Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PEDRAS LAVRADAS
A tactear no lusco-fusco da madrugada, ergueu-se, abriu a janela, debruçou-se no parapeito, e ficou a olhar. A lagoa, coberta de nevoeiro, era uma nuvem de algodão. O mar, para lá das dunas, ressonava ainda. O pinhal, maciço, nem sequer dava sinal de vida.
Um dia como tantos outros, com o mesmo acordar informe, húmido e demorado.
-És tu, Pedro?
- Sou, mãe.
- Olha se te constipas!...
Tamb"em ela velava. Também ela sabia que chegara a hora.
Um ruido de asas selvagens cortou o ar por cima do telhado: os primeiros patos ao encontro da espingarda do Milheirão.
E Pedro viu claramente o caçador escondido no bunho, à espera. Dali a nada...
Parou um momento de pensar, como para dar tempo a que a sintonização se fizesse. E logo as duas detonações esperadas lhe chegaram através da bruma. A morte iniciava a ceifa.
- Não estejas ao relento, filho! Agasalha-te!
Devagar, mas inexoràvelmente, amanhecia. Como uma planta que se não vê crescer mas cresce, assim a luz ia alargando os braços e abrindo os olhos. Um grande rasgão na gaze que a cobria mostrava já uma nesga do ventre luzidio da lagoa.
Mais patos. Mas podiam seguir descansados. O Milheirão só dava dois tiros.
Na ampulheta, a areia continuava a correr. E o mundo povoava-se dos seus fantasmas: Gaivotas, a ronca a chamar os homens da campanha, outra fenda na neblina, o primeiro telhado dum palheiro a esboçar-se ao fundo.
- Veste-te, filho!
Em baixo, no pátio, houve um espanejar ruidoso. Conscienciosamente, o galo velho sacudia o sono antes de dar o sinal de dia novo.
Agora toda a larga toalha de água era o resto duma fogueira apagada. Só aqui e além um tição mais teimoso fumegava ainda.
-Onde vais?
- Tomar banho.
Pareceu-lhe ouvir um soluço; mas que importância tinha um soluço naquele momento? E desceu.
Depois da emboscada do Milheirão, voltara de novo à lagoa a sua intimidade secreta. Parada e fria, a água parecia aguardar a visita de alguém que lhe viesse trazer a confidência dum mistério. Debruçadas nas margens, as mimosas floridas olhavam-se com medo no espelho enigmático. Hirtas, as folhas de espadana lembravam sabres em continência. Estremunhado, o canavial esperava.
Pedro aproximou-se silencioso deste silêncio. Deixara a casa fechada na sua angústia, metera pelo trilho areento da mata, e abordara o recato da concha liquida pelo seu lado mais isolado e remoto.
Longe, na praia, do outro lado da grande duna, a faina começara. Um confuso ruido de gritos e de esforço trazia o testemunho de que ninguém renunciara, ali. Mas nenhum exemplo deste mundo lhe poderia valer. O desejo, a palavra ou a presença de alguém só conseguiriam ser naquela hora um motivo a mais de crucificação. A própria lagoa, a olhá-lo com insistência, o alvoroçou no primeiro momento. Mas era a lagoa, a sua velha amiga...
Devagar, como num ritual, despiu-se entre os caniços. Depois, suavemente, entrou pela frescura dentro.
Nu, a nadar na água clara, o seu corpo era como um peixe estranho. As pernas, nem de mulher, nem de homem, moviam-se num ritmo indeciso. E o tronco, que o sol do mar não crestara e a poeira da terra não encardira, fugidio, ora tinha contracções de força, ora languidos e suaves abandonos.
Lentamente, como se fosse ao encontro da sua consciência, o peixe estranho ia cortando os retalhos de nevoeiro. à sua frente, navegando com a bússola dos olhos, um bando de gaivotas balouçava-se na vaguinha.
Seduzido pela volúpia que o envolvia, Pedro virou-se de costas, juntou as pernas e deixou-se flutuar. A marola que a brisa levantara aspergia-o de vez em quando como um hissope ritmado e pagão. Respingava-lhe o peito liso e o sexo indefinido onde a sua dor começava... A vida, egoísta, agarrava-se à vida. Que mais era preciso para ser feliz do que respirar? E a consciência aguda e lancinante da anomalia perdeu-se por algum tempo no alto céu do alheamento, fora da tempestade. No berço, embalado, o corpo sentia-se como uno e perfeito;
e o espírito, liberto, vagueava boémio pelo infinito.
Mas o grasnido escarninho dum corvo que passou fez descer de novo o foragido à terra. E quando Pedro, agora à plena luz do sol, contemplou a sombra que o atormentava, foi como se um relâmpago de luto lhe tingisse de repente toda a alma. Sem comandar sequer as suas reacções, voltou-se rapidamente e mergulhou.
De olhos no lodo do fundo, reviveu ent'ão num relance todo o calvário da sua vida. Primeiro e longinquamente, a descoberta da disformidade. Depois a cautela, o medo, o pavor de que lha descobrissem. Por fim, a certeza de que a mãe conhecia também a desgraça.
Fora num dia de agosto, na praia. Todos os da sua idade, crianças ainda, brincavam despidos e naturais nas ondas de um mar calmoso e tépido. Ele, porém, ficara vestido e púdico no seu lugar, sentado entre os velhos.
- Porque não tomas banho, Pedro?
- Está constipado. Não pode.
Afinal não era o único possuidor daquele segredo! Alguém mais o conhecia e tivera a caridade de o deixar sózinho descobri-lo. Sem olhos para ver mais nada, esquecera-se até de que a mãe o parira... E uma grande ternura, feita de culpa e de vergonha, uniu-OS como duas conchas. Mas nunca uma palavra sequer os aproximou do abismo. A cumplicidade fazia-os fugir da luz da realidade e amar-se na angústia desse pesadelo. E certos gostos semelhantes, afinidades de tom em muitas conversas, e a mesma fragilidade feminina com que por vezes reagiam às mesmas solicitações, em vez de lhes darem alegria eram antes motivo de desassossego. Como que se sentiam resvalar num declive aterrador de mancebia. Ligava-os a fatalidade e separava-os o instinto.
O tempo, porém, foi intumescendo de tal modo o monstruoso luto de coniveência, que a própria árvore o não consentia mais. E muitas vezes se agrediam como dois criminosos, cansados de manter o seu crime na escuridão.
Moravam fora da povoação, isolados numa aberta da mata. Mas nem por isso aquela solidão fugia à lei da vida. E a Lúcia ouvia de vez em quando alusões à castidade do filho, notória por toda a parte.
- Que diabo tem o teu rapaz, que parece que foge das raparigas?
- Que há-de ter? Não lhe chegou ainda a hora.
Nem sempre eram tão discretos que o poupassem à humilhação. E feita a pergunta, ficava atento à resposta.
A réplica que esperava angustiado, longe de o aliviar, mortificava-o mais. Era uma solidariedade de que necessitava a todo o momento, e que podia a todo o momento perder. Cruel e inquieto, chegava mesmo a provocar a mãe, a pô-la à prova, como quem impede a cicatrização de uma ferida levantando-lhe a crosta. Mas sempre o mesmo socorro viera, seguro e pronto, ajudando-o a ladear os íngremes obstáculos do dia a dia:
A provocação dos rapazes da sua idade e, sobretudo, a solicitação curiosa e dúbia das raparigas.
Indiferente a essas angústias, o tempo ia correndo. E um dia caiu a sentença:
- As inspecções são no dia 10.
De soslaio, olhou a mãe. Pareceu-lhe ver que qualquer coisa na cara dela se contraiu levemente. Mas foi um momento só. Daí a pouco tudo recaíra na rotina habitual. E o resto da semana passou assim.
Agora o dia 10 chegara, e nele teria de dar finalmente uma resposta verdadeira e leal às perguntas do mundo.
De novo à tona de água, o peito, onde o ar estivera comprimido durante o pesadelo, respirou com alívio.
Seria fácil, afinal, responder. Quando a mentira nos envenena o sangue, à um alivio cortar as veias e deixar correr a peçonha.
Num arranco brusco, o corpo deslizou pela água. Cada braço aberto e logo retraido parecia trazer aprisionado o próprio movimento.
A vida era bonita, mas alguém tinha de pagar essa beleza. As penas ensanguentadas, que boiavam entre os maciços de alcarnacho, provavam-no bem. Para que outros patos voassem na limpidez das alturas, a morte tinha desabrochado primeiro na rosa de fumo da espingarda do Milheirão.
Ergueu-se. Estava lavado das impurezas do mundo, e pronto para a largada.
Vestiu-se râpidamente, e râpidamente chegou a casa. O dia era agora uma fornalha de Agosto a acender-se.
- Tens a roupa nova na barra da cama...
- disse a mãe. -Vais com ela...
-Está bem.
Entrou no quarto, cerrou a porta e tirou de dentro do colchão o veneno que há muito tempo
já guardara ali para que um dia lhe valesse. Depois, calmamente, tomou-o e deitou-se.
-Que à?
-Nada...
Enquanto ela continuava a cirandar pela casa, ia ele morrendo.
- Filho?
-Queria água...
Quando ela chegou estava ele quase no fim. Saltaram-lhe as lágrimas dos olhos, apertou-o nos braços com desespero, mas não gritou nem chamou por ninguém. Recebeu-lhe o último suspiro, vestiu-lhe a roupa nova, penteou-lhe os cabelos ainda molhados, e ali ficou imóvel a seu lado.
Desde o romper do dia que esperava por aquela morte.
A CONSULTA
Foi uma coisa estranha e inesperada aquela consulta. O dia decorrera monótono até ali, com casos banais, quotidianos, e gente sem outro interesse senão o de estar doente e sofrer.
Um pardo manto de rotina cobria cada presença nova da condenação do anonimato, e a imagem das figuras do drama apagava-se com o som da palavra de despedida.
- Boa tarde.
- Muito boa tarde.
Nada mais. Tinha havido confidências, lágrimas até, vergonhas e misérias escancaradas. Mas o poço da uniformidade engolia tudo, e as horas arrastavam-se num torpor morno, enquanto a luz crua do sol alargava a desolação esterilizada e branca dos móveis.
- Mando entrar? - perguntava a empregada, como um autómato, pálida e hirta, que na sua bata engomada parecia pintada também a ripolin.
- Mande.
E era mais uma ficha, com mais um nome, uma profissão, uma terra de residência e um rol de dores e desgraças.
Por fim a sala de espera ficou vazia, e o fumo dum cigarro triste começou a preencher o descanso sem gosto.
Curar! Ministrar triaga hoje, sulfamidas amanh~, penicilina depois, e ao fim... Livrasse-o Deus que os doentes suspeitassem sequer do seu cepticismo!
Ia a meditação ainda em meio, quando de novo a voz da enfermeira retomou a litania:
- Mando entrar?
- Mande.
Era uma estrangeira. Jovem, esbelta, loira, cumprimentou-o com uma graça discreta, e sentou-se na cadeira que ele lhe ofereceu, esquecendo-se logo de duas pernas inquietas que ficaram a viver sózinhas uma alegria limpa e escorrida. O cabelo sedoso caía-lhe pelos ombros numa larga vôlúpia de estriga aberta, e os olhos, dum verde de água, fitavam-no ao mesmo tempo perscrutadores e confiados. Muito feminina, toda ela era uma harmonia de cores e de costuras. O tom da pele casava-se insensi'velmente com o amarelo torrado da blusa, e as linhas do corpo adivinhavam-se fielmente figuradas no talhe decidido da saia.
Ele próprio, habitualmente tão profissional e tão técnico, estava admirado de ter olhos para estes pormenores. E apressou-se a desviar a atenção.
- Ora tenha a bondade de dizer...
Ela começou então a contar a sua história clínica com uma precisão geométrica. A idade da primeira menstruação, as vicissitudes duma caverna no pulmão direito, a evolução favorável duma febre tifóide. Por último, descreveu os sintomas do mal presente.
E ele ouvia-a atento, a seguir objectivamente
o caso, e a viver aquele espectáculo súbito e maravilhoso. Dum lugar longínquo e desconhecido do mundo vinha até si uma rapariga formosa, contava-lhe a vida intima, fisiológica, e a um pedido seu começava mesmo a despir-se na sua frente, sem medo, como se estivesse diante do sol, do mar, ou de qualquer outra força da natureza, limpa, a quem o corpo se entregasse em paz à procura de saúde.
- Vamos então lá ver...
Aproximou-se como que atraído por um aceno redentor. Pisava o tapete vermelho e azul do chão, e os pés cuidavam que iam numa nuvem ao encontro de um mundo novo.
Começou a auscultá-la. Tocava-lhe a pele macia, desviava a cortina do cabelo, aspirava o perfume que subia do corpo, calcava os seios redondos e cheios com o diafragma do aparelho. E era tudo ao mesmo tempo inefável, puro, fantástico e real!
A empregada abriu a porta e procurou no armário das amostras qualquer remédio, alheia como sempre ao que se passava. Sabia que ele era dentro da bata tal e qual um monge dentro do hábito. Onze anos de permanência ali tinham-lhe desbotado as cores do rosto e a garridice da alma. Integrara-se na brancura dos diagnósticos, na secura das ordens, solidária com a função alta e sobre-humana do patrão. E por isso mesmo, porque naquela hora não se sentia à altura desse pacto, é que ele a viu sair com ali vio, depois de vigiar se teria surpreendido a sua emoção.
As pulsações dum coração apressado che gavam-lhe pelos tubos do auscultador aos ouvidos atentos. O segundo ruido era um nadinha arrastado, mas não tinha importância. O que realmente significava muitíssimo era o facto extraordinário e banal de ele estar a ouvir as pancadas secretas duma vida, de acompanhar, com a mão no pulso da jovem, o ritmo quente do sangue a correr-lhe nas veias.
- Não respire agora...
Parou aquele arfar largo e arrastado, e precisou-se mais a infatigável obstinação que batia do lado esquerdo, no rebordo da sexta costela. Um pequeno músculo, mas enchia de vida um corpo inteiro, e uma só pancada sua talvez fizesse ainda a felicidade de alguém...
- Pode tomar ar à vontade...
Um pouco fatigada do esforço, mas vigilante, ela perguntou:
- Encontrou qualquer coisa?
-Nada.
E a resposta deu-lhe também a ele uma intima e voluptuosa alegria.
Mediu-lhe a seguir a tensão arterial. E a pequena agulha que tantas vezes oscilara diante dos seus olhos parecia-lhe agora mágica, espantosa, possessa do magnetismo feiticeiro que a agitava, e era o próprio lume dum mistério.
- Máxima, doze e meio - conseguiu dizer.
Soou-lhe mal nos ouvidos a própria voz. Ainda mais essa! E mortificou-se, insistindo.
- Incomoda-a um pouco, não é verdade? Desculpe...
A mão e o antebraço estavam roxos da pressão. Insuflou, contudo, novamente ar ao compressor, e repetiu a medição.
- Não há dúvida, é isso. Doze e meio.
Deslaçou a manga do esfigmo-manómetro, e ficou um instante a olhar a marca que deixara na pele branca a lona apertada. Ia a enternecer-se. E reagiu.
- Tenha a bondade... Quero vê-la à radioscopia. Não deve haver nada! Em todo o caso...
Entraram ambos na câmara escura, guiados apenas por uma luz velada e azul. Ela ia meio despida, mas natural, sem medo, entregue à ideia de que ele era neutro e útil como os aparelhos que manejava. E como que a reforçar este conceito, as mãos do médico, desanimadas, tiraram dum cabide o avental de chumbo das observações, e cobriram ainda mais de inexpugnável pureza aquela função impessoal.
- Subir ali, se faz favor. Mas cuidado com a cabeça...
Sem querer, repetia as palavras habituais do ofício. Dentro de si não havia possibilidade de fusão do emotivo com o rotineiro.
A moça colocou-se sobre o degrau, e ficou partida ao meio pelo écran, como aquelas mulheres das feiras a quem artes mágicas tiram pedaços. O médico nunca tinha reparado neste pormenor. E corou de ver que os sentidos o atraiçoavam, interessando-se por uma realidade de que toda uma ética os proibia. Não. Não tinha o direito de transpor a linha que separava o campo profissional do baldio emocional... Já, porém, os seus dedos haviam premido o botão da luz.
Como por encanto, toda ela se perdeu subitamente na escuridão, no limbo de uma incerteza que era assim mais inteira.
Curioso o silêncio e a intimidade em que estavam! Qual seria o nome do perfume que a rapariga usava?
Este pensamento fêlo estremecer. O médico e o homem sucediam-se nele de instante a instante. E, como o homem se excedia, o médico ligou apressadamente a corrente.
Um quadrado onde se encontrava concentrada a vida do fantasma a que a doente ficara reduzida naquele momento, estava agora diante dos seus olhos rigorosos e deslumbrados. A imagem era velha e revelha na sua memória. Um tórax. Uma fotografia que desde a Universidade via a todas as horas, ali, nos livros ou no negativoscópio, e que era sempre a mesma, apesar das variações possiveis. Os brônquios, a pleura, os campos pulmonares... Mas, não obstante isso, os olhos continuavam fascinados de surpresa. Que maravilhoso espectáculo vê-la por dentro, poder tocar-lhe com a mão a quentura da própria vida!
Indisciplinados, os dedos puseram-se então a acariciar as sombras da ilusão. E só quando a pele sentiu vidro, é que o médico, indignado, protestou.
- Respire fundo.
A sombra da grelha costal ergueu-se em leque, a curva do diafragma achatou-se, e uma betesga em ponta, ao fundo, clareou subitamente. à esquerda, uma massa em pinha pulsava compassadamente. Era o coração.
O coração! Por quem bateria ele?
- Tenha a bondade de tossir...
Alargaram-se zonas brancas, o maciço agitado acelerou a marcha, e por fim tudo voltou ao ritmo inicial.
-Outra vez, se faz favor...
Novo cataclismo, novos clarões, e a paz a seguir.
- Voltar-se!
Tocou-lhe delicadamente nas ancas, ajudou-a a virar-se, centrou-o, e ligou outra vez o aparelho.
Na nova posição, os seios não davam mais a sombra que há pouco perturbara a observação. Já não era necessário pedir-lhe licença, levantar-lhos directamente, e ter o desengano que tivera. Impenitente, a mão entrara ansiosa por debaixo do écran. Ao contacto da carne redonda e palpitante, os nervos transmitiram aos sentidos uma mensagem perturbante e pecadora. Mas os olhos, do lado de cá, viram com desilusão que se tratava do pesadelo de cinco falanges espalmadas.
-Tossir...
A caverna cicatrizara, a excursão era normal, não havia aderências.
- Muito bem, pode vestir-se.
Olhou-a com ternura, e não pôde deixar de ser ferido pela ironia do destino. Enquanto ele desapertava as correias e se desembaraçava do avental protector, retomando assim a sua condição de homem natural, sem aquela espécie de umbigueira de castidade a tolhê-lo, recompunha ela toda a sua armadura de mulher, desde a blusa com que tapou as alças indiscretas da combinação, até ao pó de arroz com que polvilhou as pequenas irregularidades do rosto.
E um desânimo estranho começou a invadi-lo. O caso clinico estava arrumado, podia ser inteiramente um animal de sentimentos, nada mais o impedia de deixar crescer dentro de si o rebento espontâneo de uma sedução. E todavia era impossível ir além da razão daquele encontro, forçar o curso natural das coisas. As próprias palavras se encarregavam de agir como antídoto do sortilégio.
- Então, doutor?
- Nos pulmões, não há nada. E o resto não tem importância nenhuma. Perturbações funcionais, muito frequentes em pessoas sensíveis...
- Quero que me diga a verdade!
- Creia, minha Senhora, que lhe falo com toda a franqueza...
- Que bom! Andava com tanto medo...
A graça infantil da resposta encheu-o momentaneamente duma esperança absurda. Infelizmente a toilette estava acabada, e ela cada vez mais alheia e distante. Viera trazida pelo destino, que talvez lhe tivesse dado a doença inicial para que ele a pudesse um dia encontrar, e ia, dali a nada, desaparecer no mar da vida, estúpida e inexorâvelmente. Mais uns instantes, e desceria a escada e sumir-se-ia na rua para todo o sempre.
- Pois, minha Senhora, pode ficar inteiramente sossegada...
Olhou-a com desespero.
Estava outra vez estranha e sugestiva como entrara, sentada na mesma cadeira de há pouco, e outra vez esquecida das duas pernas malucas que brincavam sózinhas.
A empregada abriu de novo a porta, neutra, perfeitamente alheia àquela tempestade secreta.
Foi à sala de dentro, voltou, e saiu correctamente.
- Vou então receitar-lhe as gotas...
Escreveu, fez algumas recomendações, falou de perturbações endócrinas e de metabolismo, numa voz quente, que sentia sair-lhe do peito cheia de emoção, mas que, naturalmente, ela ouvia apenas como o afago duma brisa pura.
Quais seriam os seus problemas, que homem a iria possuir um dia, que viera fazer e para onde ia?
Era solteiro, nenhuma mulher o inquietara tanto ainda, e talvez devesse agarrar aquela tábua de salvação que o acaso lhe oferecia... Mas ia perdê-la daí a pouco sem remissão.
- Se ficasse por cá mais tempo, voltávamos a fazer novo exame daqui a alguns meses... Só por uma questão de cuidado...
-Parto amanhã...
- Ah! sim? Também não é necessário ...
O pulmão está bem... De resto, em qualquer sítio que esteja pode consultar um colega. Como lhe digo, escusa de ter apreensões... Em todo o caso, convém ir vigiando de longe a longe o estado geral... E tomar sempre uns tónicos. Cálcio, vitaminas...
Desejava demorá-la o mais possível, mas ao mesmo tempo vigiava-se para que as palavras que dissesse fossem apenas as estritamente necessárias ao interesse dela.
E não seria também o interesse dela fazer-lhe sentir que viera lançar uma pedra na superfície quieta e pesada duma vida?
Não era, com certeza. Por isso, ergueu-se, entregou-lhe a receita, fez um leve gesto de fim, e ela, sorridente, compreendeu. Levantou-se por sua vez, já dona das duas pernas indisciplinadas, guardou o papel numa carteira, que ele violou, num relâmpago, com a avidez de aproveitar a última oportunidade que tinha de a conhecer.
- Pago lá fora?
- Sim, faça favor...
Já não havia remédio. Era impossível detêla um segundo mais.
-Boa tarde.
- Muito boa tarde.
O corpo ondulou diante dos seus olhos atónitos, desviou-se devagar, até desaparecer totalmente.
A última coisa que viu dela foi uma madeixa de cabelo, loira, tépida, fina, que se demorou um instante, indecisa, à saída da porta.
O GRILO BRANCO
- Há grilos brancos
- Não. Há leões...
-E via-os?
-Não. Só os ouvia.
Estavam os dois ao lume, em frente do grande forno onde o pão cozia, e não viam também o grilo branco que cantava no calor da parede. Ouviam-no, apenas.
- Berra muito, o leão?
-Faz tremer tudo.
Então, o aconchego daquele trilo manso e discreto tornou-se ainda mais apetecido.
-Há neve, lá?
- Não.
Desde que a pequena viera que a não largava com perguntas. A troco do mundo dele que lhe revelava, exigia a revelação do mundo dela.
-E bruxas?
- Não há bruxas.
-Aqui há!
Tinham ambos dez anos. Mas enquanto Violeta percorrera continentes, o Rui nunca saíra de Soutelo.
- O professor de lá diz que não.
- Também o daqui. Mas eu vi-as!
Olhou-o fixamente, e ele olhou-a também. Eram duas infâncias opostas a procurar compreender-se.
- Bruxas, mesmo?
-Mesmo!
Um arrepio de medo percorreu o corpo da pequena.
- No souto, de manhãzinha, vê-se o cabelo delas a enxugar. Amanhã já lhe mostro... Atia Rosa é!...
Felizmente que o grilo branco, no buraco do forno, ia cantando e neutralizando o terror.
- E a sua moça também...
-A Joana?!
- Pois. Ali, no vinte! É olhar-lhe para acara...
Por causa daquelas e doutras é que a mãe da Violeta não gostava que a filha fosse a casa dos vizinhos. Mas tanto fazia teimar, como não. Desde que conhecera o Rui, a rapariga andava maluca.
- Onde foste?
- à erva para os bois do senhor Teodoro.
Muito educadinha, chegara de áfrica como uma senhora. E num mês parecia outra.
- Que fizeste ao vestido?
Não vinha resposta nenhuma, nem era preciso. Ninhos, claro!
- O que tu merecias era que te castigasse. Não se envergonhar, fazer-se uma rapazola! Vá já mudar de babeiro, sua palerma!
A vontade de lhe bater era boa, mas faltava-lhe coragem. Também ela fora uma traquinas naquela idade. Também ela fugia da mãe, para casa do pai do Teodoro.
Onde isso ia! Se ao menos o tempo pusesse rugas na memória, como no rosto...
Do quintal, enquanto apanhava flores, via o antigo companheiro no quintal dele, a semear milhão. Alto, loiro, seguia pela belga fora como um deus da fecundidade a espalhar vida nova. E apertava-se-lhe o coração. Trocara-o por um amanuense da Câmara, que, nomeado chefe de posto em terra de pretos, a arrancara do seu húmus e a transplantara para o solo tropical. Mas não pudera apagar-lhe a recordação daquela inência, que agora a sua filha e o filho do Teodoro repetiam.
Por motivos de saúde, regressara, na companhia da pequena. O marido, coitado, lá ficara, a cobrar o imposto de palhota. Entretanto, o namorado de inência casara e também dera prole, e cumpria o seu destino honradamente, a cavar as leiras. Falara-lhe muito cerimoniosamente à chegada, e nada denunciava que da fogueira passada houvesse ao menos uma brasa acesa de parte a parte. No coração dos dois descendentes é que a chama renovara.
O milho que o Teodoro semeava quando ela chegou, nasceu, cresceu e amadureceu. Depois veio o inverno e a neve de que perdera quase a ideia. Sózinha, à braseira, via-a cair no largo, peneirada dum céu baço e sem esperança. A filha, claro, à lareira do vizinho, a ouvir as maluquices do Rui!
- Ela parece boazinha... - arriscou Violeta, em defesa da Joana Manca.
- Nunca fiando...
- Está sempre na cozinha...
- É de noite. Juntam-se todas no cemitério, que é um pagode. Aqui há tempos andávamos a regar na Cruz das Almas, eu a alumiar, e parecia uma feira! Riam-se, batiam palmas, chamavam pelo diabo... O que vale é que o meu pai disse-me logo: Tu não tenhas medo! Se se meterem connosco, damos-lhe tamanha coça!...
Uma pancada na porta chamou-os à realidade duma vida menos aventurosa.
-Violetinha! A mãe manda dizer para a menina ir merendar. E que não se demore! Que vá já!
Esqueceram-se ambos das bruxas e dos cabelos que elas deixavam estendidos nos picos dos tojos, a secar. Uma outra preocupação nascida subitamente, apoderava-se agora da imaginação da pequena. Apressadamente pôs-se a calçar as chancas, enquanto dava forma à sua ideia.
- Quando me for embora, hei-de levar um grilo destes ... - disse por fim, como se lhe fizesse um pedido.
-Quando é?
- Na primavera.
- Calha! Fazemos-lhe uma gaiola, arranja-se serradela e alface...
Só então repararam que se fizera silêncio no buraco de onde o trilo saía.
- Olha ele a ouvir a conversa! - avisou o Rui, a pensar nos leões, nos pretos, nos crocodilos e em todas as coisas apavorantes de que ela lhe falava.
-E ele lá, depois, cantará?
Estiveram algum tempo indecisos, ela a não querer sair, ele a não querer responder. Por fim o mais forte dos dois, o rapaz, teve a coragem da desilusão. E disse baixinho:
- Se calhar, não canta.
O Juiz
-Então?
- Fiquei em primeiro lugar...
O que toda a gente esperava. Nenhum dos outros concorrentes tinha iguais possibilidades. Bernardo fora sempre um estudante modelar. Condiscípulos e mestres contavam com ele na Universidade, a ensinar. Inexplicàvelmente, recusara o convite e pusera-se a advogar. Mas não se sentira bem à banca. E tentara novo caminho.
- Com que então, juiz?!
A palavra, solene, deslizou pelo mármore molhado da mesa do café, e quase que se ia estatelando no chão. Amparou-a a tempo outro amigo:
- Fizeste bem! A magistratura era o que te convinha.
- Vamos a ver... - disse Bernardo, com o seu ar púdico e alheado.
Subitamente, a conversa mudou de rumo, O peso da sua nova dignidade abrandou.
Juiz! Abstractamente considerado, o caso não tinha gravidade. No mundo arbitrário das ideias, o seu espírito devizava sem sobressaltos. Julgar era simplesmente o desfecho lógico dum minucioso processo intelectual, moral e social...
As raízes do problema estavam aí. Na lei. Mas dado que uma sociedade organizada necessitava de normas de conduta...
Um a um, os amigos foram-se levantando e saindo. Carlos, professor. Paulo, médico. Julião, engenheiro. Todos bons profissionais...
- Mais uma vez, parabéns!
- Obrigado.
Sózinho, paradoxalmente, o fio da meditação quebrou-se-lhe na dobadoira. Pagou então o café e saiu.
Tinha a esposa à espera. Mandara-lhe um telegrama logo que conhecera o resultado, mas sabia que só a sua presença física lhe daria inteira alegria. Curioso, como as mulheres eram concretas!
Ele é que não. Uma impossibilidade orgânica impedia-o como que de tocar as coisas com as mãos. O filho, por exemplo: o filho que vinha ainda nas brumas do caminho, difícilmente o conseguia ver em corpo humano. Grávida, Carlota ia cosendo o enxoval.
- Gostas? - perguntava.
Inútil. Por mais esforços que fizesse, não era capaz de ver a camisola a agasalhar uma realidade. E o pequeno Raul, pois até nome já tinha, perdia-se na abstração. às vezes encontrava-se a braços com a estranha sensação de viver sem passado. E o próprio casamento se lhe afigurava alheio e fantasmagórico.
- Bernardo!
Felizmente que a voz familiar o acordava e lhe dizia que sim.
- Está o almoço na mesa.
Uma natureza levada dos demónios!
Morava nos arrabaldes da cidade, numa pequena aldeia servida por vários meios de condução. Combóios, automotoras, camionetas. Mas ia sempre de táxi. O borborinho metia-lhe medo. Confessava humildemente que o seu pânico começava além da conta de dois: três era já um princípio de terror. A multidão - a catástrofe integral.
A paisagem, aberta, sorria-lhe para dentro do carro. árvores carregadas, milhos embandeirados, trigos em fogo. Mas defendia-se dela, refugiado num canto da almofada. Uma cautela apenas.
- à esquerda, e pare depois no primeiro portão.
Com a sua dupla presença, a mulher veio abrir a porta.
-Senhor Doutor Juiz! - e fez uma grande vénia.
Sorriu, levemente corado, beijou-a, e passou o resto da tarde a pôr a correspondência em ordem.
Não queria alardear o seu triunfo. Ao seu maior amigo, porém, não podia deixar de lhe dizer uma palavra. Escreveu, pois, simplesmente: <Sabes que vou mudar de vida. Fui aos concursos para juiz, e estou número um. Onde serei colocado, é que não faço ideia>.
Depois do jantar, que teve uma solenidade sem relação com nada visível, pois tudo o que se comia e dizia era habitual, fechou-se, como sempre, no escritório, o seu refúgio abstracto, forrado de estantes abarrotadas de livros. Tudo quanto a jurisprudência tinha de bom e de fundamental, estava ali. Códigos, tratados, teses, acórdãos... A história normativa da humanidade em artigos e alíneas. A mulher florira de chitas aquele mundo justiniano, napoleónico, processual e consuetudinário. Mas as flores estampadas desmaiaram. Imutável, só o copo de leite que lhe deixava na pequena mesa do canto para ele beber antes de se ir deitar. A mãe transmitira à nora esse gesto ritual, e, de certa maneira, aquela presença passou a ser uma pura ideia no seu espírito. Contudo, nunca conseguira inteiramente furtar-se à nitidez chocante da brancura do líquido.
Lá dentro as horas bateram, e o rumor doméstico foi-se pouco a pouco apagando. Por fim, a noite maciça caiu, e com ela o silêncio fecundo do estudo.
Responsabilidade, Culpabilidade
e Imputabilidade Penal...
Que trilogia demoniaca logo a abrir a página da revista! Até o desenho das palavras parecia judicativo...
E haveria, de facto, uma responsabilidade criminal, para além da letra dos Códigos? A obrigação, portanto, de remir a ofensa, de cumprir uma pena de expiação?
Se havia, qual era o seu fundamento? O livre-arbítrio?
O raciocínio habitual era este: O homem tem a liberdade de escolher entre duas condutas: a boa e a má. Resolvendo-se pela pior, terá de sofrer as consequências do seu acto. É justo que seja obrigado a reparar os danos causados na ordem moral da sociedade...
Para efeitos práticos, talvez tivesse de ser assim. Simplesmente, passava-se em claro o mais trágico da situação. Na altura de ser julgado, o individuo não teria perdido já a liberdade essencial que se lhe exigia no momento da prática do crime, pressuposto da formação de culpa, fundamento da própria imputação de responsabilidade?
De repente, o pires que cobria o copo de leite escaqueirou-se no chão. E Bernardo, tirado violentamente das suas meditações, pôde ver ainda a sombra dum rato a fugir espavorido.
Ora. ali estava! Agora percebia ele...
Ergueu-se. O transgressor escondera-se entre dois calhamaços de Processo, mas teria de dar contas das suas acções. Dos livros que roera, do sofá que sujara e do prato que jazia no chão em pedaços.
Munido duma lâmpada eléctrica e da pá da braseira, Bernardo avançou. E pouco depois, centrado no foco da luz, tinha o delinquente à sua mercê.
Vivos, inquietos, dois pequeninos olhos mediam o perigo e calculavam as probabilidades de salvação. Nada. Atrás, a parede; dos lados, a carneira dos tratados; em frente, ojuiz.
Condenar... A desgraça é que precisamente quando a sentença vinha, a razão estava sempre do lado do criminoso. todo o ser tem razão.
Descido àpequenez dum rato, a humanidade ficou ali à espera.
E Bernardo apagou a lâmpada.
UM CIGARRO
- Trazes tabaco?-perguntou, mesmo antes de a mulher pousar o cesto.
-Não.
- Então desaparece-me da vista!
- ó homem! - choramingou ela.
- Já te disse!
- Corri tudo, valha-me Deus... Cheguei a ir à Sabrosa...
- Andúvia!
-Come o caldo, ao menos...
-Tu queres conversa, mas eu dou-ta! Não ficaste contente com o ensaio de ontem?...
A pobre da Leonor, a enxugar as lágrimas ao avental, voltou pelo mesmo caminho, e o Leopoldo continuou a destroçar a mata.
Mas que teria ele? Que fúria era aquela? Não é que o machado lhe parecia uma arma nas mãos?! Aí os pinheiros gemiam doutra maneira!
- Não queres? - monologava ele, quando algum resistia mais. - Eu digo-te já!
E o cutelo fendia o ar numa parábola, e vinha enterrar-se na polpa branca do desgraçado.
-E agora?
Cortado pelo cerne, o pau tinha uma pequena ilusão libertadora, hesitava um momento, e acabava por acompanhar a rama na sua queda desamparada e dramática.
-Que raio terei eu?
Há trinta anos que era lenhador. Mas nunca pusera ódio nos golpes. Derrubava, mas com amor.
- Eh, valente! Chama-se a isto tê-los no sítio! Tem paciência...
Passava a mão calosa pela carcódia do bicho, num afago verdadeiro, e dava-lhe então o golpe de misericórdia.
Hoje, porém, qual ternura nem meia ternura!
- Ah, sim?! Estás-te a fazer fino?
E, sem tomar fôlego, atirava-se ás dentadas ao toco do infeliz.
Suava como um odre. E a resina derretida colava-lhe as mãos ao cabo da ferramenta.
-Porca de vida!
No chão, o último vencido acabara de morrer. As palpitações do seu coração, uma a uma, tinham-se apagado, primeiro no tronco, depois nos ramos, por último nas agulhas: jazia finalmente inerte como os outros irmãos, e abraçado a eles.
-Porca de vida!
Ficou-se a olhar a mortandade. Um emaranhado de corpos esguios, mutilados no chão, com as chagas ainda a sangrar.
Guerras, parvoíces, e o resultado era não haver tabaco, nem medida na destruição.
Há dois anos já que era uma razia por toda a parte. Dantes cortava-se um castanheiro, uma faia, um carvalho ou meia-dúzia de pinheiros para o madeiramento da casa de Fulano ou de Sicrano, e mediam-se os paus, calculava-se-lhes a idade e botavam-se abaixo só nas luas, quando a seiva estava de feição. Agora...
Por mais empedernida e dura que se tivesse a alma, não se podia ficar insensível àquela devastação. Tudo servia. O que não dava madeira dava solipas, o que não dava solipas dava toros para as minas, e o resto lenha. Antigamente ficava sempre uma mata duma mata cortada. Agora... Moveu os olhos com lentidão. Nada! Um cemitério. De pé, como um espantalho, apenas um pinheirito aleijado a que pendurara o casaco. Poupara-o para aquele fim, e os irmãos maiores, ao passar na sua fúria, tinham-no desfigurado ainda mais, levando-lhe a crista e bocados da pele.
- Um panorama bonito, não há dúvida!
Cuspiu. Sentia a boca mais grossa do que uma cortiça. E então uma vontade de fumar!
Adiantou-se, olhou friamente a nova vítima, encostou-lhe o machado, e foi beber.
Guardara a garrafa no bolso da véstia, e o vinho quente soube-lhe mal.
- Há dias excomungados!
Voltou e retomou o trabalho. Perdia na empreitada. Oh, se perdia! Muita sorte se conseguisse pagar as despesas na loja. Havia de ser sempre o mesmo desgraçado, o mesmo miserável! Há trinta anos a matar o corpo, e cada vez mais pobre. Olha que roupa! Que calças! Que camisa! Parecia a veiga de Fermentões. Cada polegada, cada remendo.
-Deus o ajude!
Voltou-se rápido como o vento.
- Tem um cigarro que me dê?
- Não gasto.
Quem era, imperturbável, continuou a trotar no burro, até se perder na curva. Depois um grande silêncio e uma grande solidão cobriram tudo.
Ou da aragem, ou do pavor, o pinheiro para que se dirigiu oscilava como um vime.
- Não tremas!
Mas é bom de dizer!... Apenas lhe largou o primeiro golpe, o coitado pôs-se a chorar como uma criança. Era da fúria com que o cortava.
- Muito boa tarde! - ouviu do caminho.
-Fuma?
-Fumava, fumava...
Acabou de liquidar o desgraçado, que se torceu no ar, cambaleou, e se espapaçou no chão como um sapo.
- Não, assim não posso!
Foi vestir o casaco, pôs o machado ao ombro, e meteu pelos montes fora. Fosse o que Deus quisesse!
Atravessou um vale de tojo molar, galgou um cerro de giesta branca, saltou dois muros, passou um ribeiro, e ninguém! Ah! mas quem porfia mata caça!
Não era dos sítios. Judeu errante, corria o país à procura de serviço. Chegava a uma terra, arranjava uma empreitada, alugava um cortelho, metia lá a mulher, e começava a faina. Por isso não conhecia ninguém.
Uma povoação ao longe fumegava. Seria Francelos ou Samodões?
Apressou o passo, cortou à esquerda e meteu por uma rapada. Talvez do lado de lá do outeiro...
Que doidice! Que penitência aquela!
Realmente, na outra encosta, numa leirinha de milho painço, que parecia uma fita verde no sorrobeco do carqueijo aí, andava alguém. Andava alguém, e fumava! Os olhos ávidos e maravilhados identificaram as ondas azuladas do fumo que saíam da boca do cavador, e se perdiam no azul imenso do céu.
Cautelosa e criminosamente, aproximou-se.
- Ora então muito boas tardes!
- Venha com Deus!
O fumador não se assustou. Ergueu-se de cima da enxada e tirou o chapéu. Nos beiços secos e gretados, a ponta da pirisca a brilhar.
- Vossemecê é homem para me dar um cigarro?
-Sou, sim senhor!
Meteu a mão ao bolso do colete, tirou o maço e estendeu-lho.
- Faça favor!
Depois chegou-lhe lume. Aproximou a cara da cara dele, e o Leopoldo teve a sensação de que lhe chupava o próprio hálito.
Calado, o lenhador sorveu sôfregamente, uma, duas, três vezes até inundar-se de paz. Por fim, saciado, pousou o machado no chão, num gesto de alívio, sentou-se, e agradeceu:
- Não sabe o favor que me fez! Se me nega o cigarro, éramos dois desgraçados!
O outro sorriu levemente, puxou por sua vez uma fumaça, e respondeu, meio envergonhado:
- Eu sei o que isso é. Ontem, também maluco de vicio, quase que enterrei a mulher aqui nesta mesma leira. Se não foge a tempo...
Mas eram agora dois homens pacificados, bons, naturais e fraternos como a paisagem. E nessa mansidão se separaram.
O COBARDE
Quando Paulo chegou, já dois cordões de gente, como duas sebes, vedavam as aberturas da rua transversal para a grande avenida. Policias postados regularmente de tantos em tantos metros, eram como estacas de madeira negra a segurar o silveiredo.
- Não pode passar! - disse um deles, ensacado na sua farda de gala, adornada de cordões e pingentes.
- Mas eu tenho pressa... - gemeu Paulo, num apelo infeliz.
- São ordens.
-E se o cortejo demora? Fico aqui todo o dia?
- Que quer que lhe faça?!
Voltou-se, compôs o dólman, aconchegou com a mão direita a luva branca da mão esquerda, e ficou hirto como um símbolo.
- Arranjei-a bonita!
O desabafo ligava-se pela expressão e pelo conteúdo a uma realidade doméstica e comezinha. E o guarda nem o ouviu. Uma transcendência maior submergira o tempo, e fizera daquela hora o vazio incomensurável da História, o vácuo deixado pela realidade à passagem triunfal do acontecimento.
Paulo pousou então a mala. Comprometera o policia na sua acção. Pelo menos, o permanecer estacionado ali não era já vontade sua. Parara à ordem da autoridade. Se trazia e sentia um destino, fora em parte desligado do seu peso. Podia, pois, completar o acaso, e libertar-se por momentos de toda a responsabilidade.
E como era calmante viver assim aliviado! Se lhe fosse permitida a passagem, teria de ficar por si, ostensivamente, voluntâriamente, de mãos atadas ao pesadelo, sem olhos para ver o interesse de todos, a curiosidade contagiosa da multidão, que, ligada e magnetizada como numa sessão espírita, era só uma fé e um desejo.
As próprias bandeiras, vistas da sedativa disponibilidade em que ficara, mostravam outra sedução colorida. Podia verificar, afinal de contas, que cada uma, independentemente da pátria que simbolizava, tinha uma cor gratuita, sem qualquer significação, uma cor agradável aos olhos - verde, amarela, azul-, inteiramente alheia a conceitos figurativos.
- O cavalheiro faça favor de não empurrar!
- Perdão, eu não empurrei! O senhor está enganado.
De vez em quando a sebe abanava num frémito vivo de indisciplina. E como ninguém queria a responsabilidade desse movimento espontâneo, cada um atribuia ao vizinho a quebra da inércia.
A mala é que se não mexia do lugar. Era como uma entidade absorta, esquecida do seu próprio poder.
Uma onda de entusiasmo que nascera lá longe, subia pela avenida e ia contagiando o povo.
Curiosas, as reacções colectivas! A indeterminação de cada individuo na sua vida intima, e a certeza maciça dos aglomerados, na sua vida gregária! Não estaria aí, nessa contradição, a prova de que as massas actuavam apenas sentimentalmente, arrastadas por forças estranhas a toda a razão crítica e reflectida?
Os primeiros arautos do cortejo passavam já diante do olhos ávidos da multidão. Carros de assalto, em catadura de guerra, pardos, frios e mecânicos. Soldados bisonhos, de arma aperrada, vinham dentro, sinistros.
História. Mais tarde, num manual, ler-se-ia:
"No dia tantos de tal do ano tal, chegou de visita... O significado político não foi inteiramente conseguido, porque..."
Uma fotografia, ao lado, mostraria um aspecto das manifestações. Uma fotografia estática, desfocada, com figuras ridículas, por causa dos bigodes, dos colarinhos e das saias. De toda a emoção real - berros, desmaios, vivas e aplausos - nada! A alma dos com parsas da História não entra na História. Diz-se: <O rei era um homem fanático, beato, profundamente cruel. Asssistia pessoalmente aos autos de fé. Num deles, foram queimados dez condenados.
O rei presenciava a matança duma bancada feita propositadamente... " E nem uma palavra a respeito dos gritos e das dores dos supliciados!
Sim, era aquele um momento histórico. E só havia uma maneira de sair dele: opor História à História.
Vinha agora a passar, dentro de solenes automóveis, o corpo diplomático. Senhores de fardas vistosas, com chapéus de plumas e grandes fitas ao peito. O embaixador de... O embaixador de... O embaixador de...
A multidão, como um charco que coaxa só para encher o sileêncio, coaxava. Os policias, autómatos, faziam continência.
A mala, no chão, aguardava.
- É ele, agora!
Não era ainda. O tempo da História é diferente do tempo das emoções. Nem sequer não paralelos. Nem da mesma natureza. As horas, os minutos e os segundos de toda aquela impaciência e curiosidade seriam reduzidos a uma eternidade global, sem duração e sem espaço. A fotografia do manual teria apenas esta legenda: A passagem do cortejo. E o tirano, morta já toda a multidão que o aplaudira, morto ele próprio, continuaria a passar, sempre no mesmo sitio, intemporal e solene. Como se submerge no conceito de rio a realidade de cada arroio, assim ficaria dos trâmites do acontecimento o acontecimento em si.
A abdicação do circunstancial ao essencial. .
Mas voltando à questão. Portanto, uma maneira apenas de reagir: opor História à História. E então, no manual, uma outra estampa invalidaria a primeira, com a sua legenda neutralizante: "O Atentado".
Um soldado de espingarda a tiracolo arredou a multidão para desviar da Avenida a sua moto avariada.
E Paulo ergueu do chão a mala esquecida.
- Se calhar é falta de gasolina! - disse um garoto.
- Gasolina tem. Deve ser do carburador. - A bota ferrada calcava em vão no acelerador. O motor nem se mexia.
-Já não pega.
- E agora?- perguntou o rapazito.
- Agora, que se governem! Vou ver se a levo à mão para o quartel.
Voltou as costas ao momento culminante que se aproximava, e partiu.
Opor História à História, ou simplesmente não colaborar na História?
O problema não admitia soluções abstractas. Apenas concretamente era possível lidar com actos concretos.
- Aí vem ele!
Sorridente, um rosto redondo que, enigmáticamente, não tinha nada que ver com a angústia desmedida que Paulo sentia, aproximou-se. Uma salva de palmas irrompeu de todos os lados. A sebe, percorrida pela mesma corrente, abanava toda.
Opor, ou...?
Longe, num dos braços da balança cujo fiel era a sua consciência, Paulo sentiu o peso de uma súbita renúncia. Na mão dormente a eternidade cedia o lugar ao transitório. Recusava-se à crispação imortal que sonhara. Não.
O desespero não explodia.
- Já pode passar à vontade - disse o policia, ao veê-lo absorto no meio da rua.
Mas ir aonde, a que destino? O soldado da moto encravada empurrava pela cidade fora a sua justificação. A multidão, de pernas para o ar, lá ficara impressa no negativo de celulóide. E ele?
- Que é que o senhor tem?
-Nada.
-Então, siga! Siga!...
Como era possível que ficasse tão absurdo no meio da vida, só por não ter feito um pequeno gesto ?! No manual não caberia sequer a solidão que sentia agora. Há instantes ainda que o seu nome, a sua revolta, a sua coragem tinham no livro uma folha branca e vazia, à espera. <O Terrorista"! Seguida ou não duma comprida legenda, a imagem que o representasse compartilharia pelos séculos dos séculos do convívio apaixonado da humanidade. E eis que de repente tudo mudara! Anónimo e mortal, só lhe restava a auto destruição na própria amargura.
Dentro da mala já não era um sonho vivo que aguardava: era o seu coração morto que jazia.
DESENCANTO
Depois de muito azoeirar os ouvidos da mãe, de o pai falar ao Seco, que foi mordomo nesse ano, e de a mulher do Seco, que era zeladora, ter uma longa conferência com o senhor Prior, o Rodrigo conseguiu realizar o seu grande sonho: ir de S. José na festa! Ficara bem no exame da quarta, ali com tudo na ponta da língua - é isto, pesa tanto, divide-se pelo quociente -, mas o coração pedia-lhe um outro triunfo: atravessar o povo ao lado da Lidia, que ia de Virgem Maria. O lugar, porém, era disputado. Todos o queriam. E a irmã, sem atinar com as razões daquela obstinação, consolava-o:
- Se não fores duma coisa, vais doutra, que mais faz?!
-Não quero!
- E de S. João Baptista?
- Também não!
Só lhe convinha o papel do santo carpinteiro, e moía o bicho do ouvido da família a falar naquilo.
Mas tanto batalhou, tanto fez, que levou a sua avante. Indecisa toda a semana, a resposta veio finalmente favorável.
- Pronto, sempre vais! Está satisfeita a tua vontade!
Na manhã seguinte, quando se viu de sandálias, de túnica, de barbas, de resplendor e com uma açucena na mão, nem queria acreditar. Parecia-lhe ainda um sonho.
Só na igreja, e mesmo à hora da procissão, é que se encontrou com a Lidia. Os rapazes foram vestidos em casa da Desidéria, e as raparigas na loja da Dona Clara.
Vinha linda! Trazia um manto azul, de seda bordada, um vestido branco, todo de rendas, muito cingido ao corpo, uma coroa de prata com pedras de todas as cores, e dos olhos verdes saía-lhe um brilho celeste.
Dois anos mais velha do que ele, tinha já seios e jeitos de mulher. Mas como ele era espigadote, não se conhecia a diferença.
- O Menino? - perguntou ela, quase sem o olhar.
- Sei lá do Menino!
Tonto de felicidade, esquecera-se completamente de que havia mais um na Sagrada Família. E reagiu desabridamente àquela intromissão com que não contava.
A Lidia, porém, senhora do seu papel, manteve a dignidade divina.
-Vê como falas!
Olhou-a de esguelha e não respondeu logo. Sufocava-o a mesma onda de calor que o inundava quando a via passar para a fonte de caneco à cabeça. Não sentia era a mesma alegria por dentro.
- Não é a mim que me pertence... - resmungou por fim, a varrer a sua testada e a tentar uma reconciliação.
- Ninguém disse que te pertencia! Só perguntei.
Falava com uma firmeza que o dilacerava. E só lhe apetecia chorar.
Foi a Camila que salvou a situação, rompendo pela igreja fora com o filho ao colo, encaracolado, de barras de arminho no vestido.
- Sempre agarrei uma suadela! Esqueceram-se dos sapatos, e tive de ir a Anta. Lá me arranjaram estes, mas ficam-lhe grandes. Até lhes meti algodão...
Aquelas trivialidades da Camila eram ao mesmo tempo um alivio e um balde de água fria.
- Se não fosse ter feito a promessa quando teve o garotilho, não o deixava ir!
PÔ-lo entre eles, que já estavam encorporados na procissão, e continuou a falar pelos cotovelos. O seu fraco era a lingua.
- ó mulher, nem aqui?!
A reprimenda do sacristão obrigou-a a calar-se e a desaparecer. E os três ficaram ali quietos, como bonecos à espera de corda.
Mas quase logo o sino começou a tocar, e o Garrido levantou o pendão.
- Vamos lá! E agora, juizinho! Não falem, não adiantem nem atrasem o passo, não larguem a mão da criança, e vão sempre com dignidade!
Depois destas recomendações solenes, a procissão começou a andar. à frente, a grande bandeira de seda vermelha com o Sagrado Coração de Jesus bordado a ouro; a seguir a cruz de prata das ladainhas; depois os profetas, depois a Anunciação, e depois eles. Para trás vinha ainda muita coisa. Anjos, andores, o pálio e a música. Mas, prâticamente, para o Rodrigo o cortejo acabava ali. Para ele, aquilo
não era precisamente a procissão da Senhora da Ouvida: era a sua possibilidade de ir ao lado da Lídia, solenemente, vestido de S. José. Não via sequer a povoação, nem o mar de povo que dum lado e doutro da estrada murava o cortejo divino. Caminhava sonâmbulo, esquecido de tudo, apenas com um arranhãozito lá dentro...
-Rodrigo!
Foi a irmã que o chamou, a tirá-lo daquela ausência.
Olhou-a como se olha alguém da eternidade, e continuou.
- Vais muito prosa!
Decididamente, queriam daná-lo. Mas não ligava.
Mesmo no meio do largo, ao passar o rego do tanque, o pequeno tropeçou. Com o safanão, a coroa da Lídia ia vindo abaixo, e ele próprio quase que caiu.
Recompôs a sua dignidade com a maior calma que pôde. O bom, o bom, seria não levarem o empecilho da criança entre eles. Irem os dois de mãos dadas, seguros, com sandálias à medida dos pés. Infelizmente, pertencia levar o Menino. Estava-lhe a dar cabo da paciência, mas era o fruto das entranhas sagradas da Virgem Maria, concebido por obra e graça do divino Espírito Santo. Embora não fosse tão bom em catecismo como em sistema métrico, sabia no entanto o fundamental. E tinha de levar o filho da Camila pela mão.
- Limpai-lhe o monco, ao menos!
Da desbocada da Carolina só saíam daquelas. Reparou, e na verdade o rapaz levava duas torcidas dependuradas do nariz.
Começava-lhe a referver o sangue por dentro. Tanta esperança naquele dia, tanto empenho naquele lugar, e o raio do miúdo a estragar tudo!
- Assoa-o!
Muito tesa, como se tivesse uma estaca no corpo, a LI dia nem se dignou olhá-lo. Deu apenas a ordem.
Ia-lhe a responder ao pé da letra, já perdido da cabeça, mas lembrou-se que ela não se podia baixar por causa da coroa. Faria ele o serviço.
Por azar, não tinha lenço, ou, se o tinha, estava no bolso das calças, debaixo da túnica, e só se levantasse as saias, como uma mulher, para o tirar. Ainda pensou em limpá-lo com os dedos... Mas ia de S. José...
Um sol amarelo, de fogueira, assava agora a procissão, que se movia como uma lesma preguiçosa.
- Parai!
à frente, o pendão desceu, e o Garrido, com um tabaqueiro, pôs-se a limpar a testa. A mãe dum profeta
chegou-lhe um copo de água.
Antes de se meter pela serra acima, a procissão tomava fôlego. Saía da igreja matriz de Moira-Morta, atravessava o povo e ia recolher à Senhora da Ouvida, já no termo do Mesio, meia légua bem medida de caminho. Depois daquele descanso feito à porta do Inácio, viam-na apenas as fragas e as urzes do monte. A vaidade dos que só se queriam mostrar acabava ali.
O sonho do Rodrigo, porém, abrangera o percurso todo, e ainda estava com o mesmo enlevo apesar das contrariedades sobrevindas. E quando novamente começou a andar, não perdeu a compostura.
Nisto, o Menino começou a berrar. Ou porque estava cansado, ou porque não via casas e tinha medo, abriu num alarido danado.
- Que tem o pequeno? - quis saber a zeladora.
- É parvo!.. . - resmungou ele.
Mas a Lidia, em vez de concordar, ainda o atanazou mais.
- Se pegasses nele ao colo é que fazias bem!
- Ao colo?! Está bem livre!...
E teve de pegar mesmo. Além de escancarar as goelas como um cabrito, o cachopo não queria andar. E para não ter a procissão encrencada por sua causa, agarrou nele de repelão.
- Vê se tens modos!
- Olha que eu atiro com ele ao chão!
- Atreve-te!
No Caldeirão, já o pequeno lhe dormia ao ombro, coberto com a fralda da túnica, por causa do sol. Ao lado, agora nem sequer ligada a ele através do elo que o mortificava, a Lídia pairava acima das misérias deste mundo. E uma raiva que lhe secava a boca e lhe gretava os beiços ia invadindo o rapaz.
Na Cruz da Bandeira, à vista da ermida, a procissão recompôs a sua fisionomia solene para entrar na capela. Já havia gente à espera, não só do povo como das terras vizinhas.
Acordou o menino, pó-lo no chão, novamente entre eles. A Lídia apressou-se a dar-lhe a mão.
Só então reparou que uma grande mancha de suor marcava o sítio da túnica onde o pequeno dormira.
Mas já nem reagiu. Caminhou como pôde até ao fim, esperou pela ordem de debandar, foi à sacristia despir-se, entregou o saial à zeladora, e sem dizer água-vai desandou pela serra abaixo a rilhar os dentes de desespero.
As canas de uma girândola caíam-lhe ao lado a peneirar-se, e nem para elas olhava.
O ABSOLUTO
Fazia Pedro juiz da sua causa, mas em nome de quê?
- Você gosta dela?
- Gosto. Isto é, parece-me que gosto.
-O amor... Compreende...
- Bem sei. Mas em mim não há absolutos. Ou antes: o absoluto que eu procuro não é humano.
- Ela é humana!
- Muito humana, até. E talvez por isso...
- É difícil ajudar uma pessoa que vive apenas da força negativa das coisas...
Não eram amigos, nem o poderiam ser, porque não acreditavam um no outro. E, contudo, Carlos nunca se abrira com ninguém daquela maneira, e Pedro ouvia-o com infinita compreensão.
- Tal e qual! Passo meses à espera duma carta dela, que abra com duas palavras que nos unam. E quando as leio - "Querido Carlos" - é como se furassem uma câmara de ar. Fico vazio. O "Carlos" anodino das outras cartas
é que me parece então fundo e significativo. Nunca! Nunca poderei ter paz junto dela, porque é sempre o reverso de cada gesto que eu desejo. E a maior desgraça é que lho digo!
-E ela?
- Chora.
à medida que o outro ia passeando, Pedro acompanhava-o com os olhos, do seu lugar, como uma consciência que deambulasse.
- Você não procura o amor, procura Deus. Entregue-se de vez.
- Não posso. Ninguém se entrega a nada. Nem a Deus! A própria ideia dele é um sofisma. Acredita-se na sua omnipotência, para que ela seja uma salvaguarda da nossa permanência...
- Mas o que o liga a ela, afinal? Porque a verdade é que você não se liberta!... E sofre, que é o pior.
Uma amargura seca, encarquilhada, torceu ainda mais o rosto magro e miúdo de Carlos. E o seu corpo, como picado por um cilício, pareceu mais leve ainda a caminhar na sala.
- Talvez forças de natureza sexual... É o hábito, já passado à categoria de valor...
- E não seria possível construir sobre essa razão natural e essa acostumação dignificada uma harmonia?
- Não, porque ambos sabemos que só o total nos poderia satisfazer.
- Contudo, a impressão que tenho deste seu caso é que lhe há-de ser difícil afogar a obsessão. Exteriormente, o móbil da sua vida é só esse...
O outro teve um arranque, como se fosse acelerado por um pedal.
- Não! Pensando bem, o meu verdadeiro amor foi outro. Agora, à distância, quando ela já está casada e mãe de filhos, impossível, portanto, é que eu descobri isso. Sempre a mesma coisa: É preciso que haja um anátema de impossibilidade no objecto do meu desejo...
Pedro olhou fixamente aquele romantismo de adolescente numa razão adulta. O tempo é que seria ali o grande remédio. Só ele poderia amadurecer o fruto por inteiro, e fazer de Carlos um homem completo. De pouco ou nada valia mostrar-lhe a praia distante que teria de ser conquistada a braçadas instintivas.
E deixou o náufrago continuar.
- Tenho pensado j'á se não será a minha certeza profunda de que não poderei casar com esta rapariga a causa do meu apego e da minha insistência.
Pedro encolheu os ombros com desânimo. A palavra que lhe ocorreu era cruel de mais. Antes um lavar de mãos, como Pilatos.
- Sou doido, não é verdade?-gemeu Carlos, parando diante da mesa e apoiando-se sobre as mãos.
- Somos todos...
- Somos. Mas ninguém tem a coragem de o confessar. Quando vinha para aqui, entrei na Penitenciária para comprar uma estante. E apenas saí daquele mundo morto cercado de muros, e vi cá fora toda a gente a passar alheia
à realidade tangi vel que eu acabava de observar, estremeci. Como era possível existir, ao lado duma monstruosidade assim?
- O homem tem grandes possibilidades de diversão... De diversão e de recuperação. Nenhum mineiro desce ao fundo dum poço sem primeiro montar a nora que o há-de trazer ao de cima...
-Há gente que se atira mesmo, sem pensar nisso...
- Pouca.
Embora penosa, a conversa era agora mais fácil. O concreto e pessoal cedera lugar ao abstracto.
Carlos, porém, voltou à carga.
- É pena que a gente não possa escolher o tempo da sua vida
E Pedro desviou a trovoada.
- Depende. Em relação ao futuro, é realmente pena. Em relação ao passado, não. Seria renunciar ao inédito. Optar depois da experiência. E a vida, a ter algum interesse, só pode ter este: cada minuto ser uma incógnita.
A tarde, límpida, e tépida, entrava pela janela. Lá fora, o rio, amparado por grandes maciços verdes, corria sem cessar.
- A inutilidade de tudo! - gemeu Carlos, como a desprender-se da última ilusão.
-Conforme... - respondeu Pedro, com brandura.
De repente, como se espetasse uma faca no próprio coração, Carlos escancarou a alma:
- Sabe que já uma noite dormimos juntos?
- Não. Não sabia.
- Dormimos ...
Ficaram ambos à espera, igualmente surpreendidos da violência da confissão. Depois, no rosto de Pedro começou a nascer uma onda de esperança.
- O caso, então, muda de figura!
- Mas não nos tocámos.
Pedro acendeu novo cigarro. Decididamente que não conseguia sair daquela rede de complexos. Cautelosamente, arriscou:
- E haveria necessidade dessa prova?
- Havia.
Pedro teve uma sensação estranha, de terror. Qualquer coisa como se visse alguém a castrar a natureza. E respondeu, num protesto:
- As demonstrações negativas, nesse capitulo, não costumam dar o resultado que se espera. A não ser que fosse uma inibição.
- Foi um acto pensado e voluntário.
Impaciente, Pedro levou o protesto mais adiante:
- E não seria melhor que o pensamento e a vontade se arredassem nessa ocasião por alguns momentos? Ou não é por uma hora dessas, normal e livre, que esperam aqueles que se amam?
- Não sei.
Melancolicamente, então, deu a sentença:
- É! E perderam ambos essa hora, que, infelizmente, nunca mais encontrarão...
- Já sabíamos.
Cheio de pasmo e de ternura, Pedro olhou aquele desespero indigente e frio, onde a sombra da impotência engrossava como num quadrante, e tentou pôr um sinal positivo na soma negativa:
- Mas fica-lhes uma conquista verdadeira. Tocaram ambos, pelo menos, o tal absoluto que tanto desejavam. O absurdo é, como sabem, uma das faces dele...
O PEDINTE
Ninguém conhece Pitões. Quem a escondeu, escondeu-a bem, fora de caminho, numa fenda da serra do Espinheiro, longe de tudo e de todos. Nunca lá foi um padre, um médico, um meirinho, um carteiro - um homem que representasse Deus ou o Diabo. E por isto: porque nos dias da semana toda a gente tem mais que fazer do que ir pelos montes a cabo à procura do cão que manqueja, e aos domingos Pitões desaparece. Cedo, ainda nem o ribeiro acordou, erguem-se todos, velhos, novos e meninos, e vão pedir. Uns a mancar, outros cegos, outros aleijados, espalham-se pelo concelho de Bastos, e só pela noite adiante regressam a casa, ajoujados dos precisos para a próxima semana.
- Tu de onde és, pequeno?
- De muito longe, meu senhor. Dos Algarves.
- E como vieste parar aqui, dessa idade?
-A pedir...
Nenhum denuncia a terra onde nasceu. Pitões é um segredo físico e metafísico. No intimo reconhecem todos que se degradam a fazer aquilo. Mas a vida é a vida. Não há terra sem a sua indústria. RoQbar é muito pior.
E da mesma maneira que os de Canelas vendem umas arrecadas nem que seja à filha do rei, os de Pitões tiram um tostãozinho do bolso do maior avarento. Mestres no seu oficio.
- Deixe a sua esmolinha a um desgraçadinho que o não pode ganhar! ...
E quase sempre só esta simples lamúria, repetida horas a fio, monocórdica, automática, chega para comover os corações. Mas quando as almas, endurecidas, se não dobram, então Pitões muda de táctica. Bate de porta em porta inflexivelmente, inexorâvelmente, forçando a intimidade de cada um, ou deita-se pura e simplesmente no meio da rua, haja poeira ou lama, aus torcegões. Ninguém se chega ao pé, de pavor. O som cavo da moeda a cair ao lado é que vai povoando a solidão.
Ora foi duma epilepsia assim que o Bráulio viu na feira de Reguengos a Filomena. Sujo, esfarrapado e torcido, com barba de três semanas, já ia em mais de trinta mil réis logo de manhã.
-Tão novo e com um mal destes!
Eram velhas comadres ou solteironas encardidas da serra que o lamentavam. A outro! E de repente...
Vinha entre o pai e a mãe, muito direita, muito loira, muito desenxovalhada. E os olhos negros e fundos do rapaz esbugalharam-se-lhe nas covas. Engraçado é que também ela reparou nele, atraída por aquele brilho! Reparou e voltou pudicamente a cara. O diabo do homem!
Por honra da firma, teve de se aguentar no seu posto, à sombra do plátano que lhe cobria
o segredo. Só à noite, na escuridão, quando os caminhos estivessem livres, poderia erguer-se rijo e lampeiro, ser válido, e regressar a Pitões. Por muito que lhe ardesse o coração, não havia remédio senão deixá-la feirar a seu gosto, longe da vigilância do ciúme que já sentia, até que à tardinha voltasse a passar-lhe perto.
Eram exactamente cinco horas da tarde, acabadas de bater na torre, assomou ela à curva. Pareceu-lhe que o olhava de longe, cautelosamente. Mas talvez fosse ilusão. Ao passar-lhe mesmo diante, nem o mais leve sinal de que pensava nele.
Calado, quieto, humilhado na sua mentira, viu-a seguir até desaparecer na estrada. E mal a perdeu de vista sentiu que tinha sarna para se coçar. De onde seria?
Só na feira seguinte, daí a um mês, a tornou a ver, igualzinha, corada e fresca como uma talhada de melancia. E vejam como elas se arranjam: ao chegar mesmo em frente, deitou-lhe o rabo do olho!
-Rais me partam se não dou em maluco!
Mas aguentou-se e deixou-a ir. Largos dias têm cem anos.
Foi o destino que o ajudou. Nem de propósito, daí a nada armou-se uma trovoada tamanha que o céu parecia vir abaixo de coriscos e de chuva. Num ai a feira ficou desfeita. E quando a rapariga, encharcada, regressava a casa a abrir caminho naquele mar de bátegas e de clarões, ergueu-se e seguiu-a de longe, a mancar, com medo de ser visto. Uma pequena precaução desnecessária, porque ninguém pensava senão no aguaceiro e nas faiscas.
Era do Lodoeiro, e morava no cimo do povo. Verificou isto, e desandou.
Entrou em Pitões já tarde, quando todos dormiam. Comeu o caldo requentado, bebeu uma pinga e deitou-se. Mas não conseguiu dormir, com a estampa da moça a reluzir na parede.
Não podia abrir o seu coração com ninguém. Uma paixão fora de Pitões era a denúncia, a catástrofe. Nunca ninguém arranjara mulher noutro sitio.
Levou toda a semana a pensar no caso, a matutar, a debater-se com a consciência. E como não queria negar a terra, nem trair o seu amor, no domingo seguinte vestiu a melhor roupa que tinha e apareceu aos pais.
- Vais pedir nessa figura?
- Não senhor.
- Então que maluquice foi essa?
- Vou-me embora.
O pai, que estava a avivar a chaga duma variz na perna esquerda, parou, olhou-o, mas não disse nada. A mãe é que disse:
- O segredo é a alma do negócio, não sei se sabes...
- Sei.
- Então, boa viagem!
Pouca ternura, como se vê. Mas em Pitões era assim.
Dias depois, barbeado, de gravata e de corrente ao peito, aparecia no Lodoeiro. Negociava em cereais.
Apreçou milho aqui, feijão acolá, perguntou por gravanço, e acabou por bater à porta dos pais da rapariga.
Estava só ela em casa. Levou-o à tulha, enterrou a mão, ergueu-a, e deixou cair o grão em cascata.
- São e graúdo!
-E o preço?
Achou caro, regateou, mas não fez negócio. Partiu, só com as boas graças da moça apalavradas.
Na feira seguinte de Reguengos fez-se encontrado com ela. Pitões lá estava à entrada do povo, a gemer, a clamar, a pedir, cada um com a sua mazela falsa, com o seu olho vivo por detrás da remela. Quando ele passou, pediram-lhe como a um estranho. Ele é que não deu esmola.
- Então já vendeu o gravanço?
-Ainda não.
- Vê que eu tinha razão! Era muito caro...
O pai estava a trocar uma junta de bois, a mãe a escolher leitões, e ela comprava rendas a uma tendeira.
- Vai-se casar?
- Não tenho quem me queira...
-Isso diz a menina... Dum sei eu...
- Só se for algum mudo que me não possa falar...
- Quem é mexe bem a língua...
Na azáfama, ninguém os via, encandeados, alheios a tudo, a dizerem tolices no meio da multidão. A feira parecia-lhes um jardim de flores vivas, perfumadas e coniventes.
- Pois quem lhe compra o gravanço é cá o rapaz!
Não comprou. Aproveitou o pretexto para nova visita, para uma hora de conversa fiada a sós com ela no celeiro, mas regressou de mãos vazias.
- Começo a desconfiar do negócio.. .-disse o pai.-Donde é ele?
- Do Minho.
- Veio de longe comprar gravanços! - resmungou a mãe com ironia.
- Trata da vida...
E tratava tão bem, que daí a pouco tempo tinha a cachopa pelo beiço e os pais pelos ajustes.
- Foi dito e feito, mulher! - espantava-se a Clotilde, casamenteira encartada, com laivos de despeito na voz. - Que é jeitoso, não há dúvida. Mas tu conhece-lo bem? Sabes quem é?
-É um homem!
E era. No dia seguinte ao casamento, não cavava, comia a terra!
- Não te mates... Olha que tens muito tempo de moer o corpo!
Gostava dele eternamente novo, como o tivera na igreja, a seu lado. Gostava que a lua de mel se prolongasse indefinidamente, sem cansaços. Gostava que conservasse cada vez mais viva aquela luz de juventude que tinha nos olhos. Porque era nos olhos dele que residia o seu amor.
- Temos que fazer pela vida...
- A vida que espere! Amanhã vamos à feira...
- Quantos são amanhã?
-Vinte e dois.
Como num sonho, as semanas corriam. Ainda ela estava debruçada sobre o saboroso banquete da sua felicidade, e já um mês passara!
Lá estavam os pedintes de sempre: uma mãe com uma criança embrulhada em farrapos, um cego, um paralítico dentro dum cesto. Junto do plátano, um lugar vazio.
- Costumava estar ali um rapaz novo que me fazia tanta impressão... Mas agora não tem vindo.
Olhou-a muito nos olhos, e teve um sorriso maroto.
- De que te ris ? - quis saber ela, a corar.
- De nada... - E pegou-lhe no braço, apertando-a com amor.
AREIA HUMANA
No vasto descampado cruzavam-se os rastos dos mais desencontrados destinos. Apesar da sua arborização incipiente, as dunas davam já guarida a uma fauna que lutava, ou para devorar, ou para não ser devorada. E de manhã, o sol, que se erguia por detrás das serras que a Leste muravam o cenário, mostrava impressos na grande tela de areia os sinais do que fora durante a noite esse combate. Da cova onde morava o agressor saíam pegadas carniceiras. E lá seguiam, primeiro indecisas, cautelosas, depois ligeiras e decididas. Iam, perdiam-se entre os maciços, demoravam-se, e regressavam por fim, a partir dum ponto onde um tufo de penas ou um manhuço de pãos testemunhavam o sitio duma emboscada e duma morte. Aí parava o caminho da vitima. O seu calvário acabara.
Outras vezes, porém, havia marcas dum salto infrutífero, seguido de inúteis e porfiadas perseguições. O agredido encontrara destreza para se desviar do golpe e seguir a sua via sacra.
Dono de tudo o que fosse vida a pulsar na estéril largueza que fecundava palmo a palmo, o engenheiro Venâncio parava a contemplar o vaivém daquelas nocturnas aventuras. E recompunha, só pelo testemunho leve da passagem dos figurantes pelo palco, a configuração de cada vitória ou derrota.
- Hoje foi uma lebre. Devia andar doente, porque se defendeu mal. São, de resto, os animais estropiados que pagam as favas. Por isso mesmo é que se discute a utilidade das batidas aos lobos e às raposas. É conveniente que haja quem se encarregue de eliminar das espécies os trôpegos e os inválidos...
-A lei dos fortes!...
-Éa vida.
Enquanto o marido mastigava o bife de vitela, Clarisse observava-o com atenção. O tipo acabado do triunfador. Têmporas apertadas e duras, o nariz a nascer das arcadas como um tronco, o queixo curto e quadrado.
- O pior é se os fracos um dia se revoltam...
-Como?
Encheu a boca de arroz, e ficou à espera.
- A maneira não importa. Desde que se revoltem ...
- Estás enganada. Não basta querer; é preciso poder, também.
Contente da sua força, continuou a comer e a beber como um homem que era - sereno, confiado, desatento à inútil argumentação que pudesse vir.
E Clarisse calou-se. O fosso que a separava do marido desde o primeiro dia alargara-se de tal maneira que, sentada na sua frente, era como se toda a distância do mundo estivesse agora entre eles. Os oito anos de intimidade que tinham vivido pareceram-lhe oito séculos de humilhação. Oito séculos de palavras vazias, de gestos culpados, de acções degradantes. Noites dormidas juntos, dias passados juntos, o mesmo pão e o mesmo vinho partilhados num convívio para que não encontrava sentido. Como fora possível que confundisse paixão com enleamento, dedicação com renúncia!? Nos livros todas as heroinas amavam; no colégio todas as companheiras amavam; porque não amaria ela também aquele rapaz atrevido que lhe rondava a janela? Pagara caro o seu erro! O homem a quem dera as ilusões da mocidade, roubara-lhas, simplesmente.
- Não podemos deixar-nos arrastar por sentimentalismos - continuou ele. - Vence quem tem de vencer. O mais apto, o mais tenaz, o melhor.
- O melhor
- Sob o ponto de vista pragmático, o melhor.
- E sob outro ponto de vista qualquer?...
- Não interessa. Querem-se factos. Além de que são os próprios fracos que se submetem. Resignam-se, evidentemente. Que hão-de eles fazer, senão resignar-se!
- esperam talvez a sua hora...
- Esperam nada, coitados! E se esperam... Mas isto são divagações inúteis. Não te esqueças de mandar fazer o jantar para tarde, porque não sei a que horas venho. Quero acabar hoje de vedar os viveiros do Mezio. Os homens têm de ter paciência, mas preciso daquilo pronto.
- Muito bem.
-Até logo!
-Ouve...
-O que é?
-Nada.
- Então, adeus! - e veio beijá-la.
Viu-o atravessar a sala e desaparecer no corredor. No rosto feliz nem a mais pequena suspeita do desespero em que a deixava.
Como as coisas se encadeavam no mundo! Cedera a primeira vez, e nunca mais conseguira encontrar uma hora de paz! Atrás da inércia, o movimento; atrás do movimento, a significação; atrás da significação, a amargura... E eis que de repente o filme se punha a andar ao contrário, e cada imagem a recolher desiludida ao seu negativo.
- Posso levantar a mesa, minha senhora? - perguntou a criada.
- Podes.
Ergueu-se e chegou à janela. Como um jardim tenro e alegre, o pinhal ondulava. A epopeia do marido!
- Vou aceitar o posto do Praial - começara ele, logo depois do casamento.
- Quê? Queres desterrar-nos?!
- Quero realizar uma obra que seja a justificação da minha vida. Povoar em cinquenta anos aquelas léguas de desilusão.
Olhara-o desamparada.
- Parece que não ficaste entusiasmada?
-Não.
- Mas vais ver que gostas. É uma grande oportunidade que eu tenho.
Ele!
- A minha opinião... - e calara-se.
- A principio há-de-te custar, evidentemente. Não digo que não. Mas acostumas-te.
Estava já decidido. E daí a pouco começavam a espreitar por detrás de cada dobra de areia folhas tenazes como a vontade do silvicultor.
- Tinha ou não tinha razão? Ergo aqui uma floresta! É como quem pinta de verde um pesadelo. O grande problema do homem é reencontrar a terra. Refazê-la da sua degradação. Recriá-la.
Ela, Clarisse, é que não seria mais recuperável. Escárnio do poder fecundante do marido, ali estava, maninha como um deserto. Na triste aridez da sua alma movediça e salgada, a força semeadora não fizera crescer nem sequer estormo, quanto mais pinheiros! Agradecido e rendido, o vasto areal, como cera mole, deixava até que lhe gravassem na carne os arabescos de tragédias alheias. Seria a solidão de uma pobre mulher o espelho cruel da íntima e agreste insubmissão.
- Um portador trouxe este ramo, de mando do Sr. Engenheiro - disse a criada.
Eram mimosas dealbatas, com um riso amarelo de conciliação. Mas vinham tarde de mais.
- Põe aí.
-Encho o jarro de água?
- Não vale a pena.
Cortadas do seu pé, era melhor que secassem sem a ilusão passageira duma seiva postiça.
Sem perceber o capricho da patroa, a criada voltou à cozinha. E Clarisse, quase maquinalmente, dirigiu-se à porta da rua, abriu-a e pôs-se a caminhar.
Era noite fechada quando o engenheiro regressou. Contente do seu novo triunfo, pois conseguira que os trabalhadores, na febre do entusiasmo que lhes comunicara, nem dessem pelo serão, parecia uma lufada de optimismo a visitar um sepulcro.
- Está isto tudo às escuras?! A senhora?
- Não sei. Talvez fosse passear...
- Belo passeio, a estas horas!
De manhã, depois de uma noite de espera em que pela primeira vez não foi visitado pelo sono justo e opaco do costume, veio examinar as redondezas da casa.
Misturado com outros, o rasto de Clarisse seguia pela areia fora, certo, obstinado, incansável. E ele desistiu de o acompanhar.
- Volta. Não vale a pena perder tempo.
Fiava-se na sua experiência. Quando não eram devorados, todos os bichos regressavam ao ninho.
Mas a mulher não voltou. A marca da sua fuga, nítida durante toda a manhã, foi-se apagando pela tarde adiante. Ao pôr do sol, o vento do mar não deixara o mais leve sinal por onde pudesse ir procurá-la a tenacidade de qualquer esperança.
CABRA-CEGA
- A nossa amizade está por um fio de lã, compadre!
-Por um fio de lã, como?
- Quebra, não quebra... Percebe?
Mas o Raúl não percebia. Lógico, o seu espirito necessitava de premissas para tirar conclusões. E nem compreendia o desvario do Guilhermino a querer que lhe desse à morte o próprio irmão, nem, muito menos, o sentido da ameaça que directamente lhe fazia. Um fio de lã é coisa frágil, que não aguenta o mais leve esticão. Ora entre os dois existira sempre, além do compadrio, que era uma consequência deles e não sua causa, fortes laços de afecto.
- Compadre, resolva! Ou sim, ou sopas. Se quer salvar a pele, diga-me onde está o Augusto!
Tudo confuso. "Se quer salvar a pele, diga-me onde está o Augusto"! Analisando a frase tintim por tintim, chegava-se a isto: Primeiro, o absurdo do "se quer salvar a pele"; a seguir, a incoerente construção do "diga-me onde está o Augusto". A que propósito vinha ali a sua pele? Gozava pacatamente um domingo caseiro, aliás bem merecido. De repente, entra-lhe o irmão pela porta dentro, esbaforido, atravessa a cozinha e vai meter-se debaixo dum carro de mato que estava no pátio por descarregar.
- Pela alma da nossa mãe, não me descubras!
Nem sequer acabara de recolher o apelo, chega o compadre de arma aperrada.
- Onde é que ele se meteu?
Sensatamente, procurou pôr um pouco de senso naquele delírio.
- O que foi, compadre? O que foi?
Ainda não há nada para acalmar um homem como obrigá-lo a falar, a expor os motivos da sua agitação. A força explosiva do ódio esvai-se pelas palavras, cada uma necessitada da sua carga emotiva. Assim o outro estivesse pelos ajustes!
Infelizmente, não estava. Queria seca e pecamente uma denúncia. Francamente!
Partindo do principio que seria capaz de denunciar alguém, um irmão, sobretudo, concedessem-lhe ao menos tempo e calma para se decidir. Provassem-lhe também por A mais B que só através de semelhante recurso se poderia fazer justiça,- uma justiça recta e humana. Doutra maneira, como poderia ele sujar a sua consciência e violentar a sua razão? Com ameaças, de mais a mais em termos sujeitos a interpretações variadas, ninguém esperasse convencê-lo. A expressão "diga-me onde está o Augusto", não há dúvida nenhuma que enfermava, pelo menos, dum conteúdo familiar incompatível com a ferocidade da intenção. Quando se diz "o Augusto", envolve-se logo o dono do nome num halo de intimidade, de estima, de respeito. Os laços sentimentais e sociais, afinal de contas, valem. Enfim, uma trapalhada que necessitava de ser esclarecida com vagar.
-Não diz?
Claro que não dizia. Um cano apontado ao peito é, realmente, uma possibilidade trágica de solução. Em todo o caso, estúpida. Como argumento, era de desanimar da espécie. Sempre reagira com vigor a essa maneira grossa de resolver os problemas. Lia nos jornais o relato dum crime, e sentia-se humanamente diminuído. De onde poderia vir a verdade dum conflito, se uma das partes desaparecia do palco? De resto, no caso presente, a sua natureza recusava-se a acreditar num desfecho catastrófico. A que propósito?
- Ora vamos lá a ver, compadre! Tenha calma e pense! Estas coisas não se fazem assim. O Augusto é uma pessoa razoável. Que diabo! Ninguém me convence que de uma hora para a outra mudasse, a pontos de ofender alguém. Em todo o caso, se por qualquer motivo procedeu mal, é homem para lhe pedir desculpa. Eu comprometo-me a obrigá-lo a iSSO.
Pérolas a porcos.
-Mais uma vez: diz ou não diz? Valha-me Deus! Ouça... Não diz. Pois então, aí vai...
Caído e a agonizar, viu o compadre engatilhar de novo a arma e prosseguir na busca. Ouviu mesmo, vindo do pátio, o som do tiro que matou o irmão. E sempre a mesma interrogação no seu espírito, cada vez mais exigente e rectilíneo: Porquê?
Pergunta louvável, mas ineficaz, como se verificava, feita a uma realidade ambígua, bifronte, que tanto falava com actos como com palavras.
Prudente, a espectativa múrmura do povo, a aguardar que o resto do drama se consumasse, certo de que há uma lei do sangue, átrida, vermelha e pegajosa. Uma lei tóxica, subtil, destilada no alambique do instinto, que paralisa a consciência, e manda o ódio avançar, cego e surdo. Uma lei regressiva, centrípeta, nuclear, que liga o ser ao cromossoma inicial, e o mantém fiel à linha progenitora.
Quando ela se cumpriu, e um filho da segunda vítima furou por sua vez com duas balas o peito do matador, ninguém quis mais nada senão esse selo de confirmação, marca objectiva dos fados.
Rijo, o Guilhermino, depois de mortalmente ferido, andou ainda duzentos metros. Mas pouco acrescentou à consciência colectiva, quando disse, antes de cair:
- Mataram-me agora.
Cumprira-se mais uma vez o pacto sagrado de toda a vida incorrupta. Leal à voz da raiz, a seiva vingava a mão que um dia - ontem, anteontem, há mil anos - se erguera contra ela. Que importava que a terra se chamasse Lobrigos, que na origem dos acontecimentos estivesse uma questão de troca de cavalos, que num tribunal possível ficasse tudo reduzido a quesi tos e papel selado? Outros criminosos viriam, nascidos dos filhos dos criminosos. Outros mais cruéis ainda, mais incontrolados e cegos. Mas a cada vitima corresponderia um vingador, também cruel, incontrolado e cego. O pessimismo experiente do coro grego prâticamente não falava, gemia. Algum feliz que escapava aos furores do destino, dado a congeminações, é que se entretinha a articular os membros desarticulados da tragédia.
Ele é que metia sentido na fatalidade.
MARINHA
A lembrança dela vinha-lhe por surtos, como se tivesse sezões na alma. De repente, sem mais nem menos, invadia-o a cheia irremediável do desejo cruciante de a possuir, de a ver, de trocar nos sentidos exacerbados a imagem pela realidade. A principio, era diferente. A tentação começava duma maneira insidiosa, sorna, assaltando a fortaleza com vagar e manha. Primeiro as muralhas exteriores; depois, e por cada vez, as portas principais do reduto. O castelo rendia-se, mas com honra. Agora, porém, era uma derrota instantânea. Mal dava conta, estava nas mãos do inimigo. Só quando, exausto, o corpo se relaxava, o fantasma se perdia na bruma, levado pelas mesmas asas que o traziam.
Vencido por essa presença doentia, ficava sem qualquer acção dentro do barco, entregue às forças do pesadelo.
O Lúcio era pescador. E mais de uma vez estivera à beira da morte, inibido de se defender das ondas por aquela inércia tóxica e voluptuosa.
- Oh! estupor, tu não remas?!
Feliz, o irmão não tinha dessas visitas. A Belmira não era um fantasma da sua imaginação. Quando lhe apetecia, abraçava-a e beijava-a, como seu noivo aceite.
-Não vias o mar a erguer-se? Ou que cabras andas a guardar?
Pescavam ao candeio, perdidos na escuridão da noite. E o timoneiro da frágil embarcação - único berço de vida que lhes restava sobre o abismo-, esquecia-se de a guiar!
-Que raio tens tu?
Tinha aquela malária amorosa no sangue, e tinha, sobretudo, o envenenamento que, passado o acesso, ela lhe deixava: uma obstinação informulada e aterradora que nem a si próprio podia confessar.
Como surgira essa ideia criminosa, não sabia. De resto, não a concretizara sequer em termos claros, acobardado por tamanha vileza. Mas lá na mais recôndita fundura do seu instinto sabia que era o irmão o alvo das tentações. A apertar o nó duma espia ou a abrir a canivete o saco da rede, chegava a não saber se estava a estrangular um pescoço ou a esfaquear um ventre.
- Tenho que me ir embora daqui - murmurava pela praia fora, a braços com um desespero que o areal alargava e as vagas martelavam sem descanso.
Foi então que deixou pela primeira vez o Baleal, e passou todo o inverno e toda a primavera a semear, a mondar e a segar trigo no Alentejo. Como se fosse remédio afastar-se quarenta ou cinquenta léguas do desejo! A verdura tenra das sementeiras, a tingir de discreta esperança o pardo desespero da planície, - era a imagem da rapariga a sorrir no seu descampado humano. A limpar a seara das ervas daninhas, - lá vinha o raio da obsessão! E a fazer a ceifa, - cada gabela parecia-lhe um corpo deitado de mulher.
Quando voltou, porque o trabalho acabara, vinha pior do que partira.
De novo ao lado do irmão, arrais do barco onde tinha agora o posto de caiador, enquanto ia deixando que os anéis da corda se transformassem no leme e no cordão umbilical que ligava a companha à terra, ouvia já claramente a voz do seu demónio secreto:
- Mato-o! Se fico aqui, mato-o!
Não era bem ódio que sentia. Era uma necessidade animal de fazer desaparecer do mundo um concorrente. A moça nunca lhe dera crédito, e talvez que em circunstância alguma lho desse. Mas queria-a livre e aberta ao seu apelo. Exposta ao sol da sua angústia como aquelas conchas de água que as marés da noite deixavam na praia, e que, pela manhã, em pequeno, era o primeiro a pisar com os seus atrevidos pés de pioneiro.
- Vou embarcar, minha mãe!
A velha Clarinda olhou o filho com os olhos da alma, pois era cega dos outros. E só perguntou:
- É por causa da Belmira?
-Por causa dela e...
Faltava-lhe a coragem, diante de tal juiz, para confessar a verdade toda. E foi ainda a mãe que o ajudou:
- E dele...
Aliviado do peso morto dum crime que já sentia a derrear-lhe os ombros antes de o cometer, chorou então, naquele regaço encardido de salmoura e sofrimento, num abandono de criança. E entre soluços, anestesiado pelo bálsamo que a mãe lhe punha na grande ferida, passando-lhe a mão calosa pela espessa cabeleira, pós a descoberto as trevas da sua luta recalcada.
- Mato-o! Se continuo aqui, mato-o!
Cobertos pela névoa enigmática, os olhos da Clarinda pareciam faróis do destino, indiferentes e frios. Mas os dedos, na sua incansável ternura, antenas dum coração solidário e quente, iam-lhe transmitindo um adeus dilacerado e agradecido.
Viu então como era verdadeiramente grande, largo e profundo, o mar que até ali marginara, a brincar-lhe na orla. E como separava! As distâncias, na terra firme, podiam ser vencidas pelo esforço e pela imaginação. Mas coisas que a gigantesca mão azul apartasse, devagar, iam-se tornando bruma e esquecimento. Como poderia o rosto da Belmira manter a nitidez do desenho, num espelho sempre ondulante, sempre infinito e baço? Humilde pescador da costa, navegara desde criança com areia à vista
- a areia onde lhe pulsava o coração apaixonado. Agora, perdera-se num deserto de água, e por mais que tentasse, não conseguia orientar a lembrança. Sem localização possível, a imagem do seu desespero, arrancada do chão, murchava. Vinte anos se demorou o Lúcio no mundo
novo onde desembarcara. Pacificada, a sua alma esquecera-se do amor e da vingança. Outra vez limpa das sujas paixões que a desfiguravam, floria à tona da margem tropical do lago que a vira nascer pura e lavada. Também pescador nesse oceano quente e preguiçoso, o desterrado podia viver a sua vida de homem natural, preso ao eterno afã de conquistar à natureza o pão de cada dia.
- Quando voltas? - perguntava-lhe o Baleal, numa letra salgada.
- Qualquer dia...
Iludia a resposta, com medo do vulcão adormecido. Temia que diante da rapariga o ódio ao irmão acordasse.
Embora simples criatura de carne e osso, o Lúcio, à semelhança do que lhe acontecera já no mar alto, descobrindo-lhe a significação, ia vendo a natureza humana com mais fundura. E sabia que num tição aparentemente apagado
pode esconder-se uma faúlha acesa.
Uma coisa, sobretudo, o punha de sobreaviso: a frieza com que olhava as mulheres.
Mesmo se o corpo, alvoroçado, as desejava, logo uma força secreta o repreendia. E esse tributo de castidade, que não pagava a nenhuma deusa, mas que era em si uma dádiva, fazia-o desconfiar dos próprios sentimentos. O degredo não podia acabar ainda.
Assim os anos se foram passando, e só ao cabo de vinte o aceno veio de vez, embora negro.
A história dessa longa separação, que o destino motivou com tão fina e subtil crueldade, teve peripécias variadas. Na tosca caligrafia dos seus heróis, cronistas dos próprios actos, os capítulos de cada aventura iam-se cruzando por sobre as ondas, numa sinceridade quotidiana. Mas porque não se procurava, por inocência ou cautela, a motivação profunda do enredo, faltava à informe novela um núcleo de justificação, um tronco que prendesse os ramos. Era um laborioso repositório de factos - naufrágios, doenças, festas, nascimentos-, sem o elo de uma causalidade a ligá-los. Apenas dois pormenores sibilinos balizavam discretamente o começo e o fim da narrativa: o casamento da Belmira e a sua morte.
Casara logo a seguir à partida do Lúcio, e morrera de parto ao ter o oitavo filho.
- Homem, já agora espera mais uns dias! - pedia-lhe o irmão, quando soube que abalava. - Assiste ao menos à boda!
-Nada! O que tem de se fazer ao tarde...
- É mais uma semana...
- Deixá-lo.
Na lembrança da família ficou gravada a data dessa pressa enigmática, como foi registada igualmente a chegada súbita, 'ainda O luto de todos era uma ilha de sombra na povoação.
A notícia do falecimento da cunhada chegou ao emigrante numa manhã triste, em que quatro paredes lhe rodeavam a solidão. E muito embora semelhante desfecho lhe aumentasse a tristeza, trouxe-lhe ao mesmo tempo uma ordem de libertação da voluntária cadeia onde se enclausurara.
- Agora, sim, posso ir. - E regressou.
A mãe lá estava ainda sentada na soleira da porta, de chapéu e de capa, como um ídolo de pedra que esperasse pela encarnação do seu espírito. Docemente, fiel ao segredo daquele desterro heróico, acariciou-lhe os cabelos como à partida.
- Meu pobre filho!
Não lhe disse uma palavra da nora nem das saudades que tivera dele. Rarefez apenas com ternura o espaço morto da ausência.
Quando o irmão, que andava no mar, chegou e lhe abriu os braços, alheio à tragédia que se passara, apertaram-se como duas vides. Estavam ambos mudados, o foragido sobretudo. E o outro, enquanto se esforçava por adaptar ao afecto a nova imagem fraternal, protestou contra a teimosia do Lúcio de nunca lhe ter mandado o retrato sequer.
-Não era só por mim; era também pela Belmira, que Deus haja, e pelos pequenos que te não conheciam...
Então, a faúlha que no tição realmente não se apagara, avivou-se.
E veio uma resposta brusca, estranha, onde cada qual tinha o seu quinhão:
-Não mandei, porque a mãe não me podia ver.
O MILIONÁRIO
Presidente do conselho de administração da Sociedade Anónima de Lanifícios, Palmiro Cunha tivera mais uma vez a sua reunião anual com os sócios da grande empresa. Embora tudo se passasse em termos discretos, de cautos sorrisos à cota distribuída e de cúmplice assentimento aos malabarismos da escrita, aquelas longas horas de lucros e voracidade tinham-no fatigado. Ele, que a principio considerara o supremo triunfo da sua vida sentar-se na cadeira vaga pela morte do sogro, saía agora de cada assembleia geral desinteressado e sonâmbulo.
- Sente-se mal, Senhor Cunha? - perguntou solícito um dos accionistas, admirador incondicional do seu génio administrativo.
- Não, é do tempo.
O outro olhou através da janela, e não viu nada. A limpidez do céu e a finura da luz entravam pelos olhos dentro. Calou-se, contudo. Falara quem sabia.
Mas, mal ou bem disposto, conceituado ou não no espírito dos interessados, o industrial podia finalmente despedir-se e sair. Enquanto os mais, em pequenos grupos, discutiam ainda a construção das novas instalações ou digeriam sornamente os dividendos, transpôs ele, com o mesmo alheamento no rosto, o portão de ferro da fábrica.
Solícito, o motorista desbarretou-se e abriu a porta do automóvell.
- Leva o carro para casa. Vou a pé.
Também o rapaz, diante da atitude do patrão e da tristeza em que o via, quis perguntar-lhe se estava doente. Mas não se atreveu. Enterrou o boné na cabeça, sentou-se ao volante, pôs o motor a trabalhar, e passou-lhe respeitosamente ao lado, devagar, a ver se ele mudava de ideias. Palmiro Cunha, porém, arredou-se como qualquer mortal, e deixou seguir vazio o Cadillac, que desapareceu ao longe.
O tempo estava besTealmente óptimo, e não se podia responsabilizá-lo pela má disposição do milionário. Acusá-lo fora uma das fintas habituais de que se servia o nababo para fugir aos fantasmas duma vida que exigia escrita dobrada como a dos seus negócios. E era dessa duplicidade que estava farto. Cansado do esforço contínuo de ter de traduzir para verdade ou mentira, consoante as necessidades, cada afirmação. Enjoado de enganar no amor, na fé, na moral, na política, nos produtos e em tudo. Nenhum gesto, nenhuma palavra, nenhuma obra que fizesse tinham autenticidade. Coluna duma ordem social que amparava há cinquenta anos, sentia o cerne roído de caruncho e de inquietação. Marido exemplar à face das convenções, sabia no entanto que a mulher o enganara e ele a enganara também: pai amantíssimo, devotado à felicidade dos filhos, fora o obreiro dos maus casamentos que tinham feito; membro activo de instituições de caridade, de confrarias religiosas, de organizações patrióticas, ninguém inundava a sociedade de mais tísicos, descrentes e revoltados. E porque não conseguira equilibrar aquela pirâmide invertida no areal dos seus dias, há tempos já que o invadia um invencível tédio para que não encontrava nem compreensão, nem confidentes.
Tarde bonita aquela, realmente, a morrer devagar nas colinas verdes que dum lado e doutro cercavam a cidade. Plácido, o rio, que a rua marginava, corria fresco e contente. E Palmiro Cunha foi caminhando devagar, até chegar ao grande largo onde ficava o cais. Aí parou, apoiado ao varandim de ferro.
Presos ao seu pequeno ancoradoiro, quietos e paralelos, os barcos pareciam rezes a uma manjedoira. à proa de cada um cozinhava a respectiva tripulação. Suspenso dum pau atravessado, fumegava um caldeirão sobre o lume.
E à sua volta aninhavam-se os homens, à espera. Na rampa de descarga amontoavam-se toros de lenha e molhos de mato seco. Urze, carqueija, rama de medronheiro e estevas.
-É servido?
- Muito obrigado.
Feito o guisado, um velho e um rapaz iniciavam a refeição. Fraternos, comiam do mesmo grande alguidar e bebiam da mesma grande cabaça.
Febril, a cidade acabava o dia com ruído, numa agitação de ambições frustradas ou criminosamente conseguidas, enquanto quase no seu coração, escondido, aquele pequeno mundo tinha silêncio e paz. A limpidez da corrente lavava todas as impurezas. E o grande paredão da margem protegia o refúgio dos assaltos da terra.
-Uma pinga, ao menos!
- Muito obrigado.
A presença do estranho pouco ou nada os perturbava. Simples e naturais, iam satisfazendo a fome e matando a sede. E Palmiro Cunha deixou-se ficar debruçado nas grades da amurada, como um condenado que dos limites da prisão contemplasse uma cena de liberdade.
Era um homem perdido. Uma angústia já sem força de libertação, dobrada sobre a memória dos crimes como um chorão sobre o seu lago. Num daqueles barcos, ou num antepassado deles, viera um dia duma terra de que nunca mais proferira sequer o nome, para que ninguém pudesse identificar o homem que era hoje na criança enjeitada de então. Embarcara num portinho fluvial, feito de fragas naturais, longe, quase na nascente do rio. Como bagagem, trazia ao todo, escondido no bolso das calças, o chocalho da ovelha mestra do rebanho que até aí guardara. Roubar à coleira da churra o sonoro testemunho das andanças da sua meninice, fora um gesto tão instintivo que quase não tivera consciência de o praticar. Sem dar por isso, encontrou as mãos a desatar a correia e a arrecadar o símbolo da felicidade que ia perder.
Os trâmites da viagem aventurosa tinha-os ainda vivos e frescos nos olhos. Os montes, vistos do sopé, grávidos a termo; os amieiros, reflectidos, mais tangiveis na água do que no espaço; e a graça, o movimento e a cor de tudo a correr, só porque o barco, grácil, se movia. Através de várzeas, curvas e meandros, o rio ia-lhe desvendando o segredo da grandeza uni versal, que não acaba, que se renova, que acena sempre. Por adições sucessivas e harmoniosas, a conta maravilhosa crescia na ardósia sem ninguém a escrever. Aveludada, a estrada liquida serpenteava esquiva por entre a dureza de todas as presenças. E ficava apenas na retina o afago macio do deslumbramento.
-Pronto, rapaz! Vai com Deus...
Ouvia com o mesmo alvoroço daquela hora a inesperada agressão da voz grossa do tio Bento, a expulsá-lo do barco, como um Noé cruel que enxotasse um cordeiro do aconchego da Arca. De nada lhe valera pedir e chorar, arrependido já de ter vindo. inflexível, o velho agarrou nele em peso e descarregou-o no cais.
E ali estava de novo, passados cinquenta anos, a dar contas mentais do que fizera. Um ser humano perdido! Uma alma que pactuara com todas as forças da degradação. Aranha a tecer a sua pérfida teia nos dúbios cantos da vida, assim ele se via, laborioso e sinistro. Nítidos, como marcados num caminho de cimento fresco agora endurecido, via todos os passes que a partir desse dia longínquo dera até ali. Nenhum generoso nem gratuito! Todos dirigidos no mesmo sentido utilitário, ambicioso e prático. Nenhum minuto perdido, nenhuma distracção, nenhum cansaço. Se a coragem lhe desfalecia era preciso andar mais depressa ainda, para que os outros vissem que estava cada vez mais activo. Porque era dos outros, sobretudo, que ele se defendia. Dos outros que enganava, roubava e vencia, desde que lhes desse a certeza de ser uma força em movimento, triunfadora, inflexível, imunizada contra as pequenas fraquezas que a eles os diminuiam.
- Que andará por aqui a fazer este passarão?
-Quem?
- O Cunha...
Por debaixo do ombro, olhou cautelosamente o grupo que passava. E deu com os olhos nos olhos de um desconhecido, que o fitava desconfiado.
-Ai aquele é que é o tal...?
A conversa perdeu-se na alameda, reticente de insinuações. No silêncio que se fez, ficou apenas a solidão hostil de uma condenação sem apelo.
- Por aqui, senhor Palmiro?!
Voltou-se, abespinhado. Era um freguês da casa, retalhista.
-É verdade!
- Temos então grande negociata... Transportes, agora? O senhor Palmiro é levado da breca!
- Não. Estava só a ver o rio.
-Ora! Ora!
- Acredite.
Valia de bem Ligado de pés e mãos ao carro da traficância, do dinheiro, dos sentimentos postiços, da falsa-fé, da perversão e da hipocrisia, quem poderia acreditá-lo num minuto de sincera e cristalina disponibilidade?
Felizmente que o intruso ia com pressa.
- Boa noite, e desculpe interrompê-lo!
- Boa noite.
Descera, na verdade, a escuridão, e o rebanho de barcos, em baixo, adormecera entretanto. Encafuados no bojo da popa, como coelhos na lura, os barqueiros deixavam-se vencer pelo cansaço. O rio tinha agora uma voz com relevo, misteriosa e apressada.
o trágico é que não podia desfazer a teia. Urdida, a manta da vida é irredutível ao novelo original.
-Oh! oh! Eu estarei a sonhar?!
Outro. Outro que vinha sujar a pureza daquele instante!
-Tu?!
- Sou eu, sou! É assim tão extraordinário eu estar aqui?
- Lá extraordinário, é!
Mais uma vez tentou explicar-se. Tratando-se do Júlio Abrunhosa, uma língua de seitoira, era preciso esclarecer os factos. E confessou-lhe que também lhe apetecera humanamente ver cair a noite sobre a calma das águas e o sono dos barqueiros. Em vão. O amigo respondeu-lhe
com ironia, desconfiado, a espreitar por detrás das palavras de justificação.
Argumentou então com o trabalho excessivo dos últimos dias e a maçada da assembleia geral. Ninguém fazia ideia! De arrasar um mortal!
Nada! O Abrunhosa, entre sarcástico e sincero, respondeu-lhe apenas que um lutador como ele não se cansava.
Palmiro Cunha, vencido, olhou num último adeus a sombra compacta dos barcos. Ia regressar. A sua fuga fora descoberta. A sociedade tinha espiões por toda a parte, que tudo viam, que tudo relatavam e que tudo asseguravam. Jantaria, receberia as visitas habituais, ouviria as noticias, e quando os netos adormecessem, o filho fosse ter com a amante, e a mulher se deitasse, fechar-se-ia, como sempre, no escritório, a fazer contas. Até que de tantos algarismos, de tanto cigarro e de tanta solidão, lhe viesse uma angústia nauseante, que só um velho e secreto remédio mitigava: o som do chocalho que agitava ao ouvido num ritmo compassado e lento, como o dum rebanho a pastar.
REGENERAÇÃO
Foi um trabalho árduo e beneditino. É ponto assente que a colectividade precisa de membros pacíficos. Cordatos por condição ou por pedagogia. E decorridos apenas alguns meses desde que fora posto à disposição do Governo, por furtos e desmandos sucessivos, começara a grande obra de recuperação do cadastrado.
O grito redentor partira do zeloso capataz da oficina.
- Tenho a impressão de que se poderia fazer qualquer coisa do Bernardo... - começou ele, a lançar a boa semente no coração do assistente social.
- Parece-lhe?
Uma das condições de quem trabalha na prótese da humanidade é acreditar em milagres. E o Fontes, embora no intimo antipatizasse com o ar escarninho do preso, recalcou os seus sentimentos.
- O rapaz tem qualidades... - continuou o outro, teimoso.
- Nesse caso, tenta-se.
Começaram então as visitas assíduas, a catequização lenta e metódica do recluso. Meses e anos de porfiada infiltração da virtude na sua espessa natureza de criminoso. Conselhos, livros de edificação, promessas. Todos os subtis recursos dum perfeito renovo moral.
Antes do tufão, ninguém amparara o arbusto; mas agora, que o vento da vida o arrancara, cercavam-no de estacas e vigilância, a ver se lhe colavam as raízes novamente à terra. Cada necessidade tinha um auxílio, cada hesitação um estímulo, cada mágoa um conforto. Uma burocracia inteira ao serviço daquela ovelha desgarrada, por quem o resto do rebanho suspirava. Toda uma hierarquia de apóstolos debruçada com ansiedade e carinho sobre o coração enigmático do doente. Retomaria ele o ritmo normal, ordeiro e monótono da manada, ou continuaria oscilante e caprichoso, como até ali?
Foi lido mais uma vez, e meditado, o longo processo condenatório. E a uma luz rasante, que tornava impossível erros de interpretação, provou-se felizmente que ali mesmo a esperança tinha lugar.
Como, apesar de tudo, era necessário construir sobre alicerces de firmeza incontroversa, alargou-se ainda mais a colaboração. Pediu-se o reforço duma equipa de peritos subtis, aptos a destrinçar mistérios.
E que alívio! Que alegria! O morto ressuscitava. Lázaro erguia-se do túmulo! Exame psiquiátrico normal; reacções emotivas absolutamente correctas.
Isto somado a outras provas objectivas - comportamento exemplar, trabalho acima da média, assiduidade religiosa-, ergueu no arraial dos justos o legítimo entusiasmo das grandes conquistas. E, como eco desse contentamento, iam chegando às mãos de Bernardo os frutos concretos da nova primavera: prendas, provas de confiança, e a primeira condecoração.
Assim a sociedade recompensava os seus, os filhos pródigos que regressavam ao lar.
- Bernardo, tenho acompanhado o teu caso com interesse...
- Agradeço muito a Vossa Excelência.
- Não tens nada que agradecer. O meu papel, dentro deste tribunal de execução de penas, não é de carrasco, é de protector. Por isso, todos os condenados me merecem o mais carinhoso desvelo. Tomara eu poder riscar do livro negro do crime o nome de quantos aqui estão.
Sem pestanejar, Bernardo olhava a cara cansada e balofa do juiz. O outro que o condenara tinha o rosto mais balofo ainda.
- Mas vamos ao que importa. Fica sabendo que é com verdadeiro desvanecimento que dia a dia me convenço mais de que podes tornar-te ainda um cidadão presumoso, um homem útil à tua pátria!
Cercado de todos os lados por este mar bonançoso de ternura, a dignidade humana crescia dentro da alma do penitenciário como o mosto num lagar trabalhado. Bastava olhar.
- E que projectos tens para quando saíres?
A liberdade, que só fora prometida nas asas esquivas do possível, começava a tornar-se uma visão real. E Bernardo, que até ali se entregara passivamente à nova modelação da sua natureza, viu que eram horas de tomar posição, secretamente que fosse, no grande acontecimento. Se o que dissera e o que fizera durante todo o tempo de reclusão não tinha qualquer interesse subjectivo, agora, que ia ser outra vez dono dos seus actos, teria de os determinar e de lhes calcular a significação. Por isso, paciente e minuciosamente, tal qual fora elaborada pelos outros a sua própria reedificação, também ele se pôs a elaborar um esforçado e sibilino projecto de permanência humana, de conservação do que em si era inalienável. Isto apenas: assaltar a ourivesaria Cruz no próprio dia da libertação.
Seria completo. Primeiro, porque daria uma resposta sem réplica possível a todo o exército de salvação que o salvara; segundo, porque não haveria quem suspeitasse de que fosse ele o autor dum roubo praticado no mesmo dia em que saísse da cadeia.
Dois coelhos de uma só cajadada. Contra a maciça muralha colectiva, apenas a vontade indomável de um homem. E o melhor ainda é que esse pobre mortal, esse Zé Ninguém, era ele, Bernardo Mendes Capelo - preso, condenado, readaptado e solto, por fim.
O facto de ser contraditório o que sentia com o que aparentava, não descompunha a sua prazenteira serenidade. A ter de tomar partido, optava apenas pelo que mais lhe dizia ao instinto e à razão. Ora o instinto pedia-lhe uma actuação sem peias e um risco impregnado de perigo e de triunfo. Quanto à razão, essa reclamava apenas, como prova da sua autonomia, o direito de escolher, fosse que destino fosse.
Tinham as duas posições, a dos catequizadores e a do prisioneiro, potenciais de ordem diversa. Postas à luz do sol, brilhava certamento mais o oiro generoso da levada de perdão e confiança que descia da alta montanha de corações devotados ao serviço da causa pública. Contudo, não deixava de ser forte também a inabalável certeza de Bernardo no seu caminho individual, solitário, feito de irreprimível confiança numa espécie de verdade irracional.
Mas, como não havia protecção igual para as duas concepções, teria a do condenado de viver soterrada, à espera da boa oportunidade.
Chegou essa hora no dia 11 de Maio.
- Bernardo, em face das provas que deste, da exemplaríssima maneira como sempre procedeste aqui dentro, da permanente conformidade com os regulamentos, dos claros sinais de arrependimento, do relatório médico, do parecer do conselho técnico, etc., etc., resolvi dar-te a liberdade.
- Muito obrigado, senhor doutor Juiz.
- Não tens nada que agradecer. A minha função, dentro deste tribunal de execução de penas...
Não podia Bernardo dizer àquele homem como sentia ele próprio a liberdade e como não entendia que alguém a pudesse dar ou tirar. Seria confuso explicar-lhe que mesmo preso pudera sempre tê-la, quer a esperar, quer a disfarçar, quer a elaborar finalmente o plano metódico dum novo assalto. Plano, de resto, absolutamente infalível. Fora de mão, a travessa do Juncal era mal iluminada. O guarda nocturno, o Alves, bebia a sua pinga e só rondava aquela área por volta da uma da noite. Juntando a estes dados a circunstância de o roubo ser praticado justamente no mesmo dia em que saísse...
- Portanto, vai, tem juízo, e recompõe a tua vida. És novo e podes ainda vir a ser alguém.
Todos os restantes membros da legião reformadora, depois de falar o juiz, lhe desejaram também felicidades. Todos o acompanharam até à porta com o seu voto dum futuro melhor e sorridente.
E eis o novo homem na rua!
Pela cidade adiante, Bernardo via com emoção caminhar ao lado da sua aparência redimida a sombra da sua realidade intacta. Por fora, um cidadão domesticado, atento às regras do trânsito, grato à cortezia dos semelhantes, correcto nos gestos e nas falas; por dentro, um impulso escarninho de desmentir todo o artifício duma vida postiça, travada com policias e luzes vermelhas.
- Perdão!
- Ora essa...
O calo pisado doía-lhe no pé, apesar da desculpa. Sorriu, contudo, cheio de condescendência, perfeitamente integrado no sorriso colectivo de todos os que são calcados e não protestam.
-Tem horas?
- Seis menos um quarto.
- Muito obrigado.
Meteu o relógio no bolso, a felicitar-se pela mestria com que representava o seu duplo papel. E nessa reconfortante certeza foi jantar à mesma taberna do cais das suas antigas aventuras.
Lá estavam, apenas um pouco mais usados pelo tempo, os mesmos amigos e os mesmos objectos familiares. Caras modeladas de há muito pelos baldões da vida, e bancos pulidos, onde o corpo encontrava naturalmente o seujeito.
- Olha quem ele é! O nosso Bernardo!
Mal o da exclamação sabia como de facto era deles e de mais ninguém. Como era ali,
entre os da sua condição, que morara sempre, fora da sonolência do mundo e da lei. Mas fez de bem comportado. Saboreou apenas Intimamente os petiscos da tia Eugénia e aquele ambiente de verdadeira paz, que não era dada por nenhum decreto.
- Mandaram-te embora de vez, ou à experiência? - à experiência...
A seriedade com que respondeu intimidou os outros. E foi nessa maldosa confissão que os deixou, para ir dar inicio à sua honrada vida de figurante ordeiro na comédia do mundo.
Passou primeiro, como que distraído, pela travessa do Juncal, a reconhecer o terreno. Depois tratou de conseguir a ferramenta necessária. Por fim, às onze e meia em ponto, começou a trabalhar.
Corria-lhe tudo às mil maravilhas, quando apareceu súbitamente o guarda nocturno, que por acaso nessa noite se zangara com a mulher e começou a ronda mais cedo. Na escuridão em que estava envolvido, foi apanhado em flagrante delito. à gazua a desandar o trinco da porta, e o Alves a pôr-lhe a gadanha em cima como um abutre.
Nem reagiu. Acompanhou pacificamente o captor, e voltou à cadeia.
O regresso à colónia penal, ao seio redentor de onde saíra, demorou ainda. Foram precisos meses para se achar novamente em face do capataz, do assistente, do director, do capelão, e, finalmente, do juiz. Demorados meses de espera por essa hora de satânica desforra. Do joio que semeara, a sociedade queria colher trigo. Pois ali lhe devolvia ojoio, acrescentado.
- Então, Bernardo?
- Cá estamos!
Era um sermão que cada qual tinha preparado para lhe pregar, e que cada um engolia em seco diante da serenidade com que os olhava.
-E agora?
Desesperados, eram eles que não encontravam solução para a falência daquela vida. Torciam nas mãos inquietas o manual ortopédico, e caía no chão palha esfarelada.
-Perdemos todos a confiança em ti! - gemiam, desmantelados.
- Eu compreendo...
Ufano, senhor absoluto naquele reino de confusão, Bernardo foi subindo os degraus hierárquicos, sempre calmo e sorridente.
- Foi coisa que te passou pela cabeça, de repente?
- Não. Ia com a ideia tisgada já daqui...
Queriam arranjar atenuantes, evitar de qualquer maneira o deserto árido do irremediável.
- Vai-te lá! Não compliques mais as coisas...
Alijavam a solução do enigma para a última instância. Talvez que ali...
- Valha-te Deus, rapaz! Então, logo no mesmo dia?!...
- No mesmo dia é que era, senhor doutor Juiz!
Uma nuvem de cólera passou diante dos olhos atónitos do magistrado. Cego de humilhação, apoplético, pôde apenas gritar:
- Levem, levem este monstro daqui!
OUTONO
Paula trazia na mão um ramo de cravos.
- Que tomas?
- Um chá de limão.
Pousou as flores em cima do mármore da mesa e, enquanto o marido falava com o criado, olhou de soslaio o grupo onde Alberto, de costas, conversava.
- Quanto tempo tencionas demorar-te na modista?
- Ah, isso não sei. Compreendes que é impossível marcar uma hora certa!
- Claro. Portanto, o melhor é cada um tratar da sua vida.
- Acho bem.
- Ora eu tenho de ir ao correio, à repartição de finanças, ao Instituto de Medicina Legal, à secretaria...
Calou-se. De que valia continuar? Paralelas, a vida dele e a da mulher nunca se encontrariam.
- Mais?
- Não. Obrigada.
Serviu-se por fim e sorveu o café, alheado.
- São bonitos os Cravos, no outono...
- Coitados, fazem o que podem.
Ficou sem saber ao certo se era objectivamente dos cravos que ela falava, ou se aproveitara apenas o pretexto para se macerar.
E resolveu tactear o terreno.
- Há uma certa beleza nas flores serôdias... Qualquer coisa de simultaneamente irredutível e melancólico... Eu gosto.
Era justamente qualquer coisa de irredutível e melancólico o que ela sentia por Alberto. Um amor desbotado, e apesar de tudo presente, como a cor do ramo.
-Mas que gentileza! Se eu não tivesse um espelho mesmo na minha frente... Assim, chega a ser crueldade.
De facto, não havia ilusão possível. No límpido cristal que a reflectia do outro lado da sala, tudo murchara irremediávelmente. Branca, gorda e deformada, a sua imagem metia pena.
- Eu referia-me aos cravos...
-Ah! Ainda bem.
-O que não quer dizer...
- Pelo amor de Deus!
Alberto continuava de costas,
- Vamos?
- Podemos ir.
Enquanto o marido pagava a despesa, ergueu-se e compôs o cabelo.
Já na rua, quando se despediam, foi ele que se lembrou com alvoroço do ramo esquecido.
-E os cravos?
- Deixei-os lá.
A GLóRIA
Entrou na praça lívido de medo. Ia lidar o segundo toiro, que saiu negro e ofegante do curro como uma locomotiva de um túnel. Tinha ainda nos ouvidos os assobios indignados do público, que, agora, em silêncio, lhe dava a oportunidade duma recuperação. Merecera-os, evidentemente, esses insultos, e, por isso mesmo, é que se lhe não apagavam da memória. Nunca, em toda a sua vida profissional, fora tão cobarde. E nunca, também, fora tão vaiado. Redonda, a arena parecia-lhe uma ilha cercada dum mar encapelado. E ele, no meio dela, um náufrago que tivesse arribado ali, trazido por um destino cruel. De cada sector desciam avalanches de fúria espumosa. Ondas impetuosas e turvas, sujas do lodo das profundidades. E o espírito não encontrava caminho para fugir de semelhante prisão. Valera-lhe o automatismo do próprio corpo. Como um cego a tactear através da luz, lá conseguira chegar à trincheira.
- Que tinhas tu?
-Sei lá...
- Outra infelicidade igual, e estás perdido.
- Isso sei eu.
Era o bom Julião, o seu peão de brega a tentar ajudá-lo. Um dos muitos a quem a fama nunca sorrira, e que podiam humanamente fugir diante do perigo, num espontâneo instinto de conservação. Quantas vezes, em corridas anteriores, considerara aquele destino subalterno, medíocre e resignado! O público já nem reagia sequer aos seus ferros infelizes, às suas fintas hesitantes, à desastrada maneira como abandonava a luta à primeira ameaça. Da sua presença no redondel ninguém esperava nada. E ele, por sua vez, só desejava sair ileso da refrega onde os outros é que faziam de heróis.
-Sorte...
- Hen?
- Sorte.
Só então Gonçalo reparou que a lide recomeçara e Aranda iniciava os primeiros passes.
- Vá, pega no capote!
- Não posso.
-Qual não podes!
Mas o outro dispensou aquela colaboração comprometedora. Nem sequer o convidou a ir aos quites. Em faróis abertos e sucessivos, arrancava gritos de espasmo à assistência, enquanto Gonçalo permanecia ali, colado à barreira, entregue apenas à dor que o paralisava.
- olé!
O ritmo seu conhecido, marcado por um metrónomo de angústia binária.
-Olé!
Uma solidão massiça isolava-o daquela música ritual e feiticeira. Do inferno onde se consumia, ouvia-lhe apenas os ecos imprecisos.
-Bravo! Bravo!
Colorida, a multidão era um cacho de entusiasmo. Quentes, as palmas não tinham fim. Mas só imprecisamente Gonçalo apreendia a realidade do que se passava. A praça parecia-lhe apenas um imenso búzio de ressonâncias. Foi então que um toque elegíaco o acordou.
Um aviso solene de noite que se aproximava, de flor que ia murchar.
Ergueu-se a custo da modorra e, vivo, quis acompanhar o drama daquele instante. Fê-lo, porém, com a morosidade sonâmbula de quem emerge dum pesadelo. Quando, na sua lenta caminhada, deixou a escuridão em que estava e entrou no fulgurante mundo da acção, Aranda vencera já todo o perigo e, orgulhoso, sózinho, recebia as palmas do seu triunfo. Fértil, a seara abria-se num trigo loiro de entrega. E, no eirado, Aranda estendia a mão a receber, a agradecer e a sorrir.
Assim acabara a primeira parte da corrida, a que sucedera um tempo que devia ser de esquecimento e não foi. Durante ele, cruel, o destino mantivera a divisão: dum lado Aranda, triunfante; do outro, ele, derrotado. E não era inveja o que sentia. Olhava o companheiro e via-lhe apenas um resplendor de luz que projectava naturalmente sombra a toda a volta. A pessoa do rival continuava estimável como até ali. A copa da sua rama é que se tornara sombria para tudo quanto quisesse crescer ao pé.
- Vê lá agora o que fazes! O bicho é bom. Bem armado e maneiro. Não te acobardes!
Ungido com este pobre viático do fiel e leal Julião, saiu do burladeiro, aterrado. E ali estava, miserável, entre os olhos cépticos do público e os olhos desconfiados do toiro. Nas mãos crispadas, a capa de sacerdote da valentia.
Carmesim por fora, amarela por dentro, nunca conseguira desligá-la da liturgia cristã do sacrifício da missa. E numa unção religiosa, abriu-a para a primeira verónica.
De longe, contra todas as regras da prudência, citou o boi. E ficou-se contraído, hirto, à espera.
Foi qualquer coisa de eterno, de pacificante, que lhe roçou pelo corpo. Força não era certamente o nome dessa volúpia. A sombra da sedução, talvez. E tornou a chamá-la.
Assim pelejou sem saber com quem, esforçado, mas inconsciente. A que castelo queria subir?
Como um vinho subtil que o fosse embebedando, sentia invadi-lo, lenta mas progressivamente, o desprezo do perigo e da vida. E viu com espanto que, quanto mais renunciava, mais o triunfo lhe abria os braços. Certa de que batalhava por ela, a tu rba mostrava-lhe a sua gratidão. E a hostilidade de há pouco transformava-se gradualmente num amplo e total abraço de carinho.
Nos lances mais apertados, quando tudo parecia por um fio, Julião, fraternal e atento, acudia. Mas a hora era de Jardim das Oliveiras. O cálix tinha de ser bebido por um só.
- Deixa!
Expulso, o ajudante enterrava-se mais ainda no seu anonimato. E Gonçalo prosseguiu na entrega mística.
Teve de interromper o êxtase para dar lugar às bandarilhas. Um pequenino instante, que se perdeu no turbilhão do tempo que já nenhum relógio media. O mínimo intervalo para trocar o vermelho desmaiado do capote pelo rubro tinto da muleta.
-Olé!
Excitada pelo travo do perigo, a assistência empurrava o mártir.
Chegou-se mais ao toiro.
-Olé!
Mais ainda.
-Olé!
Numa catarata fresca, sentia descer sobre a agonia da alma a torrente dos aplausos.
-Olé!
Sem perceber como tinha ainda olhos para olhar a cor da vida, viu com nitidez pungente que a tarde declinava, e que na areia suja do chão o sol brilhava com livores de fim. E viu justamente esse outono do dia quando o clarim soava a desfecho.
à beira da rendição, o anjo da luta pelejava ainda. E Gonçalo continuou a desafiá-lo e a vencê-lo sem descanso. Só a perfeita harmonia do esgotamento total podia confundi-los, apaziguados.
E esse instante chegou.
Submisso, o toiro aguardava na sua frente. E, submisso também, Gonçalo ajoelhou diante dele.
Louca de entusiasmo, a multidão aplaudia a oração que o homem e o animal faziam junto à beira do abismo. E ambos, por caminhos diversos, se entregaram resignados à final confirmação pedida.
Caídos os dois, um varado pelo estoque do agressor, o outro pelas hastes do agredido, eram o testemunho patético de que a pura e perfeita glória é morrer.
A HERANÇA
Incrédula, a pobre D. Aurora leu outra vez. E Não havia dúvida, lá estava: a Dores era filha do marido. A história do Asilo fora uma armadilha. Uma maneira hábil de meter a pequena em casa. Palavras quase textuais da própria confissão dele. Estéril, o casal, perdidas todas as esperanças, resolveu trazer para casa uma criança estranha. E assim foi. Simplesmente, como ele tinha caído há pouco numa leviandade, nada mais natural do que lembrar-se... Por uma questão de cobardia e pudor, nunca lho confessara, nem sugerira sequer a perfilhação. Queria que ela resolvesse em consciência o problema que lhe deixava em suspenso. O problema da herança, claro.
Cansada dos oitenta e dois anos e da pesada emoção, a viúva dobrou a carta que encontrara entre os papéis do homem, e ficou largo tempo amodorrada, com os olhos fixos no lume quase extinto da braseira.
- Dores! - chamou por fim, com voz débil.
- Madrinha!
- Senta-te aí.
-Tenho que lavar a louça...
-Senta-te aí, já te disse!
Intrigada, a rapariga obedeceu, e deixou-se observar lentamente, como um objecto raro que fosse visto pela primeira vez.
-O que é?
-Nada.
Incertos, os olhos da velha tateavam cautelosamente a nova realidade que viam. Era preciso apagar toda uma infinidade de traços habituais, de percepções domésticas, e descobrir, por detrás da imagem usual, a imagem inédita que até ali se escondera.
- Palavra que estou aflita! O que foi que aconteceu?
A Dores sabia que a D. Aurora nunca gostara dela a valer. Tinha numerosos sobrinhos a quem sempre considerara herdeiros, e que teciam à sua volta uma rede de intrigas e espionagem. Por isso não esperava que lhe deixasse senão as pequenas lembranças que sempre se deixam a quem nos fecha os olhos. E ficou pasmada quando a velha disse:
- Realmente! Não há duas opiniões. És tu que deves ficar com tudo. A fortuna era da parte dele, é justo.
Sem perceber o sentido íntimo do que ouvia, a rapariga, prudentemente, tentou dividir a sorte.
- Isso não! Lá que me faça qualquer coisa, está bem. Agora tudo.. Deitavam-me o fogo!
- Que tenham paciência.
Maior do que o alvoroço da Dores foi o alvoroço dos lesados. Do coro plangente inicial ergueram a voz às mais torpes acusações. De tal maneira que, no dia combinado para a escritura, o notário, em vez das testemunhas habituais, trouxe peritos.
Era à tardinha. Nas paredes da sala havia quatro gravuras românticas. Cenas de amor entre ruínas. Jovens enleados, de mãos dadas, a florir as pedras carcomidas.
O tabelião, depois de colocar o grande livro de notas sobre o mármore pálido duma mesa contemporânea daqueles tempos felizes, sentou-se. Os dois médicos ficaram de pé.
- Mas ela estará realmente sã?
- É o que vamos ver.
- É que eu, nestas coisas, sou intransigente!
- E faz muito bem, colega!
Ficaram um momento calados, a olhar os quadros. Num deles, uma beldade loira, de grinalda, cismava melancolicamente, enquanto por detrás duma coluna partida já o namorado sorria, pronto a cobri-la de beijos.
- Bonitos, não são?
- Há melhor.
A desautorização foi como que um aviso de silên cio para deixar o caminho aberto à doadora.
De facto, mal o último som se apagou no ar, entrou ela, à frente da afilhada.
Os anos tinham-lhe levado do corpo os ângulos e as arestas. Como uma pedra rolada, tudo nela era macio, pulido, redondo.
- Como está V. Exa.?
- Minha senhora...
Não ficou fórmula capaz para o terceiro, que estendeu apenas a mão.
- Tenham a bondade...
O notário aproveitou a gentileza, e sentou-se de novo. Os médicos permaneceram de pé.
- V. Exa. já sabe certamente por que estamos aqui...
- Pois sei.
- É então de sua inteira vontade constituir herdeira universal Maria das Dores Almeida?
-É.
- Com reserva de usufruto, evidentemente!
- Pode ser.
- Muito bem. E sabe quais são os bens que vai legar?
- É esta casa e uma quinta na Beira. O que tenho.
- Exactamente.
Da lógica com que respondia era difícil partir para uma violência. Apesar disso, o S. Tomé do grupo avançou com uma lâmpada acesa na mão.
- Com licença!
- à vontade.
O foco de luz bateu numa pupila distraída, que se encolheu como um caracol importunado.
- óptimo. Por este lado estamos nós bem! Agora tenha a bondade... Cruzar. Cruzar.
- Talvez não valha a pena, colega!
-Já agora...
O martelo bateu, o reflexo acordou, e houve um movimento inútil e ridículo da perna cansada.
- Esplêndido! A outra, se faz favor.
Como também de ali a resposta foi satisfatória, a consciência do inquiridor começou a acalmar-se.
- Parabéns, minha senhora! Parabéns! Só duas perguntinhas, e mais nada. Em que data casou com o seu marido?
- Em mil novecentos e cinco.
-Viveram juntos, portanto...?
- Quarenta e seis anos.
- Justamente. Uma memória admirável, e uma bela conta de vida matrimonial, diga-se de passagem! Por pouco que não chegavam às bodas de oiro!
-Porpouco...
Com as laudas do livro cobertas do seu belo cursivo, o tabelião aguardava, impassível.
- Por mim, pode dar andamento à escritura, doutor. Estou satisfeito.
Numa voz pastosa e monótona, o homem da lei começou então a ler ininterruptamente.
No fim, perguntou:
-É isto?
- É isso - respondeu a velha.
- Queira então assinar.
Pela ordem natural da situação jurídica em que se encontravam, foi escrevendo cada qual o seu nome. A testamenteira, a beneficiária, e as testemunhas. O notário fechou a abóbada.
E estavam todos ainda a saborear o alivio do acto solene, quando a D. Aurora disse, sem acusar ninguém:
- Cuidavam então que eu estava doida?!
- Que ideia, minha senhora! Um puro pró-forma.
- Cuidavam! Mas não estou, não. Infelizmente...
A BARRAGEM
Foram dias e dias de agonia. Durante anos, o povo viu crescer a obra, com todos os vagares e vicissitudes dum crescimento. Primeiro, as medições; depois, as sondagens; a seguir, as avaliações; por fim, a construção ciclópica do dique, na garganta do rio. Protestos houve-os logo de inicio, conhecidos os desígnios do empreendimento. Mas só quando o engenheiro chefe mandou evacuar a aldeia, porque a comporta ia ser fechada, começou verdadeiramente o drama.
Ervedosa ficava no fundo do vale, aninhada à volta da igreja. Isolada e distante do mundo, vivia do pastoreio e da minguada cultura das terras ribeirinhas de aluvião. Contudo, dessa economia circunscrita e pobre, fazia milagres. Comunitária desde tempos imemoriais, ninguém ali podia alargar os braços e estrangular o vizinho. Embora livre nas suas expressões intimas e pessoais, no tocante à ordem e aos meios de produção cada qual tinha de dar contas à colectividade. E era ao mesmo tempo bonito e reconfortante ver partir de manhã o rebanho de todos para os baldios de todos.
Nas pequenas lameiras onde crescia o feno que alimentava o gado de inverno mantinha Ervedosa, por assim dizer, o freio das ambições. Públicas, delas recebia um por um, num rateio insofismável, o quinhão que lhe pertencia. E fosse lá agora o mais pintado ter aspirações desmedidas! O seu número de cabras e de ovelhas não podia aumentar. Onde iria ele arranjar penso quando a neve cobrisse os montes? Numa prudente desconfiança das fraquezas humanas, cortara-se o mal pela raiz.
Outras práticas igualmente severas e racionais regravam a conduta cívica dos habitantes. Eleitos, os dirigentes prestavam contas dos seus actos em conselhos da povoação. Ninguém podia escusar-se ao mando nem à obediência. à voz da sineta, juntavam-se velhos e novos. E o que fosse resolvido na assembleia magna, fazia lei. às vezes havia discussões renhidas. Mas o bom senso vencia sempre. E o tosco e modesto edifício final era um modelo de equilíbrio e harmonia.
Assim o burgo atravessara os séculos, com suas normas e costumes, dobrado sobre uma vida que, apesar do burel, tinha horas de escarolada alegria. As festas pagãs das primeiras idades, embora assenhoreadas pelo hagiológio cristão, mantinham o salutar transbordamento da origem. E era ver como o vinho corria e os adufes ressoavam ao rebentar da folha e ao pingar da castanha. Conciliante e contagiado, até o padre Eusébio colaborava nos festins. Passada a onda, é que tratava de encaminhar como podia, em direcção à residência, a oferenda destinada aos mortos, para que nem tudo desagradasse a Deus.
Nesta paz lúdica e laboriosa caiu pois como um raio a noticia trazida pelo Guilhermino de que andavam homens desconhecidos a medir os penedos e os valeiros das redondezas. Logo os mais bem falantes e matreiros foram enviados a investigar, e, descobertos os propósitos, a protestar. Mas estava-se ainda longe da calamidade verdadeira. As palavras saíam da boca sem a força do irremediável. O tamanho da catástrofe só foi inteiramente compreendido quando as águas começaram a cobrir os lameiros e, pouco depois, as próprias casas da povoação. Aí romperam gritos dilacerados de cada alma, a ainda hoje, pelas quebradas, parece viver o eco dessa angústia de fim, que a guarda, de armas aperradas, tornou impotente.
Sem casa e sem terras, apenas dona do preço inútil e mesquinho das expropriações, toda a comunidade se sentia à deriva, perdida num mundo que não era o seu. A união fraternal acabara. Agora cada qual teria de recomeçar outra vida, construir outro ninho, conquistar outro pão, criar outras amizades. Os filhos ficariam longe dos pais, os namorados com o seu amor frustrado.
E em vez de albufeira de força e de riqueza, o lago que lhes cobria o passado significava para eles um mar morto de aniquilamento.
Um, apenas, no meio de tanta lágrima e desespero, não compreendera ainda. Cego de nascença, o Belmiro não podia avaliar nem a qualidade, nem o tamanho da desgraça. E quando, arrastado pela mão dos outros, deixou a quelha onde morava e sentiu que os pés pisavam pedras desconhecidas, protestou:
- Para onde me levais?
Tentaram explicar-lhe mais uma vez que já nada restava de Ervedosa. Que o gado fora
vendido, o cemitério arrazado, a vara da justiça quebrada. Que a própria igreja jazia sepultada no fundo das águas. Que teria agora de pedir esmola em lugares desconhecidos, a gente desconhecida.
Ouviu, ouviu, e continuou sem conseguir representar no seu espírito o absurdo que lhe pintavam.
-Não pode ser!
- É,homem! É!
- Não pode ser!
A onda de razão destruidora, opunha a instintiva escuridão conservadora.
E, como não foi capaz de ver pelos olhos alheios a própria desgraça, acabou de se perder sózinho.
A tactear as urzes, tentou voltar a Ervedosa. E logo depois de acariciar a casca do primeiro castanheiro que dantes marcava o começo da povoação, afogou-se.
SILêNCIO
Matilde abriu a janela. Amanhecia, e no terreiro da herdade era uma festa. As velhas azinheiras que rodeavam a habitação, recheadas de pardais, pareciam ilhas de som. O arrulho das pombas aquecia o ar fresco. E as largas risadas dos gansos, a que os perus davam respostas guturais, acabavam por abrir no pano indeciso do lusco-fusco rasgões de pura e aliciante claridade.
Medrosa da planura que a rodeava, a vida concentrara-se toda à volta da casa, como o frio á volta duma lareira. E do canil, do pombal, do galinheiro, dos estábulos e das próprias árvores chegadas à vivenda vinha o testemunho duma alegria doméstica, feita de amparo e compreensão.
Fernando dormia ainda. O seu pesado corpo espapaçava-se por debaixo da coberta, informe e lasso. Inerte e decepada pela dobra do lençol, a sua grande cabeça calva lembrava uma peça anatómica na paz exangue dum museu.
Avisado talvez pela claridade que ia invadindo tudo, deixara de ressonar. Dono incontestado da noite, pela maneira tirânica como enchia sózinho de avassaladora presença as malhas da escuridão, remetia-se agora a um prudente silêncio instintivo. à luz do dia, respirava quase em segredo, num intimo recato.
Doridas ainda do descasque recente, grossas sobreiras começavam a exibir pela campina o tronco ensanguentado. Terras lavradas de fresco mostravam também a carne retalhada.
- Que horas são?
O marido acordara finalmente. Depois de trabalhosa hesitação, os sentidos resolveram-se pela consciência. Quase automâticamente, estendeu o braço, tirou o relógio de pulso de cima da mesa de cabeceira e consultou o mostrador.
- Seis e meia. Bem me parecia! Vê se arrefeces...
Deu meia volta na cama, ajeitou a roupa aos ombros, e dispunha-se a adormecer de novo.
- Fernando...
- O que é?
- Preciso de falar contigo...
A intimidade habitual tinha-lhes levado o sentido da urgência de certas confidências. E o marido tentou adiar a conversa.
- ó filha, deixa-me dormir! Temos tempo.
Sempre sem se voltar, e a ver a manhã cada vez mais aberta, Matilde insistiu.
- Tem de ser agora.
- Que mania de complicar tudo! - protestou ele, indeciso. - Então não é coisa que possa esperar?
-Não.
Fez um esforço de atenção, e um pouco insofrido dispôs-se a ouvi-la.
-Diz lá...
Desenhada no roupão, Matilde continuava de costas.
- Estou grávida.
Dum salto, Fernando sentou-se na cama.
-A sério?!
-A sério.
- Mas isso é uma notícia maravilhosa! Até que enfim! Não estarás enganada?
- Não. Tenho a certeza.
Um filho caía naquelas vidas como uma chuva numa sementeira mirrada. Tudo se iria transfigurar: A monotonia em variedade e a passiva renúncia em activa esperança. O que não pudera conseguir uma paixão cega e fiel, seria conseguido assim, naturalmente. E pôs-se a dar largas à sua alegria.
- Nem tenho palavras! Se soubesses...
Até ali, não dera ainda pela estranha atitude da mulher. Só depois de a sua emoção transbordar, foi sensível à maneira neutra, enigmática, como lhe falava. E, amorosamente, num misto de despeito e queixume, ia para lho dizer, quando ela recomeçou.
- Quero, contudo, acrescentar que nada mudou nem mudará entre nós.
-Ah...
Ficaram os dois calados largo tempo, como se estivessem atentos à barulheira que vinha de fora. Excitada pela aproximação da hora da comida, a criação do terreiro redobrara a algazarra. Cada vida reclamava a sua quota parte no maná do Senhor.
Aberta pelos criados, a casa era agora como que a caixa de ressonância de toda aquela força vital, procriadora, devoradora, agressivamente solidária. E, no meio de tanta pujança, Fernando sentia-se inerte, vencido, a cobrir com amargura a evidência que nas palavras da mulher lisonjeara a sua virilidade.
- E dizer-me isso precisamente numa hora destas!... - desabafou, sem poder mais.
- Sempre to disse.
- E haveria necessidade de o repetir mais uma vez?
- Parece-me que sim. Se não gosto de ti, era um dever de lealdade...
- Azedar a alegria que eu pudesse ter.
-A tua e a minha...
- Que monstro tu me saiste!
- Nunca te enganei. Quiseste...
- Infelizmente.
Nem ultrajado no pior momento da sua prova, o amor pela mulher o abandonava. Mantinha-se intacto e humilde. Ela é que não desarmava.
- Tem bom remédio... A lei que nos uniu, pode-nos separar.
-Agora!
Sabia bem que o momento, apesar de agravado, não tornava mais irremediável a solução. Assim o seu coração pudesse perdê-la!
- Não vejo que o simples facto de estar...
- Cala-te! Pelo amor de Deus, cala-te!
- E de que vale calar-me? Porventura as coisas deixam de ser o que são? Estupidez maior, tudo isto!
Fraca, não tivera coragem de o repelir totalmente. Cedera, a dizer que não. E ali estava, irremediávelmente prisioneira dum homem que desprezava.
Continuava o barulho frenético da bicharada. E a mesma naturalidade animal, espontânea e pulsátil que levara Matilde a esvaziar a alma do peso da sua angústia, tinha nos ouvidos do marido um estranho sabor a escárnio. Parecia-lhe que a vida inteira se ria dele.
- É de uma pessoa endoidecer!
- E de quem é a culpa? Sabias bem, quando nos casámos, que gostava doutro...
Como sempre, no meio da tempestade surgia a alma negra do rival. Tão negra, que só a conhecia pela sombra.
- Tem ao menos vergonha!
-De queê?!
Era como se estivesse a ser esbofeteado pela mão invisível dum fantasma. Um fantasma que na força dos anos e do amor desprezara, certo de que o venceria no coração da mulher. - Eu sei esperar !-respondera imbecilmente às obj ecções que ela punha a uma possível harmonia futura. Serenamente confiado nos próprios sentimentos, esquecia-se de avaliar a firmeza dos dela. E o espectro vencera-o e agredia-o ainda.
- E posso, finalmente, saber ao menos o nome desse príncipe encantado? - perguntou com dilacerada ironia.
- Não. Nunca o saberás.
Subitamente, toda a casa foi rodeada dum silêncio sagrado. A hora da refeição chegara, e no terreiro a gritaria transformara-se numa paz agradecida.
- E talvez seja melhor... - rematou ele, desesperado. - Era a desgraça completa.
Imóvel, Matilde continuava a olhar a campina onde o sol, que se erguera, acariciava as sobreiras despidas. Só ele, generoso, aquecia aquelas feridas expostas.
A IDENTIFICAÇÃO
Como um grande harmónio que corresse pela noite fora a semear sons enrouquecidos, o rápido passou em direcção ao Norte. Um único passageiro desceu na estação, a contradizer a imagem.
- Tenha a bondade de nos acompanhar.
-Perdão!
- Faça favor.
- ó senhores, pelo amor de Deus! Deve haver engano.
- Se houver engano depois se verá.
- Sim, mas eu é que não estou disposto...
- Ande! Ande, e não faça barulho.
- Não! Santa paciência!
- Mau!
- Está bem, vou. Mas quero saber primeiro O motivo desta violência.
- O motivo a seu tempo o saberá.
É sempre desagradável caminhar entre dois guardas. Mesmo numa terra onde se é de todo desconhecido, cada semelhante que se cruza dá a impressão de ser um juiz que nos condena sem apelo.
- Vai preso...
E Leonel sentia que a sua autêntica inocência fora irrremediàvelmente atingida. Tocada pela vara da força, posta em dúvida uma vez, ninguém mais a poderia restituir à brancura original.
- Estar um homem sujeito a uma humilhação destas!
-E que temos nós com isso?
- Se são os senhores que me prendem!...
- Nós cumprimos ordens.
Só a escuridão o protegia. Só ela esbatia os traços do seu rosto anguloso e o tornava impreciso na retina de quem o via.
- Que país! A que propósito...?!
- Não insista, que é escusado.
Procurava, apesar de tudo, mostrar a quem passava que ia ali apenas em suspeição. Que protestava e, portanto, não aceitava o ferrete. E a sua única preocupação era dialogar, quebrar de qualquer maneira o silêncio criminal
da caminhada. Mas quanto mais movimentadas eram as ruas por onde seguiam, mais tumulares os guardas se tornavam.
- Bonito!
E calou-se, impotente. Não há dúvida que ficaria na memória apressada de toda aquela gente como um vulgar malfeitor.
Enquanto subia as escadas do velho edifício onde ia ser identificado, serenou. A neutralidade fria do granito aconchegou-o mais ao calor da consciência. Apesar de tudo, era uma pessoa de bem. Embora fosse aborrecido ver-se na situação em que estava, a verdade é que estas coisas da ordem pública não podem evitar certas confusões. Claro que a ofensa à sua dignidade humana permanecia. Mas, enfim, paciência!
Na sala de espera excitou-se outra vez. Sentado entre ladrões e vádios, a recolha do dia, sentia-se indissolúvelmente ligado a eles. Viesse que desculpa viesse, fosse qual fosse a justificação, fizera parte numa dada hora dos gafados da lei. A liberdade fora-lhe contestada. Como eles, teria de se justificar. E como eles teria de se sujeitar à decisão final. Pois que diferença haveria, se todos eram guardados pela mesma sentinela, à espera da mesma sentença irrevogável?
- Vai um cigarro, camarada?
- Obrigado.
Durante as duas horas daquele convívio desmoronou-se-lhe o que restava do castelo inexpugnável em que morara. Nenhuma das muralhas resistia mais. A sua confiança numa ordem natural ruíra. Estava à mercê do puro arbítrio.
- Nós, agora.
Ergueu-se e transpôs, hesitante, a porta do gabinete.
- Boa noite - disse, amedrontado.
- Boa noite. Mostre-me os seus papéis de identidade.
Procurou na carteira, nervosamente, estendeu a mão e ficou à espera.
- Leonel Ramiro de Lencastre
- Exactamente.
-Engenheiro...
- Sim.
-Donde vem?
-De Lisboa.
-Fazer o quê?
- Aqui, nada.
- Essa agora! Acredita que haja alguém capaz de se deslocar de Lisboa a uma distância destas sem qualquer razão?
- Pode ser apenas obrigado a passar por cá, como eu.
- Ah! o senhor continua viagem? E para onde?
- Rio Torto. Tencionava seguir para lá amanhã de manhã, na carreira.
- A quê?
Hesitou. A devassa entrava-lhe já na alma. A que propósito diria àquele desconhecido a razão Intima e promissora que o levava?
- Assuntos particulares...
- Que assuntos?
- Peço desculpa, mas não digo.
- Veja lá se quer complicar as coisas!
Diante da ameaça, a sua timidez alvoroçou-se. E confessou, no tom e na emoção que daria ao acto no dia seguinte, que ia pedir a noiva em casamento.
- Muito me conta! Por essa não esperava eu. Havia qualquer coisa de escarninho na aceitação do que dissera. E a sensação de que tudo quanto revelara pudesse ser apenas tomado por justificação, fê-lo corar de vergonha.
- Ora bem. Veja esta fotografia...
Um assassino qualquer evadira-se da cadeia. E os jornais, diligentes na defesa sagrada da segurança pública, reproduziram o retrato do facínora, no tom esfumado e vago dos jornais. Diligente também, e avisada de que viajava no comboio daquele dia um sujeito cujos sinais correspondiam aos do foragido, a polícia esperara Leonel na estação a que se destinava.
- E que tenho eu com isto? - perguntou, longe da realidade.
- É o que estamos a averiguar.
Só então compreendeu do que se tratava. E sentiu-se mais infeliz do que ofendido.
- A V. EXa. parece-lhe que haja realmente semelhanças?
- Semelhanças, há.
Observou novamente o sósia do papel. E foi com sincera humildade, sem qualquer piedade para com as próprias feições, que lhes sobrepôs os traços patibulares do cadastrado. Objectivamente, não condiziam.
- Francamente, não vejo. Mas se V. Exa. entende que sim... Estou por tudo.
Em face duma renúncia tão absoluta, o outro recuou. E teve mão no perigo.
- O senhor é ou não é engenheiro?
- Ser, sou.
- Então, se é engenheiro, não é este sujeito! Portanto, não pode estar por tudo!
- Que hei-de eu fazer?
- Provar que é realmente...
- Além dos documentos que lhe mostrei e da minha palavra, não vejo...
- Conhece aqui alguém?
- Ninguém.
O inspector coçou a cabeça, a congeminar. No intimo já estava convencido da verdade. Mas necessitava de a meter pelos olhos dentro àquela natureza embaraçada e vulnerável.
- Quer ver como nós tiramos as coisas a limpo de repente? - Tem família em Lisboa?
- Não. Os meus pais são algarvios.
- Oh! diabo... Que raio de complicação! Bem, temos o recurso da sua noiva. Fala-se com ela.
- E diz-se-lhe que estou a ser confundido com um assassino, não?...
Ficaram ambos aniquilados com a perspectiva.
- Sim, realmente. De facto é desagradável. Nem me tinha lembrado. Em todo o caso é preferível isso a ficar aqui detido até amanhã. Compreende... Hen? Que lhe parece?
- Faça como entender.
- Ela tem telefone?
- É o doze.
Viu o marcador desandar como a roda da fortuna. E sorriu amargamente.
-De que se ri?
- De tudo isto. Da vida.
Mas a vida, embora absurda, articulava-se com lógica.
- Está? Está lá? Policia. O doze de Rio Torto, imediatamente... -É que fica tudo resolvido... - Está lá? Está? - Tenha paciência... Concordo que é aborrecido... - Rio Torto? Daqui comissariado. Desejava falar com a menina... - Como se chama ela?
- Isabel.
- Com a menina Isabel. É v. Exa.? Passou bem, minha senhora? Desejava saber se esperava amanhã a visita de alguém... Sim? Não. Nada. Acredite! Pelo amor de Deus! Um simples esclarecimento. Portanto... Exactamente. Engenheiro Leonel Ramiro de Lencastre. Tal e qual. De Lisboa. Muito obrigado. E esteja sossegada. Absolutamente! Creio que vai de manhã. Boa noite. Muito boa noite.
Pousou triunfalmente o auscultador.
- Ora vê? Foi um instante!
- De facto.
- E desculpe! São coisas precisas... Lamentáveis, concordo. Felizmente que tudo se resolveu pelo melhor. Pode ir descansado da sua vida e seguir o seu destino, que ninguém mais o incomoda.
- Muito obrigado.
-De nada.
Houve um breve silêncio de embaraço.
Ligados por aquele encontro forçado, chegara o momento de se despedirem para sempre.
E ambos sentiam pena de terem sido inimigos
na aventura acabada.
Até que o mais apressado reagiu:
- Saberá informar-me por acaso a que horas terei comboio para Lisboa, esta noite?
- Há o correio às quatro e meia. Mas não me disse que ia amanhã de manhã pedir a sua noiva?
O engenheiro teve um sorriso triste:
- Disse, mas já não vou.
O PEQUENO HERÓI
Onde arranjara o peão, sabiam eles. Comprara-o na loja do Valentim. Era de buxo e nunca se vira ferrão de aço tão aguçado. Quantos e quantos dias o não tinham mirado e remirado também, suspenso do tecto pelo rabo, asadinho, roliço, com circunferências verdes e amarelas à roda! Custava vinte e cinco tostões. Agora como conseguia jogá-lo daquela maneira precisa e terrível, é que não atinavam.
Depois do que se passara no castelo, aquela súbita mestria do Carlos fazia-lhes confusão. A cena estava ainda pintada de fresco na memória de cada um. Ah! rapazes, quando o Zarco largou por ali fora sem dizer nada, isso é que foi fugir! A malta sentada no pátio grande das torres, no rapiocanço, e de repente... Lá se havia ou não motivo para ter medo do barulho que se ouviu, é outra coisa. O certo é que o Zarco agarra na boina, e ó pernas! Um aguilhão a picar um rebanho não faria melhor. Parecia que tinham todos electricidade no cu. Na Porta da Traição, muito estreita, caramba, que atução! Como ninguém queria ficar para trás, está-se mesmo a ver: emperraram uns nos outros. Caneladas, empurrões, murros, era quem mais podia furar. Só faltou morder!
Segue-se que foi o Carlos o último a sair. Ia-se matando, o desgraçado! No derradeiro lanço das muralhas, qual escada nem meia-escada!
Atirou-se à bruta por ali abaixo. Apenas isto: uma perna partida e a cara num santo sudário. Resultado: a consideração, de que até ali gozava, pela rua da amargura. As coisas do prestigio são muito sérias. Se na ocasião em que o Zarco perdeu a cabeça e abalou, o Carlos se tem aguentado sereno no meio do pânico geral, o caso fiava doutra maneira. Assim...
Mas o pior mal era ele não entender a razão dos mais. Queria ter medo como a outra gente, dar às de vila-diogo na primeira ocasião, e continuar à frente das guerras, das marchas, dos assaltos e do resto! Ser o chefe. Ora não podia ser. Santa paciência!
Ainda a mancar, inválido de todo, já se propunha comandar uma excursão à mina velha onde uma raposa fizera criação. Nada mais, nada menos!
- Oh! oh! Juizinho no bestunto!
- Então e porquê?
- Porque não. O Gregório é que vai à frente. Ao menos ele não fugiu, naquele dia...
- Não estava lá!...
-Deixá-lo...
Não tinham pensado nisso, realmente. Se tivessem... E vai daí, talvez não. De qualquer maneira, o Gregório era uma pedra que ainda não fora atirada. Ao passo que ele...
- Mas eu não tenho medo!
-Ora, não tens! Viu-se...
Perdesse as peneiras. O seu reinado acabara.
Mas não desistia, o palerma! Sempre a meter o bedelho onde não era chamado.
- Já vi bago pinto. Quereis que vos mostre?
- Também o Gregório viu ...
- A bom entendedor...
- Qual o quê? Olha lá que tivesse vergonha! Agarrei três perdizes numa ichó. Estão em minha casa, numa gaiola, à mostra para quem não acreditar.
E ninguém acreditava mesmo. Paleio ouviam eles muito.
Nisto, chega o tempo do peão ...
- Queres jogar?
- Quero.
Sim, apesar de tudo, lepra não tinha. De resto, quem ia calcular que logo à primeira ficasse desgraçado?
- Isso foi sorte! Calhou.
- Põe lá o outro, se és capaz.
-Ponho, e ponho bem!
Trás! Ali no vinte. Aberto em dois, como um figo. O grande filho da mãe!
Começou aí a inquietação.
- O Carlos escachou-me dois peões
- Não acredito!
- Eu arda! Nem me deu tempo de suspirar.
- Ai sim? Espera lá, que nós fazemos-lhe a cama. Anda daí.
Na baraça era o Gregório mestre.
Era... é como quem diz. Com um raio!, foi logo a matar.
-Já está!
- O que tu precisavas era de um moquenco no focinho...
- Atreve-te! Nem a alma se tava!... Rilhava-te!
- E refilão, o pedaço de asno! se fizera!
Mas como é que conseguira aquela precisão matemática? Nos mais anos, que diabo, não ia muito além de qualquer! Quantas vezes perdia! Agora...
E ele a gozar... Cuidavam que era só fazer pouco, não? Que, lá porque decretavam que não entrava nisto e naquilo, tinha morrido! Que perdia o seu lugar de principal do grupo, sem reagir... É o perdes!
Mas custara-lhe apurar a mão! Duas semanas de treino, sem descansar! Em segredo, claro está. Já que o abandonavam ...
- Andas sózinho, rapaz?! - perguntava-lhe a Leonor, admirada de o ver solitário no monte da Aveleira, a guardar o gado, inseguro ainda sobre a perna doente.
- Ando, sim senhora.
- Os outros não vieram?
-Ainda vêm...
E ponto final na conversa. Que necessidade havia de confessar as suas arrelias à Leonor, se mesmo aos de casa as encobria?!
- Amanhã quero o rebanho no Falicão. Pasta até ao meio dia nos carrascos, e à tarde mete-lo à lameira... - ordenara o pai.
- Será longe... - acudiu a mãe. - De mais a mais sem companhia...
- Vou muito bem. Não preciso de cães de guarda!
E não precisava. Apertava-se-lhe o coração à medida que perdia o povo de vista, vingava-se nas ovelhas à lapada, mas andava para a frente. Lá rirem-se dele, não!
- Tu és o Carlos?! Nem te conhecia... Estás melhor?
- Já estou bom.
- Tem cuidado, não escorregues por alguma fraga abaixo!
- Eu agarro-me aos cornos das cabras.
- E olha que andam lobos por aí... Disse-me o Quelhas que os viu. Comeram-lhe um cordeiro há dois dias.
Lobos! Se a Vareira, em vez de revirar os olhos zanagas para a ponta dos pés, os erguesse paracima...
- Olhe que bicheza ali anda! Não vê?! Qual milhafre, mulher! águia, e das verdadeiras!
- Será, será. Bem, adeus, e não te esmouques.
- Boa viagem, e dê lá recados...
- ó seu malcriado! Respeite quem é mais velho. Eu direi a teu pai...
- Não gaste a lingua, que lhe pode fazer falta.
Gralha duma figa! Estás melhor! Uma águia por cima deles a dar aos remos, e ela a chatear!
águia, e graúda! E não querem ver?!... Oh, oh!... A bizarma estava a perder altura... Mas é que descia mesmo, o raio do bicho!
Daí a pouco, pousada, mansa como uma pomba, as garras sem acção, o bico semi-aberto,
inofensivo, o resto do corpo a tremer como varas verdes, tinha a desgraçada à sua disposição.
Sorte, realmente! Dentro da saca, era limpinho! E o Gregório que agarrasse um pássaro assim! Nem de encomenda! Vinha mesmo a calhar. Quietinha que nem um pintainho.
E não é que de repente fica boa! Mal ia a tirar o capucho e atirar-lho em cima, fecha-se-lhe o bico como uma torqueês, finca as unhas no saibro, e as asas, chiça, que tinham vento! Foi um rápido, enquanto ergueu voo.
Bolas! Isto é, talvez não... No céu é que ela estava bem. Cada vez mais alta, e a dar voltas, a apertar, a apertar o cerco, até parar de todo num ponto, tal e qual como um peão...
Como um peão, era uma boa piada! E não se ter lembrado há mais tempo!
Logo naquela noite, quando a mãe ia ao arroz, acompanhou-a à sorrelfa, e ao entrar na loja largou-lha:
- Minha mãe, compre-me aquele peão, compre! - e pôs-se a mancar muito, de manha.
- Tu não tens em casa peões que cheguem?
- Aquele é melhor. Os outros não têm ferrão que preste, e os rapazes riem-se de mim ...
- Dá-lho! Tão pobre ficas com vinte e cinco tostões a mais, como a menos - ajudou a vendeira.
A mãe, que não via outra coisa e sabia das suas zangas com os companheiros, fez-lhe a vontade.
- Dá-lho lá.
Pronto! Faltava só treinar-se, às escondidas. Traçar um círculo no chão, e, como a águia, ir apertando, apertando...
Custou! Nada fizera até ali tanto a frio. E passar do puro divertimento dos outros anos àquela secura metódica, exigia uma tenacidade que o cansava. Mas tinha de ser. Nem que rebentasse!
E valera a pena. Ao menos agora era tiro e queda. Acertava nem que fosse num saltarico. Chegara o momento de retomar o poder.
- Queres jogar?
E o burro do Balbino sem perceber a marosca...
-Quero.
Foram a sortes.
- És tu a sair...
E não esteve com meias medidas. Tfuclas! Zás, trás, nó cego!
Ah! sim, punha o outro? Que maravilha!
-Tu pagas-mas...
Já calculava. Ia pedir batatinhas ao Gregório. Isso é que ele queria. O Gregório lambia também.
- Diz aqui o Balbino que tens farroncas?...
- Farroncas, não. Jogo...
- Vamos lá a ver.
Nem lhe deixou dormir o esgaravelhoto. Ainda o pobre andava à procura de equilíbrio, e já a morte lhe vinha a cair em cima.
Iam-se pegando. A coisa esteve por um triz. Morto por isso andava ele... O outro é que se encolheu.
- Hoje não. Fica para depois. Não perdes pela demora...
- Quando quiseres.
Não lhe convinha ser o primeiro a começar.
O pai viu então que tentava recuperar por cálculo o que perdera e procurou ajudá-lo.
- Parece que tens peão?!
- Já dei cabo de dezanove! Hei-de-lhes mostrar quem é que é o Gregório.
A águia caída no chão, e depois a pairar lá no alto, não lhe saía da lembrança.
- E não te ficarão com raiva?
-Alguns já dizem que são meus amigos...
-Nunca fiando... Se fosse a ti...
O pai, daquilo, não percebia patavina. Ali, a táctica era levar tudo a eito, até eles se renderem.
Mas não se rendiam, os safardanas. Cada vez mais danados!
E o tempo do peão a acabar...
REQUIéM
Foi a última gota do caudal. Pelas três linhas de escoamento, que atravessam o território inimigo como artérias secretas num corpo alheio, há quatro anos já que era um sangradoiro. O rio humano parecia não ter fim. Nocturnos e silenciosos, os seus braços, ao juntarem-se, em Torrão, formavam uma levada tão constante e caudalosa que se podia perguntar com razão se a nascente secaria jamais.
De resto, já nem o Lourenço nem a mulher pensavam nisso. Passados os primeiros tempos em que cada acto se acompanhava do seu lastro de angústias, o coração fora adormecido pela rotina. E a cada gesto seguia-se outro, naturalmente. O telegrama vinha, a cifra era traduzida em verdade, a máquina movia-se, e tudo se realizava metodicamente, sem vãs interrogações. Ajudava-os a ambos uma natureza calma, optimista, romântica apenas na expressão verbal das coisas. Diante do quotidiano concreto, nenhum dos dois tergiversava. Viam simplesmente o palpável. O lado prático e objectivo de qualquer problema. Por isso, a causa que serviam tinha neles não só a eficiência, mas também a superação da monotonia, condição dos grandes feitos que se repetem. Arrancar prisioneiros dos campos de concentração, salvar aviadores caídos, ajudar a evadir agentes de ligação ou técnicos cuja missão acabara, fazia parte do ambiente que respiravam. E pondo de lado sobressaltos ou escusadas emoções, arriscavam a vida a cada hora, sem desejarem saber quando e como acabaria tudo.
Tem a fortuna, no entanto, os seus caprichos inesperados, em guerras, casos e ocasiões. E eis que faz da última ferida a mais dolorosa, e do último gesto o mais singular.
O homem, apesar de ferido, conseguira atravessar os arames e fugir. A arder em febre, transitara de mão em mão, sempre a caminhar. E ao cabo de vinte dias de esgotamento, dera entrada em casa deles, na agonia. Logo ao recebê-lo na fronteira, Lourenço teve a certeza de que morreria. Mas na lei, tão profundamente humana, de todos aqueles anónimos elos da cadeia salvadora, havia um parágrafo desesperante: cada qual ver-se livre o mais depressa possível do fardo que trazia. E foi às costas fraternais do novo dono que o desconhecido transpôs as serras que circundavam Torrão.
Os oito filhos do casal dormiam a sono solto quando o pai entrou em casa. Por detrás dos vidros da janela, Filomena velava. Pacientemente, viu recolher os vizinhos, rarear os noctívagos, cessar por completo o trânsito na rua, até chegar a hora de com um gesto quase automático puxar pelo cordão do trinco oleado da porta.
-Vem ferido? - perguntou, a ajudar o homem no segundo lanço da escada.
- Duas balas no lombo.
Mais do que as palavras, valiam as acções. E nenhum adoçava a boca a dizer eufemismos.
Deitaram o doente na larga cama de lençóis de linho, tentaram fazer-lhe engolir algumas colheres de canja quente, examinaram os orificios onde o chumbo entrara no corpo e de onde babava o pus que dera origem à septicemia, agasalharam-no e reuniram-se em conselho na grande sala familiar.
Soalhada a velhas tábuas de castanho, ornada com litografias de grandes vultos da história pátria e da história da humanidade, era ali que se decidiam os momentosos problemas que transcendiam a pura intimidade do casal.
Tratava-se de chamar um médico. Por elementar dever humanitário e segurança criminal, era necessário dar esse passo grave, que implicava a revelação de tudo o que se passava a alguém que os poderia denunciar.
Pesados cautelosamente os prós e os contras, eliminados um a um os três antigos clínicos da terra, que Lourenço sabia venais e covardes, decidiram-se pelo nome de um rapaz novo que chegara há pouco, e não conheciam sequer. Homenageavam na escolha da sua pessoa o espírito solidário da juventude, e jogavam ao menos numa roleta onde havia ainda a esperança de uma possibilidade.
- Seja o que Deus quiser! - rematou ele, filosoficamente. - Nestas coisas chega sempre uma altura em que é preciso confiar na primeira pessoa que se encontra à mão. A meada enrodilha-se de tal modo, que tem de ser mesmo assim. E acontece às vezes que sai tudo bem. É uma questão de sorte.
De novo junto do foragido, viram que poucas horas lhe restavam de vida. E Lourenço correu a casa do doutor.
Bateu, explicou que tinha a mulher com uma dor, e lá conseguiu arrancar o rapazinho ao calor da cama.
- É longe.
- Não senhor. Duzentos ou trezentos metros para lá da igreja.
Pela rua acima, atabalhoou como pôde a súbita doença da consorte, enquanto media o perigo de se ir entregar naquelas mãos inexperientes. Os velhos tinham-nas trémulas e sujas dos baldões do mundo; aquele, embora puras, tinha-as certamente ingénuas. Valesse-lhe ao menos isso.
Na sua boa fé, o médico foi ouvindo. E como o caso lhe parecia simples e o companheiro simpático, mudou o rumo à conversa.
- É então cá da terra? Não o conhecia...
- É natural. Meto-me na minha vida, são pouco...
- E como se chama?
- Lourenço Varandas, um seu criado.
- Pois muito gosto.
Pareciam mais dois amigos a passear no recolhimento da noite, do que estranhos que uma hora má tivesse aproximado.
- O senhor doutor é que veio de longe!...
- Calhou. Não tinha para onde ir. Mas não estou arrependido. Gosto desta gente. É franca.
- Há de tudo... às vezes as próprias circunstâncias obrigam...
O tom reticente da resposta desequilibrou a harmonia. E chegaram calados ao cimo da calçada.
-É aqui.
Entraram, subiram, e foi já diante do moribundo, com o corpo atlético emoldurado na porta a evitar qualquer retirada, que Lourenço disse a verdade:
- Trata-se de um refugiado, senhor doutor...
Viu o rosto do médico empalidecer e os lábios contraírem-se-lhe nervosamente. Mas viu também que, em silêncio, pegava na mão do doente, tomava o pulso, abria a cama e examinava as feridas.
Impassível no seu caixilho, Lourenço acompanhava o exame.
-Está visto... - concluiu o médico. - Podemos ir.
- Por aqui, se faz favor. Cuidado com o degrau.
Entraram quase a par na grande sala, e à luz de uma lâmpada que parecia brilhar com toda a energia da cidade apagada, olharam-se em silêncio. Foi o médico que falou primeiro.
- Não há nada a fazer. Está pronto.
Lourenço tirou do bolso o maço de cigarros, ofereceu, acendeu um e começou a fumá-lo com toda a calma. Estava ainda coberto de pó da caminhada, e tinha agarrados ao cotim das calças picos e sementes dos carrascais que atravessara.
- Já calculava - disse, por fim. E acrescentou em voz pausada: - O senhor doutor desculpe metê-lo nisto, mas a verdade é que eu não posso dar a conhecer este homem às autoridades, nem vivo, nem morto. Tenho que o fazer desaparecer de qualquer maneira. Por outro lado, se ele morrer, como de facto vai morrer, preciso que alguém me possa um dia passar um atestado em como não fui eu que o assassinei.
- Perfeitamente - murmurou o médico, mais pálido ainda.
Foi então que a mulher entrou, cumprimentou com um leve aceno de cabeça, e disse:
- Acabou mesmo agora.
Sem mais palavras, dirigiram-se os três para o quarto.
- De facto - confirmou o rapaz.
Filomena cobriu o rosto do estrangeiro com a dobra do lençol, e saíram.
-Portanto, no caso de ser preciso...
- Evidentemente.
Enquanto a lâmpada na sala continuava a brilhar, e Filomena se perdia ao fundo do corredor, desceram eles. Na rua, a friagem da noite aproximava-os mais.
- Pouca sorte... - disse o médico, como alheado. - Morreu no último momento.
- Não percebo...
- A guerra vai acabar.
- Parece-lhe?
- Não ouviu as noticias de hoje, na rádio, nem leu os jornais?
- Não pude.
- Ah, é verdade! Desculpe. Pois vai. Pediram a paz.
Despediram-se com as frases banais de todas as despedidas, só cúmplices por dentro, e Lourenço voltou a casa, apressado. A luz da sala já não brilhava, e era preciso ainda ir enterrar o morto.
- Vamos? - perguntou à mulher.
- Que remédio!
- Olha o que o Miguel ressona! Tem que se lhe mandar ver aquele nariz.
Com o cadáver seguro pelos ombros e pelas pernas, atravessaram a casa e desceram a escada da loja.
Ele ao ferro e ela à pá, abriram durante muito tempo a cova necessária de sete palmos. E já quase de madrugada, quando o dia começava a querer atravessar as frinchas da parede, tinham acabado. Faltava apenas colocar sobre a sepultura a grande tulha do pão, que ficou ali como um monumento de esperança.
Miguel Torga
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