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STEINBECK trouxe para todos os seus romances o seu sentimento natural de tragédia. Neste, o seu primeiro grande êxito, mostra-nos que, ainda que vivamos num jardim paradisíaco, criamos em nós e para nós os nossos próprios céus e internos. Que nenhum paraíso terrestre pode suprir as limitações da natureza humana e que, mesmo que o Homem esteja resolvido a viver à parte do mundo das mágoas e das desordens, está condenado a carregar consigo o seu destino até ao fim da vida.
QUANDO a missão de Carmelitas da Alta Califórnia estava a ser construída, cerca do ano de 1776, um grupo de vinte índios convertidos abandonou a região, ao abrigo da noite e, pela manhã, havia desaparecido das suas cabanas. Além de ser um precedente desagradável, este pequeno cisma obrigou a paralisar o trabalho nas barreiras onde estavam sendo feitos os tijolos.
Após um curto conselho entre as autoridades civis e eclesiásticas, um cabo espanhol, comandando um esquadrão de cavalaria, partiu para os campos, a fim de fazer voltar estas crianças perdidas para o seio da Santa Madre Igreja. A tropa fez uma viagem difícil, através do vale do Carmelo e das montanhas que o circundam, jornada que se tornou ainda mais difícil pelo facto de os renegados fugitivos provarem ser mestres na arte diabólica de esconder os traços da sua passagem.
Decorreu uma semana antes que a soldadesca os achasse, mas, finalmente, foram descobertos praticando abominações no fundo de um desfiladeiro por onde corria um pequeno ribeiro; isto é, os vinte herejes estavam meio adormecidos, em atitudes de abandono.
Os ultrajados militares apanharam-nos e, apesar dos seus gemidos, amarraram-nos a uma longa corrente. Depois a coluna fez meia volta e encaminhou-se de novo para o Carmelo, a fim de dar aos pobres neófitos uma oportunidade de se arrependerem durante o trabalho nas barreiras.
Ao cair da tarde do dia seguinte a terem sido descobertos os fugitivos, um pequeno veado atravessou-se na frente dos soldados e desapareceu por detrás de uma rocha. O cabo destacou-se da coluna e cavalgou na sua perseguição. O cavalo tropeçava nas pedras ásperas; a manzanita lançava os seus espinhos na direcção do rosto do cabo, mas este continuava sempre em frente, tentando arranjar carne fresca para o jantar. Daí a poucos minutos chegou ao cimo da encosta e parou maravilhado com o que via: um grande vale cheio de pastagens verdes, onde ruminava uma manada de veados. Belos carvalhos erguiam-se acima dos campos daquele lugar de sonho, que era ciosamente protegido dos ventos e nevoeiros pelas montanhas que o rodeavam.
Aquele cabo, habituado à disciplina do Exército, sentiu-se fraco perante tão serena beleza. Ele, que chicoteara costas de negros até lhes fazer sangue, ele, cuja rapacidade humana estava a construir uma nova raça na Califórnia, esse barbudo e selvagem portador da civilização desmontou e tirou o capacete de ferro.
- Virgem Santíssima - murmurou. - Eis aqui as pastagens do Céu, às quais Nosso Senhor nos conduz.
Os seus descendentes são agora quase brancos. Podemos apenas fazer a reconstituição do que foi a sua emoção sagrada ao descobrir o local, mas o nome que ele deu ao doce vale entre as montanhas ainda permanece. É agora conhecido por Lãs pasturas dei Cielo.
Por qualquer razão desconhecida, o lugar não se tornou propriedade de nenhum nobre. Permaneceu esquecido por muito tempo, abraçado pelas montanhas que o circundavam. O cabo espanhol, o que o descobrira, fez sempre tenções de lá voltar. Tal como a maioria dos homens violentos, sonhava com prazer sentimental viver algum tempo em paz antes de morrer; sonhava com uma casa de tijolo junto de um riacho, com o gado passando, à noite, em frente da porta.
Uma índia qualquer contagiou-o com bexigas e, quando a cara lhe começou a cair, alguns amigos fecharam-no num velho celeiro para evitar que a infecção se propagasse a outros e aí morreu ele em paz, visto que as bexigas, conquanto dêem um aspecto horrível, não tratam muito mal a pessoa que as tem.
Muito tempo depois, algumas famílias de colonos mudaram-se para Pastagens do Céu, construíram habitações e plantaram árvores de fruto. Visto que a terra não pertencia a ninguém, lutaram bastante pelos seus direitos. Passados cem anos havia em Pastagens do Céu famílias a viverem em vinte pequenas quintas. A meio do vale ficava um armazém que vendia todos os artigos e funcionava ainda como estação de correios; meia milha mais além, ficava uma escola arruinada e muito primitiva.
As famílias viviam, finalmente, em paz e prosperidade. A terra era rica e fácil de trabalhar. Os frutos dos seus pomares eram os melhores que se produziam na Califórnia Central
PARA as pessoas de Pastagens do Céu a quinta Battle era maldita e, para os miúdos, estava assombrada. Se bem que tivesse boas terras, fosse fértil e bem regada, nenhum dos habitantes do vale a arrematou e nenhum viveria naquela casa, visto que as terras e casas que são tratadas, cuidadas e trabalhadas, mas das quais, finalmente se deserta, parecem sempre impregnadas de tristezas e de ameaças. As árvores que cercam a casa deserta são árvores sombrias e as sombras que projectam no chão têm formas que sugerem mistério.
Desde há cinco anos que a velha quinta Battle estava vazia. As estevas, livres da ameaça do podão, adquiriam redobrada energia e cresciam como se fossem pequenas árvores. No pomar, as árvores de frutos estavam cheias de nós fortes e apertados. A quantidade dos seus frutos aumentara, mas estes iam ficando cada vez mais pequenos em tamanho. Ervas daninhas haviam-se-lhe instalado nas raízes e absorviam-lhes a vitalidade.
A própria casa, edifício quadrado, de dois pisos bem construídos, tivera um ar digno e agradável quando a pintura branca ainda estava fresca, mas os acontecimentos singulares que se seguiram deixaram-lhe um aspecto incomparavelmente solitário. As estevas arranhavam os degraus da entrada e as paredes estavam cinzentas pelas muitas intempéries suportadas. As crianças, esses lugares-tenentes do tempo na luta contra os trabalhos do Homem, haviam estilhaçado as janelas c. levado consigo tudo que puderam remover.
As crianças acreditam que toda a espécie de coisas portáteis que não têm um dono reconhecido, quando levadas para casa, podem ser de um préstimo inigualável. Os rapazes tinham esvaziado a casa, enchido os poços com toda a espécie de detritos e, por mero acidente, enquanto fumavam às escondidas tabaco verdadeiro, tinham queimado por completo o velho celeiro. Toda a gente atribuiu o fogo a vagabundos.
A quinta deserta não ficava muito distante do meio do vale. Estava cercada pelas melhores e mais prósperas quintas de Pastagens do Céu e era como que um rincão selvagem e cheio de estevas entre as terras produtivas e bem cultivadas. Os habitantes do vale consideravam-na possuída por um estranho mal, porque um acontecimento horrível e um mistério impenetrável aí se haviam passado.
Apenas duas gerações de Battle haviam vivido na quinta.
George Battle veio para o Oeste em 1863, proveniente do norte do Estado de Nova Iorque; era ainda muito novo quando chegou, mal passara da adolescência. A mãe tinha-lhe dado o dinheiro para comprar a terra e para construir a grande casa quadrada. Quando o edifício ficou pronto, George Battle mandou a mãe vir viver com ele. A pobre velhota que pensava que o mundo terminava a dez milhas da sua aldeia fez os possíveis por vir. Passou por lugares mitológicos como Nova Iorque, Pão de Janeiro e Buenos Aires. Morreu ao largo da Patagonia e um oficial do navio sepultou-a no mar cinzento, com um bocado de tela a servir de mortalha e três elos da corrente da âncora entre os pés a servir de lastro; assim a pobre mulher não ficou sepultada no já muito lotado cemitério da família.
George Battle procurou a mulher que mais lhe conviesse. Em Salinas descobriu ele Myrtle Cameron, uma solteirona de trinta e cinco anos e uma fortuna razoável. Myrtle fora esquecida pelos rapazes devido a uma ligeira tendência para a epilepsia, doença então chamada tremuras e, geralmente, atribuída a uma certa animosidade por parte dos deuses. George não se importou com a epilepsia. Sabia que não podia ter tudo o que desejava. Myrtle casou-se com ele, deu à luz um filho e, depois de ter tentado, por duas vezes, deitar fogo à casa, foi encerrada numa pequena prisão particular em S. José, chamada Sanatório Lippman. Aí passou ela o resto da sua existência a fazer em «crochet» uma simbólica vida de Cristo.
Depois disso, a grande casa dos Battle foi administrada por uma série de governantes mal humoradas, das que costumam anunciar nos jornais: «Viúva, quarenta e cinco anos, deseja lugar de governante numa quinta. Boa cozinheira.» Foram vindo uma a uma, sendo meigas e tristes nos primeiros dias, até que descobriam a existência de Myrtle. Depois disso vagueavam pela casa, com olhos brilhantes, sentindo que haviam sido hediondamente traídas.
George Battle estava velho aos cinquenta anos, curvado pelo trabalho, duro e incapaz de sentir qualquer prazer. Os olhos dele permaneciam sempre fixos no solo em que trabalhava com tanta devoção. Tinha as mãos fortes, negras e cobertas de pêlos hirsutos como as patas de um urso. No entanto, a sua quinta era bela. As árvores do pomar eram elegantes e bem lançadas; como se cada uma delas fosse parte das restantes. Os legumes cresciam tenros e verdes nos seus canteiros em linha recta. George desvelava-se em cuidados com a casa, em frente da qual tinha um pequeno jardim. Nunca ninguém havia habitado o andar superior. A quinta era, assim, um poema composto por esse homem desarticulado que construiu um cenário ideal à espera de uma Sílvia que o viesse completar. Apesar de não ter aparecido nenhuma Sílvia, continuava na mesma a manter o jardim e a esperar por ela. Durante os anos do crescimento do filho, George Battle bem pouca atenção lhe prestou. Para ele eram apenas de importância vital as árvores de fruto e os canteiros de legumes verdes e frescos. Quando John, o filho, abalou como missionário de uma caravana, George Battle nem mesmo deu pela sua falta. Continuou a trabalhar ano após ano, dobrando o corpo cada vez mais na direcção do solo que trabalhava. Nenhum vizinho lhe dirigia a palavra porque ele também lhes não prestava atenção. As suas mãos, permanentemente fechadas, haviam-se transformado em conchas, nas quais se ajustavam as ferramentas de trabalho. Aos sessenta e cinco anos morreu de velhice e de pneumonia.
John Battle voltou com a caravana para reclamar os seus direitos à quinta. Herdara da mãe a epilepsia e um conhecimento exaltado de Deus. A sua vida era devotada à luta com os demónios. Assim, fora de lugar em lugar, fazendo largos gestos com as mãos, invocando os espíritos malignos para depois os confundir, exorcizando e flagelando a incarnação do mal. Ao voltar para casa eram ainda os demónios que lhe despertavam a atenção. Os canteiros de legumes grelaram, nasceram espontaneamente mais umas vezes e sucumbiram às estevas. A quinta regressou ao estado selvagem mas os demónios cresciam nela, cada vez mais fortes e mais ousados.
Para se proteger, John Battle cobriu as roupas e o chapéu com pequenas cruzes de fios de algodão e, assim armado, dava guerra às legiões das trevas. Vagueava pela quinta, pela hora do crepúsculo, armado de um pau. Atirava-se à carga para debaixo da vegetação, vasculhando tudo com o pau e soltando imprecações até que os demónios saíam a campo descoberto. Durante a noite atravessava os espinhos das estevas onde vivia uma congregação de demónios e lançava-se em frente, sem medo, brandindo viciosamente a arma de que se servia. Quando a manhã raiava, voltava para o seu quarto e dormia, visto que os diabos não se manifestavam à luz do dia.
Certa vez, ao cair da noite, John avançou com muito cuidado para uma moita de lilases que havia no seu jardim. Sabia que a moita era a morada secreta de uma quantidade de espíritos malignos. Quando já estava tão perto que os demónios não podiam escapar, deu um salto para a moita, gritando e dando pancadas com o pau. Assustada pelo barulho uma cobra rastejou devagar e levantou a cabeça dura e chata. John largou o cacete e estremeceu, porque o assobio seco e agudo com que a serpente avisa que vai atacar é um som que arrepia. Caiu de joelhos e ficou a rezar por momentos. De repente gritou:
- Eis a serpente maldita. Fora, demónio!
E atirou-se para a frente, com os dedos em garra.
A cobra mordeu-o três vezes no pescoço, onde não havia cruzes que o protegessem. Lutou durante muito pouco tempo e morreu daí a momentos.
Os vizinhos só o descobriram quando os abutres começaram a descer naquele lugar e o que encontraram fê-los recear a quinta dos Battle daí em diante.
Durante dez anos a quinta permaneceu abandonada. As crianças diziam que a casa estava assombrada e faziam até lá excursões nocturnas para se aterrorizarem a si próprias Havia, realmente, algo de tenebroso no aspecto daquela velha casa espectral, com as janelas sem vidros, como olhos abertos de cegos. A tinta branca caía em grandes bocados; os beirais estavam todos empenados. A própria quinta tinha um aspecto selvagem. O dono era um primo afastado de George Battle que nunca lá pusera os pés.
Em 1921 os Mustrovic tomaram posse da quinta de Battle. A sua vinda fora súbita e misteriosa. Quando o vale acordou, certa manhã, já eles lá estavam: um homem velho e a sua velha esposa, pessoas esqueléticas com uma pele dura, amarela e enrugada a cobrir-lhes as faces ossudas. Nenhum deles falava inglês e comunicavam com o vale através do filho, um homem alto com as mesmas faces de ossos proeminentes, cabelo crespo até à nuca e ternos olhos de um azul muito claro que falava inglês com sotaque e só para dizer o que queria.
No armazém, as pessoas interrogavam-no delicadamente mas não obtinham grandes informações.
- Sempre pensámos que a casa onde habitam estivesse assombrada. Já por lá viu algum fantasma? - perguntou T. B. Allen, o dono do armazém.
- Não! - respondeu o jovem Mustrovic.
- Vai ser uma óptima quinta quando conseguirem destruir todas as estevas.
Mustrovic virou-se e saiu do armazém.
- Há qualquer coisa de estranho naquela casa - declarou Allen. - Todos os que lá moram não gostam de falar.
Os Mustrovic mais velhos raramente eram vistos mas o filho trabalhava na quinta enquanto houvesse luz do dia. Ele sozinho limpou a terra e plantou plantas novas; podou e limpou as árvores. Viam-no sempre de um lado para o outro, trabalhando com afinco, quase correndo de uma tarefa para outra, com um brilho no olhar de quem espera ter ainda algum tempo para descansar antes que fosse altura de fazer a colheita.
A família vivia e dormia na cozinha da enorme casa; todos os outros compartimentos estavam vagos e fechados, com as janelas partidas como dantes. Tinham posto papel gomado nos buracos da cozinha, como para impedir o ar de entrar lá dentro. Não pintaram a casa nem de qualquer outro modo se preocuparam com ela mas, à custa do trabalho do heróico jovem, a terra começou outra vez a produzir lindamente. Durante dois anos o rapaz trabalhou como um escravo. Saía de casa ao romper da alva, e o último raio de luz desaparecera havia muito quando tornava a entrar para descansar.
Uma manhã, Pat Humbert, a caminho do armazém, notou que não saía fumo da chaminé dos Mustrovic.
- O local parece outra vez abandonado - disse ele a Allen. - Claro que nunca lá vi ninguém, a não ser aquele tipo novo, mas há qualquer coisa que não está bem. O que eu quero dizer é que o sítio como que se sente deserto.
Durante três dias, os vizinhos observaram a chaminé com apreensão. Não queriam investigar, não fosse o caso de irem passar por parvos. Ao quarto dia, Pat Humbert, T. B. Allen e John Whiteside subiram até junto da casa que se manteve silenciosa e sem um único movimento vindo lá de dentro que denunciasse a existência de seres vivos. Parecia realmente deserta. John Whiteside bateu à porta. Como não houvesse resposta, deu a volta ao trinco e abriu os batentes de par em par. A cozinha estava imaculadamente limpa, e a mesa posta; havia até pratos servidos, pires de papa de aveia, ovos estrelados e pão partido em fatias. Formava-se já uma ligeira camada de bolor sobre a comida e algumas moscas esvoaçavam sem rumo à luz do sol que entrava pela porta aberta. Pat Humbert gritou:
- Há aí alguém?
Mas sabia que era uma pergunta tola.
Rebuscaram completamente toda a casa, mas estava vazia. Nenhum compartimento estava mobilado, a não ser a cozinha. A quinta estava completamente deserta, o que se notava à primeira vista.
Mais tarde, quando o «sheriff» foi informado, não descobriu nada que fornecesse quaisquer indícios reveladores. Os Mustrovic haviam comprado a quinta com dinheiro corrente e, ao abalarem, não deixaram nenhum traço da sua passagem. Ninguém os vira abalar e ninguém mais os tornou a ver. Tão-pouco tinha havido crime algum naquela região em que eles pudessem ter tomado parte. De repente, como que estando para tomar o pequeno-almoço, os Mustrovic tinham desaparecido. Depois disso, muitas vezes o caso foi discutido no armazém, mas nenhum dos circunstantes podia avançar uma solução satisfatória.
As estevas voltaram a crescer na terra e as plantas selvagens mais uma vez tomaram conta das árvores de fruto. Como o que treinada pela prática dos anos anteriores, a propriedade voltou imediatamente ao estado de agressiva selvajaria.
Depois, para pagar os impostos, a terra foi vendida a uma companhia de Monterey e os habitantes de Pastagens do Céu, embora nem todos o admitissem, estavam convencidos de que a quinta Battle era portadora de uma maldição.
- É boa terra - diziam - mas não a queria nem que ma dessem. Não sei o que se passa, mas há, por certo, qualquer coisa de estranho naquele lugar que arrepia as pessoas. Até faz com que um tipo acredite em fantasmas.
Uma onda de satisfação perpassou pelos habitantes de Pastagens do Céu, quando ouviram dizer que a velha quinta dos Battle estava outra vez para ser ocupada. A notícia foi trazida para o armazém por intermédio de Pat Humbert, que havia visto automóveis em frente da casa, e T. B. Allen, o proprietário do estabelecimento, espalhou a nova com basta soma de pormenores. Allen imaginou todas as circunstâncias relacionadas com os novos proprietários e tratou de contá-las aos fregueses, salvaguardando o aspecto das suas confidências com um cuidadoso dizem.
«Dizem que o tipo que comprou a quinta dos Battle é um desses maníacos que andam por toda a parte à procura de fantasmas e a escrever a respeito deles.»
Este dizem era a sua protecção. Usava-o como os jornais usam o termo consta...
Antes mesmo que Bert Munroe tomasse posse da sua nova propriedade, havia já uma dúzia de histórias a seu respeito circulando através de Pastagens do Céu. Sabia que as pessoas que iam ser os seus novos vizinhos o observavam cuidadosamente, se bem que nunca os tivesse apanhado em flagrante, visto que o costume de observar sem ser observado se encontra largamente desenvolvido entre as pessoas que vivem em meios pequenos. São capazes de ver todas as partes mais recônditas de qualquer pessoa, de tabular e memorizar todas as suas peças de vestuário, de reparar na cor dos olhos e formato do nariz e, finalmente, de ter reduzido a sua figura e personalidade a três ou quatro adjectivos, enquanto o observado pensa que a sua presença passa quase despercebida.
Depois de ter comprado z propriedade, Bert Munroe pôs-se a trabalhar nas culturas enquanto uma equipa de carpinteiros dava volta à casa. Todas as peças de mobília foram retiradas e queimadas cá fora. Houve partes da casa que foram derrubadas e outras que foram construídas de novo. As paredes foram forradas com outros papéis e o tecto foi consertado. Por fim, uma nova demão de tinta amarelo-pálido foi aplicada no exterior.
O próprio Bert derrubou por sua mão as estevas e todas as árvores dos terrenos mais juntos à casa, para que a luz entrasse com mais facilidade. Três semanas depois, a velha casa havia perdido todos os vestígios do seu antigo aspecto ensombrado e misterioso.
Após vários golpes de génio, ficou com o aspecto de qualquer outra casa de campo do Oeste.
Logo que a pintura interior e exterior secou, veio a nova mobília: cadeiras estofadas e um canapé, um fogão para aquecimento central, camas de ferro pintadas a fingir madeira e que garantiam um conforto matematicamente certo. Vinham também espelhos de lindas molduras, tapetes Wilton e reproduções de quadros de um artista moderno que lançara a moda do azul.
Com a mobília veio também a sr.a Munroe e os três filhos do casal. A esposa de Bert Munroe era uma mulher gorda que usava um pince-nez preso a uma fita. Além disso, era também uma excelente dona de casa. Inúmeras vezes fez mudar de local e de posição várias peças de mobília até se dar por satisfeita, mas, uma vez contente após ter olhado para o móvel com um olhar fixo e concentrado, e depois de ter sorrido e abanado com a cabeça, tal móvel ficava fixo para sempre e não mais sairia dali senão para ser limpo.
A filha, Mae, era uma rapariga de faces redondas e macias e lábios maduros. Tinha uma figura voluptuosa mas, debaixo do queixo, uma curva ligeira e engraçada indicava uma futura obesidade como a da mãe. Os olhos de Mae tinham uma expressão amigável e pura, não de inteligência, mas de modo nenhum se poderiam considerar estúpidos. Iria crescer para, sem se dar conta de tal, se transformar numa réplica da mãe: boa dona de casa, mãe de filhos saudáveis e boa esposa sem remorsos de espécie alguma.
Uma vez instalada no seu quarto, Mae meteu alguns programas de bailes no espelho, entre o vidro e a moldura. Pendurou nas paredes fotografias de amigos de Monterey e pôs na mesa-de-cabeceira o seu álbum de fotografias e o diário fechado à chave. Neste diário tinha ela escondido de olhos curiosos um completo, mas desinteressante registo de bailes, festas, de receitas de doces e de leves preferências por certos rapazes. Ela própria comprou e fez as cortinas do seu quarto: gaze cor-de-rosa de efeito teatral para coar a luz, com enfeites de cretone florido. Sobre a coberta da cama, em cetim fulgurante, fez um arranjo de cinco almofadas em posições de abandono, sobre as quais se inclinava uma boneca francesa de longas pernas e cabelo loiro ondulado, com um cigarro de pano pendendo-lhe languidamente dos lábios. Mae achava que esta boneca expressava a sua largueza de ideias, a sua tolerância para com certas coisas que não aprovava em absoluto. Gostava de ter amigos com um passado mais ou menos escandaloso, pois ter tais amigos e ouvi-los destruía nela qualquer sombra de arrependimento por ter levado uma vida isenta de mancha. Tinha dezanove anos e levava a maior parte do seu tempo a pensar no casamento. Quando saía com rapazes falava de ideais, presa de emoção. Mae tinha uma ideia muito vaga do que poderiam ser ideais, excepto que, de qualquer modo, governavam a espécie de beijos que recebia ao voltar dos bailes.
Jimmie Munroe tinha dezassete anos, saíra havia pouco do liceu e era um cínico enorme. Na presença dos pais, os seus modos eram, de ordinário, reservados e submissos. Sabia que não lhes podia confiar o seu conhecimento do mundo porque não o compreenderiam. Pertenciam a uma geração que não fazia a mínima ideia do pecado ou de heroísmo e sabia que a sua firme intenção de dedicar a vida à ciência depois de lhe ter extraído todas as possibilidades emocionais não seria bem recebida por eles. Por ciência, queria Jimmie dizer a telefonia sem fios, a arqueologia e os aeroplanos. Gostava de se imaginar no Peru a desenterrar vasos de ouro, ou então de se ver fechado numa oficina acanhada como uma cela e, após anos de agonia e ridículo, produzir um avião de desenho audacioso e de velocidade devastadora.
O quarto de Jimmie na nova casa tornou-se um esconderijo de pequenas máquinas logo que o seu ocupante dele tomou posse. Havia um receptor de galena com auscultadores, um magneto que operava uma chave de telégrafo, um telescópio de cristal e inúmeras máquinas mais ou menos em pedaços.
Também ele tinha um repositório de tesouros; um baú de carvalho fechado com um enorme cadeado. Aí dentro guardava meia lata de dinamite, um velho revólver, um maço de cigarros melachrino, um pequeno frasco de aguardente de pêssego, uma faca de papel em forma de adaga, quatro maços de cartas de quatro raparigas diferentes, dezasseis tubos de baton surripiados a pares nos bailes, uma caixa com recordações de amores mais ou menos passageiros: flores secas, lenços e botões e, a mais presada de todas, uma liga enfeitada com rendas pretas. Jimmie esquecera-se já de como conseguira a liga; no entanto, aquilo de que se lembrava era muitíssimo satisfatório. Sempre que abria o baú tinha a precaução de fechar antes a porta do quarto.
No liceu, a soma de pecados de Jimmie fora igualada por muitos dos seus amigos e facilmente ultrapassada por outros. Pouco depois de se ter mudado para Pastagens do Céu, descobriu que as suas iniquidades não tinham paralelo por ali.
Começou então a olhar-se como um libertino regenerado, mas não ao ponto de não admitir uma possível recaída.
O facto de haver vivido tanto dava-lhe uma poderosa influência junto das pequenas mais novas. Jimmy era um rapaz bastante simpático, elegante e bem proporcionado, de olhos e cabelos escuros.
Manfred, o filho mais novo, geralmente chamado Manny, era uma criança-série de sete anos, cuja cara era um pouco deformada pelos adenóides. Os pais sabiam da existência dos adenóides e haviam mesmo falado em mandá-los cortar. Manny ficou aterrorizado com a ideia da operação e a mãe, vendo isso, servia-se do facto para o ameaçar quando ele se portava mal. Agora, uma simples alusão a cortar os adenóides tornava Manny histérico de pavor. O sr. e a sr.a Munroe consideravam-no uma criança com ideias e, talvez, um génio.
Brincava geralmente sozinho, ou ficava sentado durante horas e horas a olhar para o espaço, «sonhando», como dizia a mãe. Durante anos não saberiam que o pequeno era anormal, com o desenvolvimento do cérebro retardado pela acção dos adenóides. Em geral Manny era uma criança bem comportada, tratável e fácil de amedrontar para o forçar a obedecer mas, se fosse aterrorizado um pouco além dos limites, o facto resultava num histerismo que lhe roubava o controle e até o sentimento de autopreservação. Sabia-se que chegava a bater com a testa no chão até os olhos se lhe encherem de sangue.
Bert Munroe veio para Pastagens do Céu porque estava farto de lutar com uma força que, invariavelmente, o derrotava. Havia-se metido em muitas empresas e todas tinham falido; não porque houvesse da parte de Bert qualquer inaptidão, mas por azares que, tomados a um por um, se podiam considerar acidentes. Bert olhou todos os acidentes em conjunto e pareceram-lhe actos de um Fado que se opunha ao seu triunfo. Estava farto de lutar contra essa coisa sem nome que o fazia parar em todas as rotas para o triunfo. Tinha apenas cinquenta e cinco anos mas queria descansar; estava meio convencido de que pesava sobre si uma maldição.
Anos atrás, abrira uma garagem à saída de uma pequena cidade. O negócio corria bem e o dinheiro começou a entrar. Quando se considerava salvo de qualquer surpresa, a estrada principal do Estado foi construída, passando pelo lado oposto da cidade e deixando-o sem o negócio. Vendeu a garagem cerca de um ano depois e abriu uma mercearia. Voltou a triunfar. Pagou as dívidas e começou a depositar dinheiro no banco. Logo a seguir, uma loja com múltiplos ramos abriu junto da sua, começou a vender os géneros a preços de combate e forçou-o a fechar a porta. Bert era um homem sensível. Coisas assim aconteceram-lhe uma dúzia de vezes. Sempre que a vitória parecia sorrir-lhe, a maldição atacava-o. A sua confiança começou a diminuir. Quando rebentou a guerra já quase não tinha forças para lutar. Sabia que havia enormes possibilidades de fazer dinheiro em tempos de guerra, mas tinha medo de se meter em qualquer empresa, depois de haver sido batido tantas vezes.
Teve de se encher de todas as forças antes de fazer o primeiro contrato de fornecimento de feijões ao Exército. No primeiro ano ganhou cinquenta mil dólares, no segundo ganhou duzentos mil. No terceiro ano fez um contrato sobre milhares de hectares de feijões antes mesmo de serem semeados. Por tal contrato, comprometia-se a pagar a colheita a vinte centimes o quilo, visto que, a trinta e seis centimes o quilo, podia vender quantos feijões quisesse. A guerra terminou em Novembro e ele teve de vender a colheita a oito centimes o quilo, ficando com menos dinheiro do que no começo do negócio. Desta vez tinha a certeza de que havia uma maldição sobre ele. Ficou tão abatido que quase não saía de casa. Trabalhava na quinta, plantava algumas coisas e lamentava-se da inimizade do destino. Pouco a pouco, após um período de estagnação de alguns anos, começou a desenvolver-se nele a nostalgia do solo. «No cultivo de uma quinta - pensava - reside a última linha de esperanças de que a adversidade não me persiga.» Pensou que talvez conseguisse achar descanso e segurança numa pequena quinta.
Uma companhia de Monterey oferecia para venda a terra dos Battle. Bert observou a quinta, viu as modificações que se poderiam fazer e comprou-a. A princípio, a família opôs-se à mudança mas, depois da terra limpa, instalada a electricidade e o telefone em casa e esta mobilada com uma nova e confortável mobília, chegaram até a entusiasmar-se com a ideia. A sr.a Munroe chegou a declarar que qualquer mudança era preferível a ouvir Bert lamentar-se no quintal de Monterey. No momento em que comprou a quinta, Bert sentiu-se livre. O feitiço desaparecera. Sabia que estava livre da maldição que pesava sobre si. Dentro de um mês ficou com os ombros mais direitos e a cara perdeu o aspecto de pasmo. Tornou-se um fazendeiro entusiasta; lia bastante acerca de métodos agrícolas, contratou um ajudante e trabalhava de manhã até à noite. Todos os dias lhe traziam novas sensações e cada nova semente que produzia uma planta a desabrochar da terra parecia renovar-lhe a promessa de imunidade. Sentia-se feliz e, porque havia recuperado a confiança em si mesmo, começou a fazer amigos entre os habitantes do vale e a consolidar a sua posição.
É uma coisa difícil e que requer grande tacto o tornar-se aceite numa comunidade rural. Os habitantes do vale haviam visto a vinda da família Munroe com um bocado de animosidade. A quinta dos Battle estava assombrada; sempre assim a haviam considerado, mesmo aqueles que se riam do caso. Agora vinha por aí um homem que lhes provava estarem enganados. Mais do que isso, mudou todo o aspecto da região pelo simples facto de substituir uma propriedade amaldiçoada por outra fértil e inofensiva. As pessoas estavam habituadas à propriedade dos Battle tal como era e, secretamente, ressentiam-se da mudança.
Assim, era notável que Bert tivesse conseguido vencer esta animosidade. Em três meses tornara-se parte do vale, um homem sólido, um vizinho. Já pedia e já emprestava ferramentas. Seis meses depois de se instalar em Pastagens do Céu, foi eleito membro do Conselho Escolar. A própria felicidade de Bert por se ver livre das suas fúrias fazia com que as pessoas gostassem dele. Em suma, era um homem simpático; gostava de prestar favores aos seus amigos e, mais importante, não hesitava em pedir favores.
Explicou a sua posição a um grupo de fazendeiros durante uma conversa no armazém e eles admiraram a honestidade da explicação. Fora pouco depois da sua chegada ao vale. T. B. Allen fez a sua velha pergunta:
- Mais ou menos, sempre acreditámos que aquele lugar estava assombrado. Aconteceram lá coisas muito estranhas. Já viu alguns fantasmas por lá?
Bert riu.
- Se se tirar toda a comida de um lugar, os ratos vão-se embora - disse. - Eu tirei todas as velharias e todas as sombras daquele lugar, pois é nessas coisas que os fantasmas vivem.
- A verdade é que fez dali um lindo local - admitiu Allen. - Não há mesmo terra melhor por estes sítios quando é bem tratada.
Entretanto, Bert havia permanecido de cenho carregado, como se um novo pensamento lhe atravessasse o cérebro.
- Tenho tido muito pouca sorte - disse ele. - Meti-me em muitas empresas, e todas elas foram por água abaixo. Quando vim para aqui tinha quase a ideia fixa de que estava assombrado.
De súbito, riu com gosto à ideia que lhe ocorreu:
- E qual foi a primeira coisa que fiz? Comprar uma casa e uma quinta que se supõe estarem assombradas. Pois bem! Creio que a minha maldição e a maldição do lugar se engalfinharam em luta e se mataram uma à outra. Tenho a certeza de que foi isso.
Os homens riram com ele. T. B. Allen espalmou a mão no balcão e declarou:
- Essa é boa. Mas aqui está uma melhor. Talvez a sua maldição e a maldição da quinta se tenham acasalado e metido nalgum buraco como um par de víboras. Talvez venha um dia a haver uma quantidade de maldiçõezinhas pelas Pastagens do Céu antes que demos mesmo conta delas.
Todos riram e T. B. Allen guardou a cena na memória para a poder repetir. Era quase que uma fala de teatro, pensava ele.
EDWARD WICKS vivia numa casa pequena e triste à beira da estrada municipal em Pastagens do Céu.
Por detrás da casa havia um pomar de pessegueiros e uma grande horta. Enquanto Edward Wicks tomava conta dos pêssegos, sua mulher e a filha, cuja beleza era famosa, cultivavam a horta e tinham as ervilhas, os feijões e os morangos temporãos arranjados para a venda em Monterey.
Edward Wicks tinha uma cara severa, pequena e queimada, olhos frios quase falhos de brilho. Era conhecido como o homem mais conhecedor de truques em todo o vale. Fazia os negócios mais difíceis e não se satisfazia senão quando conseguia ganhar mais alguns centimes nos pêssegos do que os vizinhos. Quando o conseguia, falava de éticas sobre a troca de cavalos e, por causa da sua esperteza, ganhara o respeito da comunidade mas, por estranho que pareça, nunca ficou mais rico. No entanto, gostava de fingir que estava a pôr dinheiro de parte em apólices de seguro. Nas reuniões do conselho escolar pedia a opinião de alguns dos outros membros acerca de várias acções e, assim, conseguia dar-lhes a impressão de ter economias consideráveis. Os habitantes do vale chamavam-lhe o «Tubarão Wicks».
- O Tubarão? - diziam. - Oh! Ia apostar que tinha alguns vinte mil ou talvez mais. Não é parvo nenhum.
A verdade era que o Tubarão nunca tivera mais do que quinhentos dólares de uma só vez, em toda a sua vida.
O maior prazer do Tubarão era o ser considerado um homem de haveres. Na verdade, sentia-se tão feliz que a própria riqueza se tornara real para ele. Estabelecendo a sua fortuna imaginária em cinquenta mil dólares, mantinha um nível do qual calculava os seus interesses e assim fazia os seus investimentos nos negócios em que tomava parte.
Formara-se uma companhia petrolífera em Salinas no propósito de furar um poço na parte sul do condado de Monterey. Quando ouviu falar de tal, o Tubarão foi à quinta de John Whiteside discutir o valor do negócio.
- Tenho estado a pensar naquela Companhia do Petróleo dos Condados do Sul - disse ele.
- Bem, o relatório do geólogo é animador - respondeu John Whiteside. - Sempre ouvi dizer que há petróleo nessa região. Há já uns anos que ouvi dizer isso. - Em tais casos a opinião de John Whiteside era sempre pedida. - No entanto, não me entusiasma muito.
Tubarão apertou o lábio inferior com os dedos e ficou a pensar durante alguns momentos. Depois declarou:
- Tenho andado com esta ideia às voltas na cabeça e parece-me uma boa proposta: possuo dez mil dólares que não me estão a render o que deviam; acho que seria preferível olhar para eles com cuidado e pensei que seria bom ouvir a sua opinião.
Mas o Tubarão já tinha as suas próprias ideias acerca do caso. Ao voltar para casa, retirou dez mil dólares da sua fortuna imaginária. Depois, comprou cem acções da Companhia do Petróleo dos Condados do Sul e adicionou-as à sua lista de papéis de crédito. Desse dia em diante, passou a ver com grande interesse as listas da Bolsa. Quando os preços subiam um pouco, saía a dar umas voltas, assobiando com ar enfastiado; quando os preços baixavam, sentia formar-se-lhe na garganta um nó de apreensão. Por fim, quando se deu uma subida repentina nos preços das acções da Companhia, o Tubarão ficou tão satisfeito que foi ao armazém de Pastagens do Céu e comprou um relógio de mármore preto para a lareira, com colunas de ónix de ambos os lados do mostrador e um cavalo de bronze no topo. Os fregueses que estavam no armazém assobiaram por entre dentes e comentaram que o Tubarão devia estar para acrescentar qualquer coisa à sua fortuna.
Uma semana mais tarde as cotações desapareceram da lista e a Companhia evaporou-se. Ao tomar conhecimento do facto, o Tubarão retirou as suas acções e tomou em consideração que as tinha vendido na véspera da quebra - com um lucro de dois mil dólares.
Pat Humbert, voltando de Monterey, parou o carro na estrada em frente da casa do Tubarão e observou:
- Ouvi dizer que ficou limpo com aquela história da Companhia do Petróleo.
O Tubarão sorriu satisfeito:
- Quem pensas tu que eu sou? Vendi as minhas acções há dois dias. Devias saber tão bem como os outros que não sou parvo nenhum. Já sabia que a Companhia não prestava, mas também sabia que havia de ter uma alta para os principais recuperarem tudo que haviam investido. Por isso, quando eles se descartaram, descartei-me também.
- Com os diabos! - exclamou Pat com admiração.
Ao entrar no armazém geral passou aos outros a informação. Os homens abanaram as cabeças e fizeram novos vaticínios sobre o acréscimo da fortuna do Tubarão e admitiram que não gostariam de entrar num negócio tendo o Tubarão por antagonista.
Por essa altura, o Tubarão pediu quatrocentos dólares emprestados num banco de Monterey e comprou um tractor em segunda mão.
Pouco a pouco a sua reputação de homem com perspicácia para julgar e prever os acontecimentos tornou-se tão grande que não havia quem em Pastagens do Céu pensasse em comprar papéis de crédito, mais algum bocado de terra ou mesmo um cavalo, que não fosse primeiramente consultar Tubarão Wicks. Com cada um dos seus admiradores, Tubarão penetrava-se cuidadosamente do problema e acabava sempre por dar um conselho espantosamente cheio de bom-senso.
Dentro de alguns anos, os seus pensamentos, e o conceito geral, mostraram-lhe que havia acumulado cento e vinte e cinco mil dólares, através de sagazes investimentos de capital. Os vizinhos, vendo que vivia pobremente, respeitavam-no ainda mais, visto que a riqueza não lhe tinha dado volta ao juízo; Tubarão não era nenhum parvo. A esposa e a linda filha continuavam a cuidar dos legumes e a prepará-los para o mercado de Monterey, enquanto Tubarão tomava conta das múltiplas tarefas do pomar.
Na vida de Tubarão nunca houvera nada de romanesco. Aos dezanove anos levou Katherine Mullock a três bailes, porque era a única rapariga livre. O caso fez girar a maquinaria dos precedentes e Wicks casou com ela, porque a família da rapariga e todos os vizinhos assim o esperavam. Katherine não era bonita, mas tinha a frescura de uma recém-casada e o vigor de uma égua jovem. Depois do casamento perdeu o vigor e a frescura, tal como uma flor quando é fecundada pelo pólen. A cara enrugou-se-lhe, os lábios engrossaram e ela entrou na segunda fase da vida: a fase do trabalho.
O marido não a tratava terna nem cruelmente, mas antes com a mesma gentil inflexibilidade que usava para com os cavalos. A crueldade parecer-lhe-ia uma loucura tão grande como a ternura. Nunca lhe falava como a um ser humano: das suas esperanças ou dos seus pensamentos de fracasso, do estado das finanças caseiras ou da colheita dos pêssegos. Katherine teria ficado admirada e aflita com tal, visto que tinha já uma vida bastante preocupada sem o acréscimo da carga das preocupações dos outros.
A casa castanha dos Wicks era a única coisa feia da quinta. Os detritos e o lixo da natureza desaparecem pelo chão com o passar dos anos, mas os lixos produzidos pelo homem têm uma permanência muito maior. O terreno em frente da casa estava cheio de sacos velhos, papéis, bocados de vidro partido, de cordas e de cordéis. O único sítio onde as flores não cresciam era na placa que circundava a casa, placa tornada estéril e selvagem pelo despejo de muitas banheiras de água cheia de sabão. Tubarão regava convenientemente o pomar, mas não via razões para desperdiçar água das regas na placazita escusa em volta da casa.
Quando Alice nasceu, as mulheres de Pastagens do Céu vieram em rebanho a casa do Tubarão, preparadas para exclamar que era um lindo bebé. Quando, porém, viram que o bebé era realmente lindo, ficaram sem saber o que dizer. Essas exclamações femininas de pasmo e prazer, destinadas a convencer as jovens mães de que as horríveis e reptilíneas criaturas que têm nos braços são humanas e não crescerão para ser monstruosidades, perdiam, neste caso, todo o significado. Demais, Katherine olhara para a criança com os olhos livres daquele entusiasmo artificial com que a maioria das mães esconde o seu desapontamento. Quando Katherine reparou, por sua vez, que tinha um lindo bebé, ficou cheia de admiração e de receios de engano. O facto da beleza de Alice era maravilhoso de mais para não ser pago por qualquer preço. Os bebés bonitos, pensava, geralmente tornam-se homens ou mulheres feias. Dizendo isto a si própria, dissipava algumas das apreensões que lhe vinham à ideia, como que, tendo compreendido os truques do destino e com o seu conhecimento prévio, lhes roubasse a potência.
No primeiro dia em que vieram as visitas, Tubarão ouviu uma das mulheres dizer para outra, como que não acreditando:
- É realmente um bebé lindo. Quem havia de supor que podia ser tão bonito?
Tubarão voltou ao quarto e olhou para a filha durante muito tempo. Depois, no pomar, ponderou o assunto. O bebé era realmente lindo. Era uma loucura pensar que ele, ou Katherine ou qualquer dos parentes tinham alguma coisa a ver com esses factos, visto que eram todos pessoas vulgares, com feições de pessoas vulgares. Era óbvio que lhe tinha sido dada uma coisa preciosa e, visto que as coisas preciosas são cobiçadas por todos, Alice devia ser protegida. Tubarão, quando pensava nessas coisas, acreditava em Deus como num ser sombrio que fazia coisas que estavam para além da sua compreensão.
Alice cresceu e tornou-se cada vez mais bela. A sua pele era macia e pura, o cabelo negro tinha a leveza e a suave ondulação de um lago batido pela brisa; os seus olhos tinham esquisitos céus de promessas.
Ao olhar para os olhos sérios da pequena, ficava-se a pensar:
«Há ali qualquer coisa que eu conheço, qualquer coisa de que creio recordar-me vagamente, ou em busca da qual tenho andado toda a minha vida.»
Depois Alice virava a cabeça e o comentário do observador seria:
- Ora! É apenas uma rapariguinha.
Tubarão via que o reconhecimento da beleza da filha ser um facto se apoderava de muita gente. Via homens que coravam ao olhar para ela e miúdos que lutavam como tigres quando Alice estava perto.
Pensava ver o desejo estampado em todas as faces masculinas e, muitas vezes, enquanto trabalhava no pomar, se torturava a si próprio, imaginando cenas em que os ciganos lhe roubavam a filha. Dúzias de vezes ao dia ele a acautelava contra coisas perigosas: as patas dos cavalos, a altura das sebes, o perigo que se esconde nos poços e o suicídio que representa o atravessar uma estrada sem observar com cuidado a aproximação dos automóveis. Olhava para todos os vizinhos, todos os trabalhadores e, pior ainda, todos os desconhecidos, como raptores potenciais. Sempre que se falava de haver vagabundos nas Pastagens do Céu, não permitia que a filha saísse fora do alcance da sua vista. Até pessoas de terras vizinhas que saíam em piqueniques se admiravam da ferocidade com que Tubarão as expulsava das suas terras.
Quanto a Katherine, a beleza crescente de Alice aumentava as suas preocupações. O destino esperava ocasião para ferir, e isso só podia significar que estava a juntar forças para um ataque mais violento. Tornou-se então escrava da filha, rodeando-a de cuidados e prestando-lhe pequenos serviços, como os que se fazem a um inválido que está prestes a morrer.
A despeito da adoração dos Wicks pela filha, dos seus receios pela segurança dela e do espanto pela sua beleza, ambos sabiam que a adorável pequena era uma rapariguinha incrivelmente estúpida, tola, e mentalmente atrasada.
Em Tubarão, o reconhecimento deste facto era mais um a juntar aos seus muitos temores, pois estava convencido de que a filha não era capaz de tomar conta de si própria, sendo portanto uma presa fácil para quem quer que se quisesse passar com ela.
Todavia, para Katherine, a estupidez de Alice era uma coisa agradável, visto que lhe apresentava inúmeros meios de cuidar dela. Tomar conta da filha resultava para Katherine uma superioridade que cortava, até certo ponto, o vazio existente entre elas. Sentia-se satisfeita com todas as fraquezas da filha, pois que cada uma a fazia sentir-se mais perto dela e mais necessária.
Quando Alice passou a conta dos catorze anos, uma nova preocupação se veio juntar às muitas que o pai já tinha a seu respeito. Até então, Tubarão só temera que se perdesse ou se desfigurasse; daí em diante passou a ficar aterrorizado só de pensar que podia perder a castidade. Pouco a pouco, à custa de muito pensar no assunto, o último temor acabou por absorver os outros dois. Passou a considerar que, se algo lhe acontecesse nesse aspecto, a coisa seria como se a perdesse e ficasse desfigurada. Depois disso, sentia-se sempre mal e cheio de suspeitas quando via algum homem ou rapaz perto da quinta.
O caso tornou-se num pesadelo para o seu coração de pai. Aconselhava constantemente a esposa para que nunca perdesse Alice de vista.
- Nunca se sabe o que pode acontecer! - repetia com olhos baços de suspeita.- Nunca se sabe o que pode acontecer.
A insuficiência mental da filha servia grandemente para aumentar-lhe o temor. Qualquer um - pensava ele - a pode arruinar.
Fosse quem fosse que ficasse a sós com ela a poderia amachucar, e a rapariga não seria capaz de se defender devido a ser tão estúpida. Nunca ninguém guardou uma cadela de raça premiada com maior cuidado do que Tubarão guardava a filha.
Tempos depois, já se não dava por satisfeito com o pensar na castidade da filha, a menos que fosse assegurado de que ela existia. Todos os meses se dirigia à esposa. Sabia as datas melhor mesmo do que ela.
- Já? - perguntava com ar angustiado.
Katherine respondia enfadada:
- Ainda não. Horas mais tarde, voltava a mesma pergunta: : -Já?
Continuava assim todo o tempo até que Katherine, finalmente, lhe respondia:
- Claro que já! Que é que pensas?
A resposta satisfazia Tubarão durante um mês, mas não fazia diminuir a sua observação. A castidade da filha estava intacta, portanto tinha de continuar a ser guardada.
Tubarão sabia que, qualquer dia, a filha haveria de querer casar mas, muitas vezes, desviava essa ideia do cérebro assim que ela se lhe apresentava e tentava esquecer-se disso, pois considerava o casamento dela com não menos repugnância do que a sua sedução. A filha era uma coisa preciosa que devia ser guardada e preservada. Para ele não se tratava de um problema de moral, mas sim de um problema de estética. Uma vez casada, a filha não seria mais a coisa preciosa que ele tinha como um tesouro. Não a amava, pois, como um pai ama uma filha, não; adorava-a e olhava-a como quem olha uma coisa única e preciosa.
Gradualmente, ao fazer a sua pergunta: «Já?», a castidade da filha passou a simbolizar, com a passagem dos meses, a saúde, a preservação e tudo que lhe dissesse respeito.
Um dia, tinha Alice dezasseis anos, Tubarão foi ter com a esposa, com uma expressão angustiada:
- Sabes? Realmente não se pode dizer que tenhamos a certeza de que ela está bem, isto é, não podemos ter a certeza absoluta a menos que a levemos ao médico.
Por momentos, Katherine ficou a olhá-lo fixamente, tentando compreender o significado das palavras do marido.
Depois, perdeu o controle pela primeira vez na sua vida e gritou-lhe:
- És um porco desconfiado. Sai daqui já! Se me tornas a falar nisso outra vez, eu... eu vou-me embora.
Tubarão ficou um pouco admirado, se bem que se não assustasse com a explosão da mulher. Contudo, desistiu da ideia de um exame médico e passou a contentar-se com a simples pergunta mensal:
- «Já?»
Entretanto, o nível da fortuna de Tubarão continuava a crescer. Todas as noites, depois de Katherine e Alice terem ido para a cama, pegava no grosso livro de contas e abria-o debaixo da lâmpada suspensa do tecto. Então os olhos sombrios fechavam-se-lhe um pouco mais e a cara tomava um aspecto de meditação enquanto ia planeando investimentos de capital e calculando os seus interesses. Movia os lábios vagarosamente, visto que fazia um telefonema imaginário a liquidar uma imaginária hipoteca. Tinha uma expressão de aguda concentração, se bem que misturada com um certo sentimento de tristeza, ao dizer:
- É-me penoso fazer isto, mas tem de compreender que negócios são negócios.
Meteu a caneta no tinteiro e considerou o facto de as previsões certas lhe fazerem aumentar a fortuna.
-Alface! - comentou. - Toda a gente está a investir capitais em alfaces. O mercado vai ficar a abarrotar. Acho que devo é interessar-me por batatas e fazer algum dinheiro. Isto é boa terra.
Anotou no livro a plantação de trezentos hectares de batatas e continuou a percorrer as linhas. Trinta mil dólares no banco, rendendo apenas o juro bancário? Que vergonha! Era praticamente dinheiro desperdiçado. Franziu a testa, em ar de concentração, e pensou que gostaria de saber que tal estaria a Companhia de Construções e Empréstimos de S. José. Pagava a seis por cento, mas não se meteria nela às cegas, sem investigar o estado das coisas.
Ao fechar o livro de contas para se ir deitar, Tubarão estava resolvido a falar, no dia seguinte, com John Whiteside. «Às vezes estas Companhias vão à falência e os directores desaparecem-pensava ele, pouco à vontade.
Antes de a família Munroe se ter mudado para o vale, Tubarão suspeitava que todos os homens e rapazes tinham intenções reservadas acerca de Alice, mas, assim que viu o jovem Jimmy Munroe, os seus temores e suspeitas abrandaram até se instalarem definitivamente no jovem e sofisticado Jimmy. O rapaz era elegante e de cara simpática, de boca desenvolvida e sensual, e tinha um brilho nos olhos que denotava aquela superioridade insultante que tomam os rapazes do liceu. Dizia-se que bebia gim; usava sempre roupas de lã e nunca as calças que usam as pessoas do campo. O cabelo reluzia com brilhantina e todas as suas maneiras e gestos tinham uma pose que deixava as raparigas de Pastagens do Céu trementes de admiração e embaraço.
Jimmy olhava as raparigas com olhos calmos e cínicos, tentando parecer que não reparava nelas. Sabia que as raparigas gostam dos jovens com manchas no passado e Jimmy tinha um passado com muitas manchas. Embebedara-se várias vezes na sala de dança de Riverside; beijara, pelo menos, cem raparigas e, em três ocasiões, tivera aventuras pecaminosas nos bordéis de Salinas. Jimmy tentava fazer com que o rosto lhe espelhasse os reflexos da sua vida viciosa mas, temendo não ter uma aparência suficientemente pecaminosa, deixou escapar um certo número de pequenos rumores maliciosos que se espalharam com uma velocidade muito lisonjeira.
Tubarão Wicks ouviu os boatos e desenvolveu-se nele um ódio a Jimmy Munroe que provinha do medo da maneira como este se portava com as mulheres. «Que possibilidades - pensava Tubarão - poderia ter uma estúpida como Alice, em face de um homem tão adiantado no conhecimento do mundo?»
Antes mesmo que Alice tivesse visto o rapaz, Tubarão proibiu-a de lhe falar. Recomendou-lhe a coisa com tal veemência que no cérebro retardado da rapariga se desenvolveu um certo interesse.
- Que eu nunca te veja a falar com esse Jimmy Munroe.
- Quem é Jimmy Munroe, papá?
- Não te importes com isso. Só que eu nunca te veja a falar com ele. Ouviste? Esfolo-te viva se sei que olhaste para ele.
Tubarão nunca havia posto as mãos em cima de Alice, pela mesma razão porque não chicotearia um vaso de porcelana de Dresden. Hesitava mesmo em acariciá-la, com medo de lhe deixar alguma marca. Nunca fora preciso castigá-la, visto que Alice tinha sido sempre uma criança tratável e dócil. A maldade é originada por qualquer ideia ou ambição e Alice nunca tivera uma coisa nem outra.
De vez em quando tornava à mesma pergunta:
- Não falaste com Jimmy Munroe, pois não?
- Não, papá!
- Bem Que eu nunca te apanhe a falar com ele.
Após ter ouvido inúmeras vezes esta ordem, desenvolveu-se nas raras células do cérebro de Alice a convicção de que, realmente, gostaria de conhecer Jimmy Munroe. Chegara mesmo a sonhar com ele, o que mostra quão profundamente a ideia a penetrara. No seu sonho, um homem com o aspecto do índio representado no calendário da parede e que se chamava Jimmy, chegara montado num brilhante automóvel e dera-lhe um pêssego sumarento. À primeira dentada que deu no pêssego, o sumo começou a escorrer-lhe pelo queixo, o que a deixou envergonhada. Então a mãe acordou-a porque estava a ressonar. Katherine não gostava que a filha ressonasse, porque essa era outra das suas imperfeições.
Tubarão Wicks recebeu um telegrama. «Tia Nellie morreu noite passada. Funeral sábado.» Meteu-se no velho Ford e foi à quinta de John Whiteside dizer que não poderia assistir à reunião do conselho escolar. Antes de abalar, Tubarão tomou por momentos um ar preocupado para perguntar:
- Tenho andado a querer saber a sua opinião acerca da Companhia de Construções e Empréstimos de S. José.
John Whiteside sorriu e respondeu:
- Não sei assim muito sobre essa companhia.
- É que tenho trinta mil dólares no Banco a render três por cento e pensei que talvez conseguisse um pouco mais se os colocasse em qualquer outro lado.
O vizinho apertou os lábios, soprou ligeiramente e deu uns estalidos com os dentes, dizendo:
- Aqui para nós, acho que essa Companhia é o melhor para o investimento que quer fazer.
- Bem, sabe? O meu género de negócio não é aventurar-me. Se não vejo que a coisa dá lucro não me meto nela.
- Era só uma maneira de falar. Poucas companhias de construções e empréstimos se vão abaixo. E pagam bons dividendos.
- Hei-de tratar disso, mesmo assim. Vou a Oakland ao funeral da tia Nellie e hei-de parar umas horas em S. José para me informar acerca dessa Companhia.
No armazém geral de Pastagens do Céu, nessa noite, fizeram-se novas suposições acerca da fortuna de Tubarão, pois ele pedira o conselho de vários homens.
- Bem! Uma coisa é certa - concluiu T. B. Allen. - Tubarão Wicks não é parvo nenhum. Tanto pode pedir a opinião de um homem, como a de outro, mas não vai na conversa de qualquer um até observar ele próprio o caso.
- Sim! Não é parvo nenhum! - concordou o resto dos circunstantes.
Tubarão partiu para Oakland no sábado de manhã, deixando a esposa e a filha sós pela primeira vez na vida. Na tarde desse mesmo dia, Tom Breman passou pela quinta para levar Katherine e Alice a um baile na escola.
- Não creio que o meu marido aprovasse a ideia!-respondeu Katherine em tom assustado e indeciso.
- Não lhe recomendou que não fosse, pois não?
- Não, mas... nunca aconteceu ele ter saído de casa e creio que não aprovaria.
- Talvez nunca tenha pensado nisso. Vamos, Alice.. Venha-daí.
- Vamos, mãe! - pediu Alice.
Katherine sabia que a filha podia tomar aquela decisão assim tão rápida porque era estúpida de mais para ter medo. Alice não era pessoa para se importar com as consequências e não podia imaginar as torturas da conversa com Tubarão quando este voltasse. Katherine já o ouvia a dizer:
«Não percebo porque havias de querer ir enquanto estive fora. Quando abalei ia convencido de que vocês duas ficavam a tomar conta da casa, e, a primeira coisa que fizeram, foi abalar para um baile.»
Depois viriam as perguntas:
«Com quem dançou Alice? Bem, e que disse ele? Porque é que não ouviste? Devias ter ouvido.»
Não haveria zanga na voz de Tubarão mas, durante semanas e semanas, falaria ininterruptamente no caso, até que ela ficasse para sempre a odiar o caso do baile. Depois, quando chegasse aquele dia do mês, as perguntas dele haviam de pulular como mosquitos até se certificar de que Alice não estava grávida.
Katherine achava que não valia a pena o divertimento só para não ter de ouvir o marido.
- Vamos, mãe! - implorou Alice. - Nunca fomos sozinhas a parte nenhuma!
Uma vaga de piedade se apossou de Katherine. A pobre da filha nunca tivera um momento na vida em que estivesse à vontade. Nunca pudera falar de bagatelas com rapazes porque o pai nunca a perdia de vista.
- Pois bem! - decidiu, com a respiração suspensa. - Se o sr. Breman quiser esperar até que estejamos prontas, vamos.
Ao dizer isto, sentia-se extremamente forte, com a consciência de que estava a pôr o marido em xeque.
A beleza excessiva é uma desvantagem quase tão grande para as raparigas do campo como a fealdade. Quando os rapazes da região olhavam para Alice, as gargantas apertavam-se-lhes, não sabiam que fazer das mãos e coravam intensamente. Nada conseguiu fazê-los falar ou dançar com ela. Em vez disso, dançavam furiosamente com raparigas menos belas e faziam tanto barulho como crianças estouvadas, tentando, furiosamente, exibir-se. Quando ela estava de cara virada, não deixavam de fitar Alice, mas, se ela olhava para eles, vagueavam a vista tentando dar a impressão de que não haviam reparado nela. Alice, que sempre fora assim tratada, mal tinha noção da própria beleza. Já quase se resignara, mesmo, a servir de enfeite das cadeiras quando ia a um baile.
Jimmy Munroe estava encostado a uma parede, numa posição de elegante desprendimento, de soberba arrogância, quando Katherine e Alice entraram na escola. As calças dele tinham a altura ditada pela moda e os sapatos eram quase tão direitos na biqueira como tijolos de construção. Uma gravata preta com nó cuidado contrastava com a brancura da camisa de seda e o cabelo brilhava de preparados. Jimmy era um rapaz da cidade, tudo nele o indicava.
Ao vê-la entrar, precipitou-se como um falcão e, antes que Alice tivesse despido o casaco, já ele estava a seu lado. Naquele tom de voz enfastiado que adquirira no liceu, perguntou:
- Dança?
- Hum? - perguntou Alice.
- Que lhe parece a ideia de ir dançar comigo?
- Ah!! Você pede-me para dançar
Alice ao dizer isto, virou para ele os olhos embaciados e prometedores, de modo que a pergunta, de estúpida, tornou-se espirituosa ao mesmo tempo que ia ferir outras susceptibilidades que excitaram mesmo o cínico Jimmy.
«Dançar? - pensou ele que a rapariga dizia: - Só dançar?»
Então, a despeito do treino adquirido no liceu, Jimmy sentiu um nó na garganta, mexeu as mãos e os pés, nervosamente, e o sangue fez-lhe engrossar as veias do pescoço.
Alice virou-se para a mãe, que já estava a falar com a sr.a Breman naqueles problemas de culinária que têm todas as donas de casa, e perguntou:
- Mãe, posso ir dançar? . Katherine sorriu e disse:
- Vai, sim! - acrescentou: - Diverte-te ao menos uma vez.
Jimmy achou que Alice dançava mal. Quando a música parou, sugeriu:
- Está calor aqui, não está? Vamos dar um giro lá por fora.
Deste modo, conseguiu levá-la para debaixo das árvores do pátio da escola.
Entretanto, uma mulher que estava sentada nos degraus do portal entrou e foi bichanar qualquer coisa ao ouvido de Katherine. Esta levantou-se e correu para o exterior.
- Alice! - gritou em tom selvagem. - Vem já para aqui. Quando os dois passeantes saíram das sombras, ela virou-
-se para Jimmy e aconselhou:
- Afaste-se, ouviu? Afaste-se da minha filha, ou vai ter aborrecimentos.
Todos os sentimentos de masculinidade do rapaz se baralharam; sentia-se como uma criança repreendida. Detestava aquela sensação mas não conseguiu livrar-se dela.
Katherine levou a filha de volta para a sala, ralhando:
- O teu pai não te disse que te afastasses de Jimmy Munros? Não te disse isso mil vezes?
- Ai, era aquele? - sussurrou Alice.
- Claro que era. Que faziam vocês dois lá fora?
- Beijávamo-nos!
A boca de Katherine abriu-se numa exclamação de pasmo:
- Valha-me Deus! Valha-me Deus! Que vou eu fazer agora?
- Beijar é mau, mãe? Katherine sorriu:
- Não! Claro que não. É... é bom. Mas não deixes que o teu pai o saiba. Nunca lho digas, mesmo que ele to pergunte. Ficaria doido. Ficas aqui sentada ao meu lado o resto da noite e não tornes a falar com Jimmy Munroe, ouviste? Talvez o teu pai não venha a saber do caso! Valha-me Deus! Espero que ninguém lhe diga nada.
Na segunda-feira, Tubarão Wicks saiu do comboio da tarde, em Salinas, e tomou a camioneta que passava no cruzamento da estrada principal com o ramal que ia para Pastagens do Céu. Aí, pôs o saco de viagem às costas e iniciou a pé o caminho de quatro milhas para casa.
Estava uma noite clara, agradável e cheia de estrelas. Os sons misteriosos e suaves das colinas davam-lhe as boas-vindas e despertavam nele recordações que o faziam esquecer-se do caminho.
Vinha satisfeito com o funeral. As flores eram bonitas e em grande quantidade. O choro das mulheres e o passo solene dos homens haviam-lhe dado uma sensação suave de tristeza que estava longe de ser desagradável. Mesmo o ritual religioso que ninguém compreendeu nem ouviu lhe instilou misteriosos e doces fluidos no cérebro e no corpo. A igreja abriu-se e fechou-se sobre ele durante cerca de uma hora e, do contacto com o ambiente, revelou-se-lhe o poder forte das flores, do cheiroso incenso e das relações com a eternidade. Estas haviam sido, pois, as coisas que mais se lhe gravaram no espírito vindas da simplicidade admirável da cerimónia fúnebre.
Tubarão nunca conhecera bem a tia Nellie mas gostara imenso do funeral. Não se sabe como, os parentes haviam, por certo, ouvido falar da sua largueza de meios, visto que o trataram com deferência e dignidade. Agora, ao voltar para casa, pensava de novo nessas coisas, e o prazer que lhe davam fazia com que o tempo passasse mais depressa e com que a estrada fosse ficando cada vez mais curta, o que o fez chegar en breve ao armazém de Pastagens do Céu. Tubarão entrou, pois sabia que lá dentro encontraria alguém que o informaria de tudo que se passara no vale durante a sua ausência.
Apenas o dono da casa se encontrava no armazém quando Tubarão entrou. T. B. recostou-se mais na cadeira e os seus olhos brilharam de interesse.
-Ouvi dizer que tem estado fora - sugeriu, num tom que convidava a fazer confidências.
- Fui até Oakland; tive de ir a um funeral. Se bem que, ao mesmo tempo, tenha feito alguns negócios.
- E que tal, Tubarão?
- Bem... não sei que diga. Andei a informar-me acerca de uma companhia.
- Investiu algum dinheiro? - perguntou T. B., respeitosamente.
- Sim, algum.
Ambos os homens cravaram os olhos no chão.
- Alguma coisa de especial enquanto estive fora? Imediatamente se estampou na face do velho um ar de relutância. Lia-se nele uma falta de disposição para contar o que se passara, numa aversão natural ao escândalo.
- Houve um baile na escola - admitiu por fim.
- Sim, ouvi falar disso.
- Bem! E que mais? - arriscou.
- Parece que vai haver um casamento muito em breve. •-Sim? E de quem?
- Muito perto de si.
- Mas onde?
- Na sua casa.
- Na minha casa?
- Sim. Alice.
Tubarão estremeceu e olhou o velho, fixamente. Depois, avançou alguns passos e ficou em frente dele com ar ameaçador.
- Que quer você dizer? Diga-me o que significa essa conversa... seu...
- Calma, Wicks! Que quer fazer?
- Conte-me tudo, tudo! - disse Tubarão, pegando no outro por um braço e sacudindo-o com fúria.
- Bem! Foi no baile, apenas no baile.
- Hum!
- Que foi ela lá fazer?
- Não sei... isto é... não foi lá fazer nada. Tubarão fê-lo saltar da cadeira e ergueu-o do chão.
- Conte-me tudo! - ordenou.
O velho já não sabia que dizer ou que fazer.
- Saiu apenas para o pátio com Jimmy Munroe.
- Conte-me tudo! Que fizeram eles?
- Não sei, Wicks.
- Conte-me!
- Bem! Miss Burke... Miss Burke disse... que estavam a beijar-se.
Tubarão largou-o como a um saco e sentou-se. Estava pálido e sentia-se desnorteado. Enquanto fixava T. B. Allen, o cérebro dele lutava com o problema da perda da pureza da filha. Não se convencia que a coisa não tivesse ido além de um beijo. Virou a cara e perpassou o olhar pela loja, em
busca de auxílio. T. B. Allen viu os olhos dele passarem pela vitrina das armas e gritou:
- Não faça isso. Essas espingardas não lhe pertencem.
Tubarão não reparara sequer nas espingardas mas, agora que lhe chamavam a atenção para elas, levantou-se, abriu as portas giratórias de vidro e tomou uma delas. Retirou-lhe a etiqueta do preço e meteu no bolso uma mão cheia de cartuchos. Depois, sem mais um olhar para o dono da casa, saiu para a escuridão. O velho T. B., no entanto, estava já ao telefone antes que os passos do outro tivessem morrido na noite.
À medida que Tubarão se aproximava rapidamente da casa dos Munroe, os pensamentos fervilhavam-lhe sem esperança no cérebro. De uma coisa estava ele certo: agora que já andara um bocado, não tinha intenção de matar Jimmy Munroe. Não tinha mesmo pensado em disparar sobre ele, até ao momento em que o caixeiro lhe sugerira a ideia. Depois agira sem pensar. Que fazer, agora? Tentava conjecturar o que faria quando chegasse junto da casa dos Munroe. Talvez tivesse que disparar sobre Jimmy. Talvez as coisas se proporcionassem de modo a que fosse forçado a cometer um assassínio para manter a sua dignidade em Pastagens do Céu.
Ouviu um automóvel vir pela estrada e escondeu-se nos arbustos até que o carro passou, fazendo grande barulho com o escape. Em breve chegaria ao local onde morava Jimmy e sabia que não odiava o rapaz. Não odiava coisa alguma neste mundo, a não ser aquela sensação que tivera ao ouvir falar da perda da virtude de Alice. De agora em diante apenas podia considerar a filha como morta.
Já podia ver as luzes da casa dos Munroe e sabia que não seria capaz de atirar sobre Jimmy. Mesmo que isso o tornasse objecto de escárnio, não poderia matar o rapaz; não havia em si instintos homicidas. Resolveu passar pelo portão da quinta e continuar o seu caminho. Talvez que as pessoas se rissem dele, mas simplesmente, não seria capaz de disparar sobre alguém.
De repente, um homem saltou das sombras de um arbusto e gritou-lhe:
- Largue essa arma, Wicks, e levante os braços!
Tubarão largou a espingarda, com uma espécie de obediência passiva. Reconheceu a voz do ajudante do sheriff e disse:
- Olá, Jack.
Em seguida juntou-se uma porção de gente à sua volta e, lá por detrás, Tubarão descobriu a cara assustada de Jimmy. Bert Munroe também estava cheio de medo e disse:
- Para que queria você matar Jimmy? O rapaz não lhe faz mal nenhum. O velho T. B. avisou-me pelo telefone e agora temos que o pôr num sítio onde não faça mal a ninguém.
- Ninguém o pode encarcerar - disse o ajudante do shtriff. - O homem não fez mal a ninguém. O máximo que se lhe pode fazer é pô-lo sob fiança para manter o sossego.
- Ah, sim? Bem, acho que é o que se deve fazer. E a voz de Bert tremia ao dizer isto.
- O melhor que tem a fazer é exigir uma fiança elevada
- aconselhou o representante da lei. - Tubarão é um homem rico. Vamos. Temos de o levar a Salinas onde poderá então apresentar queixa.
Na manhã seguinte, Tubarão Wicks entrou em casa silenciosamente e foi estender-se na cama. Tinha os olhos baços e cansados mas conservava-os abertos. Os braços caíam-lhe estendidos ao longo do corpo como os de um cadáver e assim permaneceu durante horas e horas.
Katherine, da horta, viu-o entrar em casa. Sentiu-se imensamente satisfeita de vê-lo com os ombros descaídos e a cabeça pendida mas, ao entrar em casa para preparar o almoço, passou a andar em bicos de pés e preveniu Alice de que não devia fazer barulho.
Às três da tarde, Katherine foi à porta do quarto e falou lá para dentro:
- Não aconteceu nada a Alice. Devias ter falado comigo antes de tomares qualquer decisão.
Tubarão não respondeu nem mudou de posição.
- Não me acreditas?
A perda de vitalidade do marido atemorizou-a.
- Se não me acreditas - continuou - podemos mandar chamar o médico. Eu própria o mandarei chamar, agora que não acreditas no que eu digo.
A cabeça do marido nem sequer se virou para ela, quando respondeu numa voz muito apagada:
- Acredito.
Depois, enquanto se mantinha de pé à porta do quarto, um sentimento que nunca havia experimentado tomou conta de Katherine e fez o que nunca fizera na sua vida. Uma suave ternura a fez entrar no quarto, sentar-se na beira da cama e, com mão segura, poisar a cabeça de Tubarão no seu regaço. Agia assim por instinto, e foi o mesmo instinto forte e seguro que a levou a acariciar a fronte do marido. O corpo dele estava mole, como se a derrota lhe tivesse retirado todos os ossos. Os olhos de Wicks permaneceram cravados no tecto, mas sob a influência das carícias da mulher, começou a falar aos soluços:
- Não tenho dinheiro nenhum - dizia ele em voz monótona. - Levaram-me e pediram-me uma fiança de dez mil dólares. Tive de dizer ao juiz e todos ouviram. Todos sabem agora que não tenho dinheiro... nem nunca o tive. Compreendes? Aquele livro de contas não passava de uma mentira. Tudo mentiras... tudo forjado. Agora todos sabem, porque tive de dizê-lo ao juiz.
Katherine acariciou-lhe a testa com mais ternura e o génio da bondade continuou a desenvolver-se nela. Sentia-se maior que o mundo. Todo o mundo estava deitado no seu regaço e ela acariciava-o. A piedade parecia agigantá-la e o movimento que fazia a respirar era o mesmo que embalava o mundo.
- Eu não queria fazer mal a ninguém - continuou ele. Não ia com intenção de disparar sobre Jimmy. Apanharam-me antes que pudesse retroceder. Pensaram que ia matá-lo e agora todos sabem que não tenho dinheiro.
Depois deixou-se ficar quieto, com os olhos teimosamente virados para cima e fixos em nada.
Num momento, o génio que movia Katherine transformou-se em poder e o poder tomou posse dela e começou a correr-lhe nas veias, juntamente com o sangue. Compreendeu num momento quem ela era e o que podia fazer. Ficou exultante de felicidade e extraordinariamente bela.
- Nunca tiveste uma oportunidade - falou ternamente. Toda a tua vida tem sido passada nesta quinta e nunca houve uma oportunidade que conseguisses apanhar. Como sabes que não és capaz de enriquecer? Eu creio que podes; tenho a certeza de que podes.
Agora ela sabia de quanto era capaz. Ali sentada, nascera em si o conhecimento da sua própria força e sabia que toda a sua vida se continha neste momento. Nesta altura ela era uma deusa, uma cantora do destino. Não ficou sequer surpreendida quando o corpo do marido estremeceu; continuou simplesmente a acariciar-lhe a testa.
Os olhos de Wicks perderam a triste falta de vitalidade. O corpo dele achou forças suficientes para se virar.
Olhou para Katherine e viu como a mulher estava bela nesse momento. Ao olhá-la, o génio que a animava transferiu-se para ele e Tubarão comprimiu a cabeça de encontro aos joelhos da esposa.
Ela baixou a cabeça e olhou para ele. Agora que o poder a abandonava sentia-se aterrorizada. De súbito, Tubarão sentou-se na cama. Esquecera-se da presença de Katherine, mas os seus olhos brilhavam com a energia que ela lhe transmitira.
- Hei-de ir! - gritou. - Hei-de ir, logo que venda as terras. Então terei dinheiro e tentarei a minha sorte. Hei-de mostrar a todos quem eu sou.
A origem de Tularecito está envolta na obscuridade, enquanto que a sua descoberta é um mito em que os habitantes de Pastagens do Céu se recusam a acreditar, do mesmo modo que não querem crer em fantasmas.
Franklim Gomez tinha um empregado: um índio-mexicano chamado Pancho e mais nada. De três em três meses, Pancho pegava nas suas economias e ia até Monterey confessar os seus pecados, cumprir a penitência, cortar o cabelo e embebedar-se, tudo pela ordem nomeada. Se conseguia não ir preso, Pancho enrolava-se na sua manta e adormecia quando todas as casas de bebidas fechavam. O cavalo levava-o para casa, onde chegavam ao alvorecer e a tempo de Pancho tomar o pequeno-almoço e ir trabalhar. Pancho estava sempre a dormir quando chegava e essa é a razão por que despertou tanto interesse o facto de, uma manhã, entrar no rancho a galope, não apenas acordado, mas gritando com quantas forças tinha.
Franklim Gomez vestiu-se e saiu para ter uma entrevista com o seu empregado. O caso, depois de expurgado de todas as incongruências, era o seguinte: Pancho voltava para casa, tão ébrio como de costume, quando, perto de casa de Blacke, ouviu chorar uma criança entre os arbustos que ladeavam a estrada. Parou o cavalo e foi investigar, porque nem todos os dias as pessoas encontram crianças desse modo. Claro que encontrou um miúdo de cerca de três meses, a avaliar pelo tamanho. Pegou nele e acendeu um fósforo para ver que espécie de coisa achara e, horror dos horrores, o bebé piscou o olho com malícia e disse em voz cava:
- Estás a ver como tenho dentes aguçados?
Pancho não chegou a ver. Atirou o pequeno fardo para bem longe, saltou para a sela e partiu a galope para casa, batendo no cavalo com o cabo do chicote e uivando como um cão.
Franklim Gomez cofiou as suíças durante algum tempo. A natureza de Pancho, considerou, não era de modo a ter ataques de histerismo, mesmo sob a acção do álcool.
O simples facto de ter acordado provava que devia haver qualquer coisa de especial entre os arbustos. Finalmente, Franklim Gomez mandou selar um cavalo, abalou a galope e trouxe a criança. Esta não voltou a falar durante os três anos mais próximos nem se verificou que tivesse dente algum, mas nenhum destes factos convenceu Pancho de que o moço não lhe fizera a feroz observação do primeiro encontro.
O estranho enjeitado tinha braços curtos, musculosos e compridos, e as pernas muito juntas na altura dos joelhos. O rosto, juntamente com a anormalidade do resto do corpo, fez com que lhe começassem logo a chamar Tularecito, ou seja, Pequena Rã, se bem que Franklim muita vez lhe chamasse coiote porque, dizia ele, «há na cara desse moço aquela esperteza ancestral que se nota nos coiotes».
- Mas, e as pernas e os pés, senhor? - recordava-lhe Pancho.
E assim prevaleceu o nome de Tularecito. Nunca se descobriu quem abandonara a pobre criatura deformada.
Franklim Gomez aceitou-o no patriarcado do seu rancho e Pancho tomou conta dele. Contudo, Pancho nunca conseguiu perder um certo receio do rapaz. Nem o passar dos anos nem uma penitência rigorosa desvaneceram o efeito causado pelo encontro.
O moço cresceu rapidamente em tamanho mas, depois dos cinco anos, o cérebro não se lhe desenvolveu mais. Com seis anos, Tularecito podia já fazer o trabalho de um homem. Os seus dedos compridos eram mais habilidosos e mais fortes do que os da maioria dos homens e, nos trabalhos do rancho, tais dedos tinham bastante utilidade: os nós apertados, por exemplo, eram coisas que não lhes resistiam. Além disso, tinha enorme habilidade para plantar qualquer coisa: dedos suaves que não feriam as plantas nem amolgavam os caules delicados. Eram também dedos sem misericórdia que podiam, sem esforço, arrancar a cabeça de qualquer peru ou outra ave de grande porte.
Tularecito tinha ainda um dom extraordinário: era capaz de, com a unha do polegar, modelar notavelmente animais em terracota. Franklim Gomez guardava em casa muitas miniaturas de coiotes, leões de montanha, pintos e esquilos. Uma reprodução de um falcão de dois pés de envergadura pendia do tecto da casa de jantar, segura por fios. Pancho, que nunca considerara o rapaz completamente humano, punha a sua habilidade para a escultura na crescente categoria dos seus dons diabólicos, definitivamente provenientes da sua origem sobrenatural.
Se bem que a população de Pastagens do Céu não acreditasse na origem diabólica de Tularecito, ninguém se sentia à vontade quando ele estava perto. Os olhos dele eram secos como os de alguém muito velho e havia algo de troglodita no seu aspecto. A enorme força do seu corpo e os seus dons estranhos e obscuros afastavam-no das outras crianças e faziam os adultos sentir-se mal.
Uma única coisa despertava a ira de Tularecito: se alguém, homem, mulher ou criança, destruísse qualquer coisa feita pelas suas mãos, ficava furioso. Os olhos brilhavam-lhe e atacava a pessoa com fúria assassina. Em três ocasiões que isso acontecera, Franklim Gomez atara-o de pés e mãos e deixara-o sozinho até voltar à sua boa disposição normal.
Tularecito não foi para a escola quando fez seis anos. Nos cinco anos seguintes, o director do distrito escolar e o director da escola falavam, de vez em quando, no caso. Franklim Gomez concordava que o moço devia, realmente, lá ir e chegou mesmo ao ponto de o mandar várias vezes, mas Tularecito nunca lá chegou. Receava que a escola fosse desagradável e, simplesmente, desaparecia por um ou dois dias. Assim, foi apenas na idade de onze anos, quando já tinha os ombros de um campeão de pesos e. halteres e braços de estrangulador, que as forças da lei se concentraram para o colocar na escola.
Franklim Gomez foi informado de que Tularecito não aprendia nada mas que, imediatamente, mostrara possuir um novo talento: sabia desenhar tão bem como sabia esculpir em terracota. Quando Miss Martin, a professora, lhe descobriu esta habilidade, deu-lhe um giz e mandou-o desenhar uma procissão de animais em torno do quadro negro. Tularecito trabalhou por muito tempo, depois mesmo da hora da saída e, na manhã seguinte, as paredes exibiam uma parada admirável. Todos os animais que Tularecito já vira aí se encontravam; por cima deles, voavam as aves das colinas. Uma pequena serpente rastejava atrás de um bezerro; um coiote, com a cauda levantada orgulhosamente, perseguia um porco. Havia ainda gatos, cabras, cágados e ratos do mato, todos eles desenhados com uma veracidade e uma cópia de pormenores admiráveis.
Miss Martin ficou encantada com o génio de Tularecito. Louvou-o perante todos os colegas e fez uma prelecção acerca de cada um dos animais desenhados. Considerava que era para si própria uma glória ter descoberto e encorajado um tal génio.
-Sou capaz de fazer muitos mais!-informou-a Tularecito.
A professora deu-lhe umas pancadinhas no ombro e declarou:
- Claro que és. Vais mesmo desenhá-los todos os dias. Esse é um grande dom que Deus te deu.
Depois, compreendeu a importância do que acabava de dizer, inclinou-se e olhou inquisidoramente para os olhos duros do aluno, enquanto repetia:
- É um grande dom que Deus te deu.
Miss Martin olhou para o relógio e anunciou em Voz seca:
- Quarta classe de aritmética, ao quadro.
Os alunos da quarta classe levantaram-se, pegaram nos apagadores e começaram a apagar os animais para fazerem lugar aos números. Não haviam ainda passado duas vezes com o apagador quando Tularecito se lançou à carga. Foi uma coisa admirável para todos. Miss Martin, ajudada por toda a escola, não conseguiu ter mão nele, visto que Tularecito, enraivecido, tinha a força de um homem e, o que era pior, de um doido. A batalha que se seguiu despedaçou a aula, escavacou carteiras, fez correr rios de tinta e espalhou pelo chão ramos de flores trazidos para a mestra. As roupas de Miss Martin ficaram todas rasgadas e os rapazes mais velhos, sobre quem recaiu todo o peso da batalha, foram batidos cruelmente. Tularecito lutava com as mãos, os pés, os dentes e a cabeça. Não fazia distinção entre golpes lícitos ou golpes proibidos e, finalmente, venceu. Toda a escola, com Miss Martin na retaguarda, abandonou o edifício, deixando o enraivecido Tularecito na posse do campo de batalha. Quando todos saíram, ele fechou a porta, limpou o sangue que lhe corria dos olhos e voltou ao trabalho de reparar os animais que haviam sido destruídos.
Nessa noite, Miss Martin passou por casa de Franklim Gomez e pediu que o rapaz fosse chicoteado. Gomez encolheu os ombros e perguntou:
- Quer, realmente, que o chicoteie?
A cara da professora contraiu-se e a sua boca teve uma expressão cruel:
- Claro que quero. Se o senhor visse o que aconteceu hoje, não me criticaria. Asseguro-lhe que ele precisa de uma boa lição.
Gomez tornou a encolher os ombros e chamou Tularecito, que se encontrava no celeiro. Pegou num chicote que estava na parede e, enquanto o rapaz sorria brandamente para a professora, chicoteou-o severamente nas costas. As mãos de Miss Martin, entretanto, faziam, involuntariamente, os gestos de quem bate em alguém. Quando o patrão acabou de lhe bater, Tularecito apalpou-se todo com dedos longos e exploradores e, sempre sorrindo, voltou para o celeiro.
Miss Martin observava o fim do castigo cheia de horror.
- Mas, é um animal! - gritou ela. - Foi como se tivesse chicoteado um cão.
Franklim Gomez permitiu-se-lhe uma observação:
- Um cão teria ganido -• disse. - Claro que é um animal, mas não há dúvida de que é um animal dócil. A senhora mandou-o desenhar animais e depois destruiu-os; Tularecito não gosta disso.
A professora tentou interromper, mas ele apressou-se a continuar:
Esta pequena rã não devia ir à escola. Sabe trabalhar e sabe fazer coisas maravilhosas com as mãos, mas é incapaz de aprender a mínima coisa do que na escola se ensina. Não é doido; é uma dessas criaturas que Deus não acabou de fazer. Expliquei todas estas coisas ao inspector e ele respondeu que Tularecito devia ir à escola até aos dezoito anos, o que só será daqui a sete. Durante sete anos, a minha rãzinha ficará na primeira classe, porque a lei assim o manda. É um facto contra o qual nada posso.
- Devia tê-lo sempre fechado - interrompeu-o Miss Martin. - Esta criatura é perigosa. Devia tê-lo visto esta tarde.
- Não, Miss Martin, deveria deixá-lo em paz, porque não é nada perigoso. Ninguém, como ele, é capaz de arranjar um jardim ou ordenhar tão bem e com tanto jeito uma vaca.
No fundo é bom rapaz. Pode domar um cavalo sem o montar e sabe domesticar um cão sem usar chicote, mas a lei manda que fique sentado numa sala de aula durante sete anos, a repetir: G-A-T-O, GATO. Se fosse perigoso facilmente me teria morto quando o chicoteei.
Miss Martin viu que estas coisas ultrapassavam a sua compreensão e ficou a odiar Franklim Gomez por isso. Sentiu que havia sido perversa e ele generoso. Ao voltar à escola, no dia seguinte, encontrou Tularecito na sua frente. Todo o espaço possível das paredes estava coberto de desenhos de animais.
- Está a ver? - disse ele, virando para ela a sua face deformada. - Muitos animais. Além disso, tenho um caderno com outros, mas já não há espaço aqui.
A professora não apagou as figuras. Mandou fazer os trabalhos escolares nos cadernos e, no fim do período, demitiu-se, alegando doença.
Miss Morgan, a nova professora, era ainda muito nova e muito bonita: jovem e bonita de mais, pensavam os homens mais velhos do vale. Alguns dos alunos mais adiantados tinham já dezassete anos e havia sérias dúvidas de que uma professora tão jovem e bonita conseguisse manter alguma ordem na escola.
A nova professora trouxe consigo um entusiasmo irresistível pela profissão. Os alunos ficaram admiradíssimos, porque estavam habituados a megeras idosas cujas caras reflectiam pés constantemente cansados. Miss Morgan, pelo contrário, gostava de ensinar e de fazer da escola um local divertido onde aconteciam coisas inesperadas.
Desde a primeira vez que o viu, Miss Morgan ficou impressionadíssima com Tularecito. Sabia tudo o que se relacionava com a doença e lera livros e seguira cursos a esse respeito. Tendo ouvido falar da luta, marcou um espaço em volta do topo do quadro para ele preencher com animais e, assim que a parada ficou completa, comprou, com dinheiro seu, um grande estirador, folhas de papel e um lápis macio para desenho. Depois disso, o rapaz não mais ligou às letras. Levava os dias a trabalhar no seu novo lugar e todas as tardes presenteava a professora com um novo animal maravilhosamente completo, que ela pregava nas paredes em torno da sala.
Todos os outros alunos receberam com entusiasmo as inovações de Miss Morgan. As aulas foram ficando cada vez mais interessantes e até os rapazes que haviam criado uma invejável reputação de caçadores de mestras perderam o interesse no possível plano de lançar fogo ao edifício.
Miss Morgan introduziu uma prática que fez com que os alunos a adorassem. Todas as tardes lia para eles durante meia hora trechos tais como excertos do Ivanhoe e de O Talismã, histórias de pesca de Zarce Grey, histórias de caçadas por janes Oliver Curwood, o Lobo do Mar, e outras no género que não fossem histórias para crianças como a da galinha vermelha, a raposa e os patos, mas belas histórias para pessoas crescidas.
A professora sabia dar interesse à leitura. Mesmo os mais empedernidos dos alunos foram conquistados, a ponto de não faltarem às aulas com medo de perder o capítulo seguinte. Tularecito continuava a dar toda a atenção aos seus desenhos, interrompendo-se apenas de vez em quando para piscar o olho à professora e tentar compreender porque é que aquelas narrativas distantes de factos e pessoas desconhecidas poderiam interessar alguém. Para ele, aquilo eram crónicas de acontecimentos verdadeiros - de outro modo, porque haveriam de ser escritos? As histórias eram como as lições; Tularecito não lhes prestava atenção.
Passado algum tempo, Miss Morgan achou que já divertira de mais os alunos mais velhos. Ela própria gostava de histórias de fadas, gostava de imaginar populações inteiras que acreditavam em fadas e, consequentemente, as chegavam mesmo a ver. No meio das pessoas eruditas e experimentadas dos seus conhecimentos, dizia muitas vezes que «parte da fama cultural da América era devida à estúpida e supersticiosa negação da existência das fadas». Assim, por algum tempo, dedicou a meia hora de leitura a histórias de fadas.
Então operou-se uma mudança na atitude de Tulacerito. Gradualmente, à medida que Miss Morgan ia lendo sobre anões, génios, fadas, sereias e encantamentos, todo o seu interesse passou a concentrar-se nas coisas que ouvia, esquecendo o lápis e os desenhos. Depois, quando ela começou a falar de gnomos, das suas vidas e hábitos, largou o lápis de vez e foi para junto da professora para compreender as palavras que ela dizia.
Depois das aulas, Miss Morgan fazia a pé o caminho de meia milha entre a escola e a quinta onde estava hospedada. Gostava de caminhar sozinha, cortando os topos de plantas selvagens com o rápido toque de uma varinha ou atirando pedras para o meio dos arbustos para espantar os animais que lá se escondiam. Pensava até em arranjar um cão fiel e curioso que fosse capaz de compartilhar dos seus entusiasmos, de compreender o encanto dos buracos no chão e das marcas de patas nas folhas secas, de admirar os estranhos e melancólicos cantos das aves e os odores alegres que se exalavam do chão.
Uma tarde, Miss Morgan subiu a uma rocha de calcário para gravar nela as suas iniciais. Ao subir feriu um dedo num espinho e, em vez das iniciais, escreveu, comprimindo o dedo que sangrava contra a rocha absorvente: «Aqui já eu estive e deixei esta parcela do meu ser.»
Nessa tarde escreveu uma carta de que guardou uma cópia: «Além dos meros requisitos de viver e de se reproduzir, o que o Homem mais deseja é deixar uma recordação de si mesmo. Talvez uma prova de que na realidade existiu. Deixa essa prova na madeira, na pedra ou nas vidas das outras pessoas. Este desejo profundo existe em toda a gente, desde o rapaz que faz bonecos numa parede até ao buda que grava a sua imagem no espírito de uma raça. Esta vida é tão irreal! Creio que chegamos mesmo a duvidar que existimos e andamos por aí a provar a nós mesmos a nossa existência.»
Ao voltar para casa no dia em que lera a história de gnomos, as folhagens ao lado da estrada afastaram-se de repente e apareceu entre elas a horrenda cabeça de Tularecito.
- Oh! Assustaste-me! - gritou Miss Morgan. - Não devias ter aparecido assim de repente.
Tularecito pôs-se de pé, sorrindo com ar apalermado, enquanto puxava o chapéu mais para a frente. Subitamente, Miss Morgan sentiu que o medo se apoderava dela. A estrada estava deserta... muitas vezes lera histórias acerca de seres meio humanos e meio sobrenaturais. Dominou a voz com dificuldade e perguntou:
- Que é... que é que desejas? Ele continuou a sorrir e a agitar o chapéu.
- Estavas ali deitado ou queres alguma coisa?
O rapaz pareceu querer falar mas voltou a couraçar-se no sorriso.
- Bem, se não queres nada, vou-me embora! Na verdade, estava decidida a fugir.
- É sobre aqueles povos...
- Quais povos?
- Aqueles povos do livro...
Miss Morgan riu aliviada até sentir que o cabelo deixara de estar arrepiado na nuca.
- Queres dizer... queres dizer, os gnomos? Tularecito aquiesceu com um aceno de cabeça.
- Que queres tu saber acerca deles?
- Nunca vi nenhum! - continuou o pobre ser, sem que a voz subisse ou baixasse, antes falando no mesmo tom monótono.
- Ora! Acho que há poucas pessoas que os vejam.
- Mas eu já sabia que existiam.
Os olhos da professora brilharam de interesse. -Já? Quem te falou deles?
- Ninguém!
- Nunca os viste e ninguém te falou deles. Como podias então saber que existiam?
- Sabia! Talvez os tenha ouvido. Já conhecia todos os que vêm no livro.
Miss Morgan pensou:
«Para que hei-de negar a existência de gnomos a esta pobre criança inacabada? A sua vida não seria mais rica e mais feliz se acreditasse neles? Além disso, que mal faz?»
- Alguma vez os procuraste?
- Não, nunca os procurei! Sabia só que existiam. Mas, de agora em diante, vou passar a procurá-los.
A professora sentia-se encantada com a situação. Aqui tinha ela papel para escrever e gesso para esculpir. Podia esculpir neste aluno e na sua pobre mentalidade uma história que seria muito mais bela e real que qualquer outra história já escrita. Perguntou:
- Aonde é que os vais procurar?
- Vou pesquisar nos buracos.
-Mas os gnomos só saem à noite, Tularecito. Deves procurá-los de noite. Depois tens de vir dizer-me se encontraste algum. Sim?
- Depois venho dizer-lhe! - concordou ele.
A mestra abalou, deixando-o a olhá-la fixamente. Todo o caminho para casa ela o imaginava nas suas pesquisas nocturnas. Era um quadro que lhe agradava. Talvez mesmo chegasse a encontrar os gnomos, a falar com eles e a viver no seu meio. Com algumas palavras sugestivas, conseguira transformar-lhe a vida numa aventura irreal e maravilhosa, uma vida à parte das vidas estúpidas que o rodeavam. Chegou mesmo a invejar-lhe as pesquisas.
À noite, Tularecito vestiu o casaco e pegou numa picareta. O velho Pancho veio ter com ele e perguntou:
- Aonde vais, minha rãzinha?
Tularecito ficou a mexer os pés, enervado com o contratempo:
- Vou sair para o escuro. Que tem isso de novo?
- Mas para que levas a picareta? Vais à procura de ouro? A cara do moço tornou-se dura, pensando na seriedade do seu plano, e respondeu.
- Vou escavar à procura dos povos que vivem debaixo da terra.
Nesta altura, Pancho ficou horrorizado.
- Não vás, rãzinha. Ouve o que te diz o teu amigo, o teu padrinho, e não vás. Foi nas estevas que eu te achei e salvei dos demónios, teus parentes. Agora és irmão de Jesus. Não voltes para o teu povo! Ouve o que te diz este velhote, rãzinha.
Tularecito fitou os olhos no chão e penetrou os seus velhos pensamentos com esta nova informação:
- Tu o disseste: eles são o meu povo! - exclamou. - Não sou como os outros da escola ou daqui. Agora sei-o. Sinto saudades do meu povo que vive nas profundezas do chão frio. Quando passo pela toca de um esquilo tenho vontade de me meter lá dentro e ficar lá escondido. O meu povo é como eu e é ele que me chama. Tenho de voltar para eles, Pancho, para o lar a que pertenço.
Pancho recuou e levantou dois dedos em cruz exclamando:
- Volta então para o Demónio teu pai. Não sou suficientemente virtuoso para lidar com um Demónio, porque isso é só para os santos. Mas vê: pelo menos faço o meu sinal contra ti e toda a tua raça.
Desenhou no ar o sinal da cruz na frente do rapaz, como um gesto de protecção.
Tularecito teve um sorriso triste, virou as costas e encaminhou-se para as colinas.
O coração do pobre monstrozinho rejubilava com a alegria do regresso ao lar. Toda a sua vida fora um ente posto de parte, um esquecido solitário e agora ia voltar para casa. Como sempre, ouvia as vozes da terra: o longínquo som dos chocalhos das vacas, os sussurros dos movimentos dos esquilos, o balir do coiote que não cantaria nessa noite, os trilos nocturnos de milhões de insectos. Mas o que Tularecito queria ouvir era outro som: os movimentos de criaturas com dois pés, as vozes sussurradas de povos escondidos. Parou uma vez e gritou:
- Meu pai, voltei para casa! Mas não obteve resposta. sussurrava para dentro das tocas dos esquilos:
- Onde estais vós, meu povo? É Tularecito que volta para casa!
Mas só os ruídos comuns da noite lhe respondiam.
Pior que tudo, não tinha a sensação de se achar perto dos gnomos. Sabia que, perto dele, uma rola e uma popa debicavam, que um gato selvagem devorava um coelho por detrás de um arbusto, se bem que os não visse; mas dos gnomos não recebia mensagem alguma.
A Lua começou a subir por detrás das colinas.
- Agora os animais vão sair em busca de alimento murmurou Tularecito no seu tom misterioso e quase sobrenatural.- Agora o meu povo também sairá.
Os arbustos terminavam junto de um córrego para darem lugar a um pomar. As árvores estavam carregadas de folhagem e a terra cuidadosamente tratada. Era o pomar de Bert Munroe. Muitas vezes, quando a terra estava abandonada e habitada por fantasmas, Tularecito para ali viera para se deitar debaixo das árvores e acariciar as estrelas com dedos carinhosos.
No momento em que entrou no pomar compreendeu que se aproximava de casa. Não os ouvia mas sabia que os gnomos estavam ali. Chamou-os, repetidamente, mas não apareceram.
- Talvez não gostem do luar! - murmurou.
Começou a escavar a sua toca junto ao tronco de um grande pessegueiro - três pés de altura, e o mais profundo possível. Trabalhou nele toda a noite, interrompendo-se de vez em quando para escutar e voltando logo a cavar a terra fresca, cada vez mais fundo. Só se deteve quando o dia nasceu, retirando-se para ir dormir nos arbustos.
Perto do meio-dia, Bert Munroe saiu a examinar uma armadilha que preparara para apanhar um coiote e descobriu o buraco que Tularecito fizera.
-Que diabo! - exclamou. - Andaram aqui miúdos a fazer um túnel. Isto é perigoso; pode desabar-lhes em cima ou alguém pode cair lá dentro e ficar mal.
Voltou a casa, trouxe uma pá e tapou o buraco.
- Mammy - perguntou ao filho mais novo - não andaste a cavar no pomar, pois não?
- Não!
- Não sabes quem foi?
- Não!
- É que andou lá alguém a cavar um buraco. É perigoso. Diz aos teus amigos que não façam mais buracos porque podem ficar soterrados.
Quando veio de novo a escuridão, Tularecito saiu de entre os arbustos para continuar a fazer a toca. Quando a achou tapada, lançou grunhidos selvangens, mas um novo pensamento lhe atravessou o cérebro e fê-lo rir de felicidade.
- O meu povo esteve aqui. Não sabiam quem era e ficaram assustados. Taparam o buraco como as toupeiras tapam os delas. Desta vez escondo-me, e quando vierem tapar o buraco digo-lhes quem sou e recebem-me.
Com estes pensamentos, voltou a abrir o buraco, cavando-o muito mais fundo do que antes, visto a terra não estar bem batida. Antes do nascer do Sol voltou a esconder-se e ficou a observar.
Bert Munroe saiu antes do pequeno-almoço para ir ver a armadilha e tornou a encontrar o buraco. Murmurou:
- Patifes! Não desistem. Aposto que afinal Mammy está metido no caso.
Observou o buraco por momentos e começou a empurrar a terra lá para dentro com o pé. Um urro selvagem fê-lo voltar. Tularecito vinha sobre ele, dando saltos de rã com as suas pernas enormes e brandindo a picareta.
Quando Jimmy Munroe veio chamar o pai para o pequeno-almoço, encontrou-o prostrado sobre um monte de terra. De dentro do buraco saía mais terra, como se alguém tivesse morto Bert e se preparasse para o enterrar. Correu a casa cheio de terror e chamou os vizinhos pelo telefone.
Vieram alguns seis homens até junto da cova. Tularecito lutou como um leão ferido e levou a sua avante até que lhe deram uma paulada na cabeça com o cabo da picareta. Depois ataram-no de pés e mãos e meteram-no na cadeia.
Em Salinas o rapaz foi examinado por um conselho médico. A todas as perguntas que lhe faziam ele sorria com ar estúpido e ficava calado. Franklim Gomez informou o conselho do que sabia sobre o caso e pediu que lhe fosse confiada a guarda do rapaz.
-Não podemos, mister Gomezl- disse, finalmente o juiz. - O senhor diz que ele é bom rapaz. No entanto, ontem tentou matar um homem. Bem vê que não é possível deixá-lo à solta. Mais tarde ou mais cedo, poderia matar alguém.
Depois de breve deliberação, Tularecito foi mandado para o asilo dos criminosos tarados em Napa.
HELEN VAN DEVENTER era uma mulher alta, de cara bonita mas dura e de olhos trágicos. Um pesado sentido de tragédia parecia ter tombado sobre toda a sua vida. Aos quinze anos parecera uma viúva quando lhe envenenaram um gato siamês. Pranteou-o durante seis meses, não ostensivamente, mas com maneiras quase retraídas e em voz lamentosa. Quando o pai lhe morreu, no fim dos seis meses de luto pelo gato, o pranto continuou sem interrupção. Parecia que tinha fome de tragédia e que a vida se comprazia em lhe saciar essa fome.
Aos vinte e cinco anos casou com Hubert van Deventer, um caçador que passava seis meses do ano tentando dar um tiro nesta ou naquela espécie de criatura. Três meses depois do casamento deu um a si próprio num desastre de caça. Quando estava a morrer, estendido debaixo de uma árvore, e um dos companheiros lhe perguntou se queria deixar alguma mensagem para a esposa, respondeu: «Sim! Digam-lhe que me mande empalhar e ponha na biblioteca entre a cabeça do touro e o wafiti. Digam-lhe também que este é o único trofeu que não comprei numa loja.»
Helen van Deventer fechou à chave a biblioteca com todos os trofeus e, desse dia em diante, o local passou a ser considerado sagrado pelo espírito de Hubert. Os reposteiros permaneceram corridos para sempre e, se alguém precisava de falar referindo-se à sala, fazia-o em tom solene. Helen não chorou, pois isso não se coadunava com a sua natureza, mas os olhos alargaram-se-lhe e ficou por muito tempo fixando um ponto vago, com a expressão de quem viaja através dos tempos. Hubert deixou-lhe a casa da Colina Russa em S. Francisco e uma fortuna muito considerável.
A filha, Hilda, nascida seis meses depois de o marido morrer, era um bebé lindo, com cara de boneca e os olhos da mãe. Hilda nunca estava bem; apanhou todas as doenças das crianças com surpreendente facilidade. O seu temperamento, que a princípio se manifestou em gritos e choros, tornou-se destruidor logo que começou a poder andar. Escavacava qualquer coisa quebrável que lhe estivesse ao alcance da mão nos seus ataques de fúria. Helen van Deventer embalava-a e acariciava-a, o que, geralmente, lhe fazia aumentar a ira.
Quando Hilda já tinha seis anos, o dr. Phillips, médico da família, disse à sr.a van Deventer uma coisa que ela suspeitava havia muito.
- A senhora deve compreender, Hilda não é muito certa. Sugiro que a leve a um psiquiatra.
Os olhos negros da mãe dilataram-se de dor. -Tem a certeza, doutor?
- Absoluta. Não sou especialista nesses casos e a senhora deve levá-la a alguém que perceba mais dessas coisas que eu. Helen desviou a vista e respondeu:
- Também já pensei nisso, doutor, mas não posso levá-la a outro médico. O senhor sempre tratou de nós e eu conheço-o bem. Nunca teria confiança noutra pessoa.
- Que quer a senhora dizer com ter confiança? - explodiu o dr. Phillips. - Não compreende que só a poderemos curar se a tratarmos a tempo?
As mãos de Helen torceram-se de desespero e depois caíram abandonadas.
- Nunca se curará, doutor. Nasceu em má altura. A morte do pai foi um golpe muito duro para mim; não tive forças bastantes para dar à luz uma criança perfeita.
- Que pensa fazer, então? A sua ideia é uma loucura, se me permite a expressão.
- Que mais posso eu fazer? Apenas ter esperanças. Compreendo que não tenha razão, mas não posso levá-la a ser observada por outra pessoa. O mais que posso é cuidar dela com todo o cuidado, já que essa parece ser a minha sina.
Sorriu de modo muito triste e tornou a erguer as mãos. - Parece que a senhora gosta de sofrer! - declarou-lhe o médico.
- Sofremos aquilo que nos é mandado pelo Céu; tudo suportarei. Não há tragédia suficientemente grande que possa quebrar a minha resistência. Há apenas uma coisa que não posso suportar, doutor: é que Hilda seja tratada por outro médico. Ficará aqui comigo; o senhor pode vir cá, mas ninguém mais deve interferir no caso.
O dr. Phillips saiu dali desgostoso. A teimosia daquela mulher chegava a irritá-lo. Murmurou:
- Se eu fosse o Destino também tentaria quebrar-lhe essa plácida resistência.
Não demorou muito que Hilda começasse a ter sonhos e visões. Criaturas horríveis, com garras e dentes aguçados, tentavam matá-la enquanto dormia. Anõezinhos horrorosos beliscavam-na e mordiam-lhe as orelhas, enquanto Helen van Deventer aceitava as visões como novas personagens que a vinham pôr à prova.
Veio um tigre que se atirou às roupas da cama! - gritou Hilda uma manhã.
- Não deves deixar que ele te assuste, querida.
-Mas ele tentou morder-me através dos cobertores, mãe.
- Esta noite ficarei a teu lado e ele não virá. Começou então a passar as noites junto da filha, até despontar a luz da madrugada. Os olhos brilhavam-lhe cada vez mais e tinham um aspecto febril que provinha da obstinada resistência do seu espírito.
Havia apenas uma coisa que a preocupava mais que os sonhos: Hilda começou a inventar mentiras.
- Esta manhã saí para o jardim, mãe. Estava um velho sentado lá fora que me pediu para ir a casa dele. Eu fui. Tinha um grande elefante dourado e deixou-me montá-lo.
Os olhos da rapariga fitavam algo muito longínquo enquanto contava o caso.
- Não digas isso, querida. Sabes muito bem que não fizeste tal coisa.
-Mas é verdade, mãe. O velho deu-me um relógio. Já te mostro. Olha.
Mostrou à mãe um relógio de pulso em ouro com diamantes à volta. As mãos de Helen tremeram de horror ao pegar no objecto. Por momentos o rosto dela perdeu o aspecto de resistência para dar lugar à ira.
- Onde arranjaste tu o relógio, Hilda?
- Deu-mo o velho, mãe!
- Não! Diz-me onde o achaste! Achaste-o, não é verdade?
- Deu-mo o velho.
Nas costas do relógio estava gravado um monograma que Helen não conhecia. Ficou a olhar desconsoladamente para as letras gravadas e declarou:
- A mãe guarda isto.
Nessa noite saiu para o jardim, pegou numa enxada, fez uma cova e enterrou o relógio muito fundo. Na mesma semana mandou rodear o jardim com uma alta grade de ferro e Hilda não mais teve licença de sair sozinha.
Aos treze anos, Hilda escapou-se e fugiu. Helen contratou agentes particulares para a descobrirem, mas ao cabo de quatro dias, um polícia foi dar com Hilda a dormir num escritório deserto em Los Angels. Helen foi buscar a filha à esquadra.
- Porque fugiste, querida? - perguntou.
- Eu queria tocar piano.
- Mas temos um piano em casa. Porque não tocaste nele?
- Ora, eu queria tocar nos outros pianos, naqueles mais altos.
Helen pegou-lhe por um braço e sacudiu-a levemente, perguntando:
- E que fizeste depois?
- Saí para a rua e um homem pediu-me para ir dar um passeio a cavalo com ele e deu-me cinco dólares. Depois encontrei uns ciganos e fui viver com eles. Fizeram-me sua rainha e casaram-me com um cigano ainda novo. Depois, estávamos para ter um filho, mas senti-me cansada e sentei-me. Nessa altura um polícia prendeu-me.
- Querida! Pobre querida. Sabes que isso não é verdade. Nada disso é verdade.
- É verdade, sim, mãe!
Helen mandou chamar o dr. Phillips e contou:
- Ela diz que casou com um cigano. O senhor não crê que... realmente não acha que ela não poderia... Oh! Nunca suportaria tal ideia.
O médico inspeccionou a rapariga com muito cuidado. Depois do exame falou em tom vicioso:
- Já lhe disse que devia mandá-la a um especialista. Aproximou-se da pequena e perguntou:
- A velha feia tem ido ao teu quarto, Hilda?
- Veio a noite passada com um macaco; um macaco grande e feio que me quis morder.
- Está bem. Não te esqueças de que o macaco nunca te poderá fazer mal, porque eu cuido de ti. A velha tem medo de mim. Quando ela voltar, diz-lhe que eu estou a tratar de ti e vais ver como se vai embora num instante.
- E o macaco também vai?
- Claro. Entretanto, toma um rebuçado para a tua filha. É o melhor que há para a Babette; não é assim que ela se chama?
Hilda pegou no rebuçado e saiu da sala a correr.
- Neste caso - disse o médico a Helen - infelizmente faltam-me conhecimentos e experiência; mas o que sei é isto: Hilda piorará muito. Está a atingir a idade adulta. O período» da adolescência, com os fluxos emocionais que o acompanham, intensifica geralmente as perturbações mentais. Não lhe sei dizer o que se poderá passar. Talvez venha a ter fúrias homicidas ou a fugir com o primeiro homem que veja. Se não a põe nas mãos de peritos e se não a trouxer cuidadosamente vigiada, pode acontecer algo de muito lamentável. Esta fuga foi apenas um prelúdio. A senhora não pode continuar a tê-la assim, até porque não está a agir bem para consigo própria.
Helen permaneceu sentada, rigidamente, na frente dele. No seu rosto estava espelhado aquele ar de resistência que tanto o enraivecia.
- Que sugere, então?
- Um manicómio! - respondeu o médico, com satisfação por ter sido brutal.
A cara dela endureceu mais ainda e a resistência tornou-se-lhe maior.
- Nunca farei tal coisa! - gritou. - É minha e sou a única responsável por ela. Eu própria cuidarei dela. Nunca a perderei de vista nem a. mandarei para longe de mim.
- Já sabe as consequências! - respondeu ele, asperamente. Depois, a impossibilidade de raciocinar com tal mulher tomou conta dele.
- Helen, tenho sido seu amigo durante muitos anos. Porque há-de tomar sobre si este peso de miséria e de perigo?
- Posso suportar tudo menos a ideia de me afastar dela.
- A senhora gosta mas é de se arrepiar. Para si, a dor é um prazer. Nunca perderá a mínima parcela de uma tragédia. Helen - disse enfurecido -, todos os homens desejam bater numa mulher, numa ou noutra ocasião. Acho que sou un homem calmo mas, nesta altura, sinto-me capaz de a esbofetear.
Fitou-a nos olhos e compreendeu que apenas lhe tinha posto em cima outra tragédia, que apenas lhe dera outra situação que ela podia suportar e declarou:
- Vou-me embora! Não me torne a chamar. Oh, começo a odiá-la.
Os habitantes de Pastagens do Céu souberam com interesse e ressentimento que uma senhora rica vinha viver para o vale. Camiões carregados de barrotes e madeiras passavam por eles no desfiladeiro do Natal, e os habitantes da Terra riam-se à socapa com a ideia de que alguém usava tais barrotes para fazer uma casa de campo. Bert Munroe subiu ao cimo do desfiladeiro e, durante meio-dia, observou os carpinteiros que edificavam a casa.
- Vai ficar bonito! - transmitiu ele no armazém. - Está tudo o mais perfeito possível e, que pensam?, já lá estão jardineiros a trabalhar. Têm trazido plantas e árvores já crescidas e andam a transplantá-las para ali. Essa tal sr.a van Deventer deve ser muito rica.
- Estão cheios «dele»! - declarou Pat Humbert. - Esses ricos estão cheios «dele».
- Oiçam isto! Não é mesmo de mulher? Adivinham o que mandou ela pôr numa das janelas? Barras! Não barras de ferro, mas espessas barras de carvalho. Suponho que a velhota tem medo dos coiotes.
- Trará ela um exército de criados? - disse T. B. Allen. Todavia creio que vai mandar vir todas as compras da cidade. Esses ricos gostam de mandar vir tudo da cidade.
Quando a casa e o jardim ficaram prontos, Helen van Deventer e Hilda, um cozinheiro chinês e um rapazito filipino mudaram-se para lá. A casa estava linda. Os carpinteiros haviam dado à madeira um ar de velhice e os jardineiros tinham feito o jardim como se tivesse sido plantado há muito. Havia faias e carvalhos que davam sombra a belos canteiros de cinerarias vermelhas, brancas e azuis.
O cozinheiro e o criado foram logo tomar conta dos seus postos mas Helen tomou Hilda pela mão e deu com ela um passeio pelo jardim.
- Não é lindo? - exclamou Helen. - Querida, não achas que gostaremos de viver aqui?
Hilda arrancou uma flor e atirou-a contra uma árvore.
- Gostava mais da nossa casa! - declarou.
- Mas porquê, querida? Não tínhamos lá flores tão bonitas nem árvores tão grandes. Aqui podemos dar passeios pelas colinas todos os dias.
- Gostava mais da nossa casa.
- Mas porquê, querida?
- Todos os meus amigos viviam lá. Podia olhar pelas grades e ver passar as pessoas.
- Vais gostar mais de viver aqui, Hilda, quando te habituares.
- Não! Não vou. Nunca gostarei de viver aqui, nunca. Hilda começou a chorar e, depois, sem transição, começou a gritar de raiva. De repente, pegou num bocado de terra do jardim e atirou-o à mãe. Silenciosamente, o criado filipino apareceu por detrás dela, juntou-lhe os braços atrás e levou-a, esperneando e a gritar, para dentro de casa.
No quarto que lhe fora destinado, Hilda quebrou metòdicamente toda a mobília. Desfez as almofadas e espalhou as penas por todo o aposento. Despedaçou as madeiras da janela, atirou-se contra as barras e gritou cheia de fúria. Helen permaneceu sentada no seu quarto, com os lábios contraídos. Levantou-se uma vez como que para ir ao quarto de Hilda, mas voltou a enterrar-se na cadeira. A cega resistência quebrara-se por momentos, mas voltou de novo, mais forte que nunca e sem que os gritos provenientes do quarto de Hilda tivessem efeito algum sobre ela. O criado veio perguntar:
- Fechar as janelas?
- Não, Joe! Estamos muito longe de todos. Ninguém ouvirá nada.
Bert Munroe viu o automóvel vir trazer os ocupantes da casa.
- Deve ser difícil uma mulher sozinha estabelecer-se no nosso meio - disse ele à esposa. - Creio que devia ir lá ver se precisam de alguma coisa.
- O que tu tens é curiosidade!
- Evidente. Se pensas isso, não vou.
- Estava a brincar, Bert. Creio que seria um lindo gesto de boa vizinhança ir até lá. É mesmo a melhor maneira de a pôr à vontade. Acho que deves ir ver se precisam de alguma coisa.
Bert lá foi, seguindo pelo caminho que corria ao longo do desfiladeiro.
«Não é lugar para cultivar», pensou para si. «É sítio para se viver, viver apenas. Bem podia eu estar a viver numa casa como aquela, se o armistício não tivesse sido assinado quando foi.»
Como de costume, sentiu-se envergonhado por desejar que a guerra houvesse continuado por mais algum tempo.
Os gritos de Hilda chegaram-lhe aos ouvidos quando ainda se encontrava a um quarto de milha de distância da casa.
- Que diabo! - pensou. - Parece que estão a matar alguém.
Apressou mais o passo para ir ver o que era.
A janela gradeada do quarto de Hilda dava para o caminho que ia ter à entrada da casa. Bert viu a rapariga agarrada às barras de madeira, com os olhos loucos de fúria e de medo.
- Viva! - disse ele. - Que se passa? Porque é que a fecharam aí?
- Estão a matar-me à fome. Querem que eu morra.
- Isso é uma loucura. Porque havia alguém de querer que você morresse?
- Oh! É por causa do meu dinheiro. Não terão o meu dinheiro enquanto eu não morrer.
- Ora! Você ainda é uma criança.
- Não sou nada. Sou uma mulher crescida. Tenho este aspecto porque me batem e fazem passar fome.
A cara de Bert tomou um ar sombrio e declarou:
- Bem, já vou tratar disso.
- Oh! Não lhes diga nada. Ajude-me só a sair daqui e depois eu vou buscar o meu dinheiro e caso consigo.
Agora Bert já suspeitava do que se tratava. Murmurou em tom doce:
- Claro que a ajudo. Espere só um momento que já a ajudo a sair.
Rodeou a casa, foi à entrada principal e bateu à porta.
Por momentos a porta abriu-se um pouco e os olhos astutos do criado espreitaram para fora.
- Posso falar com a dona da casa? - perguntou Bert.
- Não! - respondeu o rapaz, e fechou a porta.
Bert corou de vergonha com a resposta que lhe mostrava ser ele ali um intrometido e voltou a bater, nervosamente.
A porta voltou a abrir-se uma greta e os olhos negros espreitaram de novo.
- Já lhe disse que preciso de falar com a dona da casa. É por causa da rapariguinha que está encerrada.
- Senhora muito doente. Desculpe. Fechou outra vez a porta.
Desta vez Bert voltou para casa a toda a pressa.
«Vou dizer à minha mulher que não venha cá», pensava. «Uma rapariga doida e um criado incorrecto. Podem ir para o diabo.»
Helen perguntou de dentro do quarto:
- O que era, Joe?
O rapaz apareceu à porta a informar:
- Veio um homem. Disse que queria ver a senhora. Respondi que a senhora estar doente.
- Está bem! Quem era? Não disse o que é que me queria?
- Não sei quem era! Disse precisava falar com senhora por causa de missie Hilda.
- E tu mandaste-o embora. Estás a tomar muitas liberdades. Sai já daqui.
- Sim, missie! - Joe virou lentamente as costas Joe, anda cá!
O rapaz estava já ao lado da cadeira dela quando Helen destapou os olhos. - desculpa, Joe. Já não sei o que digo. Fizeste bem. Não te vais embora, pois não?
-Não, missie.
Helen levantou-se e caminhou agitadamente até à janela.
- Não sei o que tenho hoje. Miss Hilda está bem?
- Sim. Missie sossegada agora.
- Está bem. Acende o fogo na lareira da sala e daqui a bocado traz a menina.
Na concepção da sala desta nova casa, Helen sentia que criara uma espécie de monumento à memória do marido. Havia-a feito assemelhar, tanto quanto possível, a um pavilhão de caça. Era uma sala grande, com um lambrim de carvalho vermelho. Nas paredes, de espaço a espaço, cabeças empalhadas de várias espécies de veados levantavam narizes inquisidores. Uma das paredes era dominada por uma enorme lareira armada sobre pedras por cima da qual pendia uma bandeira francesa de batalha, toda rasgada, que Hubert arranjara algures. Numa panóplia de vidro, fechado, estavam alinhadas, na parede da frente, todas as armas de Hubert. Helen sentia que nunca perderia totalmente o marido enquanto tivesse uma sala como esta onde descansar.
Na sala da casa da Colina Russa habituara-se a praticar gestos cabalísticos que a transportavam a um sonho e queria continuar essa prática na casa onde habitava agora. O sonho era materializado quase como um ritual.
Helen sentava-se junto do fogo, cruzava as mãos e olhava para todos os trofeus, repetindo a cada um deles: Hubert pegou nisto. Finalmente, vinha o sonho. Quase chegava a ver o marido na sua frente. Desenhavam-se no cérebro dela as formas das suas mãos, a finura dos seus lábios, o comprimento das suas pernas. Momentos depois, lembrava-se do seu modo de dizer as coisas, de acentuar as palavras, e de como a cara dele enrubescia e parecia brilhar quando estava excitado. Helen recordava como ele ia levando os convidados de trofeu em trofeu. Em frente de cada um deles, Hubert rodava nos calcanhares e punha as mãos atrás das costas, enquanto recitava a história da morte do animal nos seus mais insignificantes pormenores.
- Ainda não saíra a Lua, e não se via sinal de caça. (Fred era o guia) dizia que não tínhamos a mínima possibilidade de apanhar coisa algua. Lembro-me de que se acabara a carne nessa manhã. No entanto, sentia que, de repente, a oortunidade se havia de nos deparar.
Helen ouvia-o mesmo contar as histórias estúpidas e sem nexo que, invariavelmente, terminava com:
- «Bem! O animal estava longe de mais e soprava à esquerda um vento dos diabos, mas fiz pontaria e pensei: não vai servir de nada; e, diabos me levem se não o derrubei. Claro que fui muito favorecido pela sorte.»
Hubert não desejava, realmente, que os ouvintes acreditassem que fora apenas uma questão de sorte; era apenas um gesto gracioso de desportivismo. Helen lembrava-se de que costumava cismar no que levava um desportista a não poder admitir que fizera alguma coisa bem feita.
No entanto, era assim que o sonho acontecia. Construía a imagem do marido, até que toda a sala ficava possuída e repleta da vitalidade absorvente do grande caçador. Depois, quando o sonho estava completo, esmagava-o. A campainha da porta havia-lhe soado com um tom particularmente doloroso. Helen lembrava as caras tristes e embaraçadas dos homens que lhe deram a triste notícia. O sonho terminava sempre na altura em que o corpo era trazido pelas escadas acima. Nessa altura, uma cega onda de tristeza invadia-lhe o peito e fazia-a enterrar mais fundo no assento.
Deste modo conservava vivo o marido, recusando-se tenazmente a deixar que a imagem dele se lhe esfumasse na memória. Fora casada apenas três meses, dizia a si própria. Três meses apenas! Resignava-se com um sentimento de melancolia serena esperança. Sabia que ajudara esse sentimento a desenvolver-se, mas acreditava que Hubert tinha direito a ele, como que um tributo fúnebre que lhe era devido. Devia resistir à tristeza mas não tentar fugir-lhe.
Helen havia imaginado a sua primeira noite na nova casa. Queria dar as boas-vindas ao seu sonho com madeiras crepitando no fogo e a luz a rebrilhar nos olhos das cabeças dos animais empalhados.
Joe voltou ao quarto.
- O fogo está aceso. Chamo missie Hilda, agora? Helen espreitou para fora. A escuridão vinha descendo as colinas e alguns morcegos esvoaçavam já nervosamente em torno da casa. Os castores chamavam uns pelos outros ao entrarem na água e, lá longe no desfiladeiro, as vacas desciam a caminho dos locais de ordenha. Operava-se em Helen uma mudança. Sentia-se cheia de uma sensação de paz, nova para ela; protegida e couraçada contra as tragédias que, por tanto tempo, a haviam atormentado. Estendeu as pernas e bocejou. Joe continuava à espera entre as portas.
- O quê? - disse Helen. - Miss Hilda? Não, não a tragas ainda. O jantar já deve estar quase pronto e se a menina não quiser vir jantar eu vou vê-la depois.
Na realidade, não queria ver Hilda. Esta paz nova e deliciosa seria quebrada se visse a filha. Queria ficar sentada, na estranha luminosidade do crepúsculo; sentada a ouvir os castores chamarem uns pelos outros, ao descerem as encostas das colinas para irem beber antes de cair a noite.
Pôs um xale de seda pelos ombros e saiu para o jardim. Parecia que a paz também descia as colinas e a envolvia. Viu num canteiro um coelhito cinzento, de pequena cauda branca; a vista do pequeno animal fê-la estremecer de satisfação. O coelho virou a cabeça, olhou-a por momentos e continuou a tasquinhar nas plantas novas. De súbito, Helen sentiu-se loucamente feliz. Qualquer coisa maravilhosa e admirável se ia passar; algo delicioso. Na sua súbita alegria, começou a falar com o coelho:
- Come, come. Podes comer as flores todas. Amanhã vou mandar plantar repolhos só para ti. Vais gostar de repolhos, não vais, Pedro? Sabes que te chamas Pedro? É uma patetice mas todos os coelhos se chamam Pedro. De qualquer modo, Pedro, sabes uma coisa? Há que tempos que não reparo em nada. É engraçado, não é? Ou é triste? Mas agora vou passar a reparar em qualquer coisa. Já tremo toda de alegria, embora não saiba que coisa possa ser. Não é uma palermice, Pedro? Continuou a andar e acenou com a mão ao coelho, dizendo:
- Sempre pensei que as cinerarias seriam boas para comer.
O som da água corrente levou-a na direcção do pequeno regato. Ao aproximar-se da margem, um casal de castores fugiu para o mato soltando gritos de alarme. Helen sentiu pena de tê-los assustado.- venham cá! - chamou. - Não vou matá-los. Mesmo que quisesse, não seria capaz. Não viram que o coelho não se importou comigo?
Veio-lhe de repente à memória como Hubert a levara um dia para lhe ensinar a atirar com uma arma de fogo. Tomara um ar religiosamente solene ao ensinar-lhe a maneira de pegar na arma e de fazer pontaria, com ambos os olhos abertos.
«Agora atiro uma lata ao ar» dissera ele. - «Não quero que atires nunca num alvo imóvel, nunca. É um pobre desportista aquele que dispara sobre uma ave poisada.»
Passara toda a tarde a atirar na lata, até que ficou com o ombro magoado. À volta para casa, o marido dera-lhe umas palmadinhas nas costas e declarara:
Ainda vai demorar muito tempo antes que possas acertar num castor, mas, em breve serás capaz de acertar num coelho.
Depois pensou nas aves que ele trouxera para casa, penduradas pelo pescoço em finos cordões de couro.
«Quando caírem dos cordões», dissera, «estão em condições de ser comidas.
Sem transição, Helen compreendeu que não queria pensar mais em Hubert. A recordação dele quase lhe quebrara a sensação de paz.
Já quase não ria. A noite estava agradável e cheia de odores selvagens.
Ouvindo o cozinheiro tocar o chocalho que ela havia comprado para servir de gong, Helen agasalhou-se mais no xale, estremeceu e voltou para casa.
Na sala de jantar encontrou-se com a filha, face a face.
Todos os sinais da fúria que Hilda tivera de tarde haviam desaparecido; tinha o aspecto de quem se sente feliz e satisfeito consigo mesmo.
- Querida! Estás melhor, não estás?
- Oh, sim, mãe!
Helen deu a volta à mesa e beijou a filha na testa. Então, observou-lhe um pouco convulsivamente:
- Quando vires como tudo aqui é lindo hás-de gostar de viver cá; sei que gostarás.
Hilda não respondeu, apenas os olhos demonstraram ter ouvido a mãe.
- Hás-de gostar, não é verdade, querida? - insistiu Helen ao voltar para o seu lugar.
A filha tomou um tom misterioso:
- Bem, talvez goste. Talvez até nem tenha de gostar.
- Que queres tu dizer, querida?
- Talvez não fique aqui muito tempo.
- Não fiques aqui muito tempo?
Helen levantou rapidamente os olhos para a filha. Era evidente que Hilda tentava ocultar-lhe qualquer segredo, mas ser-lhe-ia difícil guardá-lo por muito tempo.
- Talvez fuja e case.
Helen recostou-se na cadeira e sorriu.
- Ah! Compreendo. Claro que sim, que te casarás. No entanto, talvez seja melhor esperares ainda alguns anos. Quem é ele agora, querida? O príncipe, outra vez?
- Não, não é o príncipe. É um homem pobre mas hei-de amá-lo muito. Planeámos tudo hoje e acho que me virá buscar.
Qualquer coisa acudiu à memória de Helen.
- É o homem que passou aqui esta tarde? Hilda levantou-se da mesa.
- Não te conto mais nada - gritou. - Não tens o direito de me interrogar. Espera que já te mostro como não tenho de ficar nesta casa.
Saiu da casa de jantar, a correr, e bateu com a porta do quarto atrás de si.
Helen tocou a campainha a chamar o criado.
- Joe, o que é que disse o homem que cá veio hoje?
- Disse que tinha de ver senhora por causa da rapariguinha.
- E que género de homem era? Velho?
- Não velho, missie, não novo. Talvez cinquenta anos. Helen suspirou. Era apenas mais uma história entre os muitos pequenos dramas que Hilda arquitectava para contar; e essas coisas eram tão verdadeiras para ela!... Pobre criança! Comeu devagar e, depois, na grande sala, ficou sentada em frente do fogo, batendo ao acaso nos toros que ardiam. Apagou todas as luzes. O fogo brilhava nos olhos dos animais empalhados e o velho hábito de Helen voltou a instalar-se-lhe no cérebro. Achou-se imaginando o aspecto das mãos de Hubert, das suas ancas estreitas e como tinha as pernas compridas. Foi então que fez uma descoberta: quando o seu cérebro deixou de se preocupar com as mãos do marido, elas desapareceram. Já não construía a imagem de Hubert. Ele desaparecera, morrera definitivamente. Pela primeira vez em muitos anos, Helen pôs as mãos no rosto e chorou, porque a paz havia voltado e, com ela, um sentimento de esperança no futuro. Enxugou os olhos e começou a passear, vagarosamente, pela sala, sorrindo para as cabeças empalhadas com o ar casual de um estranho que não soubesse a história da morte de cada um dos animais. Sentia que a sala tinha um aspecto diferente e que estava mesmo diferente. Perpassou os dedos pelos fechos e abriu as largas janelas para a noite. A brisa nocturna invadiu a casa e banhou-lhe os ombros nus com uma paz toda frescura. Inclinou-se para fora e pôs-se à escuta: chegaram até ela tantos pequenos ruídos vindos do jardim e das colinas vizinhas!
«Tudo isto está infestado de vida», pensou. «Está repleto de vida que pupula por todos os lados.»
À medida que escutava os sons da noite, foi-se apercebendo de um ligeiro raspar no outro lado da casa.
Pensou:
«Se aqui houvesse furões diria que um deles estava a roer qualquer coisa. Talvez seja um porco-espinho a roer as fundações da casa. Já tenho ouvido falar em casos assim. Mas também não há porcos-espinhos por aqui.»
A própria casa vibrava com o raspar.
«Talvez haja qualquer coisa nas fundações», pensou.
Nessa altura ouviu-se um pequeno desabamento e o ruído cessou.
Helen ficou mal disposta. Caminhou apressada por um corredor e parou em frente da porta do quarto da filha. Pôs a mão no forte fecho exterior e chamou:
- Querida! Estás bem?
Não obteve resposta. Abriu o fecho muito devagar e entrou no quarto. Uma das barras de carvalho estava quebrada e Hilda desaparecera.
Por momentos, Helen ficou parada em frente da janela aberta, olhando pensativamente para a noite cinzenta. Depois o rosto empalideceu-lhe e nos seus lábios estampou-se o velho traço de resistência. Os movimentos tornaram-se-lhe mecânicos, ao voltar para a sala. Subiu a uma cadeira, abriu a panóplia das armas e tirou uma espingarda.
O dr. Phillips estava sentado ao lado de Helen van Deventer no gabinete do coronel. Viera como médico da pequena, claro, mas pensava que também poderia ser útil para evitar que Helen tivesse medo. Esta não parecia nada assustada. No seu severo e quase selvagem soluçar, tinha um ar de resistência que lembrava uma rocha batida pelo mar.
- O senhor já esperava que isto se desse? - perguntou o coroner, Já pensava que o caso poderia acontecer?
O dr. Phillips olhou, pouco à vontade, para Helen e aclarou a voz.
-Foi tratada por mim desde que nasceu. Num caso destes, tanto podia suicidar-se como assassinar alguém; tudo dependia das circunstâncias. Depois poderia continuar a viver sem fazer mal a uma mosca; passar todo o resto da vida sem fazer o mínimo gesto de violência. Compreende, é difícil de dizer.
O coroner estava já a assinar os papéis.
- Foi uma maneira brutal de o fazer - disse ele. - Claro que a rapariga era anormal e não há razão nenhuma para se inquirir dos motivos que a levaram a tal; devem ter sido coisas de nada... Foi uma maneira horrível de o fazer, se bem que, com certeza, não teve conhecimento de nada. cabeça dentro de água e a arma caída ao lado... Farei com que os jurados pronunciem um veredictum de suicídio. Desculpe ter de falar assim na sua frente, sr.a van Deventer. Deve ter sido um choque terrível ir encontrá-la assim.
O médico ajudou Helen a descer as escadas do tribunal.
- Não fique assim - exclamou.--Tem o aspecto de quem vai para a forca. Digo-lhe que foi melhor para ela. A senhora não deve deixar-se abater...
Helen nem olhou para ele.
- Agora já sei - respondeu. - Agora sei o que a vida espera de mim; sei aquilo de que sempre suspeitei e terei forças para suportar a minha sina. Não se preocupe comigo, doutor.
IUNIUS MALTBY era um jovem baixo, de famílias boas, cultas e de educação decente. Quando o pai morreu na falência, achou-se inextrincàvelmente emaranhado de dívidas, contra as quais lutou durante dez anos.
Depois do trabalho, Junius retirava-se para o seu quarto alugado, batia as almofadas da cadeira de repouso e passava o resto da tarde a ler. Considerava os ensaios de Stevenson como sendo quase a coisa mais bela da língua inglesa, e leu as Travels with a Donkey vezes sem conto.
Uma tarde, pouco depois de ter feito trinta e cinco anos, Junius desmaiou na escada da pensão. Quando recobrou os sentidos, reparou pela primeira vez que a sua respiração não era normal. Ficou a cismar há quanto tempo é que aquilo se passaria assim. O médico que consultou foi simpático e deu-lhe mesmo algumas esperanças.
- O senhor não está, de modo algum, longe de se poder curar. Mas, na verdade, deve levar esses pulmões para fora de São Francisco. Se fica aqui neste nevoeiro, não vive nem um ano. Mude-se para um clima quente e seco.
Este acidente na sua saúde encheu Junius de prazer porque vinha cortar certos laços que ele seria incapaz de quebrar sozinho. Possuía cinco mil dólares; não que os tivesse poupado, simplesmente esquecera-se de os gastar.
«Com este dinheiro», pensou, «ou me curo e recomeço nova vida ou morro e acaba-se com tudo de vez.»
Um companheiro do escritório falou-lhe do quente e abrigado vale de Pastagens do Céu, e Junius foi imediatamente para lá. O nome agradou-lhe.
- É sinal de que não vou viver - declarou -, ou melhor, é um lindo e simbólico substituto da morte.
Sentia que aquele nome se relacionava directamente com o seu caso e isso agradou-lhe porque havia dez anos que nada tinha relação directa consigo.
Havia em Pastagens do Céu famílias que queriam aceitar hóspedes. Junius inspeccionou todas as casas e, finalmente, foi viver para a quinta da viúva Quaker. A mulher precisava de dinheiro e, além disso, ele iria dormir para uma habitação separada da casa da quinta. A sr.a Quaker tinha dois filhos pequenos e um empregado para os trabalhos do campo.
O clima morno teve uma acção maravilhosa nos pulmões de Junius. Um ano depois já tinha boas cores e ganhara alguns quilos de peso. Sentia-se tranquilo e feliz no campo e, o que ainda lhe agradava mais, havia deitado fora os dez anos de escritório e passado a ser magnificamente preguiçoso. O seu fino cabelo loiro passou a andar despenteado; começou a usar óculos na ponta do nariz porque a vista foi melhorando e apenas o hábito o fazia usá-los. Tinha sempre na boca qualquer palhinha ou pedacinho de madeira, hábito que só os homens mais preguiçosos adquirem. A convalescença principiou em 1910.
Em 1911 a sr.a Quaker começou a inquietar-se com o que os vizinhos diziam. Quando considerou a circunstância que implicava ter um homem solteiro de portas a dentro passou a andar nervosa e inquieta. Quando a cura de Junius pareceu ser um facto que desafiava todas as dúvidas, a viúva confessou-lhe as suas apreensões. Ele casou com ela imediata e alegremente. Agora tinha uma casa e um futuro dourado, porque a nova sr.a Maltby possuía duzentos hectares de encostas cheias de pasto e cinco hectares de pomar e horta. Junius mandou vir os seus livros, a sua cadeira de repouso com costas ajustáveis e a sua bela reprodução do Cardeal de Velasquez. O futuro sorria-lhe como uma tarde agradável e soalhenta.
A sr.a Maltby despediu logo o empregado e tentou pôr o marido a trabalhar; nisto, todavia, encontrou ela uma resistência tanto mais para estranhar quanto o trabalho não era pesado. Durante a convalescença, Junius passara a amar a lassidão e a preguiça. Gostava do vale e da quinta, mas gostava deles tal qual eram; não seria ele quem iria plantar coisas novas ou arrancar as velhas. Quando a sr.a Maltby lhe pôs uma enxada nas mãos e o mandou trabalhar na horta, encontrou-o, horas mais tarde, banhando os pés num regato e a ler uma edição de bolso de Raptados. Que desculpasse; que não sabia como aquilo acontecera, O facto é que essa era a verdade. A princípio ela ralhava-lhe bastante por causa da preguiça e da maneira descuidada de vestir, mas em breve o marido desenvolveu a faculdade de nunca lhe prestar atenção. Não seria delicado, considerava ele, ouvi-la quando não se portava como uma senhora: seria o mesmo que olhar fixamente um aleijado. E assim a sr.a Maltby, depois de perder a batalha contra a resistência do marido, começou a andar também despenteada e desalinhada.
Entre 1911 e 1917 os Maltby empobreceram bastante. Junius simplesmente não se importava com a quinta. Chegaram mesmo a vender alguns hectares de terra de pasto para arranjarem dinheiro para roupas e comida mas, mesmo assim, nunca havia bastante que comer. A pobreza instalara-se no local, de pernas cruzadas, e os Maltby estavam em farrapos. Nunca tinham roupas, mas Junius havia descoberto os ensaios de David Grayson. Passou a usar fatos de macaco e a ficar sentado debaixo dos sicômoros que corriam ao longo do regato. Às vezes lia as Adventures in Contentment à esposa e aos filhos desta.
Nos começos de 1917 a sr.a Maltby descobriu que estava grávida e, mais tarde, no mesmo ano, a epidemia a que se chamou pneumónica atacou a família com ferocidade. Talvez por andarem subalimentados, os dois rapazes foram apanhados pela doença ao mesmo tempo. Durante três dias a casa pareceu estar cheia de crianças febris, cujos dedos nervosos tentavam agarrar a vida fincando as unhas nas bainhas das roupas da cama. Lutaram fracamente durante três dias e, ao quarto dia, morreram ambos. A mãe não chegou a tomar conhecimento do facto porque estava a ter o filho, e os vizinhos que vieram ajudar no serviço da casa não tiveram coragem nem a crueldade de lho dizer. A febre negra atacou-a durante o parto e levou-a antes mesmo de ver o recém-nascido.
As vizinhas que vieram ajudar espalharam por todo o vale o boato de que Junius Maltby lia livros junto do rio enquanto a mulher e os filhos estavam a morrer. No entanto, isso era apenas meia verdade. No dia que caíram à cama, banhou de facto os pés na corrente porque não sabia que estavam doentes mas, depois disso, errou vagamente de um para outro miúdo agonizante e falou com eles sobre coisas sem nexo. Ensinou ao rapaz mais velho como se fazem os diamantes. Junto da cama do outro, explicou a beleza, a antiguidade e o simbolismo de certa prática religiosa só dele conhecida. Uma das vidas apagou-se enquanto ele lia alto o segundo capítulo de A ilha do Tesouro e nem mesmo se deu conta do caso, senão quando acabou a leitura do capítulo e levantou os olhos. Durante esses dias todos andou sem saber que fazer. Trouxe todas as coisas que tinha e ofereceu-lhas, mas não tinham poder para vencer a morte. Junius sabia de antemão da sua inutilidade e isso tornava-lhe o caso ainda mais terrível.
Quando os corpos foram a enterrar, Junius voltou para junto do ribeiro e leu mais algumas páginas das Travels with a Ttonkey. Abanou a cabeça e não se convenceu com a obstinação de Modestine. Quem, a não ser Stevenson, poderia chamar Modestine a um burro?
Uma das vizinhas chamou-o para dentro de casa e increpou-o tão violentamente que ele ficou embaraçado e não a ouviu. A mulher pôs as mãos na boca e ficou a olhá-lo, cheia de admiração e zanga. Depois foi buscar o recém-nascido, um rapaz, e pôs-lho nos braços. Quando a mulher olhou outra vez para ele, saindo ao portão da quinta, ainda o viu parado, com o pobre brutinho que lhe gemia nos braços. Não havia ali lugar onde o pousasse, por isso deixou-se ficar com ele nos braços durante muito tempo.
Os habitantes do vale contavam inúmeras histórias acerca de Junius. Umas vezes odiavam-no com o rancor que as pessoas atarefadas têm aos preguiçosos, outras vezes invejavam-lhe a preguiça; mas, na maior parte das vezes, tinham pena dele por viver tão abandonado. Pessoa alguma no vale chegou a compreender como ele era feliz.
Contavam como, a conselho de um médico, Junius comprou uma cabra para dar leite ao bebé. Não investigou nada acerca do sexo do animal, nem deu razão alguma para o comprar. Quando o bicho chegou, ele foi espreitar-lhe debaixo da barriga e perguntou com ar muito sério:
- É um bicho normal?
- Claro que é! - respondeu o vendedor.
- Mas não devia haver um saco ou qualquer coisa do género entre as pernas traseiras para o leite?
Todo o vale soltou estrepitosas gargalhadas quando a história se espalhou. Quando veio depois uma cabra como ele queria, andou dois dias às voltas com o animal sem conseguir arrancar-lhe uma gota de leite. Quis devolver o bicho por não prestar e o vendedor teve de lhe ensinar a ordenhá-lo. Havia quem afirmasse que punha o filho debaixo da cabra para mamar, mas não era verdade. Os habitantes do vale juravam não compreender como é que ele se arranjava para lavar o miúdo.
Um dia, Junius foi a Monterey e contratou um velho alemão para o ajudar nos trabalhos da terra. Deu cinco dólares ao novo empregado por conta dos serviços e não mais tornou a pagar-lhe. Duas semanas depois o criado estava tão mergulhado na preguiça como o patrão. Ambos passavam o tempo sentados por aqui e por ali, discutindo assuntos que lhes interessavam e faziam confusão: como é que a cor aparece nas flores, se há uma simbologia na natureza, onde fica a
atlântida, como é que os Inças enterravam os mortos e coisas do género.
Na Primavera plantavam batatas, sempre muito tarde, e sem uma camada de cinzas a defendê-las dos escaravelhos. Semeavam feijões, trigo e ervilhas, tratavam das culturas durante uns dias, e depois esqueciam-se delas. As estevas cobriam tudo que a vista alcançava. Não era raro ver Junius enterrar-se numa moita de arbustos selvagens e emergir de lá com um punhado de vagens pálidas pela falta de luz. Deixara de andar calçado, porque gostava de sentir a terra quente debaixo dos pés e porque não tinha sapatos.
De tarde, Junius passava muito tempo a falar com Jakob Stutz.
- Sabes? - dizia ele. - Quando as crianças morreram julguei ter atingido um nível excessivo de horror. Depois, foi que, enquanto pensava no caso, o horror passou a ser pena e a pena diminuiu-se em tristeza. Acho que nunca conheci bem a minha mulher e os filhos. Talvez porque estavam demasiado perto de mim. É uma coisa estranha o conhecer. Não é nada mais que uma quantidade de pormenores. Há espíritos que vêem ao longe e outros que só vêem de perto. Nunca fui capaz de ver as coisas que estão muito perto de mim. Por exemplo: tenho muito mais ideia do que seja o Pártenon do que a minha própria casa.
De repente, a expressão de Junius pareceu estremecer com a evocação.
- Jakob - disse. - Já viste alguma vez uma fotografia do Pártenon?
- Já, sim! Uma bela fotografia.
Junius poisou a mão no joelho do empregado e prosseguiu:
- Aqueles cavalos! Aqueles cavalos maravilhosos todos juntos para irem para as pastagens celestiais... Aqueles jovens ávidos e, no entanto, dignos, partindo para o incrível festival que se celebra mesmo em torno da cornija. Gostava de saber como pode um homem compreender o que sente um cavalo quando está contente; no entanto, aquele escultor devia sabê-lo, ou não os teria esculpido assim.
Era deste modo que passavam o tempo. Junius não era capaz de se cingir a um tema único. Muitas vezes passavam fome porque não conseguiam achar um ninho de galinha à hora das refeições.
O filho de Junius chamava-se Robert Louis. O pai tratava-o muitas vezes por esse nome, quando se lembrava, mas Jakob Stutz rebelava-se contra aquilo a que chamava uma espécie de preciosismo literário.
- Os rapazes devem ser tratados como os cães! - mantinha ele. - Um som apenas é o bastante para o nome. Mesmo Robert é comprido de mais. Devia chamar-se Bob.
Jakob quase levou a sua avante.
- Fazemos um contrato. Chamar-lhe-emos Robbie, que é um nome mais curto que Robert.
No entanto, muitas vezes deu razão a Jakob porque este dava contínua luta às teias que se acumulavam em seu redor. De vez em quando, num acesso de virtuosa fúria, limpava toda a casa.
Robbie ia crescendo neste meio. Seguia os homens por toda a parte, ouvindo as suas discussões. Junius nunca o tratou como a um miúdo, porque não sabia como é que os miúdos são tratados. Se Robbie fazia uma observação, os dois homens ouviam-no respeitosamente e incluíam as palavras dele na conversa, ou usavam-na como germe de futuras investigações. Discorriam sobre vários assuntos no decorrer de cada tarde e todos os dias faziam várias incursões à Enciclopédia de Junius.
Um grande sicômoro atravessara um tronco por sobre o regato e era aí que os três se sentavam: os homens com os pés pendidos e chapinhando dentro de água, Robbie tentando imitá-los de modo extravagante. Chegar à água, era uma das ideias que o miúdo tinha do que era ser homem. Por esta altura, Jakob havia desistido dos sapatos; Robbie nunca usara tal coisa na sua vida.
As discussões tinham um nível de notável erudição. Robbie não podia fazer uso de conversas de crianças porque nunca ouvira nenhumas. Não conversavam apenas; deixavam que a corrente do pensamento brotasse por si própria, e observavam-na admirados enquanto ela ia lançando os seus ramos. Ficavam mesmo surpreendidos com os frutos que nasciam das suas conversas, porquanto não dirigiam os pensamentos para lado algum, nem os podavam como muitas pessoas fazem. Ali ficavam os três sentados no tronco. As roupas deles eram farrapos e os cabelos eram puxados de modo a não lhes tapar os olhos. Os homens tinham as barbas compridas e por aparar. Observavam as libélulas que andavam sobre a água do pego que lhes ficava por baixo, pego que fora aprofundado pelo esgaravatar dos seus pés. A árvore gigante que os cobria abanava ligeiramente ao vento da tarde e, de vez em quando, deixava cair uma folha seca que era usada como lenço. Robbie tinha cinco anos.
- Acho que os sicômoros são árvores boas! - observou ele, quando uma folha lhe caiu no ombro.
Jakob pegou na folha, arrancou-lhe os bocados entre os veios e concordou:
- Sim! Crescem junto da água. As coisas boas gostam da água. As coisas más sempre foram secas.
-Os sicômoros são bons e grandes! - disse Junius.- Perece-me que as coisas boas ou úteis devem sempre ser grandes para poderem sobreviver. As pequenas coisas boas são sempre destinadas pelas pequenas coisas más. Raramente uma coisa grande é venenosa ou traiçoeira. Por esta razão, no pensamento humano a grandeza é um atributo do bem e a pequenez um atributo do mal. Estás a ver, Robbie?
- Sim! - dizia Robbie. - Estou a ver. É como os elefantes. -•Os elefantes são maus muitas vezes, mas quando os imaginamos, é sempre como criaturas boas e dóceis.
-E a água? - interrompeu Jakob. - Também vês o caso no que diz respeito à água?
- Não. - Quanto à água não compreendo.
- Mas compreendo eu - disse Junius. - Quer dizer que a água é a seiva da vida. Dos três elementos a água é o esperma, a terra é o ventre e a luz do Sol o modelador do crescimento.
Assim lhe insuflavam os seus disparates.
As pessoas de Pastagens do Céu afastaram-se de Junius Maltby após a morte da mulher e dos filhos. Histórias da sua preguiça durante o tempo da epidemia chegavam a subir tanto que, por vezes, caíam com o próprio peso e eram esquecidas, mas, se bem que os vizinhos se esquecessem de que Junius ficava a ler enquanto os miúdos morriam, não podiam esquecer o problema que ele se estava a tornar. Aqui, num vale tão fértil, vivia ele em temerosa pobreza. Enquanto outras famílias arranjavam pequenas fortunas, compravam Fords e rádios, instalavam electricidade e iam duas vezes por semana ao cinema a Monterey ou a Salinas, Junius degenerara e tornara-se um selvagem esfarrapado. Os homens do vale tinham pena daquela bela terra abandonada, toda coberta de estevas, com as árvores de fruto por podar e as vedações a caírem. As mulheres pensavam na sujidade da casa, com o pátio traseiro cheio de detritos e as janelas todas negras. Tanto homens como mulheres odiavam a preguiça dele e a sua absoluta falta de orgulho.
Durante algum tempo, ainda o foram visitar, esperando que o seu exemplo o arrancasse da moleza, mas ele recebia-os, naturalmente e com a amizade que há entre pessoas da mesma condição. Não tinha vergonha nenhuma da pobreza em que vivia, nem dos seus farrapos. Gradualmente, os vizinhos começaram a pensar em Junius como um ser a parte. Nunca mais ninguém passou pelo caminho particular que conduzia à casa dele. Puseram-no fora da lei da sua sociedade e resolveram não o receber se ele os visitasse.
Junius não se deu absolutamente conta do desagrado dos seus vizinhos. Continuava a ser gloriosamente feliz. A sua vida era tão irreal, romântica e falta de importância como o seu pensamento. Sentia-se contente por se sentar ao sol e baloiçar os pés dentro da água do regato. Se não possuía roupas, pelo menos também não tinha de ir a local algum onde as boas roupas fossem precisas.
Se bem que as pessoas quase odiassem Junius, apenas sentiam pena do pobre Robbie. As mulheres diziam umas às outras como era horrível deixar uma criança crescer em tal pocilga. No entanto, como era tudo gente de bem, sentiam uma forte relutância em se meter nos assuntos que diziam respeito a Junius.
- Esperem até que esteja na idade escolar! - disse a sr.a Banks a um grupo de senhoras reunidas na sua sala de estar. - Agora não poderíamos fazer nada, mesmo que quiséssemos; pertence ao pai que tem. Mas deixem-me dizer-vos que assim que o miúdo tiver seis anos, o conselho escolar dirá a sua palavra.
A sr.a Allen abanou a cabeça e fechou os olhos, pensativamente.
-Temo-nos esquecido de que ele é tão filho de Mamie Quaker como de Maltby. Acho que devíamos ter agido há mais tempo. Logo que ele começar a frequentar a escola, daremos ao pobrezinho algumas coisas que ele nunca teve.
- Pelo menos, podemos ver se o moço tem roupas para se vestir! - ajuntou outra das mulheres.
Parecia que todo o vale estava de atalaia à espera da altura do pequeno Robbie entrar para a escola. Quando no primeiro período escolar, depois de o miúdo ter feito seis anos, este não apareceu, John Whiteside, o executante do conselho escolar, escreveu uma carta a Junius Maltby.
- Não tinha pensado nisso - declarou Junius ao ler a carta-, mas tens de ir para a escola.
- Não quero ir! - respondeu Robbie.
- Já sei! Também não é muito da minha vontade que vás para lá, mas há umas certas leis que nos regem e que têm um apêndice de autoprotecção chamado pena. Temos de pesar o prazer de ir de encontro às leis com a ideia da punição. Os Cartagineses puniam mesmo a desgraça. Se um general perdia uma batalha por falta de sorte, era executado. Presentemente punem-se as pessoas pelos acidentes do nascimento e das circunstâncias de modo muito semelhante.
Com a discussão que se seguiu, a carta foi esquecida. John Whiteside voltou a escrever, mas desta vez um pequeno bilhete.
- Bem, Robbie, acho que tens de ir! - disse Junius depois de o ler. - Claro que vão ensinar-te uma quantidade de coisas muito úteis.
- Porque é que o pai não mas ensina? - queixou-se o miúdo.
- Não sei. Estás a ver, já me esqueci das coisas que se ensinam na escola.
- Mas eu não quero ir, de maneira nenhuma. Não quero aprender coisas.
- Bem sei que não queres, mas não vejo outra saída. E assim, uma manhã Robbie encaminhou-se para a escola.
Ia metido num velho par de calças de ganga sem joelhos nem fundilhos, uma blusa azul sem colarinho e nada mais. O cabelo comprido caía-lhe sobre os olhos cinzentos como a crina de um pónei rebelde.
Os outros miúdos fizeram um círculo em redor dele no pátio da escola e ficaram a olhá-lo em silêncio. Todos tinham ouvido falar da pobreza dos Maltby e na preguiça de Junius. Haviam suspirado por este momento em que todos poderiam torturar Robbie. Finalmente, chegara a ocasião; ali estava ele no meio do círculo com todos a fitarem-no. Nenhum conseguiu dizer: olhem para o cabelo dele, ou: onde é que arranjaste essas calças?, como haviam planeado. As próprias crianças estavam admiradas por não serem capazes de atormentar Robbie.
Quanto a este, olhava os circunstantes com olhos cheios de seriedade. Não se sentia nada amedrontado. Perguntou:
- Vocês não jogam a nada? O meu pai disse-me que vocês jogavam várias coisas.
Foi então que o círculo se desfez em murmúrios:
-Ele não conhece jogos nenhuns.
- Vamos ensinar-lhe a pata-galharda.
- Não, A filha do negro, primeiro.
- Oiçam, oiçam. Primeiro os polícias e ladrões.
- Não sabe jogar a nada.
Se bem que não soubessem porquê, acharam uma coisa admirável não saber jogos nenhuns. Robbie tinha na cara um ar de quem estuda a situação.
- Vamos experimentar primeiro a pata-galharda! decidiu.
Era desajeitado nos jogos, mas os professores não lho faziam notar. Em vez disso, lutavam entre si pelo privilégio de lhe mostrarem a maneira correcta de pegar no pau para jogar. Há várias escolas da técnica da pata-galharda. Robbie ficou de lado por momentos a ouvir e, depois, escolheu o seu instrutor.
O efeito da chegada de Robbie à escola não se fez esperar. Os rapazes mais velhos não lhe ligavam importância nenhuma, mas os mais novos tentavam imitá-lo em tudo; chegaram mesmo a rasgar os joelhos das calças. Quando se sentaram ao sol, encostados ao muro da escola a comerem as merendas, Robbie falou-lhes acerca do pai e do tronco de sicômoro Os outros ouviram-no com atenção e desejavam que os pais também fossem preguiçosos e amáveis.
Por vezes alguns dos rapazes, desobedecendo às ordens da família, esquivavam-se para casa dos Maltby nas tarde de sábado. Junius encaminhava-se com naturalidade para o tronco de sicômoro e, enquanto os rapazes se alinhavam ao lado dele, lia-lhes a Ilha do Tesouro ou descrevia-lhes as guerras da conquista da Gália ou a batalha de Trafalgar. Dentro em nada, Robbie, com o apoio do pai, tornou-se o rei do recreio. Isto é demonstrado pelos factos de que não lhe deram nenhuma alcunha e que servia de árbitro em todas as disputas. A sua posição era de tal modo brilhante, que nem mesmo nenhum tentou brigar com ele.
Robbie veio a compreender pouco a pouco que era o chefe dos rapazes mais novos da escola. Havia nele algo de maturidade e de autoconfiança que fazia com que os companheiros lhe dessem a chefia. A sua voz era agora a única que decidia qual o jogo que se devia jogar. No baseball era amo e senhor porque qualquer outra voz que se erguesse causaria uma briga e, posto que jogasse bastante mal, as questões de regras e de ética desportivas eram, invariavelmente, resolvidas por ele.
Depois de longa discussão com Junius e Jakob, Robbie inventou dois jogos bastante populares: um, o Coiote Ligeiro, versão local da lebre e os galgos, outro, a Perna Quebrada, espécie de aleijão glorificado. Fez as regras destes dois jogos conforme ia precisando delas.
O interesse de Miss Morgan pelo rapaz também foi despertado, visto que ele era uma surpresa tão grande na aula como o era no recreio. Sabia ler perfeitamente e usar o vocabulário de um homem adulto, mas não sabia escrever. Lia qualquer número, não importando o tamanho, mas recusava-se a aprender a mais simples regra de aritmética. Robbie aprendeu a escrever com a maior dificuldade. A mão dele desenhava letras desajeitadas no caderno. Por fim, Miss Morgan tentou ajudá-lo.
- Toma uma frase qualquer e repete-a vezes sem conto, até a escreveres com perfeição - sugeriu ela. - Tem muito cuidado com cada uma das letras.
Robbie procurou na memória qualquer frase de que gostasse. Por fim, escreveu:
«Não há nada mais precioso do que confiarmos em nós mesmos.»
Gostava daquele «precioso». Dava uma certa profundidade à coisa. Se havia palavras que, pelo poder do seu som, fossem capazes de fazer sair da terra os génios ocultos, «precioso» era uma delas. Escreveu a frase uma e outra vez, tendo o maior dos cuidados com o «precioso». Uma hora depois, Miss Morgan veio ver que tal ia a coisa.
- Oh, Robert. Onde é que tu ouviste dizer isso?
- É de Stevenson, minha senhora. O meu pai sabe-o quase todo de cor.
Claro que Miss Morgan já tinha ouvido todas as histórias que se contavam acerca de Junius e, apesar de tudo, aprovava o que ele fazia. Agora, no entanto, começava a sentir um forte desejo de conhecê-lo.
Os jogos no recreio começavam a decrescer de interesse. Robbie lamentou o facto ao pai, uma manhã antes de ir para a escola. Junius cofiou a barba e ficou a pensar.
- Espionagem é um jogo magnífico! - disse, por fim.
- Lembro-me de que sempre gostei de brincar aos espiões.
- E quem é que vamos espiar?
- Não importa. Seja quem for. Nós costumávamos espiar italianos.
Robbie correu excitado para a escola e, nessa tarde, depois de longas pesquisas no dicionário escolar, organizou os S. S. A. R. P. E. C. J., o que, traduzido em palavras que nunca foram mais que sibiladas, queria dizer: Serviço Secreto Auxiliar dos Rapazes para Espionagem Contra Japoneses. Talvez não houvesse mais nenhuma razão, mas a própria magnificência do nome da organização, torná-la-ia uma força à qual se estava ligado. Um por um, Robbie levou os rapazes para a folhagem espessa de uma árvore do pátio e, aí, fê-los prestar um juramento secreto tão feroz que poderia ser o orgulho de qualquer loja maçónica. Mais tarde, reuniu todo o grupo e explicou-lhes que, mais dia menos dia, entrariam em guerra com o Japão.
- Temos que estar prontos! - declarou. - Quanto mais informações tivermos acerca das práticas nefandas dessa nefanda raça, mais informações poderemos fornecer ao nosso país quando a guerra estalar.
Os iniciados sucumbiram perante estes ditos gloriosos. A seriedade da situação deixara-os pasmados e precisavam de palavras como aquelas. Visto que a espionagem era agora a ocupação da escola, o pequeno Takashi Kato, que estava na terceira classe, não mais teve um momento de sossego. Se levantava dois dedos na aula, logo Robbie fazia um sinal significativo a um dos Auxiliares e outra mão se agitava nervosamente no ar. Quando Takashi voltava da escola para casa, pelo menos cinco membros da associação se esgueiravam pelos arbustos que ladeavam a estrada. Contudo, uma noite, o sr. Kato, pai de Takashi, disparou um tiro para o escuro depois de ter visto uma cara branca a espreitar-lhe pela janela. Robbie reuniu com alguma relutância os Auxiliares e ordenou que a espionagem cessasse ao pôr do Sol.
- De noite nunca farão nada de importância! - explicou.
Durante todo esse tempo, Takashi nada sofreu com a espionagem porque, tendo os Auxiliares de o observar, não podiam fazer nenhuma excursão importante sem o levarem. Era convidado para toda a parte porque ninguém consentiria em ser deixado para trás só para ter de espiá-lo.
A associação recebeu um golpe mortal quando Takashi, que, não se sabe como, soubera da sua existência, pediu para ser admitido.
- Não vejo como é que havemos de deixar-te entrar!
- explicou-lhe Robbie com bondade. - Bem vês, tu és japonês e nós odiamos os Japoneses.
Takashi quase rompeu em lágrimas.
- Nasci aqui, tal como vocês! - exclamou. - Sou tão bom americano como vós.
Robbie pensou a fundo no caso. Não queria magoar Takashi. De repente, achou:
- Sabes falar japonês?
- Claro que sei. Bastante bem.
- Óptimo! Serás o nosso intérprete e decifrarás as nossas mensagens secretas.
Takashi ficou exultante.
- Claro! Claro! E, se vocês quiserem, posso espiar o meu velho.
No entanto, a coisa já não era como dantes. Restava apenas o sr. Kato para combater, e este era muito nervoso com uma arma nas mãos.
Passou-se a festa dos «presentes ou pirraças» e o dia de Acção de Graças. Por essa altura, a influência de Robbie nos rapazes manifestava-se apenas pelo incremento que certas frases tomavam no vocabulário deles e por um ódio profundo aos sapatos ou qualquer roupa decente. Se bem que não o compreendesse, Robbie havia lançado um estilo, não novo, talvez, mas mais rígido do que o fora antes. Não era de homens o usar boas roupas e, pior do que isso, era considerado um insulto a Robbie.
Numa sexta-feira à tarde, Robbie escreveu catorze bilhetes e passou-os secretamente a catorze rapazes no pátio da escola. Todos os bilhetes eram iguais e diziam: «Uma quantidade de índios vão queimar o presidente dos Estados Unidos no meu açougue, amanhã às dez horas. Evadam-se de casa e imitem uma raposa quando chegarem à parte inferior da propriedade para eu vos guiar a salvar o pobre homem.»
Havia já alguns meses que Miss Morgan resolvera ir visitar Junius Maltby. As histórias que se contavam acerca dele e o contacto que tinha com o miúdo haviam-lhe feito subir o interesse a um grau muito elevado. De vez em quando, na aula, algum rapaz aparecia com informações de assombrar. Por exemplo: um moço que era famoso pela sua estupidez disse-lhe que Hengist e Horsa tinham invadido a Bretanha. Depois de ter insistido com ele, admitiu que a informação partira de Junius Maltby e que era, de uma maneira ou de outra, secreta. A velha história da cabra divertiu tanto a professora que a mandou para uma revista, mas não houve revista nenhuma que lha comprasse. Vezes sem conta havia tomado a resolução de ir até à quinta dos Maltby.
Despertou numa manhã de Dezembro e viu que havia sol, se bem que o ar estivesse frio. Depois do pequeno-almoço vestiu um casaco de bombazina, calçou umas botas de caminheiro e saiu de casa. No quintal, tentou convencer os cães da quinta a acompanhá-la, mas estes apenas lhe abanaram com as caudas e voltaram a estender-se ao sol.
A casa de Maltby ficava a cerca de duas milhas de distância, num desfiladeiro chamado Gato Amarillo. Ao lado da estrada corria um ribeiro e havia pitas que cresciam alinhadas ao longo da margem. Ainda fazia frio no desfiladeiro, visto que o sol não atingira o cimo da colina. Por momentos, durante o caminho, Miss Morgan julgou ouvir vozes e passos na sua frente, mas quando espreitou na curva da estrada não viu ninguém. No entanto, os arbustos estalaram misteriosamente.
Se bem que nunca lá tivesse estado, Miss Morgan reconheceu imediatamente as terras de Maltby. As vedações caíam por terra, debaixo de montes de detritos. As árvores de fruto estendiam os ramos nus para fora de uma floresta de estevas. Silvas subiam pelos troncos das macieiras; esquilos e coelhos saltavam-lhe debaixo dos pés e havia pombas de vozes suaves que esvoaçavam com um rumorejar de asas que produzia um som parecido com um silvo. Numa pereira alta e selvagem, uma quantidade de aves empenhava-se numa discussão cheia de argumentos cacófonos. Depois, por detrás de um choupo, apareceu o telhado da casa dos Maltby. O lugar, em toda a sua quietude, parecia estar deserto havia centenas de anos.
«Que coisa devastadora e absorvente», pensou a professora. «Que coisa adorável, este lugar.»
Penetrou no quintal. Os edifícios da herdade estavam cinzentos pela acção do tempo e, nas paredes, o musgo ia começando a trepar. Miss Morgan virou a uma esquina da casa e estacou; a boca abriu-se-lhe e um arrepio percorreu-lhe a espinha. No meio do quintal das traseiras estava armado um poste de tortura ao qual estava preso, com muitos metros de corda, um homem velho e enraivecido. Outro homem mais novo e mais baixo, mas também cheio de maus instintos, empilhava paus de lenha aos pés do cativo. Miss Morgan voltou a sentir um arrepio e recuou. Insistia para consigo própria:
- É mentira! Estás a sonhar. Estas coisas não podem acontecer.
Depois ouviu travar-se a mais amável das conversas entre os dois homens.
- Já são quase dez horas - dizia o carrasco. O cativo respondia:
- Sim! Mas tenha cuidado com o fogo. Veja primeiro se eles já aí vêm quando acender a fogueira.
A professora quase gritou, aliviada. Aproximou-se um pouco a medo do cadafalso. O homem que não estava preso virou-se e encarou-a. Pareceu surpreendido por momentos, mas recuperando imediatamente o sangue-frio, fez uma vénia. Vinda de um homem que vestia calças rasgadas e usava a barba grande e por tratar, aquela vénia tinha um ar ridículo e, ao mesmo tempo, de encanto.
- Sou a professora! - explicou Miss Morgan. - Saí a dar um passeio e vi esta casa. Por momentos, pensei que este auto-de-fé era a sério.
Junius sorriu e replicou:
- Mas é a sério. É mais sério do que a senhora pensa. Cheguei a toma-la pelos libertadores. O salvamento deve ser às dez horas.
Um uivar selvagem de raposas ouviu-se entre as moitas, pars lá da casa.
- Aí estão os salvadores! - continuou Junius. - Desculpe, Miss Morgan; não é o seu nome? Chamo-me Junius Maltby e este cavalheiro, nos dias normais, é Jakob Stuts. No entanto, hoje é o presidente dos Estados Unidos que vai ser queimado pelos índios. Ainda pensámos em fazer dele uma rainha Quenevere mas, mesmo sem uma figura perfeita, faz um presidente melhor que uma Quenevere; não acha? Além disso, recusou-se a vestir uma saia.
- Raio de parvoíce! - exclamou o presidente, com complacência.
Miss Morgan sorriu e perguntou:
- Posso assistir ao salvamento, sr. Maltby?
- Não sou o sr. Maltby. Sou trezentos índios. Ouviu-se outra vez o latido das raposas.
- Vá para ali para os degraus da casa!-aconselhou o trezentos índios. - Não quero que a tomem por pele-vermelha e a massacrem.
Olhou para o ribeiro. Um ramo de árvore agitava-se nervosamente no ar. Junius acendeu um fósforo e pegou fogo à lenha na base do poste. Quando as chamas começaram a subir, as árvores pareceram desfazer-se em bocados, cada uma delas transformada num rapaz aos gritos. Carregaram em massa, com um interesse só semelhante ao dos Franceses na tomada da Bastilha. Quando o fogo ia já mesmo a atingir o presidente, este foi violentamente desviado para os lados. Os salvadores desataram as cordas com mãos nervosas e Jakob Stutz foi posto em liberdade. A cerimónia que se seguiu não foi menos impressionante do que o salvamento. Enquanto os rapazes ficavam em sentido, o presidente passou-os em revista e pregou em cada peito um disco de chumbo, no qual estava gravada a palavra «Herói». O jogo acabara.
- No sábado que vem, vamos enforcar os patifes que conceberam esta maquinação! - anunciou Robbie.
- Porque não o fazemos já? Enforquemo-los já! - gritou a tropa de salvação.
- Não, meus homens! Ainda há muito que fazer. Temos de construir o cadafalso.
Virou-se para o pai e declarou:
- Acho que teremos de vos enforcar.
Os seus olhos fitaram Miss Morgan com cobiça e, depois, desistiu da ideia não sem uma certa relutância.
Essa tarde foi uma das mais agradáveis que Miss Morgan já passara. Se bem que lhe tivesse sido dado o lugar de honra no tronco de sicômoro, os rapazes haviam deixado de a olhar como professora.
- Era melhor se tirasse os sapatos! - convidou Robbie; e ela descobriu que era realmente melhor, quando tirou as botas que trazia e começou a chapinhar os pés na água.
Nessa tarde, Junius falou sobre as sociedades canibais entre os índios das Aleutas. Relatou como os mercenários se viraram contra Cartago. Descreveu os Lacedemónios penteando-se antes de morrerem nas Termópilas. Explicou a origem do macarrão e contou a descoberta do cobre, como se tivesse assistido a tudo. Finalmente, quando Jakob opôs uma ideia contra a expulsão do Paraíso Terrestre, travou-se uma discussão amigável e os rapazes começaram a voltar para casa. Miss Morgan deixou-os distanciarem-se, porque queria pensar com calma no estranho cavalheiro.
O dia em que o conselho escolar visitava as aulas era esperado com terror tanto pela professora, como pelos alunos. Era um dia de intensa cerimónia. As lições eram recitadas nervosamente e um erro de ortografia adquiria a importância de um crime de morte. Não havia dia em que os alunos fizessem mais disparates nem que os nervos da professora estivessem mais excitados.
O conselho escolar de Pastagens do Céu foi visitar a aula em 11 de Dezembro. Logo depois do almoço foram entrando em fila, com aspecto sombrio e fúnébre um pouco envergonhados. À frente vinha John Whiteside, o presidente, velho e de cabelos brancos, e com uma atitude desprendida para com os problemas de educação que eram muitas vezes objecto de críticas por parte dos moradores do vale. Pat Humbert vinha logo a seguir. Pat fora eleito membro do conselho porque assim o desejara. Era um homem solitário que não tinha iniciativa para arranjar conhecimentos e se servia de todos os meios para ser posto em contacto com outras pessoas. O fato que trazia era tão incomprometedor e infeliz como o fato de bronze da estátua de Lincoln em Washington. Seguia-se T. B. Allen, que avançava pesadamente por entre as carteiras. Visto que era o único comerciante do vale, o lugar no conselho pertencia-lhe por direito. Vinham depois Raymond Banks, enorme, bem humorado, de mãos e cara vermelhas, e Bert Munroe, o membro recém-eleito. Como era esta a sua primeira visita, Bert tinha um ar de carneiro que segue o rebanho, ao seguir os outros membros para as cadeiras alinhadas junto à parede. Quando o conselho tomou posições, entraram as respectivas esposas que se sentaram por detrás dos alunos. Os miúdos sentiam-se pouco à vontade. Viam que estavam cercados e que a fuga, se fosse necessária, estava cortada. Quando se viravam para trás, as mulheres sorriam-lhes com benevolência. Feriu-lhes a vista o embrulho que a sr.a Munroe trazia no regaço.
Começada a aula, Miss Morgan deu as boas-vindas ao conselho com um sorriso forçado. Declarou:
- Não vamos fazer nada de extraordinário. Acho que será muito melhor que os senhores, no desempenho das vossas funções, vejam a escola funcionar como nos dias vulgares.
Um pouco mais tarde, arrependia-se de ter dito tais palavras. Nunca, em toda a sua carreira, tinha visto crianças mais estúpidas. Aquelas que conseguiam fazer saltar as palavras, diziam os maiores disparates. A ortografia saiu abominável e a leitura parecia o titubear dos anormais. O conselho tentava tomar um ar digno, mas não podiam deixar de sorrir com o embaraço dos miúdos. Na testa de Miss Morgan havia bolhas de transpiração. Tinha visões em que se via despedida por um conselho ultrajado. As mulheres, lá atrás, continuavam a sorrir nervosamente, enquanto os minutos se escoavam.
Quando a aritmética acabou de ser torcida e torturada, John Whiteside levantou-se.
- Muito obrigado, Miss Morgan, Se permite direi algumas palavras às crianças, e depois pode mandá-las sair. Acho que devem ser recompensadas de qualquer modo por nos terem tido cá.
A professora suspirou aliviada.
- Quer dizer que compreendem que não estão a ir tão bem como de costume? Ainda bem, que o compreendem.
John Whiteside sorriu. Tinha visto tantas jovens professoras nervosas com a visita do conselho...
-Se eu julgasse que isto era o melhor que eles podiam fazer, mandaria fechar a escola! - declarou.
Depois falou as crianças durante cinco minutos. Disse-lhes que deviam estudar a valer e amar a professora; o mesmo discurso que fazia desde há muito tempo. Os alunos mais velhos já tinham ouvido aquelas palavras várias vezes. Quando acabou, pediu à professora para mandar sair os alunos. Estes saíram silenciosamente em fila mas, uma vez lá fora, o alívio começou a fazer os seus efeitos. Com gritos e uivos, fizeram as suas melhores tentativas de se matarem uns aos outros por meio de enforcamentos e decapitações.
John Whiteside apertou a mão de Miss Morgan.
- Nunca tivemos uma professora que os mantivesse mais na linha! - disse ele com bondade. - Creio que se a senhora soubesse quanto os seus alunos a amam, ficaria embaraçada.
- São todos boas crianças! - replicou ela com firmeza.- São umas crianças admiráveis.
- Claro que são - concordou John Whiteside. - A propósito, que tal vai indo o miúdo de Maltby?
- Oh! É um jovem esperto, uma criança curiosa. Direi mesmo que tem um cérebro brilhante.
- Falámos a respeito dele no conselho. Claro que a senhora sabe que o pequeno não tem a vida de família que devia. A minha atenção fixou-se nele em especial esta manhã. O pobre pequeno está tão mal vestido.
Miss Morgan sentiu o dever de defender Junius.
- Bem! - disse. - É uma casa estranha. Não do género das casas vulgares, mas não é um mau lar.
- Não interprete mal as minhas palavras, Miss Morgan. Não pensamos em interferir. Apenas julgámos que lhe devíamós dar algumas coisas. Bem sabe que o pai dele é muito pobre.
- Sim, sei.
- A sr.a Munroe comprou-lhe algumas roupas. Se o chamar, podemos dar-lhas agora.
- Oh, não. Eu nunca... - começou ela a dizer.
- Porque não? São apenas algumas camisas, um par de calças e uns sapatos.
- Mas, sr. Whiteside, ele vai sentir-se embaraçado. É um miúdo muito orgulhoso.
- Embaraçado por ter roupas decentes? Disparate. Acho que se deve sentir mais envergonhado por não as ter. Além disso, está muito frio para ele andar por aí descalço. Todas as manhãs tem havido geada no chão.
- Gostaria que não o fizessem! - disse a professora, sentindo que era inútil a sua oposição. - Gostaria realmente que não fizessem tal coisa.
- Não acha que está a tomar a coisa muito a sério, Miss Morgan? A sr.a Munroe teve a gentileza de lhe comprar estas coisas. Por favor, chame-o cá dentro para que ela lhas possa dar.
Momentos depois, Robbie estava na frente deles. O cabelo caía-lhe para a cara e os olhos ainda lhe brilhavam com a excitação provocada pelo jogo. O grupo reunido junto do quadro olhou-o com simpatia, tentando não fitar-lhe as roupas rasgadas.
Robbie olhava pouco à vontade em torno de si.
- A sr.a Munroe quer dar-te uma coisa, Robert! - disse a professora.
Então a sr.a Munroe avançou e, pôs-lhe o embrulho nos braços, comentando:
- Que lindo rapazinho.
Robbie colocou o embrulho no chão com muito cuidado e cruzou as mãos atrás.
- Abre-o, Robert! - disse T. B. Allen. - Que maneiras são essas?
Robbie fitou-o e respondeu:
- Sim, senhor.
Desatou o fio e as roupas novas saltaram do papel, enquanto ele as olhava sem compreender. De súbito, pareceu tomar conhecimento da situação e corou. Olhou em torno, como um animal apanhado numa armadilha e, depois, correu para a porta deixando o monte de roupas no mesmo sítio. O conselho escolar ouviu-lhe os passos lá fora e Robbie desapareceu.
A sr.a Munroe virou-se para a professora, como em busca de auxílio. Perguntou:
- Que se passou?
- Creio que ficou envergonhado.
- Mas porque havia de ficar? Fomos amáveis para com ele.
A professora tentou explicar-lhes e ficou um pouco zangada ao fazer tal tentativa.
- Creio que, compreendeu... bem, acho que ele nunca soube que era pobre até há poucos momentos.
- O erro foi meu! - desculpou-se John Whiteside. - Perdoe-me, Miss Morgan.
- Que mais poderemos fazer? - perguntou Bert Munroe.
- Não sei. Realmente, não sei.
A sr.a Munroe virou-se para o marido e disse:
- Bert! Acho que, se fosses ter uma conversa com Maltby, talvez a coisa se arranjasse. Acho que devias ser amável para com ele e fazer-lhe compreender que os miúdos não devem andar descalços por cima da geada. Talvez umas palavras ajudem. O sr. Maltby podia aconselhar Robert a aceitar as roupas. Que acha, sr. Whiteside?
-Não me agrada a ideia. Terão de pôr a questão a votos para anularem a minha objecção. Acho que já fizemos demasiado mal.
- Acho que a saúde dele é mais importante do que o que possa sentir! - insistiu a sr.a Munroe.
A escola fechou a 20 de Dezembro para as férias do Natal. Miss Morgan planeara passar as férias em Los Angeles. Enquanto esperava pelo autocarro de Salinas na encruzilhada, viu um homem e um rapazinho descendo a estrada de Pastagens do Céu na sua direcção. Vestiam roupas novas e baratas e caminhavam como se lhes doessem os pés. À medida que se aproximavam, Miss Morgan reparou melhor no rapazinho e reconheceu Robbie. A cara dele tinha um ar triste e infeliz.
- Olá, Robert! -exclamou.- Que se passa? Aonde vais? - Vamos para São Francisco, Miss Morgan! - respondeu o homem.
Ela levantou a vista e reconheceu Junius que havia rapado a barba. Nunca pensara que ele era tão velho. Mesmo os olhos que haviam parecido jovens, tinham um ar de velhice. Se bem que a cara dele tivesse ficado protegida muito tempo dos raios de sol com a barba, estava pálido e parecia embaraçado.
- Vão lá passar as férias? - perguntou Miss Morgan.
Adoro as lojas da cidade na ocasião do Natal e seria capaz de passar nelas dias inteiros.
- Não! - replicou Junius, vagarosamente. - Vamos para ficar. Sou guarda-livros, Miss Morgan. Pelo menos, era guarda-livros há vinte anos. Vou ver se arranjo emprego.
Havia um certo tom doloroso na voz dele.
- Mas porque faz isso?
- Bem vê - continuou ele. - Nunca soube que estava a fazer mal aqui ao rapaz. Nunca pensei nisso e suponho que é essa a minha obrigação. A senhora compreende que não posso habituá-lo à pobreza, não compreende? Nunca tive conhecimento do que os vizinhos murmuravam a nosso respeito.
- Porque não ficam na quinta? É terra boa, não é?
- Nunca seria capaz de me governar com a quinta. Não sei nada de trabalhos do campo. Jakob vai tentar tomar conta da terra, mas bem sabe que ele é muito preguiçoso. Depois, quando puder, venderei a terra para que Robbie possa ter algumas coisas que nunca teve.
Miss Morgan sentia-se furiosa e, ao mesmo tempo, pareceu-lhe que ia começar a chorar. Disse, então:
- Não acredita nas palermices que contavam a seu respeito, pois não?
Ele olhou-a, surpreendido.
- Claro que não! Mas qualquer pessoa pode compreender por si própria que um rapaz não pode ser criado como se fosse um animalzinho, não acha?
O autocarro apareceu ao cimo da estrada e começou a descer na direcção deles. Junius apontou Robbie e disse:
- Ele não queria vir. Fugiu para as colinas. Jakob e eu caçámo-lo a noite passada. Compreende, viveu muito tempo como um animal. Além disso, Miss Morgan, ele não sabe como São Francisco é uma terra linda.
O autocarro parou. Junius e Robbie subiram para o assento traseiro. Miss Morgan esteve quase a sentar-se ao lado deles mas, de repente, virou-se e foi sentar-se ao lado do motorista, pensando para si:
- Claro que vão querer estar a sós.
O velho Guiermo Lopez morreu quando as filhas já eram crescidas, deixando-lhes quarenta hectares de encostas rochosas e nenhum dinheiro. Viviam numa casa de madeira, imaculadamente limpa mas muito batida pelo vento, com um alpendre, um poço e um tanque ao lado. Praticamente nada crescia no solo árido, a não ser estevas e ervas e, se bem que as duas irmãs se fartassem de trabalhar na horta, mal conseguiam colher uns magros legumes.
Durante algum tempo passaram fome, sentindo uma espécie de martírio mas, afinal, a carne venceu-as. Eram muito gordas e muito alegres para se martirizarem a si próprias com um assunto tão pouco religioso como era o comer.
Um dia, Rosa teve uma ideia:
--Não somos nós as pessoas que melhor fazem tortillas em todo o vale? perguntou ela à irmã.
- Herdámos essa arte da nossa mãe! - respondeu Maria, piedosamente.
- Então estamos salvas. Vamos fazser enchiladas, tortillas e tamales e vendê-las às pessoas de Lãs Pasturas dei Cielo.
-E achas que comprarão?
- Ouve o que te digo, Maria. Em Monterey há vários locais onde se vendem tortillas que não são nada que se possa comparar com as nossas, e os donos desses lugares são todos pessoas ricas. Compram fatos novos três vezes por ano e as tortillas deles são muito inferiores às nossas- Faço-te esta pergunta, recordando a memória da nossa mãe.
Os olhos de Maria encheram-se com lágrimas de comoção.
- Não há comparação possível! - declarou. - Não há em todo o mundo tortillas como as que eram feitas pelas mãos benditas da nossa mãe.
- Então, adeante - disse Rosa. - Tão boas como são as pessoas por certo as hão-de comprar.
Seguiu-se uma semana de enérgicos preparativos, durante a qual as duas irmãs se fartaram de transpirar a esfregar e decorar a casa. Quando acabaram, as paredes tinham uma nova camada de tinta branca, tanto do lado da rua, como do lado de dentro. Havia canteiros de gerânios ao lado do portal, e os detritos e lixos foram juntos e queimados. A sala de entrada foi transformada num pequeno restaurante com duas mesas cobertas de oleado amarelo. Uma tabuleta de pinho proclamava, suspensa da grade que dava para a estrada rural: Tortillas, Enchiladas, Tamales e outras especialidades espanholas. opez.
O negócio não prosperou imediatamente. De facto, vinham mesmo muito poucos fregueses. As irmãs sentavam-se junto das mesas e esperavam. Tinham um aspecto acriançado, jovial e pouco limpo. Sentadas nas cadeiras, esperavam pela fortuna. Assim que um cliente entrava, enchiam-no de atenções. Riam gostosamente de todas as graças que ele dissesse; e gabavam os seus antepassados e a maravilhosa contextura das tortillas que faziam. Levantavam as mangas até ao cotovelo para mostrarem a brancura da pele, negando assim a existência de sangue índio nas suas veias. Todavia, vinham poucos clientes e as duas irmãs começavam a encontrar dificuldade em manter o negócio. Não podiam fabricar grandes quantidades de produtos, porque estes se estragariam se ficassem muito tempo por vender. Os tamales precisam de carne fresca e, assim, começaram a fazer armadilhas para apanhar pássaros e coelhos. pardais, melros e cotovias eram guardados em gaiolas até serem precisos para os tamales. Deste modo ia decorrendo o negócio. Uma manhã, Rosa disse à irmã:
- Temos que dar de comer ao Lindo, Maria. Já não há mais feixes de feno.
Pôs uma moeda de prata nas mãos de Maria e disse:
- Vai a Monterey comprar algum. Se sobrar dinheiro traz um doce para cada uma de nós.
Quando Maria voltou para casa nessa tarde, encontrou a irmã estranhamente sossegada. As exclamações de alegria, e os pedidos de pormenores que se seguiam sempre que ela se afastava e voltava, tinham desaparecido. Rosa estava sentada numa cadeira, e no seu rosto espelhava-se a preocupação.
Maria aproximou-se timidamente e disse:
- Comprei o feno muito barato. Aqui está o teu doce, Rosa. O maior que há, e apenas por quatro cêntimos.
Rosa pegou no doce e meteu-o na boca. Continuou imersa nos seus pensamentos. Maria instalou-se perto, sorrindo docemente, inquisitivamente, pedindo silenciosamente para compartilhar o fardo da irmã. Rosa parecia de pedra; só se mexia para sugar o doce. De repente, fixou Maria nos olhos e declarou em tom solene:
- Esta manhã deixei-me possuir por um cliente. Maria começou a soluçar com pena e interesse:
-Não fiques a pensar coisas - continuou Rosa. - Não recebi dinheiro. O homem comeu três enchiladas, três.
Maria começou a chorar nervosamente como uma criança.
- Acalma-te! -disse Rosa.- Que hei-de fazer agora? preciso dar um pouco de confiança aos clientes se queremos triunfar; e ele comeu três enchiladas, Maria. E pagou-as. Que achas?
Maria sucumbiu e não pensou mais na moral, em face do argumento da irmã.
- Acho, Rosa, que a nossa mãe e a tua alma ficariam satisfeitas se pedisses perdão à Virgem e a Santa Rosa.
Rosa sorriu e abraçou Maria.
- Foi o que eu fiz. Foi precisamente o que fiz. Logo que ele se foi embora. Ainda mal tinha saído de casa quando eu fiz isso.
Maria afastou-se e entrou no quarto com olhos brilhantes. Durante dez minutos permaneceu ajoelhada perante uma imagem da Virgem. Depois, levantou-se e lançou-se nos braços da outra.
--Rosa, minha irmã! - exclamou. - Também acho que devemos dar confiança aos clientes.
As irmãs Lopez apertaram-se num longo abraço e misturaram as suas lágrimas de alegria.
Aquele dia marcou uma reviravolta nos negócios das irmãs. É verdade que a casa não se alterou muito, mas, daí em diante, venderam «especiarias espanholas» bastantes para poderem ter sempre comida na cozinha e brilhantes vestidos para lhes cobrirem as costas redondas. Continuavam persistentemente religiosas. Quando alguma delas pecava, vinha directamente para junto da pequena Virgem de porcelana agora colocada convenientemente numa salinha para ser acessível a ambos os quartos, e rogava o seu perdão. Não permitiam que os pecados se empilhassem, visto que os confessavam logo que eram praticados. Aos pés da Virgem, no chão, havia um espaço polido no sítio em que elas se ajoelhavam em camisa de noite.
A vida passou a ser bastante agradável para as irmãs Lopez. Não chegava mesmo a haver vestígios de rivalidade porque, se bem que Rosa fosse mais velha e mais valente, pareciam ambas iguais. Maria era ligeiramente mais gorda, mas Rosa era um pouco mais alta e a coisa ficava por aí.
Agora a casa estava sempre cheia de gargalhadas e exclamações de entusiasmo. As irmãs cantavam enquanto faziam tortillas com as suas mãos gordas e fortes. Se um freguês dizia qualquer graça, se Tom Breman, por exemplo, dizia depois de comer o terceiro tamale.
- Rosa! Vocês estão a viver muito bem. Esta rica vida vai dar-vos volta ao miolo se não acabam com ela!
As duas irmãs seriam sacudidas com risos durante meia hora. Durante todo o dia recordariam esta graça enquanto faziam tortillas e riam-se dela, porque estas irmãs sabiam conservar as anedotas, animá-las e explorá-las, até que o seu espírito lhes tivesse extraído a última gota de potência. Don Tom era bom homem, diziam elas. Um homem com espírito e bastante rico. Uma vez comera cinco pratos de chila con carne. Era também uma coisa que é raro encontrar nos ricos: um hombre inerte, oh, muito forte. Por cima da massa das tortillas, abanavam a cabeça em ar de reminiscência, como dois apreciadores recordando as delícias de um bom vinho.
Não se deve supor que as irmãs eram pródigas em dar confiança. Apenas aceitavam dinheiro pelos acepipes que vendiam. No entanto, se um homem comia três ou mais dos pratos por elas preparados, os corações das irmãs enchiam-se de gratidão e o homern passava a ser um candidato à sua confiança.
Numa noite infeliz, um homem cujo apetite não era igual a três enchiladas, ofereceu a Rosa o dinheiro da vergonha. Havia mais alguns clientes na casa nessa altura, e a oferta foi feita a meio de uma quebra nas conversas. Instantaneamente cessou o barulho, deixando um silêncio enervante. Maria cobriu a cara com as mãos. Rosa empalideceu e logo corou cheia de sangue furioso. A emoção fazia brilhar-lhe os olhos. As mãos gordas levantaram-se como duas águias e poisaram-lhe nas ancas. No entanto, quando falou foi com uma certa reserva de emoções.
- Isso é um insulto. Talvez não saiba que o general Vallejo é quase um antepassado nosso, de tal maneira está ligado à nossa família. Nas nossas veias corre sangue puro. Que diria o general Vallejo se ouvisse isto? Acha que a mão dele ficaria longe da espada se ouvisse insultar assim duas senhoras intimamente ligadas à sua família? Acha que sim? Você diz-nos: o-As senhoras são duas mulheres vergonhosas», a nós que fazemos as mais finas e deliciosas tortillas de toda a Califórnia.
Respirava a custo, com o esforço que fazia para se conter.
- Não quis ofendê-las, Rosa! - defendeu-se o ofensor. Palavra que não queria dizer isso.
A ira abandonou-a. Uma das mãos levantou voo de cima da anca e, suavemente, como uma cotovia, indicou o caminho da porta, quase com tristeza.
- Vá! - disse, docemente. - Não creio que o tenha feito por mal, mas o insulto prevalece.
Depois, logo que o culpado saiu, continuou noutro tom:
- Quem mais quer um prato de chilas con Mjoles? Quem mais? Chilas con frijoles como não há no mundo.
De uma maneira geral, estas irmãs eram felizes. Maria, cuja natureza era muito terna, plantou mais gerânios em redor da casa e roseiras ao longo da vedação. Num passeio a Salinas, Rosa e Maria compraram, e ofereceram uma à outra, pequenas caixas de pó-de-arroz que lembravam ninhos ao contrário. Era o cúmulo da amizade. Lado a lado, olharam-se num espelho, viraram a cara e sorriram uma para a outra um pouco tristemente, pensando: hoje é um grande dia. É um dia que lembraremos sempre como um dia feliz. Que pena que não possa durar eternamente.
Com medo de que não durasse, Maria foi pôr grandes vasos de flores em frente da Virgem.
Raras vezes o aborrecimento as invadia. Maria comprou um pequeno fonógrafo com discos de valsas e tangos. Enquanto trabalhavam, punham o aparelho a funcionar e batiam as tortillas ao compasso da música.
Inevitavelmente, começou a correr pelo vale de Pastagens do Céu o rumor de que as irmãs Lopez se portavam mal. As mulheres da terra falavam-lhes com frieza quando passavam. Era impossível dizer como é que estas senhoras sabiam do caso. Por certo que os maridos não lhes diziam nada mas, no entanto, sabiam; sabem sempre.Num sábado de manhã, antes de o Sol nascer, Maria trouxe os velhos arreios enfeitados e colocou-os sobre os ossos de Lindo.
- Tem coragem, meu amigo! - dizia ela enquanto lhe punha a canga; ou: - A boca, por favor, Lindo - para lhe meter o freio.
Depois fê-lo recuar para entre os varais de uma velha carrinha. Liado fez os possíveis por não se colocar entre os varais, tal como vinha fazendo havia quinze anos. Quando Maria acabou de atar a barrigueira e a tiradeira, olhou para ele com filosófica tristeza. O velho Lindo já não se interessava para onde ia. Estava mesmo velho de mais para se entusiasmar com o caminho do regresso. Agora, levantava os beiços, mostrando os grandes dentes amarelos e bufava de desespero.
- O caminho não é comprido! - dizia-lhe Maria para o aquietar. - Vamos devagar. Não deves ter medo do caminho.
No entanto, Lindo «tinha» medo do caminho. Tinha pavor à viagem de ida e volta a Monterey.
A carrinha baloiçou de modo alarmante quando Maria se instalou nela. Pegou nas rédeas e disse, fazendo-as flutuar no ar:
-Vamos, meu amigo.
Lindo estremeceu e virou a cabeça, a olhá-la.
- Ouviste? Temos de ir; temos de comprar coisas em Monterey.
Lindo baixou a cabeça e curvou um joelho, como a fazer uma vénia.
- Ouve o que eu digo, Lindo. Temos de ir. Já estou mesmo zangada.
Levantou as rédeas e bateu-lhe com elas. Lindo baixou a cabeça até quase ao chão, como um cão de fila, e saiu vagarosamente do pátio. Tinha de palmilhar nove milhas até Monterey e outras nove milhas na volta. Lindo sabia isso, e desesperava-se com o caso. Agora que lhe passara a zanga contra o cavalo, Maria recostou-se no assento e começou a entoar o estribilho de um tango.
As colinas estavam banhadas de neblina. Maria, respirando o ar fresco, cantava agora em voz alta e, até Lindo achou energia bastante nas ventas para relinchar. Uma cotovia voava de poste para poste, na frente deles, cantando com todas as forças. Lá muito longe, Maria viu um homem que ia pela estrada. Antes de o alcançar, já tinha visto que, pelo modo como andava, era Allen Hueneker, o homem mais feio e retraído do vale.
Allen Hueneker não tinha apenas andar de macaco. Também a cara lembrava um símio. Os miúdos, quando queriam insultar um amigo, apontavam Allen e diziam: ali vai o teu irmão; o que era considerado um insulto tremendo. Allen era tão tímido e tinha tanto horror à sua figura, que tentara deixar crescer suíças para cobrir o rosto, mas os pêlos cresciam-lhe fora dos lugares devidos, o que ainda mais lhe acentuava as semelhanças com os macacos. A mulher casara com ele porque já tinha trinta e sete anos e porque era o único homem dos seus conhecimentos incapaz de tomar conta de si próprio. Mais tarde veio a saber-se que era uma mulher cujo sistema nervoso precisava de ciúmes para regular bem. Não achando na vida de Allen nada de que pudesse ter ciúmes, começou a inventar histórias. Contava aos vizinhos as proezas do marido com outras mulheres, histórias sobre a sua infidelidade e sobre os seus delitos obscuros. Contou estes casos tantas vezes que ela própria começou a acreditá-los, mas os vizinhos riam-se-lhe pelas costas quando ela falava dos pecados de Allen, porque sabiam que o feio homenzinho era a criatura mais medrosa e aflita deste mundo.
O velho Lindo atingiu Allen Hueneker. Maria puxou-lhe as rédeas como se ele fosse num galope tremendo, e disse:
- Calma, Lindo. Está quieto.
Logo à primeira pressão das arreatas, Lindo retomou a sua posição de repouso, com as juntas das pernas bem unidas e a cabeça pendida.
- Bom dia! - disse Maria, delicadamente.
Allen chegou-se para a beira da estrada e respondeu:
- bom dia!
E olhou com afectada atenção para o cimo da colina.
- Vou a Monterey! - prosseguiu Maria. - Quer uma boleia?
Allen ficou a olhar para o céu, como que procurando nuvens ou falcões, e respondeu com ar indiferente: -Vou só até à paragem do autocarro.
- E então? Sempre é um bocadinho.
O homem coçou as suíças, tentando tomar uma resolução. Depois, mais para pôr fim à situação do que por causa da boleia, subiu para a carrinha e sentou-se ao lado de Maria. Ela desviou-se a dar-lhe lugar e quis prosseguir o seu caminho.
- Vamos, Lindo] - gritou. - Estás a ouvir? Põe-te a andar, antes que eu me zangue outra vez.
As rédeas voltaram a cair sobre o cachaço do animal, que baixou o nariz até quase ao chão e retomou a marcha.
Fizeram um bocado do caminho em silêncio, mas em breve Maria se lembrou que era de boa educação encorajar uma conversa.
- Vai de viagem, vai?
Allen olhou para uma árvore e não respondeu.
-Nunca andei de comboio - confiou Maria, alguns momentos depois - mas a minha irmã já andou. Foi uma vez de comboio a São Francisco e voltou, também de comboio. Já tenho ouvido dizer a muitos homens ricos que é uma boa maneira de viajar. A minha irmã, Rosa, também diz o mesmo.
- Vou só até Salinas! - disse Allen.
- Ah! Já lá estive muitas vezes. Rosa e eu temos lá muitos amigos. A nossa mãe era de Salinas e o papá ia lá muitas vezes vender madeira.
Allen lutava por vencer o embaraço e observou:
- Não consegui pôr o velho Ford a funcionar, senão tinha vindo nele.
Maria ficou impressionada. - Ai, então tem um Ford?
- É um Ford já velho.
- A minha irmã e eu já temos dito que, qualquer dia, também teremos um Ford. Então poderemos ir a muitos sítios. Já tenho ouvido dizer a muitos homens ricos que é uma boa maneira de viajar.
Como que a acentuar a conversa, apareceu um velho Ford no cimo da colina e veio fazendo grande barulho pela estrada, até passar por eles.
Maria tomou atenção às rédeas.
- Calma, Lindai - exclamou.
O cavalo não prestou a mínima atenção ao Forcf nem à dona.
Os ocupantes do carro eram o sr. e a sr.a Munroe. Bert virou a cabeça ao passarem e perguntou, rindo, à esposa:
- Santo Deus! Viste aquilo? O velho conquistador com Maria Lopez?
A sr.a Munroe sorriu.
- Ouve! - disse Bert. - Vai ser uma boa piada dizer à velha Hueneker que vimos o marido fugir com Maria Lopez.
- Não faças isso! - disse a esposa.
- Era uma piada. Sabes muito bem o que ela conta do marido.
- Não, Bert. Não faças isso.
Entretanto, Maria continuava o seu caminho conversando inconsequentemente com o seu relutante passageiro.
- Não costuma ir à nossa casa comprar enchiladas. Não há enchiladas como as nossas porque, veja, aprendemos a fazê-las com a mamã. Quando a mamã era viva, corria fama até San Juan, até mesmo a Gilroy, que mais ninguém sabia fazer tortillas tão finas e tão direitas como ela. O senhor sabe que é no amassar, sempre no amassar, que está o segredo da finura das tortillas. Nunca ninguém as amassou tão bem como a mamã; nem mesmo Rosa. Vou agora a Monterey comprar farinha porque lá é mais barata.
Allen Hueneker encostou-se no assento e desejou chegar à paragem do autocarro o mais depressa possível.
Era já quase de noite quando Maria voltou a aproximar-se de casa.
- Daqui a pouco chegamos! - dizia ela a Lindo. - Coragem, meu amigo; já falta pouco.
Ia exultante de antecipada satisfação. Num rasgo de extravagância, comprara quatro caramelos dos maiores. Mas não era tudo: trazia um presente para Rosa, um par de ligas largas de seda, com flores aplicadas dos lados. Já via, em imaginação, Rosa pondo as ligas e levantando a saia, com muita modéstia, claro. As duas ficariam em frente do espelho a olhar; depois, Rosa apontaria com a biqueira para a frente e ambas as irmãs chorariam de felicidade.
No quintal, tirou os arreios ao cavalo. Sabia que era bom retardar uma alegria porque, assim, se aumentava o prazer. Havia silêncio na casa. Na frente da porta não estavam parados nenhuns veículos, o que indicava a ausência de clientes. Maria pendurou os arreios e foi levar Lindo para a pastagem. Depois pegou nos caramelos e nas ligas e encaminhou-se vagarosamente para casa. Rosa estava sentada a uma das mesinhas; um Rosa calada e retraída, uma Rosa atormentada e sofredora. Os olhos dela pareciam parados e sem vista. As suas mãos gordas e firmes estavam fincadas na mesa.
- Rosa! - chamou a irmã, timidamente. - Já voltei, Rosa. A irmã virou-se, vagarosamente e disse:
- Sim!
- Estás doente Rosa?
Os olhos inexpressivos voltaram a fitar a mesa.
- Não!
- Trago-te um presente, Rosa. Olha. Exibiu as lindas ligas.
Devagar, muito devagar, os olhos de Rosa fitavam as flores brilhantes e, sucessivamente, a cara de Maria. Esta estava preparada para ouvir os gritos de entusiasmo. Os olhos de Rosa voltaram a baixar-se e deixaram cair duas grandes lágrimas.
- Rosa! Vês o presente que te trouxe? Não gostas? Então porque não as pões?
- És a minha boa irmãzinha.
- Rosa, que se passa? Estás doente. Precisas de contar tudo à tua Maria. Veio alguém?
- Sim! - disse Rosa. - Veio o sheriff. Agora, Maria rejubilava de entusiasmo.
- O sheriff veio cá? Agora é que estamos lançadas e vamos fazer fortuna. Quantas enchiladas, Rosa? Diz-me quantas comprou o sheriff.
Rosa sacudiu a apatia que a dominava. Aproximou-se da irmã e passou-lhe, maternalmente, os braços pelos ombros.
- Minha pobre irmã! - disse. - Agora não poderemos vender mais enchiladas. Teremos de passar a viver outra vez como dantes, sem vestidos novos.
- Rosa! Estás louca! Porque me falas tu assim?
-É a verdade. O sheriff veio e declarou: «Tenho uma queixa. Uma queixa de que vocês exploram uma casa de má nota.» Mas é mentira! - respondi. - É mentira e é um insulto à memória de minha mãe e do general Vallejo. «Tenho uma queixa» continuou e!e. «Têm de fechar a porta, ou então prendo-as por explorarem uma casa de má nota.»-Tentei fazer-lhe compreender que era mentira mas respondeu-me:
«Recebi uma queixa esta tarde» disse ele. «Quando recebo uma queixa nada posso fazer porque, bem vê Rosa - falou-me como amigo-não passo de um servidor das pessoas que fazem as queixas.» - Bem vês, Maria, minha irmã, que teremos de voltar à antiga.
Deixou a irmã e voltou à mesa.
Por momentos, Maria tentou compreender o que se passava e, depois, começou a soluçar.
- Acalma-te, Maria! Tenho passado a tarde a pensar no caso. Bem vês que morreremos de fome se não vendermos enchiladas. Não me censures quando te disser, mas já tomei uma resolução: vou para São Francisco portar-me mal.
Ao dizer isto, tapou a cara com as mãos. Maria deixou de chorar. Aproximou-se da irmã e murmurou com horror:
- Por dinheiro?
- Sim! - gritou Rosa, com amargura. - Por dinheiro. Por muito dinheiro. E que a Mãe Santíssima me perdoe.
Maria deixou-a e foi ajoelhar-se na salinha em frente da estatueta da Virgem.
- Tenho acendido velas - chorava ela. - Todos os dias te tenho posto flores. Mãe Santíssima, que tens contra nós? Porque deixaste que isto nos acontecesse?
Ficou a rezar cinquenta Ave-Marias. Depois levantou-se com ar compungido mas cheio de determinação.
No outro compartimento, Rosa continuava inclinada sobre a mesa.
- Rosa! - gritou Maria em tom agudo. - Sou tua irmã! Sou tudo o que tu és.
Deixou escapar um suspiro profundo e continuou:
- Rosa! Quero ir contigo para São Francisco. Também me quero portar mal.
Então a reserva de Rosa quebrou-se. Pôs-se de pé e abriu-lhe os braços. Durante muito tempo, as irmãs Lopez choraram histèricamente nos braços uma da outra.
MOLLY MORGAN saiu do comboio em Salinas e esperou três quartos de hora pelo autocarro. Os assentos estavam vazios. Molly era a única passageira.
- Sabe! Nunca estive em Pastagens do Céu. Fica muito longe da estrada principal? - perguntou ela ao motorista, durante o caminho.
- Cerca de três milhas!-respondeu ele.
- E não há um carro que me leve ao vale?
- Não! A menos que lhe dêem uma boleia pelo caminho.
- Mas então, como é que as pessoas lá se põem?
O motorista fez passar o carro por cima do corpo espalmado de um coelho, com evidente satisfação.
- Só os esmago quando já estão mortos - disse, em ar de desculpa. - De noite, quando ficam encandeados pelos faróis, faço os possíveis por não lhes tocar.
- Sim, mas como é que vou chegar a Pastagens do Céu? -- Não sei. A pé, talvez. A maior parte das pessoas fazem o caminho todo a pé, quando não apanham boleia.
Ao apear-se na junção com a estrada rural, Molly Morgan pegou na mala, um pouco de mau humor, e encetou o caminho, a pé. Um velho Ford travou perto dela.
- Vai para o vale, ma’am?
- Oh, sim, vou.
- Então entre. Não precisa de ter medo. Chamo-me Pat Humbert e tenho umas coisas em Pastagens do Céu.
Molly observou o homem e pareceu ficar satisfeita com a apresentação.
- Sou a nova professora. Quer dizer, creio que sou. Sabe onde mora o sr. Whiteside?
- Claro! Até passo por lá agora. Ele é o presidente do conselho escolar. Sabe? Também faço parte do conselho. Temos estado a pensar como é que seria a sua cara.
Ficou envergonhado com o que disse e corou sob a camada de sujidade que o cobria. Emendou:
- Claro, quero dizer: como seria o seu aspecto. A última professora que tivemos deu-nos bastante trabalho. Não era má pessoa, mas estava sempre doente... isto é, doente e nervosa. Finalmente, demitiu-se por estar doente.
Molly começou a mordiscar as pontas dos dedos das luvas.
- A carta que tenho aqui diz que devo procurar o sr. Whiteside. É um homem às direitas, ele? Bem, o que quero dizer é... que espécie de homem é ele?
-Oh! Vai ver como se dará bem com ele. É um óptimo homem. Nasceu na casa onde mora. Também andou na Universidade. É boa pessoa. Há mais de vinte anos que é presidente do conselho escolar.
Quando ele a deixou à porta de Whiteside, a professora estava realmente assustada.
«É agora!» pensava. «Mas do que é que hei-de ter medo? Ele não me pode fazer mal nenhum.»
Molly tinha apenas dezanove anos e sentia que esta entrevista para um primeiro emprego era um acontecimento transcendente na sua existência.
O caminho pela álea não conseguiu dar-lhe mais confiança porque a pequena vereda era ladeada por canteiros de flores que pareciam ter sido ali postas com o seguinte aviso: agora, crescei e multiplicai-vos, mas não cresçais muito alto nem vos multipliqueis muito e, sobretudo, afastai-vos desta álea. Havia um pulso que dominava aquelas flores, um pulso que as corrigia e guiava. A grande casa branca tinha um aspecto bastante digno. Persianas de madeira amarela estavam descidas nas janelas para impedir o sol do meio-dia de entrar em casa. A meio da alameda avistou a entrada. Havia um alpendre largo, quente e acolhedor como um abraço. Perpassava-lhe na mente o pensamento de que se pode afirmar se uma casa é hospitaleira, observando a entrada. No entanto, apesar da saudação de boas-vindas dada pelos largos degraus e pelo enorme portal, a timidez voltou a feri-la quando tocou a campainha. A porta abriu-se e a cara de uma mulher forte e habituada a comodidades ficou a sorrir para Molly.
- Espero que não venha vender nada! - disse a sr.a Whiteside. - Nunca quero comprar nada mas depois sempre compro e fico zangada.
Molly sorriu. De repente sentiu-se muito feliz. Até aquele momento não soubera como estava realmente assustada.
- Oh, não! Não venho vender. Sou a nova professora. A minha carta diz que devo encontrar-me com o sr. Whiteside. Posso falar com ele?
- Bem! É meio-dia e ele está a acabar de almoçar. A menina já almoçou?
- Claro! Quero dizer: ainda não.
A sr.a Whiteside sorriu e afastou-se a dar-lhe passagem. Comentou:
- Ainda bem que tem a certeza.
Conduziu Molly a uma enorme sala de jantar cheia de móveis cujas portas eram de cristal e que estavam cheios de porcelanas. A mesa, de forma quadrada, estava coberta com os restos de uma refeição.
- John deve ter acabado de comer e abalado. Sente-se, menina. Já lhe trago a carne assada.
- Oh, não! Muitíssimo obrigado! Quero apenas falar com o sr. Whiteside e ir andando, depois.
- Sente-se! Precisa de alimento para poder enfrentar o John.
- Ele é exigente? Quero dizer, é exigente com as novas professoras?
- Bem! Depende! Se elas ainda não almoçaram, pouca diferença faz de um urso. Grita-lhes. Mas se acabam de se levantar da mesa, é simplesmente feroz.
Molly riu com gosto e disse:
- A senhora tem filhos. Tem muitos filhos e gosta muito deles.
A sr.a Whiteside comentou:
- Tenho um filho que me criou. Pôs-me num estado que, dificilmente, pode ser suplantado. Foi tarefa superior às minhas forças. Agora anda lá por fora a cuidar de vacas. Suponho que pouco fiz dele.
Quando Molly acabou de comer, a sr.a Whiteside abriu uma porta e anunciou:
- John, está aqui uma pessoa para te falar.
Empurrou Molly para dentro de uma sala que era a um tempo: biblioteca, porque grandes estantes circundavam as paredes, cheias de pesados livros velhos com letras em ouro; uma espécie de sala de estar, porque tinha uma lareira de tijolos vermelhos, com uma consola listada a branco e enfeitada com a colecção dos vasos mais extraordinários. Pendurado por cima da lareira, pendente como uma espingarda do ombro de um caçador, estava um grande cachimbo de guta-percha, no estilo Jaezer. Grandes cadeiras forradas de couro estavam colocadas junto do fogo, todas elas mostrando que fariam um ranger de molas quando alguém se lhes sentasse em cima. Finalmente, a sala parecia ainda um escritório, porque havia nela uma secretária antiga, das que têm um tampo que as cobre e que se pode abrir e fechar. Por detrás dessa secretária estava John Whiteside. Quando levantou a vista para ele, Molly viu que o presidente do conselho escolar tinha os olhos mais amáveis e, ao mesmo tempo, mais teimosos que ela já vira; de mistura com o cabelo mais branco deste mundo. Era cabelo de uma brancura sedosa e azulada; uma grande madeixa dele.
- Chamo-me Mary Morgan! - começou em tom formal.
- Com certeza, Miss Morgan. Estava à sua espera. Não quer sentar-se?
Ela sentou-se numa das grandes cadeiras forradas a couro, cujas molas gemeram com o barulho que havia previsto.
- Gosto tanto destas cadeiras! - disse. - Quando era miúda tínhamos uma.
De súbito, sentiu-se tola e prosseguiu noutro tom:
- Venho para ter uma entrevista com o senhor, por causa daquele posto de professora. Pelo menos, era o que a carta dizia.
- Não esteja tão ansiosa, Miss Morgan. Entrevistei previamente todas as professoras que cá estiveram antes, e ainda não sei como dirigir uma conversa do género.
- Oh! Ainda bem, sr. Whiteside. É a primeira vez que me candidato a um emprego e estava com um certo receio.
- Ora bem, Miss Morgan. Segundo me parece, o objectivo desta conversa é dar-me um pouco a conhecer o seu passado e que espécie de pessoa é você. Devo ficar a saber um pouco acerca da sua pessoa, quando acabar a conversa. Agora que já sabe quais são os meus propósitos, suponho que vai fazer os possíveis para me deixar boa impressão. Se me quisesse contar algo acerca de si própria, seria óptimo. Apenas algumas palavras sobre a sua educação e a sua maneira de ser.
- Com certeza, sr. Whiteside. Vou fazer os possíveis respondeu, enquanto voltava a memória para o passado.
Lá estava a velha casa, arrumada e sem pintura, com a porta das traseiras aberta. No cimo de uma árvore, os seus dois irmãos, Tom e Joe, andavam de ramo para ramo, gritando:
- Agora sou uma águia.
- Eu sou uma papagaio.
-Sou um galo velho.
- Olha para mim!
A porta de rede abria-se, e a mãe deitava a cabeça de fora. O cabelo nunca lhe assentava na cabeça, se bem que se penteasse bastantes vezes; espessas madeixas lhe caíam sempre para as faces. Tinha os olhos quase sempre avermelhados e as mãos e pulsos penosamente encarquilhados.
- Tom! Joe! - gritava ela. - Vocês aleijam-se aí. Não me apoquentem, rapazes! Não têm um pouco de amor à vossa mãe?
As vozes na árvore baixavam de tom. As almas da águia e do galo velho mergulhavam em meditações de auto-reprovação. Molly estava sentada no chão, embrulhando um trapo em volta de um pau e tentando com toda a sua boa vontade imaginar que aquilo era uma senhora alta e bem vestida.
- Molly, vem para junto da tua mãe. Estou tão cansada hoje.
Molly enterrava o pau no chão e murmurava em tom feroz:
- Quieta, menina, ou chicoteio-a quando voltar. Depois voltava obedientemente para casa.
- Deixa-te estar, Molly! Fica aqui comigo por uns momentos. Ama-me, Molly. Dá um bocadinho de amor à tua mãe. Tu és a menina bonita da tua mãe, não és?
_ Molly sentava-se numa cadeira. --Não gostas da tua mãe, Molly?
A miúda sentia-se triste. Sabia que, daí a momentos, a mãe começaria a chorar e ela teria de lhe fazer festas no cabelo emaranhado. Tanto ela como os irmãos sabiam que deviam amar a mãe, que tudo fazia por eles, tudo. Tinham vergonha de sentir que não gostavam de estar junto dela, mas não podiam evitar esse sentimento. Quando a mãe os chamava e não estavam à vista, fingiam não ouvir e abalavam, talando apenas em tom sussurrado.
- Bem, para começar, éramos muito pobres! - disse Molly a John Whiteside. - Creio que éramos o que se chama apegados à pobreza. Tinha dois irmãos um pouco mais velhos do que eu. Meu pai era caixeiro-viajante mas, mesmo assim, a minha mãe tinha de trabalhar bastante para nos manter.
Cerca de uma vez de seis em seis meses acontecia uma coisa muito importante. De manhã, a mãe saía silenciosamente do quarto. Tinha o cabelo tão bem penteado quanto podia ser, os olhos brilhavam-lhe e parecia feliz, quase bonita. Murmurava:
-Calados, filhos. O pai está em casa.
Molly e os irmãos esgueiravam-se para a rua mas, mesmo lá fora, continuavam a falar baixo. A notícia corria rápida pela vizinhança. Em breve o quintal estava cheio de crianças que murmuravam:
- Dizem que o pai deles está em casa.
- É verdade que o teu pai voltou?
- Onde esteve ele, desta vez?
Lá para o meio-dia devia haver cerca de uma dúzia de crianças no pátio, agrupadas em pequenos círculos e recomendando uns aos outros que falassem baixo.
Ao meiodia a porta de rede abria-se e ia bater de encontro à parede. O pai saía então.
- Olá! - gritava. - Olá miúdos!
Molly e os irmãos corriam para ele e agarravam-se-lhe às pernas. O pai pegava-lhes e atirava-os ao ar, tornando a apanhá-los, como se fossem gatinhas.
A sr.a Morgan andava de um lado para o outro, corada de entusiasmo e dizendo:
- Filhos, filhos. Não sujem o fato do pai.
Os filhos dos vizinhos pulavam, lutavam e davam gritos de alegria. Era melhor do que se fosse feriado.
- Esperem, que já vêem! - exclamava o pai. - Esperem que já vêem o que vos trouxe. por enquanto, é segredo.
Quando a excitação baixava um pouco mais, ia buscar a mala e abria-a no pátio. Havia presentes como ninguém ainda vira, brinquedos mecânicos, até ali desconhecidos: abelhas de lata que zumbiam, negros de madeira que dançavam e carros de corda que se moviam sozinhos. Havia ainda lindas bolas de cristal com ursos e cães no meio. Trazia uma coisa para cada um, e mesmo, às vezes, várias coisas para todos. Era como se todos os feriados se reunissem e fizessem um único dia santo.
Geralmente, só a meio da tarde os miúdos ficavam suficientemente calmos para não gritarem de vez em quando. Todavia, por vezes George Morgan sentava-se nos degraus e todos se juntavam em torno dele para o ouvirem contar as suas aventuras. De uma vez estivera no México durante uma revolução. De outra, fora a Honululu, vira o vulcão, e havia mesmo andado numa tábua sobre as ondas. Havia sempre cidades novas e novas gentes, gentes estranhas; sempre aventuras e centenas de incidentes engraçados; mais engraçados do que qualquer outra coisa de que tivessem ouvido Mar. Não podia ser tudo contado de uma vez. Depois da escola, tinham de se reunir de novo para ouvirem mais e mais. George Morgan vagueava através do mundo, coleccionando aventuras maravilhosas.
- À medida que a minha vida de casa se ia desenvolvendo
- continuava Miss Morgan - receio ter de dizer que quase não tive pai. Mal tinha tempo para vir a casa umas vezes por outras, a meio das suas viagens de negócios.
John Whiteside abanava a cabeça com gravidade.
As mãos de Molly mexiam-se nervosamente no regaço, e os olhos dela quase não tinham brilho.
Uma vez, o pai trouxe um cãozinho que parecia de lã, dentro de uma caixa.
- De que raça é este cão? - perguntou Tom com o seu ar mais afectado.
O pai rira alto. Parecia tão jovem. Tinha aspecto de ser, pelo menos, vinte anos mais novo do que a mãe.
- É dólar e meio de cão! - explicou. - Por um dólar é meio, pode-se comprar cães de uma quantidade de raças. E assim... Supõe que vais a uma loja e pedes um níquel de rebuçados sortidos... ’Bem, eu entrei na loja e disse: dê-me um dólar e meio de cão sortido. Nada mais. O cão é de Molly e ela é que lhe vai pôr o nome.
- Vou chamar-lhe George! - disse Molly.
O pai fez-lhe uma vénia e disse: «Obrigado.» Todos repararam que não estava a fazer pouco da ideia da filha.
Molly levantou-se muito- cedo na manhã seguinte e levou George a ver onde estavam certas coisas. Mostrou-lhe onde estavam certas coisas. Mostrou-lhe primeiro onde estavam enterrados dois pence e um botão de farda de polícia, meteu-lhe as patitas dianteiras na grade para lhe mostrar onde era a escola e, finalmente, subiu a cima da árvore que havia no pátio, levando George debaixo do braço.
Tom saiu correndo de dentro de casa e parou debaixo da árvore.
- Cuidado, não o deixes cair! - gritou ele, no momento preciso em que o> cão lhe escorregava das mãos e caía.
Foi bater no chão duro, com um baque, alarmante. Uma das pernas ficou fora da posição- normal, e o cãozito começou a soltar gemidos horríveis, entrecortados por fundos suspiros. Molly desceu da árvore, estupefacta com o acidente. Tom olhava para o cachorro, com o rosto contorcido de pena, enquanto este continuava a ganir.
- Não podemos deixá-lo cheio de dores - gritou Tom. Não o podemos deixar assim.
Correu à pilha de madeira e trouxe um toro. Molly estava nervosa de mais para pensar em desviar a vista, mas Tom fechou os olhos e desferiu o golpe. Os ganidos cessaram imediatamente. Tom deitou fora o pau e saltou a grade. A irmã viu-o fugir a correr, como se fosse perseguido.
Nessa altura, Joe e o pai apareceram à porta de casa. Molly lembrava-se de como a expressão do pai se mostrava triste e carrancuda ao ver o cachorro. Havia qualquer coisa na cara dele que a tez começar a chorar.
Deixei-o cair da árvore e ele magoou-se, e Tom deu-lhe uma paulada... e depois Tom fugiu.
A voz dela tinha um som estranho. O pai acariciou-lhe a cabeça de encontro às pernas e disse:
- pobre Tom. Molly, lembra-te de que não deves nunca falar no caso a Tom, nem nunca olhares para ele como se te lembrasses.
Lançou um saco sobre o cão e prosseguiu:
- Vamos fazer-lhe o funeral. Já alguma vez te falei no funeral chinês a que assisti, dos papéis queimados que atiravam para o ar e dos porcos assados que punham na sepultura?
Joe aproximou-se mais, e mesmo os olhos de Molly mostravam um brilho de interesse.
- Bem, foi assim...
Molly olhou para John Whiteside e viu que ele observava uma folha de papel da escrivaninha.
- Quando eu tinha doze anos, o meu pai morreu num desastre! - prosseguiu.
As visitas mais demoradas duravam, geralmente, duas semanas. Havia sempre uma tarde em que George saía para a cidade e não voltava senão já noite alta. A mãe metia-os cedo na cama, mas ouviam-no sempre voltar para casa, tropeçando um pouco na mobília, e podiam ouvi-lo falar, através da parede. Eram as únicas vezes em que a voz dele era triste e falha de coragem. As crianças sabiam o que aquilo significava. Pela manhã, o pai havia abalado, levando consigo os corações dos filhos.
Tinham discussões intermináveis acerca do que ele estaria a fazer. para eles, o pai era um argonauta, um cavaleiro prateado. A Virtude a Coragem e a Beleza eram os elementos de que a sua armadura se revestia.
- Um dia - diziam os rapazes. - Um dia, quando formos crescidos, iremos com ele.
- Eu também vou! - insistia Molly.
- Oh! Tu és uma rapariga, não podes ir.
-Mas ele leva-me! Um dia há-de levar-me com ele. Vão ver se não leva.
Depois de ele abalar, a mãe voltava a queixar-se. Os olhos avermelhavam-se-lhe de novo e pedia amor aos filhos, como se fosse um pacote que lhe pudessem depositar nas mãos.
Uma vez, o pai partiu e não mais voltou. Nunca lhe havia escrito nem mandado dinheiro, mas desta vez desaparecera para sempre. Esperaram-no durante dois anos, findos os quais, a mãe lhes disse que ele devia ter morrido. As crianças estremeciam ao pensar nisso, mas recusavam-se a acreditar, porque uma pessoa com tanta beleza e tanta bondade como o pai não podia morrer. Algures neste mundo, andaria ele a viver aventuras maravilhosas. Devia haver qualquer razão que o impedisse de voltar para junto deles: qualquer manhã estaria de volta, com presentes mais belos e histórias mais lindas do que nunca. No entanto, a mãe dizia que lhe devia ter acontecido qualquer desastre. Devia estar morto. A mãe era uma pessoa incapaz de enfrentar uma situação. Lia os anúncios que se ofereciam para ajudar a ganhar dinheiro, trabalhando em casa. As crianças faziam flores de papel e tentavam vendê-las, um pouco envergonhadas. Os rapazes tentaram escrever para os jornais, e a família quase morria de fome. Finalmente, quando já não podiam aguentar mais, abalaram e alistaram-se na marinha. Daí em diante, Molly via-os tão poucas vezes como vira o pai e mudaram tanto, tornaram-se tão duros e retraídos, que ela pouco se importava com o facto, porque os irmãos haviam passado a ser como que desconhecidos para ela.
- Fiz o liceu e depois fui para S. José e entrei para a Escola Nacional. Trabalhava para pagar o alojamento e a pensão, em casa da sr.a Allen Morrit. Antes de acabar o curso, a minha mãe morreu, por isso, creio que sou uma espécie de órfã.
- É uma pena! - murmurou John Whiteside com delicadeza.
Molly corou, e disse:
- Não fiz apelo para a sua simpatia, sr. Whiteside. O senhor disse que queria saber algo a meu respeito, e é isso que estou a contar-lhe. Todos nós temos de ser órfãos, mais cedo ou mais tarde.
- Sim! - concordou ele. - Creio que também sou órfão.
Molly trabalhou para pagar a sua pensão e alojamento. Fazia o trabalho de uma criada para todo o serviço e não recebia ordenado. O dinheiro para se vestir, amealhava-o trabalhando numa loja durante as férias grandes. A sr.a Morit sabia instruir as raparigas.
Posso tomar ao meu serviço uma rapariga que não valha dez réis, dizia ela muitas vezes. Depois de ter trabalhado na minha casa durante seis meses, está apta a ganhar cinquenta dólares por mês. Piá muitas mulheres que sabem disso e que se limitam a roubar-me as raparigas. Esta é a primeira estudante que treino, mas até ela mostra fazer progressos. No entanto, lê de mais. Sempre disse que uma criada deve estar a dormir às dez horas, ou não será capaz de fazer o serviço em condições.
O método da sr.a Morrit baseava-se em críticas e ralhos constantes, feitos em tom firme e decidido.
«Vá, Molly, não é para pôr defeitos, mas se não limpares melhor as pratas, elas ficam riscadas; - a faca da manteiga coloca-se assim, para se poder pôr a manteigueira aqui.-»
«Explico sempre a razão de ser das coisas!» dizia ela às amigas.
À noite, depois de lavar a loiça, Molly sentava-se a estudar. Quando as luzes se apagavam, ficava estendida na cama a pensar no pai. Sabia que era uma coisa ridícula, um desperdício de tempo. O pai chegava à porta, vestindo um casaco de bom corte e calças de fantasia. Na cabeça trazia um chapéu alto. Vinha com um ramo de rosas na mão e dizia:
«Nãa pude chegar mais cedo-, Molly. Põe o casaco depressa. Temos de ir comprar o vestido de noite que está na montra da ”Prussia”, mas tens de te despachar porque comprei dois bilhetes para o ”rápido” de Nova Iorque. Avia-te Molly, não fiques aí parada.»
Era uma tolice! O pai estava morto. Não! Realmente, não acreditava que ele tivesse morrido. Estaria a viver muito bem em qualquer parte do mundo e, um dia, havia de regressar.
Molly disse uma vez a uma das colegas:
«Estás a ver? Não acredito que esteja morto, mas também não deixo de acreditar. Se algum dia tivesse a certeza de que ele morrera, seria horrível. Não sei que faria. Não quero pensar em saber que ele morreu.»
Quando foi a morte da mãe, pouco mais sentiu do que vergonha. A mãe, de tanto que quisera ser amada, não conseguira que o amor se encaminhasse para ela. As suas lamentações não haviam feito mais que maçar os filhos e afastá-los de si.
- E é, praticamente, tudo! - acabou Molly. - Tenho o meu diploma e fui mandada para aqui.
- Deve ter sido a entrevista mais fácil que já tive! declarou John Whiteside.
- Quer então dizer que tenho o lugar?
O velho lançou um olhar ao cachimbo de guta-percha, pendurado sobre a consola da lareira.
«É o amigo dele», pensou Molly. «Conta todos os seus segredos ao cachimbo.»
- Sim! Creio que ficará com o lugar. Penso até que já o tem. Agora, Miss Morgan, onde é que vai viver? Tem de arranjar uma casa onde se hospedar.
Antes que soubesse o que ia dizer, ela exclamou:
- Quero ficar a viver aqui. John Whiteside abriu os olhos com espanto e disse:
- Mas nós não aceitamos hóspedes, Miss Morgan.
- Oh! Desculpe! Compreende... gostei tanto de aqui estar...
Ele chamou: -Willa! - e a mulher entreabriu a porta.
-Esta jovem quer ficar a viver connosco! É a nossa professora.
A sr.a Whiteside franziu o sobrolho e respondeu:
-Quem iria pensar uma coisa dessas? Nunca aceitámos hóspedes. É bonita de mais para estar perto daquele doido do Bill. Que aconteceria às vacas dele? Seria um grande sarilho.
Virou-se para Molly e continuou:
- Pode ficar no terceiro quarto ao cimo das escadas. Não tem muito sol mas é um bom quarto.
A vida mudou de aspecto. De repente, Molly compreendeu que era uma rainha. Desde o primeiro dia, os alunos adoraram-na porque ela os compreendia e, o que era mais, fazia-se compreender por eles. Levou-lhe algum tempo para descobrir que era uma pessoa importante. Se dois homens começavam a discutir qualquer assunto de história, literatura ou matemática e a questão chegava a um beco sem saída, acabava sempre com um: «Vamos perguntar à professora. Se ela não souber, informa-se e resolve o caso.» Molly sentia-se orgulhosa por poder resolver tais questões. Nas festas ajudava a preparar os enfeites e sugeria refrescos.
- Acho que devíamos pôr ramos de pinheiro à volta de toda a casa. São bonitos e cheiram bem; cheiram a festa.
Era considerada uma pessoa que tudo sabia, que tudo ajudava e gostava dessa consideração.
Em casa dos Whiteside, trabalhava na cozinha sob os murmúrios de Willa. Seis meses depois, esta dizia ao marido:
--Se aquele Bill tivesse juízo... Mas nesse caso-continuava - se ela tivesse juízo...
Deixava sempre a frase em suspenso.
À noite Molly escrevia cartas às poucas pessoas amigas que tinha na Escola Normal. Eram cartas cheias de pequenas histórias acerca dos vizinhos e exultantes de alegria. Tinha de assistir a todas as festas por causa do prestígio social da sua posição. Aos sábados percorria as colinas e voltava cheia de plantas selvagens que dispunha em torno da casa.
Bill Whiteside lançara um olhar a Molly e voltara para as suas vacas. Muito tempo se passou antes que ele se enchesse de coragem para ter com ela uma conversa longa. Era um jovem forte e simples que não tinha o equilíbrio do pai nem o sentido de humor da mãe. No entanto, às vezes seguia Molly e observava-a à distância.
Uma tarde, como que em acção de graças por ser tão feliz, Molly falou a Bill sobre o pai. Estavam sentados em cadeiras de lona, no alpendre, à espera de ver surgir a Lua. Ela falou-lhe das suas visitas e, depois, do desaparecimento.
- Compreende o que eu quero dizer, Bill? - exclamou. O meu querido pai está vivo algures e pertence-me. Acha que ele está vivo, não é verdade, Bill?
- Talvez! - respondeu ele. - Se bem que, pelo que você diz, ele fosse uma espécie de irresponsável. No entanto, acho estranho que, estando vivo, nunca tenha escrito.
Molly arrepiou-se. Eram aqueles os raciocínios que evitara durante muito tempo.
- Claro! - disse. - Compreendo isso. Tenho de ir fazer um trabalho, Bill.
No cimo de uma colina que dominava o vale de Pastagens do Céu havia uma velha cabana de onde se abarcava com a vista toda a região, bem como todas as estradas das vizinhanças. Dizia-se que o bandido Vasquez construíra a cabana e vivera nela durante um ano, enquanto os homens do sheriff rebuscavam tudo à procura dele. A cabana era uma espécie de monumento. Todos os habitantes do sítio lá tinham estado já uma vez ou outra e quase todos perguntavam a Molly se já lá tinha ido.
- Não! - respondia ela. - Vou lá um dia destes, num sábado. Conheço o caminho.
Uma manhã, vestiu o casaco novo de bombazina, calçou as botas de caminheiro e saiu. Bill ofereceu-se para a acompanhar.
- Não! - respondeu ela. - Você tem o seu trabalho e eu não quero afastá-lo dele.
- O trabalho que se enforque! - disse Bill.
- Bem! Prefiro ir sozinha. Não quero magoá-lo, mas prefiro ir sozinha.
Tinha pena de não o deixar acompanhá-la, mas a observação dele quando lhe falara acerca do pai tinha-a deixado assustada.
«Quero uma aventura!» dizia para si própria. «Se Bill viesse, seria apenas um passeio.»
Levou uma hora e meia a subir a vereda estreita por sob os carvalhos. As folhas caídas no chão tornavam o caminho tão escorregadio como vidro, e o sol estava quente. O cheiro dos fetos, dos musgos e da yerba buena enchia os ares. Quando Molly chegou, finalmente, ao cimo, estava cansada e a transpirar. A cabana ficava numa clareira a meio dos arbustos. Era um compartimento quadrado de madeira e sem janelas. A entrada sem porta era uma sombra negra. O lugar estava calmo, apenas se ouvia o zumbido das moscas e das abelhas; toda a encosta cantava ao sol. Molly aproximou-se em bicos de pés e com o coração a bater violentamente. Murmurou:
((Agora estou a viver uma aventura. Estou mergulhada em aventura, dentro da cabana de Vasquez.»
Espreitou à entrada e viu uma lagartixa que se escondia. Uma teia de aranha bateu-lhe na testa, como que a querer impedi-la de entrar. A cabana estava deserta. Não havia nela nada, a não ser o chão de terra batida, as paredes de madeira a apodrecer e o cheiro a deserto que se evola das terras que estão há muito protegidas dos raios de sol. Molly sentia-se cheia de excitação e pensava:
«À noite sentava-se aqui. Às vezes, quando ouvia ruídos como de homens subindo até ele, saía por aquela porta, como o espírito de uma sombra, e perdia-se na escuridão.»
Olhou para baixo, para o vale de Pastagens do Céu. Os pomares pareciam retalhos verdes; as searas estavam amarelas e as colinas escondiam-se sob um manto de alfazema. Por entre as quintas, circulavam as estradas que se torciam e encaracolavam evitando aqui um campo, contornando ali uma árvore gigante, servindo, mais longe, de barra a uma colina. Por sobre tudo isto pairava um ténue véu de neblina produzida pelas evaporações devidas ao calor. Molly murmurava:
«É fantástico! Chega a parecer irreal. É uma história autêntica e estou a viver uma aventura.»
Subia do vale uma brisa que mais parecia produzida pelo respirar de um ser adormecido.
Durante o dia, aquele jovem Vasquez olhava para o vale, como eu agora faço. Estava aqui mesmo e olhava aquelas estradas. Usava uma camisa de púrpura, bordada a ouro, e as calças que lhe cobriam as pernas finas alargavam-se ao fundo como as trombetas. As rodas das suas esporas estavam protegidas com seda para não tilintarem. Por vezes, via os homens do sheriff passarem na estrada, lá em baixo. Por felicidade, os homens curvavam-se sobre os pescoços dos cavalos e não olhavam cá para cima. Vasquez ria mas também sentia medo, Chegava mesmo a cantar, e as suas canções eram tristes e suaves porque sabia que não viveria muito tempo
Molly sentou-se no chão da cabana e poisou o queixo nas mãos. O jovem Vasquez estava de pé, na sua frente, e tinha a cara alegre do seu pai, os mesmos olhos brilhantes de quando entrava pela abertura que servia de porta e gritava:
«Olá, miúdos!»
Era esta a aventura que o pai tivera. Molly sacudiu o corpo e levantou-se, resolvendo para si:
«Agora vou voltar ao princípio e tentar ver as coisas ccmo talvez se tenham passado.»
À tarde, a sr.a Whiteside mandou Bill ir à procura de Molly, dizendo:
- Talvez tenha torcido um pé.
Todavia, Molly saiu da vereda na altura em que Bill ia a alcançar a estrada.
- Já pensávamos que se tivesse perdido! - disse ele.- Foi mesmo à cabana?
- Sim!
- Uma coisa engraçada, não é? Há dúzias delas, iguaizinhas, cá em baixo, mas ficaria admirada se soubesse quantas pessoas sobem até lá só para a verem. O mais engraçado é que ninguém sabe ao certo se Vasquez lá esteve alguma vez.
- Creio que deve ter estado.
- Porque pensa isso?
- Não sei.
- Todos pensam que Vasquez foi um herói quando, afinal, não passava de um ladrão. Começou por roubar ovelhas e cavalos e acabou a roubar manadas inteiras. Tivemos de matar alguns outros que faziam o mesmo. Parece-me, Molly, que devemos ensinar as pessoas a odiar os ladrões e não a venerá-los.
- Claro, Bill. Tem muita razão. Importava-se se continuássemos o resto do caminho, calados? Acho que estou um pouco cansada, e nervosa também.
Um ano passou. Os castanheiros deram frutos e as colinas cobriram-se de flores selvagens. Molly achou-se desejada por todo o vale. Assistia mesmo às reuniões do conselho escolar. Tempos houve em que aquelas secretas e augustas conferências levadas a cabo atrás de uma porta fechada eram um mistério e um terror para todos. Agora que Molly fora convidada a penetrar na saleta de John Whiteside, descobria que o conselho falava das culturas, contava histórias e discutia os mexericos corriqueiros.
Bert Munroe fora eleito nos princípios do Outono e, quando chegou a Primavera, era o membro mais activo do conselho. Era ele quem organizava os bailes na escola e quem insistia em que se fizessem piqueniques e representações teatrais. Oferecia até prémios para os alunos mais classificados e o conselho começava a depender muito de Bert Munroe.
Uma noite, Molly desceu mais tarde do seu quarto. Como sempre que o conselho se reunia, a sr.a Whiteside estava sentada na casa de jantar.
- Creio que não vou à reunião! - disse Molly. - Vou deixar que fiquem à vontade uma vez. Chego a pensar que contariam outras histórias se eu lá não estivesse.
- Vá para lá, Molly! Eles não são capazes de conduzir uma reunião sem a sua presença. Estão tão habituados a isso, que ficariam aflitos sem você. Além disso, tenho a certeza de que, pessoalmente, não aprovo as histórias que eles contam quando a menina não assiste.
Obedientemente, Molly bateu à porta e entrou na sala. Bert Munroe fez uma pausa delicada na história que estava a narrar, e disse:
- Estava a falar-lhes do meu novo empregado, Miss Morgan. Vou começar do princípio porque é muito engraçado. Está a ver, precisava de um empregado e contratei este tipo debaixo da ponte do rio de Salinas. Estava bastante embriagado mas queria trabalhar.
«Depois de o empregar, descobri que não vale um centime como trabalhador, mas não posso pô-lo a mexer. Aquele filho da mãe tem andado por todo o lado. Deviam ouvi-lo falar dos lugares onde esteve. Mesmo que eu quisesse, os meus filhos não me deixariam despedi-lo. Toma para assunto a coisa mais insignificante e faz com ela uma história admirável. Os moços sentam-se à volta dele, de ouvido atento, a escutar. Pois bem, duas vezes por mês vai até Salinas e apanha uma grossura. É daqueles bêbedos periódicos. Os polícias de Salinas telefonam-me sempre que o apanham numa sarjeta e tenho de ir buscá-lo. E sabem que mais? Quando lhe passa a bebedeira, tem sempre no bolso qualquer presente para o meu filho mais novo. Não se pode fazer nada contra um homem daqueles. Deixa-nos desarmados. Não tiro dele o rendimento de um dólar de trabalho por mês.»
Molly levantou-se. Estava com um medo terrível de que alguém perguntasse o nome do homem.
-Não me sinto bem, esta noite. Se os senhores me desculpam, creio que vou para a cama.
Os homens levantaram-se quando ela saiu da sala. Na cama, enterrou a cabeça na almofada e tentou consolar-se, pensando:
«É uma loucura. Não há a mais pequena possibilidade. Tenho de me esquecer do caso.»
No entanto, para maior aflição, descobriu que estava a chorar.
As semanas seguintes foram uma agonia para Molly. Tinha uma certa relutância em sair de casa. À ida e à vinda da escola, não se cansava de observar a estrada. Pensava:
«Se vir algum desconhecido, largo a correr. Mas é uma loucura. Estou a ficar louca.»
Apenas se sentia segura no quarto. O medo estava a fazer-lhe perder as cores das faces e o brilho dos olhos.
- Molly, você devia ir para a cama! - insistia a sr.a Whiteside. - Ou quer que lhe bata, como faço ao Bill, para ir para a cama?
Mas Molly não se queria ir deitar porque pensava em muitas coisas quando estava na cama.
Na reunião seguinte do conselho, Bert Munroe não apareceu. Molly sentiu-se aliviada e quase feliz com a ausência dele.
- Está melhor, Miss Morgan?
- Oh, sim! Era uma coisa de nada, uma espécie de constipação. Se tivesse ido para a cama é que teria adoecido de verdade.
O conselho já estava reunido havia uma hora, quando Bert Munroe entrou.
- Desculpem o atraso - disse. - Voltou a acontecer a mesma coisa. O meu empregado foi apanhado a dormir nas ruas de Salinas. Está lá fora, no automóvel, a cozê-la. Amanhã tenho de desinfectar o carro.
Molly sentiu um aperto de terror na garganta. Por momentos pensou que ia desmaiar.
- Desculpem, tenho de sair! - exclamou e correu para fora da sala. Caminhou até ao hall, que estava às escuras, e encostou-se à parede. Depois, vagarosa e automaticamente, saiu a. porta e começou a descer os degraus. A noite estava cheia de sussurros. Lá adiante, na estrada, via-se o vulto negro do carro de Munroe. Sentia-se surpreendida com o modo como os seus passos a levavam pela álea; admirada da sua própria determinação.
«Estou a matar-me», pensava. «Estou a fazer desmoronar tudo. Porquê?»
A mão já pegava na cancela e ia para a abrir. Então levantou-se uma brisa que lhe trouxe ao nariz o cheiro acre de vómitos e ouviu o ressonar de um bêbedo. Qualquer coisa a fez mudar de ideias e voltar correndo para dentro de casa. Fechou a porta do quarto e sentou-se pesadamente, respirando fundo com o peso da corrida. Pareceu-lhe que decorreram horas até ouvir os homens que saíam para as suas casas, dizer «Boa noite». O carro de Bert começou a andar, e o barulho do motor perdeu-se na estrada. Agora que estava resolvida sentiu-se paralisada.
John Whiteside estava escrevendo à secretária, quando Molly entrou na saleta. Levantou os olhos e fitou-a com ar interrogativo.
-A menina não está bem! Precisa de um médico.
Ela ficou parada junto da secretária e perguntou:
- Pode arranjar quem me substitua?
- Claro que posso. Vá imediatamente para a cama, que eu chamo já um médico.
- Não é isso, sr. Whiteside. Quero ir-me embora esta noite.
-Que diz? Não está boa da cabeça.
- Disse-lhe que o meu pai tinha morrido. Não sei sequer se morreu ou não. Receio que... Quero ir-me embora esta noite.
Ele olhou-a de modo intencional e perguntou, com ar afectuoso:
- Que quer dizer com isso?
-Oh! Se eu, ao menos, tivesse visto o bêbedo no carro do sr. Munroe...
Calou-se, de súbito, aterrorizada com o que estivera quase a dizer.
John Whiteside abanou a cabeça muito devagar.
- Não! - gritou ela. - Não é isso que penso. Tenho a certeza de que não é!
- Gostaria de poder fazer alguma coisa, Molly.
- Não, quero ir-me embora. Adoro este lugar mas tenho medo. É uma coisa tão importante para mim.
John Whiteside levantou-se, veio junto dela e passou-lhe um braço em torno dos ombros, dizendo:
- Acho que não compreendo bem. Talvez não tenha mesmo de compreender. Não é preciso.
Parecia falar consigo próprio.
- Não seria delicado compreender.
- Logo que me vá embora, ficarei capaz de não acreditar
- lamentou-se Molly.
Ele deu-lhe um pequeno safanão com o braço e disse:
- Vá para cima e arranje as suas coisas, Molly. Vou tirar o carro e levá-la já, a Salinas.
DE todas as quintas que havia em Pastagens do Céu, a mais admirada era a de Raymond Banks. Raymond tinha cinco mil galinhas brancas e mil patos da mesma cor. A terra ficava situada na planície Norte, o sítio mais belo de toda a região. Raymond dividira a terra em folhas quadradas de alcácer e cevada. As capoeiras compridas e baixas eram pintadas tantas vezes de branco que tinham sempre um aspecto imaculado e novo. Nunca se vira na sua quinta aquela suj idade quase sempre associada aos lugares de criação de galinhas.
Para os patos, havia um grande tanque redondo, para dentro do qual corria constantemente água limpa de duas bicas. Do tanque, passava a água para as plantações de alcácer e cevada. Era uma coisa bela de se ver, nas manhãs de sol, o bando de galinhas debicando entre as hastes do alcácer ou, os mil patos brancos nadando em torno do tanque. Os patos nadavam com aspecto altivo e leve, como se fossem Leviatãs. A terra parecia cantar constantemente com as vozes das aves.
Do cimo de uma colina próxima podia ver-se os quadrados de alcácer, nos quais se moviam pontos brancos como partículas de pó num espelho verde. Por vezes, talvez se visse um falcão de cauda vermelha voltejar cuidadosamente em redor da casa de Raymond. Os pontos brancos paravam imediatamente de executar os seus movimentos sem sentido e ouvia-se subir dos campos os gritos desesperados de centenas de galinhas aterrorizadas. A porta das traseiras da casa batia com violência, e via-se Raymond sair com uma espingarda na mão. O falcão subia alguns metros e voava para longe, fazendo soltar os movimentos aos pontos brancos que continuavam a andar de um lado para o outro.
As folhas de terreno estavam separadas umas das outras por redes, de modo que um quadrado podia descansar e voltar a crescer, enquanto os animais se alimentavam noutro. Do cimo da colina podia ver-se a casa de Raymond pintada de branco, situada na orla de um pequeno bosque de carvalhos. Havia grande quantidade de flores em torno da casa: plantas africanas de grandes proporções, algumas do tamanho de árvores. Lá atrás, o único roseiral digno desse nome que havia em todo o vale de Pastagens do Céu. As pessoas da região consideravam este sítio a quinta modelo do vale.
Raymond Banks era um homem forte. Os braços curtos e musculosos, os ombros e as ancas largos, as pernas pesadas e mesmo o estômago, que lhe empurrava o cós das calças, faziam-no parecer magnificamente forte, capaz de puxar, empurrar ou levantar qualquer peso. Todas as partes descobertas do seu corpo se encontravam queimadas pelo sol: os braços, até ao cotovelo; o pescoço, até ao colarinho; a cara e, particularmente, as orelhas e o nariz, eram queimados impiedosamente pelo sol de Verão e de Inverno. Nem o cabelo fino e louro lhe protegia o couro cabeludo de ficar vermelho com a acção do sol. Os olhos de Raymond eram notáveis porque, enquanto o cabelo e as sobrancelhas eram louros, do louro que condiz com olhos azuis-claros, os olhos eram negros como a noite. Tinha uma boca carnuda e jovial que destoava do nariz comprido e encurvado
Raymond Banks tinha quarenta e cinco anos e muita alegria. Nunca falava baixo, mas sim com voz de quem está quase a gritar com zombeteira ferocidade. Dizia as coisas, mesmo as mais vulgares, como se estivesse a contar uma anedota. Quando falava, fazia rir toda a gente. Nas festas do Natal, na escola, Raymonde Banks era sempre escolhido para Pai Natal, por causa da sua voz forte, da cara vermelha e do seu amor pelas crianças. Divertia tanto os miúdos que os mantinha em permanente gargalhada. Mesmo sem estar vestido de Pai Natal, as crianças consideravam-no sempre como se o fosse. Tinha uma maneira de conservá-los sempre em movimento, de brigar com eles e de os acariciar, que era uma coisa deliciosa. De vez em quando ficava sério e ensinava-lhes coisas que assumiam a importância de grandes lições.
Às vezes, nos sábados de manhã, um grupo de rapazes ia até à quinta de Banks ver Raymond trabalhar. Ele deixava-os espreitar pelas pequenas janelas de vidro das chocadeiras. Muitas vezes tinham visto os pintainhos saindo da casca, abanando as asitas molhadas e dando pequenos passos nas suas pernitas desajeitadas. Permitia-lhes levantar as tampas das estufas e tirarem mãos-cheias de pintos amarelos e macios que faziam o ruído de cem máquinas por lubrificar. Depois iam ao tanque atirar bocados de pão aos patos. No entanto, os rapazes apreciavam acima de tudo as matanças. O que era mais estranho é que essa era a altura em que Raymond deixava de sorrir e ficava o mais sério possível.
Tirava um animal da gaiola e pendurava-o pelas pernas entre duas barras de madeira. Prendia-lhe as asas com uns arames próprios para isso, enquanto o bicho gritava. Depois pegava na faca de matar. Os miúdos admiravam o brilho da faca, a forma viciosa da lâmina e a sua ponta afiada como uma agulha.
- Agora, meu velho, estás pronto! - dizia Raymond.
Os rapazes aproximavam-se mais. Com mãos rápidas e seguras, Raymond pegava na cabeça da ave e fazia-a abrir o bico. A faca relampejava no ar e penetrava rapidamente pelo bico do animal, até atingir o cérebro e sair logo. Por momentos, as asas estremeciam e a cabeça pendia-lhe sem vida com um fio de sangue a correr pelo bico.
- Vejam agora!...
As mãos corriam-lhe pelo corpo da ave e arrancavam-lhe todas as penas do peito e, depois, das costas. Saía tudo menos as penas da extremidade das asas. As pernas eram depenadas com dois movimentos rápidos.
- Estão a ver? - explicava, enquanto ia trabalhando.- Isto tem de se fazer depressa. É uma questão de dois minutos para a depena. Se se deixam ficar as penas por mais tempo, agarram-se e custam a sair.
Tirava a ave de entre as barras, pegava noutra faca, dava dois golpes e punha as entranhas à vista. Limpava a um pano as mãos ensanguentadas.
- Olhem! - gritavam os rapazes. - Que é aquilo?
-É o coração!
- Ainda bate! Ainda está vivo!
- Não está nada! - assegurava-lhes Raymond. - O animal morreu logo que a faca lhe tocou no cérebro. O coração ainda bate por mais alguns momentos mas o bicho está mesmo morto.
- Porque não os sangra como o meu pai faz?
- Porque assim é mais limpo e mais rápido e os talhantes os querem com a cabeça e tudo. Vendem-nos a peso e a cabeça também entra na conta. Agora anda cá tu, meu velho.
Tirava outra ave da gaiola e ia repetindo todas as operações. Quando acabava a matança distribuía as tripas pelos rapazes e ensinava-lhes a limpar os papos e soprá-los para fazer balões. Explicava tudo muito a sério e recusava-se a deixar os rapazes ajudar a matar, se bem que eles lho pedissem muitas vezes.
- Podem ficar nervosos e não atingir o cérebro, o que faria o animal sofrer.
A sr.a Banks ria muito; um riso suave, aberto, que indicava boa disposição permanente. Tinha um modo apreciativo de rir de tudo que se lhe dizia e, para merecerem este aplauso, as pessoas tentavam contar coisas engraçadas sempre que ela estivesse perto. Os vizinhos diziam que gostava de flores por ter sido criada na cidade. As visitas que iam lá a casa eram recebidas com o sorriso de Cleo Banks e alegravam-se quando o ouviam. Era uma senhora tão alegre e fazia as pessoas sentirem-se tão bem... Ninguém se lembrava do que ela dizia, mas meses depois, ainda podiam recordar todas as tonalidades das suas gargalhadas.
Raymond Banks ria pouco. Em vez disso, fingia um aborrecimento tão grande que era aceite como boa disposição. Eram os dois hospedeiros mais populares do vale. De vez em quando, convidavam toda a população para um churrasco no bosque de carvalhos que ficava perto da casa. Assavam pequenos frangos sobre brasas de madeira e serviam centenas de garrafas de cerveja feita em casa. As festas deles eram aguardadas e recordadas por todos com grande prazer.
Quando Raymond Banks andava no liceu, fora companheiro de um rapaz que, mais tarde, tinha sido nomeado director do presídio de Saint Quentin. A amizade entre eles continuara e ainda trocavam presentes por altura do Natal. Escreviam um ao outro sempre que se passava alguma coisa de importância. Raymond sentia orgulho em ser amigo do director da prisão. Duas ou três vezes por ano, recebia convites para ir assistir a uma execução e aceitava-os sempre. As suas viagens até lá eram os seus únicos dias de descanso.
Gostava de chegar a casa do director na noite anterior à execução. Ficavam ambos sentados a falar dos tempos de liceu e a recordar um ao outro coisas de que ambos se lembravam perfeitamente. Eram sempre recordados e discutidos os mesmos episódios. Depois, na manhã seguinte, Raymond gostava de ver o nervoso e o histerismo recalcado das outras testemunhas. A marcha vagarosa do condenado despertava-lhe o sentido de tragédia e dava-lhe uma emoção estranha. Não era o enforcamento, propriamente, a parte importante que o impressionava; era o ar solene, cerimonioso e sombrio da coisa, como que uma cerimónia ultra-religiosa. Tudo aquilo lhe dava uma plenitude de experiência, uma emoção sagrada que mais nada lhe fazia sentir. Não pensava no condenado como mais importante do que as suas aves quando lhes metia a faca no bico. Não havia traço de crueldade ou de sofrimento que o emocionasse. Havia desenvolvido um profundo apetite de emoções que a sua magra imaginação era incapaz de suprir. Na prisão compartilhava do nervoso dos outros, mas, se estivesse sozinho na câmara da morte com o condenado e o carrasco, não seria afectado em absoluto.
Depois de a morte ter sido confirmada, gostava da reunião que se seguia no escritório do director. Os outros homens, com os nervos num feixe, tentavam servir-se da hilaridade para restaurar as imaginações abaladas. Ficavam mais alegres e mais barulhentamente felizes que de costume. Geralmente, faziam pouco da outra testemunha, de ordinário um jornalista jovem que desmaiava ou saía da cela a chorar. Raymond rejubilava com o caso. Fazia-o sentir-se vivo; parecia sentir-se mais intensamente vivo que de costume.
Depois da coisa arrumada, comia um belo jantar com o director, antes de voltar outra vez para casa. Coisa semelhante acontecia quando os miúdos o vinham ver matar as aves. Conseguia deter o mais leve sinal de emoção demonstrada por eles.
Não se passou muito tempo depois da família Munroe chegar a Pastagens do Céu que não ouvissem falar da bela terra de Banks e das suas visitas à prisão. Todos os habitantes se sentiam fascinadamente interessados e sem um mínimo de horror provocado pela ideia de ver enforcar homens. Antes de ter visto Raymond, já Bert o pintava como um carrasco tradicional: um homem sombrio e pesado, de olhos frios; um homem sem alma. O simples pensamento enchia Bert de uma espécie de antecipado interesse.
Quando, finalmente, conheceu Raymond Banks e lhe viu os olhos negros e alegres e a face saudável e queimada pelo sol, Bert sentiu-se desiludido e quase desgostoso. A saúde e boa disposição do vizinho pareciam-lhe incongruentes e ligeiramente obscenos. O paradoxo da sua boa disposição e amor pelas crianças era incompreensível.
No dia primeiro de Maio os Banks deram uma das suas famosas festas no bosque que ficava perto da casa. Fazia o tempo mais agradável de todo o ano; boninas e malmequeres, papoilas e violetas selvagens davam uma nota colorida por entre os pastos novos que cresciam pelas encostas. Os carvalhos estavam cheios de folhas novas, brilhantes e lavadas como azevinhos celestiais. O sol já aquecia o solo e as aves cantavam por toda a parte. Dos bandos de criação chegava o cacarejar das galinhas e o cínico barulho dos patos.
Cinquenta pessoas, pelo menos, se espalhavam pelas compridas mesas armadas debaixo das árvores. Centenas de garrafas de cerveja haviam sido postas dentro de gelo e sal, uma mistura tão fria que fazia gelar o líquido nos gargalos. A sr.a Banks volitava por entre os convidados, sorrindo aos cumprimentos. Raramente falava. Nas fornalhas do churrasco, Raymond grelhava pequenos frangos, rodeado de homens cheios de admiração que prestavam pequenas ajudas.
-Se alguém for capaz de fazer melhor serviço, que avance! - gritava-lhes Raymond. - Agora vou começar a passar os bifes para quem for tão parvo que não queira frangos.
Bert Munroe estava perto, observando as mãos vermelhas de Raymond e bebendo cerveja. Não conseguia afastar os olhos, fascinado com aquelas mãos fortes que davam voltas constantes aos frangos sobre a grelha.
Quando as grandes travessas de frangos foram levadas para as mesas, Raymond voltou para junto das brasas para passar mais alguns animais para aquelas pessoas de bom gosto que podiam vir a querer mais um, ou mesmo mais dois frangos. Estava agora sozinho, porque a assistência se espalhara pelas mesas. Bert Munroe levantou os olhos do bife que comia e viu Raymond sozinho junto da fornalha. Poisou o garfo e foi ter com ele.
- Que há, sr. Munroe? O seu frango não estava bom? - perguntou Banks com ansiedade.
- Comi uma fatia e estava muito bom. Acho que como muito depressa. Sabe? Nunca como galinha.
- Sim? Nunca percebi como é que alguém pode não gostar de galinha, mas conheço muita gente que não gosta. Deixe-me pôr-lhe outra fatia.
- Acho que já comi bastante. Sempre pensei que as pessoas comem de mais. Todos se deviam levantar da mesa com alguma vontade de comer. Ficariam a sentir-se melhor, como os animais.
- Deve ter razão! - disse Raymond, dando uma volta às aves que estava a assar. - Já reparei que me sinto melhor quando como pouco.
- Ah, mas com certeza. Comigo dá-se o mesmo; e com toda a gente. Todos comem de mais.
Os dois homens sorriam um para o outro por se acharem de acordo neste ponto, se bem que nenhum deles acreditasse muito no que dizia.
- Tem uma terra muito boa! - disse Raymond, a fortificar a amizade crescente com um novo assunto em que estij vessem de acordo.
- Bem! Não sei. Dizem que tem plantas parasitas, mas ainda não vi nenhumas.
Raymond riu.
- Dizia-se que a casa estava assombrada, antes de o senhor vir e a arranjar como está agora. Ainda não viu nenhum fantasma, pois não?
- Nem um! Tenho mais medo da grama que dos fantasmas. Odeio-a, mesmo.
- Não o censuro. Claro que a mim, como tenho galinhas e patos, não me incomoda muito, mas cresce como o diabo nas vossas terras.
Bert pegou numa vara e bateu com ela ao de leve no tronco de uma árvore.
- Ouvi dizer que conhece o director da prisão de San Quentin.
- Conheço-o muito bem. Andei com o Ele na escola quando era miúdo. Também o conhece, sr. Munroe?
- Não! Não conheço. Vejo muitas vezes o retrato dele nos jornais. Um homem numa posição tão importante vem muitas vezes nos jornais.
A voz de Raymond ficou séria e cheia de orgulho quando respondeu:
- Sim! fazem-lhe muita publicidade. Mas é um tipo estupendo, sr. Munroe, uma pessoa que o senhor gostaria de conhecer. Apesar de lidar com tantos condenados, continua a ser amável e alegre. Falando com ele, ninguém diria que é um homem tão cheio de responsabilidades.
- Ah, sim? Quem diria? Isto é, sempre pensei que andasse preocupado por ter a responsabilidade de tantos presos. Está muitas vezes com ele?
- Bem, estou. Já lhe disse que andámos juntos na escola e que éramos muito amigos. Nunca se esqueceu de mim. De vez em quando, convida-me para ir à prisão ser testemunha de um enforcamento.
Bert encolheu os ombros e, apesar de ter estado a fazer a conversa chegar a este ponto, perguntou:
- Ah, sim?
-Sim, senhor. Acho que é uma honra. Não entram lá muitas pessoas, a não ser jornalistas, testemunhas oficiais, sheriffs e polícias. Claro que também me divirto sempre com Ed.
Aconteceu, então, a Bert uma coisa estranha. Parecia ter-lhe saído do próprio corpo e que a voz era independente da sua vontade. Ouviu-se dizer:
- Suponho que o director não ficaria satisfeito se levasse um amigo consigo.
Escutou as suas palavras com espanto. Nunca quisera ter dito aquilo.
Raymond mexia vigorosamente as brasas. Também ele ficara aflito.
- Não sei, sr. Munroe. Nunca pensei no caso. Porquê? Queria ir comigo?
A voz de Bert voltou a dizer, sem ele querer:
- Sim!
- Eu lhe digo! Vou escrever ao Ed (escrevo-lhe muitas vezes, por isso ele não vai pensar que há alguma coisa de especial). Vou insinuar que o senhor quer assistir, e espero a resposta dele. Talvez me mande dois convites para a próxima vez. Claro que não prometo nada. Não quer mais um bocado de carne assada?
Bert sentia-se nauseado e respondeu:
- Obrigado! Já comi bastante. Creio que me vou estender um pouco debaixo de uma árvore.
- Talvez tenha bebido muita espuma de cerveja, sr. Munroe. É preciso ter muito cuidado com ela.
Bert foi sentar-se em cima das folhas secas ao pé de um carvalho. As mesas, cheias de hóspedes barulhentos, ficavam para a direita. As gargalhadas fortes dos homens e os gritinhos das mulheres a conversarem chegavam até ele muito vagamente, coados por uma muralha de pensamentos. Por entre os troncos das árvores ainda via Raymond Banks andando em volta das fornalhas a assar frangos para os poucos apetites incríveis que continuavam por apaziguar. A náusea que tomara conta de Bert passava por uma subtil transformação. O sentimento podre de doença era agora uma congestão de desejo que o admirava. Não queria ir a San Quentin. Sentir-se-ia infeliz a ver enforcar um homem mas estava contente por ter pedido e esse contentamento fazia-o sentir-se mal disposto. Raymond arregaçava mais as mangas, pondo à mostra os braços vermelhos e fortes, antes de limpar as grelhas. Bert levantou-se e encaminhou-se para as fornalhas. De repente, a náusea tomou conta dele, de novo. Deu meia volta e apressou-se a chegar junto da mesa onde a esposa estava sentada a conversar de bagatelas, frente às carcaças dos frangos grelhados.
- O meu marido nunca come galinha! - dizia ela.
- Vou para casa, a pé - disse ele. - Sinto-me mal.
A esposa poisou o bocado de frango que estava a comer e limpou os dedos e a boca a um guardanapo de papel.
- Que tens, Bert?
- Não sei, sinto-me mal.
- Queres que vá no carro para casa contigo?
- Não; fica. O Jimmie, depois, leva-te.
- Bem! Acho melhor que te despeças do sr. e da sr.a Banks.
Bert começou a afastar-se, dizendo:
- Apresenta-lhe tu as minhas despedidas. Sinto-me muito mal disposto.
Uma semana mais tarde, Bert Munroe foi até à quinta de Banks e parou o Ford em frente do portão. Raymond saiu de trás de uma moita onde tentava caçar um falcão e apertou a mão do visitante. Bert disse:
- Tenho ouvido falar tanto da sua quinta, que pensei vir até cá ver como era.
Raymond ficou encantado.
- Deixe-me pôr ali a espingarda que já o acompanho. Durante uma hora andaram às voltas pela quinta com Raymond a explicar e Bert admirando a limpeza e a eficiência do modo como a criação era tratada. Depois de terem passado por todos os cantos, Raymond convidou:
- Entre e tome um copo de cerveja. Não há nada como uma cerveja gelada num dia como este.
Quando se instalaram, Bert perguntou, pouco à vontade:
- Chegou a escrever ao director, sr. Banks?
- Sim, escrevi! Deve estar a chegar a resposta por estes dias.
- Acho que se admira por lhe ter pedido tal coisa. Bem, sempre pensei que um homem deve ver tudo o que possa. É o que se chama experiência. Quanto mais experiência se tiver, melhor.
- Creio que tem razão, muita razão - concordou Raymond.
Bert bebeu a cerveja e limpou a boca.
- Claro que já tenho lido descrições de enforcamentos nos jornais; mas não é o mesmo que estar a ver. Dizem que o caminho para o cadafalso tem treze passos, para dar azar. É verdade?
- Bem, não sei, sr. Munroe. Nunca os contei.
- E os condenados... estrebucham muito depois de pendurados?
-Acho que sim. Bem vê: estão tapados com um pano negro que lhe sai pela cabeça. Eu diria que é mais flutuar do que estrebuchar.
- Os jornais dizem que levam quinze minutos a meia hora para morrerem. É verdade?
- Sim... suponho que sim. Claro que já estão mortos desde o momento em que pendem da corda. É como cortar a cabeça a um pato: o animal dá umas voltas mas, de facto, já está morto.
- Sim! Deve ser isso. Chamam-lhe reflexos. Suponho que custa ver a coisa pela primeira vez.
Raymond sorriu, ligeiramente divertido.
- Claro. Há quase sempre alguém que desmaia. Os repórteres coram por vezes, como crianças, e há pessoas que enjoam... vomitam o comer. A maioria dos que assistem pela primeira vez é assim. Vamos beber outro copo de cerveja? Está boa e gelada, não está?
- Sim! É uma óptima cerveja! - concordou Bert. - Hei-de pedir-lhe a receita. Uma pessoa deve ter sempre cerveja para o tempo quente. Agora tenho de ir, sr. Banks. Obrigado por me ter mostrado a quinta. Acho que podia ensinar muitas coisas sobre criação às pessoas de Petaluma.
Raymond corou de satisfação.
- Faço os possíveis por estar sempre a par das últimas inovações. Quando tiver notícias do Ed digo-lhe qualquer coisa, sr. Munroe.
Durante as duas semanas seguintes, Bert Munroe andou nervoso e extremamente irritável. Isto era tão raro nele que a esposa protestou:
- Tu não andas bem, Bert. Porque não vais ao médico?
- Ah! Estou óptimo.
Passava a maior parte do tempo a trabalhar na quinta mas levantava logo os olhos para a estrada quando ouvia o ruído de um motor. Era sábado no dia em que Raymond Banks veio no seu camião ligeiro e parou em frente do portão dos Munroe. Bert largou a enxada e veio recebê-lo. Quando um fazendeiro visita outro, raramente entram em casa. Em vez disso, dão umas voltas pela quinta, arrancando bocados de erva dos campos ou folhas das árvores e experimentando-as com os dedos enquanto conversam. O Verão estava no começo. As folhas das árvores de fruto não tinham perdido ainda o tom verde-claro, mas as flores haviam caído já e os frutos começavam a amadurecer. As cerejas estavam já vermelhas. Bert e Raymond caminhavam devagar por sob as árvores de fruto.
- Os pássaros estão mais gordos este ano. Acho que não.
têm comido a maior parte das cerejas! - disse Bert. Sabia muito bem o motivo que levava Raymond a visitá-lo.
- Tive resposta do Ed, sr. Munroe. Diz que pode ir comigo. Não deixam assistir muita gente porque querem evitar os curiosos mórbidos, mas que qualquer amigo meu pode ir. Vamos na quinta-feira; na sexta há uma execução. (Bert caminhava em silêncio, com os olhos no chão). Ed é bom tipo. Vai ver como vai gostar dele. Ficamos em casa dele na quinta-feira à noite.
- Tenho andado a pensar no caso - disse Bert. - Faria diferença se eu desistisse à última hora?
Raymond ficou a fitá-lo:
- Porquê? Sempre pensei que o senhor queria ir. Que se passa?
-Vai pensar que sou um cobarde, mas eu lhe digo: tenho pensado no caso e tenho medo de ir. Receio que, depois, a coisa não me saia da cabeça.
- Não faz tanta aflição como parece! - protestou Raymond.
- Talvez não seja. Não sei. Tenho medo de que me faça mal. Nem todos vêem as coisas da mesma maneira.
- Sim! Isso é verdade.
- Para lhe dar uma ideia, sr. Banks, é como com as galinhas. Nunca como galinha, se bem que não diga porquê. Digo só que não gosto, mas eu lhe explico.
«Quando era miúdo, costumava fazer entregas de artigos de mercearia antes da hora da escola. Perto da loja morava um mutilado. Tinha uma perna cortada pela coxa e, em vez de ter uma perna articulada, usava uma daquelas antigas pernas de pau. Lembra-se como eram? Andava bem com ela, mas um pouco vagarosamente. Uma manhã, quando eu passava perto com o cesto das encomendas, o homem estava no quintal a matar um galo. Era o maior Rhode Island que já vi; ou, talvez fosse por eu ser pequeno que ele me pareceu tão grande. O velho tinha a faca debaixo do braço e segurava o galo pelas pernas.
«Pois bem! Quando ia a cortar o pescoço do bicho, ele torceu-se-lhe na mão e, em vez do pescoço, cortou-lhe uma asa. Nessa altura, o velho ficou furioso. Começou a cortar por toda a parte, sempre no lugar errado: no peito, no papo. Depois a faca escorregou e cortou uma perna ao galo, dando ao mesmo tempo um golpe num dedo do homem. Quando isso aconteceu, o velho largou o galo e foi para casa, agarrado ao dedo. O bicho saiu por ali fora a coxear, com as entranhas a caírem.
«Pois, sr. Banks. Desde então, não mais matei uma galinha nem fui capaz de as comer. Tenho tentado muitas vezes mas, sempre que o faço, começo a ver aquele maldito Rhode Island a coxear.»
Fitou então Banks e perguntou:
- Compreende o que me poderia vir a acontecer? Raymond desviou a vista e respondeu: -Sim. Devia ser horrível.
Bert apressou-se a continuar:
- Pois tenho andado a pensar no enforcamento. Podia vir a ser como com o galo. Sonhei com o galo muitas vezes em miúdo. Sempre que tinha uma indisposição, sonhava com ele. Agora suponha que ia consigo ver o enforcamento. Por certo que iria sonhar também com o caso. Ainda não há muito que enforcaram uma mulher no Arizona e a corda decepou-lhe a cabeça. Se isso acontecesse, seria cem vezes pior do que com o galo; acho que não conseguia recompôr-me.
- Mas isso, praticamente, nunca acontece! - protestou Raymond. - Digo-lhe eu que o caso não é tão mau como parece.
Bert parecia não o ouvir. Tinha na cara uma expressão de horror, provocada pelos pensamentos que lhe vinham ao cérebro.
- Diz o senhor que há pessoas que enjoam e outras que desmaiam. Sei porque isso acontece. É porque essas pessoas imaginam-se no cadafalso, com a corda em torno do pescoço. Sentem-se, realmente, como o homem a quem a coisa acontece. Já fiz isso também. Imaginei que ia ser enforcado dentro de vinte e quatro horas. É como ter o pior pesadelo do mundo e pensei: para que hei-de ir lá horrorizar-me? Ficaria doente. Sei que ficaria. Passaria exactamente por todos os estados do pobre diabo do cadafalso. Só de pensar nisso a noite passada, senti a corda no pescoço. Depois adormeci. O lençol tapou-me a cara e sonhei que era aquele maldito pano negro.
- Não deve pensar nas coisas desse modo! - exclamou Raymond, aflito. - Se é assim que pensa, digo-lhe já que não tem o direito de ir comigo. Já lhe disse que a coisa, vista, não é assim tão horrível. Não é nada. O senhor disse que queria ir e eu já obtive licença para si. Porque é que fala assim? Não há razão para tal. Se não quer ir, porque diabo não o diz e fica calado depois?
A expressão de horror desapareceu do rosto de Bert. Tentou acalmar o vizinho.
- Não precisa ficar zangado, sr. Banks. Estava só a explicar-lhe porque é que não queria ir. Se o senhor tivesse alguma imaginação não precisava que eu lho dissesse, nem precisava mesmo de ir ver enforcar um pobre diabo qualquer. Raymond voltou-se e declarou:
- O que o senhor é, é um cobarde.
Meteu-se no camião e voltou para casa, furioso. Quando chegou e meteu o carro na garagem, encaminhou-se vagarosamente para casa. A mulher estava a colher rosas.
- Que tens, Ray? Pareces doente!-exclamou.
- Dói-me a cabeça. Isto já passa. Conheces Bert Munroe, o que queria ir comigo?
- Sim!
-Pois já não quer.
- Que tem ele?
-Perdeu a coragem. Tem medo de assistir.
- Eu própria também creio que não gostaria de ver tal coisa.
-Tu és mulher, mas ele parece ser homem.
Na manhã seguinte, Raymond sentou-se calado para o pequeno-almoço e comeu muito pouco. A mulher ficou preocupada.
- Ainda te dói a cabeça, Ray? Porque não tomas qualquer coisa?
- Tenho de escrever ao Ed e não sei que lhe diga.
- Que queres dizer com não sei?
- Receio estar constipado. Não sei se estarei bom na quinta-feira. A viagem é longa e tenho de atravessar a baía com muito vento.
A sr.a Banks ficou sentada, a pensar. Por fim, sugeriu:
- Porque não convidas o Ed para vir cá algumas vezes? Nunca aqui esteve; e tu tens ido lá muito.
Raymond alegrou-se.
-Com a breca! Aí está uma ideia brilhante. Há que tempos que o vou visitar. Mando-lhe agora umas linhas a convidá-lo para vir visitar-nos.
- Podemos oferecer-lhe um churrasco.
- Hum! Não creio que seja grande ideia. Para um amigo como Ed é preferível não haver muita gente. Mas cerveja, compreendes, Ed gosta imenso de cerveja. Vou escrever-lhe já.
Pegou na caneta e numa folha de papel. À medida que o aparo hesitava sobre as linhas, ia dizendo:
- Maldito Munroe! Meti-me numa embrulhada por causa dele. Como é que eu havia de pensar que me iria pegar a cobardia?
Os pais de Pat Humbert eram pessoas de meia-idade quando ele nasceu; haviam envelhecido e ficado cheios de achaques quando o filho atingiu os vinte anos. Toda a vida de Pat fora passada numa atmosfera carregada pela idade, pelas dores, pela doença e pelos lamentos. Enquanto crescia, os pais não davam importância às opiniões dele porque ainda era novo.
«Quando tiveres vivido tanto como nós», diziam-lhe, «encararás as coisas de modo diferente.» Mais tarde, começaram a achar a sua juventude odiosa porque era isenta de dores. A idade deles, consideravam, era um estado superior, comparável aos deuses em infalibilidade e dignidade. Mesmo o próprio reumatismo era desejável como preço da grande sabedoria da idade. Pat foi levado a acreditar que nenhuma coisa nova tinha virtude. A juventude era uma preparação inadequada para a velhice, a idade por excelência. Devia pensar-se na juventude como nada mais senão um tributo devido à idade. Por outro lado, a idade não devia nenhum respeito à juventude.
Quando Pat tinha dezasseis anos, todo o trabalho da quinta recaiu sobre ele. O pai retirou-se para uma cadeira de balanço ao lado da lareira da sala de estar, da qual dava as suas ordens e fazia as suas críticas.
Os Humbert viviam numa casa velha de cinco divisões; um salão fechado à chave, frio e terrível como uma tumba, uma sala de estar que cheirava sempre a remédios e mezinhas, dois quartos e uma grande cozinha. Os velhos sentavam-se nas cadeiras almofadadas e queixavam-se amargamente se Pat não largava o trabalho dos campos para lhes vir arranjar o fogo da lareira, várias vezes por dia. Nos seus últimos anos de vida, odiavam mesmo Pat por ser jovem.
Viveram muito tempo. Pat tinha trinta anos quando ambos morreram, apenas com o intervalo de um mês. Eram infelizes, rabugentos e descontentes da vida e, no entanto, ambos se agarravam tenazmente à pequena centelha que lhes restava e só morreram após grande luta.
Foram dois meses de horror para Pat. Durante três semanas tratou da mãe que permanecia rígida na cama, com o ar entrando-lhe e saindo-lhe pesadamente dos pulmões. Observava-o com olhos frios e acusadores, enquanto o filho tentava confortá-la. Quando morreu, os olhos dela ainda o acusavam.
Pat abriu o terrível salão; os vizinhos ficaram de pé em filas, perante o esquife, uma espécie de audiência, enquanto se desenrolava o serviço fúnebre. Do quarto chegava o som do choro abafado do pai Humbert.
O segundo período de cuidados começou logo a seguir ao primeiro funeral e continuou por mais três semanas. Depois os vizinhos ficaram de pé em filas em frente do outro caixão. Antes dos funerais, o salão estivera sempre fechado, a não ser para as limpezas mensais. As persianas estavam corridas para proteger do sol a carpete verde. A meio da casa havia uma mesa de pé de galo com o tampo de mármore, sobre a qual se encontrava uma coberta com o «Angelus» de Millet e uma Bíblia pesadamente encadernada. De ambos os lados da Bíblia havia jarras quadradas com ramos de flores. Havia quatro cadeiras no salão; uma contra cada parede - duas para o caixão e duas para as pessoas que velavam. Três grandes quadros em molduras douradas pendiam das paredes; eram fotografias coloridas e ampliadas dos Humbert, com expressões duras e mortas, mas tiradas de tal maneira que os olhos seguiam os intrusos por todo o compartimento. O terceiro quadro mostrava o cadáver de Elaine vogando sobre um banco no rio triste e de águas limpas.
Tão sombrio e sepulcral era o salão que apenas se abria para receber mortos e as pessoas que os velavam. Era, na realidade, uma câmara mortuária privada. Pat tinha visto três tias e um tio saírem a enterrar desse salão.
Ficou calado junto da sepultura, enquanto os vizinhos davam forma a um monte de terra. A tumba da mãe já abatera um pouco. As vizinhas já haviam voltado para os carros, à espera dos maridos. Todos os homens foram até junto de Bert apertar-lhe a mão e dizer-lhe umas palavras amáveis. Já os carros dos amigos iam longe e ainda Bert permanecia parado de pé a olhar para as duas sepulturas. Agora que não tinha ninguém que lhe desse ordens, não sabia que fazer.
O Outono pairava no ar; o seu odor agudo e os seus ventos ligeiros já se faziam sentir. Pombas selvagens estavam poisadas no muro do cemitério, todas viradas na mesma direcção, todas imóveis. Da estrada, chegou até Pat o ruído das rodas de uma carrinha. Allen prendeu o cavalo ao portão e aproximou-se de Pat.
- Pensámos que devias ir passar a noite a qualquer lado!
- disse ele em voz nervosa. - Se quisesses, teríamos muito gosto em que ceasses connosco e ficasses esta noite na nossa casa.
Pat saiu do estado de inconsciência em que havia mergulhado e disse:
- Devia abalar daqui. Não faço aqui nada.
- O melhor é esqueceres-te de tudo! - disse Allen.
- É difícil, sr. Allen. É uma coisa que se gosta de recordar e que outras vezes queremos esquecer. Mas é difícil.
- Bem! Porque não vens cear connosco?
Todas as precauções de Pat caíram por terra. Confessou:
- Nunca ceei fora de casa. Eles - apontou para as sepulturas - não gostavam de sair à noite. O ar fazia-lhes mal.
- Então talvez te faça bem ceares na nossa casa. Não devias voltar para a casa vazia... pelo menos, hoje. Um homem deve poupar-se um pouco.
Pegou no braço de Pat e levou-o até ao portão.
- Segue-me no teu carro! - disse.
Depois, enquanto saíam do cemitério, uma espécie de elegia se lhe escapou:
- É uma coisa perfeita morrer-se no Outono. Não é bom morrer na Primavera, sem saber das chuvas e das colheitas. No Outono, tudo está consumado.
- Eles não se preocupavam com essas coisas, sr. Allen.
Nunca perguntavam como iam as colheitas, e odiavam a chuva por causa do reumatismo. Queriam apenas viver, nem eu sei bem porquê.
Para a ceia, havia fatias frias de carne assada, batatas fritas com cebolas e pudim de pão com passas de uva. A sr.a Allen tentava consolar Pat, dizendo como eles eram bons e amáveis, falando da honestidade do pai e da famosa cozinha da mãe. Pat sabia que ela mentia para o consolar e não necessitava de tal. Não sentia desgosto nenhum. Ainda pairava sobre ele a imensa letargia dos últimos dias, de maneira que fazia um grande esforço para falar ou para se mexer.
Lembrava-se de uma coisa que acontecera no funeral. Quando os gatos-pingados levantaram o caixão de cima das cadeiras, um dos homens tropeçou na mesa de tampo de mármore. O acidente fez cair uma das jarras de flores e desviou a Bíblia da sua posição sobre a coberta. Pat sabia que a decência o obrigava a restaurar a antiga ordem. As cadeiras deviam ser postas contra a parede, e a Bíblia arranjada como estava. Finalmente, devia voltar a fechar a sala. A memória da mãe exigia dele estas coisas.
Os Allen insistiram para que passasse a noite com eles mas, depois de algum tempo, deu as boas-noites em voz muito baixa e foi selar o cavalo. O céu estava negro e frio, entre as estrelas e as colinas de onde se evolavam os rumores provocados pela baixa de temperatura. Através da letargia, Pat escutava o ruído das patas do cavalo batendo na estrada, os gritos das aves nocturnas e o assobiar do vento nas folhas que secavam.
Mais reais que estes sons eram as vozes dos pais que lhe soavam na cabeça.
«Vai cair geada» dizia o pai. «Odeio mais a geada do que os ratos.»
«A propósito de ratos», dizia a mãe, «parece-me que temos ratos na cave. Gostaria de saber se o Pat armou ratoeiras este ano. Eu disse-lhe que as armasse, mas ele esquece tudo quanto lhe digo.»
Pat respondia às vezes:
«Pus veneno na cave. É melhor do que as ratoeiras.»
«Um gato ainda é melhor. Não sei porque não temos um ou dois gatos. Pat nunca arranja gatos.»
«Eu arranjo gatos, mas eles comem lagartixas, assanham-se e fogem.»
A casa estava escura e fria quando lá chegou. Pat acendeu a luz e pôs uns troncos a arder na lareira para aquecer a cozinha. Quando as chamas começaram a lamber a madeira, enterrou-se numa cadeira e sentiu-se confortável. «Seria óptimo», pensou, «trazer a cama para a cozinha e ficar a dormir ao pé do fogo. O arranjo da casa poderia ser feito qualquer outro dia.»
Ao abrir a porta da casa de estar, uma lufada de ar frio e sem vida perpassou por ele. Chegou-lhe ao nariz o cheiro de flores de funeral, de velhice e de remédios. Dirigiu-se à pressa para o quarto e trouxe a cama para a cozinha quente e iluminada.
Daí a momentos, apagou a luz e deitou-se. O fogo crepitava na lareira. Durante algum tempo, a noite permaneceu calma mas, pouco a pouco, a casa começou a encher-se de vida maligna. Pat descobriu que o seu corpo estava frio e tenso. Ouviu os sons das cadeiras e o respirar fundo de pessoas velhas. As madeiras da casa estalavam e, se bem que continuasse a ouvir sons fantasmagóricos, Pat, cheio de suores frios, saltou da cama e foi fechar a porta da sala de estar. Depois voltou para a cama e ficou a tremer debaixo dos cobertores. Fez-se um silêncio na casa e ele sentiu-se só no mundo.
Acordou, na manhã seguinte, com um frio sentido de ter um dever a cumprir. Tentou lembrar-se do que seria. Claro: era a Bíblia fora do lugar. Devia ser posta na posição correcta. A jarra de flores devia ser levantada e toda a casa limpa. Pat sabia que devia fazer todas estas coisas, a despeito da sua relutância em destrancar a porta da sala de estar. O cérebro dele estremecia ao lembrar-se do que iria ver quando abrisse a porta: as duas cadeiras de baloiço colocadas de cada lado da lareira, e as almofadas ainda com as marcas dos corpos dos pais. Sabia que, para lá da porta, o esperavam os cheiros dos unguentos e da velhice. Mas era um dever que se lhe impunha. Tinha de o cumprir.
Acendeu o lume e preparou o pequeno-almoço. Foi enquanto tomava o café que um pensamento alheio à sua antiga maneira de agir lhe assaltou o cérebro. Surgira-lhe, de repente, e deixara-o atordoado por ser tão simples.
«Para que hei-de entrar ali? Já não há ninguém que se importe com isso. Não preciso de lá entrar se não quiser.»
Sentia-se como um garoto que faz gazeta à escola para ir passear na floresta. No entanto, chegava até ele a voz da mãe a combater-lhe a sensação de liberdade:
«Pat devia limpar a casa. Pat nunca tem cuidado com as coisas.
A alegria da revolta fazia-o responder:Estais mortos. Sois apenas coisas que se movem.
Minha cabeça. Já ninguém me obrigará a fazer coisa alguma. Nunca ninguém saberá que não fiz coisas que devia fazer. Nunca mais aí entrarei.
Enquanto a resolução ainda lhe dava forças, foi até à porta, tirou a chave e atirou-a para o meio das estevas que cresciam nas traseiras da casa. Fechou por fora as madeiras de todas as janelas e pregou-as com pregos.
A alegria da liberdade não durou muito. Durante o dia, o trabalho na terra dava-lhe que fazer, mas à tardinha, sentia saudades das velhas tarefas que faziam o tempo passar mais depressa. Sabia que tinha medo de entrar em casa, medo das marcas nas almofadas e da Bíblia fora do lugar. Fechara à chave os dois fantasmas mas não lhes tirara o poder de o atormentarem.
Nessa noite, depois de comer, sentou-se em frente do lume. Caiu sobre ele uma pálida solidão, como um nevoeiro desolado. Ouvia sons abafados por toda a casa, sussurros e pequenas pancadas. Escutava esses ruídos com tanta atenção que, daí a pouco, ouvia mexer as cadeiras de baloiço e até um comprimido a ser tirado de um tubo. Pat não podia suportar mais. Foi ao celeiro, selou o cavalo e dirigiu-se ao armazém de Pastagens do Céu.
Estavam lá três homens sentados em frente do lume. Fizeram lugar para Pat sem mesmo olharem para ele, porque uma pessoa de luto merece as mesmas imunidades sociais que um aleijado. Pat instalou-se e ficou a olhar o fogo.
- Lembrem-me de levar farinha quando abalar! - disse ele.
Todos sabiam o que aquilo queria dizer. Compreendiam que a farinha não lhe fazia falta nenhuma mas, qualquer deles, em circunstâncias idênticas, teria dado qualquer desculpa no género. T. B. Allen deu uma volta às brasas e comentou:
- A princípio, uma casa como aquela é bastante solitária.
Pat sentiu-se grato por aquelas palavras, se bem que não passassem de uma observação de carácter social.
- Também preciso de tabaco e de cartuchos para a espingarda, sr. Allen! - respondeu, à guisa de pagamento.
Depois disso, Pat alterou todos os seus hábitos. Passou a procurar grupos de homens. Durante o dia trabalhava na quinta mas, à noite, achava-se invariavelmente em sítios onde se juntavam pessoas. Quando havia festa ou baile na escola, Pat era o primeiro a chegar e só saía depois de ter abalado a última pessoa. Frequentava a casa de John Whiteside. Era o primeiro a acudir aos incêndios. Onde quer que fosse que se juntasse um grupo, era certo Pat aparecer. Desta constante busca de companhia, quase chegou a desenvolver um instinto para descobrir coisas que fizessem reunir pessoas.
Pat era um homem caseiro. Tinha o nariz afilado e as maçãs do rosto salientes e ossudas. Recordava um pouco a figura de Lincoln quando novo e o seu corpo era tão desajeitado para usar fatos quanto o era o de Lincoln. Tinha orelhas grandes e cheias de cabelo, que pareciam esconder pequenos animais peludos. Nunca conversava. Sabia que pouco contribuía nas reuniões que frequentava e tentava tapar esta falta prestando pequenos favores. Gostava de ser nomeado para comissões de festas porque, assim, podia ir visitar os outros membros para discutir planos; passar os serões a decorar as salas da escola para os bailes ou percorrer o vale a pedir cadeiras emprestadas a uma família e pratos a outra. Se, qualquer noite, não tinha nenhuma reunião aonde ir, metia-se no camião e ia a Salinas assistir a uma sessão de cinema. Depois das duas primeiras noites de temerosa solidão, não mais passou outro serão em casa. Aterrorizavam-no a lembrança da Bíblia, das cadeiras de baloiço e dos cheiros a velhice.
Durante dez anos vagueou Pat Humbert pelo vale em busca de companhia. Foi eleito membro do conselho escolar inscreveu-se nos reçãos e noutras sociedades de Salinas, sem que alguma vez faltasse a qualquer reunião.
Apesar da sua sede de convívio, Pat nunca se tornou parte de qualquer grupo onde aparecesse. Gravitava em torno dos outros nunca falando se não se lhe dirigiam. Os habitantes do vale consideravam a sua presença como um facto inevitável. Serviam-se dele para tudo sem saberem que Pat não desejava outra coisa.
No fim das reuniões, quando era forçado a voltar para casa, metia o Ford no celeiro e corria para a cama. Esforçava-se por esquecer as salas terríveis que ficavam para lá da porta. Por vezes, pensava como seria o estado das salas. O pó já devia estar bastante acumulado sobre os móveis e teias de aranha deviam pender aos cantos do tecto. Quando esta visão se lhe infiltrava no cérebro, Pat ficava a tremer na cama, tentando todas as pequenas coisas que conhecia para fazer vir o sono.
Como odiava a casa, não se importava com ela. Todo o edifício fora votado ao abandono. Uma pequena roseira que, durante anos, não passara de um troncozinho sem importância despertou subitamente e trepou pela frente da casa. Cobriu a entrada, estendeu festões pelas janelas fechadas e deitou ramificações por todas as vigas. Daí a dez anos, a casa parecia um grande monte de rosas. As pessoas que passavam na estrada admiravam-lhe o tamanho e a beleza. Pat mal se dava conta da roseira. Recusava-se a pensar na casa sempre que podia.
A quinta dos Humbert era boa; Pat arranjava-a bem e ganhava dinheiro. Como tinha despesas pequenas, já possuía umas boas centenas de dólares no banco. Gostava da quinta em si própria e, também, porque o afastava do medo durante todo o dia. Quando trabalhava, o terror de estar sozinho e a gelada solidão não o atacavam. Tinha boas árvores de fruto, as framboesas eram o seu principal interesse. Junto à estrada, corriam filas de silvas bem tratadas e, todos os anos, vendia as framboesas muito mais cedo que qualquer outro lavrador.
Já contava quarenta anos quando os Munroe vieram para u vale. Deu-lhes as boas-vindas como vizinho, sentindo que ia ter ali outra casa aonde podia ir passar os serões. Como Bert era de génio amigável, gostava das visitas de Pat. Este era bom lavrador e Munroe muitas vezes lhe pedia conselho. Humbert pouco reparava em Mae Munroe, a não ser para ver, e esquecer logo, que era uma rapariga bonita. Não costumava considerar as pessoas como indivíduos, mas como antídotos para a sua solidão; fugas aos seus fantasmas aprisionados.
Numa tarde, quando o Verão já declinava, Pat trabalhava nas framboesas. Estava ajoelhado entre duas filas de plantas e arranjava-lhes as raízes com um podão. Os frutos já estavam a crescer depressa e as folhas tomavam um adorável tom verde-pálido. Sentia-se satisfeito com o trabalho e por não precisar de temer a noite, pois ia jantar com os, Munroe. Enquanto trabalhava, ouviu vozes na estrada. Se bem que estivesse atento às plantas, percebeu que eram a sr.a Munroe e a filha que passavam junto da casa. De repente, ouviu a Mãe exclamar com alegria:
- Mamã! Olhe (Pat interrompeu o trabalho, para ouvir). Já viu roseira mais bonita?
- É, realmente, linda! - respondeu a sr.a Munroe.
- Estou a pensar o que me recorda! - continuou Mae. Lembra-se do postal com aquela adorável casa em Vermont? Foi o tio Keller que o mandou. Esta casa, coberta de rosas, parece mesmo a casa da fotografia. Gostava de vê-la por dentro.
- Parece-me que não terás essa sorte. A sr.a Allen diz que mais ninguém entrou lá depois da morte dos pais de Pat, há dez anos. Nem mesmo me disse se era bonita ou feia.
- Com uma roseira daquelas cá fora, deve ser linda por dentro. Gostava de saber se o sr. Humbert ma mostrará um dia.
As duas mulheres deixaram de se ouvir. Quando elas haviam já abalado, pôs-se de pé e olhou para a roseira. Nunca reparara que era bela: apenas um montão de folhas verdes cheio de pontos brancos.
-’É bonita! - disse. - Parece uma casa de Vermont e... bem... é bonita.
Depois, como se tivesse visto através da roseira e da parede, a visão da sala deparou-se aos seus olhos. Voltou imediatamente ao trabalho, entre as silvas, esforçando-se por expulsar a casa dos seus pensamentos. Todavia, as palavras da Mae martelavam-lhe o cérebro.
«Deve ser bonita por dentro.»
Pat perguntava a si próprio qual seria o aspecto de uma casa de Vermont. Conhecia a casa de John Whiteside e, como todos os outros habitantes do vale, apreciava o conforto da casa de Munroe; mas nunca vira uma casa bonita, isto é: que ele achasse bonita. Reconstruía mentalmente todas as casas onde entrara e sabia que nenhuma delas era o que a Mãe tinha querido dizer. Lembrava-se de uma fotografia de uma revista: uma sala com o chão brilhante, mobílias brancas e uma escada; podia ser Mount Vernon. Essa fotografia impressionara-o. Talvez fosse isso que ela dizia.
Desejava poder ver o postal mas, se o pedisse, elas saberiam que tinha ouvido a conversa. Assim, foi ficando obcecado pelo desejo de ver uma casa parecida com a sua. Largou o podão e foi até à frontaria. Realmente, a roseira era maravilhosa. Armava um arco por sobre o portal, estendendo ramos de estrelas brancas por sobre as janelas fechadas. Perguntava a si mesmo como nunca tinha reparado nela.
Nessa noite fez uma coisa que nunca ousara fazer: à porta dos Munroe rejeitou um convite para passar o serão.
- Tenho um negócio em Salinas! - desculpou-se. - Posso perder uns dinheiros se não for imediatamente.
Em Salinas foi logo à biblioteca pública.
- Tem algumas fotografias de casas de Vermont? Bonitas!
- perguntou à empregada.
- Talvez encontre algumas em revistas. Venha, que lhe mostro onde deve procurar.
Tiveram que preveni-lo de que a biblioteca ia fechar. Encontrara fotografias de interiores como nunca imaginara. As casas eram mobiladas segundo um plano estabelecido; toda a decoração, cada peça de mobília, mesmo os soalhos e as paredes, estavam relacionados entre si, era tudo parte de um só plano. Nunca soubera que as casas podiam ser assim - tudo uma peça única. Todas as salas que já vira eram resultado de uma acumulação gradual e feita ao acaso. A tia Sofia mandava uma jarra, o pai comprava uma cadeira. Arranjava-se a lareira porque dava mais calor; a Companhia de Farinhas Sperey mandava um calendário e a mãe emoldurava a gravura; uma casa de distribuições ao domicílio anunciava uma nova espécie de candeeiros. Era assim que se mobilavam as casas. No entanto, nas salas das fotografias, alguém tinha uma ideia e todas as coisas da sala faziam parte dessa ideia. Mesmo na altura da biblioteca fechar descobriu duas fotografias. Uma mostrava uma sala como as que lhe eram familiares, a outra mostrava a mesma sala com todas as velharias deitadas fora e mobilada segundo uma ideia. Nem parecia a mesma casa. Pela primeira vez na vida Pat ficou ansioso por chegar a casa. Queria estender-se na cama a pensar, pois uma nova ideia começava a tomar vulto no seu cérebro.
Nessa noite não dormiu; tinha a cabeça cheia de planos. Uma vez, levantou-se e acendeu a luz para dar uma olhadela ao livro de cheques. Pouco antes de o sol nascer, levantou-se e foi preparar o pequeno-almoço. Enquanto comia, bailava-lhe no rosto uma expressão de malícia ao fitar a porta fechada.
«Deve estar escuro lá dentro», pensava. «É melhor despregar as madeiras antes de entrar.»
Quando o Sol nasceu afinal, pegou numa turquês e deu a volta à casa, despregando e abrindo as madeiras das janelas. Não tocou nas do salão porque não queria estragar os ramos da roseira. Finalmente voltou à cozinha e ficou a olhar para a porta fechada. A velha visão fê-lo parar por momentos.
- Isto já passa! - exclamou. - Vou começar a desfazer a porta.
Deu uma martelada e fez saltar a fechadura. A porta abriu-se de par em par com um ruído ferrugento e a sala terrível patenteou-se-lhe à vista. O ar estava cheio de teias de aranha; pela porta saía o velho cheiro a bafio. As duas cadeiras permaneciam ao lado da lareira e, mesmo através da poeira, podia ver as almofadas ameigadas. No entanto, já não eram coisas terríveis. Pat sabia onde estava o centro dos seus horrores. Caminhou apressadamente para o salão, desviando as teias de aranha que estavam pelo caminho. Entrou, mesmo às escuras, e não precisou de tactear para encontrar a mesa; sabia o seu lugar exacto. Pois não lhe havia ela ensombrado a imaginação durante dez anos? Pegou na mesa e na Bíblia, tudo junto, correu até à cozinha e atirou-as para fora.
Agora podia voltar mais devagar. O medo abalara. As janelas estavam tão bem fechadas que teve de usar uma alavanca para as abrir. Primeiro deitou fora as cadeiras de baloiço que começaram a rolar e saltar quando bateram na terra da quinta; depois os quadros, os ornamentos da lareira, as flores. Quando havia deitado tudo pelas janelas, Pat pegou no tapete e atirou-o também. Depois foi buscar baldes de água e encharcou as paredes e o chão. Todas estas tarefas o enchiam de prazer. Tentara quebrar as pernas das cadeiras quando as deitara fora. Enquanto a água era absorvida pelo velho papel que forrava as paredes, reuniu a mobília que jazia sob as janelas, empilhou-a e deitou-lhe fogo. Os velhos apetrechos.
de madeira carcomida desfizeram-se em cinzas negras. Pat observava a pilha, cheio de alegria.
- Queriam ficar aí sentados todos estes anos, não queriam?- exclamava. - Pensavam que teria medo de vos queimar. Pois só queria que ficassem para ver o que vou fazer, seus detritos mal cheirosos.
Só voltou a casa quando tudo estava reduzido a nada. O papel das paredes, encharcado, caía em largas tiras.
Nessa tarde foi a Salinas e trouxe todas as revistas de decoração de casas que encontrou. Depois de jantar percorreu, avidamente, todas as folhas. Finalmente, encontrou a casa ideal. Havia sempre um pequeno senão em todas as outras; com esta tudo era perfeito. Além disso, ele próprio a poderia arranjar muito facilmente. Deitada abaixo a parede entre a sala de estar e o salão, ficaria com uma divisão de trinta pés de comprimento por quinze de largura. As janelas seriam alargadas, a lareira ampliada e o chão coberto a oleado polido. Pat sabia que era capaz de fazer tudo isso, e as mãos ansiavam-lhe por começarem a trabalhar.
- Amanhã começo! - pensou.
Depois outro pensamento lhe atravessou a mente:
«Ela pensa que a casa é bonita. Por isso, não posso deixar que saiba que vou fazer arranjos pois ficaria a saber que a ouvi falar das casas de Vermont. Também não posso deixar os outros saberem que ando a fazer alguma coisa, senão começam com perguntas. Cá tenho as minhas razões. Já sei! Trabalharei à noite.»
Riu para si próprio. A ideia de uma secreta remodelação da casa enchia-o de prazer. Podia ficar ali sozinho a trabalhar que ninguém o saberia. Depois, quando tudo estivesse pronto, podia convidar alguns vizinhos e fingir que a casa fora sempre assim. Ninguém se lembraria do aspecto que a casa tinha, dez anos atrás.
Passou a trabalhar na quinta todo o dia. À noite corria para casa, cheio de contentamento. Tinha pendurada na cozinha a fotografia da casa que lhe servia de modelo e olhava-a vinte vezes por dia. Enquanto fazia assentos aos lados das janelas e forrava as paredes com papel creme, podia ver na sua frente como havia de ficar a casa. Quando precisava de alguma coisa ia buscá-la a Salinas depois do sol-posto. Trabalhava até à meia-noite e ia para a cama sufocado de felicidade.
Os vizinhos começaram a sentir-lhe a falta nas reuniões. Quando lhe perguntavam alguma coisa no armazém, já tinha a resposta pronta:
- Estou a tirar um curso por correspondência e tenho de estudar à noite.
Os homens sorriam. Sabiam que a solidão era de mais para os fazendeiros e que os solteirões ficam sempre um pouco zucas.
- Que curso é, Pai?
- Bem! São lições de construção civil.
- Devia casar-se, Pat. Está a ficar velho. Ele corava furiosamente e respondia:
- Que palermice!
Ao trabalhar na casa, havia arquitectado uma pequena representação: a sala pronta e a mobília no lugar. O fogo ardia e as lâmpadas punham reflexos no chão polido e nos móveis. Vou a casa dela e insinuo: ouvi dizer que gosta das casas
de Vermont. Não! Não posso dizer isso. Pergunto: gosta das casas de Vermont? Pois tenho uma sala no género.
A introdução não o satisfazia. Não conseguia descobrir maneira de a fazer vir até sua casa. Acabava sempre por desistir deste pormenor. Mais tarde acharia solução.
Agora via-a entrar na cozinha. Nada ali devia ser mudado para que a surpresa causada pela outra casa fosse maior. Ela ficaria em frente da porta, que ele abriria. Então veria a sala, escura, mas cheia de luminosidade da própria escuridão. As chamas crepitariam na lareira, e os candeeiros reflectir-se-iam no brilho do chão. Poderia ver-se as silhuetas dos quadros da parede e o tom da carpete. Seria um quadro tão acolhedor!... O peito de Pat contraía-se de prazer.
Que diria ela? Bem! Se sentisse o mesmo que ele, não diria nada. Talvez sentisse vontade de chorar. Era normal: o agradável sentimento de sentir vontade de chorar. Talvez ficasse parada, a olhar, por uns minutos. Depois, Pat diria:
- Não quer entrar e sentar-se um bocado?
Claro que aquilo quebraria as reservas e ela começaria a falar acerca da sala, em frases cheias de espírito, mas Pat faria como se não fosse nada com ele.
- Sim! Sempre gostei muito! - dizia, em voz alta, enquanto trabalhava. - Sim! Sempre gostei muito desta sala. Lembrei-me, há dias, que talvez você gostasse de a ver.
A peça terminava assim: Mae estava sentada em frente do fogo, com as lindas mãos no regaço. Tinha na face um olhar longínquo... E Pat nunca avançava mais que isto porque, aqui, ficava cheio de vergonha. Se continuasse, seria como estar a espreitar por uma janela duas pessoas que quisessem estar sós. O momento supremo, o momento palpitante era quando ele abria a porta e ela ficava pasmada com tanta beleza.
Três meses depois, a sala estava pronta. Pat meteu a folha da revista na mala e foi a São Francisco a um armazém de mobílias. Mostrou a folha e disse:
- Quero uma mobília assim!
- Não quer peças originais, claro!
- Que é isso de peças originais?
- Peças antigas! Não as compraria por menos de trinta mil dólares.
Pat ia desmaiando. Toda a sala pareceu ter-lhe caído em cima.
- Oh! Não sabia.
- Podemos fornecer-lhe cópia dos móveis que aqui vêm.
- Sim? Óptimo, óptimo! E quanto custa?
O gerente fez uma lista das coisas, fez cálculos, deitou contas e declarou:
- Cerca de três mil dólares, sr. Humbert.
Pat ficou pensativo. Afinal, pensou, para que havia de poupar dinheiro?
- Quando é que me pode mandar tudo? - perguntou.
Enquanto esperava o aviso de que a mobília tinha chegado a Salinas, Pat poliu o soalho até quase parecer um espelho.
Finalmente, as coisas chegaram. Fez quatro viagens no seu camião até Salinas para as trazer; viagens feitas a coberto da noite.
Retirou-lhes as coberturas no celeiro. Trouxe para dentro as cadeiras e mesas e, com muitos olhares demorados para a gravura, instalou tudo no lugar exacto. Nessa noite, o fogo crepitou na lareira, os candeeiros reflectiram-se no chão e a cor da carpete ressaltou à luz.
Pat foi para a cozinha e fechou a porta. Depois, muito devagar, abriu-a de novo e ficou a olhar.
Agora que tudo estava pronto, uma poderosa relutância o impedia de fazer o que tanto desejava. Passava-se noite após noite e ia sempre adiando o convite a Mae. Passou-se uma semana e continuou a adiar o convite que a traria a sua casa.
Uma tarde, com muita força de vontade, encheu-se de coragem.
- Não posso adiar mais. Vou lá esta noite.
Depois de jantar, vestiu o seu melhor fato e dirigiu-se a casa dos Munroe que ficava apenas à distância de um quarto de milha. Não faria o convite ainda nessa noite. Queria ter a lareira a arder e as lâmpadas acesas quando ela chegasse.
A casa dos Munroe estava toda iluminada. Em frente do portão havia muitos carros parados.
«Há festa!», pensou Pat. «Tenho de convidá-la outra noite. Não o posso fazer diante de toda a gente.»
Por momentos, pensou em retroceder, mas disse para si:
«Seria engraçado se a convidasse na primeira vez que a vejo depois de tanto tempo. Até era uma maneira de insinuar...
Quando entrou, Bert Munroe agarrou-o pela mão e gritou:
- Está aqui o Pat Humbert.
- Por onde tem andado, Pat?
- Tenho estudado de noite.
- Ainda bem que veio. Ia visitá-lo amanhã. Claro que já sabe a notícia.
- Que notícia?
- Ora! Mae vai casar com Bill Whiteside no sábado, ia pedir-lhe que ajudasse na festa. É só uma coisa em família. Você costumava ajudar nas festas da escola, antes de começar a estudar.
Pegou no braço de Pat e tentou levá-lo para dentro. Chegava até eles o rumor de muitas vozes.
Pat resistiu com firmeza. Praticou tudo o que sabia para tomar ares preocupados e disse:
- Óptimo sr. Munroe. No sábado, disse? Com certeza que ajudo; com muito prazer! Agora não posso ficar. Tenho de ir num instante ao armazém.
Voltaram a apertar as mãos e Pat saiu, andando muito devagar.
No seu desgosto, sentia vontade de se esconder; de se enterrar em qualquer lado onde ninguém pudesse vê-lo. Os passos levaram-no, automaticamente, para casa. Não teve coragem de entrar. Foi para o celeiro e estendeu-se sobre o feno. Sentia o cérebro abalado e seco de desapontamento. Acima de tudo, não queria voltar a entrar em casa. Tinha medo de ter de fechar a porta de novo porque, durante os anos que se seguissem, dois espíritos admirados passariam a viver na bela sala e, da cozinha, Pat imaginá-los-ia sentados a olhar abstractamente para o fantasma de uma lareira.
QUANDO Richard Whiteside veio para o Far West nos anos de 50, observou os trabalhos nas minas de ouro e desistiu deles como objecto do seu esforço.
- A terra só dá uma colheita de ouro - disse. - Quando essa colheita for dividida por milhares de possuidores, não dará de comer a nenhum deles por muito tempo. Isto é mau negócio.
Vagueou pelos campos e montes da Califórnia; no cérebro tinha a firme resolução de fundar uma casa para os filhos que ainda não haviam nascido e para os filhos destes filhos. Por essa altura, muito poucas eram as pessoas na Califórnia que sentiam qualquer espécie de responsabilidade para com os descendentes.
Na tarde de um belo e claro dia, levou os seus dois cavalos baios até ao cimo de uma colina que dominava Pastagens do Céu. Refreou a parelha e olhou para o vale que se estendia lá em baixo. Sabia que tinha encontrado o seu lar. Nas suas vagabundagens pela região tinha visto muitos sítios belos mas nenhum lhe dera a sensação de facto consumado que sentia agora. Recordava os colonos de Atenas e da Lacedemónia olhando as novas terras vagamente descritas pelos oráculos e pensava nos Asteques seguindo a águia que os guiava. Disse para si:
«Se agora tivesse um sinal, a coisa seria perfeita. Sei que é este o lugar que procuro, mas gostaria de ter um augúrio para contar aos meus descendentes.»
Olhou para o céu mas este apresentava-se sem aves nem nuvens. Então, a brisa que sopra das colinas ao pôr do Sol, levantou-se. Os carvalhos fizeram pequenos gestos furtivos na direcção do vale e, na encosta, um remoinho apanhou algumas folhas e levou-as para diante. Richard alegrou-se.
«Eis a resposta. Muitas cidades foram fundadas por causa de um gesto dos deuses, ainda menos perceptível do que este.»
Pouco depois saltou da carroça e desatrelou os cavalos. Uma vez soltos, encaminharam-se vagarosamente para a relva que crescia à beira da estrada. Richard comeu uma refeição de pão com presunto frio, tirou as mantas de dentro do carro e deitou-se sobre as ervas da encosta. À medida que a noite crescia sobre o vale, olhava da cama para Pastagens do Céu onde ia construir a sua casa. Do lado de lá, perto de um bosque de carvalhos ainda novos, era o local; por detrás do ponto escolhido havia uma colina e uma depressão; um regato, por certo. A luminosidade tornou-se incerta e cheia de magia. Richard via uma bela casa toda pintada de branco, com um jardim bem tratado na frente e, perto, a mancha branca do muro de um poço. Havia pequenos brilhos nas janelas, como espectros de luzes a dar as boas-vindas. A porta da frente abriu-se e uma ninhada de crianças saíram para o alpendre - seis, pelo menos. Espalharam-se pela escuridão e olharam para o local onde Richard estava deitado. Momentos depois, voltaram a casa e a porta fechou-se sobre eles. Com o bater da porta, a casa, o jardim e o poço desapareceram. Richard suspirou de satisfação e deitou-se de costas. O céu estava todo salpicado de estrelas.
Durante uma semana, Richard andou às voltas pelo vale. Comprou duzentos e cinquenta hectares de terra em Pastagens do Céu; foi a Monterey registar a compra e inscrever a terra na conservatória e, quando teve a certeza de que a terra era sua, foi procurar um arquitecto.
A casa levou seis meses a construir, atapetar e mobilar; mandou perfurar um poço e construir um muro branco em redor. No primeiro ano em que a terra pertenceu a Richard houve, constant emente, trabalhadores por ali. A terra permanecia virgem de sementes.
Um vizinho, admirado com este modo de proceder, foi lá e perguntou:
- Vai trazer a sua família para aqui, sr. Whiteside?
- Não tenho família! - respondeu Richard. - Os meus pais morreram e não sou casado.
- Então, para que diabo está a construir uma casa tão grande?
- Vou viver aqui. Vim para ficar. Os meus filhos, os filhos deles e os seus netos vão viver nesta casa. Nascerão aqui muitos Whiteside, e muitos aqui morrerão. Bem cuidada, a casa vai durar, pelo menos, quinhentos anos.
- Compreendo a sua ideia! - disse o vizinho. - É interessante mas não é assim que fazemos por aqui. Construímos uma casita pequena e, se a terra der, construímos outra maior, depois. Não é bom confiar muito num local. Pode ter que se mudar.
- Não me quero mudar! - gritou Richard. - É mesmo por isso que estou a fazer uma casa assim. Construirei uma estrutura tão forte que, nem eu, nem os meus descendentes, seremos capazes de nos mudarmos. Como precaução, quero ser enterrado aqui quando morrer. Os homens custam mais a abandonar um local quando têm aí as sepulturas dos pais.
A voz dele abrandou e prosseguiu:
- Não compreende o que estou a fazer? Estou a fundar uma dinastia. Estou a fundar uma família, e um local para essa família viver que durará, senão para sempre, ao menos por alguns séculos. Agrada-me, ao construir esta casa, saber que os meus descendentes andarão por sobre os seus soalhos e que nascerão nela crianças cujos avós ainda nem estão concebidos. Estou a construir na minha casa o germe de uma tradição.
Os olhos de Richard brilhavam à medida que ia falando, e os martelos dos carpinteiros pontuavam-lhe o discurso.
O vizinho julgou estar a tratar com um doido, mas sentia respeito por esta loucura. Desejava mesmo prestar-lhe uma homenagem. Os filhos deste homem andavam a cortar madeira nas florestas a trezentas milhas de distância e, a filha, casara e fora para Nevada. A família dele já se encontrava desmembrada, antes mesmo de ter começado.
Richard construiu a casa em madeira de eucalipto que é bastante resistente. Deu-lhe a forma das elegantes casas de campo da Nova Inglaterra mas como tributo ao clima de Pastagens do Céu, fez cercar todo o edifício por um largo alpendre. O telhado era apenas coberto de zinco, temporariamente. Logo que chegasse um carregamento de telha, as folhas de zinco seriam substituídas. O telhado era uma coisa importante e simbólica para Richard. Para os habitantes do vale, era a coisa mais rara da região. Mais do que qualquer outra coisa, foi ele que tornou Richard o primeiro cidadão do vale. Este homem tinha-se instalado e aqui era a sua casa. Não queria ir à aventura em busca de minas de ouro. Pois quê? Não tinha um telhado de telhas? Além disso, era um homem culto. Até tinha andado em Harvard. Tinha dinheiro e tinha fé em construir uma casa grande e luxuosa no vale. Havia de dar uma direcção definida à terra. Era fundador e patriarca de uma família e o telhado da sua casa era de telhas. Se Richard tivesse sido um político com pretensões a tomar conta da gerência dos negócios locais, não poderia ter dado golpe mais astuto do que cobrir a casa com telhas.
Finalmente, a casa ficou pronta; dois empregados lançaram-se ao trabalho de plantar um pomar e de preparar a terra para as sementeiras. Um pequeno rebanho tasquinhava as ervas da encosta por detrás da casa. Richard sabia que os trabalhos preparatórios estavam completos. Estava agora pronto a casar. Quando chegou uma carta de um parente afastado, a dizer que estava a chegar a São Francisco com a filha e que ficaria satisfeito se encontrasse Richard, este percebeu que não precisava de procurar mais. Antes de chegar a São Francisco, já sabia, que ia casar com a filha daquele parente. Era o ideal. Não haveria acidentes de sangue se casasse com ela.
Se bem que a corte seguisse o seu desenvolvimento natural, o assunto foi arrumado logo que se encontraram. Alicia sentia-se satisfeita por sair do domínio da mãe e ir governar o seu próprio império. A casa fora feita para ela. Não estava lá ainda há vinte e quatro horas, e já andava a forrar as prateleiras com papéis do mesmo género dos que Richard se lembrava de ver a mãe pôr nas prateleiras. Regia os trabalhos da casa- à velha maneira confortável, à maneira cíclica e imutável; lavar às segundas, passar a ferro às terças, tapetes tirados e batidos duas vezes por ano; presuntos, tomates e pikles arranjados e engarrafados na cave todos os outonos.
A quinta prosperou, as ovelhas e as vacas aumentaram de número, e, no jardim, cravos, rosas, ervilhas-de-cheiro e bocas-de-lobo estavam prestes a florir. Além disso, Alicia estava para ter um bebé.
Richard sabia que tudo isto iria acontecer. A dinastia estava estabelecida. As chaminés já tinham uma capa negra em torno dos topos. A lareira da sala deitava o fumo necessário para encher a casa com um cheiro agradável a madeira perfumada. O grande cachimbo de guta-percha que o avô lhe dera estava a passar de branco a um tom agradável de amarelo-creme.
Quando a criança estava para nascer, Richard passou a tratar a esposa quase como a um inválido. Quando, à noite, se sentavam em frente do lume, punha-lhe uma manta sobre os pés. Todo o seu medo era que as coisas se passassem mal no nascimento da criança. Discutiram a figura para que ela devia olhar, a fim de influenciar o aspecto do primogénito e, para lhe fazer uma surpresa, Richard mandou vir de São Francisco uma cópia de bronze do David de Miguel Angelo. Alicia corou ao ver-lhe a nudez mas, daí a pouco, tinha-se tornado apaixonadamente amiga da pequena figura. Levava-a de quarto para quarto durante todo o dia enquanto trabalhava e, à noite, pousava-a na consola da lareira. Muitas vezes, quando fitava os seus membros, um leve sorriso de busca lhe passava pela face. Estava absolutamente convencida de que o filho seria como o David.
Richard sentava-se-lhe ao lado, dava-lhe palmadas acariciadoras na mão e falava-lhe:
- Sabes Alicia? Os meus antepassados e os teus viveram na mesma casa durante cento e trinta anos. É desse ramo que o nosso sangue recebe o sangue bom e generoso da Nova Inglaterra. Uma vez o meu pai contou-me que nasceram setenta e três crianças nessa casa. A nossa família multiplicou-se até ao tempo do meu avô. Meu pai era filho único e eu sou filho único. Era esta a tristeza da vida de meu pai. Tinha apenas sessenta anos quando morreu, Alicia, e eu era ainda uma criança. Quando eu tinha vinte e cinco anos e começara a viver de verdade, a nossa casa ardeu. Não sei como o fogo começou.
«Havia uma prática nos tempos antigos», continuava Richard. A voz tomava-lhe um tom suave e longínquo, como se falasse de dentro dos anos idos. Mais tarde, durante a sua vida, Alicia seria capaz de dizer quando é que Richard estava para falar dos tempos idos. Porque a Idade Antiga de Heródoto e Xenofonte era como se tivesse acontecido nos seus dias.
Nos meios incultos do Oeste, as histórias de Heródoto eram coisas novas, como se Richard as estivesse a inventar para contar ali. Lia muitas vezes aos vizinhos as guerras pérsicas, as guerras do Peloponeso e a Retirada dos Dez Mil.
- Nos tempos antigos, quando infelicidades sucessivas faziam os habitantes de uma terra pensarem que estavam sob uma maldição, punham tudo o que podiam dentro de navios e abalavam a fundar uma nova cidade. Deixavam a sua terra sem nada, à mercê de quem a quisesse.
- Dás-me a estátua, Richard? - pedia Alicia. - Às vezes gosto de a ter na mão.
Ele saltava e punha-lhe o David no colo.
- Ouve, Alicia! Houve apenas dois filhos em duas gerações, antes de a casa arder. Pus todas as minhas posses num barco e abalei para o Oeste a fundar um novo lar. Deves compreender que o lar que perdi levou cento e trinta anos a construir. Não seria capaz de substituí-lo. Uma casa nova no antigo local ser-me-ia penoso. Quando vi este vale, compreendi que era o berço de uma nova família. Agora, as gerações começam a formar-se. Sou feliz, Alicia.
Ela apertou-lhe a mão, ligeiramente, com gratidão por fazê-lo feliz.
- Até - disse ele - houve um sinal quando cheguei a este vale. Perguntei aos deuses se este seria o local e eles responderam-me. Não é maravilhoso? Queres que te conte os sinais da minha primeira noite na colina?
- Contas-me amanhã à noite. Agora prefiro ir para a cama.
Ele levantou-se e tirou-lhe a manta dos pés.
- Há qualquer coisa mística na casa, Alicia, Algo de maravilhoso. É a nova alma, o primeiro fruto da nova raça.
- Há-de ser parecido com a estátua.
O nascimento da criança foi penoso. Quando tudo acabou e Alicia jazia, pálida, na cama, Richard trouxe-lhe o filho e pôs-lho ao lado.
- Sim! - disse ela. - É como a estátua. Claro que eu já o sabia. E, claro, David há-de ser o seu nome.
O médico de Monterey desceu a escada com Richard e sentou-se com ele em frente do fogo. Tinha o cenho carregado e fartava-se da dar voltas ao anel maçónico que trazia no dedo. Richard abriu uma garrafa de brandy e encheu dois pequenos copos.
-Vou beber este à saúde do meu filho, doutor.
O médico cheirou o líquido e comentou:
- Rica bebida. É melhor beber à saúde da sua esposa. -Claro! E este agora à saúde do meu filho.
- Beba esse à saúde da sua mulher, também.
- Porquê? - perguntou Richard, admirado.
-Uma espécie de acção de graças. Esteve muito perto de ficar viúvo.
Richard engasgou-se.
- Não sabia! Pensei... não sabia! Pensei que os primeiros custavam sempre mais a nascer.
- Dê-me outra bebida! - pediu o médico. - Não poderá ter mais filhos.
Richard parou de encher o copo.
- Que quer dizer? Claro que vou ter mais filhos.
- Não desta esposa. Está pronta. Se tiver outro filho, não terá mulher.
Richard sentiu-se mal. O leve ruído das crianças a andarem pela casa parou de repente. O doutor sorriu:
- Porque é que não apanha uma bebedeira, se é isso que pretende?
- Não! Não creio que possa mesmo embebedar-me.
- Bem! Dê-me outro copo antes de abalar. Vou ter uma viagem com tempo frio.
Só seis meses depois é que Richard contou à esposa que não podiam ter mais filhos. Queria que ela se recompusesse fisicamente antes de lhe dar o choque da revelação. Quando, finalmente, lho contou, sentiu-se culpado por ter mantido segredo.
Alicia estava com o filho nos braços e perguntou-lhe:
- Já é tempo de o baptizarmos, não achas?
- Claro. Vou tratar das coisas a Monterey.
- Achas que é tarde para mudar-lhe o nome?
--Não!... Não é tarde. Como é que lhe queres chamar?
- Quero que se chame John. É um nome do Novo Testamento, e além disso, é o nome do meu pai. Depois não gosto de lhe dar o mesmo nome da estátua, mesmo sendo a estátua de David. Não é o mesmo do que se tivesse roupas...
Richard nem tentou compreender o raciocínio da esposa. Em vez disso, mergulhou na confissão que tinha a fazer. Daí a um segundo estava livre. Nunca pensara que levasse tão pouco tempo. Alicia sorriu de modo enigmático, um sorriso que ele não compreendeu e que parecia dizer-lhe:
«Que tolo és. Sei coisas que fariam os teus conhecimentos parecerem ridículos, se me desse ao trabalho de tas contar.»
No entanto, a esposa disse apenas:
- Espera um pouco. Espera mais um pouco que teremos outro filho.
Os Whiteside tornaram-se a primeira família de Pastagens do Céu, quase desde que ali se instalaram. Eram educados, possuíam uma boa quinta e, se bem que não fossem ricos, não tinham pressa de fazer fortuna.
Cinco anos se passaram antes que a sua intuição avisasse Alicia de que iria ter outro filho.
- Vou chamar o médico - disse Richard. - Ele dirá se é perigoso ou não.
- Não, Richard. Os médicos não sabem nada destas coisas. Digo-te eu que as mulheres percebem mais disto que os médicos.
Richard obedeceu porque tinha medo do que o doutor lhe poderia dizer.
«É o grão de deidade das mulheres!» explicava a si próprio.» «A natureza deu este conhecimento às mulheres para preservar a conservação da raça.»
Tudo correu bem até ao sexto mês. Nessa altura, Alicia adoeceu. Quando foi chamado, o médico estava zangado de mais para falar. O parto foi um horror. Richard ficou sentado na sala, torcendo as mãos e escutando os gemidos que vinham do andar superior. Muitas horas depois, os gemidos pararam.
- Vá buscar a garrafa! - disse o médico. - Vamos beber à sua saúde, seu doido. A sua mulher não morreu, só Deus sabe porquê. Passou por dores bastantes para matarem um batalhão. Estas mulheres fracas têm vitalidade de monstros. A criança está morta.
Alicia ficou inválida. John não se recordava da mãe, senão a ser transportada numa cadeira de rodas ou ser levada ao colo do pai pelas escadas acima. Depois, Richard deitava-a na cama e sentava-se-lhe ao lado, acariciando-lhe a mão. Todas as noites ela perguntava:
- És feliz, Richard?
- Sim, sou feliz.
Depois contava-lhe como iam os trabalhos da quinta e o que se passava na terra. Era uma espécie de informação dos acontecimentos diários que só terminava quando ela adormecia.
Quando John fez dez anos, foi-lhe oferecida uma festa. Vieram crianças de todo o vale que andaram pela casa em bicos de pés, pasmando para a grandeza de que tinham ouvido falar. Alicia estava sentada no alpendre e dizia.
- Não precisam de estar quietos. Corram e divirtam-se. No entanto, eles não eram capazes de gritar dentro da casa de Whiteside. A festa acabou no celeiro, de onde os gritos chegaram até Alicia que sorria.
Nessa noite voltou a perguntar:
- És feliz, Richard?
A cara dele ainda brilhava com o prazer que a festa lhe dera. Respondeu:
-Sim, sou feliz.
--Não deves preocupar-te com as crianças. Espera um pouco - continuou ela. - Espera um pouco e tudo correrá bem.
Era esta a sua grande sabedoria: «Espera um pouco. Não há mágoa que resista ao passar dos tempos.»
- Não é preciso esperar muito! - continuou Alicia.
- Porquê?
- Pensa bem! John tem dez anos agora. Daqui a outros dez estará casado e, depois... Ensina-lhe o que tu sabes. A família está salva.
- Claro! A casa está garantida. Vou começar a ler-lhe Heródoto. Já está na idade.
John Whiteside lembrava-se sempre do pai lhe ler Heródoto, Tucídides e Xenofonte. O velho cachimbo já estava a tomar uma cor acastanhada por essa altura. Também se lembrava dos sentimentos do pai para com a casa: um símbolo da família, um templo construído sobre um lar.
John estava no último ano de Harvard quando o pai morreu com pneumonia. A mãe escreveu-lhe a dizer que devia acabar o curso antes de voltar.
«Não farias nada que não estivesse já feito. O desejo do teu pai era que acabasses o curso.»
Quando voltou a casa, encontrou a mãe envelhecida e cheia de rugas. Ficou sentado a seus pés, ouvindo-a contar os últimos dias de vida do pai.
- Disse-me que te dissesse uma coisa: «Que John compreenda que nos deve continuar. Quero viver nas gerações vindouras.» Teu pai delirou durante dois dias e só falava de crianças. Depois, recuperou as faculdades e disse: «Vi o futuro. Haverá muitas crianças. Sou feliz, Alicia.»
Então, a mãe, que sempre deixara tudo a resolver ao tempo, levantou-se na cama e exclamou:
- Casa-te. Quero ver-te casado. Casa com uma mulher forte que possa ter muitos filhos. Arranja esposa, depressa. Quero conhecê-la.
John não se casou senão daí a seis anos. Durante esse tempo, a mãe emagreceu até não ser mais que um esqueleto coberto de pele azulada mas, no entanto, agarrado à vida. Os seus olhos seguiam o filho, que se sentia envergonhado quando a encarava. Finalmente, um colega de John veio passear ao Oeste e trouxe consigo uma irmã. Ficaram na quinta dos Whiteside um mês, ao fim do qual John pediu Willa em casamento. Quando deu a notícia à mãe, esta pediu para ficar a sós com a rapariga. Meia hora depois, Willa saía do quarto, fortemente corada.
- Que se passa, querida? - perguntou John.
- Nada. A tua mãe fez-me muitas perguntas e, depois, olhou-me por muito tempo.
- Está tão velha! - explicou John. - Tem o cérebro tão cansado!
Entrou no quarto da mãe. O aspecto febril havia desaparecido. No seu lugar, pairava o velho sorriso enigmático de outros tempos.
- Está bem, John! - disse ela. - Gostaria de esperar até ver as crianças, mas não posso. Agarrei-me à vida enquanto pude. Estou cansada.
Quase era possível ver a tenaz força de vontade abandonar-lhe o corpo. À noite ficou inconsciente e, três dias mais tarde, morreu sossegada e tranquilamente, como se adormecesse.
John Whiteside não pensava na casa do mesmo modo que o pai. Amava-a ainda mais, como se fosse o revestimento exterior do seu corpo. Tal como o espírito lhe saía do corpo a viajar por longes terras, assim o seu corpo saía da casa, com a certeza de que havia de voltar. Não ocupava no vale o lugar que havia pertencido ao pai. John era menos teimoso, menos convencido de qualquer coisa. O grande cachimbo de guta-percha estava agcra escuro, quase negro.
Willa Whiteside amou o vale desde o princípio. Alicia fora calma e calada, quase assustadora. Os habitantes do vale raramente a viam e, quando isso acontecia, eram tratados amavelmente, era sempre cuidadosa em não os magoar. Fazia-os sentir-se como camponeses de visita a um castelo. Willa gostava de fazer visitas às mulheres do vale, de se sentar nas cozinhas, com elas, bebendo chá forte e falando das inúmeras coisas importantes relacionadas com as lides da casa. Provou ser uma notável negociante de receitas. Quando fazia alguma visita levava sempre um pequeno livro de apontamentos para tomar nota das fórmulas. Os vizinhos tratavam-na por «Willa» e vinham muitas manhãs tomar chá na cozinha dela.
John gostava dos vizinhos. Nas tardes quentes de Verão, sentava-se na sua cadeira de lona, no alpendre e entretinha tantos homens quantos podiam deixar o trabalho. Quando se falava de qualquer questão capital, John gostava de trazer os três grandes livros do pai e ler alto qualquer situação paralela, passada nos tempos antigos.
Para John, a sala de estar era o centro da sua existência. A cadeira de couro, com amolgadelas provocadas pela anatomia das pessoas que se sentavam nela, fazia parte dele próprio. À noite, vinha o seu maior prazer. Ardia na lareira um pequeno fogo e John sentava-se numa cadeira, acariciando o cachimbo de guta-percha. Lia as Geórgicas ou obras de Varrão sobre agricultura. Willa sentava-se debaixo de um candeeiro a bordar panos para parentes do Leste que lhe mandavam panos bordados pelo Natal.
John fechou o livro e foi até à secretária. O tampo rolante precisava sempre de ser oleado. Cedia de repente e ia bater no topo com estrondo. Willa abria a boca e perguntava:
- Que diabo estás a fazer? -Ando à procura de umas coisas.
Durante uma hora trabalhava à secretária e depois dizia? - Ouve isto, Willa.
Ela voltava a dar-lhe atenção.
- Já tinha pensado; poesia.
Lia os versos e esperava. Willa guardava um silêncio que durava até não precisar mais de estar cheio de tacto.
- Parece-me que não é grande coisa! - dizia ele. -Não é, não.
A sala era a sua casa. Era aqui que se sentia completamente feliz. Sob a luz dos candeeiros, todas as suas partículas se reuniam para formar um todo.
Apenas uma necessidade se lhe fazia sentir: não tinha filhos. Willa não tinha filhos, se bem que os desejasse tanto como o marido. O caso deixava-os embaraçados e nunca se referiam a ele.
Oito anos depois do casamento, por um acaso qualquer, humano ou divino, Willa concebeu, atravessou um período de gravidez sem dores e deu à luz uma criança saudável.
O acidente não mais se repetiu e John e Willa sentiam-se agradecidos por ter acontecido uma vez.
Willa pegou no filho, deu-lhe o nome de William, passou a chamar-lhe Bill e recusou-se a adorá-lo como John. Este revia o pai na figura do garoto, se bem que nunca o dissesse.
- Achas que o miúdo é esperto? - perguntava ele à esposa. - Estás com ele mais tempo do que eu. Parece-te que tem alguma inteligência?
- Mais ou menos. É normal.
- Parece desenvolver-se tão devagar. Quem dera que chegue o tempo de compreender as coisas.
No dia em que Bill fez dez anos, John abriu o seu Heródoto e começou a ler-lho. Bill estava sentado no chão, olhando o pai. Todas as noites, John lia algumas páginas do livro. Cerca de uma semana depois, levantou os olhos e viu que Willa se estava a rir dele.
-Que é? -perguntou.
- Olha para debaixo da cadeira.
Inclinou-se e viu o filho a construir uma casa de fósforos. Estava tão absorvido no trabalho que nem deu por que a leitura cessara.
- Não tem estado a dar atenção?
- Não ouviu nem uma palavra desde a primeira noite. John fechou o livro e foi pô-lo na estante, dizendo:
- Talvez ainda não tenha idade bastante. Experimento, outra vez, para o ano.
- Nunca prestará atenção, John. Não é como tu e o teu pai.
- Com que é que ele se interessa, então?
- Com o mesmo que os outros miúdos do vale: armas, cavalos, cães e vacas. Não sai a ti, John.
- Diz-me a verdade, Willa. É... estúpido?
- Não! - disse ela, pensativamente. - Não é estúpido. De certo modo, é mais esperto do que tu. Não é como tu, John, e tens de vir um dia a compreendê-lo.
John Whiteside sentiu que a terra estava garantida. Bill devia começar a tratar da quinta, mais tarde ou mais cedo. A família também estava garantida. Bill não era estúpido e podia perpetuá-la.
A cadeira de couro de John, o seu cachimbo de guta-
-percha e os seus livros voltaram a reclamar-lhe a atenção.
Foi eleito presidente do conselho escolar e os cabelos foram-se-lhe tornando brancos, à medida que, com a idade, a sua influência se ia tornando maior no vale.
A casa dos Whiteside era a própria personalidade de John. Quando as pessoas pensavam nele, a figura não ficava completa se não incluísse a casa. Há muito poucas casas velhas no Oeste. Os inquietos americanos que se instalaram no campo nunca conseguiram ficar muito tempo no mesmo local. Construíam pequenas barracas e, depois, mudavam-se para sítios mais promissores.
Quando Bert Munroe veio com a família para Pastagens do Céu, não demorou muito a compreender a posição que John Whiteside ocupava. Logo que pôde, juntou-se ao grupo de homens que se agregava no alpendre de John. A sua quinta confinava com a terra dos Whiteside. Pouco depois de ter chegado, Bert foi eleito para o conselho escolar, onde tomou contacto oficial com o vizinho. Uma noite, durante uma reunião do conselho, John citou uma passagem de Xenofonte. Bert ficou até todos os outros terem ido para casa.
- Queria falar-lhe naquele livro que citou! - disse ele.
- Refere-se à Retirada dos Dez Mil?
Foi buscar o livro e pô-lo nas mãos de Bert.
- Gostaria de o ler, se não se importa de mo emprestar. John hesitou uns momentos e disse:
- Claro! Leve-o. Era um livro do meu pai. Quando acabar, posso emprestar-lhe outros.
Deste incidente nasceu uma certa intimidade entre as duas famílias. Convidavam-se mutuamente para jantar e faziam frequentes visitas uns aos outros.
Uma noite, ano e meio depois da chegada dos Munroe ao vale, Bill entrou na sala de estar e enfrentou os pais. Com o nervoso, foi um pouco brusco ao dizer:
- Vou-me casar!
A maneira como o disse, fez a coisa parecer uma má notícia.
- O quê? - exclamou John. - Porque é que nunca nos falaste no caso? Quem é ela?
- Mae Munroe.
De súbito, John compreendeu que era uma boa notícia e não a confissão de um crime.
- Mas... mas... isso é óptimo. Ainda bem. Ela é uma óptima rapariga, não é, Willa?
A mulher não se atreveu a fitá-lo. Havia estado em casa dos Munroe nessa manhã.
- Quando é o casamento? - perguntou ao filho.
- Em breve. Logo que a casa em Monterey esteja pronta. John levantou-se, pegou no cachimbo, acendeu-o e voltou a sentar-se.
- Porque é que tens estado tão calado com o caso? Porque é que não nos disseste?
Bill permanecia calado.
- Disseste que ias viver para Monterey. Queres dizer que não trazes a tua mulher para aqui? Não vais viver nesta casa nem tratar desta quinta?
Bill abanou a cabeça. - Tens vergonha de alguma coisa, Bill?
- Não, senhor! Não tenho vergonha de nada, mas nunca gostei de falar nos meus assuntos.
- Não achas que esses assuntos também nos dizem respeito? Somos a tua família. Os teus filhos serão nossos netos.
- Mae foi criada na cidade!---interrompeu Bill. - Sabe... todos os amigos dela vivem em Monterey... amigos com quem andou na escola. Não gosta disto quando não tem nada que fazer.
- Compreendo.
- Por isso, quando disse que queria ir viver para a cidade, comprei sociedade na agência Ford de Monterey. Sempre quis ter um negócio.
- Não achas que ela podia consentir em vir viver para esta casa? Temos tanto espaço. Podíamos fazer as modificações que ela achasse necessárias.
- Simplesmente, ela não gosta de viver no campo. Todos os seus amigos estão em Monterey.
John concordou:
- Creio que está bem. Tens dinheiro que chegue?
- Claro, pai! Bastante. E oiça uma coisa, pai. Comprámos uma casa grande; grande para dois, quero eu dizer. Falámos no caso e pensámos que talvez quisessem vir viver connosco.
- E que faríamos da quinta e desta casa? - perguntou John, sorrindo com cortesia.
- Também pensámos nisso. Podiam vender tudo e ganhar o bastante para passarem toda a vida na cidade. Numa semana, posso vender isto tudo.
John voltou para as suas almofadas na cadeira de couro. Willa exclamou:
- Bill, se eu sonho que pensas isso a sério, sou capaz de te bater com um pau.
John acendeu o cachimbo e apertou o tabaco. Disse, vagarosamente:
- Não podes por lá ficar muito tempo. Um dia ou outro, serás atacado de saudades a que não poderás resistir. Este lugar está-te no sangue. Quando tiveres filhos, compreenderás que não poderão ser criados fora desta casa. Ficaremos à tua espera, com a casa sempre pintada e o jardim podado. Hás-de voltar e os teus filhos hão-de brincar no celeiro. O meu pai morreu a sonhar com crianças... Bill saiu, nervoso, da sala.
- Ele há-de voltar! - disse John quando o filho abalou.
- Claro que volta! - concordou a esposa.
Bill casou nos fins do Verão e mudou-se logo para Monterey. No Outono, John Whiteside voltou a não ter descanso. Mandou pintar a casa e podou as plantas do jardim.
- A terra não está a produzir bastante! - queixou-se ele a Bert Munroe. - Deixei-a em descanso muito tempo.
- Sim! - disse Bert. - Nenhum de nós faz as nossas terras render bastante. Admiro-me como não tem um rebanho. Podia muito bem ter umas ovelhas naquelas pastagens da encosta.
- Tínhamos um rebanho nos tempos do meu pai mas, como lhe disse, tenho deixado a terra ao abandono e as estevas já estão muito crescidas.
- Queimam-se! - disse Bert. - Se as queimar este Outono, na próxima Primavera tem uma pastagem óptima.
-Aí está uma boa ideia. No entanto, as estevas chegam muito perto da casa. Precisarei de ajuda.
- Eu ajudo e trago o Jimmie. O senhor tem dois homens; consigo já faz cinco. Se começarmos de manhã, quando não haja vento e esperarmos por uma chuvinha antes, não há perigo.
Numa bela manhã, depois das primeiras chuvas, o sol brílhava e a atmosfera resplandecia de pureza. Os Whiteside tinham acabado de tomar o pequeno-almoço, quando Bert Munroe e Jimmy entraram na cozinha.
- Bons dias, sr.a Whiteside. Bons dias. John. Pensei que era hoje um dia bom para queimar aquelas estevas. Caiu uma rica chuva esta noite.
- É uma boa ideia! Sentem-se e tomem uma chávena de café.
- Acabámos de comer agora mesmo. Estou incapaz de engolir seja o que for.
- Bem! Vamos então, antes que seque tudo.
John foi à cave buscar uma lata de petróleo. Depois deu sacos molhados aos empregados que deixaram o trabalho no pomar.
- Não há vento - disse Bert. - É uma ocasião magnífica. Vamos começar por aqui. Ficamos entre o fogo e a casa até termos uma faixa bastante segura de terreno queimado. Não nos devemos fiar muito.
John espalhou algum petróleo e deitou-lhe fogo. As estevas começaram a crepitar ferozmente, enquanto os homens observavam as chamas que começavam a subir a colina.
- Já queimámos bastante por aqui! - exclamou Bert. - Já vai a alguma distância da casa! É melhor irmos agora deitar fogo pelo lado de cima.
Nesse momento, um ligeiro remoinho começou a dançar pela colina abaixo. Pegou nalgumas faúlhas e pedacinhos de fogo e levou-os para junto da casa. Depois, como que cansado, desfez-se.
Os cinco homens começaram a apagar as faúlhas espa Jhadas pelo chão.
- Tivemos sorte - disse John. - Uma coisa destas podia ter queimado a casa.
Bert e Jimmy deram volta ao pasto e incendiaram-no pela parte de cima. O ar estava pesado e negro de fumo. Um quarto de hora depois, já quase tudo ardera.
De repente, ouviram um grito vindo da casa. Os cinco homens viraram-se e começaram a correr, pois, das janelas de cima saíam grossos rolos de fumo.
Willa correu para eles, pelo chão queimado. John fê-la parar.
- Ouvi um ruído na cave - explicou. - Abri a porta que dá para a cozinha, e o fogo passou para cima. Já tomou conta da casa toda.
Bert e Jimmy chegaram, correndo, até eles.
- Tem mangueiras ao pé do poço? - perguntou Bert. John desviou os olhos da casa em chamas e respondeu:
- Não sei bem.
Bert pegou-lhe pelo braço.
- Vamos. Porque espera? Ainda podemos salvar alguma coisa. De qualquer modo, ainda se pode salvar alguma mobília.
John soltou o braço e começou a descer a colina, em direcção à casa.
-Não me parece que queira salvar alguma coisa.
- Está doido? - gritou Bert, indo ao poço à procura de mangueiras.
O fumo e as chamas saltavam por todos os lados. De dentro da casa vinham ruídos de furiosa comoção; o edifício lutava por sobreviver.
John aproximou-se de uma pilha de madeira e sentou-se. Willa fitou-o e, depois, ficou muito quieta ao lado dele.
As paredes exteriores começavam a fumegar e estremeciam como que sacudidas por uma forte ventania.
Depois, uma coisa estranha e cruel aconteceu. A parede de um dos lados caiu e, como num palco de teatro, ficou à vista a sala de estar, intacta se bem que rodeada de chamas. Enquanto eles observavam o fogo sem nada poderem fazer, as compridas labaredas invadiram a sala. As cadeiras de coiro estremeceram como coisas vivas. O vidro das molduras estalou e os quadros ficaram reduzidos a manchas negras. Puderam ainda ver o grande cachimbo pendurado sobre a lareira. Depois, as chamas cobriram a sala e devastaram tudo. O pesado tecto de telhas desabou, esmagando as paredes e os soalhos debaixo do seu peso, e a casa transformou-se num montão de coisas ardentes e sem forma.
Bert voltara e estava parado junto de John, sem poder fazer nada.
- Deve ter sido aquele remoinho! - explicou.-Com certeza que entrou alguma faúlha na cave e atingiu o alcatrão. Sim. Deve ter começado pelo alcatrão.
John olhou-o e sorriu, numa espécie de horrorizado divertimento.
- Sim! Deve ter sido no alcatrão - disse, como num eco. O fogo ardia lentamente, agora que a sua vitória era completa; chamas pequenas subiam de um montão de destroços que nada se assemelhavam a uma casa. John Whiteside levantou-se, endireitou os ombros e suspirou. Os olhos dele fitaram o sítio onde havia sido a sala de estar, e disse:
- Bem, creio que já acabou. Penso que sei agora o que SSite uma alma ao ver o corpo ser enterrado. Vamos até à sua casa, Bert. Quero telefonar ao Bill. Com certeza que ele tem um quarto para nós.
- Porque não ficam connosco? Temos bastante espaço.
- Não. Vamos ter com Bill.
John olhou mais uma vez para o monte de destroços ardentes. Willa ia a pôr-lhe a mão no braço, mas desviou-a, antes mesmo de lhe tocar. O marido viu o gesto e sorriu-lhe, dizendo:
-Gostava de ter salvo o meu cachimbo.
- Sim! - interrompeu Bert. - Era o cachimbo com a cor mais bonita que ainda vi. Há cachimbos nos museus que não têm uma cor tão fumada. Devia ter sido fumado muitas vezes.
- E foi! - concordou John. - Durante muito tempo. E, sabe uma coisa? Dava um gosto admirável ao tabaco.
As duas horas da tarde, o autocarro de turismo saiu da estação de Monterey para uma volta à península. Enquanto ia andando ao longo da estrada das Dezassete Milhas, os passageiros olhavam pelas janelas para verem as casas assombrosas dos ricaços. Sentiam-se um pouco envergonhados ao olharem pelas janelas, como se estivessem a bisbilhotar, se bem que de uma posição privilegiada. O autocarro passou pela cidade de Carmel e subiu a colina até à Missão do Monte Carmelo para verem a velha igreja com a famosa cúpula arruinada e, aí, o jovem motorista encostou o carro na estrada e ficou a descançar enquanto os excursionistas eram levados para o interior da escura igreja.
Quando voltaram para os lugares, algumas barreiras que os viajantes constróem em torno de si próprios haviam caído.
- Ouviram aquilo? - dizia o homem de negócios. O guia disse que a igreja era construída como um barco, com uma quilha de pedra por baixo-como um navio batido pela tempestade. Mas não devia resultar.
Um jovem padre, de faces rosadas e cheio de orgulho da sua nova batina, respondeu, de dois bancos mais atrás:
- Mas tem resultado. Tem havido tremores de terra, mas a Missão continua de pé. Construída em barro mas mantém-se.
Um velho interrompeu, um velho saudável e de olhos vivos:
- Acontecem coisas estranhas. Perdi a minha mulher o ano passado. Éramos casados há cinquenta anos.
Olhou sorrindo em torno, à espera de um comentário e esqueceu-se das coisas estranhas que acontecem.
Um casal em lua-de-mel continuava de braço dado. A noiva bichanou ao ouvido do marido:
- Pergunta ao motorista aonde vamos agora.
O autocarro continuou vagarosamente pelo Vale do Carmelo. Passou por pomares e campos de pasto; passou um rochedo vermelho, raiado de laivos verdes. A tarde declinava e o sol descia para o lado do mar. A estrada deixou de seguir o Rio Carmelo e começou a subir uma encosta até correr ao longo de uma escarpa. Aí, o motorista parou, desligou o motor e virou-se para os passageiros.
- Não vamos mais longe. Gosto sempre de estender as pernas antes de regressar. Talvez alguém queira dar uma volta, a pé.
As pessoas saíram do carro e foram até à beira da estrada olhar para baixo, para Pastagens do Céu. Os últimos raios de sol davam ao ar uma tonalidade doirada. A terra, lá em baixo, estava dividida em retalhos de árvores de fruto, de searas amarelas e de chão cor de violeta. Das casas a meio dos jardins subia o fumo das chaminés, muito direito até se desfazer na brisa. Ouviam-se os chocalhos das vacas e um cão ladrou tão
longe, que o som chegou até aos viajantes numa espécie de murmúrio. Mesmo por baixo da escarpa, um rebanho juntava-se debaixo dos carvalhos para passar a noite.
- Chama-se «Lãs Pasturas dei Cielo» - disse o motorista.
- Cultivam lá belos legumes, e têm frutas e morangos muito mais cedo que em qualquer outro lado. O nome quer dizer Pastagens do Céu.
O homem abastado tossiu e disse, em tom profético:
- Se eu tivesse poderes de prever o futuro, dir-vos-ia que, um dia, serão construídas naquele vale casas de pedra, jardins, campos de golf e grandes grades de ferro. Irão para lá viver homens ricos - homens que estão cansados de trabalhar nas cidades, que têm o seu pecúlio e querem um local tranquilo para se instalarem e passarem o resto da vida sossegadamente. Se eu tivesse dinheiro, compraria aquilo tudo. Havia de arranjar o local e, depois, subdividi-lo.
Fez uma pausa e juntou as mãos, continuando:
- Sim, senhor! E, por Deus, havia de passar ali o resto da vida.
A mulher disse:
- Psiu!
Olhou em volta com ar culpado e viu que ninguém lhe estava a prestar atenção.
A sombra da colina crescia para o centro do vale; algures, lá em baixo, um porco grunhiu aflito. O jovem recém-casado levantou os olhos e sorriu em confissão para a noiva. Esta retorquiu-lhe com outro sorriso onde se liam a firmeza e a reprovação. O sorriso dele havia dito:
«Quase que pensava nisso mas, evidente, não posso...»
O da esposa respondera:
«Não! Claro que não podes. Temos que pensar na ambição e os nossos amigos esperam muito de nós. Há o teu nome para fazer, de modo que eu tenha orgulho em ti. Não podes fugir a estas responsabilidades e esconder-te aqui. No entanto, seria belo.
Ambos os sorrisos tomaram um aspecto suave e ficaram a pairar-lhes nos lábios.
O jovem padre afastara-se sozinho. Murmurava uma prece, mss a prática havia-o ensinado a pensar enquanto rezava.
«Devia ser uma igreja óptima... Não há ali pobreza, maus cheiros, preocupações. Os fiéis viriam confessar-me pequenos pecados insignificantes que desapareceriam com a penitência de algumas ave-marias. Seria uma vida calma; não aconteceria nada sujo ou violento que me fizesse sentir vergonha, pena ou dúvida. Os habitantes daquelas casas chamar-me-iam padre, e eu seria para eles um verdadeiro pai.»
Franziu os sobrolhos e castigou-se por estes pensamentos, dizendo baixinho:
«Como não sou bom padre, terei de rastejar entre os pobres, suportar-lhes o mau cheiro e as lutas que travam. Não posso fugir às tragédias de Deus. Talvez vá habitar um lugar assim, quando morrer.»
O velho ficou a olhar para o vale com os seus olhos espertos; à surdez dos seus ouvidos o silêncio surgia como uma brisa perpassando pelas ramagens de um cipreste. As outras colinas não as podia ver, mas via a luz doirada e as sombras violáceas. A respiração tornou-se-lhe ofegante e assomaram-lhe as lágrimas aos olhos.
«Nunca tive tempo para pensar!» disse, baixinho. «Estive sempre cheio de preocupações para poder pensar nalguma coisa. Se pudesse ir viver alguns tempos além em baixo, talvez pudesse recordar tudo que me aconteceu e tirar uma conclusão; chegar a alguma coisa que fosse um todo e não todas estas inúmeras pistas sem sentido. Ali nada me perturbaria e eu poderia pensar...»
O motorista deitou o cigarro para o chão e pisou-o.
- Vamos! - gritou. - Temos que ir andando.
Ajudou os passageiros a subir e fechou as portas. Os excursionistas ficaram a olhar pelas janelas para Pastagens do Céu, onde o ar era agora azul como um lago, e as quintas permaneciam envoltas em silêncio.
- Sabem? - disse o motorista. - Sempre pensei que seria óptimo ter uma casa lá em baixo. Um homem pode ter um porco, uma vaca e um ou dois cães. Numa pequena quinta pode criar-se o bastante para se comer.
Ligou o motor e o carro estremeceu antes de se pôr em marcha.
- Creio que lhes pode parecer estranho - continuou mas gosto sempre de olhar lá para baixo e pensar como um homem pode viver sossegado e em paz num sítio como aquele.
Carregou no acelerador e o carro ganhou velocidade e embrenhou-se na descida para o Vale de Carmelo, em direcção ao sol que se escondia no oceano à entrada do vale.
John Steinbeck
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