Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PELO PRAZER DE AMAR
Lá do alto ele tinha uma boa visão enquanto o helicóptero se dirigia para o sul de Boston. "Minha estrada", pensou, orgulhoso. "Duzentos e trinta ecinco quilômetros de estrada. Não, diabos!. Duzentos e trinta e dois!"
- Mas agora eu pego essa bruxa!
- Vamos ver alguma bruxa, pai? Uma bruxa de verdade?
- perguntou a garotinha em seu colo, animada.
- Sim, uma bruxa velha de verdade! -' Sorriu. Voltando a olhar pela janela, a irritação estampou-se em seu rosto. Eram duzentos e trinta e dois quilômetros de estrada, formando um círculo de oito pistas em torno de Boston, indo de New Hampshire a Cape Cod. Só faltavam aqueles três quilômetros para completar o círculo. Ali ficava a fazenda com suas vacas e plantações de milho e feno. Só três míseros quilômetros! "Mas agora ela vai ver! ", ele pensou, apalpando a pasta que parecia estar inchada com o relatório que carregava.
- Nunca vi nenhuma bruxa! - a menina disse, alegre.
- Pois hoje vai ver. E vamos pegá-la pelo rabo, gatinha
- disse, rindo. - Oba! Uma bruxa com rabo e tudo!
- A menina pulava, feliz, no banco. Ele a observou com prazer. "Ela tem seis anos", pensou. "Seis anos e quase não a conheço. Por que usa cabelos tão curtos e só se veste com macacão e camiseta?" A sra. Driscoll dizia que esta era a melhor maneirade enfrentar o calor. Mas não o convencia. Havia qualquer coisa estranha no modo como sua filha estava sendo educada. Ele passara os últimos cinco anos viajando pelo mundo todo, ampliando os serviços de sua construtora, enquanto Mattie crescia na casa dos Driscoll. "Falta algo a esta menina. Parece tão formal, tão presa! É a primeira vez que a vejo rir desde que cheguei."
- O helicóptero inclinou-se para a esquerda. Aproximavam-se de um descampado dentro da própria fazenda. Sobrevoaram a casa-sede, branca como todas as casas de fazenda da Nova Inglaterra. Uma trilha descia pela colina, da casa até a estrada rural. No meio da trilha havia um tronco enorme. Uma mulher estava sentada sobre ele. Cobria os olhos com a mão, protegendo-os do sol forte de agosto, enquanto acompanhava o movimento do helicóptero.
- O aparelho pousou, fazendo voar as plantas secas a seu redor. Ele abriu a porta e desceu, voltando-se para pegar a garota. Ela sorriu e pulou. Enquanto as hélices diminuíam a velocidade, ele se afastou, abaixado, com Mattie em uma das mãos e a valise na outra.
- Mattie o fez parar, observando, encantada, as hélices que ainda giravam.
- O senhor veio em grande estilo, hoje, sr. Francis!
- A voz atrás dele era firme. Tinha um torn grave e envolvente. Ele se virou.
- Oh, desculpe! O senhor não é. Aonde está o sr. Francis? - ela perguntou.
- Está no hospital, com uma úlcera supurada - respondeu, áspero.
- Precisava amedrontar um pouco aquela mulherzinha antes de conversarem. Ela não devia ter mais do que um metro e cinqüenta. O cabelo cor de mel caía-lhe sobre as costas em duas tranças largas. Os olhos... seriam cinzentos? Verdes, talvez. O rosto redondo, com o nariz cheio de sardas, era bonito, mesmo sem maquilagem. Sob a blusa larga e a saia franzida podia-se adivinhar um corpo bem-feito. Quantos anos teria? Vinte, vinte e cinco? com certeza tinha se casado muito nova!
- Sou Latimore. Bruce Latimore - disse, apertando a pequena mão da moça.
- Sou a sra. Chase. Mary Chase - ela respondeu. - O sr. Francis está mesmo doente? Que pena! Já faz quase três anos
- que negocio com ele. E a esposa? Como os filhos estão reagindo à doença do pai? - perguntou, parecendo realmente preocupada.
- Pelo visto, a senhora conhece bem o sr. Francis! - ele comentou, franzindo a testa.
- "Então era isso que andava acontecendo! Muita conversa fiada, só para manter o Francis bonzinho! ", pensou.
- Claro que sim - ela respondeu, irritada. - Ele é um homem correto, muito considerado por aqui, se quer saber. O senhor deve ter sobrecarregado o pobre homem de serviço, para lhe causar uma úlcera dessas! - Jogou as trancas para trás e começou a subir a colina, fazendo sinal para que ele a seguisse.
- Para sua informação, sra. Chase, o sr. Francis cuidava apenas do seu caso nos últimos dois anos. Era o seu único trabalho!
- Logo chegaram ao tronco em que ela esteve sentada, esperando.
- O caso não é só meu, sr. Latimore. Olhe este tronco
- disse, apontando-o. - A árvore tinha duzentos e vinte e cinco anos quando um raio a derrubou. Era um marco histórico de Eastboro, nossa Árvore da Liberdade. E está vendo aquelas ruínas de pedra logo abaixo? A cidade se desenvolveu ali, até construírem a Via Postal, por volta de 1795. Foi então que os moradores se mudaram. Este é um lugar cheio de tradição e história, sr. Latimore. Já tinha pensado nisso?
- Realmente não sei muita coisa sobre a região. Minha família só se estabeleceu aqui por volta de 1919. Não estou pretendendo muito, sra. Chase. Quero apenas construir minha estrada - respondeu, seco.
- Durante a conversa, Mattie ficava escondida atrás das pernas do pai, mas agora saía de mansinho, olhando a mulher à sua frente com muita curiosidade.
- Você não parece uma bruxa. Nem um pouquinho - disse, com aquela sinceridade infantil que faz os adultos corarem de vergonha. Recebeu do pai uma sacudidela no braço.
- Ah, então é esse o problema! - Mary exclamou. - Seu pai lhe disse que eu era uma bruxa? E você é. um menininho bonito! Que olhos lindos você tem! - Mary continuou, ajoelhando-se ao lado da garota.
- Não sou menino coisa nenhuma! - Mattie protestou.
- Pois não é mesmo. Agora estou vendo bem. É uma menina. Que sorte a sua! - comentou.
- Ouviu o que ela disse, papai? Mas por que diz que é sorte? - perguntou a Mary.
- Por quê? Por uma porção de coisas. É uma grande vantagem ser mulher, sabia?
- Não, não sabia. Lá na casa dos Driscoll só tem meninos maiores do que eu. Vivem me dizendo coisas ruins e até me batem quando ninguém está olhando!
- Viu só? Isso é uma prova. Eles têm é inveja de você. Repare bem: somos mais bonitas que seu pai, não é?
- É. somos. Nós duas? - a menina perguntou, cheia de dúvidas.
- Nós duas. E nem precisamos nos barbear todo dia como seu pai. Ou você gostaria de ter barba?
- Eu não! Deve pinicar. Minha mãe também era mulher.
- Mais uma prova. Ser mãe é a melhor coisa do mundo, e só as mulheres podem ser mães. Venha. Vamos lá em casa para comer biscoitos e tomar leite. Você quer? - Mary convidou.
- Claro que eu quero. Papai também pode ir?
- Se ele quiser, pode.
- "Oh, meu Deus! ", ele pensou, seguindo as duas até a casa. "Em menos de cinco minutos essa mulher tomou conta da situação. E o pior é que já me roubou a filha . Espertinha! E eu que pensava encontrar uma caipirona! Não devia ter vindo direto da Venezuela para resolver este caso. Precisava ter dormido pelo menos uma noite. Também não tinha nada que trazer Mattie comigo. Já perdi dois pontos. O que está acontecendo com o grande empresário? "
- As duas iam à sua frente conversando como velhas amigas. Mattie saltitava, segurando a mão de Mary, e ria muito. Ele observava aquela mulher sem compreender direito o que o incomodava. Tinha quadris bonitos e pernas bem torneadas. Sobre as costas retas desciam aquelas tranças estranhas, que chegavam quase até a cintura. E Mattie parecia outra, desde que desceram do helicóptero. Como? "Pense, homem, pense!"
- Quando as duas subiram os degraus da varanda que rodeava a casa, uma jovem surgiu à porta.
- Becky, temos visitas. Ponha água no fogo, por favor
- Mary pediu.
- Já estou indo, Ma - a garota respondeu, entrando.
- Todos a seguiram.
- As contas dele se embaralharam: a garota que apareceu devia ter uns catorze ou quinze anos; os cabelos eram escuros e cacheados; os olhos negros e a pele um pouco mais escura do que a da... mãe? E, fosse qual fosse a idade da garota, ela já estava uns três dedos mais alta. do que a mãe. - - ?Mary Chase teria, então, trinta e cinco? Quarenta? Impossível! Parecia nova. Não, melhor parar de pensar antes de ficar maluco.
- Mary adorava conhecer as pessoas, observando como reagiam diante-de situações inesperadas. E era com isso que estava se divertindo agora. Ele viera pronto para arrasá-la com sua autoridade masculina, mas ficara totalmente desnorteado vendo todas as atenções voltadas para a garotinha. E Becky acabara de lhe pregar outra peça. "Bem, ele ainda vai ter que engolir mais um ou dois sapos antes de ir embora! ", ela pensou.
- A mobília da sala era confortável, e sólida o bastante para agüentar homens grandes e fortes como seu marido, o Coronel. Não deixava de ser engraçado que continuasse a pensar nele como "o Coronel", cinco anos depois de sua morte. Era um homem grande como esse que agora ocupava a cadeira favorita do falecido.
- O senhor aceita um café, sr. Latimore? Mattie, quer ir ajudar Becky na cozinha?
- A menina pulou do sofá e correu para onde Mary apontou.
- Que amor de menina, sr. Latimore - Mary comentou, quando ela saiu.
- Quer me chamar de Bruce, por favor? É assim que meus amigos me chamam.
- Interessante - ela respondeu com frieza.
- A senhora também tem uma filha muito bonita.
- Rebeca? Ela é mesmo um amor. Quase uma cópia do meu marido. Ele era alto e tinha cabelos pretos. Ela está com quinze anos agora. O Coronel. teria muito orgulho dela se estivesse vivo.
- O Coronel?
- Meu marido. O nome dele era Henry, mas nós o chamávamos de Coronel. Era oficial reformado do Exército.
- Eu não sabia. Pensei que fosse fazendeiro.
- Também era. Comprou estas terras quando se aposentou. Conseguiu transformá-las numa fazenda experimental modelo. Gostou daqui, sr. Latimore?
- Sim, a fazenda é muito bonita... Será que podíamos tratar de negócios, sra. Chase?
- Quando quiser. Mas o café já vem chegando e é uma pena deixá-lo esfriar, não acha?
- Becky acabava de entrar com um carrinho com café, leite e biscoitos. Mattie vinha atrás, carregando as xícaras. Mary serviu café com leite para as garotas e café para Latimore e ela. Mattie a admirava, surpreendida.
- Papai, Becky disse que ela ali não é velha. E que nem tem vassoura que voa. Não acho que possa ser uma bruxa velha.
- Becky, tentando permanecer séria, comentou:
- Não. Juro que Ma não é uma bruxa velha. Na verdade, ela só tem vinte e um anos.
- Bruce sentiu-se atacado por todos os lados e falou rápido, para impedir que a filha continuasse:
- Depois a gente fala sobre isso, Mattie. Desculpe, sra. Chase - resmungou, vermelho. - Acho que eu estava pensando alto no helicóptero e... ela não entendeu bem.
- Não se preocupe. Não estou ofendida, senhor... Latimore. Todas as mulheres têm um pouco de bruxa dentro de si.
- Bem, já que não se ofendeu, talvez possa lhe fazer uma pergunta. Tem mesmo vinte e um anos?
- É uma brincadeira de família. Jurei que nunca passaria dos vinte e um - ela explicou.
- Mas já comemoramos um porção de aniversários de vinte e um, não é, Ma? - Becky interrompeu, rindo.
- Mattie, ainda cheia de dúvidas, voltou à carga:
- Ela também não tem rabo, pai. Como é que vamos pegar ela pelo rabo? Acho que você não sabe de nada.
- Acho que não, mesmo - ele disse e desconversou. - Os biscoitos estão uma delícia. São de alguma confeitaria daqui de perto?
- Não, é Ma quem faz os biscoitos, o pão e muito mais coisas. Ela sabe fazer de tudo! - Becky informou.
- A própria Mulher Maravilha! - Mary riu. - Não se deixe levar pela conversa de Becky, sr. Latimore. Faço o que qualquer mulher de fazenda faz. É só uma questão de prática.
- Agora, Becky, o que acha de levar Mattie para um passeio? Aposto que ela nunca viu de perto vacas, porcos ou galinhas.
- Becky pegou Mattie pela mão e as duas saíram.
- Incrível! Ela não reclamou nenhuma vez! - Bruce comentou, admirado.
- Mary tinha descalçado as sandálias e sentado sobre os pés.
- Becky é muito obediente. Mas não é só por minha causa. O Coronel era fanático por disciplina. Mas ela é uma garota madura e doce, tem uma conversa inteligente e se preocupa muito comigo. Além de tudo, tem iniciativa no trabalho. Nós nos damos muito bem.
- Coisa rara, na idade dela. Mas agora. - ele disse, abrindo a valise.
- Antes de tratarmos de negócios, posso fazer uma pergunta pessoal? - ela interrompeu.
- Ele parou com o zíper na metade do caminho, olhando para Mary com curiosidade. Concordou com a cabeça.
- Por que sua filha não sabe que é uma garota?
- A pergunta deixou-o pasmado. Não era o assunto que esperava e precisou parar e pensar. Na verdade, a mesma questão o perturbara no helicóptero. "Por que minha filha não sabe que é uma garota? De quem é a culpa? "
- Eu. não estou entendendo - gaguejou. - Bem, ela sabe que não é um garoto, se é disso que a senhora está falando.
- Não, não é isso, sr. Latimore. Ela não sabe o lado positivo de ser. mulher. Não conhece os segredinhos que as garotas conhecem e que os garotos nunca descobrem. Por que ela não sabe nada disso?
- Não sei do que está falando - ele se defendeu. - Mattie perdeu a mãe quando tinha um ano. Eu viajo sempre e ela fica com uma família, uma família muito recomendada, por sinal, e... Ora! Não sei, mas acho que ela precisa de uma mãe.
- Acho que tem razão - Mary disse, recostando-se na cadeira com o último biscoito de chocolate na mão.
- A senhora está se candidatando ao posto? - ele perguntou, com mordacidade.
- Não, senhor. Tenho muito com que me ocupar.
- Mary achou que já tinha atacado muito e deixou passar aquela ofensa. Sorriu para ele com um pouco mais de suavidade. Bruce acabava de tirar da pasta um documento de quase quinhentas páginas.
- Aqui está o documento que esperávamos - disse. - "Estudo do Meio Ambiente para a Auto-estrada 695."
- É bem grandinho. Foi isso que o senhor levou nove meses preparando?
- Bruce passou-lhe o documento. Era tão pesado que ela quase o deixou cair sobre a louça da mesinha.
- Foi sim, senhora - respondeu, irritado. Mas resolveu se controlar. - Como a senhora deve se lembrar, o Tribunal Superior de Justiça mandou parar a construção da estrada porque não havia um estudo desse gênero sobre a fazenda Somerfield. O fato de a senhora ter mandado prender meus pesquisadores por invasão de terra também não ajudou muito. Mas agora está pronto. De acordo com as instruções do juiz, seu advogado recebeu uma cópia, duas outras foram apresentadas à Corte para estudos, e teremos uma audiência depois de amanhã. Por certo a senhora não dá atenção a detalhes, é claro. Espero poder começar o trabalho já na segunda-feira.
- "Mas que porco chauvinista! ", ela pensou. "Acha que só porque sou mulher não tenho capacidade para entender disso!"
- Logo vi que o senhor está com pressa - riu. - Todo seu equipamento pesado chegou aqui às seis da manhã, hoje. Não foi nada agradável. Vai nos avisar antes de derrubar a casa, pelo menos?
- Parecia que apenas folheava as páginas do enorme relatório, mas estava atenta ao índice.
- com certeza - ele respondeu, confiante.
- Mary percebeu que Bruce falava como um ator. Reforçava a voz aqui e ali, fazia pausas de efeito. com algum esforço, conteve o riso. com o cigarro aceso na mão, ele olhava em volta, agitado. "Pode ser importantíssimo", ela pensou, irônica, "mas também se perde."
- Desculpe. Mas não acho nenhum cinzeiro. Sentindo que a sala ficava cada vez mais quente, ele tentavaafrouxar o nó da gravata, segurando o cigarro como se este tivesse se transformado numa cascavel.
- Não temos nenhum - ela informou, com calma. - Ninguém aqui fuma.
- Deixou que ele padecesse um pouco mais, até estar prestes a apagar o cigarro na própria mão. Então, estendeu-lhe um pratinho vazio, voltando a folhear o documento, com calma.
- Já mandou uma cópia ao meu advogado? - perguntou. O dr. Momson? Sim, já mandamos. Sujeito engraçado, aquele.
- Engraçado? Se o senhor dissesse "diferente", eu concordaria - ela disse, ainda lendo o relatório. - Não deve se esquecer de que o dr. Momson está com oitenta e dois anos.
- Não compreendo seu advogado - ele comentou. - Momson parece incapaz de defender um cliente até em multa de trânsito, mas, contra nós, apresentou argumentos legais como nunca tinha visto antes!
- Ele não tem o mesmo vigor de um jovem, é verdade. Sou sua única cliente, no momento. Aposentou-se há uns dez anos e só concordou em me ajudar por ser muito amigo do Coronel.
- O Coronel?. Ah, sim. Seu marido.
- Sinto muita falta dele, sr. Latimore. Fomos casados por pouco tempo, mas sinto muita falta dele. O senhor tem sorte. Se o Coronel estivesse aqui, enfrentaria seus tratores com um tanque de guerra, sem dúvida. Tinha pavio curto, como se diz.
- Devia cuidar de tudo com mão de ferro.
- Claro que sim - ela disse, emocionando-se. - Cada um de nós tinha um papel definido. O lema dele era amor, respeito e obediência. Era.
- Mary não conseguiu conter as lágrimas. Ele se debruçou por cima da mesa, oferecendo um lenço. Ela enxugou as lágrimas, observando que não lhe faltava diplomacia.
- É sempre assim - ela informou, - Sempre choro. Sou muito sensível. O senhor deve conhecer o tipo. com o Coronel era amor, respeito e obediência, e eu adorei cada minuto que estive com ele. Cada minuto!
- Tenho inveja desse homem - Bruce falou.
- Mary percebeu sua sinceridade e agradeceu. Fechou o relatório e o colocou sobre a mesa.
- É grande demais. E o senhor não espera que eu conpreenda tudo, não é? - disse, rindo.
- Claro que não - ele riu, também. - Está escrito em linguagem técnica, para o juiz. Mas, acredite: é um relatório profundo e completo.
- Mary achou-o confiante demais. Recostando-se outra vez, pôs-se a observá-lo. Era alto, forte. Não, não era gordo; ao contrário, nada sobrava. Havia uma certa elegância em seus movimentos. Rosto másculo, lábios que marcavam uma boca firme, sorriso fantástico. O nariz seguia o padrão romano. Os olhos eram escuros, as sobrancelhas grossas. Devastador: esta era uma boa palavra para defini-lo. Qual seria a posição de sua firma? Latimore Construction Corporation! Tentando disfarçar um arrepio, Mary disse:
- Acho que vou ter que acreditar no senhor. Já estudou as alternativas que propusemos?
- Alternativas? Não, acho que não. Até que o sr. Francis fosse parar no hospital, eu só lia os relatórios dele; não fiquei a par desse caso. Talvez não seja preciso. Quando a Justiça nos der ganho de causa, vamos terminar esta estrada em menos de quatro semanas.
- E arruinar uma das melhores fazendas experimentais da região - ela completou, ácida.
- Não tinha pensado nisso - ele admitiu, baixando a cabeça. - Mas a estrada vai beneficiar a comunidade, a senhora sabe, e por isso o Estado promoverá a desapropriação. Qual é o seu problema, na verdade?
- Ora, não há problemas - ela ironizou. - Sua estrada vai rasgar nossa fazenda pelo meio, estragando o melhor pedaço de terra que temos e separando as partes que sobrarem. O pior é que precisaremos andar uns dez quilômetros para alcançar o retorno que nos permite chegar ao outro lado. E já pensou como o barulho vai, perturbar as vacas? Olhe este mapa aqui. Se o senhor desviar sua estrada um. pouco mais para o sul, poderá ficar com o trecho rochoso dos limites da fazenda, deixando a área produtiva para nós. Seria um ótimo acerto para ambas as partes.
- Sinto muito, sra. Chase, mas acho que é um pouco tarde. Os planos já estão traçados pelo governo e temos que obedecer, a senhora sabe.
- "Sim, senhor! Você e seus amigos do governo! ", ela pensou. "Tudo se compra com dinheiro. Cada um fica com sua parte. Duvido que fizesse o mesmo se fosse com um parente seu!" Cruzou os braços e fitou-o com raiva. "Espere só. O senhor vai receber o troco, seu Grande Coisa!" Estava preparada para dizer-lhe umas boas, quando Mattie e Becky entraram na sala. Mattie correu e pegou as mãos do pai:
- Paizinho, as galinhas estão correndo como loucas. As vacas estavam deitadas, comendo. Tinha um bode com sino no pescoço e...
- Bruce pegou a filha no colo e deu-lhe um beijo e um abraço carinhoso.
- Precisamos voltar a Boston, querida. já terminei a conversa com a sra. Chase e acho que ela precisa retomar o trabalho da fazenda.
- Mary levantou-se e calçou as sandálias.
- O senhor precisa ir tão cedo, sr. Latimore? O sr. Francis sempre ficava para o jantar.
- Preciso - ele respondeu. - vou jantar com uma pessoa esta noite e ainda tenho que levar Mathilda de volta à casa dos Driscoll.
- Ah, não, pai! Você disse que ia ficar comigo! - a garota protestou, batendo o pé no chão.
- Eu sei, querida, mas tinha me esquecido do jantar com a Helena. Você gosta da Helena.
- Não, não gosto mais! Gosto daqui. Quero ficar com a Becky e dona Mary!
- Um barulho na cozinha atraiu a atenção de todos. Mary sorriu, pensando na sorte de Bruce. O ruído interrompeu a birra da garota. A porta da cozinha se abriu.
- Oi, Ma. A Ana quer aquela receita de geléia - uma voz grave pediu.
- Está na gaveta de receitas, Henry. Vem aqui um pouco. O homem que entrou devia ter uns trinta anos. Era alto, de
- cabelos pretos e vestia um jeans surrado e uma camisa xadrez.
- Este é meu filho Henry, sr. Latimore. Henry, este cavalheiro é da companhia da estrada.
- Ela se deliciava com o ar de espanto de Bruce que, de olhos arregalados, tentava recalcular sua idade. Os dois homens se apertaram as mãos, desconfiados. Henry não participava muito, do jogo que tanto divertia Mary e Becky. Permaneceu calado.
- Henry é o verdadeiro fazendeiro da família - Mary explicou. - Ele e a esposa moram na casa que fica mais abaixo.
- Indicando a menina, completou as apresentações. - E esta é Mattie, filha do sr. Latimore.
- Henry, que adorava crianças, sorriu com prazer.
- Olá, Mattie. Que bom ter vindo nos ver.
- Quero ficar na sua casa - a menina disse, séria.
- Mas não pode. já vamos embora - o pai respondeu.
- Foi um prazer conhecer vocês, Henry e Becky. Até logo, sra. Chase.
- Ele saiu, puxando Mattie pela mão. Mary acompanhou-os até a porta e esperou que entrassem no helicóptero.
- Eles não vão voltar? - Henry perguntou, ansioso.
- Vão, sim - Mary riu. - Talvez na sexta ou no sábado, acho. Que homem durão, decidido! O sr. Francis está no hospital. Não é uma pena?
- Henry sorriu e passou o braço por trás dos ombros de Mary.
- Você não tem jeito, Ma. Se fosse eu, acho que preferia plantar batatas no deserto do Saara a brigar com você. Estava brincando de "Madrasta Má" outra vez?
- Não faço por maldade - ela riu. - O Coronel queria que vocês ficassem com a fazenda e eu prometi a ele que isso aconteceria. Becky, ligue para o dr. Momson. Diga-lhe que o estudo sobre o meio ambiente não diz uma palavra sobreo banhado. Ele já sabe do que se trata. Tem uma nova lei estadual que proíbe qualquer construção que ameace o equilíbrio ecológico. E você, Henry, fez o que eu pedi?
- Claro. Vasculhei tudo lá no lado esquerdo e achei artefatos índios, como você disse. Sabe, estou me divertindo com isso!
- Mas não contem com os ovos antes de a galinha botar
- Mary alertou. - O homem quer ver a estrada construída de qualquer jeito. Faria tudo para terminar a obra. Mas coitada da menina! Ela conversou com você, Becky?
- Só um pouco, Ma. Ela se sente sozinha. Adora o pai, mas quase nunca ele pára em casa. Acho que eu também ficaria assim se o Coronel não tivesse se casado com você. Nós tivemos sorte, não é, Henry?
- Isso mesmo, Becky. Tem razão - Henry respondeu, abraçando a madrasta.
- Eu também tive sorte - Mary disse. - Foi maravilhoso ter me casado com seu pai.
- Começou a recolher a louça usada, pensando no passado. Becky logo se encarregou de terminar a tarefa. Mary ficou observando os cabelos negros da garota, que caíam por cima dos ombros, o corpo de mocinha escondido pela blusa e as calças de brim azul. Quinze anos. Mary Kate fora morar na fazenda dois dias depois do nascimento de Becky. Tinha apenas doze anos, então. com a morte da primeira esposa do Coronel, logo após o parto, ela e a mãe foram contratadas para cuidar da casa. Quatro anos depois, por um ataque de coração roubou-lhe a mãe. Viu-a rindo, num instante; no outro, morta. Naquela hora difícil, afeiçoou-se ainda mais à pequena Becky. Um ano mais tarde, casou-se com o Coronel, um homem que conhecia as virtudes do mundo e respeitava a honestidade. Tinha apenas vinte e dois anos, e cinco de casamento, quando assistiu à vez do Coronel. Antes de morrer, porém, ele a fez prometer uma coisa que agora, aos vinte e sete, ainda estava disposta a cumprir.
- Esse tal de Bruce Latimore é um pedaço de homem!
- Becky comentou, interrompendo os pensamentos de Mary.
- Como? Ora, Becky! Sabe que ele parece ter aquela força interior de seu pai? Não sei por quê, mas acho que é o tipo de homem que tem muito a dar. Só precisa se organizar melhor.
- Ma! Na sua idade! Que idéias andam passando por sua cabeça? - Becky riu.
- Mary, vermelha, sentou-se. Precisava pensar.
Ao contrário do que esperava, Bruce não apareceu na sextafeira, mas Mary tinha mais com que se preocupar. Na quinta, passou o dia todo junto ao fogão, assando biscoitos e tortas para a quermesse da igreja. Na sexta, estudou de manhã e, à tarde, cuidou da casa. Depois, como em todas as terças e sextas, foi assistir aulas em Boston.
- Naquela noite, voltou para casa cansada e irritada com as bobagens que o professor dissera durante a aula. Estranhou que ainda houvesse luz acesa. Becky esperava por ela, inquieta. Enquanto tomavam chá, a garota falou sobre a festa à qual fora com o irmão e a cunhada. Depois de ouvir todos os detalhes, Mary tomou um banho e foi para o quarto. Deitou-se, mas não dormiu: sabia que alguma coisa estava incomodando Becky. Dez minutos depois, a moça entrou, sem jeito. Mary fez sinal para que sentasse a seu lado.
- Tudo bem, Becky? Conte de uma vez o que houve de especial esta noite.
- Ih, Ma. Você é mesmo uma bruxa, hein? Sabe, eu encontrei. conheci o Harold, Ma, filho do dr. Everest.
- Ah! Então se trata da mesma velha estória.
- Ele é simpático demais, Ma. Dançamos quase todo o tempo. Depois saímos um pouco.
- E daí? Ficaram olhando as estrelas? - Mary provocou.
- Becky encostou a cabeça no ombro da madrasta e começou a contar como foi seu primeiro "beijo de verdade", a emoção que sentiu. Mary ouvia, sorrindo, mesmo quando Becky repetia algumas cenas.
- Não está zangada comigo, Ma?
- Claro que não, Becky. É natural que uma garota da sua idade se sinta atraída por um rapaz, que sinta o sangue esquentar por causa dele. O jogo do sexo garante que a raça humana continue existindo. E, talvez, isso contribua para fazer dele o jogo mais gostoso do mundo... desde que os dois parceiros conheçam as regras!
- Sem esconder seu entusiasmo, Mary explicou à filha os detalhes do jogo, suas regras e o efeito que tem sobre as emoções da mulher. A conversa estendeu-se até as duas da manhã, com mais algumas xícaras de chá. Becky fazia muitas perguntas e, às vezes, se divertia com as respostas. Mas já não conseguia vencer o sono.
- Mary ficou olhando a garota que dormia com os lábios entreabertos e os cabelos negros espalhados sobre o travesseiro, como fios de seda. Depois apagou a luz, cobriu-se e também adormeceu. Enquanto Becky sorria, certamente por causa de Harold, Mary, por algum motivo sem explicação, via o rosto de Bruce surgir em seus sonhos.
- Embora fosse sábado, dia de se levantar mais tarde, Mary acordou às sete da manhã, com o barulho de máquinas. Por trás das cortinas brancas da janela de seu quarto, viu que cinco enormes caminhões levavam embora a escavadeira e os quatro tratores que tinham ficado na fazenda a semana inteira. Como uma esquadra de guerra em retirada, sumiram pela estrada inacabada.
- Becky ainda dormia tranqüila, cem o travesseiro sobre a cabeça, Mary vestiu-se e desceu para tomar café. Da pilha de livros que deixara sobre uma cadeira da cozinha, na noite anterior, pegou o volume mais grosso: "Delitos", um estudo sobre os ritos de iniciação no sistema tribal. Fez uma careta. Era um livro maçante, que o autor - um de seus professores, é claro impusera aos alunos para que discutissem pelo curso afora. Irritava-a constatar que, na carreira universitária, muitas vezes valia mais a importância que cada qual se dava do que a própria competência. E ainda faltava tanto para se formar!
- Ao tomar a segunda xícara de café, uma pergunta a inquietava. Por que levaram embora os tratores? Talvez o caso do banhado tivesse influenciado Bruce, mas ele não se deixaria dobrar por muito tempo. O que estaria planejando? Era inconcebível que desistisse da briga. Afinal, mostrava-se decidido a terminar aquela estrada a qualquer custo. Ainda pensando no assunto, arrumou a louça na lavadora e subiu para pegar a bolsa. Vinte minutos mais tarde chegava à cidade.
- O Mustang branco tinha já catorze anos e deu trabalho na subida do morro. O velho motor morreu duas vezes no sinal vermelho. Quando, enfim, conseguiu estacionar diante do supermercado para a compra semanal, encontrou seu advogado.
- Ele esperou que ela parasse e entrou no carro. Estava bem elegante para uma manhã de sábado: vestia terno cinza, camisa azul escura e uma gravata imaculada de tão branca. O chapéu, também branco, quase encostava nos óculos, e escondia os poucos fios de cabelo branco que lhe restavam.
- Entra o segundo conspirador pela ala direita - ele disse, com sua voz empostada de advogado.
- Será que estou enganada, Charles. ou você andou "comemorando" logo cedo? - Mary perguntou.
- Um brinde, minha querida. Foi só um brinde - ele riu. Dois azulões vieram namorar na minha janela esta manhã. Precisava brindar a ocasião e o conhaque estava bem à mão.
- E daí?
- Daí a garrafa acabou e eu lancei-a contra eles. Aqueles dois barulhentos estavam pensando que minha janela era um bordel! Odeio pássaros! Por falar nisso. já deve ter ouvido dizer que seu passarinho caiu na armadilha lá no tribunal.
- Tudo graças à sua habilidade, Charles.
- Ela apertou o ossudo braço dele com carinho. Charles Momson tinha sido um homem forte, sempre disposto a pescar e passear pela fazenda com o Coronel. O tempo o transformara num saco de ossos.
- Ele lhe deu trabalho? Houve algum problema? - ela perguntou.
- Devo reconhecer que este é dos mais espertos que já vi. Também, cometi um erro clássico. Apontei a omissão para a Corte bem mais rápido do que seria recomendável.
- E o que aconteceu, então?
- Nada. Mas é isso que me preocupa. Imagine, Mary, que ele veio apertar minha mão! Não estava zangado, quando devia estar. Foi um golpe baixo. Depois voltou para seu lugar e pediu licença ao tribunal para mandar um pessoal inspecionar a área do banhado. Aleguei que estranhos na fazenda podiam perturbar as vacas, mas ele já conhecia esse truque. Em resumo: acabou conseguindo a permissão e acho que logo vai aparecer por lá. Que argumento vamos usar da próxima vez?
- Que tal aquele do cemitério, Charles? Você tem todos os dados, não é?
- Sim, claro, Mary. Bem, é melhor você fazer suas compras. Preciso dar uma passada no clube e... sabe como é...
- Para ver se encontra mais passarinhos para brindar?
- Os dois riram e o velho se despediu, tirando o chapéu. Enquanto procurava o sabão, pedia a carne e relia a lista para ver se não tinha esquecido nada, Mary duelava mentalmente com Bruce Latimore. Até na hora de pagar a conta continuava a pensar nele.
- Deixou o estacionamento. O carro parecia se arrastar pela avenida principal, mas logo ela entrou por uma rua estreita e estacionou em frente à igreja. Era uma construção antiga, de madeira branca. Foi até o salão paroquial e voltou trazendo as latas nas quais mandara os biscoitos para a quermesse. Depois, como de hábito, abriu, ao lado da igreja, o pesado portão de ferro que dava acesso ao cemitério.
- O sol estava agradável e Mary aproveitou para arrancar as ervas daninhas entre as plantas que cercavam o túmulo do Coronel. A placa, em mármore negro, ainda brilhava. Só há alguns meses Mary conseguira juntar dinheiro para mandar fazê-la. Ao lado de uma pequena bandeira, trocada todos os anos pela Legião dos Veteranos de Guerra, uma inscrição dizia: "Coronel Henry Edison Chase, Exército dos Estados Unidos, falecido em seu sexagésimo aniversário. Descanse em paz".
- Depois de visitar também a sepultura da mãe, Mary sentou-se num banco, à sombra das árvores. Fechou os olhos para meditar, mas logo ouviu uma voz atrás de si.
- Não disse, pai? É. ela, sim. Fale com ela! Mary virou-se sorrindo.
- Mattie! Que bom ver você outra vez! Como está bonita com esse vestido!
- Atrás da garota vinha a figura alta e imponente de seu pai, mas Mary evitou olhá-lo. Abriu os braços para Mattie, que se aninhou em seus braços. Mary voltou a fechar os olhos, sentindo em seu rosto o cabelo macio da garota. Parecia que Becky era criança outra vez, que a figura protetora do Coronel ainda permanecia entre eles e que o mundo inteiro estava em paz.
- E para mim, nada? - Bruce perguntou, com sua voz grave.
- Desculpe, mas não posso pegar o senhor no colo - ela respondeu com frieza.
- Ele chegava num mau momento, encontrando-a sem defesas e com a sensibilidade à flor da pele. Mary corou e contraiu os lábios. Seus olhos ameaçaram encher-se de lágrimas. Pôs Mattie no chão com cuidado, respirou fundo, tentando se recompor, e fitou-o.
- Não esperava encontrá-lo num lugar como este. O senhor esteve na audiência da Corte?
- Estive, sim. E devo confessar que seu advogado nos fez passar um certo apuro. Mas como poderíamos saber que havia um banhado em sua propriedade, se nunca deixou meus homens entrarem lá?
- Foi a conselho de meu advogado - mentiu. - Ficou zangado?
- Não, claro que não - ele riu. - Mas quero chamar sua atenção para um detalhe: posso ser passado para trás uma, ou até duas vezes, mas eu vou construir aquela estrada, sra. Chase.
- Não duvido. Mas o que o traz aqui?
- Estávamos passando e a vimos pela grade - respondeu.
- O sorriso nos lábios de Bruce fez Mary sentir-se como um coelhinho sendo caçado por um gavião. Encolheu-se. Ele riu. "Será que ele lê tudo em meu rosto? ", ela pensou, esforçando-se para compor uma expressão neutra.
- Bem, só estava imaginando o que o senhor veio fazer aqui em Eastboro.
- Já alerta, sentia-se preparada para ouvir o que quer que'ele dissesse.
- Pensei que já soubesse, sra. Chase. As novidades costumam voar numa cidadezinha como esta.
- Nós nos mudamos! - Mattie interrompeu. - Não moramos mais em Boston, dona Mary. Agora peça para ela, papai.
- Não se apresse, princesa. Uma coisa de cada vez, minha filha.
- Vai me pedir o quê? - Mary perguntou.
- Nós. Mattie e eu... achamos que passar o resto do verão no campo seria. saudável, se é que me entende.
- Ele mandou embora a sra. Driscoll e comprou uma casa
- para nós, perto da igreja. Vamos morar aqui no verão, só nós dois! Mas tem um problema, dona Mary.
- A menina parou para recuperar o fôlego, fitando Mary com os olhos suplicantes. Era difícil ignorar aquela figurinha que se apoiava em seus joelhos, mas a cabeça de Mary trabalhava em ritmo acelerado. Ele tinha comprado uma casa e se mudado para Eastboro! Por quê? Para ter certeza de que a estrada seria construída? Para cuidar pessoalmente dos problemas que estavam atrasando a construção? Que outra razão teria? Enquanto ela se interrogava, sem encontrar respostas, Bruce caminhava entre os túmulos.
- Deve vir aqui sempre, não é? É uma coisa que não se vê muito na cidade grande, hoje em dia - ele comentou.
- Tento vir toda semana. Aquele túmulo ali no canto é o de minha mãe - ela explicou.
- Ah, faz onze anos que ela morreu! - Voltava-se para Mary quando a placa lhe chamou a atenção. - Pelo menos você não ficou sozinha no mundo - prosseguiu. - Seu avô só morreu há cinco anos.
- Meu avô?
- Foi o mesmo que receber uma bofetada. Lá estava Bruce, ao lado do túmulo de seu marido, pensando tratar-se de seu avô! Na cidadezinha, todos sabiam de seu amor pelo Coronel e nunca fizeram um só comentário maldoso, nunca disseram nada que a magoasse. E agora aquele. estranho. a feria daquela maneira!
- Tentando enxergar através das lágrimas, Mary negou a sacola e as latas e correu para o portão. Pela primeira vez, em três anos, chorava copiosamente pelo Coronel. Apressou o passo, ao perceber que Bruce vinha atrás de si.
- O que aconteceu, papai? O que você disse para ela? Mattie perguntava, correndo atrás dele.
- Não sei! Não sei! - disse, alcançando Mary. Ela chegou a abaixar o trinco, mas ele impediu que abrisse o velho portão de ferro.
- Me deixe em paz! - pediu, soluçando.
- O que foi que eu disse? - ele insistiu - Eu não. Ela deu-lhe as costas e começou a procurar um lenço na bolsa.
- Mattie veio correndo e abraçou-a pela cintura, tentando confortá-la sem palavras. Mary passou a mão nos cabelos sedosos da menina e parou de chorar. Enxugou as duas últimas lágrimas com o lenço e assoou o nariz. Esforçou-se para sorrir.
- O que queriam me pedir? - perguntou.
- Depois a gente pede - ele respondeu. - Aquele não era seu avô?
- Não.
- Que idade tinha quando se casou?
- Ela levantou a cabeça e o encarou. Não via nada naquele rosto, além do brilho predador nos olhos azuis.
- Dezessete anos. E o senhor? Que idade tinha quando se casou, sr. Latimore?
- Eu. Ah, agora entendi. Desculpe. Pelo visto, não estou me saindo muito bem. hoje.
- Ele não parecia envergonhado com o fato. O que estaria querendo? Mary não conseguia pensar com clareza, mas tentou se concentrar. Havia muita coisa em jogo; não era hora de deixar que as emoções interferissem. Precisava pensar em Becky e Henry,
- O que queriam me pedir? - repetiu.
- Encostou-se na grade de ferro. Precisava de apoio, pois suas pernas tremiam.
- Bruce ajudou-a a se sentar no banco junto ao portão, comentando:
- Está tão pálida! É melhor sentar para não cair.
- Estou bem, obrigada. Mas o que queriam?
- Ele sentou-se ao lado dela. Mas o banco parecia pequeno demais para os dois. A perna de Bruce roçava a de Mary, trazendo uma sensação que ela há muito tinha esquecido, despertando instintos que não queria lembrar naquele momento! Bruce passou o braço por trás dela, sobre o encosto do banco. Em meio a toda a perturbação, ela não deixou de observar que sua cabeça mal chegava ao ombro dele. Precisaria de uma escada se quisesse se aconchegar ali... Se quisesse? Mary tentou não pensar mais e controlar suas emoções. Cruzou as mãos sobre o colo e fixou os olhos nas pedras do chão, quando Bruce voltou a falar.
- Sobre aquele pedido. Mattie e eu já estamos instalados na casa, mas nossa governanta só poderá vir na próxima quartafeira. Amanhã eu preciso pegar um avião para a Venezuela. vou inspecionar a construção de uma represa e estou sem saber o que fazer com Mattie. Ela se recusa a voltar para a casa dos Driscoll. Só fala de Becky e dona Mary. Então eu pensei.
- Que ela poderia ficar conosco por alguns dias.
- Bem, talvez vocês pudessem vir para a minha casa.
- Não seria possível. Somerfield é meu lar. Em todo o caso, Mattie seria bem-vinda na fazenda. O único problema é que vou a Boston todas as terças e sextas à noite, para assistir aulas. Mas, se Becky não estiver livre, posso pedir a Anna e Henry que cuidem de Mattie. Sim, ela pode ir e ficar o tempo que quiser.
- A menina se pós a dançar de alegria, saltitando em volta do banco.
- Pare com isso, Mattie! Lembre-se de onde estamos Bruce falou.
- Mattie continuou a dançar e cantar. Mary, então, segurou-a pelo pulso e disse, com voz firme mas carinhosa:
- Agora chega, mocinha.
- A menina parou no mesmo instante. Admirado, Bruce perguntou:
- Como conseguiu? A sra. Driscoll nunca pôde controlar Mattie!
- Foi o senhor mesmo quem disse, não lembra? Sou uma bruxa. Quando vai levá-la para a fazenda?
- Pode ser esta noite? Meu avião sai do aeroporto de Logan à meia-noite.
- Está bem. Mas venham cedo. Lá pelas seis. Vamos jantar juntos. O senhor, eu, Becky e Mattie.
- Ora, ótimo. Além de babás, ainda vou ganhar uma refeição caseira gratuita!
- Não sou bebê, papai! - Mattie protestou.
- Claro que não, minha filha. Só de olhar para você já se vê que tem mais de seis anos. Gostaria de saber a idade das outras mulheres só de olhar para elas, também?
- Se está falando de mim, acho que posso lhe poupar o trabalho - Mary riu. - Já passei dos seis, também.
- Pela expressão de Bruce, era fácil perceber que não, gostara da brincadeira. Mary sorriu e, chegando mais perto de Mattie, cochichou:
- Vá bem bonita para o jantar. Becky e eu gostamos de nos arrumar no sábado à noite. Combinado?
- Claro! É um segredo? - Mattie perguntou.
- Isso mesmo. Segredo de mulher. Bem, até às seis horas. Não se esqueça de trazer seu pai.
- O que vocês estão tramando? - Bruce perguntou.
- É conversa de mulher, e homem não pode ouvir - Mattie respondeu.
- Antes que ele pudesse se zangar, Mary beijou Mattie e "e afastou rapidamente.
- Becky entusiasmou-se com a idéia do jantar.
- Puxa, que bon! Faz tempo que não recebemos ninguém. Será que eu... que nós podíamos.
- Mary estava temperando o lombo e logo adivinhou.
- Quer convidar o Harold? Pode, sim. Será um jantar e tanto. Vá telefonar para ele e volte logo. A salada ficará por sua conta.
- Depois do telefonema, Becky parecia radiante.
- Ele disse que vem. vou caprichar na salada. Dê uma sugestão, Ma...
- Que tal uma salada Waldorf? É só cortar a maçã em cubinhos, temperar com limão e maionese, misturar salsão picadinho e enfeitar com nozes. Depois deixe na geladeira.
- Enquanto falava, Mary preparava um molho de cogumelos, para o lombo. Faltava apenas cortar os legumes já cozidos, dispor as entradas nos pratos de servir e fazer o sorvete de limão.
- Já eram quatro horas quando elas terminaram os preparativos. Tomaram uma xícara de café e foram descansar um pouco na sala. Depois tomaram banho e se vestiram.
- Diante do espelho, Mary deixou escapar a pergunta que a preocupava.
- Por que estou fazendo tudo isso?
- Você sabe por quê, Ma! - Becky gritou de seu quarto.
- Ah, sei, é?
- A garota apareceu na porta, ainda de calcinha.
- Porque ele é da cidade grande e pensa que somos um bando de caipiras. E você quer dar-lhe uma lição. atingindo primeiro o estômago. Você não me engana, Ma.
- Ih, estou roubada!
- Antes você conseguia, mas estou ficando mais esperta. Posso até lhe contar uma coisa que nem você sabe. Quer apostar?
- Apostar o quê?
- Aposto como você gosta muito desse homem!
- Que idéia, Becky! - Mary riu. - Ele não gosta de mim. Primeiro: ele acha que eu não passo de uma mulher; segundo: sou um obstáculo para a estrada dele. Droga de estrada!
- Só uma mulher? Ora, Ma.
- As duas desceram às cinco e meia. Mary estava com um vestido azul com fendas laterais que destacavam suas pernas. Becky usava um vestido vermelho, bem decotado. Enquanto a garota arrumava a mesa, Mary voltou à cozinha, vestiu um avental comprido, despejou o molho sobre o lombo e arranjou os legumes em volta. Quando levava a travessa de volta ao forno, ouviu a campainha tocar. Pôs a panela de arroz no fogo, tirou ligeiro o avental E foi receber os convidados.
- Todos tinham chegado ao mesmo tempo. Mattie parecia uma boneca, com um vestido de organdi amarelo. O pai estava muito elegante, com calça marrom e paletó em ton mais claro. Harold quase se escondia a um canto, vestindo um jeans e camisa esporte de mangas curtas.
- Mary sabia manter uma conversa. Era uma das qualidades que o Coronel mais apreciava nela. Durante quase uma hora estiveram entretidos, conversando à vontade. Um pouco antes das sete, Becky serviu a entrada, que ela mesma tinha preparado. Pãezinhos quentes de queijo e creme de camarão. Sentando-se na cabeceira da mesa, Mary mal pôde esconder o riso. Harold e Latimore estavam boquiabertos, visivelmente surpresos. Atendendo a um apelo perverso, perguntou:
- Não esperavam por isso?
- Bem. não exatamente - Bruce respondeu, sem jeito,
- Mas está uma delícia. Cozinha muito bem, sra. Chase.
- Eu, não. Foi Becky quem preparou isto. Ela é uma ótima cozinheira.
- Não sabia que você cozinhava, Becky - comentou Harold, mais surpreso ainda.
- Ora, foi Ma quem me ensinou.
- E agora vamos trazer o prato principal. Mattie, quer ajudar? - Mary perguntou.
- Enquanto as meninas tiravam a entrada, Mary arrumou o lombo em porções individuais nos pratos. Mattie levou a salada e Becky os legumes.
- Nossa! Pensei que fosse a vez da sobremesa. Que cheiro delicioso! - Harold exclamou.
- Não como tão bem desde que estive em Paris. Onde aprendeu a cozinhar? - Bruce perguntou.
- Mary não resistiu ao impulso de acabar com aquela pose.
- Quer saber como uma mulher do campo aprende a cozinhar?
- Bruce franziu a testa, intrigado, e Mary se arrependeu.
- Desculpe. Sei que fui grosseira. Meu marido era oficial do Exército e acreditava que todos deviam ser treinados para exercer suas funções, Quando ficou decidido que eu cozinharia para a família, ele me mandou para uma escola de culinária, em Boston. O Coronel era um homem muito metódico. Mas eu também apelo para os hambúrgueres, de vez em quando!
- Sorriu para ele e foi recompensada com um olhar carinhoso e um sorriso aberto. Mary deixou cair as mãos sobre o colo. "Como ele é bonito quando sorri! ", pensou.
- Ma, está se esquecendo da sobremesa!
- Do outro lado da mesa, Becky tentava atrair sua atenção. Levantando-se, Mary se desculpou:
- Eu... eu estava pensando em outra coisa.
- Enquanto tomavam o sorvete, Bruce contava passagens de sua viagem à Venezuela. Fez todos rirem muito com a história de um macaco que invadiu o alojamento de uma das obras, Mattie achara tanta graça que, ao sair da mesa com Mary para preparar o café, ainda tinha lágrimas nos olhos. No corredor, as duas cruzaram com Becky, que voltava da cozinha.
- Meu pai é um homem e tanto! - a menina disse, ao passar por ela.
- Becky não deixou por menos:
- Minha mãe também é maravilhosa!
- As meninas se olharam, como se tivessem um segredo que Mary não conhecia. Depois começaram a rir e cada uma seguiu seu caminho.
- Assim que soube que Becky estava encarregada da louça, Harold se ofereceu para ajudar, sumindo com ela na cozinha. Bruce, por sua vez, foi acomodar-se na sala, na cadeira favorita do Coronel. Comentou:
- Cadeira boa, esta. Forte. E o braço comporta bem uma xícara de café. Não gosto de segurar essas coisas em cima das pernas.
- Ela concordou e riu, feliz. De repente tudo estava tão... agradável. Era uma noite quente de agosto e uma brisa fresca e perfumada entrava pelas janelas abertas. Lá estava ela, descansando erri sua velha sala de estar, com um homem muito simpático, duas meninas maravilhosas, tudo tão. gostoso. Mas o relógio bateu nove horas e Mattie fazia força para não bocejar. Mary chamou-a para um banho.
- Olhando a menina que brincava, contente, na banheira, escondendo-se sob a espuma, pensava: "Como é magrinha. Está precisando comer um pouco mais. e ser amada, muito amada".
- Logo depois, Mattie estava' pronta, com sua camisola conprida de seda branca. Mary levou-a para o quarto que tinha arrumado, pôs alguns livros sobre a mesa-de-cabeceira, beijou a garota e desceu.
- Pode ir contar estória para ela dormir - disse a Bruce. Ele pareceu surpreso com a sugestão, mas subiu as escadas.
- Mary voltou à sala, tirou os sapatos de saltos altos e sentou-se na poltrona. Quando Bruce voltou, ela estava quase dormindo, com os longos cabelos louros quase escondendo seu rosto. Assustou-se quando ele entrou.
- E Becky? - ele perguntou.
- Está lá fora com Harold. Gostaria de ser jovem outra vez. Meus pés estão doendo.
- Ê por causa dos sapatos. Não devia usar saltos tão altos ele disse, servindo-se de mais uma xícara de café.
- Eu sei, mas é preciso.
- Podia usar pernas de pau e também não ia adiantar. É melhor se acostumar a ser baixinha, querida.
- "Querida"? Não, ele devia ter deixado escapar, um acidente, por assim dizer. Mas soava tão bem.
- É melhor eu ir embora - ele disse. - Já são dez horas. vou levar mais ou menos uma hora até o aeroporto e é preciso chegar uma hora antes do vôo.
- Que pena - ela disse, levantando-se.
- Ainda estava um tanto sonolenta? Não, não era bem isso. Encantada? Era melhor pensar no assunto mais tarde.
- Foi uma noite maravilhosa! Só que vai ser difícil continuar chamando-a de sra. Chase - ele disse, com sua voz grave e sonora.
- Bem. já faz tanto tempo que me chamam de Ma. Antes me chamavam de Mary Kate - ela disse, vermelha.
- Assim é melhor, Mary Kate.
- Quando o acompanhava até a porta, ele, de repente, segurou-a pelos braços, puxando-a para si.
- Nem sei como dizer o quanto agradeço por ficar com Mattie - disse.
- Estavam tão próximos que ela podia sentir o cheiro másculo de Bruce. Tentou se afastar um pouco e pensar rápido. Precisava dizer alguma coisa, logo.
- Mattie ficar comigo. não significa um cavalo de Tróia, sr. Latimore? É isso mesmo o que o senhor quer?
- Não, não é o que eu quero, na verdade - ele riu. - O que eu quero agora é beijar você.
- E foi o que fez.
- Depois que as luzes do enorme Cadillac desapareceram na noite, Mary permaneceu à porta por mais um tempo. Estava confusa. De vez em quando, tocava os lábios com a ponta dos dedos, de leve, sem tirar os olhos da escuridão, sonhando. Finalmente, fechou a porta. Achando que já era tempo de voltar à realidade, acendeu as luzes de trás para lembrar a Becky que sua liberdade tinha limites. Só então subiu devagar para seu quarto.
- Tinha pensado em passar creme no rosto e escovar os cabelos. Em vez disso, ficou sentada junto à penteadeira, com a cabeça apoiada nas mãos. Demorou, olhando-se no espelho. Mas'o que havia para ver? Sardas? Se fossem sinal de beleza, ela podia candidatar-se a Miss Universo. Pequenas, de todas as formas, espalhavam-se por seu nariz e faces. Apareciam até nos ombros. Sua pele tinha um leve torn bronzeado; o rosto, saudável, não precisava de maquilagem. Os olhos, vivos e verdes, se acinzentavam em dias de chuva ou de raiva. E o cabelo era castanhoclaro, quase louro. Não, não podia se considerar um tipo muito atraente para os homens! Sacudiu a cabeça e repreendeu-se:
- Olhe-se bem, Mary Chase. Você tem vinte e sete anos. É viúva. Tem dois filhos adotivos. Um futuro assegurado. Teve um marido a quem amou muito. Para que outro homem?
- Ouviu passos rápidos na escada e Becky apareceu na porta:
- Falando sozinha outra vez, Ma?
- Claro. Não tinha ninguém com quem conversar. O Harold já foi, Becky?
- Já. Você tinha razão.
- Por quê?
- Ele parece um polvo! Acho que prefiro nadar mais um pouco sozinha.
- Muito bem, menina. Faça como achar melhor.
- Vamos à igreja amanhã?
- Como sempre, querida. Por quê? Está muito cansada?
- Não, não se preocupe, Ma. Acho que posso enfrentar um polvo desses umas três vezes por dia! Agora, se fosse o tal Latimore. bem, daí seria diferente. Precisou lutar com ele, também?
- O que é isso, Becky?
- Tá bon. tá bom. Mas bem que seria divertido! Becky abaixou-se, desviando-se de um travesseiro que veio
- voando em sua direção. Foi para o quarto; pela porta aberta. Mary escutava sua risada.
- Ora essa! Lutar com ele! Mas talvez. Despedindo-se do espelho, olhou mais uma vez sua imagem refletida, sem disfarce. A mão direita subiu devagar, desde a coxa macia até o bico do seio, firme e farto. Mas mesmo o toque de sua própria mão a incomodava. trazia de volta desejos e sensações que há muito enterrara. Parou de se tocar, agarrou a toalha e foi tomar uma ducha fria.
- Mary acordou bem disposta na segunda-feira, apesar da noite maldormida. Mattie levantou-se cedo. Becky permaneceu na cama até mais tarde. Às dez horas da manhã, dois homens bateram à porta. Apresentaram-se:
- Somos da Corporação Latimore. Temos permissão da Corte para dar uma olhada no tal banhado da fazenda Somerfield. Podemos ir até lá?
- Mary saiu na varanda e apontou para o morro atrás da casa.
- Pois não. Atrás daquele morro fica a fonte. Se seguirem o ribeirão morro abaixo, chegarão à área onde fica o tal banhado. E, por favor, tenham cuidado. Pois se caírem no tal banhado vão se molhar de verdade.
- Não se preocupe, dona - o chefe deles respondeu. Tivemos uma conversa bem longa com o sr. Latimore antes de virmos para cá. Já entendemos bem.
- Entenderam também que a ordem da Corte só lhes permite explorar a área do banhado e mais nenhuma outra?
- Sim, senhora. Está bem entendido. Nada de espionagem.
- Então está bem, senhores. Não temos mais o que falar, por enquanto. O almoço é ao meio-dia e meia.
- Trouxemos nossas marmitas, dona.
- Almoço às doze e trinta. Ninguém come de marmita aqui na "minha" fazenda.
- Por três dias os homens examinaram o local palmo a palma. Apareciam cansados e empoeirados para o almoço e saíam sempre às cinco horas em ponto. No último dia, trouxeram equipamento de pesquisa. Tocada pela curiosidade, Mary convidou as meninas para um banho. Becky recusou o convite:
- Não, não estou com vontade de virar sorvete. De qualquer modo, tenho que ir à auto-escola, hoje.
- É mesmo. ]já tinha me esquecido. Claro que para você é a coisa mais importante do mundo. Vêm buscá-la aqui?
- Sim. vou ficar rodando por aí quase a tarde toda. Sabe que só faltam mais três aulas antes do meu exame?
- Ih! Então precisamos avisar os postes para tomarem cuidado - Mary brincou. - E você, Mattie, está aprendendo a dirigir, também?
- Eu não. Estava aprendendo a tocar piano, mas o professor era muito nervoso. Ele disse que era mais fácil eu ser carpinteira do que pianista. Não imagina como ele era bravo! Precisava ver como gritava comigo. Gritou até com a sra. Driscoll! Mas duvido que tivesse gritado com o papai.
- Quem se atreveria? Bem, Mattie, vá buscar seu maio e vamos ver se sabe nadar.
- Levaram dez minutos a pé para chegar à piscina de água natural. Mattie falou o tempo todo, maravilhada com as novidades que ia descobrindo.
- Surgira uma pequena represa logo abaixo da nascente do ribeirão Selby, num declive entre dois morros. A água ali estava sempre gelada. Apesar de Mary ter avisado, Mattie mergulhou, mas logo saiu, pulando.
- Depois que a gente nada um pouco o frio passa, Mattie. Mary tirou o roupão, subiu numa pedra e mergulhou. Mattie
- seguiu-a, após um instante de hesitação. Nadaram e brincaram juntas e, em seguida, foram descansar no gramado verde ao lado da represa.
- Você nada como um peixe, Mattie. Teve aulas de natação? - Mary perguntou.
- Tive, sim. Sabe. faziam de tudo para me deixar ocupada. Diziam sempre que era para eu não me aborrecer. Conversa fiada! Mas eu gosto de nadar. Não é como tocar piano com aquele professor enjoado.
- Mattie estava sentada entre as pernas de Mary, que lhe enxugava os cabelos com uma toalha felpuda. Observou que já estavam um pouco mais compridos do que da primeira vez que se encontraram. Penteou a menina cuidadosamente.
- Assim que é bon. A sra. Driscoll nunca penteava meu cabelo. Dizia que as crianças têm que se virar sozinhas Mattie declarou.
- É? O que mais ela dizia? - Mary perguntou, fingindo seriedade.
- Ah, um monte de coisas, nem me lembro. Mas tudo o que ela ia dizer começava com "não". Nunca ouvi você falar "não" para Becky.
- Agora já não preciso - Mary disse, rindo. - Mas, quando ela tinha a sua idade, às vezes precisava. Há coisas que uma garota não deve fazer e nem sempre é fácil explicar. Acho que a sra. Driscoll tinha algum motivo para dizer "não".
- Pois eu não acho. Para mim, ela dizia só porque gostava de dizer. Gostava de implicar. Não era nem um pouco como você.
- Ora, Mattie. Duvido que ela não. gostasse de você. Agora sente-se aqui do meu lado e deixe que o sol seque você. isto, assim está bon!
- Sabe que você é bem macia?
- Está querendo dizer que estou gorda?
- Não, nada disso! Papai disse. bem, primeiro ele disse que não era para eu contar para você.
- Ah, segredo de família, então? - Mary riu.
- Acho que sim. Sabe que a Glenda Hats me abraçou uma vez? Ela não estava com vontade, mas o papai estava olhando, por isso ela me abraçou. Ela é puro osso! Ê bem maior que você, mas só tem osso, juro. Não gostei do abraço dela. Ela e o papai tiveram uma briga que você devia ver! Ela ficou gritando e atirou o cachimbo dele na parede, daí.
- Bem. acho que você não devia me contar essas coisas. Seu apelido é Mattie, mas seu nome é Mathilda, não é? Bonito nome.
- Ê igual ao da minha avó. Ela mora em Newport. )á morou Km Newport? - Eu? Não. Só estive lá a passeio.
- Depois disso, ficaram em silêncio. Mary observava os homens trabalhando e Mattie acabou se deitando em seu colo. Afinal, disse:
- Sabe de uma coisa? Posso fazer um favor para você.
- Humm, ótimo. Mas que favor? - Mary perguntou.
- Bem, você tem uma filha bonita, que é amiga e tal, só que ela está ficando velha, sabia?
- Becky, velha? Bem, quinze anos é um bocado de tempo, mas acho que ela é bem jovem ainda, Mattie.
- Não sei como acha isso. Ela é maior que você, até. Está ficando velha.
- Está bem. Becky está ficando velha, então. E daí?
- Daí que eu não sou velha. Sou bem nova, até. Não acha? Mary não conseguia mais acompanhar o trabalho dos dois homens. Abraçou a garotinha com carinho e disse:
- Tem razão, você é um modelo novíssimo.
- Eu não tenho mãe. E logo você não vai mais ter filha. Por que não fica minha mãe de uma vez? Daí, quando a Becky for muito velha para ser filha, você ainda vai ter sua Mattie e eu vou ter você: Vai ser bom para nós duas, não é? - disse, numa avalanche de palavras.
- Nossa!... É. seria uma boa idéia, mas é melhor pensar mais no caso. De qualquer maneira, você tem razão. Já me acostumei a ter uma filha e Becky está crescendo. Mas tem outras coisas para se considerar. Seu pai, por exemplo, princesa.
- A gente podia ficar com ele, também. Ê bom ter o papai em casa, sabe? Ele pode consertar coisas, levantar o que a gente não consegue, levar o lixo para fora, coisas assim.
- Mary não pôde deixar de rir. Mattie também começou a rir e a conversa virou brincadeira. Mas já era hora de voltar para casa.
- Você vai pensar no que eu disse, não é? - a menina ainda insistiu, quando se levantaram.
- Prometo! - Mary respondeu, solene.
- Na verdade, pensou a noite toda. Imaginava Bruce Latimore trocando as lâmpadas queimadas, saindo da cozinha com sacos de lixo, carregando malas escada abaixo. "Carregando minhas malas escada abaixo? Aonde eu poderia estar indo. com ele?" Mergulhada em todas essas fantasias, acabou adormecendo.
- Bruce chegou na manhã seguinte, às seis e meia, no momento em que Mary abria a porta para pegar o leite que Henry sempre deixava cedo. Estava cansado, a barba por fazer, a gravata frouxa e o paletó jogado por cima do ombro. Ela vestia só um robe sobre a camisola curta, e ainda não prendera os cabelos.
- Será que cheguei cedo demais? - ele perguntou, quando se aproximou.
- Ela sentiu um arrepio percorrer suas costas.
- Depende dos seus motivos - respondeu. - Se quer tomar café, está bem na hora, mas, se veio para o Natal, chegou cedo demais. Agora, se seu objetivo é falar da construção da estrada, é bom saber que seus homens ainda não terminaram a pesquisa!
- Café é uma ótima idéia, mas eu estava falando da hora de buscar minha filha. Não é cedo demais?
- Acho que sim. Ela tem brincado tanto que é difícil acordar antes das oito e rneia, Como andam suas obras?
- Enquanto a seguia até a cozinha, respondeu:
- As construções da represa na Venezuela vão muito bem. Mas por aqui não vão tão bem. - Colocou o paletó no encosto da cadeira.
- Sem querer tocar naquele assunto tão cedo, Mary perguntou:
- O que vai querer? Ovos mexidos, torrada, bacon, café ou suco de laranja?
- Um pouco de cada, por favor. E bastante café.
- Vai querer tudo? - ela se admirou.
- Claro. Acho que estou em fase de crescimento - ironizou, enquanto pegava o jornal.
- Mary olhava-o de canto de olho enquanto trabalhava, mexendo os ovos. Bruce estava tendo um comportamento típico machista: pediu café, pegou o jornal e foi direto para a página de esportes. Devia se imaginar muito importante! Ela pôs o bacon na grelha e as fatias de pão de forma na torradeira. Era estranho estar aceitando ordens em sua própria casa. "Será que ele pensa que está num restaurante? ", pensou.
- Sabe que achei engraçado ver você pegar o leite na porta? - ele disse, interrompendo suas reflexões.
- Por que acha tão engraçado? Para começar, vacas não vêm à nossa porta quando a gente assobia, como os cães. Além do mais, elas são do Henry, não minhas. Ele vende o leite. Sou apenas uma freguesa.
- Ah, é? Pensei que fosse a dona de tudo.
- Pensou que eu era a rica sra. Chase? Foi por isso que me deu atenção?. Desculpe, não quis ofender, foi só uma brincadeira. Na verdade, metade da fazenda é de Becky e metade do Henry. A parte de Becky está sob meus cuidados até que ela faça dezoito anos ou se case.
- Bruce já se voltara para o jornal. Disse, com um ar distraído.
- Ah, sim. Não vá se esquecer de ligar a cafeteira.
- Mary ia lhe dar uma boa resposta, mas as torradas saltaram naquele instante e ela não teve coragem de deixar que esfriassem antes de servi-las. A ocasião passou, mas ela não se esqueceu. Ainda estava zangada quando colocou o prato cheio diante dele, e quase derrubou o café sobre sua camisa. Bruce dobrou o jornal e colocou-o ao lado do prato.
- Hutnm, nada mau! Mas você quase quebra o prato! comentou.
- "E bem na sua cabeça! ", ela pensou. Pegou o vidro de catchup da geladeira e deixou-o na mesa. Ele ergueu o rosto, com um sorriso aberto nos lábios.
- Obrigado. Mas só costumo usar catchup quando acho que é preciso disfarçar o gosto ruim da comida.
- Era exatamente o que Mary pensava. Acabou rindo. Pegou uma xícara de café para si, sentou-se e ficou observando-o dar conta da comida. Sim, não deixava de ser agradável estar ali com ele, com uma xícara de café na mão, e acompanhou as mudanças de expressão em seu rosto.
- Mattie não lhe deu trabalho? - ele perguntou, mais uma vez.
- Claro que não. Ela se deu muito bem com Becky e se divertiram juntas. Podia até ser sócia de Becky.
- Sócia?
- Pois é. Criamos galinhas, aqui. São todas de Becky. Ê ela quem cuida, alimenta, recolhe os ovos, vende.
- Ela gosta de galinhas?
- Não. Odeia galinhas. Mas gosta do dinheiro e da independência que o negócio traz. Logo vai tirar a carta de motorista e já está economizando para comprar um carro.
- Acho que aí está o segredo de tudo: o modo como você a educou. com responsabilidade, respeito, independência.
- É. pode-se dizer que sim. Todos precisam disso, concorda? Mas não é só. Existem também amor e compreensão. Mas. ecomo vai a construção por aqui? - perguntou, resolvendo finalmente enfrentar o assunto.
- Bem, nossas máquinas pesadas estão agora numa estrada em Fitchburg - ele disse, tomando a segunda xícara de café.
- Não vai ser possível começar o trabalho em Massachusets depois da segunda quinzena de outubro: é tudo uma questão de prioridades e, também, das condições do tempo. Assim, se não pudermos começar os trabalhos aqui até primeiro de outubro, vamos ter que esperar a primavera. É por isso que estou apertando os homens na pesquisa do banhado. Espero poder entregar o relatório para a Corte até primeiro de setembro. Depois deve levar uns dez dias... o que ainda nos dá uns trinta para colocar as coisas em ordem.
- Está com tanta pressa assim? Não podemos colher nosso milho antes de setembro. Vocês podem arruinar nossas colheitas! - ela exclamou.
- Não há de ser tão ruim assim! - respondeu rindo, com um ar zombeteiro.
- Ora, ele estava sentado em sua cozinha, de estômago cheio com a comida que ela própria fizera, e falava, com toda a calma, em arruinar o trabalho de um ano todo numa questão de dias! E ainda ria, como se fosse piada! O Coronel tinha razão. Para entrar numa briga só era preciso ter um inimigo. Apesar disso, lá estava ela, sentada e conversando com seu arquiinimigo!
- Espero que não se ofenda, sr. Latímore, mas lhe desejo má sorte em seus planos - disse, seca.
- Sorrindo, ele respondeu:
- Eu compreendo. Ah, aquele seu advogado. gostaria de...
- Está falando do dr. Momson?
- Ele mesmo. Acho que você tem facilitado neste caso. Momson está tão velho que mal consegue ficar acordado na Corte. E bebe, também. Sabia disso?
- Ela tentou fingir surpresa, controlando a vontade de rir.
- Está falando sério? Quer dizer que ele bebe?
- É melhor acreditar. Na última audiência ele cochilou vá38 rias vezes no tribunal. Acho melhor ir procurando outro advogado. "Ora, quanta gentileza em se preocupar conosco! ", ela pensou. Então Momson bebia? Podia fazer com que perdessem a causa no Tribunal? Tudo aquilo lhe soava como uma tremenda ironia. Ainda se lembrava dos dias em que Charles e o Coronel se encontravam a pretexto de qualquer celebração e bebiam até a última gota do que havia em casa. Depois disso, Charles arrumava a gravata, vestia o paletó e passava o resto do dia trabalhando no Tribunal.
- Estou sabendo do. problema de Charles - ela disse. Estamos apenas esperando que apareça a pessoa certa para substituí-lo. Alguém mais jovem, é claro.
- "Eu, por exemplo! ", ela teve vontade de gritar. Iria se íormar em direito em junho e faria o exame da Ordem dos Advogados em julho. "Se o pobre Charles, com seu coração fraco e a memória falha, conseguir agüentar até lá, vamos lhe dar uma boa lição, sr. Bruce Grande Coisa Latimore."
- Ele ainda ria dela. Seus olhos brilhavam como se...
- Não me leve a mal, Mary Kate. Andei observando o dr. Momson desempenhar suas funções no mais perfeito estilo jurídico. Nunca vai ao Tribunal sem alguns coringas na manga, como se diz. Não, não estou criticando seu advogado por beber. Pelo contrário, gostaria de saber que marca de uísque ele toma, para oferecê-la aos meus advogados! Agora, se não se importa, tenho uma porção de coisas para fazer. Podia chamar minha filha, por favor?
- Mattie ficou muito feliz ao ver o pai. Desceu as escadas pulando os degraus de três em três e se atirou em seus braços com tanto entusiasmo que ele ficou surpreso. Durante o café, Mattie fez um relatório completo de suas aventuras e, depois, foram de mãos dadas até o carro. Mary Kate ficou à porta, acompanhada de Becky, e esperou que o carro desaparecesse na estrada. Então, disse:
- Depressa, querida. á para o telefone. Precisamos marcar uma reunião de cúpula de emergência. Precisamos do Henry e do dr. Momson. Quanto mais cedo, melhor!
- Estamos em apuros outra vez, Ma?
- Acho que a situação não mudou, mas esse homem me parece muito esperto. Andou falando sobre a construção. Queria que eu soubesse uma coisa. só não descobri por qiíêl O que me incomoda é O que ele não revela. Agora, voe, Becky!
- Enquanto Becky telefonava, Mary começou a fazer o serviço de casa. com as mãos ocupadas na rotina, as idéias se organizavam melhor e fluíam mais livres.
- Henry e Charles chegaram às onze. Ela acabava de arrumar o quarto que Mattie tinha ocupado. Quando desceu, os três a esperavam silenciosos, com a cafeteira automática já ligada. Mary sentou-se em sua poltrona favorita. Sentia-se um pouco cansada, pequena, mesmo, diante de pessoas tão fortes. "Se Henry caísse por cima de mim", pensava, enquanto Becky servia o café, eu viraria mingau! E se Bruce Latimore caísse por cima de mim. se caísse por cima. Bruce? Que bobagem!"
- Ma! Não vai começar a reunião? - Henry perguntou, ansioso.
- Ela está sonhando outra vez, Henry. Não disse? - Becky falou. - Desde que aquele sujeito.
- Ele tem nome, Becky - Mary interrompeu.
- Está bem. Desde que o tal Latimore apareceu. E agora ele está morando na cidade. Já sabiam disso? Por que um homem importante como o sr. Latimore viria morar numa cidadezinha? E você gosta dele, não é, Ma?
- Henry parecia ter chegado a uma conclusão importante. Cocando o queixo, disse:
- Pois é. Foi o que Anna disse. Você gosta desse homem, então, Ma?
- Ei! O que vocês dois estão querendo? Gosto da menina, muito mesmo. Mas o pai dela é um homem arrogante, sarcástico. dominador!
- Ah, então se parece com o Coronel! - Charles-brincou.
- Não! De jeito nenhum! - ela protestou, vermelha. - Por trás de todo o barulho que fazia, o Coronel era um homem bon, sincero, carinhoso.
- Anna e eu andamos falando no assunto - Henry disse. Becky já está com quinze anos, a fazenda vai bem e você só tem vinte e sete anos. Está na flor da idade, ainda. Já fez muito por nós e não podemos ser contra a idéia de você se casar de novo. Ele parece um bom sujeito.
- Ele não passa de um construtor de estradas. Agora, vamos tratar de negócios - disse Mary com firmeza.
- Todos olhavam para ela, esperando. "Até parece que estou passando a tropa em revista! Não devia fazer isso. Não sou o Coronel e eles não são minha tropa", pensou. Cruzou as mãos no colo e começou a falar.
- Por alguma razão que ainda não entendi, Bruce Latimore resolveu me revelar alguns fatos. Não sei o motivo, mas sei que não foi por acaso. Ouçam tudo, depois discutiremos. Primeiro, ele mandou o equipamento pesado para uma outra obra, em Fitchburg. Segundo, disse que está apressando a pesquisa no banhado, esperando apresentar o resultado ao Tribunal até primeiro de setembro. Depois, falou que toda a construção desta área vai ser paralisada pelo meio de outubro, por causa do inverno. Disse, também, que espera uma ordem da Corte para começar os trabalhos e que pretende encerrá-los até o fim de setembro. Por que ele me diria tudo isso? O que acha, Becky?
- Não tenho certeza, Ma. Não acha que ele quis dizer que, se não começar os trabalhos até setembro, podemos ficar sossegados até a primavera?
- Talvez. Só acho que ele é uma pessoa um tanto traiçoeira. Será que não quer nos fazer sentir seguros, só para amolecermos a luta pelo que é nosso? Assim, só levaríamos a briga até o meio de setembro, mais ou menos; depois, ficaríamos esperando, folgados, até que. bum! Ele acabaria com a gente de repente. Estou muito desconfiada. O que acha, Henry?
- Pode ser que esteja nos aconselhando a começar logo a colheita. Até dava para começar, O milho estará no ponto daqui a uma semana, O feno vai demorar um pouco mais, mas podemos começar logo, se for o caso.
- Não sei se ele queria dizer isso, mas é uma hipótese. Pelo que entendi, você acha que ele está bem-intencionado conosco. Gostaria de ter a mesma opinião, mas não consigo! E você, Charles, o que acha?
- É um homem de muitos méritos, Mary. Sabe, fazia tempo que não me divertia tanto com um caso. Agora, é bom que saiba que não precisa se preocupar com a colheita. Há uma lei estadual que proíbe a desapropriação de terras em época de colheita. A indenização é bem pesada, no caso de descumprimento.
- Não confio nisso. Acho que ele pagaria sem pestanejar Mary disse, desconsolada.
- Bem, talvez - o advogado respondeu. - Deixe eu ver. Ele está apressando a pesquisa, o que me leva a pensar uma coisa: o que se faz às pressas nunca é bem-feito, pode deixar alguma coisa para trás. O que poderia ser? Alguma coisa no banhado? Mas por que ele nos contaria? Só se Becky estiver com a razão.
- Bobagem, Charles - Mary falou. - Por que não faria isso? Não consigo ver o motivo. Têm alguma recomendação?
- Ora, Ma! - Henry interrompeu. - Desde que começou a estudar direito, fala como um deputado, como um chefão. Nós já sabemos que quem dá as ordens aqui é você. Pode falar! Estamos prontos para apoiá-la.
- Assim eu fico constrangida, Henry. Não sou seu pai e não quero tomar o lugar dele. Em todo o caso, vamos falar de datas. Podemos cozinhar a questão em fogo lento até o fim de setembro, mais ou menos, e ter um inverno tranqüilo. Seria bom começar logo a colheita, se é possível. E você, Charles, podia preparar um relatório sobre o cemitério. Ah, sim! Ele achou muito engraçado dizer que meu advogado estava muito velho, cansado e que bebia demais para cuidar dos meus interesses. Será que ele sabe que você foi juiz da Suprema Corte Estadual antes de se aposentar?
- Ah, não sei - Charles riu. - Só sei que anda virando a cidade de cabeça para baixo, ouvindo comentários e fazendo muitas perguntas, Mary.
- Oh, meu Deus! Que tipo de perguntas? - ela quis saber.
- Sobre você e o Coronel, sobre seu relacionamento com Becky e Henry. Sei também que esteve no jornal, revirando os arquivos dos últimos dez anos.
- Ai, ai, ai! Será que está planejando alguma coisa, ou só quer conhecer melhor o inimigo? - ela perguntou, antes de ter uma idéia: - Aqueles peixinhos de nome estranho! Henry, acha que pode conseguir um. não sei o nome. alguém que estude peixes, insetos e coisas do gênero?
- Claro, Ma. Posso chamar uns cinco ou seis estudantes e um professor da Universidade Estadual de Bridgewater. O que quer que façam?
- Quero que investiguem a flora e a fauna do banhado Quero que descubram todo o tipo de criatura viva que habite oi lugar. Podemos vencer o diabo, desta vez!
- Não sei do que está falando, Ma! O que têm os peixes a ver com a nossa causa? - Henry perguntou.
- O dr. Momson sorria, orgulhoso de Mary: "
- Ela está procurando um precedente legal. Os peixinhos de que fala são de uma espécie rara que só vive em uma parte do mundo. Foi justamente onde decidiram fazer uma represa. A Corte Suprema concluiu que, se a represa fosse construída, os tais peixinhos desapareceriam da face da terra. Por isso, impediu a construção. bom trabalho, Mary!
- Quando a reunião acabou, ela voltou ao serviço de casa. Às três, de acordo com sua rígida rotina, sentou-se para estudar.
- Na quinta-feira, Mary acordou cedo. As framboesas estavam maduras e, enquanto dois empregados as colhiam nos arbustos, ela fervia os vidros de compota. Depois, dedicou-se a preparar os doces que, no inverno, recheariam tortas e pãezinhos. O trabalho durou até sexta-feira, tomando uma parte do sábado. Quando o domingo chegou, fez questão de dormir até mais tarde. Depois, com um vestido rosa, bem leve, foi para a igreja com Becky, Anna e Henry.
- Chegaram cedo, e ficaram à porta, conversando com amigos. O padre, desculpando-se pelo calor, fez um sermão mais curto do que de costume. Mary achou ótimo, pois não poderia suportar nem mais um minuto naquela igreja. Logo antes do sermão, percebera que Mattie e Bruce estavam sentados na mesma fila, do outro lado do corredor. Não assistiam à missa: olhavam para ela sem parar.
- Aquela atenção indesejada fez com que Mary se encolhesse no banco. Becky, preocupada, perguntou:
- O que está acontecendo, Ma?
- A esta altura, ela sentia que todos a olhavam, acusadores! Sentiu vontade de sumir, mas não tinha como. Depois que o padre deu a bênção final, levantou-se com Henry, Becky e Anna. Pai e filha levantaram-se do outro lado.
- Encontraram-se no corredor e foram juntos para a saída. Becky e Mattie conversavam, baixinho, mas Bruce, de testa franzida, nem os cumprimentou. Quase na porta, Mattie pôs sua mãozinha suada na mão de Mary. Becky abafou o riso. Quando cruzaram a porta, afinal, Bruce pegou Mattie pelo braço, cumprimentou Mary com frieza e se foi. tinham se afastado um pouco, quando Mattie, ainda sendo puxada pelo pai, olhou para trás e piscou para Mary.
- O que significa isso? - ela perguntou a Becky.
- Mattie não parou de dizer ao pai o quanto você é maravilhosa. Disse também que, a qualquer hora, algum sortudo vai se casar com você.
- A semana seguinte foi terrível para Mary Kate. Nada deu certo. As quatro tortas de maçã que fez para congelar na segunda-feira à noite ficaram horríveis, pois tinha se esquecido de pôr açúcar. Na terça, durante a aula, quando o professor pediu citações de legisladores, saiu-se com uma frase de Shakespeare, provocando uma convulsão de gargalhadas que pôs fim à aula. Na quarta-feira, depois do exame da auto-escola, Becky chegou em casa com lágrimas nos olhos e Mary ainda lhe passou um pito. Na quinta, os estudantes terminaram o levantamento ecológico da fazenda e lhe entregaram um relatório, mas ela estava cansada demais para ler. No mesmo dia, à noite, sentia-se tão deprimida que resolveu tomar uma atitude. Precisava descobrir por que se comportava de modo tão estranho.
- Não demorou a achar o motivo: a frieza de Bruce na igreja. Afinal, quem tinha cuidado de sua filha durante quatro dias? Quem lhe servira um café da manhã capaz de alimentar três? E ele respondia com indiferença. "Aposto que a cidade inteira comentou o fato", pensou. Não devia se aborrecer com uma coisa dessas. Mas a verdade é que a notícia corria solta. Ela mesma já ouvira duas versões, fora as que Becky trouxera. "Só por causa de uma bobagem dessas, transformo minha semana num inferno!"
- Mary suspirou. Ele era arrogante. E o pior íoi ter descontado sua frustração em Becky. "Até parece que estou. não é possível!... me apaixonando? Bobagem!"
- Quando Becky voltou do cinema naquela noite, até levou um susto ao encontrar a madrasta esperando por ela com bolinhos e refresco, além de carinho e compreensão por não ter passado no exame de motorista.
- Ora, Ma! ]á nem estava mais pensando no exame! Fiquei chateada, é claro, mas passou. Imagine que o examinador me reprovou só porque esqueci de dar o sinal para sair do meio-fio. Como podia adivinhar que outro carro ia aparecer?
- Mary confortou a garota com ternura. Becky, muito observadora, percebeu sua ansiedade, mas não disse nada.
- Na manhã seguinte, a última sexta-feira das férias escolares, Mary descia a escada quando viu que Becky falava ao telefone, agitada. Estava, porém, tão alheia, pensando... em outra pessoa... Não se deu conta de que sua aparição interrompeu a conversa. Registrou apenas as últimas palavras da menina:
- Opa! Preciso desligar. Não se esqueça.
- Desculpe perguntar. Mas com quem estava falando, Becky?
- Com Mattie. Eles já conseguiram instalar um telefone em casa e ela queria falar comigo sobre. sobre um trabalho da escola.
- Da escola? Mas as aulas só começam na próxima quarta-feira. Esqueceu?
- Não. não. É que Mattie quer estar em dia com tudo. Mary não entendeu nada, mas achou melhor não continuar com as perguntas. Foi para a cozinha, ainda distraída.
- A aula de sexta-feira foi uma perda de tempo. Mary não conseguiu prestar o mínimo de atenção. Chegou em casa esgotada. Becky já estava deitada, mas tinha deixado um bilhete ao lado do telefone. Mary preparou um chá e, então, pegou o bilhete.
- "Bruce Latimore ligou. Disse que viria amanhã às oito da noite para tratar de assunto pessoal."
- Tomou o chá devagar, sem tirar os olhos do papel. O que ele podia querer? Assunto pessoal? Droga de homem! Não podia ser mais claro? Consultou o relógio e viu que já era tarde demais para telefonar e perguntar o que ele queria dizer com "assunto pessoal".
- Subiu para tomar banho. Enxugando-se diante do espelho, espantou-se com a própria imagem. Não só seu rosto, mas também sua postura, tudo denunciava cansaço. Até os ombros estavam caídos.
- Você já está sentindo o peso da idade - disse a si mesma, baixinho.
- Só os seios, firmes e cheios, pareciam resistir ao teste do tempo. Mary sentou-se no banquinho da penteadeira, desconsolada, mas acabou rindo. Alguém - Becky, por certo - tinha colocado um recorte de revista no canto do espelho: "Espelho, espelho, que não cansa de me refletir, será que não aprende a mentir?" Ainda rindo, foi se deitar.
- Dormiu até mais tarde, no sábado. Eram oito e meia quando apareceu na cozinha, com os olhos ainda inchados, bocejando. Mal conseguindo abrir os olhos, procurou a cafeteira. Admirou-se ao encontrá-la já ligada. Afastando dos olhos uma mecha de cabelos, sacudiu a cabeça, tentando afastar a sonolência. Becky apareceu e comentou:
- Ma, você está com cara de bicho-papão! Conhecendo-a bem, acho melhor esperar que tome o café, antes de começar a conversa.
- Você ainda me paga, Becky! - Mary ameaçou, esboçando um sorriso!
- Nem o Coronel se atrevia a falar com ela antes que tomasse o café. Era uma espécie de ritual: servia-se de açúcar, colocava meia xícara de café e completava-a com leite. A rotina só se alterava quando tinha alguma visita.
- Está bem, Becky. Agora me conte por que já está de pé e o que tem para me dizer.
- Arrumei um serviço. Todos os sábados. Não acha bon?
- Ótimo. Onde vai trabalhar, para quem, por quê?
- Não confia mais em mim, Ma? - Becky brincou. - vou ser babá na cidade, das nove às quatro, todos os sábados. O que acha?
- Humm! E para quem vai trabalhar?
- Para Bruce Latimore.
- Vai cuidar de Mattie?
- É a única filha que ele tem.
- Bem. estou contente com o trabalho. Só que. não queria que aceitasse dinheiro dele, Becky. Ele... eu... você sabe que somos inimigos.
- Deixe disso, Ma. Estão em lados diferentes, sim, mas não são inimigos - Becky respondeu e saiu correndo para pegar sua bicicleta.
- Mary preparou mais uma xícara de café com leite. Ficou remoendo seus pensamentos até as nove e meia. Seu humor variou o dia inteiro: ora estava alegre, cantando, ora mergulhava em inquietante depressão. À uma da tarde já se cansara de ficar sozinha. Vestiu o jeans mais velho que encontrou, uma camiseta desbotada e foi lidar com a horta. Remexeu a terra, transplantou mudas e, pouco a pouco, foi se acalmando. Sem coragem de pensar em jantar, preparou sanduíches. Becky, que chegou animada, não reclamou do cardápio.
- Precisa ver a casa deles, Ma! E a mobília! Acho que você nunca viu nada igual. Mattie tem um quarto só para ela no terceiro andar, com banheiro privativo. Ainda tem mais seis quartos no primeiro e no segundo andar. A cozinha é incrível e...
- Está bem, já chega. Sei que a casa deve ser uma maravilha, mas não podemos falar de outra coisa?
- Becky mordeu o sanduíche, olhando desconfiada para a madrasta. Depois perguntou:
- Ma, tem certeza de que não há nada errado com você?
- Errado? Não, nada.
- Ah, então deve estar apaixonada!
- O quê? Onde. onde arranjou essa idéia? Que coisa mais boba para dizer. logo para mim!
- Ma, não faz drama. Vi um filme na semana passada sobre uma mulher de meia-idade que se apaixonou. Foi ótimo!
- Meia-idade? Ora, Becky, só tenho doze anos mais que você c. aonde quer chegar com essa conversa?
- Prometi que ia à casa de Anna hoje à noite. Henry tem uma reunião com pecuaristas e ela vai me ensinar crochê. Não se esqueça de que Bruce vem daqui a pouco.
- Bruce? Não se deve ter tanta intimidade com patrões, Becky. - E, mudando rapidamente de assunto, observou: - Fico contente em saber que vai aprender crochê. E mais ainda em ver que você e Anna estão se dando bem. Não sei, mas acho que. ela não gosta de mim.
- Ela tem medo de você, Ma. Henry não pára de elogiá-la. Além disso, já faz mais de um mês que eles se casaram e você ainda não foi visitá-la.
- Ela tem medo de mim? Não, não posso acreditar!
- Ora, para ela você é a rainha da perfeição. Por que não vai visitá-la?
- Ora, Becky! Existe um costume. Não se-deve atrapalhar a lua-de-mel de um casal. Ó fato de eles já terem voltado para casa não significa que estejam prontos para receber o mundo. Deve-se esperar por um convite.
- Que bobagem! Aposto que Anna nunca ouviu falar nesse costume, nem Henry. Em todo o caso, vou falar para ela.
- com jeito, por favor, Becky.
- Não se preocupe. Você gosta da Anna?
- Claro que sim! É perfeita para o Henry. Agora só me falta achar o homem certo para você.
- As duas riram. Depois, Becky disse: v - Não pense que vai se livrar de mim tão cedo! Mary abraçou-a com carinho.
- Não, Becky, não quero me ver livre de você tão cedo. Quero que fiquemos juntas até.
- Até que "eu" ache um homem para você! Trate bem do Bruce. do sr. Latimore! - Becky disse, e saiu correndo para a casa de Henry.
- Mary olhou para a mesa e riu.
- Ora, essa bandida não está só querendo me arranjar um casamento. Ainda escapou de ajudar a lavar a louça!
- Deixou tudo limpo na cozinha. Subiu para tomar um banho. Voltou para o quarto com a toalha na cintura, como sempre. Abriu o armário.
- Frustrante! Faz quatro anos que não compro um vestido para mim. Nossa! Ainda tem terra embaixo das minhas unhas. Não sei por que resolvi replantar aquilo logo hoje!
- Decidiu que usaria uma roupa formal, mas elegante. Estava tentando prender o cabelo quando ouviu a campainha. Saiu correndo para a escada, mas parou ao reparar que ainda não se vestira. Voltou para o quarto. Em segundos estava de volta à escada, com os cabelos soltos, a blusa mal abotoada e a saia fora do lugar. Bruce batia com força na porta.
- Já vou, já vou! - gritou, arrumando a saia e acabando de abotoar a blusa.
Quando abriu a porta viu-o apoiado na parede, rindo. Nervosa, fez sinal para que entrasse.
- Como. como conseguiu ficar mais alto, hoje? - ela perguntou, sem conseguir pensar em nada melhor para dizer.
- Não estou mais alto. Você é que não está usando aqueles saltos enormes. Posso sentar? Você parece agitada.
- É. acho que estou, mesmo.
Por que se importava tanto? Por que se sentia tão embaraçada por não estar preparada como queria? Preferiu não pensar mais no assunte e seguiu-o até a sala. Ele se deixou cair sobre o sofá.
- Quer beber alguma coisa? Quem sabe um café, um chá. ou prefere algo mais forte? - perguntou, ainda insegura.
- Acho que preciso é de uma boa dose de coragem - ele respondeu.
- Bem, isso eu não tenho para servir, mas que tal uísque?
- Ótimo. com gelo, por favor.
- Ele já não parecia tão à vontade como quando chegara. Mary se perguntou o que poderia ter feito de errado. Teria dito algo desagradável? Talvez estivesse perdendo a prática de lidar com homens maduros.
- Foi até a cozinha buscar gelo e pegou um refrigerante para si. Voltando à sala, serviu Bruce. Ele bebeu como se estivesse morrendo de sede. Mary sentou-se na poltrona em frente a ele e levantou seu copo num brinde. Bruce já esvaziara o seu.
- Não pensei que. estivesse com tanta sede. Quer mais um? -" ela perguntou.
- Quero. Mas não se incomode, eu mesmo me sirvo. Quando voltou a se sentar, olhou para ela, mas não falou nada.
- Em seu recado, disse que queria tratar de um assunto pessoal, sr. Latimore?
- Pois é. Quis dizer que não tem nada a ver com a estrada. Sem saber o que responder, Mary tomou um gole do refrigerante e pôs o copo sobre a mesa.
- "Pessoal" quer dizer eu e você - ele completou.
- A cabeça de Mary disparou. "Eu e você. parece aula de gramática. Pronomes pessoais do caso reto. Reto? A linha reta é a menor distância entre dois pontos. Que loucura! Preciso pôr minha cabeça em ordem. Eu e você. motivo da visita? Ai, meu Deus, preciso pensar com mais clareza!"
- Faz um mês que nos conhecemos e cada dia descubro um pouco mais sobre você - ele disse, tirando um caderninho do bolso.
- "Ai, nossa! Além de andar ouvindo fofocas ele anota tudo! ", ela pensou.
- Não sei se devo ficar contente com tanta atenção - ela disse, com voz cortante.
- Ora, não foi difícil - Bruce riu. - Todos na cidade adoram falar sobre a viúva Chase.
- Não é de admirar. Este é um dos problemas que se enfrenta, morando num lugar pequeno. Mas nunca pensei que um homem de sua. posição fosse perder tempo ouvindo boatos. Ainda mais sobre mim! Pelo jeito, não mede limites para ver sua estrada construída.
- Já lhe disse que não vim aqui para falar da estrada. Droga de estrada! - ele disse, zangado.
- Se não tinha vindo por causa da estrada, talvez quisesse apenas torcer seu pescoço ou coisa parecida! E agora ela estava sozinha com aquele. homem maravilhoso e. Gomo um homem tão maravilhoso podia fazer-lhe algum mal? Mary riu, antes que tivesse tempo de se controlar.
- Pode rir à vontade. Acho que estou mesmo sem prática ele falou, ofendido. - - ?Está bem. Talvez eu não esteja me comportando bem. Vamos começar tudo outra vez. Bem, você dizia que me conhece há um mês. E então?
- Bruce sorriu, sem jeito. Isso já era um bom sinal. Tirando outra vez o caderninho do bolso, disse:
- Acho que não está acreditando em mim. Ouça só: Mary Kate Flanningan, vinte e sete anos, passou quase toda sua vida em Eastboro, a maior parte aqui nesta casa. Você veio para cá com sua mãe, quando tinha doze anos. Sua mãe era governanta do Coronel Chase. A mulher dele morreu no parto. De Rebeca, suponho?
- Sim. Becky não estava no programa. A mulher do Coronel tinha quarenta e dois anos na época.
- E, então, você e sua mãe continuaram a viver aqui. Sua mãe morreu quando Becky tinha quatro anos. E você ficou sendo a governanta até o casamento com o Coronel. Tinha dezessete anos, e ele cinqüenta e cinco!
Bruce pronunciou a úkima frase como se fosse algo de extremo mau gosto, ou um pecado mortal. Ela olhou para ele com raiva, esperando o que viria a seguir. Bruce fechou o caderninho e fitou-a.
- Deve ter sido um casamento de conveniência. Pelo menos, é o que todo mundo diz - comentou.
- O que só mostra o quanto as pessoas erram quando dão ouvido a fofocas! Para sua informação, o Coronel e eu nos casamos por amor!
Levantou-se da poltrona e se aproximou dele. Nunca tinha se importado com o que diziam sobre seu casamento, mas, por algum motivo, era importante que aquele homem compreendesse a verdade:
- Nós nos casamos por amor! - repetiu. - Só assim eu aceitaria me casar. Por amor. O Coronel e eu fomos casados no sentido espiritual e físico, de modo completo! Compreendeu agora, sr. Latimore?
- Ele parecia profundamente atingido por aquelas palavras. Mary olhou-o por mais um instante, desafiadora, e voltou para sua poltrona. Bruce esvaziou o copo, recompondo-se.
- Obrigado. Agora, sim, sinto que a conheço melhor disse.
- Não, acho que não me conhece. Sabe coisas "sobre" mim, mas não me conhece. Não acha melhor fazer esta anotação em seu caderninho, também?
- Não seja boba. Não tem nada escrito aqui, além de uma outra coisa que anotei para não me esquecer. Mas não pense que não a conheço de verdade. Sei de mais coisas além de seu casamento. Sei, por exemplo, que você é diplomada em técnicas agrícolas e que ainda freqüenta a escola.
- Todo mundo sabe - ela retrucou, dando de ombros.
- Também sei que tem um coração grande, que é leal e que ama de verdade quando ama. Sei também que costuma andar sem blusa pela casa depois do banho e que só usa sutiã em ocasiões especiais. O que acha?
- O que acho? Ora, seu velho sujo! Onde é que...
- Sujo, talvez, mas não tão velho. Para ser exato, tenho trinta e seis anos, sou saudável, tenho dinheiro e... bem, é melhor deixar o resto para depois.
- Só pode ter sido Becky! Becky e sua filha! O que elas estão querendo fazer comigo?
- Posso garantir que têm as melhores intenções - ele informou. - Estão querendo que se case e eu sou o primeiro da fila!
- Você! Mas. é uma bobagem, é claro. Só porque veio morar na cidade. para construir sua estrada, claro. Elas são duas. crianças sonham demais, não é?
- Desta vez foi ele quem não respondeu. Levantou-se e foi pegar mais uma dose de uísque. Depois, parou ao lado da poltrona dela. Mary não conseguia encará-lo.
- Se pensar melhor, verá que a idéia não é má como parece - disse. - Mattie acha que você seria uma ótima mãe. Becky acredita piamente que você é a melhor mulher do mundo. Gastar todo seu talento com uma garota só, quando poderia cuidar de duas, parece-me um desperdício. O casamento seria uma boa solução para o caso.
- Bruce voltou a se sentar no sofá, com o copo mais uma vez vazio.
- Por outro lado - continuou - sou um homem com compromissos sociais, preciso de uma esposa e estou cansado do tipo de mulheres que encontro em minhas andanças pelo mundo. Então, conheço você. É bonita, cozinha bem, recebe com perfeição, tem ambições e está desperdiçando seu talento. Repito: o casamento é o melhor remédio.
- Mary balançou a cabeça, tentando pensar com clareza. - Lá estava ele, sentado em sua sala, tomando seu uísque e falando aquele monte de asneiras! Mas não podia se esquecer de que era um homem com uma vontade de ferro. Enquanto ele passara o tempo ouvindo fofocas em Eastboro, ela fizera o mesmo em Boston. E, entre outras coisas, ficara sabendo que, além da vontade de ferro, Bruce tinha um coração de ferro, também.
- Bem. não sei, Acho que o casamento. poderia ser bom para Mattie. Você não sabe mesmo educá-la. Também poderia ser bom para Becky. Ela está numa idade em que convém ter um pai por perto. Por outro lado, sei as vantagens que esse casamento ofereceria para você. Mas já imaginou que eu também possa querer alguma coisa desse casamento? - Mary perguntou.
- Tem todo o direito - ele concordou. - Quer carinho, companhia, afeto, a segurança que o dinheiro pode trazer, roupas novas. Será que me esqueci de alguma coisa?
- Acho que não! Pensou em tudo. menos em mim, em meus verdadeiros problemas. Deve ter enlouquecido para vir aqui me fazer este tipo de proposta! O que está pensando?
- Eu e você somos inimigos! Há mais razões para litígio do que para amizade, entre nós. Será que já pensou nisso?
- Bruce foi até Mary e, gentil, mas firme, a fez levantar-se da cadeira. Deslizou uma das mãos sobre as costas dela, puxando-a para si, enquanto acariciava seus cabelos com a outra mão. Depois, levantou seu rosto e a beijou. Mary não sentiu nenhum arrepio ou inquietação; apenas uma sensação agradável e relaxante. Escorregou as mãos pequenas pelas costas enormes de Bruce e deixou que aquela sensação de paz a invadisse.
- Quando ele a fez sentar-se outra vez, ela sorriu.
- Então? Você não me odeia, não é? - a voz de Bruce parecia vir de muito longe.
- N... não... não te odeio.
- E gostou de ser beijada por mim?
- sim... gostei muito - ela admitiu.
- Era esse o assunto pessoal que eu tinha para tratar com você. Quero que se case comigo, sra. Chase. Não vai ser já, você ainda não está preparada. Isto foi só uma declaração, espero que compreenda. vou me casar com você um dia desses, quando ambos estivermos prontos.
- E não devo dar minha opinião sobre nada disso? - ela perguntou.
- Bem, não há muito o que dizer. não pretendo forçá-la até que esteja encurralada, isto é, até que não tenha mais saída,
- Isso está me parecendo um abuso. - Sua voz soava firme e decidida mas, no fundo, desejava que ele a beijasse outra vez.
- Em vez de beijá-la, porém, Bruce deixou o copo vazio sobre o bar e se preparou para ir embora.
- T... tão cedo? - ela gaguejou.
- Ê por causa de Mattie, a babá só fica até as dez. Ah, sim, só mais uma coisa. Já me declarei e a beijei. Não acha que agora pode me chamar de Bruce?
- Claro. B. Bruce.
- Ele sorriu satisfeito e se dirigiu à saída. Ela o seguiu, sem saber o que pensar de tudo aquilo. Na varanda, ele parou e encostou o dedo, de leve, na ponta do nariz de Mary.
- Não leve as coisas muito a sério. Ainda temos muito caminho pela frente. A caçada mal começou - anunciou.
- Mas você não falou. não disse nada. Nem tocou em amor.
- Não, claro que não. Porque nós dois sabemos que você ainda ama o Coronel - ele respondeu e se foi.
- Mary levou os copos para a cozinha. Olhou para as estrelas. Orion, o Caçador, estava ao sul de Polaris. "Até as estrelas favorecem o caçador", pensou, com certa amargura. "Porque você ainda ama o Coronel. Bolas!"
- Decidida, voltou à sala com um copo e serviu-se de conhaque. Bebeu tudo de um gole só. Tossindo, sentou-se na poltrona. Viu-se às voltas com algo que jamais enfrentara. "Você ainda ama o Coronel." Tomou mais uma dose de conhaque. Uma hora depois, subiu devagar para o quarto. Passou uma noite agitada, cheia de sonhos perturbadores.
Mary acordou sem muita disposição. A casa e a mobília pareciam estar fora de foco. Mas ela sabia com certeza que sua vida tinha mudado.
- Quando Becky apareceu, ansiosa para ouvir o que tinha acontecido na noite anterior, Mary nem sabia o que dizer.
- Bem, o sr. Latimore. Bruce. e eu tivemos uma conversa e, no fim, decidimos ter um relacionamento mais. amistoso, por assim dizer.
- Isso quer dizer que estão fazendo progressos? - Becky perguntou, curiosa.
- Não é bem assim. Acho que vamos dedicar mais tempo um ao outro, se é que me entende.
- Vai começar a namorar Bruce Latimore?
- Não sei... acho que as coisas não ficaram tão bem definidas assim. Ele não chegou e disse... Não sei. Não ficou nada claro.
- Mary estava mentindo e isso a incomodava. Sempre tinha sido sincera e clara com Becky e, agora, por causa de um homem surpreendia-se dizendo mentiras!
- Bem, Becky, acho que já chega dessa conversa. Como foram as coisas. o que aconteceu na casa de Anna?
- Becky estava rindo do embaraço de Mary, mas se recompôs para responder:
- Foi tudo bem. Falei que você estava com vontade de visitá-la e ela marcou um jantar para amanhã à noite. Só tem uma coisa: ela está morta de medo; diz que não sabe cozinhar como você, que a casa é muito pequena, essas coisas. Estava quase chorando quando eu saí. O que você acha?
- Ora, tudo isso é ridículo. Pensa que já sabia cozinhar quando comecei a trabalhar para o Coronel? Fui aprendendo tudo devagar, aos poucos. Qual é a previsão do tempo para amanhã?
- Ouvi pelo rádio que vai ser quente e sem chuvas.
- Ótimo. O quintal de Anna é excelente e, com bom tempo, o que pode sair de errado num churrasco? Telefone ou apareça por lá e dê essa sugestão, está bem?
- Ma, você é um gênio! vou correndo falar com ela! Becky beijou-a e sumiu pela porta.
- Mary ficou parada ao pé da escada e balançou a cabeça.
- Talvez eu seja mesmo - disse com ironia, e voltou à cozinha.
- Depois do churrasco, seu relacionamento com a nora melhorou bastante. com Bruce Latimore, o envolvimento cresceu. As aulas recomeçaram e, como Mattie não tinha com quem ficar depois que voltava da escola, passou a ser deixada na fazenda, pelo ônibus escolar, todos os dias. Das três horas, quando chegava, até às cinco e meia, quando seu pai voltava do escritório em Boston, ficava brincando ou estudando.
- Bruce ia não só para buscá-la. Às quartas-feiras, sempre saía com Mary. Levava-a a restaurantes caros ou, às vezes, a alguma lanchonete no caminho de Boston. Ele era fanático por esportes e a levava às corridas de cachorros. Mary só sabia a diferença entre um cachorro e outro por causa dos números. Também costumavam ver jogos de futebol americano, outro esporte sobre o qual Mary nada entendia.
- Mas nem só os esportes preenchiam suas saídas. Ouviram a Sinfônica de Boston e assistiram ao "Lago dos Cisnes". Uma noite, Mary pediu a Bruce que passasse pela "Boca do Lixo" de Boston, pois tinha muita curiosidade de ver como era. Diante dos cartazes anunciando shows eróticos, perguntou: - Vai me levar, uma noite dessas? Vi muitas mulheres entrando lá.
- Talvez eu a leve. Tem energia de sobra, ainda está em forma... Na certa vai tirar um bom dinheiro por uma noite de. "trabalho" - disse rindo, enquanto ela ficava vermelha.
- Num desses passeios, foram ver uma encenação de Madame Butterfly, a ópera favorita de Mary. Mas dez minutos depois do início do espetáculo, quando a Butterfly acabava de aparecer diante do Tenente, Bruce pegou Mary pela mão e levou-a para fora do teatro. Ela mal teve tempo para pensar e já estava debaixo da chuva que desabava sobre a cidade.
- O que está acontecendo? Eu gosto da Madame Butterfly protestou.
- Eu também - ele respondeu, abrindo a porta do carro. Mary entrou, emburrada, e não abriu a porta para ele,
- deixando-o mais algum tempo na chuva. Quando, afinal, ele entrou, pôs as mãos no volante e perguntou: - Posso saber a razão dessa pirraça?
- E você não sabe? Vim para ouvir a Butterfly e você me carrega para fora. O que houve? Não assisti ao seu jogo de futebol do começo ao fim? Por que não quis ver a Butterfly?
- Não é a Butterfly. Fiquei com pena do tenente Pinkerton. Como acha que eu podia suportar ver um sujeito interessante como ele enamorado por uma Butterfly de duzentos quilos? Se a pegasse no colo, acabaria com uma hérnia dupla! Ã ópera é um espetáculo visual, além de sonoro, e este me frustrou logo no primeiro ato!
- Desmancha-prazeres! - ela resmungou.
- Mas o aborrecimento não durou muito tempo. A caminho de casa, passaram por um ginásio onde anunciavam um espetáculo de luta livre. Bastou um olhar para que concordassem em entrar juntos. Passaram o resto da noite rindo e torcendo pelos lutadores que se revezavam no rinque. Depois da última luta, voltaram ao carro e ela se desculpou. Afinal, muitos dos lutadores eram menores que a cantora que fazia o papel de Butterfly, e não custava nada alimentar um pouco o ego de Bruce.
- No último dia de setembro, Mary recebeu um telefonema de Charles Momson que a encheu de alegria.
- Acho que vencemos a luta contra o calendário da Corte o advogado anunciou, alegre. - Apresentaram o relatório sobre o banhado esta manhã, mas o juiz Harris não tem mais data vaga até vinte de fevereiro. Deixaram os papéis com Addie e, talvez, consigam uma audiência no fim de fevereiro.
- Mas será que o juiz não vai ler o processo e dar um parecer, pelo menos?
- Não se preocupe. Addie e eu fomos colegas de escola Garanto que ele não vai apresentar os papéis ao juiz antes de fevereiro! - Charles riu.
- Podemos passar o inverno tranqüilos, Charlie? - Tranqüilos e sob a proteção da lei, Mary. Bem. na verdade, ele pode querer apelar para a Corte Suprema e usar amizades influentes.
- É verdade - ela concordou, desanimada.
- Ora, não pense no pior, Mary Kate. Para tudo há um jeito. Além disso, não acredito que ele vá recorrer.
- Mary não cabia em si de contentamento. Henry trabalhara em dobro no último mês para terminar a colheita, mas o feno estava dando trabalho. A plantação ficava do outro lado da fazenda, e era preciso cruzar o ribeirão três vezes para encher as carrocerias dos caminhões e transportar o produto para o celeiro. Além do mais, tinha agora uma nova desculpa para ir à casa de Henry. O relacionamento de Mary com Anna melhorara, mas a garota ainda a chamava de "sra. Chase" e não ficava nem um pouco à vontade em sua presença. O que era uma boa desculpa para visitá-la com mais freqüência.
- Saiu em direção à casa do enteado. Esta tinha sido sede de outra fazenda mas, quando o Coronel comprou as terras, resolveu mantê-la para quando Henry se casasse. Lá estava Anna, alta e imponente, com seu cabelo loiro. Tinha quase o tamanho de Henry e trabalhava tanto quanto ele. Ao ver a sogra, logo perguntou.
- O que foi? Aconteceu algo errado?
- Ao contrário, trago uma notícia que deixará vocês muito contentes. Onde está Henry?
- Deve estar chegando para o almoço.
- Mary aproveitou a ocasião para elogiar o cheiro que vinha do fogão. A nora, constrangida, convidou-a para almoçar.
- Ótimo! - disse Mary, prontamente. - Hoje eu não estava com a menor inspiração para cozinhar. Já tinha me conformado em comer um sanduíche.
- Quando Henry chegou, Anna parecia mais relaxada. Afinal, nunca se vira sozinha diante da sogra. Assim, de perto, ela lhe parecia bem mais "humana" do que costumava ouvir do marido e da cunhada, que lhe passavam a própria imagem da perfeição.
- Enquanto almoçavam, Mary contou-lhes tudo o que acabara de saber sobre o processo na Corte. Henry comentou:
- Isso é muito boml Agora podemos descansar um pouco. Ainda temos bastante feno para colher e o milho ainda tem de esperar uma semana. Mas não precisaremos mais nos preocupar com o inverno.
- Pois é. Mas a batalha ainda não acabou. Posso jurar que Bruce não desistiu de sua estrada. Na primavera, certamente, enfrentaremos outro ataque.
- Em outubro, as folhas passaram do verde para o dourado e o vermelho. Novembro chegou, frio e com chuvas. Só as abóboras ainda resistiam, no campo. Nada mudara. Nada importante, pelo menos.
- Mary tinha se acostumado a sair às quartas-feiras à noite
- ícom Bruce e, na segunda quarta-feira de novembro, quando
- ele não apareceu, sentou-se ao lado do telefone, ansiosa. Ele ligou de Boston, onde estava numa reunião de emergência por causa de um acidente em uma obra. Ela conversou sem se alterar
- mas, quando desligou, começou a chorar.
- Havia uma coisa mudando, sim. Cada vez mais ela sentia a presença de Bruce quando ele entrava numa sala, mesmo que estivesse rodeada por outras pessoas; nem era preciso olhar. Sua chegada lhe trazia uma sensação de calma, como se um vazio tivesse sido preenchido em seu coração. Quando ele partia, o vazio voltava. Mary ficava rude com as pessoas, distraída, esperando. por sua volta. Não era preciso que ele a tocasse ou falasse com ela. Bastava que estivesse lá. Era uma presença amiga e Mary concluiu que tinham se tornado bons companheiros, aprofundando a amizade. Mas, no fundo, algo a incomodava, pois sabia que havia mais que amizade entre eles. Pensar nisso lhe gelava o sangue.
- O jantar do Dia de Ação de Graças, no fim de novembro, foi muito agradável. Todos estavam presentes: Henry, Anna, Becky com o novo namorado, um tal de Alfred, Mattie, Bruce e Mary Kate. Anna, agora já totalmente integrada à família, e Becky foram cedo para a cozinha. Ajudaram Mary a assar o peru e a preparar tortas e acompanhamentos. Depois do almoço, satisfeitos, os homens foram ver o jogo de rúgbi pela tevê e as mulheres sentaram-se para conversar. Em menos de dez minutos, Bruce reapareceu e pôs a mão no ombro de Mary. Ela ergueu o rosto, sorrindo, e todos, menos ela, perceberam o quanto era especial aquele sorriso.
- Vamos dar um passeio - ele convidou.
- Ela se levantou e o seguiu. Vestiram seus casacos e saíram, caminhando até o que restava da Árvore da Liberdade. O sol já se tinha posto e a lua cheia subia no céu, dourada. Sentaram-se sobre o tronco, abraçados. Ao longe, uma coruja solitária piava. O vento soprava os cabelos de Mary que tinham escapado do gorro de lã. As árvores já estavam sem folhas. Mary aninhou a cabeça no ombro forte e quente de Bruce.
- Árvore da Liberdade - ele disse.
- O que foi?
- A Árvore da Liberdade. Disse que um dia me falaria sobre ela.
- Mary levou alguns segundos para se concentrar no assunto. Estava pensando no calor daqueles braços, na doçura dos lábios de Bruce.
- Toda cidade tinha uma. Isso foi antes da Independência dos Estados Unidos. Era sempre uma árvore grande, que pudesse abrigar uma reunião. Os americanos tinham Comitês de Correspondência. Homens de uma cidade escreviam as novidades revolucionárias para as pessoas de outra cidade. Tudo viajava no correio do rei inglês, é claro. Se o Rei Jorge tivesse fechado os correios, teria acabado com a revolução. O povo da cidade se reunia sob a Árvore da Liberdade para ouvir as notícias e para fazer planos. Foi assim que elas se tornaram uma parte importante da luta pela Independência.
- E no frio do inverno? Por que não arranjavam um salão?
- Você seria um péssimo conspirador, Bruce. A árvore sempre ficava em um lugar distante, para que só os revolucionários ouvissem o que se passava!
- Pelo jeito, sua família participou intensamente disso.
- Enganou-se. Minha família só veio da Irlanda na época da Guerra Civil Americana. Meu avô participou dela. Mas os Chase, a família do Coronel, vieram no Mayflower, o primeiro navio dos imigrantes que fugiam da perseguição religiosa na Inglaterra!
- Logo depois, ele a abraçou e beijou de leve. Era assim que Mary estava acostumada: um beijo leve e amigo, que a fazia se sentir bem. Mas o abraço de Bruce se estreitou e seus lábios pediram algo mais. Perturbada, ela não correspondeu. Ele a soltou, rindo.
- Por que está rindo? - ela perguntou.
- O riso a perturbava ainda mais do que o beijo, sobretudo porque a obrigava a reconhecer que estava totalmente vulnerável às reações dele.
- Só estava testando - ele explicou. - Quando se prepara um molho, deve-se experimentar de vez em quando para ver como está, não é?
- Não sei do que está falando. Olhei Estrelas cadentes ali'. Está vendo?
- Já fez seu pedido? - ele perguntou.
- Não. Não acredito nessas coisas.
- Pois eu não sei se acredito. Só sei que se for pela intensidade do desejo, meu pedido será atendido - ele disse, puxando-a para si.
- Mary se aninhou junto ao seu peito e assim ficaram até que o frio da noite começasse a se infiltrar pelas roupas. Voltaram para casa, em silêncio.
- Pouco antes do Natal, numa manhã muito fria de sábado, ele veio buscá-la para irem até a costa. Estava tão gelado lá fora que era difícil acreditar que ele estivesse falando sério. Calçou botas de cano alto, forradas, vestiu suas calças mais grossas, dois pulôveres e um casaco pesado com capuz. Bruce a levou a Plymouthy, a velha cidade onde tinham desembarcado os imigrantes do Mayflower. O termômetro marcava dois graus positivos.
- Ele levou-a para ver os Edifícios Plymouth, uma reconstrução fiel da vila dos imigrantes. Era um conjunto de casas feitas de troncos, cercado por uma paliçada, para proteger o povoado contra os índios. Alguns atores andavam pelas ruas, reproduzindo o cotidiano de seus primeiros moradores. No cais, uma réplica idêntica ao Mayflower estava à disposição dos visitantes.
- Estou congelando - ela protestou, em vão. Entraram no barco. Bruce subiu a escada de cordas, examinando todo o convés.
- Não é tão grande quanto eu pensava - comentou. Afinal, carregou dez mil pessoas, de acordo com os documentos da época.
- Mary estava com as mãos enfiadas nos bolsos e parecia que suas orelhas iam se quebrar, de tão geladas.
- Gostaria de saber o que está tentando provar - disse, aborrecida.
- Provar? Preciso provar alguma coisa? - ele riu.
- Mas, finalmente, ele se dobrou ao frio e levou-a até uma cafeteria. O calor provocou uma enorme sensação de prazer em Mary. Sentaram-se perto da janela e não se falaram até terem esvaziado a xícara de café quente. Ela já começava a sentir a circulação voltar aos dedos gelados e à ponta das orelhas. Ia falar, mas parou, porque ele também tinha algo a dizer:
- Mary Kate, trouxe você aqui porque queria conversar longe daquele monte de gente que sempre está à sua volta.
- Não seja injusto. Não esqueça de que uma dessas pessoas é sua filha - ela riu.
- Nem precisa me lembrar. Ela tem me dado trabalho em casa e você deve saber.
- Trabalho? Pois tem se comportado muito bem na fazenda!
- É porque lá tem uma coisa que ela quer: você. Eu também quero você, Mary. Já decidiu se apaixonar por mim?
- Irritada com o frio e com a hora que ele escolheu para abordar o assunto, ela esbravejou:
- Que coisa mais boba! Nunca vi um lugar menos romântico para falar de amor. Foi para isso que me fez levantar tão cedo? Deve estar a zero grau lá fora e você quer falar de amor?
- Quer dizer que a resposta é não? - ele perguntou, com a testa franzida.
- Bruce, por favor! - ela disse, pondo a mão sobre o braço dele. - Não sei qual é a resposta. com o Coronel foi diferente. Nós nos conhecíamos bem, morávamos na mesma casa e. tudo aconteceu de modo bem simples.
- Bruce levantou-se, zangado, e quase derrubou a cadeira:
- Diabos! O pior não é ser recusado, é ter de ouvir falar no maldito Coronel! Como posso pensar em fazer você gostar de mim, quando carrega o peso da memória de seu marido nas costas, o tempo todo?
- Não fale assim do Coronel! - ela disse, levantando-se, vermelha.
- Ora, vamos embora!
- Voltaram para casa num silêncio absoluto e carregado de ressentimento. Quando ele parou o carro em frente à porta, ela sabia que aquilo significava adeus. Não estava preparada para aquela situação, assim como não se sentia preparada para uma confissão de amor.
- Você e Mattie vêm passar o Natal conosco? - perguntou, de cabeça baixa.
- Não. vou estar na Arábia Saudita e Mattie vai passar o Natal com a avó, em Newport.
- Então. Não tem mais nada para me dizer?
- Não. Adeus, Mary Kate.
- Ela desceu do carro e beijou-lhe o rosto, pela janela. Ele não se mexeu. Deu a partida no carro e sumiu.
- Na manhã seguinte, ele e Mattie tinham desaparecido. Becky trouxe as novidades.
- A casa está toda trancada, Ma. A governanta disse que ele deixou o pagamento adiantado para todos os empregados e avisaria quando precisasse deles outra vez. Ouvi dizer que Mattie teve que ser arrastada até o carro, aos berros'.
- Pobre garota! - Mary comentou, tentando conter as lágrimas. Como era possível explicar a vida, o mundo, para Mattie?
- O tempo andava tão fechado quanto o humor de Mary. O Natal seria na sexta-feira; na segunda, uma onda de frio e neve veio da costa. Ao meio-dia, as nuvens cobriram o sol, Na terça, começaram a cair os primeiros flocos de neve. Na quarta-feira começou uma nevasca. Henry apareceu, preocupado.
- A previsão do tempo não está nada boa, Ma. Já preparei tudo. Até as galinhas de Becky estão recolhidas. Mas estou preocupado com você, sozinha aqui. Becky vai lá para casa, à noite, ajudar Anna a preparar os biscoitos de Natal e deve ficar até amanhã. Não quer vir conosco também?
- Desculpe, Henry. Não posso. Acho até que prefiro ficar sozinha. Tenho bastante combustível, lenha, água e o telefone. De que mais posso precisar?
- Um telefonema, era tudo o que ela precisava e Mary sabia disso. Mas como dizer a Henry que queria ficar sozinha porque talvez. Bruce telefonasse?
- Não queremos que passe nenhum aperto - Henry disse, com carinho. - Sabe o que vou fazer? vou trazer meu trator novo para cá e deixar na frente da casa. É como se fosse um tanque de guerra: com aquelas esteiras, passa em cima de qualquer coisa. Ah, e a cabine tem aquecimento. Se ficar desesperada, é só descer o morro. Está bem?
- Está bem, está bem. Cada dia você se parece mais com seu pai - Mary riu.
- E você parece mais minha mãe do que nunca. Boa-noite, Ma - disse, acariciando os cabelos de Mary.
- Boa-noite, filho,
- Henry parou na porta aberta.
- Foram as palavras mais bonitas que já ouvi - declarou.
- É o melhor presente de Natal que eu podia querer.
- O vento começou a soprar forte às sete horas daquela noite, uivando em volta da casa. Só as janelas da varanda não estavam com as venezianas de madeira fechadas; eram o único contato de Mary com o mundo lá fora. Ela verificou todos os aquecedores da casa, abriu um pouco as torneiras para que a água não congelasse nos canos e pegou mais um cobertor.
- Às dez da noite, caía uma violenta nevasca. com o cobertor sobre as pernas, Mary ouvia rádio na sala. A televisão não estava funcionando, pois a antena tinha sido arrancada do telhado. Ligou para a casa de Henry, só para se certificar de que não estava sozinha no mundo. Ao ouvir as risadas ao fundo, ficou contente em saber que eles estavam felizes. Depois, recostou-se na cadeira e se deixou invadir pela tristeza. Onde estaria Bruce naquela hora? Pensaria na mulher que deixara para trás? Ou estaria pensando na estrada? Mary sentia falta da presença dele, de sua amizade, de seu calor. do seu amor.
- Tomara que ele volte para mim! - murmurou. Levantou-se e foi até a cozinha. Um chocolate quente não
- aliviaria seu coração, mas seria bem reconfortante. Quando voltava com a xícara para a sala, o telefone tocou. Não era um barulho regular e logo parou. Mary pensou em Becky, Henry e Anna, na casa de baixo. Olhou pela janela: não era possível ver nada. O vento estava mais fraco, mas a neve caía em grandes flocos. O telefone voltou a tocar. Mary deixou a xícara sobre a mesinha e foi atender.
- Primeiro ouviu um zunido estridente, depois um som arranhado, como se a outra pessoa estivesse muito, muito longe. Lr do fundo vinha uma vozinha:
- Alô! Ma? Me ajude, Ma. Preciso. de você!
- Quem. Onde você está? - Mary perguntou.
- É Mattíe. Eu fugi. Estou na estação rodoviária de Tauton e não tem mais ninguém aqui, não tem mais ônibus e estou com frio. Você me ajuda, Ma?
- A ligação caiu. Por um instante, Mary ficou paralisada, mas logo se pôs a pensar no que fazer. A estação de Tauton ficava a dezesseis quilômetros dali, num lugar descampado, e não tinha aquecimento. O melhor a fazer era pedir ajuda à polícia de Tauton. Mas o telefone não funcionava, estava mudo. Mary correu para o quarto e vestiu suas roupas mais grossas. Voltou à cozinha e encheu uma garrafa térmica com chocolate quente. Depois, lutou com a porta da frente e com o vento e entrou na cabine do trator. Respirando fundo depois do esforço, ligou o motor barulhento. As luzes do painel se acenderam; ela ligou o farol e o limpador de pára-brisa, antes de começar a descer a colina, onde meio metro de neve já se tinha acumulado. Parou perto da estrada. Seria bom avisar Henry, mas não... não seria justo tirá-lo de perto de Anna numa noite horrível daquelas. Pensou por mais um minuto, só o suficiente para que o aquecimento da cabine começasse a fazer efeito, e tomou sua decisão. Engatou a marcha e rumou para a estrada, dirigindo-se para o sul.
- O vento uivava, ameaçador. Precisou parar duas vezes para tirar o excesso de neve do pára-brisa. Não havia nada na estrada além dela e o trator. O resto eram árvores e neve. Agradeceu à boa sinalização da estrada, que a ajudava, O trator não ia além dos oito quilômetros por hora. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que a máquina poderia parar. E se acabasse o combustível? Olhando para o marcador, viu que ainda contava com meio tanque. Felizmente já estava chegando a Touton e haveria combustível suficiente para a volta!
- Os prédios seguravam um pouco o vento que ficou mais fraco dentro da cidade. Não havia mais nem uma trilha na neve, além da deixada pelo trator. Nada se movia nas ruas desertas. As luzes dos postes estavam apagadas e a neve se acumulava nas calçadas, Foi preciso parar mais uma vez para limpar o pára-brisa antes de chegar à estação rodoviária. Ao se ver diante dela, Mary desligou o motor e olhou ansiosa para o prédio de madeira,
- Era uma construção de um só pavimento, com lojas de um lado e uma pequena sala de espera de outro. Uma luz brilhava lá dentro, mas Mary não via nada. E se a polícia tivesse aparecido e levado Mattie embora? Mas no pátio da delegacia, do outro lado da rua, também não se percebia movimento algum. Não havia o menor sinal de vida sobre a neve branca.
- Cansada pela tensão de dirigir o enorme trator, desceu da cabine. O vento arrancou a porta de suas mãos, abrindo-a por completo. Foi um esforço tremendo conseguir fechá-la outra vez.
As botas afundavam na neve. Encolhida e de cabeça baixa, para se proteger do vento, Mary tentou abrir a porta da sala de espera. Estava emperrada. O vento voltou a soprar com força e, desesperada, Mary jogou todo o peso de seu corpo contra a porta, que finalmente se abriu, rangendo. Mary quase caiu para dentro.
- Tirando a neve do rosto, olhou em volta. Ninguém. Os quatro bancos estavam vazios.
- Ai, ai, ai! Onde ela pode estar? - Mary murmurou.
- Aqui, Ma! Aqui! - Mattie disse, debaixo de uma máquina de jogo eletrônico.
- Mary se ajoelhou para olhar e recebeu um sorriso. com o rosto quase escondido por trás do cachecol, a menina falou:
- Sabia que ia vir, Ma. Não está zangada comigo? Mary abraçou com força aquele corpinho frágil, lutando contra as lágrimas que ameaçavam rolar.
- Zangada com você? Como posso ficar zangada quando fez uma longa viagem para passar o Natal comigo? Vamos, querida, vamos para casa.
- Na véspera do Natal, a família estava reunida na casa de Mary. A neve continuava a cair. Ficara decidido que Anna e Henry dormiriam no quarto do canto, sem uso, desde a morte do Coronel. Mattie já estava acomodada no quarto de Becky.
- Não me conformo, Ma. Por que fez a loucura de sair dirigindo sozinha até Tauton? Podia ter me chamado! - Henry protestou.
- Não sei o que me deu, Henry. Pensei que. achei que estava fazendo o melhor.
- E quase se matou! Devia ter ficado em algum lugar em Tauton, em vez de voltar, Ma. Parece que está perdendo o juízo - Henry censurou.
- Acho que sim - ela riu. - Eu não conhecia ninguém em Tauton e nem a polícia estava na rua para dar informações. Achei melhor voltar e passar na casa do doutor Geddes, no caminho. Depois de ter certeza de que ela estava bem, o que poderia ser melhor do que voltar para Casa? Faltava pouco!
- Ma, foi a pior nevasca em setenta anos. Pare de se julgar uma fortaleza!
- Que conversa boba, Henry!
- Mary foi para a cozinha, onde Becky e Anna preparavam a massa das tortas.
- Esses homens! - ela esbravejou.
- São terríveis, mesmo. O que foi que o Henry fez agora?
- Anna perguntou.
- Ora, esses homens acham que têm a melhor solução para tudo. Não conseguem nem se organizar em casa! Seu marido está se tornando um porco chauvinista, Anna. Precisa dar um jeito nele.
- Pode deixar comigo - Anna respondeu, séria.
- Becky estragou tudo, caindo na risada, no que logo foi seguida por Mary e Anna.
- Mary Kate olhou para o relógio, pôs o caldo de carne numa tigela e subiu. Mattie estava acordada, mas nem se mexia na cama. Mary pegou um travesseiro e ajudou-a a se recostaf.
- Tome um pouco desse caldo - Mary disse. - Está quente e vai lhe fazer bem.
- Pensei que nunca mais ia me esquentar. Precisava ver como estava frio, lá! - Mattie comentou.
- Na verdade, você não escolheu uma época muito boa para fugir. Quer me contar o que aconteceu?
- Não. Se eu contar, você vai ficar brava comigo e me mandar de volta.
- Mary puxou uma cadeira para perto da cama, sentou-se e acariciou o braço da garota.
- Já devia saber que sou sua amiga. E como posso mandar você para algum lugar? Tem quase um metro de neve lá fora, as estradas não foram desimpedidas e ainda estão consertando a linha telefônica. Não temos como sair daqui; portanto, pode começar a falar!
- Está bem. Minha avó e minha tia não gostam de mim. Só meu pai é que gosta... e você e a Becky. Minha avó acha que é uma grande dama. Gosta de se arrumar e ir na casa das amigas. Elas ficam sentadas, jogando cartas e falando dos outros. Eu tinha que ir com ela, todo dia! "Ponha um vestido limpo, Matilda. Ponha uma fita no cabelo. Fique quietinha para a vovó conversar com estas senhoras" e dizia mais um monte de coisas chatas. Imagine que não me deixava comer na mesa com elas! Dizia que eu era muito pequena. Bem que eu ouvi quando elas disseram que eu era uma boba.
- O que você ouviu?
- Ah, foi um dia que eu estava com sede e desci para tomar água. Elas não me viram, mas eu ouvi elas falarem mal de mim e do papai. Sabe que é ele quem dá dinheiro para elas? Estavam rindo e chamando papai de bárbaro e eu de boba. Foi daí que eu decidi sumir de lá, Ma. Detesto aquelas duas.
- Mary não sabia o que fazer. Mattie não voltaria para a casa da avó em Newport. O pai estava na Arábia Saudita. Ela teria que ficar em Eastboro. Pelo menos até alguém entrar em contato com seu pai. Mas havia algo mais.
- É melhor você dormir um pouco. Vai ficar conosco até eu falar com seu pai, é claro. Está bon?
- Tá bon, sim. Mas tudo ia ser bem mais fácil se você casasse com meu pai - a menina suspirou.
- Mary ficou acariciando a mão de Mattie até ela adormecer; depois ajeitou as cobertas. Ao sair do quarto, sussurrou:
- Talvez você tenha razão, querida.
- Henry estava na sala quando Mary desceu. Falava com alguém ao telefone.
- Já está funcionando? - perguntou, distraída.
- Não, estou só treinando - Henry disse, rindo. - Estava falando com o xerife. Ele disse que estão tirando a neve das ruas principais e que dentro de mais dois dias as estradas estarão desimpedidas. Não há feridos. Parece que todos tiveram o bom senso de ficar em casa durante a tempestade.
- Não queira bancar o "sabe-tudo". Preciso avisar a avó de Mattie e depois. achar o pai dela. Nem sei o nome da avó e Mattie não quer me contar. Está com medo de que a mande de volta.
- Mas é claro! É isso que precisamos fazer, Ma. Quando as estradas estiverem limpas, vamos ter que mandar a menina de volta.
- De jeito nenhum, Henry! Não mandaremos Mattie de volta. Se aquele tonto do pai dela quer que ela fique em Newport, que venha buscá-la. Nós não vamos mandar a menina a parte alguma! Para lugar nenhum, entendeu? - Mary esbravejou, com os olhos brilhando.
- Ora, Ma. Não precisa criar confusão por causa disso. Você é quem manda. Se quer que ela fique, ela fica - Henry respondeu, pondo as mãos nos ombros de Mary.
- Ai. Henry! Não sei mais o que fazer. Estou tão confusa!
- Encostou a cabeça no ombro do enteado e chorou, soluçando.
- Ele esperou que ela desabafasse e depois lhe deu um lenço enorme para enxugar os olhos.
- Tudo vai dar certo, Ma, não se preocupe. Deve estar nevando tanto em Newport quanto aqui. As estradas também devem continuar bloqueadas. Acho que o melhor a fazer é telefonar para a polícia de Newport e avisar que Mattie está conosco. É isto que a preocupa, não é?
- Mary ia concordar, o que seria uma mentira, mas conseguiu se conter a tempo. Olhando firme nos olhos de Henry, respondeu:
- Não, Henry. Não é isso.
- Sem poder explicar o que sentia, foi se refugiar na cozinha. Precisava fazer um pão. Pegou a lata de farinha, sob os olhares espantados de Becky e Anna. Isso mesmo, precisava fazer um pão: dissolver o fermento na água morna, misturar a farinha e os outros ingredientes e, então, amassar, esticar, bater e sovar a massa, até colocar para fora todas as suas frustrações.
- O jantar foi leve. Henry trouxe Mattie para baixo e instalou-a numa poltrona grande, bem coberta. Tomaram uma canja nutritiva e saborosa e, então, foram decorar a árvore de Natal. A neve recomeçou a cair em flocos enormes, mas já não ventava tanto.
- Como não faltavam mãos para ajudar, Mary voltou à sala de estar, sozinha. Precisava pensar.
- Acomodou-se no sofá, sentando-se sobre os pés, e soltou a imaginação. "Vamos supor, só supor, que ele estivesse falando sério e me pedisse em casamento outra vez? Ou será verdade o que ele disse. que estou sempre carregando o Coronel nos ombros? "
- Mary olhou à sua volta, observando cada detalhe daquela sala confortável e protetora. Seria isso mesmo? Protetora? Tinha se envolvido com as vidas de Becky e Henry, sem dúvida. E, nos últimos anos, não precisava se preocupar com mais nada além do casamento de Becky. Quando Becky saísse da igreja nos braços de um homem de sorte e -fosse seguir seu próprio caminho, o que aconteceria com Mary Chase? Estaria preparada para suportar a casa vazia, dormir noite após noite numa cama solitária e esperar a visita dos filhos de Becky e de Henry? Todos a julgavam uma mulher assentada, com a vida definida. O que o Coronel diria daquilo tudo? Sabia a resposta sem precisar perguntar. O Coronel gostava de lembrar: "Nunca olhe para trás. É o futuro que conta".
- O velho e querido Coronel. Mary deixou que as lembranças invadissem sua mente; repassou os momentos felizes, as alegrias e problemas que enfrentaram juntos, o amor que sempre reinou naquela casa. Compreendeu, depois, que já podia guardar essas lembranças em um canto remoto de seu coração. O coronel poderia, finalmente, descansar em paz.
- Ouviu o riso que vinha da outra sala. Tentou se levantar. Alguém precisava contar a Bruce. Contar o quê? Que Mattie estava bem, é claro! Contar-lhe que. mas ela aíastou a idéia. Ainda não era hora. Uma mulher devia esperar pelo pedido. Precisava, também, pensar em Becky. Foi devagar até o telefone. O relógio da parede não estava funcionando. Quantas horas ainda faltavam para a meia-noite? Dando de ombros, pegou sua agenda e ligou para o escritório em Boston.
- O telefone pareceu tocar uma eternidade. Mary ia desistir quando uma voz masculina e mal-humorada atendeu.
- Sala de emergência da Corporação Latimore.
- Mary sentiu todas as vibrações de irritação que lhe chegaram
- Pelo telefone, o que ajudou a lhe tirar um pouco a coragem.
- Aqui é. Eu. eu preciso falar com o sr. Latimore.
- Ora, dona! É véspera de Natal. Ele não está.
- Estou com um problema.
- Eu também - ele rugiu. - Estamos com setenta e cinco peças do nosso equipamento espalhadas pela Nova Inglaterra e o governador acaba de requisitar esse equipamento para limpar as estradas.
- Aquilo foi demais para ela. Já estava cansada de lidar com Latimore, o construtor de estradas, sem precisar ter problemas com o Grande Latimore, o dono de um império. E agora ainda vinha aquele chauvinista de boca grande lhe dizer desaforos! Explodiu:
- Escute aqui, espertinho. Não me interessa que tenha perdido todos os seus "brinquedinhos" na neve. Coitadinho! Agora escute. Estou com um problema. É uma garota perdida que se chama Mattie Latimore! E agora, o que tem para dizer?
- Santa mãe!. Está falando da filha do patrão? - ele perguntou, mudando o ton de voz.
- Isso mesmo, a filha do patrão. - Ouviu que ele falava com outra pessoa no escritório e voltou ao telefone
- Dona, sabe onde a menina está agora?
- Está comigo.
- Dona, não vá me dizer que seu nome é Mary Chase.
- O tigre deixou-se domar em questão de minutos! Mary não pôde deixar de sentir o gostinho da vitória.
- Se isto significa muito para o senhor, gostaria de lhe dizer que não sou Mary Chase. Mas, infelizmente, sou - riu, percebendo o constrangimento do homem. - Mas que diferença faz?
- Que diferença? Faz trinta anos que trabalho para os Latimore, dona. Ganho bem, aqui. Tem uma mensagem enorme no quadro cie avisos que o próprio patrão escreveu: "Qualquer contato com ou sobre Mary Chase são da máxima importância. Sem exceção". Isto pode significar que acabo de perder meu emprego, dona Mary.
- Não se preocupe. Não é preciso se culpar por estar cansado na véspera do Natal. Bem, a menina fugiu da casa da avó em Newport. Está comigo e está bem. Outra coisa: preciso muito falar com Bruce. com o senhor Latimore, e não sei como. Aliás, não sei o seu nome. Pode me dizer como localizar seu patrão?
- Puxa! Bem... já tinha ouvido falar da senhora, dona Mary, e da estrada e. bolas! Quer me dar o número do seu telefone? Peço para ele ligar para a senhora. Vai demorar um pouco, sabe como é. Ele está num lugar e. são seis horas da manhã onde ele está. Ele liga para a senhora.
- Obrigada, senhor.
- Riley.
- Não se preocupe - voltou a tranqüilizá-lo. - Feliz Natal, senhor. Smith.
- Já era quase meia-noite quando a decoração da árvore ficou pronta. Depois de comerem bolachas de mel, Mary mandou as garotas para a cama, enquanto Henry e Anna arrumavam os presentes em baixo da árvore. Quando terminaram, os três adultos tomaram chocolate quente com licor. Em seguida, Henry e Anna foram se deitar.
- Mary sabia que Becky se levantaria cedo para ver o que ganhara. Embora não acreditasse em Papai Noel desde os seis anos, a garota ainda vibrava com a surpresa das manhãs de Natal. Mary estava cansada e precisaria estar de pé cedo, com as meninas, mas não conseguiu ir se deitar. Bruce iria ligar. Estava certa de que ele ligaria! Acomodou-se na cadeira ao lado do telefone e tricotou até dormir.
- O toque do telefone despertou-a às duas da manhã. A telefonista, com voz agradável e sotaque carregado, completou a ligação. A voz de Bruce surgiu, depois de uma série de ruídos.
- O que está errado agora? - foi logo perguntando.
- Vou bem, obrigada - ela respondeu, com secura. Espero que também esteja bem,
- Mary - disse, um pouco menos agressivo, - estou muito ocupado. Estamos enfrentando uma tempestade de areia terrível por aqui e perdemos quatro máquinas.
- Sinto que tenha perdido seus "brinquedinhos" - ela retrucou e levantou a voz. - Perderam máquinas por aqui, também. Nós estamos enfrentando a pior nevasca dos últimos setenta anos, se quer saber
- lá me disseram. Era isso o que queria contar?
- Não. Sua filha fugiu no meio da tempestade.
- "Vamos ver se agora presta atenção no que eu digo, Bruce Latimore", ela pensou.
- Mattie? Fugiu durante a tempestade de neve? O que aconteceu? - ele perguntou, perdendo toda a arrogância.
- Ela fugiu da casa da avó, mas me procurou. Está comigo. Ficou um pouco resfriada, mas já está melhor. Diz que a avó não gosta dela e não quer voltar.
- Como não quer voltar? Vai voltar, sim. Olhe o que está fazendo comigo, Mary Kate: encorajando a menina a desobedecer, Ela vai voltar1. E já!
- - ]á, já! Sim, senhor. As estradas estão bloqueadas com a neve. Quer que eu puxe um trenó até Newport? Ou que amarre a menina num passarinho que esteja voando para lá? Só que, com este tempo, nem os urubus querem voar'.
- Desculpe... Eu não imaginava...
- Claro que não'. - ela gritou. - Nunca desconfia de nada! Pensa que é só bater com sua varinha mágica e tudo sai como você quer, o sol brilha e derrete a neve e nós, que te amamos tanto, ficamos sentadinhos, esperando que perceba que existimos, não é seu. seu mandachuva sem coração?
- O que foi que você disse? - ele perguntou.
- Sem coração! - ela rugiu.
- Não foi isso - ele riu. - O que disse antes?
- Eu disse...
- Quando percebeu o que tinha dito, começou a rir entre lágrimas. Estava feliz porque conseguira dizer e porque tudo indicava que ele esperava ouvir aquilo. Teve raiva de sua estupidez por ter levado tanto tempo para perceber.
- Não me lembro do que disse - mentiu. - Mas é melhor você. Se quer que Mattie volte a Newport, vai ter de levar você mesmo. E é bom que venha logo, ela está bem chateada. Nenhum filho gosta de passar o Natal sem o pai. Parece que tem vento na cabeça, Bruce Latimore! É melhor vir correndo para cá, está me ouvindo?
- Claro que estou! - ele riu. - Foi o melhor presente de Natal que eu podia ganhar!
- Não se esqueça de trazer uma pá quando vier. Nem todas as estradas estão livres e...
- E vou fazer toda essa longa viagem só porque Mattie precisa de mim? - ele a interrompeu.
- O que está querendo de mim? Está bem, também preciso de você. Satisfeito?
- Ainda não. Prefiro ouvir pessoalmente. Já estou pronto para voltar. Mande minhas saudações ao Coronel - ele disse. E desligou.
- Saudações ao Coronel? O que ele queria dizer com aquilo? Mas ia voltar! Bem, isso se conseguisse decolar com uma tempestade de areia e aterrissar numa de neve! Mary foi até a janela e afastou a cortina. A neve já não caía e, por entre as nuvens, podia-se ver algumas estrelas. Aquilo era um bom presságio. Subiu as escadas rindo sozinha. Sim, ele viria. Ele era capaz de qualquer coisa.
- Era, de fato. Mas a viagem levou mais de vinte e quatro horas. Enquanto isso, a família levantou-se cedo. Depois de abrirem os presentes e tomarem café, foram todos para fora, fazer uma batalha de bolas de neve. Como para as vacas nunca é feriado, Henry desbloqueou o caminho entre a estrada principal e o curral, para que os caminhões da coleta de leite pudessem fazer seu serviço. Anna logo voltou para casa; Becky e Mattie brincaram na neve até cansar.
- Jantaram as sobras do almoço. O presunto assado com abacaxi parecia suficiente para alimentá-los até o Ano Novo. As duas meninas, mortas de cansaço, tomaram um banho e foram contentes para a cama. Às dez horas, a casa estava no mais absoluto silêncio. Lá fora já não ventava. A temperatura devia estar por volta dos cinco graus e muitas estrelas brilhavam no céu.
- Mary sentou-se na sala, esperando. Seus nervos estavam à flor da pele. Qualquer barulho a assustava. Corria à janela cada vez que ouvia o ruído de um carro passando na estrada. Mas nenhum deles entrava na Fazenda Somerfield. À meia-noite, ela já não suportava. mais aquela espera. Para se distrair, começou a limpar a casa. Às duas horas, subiu para tomar banho. Ao sair da ducha, o silêncio da madrugada fria voltou a envolvê-la. Enxugou-se com vigor e estava começando a secar o cabelo quando um ruído a assustou. Parecia uma porta batendo." Teria deixado a porta da frente aberta? Quase impossível. Mas como não estava agindo muito dentro do normal nos últimos três dias, era melhor descer e verificar. Enrolou uma toalha na cintura e já quase nos últimos degraus, percebeu que não estava sozinha. Vindo da cozinha, com um copo na mão, surgiu Bruce Latimore.
- Pensei que não tinha ninguém em casa - disse, de um modo estranho. - Como está Mattie?
- Mary estava imaginando por que ele não a tomava nos braços, não a beijava? Não tirava os olhos dela, mas parecia mais distante do que... a Arábia Saudita!
- Está lá em cima, dormindo - disse, afinal. - No quarto à direita da escada.
- Bruce se aproximou. Parou no mesmo degrau que ela, devorando-a com os olhos.
- Volto daqui a pouco - ele murmurou e subiu os degraus de dois em dois. Entrou no quarto na ponta dos pés e não ficou lá mais que um minuto. Quando voltou, a expressão de seu rosto estava diferente. Ele sorria.
- Parece que ela está bem - comentou.
- "Está" bem.
- Ótimo. Agora vamos falar de você.
- De mim? O que há de errado comigo?
- Primeiro, Mary Chase, quero "jantar" com você. Segundo: não vou conseguir conversar com você quase nua na minha frente. Dou um minuto para resolver: ou se veste ou vai para a cama comigo.
- Só então ela percebeu que estava usando apenas uma toalha mal presa à cintura. com um grito abafado, cobriu os seios com as mãos, o que só fez o sorriso dele aumentar.
- Sua mão é muito pequena para esconder tudo. Não acha que a minha é melhor? - ele perguntou, cobrindo um dos seios com sua mão grande e quente.
- Não. Não!
- Mary se afastou até bater com as costas no corrimão. Saiu correndo escada acima e fechou a porta do quarto. Confusa, ficou andando de um lado para outro até se acalmar um pouco. Abriu a porta do armário, procurando algo para vestir. Algo solto, largo, que a cobrisse dos pés à cabeça; que a escondesse, enfim. Resolveu colocar um macacão inteiriço, de mangas compridas, fechado com um zíper, que subia até o pescoço. Antes, porém, fugindo ao hábito, vestiu o sutiã e uma calcinha até a cintura. O cabelo ainda estava molhado e ela o deixou solto.
- Desceu a escada com a cabeça erguida. Repetia para si mesma que era preciso manter a aparência fria e distante. Entrou na sala com um ar de vitória mas, por dentro, estava ansiosa como uma garotinha em seu primeiro encontro com o namorado. Ele continuava na sala e girava o gelo no copo.
- Já estou no segundo - disse, erguendo o copo em saudação. - Espero que não se zangue. Foi uma viagem terrível.
- Fazendo sinal de que não tinha importância, ela dirigiu-se para uma poltrona. Mas ele a puxou, obrigando-a a sentar-se ao seu lado, no sofá.
- Conte tudo - pediu.
- Bem, já era tarde da noite. Nevava muito quando recebi o telefonema de Mattie e...
- Não, não é nada disso. já vi que ela está bem, Mary. Quero saber da parte mais importante.
- Parte mais importante? Não estou entendendo.
- Ora, ora - ele riu. - Parece que tem só dezesseis anos com esse cabelo solto. Tem certeza de que Becky é mais nova que você?
- Deixe de ser bobo! Ei... o que está fazendo?
- Ele a envolveu com os braços e colocou-a em seu colo. Depois do susto inicial, não parecia uma má idéia. Ela se afastou um pouco para observar aquele rosto indecifrável. Depois, encostou a cabeça no peito de Bruce, ouvindo as batidas de seu coração.
- Estou esperando - ele disse.
- Esperando o que?
- Esperando que me diga por que sentiu falta de mim.
- Ah, isso. Bem... estive. estive pensando.
- E daí?
- Pensei que... Mattie disse que... tudo seria bem mais fácil para nós todos se eu... nós dois nos casássemos.
- Essa menina é mesmo inteligente. Deve ter puxado ao pai. E você, o que acha?
- Depois de pensar muito no assunto, achei que Mattie precisa de uma mãe. Também acho que não seria mau para você ter uma esposa... mas também preciso pensar em Becky. Ela é muito nova para ficar sozinha, mas também já está muito grande para obedecer sem discutir. Preciso falar com ela e...
- Ele a interrompeu com um beijo suave, mas profundo. Quando a soltou, ela estava sem ar. Então ele sussurrou junto ao seu ouvido:
- Concordo com tudo o que você disse. Mas e o Coronel?
- O Coronel sempre foi uma pessoa maravilhosa. Mas agora está morto.
- Tem certeza?
- Absoluta - ela respondeu. - Você tinha razão. Eu estava investindo a minha vida nos objetivos dele. Sempre fiz tudo pensando em Becky e Henry. Continuo amando os dois, mas o Coronel está morto.
- E assim posso ter você só para mim?
- Acertou - ela murmurou. - Eu te amo.
- E assim termina a estória da Madrasta Má - ele riu, abraçando-a com força.
- Voltou a beijá-la, desta vez com mais paixão, acariciando seus longos cabelos. Ocorreu a Mary que talvez os livros mentissem, pois não sentia o fogo da paixão. Só conforto, um doce prazer, paz. Deixou suas mãos correrem pelas costas dele, contente por estar assim. Então, como que por acaso, a mão de Bruce subiu da linha dos quadris até os seios, incendiando todo o seu corpo. As mãos de Mary deslizaram por baixo da camisa dele, ansiosas por sentir o calor de sua pele. Mal percebeu quando ele abriu o zíper do macacão, que escorregou pelos ombros e caiu até a cintura. Afagando os pêlos do peito de Bruce, Mary tremia.
- Quando ele, impaciente, arrancou-lhe o sutiã e se curvou para prender o bico de seu seio nos lábios, passeando a língua quente sobre ele, Mary correu os dedos para os cabelos e a nuca de Bruce, abandonando-se ao prazer que a invadia. Repetia seu nome, sussurrando, e gemeu quando sentiu aquelas mãos ávidas escorregarem do estômago para os quadris. O abajur caiu, fazendo um barulho alto, mas Mary mal se deu conta do que aconteceu. Estava com as pernas sobre o colo de Bruce, os ombros sobre o sofá, quando a mão dele deslizou, suave, para dentro da calcinha. Mary deixou escapar um grito abafado, esperando o que vinha a seguir, mas uma vozinha veio quebrar a atmosfera de encanto:
- Papai! Você chegou!
- Mattie estava na porta. Bruce levantou-se abruptamente derru bando Mary no chão. Como um lutador que cai na lona depoide um golpe forte, ela sacudiu a cabeça e viu a menina entrar correndo e se atirar nos braços do pai. Só então percebeu o qu estava acontecendo! Vermelha dos pés à cabeça, tratou de vestir e fechar o macacão o mais depressa que pôde.
- O que está fazendo no chão, Ma? - a menina perguntou.
- Mary sacudiu a cabeça, sem saber o que dizer, mas Brucc salvou a situação com uma mentira:
- Está procurando minha caneta que caiu.
- Deixa para lá, Ma. De manhã eu ajudo a procurar. Mas o que aconteceu? Parece que você está sem ar, Ma.
- Deve estar, deve estar - Bruce disse, rindo para Mary.
- Mas agora é melhor voltar para a cama, princesa.
- Para surpresa de ambos, a garota sorriu e subiu as escadas como um foguete. Mary e Bruce ficaram de mãos dadas, esperando que a porta do quarto se fechasse.
- Acho que é melhor nos casarmos - ele murmurou. É
- E logo! - ela respondeu, abraçando-o.
Mas dizer era uma coisa e fazer, outra. O primeiro problema, pela ordem, era Becky, sem dúvida, Quando Bruce e Mattie foram passar um dia em Newport, para serenar os ânimos da avó ofendida, Mary resolveu atacar o assunto. Às nove horas, entrou no quarto de Becky, com duas xícaras de café.
- Parecia que um furacão tinha varrido o pequeno cômodo. Havia roupas das duas garotas sobre as cadeiras, pelo chão e por cima do camiseiro. Não se via Becky, que estava sob um monte de cobertores sobre a cama, com a cabeça debaixo do travesseiro.
- Que horror'. - Mary exclamou.
- O travesseiro se afastou um pouco e o rosto da garota apareceu.
- Ma? Ah, está falando do quarto?
- Não mudou muito desde o tempo em que eu dormia aqui, só que uma cama ficava desocupada para eu ter mais espaço para espalhar minhas coisas - Mary riu.
- Será que estou doente? Por que me trouxe café na cama?
- Becky perguntou, livrando-se dos cobertores e sentando-se na cama.
- Tinha abandonado as camisolas com renda e agora usava uma camiseta com o nome de um time de basquete. Só que aquela camiseta jamais tinha passado pelo corpo de um jogador. Colava-se ao corpo bem feito da garota como uma segunda pele.
- Mary ficou imaginando se Bruce dormia de pijama, com camiseta. ou nada.
- Ma, não vai me dar o café?
- Claro, claro. Acho que eu estava sonhando -Mary riu. Pus pouco açúcar, como você gosta.
- O que ia dizer, Ma?
- Eu? Não sei, acho que não ia dizer nada. Não sei o que está acontecendo comigo.
- Não sabe, é? Por que não pára de fazer rodeios e se casa com ele?
- Acha mesmo que eu devo? - Mary perguntou, com um fio de voz.
- Deixe de bobagem! Naquela noite, quando o abajur caiu, eu desci a escada com Mattie. Só que tive o bom senso de subir correndo outra vez. Ele já estava com a faca e o garfo na mão!
- Vermelha, Mary balançou a cabeça. Quando se recompôs, perguntou:
- Acha que o casamento é uma boa idéia?
- A melhor que podia acontecer neste ano novo. Henry também acha.
- Henry? Você contou a ele?
- Claro! Quem mais está preocupado com você além dele e eu? Sem deixar Mattie de lado, é claro. É genial. Quando vai ser?
- Nós... ainda não marcamos uma data. Só que tem um problema, Becky. Eu quero me casar com ele. E você, meu bem?
- Eu? Qual é o problema comigo? Você é minha mãe desde que eu tinha cinco anos. Não está querendo me deixar para trás agora, está?
- Claro que não, Becky. Só acho que tem idade suficiente para saber o que quer e merece escolher o que é melhor para você. Antes de qualquer coisa, se não quiser que eu me case com Bruce, desisto agora mesmo.
- Que bobagem, Ma. É melhor casar que morrer de vontade. Quais são as suas opções?
- Bem, se concordar com o casamento, pode ir morar com Henry e Anna, ficar aqui com uma governanta ou se juntar a Bruce, Mattie e eu.
- Ora, Ma. Não tem escolha nenhuma. É em volta de você que o mundo gira e eu quero ficar perto do movimento. Claro que prefiro ir com você. se ele não for contra.
- Nem pode ser - Mary respondeu, sorrindo. - Ele sabe muito bem que, desde que você queira, só viverei com ele se puder levá-la junto.
- A garota abraçou Mary com força, fazendo com que ela derramasse o café, já frio, no chão. A cena terminou com risos.
- Naquela noite, quando contou o que tinha acontecido a Bruce, observou-lhe bem o rosto, estudando sua reação. Como recompensa, recebeu um sorriso satisfeito.
- Claro que Becky vem conosco1. Vamos ter uma babá morando em nossa casa! - ele riu. - E, então, quando nos casamos?
- Mary queria que fosse o mais rápido possível. Mas no primeiro dia do ano, quando reuniu a família para conversar sobre o assunto, ninguém parecia ter a mesma pressa.
- Queria uma coisa bem simples. Pensei numa reunião íntima, depois da cerimônia no cartório - disse Mary.
- Não, não. Nada disso! - Becky protestou, logo imitada por Mattie.
- Também não concordo - Anna disse. - Assim fica parecendo que tem algo a esconder, Ma. Afinal, sempre freqüentamos a igreja. Além do mais, sempre quis ser dama de honra e não é todo dia que se tem a oportunidade.
- Apoiado! Ainda mais ser dama de honra no casamento da própria mãe! - Becky disse, animada.
- E eu que vou levar minha mãe ao altar! - Henry cornpletou. - Também gosto de casamento na igreja.
- Isto é uma democracia. Vamos votar! Votar! - Becky gritou. - Quem for a favor de um casamento na igreja que levante a mão!
- Cinco mãos se levantaram no mesmo instante. Mary olhou para Bruce, esperando uma instrução, uma ajuda. Ele sorria, com a mão também levantada. Vendo sua idéia rejeitada, Mary não quis ceder.
- Ora, é meu casamento! Será que não tenho direito a dizer o que penso?
- Claro que tem, querida. Ê só votar - Bruce respondeu. O sorriso de Bruce e os rostos animados daquelas pessoas queridas fizeram Mary tomar sua decisão. Levantou a mão, devagar, disposta a enfrentar as dificuldades que até então pretendera evitar.
E elas não tardaram a aparecer.
- Janeiro não é um bom mês para casamentos - o padre afirmou. - Sempre há problemas com o tempo, o que dificulta o transporte da noiva e dos convidados. Além do mais, o organista viaja nas duas primeiras semanas do mês e eu tenho um congresso nas duas últimas. Sabe qual é o melhor dia para você se casar, Mary?
Ela olhou-o, surpresa. Tinha sido batizada por ele e recebido a primeira comunhão de suas mãos. Não mudara quase nada em todos aqueles anos. Continuava o mesmo homem alto, magro e distraído, com o colarinho engomado sempre um pouco fora do lugar. E agora iria determinar o dia do seu casamento.
- Sabe, Mary Kate?
- Não faço idéia.
- Dia de São Valentim, 14 de fevereiro. O dia dos namorados aqui nos Estados Unidos. O que acha?
- Mas. ainda está tão longe! - ela protestou.
- Não vá me dizer que "precisa" se casar depressa, Mary Kate! - o padre disse, arrumando os óculos e franzindo a testa.
- Não, não é isso - ela riu.
- Então já vou anotar.
- Os dedos compridos do padre, deformados pela artrite, escreviam o que ele dizia alto e devagar: "Casamento de Mary Katherine Chase e Bruce P. Latimore, dia catorze de fevereiro".
- Naquela noite, Mary perguntou a Bruce qual o significado daquele "P", mas ele também tinha perguntas a fazer e ela acabou sem a resposta que queria. Era sexta-feira e não podia deixar de ir à aula em Boston. Nunca falara claramente a Bruce a respeito de seu curso. Sem saber o que ela estudava, seria bem mais difícil que ele descobrisse "quem" estava por trás do atraso da construção da estrada. E a defesa dos interesses de Henry e Becky era algo de que não pretendia abrir mão.
- Mary quase teve um ataque na noite em que a família se reuniu para decidir quem convidar. Não que fosse contra alguém da lista mas, no final, eram duzentos e dezesseis convidados! E ela queria um casamento simples, íntimo. Mas contrariar a todos era o mesmo que enfrentar os leões do circo romano e Mary foi dormir cansada e emburrada naquela noite.
- Depois da lista de convidados foi a vez de tratar da igreja, do bufê para a recepção e do fotógrafo. Havia detalhes menores, mas não menos trabalhosos, como mandar remover a neve da frente da igreja. O que mais preocupava Mary, porém, era o vestido, e ela falou sobre isso com Bruce. Três dias depois, de manhã, uma senhora e três moças bateram à porta. Envolvida nos trabalhos da casa, Mary atendeu-as com um ar cansado.
- Bom-dia. Trabalho com vestidos - a mulher disse. Mary olhou-a sem compreender.
- Vestidos - a senhora repetiu. - Foi o sr. Latimore quem me mandou vir aqui. Será que me enganei?
- Vocês... vendem vestidos? - Mary gaguejou.
- Nós fazemos vestidos - a mulher corrigiu, como se a palavra vender fosse de mau gosto.
- Mary convidou-as a entrar. Enquanto as acompanhava até a sala, sua cabeça disparou a pensar. Nunca aceitou e não aceitaria, depois do casamento, transformar-se em uma sombra do marido, só abrindo a boca para dizer "sim, senhor" ou "não, senhor". Ainda não compreendia por que Bruce a escolhera para sua mulher, já que parecia ter tanta vocação para mandar.
- A sra. Frangini orientou-a na escolha' do modelo e encarregou as ajudantes de tirarem as medidas. Despediu-se, prometendo voltar em uma semana. Não faltou com a palavra.
- O vestido de noiva deixou Mary sem fala. Era em veludo cor de pérola. Afinal, como dissera a sra, Frangini, uma noiva não deve tremer de frio durante a cerimônia. A saia era ampla e longa. Não tinha gola, mas o decote, rende ao pescoço, era adornado com pele branca e macia, assim como os punhos. O véu deveria cobrir o rosto de Mary e cair até pouco atrás dos ombros, preso por uma tiara de ouro quase invisível. Os vestidos de Becky, Anna e Mattie eram brancos, com detalhes de renda no pescoço e punhos, abotoados com delicados botões de sírass.
- Mary estava maravilhada com os trajes, mas não conseguiu compartilhar seu entusiasmo com Bruce, naquele primeiro dia de fevereiro. Ele não parecia muito interessado. Nos vestidos, pelo menos. Sempre que ela tentava lhe contar alguma coisa, ele a beijava. Seus beijos já não eram calmos e contidos. E quando tocava em Mary, mesmo que apenas com o dedo em seu queixo, fazia-a sentir um arrepio dos pés à cabeça. E ele sabia disso!
- Tem certeza de que quer esperar até o dia do casamento?
- sussurrou no ouvido de Mary.
- Absoluta! Calma, tigre. Seja bonzinho e volte para a jaula
- ela respondeu.
- Isso vai me deixando curioso e ansioso. Vai ver só o que acontece no dia do casamento! - ele provocou, rindo.
- Pois espere para ver quem faz o que em quem - ela desafiou.
- Sabe o que eu acho? Você está com medo de mim.
- Eu? Imagine! - ela respondeu, sabendo muito bem que, lá no fundo, tinha um pouco, mas só um pouquinho, de medo dele.
- Chegou o dia do casamento.
- O tempo era a maior preocupação de Mary: dele dependiam a vinda dos convidados e a festa. Se bem que sorte talvez fosse mais importante que tudo isso. A mãe de Anna afirmava que chuva traz felicidade à noiva, mas a irmã do padre dissera que "feliz é a noiva sobre a qual brilha o sol". Quando chegou à igreja, estava nevando outra vez. Quando Mary reclamou, Henry riu.
- Não se preocupe, Ma, tudo vai dar certo.
- Tinham chegado à igreja em limusines, atrás do limpador de neve, tudo providenciado por Bruce.
- Esse homem não se esquece de nada! - Henry comentou, & olhando o logotipo da Corporação Latimore pintado no limpadorl de neve.
- Quando, o cortejo se formou na porta principal, Mary estava uma pilha de nervos. "O que estou fazendo? vou me casar com o dono da Corporação Latimore! Oh, Deus, por que ele quer se casar comigo? ", perguntou-se. Henry deu-lhe o braço naquele instante. O bom e fiel Henry! As portas se abriram e lá estava ela, com Mattie, Anna e Becky à sua frente. Seus joelhos tremiam e não conseguia mexer os pés. Henry murmurou:
- É sua última chance. Se quer sair correndo, tem que ser agora!
- A vontade de rir aliviou os nervos de Mary, que se pôs a caminhar ao ritmo da marcha nupcial tocada pelo órgão.
- No altar, Henry levantou o véu, beijou o rosto da noiva e a entregou a Bruce.
- A cerimônia transcorreu sem surpresas. Mary repetia as palavras rituais, sem conseguir prestar muita atenção ao que estava se passando... honrar... na saúde, na doença... com este anel. Mary só tinha olhos para Bruce. Sorria quando ele a fitava e sentiu uma indescritível alegria quando recebeu a aliança em seu dedo. Um beijo quente indicou-lhe o fim da cerimônia.
- Deixaram o altar de mãos dadas, sob a música envolvente do órgão. Mary sentia-se feliz e, sem perceber, apressou o passo
- enquanto se dirigia para a saída. Bruce apertou levemente seu braço, fazendo-a andar mais devagar. Então sussurrou em seu ouvido:
- Quando cruzarmos a porta, Deus lançará um raio sobre minha cabeça.
- Por que faria uma coisa dessas? - ela perguntou:
- Porque roubei um de seus anjos, só que ele ainda não sabe. Enquanto recebiam os cumprimentos, Bruce apresentou um homem pouco mais baixo e mais forte do que ele:
- Mary, este é Charles Riley, meu braço direito na firma. Aproveitando que Bruce conversava com outra pessoa, Mary perguntou baixinho:
- Já consegue se sair melhor ao telefone, senhor Riley? Charles balançou a cabeça e riu, afastando-se.
- As limusines foram usadas outra vez para transportá-los da Igreja ao clube, onde seria a recepção. Um trator da construtora de Bruce já removera toda a neve do caminho, como já era de se esperar. Para Mary, parecia haver uma cidade inteira reunida na recepção. Os convidados foram servidos, ergueram-se brindes, o bolo foi cortado e flashes de câmeras fotográficas não paravam de espocar. Logo que pôde, Mary retirou-se para uma saleta reservada. Tinha mil recomendações a dar a Anna, Becky e Mattie, que a ajudavam a trocar de roupa.
- Não deixe de cuidar bem de Mattie, Becky. E vocês duas têm que obedecer à Anna. Não vão dar trabalho a ela e... pena que eu não possa levar todo mundo junto!
- As últimas palavras trouxeram lágrimas aos olhos de todas, que se abraçaram. Despediram-se e desceram para encontrar Bruce, que já estava impaciente.
- Eu estava me arrumando e elas me ajudaram. - Mary começou a se desculpar. - Precisávamos chorar um pouquinho juntas. Não se zangue, por favor.
- Não estou zangado com você - ele declarou. - O que me preocupa é a droga do tempo. Estão prevendo uma bela nevasca que pode obstruir as estradas. com todo avanço científico, ainda não descobrimos como controlar o tempo!
- As últimas palavras soaram tão arrogantes que Mary olhou para ele, surpresa, esperando ver um sorriso naquele rosto amado. Mas Bruce se virou e abriu a porta do carro, sério. Os convidados gritaram vivas, fizeram as brincadeiras de costume, e os noivos partiram.
- O que se deve dizer a alguém que acaba de se tornar seu marido e que está dirigindo quando começa a nevar? "Dirija mais rápido. Ouvi dizer que este lugar para onde vamos é magnífico."
- Não foi uma cerimônia linda? - ela disse, afinal.
- Foi, sim.
- Muitos quilômetros se passaram até que ela arriscou:
- Carro novo?
- É - ele respondeu, sem dizer mais nenhuma palavra por mais tantos outros quilômetros.
- Não está com vontade de conversar? - ela perguntou, aborrecida.
- Claro que estou! Gostaria de pararmos aqui mesmo, mas esta tempestade de neve está me deixapdo louco. Na verdade, acho que é você quem está me deixando louco. Sabe, estou achando difícil chegar a Berkshires com este tempo. Sei de um ótimo hotel logo adiante, em Stockbridge. O que acha de pararmos lá?
- Para mim, tanto faz - ela respondeu, nervosa. Chegando ao hotel, Bruce se encarregou das formalidades.
- Foram levados até um apartamento amplo e claro, com uma vista bonita para as montanhas, no terceiro andar. No quarto, havia uma janela que ia do chão ao teto, ao lado da porta que levava à escada, coberta de neve.
- Enquanto Bruce dava uma gorjeta ao carregador, Mary o observava. Sentiu um arrepio lhe subir pelas costas. Algo mudara, de repente. Até ali, ele tinha sido um amigo, um companheiro, um confidente mas, agora, era seu marido!
- Piscina aquecida e coberta - ele riu, lendo o folheto de propaganda. - Ei, o que há com você, meu bem?
- N-não sei - ela gaguejou. - Até parece que sou uma virgem raptada! É que. ontem eu me sentia à vontade para falar com você. Só que hoje. Não sei, parece que há um muro entre nós.
- Já sei. É esse muro aí - ele disse, apontando para a cama entre eles. - Mas é preciso pôr esse muro abaixo, Mary. É para isso que se faz lua-de-mel.
- Sei que prometi te amar e honrar lá na igreja, mas não queria que fosse. algo imposto, mecânico...
- Está bem. São quatro horas, agora - ele disse, consultando o relógio. - O jantar é servido das sete às nove. Por que não aproveita para tomar um banho e descansar um pouco? vou comprar o jornal, que nem tive tempo de ler hoje.
- Antes que ela pudesse responder, ele já tinha saído. Mary pegou o xampu e o sabonete na bolsa de toalete. Quando Bruce voltou, ela já estava deitada, coberta apenas pelo lençol.
- Já venho ficar com você - ele disse, e fechou-se no banheiro.
- Em menos de cinco minutos estava de volta, com os cabelos ainda molhados e uma toalha presa nos quadris. Ela o observava, apreensiva.
- Ei, o que é isso? Relaxe! - Bruce disse, deitando-se ao lado dela.
- Hum... fácil falar - ela protestou, engolindo em seco. Num movimento rápido, Bruce livrou-se da toalha e retirou o
- lençol que a cobria. Estavam deitados lado a lado, nus. A respiração de Bruce se acelerou. Ele a olhava, visivelmente ansioso. Um frio de puro medo percorreu a espinha de Mary.
- Qual é o problema? - ele murmurou junto ao ouvido de Mary, enquanto lhe acariciava seus cabelos.
- Não sei... acho que é porque nunca fiz amor à luz do dia. Posso fechar as cortinas?
- Não, senhora - ele riu. - Quero admirar você por inteiro.
- Ágil, colocou-se do outro lado da cama e tomou os pés de Mary entre as mãos. Começou a beijar-lhe cada dedo. Mary riu, sentindo cócegas.
- Ah, assim é melhor. Está começando a relaxar. Sabe que tem pés muito bonitos?
- Claro - ela respondeu, brincando. - São únicos!
- Únicos por quê?
- Entre bilhões de pessoas que existem no mundo, sou a única que pode caminhar com eles.
- Isso é lógica feminina? E olhe que joelhos! Magníficos ele disse, beijando um de cada vez, enquanto sua mão corria pela barriga da perna. - Só dobram para um lado?
- Sim, e só para você, meu senhor.
- E amo - ele completou. - Isso é muito bon. Acho que você vai ser uma boa esposa, se eu lembrar de lhe dar uma surra de vez em quando. Ei, por que está se mexendo desse jeito?
- A sua mão! - ela disse, olhando para os dedos que lhe subiam pela coxa. - Não brinque com fogo, a não ser que queira se queimar!
- Ora, e como quero!
- Brincando e provocando-a com toques suaves e delicados, Bruce conseguiu deixá-la à vontade, para corresponder e participar daquele momento há tanto aguardado.
- O medo cedeu lugar ao desejo e se amaram intensamente, compartilhando o delicioso prazer dos amantes.
- A viagem para Berkshires e os passeios foram esquecidos. Permaneceram no mesmo hotel, satisfeitos em apenas estarem um com o outro, a intimidade entre eles crescendo, aproximando-os.
- Apesar da saudade dos filhos, foi com tristeza que viram os dias passarem com rapidez e o domingo se aproximar-, Era hora de partir e enfrentar o dia-a-dia.
- Já escurecia quando chegaram ao centro de Eastboro. Não havia ninguém nas ruas. O vento úmido soprava naquela noite típica do inverno da Nova Inglaterra.
- Estacionaram em frente à casa que agora seria o novo lar de Mary. Assim que o carro parou, a porta da frente se abriu, iluminando a varanda. Mary mal tinha aberto a porta do carro, quando Mattie desceu os degraus correndo e se atirou nos braços dela, que a abraçou com muito carinho. Becky vinha atrás, sorridente. Beijou Mary e parou um tanto hesitante à frente de Bruce.
- Seja bem-vindo - ensaiou e recebeu um caloroso abraço. Mary suspirou, aliviada. Agora, sim, tinha certeza de que tudo daria certo.
- A vida nova foi um desafio para Mary. Acostumara-se, durante anos, a tomar decisões sozinhas. Agora, experimentava novamente dividir tarefas e emoções com um companheiro.
- Além disso, sua nova casa era muito grande, contava com a ajuda de empregados, e assumia a responsabilidade de cuidar e orientar mais uma filha.
- Habituada à independência de Becky, que nunca solicitara sua presença nas atividades escolares, Mary ficou surpresa quando Mattie apareceu, sorridente, com um convite.
- É para a peça de teatro, na segunda-feira - Mattie foi dizendo, antes mesmo de Mary abrir o envelope. - Você vai. não é?
- Eu tenho que ir?
- Claro! Eu era a única menina da classe que não tinha mãe. Agora que tenho, é claro que você vai!
- Isso mesmo! Obrigação de mãe! Becky confirmou, rindo. Na segunda-feira, Mary saiu com seu velho Mustang e foi
- até a escola. Mal-acomodada numa cadeirinha de criança, assistiu a uma peça em doze atos, dos quais Mattie só aparecia em dois.
- Depois do espetáculo, as coleguinhas de Mattie a cercaram, bombardeando-a com perguntas como: "É verdade que Mattie carregou as alianças no seu casamento? ". "Você é a mãe dela agora? "
- Às quatro horas já voltavam para casa. Ainda faltavam alguns quilômetros para chegarem, quando o carro se recusou a ir adiante.
- Aborrecida, Mary pensou no que fazer. Havia um telefone público do outro lado da rua, e poderia telefonar para Bill, o mecânico, ou, então, para Henry. Mas, àquela hora, ele devia estar muito ocupado. Também podia ir a pé para casa ou... Riu, ao pensar nessa última alternativa. Já eram quase cinco horas! Procurou uma ficha telefônica na bolsa e decidiu-se:
- Mattie! Vá até o telefone e ligue para seu pai.
- Certo. O que é para dizer?
- Diga que o carro pifou e que precisamos de uma carona! Ele chegou vinte minutos depois. Balançava a cabeça, olhando para o velho Mustang.
- O que vamos fazer com seu carro, Ma? - Mattie perguntou.
- Não sei - Mary riu. - Isso agora é com o papai. Ele riu e abraçou a mulher.
- Não exagere, madame - ele brincou. - Não sou "seu" pai. Quanto ao seu carro, acho que um depósito de ferro-velho o aceita. Tinha esquecido dessa sua relíquia.
- Mas eu preciso de um carro para ir a Boston - ela se apressou em protestar, temendo que a brincadeira se voltasse contra ela.
- Não se preocupe. Não é para resolver problemas que os maridos são preciosos? Parece que ainda não se acostumou com sua nova situação.
- "Claro que não." "Continuo tão independente como sempre fui. Se bem que uma ajuda é sempre bem-vinda", pensou, recostando-se no banco macio do Mercedes.
- Na terça-feira, ele fez questão de levá-la pessoalmente a Boston, indo buscá-la depois da aula. Mary ainda não queria contar-lhe que estudava na Faculdade de Direito da Nova Inglaterra. Conseguiu convencê-lo a deixá-la em frente à prefeitura, de onde pegou um táxi.
- Na quarta-feira de manhã, enquanto se via dividida entre orientar Jennie na arrumação da casa e acompanhar Pamela na preparação do almoço, o rapaz da revendedora de carros chegou com uma perua novinha, desculpando-se por não ter vindo no dia anterior.
- Não tínhamos este modelo na loja. Quer dizer, tínhamos
- o modelo, mas seu marido foi muito exigente quanto aos equipamentos de segurança e tivemos que fazer uma troca com outro revendedor.
- Quando Bruce voltou naquela noite, ela sentou-se com ele em frente à lareira, na sala, enquanto as meninas terminavam as lições na sala de estudos. Mary acomodou-se sobre uma almofada no chão, repousando a cabeça sobre os joelhos do marido. Aquele momento de relaxamento tinha se tornado parte da rotina familiar.
- Não devia ter comprado um carro tão grande para mim
- ela comentou.
- Quero que esteja bem protegida, mocinha. Ou não sabe o quanto é importante para mim?
- E você para mim - ela respondeu, beijando-lhe a mão com ternura.
- A manhã seguinte marcou o início de uma série de fatos que vieram perturbar a felicidade de Mary. Charlie Mamson, o advogado, telefonou.
- Mary Kate, tenho novidades que não sei se são boas ou más.
- Tudo bem, Charlie. Pode falar.
- Bem, acontece que nossa audiência na Corte foi adiada, desta vez para o dia dez de março. Ouvi dizer que o juiz Harris está muito doente. Disseram também que vão mandar vir um outro juiz, de Worcester, parece.
- Não vejo nada errado. Qual é o problema, Charlie?
- Quem deve vir é a juíza Katherine Osmond. Essa mulher é fogo, segundo contam por aí.
- Ora, não acho que seja tão ruim assim. Mais alguma coisa?
- Soube que a Latimore Corporation já requisitou o envio de equipamento pesado para Eastboro. Deve chegar dia quinze de março. Já sabia disso?
- Não, Charlie. Não me casei com a Latimore Corporation
- ela respondeu de mau humor.
- Pois devia saber. Deixe a munição preparada!
- Mary planejou conversar francamente com o marido naquela noite. Mas, às três da tarde, a vontade começou a fraquejar. Estava casada só há três semanas, e não queria uma discussão com Bruce. Talvez fosse melhor esperar uma outra ocasião.
- Ainda estava indecisa, quando saiu do banho no final da tarde e ouviu o carro dele estacionando. Apressou-se em vestir um suéter e uma saia e desceu correndo. Ele já esperava por ela na sala, com um copo de seu uísque favorito na mão. Serviu-lhe, como sempre, uma taça de vinho e sentou-se na poltrona com um suspiro de alívio. Mary puxou a almofada, e acomodou-se junto dele.
- Não está com uma carinha boa, hoje. Algum problema? - perguntou.
- Não, não é nada.
- Não, senhora. Vamos lá. Conte a verdade, toda a verdade. Vai ser melhor assim.
- Eu sei, mas você está cansado.
- Bruce puxou de leve a trança de Mary e pediu:
- É melhor me contar o que está acontecendo.
- Tudo bem. Estou cansada, Bruce. Acho que é porque não tenho nada para fazer. }ennie me olhou feio como se eu estivesse roubando seu emprego, hoje de manhã, só porque eu estava arrumando nossa cama. E toda vez que eu entro na cozinha, Pamela só falta me pôr para fora. Não queria te aborrecer com isso, sei que tem problemas maiores que os meus. Estou tentando me adaptar, mas.
- já imaginava que isso seria um problema - ele comentou.
- O que acha que podemos fazer?
- Bruce. E se mudássemos para a fazenda? Posso dar conta de tudo sem essas moças em volta. Não faltaria nada para você e.
- Bruce a interrompeu com um beijo leve nos lábios:
- Não, Mary. Há muitos fantasmas na Fazenda Somerfield. Vamos continuar aqui, na "minha" casa. Logo você terá muito o que fazer, estou certo. Bem que eu queria falar sobre a fazenda com você, mas achei melhor esperar um mês, um mês e meio, até que tivéssemos nos acostumado um ao outro. Mas acho que precisamos tomar uma decisão agora. Na minha opinião, devemos vendê-la.
- As coisas estavam saindo pior do que ela esperava. Bruce parecia calmo, mas continuava com aquela postura autoritária. Na certa, esperava que ela concordasse passivamente. Mary afastou-se dele e murmurou:
- Não, não posso fazer isso.
- Qual é o problema? O que a impede de vender?
- Somerfield não é minha. Pertence a Becky, e não a mim.
- A casa e metade da fazenda são dela. A outra metade e a outra casa são de Henry.
- Você não tem direito a nada? Como esperava viver depois
- que Becky se casasse? Você é, a responsável por ela, certo?
- Eu... eu recebo uma pensão do Exército. É o suficiente
- para mim. E sou responsável por Becky e seus bens até ela completar dezoito anos.
- Que tempão! - ele ironizou. - O mercado imobiliário
- anda muito bon, no momento. Até para uma casa cujo destino é a demolição.
- Bruce tomou o resto de seu drinque, como se o assunto estivesse encerrado. Mary não se mexia, tentando controlar a raiva que fervia dentro de si. Ele não podia ou não. queria entender!
- Não, não posso vender a casa de Becky - disse com firmeza.
- Bruce fechou o jornal que acabara de abrir.
- Não? Quer dizer que não vai vender a casa? - perguntou, calmo.
- Ela sacudiu a cabeça, esperando uma explosão, mas, ao contrário, ele se limitou a pegar seu rosto entre as mãos e beijar-lhe a boca com carinho. Então, como se nada tivesse acontecido, voltou a abrir o jornal. Zangada, Mary se aprumou e puxou de leve o jornal.
- não vou deixar que me força a vender a fazenda. Não pode me obrigar a vendê-la - Mary disse, com uma lágrima rolando pela face.
- Não, acho que não posso - ele respondeu, tranqüilo.
- O jantar daquela noite começou tenso. Mas com as piadinhas de Becky e Mattie sobre a seriedade dos dois adultos, o mal-estar logo se dissipou.
- Mais tarde, quando estava entrando no quarto, Bruce disse:
- Ah, já ia me esquecendo. Tem uma porção de papéis para você assinar, agora que é minha esposa. Quero que vá ao escritório comigo amanhã de manhã. O advogado da firma disse que vai deixar tudo pronto. Quero que participe de uma reunião da diretoria comigo. Depois, podemos voltar juntos para casa.
- Estava sendo tão atencioso, que Mary achou melhor esquecer o que a afligia e aproveitar a noite, quando não havia lugar para problemas. Só para o amor.
- Quando ia sozinha a Boston, Mary perdia um bom tempo tentando achar uma vaga para estacionar. Na volta, em geral, não conseguia sair, por causa dos carros parados em fila dupla. Mas Bruce, sem se incomodar, parou em frente ao prédio de escritórios, num local de estacionamento proibido, onde um manobrista já o esperava para levar o carro ao estacionamento.
- Ah, então é esse o tratamento dos nobres! - ela comentou.
- Bruce riu e, pegando-a pelo braço, levou-a para dentro do prédio.
- Pois é. Agora veja isso.
- Os elevadores subiam e desciam cheios àquela hora do dia, mas um esperava por ele.
- Isso é que é ter privilégios - ele disse, solene. Desceram no décimo quarto andar. Ela o seguiu por um longo corredor forrado com um carpete alto, bege. Ele a conduziu por uma sala ampla, repleta de pranchetas e escrivaninhas de ponta a ponta, todas já ocupadas. Entraram por outra porta e ele a fez sentar-se numa poltrona junto a enormes janelas. Ia saindo, quando ela chamou:
- Querido! - E, batendo continência, ironizou: - Sim, senhor. Espero aqui e aguardo novas ordens!
- Ele riu e desapareceu por outra porta. Nos dez minutos seguintes, Mary dedicou-se a examinar a sala. Para um escritório, tinha bastante bom gosto. Os estofados em verde e os móveis claros davam leveza ao ambiente. Das janelas, via-se o centro da cidade. O movimento era grande lá embaixo e Mary sentiu-se feliz por estar catorze andares acima daquela confusão. Uma porta se abriu atrás dela. Uma senhora de meia-idade, elegante, se apresentou.
- Senhora Latimore? Sou Emma Reines, secretária de seu marido. Queira desculpar, mas o doutor Sanders, o advogado, vai se atrasar um pouco. Seu marido pediu que eu a levasse à sala da diretoria, para que acompanhe a reunião até que o advogado chegue.
- Reunião da diretoria? Nunca estive em uma. - Mary comentou, pensando que Emma era a secretária perfeita para um homem bonito casado com uma esposa ciumenta.
- Seis homens sentavam-se à mesa de reunião. Bruce ocupava a cabeceira, e Emma encaminhou Mary à outra extremidade.
- Senhores - Bruce começou. - Esta é Mary Kate, minha esposa. A partir de hoje, é dona de dez por cento da companhia. Ela é especialista em. construções agrícolas - completou, com um sorriso maroto nos lábios.
- Como todos olhavam para Bruce, Mary aproveitou para lhe fazer uma careta. Tinha vontade de sumir naquele momento.
- Tudo o que se falava na reunião era novidade para Mary. Novos projetos, diferentes países onde seriam implantadas obras em andamento, custos, lucros, despesas. Mary começou a divagar e deixou de prestar atenção, até perceber que se instalara uma discussão. Um dos homens do meio batia o punho na mesa e outros três falavam ao mesmo tempo. Ao ouvir "estrada 695", Mary ficou alerta.
- Há seis anos que trabalhamos nesse projeto - um deles reclamava. - Não conseguimos receber nem metade das faturas até agora, o que mal deu para cobrir custos de pagamento de pessoal. Espero que não se esqueçam dos custos de uso das máquinas e equipamentos que se desgastam. O Estado não vai nos dar mais nem um tostão, até que terminemos aquela maldita milha que falta. São seis milhões de dólares em jogo! Se não recebermos logo, o prejuízo vai comer todos os lucros. Já está mais do que na hora de irmos lá e falarmos grosso com aquela mulherzinha!
- Bruce levantou-se, vermelho, e quase gritou:
- Essa estrada é um projeto "meu". vou cuidar dela de "meu" modo!
- Mas que diabos, não podemos deixar que uma dona qualquer...
- Chega, por favor!
- Mary percebeu que o homem ao lado do que aparteava tocou-o com o cotovelo e segredou qualquer coisa em seu ouvido. O outro calou-se no mesmo instante e olhou para ela desconfiado.
- Emma pegou o braço de Mary.
- Vamos, o doutor Sanders já deve ter chegado.
- Mary percebeu logo que a saída estratégica tinha sido idéia do marido que fizera um sinal para a secretária.
- Mais quinze minutos se passaram antes que Sanders chegasse. Enquanto isso, Emma tinha trazido café e sumido. Sozinha, Mary pensava no que acabara de acontecer. Na noite anterior, Bruce tinha lhe dito para vender a fazenda. Agora, anunciava que dez por cento da companhia pertenciam a ela. Seis milhões de dólares entrariam em caixa, assim terminassem a estrada que devia atravessar a Fazenda Somerfield. Seis milhões de dólares? E Bruce dissera que aquilo era apenas um "projeto pessoal". Seis milhões de dólares...
- torn Sanders finalmente apareceu, interrompendo suas divagações.
- Por aqui, por favor - o advogado disse, levando-a para a sala do marido. - Há uma porção de papéis que seu marido quer que assine. É melhor usarmos a escrivaninha dele.
- O advogado pôs uma pilha de papel à sua frente e estendeu-lhe uma caneta de ouro.
- Faz tempo que não uso esse tipo de caneta - ela se desculpou.
- Depois pensou: "Por que devo me desculpar? Sou dona dessa firma. Ele é apenas um funcionário. Por que estou tremendo tanto? "
- A senhora deve assinar aqui, aqui e aqui - Sanders indicou os espaços nos documentos.
- Mas o que é isso? - Mary perguntou, olhando as páginas datilografadas.
- Nada especial. Este aqui é seu recibo pela cota da firma e uma procuração para que seu marido vote em seu nome.
- Isso quer dizer que eu não voto?
- Claro que não - ele riu. - Mas recebe os dividendos, não se preocupe.
- Mary balançou a cabeça, tentando clarear as idéias. Pensava em como teria sido melhor ficar na calma da fazenda.
- Isso. Agora, aqui e aqui, por favor, senhora Latimore. São as ações em nome de sua filha, Rebecca, não é?
- E a procuração para que meu marido vote por ela?
- Mary perguntou, com ironia.
- Isso mesmo.
- "Mas que maravilha. Bruce não precisava ter feito isso", Mary pensou. "Becky não precisa do dinheiro. Mas vai ficar entusiasmada quando souber o que Bruce fez por ela!"
- Recostando-se na enorme cadeira giratória, perguntou:
- Mais alguma coisa?
- Sim, sim. Agora são seis cópias.
- Mary leu: "Ao Tribunal Superior do Estado de Massachusetts, sobre a adoção de Rebeca Elizabeth Chase, menor, por Bruce P. Latimore, enteada de Mary Katherine Chase, agora senhora Mary Katherine Latimore". Junto havia um bilhete: "Mary, Becky e eu achamos que gostaria deste presente". Ela guardou o bilhete no bolso do casaco e sorriu, enquanto assinava.
- Agora, chegamos ao final, senhora Latimore.
- Mary estava feliz. Tinha se casado com um homem fantástico! Já começara a assinar o nome no último documento quando algo chamou sua atenção: "Desistência". Parou e pôs a caneta de lado.
- Dr. Sanders, o que meu marido disse... sobre isto aqui?
- Disse que era para a senhora assinar.
- Os olhos dela se encheram de lágrimas quando começou a ler. "A abaixo assinada, Mary Katherine Latimore, ex-Mary Katherine Chase, pede permissão à Corte para retirar a apelação de n. 19872, contra a construção da estrada 695 pela Latimore Construction Corporation."
- Ele quer que eu assine isto? - insistiu, sentindo o coração apertar.
- Sim, disse que este era especial - o advogado respondeu. "Então é isto que valemos eu, Becky, Anna, Henry e o resto
- da fazenda! Seis milhões de dólares! Se não podemos vencê-los, junte-se a eles!" Mary pensou com amargura.
- Agora compreendia o porquê do casamento: a realização de um objetivo, o término da estrada! Depois, Bruce não precisaria mais dela, e a paixão fulminante terminaria tão rapidamente quanto havia começado.
- Apesar das lágrimas que lhe inundavam os olhos, ela segurou firme a caneta e, com letras grandes, escreveu "NÃO" sobre o documento. Empurrou a cadeira para trás, pôs-se de pé e saiu da sala.
- Senhora Latimore! - o advogado chamou-a.
- Cega pelas lágrimas, Mary passou pela mesa de Emma e agarrou sua bolsa.
- Senhora Latimore! - chamou a secretária, tentando impedi-la de sair.
- Mary se desvencilhou e foi depressa em direção ao elevador. Chegando ao térreo, ainda olhou mais uma vez para o saguão de entrada e saiu para a rua.
- Anna estava na cozinha quando ouviu o táxi parar em frente à sua casa. Correu à janela e viu a sogra, pálida e chorosa, saindo do carro. Imediatamente, pediu que chamassem Henry o mais rápido possível.
- Vinte minutos depois, o marido entrava pela porta da cozinha, aflito.
- O que aconteceu? Você está bem, Anna?
- É a Ma - ela respondeu, baixinho. - Não disse uma palavra desde que chegou. Está lá na cadeira de balanço. Dei-lhe uma xícara de café, mas ela nem tocou. Acho melhor você ir sozinho falar com ela. Deixe a porta aberta; pode precisar de mim.
- O rapaz espiou pela porta da sala, sem ser visto. A madrasta continuava a se balançar na cadeira, pálida, como se tivesse visto um fantasma. Mal piscava. Henry passou a mão nos cabelos, ensaiou um sorriso e entrou na sala.
- Oi, Ma. O que traz você à casa dos caipiras a esta hora do dia?
- Mary parou de se balançar e olhou para Henry como se fosse um estranho. Levantou-se e disse, num fio de voz:
- Henry, ele quis me comprar por três quilômetros de estrada! Eu o abandonei.
Anna derrubou os pratos que enxugava, na cozinha, o que distraiu Henry por uma fração de segundo. No instante -seguinte, viu Mary lentamente tombando no chão.
- Anna! Venha aqui! - ele gritou, ajoelhando-se ao lado de Mary. Ela estava com a respiração fraca, os olhos cerrados e o batom parecia uma mancha vermelha no rosto branco. Anna entrou correndo e se ajoelhou também. Henry pegou a pequena mão de Mary e começou a massageá-la, para restaurar a circulação. Sentia-se perdido. Aquela era a mulher que tinha estabilizado a vida da família, devolvido a alegria ao Coronel e reorganizado a fazenda, ajudando-os a olhar para o futuro.
- Não tinha reparado que ela era tão pequena - murmurou para a esposa.
- Coloque-a no sofá e chame o médico - Anna recomendou.
- O médico já não vem para estes lados faz muito tempo.
Anna foi buscar sais de cheiro, o que ajudou Mary a se recuperar. Depois de recuperar os sentidos, sentou-se e tomou o chá quente e forte que Anna lhe preparou. Henry não parava de rodeá-la, arrumando as almofadas por trás de suas costas, cobrindo suas pernas com uma manta e enxugando-lhe a testa com seu lenço enorme.
- Estou bem, Henry. Chega! - ela disse, com a voz quase normal.
- Henry ajoelhou-se diante dela.
- O que é que aquele safado fez? Vai virar saco de pancadas! Bateu em você?
- Não, nada disso - ela respondeu, tomando a mão de Henry. - É tudo muito sofisticado na Corporação Latimore. Aqueles três quilômetros de estrada que faltam significam seis mil dólares para a firma. Ele achou que valeria a pena casar comigo por causa disso. Devia estar planejando o divórcio assim que a estrada estivesse pronta. Eu nunca pensei. nunca me passou pela cabeça. Ele foi bem esperto. Enquanto eu defendia a porta da frente, ele entrou pela porta dos fundos e conseguiu enganar esta caipirona.
- Não diga isso, Ma - Henry protestou. - Você é a mulher mais esperta que conheço. vou dar o troco que esse sujeito merece! - declarou, levantando-se.
- Não, Henry, não vá! - Mary pediu, segurando-o pelo braço. Sua voz parecia vir de muito longe.
- Perguntou-se, depois, por que não? Mesmo que não conseguisse evitar a desapropriação da fazenda, pelo menos Henry poderia desabafar sua indignação. Mas. poderiam se machucar numa briga. Oh, não!
- Está bem. Você é quem manda, Ma. O que quer que eu faça? Que traga as meninas para cá?
- Mary tomou mais um gole do chá e pôs-se a pensar. Logo já tinha pronto seu plano de guerra.
- Henry, a audiência na Corte é amanhã. Acho que as meninas podem ficar lá mais um dia ou dois, até que os ânimos se acalmem. Posso passar alguns dias com vocês?
- Claro, Ma - Anna respondeu.
- Mary sorriu, agradecida. Um outro pensamento lhe ocorreu e ela mordeu o lábio, antes de dizer:
- Ele pode vir atrás de mim. Não é difícil imaginar onde eu possa estar e aquele diabo não vai desistir de sua estrada.
- Ele que venha! - Henry rugiu. - E eu pensava que ele era um sujeito decente! Se aparecer por aqui, vai ganhar uma bela demonstração da minha força.
- Não. não quero que briguem - Mary pediu. - Não há motivo para piorar a situação. Posso até resolver todo esse problema com ele. não sei. Mas preciso de alguns dias para pensar, para definir minha vida.
- Não deve voltar para ele! Não vê que ele só está usando você, Ma? - Henry explodiu, zangado.
- Não são as promessas que fiz na igreja, Henry, que me prendem, mas as que fiz ao meu coração. Não é fácil renegar o que se sente.
- Não entendo seu ponto de vista, Ma. Mas faça o que achar melhor. Agora, vá se deitar um pouco lá em cima.
- Está bem. Estou precisando de conforto e um pouco de descanso. Me ajude a levantar.
- Não vou ajudar, coisa nenhuma! Agora é minha vez de mandar, pelo menos um pouco!
- Dizendo isso, Henry pegou-a nos braços e a levou para o quarto no andar de cima. Lá, Mary dormiu por mais de uma hora.
- Eram quatro horas quando Bruce apareceu e Mary ouviu ele e Henry discutindo logo abaixo de sua janela.
- Ela está aqui? - Bruce perguntou.
- Era como se os sabres se tocassem antes do início de uma luta.
- Está - Henry respondeu, seco.
- Quero que ela venha comigo. É minha esposa!
- E minha mãe! O que você fez para ela, seu cretino? Conheço a Ma faz muito tempo e nunca a vi desse jeito!
- Foi tudo um mal-entendido - Bruce explicou. - Me deixe entrar. Preciso falar com ela.
- Ela não quer falar com você. E não tente me desafiar, Latimore. Ela desmaiou agora há pouco, seu miserável. O que você fez para ela? - Henry gritou.
- Foi um mal-entendido, já disse. Preciso falar com Mary.
- Mal-entendido? Acha que só isso deixaria Ma andando por aí como uma morta-viva? vou ser bem claro. Você não vai entrar na minha casa enquanto ela não quiser. E nem pode querer nada, agora. Está passando mal.
- Oh, meu Deus! Preciso ir.
- É bom pensar em Deus, mesmo, e começar a rezar. E tire a mão do meu braço, seu pulha!
- Preciso vê-la! Se tentar me impedir, entro à força. Você não é tão forte quanto pensa, Henry!
- Ah, quer experimentar, é? - Henry desafiou. - Posso acabar com você. E mesmo que passasse por mim, ainda teria que enfrentar a Anna.
- Ora, vá para o inferno, Henry!
- Vá você, Latimore. Éramos uma família feliz até você vir atrapalhar. E tudo por causa de uma droga de estrada! Por que não dá o fora? Depois eu combino com as meninas como vai ser daqui para a frente.
- Diga a Mary para me telefonar, Henry. Por favor. Preciso saber como ela está, o que quer que eu faça.
- vou falar. Só não sei se ela vai telefonar. Adeus.
- Por favor. não esqueça, Henry.
- Não pense que esqueço fácil. Não depois do que você fez com ela.
- Mary acordou cedo na manhã seguinte e telefonou para casa antes que as meninas saíssem para a escola. Becky atendeu o telefone e Mattie pegou a extensão. Mary nem sabia como começar. Sabia apenas que precisava esclarecer a situação para que as garotas pudessem fazer sua escolha. Foi Mattie quem facilitou o começo.
- Papai contou que você e ele andaram brigando - disse, achando graça da situação. - Ele falou também que gente grande faz essas bobagens de vez em quando.
- É verdade - Mary admitiu. - Preciso ficar fora de casa alguns dias. Depois eu volto.
- Ah, que bom - Becky comentou. - O papai disse que você estava tão zangada com ele que talvez não voltasse. Vai voltar?
- Sim, queridas. Daqui a algum tempo. Vocês estão -bem? Não vai haver problemas com vocês?
- Não, Ma. Pode deixar que eu cuido de tudo. E você, Ma, está bem? Se resolver não voltar, quero ficar com você.
- Eu também - Mattie disse. - Ei, o ônibus está lá na frente!
- Só mais uma coisa, Ma - Becky tentava falar o mais rápido que podia. - Consegui tirar minha carteira de motorista ontem. Bruce foi comigo e me deu a maior força.
- Mary refletia sobre a fragilidade feminina, quando Anna a chamou para o café. Tomou-o, e comeu a contragosto duas fatias de torrada só para fazer a vontade de Anna. Quando o telefone tocou, pensou que era Bruce.
- Por favor, atende você, Anna. Não quero falar com ele. Ainda não.
- Mas não era ele. Era a secretária de Charles Momson. Mary ouviu o que ela tinha a dizer e exclamou:
- Amanhã!
- Sim, amanhã. Mas o dr. Momson está internado no Hospital dos Veteranos.
- Não estou entendendo - Mary gaguejou.
- Pois é. O nome dela é juíza Katherine Osmond. Leu os prontuários de seu caso esta manhã e ficou ouca da vida. Acusou o juiz Harris de estar pretendendo fazer carreira com esse processo, mas disse que ia pôr tudo nos eixos. O pobre dr. Momson se sentiu mal depois disso e foi parar no hospital. Mas a juíza não voltou atrás. Disse que as duas partes têm de estar na Corte amanhã de manhã, às nove. Esteja preparada!
- Está bem. vou estar lá. E como está Charlie? - Mary perguntou, preocupada.
- Não é nada grave. O médico, que é um velho amigo, achou melhor interná-lo, apesar de ser só uma colite, por causa da idade.
- Algum problema, Ma? - Anna perguntou, assim que Mary desligou.
- Não. só um caso de ratos abandonando um navio que está afundando. Mas, no fim, tudo vai dar certo. espero.
- Mary não estava muito confiante quando, na manhã seguinte, estacionou o caminhão de Henry no único espaço disponível diante da Corte Superior de New Bedford. Nesse espaço, havia uma placa: "Reservado para o Juiz Harris".
- Esse juiz que se dane! - murmurou entre dentes, e desceu.
- O prédio tinha um ar carregado com o cheiro de tapetes e papéis velhos. Mary lembrou-se de uma certa Lizzie Brown, julgada naquele Tribunal por ter assassinado alguém com um machado. Sentiu um certo alívio. Afinal, Lizzie tinha sido considerada inocente.
- Lá em cima, numa sala menor, a juíza Katherine Osmond vestia sua toga, alisando o tec-ido em cima do corpo. Deu uma olhada no espelho. Tinha sido um incômodo viajar de Worcester até ali e descobrir depois que a cidade não tinha hotel. Acabou se hospedando numa pensão perto da ponte, onde o mau cheiro da maré baixa e a falta de café fresco lhe arruinaram por cornpleto o humor. Odiava café solúvel. Arrumou mais uma vez o cabelo grisalho e entrou na sala do Tribunal. Sentou-se na cadeira enorme e olhou em torno.
- Duas coisas a irritavam no exercício do dever: homens dominadores e atrasos. E nesse primeiro caso da manhã, precisou enfrentar os dois. O homem sentado na cadeira do reclamante estava com a testa e as sobrancelhas grossas tão franzidas que parecia ter saído de um cartaz de "procura-se" das páginas policiais. A outra mesa ainda permanecia vazia. No fim do corredor ouviu-se um ruído e, uma mulher miúda, aparentando menos de vinte anos, surgiu, abrindo caminho entre a multidão de ouvintes e curiosos, com uma pilha de documentos nos braços. Katherine Osmond suspirou, imaginando que surpresas ainda teria, naquele dia que já começara todo ao avesso. A representante da segunda parte, atrasada, espalhou os papéis sobre a mesa e sentou-se, com ar de cansada. O caso foi anunciado: Fazenda Somerfield versus Latimore Construction Corporation. A juíza mal tinha pregado os olhos na noite anterior e não tivera tempo para se inteirar de todo o processo, principalmente de seus últimos desdobramentos. Bateu o martelo para chamar a atenção dos presentes.
- Agora, então. - começou a dizer, mas interrompeu.
- O homem sisudo que conversava com seu advogado quando a moça entrou tinha se levantado e se aproximava intempestivamente da outra mesa. A moça levantou-se, ao percebê-lo, e se encostou na parede, com o rosto tomado pelo medo. A juíza voltou a bater seu martelo.
- O senhor. seja lá qual for seu nome. por favor.
- Mary Kate, preciso falar com você antes que essa loucura comece - ele falou desesperado.
- Tirem esse homem de perto de mim! - ela pediu. - Não se atreva a tocar em mim! Oh, meu Deus, não se acha um policial quando é preciso.
- Já chega, senhor. - a juíza ordenou, zangada. - Volte para seu lugar. Senhor Oficial, ponha esse homem em seu lugar!
- O oficial pôs-se entre o casal, e a juíza bateu seu martelo outra vez.
- Volte para seu lugar e sente-se, senhor!
- Preciso falar com ela!
- Espere chegar sua vez! - a juíza respondeu, irritada. Dois policiais entraram naquele momento e a juíza fez sinal
- para que ajudassem a manter a ordem. Vendo que eles se aproximavam, Bruce praguejou baixinho e voltou para seu lugar.
- Mary Kate, espere só - ameaçou.
- Mais uma palavra, meu senhor - a juíza disse, de dedo em riste - e vou acusá-lo de desrespeito à Corte. Sente-se e fique quieto! Agora vamos iniciar a sessão. O queixoso está representado?
- Sim, Meritíssima - o advogado respondeu. - A Corporação Latimore esíá representada pelo seu presidente, sr. Bruce Latimore.
- Bruce Latimore - a juíza repetiu, pensando: "É um ho- mem enorme. Não gostei do nome, também. E que cara! Quem me dera poder tomar uma xícara de café bem forte!" - O senhor não está representado pelo mesmo advogado de ontem - comentou.
- Claro que não! - Bruce respondeu, nervoso. - Despedi aquele cretino.
- A juíza bateu mais duas vezes na mesa e avisou:
- Cuide de sua linguagem, senhor Latimore. E a defesa? Já é advogada formada, mocinha?
- Não, não sou.
- Tinha uma voz bonita. Não era tão jovem quanto parecia à primeira vista. A juíza só achava que ela devia ter dado um jeito naquela cabeleira. Adoçando o torn de voz, perguntou:
- Então, o que veio fazer aqui, mocinha?
- Sou a defesa. A representante da Fazenda Somerfield. S"u a. presidente da companhia. Meu nome é Mary Kate Latiw?rei
- Não tem advogado, srta. Latimore?
- Sra. Latimore, Meritíssima. Meu advogado passou mal na Corte, ontem, e está internado no Hospital dos VeteranosNão houve tempo hábil para contratar outro advogado.
- E acha que pode sustentar suas posições sem apoio de um profissional?
- Acho que é o único jeito, Meritíssima.
- Está bem, sra. Latimore. A Corte fará o possível para resguardar seus interesses. Sra. Latimore, hem? Por acaso é Parente do sr. Latimore, o queixoso?
- Ela é minha esposa, Meritíssima! - Bruce declarou.
- Deixe que ela fale por si! - a juíza respondeu, franzindo a testa. - Agora, para não perdermos tempo, queira explicar sua posição, sra. Latimore. Seja breve.
- Sim, a situação da juíza era bem mais confortável que a sua. Mary pensou. Só precisava ficar ali, sentada, batendo no ar de vez em quando, enquanto Mary tinha que ficar suportando o olhar furioso de Bruce.
- Que seja antes do meio-dia - a juíza apressou. - Tenho compromissos para a hora do almoço.
- O ton de sarcasmo fez Mary voltar à realidade. Tirou os olhos do homem na outra mesa e começou seu relato, breve e preciso" sobre a estrada e os problemas que causaria à fazenda. Tinha " zido a planta de um projeto alternativo para a estrada. A }iza parecia interessada. Quando Mary voltou à sua mesa para pegar outro documento, viu que a audiência estava aumentando cada vez mais. Várias pessoas faziam anotações e três fotógrafos Prü curavam se posicionar nos melhores ângulos. Pôs-se a imaginar o que teria atraído tanta gente.
- Sr. Latimore, tem algo a dizer até o presente momento- a juíza perguntou.
- E como tenho, Meritíssima.
- Bruce levantou-se, arrastando a cadeira, e se aproximou da juíza, ficando a dois passos de onde Mary estava. Olhava Para ela com raiva.
- Para variar - Bruce continuou -, essa mulher entendeu tudo errado. Não sei porque permitem que mulher entre na corte.
- O martelo soou com força sobre a mesa da juíza.
- O seu machismo pode não alterar o lucro de suas empresas sr. Latimore -"a juíza disse, num ton suave e irônico. Mas suas considerações não surtem bom efeito sobre as mulheres desta" Corte. É melhor o senhor se sentar.
- Mas que diabos, Meritíssima! - ele rugiu. - Não vê que ela não passa de uma mulher perturbada? O que ela precisa é...
- Mas Mary não queria saber do que precisava. Quando ele lhe estendeu o braço, mais do que depressa, saltou por cima da grade de madeira que os separava do público. Implorou:
- Por favor, não deixem que ele ponha as mãos em mim! Imediatamente a juíza falou, enraivecida:
- Oficial, faça esse homem sentar-se e permanecer sentado! Depois fez um sinal para Mary que cruzou o portãozinho de madeira e se aproximou.
- Só para satisfazer minha curiosidade - a juíza falou, com as mãos sobre a mesa. - Há quanto tempo estão casados?
- Mary olhou para o marido com o canto dos olhos. Ele esmurrava a mesa, furioso, e ela se apressou em responder:
- Três. três semanas, Meritíssima.
- Três semanas? E já chegaram a esse ponto? Pena que não compete ao caso em questão, pois gostaria muito de saber o que está acontecendo.
- Acho que tem a ver com o caso, sim! - Mary contestou, sem parar para pensar. - Ele queria a estrada. Três quilômetros de estrada. Mas não estava conseguindo e, então, casou-se comigo esperando que eu assinasse uma desistência do caso. Eu não quis assinar, ele ficou louco da vida e eu estou com medo de que. Nem sei do que, mas estou morta de medo!
- É verdade o que ela disse, sr. Latimore? Tentou fazer com que ela desistisse do caso? - a juíza perguntou, com a voz cada vez mais alta, e segurando o martelo como se fosse atirá-lo em Bruce no próximo instante.
- Claro que não, ora essa! - ele esbravejou, levantando-se, o que fez Mary se encolher.
- O advogado! - Mary gritou. - Peça a ele que conte sobre o advogado!
- Bruce voltou a falar e, num ton magoado, carregava cada palavra.
- Meu advogado apresentou mesmo uma desistência para ela assinar. Foi por isso que despedi aquele incompetente. Deus me livre desses advogados!
- Ê bom pensar em Deus. Vai precisar dele, sr. Latimore
- a juíza interrompeu. - A senhora quer me contar mais alguma coisa que seja de importância para o caso?
- Sim, senhor. senhora. Sim, Meritíssima. Meu advogado ia apresentar mais um fato importante. Será que posso falar, já que ele não está presente?
- Sim, claro.
- Mary enxugou as lágrimas dos olhos e respirou fundo antes de começar.
- O problema é o cemitério.
- Que cemitério? - Bruce perguntou, em pé outra vez, fazendo a juíza soar mais uma vez o martelo.
- Sente-se, sr. Latimore! Deixe que a sra. Latimore nos fale do cemitério - ela ordenou.
- A fazenda está situada no antigo centro de Eastboro. Em 1830, construíram uma nova estrada, de Boston a New Bedford, o que fez com que a cidade se mudasse para onde está agora. Mas o cemitério ficou para trás. Se a estrada passar pela fazenda, vai atravessar o cemitério.
- Ah, e há uma lei estadual que proíbe isso. Sabia desse fato, sra. Latimore?
- S-sim, Meritíssima, eu sabia e pensei que...
- Ela nunca conseguiu ter um pensamento ajuizado! - Bruce vociferou. - Eu pensava que tudo era armação daquele velho esquisito que lhe serve de advogado! Mas foi você quem arrumou tudo isso sozinha, não é, Mary Kate?
- Bruce agarrou-a pelos ombros e a sacudiu com força. O martelo da juíza soava como uma metralhadora, enquanto o oficial tentava apartá-los. Bruce soltou Mary e disse:
- Você mereceu, mocinha. Meritíssima, isso foi uma surpresa, mas.
- Ora, se foi! - a juíza interrompeu. - E isso vai lhe custar quinhentos dólares por desrespeito à Corte, sr. Latimore! A senhora está bem, sra. Latimore?
- Apoiada na mesa, Mary limitou-se a concordar com um aceno, pois tremia dos pés à cabeça.
- Bruce deu de ombros, como se não se importasse com a sentença que acabava de receber. Afinal, o que eram quinhentos dólares para ele, Mary pensava, sentindo ainda o peso daquelas mãos enormes sobre si. Tentou movimentar o pescoço para aliviar a tensão. Sua cabeça começava a doer.
- Pelo que me consta - Bruce continuou -, a lei permite que se mude um cemitério, desde que se notifiquem as famílias das pessoas lá enterradas. Meus homens podem cuidar disso agora mesmo. Tem mais alguma carta na manga, Mary Kate?
- Não vai ser muito fácil - ela respondeu. - O último sepultamento foi em 5 de junho de 1826. Aliás uma das pessoas enterradas lá era. Peamaquot, chefe de uma tribo indígena, gente nômade, como se sabe. Ele morreu em 1686, e duvido que seja fácil encontrar um remanescente da família. Isto para não falar de Tobias Black, ex-escravo libertado para lutar no Regimento de Gloucester, durante a Revoluôão. É provável que sua família ainda viva na África e...
- Ora, tudo isso não passa de tempestade em copo de água!
- ele argumentou.
- Mary estava com medo, mas aprumou-se, disposta a não entregar os pontos.
- Deixe que eu decida sobre a questão - a juíza protestou.
- Mais alguma coisa, Mary Kate? Posso chamá-la assim?
- Sim, senhora - Mary respondeu. - No ano passado, convidamos estudantes de arqueologia da Universidade de Massachusetts para visitarem a região e eles acharam estas pontas de lanças e pedaços de cerâmica - Mary disse, espalhando alguns desses objetos sobre a mesa. - Os professores da Universidade acreditam que houve um sítio indígena naquela área e se mostraram interessados. Achei que.
- Isto se encaixa na lei que proíbe a modificação de um sítio arqueológico antes que tenha sido totalmente explorado, não é? - a juíza disse, sorrindo.
- Mary concordou com a cabeça. Estava começando a gostar daquela representante da justiça.
- Tem algum documento que comprove isto? - a juíza perguntou, recebendo uma pasta das mãos de Mary.
- Para o diabo com tudo isso! - Bruce rosnou. - Não passa de um monte de bobagens, Meritíssima. Posso afirmar que.
- Melhor não afirmar nada - a juíza o interrompeu. - O senhor está à beira de uma grande encrenca, sr. Latimore. E então, Mary Kate, mais alguma coisa que queira nos contar?
- Talvez não seja importante - ela declarou. - Foi algo que
- me chamou a atenção hoje.
- Tirou da bolsa duas fotografias que tinham sido enviadas pelos naturalistas que exploraram o ribeirão.
- E o que é isto? Um sapo? - a juíza perguntou.
- Sim, Meritíssima, um sapo. Foi encontrado no banhado de nossa fazenda. A carta que acompanha as fotos revela que esta espécie não está incluída na lista de sapos existentes nos Estados Unidos.
- Então, Mary Kate, não se esqueceu nem da preservação ecológica? - a juíza disse e começou a rir, até ficar com lágrimas nos olhos. - Sabe o que significa isso, sr. Latimore?
- Não sei e não me faz diferença saber. Poderia esclarecer tudo, se me deixasse falar um minuto! - ele disse.
- Espere sua vez, sr. Latimore. Sua esposa devia ser advo- Mas, Meritíssima, já lhe disse que tudo isso não passa de tempestade em copo de água! Afirmo e repito que nada que a Corporação Latimore possa fazer vai afetar essas coisas, especialmente este sapo! - Bruce disse, cada vez mais furioso.
- Nada, a não ser a casa de Becky, a fazenda de Henry e toda a minha vida! - Mary respondeu, encarando-o.
- Era visível que a paciência dele estava se esgotando. Primeiro franziu a testa; depois, respirou fundo, os cantos dos lábios começaram a tremer e o rosto todo ficou vermelho. Mary sabia que estava em perigo, mas não conseguia sair do lugar.
- Isto já é demais, Mary Kate! Para você, tudo não passa de brincadeira. Armou esse circo todo só para que esses repórteres possam encher suas páginas com essa história!
Mary espantou-se com aquela acusação injusta, mas, ao olhar para a platéia, viu pelo menos uma dúzia de repórteres e outros tantos fotógrafos. Nem por isso a acusação deixava de ser cruel. Ia dar-lhe uma resposta quando ele avançou em sua direção e começou a sacudi-la pelos ombros outra vez. Não conseguia entender o que ele dizia. Também não ouviu as marteladas ou o grito agudo da juíza. Alguém conseguiu afastá-lo.
Mary tinha perdido a noção de tempo e espaço. Restava-lhe apenas a sensação de medo. Enxugou as lágrimas que embaçavam seus olhos e saiu correndo. Atravessou o portãozinho, o corredor que separava as cadeiras de espectadores e o batalhão de repórteres que seguiam cada um de seus passos, enquanto flashes espocavam sem parar. Passou pela porta principal e chegou à rua, onde o sol lhe renovou as forças.
Ouvia os passos de Bruce atrás de si. Voltando-se, ainda viu dois guardas agarrarem seu marido, carregando-o de volta para dentro do Tribunal. Mal podia enxergar com as luzes dos flashes à sua frente. Exausta, subiu no caminhão de Henry e saiu o mais rápido que pôde.
Naquela noite, durante o jantar, Mary relatou os acontecimentos.
- Foi terrível. Eu me senti uma perfeita idiota! Tinha certeza de que ele ia me bater. Estava furioso. Ainda bem que não conseguiu me alcançar quando saí do Tribunal.
- . Ei, que história é essa? - Anna perguntou. - Ouvi no rádio que. Oh, esqueci os biscoitos no forno!
Anna saiu correndo da sala de jantar e Henry negou que tivesse ouvido qualquer coisa sobre o caso no rádio.
- Já nem presto atenção no rádio. Estou preocupado com a produção de leite que diminuiu, este mês, e com o milho que não está muito normal.
- Mary tentava se interessar pelo novo assunto, quando o telefone tocou. Era Becky.
- Ma? Ele não voltou para casa esta noite. Para mim não faz diferença, mas a Mattie está chateada. Acho que precisa de você.
- São sete horas, Beck. Saímos do Tribunal antes do meiodia.
- Você saiu, Ma. Só você. O noticiário das seis e meia mostrou tudo. Vi você sacudindo o punho no nariz dele e sair correndo de lá. Foi muito engraçado.
- Muito estranho o seu conceito de engraçado, mocinha
- Mary disse, com a voz carregada de tristeza. - Mas podem me esperar, chego já. Só que, se ele estiver aí. não vou podei ficar, Becky. Acho que ele quer acabar comigo.
- Mas ele não vai estar aqui.
- Alguma coisa na voz de Becky deixou Mary em alerta. Como ela podia ter tanta certeza? Mas, fosse como fosse, Mattie precisava de sua presença.
- Apesar de toda a determinação, Mary ainda ficou no carro uns dez minutos depois de estacionar diante da casa, criando coragem e observando se não havia algum sinal dele por ali.
- Encontrou Mattie muito aborrecida e levou um bom tempo para conseguir consolá-la. Às nove horas, quando a menina estava pronta para ir dormir, depois de um banho morno, Mary pediu a Becky que fosse dormir em outro quarto.
- Vou dormir com você, Mattie, o que acha?
- Oba, que bon! Você inventa uma história que nem da outra vez?
- Assim, as duas se isolaram do mundo, no quarto do último andar. Mattie dormiu logo, mas Mary só conseguiu pegar no sono quando os primeiros raios de sol começaram a entrar pela janela.
- Eram onze horas da manhã quando Pamela bateu na porta.
- Que trabalho eu tive para encontrar a senhora! - a cozinheira reclamou. - Este é o último quarto em que a procuraria. É o telefone. Ele quer a senhora... e disse para a senhora ir logo!
- "Quer a senhora. Disse para ir logo-" Aquelas palavras fizeram Mary levantar-se de um salto. Vestiu o quimono e correu escada abaixo, mas logo descobriu que estava falando com o homem errado.
- Charles Mamson! Depois do fiasco de ontem, estou com vontade de assá-lo na brasa!
- Acalme-se, Mary. Você já me abalou a saúde, não se esqueça. De qualquer forma, sinto-me pronto para outra.
- Ê... estou achando que sua doença não passou de medo, Charlie! - Mary provocou.
- Ache o que quiser - ele riu. - Na minha idade, o melhor é se cuidar. Principalmente dos nervos! O que vai fazer agora?
- Como assim? Bem, talvez saia e arrume um advogado que não fuja na hora em que as coisas esquentam. Fora isso, não planejei mais nada.
- Kate. Essa aventura vai deixar a Corporação Latimore sem seu presidente por um bom tempo, pelo jeito. Será que Mary Kate vai ou não libertá-lo? "
- Mary estava surpresa demais para chorar e com medo demais para rir. Balançava a cabeça, sem conseguir dizer uma palavra. Pamela se aproximou, olhando por cima do ombro de Mary e comentou:
- Saiu bem na foto, dona.
- Ele vai me matar! - Mary disse, olhando outra vez para a fotografia.
- A senhora vai querer ovos para o café?
- Mary negou com a cabeça. Não queria nada. Será que Maria Antonieta sentiu a mesma coisa no dia em que foi para a guilhotina? Seus braços e pernas estavam pesados, amortecidos. Sua cabeça se recusava a funcionar, girando em torno de um só pensamento:
- Bruce estava na cadeia e "ela" o tinha posto lá. Mas ficar ali parada não ajudava em nada. com muito esforço, reuniu coragem para se levantar e ir até o telefone. Charles atendeu.
- Eu já estava de saída - ele declarou. - Um funcionário do Tribunal me chamou para ouvir a decisão da juíza. Vamos ver o que vai ser. Posso fazer alguma coisa por você, Mary?
- Charlie, acabei de ler os jornais. Como tiro Bruce de lá? O que será que ele vai fazer comigo?
- Calma, Mary. não chore. Não é culpa sua ele ter perdido a cabeça. Você só precisa ir ao Tribunal. O funcionário encarregado vai estar com o documento pronto para você assinar. Tão logo o faça, soltam seu garotão. Você o identifica e podem sair juntinhos.
- Então. eu tenho que... que ficar perto dele, cara a cara? Prefiro ser jogada aos leões. Ele vai acabar comigo assim que me avistar.
- Não sabe o que está dizendo, Mary Kate. Ele não pode fazer nada contra você, ou a juíza se encarrega dele. Só mais uma coisa, querida. A comida da cadeia é horrível. Se eu fosse você, tiraria Bruce de lá antes do jantar. Ele vai lhe agradecer por isso!
- Mary ficou andando de um lado para outro, por mais de uma hora, tentando montar um plano para tirá-lo da cadeia e salvar sua pele ao mesmo tempo.
- Não foi difícil conseguir que Becky saísse mais cedo, mas a diretora da escola de Mattie fez mil objeções, forçando Mary a revelar, irritada, que precisava da menina para tirar o pai da prisão. As três chegaram a New Bedford às duas horas. Como sempre, não havia lugar para estacionar. Mary viu-se obrigada a andar mais dois quarteirões. Parou numa vaga reservada aos sócios de um clube exclusivo para homens.
- Eles que aprendam a não ser tão chauvinistas! Vamos, meninas!
- Ao se aproximarem da cadeia local, Mattie perguntou:
- Você está bem, Ma?
- Claro que estou, querida. Mas seria tão bom se surgisse um pássaro enorme e nos levasse para... a África!
- Se vai mesmo tirá-lo daí, é melhor ir de uma vez - Becky aconselhou. - Acho que demorar não vai ajudar em nada.
- Eu sei, mas...
- Ele não vai engolir você, Ma!
- Está bem. Mas lembrem-se de tudo o que recomendei.
- Não vamos esquecer - Mattie afirmou. - Vamos ficar perto de você o tempo todo. Não vamos deixar o papai se aproximar, nem sentar do seu lado. Ê para a gente ficar entre você e ele. Viu como eu sei?
- Aqueles repórteres estão nos esperando, Ma? - Becky perguntou.
- Ih, não sei. Mas não diga uma palavra. Vão sempre em frente!
- Foram tão rápido quanto as pernas de Mattie permitiram. Meia dúzia de repórteres e dois fotógrafos bloqueavam a porta e as perguntas começaram a chover:
- Vai soltá-lo, sra. Latimore?
- Meu jornal paga cem dólares pela exclusividade da história!
- Sob os flashes, Mary começou a ficar vermelha. Henry costumava dizer que aquela era sua pintura de guerra. com a cabeça baixa e uma menina em cada mão, enfrentava a barreira humana. Um fotógrafo gritou e largou a câmera.
- Ele não queria sair da frente e chutei a canela dele!
- Mattie explicou.
- Um policial, vendo a dificuldade das três, ajudou-as a chegar até a porta e conseguiu que entrassem sem serem seguidas.
- Mary respirou fundo, enquanto as duas meninas sorriam, como se vivessem uma excitante aventura.
- Pode me informar onde... - Mary começou a perguntar ao policial.
- Segunda porta à direita. Ele esteve esperando pela senhora a manhã toda.
- O oficial de justiça?
- E seu marido também. Melhor se apressar, madame.
- Ao chegarem à porta indicada, Mary girou a maçaneta e entrou com as garotas.
- Pensei que ia apodrecer aqui! - ele exclamou.
- Eu não sabia. Não soube de nada... até esta manhã.
- Mary explicou, pondo as meninas a sua frente.
- E por que não veio de manhã?
- Eu estava.
- Ela estava com medo, papai - Becky interrompeu.
- Você está bem?
- Estou. bem, o que você acha? Olá, meninas. Estão muito bonitas - Bruce disse.
- A Ma também - Mattie emendou.
- Esperem só até eu me livrar dessas algemas! Só então Mary percebeu que ele estava algemado.
- Aqui, sra. Latimore. Precisa assinar isto - disse o oficial de justiça.
- Mary foi até a mesa, mantendo as meninas entre ela e o marido. Quando viu que ele se levantava, encostou-se na parede.
- Mande ele ficar no lugar! - pediu.
- O oficial de justiça sorriu e fez sinal para que Bruce se sentasse. Depois, falou:
- Não se esqueça de assinar as três cópias.
- Mary pegou a caneta sem tirar os olhos de Bruce, e começou a, assinar os papéis.
- Agora já podem ir - o oficial anunciou. - Se quiserem saber a decisão da juíza, a sessão começa em dez minutos.
- Não, obrigada - Mary respondeu. - Só quero.
- Só um instante sra. Latimore - o oficial chamou. - Está esquecendo uma coisa.
- Como? - Mary perguntou, num fio de voz.
- A senhora se esqueceu dele - o oficial respondeu, caminhando em direção a Bruce, enquanto vasculhava os bolsos à procura da chave das algemas. - Ele vai sair sob sua custódia, madame. Precisa levá-lo com a senhora. Agora é responsável pelo bom comportamento dele e por sua apresentação diante da juíza Osmond no dia. vinte, me parece. Pronto, sr. Latimore. Pode ir com sua esposa.
- Formavam um quarteto estranho ao atravessarem o corredor de saída. Becky tinha se agarrado ao braço de Mary, e Mattie segurava a mão do pai. Passaram pelo bando de repórteres que não desistiam das perguntas. Mary manteve a cabeça baixa e não disse nada. Bruce limitou-se a um breve "Sem comentários". Os repórteres não ficaram satisfeitos com a resposta, mas a expressão carregada de Bruce foi suficiente para afastá-los. Os Latimore chegaram ao carro, em silêncio, e entraram.
- Becky apressou-se em sentar ao lado de Mary, no banco da frente, enquanto Mattie puxava o pai para o banco de trás. O clima não podia estar mais pesado. Mattie tentou puxar conversa com o pai, mas ele não quis responder. Mary olhava para ele, de quando em quando, pelo espelho retrovisor. Bruce se inclinou para a frente e Mary sentiu a respiração dele em seu pescoço. Começou a tremer. Como seria quando chegassem em casa?
- Procurando algo que aliviasse a tensão, Mary ligou o rádio, bem no instante em que as notícias locais começavam a ser transmitidas. Um repórter, falando diretamente da delegacia, comentou a soltura de Bruce. Ao terminar, o locutor do estúdio entrou no ar:
- "E atenção, senhoras e sonhores! Acabamos de receber o resultado do caso da Corporação Latimore contra a Fazenda Somerfield. A juíza Katherine Osmond acaba de determinar, baseando-se nos últimos documentos, que seja autorizada a construção da estrada. Representantes da Corporação Latimore anunciaram que as obras serão iniciadas ainda hoje."
- Viu, sua bruxa? A Justiça tarda mas não falha. O que me diz disso agora? Você vai me pagar!
- Aquilo foi demais para os nervos abalados de Mary. Parou o carro no cruzamento da avenida principal e, ao som das buzinas que vinham de todos os lados, abriu a porta do carro e saiu correndo. Um engarrafamento logo se formou. Olhando rapidamente para trás, Mary ainda viu Bruce falando com um policial de trânsito. Desceu a rua o mais depressa que pôde.
- "A estrada vai ser aberta! Hoje! Planejei tanto, sofri tanto. e agora eles vão atravessar as cercas, subir o morro, destruir parte do pasto e da plantação de milho. Vão derrubar a casa de Becky. E eu prometi ao Coronel que jamais deixaria isso acontecer!"
- com a cabeça baixa e as tranças balançando, subiu a colina que levava até a velha sede da fazenda. As lágrimas corriam soltas e seu coração estava destroçado. Abriu a porta da frente e tornou a trancá-la. Precisava pensar e por mais que se esforçasse não conseguia. Se não fosse por Becky e Henry já teria comprado uma passagem para bem longe; queria fugir!
- Transtornada, andou de um lado para outro na sala, sentindo-se impotente e frágil. Até as paredes pareciam sufocá-la. Num impulso desesperado, abandonou a casa e seguiu por um atalho que levava ao riacho.
- A natureza parecia acompanhar a fúria de seus sentimentos e pouco depois as nuvens escuras que cobriam o céu foram se desmanchando, banhando a terra com um forte temporal.
- O vento soprava ameaçadoramente, mas Mary seguia em frente, a roupa colando-se ao corpo, os pingos de chuva misturando-se às suas lágrimas.
- Exausta, sentou-se numa pedra e ficou olhando a água correr mais rápido em seu leito. Já não sabia se tremia de frio ou desespero. Sentia-se estranhamente vazia, alheia.
- Isso não é justo! - gritou com todas as forças que lhe restavam. - Onde foi que eu errei?
- Errou quando não confiou em mim.
- Ela se virou bruscamente, certa de que aquela voz era produto de sua imaginação. Mas a figura em sua frente era real, embora nunca tivesse visto Bruce tão transtornado, molhado até os ossos e com uma expressão que refletia emoções contraditórias: preocupação, raiva, aflição.
- Venha! - foi tudo que ele disse e não encontrou resistência quando a envolveu em seus braços. Mary deixou-se arrastar até a casa, em silêncio, ainda imersa num forte torpor.
- Ela não saberia dizer o que aconteceu depois. Quando acor. dou, estava envolta em um cobertor, perto da lareira. Abriu os olhos lentamente e viu Bruce de pé, perto da janela, observando a chuva que continuava a castigar impiedosamente a região.
- Agora já havia se acalmado, os pensamentos começaram a se formar com lógica e não levou muito tempo para que a raiva despontasse novamente, fazendo-a saltar do sofá.
- Fora daqui! Fora daqui! - ela gritou assustando-o. - Já destruiu minha vida, agora deixe-me em paz.
- Preparado para aquele ataque, Bruce encaminhou-se lentamente até ela e, com gestos calmos mas decididos, obrigou-a a sentar-se.
- Não ouse dizer nada até que eu termine de falar. Estou tentando há dias fazer você enxergar a realidade, mas você parece cega, surda e muda!
- O que mais você quer.
- Chega, Mary! Já me fez de bobo durante meses, ocultando seu curso de Direito, me humilhando publicamente e fazendo todos acreditarem que eu não te amo. Posso até aceitar que me ache machista, mas duvido que outro homem conseguiria suportar tudo isso e ainda correr atrás de você. - interrompeuse e Mary não conseguiu encará-lo. O pressentimento de que havia cometido um grande engano a faz estremecer. Em silêncio, aguardou que ele continuasse. - Mary, ouça bem: eu vou construir a estrada - declarou, e um sorriso amargo curvou-lhe os lábios ao ver a indignação no rosto da mulher. - vou construí-la sim, seguindo a alternativa que você sugeriu. Já tinha tomado essa decisão antes do dia de Ação de Graças. Ouviu bem? Antes do dia de Ação de Graças! Se você e seu advogado tivessem se inteirado do andamento do processo, já saberiam disso há muito tempo. E se o meu advogado tivesse sabido explicar tudo a você, não teríamos feito a alegria dos repórteres naquela maldita audiência.
- Chocada e envergonhada com a revelação, Mary ensaiou dizer uma coisa qualquer, mas Bruce ainda não havia terminado.
- Só mais uma coisa, Mary, uma coisinha insignificante disse com ironia. - Se me casei com você foi por amor.
Ele se levantou e não deu chance para Mary se recompor. Saiu rapidamente e logo o Mercedes se afastava da fazenda.
"É o fim", Mary pensou, caindo novamente em prantos.
No dia seguinte, o céu havia clareado e a forte luminosidade da manhã a despertou. Decidida, ela foi até o banheiro, tomou um banho rápido e depois dirigiu-se ao escritório. Nunca mais teria coragem de encarar Bruce, mas não conseguiria viver se, pelo menos, não conseguisse que ele a perdoasse.
Achou papel de carta na gaveta da escrivaninha e se pôs a escrever:
"Bruce,
Me perdoe por não te procurar. Fui a mais tola das mulheres e mereço perder a felicidade que você poderia ter me dado. Te amo muito, mas não ouso querer mais que o seu perdão. vou me comunicar com Becky para tratarmos de nossa mudança.
Um beijo, Mary'
Dobrou o papel cuidadosamente e foi pedir a Henry que o entregasse a Bruce, em mãos, o mais rápido possível.
Talvez um dia encontrasse uma forma melhor de se desculpar. Agora era preciso recomeçar a vida, assimilando as lições que havia aprendido nos últimos meses.
No final da tarde, estava aparando as hortênsias que cobriam as amuradas do terraço, quando um movimento lhe chamou a atenção. Era um rapazinho de uns quinze anos que se aproximou dela a passos rápidos. Entregou-lhe uma carta e desapareceu morro abaixo onde uma perua o aguardava com mãos trêmulas, Mary abriu o envelope. Quando seus olhos correram pelo papel, sentiu o coração querer saltar do peito e os olhos se encheram de lágrimas.
"Mary Kate Latimore.
Uma vez me disseram que quando se ama nunca é preciso pedir perdão. Não me interessa se isso está certo ou não. Mas se quiser saber o que um homem apaixonado tem a oferecer à mulher que escolheu para ser sua, vá até aquele riacho para onde você foi ontem. A tempestade acabou e não há nenhuma nuvem que impeça o sol de brilhar.
Bruce"
Mary não pensou duas vezes antes de sair em desabalada corrida.
Emma Goldrick
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