Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PAULA
Em Dezembro de 1991, a minha filha Paula adoeceu gravemente e, pouco depois, entrou em coma. Estas páginas foram escritas durante horas intermináveis pelos corredores de um hospital de Madrid e num quarto de hotel, onde vivi durante vários meses. E também ao lado da sua cama, na nossa casa da Califórnia, no Verão e Outono de 1992.
Dezembro 1991 - Maio 1992
Ouve, Paula, vou contar-te uma história para que, quando acordares, não te sintas perdida.
A lenda da família começa em princípios do século passado, quando um robusto marinheiro basco desembarcou nas costas do Chile, com a cabeça perdida em projectos de grandeza e protegido pelo relicário de sua mãe pendurado ao pescoço, mas para quê voltar tanto atrás, basta dizer que a sua descendência formou uma estirpe de mulheres impetuosas e homens de braços fortes para o trabalho e corações sentimentais. Alguns, de carácter irrascível morreram a babar-se, mas talvez a causa não fosse a raiva, como proclamaram as más-línguas, mas sim alguma peste local. Compraram terrenos férteis nas vizinhanças da capital que, com o tempo, aumentaram de valor, refinaram, ergueram solares com parques e arvoredos, casaram as filhas com crioulos ricos, educaram os filhos em severos colégios religiosos, e assim, no correr dos anos, integraram-se numa orgulhosa aristocracia de terra-tenentes que perdurou por mais de um século, até que o vendaval do modernismo a substituiu no poder por tecnocratas e comerciantes. Um deles era o meu avô. Nasceu em bom berço, mas o pai dele morreu cedo, devido a um inexplicável tiro de espingarda; nunca foram divulgados os pormenores do que acontecera nessa noite fatídica, talvez tivesse sido um duelo, uma vingança ou um acidente amoroso, em todo o caso, a família dele ficou sem recursos e, sendo ele o mais velho, teve de abandonar a escola e procurar emprego para sustentar a mãe e os irmãos mais novos. Muito mais tarde, quando se tinha convertido num senhor com fortuna, perante o qual os outros tiravam o chapéu, confessou-me que a pior pobreza é a de colarinho e gravata, porque tem de se disfarçar. Apresentava-se impecável com a roupa do pai ajustada às suas medidas, de colarinhos engomados e bem passados a ferro para ocultar o desgaste do tecido. Essa época de penúrias temperou-lhe o carácter, achava que a existência consistia apenas em esforço e trabalho, e que um homem de honra não pode andar no mundo sem ajudar o próximo. Já nessa altura tinha a expressão concentrada e a integridade que o caracterizaram, era feito da mesma matéria pétrea dos seus antepassados e, como muitos deles, tinha os pés fincados em terra firme, embora uma parte da sua alma fugisse para o abismo dos sonhos. Por isso se apaixonou pela minha avó, a mais nova de uma família de doze irmãos, todos eles loucos excêntricos e deliciosos, como a Teresa a quem, para o fim da vida, lhe começaram a crescer asas de santa e, quando morreu, secaram, certa noite, todas as roseiras do Parque Japonês, ou Ambrósio, grande mata-mouros e fornicador que, nos seus momentos de generosidade, se despia no meio da rua para dar a roupa aos pobres. Fui criada a ouvir comentários acerca do talento da minha avó em predizer o futuro, ler na mente alheia, dialogar com os animais e fazer mexer objectos com o olhar. Contam que uma vez fez deslocar uma mesa de bilhar pelo salão, mas na verdade a única coisa que vi a mexer na sua presença foi um insignificante açucareiro, o qual, à hora do chá, costumava deslizar, errático, sobre a mesa. Essas faculdades inspiravam um certo receio e, apesar do encanto da rapariga, os possíveis pretendentes acovardavam-se na sua presença; mas para o meu avô a telepatia e a telequinésia eram divertimentos inocentes, e de modo algum obstáculos sérios para o matrimónio; preocupava-o apenas a diferença de idades, ela era muito mais nova e, quando a conheceu, ainda brincava com bonecas e andava abraçada a uma pequena almofada ranhosa. De tanto considerá-la como uma criança, não se apercebeu da sua paixão, até ela lhe aparecer um dia com um vestido comprido e o cabelo apertado na nuca, e então a revelação de um amor gerado durante anos e anos mergulhou-o em tal crise de timidez que deixou de a ir visitar. Ela adivinhou o seu estado de alma, antes de que ele mesmo pudesse desenredar a madeixa dos seus próprios sentimentos, e mandou-lhe uma carta, a primeira de muitas que lhe haveria de escrever nos momentos decisivos das suas vidas. Não se tratava de um bilhete perfumado a tactear o terreno, mas de uma breve nota a lápis em papel de caderno, a perguntar-lhe sem preâmbulos se ele queria ser seu marido e, em caso afirmativo, quando. Meses depois levava-se a cabo o casamento. A noiva surgiu perante o altar como uma visão de outras eras, ataviada em rendas de cor de marfim e com uma desordem de flores de laranjeira, em cera, enredadas no carrapato; ao vê-la, ele decidiu que a amaria porfiadamente até ao fim dos seus dias.
Para mim, este casal foi sempre o Vovô e a Vovó. Dos seus filhos só a minha mãe tem interesse para esta história, porque se começo a contar as vidas do resto da tribo nunca mais acabo, e os que ainda vivem estão muito longe; assim é o exílio, lança a gente aos quatro ventos, e depois torna-se muito difícil reunir todos os disperses. A minha mãe nasceu entre duas guerras mundiais, num dia de Primavera dos anos 20, menina sensível, incapaz de acompanhar os irmãos nas correrias pelo terraço da casa, à procura de ratos, para os meterem em frascos de formol. Cresceu protegida entre as paredes do lar e do colégio, entretido com leituras românticas e obras de caridade, com a fama de ser a mais bela que já se vira naquela família de mulheres enigmáticas. Desde a puberdade teve vários namorados a rondá-la como moscardos, que o pai mantinha à distância e a mãe analisava com as cartas de Tarot, até que os namoricas inocentes acabaram com a entrada no seu destino de um homem talentoso e equívoco, o qual desalojou sem esforço os rivais e lhe inundou a alma de inquietações. Foi o teu avô Tomás, que desapareceu na bruma, e só me refiro a ele porque possuis algo do seu sangue, Paula, por nenhuma outra razão. Esse homem de mente viva e língua impiedosa, tornava-se alguém demasiado inteligente e sem preconceitos para aquela sociedade provinciana, uma ave rara no Santiago desse tempo. Atribuíam-lhe um passado obscuro, circulavam boatos de que pertencia à Maçonaria, que portanto era inimigo da Igreja, e que mantinha oculto um filho bastardo, mas nada disso podia esgrimir o Vovô para dissuadir a filha por carecer de provas, e ele não era capaz de manchar sem fundamento a reputação de outrem. Nessa época o Chile era um bolo de mil-folhas - e de certo modo ainda o é -, havia mais castas do que na índia e existia um epíteto pejorativo para colocar cada qual no seu lugar: roto, pije, arribísta, siútico, e muitos outros até se atingir a plataforma da gente como nós. O nascimento marcava as pessoas; era fácil descer na hierarquia social, mas para subir nela não bastava dinheiro, fama ou talento, exigia-se o esforço arraigado de várias gerações. A favor de Tomás pesava a sua linhagem honrada, apesar de, aos olhos do Vovô, existirem antecedentes políticos suspeitos. já nessa altura soava o nome de um certo Salvador Allende, fundador do Partido Socialista, que pregava contra a propriedade privada, a moral conservadora e a autoridade dos patrões. Tomás era primo desse jovem deputado.
Olha, Paula, tenho aqui o retrato do Vovô. Este homem de feições severas, pupilas claras, óculos sem armação e boina negra, é o teu bisavô. Na fotografia aparece sentado empunhando a sua bengala e, ao pé dele, apoiada no seu joelho direito, está uma menina de três anos vestida festivamente, graciosa como uma bailarina em miniatura, a olhar para a máquina com olhos lânguidos. Essa és tu, atrás estamos a minha mãe e eu, a cadeira esconde-me a barriga, estava grávida do teu irmão Nicolás. O velho surge de frente, apreciamos a sua postura altiva, aquela dignidade sem espavento de alguém que se formou a si próprio, que percorreu rectamente o seu caminho e já nada mais espera da vida. Lembro-me dele sempre velhinho, embora quase sem rugas, salvo dois sulcos profundos nas comissuras dos lábios, com uma branca melena de leão e um riso brusco de dentes amarelos. Nos seus derradeiros anos custava-lhe deslocar-se, mas punha-se penosamente de pé para cumprimentar e se despedir das senhoras, e aferrado à bengala acompanhava as visitas até à porta do jardim. Gostava das mãos dele, ramos retorcidos de roble, fortes e nodosas, do seu perene lenço de seda no pescoço e do cheiro a sabonete inglês de alfazema e desinfectante. Ocupou-se com humor desprendido de inculcar nos descendentes a sua filosofia estóica; o desconforto parecia-lhe coisa sã, e o aquecimento nocturno nocivo, exigia comida simples - nada de molhos, nem de refogados - e pareciam-lhe ordinárias as diversões. De manhã aguentava o duche frio, costume que ninguém na família seguiu e que, para o final da sua existência, quando já parecia um velho escaravelho, tomava ainda impávido, sentado numa cadeira sob o jacto gelado. Falava por meio de refrães contundentes e a qualquer interrogatório directo, respondia com outras perguntas, de modo que pouco sei da sua ideologia, mas conheci a fundo o seu carácter. Repara na minha mãe, que neste retrato tem um pouco mais de quarenta anos e se encontra no apogeu do seu esplendor, vestida à moda, de saia curta e com o cabelo como um ninho de abelhas. Está a rir, e os seus grandes olhos verdes parecem dois traços delimitados pelos arcos pontiagudos das sobrancelhas pretas. Foi essa a época mais feliz da sua vida, quando já tinha terminado a educação dos filhos, estava apaixonada e o seu mundo ainda lhe parecia seguro.
Gostava de te mostrar uma fotografia do meu pai, mas queimaram-nas todas há mais de quarenta anos.
Para onde vais, Paula? Como serás ao acordar? Serás a mesma mulher ou deveremos aprender a conhecer-nos como duas estranhas? Terás memória ou terei de contar-te pacientemente os vinte e oito anos da tua vida e os quarenta e nove da minha?
Deus guarde a sua menina, sussurrava-me com dificuldade Don Manuel, o doente que ocupava a cama ao lado da tua. É um velho camponês, operado várias vezes ao estômago, a lutar ainda contra a ruína e a morte. Deus guarde a sua menina, disse-me também ontem uma mulher jovem com um bebé ao colo, que tivera conhecimento do teu caso e acorrera ao hospital para me incutir esperança. Sofreu um ataque de porfiria há dois anos e ficou em coma mais de um mês, levou um ano a voltar à normalidade e tem de fazer tratamentos durante o resto da vida, mas já trabalha, casou e teve um menino. Garantiu-me que o estado de coma é como dormir sem sonhos, um misterioso parêntese. Não chore mais, minha senhora, a sua filha não sente nada, vai sair daqui pelo seu pé e depois não se lembrará do que lhe aconteceu.
Todas as manhãs percorro os corredores do sexto piso à caça do especialista para indagar novos pormenores. Esse homem tem a tua vida nas suas mãos e eu não confio nele; passa como uma corrente de ar, distraído e apressado, dando-me nebulosas explicações sobre enzimas e cópias de artigos sobre a tua doença que eu tento ler mas não entendo. Parece mais interessado em alinhavar as estatísticas do seu computador e as fórmulas do seu laboratório do que no teu corpo crucificado pousado nesta cama. É assim esta enfermidade, uns recuperam da crise em pouco tempo e outros levam semanas na terapia intensiva; dantes os pacientes pura e simplesmente morriam, mas agora podemos conservá-los vivos até o metabolismo funcionar de novo, diz-me ele sem me olhar nos olhos. Bem, se assim é, só nos resta aguardar. Se tu resistes, Paula, eu também.
Quando acordares teremos meses, anos talvez para colar os pedaços quebrados do teu passado, ou melhor ainda, poderemos inventar as tuas recordações à medida das tuas fantasias; por agora falar-te-ei de mim e de outros membros desta família a que ambas pertencemos, mas não me peças exactidões porque me hão-de escapulir erros, muita coisa me esquece ou se distorce, não fixo lugares, datas nem nomes, porém nunca me escapa uma boa história. Sentada a teu lado observando num ecrã as linhas luminosas que assinalam os batimentos do teu coração, tento comunicar contigo seguindo os métodos mágicos da minha avó. Se ela estivesse aqui podia transmitir-te as minhas mensagens e ajudar-me a agarrar-te a este mundo. Empreendeste uma estranha viagem através dos meandros da inconsciência. Para quê tantas palavras se me não podes ouvir? Para quê estas páginas que talvez nunca venhas a ler? A minha vida faz-se ao contá-la e a minha memória fixa-se com a escrita; o que não ponho em palavras no papel, o tempo apaga-o.
Hoje são 8 de janeiro de 1992. Num dia como o de hoje, há onze anos, comecei em Caracas uma carta para me despedir do meu avô que agonizava com um século de luta aos ombros. Os seus ossos rijos continuavam a resistir, embora há muito que ele se preparava para seguir a Vovó, que lhe fazia sinais da entrada. Eu não podia regressar ao Chile e não convinha incomodá-lo pelo telefone que tanto o aborrecia, para lhe dizer que partisse tranquilo porque nada se perderia do tesouro de anedotas que me contara ao longo da nossa amizade, eu nada esquecera. Pouco depois o velho morreu, mas o conto tinha-me agarrado e não consegui parar, outras vozes falavam através de mim, escrevia em transe, com a sensação de ir desfiando um novelo de lã, e com a mesma urgência com que escrevo agora. Ao cabo de um ano tinham-se juntado quinhentas páginas numa carteira de lona e compreendi que aquilo já não era uma carta, então anunciei timidamente à família que tinha escrito um livro. Qual é o título? perguntou a minha mãe. Fizemos uma lista de nomes, mas não conseguimos pôr-nos de acordo com nenhum deles e por fim tu, Paula, atiraste uma moeda ao ar para decidir. Assim nasceu e foi baptizado o meu primeiro romance, A Casa dos Espíritos, e eu iniciei-me no vício incurável de contar histórias. Esse livro salvou-me a vida. A escrita é uma longa introspecção, é uma viagem até às cavernas mais obscuras da consciência, uma lenta meditação. Escrevo às apalpadelas no silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristais que cabem na palma da mão e justificam a minha passagem por este mundo. Também a 8 de janeiro iniciei o meu segundo romance e a partir de então já não me atrevi a mudar aquela data afortunada, em parte por superstição, mas também por disciplina; comecei todos os meus livros num dia 8 de janeiro.
Há vários meses terminei O Plano Infinito, o meu romance mais recente e desde então preparo-me para esse dia. Tinha tudo pronto: tema, título, primeira frase, no entanto ainda não escrevi essa história, porque desde que adoeceste só me restam forças para te acompanhar, Paula. Há um mês que estás adormecida, não sei como chegar junto de ti, chamo-te e volto a chamar-te, mas o teu nome perde-se nas vielas deste hospital. Tenho a alma afogada em areia, a tristeza é um deserto estéril. Não sei rezar, não consigo alinhavar dois pensamentos, e muito menos conseguiria mergulhar na criação de outro livro. Verto-me nestas páginas com uma intenção irracional de vencer o meu terror, penso que se dou forma a esta devastação conseguirei ajudar-te e ajudar-me, o meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação. Há onze anos escrevi uma carta ao meu avô para me despedir dele na sua morte, neste 8 de janeiro de 1992 escrevo-te, Paula, para te trazer de regresso à vida.
Minha mãe era uma esplêndida jovem de dezoito anos quando o Vovô levou a família à Europa numa viagem de esforço que nesse tempo se fazia uma única vez na vida, o Chile fica no cabo do mundo. Tencionava deixar a filha num colégio de Inglaterra para que adquirisse cultura e ao mesmo tempo esquecesse os seus amores com Tomás, mas o Hitler desmoronou-lhe os planos e a II Guerra Mundial eclodiu num estrépido de cataclismo, surpreendendo-os na Costa Azul. Com incríveis dificuldades, avançando contra a corrente por caminhos atravancados de gente que fugia a pé, a cavalo ou em qualquer veículo disponível, conseguiram chegar a Antuérpia e subir para o último barco chileno que zarpou do cais. As cobertas e os barcos salva-vidas tinham sido tomados de assalto por dúzias de famílias judias que escapavam deixando haveres - e nalguns casos fortunas - nas mãos dos cônsules inescrupulosos que lhes venderam vistos a peso de ouro. A falta de cabinas viajavam como gado, dormindo à intempérie e passando fome pois os alimentos estavam racionados. Durante essa penosa travessia a Vovó consolava as mulheres que choravam os lares perdidos e a incerteza do futuro, enquanto o Vovô negociava comida na cozinha e cobertores com os marinheiros para os repartir pelos refugiados. Um deles, peleiro de seu ofício, como agradecimento, ofereceu à Vovó um sumptuoso casacão de astracã cinzento. Navegaram durante semanas por águas infestadas de submarinos inimigos, com as luzes apagadas de noite e rezando de dia, até deixarem para trás o Atlântico e chegarem sãos e salvos ao Chile. Ao atracar no porto de Valparaíso, o que vislumbraram em primeiro lugar foi a figura inconfundível de Tomás com um fato de linho branco e de panamá, e então o Vovô compreendeu a futilidade de se opor aos misteriosos desígnios do destino e, de muito má vontade, deu o seu consentimento para a boda. A cerimónia decorreu na sua casa, com a participação do Núncio Apostólico e de algumas personagens do mundo oficial. A noiva luzia um sóbrio vestido de seda e arvorava uma atitude desafiadora; não sei como se apresentou o noivo, porque a fotografia está cortada, dele só nos resta um braço. Ao conduzir a filha ao salão, onde tinham erguido um altar ornado com cascatas de rosas, o Vovô deteve-se no sopé da escada.
- Ainda é tempo de se arrepender. Não se case, filha, pense melhor nisso, por favor. Faça-me um sinal e eu encarrego-me de dispersar este montão de gente e mandar o banquete para o hospício... - Ela replicou-lhe com um olhar glacial.
Tal como a minha avó fora advertida numa sessão de espiritismo, o matrimónio dos meus pais revelou-se um desastre desde os seus primórdios. A minha mãe embarcou novamente, dessa vez com rumo ao Peru, para onde Tomás fora nomeado secretário da Embaixada do Chile. Levava uma colecção de pesados baús com o seu enxoval de noivado e um carregamento de presentes, tantos objectos de porcelana, cristal e prata, que meio século depois ainda tropeçamos neles em recantos inesperados. Cinquenta anos de postos diplomáticos em diversas latitudes, divórcios e longos exílios não conseguiram libertar a família daquele lastro; muito receio, Paula, que ainda herdes, entre outros objectos arrepiantes, um candeeiro de ninfas caóticas e querubins rechonchudos que a minha mãe conserva. A tua casa é de uma singeleza monacal e no teu esquálido roupeiro apenas pendem quatro blusas e duas calças, pergunto-me o que fazes com o que eu te vou dando, és como a Vovó, que mal desceu do navio e pisou terra firme, se despojou do casacão de astracã para cobrir uma mendiga. A minha mãe passou os dois primeiros dias da lua-de-mel tão enjoada com os solavancos do oceano Pacífico que não conseguiu sair da cabina, e mal se sentiu um pouco melhor e saiu para respirar a plenos pulmões, o marido ficou prostrado com dores de dentes. Enquanto ela passeava pelo convés, indiferente aos olhares concupiscentes de oficiais e marujos, ele gemia no catre do camarote. O pôr do Sol pintava de cor de laranja o horizonte imenso e de noite as estrelas escandalosas convidavam ao amor, mas o sofrimento foi mais poderoso do que o romance. Tiveram de passar três dias intermináveis até que o paciente permitisse ao médico de bordo intervir com um alicate para o aliviar do suplício, e só então se desfez o inchaço e os esposos puderam iniciar a vida de casados. Na noite seguinte apareceram juntos na sala de jantar, convidados para a mesa do comandante. Após um brinde formal pelos recém-casados apareceu a entrada, lagostins servidos em taças talhadas com gelo. Num gesto de intimidade coquete minha mãe estendeu o garfo e picou um marisco no prato do marido, com tão pouca sorte que um minúsculo pingo de molho americano lhe caiu na gravata. Tomás pegou numa faca para limpar o agravo, mas a mancha alastrou. E então, perante o espanto dos convivas e a mortificação da mulher, o diplomata meteu os dedos no prato, pegou nos crustáceos, esfregou-os no peito, encharcando a camisa, o fato e o resto da gravata, a seguir passou as mãos pelo cabelo brilhantinado, pôs-se de pé, cumprimentou com uma ligeira inclinação e partiu para o camarote, onde permaneceu durante o resto da viagem sumido num obstinado silêncio. Apesar desses percalços, eu fui gerada no alto mar.
A minha mãe não fora preparada para a maternidade, naquele tempo esses assuntos tratavam-se em murmúrios diante das moças solteiras, e a Vovó não teve a ideia de a advertir acerca dos incessantes afãs das abelhas e das flores, porque a sua alma flutuava a outros níveis, mais interessada na translúcida natureza dos espíritos do que nas grosseiras realidades deste mundo, apesar disso mal deu pela gravidez soube logo que era uma menina, chamou-lhe Isabel e estabeleceu com ela um diálogo permanente que não cessou até hoje. A pegada à criatura que crescia no seu ventre, tentou assim compensar a sua solidão de malcasada; falava-me em voz alta assustando os que a viam actuar como uma alucinada, e suponho que eu a ouvia e lhe respondia, mas não me lembro desse período intra-uterino.
O meu pai tinha gostos de luxo. A ostentação sempre foi vício malvisto no Chile, onde a sobriedade é sinal de refinamento, ao invés em Lima, cidade de vice-reis, o alarde é de bom tom. Instalou-se numa casa desproporcionada em relação à sua posição de segundo-secretário da Embaixada, rodeou-se de criados índios, encomendou a Detroit um automóvel luxuoso e esbanjou dinheiro em festas, casinos e passeios de iate, sem que ninguém pudesse explicar como financiava tais extravagâncias. A curto prazo conseguiu travar relações com a fina-flor do mundozinho político e social, descobriu as fraquezas de cada um e graças aos seus contactos conseguiu ficar ao corrente de certas confidências indiscretas e até de alguns segredos de Estado. Converteu-se no convidado imprescindível das farras de Lima; em plena guerra arranjava o melhor uísque, a cocaína mais pura e as cortesãs mais complacentes, todas as portas se lhe abriam. Enquanto ia trepando os degraus da sua carreira, a sua mulher sentia-se prisioneira num beco sem saída, unida aos seus vinte anos a um homem fugidio do qual dependia completamente. Enlanguescia no calor húmido do Verão escrevendo intermináveis páginas à mãe, que se cruzavam no mar e se perdiam nos sacos do correio como uma conversa de surdos. Essas cartas melancólicas empilhadas na sua secretária convenceram a Vovó do desencanto da sua filha, suspendeu as sessões de espiritismo com as três amigas esotéricas da Irmandade Branca, meteu os baralhos de cartas de adivinhar numa maleta e partiu para Lima num frágil bimotor, dos poucos que levavam passageiros, porque nesse período de guerra os aviões eram reservados para fins militares. Chegou mesmo a tempo para o meu nascimento. Como pusera os seus filhos no mundo em casa, ajudada pelo marido e uma parteira, ficou desconcertada com os métodos modernos da clínica. Anestesiaram a parturiente com uma só injecção sem lhe dar a oportunidade de participar nos acontecimentos e o bebé, mal nasceu, foi transportado para uma enfermaria asseptizada. Muito depois, quando se dissiparam as brumas da anestesia, informaram a mãe de que tinha dado à luz uma menina, mas que de acordo com o regulamento só podia tê-la consigo às horas das mamadas.
- É um fenómeno e por isso não ma deixam ver!
- É uma criancinha deliciosa - replicou a minha avó, procurando dar à voz um tom convincente, embora na realidade ainda não tivesse tido ocasião de me ver bem. Através de uma vidraça tinham-lhe mostrado um volume embrulhado num pequeno cobertor, que a seus olhos não tinha um aspecto completamente humano.
Enquanto eu guinchava com fome noutro piso, a minha mãe esbracejava furiosa disposta a recuperar a filha pela violência, se necessário, Apareceu um doutor, diagnosticou uma crise de histeria, deu-lhe outra injecção e deixou-a a dormir mais doze horas. Nessa altura a minha avó estava convencido que se encontravam na antecâmara do inferno e logo que a filha começou a acordar, ajudou-a a lavar a cara com água fria e a vestir-se.
- Temos de fugir daqui. Veste-te e saímos de braço dado como duas senhoras que vieram à visita.
- Mas não podemos sair sem a menina, pelo amor de Deus, mamã!
- Tens razão - disse a minha avó, que provavelmente não pensara nesse pormenor.
Entraram com ar decidido na sala onde estavam sequestrados os recém-nascidos, pegaram num bebé e levaram-no apressadamente sem levantar suspeitas. Conseguiram identificar o sexo porque a criatura tinha uma fita cor-de-rosa no pulso, mas não dispuseram de tempo para averiguar se era mesmo a sua, aliás o assunto não era de importância vital, todas as crianças são mais ou menos iguais com essa idade. É possível que com a pressa me confundissem com outra e que nalgum lugar exista uma mulher com dotes de clarividência e olhos cor de espinafre a ocupar o meu lugar. Postas a salvo em casa, despiram-me para ver se estava inteira e descobriram um sinal na base das costas. Esta mancha é de bom augúrio, asseverou a Vovó, não temos de nos preocupar com a menina, vai crescer sã e afortunada. Nasci em Agosto, signo do Leão, de sexo feminino e se não me trocaram na clínica tenho sangue castelhano-basco, um quarto de francês, e uma certa dose de araucana ou mapuche, como toda a gente da minha terra. Apesar de ter vindo ao mundo em Lima, sou chilena; venho de “uma vasta pétala de mar e vinho e neve”, tal como Pablo Neruda definiu o meu país, e de lá és tu também, Paula, embora tenhas a marca indelével das Caraíbas, onde cresceste. Custa-te um pouco entender a nossa mentalidade do Sul. No Chile somos determinados pela presença eterna das montanhas, que nos separam do resto do continente, e pela sensação de precariedade, inevitável numa região de catástrofes geológicas e políticas. Tudo treme sob os nossos pés, não conhecemos seguranças, se nos perguntam como estamos, respondemos “sem novidade”, ou “mais ou menos”; movemo-nos de uma incerteza para outra, caminhamos cautelosos numa região de claros-escuros, nada é preciso, não gostamos de enfrentamentos, preferimos negociar. Quando as circunstâncias nos forçam a extremos, acordam os nossos piores instintos e a história dá uma reviravolta trágica, porque os mesmos homens que na vida quotidiana parecem mansos, ao contarem com a impunidade e um bom pretexto costumam converter-se em feras sanguinárias. Mas em tempos normais os chilenos são sóbrios, circunspectos, ajuizados e têm pavor de chamar as atenções, o que para eles é sinónimo de se ser ridículo. Por essa razão sempre fui um pesadelo para a família.
E onde estava Tomás enquanto a mulher dava à luz e a sogra levava a efeito o discreto rapto da sua primogénita? Não sei, o meu ai é uma grande ausência na minha vida, foi-se tão cedo e de modo tão total, que não fiquei com recordações dele. A minha mãe viveu com ele durante quatro anos com duas grandes separações pelo meio, e teve tempo para dar à luz três filhos. Era tão fértil que bastava sacudir umas cuecas num raio de meio quilómetro para ela ficar grávida, condição que eu herdei, embora tenha tido a sorte de chegar a tempo à época da pílula. A cada parto, o marido desaparecia, tal como fazia em face de qualquer problema significativo, e regressava alegre com um presente extravagante para a mulher uma vez ultrapassada a emergência. Ela via proliferar quadros pelas paredes e porcelanas chinesas pelos sótãos sem compreender a origem de tanta despesa; era impossível explicar aqueles luxos com um salário que era um mínimo para outros funcionários, mas quando tentava investigá-lo ele respondia-lhe com evasivas, tal como sucedia quando ela o inquiria acerca das suas ausências nocturnas, as suas viagens misteriosas e as suas duvidosas amizades. Tinha já dois filhos e estava perto de dar à luz o terceiro, quando o castelo de cartas se desmoronou. Certa manhã, Lima amanheceu agitada por um rumor de escândalo que, sem vir publicado nos jornais, deslizou por todos os salões. Tratava-se de um velho milionário que costumava emprestar o seu apartamento a compinchas para encontros de amor clandestinos. No quarto, por entre móveis antigos e tapetes persas estava suspenso um falso espelho de traça barroca, que na realidade era uma janela. Do outro lado instalava-se o dono da casa com grupos escolhidos de convidados, bem aprovisionados em licores e drogas, dispostos a deliciar-se com os jogos do par na arena, que regra geral de nada suspeitava. Nessa noite encontrava-se entre os mirones um político altamente colocado no Governo. Ao abrir a cortina para espiar os incautos amantes, a primeira surpresa foi que se tratava de dois varões, e a segunda que um deles, ataviado num corpete e cinta de ligas rendada, era o filho mais velho do mesmo político, um jovem advogado ao qual se augurava uma carreira brilhante. A humilhação fez perder o controlo ao pai, quebrou a pontapé o espelho, atirou-se sobre o filho para lhe arrancar as pendurezas femininas e se não lhe deitam a mão talvez o assassinasse. Poucas horas depois, os bastidores limenhos comentavam os pormenores do sucedido, acrescentando pormenores cada vez mais escabrosos. Suspeitava-se que o incidente não fora casual, que alguém planeara a cena por puro zelo de maldade. Assustado, Tomás desapareceu sem dar explicações, A minha mãe não teve conhecimento do escândalo senão passados vários dias; vivia isolada devido aos incómodos das suas contínuas gravidezes e também para evitar os credores que reclamavam contas por pagar. Cansados de esperar pelos salários, os criados da casa tinham desertado, ficara apenas Margara, uma empregada chilena de rosto hermético e coração de pedra que servia a família desde tempos imemoriais. Neste estado de coisas começaram os sintomas do parto; o desconcerto e o orgulho impediram a minha mãe de pedir ajuda, cerrou os dentes e dispôs-se a dar à luz do modo primitivo. Eu tinha perto de três anos e o meu irmão Pancho ainda quase não andava. Nessa noite, agachados num corredor, ouvimos os gemidos da minha mãe e assistimos à azáfama de Margara com sacos de água quente e toalhas. Juan veio ao mundo à meia-noite, pequeno e enrugado, um ratinho só pele e osso, sem pêlo, que mal respirava. Depressa deram conta de que não conseguia engolir, tinha um nó na garganta e os alimentos não passavam, estava condenado a morrer à fome enquanto os seios da mãe quase rebentavam de leite, mas salvou-o a tenacidade de Margara, empenhada em mantê-lo vivo, primeiro com um algodão empapado em leite que espremia gota-a-gota, e depois metendo-lhe à força na boca uma papa espessa com uma colher de pau.
Durante anos, razões mórbidas para justificar o desaparecimento do meu pai andaram às voltas na minha cabeça, fartei-me de perguntar a meio mundo, existe um silêncio conspirativo em relação a ele. Os que o conheceram e ainda vivem, descrevem-no como um homem muito inteligente e não acrescentam mais. Na minha infância imaginei-o como um criminoso e mais tarde, quando soube de perversões sexuais, atribuí-lhas todas, mas parece que nada tão romanesco adorna o seu passado, era apenas uma alma covarde; um dia viu-se acossado pelas suas mentiras, perdeu o controlo da situação e pôs-se em fuga. Deixou a Chancelaria, não voltou a ver a mãe, a família nem os amigos, volatilizou-se literalmente. Visualizo-o um bocado por piada, é claro - a fugir para Machu-Pichu disfarçado de índia peruana, com tranças postiças e várias blusas multicores. Nunca repitas uma coisa dessas! de onde tiras tu essas parvoíces todas? atalhou a minha mãe quando lhe mencionei essa possibilidade. Fosse como fosse, partiu sem deixar rasto, mas não se transladou para as alturas transparentes dos Andes para se diluir numa aldeia de aymaras, como eu supunha, desceu simplesmente um degrau na implacável escada das classes sociais chilenas e tornou-se invisível. Regressou a Santiago e continuou a transitar pelas ruas do centro, mas como não frequentava o mesmo meio social, foi como se tivesse morrido. Não voltei a ver a minha avó paterna nem ninguém da sua família, excepto Salvador Allende, que se manteve próximo de nós por um firme sentimento de lealdade. Nunca mais vi o meu pai, não ouvi mencionar o seu nome e nada sei do seu aspecto físico, por isso torna-se irónico o facto de certo dia me telefonarem para identificar o seu cadáver na morgue, mas isso foi bem mais tarde. Lamento, Paula, que neste ponto desapareça esta personagem, porque os vilões constituem a parte mais saborosa das histórias.
A minha mãe, que fora criada num ambiente privilegiado em que as mulheres não participavam nos assuntos económicos, entrincheirou-se na sua casa fechada, secou as lágrimas do abandono e chegou à conclusão de que pelo menos durante uns tempos não ia morrer de inanição, pois contava com o tesouro das bandejas de prata que podia vender uma a uma para pagar as contas. Ficara sozinha com três crianças num país estrangeiro, rodeada de rumores inexplicáveis e sem um centavo na carteira, mas era demasiado orgulhosa para pedir ajuda. De qualquer modo a Embaixada estava alerta e soube-se de imediato que Tomás tinha desaparecido deixando os seus na falência. Estava em jogo o decoro do país, não se podia permitir que o nome de um funcionário chileno caísse na lama e muito menos que a mulher e os filhos fossem postos fora de casa pelos credores. O cônsul fez uma visita à família com instruções para a recambiar para o Chile com a maior discreção possível. Adivinhaste, Paula, tratava-se do tio Ramón, o teu avô príncipe e descendente directo de Jesus Cristo. Ele próprio assegura que era um dos homens mais feios da sua geração, mas acho que exagera; não se pode dizer que fosse um homem bonito, mas o que lhe faltava em galhardia sobrava-lhe em inteligência e encanto, além de que a idade lhe foi dando um ar de grande dignidade. Na época em que foi enviado em nossa ajuda era um cavalheiro mirrado, de tez esverdeada, com uns bigodes de morsa e sobrancelhas mefistofélicas, pai de quatro filhos e católico praticante, nem sombra da personagem mítica em que depois se transformou, quando mudou de pele como as cobras. Margara abriu a porta ao visitante e conduziu-o aos aposentos da senhora, que o recebeu na cama rodeada pelos filhos, ainda dorida do último parto mas com todo o esplendor dramático e a força vertiginosa da sua juventude. O senhor cônsul, que mal conhecia a esposa do colega - sempre a tinha visto grávida e com um ar distante pouco convidativo a aproximações - permaneceu de pé junto da porta sumido num matagal de emoções. Enquanto a questionava sobre os pormenores da sua situação e lhe explicava o plano para a repatriar, atormentava-o um furioso estampido de touros no peito. Julgando que não existia mulher mais fascinante do que aquela, e sem compreender como podia o marido tê-la abandonado, pois ele daria a vida por ela, suspirou abatido pela tremenda injustiça de tê-la conhecido demasiado tarde. Ela olhou-o demoradamente.
- Está bem volto para casa dos meus pais – acabou por aceitar.
- Dentro de poucos dias sai um barco de Caliao com rumo a Valparaíso, tentarei obter as passagens - gaguejou ele.
- Viajo com os meus três filhos, Margara e a cadela. Não sei se este petiz, que nasceu muito frágil, aguentará a travessia - e embora os olhos lhe brilhassem com lágrimas não se permitiu chorar.
Num relâmpago desfilaram pela mente de Ramón sua mulher, seus filhos, seu pai apontando-o com um dedo acusador e seu tio, o bispo, de crucifixo na mão a expedir raios de condenação, viu-se a sair excomungado da igreja e desonrado na Chancelaria, mas não conseguiu desprender-se do rosto perfeito daquela mulher e sentiu que um furacão o arrebatava do solo. Deu dois passos em direcção à cama. Nesses dois passos decidiu o seu futuro.
- De agora em diante encarrego-me de ti e dos teus filhos para sempre.
Para sempre... O que é isso, Paula? Perdi a noção do tempo neste edifício branco onde reina o eco e nunca é de noite. Esfumaram-se as fronteiras da realidade, a vida é um labirinto de espelhos encontrados e de imagens distorcidas. Há um mês, a esta mesma hora, eu era outra mulher. Há uma fotografia minha dessa data, estou na festa de lançamento do meu recente romance em Espanha, com um vestido decotado, cor de beringela, um colar e pulseiras de prata, de unhas compridas e sorriso confiante, um século mais nova do que agora. Não reconheço essa mulher, em quatro semanas de dor transformou-me. Enquanto explicava ao microfone as circunstâncias que me levaram a escrever O Plano Infinito, o meu agente abriu passo entre a assistência para me segredar ao ouvido que tinhas sido internada no hospital. Tive o feroz pressentimento de que uma desgraça fundamental tinira desviado, as nossas vidas. Quando cheguei a Madrid, dois dias antes, já te sentias muito mal. Estranhei que não estivesses no aeroporto para me receber, como fazias sempre, deixei as malas no hotel e, esgotada pela cansativa viagem desde a Califórnia, fui a tua casa onde te encontrei a vomitar e a arder de febre. Acabavas de regressar de um retiro espiritual com as freiras do colégio onde trabalhas quarenta horas por semana como voluntária a ajudar crianças sem recursos, e contaste-me que fora uma experiência intensa e triste, acabrunhavam-te as dúvidas, a tua fé era frágil.
- Ando à procura de Deus e ele escapa-me, mamã...
- Deus espera sempre, para já é mais urgente procurar um médico. Que é que tens, filha?
- Porfiria - respondeste sem hesitar.
Desde há alguns anos, ao saber que herdaras essa enfermidade, tratavas-te muito bem e eras controlada por um dos poucos especialistas de Espanha. Ao ver-te já sem forças, o teu marido levou-te a um serviço de urgência, diagnosticaram uma gripe, e mandaram-te para casa. Nessa noite, o Ernesto contou-me que havia semanas, mesmo meses, que andavas tensa e cansada. Enquanto discutíamos sobre uma presumível depressão, tu sofrias por trás da porta fechada do teu quarto; a porfiria estava a envenenar-te rapidamente e nenhum de nós tivera capacidade de ver o que acontecia. Não sei se cumpri com as minhas obrigações, a minha vontade estava ausente e entre duas entrevistas à imprensa corria para o telefone para te falar. Mal me deram a notícia de que estavas pior, cancelei o resto das viagens e voei para te ver no hospital, subi a correr os seis pisos e descobri a tua sala neste monstruoso edifício. Encontrei-te encostada na cama, e bastou-me um olhar para compreender a gravidade do teu estado.
- Porque choras? - perguntaste-me com uma voz desconhecida.
- Porque tenho medo. Amo-te, Paula.
- Eu também te amo, mamã...
Foi a última coisa que me disseste, filha. Passados momentos deliravas a recitar números, com os olhos fixos no tecto. O Ernesto e eu ficámos ao pé de ti durante a noite, consternados, sentando-nos por turnos na única cadeira disponível, enquanto noutras camas da sala agonizava uma anciã, uma mulher demente gritava, e uma cigana desnutrida e marcada com golpes tentava adormecer. Ao amanhecer convenci o teu marido a ir descansar, levava várias noites de vela e estava exausto. Despediu-se de ti com um beijo na Duca. Uma hora desencadeou-se o horror, um aterrador vómito de sangue seguido de convulsões; o teu corpo tenso, arqueado para trás, agitava-se em violentos espasmos que te faziam erguer na cama, os teus braços tremiam com as mãos garrotadas, como se tentasses agarrar-te a alguma coisa, de olhar espavorido, o rosto congestionado e cheio de baba. Lancei-me sobre ti, para te suster, gritei e gritei a pedir socorro, a sala encheu-se de gente vestida de branco e tiraram-me dali à viva força. Lembro-me de ter ficado de joelhos no chão, e depois de uma bofetada na cara. Calma, minha senhora, cale-se ou tem de ir embora! A sua filha está melhor, pode entrar e ficar com ela, era um enfermeiro a sacudir-me. Tentei pôr-me de pé, mas as pernas dobravam-se-me; ajudaram-me a chegar até à tua cama e depois saíram, fiquei a sós contigo e com as pacientes das outras camas, que observavam em silêncio, cada qual imersa nos seus próprios males. Tinhas a cor cinzenta dos espectros, os olhos revirados, um fio de sangue seco ao lado da boca, estavas fria. Esperei, chamando-te pelos nomes que te dei desde pequenina, mas tu afastavas-te para outro mundo; quis dar-te água a beber, sacudi-te, encaraste-me com as pupilas dilatadas e vidradas, olhando através de mim para outro horizonte e de repente ficaste imóvel, exangue, sem respirar. Consegui chamar por gente aos gritos e a seguir tentei fazer-te respiração boca-a-boca, mas o medo tinha-me bloqueado, fiz tudo mal, soprei-te ar sem ritmo nem concerto, de qualquer maneira, cinco ou seis vezes, e então notei que o teu coração também não batia e comecei a bater-te no peito com os punhos. instantes depois chegou ajuda e a última coisa que vi foi a tua cama a afastar-se em corrida pelo corredor, na direcção do elevador. A partir desse momento a vida deteve-se para ti e também para mim, cruzámos ambas um misterioso umbral e penetrámos na zona mais obscura.
- O estado dela é crítico - notificou-me o médico de “banco” na Unidade de Cuidados Intensivos.
- Devo chamar o pai, que está no Chile? Demorará mais de vinte horas a cá chegar - perguntei.
- Sim.
A notícia tinha-se propagado e começavam a chegar parentes de Ernesto, amigos e freiras do teu colégio; alguém avisou pelo telefone a família, espalhada pelo Chile, Venezuela e Estados Unidos. Dali a pouco apareceu o teu marido, sereno e ameno, mais preocupado com os sentimentos alheios do que com os seus próprios, parecia muito cansado. Permitiram-lhe ver-te durante uns minutos e ao sair informou-nos de que estavas ligada a um respirador e recebias uma transfusão de sangue. Não está tão mal como dizem, sinto o coração da Paula a bater com força junto ao meu, disse ele, frase que nesse momento me pareceu sem sentido mas que agora, conhecendo-o mais, consigo perceber melhor. Passámos ambos esse dia e a noite seguinte sentados na sala de espera, por instantes eu adormecia extenuada e quando abria os olhos via-o imóvel, sempre na mesma posição , aguardando.
- Estou aterrada, Ernesto - admiti, ao alvorecer.
- Nada podemos fazer. A Paula está nas mãos de Deus.
- Para ti deve ser mais fácil aceitá-lo porque, pelo menos, contas com a tua religião.
- Dói-me tanto como a ti, mas tenho menos medo da morte e mais esperança na vida - retrucou, abraçando-me. Afundei a cara no seu casaco, aspirando o seu odor de homem jovem, sacudida por um atávico assombro.
Horas depois chegaram do Chile a minha mãe e Michael, e também Willie, da Califórnia. O teu pai vinha muito pálido, entrou no avião em Santiago convencido de que te encontraria morta, a viagem deve-lhe ter parecido uma eternidade. Desconsolada, abracei a minha mãe e verifiquei que apesar de ter reduzido de tamanho com a idade, continua a ser uma enorme presença protectora. A seu lado Willie parece um gigante, mas quando procurei um peito para apoiar a cabeça, o dela pareceu-me mais amplo e seguro do que o do meu marido. Entrámos na sala de Cuidados Intensivos e conseguimos ver-te consciente e com melhor aspecto do que no dia anterior, os médicos começavam a dar-te novamente sódio, que tu perdias em caudais, e o sangue fresco reanimara-te; no entanto a ilusão durou apenas umas horas, pouco depois tiveste uma crise de ansiedade e administraram-te uma dose maciça de calmantes que te fez cair num coma profundo do qual até agora não acordaste.
- Pobrezinha da sua menina, não merece tal sorte. Porque não morro eu, que já sou velho, em vez dela? - diz-me às vezes Don Manuel, o doente da cama ao lado, com a sua arrastada voz de agonizante.
É muito difícil escrever estas páginas, Paula, percorrer de novo as etapas desta dolorosa viagem, dar precisão aos pormenores, imaginar como teria sido se tivesses parado em melhores mãos, se não te tivessem aturdido com drogas, se... Como hei-de sacudir a culpa? Quando falaste de porfiria pensei que exageravas e em vez de procurar mais ajudas confiei nesta gente vestida de branco, entreguei-lhes sem reservas a minha filha. É impossível retroceder no tempo, não devo olhar para trás, porém não posso deixar de o fazer, é uma obsessão. Para mim apenas existe a certeza irremissível deste hospital madrileno, o resto da minha existência esfumou-se numa densa névoa.
Willie, que passados poucos dias teve de regressar ao seu trabalho na Califórnia, telefona-me todas as manhãs e todas as noites para me dar forças, lembrar-me que nos amamos e temos uma vida feliz do outro lado do mar. A sua voz chega-me de muito longe e parece-me sonhar com ele, que na realidade não existe uma casa de madeira suspensa sobre a baía de São Francisco, nem esse ardente amante agora convertido num marido distante. Também me parece que sonhei com o meu filho Nicolás, com a minha nora Célia, com o pequeno Alejandro com as suas pestanas de girafa. Carmen Balcells, a minha agente, vem de vez em quando transmitir-me condolências dos meus editores ou notícias sobre os meus livros e não sei de que me fala, só tu existes, filha, e este espaço sem tempo onde nos instalamos ambas.
Nas longas horas de silêncio atropelam-se-me as recordações, tudo me aconteceu no mesmo instante, como se toda a minha vida fosse uma única imagem ininteligível. A criança e a jovem que fui, a mulher que sou, a anciã que serei, todas as etapas são água do mesmo impetuoso manancial. A minha memória é como um mural mexicano onde tudo acontece simultaneamente: as naus dos conquistadores num canto, enquanto a Inquisição tortura índios noutro, os libertadores galopando com bandeiras ensanguentadas e a Serpente Emplumada diante de um Cristo sofredor entre as chaminés fumegantes da era industrial. Assim é a minha vida, um fresco múltiplo e variável que só eu consigo decifrar e que me pertence como um segredo. A mente selecciona, exagera, atraiçoa, os acontecimentos esfumam-se, as pessoas esquecem-se e, no fim, resta apenas o trajecto da alma, esses escassos momentos de revelação do espírito. Não interessa o que me aconteceu, mas sim as cicatrizes que me marcam e distinguem. O meu passado tem pouco sentido, não vejo ordem, claridade, propósitos nem caminhos, somente uma viagem às cegas, guiada pelo instinto e por acontecimentos incontroláveis que fizeram desviar o curso da minha sorte. Não houve cálculo, apenas boas intenções e a vaga suspeita de que existe um projecto superior que comanda os meus passos. Até agora não compartilhei o meu passado, é o meu último jardim, lá onde nem o amante mais intruso conseguiu chegar. Toma-o, Paula, talvez te sirva de algo, porque creio que o teu já não existe, perdeu-se de ti neste longo sono, e não se pode viver sem recordações.
A minha mãe regressou a casa dos seus pais em Santiago; um matrimónio falhado era na época considerado como a pior sorte de uma mulher, mas ela ainda não o sabia e andava de cabeça erguida. Ramón, o cônsul seduzido, conduziu-a ao barco com os filhos, a temível Margara, a cadela, os baús e os caixotes com as bandejas de prata. Ao despedir-se reteve-lhe as mãos e repetiu a promessa de cuidar dela para sempre, mas ela, distraída com a azáfama de se instalar no reduzido espaço do camarote, brindou-lhe apenas um vago sorriso. Estava habituada a ouvir galanteios e não tinha motivos para suspeitar que aquele funcionário de tão precário aspecto iria desempenhar um papel fundamental no seu futuro, não esquecendo também que aquele homem tinha mulher e quatro filhos, além de se sentir preocupada com assuntos mais urgentes: o recém-nascido respirava as golfadas como peixe em terra seca, as outras duas crianças choravam assustadas e Margara afundara-se num dos seus sombrios silêncios reprovadores. Quando ouviu o ruído dos motores e a sirene rouca a anunciar a saída do vapor, teve a primeira sensação do furacão que a derrubara. Podia contar com a hospedagem na casa paterna, mas já não era uma jovem solteira e devia cuidar dos filhos como se estivesse viúva. Começava a interrogar-se como se arranjaria, quando o baloiçar das ondas lhe trouxe à memória aqueles camarões da sua lua-de-mel, e então sorriu aliviada porque pelo menos estava longe do seu estranho marido. Acabava de fazer vinte e quatro anos e não imaginava como iria ganhar o sustento, mas não era em que pelas veias lhe corria o sangue aventureiro daquele remoto antepassados o marinheiro basco.
Foi assim que me sucedeu crescer em casa dos meus avós. Bom, é uma maneira de falar, a verdade é que não cresci muito, com um esforço desesperado atingi o metro e meio, estatura que mantive até há um mês quando reparei que o espelho da casa de banho tinha subido. Disparates, não estás a encolher, o que acontece é que perdeste peso e andas sem saltos, garante a minha mãe, embora eu note que de viés me observa preocupada. Ao dizer que cresci com esforço não estou a falar por metáfora, fizeram todo o possível para me esticar, excepto tomar hormonas porque nessa altura ainda estavam na fase experimental e Banjamin Viel, médico de família e eterno apaixonado platónico da minha mãe, teve receio de que me nascesse bigode. Não teria sido muito grave, pois o bigode barbeia-se. Durante anos frequentei um ginásio no qual, por meio de um sistema de cordas e polés me suspendiam do tecto para que a força da gravidade alongasse o meu esqueleto. Nos meus pesadelos vejo-me atada pelos calcanhares, de cabeça para baixo, mas a minha mãe garante que isso é completamente falso, que nunca sofri tratamento tão cruel, penduravam-me pelo pescoço com um aparelho moderno que impedia a morte instantânea por enforcamento. Aquele recurso extremo revelou-se inútil, só me esticou o pescoço. A minha primeira escola foi uma de freiras alemãs, mas não parei lá muito tempo, aos seis anos expulsaram-me por ser perversa: organizei um concurso para mostrar as calcinhas, embora talvez a verdadeira razão fosse a minha mãe escandalizar a pudibunda sociedade santiaguense com a falta do marido. Dali fui parar a um colégio inglês mais compreensivo, onde essas exibições não acarretavam consequências de maior, desde que feitas discretamente. Tenho a certeza de que a minha infância teria sido diferente se a Vovó tivesse vivido mais tempo. A minha avó estava a educar-me para ser uma Iluminada, as primeiras palavras que me ensinou foram em esperanto, um mecanismo impronunciável que ela considerava o idioma universal do futuro, e ainda andava eu de fraldas quando já me sentava à mesa dos espíritos, mas essas esplêndidas possibilidades terminaram quando ela se foi. O casarão familiar, encantador quando ela o presidia, com as suas tertúlias de intelectuais, com boémios e lunáticos, converteu-se depois da sua morte num espaço triste atravessado por correntes de ar. O cheiro desse tempo perdura na minha memória: braseiros de parafina no Inverno e açúcar queimado no Verão, quando acendiam uma fogueira no pátio para fazer doce de amoras num enorme panelão de cobre. Com a morte da minha avó esvaziaram-se as gaiolas dos pássaros, calaram-se as sonatas no piano, secaram as plantas e as flores nos jarrões, os gatos fugiram para os telhados, onde se converteram em feras bravas, e pouco a pouco pereceram os restantes animais domésticos, os coelhos e galinhas acabaram guisados pela cozinheira, e a cabra saiu um dia para a rua e morreu esborrachada pela carroça do leiteiro. Ficou apenas a cadela Pelvina-López-Pun a dormitar junto à cortina que dividia o salão da sala de, jantar. Eu deambulava a chamar pela avó por entre pesados móveis espanhóis, estátuas de mármore, quadros bucólicos e pilhas de livros, que se acumulavam pelos cantos e se reproduziam de noite como uma fauna incontrolável de papel impresso. Existia uma fronteira tácita entre a parte ocupada pela família e a cozinha, os pátios e os quartos das empregadas, onde decorria a maior parte da minha existência. Aquilo era um submundo de quartos mal ventilados, escuros, com um catre, uma cadeira e uma cómoda desengonçada como única mobília, decorados com um calendário e estampas de santos. Era aquele o único refúgio daquelas mulheres que trabalhavam de sol a sol, as primeiras a levantar-se ao alvorecer e as últimas a deitar-se depois de servir o jantar à família e limpar a cozinha. Saíam um domingo em cada duas semanas, não me lembro se tinham férias ou sequer família, envelheciam a servir e morriam lá em casa. Uma vez por mês aparecia um homenzarrão meio tonto para encerar os soalhos. Colocava umas pequenas garlopas de aço amarradas aos pés e dançava um samba patético a raspar o parqué, depois aplicava de gatas a cera com um trapo e, finalmente, puxava o brilho à mão com uma pesada esfregona. Todas as semanas vinha também a lavadeira, uma mulherzinha minúscula, só ossos, sempre com dois ou três garotos agarrados à saia, e levava uma montanha de roupa suja equilibrada na cabeça. Entregavam-lha bem contada, para que nada faltasse quando a trazia de volta, lavada e passada a ferro. De cada vez que me calhava presenciar o humilhante processo de contar camisas, guardanapos e lençóis, ia depois esconder-me entre as pregas de felpa do salão para me abraçar à avó. Não sabia porque chorava; agora sei: chorava de vergonha. Na cortina reinava o espírito da Vovó e suponho que por isso a cadela não se mexia daquele sítio. As criadas, pelo contrário, acreditavam que ele rondava pela cave, de onde provinham ruídos e luzes ténues, portanto evitavam passar por lá. Eu conhecia bem a causa daqueles fenómenos, mas não tinha o menor interesse em revelá-la. Nos cortinados teatrais do salão procurava o rosto translúcido da minha avó; escrevia mensagens em pedaços de papel, dobrava-os cuidadosamente e prendia-os com um alfinete ao grosso tecido, para que ela os encontrasse e soubesse que eu não a esquecera.
A Vovó despediu-se da vida com simplicidade, ninguém deu pelos seus preparativos de viagem para o Além até à última hora, quando já era tarde de mais para intervir. Consciente de que se requer uma grande leveza para nos desprendermos do solo, deitou tudo borda fora, desfez-se dos seus bens terrenos e eliminou sentimentos e desejos supérfluos, ficando apenas com o essencial, escreveu algumas cartas e por último estendeu-se na cama para não mais se levantar. Agonizou durante uma semana assistida pelo marido, que utilizou toda a farmacopeia ao seu alcance para lhe poupar sofrimento, enquanto a vida lhe fugia e um tambor surdo ressoava no seu peito. Não houve tempo para avisar ninguém, no entanto as suas amigas da Irmandade Branca souberam do caso telepaticamente e apareceram no último instante para lhe entregar mensagens destinadas às almas benfazejas que durante anos tinham comparecido às sessões das quintas-feiras à volta da mesa de pé-de-galo. Esta mulher prodigiosa não deixou rasto material da sua passagem por este mundo, excepto um espelho de prata, um livro de orações com capas de nácar e um punhado de flores de laranjeira, restos do seu toucado de noiva. Também não me deixou muitas recordações, e mesmo essas devem estar deformadas pela minha visão infantil desse tempo e pela passagem dos anos, mas não importa, visto que a sua presença me acompanhou sempre. Quando a asma ou a angústia lhe cortavam o alento, abraçava-me para se aliviar com o meu calor, é essa a imagem mais precisa que conservo dela: a sua pele de papel de arroz, os seus dedos suaves, o ar a assobiar-lhe na garganta, o abraço apertado, o cheiro a água-de-colónia e por vezes um vapor do óleo de amêndoa que punha nas mãos. Ouvi falar dela, conservo numa caixa de lata as únicas relíquias dela que perduraram, e o resto inventei-o porque todos precisamos de uma avó. Ela não só cumpriu esse papel na perfeição, apesar do inconveniente da sua morte, mas inspirou a personagem que mais amo de todas as que surgem nos meus livros: Clara, claríssima, clarividente, na Casa dos Espíritos.
O meu avô não se resignou com a perda da mulher. Penso que viviam em mundos irreconciliáveis e se amaram em encontros fugazes com uma ternura dolorosa e uma paixão secreta. O Vovô tinha a vitalidade de um homem prático, saudável, desportista e empreendedor, ela era estrangeira nesta terra, uma presença etérea e inalcançável. O marido teve de conformar-se em viver sob o mesmo tecto, mas numa dimensão diferente, que nunca possuiu. Só nalgumas ocasiões solenes, como ao nascerem os filhos que ele recebeu nas suas mãos, ou quando a amparou nos braços na hora da morte, teve a sensação de que ela realmente existia. Tentou mil vezes apreender aquele espírito vaporoso que lhe passava diante dos olhos como um cometa, deixando um rasto perdurável de poeira astral, mas ficava sempre com a impressão de que ela lhe escapava. Para o fim da vida, quando pouco lhe faltava para cumprir um século de existência e do enérgico patriarca só restava uma sombra devorada pela solidão e pela implacável corrosão dos anos, abandonou a ideia de ser seu dono absoluto, como pretendera na juventude, e só então pôde abraçá-la em termos de igualdade. A sombra da Vovó adquiriu contornos definidos e converteu-se num ser tangível que o acompanhava na minuciosa reconstrução das recordações e dos achaques da velhice. Logo após ter enviuvado sentiu-se traído, acusou-a de o ter abandonado a meio do caminho, vestiu-se de luto carregado como um corvo, pintou de preto a mobília e para não sofrer mais decidiu eliminar outras afeições da sua existência, mas nunca o conseguiu por inteiro, era um homem derrotado pelo seu coração gentil. Ocupava um aposento no primeiro andar da casa, onde a cada hora soavam as badaladas fúnebres de um relógio de charão. A porta mantinha-se fechada e só raramente me atrevi a lá bater, mas de manhã passava para o saudar antes de ir para o colégio e ele às vezes autorizava-me a revistar o quarto à procura de um chocolate que escondera para mim. Nunca lhe ouvi uma queixa, era de uma resistência heróica, mas os olhos embaciavam-se-lhe amiúde e quando se julgava sozinho falava com a memória da mulher. Com os anos e as penas já não conseguia controlar o pranto, secava as lágrimas violentamente com as mãos, furioso com a sua própria debilidade, estou a ficar velho, caramba, grunhia ele. Ao enviuvar aboliu as flores, os doces, a música e todos os motivos de alegria; o silêncio penetrou na casa como na sua alma.
A situação dos meus pais era ambígua, pois no Chile não existe o divórcio, mas não foi difícil convencer Tomás a anular o casamento e assim os meus irmãos e eu ficámos convertidos em filhos de mãe solteira. O meu pai, que pelos vistos não tinha grande interesse em investir em despesas de manutenção, cedeu também a tutela dos filhos e a seguir esfumou-se sem discórdia, enquanto o círculo social em volta de minha mãe se apertava estreitamente para abafar o escândalo. O único bem que exigiu ao assinar a nulidade matrimonial foi a devolução do seu escudo de armas, três cães famélicos em campo azul, que obteve de imediato porque a minha mãe e o resto da família riam-se às gargalhadas dos brasões. Com a partida desse irónico escudo desapareceu qualquer traço de linhagem que pudéssemos reclamar, de uma penada ficámos sem estirpe. A imagem de Tomás diluiu-se no esquecimento. O meu avô não quis ouvir falar do seu ex-genro e tão pouco admitiu queixas na sua presença, por alguma razão avisara a filha para que não casasse. Ela conseguiu um modesto emprego num banco, cujo principal atractivo era a possibilidade de se reformar com o vencimento por inteiro ao cabo de trinta e cinco anos de labor abnegado, e o maior inconveniente era a concupiscência do director que costumava assediá-la pelos cantos. No casarão familiar viviam também dois tios solteiros que se encarregaram de povoar a minha infância de sobressaltos. O meu preferido era o tio Pablo, um homem brusco e solitário, moreno, de olhos apaixonados, dentes alvos, cabelo preto e teso penteado para trás com brilhantina, bastante parecido com Rodolfo Valentino, sempre ataviado com um sobretudo de grandes algibeiras onde escondia os livros que roubava nas bibliotecas públicas e nas casas dos amigos. Roguei-lhe muitas vezes que se casasse com a mamã, mas convenceu-me de que das relações incestuosas nascem irmãos siameses, e eu então mudei de alvo e dirigi a mesma súplica a Benjamin Viel, pelo qual sentia uma incondicional admiração. O tio Pablo foi um grande aliado da irmã, metia-lhe notas de banco na carteira, ajudou-a a sustentar os filhos e defendeu-a contra boatos e outras agressões. Inimigo de sentimentalismos, não permitia que ninguém lhe tocasse nem respirasse perto da sua cara, considerava o telefone e o correio como invasores da sua privacidade, sentava-se à mesa com um livro aberto junto do prato para desanimar qualquer intenção de conversa e tentava atemorizar o próximo com modos de selvagem, mas todos sabíamos que era uma alma compassiva e que em segredo, para que ninguém suspeitasse do seu vício, socorria um verdadeiro exército de necessitados. Era o braço direito do Vovô, o seu melhor amigo e sócio na empresa de criação de ovelhas e exportação de lá para a Escócia. As empregadas da casa adoravam-no e apesar dos seus sombrios silêncios, das suas manhas e graças grosseiras, sobejavam-lhe amigos. Muitos anos mais tarde, este excêntrico atormentado pela comichão da leitura, apaixonou-se por uma prima encantadora que fora criada no campo e entendia a vida em termos de trabalho e religião. Esse ramo da família, gente muito conservadora e formal, teve de suportar estoicamente as bizarrias do pretendente. Certo dia, o meu tio comprou uma cabeça de vaca no mercado, passou dois dias a raspá-la e a limpá-la por dentro, perante o nosso nojo, que nunca tínhamos visto de perto nada tão fétido e monstruoso, e terminada a tarefa apresentou-se num domingo depois da missa em casa da noiva, vestido de etiqueta e com a cabeçorra enfiada como uma máscara. Entre, Don Pablito, cumprimentou-o de imediato e sem se espantar a criada que lhe abriu a porta. No quarto do meu tio havia estantes com livros do chão até ao tecto, e no centro um catre de anacoreta, onde passava grande parte da noite a ler. Convencera-me de que na obscuridade as personagens saem das páginas e percorrem a casa; eu escondia a cabeça debaixo dos lençóis com medo do diabo nos espelhos e daquela turbamulta de personagens que deambulavam pelos quartos revivendo as suas aventuras e paixões: piratas, cortesãs, bandidos, bruxas e donzelas. As oito e meia eu devia apagar a luz e dormir, mas o tio Pablo ofereceu-me uma pilha para ler entre os lençóis; desde então tenho uma inclinação perversa pela leitura secreta.
Tornava-se impossível aborrecermo-nos naquela casa cheia de livros e de parentes estrambólicos, com uma cave proibida, sucessivas ninhadas de gatos recém-nascidos - que Margara afogava num balde de água - e o rádio na cozinha, aceso nas costas do meu avô, no qual troavam canções da moda, notícias de crimes horrendos e radionovelas de despeito. Os meus tios inventaram os jogos bruscos, feroz diversão que consistia basicamente em atormentar as crianças até pô-las a chorar. Os recursos eram sempre novidades, desde colar no tecto a nota de dez pesos que nos davam de mesada, onde a podíamos ver sem lhe tocar, até nos oferecerem bombons a que tinham extraído o recheio de chocolate com uma seringa substituindo-o por molho picante. Atiravam-nos dentro de um caixote do cimo da escada, penduravam-nos de cabeça para baixo sobre a sanita e ameaçavam puxar o autoclismo, enchiam o lavatório com álcool, lançavam-lhe lume e ofereciam-nos uma gorjeta se lá metêssemos a mão, empilhavam pneus velhos do automóvel do meu avô e punham-nos dentro deles, onde gritávamos de susto, na escuridão, semi-asfixiados pelo cheiro a borracha apodrecido. Quando substituíram o velho fogão a gás por um eléctrico, punham-nos em cima das placas, acendiam-nas a temperatura baixa e começavam a contar uma história para ver se o calor nas solas dos sapatos era mais forte do que o nosso interesse por ela, enquanto saltávamos de um pé para o outro. A minha mãe defendia-nos com o ardor de uma leoa, mas nem sempre estava perto para nos proteger; o Vovô, pelo contrário, achava que os jogos bruscos fortaleciam o carácter, eram uma forma de educação. A teoria de que a infância deve ser um período de plácida inocência não existia na altura, foi uma invenção posterior dos norte-americanos, esperava-se pelo contrário que a vida fosse dura e para tal nos temperavam os nervos. Os métodos didácticos baseavam-se na resistência: quanto mais provas desumanas uma criança vencia, mais bem preparada estava para o alvorecer da idade adulta. Admito que no meu caso deu bom resultado e se eu fosse consequente com tal tradição teria martirizado os meus filhos e agora estaria a fazê-lo com o meu neto, mas eu tenho o coração brando.
Alguns domingos de Verão íamos com a família a San Cristóbal, uma colina no meio da capital que nesse tempo era selvagem e agora é um parque. As vezes acompanhavam-nos Salvador e Tencha Allende, com as suas três filhas e os seus cães. Allende já era um político de nomeada, o deputado mais combativo da esquerda e o alvo do ódio da direita, mas para nós era só mais outro tio. Subíamos penosamente por atalhos mal traçados, por entre silvados e pastos, levando cestas com comida e xailes de lã. Lá em cima procurávamos um lugar livre, com vista para a cidade entendida aos nossos pés, tal como passados vinte anos eu faria durante o Golpe Militar por motivos muito diferentes, e dávamos conta da merenda, defendendo os pedaços de frango, os ovos cozidos e as empadas contra os cães e a invencível avançada das formigas. Os adultos descansavam, enquanto o grupo de primos se andava a esconder entre os arbustos para brincar aos médicos. As vezes ouvia-se o rugido rouco e distante de um leão, que vinha do outro lado da colina, onde ficava o jardim zoológico. Uma vez por semana alimentavam as feras com animais vivos para que a excitação da caça e a descarga de adrenalina os mantivesse sãos; os grandes felinos devoravam um burro velho, as jibóias engoliam ratos, as hienas deglutiam coelhos; diziam que lá iam parar os cães e gatos das ruas recolhidos pelas carroças e que havia sempre listas de espera com pessoas ávidas de um convite para assistir ao pavoroso espectáculo. Eu sonhava com aqueles pobres animais apanhados nas jaulas pelos grandes carnívoros e retorcia-me de angústia pensando nos primeiros cristãos no Coliseu romano, porque no fundo da minha alma estava certa de que se me dessem a escolher entre renunciar à fé ou converter-me no almoço de um tigre de Bengala, não hesitaria em escolher a primeira hipótese. Depois de comer descíamos em corrida, aos empurrões, rolando pela parte mais abrupta da colina; Salvador Allende à frente com os cães, sua filha Carmen Paz e eu sempre as últimas. Chegávamos lá abaixo com os joelhos e as mãos cobertos de arranhões e pelados, quando os outros já se tinham cansado de esperar por nós. Aparte esses domingos e as férias de Verão, a existência era de sacrifício e esforço. Esses anos foram muito difíceis para a minha mãe, tinha de enfrentar penúrias, boatos e desaires da parte dos que antes eram seus amigos, o seu ordenado no banco mal dava para os alfinetes, e arredondava o fim do mês a coser chapéus. Parece-me vê-la sentada à mesa da casa de jantar - a mesma mesa de roble espanhol que hoje me serve de secretária na Califórnia – a provar veludos, fitas e flores de seda. Mandava-os de barco, em caixas redondas, para Lima, onde iam parar às mãos das mais presunçosas damas da sociedade. Mesmo assim não conseguia subsistir sem a ajuda do Vovô e do tio Pablo. No colégio concederam-me uma bolsa condicionada às minhas notas, não sei como ela a conseguiu, mas imagino que lhe deve ter custado algumas humilhações. Passava horas em filas de hospitais com o meu irmão mais novo, Juan, o qual à força da colher de pau aprendeu a engolir comida, mas sofria dos piores transtornos intestinais e converteu-se num caso de estudo para os médicos até que a Margara descobriu que devorava pasta dentífrica, e lhe curou o vício a tareias de cinto. Converteu-se numa mulher carregada de responsabilidades, sofria de insuportáveis dores de cabeça que a punham de cama dois ou três dias e a deixavam sem pinta de sangue. Trabalhava muito e tinha pouco controlo sobre a sua própria vida e os filhos. Margara, que com os anos foi endurecendo até se tornar uma verdadeira tirana, tentava por todos os meios afastá-la de nós; quando à tarde voltava do banco já estávamos banhados, comidos e deitados. Não me espante as crianças, grunhia a Margara. Não incomodem a mama, que está com a enxaqueca, ordenava-nos. Minha mãe aferrava-se aos filhos com a força da solidão, tentando compensar as suas horas de ausência e a sordidez da existência com distracções poéticas. Dormíamos os três com ela no mesmo quarto e à noite, únicas horas em que estávamos juntos, contava-nos anedotas dos antepassados e contos fantásticos salpicados de humor negro, falava-nos de um mundo imaginário onde éramos todos felizes e não mandavam as maldades humanas nem as leis impiedosas da natureza. Essas conversas a meia voz, todos no mesmo quarto, cada um na sua cama, embora tão perto que nos podíamos tocar, foram o melhor dessa época. Ali nasceu a minha paixão pelos contos, a essa memória recorro quando me sento a escrever.
Pancho, o mais resistente de nós três aos temíveis jogos bruscos, era um garoto louro, forte e calmo, que às vezes perdia a paciência e se convertia numa fera capaz de arrancar tudo à dentada. Adorado por Margara, que lhe chamava o rei, sentiu-se perdido quando aquela mulher saiu de casa. Na adolescência partiu, atraído por uma estranha seita, para viver em comunidade em pleno deserto do Norte. Tivemos rumores de que voavam para outros mundos comendo cogumelos alucinogéneos, entregavam-se a orgias inconfessáveis e davam lavagens ao cérebro dos jovens para os converter em escravos dos dirigentes; nunca soube a verdade, os que passaram por essa experiência não falam do assunto, mas ficaram marcados. O meu irmão renunciou à família, desprendeu-se dos laços afectivos e meteu-se numa couraça que, no entanto, não o protegeu de penúrias e incertezas. Mais tarde casou, divorciou-se, voltou a casar e divorciou-se outra vez, das mesmas mulheres, teve filhos, viveu quase sempre fora do Chile e duvido que regresse. Pouco posso dizer sobre ele, porque não o conheço; é para mim um mistério, tal como o meu pai. Juan nasceu com o raro dom da simpatia; ainda agora, que é um solene professor na madurez do seu destino, faz-se amar sem se oferecer. De menino parecia um querubim com covinhas nas faces e um ar de desamparo capaz de comover os corações mais brutais; prudente, astuto e baixinho, as suas múltiplas maleitas atrasaram-lhe o crescimento e condenaram-no a uma saúde frágil. Consideramo-lo o intelectual da família, um verdadeiro sábio. Aos cinco anos recitava longos poemas e conseguia calcular num instante quanto lhe deviam dar de troco se comprava com um peso três caramelos de oito centavos. Fez dois mostrados e obteve o doutoramento em universidades dos Estados Unidos e na actualidade estuda para obter um diploma de teólogo. Era professor de Ciências Políticas, agnóstico e marxista, mas por via de uma crise espiritual, decidiu procurar em Deus resposta para os problemas da Humanidade, abandonou a profissão e empreendeu estudos divinos. É casado, por conseguinte não pode vir a ser sacerdote católico, como seria natural por tradição, e optou por tornar-se metodista perante o espanto inicial de minha mãe, que pouco sabia dessa Igreja e imaginou o génio da família a cantar hinos ao som de uma viola nalguma praça pública. Estas conversões súbitas não são raras na minha tribo materna, tenho muitos parentes místicos. Não imagino o meu irmão a pregar num púlpito pois ninguém entenderia os seus doutos sermões, muito menos em inglês, mas será um notável professor de Teologia. Quando soube que tu estavas doente deixou tudo, tomou o primeiro avião e chegou a Madrid para me dar apoio. Devemos ter esperança em que a Paula se há-de curar, repete-me ele até à exaustão.
Ficarás curada, filha? Vejo-te nessa cama, ligada a meia-dúzia de tubos e sondas, incapaz sequer de respirar sem ajuda. Mal te reconheço, o teu corpo modificou-se e o teu cérebro está na sombra. Que passa pela tua mente? Fala-me da tua solidão e do teu medo, das visões distorcidas, da dor nos teus ossos que pesam como pedras, dessas silhuetas ameaçadoras que se inclinam sobre a tua cama, vozes, murmúrios, luzes, nada deve fazer sentido para ti; sei que ouves pois sobressaltas-te com o som de um instrumento metálico, mas não sei se entendes. Queres viver, Paula? Passaste a vida a tentar unir-te a Deus. Queres morrer? Talvez já tenhas começado a morrer. Que sentido têm agora os teus dias? Regressaste ao lugar do meu ventre, como o peixe que eras antes de nascer. Conto os dias e já são demasiados. Acorda, filha, por favor acorda...
Ponho uma mão sobre o coração, fecho os olhos e concentro-me. Cá dentro há uma coisa escura. Ao princípio é como o ar da noite, trevas transparentes, mas depressa se transforma em chumbo impenetrável. Tento acalmar-me e aceitar esse negrume que me invade por dentro, enquanto me assaltam imagens do passado. Vejo-me diante de um grande espelho, dou um passo atrás, outro mais e a cada passo apagam-se décadas e diminuo de tamanho até o espelho reflectir a figura de uma menina de uns sete anos, eu mesma.
Choveu durante vários dias, venho a saltar pelos charcos, envolta num casacão grande de mais, com uma pasta de cabedal às costas, um chapéu de feltro metido até às orelhas e os sapatos encharcados. O portão de madeira, inchado pela água, está trancado, preciso de todo o peso do corpo para o deslocar. No jardim da casa do avô existe um álamo gigante com as raízes ao ar, macilento sentinela a vigiar a propriedade que parece abandonada, as persianas soltas das empenas, as paredes descascados. Lá fora começa a escurecer, mas dentro de casa já é noite profunda, todas as luzes estão apagadas, menos a da cozinha. Para lá me dirijo, passando pela garagem, é uma divisão grande, com as paredes manchadas de gordura, onde panelas e grandes colheres enegrecidas estão penduradas em ganchos. Duas lâmpadas salpicados pelas moscas iluminam a cena; algo ferve numa panela e a chaleira assobia, a cozinha cheira a cebola e um enorme frigorífico ronrona sem cessar. Margara, uma mulherona de marcados traços indígenas, com uma trança magra enrolada na cabeça, ouve a radionovela. Os meus irmãos estão sentados à mesa com as suas chávenas de cacau quente e os seus pãezinhos com manteiga. A mulher não ergue o olhar. Vai ver a tua mãe, está outra vez na cama, resmunga ela. Tiro o chapéu e o casacão. Não deixes as coisas pelos cantos, não sou tua criada, não tenho de as apanhar, ordena-me, aumentando o volume do rádio. Saio da cozinha e afronto a escuridão do resto da casa, tacteio à procura do interruptor e acendo uma pálida luz que ilumina apenas um amplo vestíbulo para o qual dão várias portas. Um móvel com patas de leão sustenta o busto de mármore de uma jovem pensativa; há um espelho com um grosso caixilho de madeira, mas não olho para ele porque pode aparecer o Diabo reflectido no vidro. Subo a escada a tremelicar, enfiam-se correntes de ar por um buraco inexplicável naquela estranha arquitectura, chego ao segundo piso aferrada ao corrimão, a subida parece-me interminável, apercebo-me do silêncio e das sombras, aproximo-me da porta fechada do fundo e entro devagarinho, sem bater, na ponta dos pés. A única claridade vem de uma braseira, os tectos estão cobertos do pó fino de pesar da parafina queimada, acumulada pelos anos. Há duas camas, um catre, um divã, cadeiras e mesas, mal se consegue circular entre tantos móveis. A minha mãe, com a cadela Pelvina-López-Pun a dormir nos seus pés, jaz sob um monte de cobertores, descortina-se metade da cara sobre a almofada: sobrancelhas bem delineados enquadram-lhe os olhos fechados, o nariz direito, os pomos altos, a pele muito pálida.
- És tu? - e tira dos lençóis uma mão pequena e fria à procura da minha.
- Dói-te muito, mamã?
- Estoira-me a cabeça.
- Vou-te buscar um copo de leite quente e dizer aos manos para não fazerem barulho.
- Não te vás embora, põe a tua mão na minha testa, isso alivia-me.
Sento-me na cama e faço o que me pede, tremente de compaixão, sem saber como libertá-la daquela maldita dor, Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, ámen. Se ela morrer, os meus irmãos e eu estamos perdidos, mandam-nos para o meu pai, essa ideia aterrorizava-me. Margara diz-me muitas vezes que se não me porto bem tenho de ir viver com ele. Será verdade? Preciso de averiguá-lo, mas não me atrevo a perguntar à minha mãe, a enxaqueca piorava, não devo causar-lhe mais preocupações porque a dor pode crescer até lhe estoirar a cabeça, também não posso falar disso com o Vovô, não se deve pronunciar o nome do meu pai na sua presença, papá é uma palavra proibida, quem a pronunciar solta todos os demónios. Estou com fome, quero ir à cozinha beber o meu cacau, mas não devo deixar a minha mãe e também não sinto coragem de enfrentar a Margara. Tenho os sapatos molhados e os pés gelados. Afago a testa da doente e concentro-me, agora tudo depende de mim, se não me mexer e rezar sem me distrair posso vencer a dor.
Tenho quarenta e nove anos, ponho a minha mão sobre o coração e com a voz de criança digo: não quero ser como a minha mãe, serei como o avô, forte, independente, saudável e poderosa, não aceitarei que ninguém mande em mim nem deverei nada a ninguém; quero ser como o avô e proteger a minha mãe.
Penso que o Vovô lamentou muitas vezes que eu não fosse homem, porque nesse caso tinha-me ensinado a jogar à pelota basca, a usar as suas ferramentas e a caçar, ter-me-ia convertido no seu companheiro naquelas viagens que fazia todos os anos à Patagónia durante a tosquia das ovelhas. Naquele tempo ia-se para o Sul de comboio ou de automóvel através de estradas retorcidos e cheias de terra que costumavam converter-se em charcos de lama, onde as rodas ficavam afundadas e era necessária uma parelha de bois para rebocar o carro. Atravessavam-se lagos em barcaças puxadas à corda e a cordilheira a lombo de mulas; eram expedições esforçadas. O meu avô dormia sob as estrelas abafado numa pesada manta de Castela, banhava-se em águas furiosas de rios alimentados pela neve derretida nos cumes das montanhas e comiam-se grãos-de-bico e sardinhas de conserva, até chegar ao lado argentino, onde o aguardava uma quadrilha de homens toscos com uma camioneta e um borrego a assar em lume brando. Instalavam-se à volta da fogueira em silêncio, não eram pessoas comunicativas, viviam numa natureza imensa e desamparada, naquelas paragens o vento arrasta as palavras sem deixar rasto. Com as suas facas de gaúchos partiam grandes nacos de carne e devoravam-nos com o olhar fixo nas brasas, sem se olharem. Por vezes um deles tocava canções tristes numa viola enquanto circulava de mão em mão o mate pisado, essa aromática infusão de erva verde e amarga que por essas bandas se bebe como chá. Conservo imagens indeléveis da única viagem ao Sul que fiz com o meu avô, apesar de que enjoo no automóvel quase deu cabo de mim, a mula atirou-me ao chão pelo menos duas vezes e depois, ao ver a forma como tosquiavam as ovelhas, fiquei sem fala e não voltei a dizer palavra até regressarmos à civilização. Os tosquiadores, que ganhavam um tanto por animal rapado, eram capazes de despachar uma ovelha em menos de um minuto, mas apesar da sua perícia costumavam arrebanhar lascas de pele e calhou-me ver mais de um infeliz anho rasgado de cima a baixo, ao qual metiam as tripas de qualquer maneira dentro do bucho, cosiam-no com uma agulha de calchoeiro e soltavam-no com o resto do rebanho para, no caso de sobreviver, continuar a produzir lã.
Dessa viagem perdurou o amor pelas alturas e a minha relação com as árvores, Voltei várias vezes ao Sul do Chile, e sempre sinto de novo a mesma indescritível emoção perante a paisagem, a passagem da cordilheira dos Andes está-me gravada na alma como um dos momentos de revelação da minha existência. Agora e noutras ocasiões desesperadas, quando tento recordar orações e não encontro palavras nem ritos, a única visão que me consola e à qual posso recorrer são aqueles atalhos diáfanos por entre a selva fria, entre fetos gigantescos e troncos elevando-se até ao céu, as abruptas passagens das montanhas e o perfil afiado dos vulcões nevados a reflectir-se na água esmeraldina dos lagos. Estar em Deus deve ser como estar nesta extraordinária natureza. Da minha memória desapareceram o avô, o guia, as mulas, vou caminhando sozinha no silêncio solene daquele templo de rochas e vegetação. Inspiro o ar limpo, gelado e húmido de chuva, afundam-se-me os pés num tapete de barro e folhas apodrecidas, o cheiro da terra penetra-me como uma espada, até aos ossos. Sinto que caminho, e caminho sempre a passo ligeiro por desfiladeiros de névoa, mas estou sempre parada nesse ignoto lugar, rodeada de árvores centenárias, troncos caídos, pedaços de cascas aromáticas e raízes que surgem da terra como mãos vegetais mutiladas. Roçam-me a cara sólidas teias de aranha, verdadeiras toalhas de renda, que atravessam o caminho perladas de gotas de orvalho e de mosquitos de asas fosforescentes. Aqui e além surgem esplendores vermelhos e brancos de copibues e de outras flores que vivem nas alturas enrascadas nas árvores como cristais luminosos. Sente-se a respiração dos deuses, presenças palpitantes e absolutas nesse ambiente glorioso de precipícios e altas paredes de rocha negra polidas pela neve com a sensual perfeição do mármore. Agua e mais água. Desliza como delgadas e cristalinas serpentes pelas brechas das pedras e as recônditas entranhas dos montes reunindo-se em pequenos regatos, em rumorosas cascatas. De súbito, sobressalta-me o grito de um pássaro perto ou o som de uma pedra a rolar lá do alto, mas logo volta a paz total daquelas vastidões e dou por mim a chorar de felicidade. Aquela viagem cheia de obstáculos, de perigos ocultos, de solidão desejada e de indescritível beleza é como a viagem da minha própria vida. Para mim esta memória é sagrada, esta memória é também a minha pátria, quando digo Chile é a isso que me refiro. Ao longo da minha vida procurei várias vezes a emoção que me produz o bosque, mais intensa que o mais perfeito orgasmo ou o maior aplauso.
Todos os anos, quando começava a temporada da luta-livre, o meu avô levava-me ao Teatro Caupolican. Punham-me um vestido domingueiro, com sapatos de verniz pretos e luvas brancas que contrastavam com o rude aspecto do público. Assim ataviada e bem agarrada pela mão daquele velho rezingão, abria caminho por entre o rugido da multidão de espectadores. Sentávamo-nos sempre na primeira fila para ver o sangue, como dizia o Vovô, animado por uma feroz antecipação. Uma vez aterrou em cima de nós um dos gladiadores, uma selvagem mole de carne suada que nos esmagou como baratas. O meu avô preparara-se tanto para aquele momento que, quando finalmente aconteceu, não conseguiu reagir e em vez de o desancar à bengalada, como sempre avisara que o faria, cumprimentou-o com um cordial aperto de mão, ao qual o homem igualmente desconcertado correspondeu com um tímido sorriso. Foi uma das grandes desilusões da minha infância, o Vovô desceu do Olimpo bárbaro onde até então ocupara o único trono e reduziu-se à sua dimensão humana; julgo que foi nesse momento que começaram as minhas rebeldias. O favorito era O Anjo, um possante varão de grande cabeleira loura, envolto numa capa azul com estrelas prateadas, de botas brancas e uns pequenos calções ridículos que mal cobriam as suas partes vergonhosas. Todos os sábados aportava a sua magnífica cabeleira loura contra o temível Kuramoto, um índio mapuche disfarçado de japonês, envergando quimono e sapatos de madeira. Enlaçavam-se num combate aparatoso, mordiam-se, torciam os respectivos pescoços, pontapeavam os genitais e metiam os dedos nos olhos, enquanto o meu avô, com a boina numa mão e brandindo a bengala com a outra, vociferava: mata-o! mata-o! indiscriminadamente, porque não interessava quem assassinasse quem. Em duas de cada três lutas o Kuramoto vencia O Anjo, e então o árbitro exibia uma flamejante tesoura e perante o respeitoso silêncio do público, o falso guerreiro japonês procedia ao corte dos caracóis do seu rival. O prodígio que na semana seguinte O Anjo voltasse a luzir a sua cabeleira até aos ombros, constituía prova irrefutável da sua condição divina. Mas o melhor do espectáculo era A Múmia, que durante anos preencheu de terror as minhas noites. As luzes do teatro baixavam, ouvia-se uma marcha fúnebre num disco riscado e apareciam dois egípcios a caminhar de perfil com archotes acesos, seguidos de mais quatro que transportavam num andor um sarcófago pintalgado. A procissão depunha o caixão no ringue e afastava-se uns quantos passos a cantar numa língua morta. Com o coração gelado, víamos erguer-se a tampa do ataúde e emergir um humanóide envolto em ligaduras, embora em perfeito estado de saúde, a julgar pelos seus bramidos e socos no peito. Não tinha a agilidade dos outros lutadores, limitando-se a distribuir formidáveis pontapés e marteladas mortíferas com os braços tesos, lançando os seus opositores às cordas e atropelando o árbitro. Uma vez assentou uma das suas punhadas na cabeça de Tarzan e, finalmente, o meu avô pôde mostrar lá em casa algumas manchas vermelhas na camisa. Isto não é sangue nem coisa parecida, é massa de tomate, rosnou a Margara enquanto punha a camisa a remolhar em lixívia. Aquelas personagens deixaram uma marca subtil na minha memória e quarenta anos passados tentei ressuscitá-las num conto, mas o único que me infundiu um impacte imperecível foi O Viúvo. Era um pobre homem na casa dos quarenta da sua infeliz existência, a antítese de um herói, que subia ao ringue vestido com um fato de banho antigo, daqueles que usavam os homens no princípio do século, de tecido preto até aos joelhos, com uma camisola e suspensórios. Além disso trazia um gorro de natação que dava ao seu aspecto um toque de irremediável patético. Era recebido por uma tempestade de assobios, insultos, ameaças e projécteis, mas com toques de sineta e apitos o árbitro conseguia finalmente acalmar as feras. O Viúvo erguia uma voz aflautada de notário para explicar que aquele era o seu derradeiro combate, porque estava doente das costas e se sentia muito deprimido desde o falecimento da sua santa esposa, que em paz descansasse. A boa senhora subira ao céu deixando-o sozinho com o encargo de dois filhinhos. Quando o gozo alcançava proporções de batalha campal, dois meninos de expressão compungida trepavam por entre as cordas e abraçavam-se aos joelhos do Viúvo, implorando-lhe que não combatesse, porque o iam matar. Um súbito silêncio oprimia a multidão enquanto eu recitava num murmúrio o meu poema favorito: Dois ternos orfãozinbos vão ao panteão / unidos pela mão na mesma dor / no túmulo do pai ajoelham os dois / e uma oração ambos rezam a Deus. Cale-se, acotovelava-me o Vovô, muito pálido. Com um soluço atravessado na garganta, O Viúvo explicava que tinha de ganhar o seu pão, por isso enfrentava o Assassino do Texas. No enorme teatro podia-se ouvir até o salto de uma pulga, num instante a sede de pancadaria e de sangue daquela multidão bestial transformava-se numa lacrimejante compaixão e uma chuva misericordiosa de moedas e de notas caía em cima do ringue. Os órfãos recolhiam o espólio com grande rapidez e saíam a correr, enquanto abria caminho a figura pançuda do Assassino do Texas, que não sei porquê aparecia vestido de escravo das galés romanas e fustigava o ar com um chicote. É óbvio que o Viúvo levava sempre uma tareia descomunal, mas o vencedor tinha de se retirar protegido por carabineiros para que o público não o fizesse em carne picada, enquanto o alquebrado Viúvo e os filhinhos saíam levados em padiolas por mãos bondosas, que além disso lhes davam guloseimas, dinheiro e bênçãos.
- Pobre diabo, é má coisa a viuvez - comentava o meu avô, francamente comovido.
No final da década de 60, quando eu trabalhava como jornalista, calhou-me ter de fazer uma reportagem sobre o “Cachascán”, como o Vovô designava aquele extraordinário desporto. Aos vinte e oito anos eu ainda acreditava na objectividade do jornalismo e não tive outro remédio senão falar das vidas miseráveis daqueles pobres lutadores, desmascarar o sangue de tomate, os olhos de vidro que apareciam nas garras de Kuramoto, enquanto o derrotado “cego” saía aos uivos e aos tropeções, tapando a cara com as mãos tingidas de vermelho, e a peruca cheia de traça do Anjo, já tão velho que decerto serviu de modelo para o melhor conto de García Márquez, Um senhor muito velho com umas asas enormes. O meu avô leu a minha reportagem com os dentes apertados e passou uma semana sem me falar, indignado.
Os Verões da minha infância eram passados na praia, onde a família tinha um grande casarão desengonçado em frente do mar. Partíamos em Dezembro, antes do Natal, e regressávamos no fim de Fevereiro, pretos de sol e inchados de fruta e de peixe. A viagem, que actualmente se faz numa hora pela auto-estrada, era então uma odisseia que durava um dia inteiro. Os preparativos começavam uma semana antes, enchiam-se caixotes de comida, lençóis e toalhas, sacos de roupa, a gaiola com o papagaio, um passaroco insolente capaz de, com uma bicada, arrancar o dedo a quem se atrevesse a tocar-lhe e, evidentemente, a Pelvina-López-Pun. Apenas ficavam na casa da cidade a cozinheira e os gatos, animais selvagens que se nutriam de ratos e de pombos. O meu avô tinha um carro inglês preto e pesado como um tanque, com uma grade no tejadilho onde era amarrada a montanha de bagagens. Na caixa aberta viajava a cadela Pelvina com as cestas da merenda, que ela não atacava porque mal vislumbrava as malas caía numa profunda melancolia canina. Margara levava vasilhas, panos, amoníaco e um frasco com tisana de mançanilha, um abjecto licor doce de fabrico caseiro ao qual se atribuía a vaga virtude de encolher o estômago, mas nenhuma dessas precauções evitava o enjoo. A minha mãe, os três filhos e a cadela enlanguecíamos antes de partir de Santiago, começávamos a gemer de agonia ao entrar na estrada e quando chegávamos à zona das curvas nas colinas caíamos num estado cataléptico. O Vovô, que tinha de parar com frequência para podermos descer semi-desmaiados a respirar ar puro e esticar as pernas, conduzia aquela carroça maldizendo a ideia de nos levar de veraneio. Parava ainda nos terrenos dos agricultores ao longo do caminho para comprar queijo de cabra, melões e frascos de mel. Certa vez adquiriu um peru vivo para a engorda; vendeu-lho uma camponesa com uma barriga enorme, quase a dar à luz, e o meu avô, com o seu cavalheirismo habitual ofereceu-se para apanhar a ave. Apesar do enjoo, divertimo-nos um bom bocado com o espectáculo inesquecível do velho coxo a correr numa fragorosa perseguição. Por fim conseguiu agarrá-lo pelo pescoço com a volta da bengala e caiu-lhe em cima no meio de uma ventania indescritível de poeira e de plumas. Vimo-lo regressar ao automóvel coberto de caca com o seu troféu debaixo do braço, bem atado pelas patas. Ninguém pensou que a cadela conseguiria vencer o seu mal-estar durante uns minutos para lhe arrancar a cabeça com uma dentada antes da ave chegar ao seu destino. Não houve maneira de limpar as nódoas, que ficaram impressas no automóvel como memória eterna daquelas viagens calamitosas.
Aquele balneário de Verão era um mundo de mulheres e de crianças. A Praia Grande era um paraíso até ali se instalar uma refinaria de petróleo que arruinou para sempre a transparência do mar e espantou as sereias, que não mais se voltaram a ouvir por aquelas margens. As dez da manhã começavam a chegar as criadas de bata com as crianças. Instalavam-se a fazer malha, vigiando as criaturas com o rabinho do olho, sempre nos mesmos lugares. No centro da praia colocavam-se as famílias mais antigas debaixo de toldos e de guarda-sóis, eram os donos dos grandes casarões; à esquerda os novos-ricos, os turistas e a classe média, que alugavam as casas das colinas, na extrema-direita os veraneantes modestos que chegavam da capital durante o dia em desconjuntados micro-autocarros. Em fato de banho quase toda a gente fica mais ou menos igual, apesar de cada qual adivinhar logo o seu lugar exacto. No Chile, a classe alta tem regra geral um aspecto europeu, mas ao descermos na escala social e económica acentuam-se os traços indígenas. A consciência de classe é tão forte, que nunca vi ninguém ultrapassar as fronteiras do seu lugar. Ao meio-dia chegavam as mães, com grandes chapéus de palha e garrafas de sumo de cenoura, que na altura se usava para um bronzeado rápido. Por volta das duas, com o sol no apogeu, partiam todos para o almoço e dormir a sesta, e só então apareciam os jovens com ar aborrecido, raparigas apetitosas e rapazes impávidos que se deitavam na areia a fumar e a roçar-se uns pelos outros até que a excitação os obrigava a procurar alívio no mar. As sextas-feiras, ao anoitecer, chegavam os maridos da capital e nos sábados e domingos a praia mudava de aspecto. As mães mandavam os filhos passear com as nanás e instalavam-se em grupos, com os seus melhores fatos de banho e chapéus, competindo por atrair a atenção dos maridos distraídos, esforço inútil visto que estes mal olhavam para elas, mais interessados em discutir política - tema único no Chile -, calculando a hora de voltar para casa para comer e beber como cossacos. A minha mãe, sentada como uma imperatriz mesmo no centro da praia, apanhava sol de manhã e à tarde ia jogar ao Casino: tinha descoberto uma artimanha que lhe permitiu ganhar todas as tardes o suficiente para as suas despesas. Para evitar que nos afogássemos arrastados pelas vagas daquele mar traiçoeiro, Margara atava-nos com cordas que enrolava à cinta enquanto tricotava intermináveis casacos para o Inverno; quando sentia um puxão erguia ligeiramente a vista para ver quem estava em apuros e puxando pela corda arrastava-o de volta à terra firme. Sofríamos diariamente essa humilhação, mas mal mergulhávamos na água esquecíamos as graçolas dos outros miúdos. Tomávamos banho até ficarmos azuis de frio, apanhávamos conchas e caracoletas, comíamos o pão-de-ló com areia e lambíamos gelados de limão meio derretidos, vendidos por um surdo-mudo num carrinho cheio de gelo com sal. À tarde saía pela mão da minha mãe para contemplar o pôr do Sol desde os rochedos. Esperávamos para formular um desejo, atentas ao último raio verde que surgia como uma pequena chama no instante exacto em que o Sol desaparecia no horizonte. Eu pedia sempre para a minha mãe não encontrar marido e suponho que ela pedia exactamente o contrário. Falava-me de Ramón que eu, pela sua descrição, imaginava como um príncipe encantado cuja principal virtude era encontrar-se muito longe. O Vovô deixava-nos na praia no começo do Verão e regressava a Santiago quase de seguida, era a única altura em que gozava de uma certa paz, gostava da casa vazia, de jogar golfe e uma partida de bisca no Clube da União. Quando aparecia nalgum fim-de-semana na costa, não era para participar da descontracção das férias, mas para experimentar as forças nadando horas seguidas naquele mar gelado de ondas alterosas, ir à pesca e arranjar os inúmeros estragos daquela casa acometida pela humidade. Costumava levar-nos a um estábulo próximo para beber leite fresco ao pé da vaca, numa cabana escura e fétida onde um guardador com as unhas imundas ordenhava directamente para púcaros de lata. Bebíamos um leite cremoso e tépido, com moscas a nadar na espuma. O meu avô, que não acreditava na higiene e era partidário de imunizar as crianças através do contacto íntimo com as fontes de infecção, celebrava com grandes gargalhadas o facto de engolirmos as moscas vivas.
Os habitantes da povoação viam chegar a invasão dos veraneantes com um misto de rancor e de entusiasmo. Eram pessoas modestas, quase todos pescadores e pequenos comerciantes ou donos de uma jeira de terra à beira do rio, na qual cultivavam alguns tomates e alfaces. Vangloriavam-se de naquele lugar nunca acontecer nada, era uma aldeia muito sossegada, embora uma madrugada de Inverno encontrassem um conhecido pintor crucificado no mastro de um veleiro. Ouvi os comentários em surdina, não era notícia adequada para crianças, mas anos mais tarde averiguei alguns pormenores. Toda a população se encarregara de apagar pistas, confundir evidências e enterrar provas, e a polícia não se esmerou por aí além para esclarecer o tenebroso crime, porque todos sabiam quem cravara o corpo no mastro. O artista vivia o ano inteiro na sua casa da costa, dedicado à sua pintura, ouvindo a sua colecção de discos clássicos e dando grandes passeios com a sua mas- cote, um afegão de raça pura, tão magrinho que as pessoas julgavam que era um cruzamento de cão com cria de águia. Os pescadores mais esbeltos pousavam como modelos para os quadros e depressa se tornavam seus companheiros de paródia. A noite, os ecos da música chegavam até aos confins do casario e por vezes os jovens não voltavam aos lares nem ao trabalho durante dias. Mães e noivas tentaram em vão recuperar os seus homens até que, tendo perdido a paciência, começaram a conspirar sigilosamente. Imagino-as a cochichar enquanto reparavam as redes de pesca, trocando piscadelas de olho nas idas ao mercado e passando umas às outras as senhas e contra-senhas do aquelacre (Termo de origem basca que designa a cerimónia ritual dos esponsórios nocturnos das bruxas com o Diabo. (N do T). Naquela noite deslizaram como sombras pela praia, aproximaram-se da casa grande, entraram silenciosas sem perturbar os seus homens que coziam as bebedeiras e levaram a cabo o que tinham ido fazer sem que os martelos lhes tremessem nas mãos. Dizem que o elegante cão afegão sofreu a mesma sorte. Algumas vezes aconteceu-me visitar as míseras choças dos Pescadores, com o seu cheiro a brasas de carvão e sacos de pescado, e voltava a sentir o mesmo enjoo que me invadia nos quartos das criadas. Na casa do meu avô, comprida como um comboio, as paredes de estuque eram tão finas que de noite os sonhos misturavam-se, as canalizações e os objectos metálicos oxidavam-se rapidamente, o ar salgado corroía os materiais como uma lepra perniciosa. Uma vez por ano tinha de se pintar tudo de novo e esventrar os colchões para lavar e secar ao sol a lá que começava a apodrecer com a humidade. A casa fora construída perto de um monte, que o Vovô mandou cortar como uma torta sem pensar na erosão, de onde corria um jorro permanente de água que alimentava matas de hortênsias cor-de-rosa e azuis, sempre em flor. No cimo do monte, ao qual se chegava por uma escadaria interminável, vivia uma família de pescadores. Um dos filhos, um jovem de mãos calosas devido ao desgraçado ofício de arrancar mariscos das rochas, levou-me até ao bosque. Eu tinha oito anos. Era dia de Natal.
Voltemos ao Ramón, o único apaixonado pela minha mãe que nos interessa, porque aos outros nunca lhes fez muito caso e passaram sem deixar rasto. Ele tinha-se separado da mulher, que regressara a Santiago com os filhos, e trabalhava na Embaixada da Bolívia poupando até ao último centavo para conseguir a anulação do casamento, processo usual no Chile, onde à falta de uma lei de divórcio se recorre a aldrabices, mentiras, falsos testemunhos e perjúrio. Os anos de amores postergados serviam-lhe para modificar a personalidade, desprendeu-se do sentimento de culpa inculcado por um pai despótico e afastou-se da religião, que o oprimia como um colete de força. Por meio de cartas apaixonadas e de alguns telefonemas conseguira derrotar rivais tão poderosos como um dentista, mago nas horas livres, que podia tirar um coelho vivo de uma caçarola com óleo a ferver; o rei das panelas de pressão, que introduziu tais artefactos no país alterando para sempre a parcimónia da cozinha crioula; e vários outros galãs que podiam ter-se convertido em nosso padrasto, inclusive o meu favorito, Benjamin Viel, alto e direito como uma lança, de riso contagioso, assíduo frequentador da casa do meu avô nessa época. A minha mãe afirma que o único amor da sua vida foi Ramón e como ainda ambos estão vivos, não penso desmenti-la. Passara um par de anos desde que saíramos de Lima, quando os dois tramaram uma escapada ao Norte do Chile. Para a minha mãe o risco deste encontro clandestino era enorme, tratava-se de um passo definitivo na direcção proibida, de renunciar à vida prudente de empregada bancária e às virtudes de viúva abnegada em casa do seu pai, mas o impulso do desejo adiado e a força da juventude venceram os seus escrúpulos. Os preparativos dessa aventura levaram meses e o único cúmplice foi o tio Pablo, que não quis saber da identidade do amante nem inteirar-se dos pormenores, mas comprou para a irmã o melhor enxoval de viagem e meteu-lhe um maço de notas no bolso - no caso de se arrepender a meio caminho e decidir voltar, como ele disse - e depois conduziu-a taciturno ao aeroporto. Ela partiu toda airosa sem dar explicações ao meu avô porque supôs que ele jamais poderia compreender os avassaladores motivos do amor. Regressou passada uma semana transformada pela paixão consumada e ao descer do avião encontrou o Vovó vestido de preto e mortalmente sério, que foi ao seu encontro de braços abertos e a estreitou no peito, perdoando-lhe em silêncio. Suponho que nesses dias fugazes Ramón terá cumprido largamente as fogosas promessas das suas cartas, o que explicaria a decisão da minha mãe de esperar anos e anos com a esperança de que ele pudesse libertar-se das suas amarras matrimoniais. Aquele encontro e as suas consequências foram-se diluindo passadas umas semanas. O meu avô, que não acreditava em amores à distância, nunca falou do caso e como ela também o não mencionava, acabou por crer em que o implacável desgaste do tempo teria acabado com aquela paixão, razão pela qual teve uma tremenda surpresa quando soube da abrupta chegada do galã a Santiago. Quanto a mim, mal suspeitei que o príncipe encantado não era um personagem de conto, mas sim uma pessoa em carne e osso, fiquei em pânico; a ideia de que a minha mãe se entusiasmasse por ele e nos abandonasse produzia-me arrepios de medo. Ramón tinha sabido que um misterioso pretendente com mais hipóteses do que ele se perfilava no horizonte - sou levada a pensar que era Benjamin Viel mas não tenho provas -, e sem mais delongas abandonou o seu posto em La Paz e saltou para o primeiro avião que conseguiu rumo ao Chile. Enquanto esteve no estrangeiro não foi muito notória a sua separação da esposa, mas quando chegou a Santiago e não se foi instalar sob o tecto conjugal, a situação explodiu; mobilizaram-se parentes, amigos e conhecidos para o fazer regressar ao seio do legítimo lar. Num desses dias, ia com os meus irmãos pela rua levados pela mão de Margara quando uma senhora muito bem posta nos chamou filhos da puta aos gritos, numa voz estentória. Dada a teimosia daquele marido recalcitrante, o tio bispo apresentou-se ao meu avô para exigir a sua intervenção. Exaltado por um furor cristão, e envolto num odor de santidade - não tomava banho há quinze dias -, pô-lo ao corrente dos pecados da filha, uma Betsabé enviada pelo Maligno para, perdição dos mortais. O meu avô não era homem para aceitar aquela retórica visando um membro da sua família nem para se deixar acabrunhar por um abade, por muita que fosse a sua fama de santo, mas compreendeu que devia tomar as rédeas do escândalo antes que fosse tarde. Arranjou um encontro com Ramón no seu escritório para cortar o mal pela raiz, mas encontrou-se com uma vontade tão férrea como a sua.
- Estamos apaixonados - explicou o galã com o maior respeito, mas com voz firme e falando no plural, apesar de as últimas cartas semearem dúvidas sobre a reciprocidade de tal amor. - Permita-me demonstrar-lhe que sou homem de honra e que posso fazer feliz a sua filha.
O meu avô não lhe tirou a vista de cima, tentando indagar as suas mais secretas intenções e deve ter gostado do que viu.
- Está bem - decidiu-se, finalmente. - Se as coisas são assim, o senhor vem viver para minha casa, porque não quero que a minha filha ande à solta sabe-se lá por que azinhagas. A propósito, recomendo-lhe que trate muito bem dela. A primeira palhaçada terá de se haver comigo, estamos entendidos?
- Perfeitamente - replicou o improvisado noivo um pouco tremelicante mas sem baixar a vista.
Foi o início de uma amizade incondicional que durou mais de trinta anos entre aquele sogro improvável e um genro ilegítimo. Pouco mais tarde, chegou um camião a nossa casa e descarregou no pátio um caixote enorme do qual saiu uma infinidade de trastes. Ao ver o tio Ramón pela primeira vez pensei que se tratava de uma piada da minha mãe. Era aquele o príncipe por quem ela tanto tinha suspirado? Nunca tinha visto um tipo tão feio. Até então os meus irmãos e eu tínhamos dormido no quarto da mãe; nessa noite puseram a minha cama no quarto dos engomados rodeada de armários com diabólicos espelhos, e Pancho e Juan foram transladados para outro quarto com a Margara. Não me apercebi de que algo de fundamental se modificara na ordem familiar, apesar de que quando a tia Carmelita vinha visitar-nos Ramón saía a voar por uma janela. A verdade foi-me revelada algum tempo depois, num dia em que cheguei do colégio a uma hora intempestiva, entrei no quarto da mãe sem bater à porta, como sempre fazia, e encontrei-a a dormir a sesta com aquele desconhecido ao qual devíamos tratar por tio Ramón. O mostrengo dos ciúmes não me largou até dez anos mais tarde, quando finalmente consegui aceitá-lo. Tomou conta de nós, tal como prometera naquele memorável dia em Lima, educou-nos com mão firme e bom humor, transmitiu-nos limites e mensagens claras, sem demonstrações sentimentais, e nunca nos fez concessões; aguentou as minhas manhas sem tentar comprar a minha estima nem ceder um milímetro do seu terreno, até me conquistar inteiramente. Foi o único pai que tive, e agora parece-me francamente bom rapaz.
A vida da minha mãe é um romance que ela me proibiu de escrever; não posso revelar os seus segredos e mistérios até passarem cinquenta anos após a sua morte, mas nessa altura estarei convertida em alimento para peixes, se os meus descendentes cumprirem as instruções de lançar as minhas cinzas ao mar. Apesar de raras vezes conseguirmos estar de acordo, ela é o mais longo amor da minha vida, começou no dia da minha gestação e já dura há meio século, além de ser o único realmente incondicional, nem os filhos nem os mais ardentes namorados amam assim. Agora está comigo em Madrid. Tem o cabelo de prata e as rugas dos setenta anos, mas ainda lhe brilham os olhos com a antiga paixão, apesar da amargura destes meses, que torna tudo opaco. Partilhamos dois quartos de hotel a poucos quarteirões do hospital, onde contamos com um aquecedor e um frigorífico. Alimentamo-nos de chocolate espesso e farturas compradas à passagem, às vezes de umas consistentes sopas de lentilhas com chouriço capazes de ressuscitar Lázaro, que preparamos no nosso fogareiro. Acordamos de madrugada, quando ainda está muito escuro, e enquanto ela se espreguiça, eu visto-me depressa e preparo o café. Saio eu primeiro, por ruas com remendos de neve suja e geada, e duas horas depois ela vai ter comigo ao hospital. Passamos o dia no corredor dos passos perdidos, junto da porta da unidade de Cuidados Intensivos, sozinhas até ao anoitecer, quando aparece Ernesto de volta do emprego e começam as visitas dos amigos e das freiras. Segundo o regulamento só podemos atravessar aquela porta nefasta duas vezes por dia, vestir as batas verdes, calçar forros de plástico e caminhar vinte e um passos largos com o coração na mão até à tua sala, Paula. A tua cama é a primeira à esquerda, há doze nesta enfermaria, algumas vazias, outras ocupadas: doentes cardíacos, recém-operados, vítimas de acidentes, drogas ou suicídios, que passam por ali alguns dias e depois desaparecem, alguns voltam à vida, outros levam-nos cobertos com um lençol. A teu lado jaz Don Manuel, a morrer lentamente. Por vezes ergue-se um pouco para olhar-te com olhos nublados pela dor, mas que linda é a sua filha, diz-me ele. Costuma perguntar-me que te aconteceu, mas encontra-se imerso nas misérias da sua doença e mal acabo de lhe explicar, esquece. Ontem contei-lhe uma história e pela primeira vez ouviu-me com atenção: era uma vez uma princesa a quem no dia do baptismo as suas fadas cobriram de dons, mas um bruxo colocou uma bomba de relógio no seu corpo, antes que a sua mãe o pudesse impedir. Na altura em que a jovem cumpriu vinte e oito felizes anos todos se tinham esquecido do malefício, mas o relógio contava inexoravelmente os minutos e um dia a bomba explodiu sem ruído. Os enzimas perderam o rumo no labirinto das veias e a jovem sumiu-se num sono tão profundo como a morte. Que Deus guarde a sua princesa, suspirou Don Manuel.
A ti conto-te outras histórias, filha.
A minha infância foi um tempo de medos silenciados; terror da Margara, que me detestava, de que aparecesse o meu pai a reclamar-nos, de que a minha mãe morresse ou se casasse, do Diabo, dos jogos bruscos, das coisas que os homens maus podem fazer às meninas. Nem penses em entrar num automóvel de um desconhecido, não fales com ninguém na rua, não deixes que te toquem no corpo, não te aproximes dos ciganos. Sempre me senti diferente, desde que me lembre fui uma marginal; não pertencia realmente à minha família, ao meu meio social, a um grupo. Julgo que desse sentimento de solidão brotam as perguntas que nos impulsionam a escrever, é na busca de respostas que se geram os livros. O consolo nos momentos de pânico foi o persistente espírito da Vovó, que costumava desprender-se das pregas do cortinado para me acompanhar. A cave era o ventre obscuro da casa, lugar selado e proibido até ao qual eu deslizava através de uma fresta de ventilação. Sentia-me bem naquela caverna a cheirar a humidade, onde brincava a rasgar as trevas com uma vela ou com a mesma pilha que usava para ler à noite sob os lençóis. Passava horas entretido com jogos calados, leituras clandestinas e todas essas complicadas cerimónias que as crianças solitárias inventam. Tinha armazenado uma boa provisão de velas roubadas na cozinha e tinha uma caixa com pedaços de pão e bolachas para alimentar os ratos. Ninguém suspeitava das minhas incursões ao fundo da terra, as criadas atribuíam os ruídos e as luzes ao fantasma da minha avó e nunca se aproximavam daquele lugar. O subterrâneo consistia em duas amplas divisões de tecto baixo e chão de terra batida, onde surgiam expostos os ossos da casa, as suas tripas de canos, a sua peruca de cabos eléctricos; ali se amontoavam móveis quebrados, colchões esventrados, pesadas arcas antigas para viagens de barco de que já ninguém se lembrava. Num baú metálico marcado com as iniciais do meu pai encontrei uma colecção de livros, fabulosa herança que iluminou esses anos da minha infância: O Tesouro da Juventude, Salgari, Shaw, Verne, Twain, Wilde, London e outros. Supus que eram proibidos por pertencerem àquele T.A. de nome inominável, não me atrevi a trazê-los para a luz do dia e, alumiada por candeeiros degluti-os com a voracidade que despertam as coisas interditas, tal como anos depois li às escondidas As Mil e Uma Noites, embora na realidade naquela casa não houvesse livros censurados, ninguém tinha tempo para vigiar as crianças, quanto mais as suas leituras. Aos nove anos mergulhei nas obras completas de Shakespeare, primeiro presente do tio Ramón, uma bela edição que reli inúmeras vezes sem me reter na sua qualidade literária, pelo simples prazer do enredo e da tragédia, quero dizer, pela mesma razão que dantes ouvia as radionovelas e agora escrevo ficção. Vivia cada história como se fosse a minha própria vida, eu era cada uma das personagens, sobretudo os vilões, muito mais atraentes que os heróis virtuosos. A imaginação disparava-se-me inevitavelmente para a truculência. Se lia algo sobre os Peles-Vermelhas, que arrancavam o couro cabeludo aos inimigos, supunha que as vítimas ficavam vivas e continuavam nas suas lutas com apertados gorros de pele de bisonte para sustentar os miolos que apareciam por entre os golpes do crânio escalpelado, a daí a imaginar que as ideias também lhes fugiam, só havia um passo. Desenhava as personagens em cartolina, recortava-as e prendia-as com palitos, foi esse o início dos meus primeiros passos no teatro. Contava contos aos meus irmãos abismados, horríveis histórias de suspense que enchiam os seus dias de terrores e as suas noites de pesadelos, tal como depois fiz com os meus filhos e com alguns homens na intimidade da cama, onde uma fábula bem contada costuma ter um poderoso efeito afrodisíaco.
O tio Ramón teve uma influência fundamental em muitos aspectos do meu carácter, embora em certos casos me tenha custado quarenta anos a relacionar os seus ensinamentos com as minhas reacções. Tinha um Ford desengonçado que partilhava com um amigo; ele utilizava-o às segundas, quartas, sextas e metade dos domingos, e o outro servia-se do carro nos outros dias. Num desses domingos com automóvel, levou-nos com a minha mãe ao Open Door, uma instituição nos arredores de Santiago onde eram internados os loucos mansos. Ele conhecia bem aquelas paragens porque na juventude passava lá as férias a convite de uns parentes que administravam a parte agrícola do sanatório. Entramos aos sacões por um caminho de terra ladeado por grandes plátanos orientais, formando uma abóbada verde por cima das nossas cabeças. De um lado ficavam as pastagens e do outro os edifícios rodeados por árvores de fruto, por onde deambulavam alguns dementes pacíficos vestidos com camisolas descoradas, que acorreram ao nosso encontro acompanhando o automóvel e mostrando as caras e as mãos pelas janelas aos gritos de boas-vindas. Encolhemo-nos nos assentos espantados, enquanto o tio Ramón os cumprimentava tratando-os pelo nome, alguns estavam ali há muitos anos e nos verões da sua juventude brincava com eles. Por um preço razoável negociou com o quinteiro para nos deixar entrar no pomar.
- Desçam, meninos, os loucos são boas pessoas - ordenou-nos. - Podem trepar às árvores, comer tudo o que quiserem e encher este saco. Somos imensamente ricos.
Não sei como conseguiu que os internados no sanatório nos ajudassem. Depressa perdemos o medo deles e acabámos todos escarranchados nas árvores a comer damascos, carregados de sumo, arrancando-os às mãos cheias dos ramos para os meter no saco. Dávamos uma dentada e se não nos pareciam bem doces atirávamos com eles e colhíamos outros, lançávamos uns aos outros os damascos maduros, que nos arrebentavam em cima numa verdadeira orgia de fruta e de risos. Comemos até fartar e depois de nos despedirmos com beijos aos orares empreendemos o regresso no velho Ford com o grande saco a abarrotar, do qual continuamos a encher a barriga até que nos venceram as cólicas. Nesse dia tive pela primeira vez consciência de que a vida pode ser generosa. Nunca tivera uma experiência semelhante com o meu avô nem com outro membro da família, que consideravam a escassez uma benção e a avareza uma virtude. De vez em quando o Vovô aparecia com uma bandeja de bolos, sempre bem contados, um para cada um, nada faltava e nada sobrava; o dinheiro era sagrado e aos meninos ensinavam-nos muito cedo quanto custava ganhá-lo. O meu avô tinha fortuna, coisa de que nunca suspeitei até muito mais tarde. O tio Ramón era pobre como um rato de sacristia e isso eu também não soube então, porque lá se arranjou para nos ensinar a gozar do pouco que possuía. Nos momentos mais duros da minha existência, quando me parecia que me fechavam todas as portas, o sabor daqueles damascos vem-me à boca para me consolar com a ideia de que a abundância está ao alcance da nossa mão, se a soubermos encontrar.
As recordações da minha infância são dramáticas, como as de toda a gente, creio eu, porque as banalidades perdem-se no esquecimento, mas isso também se pode dever à minha inclinação para a tragédia. Dizem que a situação geográfica marca o carácter. Eu venho de um país muito belo, embora açoitado por calamidades: seca no Verão, inundações no Inverno, quando se entopem os esgotos e os indigentes morrem de pneumonia; cheias dos rios ao derreterem-se as neves das montanhas e maremotos e numa única vaga lançam barcos terra adentro colocando-os no meio das praças; incêndios e vulcões em erupção; peste de mosca-varejeira, de caracóis e formigas; terramotos apocalípticos, e um rosário ininterrupto de tremores menores, aos quais já ninguém dá importância; e se à pobreza de metade da população somarmos o isolamento, temos material de sobejo para um melodrama.
Pelvina-López-Pun, a cadela que meteram no meu berço desde o meu primeiro dia de vida com a intenção de me imunizar contra pestes e alergias, tornou-se um animal luxurioso que todos os seis meses ficava prenha de qualquer cão da rua, apesar dos engenhosos recursos improvisados pela minha mãe, tal como pôr-lhe cuecas de borracha. Quando entrava em cio punha o traseiro encostado às grades do jardim, enquanto na rua uma matilha impaciente esperava a sua vez de amá-la entre os barrotes. As vezes, ao regressar do colégio, encontrava um cão atracado, do outro lado do gradeamento a Pelvina aos uivos e os meus tios, a morrer de rir, tentando separá-los com mangueiradas de água fria. Depois a Margara afogava as ninhadas de cachorros recém-nascidos, tal como fazia com os gatos. Num Verão estávamos prontos para ir de férias, mas a viagem teve de ser adiada porque a cadela andava com o cio e tornava-se impossível levá-la em tais condições, na praia não havia maneira de a deixar fechada e já ficara demonstrado que as cuecas de borracha são inúteis perante o ímpeto de uma verdadeira paixão. Tanto protestou o Vovô que a minha mãe decidiu vendê-la e pôs um anúncio no jornal: “cadela fina buldogue de origem estrangeira, bom carácter, procura donos carinhosos que saibam estimá-la”. Explicou-nos as suas razões, mas a nós pareceu-nos uma coisa infame e deduzimos que se ela era capaz de se desprender da Pelvina, podia fazer o mesmo com qualquer dos filhos. Suplicámos em vão; no sábado apareceu um casal interessado em adoptar a cadela. Escondidos sob a escadaria vimos o sorriso esperançado de Margara ao conduzir o casal à sala, aquela mulher odiava tanto a bicha como a mim. Pouco depois a minha mãe foi procurar a Pelvina para apresentá-la aos potenciais compradores. Percorreu a casa de cima a baixo, antes de a encontrar na sala de banho, onde nós a tínhamos fechado depois de a rapar e de lhe pintalgar com mercurocromo algumas partes do lombo. A mãe, com empurrões e ameaças, conseguiu abrir a porta, o animal saiu disparado e saltou para o sofá onde estavam os clientes, que ao ver as mazelas desataram em alaridos e lançaram-se aos tropeções para chegar à porta antes de poderem ser contagiados. Três meses depois, a Margara teve de eliminar meia dúzia de cachorrinhos bastardos, enquanto nós ardíamos numa febre de culpabilidade. Pouco tempo depois a Pelvina morreu misteriosamente, eu suspeito de que a Margara teve alguma coisa a ver com o caso.
Nesse mesmo ano aprendi no colégio que os recém-nascidos não vêm no bico de uma cegonha, mas crescem como melões na barriga das mães, e que o velho Pai Natal nunca existiu, eram os pais que compravam os presentes de Natal. A primeira parte daquela revelação não me impressionou pois não pensava ainda em ter filhos, mas a segunda foi demolidora. Preparei-me para passar a véspera de Natal a velar para descobrir a verdade, mas apesar dos meus esforços o sono acabou por me vencer. Atormentada pelas dúvidas, tinha escrito uma carta-armadilha a pedir o impossível: outro cão, uma data de amigos e vários brinquedos. De manhã ao acordar encontrei uma caixa de frascos de têmpera, pincéis e uma nota estuta do miserável Pai Natal, cuja caligrafia era suspeitosamente parecida com a da minha mãe, explicando que não me trouxera o que tinha pedido para me ensinar a ser menos gulosa, mas em troca oferecia-me as paredes do meu quarto para pintar o cão, os amigos e os brinquedos. Olhei à minha volta e vi que tinham tirado os severos retratos antigos e o lamentável Sagrado Coração de Jesus, e no muro nu em frente da cama descobri uma reprodução a cores recortada de um livro de arte. O desencanto deixou-me atónita durante vários minutos, mas por fim recompus-me o bastante para examinar aquela gravura, que era afinal uma figura de Marc Chagall. A princípio pareciam-me só umas manchas anárquicas, mas depressa descobri no pequeno recorte de papel um espantoso universo de noivas azuis a voar de pernas para cima, um pálido músico flutuando entre um candelabro de sete braços, uma cabra vermelha e outros personagens versáteis. Havia ali tantas cores e objectos diferentes que precisei de um bom bocado para me movimentar na maravilhosa desordem da composição. Aquele quadro tinha música: um tiquetaque de relógio, gemido de violinos, balidos de cabra, roças de asas, um inacabável murmúrio de palavras. Tinha também cheiros: aromas de velas acesas, de flores silvestres, de animal com cio, de unguentos femininos. Tudo parecia envolto na nebulosa de um sonho feliz, por um lado a atmosfera era cálida como uma tarde de sesta, e pelo outro apercebia-me a frescura de uma noite no campo. Eu era demasiado jovem para analisar a pintura, mas recordo a minha surpresa e curiosidade, aquele quadro era um convite ao jogo. Interroguei-me fascinada como era possível pintar assim, sem respeito algum pelas regras de composição e perspectiva que a professora de arte tentava inculcar-me no colégio. Se aquele Chagall consegue fazer o que lhe apetece, eu também posso, concluí, abrindo o primeiro frasco de têmpera. Durante anos pintei com liberdade e prazer um complexo mural onde ficaram registados os desejos, os medos, as raivas, as perguntas da infância e a dor de crescer. Em lugar de honra, no meio de uma flora impossível e de uma fauna tresloucada, pintei a silhueta de um rapaz de costas, como se estivesse a olhar para o mural. Era o retrato de Marc Chagall, por quem me apaixonara como só se apaixonam as crianças. Nessa altura em que eu pintava furiosamente as paredes da minha casa em Santiago, o objecto dos meus amores tinha mais sessenta anos do que eu, era célebre em todo o mundo, acabava de pôr termo à sua longa viuvez casando em segundas núpcias e vivia no coração de Paris, mas a distância e o tempo são convenções frágeis, eu acreditava que era um menino da minha idade e muitos anos depois, em Abril de 1985, quando Marc Chagall morreu aos 93 anos de eterna juventude, comprovei que na verdade ele era esse menino. Sempre fora o menino imaginado por mim. Quando deixámos aquela casa e me despedi do mural, a minha mãe deu-me um caderno para registar o que antes tinha pintado: um caderno para anotar a vida. Toma, desabafa escrevendo, disse-me ela. Assim fiz então e assim o faço agora nestas páginas. Que outra coisa posso fazer? Sobra-me tempo. Sobra-me todo o futuro. Quero dar-to, filha, porque perdeste o teu.
Aqui todos te chamam a menina, deve ser pela tua cara de colegial e por esse cabelo comprido a que as enfermeiras fazem tranças. Pediram licença ao Ernesto para to cortarem, é muito aborrecido mantê-lo limpo e desenredado, mas ainda o não fizeram, têm pena, consideram-no o teu melhor atributo de beleza porque ainda não viram os teus olhos abertos. Creio que estão um tanto enamoradas do teu marido, tanto amor comove-as; vêem-no debruçado sobre a tua cama falando-te em murmúrios, como se pudesses ouvi-lo, e gostariam de ser amadas dessa maneira. Ernesto tira o casaco e passa-o pelas tuas mãos inertes, toca, Paula, sou eu, diz ele, é o casaco que tu preferes, reconhece-lo? Gravou mensagens secretas e deixa-tas num gravador com auscultadores para que ouças a sua voz quando estás sozinha; traz um algodão embebido na sua água-de-colónia e coloca-o sob a tua almofada, para que o cheiro dele te acompanhe, As mulheres da nossa família o amor chega-lhes como um vendaval, assim aconteceu à minha mãe com o tio Ramón, a ti com o Ernesto, a mim com o Willie e suponho que algo de semelhante acontecerá às netas e bisnetas que vierem. Um dia de Ano Novo, já eu vivia na Califórnia com o Willie, telefonei-te para te dar um abraço à distância, comentar o ano velho e perguntar-te qual era o teu desejo para esse 1988 que nascia. Quero um companheiro, um amor como o que tu tens agora, respondeste-me logo. Tinham passado apenas quarenta e oito oras quando me evo veste a c ama a, eufórica:
- Já o tenho, mamã! Ontem, numa festa, conheci o homem com quem vou casar! - e contaste-me atropeladamente que desde o primeiro momento fora uma espécie de fogueira, olharam-se, reconheceram-se e tiveram a certeza de serem feitos um para o outro.
- Não sejas pirosa, Paula. Como podes ter tanta certeza?
- Porque me senti agoniada e tive de sair. Por sorte ele saiu atrás de mim...
Uma mãe normal ter-te-ia posto em guarda contra tais paixões, mas eu não tenho autoridade moral para dar conselhos de prudência, de modo que se seguiu uma das nossas conversas típicas.
- Formidável, Paula. Vais viver com ele?
- Primeiro tenho de acabar os estudos.
- Pensas continuar a estudar?
- Não posso deixar tudo de lado!
- Bom, se se trata do homem da tua vida...
- Calma, velhota, acabo de conhecê-lo.
- Eu também acabo de conhecer o Willie e já estás a ver onde estou. A vida é curta, filha.
- É mais curta na tua idade do que na minha. Está bem, não faço o doutoramento, mas pelo menos acabo o mestrado.
E assim foi. Concluíste os teus estudos e depois foste viver com o Ernesto para Madrid, onde ambos encontraram emprego, ele como engenheiro electrónico e tu como psicóloga voluntária num colégio, e pouco depois casaram. No primeiro aniversário do casamento estavas tu em estado de coma e o teu marido trouxe-te de presente uma história de amor que te murmurou ao ouvido, ajoelhado a teu lado, enquanto as enfermeiras observavam comovidas e na cama ao lado Don Manuel chorava.
Ah! o amor carnal! A primeira vez que sofri um ataque fulminante foi aos onze anos. O tio Ramón fora colocado na Bolívia novamente, mas dessa vez levou a minha mãe e os três filhos. Não tinha podido casar e o Governo não pagava as despesas daquela família ilegal, mas eles fizeram ouvidos de mercador aos dichotes mal-intencionados e empenharam-se em levar adiante aquela relação difícil apesar dos obstáculos formidáveis que tinham de ultrapassar. Conseguiram-no plenamente e hoje em dia, passados mais de quarenta anos, formam um casal lendário. La Paz é uma cidade extraordinária, tão perto do céu e com um ar tão fino que se podem ver os anjos ao amanhecer, o coração está sempre à beira de rebentar e a vista perde-se na pureza avassaladora das paisagens. Cadeias de montanhas e de montes arroxeados, rochedos e pinceladas de terra em tons de açafrão, púrpura e vermelhão, rodeiam o vale fundo onde se espraia esta cidade de contrastes. Lembro-me de ruas estreitas a subir e a descer como serpentinas, lojas miseráveis, autocarros a cair aos bocados, índios vestidos de lãs multicores a mascar eternamente uma bola de folhas de coca com os dentes verdes. Centenas de igrejas com os seus campanários e adros onde se sentavam as índias a vender yucas secas e milho-rei junto a fetos dissecados de lhamas para fazer emplastros curativos, enquanto espantavam as moscas e davam de mamar aos filhos. O cheiro e as cores de La Paz fixaram-se na minha memória como uma parte do lento e doloroso despertar da adolescência. A ambiguidade da infância acabou no momento preciso em que saímos de casa do meu avô. Na véspera da partida, de noite, levantei-me silenciosamente, desci a escada com cuidado para que os degraus não rangessem, percorri o rés-do-chão às escuras e cheguei até à cortina do salão, onde a Vovó me esperava para me dizer que deixasse de me lamentar porque ela estava disposta a viajar comigo, já nada tinha a fazer naquela casa, que eu pegasse no seu espelho de prata na secretária do Vovô e o levasse comigo. Lá estarei de agora em diante, sempre contigo, acrescentou. Pela primeira vez atrevi-me a abrir a porta sempre fechada do quarto do meu avô. A luz da rua coava-se através das lâminas das persianas e os meus olhos já se tinham habituado à escuridão; vi a sua silhueta imóvel e o seu perfil austero, estava de costas entre os lençóis, rígido e imóvel como um cadáver naquele quarto com móveis fúnebres onde o relógio de charão marcava três horas da madrugada. Havia de vê-lo exactamente assim, trinta anos depois, quando me apareceu num sonho para me revelar o final do meu primeiro romance. Sigilosamente percorri o espaço até à secretária, passando tão perto da cama que pude aperceber-me da sua solidão de viúvo, e abri uma a uma as gavetas, com um medo aterrador de que ele acordasse e me apanhasse a roubar. Encontrei o espelho de cabo lavrado ao pé de uma caixa de lata em que não me atrevi a tocar, peguei nele com ambas as mãos e saí a recuar na ponta dos pés. Posta a salvo na minha cama observei o cristal brilhante onde tanta vez me tinham dito que à noite apareciam os demónios, e suponho que reflectiu o meu rosto de dez anos, redondo e pálido, mas na minha imaginação o que eu via era o rosto doce da Vovó a dar-me as boas-noites. Ao amanhecer pintei pela última vez no meu mural uma mão a escrever a palavra adeus. Esse dia foi muito confuso, cheio de ordens contraditórias, despedidas apressadas e esforços sobre-humanos para arrumar as malas nos tejadilhos dos automóveis que nos conduziriam ao porto onde embarcávamos rumo ao norte. O resto da viagem seria num comboio de via estreita que trepava com a lentidão de um caracol milenário às alturas bolivianas. O meu avô vestido de luto, com a sua bengala e boina basca, de pé junto da porta da casa onde me criei, despediu a minha infância.
Os entardeceres de La Paz são como incêndios astrais e nas noites sem lua podem-se ver todas as estrelas, mesmo aquelas que já morreram há milhões de anos e as que vão nascer amanhã. Às vezes deitava-me de costas no jardim a contemplar aqueles céus fabulosos e sentia uma vertigem mortal, caía e continuava a cair para o fundo de um abismo infinito. Vivíamos numa propriedade de três casas com um jardim comum, em frente havia um oculista célebre e ao fundo um diplomata uruguaio de quem se dizia à boca pequena que era homossexual. Nós, as crianças, julgávamos que se tratava de uma doença incurável, cumprimentávamo-lo cheios de pena e uma vez atrevemo-nos a perguntar-lhe se a homossexualidade lhe doía muito. Ao regressar do colégio eu procurava a solidão e o silêncio nas áleas daquele grande jardim, onde encontrava esconderijos para o meu caderno de notas sobre a vida e recantos secretos para ler longe do bulício. Frequentávamos uma escola mista, até então o único contacto com rapazes era com os meus irmãos, mas eles não contavam, ainda agora julgo que o Pancho e o Juan não têm sexo, são uma espécie de bactérias. Na primeira aula de História, a professora falou das guerras do Chile contra o Peru e a Bolívia no século XIX. No meu país eu aprendera que os chilenos tinham ganho as batalhas graças à sua temerária valentia e ao patriotismo dos seus chefes, mas naquela aula revelaram-nos as brutalidades cometidas pelos meus compatriotas contra a população civil. Os soldados chilenos, drogados com uma mistura de aguardente e pólvora, entravam nas cidades ocupadas como hordas enlouquecidos. Com baioneta calada e facas de mato esventravam crianças, mulheres e mutilavam os órgãos genitais dos homens. Levantei a mão disposta a defender a honra das nossas Forças Armadas, sem suspeitar então do que são capazes, e caiu-me em cima uma chuva de projécteis. A professora pôs-me fora da aula, e eu saí no meio de uma assobiadela feroz para cumprir o meu castigo de pé num canto do corredor de cara para a parede. Retendo as lágrimas, para que ninguém me visse humilhada, ruminei a minha raiva durante três quartos de hora. Nesses minutos decisivos as minhas hormonas, cuja existência até então ignorava, explodiram com a força de uma catástrofe vulcânica; não exagero, nesse mesmo dia tive a minha primeira menstruação. No canto oposto do corredor, de pé contra a parede, cumpria também castigo um rapaz alto e magro como uma vassoura, de pescoço comprido, cabelo preto e enormes orelhas protuberantes, que vistas detrás lhe davam um aspecto de ânfora grega. Nunca mais vi orelhas tão sensuais como aquelas. Foi amor à primeira vista, apaixonei-me pelas suas orelhas antes de lhe ver a cara, com tal veemência que nos meses seguintes perdi o apetite e de tanto jejuar e suspirar fiquei com uma anemia. Este arrebatamento romântico não tinha nada a ver com ideias sexuais; não relacionei o que me sucedera na infância num pinhal à beira do mar com um pescador de mãos cálidas, com os puros sentimentos inspirados por aqueles apêndices extraordinários. Sofri de uma paixão casta, e por conseguinte muito mais devastadora, que durou uns dois anos. Lembro-me desse período em La Paz como de uma cadeia interminável de fantasias no sombrio jardim da casa, de páginas ardentes escritas nos meus cadernos e de sonhos pirosos nos quais o orelhudo donzel me arrebatava das fauces de um dragão. Para cúmulo, o colégio inteiro soube do caso e por causa desse amor e da minha indisfarçável condição de chilena, fizeram-me vítima das piadas mais contundentes. Foi um romance destinado ao fracasso, o objecto da minha paixão tratou-me sempre com tanta indiferença que cheguei a pensar que na sua presença eu me tornava invisível. Pouco antes de partir definitivamente da Bolívia estoirou uma cena de pancadaria no recreio e sem saber como acabei abraçada ao meu amado, a rolar na poeira entre socos, puxões de cabelos e pontapés. Ele era muito mais alto do que eu e apesar de pôr em prática o que aprendera com o meu avô nas tardes de luta-livre do Teatro Caupolican, deixou-me toda magoada e com sangue a escorrer do nariz, no entanto num momento de fúria cega uma das orelhas dele ficou ao alcance dos meus dentes e consegui dar-lhe uma apaixonada mordidela. Durante semanas andei nas nuvens. É o encontro mais erótico da minha longa vida, um misto do prazer intenso do abraço e a dor não menos aguda da pancada. Com tal despertar masoquista para a luxúria, outra mulher com menos sorte seria hoje a vítima complacente das chicotadas de um sádico, mas tal como as coisas me correram, nunca mais tive ocasião de praticar esse tipo de abraço.
Pouco tempo depois dizíamos adeus à Bolívia e eu não voltei a ver aquelas orelhas. O tio Ramón partiu de avião directamente para Paris e de lá para o Líbano, enquanto nós, a minha mãe e os filhos, descíamos de comboio até um porto no Norte do Chile, de onde embarcámos rumo a Génova num navio italiano, e a seguir de autocarro para Roma, e de Roma de avião para Beirute, A viagem durou perto de dois meses e acho que a minha mãe sobreviveu por milagre. Ocupávamos a última carruagem em companhia de um índio enigmático, que não dizia uma palavra e permanecia sempre de cócoras no chão perto de um aquecedor, a mascar coca e a coçar os piolhos, armado com uma espingarda arcaica. Dia e noite os seus olhinhos oblíquos observavam-nos com uma expressão impenetrável, e nunca o vimos a dormir; a minha mãe temia que, a um descuido nosso, nos assassinasse, apesar de lhe terem assegurado que ele fora contratado para nos proteger. O comboio avançava com tal lentidão pelo deserto, por entre dunas e minas de sal, que os meus irmãos às vezes desciam e corriam-lhe ao lado. Para irritar a minha mãe atrasavam-se, fingindo-se extenuados e gritavam por socorro porque o comboio os deixava para trás. No vapor, Pancho entalou tantas vezes os dedos nas pesadas portas de ferro, que por fim os seus uivos já não comoviam ninguém, e Juan andou perdido certo dia durante várias horas. A jogar às escondidas deixou-se adormecer numa cabina desocupada e não o encontraram até ele acordar com as sereias do barco, quando já o comandante se aprestava a deter a navegação e a lançar salva-vidas à água à sua procura, enquanto a minha mãe era agarrada por dois rijos contramestres para evitar que se atirasse ao Atlântico. Apaixonei-me por todos os marinheiros com uma paixão quase tão violenta como a inspirada pelo jovem boliviano, mas suponho que eles preferiam a minha mãe. Aqueles esbeltos jovens italianos punham-me a imaginação em alvoroço, mas não conseguia mitigar o meu vício inconfessável de brincar com as bonecas. Fechada no camarote, embalava-as, dava-lhes banho, biberão e cantava-lhes em voz baixa para não ser surpreendida, enquanto os malvados dos meus irmãos me ameaçavam de exibi-las na coberta. Quando finalmente desembarcámos em Génova, Pancho e Juan, leais a toda a prova, levavam cada um debaixo do braço um volume suspeito envolto numa toalha, enquanto eu me despedia suspirando dos marinheiros dos meus amores.
Vivemos no Líbano três anos surrealistas que me serviram para aprender um pouco de francês e conhecer boa parte dos países vizinhos, incluindo a Terra Santa e Israel, que na década de 50, tal como agora, vivia em guerra permanente contra os Árabes. Atravessar a fronteira de automóvel, como várias vezes fizemos, constituía uma perigosa aventura. Instalámo-nos num apartamento moderno, amplo e feio. Do terraço podíamos ver um mercado ao ar livre e a Gendarmaria que, mais tarde, ao começar a violência, desempenharam papéis importantes. O tio Ramón destinou uma divisão ao Consulado e pendurou na parede do edifício o escudo e a bandeira do Chile. Nenhuma das minhas novas amizades ouvira vez alguma falar de tal país, pensavam antes que eu devia vir da China. Regra geral naquela época e naquela parte do mundo as raparigas permaneciam enclausuradas em casa e no colégio até ao dia do casamento, se tivessem a desdita de casar, momento esse em que mudavam da prisão paterna para a do marido. Eu era tímida e vivia muito isolada, vi o primeiro filme do Elvis Presley, quando ele já estava gordo. A nossa vida familiar complicou-se, a minha mãe não se adaptava à cultura árabe, ao clima quente, nem ao carácter autoritário do tio Ramón, tinha enxaquecas, alergias e súbitas crises nervosas com alucinações; certa vez tivemos de fazer as malas para regressar a casa do meu avô em Santiago, porque ela jurava que pela janelinha da casa de banho a espiava um padre ortodoxo com todos os seus paramentos litúrgicos. O meu padrasto tinha saudades dos filhos e escasso contacto com eles porque as comunicações com o Chile sofriam atrasos de meses, o que contribuía para a sensação de viver no fim do mundo. A situação económica era muito apertada, o dinheiro era esticado em laboriosas contas semanais e quando sobejava algo íamos ao cinema ou patinar numa pista de gelo artificial, únicos luxos que nos podíamos permitir. Vivíamos com decência, mas a um nível diferente de outros membros do Corpo Diplomático e dos círculos que frequentávamos, entre os quais os clubes privados, os desportos de Inverno, o teatro e as férias na Suíça eram a norma. A minha mãe costurou um vestido comprido de seda que usava nas recepções de gala, transformava-o milagrosamente com uma cauda de brocado, mangas de renda ou um laço de veludo na cintura, mas creio que ninguém reparava no seu atavio, mas apenas no seu rosto. Converteu-se numa perita naquela arte suprema de manter as aparências sem dinheiro, cozinhava pratos baratos, disfarçando-os com sofisticados molhos de sua invenção e servindo-os nas suas famosas bandejas de prata; arranjou-se de modo a que o salão e a casa de jantar luzissem com elegância graças aos quadros trazidos da casa do meu avô e tapetes comprados a crédito nos cais de Beirute, mas o resto era de uma grande modéstia. O tio Ramón mantinha intacto o seu indomável optimismo. Com a minha mãe tinha demasiados problemas, amiúde me interroguei o que os mantivera juntos nesse tempo e a única resposta que me ocorre é a tenacidade de uma paixão nascida na distância, alimentada com cartas românticas e fortalecido por uma verdadeira montanha de inconvenientes. São duas pessoas muito diferentes, não era raro discutirem até à exaustão; alguns dos seus desaguisados eram de tal envergadura que adquiriam nome próprio e ficavam registados no anedotário familiar. Admito que nesse tempo nada fiz para lhes facilitar a convivência; quando compreendi que aquele padrasto chegara às nossas vidas para ficar, declarei-lhe uma guerra sem quartel. Agora custa-me recordar os tempos em que planeava formas atrozes de o matar. O seu papel não foi nada fácil não sei como conseguiu encaminhar aqueles três miúdos Allende que lhe caíram nas mãos. Nunca lhe chamámos papá, porque essa palavra nos trazia más recordações, mas obteve o título de tio Ramón, símbolo de admiração e confiança. Hoje em dia, aos seus setenta e cinco anos, centenas de pessoas repartidas por cinco continentes, incluindo alguns funcionários do Governo e da Academia Diplomática do Chile, chamam-lhe Tio Ramón com os mesmos sentimentos.
Com a ideia de dar uma certa continuidade à minha educação, fui mandada para um colégio inglês de meninas, cujo objectivo era fortalecer o carácter mediante provas de rigor e disciplina, que a mim pouca mossa me faziam porque não fora em vão que sobrevivera incólume aos espantosos Jogos bruscos. Que as alunas decorassem a Bíblia constituía a meta daquele ensino: Deuteronómio capítulo cinco versículo terceiro, ordenava Miss Saint John, e devíamos recitá-lo sem hesitações. Assim aprendi um pouco de inglês e esmerei até ao ridículo o sentido estóico da vida, cuja semente fora plantada pelo meu avô no casarão das correntes de ar. O idioma inglês e a resistência à adversidade têm-me sido bastante úteis, a maior parte das outras aptidões que possuo ensinou-mas o tio Ramón com o seu exemplo e com uns métodos didácticos que a psicologia moderna classificaria de brutais. Foi cônsul-geral em vários países árabes, com sede em Beirute, cidade esplêndida que então era considerada como a Paris do Médio Oriente, onde os camelos e os Cadillacs com pára-choques de ouro dos xeques engarrafavam o trânsito, e as mulheres muçulmanas, cobertas com mantos negros com uma nesga aberta à altura dos olhos, faziam compras no mercado lado a lado com as estrangeiras decotadas. Aos sábados algumas donas de casa da colónia norte-americana lavavam os automóveis de calções curtos e com um pedaço de barriga ao léu. Os homens árabes, que raras vezes viam mulheres sem véu, faziam penosas viagens de burro desde aldeias remotas para assistir ao espectáculo daquelas estrangeiras seminuas. Alugavam-se cadeiras e vendiam-se cafés e doces em calda aos mirones, instalados em filas do outro lado da rua.
No Verão suportávamos um calor húmido de banho turco, mas o meu colégio regia-se pelas normas impostas pela rainha Vitória na brumosa Inglaterra dos fins do século passado. O uniforme era uma saia medieval de tecido grosso atada com tiras porque os botões eram considerados frívolos, sapatorras de aspecto ortopédico e um chapéu de explorador enterrado até às sobrancelhas, capaz de anular as pretensões aos mais ousados. A comida fazia parte do material didáctico utilizado para nos temperar o carácter: todos os dias era servido arroz branco sem sal e duas vezes por semana vinha queimado; às segundas, quartas e sextas era acompanhado com legumes, às terças com iogurte e às quintas com fígado cozido. Custou-me meses a dominar os vómitos diante daqueles pedaços de carne cinzenta a nadar em água quente, mas acabei por achá-los deliciosos e aguardava com ansiedade o almoço das quintas-feiras. Desde então sou capaz de digerir qualquer alimento, inclusive comida inglesa. As alunas vinham de várias regiões e quase todas eram internas - Shirley era a garota mais bonita do colégio, e mesmo com o chapéu do uniforme isso se notava bem; vinha da índia, tinha o cabelo de um negro-azulado, maquilhava os olhos com um pó nacarado e andava com passo de gazela, desafiando a lei da gravidade. Fechadas no quarto de banho, ensinou-me a dança do ventre, que até hoje de nada me serviu pois nunca tive a coragem suficiente para seduzir nenhum homem com esses requebros. Certo dia, acabava ela de fazer quinze anos, tiraram-na do colégio e levaram-na de volta ao seu país, para casá-la com um comerciante cinquentão, escolhido pelos pais, que ela nunca tinha visto; conheceu-o por uma fotografia de estúdio colorida à mão. Elizabeth, a minha melhor amiga, era uma personagem de romance: órfã, tratada como uma criada pelas irmãs que lhe roubaram a sua parte da herança paterna, cantava como um anjo e fazia planos para fugir para a América. Trinta e cinco anos mais tarde encontrámo-nos no Canadá. Realizou os seus sonhos de independência, dirige uma empresa própria, tem uma casa de luxo, automóvel com telefone, quatro casacos de pele e dois cães divertidos, mas ainda chora ao recordar a sua juventude em Beirute. Enquanto Elizabeth poupava tostões para fugir para o Novo Mundo e a formosa Shirley cumpria o seu destino de noiva, as outras estudavam a Bíblia e faziam comentários em surdina sobre um tal Elvis Presley, que ninguém vira nem ouvira cantar, mas de quem se dizia que causava estragos com a sua viola eléctrica e os seus movimentos de pélvis. Eu circulava no autocarro do colégio, era a primeira a recolher de manhã e a última a largar à tarde, passava horas a dar voltas pela cidade, trajecto muito conveniente porque sentia pouca vontade de ir para casa. De qualquer modo, mais tarde ou mais cedo, lá chegava. Amiúde encontrava o tio Ramón em camisola interior, sentado debaixo de uma ventoinha, a abanar-se com o jornal e a ouvir boleros.
- Que te ensinaram as freiras hoje? - era o seu cumprimento.
- Não são freiras, são meninas protestantes. Falámos de Job - retorquia eu, a suar, embora fleumática e digna no meu uniforme patibular.
- Job? Esse tolo que Deus pôs à prova enviando-lhe toda a espécie de desgraças?
- Não era tolo nenhum, tio Ramón, era um santo varão que nunca renegou o Senhor, apesar dos seus sofrimentos.
- Parece-te justo? Deus aposta com Satanás, castiga o pobre homem sem piedade, e além disso pretende que ele o adore. É um deus cruel, injusto e frívolo. Um patrão que se porta assim com os servos não merece lealdade nem respeito, muito menos adoração.
O tio Ramón, educado pelos jesuítas, empregava uma ênfase aterradora e uma lógica implacável as mesmas que utilizava nas zaragatas com a minha mãe para demonstrar a estupidez do herói bíblico; a sua atitude, ao invés de constituir um exemplo louvável, era um problema de personalidade. Em menos de dez minutos de oratória deitava por terra os virtuosos ensinamentos de Miss Saint John.
- Estás convencido de que Job era um pateta?
- Estou, tio Ramón.
- Podes afirmar isso por escrito?
- Posso.
O senhor cônsul atravessava o par de metros que nos separava do seu escritório, redigia em papel selado um documento com três cópias dizendo que eu, Isabel Allende Llona, de catorze anos, cidadã chilena, certificava que Job, o do Antigo Testamento, era um imbecil. Fazia-me assinar, depois de ler cuidadosamente, porque nunca se deve assinar nada às cegas, dobrava o documento e guardava-o no cofre do Consulado. A seguir voltava a sentar-se sob a ventoinha e com um profundo suspiro de aborrecimento dizia-me:
- Bom, filha, agora vou provar-te que tu tinhas razão, que Job era um santo homem de Deus. Vou dar-te os argumentos que devias ter usado se soubesses pensar. Repara que me dou a este trabalho apenas para te ensinar a discutir, o que sempre serve na vida. - E punha-se a desmantelar o seu próprio argumento anterior para me convencer daquilo em que eu acreditava firmemente ao princípio. Pouco depois, eu estava de novo derrotada, desta vez à beira das lágrimas.
- Aceitas que Job fez o que era justo ao permanecer fiel ao seu Senhor apesar de todas as suas desgraças?
- Sim, tio Ramón.
- Tens a certeza absoluta?
- Sim.
- Estás disposta a assinar um documento?
E ele redigia outro humilhante papel no qual se certificava que eu, Isabel Allende Llona, de catorze anos, cidadã chilena, renegava a declaração anterior e afirmava, pelo contrário, que Job era um homem justo. Passava-me a caneta e, quando estava mesmo a pôr o meu nome no pé da página, interrompia-me com um grito:
- Não! Quantas vezes te tenho dito que não dês o braço a torcer? O mais importante para ganhar uma discussão é não hesitar, embora tenhas dúvidas e menos ainda se estiveres enganada.
Assim aprendi a defender-me, e anos mais tarde competi no Chile num debate interescolar contra o Colégio de Santo Inácio, representado por cinco rapazes em atitude de advogados criminalistas e dois padres jesuítas, que lhes assopravam instruções. A equipa masculina apresentou-se com um carregamento de livros que citavam para apoiar os seus argumentos e assustar as adversários. Eu levava como único apoio a lembrança daquelas tardes com o Job e o tio Ramón no Líbano. Perdi, é claro, mas no final as minhas companheiras passearam-me em ombros, enquanto os machos rivais se retiravam altivos com o seu carrinho de argumentos. Não sei quantas declarações com três cópias assinei na minha adolescência sobre os temas mais diversos, desde a mania de roer as unhas até às baleias em vias de extinção. Penso que o tio Ramón guardou durante anos alguns desses testemunhos, como um em que juro que por causa dele não conhecerei homens e ficarei solteirona. Isso foi na Bolívia, quando aos onze anos me deu uma crise por ele não me deixar ir a uma festa onde pensava encontrar o orelhudo dos meus amores. Três anos depois convidaram-me para outra, desta vez em Beirute, em casa dos embaixadores dos Estados Unidos, e eu não quis assistir por prudência, nesse tempo as meninas tinham um papel de rebanho passivo, eu tinha a certeza que nenhum rapaz de juízo são me convidaria para dançar e era difícil imaginar humilhação mais grave do que ficar plantada numa festa. Nessa ocasião o meu padrasto obrigou-me a ir porque, conforme disse, se eu não vencesse os meus complexos nunca teria êxito na vida. Na tarde antes da festa fechou o Consulado e pôs-se a ensinar-me a dançar. Com irredutível tenacidade fez-me mover os ossos ao ritmo da música, primeiro encostada às costas de uma cadeira, depois com uma vassoura e por último com ele. No espaço dessas horas aprendi desde o charleston até ao samba, depois ele limpou-me as lágrimas e levou-me a comprar um vestido. Ao deixar-me na festa deu-me um conselho inesquecível, que apliquei nos momentos cruciais da minha vida: pensa que os outros têm mais medo que tu. Acrescentou que não me sentasse nem um instante, que ficasse de pé junto do gira-discos e não comesse nada, porque os rapazes precisavam de muita coragem para atravessar o salão e aproximar-se de uma menina ancorada como uma fragata numa cadeira e com um prato de torta na mão. Além disso, os poucos rapazes que sabem dançar são os que vão mudar os discos, por isso era conveniente ficar perto do aparelho. A entrada da Embaixada, uma fortaleza de cimento do pior estilo dos anos cinquenta, havia uma gaiola com uns passarões pretos que falavam inglês com pronúncia da Jamaica. Recebeu-me a embaixatriz - vestida de almirante e com um apito pendurado ao pescoço para dar instruções aos convidados – e conduziu-nos a um salão monumental onde se achava uma multidão de adolescentes altos e feios, com as caras cheias de borbulhas, a mascar pastilha elástica, a comer batatas fritas e a beber Coca-Cola. Os rapazes estavam vestidos com casacos aos quadrados e lacinhos ao pescoço, as raparigas usavam saias em forma de pratos e casaquinhos de lá angora que deixavam o ar cheio de pêlos e revelavam invejosas protuberâncias no peito. Eu nada tinha para meter num soutien. Estavam todas de soquetes. Senti-me completamente estranha, o meu vestido era um espantalho de tafetá e veludo, e não conhecia ninguém. Aterrada, pus-me a dar migalhas de bolo aos pássaros pretos até que me lembrei das instruções do tio Ramón e, a tremer, descalcei os sapatos e aproximei-me do gira-discos. Dali a pouco vi uma mão masculina estendida na minha direcção e, sem poder crer em tamanha sorte, fui dançar uma melodia açucarada com um rapaz que tinha correctores de arame nos dentes e os pés chatos, não tendo nem metade da graça do meu padrasto. Dançava-se com as faces encostadas - acho que se dizia cheek-to-cheek - mas isso era uma proeza impossível para mim, porque a minha cara, regra geral, só chega ao externo de um homem normal e naquela festa, tendo eu apenas catorze anos além de estar descalça, chegava ao umbigo do meu par. Aquela canção seguiu-se um disco inteiro de rack’n roll, do qual o tio Ramón nem tinha ouvido falar, mas bastou-me observar os outros durante uns minutos para pôr em prática o que aprendera na véspera. Por uma vez serviram de alguma coisa o meu reduzido tamanho e as minhas articulações soltas; sem qualquer dificuldade os meus pares atiravam-me até ao tecto, faziam-me dar um voltarete de acrobacia no ar e agarravam-me a rasar o chão, mesmo quando estava quase a partir a nuca. Dei por mim a executar saltos ornamentais, erguida, arrastada, enlaçada e sacudida por vários jovens, que por essa altura à tinham tirado os casacos aos quadrados e os lacinhos. Não posso queixar-me, nessa noite não fiquei plantada, como tanto temia, pelo contrário, dancei até fazer bolhas nos pés e assim adquiri a certeza de que conhecer homens não é tão difícil, apesar de tudo, e que certamente não ficaria solteirona, mas não assinei mais documentos a esse respeito. Tinha aprendido a não dar o meu braço a torcer.
O tio Ramón tinha um armário desmontável de três corpos, que levava nas suas viagens, onde fechava à chave a sua roupa e os seus tesouros: uma colecção de revistas eróticas, pacotes de cigarros, caixas de chocolates e bebidas. O meu irmão Juan descobriu a maneira de abri-lo com um arame enroscado e assim nos convertemos em peritos gatunos. Se tivéssemos tirado uns quantos chocolates ou cigarros, tinha-se notado, mas nós planávamos uma placa completa de bombons e voltávamos a fechar a caixa com tal perícia que parecia intacta, e subtraíamos os cigarros aos pacotes, nunca por unidades nem maços. O tio Ramón teve as primeiras suspeitas em Lá Paz. Chamou-nos um por um, em separado, e tentou obter uma confissão ou uma denúncia do culpado, mas de nada lhe serviram palavras doces nem castigos, admitir o delito parecia-nos uma estupidez, e no nosso código moral uma traição entre irmãos era imperdoável. Uma sexta-feira à tarde, ao regressarmos do colégio, encontrámos o tio Ramón com um homem desconhecido à nossa espera na sala.
- Estou farto da falta de honestidade que reina nesta família, o mínimo que posso exigir é que não me roubem na minha própria casa. Este senhor é um detective da polícia. Vai tirar as impressões digitais dos três, compará-las com as marcas no meu armário e assim saberemos quem é o ladrão. Esta é * última oportunidade para confessarem a verdade...
Pálidos de terror, os meus irmãos e eu baixámos a vista, e apertámos os dentes.
- Sabem o que acontece aos delinquentes? Apodrecem na prisão - acrescentou o tio Ramón.
O detective tirou da algibeira uma caixa de lata. Ao abri-la vimos que continha uma pequena almofada impregnada de tinta preta. Lentamente, com grande cerimónia, começou a sujar-nos os dedos um por um e a registar as nossas impressões numa folha de cartolina.
- Não se preocupe, senhor cônsul, na segunda-feira terá os resultados da minha investigação - e o homem despediu-se.
O sábado e o domingo foram dias de suplício moral para nós, escondidos na casa de banho e nos recantos mais isolados do jardim antevíamos em murmúrios o nosso negro futuro. Nenhum de nós estava isento de culpa, iríamos todos parar a uma masmorra onde nos alimentariam com água suja e côdeas de pão duro, como o conde de Montecristo. Na segunda-feira o inefável tio Ramón convocou-nos para o escritório.
- Já sei exactamente quem é o bandido - anunciou, fazendo girar as suas grandes sobrancelhas satânicas. - No entanto, por consideração pela vossa mãe, que intercedeu em vosso favor, por esta vez não o mando prender. O criminoso sabe que eu sei quem é. Isto fica entre nós dois, Aviso-os que da próxima vez não serei tão benevolente, está percebido?
Saímos a tropeçar, agradecidos, sem podermos acreditar em tanta magnanimidade. Não voltámos a roubar durante muito tempo, mas alguns anos depois, quando estávamos em Beirute, pensei melhor no assunto e entranhou-se-me a suspeita de que o presumido detective fosse um motorista da Embaixada, o tio Ramón era bem capaz de nos pregar essa partida. Utilizando outro arame torcido abri de novo o armário e, dessa vez, encontrei, além dos previsíveis tesouros, quatro volumes encadernados em carneira vermelha: As Mil e Uma Noites. Deduzi que sem dúvida existia uma razão poderosa para que aqueles livros estivessem fechados à chave e por essa razão interessaram-me muito mais que os bombons, os cigarros ou as mulheres com cintos de ligas das revistas eróticas. Durante os três anos seguintes li-os dentro do armário à luz da minha velha pilha, nas horas em que o tio Ramón e a minha mãe iam a coquetéis e a jantares. Apesar de os diplomatas sofrerem por obrigação de uma intensa vida social, nunca me chegava o tempo para acabar aquelas histórias fabulosas. Quando os ouvia chegar tinha de fechar o armário a toda a pressa e voar até à minha cama, fingindo-me a dormir. Era impossível deixar marcas entre as páginas ou lembrar-me em qual tinha ficado e como além disso saltava páginas à cata das partes escabrosas, os personagens fundiam-se, colavam-se as aventuras e assim fui criando inúmeras versões dos contos, uma orgia de palavras exóticas, de erotismo e fantasia. O contraste entre o puritanismo do colégio, que exaltava o trabalho e não admitia as necessidades básicas do corpo nem os relâmpagos da imaginação, e o ócio criativo e a sensualidade avassaladora daqueles livros marcou-me definitivamente. Durante décadas oscilei entre essas duas tendências, esquartejada por dentro e perdida num mar de confusos desejos e pecados, até que finalmente no calor da Venezuela, quando pouco me faltava para fazer quarenta anos, me consegui libertar dos rígidos preceitos de Miss Saint John. Tal como devorei os melhores livros da minha infância escondida na cave da casa do Vovô, li à sucapa As Mil e Uma Noites em plena adolescência, exactamente quando o meu corpo e a minha mente despertavam para os mistérios do sexo. Dentro do armário perdi-me em contos mágicos de príncipes que viajavam em tapetes voadores, de génios fechados em lamparinas de azeite, de simpáticos bandidos que se introduziam no harém do sultão disfarçados de velhas, para brincar incansáveis, com mulheres proibidas de cabelos negros como a noite, nádegas abundantes e seios de maçã, perfumadas com almíscar, doces e sempre dispostas ao prazer. Nessas páginas, o amor, a vida e a morte tinham um carácter lúdico: as descrições da comida, das paisagens, palácios, mercados, aromas, sabores e texturas eram de uma tal riqueza, que para mim o mundo nunca mais voltou a ser o mesmo.
- Sonhei contigo aos doze anos, Paula. Tinhas um sobretudo aos quadrados, o cabelo comprido atado a meia cauda com uma fita branca e o resto solto sobre os ombros. Estavas de pé no centro de uma torre oca, como um silo de cereais, onde voavam centenas de pombos. A voz da Vovó dizia-me: A Paula morreu. Eu corria para te agarrar pelo cinto do sobretudo, mas tu começavas a erguer-te no ar, arrastando-me contigo e flutuávamos leves, subindo em círculos; vou contigo, leva-me, filha, suplicava-te. A voz da minha avó voltava a ouvir-se na torre: Ninguém pode ir com ela, bebeu a poção da morte. Continuávamos a subir, a subir, tu com asas, e eu decidida a segurar-te, nada me separaria de ti. Lá em cima havia uma pequena abertura pela qual se via um céu azul com uma nuvem branca e perfeita, como um quadro de Magritte, e então percebi horrorizada que tu podias seguir, mas que o orifício era demasiado estreito para mim. Tentava agarrar-te pela roupa, chamava por ti mas a voz não me saía da garganta. Sorrindo vagamente, tu fugias dizendo-me adeus com a mão. Durante uns instantes deliciosos podia ver como te afastavas cada vez mais para o alto, e então eu começava a descer para dentro da torre no meio de um turbilhão de pombas.
Acordei a gritar pelo teu nome e demorei alguns minutos a recordar que estava em Madrid e a reconhecer o quarto do hotel. Vesti-me a correr, sem dar tempo à minha mãe para me deter, e abalei para o hospital. Pelo caminho consegui apanhar um táxi e daí a pouco batia freneticamente à porta dos Cuidados Intensivos. Uma enfermeira garantiu-me que não te acontecera nada, tudo estava na mesma, mas tanto supliquei e tão angustiada me viu, que me permitiu entrar para te ver por uns instantes. Comprovei que a máquina continuava a soprar-te ar nos pulmões e não estavas fria, dei-te um beijo na testa e saí à espera do amanhecer. Dizem que os sonhos não mentem. A minha mãe chegou com o alvorecer. Trazia um termo com café acabado de fazer e umas rosquilhas, ainda mornas, compradas no caminho.
- Acalma-te, não é um mau presságio, isso não tem nada a ver com a Paula. Tu és todas as personagens do sonho - explicou-me. - Es a menina de doze anos que ainda pode voar livremente. Nessa idade perdeste a inocência, morreu a menina que tu eras, ingeriste a poção da morte que todas as mulheres bebem mais tarde ou mais cedo. Reparaste que na puberdade acaba a nossa energia de amazonas que nos acompanhava desde o berço e nos convertemos em seres castrados e cheios de dúvidas? A mulher que fica fechada no silo também és tu, presa pelas limitações da vida adulta. A condição feminina é uma desgraça, filha, é como ter pedras atadas aos calcanhares, não se pode voar.
- E que significam as pombas, mamã?
- O espírito transtornado, creio eu...
Todas as noites os sonhos me esperam escondidos debaixo da cama, com a sua carga de visões terríveis, campanários, sangue, lúgubres lamentações, mas também com uma colheita sempre fresca de imagens furtivas e felizes. Tenho duas vidas, uma acordada e a outra a dormir. No mundo dos sonhos há paisagens e pessoas que já conheço, nele exploro infernos e paraísos, voo pelo céu negro do cosmo e desço ao fundo do mar onde reina o silêncio verde, encontro dezenas de crianças de todos os feitios, e também animais impensáveis e os delicados fantasmas dos mortos mais queridos. Ao longo dos anos tenho aprendido a decifrar os códigos e a entender as chaves dos sonhos, agora as mensagens são mais nítidas e servem-me para clarificar as zonas misteriosas da existência quotidiana e da escrita.
Voltemos a Job, em quem pensei muito nestes dias. Creio que a tua doença é uma provação, como as que teve de suportar aquele desgraçado. É muito soberba da minha parte imaginar que jazes nessa cama para que nós, os que esperamos no corredor dos passos perdidos, aprendamos algumas lições, mas a verdade é que por momentos creio nisso. Que queres tu ensinar-nos, Paula? Mudei muito nestas intermináveis semanas, todos os que vivemos esta experiência nos modificámos, sobretudo o Ernesto, que parece ter envelhecido um século. Como posso consolá-lo se eu própria estou desesperada? Pergunto a mim própria se voltarei a ter vontade de rir, a abraçar uma causa, a comer com gosto ou a escrever romances. Certamente que sim, pouco falta para festejares a vida com a tua filha e nem te lembrarás deste pesadelo, promete-me a minha mãe, apoiada pelo especialista em porfiria, o qual garante que uma vez ultrapassada a crise, os pacientes recuperam completamente, mas tenho um mau pressentimento, filha, não posso negá-lo, isto dura há demasiado tempo e não te vejo melhorar, parece-me que estás pior. A tua avó não se dá por vencida, mantém as rotinas normais, tem coragem para ler o jornal e até para sair às compras; a única coisa de que me arrependo na vida é daquilo que não comprei, diz esta mulher pecadora. Estamos aqui há muito tempo, quero voltar para casa. Madrid traz-me más recordações, passei aqui penas de amor que prefiro esquecer, mas com esta tua desgraça reconciliei-me com a cidade e os seus habitantes, aprendi a deslocar-me pelas suas largas avenidas senhoriais e os seus bairros antigos de ruelas retorcidos, aceitei os costumes espanhóis de fumar, tomar café e licores em excesso, deitar-se ao amanhecer, ingerir quantidades mortíferas de gordura, não fazer exercícios e rir-se do colesterol. No entanto, as pessoas daqui vivem tanto como os californianos, simplesmente muito mais contentes. As vezes jantamos num restaurante familiar do bairro, sempre no mesmo porque a minha mãe se apaixonou pelo estalajadeiro, gosta dos homens feios e este podia ganhar um concurso: na parte de cima é maciço, corcunda, com grandes braços de orangotango, e para baixo um anão com perninhas como palitos. Ela segue-o com um olhar seduzido, costuma ficar a contemplá-lo com a boca aberta e a colher no ar. Durante setenta anos cultivou a fama de mulher mimada, acostumámo-nos a evitar-lhe emoções fortes por acharmos que não lhes resiste, mas nesta altura saiu a reluzir o seu carácter de toiro de lide.
Na dimensão do cosmo e no trajecto da história somos insignificantes, depois da nossa morte tudo continua na mesma, como se jamais tivéssemos existido, mas na medida da nossa precária humanidade, tu, Paula, és para mim mais importante do que a minha própria vida e do que a soma de quase todas as vidas alheias. Todos os dias morrem setenta milhões de pessoas e nascem mais ainda, no entanto só tu nasceste, só tu podes morrer. A tua avó reza por ti ao seu deus cristão e eu faço-o por vezes a uma deusa pagã e sorridente que derrama bens, uma deusa que não conhece castigos, mas sim perdões, e eu falo-lhe com a esperança de que me ouça lá no fundo dos tempos e te ajude. Nem a tua avó nem eu temos resposta, estamos perdidas neste silêncio abissal. Penso na minha bisavó, na minha avó clarividente, na minha mãe, em ti e na minha neta que há-de nascer em Maio, uma firme cadeia feminina que remonta à primeira mulher, a mãe universal. Devo mobilizar essas forças nutritivas para a tua salvação. Não sei como alcançar-te, chamo por ti mas não me ouves, por isso te escrevo. A ideia de encher estas páginas não foi minha, há várias semanas que não tomo iniciativas. Mal teve conhecimento da tua doença a minha agente veio dar-me apoio. Como primeira medida arrastou-nos, à minha mãe e a mim, para uma estalagem onde nos tentou com um leitão assado e uma garrafa de vinho de Rioja, que nos caíram como pedras no estômago, mas que também tiveram a virtude de nos devolver o riso; depois surpreendeu-nos no hotel com dúzias de rosas vermelhas, torrões de Alicante e um salsichão de aspecto obsceno - o mesmo que ainda nos serve para as sopas de lentilhas - e depôs no meu colo uma resma de papel amarelo com linhas.
- Toma, escreve e desabafa, se não o fizeres morres de angústia, minha pobrezinha.
- Não consigo, Carmen, algo se fez em tiras cá dentro de mim, talvez nunca mais volte a escrever.
- Escreve uma carta à Paula... Há-de ajudá-la a saber o que aconteceu durante este tempo em que está adormecida.
Assim me entretenho nos momentos vazios deste pesadelo.
Saberás que sou a tua mãe quando acordares, Paula? A família e os amigos não falham, à tarde vêm tantas visitas que parecemos uma tribo de índios, alguns vêm de muito longe, passam cá uns dias e depois regressam às suas vidas normais, incluindo o teu pai, que tem um edifício a meio de construção no Chile e já teve de voltar. Nestas semanas partilhando a dor no corredor dos passos perdidos voltei a recordar os bons momentos da nossa juventude, foram-se apagando os pequenos rancores e aprendi a estimar o Michael como um velho e leal amigo, tenho por ele uma consideração sem exuberâncias, custa-me imaginar que alguma vez fizemos amor ou que para o fim da nossa relação o tenha chegado a detestar. Duas amigas e o meu irmão Juan chegaram dos Estados Unidos, o tio Ramón do Chile e o pai de Ernesto directamente da selva amazónica. Nicolás não pode viajar, o seu visto não lhe permite regressar aos Estados Unidos, além de não poder deixar a Célia e o menino, é melhor assim, prefiro que o teu irmão não te veja neste estado. E veio também o Willie, que cruza o mundo cada duas ou três semanas para passar um domingo comigo e nos amarmos como se fosse a última vez. Vou esperá-lo ao aeroporto para não perder nem um minuto da sua presença; vejo-o desembarcar e arrastar o carrinho com a bagagem, uma cabeça acima das dos outros, com os olhos azuis a procurar-me ansiosos entre a multidão. o seu sorriso luminoso quando me avista ao longe, corremos um para o outro e eu sinto o seu abraço apertado que me levanta do chão, o cheiro do seu casaco de cabedal, o contacto áspero da sua barba de vinte horas e os seus lábios a esmagar os meus, e depois a corrida de táxi agachada sob o seu braço, as suas mãos de dedos compridos a reconhecer-me e a sua voz no meu ouvido murmurando em inglês Meu Deus que saudades tive de ti, como tu emagreceste, que ossos são estes, e de repente lembra-se por que razão estamos separados e noutro tom de voz pergunta-me por ti, Paula. Vivemos juntos há mais de quatro anos e continuo a sentir por ele a mesma indefinível alquimia do primeiro dia, uma atracção poderosa que o tempo tem matizado com outros sentimentos, mas que continua a ser a matéria primordial da nossa união. Não sei em que consiste nem como defini-la, porque não é apenas sexual, embora eu assim tenha julgado ao princípio; ele sustenta que somos dois lutadores impulsionados pelo mesmo tipo de energia, que juntos temos a força de um comboio a toda a velocidade, que podemos alcançar qualquer meta, unidos somos invencíveis, diz ele. Ambos confiamos em que o outro nos protege as costas, não atraiçoa, não mente, ampara os momentos de fraqueza, ajuda a manter o leme quando se perde o rumo. Creio que há ainda uma componente espiritual, se acreditasse na reencarnação pensaria que o nosso carma é encontrar-nos e amar-nos em cada vida, mas não vou ainda falar-te disso, Paula, porque irias ficar confusa. Nestes encontros de urgência misturam-se desejo e tristeza, agarro-me ao seu corpo procurando prazer e consolo, duas coisas que este homem sofrido sabe dar, mas a tua imagem, filha, sumida nesse sono mortal, atravessa-se entre nós e os beijos tornam-se gelados.
- A Paula não voltará a estar com o marido por muito tempo, talvez nunca mais. Ernesto ainda não tem trinta anos e a mulher pode ficar inválida para o resto dos seus dias... Porque lhe calhou a ela e não a mim, que já vivi e amei sobejamente?
- Não penses nessas coisas. Há muitas maneiras de fazer amor - diz-me Willie.
É verdade, o amor possui recursos inesperados. Nos escassos minutos que podem passar juntos, o Ernesto beija-te e abraça-te, apesar da teia de tubos que te envolvem. Acorda, Paula, estou à tua espera, sinto saudades, preciso de ouvir a tua voz, sinto-me tão cheio de amor que vou rebentar, volta por favor, suplica-te ele. Imagino-o à noite, ao regressar à casa vazia e ao deitar-se nessa cama onde dormia contigo e que ainda conserva as marcas dos teus ombros e das tuas ancas. Deve sentir-te a seu lado, o teu fresco sorriso, a tua pele como quando te acariciava, o silêncio repartido em harmonia, os segredos de namorados ditos a meia-voz. Lembra-se daquelas ocasiões em que saíam para dançar até ficarem embriagados de canções, tão habituados aos passos um do outro que pareciam um único corpo. Vê-te a moveres-te como um junco, a tua longa cabeleira solta envolvendo os dois ao ritmo da música, os teus braços delgados em volta do seu pescoço, a tua boca na sua orelha. Ah, essa tua graça, Paula! O teu ar suave, a tua imprevisível intensidade, a tua feroz disciplina intelectual, a tua generosidade, a tua aloucada ternura. Tem saudade das tuas graças, dos teus risos, das tuas lágrimas ridículas no cinema e o teu sério pranto quando te comovia o sofrimento alheio. Lembra-se de quando te escondeste em Amsterdão e ele corria como um doido aos gritos no mercado dos queijos, perante o olhar atónito dos comerciantes holandeses. Acorda alagado em suor, senta-se na cama às escuras, tenta rezar, concentrar-se na respiração à procura de paz, como aprendeu no aikido. Talvez se abeire da varanda para olhar as estrelas no céu de Madrid e repete para consigo que não pode perder a esperança, tudo acabará em bem, dentro em pouco estarás de novo a seu lado. Sente o sangue a latejar nas frontes, as veias palpitantes, calor no peito, abafa, então veste umas calças e sai correndo pelas ruas desertas, mas nada consegue apaziguar a inquietude do desejo frustrado. O vosso amor mal acaba de se estrear, é a primeira página de um caderno em branco. Ernesto é uma alma velha, mamã, disseste-me certa vez, mas não perdeu a inocência, é capaz de brincar, de se espantar, de me querer e me aceitar, sem julgamentos, tal como querem as crianças; desde que vivemos juntos alguma coisa se abriu dentro de mim, eu mudei, vejo o mundo de outra forma e eu própria me amo mais, porque me vejo através dos seus olhos. Por seu lado, o Ernesto confessou-me nos momentos de maior pânico que não imaginara encontrar o arrebatamento visceral que sente quando te abraça, és o seu complemento perfeito, ama-te e deseja-te até aos limites da dor, arrependesse de cada hora em que estiveram separados. Como podia eu saber que íamos dispor de tão pouco tempo? disse-me ele a tremer. Sonho com ela, Isabel, sonho incansavelmente em estar a seu lado de novo e fazer amor até à inconsciência, não consigo explicar-te estas imagens que me assaltam, que só ela e eu conhecemos, esta sua ausência é uma brasa que me queima, não deixo de pensar nela nem um instante, a sua lembrança não me abandona, Paula é para mim a única mulher, a minha companheira sonhada e encontrada. Que estranha é a vida, filha! Até há pouco tempo eu era para o Ernesto uma sogra distante e um tanto formal, hoje somos confidentes, amigos íntimos.
O hospital é um gigantesco edifício atravessado por corredores, onde nunca é de noite nem muda a temperatura, o dia deteve-se nas lâmpadas e o Verão nos aquecedores. As rotinas repetem-se com ardilosa precisão; e o reino da dor, aqui chega-se para sofrer, assim o compreendemos todos. As misérias da doença iguala-nos, não há ricos nem pobres, ao atravessar este umbral os privilégios desfazem-se em fumo e tornamo-nos humildes.
O meu amigo Ildemaro chegou no primeiro voo que conseguiu em Caracas, durante uma interminável greve de pilotos, e ficou comigo uma semana. Há mais de dez anos que este homem culto e afável tem sido para mim um irmão, mentor intelectual e companheiro de caminhada nos tempos em que eu me sentia desterrada. Ao abraçá-lo senti uma certeza absurda, imaginei que a sua presença te faria reagir, que ao ouvir-lhe a voz acordarias. Fez valer o seu estatuto de médico para interrogar os especialistas, examinou-te dos pés à cabeça com aquele cuidado que o distingue e com o carinho especial que sente por ti. Ao sairmos pegou-me na mão e levou-me a andar pelos arredores do hospital. Fazia muito frio.
- Como achas a Paula?
- Muito mal...
- A porfiria é assim. Garantem-me que ficará completamente curada.
- Gosto demasiado de ti para te mentir, Isabel.
- Diz-me então o que pensas. Achas que pode morrer?
- Sim - respondeu após uma longa pausa.
- Pode ficar em coma muito tempo?
- Espero que não, mas essa também é uma possibilidade.
- E se não acordar mais, Ildemaro...?
Ficámos em silêncio sob a chuva.
Tento não cair em sentimentalismos, que tanto horror te provocam, filha, mas terás de desculpar-me se de repente me vou abaixo. Estarei a ficar louca? Não dou pelos dias, não me interessam as notícias do mundo, as horas arrastam-se penosamente numa espera eterna. O momento de te ver é muito breve, mas o tempo gasta-me aguardando-o. Duas vezes por dia abre-se a porta dos Cuidados Intensivos e a enfermeira de serviço chama pelo nome do doente. Quando diz Paula entro a tremer, não há nada a fazer, não consegui habituar-me a ver-te sempre adormecida, ao ronronar do aparelho de respiração, às sondas e agulhas, aos teus pés com ligaduras e aos teus braços cheios de nódoas negras. Enquanto me dirijo apressada à tua cama pelo corredor branco que se alonga interminavelmente, imploro a ajuda da Vovó, da Granny, do Vovô e de muitos espíritos amigos, vou rogando para que estejas melhor, que não tenhas febre nem o coração agitado, que respires sossegadamente e que a tensão esteja normal. Cumprimento as enfermeiras e Don Manuel, que piora de dia para dia, já mal consegue falar. Inclino-me para ti e às vezes esmago um cabo qualquer e dispara logo um alarme, examino-te dos pés à cabeça, observo os números e linhas nos ecrãs, os apontamentos no livro aberto sobre uma mesa aos pés da cama, tarefas inúteis porque eu nada entendo, mas por meio destas breves cerimónias do desespero tu tornas a pertencer-me, como quando eras bebé e dependias por completo de mim. Ponho as mãos sobre a tua cabeça e o teu peito e tento transmitir-te saúde e energia; vejo-te como se estivesse dentro de uma pirâmide de cristal, isolada do mal num espaço mágico onde te podes curar. Chamo-te pelos nomes carinhosos que te tenho dado ao longo da tua vida e digo-te mil vezes amo-te, Paula, amo-te, repito-o vezes sem conta até que alguém me toca no ombro e anuncia que a visita terminou, que tenho de sair. Dou-te um último beijo e encaminho-me lentamente para a saída. Lá fora espera a minha mãe. Faço-lhe um gesto optimista com o polegar para cima e as duas tentamos um sorriso. As vezes não conseguimos.
Silêncio, procuro o silêncio. os ruídos do hospital e da cidade entraram-me nos ossos, anseio pela quietude da natureza, pela paz da minha casa na Califórnia. O único sítio sem barulho no hospital é a capela, é lá que procuro refúgio para pensar, ler e escrever-te. Acompanho a minha mãe à missa, durante a qual estamos regra geral sozinhas, o sacerdote oficia apenas para as duas. Suspenso sobre o altar e enquadrado por mármore negro, sangra um Cristo coroado de espinhos, não posso olhar para aquele corpo torturado. Desconheço a liturgia, mas de tanto ouvir as palavras rituais começa a comover-me a força do mito: pão e vinho, frutos da terra e do trabalho do homem, convertidos em corpo e sangue de Cristo. A capela fica nas traseiras da sala de Cuidados Intensivos, para lá chegarmos temos de dar a volta inteira ao edifício; calculei que a tua cama se encontra exactamente do outro lado da parede e posso dirigir o pensamento em linha recta para ti. A minha mãe garante que não vais morrer, Paula. Está a negociar o assunto directamente com o céu, Diz-lhe que tens vivido ao serviço do próximo e que ainda podes fazer muito bem neste mundo, a tua morte seria uma perda absurda. A fé é um presente, Deus olha-te nos olhos e diz o teu nome, é assim que te escolhe, mas a mim apontou-me com o dedo para me encher de dúvidas. A incerteza começou aos sete anos, no dia da minha Primeira Comunhão, quando avancei pela nave da igreja vestida de branco, com um véu na cabeça, um rosário numa mão e um círio ornado com um laço na outra. Éramos cinquenta meninas a marchar em duas filas aos acordes do órgão e o coro das noviças. Tínhamos ensaiado tantas vezes que durante o acto rememorei cada gesto, mas perdeu-se-me o objectivo do sacramento. Sabia que mastigar a hóstia consagrada significava condenação mais que certa às chamas do inferno, mas já não me lembrava de que era Jesus que eu recebia. Ao aproximar-me do altar, a minha vela partiu-se ao meio. Quebrou-se sem qualquer intenção, a parte de cima ficou pendurada da mecha, como o pescoço de um cisne morto, e eu senti que lá do alto me haviam assinalado entre as companheiras para me castigar por algum pecado que talvez tivesse esquecido de confessar na véspera. Na realidade, eu tinha elaborado uma lista de pecados capitais para impressionar o sacerdote, não queria maçá-lo com ninharias e também calculei que se cumprisse penitência por pecados mortais, embora os não tivesse cometido, no lote ficavam perdoados os veniais. Confessei tudo o possível e imaginável, embora em certos casos não soubesse os significados: homicídio, fornicação, mentira, adultério, maus actos contra os meus pais, pensamentos impuros, heresia, inveja... O padre ouviu-me num silêncio pasmado, depois ergueu-se pesaroso, fez um sinal à freira, cochicharam um bocado e a seguir ela pegou-me num braço, levou-me para a sacristia e com um fundo suspiro lavou-me a boca com sabão e mandou-me rezar três Ave-Marias. A tarde a capela do hospital fica iluminada apenas com velas votivas. Ontem surpreendi lá dentro Ernesto e o pai dele, com as cabeças entre as mãos, os largos ombros descaídos, a não me atrevi a aproximar-me. São muito parecidos, são ambos altos, morenos e firmes, com traços mouriscos e uma maneira de se moverem que é um misto raro de virilidade e gentileza. O pai tem a pele curtida pelo sol, o cabelo cinzento muito curto e rugas fundas, como cicatrizes de facadas, que falam das suas aventuras na selva e de quarenta anos a viver em plena natureza. Parece indomável, por isso me comovi ao vê-lo assim ajoelhado. Converteu-se na, sombra do filho, não o deixa nunca só, tal como a minha mãe não sai de ao pé de mim, acompanha-o às sessões de aikido e leva-o a caminhar pelos campos horas e horas, até ambos se sentirem exaustos. Tens de queimar energias, diz-lhe ele, senão explodes. A mim leva-me até ao parque quando o dia está limpo, põe-me de cara para o sol e diz-me para fechar os olhos e sentir o calor na pele e ouvir os sons dos pássaros, da água, do trânsito ao longe, para ver se me acalmo. Mal soube da doença da nora voou desde as profundidades amazónicas para vir ter com o filho; não gosta das cidades nem das aglomerações, sente-se abafar no hospital, as pessoas incomodam-no, anda num vaivém pelo corredor dos passos perdidos com a impaciência triste de uma fera enjaulada. És mais valente que o mais macho dos homens, Isabel, diz-me com seriedade, e eu sei que é a coisa mais elogiosa que pode pensar de mim este homem acostumado a matar serpentes à catanada.
Médicos de outros hospitais vêm examinar-te, nunca viram um caso de porfiria tão complicado, converteste-te numa referência e temo que fiques famosa nos textos de medicina; a doença atingiu-te como um raio, sem poupar nada. O teu marido é a única pessoa tranquila, todos os outros estão aterrados, mas também ele fala da morte e de outras hipóteses piores.
- Sem a Paula nada faz sentido, nada vale a pena, desde que ela fechou os olhos acabou-se a luz do mundo - diz ele. - Deus não ma pode arrebatar, para que nos juntou então? Temos tanta vida que partilhar ainda! Esta é uma provação brutal, mas vamos vencê-la. Conheço-me bem, sei que nasci para a Paula e ela para mim, nunca a abandonarei, nunca amarei outra, protegê-la-ei e tratarei dela sempre. Mil coisas hão-de suceder, talvez a doença ou a morte nos separem fisicamente, mas estamos destinados a reunir-nos e estar juntos na eternidade. Eu posso esperar.
- Vai recuperar completamente, Ernesto, mas a convalescença será demorada, prepara-te para isso. Vais levá-la para casa, tenho a certeza. Fazes ideia de como será esse dia?
- Penso nisso a cada instante. Terei de subir os três andares com ela nos braços... Vou encher-lhe o apartamento de flores...
Nada o assusta, considera-se teu companheiro em espírito, a salvo das vicissitudes da vida ou da morte, não o alarmam o teu corpo imóvel nem a tua mente ausente, diz-nos que está em contacto com a tua alma, que tu consegues ouvi-lo, que sentes, te comoves e não és um vegetal, como provam as máquinas a que estás ligada. Os médicos encolhem os ombros, cépticos, mas as enfermeiras comovem-se diante desse amor obstinado e por vezes deixam-no visitar-te a horas interditas porque comprovaram que quando te pega na mão, os sinais nos ecrãs modificam-se. Talvez se possa medir a intensidade dos sentimentos com os mesmos aparelhos que vigiam as pulsações do coração.
Mais um dia de espera, menos um de esperança. Um dia mais de silêncio, um dia menos de vida. A morte anda à solta pelos corredores e a minha missão é distraí-la para que não dê com a tua porta.
- Que longa e confusa é a vida, mamã!
- Ao menos podes contá-la para a tentar entender replicou.
O Líbano nos anos 50 era um país florescente, uma ponte entre
a Europa e os riquíssimos emirados árabes, cruzamento natural de várias culturas, torre de Babel onde se falava uma dúzia de línguas. O comércio e as transacções bancárias de toda a região pagavam o seu tributo a Beirute, aonde chegavam por terra caravanas a abarrotar de mercadorias, pelo ar os aviões da Europa com as últimas novidades e por mar os barcos que tinham de esperar vez para atracar no porto. Mulheres cobertas de véus negros, carregadas com volumes, arrastando os filhos, andavam apressadas pelas ruas sempre com a vista baixa, enquanto os homens ociosos conversavam nos cafés. Burros, camelos, autocarros pinhados de gente, motocicletas e automóveis paravam simultaneamente nos semáforos, pastores com as mesmas vestes dos seus antepassados bíblicos cruzavam as avenidas conduzindo manadas de ovelhas a caminho do matadouro. Várias vezes por dia, a voz aguda do muezim chamava à oração desde os minaretes das mesquitas, fazendo coro com os sinos das igrejas cristãs. Nas lojas da capital oferecia-se o melhor do mundo, mas o mais atraente para nós era percorrer os zuks, labirintos de vielas estreitas marginadas por um sem fim de vendas onde era possível comprar desde ovos frescos até relíquias faraónicas. Ah! o cheiro dos zuks! Todos os aromas do planeta fluíam por aquelas ruazinhas, tufos de exóticos manjares, fritos em gordura de borrego, pastéis de massa folhada, nozes e mel, sargetas abertas onde flutuavam lixo e excrementos, suor de animais, tinturas de peles e cabedais, asfixiantes perfumes de incenso e patchouli , café acabado de ferver com sentes de cardamoma, especiarias do Oriente: canela, cominhos, pimenta, açafrão... Por tora os bazares pareciam insignificantes, mas cada um deles estendia-se no interior numa série de recintos fechados onde reluziam lâmpadas, bandejas e ânforas de ricos metais com intrincados desenhos caligráficos. Os tapetes cobriam o chão em várias camadas, havia-os pendurados nas paredes, amontoados e enrolados pelos cantos; móveis de talha com incrustações de nácar, marfim e bronze desapareciam sob pilhas de toalhas e pantufas bordadas. Os comerciantes saíam ao encontro dos clientes e levavam-nos quase de rastos para o interior daquelas cavernas de Ali-Babá atafulhadas de tesouros, punham à sua disposição bacias para enxaguarem os dedos com água de rosas e serviam-lhes um café muito escuro a açucarado, o melhor do mundo. Regatear fazia parte essencial das compras, e assim o entendeu a minha mãe desde o primeiro dia. Ao preço de abertura ela replicava com uma expressão horrorizada, erguia as mãos ao céu e dirigia-se para a porta num passo decidido. O vendedor pegava-lhe num braço e empurravas lá para dentro alegando que aquela era a sua estreia do dia, que ele era sua irmã, que lhe daria sorte e por isso estava disposto a ouvir a sua proposta, embora na realidade o objecto fosse o único e o preço mais que justo. A minha mãe, impassível, oferecia metade, enquanto o resto da família saía aos tropeções, vermelhos de vergonha. O dono da loja batia com os punhos nas frontes e invocava Alá como sua testemunha. Queres arruinar-me, irmã? Tenho filhos, sou um homem honesto... Após três chávenas de café e quase uma hora de regateio, o objecto mudava de dono. O mercador sorria satisfeito e a minha mãe vinha ter connosco à viela com a certeza de ter comprado uma pechincha. As vezes encontrava duas lojas mais adiante a mesma coisa à venda por muito menos do que tinha pago, isso estragava-lhe o dia, mas não a curava da tentação de voltar a comprar. Foi assim como numa viagem a Damasco negociou o tecido para o meu vestido de noiva. Eu acabava de fazer catorze anos e não mantinha qualquer relação com uma pessoa do sexo oposto, salvo com os meus irmãos, o meu padrasto e o filho de um abastado comerciante libanês que costumava visitar-me de vez em quando sob a vigilância dos seus pais e dos meus. Era tão rico que tinha uma motoreta com condutor. Em plena febre das Vespas italianas chateou tanto o pai até que ele lhe comprou uma, mas não quis correr o risco de o seu primogénito se estampar com aquele veículo suicida e arranjou-lhe um condutor para transportar o miúdo montado na traseira. Em todo o caso, eu meditava na ideia de ir para freira para disfarçar que não arranjaria marido e fiz ver isso à minha mãe no mercado de Damasco, mas ela insistiu: parvoíces, disse ela, esta é uma oportunidade única. Saímos do bazar com metros e metros de organdi branco bordado a fio de seda, além de várias toalhas para o futuro enxoval e de um biombo que duraram três décadas, inúmeras viagens e exílio.
O aliciante daqueles trapos não bastava para que a minha mãe se sentisse à vontade no Líbano, vivia com a sensação de estar prisioneira da sua própria pele. As mulheres não deviam andar sozinhas, no meio de uma confusão qualquer uma mão viril desrespeitosa podia surgir para as ofender, e se tentavam defender-se eram apupadas por um coro de gracejos agressivos. A dez minutos da nossa casa havia uma praia interminável de areia branca e mar tépido, que convidava a refrescar-nos na canícula das tardes de Agosto. Devíamos tomar banho em família, num grupo fechado para nos protegermos das manápulas dos outros banhistas; era impossível deitarmo-nos na areia, equivalia a chamar a desgraça, mal tirávamos a cabeça fora da água corríamos para nos refugiar numa barraca que alugávamos para esse fim. O clima, as diferenças culturais, o esforço para falar francês a gargarejar árabe, os malabarismos para esticar o orçamento, a falta de amigas e da família oprimiam a minha mãe.
O Líbano tinha conseguido sobreviver em paz e prosperidade, apesar das lutas religiosas que dilaceravam a região havia séculos, porém, depois da crise no Canal do Suez, o crescente nacionalismo árabe dividiu profundamente os políticos e as rivalidades tornaram-se irreconciliáveis. Produziram-se desordens muito violentas que culminaram em junho de 1958 com o desembarque da VI Armada dos Estados Unidos. Quanto a nós, instalados no terceiro andar de um edifício situado na confluência dos bairros cristão, muçulmano e druso, gozávamos de uma posição privilegiada para observar as escaramuças. O tio Ramón fez-nos encostar colchões às janelas para nos proteger das balas perdidas e proibiu-nos de espreitar da varanda, enquanto a minha mãe se arranjava com grande dificuldade para manter a banheira cheia de água e obter alimentos frescos. Nas piores semanas da crise foi imposto o recolher ao pôr do Sol, só o pessoal militar estava autorizado a transitar pelas ruas, mas na realidade essa era a hora do descanso em que as donas de casa regateavam no mercado negro e os homens faziam os seus negócios. Do nosso terraço assistimos a ferozes tiroteios entre grupos antagónicos, que duravam boa parte do dia mas que, mal escurecia, cessavam como por encanto e a coberto da noite figuras furtivas escapuliam-se para comerciar com o inimigo e misteriosos embrulhos passavam de mão em mão. Nesses dias, vimos chicotear prisioneiros no pátio da Gendarmaria, atados a postes de madeira e de troncos nus; avistámos o cadáver coberto de moscas de um homem de pescoço degolado, que tinham deixado exposto na rua durante dois dias para atemorizar os drusos, e presenciámos também a vingança, quando duas mulheres embuçados abandonaram na rua um burro carregado com queijos e azeitonas. Tal como era de prever, os soldados confiscaram o carregamento e dali a pouco ouvimos uma explosão que reduziu a pó os vidros das janelas e deixou o pátio do quartel encharcado em sangue e despojos humanos. Apesar destas violências, tenho a impressão de que os árabes não tomaram realmente a sério o desembarque norte-americano. O tio Ramón conseguiu um salvo-conduto e levou-nos a ver os navios de guerra quando entravam na baía com os canhões preparados. Havia uma multidão de curiosos pelos cais, à espera dos invasores para fazer comércio com eles e conseguir passes para subir aos porta-aviões. Aqueles monstros de aço abriram as suas goelas a vomitaram lanchas a transbordar de marines armados até aos dentes, que foram recebidos com uma salva de palmas na praia, e logo que os aguerridos soldados puseram pé em terra firme, viram-se cercados por uma alegre turbamulta que tentava vender-lhes todo o tipo de mercadorias, desde guarda-sóis até haxixe e preservativos japoneses em forma de peixes multicores. Julgo que não foi fácil para os oficiais manter o moral das tropas e impedir que confraternizassem com os inimigos. No dia seguinte, na pista artificial de patinagem no gelo tive o meu primeiro contacto com a força bélica mais poderosa do mundo. Patinei toda a tarde em companhia de centenas de rapagões tardados, de cabelo rapado e tatuagens nos músculos, que bebiam cerveja e falavam num calão muito diferente da língua que Miss Saint John tentava ensinar-me no colégio britânico. Consegui comunicar pouco com eles, mas mesmo que tivéssemos falado a mesma língua não teríamos muito que dizer entre nós. Nesse dia memorável recebi o meu primeiro beijo na boca, foi como morder um sapo com cheiro a pastilha elástica, cerveja e tabaco. Não me lembro de quem me beijou pois não podia distingui-lo de entre os outros, pareciam-me todos iguais, do que me lembro é que a partir desse momento decidi explorar o problema dos beijos. Infelizmente tive de esperar bastante para ampliar os meus conhecimentos a tal respeito, porque mal o tio Ramón descobriu que a cidade se encontrava invadida por marines ávidos de raparigas, redobrou a vigilância e eu fiquei reclusa em casa, como uma flor de harém.
Tive a sorte de o meu colégio ser o único que não fechou as portas quando a crise começou, pelo contrário os meus irmãos deixaram de ir às aulas e passaram meses de tédio mortal fechados no apartamento. Miss Saint John considerou aquela guerra uma coisa ordinária pois nela não participavam os ingleses, de modo que preferiu ignorá-la. A rua em frente do colégio ficou dividida por dois bandos separados por pilhas de sacos de areia, por trás dos quais espreitavam os adversários. Nas fotografias dos jornais tinham um aspecto patibular e as suas armas um ar aterrador, mas vistos por trás das barricadas do alto do edifício pareciam veraneantes num piquenique. Entre os sacos de areia ouviam rádio, cozinhavam e recebiam visitas das mulheres e dos filhos, matavam as horas a jogar às cartas ou às damas e a dormir a sesta. As vezes punham-se de acordo com os inimigos para irem buscar água ou cigarros. A impassível Miss Saint John enfiou o chapéu verde das grandes ocasiões e saiu a parlamentar no seu péssimo árabe com aqueles indivíduos que atravancavam as ruas, para lhes pedir que dessem passagem ao autocarro escolar, enquanto as poucas meninas que restavam e as professoras assustadas a observávamos desde o telhado. Não sei que argumentos esgrimiu, mas o facto é que o veículo continuou a transitar pontualmente até ela ficar sem alunas, era eu a única a utilizá-lo. Calei muito bem calado lá em casa que os outros pais tinham retirado as filhas do colégio e nunca mencionei as negociações diárias do condutor com os homens das barricadas para que nos deixassem passar. Assisti às aulas até o estabelecimento se esvaziar e Miss Saint John pediu-me cortesmente que não voltasse durante uns dias, até se resolver aquele desagradável incidente e as pessoas voltarem a ter bom senso. Nessa altura a situação tornara-se muito violenta e um porta-voz do Governo libanês aconselhou os diplomatas a retirar as famílias do país porque não se podia garantir a sua segurança. Após secretos conciliábulos, o tio Ramón meteu-me com os meus irmãos num dos últimos voos comerciais desses dias. O aeroporto fervilhava de homens a lutarem por sair; alguns pretendiam levar as mulheres e filhas como carga, não as consideravam totalmente humanas e não podiam compreender a necessidade de comprar bilhetes para elas. Mal descolámos da pista, uma senhora coberta da cabeça aos pés com um manto escuro dispôs-se a cozinhar no corredor do avião com um fogareiro a querosene, perante o alarme da hospedeira francesa. A minha mãe ficou em Beirute com o tio Ramón e ali permaneceram por uns meses até serem transladados para a Turquia. Entretanto os marines norte-americanos regressaram aos seus porta-aviões e desapareceram sem deixar rasto, levando com eles a prova do primeiro beijo da minha vida. Foi assim que empreendemos a viagem de regresso ao outro cabo do mundo, até casa do meu avô no Chile. Eu tinha quinze anos e era a segunda vez que ficava longe de minha mãe, a primeira fora quando ela foi ter com o tio Ramón naquele encontro clandestino no Norte do Chile que consagrou os seus amores. Não sabia eu então que viríamos a ficar separadas a maior parte das nossas vidas. Comecei a escrever-lhe a minha primeira carta no avião, tenho continuado a fazê-lo quase diariamente ao longo de muitos anos e ela faz a mesma coisa. juntamos essa correspondência numa cesta e no fim do ano atamo-la com uma fita colorida e guardamo-la no cimo de um armário, assim temos coleccionado montanhas de páginas. Nunca as relemos, mas sabemos que o registo das nossas vidas está salvaguardado da falta de memória.
Até então a minha educação tinha sido caótica, aprendera um pouco de inglês e de francês, boa parte da Bíblia de cor e as lições de defesa pessoal do tio Ramón, mas ignorava as coisas mais elementares para funcionar neste mundo. Quando cheguei ao Chile, o meu avô achou que com alguma ajuda eu poderia terminar a escolaridade num ano, e decidiu ensinar-me pessoalmente História e Geografia. Depois reparou que eu também não sabia somar a mandou-me às explicações de Matemática. A professora era uma velhota de cabelo tingido de azeviche e com vários dentes a abanar, que morava muito longe numa casa modesta decorada com os presentes dos seus alunos ao longo de cinquenta anos de vocação docente, onde pairava imperturbável o cheiro a couve-flor cozida. Para chegar a casa da explicadora era preciso subir para dois autocarros, mas valia a pena, porque essa mulher foi capaz de me meter na cabeça os números suficientes para passar no exame, depois do qual se me apagaram para sempre. Subir para um autocarro em Santia o podia ser uma perigosa aventura que requeria um temperamento decidido e a agilidade de um saltimbanco, o veículo nunca passava à tabela, tínhamos de esperar por ele horas seguidas, e vinha tão cheio que avançava de lado, com passageiros pendurados nas portas. A minha formação estóica e as minhas duplas articulações ajudaram-me a sobreviver a essas batalhas quotidianas. Partilhava a aula com cinco estudantes, um dos quais se sentava sempre ao meu lado, emprestava-me os seus apontamentos e acompanhava-me até à paragem do autocarro. Enquanto esperávamos com paciência sob o sol ou a chuva, ele ouvia em silêncio as minhas histórias exageradas acerca de viagens e lugares que eu não sabia localizar no mapa, mas cujos nomes investigava na Enciclopédia Britânica do meu avô. Quando o autocarro chegava ajudava-me a trepar por sobre o cacho humano oscilante no patamar, empurrando-me pelo traseiro com ambas as mãos. Um dia convidou-me a ir ao cinema. Eu disse ao Vovô que tinha de ficar a estudar com a professora e parti com o galã para um teatro de bairro, onde engolimos um filme de terror. Quando o monstro da Lagoa Verde emergiu a sua horrenda cabeça de lagarto milenário a escassos centímetros da donzela que nadava distraída, eu lancei um grito e ele aproveitou para me pegar na mão. Refiro-me ao rapaz, não ao lagarto, é evidente. O resto do filme passou numa nebulosa, nada me importaram as dentuças do gigantesco réptil nem a sorte da loura tontinha que se banhava naquelas águas, a minha atenção estava concentrada no calor e na humanidade daquela mão alheia a afagar a minha, quase tão sensual como a mordidela na orelha do meu amado de La Paz e mil vezes mais do que o beijo roubado pelo soldado norte-americano na pista de patinagem no gelo de Beirute. Cheguei a casa do meu avô a levitar, convencido de ter encontrado o homem da minha vida e que aquelas mãos entrelaçados eram um compromisso formal. Tinha ouvido dizer à minha amiga Elizabeth, no colégio no Líbano, que podemos ficar grávidas só de chapinhar na mesma piscina com um rapaz e suspeitei logicamente que uma hora completa a trocar suores manuais podia ter o mesmo efeito. Passei a noite acordada, a imaginar a minha vida futura casada com ele e esperando ansiosa pela próxima explicação de Matemática, mas no dia seguinte o meu amigo não foi a casa da professora. Fiquei durante toda a aula a olhar para a porta, angustiada, mas ele não veio nesse dia nem no resto da semana nem nunca mais, esfumou-se pura e simplesmente. Com o tempo recompus-me daquele humilhante abandono e durante muitos anos não pensei nesse jovem. Creio que voltei a encontrá-lo uns doze anos depois, no dia em que me telefonaram da morgue para identificar o corpo do meu pai. Perguntei-me muitas vezes porque desaparecera tão subitamente e de tantas voltas que dei à cabeça cheguei a uma conclusão truculenta, mas prefiro não continuar a especular, porque só nas telenovelas os namorados descobrem um dia que são irmãos.
Uma das razões para esquecer aquele amor fugaz foi ter conhecido outro rapaz e aqui, Paula, entra o teu pai na história. Michael tem raízes inglesas, é produto de uma dessas famílias de imigrantes que nasceram e viveram no Chile durante gerações e que ainda hoje se referem à Inglaterra como à home, lêem jornais ingleses com semanas de atraso e mantêm um estilo de vida e um código social do século XIX, quando eram os arrogantes súbditos de um grande império, mas que hoje já não se usam nem no coração de Londres. O teu avô paterno trabalhava para uma companhia norte-americana de cobre, numa povoação do Norte do Chile, tão insignificante que raramente se inscreve nos mapas. O acampamento dos gringos consistia numas vinte casas cercadas por arame farpado, onde os habitantes tentavam reproduzir o mais fielmente possível o modo de vida das suas cidades de origem, com ar condicionado, água engarrafada e uma profusão de catálogos para encomendar aos Estados Unidos desde leite condensado até móveis de terraço. Cada família cultivava afincadamente o seu jardim, apesar das inclemências do sol e das secas; os homens jogavam golfe nos areais e as senhoras promoviam concursos de rosas e de bolos. Do outro lado da cerca subsistiam os trabalhadores chilenos em fiadas casotas com casas de banho comuns, sem outras distracções além de um terreno de futebol marcado com um pau sobre a terra dura do deserto e um bar no exterior do acampamento onde se embriagavam aos fins-de-semana. Dizem que também havia um prostíbulo, mas não dei com ele quando fui à procura, talvez porque eu esperava pelo menos por uma lanterna vermelha, mas devia ser um rancho como os outros. Michael nasceu e viveu os primeiros anos da sua existência nesse lugar, protegido de todos os males, numa inocência paradisíaca, até que o mandaram como interno para um colégio britânico no centro do país. Julgo que não teve a ideia concreta de que estava no Chile até chegar à idade das calças compridas. A mãe dele, que todos lembramos como a Granny, tinha grandes olhos azuis e um coração virgem de mesquinhezes. A sua vida passou-se entre a cozinha e o jardim, cheirava a pão recém-saído do forno, a manteiga, a doce de ameixas. Anos depois, ao renunciar aos seus sonhos, cheirava a álcool, mas pouca gente chegou a sabê-lo, porque se mantinha a uma distância prudente e tapava a boca com um lenço ao falar, e também porque tu, Paula, que tinhas nessa altura oito ou nove anos, escondias as garrafas vazias para que ninguém descobrisse o seu segredo. O pai de Michael era um belo homem moreno, com ar de andaluz, mas corria-lhe nas veias sangue alemão do qual se orgulhava, cultivou no carácter as virtudes que ele considerava teutónicas e veio a ser um exemplo de homem honesto, responsável e pontual, embora também se mostrasse inflexível, autoritário e seco. Nunca tocava na mulher em público, mas chamava-lhe young lady, e brilhavam-lhe os olhos quando a observava. Passou trinta anos no acampamento norte-americano a ganhar bons dólares, reformou-se aos cinquenta e oito e mudou-se para a capital, onde construiu uma casa ao pé do terreno de golfe de um clube. Michael cresceu entre os muros de um colégio de rapazes, dedicado ao estudo e aos desportos viris, longe da mãe, o único ser que lhe conseguiu ensinar a exprimir os seus sentimentos. Com o pai apenas trocava frases de boa educação e jogava partidas de xadrez nas férias. Quando o conheci acabava de fazer vinte anos, estudava o primeiro período de Engenharia Civil, conduzia uma motocicleta e morava num apartamento com uma empregada que o tratava como um senhorita, ele nunca teve de lavar peúgas nem cozer um ovo. Era um moço alto, bem posto, muito magro, com grandes olhos cor de caramelo, que corava quando estava nervoso. Foi uma amiga que nos apresentou, ele veio ver-me um dia a pretexto de me ensinar umas coisas de química e a seguir pediu formalmente autorização ao meu avô para me levar à ópera. Fomos ver a Madame Butterfly e eu, que carecia por completo de formação musical, julguei que se tratava de um espectáculo humorístico e ri-me às gargalhadas quando vi cair do tecto uma chuva de flores de plástico em cima de uma gorda que cantava a plenos pulmões ao mesmo tempo que abria a barriga à facada diante do filho, uma pobre criatura com os olhos vendados e um par de bandeiras nas mãos. Assim começaram uns amores muito lentos e doces, destinados a durar muitos anos antes de se consumarem, pois ao Michael faltavam uns seis anos de universidade e eu ainda não acabara a escola. Passaram-se vários meses antes de darmos as mãos no concerto das quartas-feiras e quase um ano antes do primeiro beijo.
- Gosto deste jovem, vem melhorar a raça - riu-se o meu avô quando por fim admiti que éramos namorados.
Na segunda-feira a morte agarrou-te, Paula. Surgiu e apontou para ti, mas encontrou-se frente a frente com a tua mãe e a tua avó e, por esta vez, retrocedeu. Não foi derrotada e ainda te ronda, a grunhir no seu esvoaçar de farrapos sombrios e ruído de ossos. Passaste para o outro lado durante alguns minutos e na verdade ninguém consegue explicar como nem porquê regressaste. Nunca te tínhamos visto tão mal, ardias de febre, um ronco aterrador saía-te do peito, via-se o branco dos teus olhos por entre as pálpebras semicerradas, de repente a tensão desceu quase para zero, começaram a soar os alarmes dos monitores e a sala encheu-se de gente, todos tão atarefados à tua volta que se esqueceram de nós, e foi assim que estivemos presentes quando te fugia a alma do corpo, enquanto te injectavam drogas, te introduziam oxigénio e tentavam pôr de novo a trabalhar o teu coração esgotado. Trouxeram um aparelho e começaram a dar-te choques eléctricos, terríveis chicotadas no peito que te faziam saltar na cama. Ouvimos ordens, vozes alteradas e correrias, vieram mais médicos com diversas máquinas e seringas, quem sabe quantos minutos eternos decorreram, pareceram-nos muitas horas. Não podíamos ver-te, ocultavam-te os corpos dos que te atendiam, mas conseguimos aperceber-nos nitidamente do teu naufrágio e do bafo vitorioso da morte. Houve um momento durante o qual a tua febril agitação ficou subitamente congelada, como numa fotografia, e então ouvi o murmúrio em surdina da minha mãe a exigir-te que lutasses, filha, ordenando ao teu coração que continuasse a bater em nome de Ernesto e dos belos anos que tens para viver e do bem que ainda podes semear. O tempo parou nos relógios, as curvas e os pontos verdes nos ecrãs das máquinas converteram-se em linhas rectas e um zumbido de consternação substituiu o silvo dos alarmes. Alguém disse não há nada a fazer.. e outra voz acrescentou morreu, as pessoas retiraram-se, algumas afastaram-se e pudemos ver-te inerte e pálida, como uma menina de mármore. Então senti a mão da minha mãe na minha puxando-me para diante e demos uns passos em frente aproximando-nos da beira da tua cama e sem uma lágrima oferecemos-te toda a reserva da nossa energia, toda a saúde e força dos nossos mais recônditos genes de navegadores bascos e de indómitos índios americanos, e em silêncio invocámos os deuses conhecidos e por conhecer e os espíritos benfazejos dos nossos antepassados e as forças mais formidáveis da vida para que acorressem a salvar-te. Foi tão intenso esse apelo, que a cinquenta quilómetros de distância Ernesto o sentiu com a nitidez de uma badalada de sino, soube que caías num abismo e desatou a correr em direcção ao hospital. Entretanto, em redor da tua cama o ar gelava e o tempo desnorteava-se e quando os relógios voltaram a marear os segundos, já era tarde para a morte. Os médicos vencidos tinham-se retirado e as enfermeiras preparavam-se para desligar os tubos e cobrir-te com um lençol, quando um dos ecrãs mágicos deu um suspiro e a caprichosa linha verde começou a ondular anunciando o teu retorno à vida. Paula! chamámos minha mãe e eu em uníssono e as enfermeiras repetiram o nosso grito e a sala encheu-se do teu nome.
Ernesto chegou passada uma hora; tinha devorado a auto-estrada e atravessado a cidade como um relâmpago. Até então não tinha dúvidas de que ficarias curada, mas nessa ocasião, vencido, ajoelhado na capela, rezou simplesmente para que aquele martírio cessasse e finalmente descansasses. Porém, quando te abraçou na visita seguinte, a veemência do amor e o desejo de te conservar foram mais poderosos que a resignação. Sente-te no seu próprio corpo, adianta-se aos diagnósticos clínicos, entende signos invisíveis aos nossos olhos, é o único que parece comunicar contigo. Vive, vive por mim, por nós, Paula, somos uma equipa, minha menina, rogava-te ele, verás que tudo vai ficar bem, não partas, eu serei o teu apoio, o teu refúgio, o teu amigo, curar-te-ei com o meu amor, lembra-te daquele abençoado 3 de janeiro em que nos conhecemos e tudo mudou para sempre, não podes deixar-me agora, mal começámos, temos meio século à nossa frente. Não sei que outras súplicas, segredos ou promessas te murmurou ao ouvido nessa tenebrosa segunda-feira, nem como te insuflou a vontade de viver em cada beijo que te deu, mas estou certa de que agora respiras graças à tenacidade da sua ternura. A tua vida é uma misteriosa vitória do amor. já superaste a pior parte da crise, estão a dar-te o antibiótico exacto, controlaram a tua tensão e a pouco e pouco a febre vai cedendo. Voltaste ao ponto de partida, não sei que significa esta espécie de ressurreição. Há mais de dois meses que estás em coma, não me iludo, filha, sei quanto é grave o teu estado, mas podes recuperar por completo; o especialista da porfiria garante que não tens qualquer lesão cerebral, a doença só te atacou os nervos periféricos. Palavras, abençoadas palavras, repito-as vezes sem conta como uma fórmula mágica que pode trazer-te a salvação. Hoje colocaram-te de costas na cama e apesar do aspecto torturado do teu pobre corpo, o teu rosto parecia intacto e estavas linda como uma noiva adormecida, com sombras azuis sob as tuas longas pestanas. As enfermeiras tinham-te refrescado com água-de-colónia e apanhado o cabelo numa espessa trança que pendia para fora da cama como uma corda de marinheiro. Não há sinais da tua inteligência, mas vives e o teu espírito ainda te habita. Respira, Paula, tens de respirar...
A minha mãe continua a regatear com Deus, agora oferece-lhe a vida em troca da tua, diz que de qualquer maneira setenta anos é muito tempo, muito cansaço e muitos desgostos. Também eu queria ocupar o teu lugar, mas não existem recursos de ilusionista para essas trocas, cada uma de nós, avó, mãe e filha, tem de cumprir o seu próprio destino. Pelo menos não estamos sós, somos três. A tua avó está cansada, tenta disfarçar, mas pesam-lhe os anos e durante estes meses de sofrimento em Madrid o Inverno meteu-se-lhe nos ossos, não há maneira de a aquecer, dorme sob um monte de cobertores e durante o dia anda abafada com camisolas e cachecóis, mas não para de tremer. Falei longamente ao telefone com o tio Ramón para que ele me ajude a convencê-la que é altura de voltar para o Chile. Não consegui escrever durante vários dias, somente agora, que começas a sair da agonia, regresso a estas páginas.
A relação discreta partilhada com o Michael floresceu parcimoniosamente, à antiga, no salão da casa do Vovô, entre chávenas de chá no Inverno e taças de gelados no Verão. A descoberta do amor e a felicidade de me sentir aceite transformaram-me, a timidez deu lugar a um carácter bastante mais explosivo e acabaram-se aqueles longos períodos de silêncio raivoso da infância e da adolescência. Uma vez por semana íamos de moto ouvir um concerto, aos sábados autorizavam-me a ir ao cinema, desde que regressasse cedo, e nalguns domingos o meu avô convidava-o para os almoços familiares, verdadeiros torneios de resistência! O prato principal era logo uma prova de partir os ossos: sandes de mariscos, empadas picantes, galinha na frigideira ou empadão de milho, torta de manjar dos deuses, vinho com frutas e um jarro descomunal de pisco sour, a mais fatídica beberragem chilena. Os comensais entravam em competição para engolir aquele ágape e por vezes, em ar de desafio, pediam ovos estrelados com toucinho antes da sobremesa. Os sobreviventes ganhavam assim o privilégio de manifestar as suas loucuras pessoais. Na hora do café já estavam a discutir aos gritos e antes de chegarem os cálices de licores doces tinham jurado que aquele seria o último domingo de farra familiar, apesar de na semana seguinte se repetir a mesma mortificação com poucas variantes, pois não comparecer era considerado um desaire inconcebível, o meu avo não perdoaria. Eu temia essas reuniões quase tanto como os almoços em casa de Salvador Allende, onde as primas me olhavam com mal disfarçado desprezo porque eu não sabia de que raio de coisas falavam. Moravam numa casa pequena, acolhedora, abarrotada de obras de arte, livros valiosos e fotografias que, se ainda existem, são históricas. A política era o único tema para aquela família inteligente e bem informada. A conversa pairava pelas alturas acerca dos acontecimentos mundiais e de vez em quando aterrava nos últimos pormenores da boataria nacional; mas em qualquer dos casos eu ficava na lua. Nessa altura só lia romances de ficção científica e enquanto os Allende planeavam com fervor socialista a transformação do país, eu deambulava de asteróide em asteróide na companhia de extraterrestres tão fugidios como os ectoplasmas da minha avó.
Na primeira ocasião em que os pais vieram a Santiago, Michael levou-me a conhecê-los. Os meus futuros sogros esperavam-me para o chá das cinco, de toalha engomada, porcelana inglesa pintada, pãezinhos caseiros. Receberam-me com simpatia, senti que sem me conhecerem me aceitavam gratos pelo amor que eu dedicava ao filho. O pai lavou as mãos uma dúzia de vezes durante a minha breve visita e ao sentar-se à mesa afastou a cadeira com os cotovelos para não a sujar antes da comida. já para o fim da sessão perguntou-me se eu era parente de Salvador Allende e quando lhe disse que sim a sua expressão modificou-se, mas a sua natural cortesia impediu-o de manifestar as suas ideias a tal respeito nesse primeiro encontro, não faltariam ocasiões para o fazer mais tarde. A mãe de Michael cativou-me desde o princípio, era uma alma cândida, incapaz de uma má intenção, a bondade transparecia nos seus olhos líquidos cor de água-marinha. Acolheu-me com simplicidade, como se nos conhecêssemos há anos, e nessa tarde selámos um pacto de ajuda mútua, que nos seria de grande utilidade nas provas dolorosas dos anos seguintes. Aos pais de Michael, que devem ter desejado para o filho uma rapariga sossegada e discreta da colónia inglesa, não lhes custou muito adivinhar as falhas do meu carácter desde o início, por isso acho admirável que me abrissem os braços com tal prontidão.
Ainda não fizera dezassete anos quando comecei a trabalhar e desde então nunca mais parei. Acabei o liceu e não soube que fazer do meu futuro; devo ter feito o projecto de entrar na universidade, mas estava confusa, queria independência e de qualquer modo pensava casar dentro em pouco e ter filhos, era esse o destino das raparigas nesse tempo. Devias estudar teatro, sugeriu a minha mãe que me conhecia melhor que ninguém, mas essa ideia pareceu-me totalmente descabelada. No dia a seguir ao meu exame final apressei-me a procurar um emprego de secretária, porque não estava preparada para outra coisa. Ouvira dizer que nas Nações Unidas pagavam bem e decidi aproveitar os meus conhecimentos de inglês e de francês. Na lista telefónica encontrei em lugar de destaque uma estranha palavra: FAO, e sem suspeitar do que se tratava apresentei-me à porta indicada, onde me recebeu um jovem de aspecto descorado.
- Quem é o dono disto? - perguntei-lhe à queima-roupa.
- Não sei... Acho que isto não tem dono - murmurou um tanto atrapalhado.
- Quem é que manda mais?
- Don Hernán Santa Cruz - replicou sem hesitar.
- Quero falar com ele.
- Anda pela Europa.
- Quem é o encarregado de dar empregos quando ele não está?
Deu-me o nome de um conde italiano, pedi uma entrevista e quando me encontrei no impressionante gabinete daquele galhardo romano, lancei-lhe que o Sr. Santa Cruz me mandara falar com ele para me arranjar trabalho. O aristocrático funcionário não suspeitou que eu não conhecia o seu chefe nem de vista e aceitou-me à experiência por um mês, apesar de eu ter feito o pior exame de dactilografia da história daquela organização. Fizeram-me sentar diante de uma pesada máquina Underwood e mandaram-me escrever uma carta com três cópias, sem me dizer que era uma carta comercial. Eu escrevi uma carta de amor e despeito salpicado de erros porque as teclas pareciam possuir vida própria, além disso pus o papel químico do avesso e as cópias saíram impressas no verso da folha. Procuraram o lugar em que pudesse causar menos dano e fui designada temporariamente para secretária de um perito florestal argentino cuja missão era fazer a contabilidade das árvores do Globo. Percebi que a minha sorte não podia durar muito mais e dispus-me a escrever à máquina correctamente em quatro semanas, atender o telefone e servir café como uma profissional, rogando em segredo para que o temido Santa Cruz tivesse um acidente mortal e não voltasse mais. Porém, as minhas súplicas não foram atendidas e passado um mês certo regressou o dono da FAO, um homenzarrão enorme, com aspecto de xeque árabe e voz de trovão, diante do qual os empregados em geral e o nobre italiano em especial, se inclinavam com respeito, para não dizer terror. Antes de saber da minha existência por outros meios, apresentei-me no seu gabinete para lhe contar que tinha usado o seu santo nome em vão e estava disposta a fazer as penitências correspondentes. Uma gargalhada retumbante acolheu a minha confissão.
- Allende... de que Allende és tu? - rugiu por fim, acabando por enxugar as lágrimas.
- Parece que o meu pai se chamava Tomás.
- Parece... como assim? Não sabes como se chama o teu pai?
- Ninguém pode ter a certeza de quem é o pai, só se pode estar certo da mãe - respondi num tom altamente digno.
- Tomás Allende? Ah, já sei quem é! Um homem muito inteligente... - e ficou-se com o olhar no vazio, como quem morre de vontade de contar um segredo e não pode.
O Chile é do tamanho de um lenço. Vim a saber que aquele cavalheiro de atitudes de sultão era um dos melhores amigos de juventude de Salvador Allende, além de conhecer bem a minha mãe e o meu padrasto, por tais razões não me pôs na rua, como o conde romano esperava, mas transferiu-me para o Departamento de Investigação, onde alguém com os meus recursos imaginativos seria de melhor utilidade do que a copiar estatísticas florestais, conforme ele me explicou. Suportaram-me na FAO durante vários anos, ali fiz amigos, aprendi os rudimentos do ofício de jornalista e tive a primeira oportunidade de fazer televisão. Nos momentos livres fazia traduções de romances cor-de-rosa de inglês para espanhol. Eram histórias românticas carregadas de erotismo, todas talhadas segundo o mesmo modelo: bela e inocente jovem sem fortuna conhece homem maduro, forte, poderoso, viril, desiludido do amor e solitário, num lugar exótico, por exemplo uma ilha da Polinésia onde ela trabalha como professora primária e ele possui um latifúndio. Ela é sempre virgem, sendo embora viúva, de seios delicados, lábios túrgidos e olhos lânguidos; enquanto que ele ostenta frontes prateadas, pele dourada e músculos de aço. O terratenente é superior a ela em tudo, mas a professora é boa e bonita. Após sessenta páginas de paixão ardente, ciúmes e incompreensíveis intrigas, casam-se obviamente, e a donzela esdrúxula é descorada pelo varão metálico numa atrevida cena final. Era necessária firmeza de carácter para permanecer fiel à versão original mas, apesar dos esmeros de Miss Saint John no Líbano, a minha mão não chegava a tanto. Quase sem dar por isso introduzia pequenas modificações para melhorar a imagem da heroína, começava por algumas alterações nos diálogos, para que ela não parecesse totalmente atrasada mental, e a seguir deixava-me arrastar pela inspiração e alterava os finais, de modo que por vezes a virgem ia acabar os seus dias a vender armas no Congo e o fazendeiro partia para Calcutá a cuidar dos leprosos. Não durei muito tempo naquele trabalho, passados poucos meses despediram-me. Nessa altura os meus pais tinham voltado da Turquia e eu vivia com eles num casarão de estilo espanhol de adobe e telhas na ladeira da cordilheira, onde era bastante difícil chegar de autocarro e impossível ter telefone. Tinha uma torre, dois hectares de horta, uma vaca melancólica que nunca deu leite, um porco que tínhamos de correr à vassourada dos quartos, galinhas, coelhos e uma réstia de abóboras no telhado; os enormes frutos costumavam rolar lá de cima, pondo em perigo aqueles que tivessem a pouca sorte de se encontrar mesmo por baixo. Apanhar o autocarro para ir e vir do escritório converteu-se numa obsessão, levantava-me de madrugada para chegar a tempo de manhã e à tarde o veículo vinha a transbordar, de modo que eu ia visitar o meu avô e em sua casa esperava pela noite para apanhar outro com menos passageiros. Assim nasceu o hábito de ir todos os dias ver o velho e acabou por ser tão importante para ambos que só faltei quando nasceram os meus filhos, durante os primeiros dias do Golpe Militar e certa vez que quis pintar o cabelo de amarelo e por erro da cabeleireira acabei com a cabeça verde. Não me atrevi a aparecer diante do Vovô até arranjar uma peruca da cor original do meu cabelo. No Inverno a nossa casa era uma gélida masmorra a gotejar dos telhados, mas na Primavera e no Verão tornava-se encantadora, com os seus vasos de barro a transbordar de petúnias, o zumbido das abelhas e o trinado dos pássaros, o aroma de flores e frutos, os tropeções do porco nas pernas das visitas e o ar puro das montanhas. Os almoços dominicais passaram da casa do Vovô para a dos meus pais, ali se juntava a tribo para se empanturrar pontualmente todas as semanas. Michael, oriundo de um lar pacífico onde imperava a maior cortesia, e a quem o colégio condicionara para disfarçar as emoções em cada momento, excepto nos terrenos desportivos onde havia liberdade para se comportar como um bárbaro, era a muda testemunha das paixões desmedidas da minha família.
Nesse ano morreu o tio Pablo num estranho acidente aéreo. Voava sobre o deserto de Atacama numa avioneta e o aparelho explodiu no ar. Houve quem visse a explosão e uma bola incandescente a cruzar o céu, mas não ficaram restos e, depois de passarem a região a pente fino, as equipas de salvamento regressaram de mãos vazias. Não havia nada para enterrar, o funeral foi feito com um caixão vazio. Tão abrupto e total foi o desaparecimento daquele homem que eu tanto amei, que cultivei a fantasia de ele não ter ficado reduzido a cinzas sobre aquelas dunas desoladas; talvez se tivesse salvado por milagre, mas teria sofrido um traumatismo irrecuperável e agora deve vaguear noutras latitudes convertido num velho pacífico e desmemoriado, que nada suspeita acerca da existência da jovem esposa e dos quatro filhos que deixou atrás. Era casado com uma dessas raras pessoas de alma diáfana destinadas a purificar-se no esforço e no sofrimento. O meu avô recebeu a dolorosa notícia sem um gesto, cerrou a boca, pôs-se em pé apoiado à bengala e saiu a coxear pela rua para ninguém ver a expressão dos seus olhos. Não voltou a falar do seu filho predilecto, tal como não mencionava a Vovó. Para aquele velho valente, quanto mais profunda a ferida, mais recatada era a dor.
Tinham passado por mim três anos de amores relativamente castos, quando ouvi as minhas colegas de escritório falar acerca de uma pílula maravilhosa para evitar a gravidez, que tinha revolucionado a cultura na Europa e nos Estados Unidos, e agora se podia adquirir nalgumas farmácias locais. Procurei indagar melhor e soube que só era possível comprá-la com receita médica, mas não me atrevi a recorrer ao inefável doutor Benjamin Viel, que nesse tempo se convertera no gurú da planificação familiar no Chile, e também não tive coragem para falar do assunto com a minha mãe. Além disso, ela tinha demasiados problemas com os filhos adolescentes para pensar em pílulas mágicas para uma filha solteira. O meu irmão Pancho desaparecera de casa na peugada de um santarrão que recrutava discípulos proclamando-se o novo Messias. Na realidade, essa personagem tinha uma casa de ferragens na Argentina e o caso revelou-se como uma complexa fraude teológica, mas a verdade aflorou bem mais tarde, quando o meu irmão e outros jovens já tinham malbaratado anos a perseguir um mito. A minha mãe fez o possível por arrancar o filho àquela misteriosa seita e, de facto, foi buscá-lo algumas vezes quando o meu irmão tocou no fundo da desilusão e pediu socorro à família. Foi tirá-lo de sombrias pocilgas, onde o encontrava faminto, doente e atraiçoado, no entanto, mal recuperava forças desaparecia de novo e durante meses desconhecíamos o seu paradeiro. De vez em quando chegavam notícias das suas andanças pelo Brasil a aprender artes de vodu, ou em Cuba a treinar-se para revolucionário, mas nenhum desses boatos tinha bases verdadeiras, na realidade não sabíamos nada a seu respeito. Entretanto, o meu irmão Juan passou uns dois anos pouco afortunados na Escola de Aviação. Passado pouco tempo de lá entrar apercebeu-se de que carecia de aptidão e resistência para suportar aquilo, que detestava os absurdos princípios e cerimónias militares, que a própria pátria não lhe interessava nem um tostão e que se não saía dali a correr, acabaria às mãos dos cadetes mais antigos ou se suicidava. Certo dia fugiu, mas o desespero não o levou muito longe, chegou a casa com a farda esfarrapada e a gaguejar que tinha desertado e que se o apanhavam seria submetido a julgamento marcial e, mesmo no caso de se salvar de fuzilamento por traição à pátria, passaria o resto da juventude num calabouço. A minha mãe agiu com rapidez, escondeu-o na dispensa, fez uma promessa à Virgem do Carmo, padroeira das Forças Armadas do Chile, para que a ajudasse na sua empresa, foi ao cabeleireiro, vestiu o melhor vestido e pediu audiência ao Director da Escola. Levada a sua presença nem lhe deu tempo de abrir a boca, saltou-lhe em cima, agarrou-se à farda e gritou-lhe que era ele o único responsável pela sorte do seu filho, como podia desconhecer as humilhações e torturas que sofriam os cadetes, que se alguma coisa acontecesse ao Juan ela se encarregaria de arrastar pela lama o nome da Escola, e continuou a bombardeá-lo com argumentos e a sacudi-lo até que o general vencido por aqueles olhos de pantera e pelo instinto maternal à solta, aceitou que o meu irmão regressasse às fileiras.
Mas voltemos à pílula. Com Michael não falava desses pormenores grosseiros, a nossa formação puritana era demasiado pesada. As sessões de carícias nocturnas nalgum recanto do jardim deixavam-nos a ambos exaustos e a mim furiosa. Demorei bastante a compreender a mecânica do sexo, porque nunca vira um homem nu, excepto estátuas de mármore com uma pilinha infantil, e não tinha bem ideia do que fosse uma erecção, ao sentir uma coisa dura julgava que eram as chaves da motocicleta no bolso das calças dele. As minhas leituras clandestinas das Mil e Uma Noites no Líbano deixaram-me a cabeça cheia de metáforas e frases poéticas; fazia-me falta um simples manual de instruções. Depois, quando fiquei esclarecido sobre as diferenças entre homens e mulheres e o funcionamento de uma coisa tão simples como o pénis, senti-me defraudada. Não via então e não vejo ainda hoje a diferença moral entre aquelas ferventes sessões de apalpões insatisfatórios e alugar um quarto num hotel para fazer o que ditasse a fantasia, mas nenhum de nós se atrevia a sugerir tal coisa. Suspeito de que não ficavam nas redondezas muitas donzelas castas com a minha idade, mas esse assunto era tabu naqueles tempos de hipocrisia colectiva. Cada qual improvisava como melhor podia, com as hormonas em revolução, a consciência suja e o terror de que depois de “chegar até ao fim” o rapaz não só podia desaparecer como fumo, como ainda divulgar a sua conquista. O papel dos homens era atacar e o nosso era defender-nos, fingindo que o sexo não nos interessava porque não era de bom tom aparecer a colaborar com a nossa própria sedução. Como foram diferentes as coisas para ti, Paula! Tinhas dezasseis anos quando certa manhã vieste pedir-me para te levar ao ginecologista porque querias informar-te acerca dos contraceptivos. Emudecida com o abalo, porque percebi que acabava a tua infância e começavas a fugir à minha tutela, acompanhei-te O melhor é não falarmos disso, velhota, ninguém entenderia que tu me ajudasses neste assunto., foi o que então me aconselhaste. Com a tua idade eu navegava em águas turvas, aterrada com advertências apocalípticas: cautela, não aceitar bebidas, podem estar drogadas com uns pós que dão às vacas para as pôr com o cio; não entres no carro dele porque te leva para um descampado e já sabes o que te pode acontecer. Desde início revoltei-me contra essa dupla moral que autorizava os meus irmãos a passar a noite fora de casa e regressar ao amanhecer a tresandar a álcool sem que ninguém se ofendesse. O tio Ramón fechava-se com eles a sós, eram “coisas de homens” em relação às quais a minha mãe e eu não tínhamos direito de opinião. Era considerado natural que se esgueirassem de noite para dentro do quarto da criada; diziam piadas a tal respeito que para mim eram duplamente ofensivas, por- que à prepotência do macho se somava o abuso de classe. Imagino o escândalo se eu tivesse convidado o jardineiro para a minha cama. Apesar da minha rebeldia, o medo das consequências paralisava-me, nada nos esfria tanto como a ameaça de uma gravidez inoportuna. Nunca tinha visto um preservativo, exceptuando aqueles com formas de peixes tropicais que os comerciantes apresentavam aos marines em Beirute, mas nessa altura eu pensava que eram balões de aniversário. O primeiro que tive nas mãos mostraste-mo tu em Caracas, Paula, quando andavas por toda a parte com uma pastinha de artefactos para o teu curso de sexualidade. É o cúmulo que com a tua idade não saibas como isto se usa, disseste-me um dia em que eu já passara dos quarenta anos, tinha publicado o meu primeiro romance e estava a escrever o segundo. Hoje em dia espanta-me tamanha ignorância nalguém que lera tanto como eu. Além de que algo sucedera na minha infância que poderia ter-me dado algumas luzes ou pelo menos ter despertado curiosidade para aprender coisas sobre o problema, mas isso eu tinha-o bloqueado no fundo mais obscuro da memória.
Nesse dia de Natal de 1950 eu caminhava pelo passeio da praia, um comprido terraço ladeado de gerânios. Tinha oito anos, a pele queimada pelo sol, o nariz em carne viva e a cara cheia de sardas, vestia uma bata de piqué branco e levava um colar de conchas juntas por um fio. Tinha pintado as unhas com aguarela vermelha, os dedos pareciam feridos, e empurrava um carrinho de vime com a minha nova boneca, um sinistro bebé de borracha com um orifício na boca e outro entre-pernas, ao qual se deitava água por cima para sair por baixo. A praia estava deserta, na véspera à noite os habitantes da povoação tinham ceado tarde, assistido à missa da meia-noite e comemorado até de madrugada, àquela hora ainda ninguém se levantara. Ao fim do terraço começava uma fieira de rochedos onde o oceano se despedaçava rugindo com um festival de espuma e de algas; a luz era tão intensa que as cores desmaiavam no branco incandescente da manhã. Raras vezes me aventurava até tão longe, mas nesse dia atrevi-me por aquelas bandas à procura de um sítio para dar água à boneca e mudar-lhe a fralda. Lá em baixo, por entre as rochas, um homem surgiu do mar, tinha óculos de mergulhar e um tubo de borracha na boca, que tirou num gesto brusco, inspirando a plenos pulmões. Trazia um calção de banho preto, muito usado, e uma corda à cinta, da qual pendiam uns ferros de pontas recurvas, os seus instrumentos para pescar marisco. Trazia três ouriços, que meteu num saco, e deitou-se logo a descansar, de costas sobre uma pedra. A sua pele lisa e sem pêlo era como couro curtido e o cabelo muito negro e crespo. Pegou numa garrafa e bebeu longos goles de água, recuperando forças para mergulhar outra vez, com as costas da mão afastou o cabelo da cara e enxugou os olhos, então ergueu o olhar e viu-me. A princípio talvez não tenha avaliado a minha idade, avistou uma figura a embalar um embrulho e na reverberação das onze da manhã pode ter-me confundido com uma mãe de filho ao colo. Chamou-me com um assobio e ergueu a mão à guisa de saudação. Pus-me de pé, desconfiada e curiosa. Nessa altura já os seus olhos se tinham acostumado ao sol e reconheceu-me, repetiu a saudação e gritou-me que não me assustasse, que não me fosse embora, que tinha uma coisa para mim, tirou dois ouriços e meio limão da bolsa e começou a trepar os rochedos. Como tu mudaste, no ano passado parecias uma ranhosa como os teus irmãos, disse ele. Retrocedi uns passos, mas também logo o reconheci e retribuí-lhe o sorriso, tapando a boca com uma mão, porque ainda não acabara a muda dos dentes. Costumava vir à tarde oferecer a sua mercadoria a nossa casa, o Vovô insistia em escolher pessoalmente o peixe e os mariscos. Anda, senta-te aqui ao meu lado, deixa ver a tua boneca, se é de borracha com certeza pode tomar banho, vamos metê-la na água, eu encarrego-me dela, não lhe acontece nada, olha, lá em baixo tenho um saco cheio de ouriços, esta tarde levo uns quantos ao teu avó, queres provámos? Pegou num deles com as suas grandes mãos calejadas, indiferente aos duros espinhos, meteu-lhe a ponta de um gancho na cabeça, onde a concha tem a forma de um pequeno colar de pérolas enroscado, e abriu-o. Surgiu uma cavidade alaranjada com vísceras a flutuar num líquido escuro. Chegou-me o marisco ao nariz e disse-me que cheirasse, que aquele era o cheiro do fundo do mar e das mulheres quando andam quentes. Aspirei, primeiro com timidez e depois com gosto aquela fragrância pesada de iodo e sal. Explicou-me que só se deve comer o ouriço quando está vivo, senão é um veneno mortal, espremeu umas gotas de limão no interior da concha e mostrou-me como mexiam as línguas, feridas pelo ácido. Extraiu uma com os dedos, deitou a cabeça para trás e meteu-a na boca, um fio de sumo escuro escorria-lhe entre os lábios grossos. Aceitei provar, tinha visto o meu avô e os meus tios esvaziar aquelas conchas numa malga e devorar o interior com cebola e coentros, e o pescador pegou noutro pedaço e meteu-mo na boca, era doce e macio, mas também um bocadinho áspero, como uma toalha molhada. O gosto e o cheiro não se parecem com nada, a princípio achei repugnante, mas a seguir senti palpitar a carne suculenta e a boca encheu-se-me de sabores diferentes mas inseparáveis. O homem tirou da concha um a um os pedaços de carne rosada, comeu alguns e deu-me outros; depois abriu o segundo ouriço e também acabámos com ele, a rir, a salpicar sumo, a chupar mutuamente os dedos. Finalmente pesquisou o fundo sanguinolento das conchas e tirou de lá umas pequenas aranhas que se alimentam do marisco, e que são um puro sabor concentrado. Colocou uma na ponta da língua e esperou de boca aberta que caminhasse lá para dentro, esmagou-a contra o palato e depois mostrou-me o bicho esquartejado antes de o engolir. Fechei os olhos. Senti os seus dedos grossos a percorrer o contorno dos meus lábios, a ponta do nariz e o queixo, a fazer-me cócegas, abri a boca e logo senti as patinhas do aranhiço a mexer, mas não consegui controlar um vómito e cuspi-o. Pateta, disse ele, ao mesmo tempo que pegava no animalejo entre os rochedos e o comia. Não acredito que a tua boneca faça chichi, deixa lá ver, mostra-me o buraquinho. A tua boneca é homem ou mulher? Como é que não sabes? Tem pila ou não tem? E então ficou a observar-me com uma expressão indecifrável e de súbito pegou na minha mão e pô-la sobre o seu sexo. Senti um volume sob o tecido húmido do calção de banho, algo que mexia, como um grosso pedaço de mangueira; tentei retirar a mão, mas ele manteve-a com firmeza enquanto me sussurrava numa voz diferente que eu não tivesse medo, não me ia fazer nada de mal, só coisinhas boas. O sol aqueceu mais, a luz ficou mais lívida e o rugido do oceano mais aterrador, enquanto sob a minha mão ganhava vida aquela dureza de perdição. Nesse momento a voz de Margara chamou-me de muito longe, rompendo o encantamento. Atordoado, o homem pôs-se de pé e deu-me um empurrão, afastando-me, pegou no gancho para apanhar mariscos e desceu a saltar sobre as rochas em direcção ao mar. A meio caminho, voltou-se e apontou para o baixo-ventre. Queres ver o que tenho aqui, queres saber como fazem o papá e a mamã? Fazem como os cães, mas muito melhor, espera por mim aqui neste sítio à tarde, à hora da sesta, pelas quatro, e vamos até ao bosque, onde ninguém nos veja. Um instante depois desapareceu entre as ondas. Pus a boneca no carrinho e voltei para casa. Ia a tremer.
Almoçávamos sempre no pátio das hortênsias, debaixo da parreira, em volta de uma grande mesa coberta com toalhas brancas. Nesse dia estava ali a família toda a celebrar o Natal, havia grinaldas penduradas, raminhos de pinheiro na mesa e pratinhos com nozes e fruta cristalizada. Serviram os restos do peru da véspera, salada de alface e tomate, milho tenro e congro gigantesco assado no forno com manteiga e cebola. Trouxeram o peixe inteiro, com o rabo, uma cabeça de olhos suplicantes e a pele intacta como uma luva de prata oxidada que a minha mãe retirou com um único gesto, pondo à mostra a carne reluzente. Passavam de mão em mão os jarros de vinho branco com pêssegos e bandejas com pão amassado, ainda morno. Como sempre, todos falavam aos gritos. O meu avô, em mangas de camisa e com um chapéu de palha, era o único alheio ao alvoroço, absorvido na tarefa de tirar as sementes de um pimentão para recheá-lo de sal, em poucos minutos obtinha um líquido salgado e picante capaz de perfurar cimento, que ele bebia deliciado. Num dos extremos da mesa ficávamos nós, as crianças, cinco primos buliçosos a roubar uns aos outros os pãezinhos mais dourados. Eu sentia ainda na boca o gosto dos ouriços e pensava unicamente em que tinha um encontro às quatro da tarde. As empregadas tinham preparado os quartos, arejados e frescos, e depois do almoço a família retirou-se para repousar. Os cinco primos partilhavam uns divãs na mesma sala, era difícil evadirmo-nos da sesta porque o olho aterrador da Margara estava de vigia, mas passado um bocado até ela se foi embora esgotada para o seu aposento. Esperei que os outros miúdos caíssem vencidos pelo sono e a casa ficasse apaziguada, então levantei-me discretamente, vesti a bata e calcei as sandálias, escondi a boneca debaixo da cama e saí. O piso de madeira rangia a cada passo, mas naquela casa ouvia-se tudo: as tábuas, os canos, o motor do frigorífico e o da bomba de água, os ratos e o papagaio do Vovô, que passava o Verão a insultar-nos do seu poleiro.
O pescador esperava-me no final do terraço da praia, vestido com calças escuras, uma camisa branca e sapatilhas de borracha. Quando me aproximei começou a andar à minha frente e eu segui-o sem dizer palavra, como uma sonâmbula. Atravessámos a rua, metemos por uma travessa e começámos a subir o monte rumo ao bosque. Lá em cima não havia casas, apenas pinheiros, eucaliptos e arbustos; o ar era fresco, quase frio, o sol mal penetrava na sombria abóbada verde. A intensa fragrância das árvores e as matas selvagens de tominho e erva-doce misturava-se à outra que subia do mar. Pelo solo recoberto de folhas apodrecidas e agulhas de pinheiro, corriam lagartixas verdes; aquelas patinhas silenciosas, algum pio de pássaro e o rumor de ramos agitados pela brisa, eram os únicos sons perceptíveis. Pegou-me pela mão e conduziu-me para dentro do bosque, avançámos rodeados de vegetação, eu não conseguia orientar-me, não ouvia o mar e senti-me perdida. Já ninguém nos via. Eu tinha tanto medo que não podia falar, não me atrevia a largar aquela mão e desatar a correr, sabia que ele era mais forte e mais veloz. Não fales com desconhecidos, não deixes que te toquem, se te tocam entre as pernas é pecado mortal além de ficares grávida, cresce-te a barriga como um balão, cada vez mais e mais, até que explodes e morres, a voz de Margara martelava-me aquelas horrendas advertências. Sabia que estava a fazer uma coisa proibida, mas não podia retroceder nem fugir, presa da minha própria curiosidade, uma fascinação mais poderosa que o terror. Em outras ocasiões da minha vida senti essa mesma vertigem mortal em face do perigo e frequentemente cedi, porque não consigo resistir à urgência da aventura. Nalgumas ocasiões essa tentação arruinou-me a vida, como nos tempos da ditadura militar, e noutras enriqueceu-ma, como quando conheci o Willie e o gosto do risco me impulsionou a segui-lo. Finalmente o pescador deteve-se. Aqui estamos bem, disse, juntando umas ramagens para fazer uma cama, deita-te aqui, põe a cabeça no meu braço para não ficares com o cabelo cheio de folhas, assim, fica quietinha, vamos brincar às mamãs e aos papás, disse ele, com a respiração entrecortada, ofegante; enquanto a sua mão áspera me apalpava a cara e o pescoço, descia pelo peitoral da bata à procura dos mamilos infantis, que ao seu contacto se encolheram, acariciando-me como até então ninguém o fizera, na minha família não tocamos uns nos outros. Sentia um torpor cálido a dissolver-me os ossos e a vontade, invadiu-me um pânico visceral e comecei a chorar. Que é que tens, miudinha tonta? Não te vou fazer nenhum mal, e a mão do homem saiu do meu decote e desceu pelas minhas pernas, tacteando lentamente, separando-as com firmeza, mas sem violência, a subir, a subir, até ao centro de mim. Não chores, deixa, só te vou tocar com o dedo, muito de mansinho, isso não tem nada de mal, abre as pernas, solta-te, não tenhas medo, não to vou lá meter, não sou parvo, se te fizer alguma coisa o teu avô mata-me, não te quero foder, vamos só brincar um bocadinho. Desabotoou-me a bata e tirou-ma, mas deixou-me ficar as calcinhas, creio que sentia o bafo ameaçador do Vovô no pescoço. A voz tinha-lhe ficado rouca, murmurava sem cessar uma mistura de obscenidades e palavras carinhosas e beijava-me a cara com a camisa encharcada, meio asfixiado, respirando às baforadas, apertando-se contra mim. Julguei morrer esmagada, babada, magoada pelos seus ossos e o seu peso, abafada pelo seu cheiro a suor e a mar, pelo seu hálito a vinho e alho, enquanto os seus dedos fortes e quentes se moviam como lagostas entre as minhas pernas pressionando, esfregando, a sua mão envolvendo aquela parte secreta em que ninguém devia tocar. Não consegui resistir, senti que algo no fundo de mim se abria, se estilhaçava e explodia em mil pedaços, enquanto ele se esfregava contra mim cada vez mais depressa, num incompreensível paroxismo de gemidos e um desaforo de estertores, até que por fim tombou para um lado com um grito surdo, que não saía dele, mas do fundo da própria terra. Não soube bem o que lhe tinha sucedido, nem quanto tempo passei junto daquele homem, sem mais roupa que as minhas calcinhas azul-celeste, intactas. Procurei a bata e vesti-a com rudeza, as mãos tremiam-me. O pescador abotoou-me os botões nas costas e acariciou-me o cabelo, não chores, não te aconteceu nada, disse ele, e a seguir pôs-se de pé, pegou-me na mão e levou-me a correr pelo monte abaixo, em direcção à claridade. Amanhã espero-te à mesma hora, não te lembres de me deixar aqui plantado, e não digas uma única palavra disto a ninguém. Se o teu avô sabe, mata-me, avisou-me ao despedir-se. Mas no dia seguinte ele não compareceu ao encontro.
Julgo que esta experiência me deixou uma cicatriz nalgum sítio, porque em todos os meus livros aparecem crianças seduzidas ou sedutoras, quase sempre sem maldade, excepto no caso da menina negra que é atacada violentamente por dois tipos, no Plano Infinito. Ao reviver a recordação do pescador não sinto repugnância nem terror, pelo contrário, sinto uma vaga ternura pela criança que fui e pelo homem que não me violou. Durante anos mantive este segredo tão escondido num compartimento separado da mente, que não o relacionei com o despertar para a sexualidade quando me apaixonei pelo Michael.
Combinámos com o neurologista para te tirar do respirador durante um minuto, Paula, mas não o anunciámos ao resto da família porque ainda não recuperaram daquela segunda-feira fatídica em que estiveste quase a ir para o outro mundo. A minha mãe não consegue mencionar o caso sem desatar a chorar, acorda de noite com a visão da morte debruçada sobre a tua cama. Julgo que, tal como o Ernesto, ela já não reza para que te cures mas para que não sofras mais, mas eu não perdi a vontade de continuar a lutar por ti. O doutor é um homem gentil, com os óculos encavalitados na ponta do nariz e uma bata enrugada que lhe dão um ar vulnerável, como se acabasse de fazer a sesta. É o único médico por estas bandas que não parece insensível à angústia de quem passa o dia no corredor dos passos perdidos. Pelo contrário, o especialista de porfiria, mais interessado nos tubos do seu laboratório onde diariamente analisa o teu sangue, poucas visitas te faz. Hoje de manhã desligámos-te da máquina pela primeira vez. O neurologista examinou os teus sinais vitais e leu o relatório da noite, enquanto eu invocava a minha avó e a tua, aquela Granny encantadora que se foi faz já catorze anos, para virem em nossa ajuda. Pronta? perguntou-me, olhando-me por cima dos óculos, e eu respondi com uma inclinação de cabeça porque a voz não me saía da garganta. Rodou um interruptor e o ronronar líquido do ar na mangueira transparente no teu pescoço cessou subitamente. Deixei também de respirar, enquanto de relógio na mão contava os segundos suplicando-te, exigindo-te que respirasses, por favor, Paula! Cada instante ficava-me marcado como uma Chicotada, trinta quarenta segundos, nada, cinco segundos e pareceu que o teu peito se movia um pouco, mas tão ao de leve que podia ser uma ilusão, cinquenta segundos... e já não se pôde esperar mais, tu estavas exangue e eu própria me sentia sufocar. A máquina voltou a funcionar e logo voltou alguma cor à tua cara. Guardei o relógio a tremer, ardia-me a pele, estava encharcada em suor. O médico deu-me uma gaze.
- Limpe-se, tem sangue nos lábios - disse ele.
- É tarde tentamos de novo e amanhã outra vez, e assim a pouco e pouco até ela respirar por si só - decidi mal pude falar.
- Talvez a Paula não consiga.
- Há-de conseguir, doutor. Vou tirá-la deste sítio e mais vale que ela me ajude.
- Creio que as mães sabem sempre mais do que nós. Vamos baixar paulatinamente a intensidade do respirador para obrigá-la a exercitar os músculos. Não se preocupe, oxigénio não lhe há-de faltar - sorriu, dando-me uma palmadinha carinhosa no ombro.
Saí com os olhos embaciados para ir ter com a minha mãe; creio que a Vovó e a Granny ficaram contigo.
Willie chegou logo que soube da nova crise e desta vez pôde deixar a empresa por cinco dias, cinco dias inteiros com ele... como eu precisava deles! Estas longas separações são perigosas, o amor escorrega por areais incertos. Tenho medo de perder-te, diz-me ele, sinto que te afastas cada vez mais e não sei como prender-te, lembra-te que és a minha mulher, minha alma. Não me esqueci, mas é verdade que me vou distanciando, a dor é um caminho solitário. Este homem traz-me uma rajada de ar fresco, as adversidades moldaram-lhe o carácter, nada o deprime, tem uma força inesgotável para as lutas quotidianas, é um homem inquieto e apressado, mas penetra-o uma calma budista quando se trata de suportar infortúnios, e por isso mesmo torna-se um bom companheiro nas dificuldades. Ocupa por inteiro o território minúsculo do nosso apartamento no hotel, alterando as delicadas rotinas que estabeleci com a minha mãe, rodando como duas bailarinas numa apertada coreografia. Alguém com o tamanho e as características de Willie não passa desapercebido, quando ele chega há desordem e barulho e o fogãozinho não descansa, todo o edifício cheira aos seus saborosos cozinhados. Alugámos outro quarto e fazemos turnos com a minha mãe nas idas ao hospital, assim posso ficar algumas horas a sós com ele. De manhã ele prepara o pequeno-almoço e a seguir chama pela sogra, que aparece em camisa de dormir, com peúgas de lã, envolta nos seus xailes e com marcas da almofada nas faces, como uma doce avó das histórias, senta-se na nossa cama e começamos o dia com torradas e grandes chávenas de aromático café trazido de São Francisco. Willie nunca soube o que era uma família até aos cinquenta anos, mas habituou-se rapidamente a partilhar o seu espaço com a minha e não lhe parece estranho acordar a três na mesma cama. Ontem fomos jantar a um restaurante da Plaza Mayor, onde nos deixámos tentar por uns azafamados estalajadeiros disfarçados de contrabandistas de opereta, que nos atenderam numa sala de pedra com tectos abobadados. Toda a gente fumava e não havia uma única janela aberta, estávamos bem longe da obsessão norte-americana da boa saúde. Empanturrámo-nos com manjares mortíferos: lulas fritas e cogumelos com alho, borrego assado numa travessa de barro, dourado, estaladiço, a jorrar gordura, com um aroma de ervas tradicionais e um jarro do sangria, esse delicioso vinho com frutas que se bebe como água mas que, depois, quando tentamos levantar-nos nos dá uma grande martelada na nuca. Havia semanas que não tinha comido assim, com a minha mãe frequentemente enganamos o dia com chávenas de chocolate. Passei uma noite lamentável com visões de porcos esfolados chorando a sua sorte e lulas vivas a trepar-me pelas pernas, e hoje ao amanhecer jurei converter-me em vegetariana como o meu irmão Juan. Não mais pecados de gula. Estes dias passados com o Willie remoçam-me, sinto de novo o meu próprio corpo, esquecido durante semanas, apalpo os seios, as costelas, que agora se marcam na pele, a cintura, as coxas gordas, reconhecendo-me. Esta sou eu, sou uma mulher, tenho um nome, chamo-me Isabel, não me estou a transformar em fumo, não desapareci. Observo-me no espelho de prata da minha avó: aquela pessoa de olhos desolados sou eu, vivi já quase meio século, a minha filha está a morrer, e no entanto ainda quero fazer amor. Penso na sólida presença de Willie, sinto a pele a eriçar-se-me e não posso deixar de sorrir em face do poder abissal do desejo, que me estremece mau grado a tristeza, e é capaz de fazer retroceder a morte. Fecho por instantes os olhos e lembro com nitidez a primeira vez que dormimos juntos, o primeiro beijo, o primeiro abraço, a descoberta assombrosa de um amor surgido quando menos o procurávamos, a ternura que nos tomou de assalto quando nos julgávamos a salvo numa aventura de uma só noite, da profunda intimidade criada desde o início, como se durante as nossas vidas inteiras nos tivéssemos preparado para esse encontro, a facilidade, a calma e a confiança com que nos amámos, como as de um velho casal que partilhou mil e uma noites. E todas as vezes depois de satisfeita a paixão e renovado o amor, dormimos muito juntinhos sem querer saber onde começa um e acaba o outro, nem de quem são estas mãos ou estes pés, numa tão perfeita cumplicidade que nos encontramos nos sonhos e no dia seguinte não sabemos quem sonhou com quem, e quando nos movemos entre os lençóis o outro preenche os ângulos e as curvas, e quando um suspira o outro suspira, e quando um acorda o outro acorda também. Anda, chama-me o Willie, e eu aproximo-me deste homem que me espera na cama, e a tiritar pelos espaços frios do hospital e das ruas e dos soluços contidos, que se convertem em geada nas veias, tiro a camisa e agasalho-me de encontro ao seu corpo grande, envolta no seu abraço até me sentir aquecida. A pouco e pouco tomamos consciência da respiração ofegante de cada um de nós e as carícias tornam-se cada vez mais intensas e lentas à medida que nos entregamos ao prazer. Beija-me e volta a surpreender-me. Sempre nestes quatro anos, a suavidade e a frescura da sua boca, agarro-me aos seus ombros e pescoço firmes, acaricio-lhe as costas, beijo a cavidade das suas orelhas, a horrível caveira tatuada no seu braço direito, a linha de penugem do seu ventre, e aspiro o seu cheiro que sempre me excita entregue ao amor e grata, enquanto pelas faces me corre um rio de lágrimas inevitáveis que lhe caem no peito. Choro unicamente por ti, filha. mas creio que também choro de felicidade por este amor tardio que veio mudar a minha vida.
Como era a minha vida antes de Willie? Era também uma boa vida, cheia de emoções fortes. Vivi em extremos, poucas coisas foram fáceis ou suaves para mim, talvez por isso o meu primeiro matrimónio durasse tantos anos, era um oásis tranquilo, uma zona sem conflitos no meio das batalhas. Tudo o resto era apenas esforço, conquistar cada bastião com uma espada na mão, nem um só instante de tréguas ou de tédio, grandes êxitos e tremendos fracassos, paixões e amores, e também solidão, trabalho, perdas e abandonos. Até ao dia do golpe militar pensava que a juventude me ia durar para sempre, o mundo parecia-me um sítio formidável e a gente essencialmente boa, julgava que a maldade era uma espécie de acidente, um erro da natureza. Tudo isso acabou de súbito a 11 de Setembro de 1973 quando acordei para a brutalidade da existência, mas ainda não cheguei a esse ponto nestas páginas, porque havia de confundir-te com saltos da memória, Paula? Não fiquei solteirona, como predisse naquelas declarações dramáticas que jazem no cofre do tio Ramón, pelo contrário, casei cedo de mais. Apesar da promessa feita pelo Michael a seu pai, decidimos casar antes de ele concluir os seus estudos de engenharia porque a alternativa era de eu partir com os meus pais para a Suíça, onde tinham sido nomeados representantes do Chile junto das Nações Unidas. O meu trabalho permitia-me alugar um quarto e sobreviver com dificuldade, mas em Santiago nessa época a ideia de que uma rapariga optasse pela independência aos dezanove anos, com noivo e sem vigilância, era inaceitável. Durante semanas debati-me com a dúvida, até que a minha mãe tomou a iniciativa de falar com Michael e pô-lo entre a espada e o matrimónio, tal e qual como vinte e seis anos depois fez com o meu segundo marido. Fizemos contas com papel e lápis e chegámos à conclusão de que duas pessoas só dificilmente conseguiriam sobreviver com o meti salário, mas valia a pena tentar. A minha mãe entusiasmou-se logo com os preparativos; como primeira medida vendeu o grande tapete persa da sala de jantar e de seguida anunciou que um casamento era boa ocasião para atirar a casa pela janela, e o meu seria esplêndido. Sigilosamente começou a armazenar provisões numa dependência secreta, para evitar ao menos que passássemos fome, encheu baús com cobertas toalhas e apetrechos de cozinha e foi averiguar como podíamos obter um empréstimo para construir uma casa. Quando nos pôs os documentos à frente e vimos a soma da dívida, o Michael ficou prostrado. Não tinha trabalho e o pai dele, incomodado com aquela decisão precipitada, não estava disposto a ajudá-lo, mas o poder de convicção da minha mãe é assombroso e acabámos por assinar a papelada. O casamento civil efectuou-se na bela propriedade colonial dos meus pais num dia de Primavera, numa reunião íntima à qual assistiram apenas as duas famílias, isto é, quase cem pessoas. O tio Ramón insinuou que convidássemos o meu pai, parecia-lhe que não devia estar ausente nesse momento tão importante da minha vida, mas eu recusei e em representação da família paterna acorreu Salvador Allende, a quem calhou assinar no livro do registo civil como minha testemunha de casamento. Pouco antes de aparecer o juiz conservador, o meu avô pegou-me por um braço, levou-me para um canto e repetiu as mesmas palavras que vinte anos atrás dissera à minha mãe: Ainda está a tempo de se arrepender, por favor não se case, pense melhor. Faça-me sinal e eu encarrego-me de desbaratar este amontoado de gente, que é que acha? Considerava o casamento como um péssimo negócio para as mulheres mas, pelo contrário, recomendava-o sem reservas à sua descendência masculina. Uma semana depois casámos segundo o ritual católico apesar de eu não praticar essa religião e de Michael ser anglicano, porque o peso da Igreja no meio em que nasci é como uma pedra de moinho. Entrei orgulhosa pelo braço do tio Ramón, que não voltou a sugerir iniciativas em relação ao meu pai até muito mais tarde, quando tivemos de o levar a enterrar. Nas fotografias desse dia os noivos parecem crianças disfarçados, ele com um fraque feito por medida e eu envolta em metros de tecido comprado no zuk de Damasco. De acordo com a tradição inglesa, a minha sogra ofereceu-me uma liga azul-celeste para me dar sorte. Por baixo do vestido eu levava tamanho recheio de espuma plástica no busto que, no primeiro abraço de felicitações, ainda perante o altar, esmagaram-me pela frente e fiquei com o peito côncavo. Caiu-me a liga da perna e ficou no chão da nave da igreja, como frívola testemunha da cerimónia; também se furou um pneu do automóvel que nos levava para o banquete, e Michael teve de tirar a casaca e ajudar o condutor a mudar a roda, mas não acho que estes pormenores fossem de mau agoiro.
Os meus pais partiram para Genebra e nós começámos a nossa vida de casal naquela enorme casa, com seis meses de renda adiantados pelo tio Ramón e a dispensa onde a minha mãe tinha armazenado, como uma generosa urraca, suficientes sacos de cereais, boiões e conservas e até garrafas de vinho, como para resistir a um cataclismo de fim do mundo. De qualquer forma, era uma solução pouco prática porque não tínhamos móveis para mobilar tantos quartos nem dinheiro para o aquecimento, limpezas e jardinagem e além disso a propriedade ficava abandonada quando ambos partíamos ao amanhecer a caminho do escritório e da universidade. Roubaram-nos a vaca, o porco, as galinhas e a fruta das árvores, depois partiram as janelas e levaram-nos as prendas de casamento e as roupas, finalmente descobriram a entrada para a cave secreta da dispensa e apossaram-se do seu conteúdo, deixando uma nota de agradecimento na porta como derradeira ironia. Assim começou o rosário de roubos que tanto sabor tem conferido à nossa existência, calculo que os ladrões entraram nas várias casas em que temos morado mais de dezassete vezes e roubaram-nos quase tudo, incluindo três automóveis. Por milagre, ao espelho de prata da minha avó nunca lhe tocaram. Entre furtos, exílio, divórcio e viagens perdi tanta coisa que agora, mal compro algo começo logo a despedir-me dela, porque sei que pouco tempo vai durar nas minhas mãos. Quando desapareceram o sabonete da casa de banho e o pão da cozinha decidimos sair daquela mansão decrépita e vazia onde as aranhas teciam rendas nos tectos e os ratos passeavam arrogantes. Entretanto, o meu avô tinha deixado de trabalhar, despedindo-se para sempre das suas ovelhas, e tinha-se mudado para o casarão da praia para lá passar o resto da velhice longe do barulho da capital, esperando a morte em paz com as suas memórias, sem suspeitar que ainda devia permanecer neste mundo mais vinte anos. Cedeu-nos a sua casa de Santiago, onde nos instalámos entre móveis solenes, quadros do século XIX, a estátua de mármore da jovem pensativa e a mesa oval da sala de jantar sobre a qual deslizava por encantamento o açucareiro da Vovó. Não foi por muito tempo, porque nos meses seguintes construímos à força de audácia e crédito a casinha onde nasceram os meus filhos.
Um mês após o casamento puseram-se-me umas dores no baixo ventre que eu, por mera ignorância e atordoamento, atribuí a uma doença venérea. Não sabia muito bem de que se tratava, mas supunha que estava relacionado com o sexo e por conseguinte com o casamento. Não me atrevia a contar ao Michael porque aprendera com a minha família e no colégio inglês que os temas relacionados com o corpo são de mau gosto; muito menos me podia socorrer da minha sogra para pedir conselhos e a minha mãe estava demasiado longe, de modo que aguentei sem refilar até que mal podia andar. Um dia, enquanto empurrava com dificuldade o carrinho das compras no mercado, encontrei-me com a mãe da antiga namorada do meu irmão, uma senhora doce e discreta que eu pouco conhecia. Pancho andava ainda no rasto do novo Messias e a sua relação amorosa com a moça fora temporariamente interrompida; anos mais tarde viria a casar duas vezes com ela, e a divorciar-se outras tantas. A boa senhora perguntou-me amavelmente como estava e antes dela acabar de formular a pergunta pendurei-me ao pescoço dela e proclamei-lhe sem preâmbulos que estava a morrer de sífilis. Com uma calma admirável pegou-me no braço, levou-me a uma pastelaria próxima, pediu café e bolos e a seguir interrogou-me sobre os pormenores da minha explosiva confissão. Acabámos o último bocado de torta e levou-me de seguida a um médico seu amigo, que diagnosticou uma infecção nas vias urinárias, possivelmente provocador pelas correntes geladas na casa colonial, mandou-me para a cama e receitou-me antibióticos, despedindo-se com um sorriso zombeteiro: da próxima vez que lhe der a sífilis não espere tanto tempo, venha ver-me antes, disse ele. Foi esse o início de uma amizade incondicional com essa senhora. Adoptámo-nos mutuamente porque eu precisava de outra mãe e ela tinha espaço livre no coração, passou a chamar-se Avó Hilda e desde então tem cumprido o seu papel com lealdade.
Os filhos condicionaram a minha existência, desde que nasceram não voltei a pensar em termos individuais, faço parte de um trio inseparável. Em certa altura, há vários anos, quis dar prioridade a um amante, mas isso não resultou e por fim renunciei a ele para voltar à minha família. Este é um assunto de que havemos de falar mais tarde, Paula, basta de o manter em silêncio. Nunca pensei que a maternidade fosse uma opção, consideravas inevitável, como as estações. Soube dos meus estados de gravidez antes de serem confirmados pela ciência, tu apareceste-me num sonho, tal como depois se me revelou o teu irmão Nicolás. Não perdi essa capacidade, e agora posso adivinhar os filhos da minha nora, sonhei com o meu neto Alejandro antes dos pais suspeitarem que o tinham engendrado e sei que a criatura que nascerá na Primavera será uma menina e se chamará Andrea, mas Nicolás e Célia ainda não me acreditam e estão a planear uma ecografia e a fazer listas de nomes. No primeiro sonho tinhas dois anos e chamavas-te Paula, eras uma rapariguinha magra, de cabelo escuro, grandes olhos pretos e um olhar lânguido, como o dos mártires nos vitrais medievais de algumas igrejas. Vestias um sobretudo e um chapéu aos quadrados, parecidos ao clássico vestuário de Sherlock Holmes. Nos meses seguintes engordei tanto que certa manhã me baixei para calçar os sapatos e caí de cabeça com os pés para o ar, a melancia na minha barriga tinha rodado até à garganta desviando o seu centro de gravidade que nunca mais voltou à posição original porque eu continuo a andar aos tropeções pelo mundo. Esse período em que estiveste dentro de mim foi de perfeita felicidade, nunca voltei a sentir-me tão bem acompanhada. Aprendemos a comunicar entre nós numa linguagem de código, soube como ias ser ao longo da vida, vi-te aos sete, aos quinze e aos vinte anos; vi-te de cabelo comprido e riso alegre, e também de blue-jeans e de vestido de noiva, mas nunca te sonhei como estás agora, a respirar por um tubo metido no pescoço, inerte e sem consciência. Passaram mais de nove meses e como não tinhas intenção de abandonar a caverna sossegada onde estavas instalada, o médico decidiu tomar medidas drásticas e abriu-me a pança para te dar vida a 22 de Outubro de 1963. A Avó Hilda foi a única a estar ao meu lado naquele transe, porque o Michael ficou de cama com uma febre nervosa, a mamã estava na Suíça e eu não quis avisar os meus sogros até que tudo tivesse passado. Eras um bebé penugento com um certo aspecto de tatu, mas eu não te teria trocado por nenhum outro, além disso a penugem caiu depressa, dando lugar a uma menina delicada e formosa, adornada com duas flamantes pérolas nas orelhas que a minha mãe insistiu em te oferecer, de acordo com uma velha tradição familiar. Regressei dali a pouco tempo ao trabalho, mas nada voltou a ser como dantes, metade do meu tempo a minha atenção e a minha energia estavam sempre dependentes de ti, cresceram-me antenas para adivinhar as tuas necessidades mesmo à distância, ia para o escritório a arrastar os pés e procurava pretextos para escapar, chegava tarde, saía cedo e dava parte de doente para ficar em casa. Ver-te crescer e descobrir o mundo parecia-me mil vezes mais interessante do que as Nações Unidas e os seus ambiciosos programas para melhorar a sorte do planeta; nunca mais via chegar a hora em que o Michael obtivesse o seu diploma de engenheiro e pudesse sustentar a família, para eu ficar contigo. Entretanto os meus sogros tinham-se mudado para uma casa ampla, a um quarteirão da que nós estávamos a construir, e preparavam-se para dedicar o resto dos seus dias a mimar-te. Tinham uma ideia ingénua da vida porque jamais tinham saído do pequeno círculo onde permaneceram protegidos das intempéries, para eles o futuro apresentava-se benigno, tal como para nós. Nada de mal nos podia acontecer se nada de mal fazíamos. Eu estava disposta a converter-me em esposa e mãe exemplar, embora não soubesse muito bem como. Michael projectava encontrar um bom trabalho dentro da sua profissão, viver comodamente, viajar um pouco e muito mais tarde herdar a casa grande dos pais dele, onde decorreria a sua velhice, rodeado de netos, a jogar brídege e golfe com os amigos do costume.
O Vovô não aguentou muito tempo o tédio e a solidão da praia. Teve de renunciar aos banhos de mar porque a temperatura glacial da corrente de Humboldt lhe fossilizou os ossos, e às suas pescarias, porque a refinaria de petróleo liquidou os peixes tanto de água doce como salgada. Estava cada vez mais coxo e cheio de achaques, mas permaneceu fiel à sua teoria de que as doenças são castigos naturais da humanidade e as dores sentem-se menos se as ignoramos. Mantinha-se de pé à força de genebra e aspirinas, que substituíram as suas pastilhas homeopáticas quando deixaram de fazer-lhe efeito. Não era estranho que assim fosse, porque em crianças os meus irmãos e eu não conseguíamos resistir à tentação daquele antigo armário de madeira cheio de frasquinhos misteriosos, e não só comíamos as suas homeopatias às mãos cheias, como ainda por cima as misturávamos nos recipientes. O velho dispôs de muitos meses de silêncio para rememorar as suas recordações e concluiu que a vida é uma boa paródia, e que não devemos ter medo de a deixar. Esquecemo-nos de que seja como for caminhamos para a morte, dizia com frequência. O fantasma da Vovó perdia-se pelos recantos daquela casa construída para os prazeres do Verão, mas nunca para a ventania e a chuva do Inverno. Para cúmulo, o papagaio apanhou uma séria constipação e de nada serviram as homeopatias nem as aspirinas dissolvidas em genebra que o dono lhe metia pelo bico com um conta-gotas, numa segunda-feira amanheceu inteiriçado aos pés do poleiro onde passara tantos anos a insultar-nos. O Vovô mandou-o dentro de gelo a um taxidermista de Santiago, que lho devolveu passado pouco tempo embalsamado, com a plumagem nova e uma expressão de inteligência que nunca tivera em vida. Quando o meu avô acabou de arranjar os últimos estragos da casa e se cansou de lutar contra a erosão inevitável do monte e as pragas de formigas, baratas e ratos, já tinha passado um ano e a solidão tinha-lhe azedado o carácter. Começou a ver as telenovelas como última medida desesperada contra o aborrecimento, mas sem dar por isso foi apanhando o vício e em pouco tempo a sorte daqueles personagens de papelão acabou por ser mais importante para ele do que as dos seus próprios parentes. Seguia várias séries televisivas simultaneamente, confundia as histórias e acabou perdido num labirinto de paixões alheias, e nessa altura percebeu que tinha chegado o momento de regressar à civilização, antes que a velhice lhe desse o último apertão e o deixasse convertido num ancião meio chalado. Voltou à capital quando nos preparávamos para mudar para a nossa nova casa, uma barraca pré-fabricada construída a golpes grosseiros de martelo por meia-dúzia de operários e coroada com uma peruca de palha no telhado que lhe dava um ar africano. Retomei o velho costume de ir visitar o meu avô à tarde depois do trabalho. Tinha aprendido a guiar e utilizava o automóvel a meias com o Michael, um veículo de plástico muito primitivo, com uma única porta à frente, de modo que ao abri-la soltavam-se os comandos e o volante; não sou boa condutora e meter-me no meio do trânsito naquele ovo mecânico era uma acção suicida. As visitas diárias ao Vovô deram-me material suficiente para todos os livros que escrevi e possivelmente os que vier a escrever; ele era um narrador virtuoso, provido de um humor pérfido, capaz de contar as histórias mais arrepiantes à gargalhada. Comunicou-me sem reservas as anedotas acumuladas nos seus muitos anos de existência, os principais acontecimentos do século, as extravagâncias da minha família e os infindos conhecimentos adquiridos nas suas leituras. Os únicos temas vedados na sua presença eram a religião e as doenças; considerava que Deus não é matéria de discussão e que tudo o que se relacionava com o corpo e as suas funções era coisa muito privada, o simples facto de se ver ao espelho parecia-lhe uma vaidade ridícula, barbeava-se de memória. Apesar do seu carácter autoritário, não era inflexível. Quando comecei a trabalhar no jornalismo e encontrei finalmente uma linguagem articulada para exprimir as minhas frustrações de mulher naquela cultura machista, a princípio ele não quis ouvir os meus argumentos, que a seu ver eram um disparate, um atentado contra as bases da família e da sociedade, mas quando se apercebeu do silêncio instalado entre ambos durante as nossas merendas de chá e bolos, começou disfarçadamente a interrogar-me. Um dia surpreendi-o a folhear um livro cuja capa julguei reconhecer e com o tempo acabou por aceitar a libertação feminina como um caso de justiça elementar, mas essa largueza não lhe chegou para abarcar mudanças sociais, em política era individualista e conservador, tal como o era em matéria religiosa. Em certa ocasião exigiu-me que o ajudasse a morrer, porque a morte costuma ser lenta e torpe.
- Como faremos? - perguntei-lhe divertida, julgando que estava a brincar.
- Veremos quando chegar a altura. Por agora quero que mo prometa.
- Isso é ilegal, Vovô.
- Não se preocupe, eu assumo toda a responsabilidade. - O senhor vai para o caixão e a mim mandam-me direitinha para o cadafalso. Além disso deve ser pecado. O avô é cristão ou não?
- Como se atreve a perguntar-me uma coisa tão pessoal?
- Muito mais pessoal é matá-lo por encomenda, não acha?
- Se a menina não o fizer, sendo a neta mais velha e a única que poderia ajudar-me, quem o há-de fazer? Um homem tem direito a morrer com dignidade!
Percebi que falava a sério. Prometi-lhe finalmente porque o vi tão saudável e forte, apesar dos seus oitenta anos, que fiquei certa de que não me calharia a mim cumprir a minha palavra. Dois meses depois começou com tosse, uma tosse seca de cão doente. Furioso, amarrou uma correia de cavalo ao tronco e quando a tosse o abafava dava-lhe um apertão brutal para conter os pulmões, como me explicou. Recusou-se a ir para a cama, convencido de que aquele era o princípio do fim - da cama para a cova, dizia - e muito menos aceitou ver médicos, porque Benjamin Viel andava pelos Estados Unidos embrenhado em temas dos contraceptivos, os da geração do velho já tinham morrido ou estavam patetas, e segundo ele os jovens eram uma cambada de charlatões todos inchados de teorias modernas. Apenas confiava num velho cego que lhe endireitava os ossos aos esticões e na sua caixa de caprichosas pílulas homeopáticas que tomava com mais esperança do que discernimento. Dali a pouco tempo ardia em febre e tentou tratar-se com grandes copos de genebra e duches gelados, mas algumas noites mais tarde sentiu um raio a abrir-lhe a cabeça e um ruído de terramoto que o deixava surdo. Quando recuperou a respiração não se conseguia mexer, metade do corpo convertera-se em granito. Ninguém se atreveu a chamar uma ambulância porque com a metade da boca que ainda funcionava murmurou entre dentes que o primeiro a tirá-lo de sua casa era deserdado, mas, apesar de tudo não se livrou do médico. Alguém telefonou para um serviço de urgência e perante o assombro dos presentes apresentou-se uma senhora com vestido de seda e colar de pérolas de três voltas ao pescoço. Lamento, ia sair para uma festa, desculpou-se, tirando as luvas de pelica para examinar o doente. O meu avô pensou que além de paralítico estava alucinado e tentou interromper a dama, a qual com inexplicável familiaridade pretendia desabotoar-lhe a roupa e apalpá-lo em sítios por onde ninguém no seu perfeito juízo se teria aventurado; defendeu-se com as poucas forças que lhe restavam, a grunhir de desespero, mas ao cabo de alguns minutos de puxa-e-larga ela derrotou-o com um sorriso de lábios pintados. Ao examiná-lo descobriu que além do derrame cerebral, aquele ancião teimoso estava com uma pneumonia e várias costelas partidas, tinha-as quebrado com os apertões da correia de cavalo. O prognóstico não é bom, sussurrou a senhora aos familiares reunidos aos pés da cama, sem pensar que o paciente estava a ouvir. Veremos, replicou o Vovô num fio de voz, disposto a demonstrar àquela senhora que espécie de homem era ele. Graças a isso livrei-me de cumprir uma promessa feita com ligeireza. Passei os dias críticos da doença ao pé da sua cama. Deitado de costas entre os lençóis brancos, sem almofada, pálido, imóvel, com os ossos marcados a cinzel e o seu perfil ascético, era como a figura de um rei celta esculpida no mármore de um sarcófago. Atenta a cada um dos seus gestos, eu rogava-lhe em silêncio para que continuasse a lutar e não se lembrasse da ideia de morrer. Durante essas longas vigílias interroguei-me amiúde como havia de fazer, no caso dele me pedir, e concluí que jamais seria capaz de lhe apressar a morte. Nessas semanas compreendi quanto o corpo é resistente e quanto se apega à vida, embora demolido pela doença e a velhice.
Dentro de pouco tempo o meu avô já podia falar bastante bem, vestia-se sem ajuda e arrastava-se penosamente até ao seu cadeirão na sala, onde se instalava com uma bola de borracha para exercitar os Músculos das mãos, enquanto relia a enciclopédia, colocada numa estante de couro e bebia lentamente grandes copos de água. Mais tarde descobri que não era água, mas genebra, enfaticamente proibida pela doutora, mas como com a bebida parecia ir melhorando, eu própria me encarreguei de lha fornecer. Comprava-a numa loja de bebidas da esquina cuja dona, costumava perturbar o sono daquele patriarca concupiscente; era uma viúva madura com um peito enérgico de soprano e um traseiro heróico, que o atendia com considerações de cliente favorito e lhe deitava o licor em garrafas de água mineral para evitar problemas com o resto da família. Uma tarde o velho falou da morte da minha avó, tema que até então nunca tinha abordado.
- Ela continua viva - disse ele - porque eu nunca a esqueci nem um só momento. Costuma vir ver-me.
- Quer dizer que lhe aparece, como um fantasma?
- Fala-me, sinto o seu bafo na nuca, a sua presença no meu quarto. Quando estive doente pegava-me na mão.
- Era eu, Vovô...
- Não julgue que estou xexé, sei que às vezes era a menina.
- Mas outras, era ela.
- O avô também não há-de morrer porque eu me lembrarei sempre de si. Não esqueci nada do que me contou ao longo destes anos.
- Não posso confiar na menina, porque está sempre a mudar tudo. Quando eu morrer não terá quem lhe ponha freio e de certo que há-de contar para aí mentiras a meu respeito - e riu-se tapando a boca com o lenço, porque ainda não controlava bem os movimentos da cara.
Durante os meses seguintes fez exercícios com tenacidade até que conseguiu voltar a mover-se, recuperou por completo e viveu quase vinte anos mais, o que lhe deu tempo de te conhecer, Paula. Eras a única que ele distinguia entre o montão de netos e bisnetos, não era homem de ternuras, mas brilhavam-lhe os olhos quando te via, esta miúda tem um destino especial, dizia ele. Que faria se te visse agora neste estado? julgo que espantava à bengalada doutores e enfermeiras e com as suas próprias mãos arrancaria os tubos e as sondas para te ajudar a morrer. Se não tivesse a certeza de que hás-de recuperar, talvez eu fizesse o mesmo.
Hoje morreu Don Manuel. Levaram o corpo numa marquesa pela porta das traseiras e a família tomou conta dele para o ir enterrar na sua aldeia. A mulher e o filho partilharam connosco no corredor dos passos perdidos o pior tempo das suas vidas, a angústia de cada visita aos Cuidados Intensivos, a longa paciência das horas, dos dias, das semanas de agonia. De certo modo convertemo-nos numa família. Ela traz queijos e pães do campo, que distribui entre a minha mãe e eu; às vezes adormece, esgotada, com a cabeça sobre os meus joelhos, estendida na fila de cadeiras da sala de espera, enquanto eu lhe afago discretamente a testa. É uma mulher pequena, compacta e morena, com a cara sulcada de rugas festivas, sempre vestida de preto. Ao chegar ao hospital tira os sapatos e calça uns socos. Nos anos sessenta da sua vida, Don Manuel era forte como um cavalo, mas depois de três operações ao estômago cansou-se de suportar humilhações e deixou de lutar. Vimo-lo apagar-se a pouco e pouco. Nos últimos dias voltou-se para a parede negando-se a receber consolos do capelão, que passa amiúde pela sala. Morreu dando a mão aos seus e também eu consegui despedir-me, lembre-se de pedir pela Paula no outro lado, recordei-lhe pela calada antes de que se evadisse do corpo. Quando a sua menina melhorar hão-de vir visitar-nos ao campo, temos um pedaço de terra muito bonito, o ar são e a comida consistente farão bem à Paula, disse-me a viúva. Foram-se embora de táxi, seguindo o carro funerário. Ela parecia ter encolhido, ia com o rosto sem lágrimas, com os socos na mão.
Durante vários dias desligámos-te do respirador, cada vez por tempos mais espaçados e já resistes dez minutos com o pouco ar que consegues meter no corpo. É uma respiração lenta e curta, os músculos do teu peito lutam contra a paralisia e já começam a mover-se suavemente. Daqui a uma semana talvez possamos tirar-te da Unidade de Cuidados Intensivos e colocar-te numa enfermaria normal. Não há quartos individuais, a não ser o quarto zero aonde vão parar os moribundos; gostaria de levar-te para um quarto soalheiro e silencioso, com uma janela onde surgissem pássaros e flores como tu gostarias, mas temo que apenas vamos dispor de uma cama na sala comum. Espero que a minha mãe aguente até lá, parece-me que está mesmo a ir-se abaixo.
De noite assaltam-me os piores presságios, ao sentir passar as horas uma a uma até começarem os ruídos do amanhecer muito antes da primeira réstia de luz e só então adormeço profundamente como se tivesse morrido, envolta na camisola cinzenta de cachemira de Willie. Trouxe-ma na sua primeira visita, como se soubesse que iríamos passar muito tempo separados. Esta prenda carregada de recordações simboliza para mim os aspectos mágicos do nosso encontro. Nas primeiras semanas eu tomava uns comprimidos azuis, outro dos muitos remédios misteriosos que a minha mãe receita segundo o seu critério e extrai generosamente de um grande saco, onde acumula medicamentos desde tempos imemoriais. Uma vez injectou-me uma dose dupla de um reconstituinte para casos de extrema debilidade, que adquirira na Turquia dezanove anos antes, e esteve quase a matar-me. As pílulas azuis mergulham-me num torpor confuso, acordava de olhos em bico, e levava metade da manhã a adquirir uma certa lucidez. Depois descobri, numa ruela próxima, a farmácia do tamanho de um armário assistida por uma boticária comprida e seca, toda vestida de preto e abotoada até ao queixo, à qual contei as minhas penas. Vendeu-me valeriana num frasco de vidro escuro e agora sonho sempre com a mesma coisa, com poucas variantes. Sonho que sou tu, Paula, tenho o teu cabelo comprido e os teus grandes olhos, as mãos de dedos finos e a tua aliança de casamento, que uso desde que ma entregaram no hospital, quando adoeceste. Pu-la no dedo para não a perder com as pressas daquela ocasião e desde então não a quis tirar. Quando recuperares a consciência devolvo-a ao Ernesto para ele ta pôr tal como fez no dia do casamento, há pouco mais de um ano. Não te parece uma complicação casar pela igreja? inquiri nessa altura. Lançaste-me um olhar severo e, naquele tom de admoestação que nunca empregas com os teus alunos, mas às vezes usas comigo, replicaste que o Ernesto e tu eram crentes e queriam consagrar a vossa união publicamente, porque em privado já tinham casado perante Deus no primeiro dia em que dormiram juntos. Na cerimónia tinhas o ar de uma fada camponesa. A família veio de pontos muito distantes para celebrar o acontecimento em Caracas e eu vim da Califórnia com o teu trajo de noiva nos braços, meio asfixiada sob uma montanha de tecido branco. Vestiste-te em casa do meu amigo Ildemaro, que estava tão orgulhoso como o teu pai, e quiseste que ele te conduzisse à igreja no seu velho automóvel, bem lavado e polido para a ocasião. Quando penso na Paula vejo-a sempre de vestido de noiva e coroada de flores, disse-me o Ildemaro comovido quando veio ver-te a Madrid nos primeiros dias da tua doença.
Há cinco dias que temos greve de trabalhadores da limpeza no hospital, o edifício parece uma praça de mercado em plena Idade Média, daqui a pouco haverá baratas e ratazanas a espalhar pestes entre os humanos. À entrada do edifício reúnem-se os grevistas rodeados de agentes da segurança, a sorrir para as câmaras de televisão. Médicos, enfermeiras, doentes em pijama e sapatilhas, e outros em cadeiras de rodas aproveitam a ocasião para se distrair, conversam, fumam, bebem café das máquinas e ninguém se apressa a resolver o problema, enquanto o lixo vai subindo como espuma. Pelo chão vêem-se luvas de borracha usadas, copos de papel, montanhas de pontas de cigarro, manchas ascorosas. Os parentes dos enfermos limpam as salas conforme podem, os desperdícios aterram nos corredores, onde são arrastados pelos pés de volta às mesmas enfermarias. Os caixotes de lixo transbordam, pelos cantos acumulam-se grandes sacos de plástico cheios até rebentar, as casas de banho repugnantes já não se podem utilizar e a maior parte foi fechada à chave, o ar fede como num estábulo. Tentei averiguar se podemos levar-te para uma clínica privada; dizem que o risco de te deslocar é muito grande, mas eu julgo que o perigo de outra infecção deve ser pior.
- Calma - aconselhou-me imperturbável o neurologista. - A Paula está no único local limpo do hospital.
- Mas as pessoas arrastam a contaminação com os sapatos! Entram e saem através de corredores imundos!
A minha mãe pegou-me num braço, levou-me para um lado e lembrou-me a virtude da paciência: este é um hospital público, o Estado não tem orçamento para resolver a greve, não ganhamos nada pondo-nos nervosas, além disso a Paula criou-se com a água do Chile e pode resistir perfeitamente a uns míseros germes madrilenos, disse ela. Nisto, a enfermaria abriu a porta para deixar entrar as visitas e por uma vez disse o teu nome em primeiro lugar. Vinte e um passos com a bata de pano e os forros de plástico nos sapatos, que o pessoal não usa, transitando impunemente por sobre os desperdícios, mas tenho de admitir que do outro lado parecia acabado de ensaboar. Cheguei à tua cama agitada, com o coração aos pulos como sempre acontece no momento de me aproximar de ti, e ainda furiosa com a greve. Veio ao meu encontro a enfermeira da manhã, a tal que chora quando vê o Ernesto a falar-te de amor.
- Boas notícias! A Paula respira sozinha! - saudou-me, já não tem febre e está a reagir melhor. Fale com ela, mulher, acho que ouve...
Peguei-te nos meus braços, agarrei no teu rosto com ambas as mãos e beijei-te na testa, nas faces, nas pálpebras, sacudi-te pelos ombros chamando por ti: Paula, Paula. E então, filha, por Deus... então abriste os olhos e olhaste para mim!
- Reagiu bem ao antibiótico. já não perde tanto sódio. Com sorte, daqui a mais uns dias podemos tirá-la daqui informou-me sucintamente o médico de serviço.
- Abriu os olhos!
- Isso não quer dizer nada, não tenha ilusões. O nível de consciência é nulo, talvez ouça alguma coisa, mas não entende nem reconhece. Não creio que sofra.
- Vamos tomar chocolate com farturas, para comemorar esta manhã esplêndida - disse a minha mãe, e saímos alegres, evitando a porcaria.
Saíste dos Cuidados Intensivos no mesmo dia em que terminou a greve dos empregados da limpeza. Enquanto uma equipa de gente com botas e luvas de borracha escovava os pavimentos com desinfectante, tu viajavas numa marquesa conduzida pelo teu marido com destino a uma sala do Departamento de Neurologia. Aqui existem seis camas, todas ocupadas, um lavatório e duas grandes janelas através das quais se vislumbra o fim do Inverno, este será o teu lar até podermos levar-te para casa. Agora posso ficar todo o tempo contigo, mas passadas quarenta e oito horas sem me mexer da tua beira compreendi que àquele ritmo ficaria sem forças e mais valia contratar uma ajuda. A minha mãe e as freiras conseguiram duas enfermeiras para te assistir, a de dia é uma rapariga nova, rechonchuda e sorridente que canta sem parar, e a de noite é uma senhora taciturna e eficiente de uniforme engomado. A tua mente ainda vagueia pelo limbo, abres os olhos e olhas assustada, como se visses fantasmas. O neurologista está preocupado, depois da Semana Santa vai fazer-te vários exames para investigar o estado do teu cérebro, existem máquinas prodigiosas capazes de fotografar mesmo as mais antigas recordações. Tento não pensar no amanhã; o futuro não existe, dizem os índios do planalto, só contamos com o passado para dele extrair experiência e conhecimento, e com o presente, que é apenas um relâmpago, visto que no mesmo instante se converte em ontem. Não controlas o corpo, não te consegues mexer e sofres de espasmos violentos como choques eléctricos, por um lado estou grata ao teu estado de completa inocência, seria muito pior se percebesses o estado grave em que te encontras. De erro em erro vou aprendendo a tratar de ti, ao princípio o buraco na tua garganta, os tubos e as sondas causavam-me horror, mas já me acostumei, consigo limpar-te e mudar a roupa da cama sem ajuda. Comprei uma bata e uns socos brancos para me poder enfiar disfarçado entre o pessoal e poupar explicações. Ninguém ouviu falar da porfiria por estas bandas, não acreditam que possas curar-te. Que bonita é a sua menina, coitadinha, peça a Deus que a leve depressa, dizem-me os pacientes que ainda podem falar. O ambiente da sala é deprimente, parece um manicómio; há uma mulher transformada em caracol a uivar na cama, começou a encolher e a enroscar-se sobre si própria há um par de anos e desde então a sua metamorfose avança impiedosamente. O marido vem às tardes depois do trabalho, lava-a com um trapo húmido, penteia-a, verifica as correias que a mantêm presa à cama e depois senta-se a seu lado a observá-la sem falar com ninguém. Na outra extremidade, perto da janela, estrebucha Elvira, uma sólida camponesa da minha idade, totalmente lúcida, que confunde o significado das palavras e tem movimentos descontrolados. Tem ideias claras, mas não consegue exprimi-las, quer pedir água e os seus lábios formam a palavra “trim”, as mãos e as pernas também lhe não obedecem, debate-se como uma marionete com os cordéis emaranhados. O marido conta que ao voltar um dia para casa depois do trabalho a encontrou caída numa cadeira a balbuciar coisas incoerentes. Julgou que estava a fazer de bêbeda para divertir os netos, mas passadas horas naquilo e com as crianças a chorar assustadas, decidiu trazê-la para Madrid. Desde então ninguém consegue dar um nome àquela doença. De manhã vem professores e estudantes de Medicina e examinam-na como a um animal, picam-na com agulhas, fazem-lhe perguntas a que não responde e depois vão-se embora encolhendo os ombros. As suas filhas e uma data de amigos e vizinhos desfilam para a visitar nos fins-de-semana, ela era a alma da aldeia. O marido não sai da cadeira ao pé da cama, passa ali o dia e dorme à noite, atende-a sem fraquejar, ao mesmo tempo que lhe grita aos ouvidos: anda lá, carago, engole essa sopa senão atiro-ta pela cabeça abaixo, com um raio, esta mulher dá-me cabo da cachimónia. Acompanha esta linguagem com gestos solícitos e o olhar mais enternecido. Confessou-me corando que a Elvira é a luz da sua vida, sem ela nada lhe interessa. Apercebes-te do que te rodeia, Paula? Não sei se ouves, se vês, se entendes alguma coisa do que se passa neste quarto demencial, ou se por acaso me reconheces. Olhas apenas para a direita, com os olhos abertos e as pupilas dilatadas fixas na janela onde por vezes aparecem pombas. O pessimismo dos médicos e a sordidez da sala comum, estão a minar-me a alma. Também o Ernesto parece muito cansado, mas quem está pior é a minha mãe.
Cem dias. Passaram exactamente cem dias desde que caíste em corna. As últimas forças abandonaram a minha mãe, ontem não conseguiu levantar-se de manhã, está esgotada e aceitou finalmente as pressões para regressar ao Chile, comprei o bilhete e há duas horas fui pô-la no avião. Não te passe pela cabeça morreres e deixar-me infinitamente órfã, avisei-a na despedida. Ao voltar ao hotel encontrei a minha cama aberta, uma panela com sopa de lentilhas e o seu livro de orações que me deixou por companhia, assim acabou a nossa lua-de-mel. Nunca antes tínhamos disposto de tanto tempo para estar juntas; com ninguém, salvo com os filhos recém-nascidos, gozei de uma intimidade tão profunda e tão longa. Com os homens que amei a convivência teve sempre fases de paixão, de galanteria e pudor, ou’ então degenerou em franco aborrecimento, não sabia como é cómodo partilhar um espaço com outra mulher. Vou ter saudades dela, mas preciso de estar só e concentrar energia em silêncio, o barulho do hospital está a pôr-me surda.
O pai do Ernesto partirá dentro em pouco e também sentirei a Sua falta, passei muitas horas acompanhada por este homenzarrão, que se instala ao pé da tua cama a velar por ti com rara delicadeza e a distrair-me com as aventuras da Sua existência. Durante a Guerra Civil de Espanha perdeu o pai e os tios, na sua família só ficaram vivas as mulheres e as crianças mais novas. O avô do teu marido foi fuzilado contra o muro de uma igreja e na confusão daqueles tempos a mulher andou fugida de aldeia em aldeia sem saber que era viúva com três filhos nos braços, passando fome e inenarráveis penúrias. Conseguiu salvar os filhos, que cresceram na Espanha franquista sem nunca fraquejarem nas suas sólidas convicções republicanas. Aos dezoito anos o pai do Ernesto era um jovem estudante em plena ditadura do general Franco, quando a repressão chegara ao apogeu. Tal como os irmãos, ele também pertencia clandestinamente ao Partido Comunista. Certo dia uma companheira caiu nas mãos da polícia, a ele avisaram-no imediatamente, despediu-se da mãe e dos irmãos e conseguiu fugir antes que a jovem pudesse denunciar o seu paradeiro. Andou primeiro pelo Norte de África, mas os seus passos levaram-no por fim até ao Novo Mundo e acabou por se refugiar na Venezuela, lá trabalhou, casou, teve filhos e permaneceu mais de trinta anos. Com a morte de Franco regressou à aldeia natal na província de Córdoba à procura do passado. Conseguiu encontrar alguns dos velhos camaradas e assim, por este e por aquele, descobriu o paradeiro da moça em quem pensara todos os dias durante três décadas. Num andar pobretana de paredes com manchas esperava-o uma mulher a bordar junto à janela; não a reconheceu mas ela não o tinha esquecido e estendeu-lhe as mãos, grata por aquela visita tardia. Então ele ficou a saber que apesar da tortura ela não confessara e compreendeu que a sua fuga e o longo exílio tinham sido inúteis, a polícia nunca andou no seu encalço porque ela não o denunciara. já é tarde para pensar em mudanças, o destino deste homem está traçado, não pode regressar a Espanha, ficou com a alma curtida nas selvas amazónicas. Nas horas intermináveis que partilhamos no hospital conta-me as suas andanças por rios largos como mares, cumes de montanhas nunca antes pisadas por seres humanos, vales onde os diamantes brotam da terra como sementes e as serpentes matam só com o cheiro do seu veneno; descreve-me tribos que erram nuas sob árvores centenárias, índios camponeses que vendem como gado as mulheres e as filhas, soldados mercenários dos traficantes de drogas, ladrões de gado que violam, matam e incendeiam impunemente Ia certo dia pela selva com um grupo de trabalhadores e urna récua de mulas, abrindo passagem à catanada na vegetação, quando um dos homens falhou o golpe e a cataria lhe deu numa perna fazendo um corte profundo e partindo-lhe o osso. Começou a perder sangue como uma catarata, apesar do torniquete e de outras medidas de emergência. Nessa altura alguém se lembrou do índio que conduzia as mulas, um velho candongueiro com fama de bruxo, e foram buscá-lo ao fim da fila. O homem aproximou-se placidamente, deu uma olhadela à perna, afastou os curiosos e começou a recitar os seus salmos com a parcimónia de quem já viu a morte muita vez. Abanou a ferida com o chapéu para espantar os mosquitos, atirou-lhe uma rajada de cuspo e traçou umas quantas cruzes no ar, enquanto cantarolava na língua da selva. Assim estancou a hemorragia, concluiu o pai de Ernesto num tom casual. Envolveram o horrível corte com um trapo, colocaram o ferido numa maca improvisada e viajaram com ele durante horas, sem que derramasse uma única gota de sangue, até chegarem ao posto de socorros mais próximo onde foi possível cosê-lo e pôr-lhe umas talas. Ficou coxo, mas conservou a perna. Contei esta história às freiras que te visitam diariamente e não pareceram surpreendidas, estão acostumadas aos milagres. Se um índio do Amazonas pode estancar um jacto de sangue com cuspo, quanto mais não poderá fazer a ciência por ti, filha. Tenho de arranjar ajuda. Agora que estou sozinha, os dias tornam-se mais compridos e as noites mais escuras. Sobeja-me tempo para escrever, porque uma vez cumpridos os rituais dos teus cuidados não há mais nada que fazer, a não ser recordar.
No início dos anos 60 o meu trabalho tinha progredido das estatísticas florestais para uns começos cambaleantes no jornalismo, que acidentalmente me levaram à televisão. No resto do mundo já se transmitia a cores, mas no Chile, último recanto do continente americano, estávamos apenas a dar os primeiros passos com programas experimentais a preto e branco. Os privilegiados donos de um televisor converteram-se nas pessoas mais influentes do bairro, os vizinhos amontoavam-se em redor dos escassos aparelhos existentes para observarem hipnotizados no ecrã um desenho geométrico imóvel e ouvir música de fundo. Passavam as tardes de boca aberta e olhar fixo à espera de alguma revelação que mudasse o rumo das suas vidas, mas nada sucedia, apenas aquele quadrado, o círculo e a mesma música de sempre. Lentamente passámos da geometria básica a umas tantas horas de programação didáctica sobre o funcionamento de um motor, o temperamento industrioso das formigas e aulas de primeiros socorros nos quais se fazia respiração boca-a-boca a um lívido boneco. Também nos proporcionavam um noticiário sem imagens, narrado como na rádio e de vez em quando um filme dos tempos do mudo. A falta de temas mais interessantes ofereceram ao meu chefe da FAO quinze minutos para expor o problema da fome no mundo. Era a época das profecias apocalípticas: a humanidade reproduzia-se sem controlo, os alimentos eram insuficientes, a terra estava esgotada, o planeta ia perecer e em menos de cinquenta anos os poucos sobreviventes estariam a destruir-se uns aos outros pela última côdea de pão. No dia marcado para o programa o meu chefe teve uma indisposição e eu tive de ir ao canal para apresentar uma desculpa. Lamento, disse-me secamente o produtor, às três da tarde uma pessoa dessa instituição tem de aparecer diante da câmara, porque assim ficou combinado e não disponho de outro material para preencher esse espaço. Eu achei que se os telespectadores suportavam o quadrado e o círculo e o Chaplin na Quimera do Ouro cinco vezes por semana, o caso não era realmente sério. Apresentei-me munida de uns pedaços de película cortados à tesoura, onde apareciam uns búfalos raquíticos a lavrar a terra gretada pela seca num remoto lugar da Ásia. Como o documentário era em português, inventei um texto dramático que mais ou menos se ajustasse ao esquálido gado e narrei-o com tal ênfase que ninguém ficou com dúvidas sobre a próxima extinção dos búfalos, do arroz e da humanidade inteira. Ao terminar, o produtor pediu, com um suspiro de resignação, que voltasse todas as quartas-feiras a pregar contra a fome, o infeliz estava ansioso para completar o horário de programas. Foi assim que fiquei encarregada de um programa para o qual devia elaborar desde o guião até aos gráficos dos créditos. O trabalho no Canal consistia em chegar pontualmente, sentar-me diante de uma luz vermelha e falar para o vazio; nunca tive a consciência que do outro lado daquela luz um milhão de orelhas aguardava as minhas palavras e outro milhão de olhos apreciavam o meu penteado, daí a minha surpresa quando desconhecidos me cumprimentavam na rua. Da primeira vez que me viste aparecer no ecrã, Paula, tinhas um ano e meio e o susto ao veres a cabeça decapitada da tua mamã por trás de um vidro, deixou-te um bom bocado em estado catatónico. Os meus sogros possuíam o único televisor num quilómetro em redor e todas as tardes se enchia o salão de espectadores que a Granny atendia como se fossem visitas. Passava as manhãs a meter bolachas no forno e a dar voltas à manivela de uma máquina de gelados, e a noite a lavar pratos e a varrer o lixo de circo que ficava pelo soalho da casa, sem que ninguém lhe agradecesse. Converti-me na pessoa mais conspícua do bairro, os vizinhos cumprimentavam-me respeitosamente e os meninos apontavam-me dedo. Teria podido seguir aquele ofício o resto dos meus dias, mas o país acabou por se cansar de vacas famélicas e pestes nos arrozais. Quando isso aconteceu eu era uma das poucas pessoas com experiência de televisão - muito rudimento obviamente – e pude optar por outros programas, mas Michael já se tinha formado em engenharia e a ambos nos picava a comichão da aventura, queríamos viajar antes de ter mais filhos. Conseguimos duas bolsas de estudo, partimos par a Europa e chegámos à Suíça contigo pela mão, tinhas quase dois anos e eras uma mulher em miniatura.
O tio Ramón não inspirou nenhum dos personagens do,, meus livros, ele tem demasiada decência e senso comum. Os romances fazem-se com dementes e vilãos, com gente torturada pelas suas obsessões, com vítimas das engrenagens implacáveis do destino. Do ponto de vista narrativo, um homem inteligente e de bons sentimentos como o tio Ramón não serve para nada, porém, como avô é perfeito, eu só o soube quando lhe apresentei a sua primeira neta no aeroporto de Genebra e o vi pôr à vista um caudal secreto de ternura que até então mantivera oculto. Apareceu com uma grande medalha enfiada numa fita tricolor ao pescoço, entregou-te as chaves da cidade num estojo de veludo e deu-te as boas-vindas em nome dos Quatro Cantões, da Banca Suíça e da Igreja Calvinista. Nesse momento, compreendi quanto na realidade eu amava o meu padrasto e apagaram-se de uma penada os ciúmes atormentadores e as raivinhas do passado, Nesse dia tinhas o boné e o sobretudo de Sherlock Holmes com que eu sonhara antes do teu nascimento e que a Avó Hilda, seguindo as minhas minuciosas instruções, confeccionara na sua máquina de costura. Tu falavas apropriadamente e portavas-te com os modos educados de uma senhorinha, tal como te ensinara a Granny. Eu trabalhava a tempo inteiro e pouco imaginava como criar filhos, era para mim muito cómodo delegar essa tarefa e agora, em vista dos esplêndidos resultados, julgo que a minha sogra o fez muito melhor do que eu. A Granny encarregou-se, entre outras coisas, de te tirar as fraldas. Comprou duas bacias, uma pequena para ti e outra grande para ela, e sentavam-se as duas durante horas na sala a brincar às visitas, até que aprendeste o truque. A casa da Granny era a única com telefone no bairro e os vizinhos que vinham pedir para fazer chamadas acostumaram-se a ver aquela doce dama inglesa com o traseiro à vista sentada em frente da neta. A Avó Hilda descobriu por seu lado a maneira de te dar de comer, porque tinhas tanto apetite como um pisco. Improvisou uma sela amarrada ao lombo da sua cadela, animal negro e grande com resistência de burro, na qual cavalgavas enquanto ela te perseguia com a colher de sopa. Na Europa estas duas avós exemplares foram substituídas pelo tio Ramón, que te convenceu que era o dono universal da Coca-Cola e que ninguém podia consumi-la sem a sua autorização em todo o universo e mais além. Aprendeste a telefonar-lhe em francês, interrompendo as sessões do Conselho das Nações Unidas a pedir-lhe autorização para beber uma gasosa. Do mesmo modo, fez-te acreditar em que era o patrão do jardim zoológico, dos programas infantis da televisão e do famoso jacto de água do lago de Genebra. Atento ao horário do jacto, cronometrou o relógio e, confiado na pontualidade suíça, fingia dar a ordem pelo telefone ao presidente da República, punha-te à janela e deliciava-se com a expressão maravilhada da tua cara quando surgia a coluna majestosa de água no lago a elevar-se para o céu. Partilhava contigo brincadeiras tão surrealistas que cheguei a temer pela tua saúde mental. Tinhas uma caixa com seis bonecos chamados “Os Condenados à Morte”, cujo fim era serem executados ao amanhecer do dia seguinte. Todas as noites te apresentavas perante aquele inefável verdugo a solicitar clemência e assim obtinhas um adiamento de vinte e quatro horas para a sentença. Disse-te que era descendente directo de Jesus Cristo e para provar que ambos tinham o mesmo apelido levou-te anos mais tarde ao Cemitério Católico de Santiago para ver o mausoléu de Don Jesus Huidobro. Garantiu-te ainda que era príncipe, que no dia do seu nascimento as pessoas abraçavam-se na rua enquanto repicavam alegremente os sinos das igrejas anunciando a boa nova. Nasceu Ramón! Nasceu Ramón! Pregava ao peito as múltiplas condecorações recebidas ao longo da sua carreira diplomática dizendo-te que eram medalhas de heroísmo ganhas em batalhas contra os inimigos do seu reino. Durante anos e anos acreditaste em tudo isso, filha.
Naquele ano, dividimos o tempo entre a Suíça e a Bélgica, onde Michael estudava engenharia e eu televisão. Em Bruxelas vivíamos num minúsculo apartamento por cima de um cabeleireiro. O resto dos inquilinos eram raparigas de saias curtas, decotes muito baixos, perucas de cores impossíveis e cachorros lãzudos com laços no pescoço. A toda a hora se ouvia música, suspiros e disputas, enquanto entravam e saíam os apressados clientes das donzelas. O elevador dava directamente para o único quarto do nosso andar e quando nos esquecíamos de fechar a porta à chave costumávamos acordar a meio da noite com um desconhecido ao pé da cama a perguntar pela Pinky ou pela Suzanne. A minha bolsa de estudo integrava-se num programa para congoleses com os quais a Bélgica estava em dívida pelos muitos anos de brutal colonização. Eu constituía a única excepção, mulher de pele clara entre trinta varões negros. Depois de uma semana a sofrer humilhações, compreendi que não estava preparada para semelhante provação e renunciei, apesar de irmos passar por angústias sem o dinheiro da bolsa. O director pediu-me que explicasse na aula a minha brusca partida e não tive outro remédio senão enfrentar aquele compacto grupo de estudantes e dizer no meu francês lamentável que no meu país os homens não entram na casa de banho das mulheres a desabotoar a braguilha, não empurram as senhoras para passarem primeiro pelas portas, não se atropelam para se sentar à mesa ou subir para o autocarro, que me sentia maltratada e me ia embora porque não estava habituada a tais modos. Um silêncio glacial acolheu a minha perorarão. Depois de uma longa pausa, um deles pediu a palavra para dizer que no seu país nenhuma mulher decente manifestava necessidade de ir à casa de banho em público, tão pouco tentava passar pelas portas antes dos homens mas, pelo contrário, caminhava uns passos atrás, e que a sua mãe e as suas irmãs não se sentavam à mesa com ele, comiam depois as sobras do jantar. Acrescentou que se sentiam permanentemente ofendidos por mim, que nunca tinham visto uma pessoa tão mal-educada, e como eu constituía uma minoria no grupo tinha de aguentar o melhor que pudesse. É certo que estou em minoria neste curso, mas vocês também terão de o fazer se quiserem evitar problemas na Europa. Era uma solução salomónica, chegámos a acordo em certas normas básicas de convivência e eu acabei por ficar. Nunca quiseram sentar-se comigo à mesa nem no autocarro, mas deixaram de invadir a casa de banho e de me afastar aos empurrões. Durante esse ano o feminismo foi-se-me por água abaixo: caminhava modestamente dois metros atrás dos meus colegas, não erguia o olhar nem a voz e era a última a passar pelas portas. Certa vez dois deles apareceram no nosso apartamento a pedir-me uns apontamentos das aulas e nessa mesma tarde veio a administradora do edifício avisar-nos que “gente de cor” não era bem-vinda e que tinham feito uma excepção a nós, porque apesar de sul-americanos não éramos completamente escuros. Guardo como recordação da minha aventura belgo-africana uma fotografia onde estou no centro dos colegas; entre trinta rostos de ébano perde-se a minha cara cor de pão mal cozido. As nossas bolsas eram exíguas, mas o Michael e eu estávamos na idade em que a pobreza é de bom tom. Muitos anos depois voltei à Bélgica para receber um prémio literário das mãos do rei Balduíno. Estava à espera de um gigante de manto e coroa, como nos retratos reais, e encontrei pela frente um cavalheiro baixo, delicado, cansado e um pouco coxo, que não reconheci. Perguntou-me amavelmente se conhecia o seu país e contei-lhe coisas dos meus tempos de estudante, quando vivíamos tão à justa que só comíamos batatas fritas e carne de cavalo. Olhou-me desconcertado e eu temi tê-lo ofendido. Gosta de carne de cavalo? perguntei-lhe tentando compor as coisas.
Graças àquele regime e a outras poupanças, conseguimos arranjar dinheiro para percorrer a Europa desde a Andaluzia até Oslo num Volkswagen desengonçado, reconvertido em carroça de ciganos, que avançava pelas estradas aos espirros com uma pilha de embrulhos no tejadilho. Serviu-nos com uma lealdade de dromedário até ao final da viagem e quando chegou a altura de o abandonar estava em tão más condições que tivemos de pagar para o levarem para um depósito de sucata. Durante meses vivemos numa tenda, tu julgavas que não havia outra forma de existência, Paula, e quando entrávamos num edifício sólido perguntavas espantada como é que se dobravam as paredes para as levarmos no automóvel. Visitámos incontáveis castelos, catedrais e museus, levando-te numa mochila às costas e alimentando-te de Coca-Cola e bananas. Não tinhas brinquedos, mas entretinhas-te a imitar os guias turísticos; aos três anos sabias a diferença entre um fresco romano e outro do Renascimento. Na minha memória misturam-se ruínas, praças e palácios de todas essas cidades, não sei ao certo se estive em Florença ou se a vi num bilhete postal, se assisti a uma corrida de touros ou se foi uma corrida de cavalos, não consigo distinguir a Costa Azul da Costa Brava, e no aturdimento do exílio perdi as fotografias que atestam a minha passagem por aqueles sítios, de forma que esse troço do meu passado pode ser simplesmente um sonho, como tantos que me deformam a realidade. Parte da confusão era devida a uma segunda gravidez, sucedida em momento inoportuno, porque as sacudidelas de carripana e o esforço de montar a tenda e cozinhar de gatas no chão me puseram doente. Nicolás foi engendrado num saco de dormir, durante os primeiros alvores de uma Primavera fria, possivelmente no Bois de Boulogne, a trinta metros dos homossexuais vestidos de rapariginhas impúberes que se prostituíam por dez dólares e a poucos passos de uma tenda vizinha de onde nos chegava fumo de marijuana e estrépito de jazz. Com tais antecedentes, esse filho podia ter dado em aventureiro desenfreado, mas acabou por ser um moço aprazível, daqueles que inspiram confiança à primeira vista, desde o ventre já se acomodava às circunstâncias sem dar luta, fazia parte do tecido do meu próprio corpo, tal como de certo modo ainda faz; no entanto, mesmo no melhor dos casos, a gravidez é uma tremenda invasão, uma amiba a crescer dentro da gente, a passar por múltiplas etapas de evolução - peixe, barata, dinossauro, macaco - até adquirir um aspecto humano. Durante aquele esforçado percurso pela Europa, Nicolás manteve-se agachado dentro de mim, muito quieto, mas de qualquer modo a sua presença causava estragos no meu pensamento. Perdi o interesse pelos despojos de civilizações passadas, aborrecia-me nos museus, enjoava na carripana e mal conseguia comer. Suponho que por tal razão não consigo recordar pormenores da viagem.
Regressámos ao Chile em plena euforia da Democracia Cristã, um partido que prometia reformas sem modificações drásticas e que fora eleito com o apoio da direita para evitar uma possível vitória de Salvador Allende, que muitos temiam como Satanás. As eleições foram marcadas logo de início por uma campanha de terror, na qual a direita estava empenhada desde o começo da década, quando triunfou a Revolução Cubana, desencadeando uma avalancha de esperança em toda a América Latina. Grandes cartazes mostravam mães grávidas a defenderem os filhos das garras de soldados russos. Nada de novo debaixo do sol: o mesmo fora dito havia trinta anos, nos tempos da Frente Popular, e o mesmo se diria de Allende pouco depois nas eleições de 1970. A política de conciliação dos cristãos-democratas, apoiada pelos norte-americanos das companhias de cobre, estava destinada ao fracasso porque não satisfazia nem a esquerda nem a direita. O projecto agrário, a que as pessoas chamavam “reforma dos quinteiros”, distribuiu uns quantos terrenos abandonados ou mal explorados, mas os latifúndios continuaram nas mãos do costume. Enraizou-se o descontentamento e dois anos depois boa parte da população começaria a virar à esquerda, os vários partidos políticos que propugnavam por reformas reais iriam juntar-se numa coligação e, perante a surpresa do mundo em geral e dos Estados Unidos em particular, Salvador Allende iria converter-se no primeiro presidente marxista da História eleito por votação popular. Mas não devo adiantar-me, em 1966 ainda se comemorava o triunfo da Democracia Cristã nas eleições do ano anterior, e dizia-se que esse partido governaria o país durante os próximos cinquenta anos, que a esquerda sofrera uma derrota irrecuperável e que Allende ficara reduzido a um cadáver político. Era também a época das mulheres com aspecto de órfãs desnutridas e de vestidos tão curtos que mal lhes cobriam as nádegas. Viam-se alguns hippies nos bairros mais sofisticados da capital, com as suas roupagens da índia, colares, flores e grandes cabeleiras, mas para nós, que tínhamos estado em Londres e os tínhamos visto drogados a dançar seminus na Praça de Trafalgar, os do Chile revelavam-se lamentáveis. já nessa altura a minha vida era marcada pelo trabalho e pelas responsabilidades, nada mais distante do meti temperamento do que o ócio bucólico dos Filhos das Flores, acomodei-me porém aos signos exteriores dessa cultura por me ficarem muito melhor os vestidos compridos, sobretudo nos últimos meses da gravidez, quando estava redonda. Não só adoptei as flores na minha indumentária, pintei-as também pelas paredes da casa e no automóvel, enormes girassóis amarelos e dálias multicores que escandalizavam os meus sogros e a vizinhança. Por sorte parece que o Michael não reparou, andava ocupado com um novo trabalho na construção e em prolongadas partidas de xadrez.
Nicolás veio ao mundo num parto laborioso que demorou dois dias e me deixou mais memórias do que o ano inteiro a viajar pela Europa. Tive a impressão de cair num precipício, ganhando impulsão e velocidade a cada segundo, até um ribombante final em que se me abriram os ossos e uma força telúrica incontrolável empurrou a criatura cá para fora. Não experimentei nada disso quando tu nasceste, Paula, porque me fizeram uma cesariana como deve ser. Com o teu irmão não houve nada de romântico, apenas esforço, sofrimento e solidão. Não tinha ouvido dizer que os pais podiam ter uma certa participação no acontecimento, e além disso Michael não era o homem ideal para ajudar nesse transe, desmaia ao ver uma agulha ou sangue. O parto parecia-me então um assunto estritamente pessoal, como a morte; não suspeitava que enquanto eu sofria, outras mulheres da minha geração davam à luz em suas casas assistidas por uma parteira, o marido, os amigos e um fotógrafo, a fumar marijuana ao som da música dos Beatles.
Nicolás nasceu sem um único pêlo, com um corno na testa e um braço arroxeado; temi que de tanto ler ficção científica tivesse trazido para a terra uma criatura de outro planeta, mas o médico garantiu-me que era humano. O unicórnio foi produzido pelos ferros que utilizaram para mo arrancar no momento do parto e a cor púrpura do braço desapareceu passado pouco tempo. De pequenino lembro-me dele calvo, mas em dado momento devem ter-se normalizado as suas células capilares, porque hoje tem uma mata de cabelo negro ondulado e sobrancelhas espessas. Se tiveste ciúmes do teu irmão nunca o demonstraste, foste uma segunda mãe para ele. Partilhavam um quarto muito pequeno, com personagens de contos pintados nas paredes e uma janela por onde assomava a sombra sinistra de um dragão que de noite agitava as suas pavorosas garras. Tu chegavas à minha cama a arrastar o bebé, não conseguias erguê-lo nos braços e também não eras capaz de o deixar sozinho à mercê do monstro do jardim. Mais tarde, quando ele aprendeu as causas do medo, dormiu com um martelo debaixo do colchão para defender a irmã. Durante o dia, o dragão convertia-se numa robusta cerejeira, entre os seus ramos vocês instalavam baloiços, construíam abrigos e no Verão fechavam-se lá dentro com os frutos verdes que disputavam aos pássaros. Aquele minúsculo jardim era um mundo seguro e mágico, ali montavam uma tenda para passarem a noite a brincar aos índios, enterravam tesouros e criavam verme s. Numa absurda piscina ao fundo do quintal tomavam banho com as crianças e os cães da vizinhança; sobre o telhado crescia uma parreira selvagem e vocês espremiam as uvas para fabricarem um vinho repugnante. Na casa dos meus sogros, a umas centenas de metros, contavam com um recanto recheado de surpresa, árvores de fruto, pães acabados de cozer por uma avó perfeita, e um buraco na cerca para passarem de gatas ao terreno de golfe e dar grandes correrias em propriedade alheia. Nicolás e tu cresceram a ouvir as canções inglesas da Granny e as minhas histórias. Todas as noites, quando vos aconchegava nas camas, davam-me o tema ou a primeira frase e em menos de três segundos eu desenrolava uma história à medida; não voltei a usufruir dessa inspiração instantânea, mas espero que não se tenha apagado e que no futuro os meus netos consigam ressuscitá-la.
Tantas vezes ouvi dizer que no Chile vivíamos num matriarcado, que quase acreditei; até o meu avô e o meu padrasto, senhores autoritários de estilo feudal, o afirmavam sem pestanejar. Não sei quem inventou o mito do matriarcado nem como se perpetuou durante mais de cem anos; talvez um visitante de outras épocas, um daqueles geógrafos dinamarqueses ou comerciantes de Liverpool de passagem pelas nossas Costas se tenha apercebido de que as chilenas são mais fortes e organizadas do que a maioria dos homens, concluiu levianamente que são elas que mandam, e de tanto repetir a falácia esta acabou por se converter num dogma. Elas só reinam às vezes entre as paredes das suas casas. Os varões controlam o poder político e económico, a cultura e os costumes, promulgam as leis e aplicam-nas a seu bel-prazer, e quando as pressões sociais e o aparelho legal não bastam para submeter as mulheres mais altaneiras, intervém a religião com o seu inegável selo patriarcal. O que é imperdoável é que são as mães que se encarregam de perpetuar e fortalecer o sistema, criando filhos arrogantes e filhas submissas; se se pusessem de acordo para agir de outro modo poderiam acabar com o machismo numa geração. Durante séculos, a pobreza obrigou os homens estreito território nacional de uma ponta à outra a percorrer em busca de sustento, não é raro que aquele que no Inverno cava nas entranhas das minas do Norte, se encontre no Verão no vale central na colheita da fruta, ou no Sul a bordo de Um barco de pesca. Os homens passam e partem, mas as Mulheres não se deslocam, são árvores ancoradas em terra firme. Em torno delas giram os filhos próprios e outros de parentes, tomam conta dos velhos, dos doentes, dos desamparados, são o eixo da comunidade. Em todas as classes sociais, menos nas privilegiadas pelo dinheiro, a abnegação e o trabalho são considerados as máximas virtudes femininas; o espírito de sacrifício é uma questão de honra, quanto mais sofrem pela família, mais orgulhosas se sentem. Acostumam-se muito cedo a considerar o companheiro como um filho tontinho, ao qual perdoam graves defeitos, desde a embriaguez até à violência doméstica, porque é homem. Nos anos 60, um grupo de mulheres jovens, que tivera a sorte de avistar o mundo para além da cordilheira dos Andes, atreveu-se a lançar um desafio. Enquanto se tratava de vagas queixas ninguém lhes deu importância, mas em 1967 apareceu a primeira publicação feminista a sacudir o torpor provinciano em que vegetávamos. Nasceu como mais um capricho do dono da editorial mais poderosa do país, um milionário de ideias vagas cujo objectivo não era despertar consciências nem nada parecido, mas sim fotografar adolescentes andróginas para as páginas de modas. Reservou para ele o contacto exclusivo com as belas modelos, procurou dentro do seu meio social quem fizesse o resto do trabalho e a eleição recaiu em Delia Vergara, uma jornalista recém-formada cujo aspecto aristocrático escondia uma vontade férrea e um intelecto subversivo. Esta mulher editou uma elegante revista com o mesmo aspecto clamoroso e as frivolidades de outras publicações de então e de agora, mas destinou uma parte dela à divulgação das suas ideias feministas. Rodeou-se de umas quantas colegas audaciosas e juntas criaram um estilo e uma linguagem que até à altura não se tinham visto em letra de imprensa no país.
Desde o primeiro número, a revista provocou acaloradas polémicas; os jovens acolheram-na com entusiasmo e os grupos mais conservadores ergueram-se em defesa da moral, da pátria e da tradição, que certamente ficavam em perigo com o tema de igualdade entre os sexos. Por uma dessas estranhas voltas da sorte, Delia tinha lido em Genebra uma carta minha, que a minha mãe lhe mostrou, e assim ficou a saber da minha existência. Chamou-lhe a atenção o tom de alguns parágrafos e quando voltou ao Chile procurou-me para participar no seu projecto. Quando me conheceu eu estava sem trabalho, quase a dar à luz e a minha falta de credenciais era lamentável, não passara pela universidade, tinha o cérebro cheio de fantasias e, produto da minha escolaridade de transumância, escrevi.com graves erros de gramática, mesmo assim ofereceu-me uma página sem pôr mais condições do que um toque irónico, porque no meio de tantos artigos de combate era necessário algo de leviano. Aceitei sem saber como é difícil escrever a brincar por encomenda. Na vida privada, os Chilenos têm o riso imediato e a piada fácil, mas em público são um povo de tontos graves paralisados pelo medo do ridículo, o que me ajudou pois enfrentei uma escassa concorrência. Na minha coluna tratava os varões de trogloditas e suponho que se qualquer homem se atrevesse a escrever com aquela insolência sobre o sexo oposto, seria linchado numa praça pública por uma turba de mulheres enfurecidos, mas a mim ninguém me levava a sério. Quando saíram os primeiros números da revista com reportagens sobre contraceptivos, divórcio, aborto, suicídio e outros temas indizíveis, armou-se um sarilho. Os nomes de quem trabalhava na revista andavam de boca em boca, às vezes com admiração, mas em geral acompanhados de uma careta. Suportámos muitas agressões e nos anos seguintes todas menos eu, que era casada com um híbrido inglês, acabaram separadas dos seus maridos crioulos, incapazes de tolerar a combativa celebridade das esposas.
Tive um primeiro vislumbre da desvantagem do meu sexo quando era uma ranhosa de cinco anos e a minha mãe me ensinava a tricotar no corredor da casa do avô, enquanto os meus irmãos brincavam no álamo do jardim. Os meus dedos desajeitados tentavam fazer nós de lá com as agulhas, desfaziam-se os pontos, enredava-se o novelo, transpirava devido ao esforço de concentração,, e nessa altura a minha mãe disse: senta-te com as pernas juntas como uma senhorinha. Atirei com o tricô para longe e nesse momento decidi que ia ser homem; mantive-me firme nesse propósito até aos onze anos, quando me atraiçoaram as hormonas à vista das orelhas monumentais do meu primeiro amor e o meu corpo começou a mudar inexoravelmente. Teriam de passar quarenta anos para aceitar a minha condição e compreender que, com o dobro do esforço e metade do reconhecimento, tinha conseguido o mesmo do que por vezes conseguem alguns homens. Hoje em dia não me trocaria por nenhum, mas na minha juventude as injustiças quotidianas amarguravam-me a existência. Não se tratava de inveja freudiana, não há razão para cobiçar esse pequeno e caprichoso apêndice masculino, se tivesse um não saberia que fazer com ele. A Delia emprestou-me uma pilha de livros de autoras norte-americanos e europeias e mandou-me lê-los por ordem alfabética, para ver se desfazia as brumas românticas do meu cérebro envenenado por excesso de literatura de ficção, e assim fui descobrindo aos poucos uma maneira articulada de exprimir a raiva surda que sempre me tinha acompanhado. Converti-me numa formidável antagonista para o tio Ramón, que teve de recorrer aos seus piores truques de oratória para me fazer frente; agora era eu quem redigia documentos com três cópias em papel selado e ele quem se negava a assiná-los.
Certa noite, o Michael e eu fomos convidados para jantar em casa de um conhecido político socialista, que fizera carreira lutando pela justiça e igualdade para o povo. Aos seus olhos, o povo compunha-se apenas de homens, não lhe tinha passado pela cabeça que as mulheres também estavam incluídas. A esposa tinha um cargo de direcção numa grande corporação e costumava aparecer na imprensa como um dos escassos exemplos de mulher emancipada; não sei por que estava casada com aquele proto-macho. Os restantes convidados também eram personagens da política ou da cultura e nós, dez anos mais novos, não nos ajustávamos em nada naquele grupo sofisticado. A mesa alguém elogiou os meus artigos humorísticos, perguntou-me se não pensava em escrever coisas sérias e num lance de inspiração repliquei-lhe que gostaria de entrevistar uma mulher infiel. Um silêncio gélido caiu sobre a sala de jantar, os convivas perturbados fixaram a vista nos pratos e ninguém disse uma palavra durante um bom bocado. Por fim a dona da casa levantou-se, dirigiu-se à cozinha para fazer café e eu segui-a a pretexto de ajudá-la. Enquanto púnhamos as chávenas numa bandeja disse-me que se eu prometesse guardar segredo e nunca revelar a sua identidade, estava disposta a conceder-me a entrevista. No dia seguinte, apresentei-me com um gravador no seu gabinete, uma sala luminosa num edifício de vidro e aço em pleno centro da cidade onde ela reinava sem rivais femininas num posto de comande entre uma multidão de tecnocratas de fato cinzento e gravatas às riscas. Recebeu-me sem mostras de ansiedade, magra, elegante, com a saia curta e o sorriso amplo, vestida com um conjunto Chanel e várias voltas de fios dourados ao pescoço, disposta a contar a sua história sem escrúpulos de consciência. Em Novembro desse ano, a revista publicou dez linhas sobre o assassínio de Che Guevara, que tinha convulsionado o mundo, e quatro páginas com a minha entrevista àquela mulher infiel que fez estremecer a pacata sociedade chilena. Numa semana duplicaram as vendas e contrataram-me como redactora permanente. Chegaram milhares de cartas à redacção, muitas de organizações religiosas e de conhecidas figuras hierárquicas da direita política, espantados com o mau exemplo público daquela desavergonhada, mas também recebemos outras de leitoras a confessar as suas próprias aventuras. Custa imaginar hoje em dia que uma coisa tão banal provocasse semelhante reacção, ao fim e ao cabo a infidelidade é tão antiga como a instituição da matrimónio. Ninguém perdoou que a protagonista da reportagem tivesse as mesmas motivações para o adultério do que um homem: oportunidade, tédio, despeito, galanteria, desafio, curiosidade. A senhora da minha entrevista não era casada com um bêbedo brutal nem com um inválido de cadeira de rodas, tão-pouco padecia o tormento de um amor impossível; na sua vida não havia tragédia, carecia simplesmente de boas razões para guardar lealdade a um marido que por sua vez a traía. Muita gente ficou horrorizada com a sua organização perfeita, alugara um apartamento discreto com duas amigas, mantinham-no impecável, e assim não passavam pelo mau bocado de frequentar hotéis onde podiam ser reconhecidas. Ninguém tinha pensado que as mulheres podiam desfrutar de tal comodidade, um apartamento próprio para encontros amorosos era privilégio único de varões, tinha mesmo um nome francês para o designar: garconnière. Na geração do meu avô, eram de uso comum entre os grandes senhores, mas já muito poucos se podiam dar a esse luxo e em geral cada qual fornicava como e onde melhor podia, de acordo com a bolsa. Em todo o caso, não faltavam quartos de aluguer para amores furtivos e toda a gente sabia exactamente os preços e onde se encontravam.
Passados vinte anos, numa das voltas do meu longo périplo, encontrei-me noutro recanto do mundo, muito longe do Chile, com o marido da senhora do conjunto Chanel. O homem tinha sido preso e torturado durante os primeiros anos da ditadura militar e tinha o corpo e a alma marcados com cicatrizes. Vivia então no exílio, separado da família, e tinha pouca saúde porque o frio do cárcere lhe entrara dentro do corpo e estava a devorar-lhe os ossos, no entanto não perdera nem o seu encanto nem a sua tremenda vaidade. Mal se lembrava de mim, só me recordava por causa daquela entrevista, que tinha lido fascinado.
- Sempre quis saber quem era aquela mulher infiel - disse-me em tom confidencial. - Comentei o caso com todos os meus amigos. Em Santiago não se falava doutra coisa nesses dias. Teria ficado encantado se visitasse aquele apartamento, e oxalá que lá estivessem também as duas amigas. Desculpa a falta de modéstia, Isabel, mas julgo que essas três tipas mereciam encontrar um macho bem plantado.
- Para te ser franca, penso que isso nunca lhes faltou.
- Já passou muito tempo, não me dizes quem era ela?
- Não.
- Diz-me ao menos se a conheço!
- Sim... biblicamente.
O trabalho na revista e mais tarde na televisão foi uma válvula de escape para a loucura herdada dos meus antepassados; sem ela a pressão acumulada teria rebentado levando-me direitinha para um manicómio. O ambiente cauteloso e moralista, a mentalidade provinciana e a rigidez das normas sociais daqueles tempos no Chile eram esmagadores. Em pouco tempo o meu avô acostumou-se à minha vida pública e deixou de atirar os meus artigos para o lixo, não fazia comentários sobre eles, mas de vez em quando perguntava-me qual era a opinião do Michael e lembrava-me que me devia sentir muito grata por ter um marido tão tolerante. Não lhe agradava a minha reputação de feminista, nem os meus vestidos compridos e chapéus antiquados, e muito menos o meu velho Citroên pintado como uma cortina de casa de banho, mas perdoava-me as extravagâncias porque na vida real eu cumpria o papel de mãe, esposa e dona de casa. Pelo prazer de escandalizar o próximo eu era capaz de desfilar pela rua com um soutien enfiado num cabo de vassoura - sozinha, é claro, ninguém estava disposto a acompanhar-me -, mas na vida privada tinha interiorizado as fórmulas para a felicidade doméstica. De manhã servia o pequeno-almoço na cama ao meu marido, à tarde esperava por ele vestida de ponto em branco e com a azeitona do seu martini entre os dentes, à noite deixava-lhe em cima de uma cadeira o fato e a camisa para ele pôr no dia seguinte, engraxava-lhe os sapatos, cortava-lhe o cabelo e as unhas e comprava-lhe a roupa sem que ele tivesse o incómodo de a provar, tal como fazia com os meus filhos. Não era apenas estupidez da minha parte, mas excesso de energia.
Dos hippies cultivava o aspecto exterior, na realidade vivia como uma formiga obreira a trabalhar doze horas diárias para pagar as contas. A única vez que provei marijuana, que um verdadeiro hippie me ofereceu, percebi que aquilo não era para mim. Fumei seis cigarros seguidos e não me invadiu a euforia alucinante de que tanto ouvira falar, apenas dores de cabeça; os meus pragmáticos genes bascos são imunes à felicidade fácil das drogas. Regressei à televisão, desta vez com um programa feminista de humor, e colaborava na única revista infantil do país, que acabei por dirigir quando o seu fundador morreu de uma doença fulminante. Durante anos diverti-me a entrevistar assassinos, videntes, prostitutas, necrófilos, saltimbancos, santarrões de suspeitos milagres, psiquiatras dementes e mendigas com falsos tocos que alugavam recém-nascidos para comover as almas caridosas. Escrevia receitas de cozinha inventadas segundo a inspiração do momento e de vez em quando improvisava um horóscopo guiando-me pelos aniversários dos meus amigos. A astróloga vivia no Peru e o correio costumava atrasar-se, ou então os seus escritos perdiam-se nos meandros do destino. Certa vez telefonei-lhe para lhe anunciar que tínhamos o horóscopo de Março, mas que nos faltava o de Fevereiro, e ela respondeu-me que publicasse o que tínhamos, qual era o problema, a ordem não altera o produto; a partir daí comecei eu a fabricá-los com a mesma percentagem de acertos. A tarefa mais árdua era o Correio do Amor, que eu assinava com o pseudónimo de Francisca Román. A falta de experiência pessoal recorria à intuição herdada da Vovó e aos conselhos da Avó Hilda, que via todas as telenovelas da moda e era uma verdadeira perita em assuntos do coração. O arquivo das cartas de Francisca Román servir-me-ia agora para escrever vários volumes. Onde teriam ido parar aqueles caixotes atafulhados de epístolas melodramáticas? Não consigo explicar como me sobrava tempo para tratar da casa, das crianças e do marido, mas fosse como fosse lá me arranjava. Nos momentos livres cosia os meus vestidos, escrevia contos infantis e peças de teatro e mantinha com a minha mãe um fluxo torrencial de cartas. Entretanto, o Michael estava sempre à mão, grato por aquela felicidade sem conflitos que tínhamos estabelecido com a ingénua certeza de que se cumpríssemos as normas, tudo correria sempre bem. Parecia apaixonado, e eu certamente que estava. Era um pai permissivo e um tanto ausente; de qualquer modo os castigos e as recompensas estavam a meu cargo, era suposto as mães criarem os filhos. O feminismo não chegou para eu dividir as tarefas domésticas, na verdade tal ideia não me passara pela cabeça, achava que a libertação consistia em sair para a rua e carregar com os deveres masculinos mas não pensei que se tratava também de aliviar parte da minha carga. O resultado foi muito cansaço, como sucedeu a milhões de mulheres da minha geração que hoje em dia questionam os movimentos feministas.
Os móveis da casa costumavam levar sumiço e em seu lugar apareciam duvidosas antiguidades do Mercado Persa, onde um comerciante sírio trocava trastes velhos por fatos de homem; na medida em que o Michael ia ficando sem roupa, a casa enchia-se de penicos estalados, máquinas de costura a pedal, rodas de carroça e candeeiros de petróleo. Os meus sogros, atemorizados com certas personagens que desfilavam pelo nosso lar, faziam o possível para proteger os netos contra perigos potenciais. A minha cara na televisão e o meu nome na revista eram convites claros a alguns seres desorientados, tais como um empregado dos Correios que mantinha correspondência com os marcianos, ou uma rapariga que abandonou a filha recém-nascida em cima da secretária do meu gabinete. ‘citemos a menina connosco um certo tempo e já tínhamos decidido adoptá-la, quando ao regressarmos uma tarde a casa descobrimos que os avós legítimos a tinham levado sob protecção policial. Um mineiro do Norte, vidente de ofício, que à força de prever catástrofes tinha perdido o juízo, dormiu no sofá da nossa casa durante duas semanas, até se acabar uma greve no Serviço Nacional de Saúde. O infeliz chegara à capital para ser atendido no Hospital Psiquiátrico exactamente no dia em que se declarara a greve. Com pouco dinheiro no bolso e sem conhecer ninguém, mas com a sua faculdade profética intacta, conseguiu localizar uma das poucas pessoas dispostas a ampará-lo naquela cidade hostil. Este homem tem um parafuso a menos, é capaz de pegar numa navalha e degolar-vos a todos, advertiu-me a Granny muito nervosa. Pegou nos dois netos e levou-os para dormir com ela enquanto durou a estada do vidente, a qual aliás mostrou ser completamente inofensivo e é possível até que nos tenha salvo a vida. Previu que num tremor de terra forte algumas das paredes da casa cairiam, o Michael fez uma inspecção completa, reforçou alguns pontos e quando veio o abalo desmoronou-se apenas o muro do quintal, esmagando as dálias e o coelho do vizinho.
A Granny e a Avó Hilda ajudaram a cuidar dos filhos, Michael deu-lhes estabilidade e sentido da decência, o colégio educou-os e o resto adquiriram-no com esperteza e dotes naturais. Eu apenas me encarreguei de os entreter. Tu eras uma menina sábia, Paula. Desde muito pequena que tinha vocação pedagógica, ao teu irmão, aos cães e às bonecas calhou-lhes o papel de alunos. Os tempos livres que te deixavam as tuas actividades docentes repartiam-se entre jogos com a Granny, visitas a uma residência de velhotes da vizinhança e sessões de costura com a Avó Hilda. Apesar dos primorosos vestidos de cambraia bordada que minha mãe te comprava na Suíça, preferias brilhar como uma órfã com uns trapos mal cosidos por ti. Enquanto o meu sogro gastava os seus anos de reforma tentando resolver a quadratura do círculo e outros intermináveis problemas de matemática, a Granny gozava com os netos numa verdadeira orgia de avó, subiam ao sótão para brincar aos bandidos, introduziam-se clandestinamente no Clube para tomarem banho na piscina e organizavam maçadoras representações teatrais, ataviados com as minhas camisas de dormir. Com essa adorável mulher passavas o Verão a cozer bolachas no forno e o Inverno a tricotar cachecóis às riscas para os teus amigos da residência geriátrica; mais tarde, quando saímos do Chile, escrevias cartas a cada um deles até que o último daqueles bisavós alheios morreu de solidão. Esses anos foram os mais felizes e os mais seguros das nossas vidas. Nicolás e tu têm um tesouro de memórias ditosas que os ajudaram nos tempos duros, quando pediam a chorar para voltarmos para o Chile; mas nessa altura não havia regresso possível, a Granny jazia sob uma mata de jasmins, o marido tinha-se perdido pelos labirintos da demência senil, os amigos tinham morrido ou andavam disperses pelo mundo fora, e para nós não havia lugar naquele país. Ficava apenas a casa. Ainda lá está, intacta. Não há muito tempo que fui visitá-la e surpreendeu-me o seu tamanho, parece uma casinha de bonecas com uma peruca meio careca no telhado.
Michael teve uma louvável paciência comigo, não o abateram os dichotes e as críticas que eu provocava, não interferia nos meus projectos por mais descabelados que fossem e apoiou-me com lealdade mesmo nos meus erros, no entanto os nossos caminhos foram-se separando cada vez mais. Enquanto eu circulava entre feministas, boémios, artistas e intelectuais, ele dedicava-se aos seus planos, aos seus cálculos, aos seus edifícios em construção, às suas partidas de xadrez e jogos de brídege. Ficava no escritório até muito tarde, porque entre os profissionais chilenos é de bom tom trabalhar de sol a sol e não gozar férias, o contrário é considerado indício de mentalidade de burocrata e conduz a um fracasso certo na empresa privada. Era bom amigo e bom amante, mas não conservo muitas recordações dele, o seu desenho foi-se-me esfumando como uma fotografia desfocada. Educaram-nos na tradição de que o marido sustenta a família e a mulher encarrega-se do lar e dos filhos, mas no nosso caso as coisas não foram nada assim; comecei a trabalhar antes dele e concorria para grande parte das despesas, o seu ordenado destinava-se a pagar a dívida com a compra da casa e a fazer investimentos, o meu esfumava-se nos gastos quotidianos. Em todo o caso ele manteve-se fiei a si próprio, pouco mudou ao longo dos anos, mas eu proporcionava-lhe demasiadas surpresas, ardia de inquietação, via injustiças por toda a parte, pretendia transformar o mundo e abraçava tantas causas diferentes que eu própria lhes perdia a conta, e os meus filhos viviam num permanente estado de desorientação. Dez anos mais tarde, quando estávamos instalados na Venezuela e os meus ideais se encontravam bastante corroídos pelas vicissitudes do exílio, perguntei àqueles meninos - formados na era dos hippies e dos sonhos socialistas - como gostariam eles de viver, e ambos responderam em uníssono e sem se terem antes posto de acordo: como burgueses bem instalados.
O tio Ramón e a minha mãe voltaram da Suíça no mesmo ano da morte do meu pai. O meu padrasto tinha escalado os lentos degraus da carreira diplomática e chegado a um posto importante na Chancelaria. Levava os netos ao palácio do Governo, dizendo-lhes que era a sua residência particular e instalava-os na comprida sala de jantar dos Embaixadores, entre cortinados de felpa e retratos de próceres da Pátria, onde empregados de luvas brancas lhes serviam sumo de laranja, Aos sete anos tiveste de fazer uma redacção no colégio, cujo tema era a família e escreveste que o teu único parente com interesse era o tio Ramón, príncipe descendente directo de Jesus Cristo, dono de um palácio com criados fardados e guardas armados. A professora deu-me o nome de um psiquiatra infantil, mas a tua reputação ficou a salvo pouco depois, um dia em que eu devia levar-te ao dentista, eu esqueci-me e tu ficaste à espera durante horas à porta do colégio. A professora tentou sem êxito localizar o teu pai ou eu, e por último ligou para o tio Ramón. Diga à Paula que não se mexa daí, vou já buscá-la, respondeu ele, e com efeito meia hora depois apareceu uma limusina presidencial com uma escolta de dois polícias motorizados, desceu um condutor de boné na mão, abriu a porta de trás e desceu o teu avô com o peito cheio de condecorações e a capa negra das grandes cerimónias que tinha ido buscar a casa numa súbita inspiração poética, Não te lembras da horrível espera que te causei, filha, mas só daquela comitiva imperial e da cara da tua professora, tão atrapalhada que se inclinou numa profunda vénia para cumprimentar o tio Ramón.
O meu pai morreu de um ataque fulminante, não teve tempo de fazer as contas às suas grandezas e misérias porque uma onda de sangue lhe inundou as cavidades mais fundas do coração e ficou estendido na rua como um indigente. Foi recolhido pela Assistência Pública e transladado para a morgue, onde a autópsia revelou a causa da sua morte. Ao revistarem as algibeiras da sua roupa encontraram alguns papéis, reconheceram o apelido e puseram-se em contacto comigo para eu identificar o cadáver. Ao ouvir o nome não imaginei que se tratasse do meu pai, porque não tinha pensado nele há muitos anos e não tinham ficado vestígios da sua passagem pela minha vida, nem sequer o rancor pelo seu abandono, a não ser pelo meu irmão cujo segundo nome é Tomás e que nessa altura ainda andava perdido naquela seita misteriosa do Messias argentino. Passávamos meses sem notícias dele e devido àquele sentido trágico específico da minha família, suponhamos o pior. A minha mãe esgotara os recursos para o localizar, sem o mínimo resultado, o que a levara a crer nos boatos de que o filho se tinha ligado aos revolucionários cubanos, porque a ideia de ele ter andado no rasto do falecido Che Guevara lhe parecia mais provável do que sabê-lo hipnotizado por um santarrão. Antes de ir à morgue liguei para o escritório do tio Ramón para lhe comunicar, gaguejando, que o meu irmão tinha morrido. Cheguei antes dele ao sinistro edifício, apresentei-me a um funcionário impassível que me conduziu a uma sala fria onde havia uma maca com um vulto coberto com um lençol. Levantaram-no e apareceu um homem gordo, lívido e nu, com uma costura enorme de colchoeiro desde o pescoço até ao sexo, em relação ao qual não senti a mais remota ligação. Momentos depois chegou o tio Ramón, dirigiu-lhe um rápido olhar e anunciou que era o meu pai. Aproximei-me de novo e observei as suas feições cuidadosamente porque não teria nunca mais oportunidade de o ver.
Nesse dia soube da existência de um meio-irmão mais velho, filho do meu pai e de outro amor, notavelmente parecido com o rapaz por quem me apaixonei nas explicações de Matemática quando tinha quinze anos. Também soube da existência de três meninos mais novos que ele tivera de uma terceira mulher, a quem ironicamente deu os nossos nomes. O tio Ramón encarregou-se do funeral e de redigir uma declaração pela qual renunciávamos a qualquer herança em favor dessa outra família; Juan e eu inscrevemos logo os nossos nomes e a seguir falsificámos a assinatura de Pancho para evitar dilações aborrecidas. No dia seguinte caminhámos atrás do féretro daquele desconhecido por uma ruela do Cemitério Geral, ninguém mais se apresentou naquele modesto enterro, o meu pai deixou neste mundo muitos poucos amigos. Não voltei a ter contacto com os meus meio-irmãos. Quando penso no meu pai só consigo vê-lo inerte na solidão abissal daquela sala gelada da morgue.
O cadáver do meu pai não foi o primeiro que vira de perto. De longe tinha avistado alguns corpos estendidos na rua durante o pandemónio da guerra que sacudiu o Líbano e num âmago de revolução na Bolívia, mas pareciam mais marionetes do que pessoas, da Vovó só me consigo lembrar quando viva e do tio Pablo não ficou rasto. O único morto verdadeiro e presente da minha infância calhou-me quando tinha oito anos e as circunstâncias tornaram-no inesquecível.
Nessa noite de 25 de Dezembro de 1950 permaneci acordada durante horas, com os olhos abertos na escuridão povoada por ruídos da casa da praia. Os meus irmãos e primos ocupavam outros catres na mesma sala e através das delgadas paredes de cartão ouvia a respiração dos que dormiam noutros quartos, o ronronar constante do frigorífico e os passos sigilosos das ratazanas. Várias vezes quis levantar-me e sair para o quintal para me refrescar com a brisa salina que vinha do mar, mas disso me dissuadia o trânsito incessante das baratas cegas. Entre os lençóis húmidos devido ao orvalho eterno da costa apalpava o meu corpo com espanto e terror, enquanto as imagens daquela tarde de revelação passavam com rajadas diante dos pálidos reflexos da lua na janela. Sentia ainda a boca húmida do pescador no meu pescoço, a sua voz a sussurrar-me ao ouvido. Vindo de longe chegava até mim o bulício surdo do oceano e de vez em quando passava um automóvel na rua, iluminando por instantes os interstícios das persianas. No peito sentia um rumor de sinos, um peso de lápide, uma garra poderosa a subir-me pela garganta, sufocando-me. O diabo aparece de noite nos espelhos... Não havia nenhum naquele quarto, o único existente na casa era um rectângulo oxidado na casa de banho em frente do qual a minha mãe pintava os lábios, colocado demasiado alto para mim; mas o Mal não habitava só nos espelhos, dissera-me a Margara, deambula também pela escuridão à caça dos pecados humanos e mete-se dentro das meninas perversas para lhes devorar as tripas. Punha a minha mão onde ele a pusera e de seguida tirava-a assustada, sem compreender aquele misto de repugnância e de turvo prazer. Voltei a sentir os dedos ásperos e firmes do pescador a explorar-me, o roçar das suas faces mal barbeadas, o seu cheiro e o seu peso, as suas obscenidades ao meu ouvido. Certamente que me aparecera na testa a marca do pecado. Como é que ninguém dera por ela? Ao chegar a casa não tinha ousado olhar nos olhos a minha mãe nem o meu avô, escondera-me da Margara e a pretexto de uma dor de barriga fugi cedo para a cama depois de tomar um demorado duche e me esfregar toda com sabão azul e branco de roupa, mas nada podia tirar-me as manchas. Suja, estava suja para sempre... No entanto não pensava em desobedecer à ordem daquele homem, no dia seguinte voltaria a encontrar-me com ele no caminho dos gerânios e seguí-lo-ia fatalmente até ao bosque, mesmo que com isso perdesse a vida. Se o teu avô sabe, mata-me, tinha-me ele avisado. O meu silêncio era sagrado, eu era responsável pela sua vida. A proximidade daquele segundo encontro infundia-me terror, mas ao mesmo tempo fascinação: que havia para além do pecado? As horas passavam com uma lentidão colossal, enquanto ouvia a respiração ritmada dos meus irmãos e primos e calculava quanto tempo faltava para o amanhecer. Mal despontassem os primeiros raios de sol poderia sair da cama e pisar o chão, porque com a luz as baratas voltam para os seus buracos. Tinha fome, pensava no boião de manjar-branco e nas bolachas na cozinha, sentia frio e enrolava-me nos pesados cobertores, mas dali a pouco começava a sufocar na febre das memórias proibidas e no delírio da antecipação.
Na manhã seguinte, muito cedo, quando a família ainda dormia, levantei-me sem fazer barulho, vesti-me e saí para o quintal, dei volta à casa e entrei na cozinha pelas traseiras. As panelas de ferro e de cobre estavam penduradas em ganchos nas paredes, sobre a mesa de granito cinzento havia um balde com água do mar cheio de amêijoas frescas e um saco de pão do dia anterior. Não consegui abrir o boião de manjar-branco, mas cortei um pedaço de queijo e uma fatia de marmelada e saí para a estrada a olhar para o Sol, que aparecia por cima do monte como uma laranja incandescente. Deitei a andar sem saber porquê até à foz do rio, centro daquela pequena aldeia de pescadores, onde àquela hora ainda não havia o mínimo movimento. Passei pela igreja, o correio, o armazém, passei pela povoação de casas novas, todas iguais com os seus tectos de zinco e as suas varandas de madeira que davam para o mar, passei pelo hotel onde os jovens iam à noite dançar ritmos antigos, porque os novos não chegavam àquelas bandas; passei a rua comprida do comércio com os seus lugares de hortaliça e fruta, a farmácia, a loja de fazendas do turco, o quiosque de jornais, o bar e o bilhar, sem ver vivalma. Cheguei à zona dos pescadores, com as suas cabanas de madeira e toscas tabernas de mariscos e peixe, com as redes penduradas a secar como portentosas teias de arranha, os botes de pança para cima sobre a areia à espera que os donos se recompusessem da farra da consoada para saírem mar adentro. Ouvi vozes e vi um grupo de pessoas ao pé de uma das últimas casotas, onde o rio desagua no mar. O Sol já se erguera e picava-me como um formigueiro quente nos olhos. Com a última dentada de queijo e marmelada cheguei ao fim da rua, aproximei-me com cuidado do pequeno círculo de gente e tentei abrir passagem, mas empurraram-me para trás. Neste momento apareceram dois carabineiros de bicicleta, um deles tocou um apito e o outro gritou afastem-se, carago, que está aqui a lei. O círculo abriu-se fugazmente e consegui ver o pescador na areia escura do leito do rio, deitado de borco, de braços abertos em cruz, com as mesmas calças pretas, a mesma camisa branca e as mesmas sapatilhas de borracha do dia anterior, quando me levara para o bosque. Um dos polícias disse que lhe tinham dado uma pancada na cabeça e então vi a mancha de sangue seco na orelha e no pescoço. Algo estalou no meu peito e invadiu-me um sabor a toranjas amargas, dobrei-me sacudida por vómitos violentos, caí de joelhos e vomitei sobre a areia uma mistela de queijo, marmelada e culpa. Que faz aqui esta miúda? exclamou alguém e uma mão tentou segurar-me por um braço, mas eu levantei-me e desatei a correr desesperada. Corri e corri com uma dor pungente nas costas e um gosto amargo na boca, sem parar até que apareceram os telhados vermelhos da minha casa e nessa altura caí na valeta, enovelada entre uns arbustos. Quem me viu no bosque com o pescador? Como soube o Vovô? Não conseguia pensar, a única coisa certa era que aquele homem não voltaria nunca mais a fazer-se ao mar para pescar marisco, que estava morto na areia a pagar o crime de ambos, que eu estava livre e não tinha de ir àquele encontro, ele não me levaria de novo ao bosque. Muito tempo depois ouvi os sons da casa, as criadas a preparar o pequeno-almoço, as vozes dos meus irmãos e dos meus primos. Passou a burra do leiteiro com o seu chocalhar de púcaros e o padeiro no seu triciclo e a Margara saiu a rezingar para fazer as compras. Deslizei até ao pátio das hortênsias, lavei a cara e as mãos na vertente que caía do cerro, arranjei um pouco o cabelo e apareci na sala de jantar, onde já se encontrava o meu avô no seu cadeirão com o jornal nas mãos e uma chávena de café com leite a fumegar. Porque me olha assim? perguntou-me a sorrir.
Passados dois dias, com autorização do médico legal, velaram o homem na sua modesta vivenda. Toda a gente, incluindo os veraneantes, desfilou para o ver, raras vezes acontecia algo de interesse e ninguém quis perder a novidade de um assassínio, o único registado na memória daquela estância balnear desde os tempos do pintor crucificado. A Margara levou-me até lá, apesar da minha mãe considerar aquilo um espectáculo mórbido, porque o Vovó - que se ofereceu para pagar o enterro - declarou que a morte é coisa natural e mais valia acostumarmo-nos a ela desde pequenos. Ao entardecer subimos ao monte e chegámos a uma casota de tábuas decorada com grinaldas de papel, uma bandeira chilena e humildes ramos de flores dos jardins da costa. Na altura, os trinos desafinados das guitarras já soavam cansados e a assistência, aturdida de vinho da tasca, dormitava em cadeiras de palha dispostas em círculo à volta do ataúde, um simples caixão de pinho sem polimento, alumiado por quatro velas. A mãe, de luto, murmurava a meia voz rezas intercaladas por soluços e maldições, enquanto atiçava as chamas de um fogão de lenha onde fervia uma chaleira preta de barro. As vizinhas ajuntavam malgas para oferecerem chá e os irmãos mais novos, com os cabelos untados de brilhantina e sapatos de domingo, andavam em correrias pelo terreiro entre galinhas e cães. Em cima de uma cómoda bancal havia uma fotografia do pescador com a farda da tropa, cruzada com uma fita preta. Toda a noite se iriam revezar parentes e amigos para acompanharem o cadáver antes de descer à terra, tangendo desajeitadamente as guitarras, comendo o que as mulheres traziam dos fogões, recordando o defunto na lengalenga dos bêbados tristes. Margara avançou a murmurar entredentes e a arrastar-me por um braço, mas eu ia ficando para trás. Quando chegámos em frente do caixão obrigou-me a aproximar-me e a rezar um Pai-Nosso de despedida, porque segundo ela as almas dos assassinados nunca encontram descanso e andam de noite a fazer penar os vivos. Deitado sobre um lençol branco vi o homem que três dias antes me tinha manuseado no bosque. Olhei-o primeiro com um medo visceral e depois com curiosidade procurando a semelhança, mas não a consegui encontrar. Aquele rosto não era o dos meus pecados, era uma máscara lívida de lábios pintados, o cabelo com risca ao meio e teso de brilhantina, com dois algodões nos buracos do nariz e um lenço atado à volta da cabeça para sustentar a mandíbula.
Embora à tarde o hospital se encha de gente, aos sábados e domingos de manhã parece vazio. Chego ainda quase de noite, com o cansaço acumulado da semana surpreendo-me a arrastar os pés e a carteira pelo chão, exausta. Percorro os eternos corredores solitários, onde mesmo o palpitar do meu coração ecoa, e parece-me que ando sobre uma tapete rolante que marcha em sentido contrário, não avanço, estou sempre no mesmo sítio, cada vez mais cansada. Vou murmurando fórmulas mágicas da minha invenção e à medida que me aproximo do edifício, do grande corredor dos passos perdidos, da tua sala e da tua cama, aperta-se-me o peito de angústia. Estás transformada num bebé grande, Paula. Há duas semanas que saíste da Unidade de Cuidados Intensivos e poucas modificações ocorreram. Chegaste à sala comum muito tensa, quase aterrorizada, e a pouco e pouco acalmaste, mas não se vêem indícios de inteligência, continuas de olhar fixo na janela, imóvel. Ainda não estou desesperada, creio que apesar dos nefastos prognósticos, voltarás connosco e embora não voltes a ser a mulher brilhante e grácil de antes, talvez possas ter uma vida quase normal e ser feliz, eu encarrego-me disso. As despesas dispararam, passo no banco a trocar dinheiro que se esfuma da minha carteira tão velozmente que não chego a entender como desaparece, mas prefiro não fazer contas, não é esta a altura de ser prudente. Tenho de encontrar um fisioterapeuta, pois os serviços no hospital são mínimos; de vez em quando aparecem duas moças distraídas que te movem os braços e as pernas com afinco durante uns dez minutos, de acordo com as vagas instruções de um bigodaças enérgico que deve ser o seu chefe e só te viu uma vez. São muitos os doentes e escassos os recursos, por isso eu própria te faço os exercícios. Quatro vezes por dia percorro o teu corpo, obrigando-o a mexer, começo pelos dedos dos pés, um por um, e continuo para cima, com lentidão e força, porque não é fácil abrir-te as mãos ou dobrar-te os joelhos e os cotovelos; sento-te na cama e dou-te palmadas nas costas para te arejar os pulmões, refresco com gotas de água o áspero orifício na tua garganta, porque o aquecimento faz secar o ar, e para evitar deformações ponho-te livros nas plantas dos pés amarrados com ligaduras, separo-te ainda os dedos das mãos com pedaços de borracha e procuro manter-te a cabeça direita com um colar improvisado com uma almofada de viagem e adesivo, mas estes recursos de emergência são desoladores, Paula, tenho de levar-te o mais cedo possível para um sítio onde te possam ajudar, dizem que a reabilitação opera milagres. O neurologista pede-me paciência, garante que ainda não é possível transferir-te para parte alguma e muito menos atravessar o mundo de avião. Passo o dia e boa parte da noite no hospital, fiz amizade com os doentes da tua sala e os parentes. Dou massagens à Elvira e estamos a inventar uma linguagem de gestos para comunicarmos, visto que as palavras a atraiçoam; aos outro s conto-lhes histórias e em troca eles oferecem-me café dos seus termos e sandes de fiambre que trazem de casa. A mulher-caracol foi levada para o quarto zero, o seu fim aproxima-se. O marido da Elvira diz-me a cada momento “a sua menina está mais espertinha”, mas leio nos seus olhos que no fundo não acredita nisso. Mostrei-lhe fotografias do teu casamento e contei-lhes a tua vida, já te conhecem bem e alguns choram disfarçadamente quando o Ernesto vem ver-te e te fala ao ouvido, abraçado a ti. O teu marido anda tão cansado como eu, tem olheiras arroxeadas, perdeu peso e a roupa dança-lhe no corpo.
Willie veio de novo, tenta fazê-lo com maior frequência para aliviar esta longa separação que parece eternizar-se. Quando nos juntámos há quatro anos prometemos não nos separar mais, mas a vida encarregou-se de nos estragar os planos. Este homem é uma força da natureza, tem tantas virtudes como defeitos, devora o ar todo que o rodeia e deixa-me a tremer, mas faz-me muito bem estar com ele. Ao seu lado durmo sem comprimidos, anestesiada pela segurança e o calor do seu corpo. Ao amanhecer traz-me o café à cama, obriga-me a ficar mais uma hora a descansar e ele segue para o hospital para substituir a enfermeira do turno da noite. Aparece na enfermaria com os seus blue-jeans descorados, sapatorras de lenhador, casaco de cabedal preto e uma boina como a que usava o meu avô, que ele comprou na Plaza Mayor; apesar da vestimenta, parece um antigo marinheiro genovês, tenho medo de que o detenham na rua para lhe perguntar as rotas de navegação para o Novo Mundo. Cumprimenta os doentes numa algaraviada com pronúncia mexicana e instala-se ao pé da tua cama afagando-te as mãos e a dizer-te as coisas que faremos quando fores para a Califórnia, enquanto os outros pacientes observam atónitos, Willie não consegue disfarçar a sua preocupação, no seu ofício de advogado viu inúmeros acidentes e tem pouca esperança de que recuperes, prepara-me o animo para o pior.
- Tomaremos conta dela, muitas famílias o fazem, não seremos os únicos, tratar e amar a Paula vai dar-nos um novo objectivo, aprenderemos uma forma diferente de felicidade. Nós prosseguimos com as nossas vidas e levamo-la a todos os sítios, qual é o problema? - consola-me com aquele pragmatismo generoso e um tanto ingénuo que me seduziu ao conhecê-lo.
- Não! - replico sem reparar que grito. - Não quero ouvir as tuas nefastas profecias. A Paula cura-se!
- Estás obcecada, só falas nela, não consegues falar em mais nada, vais rolando por um abismo com tal impulso que não podes parar. Não me deixas ajudar-te, não queres ouvir-me... Tens de pôr uma certa distância emocional entre as duas, ou dás em doida. Se adoeceres, quem cuidará da tua filha? Por favor, deixa-me tratar de ti...
Os bruxos aparecem à tarde, não sei como chegaram até cá, estão empenhados em transmitir-te energia e saúde. No seu dia-a-dia são empregados, técnicos, funcionários, gente comum e normal, mas nas horas livres estudam ciências esotéricas e pretendem curar com o poder das suas convicções. Afirmam-me poderem carregar as baterias esgotadas do teu corpo doente, que o teu espírito está a crescer, a renovar-se, e que desta imobilidade vai emergir uma mulher diferente e melhor. Dizem-me que não devo olhar-te com olhos de mãe, mas com o olho de ouro, então ver-te-ei noutro plano, flutuando imperturbável e alheia aos terrores e misérias desta sala de hospital; mas também me aconselham a que me prepare, porque se já cumpriste o teu destino neste mundo, e estás pronta para prosseguir a longa viagem da alma, não regressarás. Fazem parte de uma organização mundial e estão em contacto com outros curandeiros para te mandarem forças, tal como as freiras estão em contacto com outras congregações para rezarem por ti, dizem que a tua recuperação depende da tua própria vontade de viver, a decisão final está nas tuas mãos. Não me atrevo a comentar nada disto com a família da Califórnia, de certo não veriam com bons olhos estes médicos espirituais. O Ernesto também não aprova esta invasão de curandeiros, não quer que a sua mulher seja um espectáculo público, mas eu penso que não te fazem mal, nem sequer dás conta deles. As freiras também participam nestas cerimónias, tocam as campainhas tibetanas, lançam incenso e invocam o seu deus cristão e toda a corte celestial, enquanto os outros pacientes da sala observam estes procedimentos de cura com certas reservas. Não te assustes, Paula, não dançam cobertos de Plumas nem degolam galos para te salpicarem com sangue, apenas movem abanos sobre ti para extrair a energia negativa, depois aplicam-te as mãos no corpo, fecham os olhos e concentram-se. Pedem-me que os ajude, que imagine um raio de luz a entrar na minha cabeça, a atravessar o meu corpo e a sair das minhas mãos em direcção a ti, que te visualize curada e deixe de chorar, porque a tristeza contamina o ar e faz aturdir a alma. Não sei se isto te faz bem, mas uma coisa é certa: o moral das pessoas da sala mudou, estamos mais alegres. Propusemo-nos controlar a tristeza, ouvimos sevilhanas na rádio, dividimos bolachas e avisamos os visitantes para não trazerem caras de enterro. Também foi prolongada a hora das histórias, já não sou só eu quem fala, todos participam. O mais loquaz é o marido da Elvira com o seu caudal de anedotas, cada um por sua vez vamos contando as nossas vidas e quando se esgotam as aventuras pessoais começamos a inventá-las, de tanto acrescentar pormenores e dar rédea solta à imaginação aperfeiçoámo-nos e costuma vir gente de outras salas ouvirmos.
Na cama onde antes estava a mulher-caracol temos agora uma doente nova, é uma rapariga morena, cheia de cortes e nódoas negras, que foi violada num parque por quatro desalmados. Os seus pertences estão marcados com um círculo vermelho, o pessoal não lhe toca sem luvas, mas nós integrámo-la na estranha família desta sala, lavamo-la e metemos-lhe a comida na boca, Ao princípio pensou ter acordado num asilo de alienados e tremia com a cabeça oculta sob os lençóis, mas a pouco e pouco, entre as campainhas tibetanas, as canções da rádio e as confidências de todos, foi ganhando entusiasmo e começou a sorrir. Fez-se amiga das freiras e dos curandeiros, pede-me para lhe ler em voz alta as bisbilhotices da realeza europeia e dos actores de cinema, porque ela não pode erguer a cabeça. Em frente da Elvira há uma doente recém-chegada do Departamento de Psiquiatria, chama-se Aurélia e devem operá-la a um tumor no cérebro pois sofre de repetidas crises de convulsões. Na manhã do dia marcado para a cirurgia vestiu-se e maquilhou-se com esmero, despediu-se de cada um com um sentido abraço e saiu. Boa sorte, aqui ficaremos a pensar em si, coragem, força, dizíamos-lhe enquanto se afastava pelo corredor. Quando chegou a maca a buscá-la para a conduzir ao pavilhão dos suplícios já não estava no hospital, tinha fugido para a rua e só voltou dois dias depois, quando a polícia já se cansara de a procurar. Marcou-se nova data para a operação, mas também dessa vez a não puderam fazer porque a Aurélia devorou meio presunto serrano que trouxera escondido na mala e o anestesista disse que nem se estivesse louco a punha a dormir naquelas condições. Agora o cirurgião está de férias da Semana Santa e quem sabe quanto tempo passará até disporem de um bloco operatório, por enquanto a nossa amiga está a salvo. Atribui a origem da sua doença ao facto do marido ser imponente e pelos seus gestos deduzo que quer dizer impotente. A ele não lhe funciona a pila e é a mim que querem abrir a mioleira, suspira resignada, se ele cumprisse o seu dever eu estaria contente como um pardal e nem me lembraria da doença, a prova é que os ataques começaram na minha lua-de-mel, quando o imbecil estava mais interessado em ouvir os combates de boxe pela rádio do que na minha camisa de noite com plumas de cisne no decote. Aurélia dança e canta flamenco, fala em verso rimado e se me descuido até te deita o seu perfume de lilases e pinta-te os lábios com o bâton dela, Paula. Despreza tanto os médicos como os bruxos e as freiras, considera-os um bando de magarefes. Se até agora a menina não se curou com o amor da mãe e do marido, é porque não tem cura, diz ela. Entretanto a polícia costuma cá vir para fazer perguntas à rapariga violada e pelo tratamento que lhe dispensam até parece que não foi ela a vítima mas sim a autora do crime: que fazias às dez da noite sozinha naquele bairro? por que não gritaste? estavas drogada? isto aconteceu-te porque andas à procura de sarilhos, mulher, de que é que te queixas? Aurélia é a única com coragem para os enfrentar, põe-se diante deles com as mãos nas ancas e dirige-lhe acusações. Não é para isso que lhes pagam, caraças, as mulheres têm de ficar sempre a perder. Cale-se, senhora, Você não tem nada a ver com isto, replicam indignados, mas nós aplaudimos, porque quando a Aurélia não está num dos seus transes é de uma lucidez espantosa. Guarda debaixo da cama três malas com roupa de corista e muda de vestido várias vezes por dia, pinta-se às pinceladas, sacode o cabelo como uma torta de caracóis oxigenados, à menor provocação põe-se nua para mostrar as suas carnes renascentistas e desafia-nos a adivinhar-lhe a idade e a medirmos-lhe a cintura, a mesma que conserva desde solteira, vem de família, a mãe dela também era uma beleza. E acrescenta com certo despeito que de pouco lhe servem tantos atributos, visto que o marido é um eunuco. Quando o homem vem visitá-la instala-se numa cadeira a dormitar aborrecido, enquanto ela o insulta e nós fazemos esforços tremendos para fingir que não damos por nada.
Willie anda à procura de um sítio para te levar, Paula, precisamos de mais ciência e menos exorcismos, enquanto eu tento convencer os médicos para te deixarem ir embora e o Ernesto para que aceite a situação. Não quer separar-se de ti, mas não há outra alternativa. Esta manhã estiveram cá as duas raparigas da Reabilitação e decidiram levar-te pela primeira vez ao ginásio do rés-do-chão. Eu tinha-me preparado com a farda branca e fui com elas a guiar a cadeira de rodas, há tanta gente neste sítio e tantas vezes me têm visto a circular pelos corredores que já ninguém duvida da minha condição de enfermeira. Ao chefe de serviço bastou um olhar superficial para decidir que não podia fazer nada por ti, o nível de consciência é zero, disse ele, não obedece a instruções de nenhuma espécie e tem uma traqueotomia aberta, não posso responsabilizar-me por uma doente nestas condições. Isso decidiu-me a tirar-te quanto antes deste hospital e de Espanha, apesar de não poder imaginar a viagem, levar-te no elevador durante dois andares é uma tarefa que requer estratégia militar, vinte horas de voo de Madrid até à Califórnia é coisa impensável, mas hei-de encontrar meio de o conseguir. Arranjei uma cadeira de rodas e com a ajuda do marido da Elvira sentei-te amarrada ao encosto com um lençol enrolado, porque tu tombas como se não tivesses ossos, levei-te à capela durante uns minutos e depois até ao terraço. Aurélia acompanhou-me envolta na sua bata de veludo azul, que lhe dá um ar de ave-do-paraíso, e pelo caminho ia fazendo negaças aos curiosos quando olhavam demasiado para ti, na verdade o teu aspecto é lamentável, filha. Instalei-te de frente para o parque, entre dezenas mie pombas que acorreram para picotar migalhas de pão. Vou divertir um pouco a Paula, disse Aurélia, e começou a cantar e a dar voltas com tanta graça, que dali a pouco o local encheu-se de espectadores. De súbito abriste os olhos, a princípio com dificuldade, incomodada com a luz do Sol e o ar livre que não tiveste durante tanto tempo, e quando conseguiste focar a vista apareceu diante de ti a figura insólita daquela matrona roliça vestida de azul a dançar uma apaixonada “sevilhana” no meio de um torvelinho de pombas assustadas. Ergueste as sobrancelhas numa expressão de assombro e não sei o que passou então pela tua mente, Paula, que começaste a chorar com enorme tristeza, num pranto de impotência e de medo. Abracei-te, expliquei-te o que acontecera, por agora não podes mexer mas a pouco e pouco vais recuperar, não podes falar porque tens um buraco no pescoço e o ar não te chega à boca, mas quando to taparem poderemos falar de tudo, a tua tarefa nesta etapa é só de respirar fundo, disse-te que gosto muito de ti, filha, e nunca te deixarei sozinha. Foste acalmando aos poucos, sem tirar os olhos de mim e penso que me reconheceste, mas talvez fosse imaginação minha. Entretanto à Aurélia deu-lhe outro dos seus ataques e assim acabou a nossa primeira aventura com a cadeira de rodas. Na opinião do neurologista o choro nada significa, não entende porque continuas no mesmo estado, tem receio de teres o cérebro atingido e anunciou-me uma série de exames a partir da próxima semana. Eu não quero mais exames, só quero meter-te num cobertor e sair a correr contigo nos braços até ao outro lado da terra, onde existe uma família à tua espera.
Esta é uma estranha experiência de imobilidade. Os dias medem-se grão a grão num relógio de paciente areia, tão lentos que se perdem no calendário, parece-me ter estado sempre nesta cidade invernosa entre igrejas, estátuas e avenidas imperiais. Os recursos da magia revelam-se inúteis; são mensagens lançadas ao mar numa garrafa com a ilusão de que sejam encontradas na outra margem e alguém venha salvar-nos, mas até agora não há resposta. Passei quarenta e nove anos em corrida, na acção e no combate, visando metas que já não me lembro, a perseguir algo inominável que ficava sempre mais além. Agora vejo-me obrigada a permanecer quieta e calada; por muito que corra não chego a parte alguma, se grito ninguém me ouve. Deste-me silêncio para examinar a minha passagem por este mundo, Paula, para retornar ao passado verdadeiro e ao passado fantástico, para recuperar as memórias que outros esqueceram, recordar o que nunca aconteceu e o que talvez aconteça. Ausente, muda e paralisada, tu és a minha guia. O tempo decorre muito lento. Ou talvez o tempo nem passe, mas sejamos nos a passar através do tempo. Os dias sobejam-me para reflectir, nada a fazer, só esperar, enquanto tu existes neste misterioso estado de insecto no casulo. Interrogo-me sobre que espécie de borboleta eclodirá quando acordares... Passo as horas a escrever a teu lado. O marido de Elvira traz-me café e pergunta-me para que me atarefo tanto com esta carta infindável que tu não podes ler. Hás-de lê-la um dia, tenho a certeza, e farás pouco de mim com essa tua manha que costumas empregar para demolir os meus sentimentalismos. Observo para trás a totalidade do meu destino e com um pouco de sorte encontrarei um sentido para a pessoa que sou. Com um esforço brutal tenho andado a vida inteira a remar rio acima; estou cansada, quero dar meia volta, largar os remos e deixar que a corrente me leve suavemente para o mar. A minha avó escrevia nos seus cadernos a fim de salvar os fragmentos evasivos dos dias e enganar a falta de memória. Eu tento distrair a morte. Os meus pensamentos giram num infatigável remoinho, tu ao contrário estás fixa num presente estático, alheia por completo das perdas do passado ou dos presságios do futuro. Estou assustada. Algumas vezes antes já tive muito medo, mas sempre havia uma saída de escape, inclusivamente sob o terror do Golpe Militar existia a salvação no exílio. Agora estou num beco sem saída, não há portas para a esperança e não sei que fazer com tanto medo.
Julgo que queiras ouvir coisas sobre a época mais feliz da tua infância, quando a Granny era viva, os teus pais ainda se amavam e o Chile era o teu país, mas este caderno vai chegando aos anos 70, quando as coisas começaram a mudar. Só muito mais tarde me apercebi de que a História tinha dado uma volta. Em Setembro de 1970, Salvador Allende foi eleito Presidente através de uma coligação de marxistas, socialistas, comunistas, grupos de classe média desiludidos, cristãos radicais e milhares de homens e mulheres pobres agrupados em torno do emblema da Unidade Popular e decididos a embarcar num programa de transição para o socialismo, mas sem alterar a longa tradição burguesa e democrática do país. Apesar das contradições evidentes do projecto, uma vaga de esperança irracional mobilizou uma boa parte da sociedade que esperava ver emergir desse processo o homem novo, motivado por elevados ideais, mais generoso, compassivo e justo. Desde o preciso momento em que se anunciou a vitória de Allende, os seus adversários começaram a sabotagem e a roda da fortuna virou numa direcção trágica. Na noite da eleição não saí à rua para comemorar o acontecimento com os seus partidários para não ofender os meus sogros e o meu avô, que temiam ver surgir no Chile um novo Estaline. Allende fora três vezes candidato e venceu à quarta, apesar da crença generalizada de que já tinha queimado a sua sorte nas fracassadas campanhas anteriores. A própria Unidade Popular duvidava dele e esteve quase a ponto de escolher Pablo Neruda para seu representante. O poeta não tinha qualquer ambição política, sentia-se velho e cansado, apenas lhe interessava a sua noiva, a poesia; no entanto, como membro disciplinado do Partido Comunista, dispôs-se a acatar as ordens. Quando finalmente Salvador Allende foi designado candidato oficial, depois de muitas discussões internas nos parti os, Neruda foi o primeiro a sorrir de alívio e a acorrer a felicitá-lo. A profunda ferida que dividiu o país em fracções irreconciliáveis começou durante a campanha, quando se desuniram as famílias, se desfizeram casais e amigos se combateram. O meu sogro revestiu as paredes da casa com propaganda da direita; discutíamos apaixonadamente, mas não chegámos a insultar-nos porque o carinho de ambos pela Granny e as crianças era mais forte que os nossos diferendos. Nessa altura ele era ainda um homem bem parecido e saudável, mas já se iniciara a lenta deterioração que o levou ao abismo do esquecimento. Passava as manhãs na cama enfrascado nas suas matemáticas e seguia com fervor três telenovelas que lhe ocupavam uma boa parte da tarde; às vezes não se vestia, circulava em pijama e pantufas, atendido pela mulher que lhe levava a comida numa bandeja. A sua obsessão em lavar as mãos tornou-se incontrolável, tinha a pele coberta de feridas e as suas mãos elegantes acabaram convertidas em garras de condor. Estava certo da vitória do seu candidato, mas por momentos sentia o formigueiro da dúvida. A medida que se aproximava a eleição retrocedia o Inverno e surgiam os r bentos da Primavera. A Granny, atarefada na cozinha a fazer as primeiras conservas da estação e a brincar com os netos, não participava nas discussões políticas, mas ficava muito inquieta quando ouvia as nossas vozes acaloradas. Nesse ano descobri que a minha sogra bebia às escondidas, mas fazia-o tão discretamente que ninguém mais deu por isso.
No dia da eleição os mais surpreendidos com a vitória foram os vencedores, porque no fundo não a esperavam. Por trás das portas e janelas fechadas do bairro alto os derrotados tremiam, certos de que a turbamulta se sublevaria com um ódio de classe acumulado durante séculos, mas não foi assim, apenas houve manifestações pacíficas de alegria popular. Uma multidão a cantar que o povo unido jamais será vencido invadiu as ruas agitando bandeiras e estandartes, enquanto na Embaixada dos Estados Unidos se reunia o pessoal numa sessão de emergência; os norte-americanos tinham começado a conspirar um ano antes, financiando os extremistas de direita e tentando seduzir alguns generais de tendência golpista. Nos quartéis os militares em estado de prevenção esperavam instruções. O tio Ramón e a minha mãe estavam felizes com o triunfo de Salvador Allende; o Vovô reconheceu a sua derrota e foi cavalheirescamente cumprimentá-lo quando nessa mesma noite apareceu numa visita de surpresa em casa dos meus pais. No dia seguinte, apresentei-me como de costume no meu trabalho e encontrei o edifício a fervilhar de boatos contraditórios e o dono da editora a embalar silenciosamente as suas câmaras e a mandar preparar o seu avião particular para atravessar a fronteira com a família e boa parte dos seus bens, enquanto um guarda pessoal se ocupava do seu automóvel italiano de corrida para evitar que a populaça supostamente enraivecido o riscasse. Nós continuamos a trabalhar como se nada tivesse acontecido, anunciou Delia Vergara no mesmo tom usado anos atrás no Líbano por Miss Saint John quando decidiu ignorar a guerra. Assim procedemos durante os três anos seguintes. Ao amanhecer do outro dia o meu sogro foi um dos primeiros a pôr-se na bicha às portas do banco para retirar o seu dinheiro, projectava fugir para o estrangeiro mal desembarcassem as hordas cubanas ou a ditadura soviética começasse a fuzilar cidadãos. Eu não vou para sítio nenhum, fico aqui com as crianças, garantiu-me a Granny a chorar de costas para o marido. Os netos tinham-se convertido na razão da sua existência. A decisão de partir foi adiada, os bilhetes de avião ficaram em cima da lareira, sempre à mão, mas não foram utilizados porque as piores previsões não se cumpriram; ninguém tomou o país de assalto, as fronteiras permaneceram abertas, não houve execuções em nenhum paredão, como o meu sogro temia, e a Granny ficou convencido de que nenhum marxista ia separá-la dos seus netos e muito menos aquele que tinha o mesmo apelido que a sua nora.
Como não se conseguira maioria absoluta, o plenário do Congresso devia decidir do resultado da eleição. Até então sempre se respeitara a primeira maioria, dizia-se que quem ganhava era quem tinha nem que fosse um único voto de vantagem, mas a Unidade Popular despertava demasiados receios. De qualquer modo o peso da tradição foi maior do que o temor dos parlamentares e o poder da Embaixada norte-americana, e após longas deliberações, o Congresso - dominado pela Democracia Cristã - redigiu um documento exigindo a Allende o respeito pelas garantias constitucionais; ele assinou-o e passados dois meses recebia a faixa presidencial num acto solene. Pela primeira vez na História um marxista era eleito por votação democrática, os olhos do mundo estavam postos no Chile. Pablo Neruda partiu como Embaixador para Paris, onde passados dois anos recebeu a notícia de que tinha ganho o Prémio Nobel de Literatura. O velho rei da Suécia entregou-lhe uma medalha de ouro, que o poeta dedicou a todos os chilenos, “porque a minha poesia é propriedade da minha pátria”.
O Presidente Allende nomeou o tio Ramón Embaixador na Argentina, e foi assim que a minha mãe se converteu na administradora de um edifício monumental na única colina de Buenos Aires, com vários salões, uma sala de jantar para quarenta e oito convivas, duas bibliotecas, vinte e três casas de banho e um número indeterminado de tapetes e obras de arte, provenientes de Governos anteriores, sumptuosidade difícil de explicar para a Unidade Popular, que pretendia projectar uma imagem de austeridade e simplicidade. Era tanto o pessoal de serviço - motoristas, cozinheiros, moços de recados, amas e jardineiros - que se precisava de estratégia militar para organizar o trabalho e os turnos das refeições. A cozinha funcionava sem descanso a preparar coquetéis, almoços, chás de senhoras, banquetes oficiais e dietas para a minha mãe, que de tão atarefada andava doente do estômago. Embora comesse como um pisco, inventava receitas que deram fama à mesa da Embaixada. Era capaz de apresentar um peru intacto com plumas no rabo e de olhos abertos, e tirando-se quatro alfinetes a pele saía como um vestido revelando a carne sumarenta e o interior recheado de passarinhos, os quais por sua vez estavam recheados de amêndoas, a mil anos-luz dos nacos de fígado a nadar em água quente dos meus almoços escolares no Líbano. Num desses ágapes conheci a vidente mais célebre de Buenos Aires. Dardejou-me com o olhar do lado oposto da mesa e não deixou de me observar durante todo o jantar. Devia ter uns sessenta anos, um porte aristocrático, vestida de preto num estilo sóbrio e um tanto antiquado. Ao sair da sala de jantar aproximou-se de mim,, manifestando que desejava falar comigo em particular, a minha mãe apresentou-ma como Maria Teresa Juarez e acompanhou-nos até uma das bibliotecas. Sem dizer palavra, a mulher sentou-se num sofá e apontou-me o lugar a seu lado, depois pegou-me nas mãos, reteve-as entre as dela durante uns minutos que me pareceram muito compridos porque não sabia o que ela pretendia, e finalmente fez-me quatro profecias que anotei num papel e nunca esqueci: vai haver um banho de sangue no teu país, tu vais ficar imóvel ou paralisada muito tempo, o teu caminho é a escrita e um dos teus filhos será conhecido em muitas partes do mundo. Qual deles? quis saber a minha mãe. Ela pediu-nos fotografias, estudou-as durante uns segundos e apontou para ti, Paula. Como os outros três prognósticos se cumpriram, suponho que É o último também será verdadeiro, isso dá-me esperança de que não vais morrer, filha, ainda tens de realizar o teu destino. Mal saiamos deste hospital penso pôr-me em contacto com essa senhora, se é que ainda vive, para lhe perguntar o que te espera no futuro.
O tio Ramón, entusiasmado com a sua missão na Argentina, abriu as portas da Embaixada a políticos, intelectuais, gente da imprensa e a todos aqueles que podiam apoiar o projecto de Salvador Allende. Secundado pela minha mãe, que nesses três anos deu mostras de grande força, organização e coragem, empenhou-se em normalizar as difíceis relações entre o Chile e a Argentina, dois vizinhos que tinham tido muitas querelas no passado e agora deviam ultrapassar o receio provocado pela experiência socialista chilena. Durante horas roubadas ao sono passou em revista o inventário e as embaraçantes contas da Embaixada para evitar que na abundância e na desordem desaparecessem fundos. A gestão da Unidade Popular era examinada à lupa pelos seus inimigos políticos, sempre à caça do menor pretexto para a denegrir. A sua primeira surpresa foi o orçamento para a segurança, perguntou aos seus colegas do Corpo Diplomático e descobriu que os guarda-costas pessoais se tinham convertido num problema em Buenos Aires. Começaram como protecção contra raptos e atentados, mas rapidamente não houve maneira de os controlar e nessa altura existiam já mais de trinta mil e o seu número continuava a aumentar. Formavam um verdadeiro exército armado até aos dentes, sem ética, nem chefes, sem normas nem regulamentos, que se encarregava de promover o terror para justificar a sua existência. Também se suspeitava de que era muito fácil sequestrar ou assassinar alguém, bastava chegar a um acordo sobre a soma com os seus próprios guardas e eles encarregavam-se do trabalho. O tio Ramón decidiu correr o risco e despediu os dele por lhe parecer que o representante de um governo do povo não se podia rodear de matadores remunerados, Pouco depois explodiu uma bomba no edifício, que reduziu as lâmpadas e janelas a um montão de pó de vidro e destroçou para sempre os nervos da cadela suíça da minha mãe, mas ninguém ficou ferido. Para silenciar o escândalo declarou-se à imprensa que tinha havido uma explosão de gás numa canalização deficiente. Foi esse o primeiro atentado terrorista que os meus pais enfrentaram naquela cidade. Passados quatro anos teriam de fugir ao lusco-fusco para salvar as vidas. Quando aceitaram o posto não imaginavam o trabalho que significava aquela Embaixada, a mais importante para o Chile a seguir à de Washington, mas dispuseram-se a cumprir a sua missão com a experiência acumulada de muitos anos de ofício diplomático. Fizeram-no com tal brilho, que depois tiveram de o pagar com muitos anos de exílio.
Nos três anos seguintes, o Governo da Unidade Popular nacionalizou os recursos naturais do país - cobre, ferro, nitratos, carvão - que desde sempre tinham estado em mãos estrangeiras, negando-se a pagar um só dólar simbólico de compensação; desenvolveu dramaticamente a reforma agrária, repartindo entre os camponeses latifúndios de antigas e poderosas famílias, o que desencadeou um ódio sem precedentes; desarmou os monopólios que durante décadas tinham impedido a concorrência no mercado e obrigou-os a vender a preço conveniente à maioria dos chilenos. As crianças recebiam leite nas escolas, organizaram-se clínicas nas povoações marginais e os salários dos mais pobres subiram para um nível razoável. Estas modificações eram acompanhadas por alegres manifestações populares de apoio ao Governo, porém os próprios partidários de Allende recusavam-se a admitir que essas reformas tinham de ser pagas e que a solução não consistia em imprimir mais papel-moeda. Cedo começou o caos económico e a violência política. No estrangeiro observava-se o processo com curiosidade, tratava-se de um pequeno país latino-americano que escolhera a via de uma revolução pacífica. Lá fora, Allende tinha a imagem de um líder progressista empenhado em melhorar a situação dos trabalhadores e superar as injustiças económicas e sociais, mas dentro do Chile metade da população detestarão e o país estava dividido entre forças irreconciliáveis. Os Estados Unidos, em brasa perante a possibilidade das suas ideias terem êxito e o socialismo se estender irremissivelmente pelo resto do continente, eliminaram os créditos e estabeleceram um bloqueio económico. A sabotagem da direita e os erros da Unidade Popular produziram uma crise de proporções nunca vistas, a inflação chegou a termos tão incríveis que de manhã não se sabia quanto ia custar um litro de leite à tarde. as notas sobejavam mas havia muito pouco que comprar, começaram as bichas para se obter produtos essenciais, azeite, dentífricos, açúcar, pneus para os veículos. Não se conseguiu evitar o mercado negro. No meu aniversário, as minhas companheiras de trabalho ofereceram-me dois rolos de papel higiénico e uma lata de leite condensado, os artigos mais preciosos nessa altura. Como toda a gente, fomos vítimas da angústia do abastecimento, às vezes parávamos numa bicha para não perder uma ocasião, mesmo que a recompensa fosse graxa amarela para sapatos. Surgiram profissionais que guardavam os lugares nas filas ou adquiriam produtos ao preço oficial para os revender pelo dobro. Nicolás especializou-se em arranjar cigarros para a Granny. De Buenos Aires, a minha mãe enviava-me por vias misteriosas grandes caixas com alimentos, mas às vezes confundiam as suas instruções e recebíamos um galão de molho de soja ou vinte e quatro frascos de cebolinhas em vinagre. hm troca nos enviávamos-lhe os netos em visita de dois em dois ou de três em três meses; viajavam sozinhos com os nomes e dados pessoais num letreiro pendurado ao pescoço. O tio Ramón convenceu-os de que o magnífico edifício da Embaixada era a sua casa de Verão, de modo que se as crianças ainda tinham alguma dúvida sobre a sua origem principesca, lá ficou dissipada. Para que não se aborrecessem dava-lhes trabalho no seu gabinete, o primeiro ordenado das suas vidas receberam-no das mãos daquele avô formidável por serviços como subsecretários das secretárias do Consulado. Ali passaram também pelas papeiras e pela peste cristal, escondendo-se nas vinte e três casas de banho para que não lhes tirassem amostras das fezes para exame médico.
Os Chilenos orgulhavam-se de que os chefes de Estado circulassem sem guarda-costas e que a entrada do Palácio de La Moneda fosse uma via pública, porém com Salvador Allende isso acabou- o ódio tinha-se exacerbado e temia-se pela sua vida. Os seus inimigos acumulavam material para o atacar. O Presidente socialista deslocava-se com vinte homens armados numa frota de automóveis azuis sem emblemas, todos iguais, para não se saber em qual deles seguia. Até então os dignitários - viviam nas suas próprias casas, mas a dele era pequena e não estava à altura do seu cargo. No meio de um vendaval de críticas odiosas, o Governo adquiriu uma moradia no bairro alto para a Presidência, e a família transladou-se para lá com as cerâmicas pré-colombianas, quadros coleccionados ao longo dos anos, obras de arte oferecidas pelos próprios artistas, primeiras edições de livros dedicados pelos autores e fotografias que testemunhavam os momentos importantes da carreira política de Allende. Na nova residência tive a oportunidade de assistir a algumas reuniões, em que o tema único continuava a ser a política. Quando os meus pais vinham da Argentina, o Presidente convidava-nos para uma casa de campo alcandorada nas colinas próximas da capital, onde ele costumava passar os fins-de-semana. Depois do almoço via absurdos filmes de vaqueiros que o descontraíam. Nuns quartos que davam para o pátio ficavam guarda-costas voluntários, a que Allende chamava o seu grupo de amigos pessoais e os seus oponentes classificavam de guerrilheiros terroristas e assassinos. Andavam sempre a fazer rondas, armados e dispostos a protegê-lo com os seus próprios corpos. Numa dessas jornadas campestres, Allende tentou ensinar-nos a atirar ao alvo com uma espingarda que Fidel Castro lhe oferecera, a mesma que encontraram junto do seu cadáver no dia do Golpe Militar. Eu, que nunca tivera uma arma nas mãos e fora criada com o ditado do Vovô segundo o qual as armas de fogo eram carregadas pelo Diabo, peguei na espingarda como se fosse um guarda-chuva rodei-a desajeitadamente e sem dar por isso apontei-a à cabeça dele; imediatamente materializou-se pelo ar um daqueles guardas, caiu-me em cima e rodámos ambos pelo chão. É uma das poucas recordações que me ficaram dele durante os três anos do seu governo. Via-o menos que antigamente, não participei na política e continuei a trabalhar na editora que ele considerava o seu pior inimigo, sem compreender realmente o que acontecia no país.
Quem era Salvador Allende? Não sei, e seria pretensioso da minha parte tentar descrevê-lo, eram precisos muitos volumes para dar uma ideia da sua complexa personalidade, a sua difícil gestão e o papel que ocupa na História. Durante anos considerei-o como mais um tio numa família numerosa, único representante do meu pai; foi após a sua morte, ao sair do Chile, que compreendi a sua dimensão fenderia. Em privado foi bom amigo dos seus amigos, leal até i imprudência, não podia conceber uma traição e custou-lhe muito a perceber quando foi traído. Recordo a prontidão das suas respostas e o seu sentido de humor. Tinha sido derrotado em várias campanhas e era ainda um jovem quando uma jornalista lhe perguntou que gostaria ele de ver no seu epitáfio, e ele respondeu de imediato: aqui jaz o futuro presidente do Chile. Penso que os seus traços mais mercantes foram a integridade, a intuição, a valentia e o carisma; seguia os apelos do coração, que raramente lhe falhavam, não recuava diante do risco e era capaz de seduzir tanto as massas como os indivíduos, Dizia-se que conseguia manipular qualquer situação em seu favor, por isso no dia do Golpe Militar os generais não se atreveram a enfrentá-lo pessoalmente e preferiram comunicar com ele através do telefone e de mensageiros. Assumiu o cargo de Presidente com tal dignidade que parecia arrogante, tinha gestos empolados de tribuno e uma maneira e andar característica, muito direito, de peito para fora e quase na ponta dos pés, como um galo de combate. A noite descansava muito pouco, apenas três ou quatro horas, costumava ver o amanhecer a ler ou a jogar xadrez com os seus mais fiéis amigos, mas conseguia dormir apenas uns minutos, regra geral no automóvel, e acordava fresco. Era um homem requintado, amador de cães de raça, objectos de arte, roupa elegante e mulheres robustas. Cuidava muito da saúde, era prudente com a comida e o álcool. Os seus inimigos acusavam-no de esbanjador e faziam minuciosas contas aos seus gostos burgueses, namoricos, casacos de camurça e gravatas de seda. Metade da população temia que levasse o país a uma ditadura comunista e dispôs-se a impedi-lo a todo o custo, enquanto a outra metade comemorava a experiência socialista com murais de flores e de pombos.
Entretanto eu andava na lua, a escrever frivolidades e a fazer maluquices na televisão, sem suspeitar das verdadeiras proporções da violência em gestação na sombra e que acabaria por nos cair em cima. Quando o país estava em plena crise, a directora da revista mandou-me entrevistar Salvador Allende para saber o que pensava ele do Natal. Preparávamos o número de Dezembro com muita antecedência e não era fácil aproximar-se em Outubro do Presidente, que arcava com urgentes questões de Estado, mas aproveitei uma visita que fez a casa de meus pais para o abordar timidamente. Não me faças perguntas tolas, filha, foi a sua seca resposta. Assim começou e terminou a minha carreira de jornalista política. Continuei a garatujar horóscopos de fabrico doméstico, sobre decoração, jardins e educação dos filhos, fazendo entrevistas a personagens estrambólicos, o Correio do Amor, crónicas de cultura, arte e viagens. Delia desconfiava de mim, acusava-me de inventar reportagens sem sair de minha casa e de pôr as minhas opiniões na boca dos entrevistados, por isso só raramente me encarregava de temas importantes.
À medida que o abastecimento piorava, a tensão tornou-se insuportável e a Granny começou a beber mais. Seguindo as instruções do marido, saía frequentemente à rua com as vizinhas para protestar contra a escassez de alimentos da maneira usual, a bater em panelas. Os homens permaneciam invisíveis enquanto as mulheres desfilavam com frigideiras e grandes colheres numa barulheira de fim do mundo. O barulho é inesquecível, começava como um gongo solitário, somava-se-lhe o martelar nos quintais até que o alvoroço se contagiava e se espalhava exaltando os ânimos, a seguir as mulheres saíam à rua e um tumulto ensurdecedor convertia meia cidade num inferno. A Granny conseguia pôr-se à cabeça da manifestação e desviavas para evitar que passasse em frente de nossa casa, na qual era sabido que vivia alguém da família Allende. De qualquer forma, na eventualidade de as agressivas senhoras nos atacarem, a mangueira estava sempre a postos para dissuadi-las com jactos de água fria. As diferenças ideológicas não alteraram a camaradagem com a minha sogra, partilhávamos as crianças, os encargos da vida diária, os planos e as esperanças, no fundo pensávamos ambas que nada podia separar-nos. Para lhe dar uma certa independência abri-lhe uma conta no banco, mas ao cabo de três meses tive de a cancelar porque ela nunca entendeu o mecanismo, julgava que enquanto tivesse cheques no livro havia dinheiro na conta, não apontava as despesas e em menos de uma semana consumiu os seus fundos em presentes para os netos. A política também não alterou a paz entre o Michael e eu, amávamo-nos e éramos bons companheiros.
Dessa época data a minha paixão pelo teatro. O tio Ramón foi nomeado Embaixador exactamente quando na América Latina começavam a estar na moda os sequestros de personagens públicas. A possibilidade de isso lhe suceder inspirou-me uma peça de teatro: um grupo de guerrilheiros rapta um diplomata para o trocar por presos políticos. Escrevi-a a grande velocidade, sentei-me à máquina e não consegui dormir nem comer antes de imprimir a palavra fim três dias depois, Uma prestigiosa companhia aceitou encená-la e foi assim que me encontrei uma noite a lê-la com os actores à volta de uma mesa num palco despido, a meia-luz, por entre rajadas de correntes de ar, com os sobretudos vestidos e prevenidos com termos de chá. Cada actor leu e analisou o seu papel pondo em evidência os erros garrafais do texto. A medida que a leitura avançava eu ia-me sumindo na cadeira até desaparecer debaixo da mesa, acabei por recolher os textos envergonhada, fui para casa e escrevi-os de novo desde a primeira linha, estudando cada personagem separadamente para lhes dar coerência. A segunda versão ficou um pouco melhor, mas faltava maior tensão e um desfecho dramático. Assisti a todos os ensaios e introduzi a maior parte das alterações que me indicaram, assim aprendi alguns truques que mais tarde se revelaram úteis para os romances. Passados dez anos, ao escrever A Casa dos Espíritos, lembrei-me dessas sessões à volta de uma mesa no teatro e procurei que cada personagem tivesse uma biografia completa, um carácter definido e uma voz própria, embora no caso desse livro os desaforos da história e a tenaz indisciplina dos espíritos tivessem feito gorar as minhas intenções. A peça chamou-se logicamente O Embaixador e dediquei-a ao tio Ramón, que a não pôde ver por estar em Buenos Aires. A estreia mereceu boa crítica, mas não posso atribuir a mim tal mérito pois foram o encanador e os actores quem realmente fez o trabalho, da minha ideia original restavam apenas uns fiapos. Penso que salvou o meu padrasto de ser raptado, porque de acordo com a lei das probabilidades era impossível que lhe acontecesse na vida real o que eu pusera num palco, porém não protegeu outro diplomata que foi sequestrado no Uruguai e sofreu as provações que eu imaginara na segurança da minha casa em Santiago. Agora tenho mais cautela com o que escrevo porque verifiquei que se algo não é certo hoje, amanhã pode sê-lo. Outra companhia pediu-me um argumento e acabei por fazer duas comédias Musicais a que chamámos de café-concerto à falta de um nome para definir o género, e que se estrearam com inesperado êxito. A segunda ficou memorável porque incluía um coro de senhoras gordas para animar o espectáculo com cantos e danças. Não foi fácil arranjar mulheres obesas e atraentes dispostas a fazer coisas ridículas num palco; o director e eu pusemo-nos numa esquina concorrida do centro e detínhamos todas as senhoras rubicundas que víamos passar perguntando-lhes se queriam ser actrizes. Muitas aceitavam com entusiasmo, mas mal se apercebiam das exigências do trabalho partiam em polvorosa, custou-nos várias semanas arranjar seis candidatos. Como o teatro estava ocupado com outro espectáculo, os ensaios realizavam-se na exígua sala da nossa casa, cujos móveis tínhamos de arredar. Contávamos com um piano desafinado que eu, num assomo de fantasia, tinha pintado de verde-limão e decorado com uma cortesã reclinada num divã. A casa inteira ressoava com estremecimentos telúricos quando aquele coro monumental dançava como vestais gregas, pulava ao ritmo de um rock’n roll, mostravam as calcinhas num frenético can-can e saltavam em pontas aos acordes levíssimos de um Lago dos Cisnes que teria liquidado Tchaikovsky com uma síncope. O Michael teve de reforçar o piso de cena e o da nossa casa para que não se afundassem com aquelas investidos de paquidermes. Aquelas mulheres, que nunca tinham feito exercícios físicos, começaram a emagrecer de modo alarmante e para evitar que as suas carnes sensuais se derretessem, a Granny alimentava-as com grandes panelas de massas com natas e tartes de maçã. Para a estreia da obra colocámos um letreiro no foyer pedindo que em vez de oferecer ramos de flores às coristas por favor lhes mandassem pizzas. Assim conservaram as colinas redondas e os vales profundos dos seus vastos territórios carnais ao longo de dois anos de árduo trabalho, incluindo tournées pelo resto do país. Michael, entusiasmado com essas aventuras artísticas, vinha amiúde ao teatro e viu os espectáculos tantas vezes que os conhecia de cor e numa emergência poderia substituir qualquer dos actores, incluindo as voluminosas vestais do coro. Também o Nicolás e tu aprenderam as canções e dez anos mais tarde, quando eu já não me lembrava sequer dos títulos das peças, vocês ainda eram capazes de as representar de ponta a ponta. O meu avô assistiu várias vezes, primeiro por um sentido familiar, e depois para seu bel-prazer, e de cada vez que caía o pano aplaudia e gritava de pé, arvorando a sua bengala. Apaixonou-se pelas coristas e fazia-me longas dissertações sobre a gordura igual a formosura e o horror contranatura que significavam as modelos escanzeladas das revistas de modas. O seu ideal de beleza era a dona da loja de bebidas com a sua peitaça de valquíria, o seu traseiro de epopeia e a sua boa disposição para lhe vender genebra em garrafas de água mineral, sonhava com ela às escondidas para não ser surpreendido pelo fantasma vigilante da Vovó.
As danças da Aurélia, a poetisa epiléptica da tua sala, com as suas peliças de plumas esgarçadas e os seus vestidos de bolinhas, lembram-me aquelas obesas bailarinas e também uma aventura pessoal. Ataviada com as suas roupagens de zarzuela, Aurélia rebola na sua idade madura com muito mais graça do que eu tinha na minha juventude. Certo dia apareceu um anúncio no jornal a oferecer trabalho num teatro de variedades a mulheres jovens, altas e bonitas. A directora da revista deu-me ordens para obter o emprego, introduzir-me atrás dos bastidores e escrever uma reportagem sobre as vidas dessas pobres mulheres, como ela as definiu com o seu máximo rigor feminista. Eu estava longe de ter as condições exigidas pelo anúncio, mas tratava-se de uma daquelas reportagens que ninguém mais queria fazer. Não me atrevi a apresentar-me sozinha e pedi a uma boa amiga para me acompanhar. Vestimo-nos com as roupas vistosas que pensávamos que as revistaras usavam na rua e pusemos um broche de brilhantes falsos na coleira do meu cão, um rafeiro de má catadura que baptizámos Fifi para a ocasião. O seu verdadeiro nome era Drácula. Ao ver-nos assim postas, Michael decidiu que não podíamos sair de casa sem protecção e como não tínhamos ninguém para ficar com as crianças, fomos todos. O teatro ficava em pleno centro da cidade, foi impossível estacionar o automóvel nas proximidades e tivemos de andar ao longo de vários quarteirões. A frente íamos a minha amiga e eu com o Drácula ao colo e à retaguarda o Michael na defensiva com os dois filhos pelas mãos. O percurso foi como uma corrida de touros, os homens investiam-nos com entusiasmo atirando-nos coradas e gritando olé! o que nos deu confiança. Uma longa bicha esperava junto da bilheteira para comprar lugares, só homens, é claro, na maioria velhos, alguns magalas no seu dia ele licença e uma turma de adolescentes ruidosos de uniforme escolar, que naturalmente emudeceram ao ver-nos. O porteiro, tão decrépito como o próprio teatro, conduziu-nos por uma vetusta escadaria até ao segundo piso. Como nos filmes, esperávamos ir encontrar um empresário gordo com um anel de rubi e um charuto mascado, mas num enorme desvão na penumbra, coberto de poeira e sem moveis, recebeu-nos uma senhora com ar de tia da província, aconchegada num casacão pardacento, com um gorro de lá e luvas de dedos cortados. Estava a coser um vestido de lentejoulas sob um candeeiro, aos pés dela ardia uma braseira a carvão como única fonte de calor, e noutra cadeira repousava um gato gordo que ao ver o Drácula se eriçou como um porco-espinho. A uma esquina erguia-se um espelho triplo de corpo inteiro com uma moldura toda de esguelha e do tecto pendiam em grandes sacos de plástico os vestidos de cena, incongruentes pássaros de plumas iridescentes naquele lúgubre local.
- Vimos responder ao anúncio - disse a minha amiga, com um sotaque forçado de bairro do porto.
A boa da mulher olhou-nos dos pés à cabeça com uma expressão de dúvida, havia qualquer coisa que não se adequava aos seus esquemas. Perguntou-nos se tínhamos experiência do ofício e a minha amiga lançou-se num resumo da sua biografia: chamava-se Gladys, era cabeleireira de dia e cantadeira nocturna, tinha boa voz mas não sabia dançar, embora estivesse disposta a aprender, de certo não seria assim tão difícil. Antes de eu poder proferir uma palavra apontou-me com um dedo e acrescentou que a sua companheira se chamava Salomé e era estrela de revista com longas trajectórias no Brasil, onde dera um espectáculo de grande êxito, no qual aparecia nua em cena, Fifi, o cão amestrado trazia a roupa entre os dentes e um mulato matulão vestia-ma. O artista de cor não se apresentava porque estava no hospital, recém-operado à apendicite, disse a minha amiga. Quando ela deu por finda a sua perorarão, a mulher tinha deixado a costura e observava-nos de boca aberta.
- Dispam-se - ordenou-nos. Creio que suspeitava de qualquer coisa.
Com a falta de pudor das pessoas magras, a minha companheira tirou a roupa, calçou uns sapatos dourados de tacões altos e desfilou diante da senhora do casacão cor de musgo. Fazia um frio de rachar.
- Está bem, não tem seios, mas aqui enchumaça-se tudo. Agora é a vez da Salomé - e a tipa apontou para mim com um indicador peremptório.
Eu não previra esse pormenor mas não me atrevi a negar-me. Despi-me a tiritar, batiam-me os dentes, e descobri horrorizada que estava com ceroulas de lá feitas pela Avó Hilda. Sem largar o cão, que grunhia para o gato, alcandorei-me nos sapatos dourados, demasiado grandes para mim, e pus-me a andar arrastando os pés como um pato aleijado. De súbito os meus olhos deram com o espelho e vi-me naquele preparo, em triplicado e de todos os ângulos. Ainda hoje não me recompus daquela humilhação.
- A si falta-lhe estatura, mas não está mal. Pomos-lhe umas plumas maiores na cabeça e dança na linha da frente para não se notar. O cão e o negro estão a mais, aqui temos o nosso próprio espectáculo. Venham amanhã para começarem os ensaios. O salário não é grande coisa, mas se forem amáveis com os cavalheiros, há boas gorjetas.
Eufóricas, reunimo-nos na rua com Michael e os meninos, sem podermos acreditar na tremenda honra de termos sido aceites à primeira tentativa. Não sabíamos que havia uma crise permanente de coristas e no seu desespero os empresários teatrais estavam dispostos a contratar até um chimpanzé. Passados poucos dias encontrei-me vestida com os verdadeiros preparos de uma revisteira, isto é, com um rectângulo de lentejoulas brilhantes no púbis, uma esmeralda no umbigo, pompons luminosos nos mamilos e na cabeça um capacete com plumas de avestruz pesado como um saco de cimento. No traseiro, nada. Olhei-me ao espelho e apercebi-me de que o público me receberia com uma chuva de tomates, os espectadores pagavam para ver carnes rijas e profissionais, não as de uma mãe de família sem atributos naturais para aquele ofício. Para cúmulo tinha aparecido Lima equipa da Televisão Nacional para filmar o espectáculo nessa noite, estavam a montar as câmaras enquanto o coreógrafo tentava ensinar-me a descer Lima escadaria, entre uma dupla fila de jovens musculosos, pintados de dourado e vestidos de gladiadores, que empunhavam archotes acesos.
- Levanta a cabeça, baixa os ombros, sorri, rapariga, não olhes para o chão, marcha cruzando as pernas uma a frente da outra. Repito-te que sorrias!
Não agites os braços porque com tantas plumas pareces uma galinha choca. Cuidado com os archotes, não me queimes as plumas, olha que ficam muito caras! Ondula as ancas, barriga para dentro, respira. Se não respiras, morres.
Procurei seguir as suas ordens, mas ele suspirava e tapava os olhos com uma mão lânguida, enquanto os archotes se consumiam rapidamente e os romanos dirigiam o olhar para o tecto com uma expressão de desânimo. Num momento de descuido espreitei pela cortina e lancei um olhar ao público, uma buliçosa massa de homens impacientes porque estávamos com quinze minutos de atraso. Não tive coragem para os enfrentar, decidi que era preferível a morte e fugi para a saída. A câmara de televisão tinha-me filmado de frente no ensaio, a descer pela escadaria iluminada pelos archotes olímpicos dos atletas de ouro, depois gravou a imagem por detrás, de uma verdadeira corista a descer a mesma escadaria com os cortinados abertos e os uivos da multidão. Emitiram o filme no Canal e eu apareci no programa com a minha cara e os meus ombros, mas com o corpo perfeito da vedeta máxima do teatro de revista do país. Os dichotes atravessaram a cordilheira e chegaram aos ouvidos dos meus pais em Buenos Aires. O senhor Embaixador teve de explicar à imprensa reaccionária que a sobrinha do Presidente Allende não dançava nua num espectáculo pornográfico, tratava-se de um lamentável engano de nome. O meu sogro estava à espera da sua telenovela favorita quando me viu aparecer sem roupa e o susto cortou-lhe a respiração. As minhas colegas da revista aplaudiram a minha reportagem sobre o mundo das variedades, mas o gerente da editora, católico praticante e pai de cinco filhos, considerou-a uma grave afronta. Entre tantas actividades eu dirigia a única revista para crianças no mercado e aquele escândalo constituía um péssimo exemplo para a juventude. Chamou-me ao seu gabinete para me perguntar como me atrevia a exibir o traseiro praticamente nu diante de todo o país e eu tive de confessar que, infelizmente, não era o meu, tratava-se de um truque da televisão. Olhou-me de alto a baixo e acreditou em mim imediatamente. Além disso, o caso não teve consequências de maior. Nicolás e tu apareceram com ar de desafio no colégio a dizer para quem vos quisesse ouvir que a senhora de plumas era a sua mamã, isso cortou cerce os dichotes e até tive de assinar alguns autógrafos. O Michael encolheu os ombros divertido e não deu explicações aos amigos que fizeram comentários invejosos sobre o corpo espectacular da sua mulher. Alguns ficavam a olhar-me com expressão desconcertada, sem imaginar como nem porquê eu ocultava sob os meus compridos vestidos hippies os formidáveis atributos físicos que tão generosamente mostrara no ecrã. Por questão de prudência não apareci em casa do Vovô uns quantos dias, até que ele me chamou a morrer de riso para me dizer que o programa lhe parecera quase tão bom como a luta livre do Teatro Caupolican, e que era uma maravilha como na televisão se via tudo melhor que na vida real. Ao contrário do marido, que se negou a sair à rua durante umas semanas, a Granny vangloriava-se da minha façanha. Em particular, confessou-me quando me viu a descer aquela escadaria entre a dupla fila de áureos gladiadores, se sentiu plenamente realizada porque essa tinha sido sempre a sua fantasia mais secreta. Nessa altura a minha sogra já tinha começado a modificar-se, andava agitada e às vezes abraçava os netos como se tivesse a intuição de que uma sombra terrível ameaçava a sua precária felicidade. As tensões no país tinham atingido proporções violentas e ela, com a sensibilidade profunda dos mais inocentes, pressentia algo de grave. Bebia pisco ordinário e ocultava as garrafas em sítios estratégicos. Tu, Paula, que a amavas com uma infinita compaixão, descobrias um por um os esconderijos e sem dizer palavra pegavas nas garrafas vazias e enterrava-as entre as dálias do jardim.
Entretanto, a minha mãe, esgotada pelas pressões e o trabalho na Embaixada, partira para uma clínica na Roménia, onde a famosa doutora Aslan fazia milagres com as suas pílulas geriátricas. Passou um mês numa cela conventual a tratar-se de males reais e imaginários e revendo na memória as velhas cicatrizes do passado. O quarto ao lado era ocupado por um venezuelano encantador que se comoveu ao ouvir o seu choro e certo dia se atreveu a bater-lhe à porta. Que tens tu, menina? Não há nada incurável com um pouco de música e um gole de rum, disse ele ao apresentar-se. Durante as semanas seguintes instalavam-se ambos nas suas cadeiras de repouso sob os céus nublados de Bucareste, envergando as suas batas regulamentares e socos como dois velhos penitentes, a contarem a vida um ao outro sem pudor, por suporem que jamais voltariam a encontrar-se. A minha mãe confiou-lhe o seu passado e em troca ele contou-lhe os seus segredos; ela mostrou-lhe algumas das minhas cartas e ele as fotografias da mulher e das filhas, únicas paixões verdadeiras da sua existência. Ao cabo do tratamento encontraram-se à porta do hospital para se despedirem, a minha mãe com as suas elegantes roupas de viagem, com os olhos verdes lavados pelas lágrimas e rejuvenescida graças à prodigiosa arte da doutora Aslan, e o cavalheiro venezuelano no seu fato de viagem e com o seu amplo sorriso de dentes impecáveis, e quase não se reconheceram. Comovido, ele tentou beijar a mão daquela amiga que ouvira as suas confissões, mas antes de conseguir acabar o gesto ela abraçou-o. Nunca te esquecerei, disse-lhe. Se alguma vez precisares de mim, estarei sempre às tuas ordens, respondeu ele. Chamava-se Valentin Hernandez, era um político poderoso no seu pais e foi um homem fundamental para o futuro da nossa família poucos anos depois, quando os ventos da violência nos lançaram em diferentes direcções.
As reportagens da revista e os programas de televisão deram-me uma certa visualidade; na rua as pessoas tanto me felicitavam ou me insultavam, que acabei por pensar que era uma espécie de celebridade. No Inverno de 1973, Pablo Neruda convidou-me a ir visitá-lo na Isla Negra. O poeta estava doente, deixou o seu lugar na Embaixada de Paris e instalou-se no Chile na sua casa da costa, onde ditava as suas memórias e escrevia os seus últimos versos contemplando o mar. Preparei-me muito para esse encontro, comprei um gravador novo, fiz listas de perguntas, reli parte da sua obra e algumas biografias, mandei fazer uma revisão ao motor do meu velho Citroên para que não me falhasse em tão delicada missão. O vento assobiava por entre pinheiros e eucaliptos, o mar estava cinzento e choviscava na povoação de casas fechadas e ruas vazias. O poeta vivia num labirinto de madeira e pedra, criatura caprichosa formada por construções aderidas e remendos. No pátio havia uma sineta marítima, esculturas, madeirame de naufrágios resgatado ao mar e por urna barreira de rochas avistava-se a praia, onde se estrelava infatigável o Pacífico. A vista perdia-se pela extensão sem limites da água obscura contra um céu plúmbeo. A paisagem, de uma pureza de aço, cinzento sobre cinzento, palpitava. Pablo Neruda com um poncho pelos ombros e uma boina a coroar a sua grande cabeça de gárgula, recebeu-me sem formalismos, dizendo que o divertiam os meus artigos de humor, às vezes tirava fotocópias e mandava-as aos amigos. Estava fraco, mas teve força bastante para me conduzir pelos maravilhosos sendeiros daquela cova a abarrotar de modestos tesouros, mostrando-me as suas colecções de conchas, de garrafas, de bonecas, de livros e de quadros. Era um infatigável comprador de objectos: Amo todas as coisas, não só as supremas, mas também as infinitamente pequenas, o dedal, as esporas, os pratos, as floreiras... Também apreciava a comida. Serviram-nos ao almoço congro no forno, esse peixe de carne branca e firme, rei dos mares chilenos, com vinho branco seco e fresco. Falou das memórias que tentava escrever antes que a morte lhas roubasse, dos meus artigos humorísticos - sugeriu-me que os retinisse em livro - e de como tinha descoberto em várias partes do mundo as suas figuras de proa, essas enormes máscaras talhadas em madeira com rosto e seios de sereia, que presidiam às antigas naus. Estas belas jovens nasceram para viver entre as ondas, disse ele, sentem-se infelizes na terra firme, por isso as recupero e as coloco a olhar para o mar. Referiu-se demoradamente à situação política, que o enchia de angústia, e embargou-se-lhe a voz a falar do seu país dividido em extremismos violentos. Os jornais da direita publicavam títulos a seis colunas: “Chilenos, acumulem ódio!” e incitavam os militares a tomar o poder e a Allende a renunciar à presidência ou suicidar-se, como fizera o presidente Balmaceda no século passado para evitar uma guerra civil.
- Deviam ter mais cuidado com o que pedem, não venha a ser que o consigam - suspirou o poeta.
- No Chile nunca haverá um golpe militar, Don Pablo. As nossas Forças Armadas respeitam a democracia - tentei eu tranquilizá-lo com aqueles clichés tantas vezes repetidos.
Depois do almoço começou a chover, o salão ficou cheio de sombras e a portentosa mulher de urna estátua de proa ganhou vida, desprendeu-se do madeirame e saudou-nos com um estremecimento dos seus seios nus. Percebi então que o poeta estava cansado, a mim o vinho subira-me à cabeça e tinha de me apressar.
- Se quiser, fazemos a entrevista.. - sugeri.
- Qual entrevista?
- Bem... eu vim cá para Isso, não foi?
- A mim? Jamais permitiria que me submetesse a semelhante prova! - riu-se ele. - Você deve ser a pior jornalista deste país, filha, É incapaz de ser objectiva, coloca-se no centro de tudo, e suspeito que mente bastante e quando não tem uma notícia, inventa-a. Porque não se dedica antes a escrever romances? Em literatura esses defeitos são virtudes.
Enquanto te estou a contar isto, a Aurélia preparasse para recitar uma poesia composta especialmente para ti, Paula. Pedi-lhe que não o fizesse porque os versos dela desmoralizam-me, mas ela insiste. Não confia nos médicos, acha que não vais recuperar.
- Você acha que eles se puseram todos de acordo para me mentir, Aurélia?
- Oh, mulher, que inocente você é! Não vê que eles se protegem uns aos outros? Nunca vão admitir que deram cabo da sua menina, são uns vilões com poder sobre a vida e a Morte. Digo-lhe eu, que tenho vivido de hospital em hospital. Se soubesse as coisas que já vi...
O seu estranho poema é acerca de um pássaro de asas petrificadas. Diz que já estás morta, que queres partir, mas não podes fazê-lo porque eu te retenho, peso-te corno uma âncora nos pés.
- Não se incomode tanto com ela, Isabel. Não vê que na realidade está a lutar contra a menina? A Paula já cá não está, olhe para os olhos dela, são como água negra. Se não reconhece a mãe é porque já se foi, aceite-o de urna vez por todas.
- Cale-se, Aurélia...
- Deixe-a falar, os loucos não mentem - suspira o marido de Elvira.
Que existe do outro lado da vida? É apenas noite silenciosa e solidão? Que resta quando não há desejos, recordações nem esperanças? Que existe na morte? Se pudesse ficar imóvel, sem falar nem pensar, sem suplicar, chorar, recordar ou esperar, se eu pudesse submergir-me no silêncio mais total, talvez que então pudesse ouvir-te, filha.
No início de 1973 o Chile parecia um país em guerra, o ódio gerado na sombra dia após dia tinha explodido em greves, sabotagens e actos de terrorismo dos quais se acusavam mutuamente os extremistas de esquerda e de direita. Grupos da Unidade Popular apoderavam-se de terrenos privados onde estabeleciam povoações, fábricas para nacionalizar e bancos para intervenção do Estado, criando um tal clima de insegurança que a oposição ao Governo não teve de refinar demasiado para semear o pânico. Os inimigos de Allende aperfeiçoaram os seus métodos, agravando os problemas económicas até convertê-los numa ciência, circulavam boatos espantosos a incitar as pessoas a retirarem o dinheiro dos bancos, queimavam colheitas e matavam gado, faziam desaparecer do mercado artigos essenciais, desde pneus para camiões até minúsculas peças dos mais sofisticados aparelhos electrónicos. Sem agulhas nem algodão, os hospitais ficavam paralisados, sem sobressalentes para as máquinas as fábricas não funcionavam. Bastava eliminar uma só peça e fazia-se parar uma indústria inteira, e assim foram para a rua milhares de operarmos. Em resposta, os trabalhadores organizavam-se em comités, expulsavam os chefes, tomavam o comando nas mãos e erguiam acampamentos à porta das empresas, vigiando dia e noite para que os donos as não arruinassem. Empregados bancários e funcionários da administração pública também montavam piquetes para evitar que os colegas do lado contrário misturassem os papéis nos arquivos, destruíssem documentos e colocassem bombas nas casas de banho. Perdiam-se horas preciosas em reuniões intermináveis onde se pretendia tomar decisões colectivas, mas todos disputavam a palavra para expor os seus pontos de vista sobre insignificâncias e raras vezes se conseguia um acordo; aquilo que um chefe decidia normalmente em cinco minutos, levava aos empregados uma semana de discussões bizantinas e votações democráticas. Em maior escala acontecia o mesmo no Governo, os partidos da Unidade Popular repartiam o poder em fatias e as decisões passavam por tantos filtros que quando finalmente alguma coisa era aprovada nem remotamente tinha algo a ver com o projecto original. Allende não tinha a maioria no Congresso e os seus projectos esbarravam contra o muro inflexível da oposição. O caos aumentou. vivia-se num clima de precariedade e de violência latente, a pesada maquinaria da pátria estava emperrada De noite, Santiago tinha o aspecto de uma cidade devastada por um cataclismo, as ruas permaneciam às escuras e quase vazias porque pouca gente se atrevia a circular a pé, os transportes colectivos funcionavam a cinquenta por cento por causa das greves e a gasolina estava racionada. No centro ardiam as fogueiras dos companheiros, como se chamavam os partidários elo Governo, que durante a noite vigiavam edifícios e ruas. Brigadas de jovens comunistas pintavam murais panfletários nas paredes e grupos da extrema-direita circulavam em automóveis de vidros foscos a disparar às cegas. Nos campos onde fora aplicada a reforma agrária, os patrões planeavam a vingança providos de armas que introduziam em contrabando pela extensa fronteira da cordilheira andina. Milhares de cabeças de gado foram passadas para a Argentina pelas rotas do Sul e outras foram sacrificados para impedir a sua distribuição nos mercados. Por vezes os rios tingiam-se de sangue e a corrente arrastava cadáveres inchados de vacas leiteiras e de porcos de engorda. Os camponeses, que tinham vivido durante gerações obedecendo a ordens, reuniram-se em acampamentos para trabalhar, mas faltava-lhes a iniciativa, conhecimentos e créditos. Não sabiam usar da sua liberdade e muitos deles desejavam secretamente o regresso do patrão, esse pai autoritário e frequentemente odiado, mas que ao menos dava ordens claras e em caso de necessidade os protegia contra as surpresas do clima, as pragas nas sementeiras e as pestes dos animais, tinha amigos e obtinha o que era necessário, contrariamente a eles que não se atreviam a entrar pela porta de um banco e eram incapazes de decifrar a letra miúda dos papéis que lhes punham à frente para assinar. Também não percebiam que raio murmuravam os assessores enviados pelo Governo, com a sua linguagem enredada e as suas palavras difíceis, gentes da cidade de unhas limpas que não sabiam pegar mim arado e nunca tinham sido obrigados a arrancar à mão um garrano mal colocado nas entranhas de uma vaca. Não guardaram sementes para replantar os campos, comeram os touros de cobrição e perderam os meses mais úteis do Verão a discutir política enquanto a fruta caía de madura das árvores e os legumes secavam nos sulcos. Por último, os camionistas declararam greve e não houve maneira de transportar cargas ao longo do país, algumas cidades ficaram sem alimentos enquanto noutras apodreciam a hortaliça e os produtos marítimos. Salvador Allende enrouqueceu de tanto denunciar a sabotagem, mas ninguém lhe fez caso, e não dispôs de gente nem de poder suficientes para arremeter contra os inimigos pela força. Acusou os norte-americanos de financiarem a greve; cada camionista recebia cinquenta dólares diários se não trabalhasse, de modo que não existia a mínima esperança de resolver o conflito, e quando mandou o Exército para manter a ordem, verificou-se que faltavam peças nos motores e não podiam remover as carroçarias atascadas nas estradas, além de que o piso estava plantado de pregos torcidos que furaram os pneus dos veículos militares. A televisão mostrou de helicóptero aqueles destroços de ferragem inútil a oxidar no asfalto das estradas. O abastecimento tornou-se um pesadelo, mas ninguém passava fome porque quem podia pagava no mercado negro e os pobres organizavam-se por bairros para obterem o essencial. O Governo pedia paciência e o Ministério da Agricultura distribuía panfletos para ensinar os cidadãos a cultivarem hortaliça nas varandas e nas banheiras. Temendo que a comida faltasse comecei a acumular alimentos conseguidos com astúcias de contrabandista. Antes gozara com a minha sogra dizendo-lhe que se não houvesse frangos comíamos massas, e se não houvesse açúcar tanto melhor, porque assim emagrecíamos, mas por fim mandei os escrúpulos à merda. Antes fazia bichas horas seguidas para comprar um quilo de farrapos de carne de duvidosa proveniência, agora os revendedores vinham trazer carne melhor a casa, apesar de ser a um preço dez vezes mais caro do que o oficial. Essa solução durou pouco porque precisava de muito cinismo para empanturrar os meus filhos com pregações sobre a moral socialista enquanto lhes servia costeletas do mercado negro ao jantar.
Apesar das graves dificuldades desse tempo, o povo continuava a comemorar a sua vitória e quando em Março se efectuaram as eleições legislativas a Unidade Popular aumentou a sua percentagem de votos. A direita percebeu então que a presença de um montão de pregos retorcidos nas estradas e a ausência de frangos nos mercados não seriam suficientes para derrotar o Governo socialista e decidiu-se a entrar na última fase da conspiração. Desde essa data começaram os rumores de um golpe militar. A maior parte de nós não suspeitava do que se urdia, tínhamos ouvido que noutros países do continente os soldados tomavam o poder com uma acabrunhante regularidade e vangloriavam-nos de que isso jamais aconteceria no Chile, tínhamos uma sólida democracia, não éramos uma daquelas repúblicas das bananas da América Central nem a Argentina, onde durante cinquenta anos todos os Governos civis tinham sido depostos por levantamentos militares. Considerávamo-nos os Suíços do continente. O Chefe das Forças Armadas, general Prats, era partidário do respeito pela Constituição e de permitir a Allende terminar o seu mandato em paz, mas uma fracção do exército revoltou-se e em junho saiu com tanques para a rua. Prats conseguiu impor a disciplina às tropas, mas a sarrafusca estava desencadeado, o Parlamento declarou ilegal o Governo da Unidade Popular, e os generais exigiram a saída do seu Comandante-Chefe, mas não deram a cara, mandaram as mulheres manifestar-se em frente da casa de Prats num lamentável espectáculo público. O general viu-se obrigado a demitir-se e o Presidente nomeou para o seu lugar Augusto Pinochet, um obscuro homem de armas de que ninguém ouviram falar até então, amigo e compadre de Prats, que jurou manter-se leal à democracia. O país parecia descontrolado e Salvador Allende anunciou um plebiscito para que o povo decidisse se devia continuar a governar ou se se demitia para convocar novas eleições; a data proposta foi 11 de Setembro. O exemplo das esposas dos militares a actuarem em vez dos maridos foi rapidamente imitado, O meu sogro, como tantos outros, mandou a Granny à Escola Militar atirar milho aos cadetes, para ver se eles deixavam de se portar como galinhas e saíam para defender a pátria como deviam. Estava tão entusiasmado com a possibilidade de se derrocar o socialismo de uma vez por todas, que ele própria batia nas panelas no quintal para apoiar as vizinhas que protestavam na rua. Pensava que os militares, legalistas como a maioria dos chilenos, tirariam Allende da cadeira presidencial, reporiam a ordem naquele descalabro, limpariam o país de esquerdistas e revoltosos, depois convocariam novas eleições e então, se tudo corresse bem, o pêndulo oscilaria em sentido inverso e teríamos de novo um presidente conservador. Não tenha ilusões, no melhor dos casos teremos um democrata-cristão, avisei-o, conhecedora do seu ódio por esse partido, superior ao que sentia pelos comunistas. A ideia de que os militares pudessem perpetuar-se no poder não cabia na cabeça de ninguém, nem sequer na do meu sogro, excepto na dos que estavam no segredo da conspiração.
A Célia e o Nicolás imploram-me que regresse à Califórnia em Maio para a vinda ao mundo do seu bebé. Convidaram-me a participar no nascimento da minha neta, dizendo que depois de tantos meses exposta à morte, à dor, a despedidas e lágrimas, será como uma festa receber essa criatura quando erguer a cabeça para a vida. Se se cumprirem as visões que tive em sonhos, tal como sucedeu noutras ocasiões, vai ser uma menina morena e simpática de carácter firme. Tens de melhorar depressa, Paula, para ires comigo para casa e seres madrinha da Andrea. Para que te falo assim, filha? Durante muito tempo não poderás fazer nada, aguardam-nos anos de paciência, esforço e organização, a ti cabe-te a parte mais difícil, mas eu estarei a teu lado para te ajudar, nada te faltará, estarás rodeada de paz e de comodidades, ajudar-te-emos na tua cura. Disseram-me que a reabilitação é muito lenta, talvez a necessites toda a vida, mas pode operar prodígios. O especialista de porfiria sustenta que a tua cura será completa, mas o neurologista pediu um ror de exames, que começaram ontem. Fizeram-te um muito doloroso para comprovar o estado dos nervos periféricos. Levei-te numa maca através dos dédalos do hospital até à outra ala do edifício, lá picaram-te os braços e as pernas, com agulhas e depois aplicaram a electricidade para medir as tuas reacções. Suportamos isso juntas, tu nas nuvens da inconsciência e eu a pensar em tantos homens, mulheres e crianças que foram torturados no Chile de modo semelhante, picados com uma broca eléctrica. De cada vez que a corrente entrava no teu corpo, eu sentia-a no meu, agravada pelo terror. Tentei descontrair-me e respirar ao teu ritmo, imitando o que a Célia e o Nicolás fazem juntos nos Cursos de parto natural; a dor é inevitável na passagem por esta vida, mas diz-se que quase sempre é suportável se não lhe opomos resistência e não se lhe juntam o medo e a angústia.
A Célia teve o primeiro menino em Caracas, entontecido com drogas e sozinha porque não deixaram entrar o marido na enfermaria. Nem ela nem o bebé foram os protagonistas do acontecimento, mas sim o médico, sumo sacerdote vestido de branco e com uma mascara, a decidir como e quando oficiaria a cerimónia -, induziu o nascimento para o dia mais conveniente ao seu calendário, porque queria ir para a praia no fim-de-semana, e foi também assim que nasceram os meus filhos há mais de vinte anos, ao que parece os processos pouco mudaram. Há uns meses levei a minha nora a passear num bosque e lá, por entre altivas sequóias e o murmúrio das cascatas, atirei-lhe com um berrarão sobre a antiga arte das parteiras, o parto natural e o direito de viver em plenitude essa experiência única em que a mãe encarna o poder feminino no universo. Ouviu impassível a minha peroração, lançando-me de vez em quando uns eloquentes olhares de esguelha, ela julga-me através dos vestidos compridos e da almofada de meditação que trago no automóvel, julga que estou convertida numa beata da Nova Era. Antes de conhecer o Nicolás pertencia a uma organização católica de extrema-direita, não podia fumar nem usar calças, a leitura e o cinema eram censurados, o contacto com o sexo oposto reduzido ao mínimo e cada instante da sua existência regulamentado. Nessa seita os homens devem dormir em cima de uma tábua uma vez por semana para evitar tentações da carne, mas as mulheres fazem-no todas as noites por ser a sua natureza supostamente mais licenciosa. Célia aprendeu a usar um chicote e um cilício com farpas fabricado pelas freiras da Candelária, para se disciplinar por amor ao Criador e remir culpas próprias e alheias. Há três anos pouco tinha em comum com ela, que se formara no desprezo pelos esquerdistas, homossexuais, artistas, gentes de diversas raças e condições sociais, mas salvou-nos uma simpatia mútua que ao fim e ao cabo derrubou as barreiras. São Francisco encarregou-se do resto. Um a um foram caindo os preconceitos, o cilício e o chicote passaram a fazer parte do anedotário familiar, ela empenhou-se em ler acerca de política e história e pelo caminho foi dando volta às ideias, conheceu alguns homossexuais e verificou que não eram encarnações do demónio, como lhe tinham dito, e acabou também por aceitar os meus amigos artistas, apesar de alguns deles se ornamentarem com aros atravessados no nariz e um crista de cabelo verde no alto do crânio. O racismo passou-lhe em menos de Lima semana quando verificou que nos Estados Unidos nós não somos brancos, mas hispânicos e ocupamos o degrau mais baixo na escala social. Nunca tento impor-lhe as minhas ideias, porque a leoa selvagem que ela é não o suportaria, segue apenas os caminhos assinalados pelo seu instinto e pela Sua inteligência, mas naquele dia no bosque não consegui evitá-lo e pus em prática os melhores truques de oratória ensinados pelo tio Ramón para a convencer a procurarmos outros métodos menos clínicos e mais humanos para o parto. Ao voltar a casa encontrámos o Nicolás na porta à espera. Diz à tua marna que te explique essa treta da música do universo, lançou ao marido esta nora irreverente, e desde então referimo-nos ao nascimento de Andrea como à música do universo. Apesar do cepticismo do início, aceitaram a minha sugestão e agora projectam parir como os índios. Lá mais para diante terei de convencer-te a ti do mesmo, Paula. Tu és a protagonista desta doença, tens de dar à luz a tua própria saúde, sem medo, com força. Talvez esta seja uma oportunidade tão criadora como o parto da Célia; poderás nascer para outra vida através da dor, atravessar um umbral, crescer.
Ontem íamos sozinhos num elevador do hospital, o Ernesto e eu, quando entrou uma mulher indescritível, um desses seres sem qualquer traço distintivo, sem idade nem aspecto definidos, uma sombra. Dali a poucos segundos reparei que o meu genro perdera a cor, respirava às golfadas, de olhos fechados, encostado à parede para não cair. Dei um passo na sua direcção para o ajudar e nesse momento o elevador parou e a mulher saiu. Nós também devíamos ter saído, mas o Ernesto agarrou-me pelo braço, a porta fechou-se e ficámos lá dentro. Então apercebi-me do aroma do teu perfume, Paula, tão nítido e surpreendente como um grito, e compreendi a reacção do teu marido. Carreguei num botão para parar e ficámos entre dois pisos aspirando os últimos vestígios desse teu odor que tão bem conhecemos enquanto a ele lhe descia um rio de lágrimas pela cara. Não sei quanto tempo ficámos assim, até se ouvirem pancadas e gritos lá de fora, carreguei noutro botão e começámos a descer. Saímos aos tropeções, ele desvanecido e eu a ampará-lo, perante os olhares desconfiados das pessoas no corredor. Levei-o a uma cafeteria e sentámo-nos a tremer com uma chávena de chocolate à frente.
- Estou a ficar meio doido... - disse-me - Não consigo concentrar-me no trabalho. Veio os números no ecrã do computador e parecem-me caracteres chineses, falam comigo e eu não respondo, ando tão distraído que não sei como me toleram no escritório, cometo erros garrafais. Sinto a Paula tão longe! Se soubesses quanto a amo e necessito dela... Sem ela a minha vida perdeu a cor, tornou-se tudo cinzento. Estou sempre à espera de ouvir tocar o telefone e seres tu com a voz transtornada a anunciar-me que a Paula acordou e chama por mim. Nesse momento serei tão feliz como no dia em que a conheci e nos apaixonámos à primeira vista.
- Precisas de desabafar, Ernesto, isto é uma tortura insuportável, tens de queimar um pouco de energia.
- Eu corro, levanto pesos, faço aikido, nada ajuda. Este amor e como gelo e fogo.
- Desculpa se sou tão indiscreta... ainda não pensaste em sair com alguma rapariga?
- Quem diria que és a minha sogra, Isabel! Não, não posso tocar noutra mulher, não desejo mais ninguém. Sem a Paula a minha vida não faz sentido. Que quererá Deus de mim? porque me atormenta desta maneira? Fizemos tantos planos... Falámos em envelhecer juntos e continuar a fazer amor aos noventa anos, dos lugares que havíamos de visitar, de como seríamos o centro de uma grande família e teríamos uma casa aberta para os amigos. Sabias que a Paula queria fundar um asilo para velhos pobres? Queria proporcionar a outros idosos os cuidados que não chegou a dar à Granny.
- Esta é a prova mais difícil das vossas vidas, mas hão-de superá-la, Ernesto.
- Estou tão cansado...
Acaba de passar na tua sala um professor de Medicina com um grupo de estudantes. Não me conhece e graças à minha bata e aos meus socos brancos consegui estar presente enquanto te examinavam. Precisei de todo o sangue-frio adquirido tão duramente no Colégio do Líbano, para manter uma expressão indiferente enquanto te manuseavam sem respeito algum como se já fosses um cadáver e falavam do teu caso como se não os pudesses ouvir. Disseram que a recuperação acontece normalmente nos primeiros seis meses e tu já vais com quatro, não vais evoluir muito mais, é possível que dures anos assim e não se pode ter sempre numa cama de hospital um doente incurável, que vão mandar-te para uma instituição, creio que se referiam a um asilo ou hospício. Não acredites em nada disso, Paula. Se entendes o que ouves, por favor esquece tudo isso, eu jamais te abandonarei, daqui irás para uma clínica de reabilitação e a seguir para casa, não permitirei que continuem a martirizar-te com agulhas eléctricas nem com diagnósticos lapidares. já chega. Também não é verdade que não haja mudanças no teu estado; eles não as vêem porque aparecem na tua sala muito raramente, mas nós, que estamos sempre contigo, podemos comprovar os teus progressos. O Ernesto garante que o reconheces; senta-se ao teu lado, procura os teus olhos, fala-te em voz baixa e vejo como a tua expressão se modifica, acalmas-te e por vezes pareces emocionada, escorrem-te lágrimas e mexes os lábios como se quisesses dizer-lhe alguma coisa, ou ergues ligeiramente uma mão. Como se desejasses acariciá-lo. Os médicos não crêem nisso e tão pouco têm tempo para te observar, vêem apenas uma doente paralisada e com espasmos que nem sequer pestaneja quando gritam o teu nome. Apesar da lentidão aterradora deste processo, sei que vais saindo passo a passo do abismo por onde andaste perdida durante vários meses e que um dia destes ficarás ligada ao presente. Repito-o vezes seguidas, mas às vezes perco a esperança. Ernesto surpreendeu-me a meditar na varanda.
- Pensa lá um pouco, o que é que pode acontecer de pior?
- Não é a morte, Ernesto, mas que a Paula fique assim como está.
- E tu achas que a vamos amar menos por causa disso?
Como sempre, o teu marido tem razão. Não vamos amar-te menos, mas muito mais, vamos organizar-nos, teremos um hospital em casa e quando eu faltar o teu marido tratará de ti, ou o teu irmão, ou os meus netos, logo veremos, não te preocupes filha.
Chego ao hotel à noite e mergulho num silêncio imóvel, indispensável para recuperar os despojos da minha energia dispersa no bulício do hospital. Muita gente vem de visita à tua sala, à tarde, há calor, confusão e não falta quem se atreva a fumar enquanto os doentes sufocam. O meu quarto de hotel converteu-se num refúgio sagrado onde posso pôr em ordem os meus pensamentos e escrever. O Willie e a Célia telefonam-me todos os dias da Califórnia, a minha mãe escreve-me frequentemente, estou bem acompanhada. Se conseguisse descansar sentir-me-ia mais forte, mas durmo aos sobressaltos e muitas vezes os sonhos torturantes são mais reais que a realidade. Acordo mil vezes de noite, assaltada por pesadelos e recordações.
Na madrugada de 11 de Setembro de 1973 sublevou-se a Marinha e quase de seguida o Exército, a Aviação e por fim o Corpo de Carabineiros, a polícia chilena. Salvador Allende foi imediatamente avisado, vestiu-se à pressa, despediu-se da mulher e partiu para o seu gabinete disposto a cumprir o que sempre afirmara: de La Moneda não me tiram vivo. As suas filhas, Isabel e Tati, esta última grávida na altura, Acorreram para junto do pai. Rapidamente a má notícia espalhou-se e chegaram ao Palácio ministros, secretários, funcionários, médicos de confiança, alguns jornalistas e amigos, uma pequena multidão que andava num rodopio pelos salões sem saber que fazer, improvisando tácticas de combate, trancando as portas com móveis de acordo com as confusas instruções dos guarda-costas do Presidente. Vozes prementes sugeriram que chegara a hora de convocar o povo para Lima manifestação imponente em defesa do Governo, mas Allende previu que haveria milhares de mortos. Entretanto tentava dissuadir os insurrectos através de mensageiros e chamadas telefónicas, porque nenhum dos generais revoltosos se atreveu a enfrentá-lo face a face. Os guardas receberam ordens dos seus superiores para se retirarem porque os carabineiros também tinham aderido ao golpe, o Presidente deixou-os sair mas exigiu-lhes que lhe entregas- sem as armas. O Palácio ficou desprotegido e as grandes portas de madeira com remates de ferro forjado foram fechadas por dentro. Pouco depois das nove da manhã, Allende apercebeu-se de que toda a sua habilidade política não chegaria para desviar o rumo trágico desse dia, na verdade os homens encerrados no antigo edifício colonial estavam sozinhos, ninguém iria salvámos, o povo estava desarmado e sem chefes. Mandou sair as mulheres e os seus guardas distribuíram armas aos homens, mas muito poucos sabiam usá-las. O tio Ramón tinha recebido as notícias na Embaixada em Buenos Aires e conseguiu falar pelo telefone com o Presidente. Allende despediu-se do seu amigo de tantos anos: não me demito, sairei da La Moneda só no fim do meu mandato presidencial, quando o povo mo exigir, ou morto. Entretanto as unidades militares de alto a baixo do país caíam uma a uma nas mãos dos golpistas e nos quartéis começavam as purgas daqueles que se tinham mantido leais à Constituição, os primeiros fuzilados desse dia foram homens fardados. O Palácio ficara cercado por soldados e tanques, ouviram-se uns tiros isolados e depois um tiroteio cerrado que perfurou os espessos muros centenários e incendiou móveis e cortinados no primeiro andar. Allende veio à varanda de capacete e espingarda, e disparou algumas rajadas, mas logo alguém o convenceu de que aquilo era uma loucura e obrigou-o a voltar para dentro. Chegou-se a uma breve trégua para fazer sair as mulheres e o Presidente pediu a todos que se rendessem, mas poucos o fizeram, a maioria entrincheirou-se nos salões do segundo andar, enquanto ele se despedia com abraços das seis mulheres que ainda estavam a seu lado. As filhas não queriam abandoná-lo, mas nessa altura já se desencadeara o fim e por ordem do pai levaram-nas à viva força. Na confusão, saíram para a rua e andaram sem ninguém as deter, até que um automóvel as recolheu e as conduziu a lugar seguro. A Tati nunca se recompôs da dor daquela separação e da morte do seu pai, o homem que mais amara na vida e, três anos depois, desterrada em Cuba, recomendou os filhos a uma amiga e sem despedir-se de ninguém matou-se com um tiro. Os generais, que não esperavam tanta resistência, não sabiam como actuar e não queriam converter Allende num herói, ofereceram-lhe um avião para que fosse para o exílio com a família. Enganaram-se comigo, traidores, foi a sua resposta. Então anunciaram-lhe que ia começar o bombardeio aéreo. Ficava muito pouco tempo. O Presidente dirigiu-se pela última vez ao povo através da única emissora de rádio que ainda não estava nas mãos dos militares sublevados. A sua voz era tão pausada e firme, as suas palavras tão seguras, que aquela despedida não parece o último suspiro de um homem que vai morrer, mas a saudação digna de quem entra na História para sempre. De certeza que a Radio Magallanes será silenciada e o timbre tranquilo da minha voz não chegará aos vossos ouvidos. Não importa. Continuarão a ouvi-la. Estarei sempre junto de vós. Pelo menos a minha memória será a de um homem digno, que foi leal à lealdade dos trabalhadores... Eles têm a força, poderão avassalar-nos, mas os processos sociais não se detêm com o crime nem com a força. A História é nossa e são os povos que a fazem... Trabalhadores da minha pátria. tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens hão-de ultrapassar esta hora cinzenta e amarga em que a traição pretende impor-se. Ficai sabendo que bem mais cedo da que julgais se hão-de abrir as grandes alamedas pelas quais passará o homem livre para construir uma sociedade melhor. Viva O Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!
Os bombardeiros voaram como aves fatídicas sobre o palácio de Ia Moneda lançando a sua carga com tal precisão que os explosivos entraram pelas janelas e em menos de dez minutos ardia uma ala inteira do edifício, enquanto da rua os tanques disparavam gás lacrimogéneo. Simultaneamente outros aviões e tanques atacavam a residência presidencial no bairro alto. O fogo e o fumo envolveram o primeiro piso do palácio e começaram a invadir os salões do segundo, onde Salvador Allende e alguns dos seus seguidores ainda se mantinham entrincheirados. Havia corpos atirados por toda a parte, alguns feridos a esvair-se rapidamente em sangue. Os sobreviventes, sufocados pelo fumo e pelos gases, não conseguiam fazer-se ouvir por sobre o ruído do tiroteio, dos aviões e das bombas. A tropa de assalto do exército entrou pelas bocas de incêndio, ocupou o rés-do-chão em chamas e ordenou por altifalantes aos ocupantes que descessem por uma escada exterior de pedra que dava para a rua. Allende apercebeu-se de que toda a resistência acabaria num massacre e ordenou à sua gente que se rendesse, porque seriam mais úteis ao povo vivos do que mortos. Despediu-se de cada um com um firme aperto de mão, olhando-os nos olhos. Saíram em fila indiana com os braços erguidos. Os soldados receberam-nos com coronhadas e pontapés, atiraram-nos a rolar e lá em baixo acabaram de os aturdir com golpes antes de os arrastarem para a rua, onde ficaram estendidos de borco no pavimento, enquanto a voz de um oficial enlouquecido ameaçava passar-lhes por cima com os tanques. O Presidente ficou de arma em punho ao lado da bandeira chilena rasgada e ensanguentada do Salão Vermelho em ruínas. Os soldados irromperam de armas em riste. A versão oficial é que Allende pôs o cano da arma no queixo, disparou e que o tirou lhe destroçou a cabeça.
Nessa inesquecível terça-feira saí de minha casa em direcção ao escritório como todas as manhãs, o Michael saiu também e creio que um pouco mais tarde as crianças foram a pé para a escola com as suas carteiras às costas, sem saberem que as aulas estavam suspensas. Passadas algumas ruas chamou-me a atenção o facto de estas estarem quase desertas, viam-se algumas donas de casa atrapalhadas diante de padarias fechadas e alguns trabalhadores de pé com a lancheira debaixo do braço porque não passavam autocarros, apenas circulavam viaturas militares, por entre as quais o meu carro pintado com flores e anjinhos parecia uma anedota. Ninguém me fez parar. Não tinha rádio para ouvir as notícias, mas mesmo que a tivesse todas as informações já eram censuradas. Pensei passar por casa do Vovô para lhe dar os bons-dias, pois talvez ele soubesse que diabo estava a acontecer, mas não quis incomodá-lo tão cedo. Prossegui até ao escritório com a sensação de me ter perdido entre as páginas de um daqueles livros de ficção científica de que tanto gostava na adolescência, a cidade parecia congelada num cataclismo de outro mundo. Encontrei a porta da editora fechada com corrente e cadeado; através de uma vidraça o porteiro fez-me sinal de me ir embora, era um homem destestável que espiava o pessoal para denunciar a mínima falta. Com que então isto é um Golpe Militar, pensei, e dei meia volta para ir tomar um café com a Avó Hilda e comentar os acontecimentos. Nessa altura ouvi os helicópteros e pouco depois os primeiros aviões que passavam a rugir a baixa altitude.
A Avó Hilda estava à porta de sua casa a olhar para a rua com um ar desolado e mal viu aproximar-se o carro pintalgado que ela tão bem conhecia, correu ao meu encontro com as más notícias. Temia pelo marido, um abnegado professor de Francês, que saíra muito cedo para o trabalho e ela não tivera mais notícias dele. Bebemos café e comemos torradas tentando entrar em contacto com ele pelo telefone, mas ninguém respondia. Falei com a Granny que de nada suspeitava, e com os meninos que brincavam tranquilamente, a situação não me pareceu alarmante e lembrei-me de que podia passar a manhã a coser com a Avó Hilda, mas ela estava inquieta. O colégio onde o marido dava aulas ficava em pleno centro, a poucos quarteirões do palácio de La Moneda, e pela única emissora que ainda dava notícias ela soubera que aquele sector fora tomado pelos golpistas. Há tiros, estão a matar gente, dizem que não se deve sair à rua por causa das balas perdidas, telefonou-me uma amiga que mora no centro e disse que se vêem mortos, feridos e camiões carregados de presos, parece que houve toque de recolher, sabes o que é isso? balbuciava a Avó Hilda. Não, não sabia. Embora a sua angústia me parecesse exagerada, e melhor ou pior eu tinha circulado sem ninguém me incomodar, ofereci-me para ir buscar-lhe o marido. Passados quarenta minutos estacionei diante do colégio, entrei pela porta entreaberta e também ali não vi ninguém, os pátios e as aulas estavam em silêncio. Apareceu um velho contínuo a arrastar os pés e com um gesto indicou-me onde se encontrava o meu amigo. Não pode ser, os tropas revoltaram-se! repetia ele, incrédulo. Numa sala de aula encontrei o professor sentado diante do quadro preto, com uma rima de papéis sobre a mesa, um rádio aceso e a face entre as mãos, a soluçar. Ouve, disse-me ele. E foi assim que eu ouvi as últimas palavras do Presidente Allende. Depois subimos ao piso mais alto do edifício, de onde se avistavam os telhados de La Moneda, exasperámos sem saber o quê, porque já não havia notícias, todas as emissoras difundiam hinos marciais. Quando vimos passar os aviões em voos rasantes, ouvimos o estrondo das bombas e erguer-se uma espessa cortina de fumo para o céu, pareceu-nos estar prisioneiros de um sonho mau. Não podíamos acreditar que se atravessem a atacar La Moneda, coração da democracia chilena. Que será feito do companheiro Allende? perguntou o meu amigo com a voz embargada. Não se renderá nunca, respondi. Então entendemos por completo o alcance da tragédia e o perigo que corríamos, despedimo-nos do contínuo que se negava a abandonar o seu posto, subimos para o meu automóvel e partimos em direcção ao bairro alto por ruas laterais, evitando os soldados. Não consigo explicar como chegámos sem percalços até sua casa nem como fiz todo o trajecto até à minha, onde o Michael me aguardava muito inquieto e os meninos muito contentes com aquelas férias inesperadas.
A meio da tarde soube através de uma chamada confidencial que Salvador Allende tinha morrido.
As linhas telefónicas estavam sobrecarregados e as comunicações internacionais praticamente interrompidas, mas consegui falar com os meus pais em Buenos Aires e dar-lhes a terrível notícia. já tinham conhecimento dela, a censura instalada no Chile não chegara ao resto do mundo. O tio Ramón pôs a bandeira a meia haste em sinal de luto e apresentou imediatamente a sua demissão à junta Militar. Fez com a minha mãe um inventário rigoroso de todos os bens públicos contidos na residência e passados dois dias entregaram a Embaixada. Assim acabaram para eles trinta e nove anos de carreira diplomática; não estavam dispostos a colaborar com a junta, preferiram a incertidão e o anonimato. O tio Ramón tinha cinquenta e sete anos e a minha mãe menos cinco, ambos sentiam o coração destroçado, o seu país tinha sucumbido à insensatez da violência, a família estava dispersa, os filhos longe, os amigos mortos ou no exílio, encontravam-se sem trabalho e poucos recursos numa cidade estrangeira, na qual já se pressentia também horror da ditadura e o início daquilo que depois se chamou a Guerra Suja. Despediram-se do pessoal, que lhes demonstrou carinho e respeito até ao último instante, e de mãos dadas saíram com a cabeça erguida. Nos jardins havia uma multidão a gritar as palavras de ordem da Unidade Popular, milhares de jovens e velhos, de homens, mulheres e crianças a chorar a morte de Salvador Allende e os seus sonhos de justiça e liberdade. O Chile tinha-se convertido num símbolo.
O terror começou na madrugada dessa mesma terça-feira, mas algumas pessoas só o souberam passados vários, dias, outros tardaram muito mais a aceitá-lo e, apesar de todas as evidências, uma mão-cheia de privilegiados conseguiu ignorá-lo durante dezassete anos e ainda o nega hoje em dia. Os quatro generais das Forças Armadas e dos Carabineiros apareceram na televisão a explicar os motivos do Pronunciamento Militar, nome que deram ao Golpe, enquanto flutuavam dezenas de cadáveres no rio Mapocho, que atravessa a cidade, e milhares de prisioneiros eram amontoados em quartéis, prisões e novos campos de concentração organizados em poucos dias por todo o país. O mais violento dos generais da junta parecia ser o da Aviação, o mais insignificante o dos Carabineiros, o mais cinzento um tal Augusto Pinochet de quem poucos tinham ouvido falar. Ninguém suspeitou nessa primeira aparição pública que este homem com ar de avozinho bonacheirão se transformaria naquela sinistra figura de óculos escuros, com o peito atapetado de medalhas e capa de imperador prussiano que deu a volta ao mundo em reveladoras fotografias. A junta Militar impôs o recolher de muitas horas, somente o pessoal das Forças Armadas podia circular pelas ruas. Durante esse período devassaram os edifícios do Governo e da administração pública, bancos, universidades, indústrias, unidades camponeses e povoações inteiras à procura de partidários da Unidade Popular. Políticos, jornalistas, intelectuais e artistas de esquerda foram feitos prisioneiros sem formalidades, dirigentes operários foram fuzilados sem processo, as prisões não chegavam para tantos detidos e para tal utilizaram escolas e estádios desportivos. Estávamos sem notícias, a televisão transmitia desenhos animados e as emissoras de rádio faziam ouvir marchas militares, e a cada momento liam novos comunicados com as ordens do dia, voltando a ser exibidos nos ecrãs os quatro generais golpistas, com o escudo e a bandeira da pátria em pano de fundo. Explicaram aos cidadãos o Plano Z, segundo o qual o governo derrubado possuía uma enorme lista negra com milhares de pessoas da oposição que pensava massacrar nos próximos dias num genocídio sem precedentes, mas eles tinham-se antecipado para o evitar. Disseram que a pátria estava nas mãos de assessores soviéticos e de guerrilheiros cubanos e que Allende, bêbado, se tinha suicidado de vergonha não só pelo fracasso da sua gestão, mas sim e sobretudo porque as honrosas Forças Armadas tinham desmascarado os seus depósitos de armamento russo, a sua dispensa cheia de frangos, a sua corrupção, os seus roubos e bacanais, como provava uma série de fotografias pornográficas que, por decência, não se podiam exibir. Através da imprensa, rádio e televisão, ordenaram a centenas de pessoas que se entregassem no Ministério da Defesa e alguns incautos fizeram-no de boa-fé e pagaram-no bem caro. O meu irmão Pancho fazia parte da lista e salvou-se porque estava em missão diplomática em Moscovo, onde ficou retido com a família durante vários anos. A casa do Presidente foi assaltada, depois de ter sido bombardeada, e até a roupa da família foi exposta à pilhagem. Os vizinhos e os soldados levaram para recordação os objectos pessoais, os documentos mais íntimos e as obras de arte que a família Allende tinha coleccionado ao longo da Sua vida. Nas povoações operárias a represai foi implacável, no pais inteiro houve execuções sumárias, incontáveis prisioneiros, desaparecidos e torturados, não havia onde esconder tantos perseguidos nem mane ira de alimentar os milhares de famílias sem trabalho. Como surgiram de repente tantos delatores, colaboracionistas, torturadores e assassinos? Talvez tivessem existido desde sempre e nós naco soubéssemos distinguí-los. Tão pouco podíamos explicar o ódio feroz da tropa que era oriunda dos estratos sociais mais baixos e agora martirizavam os seus irmãos de classe.
A viúva, as filhas e alguns próximos colaboradores de Salvador Allende refugiaram-se na Embaixada do México. No dia a seguir ao Golpe Militar, Tencha saiu com um salvo-conduto, escoltada por militares, para enterrar secretamente o seu marido numa cora anónima. Não lhe permitiram ver o cadáver. Pouco depois partiu com as filhas para o exílio no México, onde foram recebidas com honras pelo presidente e amparadas generosamente por todo o povo. O destituído general Prats, que se negarei a apoiar os golpistas, foi tirado do Chile e levado para a Argentina ao lusco-fusco porque contava com um sólido prestígio nas fileiras e temiam que ele encabeçasse uma possível divisão nas Forças Armadas, mas tal ideia nunca lhe passou pela cabeça. Em Buenos Aires levou uma vida retirada e modesta, contava com muito poucos amigos, entre os quais os meus pais, estava separado das filhas e temia pela sua vida. Fechado no seu apartamento começou a escrever sigilosamente as amargas memórias dos últimos tempos.
No dia seguinte ao do Golpe uma proclamarão militar ordenou que se hasteasse a bandeira em todos os telhados para comemorar a vitória dos valentes soldados, que tão heroicamente defendiam a civilização cristã ocidental contra a conspirarão comunista Uni jipe parou diante da nossa porta para averiguar porque não cumpríamos a ordem. Michael e eu explicámos o meu parentesco com Allende, estamos de luto, se quiser pomos a bandeira a meia haste com uma fita negra, dissemos. O oficial ficou a pensar um momento e como não tinha instruções a esse respeito, foi-se embora sem mais comentários. Tinham começado as denúncias e esperávamos que a todo o momento chegasse uma convocação a acusar-nos de sabe-se lá que crimes, mas isso não aconteceu, talvez o carinho que a Granny inspirava no bairro o impedisse. Michael soube que havia um grupo de trabalhadores escondidos num dos seus edifícios em construção, não tinham conseguido sair de manhã e depois não puderam fazê-lo devido ao recolher, estavam Sem Comunicações nem alimentos. Avisámos a Granny, que se arranjou para atravessar a rua agachada e acorreu para junto dos netos, tirámos provisões da nossa dispensa e, tal como tinham indicado através da rádio, para casos de emergência, saímos no automóvel avançando a passo de tartaruga, com um lenço branco atado à ponta de um pau e de janelas abertas. Fizeram-nos parar cinco vezes e sempre exigiam ao Michael que descesse, passavam bruscamente Lima busca ao desconjuntado Citroên e a seguir deixavam-nos continuar. A mim nada me perguntaram, nem sequer me viram, eu pensei que o espírito protector da Vovó me tinha coberto com um manto de invisibilidade, mas depois percebi que na idiossincrasia militar as mulheres mão contam, a não ser como presa de guerra. Se tivessem examinado os meus documentos e reparado no meu apelido, talvez nunca tivéssemos entregue aquela cesta de comida. Naquela ocasião não sentimos medo pois ainda desconhecíamos os mecanismos da repressão e julgávamos que bastava explicar que não pertencíamos a nenhum partido político para ficar livres de perigo, mas a verdade revelou-se-nos bem cedo, quando foi levantado o recolher e pudemos comunicar uns com os outros.
Na editora despediram logo os que tinham tido qualquer participação activa na Unidade Popular, eu fiquei na mira. Delia Vergara, pálida mas firme, anunciou o mesmo que já dissera três anos antes: nós continuamos a trabalhar como sempre. Porém desta vez era diferente, vários dos seus colaboradores tinham desaparecido e a melhor jornalista da equipam andava louca a tentar esconder o irmão. Três meses mais tarde ela própria teve de se exilar e acabou refugiada em França, onde viveu mais de vinte anos. As autoridades convocaram a imprensa para comunicar as normas de rigorosa censura sob a qual teríamos de trabalhar, não só havia temas proibidos, mas ainda palavras perigosas, tais como companheiro, que foi apagada do vocabulário, e outras que deviam usar-se com extrema prudência, tais como povo, sindicato, unidade colectiva, justiça, trabalhador e muitas mais identificados com a linguagem de esquerda. A palavra democracia só se podia empregar acompanhada por um adjectivo: democracia condicionada, autoritária e mesmo totalitária. O meu primeiro contacto directo com a censura foi uma semana mais tarde, quando apareceu nos quiosques a revista juvenil que eu dirigia com uma ilustração na capa de quatro ferozes gorilas e no interior uma extensa reportagem sobre esses animais. As Forças Armadas consideraram a coisa como uma alusão directa aos quatro generais da junta. Preparávamos as paginas a cores com dois meses de avanço, quando a ideia de um Golpe Militar era ainda bastante remota, foi uma estranha coincidência que os gorilas estivessem na capa da revista exactamente nessa altura. O dono da editora, que regressara no seu avião particular mal se acalmara um pouco o caos dos primeiros dias, despediu-me e nomeou um novo director, o mesmo homem que pouco depois conseguiu convencer a junta Militar a trocar o sentido dos mapas, invertendo os continentes para que a benemérita pátria aparecesse no topo da página e não no fundo, ficando o Sul em cima e estendendo as águas territoriais até à Ásia. Perdi um posto de directora e bem cedo iria perder também o meu lugar na revista feminina, tal como aconteceria ao resto da equipa porque aos olhos dos militares o feminismo acabava por ser tão subversivo como o marxismo. Os soldados cortavam à tesourada as calças das mulheres em plena rua, porque no seu entender só os machos podiam usá-las, as melenas dos homens foram consideradas indício de mariquice, e as barbas eram rapadas porque se temia que se ocultassem comunistas por trás delas. Tínhamos regressado aos tempos da autoridade masculina inquestionável. Sob as ordens da nova directora, a revista fez uma brusca viragem e ficou convertida numa réplica exacta de outras publicações frívolas para mulheres. O dono da empresa voltou a fotografar as suas belas adolescentes.
A junta Militar acabou por decreto com greves e protestos, devolveu as terras aos antigos patrões e as minas aos norte-americanos, abriu o país aos negócios e ao capital estrangeiro, vendeu os milenares bosques nativos e a fauna marítima a companhias japonesas e estabeleceu o sistema de suculentas comissões e de corrupção como formas de Governo. Surgiu uma nova casta de jovens executivos educados nas doutrinas do capitalismo puro, que circulavam em motos cromadas e manejavam os destinos da pátria com impiedosa frieza. Em nome da eficiência económica, os generais frigorificaram a História, combateram a democracia como uma ideologia estrangeira e substituíram-na por uma doutrina de lei e ordem. O Chile não foi um caso isolado, em breve a longa noite do totalitarismo se iria estender por toda a América Latina.
Maio – Dezembro 1992
Já não escrevo para que quando a minha filha acordar não se sinta tão perdida, porque não acordará. Estas páginas não têm destinatário, a Paula nunca poderá lê-las...
Não! Porque repito aquilo que os outros dizem quando na verdade não acredito nisso? Puseram-na do lado dos irrecuperáveis. Danos cerebrais, disseram-me... Depois de ver os últimos exames, o neurologista levou-me ao seu gabinete e com toda a amabilidade possível mostrou-me as placas a contra luz, dois grandes rectângulos pretos onde a excepcional inteligência da minha filha fica reduzida a uma inútil mancha escura. Com o lápis assinalou-me os caminhos tortuosos do cérebro enquanto me explicava as terríveis consequências daquelas sombras e linhas.
- A Paula está gravemente atingida, não há nada a fazer, tem a mente destruída. Não sabemos quando nem como isso se produziu, pode ter sido causado por perda de sódio, falta de oxigénio ou excesso de drogas, mas também se pode atribuir ao processo devastador da doença.
- Quer dizer que pode ficar mentalmente atrofiada? - O prognóstico é muito mau, no melhor dos casos atingirá um nível de desenvolvimento infantil.
- Que significa isso?
- Nesta fase não sei dizer-lhe, cada caso é diferente.
- Virá a falar?
- Não creio. O mais provável é que também não possa andar. Será sempre uma inválida - acrescentou, olhando-me com tristeza por cima dos óculos.
- Aqui há um erro. Tem de repetir estes exames!
- Temo que a realidade seja esta, Isabel.
- O doutor não sabe o que diz! Nunca viu a Paula com saúde, não imagina como é a minha filha! É brilhante, a mais inteligente da família, sempre a primeira em tudo o que realiza. Tem um espírito indomável. Julga que ela se dará por vencida? Nunca!
- Lamento muito... - murmurou, pegando-me nas mãos, mas eu já não o ouvia. A sua voz chegava-me de muito longe enquanto () passado inteiro da Paula surgia à minha frente em rápidas imagens. Vi-a em todas as idades: recém-nascida, nua e com os olhos abertos, a olhar-me com a mesma expressão alerta que teve até ao derradeiro instante da sua vida consciente; a dar os primeiros passos com a seriedade de uma professorazinha; a esconder sigilosa as tristes garrafas da avó; aos dez anos a dançar como uma marionete enlouquecido os ritmos da televisão, e aos quinze, a receber-me com um abraço forçado e os olhos duros quando voltei para casa, depois da aventura fracassada com um amante de cujo nome nem me lembro; com o cabelo até à cintura na última festa do colégio, e depois com a toga e o barrete da graduação. Vi-a como uma fada envolta nas rendas alvas do seu vestido de noiva, e com uma blusa verde de algodão e as suas chinelas usadas de pele de coelho, toda dobrada com dores, com a cabeça nos meus joelhos, quando a doença já a tinha atacada. Nessa tarde, há exactamente quatro meses e vinte e um dias, ainda falávamos de uma gripe e discutíamos com o Ernesto a tendência da Paula para exagerar os seus males a fim de chamar a nossa atenção. E vi-a nessa madrugada fatídica, quando começou a morrer nos meus braços, a vomitar sangue. Surgiram tais visões como fotografias desordenadas e sobrepostas num andamento muito lento e inexorável no qual todos nos deslocávamos pesadamente, como se estivéssemos no fundo do mar, incapazes de dar um salto de tigre para parar de chofre a roda do destino que girava rapidamente para a fatalidade. Durante quase cinquenta anos passei à capa a violência e a dor, confiada na protecção que me concede o sol da boa sorte que trago nas costas, mas no fundo sempre suspeitei que mais tarde ou mais cedo me havia de cair em cima a garra da desgraça. Nunca imaginei, no entanto, que o golpe cairia sobre um dos meus filhos. Voltei a ouvir a voz do neurologista.
- Ela não se apercebe de nada, pode crer-me, a sua filha não sofre.
- Sofre, sim, e está assustada. Vou levá-la para a minha casa na Califórnia o mais depressa possível.
- Aqui está protegida pela Segurança Social, nos Estados Unidos a medicina é um roubo. Além disso a viagem é muito arriscada, a Paula ainda não conserva devidamente o sódio, não controla a tensão nem a temperatura, tem dificuldades respiratórias; não é conveniente fazê-la deslocar nesta fase, talvez não resista à viagem. Em Espanha há umas quantas instituições onde a podem tratar bem, ela não terá saudades de ninguém, nada reconhece, nem sequer sabe onde está.
- Não percebe que eu nunca a deixarei? Ajude-me, doutor, custe o que custar tenho de levá-la comigo...
Quando olho para trás e vejo o longo trajecto da minha vida, creio que a Golpe Militar no Chile foi uma das encruzilhadas dramáticas que mudaram o meu rumo. Daqui a mais uns anos talvez recorde o dia de ontem como outra tragédia que marcou a minha existência. Nada voltará a ser como dantes para mim. Asseveram-me que não há cura para a Paula, mas eu não acredito, levá-la-ei para os Estados Unidos, lá vão poder ajudar-nos. Willie conseguiu arranjar um lugar numa clínica para ela, a única coisa que falta é convencer o Ernesto a deixá-la ir, ele não a pode tratar e num asilo nunca a vamos meter; arranjarei maneira de viajar com a Paula, não é o primeiro doente grave a ser transportado; vou levá-la, mesmo que tenha de roubar um avião.
Nunca a baía de São Francisco tinha estado tão bonita, com um milhar de pequenos barcos com as velas multicores desfraldadas para comemorar o início da Primavera, as pessoas de calções curtos a trotar pela ponte de Golden Gate e as montanhas bem verdes porque tinha chovido após seis anos de seca. Há muito tempo que não se viam árvores tão frondosas nem céus tão azuis, a paisagem recebeu-nos em trajo festivo, como uma saudação. Acabou-se o longo Inverno de Madrid. Antes de partir levei a Paula à capela, que se encontrava na penumbra e deserta, como quase sempre está, embora cheia de lírios para a Virgem pelo Dia da Mãe. Coloquei a cadeira de rodas diante daquela estátua de madeira em frente da qual a minha mãe tantas lágrimas derramou durante os cem dias do seu pesar, e acendi uma vela dedicada à vida. A minha mãe pedira à Virgem que envolvesse a Paula no seu manto e a protegesse da dor e da angústia, e que se pensasse levá-la, pelo menos não a fizesse sofrer mais. Eu pedi à Deusa que nos ajudasse a chegar à Califórnia sãos e salvos, que nos amparasse na segunda etapa que ia começar e nos desse força para percorrê-la. A Paula, com a cabeça inclinada e os olhos fixos no chão, totalmente espástica, começou a chorar e as lágrimas caíam-lhe uma a uma, como as notas de um exercício de piano. Que entenderá a minha filha? As vezes penso que me quer dizer alguma coisa, julgo que me quer dizer adeus...
Fui com o Ernesto preparar-lhe a mala. Entrei naquele pequeno apartamento, arrumado, equilibrado, onde foram felizes durante um tempo tão breve, e como sempre impressionou-me a simplicidade franciscana em que viviam. Aos seus vinte e oito anos neste mundo, a Paula atingiu uma maturidade que outros nunca conseguem, compreendeu como é efémera a existência e desprendeu-se de quase tudo o que é material, mais preocupada com as inquietudes da alma. Para a cova vamos metidas num lençol, porque é que andas nessa azáfama? perguntou-me uma vez numa loja de roupas, quando lhe quis comprar três blusas. Foi lançando borda fora tudo até aos últimos resquícios de vaidade, não queria enfeites, nada de desnecessário ou supérfluo; na sua clara mente só havia lugar e paciência para o essencial. Ando à procura de Deus e não o encontro, disse-me pouco antes de entrar em coma, Ernesto meteu num saco alguma roupa, umas quantas fotografias da sua lua-de-mel na Escócia, as suas velhas chinelas de pele de coelho, o açucareiro de prata que herdou da Granny, e a boneca de trapo - já sem lá na peruca e meio vesga - que eu lhe fiz quando nasceu e que andava sempre com ela como uma relíquia cheia de traças. Num cesto ficaram as cartas que lhe escrevi durante estes anos e que, tal como a minha mãe, ela guardava por ordem de datas. Sugeri que fossem eliminadas de vez, mas o meu genro disse que um dia ela lhas pediria. O apartamento ficou varrido por um vento de desolação; a 6 de Dezembro a Paula saíra dali para o hospital e nunca mais lá voltou. O seu espírito vigilante estava presente enquanto arrumávamos as suas poucas coisas e violávamos a sua intimidade. De súbito o Ernesto caiu de joelhos, abraçado à minha cintura, sacudido pelos soluços que tinha reprimido durante aqueles longos meses. Julgo que nesse momento assumiu inteiramente a sua tragédia e compreendeu que a sua mulher não mais voltaria àquele andar de Madrid, partiu para outra dimensão, deixando-lhe apenas a memória da beleza e da graça que o apaixonaram.
- Será que nos amámos de mais, que a Paula e eu consumimos gulosamente toda a felicidade a que tínhamos direito? Engolimos a vida? Tenho em reserva um amor incondicional para ela, mas parece que já não precisa dele - afirmou.
- Precisa mais do que nunca, Ernesto, mas agora precisa mais de mim porque tu não podes tratar dela.
- Não é justo carregares sozinha com esta tremenda responsabilidade. Ela é minha mulher...
- Não estarei só, tenho uma família. Além disso tu também podes vir, a minha casa é tua.
- Que acontecerá se não conseguir arranjar trabalho na Califórnia? Não posso viver à sombra da tua asa. Também não quero separar-me dela...
- A Paula contou-me numa carta que quando tu surgiste na sua vida tudo mudou, sentiu-se realizada. Disse-me que às vezes, quando vocês estavam com outras pessoas, meio aturdidos pelo barulho das conversas cruzadas, bastava um olhar entre ambos para exprimir quanto se amavam. O tempo congelava-se e estabelecia-se um espaço mágico no qual só ela e tu existiam. Talvez seja assim de agora em diante, apesar da distância o vosso amor viverá intacto num compartimento separado, para além da vida e da morte.
No último instante, antes de fechar definitivamente a porta, ele entregou-me um envelope lacrado. Escrito na inconfundível letra da minha filha dizia: Para ser aberto quando eu morrer.
- Há uns meses, em plena lua-de-mel, a Paula acordou uma noite aos gritos - contou-me. - Não sei o que estava a sonhar, mas devia ser algo de muito inquietante porque não conseguiu voltar a adormecer, escreveu esta carta e entregou-ma. Achas que devemos abri-la?
- A Paula não morreu, Ernesto...
- Então guarda-a tu. Cada vez que vejo este envelope sinto uma garra aqui no peito.
Adeus, Madrid... Para trás ficou o corredor dos passos perdidos onde dei várias vezes a volta ao mundo, o quarto do hotel e as sopas de lentilhas. Abracei pela última vez a Elvira, a Aurélia e os outros amigos do hospital que choravam ao despedir-se, as freiras, que me deram um rosário benzido pelo Papa, os curandeiros que acorreram pela última vez a aplicar a sua arte das campainhas tibetanas e o neurologista, único médico que esteve a meu lado até ao fim, a preparar a Paula e a obter assinaturas e licenças para que a companhia aérea aceitasse transportá-la. Comprei vários lugares na primeira classe, instalei uma marquesa, oxigénio e outros aparelhos necessários, contratei urna enfermeira, especializada e levei a minha filha numa ambulância até ao aeroporto, onde a esperavam para nos conduzirem directamente ao avião. Ia a dormir graças a umas gotas que o doutor me dera no último instante. Penteei-a com meio rabo de cavalo atado com um lenço, como ela gostava, e com o Ernesto vestimo-la pela primeira vez nesses longos meses, pusemos-lhe uma das minhas saias e um casaco de lá dele porque ao procurarmos no armário apenas lá vimos dois blue-jeans, umas quantas blusas e um casacão impossíveis de enfiar no seu corpo rígido.
A viagem entre Madrid e São Francisco foi um safari de mais de vinte horas, alimentando a doente gota a gota, controlando os seus gestos vitais e submergindo-a num torpor piedoso com as gotas prodigiosas quando se mostrava inquieta. Tudo aconteceu há menos de uma semana, mas já esqueci os pormenores, só me lembro de que estivemos umas duas horas em Washington, onde nos esperava um funcionário da Embaixada do Chile para apressar a entrada nos Estados Unidos. A enfermeira e o Ernesto ocuparam-se da Paula, enquanto eu corria pelo aeroporto com a bagagem, os passaportes e as autorizações, que os funcionários carimbaram sem fazer perguntas ao verem aquela pálida jovem desmaiada numa maca. Em São Francisco recebeu-nos Willie com uma ambulância e uma hora mais tarde chegámos à Clínica de Reabilitação, onde uma equipa de médicos recebeu a Paula, que estava com a tensão muito baixa, encharcada em suor frio. Célia, Nicolás e o meu neto esperavam-nos a porta; Alejandro correu para me saudar aos tropeções nas suas perninhas desajeitadas e com os braços estendidos, mas deve ter percebido a tremenda calamidade que pairava no ar porque estacou a meio caminho e recuou assustado. Nicolás tinha seguido os pormenores da doença todos os dias pelo telefone, mas não estava preparado para o que viu. Inclinou-se para a irmã e beijou-a na testa, ela abriu os olhos e por um momento pareceu captar-lhe o olhar. Paula! Paula! murmurou ele enquanto lhe corriam lágrimas pelo rosto. Célia, muda e aterrada, protegendo com as mãos o bebé que tinha no ventre, desapareceu atrás de uma coluna, no recanto menos iluminado da sala.
Nessa noite Ernesto ficou na clínica e eu fui para casa com o Willie. Tinha estado muitos meses longe dali e senti-me como uma estrangeira, como se nunca antes tivesse passado a ombreira da porta nem visto aqueles móveis ou aqueles objectos que em tempos comprara com entusiasmo. Estava tudo impecável e o meu marido tinha cortado as suas melhores rosas para encher os jarrões. Vi a nossa cama com o dossel de batista branca e os almofadões bordados, os quadros que me acompanharam durante anos, a minha roupa arrumada segundo as cores no armário, e pareceu-me tudo muito bonito, mas completamente alheio, o meu lar continuava ainda a ser a sala comum do hospital, o quarto do hotel, o pequeno apartamento despojado da Paula. Senti que nunca tinha estado naquela casa, que a minha alma ficara esquecida no corredor dos passos perdidos e que levaria bastante tempo a encontrá-la. Mas nessa altura o Willie abraçou-me apertadamente e através do tecido da camisa chegaram até mim o seu calor e o seu cheiro, envolveu-me a inconfundível força da sua lealdade e tive a sensação de que o pior tinha passado, dali em diante não estaria sozinha, a seu lado teria coragem para suportar as piores surpresas.
O Ernesto só pode ficar na Califórnia quatro dias e teve de tomar o avião de regresso ao seu trabalho. Está a negociar uma transferência para os Estados Unidos para ficar perto da sua mulher.
- Espera por mim, meu amor, eu volto depressa e não vamos mais separar-nos, prometo-te, Coragem, não te dês por vencida - disse-lhe, beijando-a antes de partir.
De manhã fazem exercícios à Paula e submetem-na a provas complicadas, mas à tarde temos tempo livre para estar com ela. Os médicos parecem surpreendidos com a excelente condição do seu corpo, a sua pele está sã, não se deformou nem perdeu flexibilidade nas articulações apesar da paralisia. Os improvisados movimentos que eu praticava com ela são os mesmos que eles lhe fazem, os pesos que eu lhe fazia com livros e ligaduras elásticas são parecidos com os que aqui mandaram fazer por medida, as palmadas nas costas para ajudá-la a tossir e as gotas de água para humedecer a traqueotomia tinham o mesmo efeito que estas sofisticadas máquinas respiratórias. A Paula está instalada num quarto individual cheio de luz, com uma janela que dá para um jardim de gerânios; pusemos fotografias da família nas paredes e um aparelho a difundir música suave, tem um televisor onde lhe mostramos imagens plácidas de água e bosques. As minhas amigas trouxeram loções aromáticas e esfregamos-lhe óleo de rosmaninho pela manhã para a estimular, de alfazema à noite para adormecê-la, de rosas e camomila para refrescá-la. Todos os dias vem um homem com grandes mãos de ilusionista dar-lhe massagens japonesas e fazem turnos para atendê-la meia-dúzia de terapistas, uns trabalham com ela no ginásio e outros tentam a comunicação mostrando-lhe cartões com letras e desenhos, tocando instrumentos e até pondo-lhe limão ou mel na boca, para ver se reage aos sabores, Veio também um especialista de porfiria, dos poucos que existem, esta estranha enfermidade não interessa a ninguém; alguns conhecem-na por referências, pois diz-se que em Inglaterra houve um rei com fama de louco que afinal era porfirico. O especialista leu os relatórios do hospital espanhol, observou-a e declarou que os danos cerebrais não são produto da doença, possivelmente houve qualquer acidente ou um erro no tratamento.
Hoje pusemos a Paula sentada numa cadeira de rodas, amparada por almofadões nas costas, e levámo-la a passear pelos jardins da clínica. Há uma álea aos meandros por entre matas de jasmins selvagens cujo aroma é tão penetrante como o das loções deles extraídas. Estas flores trazem até mim a presença da Granny, é demasiada coincidência que a Paula esteja rodeada por elas. Pusemos-lhe um chapéu de abas largas e óculos escuros para a proteger do sol, e assim preparada parece quase normal. Nicolás empurrava a cadeira, enquanto a Célia, que já está bastante pesada, e eu com o Alejandro nos braços, os observávamos de longe. Nicolás tinha cortado uns jasmins, tinha-os posto na mão da irmã e falava-lhe como se ela pudesse responder-lhe. Que lhe diria ele? Também eu lhe falo constantemente, para o caso de ela ter uns instantes de lucidez e num desses ápices conseguíssemos comunicar, todas as manhãs lhe repito que está em pleno Verão da Califórnia junto da sua família e digo-lhe a data para que não flutue à deriva fora do tempo e do espaço; à noite digo-lhe que acabou mais um dia, que são horas de sonhar e conto-lhe baixinho ao ouvido uma das doces orações da Granny em inglês, com as quais ela foi criada. Explico-lhe o que lhe aconteceu, que sou a mãe dela, que não tenha medo porque sairá fortalecido desta prova, que nos momentos mais desesperados, quando todas as portas se fecham e nos sentimos prisioneiros num beco sem saída, sempre se abre uma estreita passagem inesperada pela qual podemos sair. Lembro-lhe as épocas mais difíceis do terror no Chile e da solidão no exílio, que foram igualmente os tempos mais importantes das nossas vidas, porque nos deram força e impulso.
Várias vezes tenho perguntado a mim mesma, como milhares de outros chilenos, se fiz bem em fugir do meu país durante a ditadura, se tinha o direito de desenraizar os meus filhos e arrastar o meu marido para um futuro incerto num país estrangeiro, ou se teria sido preferível lá ficar passando desapercebidos, mas essas perguntas não têm resposta. As coisas aconteceram inexoravelmente, como nas tragédias gregas, a fatalidade estava diante dos meus olhos, mas não pude evitar os passos que a ela me conduziam.
A 23 de Setembro de 1973, doze dias após o Golpe Militar, morreu Pablo Neruda. Estava doente e os tristes acontecimentos desses dias acabaram com a sua vontade de viver. Agonizou na sua cama na Ilha Negra olhando, sem o ver, o mar que se desfazia contra as rochas por baixo da sua janela. Matilde, sua esposa, tinha estabelecido um círculo hermético em redor dele para que não penetrassem notícias do que estava a suceder no país, mas de alguma forma o poeta veio a saber dos milhares de prisioneiros, supliciados e mortos. Destroçaram as mãos de Victor Jara, foi como matar um rouxinol, e diz-se que ele cantava, cantava e isso ainda mais os enraivecia; que está a acontecer? ficaram todos loucos? murmurava o poeta com a vista extraviada, Começou a Sufocar e levaram-no numa ambulância para uma clínica de Santiago. Enquanto chegavam centenas de telegramas de vários governos do mundo a oferecerem asilo político ao poeta do Prémio Nobel, alguns embaixadores foram pessoalmente convencê-lo a partir, mas ele não queria ficar longe da sua terra naqueles tempos de cataclismo. Não posso abandonar o Meu povo, não posso fugir, prometa-me que também não vai, pediu ele à mulher e ela anuiu. As últimas palavras desse homem que cantou a vida foram: vão fuzilá-los, vão fuzilá-los. A enfermeira deu-lhe um calmante, adormeceu profundamente e não voltou a acordar. A morte deixou-lhe nos lábios o sorriso irónico dos seus melhores dias, quando se mascarava para divertir os amigos. Nesse preciso momento numa célula do Estádio Nacional torturavam selvaticamente o seu condutor para lhe extorquir sabe-se lá que inútil confissão sobre aquele velho e pacífico poeta. Foi velado na sua casa azul do Cerro San Cristóbal, invadida pela tropa que a deixou em ruínas; espalhados por toda a parte ficaram destroços das suas figuras de cerâmica, das suas garrafas, das bonecas, dos relógios, dos quadros, o que não puderam levar com eles quebraram-no e queimaram-no. Corria água e lama pelo chão coberto de vidros partidos, que ao serem pisados produziam um som de entrechocar de ossos, Matilde passou a noite no meio daqueles destroços sentada numa cadeira ao pé do caixão do homem que compôs para ela os mais belos versos de amor, acompanhada pelos poucos amigos que se atreveram a atravessar o cerco policial em volta da casa e desafiar o toque de recolher. Enterraram-no no dia seguinte numa cova emprestada, num funeral eriçado de metralhadoras ladeando as ruas por onde passou o negro cortejo. Poucos puderam ir com ele no seu último percurso, os seus amigos estavam presos ou escondidos e outros temiam as represálias. Com as minhas companheiras da revista desfilámos lentamente com cravos vermelhos nas mãos gritando: “Pablo Neruda! Presente, agora e sempre!” diante dos olhares raivosos dos soldados, todos iguais sob os seus capacetes de guerra, com as caras pintadas para não serem reconhecidos e com as armas a tremer-lhes nas mãos. A meio caminho alguém gritou: “Companheiro Salvador Allende!” e todos respondemos em uníssono: “Presente, agora e sempre!” Assim o enterro do poeta serviu também para honrar a morte do Presidente, cujo corpo jazia numa cova anónima num cemitério de outra cidade. Os mortos não descansam em sepulturas sem nome, disse-me um velho que caminhava a meu lado. Ao voltar a casa escrevi a carta diária à minha mãe descrevendo-lhe o funeral; ficou guardada junto com outras e oito anos depois ela entregou-ma e pude incluí-la quase textualmente no meu primeiro romance. Também contei o enterro ao meu avô, que me ouviu de dentes apertados até ao final e depois, agarrando-me nos braços com as suas garras de ferro, gritou-me para que diabo tinha eu ido ao cemitério, se eu não percebia o que se estava a passar no Chile, e que por amor dos meus filhos e por respeito por ele, que Ia não estava para passar por aquelas angústias, tivesse cuidado comigo. Não era bastante aparecer na televisão com o meu apelido? Para que me expunha? Não eram coisas que me dissessem respeito.
- O mal desatou-se, Vovô.
- De que mal me fala!? São coisas da sua imaginação, o mundo sempre foi assim.
- Será que negamos a existência do mal porque não acreditamos no poder do bem?
- Prometa-me que vai ficar calada em casa - exigiu-me.
- Não lhe posso prometer isso, Vovô.
E na verdade não podia, já era tarde para tais promessas. Dois dias após o Golpe Militar, mal acabou o recolher das primeiras horas, vi-me enfiada sem saber como naquela rede que se formou imediatamente para ajudar os perseguidos. Soube de um jovem extremista de esquerda que era preciso esconder; escapara a uma emboscada com um tiro numa perna e os perseguidores no seu encalce. Conseguiu refugiar-se na garagem de um amigo, onde à meia-noite um médico de boa vontade lhe extraiu a bala e lhe fez os primeiros curativos. Ardia em febre apesar dos antibióticos, não era possível mantê-lo mais tempo naquele local e também não se podia pensar em levá-lo para o hospital, onde sem dúvida o teriam prendido. Naquelas condições não aguentaria uma viagem forçada para atravessar a fronteira pelas passagens do sul da cordilheira, como faziam alguns, a sua única possibilidade era pedir asilo, mas só as pessoas bem relacionadas - personagens da política, jornalistas, intelectuais e artistas conhecidos - podiam entrar nas embaixadas pela porta principal, os pobres diabos com ele e milhares de outros, estavam desamparados. Eu não sabia muito bem o significado de asilo, só ouvira essa palavra no hino nacional, que agora soava ironicamente: ou a pátria será da gente livre, ou asilo contra a opressão, mas o caso pareceu-me romanesco e sem pensar duas vezes ofereci-me para o ajudar sem medir o risco, porque nessa altura ninguém sabia como se exerce o terror, continuávamos a reger-nos pelos princípios da normalidade. Decidi deixar-me de rodeios e dirigi-me à Embaixada da Argentina, estacionei o meu automóvel o mais perto possível e caminhei para a entrada com o coração apertado, mas com passo firme. Através do gradeamento viam-se as janelas do edifício com roupa estendida e gente a gritar. A rua era um formigueiro de soldados, havia um mini tanque diante da porta e ninhos de metralhadoras. Mal me aproximei apontaram-me duas espingardas. Que se tem que fazer para nos asilarmos aqui? perguntei. Os seus documentos! ladraram os soldados em uníssono. Entreguei o meu bilhete de identidade, pegaram-me pelos braços e levaram-me para uma guarita junto da porta, onde estava um oficial a quem repeti a pergunta procurando disfarçar a tremura da voz. O homem olhou-me com uma tal expressão de surpresa, que ambos sorrimos. Estou aqui justamente para evitar asilos, replicou, estudando o apelido nos meus documentos. Depois de uma pausa eterna mandou retirar os outros e ficámos sós no exíguo espaço da guarita. Já a vi na televisão... de certeza que e para u ma reportagem, disse ele. Foi amável, mas terminante: enquanto ele estivesse encarregado do posto ninguém se asilava naquela Embaixada, não era como na do México, lá as pessoas entravam quando lhes apetecia, era só questão de falar ao mordomo. Percebi. Devolveu-me os papéis, despedimo-nos com um aperto de mão, avisou-me que não me metesse em sarilhos, e dali fui directamente para a Embaixada do México, onde já havia centenas de asilados, mas a hospitalidade asteca sempre dava para mais um.
Cedo vim a saber que algumas povoações periféricas estavam cercadas pelo Exército, noutras o toque de recolher era por metade do dia; havia muita gente a passar fome. Os soldados entravam com tanques, cercavam as casas e obrigavam toda a gente a sair; aos homens de mais de catorze anos levavam-nos para o pátio da escola ou para o campo de futebol, que em geral não passava de um terreno vago com umas marcas de giz, e depois de os espancar metodicamente à vista das mulheres e das crianças, tiravam alguns à sorte e levavam-nos. Alguns regressavam a contar pesadelos e a mostrar marcas de tortura; os corpos destroçados de outros eram lançados de noite nas lixeiras, para que os outros ficassem a saber a sorte dos subversivos. Em certas vizinhanças a maioria dos homens tinha desaparecido, as famílias ficaram sem amparo. Fiquei encarregada de juntar alimentos e dinheiro para sopas de pobres organizadas pela Igreja para dar uma refeição quente aos mais novinhos. O espectáculo dos irmãos mais velhos à espera da rua com a barriga vazia, na esperança de que sobejassem alguns pães, ficou-me para sempre gravado na memória. Arranjei audácia para pedir; os meus amigos negavam-se ao telefone e julgo que se escondiam mal me viam aparecer. Pela calada, o meu avô dava-me o que podia, mas não queria saber o que eu fazia ao dinheiro. Assustado, entrincheirou-se diante da televisão entre as paredes da casa, mas as más notícias entravam pelas janelas, brotavam como musgo pelo cantos, era impossível evitá-las. Não sei se Vovô tinha tanto medo por saber mais do que aquilo que confessava ou porque os seus oitenta anos de experiência lhe tinham ensinado as infinitas possibilidades da maldade humana. Para mim foi uma surpresa descobrir que o mundo é violento e predador, regido pela lei implacável dos mais fortes. A selecção da espécie não serviu para que floresça a inteligência ou de desenvolva o espírito, na primeira oportunidade destruímo-nos uns aos outros como ratazanas prisioneiras numa caixa demasiado estreita.
Pus-me em contacto com um sector da Igreja Católica, o que de certo modo me reconciliou com a religião, da qual me afastara totalmente havia quinze anos. Até então eu sabia de dogmas, ritos, culpa e pecados, do Vaticano que governava os destino de milhões de fiéis no mundo, e da Igreja oficial, sempre ao lado dos poderosos, apesar das suas encíclicas sociais. Ouvira vagamente falar da Teologia da Libertação e dos movimentos de padres-operários, mas não conhecia a Igreja militante, os milhares e milhares de cristãos dedicados a servir os mais necessitados, na humildade e no anonimato. Eles constituíam a única organização capaz de ajudar os perseguidos através do Vigariato da Solidariedade, criado para esse fim pelo Cardeal nos primeiros dias da ditadura. Um numeroso grupo de sacerdotes e freiras iriam arriscar as suas vidas durante dezassete anos para salvar as de outrem de denunciar os crimes. Foi um padre que me indicou os caminhos mais seguros para o asilo político. Algumas das pessoas que ajudei a saltar o muro acabaram em França, na Alemanha, na Suécia, no Canadá ou nos países escandinavos, que acolheram centenas de refugiados chilenos. Uma vez lançada nessa direcção foi impossível retroceder, porque um caso conduzia a outro e mais outro, e assim me comprometi em actividades clandestinas, escondendo ou transportando gente, transmitindo informações que outros obtinham sobre os torturados ou desaparecidos, e cujo destino final era a Alemanha, onde eram publicadas, e gravando entrevistas com vítimas para manter um registo do que se passava no Chile, tarefa que vários jornalistas assumiram nesses tempos. Não suspeitava então que passados oito anos utilizaria esse material para escrever dois romances. A princípio não medi o perigo e actuava em pleno dia, no bulício do centro de Santiago, durante um Verão quente e um Outono dourado; foi só em meados de 1974 que me apercebi dos riscos. Sabia tão pouco acerca dos mecanismos do terror, que levei muito tempo a aperceber-me dos sinais premonitórios; nada indicava que existisse um mundo paralelo na sombra, uma cruel dimensão da realidade. Sentia-me invulnerável. As minhas motivações não eram heróicas, nem pouco mais ou menos, apenas compaixão por aquela gente desesperada e, devo admiti-lo, Lima atracção irresistível pela aventura. Nos momentos de maior perigo lembrava-me do conselho do tio Ramón na noite do meu primeiro baile: lembramos que os outros têm mais medo que tia...
Nessa época de incerteza revelou-se o verdadeiro rosto das pessoas; os dirigentes políticos mais combativos foram os primeiros a sumir-se no silêncio ou a fugir do país, pelo contrairia outras pessoas que tinham levado uma existência sem alardes, demonstraram uma coragem extraordinária. Eu tinha um bom amigo, psicólogo sem trabalho que ganhava a lapida como fotógrafo na revista, um homem doce e um tanto ingénuo com o qual as crianças e eu partilhávamos os domingos familiares e ao qual nunca antes ouvira dizer uma palavra sobre política. Eu chamava-lhe Francisco, embora ele tivesse outro nome, e passados nove anos serviu-me de modelo para o protagonista em De Amor e de Sombra. Estava ligado a grupos religiosos porque o irmão era padre-operário e foi através dele que soube das atrocidades que se cometiam no país; várias vezes se expôs para ajudar o próximo. Em passeios secretos até ao Cerro San Cristóbal, onde pensávamos que ninguém podia ouvir-nos, contava-me as notícias. Em certas ocasiões colaborei com ele e noutras tive de agir sozinha. Tinha elaborado um plano bastante grosseiro para os primeiros encontros, que em geral eram os únicos: estabelecíamos a hora, cai passava muito devagar dando a volta à Praça de Itália no meu inconfundível veículo, captava um rápido sinal, parava tini instante e alguém entrava rapidamente no carro. Nunca soube os nomes nem as histórias que Ocultavam aqueles pálidos semblantes e aquelas mãos frementes, porque o combinado era trocar o mínimo de palavras, eu ficava-me com um beijo na face e um obrigado dito a meia voz e não voltava mais a saber dessa Pessoa. Quando havia crianças era mais difícil. Tive conhecimento de um bebé que introduziram numa embaixada para se reunir aos pais, adormecido com um sonífero e escondido no fundo de um cesto com alfaces para iludir a vigilância da porta.
Michael conhecia as minhas actividades e nunca se opôs, mesmo que se tratasse de esconder alguém lá em casa. Prevenia-me serenamente contra os riscos, um pouco intrigado por me caírem tantos casos nas mãos, ao passo que ele raramente sabia de alguma coisa. Não sei, suponho que o meu oficio de jornalista teve algo a ver com isso, andava pelas ruas a falar com as pessoas, ao passo que ele circulava entre empresários, a casta que mais beneficiou com a ditadura. Apareci uma vez no restaurante onde ele almoçava todos os dias com os sócios da empresa de construções, para lhes dizer que só num almoço eles gastavam o suficiente para alimentar vinte crianças do refeitório dos padres durante um mês e pedi-lhes que um dia por semana comessem uma sanduíche no escritório e me dessem o dinheiro poupado. Um espanto glacial acolheu as minhas palavras, o próprio criado de mesa se deteve petrificado com a bandeja na mão, e todos os olhares se voltaram para Michael, julgo que perguntando que espécie de homem era aquele, incapaz de controlar a insolência da mulher. O director da empresa tirou os óculos, limpou-os lentamente com um lenço e a seguir preencheu-me um cheque de uma soma dez vezes maior do que eu tinha pedido. Michael não voltou a almoçar com eles e com esse gesto deixou clara a sua posição. Para ele, criado na rigidez dos sentimentos mais nobres, era difícil acreditar nas histórias espantosas que eu lhe contava ou imaginar que podíamos morrer todos, incluindo as crianças, se algum daqueles infelizes que passavam pelas nossas vidas era preso e confessava sob tortura ter estado sob o nosso tecto. Chegavam até nos boatos arrepiantes, mas graças a um misterioso mecanismo da mente, que por vezes se recusa a ver aquilo que é óbvio, punhamo-los de lado considerando-os com exageros, até deixar de ser possível continuar a ignorá-los. De noite acontecia-nos acordar em suor porque um carro parava na rua durante o recolher, ou porque tocava o telefone e ninguém respondia, mas na manhã seguinte surgia o sol, os meninos e o cão vinham para a nossa cama, fazíamos café e a vida recomeçava como se tudo corresse normalmente. Passaram meses antes das evidências serem irrefutáveis e o medo acabar por nos paralisar. Como pôde mudar tudo tão súbita e completamente? Como se distorceu a realidade daquela maneira? Fomos todos cúmplices, a sociedade inteira enlouquecera. O diabo no espelho... As vezes, quando estava sozinha nalgum lugar secreto do Cerro de San Cristóbal com algum tempo para pensar, voltava a ver a agua negra dos espelhos da minha infância nos quais Satanás aparecia de noite, e ao inclinar-me para o vidro verificava aterrada que o Mal tinha o meu próprio rosto. Não estava limpa, ninguém estava, dentro de cada um de nós havia um monstro oculto, todos tínhamos um lado obscuro e malvado. Naquelas condições, poderia eu também torturar e matar? Digamos, por exemplo, que alguém fizesse mal aos meus filhos... de quanta crueldade seria eu capaz nesse caso? Os demónios tinham escapado dos espelhos e andavam à solta pelo mundo.
Nos finais do ano seguinte, quando o país estava completamente subjugado, pôs-se em prática um sistema de capitalismo puro que favorecia principalmente os empresários, porque os trabalhadores tinham perdido os seus direitos, e que só conseguiu implantar-se mediante o emprego da força. Não se tratava da lei da oferta e da procura, como diziam os jovens ideólogos da direita, dado que a força laboral estava reprimida e à mercê dos patrões. Acabaram-se as previsões sociais que o povo tinha conseguido décadas antes, foi abolido o direito de reunião e de greve, os dirigentes operários desapareciam ou eram assassinados. As empresas, lançadas numa correria de concorrência impiedosa, exigiam dos trabalhadores o máximo rendimento pelo mínimo salário. Havia tanta gente no desemprego a fazer bichas às portas das indústrias para pedir emprego, que a mão-de-obra se obtinha a preços de escravatura. Ninguém se atrevia a protestar pois no melhor dos casos perdia o lugar, mas também podia ser acusado de comunista ou de subversivo e acabar numa cela de tortura da polícia política. Criou-se um aparente milagre económico com um grande custo social, nunca se vira no Chile tamanha exibição desavergonhada de riqueza, nem tanta gente a sobreviver numa pobreza extrema. Michael, como gerente administrativo teve de despedir centenas de operários; chamava-os ao seu gabinete seguindo uma lista para lhes anunciar que a partir do dia seguinte não se apresentassem ao trabalho e explicar-lhes que, de acordo com os novos regulamentos, tinham perdido o direito de receber indemnizações. Sabia que cada um daqueles homens tinha família e que lhe seria impossível encontrar outro emprego, aquele despedimento equivalia a uma sentença irrevogável de miséria. Regressava a casa desmoralizado e triste, em poucos meses emagreceu e a cabeça ficou-lhe cheia de brancas. Um dia reuniu os sócios da empresa para lhes dizer que as coisas estavam a atingir limites obscenos, que os seus capatazes ganhavam o equivalente a três litros de leite por dia. Responderam-lhe com uma gargalhada que isso não tinha importância porque “de qualquer maneira essa gente não bebe leite”. Nessa altura já eu perdera o meu programa vigiada por um guarda armado de metralhadora no estúdio. Não só a censura me impedia de trabalhar, em breve me apercebi de que convinha à ditadura que alguém da família Allende fizesse humor na televisão, não havia melhor prova de normalidade no país. Demiti-me. Sentia-me observada, o medo fazia-me passar as noites em branco, cobriu-se-me a pele de crostas que eu coçava até sangrar. Muitos dos meus amigos partiram para o estrangeiro, alguns desapareceram e ninguém voltou a falar neles, como se nunca tivessem existido. Numa tarde veio visitar-me um desenhador, que eu não via há meses, e a sós comigo tirou a camisa e mostrou-me umas cicatrizes ainda frescas. Tinham-lhe gravado à faca nas costas o A de Allende. Da Argentina a minha mãe implorava-me que tivesse cautela e não fizesse ondas para não provocar uma desgraça. Não podia esquecer as profecias de Maria Teresa Juarez, a vidente; e pensava que tal como tinha ocorrido o banho de sangue anunciado por ela, também se podia cumprir aquele vaticínio de imobilidade ou paralisia que ela tinha feito. Não se trataria de anos de prisão? Comecei a encarar a possibilidade de sair do Chile, mas não me atrevi a manifestá-la em voz alta, porque me parecia que ao traduzi-la em palavras podia pôr em marcha as engrenagens de uma máquina implacável de morte e destruição. Ia amiudados vezes vaguear pelos atalhos do Cerro San Cristóbal, os mesmos que muitos anos atrás percorria durante os piqueniques familiares, escondia-me entre as árvores para gritar com uma dor de lança cravada no peito; outras vezes metia uma merenda e uma garrafa de vinho numa cesta e partia monte acima com o Francisco, que tentava inutilmente ajudar-me com os seus conhecimentos de psicólogo. Apenas com ele podia falar das minhas actividades clandestinas, dos meus temores e dois desejos inconfessáveis de escapar. Estás doida, replicava ele, tudo é melhor que o exílio, como podes deixar a tua casa, os teus amigos, a tua pátria?
Os meus filhos e a Granny foram os primeiros a aperceber-se do meu estado de alma. A Paula que era nessa altura uma menina sábia de onze anos, e o Nicolás, que tinha menos três, perceberam que à sua volta engrossava o medo e a pobreza como um caudal incontrolável. Tornaram-se silenciosos e prudentes. Souberam que o marido de uma professora do colégio, um escultor que antes do Golpe Militar fizera um busto de Salvador Allende, fora preso por três homens não identificados que entraram na sua oficina a partir tudo e o levaram. Desconhecia-se o seu paradeiro e a esposa não se atrevia a mencionar aquela desgraça para não perder o emprego, era a época em que ainda se pensava que se uma pessoa desaparecia certamente era culpada. Não sei como o souberam os meus filhos e falaram comigo nessa noite. Tinham ido visitar a professora, que vivia a pouca distância da nossa casa, e encontraram-na envolta em xailes e às escuras, porque não podia pagar as contas da electricidade nem comprar parafina para as braseiros, mal lhe chegava o ordenado para alimentar os três filhos e tivera de os tirar da escola. Queremos dar-lhes as nossas bicicletas porque não têm dinheiro para o autocarro, anunciou-me a Paula. Assim fizeram e a partir desse dia as suas idas e vindas misteriosas aumentaram, ela já não limitava a esconder as garrafas da avó e a levar presentes aos velhotes da residência geriátrica, mas também metia na sacola boiões de conservas e pacotes de arroz para a professora. Meses depois, quando o escultor regressou a casa depois de ter sobrevivido à tortura e à prisão, fez um Cristo na Cruz em ferro e bronze e ofereceu-o aos garotos. Desde então o Nicolás tem-no sempre pendurado na parede ao pé da cama.
Os meus filhos não repetiam nada do que se falava em família, nem mencionavam os desconhecidos que às vezes passavam lá por casa. Nicolás começou a molhar a cama de noite, acordava envergonhado, vinha cabisbaixo até ao meu quarto e abraçava-se a mim, a tremer. Devíamos dar-lhe mais carinho do que nunca, mas o Michael andava acabrunhado com os problemas dos seus operários e eu vivia a correr de um trabalho para outro, a visitar povoações de pobres, a esconder pessoas, e com os nervos em franja; julgo que nenhum dos dois pudemos garantir aos meninos a segurança ou o consolo de que precisavam. Entretanto a Granny era despedaçado por forças postas, por um lado o marido enaltecia a fanfarronice de ditadura, e pelo outro nós contávamos-lhe coisas da repressão, a sua inquietude transformou-se em pânico, o seu pequeno mundo estava ameaçado por forças de um furacão. Tem cautela, dizia-me constantemente sem saber ela própria a que se referia, porque a sua mente se recusava a aceitar os perigos que o seu coração de avó lhe ditavam. Toda a sua existência girava em torno daqueles dois netos. Mentiras, são tudo mentiras do comunismo soviético para desprestigiar o Chile, dizia-lhe o meu sogro quando ela se referia aos funestos rumores que infectavam o ar. Tal como os meus filhos fizeram, ela acostumou-se a calar as suas dúvidas e a evitar comentários que pudessem atrair a desgraça.
Um ano depois do Golpe a junta Militar fez assassinar em Buenos Aires o general Prats porque julgou que desde lá o antigo Chefe das Forças Armadas podia encabeçar uma revolta de militares democráticos. Também se temia que Prats publicasse as suas memórias revelando a traição dos generais; na altura fora difundida a versão oficial dos acontecimentos de 11 de Setembro, justificando os factos e exaltando até ao heroísmo a imagem de Pinochet. Mensagens telefónicas e bilhetes anónimos tinham prevenido o general Prats de que a sua vida corria perigo. O tio Ramón, de quem se suspeitava possuir cópias das memórias do general, foi também ameaçado nos mesmos dias, mas no fundo não acreditou. Prats, ao contrário, conhecia bem os métodos dos seus colegas e sabia que na Argentina começavam a actuar os esquadrões da morte, que mantinham com a ditadura chilena um horrendo tráfico de corpos, prisioneiros e documentos de identidade dos desaparecidos. Tentou em vão obter um passaporte para abandonar aquele país e ir para a Europa; o tio Ramón falou com o Embaixador do Chile, antigo funcionário que fora seu amigo durante muitos anos, para lhe pedir que ajudasse o general desterrado, mas enredaram-no em promessas que nunca foram cumpridas. Um pouco antes da meia-noite de 29 de Setembro de 1974 explodiu uma bomba no automóvel da família Prats ao regressarem a casa depois de jantarem com os meus pais. A potência da explosão lançou pedaços de metal candente a cem metros de distância, fez em migalhas o general e matou a mulher numa fogueira infernal. Passados alguns minutos congregaram-se no local da tragédia jornalistas chilenos que chegaram antes da polícia argentina, como se estivessem à espera do atentado ao voltar da esquina.
O tio Ramón telefonou-me às duas da manhã para me pedir que avisasse as filhas dos Prats e para me anunciar que saíra de sua casa com a minha mãe e se encontravam escondidos em sítio secreto. No dia seguinte apanhei um avião com destino a Buenos Aires numa estranha missão às cegas, porque não sabia onde poderia encontrá-los. No aeroporto saiu-me ao encontro um homem muito alto, pegou-me por um braço e levou-me quase de rastos até um carro preto que esperava à porta. Não tenhas medo, sou um amigo, disse-me ele num espanhol com forte pronúncia alemã, e havia tanta bondade nos seus olhos azuis, que acreditei nele. Era um checoslovaco, representante das Nações Unidas, que estava a negociar a forma de levar os meus pais para um lugar mais seguro, onde o longo braço do terror os não alcançasse. Levou-me a vê-los a um apartamento no centro da cidade, onde fui encontrá-los calmos a organizarem a fuga. Olha de que são capazes esses assassinos, filha, tens de sair do Chile, rogou-me uma vez mais a minha mãe. Não tivemos muito tempo para estar juntos, mal conseguiram contar-me o sucedido e dar-me conta dos seus propósitos, nesse mesmo dia o amigo checo conseguiu fazê-los sair do país. Despedimo-nos num abraço desesperado, sem saber se voltaríamos a ver-nos. Continua a escrever-me todos os dias e guarda essas cartas à espera de haver uma direcção para mas enviar, disse a minha mãe no último momento. Protegida pelo homem alto dos olhos compassivos, permaneci naquela cidade para embalar móveis, pagar contas, entregar o apartamento que meus pais tinham alugado e obter autorização para levar comigo a cadela suíça, que ficara meio aluada com a bomba que explodira na Embaixada. Esse animal acabou por ser a única companhia da Granny, quando todos os outros tivemos que abandoná-la.
Poucos dias depois, em Santiago, na residência do Comandante-Chefe onde tinham morado os Prats até terem de demitir-se do cargo, a mulher de Pinochet viu o General Prats em plena luz do dia sentado à mesa da casa de jantar, de costas para a janela, iluminado por um tímido sol de Primavera. Passado o primeiro sobressalto, percebeu que era uma visão de má consciência e não lhe ligou importância de maior, mas nas semanas seguintes o fantasma do amigo traído voltou muitas vezes, aparecia de corpo inteiro nos salões, descia com passo forte a escadaria e aparecia às portas, até que a sua obstinada presença se tornou insuportável. Pinochet mandou construir um gigantesco bunker rodeado por um muro de fortaleza capaz de o proteger dos seus inimigos vivos e mortos, mas os encarregados da sua segurança descobriram que era um alvo fácil para bombardear de cima. Então, mandou reforçar os muros e blindar as janelas da casa embruxada, duplicou os guardas armados, instalou ninhos de metralhadoras à sua volta e bloqueou a rua para que ninguém se pudesse aproximar. Não sei como é que o general Prats consegue iludir tamanha vigilância...
Em meados de 1975 a repressão tinha-se aperfeiçoado e eu acabei por ser vítima do meu próprio terror. Tinha medo de utilizar o telefone, censurava as cartas para a minha mãe para o caso de serem abertas no correio, e media os meus comentários inclusivamente no seio da minha família. Amigos relacionados com os militares tinham-me avisado que o meu nome fazia parte das listas negras e pouco tempo depois recebemos duas ameaças de morte pelo telefone. Eu sabia de gente que se ocupava a incomodar pelo gosto de semear o pânico e talvez não tivesse dado ouvidos a essas vozes anónimas, mas depois do que acontecera aos Prats e da milagrosa fuga dos meus pais, não me sentia segura. Unia tarde de Inverno fui com o Michael e os meninos ao aeroporto para nos despedirmos de uns amigos que, como tantos outros, tinham optado por partir. Tinham sabido que na Austrália ofereciam terrenos aos novos emigrantes e decidiram tentar a sorte como fazendeiros. Olhávamos para o avião que descolava, quando uma mulher desconhecida se aproximou de mim e perguntou-me se eu era a tal da televisão; insistia para que a acompanhasse porque tinha uma coisa para me dizer em privado. Sem me dar tempo de reagir pegou-me no braço em direcção à casa de banho e, uma vez a sós, tirou da mala um envelope e meteu-mo na mão.
- Entrega isto, é um caso de vida ou de morte. Tenho de embarcar no próximo avião, o meu contacto não apareceu e eu não posso esperar mais - disse ela. Fez-me repetir duas vezes a morada, para estar certa de que eu a decorara, e foi-se logo embora a correr.
- Quem era? - perguntou o Michael ao ver-me sair da casa de banho.
- Não faço ideia. Pediu-me para entregar isto, disse que é muito importante.
- O que é? Porque o recebeste? Pode ser uma armadilha...
Todas essas perguntas e outras que nos ocorreram depois deixaram-nos boa parte da noite sem dormir, não queríamos abrir o envelope porque era preferível não saber o conteúdo dele, não nos atrevíamos a levá-lo à morada indicada pela mulher e também não podíamos destruí-lo. Nessas horas julgo que o Michael percebeu que eu não procurava problemas, mas que eles vinham ao meu encontro. Conseguimos finalmente ver como a realidade se distorcera, se um recado tão simples como entregar uma carta nos podia custar a vida e se o tema da tortura e da morte fazia parte da conversa quotidiana como uma coisa plenamente aceite. Ao amanhecer abrimos um mapa-mundo sobre a mesa da casa de jantar para vermos para onde ir. Na altura metade da população da América Latina vivia sob ditaduras militares; com o pretexto de combater o comunismo as Forças Armadas de vários países tinham-se transformado em mercenários das classes privilegiadas e em instrumentos de repressão para com os mais pobres. Na década seguinte os militares levaram a cabo uma guerra sem tréguas contra os seus próprios povos, morreram, desapareceram e exilaram-se milhões de pessoas, não se tinha visto no continente um movimento tão vasto de massas humanas a cruzarem fronteiras. Nesse amanhecer descobri com o Michael que restavam poucas democracias aonde procurar refúgio e que, em várias delas, como o México, a Costa Rica ou a Colômbia, já não outorgavam vistos aos chilenos porque no último ano e meio tinha emigrado demasiada gente. Mal foi levantado o recolher deixámos os meninos com a Granny, demos algumas instruções para o caso de não regressarmos, e fomos entregar o envelope na morada indicada. Tocámos à campainha de uma casa velha numa rua do centro, abriu-nos um homem com blue-jeans e verificámos com profundo alívio que tinha uma gola de sacerdote. Reconhecemos a sua pronúncia belga porque tínhamos vivido nesse país.
Depois de fugirem da Argentina, o tio Ramón e a minha mãe viram-se sem sítio para se estabelecer e durante meses tiveram de aceitar a hospitalidade de amigos no estrangeiro, sem lugar onde desfazer definitivamente as malas. De repente, a minha mãe lembrou-se do venezuelano que conhecera no hospital geriátrico da Roménia e, seguindo um impulso do coração, procurou o cartão de visita que tinha conservado todos aqueles anos e telefonou-lhe para Caracas contando-lhe o sucedido em poucas palavras. Anda, rapariga, aqui há lugar para todos, foi a resposta imediata de Valentin Hernandez. Isso deu-nos a ideia de nos instalarmos na Venezuela, imaginámos que era um país verde e generoso, onde contávamos com um amigo e podíamos ficar uns tempos, até mudar a situação no Chile. O Michael e eu começámos a planificar a viagem, tínhamos de alugar a nossa casa, vender os móveis e arranjar trabalho, mas tudo se precipitou em menos de uma semana. Nessa quarta-feira os meninos voltaram do colégio aterrorizados; uns desconhecidos tinham-nos agredido na rua e depois de ameaçá-los deram-lhe uma mensagem para mim: digam à puta da vossa mãe que ela tem os dias contados.
No dia seguinte vi o meu avô pela última vez. Lembro-me dele como sempre no cadeirão que lhe comprei há muitos anos num leilão, com a sua cabeleira prateada e sua bengala de camponês na mão. Em jovem deve ter sido alto, porque quando estava sentado ainda o parecia, mas com a idade deformaram-se-lhe os pilares do corpo e abateu como um edifício com os alicerces minados. Não consegui despedir-me dele, não tive coragem para lhe dizer que me ia embora, mas suponho que ele o pressentiu.
- Tenho uma inquietude há muito tempo, Vovô... Alguma vez matou um homem?
- Porque me faz uma pergunta tão descabelada?
- Porque o senhor tem mau feitio - insinuei, pensando no corpo do pescador de borco na areia, nos remotos tempos dos meus oito anos.
- Nunca me viu empunhar uma arma, não é verdade? Tenho boas razões para desconfiar delas - disse o velho. - Quando era novo acordei numa madrugada com uma pancada na janela do meu quarto. Saltei da cama, peguei no meu revólver e ainda meio a dormir cheguei à janela e apertei o gatilho. Acordou-me de todo o ruído do tiro e então apercebi-me, atónito, que tinha disparado contra uns estudantes que regressavam de uma festa. Um deles tocara na persiana com o guarda-chuva. Graças a Deus não o matei, salvei-me por um fio de assassinar um inocente. A partir de então as armas de caça estão na garagem. Há muitos anos que não as uso.
Era verdade. Penduradas num dos pilares da sua cama havia umas boleadoras como as que usam os gaúchos argentinos, duas bolas de pedra ligadas por uma comprida correia de cabedal, que ele mantinha à mão para o caso de alguém entrar para roubar.
- Nunca usou as boleadoras ou um sarrafo para matar alguém? Alguém que o ofendeu ou fez mal a um membro da sua família?
Não sei de que diabo está a falar, filha. Este país está cheio de assassinos, mas eu não sou um deles. Era a primeira vez que se referia à situação em que vivíamos no Chile, até então limitara-se a ouvir em silêncio e com os lábios apertados as histórias que eu lhe contava. Pôs-se de pé com um restolhar de ossos e de maldições, custava-lhe muito a andar mas ninguém se atrevia a mencionar na sua presença a hipótese de uma cadeira de rodas, e fez-me sinal para o seguir. Nada tinha mudado naquele quarto desde que a minha avó morrera, os móveis pretos tinham a mesma disposição, com o relógio de charão e o cheiro a sabonetes ingleses que guardava no armário. Abriu a secretária COM uma chave que trazia sempre no colete, procurou numa das gavetas, tirou Lima velha caixa de bolachas e passou-ma para as mãos.
- Isto era da sua avó, agora é seu - disse ele com a voz embargada.
- Tenho de lhe confessar uma coisa, Vovô...
- Vai-me dizer que me roubou o espelho de prata da Vovô...
- Como soube que fui eu?
- Porque a vi, Tenho o sono ligeiro. já que tem o espelho, pode muito bem ficar com o resto. É tudo o que ficou da Vovó mas eu não preciso dessas coisas para a recordar e prefiro que estejam nas suas mãos, porque quando eu morrer não (lucro que as atirem para o lixo.
- Não pense na morte, Vovô.
- Na minha idade não se pensa noutra coisa. De certeza que morro sozinho, como um cão. Eu estarei consigo.
- Oxalá não se esqueça que me fez uma promessa. Se está a pensar em ir para algum sítio, lembre-se de que quando chegar o momento tem de me ajudar a morrer com decência.
- Eu não esqueço, Vovô, não se preocupe.
No dia seguinte embarquei sozinha para a Venezuela. Não sabia que não voltaria a ver o meti avô. Passei pelas formalidades do aeroporto com as relíquias da Vovó apertadas ao peito. A caixa de bolachas continha os restos de uma coroa de flores de laranjeira em cera, unias luvas de criança de camurça da cor da moda nesse tempo, e um livro de orações muito gasto com capas de nacre. Levava também um saquinho de plástico com um punhado e terra do nosso jardim, com a ideia de plantar malmequeres noutras paragens. O funcionário que examinou o meu passaporte olhou para os carimbos de entradas e saídas frequentes para a Argentina e o meu cartão de jornalista, e como julgo que não encontrou o meu nome na sua lista, deixou-me passar. O avião descolou através de um colchão de nuvens e passados uns minutos atravessava por sobre os picos nevados da cordilheira dos Andes. Aqueles cumes brancos que surgiam de entre as nuvens de Inverno foram a última imagem que me ficou da minha pátria. Voltarei, voltarei, repetia eu como numa oração.
A minha neta Andrea nasceu na sala da televisão, num dos primeiros dias cálidos da Primavera. O apartamento de Célia e Nicolás fica num terceiro andar sem elevador; não é prático em caso de urgência, por isso escolheram o nosso rés-do-chão para trazer a criatura ao mundo, nunca sala grande com portas-janelas que dão para o terraço, onde decorre a vida quotidiana; em dias claros podem ver-se três pontes na baía e de noite piscam na outra margem das águas as luzes de Berkeley. A Célia adaptou-se tanto ao estilo da Califórnia, que decidiu aplicar a música do universo até às últimas consequências, pondo de parte o hospital e os médicos para dar à luz em família. Os primeiros sintomas começaram à meia-noite, ao amanhecer a Célia encontrou-se subitamente encharcada em águas amnióticas e pouco depois desceram para a nossa casa. Vi-os aparecer com o ar ofuscado das vítimas de catástrofes naturais, de chinelas, com um velho saco preto com os pertences e com o Alejandro nos braços, em pijama e ainda meio a dormir. O garoto não suspeitava que dali a poucas horas teria de partilhar o seu espaço com uma irmã e acabaria para sempre o seu reino totalitário de filho e neto único. Duas horas depois chegou a parteira, uma mulher nova, disposta a correr o risco de trabalhar a domicílio, conduzindo uma carrinha carregada com o equipamento do seu ofício, e vestida de marchante com calções curtos e sapatos de ginástica. Integrou-se tão bem na rotina familiar, que dali a pouco estava na cozinha a fazer o pequeno-almoço com o Willie. Entretanto Célia passeavam sem perder a calma amparada por Nicolás, respirando curto quando a dor a fazia dobrar, e descansando quando a criatura no seu ventre lhe dava tréguas. A minha nora transporta nas veias canções secretas que marcam o ritmo dos seus passos ao andar, durante as contracções arfava e mexia-se como se ouvisse lá dentro uma irresistível bateria venezuelana. Para o final pareceu-me que em certos momentos apertava os punhos e uma rajada de terror passava-lhe pelos olhos, mas o marido encontrava-lhe logo o olhar, sussurrava-lhe qualquer coisa no código privado dos noivos e ela afrouxava a tensão. Assim passou o tempo, vertiginoso para mim e muito lento para ela, que suportou a prova sem um queixume, calmantes ou anestesia. Nicolás amparou-a, a minha humilde participação consistiu em dar-lhe gelo picado e sumo de maça, e a de Willie em entreter o Alejandro, enquanto a uma distância prudente a parteira acompanhava os acontecimentos sem intervir e eu recordava a minha própria experiência, tão diferente desta, quando nasceu o Nicolás. Desde o momento em que entrei no hospital perdi o meu sentido de identidade e passei a ser uma paciente sem nome, apenas um número. Despiram-me, puseram-me uma bata aberta pelas costas e levaram-me para um sítio isolado, onde fui submetida a algumas humilhações adicionais e depois fiquei sozinha. De vez em quando alguém explorava entre as minhas pernas, o meu corpo convertera-se numa única caverna palpitante e dorida; passei um dia, uma noite e boa parte do dia seguinte naquela laboriosa tarefa, cansada e semimorta de medo, até que finalmente me anunciaram que se aproximava o desenlace e me levaram para uma enfermaria. De costas em cima de uma mesa metálica, com os ossos feitos em cinza e cega com as luzes, abandonei-me ao sofrimento. já nada dependia de mim, o bebé esbracejava para sair e as minhas nádegas abriam-se para o ajudar sem intervenção da minha vontade. Tudo o que aprendera nos manuais e nos cursos prévios não me serviu de nada. Há um momento em que a viagem iniciada não se pode deter, rodamos em direcção a uma fronteira, passamos através de uma porta misteriosa e amanhecemos no outro lado, noutra vida. A criança entra no mundo e a mãe noutro estado de consciência, nenhuma das duas volta a ser a mesma. Com o Nicolás iniciei-me no universo feminino, a cesariana anterior tinha-me privado de um ritual único que só as fêmeas dos mamíferos partilham. O alegre processo de gerar um filho, a paciência na sua gestação, a força para trazê-lo à vida e o sentimento de profundo espanto em que culmina, só posso compará-lo ao de criar um livro. Os filhos, como os livros, são viagens ao interior de nós próprias, nas quais o corpo, a mente e a alma mudam de direcção, regressam ao próprio centro de existência.
O clima de tranquila alegria que reinava na nossa casa quando nasceu Andrea não se parecia nada com a minha angústia naquele pavilhão da maternidade vinte e cinco anos antes. A meio da tarde a Célia fez um sinal, Nicolás ajudou-a a subir para a cama e em menos de um minuto materializaram-se no quarto os aparelhos e instrumentos que a parteira trouxera na carrinha. Aquela rapariga de calções curtos pareceu envelhecer de repente, mudou-se-lhe o tom de voz e milénios de experiência feminina reflectiram-se no seu rosto sardento. Lave as mãos e prepare-se, agora é a vez de a senhora trabalhar, disse-me a piscar o olho. Célia abraçou-se ao marido, apertou os dentes e empurrou. E então, entre uma vaga de sangue surgiu um cabeça coberta de cabelo escuro e um pequeno rosto achatado e purpuríneo, em que peguei como num cálice com uma mão, enquanto com a outra desprendia com um gesto rápido o cordão azulado que lhe envolvia o pescoço. Com outro empurrão brutal da mão apareceu o resto do corpo da minha neta, um embrulho ensanguentado e frágil, o mais extraordinário presente. Num soluço abissal senti no centro do meu ser a experiência sagrada de dar à luz, o esforço, a dor, o pânico e agradeci maravilhada a heróica coragem da minha nora e o prodígio do seu corpo sólido e do espírito nobre, feitos para a maternidade. Através de um véu no olhar pareceu-me ver o Nicolás comovido a pegar na criatura que eu tinha nas mãos para a poisar no regaço da mãe. Ela soergueu-se nas almofadas, a arfar, inundada de suor e transformada por uma luz interior. Indiferente totalmente ao resto do seu corpo que continuava a pulsar e a sangrar, apertou a filha nos braços e, inclinada para ela, deu-lhe as boas-vindas com uma cascata de palavras doces numa linguagem acabada de inventar, beijando-a e cheirando-a como fazem todas as fêmeas, e pô-la de encontro ao peito no gesto mais antigo da humanidade. O tempo cristalizou no quarto e o sol parou sobre as rosas do terraço, o mundo susteve o alento para celebrar o prodígio daquela nova vida. A parteira deu-me uma tesoura, cortei o cordão umbilical e a Andrea iniciou o seu destino separada de sua mãe. Donde vem esta criança? Onde estava antes de germinar no ventre da Célia? Tenho mil perguntas para lhe fazer, mas temo que quando me puder responder já tenha esquecido como era o céu... Silêncio antes de nascer, silêncio depois da morte, a vida é um mero ruído entre dois
A Paula passou um mês na clínica de reabilitação, acabaram de a examinar por dentro e por fora e entregaram-nos um relatório demolidor. Michael chegou do Chile e o Ernesto também cá estava com uma licença especial do emprego. Conseguiu que a empresa o transferisse para Nova Iorque, pelo menos estamos no mesmo pais, a seis horas de distância num caso de emergência e com o telefone à mão de cada vez que a tristeza nos abata. Não estivera com a mulher desde que a trouxemos de Madrid naquela viagem de pesadelo e apesar de eu o manter informado de todos os pormenores, impressionou-o vê-la tão bela e tanto mais ausente. Este homem é como algumas árvores que aguentam ventos de furacão dobrando-se mas sem partir. Chegou com presentes para a Paula, entrou apressado no quarto, pegou-lhe com os braços e beijou-a murmurando quantas saudades tinha dela e que bonita estava, enquanto ela olhava fixamente em frente com os seus grandes olhos sem luz, como uma boneca. Depois recostou-se ao seu lado para lhe mostrar fotografias da lua-de-mel e lembrar-lhe os tempos felizes do ano passado acabaram ambos por adormecer, como um casal normal à hora de sesta. Rezo para que encontre uma mulher saudável, de alma bondosa como a Paula, e seja feliz longe daqui, não deve ficar preso a uma doente para o resto da vida; mas ainda não lhe posso falar disso, é demasiado cedo. Médicos e terapêuticas que trataram da Paula reuniram a família e apresentaram o seu veredicto: o seu nível de consciência é nulo, não há sinais de mudança nestas quatro semanas, não conseguiram estabelecer qualquer comunicação com ela e o mais realista é supor que o seu estado se vá deteriorando. Não voltará a falar nem a engolir, nunca poderá mover-se por vontade própria, é muito difícil que venha a reconhecer alguém, asseveram que a reabilitação é impossível mas que os exercícios são necessários para mantê-la flexível. Por último recomendaram que fosse colocada numa instituição para doentes deste tipo, porque necessita de cuidados permanentes e não pode ficar só nem um minuto. Seguiu-se um longo silêncio após as últimas palavras do relatório. Do outro lado da mesa estavam Nicolás e Célia com os meninos nos braços e o Ernesto com a cabeça entre as mãos.
- É importante decidir o que fazer em caso de pneumonia ou outra infecção grave. Optarão por um tratamento agressivo? - perguntou um dos médicos.
Nenhum de nós percebeu o que dissera.
- Se lhe administrarem doses maciças de antibióticos, ou a puserem nos Cuidados Intensivos de cada vez que isso aconteça, ela poderá viver muitos anos. Se não receber tratamento, morrerá antes - explicou.
Ernesto ergueu o rosto e os nossos olhos encontraram-se. Olhei também para o Nicolás e a Célia e sem hesitar nem trocar opiniões os três fizeram-me um gesto.
- A Paula não regressará à Unidade de Cuidados Intensivos, também não a vamos torturar com novas transfusões de sangue, drogas ou exames dolorosos. Se estiver em estado grave, estaremos ao seu lado para ajudá-la a morrer - disse eu, com uma voz tão firme, que não consegui reconhecê-la como minha.
O Michael saiu da sala desfeito e passados poucos dias regressou ao Chile. Naquele momento ficou claro que a minha filha voltaria para o meu regaço e seria eu só a responsável pela sua vida, e tomaria as decisões na altura da sua morte. As duas juntas e sós, como no dia do seu nascimento. Senti uma vaga de força a sacudir-me o corpo como uma descarga eléctrica e entendi que as vicissitudes do meu longo caminho foram uma feroz preparação para esta prova. Não estou derrotada, ainda me resta muito a fazer, a medicina ocidental não é a única alternativa para casos destes, vou bater a outras portas e recorrer a outros meios, inclusive os mais improváveis, para salvá-la. Desde o início que tive a ideia de a trazer para casa, por isso durante o mês em que esteve na clínica de reabilitação treinei-me nos seus tratamentos e na utilização dos aparelhos de fisioterapia. Em menos de três dias consegui ter o equipamento necessário, desde uma cama eléctrica até uma grua para a deslocar, e contratei quatro mulheres da América Central para me ajudarem em turnos de dia e de noite. Entrevistei quinze candidatos e escolhi as que me pareceram mais carinhosas, porque acabou a etapa da eficiência e entramos na do amor. Todas carregam com um passado trágico, mas conservam a frescura de um sorriso maternal. Uma delas tem as pernas e os braços marcados por navalhadas; assassinaram-lhe o marido em El Salvador e a ela deixaram-na como morta num charco de sangue, com os seus três filhos pequeninos. Lá conseguiu penosamente arrastar-se até encontrar ajuda e pouco depois fugiu do país, deixando os meninos com a avó. Outra vem da Nicarágua, não vê os cinco filhos há muitos anos, mas pensa trazê-los um por um, trabalha e poupa até ao último centavo para ficar com eles um dia. O primeiro piso da casa converteu-se no reino da Paula, mas também continua a ser a sala familiar, como antes, onde estão a televisão, a música e os jogos dos meninos. Nesta sala nasceu a Andrea há só uma semana e ali viverá a sua tia o tempo que queira permanecer neste mundo. Pelas portas-janelas avistam-se os gerânios do Verão e as rosas plantadas em barris, companheiras leais de muitas épocas de infortúnio. Nicolás pintou as paredes de branco, rodeámos a cama com fotografias dos seus anos felizes, de parentes e amigos, e pusemos numa estante a sua boneca de trapo. Torna-se impossível dissimular os enormes aparelhos que lhe são necessários, mas elo menos o quarto é mais acolhedor do que as enfermarias de hospital onde viveu nos últimos meses. Nessa manhã soalheira em que a minha filha chegou numa ambulância, a casa pareceu abrir-se alegremente para a acolher. Durante a primeira meia hora foi tudo actividade, ruídos e azáfama, mas de repente acabou-se o movimento, ela estava instalada na sua cama e começavam as rotinas, a família saiu para os seus afazeres, ficámos as duas sós e então reparei no silêncio e na calma da casa em repouso. Sentei-me a seu lado e peguei-lhe na mão. O tempo arrastava-se muito lento, foram passando as horas e vi mudarem as cores da baía, e depois foi o pôr do Sol e começou a descer a noite tardia de junho. Uma gata grande com manchas pardas, que eu não tinha visto antes, entrou pela porta-janela aberta, deu umas voltas pelo quarto a reconhecer o terreno e a seguir subiu de um pulo para a cama e deitou-se aos pés de Paula. Ela gosta de gatos, talvez a chamasse em pensamento para lhe vir fazer companhia. A corrida apressada da vida acabou para mim, entrei no ritmo da Paula, o tempo está parado nos relógios. Nada que fazer. Disponho de dias, semanas, anos junto à cama da minha filha, a fazer horas sem saber o que espero. Sei que nunca voltará a ser a mesma de antes, a sua mente partiu sabe-se lá para onde, mas o seu corpo e o seu espírito estão aqui. A inteligência era a sua característica mais deslumbrante, a sua bondade descobria-se ao segundo olhar, custa-me a crer que o seu cérebro privilegiado esteja reduzido a uma grande nuvem numa radiografia, que desapareceram para sempre a sua inclinação para os estudos, o seu sentido de humor, a sua memória para os mais pequenos pormenores. É como uma planta, disseram os médicos. A gata pode seduzir-me para eu lhe dar comida e a deixar dormir em cima da cama, mas a minha filha não me reconhece e não pode sequer apertar-me a mão para me indicar alguma coisa, Tentei ensiná-la a pestanejar, uma vez para o sim, duas para o não, mas foi tempo perdido. Ao menos tenho-a aqui comigo, a salvo nesta casa, protegida por todos nós. Ninguém voltará a devassá-la com agulhas e sondas, daqui em diante receberá unicamente carícias, música e flores. A minha tarefa é manter-lhe o corpo são e evitar-lhe dores, assim o seu espírito terá paz para cumprir o resto da sua missão na terra. Silêncio. Sobejam horas para nada fazer. Tomo consciência do meu corpo, da minha respiração, da forma como o meu peso se distribui na cadeira, a coluna vertebral sustenta-me e os músculos obedecem aos meus desejos. Decido, vou beber água, e o meu braço ergue-se e pega no copo com a força e a velocidade exactas; bebo e sinto os movimentos da língua e dos lábios, o sabor fresco na boca, o líquido frio a descer pela garganta. Nada disto pode fazer a minha pobre filha, se quer beber não pode pedir, têm de esperar que outra pessoa adivinhe a sua necessidade e acorra a injectá-la de água com uma seringa através do tubo inserido no seu estômago. Não sente o alívio da sede saciada, os seus lábios estão sempre secos, mas consegue humedecê-los um pouco, porque se eu lhos molho o líquido pode ir para os pulmões. Presas, presas as duas neste parêntese brutal. As minhas amigas recomendaram-me a doutora Cheri Forrester com experiência de pacientes terminais e fama de compaixão; telefonei-lhe e tive a surpresa de ela ter lido os meus livros e estar disposta a vir ver a Paula a casa. É uma mulher nova de olhos escuros e expressão intensa, que me abraçou ao chegar e ouviu de coração aberto o relatório do que acontecera.
- Que queres de mim? - acabou por me perguntar.
- Ajuda a manter a Paula saudável e cómoda; ajuda para o momento da sua morte, e ajuda a procurar outros recursos. Sei que os médicos não podem fazer nada por ela, vou tentar a medicina alternativa; santarrões, plantas, homeopatia, tudo o que puder conseguir.
- É o mesmo que eu faria se se tratasse da minha filha, mas essas experiências devem ter um limite. Não podes viver de ilusões e coisas dessas aqui não são de graça. A Paula pode ficar neste estado muitos anos, tens de gerir bem as tuas forças e recursos.
- Quanto tempo?
- Digamos três meses. Se dentro desse prazo não houver resultados apreciáveis, ficas sossegada.
- Está bem.
Apresentou-me ao doutor Miki Shima, um pitoresco acupuncturista japonês, que tenho em reserva para personagem de um romance, se e que volto a escrever ficção. A novidade correu e logo se iniciou um desfile de curandeiros a oferecerem os seus serviços: um que vende colchões magnéticos para a energia, um hipnotizador que grava histórias às avessas e as faz ouvir à Paula com auscultadores, uma santa da índia que encarna a Mãe Universal, um índio apache que combina a sabedoria dos seus bisavós com o poder dos cristais e um astrólogo que prevê o futuro, mas as visões deste são tão confusas que se podem interpretar de maneiras contraditórias. Ouço-os a todos procurando não perturbar a tranquilidade da Paula. Também fiz uma peregrinação até casa de um famoso psíquico do Oregon, um cavalheiro de cabelo tingido num gabinete cheio de animais de pelúcia, o qual, sem sair de casa, conseguiu examinar a doente com o seu terceiro olho. Receitou uma combinação de pós e de gotas bastante complicada de aplicar, mas o Nicolás, que nestas coisas é muito céptico, comparou a receita com um frasco de Centrum, multivitamínico de uso corrente, e eram quase idênticos. Nenhum destes estranhos doutores prometeu devolver a saúde à minha filha, mas talvez consigam melhorar a qualidade dos seus dias e obter alguma forma de comunicação. As assistentes de dia e de noite também me oferecem as suas orações e mezinhas naturais; uma delas conseguiu obter água benta de uma nascente sagrada do México e dá-lhe com tanta fé que talvez aconteça um milagre. O doutor Shima vem uma vez por semana e dá-nos ânimo, examina-a cuidadosamente, coloca-lhe as suas finas agulhas nas orelhas e nos pés e receita-lhe produtos homeopáticos. Às vezes afaga-lhe o cabelo como se fosse sua filha e fica com os olhos rasos de lágrimas, que bonita é, diz-me, se conseguirmos aguentá-la com saúde talvez a ciência descubra uma maneira de renovar as células danificados e até transplantar um cérebro, porque não? Nem a brincar, doutor, respondo-lhe, não deixarei ninguém fazer experiências de estilo Frankenstein com a Paula. A mim trouxe-me umas ervas orientais cujo nome em tradução exacta é: “para a tristeza provocado por luto ou perda de amor” e julgo que graças a elas continuo a funcionar com relativa normalidade. A doutora Forrester observa tudo isto sem dar opinião e vai contando os dias no calendário; três meses, é tudo, lembra-me ela a cada visita. Também ela parece preocupada com a minha saúde, acha-me deprimida e esgotada, e receitou-me comprimidos para dormir, avisando-me que não tome mais do que um porque podem ser mortais.
Faz-me bem escrever, apesar de que às vezes me custa porque cada palavra é como uma queimadura. Estas páginas são uma viagem irreversível através de um longo túnel para o qual não vejo saída, mas que a deve ter; impossível voltar atrás, tudo é questão de continuar a avançar passo a passo até ao final. Escrevo procurando um sinal, esperando que a Paula rompa o seu implacável silêncio e me responda sem voz nestas folhas amarelas, ou talvez o faça apenas para me sobrepor ao espanto e fixar as imagens fugazes de má memória. Também é bom para mim caminhar. A meia hora de distância de casa há colinas e bosques densos onde vou respirar fundo quando me sufoca a angústia ou me acabrunha o cansaço. A paisagem, verde, húmida e um tanto sombria, e parecida com a do Sul do Chile, com as mesmas árvores centenárias, o aroma intenso de eucalipto, pinheiro e hortelã brava, os regatos que no Inverno se transformam em cascatas, gritos de pássaros e trilar de grilos. Descobri um lugar solitário onde as copas da vegetação formam uma alta cúpula de catedral gótica e um fio de água desliza com uma música especial por entre as ervas. Ali me instalo a ouvir a água e o ritmo do sangue nas minhas veias, tentando respirar calmamente e voltar aos limites da minha própria pele, mas não encontro paz, na minha mente atropelam-se as premonições e as memórias. Nos momentos mais difíceis do passado também procurava a solidão de um bosque.
A partir do momento em que atravessei a cordilheira que marca a fronteira do Chile, tudo começou a correr mal e foi piorando nos anos seguintes. Ainda o não sabia, mas tinha começado a cumprir-se a profecia da vidente argentina: teria à minha frente muitos anos de imobilidade. Não seria entre as paredes de uma cela ou numa cadeira de rodas, como imaginei com a minha mãe, mas no isolamento do exílio. Pareceram as raízes de uma só machadada e levaria seis anos a fazer brotar outras plantadas na memória e nos livros que viria a escrever. Durante esse longo período a frustração e o silêncio constituíram o meu cárcere. Na primeira noite em Caracas, sentada numa cama alheia num quarto sem decoração, enquanto por uma fresta penetrava o rumor incansável da rua, fiz contas ao que perdera e adivinhei um longo caminho de obstáculos e solidões. O impacte da chegada foi como o de ter caído de outro planeta; eu vinha do Inverno, da ordem aterradora da ditadura e da pobreza generalizada, e chegara a um país quente e anárquico em plena bonança petrolífera, uma sociedade saudita onde o esbanjamento alcançava limites absurdos: de Miami importavam-se inclusive o pão e os ovos diários pois era mais cómodo do que produzi-los. No primeiro jornal que me caiu nas mãos fiquei a saber da festa de aniversário, com orquestra e champanhe, de um cão fraldiqueiro pertencente a uma dama da alta sociedade, à qual assistiram outros cães com os donos em trajo de gala. Para mim, criada na sobriedade da casa do Vovô, era difícil acreditar em tamanho exibicionismo, mas com o tempo não só me acostumei, como aprendi a participar nele. A disposição para a farra, o sentimento do presente e a visão optimista dos venezuelanos, que a princípio me espantavam, constituíram depois as melhores lições dessa época. Custou-me muitos anos e entender as regras daquela sociedade e a descobrir a forma de me introduzir sem demasiado barulho no terreno incerto do exílio, mas quando finalmente o consegui senti-me liberta dos pesos que trouxera aos ombros no meu país. Perdi o medo do ridículo, das sanções sociais, de “baixar de nível”, como o meu avô chamava a pobreza e ao meu próprio sangue quente. A sensualidade deixou de ser um defeito que devia ocultar por estatuto social, e aceitei-a como um ingrediente fundamental o meu temperamento e mais tarde da minha escrita. Na Venezuela curei-me de algumas feridas antigas e de novos rancores, larguei a pele e andei em carne viva até me nascer outra mais resistente, lá eduquei os meus filhos, adquiri uma nora e um genro, escrevi três livros e acabei com o casamento. Quando penso nos treze anos que passei em Caracas sinto um misto de incredulidade e de alegria. Cinco semanas depois da minha chegada, quando ficou evidente que um regresso ao Chile a curto prazo era impossível, o Michael embarcou com os filhos, deixando a casa fechada com os nossos haveres lá dentro - porque não conseguira alugá-la. Tanta gente abandonava o país nessa altura, que era mais conveniente comprar uma propriedade ao preço da chuva do que pagar uma renda; além disso a nossa casa era uma cabana rústica sem outro valor além do sentimental. Enquanto permaneceu desocupada partiram as janelas e roubaram o conteúdo, mas nós só soubemos disso passado um ano, e nessa altura já não nos importava. Aquelas cinco semanas separada dos meus filhos foram um pesadelo, ainda me recordo com nitidez fotográfica das caras da Paula e do Nicolás quando desceram do avião pelas mãos do pai e os recebeu o bafo quente e húmido daquele Verão eterno. Vinham vestidos de lã, a Paula trazia a boneca de trapo debaixo do braço e o Nicolás o pesado Cristo de ferro que lhe oferecera a professora, pareceu-me mais pequeno e magro, soube depois que na minha ausência se recusava a comer. Passados poucos meses a família completa conseguiu reunir-se graças aos vistos obtidos com a ajuda de Valentin Hernandez, que não tinha esquecido a promessa feita à minha mãe no hospital da Roménia. Os meus pais instalaram-se dois pisos acima no mesmo edifício que nós, e após aborrecidas gestões o meu irmão Pancho conseguiu sair com os seus de Moscovo com rumo à Venezuela. Também Juan chegou com a intenção de ficar, mas não conseguiu resistir ao calor e ao pandemónio e arranjou meio de seguir para os Estados Unidos com uma bolsa de estudo. No Chile ficou a Granny oprimida pela solidão e o desgosto, do dia para a noite perdera os netos que tinha criado e encontrou-se com a vida vazia, a tratar de um velho que passava os dias na cama com a televisão à frente e com a neurótica cadela suíça herdada da minha mãe. Começou a beber cada vez mais e como já não havia as crianças para lhe fazer manter as aparências, não se preocupava em ocultá-lo. As garrafas acumulavam-se pelos cantos, enquanto o marido fingia não as ver, deixou de comer e de dormir, passava as noites em claro com um copo na mão, balançando sem consolo na cadeira de baloiço onde anos e anos fizera adormecer os netos nos seus braços. Os vermes da tristeza foram-na carcomendo por dentro, perdeu a cor de água-marinha dos olhos e o cabelo caía-lhe em fiapos, a pele tornou-se grossa e gretada como a de uma tartaruga, deixou de tomar banho e de se vestir, andava de bata e chinelas, a secar as lágrimas com as mangas. Dois anos mais tarde a irmã de Michael, que vivia no Uruguai, levou os pais com ela, mas já era tarde para salvar a Granny.
Em 1975 Caracas era alegre e caótica, um das cidades mais caras do mundo. Brotavam por toda a parte edifícios novos e largas auto-estradas, o comércio exibia um estendal de luxos, a cada esquina havia bares, bancos, restaurantes e hotéis para amores clandestinos, as ruas estavam constantemente engarrafadas com milhares de veículos do último modelo, que não conseguiam mover-se na desordem do trânsito, ninguém respeitava s semáforos, mas paravam na auto-estrada para deixar atravessar um peão distraído. O dinheiro parecia crescer nas árvores, os maços de notas circulavam de mão em mão a uma tal velocidade que não havia tempo para as contar; os homens sustentavam várias amantes, as mulheres iam aos fins-de-semana fazer compras a Miami e as crianças consideravam uma viagem anual à Disneylândia como um direito natural, Sem dinheiro não se podia fazer nada, como eu comprovei passados poucos dias, quando fui ao banco trocar os dólares comprados no Chile no mercado negro e descobri horrorizada que metade eram falsos. Havia bairros periféricos onde a gente vivia miseravelmente e regiões onde a água contaminada ainda dizimava pessoas como na era colonial, mas na euforia da riqueza fácil ninguém se lembrava disso. O poder político era repartido entre amigalhaços dos dois. partidos mais poderosos, a esquerda fora anulada e a guerrilha dos anos 60, que chegou a ser uma das mais organizadas do continente, derrotada. Vindo do Chile, era refrescante verificar que ninguém falava de política nem de doenças. Os homens, alardeando poder e virilidade, ostentavam correntes e anéis de ouro, falavam em altos gritos e diziam piadas, sempre de olho posto nas mulheres. Ao pé deles, os discretos chilenos com as suas vozes agudas e a sua linguagem carregada de diminutivos pareciam bonequinhas. As mulheres mais belas do planeta, esplêndido produto do cruzamento de muitas raças, deslocavam-se com o ritmo da salsa nas ancas, exibindo corpos exuberantes e ganhando todos os concursos internacionais de beleza. O ar vibrava, qualquer pretexto era bom para cantar, os rádios atroavam nas vizinhanças, nos automóveis, por toda a parte. Tambores, pandeiros, guitarras, canto e dança, o país vivia a festa e a farra do petróleo. imigrantes dos quatro pontos cardeais chegavam àquela terra à procura de fortuna, sobretudo os colombianos, que atravessavam a fronteira aos milhões para ganharem a vida em empregos que ninguém mais queria. Os estrangeiros eram aceites de má vontade ao princípio, mas em breve a generosidade natural deste povo abria-lhes as portas. Os mais odiados eram os do Cone Sul, como designavam os argentinos, uruguaios e chilenos, porque na sua maioria se tratava de refugiados políticos, intelectuais, técnicos e profissionais que faziam concorrência aos quadros médios venezuelanos. Depressa aprendi que ao emigrar se perdem as muletas que serviam de apoio até então, tem de se começar a partir do zero, porque o passado é riscado com um traço e ninguém se importa com o sítio donde vêm as pessoas ou com o que faziam antes. Conheci verdadeiras eminências nos respectivos países de origem que não conseguiram a equivalência para as suas habilitações profissionais e acabaram a vender seguros de porta em porta; e ao mesmo tempo aldrabões que inventavam diplomas e hierarquias e de alguma maneira conseguiam colocação em postos elevados, tudo dependia da audácia e de boas ligações. Podia-se conseguir tudo através de um amigo ou pagando a tarifa da corrupção. Um profissional estrangeiro só podia obter um contrato através de um sócio venezuelano, que emprestasse o seu nome e o apadrinhasse, sem o qual não tinha a menor oportunidade. O preço era de cinquenta por cento; o interessado fazia o trabalho e o outro dava a sua assinatura e recebia a percentagem logo de início, mal se cobravam os primeiros ordenados. Uma semana depois de chegar surgiu um emprego para o Michael no Oriente do país, numa zona quente que começava a desenvolver-se graças ao tesouro inesgotável do solo. A Venezuela inteira assentava num mar de ouro negro, onde bate uma picareta sai um grosso jacto de petróleo, a riqueza natural é paradisíaca, há regiões onde pedaços de ouro e brilhantes em bruto jazem sob a terra como sementes. Tudo cresce naquele clima, ao longo das auto-estradas vêem-se bananeiras e ananases selvagens, basta atirar um caroço de manga ao chão para que em poucos dias surja uma mangueira; na antena de aço da nossa televisão brotou uma planta florida. A natureza mantém-se ainda na idade da inocência: praias tépidas de areia branca e palmeiras cabeludas, montanhas de cumes nevados por onde ainda vagueiam perdidos os fantasmas dos Conquistadores, extensões como lençóis lunares de súbito interrompidas por prodigiosos tepuys, altíssimos cilindros de rocha viva que parecem ali colocados por gigantes de outros planetas, selvas impenetráveis habitadas por antigas tribos que ainda desconhecem o uso dos metais. Tudo se dá às mãos-cheias nesta região encantada. O Michael ficou encarregado de uma parte do gigantesco projecto de uma dos maiores barragens do mundo, num território verde e emaranhado de cobras, suor e crimes. Os homens instalavam-se em acampamentos provisórios, deixando as famílias nas cidades próximas, mas as minhas possibilidades de encontrar trabalho naquelas bandas e educar os filhos em bons colégios eram nulas, de modo que ficámos na capital e o Michael vinha visitar-nos de seis em seis ou sete em sete semanas. Morávamos num apartamento no bairro mais barulhento e denso da cidade; para os meninos acostumados a ir a pé para o colégio, passear de bicicleta, brincar no seu jardim e ir visitar a Granny, aquilo era um inferno, não podiam sair sozinhos devido ao trânsito e à violência nas ruas, aborreciam-se fechados entre quatro paredes a olhar a televisão e rogavam-me todos os dias que, por favor, voltássemos para o Chile. Não os ajudei a suportar a angústia desses primeiros anos, pelo contrário, o meu mau humor rarificava o ar que respirávamos. Não consegui emprego em nenhum dos ofícios que sabia desempenhar, de nada serviu a experiência adquirida, as portas estavam fechadas. Mandei centenas de pedidos, apresentei-me em inúmeros anúncios do jornal e preenchi uma montanha de formulários, sem que ninguém respondesse, ficava tudo suspenso no ar, esperando uma resposta que nunca chegava. Não percebera que naquela terra a palavra “não” é de má educação. Quando me diziam para voltar amanhã, as minhas esperanças renasciam, sem entender que o adiamento era uma forma amável de recusa. Da pequena celebridade de que gozei no Chile com a televisão e as minhas reportagens feministas, passei ao anonimato e à humilhação quotidiana de quem procura emprego. Graças a um amigo chileno pude passar a publicar uma coluna semanal de humor num jornal, e mantive-a durante muitos anos para dispor de um espaço na imprensa, mas fazia-o por amor à arte, os pagamentos equivaliam à corrida do táxi para ir entregar o artigo. Fiz algumas traduções, guiões para a televisão e até uma peça de teatro; alguns desses trabalhos pagaram-nos a preço de ouro e nunca vieram à luz, outros foram utilizados e nunca mos pagaram. Dois andares acima o tio Ramón vestia todas as manhãs o trajo de Embaixador e saía também para solicitar trabalho, mas ao contrário de mim ele nunca se queixava. A sua queda era mais lamentável que a minha, porque vinha de mais alto, perdera muito, era vinte e cinco anos mais velho e a dignidade devia pesar-lhe o dobro, no entanto nunca o vi deprimido. Aos fins-de-semana organizava passeios à praia com as crianças, verdadeiros safaris que ele enfrentava com decisão ao volante do carro, a suar, com música das Caraíbas no rádio, uma piada nos lábios, a coçar as picadelas dos mosquitos e lembrando-nos de que éramos imensamente ricos, até que por fim podíamos remolhar naquele tépido mar cor de turquesa, acotovelando-nos com centenas de outros seres que tinham tido a mesma ideia. Às vezes, nalgumas santas quartas-feiras, eu escapulia-me até à costa e então podia gozar da praia limpa e vazia, mas essas excursões solitárias eram cheias de riscos. Nesses tempos de solidão e impotência eu precisava mais do que nunca do contacto com a natureza, da paz de um bosque, do silêncio de uma montanha ou do marulhar das ondas, mas as mulheres não deviam ir sozinhas ao cinema, e muito menos até um descampado, onde uma desgraça qualquer podia suceder. Sentia-me prisioneira no apartamento e na minha própria pele, tal como os meus filhos se sentiam, mas pelo menos estávamos a salvo da violência da ditadura, acolhidos pelos vastos espaços da Venezuela. Tinha encontrado um lugar seguro para pôr a terra do meu jardim e plantar malmequeres, mas ainda não o sabia.
Aguardava as raras visitas do Michael com impaciência, mas quando finalmente o tinha ao alcance da mão sentia uma desilusão inexplicável. Ele chegava cansado do trabalho e da vida no acampamento, não era o homem que eu imaginara nas noites sufocantes de Caracas. Nos meses e anos seguintes esgotaram-se-nos as palavras, apenas conseguíamos manter conversas neutras, salpicados de lugares-comuns e de frases de cortesia. Sentia vontade de o agarrar pela camisa e de o sacudir aos gritos, mas continha-me o rigoroso sentido da justiça aprendido nos colégios ingleses e acabava por lhe dar as boas-vindas com uma ternura que surgia espontânea ao vê-lo chegar, mas que desaparecia passados poucos minutos. Aquele homem tinha passado semanas metido na selva para ganhar o pão da família, tinha abandonado o Chile, os amigos e a segurança do seu trabalho para me seguir numa aventura incerta, eu não tinha o direito de o incomodar com as impaciências do meu coração. Seria muito mais saudável se vocês se agarrassem pelos cabelos como nós, aconselhavam-me a minha mãe e o tio Ramón, únicos confidentes nessa época, mas era impossível enfrentar aquele marido que não opunha resistência; toda a agressividade se esvaía até desaparecer convertida em fastio na textura algodoada da nossa relação. Tentei convencer-me de que apesar das circunstâncias nada de fundamental se modificara entre nós. Não o consegui, mas nessa tentativa enganei o Michael. Se tivesse falado claramente talvez tivéssemos evitado o descalabro final, mas não tive coragem para o fazer. Ardia de desejos e inquietudes insatisfeitos, foi esse o período de vários namoros para distrair a solidão. Ninguém me conhecia, não tinha de dar explicações a ninguém. Procurava alívio onde menos o podia encontrar, porque na realidade não sirvo para a clandestinidade, sou muito desastrada nas enredadas estratégias da mentira, deixava rastos por toda a parte, mas a decência de Michael impedia-o de imaginar a falsidade alheia. Debatia-me em segredos e fervia em culpas, dividida entre o desgosto e a raiva contra mim mesma e o rancor contra aquele marido remoto que flutuava imperturbável na névoa da ignorância, sempre amável e discreto, com a sua inalterável equanimidade, sem pedir nada e fazendo-se servir com um ar distante e vagamente agradecido. Eu precisava de um pretexto para cortar de uma vez por todas com aquele matrimónio, mas ele nunca mo deu, pelo contrário, nesses anos aumentou a sua fama de santo aos olhos dos outros. Suponho que andava tão absorto no seu trabalho e tinha tanta necessidade de um lar, que preferia não me interrogar sobre os meus sentimentos ou as minhas actividades; crescia um abismo sob os nossos pés, mas ele não quis ver as evidências e continuou aferrado às suas ilusões até ao último instante, quando tudo se desmoronou com estrépito. Se de algo suspeitava, talvez o tenha atribuído a uma crise existencial e decidiu que eu a ultrapassaria sozinha, como se fosse uma febre de um dia. Não compreendi, senão muitos anos depois, que essa cegueira perante a realidade era o traço mais forte do seu carácter, sempre assumi a culpa inteira do fracasso do amor: eu não era capaz de amá-lo como aparentemente ele me amava. Não me interrogava se aquele homem merecia maior dedicação, apenas me questionava porque não podia dar-lha. Os nossos caminhos divergiam, eu estava a modificar-me e a afastar-me sem poder evitá-lo. Enquanto ele trabalhava no verde exuberante e na cálida humidade de um território selvagem, eu batia com a cabeça como uma ratazana enlouquecido contra as paredes de cimento do apartamento de Caracas, sempre a olhar para o sul e a contar os dias para o regresso. Nunca imaginei que a ditadura ia durar dezassete anos.
O homem por quem me apaixonei em 1978 era um músico, mais um refugiado político dentre os milhares provenientes do Sul que chegaram a Caracas na década de 70. Tinha fugido aos esquadrões da morte, deixando atrás dele em Buenos Aires uma mulher e dois filhos, enquanto procurava alojamento e trabalho, com uma flauta e uma guitarra como únicas cartas de apresentação. julgo que esse amor que partilhámos lhe caiu em cima por acaso, quando menos o desejava e menos lhe convinha, tal como aconteceu comigo. Um empresário de teatro chileno que aterrou em Caracas em busca de fortuna, como tantos outros atraídos pela bonança petrolífera, pôs-se em contacto comigo e pediu-me para escrever uma comédia de tema local. Era uma oportunidade que não podia deixar fugir, estava sem trabalho e bastante desesperada porque as minhas escassas economias se tinham esfumado. Era necessário um compositor com experiência naquele tipo de espectáculo para criar as canções e não sei porquê o empresário preferiu um do Sul, em vez de contratar qualquer dos excelentes músicos venezuelanos. Foi assim que conheci junto de um piano de cauda poeirento aquele que viria a ser meu amante. Pouco recordo desse primeiro dia, não me senti à vontade com aquele argentino arrogante e de mau feitio, mas impressionou-me o seu talento, conseguia interpretar sem o menor esforço as minhas vagas ideias com frases musicais precisas e tocava qualquer instrumento de ouvido. Para mim, que sou incapaz de cantar “Parabéns a você”, o homem era um génio. Era magro e teso como um toureiro, com uma barba de mágico bem aparada, irónico e agressivo. Encontrava-se tão só e perdido em Caracas como eu, creio que essas circunstâncias nos uniram. Passados uns dias fomos a um parque para voltar a ouvir as suas canções longe de ouvidos indiscretos, ele levou a guitarra e eu um caderno e uma cesta de piquenique. Essa e outras sessões musicais tornaram-se inúteis, porque o empresário esfumou-se de um dia para o outro, deixando o teatro contratado e nove pessoas comprometidas às quais nunca pagou. Alguns de nós gastámos tempo e esforço, outros investiram dinheiro que desapareceu sem deixar rasto, ao menos a mim ficou-me uma aventura memorável. Naquela primeira merenda ao ar livre contámos os nossos passados, eu falei-lhe do Golpe Militar, ele pôs-me em dia acerca dos horrores da Guerra Suja e das razões que tivera para sair da sua terra, e por fim eu surpreendi-me a defender a Venezuela dos seus ataques, que eram os mesmos que eu proferira na véspera. Se não gostas deste país, porque não te vais embora, eu estou grata por viver com a minha família nesta democracia, pelo menos aqui não assassinam as pessoas como no Chile ou na Argentina, disse-lhe com um arrebatamento desproporcionado. Desatou a rir, pegou na guitarra e começou a trautear um tango trocista; senti-me provinciana, o que me iria acontecer muitas vezes na nossa relação. Era um daqueles intelectuais noctívagos de Buenos Aires, frequentador de velhas tabernas e cafeterias, amigo de gente de teatro, de músicos e escritores, leitor voraz, homem de pancada e de respostas rápidas, tinha visto inundo e conhecido gente famosa, era um adversário feroz que me seduziu com as suas histórias e a sua inteligência, eu, pelo contrário, duvido que o tenha impressionado muito, a seus olhos era uma imigrante chilena de trinta e cinco anos, vestida à hippie e de costumes burgueses. A única vez que consegui deslumbrá-lo foi quando lhe contei que o Che Guevara tinha jantado em casa de meus pais em Genebra, a partir daí sentiu verdadeiro interesse por mim. No decorrer da minha vida descobri que esse jantar com o heróico guerrilheiro da revolução cubana é um afrodisíaco irresistível para a maioria dos homens. Na semana a seguir começaram as chuvas de Verão e os bucólicos encontros no parque transformaram-se em sessões de trabalho em minha casa, onde havia muito pouca privacidade. Certo dia convidou-me a ir ao apartamento onde vivia, um desses quartos pobretanas e barulhentos alugados à semana. Tomámos café, mostrou-me fotografias da família, depois uma canção levou a outra, e mais outra, até que acabámos a tocar flauta na cama. Não se trata de uma daquelas metáforas que horrorizam a minha mãe, dedicou-me realmente um concerto desse instrumento. Apaixonei-me como uma adolescente. Passado um mês a situação era insustentável, anunciou-me que se ia divorciar da mulher, pressionou-me para que deixasse tudo e fosse com ele para Espanha, onde já se encontravam instalados com êxito outros artistas argentinos e podia encontrar amigos e trabalho. A rapidez com que tomou aquelas decisões pareceu-me uma prova irrefutável do seu amor por mim, mas depois descobri que ele era um Gémeo algo instável e que com a mesma prontidão com que se dispunha a fugir comigo para outro continente, poderia mudar de opinião e voltar ao ponto de partida. Se eu tivesse tido um pouco mais de astúcia, ou se ao menos tivesse estudado astrologia no tempo em que improvisava horóscopos na revista do Chile, teria observado bem o seu carácter e agido com mais prudência, mas tal como as coisas aconteceram, caí de cabeça num melodrama trivial que por pouco não me custou os filhos e até a vida. Andava tão nervosa que a cada esquina chocava com o automóvel, numa ocasião passei o sinal vermelho, bati em três carros em andamento e a pancada deixou-me desmaiada vários minutos; acordei bastante magoada e rodeada de caixões, mãos misericordiosas tinham-me transportado para o local mais próximo, que era logo uma agência funerária. Em Caracas existia um código não escrito que substituía as leis do trânsito; ao chegar a uma esquina os condutores entreolhavam-se e numa fracção de segundo ficava assente quem passava primeiro. O sistema era justo e funcionava melhor que os semáforos - não sei se já mudou, mas creio que continua na mesma mas era preciso estar-se atento e saber interpretar a expressão dos outros. No estado emocional em que na altura me encontrava, esses e outros sinais para circular pelo mundo deixavam-me confusa. Entretanto, o ambiente em minha casa parecia carregado de electricidade, os meninos pressentiam que o chão se mexia debaixo dos seus pés e pela primeira vez começaram a criar problemas. A Paula, que sempre fora uma menina demasiado madura para a idade, sofreu as únicas crises de nervos da sua vida, batia com as portas e fechava-se no quarto horas seguidas a chorar. O Nicolás portava-se como um bandido no colégio, as notas dele eram um desastre e andava sempre cheio de pensos, caía, cortava-se, partia a cabeça e os ossos com uma frequência suspeita. Nessa época descobriu o prazer de disparar ovos com uma fisga contra os apartamentos próximos e contra as pessoas que passavam na rua. Recusei-me a aceitar as acusações dos vizinhos, apesar de estarmos a consumir noventa ovos por semana e a parede do edifício em frente estar coberta com uma gigantesca omeleta frita pelo sol dos trópicos, até ao dia em que um dos projécteis aterrou na cabeça de um senador da República que passava por baixo das nossas janelas. Se o tio Ramón não tivesse intervindo com o seu talento diplomático, talvez nos tivessem anulado os vistos e expulso do país. Os meus pais, que suspeitavam da causa das minhas saídas nocturnas e das minhas ausências prolongadas, interrogaram-me até que acabei por confessar os meus amores ilegais. A minha mãe chamou-me de parte para me lembrar que eu tinha dois filhos para criar, fazer-me ver os riscos que corria e dizer-me que, apesar de tudo, eu contava com a sua ajuda em caso de necessidade. O tio Ramón. também me chamou de parte para me aconselhar a ser mais discreta - não há necessidade de casar com os amantes - e fosse qual fosse a minha decisão, ele estaria do meu lado. Vens já comigo para Espanha ou nunca mais nos vemos, ameaçou-me o homem da flauta entre dois apaixonados acordes musicais, e como não consegui decidir-me embalou os instrumentos e foi-se embora. Passados vinte e quatro horas começaram os seus telefonemas urgentes desde Madrid que me punham desvairada durante o dia e em vigília boa parte da noite. Entre os problemas com as crianças, as reparações do automóvel e as peremptórias exigências amorosas perdi a conta aos dias e quando o Michael veio de visita apanhei uma surpresa.
Nessa noite tentei falar com o meu marido para lhe explicar o que estava a acontecer, mas antes de conseguir fazê-lo ele anunciou-me uma viagem à Europa por causa de negócios e convidou-me a acompanhá-lo, os meus pais encarregavam-se os netos durante uma semana. Há que preservar a família, os amantes passam e vão-se embora sem deixar cicatrizes, vai com o Michael até à Europa, vai fazer-vos muito bem estar sós, aconselhou-me a minha mãe. Nunca se deve admitir uma infidelidade, mesmo que te surpreendam na cama com outro, porque nunca te perdoarão, avisou-me o tio Ramón. Fomos a Paris e enquanto Michael tratava do seu trabalho, eu sentava-me nos cafés dos Champs Elysées a pensar na telenovela em que estava mergulhada, torturada entre as recordações daquelas tardes quentes de chuvas tropicais a ouvir flauta e as aguilhoadas naturais da culpa, desejando que caísse um raio do céu e pusesse um fim drástico às minhas dúvidas. Os rostos da Paula e do Nicolás apareciam-me em cada garoto que me passava à frente, de uma coisa estava certa: não podia separar-me dos meus filhos. Não é preciso que o faças, trazê-los contigo, disse-me a voz persuasora do amante, que descobrira o hotel onde eu estava e me telefonava de Madrid. Decidi que nunca perdoaria a mim própria se não desse uma oportunidade ao amor, talvez o último da minha vida, porque me parecia que aos trinta e seis anos me encontrava à beira da decrepitude. O Michael regressou à Venezuela e eu, a pretexto da necessidade de ficar só por uns dias, meti-me no comboio para Espanha.
Aquela lua-de-mel clandestina, caminhando de braço dado pelas ruas de paralelepípedos, jantando à luz de uma lanterna em velhas tascas, dormindo enlaçados e comemorando a sorte inacreditável de ter tropeçado naquele amor único no universo, durou exactamente três dias, até que o Michael me veio buscar. Vi-o chegar pálido e descomposto, abraçou-me e os muitos anos de vida em comum caíram-me nos ombros como um manto inafastável. Percebi que sentia um grande carinho por aquele homem discreto que me oferecia um amor fiel e representava a estabilidade e um lar. A nossa relação carecia de paixão, mas era harmoniosa e segura, não tive forças para enfrentar um divórcio e causar mais problemas aos seus filhos, que já tinham os suficientes devido à sua condição de imigrantes. Despedi-me daquele amor proibido entre as árvores do parque do Retiro, que acordava ao fim de um longo Inverno, e apanhei o avião para Caracas. Não interessa o que aconteceu, tudo se há-de compor, não voltamos a talar disto, disse o Michael e cumpriu a palavra. Nos meses que se seguiram, quis falar com ele algumas vezes, mas não foi possível, acabávamos sempre por evitar o tema. A minha infidelidade ficou sem resolução, sonho inconfessável suspenso como uma nuvem sobre as nossas cabeças, e se não fosse pelos insistentes telefonemas de Madrid, tê-lo-ia atribuído a mais uma invenção da minha imaginação exaltada. Nas suas vindas a casa o Michael procurava paz e repouso, precisava desesperadamente de acreditar em que nada mudara na sua aprazível existência e que a mulher tinha ultrapassado completamente aquele episódio de loucura. Não havia lugar na sua mentalidade para a traição, não entendia os cambiantes do sucedido, pensou que se eu tinha regressado com ele era porque já não amava o outro, julgou que o nosso casal podia voltar a ser o mesmo que antes e que o silêncio cicatrizava as feridas. Porém, nada voltou à mesma, alguma coisa se quebrara e nunca a poderíamos recompor. Eu fechava-me na casa de banho a chorar e a gritar e ele, lá no quarto, fingia ler o jornal para não ter de adivinhar a causa do pranto. Tive outro acidente sério de automóvel, mas dessa vez consegui aperceber-me, numa fracção de segundo antes do embate, que tinha carregado a fundo no acelerador em lugar do travão.
A Granny começou a morrer no dia em que se despediu dos dois netos, e a agonia durou-lhe três longos anos. Os médicos atribuíram a causa ao álcool, disseram que o seu fígado tinha rebentado, estava inchado e com uma cor de terra, mas na verdade ela morreu foi de desgosto. Veio um momento em que perdeu a noção do tempo e do espaço e parecia-lhe que os dias duravam duas horas e as noites não existiam, ficava ao pé da porta à espera dos meninos e não dormia porque ouvia as suas vozes a chamar por ela. Deixou de tratar da casa, fechou a cozinha que não voltou a impregnar o bairro com o seu cheiro a bolachas de canela, não limpava os quartos e não regava o jardim, as dálias murcharam e as ameixeiras ficaram com peste carregadas de fruta apodrecido que já ninguém colhia. A cadela suíça da minha mãe, que então vivia com a Granny, também se encolheu a um canto a morrer aos poucos, como a sua nova dona. O meu sogro passou esse Inverno na cama a curar uma constipação imaginária, porque não podia enfrentar o medo de ficar sem a mulher e julgou que ignorando as evidências podia modificar a realidade. Os vizinhos, que consideravam a Granny como fada-madrinha da comunidade, ao princípio faziam turnos para lhe proporcionar companhia e mantê-la ocupada, mas depois começaram a evitá-la. Aquela senhora de olhos celestes, impecável no seu vestido de algodão florido, sempre atarefada com as delícias da sua cozinha e de portas abertas para as crianças do bairro, transformou-se rapidamente numa anciã com o cabelo a cair que dizia incoerências e perguntava a meio mundo se tinham visto os seus netos. Quando já não conseguiu localizar-se dentro da própria casa, olhando para o marido como se não o conhecesse, a irmã do Michael decidiu intervir. Foi visitar os pais e encontrou-os a viver numa pocilga, ninguém fizera a limpeza havia meses, o lixo e as garrafas vazias acumulavam-se, o descalabro entrara definitivamente na casa e na alma dos seus habitantes. Compreendeu com espanto que a situação chegara ao limite, já não se tratava sequer de ensaboar os soalhos, pôr coisas em ordem e contratar uma pessoa para cuidar dos velhos, como pensava a princípio, nas sim de os levar com ela. Vendeu alguns móveis, meteu o resto na arrecadação, fechou a casa e embarcou com os pais para Montevideu. Na confusão da última hora a cadela saiu caladamente e ninguém a voltou mais a ver. Mal passara uma semana avisaram-nos para Caracas de que a Granny esgotara as últimas forças, já não se podia levantar e se encontrava num hospital. O Michael passava por uma ocasião crítica no seu trabalho, a selva estava a devorar a obra em construção, as chuvas e os rios tinham desfeito os diques e de manhã apareciam crocodilos a navegar nos buracos cavados para os alicerces. Deixei novamente as crianças com os meus pais e apanhei o avião para me despedir da Granny.
O Uruguai nessa época era um país à venda. Com o pretexto de eliminar a guerrilha, a ditadura militar recorria ao calabouço, à tortura e às execuções sumarias como estilo de governo; desapareceram e morreram milhares de pessoas, quase um terço da população emigrou fugindo ao horror daqueles tempos, enquanto os militares e um punhado dos seus colaboradores se enriqueciam com os despojos. Os que partiam pouco levavam consigo e viam-se obrigados a vender os seus haveres, em cada quarteirão surgiam letreiros de vendas e leilões, nesses anos era possível comprar propriedades, móveis, carros e obras de arte a preços de sucata, os coleccionadores do resto do continente acorriam como piranhas àquele país à procura de antiguidades. O táxi levou-me do aeroporto ao hospital numa madrugada triste de Agosto, de pleno Inverno no Sul do mundo, passando por ruas vazias onde metade das casas estavam desabitadas. Deixei a minha mala na portaria, subi dois pisos e encontrei-me com um enfermeiro tresnoitado que me levou até ao quarto onde estava a Granny. Não a reconheci, naqueles três anos tinha-se transformado num pequeno lagarto, mas ela abriu os olhos, entre nuvens vislumbrei uma centelha de cor azul-turquesa e caí de joelhos ao pé da cama. Olá, filhinha, como estão os meus meninos? murmurou, sem poder ouvir a resposta, porque uma golfada de sangue sumiu-a na inconsciência e já não voltou a acordar. Fiquei ao lado dela à espera do dia, a ouvir o gorgorejo das mangueiras que lhe sugavam o estômago e lhe metiam ar nos pulmões, relembrando os anos felizes e os anos trágicos em que estivemos juntas e agradecendo o seu carinho incondicional. Abandone-se, Granny, não continue a lutar e a sofrer, por favor parta depressa, pedia-lhe eu enquanto lhe acariciava as mãos e lhe beijava a testa enfebrecida. Quando despontou o sol lembrei-me do Michael e telefonei-lhe para lhe dizer que apanhasse o primeiro avião e acorresse para acompanhar o pai e a irmã, pois não devia estar ausente naquele transe.
A doce Granny aguentou pacientemente até ao dia seguinte, para que o filho pudesse vê-la com vida por uns minutos. Estávamos os dois junto da cama dela quando deixou de respirar. Michael saiu para consular a irmã e eu fiquei com a enfermeira para a ajudar a lavar a minha sogra, retribuindo-lhe na morte os infinitos cuidados que ela prodigara em vida aos meus filhos, e enquanto lhe passava uma esponja húmida pelo corpo, lhe penteava os quatro cabelos que lhe restavam no crânio, a aspergia com água-de-colónia e lhe punha uma camisa de dormir emprestada pela filha, falava-lhe da Paula e do Nicolás, da nossa vida em Caracas, de como sentia saudades dela e quanto dela precisava naquela desafortunada etapa da minha vida, em que o nosso lar periclitava sacudido por ventos adversos. No dia seguinte deixámos a Granny num cemitério inglês, sob uma ramada de jasmins, no sítio exacto que ela teria escolhido para repousar. Fui despedir-me dela pela última vez com a família do Michael e surpreendeu-me vê-los sem lágrimas nem estremecimentos, contidos por essa delicada sobriedade dos anglo-saxões quando enterram os seus mortos. Alguém recitou as palavras rituais, mas eu não as ouvi, porque apenas escutava a voz da Granny a trautear as suas canções de avó. Cada um de nós pôs uma flor e um punhado de terra sobre o ataúde, abraçámo-nos em silêncio e a seguir retirámo-nos lentamente. Ela ficou sozinha, a sonhar naquele jardim. Desde esse dia, quando cheiro jasmins a Granny vem saudar-me.
Ao voltar a casa o meu sogro foi lavar as mãos enquanto a filha preparava o chá. Pouco depois entrou na sala de jantar com o seu fato escuro, penteado com brilhantina e um botão de rosa na lapela, bem parecido e ainda jovem, retirou a cadeira com os cotovelos para não lhe tocar com os dedos e sentou-se.
- Onde está a minha young lady? - perguntou, estranhando não ver a mulher.
- Já não está connosco, papá - disse a filha e entreolhámo-nos assustados.
- Diga-lhe que o chá está servido, que estamos à espera dela.
Então verificámos que o tempo para ele tinha ficado congelado, e que ainda não dava por que a mulher tinha morrido. Continuaria a ignorá-lo durante o resto da sua vida. Assistira ao funeral diante dos seus olhos desceu uma cortina de loucura senil e não voltou a pisar o terreno da realidade. A única mulher que amara permaneceu para sempre a seu lado, jovem e alegre, esqueceu-se de que saíra do Chile e perdera todos os seus bens. Durante os dez anos seguintes, até morrer reduzido ao tamanho de uma criança num lar para idosos dementes, continuou convencido de que se encontrava em sua casa, em frente do terreno de golfe, que a Granny estava na cozinha a fazer doce de ameixas e que nessa noite dormiriam juntos, como todas as noites durante quarenta e sete anos.
Chegara a altura de falar com o Michael sobre aquelas coisas silenciadas tanto tempo, ele não podia continuar instalado numa fantasia, como o pai. Numa tarde de chuvisco saímos para caminhar pela praia enroupados em ponchos de lá e cachecóis. Não recordo em que momento aceitei por fim a ideia de que devia separar-me dele, talvez fosse ao pé da cama da Granny a vê-la morrer, ou quando saímos do cemitério deixando-a entre os jasmins, ou talvez já o tivesse decidido várias semanas antes; tão pouco recordo como lhe anunciei que não voltaria para Caracas com ele, que ia para Espanha tentar a sorte e tencionava levar os meninos comigo. Disse-lhe que sabia como seria difícil para eles e lamentava não poder evitar-lhes aquela nova prova, mas os filhos devem seguir o destino da mãe. Falei com cautela, medindo as palavras para o ferir o menos possível, esmagada pelo sentimento de culpa e pela compaixão que ele me inspirava, em poucas horas aquele homem perdia a mãe, o pai e a mulher. Replicou que eu perdia o juízo e não era capaz de tomar decisões, de forma que ele as tomaria por mim, para me proteger e proteger os filhos; podia ir para Espanha se assim o desejasse, agora ele não iria buscar-me e também nada faria para o evitar, mas jamais me entregaria os filhos; também não podia levar uma parte das nossas economias, porque ao abandonar o lar perdia todos os direitos. Pediu-me que ponderasse de novo e prometeu que se eu renunciasse a essa ideia descabelada, ele perdoaria tudo, apagávamos tudo e seria vida nova, e poderíamos recomeçar. Compreendi então que eu trabalhara durante vinte anos e, fazendo as contas, nada possuía, o meu esforço tinha-se feito em fumo com as despesas diárias, mas ao contrário o Michael tinha investido sabiamente a sua parte e os poucos bens que possuíamos estavam em seu nome. Sem dinheiro para sustentar os meninos eu não podia levá-los, mesmo no caso de o pai os deixar ir. Foi uma discussão pausada, sem elevar as vozes, que durou uns escassos vinte minutos, e terminou com um abraço sincero de despedida.
- Não digas mal de mim à Paula e ao Nicolás - pedi-lhe. - Nunca lhes direi mal de ti. Lembra-te que nós três gostamos muito de ti e ficamos à tua espera.
- Virei buscá-los mal arranje trabalho.
- Não tos entregarei. Poderás vê-los sempre que queiras, mas se partires agora perde-los para sempre.
- É o que havemos de ver...
No fundo eu não estava alarmada, julgava que cedo o Michael devia ceder, não tinha a menor ideia do que significava criar filhos, porque até então tinha cumprido as suas funções de pai a uma cómoda distância. O seu trabalho não facilitava as coisas, não podia levar as crianças para o ambiente meio se vagem onde passava a maior parte o seu tempo, e também não era possível deixá-las sozinhas em Caracas; eu tinha a certeza de que antes de passar um mês me pediria desesperado para eu me encarregar delas.
Saí do fúnebre inverno de Montevideu e aterrei no dia seguinte no Agosto férvido de Madrid, disposta a viver o amor até às últimas consequências. Da ilusão romântica que eu inventara em encontros clandestinos e cartas apressadas, caí na realidade sórdida da pobreza, que noites e dias de incansáveis abraços não conseguiam mitigar. Alugámos um pequeno apartamento, sem luz, num bairro operário da periferia da cidade, entre dúzias de edifícios de tijolo vermelho exactamente idênticos. Não havia qualquer espaço verde, não crescia uma só árvore naquelas bandas, viam-se unicamente pátios de terra batida, terrenos desportivos, cimento, asfalto e tijolo. Eu sentia aquela fealdade como uma bofetada. És uma burguesa muito mimada, zombava o meu amante entre dois beijos, mas no fundo a sua reprovação era a sério. Comprámos na feira-da-ladra uma cama, uma mesa, três cadeiras, uns quantos pratos e panelas, que um homenzarrão mal-humorado transportou na sua camioneta desengonçada. Num capricho irresistível comprei também uma floreira, mas nunca nos sobrou dinheiro para lhe pôr flores dentro. De manhã saíamos à procura de trabalho, à tarde regressávamos exaustos e de mãos a abanar. Os amigos dele evitavam-nos, as promessas evaporavam-se, as portas fechavam-se, ninguém respondia aos nossos pedidos e o dinheiro diminuía rapidamente. Em cada criança que brincava na rua parecia-me reconhecer as minhas, a separação dos meus filhos doía-me fisicamente; cheguei a pensar que aquela queimadura constante no estômago era uma úlcera ou um cancro. Houve ocasiões em que tive de escolher entre comprar pão ou selos para escrever à minha mãe, e passei dias em jejum. Tentei escrever uma peça musical com ele, mas a cumplicidade simpática das merendas no parque e as tardes ao pé do piano poeirento do teatro de Caracas tinha-se esgotado, a angústia separava-nos, as diferenças eram cada vez mais visíveis, os defeitos de cada um magnificavam-se. Dos filhos preferíamos não falar, porque de cada vez que nos lembrávamos deles abria-se um abismo entre ambos; eu andava triste e ele sombrio. Os assuntos mais supérfluos convertiam-se em motivos de discussão, as reconciliações eram verdadeiros torneios apaixonados que nos deixavam meio aturdidos. Assim decorreram três meses. Durante esse tempo não arranjei emprego nem amigos, acabaram-se-me as últimas economias e exauriu-se a minha paixão por um homem que certamente merecia melhor sorte. Deve ter sido um inferno para ele suportar a minha angústia causada ela ausência dos meninos, as minhas corridas aos correios e as minhas viagens nocturnas ao aeroporto, onde um chileno engenhoso ligava cabos aos aparelhos telefónicos para obter comunicações internacionais sem pagar. Ali nos juntávamos às escondidas da polícia todos os refugiados pobres da América do Sul - os sudacas, como nos chamavam com desprezo - a falar com as famílias no outro cabo do mundo. Foi assim que soube que o Michael regressara ao seu trabalho e que os meninos ficaram sozinhos, vigiados pelos meus pais desde o seu apartamento dois andares acima, que a Paula tinha assumido as tarefas caseiras e a educação do irmão com uma severidade de sargento; e que o Nicolás fracturara um braço e emagrecia a olhos vistos, porque não queria comer. Entretanto o meu amor desfazia-se em farrapos, destroçado pelos inconvenientes da miséria e da nostalgia. Depressa descobri que o meti apaixonado se desmoralizava facilmente com os problemas quotidianos e caía em depressões ou em crises de mau humor frenético; não consegui imaginar os meus filhos com um tal padrasto e por isso quando o Michael aceitou finalmente que não podia cuidar deles e se dispôs a mandá-los ter comigo, soube que tinha chegado ao fundo e não podia continuar a enganar-me com contos de fadas. Eu seguira o flautista num transe hipnótico como os ratos de Hamelin, mas não podia arrastar a família para igual sorte. Nessa noite examinei com clareza os meus inúmeros erros nos últimos anos, desde os riscos absurdos que correra em plena ditadura e que me obrigaram a sair do Chile, até aos silêncios corteses que me separaram do Michael e à forma imprudente com que fugi de minha casa sem dar uma explicação nem encarar os aspectos básicos de um divórcio. Nessa noite acabou-se a minha juventude e entrei noutra etapa da existência. Basta, disse para comigo. As cinco da madrugada fui ao aeroporto, consegui fazer uma chamada grátis e falei com o tio Ramón para que me mandasse dinheiro para o bilhete de avião. Disse adeus ao amante com a certeza de não voltar a vê-lo e passadas onze horas aterrei na Venezuela derrotada, sem bagagem e sem mais planos do que abraçar os meus filhos e nunca mais os deixar. No aeroporto esperava-me o Michael, que me recebeu com um beijo casto na testa e com os olhos rasos de lágrimas, disse que o sucedido era da sua responsabilidade por não ter sabido ocupar-se melhor de mim., e pediu-me que em consideração aos anos partilhados por ambos e por amor à família lhe desse outra oportunidade e recomeçássemos tudo. Preciso de tempo, respondi, acabrunhada pela sua nobreza e furiosa sem saber porquê. Em silêncio guiou o automóvel cerro acima até Caracas e ao chegar a casa anunciou que me daria todo o tempo que eu quisesse, ele partiria para o seu trabalho na selva e teríamos poucas ocasiões de nos ver.
Hoje é dia dos meus anos, faço meio século. Talvez à tarde venham amigos visitar-nos, aqui as pessoas chegam sem aviso prévio, e uma casa aberta onde os vivos e os mortos andam de mão dada. Comprámo-la há uns anos, quando o Willie e eu percebemos que o amor à primeira vista não dava sinais de diminuir, e precisávamos de uma casa maior que a dele. Ao vê-la pareceu-nos que estava à nossa espera, melhor dito, que nos estava a chamar. Tinha um aspecto cansado, as madeiras estavam descascados, precisava de muitas reparações e por dentro era sombria, mas tinha uma vista espectacular sobre a baía e uma alma benévola. Disseram-nos que a antiga proprietária tinha lá morrido há poucos meses e pensámos que tinha sido feliz entre aquelas paredes, porque as divisões ainda conservavam a sua memória. Em meia hora comprámo-la sem regatear e nos anos seguintes converteu-se no refúgio de uma verdadeira tribo anglo-latina, onde ressoam panelas com comesainas picantes e sentam-se à mesa muitos convivas. As salas esticam-se e multiplicam-se para acolher todos os que chegam: avós, netos, filhos do Willie e agora a Paula, esta menina que lentamente se vai convertendo em anjo. Nos seus alicerces habita uma colónia de mofetas e todas as tardes aparece a misteriosa gata parda, que ao que parece nos adoptou. Aqui há uns dias depositou sobre a cama da minha filha um pássaro de asas azuis recém-caçado, ainda a sangrar, suponho que é a sua maneira fina de retribuir as atenções. Nos últimos quatro anos a casa foi-se transformando com grandes clarabóias para deixar entrar o sol e as estrelas, com tapetes e paredes brancas, tijoleiras mexicanas e um pequeno jardim. Contratámos uma equipa de chineses para construírem uma arrecadação, mas não percebiam inglês, confundiram as instruções e mal nos precatámos tinham acrescentado ao andar térreo duas divisões, uma casa de banho e um estranho recinto que acabou convertido na carpintaria do Willie. Na cave escondi horríveis surpresas para os netos: um esqueleto de gesso, mapas com tesouros, arcas com disfarces de piratas e jóias de fantasia. Tenho a esperança de que um subterrâneo sinistro seja um bom incentivo para a imaginação, pelo menos para mim o do meu avô foi. A noite a casa estremece, geme e boceja, imagino que pelas salas deambulam as memórias dos seus habitantes, os personagens que se evadem dos livros e dos sonhos, o doce fantasma da antiga dona e a alma da Paula, que por vezes se liberta das dolorosas ligaduras do seu corpo. As casas precisam de nascimentos e mortes para se converterem em lares. Hoje é um dia para festejar, teremos um bolo de aniversário e o Willie voltará do escritório carregado de sacos do mercado e disposto a passar a tarde a plantar as suas roseiras em terra firme. É esse o seu presente para mim. Estes pobres maciços em barris significam a atitude transumante do seu dono, que sempre deixou uma porta aberta para sair a correr se as coisas se punham pretas. Foi assim antes com todas as suas relações, chegava a certo ponto em que emalava a roupa e partia com os seus barris para outro destino. Creio que aqui ficaremos muito tempo, já é tempo de plantar as minhas rosas no jardim, anunciou-me ontem. Gosto deste homem de outra raça, que caminha a grandes passadas, ri alto, fala num vozeirão, corta os frangos para o jantar à machadada e cozinha sem alarido, tão diferente de outro que amei. Agradam-me as suas expansões de energia masculina porque as compensa com uma reserva inesgotável de gentileza, da qual sempre me posso valer. Sobreviveu a grandes infortúnios sem os disfarçar com cinismos e hoje pode entregar-se sem restrições a este amor tardio e a esta tribo latina onde ocupa agora um lugar principal. Mais tarde virá o resto da família, a Célia e o Nicolás instalam-se a ver televisão enquanto a Paula dormita na sua cadeira de rodas, enchemos de água a piscina de plástico no terraço para o Alejandro se espojar, ele que já se familiarizou com a sua silenciosa tia. Penso que hoje vai ser outro domingo aprazível.
Tenho cinquenta anos, entrei na última metade da minha vida, mas sinto a mesma força dos vinte, o corpo ainda não me falha. Velha... era assim que me chamava a Paula com carinho. Agora a palavra assusta-me um pouco, sugere uma mulherona com verrugas e varizes. Noutras culturas as idosas vestem de preto, atam um lenço à cabeça, deixam o buço à vista e retiram-se da agitação mundana para se consagrarem a rituais piedosos, lamentar os seus mortos e cuidar dos netos, mas na América do Norte realizam esforços grotescos para se sentirem sempre saudáveis e contentes. Eu tenho um leque de rugas finas à volta dos olhos, com ténues cicatrizes de risos e prantos do passado; pareço-me com a fotografia da minha avó clarividente, com a mesma expressão de intensidade tingida de tristeza. Estou a perder melenas nas frontes; na semana em que a Paula adoeceu apareceram-me umas peladas redondas como moedas, dizem que é do desgosto e que o cabelo volta a crescer, mas na realidade isso não me importa. A Paula tive de lhe cortar a longa cabeleira e agora tem uma cabeça de rapaz, parece muito mais nova, voltou à infância. Pergunto-me quanto mais tempo viverei e para quê. A idade e as circunstâncias colocaram-me ao pé desta cadeira de rodas para velar pela minha filha. Sou a sua guardiã e a da minha família... Estou a aprender a toda a pressa as vantagens do desprendimento. Voltarei a escrever? Cada etapa do caminho é diferente e talvez a da literatura já se tenha cumprido. Sabê-lo-ei dentro de uns meses, no próximo dia 8 de janeiro, quando me sentar diante da máquina para começar outro romance e comprovar a presença ou o silêncio dos espíritos. Nestes meses fui ficando vazia, esgotou-se-me a inspiração, mas também é possível que as histórias sejam criaturas com vida própria que existem nas sombras de uma misteriosa dimensão, e nesse caso seja tudo questão de me abrir para que de novo me penetrem, se organizem à sua vontade e saiam convertidas em palavras. Não me pertencem, não são criações minhas, mas se conseguir romper os muros da angústia em que estou encerrada, posso voltar a servir-lhes de médium. Se tal não acontecer, terei de mudar de ofício. Desde que a Paula adoeceu, uma cortina de trevas oculta o mundo fantástico onde antes eu passeava livremente; a realidade tornou-se implacável. As experiências de hoje são as recordações de amanhã; antes não me faltaram acontecimentos extremos para alimentar a memória e daí nasceram todas as minhas histórias. Eva Luna diz no final do meu terceiro livro: quando escrevo conto a vida como gostaria que ela fosse, como um romance. Não sei se o meu caminho foi extraordinário ou se escrevi esses livros a partir de uma existência banal, mas a minha memória está feita unicamente de aventuras, amores, alegrias e sofrimentos; os eventos mesquinhos dos afazeres quotidianos desapareceram. Quando olho para trás parece-me que sou a protagonista de um melodrama, mas agora pelo contrário tudo se deteve, não há nada para contar, o presente tem a brutal certeza da tragédia. Fecho os olhos e surge à minha frente a imagem dolorosa da minha filha na sua cadeira de rodas, com a vista fixa no mar, olhando para além do horizonte, onde a morte começa. Que acontecerá a este grande espaço vazio que agora sou? Com que me preencherei quando já não sobre nem uma réstia de ambição, nenhum projecto, nada de mim? A força da sucção reduzir-me-á a um orifício negro e desaparecerei. Morrer... Abandonar o corpo é uma ideia fascinante, se hei-de continuar neste mundo tenho de planear os anos que me restam. Talvez a velhice seja um novo começo, talvez se possa voltar ao tempo mágico da infância, esse tempo anterior ao pensamento linear e aos preconceitos, quando me apercebia do universo com os sentidos exaltados de uma demente e era livre de crer no incrível e explorar mundos que depois, na era da razão, desapareceram. já não tenho muito que perder, nada que defender, será isto a liberdade? Lembro-me que às avós nos pertence o papel de magas protectoras, devemos velar pelas mulheres mais jovens, pelas crianças, pela comunidade e também, porque não, por este maltratado planeta, vítima de tantas violações. Gostaria de voar numa vassoura e dançar com outras bruxas pagãs no bosque à luz do luar, invocando as forças da terra e afugentando demónios, quero converter-me numa velha sábia, aprender antigos encantamentos e segredos de curandeiros. Não é pouco o que eu pretendo. As feiticeiras, tal como os santos, são estrelas solitárias que brilham com luz própria, não dependem de nada nem de ninguém, por isso carecem de medo e podem lançar-se cegas no abismo com a certeza de que em vez de se destruírem sairão a voar. Podem converter-se em pássaros para ver o mundo de cima ou em vermes para vê-lo por dentro, podem habitar noutras dimensões e viajar para outras galáxias, são navegantes num oceano infinito de consciência e conhecimento.
Quando renunciei definitivamente à paixão carnal por um músico argentino indeciso, abriu-se diante dos meus olhos um deserto infindável de tédio e solidão. Tinha trinta e sete anos e, confundindo o amor em geral com o amante em particular, tinha decidido curar-me para sempre do vício de me apaixonar, que ao fim e ao cabo só me trouxera complicações. Felizmente não o consegui totalmente, a inclinação permaneceu latente, como semente esmagada sob dois metros de gelo polar, que obstinadamente brota à primeira brisa tépida. Depois de voltar a Caracas com o meu marido, o amante insistiu durante algum tempo, mais para cumprir o seu papel do que por outro motivo, creio eu. Tocava o telefone, ouvia-se o clique característico das chamadas internacionais e eu desligava sem responder; com a mesma determinação rasguei as suas cartas sem as abrir, até que o flautista deu por terminadas as suas tentativas de comunicação. já lá vão quinze anos e se na altura me tivessem dito que acabaria por esquecê-lo, nunca teria acreditado, porque tinha a certeza de ter partilhado um desses raros amores heróicos que, com o seu fim trágico, constituem material para uma opera. Agora tenho uma visão mais modesta e espero simplesmente que, se numa das curvas do caminho, volto a encontrá-lo, pelo menos possa reconhecê-lo. Essa relação frustrada foi uma chaga aberta durante mais de dois anos; estive literalmente doente de amor, mas ninguém soube nada, nem a minha mãe, que me observava de perto. Nalgumas manhãs não tinha forças para sair da cama, abatida pela frustração, e nalgumas noites esmagavam-me recordações e desejos febris, que combatia com duches gelados, como o meu avô. Nessa febre de romper com o passado acabei até por rasgar as partituras das suas canções e a minha peça de teatro, coisa de que às vezes me arrependi, porque penso que talvez não fossem más de todo. Curei-me com o remédio de burro sugerido pelo Michael: enterrei o amor num areal de silêncio. Não falei do caso durante vários anos, até que deixou de magoar-me, e fui tão drástica no propósito de eliminar até a recordação das melhores carícias, que fui demasiado longe e tenho uma lagoa alarmante na memória onde se afogaram não só as desgraças desse tempo, como também boa parte das alegrias.
Essa aventura fez-me lembrar a primeira lição da minha infância, que não sei explicar como me tinha esquecido: não há liberdade sem independência económica. Durante os meus anos de casada, coloquei-me sem dar por isso na mesma situação vulnerável em que estava a minha mãe quando dependia da caridade do meu avô. Logo em pequena prometi a mim mesma que isso não me aconteceria, estava decidida a ser forte e produtiva como o patriarca da família para não ter de pedir nada a ninguém, e cumpri a primeira parte, mas em vez de administrar o benefício do meu trabalho, confiei-o por preguiça nas mãos de um marido cuja reputação de santo considerei uma garantia suficiente. Aquele homem sentado e prático, com perfeito controlo das suas emoções e aparentemente incapaz de cometer um acto injusto e pouco honroso, pareceu-me mais adequado do que eu para zelar pelos meus interesses. Não sei aonde fui buscar tal ideia. No tumulto da vida em comum e da minha própria vocação para o desperdício, perdi tudo. Ao voltar para o seu lado decidi que o primeiro passo para a etapa que se iniciava era obter um emprego seguro, poupar o mais possível e mudar as regras da economia doméstica de modo a que as suas receitas se destinassem às despesas quotidianas, e as minhas a investimentos. Não era minha intenção juntar dinheiro para me divorciar, não havia necessidade alguma de estratégias cínicas, porque uma vez que o trovador desapareceu no horizonte, ao marido passou-lhe a raiva e sem dúvida teria negociado uma separação em termos mais justos do que os apresentados naquela praia invernal de Montevideu. Fiquei com ele durante nove anos, de plena boa-fé, pensando que com alguma sorte e muito empenhamento poderíamos cumprir as promessas de eternidade feitas diante do altar. No entanto, tinha-se quebrado a própria fibra do nosso casal por razões que pouco tinham a ver com a minha infidelidade, e menos ainda com contas mais antigas, tal como descobri mais tarde. Nesse reencontro pesaram na balança os dois filhos, e metade da vida investido na nossa relação, o carrinho calmo e os interesses comuns que nos uniam. Não tive em conta as minhas paixões, que acabaram por ser mais fortes do que aqueles prudentes propósitos. Durante Muitos anos senti um carinho sincero por esse homem; lamento que a deterioração dos últimos tempos desgastasse as boas recordações da juventude.
Michael partiu para a remota região onde os crocodilos amanheciam nos buracos dos alicerces, disposto a acabar aquela obra e procurar um trabalho que exigisse menos sacrifício, e eu fiquei com os meus filhos, que tinham mudado muito durante a minha ausência, pareciam instalados definitivamente no seu novo pais e já não falavam de regressar ao Chile. Nesses três meses a Paula deixou para trás a meninice e converteu-se numa bela jovem consumada pela obstinação de aprender: tirava as melhores notas da classe, estudava guitarra sem a mínima aptidão e após dominar o inglês começou a falar francês e italiano com a ajuda de discos e dicionários. Entretanto o Nicolás cresceu um palmo e apareceu um dia com as calças a meio da perna, as mangas a meio do braço e o mesmo porte do avô e do pai; tinha uma costura na cabeça, várias cicatrizes e a secreta ambição de escalar sem cordas o arranha-céus mais alto da cidade. Via-o arrastando grandes bidões metálicos para armazenar excrementos de seres humanos e de diversos animais, ingrata tarefa da sua disciplina de ciências naturais. Pretendia demonstrar que aqueles gases putrefactos podiam servir como combustível, e que mediante um processo de reciclagem era possível utilizar fezes para cozinhar em vez de as atirar para o oceano pelos escoadouros. A Paula, que aprendera a guiar, levava-o no automóvel a estábulos, galinheiros, chiqueiros de porcos e casas de banho de amigos para recolher a matéria-prima da experiência, que guardava em casa correndo o risco de que o calor fizesse explodir os gases e o bairro inteiro ficasse coberto de caca. A camaradagem da infância tinha-se transformado numa sólida cumplicidade, a mesma que os uniu até ao último dia consciente da Paula. Aquele par de espigados adolescentes entendeu tacitamente a minha intenção de enterrar aquele penoso episódio das nossas vidas; creio que lhes deixou graves cicatrizes e, quem sabe, muitos anos mais tarde quanto rancor contra mim por tê-los atraiçoado, mas nenhum dos dois se lembrava dos pormenores, e todos tínhamos esquecido o nome daquele amante que esteve quase a converter-se em seu padrasto.
Com quase sempre acontece quando metemos pelo caminho assinalado no livro dos destinos, uma série de coincidências ajudou-me a pôr em prática os meus planos. Durante três anos não tinha conseguido fazer amigos nem arranjar trabalho na Venezuela, mas logo que fiz converger toda a minha energia na tarefa de me adaptar e sobreviver, conseguido em menos de uma semana. As cartas do tarot da minha mãe, que antes tinham predito a clássica intervenção de um homem moreno de bigode - suponho que se referiam ao flautista voltaram a manifestar-se anunciando desta vez uma mulher loura. Com efeito, passados poucos dias de regressar a Caracas apareceu na minha existência Marilena, uma professora de áurea cabeleira que me ofereceu emprego. Era dona de um Instituto onde ensinava arte e dava aulas a crianças com problemas de aprendizagem. Enquanto a mãe dela, uma enérgica dama espanhola, administrava a academia no seu papel de secretária, Marilena ensinava dez horas por dia e dedicava outras dez à investigação de uns métodos ambiciosos com os quais pretendia modificar a educação na Venezuela e, porque não, no mundo. O meu trabalho consistia em ajudá-la a supervisar os professores e organizar as aulas, atrair alunos com uma campanha publicitária e manter boas relações com os pais. Fizemo-nos muito amigas. Era uma mulher tão clara como o seu cabelo de ouro, pragmática e directa, que me obrigava a aceitar a dura realidade quando eu divagava em confusões sentimentais ou nostalgias patrióticas, e que liquidava pela raiz qualquer veleidade de compaixão por mim própria. Com ela partilhei segredos, aprendi um novo oficio e sacudi a depressão que me mantivera paralisada muito tempo. Ensinou-me os códigos e as chaves subtis da sociedade de Caracas, que eu até então não lograra entender porque aplicava o meu critério chileno para a analisar, e passados dois anos tinha-me adaptado tão bem que só me faltava falar com sotaque das Caraíbas. Certo dia encontrei no fundo de uma mala um pequeno saco de plástico com um punhado de terra e lembrei-me que a trouxera do Chile com a ideia de plantar nela as melhores sementes da memória, mas não o fizera porque não tencionava estabelecer-me, vivia dependente das notícias do Sul, esperando que a ditadura caísse para regressar. Decidi que já tinha esperado bastante e numa discreta cerimónia íntima misturei a terra do meu antigo jardim com outra venezuelana, pu-la num vaso e plantei malmequeres. Brotou uma planta raquítica, inadequada para aquele clima, e rapidamente morreu queimada; passado tempo substituía por uma exuberante espécie tropical que cresceu com a voracidade de um polvo.
Também os meus filhos se adaptaram. A Paula enamorou-se de um jovem de origem siciliana, imigrante da primeira geração como ela, que ainda permanecia fiel às tradições da sua terra. O pai, que fizera fortuna com materiais de construção, esperava que a Paula acabasse o colégio - visto que ela assim o desejava - e aprendesse a cozinhar massas para celebrar a boda. Opus-me com uma ferocidade impiedosa, apesar de no fundo sentir Lima simpatia inevitável por aquele bondoso rapaz e os seus encantadores parentes, uma numerosa família alegre e sem complicações metafísicas nem intelectuais, que se juntava diariamente para festejar a vida com ágapes suculentos da melhor cozinha italiana. O noivo era filho e neto mais velho, um rapagão alto, louro e de temperamento polinésico, que gastava o tempo em plácidas diversões no seu iate, na residência da praia, com a sua colecção de automóveis e em festas inocentes. A minha única objecção era que aquele genro potencial não tinha emprego nem estudava, o pai dava-lhe uma generosa mesada e prometera-lhe casa mobilada quando casasse com a Paula. Um dia veio ter comigo, pálido e a tremer, mas com a voz firme, para me dizer que acabássemos com as indirectas e falássemos claro, estava farto das minhas perguntas capciosas. Explicou-me que no seu entender o trabalho não era uma virtude, mas apenas uma necessidade, se se podia comer sem trabalhar, só um imbecil o faria. Não entendia a nossa impulsão para o sacrifício e o esforço, pensava que se fôssemos “imensamente ricos”, como apregoava o tio Ramón, éramos capazes de nos levantar de madrugada e passar doze horas diárias de labuta, porque aos nossos olhos essa era a única bitola da integridade. Confesso que me fez oscilar a estóica escala de valores herdada do meu avô, e a partir de então encaro o trabalho com um espírito um pouco brincalhão. O casamento foi adiado porque a Paula, ao concluir a sua formação no colégio, anunciou que ainda não se sentia pronta para as panelas e que, em vez disso, pensava em estudar psicologia. O noivo acabou por aceitar, visto que ela não o consultara, e além disso essa profissão podia servir para criar melhor a meia-dúzia de filhos que pensava ter. No entanto, o rapaz não conseguiu digerir a ideia de ela se ter inscrito num seminário sobre sexualidade e de se deslocar com uma maleta cheia de objectos incomodativos, a medir pénis e orgasmos. A mim também não pareceu uma boa ideia, assim como assim não estávamos na Suécia e as pessoas certamente não aprovariam essa especialidade, mas não lhe manifestei a minha opinião porque a Paula me teria derrotado com os mesmos argumentos feministas que eu lhe inculcara desde a sua mais tenra infância. Apenas me atrevi a sugerir-lhe que fosse discreta, porque se adquiria fama de sexologista ninguém teria coragem de lhe fazer a corte, os homens temem as comparações, mas ela fulminou-me com um olhar profissional e a conversa acabou ali. Para o final do seminário, tive de fazer uma viagem à Holanda e ela encomendou-me certo material didáctico difícil de conseguir na Venezuela. Foi assim que me encontrei uma noite nos bairros mais sórdidos de Amsterdão a procurar em lojas indecentes os artefactos da sua lista, pilas telescópicas de borracha, bonecas com orifícios e vídeos com imaginativas combinações de mulheres com esforçados paraplégicos ou com cães libidinosos. O meu rubor ao comprá-los não foi grande comparado com o que me atacou no aeroporto de Caracas, quando me abriram a mala e aqueles curiosos objectos passaram pelas mãos das autoridades, perante os olhares zombeteiros dos outros passageiros, e tive de explicar que não eram para meu uso pessoal, mas para a minha filha. Isso marcou o fim do noivado da Paula com aquele siciliano de coração gentil. Com o tempo ele assentou cabeça, acabou o colégio, começou a trabalhar na firma do pai, casou-se e teve um filho, mas não esqueceu o seu primeiro amor. Desde que soube que a Paula está doente costuma telefonar-me para me oferecer apoio, tal como fazem meia-dúzia de outros homens que choram quando lhes dou as más notícias. Ignoro quem sejam esses desconhecidos, que papel desempenharam na sorte da minha filha, nem que marcas profundas ela deixou nas suas almas. A Paula passava pelas vidas alheias plantando rijas sementes, eu vi os frutos nestes eternos meses de agonia. Em cada sítio onde esteve deixou amigos e amores, pessoas de todas as idades e condições entram em contacto comigo para saber dela, não podem acreditar que lhe tenha caído em cima tamanha desgraça.
Mas voltando anos atrás, o Nicolás escalava os cumes mais abruptos dos Andes, explorava cavernas submarinas para fotografar tubarões, e partia os ossos com tanta regularidade que de cada vez que o telefone tocava eu punha-me a tremer. Se não surgiam problemas reais para me preocupar, ele encarregava-se de os inventar, com o mesmo engenho empregado na sua experiência os gases naturais. Certo dia voltei do escritório à tarde e encontrei a casa às escuras e aparentemente vazia. Avistei uma luz ao fundo do corredor, para lá me dirigi a chamar, meio distraída, e na ombreira da porta da casa de banho tropecei de súbito com o meu lho pendurado de uma corda passada ao pescoço. Observei a sua expressão de enforcado, com a língua de fora e os olhos em alvo, antes de cair redonda no chão como uma pedra. Não perdi a consciência mas não me podia mexer, estava transformada em gelo. Ao ver a minha reacção, o Nicolás tirou o arnês do qual se suspendera com grande artimanha, e correu para me socorrer, dava-me beijos de arrependimento e jurava que nunca mais me faria passar por um susto semelhante. Os bons propósitos duravam-lhe umas semanas, até descobrir a forma de mergulhar na banheira, respirando por um fino tubo de vidro para que eu o julgasse afogado, ou então aparecia com um braço ao peito e uma venda num olho. Segundo os manuais de psicologia da Paula, aqueles acidentes revelavam uma oculta tendência suicida e o seu afã em me torturar com partidas espantosas era motivado por um rancor inconfessável, mas para descanso de todos concluímos que os textos costumam enganar-se. Nicolás era um rapazinho um bocado bruto, mas não era um louco suicida, e o seu carinho por mim era tão evidente que a minha mãe diagnosticou um complexo de Édipo. O tempo provou a nossa teoria, aos dezassete anos o meu filho acordou certa manhã convertido num homem, pôs os seus bidões experimentais, os patíbulos, as cordas de trepar às montanhas, os arpões para matar esqualos e o seu estojo de primeiros-socorros numa caixa ao fundo da garagem e anunciou que pensava trabalhar em computadores. Quando agora o vejo aparecer com a sua serena expressão de intelectual e com uma criança em cada braço, pergunto-me se não terá sido um sonho meu aquela visão pavorosa do Nicolás a baloiçar numa forca caseira.
Naquela altura o Michael acabou a obra na selva e veio para a capital com a ideia de formar a sua própria empresa de construções. Com cautela fomos pouco a pouco remendando o tecido rasgado da nossa relação, até que ela chegou a uns termos de tanta amabilidade e harmonia que aos olhos alheios parecíamos namorados. O meu emprego permitiu mantermo-nos por um tempo, enquanto ele procurava contratos naquela Caracas explosiva, onde diariamente deitavam árvores abaixo, cortavam colinas e demoliam casas para erguer num abrir e fechar de olhos novos arranha-céus e auto-estradas. O negócio da academia da minha amiga loura era tão instável, que por vezes tínhamos de recorrer à pensão da sua mãe ou às nossas economias para cobrir as despesas no fim do mês. Os alunos acorriam em tropel pouco antes dos exames finais, quando os pais temiam que eles não passassem o ano, e mediante aulas especiais conseguiam pôr-se em dia, mas em lugar de continuarem a estudar para resolver as causas dos seus problemas, desapareciam mal passavam nas provas. Durante vários meses as receitas eram caprichosas e o Instituto sobrevivia penosamente; com angústia esperávamos janeiro, quando deviam inscrever-se as crianças em número suficiente para mantermos aquele frágil veleiro a navegar. Em Dezembro desse ano a situação era crítica, a mãe da Marilena e eu, que tínhamos a nosso cargo a parte administrativa, examinámos várias vezes o livro de contabilidade tentando infrutuosamente equilibrar as parcelas negativas. Estávamos nisso quando passou diante do nosso escritório a senhora da limpeza, uma colombiana amorosa que costumava regalar-nos com deliciosas queijadinhas fabricadas pelas suas mãos. Ao ver-nos fazer contas desesperadas perguntou com sincero interesse qual era o problema e nós contámos-lhe as nossas dificuldades.
- A tarde eu trabalho numa agência funerária e quando a clientela escasseia, lavamos o local com Quitalapava (Literalmente: “Tira-o-enguiço” (N’. do T.) – disse ela.
- Como é isso?
- Ora, um esconjuro. Tem de se fazer uma boa limpeza. Primeiro lavam-se os soalhos do fundo da casa até à porta, para afugentar a má sorte, e depois da porta para dentro, para chamar os espíritos da luz e a aquiescência.
- E depois?
- Depois, os mortos começam a chegar.
- Aqui não precisamos de mortos, mas de crianças.
- É a mesma coisa, Quitalapava serve para melhorar qualquer comércio.
Demos-lhe algum dinheiro e no dia seguinte ela trouxe um bidão com um líquido mal cheiroso de aspecto suspeito: no fundo agrupava-se uma espécie de leite amarelado, depois havia uma camada de caldo com bolhas e por cima outra de um óleo esverdeado. Tínhamos de o remexer antes de usar e proteger o nariz com um lenço, porque aquele cheiro era capaz de nos fazer desmaiar. Oxalá a minha filha não saiba desta barbaridade, suspirou a mãe de Marilena, que andava perto dos setenta anos, mas não perdera nada da vitalidade e do bom humor que a induzira a deixar a sua Valência natal havia trinta anos para ir atrás de um marido infiel até ao Novo Mundo, enfrentá-lo quando ele estava a viver com uma concubina, exigir-lhe o divórcio e a seguir esquecê-lo depressa. Prendada daquele país exuberante, onde pela primeira vez na sua vida se sentia livre, ficou com a filha e as duas andaram para a frente com tenacidade e engenho. Esta boa senhora e eu lavámos de gatas o chão com esfregues, murmurando as palavras rituais e contendo o riso, porque se zombávamos às escâncaras ia tudo para o caneco, as bruxarias só funcionam com seriedade e fé. Levámos dois dias nesta labuta, ficámos com as colunas torcidas e os joelhos em carne viva e por mais que ventilássemos não conseguimos eliminar o bafo do local, mas valeu a pena, na primeira semana de janeiro tínhamos à porta uma comprida fila de pais com os filhos pela mão. A vista de tão espectacular resultado lembrei-me de usar as sobras do bidão para melhorar a sorte do Michael e fui às escondidas até ao escritório dele de noite para o lavar de alto a baixo, tal como fizéramos mi academia. Não tive novas durante vários dias, salvo alguns comentários acerca do estranho cheiro no escritório. Consultei a senhora da limpeza, que me garantiu que se o empavado (O enguiçado, o embuçado. (N. do T) era o meu marido, tudo se resolveria levando-o à Montanha Sagrada, mas tal conselho estava muito longe das minhas possibilidades. Um homem como ele, produto acabado da educação britânica, dos estudos de engenharia e do vício do xadrez, jamais se prestaria a cerimónias mágicas, mas fiquei a pensar na lógica da feitiçaria e deduzi que se aquele líquido prodigioso servia para esfregar soalhos, não havia razão alguma para não poder ser usado numa lavagem a um ser humano. Na manhã seguinte, quando o Michael estava no duche, aproximei-me por detrás dele e lancei-lhe por cima os restos do bidão. Deu um grito de surpresa e dali a pouco tinha a pele da cor de um caranguejo e caíram-lhe alguns cabelos, mas exactamente duas semanas depois tinha arranjado um sócio venezuelano e um contrato fabuloso.
A minha amiga Marilena nunca soube a causa da extraordinária bonança desse ano, mas achou que não seria duradoura; estava cansada de lutar com o orçamento e encarava a possibilidade de uma mudança de rumo. Discutindo o assunto, surgiu a ideia - inspirada pelos eflúvios do esconjuro que ainda pairavam entre as ranhuras do soalho - de transformar o Instituto numa escola onde fosse possível aplicar as suas excelentes teorias educacionais para resolver a serio os problemas do ensino e ao mesmo tempo eliminar os sobressaltos do nosso livro de contabilidade. Foi esse o início de uma sólida empresa que se transformou em poucos anos num dos mais respeitáveis colégios daquela cidade.
Tenho muito tempo para meditar neste Outono na Califórnia. Devo acostumar-me ao estado da minha filha e não recordar a jovem graciosa e alegre de outrora, nem perder-me ainda em visões pessimistas do futuro, mas encarar cada dia tal como se apresente, sem esperar milagres. A Paula depende de mim para sobreviver, voltou a pertencer-me, está outra vez nos meus braços como uma recém-nascida, acabaram para ela os festejos e os esforços da vida. Instalo-a na varanda enroupada em xailes, diante da baía de São Francisco e das roseiras do Willie, carregadas de flores desde que as tirou dos barris e deitaram raízes em terra firme. As vezes a minha filha abre os olhos e olha fixamente a superfície iridescente da água, coloco-me na sua linha de visão, mas ela não me vê, as suas pupilas são como poços sem fundo. Só consigo comunicar com ela de noite, quando vem visitar-me em sonhos. Durmo aos sobressaltos e acordo muita vez com a certeza de que chama por mim, levanto-me à pressa e corro para o seu quarto, onde quase sempre está alguma coisa a falhar: a temperatura ou a tensão aumentaram, está a transpirar ou com frio, está mal acomodada e tem cãibras. A mulher que a vigia de noite costuma adormecer ao acabarem os programas de televisão em espanhol. Nessas ocasiões estendo-me na cama ao lado da Paula e amparo-a contra o meu peito aconchegando-a o melhor possível porque é mais alta do que eu, enquanto peço a paz para ela, peço que descanse na serenidade dos místicos, que habite num paraíso de harmonia e silêncio, que encontre esse Deus que tanto procurou na sua curta trajectória. Peço inspiração para adivinhar as suas necessidades e ajuda para a manter comodamente, assim possa o seu espírito viajar sem perturbações até ao lugar dos encontros. Que sentirá? Costuma estar assustada, tremente, com os olhos exorbitados, como se tivesse visões do inferno, de outras vezes, no entanto, permanece ausente e imóvel, como se já se tivesse afastado de tudo. A vida é um milagre, e para ela terminou de repente, sem lhe dar tempo a despedir-se ou a fazer as suas contas, quando ia lançada para a frente na vertigem da juventude. Cortou-se-lhe o impulso quando começava a interrogar-se acerca do sentido das coisas e me deixou o encargo de encontrar a resposta. As vezes passo a noite a deambular pela casa, como as misteriosas mofetas da cave, que sobem para comer ao prato da gata, ou o fantasma da minha avó que foge do seu espelho para conversar comigo. Quando a Paula adormece volto para a minha cama e abraço-me às costas do Willie com o olhar fixo nos números verdes do relógio, as horas passam inexoráveis, esgotando o presente, já é futuro. Eu devia tomar as pastilhas da doutora Forrester, não sei para que as acumulo como um tesouro, escondidas na cesta das cartas da minha mãe. Nalgumas madrugadas vejo aparecer o sol através das grandes vidraças da sala da Paula; a cada amanhecer o mundo cria-se de novo, tinge-se o céu em tons laranja e levanta-se da água o vapor da noite, envolvendo a paisagem em rendas de bruma, como uma delicada pintura japonesa. Sou uma jangada sem rumo a navegar num mar de amargura. Durante estes longos meses foi-me caindo o cabelo como uma cebola, camada após camada, mudando-me, já não sou a mesma mulher, a minha filha deu-me a oportunidade de me olhar por dentro e descobrir esses espaços interiores, vazios, obscuros e estranhamente aprazíveis, que nunca antes tinha explorado. São lugares sagrados e para chegar a eles tenho de percorrer um caminho estreito e cheio de obstáculos, vencer as feras da imaginação que me saem à frente. Quando o terror me paralisa, fecho os olhos e abandono-me com a sensação de mergulhar em águas revoltas, por entre os golpes furiosos das vagas. Por uns instantes que são na verdade eternos, julgo que estou a morrer, mas a pouco e pouco compreendo que continuo viva apesar de tudo, porque no feroz torvelinho há uma fenda misericordiosa que me permite respirar. Deixo-me arrastar sem opor resistência e aos poucos o medo retrocede. Flutuando penetro numa caverna submarina e ali fico um momento em repouso, a salvo dos dragões da desgraça. Choro sem soluçar, destroçado por dentro, como talvez chorem os animais, mas nessa altura acaba de nascer o sol e aparece a gata a pedir o pequeno-almoço, e ouço os passos de Willie na cozinha e o aroma do café invade a casa. Outro dia começa, como todos os dias.
Ano Novo de 1981. Nesse dia lembrei-me que em Agosto faria quarenta anos e que até então não fizera nada de realmente importante. Quarenta! Era o começo da decrepitude e não me Custava muito imaginar-me sentada numa cadeira de balanço a tricotar peúgas. Quando era uma menina solitária e raivosa na casa do meu avô, sonhava com proezas heróicas: seria uma actriz famosa e em vez de comprar peles e jóias daria todo o meu dinheiro a um orfanato, descobriria uma vacina contra os ossos moídos, taparia com um dedo o buraco do dique e salvaria outra aldeia holandesa. Queria ser Tom Sawyer, o Pirata Negro ou Sandokan, e depois de ler Shakespeare e introduzir a tragédia no meu repertório, queria ser como aquelas personagens esplêndidas que depois de viverem no excesso, morriam no último acto. A ideia de me converter numa freira anónima surgiu-me muito mais tarde. Naquela altura sentia-me diferente dos meus irmãos e de outras crianças, não conseguia ver o mundo como os outros, parecia-me que os objectos e as pessoas às vezes tornavam-se transparentes e que as histórias dos livros e os sonhos eram mais verdadeiros que a realidade. As vezes assaltavam-me momentos de uma lucidez aterradora e julgava adivinhar o futuro ou o passado remoto, muito antes do meu nascimento, como se todos os tempos coincidissem simultaneamente no mesmo espaço e de repente, através de uma fresta que se abria durante uma fracção de segundo, eu passasse para outras dimensões. Na adolescência teria dado tudo o que tinha para pertencer a malta de rapazes barulhentos que dançavam rock n’roll e fumavam às escondidas, mas não o tentei porque tinha a certeza de não ser como eles. O sentimento de solidão arrastado desde a infância tornou-se ainda mais agudo, mas confortava-me a vaga esperança de estar marcada por um destino especial que algum dia me seria revelado. Mais tarde entrei em cheio nas rotinas do casamento e da maternidade, nas quais se apagaram as desditas e solidões da primeira juventude e esqueci aqueles planos de grandeza. O trabalho como jornalista, o teatro e a televisão mantiveram-me ocupada, não voltei a pensar em termos de destino até que o Golpe Militar me pôs brutalmente diante da realidade e me obrigou a mudar de rumo. Aqueles anos de auto-exílio na Venezuela poderiam resumir-se numa só palavra: mediocridade. Aos quarenta anos já era tarde para surpresas, o meu prazo de vida encurtava rapidamente, a única coisa certa era a má qualidade da minha vida e o tédio, mas a minha soberba impedia-me de o admitir. A minha mãe - a única interessada em sabê-lo - garantia-lhe que tudo corria bem na minha nova e pulcra vida, que me tinha curado do amor frustrado com uma disciplina estóica, que tinha um trabalho certo, pela primeira vez estava a poupar dinheiro, o meu marido parecia ainda apaixonado e a minha família voltara aos sulcos normais, eu até me vestia como uma inofensiva mestre-escola, que mais se podia pedir? Dos xailes com franjas, as saias compridas e as flores no cabelo nada ficara, apesar de costumar tirá-las secretamente do fundo de uma mala para luzi-las durante uns minutos diante do espelho. Sufocava no meu papel de burguesa ajuizada e consumiam-me os mesmos desejos da juventude, mas não tinha a mínima razão de queixa, tinha arriscado tudo uma vez, tinha perdido e a vida dava-me uma segunda oportunidade, só me competia agradecer a minha boa sorte. É um milagre teres conseguido, filha, nunca pensei que pudesses colar os pedaços quebrados do teu casal e da tua existência, disse-me um dia a minha mãe com um suspiro que não era de alívio e num tom que me pareceu irónico. Talvez fosse ela a única a intuir o conteúdo da minha caixa de Pandora, mas não se atreveu a destapá-la. Nesse Ano Novo de 1981, enquanto os outros comemoravam com champanhe e lá fora estoiravam fogos-de-artifício a anunciar o nascimento do novo ano, propus a mim própria vencer o tédio e resignar-me com humildade a uma vida sem brilho, como a de quase toda a gente. Decidi que não era assim tão difícil renunciar ao amor se tinha como substituto uma nobre camaradagem com o meu marido, que sem dúvida era preferível o meu emprego estável no colégio às incertas aventuras do jornalismo ou do teatro, e que devia instalar-me definitivamente na Venezuela, em vez de continuar a suspirar por uma pátria idealizada nos últimos confins do planeta. Eram ideias razoáveis, de qualquer forma dentro de vinte ou trinta anos, umas vez estancados as minhas paixões, quando já nem sequer me lembrasse do mau gosto do amor frustrado ou do tédio, podia reformar-me tranquilamente com a venda das acções que estava a adquirir no negócio da Marilena. Esse plano razoável não chegou a durar mais de uma semana. A 8 de janeiro telefonaram de Santiago para anunciar que o meu avo estava muito doente e essa notícia anulou as minhas promessas de bom comportamento e lançou-me numa direcção inesperada. O Vovô já ia para os cem anos, estava convertido num esqueleto de pássaro, semi-inválido e triste, embora perfeitamente lúcido. Quando acabou de ler a última letra da Enciclopédia Britânica e aprender de cor o Dicionário da Real Academia, e quando perdeu todo o interesse pelas desgraças alheias das telenovelas, percebeu que eram horas de morrer e quis fazê-lo com dignidade. Instalou-se no seu cadeirão vestido com o seu puído fato preto e a bengala entre os joelhos, invocando o fantasma da minha avó para que o ajudasse naquele transe, visto que a sua neta faltara ao prometido de muito má maneira. Durante esses anos tínhamos mantido contacto através das minhas cartas tenazes e das suas respostas esporádicas. Decidi escrever-lhe pela última vez para lhe dizer que podia partir em paz porque eu nunca o esqueceria e pensava transmitir a sua memória aos meus filhos e aos filhos deles. Para o provar comecei a carta com uma anedota da minha tia-avó Rosa, sua primeira noiva, uma jovem de beleza quase sobrenatural morta em circunstâncias misteriosas pouco antes de casar, envenenada por erro ou por maldade, cuja fotografia de uma suave cor sépia sempre esteve em cima do piano da casa, a sorrir na sua inalterável formosura. Anos depois o Vovô casou com a irmã mais nova de Rosa, a minha avó. Desde as primeiras linhas outras vontades se apossaram da carta conduzindo-me para longe da incerta história da família para explorar o mundo seguro da ficção. Nessa viagem confundi os motivos e apagaram-se as fronteiras entre a verdade e a invenção, os personagens ganharam vida e chegaram mesmo a ficar mais exigentes do que os meus próprios filhos. Com a cabeça no limbo cumpria o meu duplo horário no colégio, das sete da manhã até às sete da tarde, cometendo erros catastróficos na administração; não sei como é que nesse ano não fomos à ruína, eu observava os livros de contabilidade, os professores, os alunos e as aulas pelo canto do olho, enquanto toda a minha atenção estava voltada para um saco de lona onde carregava as páginas que ia escrevinhando de noite. O meu corpo funcionava como um autómato e a minha mente andava perdida naquele mundo que nascia palavra após palavra. Chegava a casa quando começava a escurecer, jantava com a família, tomava um duche e a seguir sentava-me na cozinha ou na sala de jantar com uma pequena máquina portátil à frente, até o cansaço me obrigar a ir para a cama. Escrevia sem esforço algum, sem pensar, porque era a minha avó clarividente quem me ditava. As seis da manhã tinha de me levantar para ir para o trabalho, mas aquelas poucas horas de sono eram suficientes; andava em transe, com energia para dar e vender, como se tivesse Lima lâmpada acesa cá dentro. A família ouvia o matraquear das tecias e via-me perdida nas nuvens, mas ninguém fez perguntas, talvez adivinhassem que eu não tinha respostas, na realidade não sabia com certeza o que estava a fazer, porque a intenção de enviar uma carta ao meu avo se desfez rapidamente e não admiti que me tinha lançado num romance, tal ideia parecia-me petulante. Andava há mais de vinte anos na periferia da literatura - jornalismo, contos, teatros, argumentos para a televisão e centenas de cartas sem me atrever a confessar a minha verdadeira vocação; precisara de publicar três romances em várias línguas antes de escrever “escritora” como profissão ao preencher um formulário. Carregava com todos os meus papéis por todo o lado Com medo de que se extraviassem Ou se incendiasse a casa; aquela pilha de folhas presas com uma cinta era para mim um filho recém-nascido. Certo dia, quando o saco começara a ficar muito pesado, contei quinhentas páginas, tão corrigidos e tornadas a corrigir com um líquido branco, que algumas tinham adquirido a consistência do cartão, outras estavam sujas de sopa ou tinham aditamentos colados com adesivos, desdobrando-se como mapas, abençoado computador que agora me permite corrigir tudo a limpo. Não tinha a quem mandar aquela extensa carta, o meu avô já não era deste mundo. Quando recebemos a notícia da sua morte senti uma espécie de alegria, era isso que ele desejava havia anos, e continuei a escrever com mais confiança, porque aquele velho esplêndido se encontrara finalmente com a Vovó e os dois estavam a ler por cima do meu ombro. Os comentários fantásticos da minha avó e o riso chocarreiro do Vovô acompanharam-me todas as noites. O epílogo foi o mais difícil, escrevi-o muitas vezes sem acoitar com o tom, ficava sentimental de mais, ou então parecia um sermão ou um panfleto político, eu sabia o que queria contar, mas não sabia como exprimi-lo, até que uma vez mais os fantasmas vieram em meu socorro. Uma noite sonhei que o meu avô jazia de costas na sua cama, com os olhos fechados, tal corno estava naquela madrugada da minha infância quando entrei no quarto dele para roubar o espelho de prata. No sonho eu erguia o lençol, via-o vestido de luto, com gravata e sapatos, e percebia que estava morto, então sentava-me a seu lado entre os móveis pretos da sala a ler-lhe o livro que acabara de escrever, e à medida que a minha voz narrava a história os móveis ficavam de madeira clara, a cama cobria-se de véus azuis e o sol entrava pela janela. Acordei em sobressalto, às três da madrugada, com a solução: Alba, a neta, escreve a história da família ao pé do cadáver do avô, Esteban Trueba, enquanto espera pela manhã para o enterrar. Fui à cozinha, sentei-me à máquina e em menos de duas horas escrevi sem hesitações as dez páginas do epílogo. Dizem que nunca se termina um livro, que o autor simplesmente se dá por vencido; neste caso, os meus avós, talvez incomodados ao verem as suas memórias tão atraiçoadas, obrigaram-me a escrever a palavra fim. Tinha escrito o meu primeiro livro. Não sabia que aquelas páginas transformariam a minha vida, mas senti que tinha acabado um longo período de paralisia e de mudez.
Amarrei a pilha de folhas com a mesma cinta que usara durante um ano e passei-a timidamente à minha mãe, a qual voltou poucos dias depois para me perguntar com uma expressão de horror como me atrevia eu a revelar segredos de família e a descrever o meu pai como um degenerado, dando-lhe ainda por cima o seu verdadeiro apelido. Nessas páginas eu tinha introduzido um conde francês com um nome tirado à sorte: Bilbaire. Julgo tê-lo ouvido alguma vez, guardei-o num compartimento esquecido e ao criar a personagem chamei-lhe assim sem a menor consciência de ter utilizado o apelido materno do meu progenitor. Com a reacção da minha mãe renasceram algumas suspeitas acerca do meu pai que haviam atormentado a minha infância. Para agradecer à minha mãe decidi mudar o apelido e depois de muito procurar encontrei uma palavra francesa com menos uma letra, para que coubesse à vontade no mesmo espaço, consegui apagar Bilbaire com corrector no original e escrever Satigny por cima, tarefa que me levou vários dias revendo página a página, metendo cada folha no carreto da máquina portátil e consolando-me daquele trabalho astesanal com a ideia de que Cervantes escreveu o D. Quixote com uma pena de ave, à luz de uma vela, na prisão e com a única mão que lhe restava. A partir daquela emenda a minha mãe entrou com entusiasmo no jogo da ficção, participou na escolha do título A Casa dos Espíritos e colaborou com ideias estupendas, inclusive algumas sobre aquele controverso conde. Ela, que tem uma imaginação mórbida, é que se lembrou de que, entre as fotografias escabrosas que aquela personagem coleccionava, havia “um lhama embalsamado a cavalo numa criada coxa”. Desde então a minha mãe é a minha editora e a única pessoa que corrige os meus livros, porque alguém com a capacidade de criar uma coisa tão retorcida merece toda a minha confiança. Também foi ela que insistiu na publicação, pôs-se em contacto com editores argentinos, chilenos e venezuelanos, enviou cartas em todas as direcções e não perdeu a esperança, apesar de ninguém se ter dado ao incómodo de ler o manuscrito ou de nos responder. Um dia obtivemos o nome de uma pessoa que nos podia ajudar em Espanha. Eu não sabia da existência de agentes literários, a verdade é que, como a maioria das pessoas normais, também não lera crítica e não suspeitava de que os livros são analisados nas universidades com a mesma seriedade com que se estudam os astros no armamento. Se tivesse sabido, não me teria atrevido a publicar aquele montão de páginas com nódoas de sopa e de corrector líquido, que o correio se encarregou de colocar em cima da secretária de Carmen Balcells em Barcelona. Essa catalã magnífica, padroeira de quase todos os escritores latino-americanos das três últimas décadas, deu-se ao trabalho de ler o meu livro e passadas poucas semanas telefonou-me para me anunciar que estava disposta a ser minha agente e prevenir-me de que, embora o meu romance não fosse mau, isso não significava nada, qualquer um pode acertar num primeiro livro, só um segundo provaria se eu era uma escritora. Seis meses depois fui convidada a ir a Espanha para a publicação do romance. Na véspera da partida a minha mãe ofereceu à família um jantar para comemorar o acontecimento. Na altura da sobremesa o tio Ramón entregou-me um embrulho e ao abri-lo apareceu diante dos meus olhos maravilhados o primeiro exemplar acabado de sair das rotativas, que ele obtivera com os seus malabarismos de velho negociante, implorando aos editores, mobilizando os embaixadores de dois continentes e utilizando a mala diplomática para que o livro me chegasse a tempo. É impossível descrever a emoção desse momento, basta dizer que não mais voltei a senti-la com outros livros, com traduções para línguas que eu julgava já mortas, ou com adaptações ao cinema e ao teatro; aquele exemplar da Casa dos Espíritos com uma cinta cor-de-rosa e uma mulher de cabelo verde tocou profundamente o meu coração. Parti para Madrid com o livro ao colo, bem exposto à vista de quem quisesse olhar, acompanhada pelo Michael, tão orgulhoso da minha proeza como a minha mãe. Entravam os dois nas livrarias a perguntar se tinham o meu livro e armavam uma cena se lhes diziam que não, e outra se lhes diziam que sim, era porque não o tinham vendido. Carmen Balcells recebeu-nos no aeroporto envolta num casaco de peles arroxeado e com um cachecol violeta ao pescoço, que arrastava pelo chão como a cauda desmaiada de um cometa, abriu-me os braços e desde esse momento converteu-se no meu anjo protector. Ofereceu um festim para me apresentar à intelectualidade espanhola, mas eu estava tão assustada que passei boa parte do serão escondida na casa de banho. Nessa noite, em sua casa, vi pela primeira e única vez um quilo de caviar do irão e colheres de sopa à disposição dos convivas, uma extravagância faraónica totalmente injustificada porque de qualquer modo eu não passava de uma pulga e ela não suspeitava então da trajectória afortunada que viria a ter aquele romance, mas de certo a comoveram o meu apelido ilustre e o meu ar de provinciana. Ainda recordo a pergunta inicial na entrevista que me fez o crítico literário de maior renome nessa altura: pode explicar a estrutura cíclica do Seu romance? Devo ter olhado para ele com expressão bovina porque não sabia de que raio ele estava a falar, julgava que só os edifícios têm uma estrutura e as únicas coisas cíclicas do meu repertório eram a lua e a menstruação. Pouco depois os melhores editores europeus, da Finlândia até à Grécia, compraram os direitos de tradução e assim foi disparado o livro numa carreira meteórica. Tinha-se produzido um desses raros milagres com que todos os autores sonham, mas eu não consegui aperceber-me daquele êxito escandaloso antes de passar um ano e meio, quando já estava prestes a terminar um segundo romance, só para provar a Carmen Balcells a minha condição de escritora e demonstrar-lhe que o quilo de caviar não tinha sido uma pura perda.
Continuei a trabalhar doze horas diárias no colégio, sem me atrever a desistir, porque o contrato de milhões do Michael, conseguido em parte graças ao esconjuro líquido da senhora da limpeza, se desfizera em fumo. Por uma dessas coincidências tão exactas que parecem metáforas, o seu trabalho deu com os burrinhos na água no mesmo dia em que eu apresentava o meu livro em Madrid. Ao descer do avião no aeroporto ele Caracas veio ao nosso encontro o sócio dele com a má notícia; apagou-se a alegria do meu triunfo, e foi substituída pelas nuvens carregadas da sua desgraça. Denúncias de corrupção e suborno no banco que financiava a obra obrigaram a justiça a intervir, os salários foram congelados e a construção embargada. A prudência aconselhava a fechar de imediato o escritório e tratar da liquidação da maioria possível dos bens, mas ele achou que o banco era demasiado poderoso e que havia muitos interesses políticos pelo meio suficientes para o conflito se eternizar, concluiu que se conseguia sobrenadar por uns tempos tudo se resolveria e o contrato voltaria às suas mãos. Entretanto o sócio, mais adestrado naquelas regras do jogo, desapareceu com a sua parte em dinheiro, deixando-o sem trabalho e submerso num crescente abismo de dívidas. As preocupações acabaram por esgotar o Michael, mas ele negou-se a admitir o seu fracasso e a sua depressão até que um dia caiu desmaiado. A Paula e o Nicolás levaram-no em braços para a cama e eu tentei reanimá-lo com água e bofetadas, como tinha visto nos filmes. Mais tarde o médico diagnosticou açúcar no sangue e comentou divertido que os diabetes não se curam com baldes de água fria. Voltou a desmaiar com alguma frequência e acabámos todos por nos acostumar. Nunca tínhamos ouvido a palavra porfiria e ninguém atribuiu os seus sintomas a essa estranha e rara desordem do metabolismo, passaram três anos até que uma sobrinha ficou muito doente a após meses de análises exaustivas os médicos de uma clínica norte-americana diagnosticaram a doença, a família toda teve de fazer exames, e assim descobrimos que o Michael, a Paula e o Nicolás sofrem dessa condição. Nessa altura o nosso matrimónio convertera-se numa borbulha de cristal que tínhamos de tratar com grandes precauções para não a fazer estoirar; cumpríamos cerimoniosas normas de cortesia e fazíamos porfiados esforços para nos mantermos juntos apesar de cada dia os nossos caminhos se separarem mais. Tínhamos respeito e simpatia um pelo outro, mas aquela relação pesava-me nos ombros como um saco de cimento; nos meus pesadelos avançava por um deserto a arrastar uma carreta e a cada passo afundavam-se as rodas e os meus pés na areia. Nesse tempo sem amor encontrei a evasão na escrita. Enquanto na Europa o meu primeiro romance ia abrindo caminho, eu costumava escrever de noite na cozinha da nossa casa de Caracas, mas tinha-me modernizado, agora fazia-o numa máquina eléctrica. Comecei De Amor e de Sombra a 8 de janeiro de 1983, porque esse dia me dera sorte com A Casa dos Espíritos, iniciando assim uma tradição que ainda mantenho e não me atrevo a mudar, escrevo sempre a primeira linha dos meus livros nessa data. Nesse dia procuro estar só e em silêncio durante longas horas, preciso de muito tempo para tirar da cabeça o barulho da rua e limpar a memória da desordem da vida. Acendo velas para convocar as musas e os espíritos protectores, coloco flores em cima da secretária para afugentar o tédio e as obras completas de Pablo Neruda sob o computador com a esperança de que me inspirem por Osmose; se estas maquinas se infectam com vírus não há razão para as não refrescar com um sopro poético. Através de uma cerimónia secreta disponho a mente e a alma para receber em transe a primeira frase, assim se entreabre uma porta que me permite espreitar para o outro lado e aperceber-me das nebulosas silhuetas da história que está à minha espera. Nos meses seguintes atravessarei esse umbral para explorar esses espaços e a pouco e pouco, se tiver sorte, os personagens ganham vida, vão tornar-se cada vez mais precisos e reais, e o conto irá revelando-se. Ignoro como e porquê escrevo, os meus livros não nascem na mente, geram-se no ventre, são criaturas caprichosas com vida própria, sempre dispostas a trair-me. Não escolho o tema, é o tema que me escolhe a mim, o meu trabalho consiste simplesmente em dedicar-lhe tempo suficiente, solidão e disciplina para que se escreva por si próprio. Assim aconteceu com o meu segundo romance. Em 1978, foram descobertos no Chile, na localidade de Lonquén, a poucos quilómetros de Santiago, os corpos de quinze camponeses assassinados pela ditadura e escondidos nuns fornos de cal abandonados. A Igreja Católica denunciou o achado e o escândalo rebentou antes que as autoridades o pudessem silenciar, era a primeira vez que apareciam os restos de alguns desaparecidos e o dedo trémulo da justiça chilena não teve outro remédio senão incriminar as Forças Armadas. Foram acusados vários carabineiros, levados a julgamento, condenados por homicídio em primeiro grau e de seguida postos em liberdade pelo general Pinochet mediante um decreto de amnistia. A notícia foi publicado na imprensa mundial e foi assim que eu tive conhecimento do caso em Caracas. Nessa altura desapareciam milhares de pessoas em muitos lugares do continente, o Chile não era uma excepção. Na Argentina as mães dos desaparecidos desfilavam na Plaza de Mayo com as fotografias dos filhos e netos ausentes, no Uruguai sobejavam nomes de presos e faltavam corpos. O sucedido em Lonquén foi um murro na boca do estômago, essa dor não me abandonou por muitos anos. Cinco homens da mesma família, os Maureiras, morreram assassinados por aqueles carabineiros. As vezes ia distraída a guiar por uma auto-estrada e assaltava-me a visão comovedora das mulheres Maureira há anos à procura dos seus homens, perguntando inutilmente em prisões, campos de concentração, hospitais e quartéis, como milhares e milhares de outras pessoas que noutros lugares inquiriam também acerca dos seus. Elas tiveram mais sorte do que a maioria, ao menos souberam que os seus homens tinham morrido e puderam chorar e rezar por eles, embora não enterrá-los, porque os militares lhes roubaram os restos e dinamitaram os fornos de cal para evitar que se convertessem em local de peregrinação e devoção. Essas mulheres andaram um dia inteiro ao longo de umas pobres prateleiras examinando os despojos, umas chaves, um pente, um pedaço de casaco azul, uns cabelos ou alguns dentes, e disseram: este é o meu marido, este é o meu irmão, este é o meu filho. Sempre que pensava nelas voltava-me com implacável clareza a memória daquele tempo que vivi no Chile sob o pesado manto de terror, da censura e da auto censura, das denúncias, do recolher, dos soldados de caras pintadas para não serem reconhecidos, dos automóveis com vidros fumados da polícia política, das prisões no meio da rua, nas casas, nos escritórios, as minhas corridas para asilar perseguidos nas embaixadas, das noites de vigília por termos alguém escondido sob o nosso tecto, das grosseiras estratégias para enviar clandestinamente informações para o estrangeiro e obter dinheiro para auxiliar as famílias dos prisioneiros. Para o meu segundo romance não tive de pensar no tema, as mulheres da família Maureira, as mães da Plaza de Mayo e milhões de outras vítimas acossaram-me, obrigando-me a escrever. A história dos mortos de Lonquén tinha raízes no meu coração desde 1978, desde essa altura tinha arquivado todos os recortes de imprensa que me vieram ter às mãos sem saber exactamente para quê, visto que ainda não suspeitava que os meus passos se encaminhariam para a literatura. Em 1983 dispunha de uma volumosa pasta de informações e sabia aonde ir buscar mais dados, o meu trabalho consistia apenas em entrançar esses fios numa única corda. Contava no Chile com o meu amigo Francisco, que pensava utilizar como modelo para o protagonista, com uma família de refugiados republicanos espanhóis para a família Leal e algumas colegas da revista feminina onde antes trabalhara, que me inspiraram a personagem de Irene. Tirei o Gustavo Morante, noivo de Irene, de um oficial do exército do Chile, que me seguiu até ao Cerro San Cristobal num meio-dia de Outono de 1974. Estava eu sentada à sombra de uma árvore a olhar para Santiago lá do alto, com a cadela suíça da minha mãe, que costumava levar comigo para apanhar ar, quando parou um carro a poucos metros, dele desceu um homem fardado que avançou para mim. O pânico paralisou-me, por um instante pensei em desatar a correr, mas logo compreendi a inutilidade de qualquer tentativa de fuga e, a tremer e sem voz, enfrentei-o. Para surpresa minha, o oficial não me ladrou nenhuma ordem, mas tirou o boné, pediu desculpa de me incomodar e perguntou-me se se podia sentar ao meu lado. Eu ainda não conseguia dizer palavra, mas tranquilizou-me ver que ele estava só, as detenções eram levadas a cabo por grupos. Era um homem dos seus trinta anos, alto e de boa compostura, com um rosto um tanto ingénuo, sem linhas expressivas. Notei a sua angústia, mal começou a falar. Disse-me que sabia quem eu era, tinha lido alguns dos meus artigos e não gostava deles, mas divertia-se com os meus programas na televisão, tinha-me visto subir amiúde ao monte e naquele dia seguira-me porque tinha uma coisa para me contar. Disse que vinha de uma família muito religiosa, era católico praticante e na juventude estudara a possibilidade de entrar para o seminário, mas ingressara na Escola Militar para contentar o pai. Cedo descobriu que gostava daquela profissão e com o tempo o Exército converteu-se no seu verdadeiro lar. Estou preparado para morrer pela minha pátria, afirmou, mas não sabia como é difícil matar em seu nome. E então, após uma pausa muito longa, descreveu-me o seu primeiro fuzilamento, quando lhe calhou executar um preso político, tão torturado que não se podia ter em pé e tiveram de o amarrar a uma cadeira, como deu a voz de fogo naquele pátio gelado às cinco da manhã, e como ao dissipar-se o ruído da descarga reparou que o homem estava vivo e olhava-o tranquilamente nos olhos, porque já estava para além do medo.
- Tive de aproximar-me do preso, pôr-lhe a pistola na têmpora e apertar o gatilho, O sangue salpicou-me a farda... Não consigo tirá-lo da alma, não consigo dormir, essa memória persegue-me.
- Porque me conta isso a mim? - perguntei-lhe.
- Porque não me basta tê-lo dito ao meu confessor, quero partilhá-lo com alguém para quem talvez tenha utilidade. Os militares não são todos assassinos, como andam a dizer para aí, muitos de nós temos consciência. - Pôs-se em pé, cumprimentou-me com uma leve inclinação, enfiou o boné e partiu no seu automóvel.
Meses depois outro homem, dessa vez à civil, contou-me algo semelhante. Os soldados atiravam às pernas para obrigarem os oficiais a dar o tiro de misericórdia e ficarem também manchados de sangue, disse-me ele. Guardei estas histórias comigo nove anos, no fundo de uma gaveta, anotadas numa folha de papel, até me servirem para De Amor e de Sombra. Alguns críticos consideraram esse livro sentimental e demasiado político; para mim está cheio de magia porque me revelou os estranhos poderes da ficção. No lento e silencioso processo da escrita entro num estado de lucidez no qual por vezes posso descerrar alguns véus e ver o invisível, tal como fazia a minha avó na sua mesa de pé-de-galo. Não se trata aqui de mencionar todas as premonições e coincidências que se deram nessas páginas, basta uma. Embora dispusesse de abundante informação, tinha grandes lacunas na história pois boa parte dos julgamentos militares ficou em segredo e o que foi publicado era desfigurado pela censura. Além disso encontrava-me muito longe e não podia ir ao Chile interrogar as pessoas implicadas, como teria feito noutras circunstâncias. Os meus anos de jornalismo ensinaram-me que nessas entrevistas pessoais se obtêm as chaves, os motivos e as emoções da história, nenhuma investigação de biblioteca pode substituir os dados em primeira mão obtidos numa conversa cara a cara. Escrevi o romance nacos cálidas noites de Caracas com o material da minara pasta de recortes, uns poucos livros, algumas gravações da Amnistia internacional e as vozes infatigáveis das mulheres dos desaparecidos, que atravessaram distâncias e tempos, para virem em minha ajuda. Mesmo assim, tive de recorrer à imaginação para preencher as lacunas. Ao ler o original, a minha mãe fez objecção a uma parte que lhe pareceu absolutamente improvável: os protagonistas vão de noite numa motocicleta em pleno recolher até uma mina fechada pelos militares, atravessam o cerco, entram por um terreno proibido, abrem a mina com pás e picaretas, encontram os restos dos corpos assassinados, tiram fotografias, voltam com as provas e entregam-nas ao cardeal que, finalmente, ordena a abertura do túmulo. Isto é impossível, disse ela, ninguém se atreveria a correr semelhante risco em plena ditadura. Não me ocorre outra maneira de resolver o argumento, considerado como uma liberdade literária, repliquei. O livro foi editado em 1984. Passados quatro anos foi eliminada a lista dos exilados que não podiam regressar ao Chile e eu senti-me livre para regressar pela primeira vez ao meu pais para votar no plebiscito que, por fim, derrubou Pinochet. Uma noite tocou a campainha da casa de minha mãe em Santiago e um homem insistiu em falar comigo em privado. A um canto do terraço disse-me que era sacerdote, que soubera em segredo de confissão o caso dos corpos enterrados em Lonquén, tinha lá ido na sua motocicleta durante o recolher, aberto a mina interdita à pá e picareta, fotografado os restos e levado as provas ao cardeal, que lá mandou um grupo de sacerdotes, jornalistas e diplomatas para abrir o túmulo clandestino.
- Ninguém sabe disso excepto o cardeal e eu. Se tivesse sido difundida a minha participação nesse caso, certamente não estaria aqui a falar consigo, também eu teria desaparecido. Como é que soube? - perguntou-me.
- Foi-me assoprado pelos mortos respondi, mas ele não acreditou.
Esse livro também trouxe o Willie à minha vida, por isso lhe estou grata.
Os meus dois primeiros romances demoraram bastante a atravessar o Atlântico, mas por fim chegaram às livrarias de Caracas, algumas pessoas leram-nos, publicaram-se algumas criticas favoráveis, e isso modificou a minha qualidade de vida. Abriram-se-me círculos aos quais não tivera acesso, conheci gente interessante, alguns meios da imprensa pediram-me elaborações e fui contactada por produtores de televisão a oferecer-me a entrada pela porta principal, mas nessa altura eu já sabia como são incertas essas promessas e não me arrisquei a deixar o meu emprego certo no colégio. Certo dia no teatro aproximou-se de mim um homem de falas doces e uma pronúncia cuidada para me felicitar pelo meu primeiro romance, disse que o tocara profundamente, entre outras coisas porque vivera com a família no Chile durante o Governo de Salvador Allende e assistira ao Golpe Militar. Mais tarde soube que também estivera preso naqueles primeiros dias de brutalidade indiscriminada, porque os vizinhos, confusos com a sua pronúncia julgaram que era um agente cubano e denunciaram-no. Assim começou a minha amizade com Ildemaro, a mais significativa da minha vida, um misto de bom humor e de graves lições. A seu lado aprendi muito; ele orientava as minhas leituras, revia alguns dos meus escritos e discutíamos política, quando penso nele parece que o estou a ver a apontar-me com o indicador enquanto me instrui acerca da obra de Benedetti ou dissipa as brumas do meu cérebro com uma douta prelecção socialista, mas essa imagem não é a única, lembro-o também a morrer de riso ou vermelho de vergonha quando lhe deitávamos abaixo a solenidade à força de piadas. Integrou-nos na sua família e pela primeira vez em muitos anos voltámos a sentir o calor de uma tribo, recomeçaram os almoços domingueiros, os nossos filhos consideravam-se primos e todos tínhamos chaves de ambas as casas. Ildemaro, que é médico mas tem maior vocação para a cultura, fornecia-nos entradas para um sem-fim de sessões as quais assistíamos para não o ofender. De início a Paula foi a única com coragem bastante para se rir na sua presença das vacas sagradas da Arte, e logo todos nós seguimos o seu exemplo, e acabámos por formar um grupo doméstico de teatro com o propósito de parodiar os actos culturais e as prelecções intelectuais do nosso amigo, mas ele encontrou rapidamente uma maneira astuta de esboroar os nossos planos: converteu-se no membro mais activo da companhia. Sob a sua direcção montámos alguns espectáculos que transcenderam os limites do esforçado círculo de amigos, tal como uma conferência sobre o ciúme na qual apresentámos uma máquina de nossa invenção para medir o “nível de ciúmo-tipía” nas vítimas desse grave flagelo. Uma associação de psiquiatras - não me lembro se discípulos de Jung ou de Lacan - levou-nos a sério, fomos convidados para fazer uma demonstração e certa noite fomos parar à sede do Instituto com a nossa charla sem pés nem cabeça. A máquina dos ciúmes consistia num caixão preto com caprichosas lâmpadas que se acendiam e apagavam, e erráticos ponteiros que marcavam números, ligado por cabos de bateria a um capacete na cabeça da Paula, que desempenhava valentemente o papel de cobaia da experiência, enquanto o Nicolás dava voltas a uma manivela. Os psiquiatras ouviam atentos e tornavam notas, alguns pareciam algo perplexos, mas no geral ficaram satisfeitos e no dia seguinte apareceu no jornal uma douta resenha ela conferência. Paula sobreviveu à máquina dos ciúmes e tanto se afeiçoou ao Ildemaro que o fez depositário das suas mais íntimas confidências, e para lhe dar prazer aceitava o papel de estrela em todas as produções da companhia. Agora o 1ldemaro telefona-me com frequência para saber dela, ouve os pormenores em silêncio e tenta dar-me coragem, embora não esperança, pois ele não a tem. Naquela altura nada fazia prever que o destino da minha filha iria sofrer este descalabro, era nesse tempo uma bela estudante nos seus vinte anos, brilhante e alegre, que não se importava com o ridículo num palco se o Ildemaro lho pedia. A infatigável Avó Hilda, que saíra do Chile acompanhando a família no exílio e vivia metade da sua vida em nossa casa, mantinha a funcionar uma casa de costura na casa de jantar, onde fabricávamos disfarces e cenários. Michael participava de bom humor, embora de vez em quando lhe falhassem a saúde e o entusiasmo. O Nicolás, que sofria de pânico do palco e de vergonha dos outros, encarregava-se da montagem técnica: luz, som e efeitos especiais, dessa maneira podia manter-se oculto nos bastidores. A pouco e pouco a maior parte dos nossos amigos foram-se integrando no teatro e não ficou ninguém para fazer de público, mas encenar as obras era tão divertido para os actores e músicos que pouco importava representar diante de uma sala vazia. A casa encheu-se de gente, de barulho e risos, finalmente tínhamos uma família alongada e sentíamo-nos bem naquela nova pátria.
Com os meus pais, porém, não acontecia o mesmo. O tio Ramón via os setenta anos a aproximar-se e desejava regressar para morrer no Chile, como explicou com certo dramatismo, provocando-nos gargalhadas, por sabermos ser ele imortal. Meses mais tarde vimo-lo fazer as malas e pouco depois partia com a minha mãe de regresso a um país onde não pusera os pés há muitos anos e onde ainda governava aquele mesmo general. Senti-me órfã, temia por eles, pressentia que não voltaríamos a viver na mesma cidade e preparei-me para recomendar a velha rotina das cartas diárias. Para a sua despedida oferecemos-lhes uma festa com cozinhados e vinhos chilenos e a última obra da companhia. Através de canções, danças, actores e palhaços contámos as vidas atormentadas e os amores ilegais da minha mãe e do tio Ramón, representados pela Paula e por Ildemaro, este provido de diabólicas sobrancelhas postiças. Dessa vez tivemos público, porque assistiram à peça quase todos os bons amigos que nos tinham acolhido naquele cálido país. Em lugar de honra estava Valentin Hernandez, cujos generosos vistos nos tinham aberto as portas da Venezuela. Foi a última vez que o vimos, pouco depois morreu de uma doença súbita deixando no desamparo a mulher e os descendentes. Era um daqueles patriarcas amorosos e vigilantes que abrigam sob a sua capa protectora todos os seus. Custou-lhe morrer pois não queria partir deixando a família exposta aos vendavais destes aterradores tempos modernos e no fundo do coração talvez sonhasse levá-los com ele. Um ano depois a viúva reuniu as filhas, os genros e os netos para comemorar a morte do marido de maneira alegre, como ele teria gostado, e levou-os todos num passeio à Florida. O avião explodiu no ar e não ficou ninguém daquela família para chorar os ausentes ou receber as condolências.
Em Setembro de 1987, foi publicado em Espanha o meu terceiro romance, Eva Luna, escrito em plena luz do dia num computador, no amplo estúdio de uma casa nova. Os dois livros anteriores convenceram a minha agente de que eu pensava levar a literatura a sério, e a mim de que valia a pena correr o risco de deixar o meu emprego e dedicar-me à escrita, apesar de o meu marido continuar na sua bancarrota e ainda não termos acabado de pagar dívidas. Vendi as acções do colégio e comprámos um casarão no alto de uma colina, em mau estado, é certo, mas o Michael renovou-o convertendo-o num refúgio soalheiro onde sobrava espaço para visitas, parentes e amigos, e onde a Avó Hilda pôde instalar comodamente o seu atelier de costura e eu o meu gabinete. A meia altura da colina a casa tinha entre os seus alicerces uma cave com luz e ar fresco, tão grande que plantámos no meio de um jardim tropical a mata que substituiu os malmequeres das minhas nostalgias. As paredes estavam cobertas de estantes repletas de livros e, como único móvel, contava com uma enorme mesa no centro da sala. Esse foi um tempo de grandes mudanças. A Paula e o Nicolás, convertidos em jovens independentes e ambiciosos, iam à universidade, deslocavam-se sozinhos e era evidente que já não precisavam de mim, mas a cumplicidade entre nós três permaneceu imutável. Depois de acabado o namoro com o jovem siciliano, a Paula aprofundou os seus estudos de Psicologia e Sexualidade. A sua cabeleira castanha caía-lhe até à cintura, não se pintava e acentuava o seu aspecto virginal com compridas saias de algodão branco e sandálias. Fazia trabalho voluntário nas mais bravias povoações marginais, sítios aonde nem a polícia se aventurava depois do pôr do Sol. Nessa altura a violência e o crime tinham aumentado enormemente em Caracas, a nossa casa fora assaltada várias vezes e circulavam rumores horríveis de crianças raptadas nos centros comerciais para lhes arrancarem as córneas e vendê-las a bancos de olhos, de mulheres violadas nos estacionamentos, de gente assassinada só para roubarem um relógio. A Paula sala conduzindo o seu pequeno automóvel com uma mala de livros às costas e eu ficava a tremer por ela. Roguei-lhe mil vezes que não se metesse por aqueles atoleiros, mas ela não me ouvia porque se sentia protegida pelas suas boas intenções e julgava que naqueles sítios todos a conheciam. Possuía uma mentalidade clara, mas conservava o nível emocional de uma rapariguinha; a mesma mulher que no avião decorava o mapa de uma cidade onde nunca pusera os pés, alugava um automóvel no aeroporto e conduzia sem hesitar até ao hotel, ou então era capaz de preparar em quatro horas um curso sobre literatura para que o meu nome reluzisse numa universidade, desmaiava quando a vacinavam e tremia de pavor ao ver um filme de vampiros. Praticava as suas provas de psicologia com o Nicolás e comigo, assim chegou à conclusão de que o irmão tem um nível intelectual próximo da genialidade e que, pelo contrário, a mãe sofre de um profundo atraso. Fez-me passar as provas várias vezes e os resultados não se modificaram, sempre deram um coeficiente intelectual lamentável. Menos mal que nunca tentou ensaiar connosco os seus acessórios do seminário de sexualidade.
Com Eva Luna tomei finalmente consciência de que o meu caminho é a literatura e atrevi-me a dizer pela primeira vez: sou escritora. Quando me sentei à máquina para começar o livro não o fiz como das duas vezes anteriores, cheia de desculpas e dúvidas, mas sim em pleno uso da minha vontade e até com uma certa dose de altivez. Vou escrever um romance, disse em voz alta. Em seguida liguei o meu novo computador e sem pensar duas vezes avancei com a primeira frase: Chamo-me Eva, que quer dizer vida...
A minha mãe chegou de visita à Califórnia. Quase a não reconheci no aeroporto, parecia uma bisavó de porcelana, uma velhinha vestida de preto com uma voz trémula e a cara estragada por desgostos e cansaço da viagem de vinte horas desde Santiago. Desatou a chorar ao abraçar-me e assim continuou todo o caminho, mas ao chegar enfiou direita à casa de banho, tomou um duche, vestiu-se de cores alegres e desceu a sorrir para saudar a Paula. A menina está no limbo, minha rica senhora, junto dos bebés que morreram sem baptismo e outras almas salvas do purgatório, tentou consolá-la uma das assistentes. Que perda, meu Deus, que perda! murmura a minha mãe com frequência, mas nunca diante da Paula, porque pensa que ela talvez a possa ouvir. Não projecte as suas angústias e os seus desejos nela, minha senhora, avisou-a o doutor Shima, a vida anterior da sua neta terminou, agora vive noutro estado de consciência. Como era previsível, a minha mãe prendeu-se ao doutor Shima. É um homem sem idade, com o corpo gasta, a cara e as mãos jovens e uma mata de cabelo escuro, usa suspensórios de elástico e as calças subidas até aos sovacos, desloca-se coxeando ligeiramente e ri-se com expressão maliciosa como um petiz apanhado em falta. Ambos rezam pela Paula, ela com a sua fé cristã e ele com a budista. No caso da minha mãe é o triunfo da esperança sobre a experiência, porque passou dezassete anos pedindo para que o general Pinochet fosse desta para melhor, e ele não só se encontra ainda de boa saúde, como continua a segurar a frigideira pelo cabo no Chile. Deus tarda, mas cumpre, replica ela quando lhe lembro isso, garanto-te que o Pinochet vai a caminho da cova. Assim vamos todos desde que nascemos, morrendo a pouco e pouco. A tarde esta avó irónica instala-se a tricotar ao pé da neta e fala com ela sem lhe importar o silêncio sideral onde caem as suas palavras, conta-lhe coisas do passado, informa-a dos dichotes da última hora, comenta a sua própria vida e às vezes canta desafinada um hino a Maria, a única canção completa de que se lembra. julga que desde a sua cama ela realize milagres subtis, nos obriga a crescer e nos ensina os caminhos da compaixão e da sabedoria. Sofre por ela e sofre por mim, duas dores que não pode evitar.
- Onde estava a Paula antes de vir ao mundo através de mim? Para onde irá quando morrer?
- A Paula já está em Deus. Deus é o que une, aquilo que mantém o tecido da vida, isso a que tu chamas amor respondeu a minha mãe.
O Ernesto apareceu por cá aproveitando uma semana de férias. Mantinha ainda a ilusão de que a sua mulher recuperasse o bastante para partilhar a vida com ela, embora muito limitada. Imaginava que ia acontecer um prodígio e ela acordava repentinamente com um grande bocejo, procuraria às apalpadelas a sua mão e perguntaria o que tinha acontecido com a voz destemperada por falta de uso. Os médicos enganam-se muitas vezes e da mente sabe-se pouco, disse-me ele. Apesar de tudo já não foi impetuosamente vê-la, mas com prudência, como que assustado. Tínhamo-la bem penteada e vestida com a roupa que ele trouxera numa visita anterior. Abraçou-a com imensa ternura enquanto as assistentes se escapuliam para a cozinha, comovidas, e a minha mãe e eu procurávamos um refúgio na varanda. Nos primeiros dias passou horas a esquadrinhar as reacções da Paula procurando algum indício de inteligência, mas foi desistindo pouco a pouco, vi como ele se abatia, se encolhia, até que a aura optimista da sua chegada se converteu na penumbra que a todos nos envolve. Dei-lhe a entender que a Paula já não é sua esposa mas sua irmã espiritual, que não se deve considerar preso a ela, mas olhou-me como se ouvisse um sacrilégio. Na última noite foi-se abaixo e apercebeu-se finalmente de que não haverá milagre capaz de lhe devolver a sua noiva eterna e que por muito que procure nada encontrará no tremendo abismo dos seus olhos vazios. Acordou aterrado com um sonho mau e veio às escuras até ao meu quarto, trémulo e molhado de suor e lágrimas, para mo contar.
- Sonhei que a Paula subia uma comprida escada telescópica e ao chegar lá acima lançava-se no vazio antes de eu poder segurá-la, deixando-me desesperado. A seguir via-a morta sobre uma mesa e ali permanecia intacta muito tempo, enquanto a minha vida ia decorrendo. Pouco a pouco ela começava a perder peso e o cabelo ia-lhe caindo, até que de súbito se erguia e tentava dizer-me qualquer coisa, mas eu interrompias para lhe reprovar o facto de me ter abandonado. Ela voltava a adormecer em cima da mesa; cada vez se deteriorava mais embora não morrendo por completo. Por fim eu via que a única maneira de ajudá-la era destruindo-lhe o corpo, pegava nela com os braços e punha-a no fogo. Reduzia-se a cinza, que eu ia espalhando às mãos cheias num jardim. O seu espectro aparecia estão para se despedir da família, por último dirigia-se a mim dizendo que me amava e a seguir começava a desvanecer-se...
- Deixa-a ir, Ernesto - supliquei-lhe.
- Se tu podes despedir-te dela, então eu também posso - respondeu.
Eu pensei então que há séculos imemoriais que as mulheres perderam filhos, que é a dor mais antiga e inevitável da humanidade. Não sou a única, quase todas as mães passam por essa provação, quebram-se-lhe os corações, mas continuam a viver porque têm de proteger e amar aqueles que ficam. Somente um grupo de mulheres privilegiadas em épocas muito recentes e em países avançados nos quais a saúde está ao alcance de quem a pode pagar, confia em que todos os seus filhos chegarão à idade adulta. A morte está sempre à espreita. Fui com o Ernesto ao quarto da Paula, fechámos a porta e sozinhos procedemos ao improviso de um breve ritual de adeus. Dissemos-lhe quanto a amávamos, rememorámos os anos esplêndidos vividos juntos e garantimos-lhe que permanecerá para sempre na nossa memória. Prometemos-lhe acompanhá-la neste mundo até ao último instante e que nos voltaremos a reunir no outro, porque na realidade não existe separação. Morre, meu amor, implorou o Ernesto de joelhos ao pé da cama. Morre, minha filha, acrescentei eu em silêncio, porque a voz não me saiu da garganta.
O Willie afirma que eu falo e caminho a dormir, mas isso não é verdade. De noite vagueio descalça e calada pela casa, para não incomodar os espíritos e as mofetas que chegam silenciosas para devorar a comida da gata. Por vezes encontramo-nos frente a frente e elas erguem as belas caudas esfriadas, como peludos pavões reais, e olham-me com os focinhitos a tremer, mas já se devem ter habituado à minha presença, porque até agora nunca dispararam os seus jactos mortíferos dentro de casa, somente na cave. Não ando sonâmbula, ando apenas triste. Toma um comprimido e tenta repousar umas horas, suplica-me o Willie esgotado, devias ir ver um psiquiatra, andas obcecada e de tanto pensares na Paula acabas por ter visões. Repete-me que a minha filha não vem de noite ao nosso quarto, que isso é impossível, não se pode mexer, são apenas pesadelos meus, como tantos outros que me parecem mais reais que a realidade. Quem sabe... talvez existam outras vias de comunicação espiritual, não só os sonhos, e na sua terrível invalidem a Paula tenha descoberto a maneira de me falar. Os meus sentidos agudizaram-se para me aperceber do invisível, mas não estou louca. O doutor Shima vem muito amiúde, afirma que a Paula se converteu em seu guia. já passou o prazo de três meses e desapareceram os psíquicos, os hipnotizadores, os videntes e os médiuns, agora só a doutora Forrester e o doutor Shima tratam dela. As vezes ele limita-se a meditar por uns momentos ao pé dela, outras observa-a meticulosamente, coloca-lhe agulhas para lhe aliviar os ossos, administra-lhe mezinhas chinesas, depois bebe comigo uma chávena de chá e podemos falar sem pudores porque ninguém nos ouve. Atrevi-me a contar-lhe que a Paula vem de noite visitar-me e não lhe pareceu estranho, diz que também fala com ele.
- Como é que lhe fala, doutor?
- De madrugada acordo com a sua voz.
- Como sabe que é a voz dela? Nunca a ouviu...
- Às vezes vejo-a nitidamente. Assinala-me os pontos dolorosos, indica-me mudanças nos medicamentos, pede-me que ajude a mãe nesta provação, sabe quanto ela sofre. A Paula está muito cansada e quer partir, mas a sua natureza é forte e pode viver muito mais tempo.
- Quanto tempo, doutor Shima?
Tirou da sua maleta mágica um saquinho de veludo com os pauzinhos de I Ching, concentrou-se numa oração secreta, esfregou-os um bocado e lançou-os na mesa.
- Sete...
- Sete anos?
- Ou meses, ou semanas, não sei, o I Ching é muito vago...
Antes de se ir embora deu-me umas ervas misteriosas, pensa que a ansiedade corrói as defesas do corpo e da mente, que existe uma relação directa entre o cancro e a tristeza. Também a doutora Forrester me receitou alguma coisa contra a depressão, conservo o frasco fechado na cesta das cartas da minha mãe, escondido ao lado das pílulas para dormir, porque decidi não me aliviar com drogas; este é um caminho que devo percorrer a sangrar. As imagens do parto da Célia voltam-me com frequência, vejo-a a transpirar, desgarrada pelo esforço, a morder os lábios, passo a passo nessa longa prova sem ajuda de calmantes, serena e consciente, ajudando a filha a nascer. Vejo-a no esforço final, aberta como uma chaga quando surge a cabeça da Andrea, oiço o seu grito triunfal e o soluço de Nicolás e volto a entender a felicidade de todos na quietude sagrada deste quarto onde agora dorme a Paula. Talvez a estranha doença da minha filha seja como esse parto; tenho de apertar os dentes e resistir corajosamente, sabendo que esse tormento não será eterno, que tem de acabar um dia. Como? Só pode ser com a morte... Oxalá o Willie tenha paciência bastante para me esperar, o percurso pode ser muito longo, talvez dure os sete anos do I Ching; é difícil manter o amor saudável nestas condições, tudo conspira contra a nossa intimidade, ando com o corpo cansado e a alma ausente. O Willie não sabe como consolar-me e eu também não sei que lhe pedir, não se atreve a aproximar-se mais por temer importunar-me e ao mesmo tempo não quer deixar-me só; para a sua mentalidade pragmática o mais indicado seria internar a Paula num hospital e tentarmos continuar a nossa vida comum, mas não menciona essa alternativa diante de mim, por saber que isso nos separaria irrevogavelmente. Gostaria de tirar-te esse peso de cima e carregar eu com ele porque tenho os ombros mais largos, diz-me desesperado, mas a ele já lhe chegam as suas próprias infelicidades. A minha filha descaí suavemente nos meus braços, mas a dele está a suicidar-se com drogas nos bairros mais sórdidos da outra margem da baía, talvez morra antes da minha com uma ultra dose, de uma facada ou de sida. O filho mais velho erra como um mendigo pelas ruas a cometer roubos e tráficos indignos. Se o telefone toca de noite o Willie salta da cama com o recôndito pressentimento de que o cadáver da filha jaz num dos cais do porto, ou de que a voz de um polícia lhe vai anunciar mais um crime cometido pelo filho. As sombras do passado espreitam-no sempre e vergastam-no tão frequentemente que já nem as piores notícias o vergam, cai de joelhos, mas no dia seguinte volta a pôr-se de pé. Muita vez pergunto a mim própria como vim eu parar a este melodrama. A minha mãe atribui-o ao meu gosto pelas histórias truculentas, acha que é esse o principal ingrediente da minha atracção pelo Willie, outra mulher com mais senso comum teria evitado perder-se ao ver tamanho descalabro. Quando o conheci ele não tentou ocultar que a sua vida era um caos, desde o princípio eu soube dos seus filhos delinquentes, das suas dívidas e dos enredos do seu passado, mas com a impetuosa arrogância do amor recém-descoberto, decidi que não haveria obstáculos capazes de nos derrotar.
Torna-se difícil imaginar dois homens tão diferentes como o Michael e o Willie. Em meados de 1987 o meu casamento já não dava para mais, o tédio instalara-se definitivamente entre nós e para não nos encontrarmos acordados à mesma hora entre os mesmos lençóis, voltei ao meu velho hábito de escrever de noite. Deprimido, sem trabalho e metido em casa, o Michael passava por um mau período. Para evitar a sua presença constante por vezes escapulia-me para a rua e perdia-me no emaranhado das auto-estradas de Caracas. Lutando contra o trânsito resolvi muitas cenas de Eva Luna e ocorreram-me outras histórias. Num memorável engarrafamento, em que fiquei enfiada durante horas no automóvel sob o calor de chumbo derretido, escrevi Dos Palabras de um jacto no dorso dos meus cheques, uma espécie de alegoria sobre o poder alucinante da narração e da linguagem, que pouco tempo depois me serviu de partida para uma colecção de contos. Embora pela primeira vez me sentisse segura no estranho ofício da escrita - com os dois livros anteriores tivera a impressão de ter aterrado por acidente num lamaçal escorregadio - Eva Luna ia-se escrevendo por si só, quase contra minha vontade. Não tinha controlo sobre esse história descabelada, não imaginava para onde se dirigia nem como acabá-la, estive a ponto de massacrar os personagens todos num tiroteio para sair do embaraço e livrar-me deles. Para cúmulo, a meio caminho fiquei sem protagonista masculino. Tinha planeado tudo para que Eva e Huberto Naranjo, dois meninos órfãos e pobres, que sobrevivem no meio da rua e crescem por caminhos paralelos, se apaixonem. A meio do livro deu-se o encontro esperado, mas quando por fim se abraçaram, deu-se o caso de a ele lhe interessarem mais as suas actividades revolucionárias e de ser um amante extremamente desajeitado; Eva merecia melhor, assim mo fez saber e não houve forma de a convencer do contrário. Encontrei-me num beco sem saída, com a heroína a esperar aborrecida enquanto o herói sentado aos pés da cama limpava a sua espingarda. Por essa ocasião tive de ir à Alemanha para visitas promocionais. Aterrei em Francoforte e dali segui para o resto do país de automóvel com um condutor impaciente que voava pelas auto-estradas a uma velocidade suicida. Certa noite numa cidade do Norte, após a minha conferência, aproximou-se de mim um homem que me convidou a beber uma cerveja porque, segundo dizia, tinha uma história para mim. Sentados num pequeno café, onde apenas podíamos ver as nossas caras na penumbra e no meio do fumo dos cigarros, enquanto lá fora chovia, o desconhecido foi-me revelando o seu passado. O pai dele tinha sido oficial do exército nazi, um homem cruel que maltratava a mulher e os filhos e a quem a guerra dera oportunidade de satisfazer os seus instintos mais brutais. Falou-me da irmã mais nova, atrasada mental e de como o pai, imbuído da soberba racial, nunca a aceitara e a obrigava a viver de gatas e calada debaixo da mesa, tapada com uma toalha branca, para a não ver. Tomei nota num guardanapo de papel de tudo aquilo e de muito mais que o homem me deu como um presente nessa noite. Antes de nos despedirmos perguntei-lhe se podia usar aquele material e ele respondeu que era para isso mesmo que mo tinha contado. Ao chegar a Caracas introduzi Rolf Carlé de corpo inteiro diante dos meus olhos, um fotógrafo austríaco que se converteu no protagonista cio romance e substituiu Huberto Naranjo no coração de Eva Luna.
Numa daquelas manhãs quentes de junho em Caracas, quando muito cedo ainda se começa a formar a trovoada sobre os montes, o Michael desceu ao estúdio na cave para me trazer o correio, enquanto eu andava perdida pela selva amazónica com Eva Luna, Rolf Carlé e os seus companheiros de aventuras. Ao ouvir a porta levantei a vista e vi Lima figura desconhecida atravessando a superfície nua do quarto, um homem alto, magro, de barba grisalha e óculos, de ombros descaídos e uma aura opaca de fragilidade e melancolia. Demorei alguns segundos a reconhecer o meu marido e então compreendi como nos tínhamos tornado estranhos um do outro, procurei na memória o lastro do amor airoso dos vinte anos e nem sequer as cinzas consegui encontrar, mas unicamente o peso das insatisfações e o tédio. Tive a visão de um futuro árido a envelhecer dia após dia junto daquele homem que já não admirava nem desejava, e senti um clamor de rebeldia que brotava do próprio centro da minha natureza. Nesse momento as palavras silenciadas durante anos com rija disciplina saíram-me numa voz que não reconheci como a minha.
- Não posso mais, quero separar-me - disse-lhe, sem me atrever a olhá-lo de frente, e ao dizê-lo desapareceu aquela vaga dor de boi cansado que eu trazia há anos nos ombros.
- Há já algum tempo que te acho distante. Presumo que já não gostas de mim e temos de pensar na separação - balbuciou.
Não há muito em que pensar, Michael. Visto que está dito, o melhor é fazê-lo hoje mesmo, Assim foi. Reunimos os filhos, explicámos-lhes que tínhamos deixado de nos amar como casal, embora a amizade permanecesse intacta, e pedimos-lhes ajuda para os pormenores práticos de desfazer o lar comum. Nicolás ficou vermelho, como sempre acontece quando tenta controlar Lima emoção muito forte, e a Paula começou a chorar de compaixão pelo pai, que ela sempre protegia. Soube depois que o esperavam. O Michael parecia paralisado, mas a mim deu-me uma febre de actividade, comecei a tirar chávenas e pratos da cozinha, roupa dos armários, livros das estantes e a seguir saí para comprar panelas, uma cafeteira, cortinados para o duche, lâmpadas, produtos alimentares e até plantas para instalar tudo noutro sítio; com o resto das energias pus-me a colar remendos de pano na casa da costura para fazer uma colcha, que até hoje conservo em meu poder como recordação dessas horas frenéticas que decidiram da segunda parte da minha vida. Os filhos dividiram os nossos pertences, redigiram um acordo simples numa folha de papel e os quatro assinámos sem cerimónias nem testemunhas; depois a Paula arranjou um apartamento para o pai e o Nicolás uma carrinha para transportar a metade dos nossos bens. Em poucas horas desfizemos vinte e nove anos de amor e vinte e cinco de casamento, sem bater com as portas, sem recriminações nem advogados, apenas com algumas lágrimas inevitáveis, porque apesar de tudo sentíamos carinho um pelo outro e de certo modo creio que ainda o sentimos. A noite rebentou a trovoada que se fora formando durante o dia, uma daquelas escandalosas chuvas tropicais com trovões e relâmpagos que costumam converter Caracas numa zona de cataclismo, entopem-se os esgotos, inundam-se as ruas, o trânsito converte-se em gigantescas serpentes de automóveis parados e a lama arrasa os bairros pobres nas colinas. Quando por fim se afastou a carrinha do divórcio, seguido do automóvel dos meus filhos que iam instalar o pai na sua nova casa, e eu fiquei só na minha, abri portas e janelas para que entrassem o vento e a água e varressem e lavassem o passado, e desatei a dançar e a rodopiar como um derviche enlouquecido, chorando de tristeza por tudo o que perdia e rindo de alívio por tudo o que ganhava, enquanto lá fora trilavam grilos e coaxavam sapos e para dentro da casa escorria a torrente de chuva pelo soalho e o vendaval arrastava folhas mortas e plumas de pássaros num torvelinho de despedidas e de liberdade.
Eu tinha quarenta e quatro anos, julguei que dali em diante o meu destino era envelhecer sozinha e esperava fazê-lo com dignidade. Telefonei ao tio Ramón para lhe pedir que processasse a anulação do matrimónio no Chile, processo simples se o casal está de acordo, se paga a um advogado e se conta com alguns amigos dispostos a cometer perjúrio. Fugindo a explicações e para iludir o meu sentimento de culpa, aceitei uma série de conferências que me levaram da Islândia até Porto Rico, passando por uma dúzia de cidades norte-americanas. Nessa variedade de climas eu precisava de toda a minha roupa, mas decidi levar apenas o indispensável, o garbo andava afastado do meu ânimo, sentia-me instalada sem apelo numa madurez desapaixonada, por isso foi uma grata surpresa verificar que os galãs não faltam quando uma mulher está disponível. Escrevi uma declaração com três cópias retratando-me da outra que assinara na Bolívia, na qual acusava o tio Ramón de ser o culpado de eu não vir a conhecer homens, e mandei-lha para o Chile em carta registada. As vezes é justo dar o braço a torcer... Nesses dois meses gozei do abraço de urso polar de um poeta em Reiquejavique, da companhia de um jovem mulato nas tórridas noites de San Juan e de outros memoráveis encontros. Sou tentada a inventar rituais selvagens de erotismo para adornar as minhas recordações, como penso que outros fazem, mas nestas páginas faço o possível por ser honesta. Nalguns momentos julguei tocar na alma do amante e consegui sonhar com a possibilidade de uma relação mais profunda, mas no dia seguinte apanhava outro avião e a exaltarão diluía-se nas nuvens. Cansada de beijos fugazes, na última semana decidi concentrar-me no meu trabalho, ao fim e ao cabo há muita gente que vive em castidade. Não imaginava que no final dessa viagem entontecido me aguardava o Willie e que a minha vida mudaria de rumo, as premonições falharam-me drasticamente.
Numa cidade do Norte da Califórnia aonde fui parar para a minha penúltima conferência, aconteceu-me um desses romances pirosos que constituem o material das colecções cor-de-rosa que eu traduzia na minha juventude. O Willie tinha lido De Amor e de Sombra, os personagens causavam-lhe pena e julgava ter descoberto nesse livro a espécie de amor que desejava, mas que ate então não lhe tinha surgido. Penso que não sabia onde procurá-lo, nessa altura punha anúncios pessoais nos jornais para encontrar um par, como me contou candidamente no nosso primeiro encontro. Ainda hoje andam pelas gavetas algumas cartas de resposta, entre as quais o alucinante retrato de uma senhora nua envolta numa jibóia constrictor, sem outro comentário além de um número de telefone na base da fotografia. Apesar da cobra - ou talvez por causa dela o Willie não se importou de conduzir duas horas para me conhecer. Uma das professoras da universidade que me convidara apresentou-mo como o último heterossexual solteiro de São Francisco. No final da palestra jantei com um grupo a uma mesa redonda num restaurante italiano; ele ficara à minha frente, com um copo de vinho branco na mão, calado. Admito que também senti curiosidade por aquele advogado norte-americano de ar aristocrático e gravata de seda que falava espanhol como um bandoleiro mexicano e ostentava uma tatuagem na mão esquerda. Era uma noite de lua cheia e a voz aveludada de Frank Sinatra cantava Strangers in the Night enquanto nos serviam raviolis; este é o tipo de pormenor vedado em literatura, ninguém se atreveria a juntar num livro a lua cheia com o Frank Sinatra. O problema com a ficção é que ela tem de ser crível, ao passo que a realidade só raramente o é. Não sei explicar o que atraiu o Willie, que tem um passado com mulheres altas e louras, a mim atraiu-me a sua história. E também, por que não dizê-lo, o seu misto de refinamento e rudeza, a sua força de carácter e uma íntima suavidade que eu intuí graças à minha mania de observar as pessoas para mais tarde as utilizar na escrita. A princípio não disse grande coisa, limitou-se a olhar-me por sobre a mesa com uma expressão indecifrável. Depois da salada pedi-lhe que me contasse a sua vida, um truque que me poupa o esforço de uma conversa, o interlocutor espraia-se enquanto a minha mente vagueia por outros mundos. Neste caso, porém, não tive de fingir interesse, mal começou a falar verifiquei que tropeçara numa dessas raras jóias tão apreciadas pelos narradores: a vida daquele homem era um romance. As amostras que me deu durante aquelas horas despertaram a minha codícia, nessa noite no hotel não pude dormir, precisava de saber mais. A sorte esteve do meu lado e no dia seguinte o Willie veio encontrar-me em São Francisco, última etapa da minha série de conferências, para me convidar a ver a baía do cimo de uma montanha e comer em casa dele. Imaginei um encontro romântico num apartamento moderno com uma vista da ponte Golden Gate, um cacto na porta, champanhe e salmão fumado, mas não aconteceu nada disso, a sua casa e a sua vida pareciam restos de um naufrágio. Fez-me entrar num desses automóveis desportivos onde dificilmente cabem duas pessoas e se viaja com os joelhos colados às orelhas e o traseiro a roçar pelo asfalto, sujo de pêlos de animais, latas de gasosa esmagados, batatas fritas fossilizadas e armas de brinquedo. O passeio até ao cimo da montanha e o majestoso espectáculo da baia impressionaram-me, mas pensei que dentro em pouco de nada me lembraria, já vi demasiadas paisagens e não tinha intenção de regressar ao Oeste dos Estados Unidos. Descemos por um caminho cheio de curvas e grandes árvores a ouvir um concerto na rádio e tive a sensação de já ter vivido antes aquele momento, de ter estado naquele lugar muitas vezes, de pertencer àquele sítio. Depois soube porquê: o Norte da Califórnia parece-se ao Chile, as mesmas costas escarpadas, os montes, a vegetação, os pássaros, a disposição das nuvens no céu.
A sua casa de um só piso, de um cinzento deslavado e telhado plano, ficava perto da água. O seu único encanto era um molhe de ruínas onde flutuava um barco convertido em ninho de gaivotas. Saiu-nos ao encontro o seu filho Harleigh. um miúdo de dez anos, tão hiperactivo que parecia demente; deitou-me a língua de fora ao mesmo tempo que dava ponta- pés nas portas e disparava projécteis de borracha com um canhão. Vi numa estante feios objectos decorativos de cristal e porcelana, mas quase não havia móveis, excepto os da casa de jantar. Explicaram-me que a árvore de Natal se tinha incendiado, chamuscando o mobiliário, e eu reparei então que ainda havia bolas natalícias penduradas do tecto com teias mie aranha acumuladas durante dez meses. Ofereci-me para ajudar o meu anfitrião a preparar a comida, mas senti-me perdida naquela cozinha abarrotada de utensílios e brinquedos. O Willie apresentou-me os restantes moradores da casa: o filho mais velho, por estranha coincidência nascido tio mesmo dia e ano que a Paula, tão drogado que mal conseguia erguer a cabeça, acompanhado por uma rapariga nas mesmas condições; um exilado búlgaro com uma filha menor, que tinham vindo pedir refúgio por uma noite e se instalaram de cama e mesa; e Jason, o enteado de Willie que ele recolheu depois de se ter divorciado da mãe, o único com quem consegui estabelecer uma comunicação humana. Mais tarde soube da existência de uma filha perdida na heroína e na prostituição, que eu só vi na cadeia ou no hospital, onde vai dar com os ossos com frequência. Três ratazanas cinzentas com os rabos mastigados e sangrentos enlanguesciam numa gaiola e vários peixes desmaiados flutuavam num aquário de água turva; havia ainda um canzarrão que urinou na sala e a seguir saiu alegremente para se meter no mar, para regressar na altura da sobremesa arrastando o cadáver putrefacto de um passaroco. Estive quase a fugir de volta ao hotel, mas a curiosidade foi mais forte que o pânico e fiquei. Enquanto o búlgaro via um desafio de futebol na televisão com a menina adormecida nos joelhos e os toxicodependentes ressonavam no seu paraíso particular, o Willie fazia todo o trabalho: cozinhava, metia braçadas de roupa na máquina de lavar, alimentava os numerosos animais, ouvia com paciência uma história surrealista que o Jason acabava de escrever e nos lia em voz alta e preparava o banho para o filho mais novo, que já com dez anos não era capaz de o fazer sozinho. Ainda não me tinha sido dado a ver um pai em tarefas de mãe e comoveu-me muito mais do que quis admitir; senti-me dividida entre uma saudável recusa daquela família desorientada e um perigoso fascínio por aquele homem com vocação maternal. Talvez nessa noite comecei mentalmente a escrever O Plano Infinito. No dia seguinte voltou a telefonar-me, a atracção mútua era evidente, mas compreendíamos que aquele sentimento não tinha futuro, porque além de todos os inconvenientes óbvios - filhos, mascotes, idioma, diferenças culturais e estilos de vida - separavam-nos dez horas de avião. De qualquer modo decidi deixar para trás os meus propósitos de castidade e passámos juntos uma única noite, embora na manhã seguinte nos despedíssemos para sempre, como nos filmes medíocres. Esse plano não pôde ser levado a cabo na privacidade do meu hotel mas sim em sua casa, porque ele não se atreveu a deixar o filho pequeno nas mãos do búlgaro, dos drogados ou do jovem intelectual. Cheguei com a minha mala a estoirar àquela estranha moradia onde o cheiro dos animais se misturava com o ar salgado do mar e o perfume de dezassete roseiras plantadas em barris, pensando que podia ir viver uma noite inesquecível e que, em todo o caso, não tinha nada a perder. Não estranhes se o Harleigh tiver uma crise de ciúmes, nunca convido amigas cá para casa, avisou-me o Willie e eu respirei aliviada porque pelo menos não encontraria a jibóia constrictor entre as toalhas de banho; mas o pequenito aceitou-me sem sequer me olhar pela segunda vez. Ao ouvir a minha pronúncia confundiu-me com alguma das numerosas criadas latinas que, após a primeira limpeza, desapareciam para sempre, espavoridas. Quando o miúdo viu que eu partilhava a cama com o pai já era tarde de mais, eu viera para ficar. Nessa noite o Willie e eu amámo-nos apesar dos pontapés exasperantes do rapazinho na porta, dos uivos do cão e das disputas dos outros rapazes. O quarto dele era o único refúgio naquela casa; pela janela viam-se as estrelas e os despojos do bote no molhe, criando uma ilusão de paz. Vi ao pé de uma cama grande uma arca de madeira, um candeeiro e um relógio, e um pouco mais longe um conjunto de música. No armário havia camisas e fatos de bom corte pendurados, na casa de banho - impecável - encontrei o mesmo sabonete inglês que o meu avô usava. Levei-o ao nariz, incrédula, não tinha cheirado aquela mistura de alfazema e desinfectante havia vinte anos, e a imagem chocarreira do velhote inesquecível sorriu-me do espelho. É fascinante observar os objectos do homem que começamos a amar, revelam os seus hábitos e os seus segredos. Abri a cama e apalpei os lençóis brancos e o edredão espartano, olhei para os títulos dos livros empilhados no chão, remexi por entre os frascos do seu armário farmacêutico e, salvo um antialérgico e pastilhas para os vermes do cão, não encontrei outros remédios; cheirei a sua roupa sem relento de tabaco Ou de perfume e em poucos minutos fiquei a saber muita coisa sobre ele. Senti-me intrusa naquele seu mundo onde não havia rastos femininos, tudo era singelo, prático e viril. E também me senti em segurança. Aquele quarto austero convidava-me a recomeçar limpamente longe do Michael, da Venezuela do passado. Para mim o Willie representava outro destino noutra língua e num país diferente, era como voltar a nascer, podia inventar uma versão fresca de mim própria só para aquele homem. Sentei-me aos pés da cama muito quieta, como um animal alerta, com as antenas dispostas em todas as direcções, examinando com os cinco sentidos e a intuição os sinais daquele espaço alheio, registando os sinais mais imperceptíveis, a subtil informação das paredes, dos móveis, dos objectos. Pareceu-me que aquele quarto pulcro anulava a terrível impressão do resto da casa, apercebi-me de que havia uma parte da alma do Willie que ansiava por ordem e refinamento. Agora, que vivemos juntos há vários anos, tudo tem a minha marca, mas nunca esqueci quem ele era nessa altura. As vezes fecho os olhos, concentro-me e volto a ver-me naquele quarto e a ver o Willie antes da minha chegada. Gosto de relembrar o cheiro do seu corpo antes de eu o tocar, antes de nos misturarmos e partilharmos o mesmo odor. Aquele breve momento no seu dormitório, enquanto ele tratava do Harleigh, foi decisivo; nesses minutos dispus-me a entregar-me sem reservas à experiência de um novo amor, Algo de essencial mudara dentro de mim, embora ainda o não soubesse. Faziam nove anos, desde os tempos confusos de Madrid, que eu me curava das paixões. O fracasso com o trovador da flauta mágica tinha-me ensinado lições elementares de prudência. É certo que amores não me faltaram, mas até àquela noite na casa do Willie não me tinha aberto para dar e receber sem reservas; uma parte de mim estava sempre vigilante e mesmo nos encontros mais íntimos e especiais, aqueles que inspiraram as cenas eróticas dos meus romances, mantive protegido o coração. Antes que o Willie fechasse a porta e ficássemos sós e abraçados, primeiro com cautela e depois com uma estranha paixão que nos sacudiu como um relâmpago, eu já tinha a intuição de que não se tratava de uma aventura intranscendente. Nessa noite amámo-nos com serenidade e lentidão, aprendendo os mapas e os caminhos como se dispuséssemos de todo o tempo no mundo para essa viagem, falando baixinho naquela mistura impossível de inglês e espanhol que desde sempre foi o nosso esperanto próprio, contando um ao outro rápidas impressões do passado nos intervalos das carícias, alheios por completo aos pontapés na porta e aos latidos do cão. Em dado momento fez-se silêncio, pois eu recordo nitidamente os murmúrios de amor, cada palavra, cada suspiro. Pela vidraça penetrava um ténue brilho das luzes distantes da baía. Habituada ao calor da Venezuela, eu tiritava de frio naquele quarto sem aquecimento, apesar de ter enfiado um pulóver de cachemira do Willie que me cobria até aos joelhos, tal como o seu abraço e o aroma do sabonete inglês. Ao longo das nossas vidas tínhamos acumulado experiências que talvez nos servissem para nos conhecermos e para desenvolver o instinto necessário para adivinhar os desejos um do outro, mas nem que tivéssemos agido desajeitadamente como cachorrinhos, julgo que de qualquer forma aquela noite teria sido decisiva para ambos. O que houve de novo para ele e para mim? Não sei, mas gosto de imaginar que estávamos destinados a encontrar-nos, reconhecer-nos, e amar-nos. Ou talvez a diferença tenha sido que navegámos entre duas correntes igualmente poderosas, a paixão e a ternura. Não pensei no meu próprio desejo, o meu corpo movia-se sem ansiedade, sem procurar o orgasmo, com a tranquila confiança de que tudo corria bem. Surpreendi-me com os olhos rasos de lágrimas, amaciada por aquela súbita afeição, acariciando-o grata e calmamente. Desejava ficar a seu lado, os filhos dele não me meteram medo, nem o facto de deixar o meu mundo e mudar de país; senti que aquele amor seria capaz de nos renovar, de nos devolver uma certa inocência, de lavar o passado, de iluminar os aspectos obscuros das nossas vidas. Depois dormimos num novelo de braços e pernas, profundamente, como se sempre tivéssemos estado juntos, tal como continuamos a fazê-lo todas as noites desde essa data.
O meu avião para Caracas partia muito cedo, ainda estava escuro quando o despertador nos acordou. Enquanto eu tomava duche, entontecido de cansaço e de impressões inesquecíveis, o Willie preparou café bem forte que teve a virtude de me fazer regressar à realidade. Despedi-me daquele quarto que durante algumas horas servira de templo, com a estranha suspeita de que voltaria a vê-lo dentro em pouco. A caminho do aeroporto, quando já começava a clarear o dia, o Willie insinuou-me com inexplicável timidez que eu lhe agradava.
- Isso não quer dizer grande coisa. Preciso de saber se o que aconteceu ontem à noite é uma invenção da minha mente ofuscada, ou se na verdade gostas de mim e temos alguma espécie de compromisso.
Foi tal a sua surpresa que se viu obrigado a sair da auto-estrada e a parar o carro; eu ignorava que a palavra compromisso nunca se menciona diante de um norte-americano solteiro.
- Acabamos de nos conhecer e tu vives noutro continente!
- É a distância que te preocupa?
- Vou visitar-te em Dezembro à Venezuela e então falaremos.
- Estamos em Outubro, daqui a Dezembro posso ter morrido.
- Estás doente?
- Não, mas nunca se sabe... Olha, Willie, não tenho idade para esperar. Diz-me agora mesmo se podemos dar uma oportunidade a este amor ou se mais vale esquecer todo este caso.
Pálido, pôs novamente o motor em marcha e fizemos o resto do trajecto em silêncio. Ao despedir-se beijou-me com prudência e voltou a dizer que iria ver-me nas férias do fim do ano. Mal o avião descolou tentei seriamente esquecê-lo, mas evidentemente isso não resultou porque ao descer em Caracas, o Nicolás notou.
- Que é que tens, mamã? Tens um ar esquisito.
- Estou esgotada, filho, há dois meses que ando de viagem, tenho de descansar, mudar de roupa e cortar o cabelo. - Acho que há outra coisa.
- Talvez esteja apaixonada...
- Na tua idade? Por quem? - perguntou às gargalhadas.
Não sabia ao certo o apelido do Willie, mas tinha o seu número de telefone e a sua morada e por sugestão do meu filho, que foi de opinião que passasse uma semana na Califórnia para tirar aquele gramo da cabeça, mandei-lhe pelo correio especial um contrato em duas colunas, um a descrever as minhas exigências e a outra aquilo que eu estava disposta a oferecer em troca. A primeira era bastante mais comprida que a segunda e incluía alguns pontos-chave, tais como fidelidade, porque a experiência me ensinou que o contrário disso aniquila o amor e cansa muito, e outros anedóticos, tais como o de reservar o meu direito de decorar a nossa casa ao meu gosto. O contrato baseava-se na boa-fé: nenhum dos dois faria nada de propósito para ferir o outro, se tal acontecesse seria por erro, não por maldade. O Willie achou tanta graça que esqueceu a sua cautela de advogado, assinou o papel com intuito de continuar com a piada e mandou-mo de volta. Então meti no saco alguma roupa e os fetiches que sempre me acompanham e pedi ao meu filho para me levar ao aeroporto. Vejo-te daqui a pouco, mamã, dentro de dias estás de regresso com o rabo entre as pernas, foi a sua despedida gozona. Da Virgínia, onde estudava para o mestrado, a Paula manifestou ao telefone as suas dúvidas sobre essa aventura.
- Eu conheço-te, velhota, vais-te meter num sarilho e peras. A ilusão não te vai desaparecer numa semana, como pensa o Nicolás. Se vais visitar esse homem é porque estás disposta a ficar com ele; pensa que se o fizeres estás frita, porque vais ter de arcar com todos os seus problemas - disse-me ela, mas já era tarde para advertências ajuizadas.
Os primeiros tempos foram de pesadelo. Até então eu tinha considerado os Estados Unidos como meus inimigos pessoais devido à sua política externa desastrosa para a América Latina e a sua participação no Golpe Militar no Chile. Foi-me necessário viver naquele império e percorrê-lo de uma ponta à outra para entender a sua complexidade, conhecer o país e aprender a amá-lo. Não utilizara o meu inglês havia mais de vinte anos, mal conseguia decifrar a ementa num restaurante, não percebia as notícias na televisão nem as anedotas, e muito menos a linguagem dos filhos de Willie. A primeira vez que fomos ao cinema e me encontrei sentada no escuro ao lado de um amante com uma camisa de xadrez e botas de vaqueiro tendo nos joelhos um invólucro de pipocas e uma garrafa de litro de gasosa, enquanto num ecrã um demente destroçava os seios de uma rapariga com um picador de gelo, julguei ter chegado ao limite da minha resistência. Nessa noite telefonei à Paula, como fazia com frequência. Em lugar de me repetir a sua advertência lembrou-me os profundos sentimentos que me ligaram ao Willie desde o principio, e aconselhou-me a não gastar energia com coisas mesquinhas e a concentrar-me nos verdadeiros problemas. Na realidade existiam casos muito mais graves do que umas botas de vaqueiro ou um canudo de pipocas, desde lidar com os insólitos personagens que nos invadiam a casa até adaptar-me ao estilo e ao ritmo de vida de Willie, que estava solteiro há oito anos e o que menos desejava era uma mulher mandona no seu destino. Comecei por comprar lençóis novos e queimar os que ele tinha numa fogueira no pátio, cerimónia simbólica destinada a fixar na sua mente a ideia da monogamia. Que está a fazer esta mulher? perguntou o Jason meio asfixiado com o fumo. Não te preocupes, devem ser costumes dos aborígenes da terra dela, tranquilizou-o o Harleigh. De seguida atirei-me a pôr em ordem e limpar a casa com tal fervor, que por descuido foram para o lixo todas as ferramentas. O Willie esteve quase a explodir numa crise de violência, mas lembrou-se do ponto básico do nosso contrato; não era maldade da minha parte, apenas um erro. A vassoura também levou à sua frente as velhas decorações de Natal, as colecções de figuras de cristal e fotografias de amantes de pernas compridas, mais quatro caixotes com pistolas, metralhadoras, bazukas e canhões do Harleigh, que foram substituídos por livros e brinquedos didácticos. Os peixes agonizantes sumiram-se pelo esgoto e soltei as ratazanas da gaiola. De qualquer modo aqueles animais levavam uma existência miserável, sem outro objectivo que o de mastigarem os rabos mutuamente. Expliquei ao garoto que os infelizes roedores encontrariam actividades mais dignas nos jardins da vizinhança, mas passados três dias sentimos uns leves arranhões na porta e ao abri-la demos com um deles com as tripas de fora, olhando-nos com olhos febris e implorando para entrar com borborigmas de agonizante. O Willie ergueu a ratazana do chão e durante as semanas seguintes dormiu connosco no quarto, tratámo-la com pensos cicatrizantes e antibióticos, até que recuperou a saúde. Ao ver tanta mudança o búlgaro desapareceu à procura de um lar mais estável e, depois de roubar o automóvel do pai, o filho mais velho e a noiva desapareceram também. O Jason, que passara o último ano a descansar de dia e na farra de noite, não teve outro remédio senão levantar-se cedo, tomar um duche, arrumar o seu quarto e partir a ranger os dentes para o colégio. Harleigh foi o único que aceitou a minha presença e tolerou as novas regras de bom humor porque pela primeira vez se sen1tia seguro e acompanhado; andava tão contente que com o tempo perdoou o misterioso desaparecimento das mascotes e do seu arsenal de guerra. Até essa altura não tivera qualquer espécie de limites, comportava-se como um pequeno selvagem capaz de partir vidros a murro num ataque de rebeldia. Tão insondável era o vazio no seu coração que em troca de suficiente carinho e brincadeiras para o preencher se dispôs a aceitar aquela madrasta estrangeira, que chegara a transtornar-lhe a casa e tirar-lhe boa parte da atenção do seu pai. Mais de quatro anos de experiência no colégio de Caracas a tratar com crianças difíceis não me serviram de muito com o Harleigh, os seus problemas ultrapassavam o saber do maior perito e o seu afã em incomodar a pessoa mais paciente, mas por sorte partilhávamos a mesma simpatia zombeteira, bastante parecida com o carinho, que nos ajudou a suportarmo-nos um ao outro.
- Não sou obrigado a gostar de ti - disse-me com uma careta desafiadora na semana em que nos conhecemos, quando para ele já era nítido que não seria fácil livrar-se de mim.
- Nem eu. Podemos fazer um esforço e tentar gostar um do outro, ou simplesmente convivermos com boa educação. Que preferes?
- Tentemos gostar um do outro.
- Está bem, e se não resultar, sempre nos resta o respeito.
O garoto cumpriu a sua palavra. Durante anos pôs à prova os meus nervos com uma tenacidade inquebrantável, mas também se metia na minha cama a ler histórias, dedicava-me os seus melhores desenhos e nem sequer nas piores birras perdeu de vista o pacto de respeito mútuo. Entrou na minha vida como mais um filho, tal como fez o Jason. Agora são dois matulões, um anda na universidade e o outro está a acabar a escola depois de ter ultrapassado os traumas da infância; ainda hoje me bato com eles para que limpem a porcaria e façam as camas, mas somos bons amigos e conseguimos rir-nos das terríveis escaramuças do passado. Ocasiões houve em que o temor me vencia antes de começar a enfrentá-los, e outras em que me sentia tão cansada que procurava pretextos para não ir para casa. Nesses momentos lembrava-me do ditame do tio Ramón: não esqueças que os outros têm mais medo que tu, e voltava à carga. Perdi todas as batalhas com eles, mas milagrosamente ganhei a guerra.
Não estava ainda instalada de todo quando consegui um contrato para a Universidade da Califórnia, para ensinar narrativa a um grupo de jovens aspirantes a escritor. Como se pode ensinar a contar uma história? Paula deu-me a chave do problema pelo telefone: diz-lhes que escrevam um livro mau, isso é fácil, qualquer um pode fazê-lo, aconselhou-me com ironia. E assim fizemos, cada um dos estudantes pôs de parte a sua secreta vaidade de produzir o Grande Romance Americano e lançou-se com entusiasmo a escrever sem medo. Pelo caminho fomos ajustando, corrigindo, cortando e polindo, e depois de muitas discussões e risadas levaram por diante os seus projectos, um dos quais foi publicado pouco depois a toque de tambor e címbalos por uma grande editora de Nova Iorque. Desde então, quando entro num período de dúvidas, repito para mim que vou escrever um livro mau e assim desaparece o pânico. Trouxe uma mesa para o quarto de Willie e ali, junto da janela escrevia num bloco de papel amarelo com linhas, igual ao que utilizo agora para fixar estas recordações. Nos momentos livres que me deixavam as aulas, os trabalhos dos alunos, as viagens à Universidade de Berkeley, as tarefas domésticas e os problemas do Harleigh, quase sem dar por isso, nesse ano de convulsa vida nos Estados Unidos saíram várias histórias com sabor às Caraíbas, que pouco depois foram publicados como Contos de Eva Luna. Foram presentes enviados de outra dimensão; recebi cada um deles inteiro como uma maçã, da primeira à última frase, tal como me surgira Dos Palabras, num engarrafamento na auto-estrada de Caracas. O romance é um projecto de longo fôlego para o qual contam sobretudo a resistência e a disciplina, é como bordar uma complicada tapeçaria com fios de muitas cores, trabalha-se pelo avesso, pacientemente, ponto por ponto, cuidando dos pormenores para que não fiquem nós visíveis, seguindo um desenho vago que só se aprecia no final, quando se dá a última laçada e se volta o tapete a direito para ver o desenho acabado. Com um pouco de sorte, o encanto do conjunto dissimula os defeitos e torpezas da tarefa. Num conto, ao invés, vê-se tudo, não deve sobrar nem faltar nada, dispomos do espaço à justa e de pouco tempo, se corrigimos demasiado perde-se essa rajada de ar fresco que o leitor necessita para começar a voar. É como lançar uma seta, é necessário ter instinto, prática e precisão de um bom archeiro, força para disparar, pontaria para medir a distância e a velocidade, boa sorte para acertar no alvo. O romance faz-se com trabalho, o conto com inspiração; para mim é um género tão difícil como a poesia, não creio que volte a tentá-lo ao menos que, como aqueles Contos de Eva Luna, me caia do céu. Uma vez mais comprovei que o tempo a sós com a escrita é o meu tempo mágico, a hora dos bruxedos, a única coisa que me salva quando tu do em meu redor ameaça ruir.
O último conto dessa colectânea, De Barro Estamos Feitos, baseia-se numa tragédia ocorrida na Colômbia em 1985, quando a violenta erupção do vulcão Nevado Ruiz provocou uma avalancha de neve derretida que deslizou pela encosta da montanha e sepultou completamente uma aldeia. Milhares de seres pereceram, mas as pessoas em todo o mundo recordam-se da catástrofe sobretudo pelo caso de Omaira Sanchez, uma menina de treze anos que ficou soterrada na lama. Durante três dias agonizou com pavorosa lentidão perante fotógrafos, jornalistas, operadores de televisão, que chegaram de helicóptero. Os seus olhos vistos no ecrã magoaram-me desde o primeiro momento, Ainda conservo a sua fotografia na minha secretária, muita vez a contemplei demoradamente para tentar entender o significado do seu martírio. Três anos mais tarde, na Califórnia, tentei exorcizar aquele pesadelo narrando a história, quis escrever o tormento daquela pobre menina enterrada viva, mas à medida que ia escrevendo fui-me apercebendo que não era aquela a essência do conto. Dei-lhe outra volta, para ver se podia narrar os factos a partir dos sentimentos do homem que acompanha a rapariguinha durante aqueles três dias; mas ao terminar essa versão compreendi que também se não tratava disso. A verdadeira história é a de uma mulher e essa mulher sou eu - que observa num ecrã o homem que ampara a menina. O conto é acerca dos meus sentimentos e das modificações inevitáveis que experimentei ao presenciar a agonia daquela criatura. Ao ser publicado na colectânea de contos julguei ter cumprido o meu dever para com Omaira, mas logo verifiquei que não era assim, ela é um anjo persistente que não me deixara esquecê-la. Quando a Paula entrou em coma e a vi prisioneira numa cama, inerte, a morrer aos poucos diante do olhar impotente de todos nós, o rosto de Omaira Sanchez veio-me à mente. A minha filha ficou soterrada no seu próprio corpo, tal como aquela menina ficara na lama. Só então percebi porque passei tantos anos a pensar nela e consegui finalmente decifrar a mensagem dos seus intensos olhos negros: paciência, coragem, resignação, dignidade diante da morte. Se escrevo alguma coisa, tenho medo que aconteça, se amo demais alguém temo perdê-lo; no entanto não posso deixar de escrever nem de amar...
Dado que a fúria devastadora da minha vassoura não conseguira penetrar realmente no caos daquela vivenda, convenci o Willie que era mais fácil mudar-nos do que limpar, e foi assim que viemos parar a esta casa dos espíritos. Nesse ano a Paula conheceu o Ernesto e instalaram-se juntos, por uns tempos na Virgínia, enquanto o Nicolás, sozinho no casarão de Caracas, reclamava contra o facto de o termos abandonado. Dali a pouco a Célia apareceu na sua vida para lhe revelar certos mistérios e na euforia do amor recém-descoberto a sua mãe e a irmã passaram para segundo plano. Falámos ao telefone em complicadas comunicações triangulares para contar uns aos outros as últimas aventuras e comentar eufóricos o incrível acaso de nos termos apaixonado os três ao mesmo tempo. A Paula esperava acabar os estudos para ir com o Ernesto para Espanha, onde iniciaram a segunda etapa da sua vida comum. Nicolás explicou-nos que a noiva pertencia ao sector mais reaccionário da Igreja Católica, estava fora de questão dormir sob o mesmo tecto sem ser casados, por isso projectavam fazê-lo o mais cedo possível. Tornava-se difícil entender o que teria ele em comum com uma moça de ideias tão diferentes das suas, mas ele respondeu com grande parcimónia que a Célia era sensacional em tudo o resto e se não a pressionássemos decerto abandonaria o seu fanatismo religioso. Uma vez mais o tempo deu-lhe razão. A estratégia imbatível do meu filho é manter-se firme na sua posição, soltar as rédeas e esperar, evitando confrontos inúteis. Ao fim e ao cabo acaba por vencer por cansaço. Quando tinha quatro anos e eu lhe exigi que fizesse a cama, replicou na sua língua de trapos que estava disposto a fazer qualquer trabalho doméstico menos aquele. Foi inútil tentar obrigá-lo, primeiro subornou a Paula e depois implorou à Granny, que se metia às escondidas por uma janela para o ajudar, até que a surpreendi e tivemos a única zanga as nossas vi as. Pensei que a teimosia o Nicolás não seria eterna, mas fez vinte e dois anos deitado no chão com os cães, como um mendigo. Agora que tinha noiva o problema da cama sala das minhas mãos. Enquanto se iniciava no amor com a Célia e estudava computadores na universidade, aprendeu karaté e kung-fu para se defender numa emergência, porque a malandragem de Caracas tinha marcado a sua casa e iam lá roubar em plena luz do dia, possivelmente com o beneplácito da polícia. Através da nossa incansável correspondência a minha mãe estava ao corrente dos pormenores da minha aventura nos Estados Unidos, mas mesmo assim teve uma surpresa quando veio visitar o meu novo lar. Para lhe dar uma boa impressão engomei as toalhas de mesa, escondi com vasos de plantas as nódoas feitas pelo cão, fiz jurar o Harleigh que se portaria como um ser humano e ao pai que não diria palavrões em espanhol diante dela. O Willie não só poliu o seu vocabulário, como se desprendeu das botas de vaqueiro e foi a um dermatólogo para lhe apagar a tatuagem da mão com raios laser, mas deixou a caveira no braço porque só eu a veio. A minha mãe foi a primeira a pronunciar a palavra casamento, tal como fizera com o Michael muitos anos antes. Até quando pensas ser sua amante? Se vais viver neste desastre, pelo menos casa-te, assim a gente não murmura e consegues um visto decente, ou pensas ficar ilegal para sempre? perguntou naquele tom que tão bem conheço. A sugestão provocou um arrebatamento de entusiasmo no Harleigh, que já se habituara à minha presença, e uma crise de pânico no Willie, que tinha dois divórcios às costas e um rosário de amores fracassados. Pediu-me tempo para pensar nisso, o que me pareceu razoável, e dei-lhe um prazo de vinte e quatro horas, ou voltava para a Venezuela. Casámos.
Entretanto no Chile os meus pais preparavam-se para votar no plebiscito que decidiria da sorte da ditadura. Uma das cláusulas da Constituição criada por Pinochet para ficar legitimado como presidente, estipulava que em 1988 o povo seria consultado para determinar a continuidade do seu Governo, e em caso de lhe ser recusada seriam convocados eleições democráticas para o ano seguinte; o general não imaginou que poderia ser derrotado no seu próprio jogo. Os militares, dispostos a eternizar-se no poder, não calcularam que, apesar da modernização e do progresso económico, o povo tinha aprendido algumas duras lições e se tinha organizado. Pinochet orquestrou uma campanha maciça de propaganda, mas a oposição apenas dispôs de quinze minutos diários na televisão às onze da noite, quando se pensava que toda a gente estivesse a dormir. Momentos antes da hora assinalada ouviam-se tocar os despertadores de três milhões de pessoas e os chilenos sacudiam o sono para verem aquele fabuloso quarto de hora em que o talento popular alcançou níveis de genialidade. A campanha do NÃO caracterizou-se pelo humor, juventude, espírito de reconciliação e esperança. A campanha do SIM era uma engrenagem de hinos militares, ameaças, discursos do general rodeado de insígnias patrióticas, passagens de antigos documentários que mostravam o povo a fazer bichas no tempo da Unidade Popular. Mesmo restando indecisos, a centelha do NÃO venceu a pesada aldrabice do SIM, e Pinochet perdeu o plebiscito. Nesse ano aterrei em Santiago com o Willie após treze anos de ausência, num glorioso dia de Primavera. Imediatamente fui rodeada por um grupo de carabineiros e cheguei a sentir de novo a mordidela do terror, mas logo compreendi espantada que não estavam ali para me levar para a prisão, mas para me defender do assédio de uma pequena multidão que tentava cumprimentar-me chamando-me pelo nome. Pensei que me confundiam com a minha prima Isabel, filha de Salvador Allende, mas várias pessoas avançaram com os meus livros para que eu os assinasse. O meu primeiro romance tinha desafiado a censura, circulando de mão em mão em fotocópias até poder entrar pela porta grande nas livrarias, ganhando assim o interesse de leitores benevolentes que talvez o tenham lido por mero espírito de contradição. Depois soube que um jornalista anunciara pela rádio a minha chegada e a visita discreta que eu planeara converteu-se em notícia. Para fazer uma piada publicou ainda que eu me casara com tini milionário do Texas, dono de poços de petróleo, e assim adquiri fim prestígio impossível de alcançar com a literatura. Não consigo descrever a emoção que senti ao cruzar os picos majestosos da cordilheira dos Andes e pisar de novo a minha terra, respirar o ar tépido do vale, ouvir a nossa pronúncia e receber na Imigração aquela saudação em tom solene, quase como uma advertência, típica dos nossos funcionários, públicos. Senti fraquejar as pernas e o Willie amparou-me enquanto passávamos pela alfândega e a seguir vi os meus pais e a Avó Hilda com os braços estendidos. Esse regresso à minha pátria é para mim a metáfora perfeita da minha existência. Saíra a fugir assustada e só, num atardecer nublado de Inverno, e regressei triunfante pela mão do meu marido numa esplêndida manhã de Verão. A minha vida é feita de contrastes, aprendi a ver o verso e o reverso da moeda. Nos momentos de maior êxito não perco de vista que outros de grande dor me espreitam no caminho, e quando estou mergulhada na desgraça espero pelo sol que nascerá mais tarde. Nessa primeira viagem tive um acolhimento carinhoso, embora tímido, pois o punho da ditadura ainda nos apertava. Fui à Isla Negra visitar a casa de Pablo Neruda, abandonada durante muitos anos, na qual o fantasma do velho poeta ainda se senta diante do mar a escrever versos imortais e onde o vento faz soar a grande sineta marinheiro para convocar as gaivotas. Na cerca de madeira que rodeia a propriedade há centenas de mensagens, muitas escritas a lápis sobre as sombras diluídas de outras já apagadas pelos caprichos do clima, algumas gravadas à faca na madeira corroída pelo sal do mar. São recados de esperança para o vate que continua a viver no coração do seu povo. Encontrei-me com as minhas amigas e voltei a ver o Francisco, que pouco mudara nesses treze anos. Fomos os dois até ao Cerro San Cristóbal ver o mundo do alto e recordar a época em que ali nos refugiávamos para fugir da brutalidade quotidiana e partilhar um amor tão casto, que nunca nos tínhamos atrevido a traduzi-lo em palavras. Visitei o Michael, casado e avô de outra família, a morar na casa que o seu pai construíra, vivendo exactamente a vida que planeara na juventude, como se as perdas, as traições, o exílio e outras infelicidades tivessem sido só um parêntese na perfeita organização do seu destino. Recebeu-me amavelmente, passeámos pelas ruas do nosso antigo bairro e tocámos à campainha da casa onde foram criados a Paula e o Nicolás, morada insignificante, com a sua peruca de palha e a cerejeira ao pé da janela. Abriu-nos a porta uma mulher sorridente que ouviu as nossas razões sentimentais de boa mente e sem cerimónias nos deixou entrar e percorrer a casa toda. Pelo chão havia brinquedos de outras crianças e nas paredes fotografias de outros rostos, mas naquele ambiente ainda perduravam as nossas recordações. Tudo parecia ter diminuído de tamanho, com aquela suave pátina sépia das memórias quase desvanecidas. Despedi-me do Michael na rua e pus-me a chorar desconsolada. Chorava por aqueles tempos perfeitos da primeira juventude, quando nos amávamos sinceramente e pensávamos que seria para sempre, quando os filhos eram pequenos e nos julgávamos capazes de protegê-los de todo o mal. Que nos aconteceu? Talvez estejamos no mundo para procurar o amor, encontrá-lo e perdê-lo, várias vezes. A cada amor voltamos a nascer e com cada amor que acaba abre-se uma chaga. Estou cheia de orgulhosas cicatrizes.
Passado um ano regressei para votar nas primeiras eleições desde o Golpe Militar. Uma vez perdido o plebiscito e caçado nas malhas da sua própria Constituição, Pinochet teve de convocar eleições. Apresentou-se com a arrogância do vencedor, sem nunca imaginar que a oposição podia derrotá-lo, pois ele contava com a unidade monolítica das Forças Armadas, o apoio dos mais poderosos sectores económicas, uma campanha de milhões gastos em propaganda e o medo que muitos tinham da liberdade. Tinha ainda a seu favor o trajecto de disputas irreconciliáveis entre os partidos políticos, um passado de tantos rancores e contas pendentes que era quase impossível chegar a um acordo; no entanto, a rejeição da ditadura pesou mais do que as diferenças ideológicas, formou-se uma concertarão de partidos de oposição ao Governo e em 1989 o candidato escolhido ganhou as eleições, tornando-se no primeiro presidente legítimo depois de Salvador Allende. Pinochet teve de entregar a faixa e a cadeira presidenciais e dar um passo à retaguarda, mas não se retirou completamente, a sua espada continuou suspensa sobre o pescoço dos chilenos. O país acordou de uma letargia de dezasseis anos e deu os primeiros passos para uma democracia de transição na qual o general Pinochet continuava a ser Comandante-Chefe das Forças Armadas por mais oito anos, uma parte do Congresso e todo o Supremo Tribunal tinham sido nomeados por ele e as estruturas militares e económicas permaneciam intactas. Não se faria justiça aos crimes cometidos, os autores ficavam protegidos por uma lei de amnistia que eles próprios decretaram em seu favor. Não permitirei que se toque num cabelo dos meus soldados, ameaçou Pinochet, e o país acatou as suas condições em silêncio temendo um novo golpe. As vítimas da repressões são, os Maureira e milhares de outros tiveram de adiar os seus lutos e continuar à espera. Talvez a justiça e a verdade tivessem ajudado a cicatrizar as profundas feridas do Chile, mas a soberba dos militares impediu-o. A democracia ia ter de avançar ao passo lento e torcido do caranguejo.
A Paula veio outra vez ontem à noite, senti-a entrar no quarto com o seu passo ligeiro e graça comovente, como ela era antes dos ultrajes da doença, em camisa de dormir e sapatilhas; subiu para a minha cama e sentada a meus pés, falou-me no tom das nossas confidências. Ouve, mamã, acorda, não quero que julgues que estás a sonhar. Venho pedir-te ajuda... quero morrer e não Posso. Vejo à minha frente um caminho radioso, mas não posso dar o passo decisivo, estou agarrada. Na minha cairia está apenas o meu corpo sofredor a desintegrar-se todos os dias, estou a secar de sede, e clamo pela paz, mas ninguém me ouve. Estou muito cansada. Porquê tudo isto? Tu, que passas a vida a falar dos espíritos amigos, pergunta-lhes qual é a minha missão, que devo fazer. Suponho que não há nada que temer, a morte é só uma passagem, como o nascimento; lamento não poder preservar a memória, mas de qualquer modo já me fui desprendendo dela, quando eu for estarei nua. A única recordação que levo é a dos amores que deixo, sempre estarei de algum modo unida a ti. Lembras-te da última coisa que consegui sussurrar antes de cair nesta longa noite? Gosto de ti, mamã, foi o que te disse. Repito-o agora e hei-de dizer-to em sonhos todas as noites da tua vida. A única coisa que me trava um pouco é partir só, contigo pela mão seria mais fácil atravessar para o outro lado, a solidão infinita da morte mete-me medo. Ajuda-me uma vez mais, mamã. Tens lutado como uma leoa para me salvar, mas a realidade vai-te vencendo, tudo é já inútil, abandona-te, deixa-te de médicos e orações porque nada me devolverá a saúde, não acontecerá um milagre, ninguém pode mudar o curso do meu destino e eu também o não quero, já cumpri o meu tempo e a hora da despedida. Todos na família o entendem menos tu, anseiam pela hora de me verem liberta, és a única que ainda não aceita que nunca voltarei a ser como outrora. Olha para o meu corpo ferido, pensa na minha alma que deseja evadir-se e nos nós terríveis que a retêm. Ai, velhota, isto é muito difícil para mim e sei que também é para ti... que podemos fazer? No Chile os meus avós rezam por mim e o meu pai aferra-se à memória poética de uma filha espectro, enquanto na outra costa deste país Ernesto flutua num mar de ambiguidades sem perceber ainda que me perdeu para sempre. Na verdade já está viúvo, mas não poderá chorar por mim ou amar outra mulher enquanto o meu corpo respirar em tua casa. No breve tempo em que vivemos juntos fomos muito felizes, deixo-lhe tão boas recordações que não lhe vão chegar os anos para esquecê-las, diz-lhe que não o abandonarei, nunca estará só, serei o seu anjo protector, tal corno o serei para ti. Também os vinte e oito anos que ambas partilhámos foram muito ditosos, não te atormentes a pensar naquilo que pôde ser e não foi, no que devias ter feito de outro modo, nas omissões e nos erros... tira isso da cabeça! Após a minha morte estaremos em contacto tal como tu estás com os teus avos e a Granny, ter-me-ás dentro de ti como presença constante, virei quando me chamares, a comunicação será mais fácil quando não tiveres à tua frente as misérias do meu corpo doente e possas ver-me de novo como nos melhores momentos. Lembras-te de quando dançámos um passo-doble nas ruas de Toledo, e saltar sobre os charcos e a rir no meio da chuva sob um guarda-chuva preto? E das caras atónitas dos turistas japoneses que nos tiravam fotografias? Assim quero que me vejas de agora em diante: íntimas amigas, duas mulheres satisfeitas a desafiar a chuva. Sim... tive uma boa vida... Como custa despegar-se do mundo! Mas não me sinto capaz de levar uma existência miserável durante mais sete anos, como pensa o doutor Shima; o meu irmão sabe-o e é o único com coragem suficiente para me libertar, eu faria o mesmo por ele. O Nicolás não esqueceu a nossa antiga cumplicidade, tem as ideias diáfanas e o coração sereno. Lembras-te de quando ele me defendia das sombras do dragão na janela? Não imaginas quantos pecadilhos ocultávamos nem quanto te enganámos para nos proteger mutuamente, nem das vezes em que castigaste um de nós pelas faltas do outro sem jamais nos termos acusado. Não espero que tu me ajudes a morrer, ninguém pode pedir-te isso, apenas que não me retenhas mais. Dá uma oportunidade ao Nicolás. Como pode ele dar-me uma mão se tu nunca me deixas só? Por favor, não te aflijas, mamã...
Acorda, estás a chorar adormecida! Ouço a voz do Willie que me chega de muito longe e afundo-me mais na escuridão sem abrir os olhos para que a Paula não desapareça porque talvez seja esta a sua última visita, talvez nunca mais oiça a sua voz. Acorda, acorda, é um pesadelo... sacode-me o meu marido. Espera por mim! Quero partir contigo! grito eu, e nessa altura ele acende a luz e tenta envolver-me nos seus braços, mas afasto-o bruscamente porque da porta a Paula me sorri e me faz um sinal de adeus com a mão antes de se afastar pelo corredor com a sua camisa branca a flutuar como umas asas e os pés descalços roçando ao de leve pela carpete. Ao pé da minha cama ficam as suas chinelas de pele de coelho.
Chegou o Juan, que vinha participar num seminário teológico por duas semanas. Andou muito ocupado a analisar as causas da existência de Deus, mas lá se arranjou para passar muitas horas comigo e com a Paula. Desde que abandonou as suas convicções marxistas para se dedicar aos estudos divinos, qualquer coisa que não consigo precisar se modificou no seu aspecto, a cabeça ligeiramente inclinada, os gestos mais lentos, o olhar mais compassivo, o vocabulário mais cuidado, Ia não acaba cada frase com um palavrão como dantes. Penso nestes dias arejar-lhe este ar de solenidade, seria o cúmulo se a religião aniquilasse o seu sentido de humor. O meu irmão refere-se ao seu papel de pastor como o de gerente do sofrimento, passa as horas a consolar e a tentar ajudar os que não têm esperança, administrando os escassos recursos disponíveis a agonizantes, drogados, prostitutas, crianças abandonadas e outros infelizes do imenso Pátio dos Milagres que é a humanidade, o coração não lhe basta para tanto sofrimento. Como vive na região mais conservadora dos Estados Unidos, a Califórnia parece-lhe uma terra de lunáticos. Aconteceu-lhe assistir a um desfile de homossexuais, um exuberante carnaval dionisíaco, e em Berkeley viu marchas frenéticas a favor e contra o aborto, algazarras políticas no campus da universidade e uma convenção de pregadores de rua a vociferarem as suas doutrinas entre mendigos e velhos hippies, últimos despojos dos anos 60, o Juan verificou que no Seminário dão cursos de Teologia do Hula-Hup e Como Ganhar a Vida Gozando com a Bíblia. Cada vez que cá vem este irmão tão querido lamentamos a sorte da Paula, escondidos no canto mais afastado da casa para ninguém nos ver, mas também rimos como na juventude, quando andávamos a descobrir o mundo e nos julgávamos invencíveis. Com ele posso falar mesmo das coisas mais secretas. Recebo os seus conselhos enquanto remexo panelas na cozinha para lhe oferecer novos cozinhados vegetarianos, tarefa inútil, porque ele apenas debica umas migalhas, alimenta-se de ideias e de livros. Passa longos momentos a sós com a Paula, julgo que reza a seu lado. já não aposta em como ela se vai curar, diz que o seu espírito é uma presença muito forte na casa, que nos abre caminhos espirituais e vai varrendo as pequenezes das nossas vidas, deixando ficar só o essencial. Na sua cadeira de rodas, com os olhos vazios, imóvel e pálida, ela é um anjo que nos entreabre as portas divinas para que descubramos a sua imensidade.
- A Paula está a despedir-se do mundo. Está exausta, Juan.
- Que pensas fazer?
- Ajudava-a a morrer, se soubesse como fazê-lo.
- Nem penses nisso! Carregarias com um fardo de culpa para o resto dos teus dias.
- Mais culpada me sinto por deixá-la neste martírio... Que acontecerá se eu morro antes dela? Imagina que eu falto, quem se encarrega dela?
- Esse momento não chegou, não ganhas nada com adiantar-te. A vida e a morte têm os seus segredos. Deus não nos envia sofrimentos sem termos força para os suportar. - Estás a pregar-me sermões como um padre, Juan...
- A Paula não te pertence. Não deves prolongar-lhe a vida artificialmente, mas também não podes encurtá-la.
- Qual é o limite do artifício? já viste o hospital que tenho instalado lá em baixo? Controlo todas as funções do seu corpo, meço a conta-gotas a própria água que ingere, há uma dúzia de frascos e de seringas em cima da mesa de cabeceira. Se não a alimento através daquele tubo que lhe vai ao estômago, morre de fome numa semana porque nem sequer pode engolir.
- Sentes-te capaz de lhe suprimir a comida?
- Não, nunca. Mas se soubesse como acelerar-lhe a morte sem dor, julgo que o faria. Se não o faço eu, mais tarde ou mais cedo isso calhará ao Nicolás, e não é justo que ele aguente com essa responsabilidade. Tenho tinia mão-cheia de comprimidos para dormir que guardo há vários meses, mas não sei se isso é suficiente.
- Ai, ai, irmã... como se pode sofrer tanto?
- Não sei. Se pudesse dar-lhe a minha vida e morrer em seu lugar! Ando perdida, irão sei quem sou, tento lembrar-me de quem era antes, mas apenas encontro disfarces, máscaras, imagens confusas de uma mulher que não reconheço. Sou a feminista que julgava ser, ou sou aquela jovem frívola que aparecia na televisão com plumas de avestruz no traseiro? A mãe obsessiva, a esposa infiel, a aventureira temerária ou a mulher cobarde? Sou aquela que albergava perseguidos políticos ou a que escapou porque não pôde suportar o medo? Demasiadas contradições...
- És tudo isso e também o samurai que agora luta contra a morte.
- Lutava, Juan. já fui vencida.
Tempos muito duros, passaram-se semanas de tanta aflição que não quero ver ninguém, mal consigo falar, comer ou dormir, escrevo horas seguidas, intermináveis. Continuo a perder peso. Até agora andei tão ocupada a lutar contra a doença que consegui enganar-me e imaginar que podia ganhar esta batalha de titãs, mas agora sei que a Paula se vai embora, os meus afãs são absurdos, ela está esgotada, assim mo repete em sonhos de noite e quando acordo de madrugada, quando vou andar pelo bosque e a brisa me traz as suas palavras. Aparentemente tudo continua mais ou menos na mesma, excepto estas mensagens urgentes, a sua voz cada vez mais débil a pedir socorro. Não sou a única a escutá-la, também as mulheres que a cuidam começam a despedir-se dela. A massagista decidiu que não valia a pena continuar com as sessões porque de qualquer maneira a menina não dá resposta, disse ela; o fisioterapeuta telefonou, a gaguejar, embaraçado em desculpas até que acabou por confessar que esta doença incurável afecta a sua energia. Veio a dentista, uma rapariga da idade da Paula, com o mesmo cabelo comprido e sobrancelhas espessas, tão parecida realmente com ela que se diriam irmãs. Todos os quinze dias lhe limpa os dentes com grande delicadeza para não a magoar, depois sai em grande pressa sem olhar para mim, tentando ocultar a sua expressão comovida. Nega-se a receber dinheiro, até agora não houve maneira de me apresentar a conta. Trabalhamos juntas, porque a Paula põe-se rígida quando tentam tocar-lhe na cara, só eu posso abrir-lhe a boca e escovar-lhe os dentes. Desta vez achei-a preocupada, por muito que eu me esmere no asseio diário tem problemas com as gengivas. O doutor Shima passa por aqui com frequência no regresso do seu trabalho e traz-me mensagens dos seus pauzinhos do I Ching. Ficamos ao pé da cama a conversar sobre a alma e a aceitação da morte. Quando ela nos deixar sentirei um grande vazio, acostumei-me à Paula, é muito importante na minha vida, diz ele. Também a doutora Forrester parece inquieta, depois do último exame ficou calada muito tempo a meditar no seu diagnóstico e acabou por dizer que de um ponto de vista clínico pouco se modificou, no entanto a Paula parece cada vez mais ausente, dorme de mais, tem o olhar vidrado, já não se sobressalta com os ruídos, as suas funções cerebrais diminuíram. Apesar de tudo ficou mais bonita, tem as mãos e os calcanhares mais finos, o pescoço mais comprido, as faces pálidas onde sobressaem dramaticamente as suas compridas pestanas negras, o rosto tem uma expressão angélica, como se finalmente tivesse expiado as dúvidas e encontrado a fonte divina que tanto procurou. Que diferente é de mim! Não reconheço nela nada de meu. Também não há nada da minha mãe nem da minha avó, excepto os grandes olhos escuros um pouco melancólicos. Quem é esta minha filha? Que acaso de cromossomas navegando de uma geração para outra nos espaços mais recônditos do sangue e da esperança geraram esta mulher?
O Nicolás e a Célia acompanham-nos, passamos juntos boa parte do dia no quarto da Paula, agora fechado. No Verão dávamos banho aos filhos no terraço, numa piscina de plástico onde flutuavam gafanhotos mortos e pedaços de bolacha ensopados, enquanto a enfermeira descansava à sombra de um guarda-sol, mas agora que já passou o Outono e começa o Inverno, a casa recolheu-se e instalámo-nos no quarto da Paula. A Célia é uma aliada incondicional, generosa e firme, serve-me de secretária há meses; não tenho forças para fazer o meu trabalho e sem ela cairia esmagada por uma montanha de papeis. Anda sempre com os meninos nos braços ou pendurados nas ancas, com a blusa desabotoada, pronta para dar de mamar à Andrea. Esta minha neta está sempre contente, brinca sozinha e dorme estendida no chão a chupar a ponta de uma fralda, tão calada que nos esquecemos onde a deixámos, e num descuido podíamos pisá-la. Logo que me acostume à tristeza iniciarei os meus ofícios de avó, inventarei histórias para as crianças, farei bolachas, fabricarei “robertos” e vistosos disfarces para encher o baú do teatro. Faz-me falta a Granny, se ela vivesse ainda teria uns oitenta anos e seria uma velhota espalhafatosa com quatro cabelos no crânio e meio chanfrada, mas com o seu talento intacto para criar bisnetos.
Este ano decorreu com imensa lentidão, no entanto não sei aonde me foram parar as horas e os dias. Preciso de tempo. Tempo para dissipar confusões, cicatrizar e renovar-me. Como serei aos sessenta? A mulher que agora sou não possui uma única célula da menina que fui, excepto a memória que persiste e persevera. Quanto tempo é necessário para percorrer este túnel escuro? Quanto tempo para voltar a pôr-me em pé? Conservo a carta que a Paula deixou lacrada na mesma caixa de lata onde estão as relíquias da Vovó. Várias vezes a tenho tirado com reverência, tentada a lê-la, mas também paralisada por um temor supersticioso. Pergunto-me por que razão uma mulher jovem, saudável e enamorada, escreveu em plena lua-de-mel uma carta para ser aberta depois da sua morte, que terá visto nos seus pesadelos?... Que mistérios oculta a vida da minha filha? Pondo em ordem fotografias antigas reencontros fresca e cheia de vitalidade, sempre abraçada ao marido, ao irmão ou a amigos, em todas elas salvo nas do casamento está de blue-jeans, com uma blusa simples, o cabelo atado com um lenço e sem adornos; é assim que devo lembrar-me dela, no entanto aquela moça risonha foi substituída por uma figura melancólica imersa na solidão e no silêncio. Vamos abrir a carta, disse-me em tom urgente a Célia pela milésima vez. Nos últimos dias não consegui comunicar com a Paula, já não me vem visitar, antes
bastava-me entrar no seu quarto e logo da porta adivinhava se tinha sede, cãibras e os altos e baixos da tensão e temperatura, mas já não sou capaz de me antecipar às suas necessidades. Está bem, abramos a carta, acabei por aceitar. Fui procurar a caixa, rasguei o envelope a tremer, extraí duas páginas escritas na sua caligrafia precisa e li em voz alta. As suas palavras claras vieram até nós desde outro tempo:
Não quero permanecer prisioneira do meu corpo. Liberta dele poderei acompanhar de mais perto aqueles que amo, embora estejam nos quatro cantos do planeta. É difícil explicar os amores que deixo, a profundidade dos sentimentos que me unem ao Ernesto, a meus país, ao meu irmão, aos meus avós. Sei que se recordarão de mim e enquanto o fizerem estarei convosco. Quero ser cremada e que espalhem as minhas cinzas pela natureza, não quero lápides com o meu nome em sítio algum, prefiro ficar no coração dos meus e voltar à terra. Tenho uma conta de poupanças, usem-na para bolsas de estudo a crianças que queiram estudar ou comer. Distribuam o que é meu entre os que desejam uma lembrança, na verdade não tenho muito. Por favor não estejam tristes, continuo ao pé de todos vós, mas mais perto do que antes. Passados uns tempos iremos reunir-nos em espírito, mas por agora continuaremos juntos enquanto me recordarem. Ernesto... amei-te Profundamente e continuo a amar-te; és um homem extraordinário e não duvido que também poderás ser feliz quando eu te deixar. Mamã, papá, Nico, avós: vós sois o que de melhor pude ter como família. Não me esqueçam e alegrem essas caras! Lembrem-se que os espíritos ajudam, acompanham e protegem melhor aqueles que estão contentes. Amo-vos muito. Paula.
Voltou o Inverno, não pára de chover, faz frio e dia a dia vais descaindo. Perdoa-me por te ter feito esperar tanto, filha... Demorei, mas já não tenho dúvidas, a tua carta é muito reveladora. Conta comigo, prometo que te ajudarei, dá-me só mais um pouco de tempo, Sento-me ao teu lado na quietude do teu quarto neste Inverno que para mim será eterno, as duas sozinhas, tal corno tantas vezes estivemos nestes meses, e abandono-me à dor sem já lhe opor qualquer resistência. Apoio a cabeça no teu regaço e sinto as palpitações irregulares do teu coração, o calor da tua pele, o ritmo lento do ar no teu peito, fecho os olhos e por instantes imagino que estás simplesmente a dormir. Mas a tristeza rebenta-me por dentro com um fragor de tempestade e molha a tua camisa com as minhas lágrimas, enquanto um uivo visceral, que nasce do fundo miei terra e me sobe pelo corpo como uma lança, me enche a boca. Garantem-me que não sofres. Como sabem? Talvez tenhas acabado por te acostumar à armadura de ferro da paralisia e não te lembres como era o sabor de um pêssego ou o prazer simples de passar os dedos pelo cabelo, mas a tua alma está presa e quer libertar-se. Esta obsessão não me dá tréguas, compreendo que falhei no desafio mais importante da minha existência. Basta! Olha o despojo que resta de ti, filha. Meu Deus... Foi isto que viste na premonição da tua lua-de-mel, por isso escreveste a carta. A Paula já é santa, está no Céu, o sofrimento lavou-a de todos os pecados, diz-me a Inês, a assistente salvadorenha, a que está marcada por cicatrizes, a que te mima como a um bebé. Como te cuidamos! Não estás só nem de dia nem de noite, de meia em meia hora movemos-te para manter a pouca flexibilidade que ainda te resta, vigiamos cada gota de água e cada grama da tua alimentação, damos-te os remédios a horas certas, antes de te vestir damos-te banho e massagens com bálsamos para fortalecer a pele. É incrível o que conseguiram, em nenhum hospital estaria tão bem, diz a doutora Forrester. Vai durar sete anos, prediz o doutor Shima. Para quê tanta azáfama? Es como a bela adormecida da história, na sua urna de cristal, só que a ti não te salvará o beijo de um príncipe, ninguém pode acordar-te deste sono definitivo. A tua única saída é a morte, filha, agora atrevo-me a pensá-lo, a dizer-to e a escrevê-lo no meu caderno amarelo. Invoco o meu possante avô e a minha avó clarividente para que te ajudem a passar o umbral e nascer do outro lado, invoco sobretudo a Granny, a tua avô de olhos transparentes, a que morreu de pena ao ter de separar-se de ti, invoco-a para que venha com a sua tesoura de ouro cortar o fio firme que te mantém unida ao corpo. O retrato dela - ainda jovem, com o sorriso apenas insinuado e um olhar líquido - esta perto da tua cama, como estão os dos outros espíritos tutelares. ‘Vem, Granny, vem buscar a tua neta, imploro-lhe, irias temo que não virá ela nem nenhum outro fantasma aliviar-me deste Cálice de amargura. Estarei sozinha ao pé de ti para te levar pela mão até à própria entrada da morte e se for possível passá-la-ei contigo.
Posso viver por ti? Trazer-te no meu corpo para que existas os cinquenta ou sessenta anos que te roubaram? Não é recordar-te o que eu pretendo, mas viver a tua vida, ser tu, que ames, sintas e palpites em mim, que cada gesto meu seja um gesto teu, que a minha voz seja a tua voz. Apagar-me, desaparecer para que tomes posse de mim, filha, que a tua incansável e alegre bondade substitua por completo os meus temores anosos, as minhas pobres ambições, a minha esgotada vaidade. Gritar até ao último alento, rasgar a roupa, arrancar o cabelo às mãos cheias, cobrir-me de cinza, assim quero sofrer este luto, mas levo meio século a praticar regras de bom comportamento, sou perita em abafar a indignação e aguentar a dor, não tenho voz para gritar. Talvez os médicos se enganem e as maquinas mintam, talvez não estejas totalmente inconsciente e te apercebas do meu estado de alma, não devo fazer-te sofrer com o meu pranto. Estou a afogar-me de desgosto contido, saio para o terraço e o ar não me chega para tanto soluço e a chuva não chega para lavar tanta lágrima. Então, pego no automóvel e afasto-me do povoado em direcção às colinas, e quase às cegas chego ao bosque dos meus passeios, onde tantas vezes me refugiei para pensar sozinha. Interno-me a pé pelos carneiros que o Inverno tornou impraticáveis, corro tropeçando em ramos e pedregulhos, abrindo caminho pela humidade verde deste amplo espaço vegetal, semelhante aos bosques da minha infância, aqueles que atravessei sobre uma mula seguindo os passos do meu avô. Vou com os pés enlameados e a roupa ensopada e a alma a sangrar, e quando escurece e já não posso mais de tanto andar e tropeçar e resvalar e voltar a levantar-me e continuar aos tropeções, caio por fim de joelhos, estico a blusa, saltam os botões e com os braços em cruz e o peito nu grito o teu nome, filha. A chuva é um manto de cristal escuro e as nuvens sombrias surgem por entre as copas das negras árvores e o vento morde os meus seios, mete-se pelos meus ossos e limpa-me por dentro com os seus gélidos esfregões. Afundo as mãos na lama, pego em punhados de terra e levo-a à cara, à boca, masco gomos salgados de lodo, aspiro às golfadas o cheiro ácido do húmus e o aroma medicinal dos eucaliptos. Terra, acolhe a minha filha, recebe-a, envolve-a, deusa-mãe terra, ajuda-nos, peço-te, e continuo a gemer pela noite que me cai em cima, a chamar por ti, a chamar por ti. Lá ao longe passa um bando de patos selvagens que levam o teu nome para o Sul. Paula, Paula...
Natal de 1992
Na madrugada de domingo de 6 de Dezembro, após uma noite prodigiosa em que se abriram os véus que ocultam a realidade, morreu a Paula. Eram quatro da manhã. A sua vida parou sem luta, ansiedade ou dor, no seu trajecto houve apenas paz e o amor absoluto dos que a acompanhávamos. Morreu no meu colo, rodeada pela família, pelos pensamentos dos ausentes e os espíritos dos antepassados que acorreram a ajudá-la. Morreu com a mesma graça perfeita que teve em todos os gestos da sua existência.
Já havia um certo tempo que eu pressentia final; soube-o com a mesma certeza sem apelo com que acordei certo dia de 1963 com a segurança de que havia apenas algumas horas que uma filha estava a ser gerada no meu ventre. A morte chegou com passo leve. Os sentidos da Paula foram-se encerrando um por um nas semanas anteriores, creio que já não ouvia, estava quase sempre de olhos fechados, não reagia quando lhe tocávamos ou a movíamos. Afastava-se inexoravelmente. Escrevi Lima carta ao meu irmão a descrever esses sintomas imperceptíveis para os outros, mas para mim evidentes, antecipando-me com um estranho misto de angústia e alívio. Juan respondeu-me com uma única frase: estou a rezar por ela e por ti. Separar-me da Paula era um tormento insofrível, mas tornava-se pior vê-la agonizando devagar durante os sete anos previstos pelos pauzinhos do I Ching. Nesse sábado a Inês chegou cedo e preparámos os baldes de água para lhe dar banho e lavar-lhe o cabelo, pôr-lhe a roupa de dia e lençóis limpos, como fazíamos todas as manhãs. Quando nos dispúnhamos a despi-la notámos que estava imersa num torpor anormal, como um desmaio, lassa, com uma expressão infantil, como se tivesse regressado à idade inocente em que cortava flores no jardim da Granny. Então senti que ela estava preparada para a sua última aventura e num instante abençoado a confusão e o terror de todo aquele ano de aflições desapareceram, dando lugar a uma diáfana tranquilidade. Vá-se embora, Inês, quero ficar só com ela, pedi-lhe. A mulher lançou-se sobre a Paula beijando-a, leva os meus pecados contigo e tenta que lá em cima nos perdoem, implorava, e não quis sair até que lhe garanti que ela a tinha ouvido e estava disposta a servir-lhe de correio. Fui avisar a minha mãe, que se vestiu à pressa e desceu ao quarto da Paula. Ficámos as três sozinhas, acompanhadas pela gata metida num canto com as suas inescrutáveis pupilas de âmbar fixas na cama, à espera. O Willie fora fazer compras ao mercado e a Célia e o Nicolás não vêm aos sábados, nesse dia limpam o apartamento, por isso calculei que dispúnhamos de muitas horas para nos despedirmos sem interrupções. Porém, nessa manhã, a minha nora acordou com um pressentimento e sem dizer palavra deixou o marido a braços com as tarefas domésticas, pegou nas duas crianças e veio ter connosco. Encontra a minha mãe de um lado da cama e a mim do outro, acariciando a Paula em silêncio. Diz que mal entrou no quarto se apercebeu da imobilidade do ar e da luz delicada que nos envolvia, e compreendeu que tinha chegado o momento tão temido e ao mesmo tempo desejado. Sentou-se ao pé de nós, enquanto o Alejandro brincava com os seus carrinhos na cadeira de rodas e a Andrea dormitava em cima da almofada agarrada à sua fralda. Passadas duas horas chegaram o Willie e o Nicolás, e também eles não precisaram de explicações. Acenderam o lume na lareira e puseram a tocar a música preferida da Paula, concertos de Mozart, Vivaldi, nocturnos de Chopin. Temos de prevenir o Ernesto, decidiram, mas o telefone dele em Nova Iorque não respondia e calculámos que ainda vinha a voar da China e seria impossível encontrá-lo. As últimas rosas do Willie começaram a desfolhar-se sobre a mesa de cabeceira entre os frascos de remédios e as seringas. O Nicolás saiu para comprar flores e regressou pouco depois com braçados de ramos silvestres como os que a Paula escolhera para o seu casamento; o aroma da tuberosa e dos lírios espalhou-se suavemente por toda a casa enquanto as horas, cada vez mais lentas, se arrastavam nos relógios.
A meio da tarde apareceu a doutora Forrester e confirmou que alguma coisa mudara no estado da doente. Não detectou febre nem sinais de dores, os pulmões estavam limpos, também não se tratava de outro ataque de porfiria, mas a complicada maquinaria do seu organismo mal conseguia funcionar. Parece um derrame cerebral, disse ela, e sugeriu que se chamasse uma enfermeira e se procurasse oxigénio, visto que tínhamos concordado de início que não a levaríamos para mais nenhum hospital, mas eu recusei. Não foi preciso discutir, toda a família estava de acordo em não prolongar a sua agonia, somente aliviá-la. A doutora instalou-se discretamente perto da chaminé, à espera, também ela presa de magia daquela noite única. Como é simples a vida, afinal de contas... Nesse ano de suplícios renunciei a pouco e pouco a tudo, primeiro despedi-me da inteligência da Paula, depois da sua vitalidade e da sua companhia, finalmente tinha de separar-me do seu corpo. Tinha perdido tudo isso e a minha filha partia, mas na verdade ficava-me o essencial: o amor. Em última instância a única coisa que tenho é o amor que lhe dou.
Pelas grandes janelas vi o céu escurecer. Aquela hora a vista desde a colina onde vivemos é extraordinária, a água da baía toma uma cor de aço fosforescente e a paisagem adquire relevo de sombras e de luzes. Ao cair da noite as crianças esgotadas adormeceram no chão cobertas com uma manta e o Willie azafamava-se na cozinha a preparar alguma coisa para o jantar, só nessa ocasião nos lembrámos que não tínhamos comido nada o dia inteiro. Voltou pouco tempo depois com uma bandeja e a garrafa de champanhe que tínhamos reservado havia um ano para o momento em que a Paula despertasse neste mundo. Não consegui comer nada, mas brindei pela minha filha, para que acordasse contente na outra vida. Acendemos velas e a Célia pegou na guitarra e cantou as canções da Paula, tem uma voz profunda e quente que parece surgir da própria terra e que sempre comovia a sua cunhada. Canta só para mim, pedia-lhe ela às vezes, canta-me baixinho. Unia gloriosa lucidez permitiu-me viver essas horas em plenitude, com a intuição aberta e os cinco sentidos, mais alguns que desconhecia, bem alerta, As chamas cálidas das velas iluminavam a minha menina, a sua pele de seda, os seus Ossos de cristal, as sombras das suas pestanas, a dormirem para sempre. Entontecidas pela intensidade do carinho para com ela, e a doce camaradagem das mulheres nos ritos fundamentais da existência, minha mãe, a Célia e eu improvisámos as últimas cerimónias, lavámos-lhe o corpo com Lima esponja, esfregámos-lhe o corpo com água-de-colónia, vestimo-la com roupa abrigada para que não sentisse frio, calçámos-lhe as suas chinelas de pele de coelho e penteámo-la. A Célia pôs-lhe nas mãos as fotografias do Alejandro e da Andrea; Cuida dos teus sobrinhos, pediu-lhe. Escrevi os nossos nomes num papel, trouxe as flores de laranjeira de noiva da minha avó e uma colherzinha de prata da Granny e pu-las também sobre o peito, para que as levasse como recordação, juntamente com o espelho de prata da Vovó, porque pensei que só me tinha protegido durante cinquenta anos, de certo poderia ampará-la a ela naquele derradeiro percurso. A Paula ficara cor de opala, branca, transparente... tão fria! A frialdade da morte provém das entranhas, como fogueira de neve a arder por dentro; ao beijá-la o gelo ficava-me nos lábios, como uma queimadura. Reunidos em redor da cama voltámos a ver velhas fotografias e revivemos a memória do passado mais alegre, desde o primeiro sonho em que a Paula se me revelou muito antes de nascer, até ao Seu cómico acesso de ciúmes quando a Célia e o Nicolás se casaram; celebrámos os dons que nos concedera durante a sua vida e cada um de nós despediu-se dela e rezou à sua maneira. A medida que as horas passavam algo de solene e sagrado encheu o ambiente, tal como sucedera ao nascer a Andrea naquele mesmo quarto; os dois momentos são muito semelhantes, o nascimento e a morte são feitos da mesma matéria. O ar ficou cada vez mais sossegado, movíamo-nos com lentidão para não perturbar o repouso dos nossos corações, sentíamo-nos preenchidos do espírito da Paula, como se fôssemos um só, não havia separação entre nós, a vida e a morte uniram-se. Durante algumas horas experimentámos a realidade sem tempo nem espaço da alma.
Meti-me na cama junto da minha filha amparando-a contra o meu peito, como fazia quando ela era pequena. A Célia levou a gata e aconchegou os dois meninos adormecidos para que com os seus corpos aquecessem os pés da tia. O Nicolás pegou na mão da irmã, o Willie e a minha mãe sentaram-se de cada lado rodeados de seres etéreos, de murmúrios e ténues fragrâncias do passado. de duendes e aparições, de amigos e parentes, vivos e mortos. Toda a noite aguardámos devagar, recordando os momentos duros, mas sobretudo os felizes, contando histórias, chorando um pouco e sorrindo muito, honrando a luz da Paula que nos iluminava, enquanto ela se afundava mais e mais no torpor final, com o peito a erguer-se apenas num adejar cada vez mais lento. A sua missão neste mundo foi a de unir aqueles que passaram pela sua vida e nessa noite sentimo-nos todos acolhidos sob as suas asas siderais, imersos naquele silêncio puro onde talvez reinem os anjos. As vozes converteram-se em murmúrios, o contorno dos objectos e os rostos da família começaram a esfumar-se, as silhuetas misturavam-se e confundiam-se, de súbito reparei que éramos mais, a Granny estava ali com o seu vestido de chita, o seu avental com nódoas de marmelada, o seu aroma fresco de ameixas e os seus grandes olhos de anil claro; o Vovô com a sua boina basca e a sua tosca bengala instalara-se numa cadeira perto da cama; a seu lado descortinei uma mulher pequena e magra com traços de cigana, que me sorria quando os nossos olhares se encontravam, a Vovó, suponho eu, mas não me atrevi a falar-lhe para que não se desvanecesse como um tímido espelhismo. Pelos cantos do quarto julguei ver a Avó Hilda com o seu tricot nas mãos, o meu irmão Juan a rezar ao pé das freiras e dos meninos do colégio de Madrid, o meu sogro ainda jovem, Lima corte de velhotes benevolentes da residência geriátrica que a Paula visitava na sua infância. Pouco depois a mão inconfundível do tio Ramón pousou no meu ombro e ouvi nitidamente a voz cio Michael, e vi à minha direita o Ildemaro olhando para a Paula com a ternura que reservava para ela. Senti a presença do Ernesto a materializar-se através dos vidros cimas janelas, descalço, vestido com o seu fato de aikido, uma sólida figura branca que entrou levitando e se inclinou sobre a cama para beijar a sua mulher nos lábios. Até breve, minha bela moça, espera por mim no outro lado, disse ele, e tirando a cruz que sempre trazia ao pescoço pô-la no pescoço dela. Então entreguei-lhe a aliança de casamento, que eu usara durante um ano exactamente, e ele meteu-lha no dedo como no dia do matrimónio. Voltei a encontrar-me na torre em forma de silo povoada por pombas daquele sonho premonitório em Espanha, mas a minha filha já não tinha doze anos, mas vinte e oito já feitos, não trazia o seu sobretudo de xadrez mas sim uma túnica branca, não tinha o cabelo atado a meia cauda, mas solto pelas costas. Começou a elevar-se e eu subi também pendurada ao seu vestido. Ouvi novamente a voz da Vovó: Não podes ir com ela, bebeu a poção da morte... Mas impeli-me com as últimas forças e consegui agarrar-lhe a mão, disposta a não a largar, e ao chegar lá acima vi o tecto a abrir-se e saímos juntas. Lá fora amanhecia, o céu estava pintado e pinceladas de ouro e a paisagem estendida aos nossos pés refulgia, recém-lavado pela chuva. Voámos sobre vales e montes e descemos por fim no bosque das antigas sequóias, onde a brisa soprava por entre os ramos e um pássaro atrevido desafiava o Inverno com o seu canto solitário. A Paula apontou-me o riacho, vi rosas frescas caídas na margem e uma poeira branca de ossos calcinados lá no fundo e ouvi a música de milhares de vozes a sussurrar entre as árvores. Senti-me a mergulhar naquela água fresca e apercebi-me que a viagem através da dor terminava num vazio absoluto. Ao diluir-me tive a revelação de que esse vazio está cheio de tudo o que o universo contém, É nada e é tudo ao mesmo tempo. Luz sacramental e escuridão insondável. Sou o vazio, sou tudo o que existe, estou em cada folha do bosque, em cada gota do orvalho, em cada partícula de cinza que a água arrasta, sou a Paula e também sou eu própria, sou nada e tudo o resto nesta vida e noutras vidas, imortal.
Adeus, Paula, mulher.
Bem-vinda, Paula, espírito.
Isabel Allende
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