Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PECADOS NA NOITE
Segunda Parte
O homem possuía uma carta de condução válida passada no nome que ele usava e não tinha cadastro. Você fez o seu trabalho. Eu apenas avancei mais um passo e podia não o ter feito se não tivesse visto o Olie Swain na sexta-feira à noite e não tivesse reparado numa tosca tatuagem nos nós dos dedos. Joguei no palpite de que ele já estivera preso. Acertei. Tive sorte.
A sorte nada teve a ver com isso respondeu Mitch. Você é uma boa polícia.
O sentimento nada tinha de íntimo, mas mesmo assim Megan sentiu uma onda de prazer invadi-la. O facto de ele ter feito o elogio de um modo quase hesitante e de ela saber que ele não gostava de ser ultrapassado, ainda tornava o cumprimento mais agradável.
Obrigada, chefe agradeceu Megan, tentando não se mostrar sensibilizada.
Mitch não deixou de reparar no embaraço dela. O facto de ela tentar encobrir o seu orgulho, arvorando indiferença, comoveu-o.
Porque não me disse que tinha as impressões digitais dele? quis saber Mitch.
Megan encolheu os ombros, sem o olhar.
Não calhou respondeu Megan, utilizando a mesma desculpa que ele usara com ela a respeito da carrinha de Olie. Estava apenas a seguir um palpite. Não sabia se daí iria resultar alguma coisa.
Levantou o pesa-papéis de vidro que representava o Rato Mickey e brincou com ele entre os dedos como se fosse uma bola de neve.
Tecnicamente, acho que me adiantei a si. Isso significa que vá ter de o ouvir?
Mitch sentou-se sobre a extremidade da secretária.
Não me posso zangar, visto esse palpite ter dado tão bom resultado. Mas isso também não significa que fique feliz por o ter feito.
Megan pousou o pesa-papéis com o Mickey a fazer o pino.
Este caso nada tem a ver com ser feliz, chefe. Não falavam desde domingo, quando ela ligara para lhe dizer que o laboratório ainda nada sabia. Nenhum deles proferira uma palavra a respeito da noite de sábado, mas os olhos dele, ao fitá-la agora, diziam tudo. Falavam de zanga e de desejo. Megan sentia-os na sua pele. Uma complicação desnecessária, mas não podiam voltar atrás, e ela sabia que não teria alterado nada se tivesse possibilidade de o fazer. Não seria inteligente, mas era assim.
Como se passaram as coisas com o DePalma? perguntou Mitch.
Megan afastou os braços do corpo.
Ainda tenho os membros todos disse.
É o seu lugar?
Megan olhou-o com um ligeiro sorriso.
De momento, sim. Digamos que, se este caso se resolver, o Josh não será o único a ser salvo. Por isso é melhor voltar ao trabalho. Pensei em ir ao hospital falar com a recepcionista que ligou para o rinque a avisar que a doutora Garrison iria chegar atrasada na noite em que o Josh desapareceu. Vou ver se ela será capaz de identificar a voz da pessoa que recebeu o recado. Se ela puder identificar a voz de Olie, ficaremos a saber que foi ele quem recebeu a chamada e que soube que a doutora Garrison chegaria mais tarde. Isso será uma prova de que ele teve oportunidade para o raptar.
Óptimo. Eu vou falar com as autoridades prisionais para ver se fico a saber mais alguma coisa sobre ele. E falarei também com o magistrado municipal para que ele avalie a situação.
Óptimo.
Megan!
Mitch disse o nome dela só por dizer e depois arrependeu-se de o ter feito. O trabalho era o trabalho, disse a si mesmo, e o que se passava na cama entre eles não era para ali chamado, nem ele queria que fosse.
Fico satisfeito por o DePalma não ter feito estragos.
Nenhuns, a não ser no meu orgulho ferido murmurou Megan. Vou-me embora, chefe. Até logo.
Lamento, mas não pude... aaa...tchim! Carol Hiatt escondeu a cara numa mancheia de lenços de papel e fechou os olhos por momentos, cansada do vírus que atacara todo o Pessoal hospitalar.
Santinha disse Megan.
A recepcionista assoou-se ruidosamente e atirou os lenços para um cesto cheio. A constipação fazia com que o seu nariz aquilino tivesse um tom vermelho-escuro e todo o seu aspecto era desolador, com os olhos lacrimejantes e o cabelo pintado de preto pendente, baço, dos dois lados da cara.
Eu própria não estaria aqui se o restante pessoal não se encontrasse ainda mais doente do que eu.
Megan assentiu com a cabeça, tentando mostrar simpatia. Por detrás dela, um bebé e uma criança mais crescida faziam um dueto choroso, enquanto uma terceira criança tocava num xilofone uma composição otonal. Na televisão davam Geraldo crianças e adultos mascarados de clérigos.
Lamento repetiu Carol. Já disse isto tudo ao agente que falou comigo na sexta-feira. Fui eu que telefonei para o rinque, mas essa noite foi de doidos aqui. Não lhe posso dizer quem atendeu o telefone no rinque.
Ele não se identificou?
Não conheço nenhum homem que se identifique ao telefone. Começam todos a falar como se achassem que os outros devem saber quem são. Julgam que nada temos a fazer a não ser estar à espera que eles telefonem concluiu com ar cansado. Depois meteu novo lenço de papel debaixo do nariz e em seguida amarrotou-o dando-lhe a forma de um cravo.
Megan fez um largo traço negro na sua agenda, debaixo da palavra «recepcionista».
Acha que conseguirá recordar-se se ouvir a voz?
Quem me dera poder dizer que sim murmurou Carol tirando outra mancheia de lenços de papel da caixa que se encontrava ao lado do telefone, enquanto os seus olhos se encheram de lágrimas. Gosto muito da Hannah. É a melhor pessoa que conheço. Não posso pensar que alguém lhe tenha tirado o filho para lhe fazer sabe Deus o quê... Carol Hiatt ergueu para Megan o rosto angustiado. Eu também tenho um filho da idade dele, o Brian. É grande amigo do Josh. Jogam na mesma equipa de hóquei. Estava lá nessa noite, no rinque. Podia ter sido ele... É horrível...
Megan estendeu a mão por cima do balcão e tocou num ombro da mulher.
Pronto. Acalme-se. Sei que ajudaria se pudesse. Foi uma tentativa. Não se preocupe.
Por favor, encontre o Josh murmurou a mulher. A voz dela pareceu a Megan a de toda a população de Deer Lake. Toda a gente estava assustada, surpreendida. Deixavam as luzes da entrada acesas durante a noite, com cartazes que diziam: LUZES ACESAS PARA O JOSH. Não fora apenas Josh que fora roubado. Fora uma parte da inocência e da tranquilidade da pequena cidade.
Leslie Olin Sewek tinha de responder por muita coisa.
Estamos a fazer tudo o que podemos respondeu Megan.
Quando se afastou da recepção, Megan viu na parede uma seta que indicava o caminho para a cafetaria. Seguiu-a. Talvez um café lhe tirasse a dor de cabeça.
A cafetaria não era mais do que uma sala com mesas e cadeiras e uma série de máquinas que vendiam determinados artigos. Dois empregados da manutenção encontravam-se sentados a uma mesa a jogar dados e a beber café. Nem sequer olharam quando ela entrou.
Megan meteu duas moedas de um quarto de dólar na máquina e carregou no botão de Mountain Dew. No momento em que a lata saía ruidosamente do interior da máquina, Christopher Priest entrou silenciosamente na sala. A camisola preta de gola alta ajustava-se ao seu peito magro e subia-lhe pelos braços. As suas mãos magras, ossudas, pareciam enormes, saídas das mangas demasiado curtas.
Agente OMalley! Os olhos dele brilharam de surpresa por detrás das grossas lentes. Os cantos da sua boca de lábios finos ergueram-se. O que a traz aqui? Espero que não seja esse vírus que anda por aí?
Não. Estou óptima. E o professor?
Tenho aqui um aluno.
Meteu umas moedas na máquina do café e carregou no botão para receber um café com açúcar e natas.
Megan abriu a lata de Mountain Dew, tirou um comprimido de Cafergot da carteira e engoliu-o com um longo gole, enquanto observava Priest que retirava o copo de plástico da máquina e o levava cuidadosamente para uma mesa. Viu como ele limpava criteriosamente a beira do copo com um guardanapo de papel e depois o dobrava e colocava do lado esquerdo.
Oh, sim disse Megan sentando-se numa cadeira do lado esquerdo do professor. O rapaz que teve o acidente de automóvel na noite em que o Josh foi raptado.
Sim. Bebeu um gole de café, enquanto o vapor lhe embaciava os óculos. Precisamente.
Como está ele?
Na verdade não está muito bem. Parece que tem algumas complicações. Podem ter de o levar para um hospital maior em Twin Cities.
Isso é mau.
Mmmm... Olhou para um cartaz particularmente colorido que se encontrava na parede oposta. O Mike ia fazer um recado para mim disse em voz tão baixa que parecia estar a falar para si mesmo. Para o projecto de percepção e aprendizagem.
O que o doutor Wright mencionou no outro dia?
Sim. O Mike continua a dizer que a estrada estava completamente deserta e que então chegou aquela curva... Bebeu outro gole de café. A vida é engraçada, não é?
Sim. Daqui onde estou é de rir às gargalhadas.
O professor ignorou o seu sarcasmo. A curiosidade dele parecia um pouco analítica; a questão que ele colocava parecia ser feita a todo o mundo.
Será o destino ou o acaso? O que terá levado o Mike Chamberlain a essa esquina, nesse momento? O que levou o Josh a estar na rua, nessa noite? O que é que fez com que nos encontrássemos hoje, os dois aqui?
Parecem-me perguntas para o departamento de filosofia.
Não necessariamente. A ciência de computadores trata de lógica, causa e efeito, padrões de pensamento.
Bem, professor anunciou Megan ao acabar de beber o refrigerante, atirando a lata para o caixote do lixo. Se o senhor e o seu computador tiverem uma explicação lógica para as merdas que sucedem neste mundo, eu gostaria de ser a primeira a saber.
A casa de Arlan e Ramona Neiderhauser cheirava fortemente a naftalina. O odor fazia irritar as narinas de Mitch. Sentado numa cadeira de costas direitas que levara da casa de jantar, olhava com um binóculo para o quarto de dormir da barraca de Olie, que se encontrava às escuras. Na casa de Oscar Rudd havia luzes. A iluminação aclarava os inúmeros Saabs velhos que ele coleccionava e que se encontravam estacionados ao lado da casa.
Megan instalara-se junto da janela, espreitando pela cortina. Ambos conservavam os casacos vestidos para estarem prontos a correr para fora e devido também à temperatura gelada da casa. Os Neiderhauser deixavam o termostato ligado apenas para impedir que a canalização da casa gelasse. Lá fora a temperatura continuava a descer, ameaçando atingir um recorde que não era ultrapassado há trinta anos. O frio era tão extremo que começavam a formar-se sinais de gelo no ar, criando um fenómeno chamado nevoeiro de neve, uma névoa fina que pairava acima do solo, como um efeito especial num filme de terror.
Apesar do frio, Steiger optara por ficar dentro de um carro sem distintivo. O pessoal do BCA, da Polícia e do departamento do xerife havia sido estrategicamente colocado em vários pontos da cidade para que Olie pudesse ser seguido fosse para onde fosse. O laboratório móvel encontrava-se a postos numa sala do antigo quartel dos bombeiros, pronto a entrar em acção para executar os mandados de busca.
Odeio este tempo disse Megan em voz muito baixa, talvez por estarem completamente às escuras. Sabia que no Pólo Norte está menos frio do que aqui, esta noite?
Quer mudar-se para o Pólo Norte?
Quero mudar-me para as ilhas Caimãs.
A música dos tambores de aço podia levá-la ao suicídio no espaço de um mês.
Pelo menos, morria quente.
Mitch segurou o binóculo com a outra mão e meteu a direita no bolso para agarrar num aquecedor para as mãos.
Sabia que o Olie tem ali nada menos do que cinco computadores?
Onde é que ele arranjou dinheiro para isso?
Contou-me que eram computadores que as casas comerciais deitavam fora por terem comprado outros mais modernos. O director de Walla Walla disse-me que o Olie era inteligente e estava sempre a estudar qualquer coisa.
Rapazinhos, por exemplo.
Sim, mas a autoridade que lhe concedeu a liberdade condicional pareceu ficar surpreendida com o que se está a passar aqui. Não achava que o Olie pudesse tornar-se violento.
Megan deixou cair a cortina e voltou-se para Mitch.
O Olie foi condenado por ter forçado rapazinhos a fazer sexo com ele. Isso não é ser violento?
Força pode ser coacção. A violência tem vários graus.
Eu li a folha desse tipo. Começou por espreitar às janelas, depois expôs-se, depois carícias e a seguir violação. O que é que os rapazes em Washington têm a dizer sobre a opinião da autoridade que lhe concedeu a liberdade condicional?
Mitch encolheu os ombros.
O Olie não é o primeiro condenado que reincide. Megan olhou para o relógio. Nove horas da noite. Olie
não devia sair do rinque antes das onze, mas eles já se encontravam ali para o caso de ele aparecer mais cedo. Megan olhou à sua volta para o quarto cheio de móveis e o seu olhar demorou-se na cama, sobre a colcha branca na qual eles tinham deixado os seus rádios. Walkie-talkies, homens espalhados por toda a parte com as suas armas debaixo dos braços e binóculos assestados sobre a casa do outro lado da rua. Se não era a coisa mais excitante que aquele quarto já vira, Arlan e Ramona deviam ser um casal engraçado.
O telemóvel de Mitch tocou. Pousou o binóculo e abriu o telefone.
Chefe Holt.
Papá?
A vozinha trémula fez com que Mitch passasse de uma tensão para outra.
Jessie? Que estás a fazer a pé a estas horas? Ouviu um soluço e uma respiração entrecortada.
Papá, vens-me buscar para ir para casa?
Mitch sentiu o coração apertado. Jessie. Esquecera-se dela. Tivera de fazer telefonemas e uma reunião no gabinete do magistrado. Tivera de escolher a sua equipa, organizar o equipamento e seleccionar os pontos de vigilância. E no meio de tudo isso esquecera a filha.
Lamento, querida. Esta noite não posso ir. Tens de ficar com o avô e a avó. É muito importante que eu trabalhe esta noite.
Dizes sempre isso queixou-se Jessie. Não gosto nada quando és um polícia!
Por favor não digas isso, querida!
A súplica teria soado tão queixosa aos ouvidos de Megan como aos dele? Detestava desiludir Jessie. Detestava ainda mais quando ela culpava o seu trabalho, porque isso lhe fazia recordar Allison e as discussões que tinham tido. as súplicas dela a que ele não dera ouvidos. O remorso fazia com que ele sentisse um nó na garganta.
Prometo que vamos passar toda a noite juntos, em breve, minha querida. Isto é muito importante. Ando a tentar encontrar o Josh para que ele possa estar ao pé da mamã e do papá dele. Não os vê quase há uma semana.
Fez-se silêncio enquanto Jessie absorvia a informação.
Deve ter saudades deles disse a vozinha meiga. Deve estar triste. Eu também tenho saudades tuas, papá.
Parecia ter mais do que cinco anos e estar demasiado desiludida para tão pouca idade.
Eu também sinto a tua falta, querida murmurou Mitch.
Joy entrou na conversa e a sua voz cortante soou aos ouvidos de Mitch.
Desculpe tê-lo incomodado, Mitch proferiu com mais rancor do que contrição. Mas a Jessie estava tão Perturbada que não conseguimos que se fosse deitar. Eu disSe-lhe que ela não podia contar consigo...
Ouça, Joy... Mitch tentava dominar a sua cólera Não é altura de falarmos no assunto. Estou no meio de uma coisa importante e não posso ter o telefone ocupado Lamento ter-me esquecido de telefonar. Espero que não haja inconveniente em a Jessie ficar aí esta noite. Falaremos noutra altura sobre se a Jessie pode ou não contar comigo.
Desligou antes de ela ter tempo de dar um estalido com a língua para ele ouvir. Podia imaginá-la a andar para trás e para diante em frente da janela panorâmica, dizendo: «Não sei onde o teu pai andará... É estranho não ter telefonado...», enervando Jessie até ela ficar naquele estado. Porque tivera ele de vir viver para ali depois da morte de Allison e de Kyle?
Para se castigar durante a vida inteira.
Megan mantinha-se calada, encostada à parede, observando-o através das pestanas. Aquele momento devia ser de privacidade, mas ela não podia ignorar a dor de Mitch.
O meu pai fazia dois turnos seguidos só para não estar comigo. Nunca me disse que sentia a minha falta.
Mitch olhou-a. O luar passava através das cortinas de renda e iluminava-lhe o rosto. A vulnerabilidade que ela habitualmente ocultava sob o seu orgulho constituía a coisa mais íntima que ela alguma vez lhe dera.
A Jessie tem muita sorte em o ter a si murmurou. A voz de Noga fez-se ouvir no walkie-talkie e o momento estilhaçou-se como vidro.
Chefe! Apanhei-o a sair por uma porta lateral. Vai a pé em direcção a casa. Fique preparado.
Megan baixou-se. Era impossível ver dali o caminho que Olie percorria entre o rinque de patinagem no gelo e o seu casebre, mas ele tinha de dobrar a esquina para entrar em casa. Megan fixou essa esquina até os olhos lhe picarem e os pulmões lhe arderem por conter a respiração. Por fim Olie Svvain apareceu segurando a alça de uma mochila na sua mão esquerda. Mexeu nas chaves, deixou-as cair na neve e dobrou-se para as apanhar. Quando se endireitou, a carrinha da TV7 entrou na rua.
Não! gritou Megan erguendo-se de um salto.
Merda! Mitch derrubou a cadeira, apanhou o rádio e correu para as escadas.
Saíram para o ar gelado da noite. Mitch ia à frente, logo seguido de Megan
Estamos tramados gritou para o aparelho transmissor. E o sacana que informou a imprensa é melhor que engula a arma antes que eu lhe ponha as mãos em cima.
Olie ficou imóvel, horrorizado. O saco com livros caiu-lhe da mão e tombou no solo, aos pés dele, com um som abafado. A porta lateral da carrinha da TV7 abriu-se como o cavalo de Tróia e saiu de lá uma multidão. Um homem com uma câmara de vídeo sobre um ombro. Outro com uma luz brilhante na extremidade de uma vara. À frente do grupo vinha uma mulher que ele vira no noticiário e no rinque de patinagem na semana anterior. Provavelmente era bonita, mas agora, inclinada sobre ele, parecia fazer parte de um dos seus piores pesadelos.
Eles descobriram-te, Leslie. Pensaste que podias esconder-te, mas encontraram-te. És estúpido, Leslie.
Um suor frio percorria-lhe o corpo, como chuva.
A mulher aproximou um microfone da cara de Olie. A luz branca cegava-o. As perguntas choviam sobre ele como uma saraivada de balas.
Mister Swain, tem algum comentário a fazer sobre o rapto do Josh Kirkwood? É verdade que foi condenado por molestar crianças, em Washington? Está a cooperar com a Polícia na investigação? O chefe da Polícia local tinha conhecimento dos seus crimes contra crianças?
Eles sabem. Eles sabem. Eles sabem. A voz repetia essas palavras dentro dele, mais alto, cada vez mais alto, até gritar. Até ele achar que a cabeça lhe ia explodir e os miolos saltarem.
Mitch Holt chegou a correr e bateu com um ombro nas costas do cameraman, fazendo com que ele ficasse estendido no chão. A câmara de vídeo foi bater na parede da casa e caiu sobre a neve.
A bexiga de Olie cedeu e a urina quente molhou-lhe as calças, gelando imediatamente sobre o tecido. Olie voltou-se e começou a correr, sem saber para onde, ao acaso. Corria Porque o instinto lhe dizia que fugisse. Os passos dele esmagavam a neve debaixo dos pés. Ervas daninhas agarravam-se às solas das botas, como dedos saídos do inferno. u ar frio cortava-lhe os pulmões e cada respiração ofegante era como se mil facas os rasgassem. Agitou os braços como um homem que estivesse a afogar-se, tentando mergulhar para a frente. O mundo parecia oscilar para cima e para baixo à sua volta, numa confusão de estrelas, céu, neve e árvores nuas. Não ouvia nada a não ser a voz na sua cabeça e as pulsações nos seus ouvidos.
Eles sabem. Eles sabem. Eles sabem.
Então algo o atingiu nas costas, com força, e ele tombou com um grito abafado.
Mitch caiu sobre Olie, pondo-lhe um joelho nas costas. Tirou as algemas do cinto e prendeu uma em volta do pulso direito de Olie.
Leslie Olin Sewek disse entre golfadas de ar gelado. Está preso. Tem o direito de permanecer calado. Tudo o que disser poderá ser usado contra si em tribunal. Tem direito a um advogado. Se não puder pagar a um, o estado arranjar-lho-á gratuitamente.
Torceu o braço esquerdo de Olie, prendendo-o atrás das costas com força suficiente para o fazer gritar, e colocou-lhe a outra algema.
Compreendeu o que acabei de lhe dizer? Tossindo, devido à dor que lhe dilacerava os pulmões,
Mitch pôs-se de pé e puxou Olie para cima.
Não fui eu gemeu Olie. As lágrimas deslizavam-lhe pela cara. O sangue que lhe correra de um golpe no lábio gelara sobre o queixo trémulo. Não fiz nada.
Mitch voltou-o e inclinou-se sobre o seu rosto feio.
Fez muito, Olie. Mas se fez alguma coisa ao Josh Kirkwood, vai desejar nunca ter nascido.
Olie deixou pender a cabeça e começou a soluçar. Por detrás da sua casa, estava agora reunida uma multidão polícias, homens da televisão... Todos sabiam. Conheciam tudo a seu respeito. A respeito do seu passado, e podiam esmagar-lhe o futuro por causa disso.
Vai desejar nunca ter nascido, Olie.
O que não sabiam é que ele já desejara isso. Todos os dias da sua vida.
Steiger apareceu num Crown Victoria sem distintivo, com uma luz azul presa ao tejadilho por um íman de dezassete libras. Os polícias e o pessoal da televisão dispersaram rapidamente quando o carro avançou, veloz, pela rua onde ficava a casa de Olie, quase batendo em dois dos Saab do velho Oscar. Steiger saiu rapidamente, gritando ordens.
Metam-no no carro! Vou levá-lo para a cidade. Lançou um olhar severo à pequena multidão, sem se aperceber de que a câmara de vídeo se encontrava inoperante.
Afastem-se. Isto é assunto da Polícia!
Paige adiantou-se de microfone em punho. Se conseguissem uma gravação de som, podiam passá-la com imagens obtidas anteriormente. Era o que bastava para os seus propósitos.
Xerife, acha que foi este o homem que raptou o Josh Kirkwood?
Interrogaremos Mister Swain em relação a este caso e aos casos ocorridos em Washington. É tudo quanto posso dizer de momento.
Como é que descobriu este suspeito?
Ele olhou-a do alto do seu nariz aquilino. O cabelo brilhava como uma mancha de óleo à luz da Lua.
Foi devido ao bom trabalho da Polícia, executado pelos métodos antigos.
Mitch retirou Olie do Crown Victoria e entregou-o a Noga.
Ponha-o no seu carro!
Noogie olhou para o chefe, em seguida para Steiger e outra vez para o chefe.
Mas... chefe...
Meta-o no carro e siga para a esquadra. E se o Steiger lhe disser alguma coisa dê-lhe um tiro.
Simmm, senhor... murmurou Noga erguendo as sobrancelhas de assombro.
Eu sigo-os declarou Megan para o polícia. Pousou uma mão num braço de Mitch. Bem feito, chefe.
Sim? respondeu Mitch lançando um olhar a Paige, que se encontrava do outro lado do carro. Pois bem, ainda não viu nada.
Megan não fez comentários e voltou-se para Noga. O polícia pôs a sua grande mão na nuca de Olie e encaminhou-o para o sítio em que os carros brancos e verdes se encontravam com as luzes do tejadilho acesas, em desordem. Ao ver Olie e Noga afastarem-se, Steiger abandonou Paige e correu atrás do seu suposto prisioneiro.
Ei, Noga. Meta-o neste carro!
Tudo bem, xerife respondeu Noga. Nós podemos levá-lo. De qualquer maneira, obrigado!
Na rua, os vizinhos começavam a aparecer às portas e janelas. Oscar Russ saiu da cozinha vestindo umas calças com uns suspensórios vermelhos que lhe pendiam dos dois lados e calçando sapatos sem meias. Só uma camisola interior térmica lhe cobria o dorso e a enorme barriga. Dos ouvidos saíam-lhe mais cabelos brancos do que os que tinha na cabeça.
Ei! gritou a Steiger. Tire esse carro do meu relvado! E não recue para cima dos meus Saabs. São carros de colecção!
Mitch ignorou o pequeno agrupamento e dirigiu-se a Paige.
Ela segurava o microfone na sua frente, como se fosse uma cruz para afastar vampiros.
Chefe Holt, tem algum comentário?
Ele arrancou-lhe o microfone da mão e atirou-o para longe, fazendo-o cair sobre um monte de neve. Depois estendeu a mão para o fecho da parka dela e abriu-o até abaixo.
É tudo, Miss Price? Não tem nenhum microfone, nem gravador escondido na roupa?
N..ao tartamudeou ela, recuando.
Mitch manteve-se junto dela, seguindo-a passo a passo. O cameraman tentou ir em seu auxílio.
Ó amigo, danificou uma peça de equipamento muito cara. Terá sorte se a estação não o processar.
Mitch voltou-se para ele. A voz era fantasmagoricamente suave.
Terei sorte? Terei sorte? Inclinou-se para o cameraman até os narizes de ambos se tocarem. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, amigo. Não quero saber da sua maldita câmara para nada. Você e esta mulher que aqui está interferiram com uma investigação policial. Isso é crime, sabiam? E se o Josh Kirkwood morrer devido a esta interferência, vocês são considerados cúmplices de crime, na minha opinião.
Voltou-se novamente para Paige.
Gostaria de fazer essa reportagem Paige? Voltou um braço para ela e fingiu que tinha um microfone na mão. Em directo das instalações da Casa de Correcção para Mulheres em Shakopee, fala Pai-ai-ge Price.
Paige tremia de medo e de cólera. Detestava-o por a assustar e por a fazer sentir-se responsável.
Estou apenas a fazer o meu trabalho proferiu, na defensiva. Não fui eu que fiz do Olie Swain um molestador de crianças, não fui eu que raptei o Josh Kirkwood e não serei responsável por nada que lhe possa suceder.
Mitch abanou a cabeça com pena e assombro. Os pulmões doíam-lhe por ter aspirado demasiado oxigénio gelado durante a corrida atrás de Olie. As mãos nuas doíam-lhe do frio, mas ele não fez qualquer gesto para tirar as luvas do bolso e fechar o casaco. De uma maneira geral sentia-se dormente, atordoado pela oportunidade perdida. Olie podia tê-los levado até Josh. A mulher que se encontrava em frente dele fizera perder essa oportunidade e nem sequer era capaz de pedir desculpa.
Você não compreende, não é, Paige? murmurou. Isto não tem nada a ver consigo. Você não é ninguém. Não é nada. O seu emprego, a sua estação, os seus níveis de audiência... não significam coisa alguma. São uma porcaria. Trata-se de um rapazinho que devia estar em casa, na cama, a ouvir uma história antes de adormecer. Trata-se de uma mãe cujo filho lhe foi tirado e de um pai que perdeu o filho. É a vida real. E poderá vir a ser morte real, graças a si.
Mitch voltou-se e dirigiu-se para o carro que o esperava, com o motor a trabalhar e com o exaustor a lançar nuvens de fumo branco. Paige viu-o afastar-se e sentiu um toque de consciência pela primeira vez desde há muito. Julgou que a tinha irradicado, que a arrancara como se fosse uma verruga no seu queixo perfeito. A consciência era um peso. Embora soubesse que havia colegas que a tinham e não se queixavam, ela sentira sempre que a corrida para o topo seria mais fácil se não tivesse consciência. Agora...
Afastou essa sensação ao voltar-se para Garcia.
Apanhaste tudo?
O cameraman tirou do bolso um gravador com microcassetes e desligou-o. Paige olhou para o mostrador luminoso do seu relógio de pulso.
Vamos. Se nos apressarmos poderei ter uma história pronta às dez da noite.
Gostaria de ter um advogado presente no interrogatório, Mister Sewek?
Olie encolheu-se ao ouvir o nome, como se o tivessem ido buscar ao passado para o esbofetear. A voz na sua cabeça gritava: Leslie! Leslie! Leslie., como um disco partido. Não olhou para a mulher-polícia que se encontrava na sua frente.
Sentia os olhos dela fixos em si, queimando-o, acusando-o. Sentia isso na pele, como um ácido.
Mister Sewek? Compreendeu o que estou a perguntar-lhe?
Não fui eu murmurou.
A sua visão enevoou-se quando olhou para as mãos que pousara sobre a mesa. Puxou rapidamente a beira das suas meias luvas, para tapar os dedos, ocultar a recordação da sua estada em Walla Walla. Podia ainda recordar o peso esmagador do homem que se sentara em cima dele, enquanto outro, chamado Needles marcava as letras nos dedos dele. Recordava as suas gargalhadas quando lhes pedira para pararem. A tatuagem fora o menos que lhe tinham feito durante esses cinco anos. Nem uma vez as suas súplicas haviam sido atendidas com comiseração. Apenas com sadismo.
... temos um mandado para o prendermos por violação da liberdade condicional...
Podiam mandá-lo outra vez para lá. Essa ideia causou-lhe angústia, como se tivesse sido atravessado por uma flecha.
Sabemos o que fez a esse garoto em Washinton, Olie disse Mitch Holt. Andava para trás e para diante atrás da mulher, com as mãos na cintura. O que queremos saber agora é o que fez ao Josh.
Nada.
Vá, Olie, não nos faça perder tempo. Você tem o cadastro, teve oportunidade, tem a carrinha...
Não fui eu gritou Olie olhando para Mitch
Os polícias nunca acreditavam nele. Olhavam-no sempre como uma porcaria que tivessem de raspar do sapato. Um bocado de merda de cão. Um insecto maldoso e hediondo. No rosto de Mitch, Olie viu a mesma combinação de incredulidade e de repugnância que tantas vezes vira no decorrer da sua vida miserável, mas mesmo assim sentiu como se um pequeno pedaço de si próprio se quebrasse no seu interior.
Ele nunca quisera fazer mal a ninguém.
Os seus lábios arreganharam-se num esgar doloroso, e sentiu subir-lhe à garganta um gemido doloroso. Cerrou os dentes para não ceder a um desejo irreprimível de chorar.
Pousou uma mão sobre a cabeça coberta de cabelos hirsutos, passou-a pelo olho de vidro, pela mancha na testa. Tinha a sensação de que o seu corpo ardia por baixo das pesadas roupas de Inverno. As calças e a roupa interior estavam duras e coladas ao corpo no sítio onde ele as tinha molhado. Um forte cheiro a urina chegava-lhe ao nariz.
Tem algum cúmplice?
O Josh está bem?
Se cooperar connosco terá uma atenuante.
Ele está em segurança?
Molestou-o?
Ele está vivo?
As perguntas seguiam-se umas às outras, sem descanso. E nos espaços entre elas uma voz gritava-lhe: Responde-me, Leslie! Responde-me! Responde-me!
Parem! gritou tapando os ouvidos com as mãos. Parem! Parem!
Mitch bateu com o punho fechado sobre a mesa e aproximou a cara da de Olie.
Acha que isto é mau, Olie? Quer que paremos de fazer perguntas. E o que é que pensa que os pais do Josh estão a sentir? Há uma semana que não sabem do filho. Não sabem se está vivo ou morto. Pode imaginar o que isso lhes custa? Como estão ansiosos para que isto acabe?
Olie não respondeu. Olhou para baixo, para o tampo da mesa a imitar nogueira, com a cabeça e os ombros a tremer. Mitch dominou o impulso de o agarrar pelo pescoço e de o abanar até os olhos lhe saltarem das órbitas.
Mister Sewek disse Megan numa voz suave como mármore polido, sabe que, enquanto estamos aqui a falar, uma equipa de peritos em criminologia está a passar uma revista completa à sua casa e à sua carrinha?
Está preso por rapto, Olie acrescentou Mitch. E se o Josh não for encontrado vivo, ou não for encontrado, será acusado de homicídio. Não mais voltará a ver a luz do dia.
Olie escondeu a cabeça nas mãos.
Eu não lhe fiz mal.
Ouviu-se uma pancada na porta e Dave Larkin espreitou. U seu ar descontraído desaparecera completamente.
Agente O’Malley?
A formalidade era quase tão assustadora como a sua expressão condoída. Megan levantou-se e saiu para um pequeno corredor iluminado por luz fluorescente. Na sala da esquadra os telefones tocavam incessantemente. A actividade era inacreditável. Paige Price podia ter-lhes feito concorrência, mas todos queriam ter algo a dizer antes do fim do noticiário das oito.
Ele está a falar? perguntou Larkin.
Não. O que há sobre a casa dele?
É uma coisa inacreditável. Não pode imaginar o material que ele tem acumulado. Mais de mil livros e cinco ou seis computadores.
Impressora a laser?
Não. Dot matrix, mas encontrei uma coisa que sei que gostaria de ver imediatamente.
Meteu a mão no bolso interior do seu grosso casaco e tirou de lá um saco de plástico cheio de fotografias. Megan sentiu-se empalidecer quando tirou as fotos do saco e começou a vê-las uma a uma. Não havia maneira de se saber onde e quando tinham sido tiradas todas elas eram de rapazinhos em vários estados de nudez.
As mãos dela tremiam ao meter as provas novamente no saco.
Estavam num sobrescrito debaixo do colchão da cama informou Larkin. Mostre-lhas e veja o que ele tem a dizer.
Megan anuiu que sim com a cabeça e voltou-se de novo para a porta.
Ei, irlandesa?
Ela olhou-o por cima do ombro.
Não o deixe escapar.
Olie tinha ainda a cabeça entre as mãos quando Megan entrou na sala em que ele estava a ser interrogado. Mitch olhou-a na expectativa. Sem uma palavra, ela atirou o saco com as fotografias para cima da mesa.
Olie espreitou por entre os dedos e sentiu-se perdido.
Que tem agora a dizer, Mister Sewek? Olie fechou os olhos com força e murmurou:
Quero um advogado.
Steiger tivera um lugar lateral no interrogatório. O mal é que ele queria estar dentro do rinque e não num lugar lateral. Holt e O’Malley tinham-no excluído. O caso não era dele, não lhe dizia respeito. Mas no entanto passara a última semana a patinhar na neve, com os tomates gelados, e agora não o queriam na sala do interrogatório.
O grande detective de Miami», Mitch Holt, ficaria com toda a glória para si mesmo pelo menos com a parte que pudesse tirar à cabra do BCA. A primeira agente feminina no terreno. Grande negócio, não havia dúvida. Ela não passava de um truque publicitário do BCA, para ter direitos iguais a eles. Holt tratava-a como se ela fosse uma verdadeira polícia, mas se calhar andava a comê-la nas horas vagas. Steiger sorriu para si próprio, pensando no escândalo que haveria se isso se soubesse.
Apoiou as botas na parte de dentro da janela, olhou para o relógio e suspirou. Meia-noite e um quarto. O interrogatório fora infrutífero. Swain, ou Sewek, ou fosse qual fosse o nome do patife, nada dizia, com advogado ou sem ele. Kent Carey, o defensor oficioso, recomendara-lhe, desnecessariamente, que não falasse. Por fim, Holt levantara os braços ao tecto e dissera para pararem. Olie ficaria detido por acusações de posse de pornografia infantil, suspeita de rapto e devido ao mandado de Washington por violação da liberdade condicional. Noga foi chamado para conduzir Olie para uma cela. Esta estava vazia, o polícia apagou as luzes e acabou o espectáculo.
Steiger levantou-se e espreguiçou-se, acendendo as luzes. Pensou se algum repórter teria ficado ao frio, à espera de umas palavras de alguém importante.
A porta abriu-se e Mitch entrou, fechando-a silenciosamente a seguir.
Julguei que ele se tivesse rendido disse Steiger. Que as fotografias o tivessem feito falar. Como eram elas? Daqui não as podia ver bem. Eram só garotos nus ou havia cenas de sexo?
Mitch franziu os sobrolhos.
Sim. Seriam pormenores bem saborosos para a Paige Price, não? Quanto é que ela lhe daria por uma informaçãozinha dessas, Russ?
Não sei de que diabo está a falar? Steiger estendeu a mão para o casaco que se encontrava nas costas de uma cadeira.
Leslie Olin Sewek pronunciou cuidadosamente Mitch. Só três pessoas conheciam esse nome. Só um de nós o podia ter dito à Paige Price.
Bem, não fui eu.
É capaz de dizer isso a olhar-me nos olhos?
Está a chamar-me mentiroso? retorquiu o xerife sem esperar pela resposta, e dirigindo-se para a porta.
Mitch agarrou-o por um ombro.
Você era contra o projecto de vigiarmos o Olie, por isso chamou a Paige e deu-lhe a informação. Abanou a cabeça com uma expressão de desprezo. Você ainda é pior do que ela. Jurou defender a lei e não infringi-la. Devia proteger e defender as pessoas da sua zona, e não vendê-las pela melhor oferta.
A cólera invadiu-o cada vez com mais força e deu uma pancada no peito de Steiger com a mão aberta.
Você pôs em causa a investigação. Pôs a vida do Josh em perigo...
Steiger soltou uma gargalhada.
Não acredito que o rapaz esteja vivo e você também não. O garoto está morto e...
O garoto está morto.
Mitch viu imediatamente a loja, os corpos, o sangue, os cartões de basebol na mão inerte do filho. Ouviu as vozes dos paramédicos.
Vamos, Estefan, vamos metê-los nos sacos e levá-los para o carro.
Qual é a pressa? O garoto está morto.
De súbito, os muros estilhaçaram-se. A raiva invadiu-o, cega, louca, ardente. Mitch viu tudo vermelho na sua frente. Avançou para Steiger e com um ombro atingiu-o no meio do peito, fazendo-o recuar, cambaleando como um boneco de trapos. Steiger emitiu um silvo prolongado que lhe saiu dos pulmões quando as suas costas chocaram com a parede.
O nome dele é Kyle! gritou Mitch junto da cara do xerife. O som da sua própria voz ecoou nos seus ouvidos... a fúria, o som, o nome. Kyle... oh, Deus do Céu!
De repente, ficou sem forças e recuou, abanando a cabeça, como se a percepção o tivesse atingido fisicamente e o atordoasse. Steiger olhava-o, à espera, desconfiado.
Josh disse em voz baixa Mitch. O nome dele é Josh e é bom que acredite que ele está vivo, porque nós somos a única esperança que lhe resta.
As notícias sobre a detenção de Olie Swain, e da sua vida secreta, espalharam-se por Deer Lake como o vento gelado de nordeste. Com a ajuda de todas as estações de televisão, das estações de rádio e dos principais jornais do estado, era rara a pessoa que não abanava a cabeça e censurava a situação, enquanto tomava o pequeno-almoço. As histórias davam realce ao passado de Olie. «Um Predador de Crianças», relatando com sensacionalismo a sua fuga de Washington e os anos subsequentes passados na tranquilidade de Deer Lake. Muito foi escrito sobre a sua habilidade de camaleão em ocultar a sua verdadeira personalidade e viver uma vida exteriormente sossegada. Ainda mais foi escrito acerca do horror e do choque dos cidadãos ao descobrirem que não só tinham um monstro a viver entre eles, mas que ainda por cima se encontrava em estreito contacto com os seus filhos.
Mitch e o magistrado deram uma conferência de imprensa na vã tentativa de deterem o fluxo dos boatos. À tarde já se contavam histórias acerca de Olie ter molestado crianças na casa das fornalhas do rinque de patinagem e de se expor nos parques da cidade, além de espreitar para as janelas das Pessoas, à noite. Havia rumores de que tinham sido encontrados artigos horrorosos na casa e na carrinha e boatos de que Josh fora encontrado vivo, meio morto, morto, decapitado, mutilado, canibalizado.
Ao anoitecer, as pessoas estavam agitadas e confusas devido à mistura de verdade e de ficção. A única coisa que os impedia de se dirigirem à prisão para pedirem a cabeça de
Olie Sewek era a aversão inata das pessoas do Minnesota a «darem espectáculo» e o vento gelado que ultrapassava os cinquenta graus abaixo de zero.
O frio brutal quase fizera parar completamente a actividade no estado. O governador ordenara o encerramento de todas as escolas e instituições oficiais. Em Deer Lake. como em muitas outras cidades, todas as reuniões, trabalhos e aulas que podiam ser cancelados, eram-no devido às condições perigosas. Contudo, um grupo de cerca de cem voluntários continuava as buscas. Paige Price e a sua equipa da TV7 faziam um programa especial, ao vivo, sobre o caso.
Nessa noite não havia ali polícia nem qualquer pessoa do departamento do xerife. Mitch Holt proibira que os seus homens falassem com ela e Steiger achara melhor manter-se discreto durante uns dias.
Esta noite falamos com os cidadãos de Deer Lake, a pequena cidade abalada pelo rapto de Josh Kirkwood, um rapazinho de oito anos, e por ter descoberto que vivia um monstro entre os seus habitantes.
Movimentava-se entre uma secretária com um computador e uma mesa cheia de folhas com a fotografia de Josh. As pessoas sentadas a essa mesa no Centro de Voluntários Josh Kirkwood olhavam-na atentamente. Paige vestia umas calças de malha preta, muito justas, e uma camisola de caxemira num tom violeta que realçava os seus olhos demasiado azuis. O seu aspecto era suficientemente elegante para impor respeito e prático bastante para dar a ideia de que ela se vestia como qualquer outra pessoa. O cabelo tinha sido cuidadosamente desgrenhado e preso com laca. A maquilhagem era discreta.
Esta noite ouviremos os voluntários de Deer Lake, as pessoas que têm dado o seu tempo, o seu dinheiro e os seus corações ao esforço de ajudarem a procurar Josh Kirkwood e levar o seu raptor perante a justiça. Falaremos com um psicólogo sobre o impacte que este crime desencadeou na comunidade e acerca da mentalidade dos homens que são predadores de crianças. E falaremos também com o pai do Josh, Paul Kirkwood, a fim de conhecermos a sua reacção relativamente à detenção de Leslie Olin Sewek.
Não se limitou a estragar a nossa investigação disse Megan com desânimo, quando o espectáculo dado por Paige Price fez um intervalo para dar lugar à publicidade de uma lotaria comercial que mostrava um urso a hibernar. Quando ela e os seus assistentes acabarem o programa, não haverá um só jurado imparcial em todo o estado.
Assistiam ao programa numa pequena televisão a cores no escritório de Ellen North, assistente do magistrado da região. Mitch estava sentado de costas para o televisor, recusando-se a olhar para Paige Price no seu momento de glória. Tinham ligado o aparelho a pedido de Ellen. O seu chefe, Rudy Stovich, era o homem que tinha declarado à imprensa que o processo seria conduzido até aos limites máximos da lei, mas quase todo o trabalho dessa tarefa recairia sobre os ombros dela.
Stovich era mais um político do que um acusador público. Mitch considerava-o um idiota no tribunal. Ali, naquela região rural onde havia pouca criminalidade, isso não tinha grande importância. Os bons advogados eram atraídos por Twin Cities, onde havia mais acção, mais dinheiro e mais tribunais. As pessoas de Park County tinham sorte em Ellen North trabalhar ali.
Ellen estava sentada à secretária e comia uma sandes de peru. O seu cabelo louro estava puxado para trás, preso por um gancho de tartaruga. Tinha trinta e cinco anos e viera de Hennepin County ou, como ela às vezes costumava dizer, do «Magnífico Labirinto da Justiça de Mmneapolis», onde tinha fama de ser uma acusadora pública muito severa. Cansada da burocracia, do excesso de trabalho, dos jogos de poder e da futilidade dos seus esforços perante a crescente onda de criminalidade em Twin Cities, procurara a relativa Paz e tranquilidade de Deer Lake.
. Posso apostar que o Sewek irá pedir uma mudança de Jurisdição e que a terá disse ela limpando os dedos a um guardanapo de papel. E isso se tivermos provas suficientes contra ele. Encontraram alguma coisa na carrinha? Objectos pertencentes ao Josh, cabelos, sangue, fibras?
Pulverizaram o interior da carrinha com luminol e encontraram algumas manchas de sangue na carpete que forra a parte traseira informou Megan. Mas neste momento ainda nem sabemos se se trata de sangue humano, muito menos se é do Josh Kirkwood. Só saberemos alguma coisa sobre o que foi encontrado dentro de dois dias. Não descobrimos nada que relacione directamente o Olie com este crime.
«As últimas novidades sobre as fotografias é que já têm mais de cinco anos. Foram tiradas por uma máquina Kodak instantânea e a Kodak teve de deixar de fabricar películas para elas devido a um processo que lhe foi intentado pela Polaroid. Isso significa que o Olie trouxe as fotografias com ele de Washington quando veio para aqui. Até agora ninguém encontrou coisa alguma nos livros dele e ninguém foi capaz de ter acesso aos ficheiros dos seus computadores. Ele tem todo o género de armadilhas nos programas para o impedir.
E ele não diz nada? A testemunha pode identificar a carrinha?
Mitch abanou a cabeça.
Não de uma forma decisiva.
O que não serve para coisa alguma. Bebeu um gole de refrigerante de framboesa. Esperemos que os rapazes do laboratório descubram qualquer coisa depressa. O público pode estar pronto a condená-lo, mas nós não temos provas suficientes nem para o deter. A não ser que a Paige Price seja o juiz, isto não nos leva a parte nenhuma.
À menção do nome de Paige Price, Mitch franziu o sobrolho.
Poderemos acusá-la de obstrução ao cumprimento da lei, com a partida que nos pregou ontem à noite? perguntou.
Ellen fez uma careta de desencorajamento.
Isso foi tentado uma ou duas vezes nos últimos anos, mas neste caso seria quase impossível levar isso avante. Teríamos de provar em absoluto que o Josh fora prejudicado devido à interferência dela. Os media podem embrulhar-se na Primeira Emenda e fazer quase tudo. Se pudesse provar que houve ligação entre o Steiger e a Paige Price, talvez resultasse, mas isso é praticamente impossível, a não ser que algum deles fosse suficientemente estúpido para gravar a conversa ou para a ter em frente de uma testemunha.
Então, nada temos observou Mitch, desalentado. A injustiça irritava-o.
E a Paige Price tem mais uma vez a notícia sensacional da semana.
Paige sentou-se numa cadeira ao lado de uma mulher corpulenta, carrancuda, de lábios sem pintura e com um cabelo castanho acachapado por um gorro de lã.
Mistress Favre, contou-me que suspeitava há muito do homem conhecido por Olie Swain. O que é que sentiu quando foi conhecida a informação sobre o seu cadastro?
Fiquei furiosa disse a mulher em voz muito alta, segurando no microfone e puxando-o para si como se o quisesse engolir. Pode ter a certeza que fiquei. Disse à Polícia que havia algo de estranho nele. O meu filho vinha do hóquei e por mais de uma vez me disse que o Olie era estranho e que andava de um modo estranho à volta dos rapazes. E a Polícia não fez nada. Falei com o próprio Mitch Holt e ele também nada fez. Não me deu ouvidos e veja o que sucedeu agora. Fico doente só de pensar nisso.
Paige agarrou outra vez no microfone e voltou-se para a câmara.
A polícia de Deer Lake nega ter tido conhecimento do passado de Olie Swain como o pedófilo Leslie Olin Sewek. A direcção da Gordie Knutson Memorial Arena nega também qualquer conhecimento do passado de Mister Swain. Não se informaram sobre o cadastro criminal de Mister Swain antes de o contratarem como encarregado da manutenção do rinque onde as crianças de Deer Lake praticam hóquei e patinagem artística.
Levantou-se e afastou-se da mesa, passando por um computador onde um aluno da Universidade Harris se encontrava diante de um terminal colorido onde se via a imagem de Josh Kirkwood. A câmara fixou-se no computador e depois novamente em Paige.
É importante que fique bem claro que Leslie Olin Sewek não foi formalmente acusado do rapto de Josh Kirkwood. Encontra-se detido na prisão comunal de Deer Lake devido a um mandado emitido por violação da liberdade condicional no estado de Washington. Até esta tarde, as únicas provas reunidas que implicavam Olin Sewek em qualquer crime foram fotografias sexualmente explícitas, envolvendo rapazinhos. Fotos que ele alegadamente trouxe consigo quando veio para o Minnesota depois de sair da cadeia em Washington.
«As autoridades de Columbia County, em Washington, estão familiarizadas com Leslie Sewek. Como é o caso da grande maioria de molestadores de crianças, o cadastro de Leslie Sewek é longo, tendo começado quando ele próprio era pouco mais do que um rapazinho. Temos aqui connosco esta noite, para falar da mentalidade dos predadores de crianças, o doutor Garrett Wright, do Departamento de Psicologia da Universidade Harrís.
Sentou-se na cadeira vaga ao lado de Wright e olhou-o com ar grave e interessado.
Doutor Writght, o que nos pode dizer a respeito das normas de comportamento de pessoas como Leslie Sewek?
Garrett Wright não parecia convencido de que fosse uma boa ideia entrevistá-lo.
Em primeiro lugar, Miss Price, quero deixar bem claro que o comportamento de criminosos não é a minha área de estudo. Todavia, estudo desvios de comportamento e, se puder lançar alguma luz sobre o assunto e de certo modo ajudar as pessoas a lidar com a situação, fá-lo-ei.
Reside em Deer Lake, não é verdade, doutor?
Sim. Com efeito, a Hannah e o Paul Kirkwood são meus vizinhos. Como todas as pessoas da cidade, a minha mulher e eu procuramos ajudar como podemos. O apoio da comunidade e o envolvimento são muito importantes para todos.
Paige ouvia-o distraidamente, ansiosa por chegar a uma questão mais suculenta que fizesse com que os telespectadores ficassem com os olhos colados ao ecrã. Wright podia ser visualmente interessante, sendo quase bonito e com um aspecto doutoral e elegante, mas falar sobre o envolvimento comunitário não era o que ela tinha em mente quando o convencera quase o pressionara a ser entrevistado aliQuase podia imaginar o público a bocejar.
Pior, podia imaginar o pessoal da rede a bocejar. Quando fora conhecido o antigo cadastro de Olin Sewek, todas as estações e jornais haviam feito o impossível para enviar alguém a Deer Lake. O caso de Josh Kirkwood parecia feito para um noticiário televisivo. E se Paige o empolasse, poderia dar um salto para voos mais altos.
Obviamente prosseguiu Garrett Wright, isso ajuda as vítimas a enfrentar a situação, mas também nos ajuda a nós a tomarmos medidas mais activas contra aquilo que é quase uma ameaça alheia à nossa comunidade: o crime.
E a respeito desse crime interrompeu suavemente Paige. Há uma história bastante consistente por detrás dos homens que se tornam molestadores de crianças como o Leslie Sewek, não é verdade, doutor?
Sim, tendem a ser. Em primeiro lugar, os pedófilos vêm geralmente de famílias onde eles próprios sofreram abusos sexuais e têm fortes carências de afecto pessoal.
Está a dizer que devemos ter pena de pessoas como Leslie Sewek? perguntou Paige com uma indignação perfeita. Sorriu interiormente quando a multidão atrás dela murmurou, encolerizada.
Garrett Wright ergueu a mão para contrariar essa afirmação.
Estou meramente a verificar factos, Miss Price. Falo dos antecedentes vulgares entre os molestadores de crianças; não se trata de uma desculpa para violar as leis da sociedade. Nem estou a dizer que sejam estes os antecedentes do Leslie Sewek. Não sei nada a respeito dele. E como você disse, não se sabe se o Leslie Sewek violou alguma lei aqui. Não se pode dizer com certeza que a pessoa que raptou o Josh Kirkwood seja um pedófilo. Podemos estar a lidar com uma mente muito diferente e, com franqueza, alguém muito mais perigoso do que um vulgar pedófilo.
A câmara fixou então a sua expressão profundamente Preocupada.
O sorriso interior de Paige tornou-se mais largo.
Tal como, doutor Wright?
A desaprovação de Garrett Wright foi uma coisa quase tangível. Olhou-a demorada e friamente.
Está a praticar um jogo perigoso, Miss Price. Não vim aqui para jogar qualquer espécie de jogo à laia do Psico.
Esse tipo de conjecturas da minha parte seria inadequado, para não dizer macabro...
Não quis sugerir tal coisa interrompeu Paige, enquanto o seu sorriso interior se tornava amarelo. Diabo!, Talvez nos possa explicar melhor o que considera um pedófilo vulgar.
Wright descontraiu-se ligeiramente.
Bem, os pedófílos de uma maneira geral relacionam-se melhor com as crianças do que com os adultos e na maior parte dos casos procuram mais controlar a criança do que fazer-lhe mal continuou, antes que Paige pudesse fazer-lhe outra pergunta incendiária. Podem realmente acreditar que gostam de crianças e muitas vezes procuram emprego que os ponha em contacto com a proximidade de crianças.
Um facto que nos leva novamente para Deer Lake e para o caso de Leslie Olin Sewek disse Paige, abandonando Garrett Wright para se dedicar ao seu convidado especial dessa noite. Com a sombra do raptor de Josh Kirkwood pairando sobre esta cidade, a descoberta de um pedófilo condenado no próprio rinque de onde o Josh desapareceu assustou e indignou os cidadãos desta pequena cidade. Certamente que ninguém em Deer Lake tem mais razões para estar zangado ao ter conhecimento dessa revelação. O pai de Josh Kirkwood! Paul Kirkwood!
Paul estava sentado numa das cadeiras dos directores, na primeira fila da sala. O cabelo encontrava-se perfeitamente penteado, o nó da gravata de seda perfeitamente centrado no meio da camisola de lã azul que trazia por cima da camisa branca. Os olhos encovados mostravam-se naturalmente rodeados de olheiras escuras que a câmara aumentava ainda, intensificando a sua expressão sombria, zangada. Um grande rosto para a televisão.
Paige deslizou para a outra cadeira.
Paul disse com voz suave, estendendo uma mão para lhe tocar num braço. Os nossos corações estão inteiramente consigo e com a sua mulher, a doutora Hannah Garrison. Compreendo que a Hannah se sinta demasiado angustiada para poder estar connosco esta noite.
Paul franziu o sobrolho. Hannah recusara-se a ir ali, apesar das suas repetidas queixas de não poder ajudar nas buscas. Achava a ideia daquele programa repulsiva, exploradora e mercenária, de modo algum útil para a descoberta de Josh.
Os jornais de domingo estavam cheios de fotografias dela a desmaiar no centro de voluntários e a ser levada dali pelo padre Tom McCoy. Descreviam-na como uma heroína, valente e corajosa, tentando mostrar-se forte perante uma incrível adversidade. A corajosa, bondosa Dr.a Garrison que ajudara tanta gente. Pouco mencionavam o facto de a situação que vivia se dever a ela própria, que a carreira dela destruíra o casamento, atirando o marido para os braços de outra mulher. Em vez disso, diziam que Josh fora raptado enquanto ela lutava para salvar a vida de uma senhora idosa, fazendo dela objecto de admiração e de pena.
Está em casa, com a nossa filha declarou apenas. Paige olhou directamente para a câmara.
Doutora Garrison, as nossas orações estão consigo.
A televisão da sala estava ligada. Hannah ouvia vozes abafadas, mudanças de tom, de volume, mas não conseguia perceber o que diziam. Não queria ouvir. Detestava aquela emissão da TV7, detestava que os seus vizinhos estivessem a ser entrevistados, que pessoas que nem sequer conhecia fossem levadas a dizer o que sentiam acerca do acto terrível que estava a desfazer a sua vida. Detestava que Paul tivesse concordado em tomar parte naquilo. O facto de ele ignorar com tanta indiferença os sentimentos dela era mais uma prova do abismo que se entrepunha entre eles.
Em tempos, ele teria achado o programa tão intrusivo e mercenário como ela. Nessa noite preocupara-se com o que havia de vestir e passara uma hora na casa de banho a preparar-se. A ideia de que já não o conhecia passava-lhe pela cabeça a intervalos regulares.
Estava de pé no meio do quarto de Josh, porque se sentia demasiado cansada para se sentar. Olie Swain fora detido, mas não acusado. Não fora feita nenhuma informação oficial a respeito de qualquer pista sobre o destino de Josh, ou sobre uma confissão feita por Olie. Nada. Silêncio. Sentia-se parada à beira de um alto precipício, com todos os músculos, todas as fibras do seu ser tensas, enquanto esperava cair para um lado ou para o outro. A pressão aumentava constantemente e ela sabia que acabaria por explodir.
Andava de um lado para o outro no quarto com os braços cruzados sobre o peito. Apesar do grosso camisolão e da camisola de gola alta que tinha por baixo, sentia-se magra Estava a perder peso e, como médica, sabia que isso não era bom. O seu lado prático, profissional, inteligente, dizia-lhe que comesse, que dormisse, que fizesse algum exercício mas esse lado parecia desligado do resto. A emoção reinava. errática, irracional.
Tentou pensar como costumava ser como ela costumava ser quando era a calma e racional directora das urgências. Calma debaixo de fogo. Uma líder. Uma pessoa para quem todos olhavam em alturas de crise. Tentou recordar-se da tarde antes de Josh ser raptado. Das pessoas que tratara. Das pessoas a quem dera conforto e explicações. A precisão da equipa que ela chefiara para tentar salvar a vida de Ida Bergen.
Passara uma semana. Parecia-lhe uma vida inteira.
Gritinhos de satisfação partiram da sala de estar. Lili conquistara o agente de serviço e ele brincava com ela. Hannah fechou a porta do quarto. Ali, no quarto de Josh. não queria ouvir nada a não ser o silêncio que esperava pela voz dele. Aspirou o aroma dos seus lápis e sentiu como se um deles estivesse a trespassar-lhe o coração. Sobre a pequena secretária encontrava-se o álbum que ela para ali levara logo nos primeiros dias, como se o facto de ter ali as fotografias de Josh ajudasse a fazê-lo aparecer. Folheou o álbum e olhou para as fotos uma a uma. Cada uma delas trazia uma recordação.
Os três na praia, na Carolina, no Verão em que tinham ido visitar os pais dela. No ano anterior ao nascimento de Lily, Josh às cavalitas nos ombros do pai, com os braços em volta da cabeça de Paul. O boné de basebol de Paul de lado sobre a cabeça de Josh. Josh junto de um castelo de areia, com uma camisola branca e calções, com os braços abertos e um sorriso que mostrava a falta dos dentes de leite que já tinham caído. O cabelo era um emaranhado de caracóis de um castanho-dourado agitados pelo mesmo vento que agitava as ervas nas dunas. O mar era um lençol azul enfeitado com rendas brancas.
Os três de pé num molhe, rindo. Ela tinha um vestido de tecido fino, branco e azul. A saia comprida agitava-se em redor das suas pernas como a capa de um toureiro. Josh estava em pé sobre um pilar. Paul abraçava-o com um braço. O outro braço estava em volta dos ombros dela, unindo os três. Uma família. Tão unida, tão feliz, tão longe dali. Tão distante daquilo que agora eram.
A última fotografia do álbum era dela e de Josh num barco à vela ao pôr do Sol. Dormia ao colo dela e ela apertava-o contra o peito. Parecia ter os olhos fechados ao inclinar-se sobre ele. O vento agitava-lhe os cabelos em volta do pescoço. Embalava o filho enquanto o vento empurrava as velas e ondulava o mar. Segura e amada.
Podia fechar os olhos e sentir o peso do filho nos seus braços. O seu corpinho quente contra o dela. O cabelo dele cheirava a água salgada. As pestanas longas e espessas faziam sombra sobre as faces. E podia sentir o seu amor por ele encher-lhe o peito. O seu filho. Um pequeno ser nascido e criado com amor. E podia sentir, como nesse momento, os sonhos que tivera para ele. Sonhos perfeitos. Sonhos maravilhosos.
Sonhos que tinham desaparecido. Josh fora-lhe tirado. Tinha os braços vazios. Restavam-lhe apenas recordações e fotografias.
Alguém bateu ao de leve à porta, sobressaltando-a. Hannah voltou a cabeça quando mais uma voluntária do grupo enfiou a cabeça pela abertura. Outra estranha, doutra cidade de quem ela nunca ouvira falar.
Trouxe-lhe um pouco de chocolate quente disse a mulher com voz suave, utilizando essa desculpa para entrar no quarto.
Hannah dava-lhe cerca de quarenta anos. Era de estatura mediana, tinha ancas largas e seios pequenos. O cabelo era um emaranhado de cabelos castanhos que lhe caíam para a testa e sobre os óculos. Chamava-se Terry qualquer coisa. Os nomes entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe pelo outro. Não fazia nenhum esforço para se recordar deles. Vinham para oferecer o seu apoio, a sua simpatia ou empatia e amizade, mas Hannah não queria ter nada a ver com elas. Era um clube a que ela não desejava pertencer.
O seu marido está na televisão disse Terry Qualquer Coisa ao colocar a chávena com o cacau sobre a mesa-de-cabeceira. Pensei que quisesse saber.
Hannah abanou a cabeça. Terry não fez qualquer comentário. Ficou ao lado da porta, encostada à parede, com as mãos metidas nos bolsos das calças de bombazina. À espera. Hannah disse a si própria que não queria falar com aquela mulher, mas isso não pôde impedir a necessidade que ela sentiu de preencher o silêncio.
Eles convidaram-me para lá ir disse, olhando pela janela para a escuridão da noite. Não quero ter nada a ver com aquilo. Não quero expor os meus sentimentos perante uma audiência.
A mulher ficou calada. Não disse coisa alguma, como se soubesse que Hannah tinha mais coisas a dizer. E as palavras começaram a sair-lhe da boca, uma a uma, como um segredo culpado.
As pessoas esperavam que eu fosse. Sei que esperavam. Esperam que eu vá às reuniões, às vigílias de oração e à televisão. Mas eu não quero ir, não quero mostrar-me fraca na frente deles, e sei que não posso ser forte. Não posso ser o que querem que seja. Agora não.
E a sensação de culpa que isso lhe dava aumentava ainda mais o peso que a esmagava.
Não faz mal proferiu Terry com voz neutra. Não se preocupe com o que os outros querem de si. Não tem de ir à televisão se não quer ir. Cada um de nós faz o que tem a fazer para atravessar o pesadelo. Talvez o seu marido se sinta bem indo à televisão.
Não sei. Novamente o silêncio.
Não estamos a comunicar muito bem hoje em dia.
É difícil. Você faz o melhor que pode. Agarre-se aos pedaços do seu relacionamento para tentar juntá-los outra vez mais tarde. Agora o que é importante é atravessar esta provação.
O olhar de Hannah pousou no álbum de fotografias em cima da secretária, nas imagens sorridentes do filho. Faria tudo, daria tudo, para o ter de novo junto de si, em segurança. Pensou em Olie Swain na cela da prisão, pensou nos segredos que ele teria para revelar e a insuportável sensação de expectativa invadiu-a outra vez. O que saberia ele? O que diria? E quando revelasse os seus segredos estaria tudo acabado?
O pior é não saber murmurou ela. Comprimiu os olhos com as mãos para conter as lágrimas, mas elas correram da mesma maneira. Meu Deus, não aguento não saber! Não aguento!
A soluçar, atirou-se contra a parede e bateu com os punhos, uma e outra vez, sem sentir as dores. Depois, quando a adrenalina baixou, ficou imóvel contra o mural que representava rapazes a jogar basebol e chorou. Não se mexeu quando sentiu uma mão pousar no seu ombro.
Eu sei disse Terry num murmúrio. O meu filho foi raptado quando tinha doze anos, ao voltar para casa, vindo do cinema. Vivíamos então em Idaho, numa cidade muito semelhante a esta, um sítio calmo, seguro. Não tão seguro como pensávamos, afinal. Eu achava que o facto de não saber me mataria. E confesso que houve alturas em que desejei que isso tivesse sucedido murmurou.
Afastou carinhosamente Hannah da parede e conduziu-a para o beliche inferior, onde se sentaram lado a lado. Hannah limpou a cara à manga da camisola e esforçou-se por se acalmar, embaraçada por ter perdido o controlo em frente de uma desconhecida. Mas Terry agia como se se tratasse de uma cena normal, como se não tivesse sequer notado a explosão de choro dela.
Teria agora dezasseis anos continuou ela. Estaria a aprender a conduzir, sairia com namoradas, jogaria na equipa de basquetebol da escola. Mas o homem que no-lo tirou levou-o para sempre. Encontraram o corpo dele num terreno deserto, atirado para ali como se fosse lixo. A voz dela ficou tensa e calou-se durante uns momentos, esperando que a dor diminuísse. Depois de o terem encontrado, senti... alívio. Pelo menos tinha acabado. Mas quando não sabíamos pelo menos tínhamos algumas esperanças de que ele estivesse vivo e que pudéssemos voltar a tê-lo connosco. Voltou-se para Hannah com os olhos brilhantes com lágrimas que não correriam. Agarre-se a essa esperança com as duas mãos, Hannah. É melhor do que nada.
«Ela passou por isto», pensou Hannah. «Sabe o que eu sinto, o que eu penso, o que eu receio.» Existia um elo entre as duas. Não importava que ela não o quisesse: existia. Partilhavam um pesadelo comum e aquela mulher oferecia-lhe uma sabedoria que obtivera através da sua provação. Não importava que Hannah não quisesse pertencer àquele clube; era já membro dele.
Estendeu a mão sobre a colcha, agarrou a mão de Teri, e apertou-a com força.
... e sinto-me indignado por esse animal doente, pervertido, não só ter podido andar em liberdade, mas trabalhar no mesmo edifício em que se encontrava o meu filho, e os filhos e filhas de todos os habitantes desta comunidade.
Aplausos das pessoas que se encontravam no centro de voluntários levaram Paul a fazer uma pausa. Olhou directamente para as câmaras, com a cabeça erguida, o queixo para a frente, com um brilho fanático nos olhos. O olhar dele pareceu trespassar o ecrã da televisão e atravessar as grades da cela onde Olie se encontrava, até ao peito dele. Olie conhecia aquele olhar e aquele tom de voz. Metes-me nojo! Não passas de um monstrozinho! Uma semente do Diabo, é o que tu és! Vou dar-te uns açoites para ver se entra algum bem em ti! Depois outra voz, estridente, juntava-se à primeira, em harmonia: Eu não te disse, Leslie? Não prestas para nada! E não chores, se não, damos-te razão para chorar!
Olie encolheu-se no seu catre como um animal assustado, enquanto continuava a ouvir as vozes. Estava fechado na sua cela, na prisão, um lugar luxuoso em relação às outras prisões. Estava quase vazia. As instalações eram novas, as paredes brancas e o chão de cimento cinzento estava polido. Só um vago odor de urina pairava no ar apesar do forte aroma a pinheiro do detergente de limpeza. Não era permitido fumar.
Na cela contígua, encontrava-se o orgulhoso proprietário da televisão portátil. Era um homem magro, de olhos muito juntos, chamado Boog Newton, que apanhara três meses de prisão devido ao hábito de beber até não se poder aguentar nas pernas e se pôr ao volante do seu pequeno carro. Na sua última aventura, entrara pela montra de vidro da Loon’s Call Book & Gifts Shop. Sendo o único ocupante semipermanente do local, eram-lhe concedidas algumas facilidades.
Boog estava sentado no seu catre com os braços apoiados nos joelhos, com o dedo no nariz, ouvindo atentamente apaixonadas diatribes de Paul Kirkwood contra o sistema as injustiças contra as pessoas decentes.
estou farto de ligar a televisão para o noticiário da noite e ter de ouvir que uma criança foi raptada, violada ou assassinada. Temos de fazer alguma coisa! Temos de acabar com esta loucura!
A emissão foi interrompida para publicidade no meio de uma vaga de aplausos. Boog levantou-se e dirigiu-se à parede de ferro que separava as duas celas. A cara dele estava cheia de cicatrizes do acne e a boca torcida num perpétuo esgar de escárnio.
Estão a falar de ti, monte de merda! exclamou, encostando-se às grades.
Olie levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do lado mais afastado da cela, de cabeça baixa, tentando não ouvir o homem. Nunca gostara de homens. Os homens sempre tinham querido fazer-lhe mal.
Sabes o que eu fazia, se fosse juiz? Enfiava-te um saco na cabeça, dava ao pai desse miúdo uma barra de aço e metia-os na mesma sala. E ele que te batesse até sair a maldade que tens no corpo, que te esmagasse a cabeça, que te fizesse um cu novo com essa barra.
Olie continuava a andar, cada vez mais depressa, com a respiração ofegante.
Sim, sabes o que eu acho que se devia fazer a monstros como tu? Acho que te deviam cortar a pila e enfiar-ta pelo cu acima. Não. Acho que te deviam meter numa cela com um da tua laia que pesasse uns cem quilos e deixá-lo meter-to pelo rabo acima, noite após noite, durante o resto da tua vida. Verias se havias de gostar.
Olie já sabia. Sabia o que faziam aos molestadores de crianças na prisão. Recordava todos os momentos de dor excruciante, cada momento de pavor. Sabia o que era ser torturado. Suava por todos os seus poros, pois tinha a certeza de que tudo sucederia de novo. Quer ficasse ali, quer o mandassem para Washington, voltaria a suceder.
És doente, sabes? Sabes que é uma doença acariciar rapazinhos e merdas dessas? O que é que fizeste a esse Josh Kirkwood? Mataste-o? Deviam matar-te a ti...
Não fui eu! gritou Olie. O seu olho bom quase lhe saltava da órbita. Atirou-se com toda a força contra a grade e apertou os dedos de Boog, gritando: Não fui eu! Não fui eu!
Boog recuou, tropeçando, agitando os dedos doridos
Eh! És um doido! Um louco varrido!
Ouviu-se um grito ao fundo do corredor e um guarda apareceu a correr.
Olie deixou-se cair no chão como uma marioneta a que tivessem cortado os cordéis, soluçando.
Não fui eu!
A avó contou que tu meteste o homem mau na prisão e que agora se pode respirar melhor disse Jessie, esforçando-se por atar uma comprida fita vermelha à volta do pescoço de Scotch.
O velho cão suportava o incómodo com bom feitio, rosnando um pouco e erguendo os olhos para Mitch, que estava sentado a estudar as fotocópias do caderno de apontamentos de Josh, procurando alguma menção a Olie, para além da primeira página. Os rapazes fazem troça do Olie, mas isso é feio. Ele não tem culpa do seu aspecto. O chão da sala estava cheio de Barbies e dos seus objectos. A televisão colocada no centro da estante de carvalho escurecido dava um noticiário. Jane Pauley ia enumerando os títulos e viam-se imagens do último terramoto de L.A. e logo a seguir uma figura ligada a um escândalo qualquer.
Jessie olhou para o pai do sítio onde se encontrava, sentada no chão e quis saber:
Papá, porque é que a avó disse isso?
As primeiras respostas que vieram à cabeça de Mitch não eram muito lisonjeiras para Joy Strauss. Mitch mordeu a língua e contou até dez.
Ela quis dizer que se sente mais segura agora respondeu, voltando a página onde uma nave espacial cuidadosamente desenhada se encontrava numa folha, junto das outras que se encontravam sobre a mesa.
E significava que Joy arranjava outra agulha com que o picar.
Não posso acreditar que alguém como ele possa caminhar pelas ruas de Deer Lake.
Ele não andava propriamente a usar um letreiro, Joy. Não trazia um P grande estampado na testa para sabermos que era pedófilo. Como é que eu devia saber?
Bem, a Alice Marshton diz que a Polícia tem redes que seguem o rasto de pessoas dessas. A Alice lê muitos livros policiais e diz...
Isto é vida real, Joy. Não é uma novela da Agatha Christie.
Não precisa de ser indelicado. Estava apenas a dizer o que a Alice me contou.
Ela afirmava o que a maior parte das pessoas da cidade dizia que o culpavam do desaparecimento de Josh Kirkwood. Mitch compreendia que sentiam necessidade de culpar alguém. Apontar o dedo a uma pessoa viva era menos assustador do que acreditarem que não tinham defesa contra o que se passara. Mas isso não tornava a situação menos difícil. Natalie recebera telefonemas de pessoas zangadas durante todo o dia e o gravador do atendedor de chamadas da casa de Mitch estava cheio de mensagens de cidadãos irados.
Mitch continuou a deixar que o atendedor acarretasse com a fúria dos outros. Nessa noite não lhe apetecia brincar ao rapaz do chicote. Queria passar um bocado tranquilo com a filha, embora tivesse de dividir a sua atenção entre Jessie e a pilha de papéis que levara para casa. Joy dera estalidos com a língua ao saber que ele queria levar Jessie para casa numa noite tão fria, insistindo de que ela iria apanhar um vírus. Mitch lembrou-lhe que era só atravessar a rua e que estava demasiado frio para os germes, reprimindo a vontade de lhe explicar novamente como os vírus se espalhavam. Visto ele nunca ter trabalhado na cozinha do hospital, como a sua amiga lone, Joy não acreditava nos seus conhecimentos médicos.
Conseguindo por fim pôr-lhe o laço, Jessie resolveu escovar o dorso de Scotch. O labrador soltou um latido de satisfação e deitou-se de lado, oferecendo a barriga ao tratamento.
A avó diz que só Deus sabe a espécie de coisas más que esse homem fez aos rapazinhos. Mas, se só Deus sabe, como é que a avó sabe?
Não sabe. Ela só julga que sabe. Ninguém provou que esse homem tenha feito qualquer coisa.
Mitch sentia-se admirado e vagamente envergonhado por estar a defender Olie, apenas para se pôr contra a sogra.
Voltou mais uma página, essa cheia com os pensamentos de Josh a respeito de se tornar co-capitão da sua equipa de hóquei.
É muito fixe. Estou muito orgulhoso. Mas a minha mãe diz que não devo gabar-me. Ninguém gosta de uma pessoa que se gaba.
Na página seguinte, Josh exprimia o seu desagrado por ter de ir à catequese, com desenhos que representavam caras zangadas e polegares para baixo. Deus aparecia com uma barba comprida, uma auréola e um rosto carrancudo de demónio.
Então, porque é que esse homem está preso?
Jessie... murmurou Mitch tentando não mostrar enfado. Depois inclinou-se e acariciou a cabeça da filha. Jessie, o papá está muito cansado deste caso. Não poderemos falar de outra coisa?
No entanto, sentiu imediatamente remorsos. Sempre fizera questão em se mostrar o mais sincero possível com a filha. Achava que fugir às perguntas de uma criança causava mais problemas do que responder honestamente, mas nessa noite não tinha energia para dar essas respostas. Agora que Olie estava preso, o stress e as longas horas de trabalho estavam a vingar-se sobre o seu corpo. E a preocupação com o destino de Josh intensificara-se com a descoberta de manchas de sangue na carrinha. Tinham de esperar pelos resultados do laboratório para saber mais. Infelizmente a ideia de Jessie acerca de mudar de assunto não era exactamente a que ele tinha em mente.
Uma página com os desenhos de Josh chamou-lhe a atenção, e ela abandonou Scotch para se debruçar sobre a mesa a fim de os ver melhor.
Quem fez estes desenhos?
São desenhos feitos pelo Josh.
Posso pintá-los?
Não, querida. Isto são provas para apresentar em tribunal. Porque não pintas um desenho de um dos teus livros para colorir?
Jessie ignorou a sugestão. Pegou numa das folhas que Mitch já pusera de lado e observou-a.
Já encontraste o Josh?
Mitch suspirou e passou a mão pela cabeça levantando o cabelo.
Ainda não, querida.
Ele deve estar triste disse lentamente Jessie, colocando a folha sobre a mesa com todo o cuidado. O desenho mostrava um rapazinho com sardas e um grande cão cabeludo. Eu e o Gizmo.
Chega aqui, queridinha murmurou Mitch, abrindo os braços num convite. Jessie deu a volta à mesa e subiu-lhe para o colo. Mitch abraçou-a e apertou-a contra si. Ainda estás preocupada a pensar que alguém te possa levar?
Um bocadinho murmurou Jessie contra o peito do pai.
Mitch queria dizer-lhe que não se preocupasse, que ele não deixaria que nada lhe sucedesse e que nada aconteceria com ela se seguisse as regras. Mas não podia fazer tais promessas e detestava a sensação de impotência que a realidade lhe dava. Queria que o mundo fosse um sítio onde as meninas pudessem brincar sem se preocuparem com coisa alguma a não ser com as suas bonecas e com os laços que punham no pescoço dos cães, mas não era esse o caso. Nem sequer em Deer Lake.
Embalou a filha nos braços.
Sabes, querida, o teu trabalho não é preocupares-te. Esse é o meu trabalho.
Ela inclinou a cabeça para o olhar.
Então e a avó? perguntou. Ela preocupa-se com tudo.
Bem, a avó está por conta dela. Mas, no que diz respeito a ti e a mim, eu é que devo ter todas as preocupações. Está bem?
Está bem concordou ela, tentando sorrir. Mitch estendeu uma mão para a filha, com a palma para cima.
Pronto, amarrotas a tua preocupação como se fosse um pedaço de papel e dás-ma.
Jessie soltou uma gargalhada e fingiu fazer uma bola com as suas preocupações. Colocou-a na palma da mão de Mitch. Ele fechou-a e depois levou-a ao bolso da camisa, fingindo guardar lá o que ela lhe dera. Scotch observava-os com a cabeça de lado e as orelhas espetadas.
A campainha tocou e o cão levantou-se, com um latido forte e a cauda a abanar.
Deve ser a Megan disse Mitch, levantando-se com Jessie nos braços.
Jessie fez beicinho.
Porque é que ela vem? Disseste que eu podia ficar a pé até mais tarde porque amanhã não há escola e que nos íamos divertir.
E já nos divertimos, não é verdade? perguntou Mitch. Mas tu não podes estar acordada até tão tarde como eu. Por isso quem me faria companhia quando tu fosses para a cama?
O Scotch.
Mitch fez-lhe cócegas e toda ela se agitou, soltando gritinhos quando ele a pôs sobre os ombros.
Mitch abriu a porta com um sorriso e recuou.
Bem-vinda à casa do macaco.
A hesitação de Megan foi passageira, pois ali à porta o frio era terrível e sentia-se gelar. Entrou no vestíbulo da casa de Mitch, fechando a porta com cuidado, e sentiu-se imediatamente uma intrusa. Mitch corria em volta da sala com a filha às cavalitas sobre os ombros, seguido por um grande cão amarelo com uma Barbie na boca. Ninguém parecia notar a presença dela ali, embrulhada em lãs e toda arrepiada com uma embalagem de gelado de chocolate nas mãos enluvadas. Pensou se dariam por isso, caso ela recuasse e saísse.
Contudo, antes de ela poder dar um passo, Mitch aproximou-se e puxou-lhe o cachecol.
Entre e dispa o casaco, OMalley proferiu com voz suave.
Megan começou a tirar o casaco e pendurou o cachecol no cabide em forma de árvore. Depois olhou para a menina empoleirada nos ombros do pai.
Olá, Jessie. Como estás?
Amanhã não tenho escola, porque está demasiado frio para macacos de cobre, como diz o meu avô respondeu Jessie.
Realmente isto é muito frio disse Megan com um sorriso divertido.
Por isso posso ficar a pé mais tempo e divertir-me afirmou Jessie num tom cauteloso, como se as suas palavras fossem difíceis para Megan compreender.
Mitch ergueu os olhos ao tecto.
Sim, podes ficar a pé o tempo suficiente para comeres um pouco do gelado que a Megan nos trouxe. Não achas simpático da parte dela?
Eu gosto mais de bolinhos.
Jessie... Mitch olhou-a com ar grave enquanto a punha no chão.
O telefone tocou no outro extremo da sala, e o atendedor respondeu.
Mitch? Mitch, está a ouvir-me? A voz de mulher era quase frenética. Sou a Joy. Vejo as suas luzes acesas. Afastou-se do telefone e falou para outro sítio. Jurgen! Ele não está a responder! Talvez devesses lá ir. Podem estar envenenados com monóxido de carbono.
Com um sorriso cansado, Mitch suspirou.
É melhor eu atender. Depois, voltou-se para a filha: Jessie, leva a Megan à cozinha e dá-lhe taças para pôr o gelado.
Resignando-se à sua sorte com um ar muito compenetrado, Jessie dirigiu-se para a cozinha. Megan seguiu-a obedientemente. O cão adiantou-se às duas, sempre com a boneca na boca. A Barbie, sorridente, tinha um braço erguido e parecia acenar.
Este é o meu cão, o Scotch. Fui eu que lhe pus este laço. Sei abotoar os sapatos, laços e outras coisas. A Kimberly Johnson, da minha aula, não é capaz de abotoar nada. Tem de usar sapatos com velcro e além disso mete o dedo no nariz.
Puff.
E depois come acrescentou Jessie tirando as colheres para o gelado de uma gaveta cheia de espátulas e colheres de plástico. E além disso é má. Mordeu na minha amiga Ashley. Por isso ficou de castigo durante o intervalo e não comeu os doces do aniversário do Kevin Neilsen. Mas disse que não se importava porque não eram coisas boas, mas sim comida de gato. Deitou um olhar a Megan. Mas não era verdade.
Parece-me uma menina difícil.
Jessie encolheu os ombros, desinteressando-se do assunto. Arrastou uma cadeira para junto do armário e trepou para tirar taças de uma das prateleiras. Megan dedicou-se à tarefa de abrir a embalagem e distribuir o gelado pelas taças.
Eu posso comer duas conchas disse Jessie, observando a distribuição. O papá pode comer umas dez e o Scotch não pode comer nenhuma, porque está muito gordo.
O olhar de Megan percorreu a cozinha, decorada com as obras-primas de Jessie, espalhadas pelas paredes e pela porta do frigorífico. Tocavam um canto vulnerável do seu coração: a sua ingenuidade, o seu entusiasmo e atenção aos pequenos detalhes. E o facto de Mitch os exibir tão orgulhosamente. Quase podia imaginá-lo, ele, o polícia duro, atrapalhado com a fíta-cola, praguejando entre dentes ao tentar pela terceira vez pôr uma obra de arte direita na parede. Não podia deixar de comparar aquela cozinha com a de Butler Street em St. Paul, a cheirar a gordura, a cigarros e a recordações amargas. Uma caixa de cartão debaixo da cama dela tinha sido a sua arca dos tesouros para guardar as coisas de que ela e mais ninguém se orgulhava.
És uma verdadeira artista observou Megan. Foste tu que fizeste estes quadros para o teu pai pôr na parede?
Jessie dirigiu-se para um que estava colocado à altura dos seus olhos.
Este é o meu papá, esta sou eu e este é o Scotch explicou. Mitch estava representado num arranjo de formas geométricas, como se fosse feito de blocos de cimento. No peito tinha um distintivo do tamanho de um prato. Scotch tinha o tamanho de um pónei, com uns dentes que faziam lembrar uma armadilha para ursos. Saía-lhe da boca uma comprida língua cor-de-rosa.
Eu também costumava ter uma mamã disse Jessie quando voltaram para junto da mesa, mas foi para o céu.
A declaração fora feita sem emoção, mas comoveu Megan. Sentou-se numa cadeira e inclinou-se para a frente, com o olhar fixo no rosto da bonita criança de olhos negros, filha de Mitch, que vestia uma macia camisola vermelha.
Sei como isso custa murmurou. Também perdi a minha mãe quando era pequena.
Os olhos de Jessie alargaram-se um pouco com a surpresa daquela inesperada afinidade.
Ela foi para o céu?
Não murmurou Megan. Só se foi embora.
Por tu seres má?
Eu costumava pensar isso às vezes confessou Megan, mas creio que ela já não gostava do meu pai e não queria ser uma mamã. Por isso, foi-se embora.
O silêncio pairou durante longos momentos. Megan ouvia o zumbido do frigorífico, enquanto a filha de Mitch a olhava com ar sombrio.
Isso parece um dibórcio disse Jessie. O papá e a mamã da minha amiga Janet tiveram um dibórcio, mas ele ainda quer ser o papá dela, aos sábados. É difícil ser pequena.
Às vezes concordou Megan, espantada consigo mesma. Nunca falava do seu passado, com ninguém. No entanto estava a ter aquela conversa com uma criança de cinco anos e parecia-lhe... correcto tê-la, o que a assustava terrivelmente. O que estava ela a fazer? O que estava a pensar?
Tens trabalhado de mais, O’Malley.
Mitch ficou parado à porta da casa de jantar, com os pés pregados ao chão. Não fora sua intenção escutar o que elas estavam a dizer, quisera apenas espreitar para ver como Megan e Jessie estavam a entender-se. Jessie era muito protectora em relação a ele e ciosa do tempo que passavam juntos. Queria ver se ela se comportava bem sem ele estar presente. De modo algum esperara ouvir uma confissão de Megan acerca do seu passado, que era um segredo tão bem guardado.
Recordava-se do modo como ela lhe falara da mãe. De uma maneira agressiva, desafiadora. Ressentida. Arvorando o galão que tinha no ombro como se fosse um escudo. A mulher que fazia confidências à filha dele, sentada em frente de uma taça de gelado de chocolate, não era nenhuma dessas coisas. Era uma mulher que fora uma menina receosa de ter feito alguma coisa que tivesse afastado a mãe. Essa descoberta tocou num ponto sensível dentro dele.
Que diabo. Achara que podia lidar com a paixão que irrompera entre eles. Compreendia-a e podia controlá-la até certo ponto. Mas não pedira mais. Não queria nada mais profundo.
Aceita as coisas com ligeireza, Holt. Trata-se de sexo. não de casamento. Ela é casada com a profissão. Sorte para ti.
Encostou-se à porta da cozinha com um sorriso doloroso.
A Joy queria ter a certeza de que o Canal Quatro apresenta um segmento especial no noticiário das dez sobre Os nossos «problemas». Vão dar indicações para a segurança das pessoas. Creio que a ideia da Joy era eu poder aprender qualquer coisa.
Megan mordeu os lábios para não sorrir.
Sim disse ele, pegando numa colher e servindo-se de um pequeno monte de gelado. Esse tal Shelby pode saber alguma coisa sobre o cumprimento da lei que eu não tenha conseguido aprender em quinze anos de profissão.
Está apenas a tentar ajudar lembrou Megan. Mitch engoliu em seco e mostrou os dentes.
Pelo menos.
Comeram o gelado e jogaram o excitante jogo de Candy Land. Mitch e Megan resolveram esperar que Jessie se fosse deitar para estudar os depoimentos. Jessie fez um valente esforço para permanecer acordada até à altura do noticiário, e em seguida Mitch decretou que era chegada a hora de ela ir para a cama. Cansada e excitada, choramingou um pouco enquanto Mitch a levava ao colo nas escadas, mas adormeceu mal pousou a cabeça na almofada.
Quando Mitch voltou para baixo, Megan andava de um lado para o outro na sala, observando tudo. Scotch estava estendido de barriga para o ar e abanava esperançosamente a cauda de cada vez que ela passava por ele, na esperança de que ela o coçasse.
Tem uma casa muito agradável afirmou Megan encostando-se a um cadeirão de cabedal.
Obrigado.
Mitch olhou à sua volta, vendo tudo aquilo como um mundo estranho. As paredes estavam pintadas de branco cor de casca de ovo, que condizia com a carpete Berber de tom creme. Dos dois lados da lareira havia estantes com portas de vidro. A mobília fora escolhida por ele próprio. Não conseguira ficar com coisa alguma daquilo que partilhara com Allison. Essas coisas evocavam recordações que lhe eram dolorosas. Substituíra-as por peças desinteressantes, de cores neutras, que nada lhe diziam. A sua única extravagância fora o cadeirão de cabedal cor de caramelo.
Creio que devia ter quadros na parede disse com um certo embaraço. Não sou bom para esse género de coisas.
Megan não se ofereceu para o ajudar com a decoração A ideia era demasiado intimista. Intimista e presunçosa. Poderia parecer que queria qualquer coisa. Aquilo que eles tinham, tê-lo-iam até acabar. Nada mais. Em primeiro lugar eram colegas. Só depois é que eram amantes. Tudo isso estava muito longe dela se oferecer para o ajudar a decorar a casa.
A Jessie está a dormir?
Como uma pedra. Estava exausta, a pobrezinha. Mitch dirigiu-se para a lareira e deitou uma acha sobre as brasas, depois endireitou-se e apoiou-se à pedra da lareira, a olhar para as chamas.
A avó, a rainha do pânico, tem-na enervado muito por causa do rapto do Josh. E eu não lhe tenho prestado muita atenção desde que isto começou.
Tem estado muito ocupado.
A minha vida tem sido sempre assim.
Bem, agora apanhámos o Olie...
Mas não temos o Josh.
Talvez o laboratório nos diga alguma coisa que possamos utilizar contra ele.
Mitch não queria pensar nas manchas de sangue na carrinha. Mais do que qualquer outra coisa, receava ter de dizer a Hannah e a Paul que o filho deles estava morto. Não queria que eles conhecessem essa dor e a verdade é que não queria reviver a sua própria dor. Também não lhe apetecia pensar que não seria capaz de ajudar Hannah e Paul, como não o pudera fazer com Allison e Kyle. A corrente continuava, indefinidamente, como uma roda na gaiola de um hámster.
Falou à Hannah em tirar amostras de sangue dela e do Paul?
Mitch afastou-se da lareira. Scotch estava deitado num sofá e olhava para a televisão, que estava a dar Letterman
Fá-lo-ei amanhã.
O laboratório precisa de fazer comparações.
Bem sei. Farei isso.
Se não o quiser fazer...
Já disse que o faria. Voltou-se, com as mãos erguidas, num gesto de rendição.
Óptimo.
Megan imitou o gesto dele, recuando. Olhou para os papeis amontoados sobre a mesa da sala. Depoimentos de pessoas ligadas ao rinque de patinagem, das pessoas que moravam nas imediações, de vizinhos de Olie. Rolos de faxes Com informações fornecidas pelas autoridades de Washington e NCIC de Washington. E entre toda essa papelada oficial, encontravam-se as fotocópias do caderno de apontamentos de Josh.
Descobriu mais alguma referência ao Olie? perguntou Megan, embora já soubesse a resposta, pois ela própria já lera aquelas folhas uma dúzia de vezes. Tinham muitos desenhos de seres espaciais, e só um de Olie. Além disso só a nota sobre ele, que fazia com que Megan sentisse o coração apertado ao pensar como Olie pudera fazer mal a Josh. Os rapazes fazem troça do Olie, mas isso é mau. Ele não tem culpa do seu aspecto.
Não.
Já li todos esses documentos até o meu cérebro ficar disléxico e não encontra neles nada que possamos apresentar ao procurador. Temos apenas suspeitas e conjecturas, além de pura maldade. Alguns dos vizinhos de Olie precisavam de uma lição de caridade.
Podiam ter aprendido algo com Josh. Era difícil pensar na amargura dessa ironia.
Não gosto da sensação que tudo isto me causa. comentou Mitch andando de um lado para o outro com as mãos nos bolsos e de cabeça baixa. Se o raptor roubou o caderno de apontamentos ao Josh há dois meses e planeou tudo como um mestre do crime... não me parece que o raptor fosse o Olie. Isto é sinistro... e Olie é patético, não é sinistro.
Então o cúmplice dele é que é sinistro lembrou Megan
Isso é outra coisa que não me parece certa. O Olie é um solitário. Sempre foi. E de repente tem um associado? Abanou a cabeça.
Trata-se de um pedófilo condenado, que teve meios para executar o rapto e proprietário de uma carrinha que tem manchas de sangue no tapete argumentou Megan. Se tem um suspeito melhor do que esse, gostava de o conhecer.
Não tenho admitiu Mitch. Não estou a dizer que ele esteja inocente. Digo apenas que tenho a sensação de que há algo de estranho nisto tudo.
E que parte deste caso não parece estranha? Tudo isto cheira mal. A casa dele estava cheia de equipamento de computadores.
Mas não tinha a impressora...
Tenho dois homens a contactarem lojas onde imprimem coisas com impressoras a laser. Basta levar-lhes a disquete.
E acha que ele iria a uma dessas para imprimir aquelas notas loucas?
É pouco provável, mas contudo é uma tentativa que não posso perder.
Mitch ficou calado. Parou em frente da lareira e olhou de novo para as chamas, analisando mentalmente os depoimentos que estudara.
Megan observava-o. As dúvidas de Mitch já tinham deixado marcas.
As suas objecções são contra o facto de ser o Olie, ou devem-se a ter sido eu quem o descobriu?
Ele virou ligeiramente a cabeça e olhou-a.
Não seja agressiva. Já a felicitei pelo que fez, agente O’Malley. Apenas me sentiria melhor se houvesse alguma prova mais visível. E melhor ainda se encontrássemos o Josh.
Também eu concordou Megan com um suspiro. O telefone tocou novamente e o atendedor gravou a mensagem. Mitch olhou-o com hostilidade.
O mesmo pensam quinze mil pessoas. Catorze mil novecentas e noventa e oito dessas pessoas devem ter ligado hoje para aqui.
Cansado, Mitch dirigiu-se para o sofá, parando quando se aproximou de Megan. Ela olhava-o com o seu ar sarcástico, que queria dizer: «Que julgas que estás a fazer?», o qual provavelmente já fizera recuar homens mais agressivos. Mas isso não impressionou Mitch. Fazia parte da representação, como a conversa dura, como as roupas de cowboy. Não se deixava impressionar pela representação dela.
Que diz a deixarmos isto por hoje? sugeriu. Não sei o que se passa consigo mas o meu cérebro parece estar a desfazer-se. Sejamos apenas pessoas durante um bocado.
Megan suspirou e virou a cabeça, metendo as mãos nos bolsos das calças
Está bem, com certeza respondeu. Claro que isso acabaria com a conversa, pensou Megan, pois ela não era pessoa para falar de outros assuntos que não fossem de trabalho. Agora é que vais mostrar as tuas aptidões sociais, O ’Malley. Tens muito jeito para isso.
Mitch viu que os ombros dela descaíam e que olhava para os pés. Era tão segura de si como polícia, e tão insegura como mulher. Tudo nele queria confirmar a feminilidade nela. O impulso deu-lhe uma onda de energia e deixou-se arrastar por ela.
Chegue aqui. Rebocou-a desde a extremidade da mesa da sala e sentou-se no sofá arrastando-a consigo. Vamos fazer alguma coisa que não nos obrigue a pensar.
Megan lutou em vão por se libertar e pôr-se de pé, mas não conseguiu tirar as mãos de Mitch que lhe apertavam a cintura.
Para dormir não precisamos de pensar. Vou para casa, para dormir um bocado.
Mitch ignorou a lógica dela e afastou-lhe os cabelos do pescoço para lhe beijar a nuca.
Vamos aproveitar um pouco estes momentos propôs Mitch em voz baixa, suave como seda. Como quando andávamos na escola secundária e chegávamos a casa com uma namorada ou um namorado depois de um jogo de basquetebol. Os nossos pais estavam a dormir e nós sentávamo-nos no sofá e aproveitávamos, esperando que ninguém nos apanhasse.
Megan ficou um pouco tensa contra ele.
Não tive muitos namorados na escola secundária.
A verdade é que não tivera nenhum. Fora sempre terrivelmente tímida com os rapazes, demasiado consciente do seu corpo magro, quase sem seios, e também com demasiada consciência do sangue que lhe corria nas veias. Não queria ser como a mãe, não queria dar ao pai razões para gostar menos dela do que já gostava. Existira um rapaz na sua turma de Literatura Inglesa, calado e estudioso como ela, engraçado apesar dos óculos de lentes grossas. Tinham trocado alguns beijos, algumas apalpadelas. Depois ele pusera lentes de contacto e subitamente começara a ser procurado pelas raparigas mais populares e Megan ficara esquecida.
Mitch beijou-lhe outra vez a nuca, mordiscou-lhe a orelha, acariciando com a língua a carne macia.
Bem, então deixe-me ensiná-la. Aprender com um mestre faz de si uma artista.
Encostando-se para trás, sem a largar, Mitch apagou a luz do candeeiro, deixando a sala iluminada apenas pela lareira e pela televisão. Em seguida, voltou-a para si e beijou-a na boca.
Vê... A ideia disse ele no intervalo dos beijos é você fingir que não quer que eu lhe faça nada, quando o que ambos queremos é despirmo-nos e esquecermos tudo o resto.
Megan riu e voltou-se, afastando-se um pouco, enquanto ele tentava acariciar-lhe um seio.
Teve sempre sorte?
Não beijo e vou contar. Talvez tenha sorte esta noite.
Não me parece disse Megan, com um sorriso, olhando-o por entre as pálpebras semicerradas, enquanto fugia para o outro lado do sofá. Vai arruinar a minha reputação.
Megan não se deteve a pensar na verdade dessa afirmação. Ambos precisavam desses momentos, longe do peso do caso. Tempo para serem pessoas e não polícias, para sentirem algo de bom, de afirmação da vida.
Mitch seguiu-a de joelhos sobre as almofadas. Um sorriso malicioso encurvava-lhe os lábios.
Vá, Megan pediu, passando-lhe um dedo pelo nariz e parando na sua boca perfeita. Só um beijo. Só um beijo, prometo.
Megan sorriu, surpreendida pela maneira como o seu corpo respondia ao jogo. O coração batia-lhe um pouco depressa de mais. Sentia a pele quente e com uma sensação de antecipação. Tolice. Já tinham estado os dois na cama, antes. Fisicamente havia poucos segredos entre eles. No entanto, sentia-se excitada com aquelas carícias.
Os lábios dos dois encontraram-se tentativamente, como se se tratasse de uma nova experiência. Não tinham pressa. Deviam saborear aquele momento. Os peitos tocavam-se, os lábios misturavam-se suavemente. Um leve aumento da pressão. O ângulo a ser alterado gradualmente. A antecipação a aumentar, a adensar-se. Mitch pôs os braços em volta dos ombros de Megan e puxou-a para si. A pressão do beijo foi um pouco maior. A ponta da sua língua espreitou a boca dela, avançou um pouco, tocou na beira dos lábios, pedindo mais. Megan abriu então completamente a boca e gemeu baixinho enquanto ele se apossava dela.
Megan apanhou-lhe a mão quando ele a levantou, mas não tentou detê-la quando ela se fechou sob o peso do seu seio. Os seus dedos acariciavam-na gentilmente e ela pousou os dela sobre os dele e Mitch soltou um gemido baixo de desejo à medida que a pressão dos dedos dela aumentava. Os dedos de Mitch descobriram o mamilo e apertaram-no por cima da roupa. Depois os botões foram abertos, um a um.
Oh, como és bonita! sussurrou ele, desnudando-a, olhando-a com reverência.
Megan deixou-se navegar no mar das sensações... até sentir a mão dele no botão das calças. E jogaram uma vez mais o jogo dos falsos protestos e da persuasão.
O botão cedeu. O fecho foi aberto. Ela levantou as ancas. Mitch puxou-lhe as calças para baixo. Esperava ir encontrar umas cuecas de renda para o excitarem ainda mais. Em vez disso encontrou compridas calças de seda preta que pareciam não mais ter fim. Confuso, ele olhou-a.
Roupa interior confortável disse ela. Está muito frio lá fora!
Mitch riu maliciosamente puxando as calças de seda preta para baixo.
Sim, aqui está muito mais calor disse Mitch. Especialmente aqui disse, fazendo deslizar os dedos pela mancha de cabelo preto e encaracolado. E ainda mais aqui acrescentou, metendo-lhe dois dedos profundamente entre as pernas.
Oh... Mitch murmurou Megan, tentando puxá-lo para si.
Queria-o junto dela, queria que ele perdesse o controlo, realizando-se ao mesmo tempo, sem a ver no seu estado mais vulnerável.
Confia em mim murmurou Mitch.
Confia em mim. A confiança não era coisa que ela oferecesse facilmente. Tinha muitas razões para não confiar. Razões lógicas, práticas. Mas nessa altura Megan não se sentia lógica nem prática. Quando ele lhe tocava, não se sentia como uma polícia, mas sim como uma mulher. Assustava-a esse abandono da sua identidade, mas Mitch sussurrava., acariciava... Confia em mim... tocando no âmago do seu desejo... acariciando a parte mais feminina dela... acarinhando... amando... confia em mim.
Megan fechou os olhos. Recostou-se para trás e o resto das suas restrições escapou ao seu controlo mental, dominadas pela paixão e pelo desejo. As suas ancas moviam-se em perfeito ritmo com a mão dele. A sua respiração era curta, ofegante. A excitação aumentava e explodia dentro dela, quente, atordoadora, intoxicante.
Gosto de ver a tua cara quando te vens murmurou Mitch. Ficas com uma expressão tão concentrada.
Megan sentiu a cor invadir-lhe o rosto e tentou desviar a atenção de Mitch, rebolando e pondo-se em cima dele.
Agora é a sua vez, chefe disse.
O sorriso que lhe pairava nos lábios era malicioso. Desabotoou lentamente a sua camisa de ganga e pôs-lhe o peito a descoberto. As suas pequenas mãos massajaram-lhe os músculos, acariciando-lhe a mata de cabelos escuros e encaracolados. Mitch observava-a atentamente, sentindo o prazer e um desejo premente confundirem-se dentro de si. Sufocou uma exclamação quando ela lhe prendeu um mamilo entre os dentes. O contacto dos lábios dela, da língua, dos dentes, aumentou ainda mais o desejo que ardia dentro de si.
Megan.
Ela pôs-lhe um dedo nos lábios.
Chiu, deixa-me fazer isto, Mitch.
Os beijos desceram ao longo da barriga. Demorados, quentes. Beijos que acompanhavam a descida das calças de ganga.
Megan...
Confia em mim.
Mitch gemeu quando ela o puxou para o calor sedoso da sua boca. Os pensamentos e o autodomínio desapareceram, ficando só uma sensação tão intensa que ele mal podia respirar. A sensação das carícias da língua dela, do contacto da sua mão, o leve roçar dos dentes. Um fogo cada vez mais ardente crescia dentro dele, prestes a explodir.
Mitch ergueu-a nos braços e fê-la rolar, ficando por cima, penetrando-a num só e forte impulso. Megan estava quente e tensa contra ele, tão húmida como a sua boca. As coxas dela apertaram-se em volta dele e ela enterrou os dedos nos músculos das costas de Mitch. O ritmo dos movimentos tornou-se mais rápido, mais ansioso, mais tenso. Megan murmurou o nome dele, ofegante, ao atingir o clímax, apertou-o mais contra si e ele terminou numa explosão ardente.
Sentimentos... confiança, excitação, um elo que ia além do contacto físico. Sentimentos que ele não conhecia, não permitira a si próprio conhecer durante os últimos dois anos.
Mitch não queria pensar nas implicações que isso poderia ter. Queria apenas puxar a manta que se encontrava nas costas do sofá para cima deles, para conservar o calor num casulo e mantê-lo. Queria preservar aquele momento e esquecer o seu significado.
Todavia as dúvidas ali estavam, inescapáveis como fantasmas. Mitch analisou mentalmente as desculpas e a racionalização, como se examinasse um baralho de cartas viciadas. Aquilo era apenas sexo. Um caso e nada mais. Ele não estava preparado para mais. Ela não pedia mais. Gostava da vida que tinha ordenada, sem complicações, controlada. Não queria responsabilizar-se por outra pessoa.
Não que Megan precisasse que alguém se responsabilizasse por ela. Nem que o permitisse. Megan era a mulher mais independente que conhecia. Por fora... interiormente era uma menina abandonada, uma mulher que não tinha a certeza de ser atraente, desconfiada em relação a todos.
Passou-lhe ternamente a mão pela testa e beijou-a ao de leve.
Megan pôs-se de lado, ficando entalada entre o corpo de Mitch e as costas do sofá. Pôs uma mão sobre o peito dele, no sítio do coração, desejando momentaneamente ter acesso ao que lá ia dentro. Um desejo vão... um facto que foi realçado quando Mitch pousou uma mão sobre a dela e a claridade das chamas que crepitavam na lareira incidiu sobre a sua aliança de ouro.
A dor que Megan sentiu foi aguda e surpreendente. E tola. Mitch não estava preparado para abandonar o passado. E ela não tinha nada com isso. Não lhe pedira um futuro. Não o faria. Também não pedira essa ligação, apenas sucedera. Mitch sentia-se atraído por ela, não encantado. Nunca encantara ninguém. Sabia bem isso. Grande coisa. Tinha coisas melhores a fazer na vida.
Tenho de me ir embora murmurou. É tarde.
Mais cinco minutos sussurrou Mitch, apertando-a mais contra si. Só quero que fiquemos abraçados. Mais cinco minutos.
Devia dizer que não. Mas então devia ter dito que não desde o início, pensou vagamente.
Mais cinco minutos...
O telefone que se encontrava em cima da mesa tocou, fazendo com que Megan acordasse sobressaltada. Confundida, não soube momentaneamente o que se passava. Mitch. A casa de Mitch. Um cão a dormir deitado na carpete, a televisão a dar publicidade de laca para o cabelo.
Mitch sentou-se, atordoado, e passou uma mão pela cara. O telefone tocou outra vez e o atendedor funcionou como sempre. Quando veio a mensagem ouviram uma voz atonal que sussurrava lentamente as palavras «ignorância cega e nua. Cega...»
Mitch agarrou no auscultador.
Quem fala?
Silêncio. E a seguir o telefone foi desligado
Maldita brincadeira murmurou sem convicção, voltando-se para Megan.
Os dedos dela abotoavam atabalhoadamente a blusa.
Sim. Uma brincadeira.
Ele não disse realmente nada.
E o Olie está preso
Pois está
Então, quem falou?
Mitch sentiu-se arrepiado e a sensação de pesadelo voltou. Tentou racionalizar as respostas instintivas que lhe ocorriam.
Quando o telefone tocou outra vez, saltou como se tivesse sido atingido por uma descarga eléctrica. Megan agarrou-o por um ombro.
Deixa a máquina atender.
Sim, eu sei.
A voz que falou do outro lado estava tomada de pânico, as palavras saíam-lhe entrecortadas.
Chefe, é o Dennis Harding... o sargento Harding. Precisamos de si aqui imediatamente. Aconteceu uma coisa horrível.
Mitch agarrou no telefone.
Sou eu, Harding. O que se passa?
Oh, meu Deus... é... O Olie Swain... está morto...
Ignorância cega e nua Provoca apreciações confusas, sem vergonha
Os polícias são uns idiotas. Encontraram um verme e chamaram-lhe um vilão e o desesperado correu cegamente para abraçar a ignorância deles. E a médica não vale nada. É apenas mais uma mulher indefesa. A ilusão de poder desapareceu. Nós somos os reis.
O cadáver de Olie Swain, aliás Leslie Sewek, encontrava-se enrolado junto da parede do fundo da cela, um corpo vazio, sem vida. O sangue formava uma poça no linóleo cinzento, escuro e espesso como óleo. O cheiro a morte violenta, forte e enjoativo, invadia as narinas, chegava à garganta. Sangue misturado com o vómito de alguém que descobrira o corpo, alguém que não estava habituado a tal horror.
Só uma forte determinação e uma vontade férrea fizeram com que o conteúdo do estômago de Megan se conservasse no seu lugar. Os cheiros sempre lhe tinham custado a suportar; quanto ao resto há muito que se endurecera contra isso. O rosto de Mitch mantinha-se impassível, quase indecifrável. Megan calculava que ele já vira coisas piores. Trabalhara como detective numa cidade conhecida pelas guerras entre traficantes de droga e violentos crimes nas ruas. Vira a mulher e o seu próprio filho mortos. Nada poderia ser pior do que isso.
Eh! gritou Boog Newton. Quero sair daqui! Percebia-se bem que falava com agressividade para encobrir o medo que sentia.
Não me podem ter aqui ao lado de um morto. É cruel e ilegal.
Cale-se ordenou Mitch com um olhar zangado. Boog recuou para o canto mais afastado da cela e sentou-se com os pés em cima do colchão. Com um braço magro apertava um joelho que balouçava nervosamente. A outra mão parecia um caranguejo pousado sobre a cara, aproximando-se da narina direita.
Mitch olhou demoradamente para Olie. Ignorância cega e nua... ignorância cega e nua., ignorância cega e nua.. Cega... Cega. Cega...
O que fazemos? perguntou Harding debilmente. Mantinha-se do lado de fora das grades, com as mãos apoiadas nelas, extremamente pálido.
Chame o médico legista. Alguém que venha aqui com uma máquina fotográfica. Vamos proceder como numa cena de crime.
Mas... chefe, ninguém podia...
Faça o que lhe digo! gritou Mitch.
Harding recuou, tropeçou nos seus próprios pés e depois voltou-se e começou a correr. Mitch entrou na cela de Boog Newton. Os olhinhos de Boog iam de Mitch para Megan, para Olie e para Mitch.
Que sucedeu, Newton? perguntou Mitch com voz calma ao aproximar-se do beliche.
Como hei-de saber? retorquiu Boog tirando o dedo do nariz. Estava escuro. Não vi nada.
Mitch ergueu as sobrancelhas.
Um homem suicida-se na cela ao lado da tua e tu não deste por nada? Deves ter um sono muito profundo.
Boog coçou nervosamente uma borbulha que tinha no queixo, com os olhos fixos na televisão sem imagens. Estava de uma palidez de cera e a pele brilhava com o suor que acompanha as náuseas.
Talvez ele tenha feito algum barulho disse por fim. Eu não sabia o que ele estava a fazer. Pensei que se estivesse a... ou qualquer coisa.
Estava-se a matar, Einstein! explodiu Mitch avançando subitamente sobre Boog como um anjo vingador ou como o próprio demónio. Era a nossa única pista neste maldito caso e agora está morto!
A culpa não foi minha gemeu Boog recuando e cobrindo a cabeça com os braços, como um cão batido
Não, a culpa nunca é de ninguém! exclamou Mitch. Estou farto dessa desculpa.
A fúria apoderou-se dele como uma nuvem de tempestade, enevoando-lhe a visão e o discernimento. Não fez qualquer tentativa para se dominar. Deu pontapés, com força, no beliche de Boog, repetida e ruidosamente, ao bater no metal. O barulho ecoava pelas paredes das celas, enquanto ele gritava:
Maldição! Maldição! MALDIÇÃO!
Mitch! exclamou Megan entrando na cela e agarrando-o por um braço. Mitch voltou-se para ela com uma expressão de cólera, mas ela não se intimidou. Fitou-o calmamente e repetiu: Mitch! Controle-se! Temos trabalho a fazer.
Mitch via Boog Newton enrolado sobre si na outra extremidade do beliche, espreitando-o por entre as mãos ossudas com os seus pequenos olhos assustados.
Perdeu-o, Holt. Perdeu-o.
O seu olhar desviou-se de Newton e foi fixar-se novamente no sítio em que Olie jazia num lago de sangue. A sua única pista. O único suspeito. Poderia tê-los levado a Josh. Ou poderiam ter feito um acordo e ele denunciar o seu cúmplice, mas agora não havia acordo possível. Olie estava morto. Tudo o que ele sabia desaparecera com ele. Como uma ardósia apagada.
Mitch disse a si próprio que outrora nada daquilo teria sucedido, quando os seus instintos eram afiados como lâminas. Mas perdera esses instintos. Deixara que eles se enferrujassem nos últimos dois anos. Achava que não precisaria deles ali. Um chefe da Polícia não precisava de intuição. Precisava era de diplomacia. Em Deer Lake nunca sucedia coisa alguma. Absolutamente nada...
A forte luz fluorescente incidia sobre o corpo de Olie Swain, sobre a marca que tinha na cara, sobre a pele acinzentada, sobre a órbita vazia que contivera o seu olho de vidro. Na poça de sangue, perto da mão do cadáver, estava um fragmento do olho um pedaço de íris castanho e uma pupila preta fixa no tecto. Ele partira a elipse de porcelana e utilizara um dos pedaços para abrir as veias dos pulsos, esvaindo-se em sangue no pavimento da prisão de Deer Lake. Na parede, por cima do corpo, estava escrito com sangue:
NÃO FUI EU.
O médico legista de Park County era um homem calvo, com o rosto em forma de pêra, director da Casa Funerária Oglethorpe. Devia ter uns cinquenta anos e usava óculos com grossos aros pretos e exibia um ar carrancudo, o que fez com que Mitch pensasse que ele tinha sempre o cheiro do líquido para embalsamar nas narinas.
Examinou Olie sucintamente, tocando-lhe com as mãos enluvadas e observando a órbita vazia.
Era sabido que a única razão que levara Stuart Oglethorpe a concorrer ao lugar de médico legista de Park County fora a de ter conhecimento em primeira mão de novos cadáveres. Se o corpo já se encontrava na sua casa mortuária era muito provável que a família enlutada lhe encomendasse o caixão e o serviço fúnebre. Stuart podia então encaminhar a encomenda das flores para a estufa de seu primo Wilmer, Blooming Bud.
Ninguém iria encomendar flores para Olie Swain. A não ser que um parente afastado, em Washington, reclamasse o corpo, Olie seria enterrado à custa do erário público. Stuart fora mandado levantar da sua cama quente para sair para uma temperatura de muitos graus abaixo de zero, sem ter esperanças de grandes lucros. Stuart não podia sentir-se feliz com isso.
Bem, ele matou-se. Qualquer tolo pode ver isso.
Sim, mas precisamos da sua assinatura no relatório. Stuart. disse Mitch. E terá de ser transportado para Hennepin County para ser autopsiado.
Autopsiado? Para quê? replicou Oglethorpe, indignado. Quando um corpo ia parar ao Centro Médico de Hennepin County não tinha esperanças de o recuperar. Park County dá-lo-ia aos irmãos Qvaam em Tatonka.
É o procedimento normal quando um prisioneiro se suicida explicou Megan. Não dá lugar a especulações quanto às circunstâncias da morte.
Quem é ela? quis saber Oglethorpe, de sobrolho franzido.
Agente O’Malley, BCA disse Mitch.
Em resposta, Oglethorpe resmungou qualquer coisa.
Ficou encantado, tenho a certeza murmurou Megan entre dentes. Olhou para os homens que metiam o corpo dentro de um saco para o levarem dali. Tenham cuidado com o sangue. Ele esteve preso durante cinco anos por pedofília. É com certeza um indivíduo com risco de sida
Oh! gemeu Harding. Não pensei que as coisas ainda pudessem ser piores do que já são.
Bem-vindo ao clube disse Megan, olhando-o com tristeza.
A sala de imprensa do antigo quartel dos bombeiros estava cheia desde as nove e quarenta e cinco da manhã.
Não restavam dúvidas de que o assunto das crianças desaparecidas e dos predadores de crianças se tinha tornado um tema da actualidade. Mas Megan considerava a intensa cobertura feita pelos media propícia a criar um ambiente de pânico, dando a ideia de que os crimes dessa natureza tomavam características epidémicas. Segundo as estatísticas do Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas, a taxa de crianças raptadas por desconhecidos permanecia quase constante de ano para ano. Não eram estatísticas que se olhassem de ânimo leve, mas também não de uma maneira catastrófica. Todas as semanas morriam mais crianças vítimas de armas de fogo.
Megan viu os fotógrafos, os cameramen, os operadores de som e os jornalistas prepararem-se e ocuparem as melhores posições. A ordem estabelecida alterara-se radicalmente com a invasão dos profissionais dos media vindos de Twin Cities e de todos os locais. O pouco espaço disponível ao fundo da sala era ocupado pelos voluntários que ali trabalhavam. Megan viu de relance a pouco simpática Mrs. Favre que aparecera no programa especial de Paige Price. Quase escondido atrás dela, encontrava-se Christopher Priest. Rob Philips, chefe do centro de voluntários, tivera direito a um lugar especial, devido à sua cadeira de rodas.
Às dez em ponto, Mitch subiu ao pódio. Tomara banho, barbeara-se, vestira um fato castanho-escuro, uma camisa branca e pusera uma gravata sóbria, sem personagens dos desenhos animados. O seu rosto bronzeado parecia branco sob o clarão dos disparos dos flashes.
Cerca das três horas da madrugada, Olie Swain, aliás Leslie Olin Sewek, foi encontrado morto na sua cela na prisão da cidade, devido a ferimentos que infligiu a si mesmo anunciou sem preâmbulos.
A onda de choque que atingiu toda a gente teve o efeito de uma explosão. Houve exclamações abafadas e respirações ofegantes. As máquinas dispararam sem parar, acompanhadas pelo zumbido dos motores.
Depois vieram as perguntas, em rajada, rivalizando com o vento lá fora.
Como sabe que os ferimentos foram feitos por ele próprio?
Não estava a ser vigiado?
Que espécie de arma usou ele?
Deixou algum bilhete confessando-se culpado do rapto?
Deu alguma indicação do local onde está o Josh?
Mister Sewek não foi considerado uma pessoa em risco de se suicidar. continuou Mitch. Não revelou sinais que nos levassem a pensar que poderia representar qualquer perigo para si próprio. Não posso revelar pormenores acerca da sua morte, por enquanto, mas posso dizer-lhes que não teve acesso a qualquer arma convencional. O corpo dele está a ser levado para o Centro Médico de Hennepm County, para uma autópsia de rotina. Confio em que o relatório médico confirmará as conclusões a que chegou o meu gabinete e o médico legista de Park County.
Ele deixou alguma nota, chefe? perguntou um repórter.
Mitch pensou nas três palavras rabiscadas com sangue na parede da cela, por cima do corpo de Olie.
NÃO FUI EU.
Não deixou qualquer mensagem a respeito das suas acções ou do seu estado de espírito. Não deixou nenhuma mensagem acerca do Josh.
Está estabelecido que foi ele realmente o raptor?
Estamos à espera dos resultados do laboratório do BCA.
E quando chegarão eles?
A convite de Mitch, Megan subiu ao pódio. Vestira-se de um modo discreto e simples. Calças justas de malha preta, camisola de gola alta e um casaco de tweed, solto. O camafeu que trazia na lapela era o seu único enfeite. Olhou para a multidão com frio profissionalismo.
Foi dada prioridade às análises feitas à carrinha de Mister Sewek. Espero conhecer ainda hoje os resultados de várias dessas análises.
Que género de análises?
O que foi encontrado? Sangue?
Peças de vestuário?
Seria prematuro falar do resultado dessas análises sem poder explicar a importância dessas descobertas, e o seu significado para o caso.
Paige Price, que conseguira arranjar um lugar mesmo atrás dos jornalistas do 48 Hours, levantou-se com um lápis e um bloco de apontamentos em punho, como se eventualmente pudesse tomar notas.
Agente O’Malley disse friamente, pode dizer-nos onde se encontrava quando teve conhecimento da morte de Leslie Sewek?
Megan sentiu frio na espinha. As suas mãos apertaram a estante com mais força.
Não percebo que relevância possa ter para o caso a sua pergunta, Miss Price respondeu calmamente. Depois, voltou a sua atenção para o repórter do NBC Nightly News.
Agente O’Malley... começou.
Acho que a sua resposta pode ser relevante para os habitantes de Deer Lake interrompeu Paige com uma leve sugestão de drama. Interiormente sorria como o gato de Cheshire. Captara a atenção dos outros jornalistas: do pessoal da rede e dos outros, pessoas que eram capazes de farejar uma boa história como um tubarão sente o cheiro a sangue. Podia ver os outros a pensarem: Como é que ela pode saber coisas que nós não sabemos? A antecipação era tão deliciosa como chocolate na sua boca. Abençoado Russ Steiger.
Não é verdade que quando se soube a notícia, às três da madrugada, se encontrava em casa do chefe Holt?
Para além das pulsações que soavam aos seus ouvidos, Megan teve a sensação de ouvir zumbir um enxame de abelhas. Os seus dedos estavam brancos e as pernas pareciam de geleia. Não se atrevia a olhar para Mitch ou a pedir-lhe apoio. Estava entregue a si própria, como sempre. A frase oscilando ao vento veio-lhe à memória. Se DePalma viesse a saber aquilo... Quando DePalma soubesse...
Olhou com dureza para Paige Price. Cabra mercenária e ambiciosa, sempre à procura de alguma coisa que a pudesse fazer superar os outros. Essa ideia enfureceu Megan. Trabalhara duramente para chegar onde estava. Demasiado duramente para permitir que os seus sonhos fossem furados pelos saltos altos de Miss Price.
Miss Price disse calmamente, não acha que já fez bastante mal a esta investigação sem estar agora a tentar desviar as atenções desta conferência de imprensa do rapto do Josh Kirkwood, para as centrar em si?
Não estou a centrar as atenções em mim, mas em si.
Não é assim que eu vejo as coisas contrapôs Megan. Está a tentar chamar a atenção dos seus confrades sugerindo algo de menos correcto de que tivesse conhecimento exclusivo. Talvez ache que isso lhe possa trazer um bom emprego em Hard Copy, mas digo-lhe que comigo isso não pega. Mais uma vez voltou as costas a Paige Price e perguntou: Alguém tem alguma pergunta ligada ao caso de que nos ocupamos?
Porque não responde à minha pergunta, agente O’Malley? O que receia?
Com os olhos a faiscar, Megan voltou-se para a sua adversária.
Receio perder a paciência, Miss Price, porque as suas perguntas, além de serem irrelevantes, mostram que está a meter-se num assunto que não lhe diz respeito.
Logo que acabou de pronunciar aquelas palavras, lamentou tê-las dito. Praticamente confessara a sua culpa. Não importava que fosse verdade, que ninguém tivesse a ver com o assunto. A resposta que dera fora o suficiente para espicaçar as imaginações. Que pesadelo! Megan sentia-se como se estivesse a ser arrastada para o fundo de um poço e que a cada movimento que fizesse para se libertar se enterrasse ainda mais. Agora não tinha maneira de se sair airosamente da questão. Não podia dizer a verdade e ninguém acreditaria se ela dissesse: Estávamos a discutir o caso e acabámos por adormecer. Sentia-se como uma adolescente que tivesse chegado a casa depois da hora permitida. Lembrou-se das palavras de Mitch, na véspera: Vamos aproveitar. Como quando andávamos na escola secundária... A analogia quase a fez rir.
Paige Price arvorou o seu ar mais grave e severo, pensando para si própria que torceria o pescoço a Garcia se ele não captasse as imagens apropriadas da cena.
Às três horas da madrugada, o vosso principal suspeito do rapto de Josh Kirkwood suicidava-se. Nessa altura, você encontrava-se supostamente em casa do chefe Holt com todas as luzes apagadas. Se a solução do caso não é a sua prioridade máxima, o público tem o direito a sabê-lo, agente O’Malley.
Não, Miss Price retorquiu Megan com a voz trémula de raiva. O público tem direito a saber que eu e todos os polícias temos trabalhado neste caso praticamente durante as vinte e quatro horas do dia, na tentativa de o descobrirmos, de conseguirmos uma pista sobre esse lixo humano que é quem o raptou. Têm o direito de saber que era impossível saber o que o Olie Swain fizera antes de vir para aqui, que o raPto do Josh foi um acto isolado de violência e não o primeiro sinal de anarquia. Têm também o direito de saber que o seu trabalho não se destina a informar o público com isenção, mas sim a provocar sensacionalismo e exploração dos factos. Não têm o direito de me seguir depois de eu ter passado dezoito horas a trabalhar. Não têm o direito de saber qual o gelado de que mais gosto, ou qual a marca dos tampões que uso. Estou a ser bem clara, Miss Price? Ou vamos precisar de discutir como é que soube que íamos vigiar a casa do Olie Swain na outra noite? Talvez você, com o seu espírito patriótico e aberto, ache que o público tem o direito de saber que você e a sua equipa interferiram com uma investigação policial, o que provavelmente nos impediu de descobrirmos o Josh Kirkwood nessa noite.
Megan apercebeu-se de que naquele momento a admiração que os outros jornalistas tinham por Paige se derretia como neve. Paige apercebeu-se dos olhares dos voluntários que trabalhavam no centro fixos nas suas costas, furiosos, sentindo-se traídos. Ia perder a confiança deles, o que significava que iria perder as suas habituais fontes de informação. E o que era pior, perderia espectadores, o que significava perda de vantagens nas suas negociações do seu contrato. Sentou-se, com o olhar fixo em Megan, brilhando de ódio.
O DePalma vai esfolar-me viva e fazer um objecto para a secretária com a minha pele murmurou Megan. Andava de um lado para o outro, ao longo de um antigo carro dos bombeiros, tremendo, não por causa do frio que fazia na garagem, mas devido ao choque.
A conferência de imprensa acabara, mas as complicações mal tinham começado. O fósforo acabava de pegar fogo ao fio, mas esse fio estava ligado à dinamite que iria explodir, tirando-a de Deer Lake.
Raios! Eu sabia que acabaria por suceder qualquer coisa do género!
Megan, não fizemos nada de mal disse Mitch. Estava sentado num dos lados do velho carro dos bombeiros, a gelar. Sentia-se demasiado exausto para se preocupar. Tornaste isso bem claro nas palavras que disseste.
Megan olhou-o com incredulidade.
Achas que isso torna as coisas diferentes? Pensas que aquela alcateia de chacais vai dizer: «Sim, ela tem razão não temos nada a ver com quem ela dorme?» Andas na lua ou quê?
O que digo é que há coisas mais importantes com que nos preocuparmos. Para eles e para ti.
Que diabo quer isso dizer? Achas que eu me preocupo mais com a minha carreira do que com encontrar o Josh?
Mitch levantou-se.
Não te ouço lamentar o facto de o nosso único suspeito estar morto. Quando alguém te atira uma seta, parece ser o fim da tua vida para ti.
Sem palavras, Megan passou a mão pela testa e murmurou:
Já devia ter esperado isto. Um homem é um homem. É sempre um homem.
O que é que queres dizer com isso?
Quero dizer que não compreendes replicou secamente Megan, voltando-lhe as costas. Todos os músculos do seu corpo estavam rígidos de fúria. Tinha as mãos fechadas com força, pendentes ao lado do corpo. A minha autoridade e integridade estão comprometidas. Logo que isto vá para o ar, a minha credibilidade é suspeita e a minha eficácia no trabalho sofre com isso. Desde que ainda continue a ter trabalho, claro. O Vaticano gosta mais de publicidade escandalosa do que o BCA.
Imagens fantasmagóricas do rosto de DePalma vieram-lhe à cabeça. Nixon era o exterminador, o rosto da condenação.
Sabes como consegui este lugar, Mitch? Trabalhando duas vezes mais duramente e sendo três vezes mais eficiente do que qualquer homem que também aspirasse a ele. Lutei denodadamente para o conseguir, porque acredito naquilo que fazemos. Não há nada que eu mais deseje do que encontrar o Josh Kirkwood. Tenho dado a este caso tudo o que conheço, toda a minha determinação e vontade no sentido de encontrar o Josh e apanhar o seu raptor. E agora vou provavelmente ver-me negada a satisfação de continuar as investigações e o caso vai talvez perder um bom polícia, porque eu fui estúpida e quebrei a minha regra principal e dormi com um polícia.
__ Estúpida? perguntou Mitch numa voz mortalmente calma- É isso que pensas de nós!
. Que nós! proferiu secamente Megan. Gostaria de acreditar que havia algo de especial entre eles, mas não acreditava que fosse verdade. Não confiava nela. O amor não acontecia tão depressa. O amor não era para ela. A vida ensinara-lhe isso há muito tempo.
Não há nós disse amargamente. Nós fizemos sexo. Nunca me fizeste qualquer promessa. Meu Deus, nem sequer tiraste a aliança quando me levaste para a cama.
Mitch olhou instintivamente para a sua mão esquerda, para a aliança que usava por hábito. Usava-a para se punir. Usava-a para se proteger das mulheres que poderiam querer mais do que ele estava pronto a dar-lhes. E funcionava, na verdade.
Megan encontrava-se diante dele, de ombros direitos, pernas afastadas, pronta para receber uma pancada quer fosse física ou metafórica. Tão dura exteriormente, tão-só interiormente. Tornara bem claras as suas prioridades: o trabalho, o trabalho, o trabalho. Mas havia mágoa nos olhos dela, para além do orgulho que a fazia manter o queixo erguido. Ele pressionara-a a fazer sexo com ele. não lhe oferecera nada e agora ela é que iria pagar.
O que te interessa isso, Mitch Holt? O que te interessa?
Mitch soltou um profundo suspiro.
Megan... eu...
Não te canses. Megan não queria ouvir a palavra. Já era suficientemente mau vê-la escrita por toda a cara dele. Ambos devíamos saber o que se iria passar. Megan disse a si própria que não era Mitch que estava a magoá-la, mas que era a injustiça de haver padrões duplos que iriam castigar a sua tentativa de tentar ter uma vida privada. Não tens de te preocupar, claro disse com um sorriso forçado, desagradável. Toda a gente sabe que rapazes são rapazes e eu estou habituada a fazer a minha vida profissional com um machado pendente por cima da minha cabeça.
Megan...
Mitch estendeu a mão para lhe tocar na cara. Ela afastou-a com uma palmada.
Diabos te levem, Mitch Holt! Não te atrevas a ter pena de mim! disse entre dentes. Não tinha defesa contra a ternura. Recuou, afastando-se dele, com uma expressão determinada. Sou crescidinha. Sei tomar conta de mim mesma. Tenho-o feito toda a minha vida. Porquê parar agora? De queixo erguido afastou-se dele, pensando se haveria alguma possibilidade de ir buscar o seu casaco à sala da imprensa sem ser vista.
Onde é que vais?
Megan parou a pequena distância da porta, sem se voltar. Não precisava de um homem na sua vida. Não precisava de ninguém para ser uma boa polícia. E isso fora o que sempre quisera ser. Ignorava o vazio que essas palavras deixavam dentro de si.
Vou trabalhar respondeu. Enquanto tenho trabalho.
Olie Swain não tinha pessoas associadas a ele, que se soubesse. Não tinha amigos. Era, como gostavam de dizer, um solitário. Fazia o seu trabalho e não convivia com ninguém. Comprava os seus livros numa loja que os vendia em segunda mão, perto da Universidade Harris. Pelo menos era a indicação que se encontrava nesses livros.
A loja tinha apenas um empregado que ficaria muito bem a vender bugigangas na parte traseira de uma carrinha Volkswagen com pinturas psicadélicas. Alto e delgado como um pau, usava o cabelo de um louro ferrugento dividido ao meio e preso atrás num rabo-de-cavalo. O que passava por ser barba, no queixo, não era mais do que os cabelos que Megan tirava da sua escova, depois de se pentear. Vestia uma velha T-shirt com uma amarrotada camisa de flanela por cima. As calças puídas encontravam-se precariamente presas sobre as ancas magras por uma corda da roupa. Chamava-se Todd Childs e estudava psicologia na Harris e passava parte do seu tempo a trabalhar no centro de voluntários.
Megan passou o olhar pela loja enquanto conversavam. A «loja», instalada num velho edifício, estava atulhada de livros, de roupas e de peças «decorativas» que se amontoavam entre outros objectos mais apropriados para irem para o lixo. Por detrás do balcão, um velho aquecedor eléctrico gemia com o esforço de fornecer algum calor, em complemento da caldeira.
Todd bateu com um dedo nos finos aros dourados dos seus óculos.
A observação é a chave para a visão interior disse lentamente. Encostou os cotovelos ossudos ao balcão e inclinou-se para fitar Megan nos olhos. As pupilas dele estavam enormemente dilatadas e o cheiro a haxixe queimado colava-se-lhe às roupas. Por exemplo, devo dizer que a acho muito tensa.
Não admira respondeu Megan.
Sim... Todd assentiu lentamente com a cabeça. Procurar a justiça num mundo injusto. Procurar tapar o dique com pastilha elástica. Na sua maior parte, os polícias são monstros controlados, sabe? Isto não é um insulto. É apenas uma observação.
E o que é que observou a respeito do Olie?
Era estranho. Nunca quis falar com ninguém. Chegava aqui, comprava os livros e saía. Voltou-se e aspirou longamente o cigarro. Estivemos na mesma aula várias vezes. Ele nunca falou com os outros alunos. Nunca.
Ele ia às aulas na universidade?
Ia apenas ouvir. Não creio que quisesse um diploma. O que lhe interessava eram os computadores. Creio que se sentia mais à vontade com as máquinas do que com as pessoas. Isso sucede com certos indivíduos. Não me parece que fosse pessoa para fazer mal aos outros. Nem o bilhete, nem o telefonema do raptor me parecem coisa dele. A não ser que sofresse de personalidade múltipla, o que é pouco provável.
Acho que ele tinha uma vida secreta observou Megan, tirando as luvas.
Todd olhou-a com ar sonhador.
Não é o que sucede com todos nós? Não construímos muros de camuflagem em volta de nós mesmos?
Creio que sim concordou Megan. Mas a maior parte das pessoas não se dedica a molestar crianças. Retirou o seu cartão de identificação que colocara sobre o balcão. Se se lembrar de alguma coisa que possa ajudar, por favor telefone-me.
Com certeza.
Bom... Olhe, Todd, não fume haxixe quando estiver a trabalhar. Pode aparecer um polícia.
Quando saiu da loja, Megan dirigiu-se para uma pequena casa pintada de azul-turquesa onde funcionava um pequeno café chamado Leaf & Bean. O minúsculo alpendre da entrada estava cheio de bicicletas cobertas de neve, aparentemente à espera que o Inverno acabasse. Megan entrou, sentou-se a uma mesa coberta por uma toalha branca e pediu leite e um bolo de chocolate a uma rapariga vestida como Morticia Addams. Os outros clientes, que eram poucos, encontravam-se sentados a um balcão de madeira, naquilo que provavelmente fora uma sala de jantar, lendo o jornal e conversando tranquilamente. O rádio que se encontrava atrás do balcão enchia o ar com melodias antigas, evocativas de Steady On.
As paredes eram brancas e tinham fotografias a preto e branco, com simples molduras pretas. As janelas não possuíam cortinas, deixando entrar a luz fria do Sol. Megan conservou os seus óculos escuros, para desencorajar o contacto ocular e por causa da claridade. Bebeu o leite e trincou distraidamente o pequeno bolo, enquanto olhava para o seu bloco de apontamentos.
Precisava de descobrir um fio que ligasse os fragmentos de informação de que dispunha, mas parecia não haver nenhum. Tinha apenas teorias. Olie agira sozinho. Olie tinha um cúmplice. Quem? Não tinha amigos. Ninguém conseguia entrar nos computadores dele, mas a impressora dele era Dot Matrix e as notas enviadas pelo raptor provinham de uma impressora a laser. Olie tinha fotografias de rapazes nus, mas eram antigas, tiradas muitos anos antes, quando ele vivia noutro sítio.
Para alguém que sabia tanto, Megan sabia muito pouco.
Ignorância não é inocência mas PECADO
Tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO
Ignorância cega e nua. Ignorância cega e nua...
Jogos mentais. Mitch dissera que Olie não lhe parecia ser o tipo de pessoa para fazer esses jogos. Olie jazia numa poça do seu próprio sangue quando o telefonema fora feito para casa de Mitch.
Ignorância cega e nua.
Fora ver a citação na Bartlett’s. Era de Idílios do Rei, de Tennyson. Ignorância cega e nua provoca apreciações confusas, sem vergonha.
Seria a maneira de alguém lhes dizer que tinham apanhado a pessoa errada? Ou teria sido o cúmplice de Olie, sem saber que, no momento em que estava a fazer esse telefonema para os atormentar, o seu associado estava a cortar os pulsos com os fragmentos de porcelana do seu olho de vidro?
As teorias passavam-lhe pela cabeça, fazendo-a doer. A isso juntavam-se as preocupações sobre o que sucederia à sua carreira se alguém decidisse explorar o assunto do seu envolvimento com Mitch. Isso faria, pelo menos, com que ela perdesse o respeito dos homens com quem trabalhava. O pior que lhe poderia suceder seria perder o seu posto como agente no terreno e acabar por ser uma guarda de segurança nalgum centro comercial, algures. Não, o pior seria não poder ir até à solução daquele caso, decidiu ao olhar para a fotografia de Josh.
Olhava-a, cheio de vida e de confiança, de vivacidade e de inocência. Por momentos pensou em como ele estaria, no que estaria a pensar e a sentir. Como estaria assustado... desde que ainda estivesse vivo. Tinha de acreditar que sim. Só acreditando poderiam continuar com o mesmo afinco.
E, por baixo de tudo isso, havia a consciência de que o tempo ia passando.
Estamos a fazer tudo o que podemos, Josh murmurou. Aguenta-te... escuteiro.
Guardou novamente a foto na pasta e passou os olhos pelas notas que tomara: Olie computadores. Olie aulas Universidade Harris. Instrutores?
Christopher Priest era chefe do departamento. Talvez ele tivesse alguma ideia daquilo que Olie conservava guardado nos seus computadores. Talvez soubesse como lá chegar.
Pagou a conta e saiu de novo para o frio. segurando na mão a pasta e o bloco de apontamentos, como se eles pudessem protegê-la contra o vento. O Lumina pegou com dificuldade e o motor gemeu durante todo o caminho até à esquadra.
A única vantagem de tanto frio era desencorajar os jornalistas a permanecer junto do edifício. Tendo sido banidos dos corredores do centro onde se situava o gabinete de Mitch e o dela, os profissionais dos media permaneciam junto da entrada principal ou mantinham-se dentro dos seus carros, no parque de estacionamento, com os motores ligados. Megan parou no lugar designado para o agente L. Kozlowski, por detrás do edifício, e entrou rapidamente, antes que algum dos abutres pudesse abandonar o seu poleiro.
A luz que indicava que tinha uma mensagem no gravador estava acesa quando Megan entrou no gabinete dela, mas a chamada era de Dave Larkin e não de DePalma. Ficou com esperanças de que o escândalo da conferência de imprensa não tivesse chegado à sede do BCA. Debateu consigo mesma a ideia de que talvez fosse bom adiantar-se às más notícias e telefonar ela própria a DePalma e dar-lhe uma versão mais decente do que se passara ela e Mitch tinham estado a estudar o caso, exaustos das longas horas de trabalho e tinham adormecido sentados em frente da lareira quando fora feita a chamada...
As chamadas. Ignorância cega e nua. Ouvia mentalmente a voz enquanto pendurava o casaco. Uma voz baixa, sussurrante, fantasmagórica. Reviu mentalmente as palavras rabiscadas a sangue na cela de Olie. NÃO FUI EU. E se ele fosse inocente? Se tivessem perdido tempo a seguir uma falsa pista, enquanto o verdadeiro raptor se ria deles? Olie tinha cadastro como pedófilo. Tivera oportunidade. A carrinha dele condizia com a descrição da testemunha. A carrinha tinha nódoas de sangue no tapete.
Larkin murmurou.
Agarrando no telefone, Megan marcou o número dele, rezando para que se encontrasse no seu gabinete. Larkin atendeu ao segundo toque.
Larkin.
Dave. Daqui Megan. Tem alguma coisa para mim?
As minhas condolências pela morte do suspeito. Que azar, irlandesa.
Além disso, ouviu mais alguma coisa daqui?
Como, por exemplo?
Nada, nada. Esqueça. Tem o relatório sobre o sangue?
Sim. Fui pessoalmente ter com eles para lhe dar a notícia o mais depressa possível.
Obrigada, Dave. E então?
Não era sangue humano.
Megan soltou um suspiro fundo que até então contivera.
Céus, não sei se hei-de ficar aliviada ou desapontada.
Eu sei. Lamento, garota. Gostava de poder ajudá-la com alguma coisa, mas com o sangue não posso. Provavelmente é de algum pobre Bambi e está naquele tapete há anos. Na casa do homem não foram encontradas quaisquer armas. Vou enviar-lhe o relatório por fax e se souber alguma coisa mais telefono-lhe imediatamente.
Obrigada, Dave. Muito agradecida.
Não tem de quê, irlandesa. E quando tiver resolvido o caso, o jantar é por minha conta.
Megan não se incomodou a dizer-lhe que jantaria sozinho. Nada de polícias. Nunca mais.
Megan pensou no que sucederia à camaradagem descontraída que existia entre si e Larkin quando ele tivesse conhecimento da história elaborada por Paige Price. Tinha mantido sempre à distância os avanços amorosos dele, com o pretexto de que nunca saía com camaradas. Ele gostava de gracejar a respeito do assunto, mas respeitara sempre os limites estabelecidos por ela. Que sentiria quando soubesse que ela dormia com Mitch? Compreenderia ou isso cavaria uma fenda entre ambos?
Amaldiçoou-se pela centésima vez. Comprometera tanta coisa para quê? Por algumas horas de intimidade com um homem que mal conhecia.
Porém, outros motivos lhe passaram pela cabeça. Desculpas e desejos semiformados. A atracção física por ele era mais forte do que qualquer outra coisa que tivesse conhecido; não soubera como combatê-la. Mitch fora persistente, persuasivo. Ela sentira uma ligação com ele que despertara nela o desejo por coisas que nunca tivera intimidade, companheirismo... amor.
Fechou os olhos e abanou a cabeça. Fora suficientemente forte para quebrar a barreira da testosterona e ser detective na força de Minneapolis. Fora suficientemente forte para lutar por aquele lugar como agente do BCA no terreno. Detivera indivíduos tão perigosos como qualquer outro polícia. E tudo isso fora esquecido por um pouco de ternura e a oportunidade de sentir que interessava a um homem como mulher.
A máquina do fax atrás dela deu sinal. Megan voltou-se à espera de ver aparecer o relatório sobre as manchas de sangue. Em vez disso, era o relatório de rotina sobre a carrinha de Olie. Servindo-se do número de identificação do veículo do fabricante, tinham a história da vida da carrinha no estado do Minnesota, desde o primeiro proprietário ao último. De acordo com o relatório, o título de propriedade fora transferido em Setembro de 1991 para Lonnie O. Swain. O anterior proprietário adquirira a carrinha em Abril de 1989. Esse proprietário era Paul Kirkwood.
Megan sentiu-se toda arrepiada ao ler aquilo. A carrinha de que Paul Kirkwood não lhe quisera falar era a de Olie Swain.
Os membros do conselho estão realmente muito perturbados, Mitch. Não conseguem compreender como sucedeu uma coisa destas. Como é que ele arranjou uma faca? Não dão facas aos detidos com as refeições, pois não?
Mitch olhou para o presidente da Câmara que se encontrava sentado na sua frente, do outro lado da secretária, tentando arranjar paciência a partir do stress e da acidez no estômago.
Ele não tinha faca nenhuma, Don. Não teve nenhuma arma de qualquer género. Partiu o olho de vidro e cortou os pulsos com os bocados. Se encontrar alguém no Conselho Municipal que pudesse ter previsto isso, de boa vontade me demitirei e entregar-lhe-ei o meu distintivo.
Oh! murmurou Gillen, horrorizado. Os seus olhos azuis pestanejaram por detrás das lentes. Além do seu lugar de presidente da Câmara, era também membro da Associação de Escolas de Deer Lake. Com perto de cinquenta anos, gostava ainda de se vestir à moda. Os suspensórios e as gravatas vistosas eram da sua preferência. Isso é macabro, Mitch.
Gostaria que não dissesse a ninguém, a não ser aos membros do conselho recomendou Mitch.
Sim, com certeza respondeu Gillen, abanando a cabeça e levantando-se. Acha que o caso está prestes a ser resolvido? perguntou esperançosamente. Esse Olie Swain matou-se por sentir remorsos ou por ter medo de voltar para a prisão?
Sinceramente não sei, Don disse Mitch, erguendo-se também. Gostava de saber.
Gillen ia começar a dizer qualquer coisa quando ouviram uma pancada na porta. Megan entrou logo a seguir, sem esperar que a convidassem.
Desculpe, chefe disse olhando para Mitch.
Peço desculpa por interromper mas tenho aqui uma coisa sobre a qual gostaria de falar consigo imediatamente.
Mostrou um rolo de papel que tinha na mão. Os olhos brilhavam no rosto pálido. Os instintos de Mitch funcionaram como radar. Ela possuía algo de concreto. Tinha a certeza disso.
Sim, entre, agente O’Malley disse Mitch levantando-se. Já conhece o nosso presidente da Câmara, Don Gillen?
Megan cumprimentou Gillen, baixando ao de leve a cabeça, mas não lhe escapou o olhar que ele deitou a Mitch. Aparentemente já se falava do seu relacionamento com Mitch, mas nessa altura Megan não se importou com isso.
Mantenha-me informado, por favor, Mitch pediu Gillen. Farei o que puder junto dos membros do conselho.
Obrigado, Don.
Gillen saiu, fechando a porta. Megan esperou uns bons dez segundos, com o coração a bater violentamente, como se tivesse vindo a correr desde o gabinete dela até ali. Mitch permaneceu de pé junto da secretária, com uma expressão imperscrutável, cuidadosa.
Sexta-feira passada pedi um relatório ao DMV sobre a carrinha que o Paul Kirkwood teve em tempos e acerca da qual tinha convenientemente esquecido tudo começou. Os computadores não estavam operacionais e eles perderam o meu pedido. Entretanto pedimos um relatório sobre a carrinha do Olie Swain. São esses resultados que tenho agora na mão. Dou-lhe três possibilidades de adivinhar onde ele a foi comprar.
Não foi ao Paul disse Mitch sentindo os nervos em franja.
Megan entregou-lhe o rolo de papel.
Merece um charuto. Adivinhou logo à primeira! Mitch desenrolou o papel e exclamou:
Não posso acreditar que ele se tenha esquecido de a ter vendido ao Olie.
Há um certo número de coisas em que é difícil acreditar acerca do Kirkwood. Ele está no centro de voluntários. Liguei para lá e pedi-lhe para termos uma pequena conversa. Pensei que gostarias de estar presente.
Paul vendera a carrinha a Olie. Tentara ocultar esse facto mesmo antes de Olie ser oficialmente considerado suspeito.
AS implicações eram demasiado feias. Mitch nem sequer queria considerá-las, muito menos falar do assunto com Paul. Mas tinha as provas na mão, tão escaldantes como uma arma fumegante.
Creio que seria melhor ser eu a falar com ele declarou Mitch.
Já pensavas isso a semana passada replicou Megan. E não creio que o tenhas feito.
Houve outras coisas mais importantes a fazer afirmou Mitch fitando-a com um brilho de âmbar nos olhos. Estás a sugerir que não quero falar com ele?
Não estou a sugerir coisa alguma replicou Megan muito séria. Telefonei-lhe e quero ter a certeza de que as perguntas vão ser feitas.
O silêncio estendeu-se entre eles. Estavam frente a frente, como adversários, olhando-se friamente. Mitch tinha a sensação de que Megan traçara uma linha no chão, dividindo-os, e isso dava-lhe uma certa sensação de perda, quer isso fosse inteligente ou não.
Passou além dessa linha, pois sabia que Megan nunca o faria. Mas também não recuaria. Mantinha a sua posição com ar de desafio, de queixo erguido e o olhar fixo no dele.
Megan murmurou Mitch levantando uma mão para lhe acariciar a face
Ela virou a cara.
Não tornes as coisas mais difíceis do que têm de ser. Por favor, Mitch.
Não precisamos de ser inimigos.
Não somos insistiu Megan. Forçou-se a dar um passo para o lado. Era-lhe difícil resistir à ternura dele. Isso teria de acabar se queria salvar alguma coisa do que lhe restava.
Ouve explicou ela. Estou a sentir-me encurralada. A culpa não é tua. Não estou a culpar-te pelo que está a suceder. Mas não me sinto satisfeita. Mais nada.
Falarei com o DePalma, se quiseres. Dir-lhe-ei que nada se passou. De resto, nada têm a ver com isso.
Megan sorriu com tristeza.
Obrigada, mas isso não fará qualquer diferença. Ele não estará interessado naquilo que aconteceu ou não entre nós. Se eles decidirem que me tornei um problema de relações públicas, chamar-me-ão à sede e tirar-me-ão o meu lugar como agente no terreno, sendo a razão oficial eu não estar a conseguir progressos no caso, embora todos compreendam que isso se ficará a dever à minha falta de circunspecção.
Mas tu és uma polícia fantástica! afirmou Mitch entregando-lhe o fax. A circunspecção nunca meteu um patife na cadeia.
Megan encolheu os ombros, tentando que o elogio dele não significasse muito para si.
Vai para o diabo! exclamou, entregando-lhe o segundo rolo.
O que é isso?
A análise do sangue. Não é humano. Enganámo-nos.
Graças a Deus... acho eu.
Sim.
Natalie falou pelo intercomunicador.
Chefe, o Paul Kirkwood está aqui para falar consigo.
Deve ter percebido mal o meu pedido disse sarcasticamente Megan erguendo o sobrolho.
Mitch deu a volta à secretária e carregou no botão.
Mande-o entrar, Natalie.
Paul entrou intempestivamente no gabinete, pronto para se lançar em diatribes a respeito «dessa cabra do BCA», mas deteve-se ao ver Megan junto de Mitch, com os braços cruzados sobre o peito. O olhar dela fazia-lhe lembrar o que ele conhecera em St. Paul, na sua infância desafio, dureza e desconfiança. Se fossem garotos, ela poderia dizer-lhe que lhe daria pontapés no rabo pela rua fora.
Dominou-se e voltou o seu olhar para Mitch, sentado à secretária, com as mangas da camisa enroladas e os braços pousados sobre o tampo da secretária, descontraído, um pouco amarrotado.
Julguei que estivesse sozinho disse Paul.
Tudo quanto tiver a respeito do caso pode dizê-lo em frente da agente O’Malley disse Mitch. Tire o casaco e sente-se.
Ignorando o oferecimento, Paul começou a andar de um lado para o outro em frente da secretária.
Sim, já ouvi dizer que vocês são unha com carne É agradável pensar que alguma coisa foi conseguido com tanto trabalho.
Creio que tem coisas mais importantes em que pensar, para não dar importância a mexericos, Mister Kirkwood disse Megan. Na sua falta de memória, por exemplo.
A minha quê?
Sente-se, Paul insistiu Mitch amigavelmente. precisamos de esclarecer umas coisas a respeito da sua antiga carrinha.
Outra vez isso? Paul agitou os braços contra os lados do seu sobretudo preto. Isto é incrível. Vocês conseguiram matar o único suspeito que tínhamos...
O Olie suicidou-se disse calmamente Mitch.
Se assim não fosse poderíamos fazer-lhe estas perguntas acrescentou Megan.
Paul parou de repente e olhou-a. Parecia um pouco mais magro, com o nariz mais aquilino e os olhos mais encovados. Mas em vez de parecer cansado, parecia mais enérgico, como se a tensão lhe fizesse subir a adrenalina. Megan pensou em Hannah que cada vez parecia mais uma prisioneira dos campos de morte.
Que quer isto dizer? perguntou Paul.
Por que motivo não me disse que vendera a carrinha ao Olie Swain? perguntou Mitch com voz calma.
Incrédulo, Paul voltou-se para o encarar.
Não a vendi. Lembrar-me-ia se a tivesse vendido ao Olie Swain. Não me recordo quem a comprou, mas não foi ele.
É engraçado disse Megan. Foi o mesmo que eu pensei. Lembrar-se-ia se a tivesse vendido ao Olie.
Mas não vendi.
Mitch desenrolou o fax e mostrou-lho.
Não é o que diz o DMV, Paul.
Não quero saber o que diz o DMV. Não vendi a carrinha ao Olie Swain! Incapaz de conter a sua agitação, Paul começou novamente a andar de um lado para o outro.
- E o que interessava se a tivesse vendido... há uns quatro ou cinco anos...
Em Setembro de mil novecentos e noventa e um lembrou Megan.
Claro que não interessava respondeu Mitch. O que importa, e muito, é o facto de nos ter mentido acerca disso.
Paul bateu com os punhos fechados sobre o tampo da secretária. A fúria fazia-lhe inchar uma veia no pescoço.
Eu não lhe menti! Como se atreve a acusar-me! O meu filho continua desaparecido...
E nós estamos a examinar cada pista, qualquer coisa que mesmo remotamente nos possa dar alguma indicação declarou calmamente Mitch. Estamos a fazer o nosso trabalho.
E que andavam a fazer a noite passada quando o nosso único suspeito estava a cortar os pulsos? gritou Paul, vermelho de raiva.
Mitch ergueu-se lentamente, com uma expressão impassível. Deu a volta à secretária, agarrou Paul por um ombro e forçou-o a sentar-se.
Sente-se, Paul. Depois instalou-se na beira da secretária, um pouco inclinado para trás, numa posição enganadoramente descontraída. Vamos esclarecer umas coisas, Paul. Em primeiro lugar estamos a fazer tudo quanto podemos para encontrar o Josh. Ninguém está livre de ser observado. Compreende o que quero dizer, Paul? Ninguém. São estas as regras. É assim que estas investigações são feitas. Não deixamos de voltar nenhuma pedra. Se isso fere os seus sentimentos, lamento. Mas tem de perceber que tudo o que fazemos é pelo Josh.
Não estamos a dizer que o senhor é suspeito, Mister Kirkwood acrescentou Megan. Seguimos o trajecto da carrinha do Olie Swain, por uma questão de rotina, e acredite que eu não esperava ver o seu nome como o último proprietário da carrinha, antes do do Olie.
Se conseguir pôr as suas emoções de lado por momentos, Mister Kirkwood, pode imaginar o que isso nos pareceu disse Mitch. Você afirma que não se lembra do nome da pessoa a quem vendeu a carrinha e nós descobrimos que quem a comprou foi o homem suspeito de ter raptado o seu filho. Ainda bem que eu o conheço, Paul. Inclinou-se e apontou um dedo à cara de Paul. Porque se fosse outra pessoa, estaria a ter esta conversa na esquadra, na presença de um advogado.
Paul fez uma expressão meio carrancuda, meio de amuo. como um aluno que tivesse sido chamado ao gabinete do director.
Não vendi a carrinha ao Olie Swain repetiu com voz ligeiramente trémula. O homem que ma comprou deve tê-la voltado a vender sem mudar o título de propriedade.
Mitch suspirou e examinou o fax do DMV.
Recorda-se em que altura do ano vendeu a carrinha?
Não sei. Primavera. Talvez Abril ou Maio.
O título foi mudado em Setembro informou Mitch entregando o documento a Megan. Ela olhou-o de um modo que não passou despercebido a Paul.
Perguntem à Hannah disse, beligerante. A Hannah lembra-se de tudo.
Não tem documentos sobre a venda nos papéis dos impostos? perguntou Megan. Ainda por cima sendo contabilista...
Provavelmente já teria ido ver isso se não estivesse ocupado com as buscas e, francamente, não podia, não posso compreender a importância que isso tem.
Procure, então, Paul disse de novo amigavelmente Mitch.; Eu tentarei perceber a importância...
Óptimo retorquiu Paul, mudando de posição, de modo a desviar-se dos olhares de Mitch e de Megan.
Percebendo essa manobra, Megan deu uns passos e colocou-se directamente na sua linha de visão.
Mister Kirkwood, ainda tenho umas perguntas a fazer-lhe sobre a noite em que o Josh Kirkwood desapareceu.
Estava a trabalhar respondeu Paul Kirkwood com ar cansado, passando a mão pela testa.
Na sala de reuniões do seu escritório, ao fundo do corredor concluiu Megan. E não foi ver se tinha mensagens no atendedor?
Não... murmurou, ouvindo a voz de Josh dentro da cabeça. Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa. Um tremor agitou-lhe o corpo. Não., até depois...
Depois de quê?
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
Fungou e baixou a cabeça, tapando os olhos com as mãos.
No dia seguinte.
Ainda tem a gravação?
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
N... não mentiu. Não pude conservá-la. Não Pude...
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
Só quero tê-lo de volta murmurou por entre as lágrimas. Só quero tê-lo de volta.
Megan soltou um longo suspiro e Mitch deitou-lhe um olhar de aviso.
Lamentamos fazê-lo passar por isto, Mister Kirkwood disse calmamente. Não me agrada fazê-lo.
Ofereceu a Paul uma caixa de Kleenex e deu-lhe uma palmada no ombro.
Sei que isto é terrível. Não faríamos perguntas se não tivéssemos de as fazer.
Chefe? A voz de Natalie fez-se ouvir pelo intercomunicador. O Noga está em linha e creio que quererá ouvir já o que ele tem para lhe dizer.
Mitch contornou de novo a secretária, pegou no telefone e carregou na luz vermelha.
O que se passa?
Estou em St. Elysius, chefe. Acho que é melhor vir aqui. Recebi uma chamada pela rádio do departamento do xerife. Uma mulher em Ryan’s Bay diz que o cão dela encontrou um casaco de criança. Pensam que possa ser o do Josh Kirkwood.
Ryarfs Bay era um nome pomposo para um local húmido numa área pantanosa a oeste de Dinkytown, varrida pelo vento glacial do Inverno. A terra fora anexada ao município de Deer Lake nos anos setenta, mas os residentes na zona não tinham esgotos nem água canalizada, o que fazia com que se considerassem independentes da cidade. Isso explicava o que levara Ruth Cooper a ligar para o departamento do xerife quando o seu labrador saíra do meio das ervas altas com um casaco de criança na boca. Steiger estava já no local, envergando um casacão com a gola virada para cima e um grande gorro de peles a cobrir-lhe a cabeça oleosa. Parecia ser a estrela principal do que era já um circo dos media.
Mas que cena! murmurou Megan quando Mitch parou o seu Explorer ao lado da carrinha da televisão, bloqueando-lhe o caminho.
Profissionais dos media, civis, adjuntos do xerife e cães espezinhavam a neve andando de um lado para o outro. Mitch desligou o motor e começou a voltar-se para Paul que se encontrava no assento de trás, mas ele já saíra do carro e corria para o centro da tempestade. Os repórteres voltavam-se para ele, as câmaras apontavam na sua direcÇão. Mitch saltou da viatura e correu atrás dele, esperando em vão ser capaz de não o deixar mergulhar na cena que ele temia.
Steiger tinha na mão um casaco azul de esquiar, como se Se tratasse de um trofeu. Paul lançou-se sobre ele e arrancou-lhe o casaco das mãos. Steiger cambaleou e recuou u passo. Paul caiu de joelhos sobre a neve, escondeu a cara nocasaco e começou a chorar. Oh, meu Deus, Josh! Josh! Oh, Deus! Não! Mitch abriu caminho por entre os jornalistas ali reunidos, encolerizado. Quando chegou ao meio do círculo, gritou-lhes:
Saiam daqui! Bateu na lente de uma câmara de vídeo, acrescentando: Não têm nenhuma compaixão? Fora daqui!
Ouvia atrás de si o som terrível dos soluços de Paul Kirkwood. Não havia nada na experiência humana que se pudesse comparar à dor de um pai ou de uma mãe. Era o desmembramento de uma alma, tão cruciante que ia além de todos os adjectivos conhecidos.
O padre McCoy estava de joelhos junto de Paul, com uma mão num ombro dele, tentando fazer com que as suas palavras de conforto não fossem varridas pelo vento cortante. Steiger encontrava-se a uma certa distância, parecendo confuso. Questões de espírito ultrapassavam-no.
Obrigado por ter alertado o meu gabinete disse Mitch para Steiger.
O xerife olhou-o de soslaio e cuspiu para a neve.
Afastem-se! gritou Megan para as pessoas, mostrando a sua identificação. Encontram-se numa possível cena de crime! Temos de lhes pedir que se afastem!
Deixe-me em paz! gritou subitamente Paul dando um empurrão ao padre que o fez cair sobre a neve. Não quero nada consigo! Desapareça.
Paul! disse Mitch agarrando-o por um braço e levando-o em direcção aos pântanos, para longe dos olhos vigilantes dos jornalistas. Precisamos de um minuto para pensar no significado disto.
Ele está morto murmurou Paul, segurando o casaco na sua frente, como se o filho acabasse de desaparecer de dentro dele. Está morto. Está morto...
Não sabemos isso disse Mitch puxando o casaco para baixo. Temos aqui o casaco dele. Não o temos a ele. Este casaco é descrito em todos os cartazes e relatos acerca de Josh. O raptor pode tê-lo deixado aqui para nos despistar.
Sem conseguir raciocinar, Paul recomeçara a chorar, repetindo constantemente:
Está morto. Está morto. Está morto.
- Houston! gritou Mitch chamando um dos homens que controlava a pequena multidão.
Corpulento, barbudo, o polícia dirigiu-se para eles, fazendo estalar a neve sob as suas pesadas botas. O vapor da respiração gelara sobre a barba. A restante parte da cara visível, estava vermelha do frio e do vento.
Preciso que leve Mister Kirkwood para casa, Houston. Explique à doutora Garrison o que se passa e não saia de junto deles até eu chegar.
Com certeza.
Houston rodeou os ombros de Paul com um braço forte.
Mister Kirkwood. Está demasiado frio para ficar aqui.
Antes de poderem dar um passo, Mitch segurou o casaco e tentou tirá-lo das mãos de Paul.
Vamos, Paul. Agora trata-se de uma prova. Temos de o enviar para o laboratório.
Com relutância, Paul largou o casaco e, cobrindo a cara com as mãos, afastou-se em companhia de Houston.
Ele está a sofrer muito disse o padre McCoy, sacudindo a neve da sua parka.
Está bem, padre? perguntou Megan, aproximando-se.
O padre McCoy endireitou os óculos e puxou as abas do boné para as orelhas.
Estou bem. Devia saber que o Paul não é um grande admirador meu. Mas quando o Noogie me foi pedir para usar o telefone e nos contou, achei que era meu dever vir aqui.
Nós? repetiu Mitch olhando para a igreja, cujas espiras se erguiam acima das árvores nuas, ao longe.
Eu e o Albert estávamos a examinar umas contas da igreja. Se está preocupado em que as pessoas não saibam, creio que o gato já saiu do saco.
Mitch ficou calado. Olhou demoradamente à sua volta. A. «baía» propriamente dita estava gelada e polvilhada com a neve que se amontoava sobre os compridos caules dos arbustos. Uma paisagem de dunas geladas fustigadas pelo vento. Mas mesmo assim havia pessoas que tinham construído ali as suas casas. A meia dúzia de moradias que orlava o lado noroeste da baía ia de uma cabana invernal até a uma luxuosa casa de madeira de cedro, com terraços elaborados, que teria ficado bem em Nantucket. Estavam situadas longe da margem, em terrenos com três e cinco acres, rodeadas de árvores com folhas sempre verdes durante todo o ano.
Para além delas, para oeste, para além dos terrenos de cultivo e dos bosques de árvores, o horizonte estava leitoso devido à neve que havia no ar. O céu brilhava com tons de fúcsia e tangerina, quando o Sol começou a baixar no horizonte. Na margem sudoeste não havia casas; apenas espessos bosques de arbustos e de pequenas árvores, erguendo-se como palitos gigantescos. As casas mais próximas nessa direcção ficavam a sul, por detrás da Igreja de St. Elysius, parecendo, vistas dali, pequenas caixas com fitas de fumo a saírem das suas chaminés.
Mitch completou o círculo, olhando para Old Cedar Road, cheia de carros e de carrinhas, vendo-se pessoas a baterem com os pés no chão para não gelarem. Albert Fletcher encontrava-se na extremidade dessa fila. Era um vulto alto e magro, envolto num casaco escuro, cujo capuz lhe emoldurava o rosto magro.
Vieram ambos com o Noogie? perguntou Mitch.
Eu vim respondeu o padre, erguendo os sobrolhos ao ver o vulto do diácono. O Albert deve ter vindo pelos seus próprios meios. Não pensei que ele estivesse interessado em vir. Disse-me que não estava a sentir-se bem e que começava a estar constipado...
Aparentemente está a sentir-se melhor disse Megan, dobrando-se contra uma rajada de vento.
Bom... É melhor eu ir andando. O Paul não ficará satisfeito por me ver, mas aposto que Hannah vai precisar de um ombro para chorar.
Atravessou o espaço que o separava de Albert e daí a pouco afastaram-se os dois.
Mitch voltou então a sua atenção para o pequeno casaco que tinha nas mãos. O nome que tinha por dentro fora escrito com um marcador e era impossível de apagar. Mitch voltou-o para Megan para ela o examinar, suspirando.
Creio que não pode haver lugar para dúvidas, pois não?
Steiger aproximou-se, acompanhado por uma mulher que trazia um grande labrador preto preso por uma trela. O cão agitava-se ao lado dela, sem conter a sua excitação.
Mitch, esta é a Ruth Cooper. Foi o cão dela que encontrou o casaco.
Mistress Cooper cumprimentou Mitch, baixando a cabeça.
Megan fitou o xerife e depois apresentou-se.
Mistress Cooper, sou a agente O’Malley, do BCA.
Como está? disse a senhora. Senta-te, Caleb ordenou, voltando-se para o cão e puxando-lhe a trela. Caleb era um animal novo, ágil e musculoso. Agitou-se dos pés à cabeça e à ponta da cauda, ao ouvir a ordem da dona.
Mrs. Cooper era uma mulher baixa e rechonchuda com cerca de sessenta anos. Usava um gorro de lã e um casaco de esquiar tom de malva. O seu pequeno nariz revelava sinais de estar demasiado tempo exposto ao frio intenso e tomara um tom vermelho-escuro. Enquanto contava a sua história, ia mudando o peso do seu corpo de um pé para o outro. Calçava botas fortes, próprias para caminhar na neve.
Andava a passear com o Caleb começou ela, o que fez com que o cão abanasse freneticamente a cauda ao ouvir o seu nome. Ele pode sair sem a trela, mas nós não confiamos, pois é capaz de meter-se nalguma aventura e, por isso, eu ou o Stan saímos com ele... mesmo com este tempo. O Stan não tem saído porque apanhou esse vírus terrível que anda por aí. Eu disse-lhe para se vacinar este Outono, mas ele é teimoso. De qualquer modo, estávamos a andar à volta da baía e o Caleb, que gosta de se meter entre os juncos e assustar os pássaros, começou a correr e voltou com isto. Segurou numa manga do casaco e levantou-a. Percebi imediatamente do que se tratava. Pobre garoto!
Mistress Cooper interrompeu Mitch. Vem passear para aqui com o Caleb todos os dias?
Oh, sim. Ele precisa de exercício. Tanto eu como o Stan não gostamos de o ter preso na casota, mais a mais por ser um cão grande como o Caleb. Saímos com ele todos os dias. A nossa casa é ali acrescentou, apontando para uma casa de tom creme. Querem ir tomar um café? Está um frio terrível aqui.
Talvez daqui a uns minutos, Mistress Cooper disse Mitch. Lamento obrigá-la a ficar ao frio, mas precisamos de saber o sítio exacto onde o Caleb descobriu o casaco.
Ruth e Caleb foram à frente, indicando o caminho, logo seguidos por Steiger. Mitch e Noga iam atrás, falando em voz baixa.
Estive aqui na sexta-feira com a equipa de buscas chefe. Não encontrámos sequer um papel de pastilha elástica. Trouxemos um cão connosco. O casaco não estava aqui chefe.
Mitch franziu a testa.
Qual foi a última vez em que esteve com o Caleb nesta área, Mistress Cooper?
Foi ontem. Estivemos neste sítio ontem à tarde disse a senhora, indicando a margem do pântano.
Viu alguém por aqui entre essa altura e o momento em que o Caleb encontrou o casaco? perguntou Megan abrindo lentamente o bolso do casaco de Josh. Havia lá um lenço de papel e o invólucro de uma pastilha elástica.
De tempos a tempos vemos pessoas por aqui. Temos aqui um bom caminho para os carros de neve, e para quem faz esqui nos terrenos. Algumas dessas pessoas são completamente doidas. Fazem jogging, ou lá o que é, seja com que tempo for. Ainda esta manhã, bem cedo, esteve aqui um homem. Eu estava na cozinha a aquecer água para o chá do Stan quando olhei e o vi no atalho.
Viu-o bem? perguntou Mitch.
Ele ia mesmo em direcção à casa informou a senhora, mas estava todo envolto num grande casacão. Disse-me que tinha perdido o cão e andava à procura dele. Era grande e com muito pêlo. O cão, não estou a ffalar do homem, claro. Perguntou-me se eu o tinha visto e ieu disse-lhe que não. Então, pediu-me para o chamar, se o visse. Disse-lhe que sim. Gosto de cães e com certeza que não o ia deixar fora com um frio tão terrível.
Os meus homens já passaram revista a esta área disse Steiger a Mitch. Tinha as mãos nos bolsos e parecia enregelado pelo frio. Não há mais nada para ’ver aqui acrescentou. O melhor é aceitarmos o conviite da Ruth para irmos tomar um café.
Quero só ir dar uma olhadela rápida respondeu Mitch, dirigindo-se para a margem da baía.
O homem disse que o cão era do filho dele prosseguiu Ruth. O nome do cão era um bocado estranho. Grímsby? Gatsbyl? Gizmo. É isso. Gizmo.
Mitch sentiu-se trespassar por um arrepio de medo. Parou a meio caminho da margem. Viu mentalmente o caderno de apontamentos de Josh. Lembrou-se do desenho que o representava ao lado de um grande cão lanzudo: Gizmo. Mitch.
A voz de Megan fez com que ele voltasse a cabeça na direcção dela. Fitou-a. Os olhos de Megan estavam muito abertos e o seu rosto branco como a neve. Tinha na mão um pedaço de papel que esvoaçava ao vento como uma fita.
Mitch correu para ela e segurou o papel com os dedos, percebeu que não soubera o que era o frio até ter lido as palavras ali escritas. Ao lê-las, o sangue pareceu água gelada a correr-lhe nas veias.
o meu espectro à minha volta noite e dia guarda o meu caminho como um animal selvagem emanando do meu interior chora incessantemente pelo meu PECADO
Que diabo quer isto dizer? perguntou Steiger, andando em volta da mesa com as mãos nas ancas estreitas.
Megan estava sentada em cima da mesa, com os pés no tampo de uma cadeira e os cotovelos apoiados nos joelhos. Encontravam-se na sala de reuniões onde ela vira Mitch pela primeira vez a dançar, vestido com roupa interior vermelha. Isso fora há uma semana. Naquele momento estava em frente dela, encostado à parede, com os braços cruzados sobre o peito e uma expressão cansada. O seu rosto magro e duro estava sulcado por rugas de tensão e de fadiga.
A sala mudara também. Chamavam-lhe agora a sala de guerra. Um mapa de Park County e outro do estado do Minnesota cobriam todo o quadro de cortiça onde eram colocados os boletins. Alfinetes encarnados assinalavam os locais das buscas. Na parede havia uma enorme folha branca com um gráfico da investigação. Tudo o que fora sucedendo, desde o dia em que Josh fora visto pela última vez, se encontrava ali apontado. Pequenos canais emergiam da artéria Principal, traçada a vermelho. Notas escritas a tinta azul, vermelha e preta. No quadro branco das mensagens, colocado na extremidade da sala, Mitch escrevera a última nota com a sua letra grande e inclinada.
Era ali que iam discutir os assuntos, longe do ruído e da actividade do posto de comando. A sala de guerra não tinha telefone, nem voluntários, nem jornalistas à espreita. Ali podiam sentar-se, olhar para as mensagens, estudá-las e ouvir o tiquetaque do relógio enquanto tentavam decifrá-las. O que sabiam de certeza era que a citação provinha de My Spectre de William Blake.
Ele pode estar a dizer que tem uma personalidade múltipla sugeriu Megan, o que lhe valeu um sorriso de troça da parte de Steiger. Ou que tem um cúmplice.
O Olie Swain era culpado disse Steiger. Basta ver aquelas fotografias.
Eram antigas contrapôs Mitch. Nunca tinha feito mal algum aqui.
O xerife ergueu os olhos para o tecto.
Um falcão é sempre um falcão. Acha que ele viveu aqui sem molestar nenhum garoto?
Nunca tivemos qualquer queixa...
Grande coisa. Essas merdas sucedem e ninguém ouve falar delas. Os miúdos são gananciosos. Se o Olie lhes oferecesse dez dólares por umas carícias, talvez eles achassem que não era coisa de importância. Guardavam o dinheiro e calavam-se. O Olie deve ter feito isso.
Jurou com o seu próprio sangue que não foi ele disse Megan, mais para espicaçar Steiger do que por acreditar nisso.
Steiger franziu o sobrolho.
Acreditou nisso? Abanou a cabeça, sorrindo maldosamente. Bem, toda a gente sabe como conseguiu ser detective.
Que diabo quer dizer com isso? perguntou Mitch, afastando-se da parede.
Quer dizer que é um cretino disse calmamente Megan, levando novamente a conversa para o assunto de que estavam a falar sem que Steiger pudesse responder-lhe. Bom, eu acho que, ao escrever isto, pode querer dizer que se sente culpado pelo que fez, mas eu não acredito. Não fez nada que o leve a ter remorsos; tudo o que tem feito é arreliar-nos. Creio que está agora a rir-se de nós, por nos fazer andar às voltas como os polícias da Keystone.
Malditos jogos mentais murmurou Mitch. Jogos mentais de uma mente tão retorcida como um saca-rolhas. Suficientemente distorcida para colocar uma prova à vista de todos e ir depois falar com uma mulher que estava em casa, deixando casualmente pistas, no meio da conversa, e indo-se depois embora.
Concordo. O Olie não teve nada a ver com o telefonema feito no sábado de Saint Peter. Não foi ele que pôs o caderno de apontamentos no carro, nem foi ele que deixou o casaco na neve. A chamada da noite passada também não foi feita pelo Olie.
Que chamada? quis saber Steiger. Megan ignorou a pergunta dele.
Podia ter sido uma brincadeira estúpida, mas não o creio.
Que chamada? insistiu Steiger.
Recebi um telefonema a noite passada informou Mitch apontando para o quadro das mensagens. Quem falou limitou-se a repetir as mesmas palavras várias vezes: «Ignorância cega e nua.» Achei que fosse uma brincadeira estúpida, mas pode não ter sido.
Cega e nua? repetiu Steiger. Podia ser alguém que estivesse a espreitar pela sua janela.
Talvez seja melhor guardar os seus comentários para si e pensar mais no caso, Russ.
Megan saiu de cima da mesa quando o seu beeper começou a dar sinal. Depois de o tirar do cinto, Megan franziu a testa.
Preciso de fazer um telefonema murmurou ela, olhando Mitch de rosto fechado. Está pronto para ir ter a conversa com os Kirkwood, chefe?
Mitch disse que sim com a cabeça. Não gostava da expressão tensa do rosto dela. O telefonema devia ser para DePalma. Por mais que dissesse a si próprio que ela estava a empolar as coisas, não podia deixar de se preocupar. Não queria que fosse substituída. Não queria que fosse castigada por uma coisa em que ele tivera tanta culpa como ela. Mais, mesmo. Megan tinha a sua regra de não querer andar com polícias. Ele é que a levara a quebrá-la.
Daqui a cinco minutos passo pelo seu gabinete. Viu-a sair e esqueceu a presença de Steiger por um instante. Um momento foi só o que o xerife lhe permitiu.
Que tal é ela? indagou Steiger cruzando os braços sobre o peito, com um sorriso sarcástico. Não me parece ser grande coisa na cama, mas talvez se possam fazer coisas melhores com a boca dela do que disparar sobre ela.
A reacção de Mitch foi instintiva. Levantou o braço direito e atingiu Steiger em cheio no nariz. O ruído do osso a partir-se ouviu-se na sala. Steiger cambaleou e caiu sobre um joelho, levando a mão ao nariz ensanguentado.
Partiu-me o nariz! exclamou Steiger, ainda atordoado, enquanto o sangue lhe corria e pingava sobre a carpete.
Sacudindo a mão que ficara dorida, Mitch inclinou-se sobre Steiger.
Isto não foi nada, xerife! Foi por ter difamado Megan junto de Paige, por lhe ter dado informações confidenciais e por ser um filho da mãe em geral. Só um nariz partido por tudo isso? Que diabo, mesmo sem o nariz partido você já não era muito bonito.
«Mas deixe-me fazer-lhe um aviso continuou Mitch, levantando um dedo para dar mais ênfase às suas palavras. Se logo à noite ligar a televisão para ver o noticiário e ouvir a Paige Price a recitar William Blake, vou à lata onde você vive, meto-lhe uma espingarda pelo rabo acima e estoiro-lhe os miolos. Compreende o que estou a dizer, Russ?
Vá-se foder resmungou Russ, levando a mão ao bolso das calças para tirar de lá um lenço.
Muito bem dito, xerife. Como sempre é mestre em palavras elevadas. Pena é que não seja tão bom polícia.
Ela distorceu os factos disse Megan ao telefone. Tinha os braços sobre o tampo da secretária e a cabeça encostada a uma das mãos. O que estou eu a dizer? Ela não tem sequer factos. Inventou essa história a partir do nada.
Mas você não estava às três horas da madrugada em casa do chefe Holt?
Sim, mas há uma explicação muito simples para isso... que, devo dizer, a Paige Price não se preocupou em esclarecer na conferência de imprensa.
Quer dizer que houve um empolamento dos factos?
Claro
Esse tema é recorrente na sua vida, agente O’Malley.
Já discutimos a questão dos sexos. A última coisa de que o BCA precisa é de se ver arrastado para um escândalo de sexo.
- Sim, senhor.
Faz ideia do que se passaria aqui se isso sucedesse. É a primeira vez que damos a uma mulher um lugar de agente no terreno e logo a seguir ela seduzia o chefe da polícia local.
Megan quase saltou da cadeira.
Eu não seduzi...
Não estou a dizer que você o tenha feito, mas isso não significa que a imprensa seja tão amável. O que se passou então?
Megan engoliu em seco e cruzou os dedos.
Estávamos a falar do caso e a tomar um café.
Às escuras?
Estava a lareira acesa e a televisão ligada. Havia luz mais do que suficiente.
Continue.
Como sabe, tenho trabalhado longas horas no caso. Todos temos. Estávamos exaustos e acabámos por adormecer.
Durante o longo silêncio que se seguiu, Megan sentiu a testa encher-se de gotas de suor. Não era mentirosa por natureza e detestava ter de mentir naquela altura. O que ela fazia depois das longas horas de trabalho não devia interessar a ninguém. Se se tratasse de um homem, certamente ninguém se preocuparia em o seguir. Provavelmente esperariam até que seduzisse alguém.
Seduzir. A palavra deixava-lhe um gosto amargo na boca. Achava-a ordinária. Mesmo não sabendo o que sairia do seu relacionamento com Mitch, não gostava de pensar nele nesses termos.
O meu filho de dezasseis anos arranja explicações mais imaginativas do que essa comentou DePalma, por fim.
É a verdade. «Parte da verdade, pelo menos.» DePalma soltou um suspiro que, ao telefone, soou como um vendaval.
Eu simpatizo consigo, Megan. É uma boa polícia. Quero que este caso resulte para si, mas está a colocar o BCA numa posição insustentável. Nomeámo-la a primeira agente feminina no terreno e somos acusados de parcialidade.
Depois, em tudo o que você se mete, dá escândalo. Discute com o Kirkwood, dorme com o Holt...
Já disse que...
Não vale a pena insistir. Tanto faz que o tenha feito como não. As pessoas acreditam no que querem.
Incluindo o senhor...
E agora o vosso único suspeito aparece morto na prisão.
Está a acusar-me de o ter assassinado?
Isto está mau.
Deus nos livre de o crime parecer bem...
Esse género de observações espertinhas é que a metem em sarilhos, Megan. Só Deus sabe que espécie de sarilhos teremos nas mãos se tivermos de a substituir. Mas já temos muitos, por isso não pense que isso não pode suceder.
Não, senhor.
Como é que vão com o caso?
Estamos metidos na toca de um coelho com um louco Megan guardou essa ideia para si própria e explicou, sem embelezamentos ou falsas esperanças, em que ponto estavam. No trabalho da Polícia não resultava prometerem mais do que podiam dar.
E essa tal Mistress Cooper poderá identificar o homem que foi a casa dela?
Não tem a certeza. Ele estava bem protegido contra o frio. Levei-a há pouco até junto do perito, para fazerem o retrato dele.
Havia sangue no casaco?
Que eu visse não. Foi para o laboratório.
O que é que pensa sobre o bilhete? Acha que quer dizer que matou o rapaz?
Não sei.
Já pensou na possibilidade de o cúmplice do Swain ser alguém que ele conhecesse em Washington?
Segundo tudo o que sabemos acerca dele, era um solitário tanto lá como aqui. A pessoa mais próxima dele era um primo cuja identidade tinha consigo. E o melhor que esse primo diz dele é que era um tarado. Claro que eu também ficaria um pouco aborrecida se um primo meu me roubasse a minha carta de condução e assumisse a minha identidade noutro estado e cometesse um crime horrendo que atraísse as atenções gerais.
DePalma ignorou o sarcasmo.
Talvez precise de ajuda sugeriu. Megan sentiu-se arrepiada.
O que quer dizer?
Não está a conseguir coisa alguma. Talvez precise de alguém que lhe apresente novas perspectivas.
Posso tratar do caso, Bruce respondeu Megan com voz tensa.
Claro que pode. Mas acho que, quando as coisas se encontram num impasse, alguém de fora pode dar novas ideias.
Megan sabia o que ele estava a pensar. O plano era dolorosamente claro. DePalma enviaria outro agente para usurpar calmamente a autoridade dela, e quando as rédeas tivessem mudado de mãos, ela seria chamada calmamente à sede, sem alvoroços, sem despertar as atenções.
Creio que isso seria um erro respondeu Megan, tentando mostrar-se calma. Uma pessoa que chegasse aqui de novo teria de estudar intensamente o caso, ler os depoimentos, entrevistar testemunhas, conhecer a família... e francamente as pessoas estão fartas de intromissões nas suas vidas.
Terei isso em conta. Entretanto precisa de fazer com que suceda algo de bom, Megan. Percebe o que quero dizer?
Perfeitamente.
Despediram-se e Megan desligou o telefone, fazendo-lhe uma careta.
E não me chame Megan quando estou furiosa consigo concluiu.
Sim, minha senhora disse Mitch, metendo a cabeça pela abertura da porta.
Megan olhou-o, demasiado cansada e preocupada para sorrir sequer.
Não estou zangada contigo.
Mitch entrou no gabinete com o casaco sobre um ombro.
Que tens na mão? perguntou Megan reparando que ele tinha os nós dos dedos inchados.
Senti vontade de bater nalguma coisa.
Como o quê? Uma parede de cimento?
Na cara do Steiger.
Que diabo, chefe disse Megan erguendo as sobrancelhas. Seria capaz de pagar para ver isso.
Foi melhor não haver testemunhas retorquíu Mitch. O Steiger tem estado a dar informações confidenciais a Paige Price. Mostrei-lhe o meu desagrado.
A raiva pela injustiça fez com que a cabeça lhe doesse ainda mais.
Ela anda metida com o Steiger para obter informações e tem a ousadia de me apontar o dedo numa conferência de imprensa. Eu também não me importaria de lhe bater.
Se lhe tocares, ela tirar-te-á mais do que o teu lugar murmurou Mitch passando um dedo sobre a placa com o nome dela. Que tinha o DePalma para te dizer?
Queres saber o que ele disse, ou o que ele quis dizer? Oficialmente, não podem fazer comentários sobre mexericos ditos a respeito de uma agente. Portanto, exprimem a maior confiança em mim nos termos mais amistosos. Oficialmente, poderão enviar outro agente «para me ajudar na investigação». Se isso suceder, esse agente acabará por ficar com o meu lugar e eu irei parar a uma secretaria na sede, a tratar de papelada sobre questões de pequenas fraudes.
De sobrolho franzido, Mitch deu a volta à secretária, enquanto ela ia buscar o casaco.
Gostava que me deixasses falar com ele.
Não quero que traves as minhas batalhas por mim declarou Megan abanando a cabeça.
Chama-se a isto apoiar uma amiga, Megan.
Ela voltou-se e olhou-o de frente. Mitch estava mais uma vez demasiado perto dela, tentando intimidá-la, chamando a atenção dela para o facto de ser maior e mais forte, capaz de a dominar... ou de a proteger. Uma parte dela achava essa ideia tentadora. Mas não cederia a essa parte.
Isso seria dar falsas informações, o que eu já fiz. Não quero que mintas por minha causa. E mais nada.
Mitch não mostrou desagrado pela resposta dela. Viu-a enfiar o grosso casaco acolchoado. Era terrivelmente obstinada, pensou. Terrivelmente independente. Gostaria que ela se apoiasse nele. Mitch apercebeu-se disso com uma certa surpresa. Queria defender a honra dela. Eram ideias antigas e Megan não era uma mulher antiquada. Ideias que subentendiam um compromisso. Coisas que ambos afirmavam não querer.
Havemos de arranjar uma solução murmurou, sem saber bem a que parte de toda aquela confusão se referia.
O quê? Quis perguntar Megan. A solução do caso em que trabalhavam? A solução do assunto pessoal deles? Decidiu que seria a primeira; nisso é que precisavam de concentrar todos os seus esforços, pois os ponteiros do relógio não parariam de andar.
Isso significa apenas uma coisa disse com expressão sombria. Temos de encontrar o Josh!
Hannah estava junto da janela, olhando para o lago. Os últimos raios de sol sulcavam o horizonte distante como riscos vermelhos de infecção que irradiassem de um ferimento. Era estranho como uma cor tão quente era indicação de um céu tão frio. Parada, Hannah sentia o frio passar pelo vidro, penetrando-lhe no corpo. Desejou que o frio a entorpecesse, mas não o fez. Fê-la simplesmente estremecer.
Do outro lado do lago começaram a aparecer luzes. Os helicópteros tinham sido novamente chamados. Podia ver um deles ao longe, pairando sobre Dinkytown como um abutre. Recordava o ruído que eles faziam e como costumava ficar acordada ouvindo a sua fantasmagórica passagem, para trás e para diante, sobre a cidade. Para além de Dinkytown, em direcção ao horizonte chamejante, ficava Ryan’s Bay, onde um cão encontrara o casaco de Josh, caído sobre a neve, como um destroço.
Parecia-lhe estar a ver o casaco azul-vivo com manchas de verde e amarelo. Sabia qual o tamanho e o nome da marca. Sabia que nos bolsos teria pequenos tesouros, Kleenex e luvas. Conhecia o seu cheiro e a sensação do contacto e todas essas recordações pairavam na sua mente, intangíveis e intocáveis. Havia sido o segundo sinal de Josh durante toda a semana e ela não fora autorizada a vê-lo nem a tocar-lhe. O casaco fora imediatamente enviado para St. Paul para ser analisado.
Teria gostado de o ter nas mãos, de lhe tocar murmurou. Tentava imaginá-lo nas suas mãos, levando-o ao rosto, roçando-o pela face.
Lamento, Hannah disse Megan. Achámos que era essencial enviá-lo para o laboratório o mais depressa possível.
Compreendo respondeu Hannah. Mas não compreendia, para além da parte lógica, prática do seu cérebro que respondia automaticamente.
Conseguirão encontrar impressões digitais dele? quis saber Paul. Estava sentado junto da lareira, vestindo um fato de treino preto, um pouco desbotado, com o símbolo da Universidade do Minnesota no peito. O cabelo estava ainda húmido do duche que tomara para se aquecer. Lily, sentada ao colo do pai, tentava em vão que ele se interessasse pelo seu Barney de peluche.
Megan e Mitch entreolharam-se.
Não respondeu Mitch. É praticamente impossível encontrar impressões digitais no nylon.
E então?
Queres realmente obrigá-los a dizê-lo interrompeu Hannah. O que é que achas que eles procuram? Sangue, esperma ou qualquer outro sinal daquilo que esse animal possa ter feito ao Josh. Não é verdade, agente O’Malley?
Megan ficou calada. A pergunta fora retórica. Hannah não precisava, nem queria ouvir a resposta. Continuava de pé, de costas voltadas para a janela, com a máscara de agressividade a tentar encobrir o horror que a consumia.
A dona do cão que descobriu o casaco pode ter visto o homem que o deixou lá. Com efeito, ele até conversou com ela.
Pode? perguntou Hannah, perplexa.
Mitch contou-lhes a história de Ruth Cooper e do homem que fora à porta dela depois de o ter visto da janela da cozinha. Quando chegou à parte acerca do nome do cão, Hannah agarrou-se à cadeira, para não cair, lívida.
Paul levantou-se lentamente. Pousou Lily no chão e ela dirigiu-se para Mitch e ofereceu-lhe o dinossauro. O padre Tom levantou-se do sofá e pegou na criança ao colo, fazendo-lhe cócegas enquanto subia as escadas com ela, para o quarto.
Então, pode identificar o homem disse Paul.
Ela está a trabalhar com um perito para fazer o retrato dele. Poderá talvez reconhecê-lo se o voltar a ver.
Poderá? Poderá? repetiu Paul levantando-se e voltando a sua atenção de novo para a lareira. Pegou num atiçador e remexeu as brasas, lançando uma chuva de faúlhas pela chaminé acima.
É melhor do que nada.
É... nada. Voltou-se subitamente, com o atiçador na mão e o seu rosto magro contorcido de raiva. Vocês não têm nada. O meu filho está caído, morto em qualquer sítio e vocês não sabem nada. Nem sequer conseguiram manter vivo o único suspeito que tinham!
Hannah olhou-o, zangada.
Pára com isso!
Paul não lhe prestou atenção e dirigiu a sua fúria contra Mitch e contra Megan.
Vocês estão demasiado ocupados a foder um com o outro para quererem saber do meu filho.
Paul, por amor de Deus!
O que se passa, Hannah? perguntou ele, voltando-se para a mulher e apertando o atiçador com mais força na mão Ofendi a tua sensibilidade?
Ofendes toda a gente.
Não me interessa. Eles não fazem outra coisa e quem paga é o meu filho.
Também é meu filho...
Sim? Foi por isso que o deixaste na rua para ser raptado e assassinado? gritou, atirando com o atiçador para o lado. O objecto de metal bateu na parede, com força, e caiu.
Hannah mal conseguiu falar. Se ele a tivesse trespassado com o atiçador, não a teria magoado tanto.
Patife! murmurou ela com voz trémula.
Paul! Mitch pousou a mão no ombro de Paul, apertando-o com força e magoando-o. Vamos para o seu escritório acrescentou em voz baixa.
Paul libertou-se dele com uma careta.
Para me poder fazer outra vez um sermão sobre como devo dar apoio à minha mulher disse com ar de troça. Não creio que esteja interessado em qualquer coisa que tenha para me dizer.
Mitch agarrou-o novamente por um braço e empurrou-o para fora da sala em direcção ao escritório.
Hannah não os viu sair. Esforçando-se por manter o autodomínio, atravessou a sala, apanhou o atiçador da lareira e colocou-o novamente no seu lugar. As mãos tremiam-lhe tanto que ela nem podia lembrar-se de as ter tido suficientemente firmes para empunhar o bisturi.
Bem disse, limpando as mãos. Peço desculpa por ele.
Hannah... começou a dizer Megan.
O pior é que em parte ele tem razão murmurou Hannah. A culpa foi minha.
Não. Apenas se atrasou. O Josh não tinha de desaparecer por isso.
Mas desapareceu.
Por causa do homem que decidiu levá-lo. Você não podia controlar isso
Não prosseguiu ela. E agora não controlo coisa alguma. Por causa desse momento, a minha vida está a desfazer-se. Se eu tivesse saído do hospital antes de Kathleen me apanhar já à porta, o Josh estaria aqui. Tê-lo-ia ido buscar hoje ao hóquei. Ele estaria a queixar-se de ter de ir às aulas de catequese na igreja. Um momento. Uns segundos! Algumas batidas do coração. Olhando para as chamas, fez estalar os dedos. Menos uns segundos e o acidente de carro não se teria dado, eu não teria sido chamada às urgências e o Josh não teria ficado sozinho. Não estaríamos aqui, embaraçadas, porque o meu marido considera que a culpa é minha...
Hannah calou-se. Não se podia voltar atrás no tempo. Só podiam seguir em frente, para a incerteza. Vozes abafadas e zangadas ouviam-se, vindas do escritório de Paul, apesar da porta fechada.
Hannah tirou um pedaço de tinta azul, seca, das calças.
Também gostava de voltar ao momento em que o Paul mudou. Ele era tão diferente. Costumávamos ser tão felizes...
Megan ficou sem saber o que dizer. Nunca fora muito de partilhar confidências com outras mulheres. A sua falta de habilidade para relacionamentos impedia-a de dar conselhos sábios. Voltou-se para aquilo que sabia.
Quando é que começou a notar alterações nele?
Oh, nem sei respondeu Hannah. Foram pequenas mudanças subtis, talvez desde há anos. Talvez aproximadamente um ano depois de nos termos mudado para aqui.
Depois de ela começar a estabelecer-se na comunidade e no hospital, achava ela. A ideia de irem viver para ali fora de Paul. Talvez pensasse que numa cidade pequena ele se transformaria no centro das atenções da comunidade, como sucedera com ela, tornando-se uma pessoa muito querida, conhecida e respeitada. Nos seus primeiros tempos, ele tinha-lhe dito que gostava de vir a ser alguém, não apenas o filho estudioso de uma família de operários. Julgaria ele que se tornaria uma pessoa diferente ali? Uma pessoa extrovertida e gregária, quando não tinha em si essas qualidades? Hannah não podia pensar que fosse a inveja que os afastara e que abrira aquele abismo entre eles e que envenenara o amor que tinham um pelo outro. Parecia-lhe uma coisa impensável entre duas pessoas que haviam jurado apoiar-se e respeitar-se mutuamente.
E recentemente tem piorado? perguntou Megan.
Ele ficou zangado por eu passar mais horas no hospital, depois de ser nomeada chefe das urgências.
E os horários dele? Nessa noite estava a trabalhar.
Estamos quase na altura dos impostos. Deve ter de trabalhar muitas noites.
Normalmente ignora os seus telefonemas quando lhe liga para o escritório, à noite?
Hannah endireitou-se um pouco na cadeira e sentiu um aperto no peito.
Porque me faz essas perguntas?
Sou polícia. Faço o meu trabalho respondeu Megan, esperando falar com naturalidade.
Não pode estar a pensar que o Paul tenha alguma coisa a ver com isto, pois não?
Não, claro que não. São apenas perguntas de rotina mentiu Megan. Precisamos de saber onde estava toda a gente nessa noite... antes de o caso ser entregue à justiça. São fanáticos pelos pormenores. Até a Madre Teresa teria de ter um álibi, se aqui estivesse. Quando apanharmos o raptor, o advogado dele vai provavelmente tentar provar que o seu cliente se encontrava noutro sítio qualquer às seis horas desta manhã e poderá perguntar-lhes, a si e ao Paul, onde estavam a essa mesma hora.
Hannah pestanejou, sem revelar o que sentia.
Não sei onde o Paul estava. Quando acordei, ele tinha-se ido embora. Disse-me que se metera no carro, sozinho, e que andara por aí às voltas, a ver... Estou certa de que foi isso que fez.
Olhou para Megan, como se tentasse convencê-la das suas palavras, e ao mesmo tempo convencer-se a si própria.
Com certeza que tem razão disse Megan. Estava a gravar na memória tudo o que se passava. Os factos, o tom de voz de Hannah, a sua expressão, a tensão que pairava em redor dela, como electricidade. Não quis sugerir qualquer outra coisa. Só quero que compreenda como isto funciona, por que razão temos de fazer tantas perguntas. O que eu realmente gostaria de lhe perguntar era se lhe ocorrem alguns nomes de pessoas que possam ter algum ressentimento contra si ou o Paul. Um paciente descontente, ou um cliente hostil... qualquer coisa...
Já entrevistaram toda a gente que eu conheço. Francamente não posso pensar num doente que pudesse fazer uma coisa destas. Os casos que temos no nosso pequeno hospital são na sua maioria casos facilmente curáveis, ou de morte instantânea. A maior parte dos casos críticos vítimas de acidentes ou outras, e transportada directamente para o Centro Médico de Hennepin County. Os doentes com doenças muito graves são também levados para hospitais maiores, com mais recursos.
Mas devem morrer algumas pessoas aqui.
Algumas. O seu rosto tomou uma expressão dolorosa face às recordações tristes. Lembro-me de que, quando trabalhava em Twin Cities, recebíamos pessoas provenientes dos pequenos hospitais rurais, como o de Deer Lake, quando surgiam casos graves nesses hospitais. Fazemos tudo o que podemos, mas não temos nem o equipamento nem o pessoal de um grande hospital. As pessoas aqui compreendem isso.
Talvez murmurou Megan, tomando mentalmente nota para passar pelo hospital de Deer Lake a fim de falar com o pessoal das urgências.
Quanto ao Paul, há sempre clientes que ficam aborrecidos com os impostos que têm de pagar, mas isso não é culpa dele.
Não tem havido grandes auditorias, pessoas enviadas para a prisão por causa dele?
Não.
Hannah levantou-se da cadeira. A sua agitação nervosa não lhe permitia estar mais do que uns minutos no mesmo sítio, por mais cansada que estivesse.
Vou fazer chá. Quer? Está tanto frio... E Josh estava algures, sem o seu casaco.
Pela grande janela panorâmica viram que a noite caíra fria e escura, como breu.
Acha que ele está vivo? murmurou, olhando para a escuridão em que Josh desaparecera oito longos dias antes
Megan levantou-se e foi-se pôr ao lado dela. Há pouco mais de uma semana, qualquer pessoa diria que Hannah tinha tudo carreira, família, a casa à beira do lago. Metade da cidade olhava-a como um ícone representativo da mulher moderna. Agora era apenas uma pobre mulher, despedaçada e vulnerável, agarrada a uma esperança ténue como um cabelo.
Para mim, ele está vivo até alguém me provar que não está disse Megan. É no que eu acredito. E é no que tem de acreditar também.
A porta do escritório abriu-se de repente. Paul apareceu e saiu de casa pela porta da garagem. Pouco depois surgiu Mitch, com ar cansado e sombrio.
Não sei como hei-de falar com ele disse Mitch dirigindo-se para a sala.
Eu também não respondeu Hannah. Devemos formar um grupo de apoio?
Mitch esboçou um sorriso devido ao gracejo dela. Segurou-lhe as mãos entre as suas e apertou-lhas. Os dedos dela estavam tão frios como a morte.
Tenho muita pena, Hannah. Muita pena de tudo isto. Gostava que houvesse mais alguma coisa que eu pudesse fazer.
Sei que estão a fazer tudo quanto podem. A culpa não é vossa.
Também não é sua murmurou Mitch, abraçando-a carinhosamente.
Hannah acompanhou-os à porta e viu-os sair para a noite gelada. No caminho de regresso à sala, parou um momento para ouvir o silêncio. O seu «guarda», como ela chamava ao agente que os acompanhava ali em casa, saíra para jantar quando Mitch e Megan tinham chegado e ainda não voltara. Hannah pedira às voluntárias que lhe faziam companhia que a deixassem só um bocado, e nesse momento a casa estava calma e a tensão desaparecera.
Hannah pensou onde estaria Paul, quanto tempo se passaria até ele voltar e recomeçar as hostilidades. Imaginou quanto tempo levaria a ser colmatada a fenda que os secara Uma semana, um mês, um ano. Pensou se teriam Josh de novo junto deles quando isso sucedesse. E pensou se realmente desejaria que a fenda desaparecesse
Viu mentalmente o casaco de Josh preso entre os arbustos, em Ryan’s Bay.
Quando o receio, o temor e a sensação de culpa iniciaram um novo ciclo dentro dela, Hannah subiu as escadas e percorreu o corredor em direcção ao quarto de Lily. A filha dar-lhe-ia conforto e amor inquestionáveis, sem lhe fazer perguntas.
O som de uma voz baixa e meiga dentro do quarto fez com que Hannah parasse de súbito no meio do corredor. A porta estava entreaberta e a luz passava para o corredor como um raio de luar. Hannah espreitou pela abertura da porta e viu o padre Tom sentado na antiga cadeira de balouço branca com Lily ao colo. O braço contornava o corpinho de Lily para segurar o livro.
Um estranho que os visse assim julgaria tratar-se de pai e filha. Tom, com a sua camisola e velhas calças de bombazina, Lily com um pijama inteiro, fogo e cor-de-rosa as faces rosadas e os grandes olhos sonolentos, ouvia com uma expressão contente as aventuras do Ursinho Puff e dos seus amigos.
Algo se agitou dentro de Hannah, algo a que ela não se atrevia a dar um nome, algo que tinha um sabor de desapontamento e de vergonha. Entrou no quarto antes que esse sentimento a levasse a recuar. Tom era um amigo e ela precisava de alguém Não havia mais nada além disso. Nem complicações, nem nada que causasse desgosto. Ele acabou a história e fechou o li vro e depois olharam os dois para Hannah, na expectativa
Olá, mamã disse meigamente Lily, erguendo a cabeça e acenando-lhe.
Olá, minha carochinha retribuiu Hannah. Foram-se todos embora. Inclinou-se e pegou na filha ao colo. Lily aninhou-se contra o peito da mãe e encostou a cabeça no ombro dela. O Paul também? perguntou o padre Tom com uma expressão de surpresa, enquanto se levantava e esboçava uma tentativa de alisar as calças amarrotadas.
Não sei para onde foi respondeu Hannah, voltando a cabeça, para não ver a simpatia que brilhava nos olhos dele, cansada de ver as pessoas terem pena dela.
Ouvi a discussão disse suavemente. Tenho a certeza de que não pensa o que diz. Está apenas descontrolado. Claro que isso não a magoa menos, eu sei...
Não interessa respondeu Hannah, abanando a cabeça.
Interessa, sim insistiu o padre. Ele devia ser capaz de ver que a culpa não foi sua. Ou, se não visse, podia pelo menos perdoar-lhe.
Porque é que o Paul me havia de perdoar, se eu não posso perdoar a mim própria?
Hannah...
É verdade disse Hannah, agitada, caminhando em volta do quarto confortável, com as paredes pintadas de cor-de-rosa e pormenores de Beatrix Potter. Tenho revivido essa noite milhares de vezes. Se eu tivesse feito isto. Se eu não tivesse feito aquilo. Mas chego sempre à mesma conclusão. Sou a mãe do Josh. Ele confiou em mim e eu não estive à altura da confiança dele. Não sei se esse pecado me poderá ser perdoado.
Deus perdoa-lhe.
A afirmação era tão ingénua que Hannah a achou quase infantil. Voltou-se para ele. desejando que pudesse responder às perguntas dela. Sabendo que não podia.
Então, porque continua Ele a castigar-me desta maneira? perguntou, sentindo a dor aumentar dentro de si. O que é que eu fiz, para merecer isto? O que fez o Josh? Ou o Paul? Não compreendo.
Não sei respondeu Tom com voz rouca. Não compreendia mais do que ela e esse era o seu pecado... talvez um de muitos. Não acreditar que Deus sabia o que fazia. Como podia aquilo ser melhor para qualquer pessoa? Porque havia de sofrer, se fazia bem a tanta gente? Não podia compreender nem aceitar, nem evitar sentir-se zangado contra o Deus a quem dedicara a sua vida. Sentia-se tão traído como Hannah. E sentia-se culpado devido a isso, e zangado por se sentir culpado, e revoltado por causa das limitações que lhe eram feitas pelo seu estado, e assustado com as consequências que isso poderia acarretar. As emoções seguiam uma espiral descendente.
Custa tanto! exclamou Hannah, num sussurro torturado. Fechou os olhos com força e apertou mais Lily contra si, embalando-a.
Sem hesitar, Tom pôs-lhe os braços em volta dos ombros e puxou-a para si. Ela sofria, tinha de a confortar. Se tivesse de sofrer consequências disso, mais tarde, sofrê-las-ia. Acariciou-lhe o cabelo, encostou a cabeça dela ao ombro dele e murmurou palavras de conforto.
Sei que custa, querida murmurou. Quem me dera poder fazer alguma coisa para lhe tirar este sofrimento.
Hannah chorou no ombro dele. Aceitou o conforto que ele lhe dava. Era tão bom ser agradável. Ele era sólido, forte e afectuoso. Terno. Sentia o que ela sentia. Era tudo o que o marido devia ser e não era. Pôs-lhe um braço em volta da cintura e apertou-lha quando foi novamente atacada por um ataque de choro, não por Josh, mas por ela e pela sua vida desfeita, que tempos antes lhe parecia perfeita. Hannah pensava se alguma vez teria sido real.
Tom murmurou umas palavras. Tocou-lhe nos cabelos, na cara, com tanto cuidado como se ela fosse feita de açúcar. Aflorou ao de leve as têmporas. Hannah ergueu o rosto e sentiu o calor do hálito dele. Abriu os olhos e viu reflectidos nos dele as suas próprias emoções em tumulto: carência, saudade, remorso.
O momento prolongou-se, entre aquilo que eles queriam e que eram, entre o que estava certo e o que era adequado. A revelação e o medo fê-los ficar ofegantes.
Foi Lily quem quebrou o encanto. Irritada por estar apertada entre dois adultos, empurrou o peito da mãe com as duas mãos.
Mamã. Chão! pediu.
Tom recuou e Hannah baixou os olhos.
São horas de ir para a cama, Lily disse meigamente, voltando-se para deitar a filha.
Não! exclamou Lily, amuada.
Sim.
Onde está o Josh? Quero o Josh.
Hannah inclinou-se para acariciar o cabelo fino e dourado da filha e beijou-lhe a testa.
Também eu, querida.
Tom afastou-se para o fundo da cama, agarrando-se às grades, tendo perfeita consciência do contacto do corpo de Hannah. Não podia convencer-se de que era um erro. Em vez de tentar fazê-lo, mudou de assunto.
Quer um conselho? Dê uma entrevista. Hannah olhou-o, perplexa.
O quê?
Sei que todos desejam uma entrevista exclusiva consigo, e sei que não a quer dar, mas creio que seria bom para si. Escolha o espectáculo o maior possível. Diga à América o que me disse a mim... como se sente, como é difícil lidar com o sentimento de culpa, o que acha que fez mal e o que alteraria se pudesse voltar atrás.
Julguei que a confissão fosse sacrossanta disse Hannah, olhando-o.
Pense nisso como uma penitência, se quiser. A questão é que, fazendo-o, talvez faça com que outra pessoa pense duas vezes. Não pode voltar atrás, mas pode ser que evite que outra pessoa passe por este inferno.
Hannah olhou para a filha que estava agora deitada de lado entre os lençóis de flanela cor-de-rosa, com desenhos de Peter Rabbit e Jemina Puddle Duck. Era capaz de dar a vida para proteger aquele ser precioso. Eram esses os laços entre mães e filhos. Se pudesse ajudar outra mãe, salvar outra criança, isso serviria de pagamento pelos erros cometidos?
Vou pensar nisso.
Olhou para o padre Tom, para o seu rosto forte, simpático, de afectuosos olhos azuis. O seu coração batia um pouco apressado.
Obrigada. Eu...
As palavras não se formaram, o que estava certo. Era melhor ele não saber o que ela sentia. Isso só serviria para tornar as coisas mais difíceis e ela não queria perder a amizade dele.
Obrigada.
O padre Tom assentiu com a cabeça e afastou-se da cama metendo as mãos nos bolsos.
Tenho de ir. E você tente descansar.
Vou tentar.
Promete? disse ele, erguendo as sobrancelhas quando ela o acompanhou à porta do quarto.
Prometo tentar.
Eu aceito o que me dão. E deixe-se ficar com a Lily. Eu sei o caminho. Se precisar de mim sabe onde me encontrar.
Hannah baixou a cabeça e o padre afastou-se antes de dizerem qualquer coisa que mais tarde lamentariam. Ela não precisava de saber a profundidade dos seus sentimentos; apenas que se preocupava com ela e que estava sempre pronto a ajudá-la. O resto não podia interessar.
Lá fora, a noite estava tão fria que parecia que tudo em que se tocasse se quebraria. Como um coração. Afastou essa analogia considerando-a disparatada, e tentou concentrar-se em algo de puro enquanto punha o carro em andamento. Palavras do Senhor ocorreram-lhe: Não nos deixeis cair em tentação... livrai-nos do mal...
Estou apaixonado pela Hannah Garrison murmurou. E um louco raptou o filho dela.
Olhou através do vidro do pára-brisas. O céu estava escuro e prateado com a luz da Lua. Apoderou-se dele uma sensação de abandono.
Há alguém lá em cima que não está a fazer o seu trabalho.
Paul sentia dores nos pulmões devido ao frio. As pernas doíam-lhe por ter caminhado por entre a neve profunda, os dedos dos pés pareciam ter sido massacrados com um martelo. Só a violenta cólera que sentia lhe dava calor. Tropeçou num ramo caído e apoiou-se ao tronco de um cedro, na extremidade do bosque situado por trás das casas do lado do lago. Para leste e para norte, ficava Quarry Hills Park, uma bonita zona arborizada, bem tratada, com atalhos para esquiar. Viver ali, naquela zona, indicava que o residente era alguém na vida e isso representava para ele uma honra, um prémio merecido. As casas com as traseiras voltadas para o parque e a fachada para o lago, naquele sítio, eram um sinal de abastança e isso significava muito para ele.
E Mitch Holt e Megan OMalley queriam tratá-lo como Se ele fosse um criminoso.
Como podiam eles olhá-lo como um suspeito, depois de se ter empenhado tanto no esforço para encontrarem Josh? Tomara parte nas buscas, fizera apelos na televisão. Que queriam que fizesse mais?
A culpa era toda daquela cabra do BCA. Ela é que não o largava por causa da carrinha. Ela é que estava sempre a tentar descobrir falhas na sua explicação de não ter ouvido a gravação deixada no atendedor naquela noite e não ter telefonado para Hannah. Era evidente que ambos tinham pena de Hannah. Pobre Hannah, sempre pronta a ajudar os outros. Pobre Hannah, a mãe que ficara sem o filho.
As picadas nos dedos fizeram-no voltar ao momento presente. Passara pelos bosques porque em frente da casa dele havia uma fila de carros e de carrinhas dos profissionais dos media. Tinha muito para lhes dizer, mas não naquela altura.
Atravessou o quintal das traseiras da casa dos Wright. O Saab de Garrett não se encontrava na garagem. O Honda de Karen estava sozinho, como quase todas as noites. Garrett Wright estava casado com o seu trabalho, não com a mulher. Ia a casa para tomar duche e mudar de roupa. O lugar de Karen na vida dele era sobretudo do ornamental alguém a quem levava aos jantares da faculdade. Qualquer interesse que tivesse tido por ela desaparecera com o tempo. Segundo Karen, raramente tinham relações sexuais e quando isso sucedia era mais por dever da parte de Garrett do que por a desejar.
Não tinham filhos. Karen não podia engravidar pelos meios naturais e Garrett não estava disposto a passar pela infindável maratona de testes e de processos que a fecundação in vitro requeria. Ter filhos não era importante para ele. Karen falava em adoptar uma criança, mas também esse processo era difícil e prolongado, e Karen não sabia se teria forças para passar por isso sozinha. E assim continuavam os dois, num casamento vazio, que parecia satisfazer completamente Garrett e ao qual Karen se agarrava por não ter coragem para se libertar.
Paul raramente pensava em Garrett Wright a não ser de uma forma abstracta. Embora fossem vizinhos, mal se conheciam. Para Paul, Garrett era alguém que vivia noutro universo. Era uma sombra que vivia para os seus testes de psicologia e pesquisa na universidade e que dedicava o seu tempo livre a um bando de delinquentes juvenis a que davam o nome de «Sci-fi Cowboys». Ele e Garrett Wright existiam em dois planos diferentes que convergiam para um só, Karen.
Servindo-se de uma chave que Karen deixava sempre dentro de uma velha caixa de café cheia de pregos e de parafusos na mesa de trabalho, entrou na sala de lavagem. Tirou as pesadas botas e sacudiu a neve das calças.
Garrett!
Karen abriu a porta da cozinha e arregalou os olhos de espanto ao vê-lo. Ficou parada, com um pano da louça, com quadrados verdes, na mão. Vestia umas calças de lã vermelha e uma túnica creme, larga, que lhe chegava aos joelhos. O cabelo de um louro-cinza emoldurava-lhe o rosto e caía-lhe sobre a testa, realçando os seus meigos olhos de corça. Pequenina, suave e feminina. Uma mulher que o confortava, que se preocupava com ele. O primeiro impulso de desejo atravessou-o.
Estás à espera dele? perguntou.
Não. Ele acabou de sair para voltar para o trabalho. Julguei que tivesse esquecido alguma coisa.
Preocupada com a sua aparência, Karen puxou o cabelo para trás, alisando-o.
Pensei que estivesses esta noite com a Hannah. Já sei que apareceu o casaco. Tenho tanta pena, Paul!
Paul despiu a sua velha parka e pendurou-a a secar, sempre com os olhos nela.
Agora não quero falar disso.
Está bem.
Tirou-lhe o pano da louça da mão e passou-lho pela nuca, segurando as pontas e puxando-a para si.
Estou farto disto. Estou farto das perguntas, das acusações, da espera e de toda a gente olhar para a Hannah e a dizer: «Pobre e corajosa Hannah.» A culpa é toda dela. E aquela cabra está a tentar culpar-me a mim.
A Hannah censura-te a ti? perguntou Karen, admirada. Tinha de inclinar a cabeça para trás para o olhar.
A agente O’Malley disse Paul com voz trocista. Anda demasiado ocupada a dormir com o Holt para fazer o seu trabalho como deve ser.
Como é que alguém pode querer culpar-te?
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
-Não sei disse Paul com voz abafada, sentindo as lágrimas queimarem-lhe os olhos. Claro que não.
A culpa não foi minha. Fechou os olhos e deixou pender a cabeça sobre o peito. Não foi minha repetiu puxando mais o pano da louça.
Karen teve de se encostar mais a ele para fugir à dor na nuca. Enfiou as suas pequenas mãos por baixo da camisola de Paul e massajou-lhe os músculos das costas.
Claro que não foi tua, querido.
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
A voz atormentava-o, sobrepondo-se às imagens dessa tarde. O’Malley a interrogá-lo: Não foi ver se tinha mensagens no atendedor?
O casaco de Josh nas mãos dele. Está morto. Está morto. Está morto...
O pano caiu-lhe das mãos, directamente para o chão.
A culpa não foi minha... gemeu, a tremer. Karen pôs-lhe um dedo nos lábios.
Chiuu... vem comigo.
Conduziu-o pela cozinha e depois pelo corredor escuro até ao quarto de hóspedes. Nunca faziam amor na cama que ela partilhava com Garrett. Raramente se encontravam ali em casa. O risco de serem descobertos era demasiado grande. Mas Paul não fez qualquer gesto para a deter quando Karen o despiu como se fosse uma criança e se despiu a ela em seguida.
Deitou-se nos lençóis limpos, cor de pêssego, no quarto iluminado pela luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira e deixou que ela despertasse o seu desejo, acariciando-o com as mãos, com os lábios, com o corpo. Beijou-o, acariciou-o, roçou os seios contra o peito dele, abriu-se para ele e tomou-o dentro de si. Depois começou a movimentar-se lentamente por cima dele, massajando-lhe o peito com as suas pequenas mãos, fazendo crescer nele um desejo físico que foi aumentando e penetrando no entorpecimento que se apoderara dele.
Agarrando-a pelos ombros, Paul puxou-a para si e fê-la rolar para debaixo dele. Merecia aquilo. Precisava daquilo. Alívio para o seu corpo, para a raiva que ardia dentro dele raiva contra Hannah, contra O’Malley, contra as injustiças que se abatiam sobre a sua vida. Deixou que tudo isso se libertasse enquanto fazia amor com a mulher de outro homem. Com força, cada vez com mais força, até quase a magoar, até que a posse parecesse mais um castigo do que paixão.
Depois, numa explosão, acabou. A força desapareceu. O poder esgotou-se. Deixou-se cair ao lado de Karen e ficou a olhar para o tecto, esquecido do corpo de Karen encostado ao dele, sem dar pelas lágrimas dela, esquecido da passagem do tempo. Esquecido de tudo, menos da insidiosa fraqueza que o penetrava
Gostava que pudesses ficar aqui sussurrou Karen
Não posso
Eu sei, mas gostava que pudesses. Levantou a cabeça e olhou para ele. Gostava de poder dar-te todo o amor e apoio de que necessitas. Gostava de poder dar-te um filho
Karen!
É verdade prosseguiu Karen, passando-lhe a palma da mão pelo peito. Gostava de ter um filho teu. Penso constantemente nisso. Penso quando estou em tua casa, com a Lily, e finjo que ela é minha filha. nossa! Penso nisso quando estou contigo, quando fazemos amor. Faria tudo por ti, Paul
Era mais uma das cruéis ironias da vida, pensou Paul enquanto Karen se debruçava sobre ele e lhe beijava o peito. Tinha a mulher que sempre julgara querer a independente e competente Dra Garrison e agora queria o género de mulher que outrora detestava. Karen, nascida para servir, subjugada aos desejos dele, disposta a fazer tudo o que ele quisesse, só para lhe agradar
Lavou-se no duche da casa de banho do quarto de hóspedes, enquanto ela mudava os lençóis. Como sempre não ficariam provas de terem estado juntos, nem sequer um leve cheiro a sexo na roupa da cama. Vestiram-se e caminharam em silêncio em direcção à cozinha, onde apenas uma luz brilhava sobre o lava-louça
Ouvi dizer que as buscas no terreno vão recomeçar amanhã disse Karen pouco depois. Também irás?
Paul tirou um copo de cima do lava-louça e encheu-o de água
Creio que sim murmurou olhando para o seu reflexo na janela
Bebeu um gole de água e despejou o resto. Lavou o copo e colocou-o no mesmo sítio, limpou a boca ao pano com Quadrados verdes, dobrou-o e arrumou-o
O som da porta da garagem a abrir-se sobressaltou-os Paul sentiu um nó na garganta. Logo a seguir a porta da cozinha abriu-se e Garrett Wright entrou, metendo as luvas num dos bolsos do seu sobretudo azul-escuro.
Paul! exclamou, abrindo muito os olhos escuros
Que surpresa!
Pousou a pasta sobre a mesa da cozinha e desabotoou o casaco. Karen aproximou-se dele e beijou-o na face. Formavam um bonito par, ambos louros, de pele branca e olhos escuros, com feições bem delineadas. Era um desses casais que podiam passar por irmãos.
Vim aqui para perguntar à Karen se estaria disposta a fazer umas horas de trabalho extra no centro de voluntários
disse Paul. Vamos recomeçar as buscas no terreno, apesar do frio.
Sim. Já ouvi dizer isso. Não vi o seu carro lá à frente.
Vim a pé.
As sobrancelhas claras de Garrett ergueram-se.
Está uma noite muito fria para um passeio.
Achei que isso iria aclarar-me as ideias.
Pois. Realmente tem motivos para se sentir mal disse com expressão preocupada. Como se tem aguentado?
Vou andando retorquiu Paul, tentando não se mostrar demasiado deprimido. Sempre que falava com Garrett sentia-se como um insecto a ser examinado ao microscópio Ou como se fosse um potencial candidato à psicanálise, como se Wright, enquanto falava com ele, estivesse a analisar as suas palavras e gestos e expressões, ou a falta deles.
Sei que tem estado muito activo nas buscas disse Garrett, despindo o sobretudo. A mulher, cuidadosa, pegou nele e foi pendurá-lo no armário da entrada. É uma maneira saudável de enfrentar a situação, apesar de surgirem uma quantidade de frustrações. E a Hannah, como tem passado?
Tão bem quanto possível disse rigidamente Paul.
Não a vi nas notícias. Só no jornal de domingo. Ela perdeu os sentidos, não foi? Garrett abanou a cabeça. Arvorando um ar grave, meteu as mãos nos bolsos das calças escuras e balouçou sobre os calcanhares. A perda de um filho é uma terrível tensão para os pais.
Sei bem como isso é proferiu Paul com voz tensaGarrett teve um pequeno gesto de surpresa, como se só então se tivesse apercebido do que dissera.
. Desculpe. Não quis parecer paternalista, Paul. Só lhe quero dizer que se você ou a Hannah sentirem necessidade de falar com alguém, posso recomendar um amigo meu, em Edina. É especializado em terapia de família.
Tenho coisas melhores para fazer declarou Paul, com uma expressão rígida.
Por favor, não se ofenda. Paul disse Wright, estendendo-lhe a mão. Queria apenas ajudar.
Se quiser ajudar, pode aparecer em Ryan’s Bay amanhã de manhã. É desse género de auxílio que precisamos, não de ir pagar a um psicanalista caro em Edina. Voltou-se para Karen. Então, até amanhã, no centro.
Karen olhou para o chão.
Lá estarei murmurou.
Ficou parada, contendo a respiração, até ouvir a porta da garagem abrir-se e fechar-se.
Não revelaste muita sensibilidade, Garrett disse suavemente para o marido.
Ai sim? Vendo bem todas as coisas, creio que até fui extremamente generoso.
Dirigiu-se ao lava-louça e passou um dedo pelo copo húmido que se encontrava no escorredouro da louça. Pegou no pano com quadrados verdes bem dobrado que se encontrava sobre o balcão, limpou o copo e voltou a dobrar o pano.
Devias ser mais cuidadosa com o sítio onde deixas as coisas, Karen disse, com o pano na mão.
Era o pano que Paul lhe tirara das mãos e com que a puxara para ele. O pano que deixara cair para o chão, na sala de lavagens.
Karen não disse nada. Garrett colocou o pano de lado, sobre o balcão, e foi-se embora.
Mitch ficou a olhar para o quadro das mensagens colocado na parede da sala de guerra, até elas parecerem girar à sua volta. Com os cotovelos apoiados sobre a mesa, esfregou os olhos, tentando afastar o cansaço. Esforço inútil. A fadiga tornava-se cada vez mais profunda. Era como algo escuro que se abatesse sobre ele, fazendo-o perder o sentido da lógica, da objectividade. Tornava-o irascível, fazendo-o sentir-se mau e perigoso. Fazia estalar o autodomínio e deixava que a sensação de culpa e incerteza o invadisse como um nevoeiro tóxico.
Culpa. Vira essa expressão no rosto de Hannah quando Paul lhe lançara as acusações com a mesma violência com que lançara o atiçador contra a parede. Uma explosão de dor, mas por baixo culpa. Ela culpava-se tanto quanto Paul a culpava. Mitch sabia exactamente o que isso era o castigo imposto a si próprio, constante e inútil, a dor que se tornava tão familiar que, de um modo perverso, uma pessoa não queria largá-la.
Provavelmente seria melhor pôr qualquer coisa nos dedos disse calmamente Megan. Só Deus sabe que espécie de infecções se encontram no sangue do Steiger. Vou agora ao hospital. Queres vir comigo?
Mitch pousou as mãos sobre a mesa, com força. Não sabia já há quanto tempo Megan ali estava, encostada à ombreira da porta, enquanto ele lidava com os seus demónios interiores. Ela entrara na sala com as pálpebras a meia haste, procurando atenuar a tensão que sentia na nuca.
Estou bem disse Mitch olhando de relance para a mão que atingira o nariz de Steiger. Estou vacinado contra o tétano.
Estava a pensar mais em raiva ou em doenças da boca disse secamente Megan, sentando-se na beira da mesa, em frente dele.
Porque estás a pensar em ir ao hospital?
à procura de suspeitos. Sei que já entrevistaste toda a gente ali, mas quero cavar um pouco mais fundo. A Hannah acha que nenhum dos seus doentes ou alguém das suas famílias podia ter raptado o Josh, mas penso que poderá valer a pena investigar. A Hannah pode não se ter apercebido de qualquer animosidade contra ela, mas aposto que o pessoal de enfermagem me indicará um ou dois nomes. Toda a gente é detestada por alguém.
Cínica.
Realista corrigiu Megan. Estou nesta profissão há anos que cheguem para saber que as pessoas são basicamente egoístas, más e vingativas, quando não são completamente loucas.
Como o nosso homem, com certeza disse Mitch olhando para o quadro das mensagens, lendo-as uma a uma e sentindo-se arrepiar. Diabólico.
Diabólico. Aquilo que todos eles tinham receado desde o início. Um rapto sem pedido de resgate. Quando alguém queria dinheiro, sabiam que podiam negociar, que a cobiça os poderia levar à captura. A doença mental era perigosa e imprevisível, mas mesmo assim os doentes acabavam por cometer um erro. O raptor de Josh era diabólico, gostava de jogos mentais, e as suas regras eram desconhecidas. E só alguém diabólico era capaz de deixar uma prova à vista e depois dirigir-se calmamente a casa de um vizinho pedindo ajuda para encontrar o cão da sua vítima.
O desenho feito segundo as orientações de Ruth Cooper, representando o seu visitante do início da manhã, fora colocado no quadro. Um homem de idade indeterminada, com um rosto magro que parecia quase não ter feições. Os olhos estavam escondidos por detrás de uns grandes óculos de sol de desporto. O cabelo não se via debaixo do boné escuro. Nem sequer as orelhas eram visíveis. O capuz da parka escura formava um túnel em redor do seu rosto, fazendo com que ele parecesse um espectro vindo de outra dimensão.
Não é exactamente uma fotografia, pois não? observou Megan.
Não, mas Mistress Cooper diz que talvez consiga reconhecê-lo se o vir outra vez. Julga recordar-se da voz dele.
A raiva aumentou outra vez dentro dele ao pensar na confiança exagerada, na crueldade, no desdém revelados por aquele homem que quisera revelar o seu poder e a astúcia da sua mente. Mitch fechou as mãos do lado do corpo.
É um patife arrogante. Mas há-de vir a dar um passo em falso e nessa altura caio-lhe em cima.
Se tivermos sorte, pode ser que um cúmplice lhe pregue uma partida sugeriu Megan, descendo da mesa. Estou a tratar de conseguir que o Christopher Priest vá examinar os computadores do Olie. Penso que se alguém for capaz de desvendar o segredo, esse alguém será o Priest. Entretanto, temos de saber o que se passa com o Paul. Antes que Mitch pudesse reagir, ela continuou: Não podes negar a ligação dele com a carrinha insistiu Megan, começando a contar pelos dedos. Não podes negar que pretendeu ocultar-nos isso. O álibi dele para a noite em que o Josh desapareceu não vale nada. Ninguém sabe onde ele se encontrava às seis horas desta manhã, quando a Ruth Cooper falava com o homem misterioso. Disse ao agente de serviço que ia dar uma volta de carro, para procurar o Josh. A hora parece um pouco coincidente, não achas?
E o motivo? perguntou Mitch. Porque faria ele isso ao próprio filho?
Acontece insistiu Megan. Sabes que sim. Lembras-te do caso em Iron Range, o ano passado? O que esse homem fez à filha foi inacreditável, e ele tomou parte nas buscas todos os dias, fez apelos pela televisão, pediu uma segunda hipoteca para a casa para ter dinheiro para um prémio a quem encontrasse a filha. Aconteceu lá e podia acontecer aqui.
«Isto não é nenhuma utopia, chefe insistiu Megan começando a perder a paciência com a sua resistência à situação. É uma cidade como outra qualquer. As pessoas são pessoas como quaisquer outras... Algumas são boas e outras são más. Até o Jardim do Paraíso tinha uma serpente. Admite isso.
O olhar que ele lhe lançou era sombrio e perigoso. Quando falou, a voz dele era suave como seda e cortante como um punhal.
Achas que eu não estou a admitir tal coisa?
Penso que não queres fazê-lo.
Bem, e tu queres, não é? perguntou sarcasticamente Mitch. Só te interessa saíres-te disto bem e teres uma estrela de ouro na tua avaliação. Mesmo que para isso tenhas de despedaçar algumas pessoas. Os fins justificam os meios, não é?
Podes deixar essas tretas para a Paige Price exclamou Megan pondo as mãos na cintura. Sabes muito bem que eu quero encontrar o Josh. Não grites comigo por eu dizer a verdade. Creio que é fácil para ti colocares-te no lugar do Paul Kirkwood e isso pode prejudicar-nos.
Mitch não estava com disposição para ver a sua consciência e os seus instintos como polícia postos em causa. Cansado e frustrado voltou-se contra ela.
Por outras palavras, agente O’Malley, devia esquecer que este homem perdeu o filho e atirar-me à sua jugular. O trabalho vem em primeiro lugar, não é? O trabalho, sempre o trabalho. O maldito trabalho gritou Mitch.
A minha profissão é o que eu sou! replicou Megan orgulhosamente. Se não gostas, paciência.
Na verdade, não passas de uma polícia. Deus nos livre de um dia tirares o distintivo e tentares ser apenas mulher durante um bocado. Não saberias o que fazer...
Megan voltou-se, como se a pancada a tivesse atingido fisicamente. Ela tinha tirado o distintivo. Fora mulher. Para ele. Aparentemente não fizera um bom trabalho e isso atingiu-a profundamente.
Como se me tivesses dado muito mais? retorquiu com o mesmo sarcasmo que ele. O que é que me darás, chefe? Um abraço no teu sofá? Sim, por isso vale a pena deitar a perder a minha carreira.
Não me lembro de te ouvir queixar quando tinhas as pernas por cima de mim.
Oh não admitiu Megan, ocultando a sua mágoa sob uma expressão de troça. Não. Foi bom enquanto durou. Mas agora, acabou. Um grande alívio para ti, tenho a certeza. Um relacionamento que dure mais de três ou quatro dias pode prejudicar o teu martírio.
Não! gritou Mitch levantando uma mão num gesto de aviso. A mão em que trazia a aliança. O aro de ouro cintilou à luz, dando a Megan a ideia de que a negativa dele não passava de uma mentira.
Mitch voltou-se e soltou um profundo suspiro. Como é que tinham chegado àquilo? O que lhe importava o que Megan O’Malley fizesse ou não fizesse. Tinham tido sexo. Grande coisa. Nada mais queria dela e isso nada tinha a ver com um sentimento de penitência por pecados passados. Era por isso que ele não queria mais nada com Megan O’Malley. Ela era obstinada e opiniosa, provocava-o e irritava-o. Não era capaz de se controlar quando estava perto dela e também não podia controlá-la a ela.
Megan dominou as suas emoções e encerrou-as onde elas deviam estar. Era por isso que não podia apaixonar-se por Mitch Holt. Ele provara-lhe que a regra que a levara a infringir estava certa: nunca andar com polícias. Não que o que se passara entre eles estivesse acabado. Tudo o que ela lhe dera, cada momento de intimidade que partilhara com Mitch, seria usado contra ela. Agora, sempre que tivessem de estar na mesma sala, de trabalhar juntos, sentir-se-iam embaraçados.
Devia ter-se preocupado apenas com o trabalho, durante todo o tempo. Já devias saber isso, O ’Malley. O que é que te levou a pensar que podias ter algo mais? Megan forçou-se a engolir o nó que tinha na garganta e a voltar novamente o seu pensamento para o trabalho.
Temos de arranjar as impressões digitais do Paul afirmou. Foi proprietário da carrinha, pode ainda ter uma chave. Se as impressões digitais dele estiverem na carrinha passado todo este tempo, terá algumas explicações a dar. Traga-o aqui, chefe, pois, caso contrário, serei eu a trazê-lo.
Mitch admirou-se da maneira como ela era capaz de se meter tão rapidamente na pele da Polícia, ignorando o embate emocional que acabavam de ter. Mitch quase podia sentir as muralhas de gelo que ela erguia à sua volta para o deixar de fora, para se proteger a si própria e aos sentimentos que ele acabara de atacar. Irritava-o que ela tivesse esse género de autodomínio, quando ele se sentia tão perturbado, quando lhe apetecia gritar com ela e sacudi-la. Irritava-o também sentir um certo remorso e pena; irritava-o sentir qualquer coisa, enquanto ela parecia ter afastado todos os sentimentos.
Não me dê ordens, Megan OMalley avisou.
O que é que me fará, Mitch? Dirá à imprensa que me viu nua? Afastou-se dele, de cabeça erguida. Faça o seu trabalho, chefe, ou fá-lo-ei por si.
Mitch ficou calado enquanto ela saía da sala e fechava a porta. Pôs-se a andar de um lado para o outro, tentando dominar-se, tentando voltar a atenção para o que tinha a fazer.
Virou-se novamente para o quadro das mensagens. Não conseguia imaginar Paul a escrever aquelas notas. Sabia que havia pais que perdiam a cabeça, ou eram loucos e que cometiam erros imperdoáveis. Depois lembrou-se de Kyle e do que sentira ao ver o filho morto, do que sentia constantemente quando pensava no que o filho teria, ou no que estaria a fazer se fosse vivo. Como se sentia magoado quando via garotos a jogarem à bola, ou a perseguirem-se uns aos outros, de bicicleta, seguidos pelos seus cães. Era-lhe difícil aceitar a ideia de alguém fazer propositadamente mal a uma criança, sofrendo ainda tanto ao recordar como o filho lhe fora tirado.
Creio que é fácil para ti colocares-te no lugar do Paul Kirkwood, e isso pode prejudicar-nos.
Fácil? Não. Fácil não era a palavra adequada.
Dirigiu-se de novo para a mesa onde se encontrava o caderno de apontamentos de Josh. Precisava de um suspeito. De alguém que conhecesse a área, conhecesse os Kirkwood, conhecesse Josh.
Voltou as páginas onde Josh fizera jogos, onde escrevera o seu orgulho em ser co-capitão da equipa de hóquei, onde revelara a sua tristeza pelos problemas entre os pais. O papá está zangado, a mamã está triste e eu sinto-me mal... Os problemas conjugais não faziam de Paul Kirkwood um monstro capaz de raptar o seu próprio filho e deixar atrás de si bilhetes a falar de pecado e de ignorância.
Pecado.
Mitch virou outra página e olhou para os desenhos. A interpretação de Josh de Deus e do Diabo, as suas opiniões sobre as aulas de religião expressões de cólera e sinais com os polegares para baixo. Pecado. Mitch viu mentalmente o rosto de Albert Fletcher, o diácono de St. Elysius, em Old Cedar Road, com o capuz negro a emoldurar-lhe a cara magra.
Num mundo perfeito, Hannah seria uma candidata à santidade declarou Kathleen Casey sentada no velho sofá da sala das enfermeiras, com as sapatilhas brancas pousadas em cima de uma pequena mesa. Vestia um fato verde, do bloco operatório, e tinha por cima uma bata branca com um estetoscópio metido no bolso do peito. Mastigava distraidamente uma pastilha elástica e olhava com ar ausente para o ecrã da televisão. Todos os que forem a favor da existência de um mundo perfeito digam que sim.
Megan afundou-se no que fora em tempos uma confortável cadeira de cabedal, estofada. Pouco estofada, por assim dizer. Eram as únicas duas pessoas que ali se encontravam Para além da porta aberta, o pequeno hospital estava calmo De vez em quando ouvia-se um telefone, um pager. Tudo muito diferente dos hospitais das grandes cidades, com a sua agitação, as suas crises. Megan pensou que seria bom arranjar ali uma cama vazia e deixar-se cair sobre ela. Talvez lhe dessem uma injecção de Demerol que a fizesse dormir umas oito ou dez horas. Seria um descanso. Passou a mão pela testa e suspirou.
O que é que os colegas de trabalho pensam dela? perguntou Megan, sublinhando a palavra colegas.
Como já tive ocasião de dizer aos últimos nove polícias que me fizeram perguntas, ela é o sonho de qualquer enfermeira. Costumo beliscar-me regularmente quando estou a trabalhar com ela.
Os seus pequenos olhos brilhantes cor de avelã mostraram que conhecera coisas diferentes.
Há dezasseis anos que sou enfermeira. Conheci todo o género de médicos arrogantes que achavam que eram o próprio Deus descido à terra. Se esses homens estiverem no céu quando eu lá chegar, quero o meu visto revogado à entrada.
E como é que se dá com os outros médicos?
Muito bem. Com excepção do nosso Chad Everett... o doutor Craig Lomax, que ficou invejoso quando ela foi nomeada chefe das urgências. Não sei como, não se deve ter apercebido de que não vale nada como médico.
E como é que demonstrou esse aborrecimento?
Amuando com toda a gente. Procurando desafiar a autoridade da Hannah. Bebeu um gole da sua Pepsi sem cafeína e voltou a mastigar a pastilha elástica. Se está a perguntar-me se o descontentamento dele poderia levá-lo a raptar o Josh, dir-lhe-ei que não. É maçador, mas inofensivo. Não é doido. De resto, estava de serviço nessa noite.
E a respeito dos doentes? perguntou Megan.
Alguém que tenha ficado descontente com o resultado de um caso? Alguém que a culpasse de qualquer coisa.
Kathleen passou a mão pela sua espessa cabeleira ruiva enquanto pensava.
Vejamos... os Mueller perderam um filho no Outono passado. Trouxeram-no para aqui demasiado tarde, a Hannah fez tudo quanto pôde, mas foi impossível salvá-lo.
E ficaram zangados?
Com a Hannah, não. Ela não podia ter feito mais do que aquilo que fez. Pensou mais um bocado, fazendo uma lista mental e pondo nomes de lado. Não consigo lembrar-me de alguém que pudesse fazer uma coisa destas. A Hannah é uma excelente médica. Capaz de acalmar as pessoas mais depressa do que um Valium. Não hesita em enviar um doente para um hospital mais bem equipado se achar que é melhor para ele. Tirou os pés de cima da mesa e dobrou as pernas debaixo do corpo, no sofá. Ainda me lembro do dia em que ela levou pessoalmente a Doris Fletcher para a Clínica Mayo, por o marido se ter recusado a levá-la.
Fletcher? exclamou Megan endireitando-se. Tem alguma relação com o Albert Fletcher?
Kathleen ergueu os olhos para o tecto.
O diácono da maldição. Segundo ele, toda a humanidade vai de trenó para o inferno. As mulheres são a origem de todo o mal. Para ele, a moda devia ser de serapilheira e cinzas. Desse Albert Fletcher? Sim. A pobre Doris teve a infelicidade de casar com ele antes de ele se tornar um zelote.
E não a quis levar ao hospital para fazer exames? perguntou Megan com incredulidade.
Achava que deviam esperar que o Senhor a curasse. Entretanto, lá no céu, Deus deitava as mãos à cabeça, dizendo: «Dei-lhes a Clínica Mayo. Que mais querem?» Pobre Doris.
Como é que o Fletcher reagiu ao facto de a doutora Garrison ter levado a mulher à clínica contra a vontade dele?
Ficou furioso. O Albert não concorda que as mulheres se afirmem. Acha que ainda devíamos estar todas a pagar pelo que a Eva fez.
De que morreu a mulher dele? perguntou Megan.
Todo o seu sistema gastrintestinal estava doente, depois os rins deixaram de funcionar explicou. Foi muito triste. Ninguém conseguiu fazer um diagnóstico concreto. Eu disse que ele estava a dar-lhe arsénico, mas ninguém acredita nas enfermeiras.
Megan não se riu e Kathleen fitou-a.
Estava a brincar a respeito do arsénico. Foi apenas uma brincadeira.
Poderia ele tê-la morto? perguntou Megan, muito séria.
Os olhos da enfermeira abriram-se de assombro.
O quê? O diácono infringir um mandamento? O céu ficaria negro e a terra seria sacudida.
Fizeram uma autópsia?
Kathleen ficou séria. Dava voltas à pastilha elástica dentro da boca.
Não disse por fim. Na clínica queriam fazê-la. Não podiam imaginar que houvesse uma doença que eles não tivessem meios para detectar. Mas o Albert recusou, com base nas suas convicções religiosas.
Megan olhou para as suas notas. As mensagens falavam de pecado. Uma vingança pessoal. Se Fletcher tivesse envenenado a mulher sem ser incriminado por isso, podia querer castigar Hannah por ter interferido. Podia ser suficientemente louco e perverso para o fazer. Na noite do desaparecimento de Josh, ele dera aula de religião, mas se tivesse um cúmplice esse álibi seria irrelevante.
Não pensa de facto que foi ele quem raptou o Josh, pois não? perguntou Kathleen. Inclino-me mais para que tenha sido o Olie, e sei que agora está a arder no inferno.
Megan levantou-se da cadeira.
Imagino que ele esteja a arder, mas provavelmente estará a guardar um lugar para mais alguém. Cabe-me a mim descobrir quem.
A questão que a preocupava quando se dirigia de carro para o centro da cidade era se no fim daquela semana ainda lhe caberia a si descobri-lo.
Praguejou contra as políticas da Polícia. Chegara ali para fazer um trabalho, claro e simples. Mas nada havia de claro nem de simples na situação em que se tinham visto envolvidos, ela própria, Mitch, Hannah, Paul e toda a gente em peer Lake, além das pessoas que tinham vindo de fora, para ajudar. Um acto de maldade alterara as vidas de todos. O rapto de Josh pusera em movimento uma cadeia de acções e reacções. As vidas das pessoas tinham-se descontrolado e estavam agora suspensas do que um louco iria fazer a seguir.
Megan pensou se ele saberia isso, quem quer que fosse. Ao olhar através do pára-brisas para as sombras da noite fria, tentava imaginar se ele estaria a pensar no que iria fazer a seguir e de como iria afectar os jogadores, que, contra a vontade deles, entravam nesse jogo doentio.
Poder. Era de poder que se tratava. O poder de fazer o papel de Deus. O poder de quebrar as pessoas até elas pedirem misericórdia. O desejo de mostrar que era muito mais inteligente do que os outros.
É fácil ganhar o jogo quando se é o único a conhecer as regras murmurou Megan. Dá-nos uma pista. Uma só. E verás o que acontece.
Depressa. Tinha de ser depressa. Megan sentia que tinha pouco tempo. O ultimato de DePalma pairava sobre ela como uma ameaça: Precisa de fazer com que suceda algo de bom.
Virou para Simley Street, a um quarteirão de distância de St. Elysius. Desligou a luz dos faróis e deixou que o Lumina deslizasse silenciosamente. Não havia ninguém em Simley Street às dez da noite. Os moradores nas casas bem alinhadas estavam todos sentados em frente das televisões, com excepção de Albert Fletcher. Não havia nenhuma luz em qualquer das janelas do número 606.
Onde se encontraria um diácono católico de sessenta anos àquela hora tardia? Estaria fora de casa, a passar a noite com alguma viúva? Essa ideia fez com que Megan fizesse uma careta de dúvida.
Atravessou a rua e seguiu ao longo do passeio, com ar decidido, como se tivesse todos os motivos para ali estar. Só havia uma coisa a fazer quando queria passar despercebida num sítio que não era o seu: mostrar naturalidade.
Megan dirigiu-se decididamente para o 606 e contornou a garagem, saindo da linha de visão de qualquer vizinho que a estivesse a observar das janelas da frente.
A neve rangia como esferovite debaixo dos seus pés. Até o tecido de nylon da parka estava rijo devido à baixa temperatura. Cada movimento que ela fazia provocava um ruído que fazia lembrar o de um jornal a ser amarrotado, Megan praguejou em voz baixa enquanto procurava nos bolsos uma pequena lanterna eléctrica. As luvas não permitiam muita agilidade aos dedos, motivo por que os roubos diminuíam drasticamente durante as descidas súbitas de temperatura.
A porta lateral da garagem estava fechada à chave. Escudando a luz com uma mão, Megan fez incidir o facho sobre uma das janelas e espreitou para dentro, contendo a respiração para não enevoar o vidro. O único carro que ali se encontrava era de uma marca indeterminada e estava coberto por uma lona, como um velho sofá coberto por um lençol. O resto estava vazio. Estava tudo muito limpo. Não havia uma única mancha de gordura no chão. Voltou-se e caminhou pelo passeio em direcção aos degraus da porta das traseiras. Queria espreitar pelas janelas, mas todas as persianas estavam corridas, mesmo as das janelas da cave. Os alicerces da casa tinham sido cobertos com um plástico grosso, nevoento, e recobertos de neve, para protecção.
Praguejando, Megan ajoelhou por baixo de uma janela do rés-do-chão e afastou a neve com a mão. Descalçou uma luva, meteu a mão no bolso para de lá tirar um canivete e serviu-se dele para cortar alguns dos suportes que prendiam o plástico. Puxando-o para baixo, fez incidir a luz da lanterna sobre a cave. O que pôde ver dali estava tão limpo como uma sala de baile. Não havia pilhas de latas com tinta, nem jornais, nem caixas com roupas usadas. Não se tratava de nenhum calabouço, nem estava à vista nenhuma câmara de horrores. Nenhum rapazinho.
Meio desapontada, meio aliviada, Megan sentou-se sobre os joelhos e desligou a lanterna. No mesmo instante a luz de uns faróis surgiu na subida que ia dar à garagem.
Merda!
Levantou-se para guardar a lanterna e o canivete no bolso e fez um golpe na mão ao fechar o canivete. Mordendo os lábios para não emitir nenhum som, utilizou a mão boa para voltar a pôr a neve por cima da janela. A porta da garagem começou a subir. Megan amontoou a neve o melhor que pôde, batendo-a com as duas mãos. Tinha os olhos fixos na garagem. Fletcher entrou com o carro sem a ver; porém, se tivesse saído da garagem e se se dirigisse para a porta das traseiras, tê-la-ia visto.
O motor do carro ronronou e depois calou-se. Baixando-se, Megan correu para os degraus, saltou o parapeito e caiu do outro lado da casa, indo chocar com um homem.
O grito que soltou foi sufocado por uma mão enluvada. Um braço rodeou-lhe o corpo com força, puxando-a contra o peito do desconhecido. Torcendo-lhe os braços, o homem prendeu-a entre ele e a parede. Megan estendeu a perna e deu-lhe um pontapé nas canelas. O homem gemeu de dor, mas apertou-a mais contra si.
Calada disse num sussurro. Um sussurro familiar.
Megan olhou para dentro do capuz que o encobria. Mesmo no escuro, era-lhe impossível não reconhecer o rosto dele. Mitch tirou-lhe então a mão da boca.
Megan não disse uma palavra. Esforçava-se por respirar sem fazer ruído. O ar gelado fazia-lhe doer os pulmões e ela levou a mão à boca para servir de filtro. Fletcher fechou a porta do carro com força. Os passos dele ecoavam sobre a neve, em direcção à porta das traseiras. Era provável que subisse os degraus para entrar em casa, sem se aperceber de nada de extraordinário, como por exemplo uma pegada na neve, num sítio onde não devia haver nenhuma. As pessoas são criaturas de hábitos e de rotina e na sua maior parte pouco observadoras a não ser que sintam que devem estar à defesa.
Fletcher hesitou. Megan imaginou que ele se encontrasse no sítio onde ela escavara a neve, tirando-a da janela da cave. Vamos, Albert. Por favor, anda. Ele recomeçou a andar, hesitante. Megan conteve a respiração. Teria ele notado alguma coisa? Estaria a olhar para o lado sul da casa? Veria as pegadas no escuro? A chave girou na fechadura e daí a pouco a porta abria-se e voltava a fechar-se.
Megan soltou um suspiro que ecoou. O surto de adrenalina passou, deixando-a trémula. Olhou para Mitch e murmurou:
Que diabo estás a fazer aqui?
E tu? Que diabo estás tu a fazer aqui? repetiu ele.
Não achas que podíamos ter esta discussão dentro de casa? Tenho o rabo gelado.
No Blue Goose Saloon não havia muita agitação. Tratava-se de um pequeno bar mal iluminado, o que era um bem para os clientes não verem o estado de decomposição dos animais empalhados que ornamentavam as paredes e que estavam meio comidos pelas traças. A mulher que se encontrava atrás do balcão era corpulenta, de cabelos castanhos e encaracolados que se ajustavam à cabeça dela como um gorro. Fumava enquanto limpava copos com um pano de limpeza duvidosa. Olhava para um anúncio da Cheers que passava na televisão portátil colocada sobre o balcão. Os seus olhinhos escuros pareciam passas de uvas metidas num pão doce. O único cliente sentado no bar era um velhote com maus dentes que travava uma animada conversa consigo mesmo sobre o lamentável estado da política no Minnesota agora que Hubert Humphrey se fora embora.
Mitch escolhera o último compartimento antes da sala de bilhar e sentara-se de modo a ver a entrada e a janela que dava para a rua. Hábitos antigos. Pediu café e um cálice de Jack Daniels que bebeu de um trago. Ingeriu o café enquanto Megan lhe contava a conversa que tivera com Kathleen Casey, a morte misteriosa de Doris Fletcher e a inimizade do marido para com Hannah Garrison por ela ter interferido.
Megan deitou o uísque no café e juntou-lhe umas pseudo natas. A bebida era forte e quente e aqueceu-a, fazendo-a deixar de tremer. Depois, examinou a mão. O canivete fizera-lhe um corte na palma, que agora se encontrava enfeitado com sangue seco e pelos da luva. Precisaria de um penso e nada mais.
Para que esperaria ele três anos para se vingar? perguntou Mitch.
Não sei. Talvez o plano demorasse todo esse tempo a fermentar... ou para ele ficar completamente louco.
Estava a dar aulas de religião na noite em que o Josh desapareceu.
É aqui que entra o sempre popular cúmplice.
Na televisão, Cliff Claven executava a mímica de uma dança, enquanto alguém lhe desferia descargas eléctricas. O cigarro tremeu nos lábios da empregada do bar, que ria com uma alegria maldosa. Megan sentiu novo arrepio e bebeu um longo gole da bebida.
Também estavas em casa do Fletcher, chefe. Porque estás a fazer de advogado do diabo comigo?
Porque gosto.
Pondo de parte as tuas naturais tendências perversas, creio que deves ter tido um motivo para ir ali.
Mitch encolheu os ombros.
Fui investigar. O Fletcher vive obcecado com a igreja. Passa a vida a falar em pecado. O Josh não gostava das aulas de religião.
Tendo o Fletcher como instrutor, quem o poderá censurar? observou Megan, estremecendo. O Albert Fletcher causaria arrepios ao Vincent Price.
Voltei a ler as declarações feitas por ele a Noogie na noite do desaparecimento do Josh afirmou Mitch. Tirou um amendoim do prato, partiu-o e meteu as duas partes na boca. Não há nada nelas que desperte suspeitas.
À primeira vista, não havia em Albert Fletcher coisa alguma que despertasse suspeitas. Era um profissional reformado, um membro da comunidade digno de respeito. Não tinha certamente o perfil de um predador de crianças, mas em todo o caso havia muitas peças que encaixavam. Os deveres de Fletcher na igreja colocavam-no na proximidade das crianças. A sua autoridade ali granjeava-lhe a confiança de crianças e adultos. Dificilmente seria ele o primeiro a abusar dessa confiança.
Ele conhecia o Olie?
Não me parece que pertencessem aos mesmos círculos, mas vou investigar. Amanhã de manhã eu próprio irei falar com ele.
Apetecia-lhe poder levar Fletcher para a esquadra nessa mesma noite, mas não era assim que as coisas se podiam fazer. Não podia detê-lo sem ter nada contra ele a não ser um palpite e uns rumores de há três anos antes. Ninguém falara nele em relação a Josh, a não ser devido à sua posição na igreja. Ninguém dera qualquer informação sobre algo de suspeito que se passasse em casa de Fletcher. De qualquer modo, Mitch pusera um homem a vigiar a casa durante a noite.
Tirou a carteira e pôs algumas moedas sobre a mesa. Megan fez o mesmo. A empregada dirigiu-se para a mesa e levantou o dinheiro antes de eles chegarem à porta.
Voltem outra vez disse a mulher com uma voz que parecia Louis Amstrong com uma forte constipação.
Quando chegaram ao passeio, o frio quase fez com que Megan ficasse sem respiração. Nem sequer o calor do uísque que ingerira a impedia de bater os dentes.
Valha-me Deus murmurou, tirando as chaves do carro do bolso. Se não fosse o Josh, quase desejaria ser substituída aqui. Os seres humanos não são feitos para viverem assim.
É endurecer ou morrer, OMalley disse secamente Mitch.
Se endurecer mais, as balas farão ricochete em mim respondeu Megan sentando-se ao volante do Lumina.
Iniciou o ritual de conseguir com que o carro começasse a andar, olhando para Mitch que entrava no Explorer. As ruas de Deer Lake estavam desertas. O Blue Goose era o único estabelecimento aberto. Ao ver Mitch afastar-se, Megan teve uma sensação de vazio dentro de si, como se fosse ela o único ser humano do planeta.
Havia coisas piores do que estar sozinha. Mas ali sentada, na noite fria e escura, pensando na criança desaparecida e sabendo que o seu lugar estava por um fio, Megan teve dificuldade em descobrir quais eram.
Encontraram hoje o casaco. Não sabem o que pensar. Não sabem para onde hão-de voltar-se. Podemos cheirar o pânico deles. Saboreá-lo. Fazem-nos rir. São tão previsíveis como ratazanas num labirinto. Como não sabem para que lado se voltar, voltam-se uns para os outros, agarram-se a qualquer coisa na esperança de obter uma pista. Merecem o que o destino lhes reservar. A cólera de Deus. A cólera dos colegas, dos vizinhos, de estranhos. A cólera chove sobre as cabeças dos culpados e dos tolos.
Demos-lhes alguma coisa e vejamos onde isso os leva? Todos os cenários foram planeados muito para além do momento imediato. Se lhes dermos A, isso levá-los-á a B? E se os levar a C, o que se passará? Irão para D ou para E? Não podemos ser surpreendidos. Planeámos para todas as contingências, todas as possibilidades. Sabemos que somos invencíveis e todos eles o sabem. O jogo é nosso. O sofrimento é deles. São vítimas merecedoras do crime perfeito.
As buscas no terreno recomeçaram à luz acinzentada de uma manhã sem sol. O governador oferecera roupa apropriada contra o frio, da Guarda Nacional, e dois camiões militares estavam estacionados nas traseiras do antigo quartel, para dar luvas e máscaras térmicas a quaisquer voluntários que pudessem precisar delas.
Com a descoberta do casaco de Josh, o pânico aumentara na cidade. A sala do centro de voluntários no antigo quartel dos bombeiros estava cheia de gente, pessoas ansiosas, desesperadas por ajudar. Dirigiam-se para o ponto fulcral das buscas com o zelo das multidões a dirigirem-se para os portões da casa de Frankenstein. Estavam zangadas, aterrorizadas e cansadas de esperar. Queriam recuperar a sua cidade, as vidas tranquilas de outrora e achavam que só a determinação as poderia ajudar a descobrir Josh.
Mitch, sentado no seu Explorer, via as equipas de busca e os cães dispersarem. A maior parte dos casos tinha um ritmo que progredia à medida que as pistas iam surgindo e as provas começavam a erguer-se. Aquele caso não tinha ritmo e a única sensação que ele tinha era má. Quanto mais profundamente penetravam naquele labirinto, mais desorientados e perdidos se sentiam.
Talvez houvesse dois raptores. Talvez Olie fosse um deles. Ou talvez não. Talvez Paul estivesse envolvido no caso. Mas como e porquê? Talvez Albert Fletcher fosse suspeito Talvez fosse louco. Teria conhecido Olie ou seria o cúmplice deste alguém em que não tinham sequer pensado. E haveria algum cúmplice?
Um corpulento sargento do K-9 de Minneapolis encaminhava o seu pastor-alemão para o local onde fora encontrado o casaco. O cão saltou para cima, com a cauda a abanar e o focinho metido na neve. Agentes uniformizados conduziam os voluntários para o mesmo sítio. O coração de Mitch quase parou de bater. O cão parecia ter farejado qualquer coisa. Encaminhou-se para sul, afastando-se das casas, para longe do atalho aberto na neve, entrando em Mill Road, que para leste se dirigia à cidade, e para oeste seguia para as terras de lavoura. O cão ficou imóvel ali, voltado na direcção da cidade, olhando para o campo do outro lado da estrada, onde se erguiam espigas de trigo por colher, danificadas pelo frio prematuro que se fazia sentir.
O animal parecia ter perdido o rasto. Como todos os pedacinhos de esperança que lhes tinham sido dados, aquele foi-lhes também tirado. Mitch ligou o motor do carro e dirigiu-se para a casa de Albert Fletcher que ficava a menos de oitocentos metros de distância.
À luz do dia, a casa de Fletcher era um quadrado sem graça, pintada de um cinzento sombrio. Não havia sinais de restos de decorações natalícias, nas portas ou nas janelas. Aparentemente Fletcher não gostava dessas coisas. Mitch lembrava-se de ter ouvido uns rumores de desacordos entre os membros encarregados da decoração da igreja, durante o Advento. A comissão das senhoras encarregadas de enfeitar a igreja era a favor, o diácono Fletcher era contra. Mitch não prestara muita atenção ao assunto. Nas manhãs de domingo costumava ir à igreja luterana com a filha e os sogros, passando o sermão a fazer mentalmente problemas de matemática, num gesto de rebelião.
Tocou a campainha e esperou ouvir o som de passos. Não ouviu nada. Albert era a única pessoa que ali vivia. Não havia luz por baixo da porta. Mitch tocou outra vez, com força, e balouçou-se sobre as pernas, numa tentativa de ter menos frio. O capuz de lã com protecção para as orelhas colava-se-lhe à cabeça. Por cima tinha o capuz da parka para conservar o calor.
Não apareceu ninguém. Claro que não. Depois da morte da mulher, Fletcher não se relacionara romanticamente com ninguém. Apesar de ter tido uma boa carreira como administrador da Buckland Cheese e de ter provavelmente uma boa reforma, aparentemente as senhoras não o consideravam um bom partido.
A estranha morte de Doris talvez tivesse alguma coisa a ver com isso, pensou Mitch enquanto se dirigia pelo caminho cuidadosamente varrido para a garagem. Pelo que sabia ninguém suspeitara de Albert durante a doença da mulher e a sua subsequente morte.
De acordo com o que Mitch podia ver da janela, a garagem estava também impecavelmente limpa. As portas encontravam-se fechadas à chave. O único carro que ali se via estava coberto por uma lona. Tinha o aspecto de ninguém lhe mexer há anos. Ao longo das paredes viam-se utensílios de jardinagem bem arrumados. Uma prateleira colocada mais acima exibia uma colecção de ferramentas: martelos, chaves de parafusos, alavancas.
Apertando os aquecedores para as mãos nos bolsos do casaco, Mitch dirigiu-se para as traseiras da casa, a fim de verificar as janelas da cave.
Sentia-se irritado ao pensar que Megan estivera prestes a ser apanhada ali sozinha. E se Fletcher fosse louco? Que faria se a apanhasse ali a espiar?
Mitch olhou para as grossas folhas de plástico que cobriam as janelas da cave.
Os encaixes que as prendiam tinham sido substituídos.
Na igreja, Mitch foi encontrar o padre Tom ajoelhado com duas dúzias de mulheres a rezar o terço. Uma muralha de velas votivas brilhava e saturava o ar com o cheiro adocicado de cera derretida. Na parede que ficava atrás das velas, as crianças da catequese tinham colocado cartazes feitos por elas. Mensagens cuidadosamente desenhadas com marcadores coloridos, ou impressas. Jesus, por favor faz com que o Josh se salve. Senhor, por favor faz com que o Josh volte para casa. Havia também desenhos representando anjos, crianças e polícias.
Todos os olhares se voltaram para Mitch quando se encaminhou hesitantemente para o genuflexório do padre. Olhavam para ele à espera de um alívio, de uma boa notícia que ele não lhes podia dar. O padre Tom levantou-se e seguiu-o. Uma voz conduzia as restantes na recitação da oração, num murmúrio monótono.
Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco...
Há alguma novidade? sussurrou o padre Tom com voz tensa. Soltou um suspiro quando Mitch abanou a cabeça.
Preciso de lhe fazer umas perguntas.
Vamos para o meu gabinete.
O padre Tom foi à frente, ajoelhando rapidamente diante do altar antes de prosseguir. Chegados ao gabinete, indicou uma cadeira a Mitch e fechou a porta. Parecia mais um padre do que Mitch alguma vez o vira, com o seu colarinho clerical por cima da camisola preta. O cabelo encaracolado tinha sinais de ter sido penteado, embora os cabelos revoltos circundassem a sua coroa de padre. O papa olhava-o de um quadro colocado na parede, mostrando mais cepticismo do que benevolência, como se o seu colarinho de padre não o iludisse.
Há alguma ocasião especial? perguntou Mitch apontando para o pescoço dele. O bispo vem à cidade?
Tom McCoy olhou-o com uma expressão tímida.
Foi um acordo que fiz com Deus. Prometi-lhe ser um padre melhor se Ele nos devolvesse o Josh.
Mitch sentiu que havia outro motivo subjacente, mas nada disse. Conhecia o padre Tom apenas de jogar golfe com ele, mas isso não era o bastante para ser confessor espiritual de um homem colocado acima dele na escala espiritual.
Infelizmente para todos, creio que não foi Deus quem raptou o Josh. disse Mitch. Como estava a Hannah quando a deixou a noite passada?
O padre olhou para o Game Boy colocado em cima da secretária.
Está a aguentar-se o melhor que pode. Sente-se impotente. É um terreno que não lhe é familiar.
O Paul não ajuda muito.
Não disse o padre Tom com uma expressão mais dura. Não, não. Levantou a cabeça e olhou por cima do ombro direito de Mitch. Sugeri-lhe que concedesse uma entrevista a um desses jornalistas que lha têm pedido. Talvez ela consiga apresentar a sua história de uma maneira que ajude outras mães, que impeça que uma coisa destas volte a suceder a outras pessoas. É esse o papel com que ela está mais familiarizada, o de ajudar os outros.
Talvez murmurou Mitch, pensando no seu papel de ajudar e proteger, e de como se retirara dele depois da sua crise.
Disse que queria fazer-me umas perguntas...
O Albert Fletcher está por aqui? O padre franziu a testa.
De momento não. Creio que está no presbitério. Porquê?
Mitch olhou-o com uma expressão que nada revelava
Preciso de falar com ele por causa de duas coisas
É por causa do Josh?
Porque pergunta isso?
O padre Tom soltou uma curta gargalhada que nada tinha de alegre.
Creio que já falámos disso. O Josh era aluno do Albert na catequese. Isso não faz dele um suspeito?
Mitch abandonou o tom defensivo.
O Fletcher estava a dar aulas na noite em que o Josh desapareceu. Acha que ele seria capaz de o raptar?
O Albert é o homem mais devoto que conheço respondeu Tom. Estou persuadido de que ele acha que eu estou condenado à perdição por ter televisão por cabo Não continuou, abanando a cabeça. Não acredito que o Albert seja capaz de infringir qualquer lei... profana ou sagrada.
Há quanto tempo o conhece?
Há cerca de três anos.
Esteve por perto durante a doença da mulher?
Não. Ela morreu... creio que foi em Janeiro de mil novecentos e noventa e um. Vim para aqui em Março desse ano. Tenho a impressão de que ele devia ser muito amigo dela, pela maneira como se voltou para a igreja depois da sua morte. Deve ter ficado com um grande vazio na vida, para se embrenhar assim na vida da igreja.
Ou estaria já obcecado pela igreja e quereria afastar Doris para se poder dedicar à sua obsessão com todo o zelo? Mitch guardou essa teoria para si.
Tinha uma estranha maneira de mostrar afeição por ela disse Mitch. Parece ser do conhecimento de toda a gente que não queria que ela procurasse tratamento para a sua doença. Afirmava querer curá-la por meio da oração e não ficou nada satisfeito quando a Hannah interveio.
O padre Tom franziu a testa com ar pensativo.
Mitch, não está a sugerir que...
Não sugiro nada. Estou apenas a investigar. Tenho de procurar bem antes de chegar a uma conclusão. Obrigado pelo tempo que me dispensou, padre McCoy.
Dirigiu-se para a porta e voltou-se antes de lá chegar.
Acha que o Fletcher seria um bom padre?
Não respondeu o padre Tom sem hesitar. Para ser padre é preciso mais do que saber de cor as escrituras e os dogmas da Igreja.
O que lhe falta?
O padre ficou calado durante uns momentos.
Compaixão respondeu por fim em voz baixa.
Mitch nunca fora apreciador das velhas casas vitorianas, com o seu mobiliário escuro e salas cavernosas. O presbitério de St. Elysius não constituía excepção. Era suficientemente grande para alojar toda a equipa de futebol da Universidade de Notre Dame, cuja fotografia se encontrava na parede, por cima da diabólica caixa da televisão por cabo.
Deambulou pelas salas do primeiro andar, chamando Albert Fletcher sem obter resposta. Na cozinha pairava o cheiro a café e a torradas. Em cima da mesa havia uma caixa de cereais e ao lado uma caneca com um resto de café, uma recordação dos Cheienes, de Wyoming. O Star Tribune ficara aberto em cima da mesa, numa página em que se via um artigo acerca das vítimas do terramoto de Los Angeles e outro sobre um falso padre que recebia donativos que dizia serem para os sem abrigo.
Mister Fletcher? chamou Mitch.
A porta da cave abriu-se e Albert Fletcher apareceu. Magro e pálido tinha o aspecto de quem estivera preso lá em baixo. A camisa preta assentava-lhe sobre os ombros como se estivesse pendurada num cabide de arame. Por baixo da camisa trazia uma camisola de gola alta, também preta: a imagem inversa do colarinho do padre Tom. Os olhos escuros que fitaram Mitch tinham uma expressão febril, mas eram opacos, ocultando a origem do seu brilho. Os olhos encovados brilhavam sombriamente num rosto magro e cor de cinza, com a pele esticada sobre os ossos proeminentes. A boca era uma linha fechada que parecia incapaz de se curvar. Mitch tentou sobrepor aquela cara ao desenho feito com a ajuda de Mrs. Cooper. Talvez com o capuz, com uns óculos de sol...
Mitch estendeu-lhe a mão.
Sou Mitch Holt, chefe da Polícia. Como está, Mister Fletcher?
Fletcher voltou-se para fechar a porta da cave, ignorando a mão estendida de Mitch, como se a delicadeza fosse contra os seus princípios.
Preciso de lhe fazer umas perguntas, se não se importa continuou Mitch, metendo as mãos nos bolsos das calças.
Já falei com vários polícias.
É um procedimento de rotina explicou Mitch. Há sempre novas perguntas a fazer. As pessoas começam a lembrar-se de coisas depois de falarem com um polícia e nós não queremos perder coisa alguma. Se quiser sentar-se ficará mais confortável.
Aparentemente, o conforto era também um pecado para Albert Fletcher, pois continuou de pé. Entrelaçou as mãos ossudas, que revelavam que estivera a mexer em objectos antigos, na cave. O diácono olhou para as mãos sujas e declarou:
Tenho estado a examinar alguns objectos antigos da igreja, que se encontram na cave há muito tempo.
Mitch forçou-se a sorrir e levantou-se.
Uma casa destas deve ter uma cave enorme. Importa-se que eu dê uma olhadela? Estas casas antigas fascinam-me.
Fletcher hesitou apenas um segundo antes de abrir a porta. Depois desceu uma vez mais para as entranhas do velho presbitério. Mitch seguiu-o, fazendo uma careta ao sentir o cheiro a mofo.
A cave era exactamente como ele esperava uma câmara enorme de velhos tijolos e cimento estalado. As vigas do tecto estavam cobertas de teias de aranha. As lâmpadas nuas irradiavam uma claridade estranha. A parte que ficava por baixo da cozinha continha a caldeira da água, a caixa do circuito eléctrico, a fornalha e um congelador antigo, do feitio de uma arca. Na área seguinte só havia lixo velhas bicicletas, uma centena de cadeiras dobráveis, um monte de mesas sem pernas, filas e filas de redes para as janelas pintadas de verde, um esquadrão de pequenos carros de metal carregados com equipamento de croquet, uma floresta de canas de pesca de bambu.
A sala para onde Fletcher o levou estava cheia de estatuária religiosa, do tempo em que as imagens dos santos tinham cabelo verdadeiro. Toda a Sagrada Família tinha um ar estranhamente anglo-saxónico. As antigas relíquias fitavam a obscuridade com os seus olhos vazios, com os membros e os rostos rachados, falhados. Um antigo altar e uma pia baptismal eram testemunho do aumento e da diminuição de popularidade da madeira barata envernizada num tom claro. Um varão de ferro suspenso de um cano de água exibia a moda no vestuário clerical através dos anos. A humidade fizera apodrecer os paramentos nos cabides. Prateleiras que iam do chão ao tecto forravam três das paredes. Essas prateleiras e todas as superfícies planas estavam cheias de caixas com os antigos registos da igreja e velhas fotografias. Os livros cheios de humidade davam ao ambiente um cheiro adocicado a mofo.
Estranhamente, Albert Fletcher parecia estar no seu ambiente no meio dos testemunhos esquecidos da fé dos seus antepassados.
Tenho estado a fazer um inventário explicou. Ando a tirar daqui os livros, os documentos e os artefactos para um sítio onde possam ser conservados.
Faz isso para além do tempo que passa a dar aulas e a cumprir os seus deveres de diácono? perguntou Mitch, fingindo surpresa. É muito generoso com o seu tempo.
A minha vida pertence à Igreja afirmou Fletcher entrelaçando novamente as mãos, como se estivesse sempre preparado para cair de joelhos e começar a rezar.
É admirável murmurou Mitch. Gostaria de lhe perguntar, Mister Fletcher, se, como professor do Josh, terá notado alguma mudança nele no decorrer das últimas semanas?
Fletcher pestanejou e o brilho dos seus olhos escureceu, como se uma luz se tivesse apagado dentro dele.
Não respondeu, cerrando os lábios finos de modo a formarem apenas uma curta linha.
Teria andado estranhamente calado, ou teria confiado a alguém que algum problema o preocupava?
As crianças estão comigo para receberem instrução. Vão ter com o padre McCoy para a confissão.
Mitch assentiu com a cabeça. Fingindo interesse, tocou num cálice manchado e passou os dedos por uma velha colecção de pratos de cobre.
Bem, tem alguma observação pessoal a fazer a resPeito do Josh? Acha-o um rapazinho simpático, é malcomPortado, ou o quê?
De um modo geral é bem-comportado disse Fletcher de má vontade. Embora hoje em dia as crianças pareçam não ter noção do respeito e da disciplina.
Como sabe, ele é filho da doutora Garrison adiantou Mitch passando um dedo sobre uma antiga chapa de cobre existente por baixo da pia baptismal, onde se lia: EM MEMÓRIA DE NORMAN PATTERSON, 1962. Conhece a doutora Garrison?
Sei quem é.
Não era a médica da sua esposa? perguntou Mitch, observando a reacção de Fletcher através das pestanas semicerradas.
A Doris consultava-a ocasionalmente respondeu Fletcher, franzindo ligeiramente a testa.
Segundo me disseram, a doutora Garrison levou pessoalmente a sua mulher para fazer uns exames médicos na Clínica Mayo. Isso ultrapassou em muito as obrigações dela, não acha?
Fletcher não respondeu. Mitch sentia a cólera irradiar do seu corpo rígido.
A doutora Garrison é uma mulher notável, não acha? continuou. Tem dedicado a sua vida a salvar e a ajudar pessoas. É uma tragédia uma pessoa tão boa ter de passar por uma provação destas.
Não estamos em posição de questionar os desígnios de Deus respondeu Fletcher com uma expressão ainda mais amarga.
Procuramos um louco, Mister Fletcher. Detesto pensar que ele quer fazer o papel de Deus.
Albert Fletcher não fez nenhum comentário. Nem sequer se incomodou em fingir simpatia, ou dizer qualquer banalidade por uma questão de decência. Permaneceu rígido diante da imagem de Maria, que erguia uma mão acima da cabeça dele, como se estivesse hesitante em abençoá-lo ou em desferir-lhe um golpe de karaté. Mitch teria apostado na segunda hipótese. Embora fosse tão devoto, Albert Fletcher revelava não possuir as mais elementares virtudes cristãs. O padre Tom dissera que lhe faltava compaixão. Mitch duvidava de que ele tivesse alma.
Foi terrível o que sucedeu ao Olie Swain, não foi? Podia ter acabado com este pesadelo se não se tivesse suicidado. Conhecia o Olie Swain?
Não.
Bem, temos de esperar que ele encontre alguma paz no outro mundo, não é? disse Mitch.
O suicídio é um pecado mortal replicou Fletcher. Tinha as mãos apertadas com tal força uma contra a outra que os nós dos dedos estavam brancos. Ele condenou a sua alma ao inferno.
Então, esperemos que ele o merecesse concluiu Mitch. Obrigado por me ter mostrado a cave. Foi... foi esclarecedor.
Mitch encaminhou-se para a porta da cave e subiu as escadas. Fletcher seguiu-o como uma alma penada.
Mitch voltou-se para ele, com a mão apoiada no corrimão.
Uma última coisa... Recebemos informações sobre um assaltante que andou na área da sua residência. Gostava de saber se terá notado alguma coisa suspeita.
Não declarou peremptoriamente Fletcher. Estive fora até depois das dez da noite e quando cheguei fui directamente para a cama.
Depois das dez da noite, hein? disse Mitch com um sorriso de cumplicidade. A noite estava muito fria para andar até tão tarde por fora. Ou esteve com alguém especial?
Com a Mãe Santíssima declarou com firmeza Fletcher. Estive a rezar.
Enquanto se dirigia para o seu carro, Mitch interrogava-se sobre a razão por que as palavras de Fletcher lhe provocariam uma sensação desconfortável e não de alívio.
Ignorância não é inocência mas PECADO tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO emanando do meu interior chora incessantemente pelo meu PECADO
As palavras escritas nas mensagens martelavam continuamente o cérebro de Megan, enquanto andava de um lado Para o outro ao longo da parede onde estava o quadro com as mensagens. Estas tinham sido copiadas a tinta vermelha. Vermelho de urgência. Vermelho de sangue.
Fitava-as procurando uma chave, procurando algo que não tivessem conseguido ver nas vezes sem conta que tinham olhado para elas. Procurava qualquer coisa que lhes devia ter dado um nome. Encontrava-se ali, algures. Megan queria acreditar que estavam perto, que estavam prestes a descobrir algo que precisavam de ver, que os espreitava, os arreliava, algo que seria uma pista que os conduziria a Josh.
Ignorância e pecado. As palavras sugeriam palavras de superioridade e piedade. Albert Fletcher estava ressentido com Hannah há três anos. Três anos de ressentimento. A vingança é um prato que se come melhor frio A frase não se encontrava entre as que estavam no quadro, mas podia aplicar-se.
Depois havia Paul Kirkwood com o seu génio violento e os seus segredos. Não lhes falara na carrinha. Que mais estaria ele a esconder? Fazia o papel de mártir perante as câmaras de televisão e depois voltava-se contra a mulher com raiva e desprezo. Poderia ele ter raptado o próprio filho? Porquê? O que o poderia levar a fazer tal coisa? Para ter raptado Josh e fazer depois o papel de pai angustiado, era preciso que tivesse uma alma tão negra como carvão, mas Megan sabia que essas coisas sucediam. Lera o registo de outros casos, casos com pormenores que a tinham feito sentir-se fisicamente doente, casos em que pais maltratavam os filhos da maneira mais hedionda, ocultando o que faziam com demonstrações de desgosto.
Kirkwood teria de ir ali nesse dia para tirar as suas impressões digitais a fim de serem confrontadas com as deixadas na carrinha. Megan sentiu um aperto no estômago ao pensar no barulho que ele iria fazer quando lhe dissessem. Se resolvesse fazer o papel de inocente perseguido perante a imprensa, o escândalo que daí adviria seria o suficiente para derreter distintivos e estragar carreiras, nomeadamente a sua.
Ignorância e pecado. Com as palavras a martelarem-lhe a cabeça, retrocedeu até ao primeiro dia, lendo as anotações, com os detalhes mais significativos a vermelho, os acontecimentos periféricos a azul. A descoberta do casaco, o suicidio de Olie. O telefonema para Hannah, a descoberta da mochila. O primeiro relato do desaparecimento de Josh.
Colocou-se na extremidade do quadro. 1. 0 Dia. Zero.
17h30 Josh sai do rinque de patinagem depois do treino de hóquei.
17h45 Telefonam do hospital para avisar que Hannah chegará atrasada.
17h45 Beth Hiatt vai buscar Brian Hiatt ao rinque. Brian foi o último a ver Josh.
18h00/19h00 Nesse espaço de tempo, Helen Black vê um rapaz a entrar numa carrinha de cor clara em frente do edifício onde funciona o rinque de patinagem.
19h00 Hannah telefona para o escritório de Paul. Deixa mensagem no gravador do atendedor.
19h00 Josh não aparece na aula de religião na Igreja de St. Elysius, dada por A. Fletcher.
19h45 Hannah informa desaparecimento de Josh.
20h30 Olie Swain interrogado no rinque. Não recebeu telefonema do hospital avisando do atraso de Hannah.
20h45 A mochila de Josh é encontrada nos terrenos que circundam o rinque, com um bilhete: «desapareceu uma criança, a ignorância não é inocência mas PECADO.»
Tinham reduzido o crime a um horário. O que não tinham era o itinerário criminoso. Que horas eram e em que dia é que ele tomara a decisão de raptar Josh? Que teria feito nesse dia? Com quem falara? O que é que o poderia ter detido? Se a pessoa que estava à frente dele, numa loja, se tivesse demorado mais tempo nas suas compras, tendo-o feito atrasar dez minutos, Josh não teria sido raptado?
O timing era tudo.
E a ignorância não é inocência mas pecado.
Megan sentia a tensão apertar-lhe as têmporas, como duas pinças.
Hei-de ver. Hei-de descobrir e hei-de apanhar-te murmurou.
Uma breve pancada na porta precedeu a entrada de Natalie. Trazia numa das mãos uma porção de folhas e na outra uma caneca de café fumegante. Por trás dos grandes óculos de aros vermelhos, os olhos de Natalie estavam raiados de sangue, fazendo lembrar a Megan que não era ela a única a perder o sono por causa daquele caso.
Precisas de um café, rapariga declarou Natalie colocando a caneca sobre a mesa.
Megan pegou na caneca e aspirou o seu aroma como se fossem sais.
Precisava de o tomar em injecções intravenosas afirmou com um suspiro. Obrigada, Natalie.
Natalie agitou o seu braço roliço para dizer que não tinha de quê, fazendo tilintar as suas pulseiras de contas coloridas. Rodeava-lhe o pescoço amplo um colar a condizer com a pulseira. Natalie parecia um anúncio de um modelo para mulheres gordas, com a sua bonita túnica sobre uma saia direita que lhe chegava aos tornozelos. Megan sentia-se com um aspecto terrível. Dormitara já de madrugada, depois adormecera e acordara tarde. Enfiara as primeiras roupas que encontrara ao sair da cama. Umas calças de bombazina de um tom dourado cheias de rugas horizontais, por terem sido atiradas ao acaso para cima de uma cadeira, e um camisolão verde que servira de cama a Gannon. Megan viu um pêlo do gato, tirou-o e deitou-o para o chão.
Pela maneira como o meu telefone tem tocado, acho que vais precisar de todos os teus amigos declarou Natalie sentando-se numa das cadeiras de plástico. Os tablóides ofereceram-me bom dinheiro para eu lhes dar alguma prova de que tu e o chefe faziam coisas no escritório dele.
Megan fechou os olhos e gemeu, deixando-se cair na cadeira mais próxima.
Respondi-lhes que podiam pegar na porcaria do dinheiro e oferecê-lo para o centro de voluntários. Não tenho nada a ver com o que se passa nos gabinetes das outras pessoas, atrás das portas fechadas. E eles também não! exclamou Natalie.
Ámen.
Pessoalmente gostava que o Mitch pudesse encontrar alguém que o fizesse feliz. Deus sabe que, desde que ele se mudou para aqui, temos tentado arranjar esse alguém. O pobre homem ia para os encontros mais às cegas do que o Stevie Wonder.
Soltou uma gargalhada, enquanto Megan tentava esboçar um sorriso.
Agradeço o apoio disse Megan, mas nós passamos a maior parte do tempo a discutir um com o outro. Não creio que seja eu esse alguém.
Mas na outra metade do tempo vocês formam um belo par. A mim parece-me amor concluiu Natalie tão prosaicamente como se estivesse a diagnosticar uma vulgar constipação.
Megan não queria pensar que a situação fosse tão transparente. Não era assim tão simples Não era simples amar alguém Era preciso que a pessoa que se amasse nos amasse também.
Bem, pelo caminho que as coisas estão a tomar, estou a ver que não estarei aqui o tempo suficiente para desfazer as malas.
Natalie abanou a cabeça.
Rezo a Deus pedindo-lhe um milagre. Depois praguejo e rezo outra vez. Quero um milagre., e já concluiu batendo com o punho na mesa.
Eu gostava de ter uma pista disse Megan. O Mitch já chegou?
Não, mas o professor Pnest está aí à tua procura Devo mandá-lo para aqui?
Megan olhou à sua volta, para a sala de guerra. O quadro das mensagens, na parede, a ardósia com nomes e lugares escritos a giz. Não era um sítio para receber um cidadão, mas o tempo urgia. Talvez o que lhes estivesse a fazer falta fosse um cérebro como o do professor, a funcionar como um computador, que analisasse de novo toda a situação. Alguém que entrasse de novo. um novo agente.
Não disse Megan afastando esses pensamentos Vou recebê-lo no meu gabinete Obrigada, Natalie.
Tudo pela causa E não risques o Mitch da tua lista de dança, menina. Ele é um bom homem., e tu uma boa rapariga disse com um brilho no olhar. Serves para ele.
O professor ouviu atentamente a explicação de Megan sobre a impossibilidade de entrarem nos computadores de Olie. Swam Despira o sobretudo e via-se que vestira uma camisola azul que devia ter metido inadvertidamente no secador. As mangas ficavam-lhe a três quartos, mostrando uma grande parte da camisa branca que usava por baixo.
Megan sentiu uma certa frustração ao pensar que o caso podia ser resolvido não por meio do trabalho duro da investigação e das buscas, mas sim por intermédio de um perito em computadores. Mas se ficasse resolvido seria óptimo, e ela iria buscar Josh onde quer que ele estivesse Se fosse preciso saber o seu paradeiro por intermédio de uma bola de cristal, pagaria do seu próprio bolso para isso.
Soube que o Olie assistia a aulas de computadores na Harris disse Megan. Temos esperanças de que o professor seja capaz de desvendar as armadilhas que ele preparou. Se conseguirmos saber o que ele tem no disco do computador, talvez fiquemos com uma indicação que nos leve a conhecer o envolvimento dele no rapto do Josh.
Terei muito gosto em ajudar de todas as maneiras que puder, agente OMalley respondeu Priest com uma expressão preocupada. Devo dizer que me custou a acreditar que o Olie tivesse alguma coisa a ver com o rapto. Nunca me deu qualquer indicação... isto é, ele era estudioso, nunca dizia nada a ninguém... nunca teria imaginado...
Pois é, mas o John Wayne Gacy vestia-se de palhaço e ia visitar crianças aos hospitais retorquiu Megan.
Quem sabe a maldade que espreita no coração dos homens? murmurou o professor, como se falasse consigo mesmo.
Se ficássemos a saber, só por olhar, as prisões estariam a abarrotar e as ruas seriam seguras disse Megan. Faz alguma ideia do que o Olie faria com todas aquelas máquinas?
Gostava de lhes mexer. Gostava de aumentar as memórias, de escrever os seus próprios programas para realizar certas funções. Quando me abordou para saber se poderia assistir às aulas tinha um modelo antigo Tandy que servia para pouco mais do que processamento de texto. Disse-lhe onde ele poderia arranjar um computador melhor por uma pequena quantia, ou gratuitamente. Creio que ele fez disso o seu hobby.
Se tivermos sorte, o seu hobby poderá levar-nos ao Josh. Podemos até ficar a saber se possuía um cúmplice, mas primeiro temos de entrar nos computadores dele.
Como disse, ajudarei em tudo o que puder, agente O’Malley afirmou Priest, erguendo-se da cadeira e puxando para baixo a camisola demasiado curta. Não posso fazer promessas, mas farei o melhor que souber.
Obrigada, professor. Vamos instalá-lo numa sala aqui. Um perito em computadores do BCA trabalhará consigo. É o procedimento habitual quando alguém exterior é chamado a colaborar.
Compreendo. Não tenho qualquer problema com isso.
Óptimo.
Megan estendeu-lhe a mão mas não chegou a apertar a do professor. Mitch abriu a porta do gabinete e anunciou com voz dura:
O Paul Kirkwood vem aí. E traz um séquito com ele.
O circo instalou-se no vestíbulo do City Center. Um círculo feito de luzes de televisão e de câmaras. Uma audiência de gente zangada e chocada, vinda do centro de voluntários, pessoal da imprensa, repórteres, jornalistas de outras televisões, com os olhos brilhantes de inveja. Paige Price era o mestre-de-cerimónias e resplandecia num casaco em tom vermelho cardinalício e uma mini-saia preta, muito justa.
A principal atracção do circo era, claro, Paul Kirkwood. Ficara lívido quando, em Ryan’s Bay, Mitch lhe dissera para se apresentar na esquadra para tirar as impressões digitais. E estava ainda lívido. A culpa era toda daquela cabra, a O’Malley. Por Deus, que havia de a fazer pagar por isso. Ela e Mitch Holt deviam pagar segundo ele pensava. Pagar por o terem humilhado, por terem suspeitado dele. Ele devia ser objecto de simpatia, compreensão e compaixão. Em vez disso, queriam as suas impressões digitais.
Arvorou a sua melhor expressão de vítima e deu-lhe uma perfeita sugestão de indignação e ultraje. Pensara em ir primeiro a casa tomar um duche e vestir roupas melhores, mas Paige Price fez-lhe notar que causaria maior impacte assim, ido directamente das buscas, com as suas calças de ganga, camisola de lã e botas para andar na neve. Tinha o cabelo despenteado devido ao gorro que usara e o nariz vermelho de frio.
Um técnico da TV7 fez um teste de luz sobre o rosto de Paige Price. Outro assistente levou-lhe um espelho para que pudesse verificar a sua maquilhagem. Ela fez um gesto que queria dizer que estava pronta. A contagem decrescente partiu de uma voz incorpórea para além do círculo de luzes.
Três... dois... está no ar...
Daqui Paige Price falando do City Center de Deer Lake, com Paul Kirkwood, cujo filho foi raptado do exterior do rinque de patinagem no gelo, aqui em Deer Lake, há oito dias. As buscas para encontrar Josh e o seu raptor têm-se arrastado e as autoridades policiais encarregadas do caso voltaram subitamente a sua atenção para o pai de Josh. Hoje, o chefe da Polícia, Mitchell Holt, ordenou a Paul Kirkwood que se apresentasse na esquadra para lhe serem tiradas as impressões digitais.
Voltou-se para Paul. de microfone em punho e uma expressão grave.
Mister Kirkwood, pode dizer-nos qual foi a sua reacção a este último desenvolvimento?
Sinto-me ultrajado respondeu Paul com a voz a tremer de fúria. O BCA e a Polícia não conseguem dar seguimento à resolução do caso desde o princípio. O único verdadeiro suspeito que tinham suicidou-se na prisão. Estão desesperados e querem dar a impressão de estarem a fazer progressos no caso, quando andam apenas a apanhar fios caídos. Mas voltarem-se contra mim é que é absolutamente inconsciente.
As lágrimas vieram-lhe aos olhos, brilhando como diamantes sob as luzes da televisão.
O Josh é meu filho. Eu amo-o. Eu nunca, nunca faria nada que o pudesse magoar. Fazíamos tudo juntos. Acampávamos. Fazíamos desportos. Às vezes ia ao meu escritório e eu dava-lhe uma máquina de calcular e ele fingia ser... ser como eu...
Dando a Paul a oportunidade de se recompor ou de dar espectáculo, conforme ele quisesse, Paige Price voltou-se uma vez mais para a câmara. Deixou uma única lágrima correr-lhe ao longo da face, com os seus olhos demasiado azuis a, brilharem como dois lagos cintilantes.
É realmente uma reviravolta inesperada e, devo dizer, muito cruel, tomada pelas investigações chefiadas pelo BCA ao desaparecimento de Josh Kirkwood. Desde os primeiros e terríveis momentos destas buscas, vemos Paul Kirkwood na primeira linha das buscas para encontrar o seu filho desaparecido.
Voltou-se novamente para Paul, que conseguira arranjar um ar sofredor e ao mesmo tempo nobre.
Mister Kirkwood, tem alguma explicação para o facto de agora se terem interessado por si como suspeito?
Ele abanou a cabeça, cansado, triste.
Fui em tempos proprietário da carrinha que agora pertencia ao Olie Swain. A agente O’Malley decidiu que os anos que entretanto decorreram não tinham qualquer significado.
A agente Megan O’Malley do BCA?
Sim.
E o chefe Holt concorda com a teoria dela de que o senhor possa estar envolvido no rapto do Josh por causa dessa vaga ligação à carrinha?
Não compreendo. Tenho feito tudo quanto posso para ajudar na investigação. Como podem voltar-se assim contra mim é algo que não compreendo. Conheço o Mitch Holt desde que ele veio para aqui. Não sei como pode considerar-me envolvido no rapto do meu filho.
Mitch, Megan e o sargento Noga encontravam-se na periferia da multidão à entrada do vestíbulo que dava para as instalações da Polícia. Ao princípio, passaram despercebidos, devido às tentativas das câmaras das estações rivais de conseguirem boas posições e por todos terem os olhos fixos em Paige Price e Paul Kirkwood. Mas à menção do nome de Mitch alguém se voltou para ele. Depois outra pessoa, e logo a seguir uma câmara de televisão focou-o e meteram-lhe um microfone em frente da cara.
Chefe Holt, tem algum comentário a fazer sobre a situação de Paul Kirkwood?
Antes de Mitch poder pensar em mais qualquer coisa do que uma obscenidade que não podia dizer, toda a vaga dos media se voltou para ele, fazendo perguntas, olhando para Paige Price. Mitch não fez qualquer tentativa para lhes responder. Com uma expressão furiosa, dirigiu-se a Paul Kirkwood. Megan seguiu-o. Noga fechava o cortejo, protegendo-lhes a retaguarda.
O rosto de Paige iluminou-se. Não podia ter imaginado um cenário mais perfeito. Passou diante de Mitch, pondo-se à frente de Paul.
Chefe Holt, tem alguma coisa a dizer sobre a aparente falta de compaixão por este pobre pai?
Mitch teve vontade de dar um murro no pobre pai, por lhe ter preparado aquela encenação. O espectáculo feito para apelar à compaixão e simpatia das pessoas nada tinha a ver com o desgosto de Paul. Tratava-se, sim, de uma vingança mesquinha. Mitch voltou-se para olhar Paige e por cima dos ombros dela viu o presidente da Câmara e toda a municipalidade ali reunidos.
Como expliquei claramente a Mister Kirkwood esta manhã respondeu, este processo é necessário para identificar todas as impressões digitais encontradas na carrinha do Olie Swain. Como foi em tempos proprietário da carrinha, queremos as suas impressões digitais para comparação. Mister Kirkwood não se encontra sob prisão, nem sequer é considerado suspeito. Voltou-se novamente para Paul, com o rosto vermelho de raiva. Se quiser acompanhar-me, Paul, trataremos do assunto numa questão de minutos sem qualquer complicação.
A expressão de Paul seria mais adequada a um miúdo de dez anos que tivesse amuado. Noogie voltou-se para abrir caminho e dirigiram-se para as instalações da Polícia. As perguntas gritadas pelos jornalistas ecoavam pelas paredes do vestíbulo.
Megan não foi suficientemente rápida para seguir em fila. Paige Price interceptou-a, claramente aborrecida por ter a sua entrevista exclusiva interrompida pela polícia.
Agente O’Malley, que tem a dizer acerca do papel do BCA neste drama? Considera Paul Kirkwood um suspeito?
Megan franziu a testa quando a luz de um projector lhe bateu na cara.
Não faço comentários.
É verdade que é a responsável pelo que se está a passar com Paul Kirkwood?
Megan sentiu o estômago apertado ao pensar que DePalma podia estar a ouvir aquilo e que a pressão arterial dele ia aumentando a cada momento.
Foi encontrada uma ligação entre Mister Kirkwood e a carrinha que era propriedade de Mister Swain respondeu Megan, medindo cuidadosamente as suas palavras. O que estamos a fazer agora é um procedimento de rotina e não se trata de modo algum de uma perseguição feita a Mister Kirkwood. Estamos simplesmente a fazer o nosso trabalho.
Paige aproximou-se um pouco mais. Os seus olhos fitaram-na com malícia, embora os telespectadores pudessem pensar que se tratava apenas de interesse jornalístico.
O seu trabalho é afastar as atenções das pistas legítimas e fazê-las incidir sobre o pai do Josh?
Estamos a seguir todas as pistas, Miss Price.
Quando diz «estamos» está a referir-se a si e ao chefe Holt, com o qual tem estado ligada...
Quando digo «estamos» refiro-me às várias instituições envolvidas...
E esta incidência sobre o Paul Kirkwood não será uma retaliação pelas críticas feitas por ele à sua actuação neste caso?
Trabalho para o BCA replicou secamente Megan. Não pertenço à Gestapo.
Mister Kirkwood tem criticado abertamente a sua conduta.
A minha conduta?
Megan enfureceu-se. Era preciso atrevimento. Paige Price era capaz de se prostituir para conseguir informações internas e depois voltava-se para lhe apontar o dedo?
Estamos a fazer tudo quanto podemos para encontrar o Josh. Talvez possa perguntar ao xerife Steiger os pormenores, quando estiver na cama com ele.
Paige recuou um passo, ofegante, com o rosto tão vermelho como o seu casaco. Megan olhou-a com um sorriso vingativo e voltou-se para abrir caminho por entre as pessoas.
Ignorou as mãos que tentavam agarrá-la. Faziam-lhe várias perguntas ao mesmo tempo, numa cacofonia de sons. Não tinha nada a dizer a qualquer deles. Aqueles parasitas pouco colaboravam nas tentativas de encontrar Josh, ou no esforço para apanhar o seu raptor. Na opinião dela, serviam apenas para alimentar os mexericos, intrometendo-se no trabalho dos outros com as suas intermináveis controvérsias.
«Eles que se alimentem uns aos outros», pensou, dirigindo-se para as instalações da Polícia. Olhava sempre em frente e o seu pensamento estava mais longe, na sala onde Paul Kirkwood estaria a deixar as suas impressões digitais.
A reacção à actuação teatral de Paul foi imediata e esmagadora. Os telefones do departamento da Polícia e da Câmara tocaram ininterruptamente todo o dia. No entanto, Paul teria ficado aborrecido se soubesse que nem todos os que telefonavam manifestavam o seu «desagrado por essa infeliz reviravolta nos acontecimentos», como um dos seus apoiantes se expressara. E nos rumores que corriam, apesar das temperaturas frígidas, o de que Paul estava na iminência de ser preso, ganhou impacte e força.
Na frente a favor de Paul, os cidadãos telefonavam para os membros do Conselho Municipal e para o presidente da Câmara, chegando este a ir visitar pessoalmente Mitch, o qual, ainda furioso com Paul, não apresentou desculpas. Pagavam-lhe para fazer um trabalho e ele fazia-o. Se as pessoas queriam controlar quem é que devia ser considerado suspeito, então teriam de arranjar outro indivíduo que quisesse usar aquele distintivo.
Naquele momento, pensou, não lhe parecia má ideia.
Para fugir aos telefones que tocavam incessantemente, Mitch foi para a sala de guerra, mas tudo ali lhe recordava o mesmo. As paredes, as mesas com montes de cópias de relatórios de depoimentos e registos de pistas que tinham acabado por se revelar inúteis. O relógio na parede continuava o seu tiquetaque monótono. Eram nove e vinte e três da noite.
Mitch passara as últimas quatro horas a verificar pessoalmente os locais onde Josh poderia encontrar-se, como a pequena cidade de Jordan, a cem quilómetros de distância. Outro beco sem saída, nova descida da adrenalina. Tinha agora na frente uma pilha de depoimentos de cidadãos de Deer Lake que apontavam o dedo acusador a vizinhos, aos polícias, aos professores, ao padre Tom, a Paul. Voltou para junto do telefone que não se calava, continuando a transmitir vozes de pessoas com mais censuras.
Tratava-se na verdade de um caso feio, cheio de factos horríveis, sendo o pior de tudo a possibilidade de Paul estar de facto envolvido no rapto.
A lógica fizera com que tivessem desconfianças a resPeito de Paul. Desconfianças que ele não afastara sem deitar um gosto a mentira disfarçada. A lógica pedia que Paul desse as suas impressões digitais e Paul protestara de mais.
A lógica também fazia com que desconfiassem de Albert Fletcher. Esse homem causava calafrios a Mitch. Não gostava dele e sentia um sabor amargo na boca quando pensava nele. Apostaria o seu distintivo em como Fletcher era culpado de qualquer coisa. O pior era ele nada saber e nada poder provar. Até então, a coisa que mais provocara desconfiança em relação a Fletcher fora o facto de os seus homens terem descoberto que o diácono levara roupa a limpar a uma lavandaria de Tatonka, apesar de existirem duas em Deer Lake. Não era exactamente uma arma fumegante.
Mitch olhava para o quadro. Nomes e datas tinham círculos feitos a giz, reforçando suspeitas, conjecturas, especulações. Teorias sobre as mentes mais sombrias, ou com mais motivos de Deer Lake. Aquilo era o seu céu, o seu purgatório. Sentia-se como se tivesse vivido num nevoeiro de calmaria durante dois anos, esquecendo os abcessos ocultos sob a superfície da cidade. Fizera isso deliberadamente, bloqueando os seus instintos de polícia.
Ressentira-se com Megan por ela o fazer ver constantemente coisas que ele não queria ver. Mas ela tinha razão em fazê-lo. Ele podia ter ido para ali com a ideia de se esconder, de lamber as suas feridas, mas não podia continuar a fazê-lo. Não podia olhar Deer Lake como um porto de abrigo, tinha de pensar como um polícia.
Fitou de novo o quadro. O nome de Albert Fletcher lá estava, rodeado por um círculo de giz.
Albert Fletcher estivera a dar aulas na altura em que Josh fora raptado. Para estar envolvido no caso, teria de ter tido um cúmplice. Não fora feita qualquer ligação entre Fletcher e Olie Swain.
Também não houvera nenhuma ligação sólida entre Olie e o crime. A carrinha de Olie adequava-se perfeitamente à descrição feita por Helen Black sobre a que vira na noite do rapto, mas o laboratório não descobrira nada de útil na carrinha que Olie comprara a Paul.
As mensagens do quadro pareciam troçar dele.
ignorância não é inocência mas PECADO tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO
emanando do meu interior chora incessantemente pelo meu PECADO
Dá-me alguma coisa a que me agarrar, seu filho da mãe murmurou Mitch. Veremos quem é o ignorante
Penso que ele já nos deu algo, mas que nós não estamos ainda a vê-lo.
Megan entrou na sala com um aspecto cansado e amarrotado. Claro que o dia dela fora tão mau como o dele. Possivelmente pior. Parecia precisar de alguém a quem se apoiar, mas provavelmente não aceitaria isso da parte dele.
Tiveste alguma notícia do DePalma perguntou Mitch depois de ela se sentar.
Gostaria de pensar que «falta de notícias são boas notícias», mas não sou assim tão ingénua. Além de conseguir as impressões digitais do Paul, disse à frente de toda a audiência da TV7 que a Paige Price era uma pega mercenária. Não há boa acção que passe sem ser castigada.
Mitch esboçou um sorriso.
Para diplomata, és uma boa polícia de rua.
Obrigada respondeu Megan, sorrindo também. Creio que há várias pessoas na cidade prontas a acreditar que o Paul pode ser culpado.
Querem acreditar que alguém é o culpado disse Mitch. Preferem que seja alguém que conheçam do que um desconhecido sem rosto. Acreditariam que teria sido o Paul, porque nesse caso o mal estaria contido dentro de uma só família. Desse modo podem voltar a sentir-se seguros, porque a maçã estragada se encontra noutro cesto.
Ou é isso, ou acreditam realmente que foi ele. Mitch suspirou. Por mais pressão que ela sentisse, Megan
sabia que a pressão era, sob muitos aspectos, pior para ele. Tinha família e amigos a tomarem partido pelos dois lados, esperando que ele conseguisse atar tudo num bonito laço amarelo, como os que aqueles residentes em Deer Lake tinham prendido aos troncos das árvores e aos candeeiros da electricidade em sinal de esperança. Ele tinha o passado que ela lhe atirara à cara na noite anterior.
Veremos o que tem o laboratório a dizer a respeito das impressões digitais dele declarou Mitch olhando uma vez mais para o quadro das mensagens.
O facto de elas não aparecerem na carrinha não o iliba lembrou Megan, fazendo com que Mitch franzisse o sobrolho. É lógico que usasse luvas.
Era lógico... murmurou Mitch. A lógica dizia muitas coisas, mas parecia que poucas pessoas se apercebiam disso, incluindo ele próprio. Â lógica dizia-lhe para se afastar de Megan, mas contudo ele não fizera um verdadeiro esforço para isso.
Acho que a lógica se foi embora proferiu, passado um bocado. Nós devíamos fazer o mesmo. E se fôssemos comer uma piza?
A camaradagem fácil que aquela proposta revelava surpreendeu Megan. Mitch fez uma careta ao ver o olhar desconfiado que ela lhe lançava.
Tréguas, está bem? pediu. Foi mais um dia péssimo e é tarde.
Devo tirar o meu distintivo? perguntou Megan friamente.
Mitch fechou os olhos com uma expressão de desalento.
Tens razão. Ontem fui um cretino admitiu Mitch sentando-se na cadeira ao lado dela. Este caso não tem sido bom para a minha disposição. Ambos dissemos coisas que nunca diríamos se este mundo fosse um lugar são. Olhou-a de lado, implorando tréguas. Eu vou pedir queijo extra.
Encontrarmo-nos fora de horas? exclamou Megan abrindo os olhos, falsamente chocada. O que dirá o público?
Que se lixem respondeu Mitch. Se não conseguirmos esclarecer este caso, iremos ambos parar ao trabalho de rua, de qualquer modo.
Não disse Megan. Sobreviverás ao fracasso. As pessoas perdoam sempre esse tipo de coisas. O pior é se o mau for alguém de quem as pessoas realmente gostem. Essas coisas é que irritam toda a gente.
Megan olhou para a porta, que lhe parecia muito distante. A ideia de um apartamento gelado cheio de caixotes não lhe agradava nada.
Vamos, Megan disse ele. É só uma piza.
A tentação estendeu os seus tentáculos em volta de Megan e apertou-a. Era só uma piza. E depois seria só um toque, só um beijo, só uma noite, apenas sexo.
De qualquer maneira obrigada, Mitch. Creio que vou para casa, dormir.
Mas deixou-se ficar parada. À espera.
Megan...
Pronunciou o nome dela em voz baixa, num tom íntimo, que tocou uma corda dentro dela. O feixe luminoso do olhar ambarino apanhou-a, prendeu-a enquanto ele se levantava da cadeira. Depois os braços dele rodearam-na.
Erro. Fraqueza. As palavras pareciam apunhalá-la, mas os lábios dela entreabriram-se. As pestanas agitaram-se e o desejo envolveu-os a ambos. O beijo foi longo e no entanto impaciente; meigo e urgente; agressivo, interrogador e reconfortante. Megan queria tocar-lhe, sentir que ele a desejava, queria imaginar que era o género de desejo que transcendia a atracção física. Mas não era.
O que estás a fazer? perguntou Megan, afastando-se, mas falando sem a animosidade que ela quisera imprimir às palavras.
A fazer-te mudar de ideias disse Mitch. Se tiver sorte.
Megan saiu dos seus braços. Uniu os dedos e levou-os aos lábios, como se estivesse a rezar. Tentou olhar para a carpete cor de granito cinzento, mas o seu olhar voltou a pousar em Mitch, que estava agora com as mãos na cintura e uma perna dobrada, não para tentar esconder a sua erecção, mas para a desafiar a olhá-la. A aura do macho perigoso rodeava-o duro, ligeiramente desmazelado, impaciente, grande e másculo como se o dia lhe tivesse tirado o verniz das suas maneiras e do seu lado civilizado.
Não murmurou Megan, enquanto tudo dentro dela protestava contra essa recusa. O meu lugar aqui está preso por um fio.
E aqueles que têm o machado cortá-lo-ão, sem quererem saber o que fazemos.
Agradeço o voto de confiança disse Megan com sarcasmo, magoada.
Isso nada tem a ver com o que eu quero ou o que pensas. Eles farão o que for melhor para eles. Sabes isso tão bem como eu.
Por isso, se me castigarem, posso bem ser culpada de qualquer coisa afirmou Megan com amargura.
Mitch encolheu os ombros, como se dissesse «porque não?», com uma expressão dura, impassível.
Não creio disse suavemente Megan. Por maior tolice que fosse querer gostar dele, não podia pensar em amá-lo como um gesto de despeito, ou um prémio de consolação.
Voltou-se devagar e dirigiu-se para a porta, contendo a respiração contra uma esperança a que não queria dar nome. Mitch ficou calado. Megan forçou-se a erguer o queixo e olhou-o uma última vez antes de estender a mão para a maçaneta.
Não irei para a cama contigo só por ser conveniente. Tenho os meus defeitos, mas a falta de respeito por mim mesma não é um deles.
Hannah estava sentada num cadeirão a um canto do quarto. Completamente desperta. Nas nove longas noites desde o desaparecimento de Josh, não voltara a dormir profunda e pacificamente. Fizera uma prescrição de Valium para si própria, mas não fora capaz de a mandar aviar. Talvez não quisesse a simpatia do farmacêutico, ou talvez achasse que isso revelaria uma fraqueza que ela não queria revelar. Ou talvez não quisesse não merecesse o alívio do sono. Ou talvez receasse ceder à pressão e ao desespero e se abandonasse à tentação de tomar demasiados comprimidos.
Tinham pedido a Paul que fosse tirar as impressões digitais. Voltara para casa, depois de ter ido à esquadra, indignado e furioso. Hannah assistira pela televisão à reportagem em directo da TV7. Ficara chocada, perplexa, nauseada e assustada. Chocada porque Paul nada lhe dissera. Ela não sabia de nada. Perplexa porque nunca vira Paul daquela maneira. Nauseada por causa das possibilidades que se abriam na sua mente. E assustada porque não era capaz de as afastar.
Olhava para a cama vazia, revendo mentalmente toda a cena. Ela estava na sala, de braços cruzados sobre o peito e expressão fechada, quando Paul entrara pela cozinha dentro. Via o agente do BCA sentado na cozinha, atendendo mais um telefonema dos inúmeros que tinham recebido desde a emissão televisiva. Amigos e conhecidos, preocupados, oferecendo o seu apoio, fazendo perguntas para saberem mais Via a boca de Paul mover-se e percebeu que não ouvia as palavras dele por causa das pulsações nos seus ouvidos.
... aquela cabra dizia Paul, tirando o casaco, que atirou para cima de uma cadeira, e descalçando as grossas botas que habitualmente deixava à entrada. Os atacadores estavam cobertos de neve que derretia e corria como gotas de suor para a carpete. A única coisa que ela sabe fazer bem é foder o Mitch Holt.
Hannah ignorou a observação.
Quero falar contigo em particular disse secamente. Paul olhou-a, perturbado por ela ter interrompido a sua tirada.
Suponho que simpatizas com ela acusou. As mulheres progressistas têm de se apoiar umas às outras.
Nem sequer sei de quem estás a falar retorquiu Hannah.
Obrigado por estares a tomar atenção, Hannah disse Paul, troçando. É tão agradável ter o apoio da minha mulher.
Se queres o meu apoio, tens de pensar em me dizer primeiro o que se passa.
O seu olhar foi do agente sentado na cozinha para Paul que parecia esquecido de que se encontrava ali uma terceira pessoa. O telefone tocou outra vez e o som penetrou nos seus ouvidos como um florete,
Pediram-te que fosses tirar as impressões digitais e não me disseste nada. O que é que achas que isso me fez sentir?
A ti? exclamou incredulamente Paul. E fazes ideia do que eu senti?
Tenho a certeza de que não. Tu não me disseste coisa alguma. Foi com assombro que assisti àquele espectáculo no City Center. Achaste mais importante ter a Paige Price do teu lado do que teres-me a mim?
Eu não devia ter de te puxar para o meu lado. Tu devias estar do meu lado declarou raivosamente. Já não suporto mais a tua atitude.
A minha atitude? repetiu Hannah, boquiaberta. Não fui eu que fui tirar as impressões digitais hoje.
E pensas que eu quis isso?
Hannah olhou-o, olhou para a mão que lhe agarrava o braço, para o rosto contorcido pela raiva. Não conhecia aquele homem, não confiava nele, não sabia no que havia de acreditar acerca dele.
Soltou o braço e esfregou a parte dorida.
Não sei o que hei-de pensar murmurou, estremecendo.
Paul pestanejou e fez-se muito pálido.
Meu Deus, Hannah. Não podes pensar que tive alguma coisa a ver com isto.
Logo a seguir Hannah sentiu remorso. Não era que acreditasse que ele tinha algo a ver com tudo o que se passava. Apenas não tinha a certeza do contrário. Não valia a pena estar a assinalar essa diferença. Como era possível acreditar que o marido tivesse levado o filho, fazendo-a enfrentar todo aquele inferno? Como podia imaginar tal coisa? Que mulher era ela? Que pessoa era ela?
Não murmurou numa voz que quase não se ouvia. A verdade é que não sei o que pensar, Paul. Dantes partilhávamos tudo. Agora nem sequer conseguimos falar sem nos atacarmos um ao outro. Não podes imaginar o que senti ao ver-te na televisão, ao ouvir falar na carrinha e nas impressões digitais. Tudo aquilo me pareceu uma cena de uma má telenovela. Por que não me disseste?
Paul evitou o olhar doloroso de Hannah fixando a caminha vazia de Lily. Karen Wright oferecera-se para levar a menina consigo para passar a noite. Hannah ficara de tal modo em estado de choque depois de ver Paul na televisão que não tivera forças para protestar.
Não tive tempo. Estava nas buscas quando apareceu o Mitch Holt...
Ele estava a mentir. A ideia fora instantânea. Hannah sentiu-se envergonhada por pensar isso, mas não pôde afastar tal ideia. Paul percebeu isso.
E queres tu que confie em ti disse Paul abanando a cabeça. Vou-me embora daqui.
Paul...
Estarei no meu escritório declarou secamente. Podes querer alertar a Polícia para que me vigiem.
Não voltara. Não telefonara. Ela também não lhe ligara com receio de que ele não respondesse como na noite em que Josh desaparecera.
Um tremor sacudiu-a e ela sentou-se melhor na cadeira. apertando os braços em volta dos joelhos. Não queria pensar nas perguntas e nas dúvidas que se apoderavam dela e que percorriam a sua mente como ratos. Não queria pensar na entrevista que iria dar a Katie Couric. Só queria fechar os olhos e ver tudo isso desaparecer.
Mas em vez disso fechou os olhos e viu Josh.
Estava vivo. O seu rosto era inexpressivo. Estava de pé num vácuo acinzentado, informe. Não falou. Não deu sinais de a reconhecer, ou mesmo de a ver. Tinha um ferimento na face direita. Vestia um pijama de riscas que ela nunca vira. Apesar de não poder ver através das mangas, Hannah sabia que ele tinha uma ligadura no braço esquerdo e na parte de dentro do cotovelo. Soube também que o cérebro dele estava cheio do mesmo nevoeiro cinzento que o rodeava, com excepção de um único pensamento: Mamã.
O coração de Hannah começou a bater descontroladamente. Queria tocar-lhe mas não conseguia mexer os braços. Tentou falar-lhe mas nenhum som lhe saiu da boca. Transmitiu-lhe a vontade de a olhar, mas ele olhou através dela, como se ela não se encontrasse ali. A frustração aumentou dentro dela como fumo a sair de uma chaleira, até que ela gritou, gritou e gritou.
Acordou sobressaltada, abriu os olhos de repente, com o coração a galope. A camisa de noite e as perneiras que usava estavam encharcadas em suor. Julgou que tinha dormido poucos minutos. O relógio da mesinha-de-cabeceira de Paul mostrou-lhe que dormira mais de uma hora. Eram duas e quarenta e nove da manhã.
A cama estava ainda vazia. O telefone tocou e Hannah precipitou-se para ele, atirando a base ao chão.
Paul? Paul?
O silêncio respondeu-lhe, pesado, escuro.
Hannah escorregou e ficou sentada, encostada à cama.
Paul? tentou outra vez.
Então ouviu a voz, baixa e fantasmagórica, um sussurro como fumo:
Uma mentira é a chave que serve para todas elas. Uma mentira é a chave que serve para todas elas. Uma mentira é a chave que serve para todas elas.
O pecado tem muitas ferramentas, mas uma mentira é a chave que serve para todas elas, era uma citação de Oluer Wendeíl Holmes, como descobriram.
Tinham descoberto a frase num velho livro de citações que se encontrava no escritório de Paul, em casa, uma divisão imaculada que poderia figurar numa revista de decoração. Megan olhou à sua volta. Nem uma caneta, nem um livro fora do lugar. Nem um grãozinho de poeira. Nem um quadro torto nas paredes. Compulsiva e fanaticamente limpo. Não era coisa de Hannah. Hannah nem tinha a certeza se Paul teria um livro de citações. Qualquer pessoa que tivesse uma sala tão perfeitamente limpa e arrumada teria de saber tudo o que havia nas prateleiras.
Os assassinos que matavam em série eram muitas vezes fanáticos do asseio. Megan aprendera isso nas aulas de ciência do comportamento, na academia do FBI. Ninguém considerava a possibilidade de Paul Kirkwood vir a ser um assassino em série, no entanto ela tomava mentalmente nota das suas tendências compulsivas. Isso e o facto de ele se encontrar fora de casa na altura em que o telefonema fora feito. O comandante de guarda mandara uma unidade ao Omni Complex, e os seus homens foram buscar Paul ao escritório, acordando-o do que ele disse ser um sono profundo, e levaram-no para casa.
Megan viu a apreensão nos olhos de Hannah quando Paul entrou na cozinha. Sentiu a tensão existente entre ele» como uma folha de gelo. Não chegava o desaparecimento de Josh? Teriam também de desfazer o casamento? Por outro lado, Hannah não mereceria melhor do que Paul? Era um homem fraco, petulante e egocêntrico. Megan antipatizara com ele desde o princípio. Mas seria capaz de ter telefonado à mulher na calada da noite, para a atormentar com a sugestão de mentiras?
Se o fizera, era um excelente actor. A notícia da chamada chocara-o. Seriam remorsos ou medo?
O telefonema fora feito de algures em Deer Lake. A chamada não durara o tempo suficiente para ser localizada com rigor. Podia ter sido feita de qualquer sítio. De uma casa do outro lado da rua, do lado oposto da cidade, ou da margem oposta do lago, onde vivia Albert Fletcher à sombra de St. Elysius. Podia ter sido feita do escritório de Paul, ou de qualquer telefone público da cidade.
As possibilidades zumbiam como moscas no cérebro de Megan. Não estava a dormir há muito tempo, nem bem, quando a chamaram. Pensou na breve mensagem deixada no seu atendedor por DePalma dizendo-lhe para lhe ligar e isso impediu-a de pensar noutras coisas. Agora, depois de regressar da casa dos Kirkwood, era demasiado tarde para voltar a deitar-se, e muito cedo para ir para o escritório.
Sentou-se junto da mesa redonda de madeira de carvalho que comprara numa loja de móveis em segunda mão e que era outra das suas falsas heranças e sentiu o corpo trémulo. Excesso de cafeína. Entre o café e os comprimidos que tomara para lhe tirar uma enorme dor de cabeça, tinha a sensação de que o seu corpo funcionava com combustível de foguetão. O coração batia-lhe apressadamente e sentia-se tonta. Andava a abusar do corpo e dos medicamentos, tomando alguns em demasia e ignorando outros, porque a fariam dormir e ela não podia permitir a si própria ficar entorpecida ou inconsciente.
Em breve estaria a pagar por aquilo. Só tinha que se aguentar ali um pouco mais. Só até conseguirem fazer com que as peças encaixassem. Só até verem a única coisa que lhes faltava.
O pecado tem muitas ferramentas, mas uma mentira é a chave que serve para todas elas.
Que mentira? Que pecado? O que seria que eles não conseguiam ver?
A dor apertava-lhe as têmporas como uma pinça gigantesca
Tentando afastá-la com a sua força de vontade, Megan levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Teve dificuldade em tirar a tampa do frasco dos comprimidos para a enxaqueca e finalmente conseguiu deitar um comprimido de propranolol para a mão trémula. Engoliu-o com um pouco de água e ficou parada uns momentos em frente do espelho, observando-se.
Mais um passo e ficas fora disto, O’Malley murmurou.
A dor enterrava-se-lhe nas têmporas como um par de esporas.
Uma vozinha no fundo da cabeça dizia-lhe que já estava de fora.
Evitou ir para o seu gabinete, pois não tinha qualquer desejo de retribuir o telefonema de DePalma da noite anterior. Passou primeiro pelo centro de comando para ver se chegara ali algo de útil nas inúmeras chamadas a favor e contra Paul. Tinham recebido uma chamada de uma mulher que dissera que Josh fora raptado por extraterrestres. Uma dúzia de chamadas tinha partido de pessoas que queriam castigar pessoalmente Megan por ter ofendido Paige Price. Megan saiu e prometeu voltar às oito para pôr os seus agentes a par dos últimos acontecimentos e para distribuir missões para esse dia.
Na esquadra, a sua primeira paragem foi na sala de guerra. Mitch já ali estivera. A citação de Oliver Wendell Holmes já fora acrescentada ao quadro das mensagens. A chamada para Hannah estava ali anotada e a ausência de Paul de sua casa fora sublinhada.
Megan voltou a percorrer todas as mensagens e anotações com o olhar, procurando um indício de que Paul estivesse no âmago do mistério. Ele tinha um segredo, disso tinha ela a certeza, mas seria esse segredo suficientemente obscuro, suficientemente diabólico para que raptasse o seu próprio filho?
Albert Fletcher era nomeado ali apenas uma vez. Na noite do rapto de Josh, quando se encontrava a dar a aula a que Josh deveria assistir. Ali só eram anotados factos, não conjecturas, nem suspeitas, que serviam apenas para aumentar a falta de pistas sólidas. O criminoso podia ser uma das quinze mil pessoas que viviam em Deer Lake se é que era de deer Lake. Podia ser qualquer pessoa com quem ela se tivesse cruzado na rua. Poderia estar sentado num café, ali perto. Só tinham a certeza de uma coisa: é que esse alguém apanhara Josh numa altura em que ele estava totalmente vulnerável. Essa verdade apontava para Olie Swain, mas ele desaparecera para sempre.
O passo seguinte fora saber se Christopher Priest já estava a estudar os computadores de Olie. Estava. As máquinas tinham sido alinhadas ao longo de uma mesa comprida numa pequena sala cinzenta sem mais nada, além de duas cadeiras de plástico, com pernas cromadas. Os computadores zumbiam calmamente. Os monitores brilhavam em vários tons de preto, branco e verde. Priest debruçava-se sobre um deles, de rosto franzido para a mensagem que aparecera no ecrã.
Veio cedo, professor. Não o esperava antes das oito e meia.
Passei por aqui para ver se já estava feita a instalação. As mangas da sua camisola azul, de gola alta, subiam-lhe até aos cotovelos. Gostava de começar cedo.
O técnico de computadores da sede deve encontrar-se por aí disse Megan. Vou ver onde ele está. Ainda não começou a trabalhar, pois não?
Não. O professor cruzou os braços sobre o peito como uma criança a quem tivessem dito para não mexer em coisa alguma na loja dos brinquedos.
Bom. Na verdade nem sequer devia estar aqui sem ele disse Megan olhando para o ecrã na vã tentativa de detectar qualquer irregularidade. O que ela conhecia sobre computadores limitava-se a saber escrever e a pedir informações à sede. É o procedimento de rotina acrescentou diplomaticamente.
Priest olhou-a, sem parecer compreender.
Porque não vai tomar um café à sala de descanso, enquanto eu vou ver se o encontro? sugeriu Megan, mantendo a porta aberta.
Espero que ele esteja aqui afirmou o professor. Tenho uma reunião na faculdade à uma hora da tarde e gostaria de deixar isto terminado.
Provavelmente está à espera no meu gabinete disse Megan com a mão na maçaneta da porta, sem ceder um ponto. Não podiam ter uma falha se se descobrisse ali qualquer prova. Se os computadores de Olie contivessem um elo relevante em relação a um cúmplice, os meios de o conseguirem teriam de ser completamente claros para suportar o exame de um juiz. Se esse elo acabasse por ser recusado pelo facto de o juiz achar que eles não tinham jogado segundo as regras, tudo o que descobrissem devido a esse elo iria por água abaixo. Seria o fruto de uma árvore envenenada, como diziam os advogados. Os polícias chamavam-lhes tretas, pois de nada lhes serviam.
Eu sou de confiança, agente O’Malley declarou Priest olhando-a com ar magoado. Já trabalhei outras vezes com a Polícia.
Megan ficou calada. Christopher Priest podia ser um modelo de virtudes, professor, voluntário, activista na reabilitação de delinquentes juvenis, mas conhecera Olie Swain. Um advogado de defesa não largaria esse osso durante um dia inteiro se soubesse que ele tinha estado numa sala sozinho com os computadores.
Megan seguiu pelo labirinto de corredores, sem reparar nas pessoas com quem se cruzava. A sua visão mudava subtilmente, enevoando-se um pouco, e a sua percepção da luz e da sombra tornava-se mais aguda. Sinais de aviso. Se ela pudesse parar até à tarde, até isto, até aquilo. Ela sabia como era. Nesse dia sairia cedo e dormiria toda a noite. Comeria refeições regulares e evitaria o stress. Mentiras que dizia a si própria quando a dor começava a apertar.
A mão tremia-lhe de tal maneira que teve dificuldade em meter a chave na fechadura da porta do seu gabinete. Mas pouco depois viu que não precisava dela. A porta estava aberta, o gabinete ocupado.
Um homem levantou-se da cadeira onde se sentavam os visitantes, tendo numa mão um exemplar do Law and Order e na outra um donut meio comido. Parecia ter uns trinta anos, embora possuísse o género de cara que o faria parecer um rapaz muito depois dos trinta. Olhos grandes, castanhos. brilhantes, nariz demasiado pequeno. O cabelo castanho, encaracolado, fez imediatamente lembrar a Megan um cockei spaniel. Megan fez uma careta ao ver o seu território invadido.
Megan O’Malley apresentou-se, atirando a pasta para cima da mesa e indo pendurar o casaco. Isto para o caso de não saber em que gabinete se encontra.
O rapaz spaniel lançou-lhe um olhar exageradamente perplexo, sem saber onde pôr a revista e o donut. Por fim acabou por os colocar em cima da mesa. Passou a mão pela perna das calças azul-escuras, deixando a fazenda suja de açúcar e depois estendeu-a a Megan.
Marty William.
Megan ignorou as boas maneiras. A luz do atendedor de chamadas estava acesa, indicando que havia mensagens.
Creio que deve saber que é esperado na pequena sala onde estão os computadores. O professor está desejoso por começar.
Ahh... hummm...
O professor, os computadores disse secamente Megan. Sai e volta à esquerda. Creio que vai precisar de uma chave, mas isso não o impediu de entrar aqui.
Um sorriso embaraçado apareceu na cara do rapaz.
É que... creio que está a confundir-me com outra pessoa.
Isso depende de quem você seja.
Agente Marty Wilhelm. A sede devia tê-la notificado. Na verdade... Ergueu um dedo para dar mais ênfase à informação... O Bruce DePalma disse que falaria pessoalmente consigo.
Megan olhou outra vez para a luz vermelha e cintilante e sentiu um arrepio atravessá-la. Forçou-se a olhar para Marty, com o seu entusiasmo de cãozinho e a sua gravata regimental, às riscas.
Lamento disse Megan, admirada por falar de uma maneira perfeitamente normal, quando todos os seus sistemas internos estavam desnorteados. Receio não estar a compreender. Hoje não falei com o Bruce.
Oh, isto é embaraçoso. Pigarreou, bateu com uma mão no peito e depois ergueu as duas, com os dedos afastados. Sou o seu substituto. Foi temporariamente suspensa da actividade. Está fora deste caso.
O alarme interno tocou, demasiado tarde para servir para Alguma coisa. Era o Marty Wilhelm que concorrera para aquele lugar e que não fora nomeado por falta de capacidades. O Marty Wilhelm, noivo da filha de Hank Welsh, das operações Especiais. O Marty Wilhelm que estivera nos bastidores, à espera que ela fracassasse.
O primeiro impulso de Megan foi puxar da sua Glock de nove milímetros e fazer desaparecer a careta de troça do rosto cretino. O sacaninha a fingir-se de parvo, a gozá-la desde o início. Megan calculava que a única coisa que o poderia ter feito mais feliz ainda seria ter tido alguém a assistir. Era de espantar que não a tivesse ido esperar na sala do departamento da Polícia, onde a faria fazer figura de parva em frente de toda a gente.
Preciso de ver a sua identificação declarou Megan, contendo o seu mau génio.
Marty ergueu as sobrancelhas, mas tirou a identificação da carteira e mostrou-lha. Megan pegou-lhe, olhou-a de repente e deixou-a cair como se fosse uma pedra quente sobre a sua... a secretária do spaniel. Sentiu os joelhos a tremer e deixou-se cair sobre a cadeira partida de Leo Kozlowski.
Preciso de fazer uns telefonemas disse por fim. Marty sentou-se novamente na cadeira, fez um gesto magnânimo que queria dizer que ela podia servir-se do telefone e recostou-se para trás.
E você faça o favor de sair deste gabinete enquanto os faço ordenou Megan entre dentes.
Então, Megan começou ele a dizer num tom paternalista. Não está em posição de me dar ordens.
Não respondeu ela, mas estou em posição de provocar títulos sensacionalistas nos jornais, como por exemplo: «Agente Substituída Dispara contra Substituto.» Não gostava de ser o primeiro a quem isso sucedia, pois não, Marty?
A gargalhada dele foi forçada e mais do que tensa. Levantou-se outra vez e recuou para a porta.
Vou ver se consigo esclarecer essa confusão a respeito dos computadores e do professor.
Faça isso.
Depois, volto aqui.
Não se apresse.
Marty saiu e fechou a porta silenciosamente. Esse som foi aumentado na cabeça de Megan. A porta a ser fechada sobre a sua carreira. A deixá-la de fora.
Estragaste tudo, O ’Malley. Estás lixada. Sabias que eles estavam à espera que tu tropeçasses, como lobos, e agora vão cuspir-te em cima... e pôr-te a andar.
As recriminações que fazia a si própria eram como chicotadas. O que se passava com ela? Tinha esperado por aquele trabalho e estragara tudo comprometendo-se com Mitch Holt. E quantas vezes dissera a si própria para se dominar, para ter cuidado com a língua, para voltar as costas e não fazer escândalo na televisão, em directo...
Estúpida. Descuidada.
Tentou recuperar a compostura. Não desistiria sem luta. Não ficaria reduzida a ser o género de mulher lamurienta, suplicante, que detestava.
Estendeu a mão trémula para o telefone, como se estivesse com um ataque de paludismo, enquanto a dor de cabeça se expandia como um balão. Quando levou o auscultador ao ouvido, o som pareceu perfurar-lhe o cérebro. Gemendo, vendo tudo girar à sua volta, largou o telefone e vomitou para o cesto dos papéis.
Eu vi o Josh.
O padre Tom ajoelhou ao lado de Hannah. Ela telefonara-lhe de madrugada e pedira-lhe para falar com ele antes da missa. O Sol nascera há menos de uma hora, lançando os seus pálidos raios através dos vitrais. Formas cúbicas e ovais de tons suaves incidiam sobre a carpete barata que se estendia ao longo da nave central. Tom saltara da cama, vestira umas calças, uma camisola de algodão e um camisolão de lã. Não se preocupara em fazer a barba. Penteara distraidamente o cabelo, com os dedos, tão despreocupado com a sua aparência como preocupado com Hannah.
Ela estava pálida e abatida, com uma expressão febril no olhar. Tom pensou quando é que ela teria comido pela última vez uma refeição completa, ou quando teria dormido mais do que algumas horas. O seu cabelo dourado estava baço e ela prendera-o descuidadamente num rabo-de-cavalo. Uma camisola preta, volumosa, disfarçava a sua magreza, mas ele via os ossos dos pulsos e das mãos que ela apertava uma na outra, delicadas como esculturas de marfim, com a Pele quase translúcida. O padre estendeu-lhe a mão e ela apertou-a imediatamente entre as suas.
O que quer dizer com «vi o Josh»? perguntou com cuidado.
Foi a noite passada. Foi como um sonho, mas não se tratou de um sonho. Como... uma visão. Sei que pode parecer loucura acrescentou apressadamente. Mas foi isso mesmo. Foi tão real, tão tridimensional. Vestia um pijama que eu nunca tinha visto e tinha uma ligadura... Calou-se, frustrada, impaciente consigo mesma. Pareço louca, mas sucedeu e foi tão real... Não acredita em mim, pois não?
Claro que acredito, Hannah murmurou. Não sei o que hei-de pensar disso, mas sei que viu qualquer coisa. O que é que acha que foi?
Uma visão. Uma experiência psíquica, exterior ao corpo. Não importava o que ela lhe chamasse, a ele parecia-lhe um desejo ansioso de uma mulher desesperada.
Não sei murmurou Hannah, com um suspiro, baixando a cabeça.
O padre Tom mediu cuidadosamente as palavras. Sabia que estava a pisar terreno muito sensível.
Encontra-se sob uma tensão terrível, Hannah. Não é de estranhar que tenha sonhado e que o sonho lhe pareça tão real...
Não foi um sonho repetiu obstinadamente Hannah.
O que diz o Paul?
Não lhe contei.
Hannah baixou as mãos e pousou-as sobre as pernas, ficando a olhar para os anéis que Paul lhe pusera no dedo, para simbolizar o amor e a união de ambos. Estaria ela a atraiçoá-lo com as suas dúvidas? Tê-los-ia ele atraiçoado a todos? Essas questões contorciam-se dentro de si como cobras em luta, seres venenosos, hediondos, sobre as quais ela não tinha controlo. Ergueu a cabeça para as altas arcadas da igreja, para os intricados mosaicos onde se via Jesus com um cordeiro ao colo. Olhou para o crucifixo cheio de ornatos, para Cristo olhando para baixo, para as pessoas, do sítio onde se encontrava, sobre o altar. Vazia, a igreja parecia-lhe um sítio frio, cavernoso e ela sentiu-se pequena e impotente.
A Polícia pediu-lhe que tirasse as impressões digitais ontem murmurou Hannah com voz abafada, como se estivesse a confessar-se.
Eu sei.
Não o dizem, mas acham que ele está envolvido.
E o que é que a Hannah pensa? perguntou lentamente o padre.
Ela ficou calada, enquanto as cobras se debatiam dentro dela.
Não sei. Fechou os olhos e soltou um suspiro. Não devia duvidar dele. É meu marido e era a pessoa em quem eu devia confiar. Costumava pensar que éramos as pessoas mais felizes do mundo murmurou. Amávamo-nos. Confiávamos um no outro. Tínhamos uma família. Tínhamos prioridades. Agora penso se alguma dessas coisas era real, ou se foram apenas momentos passageiros. Tenho a sensação de que as nossas vidas estavam preparadas para correr no mesmo plano durante um certo tempo, mas que agora vamos em direcções diferentes e nem sequer podemos comunicar. Sinto-me enganada e estúpida. E não sei o que hei-de fazer.
Parecia perdida. Embora fosse uma mulher competente e inteligente, Hannah não estava preparada para aquele género de catástrofes na sua vida. Tivera a vida com que a maior parte das pessoas sonha. Vinha de uma família feliz, tivera vantagens, realizara e excedera os seus desejos, casara com um homem simpático, fundara uma bela família. Nunca desenvolvera capacidades para enfrentar a dor e a adversidade. Parecia-lhe atordoada e indefesa e Tom deu por si a amaldiçoar Deus por ser tão cruel.
Oh, Hannah murmurou. Não tentou impedir-se de lhe afastar uma madeixa de cabelos que lhe caíra para a testa. Conhecia bem a arte da compaixão; porém, se alguma vez tivera sensatez, esta abandonara-o com aquela mulher. Apenas lhe podia oferecer palavras vazias... a não ser que se oferecesse a si próprio.
Hannah voltou-se para ele e pousou a cabeça no seu ombro. As lágrimas molharam-lhe a camisola. As palavras abafadas atormentaram-no.
Não consigo compreender. Estou a tentar o mais que posso!
Lidar com uma coisa que nunca devia ter aflorado a sua vida.
Tom apertou-a com os braços, protectoramente, com ternura. Olhou à sua volta para a igreja vazia e para as velas votivas pequenas chamas em vidro de cobalto, símbolos da esperança que se acendia e se apagava até morrer sem ter tido resposta. O medo que se apoderou dele fez com que apertasse mais Hannah contra si, e os braços de Hannah fecharam-se sobre as costas dele, contrariando os dedos sobre a lã macia da camisola. Passou-lhe uma mão pelas costas, para baixo e para cima, até aos cabelos finos, na base da nuca. Ele respirou o seu aroma fresco e sentiu um anseio que nunca experimentara até então. Um anseio que estava ligado ao amor que os homens e mulheres partilhavam entre si desde a aurora dos tempos.
Não perguntou porquê. Porquê Hannah. Porquê agora. As interrogações e as recriminações podiam esperar. A necessidade não. Apertou-a contra si, conteve a respiração, rezando para que o tempo parasse por um momento, porque sabia que aquilo não podia durar. Roçou os lábios pela testa dela e provou as suas lágrimas, quentes e salgadas.
Pecadores!
A acusação veio como um trovão a partir do céu. Mas quem os acusara não era Deus, mas sim Albert Fletcher. O diácono descia sobre eles vindo de trás do biombo que ocultava a porta que dava para a sacristia. Desceu os degraus a correr, vestido de negro, os olhos furiosos, a boca aberta, com uma grande taça de pedra nas mãos. Ao mesmo tempo as portas da igreja abriram-se e os fiéis começaram a entrar, atónitos com o quadro que se lhes deparava.
O padre Tom levantou-se de um salto. Hannah voltou-se para enfrentar Fletcher. Ele avançou para ela como um louco, gritando, semelhante a um pesadelo.
Os pecadores ardem? gritou, atirando o conteúdo da taça para cima dela.
A água benta atingiu Hannah como se fosse uma muralha e salpicou o padre Tom.
Albert! gritou Tom.
O salário do pecado é a morte!
Era impossível fazer com que ouvisse o que o padre Tom lhe queria dizer.
Malévola filha de Eva!
Fletcher atirou a taça de pedra sobre Hannah. Ela gritou, tentando desviar-se para fugir à pancada, e ao mesmo tempo o padre Tom atirou-se para a frente, gemendo quando o míssil o atingiu de raspão no lado direito do corpo. A taça caiu no pavimento da igreja, com grande estrondo, e fracturou-se. Ignorando a dor, Tom correu atrás de Fletcher, tentando agarrá-lo.
O salário do pecado é a morte! clamou novamente Fletcher, subindo os degraus do altar enquanto recuava.
Pare, Albert! Está descontrolado. Não sabe o que está a fazer. Não sabe o que viu. Acalme-se e vamos falar.
Fletcher continuou a recuar, em direcção ao altar. Os seus olhos franzidos não desfitaram Tom.
«Cuidado com os falsos profetas que vestem a pele de cordeiros mas que são lobos raivosos» citou com voz monótona. Recuou para o altar, com as mãos atrás das costas, à procura. O seu rosto estava branco como cera e coberto de suor; os músculos repuxados sobre os ossos, como a pele de um tambor, retorciam-se espasmodicamente.
O padre Tom seguiu-o até ao último degrau, estendendo lentamente a mão para ele. Devia ter percebido que aquilo acabaria por acontecer? Devia ter feito alguma coisa mais cedo para o impedir? Sempre considerara Albert Fletcher um obsessivo, não um louco. Havia piores obsessões do que estar obcecado por Deus. Mas a loucura era outra coisa. Estendeu a mão com a intenção de não deixar que paroquiano algum chegasse a esse ponto.
Não compreende, Albert. Venha comigo e dê-me oportunidade de explicar.
Falso profeta. Filho de Satã! Atirou um braço para a frente e atingiu o padre Tom na cabeça, com a base de um pesado candelabro de cobre.
Atordoado, Tom caiu de joelhos e rolou pelos degraus, de lado, de cabeça para baixo. Não controlava braços nem pernas. A única sensação que tinha era a de uma terrível dor no lado direito da cabeça. Tentou falar mas não conseguiu, tentou apontar para as pessoas que tinham acorrido e que o rodeavam, fitando-o com assombro. Albert Fletcher fugiu por uma porta lateral.
Lonnie, Pat, vão ver a garagem. Noogie, fica comigo. Vamos à casa.
Encontravam-se todos junto de dois carros da Polícia, em frente da casa de Fletcher. O frio penetrava-lhes no corpo, apesar das camisolas Thinsulate e Thermax, dos casacos acolchoados com penas e das lãs. Nenhum dos vizinhos parecia suficientemente curioso com a presença da Polícia para se arriscar a apanhar frio. Mitch viu uma cortina afastar-se numa janela em frente e um rosto enrugado espreitar na casa ao lado da de Fletcher.
Parece que ele não está em casa disse Dietz, esfregando as mãos enluvadas uma na outra.
O homem acabou de agredir um padre. Não deve estar com disposição de nos vir receber à porta.
Porque teria Fletcher agredido o padre Tom?, pensou Mitch. Com que motivo? O padre tentara explicar-lhe isso quando se encontravam no hospital e o Dr. Lomax examinava a ferida que ele tinha na cabeça, com expressão grave. Parecia que Fletcher o vira com os braços em volta do corpo de Hannah e que interpretara mal essa atitude.
Um abraço inocente não parecia ser motivo suficiente para desencadear um ataque de loucura.
Mitch olhara para Hannah para pedir confirmação, enquanto ela andava de um lado para o outro na sala de espera. Estava a tremer... de frio, do choque, ou de ambas as coisas. Tremia violentamente.
Não sei o que é que ele pensou murmurou, de olhos baixos. Parece que o mundo inteiro está louco.
Amen, pensou Mitch ao caminhar para a porta da casa de Fletcher. Noogie dirigiu-se para a porta das traseiras, para o caso de Albert estar em casa e querer escapar-se por ali. Onde quer que tivesse ido, fora a pé. O Toyota dele estava no parque de estacionamento ao lado de St. Elysius.
Mitch nomeara meia dúzia de agentes para passarem revista aos arredores, a pé e de carro. Todos os outros polícias da cidade estavam alertados para deter Fletcher se o vissem. Mitch duvidava que Fletcher tivesse vindo para casa, mas isso dependia do estado de loucura em que se encontrasse. De qualquer modo tinham um mandado para revistar a casa. Se não apanhassem Fletcher, podiam pelo menos passar uma busca.
Mitch abriu a porta de rede e bateu com força à porta interior.
Mister Fletcher? gritou. Polícia! Temos um mandado para passar revista à casa!
Contou lentamente até dez. Megan ficaria furiosa por ele estar ali sem ela, mas não a encontrara no gabinete quando fora chamado e não podia esperar. Pegou no rádio e falou com Noga.
Faça o que tem a fazer, Noogie.
Dez-quatro, chefe.
Mitch achava-se já demasiado velho para abrir uma porta à força. Na mala do carro havia uma viga, mas parecia ter algo maior e melhor: Noga. Desde que deixara de pertencer à equipa de futebol por causa de um joelho magoado, Noga ficava sempre satisfeito por bater em qualquer coisa ou em alguém.
O estrondo da madeira estilhaçada ecoou no ar gelado da manhã. Daí a instantes, Noga abria a porta da frente do interior da casa.
Seja o que quer que venha a vender, não quero nada. Mitch entrou no pequeno vestíbulo.
Sim? Este mês ando a vender um aparelho especial «dois por um» com força excessiva. Quem quer que me aborreça, apanha pela medida grossa duas vezes.
As sobrancelhas hirsutas de Noga ergueram-se como dois caterpillars lãzudos. Recuou para a sala de estar, fazendo sinal a Mitch para entrar.
Começa por cima ou por baixo?
Por cima. Não se esqueçam de passar revista à cave.
Mitch subiu lentamente as escadas, sabendo ser vulnerável se Fletcher estivesse escondido lá em cima com um candelabro ou uma Uzi. Não se podia prever o que ele iria fazer. Podia não estar bom da cabeça há anos, conseguindo não revelar a sua loucura até então. Até ter visto Hannah nos braços de um padre.
O salário do pecado é a morte. Malvada filha de Eva
Tê-la-ia ele odiado durante todo esse tempo por ter interferido com o tratamento da mulher, por ter tentado curar a doença de que Doris Fletcher morrera? Teria sido ele que matara Doris?
Mister Fletcher? Polícia! Temos um mandado de busca!
Tinham também um mandado de captura, embora Mitch duvidasse de que o padre Tom apresentasse queixa. Isso permitia-lhes ter acesso a ele nos tempos mais próximos. O facto de Fletcher ter fugido com o candelabro com que agredira o padre Tom fora suficiente para o juiz Witt passar o mandado de captura.
Uma tábua estalou debaixo dos pés dele no corredor estreito. Uma pequena janela ao fundo do corredor deixava entrar uma luz amarelada através de uma cortina branca, dupla, que impedia que se visse para fora e de fora para dentro. Dos dois lados do corredor, viam-se duas portas brancas, com seis almofadas, que logicamente deviam ser de quartos de dormir. Mitch experimentou primeiro a porta do lado esquerdo, entrando cuidadosamente. O quarto fora certamente despido de qualquer coisa que pudesse lembrar a existência de Doris Fletcher. O mobiliário era rigorosamente monacal. Uma cama estreita, coberta com um cobertor vendido pelo exército, e colocada de forma tão apertada que dificilmente se poderiam deitar os dados ali em cima. Na mesa-de-cabeceira, um candeeiro e uma velha Bíblia. A única outra peça de mobiliário era uma cómoda, sem qualquer objecto sobre ela. Nas paredes brancas viam-se um crucifixo e uma gravura em tons de sépia que representava Jesus rodeado de folhas de palmeira.
O quarto do lado oposto estava fechado à chave, uma situação que Mitch resolveu com um pontapé. A porta foi bater na parede, com estrondo. Lá em baixo, Noogie respondeu ao ruído com um grito, mas Mitch estava tão assombrado que não lhe respondeu.
Cortinas negras tapavam a vista do exterior, mas o quarto estava iluminado com velas. O seu perfume adocicado e enjoativo tornava o ar quase irrespirável. As velas estavam colocadas em fila ao longo das paredes e as suas chamas oscilavam. Havia velas em candelabros de vidro, alguns transparentes, outros vermelhos, outros azuis, colocados sobre mesas laterais. A luz era suficiente para mostrar o que aquela sala era: a capela particular de Albert Fletcher.
As paredes estavam pintadas no mesmo tom da pedra da Igreja de St. Elysius e alguém se dera ao elaborado trabalho de imitar os complicados desenhos que adornavam a igreja. Até o tecto estava pintado de modo a simular as arcadas e os frescos. Toscas imitações de anjos e santos olhavam para baixo no meio de nuvens cinzentas, com rostos distorcidos, grotescos.
Ao fundo do quarto, erguia-se um altar coberto por uma rica toalha de altar em brocado e renda. Sobre esse altar, encontravam-se todos os aprestos necessários a uma missa católica o espesso missal com capa de pano, o cálice dourado, um grande candelabro com velas brancas. Na parede, por cima do altar, havia um crucifixo com a efígie de Jesus na agonia da morte, com o sangue a correr das feridas da mão e do ferimento no corpo.
Artefactos. Mitch lembrou-se da palavra utilizada por Fletcher. Aquilo não eram imitações feitas em casa. Eram genuínos. Mitch imaginou Albert Fletcher a tirá-los da cave do presbitério e a transportá-los para ali pela calada da noite, limpando-os com os seus compridos dedos ossudos, acariciando-os amorosamente com um brilho fanático nos olhos. Os candelabros, os crucifixos, as placas das estações do calvário, a estatuária.
Colocados em pedestais díspares, havia imagens da Virgem Santa e de vários santos cujos nomes ele desconhecia. Os seus olhos sem vista fixavam-no entre rostos partidos e falhados. Os cabelos verdadeiros eram ralos nuns sítios e abundantes noutros. Essas imagens olhavam para uma congregação igualmente estranha e inanimada. Quatro pequenos manequins.
Mitch ficou horrorizado ao vê-los. Nenhum tinha pernas. Eram cabeças e dorsos, alguns com braços, outros sem eles. Os do género masculino vestiam camisas, gravatas e velhos casacos. Os do género feminino estavam envoltos em panos negros, colocados por cima da cabeça. Todos olhavam para o altar, e a luz das velas iluminava os seus rostos imóveis.
Num dos lados do altar, encontrava-se outro manequim. Representava um rapaz com uma sotaina preta e uma sobrepeliz de renda. Um menino que ajudava à missa.
Um ruído atroador anunciou que Noogie subia as escadas. Mitch ouviu-o correr pelo corredor e parar à porta do quarto, de arma em punho apontada para o tecto.
Com mil demónios! Parou, boquiaberto, a olhar para o que o rodeava. Nunca vi uma coisa destas. É de causar calafrios!
Encontraram alguma coisa lá em baixo? perguntou Mitch, inclinando-se para passar a mão sobre a passadeira vermelha muito gasta que se encontrava em frente do altar.
Nada respondeu Noga com os olhos fixos nos rostos dos manequins.
Isto não é uma igreja verdadeira, Noogie. Não precisa de falar em voz baixa.
O corpulento agente tinha o olhar fixo no rosto da Virgem Maria, ao qual faltava metade. Engoliu em seco e estremeceu.
É estranho disse em voz baixa, lá em baixo dá a impressão de que não vive aqui ninguém. Não há jornais, nem livros, nem quadros nas paredes, nem espelhos, nem objectos espalhados. Os seus olhos abriram-se mais. Não sei se sabe que os vampiros não gostam de espelhos.
Não creio que ele seja um vampiro, Noogie respondeu Mitch abrindo a outra porta do quarto-capela. As cruzes afastam-nos.
Oh, é verdade.
A porta era de um armário que continha alguns paramentos de padre, velhos e rasgados, mas limpos e passados a ferro. Alguns encontravam-se ainda dentro dos plásticos transparentes da Lavandaria Mueller, em Tatonka. Sotainas pretas e algumas cor de púrpura, sobrepelizes de renda e mantos de cardeal também púrpura ou cor de marfim, com ricos bordados.
Mitch! gritou Lonnie Dietz lá de baixo. Mitch!
Estou aqui em cima respondeu Mitch.
A subida das escadas fez com que Lonnie ficasse ofegante. O rosto dele estava cinzento, realçando mais a vermelhidão do nariz. O boné tinha-lhe caído e a peruca que ele usava estava de lado, parecendo um pequeno animal assustado agarrado à sua cabeça. Parou no patamar, na altura em que Mitch passava por Noogie e se dirigia para a escada.
É melhor ir lá abaixo disse Lonnie, ofegante. Creio que encontrámos Mistress Fletcher!
Pat Stevens ergueu o pano poeirento que cobria os restos mumificados de Doris Fletcher, sentada ao volante do seu Chevrolet Caprice de 1982. Tinha um vestido de algodão de trazer por casa, apodrecido nos sítios em que os fluidos tinham saído do corpo na fase de decomposição. Mitch não fazia ideia do aspecto dela em vida, se fora magra ou pesada, bonita ou feia. Agora parecia ter sido congelada e seca até todos os fluidos desaparecerem e a pele ficar esticada sobre os ossos como cabedal que era precisamente o que sucedera. Hediondo era uma palavra incapaz de descrever o aspecto do corpo sentado ao volante, mirrado dentro do vestido de algodão.
O facto de ter morrido no Inverno tinha-a salvo de ser comida pelos insectos e pela podridão. Na altura em que o tempo aqueceria já ela estaria parcialmente petrificada. A época do ano também evitara que os vizinhos se apercebessem do cheiro. Se Albert Fletcher tivesse metido a mulher naquele carro em Julho, não poderia ter guardado o seu segredo três dias, muito menos três anos. Mas Doris Fletcher fora obediente na morte, se não o fora em vida.
Como é que acha que ele a trouxe para aqui? perguntou Lonnie, andando nervosamente de um lado para o outro, junto do carro. Noogie estava encostado à parede da garagem de boca aberta como se estivesse em transe, sendo o vapor do hálito que lhe saia da boca a única indicação de que sobrevivera ao choque.
Sendo um fanático religioso como é, não percebo como não lhe fez um funeral decente disse Pat Stevens.
Aparentemente não achava que ela o merecesse respondeu Mitch.
Leu o bilhete impresso, preso ao peito do vestido de Doris:
Malvada filha de Eva: Tem a certeza de que o teu pecado será descoberto.
Os abutres da imprensa, circulando pela cidade com os seus rádios sintonizados com os da Polícia, chegaram à casa de Albert Fletcher antes do médico legista. Amontoavam-se no caminho, movimentando-se como um cardume de peixes todos juntos e espalhando-se quando as suas fileiras eram quebradas pelos polícias que passavam entre eles
Mitch praguejou entre dentes enquanto tentava encaminhar os seus homens e os técnicos do BCA para a garagem e para a entrada da casa. Os fotógrafos e os operadores de câmara eram os piores, tentavam misturar-se com o pessoal da Polícia para poder fotografar a capela e o corpo
O cenário já era mau sem toda aquela gente em volta deles. Um cadáver mumificado com três anos apresentava todo o género de problemas logísticos. O pessoal do BC A discutira a maneira de tratar da situação. Estranhamente Megan não se encontrava ali
Mitch não podia acreditar que ela não se dirigisse para ali logo que fora feita a chamada. Ela devia estar ali no local do crime tomando notas, processando mentalmente informações, com o seu cérebro de polícia bem treinado para formular novas teorias
Afastou-se dos outros agentes e dirigiu-se para a porta lateral da garagem. Abriu-a e quase chocou com um repórter com cara de cãozinho, de olhos brilhantes e um sorriso estúpido no rosto
Terá de esperar lá fora disse Mitch Aqui só pode estar pessoal da polícia
Chefe Holt! O sorriso alargou-se e ele estendeu a Mitch a mão enluvada. Desde as nove horas que estou a tentar falar consigo. A sua secretária é um autêntico cão de guarda
A Natalie é a minha assistente administrativa disse friamente Mitch ignorando a mão estendida. É ela quem dirige o meu gabinete e, se o ouve chamar-lhe cão de guar da, arranca-lhe a cabeça e atira-a para o corredor. Agora se me dá licença, tenho que fazer
O rapaz com cara de cãozinho pareceu não saber se de via ficar aborrecido ou divertido. Mitch franziu o sobrolho e encaminhou-o para fora. Fosse o que fosse mais, o tipo era pelo menos tenaz. Seguiu Mitch quando ele se dirigiu para a casa.
Mas, chefe, parece não estar a compreender. Eu não pertenço à imprensa. Trabalho para o BCA. Retirou a sua identificação do bolso e mostrou-a a Mitch. Marty WiIhelm, BCA.
Mitch parou, sentindo-se inquieto.
Ainda não o tinha visto.
O rapazinho olhou-o de soslaio com um leve sorriso que parecia pouco adequado, dadas as circunstâncias.
Acabo de ser nomeado.
Mitch teve o cuidado de nada revelar na sua expressão. Agente? Megan dissera-lhe que DePalma lhe falara em nomear outro agente para a ajudar. E que isso era sinal de que iria ser substituída.
Bem, agente Wilhelm. Onde está a agente O’Malley? A ela é que devia estar a seguir, não a mim.
Marty Wilhelm guardou novamente a sua identificação.
Não faço ideia. Ela foi afastada desta missão.
Foste corrida do teu trabalho. Vão-te processar por difamação. Tens uma enxaqueca terrível. É o máximo que te podia suceder nos dias que passaste aqui, O’Malley. E a noite ainda é uma criança.
Megan supunha que ainda era de tarde, mas o tempo deixara de ter significado para ela. Os estores da sala estavam puxados para baixo, tornando-a escura. Mas não suficientemente escura. A morte não seria escura bastante para aliviar a dor dos seus olhos, nem silenciosa bastante para que os sons não lhe penetrassem no cérebro. Bastava o ruído do frigorífico para que ela gemesse e se enrolasse como uma bola.
Tinha ainda o casaco vestido, embora tivesse descalçado as botas enquanto abria caminho no meio dos caixotes por acabar de despejar. O cachecol ameaçava sufocá-la quando mudava de posição. Puxou-o com as mãos trémulas e atirou-o para o chão. Ainda tinha o cabelo preso na nuca. Experimentava a sensação de que alguém lho puxava de cada vez que se mexia, mas não conseguia concentrar-se suficientemente para tirar o elástico.
A dor era constante, como se uma broca estivesse a perfurar-lhe o cérebro, ou um machado a rachá-lo. Ela chegara a desejar que alguém lhe cortasse a cabeça para acabar com aquele sofrimento.
Devia ter injectado Imitrex em si própria, mas não conseguia levantar-se do sofá. E se conseguisse pôr-se de pé não saberia onde ficava a casa de banho. Puxara um caixote vazio para si para vomitar para lá. Na tempestade, qualquer porto servia. Gannon e Sexta-Feira haviam tomado posições nas colunas da aparelhagem estéreo do outro lado da sala e observavam-na atentamente. A cauda branca de Sexta-Feira pendia de um dos lados da coluna, balouçando de um lado para o outro, como um pêndulo.
Megan ficou a olhar para lá durante um bocado e depois fechou os olhos e continuou a vê-la. Para trás e para diante, para trás e para diante. O ritmo entonteceu-a, provocou-lhe náuseas, mas não podia apagá-lo da mente. Depois passou a ter palavras: Paige Price, Paige Price, esquerda direita, esquerda direita, Paige Price, Paige Price.
A voz de DePalma ecoou-lhe no cérebro, raivosa.
Como pôde ser tão estúpida? Como é que pôde dizer uma coisa dessas em frente de vinte câmaras de televisão?
Paige Price, Paige Price, Paige Price...
... pede cinco milhões de dólares de indemnização...
Paige Price, Paige Price...
... processou-a a si e ao BCA...
Paige Price, Paige Price...
... não quero saber se ela é a prostituta da Babilónia... Paige Price, Paige Price...
... você está afastada do caso...
Afastada do caso.
Não podia acreditar. Não podia suportar a ideia. Aquele pensamento fê-la sentir uma onda de vergonha. Pior, muito pior do que isso. Sentiu-se tomada de pânico. Queria tanto encontrar Josh. Queria apanhar o monstro que raptara Josh e os atormentara a todos. Queria pôr-lhe as algemas, olhá-lo nos olhos e dizer-lhe: «Apanhei-te, grande patife!» Queria-o por si própria, por Josh e por Hannah. Mas fora afastada do caso e essa verdade abalava-a profundamente.
A dor explodiu dentro da sua cabeça como um facho de luz luminoso e ela comprimiu a cara contra a almofada e chorou.
Outra vaga de dor obliterou qualquer pensamento. Incapaz de fazer qualquer coisa, Megan deixou-se arrastar por ela. Ao longe ouvia o zumbido do helicóptero. O som fazia-lhe lembrar o das asas de um pássaro a roçarem-lhe pelos ouvidos. As buscas continuavam sem ela. O caso prosseguia sem ela.
O telefone tocou e o atendedor gravou a mensagem. Henry Forster queria falar-lhe acerca de Paige. «Quando o inferno gelar», pensou Megan apertando mais o casaco contra si.
O telefone tocou de novo, fazendo-a gemer e mais uma vez a máquina atendeu.
Megan? É o Mitch. Sei que foste afastada do caso. Pensei que pudesses estar em casa. Mas vejo que não. Tentei falar-te pelo rádio. Se receberes esta mensagem, telefona-me. Temos aqui um caso complicado na casa do Fletcher. Houve uma pausa de silêncio. Depois: Lamento. Sei o que o trabalho significa para ti.
A frase parecia-lhe sincera e mostrava que ele estava embaraçado. Não costumava dizer coisas daquelas, mas quando as dizia era sincero. Lamentava. Estava a apresentar as suas condolências, de um polícia para outro. Pouca sorte ter sido afastada do caso. Foi um prazer conhecê-la, O ’Malley. Ela tornar-se-ia uma recordação, alguém que entrara na vida dele durante uma semana, que partilhara a cama com ele durante algumas noites e se fora embora.
Não podia esperar que ele sentisse mais do que atracção física por ela. Ela nada sabia a respeito de amor, de relacionamentos íntimos, de ser mulher... como Mitch lhe fizera notar tão duramente. Ele apaixonara-se, casara, criara uma família e chorava ainda a perda da mulher. Ela apenas tinha o seu trabalho e esse estava a ir por água abaixo.
Como pudera ser tão estúpida?
O telefone parecia tocar incessantemente. A imprensa tivera conhecimento do sucedido. Provavelmente fora Paige, essa cabra, a dar a notícia, num exclusivo directo dos degraus do City Center.
Megan pensou no que seria «o caso complicado» em casa de Albert Fletcher de que Mitch lhe falara. O que seria? Não se lembrava. Tentar recordar fazia-lhe doer mais a cabeça. Uma dúzia de conversas diferentes vinha-lhe à memória com todas as vozes a falarem ao mesmo tempo num coro dissonante que lhe causava campainhas nos ouvidos e lhe fazia a cabeça andar à roda.
Por favor, calem-se. Por favor, calem-se.
O som estridente do telefone fez-se ouvir outra vez.
Por favor, calem-se.
As lágrimas corriam-lhe pela cara. Entontecida, desejando perder os sentidos, Megan deslizou do sofá e foi de gatas, apoiada nas mãos e nos joelhos, desligar o telefone da ficha. Chegou junto do caixote a tempo de vomitar, mas não conseguiu arranjar forças suficientes para subir para o sofá. Sem querer saber, enrolou-se sobre si mesma e ficou ali, no chão, à espera que a dor passasse.
Ninguém vira sinais de Fletcher. Desaparecera. Como Josh. Como Megan.
Não atendia o telefone, não atendia o rádio do carro. Parecia que tinha saído das instalações da Polícia e desaparecera da face da Terra.
Mitch percorreu as ruas da cidade, procurando Albert Fletcher, dirigindo as buscas ao fugitivo através do rádio do seu Explorer. Ouvia constantemente indicação da posição das unidades destacadas aqui e ali. Ouvia queixas sobre o frio. Frustrações. Um helicóptero sobrevoou lentamente as ruas de Deer Lake, procurando avistar o diácono demente.
Malvada filha de Eva. Tem a certeza de que o teu pecado será descoberto.
Megan encontrara Fletcher em St. Elysius. Ele ficara menos do que encantado com ela. Se Fletcher soubesse onde Megan vivia... Ela não hesitaria duas vezes em o deixar entrar.
Mitch viu o Lumina branco estacionado junto da casa dela. A porta do lado do condutor estava encostada. Imaginou-a a ser tirada do carro à força e levada dali, e isso fez com que corresse para o velho prédio vitoriano. Subiu as escadas a dois e dois até ao terceiro andar. Não se ouvia nenhum som no apartamento dela, nem havia luz debaixo da porta.
Megan disse ele batendo com força à porta. Megan, sou eu, o Mitch. Abre!
Nada.
«Se o carro está aqui e ela não está, então onde diabo se encontra?»
Megan! Bateu outra vez, tentou a maçaneta, viu que estava trancada. Merda! murmurou. És demasiado velho para isto, Mitch!
Em todo o caso respirou fundo e atirou-se contra a porta. Felizmente ela não pusera a tranca. A porta cedeu ao terceiro embate e abriu-se.
Megan? chamou Mitch, procurando adaptar os olhos à escuridão.
Os estores estavam corridos. O pouco sol que tinham tido de manhã escondera-se atrás de um espesso lençol cinzento, e o apartamento estava quase completamente às escuras. A sala estava fria, como se o aquecimento tivesse sido desligado durante um tempo. Com o coração a bater desordenadamente, Mitch retirou a sua Smith & Wesson do coldre e apontou-a para o tecto. Avançou devagar, em silêncio, no meio dos caixotes, caminhando nas pontas dos pés, pronto para saltar.
O seu pé tocou numa bota abandonada.
Megan?
Megan julgou tratar-se de uma alucinação.
As pancadas, a voz. Perdia e recuperava a consciência, saía e entrava na realidade. Não tinha a certeza se as pancadas não seriam dentro da sua cabeça. A dor tomava proporções que iam para além da sensação física. Tornava-se som e luz, uma entidade diferente de qualquer outra, sem descrição.
Megan?
Ele nunca dissera o nome dela. Tinha a certeza disso. A palavra dilacerou-lhe o cérebro e ela gemeu, levando as mãos aos ouvidos.
Meu Deus, Megan!
Mitch afastou vários caixotes e ajoelhou junto dela. As suas mãos tremiam violentamente ao estenderem-se para ela.
O que sucedeu, querida? Foi o Fletcher? Ele feriu-te? Megan tentou afastar-se dele. Mas ele agarrou-a por um ombro e deitou-a de costas. O candeeiro que se encontrava sobre a mesa ao lado do sofá acendeu-se e ela gritou.
O que é? perguntou Mitch debruçando-se sobre Megan e afastando-lhe as mãos enquanto ela tentava tapar os olhos. Onde é que estás ferida, querida?
Enxaqueca murmurou ela. Fechou os olhos com força. Apaga a maldita luz e vai-te embora.
A luz apagou-se e ela conseguiu respirar. Trémula e enfraquecida, Megan virou-se de lado e pôs os joelhos ao pé do queixo.
Mitch nunca vira ninguém com tão grande sofrimento que não estivesse a sangrar profusamente devido a um tiro ou a uma facada. Nunca imaginara que pudesse haver uma dor de cabeça tão forte que pusesse uma pessoa naquele estado.
Devo levar-te para o hospital?
Não.
Que posso fazer, querida? perguntou Mitch, inclinando-se mais para ela.
Deixa de me chamar querida e vai-te embora.
O orgulho fazia com que ela não quisesse que ele a visse assim, fraca, vulnerável.
Isso é que não vou resmungou Mitch. Levantou-a nos braços e pôs-se de pé. Megan encostou-se ao peito dele e agarrou-lhe no tecido da parka, com força, esforçando-se por não vomitar enquanto ele atravessava a sala e o corredor com ela ao colo.
Colocou-a sobre a cama e ela ficou sentada, dobrada sobre si, a tremer. Tirou-lhe o casaco, a camisola de lã, o coldre do ombro, a camisola de gola alta, o soutien. Depois vestiu-lhe uma grande camisa de flanela que se encontrava em cima da cama. Megan deitou-se e ele tirou-lhe as calças e a 380 AMT Back Up que ela usava num coldre mandado fazer propositadamente, em volta do tornozelo direito.
Tens algum remédio para tomar? perguntou.
No armário dos remédios sussurrou Megan, tentando esconder a cabeça na almofada. Imitrex. Não fales tão alto.
Mitch voltou com a seringa e declarou que era melhor levá-la para o hospital, quando ela lhe disse para lhe dar uma injecção.
Megan, eu não sei dar injecções. Sou polícia. Não sou médico.
És um medroso. Dá a injecção.
E se faço mal?
É subcutânea. Não pode fazer mal declarou Megan, engolindo o vómito. Eu mesma a daria, se as minhas mãos não tremessem tanto.
De testa franzida, em profunda concentração, Mitch encostou a seringa ao braço dela, carregou no êmbolo e contou até dez. Megan olhava-o por entre as pálpebras semicerradas. Ele atirou a seringa para o cesto dos papéis e olhou para ela.
Estás a ser simpático para mim outra vez murmurou Megan.
Sim, mas não te habitues a isso respondeu Mitch. No entanto, não havia nas suas palavras qualquer hostilidade, e o gesto que fez para lhe afastar o cabelo da testa revelava apenas ternura.
Eu sei... sussurrou ela.
Mitch não se preocupou em saber se ela se referia ao relacionamento deles, se ao trabalho. Não tinha a certeza se poderia chamar ao que eles tinham um relacionamento, mas não era a altura apropriada para falar nisso.
Apanhei um susto terrível confessou Mitch. Julguei que o nosso louco do dia te tinha apanhado.
Quem? perguntou Megan, sentindo que começava a poder pensar outra vez.
O Fletcher. Enlouqueceu completamente e abriu a cabeça ao padre Tom com um candelabro. Provavelmente deves fazer ideia do que ele deve ter sentido.
Sim murmurou Megan. Já o apanharam?
Havemos de o fazer. Mitch achou melhor guardar o resto da história de Fletcher para mais tarde. Ela não estava em condições de a ouvir naquele momento, especialmente depois de ter sido afastada do caso. Não te preocupes,
OMalley. Podes ficar com dores de cabeça.
Megan achou que esboçara um sorriso, mas não teve a certeza. O seu cérebro continuava a recusar-se a funcionar perfeitamente, enquanto a dor ia e vinha, semelhante a clarões de fogo a faiscarem por detrás das pálpebras.
Precisas de descansar disse Mitch. Há mais alguma coisa que eu possa fazer?
Era estranho que ela se sentisse envergonhada, pensou. O que lhe queria pedir não era nada de íntimo. Apenas um serviço. Mas sentia-se tão vulnerável...
Podes soltar-me o cabelo?
Voltou a cabeça para ele, dando-lhe acesso ao rabo-de-cavalo e ao mesmo tempo evitando o olhar dele.
Era estranho como aquele gesto lhe parecia uma coisa muito pessoal, pensou Mitch ao tirar-lhe o laço de veludo preto e o elástico que lhe prendia o cabelo. Fizera aquilo inúmeras vezes a Jessie. Talvez fosse por Megan lhe parecer vulnerável e indefesa como uma criança que ele estava a fazer o papel de protector. Ela devia detestar isso. Era tão ferozmente independente, tão orgulhosa, e agora tivera de lhe pedir ajuda para uma coisa tão simples como soltar-lhe o cabelo. Era uma ironia que a fraqueza dela fizesse realçar a força dele, e que ao mesmo tempo isso o fizesse sentir-se vulnerável.
Passou os dedos pelo cabelo sedoso, cor de mogno, espalhando-o sobre a almofada de tecido florido. Tocando-lhe ao de leve, Mitch massajou-lhe a nuca e os músculos ligeiramente tensos do pescoço. As lágrimas correram pelas faces de Megan e ela chorou em silêncio, mas não lhe disse para parar.
Sabes, nunca fiz isto ao Leo afirmou Mitch, inclinando-se para lhe beijar a face. Tenta dormir um pouco, querida. Posso chamar-te querida?
Não.
Está bem. Estarei na sala, se precisares de mim. Se precisares de mim... Megan não disse nada quando ele lhe puxou os cobertores para cima, em volta do pescoço, se endireitou e se voltou para sair do quarto para a deixar sozinha. Sozinha com a sua dor, num quarto que nunca seria o seu lar, porque ela destruíra essa hipótese. Já lhe parecia mais frio, mais vazio, como se a casa soubesse que ela se iria embora.
...se precisares de mim...
Mitch? Megan detestava a fraqueza na voz dela. os ecos de um passado distante, um passado de solidão, mas não queria a companhia desses fantasmas nessa noite.
Mitch inclinou-se para ela e tentou vê-la na semiobscuridade. Megan fechou os olhos para ele não a ver chorar, envergonhada.
Abraça-me, por favor.
Mitch comprimiu os lábios contra a onda de emoção que o invadiu. Tocou com um dedo na ponta do nariz dela e forçou-se a falar, pois parecia ter uma pedra na garganta.
Oh, O’Malley proferiu, tentando gracejar. Julgava que nunca mais mo pedias.
Descalçou as botas e deitou-se na cama, atrás dela. A velha cama rangeu sob o peso dos dois. Encostou as costas dela ao corpo dele, como se formassem um só bloco. Prendeu a mão dela na dele e beijou-lhe o cabelo tão ao de leve que ela podia não o ter sentido. E ficou a ouvir a sua respiração enquanto Megan finalmente sucumbia ao sono.
Hannah, além do medo, o que tem sentido nesta provação?
Hannah respirou fundo, pensou cuidadosamente, como fizera para responder às outras perguntas. Tentou esquecer a presença das luzes e das câmaras e concentrar-se apenas no rosto de expressão preocupada da mulher que se encontrava sentada na sua frente. Era assim que ela considerava Katie Couric como mulher, como mãe, não como uma celebridade ou uma repórter.
Confusão, frustração disse. Não consigo compreender porque nos sucedeu isto. Não consigo começar a compreender e isso é frustrante.
Acha que se trata de um ataque pessoal, de uma vingança?
Hannah olhou para baixo, para as mãos que retorciam um lenço.
Não quero pensar que uma pessoa que eu conheça seja capaz de tão grande crueldade.
Couric, sentada numa cadeira de braços de damasco rosa, inclinou-se um pouco para a frente. A equipa da N BC ocupara a maior parte do último andar do Fontaine, um elegante hotel vitoriano restaurado, no centro de Deer Lake. O Fontaine estava mobilado com antiguidades e reproduções. A equipa escolhera a suíte rosa para a entrevista, tanto pelas suas dimensões como pela sua beleza.
Hannah, esteve esta manhã envolvida num incidente na Igreja de Saint Elysius começou cuidadosamente Katie Couric. O padre Tom McCoy foi atacado por Albert Fletcher, o homem que instruía o Josh no catecismo e o ensinava a ajudar à missa. Mais tarde, a Polícia fez uma descoberta bizarra em casa de Albert Fletcher, encontrando o que julgam ser o corpo da mulher dele, falecida há anos. As autoridades conduzem agora uma intensa caça ao homem para encontrarem Albert Fletcher. Acha que ele poderá estar envolvido no rapto de Josh?
Fiquei assombrada quando aquilo se deu... a agressão afirmou Hannah. Ainda estou. Nunca pensei que ele pudesse ser violento, ou não lhe confiaria o nosso filho. Isso também faz parte da frustração. Considerava esta cidade um sítio seguro e via os habitantes de Deer Lake como boas pessoas. Agora vejo que fui ingénua e sinto-me zangada por ter confiado tanto em toda a gente.
Sente-se mais zangada por ter sido a vítima escolhida, quando, como médica, fez muito pelas pessoas de Deer Lake?
Hannah pensou uns momentos e respirou fundo. Fora habituada a prestar serviço aos outros e a ajudar toda a gente sem esperar recompensas pessoais. A resposta que lhe ocorreu automaticamente fazia-a sentir-se um pouco culpada, mas era a resposta honesta e ela deu-a num murmúrio:
Sim.
Paul assistia à entrevista numa televisão portátil que tinha no seu escritório e sentia-se invadido por uma inveja que nunca admitiria. As estações locais não eram suficientemente boas para Hannah. Ela tinha de dar a entrevista a uma das mais importantes redes de televisão. Provavelmente estaria agora a partir corações por toda a América com os seus olhos azuis cheios de lágrimas e voz calma. A câmara gostava dela. Parecia uma actriz, com o seu cabelo louro ondulado caído pelos ombros, solto. Darryl Hannah no papel de Hannah Garrison, a mãe destroçada.
Bebeu um gole de uísque da garrafa que trouxera do gabinete do seu sócio e fez uma careta. Diziam que para se gostar de uísque era preciso habituar-se ao gosto. Ele tencionava habituar-se o mais depressa possível. O peso da sua vida era demasiado para ele o poder suportar. Hannah não lhe dava qualquer ajuda. Praticamente acusara-o de ter raptado Josh! Depois de tudo o que ele fizera para ajudar nas buscas. Que grande confiança. Que grande amor!
Telefonou a Karen para ir ali consolá-lo, mas ela tinha-lhe dito que não. Paul desconfiava que Garrett estaria por perto, mas mesmo assim custava-lhe a recusa. Bebeu outro gole de uísque, fez uma careta e olhou para o ecrã da televisão.
Katie Couric conseguia mostrar-se grave e cheia de vivacidade ao mesmo tempo. Inclinou a cabeça para Hannah e disse:
As pessoas reagem de maneira diferente a este género de traumas. Algumas descobrem forças que não sabiam que tinham. Outras percebem que, embora alguém vital para elas tenha desaparecido das suas vidas, o relacionamento com as pessoas que as rodeiam se aprofunda. Outras ainda acham difícil e doloroso manter esse relacionamento. Como é que acha que o desaparecimento do Josh afectou as suas relações pessoais, Hannah? Como é que isso afectou o seu casamento?
Hannah ficou silenciosa durante uns momentos. Os lábios tremeram-lhe.
Tem sido uma tensão terrível.
Pensa que o seu marido tem alguma culpa pelo que sucedeu nessa noite?
Os olhos azuis encheram-se de lágrimas brilhantes.
Sim.
Os olhos de Katie Couric brilharam também. A sua voz suavizou-se.
Também se culpa a si própria, não é?
Sim. A câmara fixou-a de perto enquanto Hannah lutava para se dominar. Cometi um erro que parecia tão insignificante...
Mas terá realmente cometido um erro, Hannah? Mandou alguém ligar para o rinque a avisar de que iria chegar atrasada. O que poderia ter feito de diferente?
Poderia ter um plano, uma combinação com alguém que eu conhecesse para ir buscar o Josh quando eu não pudesse. Podia ter ensinado o Josh a ser mais cuidadoso para não lhe suceder mal. Podia ter ajudado o grupo de hóquei infantil a ter um plano formal para haver a certeza de que todas as crianças regressariam a casa sãs e salvas. Não fiz nenhuma dessas coisas e agora o meu filho desapareceu
Nunca me ocorreu que precisaria de tomar qualquer destas medidas. Fui ingénua. Nunca podia ter imaginado o preço a pagar por essa ingenuidade.
«São essas as conclusões que eu quero que as pessoas tirem da nossa entrevista: que basta apenas um pequeno erro, em determinada altura, para alterar tudo para toda a vida continuou Hannah. Não quero que ninguém passe por aquilo que estamos hoje a passar. Se algo do que eu disser puder impedir que isto volte a acontecer, então di-lo-ei.
E ontem, quando a polícia de Deer Lake pediu ao seu marido que fosse tirar as impressões digitais, o que é que pensou disso? Há alguma interrogação no seu espírito acerca de um possível envolvimento do seu marido?
Hannah baixou os olhos.
Não posso acreditar que o Paul fizesse qualquer coisa que magoasse o nosso filho.
Falou de uma forma rígida, como se fosse uma regra que decidisse aplicar, quer acreditasse nela ou não. A cabra, pensou Paul, bebendo outro gole de uísque e lutou contra o desejo de o vomitar.
Hannah, o seu marido acusou as autoridades policiais de não mostrarem competência para resolver este caso. Partilha essa opinião?
Não. Sei que têm feito tudo o que está ao seu alcance. As perguntas que têm de fazer são difíceis, por vezes dolorosas, mas conheço o Mitch Holt desde o dia em que me mudei para aqui e sei que tudo quanto tem feito neste caso tem apenas um objectivo: encontrar o Josh e levar o raptor perante a justiça.
Obrigado, Hannah murmurou Mitch.
Estava sentado no sofá de Megan, olhando para a pequena televisão a cores que se encontrava em cima de uma caixa do outro lado da sala. O gato preto e branco, estendido como um leão, olhava também para a televisão. O gato cinzento, mais pequeno, dormia enroscado no seu colo.
Falara com os seus homens de quinze em quinze minutos, num contacto permanente com eles. Continuavam a não ter sinais de Fletcher e, com excepção dos carros-patrulha, as buscas no solo tinham sido interrompidas devido ao frio intenso. Se o diácono se escondera num sítio onde eles o pudessem ir buscar sem um mandado, não precisavam de se preocupar com o sítio para onde ele pudesse fugir. Na manhã seguinte estaria tão frio e rígido como Doris. Chamadas de hora a hora para as patrulhas mantinham Mitch informado a respeito da falta de novidades da parte delas. Se Fletcher conseguira fugir de Deer Lake num carro, não fora visto nas estradas do Minnesota.
Mitch sentia-se um pouco enervado por não poder andar pessoalmente a tomar parte nas buscas a Fletcher. Sabia que não poderia fazer mais nada do que aquilo que estava a ser feito. Mas a inactividade contrariava a sua natureza de polícia de rua. Agora que os seus antigos instintos tinham sido reactivados, sentia a velha agitação renascer.
Deixara Megan a dormir profundamente e esperava, para bem dela, que dormisse durante toda a noite. Ainda o chocava pensar nas dores que ela tivera... e na maneira como isso o afectara. Quisera tratar dela, acalmá-la, protegê-la. Quisera lutar por ela, pelo trabalho dela... a coisa que mais significado tinha para ela, mais do que ele, mais do que qualquer outra coisa. Esses componentes individuais revelavam qualquer coisa para que ele não estava preparado.
Olhou para a mão que pousara sobre o gato adormecido, para a aliança. Ouvia ainda amargura na voz de Megan: Nem sequer tiraste a aliança quando me levaste para a cama E sentia ainda culpas por o ter feito, e sabia que, de certa maneira, gostara de se sentir culpado.
Estaria realmente reduzido a isso? A um purgatório emocional. E arrastara Megan para isso. Fosse o que fosse que ela esperasse do seu relacionamento com ele, não merecia tal coisa.
Allison partira. Para sempre. Poderia ter evitado a morte dela, mas agora não a podia ressuscitar. Durante quanto tempo continuaria a pagar por isso? Quanto tempo quereria pagar?
A vida podia mudar tão depressa. Num abrir e fechar de olhos. Numa batida do coração.
... basta apenas um pequeno erro, em determinada altura, para alterar tudo para toda a vida. As palavras de Hannah repetiam aquilo que ele já sabia. Desde aquele dia em Miami, em que ele se sentira demasiado cansado para parar na loja e comprar pão antes de ir para casa. Um segundo, uma decisão errada e o mundo saltava dos eixos, como um pião enlouquecido.
Seria então melhor viver uma meia vida e não voltar a correr o risco de sentir esse género de dor, ou era melhor agarrar o que viesse e viver plenamente enquanto o destino o permitisse? Sabia o que era mais seguro, o que magoava menos e no entanto o castigava mais.
Olhou para Hannah no ecrã da televisão, fazendo o possível por se mostrar forte, para mitigar, à sua maneira, o erro que tão grande sofrimento lhe custara. A dor deixara grandes olheiras escuras debaixo dos seus olhos. O stress destroçara o seu casamento. Se pudesse, escolheria evitar tudo isso não tendo tido Josh? Mitch julgava conhecer a resposta. Sabia que não trocaria o tempo que passara com Allison e com Kyle por nada deste mundo. Nem mesmo por paz.
Como é que ela está?
Ainda pálida, Megan encontrava-se à porta da sala, esfregando os olhos, com o cabelo em desordem. A camisa de flanela chegava-lhe aos joelhos.
Está bem, tendo em conta as circunstâncias. Mitch levantou-se e o gato saltou para o chão. E tu? Como estás tu?
Megan encolheu os ombros.
Um pouco tonta. Vou ficar bem. Não é nada novo. Mitch levantou-lhe o queixo com um dedo, fazendo-a olhar para ele.
É novo para mim. Costumas ter isto muitas vezes? Megan virou a cara. Agora que tinha passado, não queria pensar como se sentira indefesa e como necessitara da compaixão dele. Se tivesse suportado as terríveis dores da enxaqueca sozinha, ser-lhe-ia mais fácil sair da cidade e da vida dele. Agora sentia-se embaraçada. Os laços emocionais existentes entre eles seriam mais difíceis de desatar.
Depende respondeu Megan, olhando para a televisão, onde algum génio da publicidade conseguira relacionar uma idosa senhora a pintar os lábios, na sala de um avião, com uma piza. De cada vez que perco um lugar ou que sou processada em cinco milhões de dólares.
Megan encolheu-se interiormente ao ver a expressão dele. Mitch sentara-se no braço do sofá e fitava-o com o mesmo olhar que ela vira na véspera. Recusou-se a enfrentá-lo. Os sentimentos estavam demasiado à superfície e ela sentia-se cansada de mais para não ser transparente.
Megan, eu desejo...
Não te incomodes. Não serve de nada. Ele inclinou-se para ela.
Porque não me deixas ajudar, ou pelo menos mostrar simpatia...
Porque não podes fazer nada respondeu com voz cansada. Nada podes fazer para que o DePalma mude de ideias. Não podes alterar o facto de a Paige Price ser uma pega mercenária e de eu o ter dito na televisão. Nada podes remediar e eu não quero simpatia.
Furioso, Mitch levantou-se.
Não, não queres. Não precisas de compreensão e simpatia de ninguém. Não precisas de ninguém, não é verdade?
Megan fitou obstinadamente a televisão. Apetecia a Mitch sacudi-la. Queria que ela precisasse dele e o dissesse. Megan pedira-lhe que a abraçasse quando estava mergulhada na dor e nem sequer conseguia ver bem. Mas essa Megan e a que ali estava eram duas pessoas diferentes: duas bonecas sobrepostas, uma escondida dentro da outra, aparecendo raramente à luz.
Mitch teve vontade de bater em si mesmo por se preocupar. Não dissera a si próprio que gostava da sua vida tal como ela era... simples, controlada, segura... vazia?
Na televisão, a entrevista de Hannah estava prestes a recomeçar. Mitch deixou-se cair no sofá a curta distância de Megan, fazendo desalojar o gato que lhe lançou um olhar venenoso ao saltar para cima de uma caixa onde estava escrito: COISAS QUE NÃO Uso.
Katie Couric inclinou-se na cadeira, com o olhar luminoso de simpatia.
Hannah perguntou muito suavemente, acha que o Josh está vivo?
A câmara aproximou-se do rosto de Hannah.
Sei que está.
Como é que sabe?
Hannah levou tempo a responder, pensando obviamente na pergunta e nas implicações que a resposta teria. Quando falou, fê-lo com voz clara e segura:
Porque o Josh é meu filho.
Na outra noite não estava tão certa disso comentou Megan roendo as peles das unhas. Perguntou-me duas vezes se eu achava que o Josh estava vivo. Perguntou como se precisasse que eu a tranquilizasse. O que é agora isto?
É um mecanismo de defesa observou Mitch. Ela acredita naquilo que quer acreditar.
Megan achava que havia algo mais do que isso, mas não o podia dizer. Não que a sua opinião tivesse alguma importância. Marty, o spaniel, era quem mandava agora. Não acreditaria nela, mesmo que lhe dissesse que o mundo é redondo. Isso não faria qualquer diferença para o caso, claro. Hannah podia acreditar ou não. Nenhum desses sentimentos poderia fazer encontrar Josh ou o seu raptor.
Se soubesse que o Josh a estava a ouvir neste momento, o que lhe diria? perguntou Katie Couric a Hannah.
O ecrã mostrou o rosto de Hannah de perto. A câmara não deixou escapar nenhuma nuance da expressão dela. A América viu tudo a cólera, a confusão, a dor. Os grandes olhos brilhantes de lágrimas. A boca a tremer num esforço para não chorar.
Gosto muito de ti, Josh. Quero que saibas, que acredites nisto. Amo-te muito...
O grande plano de Hannah transformou-se no rosto de Josh. Na fotografia da escola. Josh com o seu fato de escuteiro. O sorriso desdentado, os olhos brilhantes, o cabelo encaracolado. A foto esbateu-se e subitamente Josh apareceu vivo no ecrã graças ao vídeo. Representando papel de um pastor, numa festa de Natal, ao lado de Lily em frente da árvore de Natal. A voz clara, pura de soprano de Linda Ronstadt, começou a ouvir-se enquanto as imagens iam mudando. Cantava Somewhere Out There, e as palavras, pungentes de anseio, brilhavam de esperança.
Megan mordeu o lábio com força. Não aguentava. Podia aguentar a entrevista. Ela própria já entrevistara Hannah, mas aquilo era uma rasteira. A canção podia ser o próprio Josh a chamar do crepúsculo onde desaparecera dez dias antes. O vídeo transformava-o num rapaz cheio de vida, cheio de energia e de ternura pela irmãzinha. O seu rosto inocente surgia com a confiança infantil transmitida nas palavras da canção, fazendo com que o caso se expandisse muito para além de uma questão de trabalho e se tornasse terrível, dolorosamente pessoal.
O caso que lhe fora arrancado das mãos.
Nunca, nunca te deixes envolver pessoalmente, OMalley.
Demasiado tarde. Aquele princípio rígido não podia dominar as emoções. A boceta de Pandora abrira-se. Megan apenas podia lutar para que os seus sentimentos não transbordassem. Pestanejou com força e apertou com uma mão a camisa que lhe cobria os joelhos. Se fizesse muita força talvez conseguisse não chorar.
Então a mão de Mitch pousou sobre a dela, envolvendo-a e apertando-a, numa silenciosa mensagem de empatia e compreensão.
Que diabo, OMalley, como podes ser tão estúpida? Porque hás-de ceder? Nesta altura já devias ser mais dura.
Megan respirou fundo, trémula, com o queixo rígido por tentar manter o lábio inferior sem tremer.
Diabos os levem murmurou entre dentes. Eu queria apanhar aquele sacana.
Eu sei murmurou Mitch.
Ele está perto. Eu sei. Sinto-o. Queria tanto apanhá-lo que me dói.
No entanto, não importava que ela desejasse apanhar o raptor de Josh. Fora afastada do caso. DePalma esperava-a na sede, para lhe dar pessoalmente uma reprimenda, e depois iria sentar-se numa sala, rodeada de advogados e suportar a companhia deles, enquanto estivessem a preparar a estratégia para combater Paige Price e os seus doberman legais. Da mesma maneira iria ter de abandonar a vida que iniciara em Deer Lake. Esquecer as pessoas que ali conhecera. Passariam a ser apenas nomes nos relatórios. Esquecer o apartamento que não tivera tempo para transformar num lar. Esquecer Mitch Holt. Seria apenas um polícia mais e ela sabia que não devia andar com polícias. Esquecer Josh, que era agora responsabilidade do spaniel.
Josh olhava-a do ecrã da televisão, olhos grandes, sardas e um espaço na boca, no sítio onde devia estar um dente. Perdendo o pouco controlo que lhe restava, frustrada, furiosa, Megan levantou-se do sofá, a chorar e a praguejar e deu um encontrão num monte de livros empilhados em cima de um caixote. Os livros espalharam-se e os gatos saltaram dos seus poleiros e deslizaram para o corredor, à procura de abrigo. Megan voltou-se, à procura de outro alvo. O seu punho fechado encontrou então o peito sólido de Mitch.
Chora de uma vez! ordenou Mitch. passando-lhe os braços em volta do corpo. Tens direito a chorar. Chora. Eu não digo a ninguém.
Quando as lágrimas vieram, Mitch comprimiu o rosto contra o alto da cabeça de Megan e pediu-lhe desculpa, num murmúrio, de coisas que eles não conseguiam controlar.
Tudo estava para além do controlo deles. E fora tudo desencadeado por um louco. Num só momento, numa só acção, alterara as vidas de muitas pessoas, sem que nenhuma delas pudesse fazer coisa alguma para o impedir. Ela perderia o seu trabalho, a sua casa, a sua oportunidade de pertencer... mas tinha aquele momento e não queria perdê-lo.
Olhou para Mitch, para as rugas que o tempo e o desgosto tinham vincado na sua cara, para os olhos que tinham visto demasiadas coisas. Não poderia tê-lo para sempre, mas tinha-o agora, nessa noite. Perder-se-ia no abraço dele, afastaria o feio mundo com a névoa da paixão.
Mitch fez deslizar os dedos pelo cabelo dela, esfregando com o polegar o ponto macio onde a dor se concentrara.
Devias ir para a cama murmurou.
Megan sentiu o coração bater contra o peito dele, sentiu a força e a carícia das suas mãos, viu a tristeza e o desejo nos olhos dele. Amava-o. Por mais inútil que isso fosse, pois tinha de partir, amava-o. Ele não lhe pedira para ficar. Não pedira nada, não prometera coisa alguma. Ele amara outra pessoa tão profundamente... e ela nunca fora amada. Mas guardava esses segredos no seu coração, guardava o seu amor. Aquela podia ser a última noite que passariam juntos.
Levas-me? perguntou com os olhos fixos nele.
Megan...
Ela pousou dois dedos sobre os lábios dele, silenciando a sua preocupação. Mitch olhou-a, tão pálida, com a sua força incrível vencida pelo peso do mundo. Estava a apaixonar-se por ela, embora isso não tivesse futuro. Dentro de um dia ou dois ela sairia dali, para tentar salvar a carreira que era tudo para ela. Ele ficaria com a vida que construíra ali ordeira, simples, vazia, cuidadosamente vazia.
Mas podiam ter aquela noite para eles.
Pegou-lhe na mão e beijou-a meigamente. Ela voltou-se e conduziu-o para o quarto, ficando a televisão a falar sozinha.
Megan deixara o candeeiro da mesa-de-cabeceira aceso e a cama desmanchada estava iluminada por uma luz suave. Essa luz iluminou Megan por trás quando ela desabotoou a camisa de flanela, a puxou para os ombros e a deixou cair no chão. A fraca claridade formava uma auréola em redor do seu cabelo escuro e dava à sua pele um brilho de alabastro. Megan estava na frente dele, disposta a desnudar o corpo, se não a alma, disposta a receber dele o que ele lhe quisesse dar. Ela merecia mais do que uma noite, merecia mais do que o que a vida lhe dera, mais do que ele lhe dera.
As mãos de Mitch tremiam quando tirou a aliança do dedo e a colocou sobre a cómoda.
O coração de Megan começou a bater desordenadamente. O seu cérebro encheu-se de loucos pensamentos e de vãs esperanças. Megan afastou-as todas para agarrar a única verdade possível. Aquela noite seria deles sem sombras, sem amores ou pecados antigos.
Pegando-lhe na mão, levou-a aos lábios trémulos e beijou a marca mais clara deixada na pele pela aliança. Depois ele tomou-a nos braços e beijou-lhe os lábios.
Megan puxou a camisa de Mitch para trás e ele despiu-a, impaciente por sentir o contacto com a pele dela. Deitou-a na cama, fazendo deslizar os lábios desde o pescoço até aos seios. O corpo dela arqueou-se debaixo dele, convidando-o, pedindo-lhe que apertasse entre os seus dentes o mamilo erecto, gemendo quando ele o chupou com força. A mão dele desceu pela anca dela, puxando-lhe a perna para cima do corpo, pondo em contacto com os músculos dele o calor húmido que saía das entranhas de Megan.
Um gemido profundo, rouco, saiu da boca de Mitch quando ela prendeu o seu pénis erecto entre as mãos. Pousou uma das mãos sobre as dela e apertou-as, inclinou a cabeça e prendeu-lhe o lóbulo da orelha entre os dentes.
É assim que tu ficas, dura, quando estou dentro de ti disse Mitch, aumentando ainda mais o seu desejo.
Mitch observou o rosto de Megan ao penetrar nela. O pânico apoderou-se dele ao pensar que em poucos dias e noites se apaixonara por ela, e que ela iria partir dentro de dias, deixando-o outra vez só.
Mas o desejo sobrepôs-se ao medo e ele penetrou nela ainda com mais força, sentindo-a húmida e a querer puxá-lo ainda mais para dentro de si, fazendo com que todos os pensamentos lhe fugissem da cabeça. Moviam-se em conjunto, tensos, avançando para uma explosão que fazia desaparecer os limites entre o físico, o emocional e o espiritual. Atingiram o auge, primeiro um, depois o outro. Ofegantes, trémulos, apertados um contra o outro.
Amo-te... As palavras estavam nos lábios de Megan. Ela conteve-as.
Amo-te... Mitch pronunciou mentalmente as palavras, guardou-as no seu coração, com medo de as dizer.
Então ficaram silenciosos e imóveis e as antigas dúvidas voltaram à superfície. Os muros ergueram-se outra vez. Corações protegidos por armaduras, batendo separada e solitariamente, na noite.
Hannah estava sentada no seu quarto, às escuras. O quarto dela. Como o seu cérebro fizera rapidamente essas pequenas alterações. Paul não dormia ali há duas noites e o seu cérebro omitia já referências plurais. Não queria pensar no que isso significaria para o futuro deles. Não queria pensar nos sentimentos de remorso, de perda e de fracasso, associados a um casamento que em tempos considerara perfeito. Já lhe bastavam os sentimentos de perda, de remorso e de fracasso associados a Josh.
Seria tão bom ter saído do estúdio onde fizera a entrevista e ter à sua espera o homem com quem casara, para a abraçar, para a tranquilizar, para a levar para casa. Saber que tinha o amor e o apoio dele. Em vez disso fora para casa no seu carro, sozinha. Kathleen Casey, que se oferecera para ficar com Lily, estava sentada no sofá da sala em companhia de McCaskill, o agente do QC, a ver os Ficheiros Secretos e a comer pipocas. Paul não estava em casa.
Paul não estava. O Paul que ela amara e com quem casara. Não conhecia o homem que lhe mentia, que lhe ocultara coisas, que a culpava pelo acto de um louco. Não conhecia o homem que praticamente cortejava os media, o homem que tivera de ir dar as suas impressões digitais à Polícia. Não sabia quem ele era e o que seria capaz de fazer.
Não estando disposta a considerar as possibilidades, forçou-se a levantar-se da cadeira e começou a despir-se. Concentrou-se em cada pequena tarefa, em desabotoar os botões, dobrar a roupa e pô-la de lado. Vestiu então uma camisa de noite de algodão, muito usada e confortável, e puxou os cabelos para fora. Quando despia as calças, o telefone da mesa-de-cabeceira tocou.
Hannah olhou-o. Lembrou-se do último telefonema que recebera ali no quarto e o seu rosto cobriu-se de uma fina camada de respiração. Não podia deixá-lo tocar. Não queria atender. McCaskill e Kathleen deviam estar admirados por ela não atender.
Com uma mão trémula, ergueu o auscultador.
Está?
Hannah? Daqui Garrett Wright. Acabei de ver a entrevista e queria dizer-lhe que a acho muito corajosa.
Humm... bem... balbuciou. Não era um estranho sem rosto a atormentá-la, nem um louco como Albert Fletcher. Nem era Josh. Apenas um vizinho. O marido de Karen. Ensinava na Harris. Foi apenas uma coisa que eu tive que fazer.
Compreendo. Contudo... Bem, na minha fraca opinião acho que o que fez esteve certo. Ouça, se tiver algum problema com o que está a passar, tenho um amigo em Edina especializado em terapia familiar. Falei nele ao Paul quando ele aqui esteve uma destas noites, mas creio que ele não quis ouvir falar disso. Mas se quiser posso dar-lhe o nome e o número do telefone.
Obrigada agradeceu Hannah, deixando-se cair sobre a cama. Escreveu o nome e o número do telefone automaticamente, enquanto pensava no que poderia ter ido fazer Paul a casa de um vizinho, à noite e por que motivo não lho teria dito. Mas com efeito a visita à casa de um vizinho era o menor dos segredos dele. Não queria saber qual poderia ser o pior.
Essa ideia não lhe saiu da cabeça enquanto desligou o telefone, apoderando-se dela uma terrível sensação de solidão e de que o medo ameaçava destruí-la. O pior de tudo era a sensação de que, por mais que as pessoas a quisessem ajudar, a todos os níveis, ela se encontrava sozinha. A única pessoa que devia estar mais perto era a que se afastava cada vez mais.
Ficou a olhar para o vácuo. Quando o telefone tocou outra vez atendeu sem hesitação e disse uma banalidade qualquer.
A voz que lhe respondeu era baixa e carinhosa, tão bem-vinda para os seus nervos em franja, como seda para uma queimadura de sol.
Hannah? É o Tom. O padre Tom. Achei que podia precisar de falar.
Sim respondeu Hannah com um sorriso trémulo. Gostaria de o fazer.
Como disse Shakespeare:
O mundo inteiro é um palco,
E os homens e as mulheres meros actores;
têm as suas saídas e as suas entradas.
E nós somos os directores, os mestres que puxam os cordelinhos escondidos.
E assim, de hora a hora, nós amadurecemos. E depois, hora a hora, apodrecemos. E assim se desenrola um conto.
É altura de um novo acto e de uma bela reviravolta no enredo
Somos brilhantes.
No sábado a temperatura subiu e o céu baixou. Um tecto de nuvens baixas cor de chumbo pairava sobre o terreno arborizado, cobrindo-o com uma fina camada de neve. Seguindo a vaga de frio intenso e as disposições sombrias que ele inspirava, os meteorologistas da rádio tinham saído do estado, deixando previsões de temporal para o fim-de-semana.
Megan ouviu o boletim meteorológico. Um temporal? Talvez isso a impedisse de ir de carro para St. Paul. Se passasse bastante tempo a andar pela cidade à procura de Albert Fletcher... Se aquela porcaria de carro se avariasse... Passava-lhe pela cabeça uma dúzia de hipóteses diferentes, como um garoto a arranjar desculpas para não ir à escola. Se tivesse pelo menos aquele dia... mas DePalma queria-a fora de Deer Lake. Nunca lhe teria telefonado a um sábado se não estivesse desesperado. Os advogados deviam lá estar e o BCA teria de pagar o tempo deles a dobrar. Tratava-se além disso de a tirar dali antes de ela poder fazer mais algum mal.
Tinha de ir se quisesse salvar algo da sua carreira.
Esfregou o dedo enluvado sobre o ponto dorido por cima do olho direito. A dor de cabeça continuava latente, ameaçadora, desaparecendo por vezes e retirando-lhe a energia. Megan sabia que devia ter ficado na cama, mas não queria lá estar sozinha. Andava de carro desde a madrugada, pensando e repensando na confusão em que se encontrava a sua vida. Se tivesses aceite aquele lugar no FBI, O’Malley... Poderias estar agora em Memphis, a quilómetros de distância do frio e da neve, a quilómetros e quilómetros de distância de um coração destroçado.
Esse coração ainda desejava que as coisas tivessem resultado, mas a cabeça sabia que não seria possível. Que tinha ela a oferecer a Mitch? Ela não era boa para ser uma esposa, não percebia nada sobre o modo de criar uma criança de cinco anos. O que realmente sabia era ser polícia. E graças ao seu temperamento indomável também isso lhe iria ser tirado. Sentiu o pânico apertar-lhe o peito.
Julgando-a a dormir, Mitch levantara-se e saíra muito cedo. Estava preocupado com a caça ao homem que os seus homens levavam a cabo. Segundo os fragmentos de informação que ouvia pela rádio da Polícia, ainda não tinha sido descoberto o rasto de Albert Fletcher. Pessoas que julgavam tê-lo visto telefonavam, mas por enquanto não haviam descoberto o seu paradeiro. Deer Lake estava cheia de carros da Polícia local e do estado. Os helicópteros sobrevoavam a cidade e os arredores sem parar.
Megan abanou a cabeça, assombrada. Logo que o vira, reparara imediatamente que Albert Fletcher era estranho, mas nunca imaginara nada daquilo que Mitch acabara por lhe contar na noite anterior. Seria ele suficientemente louco para ter raptado Josh para fazer dele o seu menino de altar privativo? Sim, mas para isso teria de ter tido ajuda. Tentou imaginá-lo a ele e a Olie como compadres, mas tal não lhe pareceu possível. Fletcher era um solitário. De outro modo nunca teria podido guardar tão completamente o seu tenebroso segredo.
Conduziu lentamente o carro através do campus da Universidade Harris, procurando atentamente o diácono. Pensou se Mitch teria enviado alguns homens para ali. As aulas recomeçariam na segunda-feira e os edifícios já se encontrariam provavelmente abertos mas desocupados, e Fletcher teria ali onde se esconder e proteger dos elementos.
Harris era o género de universidade que já não se construía. Muitos dos edifícios eram feitos de granito e tinham aspecto de datarem do tempo em que a universidade fora fundada, em finais do século dezanove. Edifícios bonitos, sólidos, estavam rodeados por inúmeros carvalhos, bordos e pinheiros.
A estrada circundava os edifícios dos dormitórios, e os seus parques de estacionamento só tinham um terço da sua capacidade. Os alunos entravam e saíam dos edifícios, transportando a roupa que tinham levado à lavandaria durante as férias e os livros que provavelmente haviam levado consigo. As balizas de um campo de futebol coberto de neve assinalavam um terreno destinado ao atletismo, para além do qual se estendiam pastos. Subitamente, Megan encontrou-se em terreno rural que se prolongava indefinidamente para oeste.
Voltou para Old Cedar Road e dirigiu-se para sul. Se bem se recordava, esse caminho ia dar a Ryan’s Bay e à parte de trás de Dinkytown. Parou na berma da estrada e, com o motor a trabalhar, ficou a olhar para a paisagem árida e fria. As árvores nuas faziam lembrar paus de fósforos enegrecidos, à distância, a neve roubava os contornos aos campos, fazendo tudo parecer plano e só com uma dimensão, o céu baixo dava a sensação de que estava tudo coberto de camadas de ardósia. Num campo ao lado da estrada, dois cavalos pastavam distraidamente. Mais adiante, numa curva da estrada, um faisão abria caminho por entre os ramos baixos de um freixo, debicando o cascalho. Uma casa castanha, situada numa elevação afastada da estrada, tinha as persianas corridas e a garagem fechada, parecendo vazia. O nome que se via na caixa do correio, no início do caminho que ia ter à casa, era Lexvold.
Lexvold. Fazia-lhe lembrar qualquer coisa. Talvez o tivesse visto num relatório. A papelada sobre o caso de Josh era infindável. Entrevistara dúzias de pessoas, registado inúmeros depoimentos que não tinham levado a nada, de cidadãos que queriam ajudar ou pelo menos serem envolvidos. Como pequenas ondas num lago, o crime atingira-os a todos.
Megan pôs o carro em andamento e recuou para a estrada. A temperatura podia estar mais alta, mas o aquecimento do Lumina não era grande coisa quando a temperatura descia abaixo de zero, se é que alguma vez o seria. Precisava de beber qualquer coisa quente. Isso atrasaria um pouco a sua partida para St. Paul. Depois, se bebesse bastante, teria de parar para ir a uma casa de banho, o que a atrasaria ainda mais.
Estava a pensar em chocolate quente, no The Leaf & Bean, quando o seu olhar reparou nas marcas escuras que riscavam a neve na estrada. Olhando pelo espelho do retrovisor, recuou, com o pé no travão.
Marcas de derrapagem. Lexvold. Old Cedar Road. Acidente de automóvel.
Megan recordou a cena mentalmente enquanto tentava destacar qualquer coisa de que necessitava.
O aluno universitário. Uma mancha de gelo. Uma mancha de gelo que o agente da autoridade que estivera no local achara que fora fabricado.
Pôs o carro em ponto morto e saiu. Depois dirigiu-se até à curva e ficou ali parada, com as mãos nos bolsos da parka e os ombros curvados contra o vento. Para norte e leste ficavam os domínios da universidade. Para sul, o terreno cultivado dava lugar aos pântanos de Ryan’s Bay. Old Cedar Road cruzava com Mill Road. Para leste de Mill, as espiras de St. Elysius erguiam-se para o céu acima das copas das árvores. Megan voltou-se e observou a casa castanha e a garagem contígua.
Lembrou-se de Dietz, com a sua peruca, sentado ao lado deles no restaurante de Grandma’Attic... Parece-me que alguém tirou uma mangueira do jardim e a ligou à torneira
Onde estará a mangueira? murmurou Megan.
Esse género de coisas provinha geralmente da oportunidade. Se os Lexvold não tivessem nenhuma mangueira no exterior não havia oportunidade. Isso significava que alguém levara uma mangueira para ali propositadamente e tinha o nome de premeditação. Com que motivo?
Voltou-se novamente para a estrada, uma fita de asfalto deserta. Os únicos sons que se ouviam eram do vento e do faisão que se encontrava agora abrigado debaixo dos ramos do freixo, aborrecido por Megan ter interrompido a sua refeição. Mais acima, no caminho que ia dar à universidade, um Dodge Shadow vermelho entrou na estrada e dirigiu-se-lhe velozmente, derrapando ao passar por ela. Iam lá dentro dois rapazes, que pareciam surpreendidos e assustados. Eram estudantes que saíam do campus da universidade pelo lado de trás. Como o outro estudante, na noite do acidente que fizera com que Hannah Garrison se atrasasse para ir buscar Josh.
Megan viu mentalmente o quadro com as informações sobre o caso que se encontrava na parede da sala de guerra. Tudo começara com o desaparecimento de Josh. Mas se aquilo que eles não conseguiam descortinar, mas que tinha de existir, tivesse sucedido antes? E se o acidente não tivesse sido um acidente?
A adrenalina subiu nela enquanto essas possibilidades lhe atravessavam o cérebro. Os estudantes utilizavam a estrada que ficava por detrás da universidade. Qualquer pessoa que ali vivesse saberia isso. Albert Fletcher, cuja casa ficava a pouco mais de um quilómetro de distância, Olie Swain, que costumava assistir às aulas na Harris. Christopher Priest que pedira ao seu aluno que lhe fosse fazer um recado nessa noite.
Priest. Megan tentou afastar a ideia. O estranho professor, com uma maneira de vestir engraçada e um aperto de mão mole? Era um suspeito muito improvável. Não tinha motivo. Via-se claramente que admirava Hannah e fizera tudo para ajudar no caso... Mas pusera-se numa posição em que tomaria conhecimento de todas as informações obtidas pela Polícia, talvez mesmo as mais confidenciais. Conhecera Olie Swain, ensinara-o. Nesse mesmo momento estava provavelmente a entrar nos computadores de Olie, ostensivamente à procura de pistas. E fora ela que o pusera lá. Ignorância não é inocência mas PECADO.
Pecado. Religião. Priest. Padre. Christopher Priest.
Oh, meu Deus.
Viu mentalmente Priest debruçado sobre os computadores de Olie, na sala que ela lhe reservara. Não podia pensar que pusera um possível suspeito numa posição que poderia bloquear provas. O seu pensamento deu uma volta ao pensar nisso. Desejara tanto resolver o caso. Era algo que lhe poderia dar uma oportunidade de abrir caminho na carreira, mas estava em jogo muito mais do que ela imaginara. Seria capaz de vender a alma por um cêntimo para ter oportunidade de prender o patife que raptara Josh. Se Christopher Priest fosse esse monstro e ela o tivesse posto num sítio onde poderia manobrar tudo?
O ruído de um carro que se aproximava fê-la voltar ao momento presente. Um Saab azul metalizado parou em frente do carro dela. O vidro da janela do lado do passageiro baixou. Quando o condutor se inclinou para olhar para Megan, a gola de pele do seu sobretudo de lã azul subiu-lhe até às orelhas.
Está a ter problemas com o carro, agente O’Malley? perguntou Garrett Wright.
Não. Tudo bem.
Está um dia bastante frio para se manter parada fora do carro ao vento? Tem a certeza de que não precisa de ajuda? Tenho um telemóvel...
Não, obrigada respondeu Megan, forçando-se a sorrir delicadamente. Estou apenas a verificar uma coisa Obrigada por ter parado.
Ainda à procura do Albert Fletcher? Abanou a cabeça, de testa franzida. Quem poderia imaginar...
Ninguém.
No silêncio que se seguiu, os olhos escuros de Wright brilharam de curiosidade, essa curiosidade mesclada de embaraço que animava as conversas das pessoas, por toda a parte.
Então, a Paige Price anda realmente a dormir com o xerife?
Não faço comentários replicou Megan, com um ligeiro sorriso, endireitando-se e afastando-se do Saab.
É melhor ir andando, doutor Wright. Não queremos que provoque um acidente.
Não, claro que não. Boa sorte a procurar o Fletcher.
Wright baixou a cabeça, num breve cumprimento, enquanto o vidro da janela subia e o Saab se punha em andamento. O ronronar do motor perdeu-se à distância, deixando Megan ali sozinha ouvindo o som do vento nos pinheiros e vendo as marcas deixadas pelos carros no acidente em que duas pessoas tinham perdido a vida... e que possivelmente alterara a existência de uma comunidade inteira.
Ignorância não é inocência mas PECADO
Onde está o Mitch?
Megan irrompeu pelo gabinete de Natalie. A assistente de Mitch estava sentada à secretária, ao telefone. Franziu a testa para Megan e pegou num exemplar do Star Tribune, segurando-o para que Megan lesse o título que Forster dera ao seu artigo: «O’Malley Afastada. A Primeira Agente Feminina do BCA no Terreno Afastada do Caso.»
Lamento, Mister DePalma disse para o bocal. mas tenho de o pôr em lista de espera. Carregou no botão e olhou para Megan, erguendo as sobrancelhas finamente depiladas. Ora aqui está a desaparecida agente O’Malley. Pessoas altamente colocadas andam à tua procura, rapariga.
Que se lixem. Tenho coisas mais importantes a fazer.
Natalie olhou-a atentamente, franzindo os lábios.
Ele está na sala de guerra.
Obrigada. Megan apontou para a luz vermelha que cintilava no telefone. Não estou aqui.
Não faço ideia onde estará disse Natalie.
És a melhor, Natalie disse Megan dirigindo-se para a porta.
Tens toda a razão.
Ele tem de estar em qualquer sítio declarou WiIhelm Marty, afirmando o óbvio. Andava de um lado para o outro na sala de guerra, com as mãos metidas nos bolsos das calças. Não pode estar escondido tanto tempo ao ar livre, com este frio. Devíamos tentar saber se ele tem mais alguma propriedade para estes lados. Uma cabana ou coisa assim. Aposto que se encontra lá escondido com o Josh.
Mitch olhou-o com uma expressão irritada.
Já lá fui. Já fiz isso. Não tem. O spaniel não desistiu.
Não descobriram nada de útil nos computadores do Olie Swain. Não mencionam o Josh, nem o Fletcher. Devíamos examinar o registo do telefone do Fletcher...
O Stevens e o Gedney estão a fazer isso no posto de comando respondeu Mitch, impaciente.
Ele próprio participara na caça ao homem desde a madrugada. Só voltara ali a pedido de Marty para uma sessão de esclarecimento, mas até agora só servira para se irritar.
Ouça, Marty disse Mitch, estou farto de o ver andar de um lado para o outro.
Marty sorriu com um sorriso inocente de garoto que Mitch começava a detestar.
Estou a fazer tudo o que posso para me pôr a par do caso, chefe afirmou. Este caso devia ter sido meu desde o início por direito próprio. Não foi por minha culpa que isso não sucedeu. Creio que não sou tão atraente com uma mini-saia.
O verniz da tolerância desapareceu como pele morta. Uma expressão perigosa endureceu as feições de Mitch que se levantou e avançou para Marty Wilhelm com passos lentos, até se encontrarem suficientemente perto para dançar. Os olhos brilhantes de Marty alargaram-se de surpresa.
A agente O’Malley é uma excelente polícia declarou em voz baixa Mitch. Você, tanto quanto vi, não é capaz de encontrar o seu próprio traseiro numa sala escura. Mas eu encontrá-lo-ei se ouvir outra observação como essa. Estamos entendidos, Marty?
Empalidecendo, Marty recuou ao mesmo tempo que levantava os braços, como que a render-se. Esboçou um sorriso amarelo.
Peço desculpa balbuciou. Não sabia que as coisas entre si e a Megan eram tão sérias. Julguei que fosse apenas...
O olhar de Mitch fez com que ele engolisse as palavras. Ninguém tinha nada a ver com o que havia entre ele e Megan, fosse o que fosse. A verdade é que desde que acordara, de madrugada, isso não lhe saía da cabeça. As coisas tinham-lhe parecido muito mais simples à noite, quando ela não receara mostrar que precisava dele e ele não conseguira pensar em mais nada a não ser em acariciá-la. Depois chegara a claridade do dia e a confusão das vidas deles continuara.
Uma pancada na porta fez com que Mitch voltasse à realidade do momento. Megan entrou, com a sua parka pelos ombros, o cabelo a fugir do rabo-de-cavalo. A cor viva das suas faces podia ser proveniente de ter estado ao frio, mas Mitch achou que tinha mais a ver com a energia que irradiava dela. Sentia a tensão dela do outro lado da sala e sabia qual a sua origem. Ele próprio conhecera essa sensação quando investigava qualquer coisa.
O que descobriste? perguntou, dirigindo-se a ela.
Preciso de falar contigo respondeu Megan, sem sequer olhar para o seu substituto.
Agente OMalley chamou Marty Wilhelm num tom sarcástico. Não devia estar em Saint Paul?
Megan lançou-lhe um olhar de desprezo e voltou-se para Mitch.
Tive uma ideia acerca do acidente em Old Cedar Road na noite em que o Josh desapareceu.
O Bruce DePalma telefonou-me a perguntar por si continuou Marty.
Megan voltou-lhe as costas.
E se não foi um acidente? Se foi uma coisa feita de propósito para manter a Hannah no hospital?
Mitch franziu o sobrolho.
Não alterava nada, a não ser tornar o crime ainda mais diabólico. Já sabemos que não foi uma coisa ocasional
Sei isso, mas pensa na localização da casa. Fica a pouco mais de um quilómetro da casa do Fletcher e de Samt Elysius
Marty animou-se ao ouvir o nome de Fletcher
O quê? Como é que o Fletcher está relacionado com isso?
Podia ter saído da igreja, molhado a estrada para ficar com gelo e voltar a tempo de dar as aulas de catequese, especulou Mitch Causando assim o acidente que fez com que Hannah se demorasse no hospital e ficando com um alibi. Podia ser, mas para isso precisou de um cúmplice
Provavelmente é um tiro no escuro disse Megan Mas se pudéssemos descobrir uma testemunha que se encontrasse perto da casa dos Lexvold nesse dia, teríamos uma ligação que agora não temos
Temos? A voz de Wilhelm deu-lhe a sensação de unhas a arranharem um quadro preto. Agente OMalley, posso lembrar-lhe que foi afastada do caso?
Não preciso que mo lembre retorquiu Megan, continuando a recusar-se a olhá-lo
Marty soltou uma curta gargalhada de incredulidade, pegou no Star Tribune que se encontrava em cima da mesa e abriu-o
Está temporariamente suspensa da actividade profissional Isso afasta-a do caso, afasta-a desta sala e põe-na a caminho de Samt Paul
Estou a apanhar algumas pontas caídas disse Megan, de cabeça erguida
Está afastada do caso repetiu ele, espetando-lhe um dedo em frente da cara, como um ponto de interrogação
Megan teve vontade de lhe agarrar na mão e morder-lhe Mas limitou-se a fechar os punhos e a cerrar os dentes
Não recebo ordens suas, Wilhelm Não tente dar-me ordens. Melhores homens tentaram fazê-lo e lamentaram-no
Ouviu-se a campainha de um beeper, como um alarme. Todos eles olharam automaticamente para as pequenas caixas presas às cinturas. Wilhelm tirou a sua do cinto
Se for o DePalma disse ele dirigindo-se para a porta, dir-lhe-ei que você vai a caminho, Megan, porque você está fora deste caso.
Megan esperou que ele saísse e fechasse a porta para dizer:
O diabo é que estou, spaniel.
Megan, vais fazer com que te despeçam disse Mitch.
Já me despediram.
Perdeste este lugar, não a tua carreira. Se ridicularizas o DePalma, perdes o teu distintivo.
Megan olhou para baixo, para as pontas dos pés. Tinha dado voltas e mais voltas à cabeça a pensar no assunto. Dissera a si própria que a única coisa que possuía era a sua carreira, que precisava de fazer tudo para a proteger... não se deixar envolver num caso, ou com um polícia. Mas estava envolvida e não podia ir-se embora e abandonar o caso por causa da carreira. Estava em jogo a vida de um rapazinho.
Não vou deixar isto sem o caso estar resolvido. Estamos perto e isso é importante. Agora é melhor afastares o Christopher Priest dos computadores do Olie.
Porquê?
Porque tudo o que se aplica ao Albert Fletcher pode aplicar-se também a ele.
Megan, desde o início que ele só tem querido ajudar. Megan assentiu com a cabeça.
E muitos pirómanos voltam à cena do crime para verem os bombeiros. Ouve-me, Mitch. Sei que isto pode parecer um disparate à primeira vista, mas as coisas podem encaixar. O rapaz que ia ao volante do carro que teve o acidente era um aluno dele lembrou Megan, recusando-se a recuar. O Priest disse-me que o mandou fazer um recado. Devia saber que o rapaz iria por Old Cedar Road.
Que motivo poderia ter o Priest para raptar o Josh?
Não sei confessou Megan, desejando ter algo mais a que se agarrar do que uma intuição. Talvez não precisasse de um motivo. Sempre dissemos que o raptor está a levar a cabo um jogo connosco. A primeira jogada foi raptar o Josh. Depois vieram as insinuações, as mensagens, o caderno de apontamentos, a conversa com a Ruth Cooper. Talvez ele queira apenas vencer toda a gente, ser mais inteligente do que ninguém.
E ontem, podia ter sido o Paul a fazê-lo. E no dia anterior podia ter sido uma vingança contra a Hannah.
Que queres dizer com isso?
- Quero dizer que és capaz de bater com a cabeça numa parede até que a parede se mexa
Estou a fazer o meu trabalho insistiu Megan
E nós não estamos? perguntou L Mitch abrindo os braços
Nunca disse isso respondeu Megan, de sobrolho franzido
Foste afastada do caso, Megan
E achas que eu devia limitar-me a abandonar tudo?
Penso que podias ter um pouco de confiança nos outros afirmou Mitch. Podias pensar que alguém pode resolver o assunto sem seres tu prosseguiu Mitch, tentando tocar-lhe na cara. Creio que devias perceber que o DePalma está a agarrar-te pelos cabelos E acho que devias ver-te ao espelho para observares o que estás a fazer a ti própria. Ontem, nem te aguentavas de pé.
Estendeu a mão para lhe tocar, para lhe tocar na testa, no sítio onde a dor formava como que um nó. Megan recuou
Agora estou óptima E podes ter a certeza de que não preciso de ti
É aí que queres chegar, não é? proferiu Mitch deixando cair a mão. Não precisas de ninguém, poderosa Megan O’Malley, em luta contra o mundo dominado pelos homens.
Sim, claro replicou ela. é um trabalho feio, mas alguém tem de o fazer. Soltou uma gargalhada amarga. Como tu, que queres que eu precise de ti.
Megan olhou para Mitch, desconfiada e desafiadora. Passara toda a sua vida a aprender a não confiar nas emoções, a não ser vulnerável, a não pôr o seu coração nas mãos de outra pessoa, porque receava o que sucederia quando descobrissem que ela não era o que realmente queriam
Sei tomar conta de mim própria insistiu, de queixo erguido. Foi o que fiz durante toda a minha vida
E continuaria a fazê-lo, pensou Mitch. Receava precisar de alguém e passara os últimos dois anos com receio de que precisassem dela E onde é que isso os levaria. A discutirem na sala de guerra, como estava a suceder nesse momento
Óptimo disse Mitch olhando para o quadro onde as mensagens do raptor troçavam deles, escritas com marcadores de cores vivas. Então vai tomar conta de ti. Não tenho tempo para estes teus jogos, de tirares os galões do ombro para os deitares ao chão e voltares a pô-los no mesmo sítio. Tenho melhores coisas a fazer com o meu tempo. Um suspeito genuíno anda fugido e temos de o procurar.
Sim e, como é o teu suspeito, é o único suspeito troçou Megan. Boa sorte para o encontrares com a cabeça em cima dos ombros.
Ignorou o brilho de raiva que havia nos olhos de Mitch. Também sentia nisso algo de perigoso.
És a pessoa indicada para falar em jogos disse ainda Megan. Desde o início que te disse que não queria envolver-me com um polícia, mas tu fizeste pressão e agora que tiveste o que querias o jogo está acabado. Que agradável e fácil para ti. Nem sequer tens de te preocupar em empurrar-me para qualquer outro tipo. Eu vou-me embora e tu ficas com a tua cidade, podes voltar a pôr a tua aliança e continuar a...
Mitch ergueu um dedo ameaçador em frente da cara dela, fazendo-a calar.
Não disse com a voz quase num murmúrio e no entanto forte, mais assustadora do que um grito, vibrante de emoção, cortante como aço. Não te atrevas. Eu amava a minha mulher. Tu nem sequer sabes o que isso é.
Não, ela não sabia o que isso significava. Nem tinha oportunidade de o vir a saber, pensou Megan quando ele se voltou e abandonou a sala. Mitch saiu atirando a porta sobre ele, sobre eles. Megan ficou parada; o súbito silêncio a pulsar-lhe nos ouvidos; as palavras ofensivas a ecoarem na sua cabeça... as dela e as dele; sentindo na boca o gosto amargo de um coração destroçado.
Christopher Priest não se encontrava na esquadra. Megan meteu a cabeça pela abertura da porta da pequena sala onde se encontravam alinhados os computadores de Olie. Encontrou lá um novo agente do BC A, com cabeça de lápis, que obviamente recebera indicações para nada lhe dizer. Não lhe deu qualquer indicação sobre a ausência do professor, nem sobre se tinham chegado a algumas conclusões com interesse a respeito dos computadores de Olie
Os jornalistas estavam à espera de Megan quando ela tentou sair por uma porta lateral do City Center. A multidão de repórteres lançou-se sobre ela de microfone em punho, gravadores e câmaras
Agente O’Malley, tem algum comentário a fazer sobre o seu afastamento?
Nenhum que vocês possam imprimir resmungou ela, abrindo caminho por entre a multidão
Tem alguma prova de que o xerife Steiger ande a dormir com a Paige Price?
Por detrás das lentes espelhadas dos seus óculos de sol, Megan olhou com hostilidade para Henry Forster. As suas sobrancelhas hirsutas formavam um V ao olhar para as costas dela através das lentes fumadas. O vento fizera-lhe levantar o cabelo que parecia agora formar uma crista sobre a sua cabeça
Você é que é o repórter que gosta de saber essas coisas respondeu Megan. Vá cavar a sua própria porcaria
Seguiram-na até metade do parque de estacionamento e depois desistiram, desanimados sobre a falta de revelações utilizáveis. Abutres. Megan olhou para eles com animosidade enquanto punha o Lamina em andamento e se dirigia para Main Street.
No centro de voluntários ninguém vira Christopher Priest desde sexta-feira. As aulas iriam recomeçar na segunda. Um dos alunos universitários que ali se encontravam sugeriu a Megan que fosse ao gabinete dele na universidade, enquanto os outros a olhavam pelo canto dos olhos. Em cima de uma das mesas via-se um exemplar do Star Tribune, destacando-se o artigo de Henry Forster «O’Malley Afastada».
Ainda não acabei, Henry murmurou para consigo, metendo-se novamente no carro e dirigindo-se para a Harris pelo meio da neve.
Segundo lhe dissera uma empregada do edifício da administração, o gabinete de Priest ficava no quarto andar do edifício de Cray Hall. Megan dirigiu-se para lá, a pé. Tentava não respirar fundo; o ar frio parecia apunhalá-la por detrás dos olhos. Tinha o cérebro gelado... como se tivesse comido gelados em excesso.
Deixai-me atravessar mais este dia, meu Deus murmurou Megan, ao subir os degraus da escada de Cray Hall. Deixai-me encontrar uma boa pista e depois podeis prender-me. Não me deixeis desaparecer nas chamas aqui.
Uma pista que poderia partir de um homem do qual ninguém suspeitaria o professor Christopher Priest. Calmo, apagado, mais ligado às máquinas do que às pessoas. Fascinado e perplexo em relação aos acasos do destino e da natureza humana. Será o destino ou o acaso? O que terá levado Mike Chamberlain a essa esquina, nesse momento? O que levou o Josh a estar na rua, nessa noite?
Estaria a troçar dela, nesse dia, no hospital? Estaria a tentar pôr indicações no cérebro dela, sem ela sequer se aperceber disso? Ou estaria ela a agarrar-se a coisas insignificantes, por se sentir desesperada em solucionar o caso? Começaria a ver suspeitos em todos os lados para que se virasse? Mas a sua intuição dizia-lhe que não, e ela raramente se enganava. Ou o seu coração...
O quarto andar de Cray Hall era uma confusão de gabinetes e de corredores estreitos, cor de mostarda. Era o género de sítio que pareceria sombrio e húmido durante o ano inteiro. O som que os tacões das suas botas fazia sobre o pavimento castanho ecoava pelo corredor como o estampido de tiros.
A porta do gabinete de Priest estava aberta, mas não foi Christopher Priest quem a olhou por detrás de uma montanha de papéis amontoados sobre a secretária. Todd Childs, de The Pack Rat, olhava-a com uma expressão de surpresa nos seus olhos dilatados pela droga.
Olha quem aqui está! exclamou ele com um sorriso. Uma madeixa de cabelos baços caiu-lhe para a testa e ele puxou-a para trás. Garrett Wright, que procurava qualquer coisa num armário de ficheiros, levantou a cabeça e fitou-a.
Parecemos destinados a encontrar-nos, agente O’Malley exclamou Garrett passando uma mão sobre a gravata de seda, enquanto contornava a secretária. O que a traz aos sacrossantos corredores da Harris?
Procuro o professor Priest disse Megan olhando à sua volta. Este é o gabinete dele, não é?
Sim. Creio que já lhe disse que o Chris e eu estamos a conduzir um projecto em conjunto sobre aprendizagem e percepção, que envolve um programa de computadores feito pelos alunos dele explicou. Enfiando as mãos nos bolsos das calças, balouçou-se sobre os calcanhares. Estamos a preparar-nos para a fase seguinte dos testes. O Todd e eu reunimos alguns dados que compilámos no último semestre.
É fixe observou Todd a maneira como os indivíduos se apercebem do mundo que os rodeia. Como as diferentes personalidades têm percepções e aprendizagens diferentes. A psique humana é algo de fascinante.
O Priest está por aqui? perguntou Megan. O seu interesse pela aprendizagem e percepção limitava-se ao caso que lhe interessava.
Lamento mas não está respondeu Wright. Disse-me que tinha de ir a Saint Peter. É por causa do caso?
Só queria fazer-lhe algumas perguntas respondeu Megan com o rosto cuidadosamente inexpressivo. Estou confusa acerca de umas coisas que gostava que ele me esclarecesse.
Humm, desculpe, mas... Wright parecia embaraçado. Julguei ter lido no jornal que a tinham afastado do caso...
Megan sorriu e mentiu.
Não deve acreditar em tudo quanto lê, doutor Wright. Wright não acreditou nela, mas encolheu os ombros, como se quisesse dizer que isso não lhe fazia diferença.
Bem... ele disse-me que estaria de volta cerca das duas e meia da tarde. Tenho a certeza de que fará tudo para a ajudar. Tem estado tão envolvido no caso que quase não fala de outra coisa.
Até que ponto estaria envolvido, era o que Megan gostaria de saber, mas, se fosse realmente o homem que se encontrava no centro do mistério, dificilmente iria dizê-lo ao colega ou colegas. Que fizeste durante as férias de Inverno. Chris? Oh, raptei um rapazinho e mantive toda uma comunidade prisioneira das minhas loucuras. E tu?
Eu próprio gostaria de ter um papel mais activo continuou Wright balouçando-se outra vez sobre os calcanhares. Tenho tanta pena da Hannah e do Paul. Uma família tão perfeita acrescentou com um sorrizinho. Mas receio não ter contribuído muito para o esforço. Os media interrogaram-me por eu ensinar psicologia. Já lhes disse que não tenho nenhuma especialização em comportamentos criminosos. Mas parece não compreenderem isso.
Bem, eles são assim mesmo murmurou Megan, recuando para a porta.
Eles não vêem o quadro em conjunto disse Todd. Megan forçou-se a sorrir delicadamente e dirigiu-se a
Wright
Muito obrigada pela sua ajuda, doutor Wright.
Não tem de quê. Sabe onde fica a casa do Chris?
Hei-de encontrá-la.
Está certo respondeu o professor com um sorriso. Você é que é a detective.
Por enquanto murmurou Megan para consigo, dirigindo-se para as escadas.
Lá fora, a neve começara a cair, finos flocos brancos oriundos do céu. Era bonito. Encantador. Os terrenos que rodeavam a universidade pareciam o cenário para uma fotografia. As maravilhas do Inverno. Perto do parque de estacionamento, algumas raparigas, deitadas de costas, faziam anjos de neve. Os seus risos, claros e puros, erguiam-se para os ramos despidos das árvores.
Megan encaminhou-se para o carro e sentou-se ao volante. Ficou imóvel durante uns momentos, com os olhos fechados e a cabeça encostada ao volante. Depois desligou o rádio da Polícia, com o seu constante ruído irritante e sintonizou uma estação que transmitia uma música suave e que costumava difundir regularmente boletins meteorológicos actualizados.
Maríah Carey dizia-lhe para olhar para dentro de si mesma para arranjar forças. Herói. Um bom conselho, mas o que sucedia quando as forças faltavam, ou o tempo escasseava, e o mau era muito inteligente? O que sucedia então aos heróis? E o que acontecia às pessoas que contavam com eles? Como Josh.
Mariah cantou a última nota, transformando-a numa dúzia de notas por meio de ginástica vocal.
É preciso ser um herói para andar na rua com este tempo dizia a locutora. Um conselho aos viajantes: não viagem. Estamos a contar com uns quinze ou vinte centímetros de neve na área metropolitana entre hoje e amanhã. Algumas áreas estão já a ser delimitadas por se mostrarem perigosas para a condução. Por isso embrulhe-se bem e sintonize a KS95, onde há sempre calor e sol.
Os Beach Boys começaram a cantar Kokomo. Megan calou-os com um gesto e pôs o carro em andamento, em direcção ao Hospital de Deer Lake.
Mike Chamberlaín não fora capaz de acrescentar mais peças ao puzzle. Embora os ferimentos que sofrera no acidente de automóvel não fossem graves, desenvolvera uma infecção bacteriana que punha a sua vida em risco. Fora transferido para o Centro Médico de Hennepin County, onde se encontrava nos cuidados intensivos, recebendo apenas visitas da família.
Megan recebeu a notícia com resignação. Provavelmente ele não poderia ajudar. Se representara algum papel naquele drama, fizera-o contra sua vontade e fora apenas um peão. Se o acidente tivesse sido de facto a primeira jogada de um louco...
Megan percorreu a cidade com os faróis acesos e os limpa-pára-brisas a funcionarem constantemente. Main Street parecia uma pista de esqui para carros, com marcas de pneus riscando a neve numa série de traços que revelavam problemas de controlo e de embates de pára-choques. Uma equipa de trabalhadores municipais tentavam arriar a bandeira do Snowdaze que ia de um lado ao outro da rua. O tecido pintado agitava-se violentamente como uma vela ao vento.
Quando se dirigia para fora da zona de comércio, em direcção ao lago, encontrou mais carros da neve do que automóveis. Os quintais onde deveriam estar crianças a fazer bonecos de neve e castelos encontravam-se vazios. Com Albert Fletcher à solta, as crianças de Deer Lake mantinham-se resguardadas dentro de suas casas, pois havia o receio de serem raptadas.
As pessoas que conversavam no Scandia House Café afirmavam que corriam boatos de que Fletcher envenenara a pobre Doris e que ele sempre tivera um interesse pouco natural pelos meninos que ajudavam à missa. Alguns dos clientes habituais do café abanavam as cabeças e afirmavam que sempre o tinham achado «um pouco estranho». Todos estavam zangados e receosos e todos se calaram quando perceberam que a pessoa que se encontrava sentada a uma das mesas, a ouvir as conversas era «aquela mulher do BCA».
Megan não os censurava. O rapto de Josh quebrara a plácida superfície da pequena cidade e revelara um ninho de víboras. Traições e segredos, mentes retorcidas e corações negros, tudo à mistura para que ninguém pudesse desatar o nó. Olie Swain deixara de ser um pobre diabo inofensivo, para passar a ser um lobo à solta entre os cordeiros. Albert Fletcher passara de diácono a demónio, Paul Kirkwood de vítima a suspeito. Megan pensou no que eles diriam se soubessem que ela suspeitava daquele professor de falas mansas que trabalhava com delinquentes juvenis. Christopher Priest era um dos orgulhos de Deer Lake. As pessoas voltar-se-iam contra ele, ou contra ela?
Megan julgava conhecer a resposta. Mais uma razão para não ficar ali, disse a si própria ao passar junto do belo Hotel Fontaine, pelo edifício do tribunal, virando à esquerda, nos semáforos, para passar pelo City Center. Era apenas uma cidade, como milhões de outras cidades. Se o BCA a despedisse, poderia mudar-se para outra cidade tão simpática como aquela, com um clima melhor. O pai poderia ir com ela ou não. Poderia ir viver com Mick em L.A., pois era dele que o pai gostava, e ela poderia começar nova vida. Sozinha.
A casa de Christopher Priest ficava a curta distância da casa dos Kirkwood, para norte, em Stone Quarry Trail, mas não se chegava lá muito facilmente, sobretudo num dia em que as ruas de Deer Lake estavam a ficar cobertas por um lençol branco de neve acabada de cair. Megan avançou com extrema precaução, deixando que o Lamina avançasse vagarosamente pelo que ela julgava ser o meio da rua. Não havia mais trânsito. Os bosques ladeavam a estrada e os ramos sem folhas das árvores quase se entrelaçavam, formando uma espécie de túnel. Ocasionais caixas de correio assinalavam o caminho que ia dar a uma casa. A duas casas, para ser exacta. Na obscuridade que se adensava, com a neve a cair, as casas permaneciam escondidas, agachadas como gigantescas criaturas da floresta, a coberto dos bosques.
A estrada acabava ali. Um letreiro amarelo e preto indicava tratar-se de um beco sem saída, que se tornava óbvio num sítio em que as equipas que trabalhavam nas ruas tinham desistido de prosseguir o seu trabalho, deixando a natureza continuar a sua obra. O denso emaranhado de árvores e de arbustos ficava na extremidade mais afastada de Quarry Hills Park, o mesmo parque que corria ao longo das traseiras da casa de Hannah e Paul. O parque onde Josh e os seus amigos tinham feito explorações e brincado, nunca imaginando que qualquer deles pudesse correr perigo.
Uma simples caixa de correio preta assinalava o caminho que ia dar a casa de Christopher Priest, um marco numa estrada que ninguém percorrera recentemente. O caminho era estreito e estava coberto de neve. Priest não voltara ainda de St. Peter. Se Garrett Wright soubesse o que estava a dizer, Priest demoraria ainda uns quarenta e cinco minutos provavelmente mais, com aquelas condições meteorológicas, o que lhe dava mais do que tempo para ir dar uma olhadela.
Receando que o Lumína não conseguisse subir o caminho e muito menos voltar para trás, Megan abandonou o carro e seguiu a pé. As árvores criavam uma falsa calma, transformando o vento em inócuas rajadas de ar. Mas diminuíam também a pouca claridade que ainda havia, dando a impressão de um estranho crepúsculo, um reino de sombras cinzentas, com um pequeno castelo sombrio no centro.
A casa ficava numa clareira, parecendo saída de um dos mais sombrios contos de fadas dos Grimm. Uma casa vitoriana, pintada de um tom de ardósia e cinza, com um pequeno torreão a um canto. As janelas escuras olhavam-na através da neve que caía. Para leste da casa ficava uma garagem dupla e, a sul da garagem, Megan viu um barracão. Ambos estavam pintados da mesma cor da casa. Megan subiu os degraus do alpendre, escorregando na neve, e foi bater à porta com painéis de vidro. Não estando Priest ali, não devia encontrar-se ninguém em casa. Segundo a discreta investigação que tinham feito, Priest não era casado e não tinha filhos, nem hóspedes a não ser que tivesse Josh preso no torreão. Não havia luzes acesas. Ninguém espreitava atrás das cortinas.
Megan fez a ronda pelas janelas do rés-do-chão, espreitando para dentro a ver se havia alguém em casa. Viu apenas mobiliário, livros e equipamento de computadores, tudo tão limpo e arrumado como se ninguém ali vivesse. Todas as portas estavam fechadas à chave. Não que ela se atrevesse a entrar sem um mandado, ou sem um motivo muito forte. Não tencionava infringir mais regras.
Ajoelhada na neve, do lado sul da casa, Megan espreitou para uma das janelas da cave, com a ajuda de uma lanterna. Encostando-se ao vidro, frio como um bloco de gelo, franziu os olhos para tentar ver para dentro. Nada de interesse. Não viu sinais de Josh.
Os atalhos que iam dar à garagem e ao barracão começaram rapidamente a ficar cobertos pela neve que caía sem parar. Megan avançou, praguejando. A porta lateral da garagem não fora fechada à chave e Megan entrou num espaço que se encontrava irritantemente limpo e vazio.
Como a garagem de Fletcher, pensou Megan. Deus sabia que ele era um suspeito mais provável do que Priest. Ela estava provavelmente a tentar agarrar-se a tudo, desesperada por fazer com que sucedesse alguma coisa. O bilhete que Fletcher deixara preso ao cadáver da mulher veio-lhe à cabeça. Malvada filha de Eva. Tem a certeza de que o teu pecado será descoberto. Pecado era o tema da mensagem.
A obsessão com a religião dava a Fletcher uma preocupação automática com o pecado. A questão que a preocupava era a do resvalar súbito do diácono para a loucura... Estando tão perto de perder totalmente o juízo, poderia ter sido capaz de arquitectar um jogo que um mestre de xadrez invejaria? Desde o início que haviam sido manipulados de uma maneira ou de outra. Tinham-lhes sido dadas pistas, apenas para se despistarem. Poderia Fletcher ter arquitectado tudo isso estando de tal modo à beira da loucura que enlouquecera completamente só por ver o padre Tom abraçar Hannah?
Megan recuou para fora da garagem, fechando a porta. O barracão era um edifício mais velho, talvez com uns cinco metros de largura e dez de comprimento. Provavelmente servira em tempos para guardar alfaias agrícolas. O que guardaria agora era um mistério que fez com que Megan hesitasse junto da porta. A sua intuição de polícia fazia-a temer qualquer coisa. Tentou argumentar com lógica. Não se encontrava ninguém ali. Teria visto marcas de pneus na estrada ou no atalho que ia ali ter.
A não ser que tivessem ido a pé.
Colocando-se de um dos lados da porta, descalçou a luva da mão direita e abriu o fecho da parka. A Glock saiu do coldre do ombro e encheu-lhe a mão com o seu peso e forma familiares. Era uma medida de segurança. De protecção. Destravou a arma. Albert Fletcher tinha de estar escondido em qualquer sítio. O barracão de Christopher Priest era um local tão bom como qualquer outro.
Com o coração a bater lentamente, com força, Megan caminhou devagar ao longo do barracão. A sua mão esquerda tocou na grande porta da frente. A mão direita empunhava a arma, com o cano apontado para o céu. Apesar da baixa temperatura, sentia o corpo transpirado, sob as camadas de roupa.
Na outra extremidade do barracão viu as marcas na neve. As pegadas partiam da orla do bosque de Quarry Hills Park e iam dar ao pátio das traseiras da casa de Christopher Priest e daí até à porta que ficava na extremidade do barracão. As suas pulsações tornaram-se mais apressadas. Pôs-se a um dos lados da porta e bateu com a mão esquerda:
Polícia! Saia com as mãos sobre a cabeça!
Ninguém respondeu. O único som era o do vento a passar por entre os ramos das árvores e a soprar sobre os telhados dos velhos edifícios. Megan sentia as pulsações nos ouvidos e na testa. Pestanejou para aclarar a visão enevoada.
Empurrou a porta, mantendo-se de lado.
Polícia! Saia com as mãos sobre a cabeça!
Silêncio.
Megan observou o pátio. Os fios eléctricos iam do poste até à casa e à garagem. Não havia nenhum até ao barracão, o que significava que não tinha luz. Só um louco entraria num edifício às escuras perseguindo um suspeito. A escuridão diminuiu o impulso de adrenalina que a arma lhe dera. O melhor que tinha a fazer era voltar ao carro e pedir reforços pela rádio, e ficar lá à espera que chegassem. Se Fletcher se encontrasse no barracão e decidisse fugir, não iria longe, a pé. Se não fosse Fletcher quem lá estivesse, seria invadir propriedade alheia e ela preferia que fosse a Polícia local a fazê-lo.
Flectiu os dedos que empunhavam a arma, respirou fundo, passou rapidamente pela porta aberta e dirigiu-se para a esquina do barracão. Mais uns dez metros e ficaria longe dali.
Só percorreu cinco.
Ele atingiu-a de lado. Saindo de repente da porta aberta do barracão, desferiu em Megan uma pancada que a fez ficar estendida sobre a neve. A arma saltou-lhe da mão.
O treino e o instinto fizeram-na avançar sobre a neve. como uma nadadora sobre a areia, com os braços e as pernas em movimento, ofegante, querendo desesperadamente agarrar a arma.
Ele estava atrás dela. Megan sentia a sua presença como um peso ameaçador no ar. Julgou ver a sombra dele sobre si, uma negra aparição, a sombra do demónio, fria e pesada como aço.
Mais um salto para a frente. Olhos postos nas pontas dos dedos que arranhavam a coronha da arma. O peso dele abateu-se sobre ela. Megan soltou uma exclamação e torceu o corpo, saindo debaixo dele.
As imagens faiscavam no seu cérebro como instantâneos rápidos. Roupas negras, máscara de esqui, olhos e boca. Mergulhou sobre ela, agitando um curto bastão escuro. Megan aparou a pancada dilacerante com o braço esquerdo. Atirou-se para trás, tentando pôr-se de pé, para se equilibrar, para colocar a arma em posição. Ele lançou-se sobre ela, atirando o bastão para a frente, atingindo-a com força nos ombros, nos braços, no lado da cabeça, batendo-lhe com tanta força na mão sem luva que a dor lhe subiu pelo braço e explodiu no cérebro, diminuindo a sua consciência.
A Glock caiu-lhe da mão. O braço tombou, inútil. Megan cambaleou sobre a neve, tentou voltar-se, correr. Só um pensamento lhe ocorreu: Merda! Estou morta!
O padre Tom sentia a cabeça a latejar de cada vez que dava um passo, enquanto percorria a nave central da igreja, com a sotaina a enrolar-se em volta das suas calças de ganga preta. Cada passo coincidia com uma nota do órgão.
Várias pessoas, incluindo o Dr. Lomax que lhe cosera a cabeça, e Hannah, que estivera junto dele na sala das urgências, o tinham aconselhado a não rezar a missa nessa noite. Poderia pedir auxílio à arquidiocese. Enviariam para ali um padre reformado ou um padre de uma das grandes paróquias de Twin Cities, onde havia vários. Mas ele recusara-se obstinadamente a fazê-lo. Deu mais um passo, enquanto íris Mulroony tocava vigorosamente. Pensando bem, talvez ele não estivesse a ser obstinado, mas sim louco.
Sofrera um traumatismo. Sentia campainhas nos ouvidos e a cabeça latejava-lhe dolorosamente no sítio em que Fletcher o atingira com o candelabro. Tinha dupla visão que aparecia e desaparecia a espaços, como uma máquina fotográfica mal focada. Estava tonto e nauseado, mas continuava a dizer a missa. Não queria ficar em casa, fazendo com que alguém pudesse pensar que ele se escondia não só de Albert Fletcher, como também dos membros da paróquia que haviam aproveitado a oportunidade de espalhar mexericos maldosos sobre as circunstâncias que tinham rodeado o incidente. Ele não fizera nada de errado e Hannah também não. O dia em que mostrar compaixão se tornasse uma coisa errada, seria o dia em que ele se desinteressaria do mundo.
No entanto, o sentimento de culpa apertava-lhe o coração.
Ele quisera dar a Hannah mais do que compaixão, mais do que amizade. Quisera dar-lhe o seu coração. Seria errado, ou seria apenas contra as regras?
Ocupou a sua posição atrás do altar, íris carregou nas teclas para uma nota final que ele sentiu no peito. A pequena multidão que assistia à missa aos sábados à noite duplicou momentaneamente perante os seus olhos.
A paz esteja convosco.
E convosco também.
Heresia!
O grito ecoou sobre a multidão. Tom olhou para cima, para o balcão, e viu Albert Fletcher em cima da balaustrada, com um crucifixo na mão, pronto para saltar.
Mitch franziu o rosto numa careta de dor, ao sentar-se de novo ao volante do Explorer. Passara a maior parte do dia a bater o mato à procura de Albert Fletcher, com Marty Wilhelm a dançar à volta dele como um cãozinho hiperactivo e os jornalistas em torno deles como um enxame de abelhas.
Chefe Holt, tem alguma informação sobre o despedimento da agente O’Malley?
Chefe Holt, a sua viatura esteve alegadamente estacionada durante toda a noite junto do apartamento da Megan O’Malley. Que tem a dizer a isso?
Que não é nada da sua conta.
Supunha que essa observação faria com que recebesse mais telefonemas dos munícipes, mas não se importava. A sua vida pessoal não era para ali chamada. O assunto era Josh. Não podia acreditar que as pessoas se interessassem por pormenores tão irrelevantes.
Irrelevantes. Boa palavra para o que se passara entre si e Megan. Acabado era outra.
A vida era muito mais simples quando o velho Leo ali trabalhava. Ele sentia-se em segurança no seu casulo emocional, isolado pelas cicatrizes do antigo ferimento.
Pensou quanto tempo levaria a voltar a fechar-se numa vida que consistia em trabalhar e em cuidar de Jessie, enquanto afastava as casamenteiras. Um purgatório emocional. A vida que o magoava menos e o castigava mais.
Olhou-se no espelho retrovisor. Os seus olhos franzidos revelavam desdém por aquilo que via. Oh, sim, voltaria para casa, para junto de Jessie, que era pequena de mais para se aperceber de como o pai era um cretino. Iria comer alguma coisa com ela, antes de a levar novamente a casa dos avós para ele voltar a ir procurar Fletcher.
Tinham coberto metade da cidade, à procura dele, de porta em porta. Haviam estado em caves, em barracões, em sítios onde se juntavam grandes bidões de lixo e não haviam encontrado sinais dele em parte alguma. Os helicópteros sobrevoavam a cidade como aves de rapina até as más condições meteorológicas os fazerem pousar. O relatório mais importante que tinham recebido era de uma festa de jovens nus que tomavam banhos quentes num quintal de uma casa de Dinkytown.
Mitch deu por si a pensar na teoria de Wilhelm sobre Albert e um cúmplice desconhecido na cidade. Fletcher podia encontrar-se a uns três ou quatro quilómetros de distância antes de eles colocarem os bloqueios na estrada, no dia anterior... e podia ter levado Josh consigo.
Estendeu a mão para ligar o rádio e pouco depois ouviu:
A todas as unidades: quatro-um-cinco a caminho da Igreja Católica de Saint Elysius. Possível dez-cinquenta e seis A. Repito: possível tentativa de suicídio. Suspeito Albert Fletcher. Chefe, se me está a ouvir, eles precisam de si.
Temos uma prenda para ti, menina esperta.
A voz era suave, um murmúrio incorpóreo, irreconhecível. Megan abriu os olhos e não viu nada. Só escuridão. O pensamento irracional de que poderia estar morta atravessou-a como um relâmpago. Não. Se estivesse morta não sentiria o coração a bater. Então viu uma ténue claridade penetrar por baixo da venda que lhe cobria os olhos. Olhou para baixo. Para o colo. Dos dois lados um pequeno espaço de cimento. Estava sentada numa cadeira, ou melhor, estava amarrada a uma cadeira. Os braços encontravam-se presos aos braços da cadeira e, as suas pernas, às da cadeira. Megan achava que não teria podido sentar-se sozinha. Sentia-se tonta, como se a sua alma e o seu corpo estivessem presos por um fio. Drogas. Ele dera-lhe qualquer coisa. Eles tinham-lhe dado qualquer coisa.
Temos uma prenda para ti, dissera a voz. Era estranho.
Não lhe parecia que se encontrasse ali mais do que uma pessoa. O seu captor estava perto dela, atrás dela, mas não sentia a presença de mais ninguém,
Menina esperta repetiu ele, passando um dedo pela garganta dela. Megan engoliu em seco e ele riu, um riso que mais parecia um suspiro. Pensas que te vamos matar? Talvez.
Apertou as mãos em redor do pescoço dela, devagar, pressionando com os dedos a laringe até ela tossir. Deixou-a respirar um pouco e apertou outra vez. Com mais força. Megan sentiu a cabeça esvaída e deixou de ver. O pânico fê-la debater-se, sufocada. Quando ele aliviou a pressão, ela tentou respirar a custo, uma e outra vez, tossindo, até que ele riu novamente com o seu riso silencioso.
Podíamos matar-te murmurou, roçando a boca pela orelha dela. Não serias a primeira desde há muito, muito tempo.
Matou o Josh proferiu Megan. Sentia a boca como se estivesse cheia de cimento-cola. A saliva saía debaixo da língua que parecia inchada. Efeitos da droga ou da sufocação.
O que é que achas? A voz flutuava à volta dela como uma nuvem. Achas que está morto? Pensas que está vivo?
Megan esforçou-se por se concentrar, por utilizar a cólera para se manter lúcida.
Penso... que você... é louco.
Ele bateu-lhe na mão direita e a dor atingiu os seus centros nervosos de tal modo que deixou de respirar. Bateu outra vez, atingindo-lhe as pontas dos dedos, com o que lhe pareceu ser uma régua de aço. A dor foi tão violenta que ela gritou, com um grito estridente que foi morrer em soluços.
Respeito. A voz parecia sair do meio da testa dela.
- Deves respeitar-nos. Somos de longe muito superiores a ti. Enganámos-te facilmente. É um jogo, sabes? Calculámos todas as jogadas, todas as opções, todas as possibilidades. Não podemos perder.
Um jogo. Um jogo de xadrez com peças vivas. Megan sentiu arrepios. O casaco fora-lhe tirado. e a camisola. Por fim acabou por ver que ficara só com a roupa interior comprida, de seda preta, que fizera rir Mitch. A.. AMT Back Up que trazia junto do tornozelo devia ter sido descoberta e tirada. Não a poderia ter usado, mesmo que quisesse.
Matou o Josh? murmurou.
O seu torturador deixou a pergunta sem resposta. Megan não sabia se tinham passado dois minutos ou vinte. A droga tirara-lhe a noção do tempo. Tanto quanto sabia, tinham passado dias desde que ela se dirigira a casa de Christopher Priest. Poderia ainda lá estar, mas tinha a vaga sensação de ter andado num veículo de qualquer género. O cheiro do exaustor, o ruído do motor, a sensação de movimento.
As tonturas aumentaram. Sentia o vómito na garganta e engoliu-o.
O jogo ainda não está acabado sussurrou o homem, prendendo-lhe o rabo-de-cavalo com uma mão e começando a puxar-lhe a cabeça para trás. Megan abriu muito os olhos, tentando ver mais do sítio onde estava, mas avistou apenas uma faixa cinzenta, da cor do cimento. Uma cave. Não podemos perder. Compreendes? Não podes vencer-nos. Somos muito bons neste jogo.
Megan não estava em posição de discutir, e o antagonismo parecia não ser sensato depois da última tentativa. Matá-la seria uma tarefa simples. Ela não seria a primeira, dissera ele. Desde há muito tempo. Sentiu o medo apoderar-se dela. Por si e por Josh, onde quer que se encontrasse. Tinham percebido desde o início que não estavam a lidar com um vulgar criminoso, mas nunca imaginara aquilo: um criminoso múltiplo que jogava com as vidas das pessoas como um gato com um rato.
Subitamente, ele largou-lhe o cabelo e a cabeça dela foi atirada para a frente, provocando-lhe outra vaga de náuseas. Um sapato roçou no chão. Uma bota preta apareceu à vista dela, junto da sua perna direita, e depois desapareceu. A cadeira foi inclinada para trás e depois rodopiou... ou teria ela sonhado com isso? Imaginou partes do seu corpo a voarem e a voltarem ao seu lugar, como estranhos desenhos animados. A sua consciência flutuava numa espessa nuvem negra e tinha a sensação de que algo lhe apertava a cabeça. Não sabia se estava acordada ou se era um pesadelo. Não sabia se havia alguma diferença.
Depois ficou tudo parado e silencioso, e a súbita ausência de movimento e de som era tão desorientador como o ataque de som e movimento. Megan flutuava num vácuo negro. Surgiu então uma imagem iluminada, apenas um clarão, tão breve que ficou registado no inconsciente, chegando ao seu consciente um pormenor de cada vez: um rosto, um rapaz, cabelo castanho, pijama às riscas.
Josh?
Outro clarão. Sardas, uma face magoada, olhos inexpressivos.
Josh! Megan tentou mover-se mas não conseguiu, esforçou-se por chegar até ele, mas não tinha controlo sobre o seu corpo.
A imagem surgiu outra vez, num relâmpago. Parecia uma estátua, com os braços estendidos para ela, o rosto inexpressivo.
Josh! gritou Megan, mas ele pareceu não a ouvir.
A escuridão caiu outra vez como uma cortina. Megan sentiu-se à deriva. Estava tão cansada! O coração batia-lhe desordenadamente e a dor irradiava de todos os lados, bam! bam! bam! bam!, como se estivesse a ser espancada por uma dúzia de varas, manejadas por doze homens em fúria.
A voz vibrou outra vez no alto da cabeça dela.
Sabes quem nós somos, menina espertinha? sussurrou. Sabes por que motivo jogamos este jogo?
Ele pousou-lhe as mãos nos ombros e massajou-lhe de uma maneira sensual os músculos doridos. Um arrepio de repulsa percorreu-a e isso provocou o riso dele.
Jogamos este jogo porque podemos afirmou ele fazendo deslizar as mãos sobre os seios dela. Porque ninguém nos pode apanhar. Porque nunca ninguém suspeitou sequer. Porque somos brilhantes e invencíveis.
Apertou-lhe um peito em cada mão até ela gemer.
Chegaste muito perto, menina esperta. Agora tens de jogar também.
Megan tentou pensar até quão perto chegara. Nomes e rostos flutuaram no seu cérebro, mas não conseguiu captar nenhum deles.
O que terei de fazer? perguntou ao inclinar-se outra vez para a frente.
Estava tão perto que ela sentia o cheiro do hálito dele. Quando falou, os lábios dele roçaram-lhe pelas faces.
Tu vais ser a nossa próxima jogada.
Albert Fletcher encontrava-se na balaustrada no cimo da igreja, com o braço esquerdo agarrado a uma coluna. Na mão direita segurava um crucifixo de bronze trabalhado, que brandia acima da cabeça, enquanto gritava para as pessoas que se encontravam lá em baixo:
Cuidado com os falsos profetas que vêm com peles de cordeiro! São lobos esfaimados!
A congregação fora conduzida para fora da igreja e encontravam-se ali elementos da Polícia e do departamento do xerife. O padre Tom permanecia atrás do altar, com os olhos fitos em Fletcher, como se o quisesse manter no mesmo sítio. Rezava para que isso sucedesse. O remorso era como um punhal a trespassar-lhe as entranhas. A culpa daquela situação fora sua. Correcta ou incorrectamente, o que desencadeara aquilo tinham sido os seus sentimentos por Hannah.
Albert! disse com o microfone preso na sotaina, fazendo ouvir claramente a sua voz. Tem de me ouvir, Albert. Está a cometer um grande erro!
Maldito, semente do Inferno!
Não, Albert disse calmamente o padre Tom. Eu sou um padre! Tem de me ouvir. Foi isso que lhe ensinaram, não foi?
Fletcher agitou o crucifixo, encolerizado, enquanto o corrimão da balaustrada tremia com o peso dele.
Eu sei onde fica o trono de Satã!
O trono de Satã fica no Inferno, Albert disse Tom. Esta é a casa do Senhor!
Hei-de pôr-te fora, demónio!
O pé esquerdo de Fletcher escorregou. Na igreja todos contiveram a respiração até ele recuperar o equilíbrio.
No silêncio, Mítch podia ouvir o som enervante da madeira a estalar... Agachado, na sombra, no alto das escadas, podia ver claramente Fletcher e, através das grades trabalhadas da balaustrada, avistava o vasto espaço para além da varanda. Endireitou-se lentamente e apareceu à luz.
Mister Fletcher? Fala o chefe Holt proferiu em voz calma e baixa.
A cabeça de Fletcher voltou-se repentinamente para ele. O corrimão rangeu. O corpo de Mitch ficou tenso, pronto para saltar. Os olhos do diácono brilhavam de loucura.
Tem razão em estar contra o padre Tom. Vamos prendê-lo. E precisamos de si para nos ajudar.
Fletcher olhou-o, baixando o crucifixo e apertando-o contra o corpo.
Cuidado com os falsos profetas, formados na iniquidade. Concebidos em pecado.
Você sabe o que é o pecado, não sabe, Fletcher? prosseguiu Mitch, inclinando-se para o corrimão. Mas precisamos que venha à esquadra. Será a nossa testemunha.
Testemunha murmurou Fletcher. Ergueu novamente o crucifixo para o céu e gritou: Testemunhas! Testemunhem a cólera de Deus!
O corrimão rangeu. Mitch avançou ao ouvir o ruído da madeira a partir-se. Lançou-se para o diácono quando o corrimão cedeu, e conseguiu prendê-lo pela mão esquerda. O peso fê-lo ser arrastado para a beira. O seu ombro embateu na coluna de apoio e ele prendeu o braço livre em volta dela, rangendo os dentes devido à dor, devido ao esforço de segurar Fletcher. Um segundo mais tarde, o diácono soltou-se e foi estatelar-se lá em baixo.
Não! gritou Tom.
Viu Fletcher cair de uma altura de quinze metros. Correu o mais depressa que pôde, mas a sotaina prendia-lhe os movimentos, demorando-o. Viu os polícias a correrem também. Mas era demasiado tarde.
Fletcher caiu como um boneco de trapos sobre os bancos da nave. Alguém gritou por Deus. O padre Tom caiu de joelhos, estendendo as mãos trémulas para o crânio fracturado de Fletcher. Os paramédicos apareceram a correr com uma maca. Demasiado tarde. O padre Tom passou a mão sobre o rosto de Fletcher para fechar os seus olhos sem vida e rezou uma oração pela alma dele... e outra pela sua.
O efeito da droga começava a diminuir. O nevoeiro no cérebro dela tornava-se menos denso, deixando a dor atravessar-lhe o cérebro como o sol quente do deserto, escaldante, insuportável. Megan tentou concentrar-se na questão que lhe flutuava na cabeça, como cabelos de anjos. Ele dissera que ela tinha chegado perto. De quê? Tentou pensar. Ele apanhara-a em casa de Priest. Seria coincidência? Teria simplesmente ido parar ao sítio errado, na altura errada, obrigando Albert Fletcher a sair do seu esconderijo?
Tu não acreditas em coincidências, O’Malley. Nem acreditava que a voz incorpórea pertencesse ao diácono. Não houvera menção de versículos da Bíblia, nem promessas de danação. A voz era fria, controlada, assustadora. Uma voz sem alma.
Pertenceria ao professor? Ele fora a St. Peter. Não poderia saber que ela iria à casa dele. Não podia estar à espera dela.
A não ser que alguém o tivesse avisado.
Apenas duas pessoas sabiam que ela andava à procura dele Garrett Wright e Todd Childs.
Todd Childs, o estudante de psicologia que trabalhava em The Pack Rat. Conhecera Olie Swain, estivera na sala de computadores com ele e com Priest. Ajudara no centro de voluntários... com Priest. Trabalhava num projecto... com Priest. Megan não tinha dúvidas de que ele conhecia muitas substâncias químicas. Saberia o que lhe dar.
Está quase na hora do espectáculo.
As palavras foram sussurradas contra os lábios dela. num beijo obsceno.
Megan recuou e ouviu uma gargalhada abafada. Ele estivera silencioso tanto tempo que ela começara a pensar que ele se fora embora. Olhou para baixo, inclinando o mais possível a cabeça para um lado. Viu então uma parte da bota preta.
Porquê o Josh? murmurou com a boca seca como pólvora. Porquê a família dele?
E porque não? respondeu ele, num tom que lhe causou calafrios. Uma família tão perfeita. As palavras ditas em voz baixa eram venenosas de desdém.
Megan olhou para baixo, para a bota, e viu que ele se balouçava sobre os calcanhares. Esse gesto fez com que Megan se recordasse subitamente. Vira-o fazer aquilo meia dúzia de vezes. Apenas um hábito, um tique, um pormenor que ela registara na sua memória. As palavras também lhe eram familiares. Tenho tanta pena da Hannah e do Paul. Uma família tão perfeita...
Garrett Wright.
Ele vira-a junto da estrada onde Mike Chamberlain perdera o domínio do carro. O prestável Dr. Wright, oferecendo assistência na estrada com um sorriso benévolo, e mais tarde dizendo-lhe tudo o que sabia a respeito do paradeiro do seu colega.
Vizinho de Hannah e de Paul. Um homem que moldava as mentalidades impressionáveis dos alunos da Universidade Harris. Um homem respeitado. Acima de qualquer suspeita. Um homem que os media tinham escolhido como um perito para testemunhar. Ele tinha enganado toda a gente. E o pior é que isso poderia nunca vir a saber-se.
Mitch meteu-se no carro e afastou-se do City Center pela segunda vez nessa noite. A subida de adrenalina que sentira quando se dirigira velozmente para St. Elysius já desaparecera há muito. Batera no fundo com a morte de Albert Fletcher. Se fora Fletcher quem raptara Josh não o iriam saber por ele agora. Fletcher não lhes podia dizer onde estava Josh, quer Josh estivesse ou não vivo.
Apetecia-lhe bater com força em qualquer coisa. Ou ser tocado por algo suave. Na primeira noite em que fora ter com Megan, ela estendera os braços para ele e fizera-o esquecer as suas mágoas. Ela achava não precisar de ninguém.
Já lhe teria ocorrido que alguém pudesse precisar dela? Alguém como ele. Um polícia quebrado pelos desgostos, batido, com mau génio?
Parou o Explorer em frente do prédio vitoriano em Ivy Street e ficou a ouvir os limpa-pára-brisas que se movimentavam para trás e para a frente, num movimento constante. A neve caía rápida e furiosamente. As previsões eram de que o temporal continuaria durante a noite. As equipas de trabalhadores municipais esforçavam-se por manter as ruas limpas de neve. Havia carros mal estacionados e cobertos com uma boa altura de neve. O carro de Megan não se encontrava à vista.
Não havia luzes acesas no terceiro andar. O gato preto estava sentado à janela, por detrás do vidro, e era visível sob o fundo branco da cortina. Devia estar à espera da dona. Afinal ela devia ter ido para St. Paul. Mitch não sabia se havia de se sentir aliviado ou desapontado. Não sabia que diabo estava a fazer ali? Iria dizer a Megan que Fletcher se encontrava na Casa Funerária de Oglethorpe e dizer-lhe que queria dormir mais uma vez com ela porque se sentia destroçado e perdido? Ela puxaria da sua Glock e dar-lhe-ia um tiro entre os olhos.
O telemóvel que tinha no bolso tremeu. Mitch pegou-lhe, praguejando entre dentes:
O que é agora?
O silêncio foi interrompido por uma respiração fraca. Mitch sentiu os cabelos da nuca porem-se em pé.
M... Mitch?
O coração deu-lhe um salto no peito e ele balbuciou:
Megan? O que é, querida? O que se passa?
Apa... o filho da.... Um grito abafado interrompeu a frase.
Megan! gritou Mitch batendo furiosamente no volante com a mão livre.
A voz que ouviu a seguir não era a de Megan. Era um sussurro que lhe raspava os nervos como uma navalha.
Temos um presente para si, chefe. Venha à entrada sudoeste de Quarry Hills Park dentro de trinta minutos. Venha sozinho. Nem um minuto mais cedo, ou a agente O’Malley morrerá. Compreende?
Sim declarou Mitch com firmeza. O que quer? A gargalhada fantasmagórica causou-lhe um arrepio na espinha, como se por ali passasse um dedo gelado. Apertou o telefone com mais força e engoliu em seco a tensão que lhe apertava a garganta.
Ganhar o jogo murmurou a voz. Depois o silêncio.
Megan fez o possível por se preparar para o que viesse quando ele pousou o telefone. Iria ser castigada. Sabia isso. Ele era um monstro do controlo e ela quebrara uma pequena parte desse controlo. Se tivesse sorte, ele gritaria e ameaçá-la-ia e ela poderia vir a testemunhar que ouvira claramente a voz dele. Se não tivesse sorte, ele matá-la-ia.
Julgávamos que fosses uma rapariga inteligente. A voz dele não subiu de tom nem uma fracção, mas a cólera era evidente, zumbia na voz dele como um aparelho eléctrico. Julgávamos que eras uma rapariga inteligente, mas afinal és mais uma cabra estúpida!
A pancada atingiu-a num dos lados da cabeça. Não foi dada com o bastão, mas com as costas da mão. Com tanta força que a cadeira se inclinou para o lado oposto. Megan sentiu a cor vermelha nas pálpebras e o sabor a sangue na boca. Antes que essa explosão de dor acabasse, bateu-lhe com o punho fechado sobre a mão ferida. As lágrimas foram instantâneas. Por mais que Megan não quisesse chorar, detestasse que ele as visse cair por baixo da venda, nada podia fazer para evitar que elas caíssem. Contudo, mordeu os lábios para reprimir a vontade de soluçar alto.
Aquilo era o que ele mais desejava. Humilhá-la, provar a sua superioridade de todas as maneiras. Calculara cada gesto, cada possibilidade, mas não contara que ela o desafiasse. Megan só podia desejar que isso o tivesse enervado tanto que ele cometesse um erro, e que esse erro desse a Mitch oportunidade de o apanhar.
Ela própria desejava ter essa oportunidade. A oportunidade de o vencer no seu próprio jogo, a oportunidade de o bater fisicamente, o grande sacana. Queria tirar-lhe o bastão que ele empunhava e rachar-lhe a cabeça com ele até lhe dizer onde estava Josh, e depois continuar a bater-lhe um pouco mais.
Ele utilizou o bastão sobre ela com perícia. Sabia bem os pontos a atingir e a força necessária para causar dor mas sem a fazer perder os sentidos. O joelho direito, o ombro esquerdo, a perna esquerda, a mão direita. Bateu-lhe na mão tanta e tanta vez, que o mais leve toque a fazia gritar.
Quando a fúria dele se acalmou, Megan não podia distinguir uma dor da outra. A dor tomara proporções gigantescas, sufocando-a, ensurdecendo-a, quebrando-a. A única coisa que lhe dava forças era o ódio que lhe ardia no peito contra ele e o facto de saber que era ele a chave para encontrar Josh.
As amarras que lhe prendiam os braços e as pernas foram repentinamente soltas e a cadeira caiu para a frente, atirando-a ao chão frio. A voz dele parecia-lhe entrar pelos dois ouvidos ao mesmo tempo.
Ergue-te e brilha, cabra.
Megan não fez qualquer esforço para se mexer. O bastão abateu-se sobre as costas, as nádegas, as costelas e ela esforçou-se por obrigar o seu corpo a mover-se. Não conseguia levantar-se, nem sabia qual a parte de baixo ou a parte de cima, nem sabia como escapar ao espancamento. Agarrou-a pelos cabelos e levantou-a, atirando-a de lado contra uma parede.
Podíamos fazer com que te arrependesses, grande cabra sussurrou ele. Fechou os dentes sobre a orelha dela e mordeu-a com tal força, por cima da venda, que ela gritou. Se tivéssemos mais tempo para jogar. Mas temos um encontro com o teu apaixonado.
Mitch imstalou-se entre as árvores, à espera Desse ponto de observação. Via claramente a entrada sudoeste. Pelo menos tão claramente quanto a neve o permitia. Viera do lado oeste, de Lakeside, a menos de seis quarteirões de distância da casa dos Kirkwood. Noogie deixara-o ali e fora no Explorer com o objectivo de esperar pela hora certa. Mitch avançou por entre o bosque denso, chegou à orla do parque, caminhando com neve quase até aos joelhos, deslizando pelo monte abaixo, tropeçando em raízes e em ramos ocultos pela neve
Baixou-se contra o tronco grosso de um carvalho e tentou respirar fundo. O caminho limpo de neve formava uma ferradura entre as entradas leste e oeste do parque, não a mais de quinze metros de distância, ficando o parque de estacionamento a menos de quarenta metros, para sul. As luzes de mercúrio brilhavam a espaços no parque de estacionamento e mais distanciadas no atalho. A neve dançava diante delas como densos enxames de pirilampos
Mitch olhou para o relógio. Faltavam doze minutos Doze minutos para esperar, para transpirar e imaginar o que aquele patife teria feito ou estaria a fazer a Megan. Doze minutos para se preocupar e recear que as instruções que dera a Dietz e a Stevens não tivessem sido suficientemente claras, que alguém cometesse algum erro e Megan fosse morta. Não houvera tempo para preparar um grande plano e tinha plena consciência de que os agentes com quem tinha de trabalhar não possuíam grande experiência em situações com reféns. Não ousavam utilizar comunicações via rádio com medo de serem detectados num scanner pelo raptor ou por um cidadão ou repórter.
Doze minutos para tentar imaginar quem seria o patife. Seria Priest? O palpite de Megan estaria certo? Diabos a levassem, pensou. Quem a mandaria ir sozinha e num estado debilitado? Mas não havia ninguém para ir com ela. Fora afastada do caso. E quando ela lhe contara a sua última teoria ele discutira com ela e fizera-a zangar.
Não podia acreditar que fosse Priest. Conhecia-o há dois anos e nunca sentira uma má vibração.
Mas julgavas que o Olie era inofensivo, e que nada de mal poderia suceder em pleno dia na loja de conveniência.
Mitch fechou os olhos. Não, meu Deus, não. Outra vez não. Megan não. Mesmo diante dos seus olhos. Não, por ele ser obstinado, estúpido e não ser capaz de ver a verdade. Não podia deixar que morresse outra pessoa por causa dele. Especialmente Megan, que desde o início lhe quisera abrir os olhos e ver algo mais para além do porto de abrigo que ele criara por si próprio. Megan, que fora abandonada, negligenciada e maltratada, e que merecia muito mais da vida.
A carrinha entrou no caminho aberto na neve às nove e cinco, dez minutos antes da hora marcada. Um modelo moderno CMC 4x4, com pneus pesados e largos e um enorme guarda-lamas que dizia ROY’S TOY. Atravessou a área de estacionamento e rolou sobre a neve que continuava a cair. Inclinado para a frente, quase dobrado em dois, Mitch avançou a coberto das árvores, dirigindo-se para norte, correndo para se manter a par da carrinha antes que o condutor parasse e saísse, esperando que fosse aquele o homem que procurava e não algum casal de adolescentes procurando um bom sítio para fazer amor.
A neve pesada agarrava-se-lhe às botas, fazendo-o perder segundos preciosos. Lançou-se para a frente, respirando com dificuldade por entre os dentes, com os olhos fixos na carrinha que aparecia e desaparecia do outro lado das árvores. As luzes do travão apagaram-se e ele ocultou-se atrás de uma árvore. Meteu a mão no interior da sua parka aberta e empunhou a Smith & Wesson que tirou do coldre, sem nunca deixar de ver a carrinha.
A porta do lado do condutor abriu-se. Um vulto vestido de preto dos pés à cabeça saiu de trás do volante, sem feições anónimo, com uma máscara escondendo-lhe o rosto. O Homem Negro. Olhou demoradamente à sua volta, procurando sinais de traição. Mitch forçou-se a manter-se invisível, comprimindo-se contra o tronco da árvore, contendo a respiração, enquanto o homem sem rosto passava por aquela parte do bosque. Deixou por fim sair a respiração, quando o Homem Negro deu a volta ao carro e abriu a porta do lado do passageiro e fez sair Megan.
Obrigou-a a dar uma dúzia de passos em direcção à área de estacionamento. Mitch esforçou-se por ver se era realmente Megan, uma impossibilidade com as fracas condições atmosféricas. Podia ser qualquer pessoa mais ou menos com a mesma estatura e cabelo preto. Podia ser um duplo. Podia ser uma armadilha. Megan poderia encontrar-se numa cave, algures, dependendo o destino dela da maneira como corressem as coisas ali.
Mitch lutou contra o pânico. Pensa como um polícia. Vê como um polícia. O que é que vês?
Ela apoiava-se pesadamente contra o Homem Negro, parecendo ser incapaz de caminhar por si. Ligeiramente inclinada, coxeando, visivelmente com dores. Se se tratasse de uma substituta, não havia razão para tal encenação. Era Megan e estava gravemente ferida. Oh, Deus, o que é que aquele animal lhe fizera?
Megan afastou-se da carrinha a coxear, apoiando-se pesadamente ao seu captor, não por vontade, mas por necessidade, e por pensar que algum pequeno dano que lhe causasse seria um ponto a seu favor. Tinha as mãos atadas atrás das costas e a venda ainda posta. Não levava casaco, apenas a roupa interior de seda preta e estava embrulhada num lençol. O frio exacerbava as suas dores em vez de as entorpecer. Não podia endireitar o joelho direito. Estava muito inchado e cada passo lhe causava uma dor terrível. Não tinha a certeza de poder aguentar o peso, mas em todo o caso exagerou a maneira como coxeava, tropeçando sobre Wright e dificultando-lhe a marcha. Como castigo ele apertou-lhe a mão, fazendo-a soltar um aflitivo grito de dor.
Representa o teu papel, grande cabra ordenou ele, pondo-lhe o cano de uma pistola encostado à cara, ou rebento-te os miolos.
O papel dela naquele jogo era humilhação. Ele. Ele enganara-os a todos. Raptara Josh debaixo do nariz de toda a gente, deixara as suas pequenas e falsas pistas. Ela devia ser o seu último gesto, a jogada final, o insulto máximo. Apanhara-a, espancara-a, embrulhara-a num lençol para ser vista, porque achava que isso não lhes serviria de nada, porque era invencível.
Isso seria um erro, pensava Megan. Ele tinha a mania das grandezas e só Deus sabia o que ele teria feito no decorrer dos anos, mas desta vez não ganharia. Pelo menos, enquanto ela estivesse viva.
Voltou-se para ela e arranjou-lhe o lençol em volta do corpo como se fosse um enorme xaile com as pontas agitadas pelo vento. Tinha-a embrulhado nele antes de entrarem na carrinha. Um lençol de cama com manchas de sangue. Provas, dissera-lhe ele. Enviar-lhes-ia as provas embrulhadas à volta de uma polícia e mesmo assim ninguém lhe tocaria.
Pensa outra vez, patife.
Sentiu-o aproximar-se mais dela, com o seu hálito quente a cheirar a hortelã-pimenta na cara dela.
Tem sido encantador disse ele, tocando com os lábios nos dela.
Megan cuspiu-lhe e ele deu-lhe com a coronha da arma na boca. Megan cambaleou e o sabor a sangue encheu-lhe a boca como uma fonte quente. Cuspiu o sangue, concentrando-se não na nova dor, mas na ideia de que Mitch estaria perto. Ele devia ter-se arriscado a chegar mais cedo. Mas isso também poderia significar pôr a vida dela em perigo. Correria ele esse risco?
Estou aqui, Mitch. Estou aqui!
Contou os passos quando Wright se afastou dela. Dois, três... teria ele guardado a arma no coldre? Olhou para o chão, para o pouco que podia ver, procurando pegadas que lhe indicassem se ia de novo a caminho da carrinha. Inclinando a cabeça sobre o ombro, tentou fazer deslocar a venda e conseguiu ver um pouco mais do olho direito. O suficiente para observar as pernas dele.
Se fugisse dele, se pudesse atrasá-lo-ia o bastante para permitir que Mitch chegasse? Ou morreria para nada? As perguntas, as questões cruzavam-se-lhe no cérebro, reduzindo-se todas elas a uma simples verdade: ela não queria morrer ainda. Não queria morrer assim, caída em desgraça, deixando tanta coisa por fazer e por dizer.
Mitch sentia-se rígido. Queria apanhar imediatamente o sacana, e bater-lhe furiosamente por ter agredido Megan. Mas iria esperar. Deixá-lo-ia meter-se na carrinha e afastar-se. Contava com Dietz e com Stevens para o fazerem parar na entrada leste. Dietz e Stevens, que nunca tinham enfrentado mais do que ébrios e pequenos traficantes de drogas. Aquele homem era a chave para encontrarem Josh. Se o deixassem escapar... Estava a caminho da carrinha. Uma vez chegado lá, poderia fugir.
De repente a decisão foi tomada, sem ser por ele. Megan voltou-se e lançou-se sobre o homem. Ele rodopiou e caiu sobre ela, de cabeça para a frente. Depois tropeçaram, agarrados um ao outro e rolaram pela encosta do monte.
Mitch lançou-se em corrida pela encosta, sentindo o medo e a fúria darem-lhe forças e gritando a plenos pulmões:
Pare! Polícia!
Megan não conseguia respirar. Abriu a boca, ofegante, para deixar entrar o ar enquanto tentava livrar-se do aperto de Wright, do maldito lençol, procurando pôr-se de pé. A venda caiu-lhe, mas o aperto de Wright não diminuiu. Puxou-a, para a levantar e depois levou-a, meio arrastada, em direcção à carrinha, com o cano da arma sempre encostado à testa dela e murmurando ao seu ouvido:
Diz-lhe que te mato! Diz-lhe que te mato!
Diz-lhe tu, cretino retorquiu Megan. Mata-me e morres logo a seguir.
Cabra!
Wright puxou-a para um lado apertando-lhe a garganta com os dedos.
Largue a arma! gritou Mitch.
Mitch parou a uns seis metros deles, com a Smith & Wesson em posição, pronta a disparar. A sua vontade era puxar o gatilho e abrir a cabeça daquele bandido como se fosse uma melancia. Mas não podia arriscar-se. Megan estava demasiado perto, era um escudo bom de mais. O cano de uma pistola de nove milímetros, preta, estava apoiada à testa dela. Mitch sabia que se cometesse um erro, se tomasse a decisão errada, Megan morreria. O suor corria-lhe para os olhos fazendo-o pestanejar. As imagens de Allison morta e de Megan morta alternavam-se na sua cabeça, como fotografias. Allison estendida no linóleo cinzento, deitada numa poça do seu próprio sangue. Megan estendida na neve, enrolada sobre si mesma, com o sangue a escorrer como xarope de cereja sobre um gelado.
Largue a arma! gritou. Está preso!
Wright arrastou novamente Megan para a porta aberta da carrinha. O motor estava ligado, à espera.
Nunca sairá daqui nessa carrinha gritou Mitch.. Tenho carros a esperá-lo nas duas entradas.
Diga-lhe que ele não faz jogo limpo sussurrou Wright.
Megan olhou-o com raiva pelo canto dos olhos.
Vá-se foder! exclamou.
Subitamente, Megan deixou as pernas dobrarem-se sob si. O peso dela fez perder o equilíbrio a Wright, dando a Mitch oportunidade de se lançar sobre ele. Wright empurrou Megan contra Mitch, fazendo-os cair para trás sobre a neve. Disparando às cegas sobre eles, saltou para a carrinha e entrou.
Mitch rebolou para pôr Megan debaixo dele, protegendo-a, enquanto as balas caíam perto deles.
É o Garrett Wright! gritou Megan.
Mitch ergueu-se apoiado sobre as mãos e os joelhos, perguntando-lhe:
Foste atingida?
Não! Vai apanhar o sacana!
Mitch levantou-se e correu atrás da carrinha no momento em que ela se punha em andamento, com os pneus a derraparem sobre a neve. As luzes da retaguarda cintilavam perto das mãos de Mitch que conseguiu agarrar-se a um dos lados e trepar para a parte de trás da carrinha aberta. As suas mãos escorregaram ao tentar arranjar uma posição melhor e a Smith & Wesson caiu-lhe da mão. Depois a carrinha inclinou-se para o lado contrário e Mitch rolou sobre si.
Quando a carrinha se endireitou, Mitch conseguiu içar-se e caiu na parte de trás da mesma, com um gemido, estendendo as mãos para a sua arma. Baixando-se, dirigiu-se para a cabina e agarrou a barra do cilindro.
Pare a carrinha, Wright! gritou, batendo no vidro com a coronha da arma. Está preso!
Wright respondeu, virando rapidamente o volante e atirando Mitch para o lado. Entraram numa curva em desequilíbrio, oscilando violentamente, com as rodas do lado direito levantadas do solo. Mitch foi atirado para trás em direcção oposta. Estendeu novamente a mão para a barra do cilindro, ergueu a Smith & Wesson e disparou através do vidro da cabina. A bala atravessou o vidro de trás e foi estilhaçar o vidro da frente, numa intricada rede de fendas.
Pare a carrinha! Abriu o buraco da bala com a coronha da arma, partindo o vidro de segurança e inclinando-se para ele.
Wright voltou-se e disparou por cima do ombro. A bala destinada a Mitch perdeu-se e este colocou-se directamente atrás de Wright. Sempre com a barra do cilindro na mão esquerda, meteu a mão direita, com a arma, pelo buraco aberto no vidro e encostou-a à nuca de Wright.
Pare o maldito carro! gritou. Está preso! Wright virou rapidamente o volante para a esquerda e
carregou no acelerador. O veículo subiu o atalho a toda a velocidade e foi cair no aterro. Praguejando, Mitch tombou de joelhos. Guardou a arma no coldre e segurou a barra do cilindro com as duas mãos.
O carro avançou, oscilando, e foi embater no tronco de uma árvore. Mitch foi atirado para fora. Durante a queda viu apenas um pedaço de céu, depois aterrou na neve e viu tudo escuro.
Antes mesmo que a sua visão aclarasse, levantou-se e empunhou a arma. Correu para o carro, procurando Wright, com a esperança de que o embate o tivesse feito perder os sentidos. Três detonações seguidas responderam à sua interrogação... três tiros rápidos que o fizeram mergulhar para o abrigo de um tronco de freixo.
Ficou imóvel durante uns instantes, tentando normalizar a respiração e descobrir o vulto de Wright por entre os ramos, mas estava demasiado escuro. Mantendo-se rente ao chão, rastejou de uma árvore para outra, avançando em direcção à carrinha. Esta encontrava-se parada junto de um pequeno oásis de árvores. Para sul e para leste só havia terreno descoberto. A uns vinte metros para oeste, ficava a encosta arborizada do monte. Se Wright queria correr, teria de ir obrigatoriamente para oeste.
Mitch correu para outra árvore, sempre com os olhos postos na carrinha.
Desista, Wright!
Silêncio. O vento, o sussurro das árvores.
Respirando fundo, Mitch correu, dobrado sobre si, para a carrinha, dirigindo-se para o lado do passageiro. Não ouviu tiros. Nada, a não ser o som do radiador danificado. Mitch endireitou-se lentamente. A carrinha estava vazia. Pela janela, Mitch viu Wright a correr a uns quinze metros do bosque.
Maldição! És demasiado velho para isto disse para consigo, preparando-se para correr. Depois contornou o carro e lançou-se em corrida. Esperava que Wright disparasse sobre ele quando percorresse terreno descoberto. Mas nenhum tiro foi disparado.
Um movimento rápido por entre as árvores, para norte, lançou Mitch nessa direcção. Uma bala atingiu o tronco de uma árvore, a uns vinte centímetros de distância, no momento em que ele ouviu o som do disparo. Mitch atirou-se para o chão e começou a rastejar, ignorando os ramos partidos que o picavam através da neve. Tocou com uma mão em algo macio e quente e julgou por momentos tratar-se de uma coisa viva. Mas não, era uma máscara de esqui, de malha preta.
Wright! gritou. Desista! Não pode ganhar! Um jogo. Um maldito jogo! Era isso que ele chamava à
destruição das vidas das pessoas. Mas não iria ganhar aquele jogo.
Outro tiro partiu em direcção a ele. Mitch disparou também, correndo em ziguezague. Viu novamente Wright. Um vulto mais escuro entre a escuridão das árvores. Depois desapareceu outra vez, fazendo com que Mitch praguejasse.
Os músculos das pernas e das costas doíam-lhe. O ar frio da noite penetrava-lhe nos pulmões como agulhas. Bateu com a ponta do pé em algo duro e caiu. Ao levantar-se uma bala entrou-lhe pela manga da parka, ferindo-o de raspão e fazendo-o saltar para o lado.
Merda! Merda! Merda!
Mergulhou para o abrigo de uma árvore. A ferida ardia-lhe terrivelmente, mas não o fazia perder muito sangue e não era a mão que empunhava a arma.
Com cuidado, espreitou por um dos lados do tronco. Não viu sinais de Wright. Uma claridade muito ténue orlava o alto do monte. Para além dessas árvores ficava o local onde Hannah e Paul viviam e onde vivia também Garrett Wright, que ensinava psicologia na universidade, trabalhava com jovens delinquentes e conduzia um Saab. Quem poderia olhar para ele e perceber que por baixo do seu aspecto calmo e digno espreitava um louco?
Mitch apercebeu-se de novo movimento por entre a neve que caía. Correu nessa direcção, não perdendo Wright de vista quando o viu chegar ao atalho que se estendia ao longo do monte. Segundos após Wright lá chegar, Mitch chegava também.
Pare, Wright, pare! Está preso!
Todavia, o homem que ele perseguia virou à esquerda e desapareceu no meio de freixos cobertos de neve. Rezando para que não fosse ao encontro de uma bala, Mitch foi-lhe no encalço. Do outro lado das árvores, erguiam-se as grandes casas de Lakeside, com as luzes a brilharem suavemente nas janelas. Mitch franziu os olhos, perscrutando a distância à procura do vulto de Wright. Uma sombra moveu-se perto da casa mais próxima, para norte. Era apenas uma sombra a correr ao longo da garagem, entrando depois por uma porta das traseiras.
Pare! ordenou mais uma vez Mitch, sem deixar de olhar para a porta que se fechou dois segundos antes de ele chegar junto dela.
Baixou o ombro e lançou-se contra a porta, em corrida. A porta abriu-se com um estrondo. A madeira foi estilhaçada. A velocidade que Mitch levava fez com que fosse chocar com Garrett. Caíram os dois sobre o pavimento de cimento. Wright tentava respirar, ofegante.
Está preso, seu patife! exclamou Mitch, erguendo-se acima dele e respirando como se os seus pulmões fossem dois foles. Mantinha a Smith & Wesson a escassos centímetros do rosto pálido de Wright, embora a sua mão tremesse visivelmente. O jogo está acabado, Garrett. Você perdeu.
O que se passa? Karen Wright estava à porta que dava para a cozinha e olhava-os com uma expressão horrorizada.
É um engano disse o marido. Estava estendido de barriga para baixo no chão da garagem, com as mãos algemadas atrás das costas. Voltou a cabeça para olhar Mitch com hostilidade. Mitch Holt mantinha a arma encostada à cara dele.
Sim respondeu Mitch. Foi um erro... cometido por si.
Os olhos de corça de Karen encheram-se de lágrimas. Começou a torcer a extremidade da sua larga camisola cor-de-rosa.
Não compreendo! O Garrett não fez mal nenhum! Ele nem sequer anda depressa!
Mitch olhou-a de relance. Lera sobre muitos casos em que uma mulher vivera com um homem muitos anos, desconhecendo o facto de ele ter uma vida secreta como violador, assassino ou predador de crianças. Era sem dúvida o caso de Karen Wright. Ela estivera a trabalhar no centro de voluntários, selando e enviando sobrescritos, na tentativa de encontrarem Josh, enquanto o marido jogava o seu jogo doentio. Contudo teria de ser interrogada para se saber o que ela sabia e não sabia, para se ver se poderia corroborar ou destruir a história que o marido contaria. Mitch achava que ela não se aguentaria muito bem. Não parecia muito resistente.
Garrett, o que se passa? gritou. Não compreendo.
Desculpe, minha senhora disse Mitch, mas será melhor esperar lá dentro.
Garrett! soluçou ela.
A grande porta da garagem estava levantada, uma larga porta aberta para a rua, deixando entrar o vento e a neve e permitindo ver a aproximação dos carros da Polícia que se dirigiam para ali, seguidos do Explorer de Mitch. As viaturas entraram no caminho que conduzia a casa de Wright. Não traziam luzes acesas nem as sirenas a tocar. Mitch recomendara isso através do seu telemóvel. Nenhuma menção de um código ou de um crime, apenas um pedido específico para Noogie, Dietz e Stevens, e mais nenhum carro-patruIha, se dirigirem para o número noventa e um de Lakeshore Drive.
A casa de Wright. Mitch supunha que ele pensava em meter-se no Saab, que se encontrava na garagem, e escapar. Mas não escaparia. A justiça vencera, nessa noite.
Que diabo, Megan! Devias estar no hospital! Mitch abrira a porta do carro, do lado dela, e olhava-a
de testa franzida. Mas não foi zanga que ela viu nos olhos dele.
Precisava de saber sussurrou. Tinha de saber que o tinhas apanhado.
Algo se apertou no peito dele ao ver Megan. O olho direito estava a ficar escuro. O lábio inferior apresentava-se rachado e inchado. Aquele patife espancara-a e no entanto ela ali estava, de queixo erguido, com uma expressão de desafio a brilhar por detrás das lágrimas que lhe enchiam os lábios.
Apanhei-o sussurrou. Depois, acariciando-lhe o cabelo, inclinou-se para dentro do carro e encostou a cabeça de Megan ao peito dele. Apanhámo-lo.
Estremeceu ao pensar que o desenlace poderia ter sido muito diferente. Ela podia ter sido morta. Ele podia tê-la perdido. Mas ela estava ali e viva. O alívio deixou-o um pouco trémulo.
Ambos pestanejavam quando Mitch se afastou. Um sorriso encurvou-lhe os cantos da boca.
És uma polícia fantástica, Megan OMalley murmurou. Agora vamos levar-te para o hospital.
Ele disse-lhe onde estava o Josh? perguntou Hannah.
Mitch pedira-lhe que se sentasse, mas ela não conseguia. Andava de um lado para o outro na sala, com os braços cruzados com força sobre o peito. Sentia o pulso agitadíssimo. Provavelmente seria melhor estar estendida, mas precisava de estar em movimento até Mitch dar resposta à pergunta de que ela necessitava. E nessa altura correria para fora e iria ao encontro de Josh. Paul, pelo contrário, estava sentado num dos extremos do sofá, com a cabeça entre as mãos, parecendo ser incapaz de se mexer ou falar.
O telefonema a avisá-los fora recebido umas duas horas antes: Mitch a dizer-lhe que Garrett Wright fora preso e que ele próprio iria a casa deles para lhes explicar. Hannah ligara para o escritório de Paul, a avisá-lo, depois ficara à espera, assombrada e atordoada.
Mitch olhou para os pés, embaraçado.
Não. Por enquanto não falou disse, com um suspiro.
Mitch pedira-lhe para ter um pouco de compaixão, para lhes dizer, pelo menos, se Josh estava vivo ou morto. Mas Garrett não tinha compaixão. Enfrentara o olhar de Mitch, não revelando coisa alguma nos seus olhos escuros, frios, com as suas feições correctas sempre inexpressivas.
O Garrett Wright murmurou Hannah. Tem a certeza...
Não tenho quaisquer dúvidas respondeu Mitch. Tem brincado connosco, dando-nos pistas. Queria utilizar a Megan, a agente O’Malley, para marcar mais um ponto esta noite, para nos mostrar como era superior a toda a gente, mas desta vez dançou demasiado perto das chamas. Eu próprio lhe dei caça. Ê ele o nosso homem, ou pelo menos um deles. Se o Olie Swain, ou outro qualquer, esteve ligado a ele, ainda não o sabemos.
Mitch não contou que um aluno da Universidade Harris, Todd Childs, fora levado para a esquadra para ser interrogado. Ainda não sabia se isso dera alguma coisa. Também não contou que Christopher Priest iria também ser chamado à esquadra. O professor ainda não regressara de St. Peter, se é que lá fora. A Polícia de St. Peter estava a fazer averiguações para ver se ele se encontrava entre os condutores ali retidos devido à tempestade de neve.
Meu Deus, o Garrett Wright! murmurou Hannah abanando a cabeça. Isso é inconcebível. Era vizinho deles. Marido da Karen. Ainda na noite anterior lhe telefonara e lhe dera o nome de um conselheiro matrimonial. Porquê?
Não posso responder a isso, Hannah murmurou Mitch. Quem me dera poder.
Porque quereria fazer-nos mal? perguntou Hannah como se Mitch não tivesse falado.
Porque é louco! gritou Paul erguendo-se de um salto. É doido!
Sentia-se apanhado num pesadelo. Aquilo não podia estar a acontecer-lhe. Garrett Wright preso. Não. Não podia ser Garrett.
Qualquer pessoa que faça uma coisa destas é um louco insistiu. Voltou as costas à lareira, onde uma fotografia de Josh o olhava da sua moldura de cerejeira. Na prateleira das cassetes de vídeo viam-se inúmeras cassetes de que Josh gostava e jogos de vídeo. Por todo o lado recordações Dentro da sua cabeça, a voz de Josh ecoava constantemente Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? Papá, podes... Não posso acreditar nisto murmurou. Olhava para a carpete, com receio de olhar para qualquer outro sítio. Não podia olhar para Hannah, em especial. Não podia pensar em Garrett Wright. Sentimentos de culpa, de pânico e de pena de si mesmo apertavam-lhe a garganta. Não posso acreditar que isto esteja a suceder comigo.
Ninguém o ouviu.
A atenção de Hannah estava concentrada em Mitch. Ele parecia ter corrido até ao inferno e voltado, o cabelo desgrenhado, o casaco aberto e pendente dos ombros. Uma das mangas estava rasgada e via-se sangue no braço. A tensão da noite aguçara os ângulos do rosto dele, escurecendo as sombras, aprofundando as rugas. O pior de tudo estava nos olhos: pena, simpatia, empatia.
Pensa que o Josh está morto, não é? perguntou Hannah em voz baixa.
Mitch deixou-se cair sobre a cadeira. Todos tinham rezado para que aquele caso terminasse, mas não que terminasse assim, sem qualquer sinal de Josh, com um dos vizinhos preso e Megan no hospital.
As perspectivas não me parecem muito boas, Hannah respondeu. Hannah ajoelhou junto dele e fitou-o. Havia manchas de sangue no lençol. Temos de pensar que o sangue é do Josh. Precisamos que você e Paul façam análises de sangue, de modo que o laboratório possa encontrar compatibilidade no ADN.
Ele não está morto disse Hannah quase como se falasse sozinha. Ergueu-se lentamente tocando com os dedos da mão direita no lado interior do cotovelo esquerdo. Eles tiraram-lhe sangue murmurou. Vi uma ligadura no braço dele.
Hannah...
Paul voltou-se de repente.
Valha-me Deus, Hannah! Desiste! Ele está morto!
Hannah enfrentou a explosão do marido com uma determinação férrea, com uma força que se erguia algures, dentro dela. Num canto distante, escondida na sua mente, ela achava estranho ter agora tal força, depois de notícias tão devastadoras. Imaginara esse momento nos seus pesadelos, imaginara-se desfeita, destroçada. Mas não estava a ficar destroçada. Não ia desistir de Josh e estava farta de ouvir Paul.
O Josh não está morto e eu estou cansada de te ouvir dizer que está declarou, olhando para o homem que fora seu marido, amante e amigo. Tu é que estás morto. Pelo menos a parte de ti que eu costumava amar. Já não sei quem tu és, mas sei que estou farta das tuas mentiras e das tuas acusações. Estou farta de te ouvir censurares-me pelo desaparecimento do Josh, quando tu só pareces querer enterrá-lo e esperas que as câmaras da televisão te apanhem do lado que te favorece mais, no funeral.
Paul levou uma mão ao coração como se ela lhe tivesse enterrado uma lâmina no peito.
Como podes dizer isso?
Digo-o porque é a verdade!
Não sou obrigado a ouvir estas coisas! Desviou o olhar do dela, para longe do desdém que via nos olhos de Hannah.
Não disse Hannah pegando no casaco de Paul que se encontrava nas costas de uma cadeira e atirando-lho. A boca dela tremia de fúria e do esforço que fazia para não chorar. Já não precisas de me ouvir mais. E eu não preciso de aturar os teus modos e o teu ego masculino ofendido e as tuas estúpidas invejas. Estou farta disso! Estou farta de ti!
Tentou respirar fundo. Não iria chorar em frente dele. Choraria sozinha aquilo que ambos tinham perdido. Paul ficou parado, a olhar para o casaco que tinha nas mãos. O homem com quem ela casara teria dito alguma coisa, teria dito que a amava. Infelizmente para ambos, esse homem já não existia.
Tu já não moras aqui, Paul continuou. Porque não te vais agora embora? Pode ser que ainda haja repórteres por aí à espera de umas palavras do pai angustiado.
Paul recuou um passo. As palavras dela atingiam-no com a força de uma pancada física. Perdi tudo. Não posso crer que isto esteja a suceder comigo!
As palavras de Josh ecoavam na sua memória: Papá, podes vir buscar-me? O sentimento de culpa quase o asfixiou. Tentou escondê-lo, contê-lo. Sentia os olhos de Hannah e de Mitch Holt fixos em si. Poderiam vê-lo, cheirá-lo nele como o cheiro do suor? Estava a perder tudo: o filho, o casamento, tudo. E durante o resto da sua vida teria de viver com esse segredo... que enquanto ele estava a enganar a mulher, o marido da amante raptara Josh.
Sentia náuseas e um desfalecimento apoderou-se dele.
Preciso de sair daqui murmurou.
Hannah viu-o sair, fechar a porta e depois escutou o ruído abafado do carro a afastar-se. Podia ver Mitch sentado quase em frente dela, com o rosto voltado, como se fingisse não estar ali.
Lamento que tivesse de ver isto disse Hannah. Mitch levantou-se, sem energia.
Isto tem sido muito duro para os dois. Precisam de algum tempo...
Não declarou Hannah calmamente, com firmeza, não é de tempo que precisamos.
Mitch não tentou responder.
O que vai passar-se agora? perguntou Hannah.
Estamos a realizar buscas intensivas para encontrarmos o sítio onde o Garrett teve a Megan presa. Calculamos que não possa ser a mais de cem quilómetros daqui. Provavelmente menos. Estamos a verificar se ele tem mais alguma propriedade ou uma carrinha do género da do Olie. Logo que os advogados dele cheguem aqui, começará a ser interrogado. Entretanto estamos a fazer tudo para que as acusações contra ele o deixem ficar na prisão para o resto da vida.
Hannah assentiu com a cabeça.
E o Josh? perguntou.
Estamos a fazer tudo quanto podemos para o encontrar. A ele ou ao corpo dele. Mitch não o disse, mas Hannah leu isso nos seus olhos.
Diga-me que não desistirá dele, Mitch pediu Hannah. Você sabe o que é ter amor a um filho. Prometa que não desistirá do Josh.
Mitch abraçou-a por um momento. Ele sabia bem o que era perder um filho, e não podia fazer com que Hannah sentisse essa dor, enquanto houvesse um laivo de esperança.
Prometo respondeu com voz rouca. Ele está vivo até que alguém me prove o contrário.
Está vivo repetiu Hannah com calma determinação Está vivo e eu não desistirei enquanto não o encontrar
Mitch prometera telefonar-lhe se soubesse mais alguma coisa, para a manter sempre informada. Hannah acompanhou-o à porta e viu o carro dele afastar-se com as luzes de trás acesas, até desaparecer na escuridão. A neve continuava a cair impelida por um vento que penetrava nos ossos
Hannah voltou para dentro, esfregando os braços para que o frio lhe passasse, embora soubesse que era muito mais profundo. O frio estava no âmago do seu ser. Parada no meio da sala, Hannah apercebeu-se de que já não tinha família. A casa parecia-lhe enorme e vazia. Estremeceu ao pensar que daí em diante ficaria sozinha
Mas não, tinha Lily
A filha estava deitada de lado, na sua caminha de grades, com o polegar junto da boca. Hannah olhou para a filha. A leve claridade da luz de presença iluminava tenuamente o rosto de Lily, tão meigo, tão inocente, tão precioso, emoldurado nos caracóis louros As compridas pestanas roçavam nas faces gordinhas rosadas pelo sono. A sua boquinha era um botão de rosa
Minha bebé murmurou Hannah, estendendo a mão para tocar ao de leve, com as pontas dos dedos, no rosto de Lily
Lembrava-se bem da sensação que experimentara ao transportar dentro de si aquela vida preciosa. Também se lembrava de quando trazia Josh dentro de si. Recordava cada momento de alegria, de receio, de maravilha perante o milagre que era aquele primeiro filho. A sua excitação; dela e de Paul ao saberem que iam ser pais. As noites em que estavam os dois deitados a conversar em voz baixa, fazendo planos para o futuro, com a mão de Paul sobre a barriga dela
Sentia o coração dilacerado ao imaginar que nunca mais estariam assim, ao pensar que nunca mais faria planos para o futuro, porque sabia como o presente podia ser amargo para ela. Sentia-se como se tivesse sido roubada. Tinham-lhe roubado o filho, o casamento e as suas ilusões de que o mundo podia ser um sítio cheio de promessas maravilhosas
Só restamos nós, minha carochinha murmurou. Os grandes olhos de Lily abriram-se. A menina sentou-se, esfregando os olhos com os seus pequenos punhos. Olhou para a mãe e franziu a cara ao ver as lágrimas da mãe.
Não, não chores, mamã murmurou, erguendo os braços para a mãe lhe pegar.
Hannah agarrou-a e apertou-a contra si, soluçando por tudo o que perdera, pela incerteza do futuro. A dor e o medo dilaceravam-na e ela apenas podia apertar a filha contra si e pedir para ter esperança. Parecia-lhe ser pedir muito pouco, para quem tanto perdera.
Sentindo-se fraquejar, sentou-se na antiga cadeira de balouço branca. Lily permaneceu ao colo dela e tentou limpar-lhe as lágrimas com as suas pequenas mãos.
Não chores, mamã pediu ela.
Às vezes a mamã precisa de chorar, queridinha disse Hannah beijando as pontas dos dedos da filha. Todos precisamos de chorar, queridinha.
Lily pareceu ficar a pensar nisso. O quarto estava silencioso, mas lá fora o vento uivava num contraponto hostil. Hannah rodeou o corpo da filha com os seus braços e aconchegou-a a si.
Onde está Josh, mamã? murmurou Lily, levando o polegar à boca.
Não sei, querida respondeu calmamente Hannah, olhando para a caminha vazia onde se encontrava o urso de peluche que fora de Josh. Comprara-o para ele no dia em que o médico lhe dissera que estava grávida. Josh dormira com ele praticamente durante todas as noites da sua curta vida. Todas, menos as últimas onze. Vamos pensar que ele está num sítio quente murmurou, respirando o aroma perfumado de pó de talco que vinha do corpo da filha, embalando-a meigamente. Que não esteja com medo. Que sinta a nossa falta, mas que pense que em breve o traremos para casa. Que saiba que o amamos. Que saiba que o encontraremos... porque havemos de o fazer... prometo.
Fechou os olhos e conteve a respiração, enquanto embalava a sua bebé. Rezava para ter esperança e para ter forças para cumprir a sua promessa... e pela crença que de certo modo, algures, as preces eram ouvidas e atendidas.
Megan podia ainda ver o rosto do rapaz. Um rosto pálido, oval, salpicado com sardas. Parecia olhar através dela, com os seus olhos azuis, sem expressão. Depois desaparecera, como uma luz que se apagasse, deixando-a mergulhada na escuridão total.
Temos um presente para ti, rapariga esperta... cabra esperta... Uma voz sem corpo, tão suave e sinistra como uma cobra. Estremeceu e sentiu-se rodopiar, cair num vácuo negro. Impotente. Vulnerável. À espera. Depois a dor atingiu-a de um lado, de outro, de outro.
Acordou sobressaltada. A roupa do hospital que Kathleen Casey lhe vestira estava colada ao seu corpo como papel molhado. Apercebeu-se do sítio onde se encontrava pouco a pouco, forçando-se a acalmar-se, a recuperar o autodomínio centímetro a centímetro, a afastar a desorientação e o medo. Estava em segurança. Garrett Wright fora preso.
Pensou se teriam encontrado Josh.
O calendário que se via na parede, do outro lado do quarto, dizia que era segunda-feira, 24 de Janeiro. Tom Brokaw falava sozinho na televisão montada na parede.
Recordava-se de Mitch a ter levado para o hospital. Depois disso tudo se tornava vago, como imagens misturadas dentro de um caleidoscópio. Um homenzinho com sotaque indiano e um grande nariz dava calmamente ordens e fazia perguntas. As enfermeiras murmuravam ao falar com ela, enquanto andavam de um lado para o outro com sapatos silenciosos. Agulhas. Dor. Visões de Harrison Ford a olhá-la.
Supunha que devia ter sido Mitch que fora vê-la.
Dormira todo o domingo e a maior parte desse dia, abatida pela exaustão e pelos calmantes. Sentia-se atordoada e tinha a cabeça esvaída. A dor permanecia, apesar de tudo o que lhe estivessem a dar. Finas linhas de dor partiam dos seus ferimentos e iam ter ao cérebro. O joelho direito, o braço esquerdo. Os rins, a mão direita a mão que ajudara a preencher milhares de relatórios da Polícia. A mão firme com que empunhava a pistola e a fizera ganhar meia dúzia de prémios de tiro. A mão que se encontrava agora temporariamente metida em gesso.
O Dr. Baskir, o homem com o sotaque e o grande nariz, estivera ali nesse dia, durante um dos seus breves períodos de lucidez. Cantarolando e falando com as diversas partes do corpo dela, verificara os seus sinais vitais e os pontos magoados. Muitas, muitas contusões, dissera-lhe depois. O joelho iria necessitar de fisioterapia. Por fim dirigiu-se à mão.
Pobres queridos ossinhos dissera.
Com uma expressão de profunda simpatia, informara Megan de que não podia prometer-lhe que a mão recuperasse inteira mobilidade. Falara num murmúrio, como se não quisesse que os queridos ossinhos ouvissem as más notícias. Fizera o que pudera como tratamento temporário, mas depois Megan teria de ser transferida para o Centro Médico de Hennepin County, onde um cirurgião ortopédico iniciaria o processo lento e doloroso de reparação dos extensos danos causados à delicada estrutura.
Megan sentiu-se invadir pelo medo ao recordar as palavras do médico. Um polícia precisava de duas boas mãos. Ela sempre quisera ser polícia. O trabalho era a sua vida. E agora as perspectivas eram de nunca mais poder fazer esse trabalho.
Esforçando-se por conter as lágrimas, Megan olhou à sua volta para o quarto do hospital. Estava cheio de flores e de balões. Kathleen lera-lhe os cartões que os acompanhavam. Eram da Polícia de Deer Lake, do BCA, dos seus antigos amigos do departamento de Polícia de Minneapolis. Com excepção de um vaso com bonitos botões de rosa oferecido por Hannah, todas as flores tinham sido dadas por polícias. Quase todos os seus conhecidos eram polícias. Que sucederia se ela deixasse de ser um deles?
Sentia-se como se apenas estivesse presa ao seu mundo por um ténue fio, como um astronauta a passear no espaço. E esse fio corria o perigo de ser cortado. E ela estava completamente impotente para evitar isso.
Numa tentativa de evitar o medo, Megan carregou no botão do comando à distância para aumentar o volume de som. A mão direita estava imobilizada e tinha o braço direito ao peito. No braço esquerdo tivera dezoito horas uma agulha espetada com o soro, mas já lho tinham tirado. Talvez ela conseguisse tornar-se canhota, murmurou ao carregar no botão para procurar o noticiário local das dezoito horas.
Passou pela TV7, o canal onde reinava Paige «Tudo-por-Uma-História» Price, e escolheu o canal 11. Uma imagem dos habitantes de Minnesota a cavarem a neve depois do temporal do fím-de-semana, deu lugar à foto de Josh Kirkwood com o seu uniforme de escuteiro.
... mas a nossa notícia principal de hoje vem de Deer Lake, em Minnesota, onde no fím-de-semana as autoridades prenderam um suspeito do rapto de Josh Kirkwood, um rapaz de oito anos de idade.
Imagens de uma conferência de imprensa encheram o ecrã. A sala da imprensa no antigo quartel dos bombeiros. Mitch falava, parecendo cansado e grave. Marty Wilhelm encontrava-se à sua direita, com o seu ar estúpido. Steiger, sentado a uma mesa, de cara franzida, com um penso sobre o nariz. Mitch leu um depoimento preparado, relatando apenas os factos ocorridos nesse terrível sábado. Recusava-se a responder a perguntas sobre pormenores das provas encontradas, e recusou-se mesmo a confirmar o nome de Wright, dizendo que dar qualquer informação poderia pôr em perigo a integridade da investigação em curso.
O Josh Kirkwood ainda não foi encontrado e as autoridades envolvidas no caso continuam as buscas declarou.
Não é verdade que entre as provas recolhidas na noite de sábado se encontra um lençol com manchas de sangue?
Não faço comentários.
Não é verdade que o suspeito detido é um membro de uma faculdade da Universidade Harris?
Não comento.
Sim, bem podes não querer prejudicar as investigações murmurou Megan. As doninhas dos media haviam de cavar, de furar, de subornar até conseguir o que queriam para os seus títulos, sem quererem saber das consequências.
É verdade que perseguiu pessoalmente o suspeito durante mais de oitocentos metros, através dos bosques?
Mitch olhou demoradamente a mulher que não se via no ecrã. As câmaras movimentaram-se e ouviu-se o zumbido dos equipamentos eléctricos. Quando Mitch falou, fê-lo com voz baixa, lenta, medida, que indicava que estava a perder a paciência.
Vocês querem fazer de mim uma espécie de herói neste caso. Não sou nenhum herói. Estava a fazer o meu trabalho e se o tivesse feito melhor não teria havido perseguição. Se há algum herói nisto, é a agente OMalley, que arriscou a sua vida e quase a perdeu, na tentativa de levar o Josh Kirkwood para casa e o seu raptor à justiça. Ela é a vossa heroína.
Oh, Mitch!
É a verdade.
Mitch estava à entrada do quarto, com a gravata de lado. o cabelo desgrenhado, com os ombros curvados, com um aspecto duro e cansado. Jessie encontrava-se ao lado dele, com um gato de peluche debaixo do braço, que parecia um tigre.
Natalie empurrou-os para dentro do quarto.
Não me deixem ficar aqui parada no corredor. Ainda aparece por aí uma enfermeira que me dá uma injecção no meu grande traseiro.
Megan fungou e sorriu.
Olha, quem está ali com um gato. Olá, Jessie. Obrigada por vires ver-me.
Trouxe-te o Whiskers disse Jessie apresentando-lhe o brinquedo, quando Mitch a levantou e a encostou a um dos lados da cama. Para não teres tantas saudades dos teus gatos verdadeiros.
O brinquedo tinha aspecto de ser muito querido. As orelhas forradas de cetim cor-de-rosa estavam um pouco gastas nas extremidades. Os longos bigodes brancos, dobrados. Os olhos de Megan encheram-se instantaneamente de lágrimas ao pensar que Jessie lhe dera um tal tesouro. Passou as pontas dos dedos sobre a macia pele cinzenta.
Obrigada, Jessie murmurou
Eu e o papá estamos a tomar conta do Gannon e de Sexta-Feira anunciou Jessie, vendo Megan acariciar o brinquedo. Eles gostam de mim.
Aposto que sim.
E gostam de brincar com um cordel. Olhou para Megan por baixo das pálpebras descidas. O papá diz que talvez eu os possa visitar depois de estares melhor.
Tenho a certeza de que eles gostariam disso disse Megan, sentindo um aperto no coração ao pensar que Jessie não poderia visitar os gatos na casa de Ivy Street, porque eles não estariam lá muito mais tempo.
O papá disse que não vai para o céu como a minha mamã disse Jessie. Estou contente.
Eu também.
As palavras mal saíram dos lábios de Megan. Nunca quisera afeiçoar-se a ninguém, pois saberia que acabaria por ficar magoada. Custava-lhe sentir desejo por uma coisa que não poderia ter. Doía-lhe não poder puxar Jessie para si e abraçá-la.
Trouxe bolinhos anunciou Natalie tirando da mala uma enorme caixa de plástico, como um prestidigitador a tirar um coelho de uma cartola, colocando-a em cima da mesa-de-cabeceira. São de chocolate. Precisa de engordar um bocado. Lançou um olhar de águia a Megan. Vê se te despachas a sair daí, agente OMalley. Aquele agente com cara de cãozinho põe-me doida.
Provavelmente terá de se habituar a ele retorquiu Megan com um sorriso triste.
Natalie fez um gesto de desafio.
Vamos ver isso! murmurou ameaçadoramente. Depois tirou vários bolinhos da caixa e deu uma cotovelada e uma piscadela de olhos a Jessie.
Vamos, Miss Muffet. Vamos ver se arranjamos um copo de leite para te tirar o apetite para o jantar.
Até logo, Megan disse Jessie sorrindo e debruçando-se sobre a meia grade para lhe dar um «toma mais cinco». Em seguida voltou-se para sair do quarto, seguida por Natalie.
Megan olhou para o Whiskers, passando um dedo sobre uma das orelhas puídas.
Ela é muito especial.
Também acho que sim respondeu Mitch. Mas devo ser suspeito.
Mitch colocou-lhe um dedo debaixo do queixo e fê-la olhar para cima.
Como é que te sentes?
Como se um sádico psicopata me tivesse espancado da cabeça aos pés com um pau.
Grande patife. Apetecia-me bater-lhe com um pau.
Põe-te na fila disse Megan. Depois voltou-se para o outro lado e tirou os pés para fora da cama, para os enfiar nos chinelos do hospital.
Deixam-te sair da cama? perguntou Mitch, alarmado. Deu a volta à cama e foi-se colocar em frente de Megan, pronto a agarrá-la se ela caísse.
Megan fez o possível por ignorar a preocupação dele. Deitou-lhe um olhar de aborrecimento e dirigiu-se para a janela, apoiando-se pesadamente numa muleta presa sob o braço esquerdo.
Deixam-me levantar, desde que eu prometa não correr pelos corredores a gritar obscenidades.
Megan, porém, nunca pensara que tantas partes do seu corpo lhe pudessem doer simultaneamente, mas tinha de suportar as dores, porque era necessário.
Preciso de estar um pouco de pé disse encostando-se à ombreira da janela.
Lá fora a noite caíra. A escuridão sobre um manto de brancura. A neve cobria o relvado do hospital, e o vento formava com ela elegantes esculturas. Megan sentia Mitch de pé atrás dela e o calor, a energia dele, tentavam-na a encostar-se contra ele. Via o reflexo dele no vidro, a seu lado, com grandes olheiras sob os olhos angustiados.
Mas a vida nem sempre é má continuou sarcasticamente. Vou receber um louvor do BCA e vou perder o meu lugar de agente no terreno. Isto não passa pela cabeça de ninguém, acho eu. E a Paige vai retirar o processo contra mim, depois de ver as fotos que o Henry Forster lhe tirou a entrar e a sair do reboque de Steiger. Sorte a minha ela ter tanta ganância por pormenores sobre a prisão do Olie, que não conseguiu manter as calcinhas para cima.
A ganância é uma grande motivadora.
Isso é verdade. Mas quem me dera que este caso andasse todo à volta da ganância. Pelo menos era um motivo que toda a gente compreendia. Mas o motivo de Garrett Wright... Como é que alguém poderá entregar-se a um jogo tão retorcido como o que ele estava a praticar?
Mitch não respondeu. Megan sabia que ele não podia responder-lhe.
Ele já começou a falar? perguntou Megan em voz baixa.
Não.
Já descobriram o sítio para onde me levou?
Ainda não. Poderá levar algum tempo
E o Josh...?
Havemos de encontrá-lo declarou Mitch como se não houvesse centenas de casos que ficavam por resolver para sempre. Continuaremos a procurá-lo até o encontrarmos.
Eu vi a cara dele disse lentamente Megan. Entre dois espancamentos vi-o, mas não sei se estava consciente ou se foi uma alucinação. Não sei se o que vi foi real. Gostava de saber, mas não sei.
Fazia-lhe doer a cabeça tentar separar o real do irreal. O facto de saber que Wright era um psicólogo, um perito em aprendizagem e percepção, ainda complicava mais as coisas. Poderia ele ter criado essa imagem no cérebro dela? Possivelmente, mas isso não explicava a conversa que tivera com Hannah, antes de Mitch chegar.
Hannah fora pessoalmente levar-lhe uma roseira. Pálida e magra, com o aspecto de quem devia estar numa cama, em vez de estar de pé ao lado de uma, ela oferecera o vaso a Megan e exprimira-lhe os seus agradecimentos por tudo o que fizera.
Deixei-me apanhar e espancar disse Megan. Não creio que mereça agradecimentos.
Por sua causa é que o Garrett Wright está atrás das grades observou simplesmente Hannah.
Megan não lhe perguntou o que ela sentia pelo facto de ter sido um vizinho dela, uma pessoa que ela conhecia, a causar-lhe tanto sofrimento. Com certeza muitas pessoas lhe fariam essa pergunta e Megan não queria mexer mais na ferida aberta na alma de Hannah.
Tenho de lhe perguntar murmurou Hannah tentando disfarçar a tremura da sua voz. O seu olhar ia de Megan para a cobertura da cama que Megan alisava continuamente com os dedos. Começou a falar, parou, respirou fundo e recomeçou: Ele... ele disse alguma coisa... a respeito do Josh?
Não murmurou Megan, desejando de todo o seu coração poder dizer algo mais, uma prova concreta de que Josh estava vivo. Mas tudo o que tinha para lhe contar fora uma visão que podia muito bem ter sido induzida por drogas. Olhou para Hannah, para os círculos escuros em redor dos olhos e a emoção que ela não podia esconder e isso fê-la tomar uma decisão. Ter esperança era melhor do que nada.
Eu vi... uma coisa... começou por dizer, escolhendo cuidadosamente as palavras, como se avançasse por um campo minado. Ele drogou-me, sabe, por isso não sei se o que vi foi real. De certo modo, pareceu-me ser... mas por outro lado... não sei.
O que é que viu? perguntou Hannah com cuidado, com uma expressão contida. Megan via a tensão dela aumentar. Os seus dedos apertaram-se em volta dos pés da cama.
Julguei ver o Josh. Poderia ter sido uma projecção de qualquer tipo, ou algo que o Wright tivesse metido no meu cérebro. Não sei. Mas vi-o de pé do outro lado do quarto, a olhar para mim. Não disse nada. Ficou parado. Lembro-me dos olhos dele e das sardas. Parou para recordar pormenores, no intuito de ver se se lembrava de algo que pudesse sugerir realidade. Tinha uma ferida na face e vestia...
Um pijama às riscas concluiu Hannah. Megan olhou-a, assombrada, sentindo um arrepio atravessá-la.
Como sabia isso?
Hannah respirou fundo e afastou-se da cama.
Porque eu também o vi.
Como? perguntou Megan assombrada. Teria sido por essa razão que Hannah se mostrara tão confiante em que o filho estava vivo, na televisão?
Vi-o no meu cérebro, uma noite, e pareceu-me tão real que não pode ter sido um sonho. O que acabou de me contar confirma aquilo que eu já pensava. O Josh está vivo. Hei-de recuperar o meu filho.
Megan também queria acreditar nisso. Que iriam encontrar o Josh são e salvo e que o levariam para casa para viverem felizes para sempre. Megan olhava para fora, para a noite escura, e recordava essa conversa, desejando que isso se realizasse, mas sabendo que os desejos não os levariam a parte alguma.
Eu perguntei-lhe se ele tinha matado o Josh disse Megan a Mitch. Ele não me respondeu. Disse que o jogo ainda não tinha terminado. Acrescentou que haviam pensado em todas as probabilidades, que não podiam perder.
Mitch franziu o sobrolho.
O Garrett está agora numa cela, preso, e pesam sobre ele graves acusações: rapto, privação de direitos paternais, agressão a um agente, tentativa de assassínio, roubo de um carro e fuga à prisão. A Ruth Cooper identificou-o no meio de vários indivíduos como sendo o homem que foi falar com ela e identificou também a voz dele. Acho que é um grande perdedor.
Não se conhece nenhum cadastro dele?
Não.
Isso significava que se Garrett Wright tinha cometido crimes, como ele dissera a Megan, ninguém os atribuíra a ele. Essa ideia ainda tornou mais forte o nó que Megan tinha no estômago. Tentou suavizá-lo com a ideia de que agora todo o passado de Wright iria ser minuciosamente investigado e que nada ficaria por saber. Uma visão de vermes a agitarem-se passou-lhe pela cabeça e ela pestanejou para a afastar.
Alguma relação com algum cúmplice?
O Olie pode ter sido cúmplice dele. Ia a uma das aulas do Wright. Tinha a carrinha, a oportunidade, os antecedentes. O Wright podia ter algum domínio psicológico sobre ele.
E o Priest?
Ofereceu-se para fazer um teste no polígrafo e passou completamente à vontade. O Todd Childs afirmou que esteve com um amigo quase todo o dia de sábado e que foi ao cinema na noite em que o Josh desapareceu. Mitch respirou fundo e Megan reparou que os seus largos ombros se curvavam sob o peso de tudo aquilo. Estive a falar com a Karen Wright mas ela também não ajudou muito. Está tão infeliz que mal reage.
Sim, deve ser uma surpresa terrível descobrir que se está casada com um monstro. Desde que aqui cheguei parece ser essa a norma. As surpresas terríveis. Achas que isso é um sinal?
Megan tentou sorrir, mas custava-lhe muito não poder ficar ali. E além disso fazia-lhe doer mais os pontos que tinha na boca. Olhou para o gesso da mão e sentiu-se desanimada. Não havia qualquer promessa de poder ficar a pertencer fosse onde fosse. A sua palidez tornou-se mais intensa.
Acho que devias deitar-te disse Mitch.
Não me dês ordens respondeu Megan com a sua habitual vivacidade.
O que vais fazer, OMalley? Queres bater-me com a muleta? perguntou Mitch, mas a sua falsa irritação não conseguia esconder a preocupação com ela.
Não me tentes. Estou irritada.
Volta para a cama, ou eu mesmo te ponho lá disse Mitch. A Natalie tem razão. Precisamos de que te ponhas boa para voltares para o teu lugar. Aquele falso Tom Hanks que ali anda está a pôr-me doido.
Megan olhou-o.
E eu não punha?
Mas pelo menos tu és uma boa polícia disse ele. E posso beijar-te quando fico furioso.
Pode ser que o Marty também goste disso. Perguntaste-lhe?
Tens muita graça. Vamos lá, Megan. Não estou a brincar. Volta para a cama.
Megan ignorou o pedido dele e voltou a sua atenção novamente para a janela. Falar de trabalho tornava-a ainda mais consciente da sua situação. O medo aumentava dentro dela como um balão. Ordenou a si própria para se controlar, como sempre controlara tudo na sua vida... sozinha. Mitch não queria ficar sobrecarregado com ela. Ele tornara bem claro o que queria dela: um caso breve, sem laços, sem complicações. E ela era agora uma complicação.
A pressão de um futuro incerto aumentava dentro dela, trémula como um punho fechado, e ela parecia não conseguir que as palavras lhe saíssem da boca.
Posso não poder voltar ao trabalho disse em voz baixa. Aqui ou noutro sítio qualquer. Talvez nunca mais.
Megan viu-o aproximar-se um pouco mais dela, passar-lhe a mão pelo cabelo e depois pousá-la no ombro.
Ei, julguei que fosses mais dura afirmou Mitch. Ainda não sabes como vais ficar, OMalley.
Megan olhou para Mitch através do vidro.
Sei que estás preocupada com a tua mão, querida.
Não me chames querida.
Mitch passou-lhe os braços em volta dos ombros, com um cuidado infinito, e conteve a respiração até Megan encostar a cabeça ao ombro dele.
Megan não queria sentir necessidade de que ele a abraçasse e ficou à espera que isso passasse. Não era inteligente precisar de uma pessoa daquela maneira. Toda a sua vida soubera isso. Mantém-te firme sobre os dois pés, OMalley. Segura o teu coração. O mal era ela não sentir forças suficientes para ficar de pé sozinha, e o seu coração já não lhe pertencia. Agora tinha apenas a perder o orgulho e esse estava muito alquebrado.
As lágrimas vieram-lhe aos olhos, apesar de todos os esforços para as combater. Não tinha forças para segurar o escudo que durante tanto tempo protegera uma alma demasiado sensível. Sentia tudo aquilo que sempre quisera, que sempre amara, a escorregar-lhe por entre os dedos, deixando-a só, sem nada, nem ninguém. Estivera sozinha durante muito tempo e isso doía.
As palavras, como as lágrimas, vieram contra a sua vontade.
Estou... estou tão assustada...
Voltou-se, encostou a cara ao peito dele e chorou. Mitch acariciou-lhe o cabelo, murmurando palavras meigas. Depois apoiou o queixo sobre a cabeça dela e fechou os olhos com força.
Está tudo bem murmurou. Eu estou aqui para ti, Megan. Não estás só.
Levantou-lhe a cara e fítou-a nos olhos, que mostravam uma expressão angustiada, uns olhos que tinham visto tantos desapontamentos. As mãos dele prenderam o rosto de Megan, tão frágil, tão bonito que lhe fez conter a respiração. Nesse instante não via os olhos negros, nem o lábio inchado. O sentimento que lhe enchia o peito assustava-o.
O que eu estou a dizer é que te amo, Megan. Engoliu em seco e repetiu: Amo-te.
Não, disse Megan recuando um pouco. Não, não me amas.
Sim, amo-te.
Megan coxeou até junto da cama, fazendo arrastar a extremidade da canadiana no chão polido.
Tu não me amas. Tens pena de mim.
Não me digas o que sinto, OMalley resmungou Mitch. Sei quando estou apaixonado por alguém. E estou apaixonado por ti. Não me perguntes porquê. És a mulher mais teimosa e desconcertante que eu alguma vez conheci. É por isso que sei que estou apaixonado por ti. Levantou um dedo para dar maior ênfase ao que dizia. Se não estivesse, apetecia-me apertar-te o pescoço.
Que romântico disse secamente Megan, escondendo a emoção com o sarcasmo. Só fico admirada de as mulheres não se lançarem aos teus pés.
Não. Escolhi uma mulher que prefere atirar-me uma coisa à cabeça.
Tens sorte em eu estar aleijada resmungou Megan, esforçando-se por se sentar na cama.
Mitch fez um gesto de impaciência e frustração e aproximou-se dela.
Deixa-me ajudar-te.
Não quero a tua ajuda.
Não? Mitch agarrou-a pela cintura e colocou-a em cima da cama como se fosse uma boneca. Que diabo, Megan, não te faz mal nenhum dizeres-me quando alguma coisa te magoa.
Tu magoas-me disse ela. Não me digas que me amas, se não é verdade. Eu não sou a mulher que tu queres ou que precisas e sabes isso muito bem. Não sei nada a respeito de estar apaixonada. Só sei ser polícia e estar sozinha. Por isso, é melhor ires-te embora!
Mitch suspirou.
Valha-me Deus, Megan!
Ela franziu a testa ao ver a expressão do rosto dele.
Não te atrevas a teres pena de mim, Mitch Holt. Não discutas! Vai-te embora!
Não tenho pena de ti murmurou Mitch, aproximando-se mais. Amo-te. E Deus sabe que te quis desde o momento em que te vi.
E tiveste-me. Deves sentir-te feliz.
Vou ser obrigado a aturar isto todos os dias? perguntou Mitch como se falasse consigo. Não posso dizer que tivesse pedido isto. Tu irritas-me, fazes-me ficar furioso. Fazes-me sentir. Talvez não fosse isso que eu julgava querer, mas a verdade é que preciso de sentir outra vez. Roçou um dedo pela face dela. Quase te ia perdendo, Megan. Não te vou deixar. As nossas vidas podem mudar muito depressa. Num abrir e fechar de olhos, numa pulsação. É estúpido deixar passar uma oportunidade por seres demasiado orgulhosa, ou por estares muito assustada. Esta oportunidade pode não voltar a surgir.
Oportunidade de amar! Ficou a pairar no meio deles, como uma ténue promessa luminosa. Uma oportunidade pela qual Megan ansiara em silêncio toda a sua vida. Agora sentia-se aterrorizada por poder ser uma miragem que desaparecesse quando estendesse as mãos para ela. Mas se não desaparecesse? O que teria então?
Então, O’Malley? De que tens medo?
Não tenho medo de ti, Holt replicou Megan, sentindo a voz presa na garganta.
Então, prova-o desafiou Mitch, aproximando-se ainda mais, metendo-lhe os dedos nos cabelos, segurando-lhe a cabeça. Diz que me amas.
Megan enfrentou o olhar dele, um olhar de quem vira muitas coisas, uns olhos que pareciam ter cem anos. Ergueu a mão e passou a ponta dos dedos sobre a cicatriz do queixo dele.
Parte-me o coração e eu dou-te um pontapé no traseiro, chefe.
Os lábios de Mitch encurvaram-se num sorriso.
Creio que é uma boa declaração de amor murmurou Mitch, inclinando-se e beijando o lado da cara que não estava ferido; respirou o aroma do cabelo e o leve cheiro a perfume da pele de Megan. Sei que tens por regra não sair com polícias, Megan disse Mitch. Mas poderás casar com um?
Megan encostou a cabeça ao seu peito e ficou a ouvir o coração dele bater em uníssono com o seu.
Talvez sussurrou, sorrindo. Se esse polícia fores tu.
Boog Newton estava sentado com os pés sobre o beliche e as costas encostadas à parede. Metia um dedo no nariz e os seus olhos fixavam-se na pequena televisão. Nunca perdia o noticiário. Quase tudo lhe pareciam tretas, mas de qualquer maneira gostava de ver. Era já uma tradição. O facto de Paige Príce o excitar terrivelmente era mais um bónus.
A notícia principal dessa noite era a conferência de imprensa sobre o caso do rapto. Newton sentia uma ligação pessoal com o caso, depois do que sucedera ao seu companheiro de prisão, esse tal Olie. Ouviu atentamente o chefe Holt que não disse praticamente nada aos jornalistas.
Estás a cavar para ver se encontras ouro, Boog? perguntou Browning, o carcereiro, que fazia a ronda pelas celas. Encarregava-se agora dessa missão de quarto em quarto de hora, em vez de duas em duas horas, como dantes, o que interrompia a sua leitura das revistas.
Queres? Toma disse Boog estendendo o dedo que tirara do nariz para ele.
O carcereiro deu um salto para trás como se tivesse sido atingido por um tiro e olhou para o dedo estendido com repugnância.
Que porcaria!
Boog fez uma careta de troça e voltou ao noticiário. O homem que se encontrava na cela ao lado da sua também olhava. Metia medo, sentado todo o dia, sem dizer uma palavra, sempre com a mesma expressão. Boog apanhara-o a mirá-lo várias vezes, fitando-o como se ele fosse um insecto a ser examinado ao microscópio.
Eh! É de ti que estão a falar, não é verdade? Foste tu que raptaste o garoto Kirkwood. Isso é doentio declarou Boog espetando o queixo ossudo. Tu és doente, pá!
Garrett Wright ficou calado.
Sabes o que sucedeu ao tipo que aí esteve antes de ti? Disseram que foi ele quem raptou o rapaz. E sabes o que ele fez? Tirou o olho de vidro e cortou os pulsos com os bocados partidos. Acho que não era bom da cabeça. Uma pessoa que faz aquilo não pode ser boa da cabeça. Coçou o cabelo oleoso e ficou um bocado pensativo. Depois declarou: Tu também não és bom da cabeça!
Os cantos da boca de Garrett Wright inclinaram-se para cima.
Eu ensino psicologia na Universidade Harris. Boog fez um ruído grosseiro, indicando o que pensava
dos professores. Na televisão mostravam agora polícias e técnicos do BCA a entrar e sair de uma bonita casa, a de Wright. Uma mulher bonita, com cabelos cor de água de lavar louça, chorava baba e ranho, à porta da casa.
O que é que fizeste ao garoto, afinal? indagou Boog, olhando de novo para Wright. Mataste-o, ou quê?
Garrett Wright sorriu para consigo.
Ou quê.
Hannah acordou de repente de um sono perturbado. Dormir sozinha desencadeava um sistema de alarme interior, ultra-sensível, que disparava ao mais leve ruído ou movimento. Deitada ao meio da grande cama, olhou para o rectângulo escuro do céu de Janeiro que avistava dali, à escuta, à espera, com todos os músculos tensos. Nada. Nem um som, nem um movimento. A casa estava silenciosa. A noite silenciosa era. Até o vento, que soprara sem parar durante dias, frio e cortante, parecia ter abrandado na passagem de um dia para o outro. Era meia-noite e um minuto.
Um novo dia. Um novo dia a enfrentar. Mais vinte e quatro horas a atravessar, a tentar funcionar, parecer uma pessoa normal, como era antigamente, uma impostora. Já nada na vida dela era normal. Passaria esse dia, o dia seguinte, o outro e o outro porque tinha de o fazer. Por si, por Lily... e por Josh.
Está num sítio quente... não tem medo., sabe que eu o amo...
Saiu da cama mesmo antes que o som fosse registado pelo seu consciente. Pisou a carpete com os pés descalços. Agarrou no roupão de veludo que Paul pusera de lado. Tocavam à porta. À meia-noite. Meia-noite e dez. O coração começou a bater desordenadamente. As várias probabilidades passaram-lhe pela cabeça. Seria Paul para que ela lhe perdoasse? Mitch com notícias? Boas... más?
Acendeu a luz da entrada com uma mão enquanto que com a outra apertava o roupão sobre o coração. A campainha tocou outra vez e Hannah espreitou pelo ralo.
Oh, meu Deus.
As palavras foram ditas num murmúrio estrangulado. Josh estava à porta, à espera.
No instante seguinte, Hannah estava de joelhos sobre o cimento. Puxou o filho para os seus braços. Apertou-o contra si, com toda a sua força, chorando, agradecendo a Deus, chorando, beijando os cabelos de Josh, repetindo o nome dele inúmeras vezes. Não sentiu o frio, nem o cimento a arranhar-lhe os joelhos. Sentia apenas alívio e alegria e o pequeno corpo do filho encostado ao dela. O alívio era tão grande que ela receou que se tratasse de um sonho. Mas se fosse um sonho, sabia que não o deixaria partir. Ficaria ali parada com o filho junto a si, sentindo o calor dele, aspirando o cheiro dele.
Oh, Josh! Oh meu Deus! murmurou, as palavras trémulas nos seus lábios misturando-se com o gosto salgado das lágrimas. Gosto muito de ti! Gosto muito de ti! Muito! Muito! Muito!
Passou a mão pelo cabelo desgrenhado do filho e pelas suas costas. Ele vestia o mesmo pijama às riscas que ela vira no sonho. O mesmo pijama que Megan O’Malley vira, embora não soubesse se o que vira era real ou imaginado. Havia muitas perguntas ainda por responder. Perguntas que atravessavam o cérebro de Hannah. Se fora Garrett Wright quem levara Josh, então quem o trouxera?
Abriu os olhos e perscrutou a escuridão iluminada pelo luar prateado. Não viu ninguém. Nenhum carro. Nenhuma sombra a não ser as das árvores. sobre a neve A cidade dormia, sem saber de nada, silenciosa.
Josh agitou-se um pouco nos seus braços e Hannah voltou à realidade. Um momento tão perfeito, o momento que ela guardava no seu coração como uma esperança luminosa. Tinha novamente o filho junto de si. Teria de telefonar a Mitch, e a Paul... e ao padre Tom. Telefonaria para o hospital e deixaria uma mensagem para Megan. Josh teria de ser levado ao hospital para ser examinado. A imprensa apareceria outra vez..
Quem te trouxe a casa, querido?
Hannah olhou mais atentamente para o filho. Josh limitou-se a abanar a cabeça e a apertar mais os braços em torno do pescoço dela, encostando a cabeça ao seu ombro.
Hannah não o pressionou. Naquele momento não queria pensar senão em Josh. Não lhe faria perguntas de como, ou porquê, ou quem. Só Josh importava E ele estava em casa, em segurança junto dela.
Vamos para dentro, sim? incitou Hannah, enquanto grossas lágrimas lhe corriam pelas faces e Josh dizia silenciosamente que sim, com a cabeça.
Hannah ergueu-se com o filho nos braços, mal sentindo o peso dele. O seu instinto maternal e o conhecimento de médica levaram-na a fazer uma avaliação rápida do estado físico dele. O pequeno ferimento na face o que ela vira no sonho começava a desaparecer. Estava pálido e mais magro, mas inteiro e queria que ela o abraçasse. Hannah apertou-o mais contra si. Queria tê-lo junto de si, próximo de si, fisicamente ligado a si. Sentou-se num sofá com o filho ao colo e serviu-se do telemóvel para ligar a Mitch e depois para o escritório de Paul. Sentindo ciúmes, apesar de todas as emoções estarem canalizadas para o regresso de Josh, Hannah não se importou de ficar irritada ao saber que Paul não estava no escritório, deixou simplesmente a mensagem e desligou.
Não importa, queridinho
Beijou o alto da cabeça de Josh, apertando-o outra vez contra si quando foi invadida por uma nova vaga de alívio.
Não importa, queridinho. O que interessa é tu estares em casa, em segurança
Pestanejou para afastar as lágrimas e olhou-o. Josh adormecera. A cabeça descaíra-lhe para a frente, e a sua respiração era calma e profunda. As suas compridas pestanas batiam-lhe nas faces. Meu anjo, meu bebé. Os pensamentos eram-lhe tão familiares como o rosto dele. Pensamentos que ela tivera no cérebro antes de ele nascer e em inúmeras noites, depois disso, quando entrava no seu quarto para o ver dormir. Meu anjo... meu bebé... tão perfeito.
Essa ideia causou-lhe uma certa apreensão. Perfeito. Josh fora sempre uma criança feliz, uma alegria para ela. Como iria ser agora? Pelo que teria passado? As possibilidades tinham-na atormentado a todas as horas enquanto ele estivera desaparecido. Agora juntavam-se em redor dela como um bando de hienas. Hannah afastou-as, enquanto estendia cuidadosamente o filho sobre o sofá. Estava inteiro e vinha limpo. Hannah inclinou-se para ele para o tapar com um roupão e o cabelo dele cheirou-lhe a champô. Quis puxar-lhe a manga para cima para ver se tinha alguma ligadura no braço, mas receou acordá-lo. Queria que tivesse paz, que descansasse antes de ser observado e de ter de responder a perguntas.
Pousou uma mão sobre a dele e pôs-lhe os dedos no pulso. Estava regular e normal. Não contou as pulsações, mas concentrou-se naquilo que elas representavam: vida. Estava vivo. Estava com ela. O pedaço do seu coração que faltava tinha voltado e batia em simultâneo com o seu.
Disse alguma coisa a respeito do Wright? perguntou Mitch calmamente. Estava sentado num cadeirão com um braço sobre os joelhos e a parka aberta. Depois de Hannah lhe telefonar, saltara literalmente da cama e enfiara umas calças e uma camisola. Tinha o cabelo espetado. Gostava que Megan ali estivesse para o ajudar a fazer as perguntas, para encerrar o caso que ela tanto se esforçara por ver resolvido.
Não. Hannah encontrava-se sentada no chão em frente do sofá onde Josh dormia coberto pelo roupão vermelho. Tocava-lhe constantemente, ao de leve, acariciando-lhe o cabelo, passando-lhe a mão pelas costas, tocando-lhe nas mãos, como se receasse que, não estando em constante contacto físico com ele o encanto se desfizesse e ele desaparecesse outra vez. Ele não disse coisa alguma. Perguntei-lhe se sabia quem o tinha trazido a casa. Abanou a cabeça para dizer que não.
Está em estado de choque. Pode ser que leve algum tempo...
Não acabou a frase. Não queria prosseguir essa linha de pensamento, nem onde ela o poderia levar. Na maior parte dos casos, as consequências eram de sofrimento e ele queria poupar Hannah a isso. No entanto, tinha de cumprir o seu dever. O processo teria de ser seguido. As perguntas teriam de ser feitas. Nessa altura mesmo, havia homens seus a baterem às portas das casas vizinhas, para saberem se alguém vira algo de anormal.
Teremos de o levar ao hospital esta noite disse a Hannah.
Eu sei.
E eu vou ter de tentar fazer com que ele responda a algumas perguntas. Se nos puder dizer algo sobre o Wright...
Os dedos de Hannah imobilizaram-se sobre a mão de Josh e ela olhou para Mitch.
Que quer isso dizer? O Garrett Wright está preso e o Josh veio para casa. Isso pode prejudicar o caso contra ele?
Não sei. Muito depende de Josh, daquilo que ele nos puder dizer. Mas mesmo que ele não consiga dizer-nos algo de útil, temos ainda a identificação de Mistress Cooper, e teremos as provas do ADN do sangue no lençol. Se o Wright julga que o facto de o Josh ter regressado o pode libertar, está enganado. Nós apanhámo-lo disse, olhando-a nos olhos, com voz forte e cheia de convicção. Prendemos o Garrett Wright e ele é culpado como um pecado. Continuaremos à procura até encontrarmos o seu cúmplice. Depois havemos de o apanhar também.
Levantou-se da cadeira e estendeu a mão a Hannah para que ela se levantasse também.
Prometo que o próximo jogo do Garrett será num tribunal e estou certo de que será feita justiça.
Espero que sim.
Mitch apertou-lhe os dedos num gesto tranquilizador.
Sei isso, mas não quero que se preocupe. A única coisa em que deve pensar hoje é que o Josh está em casa. É isso que importa.
Sim, é isso que realmente importa concordou Hannah, olhando para o filho adormecido.
Sabia que podia tê-lo perdido para sempre, desaparecido num mundo de sombras, como sucedia a tantas crianças todos os anos. Crianças que nunca mais eram vistas, deixando apenas atrás de si interrogações e os corações dilacerados daqueles que as amavam. Por razões só conhecidas pela mente negra do seu raptor, Josh fora autorizado a atravessar essa linha das sombras. Isso era tudo o que contava para ela. A verdade, a vingança, a justiça, eram pensamentos abstractos para Hannah. O seu mundo fora destroçado, as suas vidas irrevogavelmente alteradas, mas Josh estava em casa. Isso era tudo o que realmente importava.
Josh estava em casa. As suas vidas podiam começar outra vez.
Julgam que nos venceram no nosso próprio jogo.
Pobres de espírito.
Todos os mestres do xadrez sabem que ao procurarem a vitória concedem pequenas derrotas.
Podem ter ganho uma jogada, mas o jogo está longe de ter acabado.
Pensam que nos venceram.
Nós sorrimos e dizemos: Bem-vindos ao nível seguinte.
Tami Hoag
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