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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAULO E VIRGINIA / Bernardin de Saint Pierre
PAULO E VIRGINIA / Bernardin de Saint Pierre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAULO E VIRGINIA

 

Na encosta oriental da montanha que se eleva por trás da cidade de Porto Luís, da Ilha de França, avistam-se, num terreno outrora cultivado, as ruínas de duas pequenas cabanas. Situam-se mais ou menos a meio de uma bacia formada por grandes rochedos, cuja única abertura está virada para norte. À esquerda, ergue-se a montanha chamada Cabeço da Descoberta, donde são assinalados os barcos que arribam à ilha, e, no sopé dela, estende-se, a cidade de Porto Luís, com o Bairro das Pamplumossas; em seguida, a igreja com o mesmo nome, que se eleva, flanqueada por sebes de bambus, no meio de uma grande planície; e, mais ao longe, uma floresta que se alonga até às orlas da ilha. Diante de nós, junto ao mar, avistamos a Baía do Sepulcro; um pouco para a direita, o Cabo da Desgraça; e para lá deles, o mar em toda a sua extensão, onde se eriçam algumas ilhotas desabitadas, entre outras o Canto da Mira que, no meio das ondas, se assemelha a um bastião.

Na embocadura dessa bacia, donde se avistam tantas coisas, os ecos das montanhas repetem sem cessar o gemido dos ventos que agitam as árvores das florestas vizinhas e o estrépito das vagas que se vão quebrar ao longe, nos recifes ; mas, junto das cabanas, reina uma quietude absoluta e, em redor, só se vêem grandes rochedos, escarpados como muralhas ; no sopé dos mesmos, nas suas fendas e até nos cimos, onde pairam as nuvens, entrecruzam-se maciços de árvores. As chuvas que banham os picos dão com frequência aos seus flancos verdes e castanhos os cambiantes do arco-íris e alimentam, nos sopés, as fontes que formam o pequeno Rio das Palmeiras. Um grande silêncio reina ali, onde tudo é tranquilo, o ar, as águas e a luz. Mal se houve o eco que aí repete o murmúrio das palmeiras que despontam nos planaltos abruptos e cujos troncos esguios se balançam constantemente ao sabor do vento. Uma luz suave ilumina o fundo desta bacia, onde o Sol só brilha até ao meio-dia; mas desde o dealbar que os seus raios dardejam os picos, que no fundo azul do céu parecem de ouro e de púrpura.

Eu gostava de vaguear por aquele local, onde desfrutamos simultaneamente de uma paisagem soberba e de uma profunda quietude.

Um dia, estando eu sentado junto dessas cabanas, a cismar nas suas ruínas, vi um homem, já idoso, aproximar-se. Vestia, segundo o hábito dos primitivos habitantes, uma blusa curta e calções compridos. Vinha descalço e apoiava-se a um bordão de madeira de ébano. Os cabelos estavam completamente brancos e tinha um rosto nobre e simples. Saudei-o respeitosamente. Retribuiu a minha saudação e, depois de me observar por um momento, aproximou-se de mim e foi sentar-se no cabeço onde eu me encontrava. Animado por este sinal de confiança, perguntei-lhe:

- Tiozinho, poderia dizer-me a quem perten ceram estas duas cabanas?

Ele respondeu-me:

- Meu filho, estas cabanas e este terreno inculto foram habitados, há cerca de vinte anos, por duas famílias que descobriram a felicidade aqui. A sua história é comovente, mas, nesta ilha situada na rota para as Índias, que europeu se poderá interessar pelo destino de um punhado de desconhecidos? Quem quereria, até, viver aqui, pobre e ignorado, mas feliz? Os homens só desejam conhecer a história dos grandes, que não tem préstimo para ninguém.

- Tiozinho - repliquei -, se tivesse tempo, peço-lhe que me conte o que sabe dos antigos habitantes destes confins e creia-me que gostaria de ouvir falar da felicidade que a Natureza e a virtude proporcionam.

E eis o que o ancião me contou:

Em 1726, um jovem da Normandia, conhecido por senhor de La Tour, depois de em vão ter oferecido os seus serviços a França e protecção para a família, decidiu vir para esta ilha, em busca de fortuna. Trouxe consigo uma jovem, a quem muito

amava e que igualmente o amava. Ela pertencia a uma família rica e antiga da sua província natal. Mas desposara-a em segredo e sem dote, porque os pais dela se tinham oposto ao casamento, visto ele não ser gentil-homem. Deixou-a em Porto Luís, nesta ilha, e embarcou para Madagáscar, na esperança de lá comprar alguns negros e voltar imediatamente para construir aqui uma casa. Desembarcou em Madagáscar na época das tempestades, que começa a meio de Outubro, e, pouco depois da sua chegada, morreu vítima de febres malignas que lá abundam durante seis meses do ano e que sempre impediram as nações europeias de aí se estabelecerem definitivamente.

Os bens que levara consigo dispersaram-se, após a sua morte, como vulgarmente acontece com aqueles que morrem longe da pátria. A mulher, que ficara na Ilha de França, viu-se viúva, grávida e tendo por única riqueza uma negra, numa região onde não gozava nem de influência nem de estima. A sua desgraça deu-Lhe coragem, visto nada querer receber doutro homem que não aquele que fora o seu único amor e que tão cedo morrera. Resolveu- se a cultivar, com a escrava, uma pequena parcela de terra, a fim de conseguir a sua subsistência.

Numa ilha quase deserta, com terreno em abundância, não Lhe ocorreu escolher os pontos mais férteis ou os mais favoráveis ao comércio ; antes, o seu objectivo era qualquer desfiladeiro, qualquer refúgio escondido onde pudesse viver só e desconhecida; assim, deixou a cidade e dirigiu-se para estes rochedos, a fim de instalar-se aqui.

É um instinto comum a todas as criaturas sofredoras refugiarem-se nos locais mais inóspitos e mais desertos, como se os rochedos constituíssem muralhas contra o infortúnio e como se a quietude da Natureza pudesse acalmar as tempestades da alma.

Mas a Providência, que vem em nosso auxílio quando apenas desejamos os bens necessários, reservou um à senhora de La Tour que nem as riquezas nem a grandeza conseguem dar: uma amiga.

Há um ano que vivia nesse local uma mulher muito activa, bondosa e sensível; chamava-se Margarida. Nascera na Bretanha, pertencendo a uma humilde família de camponeses, que muito a amavam e que a teriam feito feliz se ela não cometesse a loucura de corresponder ao amor de um fidalgo das redondezas que prometera desposá-la; mas este, saciada a sua paixão, repudiou-a e recusou-se a garantir-lhe a subsistência para o filho que em breve nasceria.

Ela decidira, então, abandonar para sempre a aldeia onde nascera e ir esconder o seu erro nas colónias, longe do seu país. Um velho negro, que ela comprara com algum dinheiro emprestado, cultivava com ela uma parcelazinha deste local.

A senhora de La Tour, seguida da sua negra, encontrou Margarida, que amamentava o fílho. Sentiu-se encantada por descobrir uma mulher numa situação que julgou ser semelhante à sua. Em poucas palavras relatou-lhe o passado e falou-lhe das presentes necessidades. Margarida comoveu-se

com o relato da senhora de La Tour, e desejando, para além da sua estima, merecer, sobretudo, a confiança desta, confessou-Lhe, sem nada ocultar, a imprudência de que fora culpada.

- Quanto a mim, minha senhora - disse -, mereci esta sorte. Mas a senhora... . A senhora, sensata e infeliz!

A senhora de La Tour, comovida com tão terno acolhimento, respondeu-lhe, estreitando-a nos braços:

- Ah! Deus quer que os meus infortúnios acabem, visto que lhe inspira mais bondade para comigo, que sou uma estranha, do que a que alguma vez recebi por parte dos meus parentes.

Conheci Margarida e, embora viva a légua e meia daqui, nos bosques, por trás da Montanha Longa, considerava-me como seu vizinho.

Nas cidades da Europa, uma rua, um simples muro, impedem que uma mesma família se reúna, durante anos e anos; mas, nas colónias recém-criadas, consideram-se como vizinhos aqueles a quem apenas os bosques e as montanhas separam. So bretudo naquela época, em que esta ilha tinha pouco comércio com as Índias, a simples vizinhança era um testemunho de amizade e a hospitalidade para com os forasteiros, uma obrigação e um prazer.

Quando soube que a minha vizinha tinha uma companheira, fui vê-la, a fim de procurar ser útil a ambas. Achei a senhora de La Tour uma pessoa interessante, cheia de nobreza e melancolia. Estava então prestes a dar à luz. Disse às duas amigas ser conveniente, no interesse dos filhos, e sobretudo para impedir que qualquer outro habitante ali se estabelecesse, que partilhassem entre elas o fundo desta bacia que se estende por cerca de vinte jeiras. Confiaram-me o cuidado de tal partilha. Determinei duas parcelas mais ou nenos iguais; uma cobria a parte superior do terreno, desde aquele pico de rochedo coberto de nuvens, que é a nascente do Rio das Palmeiras, até àquela abertura escarpada que está a ver no alto da montanha e que é chamada o Postigo, porque, com efeito, se assemelha a um postigo de canhão. O extremo deste terreno está tão juncado de rochas e ravinas, que uma pessoa só com dificuldade consegue andar por ali; todavia, lá crescem grandes árvores e está pontilhado de fontes e de pequenos riachos. Na outta parcela, inclui toda a parte inferior que se estende ao longo do Rio das Palmeiras até à abertura em que esse rio começa a correr por entre as duas colinas até ao mar. Aí o senhor avista pradarias e um terreno bastante uniforme, mas que pouco melhor é do que o outro, visto na estação das chuvas ser pantanoso e, durante a época da seca, ser duro como chumbo.

Depois de ter feito estas duas partilhas, aconselhei as duas senhoras a tirá-los à sorte. a parte superior calhou à senhora de La Tour, e a inferior, a Margarida. Ambas ficaram satisfeitas com o seu quinhão, mas pediram-me que não separasse as suas casas, a fim de que - disseram-me - nos possamos sempre ver, falar e ajudarmo-nos uma à outra".

Entretanto, cada uma delas precisava de um lar individual. A casa de Margarida localizava-se no meio da bacia, precisamente nos limites do seu terreno. Construí mesmo ao lado, na parcela de terra da senhora de La Tour, uma outra casa, de maneira que as duas amigas a um tempo eram vizinhas e encontravam-se nas respectivas propriedades. Eu próprio cortei paliçadas da montanha; transportei folhas de palmeira, das bandas do mar, para construir estas duas cabanas das quais, agora, só vê as portas e os tectos. Ai de mim! Ainda resta demasiado para me fazer lembrar O tempo, que tão rapidamente destrói os monumentos dos impérios, parece respeitar, nestes confins, os testemunhos da amizade, para me perpetuar o desgosto até ao fim dos meus dias.

Mal a segunda cabana fora acabada, a senhora de La Tour deu à luz uma menina. Eu fora o padrinho do filho de Margarida, que se chamava Paulo. A senhora de La Tour pediu-me também, assim como à amiga, que déssemos um nome à filha. Margarida deu-lhe o nome de Virgínia.

- Será virtuosa - disse - e feliz. Só conheci o infortúnio quando me afastei da virtude.

Logo que a senhora de La Tour convalesceu do parto, as duas senhoras começaram a ter uma certa ligação uma com a outra, graças aos meus esporádicos serviços e sobretudo ao constante labor dos escravos. O de Margarida, chamado Domingos, era um negro yolof, idoso mas ainda robusto. Era experiente e tinha um natural bom senso.

Cultivava indiscriminadamente os terrenos das duas casas que lhe pareciam mais férteis e neles semeava o que lhe parecia ser melhor.

Semeava milho miúdo e milho nos locais mais agrestes, um pouco de trigo candial nas terras férteis, arroz nos sítios pantanosos; no sopé das rochas, abóboras e pepinos, que aí brotam em profusão.

Nos lugares secos plantava batatas, pois aqui são muito doces, algodoeiros nos pontos altos, cana-de-açúcar nas terras férteis, pés de café nas colinas, onde o grão, embora pequeno, é excelente ; ao longo do rio e em torno das casas, bananeiras, que durante o ano inteiro dão grandes cachos de frutos e proporcionam bela sombra e, finalmente, algumas plantas de tabaco, para amenizar as suas preocupações.

Ia cortar lenha à montanha e, para alisar os caminhos das propriedades, desbastava rochas aqui e ali.

Realizava todos estes trabalhos com inteligência e vigor, porque os fazia com zelo.

Domingos afeiçoara-se muito a Margarida; e não o era menos pela senhora de La Tour, com cuja escrava ele casara após o nascimento de Virgínia. Amava apaixonadamente a mulher, que se chamava Maria.

Maria nascera em Madagáscar, donde trouxera a arte de confeccionar alguns trabalhos, sobretudo os de cestos e tecidos, chamados tangas, que fazia com plantas que crescem nos bosques. Era hábil, asseada e muito fiel. Tinha a seu cargo preparar as refeições, criar alguns frangos e ir de tempos a tempos a Porto Luís vender o excedente destas duas

propriedades, que era muito insignificante. Se a isto acrescentar duas cabras, criadas junto das crianças, e um grande cão, que à noite vigiava cá fora, ficará com uma ideia de todo o recheio e de todo o ambiente doméstico destas duas pequenas fazendas.

Quanto às duas amigas, elas fiavam algodão de manhã à noite. Este trabalho chegava para as suas necessidades e das suas famílias ; mas, fora isso, tinham tão poucas comodidades estrangeiras, que andavam descalças pela casa e só calçavam sapatos para ir, ao domingo, de manhãzinha, à missa da igreja das Pamplumossas, que está a ver acolá. Fica bem mais longe do que ir a Porto Luis ; mas elas raramente iam à cidade, com receio de lá serem objecto de desprezo, porque vestiam grosseiro tecido azul de Bengala, como os escravos. Bem vistas as coisas, valerá a consideração pública a felicidade doméstica?

Embora aquelas duas senhoras tivessem que sofrer um pouco nas suas incursões ao exterior, regressavam prazenteiramente a suas casas.

Mal Maria e Domingos as avistavam, daquela elevação na estrada das Pamplumossas, deitavam a correr pela encosta da montanha, para as ajudar a trepá-la. Elas viam espelhada nos olhos dos seus escravos a alegria que estes sentiam por as rever. Encontravam em suas casas o asseio, a liberdade, bens que unicamente haviam obtido com o seu trabalho e servidores cheios de zelo e de afecto. Elas próprias, unidas pelas mesmas necessidades, tendo passado por infortúnios quase semelhantes, dando uma à outra o doce nome de amiga, de companheira, de irmã, só tinham uma vontade, um interesse, uma mesa. Tudo era comum entre elas. Os deveres da Natureza vinham aumentar a ventura da sua companhia mútua. À vista dos filhos, duplicava a amizade que sentiam uma pela outra.

Sentiam prazer em dar-lhes banho juntos, em deitá-los no mesmo berço. Frequentemente, trocavam entre elas o seu leite.

- Minha amiga - dizia a senhora de La Tour -, cada uma de nós terá dois filhos e cada um dos nossos filhos terá duas mães.

Como dois rebentos que se aguentam em duas árvores da mesma espécie, às quais a tempestade despedaçou todos os ramos, e que produzirão fru tos mais doces se cada um deles for tirado do tronco materno e enxertado no tronco vizinho, assim aqueles dois garotinhos, privados de todos os parentes, albergavam dentro de si sentimentos mais ternos que os de filho e filha, de irmão e irmã quando eram trocados de seio pelas duas amigas

que lhes tinham dado a vida. Já as duas mães falavam em casá-los quando ainda dormiam no berço e esta perspectiva de felicidade conjugal, que lhes amenizava os seus próprios sofrimentos, acabava muito frequentemente, por as fazer chorar; uma lembrando-se de que os seus males se deviam a ter sido educada acima da sua condição, e a outra por se ter rebaixado; mas consolavam-se, pensando que, um dia, os filhos, mais felizes, usufruiriam simultaneamente, longe dos cruéis preconceitos da Europa, dos prazeres do amor e da ventura da igualdade.

Com efeito, nada se comparava ao afecto que eles testemunhavam já um pelo outro. Se o Paulo vinha queixar-se, mostravam-lhe a Virgínia; e, ao vê-la, ele sorria e acalmava-se. Se a Virgínia sofria, eram advertidos pelos gritos de Paulo; mas a amorosa rapariguinha depressa ocultava a sua dor, para que ele não sofresse por causa dela. Nunca aqui cheguei que não os visse aos dois, todos nus, segundo o costume da ilha, dando ainda os seus primeiros passos, amparando-se um ao outro, como é representada a constelação dos Gémeos. Nem sequer a noite os conseguia separar; com bastante frequência ela vinha surpreendê-los deitados no mesmo berço, os rostos encostados um ao outro, peito contra peito, as mãos dum passadas em torno do pescoço do outro e a dormir assim enlaçados. Quando começaram a falar, as primeiras palavras que aprenderam foram irmão e irmã. A infância, que experimenta as mais ternas carícias, não conhece nomes mais doces.

A educação de Paulo e Virgínia apenas fez cimentar ainda mais a sua amizade, dirigindo-a para as respectivas necessidades. Em breve, tudo o que dizia respeito à economia, ao asseio, ao cuidado de preparar uma refeição campestre, recaía sobre Virgínia, e o que fazia era sempre acolhido com louvores e beijos por parte do irmão. Quanto a ele, sempre activo, cavava o jardim com Domingos ou, com

um pequeno machado na mão, seguia-o até aos bosques; e se, nessas incursões, se lhe deparavam uma linda flor, ou um belo fruto ou um ninho de pássaro, estivessem eles no alto de uma árvore trepava-a para os levar à irmã.

Quando encontrávamos um deles em qualquer lado, tínhamos a certeza de que o outro não estava longe. Um dia, quando eu descia do alto daquela montanha, avistei, na extremidade do jardim, a Virgínia, que corria para casa, a cabeça coberta pelo saiote, que levantara por trás, para se abrigar de um aguaceiro. De longe, julguei que estava sozi nha, mas, quando me adiantei para a ajudar, vi que pegava no braço de Paulo, quase inteiramente envolvido pela mesma cobertura, rindo os dois de estarem abrigados sobre um guarda-chuva de sua invenção. Aquelas duas cabeças encantadoras, envolvidas naquele saiote entufado, fizeram-me lembrar os filhos de Leda abrigados sob a mesma concha.

Todos os seus estudos resumiam-se a alegrar-se e ajudar-se mutuamente. Quanto ao resto, eram ignorantes como crioulos e não sabiam nem ler nem escrever. Não se preocupavam com o que se passara em tempos remotos e longe deles; a curiosidade de ambos não ia além desta montanha. Julgavam que o mundo acabava onde a ilha findava; e não conse guiam imaginar nada de agradável em locais onde não se encontravam. O seu mútuo afecto e a ternura das mães preenchiam-Lhes inteiramente as almas. Nunca haviam derramado lágrimas por causa de ciencias inúteis; nunca as lições de uma triste moral nublou

Aquelas duas cabeças encantadoras... .

os enchera de tédio. Desconheciam que era pecado roubar, tudo entre eles era comum, nem o que era ser-se imoderado, visto possuírem em abundância refeições simples; nem o que era mentir, visto não terem nenhuma verdade a ocultar. Nunca haviam sido aterrorizados por ninguém a dizer-lhes que Deus reserva castigos horríveis às crianças ingratas; neles, a amizade filial nascera da amizade materna. De religião, só tinham aprendido a que diz para amar; e se na igreja não rezavam longas orações, em qualquer lado em que se encontrassem, em casa, nos campos, nos bosques, erguiam ao céu as mãos inocentes e um coração a transbordar de amor.

Assim se passou a sua meninice, como uma bela alvorada que anuncia um dia mais belo. Nessa altura, já partilhavam com as mães todas as lides caseiras. Quando o galo cantava, anunciando o retorno da aurora, Virgínia levantava-se, ia buscar água à fonte vizinha e voltava para casa, a fim de preparar a refeição.

Pouco depois, quando o Sol dourava os cumes das montanhas, Margarida e o filho dirigiam-se para casa da senhora de La Tour; então, iniciavam todos juntos a sua primeira refeição; tomavam-na com frequência em frente da porta, sentados na erva, sob um leito de bananeiras, que simultaneamente lhes proporcionavam refeições prontas, graças aos seus frutos suculentos, e uma toalha de mesa, dadas as suas folhas largas, compridas e lustrosas. Uma alimentação sadia e abundante fazia desabrochar rapidamente os corpos daqueles garotos, e

uma educação cheia de meiguice imprimia-lhes à fisionomia a pureza e o contentamento que lhes ia na alma. Virgínia só tinha doze anos, mas já a sua configuração física estava meio formada; longos cabelos louros cingiam-lhe a cabeça; os seus olhos azuis e os seus lábios rubros resplandeciam na frescura do rosto, com o mais terno brilho; harmonizavam-se sempre no sorriso quando ela falava, mas, quando estava calada, a sua natural obliquidade em direcção ao céu imprimia-lhes uma expressão de extrema sensibilidade e mesmo de uma ligeira melancolia.

Quanto a Paulo, via-se já desenvolver-se nele o carácter de um homem em meio das graças do adolescente. A sua estatura era mais elevada do que a de Virgínia, a sua tez mais trigueira, o nariz mais aquilino, e os olhos, que eram negros, teriam reflectido um pouco de soberba se as compridas pestanas que os orlavam lhes não imprimissem a maior das doçuras. Embora nunca estivesse quieto, logo que a irmã aparecia acalmava-se e ia sentar-se ao pé dela.

Com frequência, as refeições decorriam sem que fosse pronunciada uma palavra. Pelo seu silêncio pela inocência das suas atitudes, pela beleza dos seus pés nus, julgaríamos estar perante um antigo grupo de mármore branco, representando algumas crianças de Niobé; mas pelos seus olhares, que procuravam encontrar-se, pelos seus sorrisos, tê-los-íamos tomado por crianças celestiais, por esses espíritos bem-aventurados cuja natureza é amar e que não têm necessidade de traduzir o sentimento por pensamentos nem a amizade por palavras.

Entretanto, a senhora de La Tour, vendo a filha desabrochar com tantos encantos, sentia a inquietação crescer com a ternura. Dizia-me por vezes:

- Se eu morrer, que será da Virgínia, sem fortuna ?

A senhora de La Tour tinha em França uma tia rica, velha e beata, que tão duramente lhe recusara auxílio quando ela desposara o senhor de La Tour, que prometera solenemente nunca recorrer a ela, fosse qual fosse a situação extrema a que estivesse reduzida. Mas, ao tornar-se mãe, deixou de recear a vergonha das recusas. Escreveu à tia participando a morte inesperada do marido, o nascimento da filha e a aflição em que se encontrava, longe do seu país, sem recursos e com uma criança nos braços. Não recebeu qualquer resposta. Ela, que tinha um carácter orgulhoso, já não receava humilhar-se ou expor-se às censuras da parente, que jamais Lhe perdoara ter desposado um homem sem linhagem, embora virtuoso. Escreveu-lhe, pois, sempre que tinha ocasião, a fim de lhe despertar a sensibilidade a favor de Virgínia. Mas muitos anos se passaram sem que dela recebesse qualquer testemunho de saudade.

Finalmente, em 1738, três anos após a chegada do senhor de La Bourdonnais a esta ilha, a senhora de La Tour veio a saber que aquele governador tinha para lhe entregar uma carta da parte da tia. Imediatamente se dirigiu a Porto Luís, não se preocupando, dessa vez, com o seu vestido grosseiro

pois a alegria materna fazia-a pairar acima do respeito humano. Com efeito, o senhor de La Bourdonnais entregou-lhe uma carta da tia. Esta escrevia à sobrinha dizendo-lhe que merecera o seu destino por ter casado com um aventureiro; que as paixões transportavam consigo a punição; que a morte prematura do marido fora um justo castigo de Deus; que ela fizera bem em ir para as ilhas, em vez de desonrar a sua família em França; que, ao fim e ao cabo, ela se encontrava numa boa região, onde toda a gente, salvo os preguiçosos, fazia fortuna. Depois de a ter assim censurado, gabava a sua própria pessoa: para evitar, dizia, as consequências frequentemente funestas do casamento, recusara sempre casar-se. A verdade é que, sendo ambiciosa, nunca pretendera desposar um homem que não fosse de elevada estirpe ; mas, embora muito rica, nunca houvera ninguém que quisesse unir-se a uma jovem tão feia e com um coração tão empedernido.

Acrescentava, num post-scriptum, que, depois de muito reflectir, a recomendara veementemente ao senhor de La Bourdonnais. Com efeito assim fizera, mas no sentido de justificar ao governador a sua dureza para com a sobrinha, fingindo lamentá-la, ela, que a caluniara. A senhora de La Tour, que qualquer homem indiferente teria olhado com interesse e com respeito, foi recebida com bastante frieza pelo senhor de La Bourdonnais, prevenido contra ela. Ao relato que fez dela e da filha apenas respondeu com duras palavras:

- Verei... . Veremos... . Com o tempo... . Há muitos desgraçados... . Porque virou contra si uma tia tão respeitável ?... . A senhora é que andou mal.

A senhora de La Tour voltou para casa, com o coração despedaçado pela dor e a transbordar de amargura. Ao chegar, atirou para cima da mesa a carta da tia e disse:

- Aqui está o fruto de onze anos de paciência! Mas como só a senhora de La Tour sabia ler, pegou na carta e leu-a diante de toda a família reunida.

Mal terminara a leitura, quando a Margarida lhe disse com vivacidade:

- Que necessidade temos dos teus parentes? Fomos abandonadas por Deus? Só Ele é o nosso pai. Até hoje não vivemos felizes? Então porque te hás-de tu amargurar? Não tens coragem!

E vendo a senhora de La Tour a chorar, lançou-se-lhe nos braços e, estreitando-a contra si:

- Querida amiga - exclamou -, querida amiga! Mas os seus próprios soluços embargaram-lhe a voz.

Ao ver isto, Virgínia, desfazendo-se em pranto, apertava ora as mãos da mãe, ora as de Margarida, contra a boca e contra o coração ; e Paulo, de olhos a faiscarem de cólera, gritava, cerrava os punhos, batia o pé, não sabendo quem havia de consolar.

Domingos e Maria acorreram ao notarem este burburinho e, naquela casa, só se ouviam exclamações de dor:

- Ah Senhora... . Minha boa ama. Minha mãe... Não chore!

Testemunhos tão comoventes de amizade dissiparam a tristeza da senhora de La Tour. Aconchegou Paulo e Virgínia nos braços e disse-lhes, com ar contente:

- Meus filhos, sois a causa do meu desgosto, mas sois também toda a minha alegria. Oh!, meus queridos filhos, a desventura só me vem de longe, porque estou rodeada de felicidade.

Paulo e Virgínia não a compreenderam, mas, ao vê-la calma, sorriram e puseram-se a acariciá-la. E assim continuaram felizes, pois aquele incidente não passou de uma tempestade no meio de uma bela estação.

De dia para dia ia aumentando a bondade natural daquelas crianças. Um domingo, ao dealbar, quando as mães tinham ido à primeira missa da igreja das Pamplumossas, uma negra, fugida da casa do patrão, surgiu das bananeiras que rodeavam as casas. Estava descarnada como um esqueleto e por vestimenta apenas trazia um trapo de serapilheira à volta dos rins. Lançou-se aos pés de Virgínia, que preparava o almoço da família, e disse-lhe:

- Minha menina, tenha piedade de uma pobre escrava que anda fugida; há um mês que vagueio pelas montanhas, meio morta de fome, frequentemente perseguida pelos caçadores e pelos seus cães. Fujo do meu dono, que é um abastado proprietário do Rio Negro; por ele fui tratada como a menina está a ver.

Ao mesmo tempo mostrou o corpo sulcado de profundas cicatrizes resultantes de chicotadas que recebera. Acrescentou:

-Tencionava afogar-me; mas, sabendo que morava aqui, disse para comigo visto que ainda há brancos bons nesta ilha, não é ainda chegada a al tura de morrer.

Virginia, muito comovida, respondeu-lhe:

- Tranquilize-se, desgraçada criatura! Coma! Coma!

E deu-lhe o almoço da família, que estivera a preparar.

A escrava devorou-o todo num abrir e fechar de olhos. Virgínia, vendo-a saciada, disse-lhe:

- Pobre criatura! Estou com vontade de ir interceder por si junto do seu patrão; ao vê-la, ele ficará cheio de pena. Quer indicar-me o caminho?

- Anjo de Deus - respondeu a negra -, segui-la-ia até ao fim do Mundo.

Virgínia chamou o irmão e pediu-lhe que a acompanhasse. A escrava conduziu-os pelos atalhos, através dos bosques, por altas montanhas que eles escalaram com dificuldade e por largos rios, que eles atravessavam a vau.

Finalmente, já ia o dia a meio, chegaram à margem do Rio Negro. Avistaram uma casa de bela construção, plantações consideráveis e um elevado número de escravos entregues a toda a espécie de trabalhos. O patrão passeava por entre eles, de cachimbo na boca e chicote na mão.

Era um homem alto, de tez azeitonada, olhos encovados e sobrancelhas negras e unidas.

Virgínia, muito perturbada, pegando no braço de Paulo, aproximou-se do proprietário e rogou-lhe, por amor de Deus, que perdoasse à escrava, que se mantinha a alguns passos de distância.

A princípio o plantador não prestou grande atenção àqueles garotos pobremente vestidos; mas quando reparou nas formas esbeltas de Virgínia, na sua linda cabeça loura, emolduradas por um capote azul, e quando ouviu as meigas inflexões da voz dela, que, ao pedir misericórdia, tremia tanto quanto o seu corpo, tirou o cachimbo da boca e, erguendo o chicote para o céu, prometeu, fazendo um repelente juramento, que perdoaria à escrava, não por amor a Deus, mas por amor a ela. Virgínia imediatamente fez sinal à escrava para se aproximar do patrão depois, fugiu, e Paulo correu no seu encalço.

Subiram juntos o declive por onde haviam descido e, ao chegarem ao cimo, sentaram-se debaixo de uma árvore, exauridos de cansaço, de fome e de sede. Desde o dealbar que não comiam e tinham percorrido mais de cinco léguas. Paulo disse a Virgínia:

- Irmãzinha, já passa do meio-dia; estás com fome e tens sede. Aqui, nada encontraremos que se possa comer; melhor seria voltarmos a descer a coli na e pedirmos de comer ao dono da escrava.

- Oh Não, meu irmãozinho - replicou Virgínia -, tenho muito medo dele. Lembra-te do que a mãe diz às vezes: O pão do mau enche a boca de cascalho.

- Então, que vamos fazer ? - perguntou Paulo.

- Estas árvores só dão maus frutos; nem sequer há por aqui um tamarindo ou um limão para te refrescar.

- Deus terá piedade de nós - replicou Virgínia. - Ele escutou as vozes dos passarinhos a pedirem-lhe comida.

Mal pronunciara estas palavras, quando ouviram o borbulhar de uma fonte, que corria por um rochedo próximo. Precipitaram-se para ele e, depois de terem matado a sede com a sua água mais pura do que o cristal, apanharam e comeram alguns agriões que brotavam dos rebordos do rochedo. Como olhavam para um lado e para o outro, a fim de ver se encontravam alimentos mais sólidos, Virgínia avistou, por entre as árvores da floresta, uma palmeira nova. A flor que esta árvore contém entre as folhas é muito boa para comer; mas embora o tronco não fosse mais grosso do que uma perna, tinha mais de sessenta pés de altura. Para falar verdade, a madeira desta árvore não passa de uma amálgama de filamentos, mas o seu alburno é tão duro que até os melhores machados são inúteis e Paulo nem sequer possuía uma faca.

Ocorreu-Lhe a ideia de deitar fogo à base da árvore; mas nova complicação surgia, visto não ter fuzil de pederneira e, aliás, nesta ilha tão juncada de

rochedos, julgo ser impossível encontrar-se uma única pederneira.

A necessidade faz o engenho e quase sempre as invenções mais úteis ficaram a dever-se aos homens mais miseráveis. Paulo decidiu fazer fogo à maneira dos negros: com a aresta de uma pedra fez um pequeno buraco num ramo bastante seco da árvore, que dobrou com os pés; depois, com a parte cortante da pedra, aguçou a extremidade de outro pedaço de madeira diferente; em seguida, colocou este pedaço de madeira no pequeno buraco do ramo que dobrava com os pés e, fazendo-o girar rapidamente entre as mãos, como se rola um molinete para amassar o chocolate, em poucos instantes fez brotar do ponto de contacto fumo e faíscas. Juntou ervas secas e ramos da árvore e deitou fogo à base da palmeira, que em breve tombava com grande estrépito.

O fogo serviu-lhe ainda para tirar a flor do invólucro, composto de folhas linhosas e espinhosas. Ele e Virgínia comeram uma parte desta flor crua e a outra assada nas cinzas, e acharam ambas igualmente saborosas. Fizeram esta frugal refeição regozijados pela lembrança da boa acção que haviam praticado nessa manhã; mas essa alegria foi anuviada pela inquietação em que decerto as mães estariam pela sua longa ausência de casa. Este pen samento torturava Virgínia ; Paulo, entretanto, sentindo as forças recuperadas, assegurou-lhe que não tardariam a tranquilizar as mães.

Após a refeição ficaram muito embaraçados porque não tinham um guia que os reconduzisse a casa. Paulo, a quem nada surpreendia, disse a Virgínia:

- A nossa casa situa-se na direcção do Sol da tarde; precisamos de atravessar, como fizemos esta manhã, aquela montanha que tu vês acolá, com os seus três picos. Vamos, irmãzinha, a caminho!

A montanha era chamada a dos Três Mamilos visto os seus picos assumirem aquela forma. Voltaram, pois, a descer pelo lado do norte e, após uma hora de marcha, chegaram às margens de um largo rio, que Lhes barrava o caminho. Aquela imensa parcela da ilha, toda coberta de florestas, é tão pouco conhecida, mesmo nos nossos dias, que vários dos seus rios e montanhas não têm nome. O rio em cuja margem se encontravam corre, borbulhando, sobre um leito de rochas. O fragor das suas águas assustou Virgínia; não se atrevia a passá-lo a vau. Paulo pegou então em Virgínia e atravessou, assim carregado, as pedras escorregadias do rio, a despeito das suas águas tumultuosas.

- Não tenhas medo - dizia-lhe -, contigo, sinto-me com muitas forças. Se o proprietário do Rio Negro te recusasse o perdão para a escrava, ter-me-ia batido com ele.

- Como! - respondeu Virgínia. - Com aquele homem tão alto e tão mau? A que te expus eu! Meu Deus! Como é difícil praticar o bem! Só o mal é fácil de realizar.

Paulo pegou então em Viirginia.

Quando Paulo chegou à outra margem fez menção de continuar o percurso transportando a irmã e vangloriava-se que iria escalar desta forma a Montanha dos Três Mamilos, que ele avistava à sua frente, a légua e meia de distância; mas faltaram-lhe as forças e foi obrigado a pousá-la no chão e a descansar junto dela. Virginia disse-Lhe então:

- Irmãozinho, a noite está prestes a cair; tu ainda te sentes com forças, mas eu estou fraca; deixa-me aqui e volta sozinho para casa, a fim de tranquilizares as nossas mães.

- Oh Nunca - retorquiu Paulo. - Não te deixarei. Se a noite nos surpreender nos bosques, farei uma fogueira, abaterei uma palmeira, tu comerás a sua flor e, com as folhas, construirei uma palhota para te abrigares.

Entretanto, Virgínia, que se recompusera um pouco, arrancou, do tronco de uma velha árvore inclinada para a margem do rio, longas folhas de es colopendra que pendiam desta; com elas fez uma espécie de emplastro, com o qual envolveu os pés, que as pedras do caminho tinham ferido; porque, na ansia de ser útil, esquecera-se de calçar os sapatos. Sentindo-se aliviada pela frescura daquelas folhas, partiu um tronco de bambu e pôs- se a caminho, apoiando -se, com uma das mãos, neste cajado e, com a outra, no irmão.

Caminharam assim lentamente pelos bosques; mas a altura das árvores e a espessuta da folhagem depressa os fez perder de vista a Montanha dos Três Mamilos, em cuj a direcção se dirigiam, e até o Sol, que estava prestes a desaparecer.

Ao cabo de algum tempo, desviaram-se, sem disso se aperceberem, do atalho que até então haviam trilhado e deparou-se-lhes um emaranhado de árvores, de lianas e de rochas que não tinha saída.

Paulo obrigou Virgínia a sentar-se e pôs-se a correr por aqui e por ali, completamente desnorteado, a fim de encontrar um caminho fora daquele denso matagal ; mas fatigava-se em vão.

Trepou até ao cimo de uma grande árvore, para, pelo menos, conseguir lobrigar a Montanha dos Três Mamilos; mas, em seu redor, avistou apenas as copas das árvores.

Entretanto, a sombra das montanhas projectava-se já sobre as florestas dos vales; o vento acalmara-se, como acontecia ao pôr do Sol; um profundo silêncio reinava nestes recônditos e só se ouvia o bramido dos veados, que vinham procurar as suas tocas nestes lugares remotos.

Paulo gritou então a plenos pulmões:

- Venham, venham socorrer a Virgínia! Mas só o eco da floresta respondeu ao seu apelo, repetindo por várias vezes:

- Virgínia... . Virgínia.

Paulo desceu então da árvore, oprimido de fadiga e de tristeza; procurou os meios de passar a noite naquele lugar; mas não havia nem uma fonte, nem uma palmeira, nem sequer ramos secos para fazer uma fogueira. Apercebeu-se então, instintivamente, dos poucos recursos que tinha e pôs-se a chorar.

- Não chores irmãozinho - disse-lhe Virgínia -, caso contrário, ficarei também muito triste.

Fui eu a causa de todos os teus aborrecimentos e da inquietação em que neste momento se devem encontrar as nossas mães. Nunca devemos fazer nada, nem sequer o bem, sem consultar os pais. Oh! Como fui imprudente!

Mal acabara de falar quando ouviram os latidos de um cão.

- Deve ser - disse Paulo - o cão de algum caçador, que vem, à noite, matar veados.

Pouco depois, os latidos do cão redobraram.

- Parece-me - retorquiu Virgínia - que é o eFiel, o nosso cão; sim, reconheço-lhe o ladrar ; estaremos nós tão perto de casa e no sopé da montanha?

Com efeito, um momento depois, Fiel encontrava-se aos pés dela, ladrando, uivando, gemendo, cobrindo-a de carícias.

Ainda mal se tinham refeito da surpresa, quando avistaram Domingos, que corria para eles. A chegada deste bom negro, que chorava de alegria, puseram-se também a chorar, incapazes de pronunciar uma palavra. E quando Domingos recuperou a serenidade, este disse:

- Oh, meus jovens amos - exclamou -, como as vossas mães estão inquietas! Qual o espanto delas e o meu quando, à vinda da missa, os não encontrámos! A Maria, que trabalhava em casa, não nos soube dizer para onde tinham ido. Eu andava de um lado para o outro, sem mesmo saber onde os haveria de procurar. Finalmente, peguei em roupas velhas de um e de outro e dei-as a cheirar ao Fiel, e, como se este pobre animal me tivesse percebido, imediatamente se pôs no vosso encalço

conduziu-me, sempre a agitar a cauda, até ao Rio Negro. Foi ali que um plantador me informou que lhe tinham levado uma negra evadida e que ele vos concedera o perdão para ela. Mas que perdão!

Mostrou-ma, com uma corrente nos pés, amarrada a um cepo de madeira e com um aro de ferro com três fechos à volta do pescoço. Dali, o Fiel, sempre a agitar a cauda, levou-me até ao Rio Negroonde se deteve de novo, latindo a plenos pulmões ; estávamos à beira de uma fonte, junto de uma palmeira abatida e perto de uma fogueira que fumegava ainda. Finalmente, conduziu-me atéaqui: encontramo-nos no sopé da Montanha dos Três Mamilos e até à nossa casa teremos ainda que percorrer umas boas quatro léguas. Vamos, comam e retemperem as forças.

Imediatamente lhes estendeu um bolo, frutos e uma cabaça cheia de uma bebida feita com águavinho, sumo de limão, açúcar e noz-moscada, que as mães lhes haviam preparado para lhes dar forças e mitigar-lhes a sede. Virgínia suspirou, ao lembrar-se da pobre escrava e da inquietação das mães de ambos. Por várias vezes repetiu:

- Oh Como é difícil praticar o bem!

Enquanto ela e Paulo se refrescavam, Domingos acendeu uma fogueira e, tendo encontrado, entre as rochas, uma cepa, que é chamada madeira retorcida e que arde mesmo verde, produzindo uma grande chama, com ela fez um archote, porque a noite já caíra. Mas quando chegou a altura de se porem a caminho, deparou-se-lhes um obstáculo ainda maior: Paulo e Virgínia sentiam-se incapazes de dar mais um passo; tinham os pés inchados e todos vermelhos. Domingos não sabia se deveria ir à procura de auxílio ou passar a noite com eles naquele sítio.

- Já lá vai o tempo - disse-lhes - em que vos carregava os dois ao colo! Agora, estão crescidos e eu estou velho.

Quando se sentia assim perplexo, surgiu, a vinte passos dali, um grupo de negros. O chefe do grupo, aproximando-se de Paulo e de Virgínia, disse-lhes:

- Meus bons jovens brancos, não tenham medo; vimo-los passar esta manhã com uma negra do Rio Negro ; iam pedir perdão para ela ao seu ruim patrão ; como prova de reconhecimento, levá-los-emos aos nossos ombros.

Fez então um sinal e quatro negros muito robustos construíram rapidamente uma padiola com ramos de árvores e lianas, aí colocaram Paulo e Virgínia, puseram-nos aos ombros e, com Domingos marchando à frente com o archote, iniciaram a caminhada, no meio dos gritos de alegria de todo o grupo.

Virgínia, enternecida, exclamou para Paulo:

- Oh Meu irmãozinho! Deus nunca deixa de recompensar um acto de bondade!

A meio da noite chegaram ao sopé da montanha cujos cumes estavam iluminados por diversas fogueiras.

Mal a tinham escalado quando ouviram vozes que gritavam:

- São vocês, meus filhos ?

Responderam, em uníssono, com os negros:

- Sim, somos nós!

E logo avistaram as mães e Maria, que vinha à frente delas, trazendo tições acesos.

- Desgraçados filhos - disse a senhora de La Tour -, donde vêm vocês? Se soubessem em que aflição nos encontrávamos!

- Vimos - respondeu Virgínia - do Rio Negro, onde fomos pedir a mercê para uma pobre escrava evadida, a quem esta manhã dei o almoço de todos nós, porque ela morria de fome; e estes negros trouxeram-nos.

A senhora de La Tour, incapaz de pronunciar palavra, abraçou a filha; Virgínia, que sentia o rosto banhado pelas lágrimas da mãe, disse-lhe:

- Está a recompensar-me de todo o mal que eu sofri.

Margarida, a transbordar de alegria, estreitava Paulo nos braços e dizia-lhe:

- E tu, meu filho, também tu cometeste uma boa acção.

Ao chegarem a suas casas, com os filhos, deram uma abundante refeição aos negros, que em seguida voltaram para os bosques.

E, assim, cada dia era, para aquelas famílias, um dia de felicidade e de paz. Não os atormentava nem a inveja, nem a ambição. De modo nenhum desejavam gozar, no mundo exterior, da vã reputação que dá a intriga e que esconde a calúnia; bastava-lhes serem eles próprios as suas testemunhas e os seus juízes.

Nesta ilha onde, como em todas as colónias europeias, só as historietas maldosas têm interesse, as suas virtudes, e mesmo os seus nomes, eram ignorados; só que, quando qualquer viandante inquiria a alguns habitantes da planície:

- Quem vive naquelas casinhas, lá no alto?

Eles, sem os conhecerem, respondiam:

- Boa gente.

Eram como violetas, que, sob os matagais espinhosos, exalam de longe os seus doces perfumes, embora se escondam dos olhares.

Tinham banido das suas conversas a maledicência que, sob uma aparência de justiça, predispõe forçosamente o coração para o ódio e para a falsidade; porque é impossível não odiar os homens se os julgarmos ruins e viver com os maus sem estes dissimularem o seu rancor sob falsas aparências de bondade.

De forma que a maledicência obriga-nos a viver mal com os outros e connosco mesmos. Mas, sem julgarem os homens em particular, interessavam-se apenas por fazerem bem a todos em geral; e embora não tivessem poder para isso, possuíam uma vontade constante de o praticar, que os enchia de uma bondade extrema, prontos a acorrerem em auxílio dos estranhos. Desta forma, longe de serem selvagens, por viverem na solidão, haviam-se tornado mais humanos. Se as histórias escandalosas da sociedade lhes não proporcionava temas para as suas conversas, a da Natureza enchia-os de êxtase e de alegria. Admiravam o poder de uma Providência que, actuando através deles, espalhara por aquelas rochas áridas a abundância, as graças e os prazeres puros e simples.

Paulo, com doze anos de idade, mais robusto e mais inteligente do que os europeus de quinze anos, embelezara o que o negro Domingos não fazia senão cultivar. Ia com ele até aos bosques vizinhos arrancar rebentos de limoeiro, de laranjeira, de tamarindos, cuja copa redonda tem um tão belo tom verde, e tamareiras, cujo fruto possui um suco cremoso e adocicado e o perfume da flor de laranjeira; plantava estas árvores, já grandes, em torno do recinto. Semeara caroços de árvores que, a partir do segundo ano, dão flores e frutos, como a agatis, donde pendem, como os cristais de um candelabro, longos cachos de flores brancas ; o lilás da Pérsia, cujas girândolas gredelém se aprumam, direitas, no ar; mamoeiros, cujo tronco, despido de ramos, assumindo a configuração de uma coluna cheia de melões verdes, exibe um capitel de largas folhas semelhantes às da figueira.

Plantara também pepinos e caroços de badamias, de abacate, de goiabeira, de jaca e de jamboeiro. A maior parte destas árvores dava já ao jovem dono sombra e frutos. As suas mãos laboriosas tinham espalhado a fecundidade até pelos lugares mais estéreis deste recinto. Diversas espécies de plantas, vergando ao peso de flores amarelas com cambiantes vermelhos, os círios espinhosos, elevavam-se acima das silhuetas negras das rochas e pareciam querer agarrar-se às compridas lianas, pontilhadas de flores azuis ou escarlates, que pendiam aqui e ali, ao longo dos declives da montanha.

Dispusera estas plantas de molde a surgirem em toda a sua plenitude diante dos nossos olhos. Plantara, no meio daquela bacia, ervas rasteiras, depois arbustos, em seguida as árvores médias e, finalmente, as árvores de grande porte, que ladeavam a curvatura da bacia; de forma que aquele vasto terreno parecia, visto do centro, um anfiteatro de verdura de frutos e de flores, que incluíam plantas hortícolas, arbustos das pradarias e campos de arroz e de trigo.

Mas ao submeter estes vegetais ao seu plano, teve em conta o da Natureza; guiado pelas indicações desta, colocara nos sítios elevados aqueles cujas sementes são voláteis, e, à beira da água, aqueles cujas sementes foram feitas para flutuar; assim, cada planta crescia no sítio que lhe era adequado e cada sítio recebia da respectiva planta o seu natural enfeite. As águas que descem do cimo daquelas rochas formavam, no fundo dos vales, aqui e ali, fontes e largos espelhos que reflectiam, no meio da verdura, as árvores em flor, os rochedos e o azul do céu.

A despeito da grande irregularidade deste terreno, todas as plantações eram, na sua maioria, tão acessíveis ao tacto como à vista; para falar verdade, ajudávamo-lo com os nossos conselhos, com a nossa colaboração, a fim de realizar o seu objectivo.

Fizera um trabalho que circundava esta bacia e cujos vários ramais vinham, a partir da circunferência, convergir no centro.

Tirara partido dos locais mais irregulares e conciliara, na mais feliz das harmonias, a facilidade da caminhada com a irregularidade do solo e as árvores domésticas com as silvestres. Desta quantidade enorme de pedras soltas que hoje obstroem estes caminhos, assim como grande parte do terreno da ilha, formara, aqui e ali, pirâmides, na base das quais misturara terra, raízes de roseiras e outros arbustos, que se dão bem entre as rochas.

Em pouco tempo, essas pirâmides sombrias e abruptas estavam cobertas de verdura ou de lindas flores.

As ravinas, ladeadas por velhas árvores inclinadas para as bordas, formavam caramanchões aboba dados, onde o calor não podia penetrar e onde íamos apanhar o fresco durante o dia. Um atalho conduzia a um pequeno bosque de árvores silvestres, no centro do qual crescia, abrigada dos ventos, uma árvore carregada de frutos.

Aqui, estendia-se uma seara, ali, era um pomar. Por aquela avenida, avistavam-se as casas; para lá delas, os cumes inacessíveis da montanha.

Sob um arvoredo, onde as lianas se emaranhavam, não se distinguia, em pleno meio-dia, nenhum objecto, mas da ponta daquele grande rochedo que sobressai da montanha avistavam-se todas as coisas deste recinto, com o mar ao longe, onde por vezes surgia um barco qualquer, que vinha da Europa ou que para lá voltava. Era nesse ro chedo que aquelas famílias se reuniam à noite, gozando em silencio a frescura do ar, o perfume das flores, o murmúrio das fontes e os últimos contrastes de luz e sombras.

Nada era mais agradável do que os nomes dados à maior parte dos encantadores abrigos deste labirinto. Aquele rochedo, de que acabo de falar, donde me avistavam de muito longe, chamava-se a Descoberta da Amizade. Paulo e Virgínia, nas suas brincadeiras, tinham lá enterrado um bambu, na extremidade do qual hasteavam um pequeno lenço branco, para assinalar a minha chegada, logo que me avistavam, como se hasteia uma bandeira na montanha vizinha, ao assinalar-se um barco no mar. Ocorreu-me a ideia de gravar uma inscrição no caule daquela roseira. Por muito prazer que tivesse sentido, nas minhas viagens, à vista de uma estátua ou de um monumento da Antiguidade, sentia ainda mais ao ler uma inscrição bem feita. É como se uma voz humana, saída da pedra, se faça ouvir através dos séculos e, dirigindo-se ao homem no meio dos desertos, lhe diga que não está só e que outros homens, naqueles mesmos sítios, sentiram, pensaram e sofreram como ele.

Escrevi, pois, no pequeno bambu plantado por Paulo e Virgínia, estes versos de Horácio:

Que os irmãos de Helenaastros encantadores como vós e que os pais dos ventos

vos dirijam e só façam soprar a brisa.

Gravei este verso de Virgílio na casca de uma árvore, à sombra da qual o Paulo por vezes se sentava para observar ao longe o mar encapelado:

Ditoso és, meu filho, por só conheceres as divindades campestres .

E este outro, por cima da porta da cabana da senhora de La Tour, que era o local onde se reuniam:

Vive aqui uma boa consciência e uma vida que não sabe enganar.

Mas Virgínia de modo nenhum aprovava o meu latim; dizia ela que o que eu gravara na base do seu cata-vento era demasiado comprido e demasiado sábio.

- Gostaria mais - acrescentou - de Sempre agitada mas constante.

-Essa divisa - respondi-lhe - combinaria ainda melhor com a virtude.

A minha reflexão fê-la corar.

Aquelas ditosas famílias abriam as suas almas sensíveis a tudo quanto as rodeava. Tinham dado os nomes mais ternos aos objectos aparentemente mais insignificantes. Um círculo de laranjeiras, de bananeiras e de jamboeiros, plantados em torno de um terreno arrelvado, no meio do qual Virgínia e Paulo por vezes dançavam, chamava-se A Concórdia. Uma velha árvore, à sombra da qual a senhora de La Tour e Margarida haviam contado uma à outra as suas desventuras, tinha o nome de A Lágrima Enxugada. Designavam-se de Bretanha e Normandia pequenas parcelas de terra onde haviam semeado trigo, morangos e ervilhas.

Domingos e Maria, desejando, à semelhança das amas, recordar os lugares da sua infância em África, chamavam Angola e Foellepointe a dois locais onde crescia a erva com a qual fabricavam cestos e onde tinham plantado uma cabaceira.

Assim, através das reproduções dos seus temas, aquelas famílias expatriadas mantinham as doces ilusões do seu país e apaziguavam as saudades numa terra estrangeira. Ai de mim! Vi animarem-se de mil apelos encantadores as árvores, as fontes e os rochedos deste lugar, agora tão destruído e que, semelhante a um campo da Grécia, só exibe ruínas e nomes comoventes.

Mas de tudo quanto este recinto incluía, nada havia de mais agradável do que aquilo a que chamávamos O Rochedo de Virgínia. A base do rochedo da Descoberta da Amizade é uma cavidade donde brota uma fonte, que desde a sua nascente forma um pequeno charco, no meio de um prado de fina erva. Quando Margarida deu à luz o Paulo, ofereci-Lhe de presente um coco das Índias que me haviam dado. Ela plantou esse fruto à beira daquele charco, a fim de que a árvore que produzisse um dia viesse a constituir o marco que assinalava o nascimento do filho. A senhora de La Tour, seguindo-lhe o exemplo, quando deu à luz a Virgínia, plantou outro, com semelhante intenção.

Desses dois frutos nasceram dois coqueiros, que constituíam as árvores genealógicas daquelas duas famílias; uma, chamava-se a árvore do Paulo e a outra, a Árvore da Virginia. Cresceram ambas na mesma proporção que os seus donos, com uma altura ligeiramente desigual mas que, ao cabo de doze anos, ultrapassava a das respectivas cabanas. Nessa altura, já entrelaçavam as suas palmas e exibiam os seus jovens cachos de cocos por cima da bacia da fonte.

À parte aquela plantação, deixaram a concavidade do rochedo tal como a Natureza a dotara. Nos seus flancos, castanhos e húmidos, brilhavam, como estrelas verdes e negras, largas avencas e tufos de escolopendra balouçavam-se ao sabor do vento, como longas esteiras de um verde purpúreo.

Perto dali, cresciam faixas de congossa, cujas flores são quase semelhantes às do goivo encarnado, e pimentos, cujas cascas cor de sangue são mais brilhantes do que o coral. Nas redondezas, a balsamita, cujas folhas têm a forma de um coração, e os manjericos, cheirando a cravinho, exalavam os mais doces perfumes.

Do alto da escarpa da montanha pendiam lianas semelhantes a tapeçarias flutuantes que formavam, nos flancos dos rochedos, grandes cortinas de verdura. As aves marinhas, atraídas por estes recantos aprazíveis, ali vinham passar a noite. Ao pôr do Sol, via-se voar, ao longo da costa, as galinholas e, pairando nos ares, as negras fragatas, juntamente com o pássaro branco dos Trópicos, que, à semelhança do astro diurno, abandonava as solidões do Oceano Ìndico.

Virgínia gostava de repousar à beira desta fonte, decorada com um fausto a um tempo magnífico e selvagem. Ia com frequência lavar lá a roupa da família, à sombra dos dois coqueiros. Por vezes, levava ali a pastar as suas cabras. Enquanto preparava queijo com o leite destas, comprazia-se a vê-las roer as avencas dos flancos escarpados da rocha e a manterem-se suspensas no ar, apoiadas numa das cornichas, como se fosse um pedestal.

Paulo, vendo que Virgínia amava aquele lugar, levou para ali, da floresta vizinha, ninhos de todas as espécies de pássaros. Os pais e as mães daquelas aves seguiram os filhotes e vieram instalar-se nesta nova colónia. De tempos a tempos, Virgínia dava-lhes bagos de arroz, de milho e de milho miúdo. logo que ela aparecia, os melros, os tentilhões, cujo gorjeio é tão suave, os patos-malhados, que têm a plumagem cor de fogo, elevavam-se das matas; periquitos verdes como esmeraldas desciam das palmeiras vizinhas, as perdizes emergiam da erva; todos avançavam juntos até aos seus pés, como se fossem galinhas. Paulo e ela divertiam-se, extasiados, com os seus folguedos, os seus apetites e os seus amores.

Simpáticas crianças, assim passastes, na inocência, a vossa meninice, aperfeiçoando-vos no bem! Quantas vezes as vossas mães, neste lugar, estreitando-vos nos braços, davam graças ao céu pelo consolo que daríeis à sua velhice e por vos ver entrar na vida sob tão ditosos auspícios! Quantas vezes, à sombra destes rochedos, partilhei com elas as vossas refeições campestres, que não tinham custado a vida a nenhum animal! Cabaças cheias de leite, ovos frescos, bolos de arroz sobre folhas de bananeira, cestos ajoujados de batatas, de mangas, de laranj as, de romãs, de bananas, de ananases, proporcionavam a um tempo as mais simples refeições, as cores mais vistosas e os sumos mais agradáveis.

As palavras também eram tão doces e tão inocentes como esses festins: Paulo falava frequentemente dos trabalhos daquele dia e do dia seguinte. Estava sempre a cismar em qualquer coisa útil para o grupo. Aqui, os atalhos não eram acessíveis ; ali, ficávamos mal sentados; aqueles jovens caramanchões não davam sombra suficiente; Virgínia ficaria melhor ali.

Na época das chuvas, passavam o dia juntos, dentro de casa, amos e servos, ocupados na confecção de esteiras com plantas e de cestos com bambu. Alinhados, na maior das ordens, contra as paredes, viam-se ancinhos, machados e enxadas; e junto destas alfaias agrícolas, o que brotara destas, os frutos, sacos de arroz, molhos de trigo e grandes cachos de bananas.

Virgínia, orientada por Margarida e pela mãe, preparava com eles doces e cordiais com o suco da cana-de-açúcar, dos limões e das cidras.

Quando a noite caía, ceavam à luz de uma candeia; depois, a senhora de La Tour, ou Margarida, contava qualquer história sobre viajantes perdidos, à noite, nos bosques da Europa, infestados de ladrões, ou sobre o naufrágio de algum barco, atirado pela tempestade contra os rochedos de uma ilha deserta. As almas das crianças inflamavam-se com estas narrativas; suplicavam aos céus que lhes dessem a graça de um dia terem ensejo de oferecer hospitalidade a tais desventurados.

Entretanto, as duas famílias separavam-se para irem repousar, impacientes por se voltarem a ver no dia seguinte. Por vezes, adormeciam com o tamborilar da chuva, que caía em bátegas sobre os telhados das casas, ou com o uivar do vento, que lhes trazia o marulhar distante das ondas que se iam quebrar na costa. Davam graças a Deus pela sua segurança pessoal e este sentimento aumentava por se verem afastados do perigo.

Mas como acontece com as almas mais moderadas, que algumas nuvens vêm, por vezes, perturbar, quando um deles parecia triste, todos os outros se reuniam em seu redor e o arrancavam dos pensamentos sombrios, mais por sentimentos do que por palavras. Cada um utilizava o seu carácter particular; Margarida, uma vivacidade alegre; a senhora de La Tour, uma doce filosofia; Virgínia, ternas carícias; Paulo, a franqueza e a cordialidade; até Maria e Domingos acorriam quando alguém chorava. Como as plantas frágeis que se entrelaçam umas nas outras para se defenderem contra os furacões.

Na estação seca, iam todos os domingos à missa da igreja das Pamplumossas, cujo campanário está a ver acolá, na planície.

A ela assistiam os habitantes ricos, de palanquim, que por várias vezes mostraram desejos de travar conhecimento com estas famílias tão unidas e de convidá-las para uns momentos de diversão. Mas elas recusavam sempre as suas ofertas com honestidade e respeito, persuadidas de que as pessoas poderosas só procuravam as fracas para terem aduladores, e que uma pessoa só pode ser aduladora quando lisonjeia as paixões de outrem, boas ou más. Passavam, pois, por tímidas e orgulhosas; mas a sua conduta reservada era acompanhada por testemunhos de cortesia tão delicados, que gradualmente foram ganhando respeito e confiança.

De forma que vinham com frequência solicitar a sua ajuda: era uma pessoa aflita, que lhes pedia conselhos, ou uma criança que lhes suplicava para irem ver a sua mãe, doente, num bairro vizinho. Levavam sempre com elas algumas receitas úteis para as doenças vulgares e a elas juntavam a boa vontade, que tanto valoriza os pequenos favores. Conseguiam, sobretudo, afugentar os sofrimentos espirituais, tão intoleráveis quando se está só e doente. Com frequência, Virgínia voltava para casa de olhos marejados de lágrimas, mas o coração a transbordar de alegria, porque tivera ensejo de praticar o bem. Era ela quem antecipadamente preparava os remédios necessários aos doentes e quem lhos apresentava com uma graça inefável.

Após estas visitas sociais, alongavam, por vezes, o seu percurso pelo vale da Montanha Longa até minha casa, onde eu as aguardava para jantarmos na margem do pequeno rio que corre para as minhas bandas. Escolhia, para essas ocasiões, algumas garrafas de vinho antigo, a fim de aumentar a alegria das nossas refeições do Índico com essas doces e cordiais produções da Europa.

Outras vezes, encontrávamo- nos à beira-mar, na embocadura de alguns outros pequenos rios, que aqui quase não passam de grandes riachos. Transportávamos, de casa para ali, provisões vegetais, que juntávamos às que o mar nos fornecia em abundância. Pescávamos nas margens salmonetes, lagostas, camarões, caranguejos, ouriços-do-mar, ostras e outras espécies de mariscos.

Os sítios mais terríveis proporcionavam-nos com frequência os mais tranquilos prazeres. Por vezes, sentados num rochedo, observávamos as vagas do mar alto a virem quebrar-se aos nossos pés com um estrépito medonho. Paulo, que nadava, aliás, como um peixe, corria, então, pelos recifes, antecipando-se às ondas e depois, à sua aproximação, fugia para a margem, à frente daqueles enormes vultos espumosos e bramantes, que o perseguiam pelo cascalho adentro. Mas Virgínia, àquele espectáculo, soltava gritos lancinantes e dizia que aquelas brincadeiras lhe causavam muito medo. As nossas refeições eram seguidas de canções e danças dos dois jovens.

Por vezes, à maneira dos negros, Virgínia executava uma pantomima com Paulo. Recordando-se das leituras bíblicas que a mãe Lhe fazia, daquelas histórias que mais a haviam impressionado, representava os principais acontecimentos com grande candura. Em breve, ao som do batuque de Domin gos, apresentava-se no relvado, trazendo uma bilha à cabeça; dirigia-se, com timidez, para a nascente de uma fonte vizinha para dela tirar água. Domingos e Maria, representando os pastores de Madiã, barravam-lhe o acesso e fingiam empurrá-la. Paulo acorria em seu socorro, batia nos pastores e enchia a bilha de Virgínia e, pousando-lha na cabeça, ao mesmo tempo colocava-lhe uma coroa de fLores vermelhas de congossa, que lhe fazia sobressair a brancura da tez. Então, prestando-me às suas brincadeiras, eu fazia o papel de Raquel e concedia a Paulo a minha filha Séfora em casamento.

Noutra altura, representava a desventurada Rute, que regressa viúva e pobre ao seu país, onde se sente uma forasteira, após uma longa ausencia. Domingos e Maria representavam os ceifeiros. Virgínia fingia apanhar aqui e ali algumas espigas de trigo que eles iam deixando pelo caminho. Paulo, imitando a solenidade de um patriarca, interpelava-a; ela respondia, tremendo, às suas perguntas. Logo, tocado pela compaixão, ele concedia-lhe hospitalidade, enchia-lhe o avental de provisões e conduzia-a à nossa presença, como que à presença dos anciãos da cidade, declarando que a tomava por esposa, a despeito da sua pobreza.

A senhora de La Tour, perante esta cena, lembrando-se do abandono a que a haviam votado os seus próprios parentes, da sua viuvez, do bom acolhimento que recebera de Margarida, naquela altura, seguido da esperança de um casamento ditoso entre os filhos, não podia conter o pranto ; e aquela confusa recordação de males e de bens fazia-nos a todos derramar lágrimas de dor e de alegria.

Aqueles dramas eram desempenhados com tanta veracidade, que nos julgaríamos transportados aos campos da Síria ou da Palestina.

Faltavam-nos as decorações, as iluminações e a orquestra adequados a este espectáculo. O palco situava-se normalmente na encruzilhada de uma floresta, cujas clareiras formavam à nossa volta várias arcadas de folhagem; no centro delas, ficávamos abrigados do calor durante o dia inteiro; mas quando o Sol descia no horizonte, os seus raios, disseminados pelos troncos das árvores, convergiam nas sombras da floresta em longas esteiras luminosas que produziam o mais majestoso dos efeitos. Por vezes, aparecia em toda a sua plenitude na extremidade de uma alameda e esta resplandecia de luz. A folhagem das árvores, cuja parte inferior era iluminada pelos seus raios açafroados, tinha cintila ções de topázio e de esmeralda; os seus troncos musgosos e castanhos pareciam transformar-se em colunas de bronze antigo; e os pássaros, que se haviam já abrigado sob a sombra e calado os seus gorjeios, surpreendidos ao verem uma segunda aurora, saudavam em uníssono o astro- rei com milhares e milhares de canções.

Com bastante frequência, a noite vinha-nos surpreender em meio destas festas bucólicas, mas a pureza do ar e a suavidade do clima permitiam- nos dormir no coração dos bosques, sob um abrigo feito de folhas, sem recear, além disso, os ladrões, nem ali nem longe. No dia seguinte, cada um voltaria para sua casa e encontrá-la-ia tal como a deixara.

Nessa época, havia tanta boa-fé e singeleza nesta ilha sem relações comerciais, que as portas de muitas casas nunca eram fechadas à chave e uma fechadura era motivo de curiosidade para muitos crioulos.

Durante o ano, havia dois dias que eram, para Paulo e Virgínia, os das maiores alegrias: os aniversários das mães.

Virgínia não deixava, na véspera, de amassar e cozer bolos de farinha e de trigo, que enviava às famílias de brancos pobres nascidos na ilha, que jamais haviam saboreado o pão da Europa e que, sem qualquer auxílio, reduzidos a viverem de mandioca no meio dos bosques, não tinham, para enfrentar a pobreza, nem a ignorância que acompanha a escravatura, nem a coragem que vem da instrução. Aqueles bolos eram os únicos presentes que Virgínia podia dar. Mas imprimia-lhes uma tal boa vontade, que assumiam grande valor.

De início, era o Paulo quem se encarregava de os levar pessoalmente a essas famílias e elas comprometiam-se, ao recebê-los, a ir passar o dia seguinte a casa da senhora de La Tour e de Margarida.

Víamos então chegar uma mãe acompanhada de duas ou três pobres filhas, magras e tão tímidas que nem sequer se atreviam a levantar os olhos. Virgínia depressa as punha à vontade; servia-lhes refrescos e prodigalizava-lhes atenções que, pensava, as faziam felizes. Esta bebida fora preparada pela mãe, aquela outra por Margarida; o seu irmão colhera com as suas próprias mãos este fruto do alto de uma árvore. Insistia com Paulo para as fazer dançar. Só as deixava quando as via contentes e satisfeitas; queria que participassem do regozijo da família.

- Só somos felizes - dizia - quando nos preocupamos com a felicidade dos outros.

Quando faziam menção de se ir embora, insistia com elas para que levassem o que parecia ter-lhes dado mais prazer. Se reparava que o vestuário delas se encontrava em muito mau estado, escolhia, com o consentimento da mãe, algumas peças da sua roupa e encarregava o Paulo de ir secretamente pô-las à porta das suas casas. De forma que praticava o bem escondendo a identidade da benfeitora e mostrando a sua boa acção.

Paulo e Virgínia não tinham nem relógio, nem almanaque, nem livros de Cronologia, de História ou de Filosofia. Os períodos das suas vidas regulavam-se pelos da Natureza. Conheciam as horas do dia pela sombra das árvores; as estações, pela altura em que despontam as suas flores ou os seus frutos; e os anos, pelo número das apanhas. Estas doces imagens imprimiam os maiores encantos às suas conversas.

- É tempo de jantar - dizia Virgínia à família -, as sombras das bananeiras incidem nas suas bases.

- A noite aproxima-se, os tamarindos fecham as suas folhas.

- Quando nos irá visitar? - perguntavam-lhe algumas amigas da vizinhança.

- Na época da cana-de-açúcar - respondia Virgínia.

- A sua visita ser-nos-á ainda mais doce e mais agradável - replicavam-lhe as jovens.

Quando a interrogavam acerca da sua idade ou da de Paulo:

- O meu irmão - respondia - tem a idade do coqueiro maior da fonte, e eu, a do mais pequeno. Desde que vim ao Mundo, as mangueiras deram doze vezes os seus frutos e as laranjeiras vinte e quatro vezes as suas flores.

As suas vidas pareciam associadas às das árvores; não conheciam outras épocas históricas além das da vida de suas mães, outra cronologia além da dos seus pomares e outra filosofia além da de praticar o bem para com toda a gente.

Bem vistas as coisas, que necessidade teriam aqueles jovens de ser ricos e sábios à nossa maneira? As suas necessidades e a sua ignorância aumentavam ainda mais a sua felicidade. Não havia dia em que não trocassem entre si alguns favores ou alguns esclarecimentos; e caso houvesse alguns erros à mistura, o Homem puro não teria a recear que fossem perigosos.

Assim cresciam aqueles dois filhos da Natureza. Nenhuma preocupação Lhes enrugava a testa, nenhum excesso lhes corrompera o sangue, nenhuma paixão infeliz lhes depravava o coração: o amor, a inocência e a piedade enchiam, de dia para dia, a beleza das suas almas de graças inefáveis, nos seus traços, nas suas atitudes e nos seus movimentos. Na aurora da vida, possuíam toda a sua frescura; tal como apareceram, no Jardim de Éden, os nossos primeiros antepassados quando, saindo das mãos de Deus, se avistaram um ao outro, se aproximaram e conversaram, a princípio, como irmão e irmã. Virgínia, meiga, recatada e confiante como Eva; e Paulo, semelhante a Adão, tendo a estatura de um homem e a simplicidade de uma criança.

Por vezes, quando se achava a sós com Virgínia (contou-mo milhares de vezes), Paulo dizia-lhe, ao regressar dos seus trabalhos:

-Quando me sinto cansado, o ver-te descontrai-me. Quando, do alto da montanha, te avisto no fundo deste vale, os meus olhos vêem-te como um botão de rosa no meio dos nossos pomares. Se te diriges para a casa das nossas mães, a perdiz que corre para os seus filhotes tem um vestido menos belo e um andar menos ligeiro. Embora as árvores me façam perder- te de vista, não preciso de te ver para voltar a encontrar-te; uma parte de ti, que eu não sei definir, fica, para mim, no ar, depois de passares, na erva onde te sentas. Quando te aproximas, extasias todos os meus sentidos. O azul do céu é menos belo do que o azul dos teus olhos; o canto dos pintassilgos-verdes é menos doce que o som da tua voz. Mesmo que te toque apenas com a ponta dos dedos, o meu coração estremece de prazer. Lembras-te do dia em que passámos pelas pedras soltas do Rio dos Três Mamilos? Ao chegar à margem, eu sentia-me muito fatigado; mas, quando te transportei às costas, parecia-me que tinha asas, como um pássaro. Diz-me, que encanto usaste para assim me fascinares ? Será o teu espírito ? Mas as nossas mães têm mais do que nós. Serão as tuas carícias? Mas elas abraçam-me com mais frequência do que tu. Acho que é a tua bondade. Nunca esquecerei que caminhaste descalça até ao Rio Negro, a fim de pedires o perdão para uma pobre escrava fugitiva. Olha, minha bem-amada, toma este ramo florido de limoeiro que apanhei na floresta; colocá-lo- ás, à noite, junto da tua cama. Come este favo de mel. Colhi-o para ti, no alto de um rochedo.

Virgínia respondia-Lhe:

-Oh, meu irmão! Os raios do Sol matinal, nos píncaros destes rochedos, dão-me menos alegria do que a tua presença. Amo muito a minha mãe, amo muito a tua; mas quando elas te chamam meu fIlho, amo-as ainda mais. As carícias que te fazem são-me mais ternas do que as que eu recebo. Perguntas-me porque me amas; mas tudo o que cresce junto se ama. Vê os nossos pássaros; criados nos mesmos ninhos, amam-se como nós ; estão sempre juntos como nós. Escuta como se chamam e como respondem uns aos outros, de árvore em árvore; também quando o eco faz com que eu ouça as árias que tocas na tua flauta, no cimo da montanha, eu repito as palavras das melodias no fundo deste vale. És-me querido, sobretudo desde o dia em que quiseste lutar por mim contra o dono da escrava. Desde essa altura, tenho dito muitas vezes para comigo KAh O meu irmão tem bom coração ; sem ele eu teria morrido de pavor! Porque vais tu para tão longe, para tão alto, buscar-me frutos e flores? Não temos o suficiente, no jardim? Como estás fatigado! Estás banhado em suor.

Entretanto, Virgínia mostrava-se, há algum tempo, agitada por um mal desconhecido. Os seus lindos olhos azuis tinham reflexos sombrios; a sua tez tornava-se macilenta; uma languidez total abatia-lhe o corpo. A serenidade já não Lhe brilhava na fronte, nem o sorriso lhe bailava nos lábios. Vímo-la, de repente, alegre sem alegria e triste sem tristeza. Fugia das suas brincadeiras inocentes, dos seus doces trabalhos e da convivência com a sua bem-amada família. Vagueava aqui e ali, pelos lugares mais solitários da casa, procurando em toda a parte o repouso e não o encontrando em nenhum sítio. Por vezes, ao avistar Paulo, dirigia- se para ele, gracejando ; depois, de repente, um vivo rubor espalhava- se-lhe pelas faces pálidas e os seus olhos não se atreviam a pousar nos dele. Paulo dizia-lhe:

- A verdura cobre aqueles rochedos, os nossos pássaros cantam quando te vêem; tudo em teu redor está alegre, só tu pareces triste.

E procurava animá-la, beijando-a, mas ela desviava a cabeça e fugia, a tremer.

Paulo não conseguia compreender estes caprichos tão novos e tão imsólitos. Mas uma desgraça raramente vem só.

Num daqueles verões que de tempos a tempos assolam as terras situadas nos Trópicos veio espalhar a destruição por estas bandas. Foi para os finais de Dezembro, quando o Sol, virado para Capricórnio, faz incidir verticalmente os seus raios sobre a Ilha de França, durante três semanas, abafando-a.

Calores excessivos faziam desprender-se do oceano vapores que cobriam a ilha como um imenso chapéu-de-sol. Os cimos das montanhas faziam-nos concentrar-se em seu redor e, de tempos a tempos, longos sulcos de fogo brotavam dos seus picos cobertos de bruma. Em breve trovões medonhos repercutiam pelos bosques, pelas planícies e pelos vales; chuvas torrenciais, semelhantes a cataratas, jorravam do céu. Torrentes espumosas precipitavam-se ao longo dos fLancos das montanhas; o fundo daquela bacia transformara- se num lago; o planalto onde estão construídas as cabanas, numa pequena ilha ; e a entrada deste vale, numa represa por onde se precipitavam, misturados com as águas tumultuosas, as terras, as árvores e os rochedos.

As coberturas das casas estalavam, horrivelmente agitadas pelo vento. Embora a porta e os guarda-ventos estivessem bem fechados, todos os objectos eram visíveis através das frestas dos vigamentos, de tal modo os relâmpagos eram vivos e frequentes.

O intrépido Paulo, seguido de Domingos, ia de uma casa à outra, a despeito do furor da tempestade, sustendo aqui um tabique com um arcobotante e cravando ali uma estaca; só entrava para animar a familia com a esperança do próximo regresso do bom tempo. Com efeito, a chuva deixou de cair pela tardinha; o vento alísio do sudeste retomou o seu curso normal; as nuvens afastaram-se para nordeste e o sol poente surgiu no horizonte.

O primeiro desejo de Virgínia foi ver o seu local de repouso. Paulo aproximou-se dela com ar timido e estendeu-lhe o braço para a ajudar a caminhar. Ela aceitou, sorrindo, e juntos saíram de casa. O ar estava fresco mas suave. Fumos brancos elevavam-se das cristas da montanha sulcada aqui e ali pela espuma das torrentes que por toda a parte começavam a secar. Quanto ao jardim, fora inteiramente devastado por terríveis enxurradas; a maior parte das árvores frutíferas tinha as raízes a descoberto enormes montes de areia tapavam as orlas das pradarias e haviam coberto as águas onde Virgínia tomava banho. Entretanto, os coqueiros estavam aprumados e verdejantes; mas nas redondezas já não existiam relvados, nem caramanchões, nem pássaros, excepto alguns pintassilgos-verdes que, na ponta dos rochedos vizinhos, choravam, com trinados lamentosos, a perda dos filhotes.

À vista daquela desolação, Virgínia disse a Paulo:

- Trouxeste para aqui os pássaros, o furacão matou-os. Plantaste este jardim, agora está destruído. Tudo na terra perece ; só no céu nada mudou.

Paulo respondeu-lhe:

- Ah, se eu te pudesse dar qualquer coisa do céu! Mas mesmo na terra nada possuo.

Virgínia replicou, corando:

- Tens a imagem de São Paulo.

Mal ela proferira estas palavras, já ele corria em direcção da casa da mãe, para a ir buscar.

Aquela imagem era uma pequena miniatura representando o eremita Paulo. Margarida trouxera-a por muito tempo pendurada no pescoço, quando era jovem; depois, ao ser mãe, pusera-a no do filho. Chegara mesmo a acontecer que, à força de contemplar a imagem daquele bem-aventurado solitário, o filho adquirira dele certas semelhanças, o que a decidira a dar-lhe o nome do santo.

Virgínia, ao receber a pequena imagem das mãos de Paulo, disse-lhe em tom comovido:

- Irmãozinho, enquanto eu viver, andará sempre comigo e nunca esquecerei que me deste a única coisa que possuías neste Mundo.

A esta inflexão amiga, a este inesperado acesso de familiaridade e de ternura, Paulo quis abraçá-la; mas, ligeira como um pássaro, ela fugiu e deixou-o aturdido, incapaz de compreender uma tão estra nha conduta.

Entretanto, Margarida dizia à senhora de La Tour:

- Porque não casamos os nossos filhos ? Sentem um pelo outro uma paixão desmedida.

A senhora de La Tour respondia-Lhe:

- São demasiado novos e demasiado pobres. Que desgosto para nós se a Virgínia trouxesse ao Mundo filhos desventurados que porventura não teria forças para criar! O teu negro Domingos está muito velho; Maria, doente. Eu própria, minha querida amiga, há quinze anos que me sinto muito debilitada. Envelhece-se rapidamente nas regiões quentes e mais ainda quando se tem desgostos. O Paulo é a nossa única esperança. Aguardemos que a idade lhe molde o temperamento e que graças ao seu trabalho, ele nos possa sustentar. Presentemente, e tu sabe-lo bem, o que possuímos mal dá para o dia-a-dia. Mas se fizermos com que o Paulo embarque, por algum tempo, para a India, o comércio dar-lhe-á possibilidades de comprar um punhado de escravos; e, quando regressar a esta ilha, casá-lo-emos com a Virgínia; porque creio que ninguém mais poderá fazer a minha querida filha tão feliz como o teu filho Paulo. Falaremos do assunto ao nosso vizinho.

Com efeito, aquelas senhoras consultaram-me e partilhei a sua opinião:

- Os mares da Ìndia são belos - disse-lhes eu. - Se se aproveitar uma estação favorável para embarcar para as Índias, é uma viagem de seis se manas, no máximo. Confeccionaremos aqui nas redondezas algumas mercadorias para o Paulo, porque tenho vizinhos que o estimam bastante. Quanto a nós, só lhe daremos algodão em rama, do qual não nos utilizamos por não possuirmos moinhos para o descascar; madeira de ébano, tão vulgar por estas bandas que serve de lenha, e algumas resinas dos bosques, que desperdiçamos; tudo isso se vende muito bem nas Índias e para nós é quase inútil.

Encarreguei-me de solicitar ao senhor de La Bourdonnais uma licença de embarque para essa viagem; e, antes de tudo, quis pôr o Paulo ao corrente da situação.

Mas qual não foi o meu espanto quando aquele jovem me respondeu com um bom senso muito acima da sua idade:

- Porque quer que eu deixe a minha família para correr atrás de um sonho incerto de fortuna? No Mundo haverá comércio mais vantajoso do que a cultura de um campo que por vezes rende cinquenta e cem ? Se queremos fazer comércio, não poderemos iniciá-lo levando para a cidade os nossos excedentes, sem que eu seja obrigado a ir para as Índias? As nossas mães dizem que o Domingos está velho e sem forças ; mas eu sou novo e, de dia para dia, a minha força vai aumentando. E se, na minha ausência, acontecesse algum acidente, sobretudo a Virgínia, que já sofre? Oh! Não, Não, Não conseguiria resolver-me a deixá-la.

A sua resposta colocou-me numa situação muito embaraçosa, porque a senhora de La Tour não me escondera o estado de Virgínia e o desejo que tinha de ultrapassar alguns anos da idade destes jovens afastando-os um do outro.

Entretanto, um barco, chegado de França, trouxe à senhora de La Tour uma carta da tia. O receio da morte, sem o qual os corações duros seriam sempre empedernidos, dominara-a. Uma grave doença deixara-a num estado de fraqueza que a idade tornava incurável. Escrevia à sobrinha dizendo-lhe para regressar a França ; ordenava-lhe, caso a saúde desta não lhe permitisse efectuar uma viagem tão longa, que enviasse Virgínia, para quem destinava uma boa educação, um partido na corte e a doação de todos os seus bens. Esperava, explicava ela, que, cumprindo as suas ordens, lhe testemunhasse o reconhecimento pela sua bondade.

Mal findara a leitura daquela carta e já todos se mostravam consternados. Domingos e Maria puseram-se a chorar. Paulo, petrificado de espanto, parecia prestes a ter um acesso de cólera. Virgínia, de olhos fixos na mãe, não se atrevia a dizer palavra.

-Serias capaz de nos deixar agora?

- perguntou Margarida à senhora de La Tour.

- Não, minha amiga - retorquiu a senhora de La Tour -, nunca vos deixarei. Vivi convosco e é na vossa companhia que quero morrer. Só na vossa amizade conheci a felicidade. Se a minha saúde está arruinada, a causa deve-se a antigos desgostos. O meu coração foi ferido pela dureza dos meus pais e pela perda do meu querido esposo. Mas, depois, experimentei mais consolo e mais felicidade convosco, nestas pobres cabanas, do que alguma vez as riquezas da minha família me fizeram, até esperar no meu país.

Este discurso fez brotar lágrimas de alegria de todos os olhos. Paulo, estreitando a senhora de La Tour nos braços, disse-lhe:

- Também eu nunca a deixarei; não irei para as Índias. Trabalharemos todos para si, minha querida senhora; nunca nada lhe faltará.

Mas, de todos, a pessoa que testemunhou menos alegria e que ficou mais impressionada foi Virgínia. Durante o resto do dia aparentou uma doce alegria e o retorno da sua tranquilidade levou ao auge a satisfação geral.

No dia seguinte, ao dealbar, Domingos avisou-os de que um cavaleiro, seguido de dois escravos, se dirigia para a casa. Era o senhor de La Bourdonnais. Entrou na habitação, encontrando toda a família à mesa.

O governador testemunhou, de início, uma certa surpresa pela pobreza daquela choupana. Depois, dirigindo- se à senhora de La Tour, disse-lhe:

- Minha senhora, em Paris vive uma sua tia de linhagem e muito rica, que lhe reserva a fortuna e que espera a sua presença junto dela.

A senhora de La Tour respondeu ao governador que a sua pouca saúde lhe não permitia empreender uma viagem tão longa.

- Pelo menos - replicou o senhor de La Bourdonnais -, não irá cometer a injustiça de privar a sua filha, tão jovem e tão graciosa, de uma tão considerável herança. Não lhe escondo o facto de a sua tia ter usado de direitos legais para a mandar para junto dela. Os ministérios escreveram-me a este respeito, dizendo-me para fazer uso, em caso de necessidade, dos meus poderes; mas, como só os exerço em prol da felicidade dos habitantes desta colónia, espero que voluntariamente aceda a sacrificar-se apenas por alguns anos, pois de tal dependerá o futuro da sua filha e o seu bem-estar para a vida inteira. Porque vêm as pessoas para as ilhas ? Não é para fazerem fortuna ? Não será muito mais agradável encontrá-la na nossa pátria?

E, dizendo estas palavras, pousou sobre a mesa uma bolsa repleta de piastras, que um dos negros trouxera.

- Eis - acrescentou - o que se destina aos preparativos da viagem da menina sua filha, por parte da sua tia.

O senhor de La Bourdonnais, a convite da senhora de La Tour, sentou-se à mesa, ao lado dela. Comeu à maneira dos crioulos, acompanhando a refeição com café misturado com arroz cozido em água. Ficou encantado com a ordem e o asseio da pequena casa, com a união daquelas duas famílias encantadoras e até com o próprio zelo dos seus servos.

- Aqui - disse -, só existem móveis de madeira; mas deparam-se-nos rostos serenos e corações de ouro.

Paulo, encantado com a simplicidade do governador, afirmou-lhe:

- Desejo ser seu amigo, porque o senhor é um homem honesto.

O senhor de La Bourdonnais recebeu com prazer este testemunho de cordialidade insular. Abraçou Paulo, apertou-lhe a mão e assegurou-lhe que ele podia contar com a sua amizade.

Após a refeição, pediu para falar em particular com a senhora de La Tour e disse-lhe que em breve se ia apresentar uma ocasião de enviar a filha para França, num barco que estava prestes a partir; que ele a recomendaria a uma senhora da sua família, que seguia a bordo como passageira; que seria conveniente não desprezar uma fortuna imensa pela satisfação de um punhado de anos.

- A sua tia - acrescentou, ao partir - não viverá mais de dois anos: os amigos dela puseram-me ao corrente do seu estado. Pense bem no assunto. A fortuna não nos aparece todos os dias. Qualquer pessoa sensata partilharia da minha opinião.

A senhora de La Tour respondeu-Lhe que, como a única felicidade no Mundo que doravante desejava era a da filha, deixaria a sua partida para França inteiramente ao cuidado dele.

Não ficou aborrecida por se lhe deparar uma ocasião de, por algum tempo, afastar Virgínia de Paulo, proporcionando-lhes, um dia, a felicidade de ambos.

Chamou, pois, a filha de lado e disse-lhe:

- Minha filha, os nossos servos estão velhos; o Paulo é muito jovem, a Margarida está a envelhe cer; eu já me sinto doente. Se morrer, o que será de ti, sem fortuna, nestes confins? Ficarias sozinha, sem ninguém que te pudesse prestar grande auxílio e obrigada, para sobreviveres, a amanhar dia e noite esta terra. Essa ideia dilacera-me de dor. Também não concebo outro projecto senão o de te casar com Paulo, que não é teu irmão. Pensa agora que a fortuna dele depende de ti... .

Pela noitinha, encontrando-se a senhora de La Tour sozinha com Virgínia, entrou em casa um homem alto, vestido com uma sotaina azul. Era um missionário da ilha.

- Minhas filhas - disse ao entrar -, eis-vos ricas! Podereis escutar o vosso bom coração, ajudar os pobres. Estou a par do que Lhe disse o senhor de La Bourdonnais e do que a senhora lhe respondeu.

Boa mãe, a sua saúde obriga-a a ficar aqui; mas a menina, que é jovem, não tem desculpa; é preciso que obedeça à Providência e que se sacrifique pelo bem da família. A sua viagem a França terá um desfecho feliz. Querida menina, não tem, realmente, vontade de a fazer?

Virgínia, de olhos baixos, respondeu-lhe a chorar:

- Que seja feita a vontade de Deus!

O missionário, saiu e foi informar o governador do êxito da sua missão.

Entretanto, a senhora de La Tour pediu-meatravés de Domingos, que fosse a sua casa, a fim de me consultar sobre a viagem de Virgínia.

De modo nenhum partilhei a opinião de a deixarem partir. Tenho, para uma felicidade autêntica, por princípios que deveremos preferir as vantagens da Natureza às da fortuna e que não devemos procurar, fora de nós, o que podemos encontrar entre nós. Aplico estas máximas a tudo, sem excepção. Mas que podiam os meus conselhos de moderação contra as ilusões de uma grande fortuna?

Sendo assim, a senhora de La Tour consultara-me apenas por delicadeza. A própria Margaridaque, a despeito das vantagens que esperava para o filho da fortuna de Virgínia, se opusera fIrmemente à partida desta, não levantou mais objecções. Quanto a Paulo, que ignorava a decisão que fora tomada, surpreendido pelas conversas secretas da senhora de La Tour com a filha, entregava-se a uma sombria tristeza.

- Estão a tramar qualquer coisa contra mim - disse -, visto que me evitam.

Entretanto, logo que o boato de a fortuna ter visitado estes rochedos se espalhou pela ilha, surgiram mercadores de toda a espécie. Exibiam, no meio destas pobres cabanas, os mais ricos tecidos da Ìndia: soberbas bombazinas, musselinas de Daca, lisas, raiadas, bordadas, diáfanas como a luz. Desdobravam magníficas sedas da China, damascos de um branco acetinado, outros de um verde-prado, outros ainda de um vermelho purpurino ; tafetás cor-de-rosa, tecidos macios, gangas brancas e amarelas, cetins às mãos-cheias e até tangas de Madagáscar.

A senhora de La Tour quis que a filha comprasse tudo o que Lhe desse prazer; vigiou apenas o preço e a qualidade das mercadorias, com receio de ser enganada. Virgínia escolheu tudo o que julgava agradar à mãe, a Margarida e a Paulo.

- Isto - dizia - é bom para os móveis, aquilo para a Maria e o Domingos usarem.

Enfim, o saco das piastras foi-se esvaziando sem que ela tivesse pensado em si mesma. Foi preciso ela dividir os presentes que prodigalizara à sua volta.

Paulo, a transbordar de dor à vista destas ofertas da fortuna, que lhe anunciavam a partida de Virgínia, foi, alguns dias depois, a minha casa. Disse-me com ar acabrunhado:

- A minha irmã vai-se embora; já está a fazer os preparativos para a viagem. Venha a nossa casa suplico- lhe. Empregue a influencia que tem sobre o espírito da mãe dela e da minha de modo a dissuadi-las de a deixarem partir.

Fui, a pedidfo de Paulo, embora firmemente convencido de que a minha influencia seria nula.

Se Virgínia me parecera encantadora vestida com o tecido azul de Bengala e tendo um lenço en carnado a cobrir-lhe a cabeça, mais extasiado fiquei ao vê-la trajando à maneira das damas daquela região. Estava vestida de musselina branca, forrada a tafetá cor-de-rosa. Os seus contornos esbeltos e direitos desenhavam-se perfeitamente sob o corpete, e os seus cabelos louros penteados numa trança dupla, emolduravam-lhe admiravelmente a cabeça virginal. Os seus lindos olhos estavam impregnados de melancolia, e o coração, agitado por uma paixão reprimida, imprimia-lhe à tez uma cor viva e, à voz, inflexões cheias de emoção. O próprio contraste do seu elegante trajo, que ela parecia envergar contrariada, tornava a sua languidez ainda mais impressionante. Ninguém seria capaz de a fitar e de a escutar sem se sentir impressionado. A tristeza de Paulo tornou-se ainda maior.

Margarida, aflita com a situação do filho, disse- lhe em particular:

- Por que razão, meu filho, haverei de continuar a alimentar-te falsas esperanças, que tornam as privações ainda mais amargas? É tempo de te revelar o segredo da minha vida e da tua. A menina de La Tour pertence, pelo lado da mãe, a uma parente rica e de elevada estirpe ; quanto a ti, não passas do filho de uma pobre camponesa e, pior ainda, de um bastardo.

A palavra bastardo" deixou Paulo muito surpreendido; nunca ouvira ninguém pronunciá-la; pediu à mãe que lhe explicasse o seu significado, ao que esta respondeu:

- Nunca tiveste pai legítimo. Quando eu era rapariga, o amor levou- me a cometer uma leviandade, da qual tu és o fruto. O meu erro privou-te da família paterna e o meu arrependimento, dos teus parentes maternos. Desgraçado, no Mundo, a tua única família sou eu!

E desfez-se em lágrimas. Paulo, estreitando-a nos braços, disse-lhe:

- Minha mãe, visto que não tenho outros parentes no Mundo além da senhora, ainda a amarei mais. Mas que segredo terrível me acaba de revelar! Percebo agora a razão que há dois meses afastou de mim a menina de La Tour e que a decide agora a partir. Ah! Decerto me despreza!

- Entretanto, como eram horas da refeição, cada um sentou-se à mesa, agitado por diferentes paixões, pouco falando e nada comendo. Virgínia foi a primeira a levantar-se e veio sentar-se no sítio onde nos encontramos. Paulo em breve a seguia e foi postar-se ao seu lado.

Durante algum tempo, ambos se mantiveram num profundo silêncio. Era uma dessas noites deli ciosas, tão vulgares nos Trópicos e cuja beleza nem o mais hábil pincel conseguiria retratar. A Lua surgia no meio do frrmamento, cercada por uma cortina de nuvens que os seus raios pouco a pouco iam dissipando. A sua luz espalhava-se gradualmente pelas montanhas e pelos seus cumes, que tinham um brilho verde-prateado. O vento soprava mansamente. Escutavam-se nos bosques, ao fundo dos vales, doces murmúrios de pássaros que se acariciavam nos ninhos, deleitados com a claridade da noite e com a quietude da atmosfera. As estrelas cintilavam no céu e reflectiam-se no espelho do mar.

Virgínia percorria, com o olhar distraído, este ; vasto e escuro horizonte, que se distinguia da costa

da ilha pelas fogueiras rubras dos pescadores. Avistou, à entrada do porto, uma luz e uma sombra: era a lanterna e a silhueta do navio onde deveria embarcar para a Europa e que, prestes a levantar ferro, aguardava, ancorado, o final da calmaria. A este espectáculo, perturbou-se e virou a cabeça, para que Paulo a não visse chorar.

A senhora de La Tour, Margarida e eu encontrávamo- nos sentados a alguns passos daqui, debaixo das bananeiras; e no silêncio da noite ouvimos perfeitamente a conversa que tiveram e que eu não esqueci.

Paulo dizia-lhe:

- A menina vai partir, segundo dizem, dentro de três dias. Não receia expor-se aos perigos do mar... .

- É forçoso - respondeu Virgínia - que eu obedeça aos meus parentes, ao meu dever.

- A menina abandona-nos - replicou Paulo - por uma parente afastada que nunca viu!

- Ai de mim! - disse Virgínia. - Desejaria ficar aqui a vida inteira; a minha mãe não quis. Disseram-me que a vontade de Deus era que eu partisse, que a vida era uma provação... . Oh! É uma provação bem dura!

- Pois quê - replicou Paulo -, de tantas razões que a decidiram a partir não houve uma que a retivesse ? Ah Há ainda uma a que não se referiu. É que a riqueza tem grandes atractivos. Em breve encontrará, nesse novo mundo, alguém a quem dar o nome de irmão, que já não me pertence. Escolhê-lo-á, a esse irmão, entre pessoas que serão dignas de si graças a uma linhagem e a uma fortuna que eu não lhe posso oferecer. Mas, para ser mais feliz, até onde quer ir? Em que terra desembarcará que seja mais querida do que o é naquela onde nasceu? Onde arranjará amizades mais sinceras do que os que a amam? Como conseguirá viver sem as carícias da sua mãe, às quais está tão habituada? Que será dela quando já não a vir a seu lado, à mesa, pela casa, no passeio, durante o qual se apoiava a si? Que será da minha, que a ama tanto como ela? Que direi eu às duas, quando as vir chorar a sua ausência ? Cruel Já não falo de mim ; que será de mim quando, pela manhã, a não vir entre nós e quando a noite nos não juntar de novo? Quando avistar aquelas duas palmeiras, plantadas depois de nascermos e que por tanto tempo foram testemunhas da nossa amizade recíproca? Ah! Visto que te espera um novo destino, que tu procurarás noutro país que não a tua terra natal, deixa que te acompanhe no barco em que partes. Tranquilizar-te-ei durante as tempestades, que em terra te causam tanto pavor. Encostarei a tua cabeça ao meu ombro e, em França, para onde vais à procura da fortuna e da opulência servir-te-ei como se teu escravo fosse. Feliz com a tua felicidade, nesses lugares onde te verei servida e adorada, serei ainda suficientemente rico e suficientemente nobre para por ti fazer o maior dos sacrifí cios, morrendo aos teus pés.

Os soluços embargaram-lhe a voz e em breve ouvíamos Virgínia, que lhe dizia estas palavras, en trecortadas de suspiros:

- É por ti que eu parto... . Por ti, que dia a dia vi curvado pelo trabalho, para sustentar as nossas duas famílias. Se acedi ao ensejo de me tornar ricaé para te retribuir mil vezes o bem que nos fizeste. Será uma fortuna digna da tua amizade? Que dizes tu do teu nascimento? Ah! Se me fosse possível arranjar um irmão, escolheria eu outro que não tu? Oh, Paulo Oh, Paulo Ainda me és mais querido do que um irmão! Quanto me tem custado manter-me afastada de ti! Queria que me ajudasses a separar-me de mim própria, até que o céu possa abençoar a nossa união.

- Agora, fico, parto, vivo, morro ; faz de mim o que quiseres.

A estas palavras, Paulo tomou-a nos braços e, mantendo-a estreitamente apertada, exclamou, em voz terrível:

- Parto com ela; nada conseguirá impedir-me!

Precipitámo-nos todos para ele; a senhora de La Tour disse-lhe:

- Meu filho, se nos deixas, o que será de todos nós?

Ele repetiu as suas palavras:

- Meu filho... . Meu filho... . A senhora, minha mãe - disse-lhe -, a senhora que separa o irmão da irmã! Ambas nos criaram nos vossos joelhos, nos ensinaram a amar-nos um ao outro; ambas no-lo repetiram vezes sem conta. E agora afastam-na de mim! Enviam-na para a Europa, para esse país bárbaro que lhe recusou um abrigo e para casa de parentes cruéis que a abandonaram. Dir-me-á: não tens nenhuns direitos sobre ela, não é tua irmã. Ela é tudo para mim, a minha riqueza, a minha família, a minha linhagem, todos os meus bens. Não conheço outros. Só tivemos um tecto, um berço ; só teremos um túmulo. Se ela parte, é forçoso que eu a siga. Impedir-me-á o governador de o fazer? Impedir-me-á o governador de me atirar ao mar? Segui-la-ei a nado. O mar não conseguirá ser-me mais funesto do que a terra. Se aqui não posso viver perto dela, pelo menos morrerei diante dos seus olhos, longe de si, mãe bárbara! Mulher sem piedade! Oxalá o oceano ao qual a expõe nunca mais lha restitua! Oxalá que as suas ondas lhe tragam o meu corpo e, fazendo-o rolar com o dela pelas pedras das costas, a faça sentir, pela perda dos seus dois filhos, remorsos para toda a vida!

Ao ouvir estas palavras, envolvi-o nos meus braços, porque o desespero punha-o desvairado. Os seus olhos faiscavam; o suor corria-lhe, em grossas bagas, pelo rosto escaldante; os joelhos tremiam-lhe e eu sentia-Lhe, no peito febril, o coração bater descompassadamente.

Virginia, assustada, disse-lhe:

- Oh, meu amigo! Se eu ficar, só desejarei viver para ti; se partir, voltarei um dia para ser tua.

Tomo-vos por testemunhas, a vós todos que acompanharam a minha infância, que dispõem da minha vida e que estão a ver as minhas lágrimas. Juro-o pelo céu que me escuta, por este mar que devo atravessar, pelo ar que respiro e que nunca conspurquei com mentiras.

Ao ouvir a voz da bem-amada, a cólera impetuosa daquele jovem desapareceu. Baixou a cabeça altiva e desfez-se em pranto. A mãe, misturando as suas lágrimas às dele, mantinha-o abraçado, sem poder falar.

A senhora de La Tour, fora de si, disse-me:

- Vizinho, tente levar o meu filho. Há oito

dias que ninguém aqui consegue dormir!

Dirigi-me a Paulo:

- Meu amigo, a tua irmã fica. Amanhã, falaremos do assunto ao governador: deixa repousar a tua família e vem passar a noite comigo. Já é tarde, é meia-noite, a Cruz do Sul incide no horizonte.

Deixou-se levar sem dizer palavra e, depois de uma noite muito agitada, levantou-se ao nascer do dia e voltou para casa.

A primeira pessoa que Paulo avistou, ao regressar, foi a negra Maria que, postada no alto de um rochedo, olhava para o mar.

Logo que a viu, gritou-lhe:

- Onde está Virgínia?

Maria virou a cabeça para o seu jovem patrão e pos-se a chorar.

Paulo, fora de si, retrocedeu e precipitou-se para o porto. Aí foi informado de que Virgínia embarcara ao alvorecer, que o barco imediatamente levantara ferro e que já não se avistava. Voltou para casa e atravessou-a, sem falar a ninguém.

Embora este recinto rochoso pareça, por trás de nós, quase perpendicular, aqueles planaltos verdes que se avistam lá no alto são como socalcos pelos quais uma pessoa vai desembocar, por alguns atalhos difíceis, ao sopé daquele cone mclinado e inacessivel de rochas, que é chamado o Polegar.

A base daquele rochedo é um planalto coberto de grandes árvores, mas tão alto e tão escarpado que se assemelha a uma grande floresta suspensa no ar e rodeada de precipícios medonhos.

Daquele lugar avistava-se grande parte da ilha, depois o mar alto e a Ilha Bourbon, que fica a quarenta léguas dali, para ocidente. Foi dessa elevação que Paulo divisou o barco que levava Virgínia. Viu-o durante mais de dez léguas, como um ponto negro no meio do oceano. Ficou parte do dia a fitá-lo: ele desaparecera já, mas acreditava estar ainda a vê-lo ; e, quando desapareceu na neblina do horizonte, sentou-se naquele local selvagem, constantemente fustigado pelos ventos que fazem balouçar as copas das palmeiras. O seu murmúrio abafado e pungente assemelha-se ao som dos órgãos e inspira uma profunda melancolia.

Foi aí que encontrei Paulo, de cabeça apoiada contra o rochedo e os olhos fixos na terra. Procurava- o desde o nascer do Sol. Tive grande dificuldade em persuadi-lo a descer e a ir ter com a família. Todavia, levei-o para casa e o seu primeiro movimento, ao avistar a senhora de La Tour, foi queixar-se amargamente de que ela o enganara.

A senhora de La Tour disse- nos que, tendo o vento começado a soprar pelas três horas da madrugada, e estando o barco prestes a fazer-se ao largo, o governador, acompanhado por uma parte do seu estado-maior e pelo missionário, viera buscar Virgínia de palanquim e que, a despeito dos seus próprios argumentos, das suas lágrimas e das de Margarida, tinham-lhe levado a fIlha, meio desfalecida, toda a gente gritando que era para bem de todos.

- Se eu me tivesse despedido - respondeu Paulo -, pelo menos estaria agora tranquilo. Ter-lhe-ia dito: Virgínia, se durante todo o tempo que vivemos juntos, alguma vez proferi uma palavra que te ofendesse, antes de me deixares para sempre, diz-me que me perdoas. Ter- lhe-ia dito: Visto que o meu destino é nunca mais te ver, adeus, minha querida Virgínia! Adeus! Que vivas feliz e contente, longe de mim!

E, ao dar-se conta de que a mãe e a senhora de La Tour choravam:

- Doravante, não serei eu - disse-lhes; quem vos enxugará as lágrimas. Procurem outra pessoa.

Depois, afastou-se delas, gemendo, e pôs-se a vaguear pela casa. Percorreu todos os sítios que Virgínia mais amava. Dizia às cabras e aos seus cabritinhos, que o seguiam, balindo:

- Que me querem? Nunca mais me verão acompanhado por aquela que vos dava de comer à mão.

Dirigiu-se ao Repouso de Virgínia e, ao avistar os pássaros que esvoaçavam por ali, gritou:

- Pobres pássaros! Nunca mais esvoaçarão à frente daquela que era boa para vós!

Ao ver o Fiel", que farejava aqui e ali e corria à sua frente, procurando a dona, suspirou e disse-lhe:

- Oh! Nunca mais a encontrarás!

Finalmente, foi sentar-se no rochedo onde na véspera falara com ela e, ao fitar o mar onde vira desaparecer o barco que a transportava, desfez-se em pranto.

Entretanto, seguiamos-Lhe todos os passos, receando que a agitação do seu espírito tivesse conse quências funestas. A mãe e a senhora de La Tour suplicavam-lhe, com as mais ternas palavras, que não lhes aumentasse a dor com o seu desespero. A senhora de La Tour conseguiu finalmente acalmá-lo, prodigalizando-lhe as palavras que mais se adequavam a reavivar-lhe as esperanças. Tratou-o de seu fIlho, do seu querido filho, de seu genro.

Exortou-o a entrar em casa e a comer qualquer coisa. Sentou-se connosco à mesa, ao lado do lugar que ocupava a sua companheira de infância e, como se ela ainda lá estivesse, dirigiu-Lhe a palavra e apresentou-lhe os pratos que sabia serem para ela os mais agradáveis ; mas, quando se apercebeu do seu erro, pôs-se a chorar.

Nos dias seguintes, juntou tudo o que ela usara em particular: os últimos ramalhetes, uma casca de coco pela qual ela costumava beber, e, como se os objectos da sua amiga fossem as coisas mais preciosas do Mundo, beijava-as religiosamente.

Em breve, Paulo, indiferente como um crioulo em relação a tudo que se passa no Mundo, pediu-me que o ensinasse a ler e a escrever, a fim de ser capaz de se corresponder com Virgínia. Depois, quis que eu o instruísse em Geografia, para ter uma ideia do país onde ela desembarcara; e em História, a fim de conhecer os costumes da sociedade em que ela fora viver. Por outro lado, interessou-se pela leitura dos nossos romances que estavam em voga, cheios de costumes e de máximas licenciosas e, quando soube que aqueles romances continham uma descrição verdadeira das sociedades da Europa, receou, não sem uma ponta de razão, que Virgínia viesse a corromper-se ou a esquecê-lo.

Com efeito, mais de ano e meio se passou sem que a senhora de La Tour tivesse notícias, quer da tia, quer da filha: soubera apenas, por outras vias, que ela chegara a França.

Finalmente, a senhora de La Tour recebeu, por um barco que ia para as Índias, um embrulho e uma carta escrita pelo próprio punho de Virgínia. A despeito da circunspecção da sua amável filha, pressentiu que ela era muito infeliz. Aquela carta descrevia tão bem a sua situação e o seu carácter, que fixei quase todas as suas palavras.

Mãezinha muito querida e muito amada.

Já lhe escrevi, pessoalmente, várias cartas; como não obtive resposta, desconfio que elas não lhe chegaram às mãos. Tenho mais esperança com esta, graças às precauções que tomei para lhe enviar noticias minhas e receber as suas.

Quantas lágrimas tenho chorado desde a nossa separação, eu, que quase sempre chorava apenas por causa dos sofrimentos dos outros!

A minha tia-avó, à minha chegada, ficou muito surpreendida quando, ao interrogar-me sobre os meus talentos, lhe respondi que não sabia nem ler nem escrever. Perguntou-me o que aprendera eu então, desde que nascera; e quando lhe respondique aviam sido as lidas caseiras e a obedecer à vontade da minha mãe, replicou-me que recebera a educação de uma criáda.

Internou-me, logo no dia a seguir, numa grande abadia próxima de Paris, onde tive professores de toda a espécie; ensinam-me, entre outras coisas, História, Geografia, Gramática, matemática e a montar a cavalo; mas tenho tão pouca aptidão para todas estas coisas, que pouco proveito tirarei das suas lições.

Entretanto, a minha tia continua a cumular-me de gentilezas. Todas as estações me dá vestidos novos. Pôs ao meu serviço duas criádas de quarto, que vestem como se fossem grandes damas. Obriga-me a usar o título de condessa, mas retirou-me o nome de La Tour, que para mim e para si era tão querido, graças a tudo o que me contou sobre os desgostos que o meu pai sofreu para casar consigo. Substituiu o seu nome de casada pelo da suafamilia que, contudo, me é ainda mais querido, porque foi o seu nome de solteira.

Tendo-me numa situação tão brilhante, supliquei-lhe que lhe enviasse auxílio. Como transmitir-lhe a sua resposta? Mas a mãe recomendou-me parafalar sempre verdade. Respondeu-me, pois, que pouco para nada lhe servirá e que, na vida simples que leva, a embaraçará muito. Procurei; a principio, mandar-lhe notícias minhas por outras mãos, visto eu não saber escrever. Mas não tendo aqui; à minha chegada, ninguém em quem pudesse depositar a minha confiança, apliquei-me, dia e noite, a aprender a ler e a escrever: Deus concedeu-me a mercê de o conseguir ao fim de pouco tempo. Encarreguei as minhas camareiras do envio das minhas primeiras cartas; tudo me leva a crer que as entregavam à minha tia-avó. Desta vez recorri a uma pensionista minha amiga: rogo-lhe que dirija as suas respostas para o endereço que vem indicado na minha carta.

A minha tia-avó proibiu-me toda a correspondência com o mundo exterior, que, segundo ela, poderá constituir um obstáculo aos ambiciosos projectos que me destinava. Só ela me pode ver no locutório, assim como um idoso senhor, seu amigo, que, segundo ela, sente muita afeição pela minha pessoa. Para falar verdade, não sinto nenhuma por ele.

Vivo no meio do esplendor da fortuna e não posso dispor de um cêntimo. Dizem-me que seria importante se possuisse dinheiro. Até os meus vestidos pertencem às criadas de quarto, que os disputam antes de eu os despir. No meio de tantas ri quezas, sou muito mais pobre do que era junto de si, porque nada tenho para dar. Quando verifiquei que os grandes talentos que me ensinavam não me proporcionavam o ensejo de praticar a minima boa acção, recorri à minha agulha, que a mãe, felizmente, me ensinou a usar. Envio, pois, vários pares de meias feitos por mim, para si e para a mãe Margarida, um gorro para Domingos e um dos meus lenços vermelhos para a Maria. Incluo neste embrulho sementes e caroços de frutos das minhas meren das, assim como sementes de toda a espécie de árvores, que apanhei nas oras de recreio, no parque da abadia. Juntei também sementes de violetas, de margaridas, de papoilas, de erva-escovima, de escabiosas, que recolhi nos campos. Há nas pradarias deste país flores mais bonitas do que as nossas; mas que ninguém se preocupe. Tenho a certeza de que a senora e a mãe Margarida ficarão mais contentes com este saco de sementes do que com o saco de piastras que foi a causa da nossa separação e das nossas lágrimas. Será uma grande alegria para mim saber que um dia terão a satisfação de ver as macieiras crescer, junto das nossas bananeiras e as faias misturarem a sua folhagem com a dos coqueiros.

Pediu-me que lhe relatasse as minhas alegrias e as minhas tristezas. Longe de si; já não tenho alegria: quanto às minhas tristezas, consolei-me pensando que me encontro num lugar para onde me mandou por vontade de Deus. Mas o maior desgosto que sinto é de ninguém daqui me falar da senhora e eu não poder falar de si a ninguém. As minhas camareiras, ou antes, as da minha tia-avó, porque pertencem mais a ela do que a mim, dizem-me, quando procuro desviar a conversa para as pessoas que me são tão queridas: Menina, lembre-se de que é francesa e que deve esquecer o país dos selvagens." Ah! Mais depressa me esqueceria de mim própria do que olvidar o sitio em que nasci e onde vocês vivem. Para mim, este país é que é o dos selvagens; porque vivo só, sem ninguém a quem possa confiár o amor que a acompanhará até ao túmulo.

Muito querida e bem-amada mãe A sua obediente e terna filha!     

VIRGÍNIA DE LA TOUR

Transmita a minha afeição à Maria e ao Domingos, que tantos desvelos tiveram para comigo na in fância; acaricie por mim o Fiel, que me encontrou quando estava perdida nos bosques.

Paulo ficou espantado por Virgínia não fazer qualquer menção a seu respeito, ela, que não es quecera, nas suas recordações, o cão da casa; mas não sabia que, por mais longa que seja a carta de uma mulher, só no final inclui os seus pensamentos mais queridos.

Num post-scrzptum Virgínia recomendava particularmente a Paulo dois tipos de sementes: a das violetas e a das escabiosas. Dava algumas instruções sobre as características destas plantas:

A violeta - escrevia-lhe ela - dá uma pequena flor de um roxo carregado, que gosta de estar escondida sob os arbustos; mas o perfume encantador que dela exala depressa trai a sua presença.

Exortava-o a semeá-la à beira da fonte, junto do seu coqueiro.

A escabiosa - acrescentava - dá uma linda flor de um azul pálido, com um fundo preto, pontilhado de branco. Suplicava-lhe que a semeasse no rochedo onde à noite lhe falara pela última vez e que, por amor a ela, desse a esse rochedo o nome de Rochedo das Despedida.

Metera essas sementes numa pequena bolsa, cuja trama era muito simples, mas que pareceu inestimável a Paulo quando descobriu um P e um V entrelaçados e feitos com cabelos, que pela sua beleza reconheceu serem de Virgínia.

A carta de Virgínia fez chorar a família inteira. A mãe respondeu- lhe, em nome de todos, dizendo-Lhe para regressar ou para ficar, de acordo com o seu desejo, asseverando-lhe que tinham todos perdido a melhor parte da sua felicidade desde que partira, e que ela, em particular, se sentia inconsolável.

Paulo escreveu-Lhe uma carta muito longa, onde lhe assegurava que iria tornar o jardim digno dela e misturaria lá as plantas da Europa com as de África como ela entrelaçara os nomes de ambos na bolsinha. Enviava-lhe frutos dos coqueiros da fonte, que estavam perfeitamente maduros. Não juntava, acrescentava ele, nenhuma outra semente da ilha, a fim de que o desejo de rever os produtos dela a fizessem regressar imediatamente. Suplicava-lhe que acedesse o mais depressa possível aos desejos da família e aos seus, em particular, visto que doravante não poderia usufruir de nenhuma alegria longe dela.

Paulo semeou, com o maior dos cuidados, as sementes europeias, e sobretudo as das violetas e das escabiosas, cujas flores pareciam ter uma certa analogia com o carácter e a situação de Virgínia, que tão particularmente as recomendara; mas fosse porque se estragaram no trajecto, fosse, sobretudoporque o clima desta parcela da África Lhes não era favorável, só um pequeno grupo vingou, não conseguindo atingir a perfeição.

Entretanto, espalharam-se pela ilha alguns rumores que muito inquietaram Paulo. A tripulação do barco que trouxera a carta de Virgínia assegurava que ela estava prestes a casar; indicavam, mesmo, o fidalgo da corte que a deveria desposar; alguns diziam até que a boda se realizara e que tinham sido testemunhas.

A princípio Paulo desprezou estas notícias, trazidas por um barco de comércio que espalha, com frequência, boatos falsos pelos lugares por onde passa. Mas quando vários habitantes da ilha, com uma pérfida compaixão, se apressaram a lamentá-lo por este acontecimento, começou a dar-lhes um certo crédito.

O infortunado jovem, entregue a todas as agitações do coração, vinha ver-me com frequência, para confirmar ou afugentar as suas inquietações pela experiência que eu tenho do Mundo.

Vivo, como já lhe disse, a légua e meia daquina margem de um pequeno rio que corre perto da Montanha Longa. A alguma distância dali existe um rochedo, afastado de uma cascata o suficiente para não ficarmos aturdidos com o fragor das suas águas, com o seu panorama, com a sua frescura e com o seu marulhar.

Outrora, íamos algumas vezes, na época de grande estiagem, jantar à sombra daquele rochedo, a senhora de La Tour, Margarida, Virgínia, Paulo e eu. Como Virgínia pensava sempre no bem dos outros, mesmo nos seus actos mais comuns, não comia nenhum fruto cujas sementes ou caroços não plantasse.

- Um dia virá - dizia - em que as árvores darão os seus frutos a algum viajante ou, pelo menos, a algum pássaro.

Sendo assim, um dia, depois de ter comido uma papaia junto desse rochedo, ali plantou as pevides do mesmo. Pouco tempo depois nasciam várias papaias. Uma delas deu frutos. A altura dessa árvore não ul trapassava os joelhos de Virgímia, aquando da sua partida, mas, como cresce depressa, dois anos depois tinha vinte pés de altura e a parte superior do tronco estava sobrepujada por várias camadas de frutos ma duros.

Paulo, dirigindo-se, por acaso, a esse lugar, ficou cheio de alegria ao ver aquela árvore sobranceira, saída de uma pevide minúscula, que vira a amiga plantar, e ao mesmo tempo mergulhou numa profunda tristeza ao presenciar este testemunho da sua longa ausencia.

Paulo ficou tão surpreendido e tão perturbado ao ver aquela grande papaia carregada de frutos como ficaria um viajante, após uma longa ausência do seu país, de já não encontrar os seus contemporâneos e de ver os filhos, que ele deixara bebés, já pais de família. Ora queria abater a papaia, porque para ele se tornara insuportável o longo periodo que decorrera desde a partida de Virgínia; ora, considerando-a como uma recordação da sua bondade, lhe beijava o tronco e lhe dirigia palavras a transbordar de amor e de saudades.

Era, pois, junto dessa papaia que eu tinha a certeza de encontrar Paulo, quando ele me visitava.

Um dia, achei-o oprimido pela melancolia e tive com ele uma conversa que lhe vou relatar, se não acha as minhas divagações demasiado enfadonhas que a minha idade e as minhas derradeiras amizades irão justificar. Contar-lhe-ei em forma de diálogo, a fim de que possa avaliar o natural bom senso daquele jovem.

Paulo disse-me então:

- Estou muito triste. A menina de La Tour partiu faz agora dois anos e dois meses; e há oito meses e meio que não nos envia notícias suas. É rica, eu sou pobre; ela esqueceu-me. Estou com vontade de embarcar; irei a França, servirei o rei e farei fortuna; e a tia-avó da menina de La Tour dar-me-á a sobrinha-neta em casamento, quando eu me converter num grande senhor.

- Oh, meu amigo Não me disseste que não tinhas linhagem?

Paulo - Disse-o a minha mãe ; porque, pelo que me toca, desconheço o que é isso da linhagem.

Nunca me apercebi de ser menos do que outra pessoa ou dos outros serem mais do que eu. Mas falta-me a Virgínia. Sem ela, nada tenho; com ela, terei tudo. Só ela é a minha linhagem, a minha glória, a minha fortuna. Mas visto que, finalmente, a tia lhe quer dar por marido um homem de elevada estirpe, com o estudo e livros tornamo-nos sábios e célebres: estudarei. Adquirirei ciência; servirei utilmente a minha pátria com os meus conhecimentos, sem incomodar nem depender de ninguém.

- Pois quê! Deixarias a mãe de Virgínia e a tua?

- Foi o senhor que me aconselhou a ir para as Índias.

- Nessa altura a Virgínia encontrava-se entre nós. Mas agora és o único amparo da tua mãe e da mãe dela.

- Então é preciso que a Virginia regresse. Que necessidade terá de uma parente rica? Sentia-se tão feliz nestas cabanas, era tão linda e ficava-lhe tão bem o lenço encarnado ou as flores a emoldurarem-lhe a cabeça! Volta, Virgínia! Abandona as tuas grandezas. Volta para estes rochedos, para a sombra destes bosques e dos nossos coqueiros. Ai de mim! É possível que neste momento sejas infeliz!

E pôs-se a chorar, acrescentando:

- Tio, não me esconda nada; se me pode dizer se casarei com a Virgínia, ao menos diga-me se ela ainda me ama, no meio daqueles grandes senhores que falam com o rei e que a vão ver.

- Oh Meu amigo, por várias razões, tenho a certeza de que ela te ama, e sobretudo porque é virtuosa.

A estas palavras, Paulo abraçou-me, num transporte de alegria.

- Oh! A Virgínia é virtuosa! Foi por vir      tude que quis ser rica, a fim de praticar o bem. Foi por virtude que partiu desta ilha e será a virtude que a trará de novo.

Com a ideia do regresso iminente de Virgínia a inflamar a imaginação do jovem, todas as suas inquietações se dissiparam: Virgínia não escrevera porque devia estar a chegar. Com vento de feiçãobastava tão pouco tempo para regressar da Europa!

Fazia uma lista dos barcos que haviam percorrido aquele trajecto de quatro mil e quinhentas léguas em menos de três meses. O barco em que ela embarcara não demoraria mais de dois: os construtores eram agora tão sábios e os marinheiros tão hábeis!

Falava dos arranjos que ia fazer para a receber, da nova habitação que ia construir, dos prazeres e das surpresas que lhe daria todos os dias, quando fosse sua mulher... sua mulher!.

- A partir de então, tio - dizia-me -, só fará o que lhe der prazer. Ficará connosco para sempre e a sua única preocupação será distrair-se Ia, fora de si, comunicar à família a alegria que o arrebatava.

Os grandes receios depressa se sucedem às grandes esperanças.

As paixões violentas impelem sempre a alma para os extremos opostos.

A partir do dia seguinte, Paulo, oprimido pela tristeza, vinha-me ver com frequência. Dizia-me ele:

- A Virgínia nunca mais me escreveu. Se saiu da Europa, ter-me-ia prevenido quanto à sua partida. Ah! Os boatos que por aí correram acerca dela são mais que verdadeiros! A tia casou-a com um grande fidalgo. Como acontece com tantas outras, foi seduzida pelas riquezas. Se a Virgínia tivesse virtude, jamais abandonaria a sua própria mãe e a mim. Enquanto passo a vida a pensar nela, ela esquece-me. Eu aflijo-me e ela diverte- se. Ah! Este pensamento mergulha-me no desespero. Todos os trabalhos me desagradam; estar com os outros enfastia-me! Quisera Deus que se declarasse a guerra na Índia! Para lá iria e morreria.

- Meu filho - respondi-lhe -, a coragem que nos atira para a morte não passa da coragem nascida de um impulso. É mais rara e mais necessária aquela que nos faz suportar o dia-a-dia, sem testemunhas nem elogios, os contratempos da vida, a paciência! A paciência é a coragem da virtude. A Virgínia voltará com mais filosofia do que tu. Muito surpreendida ficará por não encontrar o jardim todo restaurado, ela, que só pensa em embelezá-lo, a despeito das perseguições da tia, longe da mãe e de ti.

A ideia do regresso iminente de Virgínia reavivou a coragem de Paulo e impeliu-o para as suas lides campestres. Feliz, no meio dos seus desgostos, por proporcionar ao trabalho um desfecho que agradava à sua paixão.

Uma manhã, ao dealbar, a 24 de Dezembro de 1744, Paulo, ao levantar-se, avistou uma bandeira branca hasteada na Montanha da Descoberta. Aquela bandeira era sinal de haver barco à vista.

Paulo correu à cidade, a fim de saber se este trazia notícias de Virgínia. Lá permaneceu até ao regresso do piloto da barra que, segundo o costume, embarcara em missão de reconhecimento. O homem só voltou à noite. Informou o governador de que o barco assinalado era o Saint- Géran, com uma capacidade de setecentas toneladas, comandado por um capitão chamado Aubin; que se encontrava fundeado ao largo, a uma distância de quatro léguas, e que só atracaria em Porto Luís na tarde do dia seguinte, caso o vento estivesse de feição.

O piloto entregou ao governador algumas cartas que aquele barco trazia de França.

Uma delas era dirigida à senhora de La Tour, escrita pelo punho de Virgínia. Paulo pegou imedia tamente nela, beijou-a com fervor e precipitou-se

para casa.

Logo que avistou a família, que aguardava o seu regresso no Rochedo das Despedidas, agitou a missiva no ar, incapaz de pronunciar palavra; imediatamente todos se reuniram em casa da senhora de La Tour, para ouvir a sua leitura.

Virgínia escrevia à mãe dizendo que fora vítima de muitas acções deploráveis por parte da tia- avó

que pretendera casá-la contra sua vontade, deserdando-a em seguida e finalmente mandando-a embora numa altura que só lhe iria permitir chegar à Ilha de França na época dos furacões; que em vão tentara comovê-la, mostrando-lhe o quanto devia a sua mãe; que fora apelidada de filha insensata, a quem os romances tinham transtornado a cabeça; que só ansiava agora pela felicidade de rever e de abraçar a sua querida família, e que satisfaria esse ardente desejo nesse mesmo dia se o capitão lhe tivesse permitido embarcar na chalupa do piloto; mas que este se opusera à sua partida, em virtude da distância e do mar encapelado que se fazia ao largo, a despeito da calmaria do vento.

Mal esta carta fora lida e já a família inteira, num transporte de alegria, gritou:

- A Virgínia chegou!

Todos se abraçaram, amos e servos. A senhora de La Tour disse a Paulo:

- Meu filho, vai informar o nosso vizinho da chegada da Virgínia.

Imediatamente o Domingos acendeu uma tocha de madeira de cepa e ele e Paulo dirigiram-se para minha casa.

Deveriam ser umas dez horas da noite. Acabara eu de apagar a candeia e de me deitar quando avistei, pelas paliçadas da minha cabana, uma luz que brilhava nos bosques.

Em breve ouvia a voz de Paulo, que me chamava. Levantei-me; mal acabara de me vestir quando Paulo, desvairado e esbaforido, me salta ao pescoço e diz:

- Venha, venha, a Virgínia chegou! Vamos ao porto, o barco atracará ao alvorecer.

Imediatamente nos pusemos a caminho. Quando atravessámos os bosques da Montanha Longa e nos encontrávamos já na estrada que vai das Pamplumossas ao porto, senti que alguém vinha atrás de nós. Era um negro, que caminhava a grandes passadas. Logo que nos alcançou, perguntei-lhe donde vinha e para onde ia com tanta pressa.

Respondeu-me:

- Venho do bairro da ilha chamado Poeira de Ouro. Enviam-me ao porto para avisar o governador que na Ilha de Ãmbar está fundeado um barco vindo de França. Está a disparar salvas de canhão pedindo socorro, porque o mar está muito agitado.

Depois de assim ter falado, o homem retomou o seu caminho, sem se deter de novo. Digo então ao Paulo:

- Dirijamo-nos ao Bairro da Poeira de Ouro e assim antecipar-nos-emos à Virgínia. Daqui até lá são apenas três léguas.

Pusemo-nos, pois, a caminho, em direcção ao norte da ilha. Fazia um calor sufocante. A Lua já surgira; em torno dela avistavam-se três grandes círculos negros.

O céu parecia de breu. Distinguiam-se, à luz dos relâmpagos que se sucediam, longas faixas de nuvens espessas, escuras e de baixa altitude, que se concentravam para o centro da ilha e vinham com grande rapidez do mar, embora não sentíssemos, em terra, a menor brisa.

Ao caminharmos, julgámos ouvir o ribombar dum trovão, mas, pondo-nos melhor à escuta, reconhecemos serem as salvas do canhão, que os ecos repetiam. Aquelas salvas longínquas, aliadas ao aspecto do céu tempestuoso, fizeram-me estremecer. Não me restavam dúvidas, eram os sinais de angústia de um barco em riscos de naufragar.

Passada uma meia hora, deixámos de ouvir as salvas e aquele silêncio pareceu-me ainda mais aterrador do que o lúgubre estrépito que o precedera.

Apressámos a marcha, sem dizer palavra e sem ousar comunicar uns aos outros as nossas inquietações.

Pela meia-noite, chegámos, banhados em suor, à beira-mar, ao Bairro da Poeira de Ouro. As vagas vinham aí quebrar-se com um fragor medonho; co briam os rochedos e os areais com uma espuma de um branco ofuscante e iluminavam-nos com clarões de fogo. A despeito das trevas, descortinámos, àqueles clarões fosfóricos, as pirogas dos pescadores, que muito tempo antes já haviam sido puxadas para a areia.

A alguma distância dali avistámos, à entrada do bosque, uma fogueira, em torno da qual se comprimiam vários habitantes. Para lá nos dirigimos, a fim de recuperar o fôlego e esperar pelo romper da aurora.

Enquanto estávamos sentados junto daquela fogueira, um dos habitantes contou-nos que, à tarde, avistara um barco, no mar alto, ser arrastado para a ilha pelas correntes; que o deixara de ver ao cair da noite; que duas horas depois do pôr do Sol ouvira dispararem salvas de canhão, pedindo socorro, mas que o mar estava tão encapelado que fora impossível a qualquer barco fazer-se ao largo; que, pouco depois, julgara avistar as lanternas do barco acesas e que, sendo assim, receava que o barco, aproximando-se tanto da margem, não tivesse passado por entre a terra e a pequena Ilha de Ãmbar, tomando esta pelo Canto da Mira, que os barcos que chegam a Porto Luís contornam que, sendo assim; o que todavia lhe era impossível asseverar, aquele barco corria o maior dos perigos.

Um outro gentio tomou a palavra para nos dizer que atravessara várias vezes o canal que separa a Ilha de Ãmbar da costa e que sondara que as condições, aí, eram muito boas e que o barco estaria ali tão perfeitamente em segurança como se do melhor porto se tratasse.

Um terceiro habitante retrucou que era impossível que aquele barco pudesse entrar no canal, onde as chalupas só dificilmente conseguiam navegar.

Asseverou que o vira fundear para lá da Ilha de Ãmbar, de forma que, se o vento começasse a soprar pela manhã, poderia impeli-lo para o largo ou empurrá-lo para o porto.

Outros habitantes emitiram diversas opiniões.

Enquanto discutiam entre si, segundo o hábito dos crioulos ociosos, eu e Paulo mantivemo-nos em profundo silêncio. Ali permanecemos até ao dealbar; mas o céu estava demasiado escuro para que pudéssemos distinguir qualquer silhueta no mar que, por outro lado, se encontrava coberto de nevoeiro. só descortinávamos, ao longe, uma nuvem escura, que nos disseram ser a Ilha de Ãmbar, situada a um quarto de légua da costa.

Só avistávamos, àquela luz tenebrosa, a extremidade da margem onde nos encontrávamos e as cristas de algumas montanhas do interior da ilha, que de tempos a tempos emergiam das nuvens que se agitavam em seu redor.

Pelas sete horas da manhã, ouvimos, nos bosques, o rufar de tambores: era o governador, o senhor de La Bourdonnais, que chegara a cavalo, se guido de um destacamento de soldados, armados de fuzis, e de um grande número de colonos e de negros.

Postou os soldados na margem e ordenou-lhes que abrissem todos fogo ao mesmo tempo.

Mal se ouviu a descarga, lobrigámos, no mar, um clarão, quase imediatamente seguido de uma salva de canhão. Julgámos que o barco se encontrava a pouca distância de nós e todos nos precipitámos para o lado onde avistáramos o sinal.

Lobrigámos então, através do nevoeiro, o vulto e as velas de um barco de grandes dimensões. Encontrávamo-nos tão perto que, a despeito do fragor das ondas, ouvimos o apito do contramestre, que comandava a manobra, e os gritos dos marujos, que por três vezes exclamaram:

- Viva o Rei!

Porque é este o grito dos Franceses, tanto nas situações de grande perigo como nas de grandes alegrias, como se, nos perigos, chamassem o príncipe em seu socorro, ou como se quisessem testemunhar então que estariam prontos a morrer por ele. A partir do momento em que o Saint-Géran se apercebeu de que nos encontrávamos perto, começou a disparar ininterruptamente salvas de canhão, de três em três minutos.

O senhor de La Bourdonnais mandou acender grandes fogueiras no areal, a certa distância umas das outras, e ordenou a todos os habitantes das redondezas que fossem a casa buscar víveres, tábuas, cordas e barris vazios. Depressa vimos chegar um enxame de pessoas, acompanhadas pelos seus negros, carregados de provisões e de aprestos, que acorriam das habitações da Poeira de Ouro, do Bairro do Charco e do Rio da Muralha.

Um dos mais idosos destes habitantes aproximou-se do governador e disse-lhe:

- Senhor, toda a noite ouvimos ruídos abafados, vindos da montanha; nos bosques, as folhas das árvores agitam-se, sem que sopre o vento; as aves marinhas refugiam-se em terra; todos estes animais anunciam, certamente, um furacão.

- Pois bem! Meus amigos - respondeu o governador -, estamos preparados para o receber e o barco decerto também está.

Com efeito, tudo pressagiava a chegada iminente de um furacão. As nuvens que se avistavam no zénite eram de um negro tenebroso no centro e acobreadas nas bordas. No ar retiniam os gritos das fragatas, e dos bicos-tesoura e de bandos de aves marinhas que, a despeito do negrume da atmosfera, vinham, de todos os pontos do horizonte, procurar refúgio na ilha.

Pelas nove horas da manhã, ouvimos, para as bandas do mar, ruídos medonhos, como se lençóis de água, misturados com trovões, tivessem rolado do alto das montanhas. Toda a gente gritou:

- É o furacão!

E, nesse mesmo instante, uma terrível rajada de vento fez desaparecer a bruma que cobria a Ilha de Ãmbar e o canal.

O Saint- Géran apareceu, então, com o convés cheio de gente, as vergas e os cestos das gáveas, amainados sobre a ponte, a bandeira a meia- haste, quatro amarras na proa e uma de retenida na popa. Fundeara entre a Ilha de Ãmbar e a terra, do lado de cá da cintura de recifes que ladeia a Ilha de França e entrara por um ponto que qualquer outro barco antes dele nunca franqueara.

Expunha a proa às vagas que vinham do mar alto e, a cada lençol de água que penetrava no canal, a proa levantava-se toda, de maneira que víamos a quilha suspensa no ar. Mas neste movimento, a popa, mergulhando, desaparecia até à grinalda, como se se tivesse afundado. Nesta posição, em que tanto o vento como o mar o impeliam para terra, era-Lhe impossivel quer retroceder por onde viera quer, cortando as amarras, encalhar na costa,           da qual o separavam baixios eriçados de recifes.

Cada vaga que vinha quebrar-se na costa avançava, rugindo, até ao fundo das enseadas e cobria as terras com seixos, a uma distância de mais de cinquenta pés; depois, no refluxo, punha a descoberto uma grande parte da costa, fazendo com que os calhaus rolassem com um fragor rouco e pavoroso.

O mar, agitado pelo vento, encapelava-se cada vez mais e todo o canal compreendido entre esta ilha e a Ilha de Ãmbar não passava de um imenso lençol de espuma branca, à qual se misturavam vagas negras e cavadas. Essa espuma vinha quebrar-se ao fundo das enseadas, elevando-se a mais de seis pés de altura, e o vento, que varria a sua superfície, fazia-as galgar o declive da costa e inundar as terras até uma distância de mais de meia légua. Quanto aos seus flocos brancos e numerosos, que avançavam horizontalmente até ao sopé das montanhasdir-se-iam flocos de neve saídos do mar. O horizonte apresentava todos os sinais de uma tempestade prolongada; o mar parecia confundir-se com o céudo qual se desprendiam constantemente nuvens com uma forma horrível, que atravessavam o zénite com a rapidez de pássaros, ao passo que outras pareciam estar imóveis como grandes rochedos. Do firmamento, não se avistava nenhuma parte azulada; apenas uma luz olivácea e fosca iluminava todos os objectos da terra, do mar e do céu.

Quando observámos os safanões que o barco dava, aconteceu o que receávamos. As amarras da proa quebraram-se, e, como ficara apenas retido por um cabo, foi arrojado contra os rochedos, a cerca de cem metros da costa.

Paulo fez menção de se atirar à água, mas eu detive-o.

- Meu filho - disse-lhe -, queres morrer?

- Vou socorrê-la - gritou -, ou então morrerei.

Como o desespero o punha tresloucado, para nos precavermos contra qualquer acto desesperado, eu e Domingos amarrámos-lhe uma comprida corda à cintura e agarrámos numa das extremidades. O Paulo avançou então para o Saint- Géran, ora nadando, ora caminhando pelos recifes. Por vezes, tinha a esperança de o abordar, porque o mar, nos seus balanços irregulares, deixava o barco quase em seco, de forma que uma pessoa teria conseguido alcançá-lo a pé; mas logo, retrocedendo com uma fúria renovada, cobria-o de vastos lençóis de água que erguiam a proa de quilha e arremessavam violentamente para a costa o desventurado Paulo, as pernas ensanguentadas, o peito magoado e meio afogado.

Mal recuperava os sentidos, levantava-se logo e voltava a dirigir-se, com um ardor renovado, para o barco, que entretanto o mar ia despedaçando com safanões horríveis.

Toda a tripulação, julgando-se então perdida, se precipitou em chusma para o mar, boiando sobre as vergas, sobre pranchas, sobre capoeiras de galinhas, sobre mesas, sobre barris. Avistámos depois um vulto que inspirava uma eterna piedade: uma jovem surgiu no corredor da popa do Saint-Géran, de braços estendidos para aquele que desesperadamente tentava ir ter com ela.

Era Virgínia. Reconhecera, pela sua intrepidez, o amigo.

Ao Vermos aquela jovem, exposta a um tão grande perigo, o nosso coração transbordava de desespero.

Quanto a Virgínia, fazia-nos sinais com a mão, como que a enviar-nos o seu derradeiro adeus.

Todos os marujos se tinham arremessado ao mar. Só ficara um no convés. Aproximou-se respeitosamente de Virgínia. Vimo-lo ajoelhar-se e esforçar-se por lhe tirar as roupas. Mas ela, repelindo-o com dignidade, desviou o olhar dele.

Imediatamente se ouviram gritos lançados pelos espectadores, que se comprimiam na costa:

- Salva-a... . Salva-a... . Não a abandones!

Mas, nesse momento, uma pavorosa montanha de água engolfou-se entre a Ilha de Âmbar e a costa e precipitou-se, rugindo, para o barco, que ameaçava com as suas cristas espumosas. A este espectáculo medonho o marujo atirou-se, sozinho, ao mar, e Virgínia, vendo que a morte era inevitável, levantou os olhos serenos e pareceu um anjo que se preparava para voar em direcção aos céus.

A vaga arremessou violentamente para terra uma parte dos espectadores, que, num movimento de humanidade, tinham avançado em direcção a Virgínia, assim como o marujo, que a quisera salvar a nado. Esse homem, que escapara de uma morte quase certa, ajoelhou-se na areia, dizendo:

- Õ meu Deus! Salvaste-me a vida, mas de boa vontade a teria sacrificado por aquela pobre menina!

Domingos e eu retirámos das ondas o desventurado Paulo, que estava inconsciente, com sangue a escorrer-lhe da boca e dos ouvidos. O governador

entregou-o imediatamente aos cuidados de médicos.

Quanto a nós, procurámos ver, em seguida, ao longo da costa, se o mar não tinha trazido o corpo de Virgínia. Mas como o vento mudara repentinamente de direcção, como é normal com os furacões, o nosso coração ficou oprimido de desgosto ao pensarmos que nem sequer poderíamos dar àquela desgraçada jovem uma sepultura condigna.

Afastámo-nos daquele lugar acabrunhados de consternação: num naufrágio em que perecera um grande número de pessoas e em que os espíritos haviam ficado impressionados com o funesto fim de uma jovem tão virtuosa, a maior parte de nós duvidava que existisse a Providência; porque há males tão terríveis e tão injustos, que mesmo a esperança do sábio é abalada.

Entretanto, tinham levado o Paulo, que começava a recuperar os sentidos, para uma casa vizinha até ele se encontrar em condições de ser transportado para sua casa.

Quanto a mim, dirigi-me para lá com o Domingos, a fim de prepararmos a mãe de Virgínia e a sua amiga para este terrível acontecimento. Ao chegarmos à entrada do vale do Rio das Palmeiras, alguns negros disseram-nos que o mar arremessara muitos destroços do barco para a baía, que ficava em frente.

Dirigimo-nos para aí e uma das primeiras coisas que avistei na margem foi o corpo de Virgínia. Estava meio coberta de areia, na atitude em que a víramos perecer. Os seus traços encontravam-se pouco alterados. Tinha os olhos fechados, mas a serenidade ainda lhe pairava na fronte: apenas a palidez azulada da morte se confundia, nas suas faces, com o rubor do pudor. Tinha uma das mãos sobre o vestido e a outra, que se encontrava pousada sobre o coração, mostrava-se convulsivamente fechada e in teiriçada. Dela tirei com esforço uma caixinha, mas qual não foi a minha surpresa quando verifiquei tratar-se da imagem de Paulo, que ela jurara nunca abandonar enquanto fosse viva! Chorei amargamente ao contemplar este último testemunho da constância e do amor daquela desgraçada jovem. Quanto a Domingos, batia no peito e rasgava o ar com os seus gritos dolorosos.

Transportámos o corpo de Virgínia para uma cabana de pescadores, incumbindo umas pobres mulheres de velarem por ela, e estas encarregaram-se de o levar. Enquanto o faziam, dirigimo-nos para casa.

Encontrámos a senhora de La Tour e Margarida em suas casas, orando, enquanto aguardavam notícias.

Logo que a senhora de La Tour me avistou, gritou-me:

- Onde está a minha filha, a minha querida filha, a minha nenina?

Perante o meu silêncio e as minhas lágrimas, inteirou-se da sua desgraça; foi subitamente acometida por sufocações e por dolorosas angústias; só conseguia suspirar e soluçar.

Quanto a Margarida, gritou:

- Onde está o meu filho? Não vejo o meu filho!

E perdeu os sentidos. Precipitámo-nos para ela e, reanimando-a, assegurei-lhe que o Paulo estava vivo e entregue aos cuidados do governador. Só recuperou os sentidos para se ocupar da amiga, que de tempos a tempos era acometida por desfalecimentos prolongados.

A senhora de La Tour passou a noite inteira neste sofrimento atrós e considerei, pela sua intensidade, que nenhuma dor se comparava à dor materna. Quando recuperou a lucidez, dirigiu olhares fixos e melancólicos para o céu. Em vão a amiga e eu lhe apertávamos as mãos entre as nossas, em vão lhe dirigíamos os termos mais carinhosos, parecia insensível a estes testemunhos do nosso antigo afecto e do seu peito oprimido só saíam gemidos abafádos.

De manhã, trouxeram Paulo deitado num palanquim. Recuperara a lucidez, mas era incapaz de proferir uma palavra. O seu encontro com a mãe e com a senhora de La Tour, cujas consequências, de inicio, eu receava, tiveram um efeito mais eficaz do que todos os desvelos que eu prodigalizara até então. Os rostos daquelas duas desgraçadas mães foram fracamente iluminados por um raio de consolo.

Postaram-se junto dele, aconchegaram-no nos braços e beijaram-no; as suas lágrimas, reprimidas por um extremo desgosto, começaram a correr. Paulo depressa se desfazia em pranto.

A natureza, que desta maneira abalara aqueles três desventurados, fez com que um longo entorpecimento se sucedesse ao estado convulsivo da dor que os atenazava e proporcionou-lhes um repouso letárgico que, para falar verdade, se assemelhava ao da morte.

O senhor de La Bourdonnais mandou-me avisar secretamente que o corpo de Virgínia fora, por ordem sua, transportado para a cidade e que de lá o ia transladar para a igreja das Pamplumossas. Imediatamente me dirigi a Porto Luís, onde encontrei os habitantes de todos os bairros reunidos para assistirem ao funeral, como se a ilha, naquela jovem virtuosa, tivesse perdido o que mais valioso possuía.

No porto, os barcos tinham as vergas cruzadas, as bandeiras a meia- haste e disparavam salvas de canhão a longos intervalos.

A abrir o préstito fúnebre vinham os granadeiros. Traziam os fuzis de boca para baixo. Os tambores, cobertos de longos crepes, emitiam apenas sons lúgubres e via-se o desgosto estampado no rosto daqueles soldados que tantas vezes tinham defrontado a morte nos combates, sem que esta os perturbasse.

Oito das mais consideradas jovens da ilha, vestidas de branco e segurando uma palma, transportavam o corpo da sua terna companheira coberto de flores.

Um coro de pequenitos seguia-o, entoando hinos; depois deles vinha a elite dos habitantes e do Estado-Maior, seguidos do governador e finalmente da populaça.

Eis o que a administração ordenara para que se prestassem algumas homenagens à virtude de Virgínia. Mas quando o corpo dela chegou ao sopé da montanha, à vista destas mesmas cabanas, das quais por tanto tempo fora a felicidade e que estavam agora mergulhadas no desespero pela sua morte, toda a pompa da cerimónia desapareceu; cessaram os hinos e os cânticos; só se ouvia, pela planície, os suspiros e os soluços.

Quando o corpo de Virgínia chegou ao local onde iria ser sepultado, algumas negras de Madagáscar e alguns cafres de Moçambique depuseram em volta dela cestas de frutos e penduraram peças de tecidos nas árvores vizinhas, segundo o costume dos seus países; indianas de Bengala e da costa de Malabar trouxeram gaiolas cheias de pássaros, aos quais deram liberdade. Porque a perda de um ente querido toca todas as nações e tão grande é o poder da virtude infeliz, que congrega em torno do seu túmulo todas as religiões.

Virgínia foi enterrada perto da igreja das Pamplumossas, do lado ocidental, junto de uma cerca de bambus onde, quando ia à missa com a mãe Margarida, gostava de descansar, sentada ao lado daquele a quem nessa altura chamava de irmão.

Finda a cerimónia fúnebre, o senhor de La Bourdonnais dirigiu-se até aqui, acompanhado por parte da sua numerosa comitiva. Ofereceu à senhora de La Tour e a Margarida todo o auxílio que estava ao seu alcance. Exprimiu-se em poucas palavras, mas com indignação, contra a desnaturada tia.

Depois, acercando-se de Paulo, disse-lhe tudo o que julgou poder consolá-lo.

- Quem me dera - afirrmou-lhe - que o Paulo e a sua família fossem felizes. Deus é testemunha do meu desejo. Meu amigo, é forçoso que vá a França; arranjar-lhe-ei lá trabalho e na sua ausência tomarei conta da sua mãe como se minha fosse.          

Ao mesmo tempo, estendeu-lhe a mão, mas Paulo retirou a sua e virou a cabeça.

Fiquei em casa das minhas desventuradas amigas para lhes prestar, assim como a Paulo, toda a assistência que estivesse ao meu alcance. Ao cabo de três semanas, Paulo achava-se em condições de andar; mas o seu desgosto parecia aumentar à medida que o corpo recuperava as forças. Era insensível a tudo e nada respondia às perguntas que lhe faziam.

A senhora de La Tour, que se sentia a morrer, dizia-lhe com frequência:

- Meu filho, enquanto eu te vir, julgarei estar a ver a minha querida Virgínia.

À palavra Virgínia, ele estremecia e afastava-se dela, a despeito de a mãe lhe rogar que se acercasse da amiga. Retirava-se, sozinho, para o jardim e sentava-se ao pé do coqueiro de Virgínia.

O cirurgião do governador, que tivera os maiores cuidados para com ele e para com aquelas senhoras, disse-nos que, para o arrancar à sua negra melancolia, seria necessário deixá-lo fazer tudo o que lhe agradasse, sem o contrariar em nada; que era o único meio de quebrar o silêncio em que obstinadamente se mantinha. Resolvi seguir o seu conselho.

Logo que Paulo recuperou um pouco as forças, a primeira coisa que fez foi afastar-se das cabanas. Como eu o não perdia de vista, pus-me a segui-lo e disse a Domingos que arranjasse víveres e nos acompanhasse.

À medida que o jovem descia a montanha, a sua alegria e forças pareciam renascer. Antes do mais, enveredou pela estrada das Pamplumossas; e quando se aproximou da igreja, da sebe de bambus, foi direito ao lugar onde viu terra recentemente remexida; ajoelhou-se e, erguendo os olhos para o céu, orou durante muito tempo. A sua atitude pareceu-me um bom augúrio para o retorno da sua lucidez, visto esta prova de confiança para com o Pai Celestial mostrar que a sua alma reassumira as suas naturais funções. Domingos e eu ajoelhámo-nos, seguindo o exemplo de Paulo e com ele rezámos. Em seguida, ele levantou-se e retomou o seu caminho para o norte da ilha, sem nos prestar grande atenção. Como eu sabia que ele ignorava não só o local para onde Virgínia fora arrastada comn também que ele fora retirado do mar, perguntei - lhe porque fora ele rezar a Deus junto daqueles bambus.

Respondeu-me:

- Ìamos para ali tantas vezes!

Prosseguiu o caminho até à entrada da floresta, onde fomos surpreendidos pela noite. Aí, insisti com ele, dando-lhe o exemplo, para que comesse qualquer coisa; em seguida, adormecemos na erva, junto de uma árvore.

No dia seguinte, julguei que ele resolvera voltar atrás. Com efeito, olhou para a igreja das Pamplumossas, situada na planície, com as suas compridas alamedas de bambu, e pareceu fazer menção de lá voltar; mas mergulhou bruscamente na floresta, dirigindo sempre os seus passos para norte. Compreendi a sua intenção e infrutiferamente me esforcei por dissuadi-lo.

Chegámos, ao começo da tarde, ao Bairro da Poeira de Ouro.

Então, desceu precipitadamente até à beira-mar, em frente do ponto onde o Saint-Géran naufragara.

Ao ver a Ilha de Ãmbar e o seu canal, nessa altura liso como um espelho, Paulo gritou:

- Virginia! Ó minha querida Virginia!

E de repente perdeu os sentidos.

Domingos e eu transportámo-lo para o interior da floresta onde, com grandes dificuldades, o conseguimos reanimar. Logo que voltou a si, quis regressar de novo à costa. Mas como lhe supliquei que não aumentasse a sua dor e a nossa com recordações tão cruéis, enveredou por outra direcção.

Enfim, durante oito dias, Paulo fez uma peregrinação aos locais onde estivera com a sua compa nheira de infância. Percorreu o atalho que ela pisara a fim de ir solicitar o perdão para a escrava do Rio Negro; em seguida, reviu as margens do rio onde ela, incapaz de dar mais um passo, se sentara e a parte do bosque onde se perdera.

Todos os locais que lhe recordavam as inquietações, as brincadeiras, as refeições, a bondade da sua bem-amada, o rio da Montanha Longa, a minha casinha, a cascata próxima, a papaia que ela plantara, os relvados por onde gostava de correr, as encruzilhadas da floresta onde ela se deleitava a cantar, fizeram com que as suas lágrimas corressem e os próprios ecos, que tantas vezes haviam repetido os seus gritos de alegria, nessa altura só repetiam estas palavras dolorosas:

- Virgínia! Õ minha querida Virgínia! Nessa vida selvagem e errante, os seus olhos encovaram-se, a sua pele tornou-se macilenta e a sua saúde agravou-se cada vez mais. Convencido de que o sentimento dos nossos males aumenta com a recordação dos nossos prazeres e que as paixões crescem na solidão, resolvi afastar o meu desventurado amigo dos lugares que lhe lembravam a sua perda e levá-lo para qualquer canto da ilha onde o seu espírito se pudesse distrair.

Levei o Paulo até às colinas habitadas do Bairro de Williams, onde ele nunca estivera.

Mas a alma de um amigo descobre em todo o lado os vestígios da pessoa amada. A noite e o dia, a calma das solidões e o bulício das casas, o próprio tempo, que tantas recordações arrasta, nada o conseguia distrair. Como a bússola, que, mesmo sendo agitada vigorosamente, logo que se imobiliza gita para o pólo que a atrai. Quando perguntei a Paulo, perdido nas planícies de Williams:

- Onde vamos agora?

Ele virou-se para o norte e disse-me:

- Ali estão as nossas montanhas, voltemos para lá.

Convenci-me finalmente de que todos os meios que eu utilizava para o distrair resultavam infrutiferos e respondi-lhe:

- Sim, lá estão as montanhas onde vivia a nossa querida Virgínia e aqui está a imagem que lhe deste e que, ao morrer, ela trazia apertada contra o coração, cujas derradeiras pulsações foram para ti.

Estendi então a Paulo a pequena imagem que ele dera a Virgínia à beira da fonte dos coqueiros. Ao vê-la uma alegria funesta brilhou-lhe nos olhos, pegou avidamente na imagem, com as suas mãos trémulas, levou-a à boca, o peito oprimiu-se-Lhe e as lágrimas secaram-se-lhe nos olhos, sem poderem correr. A dor invadira-o completamente. Ai de mim! Os infortúnios da adolescência preparam o homem para a vida e Paulo nunca chegou a experimentá-la.

Reconduzi Paulo para casa. Aí encontrei a mãe e a senhora de La Tour num estado de fraqueza que se agravara ainda mais. Margarida era a que se mostrava mais abatida. Os caracteres activos, que enfrentam valentemente as penas menores, são os que mais depressa sucumbem aos grandes desgostos.

Seja como for, Paulo faleceu dois meses após a morte da sua bem-amada Virgínia, cujo nome pronunciava sem cessar.

Margarida viu chegar a sua hora, oito dias depois da morte do filho, com uma alegria que só a virtude conhece. Despediu-se ternamente da senhora de La Tour.

O governador tomou a seu cargo Domingos e Maria, que já não estavam em condições de trabalhar e que não sobreviveram muito tempo aos amos.

Quanto ao pobre Fiel, morreu de fraqueza, pouco tempo depois do seu jovem dono.

Levei para minha casa a senhora de La Tour, que se mantinha em meio de tão grandes perdas com uma grandeza de alma incrível. Consolara Paulo e Margarida até ao último instante, como se desde sempre tivesse apenas o infortúnio deles a su portar. Quando eles desapareceram, falava-me todos os dias deles como de amigos queridos que vivessem nas redondezas. Contudo, só lhes sobreviveu um mês.

Enterraram junto de Virgínia, perto das roseiras, o seu amigo Paulo e, em torno deles, as suas ternas mães e os seus fiéis servidores.

Sobre as suas humildes campas não há vestígios de pedras lapidares, nem inscrições a louvarem as suas virtudes; mas no coração daqueles que lhes ficaram reconhecidos a sua lembrança permanece indelével.

As suas sombras não precisam do brilho que tiveram em vida; mas se se interessam ainda pelo que se passa na Terra, decerto gostam de vaguear pelos telhados de colmo que albergam a virtude laboriosa, de consolar a pobreza descontente com o seu destino, de instilarem nas almas jovens uma chama durável, o gosto pelos bens da Natureza, o amor ao trabalho e a aversão às riquezas.

Casalinho de jovens tão ternamente unidos!

Desventuradas mães! Querida família! Estes bosques que vos proporcionaram as suas sombras, estas fontes que para vós corriam, estes outeiros onde juntos repousavam, ainda choram a vossa ausência.

Ninguém, depois de vós, se atreveu a cultivar esta terra desolada nem a destruir estas humildes cabanas.

As vossas cabras tornaram-se selvagens; os vossos pomares foram destruídos, os vossos pássaros fugiram e, agora, só se ouvem os gritos dos gaviões que sobrevoam, em círculo, esta bacia de rochedos.

Quanto a mim, desde que vos perdi, sou como um amigo que já não tem amigos, como um pai que perdeu os filhos, como um viajante que vagueia pela Terra, onde fiquei sozinho.

Dizendo estas palavras, o bom ancião afastou-se, chorando, e durante aquela funesta narrativa as minhas lágrimas correram por mais de uma vez.

 

                                                                                 Bernardin de Saint Pierre  

 

                      

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