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PEÇO A PENA DE MORTE / Heinz Konsalik
PEÇO A PENA DE MORTE / Heinz Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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PEÇO A PENA DE MORTE

 

Pelas janelas altas - faziam lembrar as de uma catedral - a sombra ia caindo. Uma sombra enevoada, tornada quase opaca pelo luar. Era uma dessas noites que trazem a melancolia e a fadiga, dando-nos vontade de nos estendermos onde estamos, de fecharmos os olhos e adormecermos.

Na grande sala do tribunal reinava essa atmosfera de chumbo que precede as graves decisões. Sobre o estrado, o presidente, os dois assessores e os seis jurados mantinham-se rígidos, como figurantes no teatro, debaixo da grande lâmpada que pendia do tecto e deixava o resto da sala numa semiobscuridade. À sua direita encontrava-se o acusador público, por detrás de um pequeno candeeiro de mesa... À sua esquerda, o banco dos réus, onde se via refastelado Peter Katucheit, e à frente dele o seu advogado, envergando a tradicional toga preta. Estavam todos inundados de luz, enquanto os rostos dos raros curiosos e das numerosas testemunhas permaneciam indistintos.

Peter Katucheit, indiferente, parecia pregado no seu banco. Roía as unhas, pigarreava e troçou estupidamente quando o guarda que se encontrava atrás dele lhe bateu ligeiramente nas costas para lhe chamar a atenção. Não era, porventura, aquele o momento do requisitório?

Peter Katucheit encolheu os ombros. «E então?», dizia para consigo, fleumaticamente. «Deixá-los tagarelar.

A acusação por um lado...a defesa por outro... é uma tagarelice completa...mau cinema. A minha cachola continuará bem assente sobre os ombros... eles não podem fazer mais do que condenar-me a prisão perpétua.

E isso não é ter de beber o mar. Na gaiola estamos quentes, temos onde dormir e dão-nos de comer. Não precisamos de ter ralações. Se se trabalha, pode-se até comprar coisas na cantina. Aos domingos toca a orquestra da prisão... e todas as semanas há um domingo... Que diabo, para que perdem eles tanto tempo? Peter Katucheit conhece bem a música! Com dez anos de gaiola em cima do lombo, já não estou em branco... Sou uma velha raposa, senhor procurador. Devia ter visto o jardinzinho que eu tinha arranjado na Central de Bruchsal... Um jardim-modelo, senhor procurador... até o director concordava e se regalava com as minhas pêras. Se não fosse o magrizela do Lõnnemann, o chefe dos guardas da segunda secção... esse era um verdadeiro porco. Arrancava todas as minhas flores... ”Na prisão não há flores”, resmungava ele... pior que um sargento!

Eu até queria matar esse Lõnnemann por causa disso, quando fosse libertado. O tipo merecia-o. O que ele fez para nos aborrecer, aquele nojo...

Depois deu-se o caso da garota... sim, as raparigas valem mais que cem Lónnemanns, e quando se esteve dez anos preso sem as ver... e se tem delas uma verdadeira fome canina! Compreende, senhor procurador... dez anos sem ver uma rapariga, fizeram com que eu não quisesse saber de todos os Lónnemanns e só pensasse nas raparigas. E foi assim que tudo sucedeu. Cometi um pequeno erro. Ao fim de dez anos não se sabe muito bem como agir com uma rapariga. Perde-se a mão.

Já há uma hora que aquele tipo tagarela... e estou mais que farto.»

Peter Katucheit olhou para o procurador e arrotou ruidosamente, o que lhe valeu uma palmada nas costas. O seu advogado voltou a cabeça.

- Porte-se correctamente, Katucheit - disse em voz baixa.

- Merda! - respondeu Katucheit, baixando a cabeça. O advogado voltou-se, encolhendo os ombros.

O Dr. Walter Doernberg, que ocupava o banco do Ministério Público, interrompeu um instante o seu requisitório. Deitou um olhar a Katucheit e reparou que ele estava muito ocupado em cortar a unha do polegar com os dentes.

Doernberg era ainda novo na profissão. Quando a data do processo contra o assassino Katucheit fora fixada, o primeiro-procurador dissera ao seu subordinado:

- Meu caro Doernberg, tratará deste caso. O assunto é simples: é prisão perpétua. O que me interessa é o seu requisitório.

O Dr. Doernberg respirava profundamente durante esta interrupção. Não tirara os olhos de Katucheit e apoiava as mãos sobre a mesa. Não tinha notas na sua frente. Bastava-lhe dizer o que sentia, da maneira como o sentia. Estava tão cheio de horror e de pavor, de nojo e de cólera, que as suas palavras perdiam a secura jurídica e tornavam-se tão apaixonadas como os seus sentimentos.

- Temos na nossa frente um criminoso. Um criminoso que reconheceu o seu crime. Não é caso raro neste auditório... mas reparem um pouco no assassino, senhores jurados. Vêem nele o mínimo remorso? Vêem nele a mínima centelha de desgosto pelo que fez? Observam algum traço de emoção neste rosto estúpido? Está ali a roer as unhas. Sorri até. Não sorri por fraqueza de espírito. O médico psiquiatra, o professor Sellner, considera, é certo, o acusado como um psicopata ligeiro. Mas este protestou até contra o resultado do exame e declarou que gozava da sua inteira responsabilidade.

Peter Katucheit aprovou vivamente com um aceno de cabeça. «O professor Sellner, essa múmia», recordava-se ele. «Bateu-me com um martelinho nos joelhos; mediu-me o tronco como se eu fosse apresentar-me a um concurso de beleza e fez-me perguntas: -Quem era Cleópatra?” - ”Uma loção Para fazer crescer os cabelos”, disse-lhe eu. E depois: ”Conhece Damasco?” Eu: ”Não, nunca me foi apresentado. -” E ainda: ”Que faria se ganhasse um milhão?” Eu: ’’Embriagava-me durante quinze dias e arranjava três raparigas- uma não me bastaria.” E eis esse idiota que declara perante o tribunal que eu não sou bom da cabeça e que não devem meter-me na prisão, mas sim entre os doidos. Até senti calafrios. Na gaiola é suportável... mas no asilo tratam as pessoas de tal maneira que elas acabam por ficar verdadeiramente loucas.»

Peter Katucheit abanou mais uma vez a cabeça e sorriu ao Dr. Doernberg, que prosseguia:

- O acusado não é um psicopata, mas, segundo o critério das nossas leis e da nossa forma de sociedade, também não é um homem. É um monstro com figura humana. O seu crime ~ a repugnância faz-me sentir um nó na garganta. só a ideia de o relembrar.

A 17 de Março deste ano Katucheit foi libertado da penitenciária de Bruchsa - onde estivera a cumprir uma pena de dez anos, por roubbo e ferimentos que causaram a morte. A 19 de Março e(icontrou, nas proximidades da aldeia de Sangerhausen, Para onde conduziu a sua caminhada sem destino, uma adolescente de treze anos, Hannelore Làmrnle. Ela (regressava da escola que ficava a três quilómetros de distância e o seu itinerário passava, numa curta distância, pela Aresta comunal. Nessa floresta, afastado do caminho. Katucheit estava escondido atrás duns arbustos. Esperava que passasse uma mulher, decidido a lançar-se sobre ela-

O sorriso de Katuchete alargou-se. «Um tipo que saia dos arbustos, elas gostam bem disso, as mulherzinhas», pensava Katucheite muito satisfeito- «É claro que gritam um bocado, fingem estar assustadas, mas depois... Bolas, procurador, tu falas, falas - No entanto, confesso. Estou cansado. Há seis horas que me encontro nesta sala a ser observado.»

- Por volta do meio-dia, portanto, Hannelore Làmmle regressa da escola. Vê Katucheit sair de entre os arbustos, meio nu, e grita. Katucheit lança-se sobre ela como um tigre, arrasta-a para a floresta, embora ela tente resistir, e ali sacia nela o seu desejo... não uma, mas várias vezes. A criança, meio morta de medo, de repugnância e de dor, debate-se desesperadamente e grita. Então Katucheit bate-lhe, rugindo: «Queres calar-te, fedunciazinha?» Depois arrasta-a para mais longe, até a um charco e mergulha a cabeça da criança na água lamacenta até ela morrer. Katucheit transporta então o cadáver para o meio da floresta e cobre-o com folhas e ramos secos. Esse homem, de coração tranquilo, volta ao sítio onde deixara as roupas, veste-se e dirige-se tranquilamente para Sangerhausen. Na aldeia, mendiga a várias portas, entre as quais as dos pais de Hannelore, que, junto da mesa posta para a refeição do meio-dia, esperam que a filha volte da escola. Provavelmente atrasou-se um pouco, talvez tivesse até sido obrigada a ficar mais um pouco na escola, pensa o pai, o marceneiro Làmmle. Hannelore é uma criança viva, por vezes faladora. Os professores não apreciam isso. E o marceneiro dá a Katucheit, o assassino, aquele que um quarto de hora antes matara selvaticamente a pequena Hannelore, um prato de sopa de lentilhas e dois pedaços de pão. E Katucheit senta-se à entrada da casa dos Làmmle e come com calma, com prazer, como disse a senhora Làmmle. E quando ele acaba de saborear a sua sopa dão-lhe um segundo prato. Depois Katucheit prossegue o seu caminho assobiando. Um caminhante...

Soluços contidos ouviam-se na sala mergulhada na semiobscuridade. A senhora Làmmle, com a cabeça apoiada no ombro do marido, chorava desesperadamente. O marceneiro mordia o lábio inferior. Olhava fixamente Katucheit, que seguia sorrindo as palavras do procurador.

«Eu devia tê-lo morto», pensou bruscamente Làmmle. «Devia tê-lo morto quando o guarda Buber o levou para Sangerhausen e o fechou na câmara. Estava perto dele e poderia tê-lo estrangulado antes que tivessem tempo de me impedir de o fazer. Que vai suceder-lhe agora? Vai parar à penitenciária? Continuará a viver. Comerá, dormirá, trabalhará, lerá, cantará cânticos com o coral da igreja nos ofícios de domingo e engordará. Mas a nossa filha, a minha Hannelore. Ninguém ma devolverá. Está morta... assassinada por um bruto... e esse bruto tem o direito de viver!»

O marceneiro Làmmle não compreendia o mundo. Passou o braço em redor dos ombros da mulher, apertou contra si o corpo convulsivo e baixou a cabeça.

Chorava, calmo, silencioso. As lágrimas corriam-lhe ao longo das faces.

O Dr. Doernberg elevava a voz. Esta enchia agora a sala, martelando as palavras:

- Katucheit é ainda um homem? Podemos dizer: queremos tentar fazer dele um membro da nossa sociedade? O princípio alemão da repressão penal, que não é tanto de punir, como de educar e transformar, justifica-se aqui? Nota-se no acusado a menor emoção humana... apercebe-se a menor parcela de moralidade que se possa atiçar com a esperança de a avivar? Nada... absolutamente nada. Este criminoso não é mais do que um animal selvagem que vagueava pela região, dando livre curso aos instintos animais com que liberalmente a natureza o dotou. O assassínio de Hannelore Làmmle é o crime mais abominável que vimos perpetrar no decorrer destes últimos anos e devemos julgá-lo em consequência...

A voz do Dr. Doernberg aumentava de volume. No silêncio opressivo abatia-se como uma massa sobre o auditório.

- Temos o dever de excluir tais feras da humanidade. Hoje, do lugar que ocupo, lamento profundamente, senhores jurados, não poder dizer-lhes: Eu reclamo a pena de morte!

Pela primeira vez, o presidente ergueu a cabeça para olhar o procurador. O rosto do presidente do tribunal regional, o Dr. Hellmig, tinha-se tornado cor de púrpura. Ergueu a mão como se quisesse interromper o Dr. Doernberg. O advogado de Katucheit saltara também. Os dois assessores e os seis jurados fitavam o procurador com olhos redondos de espanto. Todos sentiam violentamente o inverosímil daquele instante. Peter Katucheit tornara-se pálido. Inclinou-se para a frente e, com o olhar esgazeado, fitava o procurador.

«Palavra», pensou febrilmente, «o tipo está doido. A pena de morte! Foi suprimida, bom Deus!

Foi o acto mais razoável da justiça alemã desde que ela existe. Com a abolição da pena de morte, um crime deixou de comportar grandes riscos. Assalto a um banco... cinco anos. Violação... quatro anos. Assassínio de motorista de táxi... Bah!... não são mais do que cinco anos de reclusão.

E quando se tem vinte e um anos a pena é ainda mais leve.

Todos aqueles que especulam na Bolsa, todos os comerciantes que compram mercadorias da estação cuja venda se faz em função da época correm um risco maior do que um malfeitor.

Cinco anos de prisão o que é? Se se for esperto cai-se nas boas graças dos guardas e tornamo-nos seus ajudantes. Pode-se circular livremente por todo o edifício, aprendem-se novos truques, arranjam-se informações para os primeiros dias depois de se ser posto em liberdade... ah, meus filhos, que vida!

Mas a pena de morte? Ser guilhotinado? Não, meu caro procurador, nessa não caímos nós... É demasiado definitivo. Não teríamos mais nenhum futuro. E esperar a vida eterna é de mais. Abolir a pena de morte foi como darem uma prenda de Natal a todos os malfeitores. Que sorte para nós terem ficado com a bela barba de Pai Natal e continuado o jogo...»

Peter Katucheit inclinou-se para o seu advogado e disse em voz alta:

- Senhor doutor... ele não tem o direito de falar assim.

O presidente olhava o procurador com ar desaprovador. Estava indignado. Por instantes os dois homens fitaram-se... o jovem representante do Ministério Público e o grisalho presidente do tribunal regional, primeiro magistrado naquela sala de audiências. Cruzaram o olhar como duelistas e souberam que naquele segundo um abismo se cavava entre eles.

O Dr. Hellmig franziu o sobrolho.

A pena de morte...

A justiça não existe para fazer expiar o crime de um criminoso por meio de um assassínio. Não se pode atentar contra a vida humana, mesmo tratando-se de um assassino. O seu castigo deve ser o de o excluírem da sociedade. Isso basta. O castigo do seu pecado mortal virá de Deus.

O Dr. Hellmig abanou a cabeça. A voz do procurador perdera a paixão. Era clara, calma, neutra.

- Consequentemente, peço prisão perpétua e a privação de direitos civis por toda a vida.

Peter Katucheit aprovou com um aceno de cabeça e endireitou-se. Estava satisfeito.

Prisão perpétua! Uma idiotice. Ninguém fica preso toda a vida. Aquele que entra na prisão aos vinte anos tem probabilidades de sair de lá aos trinta e cinco. E trinta e cinco anos é uma bela idade. Toma!... Todos esses senhores do tribunal nada podiam fazer.

Katucheit calculava. Tinha trinta e um anos. No pior dos casos, estaria «dentro» uns vinte anos. Teria uns cinquenta e um quando fosse libertado. E aos cinquenta e um anos a vida ainda pode ser bela, e ele poderia conquistar o mundo e sobretudo as raparigas. Que diabo! Para a próxima vez faria melhor as coisas, com mais inteligência.

Se Deus criou as mulheres, que pode um Katucheit fazer?

Mas esses vinte anos seria preciso passá-los o mais agradavelmente possível. Talvez primeiro na cordoaria, ou na padaria? E arranjaria também um jardim. Como condenado à perpétua, seria certamente favorecido. Mais uma vantagem!

Sorria de contentamento.

Se soubesse dar-se bem com o capelão e seguir atentamente as lições de instrução religiosa; se cantasse no coro ou aprendesse a tocar um instrumento - trompeta, sobretudo, pois têm necessidade desse instrumento para a festa do Natal, na capela, então teria uma destas vidas... «Meus filhos, só lhes digo isto! Basta sabermo-nos adaptar às circunstâncias. Aqueles que se revoltam e tomam aversão à gaiola fazem-se queimar em fogo lento. Mas aquele que ergue bem a cabeça e cumprimenta os guardas com um ”Bem, eis-me de regresso. Como está, senhor Krause? A senhora e os meninos continuam de boa saúde? O meu jardinzinho ainda existe?”... Um tipo assim terá uma bela vida, quase tão boa como em casa, ao lado da mãe.

E depois, se durante esses vinte anos se dá uma guerra e a perdemos?... Então tornamo-nos todos perseguidos políticos e somos os primeiros a ser libertados.

Quando eles se apercebem de que somos prisioneiros de delito comum já há muito tempo que nos pusemos ao largo. Oh, santa justiça! A humanidade na execução das penas é uma verdadeira benção!»

Terminado o requisitório do procurador, o presidente olhou para o relógio. Dez horas da noite. Os jurados tinham os olhos inchados e um ar extenuado. O Dr. Hellmig sentia crescer nele uma fadiga contra a qual lutava. Inclinou-se sobre os dois assessores e explicou resumidamente o seu ponto de vista. Depois fez um sinal com a cabeça ao procurador.

- Ouvido o Ministério Público, a palavra cabe ao advogado de defesa. Mas, devido à hora tardia, proponho que o tribunal adie o prosseguimento dos debates para amanhã. Está de acordo, senhor doutor?

- Sim, senhor presidente - declarou o defensor de Peter Katucheit.

O presidente ergueu-se.

- Os debates prosseguirão amanhã às onze e meia. Está encerrada a audiência.

Jurados e juizes ergueram-se com um ruído de cadeiras. Os guardas abriram as grandes portas que davam para o corredor. As testemunhas e os espectadores deixaram a sala. A portinha do banco dos réus foi empurrada. Um guarda fez sinal a Katucheit e pôs-lhe as algemas.

- Vem, meu rapaz.

Katucheit inclinou-se mais uma vez para o seu advogado, que reunia os seus papéis para os guardar na pasta.

- Senhor doutor.

- Sim?

O advogado voltou-se. Olhou Katucheit nos olhos. Eram uns olhos pálidos, quase incolores, quase sem pestanas sob umas sobrancelhas louro-ruivas... olhos sem expressão... olhos de marmota.

- Amanhã falará tanto tempo como o procurador?

- Tentarei evitar a condenação a prisão perpétua.

- Mas porquê? E como? Katucheit avançava o lábio inferior.

- Tentarei fazer admitir que no momento da ocorrência você estava sob a alçada do artigo 51 do Código e tentarei demonstrar que se encontrava num estado de embriaguez embrutecida quando encontrou a jovem e que o aparecimento dela provocou no seu espírito, já de si deficiente, um verdadeiro choque. Falarei de homicídio involuntário.

Katucheit abria uma boca imensa.

- Mas não pensa nada disso - murmurou, sem perceber.

Para ele a condenação a prisão perpétua era um facto certo e’agora aquele homem de toga negra queria alterar tudo?

O advogado encolheu os ombros.

- Você é meu cliente e eu actuo no interesse dos meus clientes. No seu caso, a lei penal alemã dá-nos a possibilidade de apelar para um artigo do código menos rigoroso. Se conseguirmos demonstrar a sua irresponsabilidade, a acusação do crime ficará reduzida a agressão que provocou a morte sem intenção de a causar. E já não será a condenação a prisão perpétua, mas a dez anos no máximo. Vamos tentar... Na América não deixaria de ir parar à cadeira eléctrica ou à câmara de gás.

Peter Katucheit voltara a sorrir.

- Obrigado, senhor doutor.

Esfregou as mãos e os punhos. A corrente das algemas magoava-o um pouco.

- Devemos muito aos Americanos... os westerns, a chewing-gum, os hold-up, os blusões negros, as calças com fecho éclair e as call-girls... é uma sorte que a nossa democracia não esteja suficientemente evoluída para assimilar também as suas leis penais.

Piscou um olho para o advogado e, ao chegar à porta, voltou-se uma última vez.

- Daqui até que as tenham importado para a Alemanha eu estarei novamente livre, senhor doutor. E dessa vez não cometerei erros. Será melhor pôr o cinto. Arriscar a cabeça por uma rapariga não vale realmente a pena!

O guarda empurrou Katucheit e fê-lo entrar no estreito corredor que conduzia às celas. Quando a porta voltou a fechar-se, o advogado ouviu ainda a voz untuosa de Katucheit, que contava uma história ao guarda.

O procurador foi o último a deixar a sala. Apagou a luz do seu candeeiro e meteu o dossier debaixo do braço. No momento de sair olhou mais uma vez a sala. O contínuo apagava as luzes do tecto. O advogado de Katucheit estava de pé diante do banco das testemunhas.

- Senhor procurador.

- Sim?

O Dr. Doernberg aproximou-se.

- Fez intencionalmente, no seu requisitório, uma observação que lhe vai causar aborrecimentos.

- Bem sei. No entanto, acho que devia falar assim e que ninguém mais do que o seu cliente merecia a pena de morte e que é uma falta do legislador, apesar de todos os motivos razoáveis e apesar da opinião de uma grande parte da população, insurgir-se contra o restabelecimento da pena de morte.

- Partilho inteiramente a sua opinião. Uma fera como o meu cliente merece certamente a guilhotina. Mas é evidente que se trata da minha opinião íntima, que lhe confio como meu colega que é. E não estou a trair nenhum segredo quando lhe digo que amanhã pleitearei por homicídio involuntário. - O advogado mostrou um sorriso trocista antes de concluir: - A lei oferece-me uma boa ocasião para o fazer.

O Dr. Doernberg respirou profundamente.

- Não esperava menos, meu caro colega. Boa-noite! Voltou-se e afastou-se rapidamente, como se fugisse perante a alegoria da Justiça que decorava a parede da sala das audiências. A faixa que cobria os olhos da divindade era para o Dr. Doernberg demasiado sinistra.

Ter-se-ia a lei tornado cega?...

No corredor do Palácio da Justiça, Doernberg encontrou o Dr. Hellmig que, já vestido para sair, se dirigia para a porta. Quando viu o substituto, o presidente parou e esperou que Doernberg chegasse junto dele. Nos olhos do velho juiz a cólera brilhava ainda. Hellmig não era homem para deixar cair a sua indignação ao mesmo tempo que a sua toga.

- Você é jovem, meu caro Doernberg - disse, esforçando-se por dar à sua voz o tom da reprimenda paternal. - Você excedeu-se um pouco. Deve-se manter a rédea curta aos cavalos impetuosos, acredite no velho adágio do fulano que eu sou. - Tentou sorrir. - O seu comentário não deixou de me irritar.

- Lamento profundamente, senhor presidente - murmurou Doernberg, inclinando-se rigidamente, como era costume dantes, quando se era apresentado na messe do 2.º Regimento de Panzers.

«O nosso mais jovem oficial, meu coronel, o alferes Doernberg.» Bater de calcanhares, cabeça erguida, corpo direito, sorriso benevolente.

«Seja bem-vindo, meu caro. Aqui reina a camaradagem. Obrigado, meus senhores.» Meia volta. Dirigiam-se para a mesa; o seu lugar era ao fundo, como benjamim, que tinha o direito de comer tudo frio porque o serviço começava pela cabeceira da mesa, pelo coronel.

Doernberg olhou o presidente com franqueza.

- Por outro lado, não posso retirar nenhuma frase, nenhuma palavra do meu requisitório. Pelo contrário, gostaria de sublinhar ainda mais tudo o que já disse.

- Na verdade?

A voz de Hellmig era baixa, amarga. Novamente a cor lhe subiu ao rosto, até à raiz dos cabelos brancos e lisos, que formavam como que uma auréola prateada em torno da sua cabeça alongada.

- Mantém a sua opinião de que a pena de morte é uma necessidade absoluta?

- Mantenho a minha opinião de que a legislação actual sobre os crimes capitais pode por vezes ser considerada como um crime.

- Doernberg!

O presidente dera um passo atrás. A extravagância das afirmações do substituto infiltrava-se nele gota a gota, cada palavra dilacerando a capa artificial das conveniências.

- Por favor! - disse em voz alta.

- A nossa lei é uma verdadeira incitação ao crime capital. Eu sinto-me envergonhado perante as pessoas, envergonhado perante mim mesmo quando, como «representante do Estado», envio um assassino como Katucheit para a prisão. Para a prisão, onde ele não terá qualquer preocupação material e viverá como peixe na água, em vez de o mandar para onde ele merecia ir: para a corrediça de uma guilhotina!

O presidente do tribunal não pôde reprimir um ligeiro arrepio. Sentia-se pessoalmente visado. Um ataque contra a lei era um ataque contra a sua pessoa. Os homens têm o direito de punir, pensava ele, mas só Deus tinha o direito de julgar. Abotoou o casaco, como se quisesse demonstrar com esse gesto que a discussão estava encerrada.

- Amanhã queixar-me-ei de si ao primeiro-procurador, o doutor Karlssen - disse secamente. - Desejo evitar continuar a colaborar consigo num caso em que o senhor represente o Ministério Público.

O Dr. Hellmig afastou-se sem sequer cumprimentar o substituto e dirigiu-se para a saída. O Dr. Doernberg ficou parado no corredor. Sentia frio e tinha a impressão de ser um garoto a quem acabavam de admoestar.

O guarda arrastava os pés ao longo do corredor mal iluminado. Estava ansioso por ir para casa. Nessa noite havia o relato de um jogo, pela rádio, e talvez ele chegasse a tempo para a segunda parte se o Dr. Doernberg se apressasse.

- Dez e meia, senhor procurador - disse o guarda, olhando ostensivamente para o relógio.

Doernberg esboçou um sorriso.

- Quer ir para casa, Kroll?

- Foi um longo dia, senhor procurador. E esse Katucheit... Esse patife. O senhor disse bem: é preciso restabelecer a pena de morte. Nós, os pequenos, somos todos a favor.

Doernberg bateu no ombro de Kroll.

- O senhor, meu amigo, o senhor e os seus colegas. Mas, nas altas esferas, sabe, onde sopra a brisa ligeira das almas ternas e não o vento brutal da baixeza humana, acredita-se ainda na honra do criminoso e na força da pedagogia para melhorar o indivíduo. Lá do alto pode ser-se idealista... Nós, cá em baixo, temos de nos proteger da canalha e de nos bater contra ela. Nós vivemos na realidade... são-nos precisos litros de conhaque para nos fazer passar o gosto que deixam em nós os crimes mais escandalosos e para acreditar naquilo a que alguns chamam justiça.

O guarda abanou a cabeça.

- Não compreendo isto. Nós estaríamos todos de acordo se nos tivessem pedido a cabeça de Katucheit... todos, senhor procurador.

O Dr. Doernberg teve um encolher de ombros resignado e entrou no seu gabinete. Vox populi, vox dei... mas de que servem as vozes do povo e dos deuses se aqueles que as deviam ouvir são surdos? Quando os cérebros se tornaram mais humanistas que a humanidade, mais democratas que a democracia?

A democracia?

A democracia é um governo em que o povo é soberano. E quando, num inquérito feito por vários grandes jornais, o povo se declarou em 98,36 % partidário da pena de morte? Que impede então que seja restabelecida? Diz-se não à vontade do povo... numa democracia em que a vontade do povo devia ser lei?

Os legisladores constituem então essa ínfima minoria de 1,64% que se opõe à pena de morte? É essa minoria que é a imagem da democracia?

O Dr. Doernberg tirou a sua toga, pendurou-a num cabide atrás da porta. Fazendo isso, teve a sensação de tirar uma pele de um peso esmagador e de respirar mais livremente.

Quando Doernberg abriu devagarinho a porta do seu apartamento e, à entrada, tirou o casaco, já Rosei dormia. Dirigiu-se para a cozinha na ponta dos pés, tirou do frigorífico uma garrafa de cerveja e algumas sanduíches que Rosei preparava sempre que o marido tinha uma audiência demorada e voltava tarde.

Doernberg comeu uma sanduíche sem apetite, bebeu meia garrafa de cerveja e voltou a guardar o prato no frigorífico. A altercação com o Dr. Hellmig e a profissão de fé sincera do guarda Kroll pesavam-lhe no coração.

Não era a oposição entre a opinião de um representante da arraia-miúda e a de um alto magistrado que perturbava tão profundamente Doernberg, mas a sua posição pessoal perante esses problemas. Nunca sentira tanto como nesse dia o absurdo de uma justiça que poupava um Peter Katucheit e que julgava poder modificar o carácter a quem não o tinha.

A atitude de Katucheit no decorrer do processo, a incrível ausência de sentimentos com que ele ouvira as declarações dos pais de Hannelore Làmmle, o seu sorriso quando o médico-legista descrevia o que revelara a autópsia, a bestialidade com que a violação fora cometida, a maneira sensual como ele lambia os lábios enquanto contava o que fizera nos seus mínimos pormenores a ponto de até o Dr. Hellmig ter de beber de tempos a tempos um gole de água - para se refrescar ou engolir a sua repugnância; esse retrato-tipo de um assassino que não sairia tão perfeito em qualquer manual de fisiognomonia dos criminosos, tudo isso perturbava tão violentamente Doernberg que prometeu a si mesmo ir a casa do primeiro-procurador falar-lhe das suas dúvidas.

Dúvidas? Queria pôr-se em ordem com a sua consciência. Queria dizer que lhe era impossível representar num processo um Estado que dava a um assassino monstruoso a possibilidade de retomar ao fim de quinze ou vinte anos o seu lugar entre os homens e recomeçar a matar. Estatísticas? Segundo elas diziam, 98% dos criminosos reintegram-se na sociedade. E os 2% que matam de novo? A lei é feita para proteger o povo. Como é que os cidadãos podem ser protegidos se se dá a 2% dos assassinos a possibilidade de cometerem novos crimes?

Doernberg estava sentado na cozinha com os olhos fixos na parede. Sentia-se fatigado, atrozmente exausto, mas sabia que isso não o faria dormir. Pensava em Katucheit na sua cela, estendido no seu catre, abafado por duas mantas. Tinham-lhe levado o seu jantar; tinha direito a ele enquanto se encontrasse em prisão preventiva. Mais tarde, como condenado a prisão perpétua, ser-lhe-iam atribuídas quantidades precisas de alimentos. Todas as semanas 250 gramas de carne, 200 gramas de queijo, 275 gramas de matérias gordas e 3500 gramas de pão. Além disso, um prato quente todos os dias, ao almoço. Se trabalhasse, poderia fazer compras na cantina... salsichas, tabaco, manteiga. Poderia mesmo comprar loção capilar e perfume, se assim o desejasse. Teria o direito de comprar um espelho e de se contemplar nele: Peter Katucheit, assassino retirado... Talvez empalidecesse um pouco, mas isso seria remediado quando chegasse o Verão e ele pudesse trabalhar no jardim. O que era certo é que viveria numa cela aquecida, teria um tecto sobre a cabeça, comida e bebida. Sim, e o crime, esse horroroso crime sobre a pequena Hannelore? Que assunto de conversa seria isso com os outros? Trocariam recordações... Se tivessem visto os pais chorar, na sala da audiência... sobretudo a mulher. Ela não era nada má, de resto. Talvez tivesse sido melhor caça do que a fedunciazinha da filha. Por mais que se faça, cometem-se erros...

Depois fariam a conta aos anos. Era possível que um presidente qualquer lhe concedesse o perdão. Se se portasse bem e tivesse um atestado elogioso do capelão, tal coisa era possível.

E a alma da pequena Hannelore, violada e assassinada? E os pais desesperados?

Nessa mesma noite, Katucheit prometendo a si mesmo pôr-se de bem com o capelão da penitenciaria para onde fosse enviado. Cantar, rezar com assiduidade... Ser autorizado todas as semanas a ler as orações... ter de tempos a tempos uma conversa com o santo homem sobre a justiça divina e o modo de fazer com que Deus nos perdoe os pecados... era uma coisa que causava boa impressão e podia servir para um perdão eventual.

Doernberg levantou-se, deprimido pelos seus pensamentos. Tirou a gravata, o casaco, e colocou-o nas costas de uma cadeira. Depois, muito devagarinho, atravessou o vestíbulo e entrou no quarto da filha.

Monika dormia, com a cabeça um pouco de lado, com uma perna saída para fora do cobertor... uma longa perna, fina e branca. Um caracol louro caía-lhe sobre os olhos fechados. A pequena boca estava fechada, numa expressão quase amuada, como se a criança sonhasse com a escola e com as detestadas matemáticas.

Doernberg ficou uns momentos junto da cama, contemplando a filha. Treze anos... a idade de Hannelore Làmmle quando Katucheit a arrastara para a floresta.

«Aquilo poderia suceder a Monika», pensou subitamente com cólera Doernberg. Um outro Katucheit poderia também lançar-se sobre ela e matá-la. E um outro representante do Ministério Público erguer-se-ia e diria: peço para ele a prisão perpétua. E esse Katucheit sorriria, feliz por poder salvar a cabeça.

Doernberg gemeu baixinho. Inclinou-se, meteu a perna da filha debaixo da roupa e endireitou melhor o edredão sobre o corpinho, cujas formas mal se adivinhavam: botão que esperava o momento de desabrochar... comovente, misterioso, alegre despertar da natureza. E depois um Katucheit qualquer surgindo do meio dos arbustos como um animal selvagem, babado de desejo... Doernberg voltou-se. Sentia-se mal. Era tomado de náuseas só de pensar que isso poderia suceder a Monika, ao pensar nessa lei que se dizia humanitária e protegia os assassinos.

Levantou a madeixa loura de Monika e depois saiu do quarto. Quando entrava no seu quarto, a mulher acendeu a luz da mesinha-de-cabeceira e soergueu-se na cama.

- Vens muito tarde, Walter - disse com uma expressão queixosa na voz.

Ele limitou-se a abanar a cabeça e sentou-se na beira da cama.

- Comeste?

- Sim, um pouco, não me apetecia.

- Foi outra vez uma coisa muito penosa, Walter? Rosei afastou um pouco o cobertor e aproximou-se do marido, acariciando-lhe o rosto com os seus cabelos negros soltos, que ela usava de dia num grande carrapito preso na nuca. Ele afastou um pouco a cabeça e em seguida beijou os lábios da mulher... um beijo frio, rápido, quase desesperado. Olhou para o abat-jour do candeeiro da mesa-de-cabeceira: era um abat-jour com desenhos abstractos, que projectavam estranhas figuras sobre os lençóis e sobre as paredes.

- Rosei, já tiveste a impressão de estar nua perante uma multidão imensa? Toda a gente a olhar-te, todos à espera que faças qualquer coisa, que te tapes, que fujas... mas tu tens de ficar no mesmo sítio, nua, e tens de te mostrar à multidão que te olha de boca aberta, deves continuar ali porque atrás de ti se encontra alguém cuja voz ordena: «Deves, deves, deves!»

Doernberg mudou de posição e agarrou a mulher pelos ombros. Não se apercebeu da força com que a apertava. Não viu a boca de Rosei crispar-se com a dor. Ela calou-se e limitou-se a abanar a cabeça.

- É atroz, Rosei. Que dirias tu se a nossa Monika fosse atacada por um monstro de forma humana e...

Com um gesto brusco, ela pôs-lhe a mão na boca. Nos seus grandes olhos negros lia-se o horror.

- Walter... por amor de Deus, como podes tu dizer... como podes tu pensar uma coisa dessas?

- Hannelore Làmmle também tinha uma mãe, um pai. Também eles não pensavam nisso... E depois apareceu um certo Peter Katucheit!

Doernberg levantou-se de repente e começou a andar no quarto, de um lado para o outro. Batia com os punhos no peito e dizia com voz estrangulada:

- E eu, o procurador, eu, o representante do Estado, ergo-me para proteger essa fera... Tenho de pedir para ele condenação à prisão perpétua! Envio-o para um ninho bem quente, onde ele terá comer e onde encontrará outros assassinos, numa cela onde à noite poderão jogar às cartas, como o fariam em qualquer sórdida taberna. Eu ergo-me e peço condenação à prisão perpétua: Tu mataste, Katucheit, tu mataste a pequena Hannelore, loura como a minha Monika; jovem, alegre, afectuosa, confiante, como a minha Monika... e porque tu a mataste eu digo-te, eu, o procurador: «Castigo-te oferecendo-te uma estada por toda a vida à custa do Estado. É certo que não poderás passear livremente pelo mundo, mas, quanto ao resto, meu caro assassino, meu novo hóspede, terás tudo quanto precisas: uma cama, um quarto, alimentação suficiente, ar fresco, um jardim, música, igreja, distracções, um jornal da penitenciária, uma biblioteca, uma cantina com guloseimas... Espero, senhor assassino, que se sinta bem na nossa casa. Engorde, mantenha-se de boa saúde, para que daqui a quinze anos possamos indultá-lo e dizer-lhe: Ei-lo purificado, de novo um membro precioso da sociedade humana, na qual tem apenas de voltar a ocupar o lugar que lhe é devido. E se não apreciou a sua estada entre nós - são coisas que acontecem, os guardas são por vezes um pouco rudes e ultrapassam os limites da sua competência -, então tenha a bondade de se queixar. É o direito de cada detido e o seu também, senhor assassino, caro senhor Katucheit, cujo único mal foi ter morto uma Hannelore que poderia chamar-se Monika e ser minha filha!»

Doernberg apoiou-se à parede. O suor corria-lhe pelo rosto magro. Tinha um ar esgotado, mesmo envelhecido. Olhava Rosei com os olhos franzidos, e a sua boca aberta formulava um grito mudo. Limpou os olhos com as costas da mão.

- Tudo isto, Rosei, disse-o eu... numa simples frase: «Peço a condenação a prisão perpétua...» E quando tomei a liberdade de falar em pena de morte, fui considerado como um lobo solitário e rapace que era preciso abater.

- É verdadeiramente horrível - disse Rosei em voz baixa.

Saltou da cama e lançou os braços à volta do pescoço do marido. Trémula, agarrava-se a ele como se tentasse salvar um afogado que estivesse a desaparecer diante dos seus olhos.

- Tu não tens o direito de pensar isso... não deves voltar a fazê-lo nunca... ficarás doente se forjares ideias semelhantes.

Agarrou-lhe as mãos e puxo’u-o para a cama.

Ele deixou-se conduzir como uma criança e voltou a sentar-se. Rosei abriu o roupão e limpou com ele os cabelos dele, molhados de suor.

- Despe-te e deita-te. Vou-te buscar um soporífero, queres?

Rosei beijou-lhe os olhos, acariciou-lhe o rosto e dominou-se para não se abraçar a ele e chorar desesperadamente.

Quando ela voltou da cozinha, viu que o marido se tinha estendido na cama e fitava o tecto, no qual se projectavam as curiosas sombras chinesas dos desenhos do abat-jour. Maquinalmente engoliu o soporífero dissolvido em água e segurou a mão de Rosei que agarrava o copo.

- Rosei...

- Diz, Walter.

- Tenho de lutar pela pena de morte. Tenho de lutar pela pena de morte, mesmo que isso seja a minha perda.

- Olhou para os olhos tristes da mulher e abanou a cabeça: - Devo isso a Monika... a ela e a todas as crianças da Alemanha. Devo-o a todas aquelas que poderiam vir a cair um dia nas mãos de um Katucheit.

Atraiu para si a cabeça de Rosei, respirou o perfume dos seus cabelos e o leve aroma que se desprendia do seu corpo esbelto. A segurança do seu pequeno universo encheu-o de uma súbita alegria.

- Compreendes-me, querida?

- De momento tens necessidade de dormir - disse ela ternamente. - Encostou a face à dele e beijou-o na testa. - Amo-te, Walter, amo-te como no primeiro dia... Agora, dorme. Eu fico junto de ti.

Walter Doernberg rodeou o corpo da mulher com um braço e fechou os olhos. «Dormir», pensava ele, «como poderei dormir com esta ideia que me acabrunha?»

Nessa mesma noite, num apartamento da Bendergasse, em Francoforte do Meno, Fritz Pohlschlàger oferecia cigarros à sua volta. Feito isso, pousou sobre a mesa uma garrafa de conhaque e pôs o rádio a tocar mais alto.

Música de dança, BBC, Elvis Presley, o seu último rock’n’roll.

A um canto da sala, num sofá, a morena Olga Katinsky, com os olhos um pouco inchados, espreguiçava-se preguiçosamente. Trabalhava como barmaid na Frankfurter Altstadt. Era o seu dia de folga e ela estava aborrecida com Pohlschlàger por ter escolhido precisamente esse dia para convidar os seus amigos.

À reunião não faltava um certo pitoresco.

Perto da janela, corpulento, maciço, encontrava-se um homem de tipo gorila: cabeça quadrada, testa curta, lábios repuxados, olhos ligeiramente oblíquos, quase sem pescoço, um corpo poderoso com braços e pernas em forma de pilares. Esse corpo adivinhava-se peludo, mesmo antes de olhar para as mãos grossas, invadidas até à junção dos dedos por pêlos escuros: um macaco pensante.

O gorila chamava-se Franz Heidrich, dizia-se comerciante de primícias e era conhecido em certo meio com o nome de «Franz, o Chorão». Tinha com efeito uma curiosa particularidade: de cada vez que estava prestes a deixar-se prender, chorava tais lágrimas de arrependimento, proclamando com tanta veemência a sua inocência que o mais endurecido coração de polícia se enternecia. Mas Franz, o Chorão, infringia a lei com uma regularidade matemática, pelo menos uma vez por ano, o seu choro tinha-se tornado um espectáculo atraente, muito mais do que uma prova da sua candura de cordeiro.

Em frente dele, ocupado de momento em bater com o seu isqueiro, que se recusava a acender, estava um homem de uma elegância extrema: fato completo cinzento, de bom corte, camisa de nylon branca, gravata de seda prateada, sapatos italianos, cinzentos, de biqueiras pontiagudas, meias às riscas brancas e cinzentas - dava grande importância a que as vissem e, ao sentar-se, puxava bem as suas calças estreitas - unhas bem cuidadas... Quase um dândi esse Hans Wollepczy, que até ali se saíra menos mal prometendo casamento a damas de idade madura, munidas de sólidas contas bancárias. Adquirira uma concepção fatalista do mundo e a sua actividade fazia com que lhe chamassem ironicamente, nos meios especializados, «caixeiro-viajante das antiguidades», ou então «antiquário por atacado».

Muito mais interessante, por ser incolor e discreto, era o quarto homem que se encontrava na sala. Encostado à porta, com a mão direita no bolso das calças, cuja forma arredondada era significativa para um conhecedor, deixava o seu olhar um pouco desdenhoso vaguear, com a prudência de um animal que fareja o vento, da mesa ao sofá e aos seus três camaradas. Joe Dicaccio» importado dos EUA, nascera no belo Estado do Minnesota, onde outrora enormes rebanhos de búfalos corriam através da planície e onde, montados em rápidos mustangs, os Sioux os atacavam com os seus arcos e setas. A vida de Joe era tão obscura como os seus cabelos louros. Desembarcara um dia em Francoforte e encontrara instintivamente o caminho que ia dar a Fritz Pohlschlàger. Este acabava de cumprir uma pena de três anos de prisão por roubo com arrombamento e arrastava a sua melancolia pelos bares de Francoforte, procurando uma nova «ocupação». Desde o dia em que se encontraram, os dois homens tinham iniciado uma vaga associação de trabalho e uma sólida amizade. Tão sólida que Pohlschlàger cedia por vezes ao seu amigo Joe os direitos que detinha sobre a morena Olga. Fora esse, aliás, o caso quando Pohlschlàger fora posto em prisão preventiva, enquanto Joe Dicaccio, influenciado por estrelas tão enigmáticas como benéficas, não fora detido e passara elegantemente entre as malhas do inquérito. Isso valera-lhe a admiração dos amigos.

- Alta escola americana - declarara numa ocasião semelhante o belo Wollenczy. - Este rapaz tem um sexto sentido. Cheira-lhe a chamusco à distância.

Fritz Pohlschlàger destapara a garrafa de conhaque e enchia os copos. Olga estendia para eles uma mão indolente. Joe foi o primeiro a beber e engoliu o líquido de um só trago, atirando a cabeça para trás.

- O que há? Para quê tantos mistérios? - perguntou Heidrich, o gorila.

Pohlschlàger afastou o seu copo e estendeu uma carta sobre a mesa... era a planta da cidade de Wiesbaden. Uma planta admiravelmente pormenorizada, para uso dos turistas, com a indicação dos monumentos mais notáveis... o castelo, o estabelecimento termal, o teatro, a câmara municipal... Em baixo, estavam indicados os edifícios públicos e depois o número que permitia descobri-los no traçado da planta. Um nome estava sublinhado a vermelho. Wollenczy inclinou-se para o ler e olhou para Pohlschlàger, espantado, e exclamou:

- É uma pura loucura!

- E porque é que há-de ser loucura, se fazes favor? Pohlschlàger pousou o indicador sobre um ponto da planta de Wiesbaden.

- Aqui encontra-se a agência do Banco Norte-Sul. No dia trinta de cada mês, durante a noite, levam para lá uns trezentos mil marcos, porque a trinta e um ou a um, três firmas importantes retiram o dinheiro para o pagamento do seu pessoal. O banco abre às oito... por volta das nove e meia chegam os enviados das empresas, geralmente dois a dois. É, portanto, entre as oito e as nove e meia que deve fazer-se toda a operação. Há pouca gente nos guichés. O caixa dispõe tudo, tira os maços de notas dos cofres e prepara-se para efectuar os pagamentos. Todos os meses se passa o mesmo, tudo com tanta ordem que nada se altera. Há seis meses que observo essa cena.

- Tudo isso é muito bonito, mas como é que tu vês as coisas? Basta lá entrar e pedir a massa?

Estendida no sofá, Olga soltou um risinho de troça. O gorila olhou-a e ela tocou com um dedo na testa.

- Porque não há-de ser contra um recibo de entrega? - troçou ela.

Olga tinha uma voz surda que agradava a Pohlschlàger; comparara-a uma vez à de Pola Negri. Era um duplo cumprimento, pois Olga Katinsky era também polaca e fora para Francoforte aquando de uma «troca cultural» entre bordéis diferentes.

Joe Dicaccio explicou:

- Temos de andar depressa. Franz fica diante da porta e vigia a entrada; Hans espera na rua, ao volante do carro, com o motor em funcionamento; Fritz e eu penetramos no banco. É muito simples.

- É muito simples - repetiu Wollenczy. - Isso dizes tu! Eles hão-de defender-se! Dispõem de dispositivos de alarme.

Joe encolheu os ombros estreitos.

- É preciso agir depressa para que eles não se apercebam do que lhes sucedeu antes de nós nos pormos ao largo.

Pohlschlàger pousou as mãos sobre a bela planta colorida de Wiesbaden... duas mãos vigorosamente ossudas.

- Não se trata nem de rapidez, nem de efeito de surpresa, nem de nada disso. Não quero correr riscos.

O mais pequeno erro de manobra, e somos apanhados. Quero trabalhar com toda a segurança.

- Segurança! -Joe Dicaccio ergueu as sobrancelhas.

- A que é que tu chamas segurança?

A expressão de Pohlschlàger era dura e resoluta.

- Chegaremos lá às oito e dez. Hans fica no carro. O Chorão guarda a porta... Joe e eu entraremos a correr na dependência dos guichés e matamos todos que nos surgirem pela frente.

- O quê? - exclamou o gorila, surpreendido.

- Temos cada um dois revólveres de oito tiros. São trinta e duas balas para Joe e para mim. Se houver muita gente na agência serão precisas cinco balas. O empregado do guiché, o caixa, talvez uma dactilógrafa. Acrescentemos dois clientes - teve um largo sorriso. - Não há problemas com trinta e dois tiros à nossa disposição.

Dicaccio tirou a mão do bolso. O seu rosto, habitualmente pálido, tinha agora uma palidez mortal.

- Não - disse lentamente, tiroteio não.

- Mas trata-se de trezentos mil marcos, filhinho!

- Pohlschlàger sentou-se diante da grande planta de Wiesbaden. - São setenta e cinco mil marcos para cada um de nós.

Joe aproximou-se da mesa.

- Nada de tiroteio - repetiu.

Uma vermelhidão invadiu o rosto de Pohlschlàger. Respirava ruidosamente, olhando Wollenczy e Heidrich. Tinham uma expressão fechada, ausente, mas os seus olhos traíam a hesitação e a reflexão. Setenta e cinco mil marcos, uma quantia que merecia bem uma certa consideração.

- O que é que tens contra uns quantos tirinhos?

- perguntou Pohlschlàger a Joe, que franziu os sobrolhos.

- Queres simplesmente abater todos os tipos que estão no banco? Todos?

- Sim. Isso suprimiria as dificuldades. Ninguém poderá dar o alarme, ninguém poderá defender-se, ninguém poderá gritar por socorro e ninguém poderá aborrecer-nos. Em cinco segundos estará tudo terminado, mesmo antes que eles compreendam o que lhes sucede. Depois teremos tempo de apanhar o dinheiro sem nos apressarmos. Se começarmos a operação às oito e dez, poderemos estar despachados às oito e um quarto... com trezentos mil marcos!

Joe Dicaccio abanava a cabeça, olhando Pohlschlàger com os seus olhos azuis com reflexos de aço. Havia nesses olhos uma expressão apagada que causava sempre a Pohlschlàger um sentimento de mal-estar. Mesmo naquela altura não podia ainda libertar-se de um aperto no estômago ao ver aquele olhar fixo nele.

- Para quê matar?

- Mas que diferença te pode isso fazer? A ti, um duro da América? - perguntou Pohlschlàger com um sorriso forçado.

- E se nos apanham, o que é que isso nos custará?

- Não será grande coisa. - Pohlschlàger inclinou-se para a frente e a sua voz tornou-se clara e enfática. -Franz e Hans apanharão entre cinco e dez anos. Mas não os cumprirão, serão amnistiados antes, porque apenas ficam de vigia.

- E nós?

Dicaccio tamborilava com os dedos sobre a planta da cidade. Pohlschlàger sorriu abertamente.

- Prisão perpétua, no pior dos casos.

- Na minha terra seria para todos a cadeira eléctrica.

- Na tua terra? Mas nós não estamos na América, Joe, estamos na Alemanha. Precisas de mudar de velocidade. Não corremos risco algum... Pelo contrário, se soubermos servir-nos do revólver, teremos possibilidade de nunca sermos identificados nem presos.

Dicaccio hesitava. Olhava Olga Katinsky. Esta dormia, estendida no sofá, com as pernas encolhidas, a cabeça enterrada numa almofada. Os seus cabelos negros cobriam-lhe em parte o rosto, fazendo sobressair a boca escandalosamente vermelha: uma imagem que encantou interiormente Joe.

- Então? - perguntou Pohlschláger, nervoso.

- Não tenho desejo de ir para o céu por setenta e cinco mil marcos!

Pohlschláger bateu com o punho sobre a mesa. Olga, acordada em sobressalto, começou com soluços.

- Bolas! - gritou Pohlschláger, furioso. - A pena de morte foi abolida!

- E se a restabelecem?

- Quem?

- O vosso Governo.

Pohlschláger desatou a rir. Heidrich e Wollenczy sorriam.

- Em primeiro lugar, se isso sucedesse os debates nas Câmaras levariam anos. Em segundo lugar, todas as tentativas para reintroduzir a pena de morte foram piedosamente enterradas, porque os deputados cristãos estão sempre a fazer lembrar que o assassino também é um ser humano. A pena de morte já não assusta, as estatísticas provaram-no... Que sorte existirem pessoas que acreditam na nobreza das nossas almas. Que Deus lhes dê longa vida!

Pohlschláger sentia-se feliz. Sentada no sofá, Olga ria. Levantou-se, aproximou-se da mesa, passou familiarmente o braço pelo pescoço de Dicaccio e esfregou a sua cara na dele.

- Não costumas ser tão tímido, darling.

Joe tomou um ar carrancudo. O Chorão suspirou e disse com voz sombria:

- Nada de cenas de amor, meus pequenos. A situação já é bastante escaldante. Então decidimo-nos ou não?

- Se Joe não quiser ser dos nossos, passaremos sem ele.

- E cada um de nós ficará com cem mil marcos!

- concluiu Wollenczy. - Ergueu-se calmamente, com uma elegância digna da sua aparência. - Eu não vejo qualquer inconveniente. Para quando é isso, Fritz?

- Depois de amanhã é dia trinta. Heidrich aprovou com a cabeça.

- De acordo.

- E tu, Joe? - Pohlschláger deitou um olhar de soslaio a Dicaccio, antes de acrescentar: - Demasiado cagarola para ires para diante?

Olga mordiscava a orelha de Joe. Ele franziu os sobrolhos, ergueu os ombros, tentando desembaraçar-se de Olga como se ela fosse uma gata importuna.

- Depois de amanhã. Okay! - Levantou-se. Olga recuou. Os seus olhos negros faiscavam. - Tens as armas? - perguntou Joe, voltando-se para. Pohlschláger.

- Sim.

- Good night...

Sem se preocupar mais com os outros, Joe saiu da sala. Pohlschláger, pensativo, seguiu-o com o olhar. Apossava-se dele uma curiosa angústia. Não reconhecia Joe. Que teria ele? Medo? Escrúpulos? Consciência? Porquê aquela repugnância em matar alguns tipos?

Heidrich e Wollenczy deixaram um após o outro a casa da Bendergasse. Wollenczy subiu para um carro desportivo, novo em folha, de um vermelho vivo, testemunho de amor de uma viúva de Estugarda com desejos de voltar a casar. Atravessou a cidade tendo nos lábios o sorriso satisfeito das pessoas a quem nada falta.-

Do outro canto da rua partiu o carro de Heidrich

- uma carrinha Ford, americana, na qual estava escrito em letras amarelas «Importação de fruta. SARL» - em direcção ao aeroporto, onde Heidrich habitava uma casinha bastante isolada.

Joe Dicaccio partiu em passos lentos, discretos, à imagem da sua pessoa. Um noctâmbulo tranquilo que acabara de deixar os seus amigos saía de um cinema ou de um cabaré. Uma patrulha da polícia não lhe concedeu um olhar. Só a maneira de andar de Joe era estranha: leve, silenciosa, felina. Mas quem se vai preocupar com a maneira de uma pessoa andar à uma hora da manhã?

Heidrich, o gorila, passou por ele com a sua Ford e saudou-o com três leves buzinadelas; fez-lhe até um ligeiro sinal amigável com a cabeça, e depois o carro desapareceu na obscuridade. Joe continuou o seu caminho, pensativo, hesitante e totalmente abstraído daquilo que se iria passar dois dias depois.

«Idiota», murmurou entre dentes no momento em que Heidrich passou.

Joe meteu as mãos nos bolsos e sentiu nos dedos o contacto frio e metálico do revólver. Retirou vivamente a mão e deixou-a exposta ao ar fresco da noite, como para a desembaraçar de um cheiro repugnante.

Dinheiro em caixa? Setenta e cinco mil marcos!

Uma vida com Olga... uma vida fácil e sem dificuldades. Uma vida em que os beijos se misturariam ao perfume das grandes planícies do Oeste, aos gemidos dos rios, à sombra das imensas florestas e dos pomares sem fim.

Joe Dicaccio encolheu os ombros estreitos. Estremeceu.

Matar uns tipos? Setenta e cinco mil marcos!

Bem podia ter saudades do seu Minnesota bem-amado... mas estava contente por se encontrar na Alemanha, onde não se arriscava a vida por se cometer um assassínio.

Olga Katinsky despira-se. Com uma curta camisa de nylon, estava estendida sobre o sofá e olhava Pohlschlàger, que, debruçado sobre a planta da cidade, desenhava a lápis vermelho um traçado através das ruas.

- Vens? - disse ela, bocejando.

- É só um instante.

- Que estás a fazer?

- Estou a marcar o itinerário por onde havemos de fugir. Não deve haver quaisquer hesitações.

- Pensas em tudo, não? - Olga passou a mão pelos cabelos. - O que é que nós faremos se isso resultar?

- Havemos de nos arranjar.

- Vamos para o estrangeiro? Pohlschlàger ergueu a cabeça.

- Para o estrangeiro? E para quê? No mundo inteiro não há para a nossa profissão lugar mais seguro do que a Alemanha Federal. Seríamos idiotas se deixássemos este paraíso.

Pousou o lápis, ergueu-se, espreguiçou-se e olhou para Olga. O candeeiro da mesa-de-cabeceira lançava raios amarelados sobre a camisa de nylon... uma camisa leve como um véu. Pohlschlàger sorriu.

- Eva em pessoa - murmurou.

Iam de bicicleta em direcção à floresta.

Era uma tarde de quarta-feira, dia feriado oficial para os funcionários. O Sol brilhava; aquele dia de Primavera estava bonito. O verde tenro das folhas começava já a escurecer. Nos jardins, peónias e rododendros desabrochavam.

Willy Sanger tinha posto o seu casaco sobre o guiador. A camisa de mangas curtas inchava com o vento. A seu lado pedalava Helga Kramer, vestida com umas calças justas de veludo vermelho e com uma camisola amarela. Os cabelos louros estavam protegidos por um lenço de musselina estampado, cuja ponta lhe flutuava atrás como uma pequena bandeira. Willy Sanger olhava de tempos a tempos para a sua companheira, e de cada vez sentia subir nele uma lufada de calor. «É assim quando estamos apaixonados», pensava. «Perde-se a respiração e sente-se o coração bater de tal maneira que parece que se vai partir. Tem-se a garganta apertada ao ponto de não se conseguir engolir a saliva.»

Desviou o olhar de Helga e olhou novamente a direito, na sua frente, a estrada poeirenta. Ao longe distinguia-se a mancha verde da floresta, anunciadora da tranquilidade e da frescura.

Depois do almoço, Willy e Helga tinham-se encontrado, com as suas bicicletas, diante da casa da jovem.

- Que fazemos esta tarde? - perguntara Helga.

Willy Sanger era escrivão do tribunal e encarregado de anotar as declarações das testemunhas e dos acusados. Era muito hábil em estenografia, o que lhe valia ser o preferido entre os seus colegas aquando dos grandes processos.

Helga Kramer trabalhava como estenodactilógrafa na Chancelaria. Tinha vinte e um anos, era amável e sorridente. Entre a loura Helga e Willy estabelecera-se uma corrente de simpatia. Tinham-se encontrado primeiro por acaso, à saída dos seus gabinetes. Apressavam-se os dois, com as pastas debaixo dos braços, como se tivessem urgência em ir apanhar o eléctrico. No dia seguinte encontraram-se de novo, outra vez por acaso, nos corredores do imenso Palácio da Justiça. Dois dias mais tarde, Willy Sanger atravessava o vestíbulo, aguardando um encontro «fortuito». Junto ’da cabina do porteiro, esperava que Helga descesse com pés ligeiros a larga escadaria, à hora de encerrarem as repartições. Willy absorveu-se numa conversa com o porteiro. Depois seguiu Helga, observou que ela tomava um eléctrico da linha 12, que levava a uma direcção completamente oposta à que ele devia seguir, o que o desgostou imensamente.

Os encontros acidentais multiplicaram-se visivelmente. Ao fim de duas semanas, Willy Sanger ousou cumprimentar a menina Kramer. Ao fim de três falou-lhe num corredor. O destino quis que Helga tivesse de ir entregar um dossier a Willy Sanger para que ele o completasse e o transmitisse ao tribunal regional competente.

A entrevista começou com pulsações aceleradas e terminou com a sensação de se ter conduzido como um perfeito idiota... o que é, de resto, a marca clássica do amor nascente.

Willy Sanger tirou o dossier das delicadas mãos da rapariga e limpou a testa com um gesto um pouco teatral. Ardia interiormente e sentia-se ao mesmo tempo gelado. Perguntou espirituosamente:

- Não acha que o calor está opressivo para a época?

- Como? - perguntou por sua vez Helga, pondo a cabeça ligeiramente de lado.

- Talvez seja do Foehn1, ah, ah, ah!

Após esta temerária incursão no reino do humor, uma terrível impressão de vazio apoderou-se de Willy Sanger. Pôs-se a folhear o dossier, deu ao rosto uma expressão jurídica e científica, procurando maneira de prosseguir uma conversa tão brilhantemente iniciada.

- Um caso de delito menor - concluiu, após ter lido algumas linhas do dossier. - Deve ser aborrecido para si transcrever tal miscelânea.

- Oh, habituamo-nos - declarou a menina Kramer, fazendo um trejeito com a boca para dar mais peso às suas palavras.

Willy Sanger reparou nesse trejeito, que lhe deu um desejo irresistível de lhe beijar a boca; sentiu um nó na garganta, engoliu várias vezes a saliva, limpou novamente a testa e confirmou:

- É certamente do Foehn.

- Tão longe das montanhas?

- Sim, sim, precisamente. Deve ser muito violento para soprar até aqui, e isso abala terrivelmente o sistema nervoso.

A menina Kramer deitou um olhar assustado para o seu relógio de pulso. Willy Sanger reparou então que ela usava um verniz de unhas incolor e não tinha anel de noivado. Tinha uma manchazinha de tinta no indicador

l Foehn: vento do sul muito seco, frequente na Primavera e no Outono, que sopra com violência nos vales das vertentes norte dos Alpes (N. da T.)

direito. Uma manchazinha bonita, muito redonda, enternecedora, que acabou por cortar a respiração a Willy Sanger. Procurando maneira de escapar àquela situação embaraçosa, olhou também para o relógio e exclamou:

- Meu Deus... os dossiers*. Até amanhã, menina. Afastou-se, com os dossiers debaixo do braço, meteu

por um corredor secundário e parou fora das vistas de Helga Kramer. Respirou fundo, examinou a sua imagem na vidraça de uma janela e fez um pequeno cumprimento, exclamando em voz alta:

- Pobre idiota!

Um magistrado que passava sobressaltou-se e voltou-se. O corredor estava vazio. Willy Sanger já voltara para o seu gabinete. O magistrado prosseguiu o seu caminho, abanando a cabeça. Os nervos... pregam-nos destas partidas. Já era altura de ir ter uns dias de repouso... à custa do Estado.

Desse primeiro contacto com Helga Kramer nasceu o amor. Quem se admiraria? Uma conversa a propósito do vento Foehn que logicamente levaria a uma tempestade de sentimentos.

Willy Sanger tomou a liberdade de acompanhar Helga Kramer a casa e, uma noite, beijou-a junto da entrada das traseiras da casa paterna. Como Helga não reagiu dando-lhe uma bofetada, Willy supôs que ela não considerara esse acto estúpido e renovou-o.

E agora, naquela tarde ensolarada, tinham saído da cidade e dirigiam-se para o campo.

Diante de uma estalagem, desmontaram das suas bicicletas e conduziram-nas para o parque de estacionamento. Junto deste havia um terraço com mesas brancas abrigadas sob guarda-sóis coloridos. Poucas dessas mesas estavam ocupadas: era ainda cedo... a maior parte dos frequentadores do café faria a sua aparição no autocarro das dezasseis horas.

Perto do muro do terraço, sentado sob um guarda-sol de riscas vermelhas e verdes, Joe Dicaccio bebia um sumo de fruta lendo o Stars and Strips, jornal destinado aos soldados americanos. Não prestou qualquer atenção aos recém-chegados. Willy e Helga passaram em frente dele, sentaram-se três mesas mais adiante, também junto do muro, pediram dois cafés e contemplaram a orla da floresta próxima, atrás da qual se escondiam os locais secretos dos seus felizes amores.

Na bandeja havia um papel com a indicação do preço e a data: 29 de Junho.

Quarta-feira, 29 de Junho.

Joe Dicaccio tinha o olhar perdido no seu copo. Faltava uma noite. Na manhã seguinte, às sete e meia, encontrar-se-iam em frente da casa de Pohlschlàger. Com um carro que o elegante Wollenczy devia roubar cinco minutos antes de se encontrarem - era precisamente na elegância dele que confiavam, pois ninguém duvidaria que o carro lhe pertencia - partiriam logo depois para o banco. Pohlschlàger olharia para o relógio. Como outrora no ataque-relâmpago nas Ardenas...

Ainda dez horas... oito... sete... seis... três... duas... uma... zero! Sair do carro, passar pela entrada, abrir a porta... três, quatro rostos admirados atrás de um longo balcão com guichés de vidro... os revólveres saídos dos bolsos ameaçando os rostos assombrados... tiros... gritos... gemidos. Dois saltos por cima do guiché, o dinheiro metido num saco... À entrada, Heidrich, o Chorão, agarrando tolamente pelo queixo um cliente matinal... mais depressa... mais depressa... o cofre vazio ao lado do guiché dos pagamentos, o caixa estendido com o rosto dilacerado por duas balas... outro salto por cima do balcão... sair a correr... entrar no carro...

Trezentos mil marcos!

Quatro mortos, merda!

Uma carnificina!

Entretanto, no apartamento da Bendergasse, Olga Katinsky esperaria. «Darling», diria ela, «és um verdadeiro herói.» Depois a noite com Olga, uma noite inteira... tendo no bolso setenta e cinco mil marcos, que lhe permitiriam mostrar o mundo a Olga e voltar ao Minnesota, a sua terra.

A quinta dos pais, as grandes manadas de bois, os campos de trigo tão vastos como toda a Renânia. O pai estaria de pé diante das escadas de madeira da casa, de olhar franzido. «Hello, Joe», gritaria ele, «eis-te de volta!» E ele responderia: «Hello, Daddy! Apresento-te Olga, aquela que eu amo.»

Uma carnificina?

Não queria pensar nisso... O Minnesota ficaria longe e Olga era o seu primeiro grande amor...

Criaria bois. Trabalharia nos campos com o tractor; faria a cultura do tabaco, dos cereais e da fruta. E Daddy ficaria feliz por ter tão bom filho. E Mainmie... a querida velha e rechonchuda Mammie... que ele nunca vira vestida senão com um velho avental e que cheirava a empadão de leitão e a leite coalhado. Querida, boa Mammie.

Quatro mortos... Um assassínio?

Com um gesto brusco, Joe Dicaccio repeliu o seu copo e ergueu-se. Deitou um marco para cima da mesa e foi-se embora, passando diante de Willy Sanger e de Helga Kramer, que, de mãos dadas, tinham o olhar perdido na floresta.

- Vamos para a beira do lago? - perguntou Helga com voz meiga.

Willy fez um sinal de cabeça afirmativo.

- Gostas assim tanto de lá estar?

- E o mais belo local do mundo... contigo.

Joe ouvia bocados da conversa deles. Não pôde conter um sorriso. Sempre a mesma conversa... quer se tratasse de Olga ou daquela boneca loura...

Ao volante de um pequeno carro francês que ele comprara em segunda mão, Joe dirigiu-se para a cidade.

Não escolhera aquele carro porque lhe agradasse especialmente, mas sim porque o depósito da gasolina se encontrava à frente. Em caso de perseguição não poderiam perfurá-lo com balas.

Nesse dia, devia sair da Penitenciária Central de Rheinbach um homem cujo aspecto, modos, estado psicológico - segundo diziam os médicos --, convicção religiosa - segundo afirmava o capelão da prisão - eram tão comuns como o seu nome bem alemão. Kurt Meyer.

Meyer com y... ele dava a isso uma grande importância. Aquando de todos os inquéritos, de todos os interrogatórios, ele esclarecera sempre: «Meyer com y...» e na penitenciária não era designado doutro modo.

Friedrich Moll, conselheiro do Governo e director da Penitenciária de Rheinbach, olhou para Kurt Meyer, que tinha menos do que ele a altura de uma cabeça. Meyer, com o fato azul-escuro com que se apresentara na penitenciária quatro anos antes, encontrava-se à porta do gabinete directorial. O nó da gravata estava bem feito. Mandara cortar o cabelo mais uma vez pelo barbeiro do estabelecimento: curto atrás, um corte militar. O rosto, um pouco pálido, mas liso, estava barbeado de fresco. O homem olhava para Friedrich Moll com um olhar quase cândido.

O director pegou num dossier, folheou-o e disse:

- Você será libertado hoje, Meyer.

- Senhor Meyer - replicou com um sorriso indulgente. - A minha pena está terminada e eu volto, portanto, a ser senhor Meyer. Sou igualmente reintegrado em todos os meus direitos civis.

Friedrich Moll procurava em vão um rasto de ironia naquela voz nem aguda nem grave, mas que condizia com Meyer como a marca de um artigo de série.

- Você cumpriu a sua pena até ao fim. Quatro anos por falsificação grave de documentos - disse Moll, erguendo os olhos do dossier.

O olhar de Meyer indiferente, quase cansado.

- Você sabe... hum... senhor Meyer... que havia também suspeita de assassínio?

- Nunca conseguiram qualquer prova contra mim.

- Isso não quer dizer que... Kurt Meyer ergueu a mão.

- Dá-me licença? Protestei outrora diante da polícia criminal, perante o Ministério Público, aquando do meu processo, perante o tribunal, contra essa calúnia. Queriam fazer de mim o assassino do comerciante de quem falsifiquei os cheques; eu teria suprimido assim a principal testemunha. Não queria, no momento de me separar de si, e quando aprendi a apreciá-lo muito, sentir-me obrigado a apresentar contra si uma queixa por difamação.

Friedrich Moll mordia os lábios. Fechou o dossier com uma pancada seca, aproximou-se da sua secretária e disse em voz alta:

- Meyer...

- Senhor Meyer, se faz favor.

- Vai voltar para a liberdade depois de ter passado aqui quatro anos e é meu dever dizer-lhe algumas palavras... o regulamento assim o exige. Você, que tão bem conhece o regulamento... Você, que durante estes quatro anos tantas vezes o invocou...

- Estava no meu direito, senhor director. Como cidadão, eu...

- Bem... compreende tanto melhor, então, porque aproveito esta ocasião para lhe dizer algumas palavras de despedida, para que elas lhe sejam úteis.

- Ouço-o, senhor director.

A voz era obsequiosa, de uma humildade que roçava pela insolência.

- Não será fácil para si inserir-se na sociedade.

- Digamos que isso só a mim diz respeito.

- Tem esperança de encontrar rapidamente emprego?

- Como hei-de saber?

- Tem conhecimentos?

- Talvez...

- Posso ajudá-lo de uma maneira ou doutra?... Recomendá-lo?

- Não, obrigado.

- Poderia arranjar-lhe um lugar de guarda-livros. Teria durante três meses um salário de experiência. Não seria muito, mas... pense bem.

Kurt Meyer ergueu o braço. Esse gesto tornou Moll prudente. Calou-se.

- Cumpri a minha pena e não desejo que continuem a falar-me como se fosse um forçado. Desde o meio-dia de hoje, hora da Europa Central, sou um homem livre e na plena posse de todos os meus direitos civis.

Friedrich Moll encolheu os ombros. Hesitava ainda em entregar a Meyer o atestado de libertação que lhe permitiria proclamar-se um homem como os outros.

- Onde irá habitar? Indicou Colónia como residência provável?

- Sim.

- O senhor é de Duisburg e vivia lá. É certo que a sua mulher obteve o divórcio e que o apartamento lhe foi atribuído... Mas porquê escolher precisamente Colónia? Tem lá parentes ou amigos?

- Sim.

- Sabe que à sua chegada a Colónia se deve apresentar à polícia?

- Conheço a lei nos seus mínimos pormenores.

- Com certeza... com certeza... tinha-me esquecido. Moll sorriu com ar entendido. - Espero que não voltemos a encontrar-nos aqui... senhor Meyer.

- Também o espero.

- E escreva-me a dizer como lhe correm as coisas. Meyer aquiesceu com um gesto de cabeça e afirmou

com suavidade:

- Terá notícias minhas, senhor director. Friedrich Moll não prestou atenção ao duplo sentido desta resposta; para ele era apenas uma maneira de falar. Dirigiu-se para a sua secretária, sentou-se e assinou com uma elegante rubrica o certificado de libertação de Kurt Meyer com y.

Oficialmente, Kurt Meyer era um homem livre.

Olhava com ar satisfeito o papel que Moll lhe estendia. Quatro anos, pensava Meyer. Quatro anos naquela caserna. Quatro anos terríveis... não exteriormente, pois tudo estava pautado como papel de música. A precisão alemã e uma administração eficiente velavam por isso. Mas interiormente... quatro anos a roer o freio... O abandono da mulher, os testemunhos dos seus dois melhores amigos, o requisitório esmagador do procurador, que lhe valera ter sido tão severamente condenado... Meyer não esquecera nada disso naqueles quatro anos.

Agora estava livre: Meyer, cidadão da República Federal. Entregar-lhe-iam o bilhete de identidade, um abono temporário até ao momento em que ele tivesse conseguido emprego. Arranjar-lhe-iam um rapidamente, pois os serviços de assistência oficiais não têm o hábito de delapidar os seus fundos.

Friedrich Moll tirou Meyer dos seus pensamentos entregando-lhe o certificado.

- Aqui tem, senhor Meyer.

- Obrigado, senhor director.

- Desejo não voltar a vê-lo, Meyer.

- Senhor Meyer, senhor director...

Inclinou-se como um guarda-livros distinto apresentando o livro da contabilidade ao patrão. Depois dirigiu-se para o corredor, na extremidade do qual se encontrava a grade.

O guarda Puck, que estava encostado à parede, aproximou-se dele.

- Terminado, Meyer?

- Senhor Meyer... A partir deste momento, sempre senhor. Faço questão nessa apelidação burguesa.

O guarda Puck teve um sorriso aberto e, nada impressionado, prosseguiu:

- Despacha-te, meu rapaz. A tua mala está já junto do porteiro. Vêm buscar-te?

- Não.

Meyer observava Puck. O jovial guarda, um pouco gordo de mais, caminhava ao lado dele, fazendo tilintar o seu molho de chaves. As chaves eram o símbolo de Puck! Mesmo à noite, quando fazia a ronda, fazia-as tilintar e, pelo ruído, podiam segui-lo de andar em andar...

Ao fim de uma semana, Meyer fizera uma queixa oficial: segundo o regulamento da penitenciária, os detidos têm direito ao sono durante a noite. Ora o sono era perturbado por esse ruído de chaves do guarda Puck. Ao fim de um ano, Meyer compreendeu que as queixas não serviam de nada. Puck continuava a fazer tilintar as suas chaves tão naturalmente como um cão ladra...

- O senhor sempre foi gentil para mim, senhor Puck, e se puder enviar-lhe-ei uma caixa de bons charutos. Espero que não ma devolva - disse Meyer um instante antes de deixar a secção administrativa.

O guarda Puck sorriu largamente.

- Com certeza que não. Não se trata de corrupção de um funcionário, você é um homem livre, Meyer.

- Senhor Meyer.

Vinte minutos mais tarde, Kurt Meyer estava na rua. Chovera momentos antes, mas agora o sol fazia cintilar a calçada asfaltada e absorvia gulosamente a humidade. Ao longe, os campos mal se viam. A porta blindada voltara a fechar-se depois de Meyer sair. Este sentia ainda na mão os cumprimentos de despedida do guarda Puck e do porteiro, o atlético guarda Schmitz.

Meyer olhou para o seu relógio. Após quatro anos, acabavam de lho entregar. Batia suavemente, com batidas regulares, fiéis, como se durante quatro anos não tivesse ficado nas mãos das autoridades prisionais.

Uma e meia! Devia ter sido libertado ao meio-dia.

Uma longa demora! Mais uma razão para se queixar. Que sucederá ao Estado se as autoridades delapidam assim o tempo!

Meyer pousou a sua mala sobre o asfalto ainda molhado e olhou o céu. Um céu azul com nuvenzinhas brancas. «Cirro-cúmulos», pensou, «é assim que se chamam.» Seis anos antes ele lera um estudo sobre a formação das nuvens. «E curioso como certos pormenores nos ficam gravados na memória.»

Meteu a mão no bolso interior do seu casaco e tirou de lá a carteira. Como quatro anos antes, tinha ali algumas folhas de papel branco e um lápis cuidadosamente afiado à mão. Meticulosamente, com uma bela caligrafia, Kurt Meyer escreveu numa folha quatro nomes:

Anna.

Johann Kabel. Peter Heidenberg. Dr. Gotthart Berger.

Escreveu-os por ordem, uns por baixo dos outros. Foi o seu primeiro acto de homem livre, quando os muros da penitenciária de Rheinbach se erguiam ainda por detrás dele. Depois voltou a guardar a folha na carteira e esta no bolso interior do casaco, pegou na mala e partiu em direcção à estação. Encontrou dois guardas da penitenciária e cumprimentou-os com um sorriso amável e cordial.

- Boa sorte - disse-lhe o guarda Barth.

- Bem preciso dela - respondeu Meyer. Na estação comprou um bilhete para Colónia. Mas foi para Duisburg que ele se dirigiu.

No decorrer da noite seguinte, a senhora Anna Zierner, divorciada de Meyer, foi assassinada na sua cama. O assassino serviu-se do pé de ferro do candeeiro da mesinha-de-cabeceira para lhe partir o crânio.

De madrugada, Kurt Meyer, um pouco fatigado mas contente, empurrava a porta principal da estação de Colónia.

Na sua folha o nome de Anna foi riscado.

E em Colónia habitava o homem que se encontrava em segundo lugar na sua lista.

Kurt Meyer, na praça da estação, com a cabeça inclinada para trás, olhava as flechas da catedral, rosadas sob os primeiros raios do Sol. Admirava a cúpula, estava quase maravilhado. «Que edifício», pensava! Lembrou-se da capela da penitenciária, onde, como segundo-tenor, cantara durante três anos no coro Louvado Seja o Senhor e Jesus, Nós Seguimos-Te.’... O capelão era um bom homem... e no último ano Meyer servira-lhe um pouco de sacristão.

Kurt Meyer ergueu a cabeça e afastou-se a passo largo. Um homem entre centenas de outros. Um homem apagado, sem qualquer sinal distintivo.

Subiu para um eléctrico da linha 21 e o seu rasto perdeu-se. Os jornais, quinze dias mais tarde, publicaram, na rubrica dos acontecimentos diversos, na terceira página:

«...Foi retirado do Reno o corpo de um tal Johann Kabel. Afogamento acidental devido provavelmente a embriaguez...»

«Morte misteriosa por intoxicação com gás do contabilista Peter Heidenberg, em Krefeld...»

«Procura-se o Dr. Gotthart Berger, perito em grafologia. Há cinco dias que não aparece em casa. Estava de perfeita saúde quando deixou o seu domicílio. Pede-se que comuniquem qualquer informação útil ao comissariado...»

Atirados pela janela de uma mansarda de Bona, alguns pedaços calcinados de papel voaram ao vento de Verão e voltejaram um instante no céu azul: os últimos restos de uma pequena folha branca que fora queimada depois de os quatro nomes que ela continha terem sido riscados.

A ordem é a qualidade fundamental para quem exerce a profissão de guarda-livros.

No dia seguinte de manhã, ao darem as nove horas, o Dr. Doernberg entrou no gabinete do procurador com a impressão de ter passado uma noite em branco. Era como se o sono que ele devia ao soporífero não tivesse interrompido alguns instantes os seus pensamentos revoltados. Levantara-se muito cedo, tomara um duche e instalara-se à sua mesa de trabalho, a fim de redigir uma carta de demissão. Explicava claramente as razões pelas quais queria deixar o Ministério Público.

Depois, relendo as primeiras linhas, tivera a sensação de que a sua carta era uma espécie de fuga diante das responsabilidades. Rasgou a folha de papel e fez com ela uma bola, que deitou para o cesto dos papéis.

Não iria refugiar-se na tranquilidade, no abandono, mas sim combater. Combater com os meios que lhe davam a lei, a razão, a reflexão, os factos e o bom senso comum. Não tinha a impressão de ser um mártir ao bater à porta do procurador. Mas adivinhava que entrara numa via que lhe traria mais censuras que louvores.

Entrou na sala e encontrou o presidente do tribunal, o Dr. Hellmig, com um charuto nos lábios, sentado num cadeirão de vime, em frente do Dr. Karlssen. Fumar um charuto logo de manhã denotava em Hellmig um grave estado de agitação que exigia o estimulante da nicotina. Voltou a cabeça para a porta no momento em que Doernberg entrou.

- Que coincidência, Doernberg - disse com uma ironia mordaz.

Doernberg inclinou-se e dirigiu-se ao procurador.

- Esta coincidência provoquei-a eu. Suponho que o senhor presidente veio falar-lhe do meu requisitório de ontem.

O olhar desconcertado do procurador ia de Hellmig a Doernberg. Encolheu os ombros. O seu rosto estreito, de têmporas grisalhas, exprimia um espanto sincero. Os aros dourados dos seus óculos brilhavam ao sol que entrava pela janela. Doernberg pensou bruscamente na alcunha que davam a Karlssen, entre colegas: «o Belo»... o tipo querido pelas mulheres, elegante, distinto, de palavra fácil, resposta pronta. Os seus requisitórios, pronunciados apenas nos casos importantes, eram modelos deslumbrantes de arte oratória. Os advogados temiam-no... os seus argumentos eram tão claros e incisivos que lançavam faíscas, como um diamante.

O Dr. Hellmig pousou o seu charuto no cinzeiro.

- Ainda não falei no caso, Doernberg. Mas visto que aborda um assunto tão penoso, é melhor explicarmo-nos.

Os olhos do Dr. Karlssen continuavam a ir de um para o outro. Finalmente, sorriu.

- Senhores, não compreendo. Houve controvérsia entre o tribunal e o Ministério Público?

- Não foi bem isso.

O Dr. Hellmig pegara novamente no seu charuto e contemplava a ponta. As suas mãos tremiam ligeiramente de excitação contida.

- Sinto-me pessoalmente visado na minha maneira de conceber a lei penal e, como direi, ofendido também, por uma declaração feita ontem, no fim do seu requisitório, pelo doutor Doernberg.

Karlssen lançou ao seu substituto um olhar rápido, como se esperasse dele uma explicação mais clara. Mas já Hellmig prosseguia:

- O doutor Doernberg, levado, creio eu, pelo seu ardor juvenil e pelo horror justificado que lhe causava o crime que o tribunal estava a julgar, exprimiu-se de um modo que eu, como presidente, devo censurar. Permite que o cite, Doernberg?

- Faça favor, senhor presidente - replicou secamente Doernberg.

Hellmig, com os olhos fitos em Karlssen, citou palavra por palavra:

- «Hoje, do lugar que ocupo, lamento profundamente, senhores jurados, não poder dizer-lhes: Eu reclamo a pena de morte!»

Karlssen, surpreendido, perguntou:

- Doernberg disse isso? Nesses termos?

- Literalmente.

- E então, senhor presidente?

Hellmig pousou o seu charuto, cujo gosto lhe pareceu subitamente amargo. O «e então?» do procurador era uma pergunta que se assemelhava a um desafio. Hellmig respirou profundamente.

- Aprova a declaração do doutor Doernberg?

- Isso seria dizer muito.

Karlssen deitou um olhar para Doernberg. «Como ele ainda é ingénuo», pensou. «Não pregou olho toda a noite.»

- Suponho que o nosso colega deixou falar mais os seus sentimentos pessoais do que a sua opinião jurídica. O caso Katucheit, devemos reconhecê-lo, é de uma sordidez revoltante.

Doernberg abanou a cabeça. Helfmig e Karlssen olhavam-no, assombrados, enquanto ele explicava com voz firme:

- Não! Não... eu pesei cada uma das minhas palavras.

Hellmig ergueu-se de um salto, com o rosto vermelho de cólera.

- E incrível! A pena de morte foi abolida em virtude do artigo 102 da Constituição da República Federal da Alemanha. A decisão tem força de lei. Foi tomada, após discussão e voto do Parlamento, com data de 5 de Junho de 1949. Apareceu no diário oficial a 23 de Junho do mesmo ano. Por razões morais e religiosas, aprovo inteiramente esse artigo 102... e isso, senhores, hão deviam ignorá-lo!

- Isso foi há oito anos. Para tentar apagar o passado, mostrámo-nos mais demagogos que democratas. - A voz de Doernberg tremia. - Durante estes oito anos, desde que os culpados não arriscam as suas cabeças, os crimes graves multiplicaram-se com uma aceleração assustadora.

Hellmig deu uma pancada sobre a mesa.

- Recuso essa afirmação. As estatísticas demonstraram que, depois de uma guerra perdida, a criminalidade aumenta sempre e que é necessário um longo período de calma para que a vida volte à normalidade.

- A guerra terminou há doze anos, senhor presidente. Não creio que a normalização - segundo as estatísticas - englobe toda uma geração.

A voz do Dr. Karlssen, calma, distinta, como era seu hábito, fazia estremecer os nervos do Dr. Hellmig.

- Ataques à mão armada, crimes passionais e sexuais, feitos por jovens, por adolescentes até, tornaram-se tão numerosos que fazem reflectir. É exacto que os delitos menores vão diminuindo. O nível de vida melhorou. Já não vale a pena roubar alguns marcos ou surripiar maçãs. Nesse ponto as estatísticas têm razão... regressão da criminalidade. Mas, pelo contrário, o número dos crimes graves aumenta.

O Dr. Hellmig passava a mão pelos cabelos brancos. Acabou por dizer, com voz cortante:

- Fiz mal em vir falar-lhe, senhor procurador. Devia ter pensado que o Ministério Público acharia mais simples cortar a cabeça a um homem que tentar fazer-lhe resgatar a sua alma, ajudando-o a descobrir o que há nele de bom e puro. Cada homem, mesmo que seja um assassino, tem alma. E essa alma, a criatura deve-a a Deus. Não temos o direito de separar a alma do corpo, pondo fim à vida humana por intermédio de uma guilhotina... Isso, senhores, era a ideia que faziam da justiça os povos primitivos.

Karlssen não pareceu dar a mínima importância à observação desagradável respeitante ao Ministério Público e Doernberg não pôde deixar de admirar o seu superior ao perguntar, com o ar mais calmo deste mundo:

- O assassínio não é também um acto primitivo? O presidente Hellmig sobressaltou-se.

- Um crime resulta sempre de um ataque de loucura.

- O assassínio também?

- Não creio no crime com premeditação.

- Sim? - O procurador olhava com interesse para Hellmig, que se mostrava desconcertado. - E o assassínio com roubo? Aquilo a que se costuma chamar o crime crapuloso?

- Um homem que toma a decisão de matar outro não se encontra no seu estado normal. Crime por ciúme... a excitação física suplanta a razão. Crime por razões sexuais... a natureza submerge os conceitos morais. Crime por cupidez, por espírito de lucro, todos os crimes crapulosos... o autor encontra-se num estado de angústia, de desespero, que lhe faz esquecer a lei, e o seu pânico interior é tal que ele se apodera dos bens de outrem agindo pela força, sem pensar mais naquilo que faz. Crime por vingança?... Ainda neste caso, a força dos sentimentos aniquila todas as regras morais.

Hellmig aproximou-se da janela. O sol matinal brilhava nos seus cabelos brancos.

- Esquecemos sempre que somos apenas homens. Dependemos dos nossos sentimentos, da nossa dissociação interior. Mas a nossa alma foi Deus que no-la deu. Teremos nós a audácia de corrigir pela guilhotina a obra de Deus?

Karlssen olhou para a sua secretária. A sua voz calma quebrou o silêncio que se seguira à declaração apaixonada de Hellmig.

- De Deus vem-nos também o quinto mandamento: «Não matarás».

Hellmig voltou-se, pronto para responder, mas Karlssen não lhe deu tempo.

- Alguma coisa não me parece bem na sua concepção da vontade de Deus, senhor presidente.

Hellmig estava agora no meio da sala.

- O quinto mandamento é um freio espiritual. Talvez isto lhe seja mais compreensível. - disse com brusquidão.

- Assim, segundo a sua opinião, cada assassino é um ser que infringe as leis de Deus? Um ser cujos freios não funcionam?...

Karlssen sorria amavelmente. Hellmig abanou a cabeça. Havia no seu gesto algo de tão definitivo e de tão abrupto que era quase um ultraje para Karlssen.

- Eu esperava que desse provas de uma certa compreensão e que não fizesse ironia acerca de problemas tão graves. Não me queiram mal por eu levar esta nossa conversa ao conhecimento do senhor procurador-geral.

Hellmig voltou-se bruscamente. Tinha lágrimas nos olhos. Sem cumprimentar, saiu da sala. Estava perturbado e perguntava a si próprio de que forma apresentaria o incidente ao procurador-geral. Era também preciso pôr ao corrente a autoridade superior. Estava em jogo a honra da lei e da justiça. E ele não estava disposto a deixar-se dobrar.

Com passos rápidos, sacudidos, o Dr. Hellmig voltou ao seu gabinete para se preparar para o último acto do caso Katucheit. Tinha meia hora...

Tirou uma garrafa da prateleira do armário, bebeu meio cálice de conhaque e folheou os jornais da manhã para ler as narrativas sobre os debates do caso Katucheit.

Os comentários eram todos idênticos: «O procurador tem razão. Quando será restabelecida a pena de morte?... Por que razão fica o Bundestag mudo? Quando será dado crédito ao sentido social do povo?...»

Hellmig dobrou os jornais e empilhou-os, desgostoso.

- Repugnante - resmungou entre dentes. - O sentido social do povo? O que é que isso quer dizer? Ter a barriga cheia...

Olhou para o relógio e envergou a toga. Essa toga cujas pregas simbolizavam o seu direito a proclamar diante de todos a sua opinião de representante da justiça e de juiz independente.


O procurador abanou a cabeça ao ver o Dr. Hellmig sair da sala com precipitação. Karlssen era inimigo de qualquer precipitação. Ele não jogava o boxe, apenas dava um toque... não saltava da sela, esporeava. E foi sem erguer a voz que observou:

- Você ultrapassou o objectivo, meu caro Doernberg... Veja o exemplo dos diplomatas. Se dissessem tudo o que pensam, o mundo estaria em conflito permanente... A sua declaração não lhe deu nada além de uma guerrazinha privada com Hellmig. Uma guerra fria... os golpes vão ser dados sub-repticiamente e consistirão sobretudo de calúnias murmuradas ao ouvido. A sua carreira era prometedora. Isto pode prejudicá-la.

Doernberg mordia os lábios.

- Eu tinha vindo, senhor procurador, com a firme intenção de lhe apresentar a minha demissão. A minha consciência não me permite fazer requisitórios e reclamar penas que acho absurdas. É o menos que posso dizer.

Karlssen fitou o seu interlocutor.

- Não tem razão, Doernberg. Não tem de pleitear com o seu bom senso de homem, mas sim com o seu cérebro de jurista. É o que o Ministério Público espera de si! Deve manter-se numa linha fixa, traçada antecipadamente para cada processo. Essa linha não ultrapassa a lei, o parágrafo; quando muito pode acrescentar um comentário ou invocar uma decisão que faz jurisprudência. Tudo o que for para além disso pertence às suas convicções pessoais; não interessa aos outros e, sobretudo, não interessa ao Estado, que você está encarregado de representar. Passa-se o mesmo com a pena de morte. O Estado suprimiu-a e, portanto, nós respeitamos essa decisão e pedimos condenação à prisão perpétua. A não ser que queira subverter tudo.

- É isso que eu desejo.

- Você é um quimérico, meu caro Doernberg.

- E a partir de hoje erguer-me-ei contra essa lei.

Quero sacudir a inércia dos espíritos. Sei que a maioria do povo partilha da minha opinião.

- Vai falar-me de estatísticas!

- De uma realidade que ninguém pode ignorar.

- Pode-se perfeitamente ignorar, creia. Vai ser um quebra-cabeças para si. Pense bem que não terá apenas como adversário o poder legal, o Governo e o Parlamento, mas também uma força espiritual, religiosa, que os apoia.

- Referir-me-ei a uma lei velha como o mundo: Vox populi, vox dei...

- Senhor! - exclamou Karlssen juntando as mãos.

- Se só reclamar isso! A voz do povo! É mais importante ter por si alguns chefes de fila de um partido do que milhares de assinaturas numa petição reclamando a reposição da pena de morte.

Doernberg encontrava-se no meio da sala e baixava os olhos. Nunca até então se apercebera a que ponto se encontrava só. E ainda mais: encontrava-se diante de um muro demasiado alto, largo e comprido para ser transposto. E lembrou-se do que lhe dissera um dia o seu reitor quando ele se insurgira contra uma injustiça cometida por um professor: «Meu caro Doernberg... na vida, lembre-se que o muro é mais forte que a cabeça que bate contra ele.»

- Dirigir-me-ei também aos chefes dos partidos disse com obstinação.

Karlssen abanou a cabeça.

- Mais uma coisa, Doernberg, a mulher do presidente é a irmã mais nova do cardeal Eberhardt Kernmayer. - Encolheu os ombros. - Deixe isso, Doernberg.

- Não, senhor procurador. E se deseja que eu cesse imediatamente as minhas funções, estou pronto a fazê-lo. Gostaria também que o procurador-geral fosse posto ao corrente.

- Hellmig encarrega-se de o informar, não tenha dúvidas! - Karlssen ergueu-se, aproximou-se de Doernberg e deu-lhe uma palmada amigável no ombro: - De momento ocupe-se do caso Katucheit.

Prevista para as onze e meia, a audiência foi atrasada. Mal saiu da sua cela, Katucheit, com as algemas nos pulsos, pediu para ser conduzido às casas de banho.

- Houve sopa de feijão ontem à noite - replicou Katucheit. - Tenho dores de barriga.

- Podia ter pensado nisso mais cedo - resmungou o guarda. - Os juizes...

- Muito bem... Se não puder conter-me faço no banco dos réus, em frente de toda a gente.

O tribunal teve de esperar que Katucheit fizesse as suas necessidades, ao mesmo tempo que cantava uma canção em moda.

O guarda Kroll, que passava nesse momento, olhou com espanto para o seu colega especado no corredor.

- Quem é?

- Katucheit!

- E está a cantar?

- Estás a ouvi-lo!

- Maldito!... Porque é que não lhe mandamos simplesmente cortar a cabeça...

- Não fui eu que fiz as leis. Se me perguntassem a opinião...

Os debates começaram com um quarto de hora de atraso..

A palavra cabia à defesa.

O advogado, o Dr. Klimsch, pleiteou sem ardor mas com habilidade. Pediu um novo exame. Esse exame, segundo ele, revelaria que, no momento em que se tinham dado os acontecimentos ali examinados, o seu cliente não se encontrava na posse de todas as suas faculdades mentais; que os gritos da adolescente tinham provocado nele um estado de pânico e de pavor que o levaram ao seu gesto. A morte da criança fora, portanto, resultado de um acesso de loucura. Katucheit reconhecia a violação; nesse momento não pudera reprimir o seu desejo, mas o crime que se seguira fora involuntário. Não se podia deixar apodrecer um homem toda a vida numa prisão por causa de um acto cometido num momento de aberração mental e moral.

- Por isso, em virtude do artigo 51 da lei, peço ao tribunal que encare apenas o caso como violação seguida de pancadas que levaram à morte. Peço ao júri que mostre benevolência para com o meu cliente, concedendo-lhe circunstâncias atenuantes...

Peter Katucheit abanava a cabeça e sorria beatificamente. Um famoso advogado, aquele Dr. Klimsch. «Como quem não quer a coisa, quer fazer-me passar por um idiota...»

Doernberg olhou Katucheit e, vendo o sorriso do assassino, sentiu náuseas. Pensou de novo em Monika, sua filha, e fechou os punhos sobre a secretária. O seu rosto crispou-se. Teve dificuldade em dominar-se, em não se levantar de um salto, em não tomar por testemunha toda aquela sala e gritar: «Vejam o sorriso daquela fera! As pessoas que aqui estão, sessenta ou setenta, levantem-se, arranquem aquele animal do banco dos réus, enforquem-no, estrangulem-no, linchem-no. O Estado não vos protege! Vai dar asilo a este monstro; garantir-Ihe-à uma cama, dois cobertores, uma cela aquecida, alimentação e bebida, livros, jogos e um jornal todas as semanas.

Doernberg fitou o presidente. O rosto do Dr. Hellmig estava impassível. Também ele reparara no sorriso de satisfação de Katucheit. Mas não queria pensar nisso: o homem correspondia francamente à imagem que o substituto esboçara dele. O presidente voltou-se para Doernberg.

- O Ministério Público tem alguma questão a pôr? Doernberg levantou-se. A sua voz era cansada. A sua impotência, a impotência do povo em nome do qual ele devia requerer a justiça, acabrunhava-o.

- O Ministério Público ergue-se contra um novo atraso no processo com o novo exame requerido pela defesa. A atitude do acusado, as suas afirmações claras, as declarações das testemunhas, deram-nos um quadro que um novo exame não poderia modificar. O acusado é inteiramente responsável pelos seus actos.

Katucheit inclinou-se e bateu no ombro do seu advogado de defesa, que se voltou.

- Que é?

- Deixe isso do novo exame, doutor. Não tem sentido. Aquele tipo é um nojo. Se um dia o matarem, mereceu-o bem.

- Katucheit!

O advogado voltou-lhe as costas.

Entretanto, o Dr. Hellmig falara aos seus dois assessores e aos jurados. Reuniu na sua freTite as peças do dossier, antes de declarar:

- O pedido da defesa é recusado. Mais alguma coisa a acrescentar?

O Dr. Klimsch abanou a cabeça. Hellmig ergueu-se com um frufru da sua toga.

- A audiência está suspensa para deliberações.

Não concedeu um só olhar a Doernberg e desapareceu pela pequena porta, ao fundo do estrado. Katucheit foi igualmente levado para fora da sala. Manteve uma conversa animada com o seu guarda, contando-lhe em termos imaginativos como os seus intestinos lhe pregavam a partida quando comia sopa de feijão.

No corredor, Doernberg encontrou o procurador, que o levou para uma sala vazia e lhe ofereceu um cigarro.

- O procurador-geral deseja falar-lhe quando terminar a audiência. Além disso, pediu-me um relatório a seu respeito.

Doernberg abanou a cabeça, pensativo. Aspirava largamente o cigarro e expelia imediatamente o fumo.

Karlssen deu-lhe uma palmada nas costas e disse-lhe num tom quase de camaradagem:

- Eu vou apoiá-lo, Doernberg. Eu levarei a água ao seu moinho.

- O senhor?

Karlssen deu-lhe outra palmada nas costas.

- Mas não ceda, meu velho. Se quisermos fazer saltar nem que seja uma faísca, temos de ter nervos sólidos. Digamos até que será melhor não termos nervos nenhuns... estamos prestes a ser considerados rebeldes... E há centenas de anos que o destino dos rebeldes é trágico...

Quatro horas mais tarde, Peter Katucheit era condenado a prisão perpétua e privado dos seus direitos civis por toda a vida.

O presidente do tribunal olhou por um instante para Katucheit.

- O condenado tem alguma coisa a declarar?

- Sim. - Katucheit levantou-se e pousou sobre o substituto uns olhos cheios de ódio e de uma ferocidade selvagem.

- Espero que haja uma nova guerra. Então ficarei livre. Não esquecerei os nomes daqueles que hoje me condenam.

- Levem o condenado!

O Dr. Hellmig baixou a cabeça. Sentia-se envergonhado perante Doernberg.

A noite trouxe ao Dr. Hellmig um certo apaziguamento. Ficara perturbado pela terrível declaração final de Katucheit. Que triunfo Doernberg tiraria dali! Mas a situação só fortalecia as opiniões do presidente; mais do que nunca, ele se opunha a castigar um criminoso segundo os métodos sangrentos da Idade Média... Para Hellmig, a pena de morte era isso.

Ruth Hellmig, irmã do cardeal-arcebispo Kernmayer, convidava às vezes alguns amigos escolhidos. Hellmig não apreciava recepções ruidosas. Apreciava a calma, o espírito, o reconforto de uma conversa interessante; um jogo de xadrez acompanhado por um cálice de Porto, ou apenas fumar tranquilamente junto da chaminé do grande salão. Encontrava nesse recolhimento novas ideias, contentamento interior e confirmação de que o ritmo da sua existência era bom e até frutuoso.

A presença de Mr. John Pattis dava nessa noite à reunião uma nota particularmente interessante. John Pattis, um rapaz alto e delgado, de vinte e cinco anos, rosto de feições rudes, viera de Los Angeles para a Alemanha para aí terminar os seus estudos jurídicos e familiarizar-se, nomeadamente, com o direito alemão. Apresentara-se um dia ao Dr. Hellmig - no decorrer de uns debates sobre um ataque à mão armada - e este dissera-lhe:

- Minha mulher e eu teríamos muito prazer em que fosse uma destas noites a nossa casa, Mister Pattis.

John Pattis tomara à letra este vago convite e, com a rapidez da reacção devida ao seu carácter americano, apresentara-se dois dias mais tarde em casa dos Hellmig. O jovem levava flores para a dona da casa, o que mostrava bem como se tinha adaptado aos hábitos alemães.

Intencionalmente, o Dr. Hellmig evitara falar do direito penal americano. Sabia que a pena de morte existia nos Estados Unidos; que uma lei especial - a lei Lindbergh - punia com a pena capital o rapto de uma criança, mesmo que esta fosse entregue viva a seus pais. Sabia também que as sanções da justiça americana eram em certos casos, nomeadamente na violação, muito mais severas do que na justiça alemã.

Hellmig falou com Pattis da América em geral, das quedas do Niagara e dos costumes de Hollywood, o que lhe permitiu meter na conversa algumas observações mordazes sobre a moralidade do mundo do cinema.

Pattis estava prestes a despedir-se quando Sylvia voltou para casa.

Vinha do cinema e vestia um impermeável cuja estreita cintura fazia valorizar não só a sua esbelteza mas também as belas proporções do seu corpo.

O Dr. Hellmig levantou-se do seu cadeirão em frente da chaminé e fez um gesto com a mão.

- Sylvia, apresento-te Mister Pattis. Vem da América para estudar junto de nós, austeros juristas, o direito alemão e a sua aplicação. - E, dirigindo-se a Pattis:

- Minha filha, Sylvia...

Sylvia Hellmig sentiu a mão presa no aperto vigoroso da mão de Pattis e notou no rosto dele um brilho de admiração. «Eis que subitamente surge um homem no nosso pequeno círculo», pensou ela, sarcástica. «Depois de todos esses estudantes patetas e estagiários que se inclinam cada vez que o papá diz uma frase, que, cheios de um santo respeito, ficam colados à pedra da chaminé a ouvir as palavras que saem dos lábios do senhor presidente do tribunal, eis de repente um rapaz de um género diferente, novo, e que me aperta a mão como que num torno...»

Sorriu, reservada.

- Como está, senhor. Encontra-se há muito tempo na Alemanha?

- Sim... oh!... não - balbuciou Pattis.

Os olhos de Sylvia perturbavam-no. Olhou Hellmig, que fumava o seu charuto.

- Há algumas semanas... A Germany... penso que é maravilhosa.

- A Alemanha?

- Também...

Sylvia Hellmig riu descontraidamente.

Pattis corou e, sem saber que fazer, enfiou as mãos nos bolsos.

Sylvia desapertou o cinto da gabardina, despiu-a e colocou-a num braço de uma cadeira. Por baixo trazia um vestido leve, cor de reseda. Pattis não tirava os olhos dela.

- Estava certamente a contar a meu pai uma velha lenda índia - disse Sylvia para animar a conversa.

John Pattis engoliu a saliva.

- Falávamos da construção da grande via que leva ao Alasca.

A sua voz era profunda e quase sem sotaque estrangeiro. Esperou que Sylvia se sentasse e deixou-se cair em frente dela, sobre um banquinho. Ela cruzou as pernas e ele teve todo o vagar de as admirar.

John Pattis pegou no seu copo e engoliu um longo gole do vinho do Porto apreciado por Hellmig. Este não sabia se se tratava de um Porto de origem. Comprava-o aos barris, porque era barato, numa casa que vendia vinhos por grosso e que fazia regularmente publicidade no jornal dos funcionários. Era para Hellmig uma garantia de qualidade. Quando se faz propaganda de artigos no jornal dos funcionários, é porque eles devem ser bons... Além disso, aquele vinho agradava-lhe... Nunca lhe causava azia.

A senhora Hellmig ergueu-se e ofereceu em volta uma bandeja com sanduíches. Era aquele o costume em casa dos Hellmig. Mesmo sendo as bandejas preparadas na cozinha pela empregada, eram os donos da casa que as serviam aos seus convidados. A criada só aparecia em raras ocasiões, por altura das grandes recepções... e com um traje um tanto fora de moda: touca e avental de rendas sobre um clássico vestido de seda preta e meias escuras. A senhora Hellmig assim o queria.

John Pattis, habituado às sanduíches, comia-as com apetite. Sylvia observava-o de soslaio. «Um garoto crescido», pensava ela, divertida. «Um fruto verde, desajeitado, um pouco desengonçado... mas, no entanto, com uma virilidade que desconcertava.»

A conversa prosseguia calmamente.-O aparecimento de Sylvia parecia ter pregado a língua de Pattis, mas ele não perdera o apetite por isso e escolhia, sem o parecer, as sanduíches com tomate e cebola.

- Entre nós, em Los Angeles - disse ele fitando Sylvia -, o tomate é sobretudo o produto-base do ketchup. De tempos a tempos, também são utilizados para bombardear um personagem impopular.

Soltou uma gargalhada, enquanto Hellmig tossia discretamente. A senhora Hellmig abanou a cabeça, indulgente.

Quando, um pouco mais tarde, John Pattis se retirou, Sylvia acompanhou-o até à porta de entrada e disse-lhe num tom natural:

- Volte a visitar-nos em breve, Mister Pattis. Foi um serão muito agradável. E previna antes pelo telefone. Arranjar-lhe-ei um caixote de tomates!

Pattis murmurou atrapalhadamente as boas-noites e atravessou o jardinzinho a grandes passadas. Uma vez na rua, escondeu-se atrás de uma árvore e ficou a ver Sylvia fechar a porta. Viu por instantes o corpo delgado da jovem perfilar-se atrás da porta envidraçada, como uma sombra chinesa.

«A very nice girl», murmurou a meia voz. Acendeu um cigarro e ficou encostado à árvore até ao momento em que a lâmpada que iluminou a entrada da casa do Dr, Hellmig se apagou.

Em seguida desceu lentamente a rua, em direcção ao sítio onde tinha deixado o seu pequeno carro. Perto dali, vestindo um impermeável azul, encontrava-se um homem de estatura mediana, cujos cabelos louros esvoaçavam ao vento de Verão.

John Pattis abrandou o passo e examinou o desconhecido. Atirou o cigarro para o chão, meteu a mão no bolso do casaco e agarrou no seu pequeno revólver. Ouvindo os passos aproximarem-se, o homem que esperava voltou-se, com um largo sorriso.

- Hello! - disse com voz suave. Pattis imobilizou-se.

- Quem é você? Dicaccio ergueu os braços.

- Vou explicar-lhe... Vi pela matrícula do seu carro que vinha do Wisconsin. Isso foi um choque para mim. Alguém da minha terra em pleno coração da Alemanha. De onde é?

- De Green Bay - disse Pattis reticentemente.

- À beira da água, no lago Michigan... Green Bay, conheço! A noite, quando se está na margem ao sol-poente, o lago torna-se vermelho como sangue. O céu é um incêndio e as nuvens parecem carvões ardentes. Nessas tardes eu atirava-me à água e nadava para longe... longe. E era feliz... outrora, no meu Wisconsin...

Pattis prestava atenção. Havia na voz daquele homem uma expressão que afastava o receio que Pattis sentira quando o vira ali parado e imóvel. Aproximou-se de Dicaccio.

- E foi para me contar isso que esteve à minha espera?

- Não só. Vi-o sair de casa do doutor Hellmig. Conheço-o... pelo que dizem os jornais. Ele condena os rapazes maus.

Dicaccio sorria ligeiramente. Pattis sentiu-se novamente invadido por um curioso sentimento de receio e de vigilância. Apoiou-se ao carro e olhou Dicaccio. Este encolheu os ombros. Dir-se-ia que estremecera apesar da quente noite de Verão.

- Um minuto, my friend. Preciso de lhe falar.

- Porquê?

- Porque vem do Wisconsin. Por isso, unicamente por isso. De tempos a tempos temos na vida um momento de fraqueza, um impulso sentimental, compreende? Dizemos então que só a alma conta e quando tentamos ver melhor as coisas o coração revolta-se. É uma situação estúpida. Não é feita para nós, é contrária à nossa profissão... Projectamos uma enorme roubalheira... para amanhã de manhã.

Pattis sobressaltou-se.

- Contra Hellmig?

Dicaccio abanou a cabeça. Pattis abriu a porta do carro e fez sinal ao outro.

- Quer entrar? - perguntou com voz rouca de excitação.

- Okay.

Dicaccio instalou-se ao lado de Pattis. Quando este quis pôr o carro em andamento, pousou-lhe a mão no braço.

- Para onde vamos?

- Não importa para onde. De resto, podemos ficar aqui.

Retirou a chave da ignição e meteu-a no bolso, ao lado do revólver carregado.

- Que quer dizer-me?

- Chamo-me Joe Dicaccio... Conduzo-me como um patife falando-lhe disto. Mas queria ter a certeza, sabe? Não lhe direi o meu nome e, se tentar agarrar-me ou fazer qualquer outra asneira, eu...

Dicaccio bateu na axila. «Revólver à tiracolo», pensou.

- Está bem. Fale... :

- Vamos assaltar um banco.

- Ah! Está na moda!

Tirou do bolso a cigarreira de ouro e ofereceu um cigarro a Dicaccio.

- E porque me diz isso?

- Os outros querem atirar a matar.

- Quais outros?

- O boss... e eu devo disparar também. Mas preferia não me meter no caso. Por isso é que lhe venho perguntar: se realmente tiver de me servir da arma e matar um alemão, serei extraditado para os Estados Unidos?

- De onde é originário?

- Do Minnesota.

- E é procurado lá?

- Não no Minnesota, mas em Nova Iorque, no Wisconsin e no Texas.

- Assassínio?

- Rapto.

- Hum. - John Pattis voltou-se para Dicaccio. O kidnapping é a maneira mais segura que tem de ir parar à cadeira eléctrica, bem sabe.

- As autoridades alemãs entregar-me-ão?

- Penso que sim. Para isso nem sequer é preciso matar... será extraditado, mesmo que seja apanhado num hold-up. Seria melhor deixar tudo isso. Que tem feito até agora?

- Pequenos arrombamentos.

- Fique por aí e viva com honestidade - troçou Pattis.

- Eles considerar-me-ão cobarde...

- Os outros?

- E Olga.

- Também há uma mulher no caso?

- Só por causa dela é que eu aceitei... Quero levar Olga para o Minnesota.

Dicaccio piscou os olhos. Por instantes teve um ar perigoso, bestial, cruel. Pattis levou a mão ao bolso, como se quisesse tirar de lá a chave da ignição. Dicaccio sorriu com maldade.

- Deixe o seu brinquedo onde está - ordenou secamente. - Amo Olga.

- E ela também o ama?

- Sim.

- Tem a certeza?

Joe reflectia. Pensava em Fritz Pohlschlàger, que vivia com Olga. A falar verdade, ele, Joe, era apenas o favorito de Olga... quando Pohlschlàger estava à sombra. Enquanto o belo Fritz vivia em liberdade, vigiava Olga como uma jóia e impunha com brutalidade o seu direito de prioridade.

- Haverá ainda uma discussão por causa dela acabou por declarar sombriamente Joe.

Pattis encolheu os ombros, meteu a chave na ignição, deixou o motor acelerar um pouco e olhou Dicaccio.

- Vamo-nos embora ou quer sair?

Tanto tom como a pergunta eram ambíguas.

- Saio...

- Da alhada em que está metido também, Dicaccio?

- Há setenta e cinco mil marcos em jogo, boy... e Olga.

- Vai parar a Sing-Sing, pode estar certo. Eles extraditam-no, tão certo como dois e dois serem quatro.

Pattis deu uma cotovelada a Dicaccio.

- Tem a certeza de que Olga vale isso?

- Não a conhece!

- Graças a Deus!

- É uma réplica, em moreno, da Monroe.

- Mesmo por Marilyn não me faria assar na cadeira eléctrica.

Dicaccio abriu a porta e saiu. Depois inclinou-se para o interior e estendeu a mão a Pattis.

- Adeus, boy... virá com certeza a saber por que razão o abordei e lhe contei todos estes disparates...

Dicaccio fechou a porta. Olhou uma última vez para Pattis através do vidro e afastou-se absorvido pela escuridão da noite, com passos leves, ágeis, silenciosos... passos de gato.

Quando Dicaccio desapareceu completamente da sua vista, Pattis sentiu-se aliviado. Passou a mão pela testa e quando a retirou viu que estava húmida, viscosa e fria.

Na sua cabeça agitava-se aquilo que Dicaccio lhe contara. Um verdadeiro turbilhão de pensamentos, de planos, de decisões. Partiu a toda a velocidade. Devia ir à polícia... foi a primeira ideia de Pattis; ou às redacções dos jornais, ou à rádio. Todos os bancos, todas as agências de caixas económicas deviam ser prevenidos. Bruscamente travou e obrigou o carro a descrever meia volta. Voltar a casa de Hellmig... não tinha pensado nisso mais cedo. Mas que poderia Hellmig fazer? Prevenindo-o talvez fosse pôr Sylvia em perigo. Conhecia os métodos dos gangsters, que se vingavam em inocentes. Perturbado, inundado de suor, parou em frente de um café e desceu. Sentou-se num canto, pediu um conhaque e engoliu-o de uma só vez, o que o fez tossir.

Que dissera exactamente Dicaccio? Vamos assaltar um banco? Talvez se tratasse de uma brincadeira de mau gosto, de uma vulgar aldrabice. Um tipo que pensa ir assaltar um banco não o vai dizer, à noite, a uma pessoa que não conhece, simplesmente porque o carro dessa pessoa tem uma chapa de matrícula do Wisconsin. Um homem que se prepara para dar um golpe desses cala-se!

Pattis bebeu outro conhaque. Era certamente uma brincadeira de mau gosto. Quem seria suficientemente louco para ir dizer a um desconhecido que se preparava para assaltar um banco? E se fosse verdade?

«Vou à polícia», anunciou Pattis em voz baixa.

Pediu um terceiro conhaque. Enquanto pagava, o empregado olhou-o e perguntou-lhe:

- Já tinha bebido antes de vir para aqui?

- Sim.

- Então siga pelas ruas pouco movimentadas. Um encontro com a polícia pode custar-lhe ficar sem a sua carta de condução.

Novamente perturbado, Pattis saiu do café. Sentou-se ao volante. De súbito, sentiu a cabeça pesada, como se tivesse durante horas carregado sobre a nuca um saco de cem quilos... Apertou as têmporas com as mãos e fechou os olhos.

«Preciso de ir à polícia», pensou. Tenho de avisar a polícia. Dicaccio é o nome do homem. Dicaccio, um tipo do Wisconsin, nascido no Minnesota, à beira do lago Michigan. Assalto a um banco e talvez assassínio.

Partiu através da cidade, conduzindo de qualquer maneira, com o cérebro enevoado pelo álcool. Voltou para a pensão familiar onde vivia e estendeu-se em cima da cama completamente vestido. Pensava em Joe Dicaccio, um rapaz magro e louro do Minnesota, que se preparava para cometer um crime pelos bonitos olhos de uma puta. Depois pensou em Sylvia. Fechou os olhos e viu-a na sua frente. Ouvia a voz dela, o seu riso, as suas palavras trocistas. Via o brilho dos seus olhos azuis e a dança dos caracóis louros que lhe emolduravam o rosto bonito.

Pattis procurou um cigarro às apalpadelas e acendeu-o com mão mal segura. «Que diabo», pensou, «tremer ao pensar numa mulher! Terei chegado ao mesmo ponto que esse pequeno gangster Dicaccio? Ele tem a sua Olga... e eu penso em Sylvia!»

Levantou-se, olhou com ar ausente para a janela iluminada pela lua, depois abriu uma garrafa de uísque e começou a beber pelo gargalo, para acalmar a sua excitação.

Uma hora mais tarde, completamente embriagado, despiu-se, cantarolando uma cantiga em voga, e meteu-se debaixo do edredão. A sua roupa encontrava-se espalhada pela sala.

A madrugada cinzenta já se erguia por cima dos telhados quando ele perdeu a consciência e adormeceu, estendido de costas, de boca aberta e respiração ofegante, com um sono de chumbo, que durou até ao meio-dia.

Curtiu a embriaguez esquecido das vidas humanas que poderia ter salvo com um telefonema, um alerta, uma declaração.

O caixa do Banco Norte-Sul, em Wiesbaden, abrira o seu guiché e contava os maços de notas antes de os colocar nos compartimentos que tinha à frente. Empilhava-os cuidadosamente uns ao lado dos outros... Os maços de notas de mil marcos, de quinhentos e os outros, maiores, de dez e de cinco marcos... Às oito e meia - como sempre a 30 de cada mês -, os funcionários de três fábricas viriam levantar o dinheiro para pagar ao pessoal. Para facilitar a operação, as somas estavam preparadas. Inútil verificar: três pessoas tinham-se encarregado de o fazer e haviam posto as suas assinaturas nos recibos de entrega.

Ao lado do guiché do caixa, um empregado metia na máquina calculadora um novo rolo. O dia 30 era sempre um «dia de grande trabalho»... O serão seria ainda mais agradável, por contraste. Os seus chinelos de feltro, o cachimbo, o rádio, uma garrafa de cerveja e um bom cadeirão confortável para ler os jornais com as últimas notícias... arrombamentos, assaltos a motoristas de táxis, aumento no preço da carne, malogro no lançamento de um foguetão americano, tensão no Próximo Oriente... hold-up num banco de Essen...

«Isso nunca sucederá aqui», pensou ele, «com o dispositivo de alarme que nos liga à esquadra mais próxima » Os bandidos não teriam tempo de chegar à porta do banco, e já o carro da polícia ali estaria, pronto para os apanhar. Em Wiesbaden estavam preparados contra esses tipos.

O empregado fechou a máquina e cobriu o rolo com a capa de tela, guardando a chave no bolso das calças.

Oito horas. O empregado empurrou os batentes da porta que dava para a dependência onde se encontrava o balcão, abriu a porta envidraçada exterior, carregou num botão. As grades de ferro forjado afastaram-se silenciosamente.

O banco estava aberto. Havia na caixa exactamente 145.346 marcos. Num cofre encontravam-se mais 200.000 marcos suplementares. Iriam buscá-los em caso de necessidade.

O caixa sentou-se atrás do guiché. Tirou da sua pasta dois embrulhinhos e meteu-os num dos compartimentos da gaveta. Sanduíches de presunto. Aquela querida Erna pensava em tudo - sabia que o dia seria duro e que ele gostaria de comer qualquer coisa quando tivesse um momento de descanso.

Dois clientes matinais - professores que só começavam as aulas às nove horas - foram rapidamente atendidos.

Às oito e dez, um belo carro cinzento-pérola parou em frente da porta. Um potente carro de turismo, conduzido por um homem muito elegante. A sua gravata, condizente com a cor do carro, resplandecia ao sol matinal. A mão que segurava o volante era branca e bem cuidada. Na mão esquerda brilhava um diamante que, se fosse verdadeiro, valia ainda mais do que o carro.

Através da porta envidraçada, o caixa deitou um olhar rápido para o automóvel cinzento. «Um director-geral», pensou. Previdente, abriu a sua gaveta-caixa para ter os maços de notas de mil ao alcance da mão. Servir o cliente com rapidez... era uma das regras a que não devia faltar um banco digno desse nome.

Fritz Pohlschlàger, sentado à frente, ao lado de Wollenczy, voltou um rosto duro, determinado, para Dicaccio e o Chorão.

- Está tudo bem claro? - perguntou com voz calma. Heidrich disse que sim com a cabeça. Tinha um nó na

garganta e era incapaz de articular qualquer som: os seus lábios tremiam. Era o maior golpe em que ele jamais participara.

Pohlschlàger teve um sorrisinho.

- Molhas as calças, não, Chorão?

- Vai para o inferno - resmungou Heidrich. Pohlschlàger fitou Dicaccio. Este estava sentado no banco na posição de uma fera prestes a saltar. Debaixo do casaco, o revólver fazia uma bossa.

- A tua arma está carregada?

Dicaccio não respondeu. Pohlschlàger comprimiu os lábios.

- É contigo que estou a falar, Joe. Dicaccio abanou a cabeça.

- Okay.

Pohlschlàger pousou a mão sobre o fecho da porta do lado direito, ergueu o braço esquerdo, para subir a manga, e olhou para o relógio de pulso.

- Mais dezasseis segundos - disse sem que nada na sua voz traísse a menor agitação.


Heidrich transpirava abundantemente. Sentia o suor correr-lhe pela testa e pelas costas. Wollenczy, descontraído, muito elegante, com uma indiferença que quase orlava a inconsciência, continuava sentado ao volante. Vendo uma bonita rapariga que passou junto do carro a bater no chão com os saltos altos do? seus sapatos vermelhos, exclamou com admiração:

- Bela garota!

- Mais dez segundos... oito...

«Como nas Ardenas», pensava Dicaccio, «no dia em que nos batemos corpo a corpo e em que a batalha degenerou em carnificina. Uma porcaria de guerra, uma guerra feroz... para salvar a civilização da Europa... diziam-nos eles!...»

- Ainda quatro segundos... três, dois, um... vamos!

Pohlschlâger abriu a porta. Dicaccio e Heidrich saíram pelas outras portas. Subiram de um salto os poucos degraus da entrada. O Chorão ficou à entrada, maciço, enorme, invencível, enquanto Pohlschlâger e Dicaccio irrompiam pela sala dos guichés e disparavam. Sem um aviso, sem uma palavra, sem uma hesitação... dispararam para os olhos apavorados do caixa e do funcionário, os olhos incrédulos e franzidos que não compreendiam o que viam e que se apagaram com essa expressão estupefacta enquanto os seus corpos tombavam. O caixa caiu para cima da sua gaveta aberta, sobre as duas sanduíches preparadas pela sua Erna para aquele difícil dia 30, que ficaram encharcadas em sangue.

O outro empregado caiu, accionando, num gesto desesperado, o dispositivo de alarme... uma campainha retiniu por toda a casa; no telhado começou a apitar uma sirena. Heidrich, na escada, estremeceu como se tivesse recebido uma pancada na cabeça; Pohlschlâger visou mais uma vez o homem moribundo enquanto Dicaccio estava já a apanhar o dinheiro e a enfiá-lo para dentro de um saco. Pohlschlâger arrancou o saco das mãos de Dicaccio e correu para a saída. Heidrich ia já em direcção ao carro.

Wollenczy pusera o motor a trabalhar e permanecia com uma mão no volante, a outra na alavanca das mudanças e o pé sobre o acelerador, pronto a partir.

A sirena continuava a apitar. Dicaccio descia os degraus, de revólver em punho. Viu, pelo canto do olho, surgir à esquina da rua um automóvel verde-escuro. Wollenczy tremia. Heidrich e Pohlschlâger entraram no carro. Dicaccio corria como um louco... mais quatro passos... três...

Do carro verde partiu uma rajada. Dicaccio baixou-se. Disparou por sua vez sobre os uniformes verdes que saíam do carro. Viu um polícia largar a arma e ficar estendido no solo. Depois chegou junto do carro cinzento, atirou-se para cima do banco de trás e, fazendo voar o vidro em estilhaços, disparou uma vez mais sobre dois polícias que tinham passado por cima do corpo do seu camarada.

Wollenczy partiu. Um salto para a frente... o ranger das mudanças de velocidade... e o potente carro voou ao longo das ruas assinaladas no mapa a vermelho que, para maior segurança, Wollenczy pregara sobre o tablíer do carro.

Franz Heidrich estava inclinado para trás, com o rosto pálido, o corpo agitado por tremuras.

- Meu Deus! Meu Deus! - murmurava ele. Pohlschlâger abanou a cabeça e um pálido sorriso

apareceu-lhe nos lábios.

- Sim, Joe é um bom atirador... estilo Chicago de primeira classe. Peço-te desculpa, Joe... por momentos pensei que ias fraquejar.

Dicaccio não respondeu. Sentado no banco olhava com ar ausente para as ruas que o carro percorria para saírem de Wiesbaden e aproximarem-se do Meno.

«Aqueles olhos», pensava com fadiga, «aqueles olhos... e aquelas bocas abertas de onde saía o sangue. Como o polícia ergueu o braço... Terá gritado? Não ouvi nada. Oh, foi horrível, horrível

Pohlschlàger apertou um pouco mais na mão o saco que continha o dinheiro.

- Tu terás um prémio especial, Joe! Livraste-nos dos polícias!

Com um gesto rápido, Dicaccio ergueu o revólver.

- Cala a boca - gritou com voz aguda. - Mais uma palavra e mato-te.

Pohlschlàger encolheu-se e voltou-se para a frente. Com uma expressão má, olhava a estrada pela qual o carro agora corria. Um pouco mais longe, num bosque, outro carro esperava-os. Deixariam ali o carro roubado e iriam em seguida tranquilamente para Francoforte, tendo no porta-bagagens uma quantia fabulosa.

Heidrich tirara um frasco do bolso e bebia a grandes goles. O espectáculo do polícia a cair sob as balas de Dicaccio dera-lhe cabo dos nervos. Queria chorar, mas não conseguia exprimir o seu pavor senão tremendo convulsivamente. Era a primeira vez que via morrer um homem... Mesmo durante a guerra ninguém caíra debaixo dos seus olhos, porque fora cozinheiro numa caserna em Mulheim, no Rhur. E agora via-se metido num assalto em que matavam um chui em menos tempo do que era preciso para o dizer, friamente, sem piedade, em poucos segundos. Esta ideia fez perder a Heidrich a pouca coragem que lhe restava. Despejou o frasco e disse com voz fraca e ofegante, como um moribundo.

- Não os sigo mais... não quero ser metido nesta história. Vocês são criminosos, assassinos vulgares. Oh! Meu Deus! Meu Deus!

Quando chegaram a Francoforte, à Bendergasse, Heidrich, completamente embriagado, rebolou para fora do carro. Dicaccio e Wollenczy tiveram de o levar para dentro de casa. Atiraram-no para um canto e rodearam Pohlschlàger, que esvaziava o saco sobre a mesa.

Maços de notas... rolos de moedas... algumas notas soltas... 134000 marcos. Dicaccio olhou Olga. Com os olhos franzidos, ela contemplava o dinheiro. Os seus lábios, de um vermelho ultrajante, tremelicavam.

- Saímos de Francoforte esta noite mesmo - anunciou Pohlschlàger com uma voz calma de homem de negócios. Nenhum de nós sabe que direcção levam os outros. Encontramo-nos dentro de três meses em Munique, no Bayerischerhof. Estaremos no hotel a 30 de Outubro, às dez da manhã. Daqui até lá perdemos o rasto uns dos outros.

Wollenczy começou a dividir os maços de notas em quatro pequenos montes... Pohlschlàger separava os rolos de moedas. Num canto, Heidrich gemia. Dormia e de vez em quando gritava:

- Patifes... São uns patifes!...

Dicaccio olhou novamente para Olga. Mas quando os olhos de ambos se cruzaram, os da mulher estavam indiferentes.

Antes de enfrentar o procurador-geral, o Dr. Doernberg’foi procurar o seu superior directo, o Dr. Karlssen.

O procurador meteu debaixo do braço um estreiro dossier de capa azul-clara com uma referência escrita a tinta-da-china.

- O relatório a seu respeito, Doernberg.

E também o meu pedido de deixar o Ministério Público.

Karlssen empurrou Doernberg na sua frente para o fazer sair do gabinete.

- Eu sou um simples e por vezes minucioso representante da justiça. Como pode pedir-me que escreva brincadeiras?

- Mas não pode haver nada de mais sério, senhor procurador.

- E a sua luta pela pena de morte? - Karlssen parou e olhou Doernberg através dos óculos. - Sabe bem que um corpo exangue não pode ser salvo senão por meio de transfusões, por meio de sangue novo e fresco. Considere a justiça alemã como uma doente grave e considere-se a si como um dador de sangue.

Precedeu Doernberg no corredor. Este hesitou em segui-lo e o procurador voltou-se de novo para ele.

- Aceite as consequências dos seus actos, Doernberg - disse gravemente. - Você passou ao ataque contra o muro da burocracia alemã e bateu com a cabeça nesse muro, um muro corroído, prestes a cair. Doernberg. Pedem-lhe agora que pague a.s despesas da reparação. Não fuja a isso.

- Posso garantir-lhe que o não farei, senhor procurador.

- Bom! Vamos falar com o procurador-geral. O doutor Bierbaum é um jurista de grande classe. Quando a lei constitucional foi votada e a abolição da pena de morte introduzida pelo artigo 102, ele ofereceu uma rodada aos amigos com quem se reúne habitualmente no café e bebeu à saúde dos criminosos. Depois calculou em que altura as penitenciárias estariam cheias e o momento em que se tornaria necessário construir novas prisões para alojar decentemente os senhores criminosos, enquanto as pessoas vulgares continuariam a viver apertadas em pequenos apartamentos. Actualmente, em todos os Lànder, a administração penitenciária tem grande dificuldades em encontrar lugares para os grandes criminosos. Pelo rnenos uma centena de assassinos andam num vaivém entre as penitenciárias de Hammeln e de Celle.

Karlssen dava livre curso ao seu cinismo.

- Você não faz ideia, Doernberg, das preocupações que a infeliz justiça alemã tem já com os seus filhos adoptivos... os detidos condenados apenas a alguns anos de prisão.

Começaram a subir a larga escadaria do Palácio da Justiça e dirigiram-se para o primeiro’ andar, onde se encontravam os gabinetes dos altos magistrados regionais.

Sem passar pelo secretariado do Dr. Bierbaum, Karlssen bateu directamente à porta do seu gabinete. Uma voz convidou-o a entrar.

Quando Karlssen e Doernberg entraram, o procurador-geral ergueu-se da cadeira onde se encontrava sentado atrás da secretária. Era um homem corpulento, de crânio redondo e calvo. Com passos pesados, aproximou-se dos visitantes, apertou-lhes a mão com cordialidade, indicou-lhes com um gesto as cadeiras que se encontravam em frente da secretária e voltou ao seu lugar.

O procurador-geral colocou na sua frente o dossier que o Dr. Karlssen trouxera. Veremos isto mais tarde, significava o gesto. «Antes de lermos o relatório, observemos este jovem magistrado, que parece não ter ainda compreendido muito bem o seu papel de funcionário. São coisas que sucedem sobretudo aos jovens juristas. Os seus superiores benevolentes chamavam a esses impulsos descontrolados ’complexos dos assessores’.» Bierbaum não queria no seu ministério apaixonados, mas sim homens reflectidos, tendo na cabeça os parágrafos do Código e dominando os seus impulsos.

- Meus senhores, é inútil explicar-lhes porque lhes pedi que viessem aqui - declarou logo o procurador-geral.

- O nosso colega Hellmig é conhecido pela rapidez com que entra em acção - replicou Karlssen com a sua tranquila ironia.

Bierbaum, que observava as suas mãos, ergueu por instantes os olhos e recostou-se na cadeira. O procurador estaria a atirar-lhe a luva?

- O nosso colega tem a impressão de que o senhor o achincalhou.

- E uma interpretação um pouco pessoal de mais de uma opinião, contrária à dele, sobre a lei penal alemã.

- Não creio que tenha o direito de emitir uma crítica sobre essa forma.

- Para nós trata-se menos de uma crítica que de uma rectificação.

- Como diz?... - O procurador-geral inclinou-se para a frente com a sua larga cabeça calva voltada para Karlssen. - Também você, Karlssen, quer «rectificar» a lei?

- Eu queria declarar-me solidário com o nosso jovem colega Doernberg, que, num acesso justificado de indignação, exprimiu o que pensam milhares de pessoas no exterior.

- No exterior, meu caro Karlssen, no exterior. Mas nós somos do interior; aí é que está toda a diferença. É dentro destas paredes que se pronuncia a justiça. Já não nos encontramos na Idade Média, em que a população linchava o criminoso, ou o tribunal se reunia debaixo de um carvalho, e em que os camponeses se vestiam com peles de animais e o chefe, enfeitado com chifres de vaca, declarava simplesmente. «É preciso enforcá-lo.» Entre os povos dessa época e da actual, a humanidade fez alguns progressos. Aprendemos a conhecer melhor os homens e a sua mentalidade. Aprendemos que os homens, seja qual for a sua aparência, sejam quais forem as roupas que usam, têm uma alma. No exterior, meus senhores, esses milhões de pessoas a que se referem têm ainda o desejo instintivo de tudo simplificar, de tudo reduzir a cómodas alternativas: viver ou morrer, comer ou ser comido, caminhar ou sucumbir! Adúltero? Ladrão? Assassino? Impostor? Que se enforque na árvore mais próxima! Ao pequeno ladrão corta-se estupidamente a mão direita... em público, na praça do mercado, nos dias de festa... como ainda hoje se faz na Arábia Saudita. Dez mãos cortadas expostas na praça, talvez mesmo transportadas num carro para exposição, de cidade em cidade, bem conservadas em formol... e é ver como os roubos diminuem. Os pequenos crápulas irão trabalhar para as pedreiras para conservarem a sua mão direita. Uma solução simples, eficaz, a pedra angular de uma justiça sensata. Era realmente a isso que queriam regressar, meus senhores?

- Não se trata de fazer justiça tão primitiva - disse prudentemente Karlssen.

Doernberg cruzou as mãos, olhou o procurador-geral e perguntou:

- Posso fazer uma observação?

- Faça favor...

- Gostaria de lembrar que a justiça alemã já foi obrigada uma vez a combater com uma lei especial um novo género de crime.

- Os ladrões que erguiam barreiras nas estradas para roubar os carros.

- Foi preciso votar uma lei para julgar sumariamente e condenar à morte qualquer ladrão de carros apanhado em flagrante. Em poucas semanas esse género de ataques desapareceu. Enquanto a lei especial esteve em vigor nunca mais se ouviu falar de ladrões de carros.

O Dr. Bierbaum comprimiu os lábios. Pousou as mãos espalmadas sobre a secretária e declarou:

- E decididamente curioso... não apenas a imprensa, mas os magistrados ligados ao meu ministério recordam as leis e as apreciações de uma época passada. As leis de excepção do Fiihrer. Glória ao salvador da justiça alemã!

- Bierbaum pôs-se de pé. - Os Americanos votaram a Lei Lindbergh... Os raptos acabaram por causa disso?

- Os ladrões de automóveis desapareceram - repetiu Doernberg.

Bierbaum tamborilava com os dedos em cima da secretária.

- Você foi soldado, Doernberg?

- Sim, fui alferes.

- Alguma vez se «organizou»?

- Como é que devo entender a sua pergunta, senhor procurador-geral ?

- Esteve na Rússia?

- Sim. E em França também.

- Umas boas ocasiões de infringir a legalidade! Em França certamente roubou alguma vez um leitão, não é verdade? Ou talvez apenas uma galinha? Chamavam a isso organizar-se, não é verdade? Não me olhe com esse ar admirado... Reconheço que durante a guerra também eu deitei a mão a um certo número de gansos e de galinhas sem os camponeses darem por isso. Mas ambos sabíamos que isso era proibido! Legalmente chamava-se «rapina».

Os olhos de Bierbaum trespassavam os de Doernberg.

- Portanto, meu caro colega, segundo os costumes da Arábia Saudita, nós deveríamos ambos estar privados da nossa mão direita. Nós roubámos, nós rapinámos, Doernberg. O direito da guerra não exclui o direito civil privado. E o sétimo mandamento é sempre válido: «Não roubarás!» Isso não impede que nós tenhamos roubado, assim como Karlssen e milhares de compatriotas nossos. Nós roubámos. Nós somos todos delinquentes, doutor Doernberg. Delinquentes segundo a lei, segundo um certo parágrafo do código: «Será punido com dois meses de prisão aquele que...» Está escrito, sim. E todos nós sabíamos que cometíamos um acto proibido... e continuávamos a fazê-lo da mesma maneira. E porquê, Doernberg? Levados pela fome? Não me diga que em França a nossa Intendência funcionava mal. Seria uma mentira infame. Para variar um pouco as nossas refeições? Mas, mas... seria motivo suficiente para justificar urn roubo ou a morte de uma ave? E assim como a lei não nos impediu de roubar, a Lei Lindbergh não pôs fim aos raptos e as mãos cortadas na Arábia Saudita não fizeram com que acabassem os ladrões. A pena de morte (e eis-nos agora, meus senhores, no centro do problema) não porá fim aos crimes da nossa sociedade. Imaginar o contrário seria desconhecer a estrutura misteriosa do ser humano, seria pretender que suprimindo certos homens, os outros se tornariam melhores do que o Criador os tinha feito.

O procurador-geral olhou Karlssen, agarrou no delgado dossier com o relatório sobre Doernberg e entregou-o a ele por cima da secretária.

- Penso que seria melhor reler as suas declarações - declarou com um sorriso que tornou Karlssen prudente.

Os pontos de vista do procurador-geral, tão espantosamente iguais aos do Dr. Hellmig, não seriam influenciados por qualquer explicação. Mas o que Karlssen não compreendia era o que podia ter modificado até àquele ponto as concepções de Bierbaum.

Foi no entanto dispensado de responder. Ouviram vozes, era o secretário que se opunha à entrada de um visitante. Depois alguém gritou:

- Mesmo que seja o presidente da República, pouco me interessa! Deixe-me passar!

A porta abriu-se bruscamente. Um homem de compleição atlética precipitou-se para dentro da sala, bateu com a porta atrás de si e atirou com o casaco que trazia no braço para cima de uma cadeira. Bierbaufn, Karlssen e Doernberg tinham-se levantado.

O homem excitado bateu com o’ punho fechado sobre a secretária de Bierbaum e, na sua cólera, atirou para o chão o dossier azul relativo a Doernberg.

- Uma indecência - berrou ele -, e a culpa é vossa... Vocês são os responsáveis, vocês e a vossa justiça para meninos de coro! - Apontava para Bierbaum um indicador ameaçador. - Os responsáveis estão todos aqui, provavelmente a felicitarem-se. Dá vontade de vomitar!

Atirou-se para cima de uma cadeira e apoiou os punhos fechados sobre os braços da mesma.

- A que devo a honra da sua tumultuosa visita, senhor prefeito da polícia? - perguntou Bierbaum no tom de um homem que nenhuma catástrofe pode abalar.

- A honra? Falemos dela! Os meus agentes mortos em plena rua, como gado! Dois funcionários do banco assassinados. Cento e cinquenta mil marcos roubados... Eis aquilo a que se atrevem os criminosos. Disparam sobre a polícia, sobre os meus homens, porque sabem que se forem capturados não apanharão mais de quinze anos de prisão.

- Prisão perpétua - corrigiu Karlssen.

Pelzer, o prefeito da polícia, levantou-se de um salto.

- Vem a dar no mesmo! - gritou.

Depois deixou-se cair outra vez sobre a cadeira e segurou a cabeça entre as mãos.

Bierbaum aproximou-se da janela e olhou para o pátio interior do Palácio da Justiça. Via as celas do tribunal onde eram instalados os acusados durante os debates.

- Que vai fazer agora? - perguntou Pelzer com voz cansada.

- O procurador Karlssen vai ocupar-se do processo.

- Processo! Vocês não têm outra palavra na boca! Ainda não apanhámos os assassinos e, se lhes deitarmos a mão, a acusação não poderá pedir no seu requisitório uma pena que ponha um dique a esta vaga de assassínios!

Pelzer pôs-se de pé, aproximou-se de Bierbaum e disse com voz dura:

- Reivindico o restabelecimento da pena de morte! O procurador-geral abanou a cabeça, gravemente.

- Já esperava isso! A pena de morte... a panaceia de um Estado. Decapitemos... senhores! Os assassinos potenciais transformar-se-ão em meigos cordeiros!

- A altura não é para gracejos - gritou Pelzer fora de si. - Três vítimas inocentes, dois infelizes empregados do banco e um polícia. Nove crianças que choram pelo pai. Nove crianças órfãs, senhor procurador-geral. Garotos de dois a quinze anos que, mais tarde, deverão escrever no seu curriculum vitae: «O meu pai foi assassinado a 30 de Junho.» Escreverão com uma mão que não tremerá, porque terão pronunciado essa frase durante toda a sua vida... Meu pai foi assassinado... na escola infantil, na primária, nas aulas de religião, ter-lhes-ão perguntado: «Que faz o teu pai?...» - «Foi assassinado!» Assassinado, simplesmente, numa bela manhã de Verão.

Tudo demorou apenas alguns segundos... Tinha vivido trinta... quarenta... ou cinquenta anos... e bastaram dez segundos!... Então tenho o direito de lhe perguntar, senhor procurador-geral, e, pela minha boca milhões de seres, ansiosos perante o recrudescimento da brutalidade dos criminosos: que faz o Estado para nos proteger?

- É a mim que o pergunta?

- Não é o representante do Estado?

- Não sou o legislador... sou apenas encarregado de velar pela aplicação da lei, nada mais.

- Então quem é o legislador?

- O povo.

- O... - o prefeito da polícia olhou para Bierbaum com os olhos encarquilhados, depois soltou uma gargalhada aguda, nervosa. - O povo reclama a pena de morte.

Bierbaum pôs-se a andar de um lado para o outro com passos pesados.

- E ao Parlamento que pertence modificar a lei constitucional... sabem-no todos. Porquê vir então ter comigo? Porquê bombardear-me com censuras, pedidos, acusações? O que é um procurador-geral? Eu sou apenas um dos rodízios da lei.

Pelzer estava lívido e fazia estalar os nós dos dedos ao ponto de ficarem brancos.

- Peço-lhe que transmita às mais altas autoridades o nosso pedido para que seja restabelecida a pena de morte. Peço-lhe o seu apoio. Entenda-me bem... não é um pedido que lhe faço... não preciso de pedir quando a segurança de cada um de nós está em jogo... Intimo-o a agir.

O procurador-geral ergueu os braços ao céu e replicou:

- Deve compreender que a emoção causada por este novo crime não nos deve fazer perder o sangue-frio. Na época no nazismo, aplicou-se a pena de morte com tanta facilidade como se passeia um espanador sobre um móvel para lhe tirar o pó. A justiça do Terceiro Reich fez executar dezasseis mil condenados... dos quais onze mil durante a guerra. Dezasseis mil execuções capitais entre 1933 e 1945. Já alguma vez pensou nisso? Em doze anos, dezasseis mil vezes funcionou a guilhotina, a corda ou as balas. Todos os anos, mil trezentas e cinquenta condenações à morte. Todos os meses os representantes do Ministério Público pronunciaram cento e doze vezes a frase fatídica: «Carrasco, cumpra o seu dever!» Todos os dias, três ou quatro homens, de torso nu, com as calças flutuando em redor do corpo, atravessaram uma porta estreita e entraram num pátio onde eram mortos no espaço de trinta segundos... Três ou quatro execuções capitais por dia... durante doze anos! E eu devo insistir para que se volte a esse sistema? Devo dizer: «Sejamos firmes, senhores, cortemos as cabeças!»? Os dois ou três crimes jurídicos que cometeremos talvez não contem perante os milhares de criminosos que libertaremos ao fim de quinze anos e que poderão assassinar de novo, se o desejarem! Esse peso sobre os ombros da justiça alemã, esse monte de dezasseis mil esqueletos, deverá ser aumentado com mais outros dezasseis mil cadáveres?

- Estamos aterrados, enervados - disse Karlssen, que falava agora com voz grave e perdera todo o seu cinismo. - Este último crime (vamos certamente conhecer todos os pormenores de um momento para o outro por intermédio da polícia criminal) demonstra-nos que a tese de que a guerra aumenta a brutalidade dos homens não é exacta, e que foi a guerra que mudou os homens, pelo menos na Alemanha. Temos o milagre económico, mas assistimos a um outro milagre, muito menos alegre: um terrível recrudescimento da criminalidade. Nos anos que se seguiram à guerra, os filmes, a rádio, os livros, difundiram com prazer e em pormenor os métodos dos gangsters.

Os nossos bandidos aproveitaram esse curso de aperfeiçoamento e tornaram-se hábeis criminosos, prontos para tudo. Somos portanto obrigados a rever as nossas opiniões. Revê-las, não a pensar nos dezasseis mil mortos de que falou o senhor procurador-geral, mas tendo presente no espírito de que não há um crime, um assassínio, um ataque à mão armada, uma violação, um rapto... em resumo, não há um único crime capital que seja castigado com a pena de morte. Os autores desses crimes não arriscam a cabeça. A situação é esta: crime sem risco. Pode suceder que um criminoso reclame, chorando, a morte em vez de quinze anos de reclusão... Mas na penitenciária, ao fim de um ano de aclimatação, ele próprio se considerará idiota por ter pensado assim.

- Palavras, palavras, palavras - disse Pelzer, que acendia um cigarro com mãos trémulas. - Nove crianças ficaram sem pai. Três corpos encontram-se na morgue... As palavras já não servem de nada... É preciso passar à acção.

- Pode provar a premeditação?

A voz do Dr. Bierbaum estava cansada.

- Quando se sai de um carro com um revólver carregado na mão, é porque se tem a intenção de se servir dele em caso de necessidade...

- Em caso de necessidade, sim - insistiu Bierbaum.

- No caso de o atacado resistir. Ou será a polícia culpada por ter atirado primeiro? Talvez esses pobres criminosos tenham agido em legítima defesa, já agora!

- Ouça, Pelzer, foi para me dizer isso que aqui veio? Eu teria pensado que você estaria a dirigir o inquérito localmente, que...

Pelzer ergueu a mão. A excitação desapareceu de repente do seu rosto, que parecia envelhecido e enrugado.

- Não vim aqui unicamente para isto - disse lentamente. - Teria podido falar-lhe amanhã, enviando-lhe um relatório pormenorizado. Mas... há nesta história um ponto sobre o qual eu gostaria de saber a sua opinião.

- Se puder ser-lhe útil...

- Testemunhas oculares afirmam que um homem magro, louro, de tipo americano, disparou sobre os meus polícias. Esse homem foi notado ontem, incidentalmente, por um guarda-nocturno. Foi nos arredores. O homem encontrava-se diante de um carro de matrícula americana e falava a outro jovem que acabava de sair da casa do doutor Hellmig.

O procurador Karlssen apagou o seu cigarro com um gesto tão brusco que o cinzeiro quase caiu.

- O presidente do tribunal?

- Sim. Desde o momento em que o crime se deu dispusemos de quatro horas para reunir os primeiros elementos do inquérito. Não há dúvida possível: um dos assaltantes do banco falava, ontem à noite, a um desconhecido com um carro de matrícula americana e que saíra de casa do doutor Hellmig. É sobretudo por isso que vim falar-lhe, senhor procurador-geral. O caso é tão grave que seria extremamente desagradável que o doutor Hellmig fosse envolvido nele. Antes de levarmos mais longe as nossas investigações, queria perguntar-lhe o que pensa desta complicação.

O Dr. Bierbaum passou a mão pelo crânio, mas não fez demorar a sua resposta.

- Nada! Vou pedir a Hellmig que venha falar-nos. Irei chamá-lo pessoalmente. - Olhou para Karlssen e depois para Doernberg. - Curioso... já são duas vezes hoje que o nome do doutor Hellmig nos suscita dificuldades!

Ia estender a mão para o telefone quando bateram à porta.

Pelzer apagou o cigarro. A secretária entrou com alguns papéis na mão. Olhou de lado para Pelzer. Bierbaum observou os papéis que ela trouxera.

- O primeiro relatório da brigada criminal. Os assaltantes conseguiram fugir... destino desconhecido. O carro roubado de que se serviram para atacar o banco foi encontrado num bosque a norte de Wiesbaden. Supõe-se que os criminosos seguiram em direcção a Francoforte. A polícia já foi alertada e investiga na cidade.

Bierbaum deixou cair as folhas em cima da secretária. Pelzer abanava a cabeça com uma expressão amarga.

- Se esses tipos fossem abatidos por alguns cidadãos decididos, seria melhor. Se caem nas mãos da justiça, salvam a pele!

- Peço-lhe, senhor prefeito da polícia! - interveio o Dr. Bierbaum, furioso. Olhou Karlssen e Doernberg, que se encontravam junto da janela, e acrescentou com voz mordaz: - Meus senhores, o sentido da nossa entrevista foi falseado pelos incidentes que se deram esta manhã e pelas tempestuosas afirmações feitas aqui. De momento reterei apenas um facto: o senhor substituto Doernberg recusa-se a apresentar desculpas ao senhor presidente Hellmig.

- Sob nenhum pretexto - afirmou corajosamente Doernberg.

Karlssen fez-lhe um aceno aprovador. Bierbaum, que não deixara de reparar nesse gesto, mordeu os lábios.

- Devo esclarecer, meus senhores, que, sejam quais forem as consequências deste caso, não devem contar com o meu apoio. Reprovo a maneira como agiu.

Karlssen ouvira-o atentamente. Deu um puxão ao casaco e replicou:

- Recordo-me bem de ter ouvido em 1950, num café, um dos meus colegas fazer umas contas. Segundo os cálculos desse colega, as penitenciárias não tardariam a estar cheias. Depois ergueu o seu copo à saúde dos criminosos, que, graças à abolição da pena de morte, poderiam viver tranquilamente. E pena que esse colega não esteja entre nós para nos demonstrar a sensatez da sua atitude e das suas afirmações.

O crânio de Bierbaum estava vermelho. Respirava ruidosamente. «Tensão muito alta», pensou Doernberg. «Qualquer dia cai vítima de um enfarte.»

Bierbaum remexia nos botões do seu casaco. Finalmente, murmurou, muito baixo:

- Esse colega que erguia alegremente o seu copo... não podia então saber... há sete anos...

- Que seria um dia procurador-geral - completou Karlssen.

Bierbaum voltou-se e ordenou:

- Por favor, retirem-se.

Quando os três homens saíram, o procurador-geral apoiou a testa escaldante sobre a vidraça da janela e levou a mão direita ao coração.

Ao cair da noite, um longo cortejo silencioso percorria o centro de Wiesbaden.

As pessoas avançavam transportando tochas das quais se escapavam pequenas nuvens de fumo. A polícia precedia o cortejo e barrava as ruas. A polícia continha o cortejo, mas os guardas também transportavam tochas.

A multidão atravessava o centro da cidade... uma coluna muda, sem bandeiras, sem altifalantes, sem fanfarras... um cortejo fúnebre, fantasmagórico, envolto no fumo das tochas... E se nenhum dos participantes falava, todos se compreendiam. Ao fim de uma hora, o cortejo tomara proporções gigantescas, apocalípticas... Uma manifestação comovente e silenciosa na zona atacada. As cabeças inclinavam-se como numa oração.

Depois o cortejo voltou a partir, passou diante do teatro, da estação, do castelo...

Um grito do povo!

Apoiado à balaustrada de ferro forjado de uma pequena varanda, Heinz Kerpel olhava. A mulher chamara-o quando, preparando-se para correr os cortinados, vira a serpente humana que se aproximava.

Heinz Kerpel era deputado no Bundestag.

- Em honra de quem é este cortejo com tochas? É o aniversário de algum alto funcionário municipal? perguntou a senhora Kerpel.

Kerpel ainda não tivera tempo de se recompor do seu espanto e de responder quando uma janela ao lado da sua se abriu. O Dr. Bluhm, o pastor, inclinava-se sobre o parapeito.

Era uma suave noite de Verão, refrescada por uma ligeira brisa. O pastor e o deputado trocaram um olhar.

- A polícia vem com eles! - disse o Dr. Bluhm, surpreendido.

- Com tochas. Vou avisar imediatamente Bona.

Ia entrar na sala para pedir a ligação com o Parlamento quando o pastor interveio.

- Não faça nada, senhor deputado, é uma manifestação provocada pelo hold-up desta manhã.

- É ridículo! A polícia deve proteger os cidadãos contra tais extravagâncias. O que é que esta gente espera obter?

O pastor afastou-se da janela.

- Eles reclamam a pena de morte - disse suavemente.

- Que impudência! - exclamou Kerpel. - Venha beber um copo de vinho comigo.

Saiu da janela e fechou a porta com tal violência que os vidros tremeram. Com um gesto raivoso, puxou os cortinados. Nesse momento o pastor entrou na sala.

- Essa manifestação foi autorizada? O pastor sorriu:

- Se a polícia vai à frente do cortejo com as suas tochas...

- Espantoso! A pena de morte! Vivemos na Idade Média? - Kerpel apontou para o pastor. - E qual é a sua opinião?

- Oh! Peço-lhe que não me pergunte isso.

- Mas deve ter uma opinião.

- Eu ocupo-me das almas e não de querelas jurídicas, a não ser que um criminoso me venha confessar o seu crime.

- E que lhe diria então?

- Aconselhá-lo-ia a entregar-se à justiça temporal, lembrando-lhe que quem prejudica o próximo deve reparar o mal feito, segundo as suas possibilidades, e pagar o preço... Quanto aos seus pecados capitais, só Deus lhe poderá um dia vir a pedir contas.

- Hum... hum... é uma solução simples. Kerpel, descontente, olhava o pastor.

- A Igreja indica sempre o caminho melhor e mais simples.

- Sim, com certeza... Mas que fazem esses fanáticos... é um atentado contra a democracia.

A campainha da porta tocou e mudou o curso dos seus pensamentos. «Quem poderá ser a estas horas», pensou.

A senhora Kerpel conduziu um homem, que se inclinou e se aproximou de Kerpel.

- Doernberg, substituto do procurador.

- Ah! Ah! - Kerpel estendeu-lhe a mão e indicou-lhe uma cadeira. - Faça favor de se sentar, senhor procurador.

- Obrigado, senhor deputado. Tenho apenas algumas palavras a dizer-lhe e é preferível que fique de pé.

Kerpel descontraiu-se. Ficava sempre satisfeito quando lhe chamavam «senhor deputado». Representante do povo... à frente de quarenta milhões de seres. Aquela eleição era o zénite da sua existência.

- Como queira - disse ao Dr. Doernberg, que se inclinara diante do pastor. - O que é que o traz a minha casa? Algo relacionado com a manifestação desta noite?

- Sim e não.

A voz de Doernberg era calma e seca.

- A manifestação nasceu da indignação que sentem os habitantes desta cidade e que é partilhada pela maioria do povo alemão. Creio que sabe o que provocou este movimento de revolta. Esta manhã dois empregados do banco e um agente da polícia foram abatidos por quatro gangsters, durante um assalto a um banco. As vítimas deixam nove filhos menores.

- É atroz! - disse a senhora Kerpel, o que lhe valeu um olhar severo do marido deputado.

Estendeu o queixo, sentindo confusamente que ia ser envolvido num assunto importante, retumbante, que o seu nome ia destacar-se da massa do partido. Ia certamente precisar de tomar uma grave decisão pessoal.

Avançou ainda um pouco mais o queixo - achava que isso dava ao seu rosto uma expressão enérgica -, pôs as mãos atrás das costas e inclinou ligeiramente a cabeça: atitude clássica do parlamentar pensativo.

- Os crimes foram cometidos com uma determinação, um sangue-frio repugnantes. Se a polícia conseguir descobrir os criminosos, estes serão enviados perante o tribunal... perante uma sala de audiências. Esse tribunal poderá apenas aplicar a lei penal alemã.

- Bem entendido! - confirmou Kepler.

- A lei penal actualmente em vigor. Quer dizer que essas feras que mataram três homens, destruíram três lares, comprometeram o futuro de nove crianças, que esses criminosos que mataram simplesmente por dinheiro, terão um castigo que nem será castigo. A lei penal alemã oferece-lhes uma estada na prisão... por toda a vida, segundo o julgamento. Mas nós sabemos por experiência que isso se traduz em quinze, no máximo vinte anos de reclusão. Em seguida, serão perdoados e voltarão à circulação!

O deputado fez um gesto de cabeça afirmativo e declarou em tom sentencioso:

- Esses quinze anos tê-los-ão transformado.

- Chegarão a um mundo que os não compreenderá. Esse mundo que os rejeitará, na convicção lógica de que um homem capaz de um triplo assassínio traz consigo, naturalmente, instintos assassinos, pelo que a sua mentalidade profunda não se poderá ter modificado, nem sequer após quinze anos de reclusão.

- Permita-me contestar essa afirmação - disse o pastor com voz suave.

O jovem magistrado voltou-se e viu, fitos nele, os olhos azuis do pastor, olhos que tinham o aspecto de tudo conhecer, de tudo compreender sobre a alma humana. O pastor percebera desde a chegada de Doernberg por que razão fora ele visitar Kerpel.

- Têm-se visto criminosos que, após quinze anos de penitenciária, conseguem reintegrar-se admiravelmente na sociedade, a ponto de poderem servir de exemplo a numerosas pessoas que consideram que a vida é um fardo e acusam Deus de lhes ter reservado uma triste sorte.

- Essa é a sua opinião como pastor ou como homem? Doernberg sentia o perigo. O pastor sorriu.

- Como pode separar o homem do pastor? Formam um todo; um existe em função do outro.

- Como pode então, como ser dotado de bom senso e reflexão, crer na emenda de um criminoso inveterado?

O Dr. Bluhm ia responder, mas Doernberg deteve-o com um gesto. Sabia muito bem o que o pastor ia dizer e antecipou-se. Continuou:

- Sei que há assassinos que têm emenda: aqueles que mataram dominados pela paixão... pensa certamente nesses. E aqueles que mataram por ciúme, que perderam por instantes a cabeça e são juridicamente culpados de homicídio involuntário, de pancadas e ferimentos que levaram à morte sem ter havido intenção de matar... como nós dizemos. Mas aquele que mata por motivos crapulosos, por dinheiro? Aqueles que assaltam bancos, atacam motoristas de táxis, automobilistas isolados, pares amorosos ou pessoas idosas? Aqueles que assassinam por cobiçarem uma herança ou um prémio de seguro? Pensa de facto que possa salvar a alma deles? Vá ver, em Celle, esse verdadeiro estripador que é Pleil. Irá encontrá-lo rosado e gordo, aparentemente satisfeito com a sua sorte na penitenciária. Que julga que lhe diria Pleil se lhe falasse da alma dele? Metia-lhe na mão os quatro cadernos escolares onde escreveu as suas memórias... as memórias mais horríveis que jamais se escreveram. E mostrar-lhe-ia o título cuidadosamente escrito em cada caderno: «O Meu Combate... por Rudolf Pleil, assassino na reforma». É essa a sua alma, doutor Bluhm.

- Mas nunca um homem como Pleil será amnistiado - declarou Kerpel.

- São imagens apocalípticas - disse o pastor.

- São imagens que todos nós vivemos... depois de 1945... e que vivemos ainda hoje. Como é que pode falar-me de moral quando, no decurso de uma geração, a moral foi pelo menos uma vez traída e violada.

O pastor agarrou no seu copo e engoliu um gole para se recompor da sua perturbação interior. Precisava de alguns segundos para se concentrar, de alguns segundos para pedir a Deus a sua misericórdia e de uma arma para ripostar a Doernberg.

- A nossa moral é o amor - disse muito baixinho.

- Todos estamos em falta... e o nosso dever é amarmo-nos uns aos outros. Foi por amor que Jesus Cristo morreu na cruz. Deixou-se matar pelos homens, cujos pecados ele queria resgatar com a sua morte. E uma prova de amor na qual nós, pobres criaturas, devíamos inspirar-nos mais frequentemente.

O deputado Heinz Kerpel passou o indicador entre o colarinho e o pescoço, depois bateu no rebordo da chaminé e disse com voz forte:

- Vem pedir o meu apoio, senhor procurador, para perseguir a polícia e os manifestantes que perturbam a paz pública. Pois bem, estou à sua disposição. Estou pronto a atestar que o cidadão que sou se sente ameaçado e violentado.

Assombrado, Doernberg olhava Kerpel. Depois, com uma voz que traía o seu espanto, declarou:

- Creio, senhor deputado, que nos compreendemos mal. Não se trata da manifestação, mas sim de uma revisão da lei penal. Gostaria que o senhor e os outros deputados do seu partido apresentassem no Bundestag um pedido para que a lei penal fosse modificada e abolido o artigo 102 da Constituição.

- Que peça uma modificação da Constituição? Eu?

Heinz Kerpel compreendia a grandeza da sua missão... mas depressa recuou, assustado com a ideia das complicações que isso lhe traria.

- Mas, vejamos, é impossível!

- Precisamos da maioria de dois terços. O artigo 102 é como o suicídio da justiça alemã. Equivale a um suicídio humanitário do povo!

O pastor cruzara os braços.

- Digamo-lo claramente, senhor procurador. Reclama o restabelecimento da pena de morte. O que fizeram os manifestantes com o seu cortejo silencioso através das ruas, gostaria o senhor de fazer de maneira democrática e legal, com a ajuda dos deputados do Parlamento Federal?

Heinz Kerpel meteu as mãos nas algibeiras do casaco para esconder o seu tremor. O suor perlava-lhe a testa.

- A pena de morte... vem pedir-me que apresente uma moção para o restabelecimento da pena de morte? Vem pedir-me isso a mim?

Elevara ligeiramente o tom de voz, que se tornara um pouco rouca. A senhora Kerpel retirou-se para o fundo da sala. Quando o seu Heinz ficava com a voz rouca, a explosão de cólera não vinha longe.

- Não conhece a posição do meu partido sobre a questão? O seu pedido, senhor procurador, é uma provocação mais ultrajante ainda que essa estúpida marcha silenciosa da populaça.

Virou-se bruscamente e ficou perdido na contemplação do quadro suspenso sobre a chaminé. Era uma paisagem de Inverno iluminada pelo luar. Um cabritinho corria pela neve através do bosque. Tinha certamente fome e procurava o que comer. Heinz Kerpel gostava desse quadro e reservava-lhe no seu salão o lugar de honra. «Há tanta poesia neste quadro», explicava de cada vez que uma visita se achava no dever de exprimir a sua admiração.

- Não discutirei isso consigo - declarou passado um momento. - Discordo da pena de morte por razões morais e religiosas.

- Mas a sua moral não se preocupa em perpetuar uma lei que trata com mais humanidade os assassinos que aqueles que esses mesmos assassinos privaram do seu apoio natural e que, por vezes, são levados ao desespero.

- Nesse caso trata-se de lamentáveis erros cometidos pelos serviços de assistência social. Uma condenação à morte seguida de execução é irreparável. Quantos assassínios jurídicos...

- Senhor Kerpel, não vai alegar dúvidas neste caso particular. Três homens foram mortos esta manhã por quatro ladrões.

- Mas qual dos quatro disparou? Se pudesse fazê-lo, qual dos quatro condenaria à morte?

- Sem dúvida os dois homens que entraram na sala dos guichés. Está provado que outro gangster disparou dentro do banco, além daquele que fez fogo sobre a polícia... os dois assaltantes foram também os assassinos. Isso é bem claro!

- Nesse caso... mas haverá centenas de outros em que o presumível assassino não será o verdadeiro culpado. Os jornais andaram cheios de histórias desse género!

- Reclamo uma lei que restabeleça a pena de morte especificando que uma condenação à morte só poderá ser decidida se se provar que o crime foi cometido por razões sórdidas ou por desejo de lucro, em casos de violações seguidas de morte e em todos os géneros de ataques à mão armada contra os motoristas de táxis.

- Mesmo não havendo morte do homem?

- Sim. Uma lei especial que puna com a morte todas as agressões contra os taxistas.

Heinz Kerpel tirou as mãos dos bolsos, fez alguns movimentos, como se quisesse expelir o fumo e o cheiro dos charutos e ironizou:

- Não conseguiria executar todos. Seriam necessárias horas extraordinárias... como os carrascos no tempo de Hitler!

O Dr. Doernberg não respondeu. Compreendera que Heinz Kerpel estava demasiado enfeudado à política geral do seu partido para conseguir afastar-se um passo que fosse e exprimir uma opinião pessoal...

- Não temos mais nada a dizer, senhor procurador. Sou um decidido adversário da pena de morte. E imoral!

Doernberg inclinou-se secamente.

- Obrigado... Posso perguntar-lhe, senhor deputado, quem o elegeu para o Bundestag?

Kerpel respirava com dificuldade, assombrado com a insolência da pergunta.

- Foi o povo! - exclamou.

- O povo, ah, sim! O povo escolheu-o para seu representante?

- Sim.

- Então tem o dever, em nome desse povo que o elegeu e do qual o senhor é o porta-voz, de pedir o restabelecimento da pena de morte, porque a maioria dos seus eleitores é partidária dela. Vá à janela e observe o cortejo silencioso que percorre a cidade... Os seus eleitores estão entre os manifestantes, senhor deputado! São os que o enviaram para Bona, aqueles que confiaram em si; aqueles que julgaram que o senhor defenderia os interesses deles... e não a ideologia do seu partido e dos seus chefes de fila.

Doernberg deu meia volta e, com passos rápidos, saiu da sala. Quando a porta se fechou, Heinz Kerpel, com o rosto pálido, ficou imóvel junto da chaminé. O cabrito da paisagem inundada pelo luar olhava-o... Tinha concerteza fome...

Kepler voltou-se então para o pastor, que, pensativo, esvaziava o seu copo, e murmurou:

- É um ultraje... um ataque contra os fundamentos da nossa democracia. Informarei disto o gabinete da direcção do partido e o ministro da Justiça, em Bona.

Tinha dificuldade em respirar e foi abrir a janela. Na rua, as tochas brilhavam de novo. O cortejo silencioso voltara atrás. Milhares de homens e mulheres, de cabeça descoberta, pediam justiça e protecção. Furioso, Kepler fechou a janela e em seguida os cortinados. Tamborilando com os dedos nas costas da cadeira, disse com voz tonitruante, como se ocupasse a tribuna na Câmara:

- Não! Nunca consentirei em tal coisa. E o que acaba de se passar só vem reforçar as minhas convicções.

O pequeno embrulho que o guarda Puck levou a Friedrich Moll, director da penitenciária, era leve, rectangular e vinha cuidadosamente atado. A direcção estava escrita em belas letras redondas. Só faltava o nome do remetente... e essa falha aos costumes despertava em Moll e em Puck algumas suspeitas. Ambos tinham tido a mesma ideia: um embrulho com uma bomba explosiva, como aquele que fora enviado um dia por Hallacz, esse Hallacz que fizera ir três homens pelos ares para ver o seu nome nos jornais e que vivia agora na penitenciária de Celle tratando dos jardins, segundo se dizia.

Moll observou o embrulho por todos os lados. Puck aproximara-se da porta e observava o seu superior.

- Como é que isto chegou?

- Pelo correio vulgar, com as cartas, senhor director. Moll inclinou-se sobre o pequeno embrulho. O selo

postal estava partido, mas era legível: Bona I.

- Isto veio de Bona. Puck abanou a cabeça.

- Tanto mais suspeito - murmurou, sorrindo. Friedrich Moll ergueu a cabeça e olhou para o guarda.

- Não é altura própria para gracejos estúpidos, Puck. O assunto é sério. Devíamos avisar a polícia e mandar vir aqui um perito. - Deu a volta à secretária, inclinou-se novamente sobre o bonito embrulho e declarou:

- No entanto, parece não haver aqui nada de suspeito.

- Talvez no interior, senhor director. Talvez baste desembrulhá-lo para ligar um contacto.

- É possível. É possível! - Moll examinava o endereço: - «Senhor Dr. Fr. Moll, director da penitenciária de Rheinbach. Pessoal.»

- Precisamente, senhor director. É o que me surpreende, estar aí escrito «pessoal» e não trazer remetente.

- Essa letra não me é desconhecida... essas letras arredondadas, aquelas volutas... uma caligrafia de guarda-livros da velha escola, treinado a escrever em pé, numa carteira. Contabilista!

O rosto de Moll iluminou-se. Um pensamento atravessou-lhe o espírito. Um pensamento que tornava absurda qualquer suspeita.

- É a letra do nosso amigo Meyer. Meyer com y! O guarda aproximou-se. Olhou para o endereço e abanou a cabeça.

- Pode muito bem ser - disse prudentemente.

- É isso! - disse Moll. Pegou no embrulho e sacudiu-o. Aproximou-o do ouvido. Nenhum tiquetaque. Um embrulho que foi sacudido durante horas num vagão postal, que o carteiro tinha transportado na sua sacola de cabedal, não podia conter nada de perigo.

- Nada - disse Moll. - Creio que estamos a insultar Meyer suspeitando dele. Vamos abri-lo, Puck.

Cortaram prudentemente o fio com uma tesoura, afastaram o papel com as pontas dos dedos e descobriram uma caixa embrulhada em papel de seda. Sobre a caixa estava uma carta.

Moll abriu-a. Era um curto bilhete dactilografado.

Senhor director

Devolvido à liberdade, graças à humanidade do nosso Governo, não queria deixar de lhe agradecer do fundo do coração o excelente tratamento de que beneficiei no seu «estabelecimento». Mantenho também a minha promessa de lhe enviar como testemunho do meu reconhecimento uma pequena caixa de charutos de Havana. Gastei bastante tempo antes de encontrar o que procurava, pois sei que o senhor é um apreciador não só de charutos, mas também do bom vinho.

Quando da minha partida, insistiu para que eu me mostrasse corajoso. Não me foi difícil seguir o seu conselho. Mal fui libertado, com efeito, o meu destino mudou. A minha ex-mulher foi assassinada; os meus dois amigos perderam acidentalmente a vida: o perito responsável pelo meu processo desapareceu e até agora não se encontraram rastos dele... Vivo, portanto, só e esforço-me por arranjar novos conhecimentos e tornar-me uma boa pessoa, frequento assiduamente a igreja e faço parte do coro. O mais interessante são os cursos de evangelização à noite. O nosso cura é muito bom homem. Tem uma tal confiança na alma humana que me chama sempre «meu filho».

Envio-lhe este embrulho de Eona, mas já terei deixado esta cidade quando os charutos lhe chegarem às mãos. A Alemanha é um grande país e um modesto guarda-livros pode arranjar sempre onde se empregar.

Receba os melhores cumprimentos do seu Kurt Meyer... com y.

O director deixou cair a carta. O seu rosto estava cor de cinza. Puck estava também lívido e prestes a desmaiar. As mãos tremiam-lhe.

- Ele matou os quatro - murmurou.

Com as costas da mão, Moll atirou a caixa de charutos para longe. Aquela carta espantosa cortava-lhe a respiração. Tinha a impressão de estar metido numa sala sem ar.

- Não posso acreditar - murmurou. - O pequeno Meyer, magrizela, insignificante, delicado, tímido... um assassino.

Moll passou a mão pelo rosto. Estava inundado de suor frio.

- E canta no coro paroquial e o cura chama-lhe «meu filho». Puck, estou prestes a perder toda a esperança na humanidade e na justiça.

- O que é que vai fazer?

- O que é que vou fazer? Avisar o Ministério Público. Esta carta é uma confissão. - Bateu com a mão sobre a mesa, com força. - Que indecência! Que indecência!

- Se eles lhe deitam a mão e o julgam, Meyer voltará para aqui... dessa vez será condenado a prisão perpétua. Há-de cumprimentar-nos a todos amavelmente, reclamar um vaso com flores na sua cela, verificar a.qualidade das salsichas e da margarina e queixar-se quando a refeição for servida pouco quente. E, sobretudo, reclamará a honra de servir de sacristão na capela da penitenciária.

- Cale-se, Puck - gritou Friedrich Moll. - Isso dá-me vómitos! Um tipo como Meyer merece a guilhotina. Não é um homem, é um monstro cínico!

- Fará certamente a nossa felicidade durante uma vintena de anos. Meyer goza de boa saúde e tem trinta e um anos. Envelhecerá tranquilamente... aqui.

Moll pegou no auscultador do telefone.

- Vou falar imediatamente para o Ministério Público. Vou pedir ao ministro da Justiça que me receba urgentemente. Se a lei permite que um Kurt Meyer viva, então é preciso modificar a lei!

Pousou o indicador sobre o primeiro número e acrescentou:

- Se o caso Meyer não despertar ,os cérebros atordoados dos nossos responsáveis, então que um deles me explique de vez o que entende por «emenda e recuperação». Um homem que passa quatro anos na penitenciária e mal é posto em liberdade mata a ex-mulher e nos dias que se seguem três dos seus inimigos pessoais, cujas declarações o enviaram, justamente, para a prisão. É uma vingança, um ajuste de contas... e esse homem terá uma defesa patética e será «condenado»a viver numa penitenciária-modelo onde será bem alimentado e ocupado em trabalhos leves que lhe darão muito tempo para se lembrar de que foi mau rapaz, culpado de ter morto quatro pessoas, e que deve arrepender-se.

- Um rapaz tão mau, vá para o canto! Não queremos voltar a vê-lo, filho desnaturado! Vamos dar-lhe uma sala bem tranquila, onde irá tecer esteiras e cestos. Isso vai ensiná-lo, seu mau!

Moll bateu novamente com o punho sobre a mesa.

- É insensato, Puck; não, é infecto! Isto não é dar provas de humanidade, é ter o espírito completamente obstruído!

O guarda Puck aprovava com a cabeça. Pegou na caixa e meteu-a debaixo do braço.

- Que devo fazer aos charutos, senhor director?

- Deitá-los ao lume. Não imagina que eu os vá fumar, pois não?

Puck saiu da sala. Ainda ouviu Moll pedir para falar com o ministro da Justiça e gritar com a telefonista de Bona, que queria saber a razão pela qual o director de uma penitenciária queria incomodar um ministro à hora do almoço.

Nessa noite, Puck estava instalado em sua casa e ouvia rádio: uma selecção de operetas: O País do Sorriso... A Viúva Alegre... Frasquita...

Despira a sua pesada farda de serviço e sentia-se à vontade. Com a camisa aberta, um copo de cerveja na frente, lia o jornal. Da sua mão elevava-se, discreto, o fumo de um charuto cujo aroma enchia a sala. A senhora Puck aspirava o ar, deliciada. Gostava do cheiro dos charutos. A caixa de «havanos» estava colocada ao lado da cerveja.

Era contra os princípios morais de Puck atirar ao fogo charutos de tal preço. Teria sido um desperdício. O director devia perceber isso. Certamente dera ordem para destruir os charutos por estar encolerizado. Em todo o caso, fora assim que Puck o tinha interpretado e decidira queimar os charutos fumando-os pessoalmente... em nome da moral.

Na rádio um tenor cantava: «Sim, tudo isso eu faço pela honra, e pela honra faria ainda mais...»

O guarda Puck cantarolou a melodia com satisfação.

Como era agradável ser um pacífico cidadão.

Nessa mesma noite, em Bona, o guarda-livros Kurt Meyer - Meyer com y - instalava-se no seu novo apartamento. Chamava-se agora Schultze e trabalhava como ajudante de guarda-livros na casa de um negociante de ferro. Depois de ter posto no seu lugar os móveis novos comprados a seu gosto, sentou-se, como Puck, junto do seu aparelho de rádio - novo também -, folheou um jornal e abandonou-se às delícias de uma bela noite de Verão... amenizada com uma laranjada, música e um charuto - bem mais barato do que aqueles que Puck fumava em Rheinbach.

Meyer leu no jornal o assalto à mão armada ao banco de Wiesbaden; leu também que houvera uma manifestação em favor do restabelecimento da pena de morte para os assassinos.

Kurt Meyer sorria, sonhador. Conhecia a lentidão legislativa e a luta entre o coração e a razão. Leu o artigo de uma ponta à outra como se se tratasse de uma excitante crónica desportiva relatando o KO de um campeão mundial. Depois voltou a página e divertiu-se a ler uma novela, uma história verdadeiramente encantadora.

Meyer sorriu complacentemente, bebendo a sua laranjada. O charuto irritava-lhe a garganta. Nunca mais voltaria a comprá-los daquela marca.

Kurt Meyer achava também maravilhoso ser cidadão alemão.

O inquérito da polícia criminal foi facilitado. O presidente do tribunal telefonou para prevenir que Mr. Pattis acabava de o informar de que falara com um dos assaltantes do banco. O jovem americano encontrava-se no gabinete do Dr. Hellmig.

O prefeito da polícia, ao qual tinham comunicado a notícia no gabinete do procurador-geral, dirigiu-se imediatamente para o gabinete do Dr. Hellmig e encontrou ali John Pattis, com o rosto desfigurado, enterrado num cadeirão. Hellmig andava de um lado para o outro e fumava o seu charuto.

- Uma história desagradável, senhor Pelzer - disse secamente.

- Mister Pattis falou na véspera do crime com um dos assaltantes do banco. Mister Pattis queria avisar a polícia... mas tinha bebido... e cometeu então uma leviandade inverosímil... em resumo, foi dormir em vez de avisar os seus serviços.

- Hum!

O prefeito da polícia olhou para John Pattis, que se ergueu bruscamente. Tinha a testa coberta de suor. Sofria manifestamente com a sua falha e não encontrava nem palavras nem razões para se desculpar. Era «passível de uma pena», assim se exprimia o Código Penal alemão e ele sabia-o.

- Conhece o assassino? - interrogou Pelzer, que tinha dificuldade em se dominar.

- Sim.

A voz de Pattis estava rouca... Joe Dicaccio, do Minnesota, segundo ele dizia, o rapazinho louro, estúpido ao ponto de ter agido assim pelos bonitos olhos de uma tal Olga. Aquele que sonhava com uma quinta no meio das planícies e por causa disso tinha morto um homem. Por uma mulher e por dinheiro... Pattis tinha um nó na garganta e disse com dificuldade:

- Chama-se Joe Dicaccio.

- Americano?

- Sim.

- Conhece-o?

- Estava junto do meu carro, quando saí de casa do doutor Hellmig. A matrícula do meu carro é do Estado onde nasceu Dicaccio.

- E ele falou-lhe do hold-up projectado?

- Sim. Eu quis dissuadi-lo.

- Teria feito melhor em o reter sob qualquer pretexto e em o entregar à polícia.

- Eu sei, mas ele estava armado. Ameaçou-me.

- E depois ele deixou-o. E você, em vez de avisar a polícia, foi para casa deitar-se.

Pelzer ergueu a voz.

- É responsável pela morte de três homens. O Dr. Hellmig interveio com voz tensa.

- Com licença... Já lhe disse que Mister Pattis tinha bebido...

Pelzer abanou a cabeça e interrompeu Hellmig com brutalidade:

- Mister Pattis era a única pessoa que podia ter impedido um crime e foi dormir! Com ou sem álcool, é outra história. Mas pelo menos conhecemos o nome do assassino. Mister Pattis, quererá dar-nos uma descrição pormenorizada? Só teremos então de dar a conhecer os sinais dele.

- A população...

Com um gesto, Pelzer impediu uma vez mais Hellmig de exprimir o seu pensamento até ao fim.

- A população! Imaginemos que, graças à descrição dada, ele nos ajuda a descobrir o assassino. Que sucederá a este? Ficará em detenção preventiva. O Ministério Público fará a acta de acusação; o tribunal passará dois ou três dias a ouvir explicações sórdidas, a imprensa e a rádio não nos deixarão ignorar nenhum pormenor da vida do acusado, desde o seu nascimento ao dia em que comparecerá perante o tribunal... infância difícil, amizades duvidosas, adolescência durante a guerra... O psiquiatra intervirá e definirá o comportamento moral do acusado em termos sábios que ninguém compreenderá. Requisitório, pleito, julgamento, condenação e prisão perpétua.

O Dr. Hellmig corara e olhava Pelzer pelo canto do olho.

- Poupe-me a continuação das suas palavras, senhor prefeito da polícia. Ouvi da boca de um jovem procurador as palavras que o senhor ia pronunciar.

- Permita-me então interromper esta conversa, senhor presidente... Infelizmente tenho obrigação de levar comigo Mister Pattis.

Este, de cabeça inclinada, mãos nos bolsos, estava de pé atrás da sua cadeira.

- E claro que é o seu dever - retorquiu Hellmig, indo sentar-se à sua secretária. - E possível que Mister Pattis não tenha tido a atitude correcta que...

- A atitude correcta? - bradou Pelzer, furioso. Quando três homens são mortos por um outro se ter mostrado negligente, fala de correcção?

Pelzer aproximou-se de Pattis, pôs-lhe a mão no braço e disse secamente:

- Venha! Sinto-me feliz por o regulamento da polícia me permitir agir com correcção levando-o.

Sempre de cabeça baixa, Pattis saiu da sala em primeiro lugar. Arrastava os pés ao longo do corredor e mantinha as mãos atrás das costas, como se levasse algemas.

Hellmig sentiu um instante desejo de tirar um charuto da caixa de cedro, mas renunciou a fazê-lo porque sabia que não lhe saberia bem. Duas vezes no mesmo dia um vento de tempestade irrompera na atmosfera delicada da sua existência: o assassino Katucheit, que ameaçara não se esquecer dele no dia em que fosse libertado, e depois esse jovem Pattis, que falara com um assassino e que, apesar disso, adormecera embalado pelos vapores do álcool, causando assim a morte de três homens. Hellmig pegou no telefone e ligou para casa.

- Franz?

A voz da senhora Hellmig estava inquieta. Era raro que o marido lhe telefonasse durante as horas de trabalho.

- Não vou almoçar. Tenho de falar com umas pessoas.

- Virás jantar?

- Com certeza. Até logo.

Com o queixo apoiado na mão, Hellmig ficou a olhar o pátio do Palácio da Justiça. Os seus olhos detiveram-se no muro cinzento do lado oposto... Quarto andar... a janela em frente da sua... uns buracos na pedra... estilhaços de obuses quando os Aliados tinham bombardeado a cidade, em 1945.

«Trinta anos ao serviço da justiça», pensava ele. Há sete anos que era presidente do tribunal regional. «Durante metade da minha vida de homem tive nas mãos o destino de grande número dos meus semelhantes. Fiz justiça na minha alma e consciência. Nunca tive de corar das minhas sentenças. Considerei sempre a criatura humana no seu todo, sem me deter apenas no facto que estava a ser julgado. Nunca perdi a fé na bondade do homem. Nunca neguei a força criadora do homem, dizendo: ’Esta criatura é má. Livremo-nos dela!’ Nenhum homem é inteiramente mau, não o pode ser, visto que Deus o criou à sua imagem e insuflou nele uma alma imortal.» ,

Olhou para as suas mãos. Durante trinta anos elas tinham abotoado a toga e ajustado ao pescoço o peitilho branco, agarrado vezes sem conta um copo de água quando os debates se prolongavam; em milhares de ocasiões elas tinham-se erguido para prestar juramento ou apenas para folhearem dossiers espessos. Dossiers cheios de horrores e de infâmias... de actos dementes e degenerados... Trinta anos de erros humanos, de mentiras, de gritos, de choros, de denúncias, de perjúrios, de falsos testemunhos, de protestos, de dissimulações, de cóleras, de ameaças e de abatimentos.

E, apesar de tudo, acreditava na bondade natural do homem. Ela existia, mesmo num Peter Katucheit, mesmo num Joe Dicaccio. Também eles tinham um pai e uma mãe, também eles eram filhos de Deus. Estariam isolados do resto da humanidade... mas punir com a morte tra um direito que só Deus tinha.

Hellmig reflectiu ainda durante um momento e depois, rompendo o silêncio da sala, disse em voz alta: «E mesmo que estejam todos contra mim, nunca pronunciarei uma sentença de morte...»

Entretanto, em Francoforte, Pohlschlàger e Joe Dicaccio estavam sentados um em frente do outro. Heidrich, o Chorão, e o elegante Wollenczy, cada qual com a sua parte do saque, tinham-se já eclipsado. Destino desconhecido.

Dicaccio devia também ter deixado a cidade há muito tempo. Pohlschlàger ficara espantado e furioso quando, momentos antes, ao ouvir tocar a campainha e ao abrir a porta, se encontrara em frente do americano.

- És doido, não és? - murmurou em voz baixa, puxando Dicaccio para dentro. Voltou a fechar a porta e, desconfiado, olhou para o rapaz louro: - Não recebeste a tua conta? Lembra-te que verificaste à frente de testemunhas.

- A quantia está certa, mas esqueci-me de uma coisa - respondeu Joe.

Tirou um cigarro do bolso e meteu-o ao canto da boca.

- Então leva-a e desaparece o mais depressa possível.

- Okay. - Joe acendeu o cigarro e afastou Pohlschlàger.

- Ela está na casa de banho?

- Quem? - perguntou Pohlschlager sem compreender.

- Olga!

- Deixa de armares em idiota!

Pohlschlager abriu a porta que dava para a outra divisão e Dicaccio espreitou para dentro. Em cima de uma cadeira viu a roupa interior de Olga, de um verde-tília. Fechou os olhos, imaginando o corpo de Olga a emergir daquele verde-suave... as formas exuberantes, a pele branca, os cabelos negros. Respirou ruidosamente.

- Vai buscá-la - disse muito baixo. Pohlschlager inclinou-se para a frente, pôs as mãos

na cintura e perguntou, ainda admirado.

- Quem?

- Olga...

Pohlschlager teve um sorriso constrangido. Perdera a sua bela segurança.

- Não digas disparates, Joe.

- Eu levo Olga - disse Dicaccio com voz firme. Olhou de novo para a roupa em cima da cadeira.

Pohlschlager seguia-lhe o olhar. O seu rosto endureceu.

- Estás a brincar?

- Participei no assalto ao banco unicamente para levar Olga para a América. Agora tenho dinheiro suficiente para comprar uma pequena quinta, para os dois.

- Encantador. - Pohlschlager fechou os maxilares. - E Olga quer partir contigo?

- Nós entendemo-nos sempre bem quando tu não estavas.

- Tu és um patife, Joe.

Pohlschlager estava pronto para atacar Joe, mas este foi mais rápido. Saltou da sua cadeira, atirou-se sobre Pohlschlager, fê-lo sentar-se e prendeu-o com punho firme. Uma força insuspeita animava aquele rapaz de aparência fraca. Não pronunciava uma só palavra, o que fez com que Pohlschlager se acautelasse. Manteve-se calado e limitou-se a olhar Dicaccio, que se inclinava para ele.

- Diz-lhe que se vista e que venha comigo - ordenou Joe.

Pohlschlager tentou rir.

- Tu arranjas tudo à tua maneira. E se Olga não

quiser seguir-te?

- Quererá.

- Mas talvez... Dicaccio abanou a cabeça.

- Matei um homem... apenas por dinheiro, unicamente para ter dinheiro suficiente para levar Olga. Se não fosse isso, nunca teria disparado, nunca! Fi-lo por Olga e ela agora deve vir comigo. Entendes?

- Não...

Pohlschlager atirou a cabeça para a frente e acertou em cheio no estômago de Dicaccio. A pancada foi tão brusca que este deixou a sua presa, cambaleou e ergueu os braços para tentar recuperar o equilíbrio. Antes que ele pudesse encostar-se à parede, Pohlschlager estava sobre ele e atingia-o em cheio, no queixo, com um punho fechado. Dicaccio tombou, com um fiozinho de sangue a correr-lhe pelo canto da boca. Ficou encolhido sobre o tapete, com as mãos no peito. Pohlschlager contemplou-o com um pontapé nas costas. Dicaccio nem sequer estremeceu.

- Imbecil... - murmurou Pohlschlager. Esfregou as mãos nas calças, como se as tivesse sujado ao tocar em Joe. Olga saía do quarto, com os cabelos puxados para cima, presos na nuca e o roupão entreaberto.

Soltou um grito dilacerante e recuou ao ver Dicaccio estendido no chão. Pohlschlager observava-a pelo canto do olho.

- Faz-te pena, não é?

Olga Katinsky fechou o roupão e apertou o cinto, perguntando:

- O que é que ele vinha fazer aqui?

- Tens o descaramento de o perguntar?

Sem responder, Olga contemplava Dicaccio. Pohláchlàger abanou a cabeça várias vezes.

- Era então verdade... tu querias deixar-me...

- Não, Fritz.

- Ele disse-mo.

- Eu tinha-lhe prometido um dia... simplesmente para ele ficar com vocês todos. Nunca pensei em partir com ele.

Olhava Dicaccio, que continuava sem fazer um movimento.

- Ele está morto?

- Não. Digamos que dorme profundamente. Quis brincar aos homens fortes... Veste-te, eu tratarei de o fazer ficar quieto até estares pronta.

Dicaccio não fazia um movimento, mas, através das pálpebras semicerradas, observava Pohlschlàger e Olga. Com a mão direita apertava o revólver, que com movimentos imperceptíveis conseguira tirar do coldre debaixo do braço.

«Oh! Porcos imundos!», pensava ele. «Por vossa causa matei um homem. Fizeram de mim um assassino... O rapaz louro do Minnesota, que tanto gostaria de ter uma quinta, é agora um assassino... Nunca fui bom... lá no Wisconsin... no Texas. Mas nunca matei... Nunca tinha morto ninguém até ontem... só o fiz por Olga, que me mentiu. Maldita existência, na qual não se pode voltar atrás.»

Lentamente tirou a mão debaixo do casaco. Pela porta aberta via Pohlschlàger e Olga. Esta tirara o roupão e começara a vestir a sua roupa interior verde-tília. Dicaccio mordeu os lábios. Mais uma vez observou aquele belo corpo de formas arredondadas e o carrapito de cabelos negros... mais uma vez olhou Pohlschlàger, que se encontrava de pé, perto de Olga, e fumava tranquilamente um cigarro.

Depois, rápido, preciso, disparou por cima do seu braço esquerdo. Pohlschlàger ergueu os braços ao ar, como um louco, e caiu sobre uma mesinha. Com os olhos franzidos, incrédulos, ele fitava Olga... uns olhos semelhantes aos que o caixa e o outro empregado tinham aberto quando Pohlschlàger disparara sobre eles em pleno rosto...

Dicaccio disparou uma segunda vez. Fechara os olhos depois de ter visado. Ouviu Olga gemer e cair no chão com um ruído surdo.

Dicaccio levantou-se, aproximou-se da janela, limpou com uma cortina o sangue que tinha na cara e saiu da casa. Desapareceu tão calmamente como viera. Com passos tranquilos dirigiu-se à cabina telefónica mais próxima e ligou para a polícia.

A voz dele era cansada. Aqueles dois tiros de revólver acabavam de destruir definitivamente o seu universo, a sua esperança de vida. Sabia-o. Não tinha mais nenhuma ilusão.

- Daqui fala Dicaccio - disse ao telefone. - Joe Dicaccio. Tomei parte no hold-up do banco de Wiesbaden. Matei o polícia e há cinco minutos matei também o chefe do bando, Fritz Pohlschlàger, e Olga Katinsky, amante dele. Estou a telefonar de uma cabina pública. Lamento...

Desligou e saiu da cabina.

- Para onde ir? - perguntava a si próprio. - Para onde ir?

Com os bolsos cheios de dinheiro, uma pequena fortuna e sem ter onde viver. E amanhã não teria mais do que hoje... era um homem sozinho no mundo... perseguido como um lobo feroz, como um cão raivoso.

E tudo isso porquê?

Por causa de quarenta mil marcos!

Quarenta mil marcos para se ter transformado num assassino, para ser para sempre banido da sociedade. Quarenta mil marcos... mas perdera as esperanças de regressar ao Minnesota, voltar a ver a quinta de Daddy e as mãos gastas pelo trabalho de Mammie!

Dicaccio seguia pela rua com passos lentos. Ouviu ao longe a sirena de um carro da polícia. A grande perseguição começara... Se o extraditassem, iria parar à cadeira eléctrica.

Com os seus quarenta mil marcos no bolso, Dicaccio deixou a cidade de autocarro, para se dirigir para os bosques perto do Meno.

«Paz», pensava ele. «Dois ou três dias de calma. Preciso de reflectir. Deve haver um meio de sair daqui, de atravessar a fronteira, de chegar a França, talvez, ou à Itália. Mais tarde poderia ir para o Oriente. O mundo é tão grande... tão maravilhoso. Só a vida é infame... e a humanidade.»

Via, pelo vidro da janela do autocarro, os cabos telefónicos agitarem-se com o vento, erguerem-se e baixarem-se, erguerem-se e baixarem-se...

O mecanismo da justiça alemã pusera-se em acção; cada roda, bem rodada, bem untada, funcionava com precisão. O primeiro a ser preso na engrenagem foi John Pattis.

«Este apanhámos nós», tinham pensado os inspectores da brigada criminal. «Não é ele o culpado, mas não deixa de ser americano, como um dos autores do crime.»

«Ele falou com o assassino. As informações foram exactas... Joe Dicaccio confessou pelo telefone e encontra-se agora em fuga. É preciso primeiro verificar essa história do álcool. Os peritos deverão dizer se um homem sob o efeito de um choque, como Pattis pretende ter ficado depois do que Dicaccio lhe anunciou, fica realmente em estado de não poder tomar uma resolução determinada.»

John Pattis ficou, portanto, preso. Foi-lhe atribuída uma vasta cela, foi autorizado - desde que tivesse os meios pecuniários para o fazer - a mandar vir do restaurante os pratos que quisesse. Tinha o direito de ler, de escrever, de cantar, de arrancar os cabelos e de contar a si mesmo boas histórias. Tinha todos os direitos... excepto o de ir para casa.

No dia seguinte, à tarde, depois de o Dr. Hellmig ter tido conhecimento da decisão do juiz de instrução, Sylvia foi visitar John Pattis.

Quando ela entrou no parlatório, Pattis estava encostado à parede junto da janela gradeada.

- Bom-dia, Mister Pattis - disse Sylvia com voz grave. - Anteontem esperava que voltasse em breve a nossa casa para continuar a falar-nos da estrada do Alasca. É uma via de um comprimento imenso, não é verdade?

Sentou-se no banco, diante da simples mesa de madeira branca. John Pattis ergueu as mãos.

- Vim para a Alemanha para estudar aqui o funcionamento da sua justiça. Estou a estudá-la a fundo! Esforçava-se por falar num tom descontraído. - Não esperava, para isso, ter de estar encarcerado numa cela de atmosfera empestada.

O guarda que se encontrava à porta infringiu a ordem de ser mudo e surdo:

- A atmosfera das nossas celas não é empestada. Sylvia dirigiu-lhe um sorriso amável:

- As vossas celas são apartamentos de hotel de luxo com todo o conforto. Quarto cento e vinte e seis, com casa de banho privativa. Um toque de campainha, e imediatamente aparece o empregado com a sua farda verde, de gala.

O guarda ajustou o cinto do seu uniforme verde e resmungou. Que resposta havia de dar a tais palavras?... E ainda por cima ditas pela filha do velho Hellmig... Decididamente, a juventude não tem chumbo na cabeça... Meteu as mãos nos bolsos e fez tilintar as chaves.

Sylvia observava Pattis. Estava pálido. Os seus cabelos já não se encontravam impecavelmente penteados como no dia em que estivera sentado ao canto da chaminé e pousara sobre ela os seus olhos admirados. O colarinho da camisa estava amarrotado. Sylvia sentia o coração apertado. Com os olhos baixos, disse:

- A sua inocência será rapidamente reconhecida. Pattis abanou a cabeça.

- Admito que não fiz o meu dever. Três homens viveriam ainda se eu não tivesse procedido assim.

- Não sei o que faria se um homem surgisse de repente na minha frente a anunciar-me que ia assaltar um banco e matar homens.

- Teria gritado. Teria ido à polícia ou falaria com o seu pai. Certamente que faria alguma coisa. Ao passo que eu me embriaguei e adormeci sem pensar que vidas humanas estavam em perigo.

- Mas não teve nada a ver com os assassínios!

- Directamente não... é evidente... mas o resultado foi o mesmo. As consequências do meu erro foram trágicas. Houve três mortes, menina Sylvia. Não, houve mesmo cinco, pois Dicaccio matou esta manhã o seu «chefe» e a amante deste. E nada disso se teria passado se eu tivesse imediatamente prevenido a polícia.

- Falarei do caso a meu pai.

- Não, peço-lhe, não faça nada. - Pattis agarrou na mão de Sylvia. - Não quero que tenha preocupações, Sylvia. Sobretudo por minha causa... Só nos vimos durante umas horas, mas isso basta para que eu tenha apenas um desejo: vê-la feliz. Feliz como estava na noite em que chegou a casa e me cumprimentou como se eu fosse um velho conhecimento. Ainda tenho as suas palavras nos ouvidos... nunca as esquecerei. «Estava certamente a contar a meu pai uma velha lenda índia.» E enquanto falava olhava-me sorrindo, e eu senti-me perturbado como um colegial que acompanha uma rapariga pela primeira vez.

À porta, o guarda tossicava. Agitava as chaves, olhando para o tecto. Sylvia ergueu-se. Pattis levantou-se também, sem largar a mão de Sylvia.

- Dentro de alguns dias, tudo será elucidado. Irá então a nossa casa e beberemos uma garrafa de um vinho velho que o recomporá das suas emoções.

- Se o seu pai aceitar receber-me...

John Pattis manteve os olhos fixos na porta, que se fechou com um estalido.

- Sylvia - murmurou muito baixinho. - Sylvia...

O Dr. Burrmeister, ministro regional da Justiça, tinha na sua frente o correio do dia e pousava a palma da mão sobre a pilha de cartas. O Dr. Feind, conselheiro ministerial, rígido como um prego, encontrava-se de pé em frente da secretária.

- Leu isto? - perguntou o ministro. - Um idiota ergueu uma verdadeira tempestade e os outros, em vez de untarem bem os rodízios, aumentam a fogueira. Uma tempestade num copo de água! Em todo o caso, para a imprensa é um bom assunto!

Pegou nalgumas cartas e foi-as deixando cair uma a uma sobre a secretária.

- Para começar, o substituto Doernberg...

«O presidente do tribunal, o doutor Hellmig, queixa-se.

«O procurador Karlssen leva água ao moinho de Doernberg...

«O procurador-geral envia-me um relatório.

«Um deputado queixa-se de ver prejudicada a ordem democrática. Esse mesmo deputado foi contactado pessoalmente pelo efervescente Doernberg.

«O director de uma penitenciária excita-se, protesta e reclama muito simplesmente o restabelecimento da pena de morte...

«Circular de Bona: nada de discussão sobre a pena de morte... cingir-se rigorosamente à Constituição...

O ministro colocou as mãos sobre as cartas, como se receasse que um golpe de vento pudesse levá-las.

- Que pensa de tudo isto, Feind?

- A minha opinião não clarificaria em nada a questão.

- Então é a favor.

- Eu não disse isso, senhor ministro.

- Claro que não! Então eu digo-o por si e formulo o seu pensamento. - O ministro abanou vigorosamente a cabeça. - A pena de morte é para muitos, hoje em dia, a panaceia. Imaginam que a guilhotina ou a corda bastariam para solucionar a questão da criminalidade premeditada. Seis, sete, dez execuções como outrora, anunciadas em cartazes vermelhos: «Em nome do povo, Emil Maier foi executado esta madrugada na penitenciária de Cobbenburg. Maier fora condenado à morte por duas vezes por ter morto o motorista de táxi Peter Schultze ao volante do seu carro e, ao fugir, ferir um polícia que veio a falecer devido aos ferimentos...» Dez cartazes desces e os crimes desapareciam como neve ao sol. É o que se poderia pensar ouvindo os comentários actuais sobre a pena de morte.

O ministro estendeu o dedo indicador:

- Já assistiu a uma execução, Feind?

- A várias, senhor ministro. A última foi em 1944.

- E não se sentiu mal?

- Não. O último homem que eu vi executar tinha feito saltar os carris antes da passagem de um comboio de soldados que vinham da Rússia de licença. Resultado: dezassete mortos e cinquenta e cinco’feridos graves. Soldados em licença, senhor ministro... pais e filhos que, após meses de duros combates nas estepes russas, podiam finalmente vir a casa. Alguns não vinham a casa há anos e sonhavam... estar de novo junto da mãe, sentar-se perto da lareira, deixar-se acarinhar... dormir numa cama verdadeira... ouvir a respiração leve da mulher... Tinham sonhado com tudo isso... durante anos. E por fim deixam a Rússia, voltam a encontrar o solo da pátria, saúdam com grandes gestos as enfermeiras da Cruz Vermelha, que se encontram nos cais das estações, cantam... e depois, de repente... tombam uns sobre os outros, as carruagens são pulverizadas... Ouvem-se gritos, gemidos; a morte e o horror estão de novo com eles, esse horror que eles queriam esquecer por uns dias. O horror... obra de um só ser miserável que colocara duas minas debaixo dos carris... E acha, senhor ministro, que eu me sentiria mal ao assistir à execução do culpado?

Admirado, o ministro olhava Feind.

- Você foi patético, Feind... Façamos abstracção do seu caso, meu caro (coisa curiosa, os juristas têm sempre um caso a citar quando se trata da pena de morte), e consideremos as execuções no aspecto geral. Nas mãos de um ditador, a pena de morte não é mais do que a legislação do assassínio.

- Hoje estamos em democracia.

- E dentro de vinte anos, ou de cinquenta anos?

- Se Deus quiser, ainda estaremos! - Feind encolheu os ombros. - Se um ditador voltasse a tomar o Poder, ser-lhe-ia fácil introduzir o artigo relativo à pena de morte. O receio de dar livre curso ao arbitrário, se se suprimir o artigo 102 da Constituição, é tão infundado como a censura feita à pena de morte de ser imoral. A nossa lei penal é certamente uma lei moral. Quem peca contra a comunidade deixa de ter o direito de viver nessa comunidade.

- Bravo, Feind! Por isso é que nós temos a condenação à prisão perpétua!

- Um criminoso não devia ter o direito de ser sustentado durante dezenas de anos pela colectividade. Hospitais, casas de repouso, a extensão da rede de estradas, o aumento dos fundos sociais, são coisas que me parecem mais importantes que o número de calorias atribuídas aos senhores assassinos.

- E o respeito pela vida?

- Qual respeito? Um assassino testemunha algum respeito pela sua vítima? Em nome de que direito apela ele para a humanidade, quando ele próprio suprimiu a vida?

- Em nome do direito que têm todos os cristãos, Feind.

- Está escrito na Bíblia: «Olho por olho, dente por dente!»

- No Antigo Testamento. Jesus Cristo disse: «O nosso reino é amor.» - O ministro levantou-se e, abanando a cabeça, acrescentou: - Mas nós somos eclesiásticos, Feind? Nós devemos pensar com calma, sem paixão. Tenho aqui uma pilha de notas e de queixas. Nós devemos dar a nossa opinião. E a nossa decisão deve ser baseada nas leis em vigor. E mesmo admitindo que haja milhares de pessoas favoráveis ao restabelecimento da pena de morte, você, eu, o ministro federal da Justiça, e o próprio chefe do Estado, de que serviria isso? Para fazer desaparecer o artigo 102 da Constituição é necessária uma maioria de dois terços no Parlamento. Dois terços dos deputados teriam de estar de acordo. Já viu isso em Bona, mesmo quando se trata dos votos sobre as datas das sessões? Bastaria que um partido importante se opusesse a essa alteração - e surgiria certamente algum - para que essa maioria de dois terços fosse tão dificilmente atingível como Marte ou Sírio. Não tenhamos ilusões, Feind. É o que vou dizer também a Doernberg e a Karlssen: «A vossa pequena revolução palaciana é uma guerra de opereta. Os únicos que dela tiram proveito são os jornalistas. Entregam-lhes numa bandeja de prata alguns títulos sensacionais e assunto para dois ou três artigos.»

O ministro bateu com a mão aberta em cima da secretária.

- A justiça irá ridicularizar-se?

Burrmeister dirigiu-se para um armário e tirou de lá uma garrafa de água mineral, encheu um copo e começou a beber a pequenos goles.

- A população está indignada... entende-se. Os numerosos atentados de todos os géneros cometidos nestes últimos tempos acaloraram os espíritos, despertaram instintos de vingança. Mas é precisamente isso que é preciso evitar, Feind. Precisamos de nos manter calmos, Feind, absolutamente calmos. Nada de ressentimentos e de vinganças: tu mataste, portanto serás morto... são práticas da Idade Média. Nós estamos no século vinte. Era preciso uma reforma, Feind, uma reforma que tivesse em conta que o assassino é também um ser humano.

O conselheiro ministerial abanou a cabeça sem dizer uma palavra.

Burrmeister voltou a guardar a garrafa de água mineral no armário e ficou, por instantes, de costas voltadas para Feind. Depois, bruscamente, encarou-o.

- Desejo falar depois de amanhã com Doernberg e Karlssen. Preveja uma hora de entrevista com cada um. Convoque o primeiro para as dez horas.

- Vou tratar disso imediatamente - declarou o Dr. Feind em tom seco.

O deão Peter Ahrens acabava de terminar a sua refeição. Recostou-se para trás na cadeira, dispôs-se a ler tranquilamente o jornal, quando a sua governanta, Maria Poli, anunciou um visitante.

- A esta hora? - perguntou o deão, olhando para o relógio: meio-dia e meia, uma hora que o deão não mais esqueceria.

- Quem é?

- Não me disse o nome; adiantou apenas que o senhor o conhecia... tem aspecto de ser boa pessoa - continuou Maria Poli, que percebera o olhar perplexo do deão.

Peter Ahrens pousou o jornal religioso sobre uma mesinha e abotoou o casaco.

- Mande entrar - disse com os olhos fixos na porta, por onde passou, pouco tempo depois de a governanta ter saído da sala, um homenzinho insignificante, de estatura mediana, sem qualquer característica que desse nas vistas.

O homem inclinou-se delicadamente e, de chapéu na mão, ficou junto da porta. Um sorriso iluminou o rosto do deão.

- É o senhor, meu caro senhor Schultze!

Kurt Meyer - com y - fez um pequeno gesto com a mão.

- Não fale tão alto, senhor deão, a sua governanta poderia ouvir o meu nome.

O deão Ahrens sorriu e fez sinal ao seu visitante para se aproximar.

- Sente-se. Para me vir visitar a uma hora destas, tem com certeza algo de importante a dizer-me. Trata-se do canto de acção de graças para a colheita? O segundo movimento é difícil, não é?

Kurt Meyer abanava lentamente a cabeça. Havia nos olhos dele um pouco de tristeza e também de compaixão.

- Nunca poderei cantar esse magnífico coral anunciou com voz calma.

- Que quer dizer com isso, senhor Schultze?

- Vou sair da cidade, senhor deão. Interroguei-me longamente acerca de vir ter consigo antes de partir para Bona. E depois, queria confessar-me...

- Confessar-se? Aqui? No meu apartamento? Vamos à...

- Não. Peço-lhe...

Meyer - com y - fez novamente um gesto com a mão. Aproximou-se do deão, que continuou parado diante dele.

- Dentro de uma hora estarei já longe desta cidade.

- Tão depressa, senhor Schultze?

Meyer abanou a cabeça e fixou no deão um olhar penetrante.

- Tudo o que eu lhe disser fica no segredo da confissão?

- Tudo. - O deão sentiu-se tomado de uma sensação de mal-estar. - Que quer dizer-me?

- Que sou um assassino.

O deão conteve a respiração. Aquela frase tinha-o atingido como um soco. Fechou os olhos, depois abriu-os lentamente e olhou o rosto sorridente, insignificante, de Kurt Meyer. Observou os olhos dele, inexpressivos como os de um peixe. Aqueles olhos eram os de um assassino. Com dificuldade, o deão murmurou:

- Quem é que você matou, Schultze?

- Eu não me chamo Schultze, mas sim Meyer... Meyer com y.

- Quem é que matou? - perguntou o deão com voz trémula.

Kurt Meyer olhou para a janela. Por detrás dos cortinados via-se um gerânio enfezado, um pouco murcho. «Precisa de ser regado», pensou ele. «Porque é que a governanta não dá água às plantas? Secam na janela com este sol. Pobres flores.»

- Cinco pessoas, senhor deão.

- Cinco...

- Sim, cinco. Quatro homens e uma mulher... a minha, senhor deão; ela traiu-me a mandou-me para a penitenciária por quatro anos. Sabe o que representam quatro anos de penitenciária? Quatro anos de luta contra os guardas, contra o director, contra as visitas, o capelão, os contramestres das oficinas... tudo isso porque a burra da minha mulher me denunciou. Matei-a no próprio dia da minha libertação... era para mim uma obrigação moral. Depois matei os meus dois amigos... um com gás e o outro atirando-o ao Reno. Ambos suplicaram, gemeram, nem calcula a que ponto. «Porcos», disse-lhes eu, «venderam-me, vão para o diabo...» Tive grande dificuldade em meter o tubo de gás na boca de um deles. Mas eu estava junto dele, pronto a bater. Fiquei lá até ele perder os sentidos, sempre com o tubo metido na boca... como se fosse fazer uma lavagem ao estômago... era cómico.

O deão deixou-se cair sobre uma cadeira. Sentia-se invadido por uma onda de repugnância. «Vou vomitar», pensava. «Deus... meu Deus... será um homem que tenho na minha frente?... E este homem cantava hinos em Tua glória e ensaiava uma canção para a festa de acção de graças das colheitas... Louvado seja Senhor, pois ele dispensa a todos a sua bondade...»

Kurt Meyer continuava a falar, com uma voz suave, monocórdica, com as mãos postas sobre o peito, como se fosse entoar um cântico...

- Atirei-o para o Reno... ele não sabia nadar. Levantava os braços e gritava: «Kurt! Kurt!» Fiz andar mais depressa o barco alugado... o ruído do motor cobriu a voz dele... fiquei muito contente, foi rápido.

O deão desviou o olhar. Dava-lhe náuseas ver Meyer. Cada vez sentia mais vontade de vomitar.

- Depressa - balbuciou - ... depressa. O resto.

- O perito que identificara a minha letra nos cheques falsificados desapareceu. Enterrei-o numa floresta... Não ofereceu nenhuma resistência... um pobre homem... foi morto num abrir e fechar de olhos. Não sofreu, posso jurá-lo.

- Não pronuncie essa palavra! - exclamou o deão. Meyer encolheu os ombros. O seu rosto estava pálido.

- Não grite... peço-lhe... não grite. Não posso suportar os gritos... e aqui não tenho o motor para abafar o som da sua voz.

Respirou fundo e passou a mão pelos cabelos.

- Quando ele caiu apertei-lhe um pouco o pescoço, como medida de segurança. Li uma vez uma história terrível sobre um enterrado vivo. «Se ajustares as contas com alguém», pensei então, «que seja com humanidade». Isto parece um paradoxo... é, no entanto, uma regra que não devia ser negligenciada. É preciso agir depressa... sem dor... a morte não é uma tortura...

- E o quinto?

- O quinto foi morto há quatro anos. Era o comerciante cujos cheques eu tinha falsificado. Nunca conseguiram provar nada contra mim. É difícil provar qualquer coisa quando um assassínio é cometido com método... cientificamente, diria eu. E eis-me só no mundo... completamente só. Os meus inimigos estão mortos. Conheço uma maravilhosa paz interior.

- O quê?...

- Estou em paz...

- E a sua consciência?

- O que é a consciência?

- O temor a Deus.

- Onde está Deus?

- Em toda a parte. A sua volta, em si.

- Em mim? - Meyer abanou energicamente a cabeça.

- Que mais quer daqui?

- Queria simplesmente contar-lhe tudo isto. Dentro de meia hora estarei longe. E posso partir descansado porque o senhor está condicionado pelo segredo... profissional.

- Deus o castigará, Meyer.

- Não tenho medo de Deus.

- Há-de aprender a temê-lo!

- Nunca!

O deão Ahrens levantou-se e dirigiu-se para a janela, afastou os cortinados e abriu um dos batentes. Inclinou-se para aspirar o ar. Ar, ar puro! O facto de Deus ter criado o ar bastava para que todos os homens passassem a vida a agradecer-Lhe e a louvá-Lo. O homem que ali se encontrava exalava um cheiro nauseabundo, uma mistura de sangue e de suor. O deão Ahrens tinha a impressão de estar envolvido por esse cheiro, como se ele formasse uma nuvem espessa que ameaçasse sufocá-lo.

Voltou-se, sem sair de junto da janela.

- Devia pôr-se à disposição da justiça terrena, Meyer.

- Nem pensar nisso.


- Deve expiar os seus crimes.

- Não me venha com essa conversa. Já é velha. «Não devia falar-me tão estupidamente», pensou ele.

«Não estou a assistir ao sermão de domingo... Estou aqui na frente dele e vim declarar-lhe que sou um assassino. O menos que posso exigir é que me responda com um pouco de bom senso.»

- Quanto ao castigo que Deus me infligirá, isso excita a minha curiosidade - continuou Meyer. Haverá um Deus? Gostava de o saber. Talvez exista apenas na Bíblia e no Sursum Corda. A justiça terrena! Pensa que ela existe? Conheço a penitenciária... estudei a justiça durante quatro anos. Não aprendi a conhecê-la. Estudei-a... com a paixão de um sábio, com o fanatismo de um cidadão que quer compreender tudo sobre o sistema penitenciário, a fim de saber como são gastos os impostos que paga. Pensa que a penitenciária poderia assustar-me?

- Será excluído da sociedade...

- Creio, senhor deão, que a humanidade não merece que se tenha pena de ser excluído dela. Para servir Deus, os monges encerram-se em conventos, longe do mundo. Vivem em estreitas celas, em celas mais pequenas e mais nuas do que as de uma prisão. Como poderia eu lamentar ser afastado da sociedade, quando há homens que aceitam voluntariamente viver numa cela? Em França há trabalhos forçados... o que é desagradável, se bem que já não se enviem os condenados para essa maldita Guiana. As prisões inglesas têm má reputação. Na América, a cadeira eléctrica esperava-me... ou a câmara de gás... perspectiva pouco agradável.

«Em qualquer parte do mundo eu seria um monstro que procurariam esmagar como um percevejo. Mas na Alemanha, senhor deão... Aqui, no nosso belo país, sou um ser humano que tem o direito de encontrar, ao chegar à penitenciária, uma cela aquecida, duas mantas, uma mesa, uma prateleira, um lavatório, um balde de despejos químico e livros edificantes.

«Pense bem, senhor deão, uma cela de seis metros quadrados, aquecida no Inverno. No refeitório há um palco onde se realizam espectáculos teatrais. Uma vez por semana despejam o refeitório... jogamos então ao pingue-pongue, à bola, ao chinquilho... para não enferrujarmos, para nos sentirmos bem...

«Depois chega o dia em que somos anistiados... um grande dia, que esperamos durante anos.

«Nós, os condenados a prisão perpétua, nós que vivemos melhor que milhares de pessoas amontoadas em tugúrios nas grandes cidades. Eu, Meyer, culpado de cinco assassínios, seria alimentado, bem alojado... teria direito a medicamentos e a cuidados médicos e até a uma cama na enfermaria... sem alargar os cordões à bolsa... porque para isso os homens livres pagam impostos... mesmo aqueles que dormem amontoados, sete em cada quarto. Também eles pagam impostos para mim, o assassino! É esta a justiça terrena!...

O deão Ahrens enterrava as unhas no parapeito da janela.

- Enoja-me ouvi-lo.

- Diga a verdade, eu dou-lhe vontade de vomitar. A palavra não é muito elegante, mas traduz bem o que sente. Se fosse a si, senhor deão, há muito que teria expulso Kurt Meyer.

- Veio ter comigo porque precisava de ajuda.

- De modo nenhum.

- Para se confessar...

- Sob reserva. Não esperava de si a absolvição. O que o senhor pode fazer é entregar-me à polícia. Seria exactamente isso que eu faria no seu lugar. Pensa que eu tenho medo da penitenciária? Os homens como eu sentem-se em casa em toda a parte... numa mansarda, numa vivenda ou numa cela... com serviço e bom tratamento garantidos. Na Alemanha faz-se tudo para que os detidos vivam o mais confortavelmente possível... ocupam-se das almas deles... e distraem-nos para que eles não sofram com a prisão. Acredite, senhor deão, que nós vivemos muito mais confortavelmente que esses pobres diabos que dormem sete num quarto ou numa cabana boa para coelhos!

O deão Ahrens voltou a fechar a janela. A brisa de Verão, o perfume das flores, o repicar dos sinos, os passos dos homens na rua, a rotação da Terra em torno do Sol, tudo, tudo aquilo que faz a vida, o apaziguara interiormente. Podia de novo fitar sem repugnância aqueles olhos de peixe.

- Não quer entregar-se?

- Julga-me capaz de acto tão insensato?

- Então porque veio a minha casa?

- Por cinismo, senhor deão. Unicamente por cinismo... e talvez também por reconhecimento.

- Por reconhecimento?...

- Matei cinco pessoas. Não cesso de o repetir a mim mesmo porque me sinto orgulhoso disso.

Levantou uma das mãos e começou a contar silenciosamente pelos dedos.

- Um... dois... três...

- Acabe com isso! - gritou o deão.

Tinha outra vez um nó na garganta, falta de ar, o desejo de correr para a janela para respirar.

- Bem - disse docemente Meyer. - Não conto mais. Esses cinco viveriam ainda se...

- Se...

- Se eu arriscasse a cabeça. Sou cobarde, senhor deão. Reconheço-o. Não tenho vergonha de o confessar. Sou um cobarde lamentável quando se trata da minha pele. Gemeria, arrancaria os cabelos, gritaria de modo a fazer tremer os muros se alguém quisesse matar-me. Mas não haverá ninguém que me diga: «Deves morrer porque mataste cinco pessoas. Morrerás amanhã de madrugada, no pátio da penitenciária... sob a guilhotina... será rápido... não mais de sessenta segundos... a tua cabeça será separada do corpo por uma lâmina bem afiada...» E quando cair numa caixa cheia de serradura, o carrasco anunciará: «A sentença foi executada!» Em seguida metiam-me num caixão de madeira branca, nu, como estava quando nasci. No entanto, não teria a cabeça sobre os ombros, mas sim entre as pernas... Ora nada disso sucederá, senhor deão, porque a guilhotina vai enferrujando lentamente no museu do crime. A pena de morte foi abolida.

- Teria feito o que fez se a pena de morte existisse ainda?

- Nunca, em caso nenhum. Eu sou um cobarde, senhor deão. Só a lei me torna forte. A lei que proíbe a pena de morte... uma lei feita para o assassino cobarde que não tem outra coisa a perder senão a vida. Mas oferecem-lha...

- Você é o diabo em pessoa! Terei de rezar durante semanas para conseguir esquecê-lo.

- Isso é um erro. Não deve esquecer-me, senhor deão, nunca. Eu sou apenas um guarda-livros, um homem das massas... eu sei-o. Basta olhar-me ao espelho para admitir que a imagem que ele me devolve é a de um zero. Mas essa nulidade matou cinco pessoas, e isso, senhor deão, não deve nunca esquecê-lo. Agora, se me permite, vou retirar-me...

- Vá-se embora! E depressa!

O deão precipitou-se para a porta e abriu-a tão rapidamente que ela quase saltou dos gonzos.

- Fora! Fora! - exclamou.

Kurt Meyer abanou a cabeça. Abotoou lentamente o casaco e olhou mais uma vez à sua volta.

- É assim que se põe um homem na rua... que se põe à porta de um presbitério. À porta, muito simplesmente... Em vez de se discutir com ele, expulsa-se.

Chegara à porta e olhava o deão.

- Queria dizer-lhe tudo isto antes de me perder na multidão. Queria e podia dizer-lho, porque o senhor tem obrigação de se calar. Adeus, senhor deão.

Inclinou delicadamente a cabeça; depois, novamente diante da governanta, que lhe abria a porta, e na rua começou a caminhar com vivacidade, baloiçando os braços.

Um homem insignificante...

Aquele domingo estava quente.

Com o colarinho da camisa aberto, as mangas arregaçadas, Willy Sanger carregava nos pedais da sua bicicleta. Helga Kramer, que pedalava à frente dele, limpava de tempos a tempos a testa coberta de suor. O seu vestido estampado e leve voltejava em torno dela, descobrindo-lhe as pernas.

Dirigiam-se de novo para o bosque, para o pequeno lago calmo, escondido no meio de caniços e de arbustos em flor, de giestas e de altas bétulas, que erguiam para o céu os seus troncos prateados. Junto do lago estava fresco. Eles mergulhariam junto da margem, ficando só com a cabeça de fora. As ondas suaves deslizariam sobre os seus corpos e em redor deles tudo estaria calmo, de uma tranquilidade maravilhosa, apenas perturbada pelo canto de algum pássaro que manifestasse o seu contentamento.

Willy chegou junto de Helga e, continuando a pedalar, passou-lhe o braço pelos ombros.

- Estás cansada, Helga?

- Um pouco. O calor é verdadeiramente sufocante.

- Daqui a um quarto de hora estaremos no lago. Inclinou-se para ela e beijou-lhe o pescoço. Ela riu,

deu uma pedalada vigorosa e distanciou-se, inclinada sobre o guiador, de cabelos ao vento: uma jovem cheia de vida, apaixonada, feliz.

Willy Sanger deixou-a gozar o triunfo de lhe fugir. Desde que tinha cerimoniosamente pedido ao senhor administrador civil Kramer, seu superior, a mão da filha, Willy nadava em felicidade. Obtivera autorização oficial para levar Helga a passear aos domingos. O noivado seria festejado no Natal, com uma recepção familiar.

As portas do paraíso entreabriram-se para Willy e Helga, um paraíso que naquele momento era representado por um pequeno lago no meio do bosque. Tinham conduzido as suas bicicletas ao longo de um caminho estreito que ligava o lago ao mundo exterior; tinham-se despido e, em fato de banho, estenderam-se à sombra de uma árvore. Diante deles, o lago cintilava como um lençol de prata.

- Dentro de dois anos serei primeiro-escrivão disse Willy, passando o braço por cima dos ombros de Helga. Fechara os olhos e sonhava. - Mandaremos construir uma casinha, uma linda casinha. Há dois anos que tenho umas economias no banco. Tudo se passará como nos contos de fadas... E eles viveram felizes durante muitos, muitos anos...

Helga pousou a mão no braço de Willy. Depois, subitamente, tirou-a:

- Há fogo ali em baixo - disse.

Willy voltou a cabeça. À esquerda deles, do meio de um grupo de arbustos, junto da margem do lago, uma leve coluna de fumo erguia-se para o céu, a direito, de tal modo a atmosfera era calma. Willy apoiou-se nos cotovelos.

- Alguém atirou o cigarro para o chão... Cretino! Poderia provocar um belo incêndio na floresta. Vou apagar o fogo antes que comece a alastrar!

Levantou-se e avançou rapidamente pela margem do lago, em direcção aos arbustos. Parou um instante, para meter a mão na água. O sol tinha-a aquecido e o contacto do líquido prateado era como uma carícia.

Atrás desses arbustos estava escondido Joe Dicaccio. Via Willy Sanger avançar. Quando vira o par aproximar-se da margem procurara rapidamente apagar o lume. Lançara ervas para cima dele e pisara-o com os pés... mas a pequena fogueira continuava a libertar um fumo branco que nenhum vento espalhava.

Dicaccio pousou o corvo meio calcinado que matara na véspera. Um corvo... morto com um tiro de revólver... Oh! Dicaccio era bom atirador!

Estava acocorado atrás dos arbustos, empunhando o revólver. Willy Sanger avançava, tentando descobrir de onde partia aquele delgado fio de fumo que começava a voltejar rente ao solo: a fogueira apagava-se.

«Não te aproximes mais», pensava Dicaccio, «não te aproximes mais, senão terei de disparar. Não poderei fazer outra coisa, rapaz desconhecido, em calções de banho, acompanhado de uma bonita rapariga. Também tu deves compreender, minha pequena... Joe Dicaccio, se for apanhado, será extraditado, e no Wisconsin espera-o a cadeira eléctrica. Ah, meus filhos, vocês não fazem ideia nenhuma do que é uma cadeira eléctrica... senão, compreenderiam que eu estou pronto para tudo para a evitar. Na Alemanha não têm pena de morte, estão mais avançados do que nós, na América. Vocês dizem: Um assassino é também um ser humano. A isso respondo eu: Bravo! bravo! Mas de que me servem as vossas leis se me extraditam? E por isso que tenho de disparar, percebem? Sou obrigado a fazê-lo, meus filhos.

Se não avançares mais, se voltares para trás e fores para junto da tua girl, nada te sucederá. Joe Dicaccio não tem nada contra ti... absolutamente nada, mas quer continuar a viver... entre vocês, no vosso país, no vosso meio. O pobre Joe do Minnesota, que uma mulher, uma porca, traiu, depois de ter feito dele um assassino...»

Observava por entre os arbustos Willy Sanger, que via a ténue coluna de fumo adelgaçar.

«Não avances mais... não avances mais, digo-te eu... Se tiver de disparar, serás o meu segundo crime. E tu só pedes para te deixarem viver, vejo-o no teu rosto. Tens desejo de viver, como eu.»

Willy Sanger continuava a avançar.

Só alguns ramos o separavam agora de Dicaccio. Uns cinquenta centímetros. O americano erguera o revólver e visava Willy Sanger na testa. «Morrerá sem sofrimento», pensava Dicaccio. «Não ouvirá sequer a descarga... Um tiro em pleno rosto, e tudo estará acabado... uma morte suave, muito mais suave que a cadeira eléctrica na qual eu iria acabar se me descobrissem.»

Willy Sanger oferecia francamente a cabeça ao cano do revólver, quando, através dos ramos, viu um pedaço de tecido... alguma coisa que se destacava sobre o verde das folhas. Bruscamente, como que avisado por um misterioso instinto, deixou-se cair no solo, no próprio momento em que Dicaccio carregava no gatilho.

Willy caiu sobre a relva alta e rebolou. A bala assobiou junto da sua cabeça e foi perder-se no lago, enquanto Helga, paralisada pelo terror, ficava sentada no mesmo sítio e soltava um grito dilacerante.

Dicaccio mordeu os lábios. Olhou na direcção da jovem, que, passado o primeiro momento de susto, se levantara e se escondera atrás do tronco de uma grossa bétula. Willy Sanger continuou a rolar até chegar a uma cova coberta de relva que lhe oferecia um abrigo momentâneo.

- Helga! - gritou. - Helga! Foge! A polícia! Depressa! Helga!

Dicaccio ergueu-se. A jovem corria para a sua bicicleta. Ergueu a arma sem se preocupar com o homem que gritava. Este já não era perigoso. Mas a jovem loura e delgada, que corria lá adiante, representava para ele a vida ou a morte.

Disparou, tranquilamente, cautelosamente, com as pernas afastadas, como numa carreira de tiro, com a cabeça um pouco inclinada, o corpo descontraído. Esvaziou assim um primeiro carregador.

Arrastando atrás de si a bicicleta, tentando alcançar o atalho, Helga Kramer gritava:

- Socorro! Assassino! Socorro!

Chegara ao atalho e subia para a bicicleta. Dicaccio corria atrás dela. Disparou mais uma vez e viu a jovem inclinar-se sobre o volante, mas continuar a pedalar.

Oscilava, tendo dificuldade em manter a sua direcção, mas prosseguia o seu caminho, agarrada ao guiador. Avançava, avançava sempre, oscilando, e conseguiu chegar à estrada.

Joe Dicaccio deixou cair o revólver vazio e procurou com o olhar o rapaz. Este encontrava-se atrás dele, a dois metros apenas, com um pau na mão. O seu rosto estava lívido e tinha uma expressão dura.

- Larga esse revólver!

Dicaccio observava Sanger. Tinham a mesma estatura e eram provavelmente da mesma idade. Joe perguntava a si mesmo se o devia atacar, abater o outro com pancadas nas têmporas ou quebrar-lhe a carótida. Tinha ainda vários meios de salvar a vida. Tinha também consigo uma arma branca, um punhal com uma comprida lâmina.

Levava a mão ao bolso quando Willy Sanger o atacou. Uma primeira pancada na cabeça, depois outra sobre a cabeça curvada. Três, quatro... Dicaccio cambaleou e deu um passo atrás. Depois atirou-se para a frente, mas as pancadas continuavam a chover sobre ele. Uma delas atingiu-o entre os olhos... Dicaccio sentiu a pele rebentar e o rosto cobrir-se de um líquido morno e pegajoso. «Sangue», pensou, «merda... sangue!»

Dicaccio, de punhos erguidos, lançou-se sobre Sanger, que, com o choque, largou o pau. Começou então uma luta corpo a corpo, uma luta muda, em que só se ouvia o som abafado das respirações entrecortadas, o ruído surdo das pancadas e o som dos joelhos e das cabeças que se chocavam. Os dois homens estavam caídos no chão e rolavam em direcção ao lago.

«Vou afogá-lo», pensava Dicaccio. «Vou meter-lhe a cabeça debaixo de água até que ele sufoque.» Logo que um se levantava, o outro fazia-o cair. Ensanguentados, tumefactos, respirando com dificuldade, tinham chegado ao lago.

- Pára! - disse Sanger, ofegante. - A polícia estará aqui dentro de instantes.

- Não terás o prazer de a ver chegar!

Dicaccio estendia a cabeça para diante, como um touro prestes a investir para o toureiro.

- A polícia vai chegar, e daqui até lá eu não te largarei. Disparaste sobre Helga, bandido! Isso basta para que eu te torça o pescoço.

Dicaccio oscilava a cabeça para trás e para a frente.

- E atingi-a nas costas... Talvez esteja estendida na estrada. Se fosse a ti, não contaria muito com a polícia.

- Atingiste-a - murmurou Willy. Diante dos seus olhos o lago girava, o Sol desaparecera, o mundo era cinzento. - Atingiste-a? - repetiu outra vez, em voz baixa.

- Nas costas.

- Nas costas...

- Sim.

- Oh!

Willy Sanger deu um encontrão a Dicaccio e exclamou, ofegante:

- Se mataste Helga, mato-te. Não serás condenado a prisão perpétua e um belo dia amnistiado. Serei eu o juiz. Condeno-te à morte! À morte! Fera! Monstro!

Agarrou Dicaccio pelo pescoço, enterrando-lhe na carne os seus dedos dobrados como garras. Dicaccio libertou-se, tropeçou numa pedra e caiu de joelhos. Willy Sanger atirou-se a ele e puxou-o para a água, gritando:

- Helga! Helga! Helga!

Depois desmaiou. Caiu como uma árvore desenraizada, de lado, junto da margem, na água pouco profunda, com a cabeça em cima das pedras. Atrás dele, no lago, de joelhos, Dicaccio procurava voltar a respirar normalmente. Os seus olhos estavam ensanguentados, inchados, esgazeados.

Foi assim que os polícias os encontraram quando chegaram à margem do lago. Tiraram Dicaccio da água e transportaram-no para o carro verde parado junto do atalho. Um agente transportou Willy Sanger às costas.

Só no dia seguinte soube que Helga estava no hospital. Ficara com um pulmão perfurado, mas graças a cinco transfusões a sua vida não corria perigo.

Durante a noite, Joe Dicaccio enforcara-se nas grades da janela da sua cela. Rasgara a manta em tiras, amarrara-as umas às outras, subira a um banco para passar por entre as grades a corda improvisada e, com o pé, tinha tirado o banco.

Quando o guarda fora levar-lhe o café, de manhã, encontrara Joe baloiçando junto à parede, com uma expressão orgulhosa, quase cínica, no rosto: frustrara o mundo não indo morrer na cadeira eléctrica.

Morto Joe Dicaccio, as portas da cela de John Pattis abriram-se.

As objecções do pai não fizeram com que Sylvia desistisse da ideia de ir esperar Pattis à saída da sua detenção preventiva. O «caso» daquele não estava ainda juridicamente regularizado. Subsistia o delito de não ter denunciado um malfeitor... mas a suspeita de que Pattis tivesse podido proteger o seu compatriota desaparecia com a morte de Dicaccio.

Os termos do mandado contra Pattis diziam que este «... sob o efeito do álcool, não dera fé às afirmações de Dicaccio e não acreditara na veracidade do acto premeditado por Dicaccio e pelos seus cúmplices...»

Friedrich Moll tinha uma carta nas mãos. Um conselheiro do ministro regional da Justiça escrevia-lhe em termos claros e precisos:

As sanções previstas actualmente no Código Penal atingem, segundo a opinião do Ministério da Justiça, plenamente o seu objectivo. Não está provado que a perspectiva de uma condenação à morte assuste os criminosos.- Quando a pena de morte existia, a taxa de criminalidade não era menos elevada... Basta para nos convencermos disso reportarmo-nos aos arquivos judiciários. O ministro da Justiça recusa-se a tomar as suas objecções em consideração.

O conselheiro governamental Friedrich Moll, director da penitenciária, mandara o guarda Puck emoldurar essa carta e colocara-a em cima da sua secretária. Encontrava-se ali no lugar de honra, de modo que cada visitante que olhava para o director via ao mesmo tempo a carta emoldurada. O primeiro que a leu foi o capelão. Foi colocar-se diante da carta e tomou conhecimento dela, enquanto Moll tamborilava sobre a secretária.

- Encantador, não é?

- Clara e precisa.

- E qual a sua opinião, senhor capelão?

- Eu não tenho opinião. Eu trato das almas. Não me preocupo com os parágrafos do Código Penal.

Moll sentou-se na beira da secretária.

- Há quase vinte anos que estou ao serviço da administração penitenciária... Posso, portanto, ter uma ideia bastante precisa sobre os hóspedes albergados aqui à custa do Estado. É claro que eles colam sacos de papel e fazem trabalhos de cestaria... bela ocupação!... Exceptuando estes trabalhos, que resta? Uma vida um pouco monótona, sem laços familiares, mas numa casa limpa, ordenada, em que os pensionistas não conhecem as preocupações da vida quotidiana e vivem melhor que milhares de boas pessoas amontoadas em pardieiros nas grandes cidades. É um tal absurdo da ordem social que eu preciso de ter mais esta carta debaixo dos olhos para acreditar que vivemos efectivamente em democracia!

- Os seus sarcasmos não irão um pouco longe de mais? Na penitenciária (o próprio nome assim o indica, não é verdade?) devem não só expiar os seus crimes, mas também emendarem-se, reformarem-se.

- Tente então emendar um Pleil, ou um Schltisser, ou um assassino do mesmo gabarito! - exclamou o director, batendo no ombro do capelão. - Lá porque um tipo canta no seu coro, não quer dizer que a mentalidade dele tenha mudado. Setenta por cento das suas queridas ovelhas recorreram a si por cálculo: «Se me portar bem, com o tempo obterei algumas vantagens.» Acredite, aqueles que mais mansos se mostram são na sua maior parte incorrigíveis.

- As suas relações com os associais tornaram-no amargo - replicou o capelão.

Moll abanou a cabeça.

- Abriram-me os olhos, literalmente, senhor capelão. Um tipo insignificante, muito bem-educado, muito manso. Um certo Meyer... provou o absurdo de todas as teorias sobre a reabilitação, sobre o trabalho de educação nas prisões; assassinou quatro pessoas com a maior calma do mundo, como teria descascado uma maçã ou barrado com manteiga uma fatia de pão, e isso em plena liberdade... o meigo Meyer... E teve a bondade de me escrever para me pôr ao corrente.

- Um caso isolado, senhor director.

- Um caso sintomático! Uma prova de que belas frases e os olhos erguidos para o céu não bastam para transformar um tipo. O que hoje se considera como uma «prova de emenda» é precisamente essa hipocrisia dos criminosos inveterados. Não me enganam com as estatísticas relativas à percentagem daqueles que, uma vez libertos, voltam a ser homens prontos a integrarem-se na sociedade. Porque é que não publicam o número daqueles que reincidem, da massa dos que voltam, daqueles que, a intervalos regulares, desfilam na minha frente e me apertam a mão como a um velho amigo: «Como está, senhor director, eis-me de volta. Só gozei a liberdade durante um ano. Os chuis trabalham agora com rádios e não temos tempo de nos safar antes deles nos caírem em cima. Para a próxima vez é preciso ser mais esperto.» É assim que eles falam... para a próxima vez. Mal acabam de ser presos e já sabem que dentro de dois, três ou quatro anos tentarão novo golpe... e mais astucioso que o precedente, mais bem concebido. O curso de aperfeiçoamento tem lugar na penitenciária... todas as noites, das vinte às vinte e duas horas, cela colectiva número dezasseis. Há ali nove rapazes maus e impenitentes que falam das suas recordações... pequena universidade popular do crime!

- Devia-se ir para o regime da cela individual...

- Cela individual! Seria preciso construir então penitenciárias gigantescas. Sabia, senhor capelão, que a construção de uma cela de penitenciária custa mais caro que a de uma sala de hospital com o seu equipamento completo? Faltam hoje na Alemanha cinquenta e cinco mil camas de hospital... e nós devíamos construir celas para os criminosos, esses pobres diabos que sofrem com a promiscuidade? É desgostante, senhor capelão, desgostante, não posso deixar de o repetir. Era preciso que nos altos postos as pessoas se apercebessem de que o autor de um crime capital deve ser punido com a pena capital. Quando o assassínio comporta o risco de fazer perder a cabeça, os criminosos mais endurecidos pensam duas vezes antes de o cometerem, pode crer! Pode interrogá-los! Todos lhe dirão: eu não teria cometido esse assassínio, não teria morto esse motorista de táxi, não teria assaltado tal banco se a pena de morte existisse ainda.

- Não devemos esquecer Deus...

Moll sobressaltou-se como se tivesse recebido uma cacetada.

- Deus! Deus deu ao homem o sentido do bem e do mal... esse conhecimento que o diferencia dos animais.

- E deu-nos o amor pelo próximo... por aquele que pecou também. Jesus Cristo morreu na cruz prometendo ao ladrão que a sua alma seria salva porque ele acreditava n’Ele.

- Eu não sou o Cristo! - exclamou Moll com voz forte. - Sou um homem que reclama ao seu Governo protecção para os cidadãos. E essa protecção não será garantida enquanto a mais dura das penas não for aplicada aos mais duros dos criminosos.

Sem responder, o capelão saiu da sala.

Apesar do horário cuidadosamente elaborado pelo Dr. Feind, Karlssen e Doernberg apresentaram-se juntos no Ministério Regional da Justiça.

Feind, ao qual tinham entregue os cartões dos dois magistrados, levou-os pessoalmente ao ministro. Ao colocá-los sobre a secretária deste, tinha nos lábios um sorriso trocista.

Burrmeister lançou um olhar aos dois cartões e abanou a cabeça.

- A invasão dos comandos da pena de morte. Fazer movimentos separadamente... atacar em conjunto! Esses senhores têm dons de estrategistas. Mas isso não me intimida nada. Modifiquemos o programa, Feind. Mande-os entrar juntos.

O conselheiro ia retirar-se, quando a voz do ministro o chamou.

- E o senhor assistirá à conversa. Falar com dois ou com três partidários da guilhotina vem a dar no mesmo...

- Muito bem, senhor ministro - contentou-se em responder Feind.

Karlssen e Doernberg entraram no gabinete do ministro e inclinaram-se ligeiramente. O ministro estava em pé atrás da sua secretária, de braços cruzados, e respondeu ao cumprimento deles com um sorriso.

- Bom-dia, meus senhores! Eu tinha-lhes pedido, por intermédio do doutor Feind, que me viessem ver separadamente. Mas reconheço que uma discussão geral será preferível. A pena de morte não é um assunto privado: diz respeito à colectividade. Falemos, portanto, colectivamente. É isso que significa a vossa chegada em conjunto, não?

O procurador Karlssen sorriu por sua vez.

- Trata-se menos de uma questão colectiva que de exprimir uma opinião baseada na moral, senhor ministro. Penso que os relatórios que motivaram a nossa convocação eram bastante claros para...

Burrmeister ergueu a mão.

- Peço-lhe, senhor procurador, para não pleitear pró domo sua. Hoje não desejo de maneira nenhuma saber qual é a sua opinião.

- Ah! - exclamou Doernberg.

O ministro voltou-se para ele

- Isso surpreende-o, senhor procurador?

- Até certo ponto, sim.

Doernberg comprimiu as palmas das mãos uma na outra. Contra a sua vontade, a emoção dominava-o.

- Todos os dias são assaltados bancos; todos os dias homens são abatidos tão friamente como se fossem alvos de feira; todos os dias os jornais vêm cheios de relatos de assassínios, de incêndios, de violações e de outros crimes atrozes; quase diariamente são mortos polícias no exercício das suas funções, que são proteger os cidadãos... e diz, senhor ministro, que não quer conhecer a minha opinião?... Permita-me que lhe diga que a nossa opinião é a de «práticos». Nós estamos em contacto constante com essa canalha; falamos com esses assassinos; conhecemos a mentalidade deles, ouvimos o que eles dizem: «Bom-dia, senhor procurador. Os chuis apanharam-nos... mas que podem eles? ... Na pior das hipóteses, é a prisão perpétua...» Depois sorriem beatificamente e fumam os cigarros que lhes oferecemos para os tornar mais faladores... É o que ouvimos quase diariamente, senhor ministro, e estamos tão habituados a tais afirmações que quase não lhes prestamos atenção.

Burrmeister abanava a cabeça e tinha erguido a mão para conter as impetuosas palavras de Doernberg.

- Não se enerve, Doernberg. Eu fui dezassete anos procurador, antes de entrar nos serviços ministeriais.

Conheci a era da guilhotina... Sou, portanto, também, um «prático»... E é por isso que não quero que haja entre nós troca de opiniões, mas sim que consideremos em conjunto a questão da pena de morte... que vejamos em que é que ela pode salvaguardar no homem um último instinto moral... não falou de moral, senhor Karlssen?

- Sim, senhor ministro.

- Considera então moral cortar uma cabeça?

- Não deseja conhecer a minha opinião, senhor ministro...

- Exacto... Façam favor de se sentar, meus senhores... O senhor também, Feind. - Burrmeister sorriu. Permitam-me que os apresente. Aqui estão dois senhores que têm em mente planos para a reinstalação da guilhotina... ali, um senhor que gostaria bem de se juntar a eles.

Doernberg ficou em pé atrás da cadeira que lhe fora indicada por Burrmeister e declarou:

- Creio, senhor ministro, que a atitude do doutor Feind é característica. Há hoje juristas experimentados, dos quais alguns são, em certa medida, partidários do restabelecimento da pena de morte, que emitem opiniões diferentes sobre os crimes passíveis dessa pena. Meus senhores... que censura querem dirigir àqueles que, menos bem informados que os senhores sobre a questão, deveriam decidir no Parlamento se se devia ou não restabelecer a pena de morte?

Karlssen respondeu sem hesitar:

- Doernberg exagerou um pouco. O assassínio... de acordo. Os raptos de crianças, os assaltos à mão armada aos bancos e aos motoristas de táxi... nesses casos sou da opinião dele. Mas os incêndios voluntários?

- Perfeitamente - disse Doernberg. - Quando alguém pega fogo a um edifício ocupado, deve certamente prever que os seus ocupantes perecerão. Existe, portanto, premeditação. E a premeditação basta para justificar a pena de morte.

Karlssen ergueu a mão, mas Doernberg prosseguiu rapidamente.

- Passa-se o mesmo quanto aos atentados contra os aviões, os navios e os comboios. Um atentado desse género é cometido sabendo bem que as pessoas poderão ficar feridas ou perder a vida. Portanto, há premeditação. O assassínio...

- Calma, meu caro colega, calma... - Karlssen fazia gestos com as duas mãos. - Que limites fixaria então? Alarga o parágrafo 211 de tal modo que, em breve, estaríamos na época de Hitler, em que praticamente todos os crimes (para não falar de delitos) caíam sob a alçada da pena de morte. Não podemos fazer funcionar a guilhotina como se fosse uma rotativa a tirar jornais. Seria verdadeiramente mergulhar em plena Idade Média.

- Talvez houvesse uma rápida diminuição da criminalidade. Seis meses de uma lei excepcionalmente dura... e garanto que se verificaria uma baixa significativa nos crimes. Ninguém gosta de arriscar a cabeça.

- Acredita realmente nisso? - perguntou o ministro.

- Acha que o diria se não estivesse convencido disso?

- E pena... - Burrmeister esmagou lentamente o cigarro no cinzeiro. Depois, brutal: - Julgava-o menos primário, Doernberg. Todas as épocas conheceram leis de excepção. Todas as épocas brandiram a ameaça da pena de morte. E em todas as épocas houve milhares de inocentes executados que hoje nos acusam, a nós, representantes da justiça, e nos lembram que não devemos aplicar aos homens a velha lei de talião.

- Considero impossíveis os erros judiciários e os pretensos crimes jurídicos se a culpabilidade for estabelecida com base em provas completas, como eu proponho.

- A culpabilidade estabelecida! - O ministro olhou para Doernberg com uma expressão de dúvida. - Devo lembrar-lhe a colecção de erros judiciários, senhor Doernberg? Essa montanha de injustiças que pesa actualmente sobre os ombros do Estado? - Ergueu-se lentamente e com voz forte disse: - Senhores, digo-o claramente, prefiro ver dez assassinos engordarem durante toda a vida numa penitenciária do que enviar para a guilhotina um só inocente.

Willy Sanger encontrava-se sentado na beira da cama de Helga, com a mão da jovem presa na dele.

Ela estava um pouco pálida, de lábios exangues. Os olhos, rodeados de profundas olheiras, tinham perdido o seu brilho alegre, mas estava viva.

Estava viva! A bala que lhe entrara nas costas perfurara-lhe um pulmão, mas sem o dilacerar nem o danificar gravemente. Após cinco transfusões, Helga ficara em estado de fazer o seu depoimento. Confirmara as declarações de Willy: Dicaccio disparara deliberadamente, sem aviso, sem pronunciar uma palavra. Descarregara sobre ela o tambor do seu revólver. A arma encontrada na margem do pequeno lago não continha uma única bala.

A imprensa apoderara-se do caso. Uma vez mais evocava-se a pena de morte, e numerosos jornalistas, conscientes de exprimirem a opinião da maioria do povo, pediam o seu restabelecimento.

O Dr. Hellmig, presidente do tribunal regional, submerso pela vaga de cólera dos seus concidadãos, teve de admitir que falassem disso em sua casa.

Foi a filha, Sylvia, que levou a conversa para esse assunto escaldante. John Pattis recompunha-se com a ajuda de uma garrafa de vinho tinto e de sanduíches com molho de tomate e Sylvia rodeava de cuidados enternecedores esse rapaz do Wisconsin.

- Que pensa do último crime de Dicaccio? - perguntou ela.

Pattis pousou no prato a sanduíche que tinha na mão.

O vermelho do tomate lembrara-lhe subitamente o sangue. Os seus lábios tremeram.

- Quando Dicaccio se apercebeu de que o seu sonho de regressar aos Estados Unidos e de lá recomeçar uma nova vida com Olga não se realizaria, perdeu toda a moderação. E quando disparou sobre a jovem já nem sequer se preocupava com a sua própria vida. Já não tinha nada a perder. Escondido na floresta como um lobo perseguido, ele defendeu-se instintivamente quando se viu descoberto... Os tiros contra a jovem? Um simples reflexo animal.

- Não deixou por isso de ser uma tentativa de assassínio - interveio o Dr. Hellmig, que imediatamente lamentou as suas palavras, vendo Sylvia abanar energicamente a cabeça e declarar:

- Talvez não tivesse agido assim se a pena de morte existisse ainda!

Hellmig franziu os sobrolhos. A sua filha... A pena de morte... Pattis abanava a cabeça.

- Não. Ele teria agido da mesma maneira. A pena de morte não o teria assustado. Tinha perdido todo o bom senso, e quando um criminoso chega a esse ponto, nem mesmo a pena de morte é um papão.

- Um papão nunca o será - declarou o Dr. Hellmig. John Pattis encolheu os ombros.

- Não será um simples ponto de vista, senhor presidente?

- Falo por experiência, meu jovem amigo. Durante três Constituições e três regimes diferentes, algumas centenas de criminosos passaram pelas minhas mãos. Apliquei a pena de morte na República de Weimar, se bem que sempre tenha pronunciado com horror a frase «Condenado a ser executado pela guilhotina!» Conheci de muito perto a imoralidade da justiça do III Reich; a arbitrariedade dos tribunais de excepção, o servilismo escandaloso dos magistrados, com as mãos atadas por ordem de quem tinha apenas um objectivo: cortar cabeças! E na nossa nova democracia sou igualmente encarregado de fazer aplicar a lei. Verifiquei sempre que aqueles a quem chamam os grandes criminosos, «os monstros», como lhes chama a imprensa, não se deixavam assustar nem pela pena de morte nem pela prisão perpétua. Eles são comparáveis aos fenómenos da natureza. Sempre os houve, e sempre os haverá. São degenerados da espécie humana... nada mais. Moral, intelectualmente, são anormais, tal como um animal com duas cabeças. Mas assim como não se pode suprimir à nascença uma criança atingida por uma deformação, e assim como não se pode matar um louco sob o pretexto de que ele é incurável e representa um encargo para a colectividade, não se tem o direito de guilhotinar um criminoso porque fraquezas congénitas não fizeram dele um homem como os outros. Um deles é um paranóico, um outro é um cretino, um terceiro tem instintos assassinos... são todos doentes!

- E aquele que mata por cupidez? Aquele que assalta um banco?

O Dr. Hellmig estudou a questão enquanto acendia um charuto.

- Os partidários da pena de morte baseiam-se em estatísticas, em algarismos e na lógica. Um condenado à prisão perpétua, se vive vinte anos, dizem eles, custa ao Estado uns trinta milhares de marcos. Uma cela é mais cara do que uma cama de hospital. Na Alemanha Federal, dezenas de milhares de pessoas habitam ainda hoje em barracas e em alojamentos improvisados... mas os criminosos dispõem de uma cela aquecida, de alimentação suficiente, senão abundante, e dos melhores cuidados médicos. Para viver melhor do que a pobre gente das barracas seria, portanto, necessário cometer um crime!

- E não será esse raciocínio exacto? - perguntou secamente Sylvia.

- É uma polémica, minha filha... Admitamos que nos faltam vinte e cinco mil camas nos hospitais para os doentes físicos! Mas se considerarmos os criminosos como doentes mentais, acho que isso justifica a construção de penitenciárias mais modernas, onde se possam tratar os doentes mentais e, uma vez curados, reintegrá-los na sociedade. As novas penitenciárias, se se aplicarem os novos métodos psicológicos de recuperação, devem ser hospitais para almas perdidas. É esse o grande princípio moral em que se inspira a administração penitenciária actual.

John Pattis afastou o prato das sanduíches. Perdera o apetite. Pensava em Dicaccio e no seu amor por Olga; pensava na noite em que se tinha embriagado; nos sentimentos que descobrira em si por Sylvia e que se assemelhavam em muito aos que Dicaccio sentira por Olga. «Também eu», pensava Pattis, «seria capaz de matar por causa de Sylvia.»

- Tem razão, senhor presidente - disse em voz baixa. - Há em cada crime algo de patológico.

- Sinto-me satisfeito por o ver concordar comigo! - exclamou o Dr. Hellmig. - Voltou a encher os copos e olhou amigavelmente para o jovem americano. - Se esta opinião prevalecer, mesmo entre aqueles que apoiam a pena de morte, creio que não estaremos longe de atingir um sistema exemplar de «justiça humana».

- És um pai muito inteligente - disse Sylvia sorrindo. - Contudo, uma pessoa sã de corpo e espírito tem muita dificuldade em ver um doente num homem como Katucheit.

- Es ainda nova, minha querida. Aprenderás com o tempo que não se pode pensar apenas em termos de amor e de ódio, mas que é necessário também compreender e perdoar.

- O procurador Doernberg diz, no entanto, que...

O rosto de Hellmig tornou-se sombrio. Ergueu peremptoriamente a mão e declarou num tom seco:

- Peço-te, Sylvia. Desejo que não se pronuncie na minha casa o nome de Doernberg. Já me basta ouvir falar dele durante o dia no Palácio da Justiça.

John Pattis achou que devia ir em socorro de Sylvia.

- Quem é esse senhor? - perguntou.

- Um jovem magistrado do Ministério Público... um desses principiantes que julgam poder substituir a experiência pela guilhotina. Um pouco iluminado. «O orgulhoso defensor da pena de morte», como ele gosta de se intitular.

O rosto de Pattis tinha uma expressão grave.

- Creio... que é um erro uma pessoa declarar-se simplesmente a favor ou contra a pena de morte. Na América temos a cadeira eléctrica ou a câmara de gás, conforme os Estados. Não podíamos suprimi-las. A aglutinação engendra automaticamente o aumento da criminalidade. Está na natureza dos homens matarem-se uns aos outros, quando são muito numerosos.

. - Muito bem, Mister Pattis. Muito bem! Mas como é que querem punir um instinto natural?

- Trata-se sobretudo de o evitar por meio da educação. É preciso ensinar os homens a refrearem os seus instintos, mas é necessário também inspirar-lhes um receio salutar. É a melhor maneira de pôr um freio no crime.

- Segundo a minha opinião, isso é absolutamente impossível - concluiu com firmeza o Dr. Hellmig.

Quinze dias mais tarde, os dois cúmplices ainda em fuga do assalto ao banco, Franz Heidrich, o Chorão, e o elegante Hans Wollenczy, foram apanhados pela brigada criminal. Franz, o Chorão, fazia de turista em Berchtesgaden. Estava estendido num prado, ao sol, ouvindo tilintar os guizos pendurados ao pescoço das vacas, gozando o ar puro, quando duas mãos o agarraram pelos ombros.

Franz deixou-se prender sem resistência. Para quê resistir? Qualquer tentativa de fuga era impossível.

Revistaram-lhe os bolsos para verificar que não continham armas de fogo.

O Chorão sorriu e afirmou com satisfação:

- Não encontrarão nada, Franz, o Chorão, é contra a violência. E, em Wiesbaden, nada mais fiz do que ficar de atalaia. Pohlschlàger e Dicaccio é que dispararam. Já os apanharam?

- Morreram.

- Morreram? Foram vocês?... Vocês não são tão parvos como isso... A pena de morte está suprimida... então disparam simplesmente sobre o tipo que tenta fugir. Boa esperteza.

- Pohlschlàger e a amiga dele foram mortos por Dicaccio. E este enforcou-se na sua cela.

Heidrich estendeu as mãos e as algemas fecharam-se sobre os seus punhos grossos.

- Nunca pensei que o rapazinho americano fosse capaz de tal coisa! Parecia tão bom rapaz! Recusava-se sempre a servir-se da arma, e de repente dispara assim sobre dois amigos. Quando se é um honesto ladrão, é triste encontrar gente dessa.

Franz caminhava tranquilamente, entre os dois polícias, pelo caminho que ia dar à aldeia.

- Quanto tempo me irá custar isto? - perguntou tão descontraidamente como se falasse da chuva ou do bom tempo.

Um dos polícias encolheu os ombros.

- Isso depende... se puderes provar que a tua cumplicidade se limitou a ficares de vigia e que nada tiveste a ver com os assassínios...

- Isso posso jurá-lo.

- Talvez apenas só uns cinco anos... e talvez vás parar a um campo de trabalho e não à penitenciária.

- Ah! Não! - exclamou o Chorão, parando, alarmado. Nos seus olhos percebia-se um brilho feroz e aterrorizado. - Campo de trabalho, não. Isso ainda é pior do que a guilhotina! Arranjarei os melhores advogados! Campo de trabalho não...

A prisão de Hans Wollenczy também não apresentou grandes dificuldades, mas fez-se de uma maneira mais distinta e tão discretamente como num filme policial, tendo por ambiente um meio mundano e vedetas com grandes decotes.

A polícia descobriu Wollenczy em Bad Neuenahr. Cliente assíduo e respeitado da sala de jogos, acompanhado por uma amante de cabelos ruivos, conduzia um Porsche cinzento-pérola e atraía as atenções pela sua elgância e pela indiferença com que ganhava ou perdia.

Era conhecido por «barão Von Poitrons» e só o controlo rotineiro das fichas de chegada do hotel de Bad Neuenahr fez com que o «barão» fosse preso. Como não podia apresentar os seus documentos de identificação, ele metera na mão do porteiro uma nota de cinquenta marcos e deixara em branco a parte da ficha reservada ao número do bilhete de identidade ou do passaporte.

Foi discretamente detido à mesa da roleta. Um inspector de smoking bateu-lhe no ombro como se fosse um velho amigo. Wollenczy, surpreendido, voltou-se, e percebeu, apesar do traje de noite, esse algo de característico que faz reconhecer um polícia entre mil pessoas e dirigiu-lhe um amável cumprimento com a cabeça.

- Um momento senhor...

Lançou a ficha sobre um número e ouviu pela última vez...

- Senhores, joguem... Nada mais... O vermelho... Wollenczy guardou com indiferença as fichas que o

croupier empurrava para junto dele.

- O vermelho é a minha cor favorita - disse, levantando-se. - Dá-me sorte. Não é o vermelho a cor do amor e da paixão?

- Siga-me - disse o inspector em voz baixa, mas num tom que não admitia réplica.

- Com grande prazer.

- Deixe de armar.

- Saíram do casino e dirigiram-se para o carro da polícia. Antes de entrar para lá, Wollenczy deitou ao seu Porsche um olhar de pena.

- Que sucederá ao meu carro?

- Será vendido em leilão.

- Não se deixem enrolar. Com todos os acessórios que tem, vale bem cento e cinquenta mil marcos...

- Vá, a caminho! - exclamou brutalmente o polícia instalado ao volante. Estava de uniforme, e ver os seus dois companheiros de smoking irritava-o.

- Eh, lá! - disse Wollenczy ao condutor. - Trate melhor as embraiagens. No arranque é que se conhece o valor de um bom condutor...

- Não tens outras preocupações? - resmungou o polícia, furioso. - O assalto de Wiesbaden vai custar-te a cabeça.

- A cabeça - Wollenczy ria. - Nem pensar. Eu apenas conduzi. Não pus os pés fora do carro. Não apanharei mais de três anos, no máximo. E arranjarei um bom advogado.

Na noite, o carro corria velozmente em direcção a Bona.

O Dr. Hellmig via sem prazer as relações entre a filha e o jovem americano John Pattis tomarem um cariz mais íntimo.

Não que esse rapaz do Wisconsin lhe fosse antipático. Mas enquanto o caso do assalto à mão armada contra o banco de Wiesbaden não estivesse resolvido, Pattis, que conhecera um dos assassinos, Joe Dicaccio, continuava a ser suspeito aos olhos de alguns. E os contactos frequentes entre Sylvia e Pattis arriscavam-se a dar que falar.

- Um pouco mais de reserva, minha querida - disse uma noite a Sylvia quando esta, depois de ter ido à Ópera com Pattis, se despedira do rapaz, em frente da casa dos pais, com um demorado aperto de mão... cena que o Dr. Hellmig observara da janela.

- Não esqueças a minha posição nem que presido a um tribunal... Até que o caso de Wiesbaden esteja julgado, abstém-te de qualquer intimidade com Pattis. E verdadeiramente desastroso ver a filha do magistrado que vai dirigir os debates dessa horrível história passear por todo o lado com (como hei-de dizer) um rapaz que sabia que o crime ia ser cometido.

- Mas John está inocente! Eles libertaram-no!

- O Ministério Público mostrou-se liberal, nada mais. O dossier Pattis não está encerrado. Deverá comparecer como testemunha, e é bem possível que o doutor Karlssen peça a continuação da acção contra esse rapaz, por não ter denunciado malfeitores.

Como uma criança a quem dessem uma reprimenda, Sylvia sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas e olhou para a janela.

- Que se passa com o doutor Doernberg? - perguntou, unicamente para irritar o pai.

Este encolheu os ombros.

- O ministro regional da Justiça deu-lhe uma lição. Parece que o doutor Doernberg se conduziu de uma maneira inverosímil. O doutor Karlssen contou-me que esse jovem imprudente propusera ao ministro medidas que fariam da justiça alemã um matadouro. Seria necessário arranjar um batalhão de carrascos.

- Se houvesse na verdade tantos crimes atrozes...

O Dr. Hellmig ergueu a mão, o que para ele era uma maneira de pôr ponto final na conversa.

- Cada crime resulta de uma aberração mental ou moral. Não se enviam as pessoas desviadas da razão para a guilhotina, põem-se no caminho direito! E agora basta!

Sylvia encolheu os ombros e subiu para o seu quarto.

O Dr. Hellmig ficou pensativo. John Pattis seria de facto o marido que convinha a Sylvia? Um americano marido da única filha de um magistrado alemão? O rapaz era também um jurista, mas tinha um comportamento estranho e um caráctrer fraco, instável... Demonstrara-o no caso de Dicaccio... John Pattis faltara ao seu dever... era um comportamento que o Dr. Hellmig nunca admitiria num genro seu.

E depois a América! A ideia de que Sylvia iria um dia instalar-se nesse Winconsin desconhecido, que deixaria aquela casa e só ali voltaria quando muito para uma curta visita anual, era-lhe intolerável. Ele tinha por Sylvia esse amor ciumento que todos os pais sentem por uma filha única.

Hellmig prometeu a si mesmo falar calmamente do assunto com a mulher e Sylvia, numa noite próxima, em torno de uma boa garrafa de vinho.

Não teve, porém, ocasião de pôr o seu projecto em execução. O destino, mais rápido do que ele, caiu sobre a família Hellmig e fez surgir novas dificuldades, que Hellmig não pôde resolver e o quebrantaram.

Kurt Meyer - com y -, cinco vezes assassino, saiu de Bona de comboio.

Tranquilamente, sem ser importunado e seguido, enquanto o elegante Wollenczy, de smoking, era levado para Bona onde o prefeito da polícia quis recebê-lo pessoalmente e fez questão em assistir ao seu interrogatório, Meyer, confortavelmente instalado no compartimento de um comboio rápido, seguia para Essen. Pensava como os gangsters de todos os géneros, que, para um criminoso, uma cidade grande é o abrigo mais seguro.

Ao descer na estação de Essen, Kurt Meyer transformara-se em Friedrich Sandt e usava óculos com aros de tartaruga.

Depois de Dusseldórfia, tirara da sua pasta um pequeno lanche. Comera algumas sanduíches e bebera uma chávena de café bem quente, graças à garrafa térmica.

Nenhum dos seus companheiros de viagem lhe prestou a mínima atenção.

Na estação de Essen, Meyer ficou um instante como perdido entre a multidão e alisou o cabelo para trás antes de voltar a pôr o chapéu... um feltro cinzento... O que é que lhe teria ficado melhor?

Em seguida, dirigiu-se a grandes passadas para a saída, atravessou o átrio em frente de dois agentes da polícia que se encontravam dos dois lados da portaria. Parou então diante de uma grande planta da cidade e procurou uma rua. Observou exactamente o caminho que devia seguir para lá chegar; não queria fazer despesa com um táxi e nenhum eléctrico ia para esse bairro. Pegou novamente na mala e saiu da estação.

Kurt Meyer - com y - tinha desaparecido.

Os polícias que, no dia seguinte de manhã, forçaram a porta do pequeno apartamento de Bona encontraram-no vazio. A carta enviada ao Ministério Público pelo conselheiro governamental Moll chegara com sete horas de atraso.

A polícia descobriu apenas um bilhete, pousado sobre o parapeito da janela, ao lado de três charutos.

Tarde de mais, meus senhores! Consolem-se com os charutos, são os melhores que consegui arranjar na tabacaria da esquina. O vosso dedicado, Meyer.

O comissário fez o seu relatório com sentimentos mitigados.

Nenhum rasto, nenhum indício... Um homem que matara cinco pessoas continuava a viver sem ser incomodado.

Devorado pela cólera, o conselheiro governamental Friedrich Moll, director da penitenciária, fez uma diligência pessoal, sem se preocupar com a via hierárquica nem com os regulamentos.

Conduziu-se como um simples particular e não como um funcionário, que deve dirigir-se em primeiro lugar ao seu chefe directo. A ameaça do conselho de disciplina? Moll não queria saber disso para nada.

Pegou no chapéu e numa pasta cheia de jornais, instalou-se ao volante do seu carro e dirigiu-se para Bona, para o Ministério da Justiça.

Fez-se anunciar ao ministro e soube que, como conselheiro governamental e director de penitenciária, não podia falar ao ministro sem convocação escrita deste ou uma entrevista pedida pelas vias competentes. Seria recebido pelo chefe de gabinete do ministro, o Dr. Wolfrat.

- Ignoro o que o traz aqui - disse imediatamente Wolfrat no tom que se toma frente a um visitante importuno de quem nos queremos desembaraçar rapidamente.

- Mas gostaria de saber se se encontra aqui com o acordo do vosso ministro regional da Justiça. Como director de penitenciária...

- Eu sei... eu sei...

Moll abriu a sua pasta e tirou de lá o maço de jornais. Colocou-os sobre a secretária de Wolfrat, que os olhou, admirado.

Tentou gracejar:

- O serviço de imprensa é ao lado...

Mas Friedrich Moll não estava com disposição para gracejar. Se fora ali contrariando todas as regras, era para falar de coisas sérias.

- Escrevi ao ministro dizendo-lhe que, como director de penitenciária e conhecedor, pelo exercício das minhas funções, da pretensa «psicologia do criminoso», não compreendia a recusa do Ministério em restabelecer a pena de morte.

Wolfrat abanou a cabeça.

- Nós não recusamos nada, isso não é da nossa alçada, mas sim da do Bundestag. O Parlamento é que legisla.

- Por que razão o Ministério Federal da Justiça não exerce qualquer pressão sobre os partidos? Por que razão o ministro não apresenta ao Parlamento números, factos, elementos de discussão e não pede aos representantes do povo que tomem posições claras?

Wolfrat tirou os óculos e esfregou-os com uma pequena camurça, respondendo:

- Não estou em condições de lhe dar explicações sobre este assunto e não creio que tenha, nem como funcionário, nem como conselheiro do Governo, o direito de fazer perguntas dessa maneira.

- Não estou aqui nem como funcionário nem como conselheiro do Governo, mas como simples cidadão que elegeu os seus representantes para o Bundestag e que, pagando impostos (o que me dá, entre outros, o direito de ser protegido), põe uma questão ao seu ministro: saber por que razão a pena de morte não é restabelecida e em que é que se baseia essa decisão’... Como o ministro não me recebe, faço-lhe a pergunta a si.

Wolfrat parecia assombrado.

- Tem uma linguagem revolucionária, senhor conselheiro.

- De momento sou apenas Friedrich Moll, muito simplesmente.

- Oh! Por favor, nada de absurdos! A sua posição como director de uma penitenciária está ligada à sua pessoa. Posso dar-lhe apenas um conselho: exponha os seus pontos de vista aos seus chefes directos. Nada mais.

- E essa a resposta à minha pergunta? - Moll erguia-se lentamente. - Posso comunicar essa resposta à imprensa?

- Ameaça, senhor conselheiro?

- Pedi-lhe delicadamente uma autorização.

- O Dr. Wolfrat pareceu sentir que não podia falar a Moll nesse tom, que isso não impressionaria o seu interlocutor, e continuou, mais amavelmente:

- Volte a sentar-se, por favor.

- Obrigado. Moll sentou-se.

- Acredita na eficácia da pena de morte?

- Não compreendo por que razão foi abolida.

- A fim de evitar erros judiciais. Entre 1933 e 1945, a pena de morte foi um meio de supressão muito cómodo! A pena de morte e o abuso que dela se fez sob o III Reich enodoaram a Alemanha, e a nossa democracia devia eliminá-la definitivamente. Devemos recuperar a confiança na lei e na justiça.

- Isso era em 1945! A medida foi talvez válida durante um período de transição. Mas depois, a adopção do artigo 102 da Constituição não só favoreceu o gangsterismo, como...

- Senhor conselheiro, está decididamente a ir longe de mais - disse Wolfrat, batendo com a palma da mão em cima da secretária.

- Os crimes capitais aumentaram numa proporção assustadora. As penitenciárias estão completamente cheias. A supressão da pena de morte provocou um recrudescimento dos crimes. O assassínio tornou-se uma operação sem riscos!

- Contesto essa afirmação! Para não falar de todos os erros judiciários que podemos hoje evitar graças às revisões (a morte é definitiva), a pena capital nunca foi medida de intimidação eficaz.

Wolfrat, impelido pela excitação, tinha-se deixado arrastar para uma discussão que ao princípio quisera evitar.

- É exactamente o que me escreveram na carta que tenho emoldurada em cima da minha secretária. Não sei como chegaram a esta opinião. Foi por isso que trouxe os jornais... Os jornais de um só mês, senhor director. Se quer deitar para aqui um olhar, não levará um instante... Eu sublinhei os artigos e numerei-os até por ordem cronológica.

Moll estendia a pilha de jornais para o chefe de gabinete. Este folheou-os com ar sombrio, depois o seu rosto contraiu-se e denotou um verdadeiro espanto.

- Então? - perguntou Moll.

- Assustador... realmente.

- Permite-me que recapitule? - Moll agarrou em alguns jornais e anunciou, à medida que os ia colocando de lado, sobre a secretária: - A 25, cinco assassínios... a 26, cinco assassínios... a 30, seis assassínios... o que perfaz dezasseis assassínios em quatro dias. E cada um deles vem denunciado em meia página do maior jornal diário... Continuemos... a 23 do mês seguinte, sete assassínios. Portanto, vinte e três assassínios no espaço de um só mês. E são de opinião que a pena de morte não seria um meio de intimidação?...

«A que é que se arriscam actualmente os autores desses crimes? Praticamente a coisa nenhuma! Prisão perpétua... que fica reduzida quase sempre a uns quinze anos se os prisioneiros «se portarem bem» e a menos se tiver um bom advogado. Mas o que é muito mais importante, senhor director, é que setenta e cinco por cento dos acusados declararam, aquando da instrução, que, se a pena de morte ainda existisse, eles não teriam cometido o crime.

- Isso é bluff! Podem dizer o que quiserem, visto que a pena de morte está abolida. Trata-se de uma espécie de fanfarronada.

- Precisamente, foi abolida. Vinte ou trinta erros judiciais no mundo, no decorrer de um século, talvez, bastam para que se deixem com vida milhares de monstros que um dia serão agraciados e que voltarão a entrar em circulação... É de facto um contra-senso moral, um absurdo: tem-se receio de enviar um inocente para a guilhotina, mas não se tem qualquer receio de pôr em liberdade um assassino que se portou bem na prisão mas que, uma vez recuperada a sua liberdade, pode cometer um novo crime. Veja esse Kurt Meyer, ao qual foram dados todos os direitos devidos a um bom cidadão e que se passeia, em liberdade, depois de ter perpetrado cinco assassínios.

- Será condenado a prisão perpétua.

- E posto em liberdade passado vinte anos!

- Nessa altura será apenas um homem alquebrado.

- Vê-se bem que não conhece Kurt Meyer! O assassino Pleil engordou na penitenciária.

- Mas nunca será anistiado, nunca será libertado!

- Por este Governo, não, admitamos... Mas sabe o que se passará dentro de dez ou quinze anos? Um novo Governo, uma nova guerra, uma nova ideologia, um novo ditador, uma amnistia geral?...

- Quem pode imaginar tal futuro?

- Nós, os Alemães! No espaço de uma geração, conhecemos três regimes políticos diferentes, três concepções jurídicas diferentes, perdemos duas guerras mundiais. Poder-se-ia imaginar isso, em 1910, por exemplo? Se alguém o tivesse predito, seria considerado um louco, um visionário! Tal como o senhor me acha louco porque...

Wolfrat encolheu os ombros.

- Nos seus argumentos há prós e contras, senhor conselheiro. Há estatísticas contraditórias. Mas de que nos serve discutir? O Ministério da Justiça tem um papel apenas administrativo. Não tem possibilidade de alterar ou de promulgar uma lei. A iniciativa de restabelecer a pena de morte pertence ao Bundestag. Se conseguir que a proposta seja apresentada e se obtenha uma maioria de dois terços... terá a sua pena de morte. Não creio, no entanto, que ela faça diminuir espectacularmente a taxa de criminalidade. Pense em todos os crimes políticos ordenados no tempo de Hitler e por ele. Um só erro pesaria enormemente sobre a nossa democracia.

Moll voltou a guardar os jornais na pasta.

- O senhor pensa nos erros judiciais e eu nos assassinos que são postos em liberdade...

- Toda a medalha tem o seu reverso.

- Creio que é inútil evocar exemplos e fazer comparações. Cada época devia estabelecer leis que se adaptassem a ela, que protegessem os cidadãos e garantissem a sua segurança física e moral.

Moll ergueu-se, imitado por Wolfrat. A conversa

durara mais de uma hora, apesar de o chefe de gabinete ter pensado em conceder a Moll apenas alguns minutos.

- Tentarei encontrar-me com cada um dos chefes do grupo parlamentar de cada um dos partidos com assento no Bundestag - disse Moll. - Um apelo a uma sã compreensão da moral humana não pode deixar de encontrar eco!

- Não esqueça que cada condenação à pena de morte comporta um perigo de erro judiciário... devemos todos manter presente no espírito essa possibilidade.

Friedrich Moll deixou o Ministério da Justiça de Bona com a impressão de não ser nem um vencido nem um vencedor.

Tinha no bolso um endereço: Dr. Doernberg, substituto do procurador, Wiesbaden. Moll sentou-se ao volante e partiu imediatamente para Wiesbaden. Tinha sobre os joelhos a pasta com os jornais... Vinte e três assassínios num mês: crimes evidentes, reconhecidos... crimes cujos autores não podiam ser vítimas de erros judiciais.

Doernberg estava sentado co seu gabinete de trabalho e, à luz de um candeeiro colocado a seu lado, trabalhava num memorando.

A oposição do ministro e a controvérsia com o Dr. Karlssen davam-lhe asas.

Os seus adversários obrigavam-no a tratar a questão com um rigor científico... não para defender a sua posição pessoal, mas para provar, baseando-se nos julgamentos, em estudos, em processos verbais de debates parlamentares, que a sua atitude era fundamentada. Essa atitude que Karlssen fora ao ponto de chamar «sectária».

Tinha na sua frente uma montanha de documentos e de recortes de jornais quando a mulher apareceu, introduzindo no seu gabinete um visitante tardio.

- Moll, Friedrich Moll, conselheiro do Governo e director de penitenciária. Chego de Bona, do Ministério da Justiça.

Doernberg olhava Moll com espanto.

- Faça favor de se sentar - disse indicando um cadeirão. - Desculpe este primeiro instante de surpresa...

- Bem justificada, senhor procurador. - Moll lançou um olhar para a secretária e, abanando a cabeça, perguntou: - Estuda a questão da pena de morte?

- Estudo com efeito essa questão espinhosa. Doernberg mostrava-se prudente. A sua altercação com o ministro e com os seus outros superiores ensinara-Ihe que uma conversa iniciada muito naturalmente degenerava com facilidade numa violenta discussão.

- Posso perguntar-lhe, senhor conselheiro, a que devo a honra...

- Não estarei com desvios, senhor procurador... O chefe de gabinete do ministro, o Dr. Wolfrat, deu-me a sua morada. O cidadão que continuo a ser, apesar das funções que ocupo, não pode, com efeito, aceitar o artigo 102 da Constituição... infelizmente ninguém me quer ouvir.

- É compreensível - sorriu Doernberg.

- Se se exige que seja respeitado o artigo 102 da Constituição, eu posso exigir também que seja respeitado o meu direito à liberdade de expressão.

- Teoricamente tem razão! - Doernberg sentou-se em frente de Moll e cruzou as mãos. -• Mas quanto a saber onde acaba a liberdade de expressão e começa a rebelião, cada um parece ter a esse respeito uma ideia pessoal. E o perigo inevitável de qualquer lei é que ela dá lugar a uma interpretação jurídica

Moll, irritado, passava a mão pelos cabelos.

- Esperava outra resposta da sua parte, senhor procurador.

- Pensava que eu ia dizer-lhe: «Bravo, senhor conselheiro, o senhor atirou-se de cabeça e fez um belo trabalho!»

- Qualquer coisa desse género.

Doernberg ergueu os braços em sinal de impotência.

- Não, senhor conselheiro, tem na sua frente um cavaleiro apeado, ou, digamos mais exactamente, que deitaram abaixo do seu cavalo. Por essa razão é que quero, daqui em diante, abster-me de qualquer paixão e reportar-me rigorosamente aos factos, a factos concisos e sem comentários. A lei comporta-os?... Diz-se aqui, diz-se ali; tal ou tal pronunciou ou escreveu determinada frase em tal data. Só isso conta numa discussão, só isso pode fazer alterar uma opinião.

- Durante a minha viagem de Bona para aqui cheguei à mesma conclusão. As minhas ideias, que defendi com calor, impressionaram menos o chefe de gabinete do ministro que os artigos dos jornais que lhe mostrei para apoiar a minha teoria.

- Os jornais?

- Sim. Dei-me ao trabalho de reunir todos os relatos de crimes capitais e dos julgamentos realizados recentemente. Compus um belo álbum só com os crimes das últimas semanas.

- Atenção! Senhor conselheiro, há assassínios e crimes graves cometidos hoje à beira das estradas, idênticos aos que eram perpetrados, em grande número também, nos caminhos por onde outrora passavam as diligências. Digo-lhe isto para lhe demonstrar que uma lista de crimes não é um argumento imperativo (longe disso) para pedir o restabelecimento da pena de morte.

Moll ergueu-se, irritado.

- Senhor procurador, tenho a impressão de que a sua actividade no Ministério Público lhe faz ver as coisas sob um ângulo exclusivamente profissional. Mas a verdade é que a população lê os jornais com um horror e com um receio crescentes... já que conclui que os crimes têm tendência para aumentar. Conheço bom número de homens respeitáveis que, desde há muito tempo, vêem com inquietação a mulher e os filhos já crescidos irem ao cinema ao fim do dia ou à noite. Mas outras camadas da população, sem falar já dos motoristas de táxi e dos empregados bancários, não engolem sem emoção, ao mesmo tempo que o seu pequeno-almoço, as «pequenas notícias» que aparecem na imprensa.

- Compreende-me mal, senhor conselheiro. Longe de mim a ideia de querer, graças a palavras, extirpar do mundo aquilo que se grava, infelizmente, quase todos os dias em letras de sangue na história criminal da nossa época. Tento precisamente explicar-lhe que esses crimes terríveis não se tornarão passíveis da mais temível das expiações (a que comporta a pena de morte) se não nos esforçarmos todos por fornecer não só às autoridades competentes, mas também ao grande público, provas maciças e argumentos de peso, apoiados em factos que não sofram qualquer discussão. Então, e apenas então, os representantes eleitos pelo povo se verão obrigados a debater no Parlamento uma questão que se tornará cada vez mais escaldante.

- Pense bem, senhor procurador, no tempo precioso que se gastará até que a opinião pública obrigue os deputados da nação inteira a agitar a questão. E pense também no número de infelizes que ainda irão pagar com a vida essa carência legislativa.

- Sempre fui de opinião de que a abolição da pena de morte foi decidida um pouco apressadamente. Afinal, os governos militares da Alemanha tinham-na mantido, e só quando a Constituição teve força de lei, isto é, a partir de 23 de Maio de 1949, é que esse castigo desapareceu do nosso Código Penal... Mas nas meios governamentais são muito numerosas as personalidades, tanto protestantes como católicas, que se opõem violentamente ao restabelecimento da pena de morte.

- Terá de provar essa afirmação - disse Moll, pensativo.

Doernberg voltou-se para a sua secretária e pegou nalgumas folhas cobertas de uma escrita cerrada.

- A derrota de 1945 e as condições impostas pelos vencedores levaram, entre outras coisas, a modificações no sistema penal - o que não sucedera em 1918. Tantos abusos tinham sido cometidos com Hitler que quiseram impedir um regresso a isso. E inscreveram nomeadamente na Constituição «o direito de todo o indivíduo à vida e à inviolabilidade corporal». Todos os indivíduos, portanto também os assassinos. A questão suscitou longos debates. Finalmente, considerações morais e religiosas prevaleceram e, sobretudo, o facto de um erro judiciário grave - a execução de um inocente - ser irreparável. Erros judiciários sempre os houve e sempre os haverá... são inevitáveis, pois nós somos apenas homens. A abolição da pena de morte não deixou de ser votada...

- E o povo alemão bateu com o punho sobre a mesa!

- Nem por isso, senhor conselheiro. O povo alemão não reagiu. Um jornal escreveu mesmo que os seus leitores tinham dado menos importância a essa decisão que ao resultado de um desafio de futebol.

- É terrível... Seremos nós realmente, o senhor e eu, dissidentes?

- Não esqueça, senhor conselheiro, que isto se passou em 1949... as pessoas tinham outras preocupações; as pesssoas podiam outra vez comer convenientemente, e isso passava à frente de todas as questões legais... Depois, assustado pelo recrudescimento da criminalidade, o povo mudou de opinião. Foram lançados alguns balões de ensaio à escala dos Laiinder e, mesmo no Parlamento Federal, algumas vozes autorizadas se ergueram para pedir uma modificação da lei constitucional. Mas sem êxito.

O Dr. Doernberg voltou a colocar as folhas manuscritas sobre a secretária.

-- Estou a reunir todos os documentos que consigo arranjar, declarações, manifestos, comentários dos partidários e dos adversários da pena de morte. Tudo o que foi dito durante um século... isso daria um dossier volumoso cujos pormenores eu lhe pouparei. Mas sabia, senhor conselheiro, que, aquando dos debates parlamentares sobre a pena capital, duas pessoas insistiram na manutenção do castigo capital, e isso «por dever para com a humanidade», Lehr e Adenauer?...

Numa noite de Verão, a uma hora já tardia, Sylvia Hellmig e John Pattis dirigiram-se no pequeno carro do americano para uma estalagem situada nos arredores, já em pleno campo. Era um lugar onde poderiam dançar...

John estava de muito bom humor. Gracejou durante todo o trajecto, falou com orgulho e volubilidade do seu Wisconsin natal e da América, e chegou mesmo a passar o braço por cima dos ombros de Sylvia, que permitiu que ele o fizesse, sem protestar. Pattis ficou tão feliz com isso que começou a cantar uma cantiga de cow-boys, conduzindo só com uma mão o carro até à estalagem.

Enquanto deixavam o carro no terreno reservado para esse efeito, chegava até eles o som de uma música alegre. O jardim, que, por um dos lados, ficava junto à floresta, estava iluminado com lanternas de cores vivas. Na pista de dança os pares rodopiavam na noite quente.

- Um verdadeiro baile campestre! - exclamou Sylvia, encantada. - Como é bonito, John.

Pattis imobilizou-se.

- Repita isso, Sylvia.

Ela sorriu-lhe.

- Como é bonito, John.

- Não, não é tudo. Só uma palavra.

- John - murmurou ela muito baixo. Ele agarrou-lhe a mão.

- É a primeira vez que me chama John. Pronunciado pelos seus lábios, o meu nome parece-me de uma suavidade maravilhosa.

Sylvia retirou a mão.

- Precisamos de arranjar uma mesa... não quero ficar aqui, no meio dos carros, de mãos dadas.

- Você é sempre tão positiva... - declarou John, um pouco vexado.

- E uma herança do meu pai.

- O seu pai, sim, sim. Desculpe, Sylvia, mas poderia pensar-se que ele nunca amou.

- Ele ama a minha mãe e ama-me a mim, mas é inimigo das demonstrações públicas. Pode-se amar sem pronunciar grandes palavras... e sem querer, ainda por cima, arrancar as estrelas ao céu.

- Lá está você a troçar outra vez.

Sylvia ria. Subiram as escadas que iam dar ao terraço. Pattis, que seguia a jovem, admirava as pernas dela e os seus tornozelos finos. Sentia por Sylvia um sentimento escaldante. «Esta noite beijá-la-ei, dir-lhe-eí que a amo», prometia a si mesmo. «E amanhã irei ter com o doutor Hellmig para lhe pedir a mão de Sylvia. E certo que sou apenas um pequeno jurista americano, vindo aqui para estudar o direito alemão. Mas dentro de dois ou três anos terei uma bela clientela no Wisconsin, em Milwaukee ou talvez em Green Bay, à beira do lago. Viveremos lá... e seremos felizes.»

Encontraram uma mesa na extremidade do terraço. Só a balaustrada os separava da floresta. Uma lanterna vermelha, com riscas amarelas, balouçava-se por cima da cabeça deles; um candeeiro projectava sobre a toalha um círculo luminoso. A música isolava-os dos seus vizinhos.

Pattis instalou confortavelmente Sylvia antes de se sentar em frente dela.

- Que quer beber?

A rapariga sacudiu os seus cabelos encaracolados e sorriu.

- Hoje tenho todas as audácias, John. Quero um cocktail... e mais tarde, talvez, um copo de vinho.

- Às suas ordens, Milady.

Depois dançaram, estreitamente enlaçados, trocando demorados olhares.

- Você é bela - murmurou bruscamente Pattis ao ouvido de Sylvia. - É mais bela do que Deus devia permitir, se não queria que todos os homens ficassem deslumbrados com a sua imagem.

- Decididamente, fala muito bem a nossa língua disse Sylvia rindo.

Pattis apertou-a com tal força que ela não pôde reprimir um pequeno grito.

- Se continua a falar-me nesse tom, beijo-a diante de toda a gente. Não pode levar-me a sério?

- Deseja muito isso?

- Com certeza.

- Seria uma pena, John. Estou envolvida em tanta seriedade, em casa, que gosto de um camarada divertido. Seja simpático e ria comigo.

A dança acabou e eles voltaram para a mesa. John contemplava Sylvia; um caracol caíra para a sua testa húmida.

- Podia ficar a olhar para si sem nunca me cansar, Sylvia. E em cada minuto descubro em si algo de novo: o desenho das suas sobrancelhas, a curva das suas pestanas e essa pequena cova no lábio superior...

- É uma cicatriz! Recordação de uma queda dada em criança.

- Apetecia-me beijá-la...

- John, está a tornar-se estúpido.

- Desculpe, Sylvia.

Pattis mordeu os lábios e, confuso, olhou para a floresta. «Que ideia faz ela de mim?», pensava. «Estará a brincar comigo? Não verá em mim senão um americano alto e um pouco desajeitado? Ou as suas troças serão apenas uma couraça contra os seus sentimentos? Sentimentos que ela não quer mostrar?»

Foi então que apareceu um jovem desconhecido. Inclinou-se diante de Sylvia, fez a John um ligeiro cumprimento com a cabeça e convidou a rapariga para dançar.

Surpreendido, John viu-a dirigir-se graciosamente para a pista de dança e falar animadamente com o seu par.

- Que idiota! - disse Pattis em voz alta. Depois, para um criado que passava: - Um uísque por favor.

Bebeu o seu uísque de uma só vez. O criado, que parecia estar à espera ao lado da mesa, retirou imediatamente o copo.

- Outro, senhor?

- Sim, mas duplo.

Sylvia voltou e o jovem inclinou-se de novo delicadamente, Pattis respondeu-lhe com um leve sinal de cabeça. Sylvia, admirada, olhava para o copo.

- Que está a beber?

- Uísque.

- Com quê?

- Puro.

- Se o papá visse isso!

- Há outras coisas que o seu pai devia ver -replicou grosseiramente Pattis.

Sylvia ergueu as sobrancelhas, surpreendida.

- Que mosca lhe picou?

- Nenhuma. Foi um macaco desembaraçado que dança o tango como se fosse um elefante.

Sylvia riu alegremente e abanou a cabeça. Bruscamente ficou séria e inclinou-se para Pattis.

- Ciumento? Diga-me, John, é realmente ciumento?

- Sou ciumento com todos os homens que a olham e pensam: «Gostaria de a beijar.»

Sylvia endireitou-se.

- Acha que os homens pensam isso?

- Sei-o!

- Porque você o pensa?

- Sim, Sylvia.

” A conversa arrastava-se. Pattis bebeu o uísque e pediu outro. Sylvia molhava os lábios no seu copo e olhava para a pista de dança, onde os pares dançavam ao som de uma valsa lenta. A espontaneidade que houvera entre Pattis e ela desapareceu subitamente. Ela sentia que a amizade entre eles entrara numa nova fase. Por isso, após um longo silêncio, atreveu-se a dizer:

- Não devia beber tanto.

Pattis ergueu a cabeça. Havia nos seus olhos um brilho de embriaguez.

- O uísque posso tê-lo... - resmungou.

- A vida seria bem monótona se se pudesse ter tudo o que se quer.

- Que reflexão idiota! - exclamou, muito alto, Pattis.

- Mas muito moral!

Calaram-se de novo. Pattis consolava-se com o seu uísque. Sylvia, que o observava discretamente, pensava: «Eu devia simplesmente tirar-lhe o copo das mãos, como a um garoto, e dizer-lhe... ”Vá, John, seja razoável e gentil e venha dançar comigo.”» Olhou-o nos olhos e disse muito baixo:

- John...

Ele ergueu bruscamente a cabeça, e desta vez os seus olhos brilharam de excitação.

- Diga, Sylvia.

- Creio que é melhor irmo-nos embora. Leve-me para casa, peço-lhe.

- Como queira, Sylvia.

Ergueu-se com dificuldade e pôs uma nota em cima da mesa. O criado inclinou-se várias vezes diante desse cliente generoso e acompanhou o par até aos degraus da entrada que dava para o parque de estacionamento.

Pattis ficou parado junto dos degraus. Com uma mão agarrava o braço de Sylvia e com a outra limpava a testa, húmida de suor.

- Que bela noite, Sylvia! Quer realmente voltar para casa? - Deitou-lhe um olhar desolado. - Sei que me portei como um idiota e fiz mal em beber tanto uísque. Desculpe.

- Bom... Podemos dar um pequeno passeio. Isso far-Ihe-á bem. De facto, é melhor não ir conduzir já.

Pattis disse que sim com a cabeça.

- Vamos dar uma volta pela floresta. Tomaram pelo primeiro caminho que viram. O som

da música seguia-os.

Caminharam durante uma dezena de minutos e foram ter a uma clareira onde se viam algumas árvores caídas. Pattis sentou-se num tronco e atraiu Sylvia para junto de si.

- Cansado? - perguntou ela num tom despreocupado.

- Não... esta tranquilidade faz bem, não ouço senão a sua respiração, Sylvia.

- Que romantismo! - troçou ela. Bruscamente viu o rosto dele por cima do seu. Viu

uns olhos brilhantes, uma boca entreaberta; um hálito quente e a cheirar a álcool atihgiu-a. Sentiu os braços dele a apertarem-na. E a boca aproximava-se, e os olhos franziam-se.

- John, está embriagado! - quase gritou. Com os punhos fechados bateu no peito de Pattis para o afastar, ao mesmo tempo que afastava o mais possível a cabeça para trás. - Por favor, deixe-me!

- Quero beijá-la, Sylvia. Amo-a... eu...

- Dir-me-á isso num dia em que esteja no seu estado normal. Agora largue-me imediatamente...

Lutava com todo o seu corpo contra o abraço de ferro e tentava fugir-lhe. Mas os braços de Pattis apertavam-na cada vez mais. Ele inclinou a cabeça e apoiou o seu rosto contra o de Sylvia. Ela sentia a boca dele sobre os seus lábios. Com os punhos fechados bateu-lhe no peito e tentou afastar-lhe a cara.

- E doido! - gritou ela na noite. - Deixe-me! Deve-me deixar!...

John Pattis não dizia uma palavra. Parecia desvairado. Via a cólera brilhar nos olhos de Sylvia. Sentia o corpo dela, que tremia de medo. E ouviu a voz alta e clara que ameaçava:

- Se não me larga, não voltarei a vê-lo nunca mais!

«Nunca mais» foram as últimas palavras registadas pelo cérebro enevoado de Pattis... nunca mais... nunca mais... nunca mais!

As suas mãos ergueram-se, agarraram-se aos ombros de Sylvia, subiram-lhe ao pescoço... Através dos vapores do álcool, ele já não reconhecia os olhos de Sylvia... A voz dela, tão penetrante há pouco, esmorecia.

Pattis já não sabia o que fazia... ouviu a jovem emitir um som estertorado e perguntou a si mesmo por que razão ela já não gritava. Depois sentiu os braços enfraquecerem e mergulhou no vazio.

Kurt Meyer gostava muito de estar em Essen. Com o nome de Friedrich Sandt, arranjara emprego como guarda-livros e trabalhava há três dias, com grande satisfação do seu chefe de escritório, quando a minúcia das autoridades alemãs perturbou a sua tranquilidade.

Como a empresa devia declarar à inspecção do trabalho todos os novos empregados, esse organismo perguntou, muito naturalmente, de onde vinha esse Friedrich Sandt, que não figurava em nenhuma das suas listas. O Serviço de Pessoal reclamou então a Kurt Meyer os documentos que até então ele negligenciara apresentar.

Isso foi para Kurt Meyer um sinal de alarme. Prometeu, no entanto, ao chefe do pessoal levar-lhe no dia seguinte os papéis que ainda faltavam e continuou a trabalhar com ardor até à noite. Fez mesmo uma hora suplementar, o que agradou especialmente ao seu superior: as horas extraordinárias não eram pagas aos trabalhadores que recebiam mensalmente.

- É um bom trabalhador - disse nessa noite o seu chefe a um colega que encontrou no café. Parece que tivemos sorte.

Nessa mesma noite, Kurt Meyer fez a mala e apanhou o comboio para Hamburgo. O mundo era tão grande... Ele acabaria por encontrar um local tranquilo e seguro.

A polícia de Essen reagiu rapidamente. Tinha recebido o mandado de captura contra Meyer, acompanhado de sinais bem precisos e mesmo de uma fotografia tirada ao coro da igreja paroquial, em Bona. Era apenas uma fotografia de amador e tirada com uma luz deficiente. Mas ampliada, retocada, daria uma boa imagem do assassino.

Os acontecimentos decorreram de uma maneira muito simples. O chefe do escritório assinalou a ausência de Sandt ao chefe do pessoal. Este ligou para o domicílio de Sandt e soube que este partira em viagem, durante a noite. Às nove e um quarto, o chefe do escritório verificava que faltavam quatrocentos e sessenta marcos na caixa. A polícia foi avisada e mostrou uma fotografia ao chefe do pessoal.

- Mas é Friedrich Sandt! - exclamou ele. E o comissário replicou:

- E Kurt Meyer, autor de cinco assassínios. Depois os postos emissores da polícia transmitiram:

Kurt Meyer foi visto ontem em Essen... Recompensa de dois mil marcos a quem der informações que permitam que ele seja preso... Meyer encontra-se provavelmente vestido com...

O primeiro boletim de informações difundiu os pormenores fornecidos pela polícia. Kurt Meyer ouviu-o quando tomava o pequeno-almoço no bufete da segunda classe da estação de Hamburgo. Por acaso, por se encontrar sentado junto do balcão onde um empregado colocara o seu pequeno rádio, para se distrair um pouco.

Pagou sem pressa e afastou-se com passos calmos. Mesmo quando comprou o jornal e contemplou na terceira página o seu rosto um pouco deformado e sem nitidez, ninguém poderia pensar que o homem que o lia tão tranquilamente fosse o assassino procurado.

Kurt Meyer reflectiu... Ir para o estrangeiro era impossível... Poderia certamente arranjar um passaporte em Hamburgo, com todos os selos e vistos necessários... Havia ruelas onde se podiam arranjar documentos «oficiais», mudar de nome e até de nacionalidade... mas esses papéis custavam caro, muito caro mesmo. E ele só tinha no bolso quatrocentos e sessenta marcos... Era-lhe, portanto, necessário percorrer a Alemanha, fugir de cidade em cidade... até ao momento em que outra notícia qualquer fizesse esquecer às pessoas a existência de Kurt Meyer.

«Calma... antes de tudo, calma. Não te enerves, Kurt... Até aqui correu tudo bem, seguiste o teu plano ponto por ponto. Talvez tivesses feito mal em ir a Essen e que a conversa com o deão Ahrens tivesse sido um erro estúpido. Mas é preciso saber tirar partido dos nossos erros.

E se a polícia é, na verdade, esperta... Pois bem, não vale a pena fazer um drama. Uma confissão, um processo rápido, pois o caso era claro e pouco complicado: cinco assassínios... cinco vezes condenado a prisão perpétua. Aos trinta e um anos, a perspectiva não era evidentemente muito agradável. Mas como pano de fundo restava a esperança de que, dentro de quinze, de vinte anos, o mundo tivesse mudado de rosto, houvesse outro Governo, talvez mesmo outro regime, e que então, milagrosamente, as portas da prisão se abrissem na frente dele. Ele teria então cinquenta e um anos, digamos mesmo sessenta, mas estaria vivo. Poderia gozar de alguns anos de liberdade e, sobretudo, morrer decentemente numa cama, que não seria a da penitenciária, mas a de uma casa burguesa, sem grades nas janelas. Dir-se-ia, certamente, que Kurt Meyer se tinha emendado na penitenciária e que morrera como um homem honesto. Mas o que pensava, o que sentia esse Meyer, ninguém o saberia nunca.»

Enquanto prosseguia o seu monólogo interior, Kurt Meyer metera-se num eléctrico e dirigira-se para o porto. Aí ficou a olhar para os barcos: os que estavam a ser carregados, os que partiam para o mar. Foi mesmo dar uma volta pelo porto, a bordo de uma lancha, pensando que provavelmente não teria ocasião de regressar a Hamburgo e que era preciso aproveitar todas as ocasiões que a vida nos oferece. Quanto mais recordações e impressões se acumulavam mais se poderia falar aos companheiros, na oficina de cestaria. Na penitenciária não havia nada pior que o aborrecimento. Meyer aprendera isso no decorrer dos quatro anos passados à sombra.

Era assim que ele via desenhar-se o futuro e queria acumular o maior número de experiências possível.

Habituado a pensar com calma e raciocínio, sabia bem que um dia acabaria por ser preso. Não tinha ilusões a esse respeito... Não conseguiria passar entre as malhas da rede que a polícia lhe estendia, pois até tinham uma fotografia sua e recente. Era isso que irritava Kurt Meyer: fazer parte do coro da paróquia parecera-lhe uma boa ideia para se misturar com a população e isso revelara-se um grave erro táctico.

À tarde, Meyer apanhou um comboio rápido para Munique. Atravessou a Alemanha de norte a sul sem ser incomodado. Chegado ao seu destino, instalou-se num pequeno hotel. Era apenas por uma noite - pensou - e preencheria a ficha só na manhã seguinte. Depois Kurt Meyer foi deitar-se.

Mais uma vez o acaso se intrometeu.

No dia seguinte, o guarda da noite do hotel, ao escolher entre os jornais que se encontravam inutilizados aqueles que devia queimar, encarou com a fotografia de Meyer, cinco vezes assassino.

«Meu Deus!», exclamou o vigilante, «mas é ele!»

Telefonou imediatamente à polícia e depois esperou no lugar do porteiro a chegada silenciosa do carro com os agentes.

- Quarto cinco - declarou à polícia, pondo-se em posição para observar a escada. «Cinco vezes assassino», pensou assustado. «Certamente vai dar bom trabalho à polícia. Os chuis devem ter de disparar e talvez tenham até de utilizar gases lacrimogéneos.» Era apreciador de romances policiais e sabia bem o que era a caça ao homem. Mas não conhecia Kurt Meyer, o assassino que detestava a violência e os gritos.

Meyer nem sequer se dera ao trabalho de-fechar a porta à chave e, quando baixaram lentamente a maçaneta da porta, os polícias foram os primeiros a ficar admirados por verem a porta abrir-se. Desconfiados, deram um salto para o lado, empunhando as suas armas, depois empurraram a porta com o pé, acenderam a lanterna eléctrica e entraram.

Kurt Meyer dormia. Estendido de costas, com as mãos sobre o edredão, ressonava ligeiramente. Tinha o aspecto de um viajante que, após uma viagem fatigante, se entrega a um merecido repouso.

- Então? - resmungou Kurt Meyer quando o despertaram.

Abriu os olhos, viu os uniformes, as armas apontadas para ele, e sorriu ao de leve.

- Já? - Sentou-se na cama e olhou à sua volta. Teria gostado de visitar Munique. Não conheço a cidade e dizem que é muito bonita.

- Chama-se Kurt Meyer? - disse um dos polícias. Meyer olhou-o surpreendido.

- Imagino que, se estão aqui, é porque têm a certeza do que estão a fazer. Admirar-me-ia se viessem acordar um cidadão que não procurassem.

- Nada de discursos, responda: é Kurt Meyer?

- Como é que hei-de responder se não querem que eu fale?

- De pé! - gritou o polícia.

- Com todo o gosto! - Meyer saiu da cama. Vestia um pijama com riscas e procurava com os pés as suas pantufas. - Queria, antes de mais, fazer-lhes notar que não estou habituado a que me falem nesse tom. Prendem-me porque desconfiam que eu sou o autor de um certo feito... Desconfiam, notem bem! Essas suspeitas não os autorizam a agir como se eu fosse culpado! Só seria culpado se tivesse confessado, ou fosse condenado por ter cometido um delito depois de julgado. De momento, só posso estar sujeito a prisão preventiva e mantenho todos os direitos inerentes a qualquer cidadão.

- Vista-se e acompanhe-nos! - gritou o polícia, fora de si.

Não conhecia Kurt Meyer e ficou espantado quando o ouviu declarar num tom calmo mas firme:

- Queixar-me-ei de si.

Vestiu-se com cuidado, fez a mala, pôs até o seu casaco de Verão.

- Podemos ir, senhores.

Puxaram-lhe os braços para a frente e as algemas fecharam-se sobre os seus punhos. Kurt Meyer empalideceu subitamente.

- Que significa isto? - perguntou em voz alta.

- Vamos. Adiante!

- Tirem estas algemas! - disse Meyer. - Tirem-nas imediatamente. Não procurei fugir-lhes e sou um homem pacífico. Para quê as algemas? São três contra mim!

- Vamos!

Um dos polícias deu-lhe um empurrão nas costas e ele foi a tropeçar até ao corredor. Um suor frio corria-lhe pelo rosto. O facto de ter as algemas dilacerava qualquer coisa em si.

- Soltem-me - disse mais uma vez.

Levantava as mãos e puxava as algemas. Os seus olhos de peixe tinham-se subitamente iluminado com um brilho feroz.

- Soltem-me! Bando de cobardes! Porcos! Soltem-me ou vão ver o que lhes sucede!

Os homens agarraram em Kurt Meyer, que gritava como um possesso, e obrigaram-no a descer as escadas. O guarda da noite escondeu-se atrás do balcão quando eles passaram... «É então assim que se porta um assassino?», pensou, estremecendo.

No gabinete do comissário, logo que lhe retiraram as algemas, Kurt Meyer reclamou papel e uma caneta. Redigiu um protesto violento contra a atitude dos polícias e, quando o comissário de serviço o interrogou, Meyer começou por anunciar os seus protestos antes de dizer, num tom de quem conversava:

- E agora, senhor comissário, que deseja de mim?

- Reconhece ter assassinado cinco pessoas? A saber...

- Poupe-se a esse trabalho... Li tudo isso nos jornais.

- Reconhece o que fez?

- De maneira nenhuma. Pertencerá à instrução do processo apresentar provas da minha culpabilidade.

- Escreveu, numa carta dirigida ao director da penitenciária, Moll...

- Meyer ergueu a mão e declarou com a voz suave:

- Senhor comissário, sei exactamente o que escrevi nessa carta. Não falei de assassínio, nem sequer de qualquer delito.

- E por que razão tem fugido através de toda a Alemanha?

- Fugido? Visito o meu país. Não tenho esse direito? Uns vão para a Cote d’Azur ou para as Baleares. Eu percorro a Alemanha. Gosto do meu país..

O comissário interrompeu bruscamente o interrogatório. No seu primeiro relatório escreveu: Kurt Meyer é um indivíduo de espírito frio e cínico. Nunca se obterá dele uma confissão e será preciso encontrar provas convincentes da sua culpabilidade...

Enquanto o comissário estava ocupado com o seu relatório, Kurt Meyer mandava vir um pequeno-almoço completo de um café vizinho... Era o seu direito mais absoluto enquanto estivesse preso nas instalações do comissariado.

Após três dias de pesquisas, descobriram, junto da clareira, o corpo de Sylvia Hellmig escondido sob um monte de ramos de pinheiro. Tinha nas mãos, que o seu assassino lhe juntara sobre o peito, um ramo de flores silvestres.

Quando o Dr. Hellmig soube que a filha fora encontrada assassinada, perdeu os sentidos sem ter podido pronunciar uma só palavra.

A senhora Hellmig reagiu menos tragicamente à terrível notícia. Estava sentada, com o olhar vago, à cabeceira do marido, que o médico tentava reanimar com uma injecção para o coração. Ela já sabia aquilo que o marido só pressentia vagamente: o assassino de Sylvia fora John Pattis.

O comissário-chefe da brigada criminal e o procurador Karlssen fumavam em silêncio. Acabavam de ter conhecimento do primeiro relatório do médico-legista.

- Um crime sexual típico - disse, finalmente, Karlssen. - Cometido por um jovem de além-Atlântico! Falei um dia com esse rapaz e a conversa incidiu precisamente sobre a cegueira sanguinária. E eis que ele comete um crime. Deve ter sido um ataque de loucura!

- Estava embriagado. Interrogámos o criado que o serviu na estalagem. Em menos de meia hora Pattis bebeu quatro uísques duplos, puros. Mas parece que ele bebe à menor contrariedade e que isso lhe perturba o espírito... Vimos isso no caso Dicaccio... em vez de prevenir a polícia de que se tramava um crime, o rapaz embriagou-se... e isso custou a vida a três homens.

- Daí a cometer um assassínio! - Karlssen afastou o relatório e o retrato-roèoí feito pela entidade judiciária.

- Toda a gente sabia que ele estava loucamente apaixonado pela menina Hellmig.

- Encontrava-se sob a influência do álcool e algo o levou a cometer esse gesto criminoso... O quê? Em breve o saberemos.

- Sabe onde está Pattis?

- Na Suíça. Passou a fronteira na manhã seguinte ao seu crime. Deve ter viajado toda a noite. Como era americano, tinha o passaporte no bolso.

Karlssen batia nervosamente sobre o dossier.

- Pediu pela Interpol a sua extradição imediata?

- Logo que a sua fuga foi conhecida, foi lançado um mandado de captura por toda a Suíça. Pattis não irá longe. Talvez tenha tentado esconder-se nas montanhas, mas não ficará lá muito tempo. A fome há-de obrigá-lo a dirigir-se para regiões habitadas.

- É uma história terrível. Hellmig estava acabado. Desmaiou ao saber da morte da filha. Esta manhã gritava como um louco: «Tragam-me o assassino! Matá-lo-ei com as minhas próprias mãos!» Depois teve um ataque cardíaco.

- É assim que pensam todos aqueles que perdem a sua razão de existir pelo facto de um assassino... A vítima está morta, mas o culpado continua a viver! É um dos paradoxos da nossa sociedade!

- E Hellmig era precisamente um dos mais ardentes adversários da pena de morte. Teve sérias altercações a esse respeito, não só com Doernberg, mas também comigo.

- As questões encaram-se sobre outro aspecto quando nos dizem respeito pessoalmente.

O comissário tinha os olhos postos no aparelho telefónico, como se esperasse a qualquer momento um telefonema dos seus colegas suíços.

- Creio que todos os adversários da pena de morte mudariam de opinião se lhes assassinassem a mulher ou os filhos. É curioso ver como todas essas belas ideias humanitárias e a grandeza moral desaparecem quando a pessoa é afectada. De repente, o criminoso deixa de ser um demente, um louco, uma criatura humana que um tratamento psicológico bem feito poderá levar ao bom caminho. Passa a ser apenas um assassino, um monstro, um animal feroz de figura humana que deve ser «eliminado da sociedade». E assim que se vê que a pretensa humanização do sistema penal é apenas uma teoria daqueles que são poupados pelo crime.

Karlssen deixou de novo vir ao de cima o seu cinismo:

- Como pode dizer uma coisa dessas, senhor comissário? O ministro regional da Justiça declarou-me literalmente: «Estamos presos à Constituição de facto e de direito.» A Constituição aboliu a pena de morte. Esta está, portanto, suprimida e a questão não sofre qualquer discussão. Não nos cabe a nós opormo-nos às decisões do Parlamento. - Karlssen deitou ao comissário um olhar irónico. - Admiro-me por verificar que não é essa a sua opinião. Se continua assim, senhor comissário, nunca virá a ser conselheiro ministerial...

O telefone tocou. Karlssen e o comissário trocaram um olhar entre si. O procurador atendeu:

- Karlssen...

Do outro lado do fio, ouviu-se uma voz calma e lenta. Karlssen ouvia sem nada dizer. Depois, após um breve «obrigado», desligou.

- Apanharam-no? - perguntou o comissário.

- Sim. Foi encontrado por uma patrulha da polícia nas margens do lago de Zurique. Vão enviar-nos os pormenores por telex.

- Quando estará ele aqui?

- Nunca... - Karlssen acendeu um cigarro com mão firme. - Pattis quis forçar a barreira da polícia. Os suíços dispararam e ele apanhou com uma bala nas costas que lhe partiu a coluna vertebral. Está no hospital cantonal de Zurique em estado desesperado.

Karlssen varreu com um gesto largo o dossier «Assassínio Hellmig», atirando-o para a outra extremidade da secretária, como se quisesse deitá-lo para o cesto dos papéis.

- O destino castiga às vezes mais justamente que os homens - concluiu.

- Vai transmitir esta notícia a Hellmig?

- Serei obrigado a isso. Pattis não pode ser transportado talvez nesta altura já esteja morto. Para Hellmig é uma boa solução... Não haverá processo, nem escândalo, nem a história de amor contada nos jornais... - Karlssen esmagou o cigarro no cinzeiro. - Se eu pudesse perceber o que levou este rapaz a cometer um acto tão horroroso... Nada o deixava prever...

- O álcool...

- É possível. O álcool deve tê-lo tornado literalmente louco. Deve ter perdido a razão no momento do crime. Nunca o saberemos. É pena. Ou talvez seja melhor assim, pois à força de querermos, como nós fazemos, explorar os abismos insondáveis da alma, acabaremos por perder toda a esperança na criatura humana... E não deve suceder isso. Devemos amar o próximo, por mais que isso nos custe...

Pegou no casaco e pôs o chapéu de feltro cinzento na cabeça. O comissário acompanhou-o até à porta.

- Sim. Talvez seja para Hellmig uma leve consolação saber que o assassino da filha foi atingido pelo destino.

- Pensa realmente isso? - perguntou o comissário, incrédulo. - Sylvia era a sua única filha e ele tinha por ela uma espécie de adoração. Não há nada que console de tal perda.

- Vou tentar...

Mas nesse instante Karlssen não acreditava no que dizia.

Na casa dos Hellmig as pessoas só caminhavam em bicos dos pés. A senhora Hellmig não se afastava da cabeceira do marido. A criada não deixava entrar nenhum dos visitantes que apareciam à porta... Cartas de pêsames e flores amontoavam-se no vestíbulo. Só o médico tinha o direito de entrar.

Procurava em vão combater a debilidade que se apoderara de Hellmig e o tornava tão apático. As injecções para o coração não faziam efeito.

O médico olhou para a senhora Hellmig, encolheu os ombros, em sinal de impotência, e murmurou:

- Ele não reage a nada. Ele não quer reagir. Hellmig voltou lentamente a cabeça na almofada,

pousou sobre a mulher e sobre o médico uns olhos cansados e disse com voz abafada:

- Que está a dizer, doutor?

- Não deve entregar-se assim ao desgosto, senhor presidente. De que serve dar-lhe injecções para o coração, se o senhor se recusa simplesmente a curar-se.

- Curar-me? Eu quero juntar-me à minha filha... Escondeu a cabeça na almofada e começou a soluçar.

A mulher agarrou-lhe na mão e acariciou-a meigamente.

- Franz... Franz... eu ainda aqui estou. Que será de mim sem ti?... Vivemos juntos há vinte e quatro anos... Vinte e quatro anos de felicidade... Isso não representa nada para ti? Queres abandonar-me?

- Sylvia... - gemia Hellmig. - A nossa linda Sylvia... - Sentou-se bruscamente na cama e agarrou a mulher pelos ombros. - Apetecia-me gritar, Ruth. Gritar até rebentar o coração!

Pousou a cabeça no ombro da mulher e começou a soluçar de novo, murmurando com voz entrecortada:

- Tu consegues compreender isso... consegues compreender que a nossa Sylvia...

Foi esta a cena que se apresentou aos olhos de Karlssen quando, conduzido pela criada, chegou ao quarto do doente. De pé, à entrada da porta, contemplou por um instante o espectáculo comovente.

Hellmig endireitou-se ligeiramente e o seu olhar fitou Karlssen, que avançava sem pronunciar uma palavra. Um brilho feroz apareceu subitamente nos olhos de Hellmig. Com voz ofegante, perguntou:

- Apanharam-no?... Karlssen, não me esconda nada... o assassino?...

Hellmig levou a mão ao coração.

- Diga-me que o prenderam, Karlssen... Se assim não fosse, não teria vindo aqui... Apanharam-no, não é verdade? Apanharam-no? É o único remédio que pode curar-me. Matá-lo-ei com as minhas próprias mãos. O procurador engoliu a saliva:

- Foi apanhado, senhor presidente - disse muito baixo.

O Dr. Hellmig apertou a mão da mulher e gritou:

- Ouves, Ruth? Apanharam-no! - Depois, voltando-se para Karlssen, perguntou: - Onde está ele?

- Na Suíça.

- Quando virá? A extradição. Karlssen tinha um nó na garganta.

- Está pedida.

- Quando chegará ele?

- Não sei... - Karlssen baixou os olhos. - Receio que nunca... senhor presidente.

Hellmig olhava Karlssen com um olhar desvairado.

- Que quer dizer? - replicou.

A senhora Hellmig pousou a mão no braço do marido. Ele libertou-o com uma sacudidela brusca e inclinou-se para Karlssen.

- A Suíça recusa a extradição?

- Não pode proceder a ela...

- Não pode?

- John Pattis foi ferido nas costas por ocasião da sua prisão. Está no hospital, em estado desesperado... talvez já esteja morto...

Hellmig deixou tombar a cabeça para o peito. Dir-se-ia que todas as forças o tinham abandonado.

- Morto - murmurou baixinho -, morto. Nunca mais voltarei a ver esse assassino... o assassino da minha filha! Não assistirei ao seu julgamento, à sua condenação...

- O destino condenou-o mais severamente que nós poderíamos fazê-lo. Perante o tribunal, eu nem sequer poderia manter a acusação de assassínio.

Hellmig ergueu a cabeça e o seu corpo tremeu como sob o efeito de um choque eléctrico.

- O quê? Que diz? Queira repetir, senhor procurador!

- Não poderia manter a acusação de assassínio, senhor presidente... Pattis tinha, em muito pouco tempo, bebido mais do que era razoável (há testemunhas oculares). Encontrava-se num estado de irresponsabilidade total... num estado de embrutecimento total, que, dado o seu carácter já instável, exclui qualquer acto voluntário e lúcido. A opinião do psiquiatra só confirmaria o que eu estou a dizer. Não se podia atribuir a Pattis a mínima premeditação e era, por consequência, impossível aplicar-lhe o parágrafo 211 do Código Penal. Em virtude do estado de embriaguez em que se encontrava, seria julgado em conformidade com o parágrafo 51, o que equivaleria a garantir-lhe uma eventual impunidade, se não se tivesse tornado culpado de um dos crimes cometidos em estado de embriaguez previstos no parágrafo 330-A. Agradeça, portanto, ao destino o que sucedeu a Pattis, senhor presidente. Teria visto (e bem o sabe) o assassino da sua filha permanecer juridicamente impune pelo seu crime.

Hellmig, com as pupilas dilatadas, olhava o procurador.

- Não está a falar a sério, Karlssen. A lei...

- Eu apenas citei literalmente a lei.

- Pattis matou a minha filha! - gritou Hellmig. É um assassino, um ignóbil assassino que me privou daquilo que eu tinha de mais querido... Se no processo dele eu ocupasse o lugar do acusador do Ministério Público... eu teria... eu teria pedido a pena de morte!

- Franz! - exclamou apavorada a senhora Hellmig. Karlssen olhava para as suas próprias mãos.

- Mas a pena de morte foi abolida, senhor presidente.

- Bem o sei! Quem o há-de saber melhor do que eu! E escondeu a cabeça na almofada. Recomeçou a

chorar.

- Mas um assassino... um assassino perdeu o direito de viver. Agora sinto isso, compreendo-o porque perdi tudo... a minha filha, o meu ideal, a minha fé.

Comovido e incapaz de dizer uma palavra mais, o Dr. Karlssen saiu do quarto. A senhora Hellmig seguiu-o até ao vestíbulo e estendeu-lhe a mão.

- Ele já não sabe o que diz... O choque foi demasiado violento. Pensará de maneira diferente quando estiver curado.

- Não o creio, minha senhora - declarou com franqueza Karlssen. - Será um caloroso defensor da pena de morte.

As exéquias de Sylvia Hellmig realizaram-se na intimidade. Só os parentes mais chegados e alguns magistrados assistiram ao funeral. O Instituto de Medicina Legal fizera um relatório pormenorizado e o Dr. Karlssen dera licença para se fazer o enterro.

John Pattis morreu no hospital cantonal de Zurique, na noite que se seguiu à sua prisão. Não voltara a recuperar os sentidos. Foi enterrado no mesmo dia que Sylvia.

Exceptuando os coveiros, encontravam-se junto do túmulo apenas dois inspectores da polícia para comprovarem oficialmente «que os restos mortais de John Pattis, do Wisconsin, EUA, tinham sido enterrados».

Numa manhã chuvosa de 1957.

Uma simples formalidade... sem a presença de qualquer eclesiástico.

Quanto a Kurt Meyer - com y -, não perdera o norte.

O juiz de instrução ainda não tinha acabado de formalizar a sua ordem de detenção e já Meyer empreendera duas diligências: encarregou telegraficamente o melhor advogado penal de Colónia da defesa dos seus interesses. Tinham dito a Meyer que seria «deslocado» para Colónia, visto os delitos que lhe eram imputados se encontrarem sob a jurisdição desta cidade.

E, em seguida, Meyer reclamou um padre!

O director da prisão de Munique e os seus colaboradores estavam couraçados contra aquelas eventualidades, mas o preso preventivo Kurt Meyer, originário da Prussia, ultrapassava os limites da paciência e da indulgência que os presos podiam reclamar.

Como fizera durante os quatro anos que passara na penitenciária de Rheínbach, fazia reclamação sobre reclamação. Dir-se-ia que passava os dias e as noites a expor no papel as suas queixas para tornar a vida difícil aos carcereiros.

Primeiro foi por causa da alimentação.

A alimentação é sempre o elemento crucial. Quer seja no exército ou na prisão... o «rancho» é a fonte de todas as reclamações. Motins nas penitenciárias, assassínios de guardas, tentativas de evasão tiveram por única causa a alimentação.

Meyer revoltava-se também. Oh! Sem ruído e sem violência, calmamente, à sua maneira discreta mas categórica. Reclamação n.º 1:

Ontem, à refeição do meio-dia, a minha sopa estava morna: à, noite, as duas fatias do pão da minha, ração estavam secas: eram manifestamente de há dois dias antes. Segundo o regulamento da prisão, tenho direito a uma alimentação suficiente e apetitosa. Peço que seja feito um inquérito, a fim de determinar por que razão a minha sopa estava morna, e o meu pão seco.

Kurt Meyer

A reclamação foi entregue ao guarda Wachtl. Este leu o papel, olhou Meyer com um ar admirado e murmurou algumas palavras muito pouco correctas. (Reclamação n.º 2 de Meyer: Ofensa a um detido preventivo, por emprego de termos difamatórios.) E foi imediatamente dar conta do caso ao seu superior. O chefe dos guardas, um montanhês da Alta Baviera, examinou o papel com lentidão, depois pousou-o sobre a mesa do posto da guarda e declarou:

- Ele pode continuar a queixar-se. Vai ver o que isso

lhe vai custar.

Meyer recebeu o seu chá frio.

Mas nem Wachtl nem o chefe dos guardas conheciam

Kurt Meyer.

Este pediu para ver o capelão... um direito que todos os detidos têm.

O capelão deixou Meyer depois de lhe ter prometido entregar ao director da prisão uma longa carta de queixas. Meyer chorara como uma Madalena e queixara-se ao capelão de ser mais maltratado do que uma cabeça de gado. O desgosto daquele pobre criminoso comovera o capelão, que se oferecera para lhe servir de intermediário.

Meyer triunfava.

Wachtl e o chefe dos guardas praguejaram e rangeram os dentes.

- É uma revolução - gritou o chefe dos guardas.

- Ele vai ser enviado para a Prussia!

O director era um homem afável e benevolente. Foi falar com Meyer, sentou-se à beira da cama, mandou embora Wachtl, que o tinha acompanhado, olhou pensativamente para o preso e disse com calma:

- Recebi as suas queixas.

- Peço apenas aquilo a que tenho direito.

- Não o obterá... infelizmente.

- O quê?

Meyer - com y - olhava para o director com olhos

incrédulos.

- O senhor é um funcionário da justiça e diz-me claramente que me recusa aquilo a que tenho direito? É forte, senhor director. Mencionarei esta afirmação por altura dos debates, para que a imprensa a divulgue.

- Se assim o quer... - O director sorria para Meyer.

- Se reclama em altos brados aquilo a que tem direito, suponho que também reclama que os seus actos criminosos sejam julgados segundo esse mesmo critério. Compreende-me?

- Não - confessou imprudentemente Meyer.

- Segundo a concepção da justiça que tem todo o indivíduo de bom senso, o autor de cinco assassínios não pode deixar de ser condenado cinco vezes à morte.

Meyer empalideceu e respondeu:

- A pena de morte foi abolida...

- Quando se considera o seu caso, Meyer...

- Senhor Meyer, se faz favor - murmurou Meyer com dificuldade.

- Não se pode deixar de pensar que um indivíduo da sua espécie não só justifica, mas exige o restabelecimento da pena de morte.

- Proíbo-o de fazer tais afirmações.

Meyer deu um salto e foi colocar-se em frente da janela gradeada, com as costas voltadas para o director.

- O senhor reclama o seu direito, este é o seu direito!

- O direito é a aplicação da lei.

- Um grande criminoso atingido pelo complexo do direito! - O director ergueu-se e olhou para as costas de Meyer. - O seu processo, Meyer, agitará a opinião pública. Suscitará novas discussões apaixonadas entre os apoiantes e os adversários da pena de morte. Mas, creia, a maioria do povo lamentará que a sentença possa ser apenas a prisão perpétua!

Meyer voltou-se. O suor corria-lhe pela testa. Nos seus olhinhos cinzentos, habitualmente inexpressivos, brilhava um clarão alucinado.

- Eu nunca teria feito o que fiz se a pena de morte existisse ainda.

- Obrigado! - concluiu o director em tom sarcástico. - Basta, Meyer, acaba de confessar!

Quando a porta da cela voltou a fechar-se, Kurt Meyer perdeu todo o seu sangue-frio. Gritava de cólera, martelando com os punhos sobre o colchão duro da cela.

- Que idiota eu sou! - gritava. - Idiota! Que imbecil eu sou!

A partir desse momento, Kurt Meyer - com y -, detido a título preventivo, caiu na apatia e deixou quase de fazer reclamações. Engolia a sopa morna sem se queixar; bebia o chá frio; assinou todos os processos verbais de interrogatório e nem sequer protestou quando lhe puseram as algemas e o fecharam num compartimento especial do rápido Munique-Colónia.

Em Colónia, na velha prisão de Klingelpiitz, a chegada de Meyer mal se notou. Inúmeros grandes criminosos tinham passado por ali antes de serem condenados... e depois agraciados.

Conduzindo Meyer para a sua cela, o chefe dos guardas, Schmitz, anunciou-lhe:

- Já pediram a tua presença.

- A sua presença, se faz favor... - Meyer sorria com indulgência. - Mesmo sendo um criminoso, tenho o direito de não ser tratado por tu.

- Bom! Cada um tem a sua maniazinha... Dizia-lhe, portanto, senhor Meyer, que tinham pedido a sua presença.

- Quem?

- Um velho conhecimento seu. Moll, o director da penitenciária de Rheinbach. Será lá que irá acabar os seus dias, senhor Meyer, quando o espectáculo tiver terminado... Cinco vezes a prisão perpétua... não poderá esperar ser amnistiado.

O Dr. Hellmig encontrava-se num estado de depressão nervosa, agravado pela febre, que não deixava de inquietar os seus amigos, quando o Dr. Doernberg pronunciou o seu requisitório contra Hans Wollenczy e Franz Heidrich, os dois únicos membros ainda vivos do bando que assaltara o banco de Wiesbaden.

A instrução não revelara nada mais do que os factos já conhecidos. Mas não se tinha encontrado a quantia que cada um dos bandidos recebera pela sua participação no golpe. Aquando da sua prisão, Wollenczy vivia do dinheiro ganho no casino de Neuenahr. E Heidrich, o Chorão, tinha apenas consigo dois mil marcos no momento em que os polícias lhe tinham deitado a mão no belo prado próximo de Berchtesgaden. Não conseguiram arrancar-lhes uma só palavra sobre o local onde tinham escondido o dinheiro roubado.

- Eu não sou tolo - respondera Franz Heidrich ao magistrado que o interrogava. - Procurem!

«Dentro de três anos terei saído da prisão», pensava. «Então levarei uma boa vida. Oh, serei prudente», dizia para consigo, «não deitarei o dinheiro pela janela... seria idiota fazer-me notar. Mas a minha velhice está assegurada.»

E estava, mas não como ele julgava.

O Dr. Doernberg ocupava o lugar de procurador. Pronunciou um requisitório que perturbou e fez empalidecer os acusados. Deixaram de sorrir amavelmente para os fotógrafos e para os cameramen da televisão para voltarem a cabeça com um olhar atordoado para o seu acusador.

- Os assassinos dos dois empregados do banco e do polícia estão mortos - dizia o procurador. - É, portanto, fácil aos acusados lançarem todo o peso das responsabilidades para cima deles, pois eles já não podem defender-se. Os acusados que temos na nossa frente são cordeiros inocentes!... Um deles - Franz Heidrich - ficou apenas de vigia e não é, diz ele, senão um pacífico negociante de frutas e legumes que se afastara do bom caminho naquele meio de criminosos. O outro - Hans Wollenczy -, um gentleman desde a raiz dos cabelos até à ponta dos pés, conduzia o carro de que os gangsters se serviram para fugir. Foi obrigado a isso, afirmou ele, porque o mau Pohlschlàger (o boss, como lhe chama Heidrich, em bom calão de gangster) os teria abatido a todos se não tivessem obedecido. Mas examinemos mais atentamente estes dois cordeirinhos! Hans Wollenczy, escroque de grande classe, vive há catorze anos do dinheiro subtraído a infelizes mulheres com as quais promete casar. Já sofreu nove condenações. A última por desvio de fundos, falsa promessa de casamento, roubo, golpes e ferimentos, valeu-lhe dois anos e meio de penitenciária. Franz Heidrich, mais conhecido no meio do crime por «Franz, o Chorão», isto porque de cada vez que é preso começa a soluçar, sofreu nada menos de vinte e duas condenações, tendo sido a mais recente de ano e meio de penitenciária por causa de sete roubos e arrombamento.

Wollenczy e Heidrich trocaram um olhar. «É a velha lengalenga», pensaram. «O pedigree completo. A enumeração de todos os crimes, para impressionar os jurados. Os nossos advogados vão pôr as coisas no seu devido lugar.» Mas os dois acusados apuraram o ouvido quando Doernberg prosseguiu:

- Aquando do assalto ao banco, quando Pohlschlàger e Dicaccio, depois de terem morto os dois empregados e roubado o dinheiro, deixaram o local, Heidrich, armado de um revólver, foi em socorro deles e cobriu a sua retirada.

- Mas eu não disparei! O presidente ergueu a mão.

- Acusado, não tem o direito de falar de momento!

- Está bem - resmungou Heidrich.

- Quer Heidrich tenha disparado ou não, a arma que ele empunhava era uma ameaça contra todos aqueles que se tivessem oposto à fuga dos bandidos. - O Dr. Doernberg deitou um olhar para as notas que tinha na sua frente.

- Ninguém podia saber se Heidrich faria ou não uso da sua arma. Com as costas cobertas por ela, os bandidos puderam chegar junto do carro, cujo motor estava a funcionar. Hans Wollenczy estava ao volante: partiu logo que Heidrich se juntou a eles, e fê-lo a toda a velocidade, segundo um itinerário meticulosamente previsto, conforme estabeleceu o inquérito...

- Os dois acusados participaram, portanto, com todo o conhecimento de causa e de perfeito acordo com os seus cúmplices, que depois escaparam à justiça dos homens, no assalto de um banco, com o objectivo de satisfazer, à custa de outrem, a sua sórdida cupidez. Não hesitaram em penetrar no banco de armas na mão e abater friamente aqueles que se encontravam no seu caminho. O seu plano tinha sido cuidadosamente preparado. A cobertura da retirada e a partida rápida tinham sido previstas.

- Senhores jurados, se não tivesse havido morte de homens, os acusados seriam passíveis, segundo o capítulo 51 do Código Penal, que trata dos assaltos à mão armada, da pena mais severa prevista, a de reclusão numa penitenciária. De facto, os acusados tomaram igualmente parte no assassínio de três homens que foram deliberadamente mortos no exercício das suas funções. Ora, aquele que, por interesse ou a fim de encobrir um delito, mata um indivíduo, é um assassino. É passível da pena mais grave prevista pelo Código Penal: a prisão perpétua. Dada a sua participação no crime e tendo em conta os antecedentes dos acusados, peço para eles a prisão perpétua.

Heidrich pusera-se de pé e gritava com voz aguda algumas palavras ininteligíveis. Com as mãos crispadas sobre o varão que ficava à sua frente, dir-se-ia que ele queria saltar por cima dele. Dois guardas seguraram-no e puxaram-no para trás. Mas Heidrich soltou-se e precipitou-se outra vez para a frente.

- Porco! - gritou ele para Doernberg. - Deviam torcer-lhe o pescoço! Penitenciária durante toda a vida! Nunca! Nunca!

Bateu no peito com os punhos fechados e depois começou a lutar com os guardas que tentavam dominá-lo.

Os agentes da polícia que se encontravam de serviço diante da sala de audiências chegaram em passo de corrida.

Precipitaram-se para o banco dos acusados e bateram em Heidrich com as suas matracas de borracha, até ao momento em que ele renunciou à luta e deixou que lhe pusessem as algemas. O contacto frio do aço sobre os pulsos acabou com o seu desespero. Gemendo, agitado por soluços, Heidrich deixou-se cair no banco.

Wollenczy não perdera a calma. Pálido, de dentes cerrados, Wollenczy olhava para o Dr. Doernberg.

«Um dia evado-me», pensava o belo Wollenczy. «Então para quê agitar-me assim? Não existe penitenciária de onde uma pessoa não possa evadir-se. Deixemos, portanto, ao tribunal, ao procurador, aos jurados e à população o prazer de nos ver neutralizados atrás de altos muros. Mas sabem o que nós pensamos? Há sempre a possibilidade de uma revisão...»

Lívido, digno, quase elegante com o seu fato completo cinzento-pérola, camisa a condizer e gravata de um cinzento ligeiramente mais escuro, ele mantinha-se muito direito no seu banco, não concedendo sequer um olhar ao seu lamentável companheiro.

Wollenczy manteve esta atitude enquanto os defensores pleiteavam e tentavam minimizar o papel desempenhado pelos seus constituintes no hold-up, afirmando que eles se tinham deixado arrastar e até que tinham sido ameaçados para ajudarem os seus comparsas ocasionais, sendo vítimas dos gangsters Pohlschlàger e Dicaccio.

- Heidrich não podia saber que Dicaccio e Pohlschlàger se serviriam das suas armas para matar. Quando se apercebeu do que se passara, ficou tão perturbado que correu para o carro, tendo maquinalmente na mão o revólver quando, horrorizado, quisera desembaraçar-se dele...

- Wollenczy era obrigado a conduzir porque, ao mesmo tempo que entrava no carro, Pohlschlàger apontara o revólver às costas de Wollenczy e lhe ordenara: «Parte a toda a velocidade, ou dou-te um tiro!» Só por a sua própria vida ser ameaçada é que Wollenczy conduzira os assassinos. Ele tornara-se por sua vez uma vítima!

Estava tão apavorado pelo crime que nessa mesma noite fugia, para escapar a Pohlschlàger e a Dicaccio.

Após três horas de deliberações, o tribunal exprimiu, pela boca do seu presidente, a sentença.

Franz Heidrich e Hans Wollenczy foram condenados a prisão perpétua por terem participado no hold-up e no assassínio de três homens. Os dois culpados foram igualmente privados dos seus direitos civis por toda a vida, além de serem também condenados ao pagamento das despesas e custos do processo. Heidrich desmaiou.

Wollenczy nem pestanejou ao ouvir pronunciar a sentença. Depois fez uma leve inclinação para o Dr. Doernberg e estendeu os braços para que lhe pusessem as algemas.

Doernberg ficou a vê-lo transpor, de cabeça erguida, a pequena porta da sala de audiências.

«Ele é perigoso», pensava, «mais perigoso que um Katucheit, que é um primitivo e só obedece aos seus instintos. Este Wollenczy possui o espírito do criminoso nato, que nada detém. Mal de nós se estes dois recuperam um dia a liberdade! Estrangularão e dilacerarão essa humanidade que hoje lhes poupa a vida, porque acredita que existe em cada indivíduo um fermento de bondade.»

O Dr. Doernberg foi o último a sair da sala, com a sensação de ter sofrido uma nova derrota íntima.

O Outono chegava ao fim - os hold-up estavam na ordem do dia e as pessoas quase se admiravam quando, de manhã, ao abrirem os jornais, não encontravam notícias de um novo assalto à mão armada contra um banco quando Kurt Meyer, condenado cinco vezes por assassínio a prisão perpétua e à privação dos seus direitos civis, apertou cordialmente a mão ao guarda Puck. Depois, Meyer, observando com interesse o vestíbulo da penitenciária, comentou:

- Pintaram de novo o tecto? Acho bem. A pintura antiga já tinha pelo menos trinta anos... era deprimente, essa porcaria.

- É a tua única preocupação? - perguntou Puck, fazendo tilintar as chaves.

Meyer lançou-lhe um olhar reprovador.

- Já começa?

- O quê?

- O barulho das chaves. Isso torna-me nervoso. Agora estou aqui por toda a vida.

- Infelizmente para nós!

Meyer seguia pelos compridos corredores, esperando atrás de Puch de cada vez que este abria e voltava a fechar as diferentes portas gradeadas, e chegou finalmente ao sítio que deveria habitar até ao fim dos seus dias.

- Quem está a ocupar a minha antiga cela?

- Um tipo condenado por atentado aos costumes.

- Na minha cela? Como é que puderam meter na minha cela pessoa tão repugnante?

Puck olhou para Meyer e disse secamente:

- Os teus cinco assassínios são talvez água de rosas? Meyer não respondeu. Com um olhar abarcou a longa

fila de portas de ferro, cada uma delas com um ralo e um número. Portas atrás das quais não havia senão a desolação daqueles que ali se encontravam enterrados vivos.

- Qual é o número? - perguntou muito baixo. Tomado de um súbito ataque de fraqueza, Meyer

fechou os olhos. Depois recompôs-se e, com os seus olhos cinzentos, inexpressivos, olhou para Puck.

- Número cento e trinta e seis. :

- Individual?

- Com certeza!

, - De resto, tenho direito a isso.

Aproximou-se da porta, abriu o ralo e inspeccionou o interior da cela.

Uma cela semelhante a tantas outras. Ainda impessoal e nua, cinzenta como um túmulo. Mas isso mudaria.

Um condenado a prisão perpétua era autorizado a ler, e os livros tornam uma cela confortável.

- Muito bem. Quem é o preboste?

- Porquê?

- Vejamos, Puck... o preboste é o homem mais importante aqui, não és tu. Precisas que eu te dê uma lição sobre o que se passa na penitenciária?

Meyer falava no tom familiar de um conhecido de longa data, um homem a quem os modos dos guardas não impressionam e que lhes fala como a velhos amigos. Puck não gostou desse tom... queria marcar as distâncias. Fez tilintar as chaves, abriu a cela 136 e disse brutalmente:

- Vamos, depressa! Entra! Meyer voltou-se.

- Estás a tornar-te rude?

- Se todos compusessem tantas frases como tu, podia-se abrir aqui uma escola de declamação...

Meyer encolheu os ombros e penetrou na sua cela. Tudo ali estava regularmente impecável, e à primeira vista nada parecia suscitar uma reclamação. Mais tarde... um dia na penitenciária é muito mais longo do que no exterior, em liberdade.

O guarda Puck voltou a fechar, ruidosamente, a porta sobre Meyer. Depois ficou no corredor a agitou as chaves com determinação. «Vai ficar furioso, vai babar-se de raiva, o Meyer com y, pensou.

Duas horas mais tarde, o director Friedrich Moll ia visitar aquele preso de categoria.

Meyer viu com espanto a porta abrir-se de novo, contrariamente ao programa. Estava nesse momento a escolher, no catálogo da biblioteca da penitenciária, os livros que queria pedir. Primeiro a Bíblia - prometera a si próprio daí a um ou dois anos voltar outra vez à capela. Era ali que se sentia melhor. Podia discutir durante horas as suas concepções sobre o mundo e a religião com o capelão, que o ouviria com paciência.

O director ficou junto da porta a observar Meyer, que, com a sua caligrafia elegante, acabava de escrever um título na sua lista.

- Ei-lo de regresso. Bem-vindo a sua casa! - disse Moll, sarcástico.

Meyer ergueu-se lentamente.

- Tenho de ver se os regulamentos da administração penitenciária o autorizam a que o senhor me chame simplesmente Meyer, apesar de eu ter sido condenado a prisão perpétua.

- Recomeça já?

- Não me veio dizer «bem-vindo a sua casa»? Em nossa casa temos certas prerrogativas...

- Quero lembrar-lhe que vai passar aqui o resto dos seus dias, sem qualquer hipótese de ser amnistiado, e que, portanto, só terá vantagem em adaptar-se aos hábitos da casa.

Meyer ergueu a mão.

- E muito optimista, senhor director. Veja aqui, no catálogo da biblioteca... N.º 249, As Guerras Alemãs. Permite-me uma rápida enumeração? 1813, guerra; 1848, revolução; 1866, guerra; 1870 a 1871 guerra; 1914-1918, guerra; 1933, tomada do Poder por uma ditadura; 1939-1945, guerra... Isto quanto ao passado. Sabe o que nos reserva 1970 ou 1975? Haverá novas ditaduras, novas guerras e novas amnistias gerais? Ou novas conquistas que abrirão todas as portas? Caro senhor Moll, director e conselheiro do Governo, para Kurr Meyer a vida não acabou no dia em que entrou na sua cela cento e trinta e seis da penitenciária de Rheinbach! No exterior fazem política, fazem guerras... perdem guerras... Nós seremos os que aproveitarão disso, nós, a quem chamam os perpétuos. Nós esperamos, porque temos tempo para isso. O tempo trabalha por nossa conta. Nós somos os seus parasitas.

Moll abanava a cabeça.

- É um verdadeiro escândalo deixar pessoas cono você...

- Peço-lhe, senhor director. Sei o que vai dizer. Não desejo ouvi-lo, porque os meus nervos são delicados... e a minha epiderme sensível, sobretudo nesse ponto.

- O seu processo suscitou a indignação popular. Jornais e revistas publicaram artigos a várias colunas; as pessoas enviaram-nos cestos de cartas de indignação; o Ministério Regional e o Ministério Federal da Justiça foram bombardeados de correio... Surgiu uma vaga que aumenta todos os dias. Será difícil agora permanecer surdo às vozes que reclamam um sistema penal mais rigoroso e o restabelecimento do castigo supremo.

- E tudo isso por minha causa? - Meyer sentou-se e olhou com melancolia para a janela de grades, para além da qual brilhava o sol de Outuno. - Tornei-me então tão importante?

- Não é você o único. As pessoas estão indignadas com a sorte dos assassinos dos motoristas de táxis, dos gangsters culpados de hold-up, dos...

- O mundo é mau.

Meyer abanava lamentavelmente a cabeça.

- Queixe-se!

- Eu posso dizê-lo, porque faço parte dos maus.

- Não sente o mais leve arrependimento, Meyer?

- Não.

- Nem sequer se envergonha de si?

- Não. Gosto demasiado de mim mesmo para isso.

- E vai acabar os seus dias na prisão!

Meyer ergueu as duas mãos num gesto implorativo... um oriental em oração.

- O nosso destino é impenetrável, senhor director. Mas eu estou satisfeito com o meu. Aqueles que eu odiava já não vivem...

Friedrich Moll saiu da cela 136 abanando a cabeça.

O Dr. Hellmig, presidente do tribunal regional, encontrava-se com a mulher numa estância termal onde tratava a sua doença cardíaca. Estava de férias até ao restabelecimento completo da sua saúde. Foi nessa altura que o Ministério Regional da Justiça reclamou ao procurador-geral, o Dr. Bierbaum, um relatório pormenorizado sobre o mais jovem magistrado do Ministério Público, o Dr. Doernberg.

Karlssen, superior directo de Doernberg, recebeu a missão de fazer esse relatório e de o transmitir ao procurador-geral.

- Que contratempo! - disse Bierbaum a Karlssen.

- Pensávamos que Burrmeister tinha esquecido tudo isso há muito tempo, e eis que ele se lembra agora dessa velha história. Doernberg faz-me pena. Arrisca-se a ser posto de lado durante um bom espaço de tempo.

Karlssen abanou a cabeça, que começava a ficar grisalha.

- Não o creio.

- Ah, não? Em que é que se baseia para se mostrar optimista?

- Sei que Doernberg trabalha num importante memorando... Uma espécie de «livro branco» dos crimes mais recentes que teriam merecido a pena de morte, com a enumeração exacta de todos os factores de libertação que podem intervir. Será o «livro negro» da justiça penal!

Bierbaum ergueu os braços para o céu.

- Mais uma razão, Karlssen. Vá imediatamente procurar Doernberg e diga-lhe que eu lhe aconselho vivamente a acabar com esse trabalho. Pode acrescentar que o meu conselho tem o valor de uma ordem. Esse rapaz vai meter-se na boca do lobo! Vai estragar irremediavelmente a sua carreira!

- Pensa que ele se preocupa com a sua carreira?

- Qual é o jovem procurador que não se preocupa?

- Talvez Doernberg...

- Diga já que ele quer suicidar-se!

- Doernberg é um idealista, pronto a Sacrificar tudo por causa das suas ideias.

O procurador-geral’ abanava energicamente a testa calva.

- Isso nada tem a ver com o idealismo. É um fanatismo cego.

Karlssen, pensativo, brincava maquinalmente com o cinzeiro que se encontrava sobre a secretária.

- Observei várias vezes o trabalho de Doernberg. Ele reuniu uma documentação esmagadora. E não se contenta em citar secamente os factos... em fazer uma espécie de estatística que dê números sem qualquer informação sobre a evolução psicológica que se dá actualmente no meio do crime. Nós praticamente já não tratamos de casos isolados, como eram por exemplo os de Haarmann ou de Kiirten, ou ainda de Grossmann... temos na nossa frente um gangsterismo que faz surgir, por um lado, bandos de criminosos, os famosos gangs, e, por outro lado, bandidos que actuam por conta própria e não hesitam em servir-se de uma arma. O número de assaltos à mão armada aumentou desde 1952 em cerca de duzentos e cinquenta por cento. E não se servem apenas de revólveres, de punhais e de armas contundentes, mas também de metralhadoras! Setenta por cento dos criminosos agem por lucro. A documentação de Doernberg causa-nos calafrios!...

- Mas que resultado obterá ele? Dizem-nos constantemente, em todos os tons, que a criminalidade diminui de ano para ano!

- Os delitos menores, é possível... os furtos, as fraudes... aquilo a que se chama «pequenos delitos», diminui. Mas os crimes capitais aumentam. Em oito anos, mais de cento e sessenta motoristas de táxis foram assassinados só na Alemanha Federal. Não é edificante? Cento e sessenta homens pertencendo a um só e mesmo grupo profissional pagaram com a vida as indigências de uma lei penal tão clemente que não oferece protecção eficaz. Os criminosos troçam quando ouvem o Ministério Público pedir a condenação a prisão perpétua! Achariam muito menos divertido ouvir dizer: «Peço a pena de morte!» O procurador-geral fez com a mão um gesto de negativa.

- Conheço a sua posição, Karlssen. Você apoia Doernberg. E o ministro regional da Justiça também o sabe.

- Então estou tranquilo - ironizou Karlssen.

- Sim, mas essa tranquilidade não lhe serve de nada. É Burrmeister que devemos acalmar. Eu ficarei bem aliviado quando os meus procuradores passarem à disponibilidade! Segundo a minha opinião, esse «livro branco» de Doernberg é um dispêndio inútil de forças e de tempo... para não falar do desgaste de nervos!

Karlssen levantou-se e disse calmamente:

- Transmitirei as suas instruções, senhor procurador-geral. Mas, dada a situação, resta saber se Doernberg se conforma com o seu desejo.

- Peço-lhe que me dê imediatamente conta do resultado da entrevista com ele.

- Evocarei igualmente a sugestão no meu relatório sobre Doernberg!

- Gostaria de ver isso! - exclamou Bierbaum.

- A sua curiosidade será satisfeita dentro de pouco tempo, senhor procurador-geral.

Inclinou-se e saiu da sala. Bierbaum abanou a cabeça e voltou a colocar na sua frente o cinzeiro deslocado por Karlssen. O procurador-geral era um homem ordenado.

Num frio domingo de Janeiro, o procurador Doernberg aproveitou a neve que caíra abundantemente para ir fazer esqui e desembaraçar um pouco os seus pulmões da poeira dos dossiers. A mulher e a filha, Monika, iriam juntar-se a ele no autocarro da tarde.

Com os esquis ao ombro, servindo-se dos seus paus ferrados como uma bengala, Doernberg seguia a estrada que subia para as pistas. Um automóvel passou por ele, travou e parou a alguns metros de distância. Quando chegou junto do carro, uma cabeça emergindo de um cachecol e com um gorro de pele apareceu à janela, enquanto um braço se agitava.

Surpreendido, Doernberg parou e tirou o seu gorro.

O Dr. Hellmig fazia-lhe sinal para se aproximar. Estendeu-lhe a mão e sorriu-lhe amavelmente.

- A minha mulher trouxe-me a dar uma voltinha. O ar fresco da montanha acalma-me os nervos. Quer vir connosco?

Doernberg hesitou, olhou para os seus esquis que espetara na neve e disse com pena:

- Os esquis não cabem no carro, senhor presidente.

- Cabem sim. Abrimos a janela, os esquis entram de lado e o senhor agarra-os com as mãos.

- Mas vão apanhar frio...

- Vá, Doernberg, não se faça rogar.

O procurador cumprimentou a senhora Hellmig e entrou para o banco de trás, ao lado do presidente, depois de ter colocado os esquis junto da condutora. A senhora Hellmig pôs lentamente o carro em marcha.

Durante uns momentos ninguém falou. Admiravam a paisagem invernal, as estranhas formas das árvores cobertas de neve, as filigranas formadas pelos ramos cheios de gelo. Havia entre eles uma certa tensão. Hellmig procurava maneira de iniciar a conversa. Doernberg esperava uma palavra do presidente e perguntava a si próprio como interpretar a súbita amabilidade daquele homem até então inacessível.

Hellmig tirou do bolso uma cigarreira de prata e, abrindo-a, estendeu-a a Doernberg.

- Fuma?

- Isso não o incomoda, senhor presidente? Está ainda em convalescença.

- Meu caro Doernberg, não sou feito de açúcar! Engoliu a saliva, preso novamente pelas suas recordações.

- A vida continua, Doernberg, e é bom que isso suceda. Seria horrível se o desgosto não se suavizasse um pouco com o passar do tempo. Não se esqueça, mas...

Fechou os olhos e recostou-se para trás. O seu rosto, outrora cheio, tinha emagrecido e parecia perdido por baixo do grosso gorro de peles e do cachecol enrolado até ao queixo.

Doernberg estava silencioso. Que podia ele dizer? Não havia palavras que pudessem reconfortar Hellmig. Há dores que não se podem apagar.

- Dentro de três semanas ver-me-á de novo no Palácio da Justiça - afirmou o presidente com decisão.

- No seu lugar, poupava-me mais um pouco, senhor presidente.

Doernberg observava Hellmig pelo canto dos olhos. «Tornou-se um velho», pensava.

- Receia que cruzemos de novo as nossas espadas?

- Hellmig olhou para Doernberg e encolheu os ombros com ar cansado. - Não há nenhum risco disso, meu caro procurador... Já não tenho forças para lutar. Não quero senão que seja feita justiça, uma justiça conforme as exigências de Deus e dos homens. A minha idade e as provações do desgosto ajudar-me-ão, assim o espero, a compreender melhor os outros. O combate deixo-o para vocês, os novos.

Doernberg abanou a cabeça.

- Porque tem de haver combate? O bom senso comum basta para...

Hellmig interrompeu-o com um gesto.

- É a grande ilusão de todos os idealistas. Não existe bom senso comum. É uma esperança a que aspira o género humano, assim como os alquimistas aspiravam a descobrir a pedra filosofal. O bom senso comum. Será em vão que o esperaremos ou acreditaremos nele...

- Devemos convencer-nos.

- Devemos? - Hellmig olhou para Doernberg com assombro. - Que quer dizer com isso? Que lhe contou Karlssen?

- O primeiro-procurador? Ele não me disse nada! Doernberg estava surpreendido.

Hellmig abanou demoradamente a cabeça.

- Numa explosão de dor e de amargura, disse diante dele palavras que hoje já não pronunciaria.

- Não compreendo, senhor presidente.

- Nessa altura disse o que pensava... e talvez fosse um erro. Se’Karlssen não lhe disse nada, foi talvez por se ter apercebido de que eu não me encontrava no meu estado normal.

Doernberg sentia o coração apertado.

- O senhor pronunciõu-se a favor da pena de morte! - exclamou com voz rouca pela excitação. - Isso... isso não é possível, senhor presidente. Perdoe o meu assombro, mas... depois de tudo o que disse...

Mais uma vez a mão de Hellmig o interrompeu. Pousou-a ligeiramente sobre o braço de Doernberg.

- Sim, na altura disse: «Restabeleçam a pena de morte!» Disse-o! Mas tinha o espírito perturbado... Sentia apenas um sentimento que obscurecia toda a minha razão, o desejo de vingança. Gritava em nome de todos os pais, de todas as mães que perderam um filho por causa de um criminoso: Morte ao assassino! Olho por olho... Eram pensamentos atrozes. Que Deus me perdoe. Hoje, estou mais calmo. Seria horroroso e seria a decadência da justiça se uma sanção se tornasse uma medida de vingança. Se eu tivesse Pattis perto de mim nesse momento, eu, o pai de Sylvia, seria capaz de o estrangular com as minhas próprias mãos... Mas como juiz tenho o dever de examinar o móbil do seu crime. Agiu em estado de embriaguez? Que se passou no seu espírito? No momento do crime, Pattis gozava de toda a sua responsabilidade, ou o seu acto foi o de um louco? Há muitos factores que um juiz deve analisar antes de se sentir autorizado a concluir: esta sentença é baseada na justiça.

- Compreendo-o - disse Doernberg.

- Consegue compreender-me realmente? Até agora consideréi-o um fanático cego.

Doernberg voltou a cabeça e absorveu-se por momentos na contemplação da paisagem, antes de responder:

- Reuni uma documentação considerável, que confirma a minha opinião sobre a pena de morte.

- Karlssen falou-me disso. Terá de apresentar o seu estudo ao ministro regional da Justiça.

- Ele não lhe dará a menor importância e mostrar-se-á hostil...

- É o destino trágico a que se expõem todos os reformadores. Lutero conheceu-o e deve ter ficado apavorado ao ver a sua doutrina desencadear a guerra dos camponeses. Talvez você, Doernberg também venha um dia a ficar apavorado, ao ver a aplicação que fazem das suas ideias.

O carro parou. Tinham chegado ao terreno onde os esquiadores desciam pelas encostas. Hellmig estendeu a mão a Doernberg.

- Desejo-lhe um bom domingo. Julgo ter desaparecido o desacordo que existia entre nós.

- Sinto-me feliz com isso, senhor presidente... mas posso esperar um pouco de compreensão da sua parte se prosseguir a minha via, se tentar fazer triunfar as minhas ideias?

Hellmig, com o rosto impassível, evitou o olhar de Doernberg.

- Dispense-me de lhe responder, Doernberg. O meu estado moral actual não me permite ainda tomar uma posição tão clara como queria.

Doernberg, comovido, saiu do carro. Ao despedir-se da senhora Hellmig leu nos olhos dela o desgosto que ela tentava tão corajosamente dominar. Havia também nesse olhar um pedido mudo para ele compreender o marido. Doernberg fez um imperceptível sinal de assentimento, pegou nos esquis e dirigiu-se lentamente para o campo nevado. Em breve uma curva fez desaparecer de diante dos seus olhos o grande carro negro.

«Ele procura uma razão para viver», pensava Doernberg. «Procura vencer os seus sentimentos e ser um juiz imparcial, que possa pronunciar-se apenas em nome da justiça.»

A primeira sessão do tribunal presidido pelo Dr. Hellmig após a sua doença era esperada com curiosidade pelos magistrados e pelo pessoal do tribunal. O primeiro-procurador, Dr. Karlssen, tinha com efeito confiado a Doernberg, seu substituto, a tarefa de se encarregar da acusação. O guarda Kroll, que como de costume chamava as testemunhas, quando soube que Doernberg ocuparia a cadeira do Ministério Público, coçou a cabeça e disse a um dos colegas.

- Se tudo se passar bem... pago-te uma bebida! É o caso Weigel, a mais sórdida história de assassínio que se possa imaginar. É certo que o meu Doernberg vai novamente dizer... enfim, esperemos.

Os Weigel, três irmãs e um irmão, tinham morto de comum acordo Hans Petermann, o marido de uma delas, e haviam-no enterrado no jardim. Porquê? Porque Petermann, homem de moralidade rígida, protestava contra a ida demasiado frequente à casa onde todos viviam, de um soldado negro americano. Este mantinha relações íntimas com uma das suas cunhadas e, numa época em que a vida era ainda difícil, fornecia-lhes chocolates, cigarros e guloseimas. Um desmancha-prazeres, esse Petermann: era preciso fazê-lo desaparecer. Os vizinhos, os camaradas de trabalho, mesmo a polícia, ficaram inquietos com o seu desaparecimento. A resposta fora sempre a mesma: Hans passara para a zona russa; já não podia suportar a vida ali. E Anna Petermann, em solteira Weigel, desempenhara o papel de esposa abandonada, chorando até algumas lágrimas. As pessoas haviam tido pena dela.

Ao fim de um certo tempo, os vizinhos não fizeram mais perguntas, a polícia abandonou o inquérito e o dossier juntara-se aos outros «casos em suspenso». Era a época em que se passava facilmente a Cortina de Ferro. Petermann voltaria um dia... Como nunca mais escrevera nem dera o mínimo sinal de vida, o seu caso não ficara definitivamente esclarecido. Decorreram dez anos.

Depois veio a decisão - que ficou célebre e que teve o efeito de um raio no meio da gatunagem - do Ministério Federal da Justiça de nomear uma «comissão especial» encarregada do estudo dos «casos em suspenso». Reuniram-se dossiers espalhados por toda a Alemanha. Entre eles figurava o de Hans Petermann, poeirento e amarelecido por dez anos de espera.

A comissão especial fez ponto de honra em castigar como devia todos os eventuais criminosos.

Para os membros da comissão, todos eles especialistas, todos os assassinos cometem um erro. Não existe crime perfeito. Se esse Petermann fora morto - a comissão começava por prever o pior - o assassino devia ter uma falha no seu álibi.

Durante meses observaram discretamente as idas e vindas, o que faziam e o que diziam todos os membros da família Weigel.

Não recebiam qualquer correio da zona soviética. De resto, nunca tinham recebido.

Interrogaram-nos e quando falaram, como que acidentalmente, de Petermann, a atitude deles foi estranha. O caso datava de dez anos antes e ninguém se recordava já do que dissera exactamente na altura. O irmão e as irmãs contradisseram-se, indicando outras datas, outros motivos para o desaparecimento de Petermann.

Além disso, Anna, a esposa abandonada, voltara a casar. Como era isso possível se Petermann se tinha simplesmente mudado? Continuava dado como desaparecido e nunca fora passada nenhuma certidão de óbito. Os Weigel tinham afirmado que Petermann passara a Cortina de Ferro, e isso não impedira Anna de se voltar a casar?

Primeiro inculparam Anna de bigamia. Depois, os membros da comissão especial recorreram aos grandes meios:

- Vocês mataram Petermann. Nós sabemo-lo! disseram aos Weigel.

Estes negaram energicamente. Por fim, submetidos a demorados interrogatórios contraditórios, afundaram-se... todos os quatro. Confessaram o crime. A reconstituição do crime teve lugar no jardinzinho da casa que ainda habitavam, em presença do primeiro-procurador Karlssen e dos membros da comissão especial. Onze anos mais tarde!

Quando o acto de acusação foi estabelecido, Karlssen chamou Doernberg.

- Você fica encarregado da acusação, Doernberg. Um caso claro como água. Será a primeira audiência presidida por Hellmig desde que adoeceu. Carregue... não tenha nenhuma consideração... temos aqui um caso típico, um caso que pode servir de base a todas as discussões a favor e contra a pena de morte. Um caso típico para todos os humanitários, todos os psicanalistas, todos os peritos, todos os ministros de todos os cultos; um caso típico para os seres humanos, quaisquer que sejam os seus pensamentos e os seus sentimentos: quatro irmãos que matam um homem, simplesmente porque a sua presença os contraria. Porque os intimou à decência, desembaraçam-se dele como se não fosse mais do que uma migalha de pão sobre a mesa.

Doernberg saíra de junto do primeiro-procurador como se levasse em cima um peso de cem quilos que lhe esmagasse o coração. Encontrava-se agora perante os quatro assassinos, que, no seu banco, muito pálidos, o olhavam com olhos franzidos.

Nesse mesmo banco dos réus, Katucheit ouvira a sentença que o condenava a prisão perpétua; naquele mesmo sítio o assassino Janowski ficara estendido enquanto lá fora a multidão que se aglomerara diante do palácio fazia ouvir os gritos: «Morte! Morte!»

E no banco dos réus de todos os tribunais alemães se tinham sentado e se sentariam criminosos, fitando com o olhar o representante do Ministério Público, que, em nome do Estado, os acusava do crime mais horroroso, o assassínio de um ser humano.

O presidente do tribunal regional, o Dr. Hellmig, estava sentado à sua mesa, inclinado para a frente, com as mãos magras e nodosas juntas sobre as suas notas. Contrariamente aos assessores e aos jurados, ele não olhava para o Dr. Doernberg.

Encostado à porta da sala de audiências, o guarda Kroll remexia no seu cinturão. Os bancos das testemunhas e, atrás, os que eram reservados ao grande público estavam cheios de gente: jovens estagiários, advogados, curiosos. No último banco das testemunhas tinham tomado lugar o procurador Karlssen e o procurador-geral Bierbaum.

- Estamos em presença de um caso único nos anais da criminalidade alemã: uma família inteira, um irmão e três irmãs, decide desembaraçar-se de um homem incomodativo, o marido de uma das irmãs, cunhado dos outros três... Em conjunto, eles prepararam minuciosamente esse assassínio, cometendo-o em conjunto, executando cada um a tarefa que lhe fora cometida.

- O irmão cavou a cova e disparou (foi o executor); Maria arranjou a arma e as balas por intermédio do soldado negro, seu amante; Rosa vigiou o desenrolar dos preparativos, e Anna, esposa da vítima, mostrou-se cheia de cuidados com o marido para que ninguém pudesse conceber suspeitas sobre o que se tramava.

O procurador pousou as mãos sobre a sua secretária.

- Os acusados confessaram depois de se terem calado durante onze anos, e o crime ficaria impune se uma comissão especial não tivesse sido nomeada para examinar os dossiers pendentes e não tivesse reaberto o dossier Petermann. E esses acusados sentiam remorsos? Hans Weigel chorou, é certo, quando, por indicação sua, desenterraram o cadáver do cunhado... mas seriam lágrimas de remorso, lágrimas de arrependimento? Chorava apenas porque o seu crime fora descoberto e onze anos de silêncio se tinham reduzido a nada. Uma vez mais se verificava o velho princípio de que não existe crime perfeito e que um assassino acaba por cometer um erro que faz com que seja apanhado.

Doernberg deitou um olhar ao presidente, relutante no que ia ter de dizer, pois imaginava facilmente a dor íntima que Hellmig sentiria nessa hora em que tinha novamente na sua frente assassinos, assassinos semelhantes àquele que matara a sua única filha.

Doernberg prosseguiu:

- Os acusados são culpados do mesno modo e merecem todos uma condenação idêntica. Agiram impelidos pelos motivos mais vis.

- Antes de requerer esta condenação, e todos nesta sala sabem qual será e que não pode ser mais, gostaria de focar um ponto: na altura em que os acusados perpetraram o seu crime, a pena de morte não tinha ainda sido abolida na Alemanha. Se os criminosos que se encontram na nossa frente tivessem sido presos nos dois anos que se seguiram ao crime, teriam sido, em «nome da lei», condenados à pena capital. Hoje, onze anos depois dos factos que teriam sido então punidos como mereciam, eu represento aqui o Estado e tenho obrigação de dizer: peço para os quatro acusados, solidários do mesmo crime, a condenação à prisão perpétua. Em vez de poder dizer: reclamo a pena de morte! Onze anos de um silêncio obstinado são recompensados: a lei salva a cabeça aos assassinos!

O procurador-geral deitou um olhar a Karlssen. O primeiro-procurador estava escarlate.

- É completamente doido - murmurou Bierbaum. Karlssen fez um gesto de aquiescência com a cabeça. Um membro do Ministério Público que durante o seu requisitório ataca a lei! É um verdadeiro escândalo!

- Doernberg tem razão, nós andamos às voltas respondeu Karlssen. - Quando ele invocou a pena de morte no caso Katucheit, o presidente explodiu. Hoje, Hellmig cala-se. Perdeu a filha por culpa de um assassino. Mas hoje é o senhor que explode...

Erguendo a voz, Karlssen continuou:

- Enquanto houver homens, haverá entre eles assassinos. E enquanto houver assassinos, tentar-se-á estabelecer entre a medida ideal (a melhoria do homem) e o último recurso (a pena de morte) escalões a que se chama a Justiça. É um combate secular, e Doernberg é apenas um dos seus soldados, uma pequena voz que se ergue... uma voz que não querem ouvir...

Os dois homens olharam-se, tinham-se subitamente compreendido. O Dr. Hellmig seguiu-os com o olhar quando eles se levantaram e deixaram a sala.

O olhar do presidente estava cansado e um pouco ausente.

«Para mim já não há problemas», pensava. «A minha vida tornou-se muito simples.»

O Dr. Doernberg sentara-se e tomava notas. Na sala reinava um silêncio tenso. Os cronistas judiciários estenografavam. O guarda Kroll continuava encostado à porta.

Seis horas de debates.

Um dia como os outros. Um processo como centenas de outros que se desenrolavam à mesma hora diante dos tribunais do mundo inteiro.

Requisitório do procurador.

 

                                                                                  Heinz Konsalik  

 

                      

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