a Igreja primeiro. Que idade teria quando desposara a Igreja? Não seria muito mais velho do que o garoto, nem muito mais amadurecido. Se tivesse esperado, o menino talvez fosse seu. Que disparate, Cardeal de Bricassart! Se você não tivesse casado com a Igreja, teria permanecido na Irlanda, criando cavalos, e jamais conheceria o seu destino, jamais conheceria Drogheda nem Meggie Cleary.

— Posso ajudá-lo em alguma coisa? — perguntou o garoto, polido, pondo-se em pé com uma graça flexível que o Cardeal Ralph reconheceu e achou que fosse de Meggie.

— Seu pai está aqui, Dane?

— Meu pai? — As sobrancelhas escuras, finamente desenhadas, se juntaram

Não, não está. Ele nunca esteve aqui.

— Entendo. E sua mãe?

— Está em Gilly, mas voltará logo. Quem está em casa é minha avó. Gostaria de vê-la? Posso levá-lo até lá. — Os olhos azuis como centáureas azuis fixaram-se nele, alargaram-se, estreitaram-se. — Ralph de Bricassart. Já ouvi falar no senhor. É isso mesmo! O Cardeal de Bricassart! Desculpe, Eminência! Eu não pretendia ser grosseiro.

Embora tivesse trocado suas insígnias eclesiásticas por botas, calças de montar e uma camisa branca, o anel de rubi ainda lhe fulgurava no dedo, de onde não poderia ser retirado enquanto ele vivesse. Dane O’Neill ajoelhou-se, tomou a mão fina do Cardeal Ralph nas suas mãos finas, e beijou o anel, reverente.

— Não se preocupe, Dane. Não estou aqui como o Cardeal de Bricassart, mas como amigo de sua mãe e de sua avó.

— Desculpe, Eminência, eu deveria ter reconhecido o seu nome assim que o ouvi. Ele é pronunciado com muita freqüência por aqui. Só que o senhor o pronuncia de modo um pouco diferente, e o seu primeiro nome me deixou atrapalhado. Sei que minha mãe terá muito prazer em vê-lo.

— Dane, Dane, onde é que você está? — chamou uma voz impaciente, profunda e fascinantemente rouca.

A ramagem pendente da aroeira separou-se e uma menina de seus quinze anos apareceu, endireitando o corpo. Ele a reconheceu na hora, por causa dos olhos assombrosos. A filha de Meggie. Coberta de sardas, rosto comprido, traços miúdos, desapontadoramente diferente da mãe.

— Oh, olá. Desculpe, eu não sabia que tínhamos visita. Sou Justine O’Neill.

— Jussy, este é o Cardeal de Bricassart! — disse Dane num sussurro alto. — Beije o anel dele, depressa!

Os olhos que pareciam cegos brilharam de desdém.

— Você fica um bocó quando se trata de religião, Dane — disse ela, sem se preocupar em abaixar a voz. — Beijar anéis é anti-higiênico; não o beijarei. De mais a mais, como saberemos que ele é o Cardeal de Bricassart? A mim me parece um daqueles velhos fazendeiros antiquados. Você sabe, como o Sr. Gordon.

— É ele, é ele — insistiu Dane. — Por favor, Jussy, seja boazinha! Seja boazinha por mim!

— Está bem, serei boazinha, mas só por você. Mas não beijarei o anel, nem por você. É nojento. Como vou saber quem o beijou por último? A pessoa podia estar resfriada.

— Você não precisa beijar meu anel, Justine. Estou aqui de férias; neste momento não sou um cardeal.

— Isso é bom, porque vou lhe dizer francamente, sou ateia — declarou, muito calma, a filha de Meggie Cleary. — Depois de passar quatro anos em Kincoppal, cheguei à conclusão de que tudo isso não passa de uma grande papagaiada.

— É um direito seu — disse o Cardeal Ralph, tentando desesperadamente parecer tão sério e digno quanto ela. — Posso falar com sua avó?

— Naturalmente. Precisa de nós? — perguntou Justine.

— Não, obrigado. Conheço o caminho.

— Ótimo. — Ela voltou-se para o irmão, que continuava boquiaberto diante do visitante. — Venha, Dane, venha me ajudar. Venha!

Mas, embora Justine lhe puxasse o braço com força, Dane não se mexeu, observando o vulto alto e ereto do Cardeal Ralph desaparecer atrás das rosas.

— Você é mesmo um bocó, Dane. O que é que ele tem de tão especial?

— É um cardeal! — disse Dane. — Imagine só! Um cardeal vivo, de verdade, em Drogheda!

— Os cardeais — disse Justine — são Príncipes da Igreja. Acho que você tem razão, isso é extraordinário. Mas eu não gosto dele.

Onde mais poderia estar Fee, senão à sua escrivaninha? Ele entrou na sala por um dos janelões, operação que, agora, exigia a abertura de uma tela. Embora devesse tê-lo ouvido, ela continuou trabalhando, as costas curvadas, o lindo cabelo de ouro já todo prateado. com certa dificuldade, ele calculou que ela devia orçar pelos setenta e dois anos.

— Olá, Fee — disse Ralph.

Quando ela ergueu a cabeça, ele percebeu uma mudança, embora não pudesse precisar-lhe a natureza; a indiferença lá estava, mas lá estavam também várias outras coisas. Como se ela se tivesse suavizado e endurecido ao mesmo tempo, tornando-se mais humana, porém humana de um modo parecido com o de Mary Carson. Meu Deus, as matriarcas de Drogheda! Será que isso aconteceria a Meggie também, quando chegasse a sua vez?

— Olá, Ralph — disse ela, como se ele entrasse por aquela janela todos os dias. — Que prazer em vê-lo!

— O prazer é meu, Fee.

— Eu não sabia que estava na Austrália.

— Ninguém sabe. Tenho algumas semanas de férias.

— Espero que fique conosco.

— E onde mais ficaria? — Seus olhos passearam pelas magníficas paredes, e pousaram no retrato de Mary Carson. — Você tem um bom gosto impecável, Fee, infalível. Esta sala não fica nada a dever às do Vaticano. Essas formas ovais pretas com as rosas são um rasgo de gênio.

— Oh, muito obrigada! Fazemos humildemente o que podemos. Pessoalmente, prefiro a sala de jantar. Tornei a decorá-la depois da sua última visita. Cor-de-rosa, branca e verde. Falando assim, parece horrível, mas espere até vê-la. Embora eu mesma não saiba por que faço isso. A casa é sua, não é?

— Não, enquanto houver um Cleary vivo, Fee — disse ele calmamente.

— O que não deixa de ser confortador. Muito bem, você progrediu bastante desde o tempo em que esteve em Gilly, não é mesmo? Viu o artigo do Herald sobre a sua promoção?

— Vi. Sua língua se afiou, Fee.

— Sim, e o que é pior, estou gostando disso. Durante todos esses anos fiquei quieta e não disse uma palavra! Eu não sabia o que estava perdendo. — Ela sorriu. — Meggie está em Gilly, mas não demora.

Dane e Justine irromperam através das janelas.

— Vó, podemos ir a cavalo até o poço?

— Vocês conhecem as regras! Nada de andar a cavalo sem a permissão pessoal de sua mãe. Sinto muito, mas estas são as ordens dela. Onde estão os seus modos? Venham cá. Quero apresentá-los ao nosso visitante.

— Eu já estive com eles.

— Oh.

— Pensei que você estivesse num internato neste momento — disse ele a Dane, sorrindo.

— Em dezembro não, Eminência. Temos agora dois meses de férias... as férias de verão.

Fazia tantos anos! Ele se esquecera de que, no hemisfério sul, as férias mais longas das crianças coincidiam com os meses de dezembro e janeiro.

— Vai demorar-se aqui muito tempo, Eminência? — perguntou Dane, ainda fascinado.

— Sua Eminência ficará conosco o tempo que puder, Dane — interveio a avó —, mas creio que ele achará meio cansativo ser chamado de Eminência o tempo todo. Vamos ver, que nome lhe daremos? Tio Ralph.

— Tio! — exclamou Justine. — Você sabe que ”tio” é contra as regras da família, vó! Nossos tios são apenas Bob, Jack, Hughie, Jims e Patsy. O que quer dizer que ele é Ralph.

— Não seja tão grosseira, Justine! Afinal, que fim levaram os seus modos? — perguntou Fee.

— Não, Fee, está bem. Prefiro mesmo que todos me chamem simplesmente de Ralph — apressou-se a dizer o Cardeal. Por que havia de antipatizar tanto com ele a estranha criaturinha?

— Eu não poderia! — disse Dane com voz entrecortada. — Eu não poderia chamá-lo apenas de Ralph.

O Cardeal Ralph atravessou a sala, segurou com as mãos os ombros nus, enquanto seus olhos azuis cintilavam, bondosos e vividos, entre as sombras da sala.

— É claro que pode, Dane. Não é nenhum pecado.

— Vamos, Dane, vamos voltar para a casinha — ordenou Justine.

O Cardeal Ralph e o filho viraram-se na direção de Fee e olharam juntos para ela.

— Deus nos acuda! — exclamou Fee. — Vá, Dane, vá brincar lá fora. — Bateu palmas. — Depressa!

O menino saiu disparado da sala e Fee encaminhou-se lentamente para os seus livros. O Cardeal Ralph teve pena dela e anunciou que iria até à cozinha. O lugar mudara tão pouco! Ainda iluminado por lampiões, é claro, e ainda cheirando a cera de abelhas e a grandes vasos de rosas.

Ele ficou conversando longamente com a Sra. Smith e as criadas, que haviam envelhecido muito desde a sua última visita. De certo modo, porém, a velhice combinava mais com elas do que com Fee. Felizes. Eis o que eram. Autêntica e quase perfeitamente felizes. Pobre Fee, que não era feliz. Isso o fez desejar ainda mais ver Meggie, descobrir se era feliz.

Mas, quando saiu da cozinha, Meggie ainda não voltara, de modo que, para encher o tempo, pôs-se a caminhar na direção do córrego. Como estava pacífico o cemitério! Havia seis placas de bronze na parede do mausoléu, exatamente como ele a deixara. Precisava recomendar que o enterrassem lá também; não podia esquecer-se de dar as instruções necessárias quando voltasse a Roma. Perto do mausoléu notou duas novas sepulturas, a do velho tom, o jardineiro, e a da esposa de um dos pastores, cujo nome constara da folha de pagamentos desde 1946. Devia haver alguma espécie de registro.

A Sra. Smith achava que ele ainda estava na fazenda porque a esposa jazia ali. O guardachuva ancestral do cozinheiro chinês desbotara quase que de todo depois de tantos anos de sol escaldante, e do vermelho imperial original, passando pelos vários matizes de que ele se lembrava, chegara ao atual róseo esbranquiçado, quase cinzas de rosas. Meggie, Meggie Você voltou para ele depois de mim, você lhe deu um filho.

Fazia muito calor; um ventozinho agitava os chorões ao longo do córrego e arrancava dos sinos sobre o guarda-chuva do cozinheiro chinês sua melancólica e metálica melodia: Hee Sing, Hee Sing, Hee Sing. CHARLIE ERA UM bom SUJEITO. Isso também esmaecera, ficara praticamente indecifrável. E assim devia ser. Os cemitérios deviam voltar às entranhas da Mãe Terra, perder sua carga humana debaixo da lavagem do tempo, até que tudo se fosse e só o ar se lembrasse, suspiroso. Repugnava a idéia de ser sepultado numa cripta do Vaticano, entre homens iguais a ele. Queria ficar aqui, entre pessoas que tinham realmente vivido.

Quando se voltou, seus olhos surpreenderam o olhar verde do anjo de mármore. Ergueu a mão, saudou-o e olhou, por cima do relvado, para a casa-grande. Meggie vinha vindo. Delgada, dourada, envergando um par de calças e uma camisa branca de homem, exatamente igual à sua, um chapéu masculino, de feltro cinzento, esquecido na parte de trás da cabeça, botas amareladas nos pés. Como um menino, como o filho, que devera ter sido filho dele. Ele era um homem, mas, quando também jazesse ali, não deixaria nada vivo para assinalar o fato.

Ela aproximou-se, saltou a cerca branca e chegou tão perto que a única coisa que ele pôde ver foram seus olhos, os olhos cinzentos, cheios de luz, que não tinham perdido a beleza nem o domínio sobre seu coração. Os braços dela envolveram-lhe o pescoço, o destino dele estava novamente ao seu alcance, como se ele nunca tivesse estado longe dela, a boca viva debaixo da sua boca já não era um sonho; tão longamente acalentado, tão longamente. Uma espécie diferente de sacramento, escuro como a terra, que nada tinha a ver com o céu.

— Meggie, Meggie — disse ele, com o rosto no cabelo dela, o chapéu dela na grama, os braços dele enlaçando-a.

— Isso parece não ter importância, não é mesmo? Nada muda, nunca — disse ela, com os olhos cerrados.

— Não, nada muda — confirmou ele, acreditando.

— Isto é Drogheda, Ralph. Eu o avisei, em Drogheda você é meu, não de Deus.

— Eu sei. Reconheço isso. Mas vim. — Puxou-a para baixo, para a grama. — Por quê, Meggie?

— Por que o quê? — A mão dela acariciava-lhe o cabelo, agora mais branco que o de Fee, ainda cheio, ainda belo.

Por que voltou para Luke? E teve o filho dele? — perguntou Ralph, enciumado.

A alma dela olhou por trás das suas luminosas janelas cinzentas e escondeu-lhe os seus pensamentos.

Porque ele me obrigou — disse ela suavemente. — Foi só uma vez. Mas tive Dane, por isso não o lamento. Dane valeu tudo por que passei para consegui-lo.

Desculpe, eu não tinha o direito de perguntar. Em primeiro lugar, fui eu quem deu você a Luke, não fui?

— É verdade, foi você.

É um menino maravilhoso. Parece-se com Luke?

Ela sorriu secretamente, deu um puxão na grama, enfiou a mão por dentro da camisa dele, encostou-a no seu peito.

Não, não se parece. Nenhum dos meus filhos é muito parecido com Luke,

nem comigo.

— Eu os amo porque são seus.

Sentimental como sempre. A velhice lhe assenta bem, Ralph. Eu sabia que assentaria e esperava ter a oportunidade de vê-lo. Faz trinta anos que o conheço! E parece que faz trinta dias.

— Trinta anos? Tanto assim?

— Tenho quarenta e um, meu caro, tem de ser isso mesmo. — Ela pôs-se em pé. — Fui oficialmente mandada para chamá-lo. A Sra. Smith está preparando um esplêndido chá em sua homenagem e, mais tarde, quando estiver um pouco mais fresco, haverá pernil de porco assado, com torresmo em quantidade.

Ele começou a andar lentamente com ela.

— Seu filho ri exatamente como você, Meggie. O riso dele foi o primeiro som humano que ouvi em Drogheda. Pensei que fosse você; fui procurá-la e, em seu lugar, dei com ele.

— Quer dizer que foi ele a primeira pessoa que você viu em Drogheda.

— É, creio que foi.

— Que tal o achou, Ralph? — perguntou ela, ansiosa.

— Gostei. E como poderia não ter gostado, se é seu filho? Senti-me atraído muito vigorosamente por ele, muito mais do que por sua filha. Aliás, ela não gosta de mim.

— Justine pode ser minha filha, mas é uma putinha. Aprendi a dizer palavrões depois de velha, graças principalmente a Justine. E um pouco graças a você. E um pouco graças a Luke. E um pouco também graças à guerra. É engraçado como tudo se acumula.

— Você mudou muito, Meggie.

Mudei? — A boca suave e cheia curvou-se num sorriso. — Pois não acho. É apenas o Grande Noroeste, que me está gastando, arrancando as camadas, uma por uma, como os sete véus de Salomé. Ou como uma cebola, que seria a comparação escolhida por Justine. Não tem poesia alguma, aquela criança. Sou a mesma velha Meggie, Ralph, apenas um pouco mais nua.

— Talvez.

— Mas você, sim, mudou, Ralph.

— De que maneira, minha Meggie?

— Como se o pedestal oscilasse à passagem de cada brisa, e como se a vista de cima dele fosse uma decepção.

— E é. — Ele riu-se, sem emitir som algum. — E creio que tive, certa vez, a temeridade de dizer que você não era nada mais que o comum! Retiro o que disse. Você é a única mulher, Meggie. A única!

— Que aconteceu?

— Não sei. Terei descoberto que até os ídolos da Igreja têm pés de barro? Terei me vendido por um prato de sopa? Estarei me agarrando ao nada? — Suas sobrancelhas se uniram, como se ele estivesse sofrendo. — Talvez seja isso, em poucas palavras. Sou uma massa de clichês. O mundo vaticano é um mundo velho, azedo, petrificado.

— Eu era mais real, mas você nunca o percebeu.

— Eu não podia ter feito outra coisa! Eu sabia para onde devia ir, mas não podia. Ao seu lado eu talvez tivesse sido um homem melhor, ainda que menos augusto. Mas eu não podia, Meggie. Oh, como eu queria poder fazê-la enxergar tudo isso!

A mão dela acariciou-lhe com ternura o braço nu.

— Ralph querido, eu enxergo, sim. Eu sei, eu sei... Cada um de nós tem dentro de si alguma coisa que não pode ser negada, ainda que nos faça gritar, gritar, até o fim. Somos o que somos, e pronto. Como a velha lenda celta do pássaro com o espinho no peito que canta até morrer. Porque precisa fazê-lo, porque é levado a isso. Podemos saber que vamos errar antes até de cometer o erro, mas o conhecimento de nós mesmos não afeta nem muda o resultado. Cada qual entoa o seu canto, convencido de que é o mais maravilhoso que o mundo já ouviu. Você não vê? Criamos nossos espinhos e nunca nos detemos para avaliar o custo. A única coisa que podemos fazer é sofrer a dor e dizer intimamente que valeu a pena.

— É isso o que não compreendo. A dor. — Ele abaixou os olhos para a mão dela, pousada com tanta delicadeza em seu braço, e que o machucava de maneira tão insuportável. — Por que a dor, Meggie?

— Pergunte a Deus, Ralph — disse Meggie. — Ele é uma autoridade em dor, não é? Ele nos fez o que somos. Fez o mundo inteiro. Por conseguinte, fez a dor também-Bob, Jack, Hughie, Jims e Patsy estavam presentes ao jantar, pois era sábado à noite. No dia seguinte, o Padre Watty viria rezar a missa, mas Bob telefonou-lhe dizendo que ninguém estaria na fazenda. Uma pequena mentira, destinada a preservar o anonimato do Cardeal Ralph. Os cinco rapazes Cleary estavam cada vez mais parecidos com Paddy, mais velhos, mais lentos no falar, tão firmes e resistentes quanto a terra. E como gostavam de Dane! Seus olhos nunca pareciam deixá-lo e seguiam-no até quando ele saía da sala a fim de recolher-se ao quarto. Não era difícil concluir que eles viviam para o dia em que ele tivesse idade suficiente para ajudá-los a administrar Drogheda.

O Cardeal Ralph também descobrira o por quê da inimizade de Justine. Dane simpatizara com ele, bebia-lhe as palavras, demorava-se na sua companhia; ela estava com ciúme.

Depois que as crianças subiram, ele olhou para os que tinham ficado: os irmãos, Meggie, Fee.

— Fee, deixe a escrivaninha por um instante — pediu. — Venha sentar-se aqui conosco. Quero falar com vocês todos.

Ela ainda se movia com elegância e ainda tinha um bom corpo; apenas os seios estavam mais flácidos e a cintura engrossara um pouco, mais por efeito da idade do que de um aumento real de peso. Ela sentou-se em silêncio numa das grandes poltronas creme defronte do Cardeal, ficando Meggie de um lado e os irmãos sentados em bancos de pedra, bem próximos.

— É a respeito de Frank — disse ele.

O nome pairou entre os presentes e ressoou, distante.

— O que é que tem Frank? — perguntou Fee com serenidade. Meggie depôs o tricô, olhou para a mãe e depois para o Cardeal Ralph.

— Conte-nos, Ralph — disse ela, depressa, incapaz de suportar por mais tempo a serenidade materna.

— Vocês já pensaram que Frank passou quase trinta anos na prisão? — perguntou o Cardeal. — Sei que a minha gente os manteve informado conforme havíamos combinado, mas pedi a ela que não os afligisse desnecessariamente, pois achei que não poderia fazer bem algum a Frank ou a vocês ouvir os detalhes contundentes da sua solidão e do seu desespero, já que nenhum de nós poderia fazer coisa alguma. Creio que Frank teria sido solto anos antes se não tivesse adquirido uma reputação de violência e instabilidade nos primeiros anos que passou na Prisão de Goulburn. Até durante a guerra, quando outros prisioneiros foram libertados para servir no exército, o pobre Frank foi recusado.

Fee ergueu os olhos das mãos.

— É o seu temperamento — disse ela, sem emoção.

O cardeal parecia ter dificuldade para encontrar as palavras certas; enquanto ele as procurava, a família observava-o com um misto de medo e esperança, embora não fosse o bem-estar de Frank que a preocupava.

— Vocês devem estar muito intrigados com a razão da minha volta à Austrália depois de todos estes anos — disse finalmente o Cardeal Ralph, sem olhar para Meggie. — Nem sempre pensei em vocês, e tenho consciência disso. Desde o primeiro dia em que os conheci, sempre pensei primeiro em mim, colocando-me em primeiro lugar. E quando o Santo Padre recompensou meus trabalhos em prol da Igreja com um manto de cardeal, perguntei a mim mesmo que serviço eu poderia prestar à família Cleary para mostrar-lhe, de certo modo, o quanto é profundo meu interesse por ela. — Fez uma pausa para respirar e concentrou o olhar em Fee, não em Meggie

Voltei à Austrália a fim de ver o que poderia fazer por Frank. Lembra-se, Fee, da ocasião em que lhe falei, após a morte de Paddy e de Stu? Faz vinte anos, e nunca me esquecerei a expressão que vi em seus olhos. Tanta energia e tanta vitalidade esmagadas.

— Sim — interveio Bob, de repente, com os olhos pregados em sua mãe. — É isso mesmo.

— Frank recebeu liberdade condicional — disse o Cardeal. — Foi a única coisa que pude fazer para demonstrar meu interesse.

Se ele tivesse esperado um súbito e ofuscante chamejar de luz na longa escuridão de Fee, teria ficado muito decepcionado; a princípio não foi mais que um bruxuleio, e talvez o peso da velhice nunca lhe permitisse brilhar em todo o seu esplendor. Mas nos olhos dos filhos de Fee viu-lhe a verdadeira magnitude, e conheceu um sentido de sua própria finalidade que não sentira desde o momento em que, durante a guerra, conversara com o jovem soldado alemão de nome imponente.

— Obrigada — disse Fee.

— Vocês lhe darão as boas-vindas aqui em Drogheda? — perguntou aos homens da família.

— Esta é a casa dele, é aqui que ele deve ficar — respondeu Bob, enigmático. Todos fizeram gestos de assentimento com a cabeça, exceto Fee, que parecia absorta em alguma visão particular.

— Ele não é o mesmo Frank — prosseguiu o Cardeal Ralph com delicadeza. — Visitei-o na Prisão de Goulburn para lhe dar a notícia antes de vir para cá, e tive de lhe contar que toda a gente em Drogheda sempre estivera a par do que lhe acontecera. Se eu lhes disser que minhas palavras não o comoveram, vocês poderão ter uma idéia da mudança que nele se operou. Ele se mostrou simplesmente... agradecido. E muito ansioso por tornar a ver a família, especialmente você, Fee.

— Quando será solto? — perguntou Bob, limpando a garganta, e mostrando claramente o conflito entre o prazer que o fato proporcionaria a sua mãe e o medo do que poderia acontecer quando Frank regressasse.

Em uma ou duas semanas. Virá pelo noturno da correspondência. Eu queria que viesse de avião, mas ele me disse que preferia o trem.

Patsy e eu iremos recebê-lo — ofereceu-se Jims com sofreguidão, mas logo pareceu consternado. — Oh! Mas nem sabemos como ele é!

Não — acudiu Fee. — Eu mesma irei recebê-lo. Sozinha. Ainda não estou caduca; ainda posso dirigir até Gilly.

Mamãe tem razão — interveio Meggie com firmeza, prevenindo um coro de protesto dos irmãos. — Deixem-na ir sozinha. Ela é quem deve vê-lo primeiro.

Bem, tenho serviço para fazer — desculpou-se Fee, com voz rouca, levantando-se e encaminhando-se para a escrivaninha.

Os cinco irmãos ergueram-se como um homem só.

Acho que está na nossa hora de dormir — disse Bob, bocejando cuidadosamente. Sorriu, acanhado, para o Cardeal Ralph. — Será como nos velhos tempos, o senhor rezando a missa para nós domingo de manhã.

Meggie dobrou o tricô, pô-lo de lado, levantou-se.

— Também quero dizer boa-noite, Ralph.

— Boa-noite, Meggie.

Os olhos dele seguiram-na até que ela saiu da sala, e depois se voltaram para as costas curvadas de Fee.

— Boa-noite, Fee.

— Desculpe... Falou comigo?

— Eu disse boa-noite.

— Oh! Boa-noite, Ralph.

Ele não queria subir tão cedo, logo depois de Meggie.

— Darei um passeio antes de me recolher, creio eu. Sabe de uma coisa, Fee?

— Diga. — A voz dela parecia ausente.

— Você não me engana nem por um minuto. Ela riu com desdém, e seu riso era sombrio.

— Não? Isso às vezes me surpreende.

Noite alta e as estrelas. As estrelas meridionais, revoluteando pelo céu. Ele perdera o poder sobre elas para sempre, embora ainda estivessem lá, longe demais para aquecer, distantes demais para confortar. Mais próximas de Deus, que era um elo entre elas. Durante muito tempo ficou a olhar para cima, prestando atenção ao vento nas árvores, sorrindo.

Relutando em aproximar-se de Fee, utilizou a escada no extremo oposto da casa; o lampião sobre a escrivaninha continuava aceso e ele viu-lhe a silhueta inclinada, trabalhando.

Pobre Fee. Como devia apavorá-la a hora de ir para a cama! Quando Frank voltasse para casa, as coisas talvez ficassem mais fáceis. Talvez.

No topo da escada o silêncio recebeu-o, denso; o lampião de cristal sobre a mesinha estreita do corredor projetava uma mancha indistinta de luz para o conforto dos noctâmbulos, tremulando quando a brisa noturna agitava as cortinas para dentro em torno da janela mais próxima. Ralph passou, e seus pés sobre o tapete pesado não fizeram ruído algum.

A porta de Meggie estava escancarada e mais luz jorrava por ela; bloqueando os raios por um movimento, ele fechou a porta atrás de si e trancou-a. Vestindo um roupão frouxo, sentada numa cadeira ao pé da janela, ela olhava por sobre o invisível Home Paddock, mas sua cabeça voltou-se para vê-lo dirigir-se à cama e sentar-se na beirada. Ela levantou-se devagar e chegou-se a ele.

— Deixe que o ajudo a tirar as botas. É por essa razão que nunca uso botas de cano longo. Não consigo tirá-la sem uma descalçadeira, e a descalçadeira acaba estragando as melhores botas.

— Você está usando essa cor de propósito, Meggie?

— Cinzas de rosas? — Ela sorriu. — Sempre foi minha cor favorita. Não briga com o meu cabelo.

Ele pôs um pé no traseiro dela enquanto ela tirava a bota de uma perna, depois trocou-o pelo pé nu.

— Você estava certa de que eu viria procurá-la, Meggie?

— Eu já lhe disse. Em Drogheda você é meu. Se você não tivesse vindo me procurar, eu teria ido procurá-lo, não se iluda.

Ela despiu-lhe a camisa puxando-a por cima da cabeça dele e, por um momento, sua mão descansou, voluptuosa, nas costas nuas de Ralph; depois, ela foi até o lampião e apagou-o, enquanto ele colocava as roupas no espaldar de uma cadeira. Ele ouviu-a movendo-se por ali, desfazendo-se do roupão. Amanhã cedo rezarei a missa. Mas isso será amanhã cedo, e a magia terá desaparecido. Ainda há a noite, e Meggie. Eu a tenho desejado. Ela também é um sacramento.

Dane estava decepcionado.

— Pensei que o senhor fosse usar uma batina vermelha! — disse ele.

— Às vezes uso, Dane, mas só dentro do palácio. Aqui fora costumo vestir uma batina preta com uma faixa vermelha, como esta.

— O senhor tem realmente um palácio?

— Tenho.

— Cheio de candelabros?

— Sim, mas Drogheda também está cheia deles.

— Ora, Drogheda! — exclamou Dane com desagrado. — Aposto que os nossos são pequeninos comparados com os seus. Eu gostaria de ver o seu palácio e vê-lo de batina vermelha.

O Cardeal Ralph sorriu.

— Quem sabe, Dane? Talvez um dia você veja.

O menino tinha sempre uma curiosa expressão no fundo dos olhos, um olhar distante. Quando se voltou durante a missa, o Cardeal Ralph viu-o ainda mais acentuado, mas não o reconheceu, só lhe sentiu a familiaridade. Nenhum homem se vê ao espelho tal como é realmente, e o mesmo acontece às mulheres.

Luddie e Anne Mueller eram esperados para o Natal, como todos os anos. A casagrande estava cheia de gente alegre, que prelibava o melhor Natal dos últimos tempos; Minnie e Cat trabalhavam cantando, desafinadas, o rosto cheio da Sra. Smith contraía-se num sorriso permanente, Meggie desistiu de Dane em favor do Cardeal Ralph sem fazer comentários, e Fee parecia muito mais feliz, menos grudada à escrivaninha. Os homens aproveitavam o menor pretexto para retornar à casa todas as noites, pois após o jantar, que saía sempre tarde, a conversa se animava na sala de estar. Além disso, a Sra. Smith dera de preparar uma ceia ligeira para ser saboreada por todos antes de se recolherem, composta de torradas com queijo derretido, bolos de grelha quentes com manteiga e bolos de passas. O Cardeal Ralph protestou, dizendo que acabaria engordando com tanta comida boa, mas, depois de três dias de ares de Drogheda, de gente de Drogheda e de comida de Drogheda, ele já parecia ter-se desfeito do rosto ossudo e macilento com que chegara.

O quarto dia despontou muito quente. O Cardeal Ralph saíra com Dane para ir buscar um rebanho de carneiros, Justine passava o tempo sozinha, emburrada, na aroeira-mole, e Meggie descansava num sofá de bambu estofado na varanda. Sentia os ossos bambos, fartos, e estava muito feliz. Uma mulher pode viver muito bem sem isso por anos a fio, mas era gostoso se se tratasse do homem certo. Quando estava com Ralph, todas as suas partes recomeçavam a viver, exceto a que pertencia a Dane; mas, quando estava com Dane, todas as suas partes recomeçavam a viver, exceto a que pertencia a Ralph. Só quando os dois se achavam presentes simultaneamente em seu mundo, como agora, ela se sentia completa. Bem, aquilo tinha a sua lógica. Dane era seu filho, mas Ralph era seu homem.

Uma coisa, todavia, lhe empanava a felicidade; Ralph não vira. De modo que sua boca permanecia fechada, calando o seu segredo. Se ele não conseguia ver por si mesmo, por que haveria ela de contar-lhe? Que fora que ele já fizera para merecer que lhe dissessem? E o fato de ter ele podido pensar que ela voltara para Luke por sua livre e espontânea vontade fora a gota d’água. Ele não merecia saber, já que era capaz de pensar uma coisa dessas a seu respeito. Às vezes, sentia os olhos pálidos e irônicos de Fee postos nela, e retribuía-lhe o olhar, sem se perturbar. Fee compreendia, de fato Compreendia o meio ódio, o ressentimento, o desejo de vingar-se dos anos de solidão. Ralph de Bricassart era um grande caçador de arco-íris; e por que haveria ela de mimoseá-lo com o mais admirável de todos os arco-íris, seu filho? Ele que fosse despojado. Que sofresse, sem saber que sofria.

O telefone tocou; era o código de Drogheda; Meggie ouviu-o com preguiça de se levantar, mas, em seguida, compreendendo que a mãe devia estar em outro lugar, levantou-se com relutância e foi atender.

— A Sra. Fiona Cleary — disse uma voz de homem. Quando Meggie a chamou, Fee voltou para pegar o aparelho.

— É Fiona Cleary quem esta falando — disse ela. E, à proporção que escutava, as cores foram desaparecendo, aos poucos, do seu rosto, devolvendo-lhe o aspecto que ele tivera nos dias em que se seguiram à morte de Paddy e Stu; pequenino e vulnerável. — Obrigada — murmurou e recolocou o fone no gancho.

— Que foi, mamãe?

— Frank foi solto. Está vindo para cá no noturno da correspondência que chega hoje à tarde. — Consultou o relógio. — Preciso sair logo; já são duas e tanto.

— Deixe-me ir com você — ofereceu-se Meggie, tão cheia de felicidade que lhe era intolerável ver a mãe decepcionada; e tinha a impressão de que o encontro talvez não fosse só de alegria para Fee.

— Não, Meggie, ficarei bem. Tome conta das coisas aqui, e segure o jantar até a minha chegada.

— Não é maravilhoso, mamãe? Frank está voltando para casa a tempo de passar o Natal conosco.

— Sim — concordou Fee —, é maravilhoso.

Naqueles dias ninguém viajava pelo noturno postal se pudesse viajar de avião, de modo que, depois de haver percorrido os novecentos e sessenta quilômetros que separavam Sydney de Gilly, despejando seus passageiros, quase todos de segunda classe nesta ou naquela cidadezinha, poucas pessoas havia para desembarcar em Gillanbone

O chefe da estação conhecia de vista a Sra. Cleary, mas nunca sonharia em entabular uma conversa com ela, de modo que a viu descer a ponte para pedestres, que passava por cima da estação, e deixou-a esperando sozinha, empertigada, na plataforma alta. Velhota estilosa, pensou; roupas e chapéu modernos, sapatos de salto alto também. bom corpo e poucas rugas no rosto, considerando-se a idade que devia ter. Belo exemplo do que a vida folgada de um fazendeiro pode fazer por uma mulher

De modo que Frank, aparentemente, reconheceu sua mãe mais depressa do que ela o reconheceu, embora o coração dela o reconhecesse no ato. Ela tinha cinqüenta e dois anos, e o tempo de sua ausência coincidira com os anos que o haviam levado da mocidade à idade madura. O homem que estava em pé naquele pôr-do-sol de Gilly era magro demais, quase descarnado, muito pálido; o cabelo fora cortado rente no meio da cabeça, suas roupas disformes pendiam de um corpo que ainda dava impressão de força, apesar do tamanho pequeno, e suas mãos bem torneadas apertavam a aba de um chapéu de feltro. Não estava curvado nem parecia doente, mas lá o deixara o trem, impotente, fazendo girar o chapéu entre as mãos, como alguém que não espera ser recebido por ninguém, mas também não sabe o que fazer. Senhora de si, Fee caminhou, enérgica, pela plataforma.

— Olá, Frank — disse ela.

Ele ergueu os olhos, que costumavam chamejar e brilhar tanto, engastados agora no rosto de um homem envelhecido. Não eram os olhos de Frank. Exaustos, pacientes, profundamente cansados. Mas, quando absorveram a imagem de Fee, uma extraordinária expressão tomou conta deles, uma expressão ferida, indefesa, o apelo de um homem às portas da morte.

— Oh, Frank! — disse ela, e tomou-o nos braços, embalando-lhe a cabeça sobre o seu ombro. — Está tudo bem, está tudo bem — cantarolou em voz baixa; e, mais suavemente ainda: — Está tudo bem!

A princípio, ele ficou sentado, encolhido, no automóvel, mas, à medida que o Rolls ganhava velocidade e saía da cidade, principiou a interessar-se pelas coisas que o cercavam e a olhar pela janela.

— Tudo parece exatamente igual — murmurou.

— Acredito que sim. O tempo aqui custa a passar.

Atravessaram a ponte barulhenta, de tábuas de madeira, construída sobre o rio pequeno e lamacento, orlado de salgueiros, tendo a maior parte do leito exposta num emaranhado de raízes e cascalho; os poços formavam manchas castanhas, e eucaliptos cresciam em toda parte no solo vazio e pedregoso.

— O Barwon — disse ele. — Nunca imaginei que tornaria a vê-lo.

Atrás deles erguia-se enorme nuvem de poeira, e diante deles a estrada corria reta como um estudo de perspectiva através de uma grande planície cheia de capim e despojada de árvores.

— A estrada é nova, mamãe? — Ele parecia desesperado para encetar uma conversa, para fazer a situação parecer normal.

— É, foi feita entre Gilly e Milparinka logo depois que a guerra terminou.

— Eles podiam tê-la pavimentado com um pouco de alcatrão em vez de deixar a mesma velha terra.

— Para quê? Nós estamos acostumados a comer poeira, e pense em quanto custaria fazer um leito capaz de resistir à lama. A estrada nova é reta, bem-conservada e suprimiu treze das nossas vinte e sete porteiras. Agora só ficaram catorze entre Gilly e a sede da fazenda, e espere um pouco para ver o que fizemos com elas, Frank. Já não é preciso ninguém para as abrir e fechar.

O Rolls subiu uma rampa na direção de uma porteira de aço, que se ergueu préguiçosamente à aproximação do carro; assim que este passou por baixo dela e transpôs mais alguns metros de estrada, a porteira desceu e fechou-se sozinha.

— As maravilhas nunca se acabam! — disse Frank.

— Fomos a primeira fazenda aqui a instalar porteiras automáticas... só entre a estrada de Milparinka e a sede, naturalmente. As dos pastos ainda têm de ser abertas e fechadas à mão.

— Bem, imagino que o cara que as inventou deve ter-se cansado de abrir e fechar porteiras no seu tempo, você não acha?

Frank sorriu; pela primeira vez parecia ter achado graça em alguma coisa.

Mas depois recaiu no silêncio, de modo que sua mãe concentrou-se na tarefa de dirigir o carro, não querendo precipitar-se. Quando passaram debaixo da última porteira e entraram no Home Paddock, ele conteve a respiração.

— Eu não me lembrava de que isso era tão bonito — disse, afinal.

— É a nossa casa — tornou Fee. — Nós cuidamos dela. — Levou o Rolls até à garagem e voltou a pé, com ele, à casa-grande, só que, desta vez, ele mesmo carregava a sua mala.

— Você quer um quarto na casa-grande, Frank, ou prefere uma casa de hóspedes só para você? — perguntou sua mãe.

— Fico com a casa de hóspedes, obrigado. — Os olhos exaustos descansaram no rosto dela. — Será bom poder fugir das pessoas — explicou.

Foi a única referência que ele chegou a fazer sobre as condições na cadeia.

— Também creio que será melhor para você — disse ela, entrando antes dele na sala de estar. — A casa-grande agora anda cheia, pois o Cardeal está aqui, Dane e Justine estão passando as férias em casa e Luddie e Anne Mueller chegarão depois de amanhã para o Natal.

— Luddie e Anne Mueller? — perguntou Frank.

Ela se deteve no ato de torcer um pavio e olhou para ele.

— Faz muito tempo, Frank. Os Muellers são amigos de Meggie. — Fee espevitou a contento o lampião e foi sentar-se na sua bergère. — Jantaremos daqui a uma hora, mas primeiro tomaremos uma xícara de chá. Preciso tirar da boca a poeira da estrada.

Frank sentou-se, muito sem jeito, na beirada de um escabelo de seda creme, olhando para a sala com respeitoso temor.

— Parece tão diferente do tempo de tia Mary! Fee sorriu.

— Acho que sim — disse ela.

Depois entrou Meggie, e foi mais difícil assimilar o fato de vê-la transformada em mulher madura que o de ver sua mãe envelhecida. Enquanto a irmã o abraçava e beijava, ele virava o rosto para o outro lado, encolhia-se dentro do paletó largo e procurava, além dela, o rosto de Fee, que continuava sentada a fitá-lo, como se quisesse dizer: Não faz mal, tudo parecerá normal daqui a pouco, dê tempo ao tempo. Um minuto depois, enquanto ele ainda procurava alguma coisa para dizer àquela estranha, a filha de Meggie entrou; uma mocinha alta, magra, que se sentou muito cerimoniosa, fazendo pregas no vestido com as mãos grandes, os olhos claros cravados primeiro num rosto, depois no outro. Mais velha do que Meggie quando ele saíra de casa, pensou. O filho de Meggie entrou com o Cardeal e foi sentar-se no chão ao lado da irmã, um belo menino calmo e distante.

— Frank, isto é maravilhoso — disse o Cardeal Ralph, apertando-lhe a mão e voltando-se depois para Fee com a sobrancelha esquerda erguida. — Uma xícara de chá? Ótima idéia.

Os homens da família Cleary entraram juntos na sala, e foi muito duro, pois eles não o tinham perdoado. Frank adivinhou por quê: o sofrimento que infligira à mãe deles. Mas não sabia dizer coisa alguma que os fizesse compreender, não poderia contar-lhes o seu sofrimento, a sua solidão, nem pedir-lhes que o perdoassem. A única pessoa que realmente importava era sua mãe, e esta nunca pensara que houvesse alguma coisa para perdoar.

Foi o Cardeal quem tentou salvar a noite; dirigindo a conversação em torno da mesa do jantar e, mais tarde, na sala de estar, conversando com muita diplomacia, fez questão de incluir Frank na reunião.

— Bob, há uma coisa que estou querendo perguntar-lhe desde que cheguei... onde estão os coelhos? — perguntou o Cardeal. — Vi milhões de tocas, mas nenhum coelho.

— Os coelhos estão todos mortos — respondeu Bob.

— Mortos?

— Isso mesmo, de um negócio chamado mixomatose. com a invasão dos coelhos e aqueles anos de seca, a Austrália, por volta de 1947, se achava praticamente liquidada como nação produtora de matérias-primas. Nós estávamos desesperados — disse Bob, entusiasmando-se com o assunto e grato por ter um tema de discussão que excluía Frank.

Nesse ponto, sem querer, Frank despertou o antagonismo do irmão mais moço com uma observação.

— Eu sabia que as coisas estavam más, mas não pensei que estivessem tão más assim — disse ele.

E refestelou-se na poltrona, esperando haver agradado ao Cardeal com a sua contribuição para a discussão.

— Pois eu não estou exagerando, acredite! — tornou Bob, ácido; como é que Frank poderia saber?

— E que aconteceu? — apressou-se em perguntar o Cardeal.

— No ano retrasado, a Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Commonwealdi iniciou um programa experimental em Victoria infectando coelhos com um vírus que ela arranjou. Não sei direito o que é um vírus, mas acho que é uma espécie de germe. Seja como for, a Organização deu ao seu vírus o nome de vírus da mixomatose. A princípio, ele não pareceu difundir-se muito bem, embora todos os coelhos que apanhavam o vírus acabassem morrendo. Mas, um ano depois da infecção experimental, esta começou a espalhar-se depressa transmitida por mosquitos; mas parece que o cardo cor de açafrão também tem qualquer coisa com isso. E os coelhos passaram a morrer aos milhões e acabaram desaparecendo completamente. A gente avista, às vezes, alguns doentes por aí, com enormes caroços no focinho, coisa muito feia de se ver. Mas foi um trabalho maravilhoso, Ralph, foi mesmo. Tirando os coelhos, nada mais apanha a mixomatose, nem mesmo os parentes mais chegados. Por isso, graças à OPCIC, a praga dos coelhos desapareceu.

O Cardeal Ralph olhou para Frank.

O pobre Frank abanou a cabeça, desejando que todos o deixassem recolher-se ao anonimato.

— Guerra biológica em escala maciça. Não sei se o resto do mundo sabe que se travou aqui na Austrália, entre 1949 e 1952, uma guerra de vírus contra uma população de trilhões e trilhões de seres, que conseguiu acabar com ela! Pois bem! O negócio é viável, não é? Já não se trata de jornalismo sensacionalista, mas de um fato científico. Eles podem até enterrar suas bombas atômicas e suas bombas de hidrogênio. Sei que isso tinha de ser feito, era absolutamente necessário e é, provavelmente, de todos os feitos científicos importantes, o menos divulgado. Mas também é aterrador.

Dane acompanhara a conversa com sua atenção.

— Guerra biológica? Nunca ouvi falar nisso. Em que consiste ela exatamente, Ralph?

— Os termos são novos, Dane, mas, como diplomata papal, preciso estar a par do sentido deles. Numa palavra, ”guerra biológica” é mixomatose. É a criação de um germe capaz de matar ou inutilizar específica e exclusivamente uma espécie de seres vivos.

Quase inconscientemente, Dane persignou-se e encostou-se nos joelhos de Ralp» de Bricassart.

— Será melhor rezarmos, não será?

O Cardeal olhou para a cabeça loira e sorriu.

Se conseguiu ajustar-se afinal à vida de Drogheda, Frank deveu-o a Fee, a qual, em face da rígida oposição masculina dos Clearys, continuou a agir como se o filho mais velho se tivesse ausentado por pouco tempo, e nunca tivesse envergonhado a família nem magoado profundamente sua mãe. Tranqüila e discretamente, introduziu-o no nicho que ele parecia desejar ocupar, afastado dos irmãos; tampouco o animou a recuperar parte da vitalidade de outros tempos. Pois toda ela se fora; Fee percebera-o no momento em que ele a fitara na plataforma da estação de Gilly. Tragado por uma existência cuja natureza ele se recusava a discutir com ela, o máximo que a mãe podia fazer pelo filho era torná-lo tão feliz quanto possível e, sem dúvida, o modo de fazê-lo consistia em aceitar o Frank de agora como o Frank de sempre.

Nem sequer cogitou de propor-lhe o trabalho nos pastos, pois os irmãos não o queriam, nem ele queria uma espécie de vida que sempre abominara. Como ele gostasse de ver coisas crescendo, Fee o pôs para trabalhar nos jardins da sede, onde o deixavam em paz. E, aos poucos, os Clearys se foram acostumando a ter Frank de volta ao seio da família, e começaram a compreender que a ameaça que ele costumava representar ao seu bem-estar já não existia. Nada mudaria jamais o que sua mãe sentia por ele; estivesse ele na cadeia ou em Drogheda, ela nunca deixaria de senti-lo. E, como ele não se metia na vida deles, não era nem mais nem menos do que sempre fora.

Fee, todavia, não se alegrava por ter Frank em casa outra vez; como poderia alegrar-se? Vê-lo todos os dias era-lhe tão triste quanto não poder vê-lo. O terrível pesar de ter de presenciar o espetáculo de uma vida arruinada, de um homem arruinado. Que outro não era senão o seu filho mais querido e que devia ter sofrido agonias que estavam além da sua imaginação.

Um dia, uns seis meses após a chegada de Frank, Meggie entrou na sala de estar e encontrou a mãe sentada, olhando pelos janelões para o filho, entretido em podar a grande massa de rosas ao longo do caminho. Quando ela desviou o olhar, qualquer coisa em seu rosto calmamente composto fez Meggie levar as mãos ao coração.

— Oh, mamãe! — exclamou, impotente. Fee olhou para ela, sacudiu a cabeça e sorriu.

— Não faz mal, Meggie — disse ela.

— Se houvesse ao menos alguma coisa que eu pudesse fazer!

— Há. Continue a proceder como tem procedido. Eu lhe estou muito grata. Você se tornou uma aliada.

 

                     1954-1965 —DANE

— Bem — disse Justine a sua mãe —, decidi o que vou fazer.

— Pensei que já o tivesse decidido. Artes na Universidade de Sydney, não é isso?

— Oh, isso foi apenas para despistá-la e dar-lhe uma falsa sensação de segurança enquanto eu fazia meus planos. Mas agora que está tudo resolvido, posso lhe contar.

A cabeça de Meggie levantou-se do serviço que estava fazendo, cortando massa de bolinhos em forma de abetos; a Sra. Smith estava doente e elas ajudavam na cozinha. A mãe olhou para a filha com uma expressão de cansaço, impaciência e impotência. O que se podia fazer com alguém como Justine? Se ela anunciasse que pretendia sair de casa para viver como prostituta num bordel de Sydney, Meggie duvidava muito poder demovê-la. Querida e horrível Justine, rainha dos carros de Jagrená.

— Continue, sou toda ouvidos — disse ela, e voltou à faina de produzir bolinhos.

— vou ser atriz.

— O quê?

— Atriz.

— Misericórdia! — Os abetos foram novamente abandonados. — Ouça, Justine, detesto bancar a desmancha-prazeres e sinceramente não pretendo magoá-la, mas você se julga... bem, você se acha fisicamente bem-aquinhoada para ser uma atriz?

— Oh, mamãe! — disse Justine, enfadada. — Não vou ser estrela de cinema; vou ser atriz! Não quero rebolar as ancas, nem empinar os seios, nem fazer beicinho com os lábios molhados! Quero representar. — Ela estava enfiando nacos de carne sem gordura no barril de salmoura. — Tenho dinheiro suficiente para me sustentar durante o curso que escolher, não tenho?

—É, graças ao Cardeal de Bricassart.

— Então está resolvido. Estudarei Artes Dramáticas com Albert Jones no Teatro Culloden e escrevi para a Academia Real de Arte Dramática em Londres, pedindo que incluam o meu nome na lista de espera.

— Você está certa disso, Jussy?

— Absolutamente certa. Faz muito tempo que eu sei. — O último pedaço de carne sangrenta foi empurrado para baixo da superfície da salmoura; Justine colocou a tampa no barril com um murro. — Pronto! Espero nunca mais ver outro pedaço de carne salgada enquanto viver.

Meggie estendeu-lhe uma bandeja completa de bolinhos.

— Ponha-os no forno, por favor. Devo lhe dizer que isto, para mim, é uma surpresa. Sempre pensei que as meninas que desejam ser atrizes vivessem representando, mas a única pessoa que já a vi representar é você mesma.

— Oh, mamãe! Aí está você outra vez confundindo estrelas de cinema com atrizes! Francamente, você não tem jeito.

— Mas, então, as estrelas do cinema não são atrizes?

— De uma espécie muito inferior. Isto é, a não ser que tenham passado primeiro pelo palco. Quero dizer, até Laurence Olivier faz um filme de vez em quando.

Havia um retrato autografado de Laurence Olivier no toucador de Justine; Meggie considerara-o simplesmente uma paixonite de criança, embora se lembrasse de que, na ocasião, concluíra que Justine, ao menos, tinha bom gosto. As amigas que ela, às vezes, trazia para passar alguns dias em Drogheda, costumavam guardar retratos de Tab Hunter e Rory Calhoun.

— Ainda não compreendo — disse Meggie, sacudindo a cabeça. — Uma atriz! Justine deu de ombros.

— Muito bem, e onde mais poderei gritar, berrar e uivar a não ser num palco? Não me permitem fazer nada disso aqui, nem no colégio, nem em parte alguma! E eu gosto de gritar, de berrar e de uivar, pombas!

— Mas você tem tanto jeito para as artes, Jussy! Por que não ser artista? — insistiu Meggie.

Justine virou-se do imenso fogão de gás e deu um piparote no medidor de um cilindro de gás.

— Preciso dizer ao ajudante de cozinha que troque os botijões; estamos com pouco gás. Mas este ainda dará para hoje. — Os olhos claros observaram Meggie com piedade. — Você tem tão pouco senso prático, mamãe! Pensei que fossem os filhos que não se preocupavam com os aspectos práticos de uma carreira. Deixe-me dizerlhe uma coisa: não pretendo morrer de fome numa água-furtada e ser famosa depois de morta. Quero gozar um pouco de fama enquanto ainda estou viva, e levar uma vida financeiramente confortável. Por isso pintarei para me distrair e representarei para viver. Que tal?

— Você tem a sua renda de Drogheda, Jussy — disse Meggie, desesperada, infringindo o seu juramento de permanecer em silêncio acontecesse o que acontecesse. — E, com ela, você nunca chegaria a morrer de fome numa água-furtada. Se prefere pintar, pinte. Poderá fazê-lo tranqüilamente.

Justine parecia alerta, interessada.

— Quanto é que eu tenho, mamãe?

— O suficiente para nunca precisar trabalhar, se não quiser.

— Que chateação! Eu acabaria falando ao telefone e jogando brídge; pelo menos é o que fazem as mães de quase todas as minhas colegas. Porque eu viveria em Sydney, e não em Drogheda. Gosto muito mais de Sydney do que de Drogheda. — Um brilho de esperança surgiu-lhe nos olhos. — Tenho o bastante para mandar tirar minhas sardas pelo novo tratamento elétrico?

— Acho que sim. Por quê?

— Porque, assim, alguém poderia ver o meu rosto. Só por isso:

— Pensei que a beleza não tivesse importância para uma atriz.

— Tudo tem limites, mamãe. Minhas sardas são um castigo.

— Você tem certeza de que não prefere ser artista plástica?

— Absoluta, obrigada. — Ela dançou um pouquinho. — vou pisar o palco, Sra. Worthington!

— Como conseguiu entrar no Culloden?

— Fiz um teste.

— E eles a aceitaram?

— A fé que você tem em sua filha é comovente, mamãe. É claro que me aceitaram! Fique sabendo que sou soberba. Um dia ainda serei muito famosa.

Meggie despejou um corante verde numa tigela de glacê, misturou tudo e principiou a deixar cair a mistura sobre os abetos já assados.

— A fama é importante para você, Justine?

— Eu diria que sim. — Ela deitou açúcar sobre a manteiga tão mole que se ajustara aos contornos internos da tigela; embora tivessem trocado o fogão de lenha pelo fogão de gás, a cozinha estava muito quente. — Estou inabalavelmente decidida a ser famosa.

— Você não pretende casar?

Justine assumiu uma expressão desdenhosa.

— Isso é pouquíssimo provável! Passar minha vida limpando narizes cheios de meleca e bundas cheias de merda? Fazendo salamaleques para um homem muito inferior a mim, embora se julgue melhor do que eu? Ho, ho, ho, eu é que não!

— Francamente, você é o cúmulo! Onde arranjou essa linguagem?

Justine principiou a quebrar ovos rápida e habilmente numa bacia, com uma mão só.

— No meu finíssimo colégio de senhoritas, naturalmente. — Bateu os ovos sem misericórdia com um batedor francês. — Na verdade, éramos uma turma muito decente de moças. Muito cultas. Não é qualquer grupo de tolas adolescentes que sabe apreciar a delicadeza de um verso latino:

”Existira um romano de Vinídio com a camisa feita de irídio; Perguntado sobre o porquê da veste; Limitou-se a explicar: “Id est Bonum sanguinem praesidium.””

Os lábios de Meggie crisparam-se.

— vou me odiar por perguntar, mas o que foi que disse o romano?

— ”É uma boa proteção para o sangue.”

— Só isso? Pensei que fosse coisa muito pior. Você me surpreende. Mas, voltando à vaca fria, minha cara jovem, apesar do seu evidente esforço para mudar de assunto, o que é que há de errado com o casamento?

Justine imitou a rara gargalhada irônica da avó.

— Mamãe! Francamente! É você quem me faz essa pergunta?

Meggie sentiu o sangue ferver-lhe debaixo da pele e abaixou os olhos para a bandeja de abetos verdes.

— O fato de você ter completado dezessete anos não lhe dá o direito de ser impertinente.

— Não é esquisito? — perguntou Justine à tigela. — No minuto em que a gente se aventura em território estritamente materno, torna-se impertinente. Apenas perguntei: é você quem me faz essa pergunta? Perfeitamente normal, bolas! Não estou insinuando que você é um fracasso, nem uma pecadora, nem coisa pior. Na realidade, sou da opinião de que demonstrou notável bom senso, dispensando o seu marido. Para que precisaria de um? Já há toneladas de influência masculina para seus filhos com tantos tios por aí, e você tem dinheiro suficiente para viver. Concordo com você! O casamento é para os passarinhos.

— Você é igualzinha a seu pai!

— Outra evasão. Todas as vezes que a contrario, fico igualzinha a meu pai. Bem, terei de confiar na sua palavra, visto que nunca pus os olhos nesse cavalheiro.

— Quando vai embora? — perguntou Meggie, desanimada. Justine sorriu.

— Você não vê a hora de se livrar de mim, não é? Está certo, mamãe, não a censuro. Mas não posso fazer nada, gosto de escandalizar as pessoas, principalmente você. Que tal me levar amanhã ao aeródromo?

Deixe para depois de amanhã. Amanhã a levarei ao banco. É melhor que você já fique sabendo quanto possui. E, Justine...

Justine estava acrescentando farinha e misturando-a peritamente, mas ergueu os olhos ao perceber a mudança de tom na voz de sua mãe.

— Sim?

— Se algum dia se vir em dificuldades, faça o favor de vir para casa. Sempre teremos um quarto para você em Drogheda. Quero que se lembre disso. Nada que você faça será tão mau que a impeça de voltar para casa.

O olhar de Justine enterneceu-se.

— Obrigada, mamãe. No fundo, afinal, você até que não é uma velha tão chata e má quanto parece!

— Velha? — bradou Meggie, com assombro. — Eu não sou velha coisa nenhuma! Só tenho quarenta e três anos!

— Caramba, tanto assim?

Meggie atirou um bolinho que acertou no nariz de Justine.

— Sua miserável! — riu-se ela. — Você é um monstro! Agora me sinto como se tivesse cem anos.

A filha sorriu.

Nesse momento, Fee entrou para averiguar como iam as coisas na cozinha; Meggie saudou-lhe a chegada com alívio.

— Mamãe, sabe o que Justine acaba de me dizer?

Os olhos de Fee já não eram capazes de mais nada além do esforço extremo de escriturar os livros, mas o espírito por trás das pupilas embaçadas continuava agudo como sempre.

— Como posso saber o que Justine acaba de lhe dizer? — indagou, brandamente, olhando para os bolinhos verdes com um ligeiro estremecimento.

— Porque, às vezes, tenho a impressão de que você e Jussy trocam segredinhos que não me revelam, e agora, no momento em que minha filha acaba de me contar suas novidades, você entra aqui, coisa que normalmente não faz.

— Hummmm, o gosto deles pelo menos é melhor do que a aparência — comentou Fee, mordiscando um abetozinho verde. — Asseguro-lhe, Meggie, que não animo sua filha a conspirar comigo à sua revelia. O que fez agora para deixá-la desse jeito, Justine? — perguntou ela voltando-se para a neta, que revestia com sua massa forminhas untadas de gordura e polvilhadas de farinha.

— Eu disse a mamãe que ia ser atriz, vó, nada mais.

— Nada mais mesmo? E, que mal lhe pergunte, isso é verdade ou é mais uma das suas piadinhas de mau gosto?

— É verdade. vou começar no Collóden.

— Bem, bem, bem! — disse Fee, encostando-se na mesa e olhando ironicamente para a filha. — É surpreendente como as crianças têm idéias próprias, não é Meggie?

Meggie não respondeu.

— Você desaprova, vó? — resmungou Justine, pronta para o combate.

— Eu? Desaprovar? Não tenho nada a ver com o que você faz da sua vida, Justine. De mais a mais, acho que dará uma boa atriz.

— Você acha? — ecoou Meggie, espantada.

— É claro — disse Fee. — Justine não é das que escolhem mal, não é mesmo, filha?

— Não.

Justine sorriu, tirando dos olhos uma madeixa suada de cabelo. Meggie surpreendeu-a olhando para a avó com uma afeição que nunca sentira estendida a ela.

— Você é uma boa menina, Justine — disse Fee, e terminou o bolinho que começara a comer com tão pouco entusiasmo. — Nada maus, mas eu teria preferido que você os tivesse coberto de glacê branco.

— Não se podem cobrir árvores com glacê branco — discordou Meggie.

— É claro que sim, quando se trata de abetos; o branco pode ser neve — disse sua mãe.

— Agora é tarde demais, eles estão nauseabundamente verdes — riu-se Justine.

—Justine!

— Desculpe, mamãe, eu não pretendia aborrecê-la. Sempre me esqueço de que você tem o estômago fraco.

— Eu não tenho o estômago fraco — revidou Meggie, exasperada.

— Eu só vim ver se havia a possibilidade de uma xícara de chá — atalhou Fee, puxando uma cadeira e sentando-se. — Seja boazinha e ponha a chaleira no fogo, Justine.

Meggie sentou-se também.

— Você acha mesmo que isso daria certo para Justine, mamãe? — perguntou ela, ansiosa.

— E por que não? — respondeu Fee, observando a neta ocupada com o ritual do chá.

— Pode ser uma fase passageira.

— É uma fase passageira, Justine? — perguntou Fee.

— Não — respondeu Justine, concisa, colocando xícaras e pires sobre a velha mesa verde da cozinha.

— Arranje um prato para pôr os biscoitos, Justine, não jogue a lata na mesa — disse Meggie automaticamente. — E, pelo amor de Deus, não traga o latão de leite para cá, despeje um pouco numa leiteira apropriada.

— Sim, mamãe, desculpe, mamãe — respondia Justine, mecanicamente também. — Não vejo o por quê de tantos fricotes na cozinha. A única coisa que eu teria de fazer era repor no lugar o que não foi comido e lavar mais dois pratos.

— Faça o que lhe digo; é muito mais bonito.

— Voltando ao assunto — prosseguiu Fee —, não creio que haja o que discutir. Sou da opinião de que se deve deixar Justine experimentar e ela, provavelmente, o fará muito bem.

— Quem me dera poder ter certeza — disse Meggie em tom sombrio.

— Você está pensando conseguir fama e glória, Justine? — perguntou a avó.

— Elas fazem parte do pacote — disse Justine, colocando sobre a mesa o velho bule de chá da cozinha e sentando-se depressa. — Não reclame, mamãe; não estou fazendo chá numa chaleira de prata para servir na cozinha.

— O bule está perfeitamente de acordo — disse Meggie, sorrindo.

— Oh, está ótimo! Nada como uma boa xícara de chá — suspirou Fee, bebendo o seu aos golinhos. — Justine, por que persiste em apresentar as coisas a sua mãe de maneira tão desfavorável? Você sabe que a questão não é de fama nem de fortuna. É uma questão de ego, não é?

— Ego, vó?

— Naturalmente. Ego. Você sente que nasceu para representar, não é isso?

— É.

— Então, por que não o explicou dessa maneira a sua mãe? Por que a perturbou com uma porção de tolices irreverentes?

Justine deu de ombros, bebeu o seu chá de uma vez e empurrou a xícara vazia na direção da mãe, pedindo mais.

— Sei não — disse ela.

— Eu não sei — corrigiu Fee. — Espero que aprenda a falar melhor no palco. Mas você deseja ser atriz por causa do ego, não é mesmo?

— Acho que sim — replicou Justine, com relutância.

— Oh, o teimoso e obstinado orgulho dos Clearys! Ele ainda será a sua desgraça, Justine, se não aprender a dominá-lo. Esse medo estúpido de ser alvo de chacotas ou de ser ridicularizado. Embora eu não saiba como foi que você chegou à conclusão de que sua mãe poderia ser tão cruel. — Ela deu uns tapinhas no dorso da mão de Justine. — Dê um pouco de si, Justine; coopere.

Mas Justine abanou a cabeça.

— Não posso. Fee suspirou.

— Não sei o bem que ela poderá lhe fazer, minha filha, mas você tem minha bênção para o seu empreendimento.

— Tá, Nanna, eu lhe fico muito grata.

— Então trate de mostrar sua gratidão de um modo concreto: descubra onde está seu tio Frank e diga-lhe que há chá na cozinha, por favor.

Justine saiu e Meggie olhou para Fee.

— Mamãe, você é assombrosa! Fee sorriu.

— Sim, você terá de admitir que nunca tentei dizer a nenhum dos meus filhos o que eles deviam fazer.

— De fato, nunca tentou — concordou Meggie, com ternura. — E também lhe ficamos muito gratos por isso.

A primeira coisa que Justine fez quando voltou a Sydney foi mandar tirar as sardas. Infelizmente, não se tratava de um processo rápido, pois eram tantas que a operação levaria, aproximadamente, doze meses; além disso, ela teria de ficar longe do sol pelo resto da vida porque, do contrário, as sardas voltariam. A segunda coisa que fez foi descobrir um apartamento, um feito nada desprezível em Sydney na ocasião, quando as pessoas construíam casas particulares e consideravam a vida en masse nos prédios de apartamentos como um anátema. Mas acabou encontrando um apartamento de dois cômodos em Neutral Bay, numa das imensas e antigas mansões vitorianas da praia que, tendo conhecido tempos difíceis, haviam sido transformadas em edifícios de sombrios semi-apartamentos. O aluguel, de cinco libras e dez xelins por semana, era exorbitante se se considerar que o mesmo banheiro e a mesma cozinha serviria a todos os inquilinos. Justine, contudo, sentia-se muito satisfeita. Embora houvesse sido bem preparada para os trabalhos domésticos, tinha poucos instintos caseiros.

A vida em Bothwell Gardens a fascinava-a muito mais do que o seu aprendizado no Culloden, onde a existência parecia consistir em meter-se atrás dos cenários para assistir ao ensaio dos outros, conseguir um papelzinho mixuruca de vez em quando, e decorar frases e frases de Shakespeare, Shaw e Sheridan.

Incluindo o de Justine, Bothwell Gardens tinha seis apartamentos, além do da Sra. Devine, a senhoria. A Sra. Devine era uma londrina de sessenta e cinco anos que vivia fungando de tristeza, tinha olhos salientes e um grande desprezo pela Austrália e pelos australianos, embora não tivesse escrúpulo de roubá-los. Sua principal preocupação na vida parecia ser o custo do gás e da eletricidade, e sua principal fraqueza era o vizinho de apartamento de Justine, jovem inglês que explorava prazerosamente sua nacionalidade.

— Não me incomodo, às vezes, de fazer cócegas na velhinha enquanto recordamos o passado — disse ele a Justine. — Isso impede que ela me azucrine a paciência,

você sabe como é. Vocês, meninas, não têm licença para ligar aquecedores elétricos nem no inverno, mas eu ganhei um de presente e eu tenho licença para ligá-lo até no verão, se me der na telha.

.— Porco — disse Justine sem paixão.

Ele se chamava Peter Wilkins e era caixeiro-viajante.

— Venha ao meu quarto que lhe farei um bom chá qualquer dia destes — convidou ele, impressionado pelos olhos pálidos, que o intrigavam.

Justine foi, tendo tido o cuidado de não escolher uma hora em que a Sra. Devine estivesse espiando, enciumada, por ali, e acabou se acostumando a repelir os avanços de Pete. Os anos que passara cavalgando e trabalhando em Drogheda lhe tinham dado uma força considerável, e ela não ligava para certas regras, como a de não bater abaixo da cintura.

—Vá para o inferno, Justine! — arquejou Peter, enxugando as lágrimas de dor que lhe saltavam dos olhos. — Desista, menina! Você sabe que terá de perdê-lo um dia! Isto não é a Inglaterra vitoriana, e ninguém espera que você o guarde para o casamento.

— Não tenho a menor intenção de guardá-lo para o casamento — respondeu ela, arrumando o vestido. —Acontece apenas que ainda não sei a quem caberá essa honra, só isso.

— Como mulher você não vale nada! — disse ele brusca e maldosamente; ela o machucara realmente.

— Não, não valho. Ora, vá se catar, Pete. Você não pode me ferir com palavras. E há muitos homens capazes de correr atrás de qualquer uma, se for virgem.

— E muitas mulheres também. Observe o apartamento da frente.

— Eu tenho observado.

As duas moças que moravam no apartamento da frente eram lésbicas e haviam saudado com muita alegria o advento de Justine até compreenderem que ela não estava interessada e nem mesmo intrigada. A princípio ela não soubera direito o que elas estavam insinuando, mas, depois que elas puseram as cartas na mesa, Justine encolheu os ombros, sem se deixar impressionar. Assim, após um período de adaptação, tornou-se a caixa de ressonância delas, a sua confidente natural, o seu porto em todas as tempestades; pagou a fiança de Billie para tirá-la da cadeia, levou Bobbie para o Hospital Mater a fim de submetê-la a uma lavagem de estômago depois de uma briga particularmente feia com Bilie, recusou-se a tomar partido por qualquer uma delas quando Pat, Al, Georgie e Ronnie assomaram alternadamente no horizonte. Aquilo parecia ser uma espécie muito insegura de vida emocional, pensou. Os homens eram bem ruinzinhos, mas, pelo menos, tinham a vantagem da diferença intrínseca.

Assim, com as moças de Culloden e as de Bothwell Gardens, além das que conhecera em Kincoppal, Justine tinha uma porção de amigas e era também uma boa amiga.

Nunca lhes contava todos os seus problemas, como elas lhe contavam os delas; para isso tinha Dane, embora os poucos problemas que admitia ter não parecessem oprimi. la. O que nela mais fascinava as amigas era a sua extraordinária autodisciplina, como se se houvesse preparado desde a infância para não permitir que as circunstâncias lhe atrapalhassem o bem-estar.

Mas o que mais interessava a todas as pessoas que se diziam suas amigas era saber como, quando e com quem Justine se decidiria finalmente a realizar-se como mulher. Ela, porém, não tinha pressa.

Arthur Lestrange era o jovem ator que por mais tempo desempenhara o papel de Albert Jones, embora se tivesse despedido melancolicamente do seu quadragésimo aniversário no ano anterior àquele em que Justine chegara ao Culloden. Tinha um bom corpo, era um ator firme e digno de confiança e seu rosto viril, cercado de madeixas amarelas, provocava infalivelmente os aplausos do público. No primeiro ano, nem sequer notou a presença de Justine, que se mantinha muito quietinha e fazia exatamente o que a mandavam fazer. Mas no fim do ano o tratamento das sardas terminara, e ela começou a destacar-se dos cenários em lugar de confundir-se com eles.

Tirando as sardas e acrescentando a maquilagem para acentuar-lhe as sobrancelhas e os cílios, ela era uma moça bonita, de uma beleza sutil de elfo. Não possuía a beleza impressionante de Luke O’Neill, nem a delicadeza de sua mãe. O corpo era passável, sem nada de espetacular, um pouco magro demais. Só o cabelo intensamente vermelho sobressaía sempre. No palco, porém, ela era muito diferente; podia fazer as pessoas imaginarem-na bela como Helena de Tróia ou feia como uma bruxa.

Arthur notou-a pela primeira vez durante um período letivo, quando lhe pediram que recitasse um trecho de Lord Jim de Conrad usando várias inflexões. Ela era realmente extraordinária; ele percebeu a emoção de Albert Jones e, finalmente, compreendeu por que Al lhe dedicava tanto tempo. Mímica nata, mas muito mais do que isso, Justine valorizava cada palavra que pronunciava. E havia a voz, dote natural maravilhoso para qualquer atriz, uma voz profunda, rouca, penetrante.

Assim, quando a viu com uma xícara de chá na mão, sentada com um livro aberto sobre os joelhos, foi sentar-se ao lado dela.

— Que é que você está lendo? Ela ergueu os olhos e sorriu.

— Proust.

— Não o acha meio enfadonho?

— Proust, enfadonho? Não, a menos que não se goste de mexericos. Pois é isso o que ele é, nem mais nem menos. Um velho e terrível mexeriqueiro.

Ele tinha a convicção constrangedora de que ela o tratava com um arzinho de superioridade intelectual, mas perdoou-a. Aquilo não passava de extrema juventude.

-- Eu a ouvi recitando Conrad. Esplêndido.

— Obrigada.

— Talvez pudéssemos, um dia, tomar café juntos para discutir os seus planos.

-- Se você quiser — disse ela, retornando a Proust.

Ele alegrou-se por haver falado em café, em vez de jantar; a esposa mantinha-o num regime de meia-ração, e o jantar exigia um grau de gratidão que ele não sabia se Justine estava preparada para manifestar. Entretanto, deu seguimento ao convite casual e levou-a a um lugarzinho escuro, na parte inferior de Elizabeth Street, onde podia ter razoável certeza de que a esposa jamais pensaria em procurá-lo.

Por uma questão de autodefesa, Justine aprendera a fumar, cansada de sempre bancar a santinha, recusando os cigarros que lhe ofereciam. Depois que se sentaram, tirou um maço novo de cigarros da bolsa, e destacou com cuidado a parte de cima do celofane que envolvia a carteirajlip-top, certificando-se de que a parte maior do invólucro continuava enrolada na parte maior do maço. Arthur observava-a, entre divertido e interessado.

— Por que cargas d’água você tem tanto trabalho? Arranque logo todo o celofane, Justine.

— Que complicação!

Ele pegou na carteira de cigarros e bateu com expressão reflexiva na mortalha intacta.

— Se eu fosse discípulo do eminente Sigmund Freud...

— Se você fosse Freud, que aconteceria? — Ela ergueu os olhos, viu a garçonete em pé, ao seu lado. — Um capuccino, por favor.

Ele se aborreceu por ela ter feito o próprio pedido, mas deixou passar o incidente, mais interessado em desenvolver o pensamento que tinha na cabeça.

— Um vienense, por favor. Pois bem, voltando ao que eu dizia a respeito de Freud, eu gostaria muito de saber o que ele pensaria disto. Ele diria...

Ela tirou o maço da mão dele, abriu-o, retirou um cigarro e acendeu-o, sem dar a ele tempo suficiente para encontrar os fósforos.

— O quê?

— Ele pensaria que você gosta de manter intactas as substâncias membranosas, não pensaria?

A gargalhada que ela deu ecoou através do ar fumarento. Vários homens voltaram, curiosos, a cabeça.

— Pensaria? Será essa uma forma indireta de me perguntar se ainda sou virgem, Arthur?

Ele fez estalar a língua, exasperado.

—Justine! Vejo que, entre outras coisas, terei de lhe ensinar a bela arte da prevaricação.

— Entre que outras coisas, Arthur? — Ela encostou os cotovelos na mesa e seus olhos cintilaram no escuro.

— O que é que você precisa aprender?

— Tive uma educação quase completa.

— Em tudo?

— Céus, como você sabe dar ênfase às palavras! Preciso não esquecer o modo com que disse isso.

— Existem coisas que só podem ser aprendidas através da experiência pessoal — disse ele com suavidade, estendendo a mão para esconder um anel de cabelo dela atrás da orelha.

— É mesmo? Sempre achei a observação adequada.

— Sim, mas que me diz quando se trata de amor? — Emprestou à palavra uma profundidade delicada. — Como é que você pode interpretar o papel de Julieta sem saber o que é o amor?

— Um bom argumento. Concordo com você. —Já esteve apaixonada algum dia?

— Não.

— Sabe alguma coisa sobre o amor? — Desta vez ele deu ênfase às palavras ”alguma coisa” em lugar de acentuar a palavra ”amor”.

— Nada de nada.

— Ah! Então Freud teria razão, hein?

Ela pegou na carteira de cigarros e pôs-se a olhar para o invólucro, sorrindo.

— Em algumas coisas, talvez.

Ele agarrou o fundo do celofane, arrancou-o da carteira e segurou-o na mão. Em seguida, dramaticamente, amassou-o e deixou-o cair no cinzeiro, onde o papel estalou e contorceu-se, expandindo-se.

— Eu gostaria de ensiná-la a ser mulher, se pudesse.

Por um momento ela não disse nada, absorta nas contorções do celofane no cinzeiro, depois acendeu um fósforo e, com todo o cuidado, queimou-o.

— Por que não? — perguntou à chama breve. — É isso mesmo, por que não?

— Será uma coisa divina, de luar e rosas, um cortejar apaixonado, ou será curto e penetrante, como uma seta? — declamou ele, com a mão no coração.

Ela riu-se.

— Francamente, Arthur! Eu, por mim, espero que seja longo e penetrante. Mas nada de luar e rosas, por favor. Meu estômago não foi feito para um cortejar apaixonado.

Ele olhou para ela com alguma tristeza e abanou a cabeça.

— Oh, Justine! O estômago de todo mundo é feito para um cortejar apaixonado... até o seu, sua vestalzinha insensível. Um dia você verá. E ansiará por ele.

— Ora! — Ela levantou-se. —Vamos, Arthur, vamos liquidar o assunto antes que eu mude de idéia.

— Agora? Esta noite?

— E por que não? Tenho dinheiro suficiente para pagar o quarto de hotel se você estiver duro.

O Hotel Metrópole não ficava muito longe; caminharam pelas ruas sonolentas com o braço dela enfiado aconchegadamente no dele, rindo-se. Era tarde demais para jantar e cedo demais para os teatros fecharem suas portas, de modo que havia pouca gente por ali, apenas grupos de marinheiros norte-americanos, pertencentes a uma força-tarefa visitante, e grupos de moças que passavam vendo vitrinas e, de vez em quando, esguelhavam os olhos aos marinheiros. Ninguém reparou neles, o que agradou muito a Arthur. Ele entrou numa farmácia, enquanto Justine esperava na calçada, e de lá saiu todo feliz.

— Agora está tudo pronto, amor.

— Que foi que você comprou? Camisas-de-vênus? Ele fez uma careta.

— Eu diria que não. Usar camisa-de-vênus é como se embrulhar numa página do Reader’s Digest, com aquele papel grosso e grudento. Não, comprei para você um pouco de geléia. A propósito, como sabe da existência das camisas-de-vênus?

— Depois de passar sete anos num internato católico? Que acha que fazíamos? Rezar? — Ela sorriu. — Reconheço que nãofazíamos muita coisa, mas falávamos sobre tudo.

O Sr. e a Sra. Smith inspecionaram o seu reino, que não era nada mau para um quarto de hotel de Sydney daquela época. Os dias do Hilton ainda estavam por vir. Muito grande, tinha vistas soberbas da Ponte do Porto de Sydney. Sem banheiro, naturalmente, mas com uma bacia e um jarro sobre uma mesinha de tampo de mármore, acompanhamento adequado para as enormes relíquias de mobília vitoriana.

— E o que é que eu faço agora? — perguntou ela, fechando as cortinas. — Bonita vista, não é?

— É. O que é que você faz? Tire as calcinhas, naturalmente.

— Só isso? — perguntou ela, maliciosa. Ele fez um gesto.

— Tire tudo, Justine! É preciso sentir carne com carne para ser bom de verdade. Simples e rapidamente ela se desfez das roupas, sem nenhuma timidez, subiu na cama e deitou-se com as pernas abertas.

— Assim, Arthur?

— Pelo amor de Deus! — disse ele, dobrando cuidadosamente as calças; sua esposa sempre as examinava para ver se estavam amassadas.

— O quê? Que aconteceu?

— Você é ruiva mesmo, não é?

— O que você esperava, pêlos roxos?

— Piadinhas não contribuem para criar a atmosfera apropriada. Portanto, pare com isso. — Ele encolheu a barriga, virou-se, encaminhou-se pomposamente para a cama, subiu, e começou a aplicar beijinhos estratégicos no rosto, no pescoço e no seio esquerdo dela. — Hummmmmm, você é gostosa. — Os braços dele envolveram-na. — Pronto! Não é bom?

— Acho que sim. É, é muito bom.

Seguiu-se o silêncio, interrompido apenas pelo som de beijos e murmúrios ocasionais. Havia um imenso e antigo toucador colocado defronte do pé da cama, cujo espelho ainda estava virado para refletir a arena do amor naturalmente, por obra de algum erótico ocupante anterior do quarto.

— Apague a luz, Arthur.

— Não, querida! Lição número um: nenhum aspecto do amor é incompatível com a luz.

Tendo executado o trabalho preparatório com os dedos e depositado a geléia onde ela devia ficar, Arthur conseguiu insinuar-se entre as pernas de Justine. Um pouco dolorida mas perfeitamente confortável e, se não estática, pelo menos maternal, Justine olhou, por cima do ombro de Arthur, para o pé da cama e dali para o espelho.

Vistas ao espelho, as pernas dos dois pareciam esquisitas, com as dele, recobertas de pêlos escuros, presas entre as dela, lisas e sem sardas; entretanto, a parte maior e mais importante da imagem refletida consistia na bunda de Arthur, que, à proporção que ele manobrava, se relaxava e contraía, movia-se para cima e para baixo, com dois tufos de pêlos amarelos como os de Dagwood aparecendo acima dos dois globos gêmeos e acenando alegremente para ela.

Justine olhou; tornou a olhar. Apertou com força o punho de encontro à boca, gorgolejando e gemendo.

— Pronto, pronto, querida, está tudo bem! Eu já a rompi, de modo que agora não pode doer muito mais — murmurou ele.

O peito dela principiou a arfar; ele envolveu-lhe o corpo com os braços, apertando-a com mais força ainda e murmurou palavras inarticuladas.

De repente, a cabeça dela caiu para trás e a boca se abriu num longo e angustiado grito de dor, que se foi transformando aos poucos em gargalhadas sucessivas, cada qual mais escandalosa. E, quanto mais furioso ele ficava, tanto mais ela ria, apontando o dedo, sem poder falar, para o pé da cama, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelas faces. Tinha todo o corpo convulsionado, mas não da maneira que o pobre Arthur prefigurara.

De muitas maneiras estava Justine mais próxima de Dane do que Meggie, e o que eles sentiam pela mãe pertencia à mãe. Isso não violava os sentimentos recíprocos dos irmãos nem colidia com eles. O elo entre os dois forjara-se muito cedo, e sempre crescera em vez de diminuir. Quando Meggie conseguira libertar-se da sua servidão em Drogheda, eles já eram suficientemente crescidos para estar à mesa da Sra. Smith, na cozinha, fazendo suas lições por correspondência; o hábito de buscarem conforto um no outro fora estabelecido para sempre.

Embora possuíssem índoles muito diferentes, partilhavam de muitos gostos e apetites, e os não partilhados eram tolerados mutuamente com respeito instintivo, como um tempero necessário de diferença. Conheciam-se, de fato, muito bem. A tendência natural dela era deplorar as falhas humanas nos outros e ignorar as suas; a tendência natural dele era compreender e perdoar as falhas humanas dos outros e não ter contemplação com as suas. Ela se sentia invencivelmente forte; ele se sabia perigosamente fraco.

E, de um modo ou de outro, tudo se juntava para uma amizade quase perfeita, em cujo nome nada era impossível. Entretanto, como Justine fosse muito mais loquaz do que ele, Dane ouvia sempre muito mais as confidências dela do que ela as dele. Em alguns sentidos, até certo ponto, ela era uma imbecil moral, para a qual nada era sagrado, e ele tinha consciência de que a sua função consistia em provê-la dos escrúpulos de que ela carecia. Desse modo, ele aceitava o papel de ouvinte passivo com uma ternura e uma compaixão que teriam agastado enormemente Justine se esta suspeitasse delas. Mas ela nunca suspeitou; sempre azucrinara os ouvidos do irmão a respeito de tudo e de nada desde que ele tivera idade bastante para prestar atenção.

— Adivinhe o que fiz ontem à noite! — desafiou-o ela, ajustando com cuidado o chapelão de palha de modo que o rosto e o pescoço ficassem protegidos do sol.

— Você representou, pela primeira vez, o papel principal de uma peça — disse Dane.

— Bocó! Se fosse isso, você acredita que eu não o chamaria para me ver? Tente outra vez.

— Você, afinal, levou um soco de Bobbie destinado a Billie.

— Frio como seio de madrasta. Ele encolheu os ombros, enfastiado.

— Fica difícil sem uma pista.

Eles estavam sentados na grama, debaixo do vulto gótico da catedral de Santa Maria. Dane telefonara avisando Justine de que chegaria para assistir a uma cerimônia especial na catedral e perguntara-lhe se não queria encontrar-se com ele antes disso defronte do templo. Era evidente que ela queria; Justine estava louca para contar-lhe o episódio mais recente.

Quase no fim do último ano em Riverview, Dane era capitão da escola, capitão do time de críquete, do time de rugby, do time de handebol e da equipe de tênis. E monitor da sua classe, ainda por cima. Aos dezessete anos, media um metro e oitenta e oito, possuía uma bela voz de barítono e escapara milagrosamente de aflições como espinhas, desengonço e um pomo-de-adão muito saliente. Por ser tão loiro, ainda não começara a fazer a barba, mas, em todos os outros sentidos, seu aspecto era mais viril do que juvenil. Somente o uniforme de Riverview lhe denunciava a idade e a condição.

O dia estava quente e ensolarado. Dane tirou o chapéu de palha que usava com o uniforme e estendeu-se na grama. Justine sentou-se ao lado dele, com os braços em torno dos joelhos para certificar-se de que toda a sua pele nua estava na sombra. Ele abriu um olho azul e preguiçoso na direção dela.

— O que foi o que você fez ontem à noite, Jus?

— Perdi minha virgindade. Pelo menos acho que perdi. Os dois olhos dele se abriram.

— Você é um bocó.

—Já não era sem tempo. Como posso esperar ser uma boa atriz sem ter a menor idéia do que acontece entre os homens e as mulheres?

— Você devia guardar-se para o homem com quem vai casar. O rosto dela contorceu-se, exasperado.

— Francamente, Dane, você às vezes é tão arcaico que me deixa encafifada! E se eu só encontrar o homem com quem vou casar depois dos quarenta? O que é que você espera que eu faça? Que fique sentada em cima dele todos esses anos? E o que você vai fazer, guardá-lo para o casamento?

— Não creio que eu me case.

— Nem eu. Nesse caso, por que amarrar uma fita azul em torno dele e enfiá-lo no meu inexistente baú de noiva? Não quero morrer fazendo conjeturas.

Ele sorriu.

— Agora você já não pode. — Rolando sobre o estômago, apoiou o queixo na mão e olhou com firmeza para ela, com o rosto indulgente, preocupado. — Foi tudo bem? Quero dizer, foi horrível? Você detestou o que fez?

Os lábios dela crisparam-se, recordando.

— Detestar, não detestei. E também não foi horrível. Por outro lado, não entendo por que todo mundo fala nisso como se fosse a melhor coisa do mundo. Reconheço que é agradável, mas só. E olhe que eu não escolhi qualquer um; escolhi alguém muito atraente e com idade bastante para saber o que estava fazendo.

Ele suspirou.

— Você é que é uma bocó, Justine. Eu teria ficado muito mais feliz se a ouvisse dizer ”Ele não é nenhum adônis, mas nós nos conhecemos e não pude evitá-lo.” Admito que você não quisesse esperar até o casamento, mas isso ainda é alguma coisa que deve querer por causa da pessoa. Nunca por causa do ato, Jus. Não me surpreende que você não se sentisse em êxtase.

Todo o vaidoso triunfo desapareceu do rosto dela.

— Ora, bolas! Você agora me fez sentir péssima! Se eu não o conhecesse melhor, diria que você estava tentando me degradar... ou degradar os meus motivos, ao menos.

— Mas você me conhece, não conhece? Sabe que eu nunca a degradaria. Às vezes, porém, os seus motivos são egoístas e tolos. — Ele adotou um tom de voz monótono e uniforme. — Eu sou a voz da sua consciência, Justine O’Neill.

— Também, também, seu bocó. — Esquecendo-se da sombra, ela deixou-se cair na grama ao lado dele de modo que ele não pudesse ver-lhe o rosto. — E você sabe por quê, não sabe?

— Oh, Jussy — disse ele tristemente, mas perdeu-se o que quer que ele fosse acrescentar, pois ela voltou a falar, um pouco agressivamente.

— Nunca, nunca, nunca amarei ninguém! Quando você ama as pessoas, elas o matam. Quando você precisa das pessoas, elas o matam. Matam, sim, eu lhe asseguro.

Sempre o magoava saber que ela se sentia excluída do amor, e magoava-o ainda mais saber-se a causa disso. Uma razão preponderante para que ela lhe fosse tão importante era porque ela o amava o bastante para não ter ressentimentos, porque nunca o fizera sentir, nem por um momento, uma diminuição do seu amor através do ciúme ou de melindres. Ele achava uma crueldade que ela se movesse na periferia de um círculo cujo centro era ele próprio. Rezara e rezara para que as coisas se modificassem, mas elas nunca se modificaram. O que não lhe diminuíra a fé, apenas lhe mostrara, com nova ênfase, que em algum lugar, em alguma ocasião, teria de pagar pela emoção de que era alvo à custa dela. Ela enfrentava os fatos com coragem, conseguira até convencer-se de que se achava muito bem na periferia, mas ele sentia-lhe o sofrimento. Ele sabia. Havia tanta coisa nela para ser amada, tão pouca coisa nele digna de amor! Sem esperança de compreender as coisas de modo diferente, ele presumia ter ficado com a parte do leão na divisão do amor em virtude da sua beleza, da sua natureza mais tratável, da sua capacidade de comunicar-se com a mãe e com as demais pessoas de Drogheda. E por ser homem. Muito pouca coisa lhe escapava além do que ele simplesmente não poderia saber, e tivera as confidências e a companhia de Justine como ninguém ainda as tivera. Sua mãe era muito mais importante para Justine do que ela mesma queria admitir.

Mas eu expiarei, pensava ele. Tive tudo. De certo modo, terei de restituí-lo, de compensá-la disso.

De repente, calhando de olhar para o relógio, pôs-se em pé; por maior que fosse a sua dívida para com a irmã, devia a outrem muito mais do que isso.

— Tenho de ir, Jus.

— Você e a sua igreja! Quando crescerá o suficiente para deixá-la?

— Espero que nunca.

-- Quando o verei?

— Como hoje é sexta-feira, amanhã, naturalmente, às onze horas, aqui.

— Está certo. Comporte-se.

Ele já se distanciara alguns metros, com o chapéu de palha de Riverview na cabeça, mas voltou-se sorrindo para ela.

— E eu deixei de fazê-lo alguma vez? Ela sorriu também.

— É claro que não. Você não existe, eu é que vivo metida em apuros. Até amanhã. Havia imensas portas forradas de couro vermelho no interior do vestíbulo da catedral de Santa Maria; Dane empurrou uma delas, abrindo-a, e esgueirou-se para dentro. Deixara Justine um pouco antes do que era estritamente necessário, mas sempre gostava de entrar na igreja antes que esta se enchesse e transformasse num foco móvel de suspiros, tosses, esbarrões, murmúrios. Quando ele estava só, era muito melhor. Um sacristão acendia braços de candelabros no altar-mor; um diácono, supôs, com exatidão. Cabeça inclinada, ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz ao passar diante do tabernáculo e acomodou-se no banco mais próximo.

De joelhos, descansou a cabeça sobre as mãos dobradas e deixou que o espírito vagasse em liberdade. Em vez de rezar, tornou-se parte intrínseca da atmosfera, que lhe pareceu densa, porém etérea, indizivelmente sagrada, convidando à reflexão. Como se ele se tivesse transformado na chama de uma das pequenas lamparinas vermelhas do santuário, sempre bruxuleando à beira da extinção, mas sustentadas por alguma essência vital, e irradiando um brilho diminuto, porém duradouro, para as trevas mais distantes. Quietude, ausência de formas, esquecimento de sua identidade humana; era isso o que Dane conseguia quando estava na igreja. Em nenhum outro lugar se sentia tão bem, tão em paz consigo mesmo, tão afastado da dor. Seus cílios se baixaram, seus olhos se cerraram.

Da galeria do órgão veio o arrastar de pés, um resfôlego preparatório, uma ruidosa expulsão de ar dos tubos. O coro da Escola Masculina da Catedral de Santa Maria estava chegando mais cedo para um ensaio antes do ritual, que começaria dali a pouco. Uma simples bênção do meio-dia de sexta-feira, mas como o oficiante seria um amigo e professor de Dane de Riverview, ele quisera estar presente.

O órgão executou alguns acordes, aquietou-se num acompanhamento trêmulo e entre os sombrios arcos rendados de pedra elevou-se a voz celestial de um menino, fina, alta e suave, tão cheia de pureza inocente que as poucas pessoas que se achavam na grande igreja vazia fecharam os olhos, saudosas do que nunca mais voltaria a pertencer-lhes

”Panis angelicus, Fit panis hommutn, Dat panis coehcus Figuns terminam O rés mirabihs, Manducai Dommus, Pauper, pauper, Servus et humihs ”

Pão de anjos, pão celestial, ó coisa maravilhosa Das profundezas do abismo! Gritei para Ti, Senhor, Senhor, ouve minha voz! Que os Teus ouvidos se afinem com os sons da minha súplica! Não afastes de mim Teu olhar, Senhor, não afastes de mim Teu olhar! Pois Tu és meu Soberano, meu Mestre, meu Deus, e eu sou Teu humilde servo! A Teus olhos só uma coisa interessa, a bondade. Não Te importa que os Teus servos sejam bonitos ou feios Só. Te importa o coração, em Ti tudo se cura, em Ti conheço a paz!

Senhor, isto é solitário! Rogo-Te que se acabe logo a dor da vida. Eles não compreendem que eu, tão bem-dotado, encontre tanta dor no viver. Mas Tu compreendes e o Teu conforto é tudo o que me sustenta. Não importa o que exiges de mim, Senhor, isso será dado, pois eu Te amo E se posso tomar a liberdade de pedir-Te alguma coisa, é que em Ti tudo o mais se esqueça para sempre!

— Você está muito calada, mamãe — disse Dane — Em que pensa? Em Drogheda?

— Não — retrucou Meggie, sonolenta — Penso em como estou ficando velha. Encontrei meia dúzia de fios de cabelo grisalhos hoje cedo e meus ossos doem

— Você nunca ficará velha, mamãe — disse ele confortadoramente

— Quem me dera que isso fosse verdade, meu amor, mas infelizmente não é. Estou começando a precisar do poço de água quente, o que é sinal seguro de velhice

Eles estavam deitados, ao sol morno do inverno, sobre toalhas estendidas no capim de Drogheda, ao pé do poço. Na extremidade mais distante do grande poço a água fervente roncava e respingava, e o cheiro forte do enxofre pairava no ar. Um dos grandes prazeres do inverno era nadar no poço. Mitigavam-se todas as dores e sofrimentos da velhice que avançava, pensou Meggie, e virou-se para deitar-se de costas, com a cabeça na sombra do tronco em que ela e o Padre Ralph tinham sentado havia tanto tempo. Havia muitíssimo tempo; ela era incapaz até de evocar um eco tênue sequer do que devia ter sentido quando Ralph a beijara.

Depois, ouviu Dane levantar-se e abriu os olhos. Ele sempre fora o seu bebê, o seu lindo menininho; embora o tivesse visto mudar e crescer com orgulho de proprietária, sobrepusera a imagem do bebê risonho ao rosto que amadurecia. Ainda não lhe ocorrera que, na realidade, ele já não era uma criança.

Entretanto, o momento de compreensão chegou para Meggie naquele instante, quando o viu em pé, destacado do céu frio em seu sumário traje de banho de algodão.

Meu Deus, está tudo acabado! A infância, a meninice. Ele é um homem. Orgulho, ressentimento, uma profunda ternura feminina, uma horrível consciência de tragédia iminente, raiva, adoração, tristeza; tudo isso e muito mais sentiu Meggie ao olhar para o filho. É uma coisa terrível criar um homem, e mais terrível criar um homem como este. Tão surpreendentemente masculino, tão surpreendentemente belo.

Ralph de Bricassart acrescido dela mesma. Como poderia deixar de comover-se vendo em sua extrema juventude o corpo do homem que a ela se juntara no amor? Fechou os olhos, confusa, detestando ter de pensar no filho como num homem. Quando a mirava, veria ele nela uma mulher, ou seria ela ainda para ele um maravilhoso não-ser, mamãe? Dane-se, dane-se! Como ele se atreve a crescer?

— Você sabe alguma coisa a respeito de mulheres, Dane? — perguntou ela de repente, abrindo os olhos outra vez.

Ele sorriu.

— Você se refere aos fatos da vida?

— Tendo Justine por irmã, não poderia deixar de conhecê-los. Quando descobriu o que havia entre as capas dos compêndios de fisiologia, ela contou tudo, de repente, para todo mundo. Não, estou perguntando se você já pôs em prática algum tratado cínico de Justine.

A cabeça dele moveu-se num rápido aceno negativo. Ele escorregou para o chão ao lado dela e fixou os olhos no rosto materno.

— Foi engraçado você ter perguntado isso, mamãe. Faz muito tempo que ando querendo lhe falar a esse respeito, mas não sabia como começar.

— Você só tem dezoito anos, meu amor. Não será um pouco cedo para pôr em prática a teoria?

Só dezoito. Só. Ele era um homem, não era?

— É isso, é sobre isso que eu queria falar com você. Sobre não pôr em prática a teoria. Nunca.

Como era frio o vento que soprava do grande divisor de águas! O curioso é que só agora ela se dava conta disso. Onde estava o seu roupão?

— Sobre não pôr em prática a teoria. Nunca — repetiu, em tom monótono; mas não em tom de pergunta.

— É isso mesmo. Não quero. Nunca. Mas não pense que não pensei nisso, que não desejei uma esposa e filhos. Pensei e desejei. Mas não posso. Porque não há lugar suficiente para amá-los e amar a Deus igualmente, pelo menos como desejo amar a Deus. Faz muito tempo que o sei. Não me lembro de nenhum instante em que o não soubesse e, quanto mais velho fico, mais cresce meu amor a Deus. É um grande mistério amar a Deus.

Meggie continuava olhando para os calmos e distantes olhos azuis. Os olhos de Ralph. Brilhando, todavia, com alguma coisa muito diferente do que havia nos olhos de Ralph. Tivera-a este aos dezoito anos? Tivera-a? Seria, acaso, alguma coisa que só se tem aos dezoito anos? Quando ela entrara na vida de Ralph, este já tinha vinte e oito. Entretanto, sempre soubera que o filho era um místico. E não acreditava que Ralph tivesse tido pendores místicos em algum período de sua vida. Engoliu em seco e apertou ainda mais o roupão em torno dos seus ossos solitários.

— Por isso perguntei a mim mesmo — prosseguiu Dane — o que eu podia fazer para mostrar-Lhe o quanto O amava. Lutei contra a resposta por muito tempo, não querendo vê-la. Eu também desejava a vida de todo homem, desejava muito. No entanto, sabia qual teria de ser o oferecimento... Só há uma coisa que posso oferecer a Ele, para mostrar-Lhe que nada mais existirá em meu coração acima d’Ele: o seu único rival; esse é o sacrifício que Ele quer de mim. Sou o Seu servo, e Ele não terá rivais. Tive de escolher. Ele me deixará ter e gozar todas as coisas, menos essa. — Suspirou e arrancou do chão uma haste de capim de Drogheda. — Preciso mostrar-Lhe que compreendo por que Ele me deu tanto quando nasci. Preciso mostrar-Lhe que compreendo como é sem importância minha vida como homem.

— Você não pode fazer isso, não o deixarei! — gritou Meggie estendendo a mão para pegar-lhe no braço, segurando-o. Como era macio, apesar da sugestão de força debaixo da pele, exatamente como o de Ralph. Exatamente como o de Ralph! Não haver alguma garota meiga e inteligente que tivesse o direito de pôr a mão ali?

— Serei padre — disse Dane. — Entrarei todo para o Seu serviço, oferecendo a Ele, como Seu padre, tudo o que tenho e tudo o que sou. Pobreza, castidade e obediência. Ele só exige tudo de Seus servos escolhidos. Não será fácil, mas hei de fazê-lo.

O olhar que havia nos olhos dela! Como se ele a tivesse matado, como se a tivesse reduzido a pó debaixo do pé. Ele não soubera que teria de sofrer isso também, pois só pensara no orgulho que lhe daria, no prazer que ela sentiria de oferecer o filho a Deus. Tinham-lhe dito que ela concordaria, emocionada e enlevada. Ao invés disso, cravara os olhos nele como se a perspectiva do sacerdócio do filho fosse a sua sentença de morte.

— É tudo o que eu sempre quis ser — tornou ele, com desespero, enfrentando o olhar moribundo. — Oh, mamãe, você não compreende? Nunca, nunca desejei ser outra coisa além de padre. Não posso ser outra coisa senão padre!

A mão dela largou-lhe o braço; abaixando os olhos, ele viu as marcas brancas das unhas dela, os pequeninos arcos em sua pele onde as unhas de Meggie lhe tinham penetrado fundo na pele do braço. A cabeça dela se ergueu e ela se pôs a gargalhar, numa sucessão de imensos e histéricos frouxos de riso amargo e escarninho.

— É bom demais para ser verdade! — ofegou, quando recuperou o uso da voz, enxugando com mão trêmula as lágrimas que lhe permaneciam no canto dos olhos.

A incrível ironia! Cinzas de rosas, disse ele naquela noite, cavalgando na direção do poço. E eu não compreendi o que ele quis dizer. És cinza, e cinza voltarás a ser. Pertence à Igreja, à Igreja serás dado. Oh, é belo, belo! Deus, o ridículo Deus, digo eu! Deus, o sodomita! O maior inimigo das mulheres, eis o que Ele é! Tudo que procuramos fazer, Ele procura desfazer!

— Não fale assim, não fale assim, mamãe! Não, mamãe! — Dane chorava por ela, por sua dor, sem compreender-lhe a dor nem as palavras. As lágrimas lhe caíam do retorcido coração; o sacrifício já começara e de um modo que ele não imaginara. Mas, embora chorasse por ela, nem por ela poderia abrir mão do sacrifício. A oferta precisava ser feita e, quanto mais difícil, tanto mais valiosa aos Seus olhos.

Ela o fizera chorar, e isso jamais acontecera até aquele momento. Meggie pôs resolutamente de lado a raiva e a dor. Não, não seria justo puni-lo por isso. O que ele era devia-o aos seus genes. Ou ao seu Deus. Ou ao Deus de Ralph. Luz da sua vida, seu filho, ele nunca deveria sofrer por causa dela.

— Não chore, Dane — murmurou ela, passando a mão pelas marcas iradas no braço dele. — Sinto muito. Eu não estava falando sério. Você me deu um choque, foi isso. É claro que me alegro por você! Como não me alegraria? Mas fiquei chocada; a notícia foi muito inesperada, aí é que está. — Ela riu-se com a boca fechada, um tanto trêmula. — Você deixou que a notícia caísse sobre mim como uma pedra.

Os olhos dele se aclararam, fixando-se nela com uma expressão de dúvida. Por que imaginara que a matava? Aqueles eram os olhos de sua mãe como sempre os conhecera; cheios de amor, cheios de vida. Os braços jovens e fortes puxaram-na para junto de si, e abraçaram-na.

— Você tem certeza de que não se incomoda?

— Se me incomodo? Uma boa mãe católica incomodar-se porque o filho vai ser padre? Impossível! — Ela pôs-se de pé num salto. — Brr! Como esfriou! Vamos voltar.

Eles não tinham vindo a cavalo, mas num Land-Rover com cara de jipe. Dane instalou-se atrás do volante e a mãe sentou-se ao seu lado.

— Você já sabe para onde vai? — perguntou Meggie, engolindo um soluço e empurrando a mecha de cabelo que lhe caíra sobre os -olhos.

— Acho que vou para o Colégio de São Patrício. Pelo menos até me aprumar. Depois é possível que entre para uma ordem. Eu gostaria de ser jesuíta, mas ainda não estou tão certo disso que possa ingressar diretamente na Sociedade de Jesus.

Meggie olhou para o capim acastanhado que se agitava para cima e para baixo através do pára-brisa coalhado de insetos.

— Tenho uma idéia melhor, Dane.

— Sim?

Ele precisava concentrar-se na direção do automóvel; o caminho ia-se estreitando e havia sempre novos troncos de árvores caídos de través.

— Eu o mandarei para Roma, para o Cardeal de Bricassart. Lembra-se dele, não se lembra?

— Se me lembro dele? Que pergunta, mamãe! Eu não o esqueceria nem daqui a um milhão de anos. É o meu exemplo do padre perfeito. Se eu pudesse ser o padre que ele é, ficaria muito feliz.

— A perfeição é o que a perfeição faz! — disse Meggie com azedume. — Mas eu o encarregarei de tomar conta de você, porque sei que ele o fará. Por mim. Você poderá entrar num seminário em Roma.

— Está falando sério, mamãe? Sério mesmo? — A ansiedade tirava a alegria do rosto dele. — Haverá dinheiro suficiente? Seria muito mais barato se eu ficasse na Austrália.

— Graças ao mesmíssimo Cardeal de Bricassart, meu querido, nunca lhe faltará dinheiro.

À porta da cozinha, ela o empurrou para dentro.

— Vá contar às meninas e à Sra. Smith — disse Meggie. — Elas vão ficar emocionadíssimas.

Um depois do outro, ela pôs os pés no chão, obrigou-os a subir a rampa que conduzia à casa-grande, à sala de estar onde Fee, sentada, em vez de trabalhar, conversava com Anne Mueller, ao lado de uma bandeja de chá, o que não deixava de ser um milagre. Quando Meggie entrou, as duas ergueram os olhos e viram-lhe no rosto que alguma coisa séria tinha acontecido.

Fazia dezoito anos que os Muellers visitavam Drogheda, esperando que tudo corresse sempre assim. Mas Luddie Mueller morrera de repente no outono anterior, e Meggie escrevera em seguida a Anne perguntando-lhe se não gostaria de viver permanentemente em Drogheda. Lá havia espaço em quantidade e um chalé de hóspedes onde ela poderia morar, se o quisesse, no maior isolamento; e poderia também pagar pensão se a isso a obrigasse o orgulho, embora os Clearys tivessem dinheiro suficiente para manter um milhar de hóspedes permanentes. Meggie viu nisso a oportunidade de retribuir o que recebera dos Muellers naqueles solitários anos de Queensland, e Anne viu nisso a salvação. Himmelhoch sem Luddie era horrivelmente solitária. Deixou um administrador tomando conta da propriedade, pois não quisera vendê-la; quando morresse, Himmelhoch seria de Justine.

— Que foi, Meggie? — perguntou Anne. Meggie sentou-se.

— Creio que fui atingida por um raio de justiça distributiva.

— Como assim?

— Vocês duas tinham razão. Disseram que eu o perderia. Não acreditei, pensei realmente que conseguiria derrotar a Deus. Mas nunca houve mulher capaz de derrotar a Deus. Ele é Homem.

Fee serviu-lhe uma xícara de chá.

— Olhe, beba isto — disse ela, como se o chá tivesse os poderes restauradores do conhaque. — Como foi que o perdeu?

— Ele vai ser padre.

E ela disparou a rir e a chorar ao mesmo tempo.

Anne apanhou as muletas, arrastou-se mancando até onde estava Meggie e sentou-se desajeitada no braço da poltrona, alisando o cabelo de ouro vermelho.

— Oh, minha querida! Mas isso não é tão ruim assim.

— Você sabe a respeito de Dane? — perguntou Fee a Anne.

— Eu sempre soube — disse Anne. Meggie controlou-se.

— Não é tão ruim assim? Mas vocês não vêem que esse é o começo do fim? A retaliação. Roubei Ralph de Deus, e agora estou pagando com meu filho. Você me disse que isso era roubo, mamãe, lembra-se? Eu não quis acreditar, mas você estava certa, como sempre.

— Ele vai para São Patrício? — perguntou Fee em tom prático. Meggie riu-se mais normalmente.

— Não é essa espécie de retaliação, mamãe. vou mandá-lo para Ralph, naturalmente. Metade dele é Ralph; deixemos Ralph desfrutá-lo, afinal. — Ela estremeceu. -— Ele é mais importante do que Ralph, e eu sabia que gostaria de ir para Roma.

— Você chegou a contar a Ralph a respeito de Dane? — perguntou Anne; aquele era um assunto que nunca se discutia.

— Não, e jamais contarei. Jamais!!

— São tão parecidos que ele é capaz de adivinhar.

— Quem, Ralph? Nunca! Isso, ao menos, eu pretendo guardar. Estou-lhe mandando o meu filho, mas só! Não estou mandando o filho dele.

— Cuidado com o ciúme dos deuses, Meggie — disse Anne suavemente. — Eles talvez ainda não tenham dito a última palavra.

— E que mais poderão fazer comigo? — perguntou Meggie, chorosa.

Quando Justine soube da novidade, ficou furiosa, embora nos últimos três ou quatro anos tivesse uma furtiva desconfiança da sua iminência. Sobre Meggie a notícia estourou como o ribombo de um trovão, mas sobre Justine caiu como um previsível balde de água fria.

Primeiro que tudo, porque Justine freqüentara a escola de Sydney com ele e, como sua confidente, ouvira-o falar em coisas que ele não dizia a sua mãe. Sabia Justine que a religião tinha uma importância vital para Dane; não somente Deus, mas a mística significação dos rituais católicos. Se ele tivesse nascido e crescido protestante, pensou ela, acabaria se voltando para o catolicismo a fim de satisfazer a uma necessidade de sua alma. Dane não queria saber de um Deus austero e calvinista. O seu Deus era pintado em vidros coloridos, cercado de incenso, envolvido em bordados de renda e ouro, exaltado em hinos de complexidade musical e adorado em belas cadências latinas.

Era também uma irônica perversidade que alguém tão bem-dotado de beleza considerasse esse atributo um aleijão incapacitante e lhe deplorasse a existência. Pois Dane não fazia outra coisa. Retraía-se diante de qualquer alusão à sua aparência. Justine imaginava que ele teria preferido nascer feio, totalmente destituído de qualquer atração. Compreendia, em parte, que ele se sentisse assim e, porque sua própria carreira se confundia com uma profissão notoriamente narcisista, talvez lhe aprovasse a atitude para com sua aparência. O que ela não conseguia compreender era que ele, em vez de apenas ignorar a sua beleza, a abominasse.

Ele também não era muito voltado para as coisas do sexo, embora ela desconhecesse a razão disso: ou porque ele tivesse aprendido a sublimar suas paixões, ou porque, a despeito dos seus dotes corporais, escasseasse nele a indispensável essência cerebral. Talvez fosse mais válida a primeira hipótese, visto que ele praticava todos os dias um esporte vigoroso a fim de poder ir exausto para a cama. Ela sabia muito bem que suas inclinações eram ”normais”, isto é, heterossexuais, e conhecia o tipo de garota que o atraía — alta, morena, voluptuosa. Mas ele, sensualmente, não se dava conta disso; não reparava na sensação que lhe proporcionavam as coisas quando as pegava, não sentia os cheiros no ar que o rodeava, nem compreendia a satisfação especial produzida pela forma e pela cor. Para que ele experimentasse uma influência sexual, era preciso que o impacto do objeto provocador fosse irresistível, e só nesses raros momentos ele parecia dar-se conta da existência de um plano terrestre palmilhado e escolhido pela maioria dos homens, durante o maior espaço possível de tempo.

Ele contou-lhe a boa nova nos bastidores do Culloden, depois de um espetáculo. Tudo fora acertado com Roma naquele dia; Dane estava louco para confidenciá-lo à irmã, embora soubesse que ela não gostaria. Nunca discutira com ela suas ambições religiosas, por mais que desejasse fazê-lo, pois ela se zangava. Mas, quando chegou aos bastidores do teatro naquela noite, foi-lhe muito difícil reprimir a alegria por mais tempo.

— Você é um bocó — disse ela, enfadada.

— É o que eu mais desejo.

— Idiota.

— O fato de me xingar, Justine, não modifica nada.

— Pensa que não sei? Acontece apenas que os xingamentos me proporcionam uma pequena válvula de escape emocional de que estou muito precisada neste momento.

— Eu supunha que você encontrasse uma válvula de escape satisfatória no palco, representando Electra. Você é boa mesmo, Jus.

— Depois dessa notícia, serei ainda melhor — disse ela, sombria. — Você vai para São Patrício?

— Não, vou para Roma, para junto do Cardeal de Bricassart. Mamãe arranjou tudo.

— Dane, não! É tão longe!

— Ué, e por que você não vai também, ao menos até à Inglaterra? com seus estudos e sua capacidade, não lhe será difícil arranjar colocação em algum lugar.

Sentada diante do espelho, Justine tirava do rosto as tintas de Electra, ainda vestindo as roupas de Electra; orlados de pesados arabescos pretos, seus olhos estranhos pareciam mais estranhos ainda. Fez um aceno afirmativo com a cabeça.

— É, eu poderia ir, não poderia? — perguntou em tom reflexivo. — Já está na hora de sair daqui... A Austrália está ficando pequena demais... Tem razão, companheiro! Estou nessa! É para a Inglaterra que eu vou!

— Ótimo! Pense um pouco! Terei férias, pois a gente sempre as tem num seminário, como se fosse uma universidade. Podemos dar um jeito de gozar nossas férias ao mesmo tempo, viajar um pouco pela Europa, voltar para Drogheda. Oh, Jus, já tenho tudo pensado e repensado! Se você não ficar muito longe de mim, será perfeito.

Ela sorriu, feliz.

— É mesmo, não é? A vida nunca mais seria a mesma se eu não pudesse falar com você.

— Era isso mesmo que eu receava que você dissesse. — Ele sorriu. — Mas falando sério, Jus, você me preocupa. Eu preferiria que você ficasse onde eu pudesse vê-la de quando em quando. De outro modo, quem será a voz da sua consciência?

Ele deslizou entre o elmo de um hoplita e a máscara apavorante de uma pitonisa e foi ocupar uma posição no chão onde pudesse vê-la, enrolando-se para formar um volume econômico, fora do caminho de todos os pés. Havia apenas dois camarins para os artistas no Culloden e, como Justine ainda não fizesse jus a nenhum deles, vestia-se na sala de vestir coletiva, entre o tráfico incessante.

— Aquele velho e maldito Cardeal de Bricassart! — disse ela, com raiva. — Odiei-o desde o primeiro momento em que o vi.

Dane sorriu, divertido, com a boca fechada.

— Você não o odiou, e sabe disso.

— Odiei, sim! Odiei!

— Não odiou. Tia Anne, aliás, contou-me uma história no Natal, que eu aposto que você não conhece.

— O que é que não conheço? — perguntou ela, cautelosa.

— Quando você era um bebezinho, ele lhe deu a mamadeira, fê-la arrotar e embalou-a até você dormir. Segundo tia Anne, você era um bebê horrível, cheio de truques, que não gostava de colo, mas, quando ele a pegava, você ficava toda contente.

— Isso é mentira!

— Não é. — Ele sorriu. — De qualquer maneira, por que o odeia tanto agora?

— Não sei. Só sei que o odeio. Ele me parece um velho urubu descarnado, que me dá calafrios.

— Pois eu gosto dele. Sempre gostei. O padre perfeito, é assim que o Padre Watty o chama. E eu também o considero perfeito.

— Pois eu quero que ele se foda, e ponto!

— Justine!

— Desta vez eu o escandalizei, não foi? Aposto que você nem pensava que eu conhecesse essa palavra.

Os olhos dele brilharam.

— Sabe o que ela significa? Diga-me, Jussy! Eu a desafio a dizê-lo!

Ela jamais conseguia resistir-lhe quando ele a provocava; seus próprios olhos principiaram a brilhar.

— Você poderá vir a ser um Padre Papagaio, seu bocó, mas, se ainda não sabe o que isso quer dizer, é melhor não investigar.

Ele ficou sério.

— Não se preocupe, não investigarei.

Um par muito bem torneado de pernas femininas parou ao lado de Dane e girou sobre si mesmo. Ele ergueu a vista, ficou vermelho, afastou os olhos e disse, com voz casual:

— Olá, Martha.

— Olá, Dane.

Era uma moça extremamente bonita, talvez não muito talentosa, mas tão decorativa que constituía um trunfo para qualquer produção; além disso, correspondia exatamente ao ideal de beleza feminina de Dane, cujos comentários elogiosos sobre ela Justine já ouvira mais de uma vez. Alta, cabelo e olhos muito escuros, pele clara, seios magníficos, era o que as revistas de cinema qualificavam sempre de ”sexsacional”.

Empoeirada no canto da mesa de Justine, ela se pôs a balançar a perna provocadoramente diante do nariz de Dane, enquanto o observava com indisfarçável interesse, que ele evidentemente achava desconcertante. Céus!, que belíssimo pedaço de mau caminho! Como pudera uma guria feia e sem graça como Justine arranjar um irmão como aquele? Mal completara dezoito anos e ainda cheirava a cueiros, mas que importância tinha isso?

— Tive uma idéia: vamos tomar café no meu apartamento? — perguntou, olhando para Dane. — Vocês dois? — ajuntou, relutante.

Justine abanou a cabeça resolutamente, enquanto seus olhos se acendiam por efeito de um súbito pensamento.

— Não, obrigada, não posso. Você terá de se contentar com Dane.

Ele abanou a cabeça com a mesma convicção, embora um tanto pesaroso, pois se sentia realmente tentado.

— De qualquer modo, muito obrigada, Martha, mas não posso. — Olhou para o relógio como se olhasse para um salvador.

— Meu Deus! Só me resta um metro no meu parquímetro. Você ainda se demora, Jus?

— Uns dez minutos. — vou esperá-la lá fora. Está bem?

— Cagão! — debochou ela.

Os olhos escuros de Martha seguiram-no.

— Ele é maravilhoso. Por quê não olha para mim?

Justine sorriu com azedume e esfregou o rosto para acabar de limpá-lo. As sardas estavam voltando. Londres talvez ajudasse; lá não havia sol.

— Não se iluda, que ele olha, sim. E garanto que gostaria também. Mas não quer.

— Por quê? O que é que ele tem? Não vá me dizer que é bicha! Merda, por que será que todo homem bonito que conheço é bicha? Mas olhe, confesso que nunca pensei que Dane também fosse; juro que ele não me dá essa impressão.

— Veja como fala, sua tolinha! Ele certamente não é bicha. Aliás, no dia em que ele olhar para Sweet William, o nosso Bambi juvenil, eu esganarei os dois.

— Bem, se ele não é veado e gosta disso, por que não aceita quando oferecem? Não recebeu minha mensagem? Será que me acha velha demais para ele?

— Mesmo que você tenha cem anos, minha querida, não será velha demais para homem nenhum, pode ficar tranqüila. Acontece que Dane jurou renunciar ao sexo para o resto da vida, o tonto. Ele quer ser padre.

Abriu-se a boca carnuda de Martha, que atirou para trás o cabelo preto.

— Não me diga!

— É verdade.

— Quer dizer que tudo aquilo será atirado às baratas?

— Receio que sim. Ele pretende oferecê-lo a Deus.

— Nesse caso, Deus é mais bicha do que Sweet Willie.

— Pode ser que você tenha razão — disse Justine. — O certo é que ele não é muito amigo das mulheres. Nós pertencemos à segunda classe, lá em cima, ao galinheiro. A platéia e os balcões são estritamente masculinos.

— Oh.

Justine desvencilhou-se do manto de Electra, enfiou um fino vestido de algodão pela cabeça, lembrou-se de que estava frio lá fora, vestiu uma blusa de tricô de mangas compridas e bateu meigamente na cabeça de Martha.

— Não se aflija com isso, queridinha. Deus foi muito bom para você; não lhe deu um pingo de cérebro. Acredite em mim, é muito mais cômodo assim. Você nunca fará concorrência aos Senhores da Criação.

— Não sei, não me incomodaria de concorrer com Deus pelo seu irmão.

— Esqueça. Você está combatendo o Esiablishment, e isso não se faz. Dou-lhe a minha palavra de que lhe será muito mais fácil seduzir Sweet Willie.

Um automóvel do Vaticano foi receber Dane no aeroporto, e transportou-o rapidamente através das ruas ensolaradas e desbotadas, cheias de gente bonita e sorridente; ele colou o nariz na janela e bebeu de tudo aquilo, insuportavelmente excitado ao ver pessoalmente o que até então só vira em fotografias — as colunas romanas, os palácios rococós, a glória renascentista de São Pedro.

E à sua espera, vestido desta vez de escarlate dos pés à cabeça, estava Ralph Raoul, Cardeal de Bricassart. Na mão estendida, o anel cintilava; Dane dobrou os dois joelhos para beijá-lo.

— Levante-se, Dane, deixe-me olhar para você.

Ele ficou em pé, sorrindo para o homem alto que era quase exatamente da sua altura; podiam fitar a vista um do outro. Para Dane, o Cardeal possuía uma imensa aura de força espiritual, o que lhe lembrava mais um papa do que um santo, embora aqueles olhos intensamente tristes não fossem os de um papa. Quanto não devera ter sofrido para assumir aquele aspecto, mas quão nobremente se alteara acima do próprio sofrimento para tornar-se o padre perfeitíssimo.

E o Cardeal Ralph olhava para o filho que não sabia ser seu e que amava, supunha-o por ser filho da sua querida Meggie. Era exatamente assim que teria desejado ver um filho do próprio corpo; igualmente alto, igualmente belo, igualmente gracioso. Nunca, em toda a sua vida, vira um homem com um porte tão elegante. Muito mais satisfatória porém, do que qualquer beleza física era a singela beleza da sua alma. Ela possuía a força dos anjos e algo da sua extraterrenalidade. Teriam sido assim os seus dezoito anos? Tentou recordar, recapitular os eventos acumulados de três quintos de uma existência; não, nunca fora assim. Por quê? Porque este ali estava por sua livre escolha? Ele tivera a vocação, mas nunca pudera escolher.

— Sente-se, Dane. Fez o que lhe pedi, já começou a aprender italiano?

—Já. Até já falo com fluência, embora sem idiotismos, e leio razoavelmente bem. É possível que o fato de ser a minha quarta língua o facilite. Parece que tenho jeito para línguas. Mais duas semanas aqui e acabarei falando como um verdadeiro italiano.

— Falará, sim, não tenha dúvida. Eu também tenho jeito para línguas.

— Elas são fáceis — disse Dane, em tom não muito convincente. A figura escarlate, que lhe inspirava respeito e reverência, era um tanto desalentadora; tornou-selhe, de repente, difícil relembrar o homem que montava o cavalo castanho em Drogheda.

O Cardeal Ralph inclinou-se para a frente, observando-o.

”Transfiro-lhe a responsabilidade dele, Ralph”, dissera a carta de Meggie. ”Encarrego-o do seu bem-estar, da sua felicidade. Estou devolvendo o que roubei. É o que se exige de mim. Prometa-me apenas duas coisas e descansarei sabendo que você agiu de acordo com os melhores interesses dele. Em primeiro lugar, prometa-me, antes de aceitá-lo, certificar-se de que é isso o que ele realmente deseja. Em segundo lugar, em caso afirmativo, mantenha vigilância sobre ele, certificando-se de que isso continua sendo o que ele quer. Se Dane vier a perder o interesse, quero-o de volta. Pois foi a mim que ele pertenceu primeiro. Sou eu quem o dá a você.”

— Você tem certeza, Dane? — perguntou o Cardeal.

— Absoluta.

— Por quê?

Seus olhos estavam curiosamente distantes, eram incomodamente familiares, mas familiares de um modo que pertencia ao passado.

— Por causa do amor que tenho a Nosso Senhor. Quero servi-Lo como Seu padre todos os meus dias.

— Sabe o que o Seu serviço implica, Dane?

— Sei.

— Que nenhum outro amor deverá jamais interpor-se entre você e Ele? Que você será exclusivamente d’Ele, e abandonará tudo o mais?

— Sei.

Que a Sua vontade será feita em todas as coisas, que no serviço d’Ele você sepultará sua personalidade, sua individualidade, o conceito da sua própria importância?

— Sei.

— Que, se for necessário, você terá de enfrentar a morte, a prisão, a fome em nome d’Ele? Que não possuirá nada, nem dará valor a nada capaz de diminuir o amor que você Lhe consagra?

— Sei.

— Você é forte, Dane?

— Sou um homem, Eminência. Sou primeiro um homem. Sei que será difícil. Mas rezo para conseguir, com a ajuda d’Ele, encontrar a força.

— Terá de ser isso mesmo, Dane? Nada menos do que isso poderá contentá-lo?

— Nada.

— E se, mais tarde, você vier a mudar de idéia, que fará?

— Pedirei para sair — disse Dane, surpreso. — Se eu mudar de idéia será porque me terei enganado de vocação, e não por outra razão qualquer. Portanto, pedirei para sair. Não O estarei amando menos, mas saberei que não é desse modo que Ele quer que eu O sirva.

— Mas depois que você tiver feito os votos finais e estiver ordenado, sabe que não poderá voltar atrás, que não haverá dispensa, nem possibilidade alguma de libertação?

— Sei — tornou Dane, paciente. — Mas, se eu tiver de tomar uma decisão, chegarei a ela antes disso.

O Cardeal Ralph inclinou-se para trás na poltrona e suspirou. Estivera ele algum dia tão seguro? Fora alguma vez tão forte?

— Por que me procurou, Dane? Por que quis vir a Roma? Por que não ficou na Austrália?

— Mamãe sugeriu Roma, mas eu já tinha essa idéia na cabeça, como um sonho, há muito tempo. Nunca imaginei que o dinheiro chegasse para tanto.

— Sua mãe é muito ajuizada. Ela não lhe contou?

— Contou o quê, Eminência?

— Que você tem uma renda de cinco mil libras por ano e muitos milhares de libras, no banco, em seu nome?

Dane enrijeceu.

— Não, ela nunca me contou.

— Muito ajuizada. Mas o dinheiro está no banco e Roma será sua, se você quiser. Você quer Roma?

— Quero.

— E por que escolheu a mim, Dane?

— Porque Vossa Eminência é a minha concepção do padre perfeito. O rosto do Cardeal Ralph contraiu-se.

— Não, Dane, você não pode olhar para mim desse jeito. Estou longe de ser o padre perfeito. Infringi todos os meus votos, entende? Aprendi da maneira mais penosa para um sacerdote, pelo rompimento dos meus votos, o que você já parece saber Pois me recusei a admitir que, antes de ser padre, eu era um homem mortal.

— Isso não tem a menor importância, Eminência — tornou Dane, com suavidade. — O que Vossa Eminência me diz em nada o diminui em minha concepção do padre perfeito. Parece-me apenas que Vossa Eminência não atinou com o que quero dizer. Não me refiro a um autômato inumano, acima da fraqueza da carne. Quero dizer que Vossa Eminência sofreu e cresceu. Pareço presunçoso? Asseguro-lhe que não é essa a minha intenção. Se o ofendi, rogo-lhe que me perdoe. É que tenho muita dificuldade para expressar meus sentimentos! Mas desejo dizer que, se alguém quiser tornar-se um padre perfeito, precisará de muitos anos, de sofrimentos terríveis e de ter sempre diante de si um ideal e Nosso Senhor.

O telefone tocou; o Cardeal Ralph pegou no aparelho com a mão levemente insegura e falou em italiano.

— Sim, obrigado, iremos imediatamente. Pôs-se em pé.

— Está na hora do chá da tarde e vamos tomá-lo com um velho e grande amigo meu. Depois do Santo Padre, é provavelmente a figura mais importante da Igreja. Contei-lhe que você viria e ele expressou o desejo de conhecê-lo.

— Obrigado, Eminência.

Atravessaram corredores, jardins aprazíveis, muito diferentes dos de Drogheda, com altos ciprestes e choupos, retângulos exatos de grama cercados de caminhos ornados de pilaretes e calçados de pedras musgosas; passaram por arcos góticos, debaixo de pontes renascentistas. Dane absorveu tudo aquilo num estado próximo do êxtase. Era um mundo tão diferente da Austrália, tão velho, tão perpétuo!

Levaram quinze minutos, apertando o passo, para chegar ao palácio; entraram e galgaram uma grande escadaria de mármore da qual pendiam tapeçarias finíssimas.

Vittorio Scarbanza, Cardeal di Contini-Verchese, tinha agora sessenta e seis anos e o corpo parcialmente paralisado por uma enfermidade reumática, mas sua mente continuava tão lúcida e alerta quanto sempre o fora. Sua gata atual, uma russa chamada Natasha, ronronava enrodilhada em seu regaço. Como não pudesse levantar-se para saudar os visitantes, contentou-se o cardeal em dirigir-lhes um amplo sorriso e em fazer-lhes um sinal com a mão. Seus olhos passaram do rosto amado de Ralph para Dane O’Neill e se alargaram e estreitaram, cravados nele em silêncio. Dentro de si senvacilar-lhe o coração, levou ao peito a mão que os cortejara num gesto instintivo de atenção e ficou a olhar, abismado, para a edição mais jovem de Ralph de Bricassart.

Vittorio, você está bem? — perguntou, ansioso, o Cardeal Ralph, tomando o pulso frágil entre os dedos, à procura dos batimentos.

— Estou, estou. Uma dorzinha passageira, nada mais que isso. Sentem-se, por favor.

— Em primeiro lugar, eu gostaria de apresentar-lhe Dane O’Neill, filho, como já lhe disse, de uma queridíssima amiga minha. Dane, este é Sua Eminência, o Cardeal di Contini-Verchese.

Dane ajoelhou-se, premiu os lábios no anel; por cima da cabeça inclinada, de um amarelo de ouro, o olhar do Cardeal Vittorio procurou o rosto de Ralph, e examinouo com mais atenção do que o fazia habitualmente. Mas relaxou-se de maneira imperceptível; era evidente que ela nunca lhe contara. E também que ele jamais suspeitaria da primeira coisa que acudia à mente de quem quer que os visse juntos. Não uma relação entre pai e filho, naturalmente, mas um estreito parentesco consangüíneo. Pobre Ralph! Ele nunca se vira andando, nunca observara as expressões do próprio rosto, nunca surpreendera o arqueamento da sua sobrancelha esquerda. Deus era realmente bom tornando os homens tão cegos.

— Sente-se. O chá não demora. E então, meu rapaz! Quer ser padre e por isso procurou a assistência do Cardeal de Bricassart?

— Sim, Eminência.

— Pois escolheu sabiamente. Sob os cuidados dele, nada de mal poderá acontecer-lhe. Mas você parece um pouco nervoso, meu filho. Será, porventura, a estranheza da situação?

Dane sorriu o sorriso de Ralph, talvez sem o mesmo encanto consciente, mas tanto era o sorriso de Ralph que o velho e cansado coração de Vittorio pareceu esbarrar num pedaço de arame farpado.

— Estou perplexo, Eminência. Eu não tinha avaliado a verdadeira importância dos cardeais. Nunca sonhei em ser recebido no aeroporto nem em tomar chá com Vossa Eminência.

— Sim, é inusitado... Percebe que talvez seja uma fonte de perturbações. Ah, eis aí o nosso chá! — Satisfeito, observou quando o colocavam sobre a mesa e levantou um dedo admonitório. — Ah, não! Eu serei a ”mãe”. Como gosta do chá, Dane?

— Assim como Ralph — respondeu ele, e corou violentamente. — Desculpe-me, Eminência, eu não tencionava falar dessa maneira!

— Está certo, Dane, o Cardeal di Contini-Verchese compreende. Quando nos conhecemos, éramos Dane e Ralph, e foi assim que se iniciou o nosso relacionamento, não foi? A formalidade é nova. Eu preferiria que continuássemos sendo Dane Ralph em particular. Sua Eminência não se incomodará, não é assim, Vittorio?

— É claro que não. Gosto muito de prenomes cristãos. Mas, voltando ao que eu dizia a respeito de ter amigos em postos elevados, meu filho. Talvez venha a ser um tanto incômodo para você, seja qual for o seminário escolhido, a longa amizade com o nosso Ralph. A necessidade de dar uma série de explicações complicadas todas as vezes que alguém notar a semelhança entre vocês poderá ser sumamente tediosa. Às vezes Nosso Senhor permite uma mentirinha sem importância. — Sorriu e o ouro que havia entre os seus dentes cintilou. — E, para o conforto de todos, eu preferiria que recorrêssemos a uma pequena fraude. Pois se é difícil explicar de modo satisfatório as tênues conexões da amizade, é muito fácil explicar o cordão vermelho do sangue. Por isso diremos a todos que o Cardeal de Bricassart é seu tio, meu caro Dane, e deixaremos as coisas nesse pé — rematou, muito suave, o Cardeal Vittorio.

Dane pareceu desagradavelmente surpreso, e o Cardeal Ralph resignado.

— Não fique decepcionado com os grandes, meu filho — disse o Cardeal Vittorio, afável. — Eles também têm pés de barro e valem-se amiúde de pequeninas mentiras inocentes para confortar os outros. Você acaba de aprender uma lição utilíssima, mas, observando-o, duvido que saiba tirar proveito dela. Entretanto, compreenda que nós, cavalheiros escarlates, somos diplomatas até a ponta dos dedos. Estou pensando realmente em você, meu filho. A inveja e o ressentimento não são estranhos aos seminários como não o são a quaisquer instituições seculares. Você sofrerá um pouco porque pensarão que Ralph é seu tio, irmão de sua mãe, mas sofreria muito mais se pensassem que não há entre vocês nenhum laço de sangue. Somos homens antes de qualquer outra coisa e é com homens que você lidará nesse mundo e nos outros.

Dane inclinou a cabeça, em seguida adiantou-se a fim de acariciar a gata, fazendo uma pausa com a mão estendida.

— Posso? Gosto muito de gatas, Eminência.

Seria impossível encontrar um atalho mais curto para chegar àquele velho mas constante coração.

— Pode. Confesso que ela está ficando pesada demais para mim. Você é uma glutona, não é, Natasha? Vá para o colo de Dane; ele é a nova geração.

Não havia possibilidade de Justine transferir-se e transferir seus pertences do hemisfério sul para o hemisfério norte com a mesma rapidez com que Dane o fizera; quando encerrou a temporada no Culloden e disse um adeus não sem tristeza a Bothwell Gardens, já fazia dois meses que o irmão estava em Roma.

— Como consegui juntar tanto traste inútil? — perguntou, rodeada de roupas, papéis, caixas.

Meggie ergueu os olhos de onde estava agachada, com uma caixa de embalagens Je palha de aço na mão.

— O que essas coisas estavam fazendo debaixo da sua cama?

Uma expressão de profundo alívio perpassou pelo rosto corado da filha.

— Oh, graças a Deus! Era aí que elas estavam? Pensei que o lindo poodle da Sra. D as tivesse comido; ele andou passando mal a semana inteira e eu não me sentia muito tentada a falar no sumiço da minha palha de aço. Mas sabia que o maldito animal a havia comido; ele come tudo o que não o come primeiro. Não quero dizer com isso — prosseguiu Justine com expressão reflexiva — que eu não exultaria se o visse mortinho da silva.

Rindo, Meggie sentou-se sobre os calcanhares.

— Oh, Jus! Se você soubesse como é engraçada! — atirou a caixa sobre a cama, no meio de uma montanha de coisas que ali já se encontravam. — Você positivamente não contribui para melhorar a reputação de Drogheda. Depois de todo o trabalho que tivemos para enfiar idéias de ordem e asseio em sua cabeça!

— Se me tivessem perguntado, eu lhes teria dito que era malhar em ferro frio. Você não quer levar a palha de aço para Drogheda? Sei que vou embarcar e que minha bagagem é ilimitada, mas tenho a impressão de que deve haver toneladas de palha de aço em Londres.

Meggie passou os embrulhos para uma grande caixa de papelão em que se lia Sra. D.

— Creio que será melhor doá-la à Sra. Devine; ela precisará tornar este apartamento habitável para o próximo inquilino. — Uma torre pouco firme de pratos sujos erguia-se na extremidade da mesa, cheia de fiapos horríveis de mofo. — Você nunca lava os seus pratos?

Justine riu-se com a boca fechada, sem o menor sinal de arrependimento.

— Dane jura que não. Diz que eu me limito a escanhoá-los.

— Estes aqui você teria de tosar primeiro. Por que não os lava à medida que os usa?

— Porque isso significaria voltar à cozinha após cada refeição e, como costumo comer depois da meia-noite, ninguém aprecia o som dos meus pezinhos pelo chão.

— Dê-me algumas caixas vazias. Eu os levarei lá para baixo e darei um jeito neles — disse a mãe, resignada; antes de oferecer-se para vir ajudar, soubera o que lhe estava reservado, e já o esperava. Não era com muita freqüência que alguém tinha a oportunidade de ajudar Justine a fazer alguma coisa; todas as vezes que o tentara, Meggie se acabara sentindo uma perfeita idiota. Mas, em assuntos domésticos, a situação, ao menos dessa vez, se inverteu; ela poderia ajudar à vontade sem se sentir uma tola.

De um jeito ou de outro tudo se arrumou, e Justine e Meggie, instaladas na perua que Meggie trouxera de Gilly, rumaram para o Hotel Austrália, onde Meggie reservara uma suíte.

— Eu gostaria que vocês de Drogheda comprassem uma casa em Palm Beach ou Avalon — disse Justine, colocando a mala no segundo quarto da suíte. — Isto é terrível, logo acima de Martin Place. Imagine só estar a um pulo do mar! Você não se sentiria tentada a tomar um avião em Gilly mais vezes?

— E por que viria eu para Sydney? Estive aqui duas vezes nos últimos sete anos... a primeira para me despedir de Dane e, agora, para me despedir de você. Se tivéssemos uma casa aqui, nunca a usaríamos.

— Bobagem.

— Por quê?

— ”Por quê”? Porque o mundo não se resume naquela bendita Drogheda, pombas! Aquele lugar me deixa meio louca!

Meggie suspirou.

— Acredite-me, Justine, chegará o dia em que você ansiará por voltar a Drogheda.

— E isso se aplica a Dane também?

Silêncio. Sem olhar para a filha, Meggie tirou a bolsa que estava sobre a mesa.

— Chegaremos atrasadas. Madame Rocher disse duas horas. Se você quiser os vestidos antes de embarcar, será melhor se apressar.

— Estou sendo colocada em meu lugar — disse Justine, e sorriu.

— Por que você não me apresentou às suas amigas, Justine? Não vi sinal de nenhuma em Bothwell Gardens, com exceção da Sra. Devine — disse Meggie, enquanto mãe e filha, sentadas no salão de Germaine Rocher, observavam as lânguidas manequins que exibiam toaletes e sorrisos.

— É que elas são meio tímidas... Gosto desse troço alaranjado, você não gosta?

— com o seu cabelo, não. Prefiro o cinzento.

— Ora! Acho que o alaranjado se casa perfeitamente com o meu cabelo. com o cinzento fico parecendo alguma coisa que o gato trouxe para dentro, sujo de lama e já meio podre. Adapte-se aos tempos, mamãe. Os cabelos vermelhos já não precisam contrastar com o branco, o cinzento, o preto, o verde-esmeralda ou aquela cor horrorosa de que você gosta tanto... como é mesmo? Cinzas de rosas? Vitoriano!

— O nome da cor está certo — disse Meggie, que se voltou a fim de olhar para a filha. — Você é um monstro — ajuntou com afetuosa expressão de enfado.

Justine não lhe deu a menor atenção; não era a primeira vez que ouvia chamar-se assim

— Fico com o alaranjado, o vermelho, o estampado cor de púrpura, o verdemusgo, o conjunto cor de vinho...

Meggie oscilava entre o riso e a raiva. Que se poderia fazer com uma filha como aquela?

O Himalaya zarpou de Darling Harbor três dias depois. Era um belo e antigo navio, de casco chato e em muito bom estado, construído nos dias em que ninguém tinha muita pressa e todo mundo aceitava o fato de que a Inglaterra ficava a quatro semanas de distância pelo Canal de Suez ou cinco semanas dobrando o Cabo da Boa Esperança. Hoje em dia, até os transatlânticos são aerodinâmicos, com os cascos modelados como os dos contratorpedeiros para chegar mais depressa. Mas o que eles provocam num estômago sensível produz calafrios em marinheiros empedernidos.

— Que coisa gozada! — riu Justine. — Parece que temos uma boa turma de gente moça na primeira classe, de modo que a viagem não será tão chata como eu supunha. Alguns até são formidáveis.

— E você não está contente por eu haver insistido para que viajasse de primeira classe?

— Acho que sim.

— Justine, você desperta em mim o que há de pior. Aliás, sempre despertou — suspirou Meggie, perdendo a paciência com o que supunha ser uma demonstração de ingratidão. Ao menos naquela ocasião, não poderia a bandidinha fingir que lamentava estar partindo? — Teimosa, cabeçuda, obstinada! Você me exaspera.

De momento, Justine não respondeu. Virou a cabeça para o outro lado, como se estivesse mais interessada no tanger do sino que pedia aos visitantes que deixassem o navio do que no que sua mãe estava dizendo. Controlou o tremor dos próprios lábios e abriu-os num sorriso.

— Sei que a exaspero — disse, jovialmente, encarando a mãe. — Mas não se incomode, somos o que somos. Como você sempre diz, puxei ao meu pai.

Beijaram-se, constrangidas, e Meggie esgueirou-se por entre as multidões que convergiam para as pranchas de desembarque e perdeu-se de vista. Justine subiu para o convés e postou-se junto à amurada com uma fieira de bandeirolas coloridas nas mãos. Lá embaixo, ao longe, no cais, viu a figura no vestido cinza-róseo e chapéu da mesma cor encaminhar-se para o local combinado, onde ficou protegendo os olhos com as mãos. Era engraçado como, àquela distância, sua mãe caminhava visivelmente para os cinqüenta. Ainda havia um trecho de caminho para percorrer, mas a idade lá estava na sua postura. Elas agitaram os braços no mesmo momento, depois Justine atirou a primeira fieira de bandeirolas e Meggie agarrou-lhe a ponta peritamente. Uma vermelha, uma azul, uma amarela, uma cor-de-rosa, uma verde, uma cor de laranja; girando em espirais, agitadas pelo vento.

Uma banda de gaitas de fole veio despedir-se do time de futebol e lá ficou com os pendões triangulares sacudidos pelo vento, os mantos axadrezados drapejando, tocando uma estranha versão de ”Esta E a Hora”. As amuradas do navio estavam cheias de gente debruçada, segurando desesperadamente as extremidades das finas tiras de papel; no cais, centenas de pessoas esticavam o pescoço para cima, demorando-se, ávidas, nos rostos que iam para tão longe, quase todos jovens, que partiam para ver corno era realmente o centro da civilização do outro lado do mundo. E lá viveriam, lá trabalhariam, talvez voltassem dali a dois anos, talvez nunca mais voltassem. E todos sabiam disso e faziam conjeturas.

O céu azul estava cheio de nuvens de prata e soprava um vento forte de Sydney. O sol aquecia as cabeças voltadas para cima e as espáduas dos que se inclinavam para baixo; uma grande faixa multicolorida de fitas que vibravam unia o navio ao cais. Depois, de repente, abriu-se uma fenda entre o costado do velho barco e o madeirame do embarcadouro; encheu-se o ar de gritos e soluços; e, uma por uma, as fieiras de bandeirolas, aos milhares, se romperam, adejaram num desespero, penderam, frouxas, e se entrecruzaram sobre a superfície da água como um tear despedaçado, juntaram-se às cascas de laranja e às águas-vivas e lá se foram, à deriva.

Justine não arredou pé de seu lugar na amurada, até que o cais se transformou, a distância, numas poucas linhas escuras e numas róseas cabecinhas de alfinetes; os rebocadores do Himalaya viraram-no, rebocaram-no por baixo da Ponte do Porto de Sydney, até a corrente principal daquele admirável trecho de água ensolarada.

Não era como ir a Manly de balsa, embora seguissem o mesmo caminho e passassem ao largo de Neutral Bay, Rose Bay, Cremorne e Vaucluse; não, desta vez passavam por entre os promontórios, além dos recifes cruéis e dos altos leques rendados de espuma, até chegar ao mar aberto. Doze mil milhas de oceano, até o outro lado do mundo. E, voltassem ou não para casa, eles não pertenceriam a um lado nem a outro, pois teriam vivido em dois continentes e teriam experimentado dois estilos diversos de vida.

Justine descobriu que o dinheiro fazia de Londres um lugar delicioso. Ela não conheceria a existência perniciosa à beira de Earl’s Court — o ”Vale dos Cangurus”, como lhe chamavam em virtude do grande número de australianos que ali instalara o seu quartel-general. Não conheceria o destino típico dos australianos na Inglaterra, alojados em abrigos coletivos com o dinheirinho contado, trabalhando por uma ninharia em algum escritório, escola ou hospital, tremendo de frio sobre um minúsculo aquecedor, num quarto frio e úmido. Ao invés disso, conseguiu um apartamento eni Kensington perto de Knightsbridge, com calefação central; e um lugar na companhia de Clyde Daltinham-Roberts, o Grupo Elisabetano.

Quando chegou o verão, tomou um trem para Roma. Anos depois, sorriria ao lembrar-se do pouco que vira na longa jornada através da França e da Itália, pois tinha todo o espírito ocupado com as coisas que precisava contar a Dane, memorizando as que não poderia esquecer de maneira nenhuma. Eram tantas que muito provavelmente se acabaria esquecendo de algumas.

Aquele era Dane? Aquele homem alto e belo na plataforma era Dane? Nada havia de diferente em seu aspecto e, no entanto, era um estranho. Já não pertencia ao mundo dela. O grito que ela ia dar para chamá-lo morreu-lhe na garganta; recuou um pouco na poltrona a fim de observá-lo, pois o trem parara a poucos passos do local em que os seus olhos azuis esquadrinhavam as janelas, sem ansiedade. A conversa entre ambos não passaria de um longo monólogo quando ela lhe falasse da vida que levara desde que ele se fora, pois Justine compreendia agora que não havia em Dane desejo algum de partilhar com ela o que ele experimentava. Diabo! Ele já não era o seu irmãozinho caçula; a vida que ele estava levando tinha tão pouca relação com ela quanto com Drogheda. Oh, Dane! Que tal é viver alguma coisa vinte e quatro horas por dia?

— Ah-ha! Pensou que eu o tivesse atraído a uma busca inútil, não foi? — disse ela, aproximando-se dele por trás, sem ser pressentida.

Ele virou-se, apertou-lhe as mãos e fixou os olhos nela, sorrindo.

— Bocó — disse com ternura, pegando-lhe a mala maior e enfiando-lhe o braço livre no seu. — É muito bom vê-la — ajuntou, ao fazê-la entrar no Lagonda vermelho, que dirigia por toda parte; Dane sempre fora fanático por automóveis esportivos e possuíra um desde que tivera idade suficiente para tirar carteira de motorista.

— É bom vê-lo também. Espero que você tenha arranjado para mim um bom hotelzinho, porque eu não estava brincando quando escrevi. Recuso-me a ser enfiada numa cela do Vaticano no meio de um montão de celibatários.

— E eles não quereriam saber de você de jeito nenhum. Reservei-lhe acomodações numa pensãozinha não muito longe de mim, onde falam inglês, de modo que não precisará se preocupar se eu não estiver por perto. E em Roma quem sabe inglês não se aperta; há sempre alguém que o fala.

— Em ocasiões como essa é que eu gostaria de ter o seu jeito para línguas estrangeiras. Mas darei um jeito; sou muito boa mímica.

— Tenho dois meses, Jussy, não é maravilhoso? Poderemos dar um pulo na França e na Espanha e ainda passar um mês em Drogheda. Sinto saudades da velha fazenda..

— Sente mesmo? — Ela voltou-se a fim de olhar para ele, para as belas mãos que dirigiam o carro com perícia através do louco trânsito romano. — Pois eu não sinto saudade nenhuma. Londres é interessante demais.

— Você não me engana — disse ele. — Sei o que Drogheda e mamãe significam para você.

Justine juntou as mãos no regaço, mas não respondeu.

— Você não se incomoda de tomar chá com dois amigos meus hoje à tarde? — perguntou ele assim que chegaram. — Até me antecipei à sua resposta aceitando em seu nome. Eles estão ansiosos por conhecê-la e, como só amanhã serei um homem livre, não quis dizer não.

— Bocó! Por que haveria eu de me incomodar? Se isto fosse Londres, eu o estaria inundando de amigos meus; nada mais natural, portanto, que você faça o mesmo. Alegra-me que você me proporcione uma visão geral dos seus colegas do seminário embora seja um pouco injusto comigo, você não acha? Afinal, são todos intocáveis!

Ela encaminhou-se para a janela, olhou para a pracinha pobre em que cresciam dois plátanos cansados no quadrilátero pavimentado; havia três mesas espalhadas debaixo deles e, de um lado, uma igreja sem nenhuma graça ou beleza arquitetônica especiais cujo estuque já estava descascando.

— Dane...

— Sim?

— Eu compreendo, juro que compreendo.

— Eu sei. — O rosto dele perdeu o sorriso. — Eu gostaria que mamãe compreendesse também, Jus.

— Mamãe é diferente. Acha que você a desertou. Não consegue ver as coisas de outro modo. Mas não se preocupe. Ela acabará cedendo.

— Espero que sim. — Ele riu. — A propósito, não são os colegas do seminário que você vai conhecer hoje. Eu não os sujeitaria a uma tentação dessa ordem, nem a sujeitaria tampouco. É o Cardeal de Bricassart. Sei que não gosta dele, mas me prometa que será boazinha.

Um brilho especial iluminou-lhe os olhos sortílegos.

— Prometo! Até prometo beijar todos os anéis que me oferecerem.

— Oh, você ainda se lembra! Fiquei tão louco naquele dia, por você me envergonhar na frente dele!

— Bem, depois desse dia beijei muitas coisas menos higiênicas do que um anel. Existe um horrível sujeitinho espinhento na aula de representação dramática que sofre de mau hálito, tem amígdalas em decomposição e um estômago podre, que precisei beijar vinte e nove vezes. Posso lhe garantir, companheiro, que, depois dele, nada é impossível.

Ela ajustou o cabelo e virou-se de costas para o espelho.

— Tenho tempo para trocar de roupa?

— Não se preocupe com isso. Você está ótima.

— Quem mais estará lá?

O sol já ia tão baixo que não poderia aquecer a antiga praça, e a leprose nos troncos dos plátanos tinha um aspecto coçado, doentio. Justine estremeceu.

— O Cardeal di Contini-Verchese.

Ela já ouvira o nome e arregalou os olhos.

— Puxa! Você anda mesmo nos círculos mais elevados, não é assim?

— É. E faço por merecê-lo.

Isso quer dizer que algumas pessoas lhe tornam as coisas mais difíceis em outras áreas de sua vida aqui, Dane? — perguntou ela, sagaz.

Não por isso. Conhecer pessoas importantes não é tão importante assim.

Nunca penso nisso e todos fazem como eu.

A sala, os homens vermelhos! Nunca, como naquele momento, estivera Justine tão consciente da redundância das mulheres na vida de alguns homens, ao entrar num mundo em que as mulheres só tinham lugar como humildes servas envoltas no burel de monjas. Ela trazia ainda o conjunto de linho verde-oliva que vestira logo depois de Turim, meio amarrotado da viagem, e adiantou-se por sobre o macio tapete carmesim lamentando a impaciência de Dane por estar lá, desejando ter insistido em pôr qualquer coisa menos marcada pela viagem.

O Cardeal de Bricassart, de pé, sorria; era, com efeito, um velho muito bonito.

— Minha querida Justine — disse ele, estendendo o anel com um olhar malicioso, a indicar que não se esquecera da última vez, e procurando no rosto dela qualquer coisa que ela não compreendeu. — Você não se parece nada com sua mãe.

Dobre um joelho, beije o anel, sorria humildemente, levante-se, sorria menos humildemente.

— Não, de fato não me pareço. A beleza dela me teria ajudado muito na minha profissão, mas no palco sempre se consegue dar um jeito. Pois ali pouco importa a verdadeira conformação do rosto, entende? Ele será o que nós e a nossa arte quisermos convencer as pessoas de que ele é.

Um risinho satisfeito subiu de uma poltrona; mais uma vez ela se adiantou para saudar um anel em outra mão envelhecida; dessa vez, porém, ao erguer a vista, deu com dois olhos escuros em que viu amor. Amor, sim, por estranho que fosse, amor a ela, a alguém que o dono dos olhos nunca vira, cujo nome dificilmente teria ouvido mencionar. Mas lá estava ele. Sua aversão ao Cardeal de Bricassart não era menor agora do que o fora aos quinze anos, mas ela gostou daquele velho.

— Sente-se, minha querida — convidou o Cardeal Vittorio, indicando com a mão a poltrona mais próxima da sua.

— Olá, bichana — disse Justine, fazendo cócegas na gata cinza-azulada, refestelada em seu colo escarlate.

— Bonita, não é?

— É bonita, realmente.

— Como se chama?

— Natasha.

A porta se abriu, mas não para admitir o carrinho do chá. Um homem, misericordiosamente vestido à paisana, entrou; mais uma batina vermelha, pensou Justine, e eu vou mugir como um touro.

Mas embora fosse um leigo, aquele não era um homem comum. Devia haver uma regrazinha doméstica no Vaticano, continuou a refletir o espírito indisciplinado de Justine, que barrava especificamente a entrada de homens comuns. Embora não fosse baixo, possuía uma compleição tão robusta que se diria mais atarracado do que de fato era. Ombros maciços e peito largo, cabeçorra leonina, braços compridos como os de um tosquiador, parecia um primata, mas com uma diferença: porejava inteligência e comportava-se como alguém que fosse capaz de agarrar o que desejasse tão depressa que a mente não conseguiria segui-lo. Agarrar e talvez esmagar, mas nunca sem um objetivo, impensadamente; sempre com apurada deliberação. Ele era moreno, mas sua densa cabeleira tinha exatamente a cor e muito da consistência da palha de aço, se esta se pudesse frisar e transformar em pequenas ondas regulares.

— Rainer, você chega em boa hora — disse o Cardeal Vittorio, indicando a poltrona do outro lado da sua, e ainda falando em inglês. — Minha querida — continuou, voltando-se para Justine, quando o homem, acabando de beijar-lhe o anel, se levantou. — Quero que conheça um grande amigo meu, Herr Rainer Moerling Hartheim. Rainer, esta é a irmã de Dane, Justine.

Ele inclinou-se, batendo meticulosamente os calcanhares, dirigiu-lhe um breve sorriso sem calor e sentou-se, colocando-se de lado, de modo que pudesse vê-la. Justine soltou um suspiro de alívio, sobretudo ao ver Dane acomodar-se no chão, com a facilidade do hábito, ao lado da poltrona do Cardeal Ralph, bem no centro do seu campo visual. Enquanto pudesse ver alguém que conhecia e amava, ela estaria bem. Mas a sala, os homens vermelhos e agora aquele homem moreno estavam começando a irritá-la mais do que a presença de Dane conseguia apaziguá-la; era insuportável o modo com que a excluíam da conversação. Inclinando-se para um lado, voltou a fazer cócegas na gata, embora percebesse que o Cardeal Vittorio reparava nas suas reações e divertia-se com elas.

— Ela foi castrada? — perguntou Justine.

— Naturalmente.

— Naturalmente! Embora não me pareça que os senhores devessem se preocupar com isso. Só o fato de ser um habitante permanente deste lugar bastaria para neutralizar os ovários de qualquer criatura.

— Ao contrário, minha querida — acudiu o Cardeal Vittorio, que se divertia à grande com ela. — Nós, os homens, é que nos neutralizamos psicologicamente.

— Peço licença para discordar, Eminência.

— Quer dizer que o nosso mundozinho desperta o seu antagonismo?

— Digamos apenas que me sinto um tanto ou quanto supérflua, Eminência. Um lindo lugar para visitar, mas que eu não gostaria de habitar.

— Não posso censurá-la por isso. E também duvido de que goste de visitar este lugar. Mas acabará se acostumando conosco, pois fará o favor de visitar-nos amiúde.

A boca de Justine abriu-se num sorriso largo.

— Detesto ser obrigada a me comportar bem — confidenciou ela. — Isso traz para fora tudo o que há de pior em mim... Daqui mesmo estou vendo a expressão horrorizada de Dane sem sequer olhar para ele.

— Eu dizia a mim mesmo que isso já estava durando muito — interveio Dane, sem se desconcertar. — Basta raspar a superfície de Justine para encontrar uma rebelde. E é por isso que gosto tanto de tê-la por irmã. Não sou rebelde, mas confesso que admiro os rebeldes.

Herr Hartheim deslocou a poltrona de modo que pudesse continuar a manter Justine em sua linha de visão até mesmo quando ela endireitou o corpo e parou de brincar com a gata. Nesse momento, o belo animal se cansou da mão que exalava um estranho cheiro feminino e, sem se levantar, arrastando-se delicadamente, passou do colo vermelho para o cinzento e foi enrolar-se debaixo das mãos robustas e quadradas de Herr Hartheim, que também a acariciavam, e ronronando tão alto que todos puseram-se a rir.

— Perdoe-me por viver — disse Justine, que não era à prova de piadas, sobretudo quando fazia o papel de vítima.

— O motor dela continua tão bom quanto nunca — disse Herr Hartheim, em cujo rosto o divertimento produzia mudanças fascinantes. O seu inglês quase perfeito praticamente não tinha sotaque, embora se lhe notasse inflexão norte-americana; ele vibrava com ênfase os erres.

O chá chegou antes que todos voltassem a acomodar-se e, por estranho que parecesse a Justine, foi Herr Hartheim quem o serviu, estendendo-lhe a xícara com uma expressão muito mais amistosa do que a sua ao ser-lhe apresentado.

— Numa comunidade britânica — disse-lhe ele —, o chá da tarde é a refeição mais importante do dia. As coisas acontecem entre xícaras de chá, não é mesmo? Imagino que a razão seja porque, por sua própria natureza, o chá pode ser pedido e tomado a qualquer momento entre duas e cinco e meia da tarde, e conversar é uma atividade que dá sede.

A meia hora que se seguiu pareceu confirmar-lhe o argumento, embora Justine não participasse do congresso. A conversa passou do estado precário de saúde do oumo Pontífice para a guerra fria e depois para a recessão econômica, enquanto os quatro homens falavam e ouviam com uma vivacidade que Justine achou absorvente, principiando a buscar em vão as qualidades comuns a todos, incluindo Dane, tão estranho, tão desconhecido. Ele contribuía ativamente para a palestra e ela notou que os três homens mais idosos o ouviam com singular humildade, quase como se ele lhes inspirasse um sentimento de respeitosa reverência. Embora não fossem desinformados nem ingênuos, seus comentários eram diferentes, originais, puros. Seria por sua pureza que lhe prestavam tão séria atenção? Uma pureza que ele possuía e eles não? Um atributo que eles admiravam e ambicionavam para si? Uma virtude tão rara assim? Três homens tão vastamente diversos um do outro, porém muito mais ligados entre si do que a Dane. Para ela era difícil levar Dane tão a sério quanto eles! Não que ele não tivesse agido muitas vezes como irmão mais velho em vez de agir como irmão mais moço; não que ela não reconhecesse sua sabedoria, seu intelecto ou sua pureza. Mas, se Dane até agora fizera parte do mundo dela, Justine precisava acostumar-se ao fato de que ele já não pertencia mais a esse mundo.

— Se você quiser entregar-se diretamente às suas devoções, Dane, acompanharei sua irmã ao hotel — declarou Herr Rainer Moerling Hartheim sem consultar os desejos de quem quer que fosse sobre o assunto.

E, assim, ela se viu descendo, como se tivesse perdido a língua, as escadas de mármore em companhia do homem encorpado e vigoroso. Lá fora, no resplendor dourado do poente romano, ele pegou-lhe no cotovelo e guiou-a para uma limusine Mercedes preta, cujo chofer se achava em posição de sentido.

— Você não há de querer passar sozinha sua primeira noite em Roma, e Dane está ocupado com outras coisas — disse ele, entrando no carro depois dela. — Está cansada e aturdida, de modo que é melhor que alguém lhe faça companhia.

— O senhor parece não me deixar nenhuma outra escolha, Herr Hartheim.

— Eu preferiria que me chamasse de Rainer.

— E deve ser importante, pois tem um belo carro, com chofer particular e tudo.

— Serei mais importante ainda quando for chanceler da Alemanha Ocidental.

— Pois me surpreende que já não o seja.

— Insolente! Ainda sou muito moço.

— Será? — Ela virou-se de lado para examiná-lo com mais atenção, descobrindo que a pele morena era lisa e jovem, que os olhos fundos não se achavam cercados pelas rugas da idade.

— Sou pesado e grisalho, mas tenho cabelos ruços desde os dezesseis anos e este corpanzil desde que tive o bastante para comer. No momento, tenho apenas trinta e um.

— Acredito na sua palavra — disse ela, descalçando-se com os pés. — Mas ainda é velho para mim... Tenho apenas vinte e um.

— Você é um monstro — disse ele, sorrindo.

— Acho que devo ser. Minha mãe diz a mesma coisa. Só não sei o que cada um de vocês entende por monstro, por isso lhe peço que me dê a sua versão.

— Já ouviu a versão de sua mãe?

— Ela ficaria muito constrangida se eu lhe pedisse.

— E acha que não pode me constranger?

— Estou sinceramente desconfiada, Herr Hartheim, de que o senhor é um monstro também, de modo que duvido que alguma coisa consiga constrangê-lo.

— Um monstro — tornou ele, a meia voz outra vez. — Pois muito bem, Srta. O’Neill, tentarei definir-lhe o termo. Alguém que aterroriza os outros; que passa por cima da cabeça das pessoas; que se sente tão forte que só Deus pode derrotá-lo; que não tem escrúpulos e tem pouca moral.

Ela sorriu, divertida.

— Isso me soa como uma definição da sua pessoa. De mais a mais, também tenho moral e escrúpulos. Sou irmã de Dane.

— Mas não se parece nem um pouco com ele.

— O que é mais lamentável ainda.

— O rosto dele não combinaria com a sua personalidade.

— Tem toda a razão, mas, com o rosto dele, eu talvez tivesse adquirido uma personalidade diferente.

— Dependendo do que vem primeiro, a galinha ou o ovo... Calce os sapatos; nós vamos andar.

Fazia calor e escurecia, mas as luzes eram brilhantes, havia multidões onde quer que fossem, e as ruas estavam coalhadas de motonetas guinchantes, minúsculos Fiats agressivos, Goggomobils que pareciam hordas de sapos tomados de pânico. Finalmente ele parou numa pracinha cujas pedras tinham sido alisadas pelos pés de muitos séculos, e conduziu Justine a um restaurante.

— A não ser que você prefira comer ao ar livre — sugeriu ele.

— Contanto que você me alimente, pouco me importa ficar lá dentro, aqui fora ou no meio do caminho.

— Posso fazer o pedido por você?

Os olhos pálidos piscaram, talvez um pouco cansados, mas ainda havia luta em Justine.

— Não sei se estou muito de acordo com todo esse machismo ditatorial que grassa por aí — disse ela. — Afinal de contas, como é que você sabe o que eu quero?

— Soror Anna carrega o seu pendão — murmurou ele. — Diga-me a espécie de comida que lhe apetece e eu garanto lhe agradar. Peixe? Vitela?

— Uma concessão mútua? Está bem, irei até à metade do caminho, por que não? Quero patê, alguns scampi e um prato imenso de saltimbocca. Depois, vou querer uma «Mata e um capuccino. Divirta-se com isso se puder.

— Eu devia esbofeteá-la — disse ele, sem perder o bom humor. Transmitiu-lhe o pedido ao garçom exatamente como ela o estipulara, mas num italiano rápido.

— Você disse que não me pareço com Dane. Acha mesmo que não tenho nenhuma semelhança com ele? — perguntou ela um pouco pateticamente depois do café, tão faminta que não poderia perder tempo falando enquanto houvesse comida sobre a mesa.

Ele acendeu o cigarro dela, depois o seu, e inclinou-se entre as sombras a fim de observá-la tranqüilamente, rememorando o seu primeiro encontro com o rapaz alguns meses antes. O Cardeal de Bricassart, com menos de quarenta anos de vida; vira-o de pronto, e depois soubera que eram tio e sobrinho, que a mãe do rapaz e da moça era irmã de Ralph de Bricassart.

— Há uma semelhança, sim — admitiu ele. — Às vezes até no rosto. Mas muito mais de expressões que de traços. Em torno dos olhos e da boca, na maneira com que vocês fecham os olhos e abrem a boca. Mas, por estranho que pareça, não é uma semelhança que você compartilhe com seu tio, o Cardeal.

— Meu tio, o Cardeal? — repetiu ela estupidamente.

— O Cardeal de Bricassart. Não é seu tio? Estou certo de que me disseram que era.

— O velho abutre? Não tem nenhum parentesco conosco, graças a Deus. Foi nosso pároco há muitos anos, muito antes de eu nascer.

Ela era muito inteligente; mas também estava muito cansada. Pobre menininha — pois não era mais do que isso, uma menininha. Os dez anos de diferença que havia entre eles abriam-se como um abismo de cem. Uma suspeita lhe arruinaria o mundo, o mundo que ela defendia com tanta valentia. Provavelmente se recusaria a enxergá-lo, ainda que tudo lhe fosse dito sem rodeios. Como fazê-lo parecer sem importância? Era evidente que não se devia continuar batendo na mesma tecla, mas tampouco se devia mudar de assunto de repente.

— Isso, então, explica — disse ele, displicente.

— Explica o quê?

— O fato de serem as semelhanças entre Dane e o Cardeal de atributos gerais, como a altura, a tez, a constituição.

— Oh! Segundo minha avó me contou, nosso pai era muito parecido com o Cardeal — disse Justine, à vontade.

— Nunca viu seu pai?

— Nem de retrato. Ele e mamãe separaram-se antes de Dane nascer. — Ela fez sinal ao garçom. — Outro capuccino, por favor.

— Justine, você é uma selvagem! Deixe-me fazer o pedido por você!

— Nada disso, não deixo! Sou perfeitamente capaz de pensar por mim mesma, e não preciso de homem nenhum para me dizer sempre o que quero e quando quero, está ouvindo?

— Basta raspar a superfície para encontrar uma rebelde, foi o que disse Dane.

— E ele tem razão. Se você soubesse como detesto ser paparicada, mimada e cercada de atenções exageradas! Gosto de agir por mim mesma, e não quero que me digam o que devo fazer! Não peço que me poupem, mas também não poupo ninguém.

Percebe-se — disse ele secamente. — O que foi que a fez assim, herzchen? É de família?

— Será? Sinceramente não sei. Não há mulheres em quantidade suficiente para contar, acho eu. Só uma em cada geração. Vovó, mamãe e eu. Mas há montões de homens.

.— Menos na sua geração. Nela não há montões de homens. Apenas Dane.

— Porque minha mãe deixou meu pai, creio eu. Parece que ela nunca se interessou por mais ninguém. O que foi uma pena, na minha opinião, pois mamãe é uma pessoa intrinsecamente caseira; teria gostado de ter um marido que pudesse cercar de atenções.

— Ela é como você?

— Acho que não.

— E o que é mais importante, vocês gostam uma da outra?

— Mamãe e eu? —Justine sorriu sem rancor, como sua mãe provavelmente sorriria se alguém lhe tivesse perguntado se gostava da filha. — Não estou muito segura de que nós gostamos uma da outra, mas há qualquer coisa entre nós. Talvez seja um simples elo biológico; não sei. — Seus olhos brilharam. — Eu sempre quis que ela se entendesse comigo como se entende com Dane, e sempre quis me dar com ela como Dane se dá. Mas ou falta nela qualquer coisa ou qualquer coisa falta em mim. Creio que é em mim. Como pessoa, ela é muito melhor do que eu.

— Não a conheci, de modo que não posso concordar com o seu julgamento nem discordar dele. Se isto lhe for de algum conforto, herzchen, gosto de você exatamente como é. Não, eu não mudaria nada em você, nem mesmo a sua ridícula ferocidade.

— Isso é muito bonito de sua parte. Principalmente depois de ter sido insultado por mim. Em realidade, não sou mesmo parecida com Dane, sou?

— Dane não se parece com mais ninguém no mundo.

— Você quer dizer com isso que ele não pertence a este mundo?

— Acho que sim. — Herr Rainer inclinou-se para a frente, saindo das sombras para a fraca claridade da vela enfiada na garrafa de Chianti. — Sou católico, e minha religião foi a única coisa na vida que nunca me falhou, embora eu lhe tivesse falhado muitas vezes. Não gosto de falar em Dane, porque o coração me diz que é melhor não discutir certas coisas. Você difere decididamente dele em sua atitude para com a vida ou para com Deus. Deixemos as coisas assim, certo?

Ela encarou-o curiosamente.

— Está certo, Rainer, se é isso o que quer. Farei um pacto com você: seja o que for que discutirmos, não será a natureza de Dane, nem será religião.

Muita coisa acontecera a Rainer Moerling Hartheim desde o encontro com Ralph de Bricassart em julho de 1943. Uma semana depois, o regimento dele fora enviadopara o front oriental, onde passou o resto da guerra. Hesitante e sem rumo, jovem demais para ter sido doutrinado na Juventude Hitlerista nos dias que antecederam à guerra, ele enfrentara as conseqüências de Hitler com raquetas de neve, sem munições, numa linha de frente tão esticada que só havia um soldado de 100 em 100 metros. E da guerra trouxera duas lembranças: a campanha acerba no frio penetrante e o rosto de Ralph de Bricassart. Horror e beleza, o Diabo e Deus. Meio enlouquecido, meio morto de frio, esperando indefeso que os guerrilheiros de Krushchev caíssem de aviões em vôo rasante, sem pára-quedas, nos montes de neve formados pelo vento, batia no peito e murmurava orações. Mas não sabia por que rezava: se por lhe darem balas para o seu fuzil, se para fugir dos russos, se por sua alma imortal, se pelo homem na basílica, se pela Alemanha, se por uma atenuação do sofrimento.

Na primavera de 1945, batera em retirada atravessando a Polônia à frente dos russos, como os soldados seus camaradas cujo único objetivo era chegar a uma zona da Alemanha ocupada pelos britânicos ou norte-americanos. Pois se os russos o pegassem, seria fuzilado. Rasgou seus documentos em minúsculos pedacinhos, queimou-os, enterrou suas duas Cruzes de Ferro, roubou algumas roupas e apresentou-se às autoridades britânicas na fronteira dinamarquesa. Estas o remeteram para um acampamento destinado a pessoas deslocadas na Bélgica. Lá viveu ele um ano comendo pão e mingau, que era tudo com que os britânicos exaustos podiam dar-se ao luxo de alimentar os milhares e milhares de pessoas que estavam a seu cargo, enquanto não compreendessem que sua única saída era soltá-las.

Por duas vezes funcionários do acampamento o haviam convocado para apresentar-lhe um ultimato. Havia um barco esperando no porto de Ostenda para levar imigrantes à Austrália. Ele receberia novos documentos e viajaria de graça para a sua nova terra; em troca disso, comprometer-se-ia a trabalhar para o governo australiano durante dois anos exercendo a atividade que o citado governo lhe destinasse. Depois, seria inteiramente senhor do seu nariz E não faria nenhum trabalho escravo; receberia o salário comum, naturalmente. Em ambas as ocasiões, porém, conseguira persuadir as autoridades a dispensá-lo da emigração sumária. Odiara Hitler, mas não odiara a Alemanha, nem se envergonhava de ser alemão. O lar, para ele, era a Alemanha, que lhe freqüentara os sonhos por mais de três anos. A simples idéia de ver-se de novo desamparado num país em que ninguém falava a sua língua apavorava-o. De sorte que, no princípio de 1947, sem um centavo no bolso, viu-se palmilhando as ruas de Aachen, tentando reunir as peças de uma existência, que, sabia-o ele, desejava com ardor.

Ele e sua alma haviam sobrevivido, mas não para voltar à pobreza e à obscuridade. Pois mais que um homem muito ambicioso, Rainer era uma espécie de gênio. Foi trabalhar para Grundig, e estudou o campo que o fascinara desde que entrara pela primeira vez em contato com o radar: a eletrônica. As idéias fervilhavam-lhe no cérebro, ele recusou-se a vendê-las a Grundig pela milionésima parte do seu valor. Em vez disso, avaliou o mercado com cuidado, casou com a viúva de um homem que conseguira conservar duas pequenas fábricas de rádios e entrou no negócio por conta própria. O fato de que mal passara dos vinte anos não tinha importância. Possuía o espírito característico de um homem muito mais velho, e o caos na Alemanha depois da guerra criava oportunidades para os jovens.

Visto que o seu casamento se realizara apenas no civil, a Igreja permitiu-lhe divorciar-se da esposa; em 1951, ele pagou a Annelise Hartheim exatamente o dobro do valor corrente das duas fábricas do primeiro marido, e divorciou-se dela. Entretanto, não tornou a casar.

O que acontecera ao menino no terror gelado da Rússia não produzira a caricatura sem alma de um homem; em vez disso, detivera nele o crescimento da doçura e da suavidade, e pusera em relevo outras qualidades suas — inteligência, descompaixão, determinação. O homem que não tem nada a perder tem tudo a ganhar, e o homem sem sentimentos não pode ser ferido. Era isso, pelo menos, o que dizia a si mesmo. Em realidade, porém, parecia-se curiosamente com o padre que conhecera em Roma, em 1943; como Ralph de Bricassart, sabia que estava errando no momento de errar. Não que a consciência do mal que havia nele o detivesse; acontecia apenas que a dor e a autotortura eram o preço que ele pagava pelo seu progresso material. Um preço que, para muita gente, talvez não parecesse valer a pena, mas que, para ele, valia duas vezes o seu sofrimento. Um dia, ele governaria a Alemanha e faria dela o que sonhara fazer, acabaria com a ética ariana luterana e instauraria uma ética mais ampla. Por não poder prometer que deixaria de pecar, várias vezes lhe fora negada a absolvição no confessionário, mas, de um modo ou de outro, ele e a sua religião confundiam-se numa coisa só, até que o dinheiro e o poder acumulados o colocaram tão acima da culpa que ele pôde mostrar-se arrependido, confessar-se e ser absolvido.

Em 1955, como um dos homens mais ricos e poderosos da nova Alemanha Ocidental e numa casa nova no parlamento de Bonn, voltou a Roma, no intuito de procurar o Cardeal de Bricassart e mostrar-lhe o resultado final das suas orações. Não pôde lembrar-se depois do que imaginara que seria aquele encontro, pois, do princípio ao fim, só tivera consciência de uma coisa: de que Ralph de Bricassart estava decepcionado com ele. Soubera por quê, não lhe fora preciso perguntar. Mas não esperara a observação do cardeal quando se separaram:

— Rezei para que você se houvesse melhor do que eu, pois era tão jovem. Não há fim que valha os meios empregados para consegui-lo. Suponho, porém, que as sementes da nossa ruína são semeadas antes de nascermos.

De volta ao quarto de hotel Rainer chorara, mas se acalmara depois de algum tempo e pensara: O que passou, passou; no futuro, serei como ele esperava. E, se às vezes era bem-sucedido, às vezes fracassava. Mas tentou. Sua amizade com os homens do Vaticano tornou-se a coisa terrena mais preciosa de sua vida, e Roma passou a ser o sítio para onde fugia quando só o conforto que lhe proporcionavam seus habitantes parecia erguer-se entre ele e o desespero. Conforto. O deles era de uma espécie estranha. Nem o pousar de mãos nem o pronunciar de palavras suaves. Dir-se-ia um bálsamo vindo da alma, como se lhe compreendessem a aflição.

E, caminhando pela cálida noite romana, depois de haver deixado Justine na pensão, ele pensava que nunca mais deixaria de ser grato a ela. Pois enquanto a observara enfrentando o suplício da entrevista vespertina, sentira um agitar-se de ternura dentro de si. Valente e indômito, o monstrinho. Revelara-se páreo para eles em todos os sentidos; tê-lo-iam compreendido? Sentia por ela, concluiu, o que poderia ter sentido por uma filha de que se orgulhasse. Só que não tinha uma filha. Por isso a roubara de Dane, levara-a a fim de observar-lhe a reação posterior àquele eclesiasticismo esmagador, e ao Dane que ela nunca vira antes; ao Dane que não era e nunca poderia ser uma parte confidente e compreensiva de sua vida.

O que havia de melhor em seu Deus pessoal, continuou ele, era a sua capacidade de perdoar qualquer coisa; tanto a irreligiosidade inata de Justine quanto o fechamento da usina de força emocional dele, Rainer, até o momento em que fosse conveniente reabri-la. Só por um momento se sentira tomado de pânico, julgando ter perdido a chave para sempre. Sorriu, jogando fora o cigarro. A chave... Bem, as chaves, por vezes, tinham formas estranhas. Talvez precisasse de cada volta de cada anel daquela cabeça vermelha para acionar a fechadura; talvez numa sala escarlate Deus lhe tivesse estendido uma chave escarlate.

Um dia fugaz, que se fora num segundo. Mas, ao consultar o relógio, viu que ainda era cedo e concluiu que o homem que tinha tanto poder, agora que Sua Santidade se aproximava da morte, ainda estaria de vigília, compartindo dos hábitos noturnos da sua gata. Os soluços medonhos que enchiam o quartinho de Castel Gandolfo, contraindo o rosto magro, pálido, ascético, que velara debaixo da coroa branca durante tantos anos; ele estava morrendo, e era um grande papa. Dissessem o que dissessem, era um grande papa. Se amara os alemães, se ainda gostava de ouvir o alemão falado à sua volta, isso, acaso, alterava alguma coisa? Não cabia a Rainer julgá-lo.

Castel Gandolfo, porém, não era a fonte do que Rainer precisava saber naquele momento. E subiu os degraus de mármore que conduziam à sala escarlate e carmesim, a fim de falar com Vittorio Scarbanza, Cardeal di Contini-Verchese. Que poderia ser o próximo papa, ou poderia não ser. Fazia agora quase três anos que lhe observava os olhos escuros, sábios e amorosos pousados onde mais gostavam de pousar; sim, era melhor procurar as respostas junto dele do que junto do Cardeal de Bricassart.

— Nunca pensei que eu me ouviria dizendo isso, mas, graças a Deus, estamos partindo para Drogheda — disse Justine, recusando-se a atirar uma moeda na Fontana di Trevi. — Devíamos dar uma espiada na França e na Espanha; em vez disso, ainda estamos em Roma e eu sou tão desnecessária quanto um umbigo. Irmãos!

— Hummm, o que quer dizer que você considera os umbigos desnecessários? Lembro-me de que Sócrates era da mesma opinião — disse Rainer.

— Sócrates? Pois não me lembro disso! Engraçado, e eu que supunha haver lido quase todo Platão! — Ela virou-se a fim de mirá-lo, pensando que as roupas casuais de um turista em Roma lhe assentavam muito melhor do que o traje sóbrio que ele envergava nas visitas ao Vaticano.

— Ele estava absolutamente convencido de que os umbigos eram desnecessários. E, tanto isso é verdade que, para provar o que afirmava, desatarraxou o próprio umbigo e jogou-o fora.

Os lábios dela se contraíram.

— E o que aconteceu?

— A toga dele caiu.

Ela soltou uma gargalhada.

De qualquer maneira, não se usavam togas em Atenas naquela ocasião. Mas tenho a horrível impressão de que há uma moral em sua história. — O rosto dela tornou-se sóbrio outra vez. — Por que você se preocupa comigo, Rain?

— Teimosa! Eu já lhe disse que meu nome se pronuncia Ryner (Rainer) e não Rayner (Reiner).

— Mas você não compreende — tornou ela, olhando meditativamente para os cintilantes jorros d’água e para o tanque sujo cheio de moedas. — Já esteve na Austrália?

Seus ombros estremeceram, mas ele não produziu som algum.

— Por duas vezes quase fui para lá, herzchen, mas consegui evitá-lo.

— Pois se tivesse ido, compreenderia. Você tem um nome mágico para um australiano, quando pronunciado do meu jeito. Rainer. Rain. Chuva. Vida no deserto.

Assustado, ele deixou cair o cigarro.

— Justine, você não está se apaixonando por mim, está?

— Que grandes egoístas são os homens! Detesto decepcioná-lo, mas não estou. — Em seguida, como se pretendesse atenuar qualquer descortesia em suas palavras, enfiou a mão na dele e apertou-a. — É algo muito melhor.

— O que é que poderia ser melhor do que se apaixonar?

— Qualquer coisa, creio eu. Não quero precisar de ninguém desse jeito, nunca.

— Você talvez tenha razão. É sem dúvida uma desvantagem incapacitante quando adquirida demasiado cedo. Por isso mesmo, o que é que você acha muito melhor?

— Encontrar um amigo. — A mão dela alisou a dele. — Você é meu amigo, não é?

— Sou. — Sorrindo, ele atirou uma moeda na fonte. — Pronto! Eu devo ter jogado aqui uns mil marcos alemães no correr dos anos, só para ter a certeza de que continuaria a sentir o calor do sul. Às vezes, nos meus pesadelos, tenho frio outra vez.

— Você devia experimentar o calor do verdadeiro sul — acudiu Justine.

Quarenta e seis graus à sombra, quando consegue encontrar alguma.

— Não admira que você não sinta o calor. — Ele soltou a risada sem som de sempre; resquício dos velhos tempos, quando rir alto poderia significar um desafio lançado ao destino. — E o calor explicaria o fato de você ser insensível.

— O seu inglês é coloquial, mas norte-americano. Eu teria pensado que você aprendeu inglês em alguma boa universidade britânica.

— Não. Comecei a aprendê-lo com soldados cockneys, escoceses ou das Midlands num acampamento belga, e não compreendia uma palavra do que me diziam, a não ser quando falava com o homem que mo ensinara. Um dizia ”abaht”, outro dizia ”aboot”, um terceiro dizia ”aboat”, mas todos queriam dizer ”about”. Por isso, quando voltei para a Alemanha, vi todos os filmes que pude ver e comprei os únicos discos em inglês que havia, gravados por comediantes norte-americanos. Mas toquei-os muitas e muitas vezes em casa, até falar o suficiente para aprender mais.

Ela estava sem sapatos, como sempre; estupefato, ele a vira andar de pé no chão em pavimentos bastante quentes para frigir um ovo e em lugares pedregosos.

— Diabrete! Calce os sapatos.

— Sou australiana; nossos pés são tão grandes que não se sentem bem dentro de sapatos. Isso vem de não termos realmente um tempo frio; andamos descalços sempre que podemos. Sou capaz de caminhar por um pasto infestado de carrapichos e tirá-los depois dos pés sem senti-los — gabou-se ela, orgulhosa. — Eu seria provavelmente capaz de caminhar sobre brasas acesas. — Depois, de repente, mudou de assunto. — Você amava sua esposa, Rain?

— Não.

— Ela o amava?

— Sim. Não tinha outra razão para casar comigo.

— Coitadinha! Você a usou e depois largou.

— Isso a desaponta?

— Não. Acho que não. Na verdade, até o admiro por isso. Mas sinto muita pena dela, e fico mais decidida do que nunca a jamais cair na mesma armadilha.

— Você me admira?

O tom dele era desconcertado, espantado.

— E por que não? Não estou procurando em você as coisas que ela devia procurar, estou? Gosto de você, você é meu amigo. Ela o amava, você era seu marido.

— Creio, herzchen — disse ele com alguma tristeza —, que os homens ambiciosos não são muito bons para suas mulheres.

— Isso acontece porque eles costumam gostar das santas. Do tipo ”Sim, querido, não, querido, deixe que eu carrego, onde é que você quer que eu ponha?” Pobrezinha. Se eu tivesse sido sua esposa, teria mandado você lamber sabão, mas aposto que ela nunca fez isso, não é mesmo?

Os lábios dele tremeram.

— Não, pobre Annelise. Ela era do gênero mártir, de modo que suas armas estavam longe de ser tão diretas e tão deliciosamente expressas.

Os largos dedos dos pés de Justine agarravam-se com força à parede interna do chafariz. Ela inclinou-se precariamente para trás e endireitou-se com facilidade.

— Bem, você foi bom para ela no fim. Deixou-a. E ela está muito melhor sem você, embora provavelmente não pense assim. Ao passo que eu posso conservá-lo, porque tomarei o cuidado de nunca me apaixonar por você.

— Insensível. É o que você realmente é, Justine. E como descobriu todas essas coisas a meu respeito?

— Perguntei a Dane. Naturalmente, sendo Dane, ele apenas me contou os fatos, mas eu deduzi o resto.

— Baseada, sem dúvida, no seu enorme sortimento de experiências passadas. Que grandessíssima impostora você me saiu, Justine! Dizem que é muito boa atriz, mas isso me parece incrível. Como consegue fingir emoções que nunca experimentou? Como pessoa, você é emocionalmente mais atrasada que a maioria das moças de quinze anos.

Ela saltou de onde estava, sentou-se no murinho e inclinou-se para calçar os sapatos, movimentando dolorosamente os dedos dos pés.

— Meus pés estão inchados, diabo!

Nenhuma reação de raiva nem de indignação indicava que ela ouvira sequer a última parte do que ele dissera. Como se Justine se limitasse, quando censuras ou críticas eram dirigidas contra ela, a desligar um aparelho interno de audição. E devia ter havido grande quantidade delas. O milagre era que ela não odiasse Dane.

— Eis aí uma pergunta difícil de responder — disse ela. — É preciso que eu seja capaz de fazê-lo, pois, do contrário, não seria tão boa assim, não é verdade? Mas é como... uma espera. Isto é, falo de minha vida fora do palco. Eu me preservo, não posso me dar ao luxo de gastá-lo fora do palco. Temos apenas determinada quantidade para dar, não temos? E lá em cima não sou eu mesma, ou talvez seja mais exato dizer que sou uma sucessão de pessoas, de eus. Nós todos devemos ser uma profunda mistura de eus, você não acha? Para mim, representar, antes e acima de tudo, é intelecto e só depois disso é emoção. O intelecto libera a emoção e a aprimora. A coisa toda não consiste pura e simplesmente em chorar, em gritar, em desfechar uma gargalhada convincente. Sabe que é uma coisa maravilhosa? Imaginar-me dentro de outra pessoa, de outro eu, de alguém que eu poderia ter sido se as circunstâncias tivessem sido diferentes. Nisso reside o segredo. Não é me tornar outra pessoa, mas incorporar seu papel em mim, como se esse papel fosse o meu, como se essa pessoa fosse eu. E, assim, ela se torna eu.

A sua excitação era tão grande que não lhe permitia continuar parada, e ela se ergueu.

— Imagine, Rain! — prosseguiu. — Daqui a vinte anos poderei dizer a mim mesma: cometi assassínios, suicidei-me, enlouqueci, salvei homens, arruinei-os. Oh! As possibilidades são infinitas!

— E todas essas pessoas serão você. — Ele ergueu-se, tomou-lhe novamente a mão. — Sim, tem razão, Justine. Você não pode gastá-lo fora do palco. Em se tratando de qualquer outra pessoa, eu diria que você o faria apesar disso, mas, em se tratando de você, já não tenho tanta certeza.

Se pensasse no assunto, a turma de Drogheda seria capaz de imaginar que

Roma e Londres não ficavam mais longe do que Sydney e que Dane e Justine, apesar de adultos, ainda eram crianças que iam para o internato. Sabia-se que não poderiam voltar para casa nas férias mais curtas, mas, uma vez por ano, vinham passar um mês, ao menos, na fazenda. Geralmente em agosto ou setembro, e pouco mudados. Muito jovens. Seria de alguma importância o fato de terem quinze e dezesseis ou vinte e dois e vinte e três anos? E se a turma de Drogheda vivia para esse mês no começo da primavera, ninguém andava por ali dizendo coisas como, ”Bem, só faltam algumas semanas!” ou então, ”Misericórdia, não faz um mês que eles partiram!” Mas, por volta de julho, os passos das pessoas se tornavam mais vivos e sorrisos permanentes instalavam-se em todos os rostos. Desde a cozinha até os pastos e a sala de estar, planejavam-se regalos e presentes.

Nesse ínterim, havia cartas que refletiam, na maioria, a personalidade dos autores, embora, às vezes, a contradissessem. Julgar-se-ia, por exemplo, que Dane seria um correspondente meticulosamente regular e Justine uma irregularíssima missivista. Que Fee jamais escreveria cartas. Que os homens da família Cleary as escreveriam duas vezes por ano. Que Meggie enriqueceria o serviço postal com bilhetes diários, ao menos endereçados a Dane. Que a Sra. Smith, Minnie e Cat enviariam cartões de aniversário e Natal. Que Anne Mueller escreveria com freqüência para Justine, mas nunca para Dane.

As intenções de Dane eram boas e ele, de fato, escrevia com regularidade. Acontecia apenas que se esquecia de pôr os seus esforços no correio, de modo que se passavam, muitas vezes, dois ou três meses sem notícias, e depois Drogheda recebia dúzias de missivas na mesma mala postal. A loquaz Justine escrevia epístolas compridas, que eram puros desabafos intimistas, suficientemente rudes para evocar rubores e gritos escandalizados, e totalmente fascinantes. Meggie só escrevia uma vez por quinzena para os dois filhos. Embora Justine nunca recebesse cartas da avó, Dane as recebia sempre, assim como costumava receber notícias de todos os tios, a respeito da terra, dos carneiros e da saúde das mulheres de Drogheda, pois os Clearys pareciam julgar-se obrigados a assegurar-lhe que tudo ia às mil maravilhas em casa. Eles, contudo, não faziam o mesmo com Justine, que teria ficado abismada se o fizessem, de qualquer maneira. Quanto aos demais, a correspondência da Sra. Smith, de Minnie, de Cat e de Anne Mueller ocorria como se poderia esperar.

Era gostoso ler cartas e penoso escrevê-las. Isto é, para todos, menos para Justine que sentia fisgadas de exasperação porque ninguém lhe mandava o tipo de carta que ela desejava — longas, prolixas e francas. Justine fornecia ao pessoal de Drogheda a maior parte das informações a respeito de Dane, cujas cartas nunca mergulhavam seus leitores bem no meio de uma cena. Ao passo que era exatamente isso que faziam as de Justine.

Rain chegou hoje de avião a Londres (escreveu ela certa vez) e disse-me que viu Dane em Roma na semana passada. A verdade é que ele está mais com Dane do que comigo, visto que Roma ocupa o primeiro lugar em sua agenda de viagens e Londres o último. Por isso preciso confessar que Rain é uma das principais razões por que me encontro com Dane em Roma todos os anos antes de voltar para casa. Dane gosta de vir a Londres, só que eu não o deixo quando Rain está em Roma. Egoísta. Mas vocês não fazem idéia do prazer que me dá a companhia de Rain. É uma das poucas pessoas que conheço que vale os esforços que faço para vê-lo, e eu gostaria de poder vê-lo com mais freqüência.

Num certo sentido, Rain tem mais sorte do que eu. Consegue conhecer os colegas de seminário de Dane, ao passo que eu não consigo. Creio que Dane tem medo de que eu os estupre diante dele. Ou talvez de que eles me estuprem. Ha! Isso só aconteceria se me vissem em meus trajes de Charmian. É um troço de louco, gente, juro que é. Uma espécie de Theda Bara atualizada. Dois escudozinhos redondos de bronze para as velhas tetas, uma porção de correntes e o que eu imagino seja um cinto de castidade — aliás, seria preciso um par de abridores de lata para entrar nele. com uma longa cabeleira preta, o corpo bronzeado e meus pedacinhos de metal, sou a própria mulher fatal.

... Mas onde era mesmo que eu estava??? Ah, sim, Rain em Roma na semana passada encontrando-se com Dane e seus colegas. Saíram todos para uma farra. Rain insiste em pagar, poupa o constrangimento de Dane. Parece que a noite foi de arromba. Nada de mulheres, é claro, mas tudo o mais. Vocês são capazes de imaginar Dane de joelhos em algum pífio bar romano dizendo, ”Formosos narcisos, apressamo-nos a ver-vos chorando tão cedo” a um vaso de narcisos? Ele tentou, durante dez minutos, colocar na ordem certa as palavras da citação, mas, não o conseguindo, desistiu; em vez disso, segurou um narciso entre os dentes e executou um bailado. Vejam agora se podem imaginar Dane fazendo uma coisa dessas. Rain diz que isso é inofensivo e necessário, visto que eles só trabalham e não brincam etc. Não havendo mulheres, a melhor coisa depois delas é um porre de qualquer bebida alcoólica. Pelo menos é o que Rain afirma. Não vão imaginar agora que isso acontece com freqüência, porque não acontece, e calculo que nessas ocasiões Rain é o cabeça, de modo que sai com eles para vigiá-los, para tomar conta desse grupo ingênuo de bocós de ocasião. Mas confesso que ri pensando no halo de Dane escorregando durante um bailado flamenco com um narciso na boca.

Dane passou oito anos em Roma até chegar ao sacerdócio e, no começo, ninguém supôs que eles pudessem terminar. Esses oito anos, todavia, passaram mais depressa do que quaisquer outros que a gente de Drogheda imaginara. Ninguém sabia o que ele faria depois de ordenado, mas presumia-se que regressasse à Austrália. Só Meggie e Justine desconfiavam de que ele desejaria permanecer na Itália, embora Meggie ainda pudesse acalentar dúvidas lembrando-se do contentamento dele quando voltava todos os anos para casa. Como australiano, haveria de querer voltar. Justine era diferente. Ninguém sonhava que ela tornasse um dia definitivamente. Sendo atriz, sua carreira não vingaria na Austrália. Ao passo que Dane poderia seguir a sua com o mesmo zelo em qualquer parte do mundo.

Desse modo, no oitavo ano, não havia planos acerca do que fariam as crianças quando chegassem para as férias anuais; ao invés disso, o pessoal de Drogheda planejava ir a Roma, a fim de ver Dane tomar ordens sacras.

— Nós fracassamos — disse Meggie.

— Que foi que você disse, querida? — perguntou Anne.

Elas estavam lendo, sentadas, num canto quente da varanda, mas o livro de Meggie lhe caíra, abandonado, no colo, e ela observava com expressão ausente os saltitos de duas tarambolas no gramado. Fora um ano de chuva; havia vermes em toda parte e os pássaros mais gordos e felizes que a gente do lugar já tivera ocasião de ver. Cantos de aves enchiam o ar desde o romper da aurora até o derradeiro bruxulear do crepúsculo.

— Eu disse que fracassamos — gritou Meggie. — Um estopim molhado. Tanta promessa! Quem o diria em 1921, quando chegamos a Drogheda?

— Como assim?

— Um total de seis filhos, além de mim. E um ano depois, mais dois. Que pensaria você? Dúzias de filhos, meia centena de netos. Mas olhe para nós. Hal e Stu estão mortos, nenhum dos vivos parece ter a menor intenção de casar, e eu, a única que não tenho condições de transmitir o nome, fui a única que deu herdeiros a Drogheda. E, mesmo assim, os deuses não estão felizes, não é mesmo? Um filho e uma filha. Vários netos ao menos, é o que se poderia pensar. Mas que acontece? Meu filho abraça o sacerdócio e minha filha, uma carreira de solteirona. Outro beco sem saída para Drogheda.

— Não vejo o que há de tão estranho nisso — disse Anne. — Afinal de contas, o que você poderia esperar dos homens? Enfiados aqui, tímidos como cangurus, sem nenhum contato com as moças que poderiam desposar. E, no caso de Jims e Patsy, a guerra, ainda por cima. Você pode imaginar Jims casado sabendo que Patsy não pode imitá-lo? Eles se querem muito um ao outro para isso. Além do mais, a terra é exigente e castradora. Tira deles tudo o que têm para dar, porque não creio que tenham muito. Isto é, num sentido físico. Já pensou nisso alguma vez, Meggie? Para dizer as coisas cruamente, sua família não se interessa muito pelo sexo. E o mesmo se aplica a Dane e Justine. Quero dizer, há pessoas que o procuram compulsivamente, como os gatos, mas os seus, não. Embora seja possível que Justine se case. Ha esse alemão, Rainer; ela parece terrivelmente apaixonada por ele.

— Você acertou em cheio — disse Meggie, que não se achava disposta a ser consolada. — Ela parece terrivelmente apaixonada por ele. Só isso. Afinal de contas, faz sete anos que o conhece. Se quisesse casar, já o teria feito há muito tempo.

— Você acha que sim? Conheço Justine muito bem — respondeu Anne com sinceridade, pois de fato a conhecia muito bem; melhor do que qualquer outra pessoa em Drogheda, incluindo Meggie e Fee. — Creio que a apavora a idéia de comprometerse com a espécie de amor que o casamento impõe, e devo dizer que admiro Rainer. Ele parece compreendê-la. Não quero afirmar que esteja apaixonado por ela, mas, se estiver, tem ao menos o bom senso de esperar que ela se prepare para o mergulho. — Inclinou-se para a frente e o livro lhe caiu, esquecido, sobre os ladrilhos. — Preste atenção nesse passarinho. Creio que nem um rouxinol cantaria melhor. — Em seguida, disse o que estava desejando dizer havia semanas. — Meggie, por que não vai a Roma para ver Dane ordenado?

— Não irei a Roma! — redargüiu Meggie com os dentes cerrados. — Nunca mais tornarei a sair de Drogheda.

— Meggie, não faça isso! Você não pode decepcioná-lo tanto! Vá, por favor! Se não for, Drogheda não terá ali uma única mulher, porque só você ainda tem idade para voar. Mas eu lhe afianço que, se julgasse por um minuto sequer que meu corpo sobreviveria ao esforço, eu estaria naquele avião.

— Ira Roma para ver Ralph de Brícassart sorrindo com presunção? Prefiro morrer.

— Oh, Meggie! Meggie! Por que há de se vingar nele e em seu filho das suas frustrações? Você mesma já disse uma vez que a culpa é sua. Ponha o orgulho de lado e vá a Roma. Por favor!

— Não é uma questão de orgulho. — Ela estremeceu. — Oh, Anne, tenho medo de ir! Porque não acredito, não acredito! Fico toda arrepiada quando penso nisso.

— E que me diz você da hipótese de que ele não volte para casa depois que se fizer padre? Já lhe ocorreu essa idéia alguma vez? Ele não terá as longas licenças que tinha no seminário e, se decidir ficar em Roma, é muito possível que você tenha de ir para lá, se quiser vê-lo. Vá a Roma, Meggie!

— Não posso. Se você soubesse como tenho medo! Não é orgulho, como também não é o fato de não querer que Ralph leve vantagem sobre mim, ou qualquer uma das coisas que digo para impedir que me façam perguntas. Deus é testemunha de que sinto tanta falta dos meus dois homens que seria capaz de me arrastar até lá de joelhos só para vê-los se julgasse por um minuto que eles me querem. Sei que Dane ficaria contente por me ver. Mas Ralph? Já se esqueceu de que existo. Repito que estou com medo. Não sei o que dentro de mim me diz que, se eu for a Roma, acontecerá alguma coisa. Por isso não irei.

— Mas, pelo amor de Deus, o que é que pode acontecer?

— Sei lá!... Se soubesse, teria algo para combater. Uma sensação. Como posso combater uma sensação? Porque é só isso que há. Um pressentimento. Como se os deuses se estivessem reunindo.

Anne riu-se.

— Você está ficando velha, Meggie. Pare com isso!

— Não posso, não posso! Eu sou uma velha.

— Tolice, você é apenas uma vigorosa mulher de meia-idade. Suficientemente jovem para subir naquele avião.

— Ora, deixe-me em paz! — bradou Meggie em tom feroz, voltando ao seu livro.

De vez em quando, uma multidão com um propósito converge a Roma. Não é turismo, a visão voyeurística de glórias passadas em relíquias presentes; tampouco é o preenchimento de uma fatia de tempo entre A e B, em que Roma representa um ponto na linha entre esses dois lugares. Trata-se de uma multidão com uma só emoção unificante; ela estoura de orgulho, pois vem ver o filho, o sobrinho, o primo, o amigo tomar ordens sacras numa grande basílica que é a igreja mais venerada do mundo. Seus membros instalam-se em pensões humildes, hotéis de luxo, em casas de amigos ou parentes. Mas estão totalmente unidos, em paz uns com os outros e com o mundo. Fazem, conscienciosos, os seus giros; o Museu do Vaticano rematado pela Capela Sistina como prêmio de resistência; o Fórum, o Coliseu, a Via Ápia, a gananciosa Fontana di Trevi, o son et lumière. A espera do dia, enchendo o tempo. Ser-lhes-á concedido o privilégio especial de uma audiência privada com o Santo Padre e, para eles, Roma não encontrará nada demasiado bom.

Desta vez não era Dane quem esperava Justine na plataforma, como das outras vezes; ele estava de retiro. Em lugar do irmão, Rainer Moerling Hartheim percorria o sujo pavimento como um grande animal. Ele não a cumprimentou com um beijo, pois nunca o fazia; apenas colocou um braço em torno dos ombros dela e apertou-os.

— Como um urso — disse Justine.

— Um urso?

— Eu costumava pensar, quando o conheci, que você era uma espécie de elo perdido, mas acabei chegando à conclusão de que é mais urso do que gorila. Era uma comparação pouco generosa, a do gorila.

— E os ursos são generosos?

— Bem, eles talvez matem a gente com a mesma rapidez, mas são mais jeitosos. — Ela passou o braço pelo braço dele e acertou o passo com o de Rainer, pois eram quase da mesma altura. — Como vai Dane? Você o viu antes de iniciar o retiro? Senti vontade de matar Clyde, por não me deixar vir mais cedo.

— Dane está como sempre.

— Você não o tem desencaminhado?

— Eu? É claro que não. Você está muito bonita, herzchen.

— Estou fazendo o possível para me comportar direito e me associei a todos os costureiros de Londres. Gosta da minha nova saia curta? Chama-se minissaia.

— Ande um pouco na minha frente, que eu lhe direi.

A barra da saia pregueada de seda chegava mais ou menos até a metade da coxa; ela rodopiou quando Justine se virou e voltou para junto dele.

— O que é que você acha, Rain? É escandalosa? Notei que ninguém em Paris está usando saias com esse comprimento ainda.

— Isso prova uma coisa, herzchen... que o escandaloso é alguém com pernas bonitas como as suas usar uma saia um milímetro mais comprida. Tenho a certeza de que os romanos concordarão comigo.

— O que quer dizer que minha bunda levará uma hora para ficar preta e azulada em vez de levar um dia. Malditos sejam eles! Mas você sabe de uma coisa, Rain?

— Que é?

— Nunca fui beliscada por um padre. Em todos esses anos tenho entrado e saído do Vaticano sem nenhum beliscão em meu ativo. Por isso pensei que, se usasse minissaia, eu ainda poderia ser a ruína de algum pobre prelado.

— Você poderá ser a minha ruína. -- Ele sorriu.

— Num vestido alaranjado? Não acredito. Pensei que você detestasse me ver com roupas cor de laranja, já que o meu cabelo é da mesma cor.

— Uma cor tão ativa que inflama os sentidos.

— Você está-me gozando — disse ela, enfadada, entrando na limusine Mercedes, que ostentava uma bandeirola alemã presa ao talismã do capo. — Quando foi que arranjou a bandeirinha?

— Quando recebi meu novo posto no governo.

— Não admira que eu merecesse uma menção no News ofthe World! Você viu?

— Sabe que nunca leio pasquins, Justine.

— Nem eu; mas alguém me mostrou o comentário — disse ela; depois, imprimindo um tom mais alto à voz, deu-lhe um sotaque rebuscado e afetado. — É verdade que uma futurosa atriz australiana com cabelo cor de cenoura está cimentando relações cordialíssimas com um membro do gabinete da Alemanha Ocidental?

— Eles não podem saber há quanto tempo nos conhecemos — disse Rainer tranqüilamente, esticando as pernas e assumindo uma posição confortável.

Justine examinou-lhe as roupas com olhar de aprovação; muito casuais, muito italianas. Ele parecia ter aderido à corrente da moda européia, atrevendo-se a usar uma das camisas que pareciam feitas de rede de pescar e que permitiam aos homens italianos mostrar a pilosidade do peito.

— Você nunca devia usar terno, colarinho e gravata — disse ela, de repente.

— Não? Por que não?

— Porque o seu estilo é decididamente machista... sabe como é, isso que está usando agora, com o medalhão e a corrente de ouro e o peito peludo. Um terno dá a impressão de que a sua cintura está formando saliência quando, na verdade, não está formando coisa nenhuma.

Por um momento, ele fitou-a, surpreso. Em seguida, a expressão dos seus olhos tornou-se alerta, transformando-se no que ela chamava o seu ”olhar pensativo e concentrado”.

— A primeira — disse ele.

— A primeira o quê?

— Nos sete anos em que a conheço, esta é a primeira vez que você faz um comentário não desairoso sobre a minha aparência.

— Oh, meu Deus, será verdade? — perguntou ela, parecendo envergonhada. — Juro que tenho pensado muitas vezes nela, e nunca com desaprovação. — E por uma razão qualquer — apressou-se em acrescentar. — Isto é, refiro-me a coisas assim, como a sua aparência quando veste um terno.

Ele não respondeu, mas sorria, como se acariciasse um pensamento muito agradável.

Esse passeio com Rainer parecia ter sido a última coisa tranqüila que aconteceu durante vários dias. Pouco depois que voltou da visita ao Cardeal de Bricassart e ao Cardeal di Contini-Verchese, a limusine que Rainer alugara depositou o contingente de Drogheda em seu hotel. com o canto dos olhos Justine observou a reação de Rain à sua família, naquele momento inteiramente composta de tios. Até o instante em que seus olhos não deram com o rosto de sua mãe, Justine estivera convencida de que ela mudaria de idéia e viria a Roma. O fato de Meggie não ter vindo foi-lhe um golpe cruel; Justine não sabia se aquilo lhe doía mais por causa de Dane ou por sua própria causa. No entanto, aqui estavam os tios, de quem ela, sem dúvida, devia ser a anfitriã.

Mas eram tão acanhados! Quem dentre eles era quem? Quanto mais envelheciam, mais parecidos ficavam uns com os outros. E em Roma pareciam — bem, pareciam fazendeiros australianos passando férias em Roma. Todos envergavam a roupa de ver a Deus dos criadores de ovelhas abonados: botas escuras de montar com elástico dos lados, calças de cor neutra, paletós esportivos escuros de lã felpuda, pesada, com aberturas laterais e muitos remendos de couro, camisas brancas, gravatas de lã tricotada, chapéus cinzentos de copa achatada e abas largas. Aquela indumentária não constituiria novidade alguma nas ruas de Sydney na época da Exposição Real da Páscoa, mas num fim de verão romano era extraordinária.

Se Justine não fosse ateia, teria agradecido a Deus a presença de Rain. Como era gentil com eles! Ela não acreditaria que alguém fosse capaz de fazer Patsy falar, mas ele o conseguira, bendito fosse. Conversaram como velhas comadres; Justine se perguntava onde ele arranjara cerveja australiana para eles. Parecia gostar deles e estar interessado; tudo é peixe na rede de um político industrial alemão. Era de espantar como pudesse apegar-se à sua fé, sendo o que era. Um enigma, eis o que era Rainer Moerling Hartheim; amigo de papas e cardeais, amigo de Justine O’Neill. Rain, chuva, Rain, o bem nomeado.

Ele estava recostado no espaldar da poltrona, prestando atenção ao que Bob lhe dizia sobre tosquia e, não tendo nada melhor para fazer porque se encarregara tão bem de tudo, Justine observava-o, curiosa. Na maior parte das vezes ela notava na hora todos os atributos físicos das pessoas, mas, de vez em quando, essa vigilância afrouxava e os outros se aproximavam dela sem ser pressentidos e instalavam-se em sua vida antes que ela tivesse feito essa primeira e vital avaliação. Pois, quando não era feita, às vezes se passavam anos até voltarem a irromper-lhe entre os pensamentos como estranhos. Como agora, observando Rain. É claro que o responsável fora o primeiro encontro dos dois, em que ela, embora cercada de homens da Igreja, atemorizada, assustada, enfrentara a situação. Mas só reparara no óbvio: na sua constituição vigorosa, no seu cabelo, na sua pele morena. Depois, quando a levara para jantar, perdera-se a oportunidade de retificar as coisas, pois Rainer a obrigara a tomar consciência dele de um modo que lhe transcendia os atributos físicos; ela estivera tão interessada no que a boca dizia que não olhara para a boca propriamente dita.

Ela agora chegava à conclusão de que ele, na verdade, não tinha nada de feio. Apenas parecia ser o que era, uma mistura do melhor e do pior. Como um imperador romano. Não admirava que amasse a cidade. Era o seu lar espiritual. Rosto largo, malares altos e amplos, nariz pequeno mas aquilino. Sobrancelhas grossas e negras, retas em vez de seguir a curva das órbitas. Cílios femininos e pretos, muito longos, e olhos bonitos e escuros, quase sempre fechados para esconder os pensamentos. O traço mais bonito, sem dúvida, era a boca, de lábios nem grossos nem finos, nem pequena nem grande, mas muito bem modelada, com um corte distinto nas comissuras dos lábios e uma firmeza peculiar no modo com que a usava, como se ele, se viesse a afrouxar seu domínio sobre ela, se arriscasse a revelar segredos acerca da sua verdadeira natureza Interessante, pôr de parte um rosto já tão conhecido mas que, na realidade, não era nada conhecido.

Saindo do seu devaneio, ela percebeu que ele a surpreendera observando-o, e teve a impressão de ter sido desnudada diante de uma multidão armada de pedras. Por um momento os olhos dele retiveram os dela, arregalados e alertas, não exatamente surpresos, mas presos. Em seguida, muito calmo, ele transferiu seu olhar para Bob e fez-lhe uma pergunta pertinente sobre pântanos. Justine sacudiu-se mentalmente e disse a si mesma que não devia pôr-se a imaginar coisas. Mas era fascinante ver de repente um homem, que fora seu amigo durante anos, como possível amante E não achar a idéia repulsiva.

Arthur Lestrange tivera sucessores, e ela não sentira vontade de rir. Percorri um longo trajeto desde aquela noite memorável Mas terei realmente progredido? É muito gostoso ter um homem, mas não quero saber do que Dane disse a respeito de ser o único homem. Não farei dele o único homem, de modo que não dormirei com Ram. Isso mudaria muitas coisas e eu perderia meu amigo. Preciso do meu amigo, não posso me dar ao luxo de ficar sem meu amigo. Pretendo conservá-lo como conservo Dane, um ser humano do sexo masculino sem nenhum significado físico para mim.

Podendo abrigar vinte mil pessoas, a igreja não estava lotada. Em parte alguma do mundo tanto tempo, tantas idéias e tanto gênio tinham sido empregados na criação de um templo de Deus, ele reduzia à expressão mais simples as obras pagãs da Antigüidade. com efeito, tanto amor, tanto suor! A basílica de Bramante, o domo de Miguel Ângelo, a colunata de Bernini. Um monumento erguido não só a Deus, mas também ao Homem. Nas profundezas da confissãoo, numa alcovazinha de pedra, o próprio São Pedro estava sepultado, aqui fora coroado o Imperador Carlos Magno. Os ecos de velhas vozes pareciam sussurrar entre as réstias de luz que fluíam, dedos mortos poliam os raios de bronze atrás do altar-mor e acariciavam as brônzeas colunas torcidas do baldacchio.

Ele estava deitado sobre os degraus, o rosto voltado para baixo, como morto. Em que estaria pensando? Haveria nele um sofrimento, que não tinha o direito de estar lá, porque sua mãe não viera? O Cardeal Ralph olhou através das lágrimas e notou que não havia sofrimento. Antes sim; depois, com certeza. Mas agora, nenhum. ”Tido nele se projetava para o momento, para o milagre. Nele só havia lugar para o que fosse Deus. No seu grande dia, nada importava além da tarefa atual, a entrega de sua vida e de sua alma a Deus. Era provável que ele soubesse fazê-lo, mas quantos outros de fato o tinham feito? Não o fizera o Cardeal Ralph, embora ainda se lembrasse de sua ordenação cheia de sagrado assombro. Tentara-o com todas as suas forças e, não obstante, retivera qualquer coisa.

Minha ordenação não foi tão augusta assim, mas eu a revivo através dele. E fico perguntando a mim mesmo o que ele realmente é, para que, a despeito dos nossos receios, passasse entre nós tantos anos sem um desafeto, quanto mais um verdadeiro inimigo. Amado por todos, a todos ama. Nunca lhe ocorre que esse estado de coisas é incomum. E, no entanto, quando aqui chegou, não estava tão seguro de si; nós lhe demos isso, e isso talvez justifique nossas existências. Muitos padres foram feitos aqui, milhares e milhares, mas para ele há qualquer coisa especial. Oh, Meggie, por que não veio ver o presente que deu a Nosso Senhor — o presente que não pude dar a você, pois já me havia dado a Ele? E creio que por isso ele pode estar hoje aqui livre do sofrimento. Porque recebi poderes para ficar com o seu sofrimento, a fim de libertá-lo dele. Choro suas lágrimas, ponho luto em seu lugar. E é assim que deve ser.

Mais tarde virou a cabeça e olhou para a fileira de representantes de Drogheda, que ostentavam estranhos ternos escuros. Bob, Jack, Hughie, Jims, Patsy. Um lugar vazio para Meggie, depois Frank. O cabelo flamejante de Justine obscurecido por um véu de renda preta, a única mulher da família Cleary que se achava presente. Ao lado dela, Rainer. Depois, uma porção de gente que ele não conhecia, mas que participava tão plenamente da cerimônia quanto o pessoal de Drogheda. Só que hoje era diferente, hoje era um dia especial. Hoje ele quase se sentia como se também tivesse um filho para dar. Sorriu e suspirou. Como se sentiria Vittorio, outorgando a Dane o sacerdócio?

Talvez por sentir tão agudamente a ausência de sua mãe, Justine foi a primeira pessoa com quem Dane conseguiu falar a sós na recepção que o Cardeal Vittorio e o Cardeal Ralph lhe ofereceram. com a batina preta e o colarinho branco e alto, ele estava magnífico, pensou ela; só que não parecia um padre. Dir-se-ia antes um ator que representasse o papel de padre, até a gente reparar nos olhos dele. E lá estava ela, a luz interior, aquele algo que o transformava de um homem muito bem-apessoado num homem único.

— Padre O’Neill — disse ela.

— Ainda não me acostumei com isso, Jus.

— O que não é difícil de compreender. Nunca me senti como hoje em São Pedro, de modo que nem posso imaginar como foi tudo para você.

— Creio que pode, sim, em algum lugar do seu íntimo. Se realmente não pudesse, não seria tão boa atriz. Mas como você, Jus, isso vem do inconsciente; só aparece na mente quando você precisa usá-lo.

Estavam sentados num sofá num canto afastado da sala, e ninguém apareceu para perturbá-los.

Passado algum tempo, ele disse:

— Fiquei tão contente por Frank ter vindo — disse, olhando para onde Frank conversava com Rainer, com uma expressão animada no rosto que os sobrinhos ainda não lhe tinham visto. — Conheço um velho padre romeno refugiado — continuou Dane — que tem um jeito de dizer ”Pobrezinho!” com tanta compaixão na voz... Não sei, mas, seja como for, é o que sempre me surpreendo a dizer quando penso em nosso Frank. E, no entanto, Jus, por quê?

Justine ignorou o ardil e foi diretamente ao ponto.

— Eu seria capaz de matar mamãe! — murmurou, entre dentes.. — Ela não tinha o direito de fazer o que fez com você!

— Oh, Jus! Eu compreendo. E você também precisa tentar compreender. Se ela o tivesse feito por maldade ou por espírito de vingança, poderia me magoar, mas você a conhece tão bem quanto eu e sabe que não foi por nenhum desses motivos. Logo irei a Drogheda. E, quando for, conversarei com ela e descobrirei o que aconteceu.

— Suponho que as filhas nunca têm tanta paciência com as mães quanto os filhos. — Ela abaixou os cantos da boca com expressão pesarosa e estremeceu. — Talvez seja bom que eu pertença tão entranhadamente ao tipo solitário que nunca me imporei a ninguém no papel de mãe.

Os olhos azuis transbordavam de bondade e ternura; Justine sentiu a pele arrepiar-se toda ao perceber que Dane estava sentindo pena dela.

— Por que você não casa com Rainer? — perguntou ele, de repente. O queixo dela caiu e ela abriu a boca, assombrada.

— Porque ele nunca me pediu em casamento — respondeu, com voz fraca.

— Só por achar que você não o aceitaria. Mas isso pode ser arranjado.

Sem pensar, ela o agarrou pela orelha, como costumava fazer quando eram crianças.

— Não se atreva, seu bocó de batina! Nem uma palavra, entendeu? Nem uma palavra. Eu não amo Rain! Ele é apenas um amigo e quero conservá-lo assim. Se você chegar a acender uma vela que seja com essa idéia, juro que lhe rogarei uma praga, e você se lembra de como isso costumava apavorá-lo, não se lembra?

Ele jogou a cabeça para trás e riu.

— Não funcionaria, Justine! Hoje em dia, minha mágica é mais forte do que a sua. Mas você não precisa ficar tão nervosa por causa disso, sua boboca. Enganei-me, mais nada. Presumi que houvesse um caso entre você e Rain.

— Não, não há. Depois de sete anos? Só por um milagre. — Fazendo uma pausa ela pareceu procurar as palavras e depois olhou quase tímida para ele. — Dane, sinto-me tão feliz por você! Se estivesse aqui, creio que mamãe sentiria o mesmo. Não é preciso mais nada; basta que ela o veja agora, assim. Espere um pouco, que ela acabará aparecendo.

com extrema delicadeza, ele tomou-lhe o rosto comprido entre as mãos, sorrindo para ela com tanto amor que as próprias mãos dela se ergueram para agarrar-lhe os pulsos e absorvê-lo por todos os poros. Como se todos os anos de infância fossem recordados e revividos.

Entretanto, por trás do que viu nos olhos dele com respeito a ela, Justine sentiu uma dúvida vaga; a palavra dúvida, aliás, talvez fosse demasiado forte; é possível que ansiedade soasse melhor. Ele estava quase certo de que a mãe acabaria compreendendo, mas era humano, embora todos, menos ele, tendessem a esquecer o fato.

— Jus, quer me fazer um favor? — perguntou, quando a largou.

— O que você quiser — disse ela, com sinceridade.

— Tenho uma espécie de folga, para pensar no que vou fazer. Dois meses. E pretendo pensar direito montado num cavalo de Drogheda depois de ter falado com mamãe... De certo modo, sinto que não poderia resolver coisa alguma enquanto não tiver falado com ela. Mas primeiro, bem... Preciso criar coragem para ir para casa. Por isso, se lhe for possível, dê um jeito de ir ao Peloponeso comigo por duas semanas, passe-me um bom pito por ser covarde até que eu fique tão cansado de ouvir sua voz que me enfie num avião e fuja dela. — Ele sorriu-lhe. — Além disso, Jussy, não quero que pense que tenciono excluí-la da minha vida, como também não tenciono excluir mamãe. A gente precisa ter por perto a sua velha consciência de vez em quando.

— Oh, Dane, é claro que irei!

— Ótimo — disse ele; depois sorriu, fitando-a com malícia. — Preciso realmente de você, Jus. Tê-la de novo lamuriando ao meu ouvido é como voltar aos velhos tempos.

— Opa! Nada de obscenidades, Padre O’Neill!

Ele cruzou os braços atrás da cabeça e apoiou-se no encosto do sofá, com uma expressão de contentamento.

— Eu sou! Não é maravilhoso? E talvez, depois de ter visto mamãe, possa me concentrar em Nosso Senhor. Creio que é para isso que tendem minhas inclinações, como você sabe. Simplesmente pensar em Nosso Senhor.

— Você devia ter entrado para uma ordem, Dane.

— Ainda posso fazê-lo e provavelmente o farei. Tenho uma vida inteira pela frente; não há pressa.

Justine deixou a festa em companhia de Rainer e, depois que ela falou em ir para a Grécia com Dane, ele falou em ir para o seu escritório em Bonn.

— Já não é sem tempo — disse ela. — Para um ministro de gabinete você não parece trabalhar muito, parece? Todos os jornais chamam-no de playboy, divertindo-se por aí com atrizes australianas com cabelo cor de cenoura, seu cachorrão.

Ele brandiu o punho enorme para ela.

— Eu pago pelos meus poucos prazeres de maneiras que você jamais saberá.

— Incomoda-se de andar, Rain?

— Não, se você não tirar os sapatos.

— Nestes dias não posso. As minissaias têm suas desvantagens; os dias das meias que se podiam tirar com facilidade já se foram. Eles inventaram uma versão das meiascalças teatrais, que não se podem tirar em público sem provocar o maior furor desde Lady Godiva. E por isso mesmo, a não ser que eu queira estragar um par de meiascalças, que me custam cinco guinéus, estou aprisionada em meus sapatos.

— Você, pelo menos, aprimora minha educação em matéria de roupas femininas, tanto de baixo quanto de cima — disse ele, suavemente.

— Pois sim! Aposto que você tem pelo menos uma dúzia de amantes e despe todas elas.

— Só uma, que, como todas as boas amantes, me espera de négligé.

— Sabe que até agora nunca discutimos a sua vida sexual? Que coisa fascinante! Como é ela?

— Loira, gorda, quarentena e flatulenta. Ela parou de estalo.

— Você está-me gozando — disse, devagar. — Não consigo imaginá-lo com uma mulher assim.

— Por que não?

— Porque você tem muito bom gosto.

— Chacun à son gout, minha querida. Eu também não sou lá grande coisa para se olhar... e, portanto, por que haveria você de me supor capaz de seduzir uma mulher jovem e bonita e fazer dela minha amante?

— Porque pode! — disse ela, indignada. — É claro que pode!

— Por causa do meu dinheiro?

— Não, não por causa do seu dinheiro! Está-me sacaneando, como sempre! Rainer Moerling Hartheim, você sabe muito bem o quanto é atraente, pois, do contrário, não andaria por aí usando medalhões de ouro nem camisas furadinhas. A beleza não é tudo... e, mesmo que fosse, eu ainda teria minhas dúvidas.

— Sua preocupação comigo é tocante, herzchen.

— Por que será que quando estamos juntos tenho a impressão de estar sempre correndo para alcançá-lo e nunca o consigo? — Sua explosão de cólera morreu; ela ficou a olhar ambiguamente para ele. — Você não está falando sério, está?

— Acha que estou?

— Não! Embora não seja convencido, você sabe o quanto é atraente.

— Se sou ou não, pouco importa. O importante é que você me julgue atraente.

Ela ia dizer:

-- É claro que o julgo; não faz muito tempo experimentei-o mentalmente como amante, mas cheguei à conclusão de que não daria certo; prefiro continuar a tê-lo como amigo.

Se a tivesse deixado dizê-lo, ele teria compreendido que o seu momento ainda não chegara e agido de modo diferente. Acontece, porém, que, antes que ela pudesse pronunciar as palavras, ele a tomou nos braços e beijou-a. Durante sessenta segundos, pelo menos, ela se sentiu morrer, dividir, esmagar, enquanto a força nela gritava em selvagem exaltação por encontrar uma força parelha. A boca dele — era bela! E o cabelo dele, incrivelmente cheio, vital, era algo para agarrar furiosamente com os dedos. Depois ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e fitou-a, sorrindo.

— Eu a amo — disse ele.

As mãos dela haviam-lhe agarrado os pulsos, mas não os envolveram com delicadeza, como haviam feito aos pulsos de Dane; as unhas penetraram a carne, lanharam-na com ferocidade. Ela recuou dois passos e ficou a esfregar a boca com o braço, os olhos dilatados de medo, o peito arfando.

— Não daria certo — arquejou. — Nunca poderia dar certo, Rain!

Os sapatos saíram-lhe dos pés; ela abaixou-se para pegá-los, voltou-se, saiu correndo e, dali a três segundos, o ruído rápido e macio dos seus pés se desvanecera.

Não que ele tivesse a intenção de segui-la, embora ela pensasse aparentemente que ele poderia fazê-lo. Seus pulsos sangravam e doíam-lhe. Comprimiu o lenço primeiro num e depois no outro, encolheu os ombros, guardou o pano manchado e ali ficou, concentrado na dor. Passado algum tempo, tirou do bolso a cigarreira, escolheu um cigarro, acendeu-o e pôs-se a caminhar sem pressa. Ninguém que passasse por ali poderia dizer, ao ver-lhe o rosto, õ que ele estava sentindo. Acabara de perder tudo o que almejava ter ao seu alcance, bastando-lhe para isso estender a mão. Menina idiota. Quando haveria de crescer? Sentira-o, respondera-lhe e negara-o.

Mas ele era um jogador, do tipo que ganha pouco e perde pouco. Esperara sete longos anos para tentar a sorte, e sentira a mudança nela nessa época da ordenação. Aparentemente, porém, movera-se demasiado cedo. Paciência. Havia sempre o amanhã ou, conhecendo Justine, o ano seguinte, dois anos depois. Ele por certo não desistiria. Se a vigiasse com atenção, um belo dia teria sorte.

O riso sem som estremeceu dentro dele; loira, gorda, quarentena e flatulenta. Ele mesmo não sabia o que o levara a dizer essa frase, a não ser que, muitos anos antes, ela lhe fora dita por sua ex-esposa. A típica definição das vítimas de cálculos biliares. A pobre Annelise vivera martirizada por eles, embora fosse morena, magra, cinqüentona e tão bem arrolhada quanto um gemo numa garrafa. A troco de que estou pensando agora em Annelise? Meu paciente empenho de anos deu em nada, e não posso me sair melhor do que a pobre Annelise. Mas você não perde por esperar, Fraulein Justine O’Neill!

Havia luzes nas janelas do palácio; subiria por alguns minutos e daria dois dedos de prosa com o Cardeal Ralph, que parecia ter envelhecido. Não estava com bom aspecto. Talvez devesse ser persuadido a submeter-se a um exame médico. Rainer sofria, mas não por Justine: ela era moça, havia tempo; mas pelo Cardeal Ralph, que vira ordenar-se o próprio filho, e não o sabia.

Ainda era cedo, de modo que o saguão do hotel estava cheio de gente. com os sapatos nos pés, Justine atravessou-o, rápida, na direção da escada e galgou os degraus de cabeça baixa. Depois de algum tempo, como suas mãos trêmulas não encontrassem a chave do quarto na bolsa, supôs que talvez tivesse de descer outra vez e enfrentar a multidão aglomerada diante do balcão de recepção. Mas lá estava ela; seus dedos deviam tê-la tocado uma dúzia de vezes.

Entrando, afinal, chegou tateando à cama, sentou-se na beira e deixou que os pensamentos coerentes lhe voltassem aos poucos. com os olhos tristemente fixos no amplo retângulo de luz pálida que o céu noturno projetava através da janela, sentindo vontade de xingar, sentindo vontade de chorar, dizia a si mesma que estava revoltada, horrorizada, desiludida. Agora nunca mais seria a mesma coisa e isso era uma tragédia. A perda do amigo mais querido. Traição.

Palavras vazias, falsas; de súbito, compreendeu perfeitamente o que tanto a assustara, o que a levara a fugir de Rain como se ele tivesse tentado matá-la e não beijá-la. A justeza de tudo! A sensação de volta ao lar, quando ela não queria voltar ao lar, quando não queria o compromisso do amor. O lar era a frustração, como frustração era o amor. E não era só isso, ainda que a admissão fosse humilhante; ela não tinha a certeza de poder amar. Se fosse capaz de amar, teria, por certo, aberto a guarda uma ou duas vezes; teria, por força, experimentado uma ou duas vezes uma pontada de algo mais que a tolerante afeição pelos seus amantes infreqüentes. Não lhe ocorria que ela escolhia de propósito amantes que nunca ameaçariam o alheamento que a si mesma se impusera e que agora de tal modo fazia parte dela que o considerava totalmente natural. Pela primeira vez na vida, faltava-lhe um ponto de referência para ajudá-la. Não havia ocasião no passado em que pudesse encontrar conforto, nenhum envolvimento outrora profundo, nem para si nem para esses vagos amantes. Tampouco a gente de Drogheda lhe poderia valer, porque ela sempre a evitara também.

Fora-lhe preciso fugir de Rain. Dizer sim, comprometer-se com ele e, depois, vêlo recuar ou descobrir a extensão das falhas dela? Isso lhe teria sido insuportável! Ele ficaria sabendo como ela era realmente, e deixaria de amá-la. Seria insuportável para ela dizer sim e acabar sendo repelida para sempre. Era muito melhor que ela mesma o repelisse primeiro. Desse modo, pelo menos, salvava-se o orgulho, e Justine possuía todo o orgulho de sua mãe. Rain nunca deveria saber como era ela debaixo de toda aquela petulância.

Ele se apaixonara pela Justine que via, pois ela nunca lhe dera a oportunidade de desconfiar do mar de dúvidas que havia por baixo da superfície. Destas, só Dane desconfiava — ou melhor, sabia.

Ela inclinou a cabeça para encostar a testa na tampa fria da mesinha-de-cabeceira, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Era por isso, naturalmente, que amava tanto o irmão. Pois, embora soubesse como era a verdadeira Justine, continuava a amála. O sangue ajudava, como ajudava também uma existência inteira de lembranças, problemas, sofrimentos e alegrias partilhadas. Ao passo que Rain era um estranho, não estava comprometido com ela como Dane, nem mesmo como os outros membros da família. Nada o obrigava a amá-la.

Justine fungou, passou a palma da mão pelo rosto, encolheu os ombros e encetou a difícil tarefa de empurrar o seu sofrimento para algum canto afastado do espírito, onde ele poderia ficar pacificamente, esquecido. Sabia que poderia fazê-lo; passara a vida inteira aperfeiçoando a técnica. Só que isso significava uma atividade incessante, uma contínua absorção em coisas exteriores. Estendeu a mão e acendeu a lâmpada.

Um dos tios devia ter levado a carta ao quarto dela, pois estava em cima da mesinha-de-cabeceira, uma carta aérea azul-celeste com a Rainha Elizabeth no canto superior.

”Querida Justine”, escrevia Clyde Daltinham Roberts, ”volte ao aprisco, onde você está sendo necessária! Imediatamente! Há um papel sobrando no repertório da próxima temporada, e um passarinho me contou que você talvez o deseje. Desdêmona, querida! com Marc Simpson no papel de Otelo! Os ensaios para os atores principais começarão na próxima semana, se -você estiver interessada.”

Se ela estava interessada? Desdêmona! Desdêmona em Londres! E com Marc Simpson como Otelo! A oportunidade de toda uma vida. Sua disposição de espírito subiu como um foguete a um ponto em que a cena com Rain perdeu todo o significado, ou melhor, assumiu um significado diferente. Se ela fosse muito, muito cuidadosa, talvez soubesse conservar o amor de Rain; uma atriz muitíssimo aplaudida e muitíssimo bem-sucedida andava sempre tão ocupada que não podia repartir grande parte de sua vida com os amantes. Valia a pena tentar. Se ele parecesse estar-se aproximando demasiado da verdade, ela poderia recuar outra vez. Para manter Rain em sua vida, sobretudo esse novo Rain, faria qualquer coisa, exceto tirar a máscara.

Nesse ínterim, notícias como aquela mereciam uma comemoração qualquer. Ela ainda não se sentia preparada para enfrentar Rain, mas havia outras pessoas à mão que poderiam partilhar do seu triunfo. Tornou a calçar os sapatos, desceu o corredor até chegar à sala de estar dos tios e, quando Patsy lhe abriu a porta, assomou à soleira, radiante, de braços abertos.

— Tragam a cerveja, que eu vou ser Desdêmona! — anunciou ela, com grande estardalhaço.

Por um momento ninguém respondeu. Depois Bob exclamou, calorosamente:

— Isso é ótimo, Justine!

O prazer dela não se evaporou; ao invés disso, cresceu até se transformar numa exaltação incontrolável. Rindo-se, deixou-se cair numa poltrona e pôs-se a olhar para os tios. Que homens realmente encantadores eram eles! É claro que a notícia dela não lhes dizia coisa alguma; eles não tinham a menor idéia de quem fosse Desdêmona. Se ela tivesse vindo contar-lhes que ia casar, a resposta de Bob teria sido a mesma.

Desde que ela se entendia por gente, eles faziam parte da sua vida, e tristemente ela os dispensara com o mesmo desdém com que dispensara tudo o que dizia respeito a Drogheda. Os tios, uma pluralidade que nada tinha que ver com Justine O’Neill. Simples membros de um conglomerado que entravam e saíam da sede, sorriam timidamente para ela e a evitavam quando sua presença significava conversação. Ela compreendia agora que eles não o faziam por não gostar dela, mas só por sentir o quanto ela era alheia, o que os deixava constrangidos. Mas, naquele mundo romano, estranho para eles e familiar para ela, Justine começava a compreendê-los melhor.

Sentindo por eles um carinho que se poderia chamar de amor, Justine passou de um rosto enrugado para um rosto risonho. Bob, que era a força vital da unidade, o Patrão de Drogheda, mas de uma forma tão discreta; Jack, que apenas parecia seguir o irmão de um lado para outro, ou talvez desse essa impressão por se entenderem ambos tão bem; Hughie, dono de uma dose de malícia que os outros dois não tinham, mas que, apesar disso, se parecia tanto com eles; Jims e Patsy, os lados positivo e negativo de um mesmo todo auto-suficiente; e o pobre e apagado Frank, o único que parecia atormentado pelo medo e pela insegurança. Todos, com exceção de Jims e Patsy, estavam grisalhos, e Bob e Frank tinham até o cabelo inteiramente branco, mas não pareciam diferentes dos tios que ela conhecera quando pequena.

— Não sei se devo dar cerveja a você — disse Bob em tom de dúvida, segurando uma garrafa gelada de Swan na mão.

A observação a teria enfadado profundamente seis horas antes, mas, naquele momento, sentia-se tão feliz que não poderia ofender-se com ela.

— Ouça, sei que nunca lhe ocorreu me oferecer um copo de cerveja durante nossas sessões com Raia, mas posso lhe garantir que sou agora uma moça crescida e capaz de enfrentar uma cerveja. Juro que não é pecado — acrescentou, sorrindo.

— Onde está Rainer? — perguntou Jims, tirando de Bob um copo cheio e estendendo-o a ela.

— Tive uma briga com ele.

— com Rainer?

— com ele, sim. Mas a culpa foi minha. vou vê-lo mais tarde e dizer-lhe que estou arrependida.

Nenhum dos tios fumava. Embora nunca tivesse pedido uma cerveja antes, em outras ocasiões ela os desafiara fumando em sua presença enquanto eles conversavam com Rain; agora precisaria de uma coragem de que não dispunha para exibir os seus cigarros, de modo que se contentou com o triunfo menor da cerveja, morta por emborcar o copo e bebê-la de um gole só, mas atenta ao olhar dúbio dos tios. Pequenos sorvos como convém a uma dama, Justine, mesmo que você esteja mais seca do que o Saara.

— Rainer é um sujeito formidável — disse Hughie, com os olhos brilhando. Espantada, Justine compreendeu de repente por que subira tanto no conceito deles: ela pegara um homem que eles gostariam de ter na família.

— De fato, ele é formidável — disse, secamente, e mudou de assunto. — Foi um dia delicioso, não foi?

Todas as cabeças oscilaram em uníssono, até a de Frank, mas eles não pareciam dispostos a discutir o caso. Embora percebesse que estavam cansadíssimos, ela não se arrependeu do seu impulso de visitá-los. Foi preciso algum tempo para que sentidos e sentimentos quase atrofiados aprendessem suas funções correspondentes, e os tios constituíam um bom alvo para a sua prática. Tal era o inconveniente de ser uma ilha; a gente se esquecia de que aconteciam coisas além das próprias plagas.

— Quem é Desdêmona? — perguntou Frank do meio das sombras em que se escondia.

Justine encetou uma descrição animada, encantada pelo horror que eles demonstraram ao saber que ela seria estrangulada uma vez por noite, e só se lembrou de que deviam estar morrendo de cansaço meia hora depois, quando Patsy bocejou.

— Preciso ir — anunciou, depositando na mesa o copo vazio. Não lhe haviam oferecido um segundo copo; um, aparentemente, era o limite para as damas. — Obrigada por prestarem atenção às minhas bobagens.

Para grande surpresa e confusão de Bob, ela deu-lhe um beijo ao dizer-lhe boanoite; Jack tentou sair de fininho, mas foi apanhado com facilidade, ao passo que Hughie aceitou de bom grado a despedida. Jims ficou muito vermelho, e suportou a provação sem dizer uma palavra. Para Patsy, um beijo e um abraço, pois ele próprio era uma ilha também. E para Frank, que desviou a cabeça, nada de beijo; quando, no entanto, o abraçou, ela sentiu o tênue eco de uma intensidade qualquer que não observara nos outros. Pobre Frank. Por que era assim?

Do lado de fora da porta, ela encostou-se por um momento na parede. Rain a amava. Mas quando tentou telefonar para o quarto dele, a telefonista informou-a de que ele pagara a conta e regressara a Bonn.

Não fazia mal. De qualquer maneira, talvez fosse melhor esperar para vê-lo em Londres. Um contrito pedido de desculpas pelo correio e um convite para jantar na próxima vez que ele visitasse a Inglaterra. Havia muitas coisas que ela ignorava a respeito de Rain, mas de uma característica não tinha dúvida alguma; ele viria, porque não possuía um único osso mesquinho em todo o seu corpo. Desde que os assuntos estrangeiros se haviam tornado o seu forte, a Inglaterra era um dos seus mais constantes portos de escala.

— Espere e verá, meu rapaz — disse ela, olhando para o espelho e vendo nele o rosto de Rain no lugar do seu. — Farei da Inglaterra o seu assunto estrangeiro mais importante ou não me chamo Justine O’Neill.

Não lhe ocorrera que talvez, no que dizia respeito a ele, o nome dela, com efeito, era o ponto crucial do problema. Os seus padrões de comportamento haviam sido estabelecidos e o casamento não se incluía entre eles. Nunca lhe passara pela cabeça a hipótese de Rain poder querer transformá-la em Justine Hartheim. Ela estava demasiado ocupada em lembrar-se da qualidade do beijo dele e em sonhar com mais.

Restava-lhe apenas a tarefa de contar a Dane que não poderia acompanhá-lo à Grécia, mas não estava preocupada com isso. Dane compreenderia, pois compreendia sempre. Só que, de um modo ou de outro, ela não achava que devia contar-lhe todas as razões por que não poderia ir. Por mais que o amasse, não se sentia disposta a ouvir o sermão severíssimo que ele haveria de pregar-lhe. Ele queria que ela casasse com Rain e, por isso mesmo, se ela lhe contasse quais eram os seus planos em relação a Rain, ele a levaria à Grécia, nem que fosse à força, dentro de alguma carroça. O que os ouvidos de Dane não ouvissem, seu coração não sentiria.

”Querido Rain”, dizia a nota. ”Desculpe-me por haver saído correndo como uma cabra peluda na outra noite, não sei o que deu em mim. Creio que foi o dia agitado e tudo o mais que aconteceu. Peço-lhe que me perdoe por haver-me comportado como uma perfeita bocó. Sinto-me envergonhada por haver feito tanto barulho por uma coisa tão insignificante. E suponho que o dia também mexeu com você. Refiro-me às suas palavras de amor e ao resto. Por isso vou fazer-lhe uma proposta — você me perdoa e eu o perdôo. Sejamos amigos, por favor. Não suporto a idéia de estarmos brigados. Da próxima vez que vier a Londres, venha jantar e redigiremos formalmente um tratado de paz.”

Como de costume, estava apenas assinado ”Justine”, sem uma palavra sequer de afeição; ela nunca as usava. Desapontado, ele estudou as frases autenticamente casuais, como se pudesse ver através delas o que lhe passava de fato pela cabeça ao escrever.

Era, por certo, um oferecimento de paz, mas que mais? Suspirando, viu-se obrigado a admitir que provavelmente havia muito pouco mais. Ele a assustara; a intenção dela de conservar-lhe a amizade revelava o quanto ele significava para ela, mas Rain duvidava muito de que Justine compreendesse com exatidão o que sentia por ela. Afinal de contas, agora sabia que ele a amava; se se tivesse examinado o suficiente para compreender que também o amava, tê-lo-ia dito diretamente na carta. Entretanto, por que voltara a Londres em vez de ir à Grécia com Dane? Ele sabia que não poderia ter sido a causa, mas, apesar das dúvidas, a esperança coloriu-lhe tão alegremente os pensamentos que chamou sua secretária. Eram dez horas da manhã, hora de Greenwich, o melhor momento para encontrá-la em casa.

— Ligue-me com o apartamento da Srta. O’NeiIl em Londres — ordenou ele, e esperou os segundos seguintes com uma contração dos cantos internos das sobrancelhas.

— Rain! — exclamou Justine, aparentemente encantada. — Recebeu minha carta?

— Neste minuto.

Depois de uma delicada pausa, ela perguntou:

— E virá jantar logo?

— Estarei na Inglaterra sexta-feira e sábado que vêm. O prazo é muito curto?

— Não, se puder ser sábado à noite. Estou ensaiando Desdêmona, por isso sextafeira não pode ser.

— Desdêmona?

— É verdade, você não sabe! Clyde me escreveu quando eu estava em Roma e me ofereceu o papel. Marc Simpson será Otelo, e Clyde dirigirá pessoalmente. Não é maravilhoso? Voltei para Londres no primeiro avião.

Ele protegeu os olhos com a mão, dando graças a Deus por sua secretária estar na outra sala e não sentada onde pudesse ver-lhe o rosto.

— Justine, herzchen, que notícia maravilhosa! — conseguiu dizer com entusiasmo. — Eu estava imaginando o que a teria feito voltar a Londres.

— Oh, Dane compreendeu — disse ela, sem dar importância ao caso — e, de certo modo, creio até que gostou de ficar sozinho. Ele andou inventando uma história a respeito de precisar de mim para instigá-lo a ir para casa, mas creio que a razão era outra: ele não quer que eu me sinta excluída de sua vida agora que é padre.

— Provavelmente — anuiu Rain, polido.

— Então, sábado à noite — disse ela. — Lá pelas seis. Poderemos redigir tranqüilamente o nosso tratado de paz com a ajuda de uma ou duas garrafas e eu lhe darei de comer depois que tivermos chegado a um arranjo satisfatório. Está certo?

— Está, naturalmente. Adeus, herzchen.

O contato foi cortado de repente pelo som do receptor dela ao ser desligado; ele ficou sentado por um momento com o seu ainda na mão, depois deu de ombros e recolocou-o no gancho. Diabo de menina! Ela estava começando a meter-se entre ele e o seu trabalho.

Ela continuou a meter-se entre ele e o seu trabalho nos dias que se seguiram, embora o volume deste último fosse muito grande para duvidar que alguém suspeitasse disso. E no sábado à tarde, pouco depois das seis, ele apresentou-se no apartamento dela, de mãos abanando, como sempre, pois ela era uma criatura difícil de presentear. Indiferente às flores, não comia doces e teria atirado um presente mais caro descuidadamente a um canto qualquer para esquecê-lo depois. As únicas dádivas que Justine parecia apreciar eram as que Dane lhe dera.

— Champanha antes do jantar? — perguntou ele, olhando surpreso para ela.

— Eu acho que a ocasião merece, você não acha? Afinal de contas, foi o nosso primeiro rompimento definitivo e esta é a nossa primeira reconciliação definitiva — respondeu ela com sua lógica irretocável, indicando-lhe uma poltrona confortável e instalando-se no tapete gasto de pele de canguru, com os lábios entreabertos, como se já tivesse ensaiado as respostas para o que quer que ele pudesse dizer.

Mas ele se sentia incapaz de conversar, pelo menos enquanto não pudesse avaliar melhor a disposição de espírito dela, de modo que ficou a observá-la em silêncio. Até o momento em que a beijara fora fácil manter-se parcialmente a distância, mas agora, tornando a vê-la pela primeira vez depois disso, reconheceu que as dificuldades aumentariam no futuro.

Até quando fosse uma mulher muito velha era provável que ela ainda conservasse algo não de todo amadurecido no rosto e no porte; como se a feminilidade essencial passasse por ela sem percebê-la. Aquele cérebro frio, lógico, egocêntrico, parecia dominá-la completamente; para ele, contudo, ela possuía um fascínio tão poderoso que ele duvidava poder um dia substituí-la por outra mulher. Nem uma vez perguntara a si mesmo se ela merecia a longa luta. De um ponto de vista filosófico, era até possível que não a merecesse. Mas isso teria alguma importância? Ela era uma meta, uma aspiração.

— Você está muito bonita esta noite, herzchen — disse ele por fim, erguendo o copo de champanha para ela num gesto que era um misto de brinde e de reconhecimento de um adversário.

Um lume de carvão ardia, tímido e desprotegido, na lareira vitoriana, mas Justine não parecia ligar para o calor, enrodilhada perto dele com os olhos fixos em Rain. Em seguida, depôs o copo na lareira e inclinou-se para a frente, os braços cruzados em torno dos joelhos, os pés nus escondidos entre as pregas de um vestido escuro.

— Não suporto rodeios — disse ela. — Você foi sincero, Rain? Descontraindo-se profundamente, ele reclinou-se no espaldar da poltrona.

— Sincero sobre o quê?

— Sobre o que disse em Roma... Que me amava.

— Essa é a causa de tudo isto, herzchen?

Ela afastou a vista, encolheu os ombros, tornou a olhar para ele e assentiu com a cabeça.

— Naturalmente.

— Por que voltar ao assunto? Você me disse o que pensava, e eu imaginei que o convite desta noite não visasse a trazer de volta o passado, senão a planejar o futuro.

— Oh, Rain! Você age como se eu estivesse fazendo uma tempestade num copo d’água! E ainda que isso fosse verdade, você pode ver por quê.

— Não, não posso. — Ele depôs o copo e inclinou-se mais para a frente a fim de observá-la melhor. — Você me deu a entender, da maneira mais enfática possível, que não queria saber do meu amor, e eu alimentava a esperança de que você tivesse pelo menos a decência de não discutir o assunto.

Jamais ocorrera a ela que esse encontro, fosse qual fosse o seu resultado, poderia ser tão desagradável; afinal de contas, ele se colocara na posição de suplicante, e devia estar esperando com toda a humildade que ela alterasse sua decisão. Em vez disso, ele parecia ter virado completamente a mesa. E ela ali se sentia como uma menina repreendida por alguma travessura idiota.

— Ouça, cara, foi você quem alterou o status quo, não fui eu! Não lhe pedi que viesse hoje à noite para que eu pudesse pedir perdão por haver ferido o grande ego de Hartheim!

— Você está na defensiva, Justine? Ela agitou-se com impaciência.

— E claro que sim, ora bolas! Como é que você consegue fazer isso comigo, Rain? Eu gostaria que me deixasse levar vantagem pelo menos uma vez!

— Se eu consentisse nisso, você me jogaria fora como um trapo velho e fedido — disse ele, a sorrir.

— Ainda posso fazer isso, companheiro!

— Tolice! Se não o fez até agora, nunca o fará. Você continuará a me ver porque eu a conservo em movimento... Nunca saberá o que esperar de mim.

— E por isso disse que me amava? — perguntou ela dolorosamente. — Foi apenas uma brincadeira para me manter em movimento?

— Que é que você acha?

— Acho que você é um grandissíssimo calhorda! — disse ela por entre os dentes e caminhando de joelhos sobre o tapete até chegar suficientemente perto dele para mostrar-lhe toda a sua cólera. — Diga outra vez que me ama, seu bocó alemão, que eu lhe cuspo na cara!

Ele também estava zangado.

— Não, não vou tornar a dizer! Não foi para isso que você me convidou a vir, foi? Meus sentimentos não a preocupam nem um pouco, Justine. Você me convidou a vir a fim de poder experimentar seus próprios sentimentos, e nem sequer parou para pensar se estava sendo justa ou não comigo.

Antes que ela pudesse afastar-se, ele inclinou-se para a frente, agarrou-lhe os braços perto dos ombros e prendeu-lhe o corpo entre as pernas, segurando-a com firmeza. A raiva dela dissipou-se no ato; ela achatou as palmas das mãos sobre as coxas dele e ergueu o rosto. Mas ele não a beijou. Soltou-lhe os braços e virou-se para apagar a luz que brilhava atrás dele, depois afrouxou o seu domínio sobre ela e descansou a cabeça no espaldar da poltrona, de modo que ela ficou sem saber se ele escurecera a sala, deixando-a iluminada apenas pelas brasas ardentes, como primeiro passo para a batalha do amor ou simplesmente para ocultar a expressão do seu rosto. Insegura, temerosa de uma rejeição completa, esperou que lhe dissessem o que devia fazer. Ela deveria ter compreendido antes que não se brinca com gente como Rain, tão invencível quanto a morte. O que a impedia de deitar a cabeça no colo dele e dizer: Rain, me ame, preciso tanto de você e estou tão arrependida? Se conseguisse levá-lo a fazer amor com ela, alguma chave emocional decerto giraria e tudo acabaria caindo, libertado...

Ainda afastado, distante, ele a deixou tirar-lhe o paletó e a gravata, mas, quando começou a desabotoar-lhe a camisa, ele entendeu que não daria certo. Não figurava em seu repertório a espécie de habilidade erótica instintiva capaz de tornar excitante a mais mundana das operações. Aquilo era tão importante e ela estava metendo os pés pelas mãos. Tremeram-lhe os dedos, contraiu-se-lhe a boca e Justine rompeu em pranto desfeito.

— Oh, não! Herzchen, liebchen, não chore! — Ele puxou-a para si, até colocá-la no colo e encostar-lhe a cabeça no ombro, enquanto lhe enlaçava o corpo com os braços. — Desculpe, herzchen, eu não queria fazê-la chorar.

— Agora você sabe — disse ela entre soluços. — Sou um fracasso miserável; eu lhe disse que não daria certo! Eu queria tanto conservá-lo, Rain, mas sabia que não daria certo se o deixasse ver a criatura horrível que sou!

— Não, é claro que não daria certo. Nem poderia dar! Eu não a estava ajudando, herzchen. — Ele puxou-lhe o cabelo a fim de erguer-lhe o rosto até à altura do seu, beijou-lhe as pálpebras, as faces molhadas, os cantos da boca. — A culpa foi minha, herzchen, não foi sua. Eu queria lhe pagar na mesma moeda; queria ver até onde você iria sem ser encorajada. Mas creio que interpretei mal os seus motivos, nicht wahrl — Sua voz tornou-se mais grossa, mais alemã. — E digo-lhe uma coisa, se é isso o que você quer, é isso o que terá, mas nós o teremos juntos.

— Por favor, Rain, vamos desistir! Não tenho o que é preciso. Só conseguirei decepcioná-lo!

— Tem, sim, herzchen, já a vi no palco. Como pode duvidar de si quando está comigo?

E ele tinha tanta razão que as lágrimas dela secaram.

— Beije-me como me beijou em Roma — murmurou ela.

Só que não foi, de maneira alguma, como o beijo de Roma. Aquele havia sido algo cru, assustado, explosivo; este, lânguido e profundo, era uma oportunidade para saborear, cheirar, sentir, instalava-se por camadas em voluptuoso bem-estar. Os dedos dela voltaram aos botões, os dele procuraram o zíper do vestido dela; e ele, cobrindo a mão dela com a sua, enfiou-a por dentro da camisa, sobre a pele recoberta de finos pêlos macios. O súbito endurecimento da boca dele de encontro à sua garganta provocou uma resposta tão aguda que ela teve a impressão de perder os sentidos, pensou estar caindo, e constatou que realmente caía sobre o tapete sedoso, ao passo que Rain avultava sobre ela. Ele tirara a camisa, talvez mais, porém ela não podia ver outra coisa senão o lume além dos ombros dele comprimidos sobre ela e a boca bem-feita. Decidida a destruir-lhe a disciplina para todo o sempre, ela mergulhou os dedos no cabelo dele e fê-lo beijá-la de novo, mais duro, mais duro!

E o contato dele! Era como voltar para casa, reconhecendo cada parte dele com os lábios, as mãos e o corpo e, apesar disso, fabuloso e estranho. Enquanto o mundo se resumia na diminuta amplitude do fogo na lareira, que lambia a escuridão, ela se abriu para o que ele queria e tomou conhecimento de uma coisa que ele ocultara totalmente durante o tempo em que se tinham conhecido: ele deveria ter feito amor com ela, em imaginação, um milhão de vezes. Diziam-no sua própria experiência e sua intuição recém-nascida. com qualquer outro homem a intimidade e a surpreendente sensualidade a teriam apavorado, mas ele a obrigou a ver que essas eram coisas que só ela tinha o direito de exigir. E ela as exigia. Até gritar-lhe, afinal, que terminasse, abraçando-o com tanta força que pôde sentir-lhe os contornos dos próprios ossos.

Os minutos fugiram, envoltos numa paz saciada. Os dois tinham adotado um ritmo idêntico de respiração, lento e tranqüilo, a cabeça dele repousando no ombro dela, a perna dela atirada sobre ele. Pouco a pouco, o aperto rígido nas costas dele afrouxou-se, tornou-se uma carícia sonhadora, circular. Ele suspirou, virou-se e inverteu o modo com que estavam deitados, convidando-a, sem dar-se conta disso, a sentir ainda mais profundamente o prazer de estar com ele. Ela colocou a palma da mão sobre o flanco dele, a fim de sentir-lhe a contextura da pele, deixou que a mão escorregasse sobre o músculo quente e envolveu com ela a massa macia e pesada na virilha. Era uma sensação inteiramente nova a dos movimentos vivos, independentes, dentro da mão; seus amantes anteriores nunca a haviam interessado tanto que ela desejasse prolongar sua curiosidade sexual até esse resultado lânguido, inexigente. De súbito, porém, ele deixou de ser lânguido e inexigente, mas tão excitante que ela o quis de novo.

Mesmo assim, foi tomada de surpresa, sentiu um sobressalto sufocado quando ele enfiou o braço por trás dela, segurou-lhe a cabeça nas mãos e manteve-a próxima o suficiente para que ela visse que não havia nada controlado em sua boca, modelada agora exclusivamente por ela e para ela. A ternura e a humildade nasceram nela, literalmente, nesse momento. E devem ter-se estampado em seu rosto, pois ele a fitava com olhos tão brilhantes que ela não pôde suportá-los e inclinou-se para prender-lhe o lábio superior entre os seus. Pensamentos e sensações fundiram-se, por fim, mas o grito dela, abafado, não foi solto, e sim transformado num lamento não expresso de alegria, que a sacudiu com tanta força que ela perdeu a consciência de tudo além do impulso, da direção indiferente de cada minuto urgente. O mundo concluiu sua derradeira contração, girou sobre si mesmo e desapareceu.

Rainer devia ter alimentado o fogo, pois quando o delicado alvorecer de Londres se infiltrou pelas dobras das cortinas, o quarto ainda estava quente. Desta vez, quando ele se mexeu, Justine percebeu-lhe os movimentos e agarrou-lhe o braço, com medo.

— Não se vá!

— Não me vou, herzchen. — Ele tirou outra almofada do sofá, ajeitou-a atrás da cabeça e puxou a moça para mais perto de si, suspirando suavemente. — Tudo bem?

— Tudo.

— Não está com frio?

— Não, mas se você estiver, poderemos ir para a cama.

— Depois de fazer amor com você durante horas sobre um tapete de pele? Que decadência! Nem que os seus lençóis sejam de seda preta.

— São lençóis brancos, velhos e comuns. Esse pedaço de Drogheda até que não foi mau, não é mesmo?

— Pedaço de Drogheda?

— O tapete! É feito de cangurus de Drogheda — explicou ela.

— Não é suficientemente exótico nem suficientemente erótico. vou encomendar para você uma pele de tigre da índia.

— Isso me lembra um poema que ouvi certa vez:

”Você gostaria de pecar

com Elinor Glyn

Sobre uma pele de tigre?

Ou preferiria

Errar com ela

Sobre outra pele qualquer?”

— Bem, herzchen, devo dizer que já está na hora de você reagir outra vez. Entre as exigências de Eros e Morfeu, faz doze horas que não consegue ser irreverente,

Ela sorriu.

— Não sinto necessidade disso no momento — disse, com um sorriso que respondia ao sorriso dele, colocando-lhe a mão confortávelmente entre as suas pernas. — Os versinhos de pé quebrado saíram porque eram tão bons que não pude resistir mas não tenho nada para esconder de você, por isso não vejo a necessidade da irreverência. Você vê? — Ela aspirou o ar, subitamente cônscia de um leve cheiro de peixe estragado. — Céus! Você não jantou e já estamos na hora do café da manhã! Não posso querer que você viva de amor!

— Pelo menos não pode se esperar tão estênuas manifestações dele!

— Ora, não negue! Você bem que apreciou cada um dos seus momentos.

— É verdade. — Ele suspirou, espreguiçou-se, bocejou. — Duvido que você faça uma idéia de toda a felicidade que estou sentindo.

— Acho que faço, sim — disse ela tranqüilamente. Ele ergueu-se sobre um cotovelo a fim de contemplá-la.

— Diga-me uma coisa: Desdêmona foi a única razão de sua volta a Londres? Agarrando-lhe a orelha, ela torceu-a dolorosamente.

— Agora é a minha vez de me vingar de todas essas perguntas de diretor de escola! O que é que você acha?

Ele afastou com facilidade os dedos dela, sorrindo.

— Se não me responder, herzchen, eu a estrangularei de maneira muito mais definitiva do que Marc.

— Voltei a Londres para fazer Desdêmona, mas, principalmente, por sua causa. Não consegui ser dona de mim mesma desde a noite em que você me beijou em Roma, e você está cansado de saber disso. É um homem muito inteligente, Rainer Moerling Hartheim.

— Tão inteligente que soube que a queria por esposa desde o primeiro momento em que a vi — disse ele.

Ela sentou-se depressa.

— Esposa?

— Esposa. Se a quisesse como amante, já a teria tomado há muitos anos. Sei como funciona a sua mente; teria sido relativamente fácil. A única razão por que não o fiz foi porque a queria como esposa e sabia que você ainda não estava preparada para a idéia de um marido.

— E não sei se já estou preparada para ela agora — disse ela, digerindo-a.

Ele levantou-se e puxou-a para junto de si, de modo que ficaram ambos em pé, abraçados.

— Bem, você pode começar a praticar preparando meu desjejum. Se esta casa fosse minha, eu me encarregaria de lhe fazer as honras, mas na sua cozinha a cozinheira é você.

— Não me incomodo de lhe preparar hoje o seu desjejum, mas me comprometer teoricamente a isso até o dia da minha morte? — Ela abanou a cabeça. — Não sei se é esse o meu ideal na vida, Rain.

Era o mesmo rosto de imperador romano, imperialmente imperturbável por ameaças de insurreição.

— Justine, isto não é coisa com que se brinque, nem eu sou uma pessoa com a qual se possa brincar. Há muito tempo. Você tem todos os motivos para saber que sei esperar. Mas tire da cabeça, de uma vez por todas, a idéia de que isto se pode resolver por algum modo que não seja o casamento. Não desejo ser conhecido como alguém menos importante para você do que um marido.

— Não vou desistir do teatro! — exclamou ela, em tom agressivo.

— Verfluchte kiste! Ninguém lhe pediu que o fizesse! Cresça um pouco, Justine! Qualquer um pensaria que a estou condenando à prisão perpétua entre o tanque e o fogão! Você sabe que não estamos na fila dos mendigos que esperam a distribuição do pão. Você poderá ter quantas criadas quiser, babás para as crianças, e tudo mais que for necessário.

— Diabo! — disse Justine, que não havia pensado em filhos. Ele atirou a cabeça para trás e riu-se.

— Oh, herzchen, isto é o que se chama a manhã seguinte como manda o figurino! Eu sei que é tolice minha trazer à baila tão cedo a realidade, mas a única coisa que você deve fazer nesta altura dos acontecimentos é pensar nela. Embora eu a esteja avisando... enquanto estiver tomando sua decisão, não se esqueça de que, se eu não puder tê-la por esposa, não a quererei de nenhum outro modo.

Justine abraçou-o, agarrando-se a ele com ímpeto.

— Oh, Rain, não torne as coisas tão difíceis — chorou ela.

Sozinho, Dane dirigiu seu Lagonda pela bota italiana, passando por Perúsia, Florença, Bolonha, Ferrara, Pádua, Veneza e foi pernoitar em Trieste. Era uma de suas cidades favoritas, de modo que ficou mais dois dias na costa adriática antes de enveredar pela estrada montanhosa que conduzia a Ljubljana e passar outra noite em Zagreb. A seguir, desceu pelo grande vale do Rio Sava, entre campos azuis de flores de chicória até Beograd, dali para Nis, onde voltou a pousar. Macedônia e Skopje, ainda em ruínas por motivo do terremoto ocorrido dois anos antes; e Tito-Veles, a cidade das férias, pitorescamente turca com suas mesquitas e minaretes. Durante todo o trajeto pela Iugoslávia comera com frugalidade, pois a vergonha não lhe consentia sentar-se diante de um grande prato de carne quando os habitantes do lugar se contentavam com pão.

A fronteira grega em Evzone, mais adiante Tessalônica. Os jornais italianos tinham andado cheios de notícias da revolução que se preparava na Grécia; em pé no seu quarto de hotel observando as milhares de tochas agitadas que se moviam, inquietas, na escuridão da noite tessalonicense, alegrou-se por Justine não ter vindo.

— Pap-an-dre-ou! Pap-an-dre-ou! Pap-an-dre-ou! — rugiam as multidões, cantando, formigando entre as tochas até depois de meia-noite.

Mas a revolução era um fenômeno de cidades, de densas concentrações de pessoas e de pobreza; a região costurada de cicatrizes de Tessália ainda devia ter o aspecto que tivera para as legiões de César quando marchavam pelos campos queimados no encalço de Pompeu em Farsália. Pastores dormiam à sombra de tendas de peles, cegonhas equilibravam-se numa perna só em ninhos construídos sobre velhos prediozinhos brancos, e em toda parte a aridez era aterradora. com o céu alto e claro, os ermos escuros e sem árvores, a paisagem lembrou-lhe a Austrália. E ele aspirou profundamente o ar, começando a sorrir à idéia de ir para casa. Sua mãe compreenderia, quando ele falasse com ela.

Acima de Larissa, chegou ao mar, parou o carro e desceu. O mar homérico, escuro e cor de vinho, delicada e clara água-marinha perto das praias, manchada da púrpura das uvas, estendia-se no rumo do horizonte curvo. Num gramado verde, lá embaixo, erguia-se minúsculo templo rodeado de pilares, alvejando ao sol, e na encosta do morro que avultava atrás dele subsistia uma imponente fortaleza do tempo das Cruzadas. Grécia, você é linda, mais linda que a Itália, por mais que eu ame a Itália. Mas aqui está o eterno berço.

Ansiando por achar-se em Atenas, continuou fazendo o carro vermelho disparar pelas subidas e descidas do Passo de Domokos até chegar ao outro lado, ao panorama maravilhoso da Beócia, feito de olivais, encostas cor de ferrugem e montanhas. Apesar da pressa, parou para examinar o monumento estranhamente hollywoodiano erguido em homenagem a Leônidas e seus espartanos nas Termópilas. Dizia a pedra: ”Estrangeiro, vai dizer aos espartanos que aqui morremos em obediência às suas ordens.” Aquilo feriu uma corda dentro dele, quase como se fossem palavras que pudesse ter ouvido num contexto diferente; Dane estremeceu e seguiu viagem, depressa.

Debaixo do sol escaldante, deteve-se acima de Kamena Voura, e nadou na água clara enquanto olhava para o estreito de Eubéia; dali deviam ter zarpado os mil navios que, de Aulis, demandaram Tróia. Era uma corrente forte que turbilhonava na direção do mar; não lhes devera ter sido necessário remar com muita força. Os extáticos arrulhos e as mãos cariciosas da velha vestida de preto na casa de banhos constrangera-mno; fugiu dela o mais rápido que pôde. As pessoas já não se referiam à sua beleza diante dele, de modo que, na maior parte das vezes, conseguia esquecê-la. Demorando-se apenas o suficiente para comprar dois imensos bolos recheados de creme na padaria, continuou a descer pela costa ática e chegou afinal a Atenas quando o sol principiava a descambar, dourando a grande rocha e sua linda coroa de pilares.

Mas encontrou Atenas tensa e maldosa e a admiração franca das mulheres mortificou-o; as romanas eram mais sofisticadas, mais sutis. Um sentimento guiava a multidão, em que havia bolsões de tumultos, uma torva determinação da parte do povo de ter Papandreou. Não, Atenas estava diferente; era melhor ficar em outro lugar. Guardou o Lagonda numa garagem e tomou a balsa para Creta.

E lá, por fim, entre os olivais, o tomilho selvagem e as montanhas, encontrou a paz. Depois de longo trajeto de ônibus com frangos amarrados que não paravam de gritar e o cheiro forte de alho nas narinas, ele encontrou uma estalagenzinha pintada de branco com uma colunata arqueada, três mesas protegidas por guarda-sóis sobre as pedras da calçada e alegres cestas gregas penduradas e enfeitadas como lanternas. Aroeiras-moles e eucaliptos australianos, vindos da nova Terra do Sul e plantadas em solo demasiado árido para árvores européias. O estrépito enérgico das cigarras. A poeira, rodopiando em nuvens vermelhas.

À noite, dormiu num quarto minúsculo, semelhante a uma cela, com os postigos escancarados; no lusco-fusco da aurora celebrou uma missa solitária, durante o dia caminhou. Ninguém o incomodou, ele não incomodou ninguém. Mas, à sua passagem, os olhos dos camponeses seguiam-no com lento assombro, as rugas de todos os rostos acentuavam-se num sorriso. Fazia calor, havia calma e era tudo muito sonolento. Paz perfeita. Os dias seguiam-se uns aos outros, como contas que deslizassem por uma curtida mão cretense.

Ele orava em silêncio, um sentimento, uma extensão do que lhe ia no íntimo, pensamentos como contas, dias como contas. Senhor, sou verdadeiramente Teu. Agradeço-te por Tuas muitas bênçãos. Pelo grande Cardeal, sua ajuda, sua profunda amizade, seu amor seguro. Por Roma e pela oportunidade de estar em Teu coração, por me haver prostrado diante de Ti em Tua própria basílica, por ter sentido a rocha de tua Igreja dentro em mim. Tu me abençoaste além dos meus merecimentos; que posso fazer por Ti, para mostrar minha apreciação? Não sofri o bastante. Minha vida tem sido uma longa e absoluta alegria desde que principiei a servir-Te. Preciso sofrer, e Tu, que sofreste, o saberás. Só através do sofrimento poderei elevar-me acima de mim mesmo, compreender-Te melhor. Pois nisso se resume esta vida: a passagem para a compreensão do Teu mistério. Mergulha Tua lança no meu peito, enterra-a ali tão profundamente que eu jamais consiga arrancá-la! Faze-me sofrer. Por Ti renuncio a todos os outros, incluindo minha mãe e minha irmã e o Cardeal. Só Tu és minha dor e minha alegria. Humilha-me e eu cantarei Teu adorado Nome. Destrói-me e eu me regozijarei. Eu Te amo. Só a Ti...

Ele chegara à praiazinha onde gostava de nadar, um crescente amarelo entre rochedos que se projetavam para cima, e ficou por um momento a olhar, por sobre o Mediterrâneo, para o que devia ser a Líbia, muito além do horizonte escuro. Depois saltou ligeiramente os degraus na direção da areia, chutou as alpargatas, apanhou-as e caminhou, através dos contornos que cediam, macios, para o lugar onde costumava desvencilhar-se dos sapatos, da camisa, das calças. Dois jovens ingleses, que falavam com um arrastado sotaque de Oxford, estavam deitados como duas lagostas cozidas não muito longe dali e, além deles, duas mulheres falavam, sonolentas, em alemão. Dane olhou para as mulheres e, encabulado, ajeitou o calção de banho, ao perceber que elas tinham parado de conversar e se haviam sentado a fim de arrumar o cabelo e sorrir para ele.

— Como vão as coisas? — perguntou aos ingleses, embora em sua mente lhes desse o nome que todos os australianos dão aos ingleses, pommies. Eles pareciam fazer parte da paisagem, pois estavam na praia todos os dias.

— Esplendidamente, meu velho. Mas tome cuidado com a corrente... é forte demais para nós. Deve estar caindo uma tempestade em algum lugar por aí.

— Obrigado. — Dane sorriu, correu para as marolas que se encrespavam, inocentes, e mergulhou com perfeição na água rasa, como o surfista experiente que sempre fora.

Era surpreendente como a água calma podia ser enganosa. Ele sentia a corrente maligna puxar-lhe as pernas, tentando arrastá-lo para baixo, mas, como bom nadador, não podia preocupar-se com isso. com a cabeça baixa, deslizou suavemente pela água, deleitando-se com o seu frescor, com a liberdade. Quando fez uma pausa e esquadrinhou a praia, viu as duas alemãs colocando as toucas de banho e correndo, a rir, na direção das ondas.

Juntando as mãos ao redor da boca, gritou-lhes em alemão que não saíssem da parte rasa, por causa da corrente. Rindo, elas acenaram para ele, como a dizer que haviam compreendido. Ele tornou a enfiar a cabeça dentro d’água, voltou a nadar, e supôs ouvir um grito. Mas nadou um pouco mais, depois parou para ficar em pé num local onde a corrente do fundo não puxava tanto. Eram gritos, sim; ao virar-se, viu as mulheres lutando e gritando, com o rosto contraído; uma delas tinha as mãos erguidas para o alto e estava afundando. Na praia, os dois ingleses aproximavam-se, relutantes, da água.

Ele girou sobre si mesmo e nadou, célere, na direção das mulheres. Braços tomados de pânico estenderam-se para ele, aferraram-se a ele, arrastaram-no para baixo; Dane conseguiu segurar uma delas pela cintura o tempo suficiente para desferir-lhe um golpe seco no queixo, depois agarrou a outra pela alça do maiô, empurrou-lhe a espinha com o joelho e deixou-a retomar fôlego. Tossindo, pois engolira água ao ser arrastado para baixo, virou de costas e principiou a rebocar seus fardos inertes na direção da praia.

Os dois pommies, com água pelos ombros, estavam tão assustados que se recusavam a ir mais longe, e Dane não os censurou. Os dedos dos seus pés mal tocavam a areia; ele suspirou, aliviado. Exausto, fez um derradeiro esforço sobre-humano e deixou as mulheres em segurança. Recobrando rapidamente os sentidos, elas voltaram a gritar, debatendo-se, desesperadas. Ofegante, Dane conseguiu sorrir. Já fizera a sua parte; os poms que se encarregassem do resto. Enquanto descansava, arquejante, a corrente voltara a puxá-lo, e seus pés já não tocavam o fundo, nem mesmo quando mais os esticava. Fora tudo por um triz. Se ele não estivesse presente, elas se teriam afogado; com certeza, os poms não tinham a força nem a habilidade para salvá-las. Mas, disse uma voz, elas só queriam nadar para poder estar perto de você; só depois que o viram se lembraram de entrar. Foi por sua culpa que elas correram perigo, por sua culpa.

E, enquanto ele boiava placidamente, sentiu uma dor lancinante no peito, como a que sentiria, sem dúvida, se fosse atingido por uma lança, um longo dardo incandescente que lhe transfixasse o corpo. Gritou, atirou os braços para cima, enrijecendo os membros, os músculos convulsos; mas a dor exacerbou-se, obrigou-o a abaixar os braços, a enfiar os punhos nas axilas, a erguer os joelhos. Meu coração! Estou tendo um ataque do coração, estou morrendo! Meu coração! Eu não quero morrer! Ainda não, enquanto não tiver começado o meu trabalho, enquanto não tiver tido a oportunidade de dar provas de mim mesmo! Senhor, ajuda-me! Eu não quero morrer, eu não quero morrer!

O corpo convulsionado aquietou-se, afrouxou-se; Dane virou de costas, deixou que os braços flutuassem bem abertos e moles, apesar da dor. Através dos cílios molhados olhou para cima, para a abóbada alta do céu. É isso mesmo; este é o Teu dardo que, em meu orgulho, Te supliquei há menos de uma hora. Dá-me a oportunidade de sofrer, disse eu, faze-me sofrer. Agora, quando o sofrimento se apresenta, eu lhe resisto, incapaz de amor total. Adorado Senhor, Tua dor! Devo aceitá-la, não posso combatê-la, não posso lutar contra a Tua vontade. Tua mão é poderosa e esta é a Tua dor, como a que deves ter sentido na Cruz. Meu Deus, meu Deus, eu sou Teu! Se esta é a Tua vontade, faça-se ela. Como uma criança, coloco-me em Tua mão infinita. És bom demais para mim. Que fiz eu para merecer tanto de Ti e das pessoas que me amam mais e melhor do que a qualquer um? Por que me deste tanto, se não sou digno? A dor, a dor! És tão bom para mim! Pedi que ela não demorasse, e ela não demorou. Meu sofrimento será breve, logo passará. Logo verei Teu rosto, mas agora, ainda nesta vida, eu Te agradeço. A dor! Meu adorado Senhor, és bom demais para mim. Eu te amo!

Imenso tremor sacudiu o corpo quieto, expectante. Moveram-se os lábios, murmuraram um Nome, tentaram sorrir. Depois as pupilas se dilataram, expulsando todo o azul dos seus olhos para sempre. Chegando, afinal, sãos e salvos à praia, os dois ingleses deixaram cair na areia seus fardos que choravam e ficaram à espera dele. Mas no plácido mar azul vazio e vasto, as ondas precipitavam-se para a praia e recuavam. Dane se fora.

Alguém pensou na estação da Força Aérea dos Estados Unidos, que ficava ali perto, e correu a pedir socorro. Menos de trinta minutos depois um helicóptero subiu bateu o ar freneticamente e pôs-se a descrever círculos cada vez maiores, a partir da praia, procurando. Ninguém esperava ver coisa alguma. Os afogados costumavam descer ao fundo e só alguns dias depois surgiam à tona. Passou-se uma hora; e então, a uns vinte e tantos quilômetros da praia, avistaram Dane boiando pacificamente no seio do mar profundo, de braços bem abertos e rosto voltado para o céu. Por um momento o supuseram vivo e alegraram-se mas, quando o aparelho baixou o suficiente para fazer a água espumar e sibilar, tornou-se evidente que ele estava morto. Transmitiram-se as coordenadas pelo rádio do helicóptero, uma lancha saiu às pressas e, três horas depois, voltava.

Espalhara-se a notícia. Os cretenses gostavam de vê-lo passar, gostavam de trocar com ele algumas palavras tímidas. Gostavam dele, embora não o conhecessem. Correram todos para o mar, as mulheres de preto como pássaros desengonçados, os homens vestindo velhas calças muito largas, camisas brancas de colarinho aberto e mangas arregaçadas. E ficaram em grupos silenciosos, esperando.

Quando a lancha chegou, um suboficial corpulento saltou em terra e voltou-se para receber nos braços uma forma envolta num cobertor. Deu uns poucos passos pela praia além da linha d’água e, com a ajuda de outro homem, depôs sua carga no chão. O cobertor abriu-se; ouviu-se um murmúrio alto, que partiu dos cretenses. Estes se aproximaram ainda mais, beijando crucifixos com lábios curtidos pelo tempo, as mulheres entoando suavemente uma melopéia, um ooohhh! sem palavras quase melódico, triste, paciente, terra-a-terra, feminino.

Eram aproximadamente cinco horas da tarde; o sol listrado por nuvens descia para o ocaso por trás do rochedo escuro, mas ainda estava suficientemente alto para alumiar o grupinho preto na praia, a longa forma imóvel na areia com sua pele dourada, os olhos cerrados de cílios eriçados por causa do sal que principiara a secar, o tênue sorriso nos lábios azulados. Apareceu uma padiola e, em seguida, juntos, cretenses e funcionários americanos levaram o corpo de Dane.

Atenas estava num rebuliço, multidões amotinadas anarquizavam tudo, mas o coronel da USAF conseguiu comunicar-se com os seus superiores numa faixa de freqüência especial, com o passaporte australiano azul de Dane na mão. Como todos esses documentos, aquele nada dizia a seu respeito. Diante da palavra ”profissão” estava escrito apenas ”estudante” e, no verso, debaixo da epígrafe ”parente mais próximo”, liam-se o nome de Justine e o seu endereço em Londres. Despreocupado com o significado legal do termo, ele escrevera o nome da irmã porque Londres ficava muito mais perto de Roma do que Drogheda. No seu quartinho na estalagem, a maleta preta quadrada em que guardava seus implementos sacerdotais não tinha sido aberta; ela esperava, com a mala de roupas, as instruções para onde devia ser remetida.

Quando o telefone tocou às nove horas da manhã, Justine rolou na cama, abriu um olho sonolento e ali ficou a xingar o aparelho, jurando que mandaria desligá-lo. Vá lá que o resto do mundo julgava certo e apropriado começar a fazer o que fazia às nove da manhã, mas por que haveria de supor o mesmo a respeito dela?

Mas ele tocou, tocou, tocou. Talvez fosse Rain; esse pensamento fez pender a balança em favor da consciência. Justine levantou-se e arrastou-se cambaleante até a sala de estar. O parlamento alemão estava em sessão urgente; fazia uma semana que ela não via Rain e não se sentia otimista quanto às suas oportunidades de vê-lo na semana seguinte. Mas talvez a crise tivesse sido resolvida e ele telefonasse para dizer-lhe que estava a caminho.

— Alô?

— Srta. Justine O’Neill?

— Sim, é ela mesma quem está falando.

— Aqui é da Casa da Austrália, no Aldwych, sabe o que é?

A voz tinha uma inflexão inglesa, dizia um nome que o cansaço não lhe permitia ouvir porque ainda estava assimilando o fato de que não era a voz de Rain.

— Sei, sei. Casa da Austrália. Que é que tem?

Bocejando, ela equilibrou-se sobre um pé e esfregou-lhe o dorso com a sola do outro.

— A senhora tem um irmão, um Sr. Dane O’Neill? Os olhos de Justine abriram-se.

— Tenho, sim.

— Que agora está na Grécia, Srta. O’Neill?

Os dois pés apoiaram-se no tapete e ficaram juntos um do outro.

— Está. É isso mesmo.

Não lhe ocorreu corrigir a voz, explicar que era Padre e não Senhor.

— Srta. O’Neill, lamento muito informar que tenho o infausto dever de dar-lhe uma notícia má.

— Uma notícia má? Uma notícia má? Que foi? Que notícia? Que aconteceu?

— Lamento informá-la de que seu irmão, o Sr. Dane O’Neill, morreu afogado ontem em Creta e, segundo consta, em heróicas circunstâncias, efetuando um salvamento. Entretanto, a senhora precisa compreender que há uma revolução na Grécia e que a informação que nos chegou é um tanto vaga e talvez não muito exata.

O telefone estava sobre uma mesa perto da parede e Justine apoiou-se no sólido suporte que a parede lhe oferecia. Seus joelhos vergaram, ela começou a escorregar muito devagar para a frente e acabou formando um volume enrolado no chão. Sem rir e sem chorar, emitia ruídos intermediários, ofegos audíveis. Dane afogado. Ofego. Dane morto. Ofego. Creta, Dane, afogado. Ofego. Morto, morto.

— Srta. O’Neill? A senhora está aí, Srta. O’Neill? — perguntou a voz, insistente. Morto. Afogado. Meu irmão.

— Srta. O’Neill, responda!

— Sim, sim, sim, sim, sim! Oh, Deus, estou aqui!

— Consta que a senhora é o parente mais próximo dele, portanto solicitamos suas instruções sobre o que fazer com o corpo. Srta. O’Neill, a senhora está aí?

— Sim, sim!

— Que quer que se faça com o corpo, Srta. O’Neill?

Corpo! Ele era um corpo, e eles não podiam nem dizer o seu corpo, tinham de dizer o corpo. Dane, meu Dane. Ele é um corpo.

— O parente mais próximo? — Ela ouviu a própria voz perguntando, fina e tênue, rasgada pelos grandes ofegos. — Não sou o parente mais próximo de Dane. Creio que o parente mais próximo é minha mãe.

Seguiu-se uma pausa.

— Isso está ficando muito difícil, Srta. O’Neill. Se a senhora não é o parente mais próximo, nós perdemos um tempo precioso. — A compaixão polida foi substituída pela impaciência. — A senhora parece não compreender que há uma revolução na Grécia e que o acidente aconteceu em Creta, ainda mais distante e mais difícil de contactar. Francamente! A comunicação com Atenas é virtualmente impossível e nós recebemos instruções para transmitir sem demora os desejos pessoais e as instruções do parente mais próximo em relação ao corpo. A senhora sua mãe está aí? Posso falar com ela, por favor?

— Minha mãe não está aqui. Está na Austrália.

— Na Austrália? Santo Deus, isso está ficando cada vez pior! Agora teremos de passar um cabograma para a Austrália; novos atrasos. Se não é o parente mais próximo, Srta. O’Neill, por que o passaporte de seu irmão diz que é?

— Sei lá — disse ela, e surpreendeu-se a rir.

— Dê-me o endereço da senhora sua mãe na Austrália. Passaremos imediatamente um cabograma para ela. Precisamos saber o que fazer com o corpo! Espero que a senhora compreenda que com o tempo que levam os cabogramas para ir e vir, haveria um atraso de doze horas. Já será bem difícil sem essa confusão toda.

— Então telefone a ela. Não perca tempo com cabogramas

— Nosso orçamento não prevê chamadas telefônicas internacionais, Srta. O’Neill -- replicou a voz dura. — Agora, por obséquio, dê-me o nome e o endereço da senhora sua mãe.

— Sra. Meggie O’Neill — recitou Justine. — Drogheda, Gillanbone, Nova Gales do Sul, Austrália.

Ela soletrou para ele os nomes pouco familiares.

— Mais uma vez, Srta. O’Neill, minhas mais profundas condolências.

O receptor deu um clique, e começou o som gutural e interminável da linha telefônica. Justine sentou-se no chão e deixou-o escorregar para o seu colo. Devia haver um engano, tudo se acabaria esclarecendo. Dane afogado, ele que nadava como um campeão? Não, não era verdade. Mas é, Justine, você sabe que é, você não foi com ele para protegê-lo e ele se afogou. Você foi sua protetora desde que ele era um bebê e devia estar lá. Se não pudesse salvá-lo, devia estar lá para morrer afogada com ele. E a única razão por que não quis ir com ele foi por querer estar em Londres para que Rain fizesse amor com você.

Pensar era tão duro. Tudo era tão duro. Nada parecia funcionar, nem mesmo suas pernas. Não conseguia levantar-se, nunca mais se levantaria. Não havia lugar em sua mente para mais ninguém, exceto Dane, e seus pensamentos descreviam círculos cada vez menores em torno de Dane. Até que pensou em sua mãe, no pessoal de Drogheda. Oh, Deus. As notícias chegariam lá, chegariam a ela, chegariam a ele. Sua mãe não tivera sequer a última visão adorável do rosto de Dane em Roma. Suponho que eles mandem o cabograma para a polícia de Gilly, e o velho Sargento Ern subirá no seu carro e percorrerá todos os quilômetros até Drogheda para dizer a minha mãe que o único filho dela está morto. Não é o homem talhado para isso e é quase um estranho. Sra. O’Neill, meus mais profundos, mais sentidos pêsames, seu filho está morto. Palavras mecânicas, corteses, vazias... Não! Não posso deixar que façam uma coisa dessas a ela, a ela não, ela é minha mãe também! Não desse jeito, não do jeito que eu tive de ouvir.

Puxou a outra parte do telefone de cima da mesa e deixou-a cair no colo, colocou o fone no ouvido e discou para a telefonista.

— Telefonista? Telefonista internacional, por favor. Alô? Desejo uma ligação urgente para a Austrália, Gillanbone, um-dois-um-dois. E depressa, pelo amor de Deus!

A própria Meggie atendeu ao telefone. Era tarde, Fee já se recolhera. Naqueles dias ela não sentia a menor vontade de deitar-se cedo, preferia ficar sentada, prestando atenção aos grilos e aos sapos, cochilando com um livro aberto à sua frente, recordando.

— Alô?

— Chamada de Londres, Sra. O’Neill — anunciou Hazel em Gilly.

— Alô, Justine — disse Meggie, tranqüila. Jussy telefonava, de vez em quando para saber como iam as coisas.

— Mamãe? É você, mamãe?

— Sim, sou eu — tornou Meggie suavemente, percebendo a aflição de Justine.

— Oh, mamãe! Oh, mamãe! — Seguiu-se o que soou como um ofego, ou um soluço. — Mamãe, Dane está morto. Dane está morto!

Um poço abriu-se a seus pés. Descia, descia, descia e não tinha fundo. Meggie deslizou para dentro dele, sentiu que a boca do poço se fechava acima da sua cabeça e compreendeu que nunca mais sairia dali enquanto vivesse. Que mais poderiam fazer os deuses? Ela não o soubera ao perguntá-lo. Como poderia tê-lo perguntado, como poderia não ter sabido? Não tente os deuses, que eles gostam disso. Quando não fora vê-lo no mais belo momento da sua vida, a fim de partilhá-lo com ele, ela supusera finalmente estar pagando. Dane estaria livre disso, e livre dela. Quando não fora ver o rosto mais querido entre todos os outros rostos, ela supusera estar restituindo. O poço fechou-se, sufocante. Meggie lá estava, e compreendeu que era demasiado tarde.

—Justine, minha querida, fique calma — disse Meggie, enérgica, sem um tremor na voz. — Acalme-se e me conte. Você tem certeza?

— A Casa da Austrália me telefonou... Pensaram que eu fosse o parente mais próximo. Um homem horroroso que só queria saber o que eu desejava que se fizesse com o corpo. ”O corpo”, era como o chamava. Como se Dane já não fizesse jus a ele, como se ele pertencesse a qualquer um. — Meggie ouviu-a soluçar. — Céus! Acredito que o pobre homem odiasse fazer o que estava fazendo. Oh, mamãe, Dane está morto!

— Como, Justine? Onde? Em Roma? Por que Ralph não me telefonou?

— Não, não foi em Roma. O Cardeal provavelmente nem sabe de nada. Em Creta. O homem disse que ele se afogou, tentando salvar alguém. Ele estava de férias, mamãe, convidou-me para irmos juntos, e eu não fui, eu queria representar Desdêmona, eu queria estar com Râm Se eu pelo menos estivesse com ele! Se eu estivesse, isso talvez não houvesse acontecido. Oh, Deus, que é que eu posso fazer?

— Pare com isso, Justine — disse Meggie, severa. — Não pense assim, está-me ouvindo? Dane não gostaria, e você sabe disso. As coisas acontecem, e não sabemos por quê. O importante agora é que você esteja bem, que eu não tenha perdido os dois. Você é tudo o que me resta. Oh, Jussy, Jussy, é tão longe! O mundo é grande, é grande demais. Volte para casa, para Drogheda. Detesto pensar em você aí, inteiramente sozinha.

— Não, preciso trabalhar. O trabalho é a única resposta para mim. Se eu não trabalhar, enlouquecerei. Não quero saber de gente, não quero saber de conforto. Oh, mamãe! — Ela se pôs a chorar com amargura. — Como vamos viver sem ele?

Como, realmente? Era isso viver? Eras de Deus, a Deus voltaste. O pó ao pó. A vida é para os que falham. Deus cúpido, juntando os bons, deixando o mundo aos outros, a nós, para apodrecer.

— Nenhum de nós pode dizer por quanto tempo viveremos — tornou Meggie. — Jussy, muito obrigada, minha filha, por me contar tudo você mesma, por telefonar.

— Não suportei a idéia de qualquer pessoa dar-lhe a notícia, mamãe. Eu não queria que você a ouvisse desse jeito, de um estranho. O que é que você vai fazer? O que é que você pode fazer?

com toda a sua força de vontade, Meggie tentou transmitir calor e conforto, através dos quilômetros, à filha arrasada em Londres. Seu filho estava morto, sua filha ainda vivia. Urgia torná-la inteira. Se fosse possível. Em toda a sua vida Justine parecera ter amado apenas Dane. E a mais ninguém, nem a si mesma.

— Justine, não chore. Procure não se afligir. Ele não teria querido isso, não é mesmo? Venha para casa, esquecer. Traremos Dane para cá também. Para Drogheda. Por lei é meu outra vez, já não pertence à Igreja e ninguém pode me impedir. Telefonarei imediatamente à Casa da Austrália e à embaixada em Atenas, se puder. Ele precisa voltar para casa! Eu abominaria a idéia de sabê-lo em algum lugar longe de Drogheda. É aqui que ele deve estar, ele tem de voltar para cá. Venha com ele, Justine.

Mas Justine não era mais que um montículo no chão, sacudindo a cabeça como se a mãe pudesse vê-la. Voltar para casa? Nunca mais poderia fazê-lo. Se tivesse acompanhado Dane, ele não teria morrido. Voltar para casa e ter de olhar para o rosto de sua mãe todos os dias pelo resto da vida? Não, era-lhe insuportável a simples idéia.

— Não, mamãe — disse ela, enquanto as lágrimas lhe deslizavam pela pele, quentes como metal derretido. Quem disse que as pessoas tomadas de violenta emoção não choram? Ninguém sabia nada sobre isso. — Ficarei aqui e trabalharei. Irei para casa com Dane, mas depois voltarei. Não posso viver em Drogheda.

Durante três dias esperaram num vácuo sem propósito, Justine em Londres, Meggie e a família em Drogheda, encontrando no silêncio oficial uma tênue esperança. Depois de tanto tempo, com certeza se veria que tudo não passara de um equívoco, com certeza já teriam sabido de alguma coisa se a primeira notícia fosse verdadeira! Dane surgiria, risonho, à porta de Justine e explicaria que tudo não passara de um engano bobo. A Grécia estava sendo sacudida por uma revolução e enganos bobos de toda a sorte deviam estar sendo cometidos. Dane cruzaria a soleira da porta, rindo à idéia da sua morte. Surgiria, alto, forte e vivo, e daria boas gargalhadas. A esperança começou a crescer e cresceu com cada minuto de espera. Traiçoeira e horrível esperança. Ele não estava morto, não! Não podia ter-se afogado! Ele, Dane, tão bom nadador, que seria capaz de desafiar qualquer espécie de mar e continuar vivo. E assim esperaram, não tomando conhecimento do que acontecera na esperança de que tudo se revelasse um equívoco. Haveria tempo mais tarde para notificar as pessoas, para dar aviso a Roma.

Na quarta manhã, Justine recebeu a mensagem. Como uma velha, apanhou o telefone mais uma vêz, e pediu uma ligação para a Austrália.

— Mamãe?

— Justine?

— Oh, mamãe, já o enterraram; não podemos levá-lo para casa! Que é que vamos fazer? Só sabem dizer que Creta é um lugar grande, não se conhece o nome da aldeia, quando o cabograma chegou ele já havia sido despachado e sepultado. Está num túmulo sem nome num lugar qualquer! Não consigo arranjar visto para a Grécia, ninguém quer ajudar, é o caos. O que vamos fazer, mamãe?

— Encontre-se comigo em Roma, Justine — disse Meggie.

Todos, exceto Anne Mueller, estavam ali, em torno do telefone, ainda em estado de choque. Os homens pareciam ter envelhecido vinte anos em três dias, e Fee, encarquilhada como um pássaro, pálida e sombria, andava pela casa repetindo sem cessar:

— Por que não poderia ter sido eu? Por que tiveram de levá-lo? Sou tão velha, tão velha! Eu não me importaria de ir, por que teve de ser ele? Por que não poderia ter sido eu? Sou tão velha!

Anne desmoronara, e a Sra. Smith, Minnie e Cat caminhavam e dormiam chorando. Meggie contemplou-os em silêncio ao recolocar o fone no gancho. Aquilo era tudo o que ficara de Drogheda. Um grupinho de velhos e de velhas, estéreis e alquebrados.

— Dane está perdido — disse ela. — Ninguém consegue encontrá-lo; foi enterrado em algum lugar em Creta. É tão distante! Como poderia descansar tão longe de Drogheda? vou a Roma à procura de Ralph de Bricassart. Se alguém pode nos ajudar, esse alguém é ele.

O secretário do Cardeal de Bricassart entrou na sala.

— Lamento perturbá-lo, Eminência, mas uma senhora deseja vê-lo. Expliqueilhe que há um congresso, que Vossa Eminência está muito ocupado e não pode ver ninguém, mas ela afirma que ficará sentada no vestíbulo até que Vossa Eminência tenha tempo para vê-la.

— Ela está em dificuldades, padre?

— Em grandes dificuldades, Eminência. Isso, pelo menos, é fácil de ver. Pediume para dizer-lhe que seu nome é Meggie O’Neill.

O secretário pronunciou o nome com uma inflexão estrangeira e cadenciada, de modo que ele soou como Meghee Onill.

O Cardeal Ralph ergueu-se, ao mesmo tempo que o sangue lhe fugia do rosto e deixava-o tão branco quanto o cabelo.

— Vossa Eminência está-se sentindo mal?

— Não, padre, estou perfeitamente bem, muito obrigado. Cancele todos os meus compromissos até aviso em contrário, e faça entrar imediatamente a Sra, O’Neill. Não deixe ninguém nos interromper, exceto o Santo Padre.

O padre inclinou-se e saiu. O’Neill. Naturalmente! Ele devia ter-se lembrado de que era o sobrenome do jovem Dane. Acontece que no palácio do Cardeal só o chamavam pelo prenome. Ele cometera um grave erro, fazendo-a esperar. Se Dane era o sobrinho muito amado de Sua Eminência, a Sra. O’Neill era a sua muito amada irmã.

Quando Meggie entrou na sala, o Cardeal Ralph mal a reconheceu. Fazia treze anos que a vira pela última vez; ela já completara cinqüenta e três e ele, setenta e um. Os dois tinham envelhecido. O rosto dela não mudara tanto, mas se diria talhado por um molde muito diferente do que ele lhe conferira em sua imaginação. A doçura fora substituída por um tom cortantemente incisivo, a suavidade por um toque de ferro; ela parecia uma mártir vigorosa, envelhecida e obstinada em lugar da santa resignada e contemplativa dos sonhos dele. Sua beleza continuava impressionante; seus olhos conservavam ainda a mesma clara cor prateada, mas ambos haviam endurecido, e o cabelo outrora brilhante adquirira um tom bege, descolorido, como o de Dane, mas sem a sua vida. E o que era ainda mais desconcertante, ela recusava-se a mirá-lo o tempo suficiente para satisfazer-lhe a curiosidade ardente e amante.

Não podendo saudar essa Meggie com naturalidade, ele indicou-lhe uma cadeira com o gesto rígido.

— Tenha a bondade de sentar-se.

— Obrigada — disse ela, igualmente cerimoniosa.

Só quando ela se sentou pôde ele olhar para toda a sua pessoa e notar-lhe a visível inchação dos pés e tornozelos.

— Meggie! Você voou desde a Austrália até aqui sem interromper a viagem? Que aconteceu?

— Sim, fiz um vôo direto — disse ela. — Passei as últimas vinte e nove horas sentada em aviões entre Gilly e Roma, sem nada a fazer além de olhar pela janela para as nuvens e pensar. — A voz dela era áspera e fria.

— Que aconteceu? — repetiu ele com impaciência, ansiedade e temor. Ela ergueu a vista dos próprios pés e cravou-a, firme, no rosto dele.

Havia algo medonho nos olhos dela; algo tão escuro e enregelante que a pele da sua nuca ficou toda arrepiada e ele, automaticamente, ergueu a mão para tocá-la.

— Dane está morto — disse Meggie.

A mão dele escorregou, e ele caiu como uma boneca de trapos no regaço escarlate quando desabou sobre uma cadeira.

— Morto? — perguntou, devagar. — Dane está morto?

— Está. Morreu afogado há seis dias em Creta, salvando umas mulheres no mar. Ele inclinou-se para a frente, cobriu o rosto com as mãos.

— Morto? — ela o ouviu perguntar, indistintamente. — Dane morto? Meu belo menino! Ele não pode estar morto! Dane... era o padre perfeito... tudo o que eu não pude ser. O que me faltava, ele possuía. — Partiu-se-lhe a voz. — Sempre o teve... Era o que todos nós lhe reconhecíamos... todos nós que não somos padres perfeitos. Morto? Oh, meu Deus!

— Não se preocupe com o seu Deus, Ralph — disse a estranha sentada diante dele. — Você tem coisas mais importantes para fazer. Vim lhe pedir ajuda... não vim testemunhar o seu sofrimento. Tive todas essas horas no ar para decidir sobre o modo de lhe contar isto, todas as horas que passei olhando pela janela para as nuvens e sabendo que Dane está morto. Depois disso, o seu pesar não tem o poder de me comover.

Entretanto, quando ele ergueu o rosto que as mãos já não cobriam, o coração morto e frio dela saltou, contorceu-se, tornou a saltar. Era o rosto de Dane, com um sofrimento escrito nele que Dane nunca viveria para sentir. Graças a Deus! Graças a Deus ele está morto e já não pode passar pelo que este homem passou, pelo que eu passei. É melhor estar morto do que sofrer uma coisa como esta.

— Como posso ajudar, Meggie? — perguntou ele, calmo, suprimindo as próprias emoções a fim de vestir a capa do conselheiro espiritual, que lhe permitia ir ao fundo das almas.

— A Grécia está mergulhada no caos. Enterraram Dane em algum lugar em Creta e não consigo descobrir onde, quando, nem por quê. Suponho apenas que minhas instruções no sentido de que o colocassem num avião e o mandassem para casa foram indefinidamente adiadas pela guerra civil, e Creta é quente como a Austrália. Quando ninguém o reclamou, pensaram com certeza que ele não tinha parentes e enterraram-no. — Ela inclinou-se para a frente, fom a expressão tensa. — Quero meu filho de volta, Ralph, quero-o achado e levado para casa a fim de que possa dormir em seu lugar, em Drogheda. Prometi a Jims conservá-lo em Drogheda e ali o conservarei, nem que tenha de percorrer de joelhos todos os cemitérios de Creta. Nada de túmulos luxuosos de padre católico para ele, Ralph, enquanto eu estiver viva e puder lutar nos tribunais. Ele terá de voltar para casa.

— Ninguém lhe negará isso, Meggie — disse ele delicadamente. — É terra católica, consagrada e a Igreja não pede mais do que isso. Também deixei expresso em meu testamento que desejo ser enterrado em Drogheda.

— Não consigo passar por toda essa burocracia — prosseguiu ela, como se ele não tivesse falado. — Não sei falar grego e não tenho poder nem influência. De modo que vim procurá-lo, a fim de usar os seus. Devolva-me meu filho, Ralph!

— Não se preocupe, Meggie, você terá seu filho de volta, embora as coisas talvez não aconteçam com a desejada rapidez. A Esquerda agora está no poder e seus membros são anticatólicos radicais. Entretanto, tenho amigos na Grécia, de modo que tudo será feito. Deixe que eu ponha imediatamente as rodas em movimento, e não se preocupe. Ele é um padre da Santa Igreja Católica, nós o teremos de volta.

Sua mão estendera-se para o cordão da campainha, mas o olhar frio e feroz de Meggie deteve-a.

— Você não compreende, Ralph. Não quero que se ponham rodas em movimento. Quero meu filho de volta... e não na semana que vem, nem no mês que vem, mas agora! Você fala grego, pode obter vistos para nós dois, alcançará resultados. Quero que vá para a Grécia comigo agora e me ajude a trazer meu filho de volta.

Havia muita coisa nos olhos dele: ternura, compaixão, choque, dor. Mas eles tinham-se tornado olhos de padre também, sãos, lógicos, sensatos.

— Meggie, amo seu filho como se fosse meu, mas não posso sair de Roma neste momento. Não sou um homem livre... e você, mais do que ninguém, deveria sabê-lo. Por maior que seja a tristeza que sinto por você, por maior que seja a minha própria tristeza, não posso deixar Roma no meio de um congresso importantíssimo. Sou o assistente do Santo Padre.

Ela inclinou-se para trás, estupefata e escandalizada, e sacudiu a cabeça com um meio sorriso, como se presenciasse as cambalhotas de um objeto inanimado que não lhe era dado influenciar; depois estremeceu, molhou os lábios, pareceu chegar a uma decisão e sentou-se, empertigada.

— Você realmente ama meu filho como se ele fosse seu, Ralph? — perguntou ela. — Que faria você por um filho seu? Poderia sentar-se e dizer à mãe dele, não, sinto muito, mas não tenho tempo agora? Você diria isso à mãe de seu filho?

Os olhos de Dane, mas que não eram os olhos de Dane. Olhando para ela; atônitos, doridos, impotentes.

— Não tenho filho — disse ele —, mas entre as muitas, muitas coisas que aprendi com o seu, foi que, por mais duro que seja, meu primeiro e único dever de obediência é para com Deus Todo-Poderoso.

— Dane era seu filho também — disse Meggie. Ele olhou para ela estupidamente.

— O quê?

— Eu disse que Dane era seu filho também. Quando saí da Ilha de Matlock estava grávida. Dane era seu filho, não era filho de Luke O’Neill.

— Não-é-verdade!

— Eu não queria que você soubesse, nem mesmo agora — continuou ela. — Acha-me capaz de mentir para você?

— Para ter Dane de volta? Sim — disse ele com voz fraca.

Ela levantou-se, foi colocar-se diante dele na poltrona de brocado vermelho tomou nas suas mãos a mão do Cardeal, fina, apergaminhada, inclinou-se e beijou o anel, enquanto o seu hálito lhe embaçava o rubi, deixando-o leitosamente opaco.

— Por tudo o que é sagrado para você, Ralph, juro que Dane era seu filho. Ele não era nem poderia ter sido filho de Luke. Juro-o pela morte dele.

Ouviu-se um gemido, o som de uma alma passando pelos portais do Inferno. Ralph de Bricassart caiu para a frente, e chorou, amontoado sobre o tapete carmesim num charco escarlate, como sangue novo, o rosto escondido entre os braços dobrados, as mãos enfiadas no cabelo.

— Isso, chore! — disse Meggie. — Chore, agora que você sabe! É justo que um dos pais seja capaz de derramar lágrimas por ele. Chore, Ralph! Durante vinte e seis anos tive seu filho sem que você soubesse, sem que você percebesse. Não percebeu que ele era você renascido? Ao tirá-lo de mim quando ele nasceu, minha mãe soube, mas você não soube nunca. Suas mãos, seus pés, seu rosto, seus olhos, seu corpo. Só a cor do cabelo era dele mesmo; todo o resto era você. Compreende agora? Quando eu o mandei para cá, para você, escrevi em minha carta: ”Devolvo o que roubei”. Lembra-se? Só que nós dois roubamos, Ralph. Roubamos o que você votara a Deus, e ambos tivemos de pagar.

Ela sentou-se na cadeira, implacável e sem misericórdia, e contemplou a forma escarlate torturada no chão.

— Eu o amei, Ralph, mas você nunca foi meu. O que tive de você, fui obrigada a roubar. Dane era minha parte, tudo o que pude obter de você. Jurei que você nunca o saberia, jurei que você nunca teria a ocasião de tirá-lo de mim. E ele se acabou entregando a você, por sua livre e espontânea vontade. A imagem do padre perfeito, era como ele o chamava. Quanto ri ao me lembrar-me disso! Mas por nada deste mundo eu lhe teria dado uma arma como a consciência de que ele era seu. A não ser por isto. A não ser por isto! Por nada menos do que isto eu lhe teria contado. Se bem que agora eu não creia que isso tenha alguma importância. Ele já não pertence a nenhum de nós. Ele pertence a Deus.

O Cardeal de Bricassart fretou um avião particular em Atenas; ele, Meggie e Justine levaram Dane para Drogheda, os vivos sentados em silêncio, o morto deitado em silêncio no ataúde, já não precisando de mais nada desta terra.

Tenho de dizer essa missa, essa missa de réquiem para meu filho. Osso do meu osso, meu filho. Sim, Meggie, acredito em você. Depois que retomei fôlego, eu teria acreditado em você mesmo sem aquele terrível juramento. Vittorio soube assim que pôs os olhos nele e, em meu coração, eu também devo ter sabido. O seu riso atrás das rosas partindo do menino — mas os meus olhos erguidos para mim, como costumavam ser em minha inocência. Fee sabia. Anne Mueller sabia. Mas nós, homens, não fomos feitos para saber. Pois assim pensam vocês, mulheres, e abraçam seus mistérios, voltando-nos as costas para vingar-se da descortesia que Deus lhes fez não as criando à Sua imagem. Vittorio sabia, mas a mulher que havia nele não lhe permitiu falar. Uma vingança magistral.

Fale, Ralph de Bricassart, abra a boca, mova as mãos na bênção, comece a entoar as palavras latinas pela alma do que partiu. Que era seu filho. Que você amava mais do que amou a mãe dele. Sim, mais! Pois ele era você feito de novo, num molde mais perfeito.

In Nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti...

A capela regurgitava de gente; estavam lá todos os que lá podiam estar. Os Kings, os O’Rourkes, os Davieses, os Pughs, os MacQueens, os Gordons, os Carmichaels, os Hopetons. E os Clearys, o pessoal de Drogheda. A esperança crestada, a luz apagada. Na frente, num grande caixão forrado de chumbo, Padre Dane O’Neill coberto de rosas. Por que estavam as rosas sempre desabrochadas quando ele voltava a Drogheda? Era outubro, plena primavera. É claro que estavam desabrochadas. Na época certa.

Sanctus... Sanctus... Sanaus...

Saibam que o Santo dos Santos está sobre vocês. Meu Dane, meu belo filho. É melhor assim. Eu não queria que você chegasse a isto, ao que já sou. Não sei por que lhe digo essas coisas. Você não precisa, nunca precisou de que eu as dissesse. O que procuro às apalpadelas, você sabia por instinto. Não é você o infeliz, somos nós aqui, nós, os que ficamos. Tenha piedade de nós e, quando chegar a nossa hora, ajude-nos.

Ite, Missa est... Requiescant in pace...

Lá fora, atravessando o relvado, passando pelos eucaliptos, pelas roseiras, pelas aroeiras-moles, para o cemitério. Continue dormindo, Dane, porque só os bons morrem jovens. Por que choramos? Você teve sorte de escapar tão cedo desta vida aborrecida. Talvez seja isso o Inferno, uma longa sentença de escravidão terrena. Talvez soframos nossos infernos vivendo...

O dia passou, os que tinham vindo se foram, o pessoal de Drogheda arrastava-se pela casa e evitava-se mutuamente; o Cardeal Ralph olhou a princípio para Meggie, mas não pôde olhar outra vez. Justine saiu com Jean e Boy King a fim de pegar o avião da tarde para Sydney e o da noite para Londres. Ele não se lembrava de lhe ter ouvido a voz rouca e feiticeira, nem de ver-lhe os estranhos olhos pálidos. Desde o momento em que ela se encontrara com ele e com Meggie em Atenas até a hora em que saiu com Jean e Boy King, fora como um fantasma, com sua camuflagem bem apertada em torno de si. Por que não se comunicara com Rainer Hartheim, não pedira a ele que lhe fizesse companhia?

Devia saber o quanto ele a amava, o quanto desejaria estar com ela num momento assim. O pensamento, porém, nunca se demorou o tempo suficiente no espírito cansado do Cardeal Ralph para que ele mesmo o chamasse, embora pensasse nisso de tempos a tempos antes mesmo de partir de Roma. Era estranho, o pessoal de Drogheda. Não gostava de companhia quando sofria; preferia ficar só com a sua dor.

Só Fee e Meggie se sentaram em companhia do Cardeal Ralph na sala de estar depois do jantar que ninguém comeu. Ninguém disse uma palavra; o relógio de bronze dourado sobre o consolo de mármore da lareira tiquetaqueava alto no silêncio, e os olhos pintados de Mary Carson lançavam um desafio mudo, através da sala, à avó de Fee, na parede oposta. Fee e Meggie estavam sentadas juntas no sofá creme e seus ombros se tocavam levemente; o Cardeal Ralph não se lembrava de tê-las visto assim tão próximas nos velhos tempos. Mas elas não diziam uma palavra, não se entreolhavam, nem olhavam para ele.

Ele tentou descobrir o que fizera de errado. Errara demais, era essa a dificuldade. Orgulho, ambição, certa falta de escrúpulos. E o amor a Meggie florescendo no meio de tudo. Mas ele jamais conhecera a glória que coroara esse amor. Que diferença teria feito saber que seu filho era seu filho? Ter-lhe-ia sido possível amar o rapaz mais do que o amara? Teria seguido um caminho diferente se tivesse sabido o que agora sabia sobre seu filho? Sim!, gritava-lhe o coração. Não, escarnecia-lhe o cérebro.

Voltou-se amargamente contra si mesmo. Tolo! Você devia ter visto que Meggie não voltaria para Luke. Você devia ter visto logo quem era o pai de Dane. Ela se orgulhava tanto dele! Tudo o que pôde conseguir de você, foi o que lhe disse em Roma. Pois bem, Meggie... com ele, você conseguiu o melhor. Meu Deus, Ralph, como lhe foi possível não saber que ele era seu? Você devia ter compreendido quando ele o procurou homem feito, se não antes. Ela estava esperando que você visse, ansiando para que você visse; se você tivesse visto, ela o teria seguido de joelhos. Mas você estava cego. Não queria ver. Ralph Raoul, Cardeal de Bricassart, era isso o que você queria; mais do que a ela, mais do que a seu filho. Mais do que a seu filho!

A sala enchera-se de gritinhos, rumores, murmúrios; o relógio batia os segundos em compasso com o seu coração. E depois deixou de bater em compasso. Ele já não lhe acompanhava o ritmo. Via Meggie e Fee flutuando, tentando levantar-se, vagueando com rostos assustados numa névoa líquida e insubstancial, dizendo-lhe coisas que ele não parecia ouvir.

— Aaaaaaaah! — gritou, compreendendo.

Mal teve consciência da dor, atento apenas aos braços de Meggie à sua volta, ao modo com que sua cabeça se inclinava para ela. Mas conseguiu virar-se até poder verlhe os olhos, e olhou para ela. Tentou dizer ”Perdoe-me” e.viu que ela o perdoara havia muito tempo. Ela sabia que acabara levando a melhor. Depois quis dizer algo tão perfeito que ela se sentisse consolada para sempre, e compreendeu que isso também não era necessário. Fosse ela o que fosse, era capaz de suportar qualquer coisa. Qualquer coisa! Por isso ele cerrou os olhos e, pela derradeira vez, esqueceu-se em Meggie.

 

                     1965-1969 — JUSTINE

Sentado à sua escrivaninha de Bonn com uma xícara matinal de café, Rainer soube, pelo jornal, da morte do Cardeal de Bricassart. A tempestade política das últimas semanas estava amainando, de modo que ele se sentara parasaborear a leitura com a perspectiva de logo ver Justine a fim de colorir o seu estado de espírito. Não o perturbava o recente silêncio dela, que considerava típico; Justine ainda não se achava preparada para admitir a extensão do seu compromisso com ele.

Mas a notícia da morte do Cardeal afugentou todos os pensamentos de Justine. Dez minutos depois, ao volante de um Mercedes 200 SL, ela corria para a autoestrada. O pobre velho Vittorio estaria tão sozinho, e o seu fardo já era pesado nas melhores ocasiões. Seria mais rápido ir de automóvel; no tempo que perderia à espera de um vôo, indo a aeroportos e voltando deles, estaria no Vaticano. E era algo positivo que podia fazer, algo que ele mesmo seria capaz de controlar, consideração sempre importante para um homem como ele.

Da boca do Cardeal Vittorio soube de toda a história, chocado demais a princípio para perguntar a si mesmo porque Justine não pensara em procurá-lo.

— Ele veio me ver e perguntou se eu sabia que Dane era seu filho — contou a voz suave, enquanto que as mãos delicadas alisavam o dorso cinzento-azulado de Natasha.

— E você disse?

— Eu disse que imaginara. Não poderia lhe dizer outra coisa. Mas o rosto dele! O rosto dele! Eu chorei.

— Foi isso, naturalmente, que o matou. Na última vez em que o vi, não me pareceu muito bem, mas ele riu da minha sugestão de procurar um médico.

— É como Deus quer. Creio que Ralph de Bricassart foi um dos homens mais atormentados que conheci. Na morte encontrará a paz que não encontrou na vida.

— O rapaz, Vittorio. Uma tragédia.

— Você acha? Pois eu prefiro pensar na morte dele como numa coisa linda. Não posso acreditar que ela fosse para Dane algo menos bem-vindo, e não admira que Nosso Senhor estivesse impaciente por chamá-lo a Si. Choro, sim, mas não pelo rapaz. Choro pela mãe, que deve sofrer tanto! E pela irmã, pelos tios, pela avó. Não, não choro por ele. O Padre O’Neill vivia numa pureza quase total de espírito e de alma. Que mais poderia ser a morte para ele senão o ingresso na vida eterna? Para nós outros a passagem não é tão fácil.

Do hotel, Raiiier mandou um cabograma a Londres, em que não poderia permitir que transparecesse sua raiva, sua mágoa ou sua decepção. Dizia apenas: PRECISO VOLTAR BONN MAS ESTAREI LONDRES FIM DE SEMANA PONTO POR QUE NÃO ME CONTOU PÔS EM DÚVIDA O MEU AMOR RAIN.

Sobre a mesa de sua sala em Bonn, havia uma carta expressa de Justine e um pacote registrado que, segundo a secretária, provinha dos advogados romanos do Cardeal de Bricassart. Abriu primeiro o embrulho e ficou sabendo que, de acordo com as cláusulas do testamento de Ralph de Bricassart, teria de acrescentar outra companhia à lista já formidável de empresas que dirigia. Michar Limitada. E Drogheda. Exasperado, mas curiosamente comovido, compreendeu que era esse o modo com que o cardeal lhe dizia que, no cômputo final, ele fora achado à altura do que dele se esperava, que as orações ditas durante os anos da guerra haviam produzido frutos. Nas mãos de Rainer entregava ele o futuro bem-estar de Meggie O’Neill e sua gente. Ou foi essa a sua interpretação, pois era totalmente impessoal a redação dada ao testamento pelo cardeal, que não poderia tê-lo redigido de outra forma.

Atirou o embrulho na cesta da correspondência geral não secreta, que exigia resposta imediata, e abriu a carta de Justine. Começava mal, sem nenhuma espécie de saudação.

Obrigada pelo cabograma. Você não faz idéia do quanto me alegra não termos estado em contato um com o outro nas duas últimas semanas, porque eu teria detestado tê-lo por perto. Na ocasião, a única coisa que eu poderia pensar em relação a você era que, graças a Deus, você não sabia. Isso talvez lhe pareça difícil de compreender, mas o fato é que não o quero em parte alguma perto de mim. A dor não tem nada de bonito, Rain, nem o fato de você presenciar a minha poderia aliviá-la. com efeito, você poderá dizer que isso provou quão pouco o amo. Se eu o amasse de fato, teria procurado você instintivamente, não é verdade? Vejo-me, porém, cada vez mais longe de você.

Portanto, eu gostaria muito que déssemos tudo por terminado, Rain. Não tenho nada para lhe dar, e não quero nada de você. Isso me ensinou o quanto significam as pessoas quando vivem perto uma da outra vinte e seis anos. Eu jamais suportaria passar pelas mesmas coisas outra vez, e foi você mesmo quem disse, lembra-se? Ou casamento, ou nada. Opto pelo nada.

Minha mãe contou-me que o velho cardeal morreu algumas horas depois que saí de Drogheda. Engraçado. Mamãe ficou muito chocada com a morte dele. Não que ela tenha dito alguma coisa, mas eu a conheço. Não entendo por que ela, Dane e você gostavam tanto dele. Nunca pude apreciá-lo, sempre me pareceu suntuoso demais. Uma opinião que não estou preparada para modificar só porque ele morreu.

E aí está. Isso é tudo. Fui sincera no que eu disse, Rain. O que desejo ter de você é nada. Cuide-se.

Ela assinara a carta com o seu costumeiro, negro e atrevido ”Justine”, e a escrevera com a nova caneta de ponta de feltro que saudara com tanta alegria quando a ganhara dele, como um instrumento grosso, escuro e positivo, capaz de satisfazê-la.

Ele não dobrou a nota e a enfiou na carteira, nem a queimou; fez o que fazia com toda a correspondência que não exigia resposta — passou-a pelo picador elétrico que tinha ligado à cesta de papéis assim que acabou de lê-la, pensando com os seus botões que a morte de Dane pusera termo de fato ao despertar emocional de Justine, e sentindo-se amargamente infeliz. Não era justo. Esperara tanto tempo!

No fim de semana, voou para Londres, mas não para vê-la, embora a visse. Viu-a no palco, como a esposa adorada do mouro, Desdêmona. Formidável. Não havia nada que ele pudesse fazer por ela que o palco não o fizesse, pelo menos por algum tempo. É assim mesmo que se faz, garota! Ponha tudo isso para fora no palco.

Só que ela não podia pôr tudo isso para fora no palco, pois ainda não tinha idade para fazer o papel de Hécuba. O palco era apenas o único lugar que lhe oferecia paz e esquecimento. Ela só podia dizer a si mesma: o tempo cura todas as feridas... embora não acreditasse nisso. E perguntava a si própria por que continuava a doer tanto. Enquanto Dane estivera vivo, realmente não pensara muito nele, a não ser quando estava em sua companhia, e depois de crescidos o tempo que passavam juntos fora limitado, já que suas profissões eram quase antagônicas. Mas a partida dele criara um vazio tão grande que ela não tinha esperanças de conseguir preenchê-lo algum dia.

O choque de precisar refrear-se no meio de uma reação espontânea — preciso lembrar-me de falar a Dane sobre isso, ele vai divertir-se à beça — era o que mais doía. E porque continuava a acontecer com tanta freqüência, prolongava o sofrimento. Se as circunstâncias que lhe haviam cercado a morte tivessem sido menos horripilantes, ela se teria recobrado mais depressa, mas os acontecimentos daqueles poucos dias, que se diriam tirados de um pesadelo, permaneciam vívidos. Ela sentia muitíssima falta do irmão; e seu espírito voltava sempre ao fato incrível de que Dane estava morto, de que Dane jamais voltaria.

Depois, havia a convicção de que ela não o ajudara o suficiente. Todo mundo menos ela parecia julgá-lo perfeito, imune às ansiedades que os outros homens conheciam, mas Justine sabia que ele fora torturado por dúvidas, que se atormentara com o seu desmerecimento, e se admirara de que as pessoas pudessem vê-lo além do rosto e do corpo. Pobre Dane, que nunca parecia compreender que os outros amavam a sua bondade. Doía-lhe lembrar-se de que agora era tarde demais para ajudá-lo.

Ela também sofria por sua mãe. Se a morte dele a deixara nesse estado, como não teria deixado sua mãe? Esse pensamento fazia-a querer fugir, gritando e chorando, da memória, da consciência. O quadro dos tios em Roma para a ordenação do sobrinho inflando os peitos orgulhosos como pombos. Isso era o pior de tudo, visualizar a vazia desolação de sua mãe e do resto do pessoal de Drogheda.

Seja franca, Justine. Era isso francamente o pior? Não havia algo muito mais perturbador? Ela não conseguia afastar o pensamento de Rain ou o que sentia como traição a Dane. A fim de satisfazer seus próprios desejos, mandara Dane sozinho para a Grécia, quando sua ida com ele talvez lhe significasse a vida. Não havia outra maneira de ver o fato. Dane morrera em virtude do seu egoísta interesse por Rain. Agora era tarde demais para trazer de volta o irmão, mas, se o fato de nunca mais tornar a ver Rain servisse, de certo modo, para fazê-la pagar a sua falta, a saudade e a solidão valeriam a pena.

Desse modo se passaram as semanas, depois os meses. Um ano, dois anos. Desdêmona, Ofélia, Pórcia, Cleópatra. Desde o princípio ela se orgulhara de proceder externamente como se nada tivesse acontecido para arrasar-lhe o mundo; tomava um cuidado todo especial no falar, no rir, no relacionar-se com as pessoas. Se mudança houvera, esta se notava no fato de ser ela agora mais bondosa do que outrora, pois os sofrimentos das pessoas tendiam a interessá-la como se fossem seus. De um modo geral, no entanto, ela era exteriormente a mesma Justine — irreverente, exuberante, impetuosa, desligada, amarga.

Por duas vezes tentou fazer uma visita a Drogheda e, na segunda, chegou a pagar a passagem de avião. Mas em ambas uma razão de última hora importantíssima a impediu de ir, embora ela soubesse que o verdadeiro motivo seria uma combinação de sentimento de culpa e covardia. Ela simplesmente não tinha coragem de enfrentar a mãe; fazê-lo significava trazer de novo à tona toda a triste história, talvez no meio de uma ruidosa tempestade de dor que, até então, conseguira evitar. O pessoal de Drogheda, sobretudo sua mãe, precisava continuar convencido de que Justine pelo menos estava bem, de que Justine sobrevivera relativamente incólume. Portanto, era melhor ficar longe de Drogheda. Muito melhor.

Meggie surpreendeu-se a suspirar, mas logo suprimiu o suspiro. Se os seus ossos não doessem tanto, poderia ter ensilhado um cavalo e montado, mas hoje só pensar nisso já lhe era doloroso. Outro dia qualquer, quando a artrite não fizesse sentir tão cruamente a sua presença.

Ouviu um carro, o bater da cabeça do veado de bronze na porta da frente, vozes que murmuravam, o jeito de falar de sua mãe. Não era Justine, portanto não tinha importância.

— Meggie — disse Fee da entrada da varanda —, temos visita. Quer fazer o favor de entrar?

A visita era um sujeito de aspecto distinto, mal estreado na meia-idade, embora pudesse ser mais moço do que aparentava. Muito diferente de qualquer outro homem que ela já vira, mas que possuía a mesma espécie de poder e de autoconfiança que Ralph costumara ter. Costumara ter. Pretérito mais-que-perfeito. Agora perfeitíssimo.

— Meggie, este é o Sr. Rainer Hartheim — disse Fee, em pé, ao lado da sua cadeira.

— Oh! — exclamou Meggie sem querer, muito surpreendida com a aparência do Rain que figurara tantas vezes nas cartas de Justine dos velhos tempos. Depois, lembrando-se dos seus modos. — Tenha a bondade de sentar-se, Sr. Hartheim.

Ele também a olhava, espantado.

— A senhora não é nada parecida com Justine! — observou, um tanto ou quanto estupidamente.

— Não, não sou.

Ela sentou-se diante dele.

— vou deixá-la a sós com o Sr. Hartheim, Meggie, pois ele diz que deseja vê-la em particular. Quando estiverem prontos para o chá, você pode tocar — rematou Fee, e afastou-se.

— O senhor é o amigo alemão de Justine, naturalmente — disse Meggie, sem saber o que dizer.

Ele tirou a cigarreira do bolso.

— A senhora se importa?

— Tenha a bondade.

— Aceita um cigarro, Sra. O’Neill?

— Muito obrigada. Não fumo. — Ela alisou o vestido. — O senhor está muito longe de casa, Sr. Hartheim. Tem negócios na Austrália?

Ele sorriu, perguntando a si mesmo o que diria ela se soubesse que ele, de fato, era o administrador de Drogheda. Mas não tencionava contar-lhe, pois preferia que toda a gente de Drogheda imaginasse que o seu bem-estar se encontrava nas mãos impessoais do cavalheiro que ele empregava para agir como seu intermediário.

— Por favor, Sra. O’Neill, meu nome é Rainer — disse ele, pronunciando-o como Justine o pronunciava, enquanto pensava com desagrado que aquela mulher levaria algum tempo para usá-lo espontaneamente; ela não era do tipo que se descontraía diante de estranhos. — Não, não tenho nenhum assunto oficial na Austrália, mas tive um bom motivo para vir. Eu queria vê-la.

— Ver-me? A mim? — perguntou ela, surpresa. Como se quisesse disfarçar uma súbita confusão, abordou um assunto mais seguro. — Meus irmãos falam sempre do senhor, que foi tão bom com eles quando estiveram em Roma para assistir à ordenação de Dane. — Ela pronunciou o nome de Dane sem sofrimento, como se o dissesse com freqüência. — Espero que possa ficar aqui alguns dias, para poder vê-los.

— Posso, Sra. O’Neill — respondeu ele com calma.

Para Meggie a entrevista revelava-se de repente difícil; ele era um estranho, anunciara que tinha percorrido quase vinte mil quilômetros para vê-la e não parecia ter pressa alguma de esclarecê-la acerca do porquê. Ela acabaria provavelmente gostanddo dele, mas achava-o um tanto intimidante. Era possível que esse gênero de homem nunca tivesse surgido dentro da sua esfera de ação, e era por isso que a presença dele a desequilibrava um pouco. Uma concepção muito nova de Justine entrou-lhe no espírito nesse momento: sua filha tinha realmente facilidade para relacionar-se com homens como Rainer Moerling Hartheim! Pensou afinal em Justine como numa igual.

Embora estivesse envelhecendo e tivesse o cabelo branco, ela era ainda muito bonita, ponderou ele enquanto ela o fitava com polidez; ainda o surpreendia o fato de não a achar nem um pouco parecida com a filha, ao passo que Dane se parecia tanto com o Cardeal. Como ela devia sentir-se terrivelmente só! Apesar disso, não sentia pena dela como de Justine; era evidente que ela chegara a um acordo consigo mesma.

— Como vai Justine? — perguntou Meggie. Rainer deu de ombros.

— Confesso que não sei. Não a vejo desde antes da morte de Dane. Ela não se mostrou espantada.

— Também não a vejo desde o enterro de Dane — disse, e suspirou. — Esperava que ela voltasse para casa, mas começa parecer que nunca virá.

Ele emitiu um ruído tranqüilizador que ela não pareceu ouvir, pois continuou falando, porém com voz diferente, mais para si do que para ele.

— Drogheda é como um lar para os velhos hoje em dia — disse ela. Precisamos de sangue jovem, e Justine é o único sangue jovem que restou.

A piedade desertou-o; ele inclinou-se, rápido, para a frente, com os olhos faiscantes.

— A senhora se refere a ela como se fosse um móvel de Drogheda — disse, com aspereza na voz. — Mas devo dizer, Sra. O’Neill, que ela não é nada disso!

— Que direito tem o senhor de julgar o que Justine é ou não é? — revidou ela com raiva. — Afinal de contas, o senhor mesmo disse que não a vê desde antes da morte de Dane, e isso faz mais de dois anos!

— Sim, tem razão. Faz mais de dois anos. — Ele falava com mais delicadeza, voltando a compreender como devia ser a vida dela. — A senhora suporta muito bem sua provação, Sra. O’Neill.

— Acha? — perguntou ela, lutando por sorrir, sem que seus olhos abandonassem os dele.

De repente, ele começou a compreender o que o Cardeal vira nela para amá-la tanto. Algo que Justine não tinha, mas ele tampouco era um Cardeal Ralph; procurava coisas diferentes.

— Sim, a senhora suporta muito bem a sua provação — repetiu ele. Ela captou na hora a insinuação e encolheu-se.

— Como sabe a respeito de Dane e Ralph? — perguntou, em tom inseguro.

— Um palpite. Não se preocupe, Sra. O’Neill, ninguém mais soube. Tive um palpite porque conheci o Cardeal muito antes de conhecer Dane. Em Roma todo mundo o supunha seu irmão, tio de Dane, mas Justine desfez esse equívoco no dia em que nos conhecemos.

— Justine? Justine, não! — gritou Meggie.

Ele estendeu o braço para segurar a mão dela, que batia freneticamente no joelho.

— Não, não, não, Sra. O’Neill! Justine não tem a menor idéia disso, e rogo a Deus que nunca a tenha! O seu lapso foi totalmente involuntário, acredite.

— Tem certeza?

— Tenho, juro.

— Então, em nome de Deus, por que é que ela não volta para casa? Por que não vem me ver? Por que se recusa a olhar para o meu rosto?

Não somente as palavras, mas também o sofrimento que percebia na voz dela lhe contaram o que atormentara a mãe de Justine no tocante à ausência da filha nos últimos dois anos. A importância da própria missão foi diminuindo aos poucos; agora tinha outra, uma nova missão, que era atenuar os temores de Meggie.

— A culpa é minha — disse com firmeza.

— Sua? — perguntou Meggie, atônita.

— Justine planejara ir à Grécia com Dane, e está convencida de que, se tivesse ido, ele ainda estaria vivo.

— Tolice! — disse Meggie.

— Eu sei. Mas embora nós saibamos que é tolice, Justine não sabe. Compete à senhora fazê-la enxergar.

— A mim? O senhor não compreende, Sr. Hartheim. Justine nunca me ouviu em toda a sua vida e, a esta altura dos acontecimentos, qualquer influência que eu possa ter tido desapareceu. Ela não quer nem olhar para o meu rosto.

O seu tom era de derrota, mas não de abjeção.

— Caí na mesma armadilha em que caiu minha mãe — prosseguiu ela em tom normal. — Drogheda é minha vida... a casa, os livros... Aqui sou necessária, minha existência tem um propósito. Aqui há pessoas que contam comigo. Meus filhos nunca contaram, o senhor entende? Nunca contaram.

— Isso não é verdade, Sra. O’Neill. Se fosse, Justine poderia voltar para casa, para junto da senhora, sem nenhuma dificuldade. A senhora subestima a qualidade do amor que sua filha lhe consagra. Quando digo que sou o culpado pelo que Justine está sofrendo, quero dizer que ela ficou em Londres por minha causa, para estar comigo. Mas é pela senhora que sofre, não por mim.

Meggie enrijeceu-se.

— Ela não tem o direito de sofrer por mim! Ela que sofra por si mesma, se quiser, mas não por mim. Nunca por mim.

— Então a senhora acredita no que digo quando lhe afianço que ela não tem a menor idéia do que havia entre Dane e o Cardeal?

Os modos dela modificaram-se, como se ele lhe tivesse recordado a existência de outras coisas em jogo, que ela estava perdendo inteiramente de vista.

— Sim — assentiu. — Acredito.

— Vim vê-la porque Justine precisa do seu auxílio e não consegue pedi-lo — anunciou ele. — A senhora precisa convencê-la de que ela tem de retomar as rédeas da sua vida... não da sua vida em Drogheda, mas de sua própria vida, sem nenhuma relação com Drogheda.

Ele recostou-se no espaldar da poltrona, cruzou as pernas e acendeu outro cigarro.

— Justine está se penitenciando, mas por todos os motivos errados. E se alguém pode fazê-la enxergar o seu erro, esse alguém é a senhora. Entretanto, advirto-a de que, se decidir fazê-lo, sua filha nunca voltará para casa, ao passo que, se continuar do jeito que vai, é possível que ela acabe voltando permanentemente para cá.

”O palco não é bastante para alguém como Justine — prosseguiu ele —, e está-se aproximando o dia em que ela o perceberá. Quando chegar esse dia, optará por pessoas... Optará por sua família e Drogheda ou optará por mim. — Rainer sorriu para Meggie com profunda compreensão. — Mas as pessoas também não são bastantes para Justine, Sra. O’Neill. Se Justine optar por mim, poderá ter o teatro também, e essa vantagem Drogheda não pode lhe oferecer. — Ele agora a encarava severamente como um adversário. — Vim lhe pedir que a faça optar por mim. Talvez lhe pareça uma crueldade dizê-lo, mas eu preciso muito mais dela do que a senhora poderia precisar.”

A dureza voltou à voz de Meggie.

— Drogheda não é uma alternativa tão má assim — contrariou ela. — O senhor fala como se a fazenda fosse o fim da vida dela, mas não é, e o senhor sabe disso. Ela poderia continuar no palco. Somos uma verdadeira comunidade. Ainda que casasse com Boy King, como o avô dele e eu esperamos durante anos que fizesse, os filhos dela seriam tão bem tratados em suas ausências quanto se ela casasse com o senhor. Este é o lar dela! Justine conhece e compreende este tipo de vida. Se a escolhesse, estaria por certo sabendo o que escolhia. Poderia o senhor dizer o mesmo da espécie de vida que lhe ofereceria?

— Não — redargüiu ele, fleumático. — Mas Justine adora surpresas. Em Drogheda ela se estagnaria.

— O que o senhor quer dizer é que ela seria infeliz aqui.

— Não, não exatamente. Não tenho dúvida de que, se ela optasse por voltar para cá e desposasse o tal Boy King... A propósito, quem é esse Boy King?

— O herdeiro de uma propriedade vizinha e um velho amigo de infância, que gostaria de ser mais que um amigo. O avô deseja o casamento por razões dinásticas; eu o desejo por achar que é disso que Justine precisa.

— Entendo. Pois bem, se ela voltasse para cá e casasse com BoyKing, aprenderia a ser feliz. Mas a felicidade é um estado relativo. Não creio que ela viesse sequer a conhecer a espécie de satisfação que encontraria ao meu lado. Porque, Sra. O’Neill, Justine me ama, não a Boy King.

— Nesse caso, ela tem um modo muito estranho de demonstrá-lo — disse Meggie, puxando o cordão da campainha para pedir o chá. — Além disso, Sr. Hartheim, como eu já disse, creio que o senhor superestimou minha influência sobre ela. Justine nunca tomou o menor conhecimento de qualquer coisa que eu tenha dito, e muito menos desejou me ouvir.

— A senhora não é tola — respondeu ele. — Sabe que poderá fazê-lo se o quiser. Não lhe posso pedir mais nada senão que pense no que eu lhe disse. E vá devagar. Não há pressa. Sou um homem paciente.

Meggie sorriu.

— Nesse caso, o senhor é uma raridade — disse ela.

Ele não voltou a tocar no assunto, nem ela. Durante a semana da sua estada, Rainer procedeu como qualquer outro hóspede, embora Meggie tivesse a impressão de que ele estava tentando mostrar-lhe a espécie de homem que era. Seus irmãos, evidentemente, gostavam muito dele; assim que a notícia da sua chegada alcançou os pastos, todos voltaram para casa e em casa ficaram até o dia em que ele partiu de volta para a Alemanha.

Fee também gostou dele; seus olhos se haviam deteriorado tanto que ela já não podia escriturar os livros, mas estava longe de ser senil. A Sra. Smith morrera em pleno sono durante o inverno anterior, já bem entrada em anos, e a infligir uma nova governanta a Minnie e Cat, ambas velhas mas ainda fortes e sadias, Fee preferira transferir a Meggie a escrituração dos livros e fazer ela mesma, mais ou menos, as vezes da Sra. Smith. Foi Fee quem compreendeu pela primeira vez que Rainer era um elo direto com a parte da vida de Dane que ninguém já tivera em Drogheda a oportunidade de partilhar, de modo que ela lhe pediu que falasse a respeito. Ele assentiu, satisfeito, tendo logo percebido que, em Drogheda, longe de opor-se a falar em Dane, todos sentiam grande prazer em ouvir novas histórias a seu respeito.

Por trás da máscara de polidez, Meggie não conseguia esquecer-se do que Rain lhe dissera, nem deixar de pensar nas alternativas que ele lhe oferecera. Fazia muito tempo que ela renunciara à esperança de ver Justine regressar, e ele agora quase lhe assegurara que ela voltaria e admitira ainda que Justine seria feliz se voltasse. Havia outro motivo também por que ela devia ser-lhe muito grata: ele exorcizara o fantasma do seu medo de que Justine, de um modo ou de outro, houvesse descoberto o elo entre Dane e Ralph.

Quanto ao casamento com Rain, Meggie não atinava com o que poderia fazer para obrigar Justine a ir aonde ela não quisesse ir. Ou será que ela não queria atinar? Meggie acabara gostando muito de Rain, mas a felicidade dele não poderia ter tanta importância para ela quanto o bem-estar da filha, do pessoal de Drogheda e da própria Drogheda. A pergunta crucial resumia-se no seguinte: até que ponto Rain era vital para a futura felicidade de Justine? A despeito da afirmação dele de que Justine o amava, Meggie não conseguia lembrar-se de ter ouvido da filha alguma indicação de que Rain tinha para ela a mesma espécie de importância que Ralph tivera para Meggie.

— Imagino que o senhor verá Justine mais cedo ou mais tarde — disse Meggie, ao conduzi-lo de automóvel ao aeroporto. — Quando o fizer, eu preferiria que não lhe falasse nesta sua visita a Drogheda.

— Como quiser — disse ele. — Eu só lhe pediria que pensasse no que eu disse e não se apressasse.

Mas até no momento de fazer o pedido, Rain não pôde deixar de sentir que Meggie colhera muito maiores benefícios da sua visita do que ele mesmo.

Quando chegou o meado de abril e fez dois anos e meio que Dane falecera, Justine experimentou um desejo incoercível de ver alguma coisa que não fossem fileiras de casas e multidões de gente carrancuda. De súbito, naquele belo dia de suave primavera e sol frio, a urbanidade de Londres lhe pareceu intolerável. Por isso mesmo, tomou um trem para Kew Garden, satisfeita porque o dia era uma terça-feira e o lugar seria quase que exclusivamente seu. E, como ela também não trabalharia naquela noite, pouco importava que se esfalfasse percorrendo os atalhos.

Era evidente que ela conhecia bem o parque. Londres representava uma alegria para qualquer pessoa de Drogheda, com suas massas de canteiros formais, mas Ke pertencia a uma classe única. Nos velhos tempos ela costumava freqüentá-lo de abril ao fim de outubro, pois cada mês oferecia uma diferente exposição floral.

Meados de abril era a sua época favorita, o período dos narcisos, azaléias e árvores floridas. Havia um lugar que, na sua opinião, podia reivindicar o título de uma das vistas mais bonitas do mundo, em escala pequena e íntima, de modo que ela se sentou no chão úmido, um público de uma pessoa só, a fim de apreciá-lo melhor. Até onde a vista alcançava se estendia um lençol de narcisos; a meia distância, a horda amarela e agitada de campânulas rodeava uma grande amendoeira em flor, com os galhos inclinados para o chão sob o peso das flores alvíssimas em arcos perfeitos e imóveis como os de uma pintura japonesa. Paz. Era tão difícil consegui-la!

E então, quando ela atirou a cabeça bem para trás a fim de memorizar a beleza absoluta da amendoeira carregada de flores no meio do seu ondulante mar de ouro, algo muito menos belo apareceu. Rainer Moerling Hartheim, abrindo caminho, com todo o cuidado, entre as moitas de narcisos, o seu vulto abrigado da brisa gelada pelo inevitável casaco de couro alemão, enquanto o sol lhe rebrilhava no cabelo cor de prata.

— Você acabará sentindo frio nos rins — disse ele, tirando o casaco e estendendo-o do avesso no chão para que os dois pudessem sentar-se nele.

— Como foi que me encontrou aqui? — perguntou ela, engatinhando à procura de um cantinho de cetim pardo.

— A Sra. Kelly me disse que você tinha vindo para Kew. O resto foi fácil. Limiteime a caminhar até encontrá-la.

— Você há de pensar, com certeza, que eu devia agora estar dançando e cantando de alegria ao seu redor.

— É assim que você pensa?

— O mesmo velho Rain, respondendo a uma pergunta com outra pergunta. Não, não tenho prazer nenhum em vê-lo. Pensei que eu havia conseguido enfiá-lo permanentemente no fundo de uma gaveta.

— É difícil conservar permanentemente um homem bom no fundo de uma gaveta. Você, como vai?

— Bem.

— Ainda não se cansou de lamber suas feridas?

— Não.

— Suponho que isso fosse de esperar. Mas comecei a compreender que, depois de me mandar embora, você nunca mais se rebaixaria a fazer o primeiro movimento para se reconciliar comigo. Ao passo que eu, herzchen, sou suficientemente esperto para saber que o orgulho é um triste companheiro de cama.

— Não comece a imaginar que pode expulsá-lo da cama a pontapés a fim de arranjar lugar para você, Rain. Ouça bem o que estou dizendo, não o quero nesse papel.

— Nem eu a quero nesse papel.

A presteza da resposta dele irritou-a, mas ela adotou um ar aliviado e perguntou:

— No duro?

— Se a quisesse, acha que eu teria suportado a sua ausência por tanto tempo? Nesse sentido, você foi para mim uma fantasia passageira, mas ainda penso em você como numa querida amiga, e sinto falta de você como de uma querida amiga.

— Oh, Rain, eu também!

— Isso é bom. Estou admitido como amigo, então?

— É claro que sim.

Ele deitou-se sobre o casaco e pôs os braços atrás da cabeça, sorrindo preguiçosamente para ela.

— Quantos anos você tem? Trinta? Nessas roupas vergonhosas parece mais uma menina raquítica. Se não precisa de mim em sua vida por nenhuma outra razão, Justine, sem dúvida precisa como árbitro pessoal de elegância.

Ela riu.

— Reconheço que, quando o imaginava capaz de sair de repente do meio do mato, eu me interessava mais pela minha aparência. Mas, se tenho trinta anos, você também não é nenhum brotinho primaveril. Deve ter pelo menos quarenta. E a diferença já não parece tão grande assim, não é verdade? Você emagreceu. Tem passado bem, Rain?

— Nunca fui gordo, só grande, de modo que essa história de ficar sentado o tempo todo atrás de uma escrivaninha acabou por me encolher, em vez de espandir.

Escorregando e deitando-se de bruços, ela colocou o rosto perto do dele, sorrindo.

— Oh, Rain, é tão bom vê-lo! Até parece que você valoriza o meu dinheiro.

— Pobre Justine! E dinheiro é o que não lhe tem faltado ultimamente, não é mesmo?

— Dinheiro? — Ela fez que sim com a cabeça. — É estranho que o Cardeal tivesse deixado tudo para mim. Ou melhor, metade para mim e metade para Dane, mas é claro que sou a única herdeira de Dane. — O rosto dela contraiu-se. Virou a cabeça e fingiu olhar para um narciso perdido num mar de narcisos até poder controlar novamente a voz. — Sabe, Rain, eu daria tudo para descobrir o que o Cardeal representava para a minha família. Um amigo, e só? Mais do que isso, de algum modo misterioso. Mas, precisamente o quê, não sei. E gostaria de saber.

— Não, não gostaria. — Ele pôs-se em pé e estendeu a mão. — Venha, herzchen, eu lhe pagarei um jantar onde quer que você imagine haver olhos capazes de ver que a desavença entre a atriz australiana de cabelo cor de cenoura e certo membro do gabinete alemão deixou de existir. Minha reputação de playboy se deteriorou depois que você me mandou embora.

— Você precisa prestar mais atenção, meu amigo. Já não me chamam de atriz australiana de cabelo cor de cenoura... atualmente sou a exuberante e magnífica atriz britânica de cabelo ticianesco, graças à minha imortal interpretação de Cleópatra. Não me diga que você não sabe que, para os críticos, passei a ser a mais exótica Cléo surgida nos últimos anos?

Ela ergueu os braços e as mãos na postura de um hieróglifo egípcio.

Os olhos dele faiscaram.

— Exótica? — perguntou, em tom de dúvida.

— Exótica — repetiu ela, com firmeza.

O Cardeal Vittorio falecera, de modo que Rain já não ia a Roma com tanta freqüência. A princípio, encantada, Justine não via mais que a amizade que ele lhe oferecia, mas, à maneira que passavam os meses e ele não aludia, nem por palavra nem por olhar, ao relacionamento anterior, sua indignação converteu-se em algo mais perturbador. Não que ela desejasse reatar o outro relacionamento, dizia constantemente a si mesma; acabara de uma vez por todas com aquele tipo de coisas, já não precisava delas nem as desejava. Tampouco permitia que o seu espírito acariciasse uma imagem tão bem sepultada de Rain que só lhe acudia à mente em sonhos traiçoeiros.

Os primeiros meses depois da morte de Dane tinham sido terríveis, quando ela resistira aos anseios de procurar Rain, sentindo-o junto de si em corpo e alma e sabendo perfeitamente que ele ali estaria se ela o deixasse. Mas não podia permiti-lo agora que o rosto dele era obscurecido pelo de Dane. Devia mandá-lo embora, sim, devia lutar para eliminar as últimas brasas de desejo por ele. E, à proporção que fluía o tempo e tudo indicava que ele ficaria permanentemente fora da vida dela, seu corpo se acomodara num torpor não despertado e sua mente se disciplinara para esquecer.

Mas, agora que Rain voltara, estava ficando muito mais difícil. Ela ansiava por perguntar-lhe se ele se lembrava daquele outro relacionamento — como poderia tê-lo esquecido? Quanto a si, acabara de vez com essas coisas, mas teria gostado de saber que ele não acabara; isto é, contanto que essas coisas, naturalmente, para ele se chamassem Justine e apenas Justine.

Planos fantásticos e impraticáveis. Rain não tinha o aspecto de um homem que estivesse definhando em razão de um amor não correspondido, mental ou físico, e nunca manifestava o menor desejo de reabrir aquela fase da vida de ambos. Queria-a como amiga, gozava da sua companhia como amigo. Excelente! Era também o que ela queria. Só que... poderia ele ter esquecido? Não, não era possível, mas que Deus o castigasse se ele esquecera!

Na noite em que os processos mentais de Justine chegaram a esse ponto, sua interpretação do papel de Lady Macbeth assumiu uma agressividade de todo alheia ao desempenho costumeiro. Ela não dormiu muito bem depois disso, e a manhã seguinte lhe trouxe uma carta de sua mãe que a encheu de vaga inquietação.

Meggie já não escrevia sempre, sintoma da longa separação que afetava as duas, e as cartas lhe chegavam demasiado formais, anêmicas. Esta, contudo, era diferente, continha um distante sussurro de velhice, um cansaço subjacente que fazia surgir uma ou duas palavras acima das futilidades superficiais, como um iceberg. Justine não gostou. Velha. Mamãe, velha!

O que estava acontecendo em Drogheda? Estaria sua mãe tentando esconder alguma dificuldade séria? Estaria sua avó doente? Ou um dos tios? Ou, Deus nos livre, a própria mãe? Fazia três anos que não via nenhum deles, e muita coisa poderia acontecer em três anos, ainda que não estivesse acontecendo a Justine O’Neill. Porque sua vida era estagnada e monótona, não devia presumir que a vida de todo mundo o fosse também.

Aquela era a noite de ”folga” de Justine, e só lhe faltava mais um espetáculo de Macbeth para representar. As horas do dia se haviam arrastado insuportavelmente, e nem mesmo a idéia do jantar em companhia de Rain encerrava o costumeiro prazer antecipado. A amizade deles era inútil, fútil, estática, disse a si mesma, enquanto se enfiava a custo num vestido cor de laranja, do tom que ele mais abominava. Velho quadrado e conservador! Se Rain não a apreciava tal e qual ela era, que fosse tomar banho. Em seguida, afofando os rufos do corpete baixo em torno do colo magro, surpreendeu os próprios olhos no espelho e soltou uma risada triste. Uma tempestade em copo d’água! Ela estava agindo exatamente como o tipo de mulher que mais desprezava. Era tudo, com certeza, muito simples. Sentia-se esgotada, necessitava de um descanso. Graças a Deus, Lady M estava no fim! Mas que acontecera a sua mãe?

Ultimamente, Rain passava um tempo cada vez maior em Londres, e Justine admirava-se da facilidade com que ele vinha entre Bonn e a Inglaterra. Não havia dúvida de que a posse de um avião particular ajudava, mas aquilo devia ser exaustivo.

— Por que você vem me visitar com tanta freqüência? — perguntou ela de supetão. — Todo colunista social da Europa acha que é formidável, mas confesso que, às vezes, eu me pergunto se você não me usa como desculpa para visitar Londres.

— É verdade que a uso como cortina de fumaça de vez em quando — admitiu ele calmamente. — Na verdade, você tem servido de fumaça muitas vezes para certos olhos. Mas, para mim, não é nenhum sacrifício estar com você, porque gosto de estar com você. — Os olhos escuros dele demoraram-se, pensativos, no exame do rosto dela. — Você está muito quieta esta noite, herzchen. Alguma coisa a preocupa?

— Não, a bem dizer, não. — Ela brincou com a sobremesa e depois empurrou-a para um lado, sem comê-la. — Pelo menos, só uma coisinha à-toa. Mamãe e eu já não nos escrevemos todas as semanas... Faz tanto tempo que não nos vemos que há pouca coisa para contar uma à outra... mas hoje recebi uma carta muito estranha, que nada tem de típica.

Confrangeu-se-lhe o coração; Meggie, de fato, devia ter pensado com calma no assunto, mas o instinto lhe dizia que aquele era o começo do seu movimento, e que esse movimento não lhe era favorável. Ela estava começando o seu jogo para ter a filha de volta a Drogheda, e perpetuar a dinastia.

Estendeu o braço por sobre a mesa a fim de pegar na mão de Justine; a maturidade deixava-a mais bonita, pensou, apesar do vestido horroroso. Minúsculas rugas principiavam a dar-lhe ao rosto de moleque dignidade, de que ela muito precisava, e personalidade, que a pessoa por trás do rosto sempre possuíra em enormes quantidades. Mas até onde chegava essa maturidade superficial? Era isso que atrapalhava Justine; ela não queria nem mesmo olhar.

— Herzchen, sua mãe está sozinha — disse ele, queimando todos os seus navios. Se nisso se resumia o desejo de Meggie, como podia ele continuar a julgar-se certo e a ela errada? Justine era sua filha; ela devia conhecê-la muito melhor do que ele.

— Sim, talvez — concordou Justine, franzindo o cenho —, mas não posso deixar de sentir que há algo mais no fundo de tudo. Quero dizer, deve fazer anos que ela está sozinha, e por que agora esse repentino sei lá o quê? Não consigo atinar com a causa, Rain, e talvez seja isso o que mais me preocupa.

— Ela está envelhecendo, e me parece que você tende a se esquecer disso, é muito possível que a estejam perturbando coisas que ela enfrentava com mais facilidade no passado. — Seus olhos, de repente, pareceram remotos, como se o cérebro atrás deles lutasse por concentrar-se em algo que divergia do que ele estava dizendo. — Há três anos, Justine, ela perdeu o único filho. Você acha que a dor diminui à proporção que o tempo vai passando? Eu acho que piora. Ele se foi, e ela deve sentir agora que você se foi também. Afinal de contas, você nem voltou a Drogheda para visitá-la.

Ela cerrou os olhos.

— Eu irei, Rain, eu irei! Juro que irei, e logo! Você tem razão, é claro, mas isso você sempre tem. Nunca imaginei que eu viesse a sentir falta de Drogheda mas, nestes últimos tempos, parece que se está desenvolvendo em mim uma afeição pela fazenda. Como se eu fizesse parte dela, ora essa!

Ele consultou o relógio e sorriu com expressão pesarosa.

— Receio muito que esta noite seja uma das ocasiões em que a utilizei, herzchen. Detesto lhe pedir que volte sozinha para casa, mas, em menos de uma hora, deverei me encontrar com alguns cavalheiros importantíssimos, num lugar secretíssimo; terei de ir à reunião em meu próprio carro, conduzido pelo seguríssimo Fritz.

— História de capa e espada! — disse ela alegremente, escondendo a mágoa. — Agora sei o porquê desses táxis repentinos. Eu serei confiada a um chofer de táxi, mas o futuro do Mercado Comum não pode sê-lo, não é assim? Pois bem, só para mostrar que não preciso de um táxi nem do seu seguríssimo Fritz, voltarei para casa de metrô. Ainda é cedo. — Os dedos dele jaziam frouxos entre os dela; ela ergueu a mão dele, encostou-a no rosto e beijou-a. — Oh, Rain, não sei o que eu faria sem você!

Ele pôs a mão no bolso, levantou-se, deu a volta à mesa e puxou-lhe a cadeira com a outra mão.

— Sou seu amigo — disse ele. — Para isso servem os amigos, e não para ser poupados.

Mas, depois que se separou dele, Justine voltou para casa imersa em profunda reflexão, que logo se transformou em depressão. Aquela fora a noite em que ele mais se aproximara de uma espécie qualquer de discussão pessoal, cuja essência era a seguinte: sua mãe estava terrivelmente só, envelhecendo, e ela devia voltar para casa. Fazer uma visita, dissera ele; Justine, no entanto, não podia deixar de perguntar a si mesma se ele não insinuara uma volta definitiva. O que indicava que, fosse ele qual fosse, o sentimento que Rainer tivera por ela no passado pertencia ao passado e ele não tinha desejo algum de ressuscitá-lo.

Nunca lhe ocorrera até então indagar se ele não a consideraria um estorvo, uma parte do seu passado que gostaria de ver enterrada em decente obscuridade, em algum lugar como Drogheda; era bem possível. Nesse caso, porém, por que havia reaparecido em sua vida nove meses antes? Por pena dela? Por achar que tinha uma espécie de dívida para com ela? Por entender que ela estava precisando de um empurrãozinho a fim de voltar para junto da mãe, por amor de Dane? Ele gostaria muito de Dane, e quem sabe lá o que haviam conversado nas longas visitas a Roma em que ela não estivera presente? Podia ser que Dane lhe tivesse pedido que a vigiasse, e era isso o que ele estava fazendo. Esperara um prazo decente para certificar-se de que ela não lhe bateria com a porta na cara, depois tornara a entrar na vida dela para cumprir alguma promessa que fizera a Dane. Sim, era essa, provavelmente, a resposta. Ele, com certeza, já não a amava. Fosse ela qual fosse, a atração que exercera outrora sobre ele devia ter morrido há muito tempo; afinal de contas, tratara-o de maneira abominável. A culpa era toda sua.

Na esteira desse pensamento, chorou todas as lágrimas que tinha; depois, conseguindo dominar-se o suficiente para dizer a si mesma que não fosse tão estúpida, deu voltas na cama e espancou o travesseiro na tentativa frustrada de conciliar o sono; por fim, deixou-se ficar, derrotada, tentando ler uma peça. Após algumas páginas, as palavras começaram a se turvar e confundir umas com as outras e, por mais que ela tentasse aplicar o velho truque de enfiar o desespero em algum canto dos fundos da mente, ele acabou por subjugá-la. Afinal, quando a claridade baça de uma tardia aurora londrina se coou pelas janelas, sentou-se à sua mesa, sentindo o frio, ouvindo o resmungo distante do tráfego, cheirando o desalento, provando o azedume. De súbito, a idéia de Drogheda lhe pareceu maravilhosa. O suave ar puro, o silêncio quebrado naturalmente. Paz.

Tomou de uma das canetas pretas de pena com ponta de feltro e começou a escrever uma carta para a mãe, deixando que as lágrimas lhe secassem enquanto escrevia.

Espero que compreenda por que não voltei para casa desde que Dane morreu (disse ela), mas, seja o que for que você pense a esse respeito, sei que ficará contente ao saber que retificarei minha omissão de forma permanente.

Sim, é isso mesmo. Estou voltando definitivamente para casa, mamãe. Você tinha razão — chegou o momento em que anseio por Drogheda. Fiz minha ”fezinha” e descobri que ela não significa nada para mim. O que é que eu posso esperar disso, arrastando-me à volta de um palco pelo resto da vida? E que mais há aqui para mim além do palco? Quero algo seguro, permanente, duradouro, de modo que estou voltando para Drogheda, que é tudo isso. Chega de sonhos vazios. Quem sabe? Eu talvez case com Boy King, se ele ainda me quiser, e farei enfim de minha vida alguma coisa que valha a pena, como ter uma tribo de homenzinhos das planícies do Noroeste. Estou cansada, mamãe, tão cansada que nem sei o que digo, e gostaria de ter o poder de escrever o que sinto.

Bem, lutarei com isso em outra ocasião. Lady Macbeth acabou-se e eu ainda não havia decidido o que fazer na próxima temporada, de modo que não atrapalharei ninguém decidindo parar de representar. Londres está fervilhando de atrizes. Clyde poderá me substituir adequadamente em dois segundos, mas você não pode, pode? Sinto muito ter levado trinta e um anos para compreendê-lo.

Se Rain não me tivesse ajudado, talvez houvesse levado mais tempo ainda, mas ele é um sujeito muito perspicaz. Nunca a viu e, no entanto, parece compreendê-la melhor do que eu. Dizem, aliás, que o espectador vê melhor o jogo do que os participantes. Isto, sem dúvida, é verdadeiro em relação a ele. Não o tolero mais, pois vive supervisionando minha vida das suas alturas olímpicas. Ele parece imaginar que tem uma espécie de dívida para com Dane, ou lhe fez alguma promessa, sei lá! O certo é que está sempre me chateando, e aparece de repente, a toda hora, para me ver; só que acabei compreendendo que a chateação sou eu. Se eu estiver segura em Drogheda, a dívida, ou promessa, ou seja lá o que for, estará cancelada, não é assim? E, de qualquer maneira, ele deverá me agradecer as viagens de avião que lhe pouparei.

Assim que eu me tiver organizado tornarei a escrever e lhe direi quando deverá me esperar. Por ora, não se esqueça de que, à minha estranha maneira, eu a amo.

Assinou o nome sem o floreio habitual, mais como a ” Justine” que costumava aparecer no fim das cartas obedientes, escritas do internato, sob o olhar de águia de uma freira censora. Depois dobrou as folhas, enfiou-as num envelope de carta aérea e escreveu nele o endereço. A caminho do teatro para o último espetáculo de Macbeth, colocou-a no correio.

Prosseguiu diretamente com seus planos para deixar a Inglaterra. Clyde, transtornadíssimo, teve uma crise de nervos tão violenta que o deixou todo trêmulo; depois, da noite para o dia, mudou completamente de atitude e cedeu com rabugenta boa vontade. Não lhe foi difícil transferir a locação do apartamento, pois este pertencia a uma categoria muito procurada; com efeito, depois que a notícia se espalhou, pessoas telefonavam de cinco em cinco minutos, até que ela desligou o aparelho. A Sra. Kelly, que se encarregara da limpeza do apartamento desde os dias distantes de sua chegada a Londres, trabalhava incansável e pesarosa no meio de uma selva de aparas e caixotes de madeira, lamentando o seu destino e recolocando sub-repticiamente o fone no gancho, na esperança de que alguém com o poder de persuadir Justine a mudar de idéia se lembrasse de telefonar.

No meio da confusão, alguém que tinha esse poder telefonou, só que não o fez para persuadi-la a mudar de idéia; Rain não sabia sequer que ela estava de malas prontas. Queria apenas pedir-lhe que fizesse as vezes de anfitriã num jantar que ele ia oferecer em sua casa de Park Lane.

— Que história é essa de casa em Park Lane? — gritou Justine, espantada.

— Bem, com a crescente participação britânica na Comunidade Econômica Européia, estou passando tanto têmpo na Inglaterra que se tornou mais prático para mim ter uma espécie de pied-à-terre local, de modo que aluguei uma casa em Park Lane — explicou ele.

— Puxa vida, Rain! Você é um safado fingido e desgraçado! Há quanto tempo tem a casa?

— Há cerca de um mês.

— E me deixou quebrar a cabeça diante daquela charada idiota sem me dizer nada? Cachorro!

Ela estava tão zangada que não conseguia falar direito.

— Eu ia lhe contar, mas achei tão divertido você pensar que eu estava sempre voando, que não pude resistir à tentação de fingir por mais algum tempo — disse ele, com voz de riso.

— Eu seria capaz de matá-lo! — rosnou ela entre dentes, piscando os olhos para afugentar as lagrimas.

— Não, herzchen, por favor, não se zangue! Seja minha anfitriã, e poderá inspecionar a casa e suas dependências inteiramente à vontade

— Convenientemente acompanhada por cinco milhões de outros convidados, é claro! Rain, será que você tem tão pouca confiança em si que não se arrisca a ficar sozinho comigo’ Ou será em mim que não confia?

— Você não será uma convidada — disse ele respondendo à primeira parte da tirada dela — Será minha anfitriã, o que é muito diferente. Está disposta?

Ela enxugou as lágrimas com o dorso da mão e disse, ríspida

— Estou.

O jantar revelou-se mais agradável do que ela se atrevera a esperar, pois a casa de Rain era magnífica e ele se achava tão bem-humorado que a acabou contagiando com o seu bom humor. Ela chegou bem-vestida, embora um tanto vistosa demais para o gosto dele, mas, depois de uma careta involuntária à primeira vista do cetim rosa shocking das sandálias, ele enfiou o braço dela no seu e deram ambos uma volta pela casa antes da chegada dos convidados. Depois, durante a noite, ele se saiu tão bem, tratando-a diante dos outros com uma intimidade tão espontânea, que a fez sentir-se, ao mesmo tempo, útil e desejada. A importância política dos convidados era tamanha que o cérebro dela nem quis pensar na espécie de decisões que eles teriam de tomar. Além disso, pessoas tão comuns Isso ainda piorava as coisas.

— Eu não me incomodaria tanto, se pelo menos um deles houvesse manifestado sintomas da Síndrome do Eleito dos Deuses — disse-lhe ela depois que todos se foram, contente com a oportunidade de ficar a sós com ele e imaginando o tempo que ele levaria para mandá-la embora. — Você sabe, como Napoleão ou Churchill. Há muita coisa para se dizer sobre alguém convencido de que é um predestinado, quando se trata de um estadista. Você se considera um predestinado?

Ele encolheu-se.

— Você devia escolher melhor suas perguntas quando as está fazendo a um alemão, Justine. Não, não me considero, e não é bom que os políticos se considerem predestinados. Isso talvez dê certo para alguns, embora eu duvide, mas, na maioria das vezes, eles causam a si mesmos e a seus países dificuldades intermináveis.

Ela não tinha vontade de esgotar o tema. Aquele servira ao seu propósito de inaugurar certa linha de conversa, ser-lhe-ia fácil mudar de assunto sem parecer demasiado óbvia.

— As esposas formavam um grupo bem heterogêneo, não formavam? — perguntou ela com naturalidade — A maioria estava bem menos apresentável do que eu, mesmo que você não aprove o rosa shockmg. A Sra Fulano não estava tão mal assim, mas a Sra. Sicrano simplesmente desaparecia diante do papel de parede que combinava com o estampado do seu vestido, e a Sra. Beltrano era abominável. Como é que o marido consegue viver com ela? Os homens são tão tolos na hora de escolher as esposas!

— Justine! Quando aprenderá a se lembrar de nomes? Ainda bem que você não quis saber de mim, pois me teria saído uma bela esposa de político. Eu a ouvi engrolando as palavras quando não conseguia se lembrar de quem eram eles. Muitos com esposas abomináveis triunfaram, ao passo que outros, com esposas perfeitas, fracassaram. A longo prazo, isso não tem importância, porque é o calibre do homem que se põe à prova. Poucos homens casam por motivos meramente políticos.

A velha capacidade de colocá-la no devido lugar ainda conseguia chocá-la; ela fez-lhe um arremedo de salamaleque para esconder o rosto e sentou-se no tapete.

— Ora, levante-se, Justine!

Em vez de levantar-se, ela dobrou os pés desafiadoramente debaixo do corpo e encostou-se na parede de um lado da lareira, acariciando Natasha. Descobrira ao chegar que, após a morte do Cardeal Vittorio, Rain ficara com a gata; parecia-lhe muito afeiçoado, se bem que ela fosse velha e maníaca.

— Já lhe contei que vou de vez para Drogheda? — perguntou ela de repente. Ele estava tirando um cigarro da cigarreira; as manoplas não hesitaram nem tremeram, mas levaram suavemente a cabo sua tarefa.

— Você sabe muito bem que não me contou — disse ele.

— Então, estou-lhe contando agora.

— Quando chegou a essa decisão?

— Há cinco dias. Espero embarcar no fim da semana. Já não é sem tempo.

— Entendo.

— É só o que você tem para dizer a respeito?

— Que mais resta para dizer, se não lhe desejar felicidades em tudo o que fizer? Ele falou com tão perfeita compostura que ela estremeceu.

— Ora, essa! Muito obrigada! —-disse, displicente. — Você não se alegra por saber que nunca mais o atrapalharei?

— Você não me atrapalha, Justine — respondeu ele.

Ela abandonou Natasha, pegou no atiçador e pôs-se a empurrar, com certa agressividade, os troncos que se haviam queimado até transformar-se em cascas ocas e que desmoronavam para dentro da lareira, numa breve comoção de fagulhas. O calor do fogo diminuiu de súbito.

— Deve ser o demônio da destruição que existe em nós, o impulso para cutucar as vísceras do fogo. Isso apenas apressa o fim. Mas que belo fim, não é mesmo, Rain?

Aparentemente, ele não estava interessado no que acontece aos fogos cutucados, pois limitou-se a perguntar:

— No fim da semana, é? Pelo visto, você não está perdendo muito tempo.

— De que adianta esperar?

— E sua carreira?

— Estou farta da minha carreira. De qualquer modo, depois de Lady Macbeth, o que é que há para fazer?

— Ora, cresça, Justine! Sinto vontade de sacudi-la quando você me sai com essas bobagens de menina que se julga onisciente! Por que não dizer simplesmente que você já não tem certeza de que o teatro ainda pode estimulá-la, e que está com saudades de casa?

— Está bem, está bem, está bem! Como quiser! Eu estava apenas sendo petulante, como sempre. Sinto muito se o ofendi! — Ela pôs-se em pé num salto. — Diabo, onde estão meus sapatos? Que aconteceu com meu casaco?

Fritz apareceu com as duas peças de vestuário, e levou-a para casa. Rain desculpou-se por não a acompanhar, dizendo que tinha coisas para fazer, mas, quando ela partiu, estava sentado ao pé do fogo recém-renovado, com Natasha no colo, e parecendo tudo, menos ocupado.

— Bem — disse Meggie a sua mãe —, espero que tenhamos feito o que devíamos. Fee olhou com atenção para ela e acenou com a cabeça.

— Estou certa de que sim. Sendo Justine incapaz de tomar uma decisão como esta, não nos resta outra saída. Temos de tomá-la por ela.

— Não sei se me agrada brincar de Deus. Acho que conheço suas verdadeiras intenções, mas, ainda que eu pudesse dizer isso na cara dela, tenho a certeza de que ela mentiria.

— O orgulho dos Clearys — observou Fee, com um leve sorriso. — Aflora nas pessoas em que menos se espera.

— Pois sim! Nem tudo é o orgulho dos Clearys! Sempre me pareceu que havia nisso também uma pitadinha de Armstrong.

Fee sacudiu a cabeça.

— Não. No que quer que eu tenha feito, a participação do orgulho foi mínima. Essa é a finalidade da velhice, Meggie. Dar-nos um espaço para respirar antes de morrermos, de modo que possamos ver por que fizemos o que fizemos.

— Contanto que a senilidade não nos incapacite antes — disse Meggie, seca. — Embora você não corra esse risco. Nem eu, suponho.

— A senilidade talvez seja uma bênção concedida aos que não têm força para enfrentar uma retrospectiva. De qualquer maneira, você ainda não viveu o bastante para dizer que a evitou. Espere mais vinte anos.

— Mais vinte anos! — repetiu Meggie, esmorecendo. — Isso parece tão comprido!

— Bem, você poderia ter tornado esses vinte anos menos solitário, não poderia? — perguntou Fee, tricotando com diligência.

— Sim, poderia. Mas não teria valido a pena, mamãe. Teria? — Ela bateu na carta de Justine com o fundo de uma velha agulha de tricô. Havia um levíssimo vestígio de dúvida em seu tom. — Já vibrei demais. Aqui sentada desde que Rainer apareceu, esperando não precisar fazer coisa alguma, esperando que não me coubesse tomar a decisão. No entanto, ele tinha razão. No fim, foi a mim que coube decidir.

— Você poderia reconhecer que também fiz a minha parte — protestou Fee, ofendida. — Isto é, depois que renunciou ao seu orgulho e me contou tudo.

— Sim, você ajudou — assentiu Meggie, gentil.

O velho relógio tiquetaqueava; os dois pares de mãos continuavam a agitar-se em torno das hastes de tartaruga das suas agulhas.

— Diga-me uma coisa, mamãe — começou Meggie, de repente. — Por que foi que você sucumbiu à morte de Dane, mas não sucumbiu à de papai e de Stu e à desgraça de Frank?

— Sucumbir? — As mãos de Fee se detiveram, pousando as agulhas: ela ainda tricotava tão bem quanto nos dias em que enxergava perfeitamente. — O que você quer dizer com ”sucumbir”?

— Como se essas coisas a tivessem matado.

— Todas me mataram, Meggie. Mas eu era mais moça quando aconteceram as três primeiras, de modo que tive energia suficiente para escondê-lo melhor. E mais razões, também. Como você, agora. Mas Ralph soube o que senti quando seu pai e Stu morreram. Você era muito pequena para notar. — Ela sorriu. — Eu adorava Ralph, você sabe. Ele era... alguém muito especial. Muitíssimo parecido com Dane.

— Era, sim. Nunca me passou pela cabeça que você tivesse percebido isso, mamãe... quero dizer, a natureza dos dois. Engraçado. Você é uma África Nigérrima para mim. Há tantas coisas a seu respeito que ignoro!

— Ainda bem! — disse Fee com um frouxo de riso. Suas mãos permaneceram quietas. — Voltando ao assunto original, se você pode fazer isso agora por Justine, Meggie, eu diria que lucrou mais com suas dificuldades do que eu com as minhas. Eu não queria fazer o que Ralph me pediu e olhar por você. Queria minhas lembranças... só minhas lembranças. Ao passo que você não tem escolha. Você só tem lembranças.

— Elas são um consolo, depois que a dor se acalma. Você não acha? Tive vinte e seis anos inteiros de Dane, e aprendi a dizer a mim mesma que o que aconteceu deve ter sido o melhor, que com certeza lhe foi poupada uma provação horrorosa, que ele talvez não tivesse forças suficientes para suportar. Como o de Frank, talvez, embora diferente. Há coisas piores do que morrer, e nós duas sabemos disso.

— Não lhe ficou nenhuma amargura? — perguntou Fee.

— A princípio, sim, muita. Mas por amor deles eu mesma aprendi a afugentá-la. Fee voltou ao tricô.

— Isso quer dizer que, quando nos formos, não haverá mais ninguém — disse, suavemente. — Não haverá mais Drogheda. Oh, sim, você ganhará uma linha nos livros de história, e algum rapaz zeloso virá a Gilly a fim de entrevistar alguém que porventura se lembre, para o livro que tenciona escrever sobre Drogheda. A última das grandes fazendas da Nova Gales do Sul. Mas nenhum dos leitores saberá jamais como era ela na realidade, porque não poderá saber. Precisaria ter feito parte dela.

— Sim — disse Meggie, que não parara de tricotar. — Eles precisariam ter feito parte dela.

Dizer adeus a Rain numa carta, arrasada pela dor e pelo choque, fora fácil; na realidade, fora até cruelmente agradável, pois ela então retribuíra as vergastadas — estou sofrendo, sofra você também. Desta vez, porém, Rain não se colocara em posição de receber uma carta que começasse com o clássico Querido João... Teria de ser um jantar no restaurante favorito deles. Ele não sugerira a casa de Park Lane, o que a decepcionou, mas não surpreendeu. Pretendia, sem dúvida, dizer até o último adeus sob o olhar benigno de Fritz. O certo é que ele não se arriscava.

Pela primeira vez na vida, ela diligenciou agradar-lhe com sua aparência; o diabrete que costumava induzi-la a enfeitar-se com babados cor de laranja parecia ter-se retirado xingando. Como Rain apreciava estilos despojados, enfiou um longo de seda vermelho-borgonha opaco, fechado até o pescoço, com mangas compridas e apertadas. Acrescentou-lhe um grande colar chato de ouro tachonado de granadas e pérolas e, em cada pulso, braceletes que combinavam com o colar. Que cabelo horrível, horrível! Nunca estava suficientemente disciplinado para agradar a ele. Mais maquilagem do que a normal, para disfarçar as provas da fossa. Pronto. Daria certo, se ele não olhasse com muita atenção.

Ele não pareceu fazê-lo; pelo menos não teceu comentários sobre cansaço nem sobre uma possível doença, nem sequer aludiu às exigências dos preparativos de viagem. O que, aliás, estava em completo desacordo com o Rainer que ela conhecia. Passado algum tempo, ela começou a experimentar a sensação de que o mundo devia estar acabando, tão diferente se mostrava ele da sua personalidade habitual.

Ele não queria ajudá-la a fazer do jantar um sucesso, ao qual poderiam referir-se mais tarde em cartas com prazer e divertimento reminiscentes. Se ela ao menos pudesse persuadir-se de que ele estava apenas perturbado pela partida dela, tudo poderia ter corrido bem. Mas ela não podia. O estado de espírito de Rainer não era desse tipo. Ele se mostrava tão distante que ela teve a impressão de estar sentada ao lado de uma efígie

de papel, unidimensional e ansiosa por sair voando, impelida pela brisa, para longe de sua esfera de ação. Como se ele já lhe tivesse dito adeus e esse encontro fosse supérfluo.

— Você recebeu carta de sua mãe? — perguntou ele, polido.

— Não, mas também não espero receber nenhuma. O mais provável é que ela ande em falta de palavras.

— Gostaria que Fritz a levasse ao aeroporto amanhã?

— Obrigada, posso apanhar um táxi — retrucou ela, antipática. — Não quero privá-lo dos serviços dele.

— Tenho reuniões o dia inteiro. Posso lhe assegurar, portanto, que isso não me atrapalhará de maneira alguma.

— Eu disse que tomarei um táxi. Ele ergueu as sobrancelhas.

— Não há necessidade de gritar, Justine. O que você quiser, estará bem para mim. Ele já não lhe chamava herzchen; ultimamente, ela notara que a freqüência da velha palavra carinhosa começara a declinar e, naquela noite, ele não a empregara nem uma vez. Oh, que jantar melancólico e deprimente aquele! Tomara que acabe logo! Justine surpreendeu-se a olhar para as mãos dele enquanto tentava lembrar-se da sensação que produzia o toque delas. Em vão. Por que a vida não era clara e bem organizada? Por que coisas como Dane tinham de acontecer? Talvez por haver pensado em Dane, seu humor caiu de repente a um ponto em que já não podia permanecer sentada, quieta, por um único momento. Pôs as mãos nos braços da poltrona.

— Você não se incomoda se formos embora? — perguntou. — Estou começando a sentir uma dor de cabeça alucinante.

Na esquina de High Road e da rua do apartamento de Justine, Rain ajudou-a a descer do carro, ordenou a Fritz que desse voltas pelo quarteirão e segurou-lhe cortesmente o cotovelo com a mão a fim de guiá-la, com um toque totalmente impessoal. Na umidade glacial da garoa londrina, caminharam devagar sobre as pedras da rua, enquanto seus passos ecoavam em toda a volta. Passos tristes e solitários.

— Então, Justine, vamos dizer adeus — disse ele.

— Bem, pelo menos por enquanto — retrucou ela jovializando o semblante —, mas você sabe que não será para sempre. Virei para cá de vez em quando, e espero que você encontre tempo para ir a Drogheda.

— Não. Isto é adeus, Justine. Não creio que voltemos a servir um para o outro.

— O que você quer dizer é que eu não sirvo mais para você — disse ela, e conseguiu soltar uma risada convincente. — Está certo, Rain. Não me poupe, que eu agüento!

Ele tomou-lhe a mão, inclinou-se para beijá-la, endireitou o corpo, sorriu para os olhos dela e afastou-se.

Havia uma carta de sua mãe sobre o capacho. Justine inclinou-se para apanhá-la, deixou cair a bolsa e o abrigo onde estivera a carta, os sapatos ali por perto, e entrou na sala de estar. Sentou-se pesadamente sobre um engradado, mordendo o lábio, os olhos postos com incrédula e confusa piedade num magnífico estudo da cabeça e dos ombros de Dane feito para comemorar-lhe a ordenação. Depois, surpreendeu os dedos nus dos pés no ato de acariciar o tapete enrolado de pele de canguru, fez uma careta de nojo e levantou-se depressa.

Uma rápida excursão à cozinha era do que estava precisando. Por isso realizou sua rápida excursão à cozinha, onde abriu a geladeira, estendeu a mão para pegar o jarro de creme, abriu a porta do congelador e dali tirou uma lata de café. com uma das mãos na torneira de água fria a fim de pegar água para o café, correu os olhos arregalados, como se nunca tivesse visto o aposento até então. Olhou para as falhas no papel da parede, para o pretensioso filodendro em sua cesta pendente do teto» para o relógio preto que representava um gatinho e que abanava a cauda e girava os olhos diante do espetáculo do tempo tão frivolamente desperdiçado. GUARDAR ESCOVA DE CABELO, diziam na lousa as maiúsculas. Sobre a mesa jazia um desenho a lápis de Rain que ela fizera semanas antes. E um maço de cigarros. Pegou um cigarro, acendeu-o, pôs a chaleira no fogão e lembrou-se da carta de sua mãe, que ainda tinha numa das mãos. Poderia lê-la enquanto esperava a água esquentar. Sentou-se à mesa da cozinha, atirou ao chão com um piparote o desenho de Rain e pôs os pés em cima dele. Levante os seus também, Rainer Moerling Hartheim! Veja só se me incomodo, seu alemãozão dogmático, bobo e rabugento. Eu não sirvo para você, não é? Pois você também não serve para mim!

Minha querida Justine (dizia Meggie)

Você deve estar agindo, sem dúvida, com a sua costumeira e impulsiva rapidez, por isso espero que esta carta chegue a tempo. Se alguma coisa que eu disse ultimamente em minhas cartas provocou sua súbita resolução, perdoe-me, por favor. Não era minha intenção provocar uma decisão tão drástica. Eu devia estar apenas procurando um pouco de simpatia, mas sempre me esqueço de que, debaixo de sua pele rija, você é bem mole.

Sim, estou só, terrivelmente só. Entretanto, não é nada que a sua volta para casa possa retificar. Se você parar para pensar um pouco, verá o quanto isto é verdadeiro. O que você espera realizar voltando para casa? Você não tem o poder de restituir-me o que perdi e tampouco pode ressarcir-me da perda. Nem esta é só minha. Ela é também sua, de sua avó e de todos os outros. Você parece ter uma idéia, e é uma idéia inteiramente errada, de ser, de certo modo, responsável. Esse impulso atual cheira-me suspeitamente a um ato de penitência. Isso é orgulho e presunção, Justine. Dane era um homem adulto, não uma criancinha indefesa. Eu o deixei partir, não deixei? Se me permitisse sentir o que você está sentindo, estaria aqui sentada a me censurar e achando que devia estar num asilo para doentes mentais porque o deixei viver a própria vida. Mas não estou aqui sentada a me censurar. Nenhum de nós é Deus, embora eu creia que tive mais oportunidade para aprender isso do que você.

Voltando para casa, você me estará entregando sua vida como um sacrifício. Não o quero. Nunca o quis. E recuso-o agora. Você não pertence a Drogheda, nunca pertenceu. Se ainda não descobriu a que lugar pertence, sugiro-lhe que se sente neste momento e comece a pensar com seriedade. Às vezes, você é de fato muito cega. Rainer é um homem excelente, mas ainda não conheci nenhum que fosse tão altruísta quanto você parece pensar que ele é. Pelo amor de Dane, Justine! Cresça um pouco!

Minha querida, uma luz se apagou. Para todos nós, uma luz se apagou. E você não compreende que não há absolutamente nada que possa fazer a respeito? Não vou insultá-la tentando fingir que estou felicíssima. Tal não é a condição humana. Mas se pensa que aqui em Drogheda passamos os dias chorando e gemendo, está muito enganada. Gozamos nossos dias e uma das razões por que o fazemos é porque nossas luzes para você continuam acesas. A luz de Dane se foi para sempre. Por favor, querida Justine, tente aceitar esse fato.

Volte para Drogheda, é claro, pois gostaremos imenso de vê-la. Mas não para sempre. Você nunca seria feliz se se instalasse aqui permanentemente. Você não faria apenas um sacrifício desnecessário, mas também um sacrifício inútil. No seu tipo de carreira, até um ano passado longe dela lhe custaria muito caro. Por isso fique no lugar a que pertence e seja uma boa cidadã do seu mundo.

A dor. Era como nos primeiros dias depois da morte de Dane. A mesma espécie de dor inútil, desperdiçada, inevitável. A mesma impotência angustiada. Não, é claro que não havia nada que ela pudesse fazer. Não havia modo de compensar, modo nenhum. Grite! A chaleira já estava assobiando. Quieta, chaleira, quieta! Quieta por mamãe! Que tal é ser filha única de mamãe, chaleira? Pergunte a Justine, ela sabe. Sim, Justine sabe tudo a respeito de ser filha única. Mas eu não sou a filha que ela quer, a pobre velha que está murchando lá na fazenda. Oh, mamãe... Você acha então que, se fosse humanamente possível, eu não o faria? Novas lâmpadas pelas velhas, minha vida pela dele! Não é justo que fosse Dane o que morreu... Ela tem razão. O meu regresso a Drogheda não pode alterar o fato de que ele nunca regressará. Embora descanse lá para sempre, nunca regressará. Uma luz se apagou e não posso reacendê-la. Mas percebo o que ela quer dizer. Minha luz ainda arde nela. Só que não arde em Drogheda

Fritz atendeu à porta. Não vestia o belo uniforme naval de chofer e sim o belo uniforme matutino de mordomo. Enquanto ele sorria e se inclinava, muito cerimonioso, batendo os calcanhares à boa e antiga maneira alemã, um pensamento ocorreu a Justine. ele faria acaso serviço dobrado em Bonn também?

— Você é simplesmente o humilde criado de Herr Hartheim, Fritz, ou é realmente o seu cão de guarda? — perguntou ela, entregando-lhe o casaco.

Fritz continuou impassível.

— Herr Hartheim está no escritório, Srta O’Neill.

Sentado, um pouco inclinado para a frente, ele contemplava o fogo. Natasha, enrodilhada, dormia na lareira. Quando a porta se abriu, ele ergueu os olhos, mas não falou, nem pareceu contente por vê-la.

Justine atravessou a sala, ajoelhou-se e encostou a testa no colo dele.

— Rain, sinto muito por todos esses anos, e não posso reparar o mal que fiz — murmurou ela.

Ele não se levantou para levantá-la também, mas ajoelhou-se ao lado dela, no chão.

— Um milagre — disse ele.

Ela sorriu-lhe.

— Você nunca deixou de me amar, deixou?

— Não, herzchen, nunca.

— Devo tê-lo magoado muitíssimo.

— Não como você está pensando. Eu sabia que você me amava e podia esperar. Sempre acreditei que um homem paciente acaba vencendo.

— E por isso decidiu me deixar resolver sozinha a situação. Não ficou nem um pouco preocupado quando anunciei que voltaria para Drogheda, ficou?

— É claro que fiquei. Se tivesse sido outro homem, eu não me teria perturbado, mas Drogheda? É um adversário formidável. Fiquei, sim, fiquei preocupado.

— Você sabia da minha ida antes que eu lhe contasse, não sabia?

— Clyde deixou escapar o segredo. Telefonou para Bonn para me perguntar se eu teria algum jeito de detê-la. Respondi-lhe que procurasse segurá-la por uma ou duas semanas, de qualquer maneira, pois nesse intervalo eu veria o que era possível fazer. Não por ele, herzchen, mas por mim. Não sou altruísta.

— Foi o que mamãe me disse. Mas esta casa! Você a possuía um mês atrás?

— Não, nem ela é minha. Entretanto, como precisaremos de uma casa em Londres se você quiser continuar com sua carreira, verei o que preciso fazer para adquiri-la. Isto é, se você gostar dela. Até a deixarei redecorá-la, se você me prometer fielmente que não a forrará de cor-de-rosa nem de cor de laranja.

— Eu não tinha idéia do quanto você é tortuoso. Por que não disse apenas que ainda me amava? Eu queria que você dissesse!

— Não. As provas ali estavam para que você as visse sozinha, e tinha de vê-las sozinha.

— Receio ser cronicamente cega. Na verdade não as vi sozinha, precisei de alguma ajuda. Minha mãe afinal me abriu os olhos. Recebi carta dela esta noite, dizendo-me que não voltasse para casa.

— Sua mãe é uma pessoa maravilhosa.

— Sei que você a conheceu, Rain... Quando foi?

— Fui vê-la há cerca de um ano. Drogheda é magnífica, mas não é você, herzchen. Naquela ocasião fui até lá para tentar fazer sua mãe enxergar isso. Você não faz idéia de quanto me alegra que ela tenha enxergado, embora não me pareça que o que eu disse fosse muito elucidativo.

Ela ergueu os dedos para tocar-lhe a boca.

— Eu mesmo duvidava, Rain. Sempre duvidei. Talvez duvide sempre.

— Oh, herzchen, espero que não! Para mim não poderá ser mais ninguém. Só você. O mundo inteiro sabe disso há anos. Mas palavras de amor nada significam. Eu poderia tê-las gritado para você mil vezes por dia sem influir minimamente nas suas dúvidas. Por isso não falei do meu amor, Justine, vivi-o. Como poderia você duvidar dos sentimentos do seu mais fiel galanteador? — Ele suspirou. — Bem, pelo menos não veio de mim. Você talvez continue a achar a palavra de sua mãe suficientemente boa.

— Por favor, não fale assim! Pobre Rain, creio que gastei ao máximo a sua paciência. Não se magoe por isso ter vindo de mamãe. Não tem importância! Eu me ajoelhei e me humilhei a seus pés!

— Graças a Deus a humilhação durará apenas esta noite — disse ele mais alegremente. — Você voltará ao normal amanhã.

A tensão principiou a deixá-la; o pior já passara.

— O que eu mais gosto... não, amo... em você é que você valoriza tanto o meu dinheiro que nunca me ponho em dia.

Os ombros dele estremeceram.

— Então olhe para o futuro deste jeito, herzchen. Vivendo comigo na mesma casa, terá a oportunidade de ver como isso se faz. — Ele beijou-lhe as sobrancelhas, as faces, as pálpebras. — Eu não a quereria de nenhum outro modo senão como você é, Justine. Não dispenso uma sarda do seu rosto nem uma célula do seu cérebro.

Ela atirou os braços ao pescoço dele, enfiou os dedos no cabelo farto.

— Oh, se você soubesse o quanto desejei fazer isto! — disse. — Nunca pude esquecê-lo.

Rezava o cabograma:

ACABO TORNAR-ME SRA. RAINER MOERLING HARTHEIM PONTO CERIMÔNIA PARTICULAR NO VATICANO PONTO BÊNÇÃO PAPAL PARA TODOS PONTO ISTO É POSITIVAMENTE SER CASADA EXCLAMAÇÃO ESTAREMOS AÍ NUMA LUA-DE-MEL ADIADA ASSIM QUE FOR POSSÍVEL MAS EUROPA SERÁ NOSSO LAR PONTO SAUDADES PARA TODOS E DE RAIN TAMBÉM PONTO JUSTINE

Meggie pôs o pedaço de papel sobre a mesa e olhou, de olhos bem abertos, pela janela, para a riqueza de rosas outonais no jardim. Perfume de rosas, abelhas de rosas. E o hibisco, o eqüisseto, os eucaliptos, as buganvílias que subiam tão alto acima do mundo, as aroeiras-moles. Como estava bonito o jardim, como estava vivo! Ver-lhe as coisas pequeninas crescerem, mudarem e murcharem; e novas coisas pequeninas surgirem de novo, no mesmo ciclo interminável, incessante.

Era tempo de Drogheda parar. Sim, mais do que tempo. Que o ciclo se renovasse com desconhecidos. Fiz tudo isso sozinha, não posso culpar ninguém. E não me arrependo de momento algum.

O pássaro com o espinho cravado no peito segue uma lei imutável; impelido por ela, não sabe o que é empalar-se e morre cantando. No instante em que o espinho penetra não há consciência nele do morrer futuro; limita-se a cantar e canta até que não lhe sobra vida para emitir uma única nota. Mas nós, quando enfiamos os espinhos no peito, bem sabemos. Compreendemos. E assim mesmo o fazemos. Assim mesmo o fazemos. 

 

                                                                                Colleen McCullough 

 

 

                      

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