Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PELA BEIRA DO DESVIO / Odette de Saint Maurice
PELA BEIRA DO DESVIO / Odette de Saint Maurice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Vinte anos! Vinte anos!...

Para trás é pouco, tão pouco que se perde na inconsistência do que mal chegou a perceber-se. Tudo fica na frente, na certeza de que virá o que apenas se idealizou e se apetece no sonho e na razão e nos puros direitos da mocidade recém-chegada.

A promessa é clarão. A ventura, eternidade. Coisas espantosamente belas que não suspeitam da própria fragilidade.

O botão oscila na roseira, tocado pela magia do perfume concentrado. Vem num futuro invisível a rosa que se dará sem reservas, abrindo-se para depois murchar.

A nuvem flutua no espaço, delicada, e pueril, ligeira e graciosa. Não sabe que chegará a cobrir o céu e chorará no infinito todas as lágrimas humanas.

Não há ontem. Há hoje e muito pouco amanhã.

Os olhos da rapariga, só os olhos, riem. Na seriedade do porte, na compostura sensata, aqueles maliciosos, esplêndidos olhos, falam da alegria exuberante que ela transporta, alegria feita de alegria sem motivos especiais, sem mais nada, nascida de factos simples mas indiscutíveis.

O botão não é rosa. A nuvem não tapa o Sol.

Ela tem vinte anos!

Quem se atreve a censurá-la? Quem pode, olhando-a, duvidar da sinceridade, da beleza, do valor das criaturas e da pureza da vida?

Pobre de quem não sabe render-se de mãos postas e

coração agradecido às pequenas coisas que são por vezes as únicas dignas de inspirar hinos e merecer batalhas!

Não importa que o mote se repita quando a poesia arranca do espírito extasiado frêmitos de prazer.

E os olhos da rapariga continuam a brilhar, resplandecem sob a disciplina das pestanas que palpitam, velando-os repetidas vezes. E tocada de leve mistério pelo jeito sem artifício, ela é a virgem que deífica todas as graças e todos os arroubos.

No ramerrão sujo e moroso, cheio de gente, que vai trepando a íngreme ladeira da vida, ela desperta ora invejas, ora cobiças. Mas não dá fé do curioso interesse que a envolve. Segue alheia ao ambiente, imersa no mundo interno dos seus pensamentos. Botão que não é rosa, guarda o sabor que ainda não conhece abelha. Nuvem que não esconde o Sol, deixa que toda a luz do mundo divinize a mais vulgar caminhada. !

Vinte anos! Vinte anos!

É a altura em que nascer parece a melhor coisa!

Os olhos da rapariga continuam a fulgir.

Há quem fale da graça de tanta juventude, da inconsciência de tanta espontaneidade.

Uma fanfarra soa, estrepitosa. E chega aos ouvidos dela, chamando-a, obrigando-a a voltar-se para a realidade.

Há almas que se inquietam, desconhecendo até onde vai o direito de a acordar para o que ela não pressente.

Há almas que se interrogam porque não sabem qual o caminho por que ela seguirá, se se deixar empurrar. As mãos apertam-se. Trocam-se frases de angústia.

Ela passa. Passa e continua.

Deixam-na seguir, calando a pena de não serem capazes de retê-la. O tempo, que de minutos vai fazendo séculos, leva-a consigo.

Ela é ainda a estrofe maravilhosa que procura rima.

O que fica no espaço franqueado nada lhe diz. Anda toda no momento actual, no presente. Não dá, sequer, pela fuga irremediável das mais belas horas, as que o destino, pròdigamente, começa a oferecer-lhe, dia a dia.

O clarão dos seus olhos mantém-se luminoso.

O Sol brilha... brilha para iluminar os seus vinte anos e colorir todas as venturas que por ela passam!

Sente-se despreocupada como a água que segue o curso normal apesar dos rochedos que tentam deter-lhe a passagem.

É a mocidade com os seus direitos. Não vale a pena dizer-lhe: reconsidera!

Enquanto durar, vale mais que todos os conselhos.

Tão bela!

Tão rápida...

Quem fala na morte, no fim?

Não! Nunca!...

Caminha, idade soberana! O teu reino ama-te e obedece-te! Os teus vassalos adoram-te a perder de vista!

Abençoados vinte anos!

A rapariga nada tem de frívola nem de inconsciente. Não lhe cabe inteiramente a culpa de atear o fogo onde se queima o incenso amoroso que a perfuma, entontecendo-a.

Ela recorda nitidamente certos avisos positivos que nada lhe dizem, contudo.

"Muitos sinos badalando juntos podem não deixar

ouvir a chamada da ventura... E desse engano nasce o erro sem solução... "

Sinos badalando juntos! Oh, que revoada de sons inebriantes, que de harmonias prometedoras!

Toquem, sinos, toquem à vontade, livremente!

Os sentidos dela, afinadíssimos-incluindo o auditivo... -garantem-lhe o absoluto domínio da confiança.

Ela não ensurdece!

A vida precisa de frio e de calor para despertar hoje o desejo de que amanhã seja outra coisa. No futuro reside a eternidade das ilusões que se afiguram sagradas. Inútil discuti-las!

As lágrimas não ocupam lugar certo. O riso preenche os espaços livres. Esta é a hora em que tudo fica na frente.

A ela, à rapariga, assistem-lhe as possibilidades mais completas, mais amplas. Nada a detém, nada a embaraça. A felicidade que a embalou e criou prepara-a para desejar a glória de a possuir até o fim dos fins.

E a rapariga segue, contente de tudo e de si mesma. Não apressa o passo, para chegar mais depressa. Vai naturalmente. Tem tempo! Tem a vida inteira à espera dela.

 

"Vinte anos! Vinte anos!... Para trás é pouco, tão pouco que se perde na inconsistência do que mal chegou a perceber-se. Tudo fica na frente, na certeza de que virá o que apenas se idealizou e se apetece no sonho e na razão e nos puros direitos da mocidade recém-chegada".

Se o lar reflecte o caracter, a educação, a personalidade dos que nele abrigam a sua verdade-verdade nítida de sentimentos conduzindo à ventura-aquele, erigido desde os alicerces para acalentar a família, concretizava, sem dúvida alguma, os seus criadores, esses que o povoavam com nobres qualidades e elevados conceitos. Havia ali uma realidade e não uma fantasia. Ressumava claridade, beleza, harmonia. Eram a ordem, o asseio, o aprumo presidindo notáveis à formação dum conjunto indissolúvel.

Esse lar era-lhe, também a ela, familiar.

Atravessou a moradia sem poder eximir-se, não tanto, à sensação de agrado que sempre ali a recebia, espalhando-lhe nas veias a quietude de quem é amparado e compreendido. Subiu a larga escadaria, coberta em quase toda a largura por magnífica passadeira de veludo cinzenta

como desde que dera fé de existir, a cara "de Vinci", colocada ao topo, na parede central, que valia uma fortuna, e Pedro Torralva duma das suas longas viagens trouxera de presente à esposa.

Ela e a mulher formosa do quadro, amigas velhas, cumprimentavam-se quase diariamente. Fora talvez a linda inspiradora da tela, igual na passagem do tempo, quem incutira àquela mocidade trepidante a extraordinária fé na perpetuidade do mais efêmero dos bens: esse que uma somente possuia em presença e a outra alcançara definitivamente.

Tónia sorriu ao sorriso incansável, onde havia a doçura e o êxtase de qualquer momento eternizado. Mas não se deteve a fazer-lhe uma reverência, como noutros tempos. Apenas mentalmente lhe disse bom dia.

Sobre os contadores, no amplo corredor, dois budas horrendos piscavam-lhe o olho, bonacheirões. As gravuras inglesas, preciosas, guardavam com elas muitas horas de estudo, aprendendo história e fantasia de maneira agradável. Tudo ali tinha para ela um sentido e lhe pertencia em grande parte. Deixara há bastante de saber onde acabava a casa própria e principiava essa que a recebera menina de poucos meses.

Porque tudo fora até então de molde a poupá-la à revelação dos pesares, devia acreditar que o destino lhe reservava uma felicidade sem limites. Para a indemnizar

de lhe haver vibrado um primeiro golpe, logo ele lhe oferecera dois lares em vez dum...

Atravessou todo o primeiro andar.

Sabia para onde se dirigia. A porta do quarto dos roupeiros estava entreaberta. Meteu a cabeça e espreitou.

Os seus cabelos encaracolados, indisciplinados, coroavam um rosto harmonioso onde os olhos admiráveis riam tanto como os lábios carnudos, desenhados em altura.

Matilde Torralva, ao desviar-se do grande armário de nogueira onde a sua figura delgada quase desaparecia, na devoção de cuidadosas arrumações, avistou-a. E, com uma espécie de alívio, exclamou: - Oh, marota! Julguei que já não viesses! Tónia precipitou-se para os braços que se lhe ofereciam, abertos, e poisou dois beijos nas faces que principiavam, tènuemente, a enrugar-se, em afirmação que a rapariga, teimosa, se negava a reconhecer.

Matilde repetiu:

- Tão tarde! Tão tarde!

Tónia despiu o casaco, largou-o em cima da cadeira próxima e enquanto a Madrinha, indulgente, lho pendurava, protestou:

- Tarde? É só meio-dia e meia hora!

- E três quartos, se fazes favor! Um pouco mais e passavas por baixo da mesa.

A rapariga simulou grande consternação, desmentida pelo fulgor das pupilas radiosas:

- Isso! Era um bonito começo de dia para quem se deitou às seis da manhã e quase nem dormiu para cá vir!

  1. Matilde abriu a boca, em pasmo. Logo depois, recordou-se

- É certo!... Não me lembrava. Foi ontem o baile em casa dos Almacima!

- Só assim?

- Só assim o quê?

- Dos "Almacima", sem mais nada?...

- Que queres tu a mais?

- O nome do herdeiro, cujo vigésimo-sexto aniversário foi pomposamente celebrado, o nome todo, ora pois! - e riu-se, declamando enfática e contando pelos dedos simultaneamente: - Ramiro Antônio Luís Manuel Fernando de Andrade Fonseca de Ataíde Pombalinho de Sousa Mesquitel Ervidel Pinzano de Atuoguia e Lanhosode Almacima! Ufa!... O dono é grande... mas o nome ultrapassa-o!

A Madrinha fitava-a entre espantada e desconfiada:

- E tu... já lho decoraste?

- Pudera! Todos os dias mo repete! Acha que devia habituar-me à sonoridade dos seus apelidos cheios de brasões!...

No olhar de Matilde passou uma sombra:

- Tónia...

Tónia sentara-se na cadeira de que a madrinha pendurara o casaco. Baloiçava a perna fina. O sapato, na ponta do pé, oscilava. Havia naquela atitude uma garridice sem artifícios, mas onde perpassava qualquer coisa de tão provocante que Matilde não pôde conter uma censura.

Aliás, ela seria, no mundo, a única pessoa a quem a moça terrivelmente amimada e amada suportaria opiniões discordantes das suas.

- Não gosto da vida que tu levas, Maria Antónia.

Tudo na jovem se imobilizou. De repente, os límpidos olhos obscureceram-se, turvaram-se, inquietos, cheios de incompreensão:

- Oh! Porquê, Madrinha?

A sua beleza vinha de dentro para fora e ela limitava-se a receber as homenagens da vida! Que mal faria?

- Festas constantes...

- Convidam-me!

- Apaixonados às dezenas...

- Não namoro ninguém!

- Um desassossego que o teu pai não devia consentir...

- Oh, Madrinha! Mas estou na idade! Tenho vinte anos!

A afirmativa indiscutível ecoou de tal maneira vibrante que Matilde, após segundos de rápida análise introspectiva, rendeu-se sem combate.

- Está bem... Não há argumentos que te resistam! As circunstâncias apresentam-te o mundo numa bandeja... e tu serves-te!

Já perna e pé se agitavam de novo e os olhos recuperavam a alegria buliçosa, plena.

  1. Matilde fechou o armário, encolhendo os ombros, ao de leve. Maria Antónia ergueu-se atrás dela, abraçou-a pela cintura, contra si.

- Madrinha... -sussurrou-tu também tiveste vinte anos, pois tiveste?

Matilde aceitou a carícia e apertou-lhe as mãos, ternamente.

-Creio que sim... -volveu.

- Lembras-te bem?

- Há coisas que não esquecem nunca!

- Bom... Tu tiveste-os... e eu tenho-os agora, percebes?

Habituada à maneira de ser dessa criatura em que sempre amara a filha que não lhe nascera, Matilde pressentiu que Tónia precisava naquele momento, não de conselhos, mas de aplausos.

Amimada pela sorte, Maria Antónia recusaria tudo que pudesse diminuir a euforia dos sentimentos próprios e da sua inabalável confiança no porvir.

Era um temperamento arrebatado, fogoso, batalhador. Parecia-se pouco com a mãe, a que se deixara morrer por um desgosto de amor, romântica e silenciosamente...

Junto da criança que tanto carecia de si, Matilde experimentava uma sensação de culpa sem remédio e sem mácula. Por terrível capricho do acaso, passando sobre a cabeça da órfã sem a tocar, qualquer coisa ficara para trás...

Ela, Matilde, sem o suspeitar, desposara o homem por quem a sua mais íntima amiga suspirara. Virgínia fora uma pessoa concentrada, silenciosa, retraída. E Matilde não pressentira o sofrimento que lhe causara, tanto mais que a outra acabara aceitando o rapaz exuberante e ardente que de há muito a assediava e que, ao perdê-la, aflorara as beiras do suicídio, salvo para a vida e para o trabalho pela filha que restava como oferenda de um amor perdido.

Matilde conhecera o drama através do pequeno diário que a amiga, no leito de morte, entre agonias lhe pedira que destruísse.

Atraiçoando os últimos desejos da moribunda, Matilde ficara expiando o crime na aceitação do pesar irremediável.

O mal consumara-se.

Amada e amante, Matilde jurara que velaria por Maria Antónia e não a deixaria ser infeliz, defendendo-a de quem porventura intentasse roubar-lhe quanto ela viesse, ambicionar...

Tónia, porém, herdara mais do caracter

objectivo, de Carlos Val-Rei, o homem que possuira uma mulher sem coração e que nunca dera pela tremenda falta!

Uma espécie de angústia, que Tónia não podia ver, enevoava os olhos pálidos de Matilde, cujos dedos acariciavam os da rapariga apoiados contra a cintura. Sentia-lhe o calor da fronte, encostada às suas costas.

Escutava-a e não dizia nada.

- Madrinha, madrinha... tu, aos vinte anos, também eras como eu, a rapariga mais feliz do mundo? Diz, Madrinha, diz... tu também guardaste o coração, intacto, para o grande amor a que te deste

Matilde parece indecisa entre dois sentimentos opostos: o de repeli-la e esquivar-se a responder e o de acalentá-la para de forma alguma ferir a confiança que se lhe entregava.

Em boa verdade, não era a primeira vez que assim se via interrogada. Nem que referia para a curiosidade sôfrega da afilhada estremecida o singelo e formoso romance do seu casamento. Aliás, sinceramente, agradava-lhe sempre recordar o tempo que ficara longe do presente sereno.

A voz cariciosa insistiu:

- Responde, Madrinha.

- És uma tonta!

- Mas guardaste, Madrinha?

Não resistiu mais:

- Guardei.

- Foi maravilhoso, Madrinha?

- Sim, foi.

- Valeu a pena?

- Valeu...

Valera a pena!

Durara a eternidade das coisas belas demais esse amor que o noivado coroara. Na realidade, alcançara a ventura que pode caber na calma afeição que toma o lugar dos arroubos bem firmes.

Pedro Torralva era um amigo, um companheiro dedicado. Ela... ela talvez continuasse apaixonada. E talvez seja ridículo um amor assim, vinte e seis anos depois Ido casamento...

Pedro estava na lógica. Ela... ela...

Bem, não ia dizer a essa que vinha chegando ao mundo que a ventura das mulheres casadas é uma coisa imensamente difícil de construir e erigida à custa de muitas lágrimas, muitas renúncias, muitos sacrifícios, exaltando até à grandiosidade o sentimento profundamente enraizado!

Tónia embalava-a, como se dançasse.

- Madrinha, como foi que o reconheceste

- Quererás fazer o favor de largar-me?

- Como foi que soubeste que era ele? Ouviste-o entre os sinos todos... ou pairava o silêncio à tua volta?

Matilde riu-se, mas sem sinceridade:

- Isso foi do baile de ontem?

- Responde, Madrinha! Gosto tanto de saber!

- Pergunta a outras pessoas, sim?

- Não... não sabem dizer-me nada! -e após uma hesitação, acrescentou: -Interrogaria a minha mãe... Ela, por certo, elucidava-me, para que eu não venha a enganar-me no caminho!

Precipitadamente, Matilde interrompeu-a. Contraíra-se-lhe o rosto numa expressão de angústia:

- Vejamos, Tónia! Isto é conversa para rapariguinhas!.

- Não, não é! Elas não compreendem, não me satisfazem... não procuram o mesmo que eu!

- Como não?

- A maioria busca o prazer, a liberdade, a aventura, o capricho... a fantasia! Eu procuro-O!

Com doçura, D. Matilde perguntou:

- Não receias passar por ele sem o ver?

- É impossível! Há-de caber dentro da minha alma de tal maneira que desde o primeiro momento o sentirei! Foi o que te aconteceu a ti, Madrinha!

- Deixa-me, Tónia. São horas do almoço.

- Eu sei como foi... eu sei...

- O Pedro está aí a chegar, querida. Vamos para baixo.

Tónia abraçava-a com mais força. A sua fronte roçava os cabelos da nuca da senhora, que não tinha coragem de libertar-se, de esquivar-se à necessidade de expansão que a rapariga satisfazia junto dela, da sua afeição cheia de atenções.

- Conheciam-se de vista... Nunca se haviam falado. Certa tarde, numa sala de chá, sem perceberem porquê, fitaram-se, sorriram, conversaram... E nunca mais puderam passar um sem o outro! Daí a meio ano, estavam casados! Foi simples e foi belo! Aceitaste a felicidade que passou ao teu alcance...

Matilde não podia mais.

Era simples e belo, dizia Tónia! Sim, muito simples e muito belo! E porque tudo sucedera daquela forma, Tónia nascera e ficara sem mãe!

Série de coisas singelas com repercussão dramática!

Matilde conseguira desprender-se. Procurava dissimular a emoção, rir-se, distrair a rapariguinha.

- Vejamos, garota, deixa em paz o meu tempo e fala-me do teu! Quererás tu descobrir se o eleito se oculta nesse Almacima de quem decoraste o nome?

Maria Antónia conservou-se imóvel:

- Oh, não!

Chegava a ser desconcertante. Falava de tudo aquilo, mas nenhuma ansiedade transparecia. Nela tudo era certeza e não inquietação.

Tónia repetiu:

- Oh, não! O pobre Almacima não conseguiu mais do que isto: fazer-me decorar-lhe o nome! É terrivelmente maçador, sabe ? Ontem, no baile, não me largou. Lamentei imenso que o Gabriel não aparecesse, para me livrar dele!

- O Gabriel? -e fitou-a, agudamente. -Ele cada vez gosta menos desses divertimentos.

- Mas tinha-me prometido ir!

As pupilas de Matilde animavam-se:

- Fez-te falta?

- Imensa! -e acrescentou: -Bem sabes que é o único com quem posso ser eu, sem ouvir declarações de amor!

A Madrinha não respondeu. Mas o clarão das suas pupilas extinguiu-se e os lábios contraíram-se-lhe ligeiramente.

Num carrilhão, próximo, soaram 13 badaladas.

Fora ouviu-se um klaxon tocar repetidas vezes. E logo a seguir um ranger de portão, abrindo-se.

- Vamos para baixo... O Pedro chegou.

Desceram.

De novo a rapariga e a Madona se encararam. No olhar da tela parecia haver uma expressão secreta, que a rapariga, sem saber porquê, notou. Voltou-se para a admirar outra vez, como que surpreendida.

Foi o bastante. O pé escorregou-lhe no degrau e se Matilde, ao ouvir o pequeno grito, não lhe opusesse firma barreira com o corpo, Tónia despenhar-se-ia.

Entrou na sala de jantar um pouco trêmula do susto, mas rindo.

Enquanto a dona da casa inspeccionava a mesa, Tónia deu a volta à majestosa quadra onde, entre requintes de arte, avultavam raridades em porcelanas e louças de grande valia.

Quando se deteve a admirar uma terrina de Limoges, sumptuosa, duas mãos taparam-lhe os olhos. Tónia não hesitou em classificá-las:

- Gabriel!

O rapaz largou-a e ambos se beijaram nas faces, afectuosamente, singelamente.

Logo Maria Antónia fez cara de amuada:

- Estou muito zangada contigo, sabes?...

Simpático, feio, magro, de mãos enfiadas nos bolsos, Gabriel encarou-a com uma expressão enigmática:

- Porquê?

- Ainda tens o desplante de mo perguntar?

- Claro!

Ela abanou a cabeça:

- Isto é o cúmulo! O cúmulo dos cúmulos!

- Repito: porquê?

- Mas, meu burro, porque levei a noite à tua espera!...

Ele esticou o lábio inferior, num trejeito céptico:

- Coitadita! Não tiveste par?

Tónia agastou-se:

- Tive muitos pares! Muitíssimos, entendes? Mas, por tua culpa, vi-me obrigada a aturar aquele maçador, a quem se meteu na cabeça que há-de casar comigo!

- Parabéns!...

- Parabéns?...

- Claro! Deduzo que, sem a minha assistência moral, aceitaste a mão que se te pôs aos pés!...

Tónia encarou-o, sem saber se devia ou não rir-se. Acabou por soltar uma gargalhada:

- Oh, Gabriel! Palavra que não...

- Que não o quê?

- Que não me rendi! -e piscou um olho. -Sou muitovalente...

- Nesse caso, minha filha, andei lindamente não perdendo a noite! Acabei por não te fazer falta, vês?

- Enganas-te! Fizeste, e muita!

- Como?

- É simples. Ele não desistiu.

- Ah, não?

- E não, porque não tive maneira de me mostrar interessada por outro qualquer...

- Bem vês, o perigo era o mesmo... Ao passo que, contigo, eu podia à vontade "derreter-me"... Ele perderia as esperanças e eu ficaria livre!

Gabriel nada volveu. Para quê nublar de pesares desconhecidos os lindos olhos da sua amiga de infância, essa por cujo sorriso ele sacrificaria as maiores ambições, os próprios direitos? Se eram, desde sempre, dois camaradas admiráveis!

Na vida de Tónia, sabia-o, ele ocupava um lugar único. Ao pé de si ela era sincera, espontânea, verdadeira. Entre ambos nenhum equívoco, nenhum vislumbre de intenções secretas. Haviam brincado, discutido, crescido, juntos. Juntos estavam ainda.

Para quê fazê-la descer desse alto muro do qual sá ele tombara? Para quê fazê-la sofrer?

Deu-lhe o braço, arrastou-a para o varandim cheio de flores que se abria, envidraçado, sobre o jardim primorosamente cuidado. E disse-lhe:

- Lamento ter-te contrariado assim. A verdade é que... precisava de estudar. Tenho dois exames na próxima semana.

- Então fizeste bem! -e carinhosa: -Para te premiar de tanto juízo vou repetir-te palavra por palavra a nova declaração do Almacima.

- Ele persiste, nesse caso?

- Se já to disse! -e com um estalinho de língua: -É uma loucura! Vais ouvir.

Recuou, estendeu um pé em frente, alongou um braço, pôs os olhos em alvo.

Costumava parodiar às mil maravilhas os ares, as atitudes, as entonações dos seus apaixonados. Era uma imitadora perfeita.

Empolada, principiou:

- "Você, Tónia, é decididamente a única rapariga que pode acorrentar-me para a cadeia do matrimônio. Por você aceito as grilhetas, o peso das obrigações, a rijeza dos deveres, a aniquilação da minha liberdade! -e com voz natural: -Jesus, tanta coisa feia ao mesmo tempo! Mas palavra que principiou assim, tal e qual!

Gabriel ria.

Uma voz sonora interrompeu-a:

- Não continues a representar, pequena. Vem almoçar e no fim dás uma sessão para todos! Eu também sou filho de Deus!

Maria Antónia precipitou-se para o Padrinho.

E foi mais uma vez, no lar onde a vida não era promessa mas realidade, um delicioso almoço para todos.

 

"A promessa é clarão. A ventura, eternidade. Coisas espantosamente belas que não suspeitam da própria fragilidade".

Levantou a cabeça e escutou.

Não havia a menor dúvida. O klaxon insistente que lá fora atroava a luminosidade da manhã era o do carro deles.

Saltou da cama, enfiou os pés nas chinelas, vestiu o roupão e, aconchegando-o ao pescoço num resto de frio, abriu as vidraças, espreitou.

De pé, no passeio fronteiro, junto do elegante automóvel, olhando para cima, Gabriel acenava-lhe, com gestos largos.

- Vamos a Setúbal e almoçamos lá. Queres ir connosco

Normalmente, quando Pedro Torralva saía em negócio e levava a família em passeio, vinham buscá-la.

Maria Antónia riu-se:

- Podes perder tempo, hoje? Não precisas de estudar?

- Preciso, mas amanhã é domingo e eu troco os dias.

- Acho bem.

- A opinião é secundária. Capital: vens ou não?

- Ainda estou em trajos menoríssimos. Vocês acordaram-me!

- Desembaraça-te. Tens dez minutos.

- Dá-me outros dez de tolerância!

- Concedido!

À portinhola assomou a cabeça da Madrinha:

- Despacha-te. O Padrinho tem pressa.

- É um ar!

Recolheu-se e, numa corrida, fechou-se no quarto de banho.

Ouviu-se correr água. Pouco depois, embrulhada no lençol, voltou para os seus aposentos.

Tocou a campainha e principiou a vestir-se. Estava a pentear-se quando a criada apareceu:

- bom dia, menina. Quer o chocolate?

- Não, nada. vou sair já e não almoço.

- Credo! Mas não há-de ir em jejum!

Retocando os lábios e empoando-se de leve, Maria Antónia mirou-se no espelho. Era galante a imagem que ele lhe devolvia, da rapariguinha de cabelos encaracolados, aos anéis como os duma criança, vestida de azul, fresca como água de bilha...

Seria pecado sentir-se tão contente consigo própria?

Na rua a buzina insistiu, vibrante, num apelo repetido.

Tónia olhou para o relógio de pulso. Tinham decorrido precisamente dezoito minutos.

A criada teimou na sua:

- vou dar-lhe um cafezinho... Não leva tempo nenhum! E come uma bolacha!

- Não quero nada, Amélia. -Agarrou na carteira e calçou os sapatos. -Vais telefonar para o hospital e dizes ao papá que vou a Setúbal com os meus Padrinhos. Percebeste

- Percebi, menina.

- Não te esqueças. Telefona já... Até logo.

Amélia ficou resmoneando.

Enquanto esperou o elevador e nele entrou e foi descendo, Tónia pensou no pai. Revia-o atravessando a enfermaria, de bata branca, com um sorriso bondoso no rosto grave. O sorriso que subsistira porque fora consagrado à filha única, essa filha de cuja presença, generosamente, sabia privar-se tão amiúde...

Chegou junto dos amigos.

Torralva, ao volante, fingia-se escandalizado:

- Isto só a mim! Perder um tempo precioso por causa desta andorinha!

Dois sonoros beijos nas faces fizeram-no regougar, já vencido:

- Está bem, está bem. Lá manhã tens tu... Entra aí, que vou atrasado!

Gabriel puxou-a para o lado dele no assento de trás. A porta bateu. O carro partiu. Ela, rindo, instalou-se e declarou, satisfeita:

- Foram muito gentis vindo buscar-me!...

A Madrinha volveu-lhe:

- É preciso arrancar-te à poeira das salas e levar-te para o ar livreo bom ar que lava os pulmões...

Durante a travessia do rio seguiram cavaqueando amenamente. Nunca lhes faltava assunto. A intimidade e o afecto faziam com que os seus mundos se encontrassem e completassem. O que interessava a um interessava a todos. E os espíritos elevados tocavam-se na asa da sinceridade que dignifica as coisas mais simples, mais banais.

Chegaram à pequena cidade, alegres, bem-dispostos. Pedro Torralva deixou-os, no centro. Que passeassem, enquanto ia tratar de negócios.

Dando o braço a cada uma delas, Gabriel conduziu-as para as margens do rio, num lento deambular, entretendo-as com histórias e divertindo-as com anedotas.

Sentia-se ditoso.

Era assim que ele desejaria viver sempre, no meio de ambas, tranqüilo, seguro, cheio de paz. Esforçava-se por dominar a melancolia que a impossibilidade de realizar a mais honesta das aspirações nele geiava, a fim de não amedrontar a esquiva com súbita mudança de atitude.

O Sado, largo, de margens doiradas, fulvas, aqui e além salpicadas de verdes, corria manso, deslumbrantemente azul.

Era uma e meia quando se dirigiram para o restaurante principal, ao encontro de Torralva.

Foi outro almoço a todos os títulos delicioso e bem saboreado...

Tónia e Gabriel, joviais, desafiavam a réplica dos mais velhos, pelo sentimento irmanados com a sua radiante juventude.

Passaram o resto da tarde numa praia, maravilhados com a finura da areia, a transparência do ar, a majestade do isolamento coroado pela imponente montanha escalvada, atrás deles. A tranqüilidade das águas mansas fazia-os lastimar a impossibilidade dum banho.

Eram quatro colegiais em dia feriado!

Escurecia quando iniciaram o regresso à capital.

Maria Antónia sentia-se quebrada. O ar, as férias, o bulício excessivo derramavam-lhe nos membros uma lassidão agradável.

Recostada nas almofadas fechava os olhos e/deixava-se invadir por uma sensação de repouso, de/segurança. O andamento do carro embalava-a, amodorrava-a.

Foi então que, de súbito, ela sentiu a mão de Gabriel deslizar-lhe ao longo do braço e, agarrando-lhe nos dedos, ficar a afagar-lhos. Não se mexeu, porém/não esboçou qualquer resistência.

E a sua mão, aprisionada, foi elevada até que ela reconheceu o contacto quente duns lábios que lha beijavam longa, fervorosamente.

E como era boa essa carícia nova, tão casta e simultaneamente tão perturbadora!

De pálpebras semicerradas, entregafva-se àquela onda de singular ventura, sem raciocinar.

Talvez preso da mesma embriaguez, incansavelmente, Gabriel continuava a beijar-lhe os dedos, o pulso, a palma da mão.

Sem saber como, Tónia descaiu e ficou aninhada de encontro ao peito dele. Um longo arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Então abriu os olhos. Inclinado para ela estava o rosto de Gabriel.

Fitaram-se ambos, muito sérios, impressionados por qualquer coisa de indefinido, ainda.

Tónia começou a pensar. E muita, muita coisa, até aí jamais lembrada, se lhe apresentava ao espírito, afigurando-se de penetrante limpidez.

Ele era Bom... e afectuoso... e compreensivo. Sim, por que não? Por que não havia de entregar o futuro a essa amizade sólida em que podia confiar, que seria o penhor indestrutível duma felicidade serena? Gabriel seria um companheiro estremoso, condescendente, incapaz de a desgostar com exigências ou caprichos... Junto dele possuiria, não a ventura de amar, mas a de ser idolatrada. Por que havia de pedir mais à vida, se tanto esta lhe oferecia? Não se daria com arrebatamento de sentidos, mas com plena consciência, com equilíbrio e lógica. Não procuraria o imprevisto dum beijo nem a fantasia de devaneios ignorados, mas obteria um lar cheio de afecto. Ao calor dessa afeição deixar-se-ia aquecer. Talvez, afinal, não existisse a paixão avassaladora que idealizava!... Gabriel personificava a verdade da existência, simples, ao seu alcance. Mas... acaso ele realmente a amava? Nunca lho dissera e ela nunca tivera ocasião para dar por tal! Só naquele instante o imaginara, talvez porque ele a fitava de perto demais e permanecendo tão próxima a sua expressão parecia estranha... Não parecia. Era-o! Gabriel sentia-se invadido por uma febre intensa de emoção e desejo. Ela estava ali, de pupilas pensativas e lábios entreabertos... Se tentasse retê-la, fechando os braços em torno dela para a obrigar a querer-lhe?

Todo o seu ser a reclamava, com uma veemência que o desvairava.

E por que não

Por que não havia a sua boca de realizar o gesto que se estava desenhando? Talvez a solução viesse, depois...

Então a frase máxima subiu-lhe à boca, ia proferi-la no arroubo dum beijo.

Tónia, submissa, aguardava que o espantoso acontecimento se desse. Mas no momento exacto em que os seus lábios iam encontrar-se, uma voz soou, estranha na própria familiaridade.

- Que silêncio, meninos! Vêm a dormir?

O sortilégio rompeu-se.

Passara o instante supremo. Ambos estremeceram e se afastaram.

Maria Antónia suspirou passando a mão pela testa, como que atordoada.

Gabriel desejaria chorar, gritar pelo que perdera-um ensejo com certeza único!

Foi com esforço que respondeu à mãe, essa que, cheia das melhores intenções, não sabia quanto, por fatalidade, acabava de destruir.

Encostando-se na outra extremidade do banco, Tónia simulou adormecer, realmente. Ia acordadíssima, porém. Confinava-se num desalento que era para ela uma coisa inteiramente desconhecida.

Oh! O que estivera prestes a fazer!

Não, nunca! Seria a maior asneira que poderia cometer!

Fora o primeiro contacto com uma certeza até ai nunca entrevista. Não a vislumbrara antes e esta, de chofre, impusera-lhe cruel, temível, imperiosa, como desfecho de horas maravilhosas.

Se lhe ocorrera noutro dia, noutro local, porventura a teria repelido por absurda, sem se deter a observá-la. Mas vira-a, palpara-a, tivera-a rente a si... E não podia consentir, de forma alguma, em magoar esse que apreciava em todo o seu extraordinário valor, esse a quem, contra tudo e todas as reflexões, se reconhecia incapaz de amar!

Mas ele... oh, ele sim! Já não tinha o direito de duvidar. Ele queria-a!

Passava em revista, numa ansiedade fremente, os últimos acontecimentos, o passado mais distante, a convivência entre os dois. Aqui e além avultava, quiçá, uma frase, um gracejo, um olhar... E ela entendera-os sempre como demonstrações de amizade fraterna, ela, que estimava Gabriel como se fossem irmãos! Eis a realidade!

Continuavam a acudir-lhe à mente, frases, atitudes em que nunca reparara e agora se lhe impunham como se tivessem sido focadas por oculta percepção destinada a revelar-lhas na altura precisa. E afligia-se. Temia haver procedido inconscientemente... Talvez não se tivesse conduzido da melhor maneira...

Esquecera-se de que Gabriel deixara de ser criança e se tornara num homem com aspirações próprias, num homem como os outros, sujeito a sofrer o encanto da rapariga que, para cúmulo, junto dele não doseava a explosão da sua juventude sincera.

E Gabriel sofria por ela! Gabriel, que encontrara o amor que ela esperava sem descobrir!

O acontecimento que estivera prestes a dar-se alarmava-a, agora. Prouvera a Deus que o rapaz não voltasse a repetir a tentativa, que percebesse a insensatez do momento e nada tentasse, movido por esperanças ilusórias.

Não queria desgostá-lo com uma recusa formal, despedaçando o perfeito entendimento de sempre. Mas tão-pouco aceitaria um destino que desejasse forçá-la a acatar o que não pretendia.

Era tão nova, tão nova!

Sentia-se perdida num labirinto donde a luz começava a fugir. E impacientava-se, irritava-se, sem atinar com a solução rápida que a aliviasse.

Sabia que precisava de levar Gabriel a renunciar a ela, mas, num egoísmo desculpável, também não queria perder o seu melhor amigo.

Dizia a si própria que, dada a intimidade entre ambos e os laços de família existentes, de pouco serviria evitá-lo. Mas como poderia, daí em diante, conservar a calma atitude duma camarada sem preocupações?

E a Madrinha, a Madrinha? Que saberia? Que pensaria? Acaso, oh... acaso também?...

A idéia de magoar esses corações que tanto a amavam tornava-se-lhe intolerável.

Se ao menos se houvesse enganado! Se aquilo não passasse de suposição, de alucinação, de miragem feita pelo sol da tarde!

Porque ela recusava-se a deixar-se prender em enternecimentos perigosos, verdadeira armadilha capaz de lhe roubar o direito a sonhar infinitos!

No carro ninguém voltara a falar. Só na chegada ao barco meia dúzia de frases foi trocada. D. Matilde alego 30

que o passeio a fizera mole. Pedro Torralva concordou. Gabriel também.

Tónia não disse nada.

Quando, à porta de casa, se despediu dos amigos, não era a alegre rapariga dessa manhã.

A vida acabara de lhe apresentar a primeira encruzilhada!

 

"O botão oscila na roseira, tocado pela magia do perfume concentrado. Vive num futuro invisível a rosa que se dará sem reservas, abrindo-te para depois murchar. A nuvem flutua no espaço, delicada e pueril, ligeira e graciosa. Não sabe que chegará a cobrir o céu e chorará no infinito todas as lágrimas humanas".

A porta entreabriu-se.

- Posso?

O quarto era grande e belo.

As paredes forradas a damasco verde-pálido, a grande cama Luís XVI, os cristais do lustre, os toucadores preciosos, os espelhos de Veneza, os Saxes e as miniaturas assinadas ostentavam a magnificência do luxo e a delicadeza do gosto apurado.

A colcha, bordada a matiz, pertencera ao leito duma rainha.

Matilde, envergando um roupão de veludo verde-negro, com os cabelos soltos, arrumava um cofre cheio de papéis. A silhueta fina conservava um aspecto juvenil que a negligência matinal acentuava. De costas, as rugas incipientes não se tornavam notadas.

- Entra, meu filho.

- Se a incomodo, mãe, vou para as aulas e volto logo. Ainda é muito cedo.

- Não, não.

Ele, porém, não avançava. Dir-se-ia pretender algo e ao mesmo tempo desejar fugir do que ambicionava.

Qualquer receio o embaraçava, dificultando-lhe o avanço.

- Está à volta com a sua papelada...

- Não, filho. Isto não tem nenhuma importância!

Cerrou o pequeno cofre, meteu-o na gaveta e fechou-a. Depois sentou-se na poltrona, aos pés da cama. Esperava.

Gabriel aproximou-se.

A mãe fitava-o serenamente. A sua expressão não traduzia quaisquer impressões íntimas.

O rapaz puxou um tamborete para junto de Matilde, e apoiou nele um joelho.

Ficou assim, de braços cruzados. O seu olhar era triste e ardente.

- Mãe... preciso dos seus conselhos.

Ela sorriu.

- Muito bem! Farei a diligência por te ser útil, como noutros tempos... quando os teus problemas infantis encontravam solução nas minhas palavras!

Num gesto rápido, Gabriel dobrou-se para a frente, beijou-lhe a testa e endireitou-se de novo.

- No fim de contas, minha mãe, talvez eu não devesse vir incomodá-la...

- Um filho não incomoda nunca.

- Quem sabe? Se o que imagino é realidade, forço-a a comungar nos meus pesares.

As sobrancelhas de Matilde ergueram-se.

- Talvez não!... Talvez os teus pesares me sejam familiares!

As pupilas de ambos encontraram-se. O rapaz baixou as dele.

- Sim, pode acontecer que eu não venha dar-lhe nenhuma novidade-disse. -Esqueço-me de que a mãe é uma observadora extraordinária!

Matilde recostou-se.

- E se desabafasses

Gabriel mordia os lábios. Depois, decidindo-se com certa brusquidão, naturalmente para vencer a timidez que o abafava, exclamou:

- Amo a Maria Antónia.

Dentro das algibeiras do roupão as mãos de Matilde contraíram-se. O filho não podia ver esse gesto de dor.

No silêncio em que ela permanecia, o rapaz continuou:

- Amo-a, mãe. Amo-a! Dei-me todo inteiro. Não tenho outra aspiração, outro rumo na vida, que não venha dela, que não seja ela...

- Assim tanto, Gabriel?

- Assim, mãe! -e desalentado, confessou: -Não há nada a fazer contra esta verdade. Aconteceu!

Matilde permanecia imóvel. Empalidecera. Os olhos pareciam maiores.

- Pobre filho!

- Mãe? .

- Pobre querido...

Ele apoiou os braços na perna, dobrou-se um pouco, ansioso, embora à vontade, agora que abrira o coração.

- Já sabia isto, realmente?

- Não queria acreditá-lo.

- Nesse caso, parte do princípio que este amor é um erro? Que é um erro porque ela está demasiadamente longe dos meus desejos

A mãe respirava fundo. À parte a expressão dos olhos, quase trágica, era este o único sinal visível da emoção que a avassalava. com uma espécie de serenidade religiosa, ela murmurou:

- Não podemos querer-lhe mal, sequer! Não é responsável pelo sentimento que despertou em ti. Deves resignar-te!

- Outra qualquer mãe... não falaria assim! Encorajar-me-ia, animar-me-ia... A minha condena-me!

- Achas mal?

- Acho admirável! Digno da mulher que eu gostaria de ter por mãe, se pudesse escolher...

Matilde sorriu. Soubera educá-lo!

Ao cabo dalguns instantes proferiu:

- O destino foi cruel para vocês. Permitiu-lhes que vivessem lado a lado e não os encaminhou no mesmo sentido.

- É assim tão amiga dela?

  1. Matilde inclinou a cabeça.

- Apenas um pouco menos do que de ti!

- Mãe!

- Parece-te... mal?

- Oh, não! Não... porque esse afecto é um espelho onde o meu se justifica! Não... porque a amo!

Pouco depois, a mãe acrescentou:

- Aceitei a Maria Antónia no meu espírito como a ti na minha carne. Se te recebi com segundos de vida e te criei com o leite dos meus peitos, a ela trouxe-a de meses para o calor do nosso lar e jurei substituir a mãe desaparecida...

- Não se explique, mãe. Compreendo-a, e não me sinto lesado. O coração feminino chega para todos os filhos!

- Tens razão. E ela... é adorável!

- É adorável!...

- Conheço-a bem. Sei que os seus sentimentos são puros, o seu caracter íntegro, as suas atitudes nobres. Tudo quanto nela pareça a estranhos superficial e pueril, afigura-se-me razoável, plausível, porque a entendo. E desde sempre tenho contribuído para fazer dela a rapariga feliz, excessivamente amimada, que se imagina com direito a uma ventura criada à medida dos seus ideais!

Houve um silêncio. A testa de Gabriel enchera-se de rugas. De repente, parecia muito mais velho.

Poisou a mão direita sobre a cabeça da mãe, que descaíra.

- E a minha ventura? Acha que também a desejo à medida dos meus ideais... excessiva... impossível de encontrar

- Receio que nem um nem outro se contentem com o que tiverem!

Logo em seguida, perguntou:

- Por que te decidiste a falar, meu filho?

- Não o esperava, mãe?

- Sim, mais dia menos dia. Mas imaginava que somente qualquer coisa de extraordinário te forçaria a abandonar a posição neutra em que te via inteligentemente colocado.

- Essa qualquer coisa deu-se!

- Como?

- Ontem, no regresso de Setúbal!... -e rápido, sincero, descreveu o imenso que se passara, sem chegar a coisa alguma.

Matilde ouvira-o, arfando. Quando ele terminou, ergueu-se, apertou as mãos ao peito.

- Oh, Deus! Oh, Deus!

Levantou-se, afastou-se do filho, deu uns passos. Murmurou ainda:

- E fui eu!... Fui eu!...

Gabriel olhava-a, silencioso, inquieto.

A mãe aproximou-se dele, agarrou-lhe num braço.

- É realmente dum conselho que necessitas?

- Sim... Ontem, durante esses minutos, pareceu-me que... que ela não me fugiria...

- Não podes, não tens o direito de te aproveitar dum instante de fraqueza!

- Por isso a perplexidade voltou a apoderar-se de mim. Mas a esperança, teimosamente, não quer largar-me. Por isso lhe pergunto, a si, mãe, que nos conhece a ambos: devo tentar? Devo falar?

- Ouve, meu filho... e acredita que sofro ao dizer-te estas palavras... Sofro e muito! Tu não és obrigado a aceitar os meus conselhos! -e abanando a cabeça, cheia de amargura, prosseguiu: -Ela não te ama. E receio que a tua insistência a obrigue a afastar-se de nós.

Veemente, o rapaz exclamou:

- Nesse caso, entende que nada me compete fazer?

- Pelo menos por agora. Parece-me que será melhor não a perderes de vez!...

Olharam-se nos olhos de novo, profundamente.

- Obrigado, mãe. Seguirei os seus conselhos!

Matilde ocultou o rosto entre as mãos.

Quando o descobriu, estava só.

Então murmurou, ansiosamente, enquanto as lágrimas principiavam a descer-lhe pelas faces:

- Deus meu! Terá o meu filho de expiar o que ela sofreu? Mas eu não fui culpada... eu não fui voluntariamente culpada! E ele não merece pagar por mim!

Ao leve rumor da porta, abrindo-se, a cabeça loira emergiu dentre os lençóis.

- És tu, paizinho? Entra...

- Oh, preguiçozona! Ainda na cama, com uma manhã destas?... Abra a janela, ao menos.

- Ontem enchi-me de ar, paizinho. O da nossa rua não me faz falta!

Mas o doutor fora descerrar as portadas, de par em par, e o Sol irrompera pelo aposento, arrancando cintilações aos espelhos, às madeiras claras, e revelando em pormenor uma Tónia com vincos da almofada impressos nas faces cor-de-rosa.

- Vamos, gaiata, toca a levantar!

Ela espreguiçou-se, bocejou e sentou-se na cama, estendendo o rosto ao beijo paternal.

- Que horas são?

- Quase nove e meia! Saio tardíssímo, mas não quis ir-me embora sem lhe dar um beijo. Ontem não lhe pus os olhos em cima! E você dorme que dorme...

- Dormi muito mal!

Val-Rei afagou-a ternamente.

Era um homem espadaúdo, alto, bem parecido, cuja cabeça grisalha oferecia um contraste notável com a juventude das feições.

A filha parecia-se com ele, indiscutivelmente.

- Dormiste mal, querida?

- Pessimamente!

Val-Rei sentou-se na beira da cama e observou-a. Maria Antónia tinha olheiras, de facto, e um ar inquieto que nela não existia nunca.

- Aconteceu-te alguma coisa?

A rapariga agarrou-lhe numa das mãos.

- Aconteceu, aconteceu! -e, numa explosão, descrevéu quanto a atormentara e lhe fizera perder algumas horas de sono e tão importante se lhe afigurava ainda, embora a luz da manhã tivesse a maior tendência para reduzir a gravidade dos factos.

Val-Rei deixou-a falar.

No final, com pasmosa naturalidade e enquanto ela parecia aguardar que o pai rompesse em protestos, com muitos outros ampliando-lhe os motivos de susto, o doutor proferiu:

- Que espanto por coisa tão pouca!

Tónia sobressaltou-se.

- Tão pouca? Oh, pai!

- Evidentemente! Isso nem parece teu.

- Como? Como?

- É claro que ele gosta de ti. Há muito que eu o sabia! E palavra que me parece a mais acertada das escolhas.

A rapariga lastimou-se.

- E nunca me teres prevenido!

- Prevenido? Para quê?

- Para eu me acautelar!

- Acautelar? Contra ele? -Tónia acenava com a cabeça afirmativas enérgicas. -É boa! Mas se te repito que acho a idéia encantadora! Não vejo para ti outro marido melhor.

Era o espírito claro, entusiasta mas positivo, a falar, esse que só não pudera triunfar da resistência oposta pela morte...

Maria Antónia ficou muito séria. E protestou:

- Não me fales dessa maneira, paizinho! Tu sabes perfeitamente que eu não o amo... e que estou apoquentadíssima porque não sei como hei-de proceder daqui em diante!

- Claro, claro, não o amas... Mas tenho a impressão de que, se te habituares a essa idéia, hás-de considerá-la magnífica!

- Pai!

Com súbita gravidade, Val-Rei acrescentou:

- Eu, por mim, não sei de ninguém a quem possa entregar a minha menina com maior confiança!

Os braços de Maria Antónia pendiam ao longo do corpo, inertes. As pupilas estavam enormes, dilatadas pela surpresa. Os lábios tremiam-lhe ligeiramente.

- O que disseste agora é muito sério... Devo interpretá-lo como sendo um desejo teu

O doutor deu-lhe uma palmadita no rosto.

- Oh, querida, sou egoísta demais para de qualquer modo ambicionar ficar sem ti... É a tua alegria que me aquece e me dá forças para continuar. A tua ternura compensa-me de tantos anos vividos sem amor.

Comovida, Maria Antónia abraçou-se ao pescoço do pai e apoiou o queixo num dos seus ombros.

- Paizinho...

- No entanto, e já que o assunto se desviou para este campo, devo dizer-te que me preocupo com o teu futuro... Não desejava deixar-te só na vida, quando a morte me levar.

- Por favor!...

- Gostava de te pôr na tua casa, cercada de bem-estar e meninos...

- Pai!

- Materialmente falando, não alimento preocupações a teu respeito. Não sou rico, mas posso trabalhar ainda o suficiente para garantir-te uma existência ao abrigo de privações. Fiz-te um seguro de vida... No entanto, reconheço que isto não é tudo! Uma mulher sozinha não vive no equilíbrio dos elementos.

Vencendo a comoção, Maria Antónia diligenciou sorrir. Fez os possíveis por se tornar maliciosa.

- Nesse caso, paizinho, receias que daqui em diante já não haja ninguém capaz de se interessar por mim? Corro o perigo de ficar solteirona ? É isso

O médico fixou-a nos olhos, profundamente. Depois, para corresponder aos esforços dela, que não queria chorar, afirmou:

- Nada disso, minha vaidosa! Sei perfeitamente que coleccionas apaixonados...

- E eu só me casarei por amor!

- Sim, parece que sim. No entanto, não te deixes iludir e cegar por um brilho falso... Uma mulher mal-casada, filha, é pior do que uma não casada!

- Brr! Que conversa tão desagradável, logo pela manhãzinha!

- Talvez... mas talvez também não seja de todo inoportuna. A verdade é que o Gabriel me descansava inteiramente.

Maria Antónia largou o pai e encolheu os ombros.

- Eu não digo que não tenhas razão. Mas todo o meu ser se revolta se procuro convencer-me disso mesmo. Não posso, não posso!

Docemente, o médico indagou:

- Já experimentaste perguntar à tua consciência porque é que não o amas

- Não vale a pena. Sei perfeitamente que o amor, em mim, pode ser uma coisa insensata à força de maravilhosa. De nada serve a razão encher-me de censuras. Entendes, paizinho?

- Entendo, sim.

Com certa agitação, Tónia prosseguiu:

- Admite, pai, que eu vencia o meu horror íntimo e me tornava mulher dele... e depois, mais tarde, surgia esse por quem espero, seja bom ou mau, seja o que for? O que seria de nós, então?

- Nesse caso, arredas de ti, definitivamente, a idéia de que os teus sentimentos se modifiquem, em relação ao Gabriel?

- Absolutamente. Não acredito que o amor nasça da amizade. São duas coisas diferentes que, segundo a minha maneira de pensar, não se encontram nem se tocam...

- Talvez te enganes!

Ela abanou a cabeça.

- Não, pai, não! E não queiras tirar-me as minhas crenças. Não me digas que nos casais felizes é a amizade que ocupa o lugar do amor! Não me digas que o amor não passa da exaltação de sentidos, condenada a morte precoce... Não me digas que é só ela que acorrenta as almas para as boas e para as más horas... Não pode ser! Eu não quero que seja!...

Soluçava, de olhos enxutos, e toda ela tremia, numa espécie de febril ansiedade, inteiramente nova. O pai fitava-a e escutava-a, admirado. Ela prosseguia: -Para mim o amor é indiscutível! Só ele pode amolecer a vontade da mulher e torná-la em argila nas mãos do eleito e ao mesmo tempo dar-lhe tanta força e tamanha consciência que ela, na sua fraqueza, seja capaz de se tornar no esteio do homem amado! Só o amor será capaz de me fazer entregar em cada beijo e abençoar de hora a hora o instante da minha rendição absoluta. - Depois, ruborizada, confusa, murmurou: -Será tolice, tudo isto? Não sei nada, ainda!...

Val-Rei baixou o rosto e, maquinalmente, pôs-se a apertar os dedos da mão esquerda com os da direita, rolando no anelar as duas alianças de oiro. -Ficas aborrecido comigo, pai?...

Ele encarou-a. com voz abafada respondeu-lhe, erguendo-se.

- Não... não fico...

A rapariga tentou sorrir, dificilmente.

E foi essa imagem de esforço, de tenacidade, de inquietação, que Val-Rei trouxe com ele todo o dia, a enchê-lo de dúvidas e de sombras...

 

"Não há ontem. Há hoje e muito pouco amanhã. Os olhos da rapariga, só os olhos, riem.

Na seriedade do porte, na compostura sensata, aqueles maliciosos e explêndidos olhos falam da alegria exuberante que ela transporta, alegria feita de alegria sem motivos especiais, sem mais nada, nascida de factos simples, indiscutíveis.

O botão não é rosa. A nuvem não tapa o Sol. Ela tem vinte anos! "

Manuel Miragaia passeava o exigente olhar de apreciador pela selecta assistência, despertando cobiças, devaneios, sorrisos.

Foi quando entrou a rapariga janotíssima, de "redingote" branca acentuando a linha esbelta e chapéu cor de fogo coroando um rosto belo, radioso, fresco.

Ela, imperturbável, segura de si e dos seus encantos, da elegância que nenhuma inveja diminuía, atravessou a maledicência da sala de chá, passou rente à mesa onde Miragaia acotovelou o companheiro. Não baixou as pupilas para eles, não deu pela sua existência. Dirigia-se para o fundo do salão.

No zunzum das conversas jorraram comentários indistintos salpicados de amáveis acenos de cabeça e cumprimentos lisonjeiros, a que a recém-chegada apenas correspondia num sorriso disciplinado e possivelmente irônico, como que nascido do hábito.

Ela estava feliz. O branco do formoso casaco atapetava-lhe o caminho, encandeando-lhe a alma. Tudo na vida era simples, Bom. A sua mocidade repelia sombras. preocupações, fosse qual fosse a origem delas.

Os murmúrios perdiam-se no aglomerado dos sons.

- Repara na Val-Rei... Aquele casaco passou na Carlinda. É da colecção do Dior. Custou-lhe um dinheirão!

- Ora! O pai Val-Rei meteu cheques à barriga dum ou dois e alargou-se, sem prejuízo das costuras...

- É um cirurgião impossível, dizem. Cada vez leva mais caro!

- Isso ajuda à fama. Ser operado por ele é trazer à vista um diploma de fortuna!

- Estraga esta rapariga com luxos. Chega a ser demais... porque é uma garota, no fim de contas!

- Uma insignificante, cheia de "peneiras". O que lhe vale são os arreios...

- E mesmo assim, não há maneira de casar.

- Pudera! Afugenta os pretendentes!

- Já não vai muito nova...

Tudo se perdia no bulício da casa distinguida pelas mulheres da elite.

Maria Antónia, pressentisse ou não tanta simpatia. pisava firme, chegando à mesa onde Mafalda a esperava.

Eram amigas de colégio.

- Venho atrasada? -perguntou, beijando a face morena que se erguia para ela.

- Apenas cinco minutos.

- Isso não chega a contar.

Riram-se, naturalmente.

- Já encomendaste alguma coisa?

- Ainda não. Que é que tomas?

- Chá e bolos.

- Não queres uma torrada?

- A meias contigo? Pode ser.

Cheio de solicitude perante freguesas habituais, o criado esperava ordens.

Foi quando os olhares das duas raparigas se cruzaram com o companheiro de Manuel Miragaia.

Houve novos sorrisos e cumprimentos. Depois, entretidas, Tónia e Mafalda não se ocuparam mais com ele. Não viram o outro, nesse instante. Tinham imensas coisas para dizer. Ou melhor: Tónia devia escutar e aplaudir assuntos intermináveis.

Mafalda ia casar. Os projectos, na boca dela, não acabavam nunca e a amiga sabia encantar-se com a felicidade alheia.

Miragaia, porém, deixara de falar nos últimos acontecimentos sensacionais que traziam o sabor picante doutras terras, doutras gentes. Fixava insistentemente as costas do casaco branco e a nuca em que revoltos se encaracolavam loiros cabelos.

Flávio Mirante deu logo pela abstracção, seguiu a direcção das pupilas e observou, malicioso:

- Anda-me! Atiras-te, logo à chegada?

O outro sorriu, fez um gesto com o queixo, apontando o belo alvo que não desfilava.

- Quem é?

Mirante simulou desentendimento.

- A loira ou a morena?

- A loira, co'os diabos!

- A morena está noiva.

- Se te digo que é a loira!

- Ah, bem... a pergunta desculpa-se!

- Hem?

- Chegaste ontem de Paris...

- É assim fácil?

- Fácil? Não há nada mais difícil!

- Quê?

- Pff! -e bebeu duma só vez todo o uísque. - Celebremente inacessível!

- Deixa-te de meias palavras. Explica-te!

- Bem se vê que és latino, rapaz! O verniz dos hábitos requintados estala com o fogacho dos entusiasmos primitivos

- Caramba! -e os olhos negros, enormes, desviaram-se do casaco branco para o rosto magro onde lia amena zombaria. -Queres ou não responder-me? - depois acrescentou: - Não te irrites, Manuel! Tens mau feitio!... Descansa que não te faço concorrência. Deu-me forte mas passou-me depressa. Não tenho a persistência da água mole! -e soltou uma gargalhada. Mais uma gargalhada entre o fumo dos cigarros e a fluência de tanta ociosidade...

Miragaia enrugara a testa.

Desde que se reconhecera homem, homem livre, fizera uma vida caprichosa e exuberante. Entregara-se intensamente ao sabor das fantasias, do imprevisto, dos caprichos. Impulsivo, extraordinariamente vigoroso, duma vitalidade estuante, a sua pujança física não admitia o refreamento dos impulsos. Era um subordinado ao império da sensualidade que o caracterizava.

Nem todas as mulheres o atraíam, contudo. Duma maneira geral, quase lógica, quase instintiva, desejava somente as que de qualquer forma se distin guiam e elevavam acima da craveira média, pela beleza, pela inteligência, ou pelo exotismo. E quando queria, sem esforço, por si só, obtinha o que procurava. Depois, saciado, arredava-se sem hesitações nem remorsos.

Manuel Miragaia era no tipo simbólico espécime magnífico que pertence a todas, cumprindo a missão de reprodutor, sem se dar por amor a nenhuma.

E o desejo carnal, violento, traduzia-se nele em requintes de tal ordem que se tornavam mais perigosos que a verdadeira paixão.

Mirante encolheu os ombros.

- Vá lá nome e estado... A idade certa, não a sei. É a Val-Rei, Tónia entre os conhecidos. E solteiríssima... Flirts... aos montes. Namoro, nenhum.

- Pro veniência

- Rebento único dum dos nossos maiores operadores. Mais uma vantagem: é órfã de mãe. Não dá sogra...

Miragaia deixou passar o gracejo. Fez um trejeito desdenhoso.

- É pretensiosa? Idiota? Estúpida?

- Ela? Ó homem, é a rapariga mais esperta e de convívio mais agradável que possas imaginar. Entre nós. marca!

- Nesta burguesia tacanha... não admira. Lá fora... pst... Zero!

- Falas de cor. Não a conheces.

O sorriso de Miragaia descobriu uns dentes fortes e sãos, de carnívoro sadio.

- Nesse caso, achas que é uma mulher com interesse?

- O caminho está desimpedido. Há coisas que só o próprio pode apreciar.

- Hum...

- No fim de contas, não será o que pretendes, se realmente procuras... uma mulher!

- Desagrada-me perder tempo com incertezas!

Ficou a morder os lábios, como que entregue a reflexões intensivas.

Tónia, completamente alheia ao interesse que despertara, bebia chá, comia bolos, e ouvia a amiga, cuja felicidade descrevia espirais elevando sonhos.

Na outra mesa, entretanto, Miragaia tomara uma decisão.

- Apresenta-me!

- Queres tentar o assalto da fortaleza?

- Talvez.

- Tens muita confiança em ti?...

- Absoluta!

Mirante acendeu um cigarro e, através do fumo, contemplou o busto aprumado, o rosto zombeteiro, o olhar provocante, o jeito firme da mão que levantara o copo.

Manuel acabou de beber, poisou na mesa uma nota de cem escudos, ergueu-se.

- Vamos...

- És fantástico! -e, com uma espécie de raiva inesperada, Mirante amachucou no cinzeiro o cigarro quase intacto.

Estava irritadíssimo, sem saber porquê, contra o amigo, contra si mesmo, contra as raparigas que não lhe diziam respeito, contra a sala de chá que existia ali e onde ele ia há tantos anos...

Tónia continuava entregue ao momento agradável, divertindo-se com os embaraços da amiga quanto à escolha das roupas interiores, suas qualidades e feitios, quando aquela sombra imensa -pelo menos aparentemente -se interpôs entre ela e a luz.

Admirada, levantou a cabeça, o mais naturalmente possível. E o seu olhar risonho, deparando com um rosto -de jovem deus, recebeu em cheio o clarão ardente dumas pupilas como nunca vira outras. O choque foi tão brutal, tão violento que, bruscamente, se sentiu confusa, perplexa, atordoada.

Os olhos negros, de pestanas admiráveis, eram de beleza impressionante.

Largou no prato de vidro o bolo que principiara.

Qualquer coisa de extraordinário, de profundo, de físico, estava a acontecer. Dentro dela havia algo que não existia antes e que à força de ser agradável a magoava. Sucedia um fenômeno tão estranho, que Maria Antónia deixou de ver tudo o mais para se concentrar no que antes não existia.

E o olhar negro do intruso, com persistência alucinante, percorria-a toda, afagava-a, demorava-se na sua boca...

Os risos e cochichos da sala inteira recrudesciam, intensificavam-se.

Pressentia-se que dúzias de mulheres falavam do belo -desconhecido que despertara as atenções gerais e se aproximara da linda rival.

Maria Antónia, num resto de sensatez, diligenciava reagir, libertar-se daquela espécie de sortilégio que a paralisava.

Mirante apresentara-lhes o amigo.

- O meu colega Miragaia, recém-chegado da nossa embaixada de Paris, onde está há quatro anos... Quando ele partiu ainda a Tónia andava no colégio... e usava tranças!

Maria Antónia mal percebeu o nome, mal ouviu a explicação.

Foi-lhe a mão aprisionada entre uns dedos fortes, quentes, e recebeu na pele a carícia duns lábios que lha beijavam como nunca antes ninguém o fizera.

Um beijo, no beijo sem caracter da etiqueta mundana!

Nenhuma delas os convidaram para as acompanharem.

Mafalda apercebera estranha mudança na atitude da amiga e, de espantada, nem falava.

Já ambos os rapazes porém, muito à vontade se instalavam, com a maior naturalidade.

Mirante, bom animador, pôs-se a conversar. Mafalda, com esforço, deu-lhe por fim a réplica e o diálogo estabeleceu-se, animado, espirituoso.

Sob o tampo da pequena mesa, Manuel apoiou o joelho, tombando-o como que naturalmente, na perna que tentava desviar-se, sem resultado. Ele era muito alto...

Maria Antónia continuava a ser discutida nas outras mesas, nos grupos que iam dispersando, aventando hipóteses que prosseguiriam nos lares sem assuntos.

O criado serviu de novo aquela mesa esbanjadora.

Tónia estragava com o garfo sucessivos bolos que abandonava.

Miragaia pôs-se a falar, baixo, só para ela...

"Quem se atreve a censurá-la? Quem pode, olhando-a, duvidar da sinceridade, da beleza, do valor das criaturas e da pureza da vida? Pobre de quem não sabe render-se, de mãos postas e coração agradecido às pequenas coisas que são por vezes as únicas dignas de inspirar hinos e merecer batalhas! "

Onze horas da noite.

Um luar misterioso, romântico, cheio de luminosidades poéticas, invadia o quarto, esfumando os contornos dos móveis, adoçando em suavíssima penumbra a escuridão, atraindo com persistência o olhar bem desperto da rapariga, tranqüilamente deitada.

Estava calor.

Aqueles dois últimos dias não tinham sido normais.

Entorpecida, na explicação duma vaga e imperceptível constipação, Maria Antónia não saíra de casa.

Teimosa, persistente, agastada consigo própria, diligenciava, metida na cama, vencer a influência da visão que sem cessar a perseguia.

A Madrinha convidara-a para um passeio. Recusara, a pretexto de não se sentir inteiramente bem.

Gabriel, em cuidado, telefonara vezes sem conta para saber dela. Despedira-o sempre com uma voz tão lânguida que o rapaz voltava pouco depois a insistir por notícias, apreensivo.

Mafalda quisera visitá-la. Receando que a amiga aludisse aos factos a que assistira e cuja descrição ela não queria ouvir da boca de ninguém, impedira-o, sem apelo nem remorso, alegando muitas dores de cabeça, dores intoleráveis. No íntimo, recriminava-se, censurava-se, apodava-se de ridícula e piegas... Desejava libertar-se daquela obsessão que a atormentava, mas em verdade não o conseguia.

Quando o espírito adoece não consegue o físico, por mais que se esforce, dar-lhe alento, dar-lhe ânimo.

Preocupado e indeciso, o Pai quisera observá-la.

- Não percebo! -dissera. -Não percebo esse abatimento, essa má disposição geral. Tu não tens nada, visível. Queixa-te ao menos de alguma coisa, a ver se me oriento!

Mas ela não podia inventar males. Nada lhe doía, realmente. Febre, sentia-a dentro de si, mas o termômetro não a marcava.

Val-Rei mandara-lhe tomar vitaminas, uma vez mais.

Vitaminas?... Que poderiam, contra essa impressão estranha, indefinida, que a consumia?

Como explicar a alguém, a si própria, mesmo, que permanecia ali, sem forças, sem coragem, ela, só porque um homem desconhecido a olhara ousadamente e lhe depusera na pele da mão um beijo... um beijo que ainda a queimava

Dois dias estranhos, aqueles! Dois dias novos, durante os quais mal comera, durante os quais não conseguira fixar-se em coisa alguma do que antes a ocupara toda!

A alegria esfumava-se. Uma inquietação ardente inundava-a. A leitura parecia-lhe vazia de interesse, de sentido.

Raciocinando laboriosamente chegara à conclusão de que devia levantar-se, vencer a desassisada situação e procurar espairecer, retomar a normalidade, libertar-se de pensamentos doentios, inúteis. Continuava porém estirada no leito, mole, abstracta.

E entendia que devia voltar a encontrá-lo, quer fosse para o amar quer para libertar-se duma perigosa ilusão.

Para o amar!

Onde ela chegara, de repente ela! chegara!

" Se o destino estiver traçado, o acaso se encarregará de novamente nos juntar!" -reflectia.

Entregava o assunto, cobardemente, aos cuidados da providência, uma Providência que a vontade dum üomem impulsivo e arrojado poderia auxiliar...

Maria Antónia ainda o não sabia quando reconheceu que a posição horizontal a fatigara e que a roupa da cama a aquecia excessivamente, nessa noite de Primavera adiantada, uma Primavera com resquícios de Verão.

Pelas frinchas da janela entrava um cheiro agradabilíssimo de flores, de mar ao longe, de céu claro, de terra serena, de coisas boas!

Apeteceu-lhe levantar-se, abrir as vidraças, respirar o ar puro, admirar o luar, como qualquer pálida e enamorada donzela doutro século...

Há na vida um momento em que as almas de todas as raparigas se encontram, desde que o mundo é mundo. Em camisa de noite, dirigiu-se para a janela, abriu-a de par em par. Uma poderosa atracção ali a retinha, quase comovida sob a emoção da noite maravilhosa, coalhada de prata. A Lua redonda, enorme, inundava o céu.

Deliciada, aspirou a brisa leve, aromática. Debruçou-se. Sentia-se finalmente liberta da opressão que a afligia. Sem nenhuma espécie de esforço rompia-se a clausura que a retivera. Desaparecia a angústia. Recomeçava a ser pura e simplesmente feliz!

Foi quando os seus olhos, descendo do firmamento, depararam atônitos com uma alta silhueta que lentamente se movia no passeio fronteiro e agora atravessava a rua na direcção dela. O destino quisera...

Ele! Era ele!

Não precisou de ver-lhe o rosto para imediatamente o reconhecer, para ter a certeza da sua presença ali, a quatro ou cinco metros distante, apenas! Debruçou-se mais, num arroubo tal que nenhuma lei do pudor a fez reconsiderar no que pudesse haver de inconveniente em tão sincera atitude.

A aventura principiava.

Ele tinha ao alcance das suas palavras essa que, desde há três noites, pacientemente esperava.

À janela, envolvida pelo luar, na moldura graciosa dos cortinados, Maria Antónia resplandecia, bela como uma aparição.

Manuel Miragaia experimentou a força desse encanto e a sensibilidade máscula, forte, audaciosa, acusou o toque, à sua maneira. Nele crescia um desejo desvairado.

Queria aquela mulher! Sabia que a alcançaria, mas queria-a sem esperar por ela!...

Fosse amor, paixão ou capricho o que para ali o trazia, isso não interessava. Não procuraria destrinçar ou classificar os sentimentos. Mas estava irremediavelmente preso, entregue ao arrebatamento de todo o seu ser.

Rouco, mas ardente, chamou-a.

- Maria Antónia! -e repetiu: -Maria Antónia!

Ela não lhe respondeu. Olhava-o e sorria.

- Maria Antónia, esta é a terceira noite em que a chamo com toda a força da minha alma, com toda a violência da minha fé... depois de passar os dias a espreitar a sua porta, sem a ver sair! Por que tardou tanto?

Ela não percebia a loucura que a arrastava, o feitiço que a vencia. Tudo se lhe afigurava simples e seguro, com a presença do que lhe revelara a espantosa verdade de ambos.

Finalmente! Oh, finalmente!

Como fizera bem em esperar, em não se dar nunca, em se guardar intacta para o amor em que sempre confiara!

Aquilo era natural, lógico, razoável!

E nenhum receio! Nenhuma suspeita!

O riso argênteo, harmonizado com a figura doce, com a luz da lua, com a magia da hora, soltou-se na noite, triunfante.

Manuel acabou de perder consciência e embalou-se no deleite que o empolgava, na ânsia que lhe fremia na carne e na voz.

- Maria Antónia, quero apertar-te nos braços, quero dizer-te num beijo que te amo com delírio... Quero fazer-te sentir que sou teu desde o primeiro instante em que te -vi! Abre-me a porta!

O riso soou de novo, terno e irônico, tão embriagador que ele enterrou as unhas nas palmas das mãos. Sofria, sem poder galgar a distância que os separava.

- Maria Antónia!... Por que te ris ? Por que te ris e não me respondes ? Não compreendes o que se passa em mim?

- Compreendo...

- Então, se o avalias, abre-me a tua porta, deixa-me subir!

Ela não se escandalizava. Ou porque o verdadeiro significado das frases lhe escapava ou porque naquele amor

- no seu amor-tudo lhe parecia normal, por ser diferente. Um amor como tinha de ser... -e nada maisí

- Isso é impossível!

- Impossível porquê? Não me queres?

Ela apenas contestou, inocente, cândida, virgem completa para a qual não havia interpretações rubras.

- É muito tarde! Mas amanhã podemos encontrar-nos!

- Amanhã! Amanhã, só! -diligenciava reflectir, situar-se num plano de normalidade e coerência, triunfar no ímpeto que o abalava. Respirou fundo: -Então só amanhã?

- Sim!

- Está bem, seja. Quero ver-te de perto, quero mergulhar os meus olhos nos teus, para ter a certeza de que experimentas a mesma sensação que se apoderou de mim, irremediável! - a voz quente subia a incensá-la, a seduzi-la, insistindo: -Não faltarás?

- Não faltarei.

Ela tornou a rir. Era a sua alegria que extravasava.

Se aquela janela fosse a dum rés-do-chão, não riria assim, a incauta, porque os seus lábios colados aos dele a impediriam de tudo que não fosse amá-lo...

- Espero-te à esquina da tua rua, às onze horas.

- Pois sim!

Fora dito quanto era necessário. Ele não podia mais ficar ali, olhando-a sem a alcançar.

- Vou-me embora, para te deixar dormir. Sonha comigo.

- Sonharei, com certeza.

Partiu. E ela olhou-o até ele se perder na distância.

Depois fechou a janela, ditosa, tranqüila. Acabara a prostração, a ansiedade. Sabia que o seu caminho estava traçado!

Adormeceu a sorrir.

Manuel, esse passou a noite em claro, num cabaré. Pagou vinhos caros a raparigas provocantes. Dançou, esperando aplacar o fogo que o devorava.

De madrugada, sombrio, olheirento, fatigado, recolheu sozinho e vexado ao seu belo quarto de hotel.

Fora incrivelmente fiel a Maria Antónia!

 

"Não importa que o mote se repita quando a poesia arranca do espírito extasiado frêmitos de prazer. E os olhos da rapariga continuam a brilhar, resplandecem sob a disciplina das pestanas que palpitam, velando-os repetidas vezes. E tocada de leve mistério pelo geito sem artifício, ela é a virgem que deífica todas as graças e todos os sonhos".

Vestira-se com esmero, cantando.

O pai, ao vê-la desanuviada, saudara-a radiante.

- Bravo! Então o temporal amainou? Já não há enxaqueca?

Os braços carinhosos rodearam-lhe a cabeça.

- Estou fresca como uma alface.

- E pelos vistos, temos passeio!...

Tónia corou.

- Temos...

Val-Rei observou que os olhos da filha fulgiam mais do que os pequenos brilhantes que lhe cintilavam nas orelhas. Ela estava cada vez mais bonita! Verificou-o e, no mesmo instante, secreta apreensão o abalou. Muitas Vezes essa mesma inquietude o apunhalava. Para que se estaria aperfeiçoando tanta formosura, tanta gentileza? Para quem ? Para que futuro

Se ele pudesse, ao menos, garantir-lhe a felicidade!

Maria Antónia, durante a refeição matinal, tomada em conjunto, não chegou a pressentir os íntimos cuidados do pai. Uma chamada telefônica urgente fê-lo abandonar precipitadamente a última torrada e abalar porta fora sem mais delongas.

Tónia acabou o café com leite. Abriu a carteira de pele de crocodilo, verde, igual aos sapatos e ao cinto que vincava a silhueta grácil, bem lançada na frescura do vestido branco, muito rodado, e retocou nos lábios o bâton, discreto e no nariz o pó de arroz, em leve passagem.

O coração batia-lhe forte.

O telefone retiniu outra vez.

Amélia, a criada, surgiu, atendeu-o.

- É para a menina.

Por instantes, Maria Antónia ficou imóvel, sem fala. Uma idéia acudia-lhe. Seria ele, a desistir do encontro?

Uma voz alegre mas suave logo a sossegou e impacientou simultaneamente. Respondeu-lhe a despachar.

- Alô... Sim, já estou boa, Gabriel, estou óptima! Não, não posso lá ir almoçar... vou sair... Sim, não é de adiar... Está uma amiga minha à espera... Adeus, filho, tenho pressa!

Inconscientemente cruel, desligou, sem escutar mais insistências.

Viu as horas. Onze menos dez.

Para Amélia, disse:

- Talvez não venha almoçar... -e, sem saber porquê, ainda, repetiu a mentira. -Vou passear com uma amiga.

Saiu.

Pisava com segurança. Recusava-se a pensar em coisas desagradáveis. Para ela, enamorada, não havia problemas, mas certezas.

A manhã estava quente, aprazível. À esquina da rua avistou um carro descapotável, vermelho, magnífico.

Ao volante a grande silhueta inconfundível agitou-se, veio ao encontro dela.

- Maria Antónia! Finalmente!

As mãos de ambos deram-se e ficaram presas, como os seus olhares.

Ela riu-se.

- Chego adiantada cinco minutos!

Manuel segurou-lhe o braço atraindo-a a si, com paixão e firmeza.

- Talvez... mas os minutos são horas, à tua espera. Estou louco por ti!

Era realmente muito alto. Tónia precisou de levantar o rosto para o ver bem, para admirar de mais perto essas belas feições. Reparou que estava pálido, que as narinas lhe palpitavam, que os lábios lhe tremiam, que as olheiras circundavam os olhos negros, maravilhosos. Uns olhos como nunca vira outros!

Seria de facto a ansiedade amorosa que tanto o agitava?

Carinhosamente, cedendo ao impulso, afagou a mão que lhe apertava o braço.

- Agora estou aqui...

Passava gente, gente que se virava para ela, surpreendida. Era a menina bonita da rua. A filha do sr. doutor. Todos a conheciam!

O merceeiro veio à porta da loja espreitá-la. A hortaliceira deu-lhe pela primeira vez a salvação sem obter resposta. As criadas da vizinhança cochichavam. A peixeira abanou a cabeça.

Maria Antónia esquecera tudo e todos. Manuel largou-a e foi abrir a porta do carro, para ela entrar.

- Vamos

Tónia sentou-se. Manuel voltou para o volante, sorriu, mirou-a com estranha expressão.

Ali estava, a seu lado, essa que poucos dias antes ouvira classificar como inacessível. Oh, as mulheres!

Complicado, difícil, Miragaia preferiria talvez não a ter ainda tão ao seu alcance... Aquela rapariga fizera-o "viver horas duma intensidade invulgar, horas cuja repetição seria quase impossível. A expectativa dos dias anteriores arrastara-o ao paroxismo violento da noite que passara. E à força de vibrar num desejo insatisfeito temia o contacto que o saciaria e tão depressa daria fim ao prazer da conquista. Tudo agora seria fácil, quase infalível. Ele contava com isso, sentindo-se senhor de ambos.

Silenciosa, comovida, Maria Antónia não falava. Deixava-se levar.

Não sabia nada desse homem, não o conhecia, coisa alguma lhe havia sido revelada dos seus pensamentos, das suas intenções, do seu caracter. Ignorava-o! Mas confiava nele, cegamente.

Entre ambos existia o Amor. Aceitava-o sem pedir explicações. Esperara-o e recebia-o. Que mais precisava?

Era a aventura maravilhosa em que sempre acreditara...

- Tens algum sítio perferido que desejes visitar, Maria Antónia

Volveu-lhe, passiva.

- Como escolheres, estará bem.

Iam calados, vendo fugir a cidade.

- Que dizes ao Guincho? Ao pinhal da Marinha?

Manuel conseguira estar normal e actuar com equilíbrio dentro da situação que para ele nada possuía de extraordinário. Uma mulher a mais ou a menos...

Maria Antónia, porém, nunca até aí se permitira semelhante liberdade. Sozinha num automóvel com um desconhecido, comprometendo-se diante dos que pretendessem julgá-la... Mas isso que lhe importava?

Nada contava senão a ventura de ambos.

- Vamos para onde quiseres.

Manuel sorria, zombeteiro.

- Concordas serem dois sítios ideais para um parzinho... como nós?

- Talvez.

- Vais lá muito?

- Bastante, com o meu pai. O mar nunca nos cansa. - Virou-se para ele e Manuel recebeu em cheio o clarão dos olhos radiosos.

O carro fez uma guinada. O interesse pela rapariga começou outra vez a aumentar dentro dele.

A voz quente de Tónia embalava-o.

- Veja-o onde o vir, o mar prende-me, encanta-me, fascina-me, chame-se ele Mediterrâneo ou Atlântico...

Talvez porque não me sinto presa às coisas demasiadamente estáveis... A monotonia sufoca-me.

Segura da alegria do momento, Maria Antónia aceitava a realidade como coisa natural e entregava-se-lhe sem nervosismos nem temores.

Para Manuel a cadência musical das palavras baralhava-Lhe as idéias, perturbava-lhe os sentidos, não o deixando adaptar-se à situação comedida do enlevo moral.

Interrompeu-a.

- Maria Antónia, não falemos agora de paisagens... - guiando com a mão esquerda, rodeou-lhe os ombros com a direita.

- Mas...

- Elas servem apenas de fundo a outra coisa, bem mais preciosa.

- Nós próprios! -e apertava-a a si, sem que ela resistisse. -Só nós!

Em plena estrada, frente ao mar azul que ondulava, o automóvel parou.

Manuel agarrou-lhe no queixo para a olhar a direito. As pupilas de ambos confundiram-se. As dele ardentes, imperiosas. As dela apaixonadas, mas tímidas. Tão tímidas que, de repente, Miragaia perdeu a audácia.

- Tónia... diz-me o que pensas de mim... o que julgas disto...

Ela pestanejou e sorriu.

- Ainda não coordenei idéias... Foi tudo tão rápido, tão extraordinário.

- Mas gostas de mim?

- Ah!... -corou. -Bem, Manuel, se não houvesse algo de muito poderoso a arrastar-me para ti... julgas que eu estaria aqui a teu lado

Sem mais nada, Miragaia enlaçou-a, arrebatadamente. Maria Antónia, confusa, baixou o rosto e a boca masculina afundou-se entre os cabelos sedosos.

Ficaram assim, por momentos. Um carro passou, buzinando forte. Alguém seguia zombando-ou invejando! - o par de namorados esquecido do mundo.

Maria Antónia despertou para a razão.

- Manuel... talvez seja melhor continuarmos...

Seguiram.

Depois dum silêncio cheio de sol, ele começou a falar.

- Endoideces-me! De facto, tudo quanto se passou foi extraordinário... e eu rendo-me sem luta. A fusão de dois seres que se encontram e se amam pertence afinal à classe das coisas mais simples, mais humanas, mais lógicas... Vistas assim, não há que resistir!

Maria Antónia suspirou.

- Foi tudo muito repentino... E eu também não sei o que ajuizar ás de mim!

Os princípios de honra que lhe haviam sido incutidos, -os preconceitos de ordem moral em que fora educada, despertavam nela.

A mão delicada aferrou-se de súbito no braço do motorista.

- Manuel... não me arrependerei de ter sido apenas sincera, não?

Os sobrolhos espessos encresparam-se. Leve impaciência fremiu nas narinas de Miragaia.

Iria ela estragar o devaneio com pruridos de burguesa assustadiça

- Já sabes de alguém que se arrependesse de ser feliz?

Ela reclinou-se, com um suspiro e Manuel prosseguiu.

- Lembra-te de que vivo nos grandes meios, onde não há lugar para a estreiteza de vistas nacional...

O Estoril ficou para trás. Atravessaram-no e seguiram, dominando o oceano cuja mansidão se volvia agora lá ao longe em ondas poderosas.

Manuel arrumou o automóvel num pequeno parque; aberto entre os pinheiros enfezados. E convidou-a.

- Vamos dar uma volta

Maria Antónia desceu. O vento, malicioso, despenteava-a, levantava-lhe a saia que ela, rindo, tentava segurar.

Manuel aproximou-se dela, atraiu-a a si.

- O vento cumpre uma missão. Revela segredos e encantos.

Tónia reagiu.

- Não gosto de indiscrições...

Deram uns passos pelos rochedos e ficaram contemplando a liberdade que não podiam alcançar, aberta diante deles. O ar salgava-lhes os lábios.

- Que bom'. -murmurou a rapariga.

Não se explicou melhor. Não disse se considerava bem o conjunto ou apenas a presença do companheiro que se dedruçava para ela, amoroso e cálido.

Não se via ninguém.

Ela estremeceu, talvez de emoção, talvez de frio.

Manuel fê-la rodar até ficarem frente a frente. Estreitou-a pela cintura, colando-a a si. A mesma vertigem se - apoderava de ambos.

Ela tentou rir ainda, mas os seus lábios foram presos num beijo que os deixou sufocados, a ambos. Quando se endireitou, Manuel enrugou a testa perlada de suor.

- Tónia-balbuciou, desordenadamente, amo-te, amo-te, quero-te para mim...

Ela aceitava a confissão como aceitara o beijo que fora o primeiro na sua boca. Naturalmente.

- Manuel... meu amor!

Ele arrastou-a consigo para o solo pedregoso, cuja dureza nenhum sentia. Estreitava-a frenèticamente. Ela sentou-se, procurando disciplinar os movimentos desordenados de Miragaia.

- Ouve... sussurrou. - Quero dizer-te... preciso de dizer-te...

- O quê, adorada?

- Escuta, era por ti que eu esperava!

- Está bem, querida.

- Era por tua causa que eu desprezava todos...

- Minha amada!

- Sonhava contigo sem te ver o rosto. Sabia que te encontraria.

Manuel puxava-a para si, sôfregamente.

- Aqui me tens agora.

Quando te encontrei, reconheci-te. Quase fiquei doente, de comoção!

- Beija-me outra vez!

- Se não voltasse a ver-te ou tu não me quisesses, ficaria eternamente a recordar-te! -Não esquecerás mais este dia...

- Não sei ao certo quem és, nem donde vieste, nem o que pretendes...

- Estou aqui, junto de ti!

- És tu, só tu, tal qual, a quem entrego a minha vida, a quem pertencerá tudo quanto sou. -Meu amor!

- Quero que sejas feliz comigo! Quero, sabes? Agarrou-lhe numa das mãos e apoiou-a sobre o coração, inconscientemente. - Sentes? Em cada pancada soa o teu nome: Manuel, Manuel, Manuel!...

Ela deixava falar a alma. Os dedos nervosos tremiam sobre o pequeno seio palpitante.

Manuel tomou-a de novo entre os braços e beijou-a em delírio. Embriagava-o, não o reconhecimento do afecto requintado, não a poesia dos sentimentos expostos, não a beleza do ideal encontrado, mas a esperança da posse desse corpo estuante de mocidade.

O amor não era igual para ambos. Maria Antónia ignorava esse que o estonteava a ele.

Após a confissão da rapariga, Manuel não encontrava para dizer senão as palavras sádicas que mais tarde, muito mais tarde, ela recordaria com espantosa nitidez.

- Meu amor, como eu te desejo! Tens de ser minha, tens de ser minha!

Mas então, sem qualquer vislumbre de afectação, ela afastou-se, esquivou-se aos beijos que se multiplicavam.

- Nada impedirá a realização do nosso casamento, Manuel. Vamos falar ao meu pai, hoje mesmo.

Manuel afastou-se bruscamente. Lia-se a estupefacção nos seus olhos, que pareciam ainda maiores.

Tão calma como incrivelmente ingênua, Tónia continuou:

- Não está nada preparado, mas a boa vontade não conhece obstáculos e creio que o pai nos facilitará tudo...

Abruptamente, Manuel pôs-se de pé. Sem reconsiderar no que a sua atitude assumisse de estravagante, caminhou até à beira do rochedo.

Lá em baixo, o mar rebentava de encontro à penedia vigorosa, com estampido de trovão cortado ao meio. Mediu, sem querer, a altura do abismo!

Do abismo? De um, não. De dois. Dois. Um à frente, outro atrás!

Casar?... Ah, mas não, decididamente, não! Que disparate! Não encarara semelhante hipótese! Era lá homem que se deixasse acorrentar! Para ele o amor tinha de ser livre, cheio de imprevisto e de novidade... Amando, era à Mulher, loira ou morena, gorda ou magra, alta ou baixa, que ele prestava culto!

É certo que hoje apetecia aquela rapariga, mas isso não significava que vislumbrasse a idéia de se lhe unir por obrigações e deveres.

Casar? ...

Nem podia acreditar no que ouvira. A simplicidade, a candura, a aparente inocência da proposta!... Que haveria naquilo tudo

Fosse como fosse, a menina exorbitara! Queria então casar! Uma semivirgem como tantas, disposta a aproveitar-se duma ocasião vantajosa! Esquecera-se por completo, entregue aos seus pensamentos azedos, do que estaria deduzindo porventura a rapariga, imóvel onde a largara.

Primeiramente, Maria Antónia ficara surpreendida, embora não muito inquieta, ainda. Parecera-lhe singular a reacção de Miragaia. Mas nada do que sucedera entre ambos até aí fora vulgar!

Contudo, Manuel demorava-se demais à beira da rocha. E Tónia começou a ficar séria. De súbito, uma angústia sacudiu-a. Seria que Manuel a tomara por outra coisa, em face da maneira cheia de facilidades como ela se portara ? E deixara de a considerar digna de confiança

Mas, nesse caso, não a entendera?

As lágrimas subiram-lhe aos olhos, mas cessaram, secas Pela ardência que lhe coloria as faces.

Perdera-o!

Nesse momento, de testa contraída, disposto a acabar com o que se lhe afigurava disparatada comédia, Manuel voltou-se e colheu em cheio a visão duma imagem silenciosa de desalento e verdade.

Foi tão nova a impressão ressentida que abriu e fechou a boca repetidas vezes, sem pronunciar uma só palavra. Aproximou-se dela, vagarosamente. No fim de contas. talvez brincasse demais com o fogo...

Não, não se comprometeria, mas precisava de descortinar onde terminava a armadilha e principiava a sinceridade.

Afagou os caracóis desfeitos.

- Não sejas tola...

Ela não respondeu. Nem um lamento, nem um queixume. E ele continuou:

- O que se passou foi isto: vi-me diante duma situação inesperada. Perdoa a franqueza. Mas tu sabes, o casamento não é o mesmo que dar um passeio de automóvel!

Tónia balbuciou.

- Para mim... era!

Manuel encolheu os ombros.

- Está bem, está bem. Mas preciso de regular muitas coisas, antes de me decidir. Devemos ter um pouco de moderação.

- Mas até agora não pensaste em moderar-te...

- Vê se me entendes, Maria Antónia! Não vou falar hoje ao teu pai... e custa-me a esperar por ti. Eis tudo! -Após um silêncio, acrescentou: -Sabes que te amo' Por que hás-de reagir como uma criança ignorante? Não te basta o amor?

O sorriso voltou instantaneamente à boca deliciosa. Acreditava em tudo e os receios abandonavam-na.

Pôs-se de pé e, ternamente, encostou a cabeça ao peito forte.

- Desculpa, Manuel... Mas assustei-me! Imaginei que não me quisesses para tua mulher...

- Hem?...

- julgando mal de mim... E seria terrivelmente injusto!

Estou aqui, porque te quero e quero a alguém pela primeira vez na vida!

Ao contacto macio e quente, Manuel voltava a apaixonar-se, a sentir que se fundiam todas as possibilidades de libertação...

- Nesse caso... estou noivo?

Ela abraçou-o, estreitamente.

- Vamos ser tão felizes, Manuel!

- com certeza!

- E hás-de gostar sempre de mim?

- Sempre!

- Eternamente?

- Juro-o!

Legenda de todos e de cada um...

Manuel queria beijá-la mais. Mas Tónia escapou-se-lhe, correu para o automóvel, restituída por inteiro à sua magnífica alegria, tão despreocupada na sua espontaneidade.

- Senhor meu, são horas do almoço! -e riu. -Parece-me que o romantismo não me tira o apetite.

Ele seguiu-a, contrariado, mas vencido.

 

"No ramerrão sujo e moroso, cheio de gente que vai trepando a íngreme ladeira da vida, ela desperta invejas e cobiças. Mas não dá fé do curioso interesse que a envolve. Segue alheia ao ambiente, imersa no mundo intimo dos seus pensamentos. Botão que não é rosa, guarda o sabor que não conhece abelha. Nuvem que não esconde o Sol, deixa que toda luz do mundo divinize a mais negra caminhada".

As criaturas seguem cada qual o seu destino, momentaneamente cruzado. Afastam-se quantas vezes para sempre, ao longo das ruas onde pontifica um sol ardente, de quando em quando apagado por nuvens de trovoada.

Maio cheira a Verão e sabe a Inverno.

Tónia pisa o mesmo chão de quinze dias antes, de vinte, de meses, de anos... Atravessa o corredor, procura a grande amiga. A grande amiga que na saleta de costura a recebe e lhe abre os braços e não estranha a ternura com Çue a rapariga se lhe ajoelha aos pés e lhe deita a cabeça no regaço.

Nos olhos de Tónia o clarão habitual, de pura alegria, evoluíra para um resplendor de profunda intensidade, tão aPaixonado que a Madrinha enruga a testa, surpreendida.

Há qualquer coisa de diferente na rapariga. Qualquer coisa que a transforma para melhor ainda. Parece menos criança, impregnada duma espécie de gravidade.

Efectivamente, plena de ventura, Tónia vê entre ela e o resto do mundo, até mesmo entre ela e a Madrinha a silhueta máscula, o rosto sedutor, a boca rubra a cuja simples lembrança uma onda quente e fria se lhe derrama pelos membros, fazendo-a estremecer deliciosamente.

A que está ali é essa para quem o amor se revelou, apoderando-se do seu ser com uma sofreguidão imperiosa.

Esgotada sob o peso da felicidade, ela quer desabafar. Quer deixar sair em torrentes a confissão que transborda da sua alma.

Matilde é mulher, foi donzela, amou... Há-de compreendê-la e deleitar-se com ela!

A Madrinha larga o "tricot" e acaricia-lhe os cabelos.

Maria Antónia gosta que a amimem, que a oiçam, que a aplaudam. Sim, principalmente que a aplaudam!...

- Madrinha... Madrinha!...

A dona, afectuosa, continua a inspeccioná-la. Nota de facto qualquer coisa de singular, de novo. Uma radiação, um fulgor. Mas não adivinha donde provém. Benefício trazido pela doença?...

- Então, querida, esse mal-estar misterioso já passou de vez?

- Oh, completamente!

- Ontem não quiseste cá vir, disseste ao Gabriel que ias passear...

- E fui.

Vê-a ruborizar-se. Então sorri, francamente.

- O descanso fez-te bem. Parece que ficaste ainda mais bonita, minha alminha de gelo...

As palavras ardentes, tumultuosas, cada vez se aproximam mais dos lábios palpitantes. Ela emite o primeiro som... mas não realiza a frase.

Cai-lhe no ombro, com jovialidade mas talvez com excessiva força, uma palmada afectuosa. Noutra qualquer altura, Tónia acolheria jubilosamente a brincadeira e retribui-la-ia da melhor forma que lhe ocorresse. A intervenção dera-se, porém, na mais inconveniente das ocasiões.

A extravasão apaixonada-contar é ainda reviver! morre na garganta contraída. O ensejo dissipa-se. E ela, que não está habituada às contrariedades, volta-se para o intruso, impetuosamente, agastadamente.

- Não ti veste graça nenhuma! Detesto essas brincadeiras estúpidas.

Gabriel não a toma a sério.

- Eia! Mas que reacção tão fora do normal! Isso é o resultado das bexigas ou da febre amarela?... Porque tu estiveste muito doentinha, não foi? -e ri, afagando-lhe o queixo com um dedo só.

Agora, porém, Tónia não é capaz de suportar semelhante familiaridade. O contacto, embora levíssimo, irrita-a. Sente-o como uma profanação, uma espécie de violação a bens de outrem.

Esquece a amizade que os une, a estima fraternal. Deseja apenas afastá-lo de si o mais rapidamente possível.

Dá-se nela uma explosão de egoísmo impossível de reprimir, de controlar.

- Deixa-me, não me aborreças,

- O quê?

- Estou no meu direito, não querendo aturar os teus disparates. Sai daqui, anda.

Surpreendido e magoado com a inesperada e desconhecida agressividade, Gabriel recua, fita-a com uma expressão de censura.

Matilde, ferida pela rápida cena, encara Maria Antónia! E a rapariga, confusa de súbito, percebe que todo o

sangue lhe aflui ao rosto, tingindo-lho de púrpura.

Pesa de se haver excedido, morde os lábios, levanta-se

e dá uns passos, terrivelmente embaraçada primeiro e depois aborrecida com Gabriel que, na sua opinião, provoca tudo aquilo, sem necessidade.

É certo que ele não pode adivinhar... Encolhendo os ombros, o rapaz sai.

- Não te maço mais, descansa. Estás mal disposta.

- Ora! Madrinha e afilhada ficam de novo sós. Mas a rapaiga não volta para os braços da grande amiga. Esta, de semblante tristonho, alega afazeres inadiáveis na cozinha.

Tónia sente-se entristecer. Reflecte. E principia a reconhecer que procedera injustamente, melindrando quem o não merecia.

Contrafeita, passa à varanda, desce ao jardim. Avista Gabriel que, profundamente absorto, fuma encostado ao caramanchão.

Dirige-se para ele.

Volta a ser a boa, a encantadora Tónia para quem a amizade tem um valor primacial.

Eis ali esse que é como um irmão. E os irmãos não podem nem devem ser afectados pela existência de outro amor!

- Ga briel... - chama.

Gabriel não se volta para ela. com meiguice, Tónia repete.

- Não estejas zangado, Gabriel! Peço-te!

Ele encara-a. E no seu olhar, honesto e franco, Tónia vê-se perdoada.

Na verdade, dentro daquele afectuoso coração tudo era indulgência para com a rapariga que ele desejaria tornar na mais feliz de todas, essa que resumia o universo da ventura, encarnando na sinceridade da sua inclinação a beleza do futuro.

Como ele gostaria de lhe confessar a verdade, de lhe revelar o amor que lhe consagra, vencendo a timidez que lhe retém nos lábios as palavras decisivas!

Sob o olhar fiel e compreensivo, Maria Antónia experimenta de súbito uma grande necessidade de chorar. Não é capaz de interpretar o que se passa dentro dela.

Apetece-lhe fugir, abandonar o amigo de infância, o jardim, as ilusões, o remorso... Mas remorso de quê?

Ela não tem culpa de não amar o rapaz franzino, pálido, tão vulgar ao pé de Manuel...

Manuel... Oh, Manuel! Manuel merece-a. Rende-se-lhe sem discussão nem raciocínio...

Por que não há-de Gabriel contentar-se, simplesmente, com a parte que lhe cabe, sem mais nada? Estaria agora conversando com ele sem qualquer enleio, sem complicações de nenhuma espécie. Descrever-lhe-ia o seu contentamento, a paixão que lhe promete venturas inimagináveis...

Manuel, Manuel, voz embaladora, simpatia irradiante, olhar dominador, compleição atlética...

De chofre, Gabriel pergunta.

- Mas que tens tu, afinal, Tónia? Parece que voltas duma longa viagem... Há em ti um ar estranho... de quem pisou outros solos e viu outros horizontes...

Ela encara-o, então.

O rapaz faz-se lívido. Atira fora o cigarro e dá um passo em frente. Os seus hálitos confundem-se.

- Tónia... -balbucia, cheio de emoção. -Tónia... conta-me a verdade! É preferível.

À distância, um apelo soa.

- Olá, Gabriel! bom dia!

Ambos se voltam, precipitadamente.

Por sobre o muro do quintal vizinho emerge a cabeça duma rapariga morena, magra, que os encara entre inquieta e desconfiada.

- bom dia, Júlia-volvem os dois.

Ela dir-se-ia ignorar a presença de Tónia. Dirige-se apenas a Gabriel.

- Sempre vais logo ao chá da Teresa Guerra?

Ele impacienta-se.

- Não, não vou.

- Oh, mas porquê? Tinhas-me prometido! Ela disse-me!

Gabriel agarra num dos braços de Maria Antónia e afasta-se com ela, desaparecendo por trás do caramanchão.

Só muito depois essa a quem haviam chamado Júlia e cuja expressão se tornara ainda mais inquieta-ou mais desconfiada-abandona o posto de observação onde nada faz.

Lado a lado, Gabriel e Tónia param junto do pequeno lago onde um cisne melancólico volteia incessantemente.

Nenhum deles se preocupa com a vizinha insignificante. Estão entregues aos seus problemas pessoais.

- Tens razão, Gabriel. Passa-se qualquer coisa, mas não te diz respeito a ti.

Ele olha-a devotadamente.

- Tudo quanto se relacionar contigo me interessa, porque... porque... oh, Tónia!

Soara o momento. Seja como for e contra o que tiver de ser ele, vai perseguir desesperadamente uma possibilidade... E desabafa:

- Tónia, quero-te tanto! Se tu soubesses!

Mas ela, que pressente a essência da confissão, decide estancá-la no seu início, antes que a torrente adquira força, ímpeto e depois seja tarde demais para suster irremediáveis.

Interrompe-o.

- Sim, eu sei que és muito meu amigo.

- Amigo? Tónia, mas deixa-me explicar-te...

- Não expliques nada. Quem deve explicar sou eu... eu que me tornei outra, diferente, definitiva. Estou...

Ele empalidece ainda mais. Enclavinha os dedos no gradeamento de ferro.

- Tónia!

Mas a rapariga nem por piedade sabe diluir a vibração de alegria, de orgulho, de embriaguez, que lhe palpita na voz.

- Estou noiva!

O silêncio torna-se profundo.

Ouve-se o cantar dos passaritos entre as ramarias.

O abatimento masculino impressiona. Mas Tónia, embora compadecida, não pode remediá-lo.

Ao cabo de alguns momentos dolorosos, durante os quais ela divagou, perdida no seu mundo novo, Gabriel murmura:

- Nesse caso... parabéns.

- Obrigada!

- Pode saber-se quem é ele?

- Tu não o conheces.

- Quando principiou o caso?

- Ontem, i -Onde o descobriste?

- Apresentaram-mo há dias. É diplomata, vive em Paris.

- Então foi "coup de foudre"?

Tónia encolhe os ombros.

- Foi o amor. -e vira-lhe as costas.

Na varanda surge D. Matilde a chamá-los.

- Menina, o pai já chegou. Não o ouviram?

Não, não tinham ouvido.

E, nesse dia, o almoço decorre silencioso, bem diferente do que costuma ser.

Pedro Torralva, como em muitas outras ocasiões, aliás, absorvido por preocupações de ordem vária, não conversa. Gabriel não fala, nem come. Maria Antónia evade-se, paira nas nuvens.

Matilde, com o coração pesado, observa o filho e a rapariga.

A refeição termina. Os dois homens saem. A criada levanta a mesa, coloca o centro cheio de rosas e, pedindo licença, retira-se.

Então, inclinando-se para a afilhada, que permanece abstracta, D. Matilde pergunta, baixo:

- Que se passa, Tónia?

Tónia não responde. Ainda não regressou do passeio às regiões da Lua...

- Tónia... o Gabriel disse-te alguma coisa... de extraordinário?

Ela desceu das alturas, finalmente.

Encara a Madrinha, pestaneja.

- Ha?...

- Foi o Gabriel?...

- O Gabriel? Não, nada! Eu é que lhe contei... que estou noiva!

  1. Matilde sofre um tão rude choque emocional que Se põe de pé, vivamente. Uma cor arroxeada tinge-lhe o rosto.

- Tu? Tu estás noiva? Noiva de quem?

- Do Manuel Miragaia.

A Madrinha faz um gesto quase colérico.

- Sei lá quem é o Manuel Miragaia! Pergunto-te quem é ele... como gente!

- Mas, Madrinha, é o homem por quem sempre esperei...

- Pelo amor de Deus, deixa-te de literatices! Onde arranjaste isso ? O teu pai já sabe ? Dá-te o seu consentimento

- Não, ainda não. Foi tão inesperado, Madrinha! Eu conto-lhe tudo! Sente-se aqui ao pé de mim e oiça...

Pelo rosto de Matilde passam as expressões mais contraditórias. Há no seu olhar pesar, assombro e inquietação. Inquietação que a vence, passando por cima de tudo.

Volta a sentar-se, recosta-se e, de cabeça baixa, presta atenção à narrativa desordenada em que Maria Antónia" ébria de paixão, desenha para outrem as suas preciosas recordações, omitindo algumas que são só dela, que saboreia avaramente.

Acima de tudo amiga leal, Matilde consegue pôr de parte a decepção própria e voltar-se inteiramente para a rapariga, que necessita de alguém capaz de lhe mostrar os perigos desse caminho onde ela só descobre atractivos, mas que pode ocultar tantas armadilhas e desvios...

- Querida, nem sei ao certo que pensar!. Mas creio que... que um pouco de prudência não te fará mal. Quase não conheces esse rapaz!

Tónia explode, fogosamente.

- Oh, Madrinha! Mas ele é o melhor, o mais sincero de todos, juro-lho!

Matilde não consegue reprimir involuntário sorriso.

- Que criancice, esse juramento! Que sabes tu dele? Que sabemos nós... dos homens?

- Madrinha!

- Tónia, faz de conta que eu sou a tua mãe...

A rapariga comove-se.

- Sim, Madrinha.

- Presta-me a devida atenção. Não confies demais! Não te deixes prender antes de tempo. Vai ter com o teu Pai, conta-lhe tudo... e ele que tire informações desse tal Miragaia.

Melindrada, ela reage acto contínuo.

- Informações? Que horror! Para quê? O Manuel é um homem de bem! Basta olhá-lo e vê-se logo!

- Supõe, por exemplo, que existe alguém na vida. dele!...

- Oh, não, não! Tenho a certeza que não há, Madrinha!

- Mas como te atreves a afirmar semelhante coisa?

- Porque sei que no coração dele não podem caber duplicidades! O Manuel ama-me! Se soubesse como ele é Bom, diferente dos outros todos...

- Miragens que a vida se encarregará de desfazer.

- Madrinha!

- Todas nós pagamos esse tributo à realidade. Todas nós perdemos as asas brancas no trajecto do destino. E quando abrimos os olhos para a verdade a avistamos as sombras negras da vida ficamos cheias de experiência, mas a mocidade... essa, foi-se!

Tónia encolhe os ombros.

Não quer pensar; não quer reflectir. A Madrinha está a aborrecê-la enormemente, procurando desviá-la das alturas a que o Amor a transporta.

Mas é tarde para evitar os cuidados dessa vigilância afectiva, para repelir os conselhos enternecidos. Já nada pode contra o impulso que a levara a tudo revelar.

Matilde prossegue:

- Gostava de saber até que ponto há espiritualidade nessa atracção que te arrasta...

Tónia morde o lábio inferior.

- Amo-o! Que mais é preciso?

- Ama-lo? Mas ama-lo, porquê?

- Porque... porque ele é o mais belo, o mais sedutor, o mais simpático dos rapazes que até hoje conheci!

- Só isso?

- Acha pouco, Madrinha?

  1. Matilde abana a cabeça, num desalento.

- Não te interessa então saber se ele também será moralmente capaz?

A alma mostrava-se aos olhos que procuram os dela.

Põe-se a mirar obstinadamente os veladores do grande lustre de cristal. Ouve, sem querer, aquilo de que não gosta.

- Tónia... olha que eu também fui rapariga! E lembro-me que não gostava de conselhos... Muitas vezes, até, nem os compreendia! Hoje sei que todos procedem "iradamente não dando atenção a quem já sabe... porque aprenderão à sua custa, e isso é pior!

- Mas, Madrinha...

- Tu não tens mais ninguém que te mostre um certo número de coisas e eu vejo-me na obrigação de te falar desta maneira, embora te desagrade. Percebes? Tudo quanto me disseste me parece feito de ar... Receio que vás cometer uma série de disparates!

As pupilas de Tónia exprimem indignação.

- Madrinha, eu não sou maluca!

- Pois não. Mas tens vinte anos!

Há um silêncio, agora. Depois, Matilde continua:

- Se não quiseres atender-me, não atendas. Mas eu ficarei de bem com a minha consciência. Dize-me cá: onde vais tu buscar a certeza de que o teu... futuro noivo -sim, sim, futuro-possui os bons sentimentos indispensáveis à base duma felicidade mesmo relativa, porque enfim, felicidade absoluta não creio que exista?...

Tónia resigna-se a ouvir o que não lhe agrada. E diz:

- Eu compreendo perfeitamente os seus receios, Ma"drinha. Mas não os tenha, não Quando conhecer o

Manuel verá que ele é uma jóia, um coração de oiro...

- Olha, querida, jóias, corações de oiro, são objectos de montra de ourivesaria. Na vida sentimental não contara!

- Estou convencida de que ele tem qualidades admiráveis!

- Juras... tens a certeza... estás convencida!... Que

admirável segurança! No fim de contas, nada sabes.

Vives de inspirações... e deduzes. Mas que afinidades

existirão entre ambos capazes de garantir-lhes, depois do entusiasmo dos sentidos, a continuidade da ventura que

idealizas ?

Tónia não responde. Está de cabeça baixa, a analisar pormenorizadamente os desenhos da alcatifa.

  1. Matilde levanta-se e coloca as mãos nos ombros da afilhada. Insiste:

- Será ele, querida, o companheiro amigo, dedicado, incansável, que precisas? Isso que tu sentes não será um luzeirito... sem mais nada?...

Tónia defende-se da pressão enternecida. E, com uma secura involuntária, riposta, consultando o pequeno relógio de pulso.

- São três horas, Madrinha. O Manuel está à minha espera. Tenho de ir-me embora.

A Madrinha quer dizer ainda muita coisa. Os argumentos sobram-lhe, embora já saiba que das suas palavras nada resultará de eficaz. Mas na verdade a sorte da rapariga aflige-a muito mais do que o desgosto do filho.

- Não te apresses tanto, Tónia-profere, com doçura. -Enfado-te, é certo. Talvez pela primeira vez não me reconheças nenhuma espécie de autoridade para falar desta maneira...

Matilde acaba de abrir a porta que dá acesso directa à alma que se lhe recusava.

Maria Antónia abraça-se à Madrinha, nervosamente.

- Pelo amor de Deus, não me diga isso! Tem toda, toda a autoridade! Eu sei que é tudo para meu bem, mas...

- Mas o teu coração fala mais alto do que eu!

- Madrinha...

- Tu sabes que eu sou feliz, não é, Tónia? Mas ignoras tudo o que sofri para chegar onde me vês. As renúncias de cada dia perante um amor que cedia o lugar a outro afecto, difícil de entender para uma rapariga cheia de quimeras... O que nos valeu a ambos, foi poder existir precisamente essa afeição inteligente, firme... com a qual tive de consolar-me, esquecendo que o Pedro jurara adorar-me eternamente e pertencer-me, só a mim, para sempre...

- Madrinha? ...

- Quando fores mulher, Tónia, verdadeiramente mulher, perceberás melhor o que ainda hoje não te revelarei.

Tónia fita-a, espantada. Matilde sorri, amargamente.

- Não se adivinha, pois não? A verdade é só uma, filha. Os homens são todos iguais. Foram modelados no mesmo barro e apenas diferem em pormenores. Entre estes distinguem-se a elevação de caracter, a dignidade de cada um... Eis porque se torna perigoso confiar neles demais, principalmente nos que não se conhecem bem. Nós, as mulheres, quando amamos entregamo-nos sem reservas e acreditamos que o enlevo mútuo vai durar sempre...

Tónia reage contra a depressão. Não! Isso não é possível! Manuel, o seu Manuel...

Um sorriso de embevecimento principia a arquear-lhe os lábios.

O seu Manuel não será como os outros, nunca!

Pensamentos injustos salteiam-na. Ora! A Madrinha não falaria assim, se o eleito fosse o Gabriel... Pelo contrário! Choveriam elogios, palavras de fé e incitamento...

Liberta-se por completo da influência protectora.

- Obrigada, Madrinha, mas não se aflija por mim. Hei-de ser feliz com ele... -e imprudentemente, afiança: -Garanto-lhe!

- Está bem, vai-te embora então. Se é o teu destino que chama por ti, não posso reter-te.

Acompanha-a à porta. Quando a beija, na despedida, acrescenta:

- Mas não te esqueças duma coisa, Tónia! A tua felicidade é-me tão preciosa como se fosses minha filha!

Tónia parte.

Há na tarde uma claridade esquisita. Andam no céu nuvens de trovoada a esconder o Sol.

 

Vinte anos! Vinte anos! É a altura em que nascer parece a melhor coisa! Os olhos da rapariga não deixam de fulgir.

Há quem fale dela, da graça de tanta juventude, da inconsciência de tanta espontaneidade.

Uma fanfarra soa, estrepitosa. E chega aos ouvidos dela, chamando-a para a realidade".

O riso tilintou, esfusiante, como sons de cristal repercutido.

Manuel habituara-se a ouvi-la rir, por tudo e por nada. E começara a gostar dessas gargalhadas espontâneas que lha deixavam toda trêmula entre os braços, fremente dum prazer que se identificava com o dele.

Para mais, verdadeiramente, apreciava a alegria e a boa disposição. A melancolia e as coisas sérias indispunham-no. As pessoas reflectidas e tristes irritavam-no.

Quando tudo corria bem em torno dele, entregava-se, livre até os extremos, à satisfação própria-seu objectivo máximo. Detestava tudo quanto pudesse afastá-lo da maneira de viver sua predilecta: gozando, gozando sempre.

O riso de Maria Antónia, a dois passos de si, entontecia-o. Esse riso, que lhe abria nas faces duas covitas apetecíveis, onde tinha um sabor especial repetir beijos sem conta...

E, cansada de rir, Tónia defendia-se mal do fogoso entusiasmo que em tumultuosa paixão ia crescendo sempre.

Miragaia, brilhante conversador, humorista de fino espírito, habituado ao grande mundo e às mulheres, sabia enredá-la numa teia exuberante de graça e inteligência, acorrentando-a mais e mais àquela sedução que " arrastava vertiginosamente.

Sentiam-se felizes.

Abrigados no automóvel, juntinhos, passeavam um idílio que Tónia conservava ainda oculto do pai para respeitar a vontade de Manuel e porque não desejava repetir a cena em que tão maltratadas vira as suas quimeras.

Evitava a Madrinha. Não voltara a falar-lhe no apaixonado. E ao fim de quinze dias, embora devorada pela inquietação, D. Matilde ainda não ousara abordar o melindroso assunto, nem sequer para o levar ao conhecimento de Val-Rei. Confiava no bom-senso de Tónia, e esperava que a rapariga cumprisse o seu dever, contando ao pai o que se passava.

Esta, porém, crente em absoluto nas promessas de Miragaia, que dia a dia anunciava a chegada do momento ideal para o compromisso definitivo, afastara de si as preocupações familiares e embriagava-se sozinha no perfume da sua aventura julgada única. Perdera o sentido das proporções e, enfeitiçada, entregando-se ao amor que arrebatava, desviava-se do caminho direito.

Ocultava os passeios diários em que muita gente a encontrara já e de que se murmurava à boca pequena. Pretestava as coisas mais díspares e mais fáceis de desmascarar. Tudo lhe parecia secundário no confronto estabelecido com a presença do namorado. Acreditava nele cegamente e esperava o sinal para aos sete ventos proclamar a sua ventura.

Ia ali, ao lado dele, quase agradecida, deixando-se levar sem perguntar para onde.

O carro enveredara por um atalho, em lenta ascensão de que a folhagem espessa arredava a claridade do Sol.

Manuel guiava com uma só mão. com a outra, enlaçava-a.

Envolvia-os a frescura e a solidão. A serra era deles.

- Sabes para onde vamos, Tónia?

O automóvel subia sempre, sem esforço, mas lentamente.

- Não...

- Vamos para o paraíso!

Ela aninhou-se mais, ternamente. E riu.

- Mas contigo eu estou sempre no paraíso!

- Gostas de mim?

- Adoro-te!

Nunca se cansava de repeti-lo. Deliciava-se com o próprio som da frase de rendição.

- Adoro-te! Adoro-te! Adoro-te!

A expressão de Manuel era um tanto enigmática.

- Estamos sós... Longe do mundo. Sabes?

- Não é a primeira vez, pois não? -e ria sempre: - Quando estamos juntos, não estamos sós... tu tens-me a mim e eu a ti... Que mais queremos?

As futilidades, repetidas, plagiadas, vibravam como inéditos de imensa profundidade.

Os grandes olhos negros de Manuel, entre os cílios meio descidos, fulguravam estranhamente.

Pararam numa clareira.

Não se ouvia nada. Não se via ninguém. O próprio vento, nas ramarias altas, dir-se-ia ter cautela especial em não sibilar, para não perturbar a paz do local majestoso.

As árvores seculares, vestidas pelas eras, cobertas de Hquen, dominavam a serenidade.

O coração de Tónia pulsava muito forte.

- Sabes onde estamos, Tónia?

Ela sorriu, feliz. E repetiu: -Junto um do outro!... -Só?

-Fora do mundo...

- Exactamente! Já chegámos ao paraíso. Andam anjos por aí... Vem comigo que vou mostrar-tos.

Abriu-lhe a porta do carro, puxou-a pelos ombros, cingiu-a ao peito, beijou-a.

Mas, de repente, não encontrou nos lábios dela o calor procurado, o fogo que respondesse ao que o abrasava.

Qualquer coisa sucedia.

- Tónia!...

Largou-a.

Ela deu dois passos. Não sabia o que se passava, mas um receio indefinido principiava a enroscar-se nela. Procurou vencer o desconhecido medo que subia do seu instinto, misteriosamente acordado.

Repeliu o temor que se lhe afigurava disparatado, inconveniente.

Olhou para Manuel. E ele exclamou, admirado:

- Tónia? Que se passa? Entristeceste de súbito! Mas continuamos juntos, meu amor!...

Agarrou-a pela cintura e ela procurou deter a fogosidade impetuosa, com uma derivativa, esquivando-se.

- Vamos então, Manuel... vamos à procura dos anjos...

Bruscamente, ele largou-a, deitou-lhe uma torva mirada.

- Quero beijar-te sem que me chames à razão... Quero ser plenamente feliz!

Tónia esforçava-se ainda por dominar os receios indefinidos. E o seu temperamento alegre encontrou de súbito uma válvula de escape...

Escapou-se dos braços, cuja pressão afrouxara, e precipitou-se para um atalho que serpenteava entre o arvoredo.

Procurava-o, desafiando-o ingenuamente.

- Agarra-me, se fores capaz...

Distanciara-se. Muito embora, Manuel considerou fácil tarefa o alcançá-la. Lançou-se em perseguição da fugitiva.

Tónia não se deixava apanhar. Girava em torno das árvores trocando as voltas de tal maneira que Manuel, julgando-se prestes a deitar-lhe a mão, via-a de novo ao longe.

Principiou a irritar-se. Era demais, andar assim atrás dela, sem a agarrar de vez.

E o símbolo esgotou-lhe a paciência. Não, não continuaria a persegui-la em vão! Era preciso que as gargalhadas dela fossem caladas por beijos, como o desejara desde a primeira hora.

Tinha de ser!

As dificuldades impeliam-no para um paroxismo de desejos impossíveis de refrear.

Cansada, Tónia parou. E parou justamente quando Manuel se decidia ao arranco final.

O choque entre ambos foi tão violento que ela, desequilibrada, caiu para trás, desamparada.

Não se magoara, porque o musgo amortecera a pancada. Mas não pôde erguer-se, também, porque ria às gargalhadas, divertida com o incidente.

Manuel, de surpresa, ficou por instantes como que desorientado. Mas logo, num reflexo pronto, viu que finalmente a tinha à sua mercê.

Ajoelhou-se ao lado dela e realizou o gosto apetecido há tanto. Bebeu-lhe as risadas, calando-a, tirando-lhe a respiração.

O silêncio foi profundo. Nem um pássaro trinava.

De súbito, um grito rasgou a solidão. E uma luta desesperada maculou a paz.

Tónia debatia-se contra o assalto, contra a violência desmedida. Os seus receios condensados impulsionavam-na para uma reacção vigorosa. Força sem raciocínio, "vontade exaltada por advertência de origens primitivas atiravam-na em reacção quase selvagem contra a lógica do amor.

- Não, não, não... não quero! Larga-me!

Ela bateu, mordeu, arranhou. E não cedeu!

Puseram-se ambos de pé.

Ele, desgrenhado, enraivecido, faces arranhadas. Tónia rubra, amachucada, soluçante.

Com gestos desvairados, Manuel alisava os cabelos, compunha o vestuário, limpava o rosto, mirando o lenço, onde havia sangue do seu rosto frido. Então, sem uma palavra, começou a andar, procurando o carro.

Vendo-o afastar-se, atemorizada pela solidão, Tónia foi atrás dele, esforçando-se por não desfalecer.

Chegaram à clareira.

Miragaia subiu para o carro, pô-lo a trabalhar como se ela não existisse. ?

Maria Antónia fraquejou. Tremia e chorava.

Ela não sabia já se teria valido a pena salvar o que não quisera sacrificar-lhe. Porque na realidade perdera qualquer coisa... qualquer coisa terrivelmente importante para ela! Cometera contra ele o que ele talvez não lhe perdoasse nunca!

E a ela fora-se-lhe para sempre o direito de confiar como se lhe iria o respeito por si própria!

- Encostou-se ao automóvel, perto de Miragaia, que a não olhava.

- Manuel... por que fizeste isto?

Os soluços cresciam. Via-o diluído em sombras através das lágrimas.

- Por que fizeste isto, Manuel?

Ele não procuraria nem justificar-se nem desculpar-se. Assumiria definitivamente o papel de ofendido

Na verdade, verificando que falhara, sentia-se afrontado por um vexame estrondoso. Ela escarnecera-o batera-o, quando ele se julgava vencedor, maltratara-o...

Pois arrasá-la-ia agora com o seu desinteresse, com o seu desprezo!

Numa voz fria, respondeu-lhe:

- São inúteis as explicações, Maria Antónia. Não entendo reacções como as tuas e acho preferível retirarmo-nos.

Tónia ocultara o rosto nas mãos. Ele continuou:

- Uma vez que o meu contacto te repugna, creio que nada mais fazemos juntos. Sobe, se não queres ir a pé.

Ela, passivamente, obedeceu.

Manuel embraiou e acelerou.

O carro descia aos ziguezagues, perigosamente.

Tónia sentia-se presa duma culpa enorme. Sob uma aocihdade espantosa, entontecida, subjugada, sussurrou:

- Não estejas zangado comigo, Manuel

- Como?

Peço-te! Eu peço-te! -tentou segurar-lhe o pulso entre os dedos.

Manuel repeliu-a, duramente.

- Não me toques... visto que te desagrado. E chega-te bem para o lado de lá.

Cabiam terceiros entre ambos...

A desmoralização de Tónia tornou-se absoluta.

- Não me fales assim, Manuel! -suplicou.

- Como queres que eu te fale? Tomando-te nos braços, depois do que fizeste?... -apalpou as faces, num gesto rápido. -Ficaram-me várias recordações!

Tónia deixara de compreender de que lado estavam o bem e o mal. Tudo se confundia. Tudo se baralhava. Não sabia qual deles procedera erradamente.

Manuel, zangado, era uma coisa a que ela não podia resignar-se!

E não se conteve.

- Juro-te que não pensei no que fiz! Eu não queria...

- Escusas de o dizer. Bem sei que não querias. Eu é que sou tolo, acreditava no teu amor.

- Mas, por favor, entende-me...

A carreira desordenada prosseguia.

- Entendo-te demais!

- Eu não podia...

- Evidentemente que não podias! -e fustigava-a. -És uma menina disposta a vender-se caro... a entregar-se com todas as garantias no tálamo nupcial. A verdade e a espontaneidade do amor deixam-te indiferente.

Ela quereria desaparecer, deixar de pensar.

- Manuel, por favor... sou apenas uma rapariga honesta!

- Consideras então honestidade esse cálculo vil que leva a negociar uma honra mal situada a troco dum Papel com assinaturas várias?

- Manuel!

Iam a cento e vinte, fazendo ultrapassagens alucinantes deixando sobressaltos e comentários na sua esteira.

- Manuel... eu amo-te! Mas não sabia que eram estas as tuas intenções...

- As minhas intenções não eram nenhumas. A força da paixão arrastou-me para ti... e julguei-me correspondido. Não te imaginava recatada... ao ponto de exigir primeiro o matrimônio. Pelo menos não te portaste comigo de maneira a convencer-me disso!

O insulto acabou de arrasá-la.

Os papéis estavam definitivamente invertidos. com violência, Manuel prosseguiu.

- Só podias provar-me a tua sinceridade continuando, inocente, a deixares-te levar por mim. Então, sim! E eu apaixonado, depois de completar a minha missão, guardar-te-ia para sempre. Foste tu, calculista, sabida e fria. quem abriu entre nós o irreparável!

No cérebro em fogo de Maria Antónia os pensamentos turbilhavam. Os pés e as mãos gelavam-lhe. Um terrível mal-estar invadia-a, impossibilitando-a de coordenar as idéias tão necessitadas de serem arrumadas e depois traduzidas em palavras.

Numa voz cheia de orgulho e dureza, Manuel concluiu:

- Escusado será talvez dizer-te que tudo acabou entre nós.

Um grito respondeu-lhe:

- Não, Manuel... isso não! Oh, não! Eu vou contigo Leva-me contigo, mas não me deixes!...

Um sorriso cruel adejou nos lábios masculinos. Mas, no gesto, doeram-lhe os arranhões.

- Não me interessas, menina!

O carro parou. Estavam, como de costume, à esquina da rua dela.

Tónia continuava a chorar.

Ele observou.

- Acho que deves ter compostura... És muito conhecida e muito admirada por aí.

A rapariga enxugou os olhos. com um esforço enorme, desceu do automóvel. Ficou ainda parada, a olhá-lo desesperadamente.

Manuel manobrava, fazendo marcha atrás.

Ia-se embora, ele, com uma certeza. Maria Antónia dar-se-lhe-ia agora sem nenhuma espécie de condições!

Simplesmente ele já a não queria. Estava convencido disso, pelo menos.

Perdida em sofrimento, enquanto ele partia disposto a não voltar, Tónia entrou em casa com a horrível sensação de caminhar por cima de vidro polido...

Andava tudo à roda com ela... e ela girava como a própria casa...

 

"Há almas que se inquietam, desconhecendo até onde vai o direito de a acordar para o que ela não pressente. Há almas que se interrogam porque não sabem qual o caminho que ela seguirá, se se deixar empurrar.

As mãos apertam-se. Trocam-se frases de angústia.

Ela pára. Pára e continua. Deixam-na seguir, calando a pena de não serem capazes de retê-la. O tempo que de minutos vai fazendo séculos, leva-a consigo".

Com as mãos atrás das costas, Val-Rei passeava agitadamente. Na testa ampla uma ruga abria um sulco profundo, denunciando sofrimento e medo. O rosto cobria-se-lhe de gotas de suor.

Sentados nas duas maiores poltronas do escritório, os colegas eminentes, convocados à pressa, fitavam-no com ar perplexo.

E a voz alterada do grande cirurgião continuava a descrever, insurgindo-se cada vez mais.

- Não posso conformar-me, meus caros! E não entendo, não sei nada! Chego à conclusão de que todo o meu trabalho é estéril e não passo duma besta sem qualquer préstimo. Não atino com uma explicação... Não descubro a origem do mal-parou, enxugando a testa ao lenço que tirou da algibeira do casaco. -Acaso a aflição directa me diminui a capacidade de dignosticar?

Nenhum dos outros lhe respondeu.

Val-Rei continuou.

- Suplico-lhes que me ajudem, meus amigos! Sinto que nada posso fazer. E não quero perdê-la! Ela tem só vinte anos... não há-de desaparecer!

O bigode branco de Carlos Medeiros tremeu. Passando a mão, no gesto habitual, pela calva reluzente, o professor levantou-se e foi dar uma palmada no ombro do amigo.

- Vejamos, Val-Rei, o caso não se me afigura assim, desesperado! A tua angústia dá-lhe proporções que não tem.

- Evidentemente-corroborou Damásio Pereira, sacudindo a abundante cabeleira negra, espessa e encaracolada. -Evidentemente!

Val-Rei deixou-se cair sobre o sofá e ocultou o rosto nas mãos.

- Mas aquela maldita situação de que ela não há maneira de sair!

Medeiros cruzou os braços. Reflectia.

- Já fez quatro dias...

- Sim, já! Já há quatro dias que a encontrei desmaiada, no quarto de banho. Vinha eu para jantar quando a vi assim. Ninguém tinha dado por nada.

- Esteve 48 horas inanimada...

- E nunca mais abandonou o estado letárgico!

- Não há dúvida de que ela sofreu uma violentíssima comoção cerebral! -opinou Damásio, dando muito à cabeça, como era seu costume quando formulava um diagnóstico.

O professor Medeiros concordou.

- E absolutamente certo! Derivou do traumatismo tal como a queda foi uma conseqüência do choque neurógeno em si. A origem deste, porém, escapa-nos.

Val-Rei deixou pender os braços. Desalentado, encolheu os ombros.

- À hora do almoço a Maria Antónia estava inteiramente bem. Quando saí... deixei-a a cantar!

Ergueu-se. No meio do grande aposento, onde os verdes se harmonizavam com o acaju, a sua figura alquebrada infundia compaixão. Não parecia o homem superior que os alunos veneravam e em que os doentes confiavam cegamente. Transformara-se numa criatura lamentável que apenas despertava sentimentos de piedade.

Carlos Medeiros continuava a afagar a calva, nervosamente.

Tudo na rapariga enferma ameaçava sossobrar inexplicavelmente. Permanecia num estado de abatimento completo. Sentia-se que ela, na inconsciência em que jazia, não era capaz de fazer coisa alguma para reagir. E a doença devorava-a. Estava a ser alimentada por meio de injecções.

As observações incessantes nada mais indicavam do que o já reconhecido. Mas devia haver algo de estranho. algo que não se identificava com as reacções previstas...

A apatia revelava-se como gravíssima complicaçãocontra a qual esbarravam todos os esforços.

Pressentiam, Carlos Medeiros e Damásio Pereira, uma razão principal, através do facto concreto. Uma causa emocional, sem discussão. Mas para as bases ignoradas avançavam às apalpadelas.

Val-Rei, atormentado, falou de novo:

- Então? Então? Por favor! É preciso fazer qualquer coisa! Fiquei sem a mulher... Não me digam que vou perder a minha filha! É tudo o que me resta!

Deixava de ter domínio nos nervos. Não era um médico. Era um pai!

- Precisamos de fazer qualquer coisa! Ajudem-me! Salvem-na!...

Damásio Pereira trocou um olhar com Medeiros.

- Vamos examiná-la outra vez...

O professor corroborou:

- Será depois melhor radiografá-la... e fazer um encefalograma...

Com uma angústia desmedida, Val-Rei exclamou:

- Estão a pensar num temor cerebral?... Mas não, não é possível! Ela andava tão contente, tão bem disposta, não se queixava de nada... -Bruscamente fez um gesto de terror: -Ah!... Acabo de lembrar-me que... há cerca de três semanas... ou um mês... ela esteve de cama uns dias, queixando-se de abatimento geral, de inapetência...

Os dois amigos, com alarmado interesse, aproximaram-se mais.

Val-Rei prosseguiu, agitadíssimo:

- Oh! Mas isso seria horrível! Uma operação!... Na minha filha, não! Tudo, menos isso!

Eles bateram-lhe nas costas, animaram-no.

- Mas não é nada do que estás a imaginar! Claro que não pode ser! Onde é que estão os teus brilhantes conhecimentos para dizeres uma dessas ? Vejamos, Val-Rei, não encares as coisas pelo lado pior. Vê se raciocinas, homem! Que é dos sintomas?

Nesse instante a porta do escritório abriu-se violentamente e Amélia surgiu. Vinha tão alterada que mal podia falar.

Val-Rei fez-se lívido.

Amélia torcia nas mãos o avental bordado.

- A enfermeira chamou... A menina... a menina...

Foi um décimo de segundo. A dor que golpeou o coração de Carlos Val-Rei, se durasse outro décimo, matá-lo-ia.

- A menina está a dizer coisas...

As lágrimas desciam pelas faces envelhecidas do cirurgião. O sofrimento encontrava derivativo.

- A menina está a dizer coisas...

Todos três, perdida a natural compostura, correram para o quarto da doentinha.

Quando entraram, Maria Antónia, branca, de olhos desmedidamente abertos, debatia-se entre os braços da enfermeira, discursando com palavras nem sempre inteligíveis, para um auditor invisível.

Ficaram, os médicos, à beira da cama, olhando-a e escutando-a numa tensão de inteligência.

As frases, entre os lábios crestados, sibilavam. Um nome sobressaía entre queixumes e exprobações.

- Manuel... Manuel, Manuel! Não, isso não! Tudo, mas isso não! Não me deixes! Manuel, não me deixes, Manuel! Manuel... se eu soubesse... queria... queria... mas não me deixes! Manuel! Zangado... zangado...

O resto perdia-se em regougos intermináveis onde se pressentiam explicações do que não se descortinava. Voltava depois o apelo insistente.

- Não me deixes, Manuel! Não me deixes!

As pupilas de Val-Rei, alucinadamente, não se descravavam da filha.

Ela calou-se por fim. Sossegou. A cabeça descaiu-lhe para um ombro. Duas lágrimas desciam-lhe pelas faces,

A enfermeira acomodou-a e tapou-a.

- Adormeceu... -disse para os médicos.

Medeiros, contrafeito, balbuciou:

- Creio que a febre vai descer, depois desta crise...

Damásio mordia o lábio inferior, confuso:

- Esperemos até amanhã...

Val-Rei fitou-os, amargamente.

- Amanhã... por favor, observá-la-ão... pormenorizadamente. Receio que... que tudo seja completamente diverso do que eu supunha!

Voltaram para o escritório.

Val-Rei precedia-os, de cabeça baixa, num passo hesitante. Depois da porta fechada, encarou-os.

- Desculpem! -disse humildemente. -Eu ignorava isto" eu ignorava que havia alguém na vida da minha filha!

Medeiros procurou animá-lo.

- Talvez não passem de visões de doente...

- Não!... Agora percebo... receio perceber tudo, mesmo. Ultimamente a sua alegria desmedida... Os passeios incessantes... e isto...

- Coisas naturais!

- É duro pensar que a minha filha tinha segredos para mim! E não sei porquê...

- Não te aflijas, Val-Rei. O mal passará e não deixará vestígios.

- Não deixará vestígios?...

- Enfim, logo que ela melhore, interrogá-la-ás.

Desoladoramente, Val-Rei tornou:

- Tónia... com segredos para mim! Nunca o imaginaria!

Porque Deus é testemunha de que eu tudo faria para poupar a, esta criança os mínimos dissabores... para lhe conceder fosse o que fosse que ela me pedisse! Um silêncio.

Medeiros e Pereira acenderam cigarros. Não sabiam como agir. Ao caso clínico, melindroso, acrescentava-se o caso moral, insuspeitado, e para o qual não conheciam a terapêutica.

Torturado pela idéia fixa, Val-Rei pôs-se a murmurar:

- Manuel! Manuel!... Quem será esse Manuel? E que se passou entre ambos?... Porque não há dúvida que se passou alguma coisa... alguma coisa que a pôs, a ela, às portas da morte! -De súbito, exaltando-se, bradou: - Ah, mas eu hei-de saber quem ele é, hei-de descobri-lo, hei-de ir buscá-lo onde quer que se tenha escondido... e ele há-de reparar o mal que lhe fez! Não, ela não continuará a chamar em vão por esse Manuel! A minha filha não há-de chamar por quem não lhe responda! Ele não a deixará!

Medeiros, afectuosamente, bateu-lhe num ombro, diligenciando trazê-lo à razão.

- Há coisas que nós, pais, não conseguimos dar aos filhos, por mais que o desejemos!

Val-Rei fitou-o, como que admirado.

O professor continuou.

- Coisas que excedem o âmbito normal das possibilidades humanas...

O cirurgião protestou.

- Mas... isto é fácil! Ela... ela quer esse Manuel... que a deixou. E eu obrigá-lo-ei a voltar!

Parecia uma criança, a julgar tudo possível, mesmo o que nem existe...

Afagando a calva outra vez, Carlos Medeiros discordou:

- Acho preferível que a tua filha se explique.

- Que se explique!...

- No fundo, não sabes de quem se trata... se se trata de alguém! Pode ser uma alucinação da febre... Coisas do delírio...

- Do delírio!...

- Claro! Porque a verdade é esta: nós não estamos inteirados acerca do que se agita no coração dela! E antes deste acidente... tu não suspeitavas de nada!

Val-Rei pôs-se a acenar com a cabeça, afirmativamente.

- Tens razão! Tens razão! E eu que supunha conhecer bem a minha filha!... A minha filha! A minha filhinha... a chorar... a gritar por um Manuel qualquer... que a deixou... Ah, o miserável! O miserável!...

Naquela poltrona, afundado, angustiado, alheado, o deixaram Medeiros e Damásio, seguindo cada qual à sua vida de trabalho.

Naquela poltrona o encontraram muito depois, a repetir o que se tornara estribilho entre os seus lábios secos -miserável, miserável! - D. Matilde e Gabriel, que vinham visitar a doentinha.

Naquela poltrona, depois duma longa conversa com os amigos, Val-Rei descobriu finalmente a existência dum Manuel Miragaia que arrastara Tónia ninguém adivinhava ainda para que de alturas se despenhar.

Naquela poltrona ele tudo aceitou, entre Matilde e Gabriel desesperados, por amor da filha crucificada pelo primeiro desgosto sério. Tudo aceitou, incluindo a humilhação de implorar piedade a quem, partindo, não tencionava regressar...

"Ela é ainda a estrofe maravilhosa que procura rima.

O que fica no espaço franqueado nada lhe diz.

Anda toda no momento actual, no presente. Não dá sequer pela fuga irremediável das mais belas horas, as que o destino, pròdigamente, começa a oferecer-lhe, dia a dia. O clarão dos seus olhos continua luminoso. O Sol brilha... Brilha para iluminar os seus vinte anos e colorir todas as venturas que por ela passam".

As pálpebras de Tónia, pesadas, enegrecidas, palpitaram.

A enfermeira, com infinitas precauções, acomodou-a nas almofadas, afastando da testa lisa as madeixas de cabelos que, descoloridas, murchas, tinham o mesmo ar doente que a rapariga.

Sentado à beira da cama, dominado por recordações e cuidados, o doutor apertou-lhe uma das mãos entre as dele, longamente.

- Vá lá, querida. É preciso ficar boa depressa... Já passou tudo, nem?

Tónia continuava inerte, prostrada. Mas a respiração normalizava-se e o pulso batia com regularidade. A juventude proclamava-se vencedora.

Val-Rei fez um sinal, rápido, à menina Carlota. Esta apresentou-lhe imediatamente a chávena onde o líquido perfumado arrefecia.

- Querida filha, vais beber este caldo... Quero que faças o possível...

A mão de Val-Rei tremia, empunhando a colher. Umas gotas de'líquido caíram na dobra do lençol. E Tónia virou a cabeça para o lado, recusando, em silêncio.

O grande cirurgião mordia os lábios, nervosamente.

- Isto não pode ser, filha! Tens de alimentar-te, tens de reagir. Sou eu que to peço, ouves?...

Ela ouvia-o. A mão transparente agitou-se e poisou-se depois nas pernas do pai.

Val-Rei entregou de novo a chávena à enfermeira.

Numa voz débil, Tónia falou pela primeira vez. E falou para interrogar.

- Tenho estado... muito doente?

Era pouco. Mas, para Val-Rei, a pergunta lânguida assumia extraordinária importância.

- Sim, querida... muito doente. Mas vais ficar boa num instante.

Ela não abria os olhos. E, num cício, queixou-se:

- Parece... que não posso lembrar-me de nada!

Os sobrolhos do pai contraíram-se.

- De que desejavas tu lembrar-te, Tónia?

- Não sei... o tempo!... Quantos... quantos dias, aqui?...

Os dedos de Val-Rei enclavinhavam-se.

- Não te atormentes, filha. Isso não tem importância nenhuma. Agora trata-se de ganhar forças... e de querer viver!

Falou-lhe perto do rosto, gravemente, apaixonadamente. E, recebendo em cheio o hálito forte, Tónia soltou um fundo suspiro. Então abriu os olhos e fitou o pai. No mesmo instante o cérebro entorpecido obedeceu à chamada e rompeu as trevas em que mergulhara.

Fitando as pupilas tão amigas, ela recordou-se da sua aflição quando sozinha, depois de andar não sabia quanto tempo por cima de vidro escorregadio, perdera o equilíbrio e... acabara. Mas acabara, como, se estava ali, deitada na cama dela, lembrando desesperadamente junto do pai a imagem desse que nunca mais voltaria?...

Bruscamente sentou-se e abraçou-se ao pai. Dir-se-ia procurar uma certeza, ou um apoio.

- Pai! Pai! -soluçou. -Pai!...

O doutor estreitou-a com frenesi.

- Mas que foi, que foi?... Vamos, queridinha, que sucedeu à minha menina?... Estou aqui, sou o teu velho pai... a quem se conta tudo, tudo!

Tónia encarou-o.

- Paizinho... eu delirei?... Falei?

- Falaste.

Abandonadamente, tombou de novo nas almofadas e cerrou as pálpebras. Val-Rei assustou-se.

- Tónia! Tónia!

Ela recomeçara a querer pensar. E pensando entregava-se ao desalento que lhe inspirava o desejo mórbido de cessar de existir.

A rapariga feliz, no choque brutal com o primeiro desgosto, acreditava que perdera o direito à ventura. Acreditava que tudo para ela terminara e queria fugir, mais e mais, sem retorno possível.

Para que havia de ter voltado a si?...

A voz do pai mergulhou no abismo em que ela se debatia.

- Que quer isto dizer?... Tónia, que quer isto dizer? Por que te entregas ao mal... sem confiar em mim? Ah, Tónia, Tónia! Merecias dois açoites bem dados...

Ela não compreendia. Mas tornou a fitar o pai... e de súbito, sem saber a que instinto obedecia, recomeçou a sentir que vivia. É verdade, o pai dar-lhe-ia tudo! Era afinal assim que sempre sucedera!

Val-Rei dava à cabeça, desmentindo as exprobrações com sorrisos bondosos.

- Não está certo, sabes? Não está certo que andasses a ocultar coisas ao pai... Não percebo por que não me disseste tudo... Ah, marota, que se não fosse a tua doença eu teria motivos para me zangar... Segredeira!

Ela abriu a boca. E ficou toda no som dum só nome: - Manuel!...

Val-Rei sentiu uma picada algures, dentro dele. Mas lutou para vencer essa dor misteriosa, para ser forte para dar o exemplo... para realizar o que prometera a si próprio: entregar à sua menina o brinquedo porque ela suspirara.

E continuou:

- E foi preciso que viesse aí esse belo tenebroso, esse cavaleiro andante, para eu descobrir os motivos do seu trambolhão... e perceber a sua algarviada!

Uma lágrima rolou pelas faces de Tónia.

- O Manuel veio cá! O pai... já sabe!... Val-Rei prosseguia, fingindo uma satisfação viva. -Já sei, já sei, sim senhora!

Representava bastante mal, mas Tónia não se encontrava apta a exercer uma crítica imparcial.

- O pai... já sabe! -repetiu-e agarrou-lhe os braços, puxou-o para ela, com uma força insuspeita em tamanho grau de abatimento. -Pai... dize-me a verdade!

- A verdade! Eu é que digo a verdade, ainda por cima? Isto só a mim! Sim, porque eu gostava de saber que medo foi esse de que eu me opusesse!

- Mas... como o descobriste, paizinho?

- Não o compreendeste ainda, criaturinha de Deus?. -e tossiu, para aclarar a voz que se velava. -Aparece u-me por aí o príncipe encantador a pedir notícias suas. e a saber com que direito eu a seqüestrara. Uma destas hem? Eu, Carlos Val-Rei, acusado de seqüestro!

- Pai!

- Não me faltava mais nada, não achas? -beijou-lhe os cabelos, e prosseguiu: -Depois lá percebi tudo. O arrufo... a má disposição... e a queda cujos resultados estão à vista!

A rapariga arquejava, suspensa.

- Pai... pai!...

- É, é! Foi um bonito serviço! Disse-te tanta vez que te agarrasses bem ao sair e ao entrar na banheira!... Escorrega que eu sei lá! No fim de contas ainda ti veste muita sorte em não rachares a cabeça...

Tónia, com uma expressão maravilhada, balbuciou, já sem ouvir o pai.

- O Manuel veio cá! O Manuel voltou!

Val-Rei pestanejou. Calou-se, como que sufocado, mas logo dominou a emoção crescente.

- Veio... e está lá dentro.

- Manuel!

- Quer vir vê-la, à força... mas não entra cá sem vossemecê cuidar de si.

- Pai!... Oh, pai!

- E a primeira condição que eu imponho é que tome o caldo todo... porque meninas rabinas não têm direito a visitas!

Ela voltou-se acto contínuo para a mesa de cabeceira, junto da qual a enfermeira, impenetrável, esperava. E gaguejou, estendendo a mão.

- Eu bebo... eu quero... tudo! Oh, tudo!

Val-Rei, precipitadamente, apresentou-lhe a chávena. Maria Antónia levou-a aos lábios, e, embora com visível repugnância, bebeu o caldo até à última gota. Depois, exausta, recaiu sobre as almofadas. A leve cor que lhe subira ao rosto extinguiu-se outra vez.

O doutor, inquieto, contou-lhe as pulsações.

Tónia sussurrou.

- Parece-me que sonho e receio acordar...

- Como

- Não me enganas, pai?... O Manuel... é verdade?

Val-Rei pôs-se de pé.

- Não te engano, filha.

Uma expressão radiosa refrescou o semblante pálido, Onde nasceu um débil sorriso.

- Ah... mas ele não pode... não pode encontrar-me ssim! Devo estar muito feia...

Val-Rei inclinou a cabeça.

- Tu és sempre linda, minha pequena. Mas a Carlota ajudar-te-á a preparar-te... se queres de facto recebê-lo.

Obstinadamente, Tónia volveu.

- Ele é capaz de não gostar de mim agora! A doença dá cabo das pessoas!...

- Tolinha! Se soubesses como te fica bem esse ar de martirizada! -e sorrindo, esforçadamente: -Como vês, querida, até fiquei romântico!

Tónia contemplava o pai, afectuosamente.

- Pai... Oh, pai... começo outra vez a sentir-me feliz! E preciso de forças, tens razão! Agora que ele voltou... -Uma expressão receosa obscureceu-lhe o olhar. E com uma súbita preocupação indagou: -Ele disse-te... alguma coisa

Val-Rei defendeu-se.

- Acerca de quê?

- Zangámo-nos... e... e... ó paisinho, não sei bem se deva recebê-lo de braços abertos!

O cirurgião não pôde deixar de sorrir.

- Sabes, Tónia, eu sou da opinião que não fica bem a uma mulher ser reservada. Vocês estavam amuados... Mas ele veio ter contigo... -e engolindo a saliva, acrescentou: -E se ele veio ter contigo é porque já esqueceu e deseja fazer esquecer. Portanto, só tens um caminho a seguir: facilitar-lhe os meios de conseguir a completa harmonia... e não falar no que se passou!

Com as pupilas fixas nas do pai, Tónia repetiu:

- Não falar no que se passou... É o que me aconselhas?

Val-Rei desviou os olhos. Depois, com uma voz clara, disse.

- O tal dia havia de chegar, não é?... Depois... posso acabar em paz.

- Pai!

Ao cabo de alguns instantes, durante os quais apenas se ouviram no quarto os leves passos da enfermeira Carlota procedendo a quaisquer tarefas, Val-Rei indagouaproximando o rosto do da filha.

- Gostas realmente muito dele?

- Muito!

O doutor suspirou.

- Só tenho pena de não haver sabido logo...

Ela tentou justificar-se, num rebate de consciência.

- Foi tudo tão rápido!...

- Sim, eu não ignoro que todos os apaixonados- são tolos. Mas tu... tu!...

- Pai!

- Perdoa-me, filha. Estou a aborrecer-te inutilmente, eu... quando só uma ambição me domina! Quero que sejas feliz... e o cavalheiro que lá está dentro tem pressa de ver-te!

Ela sorriu de novo, fechou os olhos e não respondeu. Só os abriu quando a sua pequena mão fria foi apertada por uns dedos vigorosos e ardentes e sobre o seu rosto adejou um sopro quente, cheirando a tabaco...

Da porta, imóvel, Val-Rei, extremamente sério, poisava em Miragaia um olhar agudo, um olhar terrível.

 

Sente-se despreocupada como a água que segue o curso normal apesar dos rochedos que tentam deter-lhe a passagem... É a mocidade com os seus direitos. Não vale a pena dizer-lhe: reconsidera! Enquanto dura vale mais que todos os conselhos. Tão bela! Tão rápida... Não, nunca!

Quem falou na morte, no fim? Caminha, idade soberana! O teu povo ama-te e obedece-te. Os teus vassalos adoram-te, a perder de vista. Abençoados vinte anos!".

A convalescença foi rápida. Tónia não podia perder tempo.

O abalo moral e o choque físico, tratados pelo amor, deixaram o campo livre à felicidade que se instalava zombando de quaisquer dúvidas ou receios. Voltou-lhe o riso aos lábios, a cor às faces, a energia aos membros. A mocidade tonificada pela alegria cumpria a sua obrigação.

Val-Rei acompanhava desveladamente essa evolução, que, restituindo-lhe a filha, também lha levava...

Curvando os ombros, inclinando a cabeça, aceitava a aproximação do que se lhe afigurava como sendo o verdadeiro fim duma longa jornada de trabalho e sacrifício.

Os seus olhos estavam cheios de melancolia. Tónia, Porém, não se ocupava em decifrar aquela estranha expressão.

A presença e a imagem doutrem ocupavam-na toda inteira!

Quando Val-Rei procurou Tónia, nessa manhã, ela já não estava no quarto.

Foi encontrá-la na sala de costura, vestida com esmero, pronta para sair.

A testa do cirurgião contraiu-se.

- Bom dia, filha.

Ela, que espreitava pela vidraça, soerguendo a cortina, respondeu sem se voltar.

- Bom dia, pai!

Val-Rei acercou-se, poisou as mãos nos ombros estreitos.

- Que fazemos nós aqui, tão cedo?

- Espero o Manuel.

- Só?...

- Quero ir com ele à Madrinha, quero ir apresentá-lo...

O pai abanou a cabeça.

- Para a rua, já? Mas isso é uma imprudência!

- Eu estou óptima, pai! -e com ligeira impaciência, acrescentou: -Nem tu calculas como me sinto! Apetece-me rir, cantar, passear...

Cauteloso, o médico tacteou-lhe o pulso.

- Pois sim... mas não deves abusar das tuas forças. Estiveste muito doente, e receio que interpretes como determinação física o que não passa de exuberância moral...

Tónia voltou a inspeccionar a rua.

- Ora, pai! Repito-te que estou magnífica! -e porque na rua nada surgia de diferente no panorama de anos, voltou-se e, divertidamente, mimou-o: -Vem cá, chega-te a mim... Olha aqui os meus olhos, por dentro... Vês como estão encarnados? (e virara a pálpebra inferior). E as minhas gengivas? (e arregaçava o lábio superior). E as minhas unhas, sem verniz e tão cor-de-rosa... Tudo isto é sinal de saúde, pois é?

Era bem a Maria Antónia, alegre, jovial, transbordante de impulsos e espontaneidade! Na testa de Vai-Rei, contudo, a ruga de preocupação avolumava-se, era vez de dissipar-se.

A rapariga espreitou outra vez pela janela e finalmente avistou o belo carro vermelho que fazia a curva e entre admirações e comentários parava, lentamente, definitivamente.

- Lá vem ele, lá vem ele!...

E precipitou-se para a porta. Mas Val-Rei, num gesto inconsciente, como que de súplica humilde, reteve-a segurando-a por um braço.

Maria Antónia talvez reconhecesse no mudo apelo um rebate da consciência. Foi uma coisa meramente intuitiva, mas existiu, aconteceu.

Arrebatada, abraçou-se ao pai e beijou-o nas duasfaces, longamente.

Val-Rei sentia umas lágrimas absurdas, estúpidas, chegarem-lhe às pálpebras. Esforçava-se com denodo por devolvê-las à proveniência...

No entanto, tornou-se-lhe impossível reter aquela espécie de lamento onde havia um mundo de desculpas.

- Filha... filha, tu sabes... é que eu não tenho mais ninguém de quem gostar!...

Já a campainha da porta da rua soava, estridente, e Tónia se precipitava, sem mais reparos, para o corredor.

Val-Rei quedou imóvel, pensativo. Era assim que ela iria de vez, sem olhar para trás... Nada havia a fazer senão confiá-la ao destino!

Não tardou que os dois namorados aparecessem.

Tónia, corada, palpitante, enlaçada por Miragaia, vinha, na sua exuberância de menina, diligenciando convencê-lo a partilhar dos seus projectos, esquecendo-se de que doravante não era só a vontade dela que pontificava... E, contudo, o hábito adquirido de dispor de si, de submeter os que lhe queriam bem, era tão forte e, mercê das circunstâncias, tão lógico, que extremamente difícil lhe seria compreender-barreiras.

E, no entanto, Manuel reagia, não se mostrava disposto a concordar com ela.

- Mas, filha, venho passar contigo uns momentos, só uns momentos e só contigo... Tenho voltas a dar.

Enquanto os dois homens se cumprimentavam, ela insistia, argumentava, sem o largar, entusiasmando-se com o projecto.

- Também não precisas de lá ficar o dia todo. Eu necessito tanto de falar com a Madrinha, por causa da lista do enxoval! Por isso, já vês! Levas-me, apresento-te, vais à tua vida e, depois, quando puderes, voltas!...

Não se podia dizer que a pretensão fosse menos razoável!

Não obstante e apesar do amoroso olhar que lhe deitou, Manuel resistiu, na normal obstinação masculina.

- Não, não vou. Não tenho interesse nenhum em ir -conhecer essa gente!

Tónia protestou.

- Manuel! Lembra-te que essa gente é a minha família, tão minha amiga... A Madrinha serviu-me de mãe... já to disse! Faz-me a vontade, não sejas teimoso! -e, subitamente, voltou-se para o pai, implorando auxílio. -Pai, anda, dize-lhe que ele deve ir comigo!...

Val-Rei mordiscava os lábios, em silêncio.

Nitidamente contrariado, Manuel largou o braço da rapariga e encarou o cirurgião.

- O sr. dr. achará decerto extemporânea a minha visita a pessoas que devem ainda ignorar a minha existência...

Val-Rei fitou-o a direito com esse olhar duro, mau, -que nele era inteiramente novo.

- Oh, não... eles não ignoram a sua existência!...

Houve uma pausa, difícil, que Tónia sentiu mas contra a qual imediatamente se defendeu, recusando-se a aceitar quaisquer preocupações, viessem donde viessem... Também notou a singular afirmativa do pai, mas não a relevou.

Pelo contrário!

- Claro que eles estão fartos de saber que tu existes! Eu era lá capaz de não falar de ti à Madrinha-e, cada vez mais exuberante, acrescentou: -Além disso, reza um velho ditado que os amigos dos nossos amigos... nossos amigos são!

Com um sorriso zombeteiro, Val-Rei encarou o futuro genro.

- Talvez seja melhor não resistir, meu caro. Esta marota tem artes para nos obrigar a fazer o que não queremos.

Miragaia contraiu os maxilares. Era-lhe intolerável sentir-se de tal forma preso no laço.

Fingindo-se amuada, Tónia voltou-se para o pai.

- Isso! Agora chama-me bruxa!

Val-Rei levantou na concha da mão o queixito redondo.

- Feiticeira... feiticeira, sim! Eis o que tu és! Não concorda, Manuel?

Fulo mas manietado no seu papel de noivo, ele encolheu os ombros

- Concordo, sim... -e deixou escapar uma frase sibilina: -Só a habilidade com que ela me venceu!...

Tónia soltou uma gargalhada, atirou-lhe beijos nas pontas dos dedos e, saindo lestamente, preveniu:

- vou pôr o chapéu e não me demoro. Façam o favor, entretanto, de não falar mal de mim...

Ficaram sós, os dois homens. Esforçando-se por ser amável, por vencer essa espécie de antipatia física que o crispava, num receio absurdo e indefinido, Val-Rei abriu a cigarreira e estendeu-a ao futuro genro.

Em silêncio, ambos principiaram a fumar.

Depois, bruscamente, o cirurgião fitou o diplomata, bem de frente, e disse.

- Julgo que o vosso casamento não demora a relizar-se...

Com elegante correcção, não isenta de algum escárnio, Miragaia inclinou-se.

- É presentemente essa a minha intenção...

A voz de Val-Rei tornou-se mais grave.

- Ouça, meu filho... -e sacudiu a cinza do cigarro. - Permite que o trate assim, não é verdade? Em breve o será, creio. Portanto, repito... meu filho! Eu gostava de estar tranqüilo a seu respeito, de o sentir aqui de livre vontade... Todo inteiro...

- Perdão, mas estou-o!

Val-Rei abanou a cabeça e pestanejou. Dirigiu-se à porta, espreitou e voltou para junto dele. Proferiu, então, com gravidade e emoção:

- Não sei!... Quando lhe telefonei, nessa noite, julgando a minha filha à beira da morte... e lhe pedi que viesse vê-la, uma vez que era você que ela reclamava e eu desejava dar-lhe a última felicidade, pareceu-me que anuía por qualquer ignorado rebate de consciência.

Manuel acendeu outro cigarro, no primeiro. O cirurgião prosseguiu.

- Depois... você veio e explicou-me que nada houvera de grave... e prontificou-se a colaborar comigo nesta "obra...

Miragaia encolheu os ombros:

- Penso que, mesmo sem o seu telefonema, eu regressaria, sr. doutor. Tónia começou a interessar-me doutra forma depois de me resistir!

- Quem me dera acreditá-lo!

- Pode bem fazê-lo. Porque a verdade é que não me rendi sem luta. Antes, confesso-o, não me passara pela cabeça a idéia de casar-me. Depois... a imagem dela não me largou mais. Quando o sr. doutor me falou, eu estava já disposto a procurá-la.

- Para casar?

Manuel encarou-o. Sorriu e volveu, com uma insolente franqueza:

- Se não havia outra solução!...

Por sorte, Tónia demorava-se. E Val-Rei, depois de voltar a inspeccionar o corredor, abeirou-se do rapaz, poisou a mão no braço dele e, baixando a voz, prosseguiu:

- Oiça, Manuel, eu só tenho esta filha. Ela é tudo quanto me ficou dum amor a que a morte pôs termo cedíssimo. Pela ventura dela, peço-lhe uma coisa: Nunca conte... que veio porque eu, doido de aflição, lho pedi!...

As pálpebras de Manuel bateram, repetidas vezes. Ao cabo de momentos, respondeu: - Não contarei.

Tónia reapareceu, naquele instante, sem ser pressentida. Vinha gentilíssima, o chapéu de palha emoldurando-lhe o rosto belo, que não reflectia a mínima desconfiança.

- Demorei-me, não foi? Calculem que rebentei dois pares de meias a seguir. E os meus pequenos, de que falavam, enquanto esperaram por mim? Pode saber-se?

Val-Rei dominou o último constrangimento, sorriu.

- Pode!... Sou um velho pai sentimental e piegas... Estive a contar ao teu... noivo, o que tem sido a nossa vida!

Ela sorriu, docemente.

- Ah!

- Evocava o carinho e a elevação com que te criei, a ti, único elo que me prende à vida, e por quem diligenciei tudo conseguir...

Tónia, simplesmente, aproximou-se de Manuel, enfiou o braço no dele e apoiou a face no ombro robusto.

Contemplando o par ideal, Val-Rei acrescentou:

- Desde que na minha menina reconheci a mulher... esperei a chegada deste dia. Esperei-a... e, sinceramente, temi-a! Porque, doravante, os deveres que julgo ter sabido cumprir vão fugir-me das mãos e passar para outras!

- E olha que vão ficar bem entregues, paizinho!

Val-Rei sorriu, dolorosamente.

- Assim o espero! Porque pouco mais poderei fazer pela ventura objectiva da minha filha!

Ante o inesperado discurso, Manuel sentia-se consumido pela impaciência. Na ânsia de se livrar de mais exortações, ripostou com firmeza:

- Espero tornar a Maria Antónia feliz, sr. doutor...

O velho médico suspirou. Mas não os deixou ainda abalar, retendo-os num gesto.

- Perdoe a insistência, meu rapaz. Mas eu conheço os homens e sei de que barro somos todos construídos. Às vezes tomamos por sentimentos irrevogáveis... o que não passa de insatisfeito capricho.

Tónia não compreendia a directriz que o pai segue que estava a magoá-la, a derramar importunas sombras na sua claridade.

- Mas a que vem tudo isso ? -indagou.

- A que vem?... Oh... não vem a nada! São reflexões. da experiência, da idade. Há tantos lares mal edificados tantos pares que se encontram diante dum vazio, duma surpresa revoltada, duma natural predisposição para continuar andando e procurando...

Deteve-se. Viu que Tónia e Manuel se olhavam e sorriam e já o não ouviam, contida pela sua presença uma exteriorização de enleio mais completa.

Então libertou-os.

- Vão, meus filhos, vão...

Tónia deu-lhe um beijo apressado. Manuel apertou-lhe os dedos. E ambos partiram, radiosos, dominados pela embriaguez do amor.

Val-Rei foi espreitá-los à janela. No carro, depressa desapareceram à esquina. Então voltou para dentro, ficou largo tempo imóvel, de expressão abatida, reflectindo.

Que havia naquele rapaz que lhe desagradava? Que presciência lhe ditava os receios que o oprimiam?

Dera-se ao cuidado de obter informações acerca de Miragaia, junto de amigos influentes na carreira diplomática. Diziam que o rapaz era rico, educado, livre, com um largo futuro. Havia um senão, reconhecido. As mulheres disputavam-no... Mas isso não bastava para o condenar, uma vez que ia casar! Fraqueza tão normal num homem novo e com tantos predicados, que a leviandade não chegava a ser pecado! Não era pois lícito que por semelhante facto o repudiasse! Quantos, dessa feição, depois de esgotado o cálice dos prazeres, dão os mais fiéis maridos, os melhores companheiros!

Não, não havia motivos que o levassem a descrer do êxito do casamento de Tónia, agora, principalmente, que Miragaia lhe afirmara que, de qualquer modo, teria voltado.

Teria voltado!...

Fosse porém como fosse, a verdade é que o futuro genro não lhe inspirava confiança.

No fundo daqueles olhos negros, altivos, existia como que uma reserva que o deixava perplexo. Ou seria que só ele próprio, com o seu egoísmo de pai, estava dando forma a um lamentável complexo íntimo ? Ele, com o seu desejo insensato, mas profundo, de que algo surgisse a impedi-lo de ficar privado da filha?

Contudo, imaginava ter provado o inverso. É certo que nessa altura outro perigo maior o ameaçava...

Com esforço, passou a mão pela testa. Devia reagir, libertar-se da obsessão.

Manuel Miragaia seria um marido ideal, visto que Tónia o escolhera entre tantos. E ele, o triste, nada mais tinha a fazer senão colaborar realmente e com toda a boa vontade, afugentando o medo da solidão e deixando-se contagiar pela alegria da sua noivinha.

Mas, nessa tarde, até os próprios clientes notaram que o doutor Val-Rei envelhecera espantosamente!

 

"A rapariga nada tem de frívola, nem de inconsciente. Não lhe cabe inteiramente a culpa de atear o fogo onde se queima o incenso amoroso que a perfuma, estonteando-a.

Ela recorda certos avisos positivos que nada lhe dizem, contudo. "Muitos sinos badalando juntos podem não deixar ouvir a chamada da ventura. E dum engano nasce o erro sem solução... "

Sinos badalando juntos! Oh, que revoada de sons inebriantes, que de harmonias prometedoras!

Toquem, sinos, toquem à vontade, livremente... Os seus sentidos afinadíssímos, incluindo o da audição, garantem-lhe o absoluto domínio da confiança. Ela não ensurdece! "

A entrada de Tónia, seguida por Manuel, em casa da Madrinha, teve seu quê de sensacional, entre farsa e tragédia.

Sem a mínima cerimônia, tão inteiramente à vontade como se apenas se tratasse duma visita normal, ela, deixando para trás os mais diversos comentários nas bocas do pessoal, foi ter à sala de costura, depois de previamente se informar acerca do paradeiro da dona da casa.

Efectivamente, sentada numa cadeira baixa, ao pé da janela, Matilde ocupava-se no seu passatempo favorito - tricot. - Tricot, para o marido, para o filho, para os afilhados, para os pobres seus protegidos... Sempre tricot.

A seu lado, dentro dum cesto, havia montes de novelos coloridos e profusão de agulhas de todos os formatos e tamanhos.

Manuel seguia contrafeito, embezerrado, incapaz de transigir verdadeiramente e sentindo-se muitíssimo pouco à vontade nesse ambiente para que ela o arrastava, estranho e sem possibilidades de lhe interessar.

De testa contraída, ficou parado no limiar da saleta.

Largando-o, Tónia avançou em bicos de pés para a Madrinha e abraçou-a pelas costas, beijando-a no pescoço.

Surpreendida, Matilde soltou um gritinho.

- Que é isto?

Meio a rir meio zangada, sob a avalanche das carícias que desabavam, tentava desprender-se, com várias exclamações, todas elas cheias de ternura.

- Mas que vem a ser isto, Tónia? Olhem que coisa! Deixa-me, menina! E que andas tu a fazer já no passeio ?... És a tolinha mais imprudente que eu conheço! Que vieste fazer para a rua, marota

E apertava-lhe as mãos, prendia-lhas de encontro às faces.

Tónia ria, alegremente.

- Ora essa, Madrinha! Eu não estou na rua, estou em casa!

Ainda de costas, D. Matilde não se apercebia da presença do intruso.

E Manuel permanecia imóvel, cada vez mais contrariado por haver acedido aos desejos da noiva, sem compreender que Maria Antónia procurava apenas e desde já associá-lo às grandes amizades que até aí lhe tinham preenchido a vida e ela, magnânima, estava disposta a repartir com ele.

O diálogo carinhoso que se ia desenrolando agastava-o.

- Mas que veio a menina cá fazer?

- Matar saudades!

- Chamasse-me, que eu ia lá a correr...

- Preferi dar-lhe esta surpresa!

- O teu pai há-de ficar muito satisfeito, quando souber!

- Mas ele já sabe!

- Sabe? E deixou?

- Pois se eu estou óptima!

Impulsivamente, ajoelhou-se aos pés de Matilde, abraçou-a pela cintura, no entusiasmo do que ia revelar-lhe. Mercê desse gesto, a Madrinha voltou-se e foi então que avistou a silhueta masculina, desconhecida.

Tão violento foi o espanto que durante segundos quedou sem respiração.

Finalmente, sob a atenção hostil do visitante, as suas pupilas, lentas, desviaram-se, a interrogar a afilhada, que ria excitada e lhe explicava:

- Madrinha... já percebe agora? Não esperava mais... sem lho trazer!

Vagarosa, D. Matilde pôs-se de pé. Não podia quase falar, embora começasse a desejar dizer alguma coisa. Imensas reflexões, desencontradas, agitavam-na. A rapariga, volúbil, continuava, erguendo-se também e aproximando-se de Miragaia, que não se mexia, como que pregado ao chão.

- Reconhece-o, Madrinha? É bem como eu o descrevi?

Manuel repeliu-a. Sentia-se ridículo, naquela apresentação carinhosa.

Tónia, porém, no seu júbilo sincero, não dava fé de coisa alguma que não pertencesse ao mundo dos seus sonhos. E ria sempre.

- Pois aqui o tem, Madrinha, ao meu Manuel! E tu, Manuel, vê, a minha Madrinha, a minha segunda mãe!

O rapaz inclinou-se.

  1. Matilde, na força da surpresa, nem se lembrava de que devia estender-lhe a mão, mandá-lo avançar e sentar-se... Pôde apenas tartamudear, virada para Tónia, olhando-a com os olhos muito abertos.

- Então... é bem verdade? Sempre vais casar?

Tónia bateu palmas.

- vou casar, pois! E breve, Madrinha, muito breve!

Como se procurasse ouvir-se a si própria para colher certezas, Matilde repetia:

- Vais casar! Sempre vais casar!...

Tónia aproximou-se da Madrinha e encarou-a. Finalmente estranhou, notando-as entonação e conduta...

Pondo-se muito séria, perguntou:

- Madrinha... não está contente por conhecer o meu Manuel

No mesmo relance D. Matilde percebeu que saíra fora de todas as regras da normalidade, da boa educação de que sempre se reconhecera senhora!... Por que tremia, se já sabia que ia ser assim, se já o esperava, se já o contava entre os inevitáveis, desde a conversa daquela tarde em casa de Val-Rei, quando Tónia morria?... Mas não vira ainda o escolhido de Maria Antónia e, enquanto o não vira, a realidade não se lhe mostrara nítida, inteiramente palpável... irremediável!

Nos seus lábios pálidos surgiu por fim um esforçado sorriso de boas-vindas.

E a mão delicada estendeu-se para acolher o estranho, num sacrifício consagrado à afilhada. E respondeu à pergunta como tinha de responder.

- Como não hei-de gostar! Que tolice!... -engolia a saliva. -Estou encantada, doutor... Miragaia... não é?... Satisfaz-me conhecer o futuro marido da nossa Tónia. Entre, entre...

Elegantemente, friamente, Miragaia levou aos lábios as pontas dos dedos gelados. Não brotou do contacto a faúlha da simpatia intuitiva.

Mas D. Matilde, numa chamada imperiosa ao bom-senso que nunca a abandonava, conseguiu de súbito ser ela própria. Cumpria-lhe-pressentia-o-para o bem de todos, para o futuro de Tónia, não repelir o recém-vindo. Acima de tudo, que ele não se sentisse mal a ponto de, para sempre, desejar evitá-la, levando-lha também!

- Queira sentar-se, doutor. Seja benvindo e perdoe o meu embaraço. Eu sabia perfeitamente que a Tónia o escolhera... mas não imaginava que mo trouxesse já hoje...

A instantânea apreensão de Maria Antónia desaparecera.

E, reconhecendo outra vez a querida amiga, toda inteira, riu-se de novo.

- Então queria que eu esperasse pela velhice? Ora esta! Que rica Madrinha!

Manuel aceitara finalmente a cadeira indicada ao lado da máquina de costura por D. Matilde, que voltara a instalar-se, com Tónia sentada no regaço, infantil e mimosa.

Abraçando-a, a Madrinha prosseguiu:

- E tu, filha... tu és muito precipitada... e nem sempre fazes as coisas como deves!

Tónia arregalava os olhos.

- Eu? Essa agora! Mas porquê?

- Porque não devias ter-me trazido assim de surpresa o teu... noivo!

Manuel, cada vez mais indisposto, achou-se na obrigação de ripostar:

- Tem V. Ex. a imensa razão, minha senhora! Eu também não queria vir... mas ela tanto teimou... Fui absolutamente inconveniente ao fazer-lhe a vontade!

Tónia estendeu o beicinho e D. Matilde, encarando o interlocutor, volveu:

- Mas, meu caro doutor... não se trata disso! Pelo contrário, julgo a sua presença encantadora... Simplesmente, se ela me tivesse prevenido, não seria tão mal recebido, aqui... e eu teria um almoço capaz, um almoço de festa para lhe oferecer! Mesmo assim, dar-nos-á muito prazer aceitando o da casa!

Tónia, que parecia flutuar entre céu e terra, ria e deixava de rir em mutações bruscas... Agora, o seu riso trinava, arroubava, numa explosão de felicidade.

- Almoço de festa! Almoço especial!... Boa graça! Mas nesta casa, Manuel, os almoços vulgares são sempre como os de festa noutra! Tu verás!...

Ao transbordante entusiasmo de Tónia não correspondeu nenhuma efusão de qualquer das partes.

Nesse ambiente onde a rapariga lhe aparecia francamente adorada e que a ele nada dizia, o seu desagrado e a sua impaciência cresciam. Assim, pondo-se abruptamente de pé, Manuel redarguiu:

- Agradeço imenso... mas não posso aceitar. Tenho de retirar-me já. Tónia virou-se para ele.

- Oh, não!

Mas Manuel estava irredutível. E, secamente, disse-lhe, articulando bem as sílabas, para não deixar dúvidas acerca da expressão.

- Eu preveni-te de que não me demorava, Maria Antónia, porque tenho coisas a tratar. Além disso, tu também precisas de ficar só com a tua Madrinha... Não foi o que me disseste?

- Ah, disse... mas isso não é urgente... -e para Matilde, que os observava: -É por causa do enxoval. Só a Madrinha pode ajudar-me a resolver tantos problemas! Não se trata bem duma casa a pôr, evidentemente, visto que não fico cá...

  1. Matilde engasgou-se.

- Não ficas cá?... E para onde vais?

- Acompanho o meu marido para Paris, claro!

Transtornou-se o rosto de D. Matilde, de tal maneira que Tónia se viu na necessidade de a elucidar:

- Mas Paris não fica no fim do mundo, Madrinha! É aqui a dois passos...

  1. Matilde, emocionada, repetiu.

- Paris!... Tu vais deixar-nos!

Um silêncio, pesado, estabeleceu-se. Manuel estava fulo. Tudo aquilo lhe parecia descabido, tolo, inútil.

Apressadamente, despedi u-se:

- Minha senhora, às suas ordens...

  1. Matilde mal correspondeu. Meditava. Tónia pendurou-se no braço de Miragaia.

- Bom, vai-te então, meu feio! Mas não te esqueças de vir buscar-me, à tarde. Olha... espera... e se nós logo nos encontrássemos, na Baixa?

Aproximou o rosto do dele. Os seus lindos olhos brilhavam, os lábios palpitavam. Toda ela era uma oferta maravilhosa de amor.

E Manuel, respirando aquele perfume quente, sentia-se perturbar... E com a perturbação nascia nele o desejo de aceder, de aceder sempre, de a satisfazer, de a satisfazer em tudo.

Afagou-lhe o queixo, docemente.

- Mas, querida... não sei se será bom para ti...

- Oh, Manuel! Que mal faz? Sinto-me tão bem... -e mais baixo: -Ao pé de ti, sempre bem!

Esqueceram-se de tudo. Olhavam-se, e as suas bocas aproximavam-se.

A dona da casa, como que paralisada pelo assombro, não se mexia.

Mas no momento em que os lábios de ambos iam encontrar-se, uma voz baça, estranha, fez-se ouvir:

- Boa tarde!

Eles não se beijaram. Confusa, ela; irritado com a própria fraqueza, ele; desviaram-se um do outro.

E Gabriel, que desde há momentos os contemplava junto da porta, avançou.

Vinha lívido. Os lábios tremiam-lhe. As faces contraíam-se-lhe numa espécie de tique nervoso.

Naquela expressão angustiada a pobre mãe viu o reflexo do sofrimento que ela, outrora, involuntariamente, havia infligido à maior amiga...

E Tónia, se não estivesse tão perdidamente obcecada pela paixão e impedida, por isso mesmo, de entender para além de si mesma, teria usado de caridade e lembrado de que em absoluto lhe competia poupar o seu infeliz amigo àquela brutal revelação.

Com o luminoso sorriso gritando bem alto a ventura possuída, exclamou com uma exclamação jovial.

- Oh, Gabriel, ainda bem que vieste! -e estendeu-lhe ambas as mãos, afectuosamente acolhedora. -Chegaste a tempo de eu poder apresentar-te o Manuel! - e para o noivo, disse: -Este é o Gabriel, um companheiro de infância...

Gabriel apertou a mão do outro, maquinalmente. Olhava-os, aos dois, mudo, sufocado. E Manuel percebeu que tinha naquele homem um inimigo.

Notou-lhe a palidez, a alteração do semblante, a tremura dos beiços, a ânsia da atitude... O seu orgulho de triunfador vibrou, ao acabar de reconhecer que esma" gara um rival.

Então bruscamente, Tónia teve para ele um encanto a mais!

Não era a rapariga que se conquista porque ninguém a disputa. Era essa que repele um outro, que o arreda, que lhe pisa o coração, para se entregar ao que soube encontrar o caminho por onde devia seguir...

Então, num gesto de posse, puxou-a para si e, fitando Gabriel, disse:

- Vamos portanto ser bons amigos, não é?

Gabriel diligenciava, debalde, recompor-se do abalo.

Humedeceu os lábios, que se tinham volvido secos, estaladiços, e proferiu, quase trêmulo:

- Os meus parabéns aos dois... e os desejos de muitas felicidades.

Tónia ria sempre. O mundo, diante dela, do seu egoísmo lógico, era uma coisa bela, bela, bela!...

E replicou:

- Pois claro que vamos ser felizes, felizes como ninguém!

Após breve troca de banalidades, as mãos voltaram a apertar-se, na despedida.

Tónia declarou, seguindo-o.

- vou acompanhar-te à porta, que podes perder-te no caminho...

E saiu com ele.

Só muito mais tarde ela recordaria o olhar desesperado de Gabriel, esse Gabriel de cujo amor não mais se lembrara sequer... esse pobre Gabriel que, apoiado à máquina de costura, fechava os olhos, sentindo-se submergir sem remédio...

No fim de contas, ele esperara que tudo aquilo não fosse, da parte dela, mais do que uma fantasia, uma fanfarronada! Tónia! O culto de tantos anos, o sonho de adolescente, a ventura apetecida desde sempre... tudo destruído porque surgira outro mais forte e mais belo

A mãe tocou-lhe no ombro. Fitaram-se. E não disseram nada porque nada havia a dizer.

Ambos sabiam que estavam diante de factos.

 

"A vida precisa de amor e de calor para despertar hoje o desejo de que amanhã seja outra coisa.

No futuro reside a eternidade das ilusões, que se afiguram sagradas. Inútil discuti-las!

As lágrimas não têm lugar certo. O riso ocupa os espaços livres. Esta é a hora em que tudo fica na frente. A ela, à rapariga, assistem-lhe as possibilidades mais completas, mais amplas. Nada a empurra, nada a embaraça. A felicidade que a embalou e criou prepara-a para desejar a glória de a possuir até o fim dos fins.

E a rapariga continua a seguir, contente de si mesma.

Não precisa de correr para chegar mais depressa.

Tem tempo. Tem a vida inteira à espera dela! "

Como que impulsionado por vigorosa mola, Val-Rei precipitou-se para a filha e, tomando-a entre os braços, apertou-a longa, longamente, sem um queixume, mas. pálido, térreo como um morto. O seu peito arfava e toda aquela dor violenta se traduzia na pressão quase feroz, do amplexo, nessa espécie de frenético desejo de retê-la ainda no abrigo seguro de que ela ia evadir-se.

Lá para dentro, no interior da grande casa onde a festa sabia a champanhe à discrição bebido entre gente de categoria, os risos e a música esfuziavam.

Tónia, no meio dos muito íntimos, diante do momento definitivo, dividia-se entre sentimentos de igual intensidade: a alegria e o pesar.

Olhava para Manuel, que se despedia dos amigos, e a ventura inundava-a, transportava-a. Abraçava o pai, e o desgosto crescia, tomava posse do seu coração.

Exausta, sob o peso de tantas emoções, ela abandonou-se por fim ao sôfrego desespero de quem tanto lhe queria. E, deitando a cabeça no ombro acolhedor, rogou:

- Não me tires a coragem, pai! Ter de te deixar é a única coisa que me aflige...

Junto da porta, Manuel esperava que o abraço paternal cedesse os seus direitos.

- Vamos?... São horas!

A rapariga contraiu-se toda, interiormente, procurando livrar-se da garra poderosa da comoção. Na frente dela abria-se o caminho delicioso que andara imaginando num deleite infinito.

As lágrimas chegaram-lhe aos olhos. Mas não queria chorar, não queria sair de casa soluçando, não queria que Manuel levasse com ele uma esposa debulhada em pranto!...

Pois se ia ser tão feliz, tão feliz! Ia começar a vida, a hora era de júbilo! Devia partir confiante, sem se entregar a puerilidades sentimentais que no momento actual não tinham cabimento...

Miragaia insistiu:

- Então, menina, vamos

Era belo, era sedutor, era forte... e amava-a! Sim, ia!...

Tónia avançou.

Matilde, Gabriel, Pedro Torralva, Mafalda e o pai ficaram para trás, diluídos numa espessa névoa que teimosamente se adensava.

Val-Rei estava parado, junto à porta do escritório, pensando que dera a filha, que a entregara, que ficara sem ela... E, com as mãos enfiadas nas algibeiras das calças, enterrava as unhas na carne.

Manuel segurou a mulher pela cintura.

- Até à volta!...

Ela, porém, já não podia falar. De repente, fraquejava. E não sabia que isso era natural.

A angústia da separação impôs-se-lhe, brutal. Trespassou-a essa dor que ao mais alegre, ao mais ansioso de partir, dá de repente o desejo de ficar.

Manuel levava-a, sem remédio nem apelo...

Atrás deles, o rumor da festa dos que se divertiam...

Os íntimos foram para as janelas, acenar adeuses aosque seguiam, rumo ao destino.

Sobre os noivos caíram mais flores, mais bagos de arroz. O pessoal, que estava arrumando as bagagens, ria com Miragaia. Tónia emudecera.

Gabriel, Matilde, Pedro Torralva, Mafalda e o pai debruçavam-se para a ver melhor...

E ela agora chorava abertamente. Foi essa imagem da filha, com as lágrimas em fio descendo-lhe pelas faces, a última que Val-Rei conservou dela no dia do casamento.

O carro partiu, o belo carro vermelho em que a aventura de Tónia continuava.

Senhor de si, o marido desempenhava com à-vontade o papel que afinal aceitara entusiasmado, deleitando-se com a idéia de que trazia consigo, toda sua, uma rapariga encantadora, apetitosa. Pagara o direito de a possuir pelo mais alto preço, mas agora sem problemas, sentia-se no direito de saborear em plena felicidade os momentos tão cobiçados.

A cidade ficou para trás. Para trás ficavam Val-Rei, Matilde, os amigos, a festa, o branco vestido de noivado...

E Tónia continuava a chorar. Precisava que Manuel lhe abrisse os braços e a confortasse, e a acarinhasse, e lhe dissesse palavras de ternura, e a ajudasse a suportar o desconhecido sofrimento nascido da separação...

Ele, porém, necessitava de toda a atenção para guiar, para avançar vertiginosamente pelas estradas onde o trânsito ia aos poucos diminuindo. Deviam passar a fronteira antes da noite. O quarto especial dum "parador" espanhol, reservado, era o abrigo nupcial para o qual Manuel se apressava.

Só muito depois ele falou:

- Então, Tónia, que vem a ser isso? Não acabas de chorar

Um soluço. Outro soluço. Uma torrente.

- Choras que nem uma Madalena arrependida... Francamente, sinto-me, não o apaixonado que tu escolheste, mas um miserável casado à força com uma donzela recalcitrante...

Ela não respondeu. Percebeu apenas, vagamente, que ele não estava satisfeito... E fez a diligência por não chorar mais.

Abriu a carteira, assoou-se, limpou os olhos. Depois, meigamente, renunciando às consolações desejadas, deu o braço ao marido, ergueu o rosto para ele.

O carro ia avançando sempre, atravessando vilas, cidades, fugindo, avançando para outro mundo...

Ao abrandar numa povoação, Manuel olhou-a de soslaio e riu-se, zombando:

- Oh, querida!... Como são feias as mulheres quando choram! Vais fazer-me um favor, "chérie". Nunca chores de maneira que eu perceba. Há homens a quem as lágrimas das mulheres comovem e impressionam. A mim, tornam-me mal disposto... porque só admito o amor com uma bonita rapariga... Tudo quanto desfeie me arrefece!

A linguagem estranha era para Tónia tão confusa como uma paisagem admirada através de óculos alheios, óculos inúteis.

Entretanto, maquinalmente, viu-se no espelho do pára-brisas. E reparou que de facto estava desfigurada, com os olhos inchados, o nariz vermelho e lustroso...

Tratou então, precipitadamente, de refazer a maquilhagem.

A tarde, cheia de luz, ia-se adiantando. O céu tomava essa cor de azul acinzentado, onde o rosa do poente começa a anunciar-se em cambiantes harmoniosos, suaves, que aos verdes e aos castanhos da terra dá a serenidade da experiência cumprida.

Os caminhos despovoavam-se. Os fraguedos da serra iam começando a aparecer.

Os quilômetros dobravam-se sobre os quilômetros.

Ele, concentrado num fito único, de dentes cerrados, sentindo o calor da rapariga penetrá-lo todo, ia atento à condução.

Tónia, preocupada com a afirmativa escutada ao marido, tinha agora um objectivo também: preparar-se para não entrar no mundo novo da única maneira que ele detestava...

Mas o pó de arroz não pegava. E os balanços do carro não a deixavam desenhar o bâton capazmente.

Apetecia-lhe refrescar a cara, beber água, para que a deixasse o calor que a abrasava.

- Querido-disse, de súbito-por aqui perto, algures, há uma fonte... Se fosses devagar, paravas quando eu te dissesse.

- Está bem.

Nela reaparecia a vivacidade, a verdadeira índole, cálida e exuberante.

- Bebo água e arranjo-me, sim? É preciso, realmente, que não achem um rapaz tão jeitoso mal empregado numa chorona...

Ele concordou, outra vez.

- Está bem. -Abrandou a marcha. E enlaçou-a, cingiu-a com força. -Tónia...

Ela avistou a fonte onde, em digressões com o pai, bem amenas, bem agradáveis, tantas vezes se detivera.

- Pára, Manuel, pára... É aí!...

Ele obedeceu. Ela saltou do carro, correu para a fonte, debruçou-se toda para a água. Era delicioso mergulhar nessa água os braços e banhar a cara... e beber o líquido fresco...

Ergueu-se, toda molhada, a rir, magnífica, soberba criação da Vida, pronta para ser a verdade do tempo através do amor.

Manuel, encostado ao volante, fixava-a, admirava-a com uma expressão estranha.

- Manuel, empresta-me o teu lenço...

Ele desceu, aproximou-se, deu-lhe o lenço... e ela, ao limpar as faces, sentiu-se de súbito agarrada pela cintura, apertada, amachucada.

Uma boca ardente colou-se à dela que, apaixonada e ignorante, se rendia.

A solidão penetrava-os. O silêncio envolvia-os.

Manuel arrastou-a para detrás da fonte.

Tónia não teve tempo de imaginar o que ia passar-se.

Doce, apaixonada, dava-se à sua hora fantástica. E a hora fantástica fez sobre ela descer o inimaginável, o caos, a tormenta.

E a primeira noite de ambos, no quarto especial do "parador" espanhol, não foi uma noite maravilhosa.

 

Tudo na vida tem continuação. O dia de amanhã é, como no teatro, a seqüência de factos cujo desfecho ainda se não sabe qual será. Pode-se imaginá-lo, supô-lo, idealizá-lo, prevê-lo... Mas não se conhece e de nada há a certeza.

Intervalo chama-se ao período de tempo que medeia entre os actos.

Intervalo é um espaço durante o qual se vê muita gente, se cumprimentam numerosos conhecimentos, assistindo-se a pequenas cenas de comédia ou drama que nunca subirão ao palco.

Intervalo é um episódio e nele passam coisas pequenas que não influem no desenrolar dos factos que foram e hão-de ser ainda.

Intervalo foi, para a rapariga tornada mulher, o encontro com a existência, com o desconhecido, com a terra estranha, com a verdade da alma que não estudara.

Intervalo foi essa pausa cheia de cor, de bulício, e de movimento, durante a qual ela esperou o que fatalmente surgiria para continuar a sua história.

 

DIÁRIO DE TÓNIA

Paris, 19 de Setembro:

Não tenho com quem conversar. E se não desabafo... atabafo!

Esta é uma forma de expansão inteiramente inédita para mim. Mas, no fim de contas, talvez muitíssimo vantajosa. Não corro o perigo de que me contradigam e posso ser eu, sem interferência de ninguém.

É verdade!

Há três semanas que estou casada e que passeio através de Paris, por baixo e por cima, os meus dias cheios de curiosidades e sem nenhuma espécie de obrigações.

Não me sinto persuadida de que a realidade seja a que me cerca. Qualquer coisa de fantástico anda comigo e traz-me suspensa dum trapézio que também não vejo...

Paris! Paris! Paris!

Às vezes dá-me vontade de apalpar as pedras do chão e gritar: piso as calçadas que toda a gente deseja calcorrear... São elas, e são as paredes, e são as casas, e são as lojas...

Às vezes perco-me e depois encontro-me de novo.

Paris não se vê num mês nem se conta na folha dum diário, mas está dentro de mim, unida às recordações da história e às cançonetas que sei de cor... Paris vibra, juntando-se ao estralejar dos foguetes pela descoberta de ontem.

vou ser mãe! Evidentemente, daqui por oito meses, apenas... Mas já sei que vai nascer um bebê nosso, meu e do Manuel.

Isto explica os enjôos que me não largam e tanto aborrecém o meu marido, ao ver-me torcer o nariz aos acepipes caros dos restaurantes de luxo...

Ontem à noite senti-me tão doente que nem pude acompanhá-lo ao baile de recepção duma embaixada. Só depois, já deitada, me pus a reconsiderar, a lembrar-me das datas... e de repente dei um salto para fora do leito porque a revelação se abriu diante dos meus olhos, como uma lâmpada de cem velas...

Fiquei doida de emoção e alegria e esperei, bem desperta, a vinda de Manuel, pensando na forma como ele reagiria quando eu, agarrada ao seu pescoço, lhe contasse a grande novidade...

Mas as horas sucederam-se.

Eram cinco horas da madrugada, talvez, e eu já caía de sono quando ouvi subir e parar o elevador que nos serve.

Empertiguei-me. O coração batia-me mais forte no peito. Deixei de me sentir desgostosa por ter ficado sozinha até tão tarde...

A porta abriu-se... mas eu não me lancei nos braços dele.

O Manuel, transtornado, desgrenhado, ria... -e dizia coisas... duma maneira que eu desconhecia. O seu humor, exuberante demais, cheirava a álcool, como o seu hálito.

Percebi que bebera em excesso, como tantas vezes acontece nas grandes festas. Provavelmente por minha culpa, porque, sem mim, aborrecido, procurou refúgio no bar!

Enfim, não lhe disse nada! De qualquer forma, o momento não era de molde a proporcionar-lhe a dádiva que lhe reservo. Espero outra oportunidade, mais acertada, para que ele possa saborear a alegria comum. A minha, essa, transborda...

No mesmo dia, ao anoitecer:

Ao almoço o Manuel pareceu-me algo vexado com o incidente da noite passada, embora eu a coisa nenhuma aludisse. No fim da refeição combinou encontrar-se comigo às cinco horas.

Vesti-me elegantemente, para não destoar, e toda "triques" no meu tailleur impecável, que não é do Fath mas podia ser, fui ter com ele. Dali me levou para o foyer janota dum dos maiores hotéis, para o requinte dum chá aprimorado.

Eu acompanhava-o, orgulhosa. Muitas cabeças se abaixavam, cumprimentando-o, e alguns olhares lisonjeiros seguiam-me.

E o meu Manuel estava solícito, cheio de atenções... Eu ia bonita-via-o nas pupilas dele.

Talvez fosse aquele o ensejo para a revelação. Contudo, o ambiente afigurava-se-me impróprio para abrigar emoções.

E depois sucedeu uma coisa horrível. Quando levei à boca a primeira garfada dum pastel delicioso, um vômito impossível de refrear subiu-me à boca e valeu-me dobrar a tempo sobre achávena e o pires... Creio que o incômodo e o vexame me alteraram o parecer. Fiquei transtornada.

Manuel, acto contínuo, levantou-se, chamou o garçon, pagou com uma nota de cinco mil francos... e saiu sem me dar o braço.

Eu, perturbada, olhava-o de lado e via a ruga que se lhe cavara na testa, enchendo de dureza as linhas do seu rosto. Ser-me-ia fácil desfazê-la... Mas não quis. Não quero! Não é com este Manuel estranho, mas sim com o meu, todo inteiro, tal qual o conheci e amo, que hei-de repartir o meu tesoiro!

"5 de Outubro:

O tempo começa a tornar-se pardacento. Os belos monumentos ficam mais cinzentos, mais impressionantes.

Visto o primeiro casaco de abafo, que fui comprar a Givenchy. O pai mandou-me o dinheiro como presente dum mês de casada...

Continuo a passear, a passear, a passear... O Manuel anda mal disposto.

Ontem, no fim do jantar, levantei-me a correr, cheia de náuseas. Não me queixei mas, quando voltei, trazia os olhos vermelhos e chorosos. Isso foi o bastante para ele já não querer levar-me ao teatro. Disse-me que eu precisava de sossego, que me fatigara demais durante o dia, e foi deixar-me no hotel.

12 de Outubro:

Tenho saído menos. Deixo-me estar à janela, admirando o movimento incessante do nosso "boulevard", onde passeia o mundo inteiro...

Mas o Manuel não repara em nada e contínua a deixar-me em sossego.

15 de Outubro:

Francamente, não entendo!

Ele, dantes tão amoroso, ele, que eu vejo sempre entrar a porta do hotel sorridente, amável, manifesta-me uma desconcertante frieza. É certo que ando pálida, olheirenta, e que vomito incessantemente. Mas... por que não manifesta ele, ao menos, um pouco de inquietação pela minha saúde?

A estas horas já o paizinho me teria feito observar por meia dúzia de colegas... E o meu marido ainda não se lembrou de me levar a um médico, para tentar saber qual é o mal que me consome. Nem sequer me pergunta nada!

Eu retraio-me, retraio-me... e não sou capaz de lhe contar!

18 de Outubro:

Estou cada vez menos dinâmica, menos alegre. É como se a vida diminuísse em mim. Acho lógico, aliás, pagar com um pouco da minha vitalidade o direito de gerar outra existência.

Ando permanentemente cheia de sono, bocejo... quase adormeço nas cadeiras...

O Manuel encara-me com um desagrado crescente.

19 de Outubro:

Subi ao Arco do Triunfo e lá no alto, na imensa plataforma, olhando as sumptuosas avenidas em estrela, onde o movimento causa vertigens, admirando a cidade a perder de vista, salpicada aqui e além pelas tonalidades quentes do Outono, senti-me ninguém. Pensei que, se morresse ali, tudo continuaria exactamente igual e eu a nada faria falta...

Eis a impressão que me crispa, neste quarto do hotel! Vejo-me só, desamparada... e sem vontade de reagir!...

Ainda não tive coragem de explicar o que se passa ao Manuel, demonstrando-lhe a extensão do meu amor. E ele, sem o saber, manifesta uma indiferença que me gela.

Como é afinal diverso do que eu imaginava o início da nossa vida de casados sem lar!...

21 de Outubro:

Terei perdido a graça de que ele se cativou? Já não gostará de mim?

Ontem de manhã, o Sol, embora fraco, inundou a cidade. Talvez por isso, ao abrir a janela, senti-me melhor, mais animosa.

Fui ter com o Manuel ao quarto de banho, onde ele estava a fazer a barba, e pedi-lhe que me levasse a dar uma volta no carro, até Versalhes, por exemplo, que ainda não conheço.

Acedeu e fiquei radiante.

Apeteceu-me rir, cantar, dizer muitas coisas tontas como quando éramos noivos e ele tanto gostava de me ouvir!

Manuel continuava a fazer deslizar a sua máquina eléctrica, elegante e sorumbático.

Cerquei-lhe a cintura com os braços, apoiei a face nas suas costas e perguntei-lhe por que razão já não aproveitava todas as ocasiões para me beijar...

Desprendeu-se e volveu-me que o tempo das criancices passara.

Fiquei desconsoladíssima. Nunca supus que o Manuel, apaixonado, exuberante, se tornasse num marido assim, frio e positivo!

23 de Outubro:

Descobri, numa rua discreta, um "bistreau" onde me cheirava a bifes-aos bifes temperados com alho como na minha casa...

Pedi ao Manuel que lá me levasse. Pedi, e insisti.

Aqueles bifes pareciam-me a única coisa que eu comeria sem enjôos...

Ele, porém, recusou e eu fiz beicinho... Então exasperou-se e preveniu-me que não admitia que eu pretendesse mandar nele...

Fiquei trespassada de espanto!

Mandar nele?...

Oh, nunca julguei que o Manuel tivesse semelhante gênio!...

Apenas lhe fiz um pedido, nada mais... E teria sido tão simples satisfazer o meu inocente capricho...

Quando, lá em casa, eu desejava qualquer coisa, o pai procurava por todos os meios satisfazer-me!

Talvez por isso, o Manuel já me disse que eu fui estragada com mimos. Pois sim, mas a verdade é que o pai desejava que eu continuasse a usufruí-los... e não encarregou o Manuel de me educar!

No entanto, parece que os maridos não pensam como os pais...

Resta submeter-me sem discutir e esperar que a irritação do senhor meu esposo dure pouco.

Logo, quando ele chegar ao hotel, vou acariciá-lo e pedir-lhe desculpa da minha pretensão. Quero que ele se persuada duma coisa: a sua felicidade interessa-me mais do que a minha própria!

25 de Outubro:

O Manuel é reservado.

Estou cansada de andar de volta dele procurando amenizá-lo, tentando dissipar o seu mau humor. Sem compreensão pelos meus esforços, pela boa vontade com que me humildo, repele-me.

27 de Outubro;

A situação mantém-se, o que me desnorteia. Eu não estava preparada para encontrar outra coisa que não fosse o que eu esperava, o que eu idealizava. Bem sei que se trata de nuvens passageiras. Mas custa-me a suportá-las! E o Manuel voltou para casa embriagado.

Que coisa tão feia!

28 de Outubro:

Percorri de novo Montmartre, às três da tarde, solitária e triste. Visto de dia, é um bairro movimentado, pitoresco, mas tão burguês que nele é difícil descobrir o caracter nocturno.

Subi à "Butte", íngreme, com as suas ladeiras ornadas de pequenas lojas onde eu compraria coisas deliciosas se tivesse casa para mobilar a meu gosto.

Enchi-me de coragem para galgar a escadaria do Sacré-Cceur, até o "Dome", donde se avista a cidade ajoelhada a nossos pés, dando-nos uma visão de grandeza e de ordem extraordinárias.

A brancura da majestosa igreja confortou-me. Dentro dela, ajoelhada, pedi a Deus que me ajude a fim de eu não estragar com falta de paciência a bela ventura que me entregou.

Quando saí, anoitecia. Regressei lentamente ao hotel.

E sucedeu o imprevisto. O Manuel, de casaco, esperava-me e acolheu-me com uma explosão de mau gênio.

Gritou, barafustou, zangado, porque eu me demorara e não cumpria os meus deveres, não estando em casa a horas... E, para me castigar, ia para um jantar de gala sem me levar!

Saiu, atirando com a porta.

E eu percebo que sobe em mim uma revolta... uma revolta...

29 de Outubro (de manhã):

Não me deitei. Esperei-o, a pé firme. E quando ele chegou, noite alta, descontrolei-me. O despero fez-me gritar-lhe que não podia vê-lo, que não podia suportá-lo, que ele me iludira, que me tratava mal, porque até o momento presente a minha consciência não me acusava de nenhum acto censurável!

Como represália, neguei-me a dormir com ele, enrolei-me no edredão e estendi-me no chão, aos pés da cama.

Devo confessar honestamente que esperava comovê-lo, obrigando-o a ir-me buscar, a levar-me em braços para o leito, a enxugar-me as lágrimas com beijos...

Nada disto sucedeu. Não me ligou nenhuma. Ria... como ri naquelas ocasiões! E dali a pouco ouvi-o ressonar. De madrugada, humilhada e vencida, decidi-me a deitar-me ao lado dele, cautelosamente, para o não acordar.

Saiu há momentos, sem me falar. Fará isto parte da educação pós-nupcial? Serão assim os maridos, todos os maridos

31 de Outubro:

Nada acontece de novo.

Passeio, vejo museus, tomo chás, lembro-me da minha cidade, perco-me, encontro-me, ando no Metro, vagueio, almoço e janto com o Manuel, que me fala por favor.

Continuo a vomitar e não lhe digo porquê. Estou mais magra, o "bâton" e o "rouge" ficam-me mal, e ele não olha direito para mim.

Desagrado-lhe.

Ah, é horrível não ter com quem conversar, não ter a quem pedir uma opinião, um conselho!

Quem me dera aqui a Madrinha, ao menos a Madrinha! Como ela saberia indicar-me a melhor forma de conduzir-me! Como seria bom ouvir a sua voz amiga, embora não me dissesse senão que sou louca e exagerada e que não tenho razão nenhuma!

2 de Novembro:

Está a chover. A natureza une-se ao luto dos corações, que vão também, como lá na Pátria, visitar os mortos.

Dei uma volta. Mas a tristeza que anda no ar crispa-me, torna-se-me intolerável.

Que é da minha alegria de viver?

2 de Novembro (à tarde):

Não quis almoçar. Tomei um chá, aqui no hotel.

E foi quando recebi esta nova carta de meu pai. Uma carta deliciosa, em que ele se afirma resignado com a minha ausência, idealizando a felicidade que devo desfrutar...

Felicidade?...

Oh, sim, pai, sim! É preciso que vivas persuadido de que sou ditosa.

vou responder-te e contar-te maravilhas, descrevendo-te tudo quanto eu desejava que fosse verdadeiro. Pintarei os quadros que apenas existem na minha imaginação.

Querido pai, como tu ficar ás satisfeito!

3 de Novembro:

Isto parece, afinal, tender a normalizar-se. O Manuel já me fala, já se importa comigo, embora por vezes me fite com uma expressão que não sei interpretar.

Acaso realmente o desiludi? Ou ele é tão superficial (para não dizer venal) que apenas se importa com o meu aspecto exterior ? Nada mais o encantava em mim senão o meu corpo, senão a minha cara?

Na realidade, não sou bem aquela Tónia bonita (! ) de olhos brilhantes e boca rubra para quem a vida era uma festa contínua! As minhas pupilas estão mortiças, rugas na minha testa, as faces encovam-se-me...

Mas por que não lhe revelo o motivo de tudo isto?

Sou idiota! Sou uma caprichosa e não há dúvida de que os mimos me estragaram!

Em vez de chegar ao pé do meu marido, naturalmente, e de lhe dizer que vou ser mãe, ponho-me a imaginar não sei que ambiente romanesco, propício... e não transijo com a simplicidade das ocasiões! E disfarço e calo-me...

Vamos, senhora menina tonta, desabafe!

4 de Novembro (à noite):

Foi assim que as coisas se passaram. Assim, sem tirar nem pôr.

O Manuel telefonou-me, prevenindo-me de que não vinha jantar.

Disfarçando a contrariedade, procurando mostrar-me encantadora, respondi-lhe que lamentava imenso, pois me sentia muito bem disposta e me apetecia estar ao pé dele, para lhe contar uma novidade.

Acho que não fui nada mal, na estreia da comédia... Tanto assim que ele, curioso como todos os homens, logo quis saber do que se tratava.

Parecia alegre, também. O meu entusiasmo aprazia-lhe.

Não há dúvida de que foi inteiramente sincero quando me preveniu de que não gostava nas mulheres do que pudesse desfeá-las... E eu tenho-me esquecido desta sua prevenção! Como sou culpada!

bom, mas a verdade é que o meu coração palpitava, pressentindo-me à beira duma vitória...

Manuel não aceitou a proposta de guardar a surpresa para manhã. E respondeu-me, deixando-me cheia de alegria.

- Ouve, janto com uns amigos e depois vou aí buscar-te e iremos dançar a qualquer sítio...

Já fui ao teatro, a cinemas, ao music-hall, mas ainda não entrei num cabaré.

- Levas-me à Praça Pigalle?

- Ou à Blanche... Queres?...

Se eu queria! E com ele tão bem disposto! Dissiparam-se-me as mágoas, senti-me apta a triunfar definitivamente, pelo meu aliás inocente ardil, e exultei desligando.

- Até logo, amor!

Tenho a certeza de que ele não ouviu aquele "amor" que eu murmurei, extasiada, ao bocal. Contudo, inebriada, repeti-o umas poucas de vezes, sem desligar.

Como eu gosto do Manuel! Tanto que uma sua atenção, por mais pequena que seja, me enche de alegria!

Pus-me a contemplar o retrato dele, que está em cima da mesa de cabeceira. Tomei-o nas mãos e beijei-o na boca. Mas o frio do vidro, arrepiando-me, restituiu-me o equilíbrio...

Não jantei, com receio das agonias. Tomei outro chá. e procedi à minha "toilette"... Pintei-me com mil requintes e enverguei um vestido de veludo preto, sem ombros. que me fica bem.

Às nove horas estava pronta.

Sentei-me cuidadosamente na beira duma cadeira, para não me amarrotar. Até às nove e meia esperei, tranqüila. Depois, surpreendida, até às dez. Já impaciente, vi as dez e meia. E com desespero ouvi as onze. Passava um quarto quando retiniu a campainha do telefone.

Eu cabeceava, já recostada, e, ao levantar-me, com o arrebatamento ia rasgando a saia.

Admitia que fosse o Manuel a anunciar-me que desistira do projecto.

- Alô... estás pronta, Tónia?

Fiz um esforço para não responder que dormia regaladamente...

- Desce. vou buscar-te agora.

Retoquei a pintura e o cabelo. Compus o vestido, en" fiei o casaco de "astrakan" e baixei ao vestíbulo.

Finalmente, a porta rotativa abriu-se para lhe dar passagem.

- Vem...

De súbito, esquecida da anterior cólera, precipitei-me. Subi para o carro e, com espanto, divisei a presença de duas estranhas a quem fui apresentada imediatamente, com elas estava um homem.

O encontro desagradou-me e amuei. Queria estar só ": com o meu marido... e esqueci-me do que devia continuar a representação tão inteligentemente iniciada!

As minhas sensatas resoluções duram pouco...

Ele conversava, exuberante, ria com as damas que pipilavam um inglês rápido que me custava a perceber.

Apeámo-nos perto do Moulin Rouge, cujas velas cintilantes, rodando, me provocaram vertigens.

Passavam grupos, mulheres, turistas barulhentos e alvoroçados...

Atravessámos a rua, procurando o cabaré escolhido -um nome esquisito que não fixei.

Um porteiro agaloado abriu-nos a porta.

Na pista, magnífica, as bailarinas ofereciam o espectáculo, que não chega a tornar-se chocante, da sua nudez recoberta de penas, de brilhantes e de espelhos.

A nossa mesa, marcada, era bem à frente.

Nunca vi de tão perto tantos umbigos! Olhei para o Manuel. As suas narinas abriam-se e fechavam-se, gulosamente, enquanto bebia sem cessar.

A música, o fumo, as gargalhadas envolviam-me, entonteciam-me.

De súbito, ao ouvido, Manuel perguntou-me.

- Então que é feito da tua boa disposição ? Assim, toda de preto e sem um sorriso, pareces uma ave agoirenta...

O espectáculo terminara.

A orquestra tocou para a assistência e o Manuel foi dançar com as suas elegantes companheiras, que pareciam disputá-lo entre si, procedendo como se eu não existisse ou como se me reconhecessem indigna do belo português.

A mais nova, platinada, escandalosa, colava-se ao meu marido, positivamente, e ele apertava-a mais e cerrava as pálpebras, apoiando o rosto nos cabelos dela, de boca entreaberta...

Lembrei-me do tempo em que era assim que ele me tomava nos braços para me beijar sôfregamente, interminàvelmente...

Quanto eu daria para estar no lugar da outra, e obter no interesse dele a prova do seu amor!... E, contudo, permanecia quieta, estúpida, sem nada fazer para o arrancar ao ascendente alheio!

Na minha alma, estabelecia-se a confusão. O aprumo abandonava-me. Não sei como conseguia refrear as lágrimas. Talvez porque, afinal, valho um pouco mais do que imagino.

Quando Manuel voltou a sentar-se, agiu sem mostrar ver-me.

Eu fingi ter deixado cair o lenço. Baixei-me e, por baixo da mesa, vi a perna dele encostada à dela...

Ambos riam e bebiam.

Sem uma palavra, ergui-me e atravessei a sala em direcção ao vestiário.

Quando a camareira me ajudava a vestir o casaco, ouvi a voz do meu marido.

- Onde vais?

- Vou-me embora.

- Vais-te embora? Porquê?

Encarei-o. Não sei o que leu na minha expressão. com inesperada violência, arrancou-me o abafo, atirou-o à rapariga e enlaçou-me.

- Vamos dançar.

Eu devia ter recusado, ter resistido... Mas aceitei a esmola!

O sortilégio dele absorveu-me. Deixei-me levar. O seu calor trespassava-me, aquecia-me, fundia o gelo que me enchia o peito.

Então, com doçura inesperada, ele perguntou-me:

- Ias-te embora... por causa dela?

Fitei-o, surpreendida. Zombaria de mim?

Ele apertou-me ainda com mais força.

- Era?...

Baixei a cabeça, afirmativamente.

- Que criancice! Precisas de habituar-te a estas coisas. São normais, no meio em que vivemos. Nada disto tem importância. Deves aprender a ser camarada.

A ser camarada ? A ver ?... A aceitar ?... A consentir ?...

Um arrepio abalou-me toda. Ele beijou-me no pescoço e eu cingi-o com força.

- Manuel...

O seu rosto colava-se ao meu. Os seus olhos cintilavam.

- É verdade... e a surpresa?... Ainda estou à espera!

A voz prendia-se-me na garganta.

- Aqui... aqui não!... -e implorei: -Vamo-nos embora, Manuel!

- Embora? Estamos tão bem...

- Não, não estamos... -e não pude conter-me: -Por tudo quanto há... não dances mais com aquela mulher!...

Errei? Terei falhado redondamente?

Os braços de Manuel deixaram de apertar-me.

- com que então, ciumenta? Isso é mais grave do que eu supunha! Por estas e outras não queria eu casar-me!... E aconselho-te a que reconsideres, Maria Antónia, porque não suportarei atrás de mim uma pessoa que me faça cenas! Se queres acompanhar-me, aceita o que vires.

- Não!

Ele encarou-me, friamente. Felizmente, ninguém entendia a nossa altercação, despercebida no tumulto e no idioma.

- Não, o quê?

- Não suportarei semelhante coisa...

- Que falta de civilização!

- Não se trata de civilização... mas de amor!

- Amor... à moda do Minho?... Isso aqui não tem cabimento!

Toda eu tremia. A submissão e a brandura abandonavam-me.

- Estamos casados há tão pouco... e tu queres que eu te veja agarrado a outra?

Segurando-me por um braço, conduziu-me ao vestiário.

- Efectivamente, não deves continuar aqui. Vai para o hotel. Isto não te serve! Estás deslocada neste meio.

Era eu, a rapariga considerada moderna, a deslocada... e repelida... Eu!...

Mudei? Mudou ele? Ou mudou, unicamente, a vida?

Segurei-lhe na mão e, não sei se com o desejo de ficar ou de o levar comigo, revelei, de súbito, o segredo que guardara avaramente, o segredo que reservara para a oportunidade ideal, quando estivéssemos juntos e de olhos nos olhos...

Gritei-o quase, ali, no cabaré de luxo, na língua que soava bárbara, sentindo-me empurrada por um marido descontente.

- Manuel, desculpa-me... estou diferente... porque... porque vou ser mãe!

O meu coração batia pancadas sonoras.

Finalmente, ele pronunciou:

- Enlouqueceste? O champanhe subiu-te à cabeça?

Balbuciei:

- Eu não bebi nada!...

Durante segundos, ele ficou imóvel. Depois, rapidamente, disse:

- Não discutamos isso aqui. Amanhã falaremos.

Sem que ele me ajudasse, entrei para o táxi que o porteiro chamara, por ordem sua.

E aqui estou, mais uma vez só!

5 de Novembro:

Escanhoado, lavado, perfumado, o meu marido saiu a cantarolar do quarto de banho.

Eu, mole, preguiçosa, afundei-me mais entre a roupa e mirei-o entre as pálpebras semicerradas.

Apetecia-me tanto que viesse sentar-se à minha beira, acarinhando-me, interessando-se, afagando-me...

Faz-me tanta falta a demonstração duma ternura infatigável!

Sempre imaginei que o meu marido seria sentimental, um poucochinho piegas...

Mas que importa o que eu imaginava, o que eu sonhava? Tudo é assim, tal como está a acontecer, e não da outra maneira, a quimérica.

Inútil insistir, perseguindo a fantasia! A única probabilidade de não naufragar é deixar-me ir ao sabor da corrente até arranjar ponto de apoio...

O Manuel preparou-se sem olhar para mim e, parado no meio do quarto, exclamou, por fim:

- Vamos lá a saber... Sempre é verdade, essa história de estares grávida?

Estremeci. Acho feiíssima esta palavra. Soa mal e a mim choca-me, tira toda a poesia a esta coisa linda, extraordinária, que se revela na maternidade.

A custo, respondi-lhe:

- Não é história, não. vou ser mãe.

Ele deu dois passos em frente.

- Pelos vistos, não perdemos tempo!

Senti-me corar; os olhos encheram-se-me de lágrimas.

Sem mostrar aperceber-se da minha extrema confusão, Manuel prosseguiu:

- Isso são coisas que acontecem, evidentemente. Vamos lá portanto decidir a melhor maneira de liquidar o assunto.

Sentei-me, assombrada, perante a odiosa hipótese sugerida. A voz tremia-me.

- Manuel!... Manuel!... Como podes tu dizer semelhante coisa?... É o nosso filho!...

Ele encolheu os ombros.

- Deixa-te de ser ridícula, menina, e vê se raciocinas com lógica. Temos muito tempo para ser pais. Eu não estou com pressa de ter sucessor... e a ti, isso vai estragar-te a vida.

- Como?

- Nestes anos mais próximos ficarás privada dum sem-número de coisas agradáveis...

Tocou-me a vez de o fitar com ironia. O cinismo dele revoltava-me e a imagem do meu filho sobrepôs-se a todas as demais considerações.

- Não te preocupes comigo, Manuel. Eu quero o meu menino!

- Ah!... Tu queres o teu menino!...

Não me intimidou a entonação ameaçadora, sob aspecto nenhum. Tenho ouvido contar que numerosos homens só aceitam o amor pelo filho quando o vêem concretizado. Então, muitas vezes, tornam-se pais extremosos...

Manuel nada mais acrescentou. Voltou-se, vestiu o sobretudo, calçou as luvas, agarrou no chapéu e saiu.

Que irá suceder?...

8 de Novembro:

Voltei a Notre Dame e implorei a protecção divina. No silêncio da nave magestosa, onde palpitam as orações do passado perdido no tempo, tenho a impressão de que Deus nos escuta melhor.

Depois escrevi para o Pai e para a Madrinha, a dar-Lhes a grande novidade. As suas respostas hão-de por -certo vir amenizar a monotonia deste isolamento.

9 de Novembro:

O Manuel deu-me há pouco uma notícia que me dispôs bem.

Não voltou a discutir o meu estado e apenas me disse que, não sendo o hotel propício à existência duma criança, ia alugar-me um apartamento onde eu pudesse viver como em casa.

Concordei, satisfeitíssima.

Ter o meu lar, ocupar-me com cuidados do seu governo, saindo desta inacção, deste vazio, é mais do que ambição, em mim. É necessidade!

Finalmente poderei encerrar o Manuel nos encantos do ambiente de família, onde ele se sinta confortávelmente instalado. Isso há-de fazê-lo apreciar-me mais e desligar-se da vida fictícia que o arrasta para longe de mim.

Sim, vai ser Bom!... Passaremos os serões lado a lado, ele lendo, eu bordando o enxoval do bebê... Apesar de nunca ter gostado de costura, quero fazer para o meu filho toda a roupinha!

E jogaremos, e trocaremos impressões. Ficaremos a conhecer-nos. Ah, queridos serões, como me tardam!...

11 de Novembro:

Névoa, cinza no tempo, frio, muita gente, clamores de fanfarras, toques marciais, troar de canhões, a imensa bandeira tricolor sob o arco grandioso adejando lenta sobre a chama da pátria que vela o sono eterno do Soldado Desconhecido...

O aniversário do Armistício

Sobe em mim a estranha emoção despertada pela certeza de que uma guerra findou e uma nova era começa...

12 de Novembro:

Andei pelas galerias Lafayette e Priníemps, na secção de crianças... e esqueci-me de mim e das horas...

Quando cheguei ao hotel, o Manuel esperava-me, lendo o jornal. Logo que entrei, olhou-me e disse:

- Já tens casa.

Eu nem o entendia.

- O quê?...

- Já tens casa!

- Já tenho casa?... Como? Onde?...

- Em Fontainebleau. A dois passos.

- Em Fontainebleau?... Resolveste sem ouvires a minha opinião?

Ele atirou fora o jornal.

- Oh, menina, mas tu supões que há por aí casas aos pontapés?... É a coisa mais difícil de conseguir-se! E esta arranjei-a porque um colega meu, suíço, vai-se embora ma cede... Percebes? Está bem mobilada, chega... O preço não sai do razoável... Que mais queres?...

Que mais queria?... Sim, continuo a ser pateta, bem o sei. Idealizava uma casa onde eu criasse o ambiente adequado à minha sensibilidade... Disparate, não é?... Mas este lar pré-fabricado será afinal para mim como o hotel: um abrigo sem caracter!

Sentia-me irritada, desesperada...

E fitei-o sem medo de que ele se zangasse...

Sucedeu então uma coisa extraordinária!

O Manuel agarrou-me pela cintura e beijou-me! E disse:

- Só para te ver com essa cara valeu a pena alugar a casa... Ficaste bonita... assim zangada...

Não compreendi nada.

Quem é, na verdade, este homem a quem me entreguei

15 de Novembro:

Já fui ver a "minha casa".

São quatro divisões mobiladas segundo as regras do conforto moderno. Era a "garçonière" dum diplomata suíço que para ali ia passar agradáveis momentos com as suas belas amigas.

Tudo é claro, harmonioso, aconchegado. Tem uma vista magnífica para uma parte da floresta, onde se confundem nas árvores e no solo juncado de folhas todos os tons do amarelo e do vermelho. O espectáculo é repousante ao mesmo tempo.

Não há dúvida de que respirei melhor e de que, apesar de tudo, até me senti um pouco menos enjoada!

Na sala grande há quadros luminosos, aguarelas que me fizeram lembrar os verdes do Minho, as serranias da Seira, as praias do Algarve, as ruelas de Lisboa onde os prédios humildes são bonitos à luz do Sol... Ao olhá"los, lembrei-me de tudo o que lá ficou, de tudo o que perdi, das crenças que se desfizeram...

Ah, sim... o meu lar não vai ser o que eu ambicionava! Não vou saborear dentro dele a vida que eu julgava normal nos casais unidos por amor!

Mostrando-me o apartamento, o Manuel disse-me, a certa altura:

- Creio que ficarás bem instalada... e que posso deixar-te aqui sem preocupações. Gostas de sossego, na vila nada falta, parece-me tudo isto ideal para ti...

Encarei-o, intrigada.

- Não entendo... Podes deixar-me aqui?...

- Mas, filha, é evidente que não virei todos os dias... Ainda é distante...

- Distante?... com o carro, demais a mais?...

- Para a minha vida, é incômodo. Prefiro continuar no hotel.

- Preferes?... Mas?...

O assombro crescia dentro de mim. De súbito, na atitude de Manuel eu via um plano... e esse plano afigurava-se-me maquiavélico.

Não havia que duvidar! O Manuel arredava-me de si, da sua companhia, punha-me à parte, a mim... que por seu amor tudo deixara! A mim, a mais digna de caminhar ao lado dele!...

E só estamos casados há dois meses e meio!

Ele, como se o assunto fosse lógico, banal, prosseguiu no mesmo ritmo:

- Virei cá ficar uma vez por outra, sem dúvida. E nos fins de semana, também, sempre que possa. Trazer-te-ei livros para te entreteres. Podes passear à vontade... e tens bons transportes para Paris...

Salteavam-me ímpetos de disparatar, de o insultar, de chorar de tal maneira que ele compreendesse o mal que me fazia e sentisse, pelo menos, remorsos...

Mas apenas exclamei, rouca pelo esforço com que me dominava:

- Não... não quero ficar aqui! Prefiro o hotel... estou bem no hotel... Tu não podes deixar-me sozinha!

Ele simulou uma consternação dulcerosa.

- Mas, minha querida, não te esqueças de que estás para ser mãe... O bulício daquela vida agitada não te convém. A não ser que... Ainda é tempo, creio? ...

Cerrei os punhos. Eis o argumento irrefutável e a contraproposta!

O meu estado, o meu estado!

Se o Manuel naquele momento me olhasse nos olhos talvez compreendesse o que pude calar...

"... Manuel, tu não gostas de mim! Não gostas de mim e afastas-me da tua vida!... Cobiçaste-me, desejaste-me... e como não tiveste outra forma de saciar essa tua fome e como nunca soubeste negar a ti próprio nada do que te apetece, casaste comigo... Mas não me tinhas amor! Foi mal feito, Manuel! Satisfizeste um capricho e deste-me cabo da vida! "

Mas o orgulho providencial não me deixou proferir uma só destas palavras...

Chegará a hora em que o dique se rompa e eu lhas grite?

18 de Novembro:

Aproxima-se o dia em que irei para "a minha casa". E não sei... não sei o que se passa dentro de mim! Mas parece que arrefeci, que arrefeci... como se um bloco de gelo, de poder anestésico, se poisasse em cima do meu coração.

Principia a tornar-se-me indiferente ficar longe do Manuel.

Ele não sabe o sentimento maravilhoso que tem andado a destruir!

21 de Novembro:

Cartas de Lisboa!

Cartas do Pai e da Madrinha'...

Tremem-me nas mãos e conseguem aquecer-me um pouco, dissipando ligeiramente este frio que nenhum lume vence!

Releio-as, duas, três, quatro vezes. Quase já as sei de cor!

Revejo a minha cidade, a minha rua e a minha casa...

Oh, sim, a minha verdadeira casa! E lembro-me, a par e passo, do trajecto percorrido tão amiúde, caminho doutra onde eu era como filha, também...

Quão longe estou de todos, de tudo!

Sobem-me aos lábios, num soluço, os dois nomes adorados.

- Pai! Madrinha!...

E, dentro de mim, o coração diz-me:

- Tens o que desejaste, não te queixes de ninguém! Deixaste a dedicação, o amor, a ternura, para correr atrás duma labareda que nem fogueira chega a ser...

Atormento-me, porque as saudades se instalaram... E ele, o meu pobre Pai?... Quanto não sofrerá, sem mim, ele que não tem mais nada!...

Oh, como nós, os filhos, somos cruéis!

Voltei nas mãos os sobrescritos brancos: o do pai, de formato vulgar, timbrado; o da Madrinha, elegante, oblongo... O meu nome avulta, neste, escrito a tinta azul.

"D. Maria Antónia Miragaia".

O Pai traçou em caracteres minúsculos, como que feitos com relutância:

"Ex. ma Senhora

  1. Maria Antónia Val-Rei Miragaia".

Releio as missivas. Há períodos, numa e noutra, que se me fixam na memória. Decorei-os.

Diz o pai.

"Continuo muito cheio de trabalho, mas bem disposto. Quando chego a casa, no entanto, o silêncio impressiona-me. Por isso o teu velho pai está a fazer-se um estroina de primeira categoria...

"Tenho saudades tuas, mas sinto-me ditoso pensando que realizaste o teu sonho".

"Fiquei satisfeito ao saber que vais para casa própria. Não posso ir visitar-te por enquanto. Sabes que vivo da minha profissão. Se fosse aí, demorava-me e os esfaimados que me consideram velho e gasto saberiam aproveitar-se bem da minha ausência... "

"Então é verdade que vou ser avô? Pois custa-me a imaginar a minha garota feita mama!... É a vida... e eu estou mais acabado do que julgo!

"Tem cuidado contigo. Há aí grandes especialistas. Embora na tua idade e com a tua saúde tudo deva correr o mais normalmente possível, nada se perde em que sejas vigiada por um médico competente durante todo o período. Não te faltam recursos. E quanto a carinhos, imagino que te sobrem... "

A carta da Madrinha é dum teor diverso. E dá-me novidades... Novidades!

"Desculpa não te haver ainda escrito, mas tenho andado atarefadíssima. Calcula que o Gabriel resolveu finalmente dar o grande passo... Vai casar e breve! Sabes com quem? com a Júlia!

"Como nós já calculávamos, ela sempre gostou dele... mas este casamento era pouco de prever. O Gabriel es-colheu-a, porém. E eu aprovo. É boa rapariga, embora fraquita.

"Acho que ele se enterneceu diante daquela adoração silenciosa.

"O Gabriel deve formar-se na próxima época e o Pedro dá-lhe sociedade no escritório, o que lhe permitirá a manutenção do lar, mais cedo. Entretanto, nada lhes faltará, evidentemente. O meu filho, bondoso e amorável como é, precisa realmente de constituir família. Dentro "m pouco ficarei só, também. É a vida! "

O Gabriel vai casar!... Vai casar, o querido companheiro dos melhores anos da minha vida!... E vai casar com a Júlia! com a Júlia!...

Mas é espantoso!...

Devia sentir-me alegre, satisfeita, sabendo que ele alcançou a ventura a que tem o mais legítimo direito... mas a verdade é que me parece estar a ser espoliada do resto dos meus bens...

Como tudo quanto tinha vai ficando longe de mim!

22 de Novembro:

Ando neura! Neura, idiota, absurda!

Estive tanto tempo a olhar para o túmulo de Napoleão, e a vaguear no silêncio majestoso desse imenso jazigo de mármore e pórfiro onde tantos que em vida foram unidos prosseguem na morte um destino comum, que os guardas me miravam desconfiados...

Simplesmente não vi, desta vez, nada do que me cercava.

O casamento de Gabriel tornou-se-me numa espécie de obsessão!

Mas porquê? A Mafalda também vai casar, dentro de dias, segundo me escreveu, e essa idéia não me aflige...

Mas o Gabriel! O Gabriel!...

Casado com a Júlia!

Não, de forma alguma, não o concebo ligado a essa insignificantezita...

À Júlia!

Mas nem a ela nem a nenhuma outra!

A verdade é que o recusei, que tripudiei sobre a sua afeição, que amo outro e continuo segura de que nunca o desposaria... Mas então... que deduzir da relutância com que encaro o casamento dele

Acaso pretenderia que o pobre amigo ficasse eternamente fiel, a suspirar por mim?...

Sou idiota, ou ridícula?

Mas casado... com a Júlia, de quem nós fazíamos tanta troça... com a Júlia!

1 de Dezembro:

Estou na minha casa,

O Manuel deixou-me instalada, com uma criada (uma empregada!) que vem de manhã fazer-me o serviço.

Depois, fico só.

Admiro a quietude silenciosa do bosque onde as árvores, despidas, mudas, esperam a neve que não tardará, calculo.

O termômetro desce. Tenho frio e não me apetece sair.

Passo o tempo junto do fogão de sala que a Mimie me deixa aceso quando sai, depois do almoço. Entretenho-me a bordar ou a fazer tricot para o meu pequenino. E sonho com ele.

O meu filhinho! Há-de ser o meu companheiro, o meu amigo, o meu confidente. com ele hei-de expandir a ternura que não teve objectivo até agora.

O Manuel trouxe-me como às bagagens no dia e ainda cá não voltou. Telefona-me, de manhã e à noite.

Perco as ilusões. Principio a reconhecer o disparate que, realizado por nós dois, sobre mim se adensa como se eu fosse a única responsável.

Só não consigo entender porque deixei de lhe interessar tão depressa. Que desejava ele encontrar em mim, afinal? Que havia eu de fazer para alimentar a perturbação dos sentidos que o arrastou para uma Tónia a quem, a paixão levou a só fazer tolices

Tolices!... Tenho apenas três meses de casada... e já sei que tudo foi tolice, tudo! Porque não há dúvida que o aborreço, que o fatigo! Mesmo quando me toma nos braços, aperta-me sem exaltação, como se apenas se desempenhasse duma tarefa.

6 de Dezembro:

O Manuel apareceu ontem à noite, ficou comigo e foi-se embora de manhã, cedíssimo. Pouco ou nada conversou. Verdadeiramente nem me olhou a direito.

A idéia de criança enfastia-o de antemão. Mas será por mim... ou por ele?

Quem sabe se, no fim de contas, ele, que adora a estúrdia e a vida sem peias, me quereria livre para o acompanhar, esbelta e folgazã?

Na verdade, desde o dia do casamento que passei a queixar-me regularmente de males dantes ignorados...

Terei procedido com desacerto em não querer continuar a ser a rapariga turbulenta, despreocupada, que ele preferiu?

Mas então... então?...

Contudo, eu não podia aceitar a destruição da vida que se depositou em num para exigir o Ser!...

Modifiquei-me, é certo, mas foi por seu amor. E ele preferia que eu permanecesse como dantes-alegre, arrebicada, capaz dum certo número de audácias que chegavam para deslumbrar a boa sociedade burguesa, conservadora.

Mas eu valia mais e melhor do que a minha aparência. E julgava, ingenuamente, que viria a ser apreciada pelo meu lado Bom!

Por que havia a existência, porém, de deixar-se comandar pelas minhas interpretações voluntariosas?

Competia-me talvez procurar apenas agradar-lhe, diligenciando conservar-me nos moldes apontados.

Num exame de consciência, absolutamente sincero, reconheço que me preocupei muito mais em satisfazer-me do que em corresponder aos desejos do Manuel...

E agora?...

Ele não desejava o filho. E a mim cabia-me submeter à sua vontade!

Que lucrei em insistir, em deixar o meu sonho tomar forma

Para que vou eu tornar em realidade esta criança, se o pai com certeza nem sequer gostará dela?

6 de Dezembro (à noite):

Acabo de ler o que de manhã escrevi sinto-me transida de horror. Estava fora de mim, ao expressar semelhantes idéias!

Pode lá o Manuel não gostar do filho!...

Impossível!...

Mas ainda que semelhante monstruosidade acontecesse, amá-lo-ia eu de tal maneira que não o deixaria notar a falta de mais nenhuma afeição!

Tenho de conservar intacta, no meio dos destroços de tantas quimeras, ao menos uma coisa: a consideração por mim própria!

8 de Dezembro:

Arrefece cada vez mais. Estamos a dois graus negativos.

A neve, vista da janela, proporciona-me um espectáculo maravilhoso. Os enjôos pararam e já me apetece comer.

10 de Dezembro:

O Manuel apareceu de surpresa, antes do almoço.

Chegou e bocejou.

Deu-me um beijo na testa e bocejou.

Viu o casaquinho de lã que acabei ontem... e tornou a

bocejar.

Procurei entretê-lo, conversando acerca dos seus trabalhos, dos seus divertimentos. Respondeu-me com resmungos... e bocejou outra vez.

Procurei afagá-lo, no perfeito desempenho do meu papel de esposa que honestamente deseja ser boa. Não me repeliu... Mas bocejou incrivelmente!

Bocejou... bocejou, bocejou...

Arranjei-lhe um almoço apetitoso. A Mimie serviu-nos com elegância.

Ele comeu e deitou-se a dormir a sesta. Acordou, deume outro beijo na testa... bocejou pela última vez... e foi-se embora. Para que veio cá?... E que há, afinal, entre nós?

Durante todo o tempo que ele dormiu, estive sentada a observá-lo pormenorizadamente... Cheguei à conclusão de que, pelo físico, continua a ser o homem que amei... O perfil irrepreensível, o queixo voluntarioso, os cabelos revoltos, as pestanas enormes... Mas toda esta beleza olímpica nada me diz, agora! Não sinto nada por ela a

não ser incompreensão, espanto. E assusto-me!

Porque este é o pai do meu filho, o pai da criança que vou dar à luz! E foi ele, Deus meu, foi ele que destruiu o que havia

em mim de grandioso!..." Ele... ou eu?...

No entanto, se o Manuel quisesse, se se esforçasse por tal, talvez que dentro do meu coração tudo recordasse, tudo renascesse de cinzas que ainda não tiveram tempo de arrefecer...

Chamo-o, no silêncio do meu desespero crescente.

"Manuel, Manuel, vem acalentar-me... reapossa-te do meu amor... Não deixes que isto aconteça, não deixes!... Tu eras ardoroso, impulsivo, terno. Afirmavas que viverias para me adorar... e eu acreditava nas promessas seladas com beijos!... Eu julgava que o casamento seria a eternidade do nosso amor, seria a ventura embriagadora que me anunciavas. E afinal... bocejaste... bocejaste... e partiste...

"Até depois!... "-disseste.

E lá fora, há tanta neve!

13 de Dezembro:

Está um temporal desabalado. Trovejou durante todo o dia, e eu, sozinha, sinto-me gelar de solidão e de medo nesta casa super-aquecida e fervilhante de gente anônima...

O Manuel telefonou-me e, no meu desarrazoado, implorei-lhe que me deixasse ir embora daqui, que me deixasse ir passar o Natal com o meu Pai.

Apareceu-me à noitinha, com um ar estranho.

Não o entendo. Absolutamente nada!

Ligou a telefonia e, de cigarro nos lábios, aludiu ao desejo que eu havia manifestado... E quando eu supunha que a idéia lhe agradara e ele ia dar-me a sua cabal adesão, prorrompeu em coléricas invectivas.

"com que então... já queres regressar ao lar paterno ?... Mas olha lá, nós casámos para viver juntos... ou separados?...

Não percebi a interrogação e apenas balbuciei:

- Mas... de qualquer forma... não estamos juntos!...

Mandou calar-me, desabrido.

- Não medes as situações e confundes tudo! Agora, em meia hora, ponho-me junto de ti, quando me apetece. Não tenho mulher, decididamente, para me privar dela!...

- Mas...

- Tens feito tudo para me desgostar. E se aqui te encontras, trata-se ainda duma conseqüência da situação criada por ti. - Lembra-te disso! De resto, se estamos casados, não fui eu que o desejei ou provoquei... As tuas pieguices, os teus caprichos... levaram o teu papá a oferecer-me a ti como um presente de luxo. E eu, feito anjo, deixei-me levar... Mas tu já estás farta e apetece-te voltar para o teu público, onde pontificas... Pois, minha rica, por enquanto pertences-me e não me privarei de ti!

Fiquei paralisada pelo assombro, pelo terror, pela revelação espantosa.

Foi o meu Pai, foi o meu Pai que o chamou para o meu lado, que lhe pediu que casasse comigo quando... quando eu estava a morrer!...

E eu sem suspeitar...

As lágrimas subiram-me aos olhos, deu-se-me um nó na garganta. A vergonha sufocava-me.

Agora, agora percebo tudo, tudo!

Dispõe de mim a seu talante, trata-me desta maneira, só ele tem direitos... porque lhe fui oferecida!... Não passo dum objecto que ele adquiriu por um preço exorbitante e de que se utiliza consoante o prazer do momento!

A humilhação, a dor, a revolta abalavam-me toda.

Que mal tu me fizeste, pai, julgando salvar-me!...

Creio que gritei, no auge do sofrimento. Senti-me agarrada pelos ombros e impiedosamente sacudida.

- Deixa-te disso! Agora o assunto ficou esclarecido e já compreendes que não sou um brinquedo nas tuas mãos. Sábado vais ter comigo ao hotel...

E foi-se embora.

Foi-se embora, naturalmente convencido de que a espécie de esmola que me atirou me compensará de tudo quanto me roubou para sempre.

18 de Dezembro:

Solidão, desgosto, arrependimento... e necessidade de fingir!

Escrevi longas cartas, para a Mafalda, para a Madrinha, para o Pai. Inventei maravilhas acerca de tudo... mas não sei se conseguirei iludir o meu pobre querido a quem não posso nem sequer recriminar pela sua intenção.

Enquanto tracei no papel delícias imagináveis, ainda me embalei no sonho... no sonho que me tiraram com nítida consciência da má acção praticada. Depois... despertei na sala vazia, sem ninguém.

Fui ter com o Manuel ao hotel.

Antes subi à Torre Eiffel, outra vez. Debrucei-me imprudentemente na varanda do primeiro andar... Mas tive medo, faltou-me a coragem, acobardei-me...

Desci depressa, a tiritar.

E aceitei a esmola.

Ele levou-me a um restaurante onde comi lindamente, com imenso apetite. Tudo me sabia agora bem. De tarde andámos pelo Louvre, onde o Manuel estadeou conhecimentos profundos nas galerias de pintura.

Jantámos num "bistreau" afamado coisas deliciosas. Fomos à Ópera, onde todos os meus sentidos se deslumbraram. Dali seguimos para um "dancing". O Manuel manifestou-me sempre um interesse que, sem a venenosa recordação do que se passara antes, me daria com certeza a ilusão de ventura.

Foram um dia e uma noite de noivado.

Hoje veio trazer-me a casa. Não desceu do carro. Perguntou-me se estava satisfeita...

Cansada, sorri... E ele partiu flamante, convencido do seu triunfo.

E eu não me senti nem satisfeita nem contrafeita.

Andar com ele já não me torna feliz. O tumulto, a multidão, o divertimento não valem um beijo sincero, um olhar carinhoso.

A atitude do Manuel, toda a sua atitude, nada para mim tem de louvável. Sei perfeitamente que fui mais uma vez o capricho do momento...

E vendo o carro desaparecer ao longe, na curva da estrada, radica-se em mim a impressão de que ele prétendeu, unicamente, mostrar-me o que eu perdi com a resolução de ser mãe.

Como ele me conhece mal! Sim, conhece-me pessimamente... ou, o que talvez seja mais grave, nem me conhece! Não diligenciou descobrir o que sou, o que penso, o que desejo...

Ele é o meu marido, eu sou a sua mulher... mas não passamos de dois estranhos!

Ou foi a minha sensibilidade que se embotou?

21 de Dezembro:

Recebi duas encomendas que me comoveram intensamente.

Do Pai veio-me um retrato dele tirado no consultório. Querido Pai! É bem a sua expressão concentrada, afável, impregnada de bondade e compreensão... Estava com certeza pensando em mim, quando o fotografaram!

Era assim que me olhava quando eu lhe contava, exuberante, as minhas alegrias e as minhas contrariedades de rapariguinha feliz... Esta expressão significava talvez uma pergunta: -que será para ti o dia de amanhã?

Hoje, ainda, pressinto que medita no que se lhe afigura misterioso: quais serão, na realidade, as alegrias e as contrariedades que ele não vê?...

Oh, uma alegria tive-a agora, com o retrato! com o retrato e com os brincos que o acompanhavam, os brincos com que sempre divaguei, todos pérolas e granadas... Compridos, maravilhosos, antigos, o Pai dizia-me que não eram próprios para mim; mas a Madrinha contou-me que ele andava pelos antiquários à procura da jóia que eu idealizara...

Oh, Pai, o teu presente pôs-me doida! Perdeste a cabeça, positivamente, porque isto custou-te um dinheirão...

Ponho os brincos e mostro-me ao teu retrato... No fim de contas o retrato dá-me mais felicidade do que os brincos, sabes?

O teu sorriso diz-me:

- Criança! Continuas a ser criança...

Ora essa! Já não sou criança, não senhor! Sou mulher e quase mãe!

Recorda-mo a Madrinha, com a sua prenda.

Dentro duma caixa vieram: dois casacos de malha, dois babeiros, dois pares de sapatinhos de lã, duas camisas bordadas, dois cueiros-tudo azul. E a primeira pulseira de oiro...

menino que ainda não nasceste, com que prazer miro e remiro o presente que sendo para ti a mim me torna jubilosa! Sabes que também já tens Natal, tu, que ainda não chegaste ao Mundo ?... Pois para o ano, menino, terás a tua árvore de Natal!

É linda e boa, a árvore de Natal. Tu vais gostar muito, meu menino, quando vires os cordões a luzir, as bolas de muitas cores, as lâmpadazinhas acesas... Que nós, lá em casa, temos uma infinidade de lâmpadas tão engraçadas!...

Lá em casa?

Mas estaremos nós em casa nessa altura, menino?... Ou continuaremos aqui, nesta terra fria onde não me sinto bem?

Mas a terra não tem culpa! A culpa é doutrem...

Schiu, basta! Ponto final no assunto. Para ti... só alegrias!

É verdade, ainda nem falei duma terceira lembrança, vinda no canto da encomenda da Madrinha.

Em minúscula caixa, acompanhado por um bilhete de boas-festas, estava um coração miniatural, em oiro. No bilhete avulta, impresso a cores, um ramito de azevinho. Traz as seguintes palavras:

- Feliz Natal para o que vai nascer.

Dentro do coração, que se abre, há uma inscrição, gravada: "Dedicação".

Não traz assinatura. Contudo, sei perfeitamente quem o enviou... e salteia-me a impressão de que a Madrinha não teve conhecimento de nada!

Gabriel!...

Mas que quer isto dizer, meu amigo? Que símbolo traduz a tua oferta?

Desejaste acaso afirmar-me que, embora tudo mudasse entre nós e eu seja casada e tu vás casar também, a tua afeição perdurará transformada em dedicação, dedicação inalterável que não hesitarás em testemunhar ao vindoiro?

Obrigada, Gabriel, muito obrigada!

Agora terei um Natal... pelo menos suave! Porque eu não sei se o Manuel se lembrará de festejar a data que pertence à família.

23 de Dezembro:

Resolvi celebrar o Natal tal como o compreendo e desejo revelá-lo ao Manuel, se acaso o ignora.

Armei um pequeno presépio encantador, junto da chaminé e depois fui a Paris a compras e, para òbsequiar o meu marido, fiz loucuras! Adquiri um cache-col lindíssimo, uma cigarreira de tartaruga, uma camisola de desporto em lã magnífica e um lenço branco de seda natural. Acredito lá que dar lenços brancos signifique separação!... Não sou supersticiosa.

Recolhi esfalfada e radiante. Fazer compras nos grandes armazéns, onde tudo é imenso e deslumbrador, onde o bom gosto, a originalidade e a riqueza vão de mãos dadas, chega a tornar-se delirante.

Ao regressar, tive um aborrecimento. A Mimie (corn quem não tenho as mínimas afinidades, mas que me serve gentilmente nesta terra em que as criadas são um dos objectos de mais luxo que pode haver, deixou-me um cartão escrito informando-me de que "Monsieur" telefonara e ficara contrariadíssimo por eu ter ido à cidade.

O desencontro deixou-me pesarosa.

23 de Dezembro (à noite):

O Manuel voltou a telefonar. E foi para me pregar uma espantosa descompostura! Oh, omnipotência dos maridos! E eu a preparar-lhe uma surpresa, com tanto gosto!... Pois ouvi uma série de coisas desagradáveis!

"Que não tinha nada que sair de Fontainebleau sem sua autorização (!). Que não consentia em que eu continuasse a proceder como se ele não existisse, que as coisas estavam a desagradar-lhe cada vez mais, que eu me iludia redondamente acerca dele... etc. etc.".

Tive a força de vontade suficiente para ouvir sem responder coisa alguma. Só me subiram lágrimas aos olhos quando me comunicou que não esperasse por ele amanhã, véspera de Natal, pois iria passar o serão a casa duns amigos. Mas que talvez viesse almoçar, no domingo... Talvez!...

Quando desliguei, aproximei-me da chaminé, agarrei numa data de achas que lancei à braseira. Logo que as chamas altearam fui ao quarto e regressei trazendo em braçado os presentes para o Manuel. Estava firmemente decidida, nesse instante de raiva concentrada, a atirar com tudo ao lume...

Depois lembrei-me dos milhares de francos gastos... e desisti do auto-de-fé.

Mas não lhe dou nada! Guardarei tudo numa gaveta... e acabou-se!

Ele que imagine o que quiser, que suponha à vontadinha que andei a espiá-lo (tem pilhas de graça, a suspeita!) e que se esqueça de que no Natal todas as surpresas são abençoadas-menos a que ele me inflingiu.

Dia de Natal (às oito da manhã):

Passei o serão melancòlicamente sentada ao pé do fogão de sala, aferrada a uma teimosa esperança: -a de que o Manuel viesse, embora tarde, trazido por um sentimento natural de ternura, ou de remorso, fazer-me companhia.

Telefonou, apenas, às sete e meia, com o ar mais desprendido, dizendo que viria buscar-me hoje ao meio-dia para almoçarmos em qualquer sítio...

Almoçar em qualquer sítio-no dia de Natal!...

Então, de facto, ele não compreende o lar, não aprecia os encantos da intimidade? Para ele apenas existem o mundo, o movimento... os estranhos?

Oh, meu Natal de menina, meu Natal de há um ano!...

A missa do galo, o presépio, a ceia, a árvore do Natal e o papá, feliz como um rapaz pequeno, fechado na sala de estar e sem me dar licença nem de espreitar...

Almoçar a "qualquer sítio"!

E a Mimie, a quem concedi feriado, desejou-me pelo telefone, há bocadito:

- Bonne-fête, Madame!

26 de Dezembro:

Eram cinco para o meio-dia quando ele chegou. Eu mudara de opinião quanto às prendas que tencionava oferecer-lhe. Uma vez que o dinheiro estava gasto, por que não havia de dar-lhe uma lição, mostrando-lhe que me preocupara com ele embora ele se esquecesse de mim?...

Coloquei tudo na chaminé, tal como o premeditara inicialmente. Esperava que reparasse nos embrulhos assim que entrasse.

Ele apareceu, deu-me um beijo na testa, como de costume.

- Olá!... Já estás pronta?

Inadvertidamente, olhei-lhe para as mãos. E, apesar de tudo, estremeci. Vazias! Completamente vazias! Nem um simples ramo de flores, nada!...

Levantei-me.

- Estou pronta, sim.

- Então vamos.

Dei uns passos. Enquanto punha o chapéu mordi os lábios, sem saber como agir. Quando enfiei o casaco, disse-lhe, vencendo a emoção.

- Aí na chaminé estão umas coisas que o Menino Jesus deixou para ti...

A sua voz exprimiu admiração:

- Ah, sim?... Mas eu não estou habituado a receber Prendas, sabes?

Na verdade, o Manuel, sem pais desde pequeno, educado em colégios de luxo por um tio solteirão, sem o conforto dum lar cristão a formá-lo para ideais afectivos, tem imensa desculpa!

Durante alguns momentos congratulei-me por haver procedido assim, concedendo-lhe uma alegria desconhecida.

Contudo, ele não se mostrou sensibilizado. E riu.

- Visto isso... esperavas também que o tal Menino Jesus se lembrasse de ti

Encarei-o, silenciosa.

- Tiveste uma decepção, não foi?

Afinal, não valia a pena esperar... Frio e céptico, e Manuel reage duma forma sempre diversa do que eu imagino.

Vi-o desembrulhar tudo com exclamações que me pareceram zombeteiras.

- Oh, oh! Mas tu arruinaste-te, pequena!

Encolhi os ombros.

- Julgava dar-te prazer com esta surpresa. Foi para isto que saí anteontem...

Fitou-me e o coração bateu-me mais depressa... Acaso e finalmente ele viria dar-me um beijo ao menos, um desses beijos de que sinto tantas saudades?...

Atirou as coisas para cima duma poltrona, sem lhes ligar mais importância.

- Vamos, Tónia, está a fazer-se tarde.

Eu permanecia imóvel, invadida por um frio tão intenso que cheguei a recear ficar tolhida por ele... Tive mesmo a impressão nítida de que as lágrimas se me condensavam nos olhos, geladas.

Não sei como cheguei ao carro.

Lembro-me de ouvir o Manuel dizer, quando principiámos a rodar.

- Preciso de ir descobrir-te uma prenda... Não quero ficar diminuído perante ti.

Chegámos ao Bois. Entrámos no restaurante-um dos mais janotas-sem que se desfizesse a sensação de desgosto que me afligia.

O magnífico bosque, calmo, silencioso, enquadrava a minha melancolia.

Fiquei olhando as árvores e o lago, através da vidraça.

Na nossa mesa, reservada, havia oito lugares, cuja explicação o meu marido forneceu sem que eu lha pedisse"

- Vêm ter connosco uns amigos de quem vais gostar Um deles, italiano, esteve muito tempo em Portugal" Deve agradar-te.

Nada podia alegrar-me. Até o último reduto onde se albergaria o meu anseio de intimidade, tudo se dissipava.

O Manuel insistiu para que eu me instalasse no bar, cheio de cômodas poltronas e mesas graciosas.

- Ficas aqui enquanto vou num pulo a casa dum ourives conhecido, ver se arranjo qualquer coisa para ti...

Protestei.

- Disparate! Não vale a pena...

- Ele mora aqui a dois passos. Todos nós somos seus clientes... Não me demoro. E tu, entretanto, bebe um aperitivo.

Faltava-me o ar, e, inconscientemente, levei a mão ao peito.

E foi então que senti, sob a lã do vestido, um pequeno objecto que apalpei, ao acaso. Era o coraçãozinho que viera da Pátria, o coraçãozinho de oiro que trazia dentro de si uma única palavra, a mensagem dos entes queridos que estavam longe e pediam que não me deixasse vencer pela vida.

De súbito, reagi e dispus-me a atordoar-me, a fazer tudo para não pensar mais.

Pedi um uísque.

Não gosto de uísque. Tenho a impressão de que se pisassem formigas num almofariz e com elas fizessem uma tisana, não daria coisa mais desagradável... No entanto, emborquei dois copos, sem soda.

Já o frio interior me não apoquentava quando, uns três quartos de hora mais tarde, o Manuel reapareceu e veio junto de mim, galantemente, oferecer-me um estojo na ponta dos dedos.

- Bonne-fête, Madame!

Havia muita gente à nossa volta. Percebi claramente que o Manuel representava uma comédia...

Descerrei a caixinha. Dentro dela, um aro de platina cravejado de brilhantes.

Ele sorria, vendo-me enfiá-lo no dedo, maquinalmente.

Não precisei de agradecer, felizmente. O Manuel estava distraído com os seus convidados, acabados de chegar.

Aquelas pedritas fulgentes afiguravam-se-me exactamente as lágrimas que eu não pudera chorar, as lágrimas geladas nos meus olhos...

Enchi precipitadamente novo copo e bebi-o dum trago.

O frio volveu-se em fogo.

A partir daí, todas as recordações do dia de ontem se baralham, esfumam e confundem, salvo a duma dor de cabeça como nunca tive outra. Mesmo agora ainda estou ligeiramente tonta. Através duma névoa, como que diviso sons musicais, palavras de amor, horas de ternura, de "rêverie", de perturbação...

Não sei nada de concreto.

Foi a primeira bebedeira que apanhei!

31 de Dezembro:

Estava combinado o Manuel vir buscar-me para irmos passar o "réveillon" ao Lido.

Ele, porém, chegou há pedaço, cheio de arrepios e dores de cabeça, tão queixoso que se instalou numa poltrona junto do lume, a tiritar. Pus-lhe o termômetro, porque o achei escaldante. Subiu a 39 e 5. Alarmei-me.

Por minha vontade chamaria já o médico. Ele opõe-se, insistindo para que esperemos até amanhã.

Deve ser uma gripe, com certeza. Ajudei-o a deitar-se, dei-lhe um comprimido para dormir.

Mas aqui, do sítio onde estou, oiço-o gemer, gemer sem cessar...

Deus meu, estará ele muito mal?

1 de Janeiro:

Passei toda a noite sentada... sentada é como quem diz!... Não parei um instante, ora a dar-lhe água, ora a tapá-lo, ora a descobri-lo, ora a enxugar o suor que em bica lhe escorria pela cara, ora a ajudá-lo a voltar-se...

Meu pobre Manuel! Que "reveillon" o nosso!

Estou à espera que o médico venha. Chamei-o assim que amanheceu e aguardo-o impacientemente.

No entanto, o Manuel não me parece tão mal como ontem. A temperatura não excede os 38 graus.

O pior de tudo é a excitação de que o vejo possuído. Julgo que nunca esteve doente e por isso não só o desespera a incapacidade física como o aterra a idéia da morte.

Até quer fazer as suas disposições testamentárias... e por causa disso já me fartei de chorar. Pôs-se a falar no filho, a lamentar-se porque não chegará a conhecê-lo, a pedir-me que nunca me canse de falar dele ao menino, para que o menino venere a sua memória...

Manuel, Manuel, mas tu não tens nada, tu curas-te daqui a pouco e sentir-te-ás perfeitamente bem... e voltarás a ser muito meu amigo e viveremos depois felizes um para o outro!...

As horas más também têm o seu lado Bom, Manuel!

1 de Janeiro (à tardinha):

O médico declarou que não é nada de grave. Uma pneumonia sem importância na era das penicilinas,

Quando se retirava, voltou-se para mim e encarou-me muito sério.

- A senhora tem muito mau parecer... Também está doente?

- Não, senhor doutor. Apenas preocupada.

Do lado, o Manuel observou:

- Ela está grávida.

Os olhos do clínico, perspicazes, analisaram-me rápida, mas incisivamente, dos pés à cabeça.

- De quanto tempo?

- Quatro meses, julgo.

Ele meneou a cabeça:

- Pois o seu estado, normalíssimo, merece mais atenção do que a passageira enfermidade do seu marido. Não gosto da sua cara. Tem uma expressão inquieta, que me desagrada... -E concluiu: -Cuidado consigo, para que o bebê só nasça daqui a cinco meses, hem ?...

Enquanto ele esteve presente, o Manuel mostrou-se calmo, animado.

Agora, que se foi, recomeçaram os lamentos e as queixas, em todos os tons.

Não sei que mais fazer-lhe!

Ameigo-o, beijo-o, acalento-o como se fosse um rapaz pequeno. Obrigo-o a estar sossegado e não o abandono um momento. Adormeceu agora. E eu, atormentando-me, sinto-me estranhamente feliz. É que ele agora é meu, só meu... E anima-me a esperança de que possa enfim apreciar-me, reconhecendo tudo quanto represento a seu lado.

Quem sabe? Talvez a nossa felicidade renasça!

3 de Janeiro:

Têm telefonado diversos amigos e amigas do Manuel, que pretendem vir visitá-lo. Ele, porém, declarou-me peremptòriamente que não está com disposição para receber quem quer que seja...

Semelhante declaração deu-me uma alegria indescritível!

Sentir-se-á ele ditoso, sozinho comigo?

Ai, se isto fosse verdade e para sempre, como eu lhe perdoaria tudo, tudo!

4 de Janeiro:

O Manuel, com grande espanto meu, continua a nãoquerer receber ninguém.

A febre ainda não o largou completamente.

Depois do almoço veio um amigo procurá-lo. Fui recebê-lo e dizer-lhe das resoluções do meu marido.

Mal o vi, pareceu-me reconhecê-lo.

Qualquer coisa se agitou dentro de mim e, quando ele avançou ao meu encontro, corei intensamente.

De súbito, e numa espécie de confusão, envolvia-me a recordação dum estranho calor junto do meu corpo duma música de fundo ritmando palavras... palavra, que não sei se escutei...

Com um sorriso íntimo, ele acercou-se. Recuei, mas ele agarrou-me nas mãos e beijou-mas. E falou-me, acabando de desnortear-me.

- Então, pequenina, esse marido mau adoeceu e privou-nos dessa noite que eu tão ansiosamente esperava?...

Eu fazia esforços para me recordar de qualquer coisa, para me equilibrar, para me livrar dos seus dedos.

Os braços dele rodearam-me a cintura e de repente senti uns lábios escaldantes poisarem-se no meu pescoço.

Debati-me.

- Madona mia...

A emoção e o medo abalavam-me. O calor dum corpo junto do meu, música, palavras ternas...

Ai, já sei, já sei! É o italiano, o meu par do dia de Natal!...

Mas... que se passou que lhe permita falar-me desta maneira?...

Terei dado lugar a tudo isto?... Mas então que fiz, que fiz eu ao certo?...

Consegui fugir-lhe, recuar, e lancei em torno um olhar buscando apoio, auxílio, justificação...

Perdi toda a presença de espírito.

O meu marido na cama, doente, e este homem que nem conheço com ar de quem dispõe de mim...

Vi-o aproximar-se de novo-e não pude gritar por socorro.

Falou-me ao ouvido:

- Que há, amada mia ? O marido mau não está mais enfermo?...

Escondi o rosto nas mãos, alucinada. Como certificá-lo do erro cometido, mostrando-lhe que não sou, de maneira alguma, o que ele imagina?...

E se eu chamasse pelo Manuel?...

O Manuel?... Mas o Manuel também lá estava, há-de saber... Acaso fiz algo de repreensível? Terei dado escândalo?...

Mas o Manuel não me disse nada, não se referiu a qualquer incidente...

Eu bebi demais, bem o sei... Estava embriagada... Não consigo recordar-me! Mas fosse o que fosse, a verdade é que havia muito pouco de mim mesmo nessa de quem o italiano mostra lembrar-se!...

Precisava de explicar-lhe...

Mas ele continuava a segredar, evocando momentos deliciosos, juras trocadas, não sei que tangos, não sei que paixão melodramática, não sei que receios tenebrosos...

- Na noite de "réveillon", à medida que o tempo decorria, eu imaginava coisas horrorosas... Cheguei a pensar que o marido mau percebera e a seqüestrara...

O seu português quase correcto, muito aberto, dava sentido diverso, mais acentuado, a todas as palavras.

Inadvertidamente, destapei o rosto, olhei-o.

Magro, de lábios grossos, olhos negros, cabelo liso, um pouco alteado sobre a testa ampla, não pode ser considerado belo. Mas há nele qualquer coisa de insinuante, de doce... A sua maneira de fixar-me acordou em mim um outro medo...

Vendo-o, ouvindo-o, percebi que me inspirava naquele instante uma curiosidade mais forte do que qualquer perturbação.

Eu, quase desprezada pelo marido, podia ainda despertar o interesse dum estranho!

E esse estranho continuava a falar-me:

- Não telefonei logo com receio de complicar tudo. Só depois, quando soube a verdade, descansei. E aqui estou...

Finalmente pude falar e abordar o dificílimo assunto, disposta a esclarecer a situação e a desfazer o melindroso equívoco.

- Mas... eu não percebo nada da sua conduta, senhor! Não me lembro do que se passou nessa tarde porque... porque tinha bebido demais. Compreende? Fosse o que fosse, rogo-lhe que me acredite. Não existia a mínima consciência nos meus actos... Deve esquecer tudo... ir-se embora... e não pensar mais nisso...

Ele fitava-me nos olhos.

- Imposuible!...

Juntei as mãos, num movimento intuitivo. E repeti.

- Por favor... Vá-se embora. E esqueça... e esqueça...

Então, suavemente, ele murmurou:

- Não, não me faça isso!... Não quero perder a imagem maravilhosa da mulher que se me revelou... Sinto ainda nos lábios o sabor dos seus...

Encarei-o, num protesto de todo o meu pudor.

- Senhor!

- E você é infeliz!... E nós compreendemo-nos tão bem!... Deixe-me adorá-la... Madona!

O coração batia-me desordenado e tinha a cara em fogo.

Então... então foi assim ? O meu subconsciente apanhou uma porta aberta e deixou passar a verdade, a verdade que a frio eu jamais confessaria?

- Amo-a, Tónia. Tónia!...

Tónia!... "

Tónia? ...

Num esforço desesperado, volvi: - Basta! Já lhe disse que estava embriagada. E, se insiste, torna-se incorrecto. - Tónia! - Retire-se. Sou necessária junto de meu marido. Queira sair, se não prefere que o deixe só.

Ficou como que hesitante. Mas viu-me tão resoluta. tão firme, que deve ter achado preferível submeter-se.

Inclinou-se diante de mim, sem ousar qualquer outro gesto, e encaminhou-se para a porta. Aí deteve-se e acrescentou ainda.

- Espero vir a provar-lhe que me encontro no meu juízo... e que sinto o que digo. Então perdoar-me-á se me excedi. Seja como for, acredite numa coisa, "Madona". Gostei da sua atitude, agora.

E, deixando-me trêmula de espanto, foi-se.

Eis ao que me expõe a indiferença do Manuel!

Voltei para o quarto. Precisava que o meu marido me amparasse e protegesse...

Sentei-me. Aproximei a minha cara da cara dele, para dar-lhe um beijo.

Fui imediatamente repelida.

- Não me maces. Já estava a dormir.

Confinei-me no silêncio da decepção. Pouco depois ele entreabriu as pálpebras e, com tédio, perguntou:

- Quem foi que esteve aí, afinal?

Humedeci os lábios antes de responder. A voz tremia-me.

- O teu amigo italiano.

- O Paolo

- Se é assim que ele se chama...

Por muito estranho que pareça, o Manuel apostrofou-me com vivacidade.

- Ó menina, mas devias tê-lo deixado entrar!

- Mas...

- Quando ele telefonar, que venha ver-me. É um bom companheiro, um amigo fixe!...

Para quê replicar?

Um bom companheiro, um amigo fixe, esse tal Paolo!

10 de Janeiro:

Paolo voltou, efectivamente, depois dum telefonema que o Manuel, já em convalescença franca, atendeu.

Não percebo como é que o meu marido não repara nos olhos inconvenientes que o outro poisa em mim...

12 de Janeiro:

Paolo voltou de novo, mas não tocou em nada e, pelo contrário, manteve a mais irrepreensível das condutas.

Evito porém encontrar as suas pupilas expressivas porque toda eu sou confusão.

Por minha vontade não estava presente às reuniões, mas o Manuel, que ficou extremamente piegas, arranja mil e um pretextos para carecer de mim.

A situação em que me encontro é melindrosa.

Temo contar a Manuel a verdade, porque é muito capaz de ainda por cima me censurar pelo meu espirito inventivo...

14 de Janeiro:

O Manuel, por cautela, ainda não sai de casa.

O Paolo vem todos os dias.

Procuro ser encantadora para com meu marido, a fim de vincar de maneira inequívoca a segurança da nossa união, mas ele, em contrapartida, mostra-se claramente enfadado com a minha ternura intempestiva.

O olhar de Paolo fita-me tão compreensivo... e compadecido, que a vergonha e o despeito me sufocam.

Está irremediavelmente desfeita a intimidade que prometia renascer entre mim e o Manuel. E agora só desejo uma coisa: que ele volte depressa para as suas ocupações e me deixe em paz!

18 de Janeiro:

Finalmente, o médico deu alta ao Manuel e ele regressou hoje a Paris. E depois de toda a minha canseira, de todos os meus desvelos, com a pressa até se esqueceu de dar-me um beijo...

Espantosa, a sensação de alívio que me invade! Alívio!

Eu fiquei aliviada... porque o meu marido me deixou só!...

É horrível, isto!

Torno-me monstruosa aos meus próprios olhos e choro com pena de mim mesma.

22 de Janeiro:

O Manuel telefonou-me dizendo que não podia vir hoje, que tinha muito trabalho acumulado...

23 de Janeiro:

Estou liberta das assiduidades do tal Paolo, que não tem agora qualquer pretexto para aqui voltar.

Ah, se eu fosse livre e desconhecesse a realidade, talvez que as atenções do italiano me linsonjeassem e aumentassem a desmedida confiança que eu depositava na ventura! Mas agora... Agora conheço os homens, sei que mentem para nos seduzir e beijam para nos tentar, e sinto repulsa pelo Paolo e pelos propósitos demonstrados. Sinto repulsa por ele e pelo Manuel, creio que por todos os homens em geral.

E se eu amava o meu marido!... Personificava exactamente os meus ideais máximos!

Que saudade das minhas crenças! Como foi triste que tu, Manuel, as tenhas destruído a sangue-frio!...

Para ti, algures, a existência continua. Mas para mim?

E, contudo, se eu fosse outra, a presença do teu amigo... do teu amigo fixe podia constituir um perigo. Tu, porém, de nada te apercebes, ou nada receias. Talvez não reconheças em mim quaisquer qualidades de sedução e já me consideres posta à margem da vida!

Ah, Manuel, nisto tudo só uma coisa é certa! Não será o Paolo, nem nenhum outro, que poderá compensar-me da decepção que me inflingiste!

26 de Janeiro:

O Manuel nem sequer me tem telefonado. Creio que foi totalmente reabsorvido pela complicada engrenagem da sua existência. Em contrapartida... o Paolo mandou-me flores e um bilhete escrito em francês.

"On ne peut pás vous oublier".

Flores!... Por que será que o Manuel nunca mas ofereceu

28 de Janeiro:

Tive carta do Pai, uma carta que me deixou sobressaltada.

Confessa-se esgotado e desejoso de vir visitar-me. Não, não quero que o Pai venha cá e descubra o que a todo o transe diligencio ocultar-lhe. Que ele o ignore, ao menos que ele o ignore!

A carta do Pai anuncia-me também dois casamentos: o da Mafalda, que embarcou imediatamente para África -outra que persegue um sonho! -e o de Gabriel, realizado na maior intimidade no passado dia 15.

É estranho, a Madrinha não me avisou da data e eu gostaria de ter sabido para enviar um telegrama de felicitações.

Teve sorte a Júlia! Leva uma jóia de rapaz.

Inesperadamente, encontro-me a formular a mim própria esta pergunta: Tornar-se-á de facto o Gabriel num bom marido?...

Que isto de ser uma jóia de rapaz talvez afinal não baste, no matrimônio...

Também o Manuel, para os outros, é uma pessoa encantadora...

E daí, quem sabe ? No fim de contas, talvez a culpa não seja dele, mas sim minha, que lhe pedia mais do que ele tinha para conceder-me!

30 de Janeiro:

O Manuel veio ontem a casa. Como de costume, entrou a bocejar. Esforcei-me, enchendo-me de paciência, por mostrar-me alegre a acolhedora. Durante o almoço falei sem cessar de futilidades a que sempre respondeu enfastiado. No fim da refeição bocejou, claro, e foi dormir a sesta. Quando se levantou, cerca das 6 horas, estava de mau humor e não fez outra coisa senão perguntar-me em que havia de ocupar-se até ao jantar.

- Conversemos, Manuel! -propuz-lhe.

- Conversemos de quê?... Já me contaste tudo...

- Mas conversemos de nós, de nós próprios! -insisti, corajosamente.

- Ó menina, isso não tem interesse!

Sentei-me a contemplá-lo. Afinal, de que serviam os meus esforços ? Pensando ele assim, como podemos nós entendermo-nos

Tentei explicar-me, atrai-lo, captar-lhe a atenção, diliSnciando traduzir um pouco do muito que me inquieta.

Ordenou-me que me calasse, pois não viera a casa para aborrecer-se.

No fundo do meu ser principiou gritando a indignação da minha inteligência contra esse direito do mais forte.

Olho para mim e vejo-me ridícula, com este ventre que dia a dia cresce e este ar espantado que me tolhe como ainda ontem, quando eu não sabia fazê-lo perceber a tristeza que me domina!

Sugeri-lhe que jogássemos qualquer coisa. Replicou-me que não lhe interessavam os meus méritos de parceira.

Engolindo as decepções, umas atrás das outras, liguei a telefonia e, quando ouvi um tango, pedi-lhe que dançasse comigo. Respondeu-me que tivesse juízo e reparasse na deselegância da minha silhueta.

Então, absolutamente fracassada, desisti.

Sentei-me ao lado dele, quieta, admirando as labaredas crepitantes e ouvindo-o bocejar.

Depois, como nada havia para distrair-me, pus-me a observá-lo.

Estirado na poltrona, numa posição de abandono total, como era belo!

Por momentos, brutalmente, apeteceu-me atirar-me aos seus braços, num grito de perigosa sinceridade.

- Manuel, Manuel, olha que afinal ainda gosto de ti!...

Foi um bem que o telefone me arrancasse à atracção que me assaltava, dando forças novas a este sentimentalismo que não morre de vez.

Atendi, com alívio, porque me reconheci salva doutra humilhação.

Ao levantar o auscultador, reconheci imediatamente a voz de Paolo Vallegri. Passei-o ao Manuel que, acto contínuo, mudou de parecer e se animou.

- Paolo?... Não, não maçaste nada... Mas, homem, a ocasião não podia ser mais oportuna!... Estou para aqui sem saber com que distrair-me. Vem, vem e jantas connosco. Tiveste uma idéia estupenda! Até já.

Se o Manuel lesse nos meus olhos a expressão dos sentimentos que me agitaram, veria neles a mais amarga das censuras... O Manuel, porém, não me entende... E eu não o entendo, também!...

Cerca duma hora mais tarde, apareceu o Paolo, carregado de vinhos e doces caros para o jantar. Trouxe-me, como gentileza particular, flores e bombons.

E... por que não confessá-lo aberta, corajosamente? O ambiente modificou-se. O Manuel riu, pairou, contou anedotas e eu, mesmo sem querer, acabei por achar agradável a companhia e a diversão.

O Paolo tratou-me sempre com a máxima delicadeza.

Jogámos o "pocker", e ele afirmou que eu jogava lindamente. Desvelou-se em pequenos mas enternecedores cuidados. Nem sequer o afugentou a minha deselegante silhueta...

E tu, Manuel, sem dares por nada! Partiste com o teu amigo para Paris, à meia-noite... e eu só adormeci alta madrugada desesperadamente agarrada a mim mesmo e a pedir ao meu filho que me ajude a caminhar a direito, a fugir do desvio pela beira do qual pressinto que vou avançando!

28 de Fevereiro:

Este mês, pardacento, monótono, tão grande apesar de ser o mais pequeno do ano, não permitiu que eu tivesse vontade de escrever e de registar o muito que sofri sem que nada de extraordinário acontecesse.

Se eu registasse os múltiplos pensamentos e as sensações desencontradas que me agitam e abalam de hora a hora, faria um longo tratado filosófico, um estudo analítico, e para isso escasseiam-me forças, disposição e capacidade.

A verdade é que a sucessão de factos idênticos uns aos outros continua a magoar-me inalteràvelmente e não consigo habituar-me à minha situação.

Sou como um terreno encharcado que abre fendas e ameaça esboroar-se a todos os momentos.

Por vezes creio que devo chegar ao pé do Manuel e dizer-lhe que mais vale romper esta união que se revela um tremendo erro. Detêm-me os movimentos já concretos do meu filho, dentro de mim...

Seja como for, não me assiste o direito de privá-lo voluntariamente do futuro amor do pai.

E não me arrependo de haver desejado esta criança, apesar de saber que vou sacrificar-me a ela, que vou escravizar-lhe toda a vida, renunciando aos meus direitos de mulher em favor dos meus deveres de mãe! Hei-de saber abdicar das exigências dos 21 anos feitos há dias, sem qualquer celebração, excepto uma carta e uma prenda do Pai, e dois telegramas, um da Madrinha, outro da Mafalda.

Depois, será natural que, cheia de calma e de resignação, eu aceite como lógico e distante afecto do meu marido.

9 de Março:

O Carnaval já lá vai.

O Manuel viveu-o, julgo, numa loucura de festas grandiosas.

O Paolo, que todos os dias continua a enviar-me flores, telefonou-me na terça-feira, convidando-me a ir com ele, de dominó, a uma festa onde ninguém daria pelo meu estado nem me reconheceria. Aliás, quem havia de reconhecer-me a mim-de todos desconhecida?...

Perante a minha recusa formal, pareceu conformado.

Quando me preparava para deitar-me, esquecendo que a mocidade lateja nas minhas veias e há um ano fui a rainha de tantos bailes... bateram à porta.

Tive um certo medo de abrir, tanto mais que não consigo habituar-me à solidão.

Depois resolvi-me.

Com espanto, encarei o visitante...

Paolo! Paolo, mascarado de arlequím e com um enorme cesto de provisões!...

Não sei se tive vontade de rir ou de zangar-me.

Mas deixei-o entrar.

Não me falou de amor, evidentemente. Seria mais da que ridículo mostrar-se apaixonado diante desta grotesca e feia criatura que sou agora...

Mas por que me sacrificou ele uma noite de folia, sem nenhum interesse?...

Armou o tabuleiro de xadrez, ligou a telefonia, arranjou-me as almofadas da poltrona, fez piruetas, abriu uma garrafa de champanhe e colocou ao meu lado uma taça cheia e um pires com drops.

Vi aquele grande rapaz de olhos profundos que me não é nada, que só pode alimentar projectos nefandos a meu respeito, que me não interessa sob nenhum aspecto, desempenhando-se justamente das pequenas tarefas desas que deviam ser realizadas pelo meu Manuel para me tornarem ditosa e encherem de paz a minha alma atribulada...

E o meu marido estava longe sem pensar em mim e ali, na minha frente, permanecia, solícito, o indesejável...

Não suportei mais a violência do meu desgosto. Rendi-me sem lutar.

A cabeça descaiu-me para o encosto da poltrona, cerrei as pálpebras e chorei, chorei, chorei irreprimivelmente, sem soluços, sem um movimento.

Percebia que o Paolo devia sentir-se embaraçado, mas não podia conter-me. Só bastante depois a sua mão se poisou nos meus cabelos, doce, leve e escutei a sua voz. Estava enrouquecida, perturbada:

- Vamos, "Madona mia", não chore... Lamentarei ter vindo se acaso é a minha presença que assim a aflige. Escute, pequenina, amore dei mio cuore... Já me perdoou o passado?... Não quero ofendê-la mais... Se não gosta de me ver aqui, retiro-me imediatamente. "Madona"!... E é tão digna de ser amada! Não, não me responda... Não quero nada de si... estou apenas a oferecer-lhe amizade até o dia em que torne a ser livre!...

Endireitei-me, fitei-o sem ressentimento, antes com gratidão.

- Obrigada... mas eu nunca serei livre, Paolo, nunca! Percebe? Nunca!

Punha a nu a alma, mostrava-lhe a dor, abdicando do meu natural pudor.

Lentamente, Paolo murmurou:

- Jamais?... Mais qui peut dire jamais, "Madona mia" ?...

Aceitei finalmente a taça de champanhe, levei-a aos lábios e balbuciei:

- Quando penso que a estas horas o Manuel anda certamente nos braços doutra...

- Ciúme?... Ainda o ama?

- Não sei se o amo. Nem sei se isto será ciúme. Magoa-me a idéia de que ele se esqueça de que estou só...

Paolo apertou-me as mãos.

- Mas não está só, Tónia!...

A partir daí, conversámos.

Quando ele ia a sair, perguntei-lhe, movida por estranho impulso:

- Paolo... que diria o Manuel se soubesse que você passou aqui parte da noite?

Ele estava já de sobretudo, por cima do seu vistoso fato de arlequim. Olhou-me gravemente, nos olhos.

- Quer sabê-lo?... Diga-lho, quando ele vier.

E pela primeira vez tive pena quando o vi desaparecer.

Não devia ser assim? Pois não! Mas não vale a pena estar pregando moral a mim mesma...

12 de Março:

Segui o conselho de Paolo.

Ontem, quando o Manuel chegou, relatei-lhe a visita do amigo na passada terça-feira.

Ouviu-me, muito sério, e quando eu julgava que estivesse reflectindo no assunto, proferiu:

- Sabes? Quero oferecer a uns amigos um bom almoço à portuguesa... Se o teu Pai fosse capaz de mandar-me aí dois caixotes de vinho verde, telegrafava-lhe e o meu colega Jacques Bomin, que vem de lá dentro de dias, trazia-mos...

Encarei-o espantada, mordendo os lábios. E respondi, desmoralizada: -Experimenta!... Que havia eu de fazer mais?

16 de Março:

Sinto-me à mercê do acaso e da minha própria fraqueza.

À medida que o Manuel se afasta de mim, redobra o Paolo de atenções.

Telefona-me todos os dias, interessa-se pela minha saúde, insiste para que eu vá ao médico e manda-me pelo correio embrulhinhos com bombons. Penso nele com insistência e com medo. Não receio vir a apaixonar-me, isso não! Mas temo ser vencida pela gratidão, pelo conforto do seu carinho no meio do descalabro em que me afundo.

Para o Manuel, não conto. Nem percebo para que vem a casa aos domingos, ainda! Entra e sai sem me fazer uma carícia, sem se preocupar com a sorte do filho... Só fala dos seus êxitos na sociedade, dos jantares e das festas em que ombreia com toda a alta roda, do prestígio que o envolve e incensa. Vive cheio de si próprio, encantado com o seu Eu... Não vai ao ponto de me descrever aventuras, claro! -mas pressinto que as mulheres continuam a render-se-lhe. Está cada vez mais sedutor.

E eu, ajsposa, nada sou para ele!

23 de Março:

Referindo-se ao almoço, que vai oferecer, o Manuel aconselhou-me a que fizesse uma cinta bem apertada, para comparecer sem dar nas vistas. Declinei imediatamente o convite e não pude conter-me: disse-lhe que pensasse um pouco mais nos direitos da criança...

Apertar-me, a fim de não dar nas vistas!...

Ah, como se me afigura rude e complicada a tarefa que me espera!

31 de Março:

O meu Pai mandou pelo tal Bomin os caixotes de vinho verde.

O Manuel apareceu ontem para o almoço, radiante como um garoto estouvado, trazendo duas garrafas e um saco cheio de ostras. Enquanto ele, cantarolando, se ocupava em meter as garrafas no gelo, reparei que lhe caía da algibeira uma carta dobrada.

Não sei por que intuição, concentrei-me naquele rectângulo de papel. Receei que o Manuel, ao afastar-se, o visse e o apanhasse.

Salteou-me uma necessidade imperiosa, total, de tomar conhecimento do conteúdo dessa missiva. Fosse embora a mais banal do mundo, eu tinha de saber o que ela dizia!

Então decidi-me. Acerquei-me... e coloquei-lhe o pé em cima. No impulso, encostei-me a ele.

Olhou-me de soslaio, risonho.

- Oh, oh!... Ainda não bebeste... e já te chegas para mim?

Desviei o meu corpo disforme. E ele acrescentou:

- É verdade, o Paolo vem aí para almoçar... Avisa a Mimie.

A presença de Paolo já me não ofende. Choca-me apenas que seja trazido por quem devia afastá-lo.

Tratar-se-á de cegueira, loucura... ou propósito?

- O almoço é bom? Chega?...

Fiz um esforço para responder com naturalidade:

- Ao domingo, em tua honra, há sempre rancho melhorado.

Riu-se.

- Óptimo!... Pois vou vestir o roupão para estar mais à vontade...

Uma sensação de alívio invadiu-me quando entrou para o quarto. Rápida, apesar do custo com que me dobro, apanhei a carta e extraí do sobrescrito a folha de papel onde, numa caligrafia cerrada, alguém escrevera bastante.

Fora certo o palpite que me sacudira. Estava ali a confirmação do que eu imaginava sem ter certeza alguma.

Era a carta duma mulher-brasileira e casada-evocando a última entrevista e marcando a próxima.

Eu não despegava os olhos daquelas palavras de fogo. Andava tudo à roda comigo e eu não me movia do sítio em que estava.

Apesar de pressentido, o choque não deixava de ser brutal.

De chofre, lembrei-me com espantosa nitidez do meu noivo Manuel, desse rapaz exigente e vibrante a quem os meus tímidos beijos de menina não satisfaziam...

Procurando serenar e zombar de mim própria, consegui reagir.

Dobrei a carta, meti-a no sobrescrito, deixei-a cair no sítio donde a levantara...

Nesse instante, uma voz soou atrás de mim:

- Tónia... que faz?

Era o Paolo, por cuja entrada eu não dera e que me fitava entre pesaroso e intrigado.

Olhámo-nos, a direito. Ele parecia ler-me os pensamentos.

- Que houve, Tónia?...

Encolhi os ombros, apontei o chão e volvi, cansada:

- Só isto...

A mão dele agarrou-me num pulso com certa violência.

- Mas que se passou?

A sua bela voz quente pareceu-me alarmada.

- Nada de extraordinário. Li essa carta, que é da amante do Manuel.

A sua expressão traduziu a mais viva contrariedade.

- Lamento-o!

- Sabia, Paolo?

- Sim.

- E... ainda troça de mim, não é?...

- Oh "Madona mia"... como pode dizer tal coisa?... De facto... não chega a ter importância, semelhante aventura!

- Acredita-o?

Sorriu-me com doçura.

- Não seja menina pequena, vá!...

Abanei a cabeça.

- Devia ter-me avisado, Paolo.

- Eu?... Eu não quero ser feliz pelo preço da sua desdita!

Teimosamente, protestei, embora a estima por ele tivesse crescido de súbito.

- Devia ter-me contado, Paolo, para que eu agisse da maneira mais conveniente...

- Você tinha-me dito nunca!... Non é vero ?...

A porta do quarto abriu-se e o Manuel apareceu.

- Alô, Paolo, sé benvindo! Antónia, dá ordem à Mimie para que sirva o almoço. Estou cheio de fome e de vontade de provar esse maravilhoso vinho. Sempre há-de servir para alguma coisa ter o sogro na Pátria, não achas?...

Ele aproximou-se e eu, imóvel, estava dominada pela idéia que me martelava o cérebro.

- O Manuel é doutra! O Manuel é doutra! O Manuel é doutra!...

As minhas pupilas buscaram a carta abandonada no chão... a carta evocadora de delírios amorosos...

E, de repente, toda a calma, toda a serenidade, toda a coragem me abandonaram. Recuei até uma poltrona onde me deixei cair pesadamente e rompi a chorar.

Ouvi o Manuel perguntar, muito admirado:

- Que foi?... Que sucedeu?

O Paolo-soube depois que ele pisara o sobrescrito e oguardara no bolso, prudentemente-interveio, calmo:

- São nervos! É próprio do estado.

Aceitei a directriz.

Qualquer explicação, naquela altura, seria desastrosa.

Retirei-me da sala. Atirei-me para cima da cama. Sofria, no espírito e na carne, a sensação terrível de ter perdido uma parte de mim mesma.

Quando, mais tarde, o Manuel apareceu, cambaleante, fingi que dormia.

2 de Abril:

Desamparada e sem esperança!

Eis a triste situação a que me vejo reduzida!

Debalde o Paolo me telefona e incita a confiar na regeneração do Manuel.

Perante o meu desgosto, creio que ele vislumbrou a seriedade da paixão que o Manuel me inspirava...

Agora que tenho a certeza de que o meu marido pertence a outra, é quando mais ardentemente ambiciono reconquistá-lo, recuperá-lo.

Interrogo-me desvairadamente. Será isto despeito, orgulho... ou amor?

7 de Abril:

Amor?...

Mas todo o desejo se me limita no espírito amargurado, porque ainda quando, como ontem, aqui o vejo, nem sequer me atrevo a erguer a face para receber um beijo fraternal. Dir-se-ia que desse beijo que não recebo depende a minha paz.

Ouvi-o perguntar, à chegada:

- Olá, como vai isso? -e afastar-se prazenteiro, seguro de si. Nem forças tive para responder-lhe:

- Muito mal!

Há-de a minha vida-porque é a vida inteira que está diante de mim-ser este deserto?

Procuro agarrar-me à consolação da minha próxima maternidade. vou consagrar-me ao meu filho e não pensarei em nada mais. Serei apenas mãe!

Mas o meu odioso egoísmo, clamando, afirma-me que também sou mulher e demasiadamente nova para renunciar.

9 de Abril:

Realiza-se amanhã o almoço do Manuel.

Ele tem telefonado, a insistir pela minha comparência.

Por que será ? Receio atrozmente que a outra vá também visto que a não conheço. Temo que a perfídia do meu marido chegue ao ponto de pretender expor-me, ridicularizada por esta grotesca figura, à mofa da amante.

Ah, se fosse dantes, quando eu não temia nenhuma concorrência!...

Sei perfeitamente que a minha deformação é passageira e a todos os títulos digna de respeito, mas existe, agora!

Não, não irei ao almoço!

10 de Abril (de manhã):

Telefonei ao Manuel, a dizer-lhe que não conte comigo. Mostrou-se aborrecido e comentou, áspero, que procedesse como quisesse, mas que depois não me lamentasse por não ir com ele a nenhum lado... E desligou, violento.

10 de Abril (13 horas):

Não posso aceitar, não posso conformar-me!

Acabo de receber uma carta da Madrinha onde ela me diz que o Pai está de cama há perto de quinze dias, abalado por uma crise cardíaca já debelada. Será verdade

Ela acha conveniente que eu vá passar uma temporada a casa depois do nascimento do bebê, porque alguém foi contar ao Pai que eu não sou tão feliz como me esforcei por fazê-lo acreditar, o que lhe deu um grande choque.

Pai, Pai, meu Pai! Ainda por minha causa! Tudo por minha causa!...

Olho em volta loucamente, desvairadamente, como se o poder da vontade bastasse para me levar até à cabeceira do meu querido Pai.

Quem lhe teria dito, quem?

Oh, que enorme desgosto lhe deram!

Receio que a Madrinha esteja a suavizar o golpe e que o mal do meu Pai seja dos que não perdoam. E tão só, tão só!...

Ah, não, não quero pensar nisto, o Pai não há-de morrer assim, não pode morrer assim! Seria cruel demais!

Mas por que me demoro eu aqui? Que me retém, afinal"? Por que me deixo ficar, nesta terra onde não interesso a ninguém, enquanto lá sou tão preciosa?...

Quero Ír-me embora! O Pai melhorará e a alegria de ver o neto há-de fazer-lhe bem.

Corri ao telefone, procurei o Manuel no restaurante.

Atendeu-me, folgazão.

- Sempre vens? Chegou-te aí o cheirinho dos pitéus?

- Manuel, tens de vir ter comigo imediatamente.

- Endoideceste?

- Recebi notícias. O meu pai está muito doente.

A sua resposta gelou-me o sangue nas veias.

- E que tenho eu com isso?

Agarrei-me ao aparelho com frenesi, quase gritei:

- Manuel!... Como podes tu?... Ele está à morte!...

- És uma exagerada.

- Manuel, quero ir-me embora imediatamente, quero ir no primeiro avião, quero ir depressa...

- Vai p'ró raio que te parta!...

Continuei implorando até perceber que o telefone fora desligado.

Não posso, não posso mais!

11 de Abril:

Toda a noite sofri, toda a noite sofri no espirito e só há pouco, pela madrugada, compreendi que também, estou sofrendo no meu corpo.

Creio que chegou a hora do parto, antecipada de quase dois meses.

- mesmo dia, às 3 da tarde:

Continuo cheia de dores. São dores lancinantes. A Mimie, que não quis deixar-me, aconselhou-me a chamar o Manuel a fim de ser transportada para uma clínica.

Com que modos o meu marido me atendeu!

- Tu? Mas que pretendes de mim? Maçar-me, outra vez?

- Creio que o menino vai nascer já, Manuel...

Ouvi novo palavrão e depois um comentário.

- Não há dúvida de que endoideceste! Ainda não chegou a altura.

- Por isso mesmo, estou inquieta, Manuel. Tenho medo, vem ter comigo!

Agarrei-me ao auscultador, torcida numa dor.

Finalmente, percebi o que ele me dizia:

- Mete-te num táxi e vem ao médico.

- Manuel, é um parto prematuro, o nosso menino corre perigo!

- Já te disse que venhas ao médico, irra!

Oh, Deus! A quem recorrer, nesta hora difícil? Já sei, vou ter com o médico que tratou o Manuel, o dr. Pollinviers.

Ai, que dor! Que dor!... Não agüento!

(Dez minutos depois):

Acabo de telefonar ao dr. Pollinviers. Prometeu vir imediatamente.

O tempo não passa.

E as dores... estas dores!...

(Uma hora decorrida):

Ele acaba de observar-me e vai levar-me daqui... Ai! ...

13 de Abril:

O meu filho, o meu menino, muito pequenino-1. 900 gr. Apenas! - está numa estufa, cercado de cuidados sem os quais não sobreviveria.

O dr. Pollinviers garante-me que mo salvam e eu ouso esperar que Deus mo conservará, resto dum edifício de que só vejo ruínas.

14 de Abril:

Mal o vi ainda, e adoro-o!

Não o amamento ao peito. Tiram-me o leite e vão depois dar-lho a conta-gotas no bercito aquecido por lâmpadas eléctricas, ninho artificial que prolonga a obra que o meu ventre não concluiu.

14 de Abril:

O Pai telefonou-me, a felicitar-me, a saber de nós... Como foi consolador ouvi-lo!...

15 de Abril:

O dr. Pollinviers tem sido extremamente bondoso para mim. Foi ele próprio quem me trouxe, quem assistiu à cesariana e, quando voltei a dar por mim, estava já aqui instalada, neste belo quarto com vultos brancos à volta... e ele a dizer-me: C'est un tout Joti petit-petit garçon,

21p de Abril:

Tenho de convencer-me, definitivamente, de que o Manuel não é para atitudes próprias de quem sabe dar sem

exigir retribuição. Quando foi ver o filho, eu esperava

vagamente que ele se enternecesse e viesse agradecer-mo, num beijo...

Mas apenas disse, quando voltou:

- Ó menina, que miúdo horroroso! Não acredito que aquilo se faça gente! Sempre esperei que um filho meu fosse coisa de jeito... Mas não passa dum macaquinho... Mete nojo!...

Encolhi-me dentro da roupa.

Sei perfeitamente que o menino é minúsculo, talvez feio... mas é nosso, é maravilhoso, há-de crescer, há-de ser belo e forte! É a vida da nossa vida... e o Manuel não o compreendeu!

21 de Abril:

Há dez dias que estou aqui e já leio compaixão nos olhos do pessoal.

Que perceberão?... Que julgarão?... O Manuel tem vindo visitar-me, regularmente. Entra, dá-me um beijo na testa, passeia no quarto durante dez minutos e depois diz: - bom, vou indo... Até amanhã!

25 de Abril:

Os dois peitos encaroçaram-me, foi preciso lancetarem-mos. Tenho sofrido muito.

O Manuel não liga. Porque será que ele não corresponde ao menos por um sentimento de gratidão ao que fui para ele quando esteve doente?

Sei muito bem que a sua vida de trabalho não lhe permitiria prestar-me uma assistência continuada; mas podia vir fazer-me companhia à noite, ajudando-me a passar as longas horas de insónia e dor.

Creio que as enfermeiras percebem que sou desprezada. Olham-me compadecidas. Ou cínicas?...

Achá-lo-ão simplesmente mal empregado nesta coisa sem graça em que me tornei?

28 de Abril:

Estou melhor, felizmente.

Desde ontem à noite que o meu quarto tem outra ocupante uma jovem mamã inglesa que deu à luz uma robusta pimpolha com quatro quilos.

Oh, não lhe cobiço a linda pequerrucha, isso não! O meu menino pequenino, para mim vale mais que todos os meninos grandes do mundo...

Impressionam-me, sim, as demonstrações de carinho, de interesse, que o fleugmático britânico dedica à esposa. "Darling" a todo o momento... E o embevecido sorriso com que a olha? ...

Sim, é verdade, invejo-a, porque desejava que também o meu marido assim me fitasse! Se isto é pecado, que Deus me perdoe!

29 de Abril:

Tive alta.

vou para casa, mas deixo cá o Paulinho.

O meu filho já foi registado. Serviram-lhe de padrinhos o Paolo e uma dama que não conheço. O Manuel só me comunicou a escolha depois do facto consumado.

Fiquei surpreendida e contrariada, porque o meu filho devia chamar-se Carlos, como o avô.

Paciência!

O que tem graça, no fim das contas, é eu ser agora, pela força das circunstâncias, comadre de Paolo!

Paolo!...

Não veio visitar-me uma única vez! Porque seria?

Na desolação em que vivo, a sua presença confortar-me-ia.

Enfim, não há dúvida, sou uma mulher que a ninguém interessa! Minha deve ser a culpa de não ter sabido reter

O Manuel. Faltam-me a arte, a habilidade que sobram a tantas!

30 de Abril:

Fui despedir-me do Paulinho, por uns dias. Tenho imensa pena de separar-me dele, mas compreendo que, sem os cuidados que o cercam, a sua débil vida correria perigo ainda maior!

Deste filho que ainda me competia trazer dentro de mim, devo afastar-me para que possa criar-se!

Meu menino, meu menino, irás tu preencher o vazio desta existência que te consagro?

1 de Maio:

O meu destino deve cumprir-se diferente do comum.

Parti da clínica de braços vazios... deixando a alma presa a um ente que se me afigura quase uma ilusão, talvez bela demais.

O Manuel não foi buscar-me. Mandou-me o carro com um motorista faustoso e a explicação de que "Monsieur" tivera de trabalhar com o sr. embaixador. Dominei a emoção. Já aprendi a sorrir com as lágrimas nos olhos.

A Mimie recebeu-me afectuosamente. A casa, toda florida, deslumbrou-me.

A explicação deu-ma um bilhete que se prendia numa das corbeilhas.

"Aproxima-se o momento em que vou revê-la tal como a conheci e amei. As minhas flores dir-lhe-ão, antes de mim, que a adoro".

Paolo!

De Paolo, todas estas flores! De Paolo que afinal... não se esqueceu de mim!

10 de Maio:

Já me sinto perfeitamente.

vou agora todos os dias à casa de saúde e fico, durante uma hora, colada aos vidros, contemplando o meu anjo adormecido.

Que estranha mãe eu sou! Uma pobre mãe que, na impossibilidade de beijar o filho, cola a boca ávida no vidro frio...

E quando regresso, venho sob uma atroz sensação de miséria.

Quando terei o meu menino igual ao das outras mulheres? Quando serei normal?

14 de Maio:

Também diariamente, o Paolo visita-me. Pisa o chão com segurança, senta-se ao meu lado e olha-me... olha-me como quem diz: -És minha, pertences-me!

Não, não sou dele, nem lhe pertenço, apesar de que a situação se torna arriscada.

Quando estamos juntos, possuo de certo modo o que ambiciono, mas ambiciono sempre com a idéia fixa de que devia provir do Manuel.

É pelo Manuel que tudo em mim chama ainda! Mas quem me olha nos olhos e me aperta as mãos e conversa envolvendo-me nas ondas quentes da sua voz cariciosa é o Paolo!

O Manuel não pressente nada.

E contudo... já não sou nenhum monstro. Dia a dia a minha silhueta afina, os meus olhos voltam a brilhar, as minhas faces perdem a macilência...

Esmero-me no vestir, cuido de mim e, embora não queira, embora saiba que procedo mal, recebo o Paolo com satisfação e deixo que os seus lábios me beijem os dedos um por um, longamente...

Deus meu, irei ser amante dele?

22 de Maio:

Sinto-me à mercê do mais pequeno acaso. O Paulinho esteve doente, não pôde ainda ser-me entregue.

A injustiça da sorte revolta-me, os acontecimentos esmagam-me. A virtude foge de mim. O Manuel não quer saber de nós. E o Paolo é uma presença indiscutível!

24 de Maio:

O Paulinho continua mal.

Quando cheguei da clínica, hoje, e entrei em casa chorando, completamente desmoralizada, o Paolo esperava-me.

Tomou-me nos braços, disse-me palavras de fé e de esperança, beijou-me o pescoço, os cabelos, a boca... com um fogo que me aquece sem me queimar.

Durante muito tempo sei que ficámos enlaçados e eu... eu senti-me bem, senti-me apoiada, protegida. E prometi-Lhe ser dele, ser dele para sempre, abandonar o homem que praticamente já me deixou... Implorei-lhe apenas que esperasse até que o Paulinho se cure e me seja confiado.

Aceitou.

E agora, sei que vou ser amante do Paolo. Eu... eu!... A Tónia do meu Pai! A menina bonita para quem a vida era sonho, era luz, era virtude!

É horrível!

O destino arrasta-me, estou perdida. E eu não queria. Deus sabe que eu não queria!

25 de Maio:

As mãos tremem-me, os meus olhos choram, mas a minha consciência respira aliviada.

Salvei-me!

Salvei-me... pelo menos por agora!

O Paolo acaba de partir para Itália. Morreu-lhe o pai, num desastre de avião.

30 de Maio:

Sinto-me mais só do que nunca e esforço-me por encontrar no fundo de mim mesma os princípios morais que me formaram o caracter, para me resignar ao que deve ser assim... e não doutra maneira!...

AQUI TERMINA O DIÁRIO DE TÓNIA

 

Maria Antónia levou finalmente o Paulinho para junto dela. Consagrou-se ao filho, criando-o com fervor e enlevo, passou a viver para ele, conseguiu ser mãe no sentido mais amplo da palavra.

Sempre elegante, sempre indiferente, sempre enfadado, o marido sustentava-a e rareava as visitas.

Às vezes, depois que o Paulinho se tornou num rechonchudo pimpolho adorável, o pai fazia-o saltar nos joelhos. E Tónia chegava a convencer-se de que ele viria a amar a criança e que esta seria o elo de ligação que definitivamente os prenderia um ao outro. Mais ainda. Alimentava a ilusão de que, mais tarde, vencido enfim pela sua coragem, pela nobreza com que aceitava a existência actual, ele volveria ao lar para ser o companheiro desejado.

Contudo, ela, para o diplomata, não contava. Não obstante, vendo-se ao espelho, Tónia reconhecia-se e encontrava-se tal qual o marido jurara amá-la.

E o marido ia mudando de amantes.

Paolo não voltara de Itália. Tivera de assumir a direcção das fábricas do pai.

Acaso, na distância, se diluíra a paixão e se avolumara a noção das responsabilidades?... No entanto, as cartas dele traduziam um afecto inalterável e essas notícias passaram a ser a única nota interessante na monotonia dos dias iguais da solitária.

De Val-Rei, as comunicações eram pouco animadoras. Fora vítima de nova crise cardíaca e abandonava cada vez mais a clínica, tal como a cátedra, entregando tudo aos assistentes.

Tónia não se queixava da situação actual, mas sonhava poder voltar à pátria. A criança impedia-a de dar forma ao imperioso desejo. Só a criança.

Nada a ligava ao belo mundano que o destino lhe dera por marido. Tinha a certeza de que, mais dia menos dia, Manuel a poria de vez à margem; não queria ser ela a dar o passo fatídico... E resistia. E ficava.

Permanecia ali, onde nada havia, quase heróica num posto de sacrifício, soldado raso que morre de pé e não alcança a glória.

O tempo fugia dela, e ela da vida.

Nada tinha colorido, sabor, encanto. Nada! A não ser as cartas de Paolo, e as do Pai, e as da Madrinha...

E o filho!...

Paulinho começando a andar; Paulinho com os dentes a romper; Paulinho a dizer mamã; Paulinho a construir frases; Paulinho abrindo os olhos desmedidamente para as inextinguíveis lágrimas da Mãe, que os seus deditos procuravam agarrar...

Decorreram assim mais de três anos na vida de Tónia.

E depois, um dia...

E depois, um dia, o pano desceu!...

Olhavam-se, frementes de alegria patética, felizes por se verem e sofrendo por se encontrarem outros.

Cambaleando, ele estendia-lhe os braços, numa súplica. E ela não se precipitava, não cedia à ânsia desmedida, porque a tolhia a angústia.

Aquele, o Pai?

Mas que fora feito do homem vigoroso a quem deixara na plenitude dos cinqüenta anos?

Magro, calvo, trêmulo, Val-Rei era um velho, um velho, velho, velho!...

Em três anos! Pouco mais tinha sido além dos três anos.

Tónia não se apercebia de que também o Pai procurava debalde a rapariguinha que dali partira com o riso nos lábios e a fé no olhar... A que voltava, com uma criança nos braços, era uma pálida imagem desalentadora da outra...

Finalmente, no mesmo impulso, avançaram. E foi longo e estreito o abraço que os uniu, com o rapazinho tão apertado entre ambos que se queixou: - Mamã!

Pai e filha choravam e riam.

Val-Rei quis pegar no neto, beijá-lo, mas estranhando a casa, o rosto desconhecido e a singularidade dos acontecimentos, Paulinho retraiu-se, agarrando-se desesperadamente ao pescoço de Tónia.

Embora confrangido, o avô teve de resignar-se.

Estavam na salinha íntima onde tanta felicidade os unira.

Val-Rei tentava ligar o passado ao presente e compreender o intervalo durante o qual ele nada havia podido ser para a filha.

Encarava-a, gravemente.

- Querida, precisamos de sossegar... e de conversar. Quando recebi o teu telegrama, fiquei transtornado. A alegria e a aflição misturaram-se... Ah, não sabes como vivi estas horas, ignorando a data exacta da tua chegada!...

Estavam sentados frente a frente.

Os grandes olhos de Tónia, desmedidamente abertos, pareciam ver muita coisa por cima da cabeça do Pai, lá ao longe, na parede fronteira. Talvez o mundo que atravessara. Talvez as recordações que tinham ficado ligadas a uma existência espatifada.

Nas pestanas de Val-Rei tremeram lágrimas. As suas pupilas foram até ao piano aberto, com as músicas na estante, tal como ela o deixara na véspera do casamento...

A garganta de Tónia contraía-se, num espasmo nervoso.

Tudo como dantes! Tudo como dantes... menos ela e o Pai!...

O Pai que a mirava sófregamente e balbuciava: -Minha menina!... Minha menina!... -com um ar tão fatigado... E triste!

Tónia esforçou-se por sorrir ao Pai. Poisou o filho no chão e a criança, atraída pelos bibelots engraçados que estavam sobre a mesa, apressou-se em ir deitar-lhes a mão. Ninguém a estorvou.

Tónia não sabia ainda como contar.

Val-Rei animou-a, pressentindo as dificuldades que a embaraçavam.

- Desabafa, minha filha. Abre o teu coração, diz-me que não pudeste agüentar mais... Chora, alivia-te, mas perde esse ar... esse ar de medo. Ninguém te faz mal ao pé de mim, Tónia. Sou o primeiro a achar que procedeste bem... em não suportar mais!

Então, de repente, quase com violência, ela replicou, encarando o Pai:

- Mas eu suportaria toda a vida, até o fim!

- Como?

- Sim, Pai. Eu não parti expontâneamente. Fui abandonada.

- Abandonada? Tu?... Não!

Que ela, exausta de padecer, saturada de vexames, tivesse decidido acabar com tudo, romper e voltar para o lar paterno, parecia a Val-Rei quase certo, agora. Mas que fosse abandonada...

Abandonada!...

Tónia inquietou-se com a alteração fisionômica do Pai. Manchas violáceas, enormes, estendiam-se-lhe pela cara, pelo pescoço.

- Pai, Pai, não te aflijas! Garanto-te que só desejo uma coisa: é que para nós dois, para nós três, a vida continue como dantes!...

O doutor respirava fundo. Abanou a cabeça repetidas vezes, antes de responder:

- Não, não me conformo! Tu não merecias... que ele te fizesse uma coisa dessas!... Ah, misericórdia divina, porque não realizei o que o meu coração tantas vezes me indicou!... Ir, ir ver com os meus olhos... e trazer-te comigo, poupando-te a esta... a esta vergonha!

- Não chega a ser vergonha, Pai. -E sorriu, amargamente. -E a tua presença, lá, nada evitaria, porque eu não vinha. O desfecho foi lógico. Eu esperava-o, estava preparada para ele.

- Estavas preparada!... Acredito lá!... Acredito lá que a tua sensibilidade se embotasse dessa maneira!...

- Quem sabe?... Praticamente, Pai, nada havia já entre nós. Eu continuava, retida pelos estilhaços dum amor que gerou o dever. Depois... ele escreveu-me a dizer que não voltava mais, e acabou tudo, assim, como havia começado, afinal!

O doutor torcia-se na cadeira.

- Mas por que fez ele semelhante coisa?...

- Porque vive apenas para o que lhe dá prazer, para a existência individual! Queres ler a carta que me mandou?

Os olhos de Tónia fulguravam estranhamente. Val-Rei aceitou o papel que ela lhe estendeu e decifrou-o soletrando.

"Tónia.

A vida modificou-se. Não voltarás a ver-me. Obedeço ao desejo que me arrasta e acho que deves tentar esquecer-te de que existi.

Demiti-me do meu cargo e parto com uma mulher, estranha e perturbadora como o ópio, rica como a "Begum", misteriosa como o seu país natal, para onde a sigo. Doravante sou livre para todas as belas aventuras.

Com esta carta, concedo-te a liberdade total.

Manuel".

Pairou um silêncio, interrompido apenas pelo tinir das contas dum elefante de marfim que o Paulinho acabava de desfazer.

Depois, Tónia murmurou:

- E mais nada... Nem um adeus, nem um remorso, nem uma palavra referente ao filho...

Val-Rei estava lívido. Queria falar e não podia. Sufocava.

- E foi... foi a um bandalho desta espécie que eu entreguei a minha única filha! ...

Com doçura, Tónia rectificou:

- Foi a ele que eu dei o coração... É ele o Pai do meu filho!

Val-Rei virou-se para a criança que assim lhe era imposta. Na sua expressão havia um misto de repulsa e de paixão, de carinho e de piedade.

- Sim, a criança não tem culpa! É inocente e desgraçada! Ah, não, não sofrerá, porque é o teu filho, e porque é o meu netinho! O meu nétinho!

As lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. De repente, vencendo a comoção, uma intensa cólera abalou-o, subiu, extravasou, desesperadamente.

- Mas isto não fica assim! O tratante!... Ele engana-se! Tenho influência, conheço muita gente, hei-de descobri-lo, de obrigá-lo a reparar o mal que espalhou.

Firmemente, Tónia interrompeu-o:

- Não, Pai. Não farás coisa nenhuma. Nenhuma!

- Mas tu... Tu?...

- Eu já sofri por ele tudo quanto podia. Mais, não!

Val-Rei era uma estátua de desolação.

- Pobre filha! Ainda não encaraste de frente a situação.

- Encarei, sim.

- Não, e é mais complicada do que supões.

- Estamos juntos, nós!

- Não chega, querida. Tu sabes que não éramos ricos e que só os meus honorários nos davam o desafogo. Masdesprezei a clínica, a doença arredou-me dela... e pus-me a gastar das pequenas reservas dos anos bons... Vê tu em que velho inútil me transformei!

Os olhos de Tónia abriram-se num pasmo e velaram-se em resignação. E disse:

- Nesse caso, trabalharei.

- Trabalharás? Tu?...

- Não sou mais do que tantas! Já lá vai o tempo em que me julgava diferente... e bem caro paguei o erro. Hoje sou modesta e quero viver decentemente.

- Pobre de ti! Ninguém vive como quer, mas sim como pode!

- Tentarei.

O médico crispou os punhos, noutro assomo de ira.

- Entretanto, esse malandro...

- Pai, não falemos nele! Preciso de o esquecer completamente... e aos meus anos de casada. Devo arredar tudo isso de mim, para sempre.

- Está bem, seja.

Ela ergueu-se, aproximou-se do Pai e beijou-o, ternamente.

- Estou muito diferente, Pai. Modifiquei-me, não sei se para melhor ou pior. Os acontecimentos influenciaram-me. E, seja como for, desejo que me conheças tal como sou agora. Trouxe comigo uma espécie de diário em que durante muito tempo registei passagens das amarguras que principiaram desde que parti. vou dar-to para que o leias. Ficarás inteirado de todos os pormenores e continuarás a saber como é feita, por dentro, a tua filha!

Abriu a pequena mala que depusera à entrada e dela tirou o álbum manuscrito.

- Aqui o tens. vou tratar do menino e descansar um pouco. Há uma porção de noites que não durmo... e não posso nem quero perder as forças.

Pegou no filho e saiu.

Val-Rei contemplava o diário. Tremia. Faltava-lhe o ânimo para conhecer a fundo os desgostos dessa a quem pretendera dar todas as venturas, dessa a quem nunca tivera a coragem de contrariar, a quem nunca sentira a necessidade de precaver contra as vicissitudes da existência, as agruras de que esta pode revestir-se e que ela aprendera à própria custa.

Depois, com as letras a tremerem-lhe sob as pupilas, por vezes com dificuldade de entender os acontecimentos com que deparava, absurdamente reais, inteirou-se duma vida que de outra forma nunca lhe seria revelada.

 

Não deu pela passagem do tempo senão muito tarde, quando se apercebeu de que a luz do dia se extinguira e era a noite e não as névoas dos seus olhos cansados que lhe dificultavam o resto da leitura.

Acendeu a electricidade e, aturdido, repetiu:

- Pobre filha! Pobre filha!

- Não sou pobre, meu Pai. Tenho o Paulinho... e tenho-te a ti.

Só então Val-Rei deu fé de que Tónia estava sentada diante dele, na poltrona, e inquietou-se.

- Não dormiste, filha? Ou chegaste agora mesmo?

- Não dormi. Continuo sem poder conciliar o sono. Mas o meu filho já ficou deitado.

O velho cirurgião suspirou ruidosamente e agitou o diário nas mãos.

- Não dei pelas horas...

- Precisas de jantar.

- Não me apetece.

Olhavam-se, num verdadeiro embaraço.

Depois, Tónia afoitou-se:

- Acabaste?

- Acabei.

- E então?

- Então?... -Val-Rei abanou a cabeça: -Então... admiro-me como pudeste escrever-me, durante tanto tempo, essas cartas onde me contavas uma ventura... imaginária! Exactamente, é o termo. Imaginária!...

As pupilas de ambos encontraram-se. E Val-Rei preguntou, simplesmente:

- Para que me enganavas ? Não valeria mais ter-me contado logo tudo... ter rompido imediatamente?

- Não. Eu esperava que a nossa vida se consertasse.

- Fosse como fosse, eu devia estar ao facto da verdade.

- Para quê? Para te atormentares antes de tempo?

Val-Rei folheou o manuscrito ao acaso, mais pensativo do que amargurado.

- Tónia, és capaz de responder-me a uma pergunta?

Os olhos dela, muito abertos, volviam-se afirmativos. O Pai continuou:

- Foste absolutamente sincera em tudo quanto escreveste aqui?

Ela acenou que sim. E disse:

- Absolutamente, Pai. Nunca premeditei uma só linha do que ficou registado... Nem imaginava que isto viesse a ser lido por alguém. Desabafava, apenas, porque estava só demais! Porquê?

- Porquê? -e fitava-a, cheio de gravidade. -Olha, filha, serás capaz tu de falar ao teu velho Pai tão francamente como escreveste?

- com certeza!

- Sabes... é que... depois da demonstração do teu poder imaginativo... Oh, não me interrompas-as tuas cartas, eu guardei-as todas! -receio que desejes continuara iludir-me, embora na melhor das intenções.

A voz de Maria Antónia tremeu.

- Isso é uma censura, Pai?

- Talvez um queixume... porque não sou, como o teu filho, uma criança a quem te sentes na obrigação de ocultar as maldades do mundo.

Ela não se conteve:

- Não me fales assim, Pai! -implorou. -Que os outros duvidem das minhas intenções, vá! Mas tu!... Se te escondi a verdade acerca da minha vida, não o fiz para te enganar, mas para te poupar a um sofrimento inútil. Daqui em diante, porém, nunca mais te ocultarei coisa alguma, nem disfarçarei seja o que for. Tenho de desabafar, Pai! -e as lágrimas desciam-lhe pelas faces. -Já não posso mais!

Então, lentamente, silabando, Val-Rei proferiu:

- Referes-te aqui a um italiano, um tal Paolo...

Tónia não se moveu, e o pai continuou:

- Através do que descreves, não tiro uma conclusão. Há muito tempo que deixaste de escrever. Daí a necessidade de inquirir: o que é ele hoje na tua vida? Que representa para ti? Existe ainda?

Maria Antónia, entristecida, lacrimosa, assoou-se e ficou-se depois amarfanhando o lenço entre os dedos. com singeleza, retorquiu:

- Já esperava essa pergunta. É natural... Mas torna-se-me impossível satisfazer-te, porque não sei explicar-te o que se passa comigo.

- Hem?

- Deixei de ler claro nos meus sentimentos. Ora receio iludir-me... e prejudicar-me ainda mais, ora sinto a tentação rondar-me...

- Mas ele existe?

- Existe, sim. E quando o conheci, tudo foi como aí leste. O Paolo representava um perigo que eu a todo o transe queria evitar. Depois... a sua presença tornou-se-me familiar.

- E agora? Agora?

- Agora... estimo-o, habituei-me a contar com as cartas dele, mas ignoro se de facto enche a minha vida ou somente esta imperiosa necessidade de me ocupar com alguém, de preencher o meu espírito com uma imagem absorvente.

Ao cabo de alguns momentos de reflexão, Val-Rei inquiriu

- Tens medo de confessar que o amas?

- Não tenho medo, mas não estou segura de mim. É diferente.

- Nunca mais o viste?

- Nunca mais.

- Como interpretas isso? Impossibilidade de visitar-te?

- Talvez receio. Julgo que ele não pretendia tornar a ver-me... sacrificada ao meu abandono sem liberdade.

- Nunca te passou pela cabeça a idéia de deixar... o lar, para ir ter com ele

- Não. E ele sabia-o.

- E agora, que vais fazer?

Tónia encolheu os ombros e recostou-se. Estava infinitamente cansada.

- Escrevi-lhe a participar-lhe tudo... e mandei-lhe a nossa direcção.

- Julgas que ele quererá aproveitar-se dos acontecimentos que te profetizou, e que venha buscar-te?

Como num sonho, Tónia murmurou:

- Talvez... Deve ser isso mesmo... Confio no Paolo, acredito que virá ter comigo... e... e...

- E... ?...

- Talvez aceite com ele a tentativa de reconstrução.

Val-Rei levantou-se. Sério, imponente, a sua figura alquebrada agigantava-se.

- E tu, Tónia, tu sabes que não podes voltar a casar?

- Sei.

- E mesmo assim... e sem o amares... tu irias? Oh, minha filha!

Tónia endireitou-se, rápida, e agarrou nas mãos do Pai. Puxou-as para si, cobriu-as de beijos.

- Não sei, Pai, não sei!... Se já te disse que não sei! A verdade é que... não adianta amar, de nada serve desejar acima de tudo esse arrebatamento louco que daqui me levou, que me entregou fascinada, reconhecida, a um homem... a quem provavelmente por isto mesmo mais depressa enfastiei.

Val-Rei abanou a cabeça e afagou-lhe os cabelos.

- Devo ir-me preparando para te ver partir de novo...

- Não poderei partir certamente. Sou casada, o meu marido não me dá autorização para sair do país!... Ele abandonou-me, fugiu... mas eu continuo presa a deveres que não vejo mas que... -e sorriu amargamente - que me retêm dentro destas fronteiras, talvez salvando-me doutra situação perigosa!

Não obstante a ruga de intensa preocupação que se lhe cavara na testa, Val-Rei sorriu:

- Na tua opinião, viver junto dum homem é perigoso?

- Foi o que a experiência me ensinou.

- Enfim, quem sabe, talvez o destino se encarregue de compor as coisas. Muito pode acontecer, ainda. És tão nova!

Tónia suspirou:

- Respondi às tuas perguntas, Pai. Mas, sinceramente, não queria pensar em mais nada... disso! Por agora, interessava-me viver tranqüila, ao pé de ti e do Paulinho. E não contar os dias!

O Pai olhou-a bem fundo, nos olhos, com intenção evidente.

- Ouve... no fim de contas talvez o teu marido se arrependa... e volte...

Impetuosa, Tónia levantou-se.

- Não voltará! Mas se voltasse eu nem sequer o reconheceria, porque o arranquei de mim. Entendes, Pai?

Com os olhos a brilharem de exaltação, esplêndida de revolta no desafio que atirava à sorte, continuou:

- Ele não voltará dessa aventura... mas se voltasse, garanto-te, eu não o aceitaria, nem por esmola! Nunca! Nunca!... Nem sequer o odeio. Não existe para mim. Não existe... eis tudo!

Exausta, atirou-se ao pescoço do Pai, rompeu em soluços, abraçou-o frenèticamente.

- Para mim só há agora duas pessoas no mundo. O meu filho... e tu!

Val-Rei apertou-a ao coração.

- Minha pobre querida!... E afinal... também nós dois somos homens...

 

A cada passo crescia para ela uma imagem, uma recordação, uma saudade.

Tomando contacto com essa realidade que trazia decorada na rotina e na alma, como que despertava dum estranho sono que tivesse durado anos e só agora a restituísse à verdade.

As ruas familiares, os prédios coloridos, o céu azul, o Sol... Ah, tudo estava como o deixara, tal e qual! As lojas, as vendedeiras que a miravam, saudando-a com espanto... E a gente que passava... Tudo como havia sido e só ela mudara, só ela era outra, tão outra, diferente!

Precisava de voltar a cabeça repetidas vezes e de avistar o filho ao colo da serviçal que a seguia, para se convencer de que, na essência e apenas o mundo exterior se conservava imutável. Ela, personagem central, transformara-se.

Para que havia de insistir em mais ilusões? Para que teimar em imaginar coisas que tinham deixado de ser?

E, contudo, os gestos que realizava irmanavam-se a esses que, extintos no tempo, dir-se-ia haverem ficado presos às suas mãos.

Concentrada, procurava dentro de si restos da alegria despreocupada, confiante, serena, que fora a sua, muito tempo antes... essa alegria que ditara a fé no amor, na sorte, na felicidade. E afinal eis quanto lhe ficara: -um coração destroçado pela decepção, uma renitente esperança sem nenhuma espécie de fundamento... Ah, mas não, não, não! Existia mais qualquer coisa, talvez o resumo completo duma existência nova: -o filho!

O filho... e a responsabilidade tremenda de fazer dele um homem de bem, sem o apoio forte do amparo paternal!

A criança choramingou, desconhecendo a criada nova, reclamando-a, a ela.

Tónia aceitou a directriz. Tomou-o nos braços, atravessou a rua, cautelosa. Feliz, o pequenino chalrava. E a mãe lembrou-se de que dantes saltitava naquele trajecto, liberta de todos os cuidados, leve como uma pomba sempre pronta a desferir vôo...

Dantes, dantes...

Mas por que se apegava ao passado, loucamente, se o passado se extinguira e não podia, nem devia, cingir o futuro na teia dos devaneios impossíveis de concretizar? O passado era como um velho retrato desbotado que se contempla com ternura mas que, embora reproduzido, nunca mais encontra a sua oportunidade...

Avistou finalmente a bela moradia apalaçada. A comoção fê-la atrasar o passo, retardando o momento em que iria transpor de novo o limiar dessa casa a que voltava... ai, como voltava!...

E lá dentro, o que encontraria

Junto ao portão, de pupilas dilatadas, fixava o conjunto, imóvel. Depois resolveu-se.

Puxou a sineta. O som cantante repercutiu-se no jardim e o Paulinho, entusiasmado, bateu as palmas, soltou risadas, quis descer para o chão.

- Tlim... tlim-lim-lim...

Veio correndo, lá das traseiras, um criado de blusão às riscas.

- Faz favor?...

Confrangida, Tónia não atinava com a resposta. Seria aquela pergunta banal o símbolo do que a esperava? Iria, na casa amiga, ser recebida como estranha ?... Nunca ninguém lhe embargara a entrada!

- Que deseja?

Jamais ali haviam pretendido saber o que ela desejava...

Engolindo a saliva, volveu afinal, sob o espanto visível do homem.

- A senhora D. Matilde está?

- Não sei. Diga-me quem é...

Era, evidentemente, uma ordem de defesa... Tónia não compreendia e reagiu, imperiosa, quase dura:

- Não vale a pena. Sou da família.

Ele mirou-a, desconfiado. Mas, correctamente, anuiu:

- vou abrir a porta de cima. Esta é a entrada de serviço...

Tónia, com um gesto, deteve-o.

- Deixe-me entrar. Quero ir por aqui.

Arregalado de pasmo para a singular visitante, o criado descerrou os batentes.

Tónia passou, com uma expressão de sonâmbula.

Procurava, numa tentativa ansiosa, destruir a horrível impressão que a recepção, embora lógica, lhe causava. Censurava-se intimamente pela emoção irreprimível que a magoava, mas não conseguia dominar-se. Sabia que tudo devia ser doutra maneira... mas não queria aceitá-lo!

O homem tomou a dianteira.

- vou mandar prevenir a Senhora...

- Não, não. Quero fazer-lhe uma surpresa.

E de súbito, resoluta, avançou, dirigiu-se para a cozinha, entrou.

Atarefada de roda do fogão, ouvindo passos, a cozinheira exclamou:

- Ó ariana, diga aí ao Custódio que não me demore as nabiças. O raio do homem sempre me saiu um peco!...

Mas, não recebendo nenhuma resposta, voltou-se e, avistando a silhueta desconhecida, atrapalhou-se.

- Ai, perdão, minha senhora! Cuidei que era a minha colega... -e aflita, embaraçada, limpando as mãos ao avental: -Também... deixarem V. Ex. a entrar por aqui!... Valha-me Deus, o que a senhora D. Matilde irá dizer! - e pôs-se a chamar alto: -Mariana! Mariana! Você está surda, mulher?

Tónia venceu a força estranha que a estrangulava e acercou-se da mulher.

- Celeste... -murmurou. -Assim mudei tanto... que não me reconheces?

A cozinheira deteve-se, abriu a boca, numa incredulidade.

- A menina Antoninha!... - e, transportada, agarrou-se a ela, beijou-a radiante, sem mais cerimônias. -Ai esta querida menina! Esta querida marota que só agora volta!... A senhora já sabe?... Não sabe?... Que grande alegria vai dar-lhe! -e depois, mirando-a de beiços estendidos, contristada: -Mas o que a menina mudou, louvado Deus!...

- Estou velha e feia, não é, Celeste?

- Velha e feia!... Credo, Santíssimo nome de Jesus!... Isso sim! Mas os olhos... A modos que ficaram mais escuros... Sabe o que lhe digo? A menina parece uma rosa depois de lhe chover em cima! -E reparando finalmente na criança: -É o seu filho?... Que amor! E que forte, benza-o Deus!... A menina... dá licença que eu o beije?

Tónia sorriu.

- Claro que sim!

Então a Celeste encheu de tagatés o Paulinho, fê-lo saltar nos braços, beijou-lhe os anéis do cabelo e as faces rosadas. E o pequenito, como se a ternura da boa mulher o satisfizesse, não protestou.

Por fim, a Celeste devolveu-o à mãe, suspirando consolada.

- Ai, assim, sim!... -e baixando a voz, numa confidencia espontânea: -A gente, cá em casa, não pode beijar a Belinha... Bem, quando não se conhecem as pessoas, está certo que haja cuidado! Mas eu cá tenho dezoito anos de casa, ajudei a criar o menino Gabriel... Francamente, acho forte!

Tónia acolheu com interesse a indignação franca.

- Não me digas! Então o Gabriel está assim tão esquisito?

- Quem? O menino... perdão, o senhor Gabriel? Não, Antoninha, é ela... Ela que tem umas idéias... É uma pessoa com quem... -depois, bruscamente, mudando de assunto: -Ora a nossa querida menina, de volta e com um filhinho tão lindo! -enternecia-se toda, choramingava-se. -Se a menina soubesse o que a gente fala de si! Não, que a Antoninha enchia uma casa, sempre a rir, sempre a brincar... Lembra-se?

- Lembro-me tão bem que se não fosse aqui o meu rapazinho quase julgaria que saí ontem e voltei hoje...

A idéia fixa empolgou-a outra vez.

- Mas afinal... tudo mudou!

A Celeste voltou-se apressadamente para o fogão, remexendo qualquer coisa dentro dum tacho, com energia.

- Tudo mudou!... Olá, se mudou!

Tónia, que ia dirigir-se para o interior da casa, deteve-se, encarando-a surpreendida.

- Dizes que mudou, também? Mas para melhor, certamente. A Madrinha deve sentir-se mais acompanhada, mais feliz...

- Mais acompanhada? Mais feliz?

Hesitou e depois fechou-se numa reserva brusca, com os olhos obstinadamente fixos no conteúdo do tacho.

- Olhe, menina, entre, entre... Feliz vai a senhora agora ficar!

- Onde estará a Madrinha?

- Na salinha, com certeza.

- Continua a passar lá os dias?

- Sempre!

Tónia esboçou um trejeito, perplexa.

Voltou à porta da entrada. A serviçal ficara de paleio com o criado.

- Amélia, toma conta do menino. E não saias daqui sem eu te chamar!

Entregou-lhe o Paulinho e então, resoluta, penetrou no lar.

 

Avistou primeiro, na luz suave da pequena sala primorosamente mobilada, a estatueta que certo dia, em cega brincadeira, ela própria quebrara e o Gabriel tão bem consertara que nunca Pedro Torralva se apercebera do acidente...

Contudo, recordava-se ainda, com espantosa nitidez, da angústia que a fizera chorar quando vira a preciosa boneca partida em duas... Chorara como hoje lhe apetecia fazê-lo pela sua vida despedaçada, que nenhuma espécie de cola-tudo endireitaria já!

E foi mais forte do que ela. Ali parada, encostada à porta, não reteve um soluço. E outro. E mais outro.

Então, sem surpresa, uma voz inesquecível murmurou, de ao pé da janela, sem qualquer vislumbre de espanto ou dúvida:

- Entra, minha filha. Por que esperas?

Tónia precipitou-se e foi cair-lhe nos braços, estreitando-a com frenesi.

- Madrinha! Madrinha! Oh, Madrinha!

  1. Matilde arredou de si o "tricot", cingiu-a ao peito, beijou-a, afagou-a ternamente.

- Finalmente chegaste!

Ela ergueu a cabeça e contemplou o rosto envelhecido com expressão de espanto.

- Madrinha... não parece admirada de ver-me!

- Não o estou.

- Como

- Para te dizer a verdade, tenho-te esperado, dia a dia. Eu sabia, há muito, que voltarias.

- Madrinha!

- Todas as manhãs, quando me levantava, perguntava a mim mesma: será hoje ? Era inevitável.

- Mas, então, Madrinha?...

- Nunca desabafaste comigo, mas eu sabia tudo.

- Daí a ter a certeza de que eu regressaria...

- Adivinhava o desfecho. Previa-o... antes de haver começado o drama! Recordas-te?... Não quiseste ouvir-me, não me reconhecias nenhuma razão... Ele era o melhor de todos...

Com os olhos cheios de lágrimas, Tónia implorou:

- Não me censure, Madrinha!

- Não te censurarei, filha, -e suspirou. -Aliás, houve mais quem se iludisse e ainda com menos justificação.

- Como?

  1. Matilde disfarçou:

- Um amigo de Pedro, irmão dum colega do teu... marido, lá na embaixada, deu o alerta, há já bastante tempo. As tuas cartas deixavam-nos desconfiados. Na alegria das tuas descrições o céu era muito sem nuvens, demais... Havia um tom fictício, anormal... E nenhum de nós esquecera que o teu casamento fora precipitado, feito no ar. Depois pedimos a um rapaz que nos mandasse informações concretas. Nessa altura, também o teu Pai, sempre desconfiado, obteve o conhecimento da vida desregrada que o genro fazia...

- Madrinha!...

- Meses mais tarde soubemos que estavas praticamente abandonada. E eu, que te conhecia, julgava que não te aguentasses tanto. Porque... sinto-me orgulhosa de ti, sabes ? Portaste-te muito bem, Tónia.

Tónia escondeu o rosto no seio amigo.

- Oh, Madrinha! Tantas vezes pedi alento e conselho à sua imagem!... E agora vim... porque ele partiu de vez.

  1. Matilde abraçou-a estreitamente. Ao cabo de alguns momentos, Tónia balbuciou:

- Então, Madrinha, estava certa de que eu vinha?

- Sim.

-Mas não admitiu a hipótese de que eu, sozinha naquele meio terrível, perdesse a cabeça e?...

- Tu?... Não podias mudar dessa maneira.

- E, no entanto, sou bem outra!

- Outra? Sim, acredito que estejas ressentida da experiência por que passaste. Mas voltada do avesso? Nunca!

Tónia escondeu novamente o rosto no regaço acolhedor e durante muito tempo chorou.

  1. Matilde deixou-a desabafar e serenar. Ela precisava, absolutamente, de alívio, de conforto, de paz...

Quando percebeu que a rapariga ia acalmando, inquiriu docemente:

- E o teu filho? Não mo trouxeste?

Tónia endireitou-se, pôs-se de pé, limpando a cara, osolhos.

- Trouxe. Deixei-o no jardim. vou buscá-lo.

- Sim, vai. Desejo tanto conhecê-lo!

Tónia encarou-a.

- E a sua neta, Madrinha?

- Talvez a conheças hoje. Espero-os para almoçar.

- com quem se parece a menina?

- Lembra-me o Pai, quando era pequeno...

- E o Gabriel? Como está ele?

- Está... razoável.

- Razoável? -a testa contraiu-se-lhe: -Mas que ar enigmático, Madrinha! Passa-se qualquer coisa... de extraordinário

  1. Matilde esquivou-se:

- Contos largos. Depois conversaremos. Por agora só me interessa conhecer o teu Paulinho. Vai buscá-lo, anda.

Tónia não insistiu. Atirou-lhe um beijo nas pontas dos dedos, e saiu.

Atravessou rapidamente o vestíbulo, mas quando ia a transpor a porta do corredor esbarrou violentamente com alguém que vinha em sentido contrário. Ambos recuaram, doridos, e logo se ouviu um duplo grito de surpresa.

- Tu?...

- Tu?...

Maria Antónia tremia de irreprimível emoção.

- Gabriel! Oh, Gabriel!...

O rapaz estava lívido, de lábios trêmulos, com os olhos enormes fixos no rosto ainda húmido da rapariga.

- Maria Antónia! Meu amor!

Ela nunca soube como aquilo sucedeu. Percebeu apenas que as suas mãos foram apertadas numas outras que pareciam de ferro e o seu corpo cingido entre dois braços possantes e a sua boca beijada por outra que escaldava.

Tudo se passara rápido, violento e espontâneo.

Depois ficaram ambos diante um do outro, perturbados mas conscientes de que o movimento que os unira não nascera de qualquer pensamento determinado, não proviera de nenhuma espécie de premeditação, mas de um sentimento cujas raízes eram bem fortes...

Os olhos de Gabriel estavam rasos de água. Fitava-a com uma expressão trágica.

- Tónia, - proferiu, baixo, -perdoa-me! Juro-te que não tive nenhuma intenção... Foi a alegria desmedida que senti ao ver-te de novo!... - humilde, com aquele ar submisso que Tónia já nem sabia que pudesse haver em atitude masculina: -Desculpas?... Esqueces?...

As pupilas dela ofereceram-se-lhe, leais.

- Sossega, Gabriel. Eu conheço-te!

Depois duma hesitação, ele prosseguiu:

- Não acontecerá nunca mais. E só te peço que confies em mim como sempre confiaste!

Tónia sorriu, com enorme esforço.

- Obrigado. Essas palavras fazem-me bem.

- Sim... porque, apesar de tudo, eu seria incapaz de querer prejudicar-te!

Tónia, impulsiva, pegou-lhe na mão direita, apertou-a entre as dela.

- Bem hajas, Gabriel, por definires desde já a nossa posição! A minha, presentemente, é tão difícil. -E, num sussurro, acrescentou: -Sou tão infeliz!

- E eu?... Julgas que o sou... menos?

- Tu? Mas tu, porquê?

- A mãe não te contou nada

- Nada, nada. Ou, melhor, umas vagas alusões a qualquer coisa desconhecida...

- A seu tempo saberás tudo. Por agora, querida, limito-me a prevenir-te do seguinte...

Secos, febris, os olhos de Tónia abriram-se para ele, numa interrogação ansiosa.

- Não estranhes se não voltares a ver-me nem sequer como sempre fui... nem como estou sendo neste momento exacto! O nosso encontro aqui foi providencial, para te poupar julgo que a um choque grande. Dentro em pouco não reconhecerás o teu velho Gabriel. Mas, haja o que houver, suceda o que suceder, lembra-te sempre disto: a minha amizade por ti é das que não morrem, nunca!

Tónia não percebia nada. Mas viu-o tão agitado, que se limitou a concordar, singelamente:

- Eu sei que és muito meu amigo, Gabriel-de súbito entreabriu a gola do vestido e mostrou, suspenso entre os dedos, o fio de oiro do qual pendia um minúsculo coração: -Trago-o sempre comigo!

Gabriel corou como um rapazito apanhado em falso. Sem mais palavra, desviou-se e passou.

E ela, baixando a cabeça, continuou o seu caminho, para ir buscar o filho.

Tónia procurava entender, estudar o ambiente, decifrá-lo, adivinhar para além do que pressentia.

Desde há uma hora que fremia de nervosismo e desagrado.

  1. Matilde, após a chegada da nora, mudara completamente. Deixara de ser aquela pessoa calma, segura de si, doce e afável para todos. Falava pouco, Dir-se-ia medir antecipadamente o alcance de cada frase, de cada atitude. As pupilas raras vezes se erguiam do tricot. Mas as mãos, afanosas, largavam com freqüência as lãs e estendiam-se para a neta, logo se retraindo sem lhe tocar. Gabriel, recostado numa poltrona, absorvera-se na leitura da página dum periódico que no momento parecia ser a única coisa digna de interesse.

A Júlia também não dizia palavra, salvo para repreender agrestemente a filhita que brincava com o Paulinho. O quadro delicioso, consolador, do entendimento dos pequerruchos, devia desagradar-lhe. E as suas pupilas aceradas, agudas como as duma espia, giravam constantemente das crianças para a sogra, da sogra para o marido e do marido para Tónia, nesta se demorando com tamanha hostilidade que a rapariga depressa a notou. O exame a que a outra a submetia tornava-se-lhe intolerável.

Viera para conversar e matar saudades e não lhe apetecia mais do que satisfazer-se na contemplação dos que lhe eram queridos e há tanto não encontrava. Mas entre ela e o seu mundo entrepunha-se aquela inesperada vigilância...

Tentara acariciar a pequena Maria Gabriela, porém desistira. A miudinha, esquiva, fugira-lhe das mãos, apoiada pela mãe, que logo a arredara. E Tónia, lembrando-se do que pouco antes ouvira à cozinheira, absteve-se de insistências.

A certa altura, no entanto, vendo que as crianças se metiam perigosamente debaixo duma das mesas, não se conteve e observou:

- Acho melhor os pequenos irem brincar para o jardim. Estão mais à vontade, a minha criada olha por eles.

Com ar fatigado, D. Matilde obtemperou imediatamente

- Deixa, deixa, Tónia. A Júlia não gosta que a filha saia de ao pé dela.

Sibilante, Júlia ripostou:

- Claro que não! Não sou como certas mães modernas, que só se sentem bem quando entregam os filhos a cuidados mercenários.

Tónia percebeu o alcance da frase. Encarou a outra, sem conseguir que ela a olhasse de frente...

Depois reparou que o jornal de Gabriel, aberto sempre na mesma folha, lhe tremia nas mãos... Então, chamando a si a maior calma-calma difícil, que aprendera a conservar durante os anos em que tanto suportara a pé firme, volveu:

- Em todo o caso, Júlia, deves; concordar que nem todos os sítios são próprios para se estar com crianças!

- As mães que os não freqüentem!

O incidente bastou para confirmar as desinteligências profundas que deviam existir ali, onde tudo fora paz e harmonia.

Mas por que não interviera o Gabriel? Por que não se pronunciara, diligenciando estabelecer a ordem nas coisas

Viveria Júlia em desacordo permanente com a família

E ele?...

Desejosa duma explicação, virou-se para Gabriel, esperando que o rapaz baixasse o periódico e uma só expressão fisionômica até certo ponto a elucidasse. Ele, comtudo, não se movia. E Tónia, suspirando, desistiu. E deparou com o olhar de Júlia, fixo nela, tão duro e combativo que, inadvertidamente, contraiu as sobrancelhas.

O coração apertou-se-lhe, mas agüentou o embate. E a outra, ostensivamente, virou-lhe a cara.

O silêncio estabeleceu-se,

Tónia ficou pensativa.

Sempre esperara, apesar de com o enlace de Gabriel haver experimentado a sensação de ter sido espoliada duma propriedade exclusiva, que a amizade de ambos se prolongaria vida fora, em convivência leal, que nos filhos perduraria. Sim, idealizara para as crianças uma afeição recebida em herança dos próprios pais.

Mas a Júlia, pelas suas evidentes disposições, nunca daria abrigo a semelhante projecto, tão natural. E porquê?

A Júlia?

Lembrava-se dela desde sempre, ora nas janelas da moradia vizinha, ora espreitando sobre o muro do jardim, primeiro gaiata de cabelo escorrido e laçarote no alto da cabeça, depois rapariga feita, de feições harmoniosas, mas sem frescura, sem graça...

Ela nunca fora simpática!

Passava o tempo contemplando invejosamente as brincadeiras em que ela e Gabriel se divertiam, sem a convidarem-por que misteriosa intuição? -a nelas participar. E aquilo fora assim durante anos e anos... Às vezes a outra, despeitada, insignificante, tentava atrair o Gabriel, chamando-o, arranjando motivos para o entreter... para o arrancar à pequena déspota que o açambarcava. Mas o rapaz não se demorava, virava-lhe as costas e regressava para junto da companheira de folguedos, a quem amava. E, no entanto, fora com a vizinha desprezada que ele casara! Júlia devia sentir-se feliz, triunfante!

Ali estava, porém, desengraçada, de ar consumido, feia, mirrada... mais desagradável que nunca! Não se pintava, não se alindava, toda ela ressumava azedume, aspereza. Era uma dessas criaturas desditosas que, por não saberem amar, envenenadas pelo próprio temperamento, ao gostarem de alguém esmagam o mísero predilecto com o peso e não com o conforto da sua ternura.

E depois, Júlia odiava-a, a ela! Isso era indiscutível... e tinha a sua explicação, quiçá revoltante, mas lógica.

Deixara-lhe o campo livre; desertando do posto que lhe havia sido ofertado, permitira-lhe que o obtivesse... Mas essa mesma convicção, sem dúvida, humilhava-a. Tinha indubitavelmente a certeza de que não passava duma substituta, ocupando o lugar destinado a outra... a essa outra que ficara sem marido e sem lar e não perdera ainda nem a mocidade nem o sorriso doce...

Júlia tinha ciúmes... Júlia sofria!

Oh, mas antes isso! Antes isso do que saber que o ambiente, ali, era sempre aquele, por quaisquer outros motivos!

E contudo supô-la capaz, a ela, Tónia, que rejeitara o amigo de infância, de querer o Gabriel, hoje que ele estava casado e era pai, não passava dum cúmulo de estupidez, de maldade!

Impondo-se-lhe, aquela hipótese crescia sobre ela, avantajava-se-lhe, intolerável. Não podia conter-se mais. Precisava de reagir, de sossegar a perversa que se dispunha a minar os alicerces duma construção magnífica.

Bruscamente, deteve os próprios pensamentos, acicatada pela recordação da cena desenrolada entre ela e Gabriel pouco antes... Voltou a sentir, como se de novo a apertassem, esses braços em torno de si; e a boca ardente beijando a sua... De súbito, começou a corar, a perturbar-se. Uma extraordinária angústia, misto de pavor e incredulidade, invadia-a...

Quem sabe se, no fundo, pressentindo a verdade, Júlia não teria razão, debatendo-se num drama passional?

Talvez ela possuísse a noção exacta de que o marido não esquecera o primeiro amor...

Oh, fosse como fosse, Júlia não devia atormentar-se por causa dela! Precisava de a tranqüilizar.

No vestíbulo, ecoaram passos. Uma porta bateu. E uma voz disse, no limiar da saleta. -Boa tarde!

O jornal de Gabriel desceu, finalmente. O "tricot" de D. Matilde caiu no regaço. Júlia permaneceu como estava. E Tónia, impulsiva, pôs-se de pé. -Padrinho!

Torralva fitou-a, primeiro com espanto, depois com enorme satisfação.

Abriu-lhe os braços. A rapariga sentiu-se apertada de encontro ao peito robusto e dois sonoros beijos estalaram-lhe nas faces.

Nesse instante, com inesperada brusquidão, Júlia ergueu-se.

- A sala é pequena para tanta gente, -disse. -E este ar viciado faz mal à Belinha. Acho melhor irmo-nos embora, Gabriel.

Houve uma pausa, de estupefacção. O advogado largou Tónia e D. Matilde, que se levantara também, fitava com ansiedade crescente o marido e a nora.

Júlia dera a mão à filha, que protestava ao afastar-se de Paulinho, a quem mais ninguém ligara importância, e arrastava-a para a porta. Mas o sogro deteve-a na passagem e olhou-a bem a direito.

- Queres dizer que fui eu que enchi demais a sala... e que o ar se viciou com a minha presença?

Júlia não se mostrou nem embaraçada, nem repesa.

- Quero dizer o que disse. Há aqui gente a mais.

Via-se que Gabriel lutava entre o desejo de calar-se, a todo o transe fazendo os impossíveis por dominar-se, e a indignação desesperada que lhe fulgia nas pupilas, dando-lhe uma expressão que Tónia nunca lhe vira.

E Júlia, indiferente, empedernida, desprendia as crianças que, numa defesa instintiva, se tinham abraçado a chorar.

Ninguém dizia uma palavra. O silêncio estabelecera-se.

Inexplicavelmente, todos se vergavam perante a vontade de uma só pessoa.

Tónia, então, adiantou-se. Percebera que o desafio lhe fora lançado e aceitou a situação corajosamente.

Avançou para Júlia, mirou-a de alto a baixo, depreciativamente, e depois encarou Torralva.

- Não se aborreça, Padrinho. Quem está aqui demais, no entender da sua nora, sou eu. Desde que entrou que mo significa. Custava-me a acreditar... mas rendo-me! São horas de almoço, retiro-me.

- Não, Tónia, não to consinto! -Com inesperada severidade, o dono da casa pronunciava-se. -Tu pertences a este lar, à nossa amizade, desde que nasceste. Tens aqui o teu lugar. Todos nós estávamos com saudades tuas e não queremos que te vás embora. Almoças connosco e depois... quem se sentir mal, que se retire... Tu ficas a acompanhar a tua Madrinha, que tanto sentiu a tua falta.

Tónia abanou a cabeça.

- Sei o que sou para vós... Como sei o que representam para mim. Mas devo ir. O Pai espera-me.

- Isso não é verdade!

Com a filha a debater-se-lhe nos braços, Júlia aguardava. De toda a sua atitude depreendia-se que se preparava para tomar desagradáveis resoluções.

Sem um gesto, vergado, Gabriel voltara-se de costas, abeirara-se da janela. Era um vencido, um falhado.

Então, D. Matilde aproximou-se de Tónia, segurou-a por um braço e, apertando-lho nervosamente, como se pela intensa pressão desejasse exprimir o inverso do que as suas palavras significavam, disse:

- Não insistas, Pedro. É preferível que a Tónia se vá embora.

 

- Parece que ficaste admirada com a minha pergunta?

Silenciosa, a criada deitou vinho nos copos de cristal, restos do luxo de que o grande médico não abdicara ainda por completo, num hastear orgulhoso de flâmula que não quer dar-se por vencida.

Com o garfo tilintando no prato, Tónia imobilizou-se, vagamente próxima, vagamente longínqua... Era estranha a expressão do rosto dela, enquanto murmurava:

- Talvez... talvez fosse eu quem devia interrogar...

- Tu ?... Essa agora! Depois da inquietação em que passei a tarde, sem me dares uma palavra... - Val-Rei exaltava-se aos poucos, na ânsia de aprofundar o que de misterioso se lhe antepunha: -Francamente, Tónia, parece-me que tenho o direito de saber, ao menos para pôr as coisas no seu devido lugar, se for preciso. É isso?... Receberam-te mal?

Maria Antónia largou o garfo, repeliu o prato e, serenamente, virou-se para a criada.

- Tem paciência, Amélia. Vai ver se o menino está a dormir sossegado, sim?

Amélia percebeu. Largou a travessa em cima do aparador, onde as pratas ainda ocupavam lugar de honra, e saiu, muito digna. Tónia voltou-se depois para o Pai.

- Não estejas a futurar coisas, paizinho. Receberam-me o melhor possível.

Val-Rei encrespou os beiços.

- Como tu dizes isso! com uma reserva que parece significar precisamente o contrário.

- Mas de forma alguma, garanto-te! -e, bruscamente, atirou-se para o objectivo que tanto a preocupava, que lhe enchia os ouvidos e a retinha e se sobrepunha a todos os outros: -Pai, responde-me tu, por favor. Que se passa naquela casa?

Val-Rei fitou-a, grave. Gradualmente, a expressão modificou-se-lhe, deixou de exprimir ansiedade e passou a traduzir amargura. Os seus dedos enrolavam bolinhas de miolo de pão.

- Ah... compreendo!... Já sabes!

- Já sei?... Mas não sei coisa alguma!

- Por que te interessas então por um assunto estranho, quando há tantos solicitando-te, quando passei o diaprocurando uma solução para o teu caso

Tónia interrompeu-o, com certa impaciência:

- Pai, pelo amor de Deus! Isto parece o jogo dos disparates! O meu caso não tem solução...

- Mas não queres que eu tente dar-lha, ao menos?

- Não vale a pena tentar coisa alguma, bem o sabes, pelo menos por agora. Não interessa remover pedreguLhos debaixo dos quais não há indicação nenhuma.

- Mas...

- Ao passo que lá... todos estão presentes e deve ser possível fazer algo!

Val-Rei deixou de fazer bolinhas e suspirou:

- Explica-te melhor.

- Não posso.

- Não podes? Apareceste aí com um ar corrido... fechaste-te no quarto... e fazes-me agora um inquérito! Eu não adivinho o que ficou por trás de ti!

- No entanto, tu estás com certeza ao facto do que ali sucede!

- E a tua Madrinha deve ter-to contado...

- Não, nada! Vi... percebi qualquer coisa de fantástico... entre o Gabriel e a mulher, entre a Júlia e os sogros...

- Ah! Eles estavam lá?

- Estavam.

Val-Rei mirava-a de esguelha, com o seu olhar de velho clinico pesquisando sintomas antes de pronunciar-se.

- Não te sentiste bem na companhia deles?

- Tudo aquilo... é muito singular.

Val-Rei bebeu dois goles de vinho e limpou a boca ao guardanapo, conscienciosamente.

- A que dedução chegaste?...

Tónia arregalou-se, num pasmo, quase numa irritação.

- Eu? A nenhuma!

- Assististe... a alguma cena?... Quero dizer, a alguma discussão

- Não. Diante dela ninguém fala. Parece que todos a temem, até o Padrinho!

Val-Rei baixou a cabeça. Fez-se um silêncio.

Amélia não voltava.

E pouco depois, em voz soturna, o médico proferiu:

- Bem... eu não queria estar a incomodar-te. Já tens que chegue, para ti. O que sei, é como médico... porque eles não se lamentam. Têm o pudor da sua desdita... Ê o orgulho do infortúnio. Mas fui chamado, um dia...

Tónia ia interrompê-lo, o Pai não deixou, porém, e, levantando a mão a impor silêncio, continuou:

- Fui chamado... e declinei a responsabilidade para outros. Era grave... excessivamente grave.

Tónia, de cotovelos apoiados na mesa, escutava, anelante.

- A Júlia tem uma psicose que... Bom, por outras palavras. É, praticamente, uma louca! Há mais casos na família dela. A mãe... morreu doida.

Tónia não pôde disfarçar um repentino sorriso de incredulidade. Encolheu os ombros e recuou na cadeira, distendendo-se.

- Pode lá ser! Nunca notei nela nada de extraordinário!

- Nem hoje

A rapariga contraiu os sobrolhos.

- Bem, hoje... foi talvez outro caso.

- O mesmo, precisamente. Aliás, até o nascimento da criança, ninguém suspeitou de nada. Depois, as crises sucederam-se.

Tónia voltara a ficar extremamente séria.

- Quais são as manifestações?

- Diversas. Mania da perseguição... ciúme...

- Ah!...

- Cismas várias, todas com a mesma origem, capazes de levá-la a uma situação irremediável.

Tónia ergueu-se, arrebatadamente.

- E... não a tratam?

- Não há nada mais a fazer. Têm-na sujeitado a toda a espécie de recursos. Um dia, na repetição das crises, pode vir a que a arrebate definitivamente ao convívio dos normais.

Tónia deixou-se cair na cadeira, pesadamente.

Amélia reapareceu, informando que o menino dormia como um anjo. Quando ia servir a sobremesa, o velho clínico dispensou-a.

- Pode ir, Amélia. Não queremos mais nada.

Ficaram, de novo, sós.

Num murmúrio, Tónia disse:

- Que desgraça!... Agora percebo tudo! -E depois: - Pobre Madrinha! E pobre Gabriel!

- Sim, são dignos de lástima. O rapaz leva uma existência infernal. Os seus dias são um perpétuo calvário. Ela só sossega um pouco quando o marido se deixa ficar no quarto, à mercê dela, sem ver ninguém, sem falar a ninguém...

- Que horror!

- Quando vai a casa dos sogros, o que é rarissimo, há sempre um acidente em seguida. O Gabriel vê a mãe de fugida, nas poucas horas de trabalho que ainda tem. Os gritos dela, da Júlia, ouvem-se às vezes em todo o quarteirão. Evidentemente, há períodos de relativa calma. Durante eles a vida normaliza-se um pouco. Mas qualquer pequena coisa desencadeia a crise.

Tónia repetiu;

- Pobre Madrinha!

- Quando a neta nasceu, a Matilde parecia pisar nuvens, andar pelo céu... mas, pouco depois, já a nora lhe proibia que beijasse a criança. Em vez da felicidade, foi uma era de desespero a que se lhe antepôs. E sem solução!

Tónia crispava as mãos uma na outra, angustiadamente.

- Mas, Paizinho, tudo quanto me contas ultrapassa as minhas hipóteses mais graves! Oh meu pobre Gabriel! -e as lágrimas desceram-lhe pela cara abaixo. -Meu infeliz amigo!

Val-Rei levantou-se, deu a volta à mesa, aproximou-se dela e, erguendo-lhe o queixo na mão, fitou-a, bem a direito:

- Assim... a sorte dele impressiona-te?

- Então não há-de impressionar, Pai? A dele e a da família que estimo como se fosse minha!

Mas, de súbito, e tal como já sucedera nessa manhã, impôs-se-lhe a recordação da cena desenrolada entre ela e Gabriel... e voltou a corar intensamente. Ficou a arder num estranho calor que a incomodava, abrasando-lhe todo o corpo. E sentiu uma imperiosa necessidade de se defender, de se justificar, não perante o pai, que de nada sabia, mas diante da sua própria consiência.

- Não, não imagines que hoje, na situação em que me encontro, posso sentir pelo homem que recusei qualquer interesse mais... mais forte. Não vejo no Gabriel, juro-te, senão o bom amigo que sempre foi, o irmão...

O pai contemplou-a com uma expressão de estudo, essa expressão tão característica da sua personalidade quando, à cabeceira dum enfermo, tentava descortinar se o caso era de vida ou de morte. E observou:

- Mas, minha filha, eu não te disse nada!

- Não, não disseste, eu sei que não disseste, mas pensaste. E quero esclarecer-te do seguinte. Se eu puder ainda interessar-me por alguém... esse alguém será o Paolo. Compreendes

Val-Rei meneou a cabeça.

- Está bem, filha. Havemos de ver.

Ela pôs-se de pé, arrebatada, fremente dum desespero que ia crescendo.

- Não, não veremos coisa nenhuma! Isto é verdade, verdade... Porque... porque... eu devo ajudá-los... e é preciso que a Júlia não tenha medo de mim! -E sucumbida:

-Oh, paizinho, não tenhas medo de mim tu, também!

Numa explosão de choro, lançou-se ao pescoço do Pai e ficou agarrada a ele, longamente.

Da porta soou a voz de Amélia, numa advertência:

- O menino acordou a chorar... Quer a senhora.

Paulinho estranhava a casa, a cama. Tónia largou o Pai e precipitou-se para as sombras do corredor.

Val-Rei quedou imóvel, de braços cruzados, pensativo. Depois, extinguiu a luz e, sem fazer o mínimo ruído, dirigiu-se ao quarto da filha. Junto da porta fechada deteve-se, à escuta. Ouvia a voz dela, num sussurro, acalentando o filho, ternamente.

Ali estava a pobre abandonada, mãe casada com um filho sem pai, sofrendo todas as penas onde fora menina e sonhara a aventura que ele próprio julgara poder ofertar-lhe!

Como os pais são, às vezes, desgraçados!

 

Quisera levantar-se e cuidar do filho, como normalmente. Mas o corpo, esgotado, exigia repouso.

O Paulinho, aceitando a Amélia, saíra pairando ao colo dela, sem protesto algum.

E Tónia, enrodilhando-se de novo entre as roupas, tentou conciliar o sono.

Só muito mais tarde despertou da sonolência em que permanecia sem encontrar esquecimento das realidades, mais dolorosas que antes, sentindo a presença inquieta do Pai, que lhe palpava a testa.

- Estás doente, filha?

Ela cessou de revolver-se, abriu os olhos.

- Não... Dói-me a cabeça, mas é natural. Dormi pouco...

Como outrora, o médico sentou-se à borda da cama e afagou-lhe brandamente os cabelos soltos.

- Gostava de saber qual das tuas preocupações te atormenta mais!

Ela agarrou-lhe na mão, encostou-a à face.

- Talvez sejam todas juntas... -e tentou sorrir, corajosamente. -Devia adormecer... não pensar. Talvez um comprimido me ajudasse.

- Já tomaste o pequeno almoço

- Ainda não. Não me apetece nada.

- Mas precisas de comer. Isso pode ser fraqueza. Ontem, não jantaste! vou tratar disso... e dou-te o comprimido. Depois sossegarás.

Saiu, em bicos de pés.

Sozinha, no silêncio, Tónia sentia violentas marteladas dentro da própria cabeça, crescendo, rumorejando, torturando-a. E sob as suas pálpebras cerradas desenrolavam-se bobinas inteiras, cenas, e cenas, e ainda mais cenas...

Tentou evocar o marido, reconstituir a presença dele, recordar as feições, a silhueta... Debalde. Havia duas imagens que se lhe sobrepunham, ora destacando-se nítidas uma da outra, ora baralhando-se, confundindo-se.

Paolo e Gabriel...

Gabriel e Paolo...

E Manuel perdido...

E Paolo...

E Gabriel!...

E em nenhum deles podia deter o rumo dos passos inseguros!

A voz grave do Pai soou de novo, cautelosa:

- Tónia...

- Sim, Pai.

- Tens aqui o comprimido e o teu leite.

- Está bem, Pai.

Sentou-se na cama, engoliu ambas as coisas, com um ar ausente...

Val-Rei suspirou e disse-lhe:

- Não sei se sou mensageiro do bem ou do mal. Mas trago-te notícias.

- Notícias ? -e estremeceu.

- Uma carta de Itália.

- Ah!

Levou ambas as mãos ao peito, fitou-o, esgazeada. Val-Rei ouvia-lhe a respiração acelerada, entrecortada.

Ela repetiu, entre os dentes cerrados.

- Carta de Itália!

Sim, uma carta de Paolo! Mas que lhe traria, essa resposta de que talvez dependesse tanto ? Era a primeira vez que ele lhe escrevia depois de saber que Manuel a abandonara definitivamente. Haveria ainda alguma esperança, ou apenas a confirmação doutras decepções

- Vou-me embora, para te deixar à vontade.

- Não é preciso. Não tenho segredos para ti.

Voltou o sobrescrito em todas as direcções. Depois rasgou-o, extraiu as duas páginas cobertas pela caligrafia cerada, miúda, tão sua conhecida. E leu, leu, leu. Quando terminou, sorriu. E o seu sorriso foi indefinido. Não era o da mulher feliz para quem uma promessa chegou, tranquilizadora. Nem o desabafo de quem sabe que ainda tem horas para viver. Nem o da desesperada que reage contra a noção de que perdeu tudo num repente.

O pai fitava-a, indeciso.

O olhar da filha era talvez como o dum náufrago que segue numa jangada à vela cheia de mantimentos e vê terra ao longe... mas não sabe se terá vento que o ajude a alcançá-la.

Então Val-Rei decidiu-se, perguntou:

- E afinal, querida? Boas ou más novas?

Tónia encolheu os ombros.

- Que sei eu!...

- Não é a resposta que esperavas?...

- Se eu soubesse, acaso, pelo que esperava...

- Vejamos, Tónia, conta-me tudo! Ele... desinteressou-se

A filha abanou a cabeça.

- Não, embora fosse natural que isso acontecesse, agora que estou à sua mercê... como um contrapeso!

- Maria Antónia!

- Não, o Paolo não me repele! Canta aleluias... naquele amor fremente, arrebatado, cheio de sol, que é o da terra dele!

- Mas, nesse caso...

- Diz que me quer para sua mulher... que espera que eu me divorcie e vá ter com ele para unirmos os nossos destinos sob o céu da sua bela pátria...

- Então, visto isso...

Num grito, Tónia, exclamou:

- Mas ele sabe perfeitamente, ele sabe, porque lho disse muitas vezes, que não posso voltar a ser livre, que não me assiste o direito de refazer a minha vida... que fico amarrada a esse que tudo me levou... tudo, tudo!

E rompeu a chorar, perdidamente.

De braços cruzados, Val-Rei contemplava-a, esperando que cessasse a explosão nervosa. Depois, quando ela principiou a serenar, disse:

- Talvez não esteja tudo perdido. Talvez haja uma solução... talvez esse Paulo se decida a vir... e eu... eu... com amargura, terminou-e eu feche os olhos a uma situação de que já te não cabe a responsabilidade!

Maria Antónia fitou o pai, apaixonadamente.

- Obrigada! Mas não se trata disso! Ele... ele não quer lançar-se na fogueira. Tem lá tudo, a família, os negócios... a fortuna, o bem-estar... Pode bem esperar a vaga resolução do acaso...

Baixo, o pai indagou:

- E tu... tens realmente muita pena?

Ela fungou, limpando as lágrimas.

- Não... não é só pena! Aflige-me... a infelicidade que atraí sobre mim!

- Talvez pedisses demais à existência, Tónia!

Ela encarou-o. E murmurou:

- Já uma vez pensei nisso! Será?... Terei exigido demasiado?... Eu tinha tudo... e não me dei por satisfeita!...

Nesse instante, o telefone retiniu.

Pai e filha não tinham ainda voltado a falar, meditativos, quando a Amélia, sobraçando o Paulinho, surgiu no limiar do quarto, com o aparelho.

- É para a menina.

Logo que ela pegou no auscultador chegou-lhe ao ouvido a voz tão querida. Uma leve cor tingiu-lhe o rosto. O médico curvou-se um pouco mais, alvoroçado, suspenso. Mas logo recuou, suspirando desalentado.

Era Matilde, apenas Matilde!

Tónia falava enternecida:

- Oh, Madrinha... bem-haja por me telefonar! Sim, fiquei admirada, realmente... mas pressenti qualquer coisa. Não, não estou zangada. Sim, então até amanhã. Não me esquecerei. Até amanhã.

Desligou, mais animada.

- A madrinha quer que eu vá passar o dia com ela"

amanhã.

O Pai assentiu, sem uma palavra.

E Tónia, reclamando o filho, apertou-o desvairadamente entre os braços.

 

"Tricot" abandonado no regaço, Matilde ficou-se pensativa a contemplar a recém-chegada, que se sentara na frente dela, suspensa e afectuosa.

Havia entre ambas a densa cortina duma espectativa. A senhora, porém, breve a rasgou, em firme decisão. E sem desviar as pupilas das da afilhada, falou-lhe:

- Ouve, Tónia. É preciso que tudo se esclareça entre nós e compreendas bem o que se passa. Não, não me interrompas... porque eu preciso de desabafar. Entendes? Há muito que procuro disfarçar, aligeirar pesos, dizer aos que me cercam que nada possui a gravidade aparente... Estou exausta de tentar convencê-los! De tentar convencê-los do que me não convence, a mim! E, no fim de contas, sou a culpada de tudo!

Tónia teve de exteriorizar a oposição que lhe latejava

na alma. - Oh, não. Madrinha, não diga isso! Não é culpada

de coisa nenhuma!

As mãos de D. Matilde, inconscientemente, iam desfazendo as malhas do "tricot", amontoando a lã no colo,

destruindo-a.

- Que sabes tu, criança? Mas eu conto-te, eu explico-me!... Eu explico-me. Olha... sabes que o Gabriel, depois do teu... casamento, ficou para aí... inconsolável? Nada o interessava, nada o distraía. Julguei então que para ele só haveria um remédio. Casar-se também, esquecer-te...

Sem uma palavra, de olhos secos, Tónia soluçou, baixinho.

  1. Matilde continuou:

- Falei-lhe nisso... fiz-lhe ver as vantagens de ter um lar e uma companheira, uma boa rapariga que o estimasse e o acarinhasse, ajudando-o a afastar-se da tua perdida imagem. Mais tarde, os filhos dar-lhe-iam a felicidade.

Tónia não se moveu.

Ouviu-se, durante a curta pausa, o ritmo dos pêndulos dos vários relógios dispersos pelos móveis.

- Tanto martelei a mesma idéia, que ele anuiu. Mas não tinha disposição para procurar ninguém... Foi então que me lembrei da Júlia. Sempre notara os esforços que ela fazia, a pobre pequena, para o atrair... Depois, não era uma desconhecida. Vivia aqui, a dois passos, há longos anos. Era simples, afável, séria... o pai tinha reputação de excelente homem... Vi-me no caminho ideal e não hesitei. O Gabriel condescendeu, tratei de tudo e o casamento fez-se. Os primeiros meses foram normais. com o nascimento da filha, surgiram os desequilíbrios, acidentes estranhos... e uma suspeita, desgraçadamente confirmada. Soubemos que a mãe morrera louca, e havia mais casos, na família... Aí tens! Ela não se cura. Pode tornar-se furiosa quando menos o esperarmos... E o meu filho, desamparado, infeliz... e eu sem saber como salvá-los!

Havia lágrimas na voz de Tónia, quando ela balbuciou esforçadamente:

- Talvez a Júlia ainda melhore. Tal vez se já possível...

- Ela! ?... Nenhum médico nos dá essa esperança. E depois, há a criança, a minha pobre netinha...

Tónia calou-se. Ao cabo de momentos D. Matilde proferiu, dolorosamente:

- Não dizes nada... Estás aterrorizada.

Ela mordeu os lábios, silenciosa. E D. Matilde, excitando-se, prosseguiu:

- Caiu-nos o raio em casa! E vendo a desventura do rapaz, temos de suportar todos os desmandos, tudo... para que não nos tombe em cima uma responsabilidade medonha. Percebes agora? Anteontem, depois de aí estares, imaginas lá o que se passou! Foi por medo que te pus fora!

- Isso não interessa, Madrinha. Na altura, efectivamente, não percebi... Mas depois...

- O teu Pai explicou-te?

- Sim.

- A nossa desdita é pública. Toda a gente a conhece. Tónia interrompeu-a, para a desviar da amarga constatação.

- Ela teve mais algum ataque?

- E que ataque! Levou horas a gritar que queremos matá-la, que queremos dar cabo dela... É uma idéia dominante. "O marido não gosta dela e vai assassinála! ". Depois ficou para aí, inanimada, tempos esquecidos. Chamámos o médico. Quando recobrou o conhecimento, parecia mais serena, mais aliviada... No entanto, os seus olhos... Ah, os seus olhos! - e confessou -Metem-me horror, os olhos dela!

Baixou a voz e continuou, em amarga justificação:

- Tu sabes... eu lamento-a... mas não lhe perdôo que nos tivesse enganado! Devíamos ter sido prevenidos lealmente...

Com doçura, mas firmeza nobre, Tónia interrompeu-a, pegando-lhe nas mãos e estreitando-as carinhosamente:

- Madrinha, não foi ela que veio buscar o Gabriel. Ela também não tem culpa, é apenas uma vítima! Agora compreendo tudo.

  1. Matilde insurgiu-se:

- Ela é uma vítima... e o Gabriel outra, bem sei! Se já te disse que sou a grande responsável por tudo! Pensei demais no meu filho... e Deus castigou-me! Porque ele não podia gostar dela e eu sabia-o.

Tónia abanou a cabeça, tristemente.

- Há tantos casamentos de amor que não resultam! Ficaram a olhar-se, caladas, meditativas, durante largo tempo. Depois D. Matilde continuou, suspirando:

- Devemos fazer tudo para a ajudar, não é? Há épocas em que uma mãe faz sempre falta... - e quase em surdina:

- Parece-te que lhe fará muita muita falta, se acontecer a fatalidade?... Tónia inclinou-se para a Madrinha.

- Se é preciso que eu aqui não volte, não voltarei.

- Tenho estado a pensar nisso. Mas creio que será inútil o sacrifício. Porque, se resultasse, havíamos de fazê-lo. - E, bruscamente numa inesperada mudança de atitude, com os maxilares contraídos, agarrou-a pelos ombros e aproximou a cara da cara dela. - Faremos tudo, tudo, para que o meu Gabriel não conheça o travo dos remorsos! Já basta o que tem sofrido. Porque ele vive para ti... e a Júlia adivinha-o, espia-o, sente-o, respira-o! O ciúme despedaça-a! Ela odeia a tua sombra, o teu nome...

De repente ouviu-se fora, no vestíbulo, o rumor de passos precipitados. A porta da saleta escancarou-se violentamente impulsionada, e Gabriel surgiu no limiar. Vinha desfigurado.

Parecia um condenado evadido pedindo direito de asilo.

- Mãe! - proferiu, avançando: - Mãe! Não posso mais! Houve outra cena... Já não sei que pensar, dizer, resolver! - com as mãos na cabeça, quase gritou, em frenético desespero: - vou ficar tão doido como ela!

Cambaleou.

Maria Antónia levantou-se, ia avançar para ele, mas a Madrinha empurrou-a, tomou a dianteira e agarrou-se ao filho.

- Tem calma, tem calma, Gabriel, suplico-te!

- Mais calma! Mais calma? Mas onde hei-de eu ir buscá-la, à calma? - e escondia o rosto nas mãos. Não agüento mais! É impossível!

Com inusitada dureza, D. Matilde largou-o, empertigou-se. E do alto da sua expressão tornada majestosa perguntou-lhe, apontando para Tónia:

- É a chegada... daquela, que te faz achar impossível o cumprimento do dever?

- É a presença dela, repito, que te leva a semelhante afirmação? Se é, ponho-a fora daqui... para nunca mais cá voltar!

Tónia ia talvez intervir com indignação... avançou ainda, mas logo se dominou, confusa, sentindo férrea, no braço, a pressão dos dedos da Madrinha. Compreendeu instantaneamente o partido que D. Matilde procurava tirar de tão insólita atitude.

Gabriel olhava para as duas, desvairado. Depois a sua expressão modificou-se, acabou por só traduzir desânimo, desânimo pungente, e a cabeça descaiu-lhe para o peito.

- Não, Deus é testemunha de que a presença dela não pode desviar-me das minhas obrigações. Mas há horas terríveis!

E aquela seria a mais terrível de todas, surgindo assim de repente, como todas as grandes catástrofes.

Nesse instante, campainhadas sucessivas, acompanhadas duma espécie de gritos inarticulados, sustiveram-nos, espantando-os. D. Matilde, precipitadamente, correu para a janela, abriu-a e espreitou para o jardim. Não viu ninguém.

Ofegante, desgrenhada, vestida de farrapos, Júlia aparecia já à entrada da sala, acabando de lançá-los no pânico.

Gabriel avançou para a mulher, tentando segurá-la, mas a rapariga empurrou-o com tal brutalidade, tal força, que ele se despenhou de encontro à mesa de centro, fazendo-o cair com todos os "bibelots" e, perdendo o equilíbrio por cima dela, foi ferir a cara nos restos duma faiança de Sèvres.

Ergueu-se, com o sangue a escorrer-lhe para o colarinho. A mãe e Tónia ladearam-no alarmadas, angustiadas, paralisadas pelo terror.

Júlia, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, avançou, berrando frases entre regougos:

- Mentiroso! Cobarde! Quer matar-me!... Quer matar-me! Quer dar cabo de mim... para casar com essa... com essa... Socorro! Socorro, que ele mata-me!

O pessoal, espavorido, esgazeado, apinhava-se à porta. Os gritos de Júlia atroavam tudo.

- É por causa dela... Mas engana-se! Ela não mo leva! Ele não me mata! Socorro! Porque eu amo-o! Amo-o! Amo-o...

De repente, os gritos cessaram. A boca abriu-se-lhe num riso alvar. A expressão, de irada, passou a idiota. Principiou a babar-se, a choramingar.

- Eu amo-o!... Não quero ser morta! Eu amo-o! E ele é meu... ele é meu... ele é meu...

As suas mãos continuavam a despedaçar os vestidos, arrancando-os de si. Estava a ficar nua.

  1. Matilde foi recuando, recuando, até cair na poltrona. Sentou-se, hirta, com um som inarticulado a roncar-lhe na garganta, os olhos a revirarem-se-lhe. Depois soltou um ai, profundo e desgarrado, e tombou para o chão, desamparada.

E DEPOIS, NOS BASTIDORES...

O funeral de D. Matilde deixou em todos os que a ele assistiram ou que da fulminante desgraça tiveram circunstanciado relato, as mais penosas recordações.

Foi num carro magnífico, o maior que o marido pôde conseguir. As coroas faziam dois montões de flores tristes, em que as fitas roxas levavam sentidas inscrições. No acompanhamento disperso, contaram-se para cima de trezentos automóveis, quase todos particulares.

Lá ficou, na sua difícil paz, no esquecimento de tudo, dormindo no jazigo de família que há tanto tempo não se abria para ninguém.

Os outros, os que em vida ficavam, viam recrudescer todos os problemas.

Júlia, sem mais alívios, estava no hospital de alienados, numa cela, tão morta como a sogra, talvez mais digna de lástima. Nas raras horas de acalmia babava-se e chorava, fazendo juras de amor, pedindo que a não matassem. Depois gritava ódios sem finalidade. Não reconhecia o marido.

Pedro Torralva e Carlos Val-Rei afligiam-se em torno dos que continuavam de pé. A sorte da pequenina Gabriela, que o avô materno, incompreensivelmente, reclamava, unia-os em conciliábulos intermináveis, sobre os quais adejava a sombra da falecida.

Por amor da neta, Torralva conseguiu voltar para as suas actividades.

Val-Rei, vendendo, vendendo, vendendo, corria atrás duma clínica para a qual ele era somente o passado, a recordação, nome que se venera mas não procura.

Gabriel passava os dias a caminho do cemitério, donde regressava para fechar-se no quarto, recusando ver quem quer que fosse.

Maria Antónia principiara uma carta para Paolo e não tivera coragem para a acabar. Não tornara a encontrar Gabriel.

Na sociedade falou-se deles. O escândalo gerara desmedido interesse. Toda a gente se ocupava imenso do que não sabia, e afirmava coisas espantosas que ninguém contara.

Corria, por exemplo, que aquela nova espécie de divorciados se acompanhavam e consolavam mutuamente dos enormes desgostos padecidos...

Foi só naquele dia, porém, que os passos de ambos se cruzaram.

Ele ia para o cemitério. Ela passeava o filho.

Iam ambos esquecidos da juventude e do sol que enchia a rua, o dia.

Puseram-se a caminhar lado a lado, silenciosos.

Como estavam longe daquelas sombras esguias o rapazinho tímido e amável que se deleitava a contar historietas ingênuas, e a rapariga para quem a vida era toda ela uma apoteose!

Ao cabo de muito tempo, de músculos retesados, ele começou a murmurar coisas ininteligíveis.

O Paulinho saltitava, na frente de ambos.

E, finalmente, as palavras na boca viril distinguiram-se: - foi demais! Foi demais, Tónia! Tu sabes que foi demais!

Ela, de luto pesado também, com os lábios pálidos, trémulos, murmurou qualquer coisa, ou talvez nada.

E ele continuou:

- Tu foste a desgraça de todos nós, a desgraça sem ttulpa... Mas pesaste sempre como uma condenação na ninha existência. Enchias-me o coração, o cérebro... e, sem nada me dares, fizeste-me perder tudo! Paulinho saltava sempre, ria e puxava pela mãe. -Vieste reacender no meu peito uma ilusão amaldiIçoada. És a origem da fatalidade que me persegue. Porque beijei sempre a boca dela com a delirante sensação de procurar a tua! Foi por onde a loucura dela se manifestou. No ciúme desvairado que tu lhe inspiravas! Ela esperara por mim anos e anos... invejava-te, a ti, que me ocupavas todo... por quem eu ria dos seus apelos sem resposta! E tu, romanesca, foste-te, deixando para a mísera um boneco sem alma, uma caixa vazia... E ela está morta com o sangue a correr-lhe nas veias e o coração estoirado de paixão! E a minha mãe, a minha mãe!... -um soluço embargou-lhe a voz. -Vou visitá-la, agora. Queres que lhe diga alguma coisa da tua parte? Queres? Os ombros de Tónia tremiam. Num cício, balbuciou apenas:

- Gabriel! Oh, Gabriel!

Ele tomou-lhe o braço. Magoava-a, apertando-lho.

- A mãe estalou de dor, porque sabia que eu ia voltar para ti, que por ti eu gritara aquele impossível! E tu aceitar-me-ias, tu, tal como consentiste naquele beijo! Tu serias rainha amante... porque o meu desejo por ti, dantes casto e lírico, se tornou vermelho e imperioso. Mas agora acabou tudo, tudo! Acabou, percebes?

Largou-a, cansado. Ofegava. O suor escorria-lhe em fios lustrosos pela cara.

Tónia abriu a carteira, deu-lhe o lenço para ele enxugar a testa, as faces. Viu, ao lado da caixa do pó de arroz, a última carta de Paolo!

Paolo!

Se ao menos Paolo fosse um refúgio, e ela pudesse tranqüilizar as consciências de ambos, dizendo-lhe que ia partir!...

Gabriel continuava, monocórdico:

- Ficaste sem marido. Eu sem mulher. E nenhum de nós merece compaixão, nenhum de nós merece outra coisa, diferente do que tem! Ambos perseguimos o que nos fugia... É horrível, tudo isto! E poderemos nós, ao menos, esquecer os últimos direitos que nos assistem?

Caminharam mais algum tempo, em silêncio. Os comentários interpretariam bem diversamente, bem caprichosamente, o doloroso colóquio... Gabriel tornou a falar:

- As casas não se desmoronaram nem em cima de ti, nem em cima de mim. As nossas dores não revolveram o mundo. Andamos presos a obrigações diante das quais são ínfimos os nossos problemas. Nada valemos na ordem dos factores... e a natureza não aceita imposições de ninguém.

Ela ergueu o rosto, virou-se para ele, fitou-o. E disse, por fim:

- Não aceita imposições, mas fá-las, Gabriel!

- Quais?

- As crianças... Há as crianças!

Gabriel tremia. E o seu olhar, lentamente, foi-se humanizando.

- Perdoa-me! Tens razão, sim. As crianças! Por elas... por elas não acabou tudo, ainda. Talvez possamos esperar...

Tónia agarrou na mãozinha do filho, apertou-a docemente entre os dedos. Queria pisar o chão com firmeza, seguir estoicamente o caminho áspero que devia conduzi-la à paz.

E talvez que a paz, um dia mais tarde, se compadeça deles e, de restos de luz, de remendos de esperanças, das últimas horas de sol, faça uma pobre felicidade para os que, aos vinte anos, se enganaram no caminho.

 

 

                                                                  Odette De Saint Maurice

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades