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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PENA CAPITAL - P.2 / Bernard Cornwell
PENA CAPITAL - P.2 / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PENA CAPITAL

Segunda Parte

 

Uma carroça de mercadorias entrou no pátio, com grande estrépito de cascos e correntes, mas Sandman nem reparou no barulho. Estava a contas com o pensamento tentador de que não era responsável pelas dívidas do pai, e que, se pusesse de parte os comerciantes que o suicídio de Ludovic Sandman quase levara à ruína, poderia talvez proporcionar à mãe um rendimento de oitocentas libras por ano. No entanto, o melhor de tudo, a ideia mais tentadora, era a de que, com vinte mil guinéus, conseguiria vencer as objecções de Lady Forrest ao seu casamento com Eleanor. Contemplou o cheque. Tornava tudo possível. Eleanor, pensou, Eleanor. Com o dote que ela lhe traria, voltaria a ser um homem rico, a ter cavalos nos seus estábulos, a jogar críquete durante todo o Verão e a caçar durante todo o Inverno. Poderia voltar a ser um autêntico cavalheiro. Nunca mais precisaria de labutar para arranjar uns míseros tostões, nem de desperdiçar tempo a preocupar-se com a lavagem da roupa.

 

Desviou o olhar do cheque para perscrutar os olhos de Lord Robin Holloway. O jovem aristocrata, um pateta que tinha pretendido desafiar Sandman para um duelo, dispunha-se agora a oferecer-lhe uma fortuna de mão beijada? Lord Robin ignorou o olhar insistente de Sandman, preferindo concentrar-se numa teia de aranha tecida nos painéis de madeira da saleta. Lord Skavadale sorriu para Sandman. Era o sorriso de regozijo de um homem pela boa sorte de outro homem, e, no entanto, despertou em Sandman um sentimento de vergonha. Vergonha porque a tentação tinha sido bem real, e ele quase cedera.

 

- Pensa que estamos a tentar suborná-lo? - Lord Skavadale, notando a mudança de expressão de Sandman, formulou a pergunta com ansiedade.

 

- Não esperava tanta generosidade da parte de Lord Robin - respondeu Sandman secamente.

 

- Todos os membros da sociedade deram o seu contributo - elucidou o marquês - e o meu amigo Robin recolheu os fundos. Trata-se, evidentemente, de uma oferta, não de um suborno.

 

- Uma oferta? - Sandman repetiu a palavra amargamente. - Não um suborno?

 

- Claro que não é um suborno - afirmou Skavadale firmemente -, nem por sombras. - Levantou-se e dirigiu-se à janela, de onde se pôs a observar os barris de cerveja rolando sobre tábuas a partir do fundo da carroça. Depois voltou-se e sorriu. - Sinto-me ultrajado, capitão Sandman, quando vejo um cavalheiro reduzido à penúria. Esse tipo de ocorrência vai contra a ordem natural das coisas, não concorda? E quando o cavalheiro em causa é um oficial que combateu briosamente pelo seu país, então o ultraje torna-se ainda maior. Disse-lhe que o Clube dos Serafins é composto por homens empenhados em atingir a excelência, e que aplaudem feitos superiores O que são os anjos, se não seres que praticam o bem? Por conseguinte gostaríamos de vê-lo, a si e à sua família, reinstalados no lugar que vos compete nesta sociedade. É tudo. - Encolheu os ombros, como se aquela diligência fosse de facto insignificante.

 

Sandman bem gostaria de acreditar nele. Lord Skavadale exprimira-se de uma maneira tão razoável e serena, que quase fazia parecer absolutamente normal a transacção que lhe propunha. Mas Sandman não se fiava nisso.

 

- Estão a oferecer-me uma esmola - protestou. Lord Skavadale abanou a cabeça.

 

- Apenas uma correcção à cegueira do destino, capitão.

 

- E se eu consentir na correcção do meu destino - perguntou Sandman - que pretendeis em troca?

 

Lord Skavadale assumiu um ar ofendido, como se nem sequer lhe tivesse ocorrido que Sandman pudesse ser convidado a prestar algum pequeno serviço em troca de uma enorme fortuna.

 

- A única coisa que espero, capitão - replicou, austeramente - é que se comporte como um cavalheiro.

 

Sandman fitou de relance Lord Robin Holloway, que continuava calado.

 

- Estou convencido - replicou Sandman em tom gélido - de que sempre me comportei assim.

 

- Nesse caso, bem sabe, capitão - replicou Skavadale em tom penetrante - que os cavalheiros não aceitam empregos remunerados.

 

Sandman não respondeu.

 

Lord Skavadale retraiu-se ligeiramente ante o silêncio de Sandman.

 

- Portanto, naturalmente, como compensação por aceitar esse cheque, deverá demitir-se de qualquer actividade remunerada a que presentemente se dedique.

 

Sandman voltou a contemplar a pequena fortuna.

 

- Portanto, deverei apresentar ao ministro do Interior a minha demissão do cargo de investigador ao seu serviço?

 

- Seria certamente uma atitude própria de um cavalheiro - observou Skavadale.

 

- E até que ponto será próprio de um cavalheiro - atalhou Sandman - permitir que um inocente seja enforcado?

 

- Estará ele inocente? - inquiriu Lord Skavadale. - O senhor disse ao sargento que ia à província em busca da prova definitiva, mas conseguiu trazê-la? - Aguardou, mas estava escrito no rosto de Sandman que não conseguira prova alguma. Lord Skavadale encolheu os ombros, como que sugerindo a Sandman que melhor seria para ele abandonar uma pesquisa sem esperança e aceitar o dinheiro.

 

E Sandman sentia-se tentado - tão tentado -, mas ao mesmo tempo, tão envergonhado dessa tentação, que se enervou e rasgou o cheque em pedaços. Viu Lord Skavadale pestanejar de surpresa quando começou a rasgá-lo. Sua senhoria pareceu ficar furiosa, e Sandman sentiu uma palpitação de medo. Não medo da cólera de Lord Skavadale, mas sim do seu próprio futuro, e da enormidade da fortuna que estava a rejeitar.

 

Espalhou os pedacinhos do cheque em cima da mesa. O marquês de Skavadale e Lord Robin Holloway levantaram-se. Relancearam o sargento Berrigan como que confirmando mudamente um recado previamente transmitido, e, sem sequer se dignarem olhar para Sandman, abandonaram a sala. Enquanto ouvia os passos deles afastando-se pelo corredor, Sandman sentiu um frio objecto de metal encostado à sua nuca, e percebeu que se tratava de uma pistola. Retesou-se, planeando atirar-se para trás na esperança de levar Berrigan a perder o equilíbrio, mas o sargento enfiou o frio cano da pistola com mais força no pescoço de Sandman.

 

- Teve a sua oportunidade, capitão.

 

- E você ainda tem uma, sargento - replicou Sandman.

 

- Mas não sou nenhum maluco - prosseguiu Berrigan -, nem tenciono matá-lo aqui. Aqui e agora, nem sonhar. Há demasiada gente na estalagem. Se o matasse agora aqui capitão, acabaria a dançar em Newgate. - A pressão da pistola abrandou, e o sargento inclinou-se para o ouvido de Sandman. - Tenha cuidado consigo, capitão, muito cuidado. - Era exactamente o mesmo conselho que Jack Hood lhe dera.

 

Sandman ouviu a porta abrir-se e fechar-se, e os passos do sargento sumiram-se na distância.

 

Vinte mil guinéus, pensou. Adeus.

 

O reverendo Lord Alexander Pleydell tinha reservado um camarote para assistir ao espectáculo no teatro de Covent Garden.

 

- Não diria que estou à espera de grandes rasgos artísticos - declarou, seguindo Sandman através da multidão -, excepto da parte de Miss Hood. Tenho a certeza de que ela será absolutamente deslumbrante. - Tal como Sandman, sua senhoria agarrava-se aos bolsos, porque as multidões do teatro constituíam um famoso terreno de caça para mãozinhas leves, mergulhadores, dedos invisíveis, sombras e fanecas - tudo isso, conforme Lord Alexander descobriu, deliciado, diferentes designações para os carteiristas. - Já te apercebeste - perguntou na sua voz estridente - que existe uma perfeita hierarquia de mãos-leves?

 

- Ouvi a vossa conversa, Alexander - replicou Sandman.

 

Antes de saírem do Wheatsheaf, Lord Alexander insistira em receber mais uma lição magistral acerca de calão, desta vez ministrada pelo proprietário, Jenks, que estava encantado por contar um sacerdote entre os seus clientes. O reverendo Lord Alexander tomara apontamentos, satisfeitíssimo por aprender que a categoria mais baixa dos carteiristas era a dos ”trapos”, crianças que furtavam lenços, enquanto que os Lordes do negócio do fananço eram os ”artistas do dedal”, q’ic roubavam relógios. Não eram só os praticantes do ofício que tinham nomes diferentes, também os próprios bolsos se dividiam em categorias distintas.

 

- Sótão - recitou Lord Alexander -, mealheiro, armazém, poço, saco roto, saleiro e escorrega. - Falhei algum?

 

- Não estava a prestar atenção - Sandman esforçava-se por acercar-se do toldo do teatro, brilhantemente iluminado.

 

- Sótão, cloaca, armazém, poço, saco roto, saleiro e escorrega - enunciou de novo Lord Alexander, para imenso gáudio do público. O ”sótão” era o bolsinho de relógio do colete, enquanto que os bolsos inferiores eram os ”mealheiros”, o ”armazém” o bolso interior do casaco, um bolso de peito sem pala era um ”poço”, um bolso exterior de casaco protegido por pala um ”saleiro”, e uma algibeira das abas, a mais fácil de fanar, se chamava um ”escorrega”. - Achas que Miss Hood nos acompanhará à ceia, depois do espectáculo? - gritou Lord Alexander sobre o ruído da multidão.

 

- Estou certo de que ela adorará desfrutar da companhia de um dos seus admiradores.

 

- Um dos seus admiradores? - perguntou Lord Alexander ansiosamente. - Não estás a pensar em Kit Carne, ou estás?

 

Sandman não estava a pensar em Lord Christopher Carne, mas estremeceu à ideia de que o herdeiro do conde Avebury pudesse realmente ser um candidato à mão de Sally. Lord Alexander arvorou uma expressão de profundo desagrado.

 

- O Kit não é um homem sério, Rider.

 

- Pois pareceu-me seriamente interessado nela.

 

- Cheguei à conclusão de que é um fraco - afirmou Lord Alexander com veemência.

 

- Fraco?

 

- Na outra noite - explicou Lord Alexander -, limitou-se a pasmar diante de Miss Hood, com um olhar perdido no vazio! Que atitude ridícula! Enquanto eu conversava com ela, ele não fazia mais do que embasbacar-se! Deus sabe o que terá ela ficado a pensar dele!

 

- Não faço a menor ideia - garantiu Sandman.

 

- Não parava de abrir e fechar a boca como um peixe fora de água! prosseguiu Lord Alexander, voltando-se em seguida, alarmado pelo berro de uma criança. A dor da criança foi acolhida por um coro de gargalhadas.

- O que é que aconteceu? - perguntou Lord Alexander, em pânico.

 

- Alguém armadilhou os bolsos com anzóis - conjecturou Sandman e um ”trapo” feriu os dedos neles.

 

Tratava-se de uma vulgar medida de precaução contra carteiristas.

 

- Uma lição que o miúdo não há-de esquecer - comentou Lord Alexander piedosamente. - Mas não devo censurar demasiado o Kit. Tem pouca

 

Nota: Estas designações, tais como as dos carteiristas, foram mais ou menos inventadas na versão portuguesa, por não ter sido possível à tradutora encontrar equivalentes exactos. [N. da T]

 

experiência de mulheres e receio que não possua quaisquer defesas contra os seus encantos.

 

- Essa é boa - observou Sandman -, vinda da boca de um homem ansioso por ver Sally Hood dançar.

 

Lord Alexander fez um sorriso amarelo.

 

- Eu próprio não sou perfeito. Kit queria vir ao espectáculo esta noite, mas eu disse-lhe para comprar o seu próprio bilhete. Deus dos céus, até poderia ter vontade de ir cear depois com Miss Hood! Achas que ela gostaria de visitar Newgate connosco?

 

- Visitar Newgate?

 

- Para assistir a um enforcamento! Disse-te que estava interessado em requerer às autoridades um lugar privilegiado na assistência, de modo que lhes escrevi nesse sentido. Ainda não recebi qualquer resposta, mas tenho a certeza de que hão-de consentir.

 

- E eu tenho a certeza de que não quero ir lá - berrou Sandman sobre o alarido do público, e, nesse preciso momento, houve uma inexplicável aberta no apertão, que permitiu a Sandman abrir caminho até à porta. Reflectiu que, se todo aquele aglomerado de gente tinha sido pago por Mr. Spofforth, então o cavalheiro despendera uma pequena fortuna na aventura. Mr. Spofforth era a pessoa que alugara o teatro por uma noite em benefício da sua protégée, uma tal Miss Sacharissa Lasorda, anunciada como a nova Vestris. A ”velha” Vestris tinha apenas vinte anos de idade e a fama de contribuir com trezentas libras por noite para a bilheteira só por mostrar as pernas; de momento, Mr. Spofforth esforçava-se por lançar Miss Lasorda numa carreira igualmente lucrativa.

 

- Conheces o Spofforth? - perguntou Sandman ao amigo. Encontravam-se agora já no interior do teatro e uma mulher idosa conduzia-os através de umas escadas bolorentas até ao seu camarote.

 

- Claro que conheço William Sofforth - o pé boto de Lord Alexander embatia contra os degraus à medida que ele se esforçava por trepar masculamente as escadas sombrias. - É um jovem bastante tolo, cujo pai fez fortuna no negócio do açúcar. O jovem Spofforth, o nosso anfitrião desta noite, era bom na defesa do wicket, mas não tinha a menor ideia de como colocar os jogadores em campo.

 

- Sempre pensei que essa tarefa competia ao capitão da equipa ou ao bowler - observou Sandman brandamente.

 

- Que absurdo! - vociferou Lord Alexander. - O críquete deixa de ser críquete quando o defensor do wicket falha nos seus deveres de distribuição

 

Nota: Vestris, Famosa actriz nascida em Londres (1797-1856), em solteira Bartolozzi, neta do reputado gravador italiano, que, após anos de sucesso nos palcos de Pans e de Londres (nos teatros de Drury Lane), assumiu a direcção de Covent Garden e do Lyceum. Reformou-se em 1854. [N. da T]

 

dos jogadores em campo. Tem uma perspectiva do jogo tão boa como o batsman, portanto quem estará em melhor posição do que ele para organizar o jogo? Sinceramente, Rider, não há ninguém que admire mais do que eu, as tuas tacadas, mas, no que toca à compreensão da teoria estratégica do jogo, não passas de uma criança.

 

Era uma velha discussão, que felizmente os entreteve enquanto ocupavam os seus lugares à boca do palco. Lord Alexander, que viera munido do seu saco de cachimbos, acendeu o primeiro da noite, cujo fumo se evolou em torno de um grande anúncio de proibição de fumar. A casa estava cheia - mais de três mil espectadores -, e em tumulto, porque boa parte da assistência se encontrava já embriagada, dando a ideia de que os criados de Mr. Spofforth deviam ter vasculhado as tabernas em busca de acólitos. Um grupo de jornalistas estava a ser contemplado com champanhe, brandy e ostras, num camarote fronteiro ao acolchoado ninho de Lord Alexander. Mr. Spofforth, um peralvilho anódino, com um colarinho que lhe ultrapassava as orelhas, encontrava-se no camarote vizinho, sem despegar os olhos ansiosos dos jornalistas que estavam a custar-lhe uma fortuna, e de cujo veredicto dependia o lançamento ou o fracasso da carreira da sua bem-amada; mas um dos críticos tinha já adormecido, outro entretinha-se a cortejar uma mulher, enquanto que os restantes dois se ocupavam a atazanar o servente do camarote com solicitações de mais champanhe. Uma dúzia de músicos instalou-se no poço da orquestra e começou a afinar os instrumentos.

 

- Estou a reunir uma equipa de onze cavalheiros para defrontar a de Hampshire no fim do mês - anunciou Lord Alexander - e conto que aceites fazer parte dela.

 

- Muito me agradaria, sem dúvida. O jogo vai ser disputado em Hampshire? - Sandman formulou a pergunta com certa apreensão, porque não estava particularmente interessado em aproximar-se de Winchester e das exigências da sua truculenta progenitora.

 

- Não, aqui, em Londres - elucidou Lord Alexander - no relvado Thomas Lord.

 

Sandman fez uma careta.

 

- Aquela desgraçada colina?

 

- É um campo perfeitamente aceitável - replicou Lord Alexander de mau humor -, quando muito com um ligeiro declive, está bem? E já apostei cinquenta guinéus nesse jogo, é por isso que gostaria que participasses. Se alinhares, ainda aposto mais.

 

- O dinheiro está a dar cabo do jogo, Alexander - resmungou Sandman.

 

Nota: Batsman, Batedor; um jogador que ataca com o bastão. [N. da T.]

 

- Mais uma razão para nós, que nos opomos à corrupção, o patrocinarmos com toda a nossa força - insistiu Lord Alexander. - Então, vais jogar?

 

- Estou muito destreinado - preveniu Sandman.

 

- Então trata de treinares - replicou Lord Alexander em tom de desafio, acendendo outro cachimbo. Encarou Sandman com certa preocupação.

- Estás com uma carranca deprimente. O teatro não te agrada?

 

- Pelo contrário, agrada-me muito.

 

- Então põe uma cara a condizer! - Lord Alexander esfregou as lentes dos seus binóculos de ópera nas abas da casaca. - Achas que Miss Hood apreciará o críquete?

 

- Não consigo imaginá-la a jogá-lo, seja em que posição for.

 

- Não sejas tão grotescamente absurdo, Rider, referia-me a saber se ela apreciará o jogo como espectadora.

 

- Terás de ser tu a perguntar-lhe, Alexander - respondeu Sandman. Debruçou-se sobre a balaustrada do camarote para observar a geral, onde uma claque do Wheatsheaf se preparava para aplaudir Sally. Um par de meretrizes rondava o fosso dos músicos, e uma delas, vendo-o a olhar para baixo, indicou-lhe por mímica que se dispunha a subir ao camarote. Sandman apressou-se a abanar a cabeça e a recuar para fora da vista delas. Suponhamos que está morta - sugeriu de repente.

 

- Miss Hood? Morta? A que propósito? - Lord Alexander mostrava-se aflito. - Ela estava doente? Deverias ter-me informado!

 

- Estou a referir-me à criada de quarto, Meg.

 

- Oh, essa - comentou Lord Alexander distraído, fazendo uma careta ao seu cachimbo. - Recordaste-te daqueles charutos espanhóis que fizeram furor na altura em que estavas a combater as forças do progresso em Espanha?

 

- Claro que sim.

 

- Não se consegue encontrá-los em parte alguma, e eu apreciava-os bastante.

 

- Experimenta o Pettigrews, na Old Bond Street.

 

- Já experimentei. Não têm. E eu gostava mesmo deles.

 

- Sei de uma pessoa que está a pensar em importá-los - disse Sandman, lembrando-se do sargento Berrigan.

 

- Caso o faça, não te esqueças de informar-me. - Lord Alexander expeliu algumas baforadas do cachimbo para os querubins do tecto. - Os teus amigos do Clube dos Serafins sabem que andas à procura de Meg?

 

- Não.

 

- Então não têm qualquer motivo para persegui-la e matá-la. E se tivessem querido matá-la aquando do assassinato da condessa - admitindo que tivessem de facto praticado tal malvadez -, então teriam deixado o seu cadáver junto do da patroa, a fim de que Corday fosse acusado de ambos os crimes. Ora isso sugere, não é verdade, que a rapariga deve continuar viva? Ocorreu-me agora, Rider, que os teus deveres como investigador exigem um grande poder de dedução lógica, motivo pelo qual me pareces muito pouco indicado para o cargo.

 

- És tão simpático, Alexander.

 

- Esforço-me por isso, meu querido amigo. - Lord Alexander, contente consigo próprio, resplandecia de satisfação. - Esforço-me mesmo.

 

Ouviram-se vivas quando um grupo de rapazes percorreu o teatro, apagando as luzes. Os músicos procederam a uma derradeira e desarmoniosa tentativa de afinação dos instrumentos, e em seguida aguardaram o sinal da batuta do maestro. Alguns espectadores instalados no poço da orquestra começaram a assobiar, exigindo que a cortina subisse. O grosso da tarefa de mudança de cenários era levado a cabo por marinheiros, homens habituados a lidar com cordas e a subir a grandes alturas, e, tal como em pleno mar, comunicavam entre si por assobios. Entretanto, o público assobiava em sinal de impaciência, mas as cortinas mantinham-se obstinadamente corridas. Apagaram-se mais luzes, e em seguida as coberturas que revestiam os grandes holofotes colocados nos cantos do palco foram retiradas, o homem do tambor tocou um portentoso rufo e um actor vestido com uma capa esfrangalhada saltou de entre as cortinas para recitar o prólogo sobre a ampla boca do palco:

 

Pelas Áfricas, tão longe do lar, Um rapazinho costumava vaguear. Aladino se chamava o nosso herói...

 

Não conseguiu prosseguir, porque o público lhe abafou a voz numa cacafonia de berros, silvos e assobios.

 

- Mostrem-nos as ligas da rapariga! - gritou um homem de um camarote próximo do de Sandman. - Mostrem-nos as gâmbias da gaja!

 

- Penso que há por aqui apoiantes da Vestris - berrou Lord Alexander ao ouvido de Sandman.

 

Mr. Spofforth tinha um ar ainda mais preocupado. Agora que a assistência se encontrava em tremendo alarido, os jornalistas começavam a prestar alguma atenção aos acontecimentos, e entretanto os músicos, para quem nada daquilo era novidade, romperam a tocar, o que acalmou ligeiramente os ânimos. Ouviram-se aplausos quando, desistindo-se do prólogo, as pesadas cortinas escarlates se afastaram, revelando uma clareira no mato africano. Carvalhos e rosas amarelas rodeavam um ídolo que guardava a entrada de uma gruta onde dormia uma dúzia de indígenas de pele branca. Sally era uma das indígenas, inexplicavelmente vestidas com meias brancas, coletes de veludo preto e saias de xadrez muito curtas. Lord Alexander urrou vivas quando as doze raparigas se puseram em pé e começaram a dançar.

 

Os clientes do Wheatsheaf alojados no fosso da orquestra também aplaudiam ruidosamente, e os partidários da Vestris, pressupondo que os aplausos provinham da claque comprada por Spofforth, desataram a escarnecer.

 

- Tragam a rapariga! - exigia o homem do camarote contíguo. Uma ameixa voou para o palco e esmagou-se contra o ídolo, que se assemelhava curiosamente a um poste totémico dos peles-vermelhas. Mr. Spofforth tentava em vão acalmar por gestos um público decidido a causar sarilhos; pelo menos a metade paga para apoiar a Vestris estava nessa disposição, enquanto que a outra metade, comprada por Mr. Spoffolk, se encontrava demasiado intimidada para retaliar. Alguns elementos da assistência estavam armados de matracas que faziam ecoar entre as altas paredes douradas com um fragor de estalidos.

 

- Isto vai descambar numa grande barafunda! - comentou Lord Alexander, deliciado. - Oh, que maravilha!

 

A gerência do teatro deve ter calculado que a aparição de Miss Sacharissa Lasorda acalmaria o tumulto, porque a rapariga foi prematuramente empurrada para o palco. Mr. Spofforth levantou-se e desatou a bater palmas quando ela saiu aos ziguezagues dos bastidores, e a sua claque, seguindo-lhe o exemplo, rompeu em aplausos tão entusiásticos que, por momentos, conseguiram realmente abafar as vaias. Miss Lasorda, que fazia o papel de filha do sultão africano, tinha o cabelo negro e era certamente bela, mas, se as pernas dela mereciam ou não tornar-se tão famosas como as da Vestris, permanecia um mistério, porque trazia uma saia comprida bordada com crescentes, camelos e cimitarras. Pareceu por momentos atordoada por dar consigo mesma em palco, mas logo fez uma vénia aos seus acólitos e iniciou a dança.

 

- Mostra-nos as gâmbias! - voltou a berrar o homem do camarote vizinho.

 

- Tira a saia! Tira a saia! Tira a saia! - desatou a entoar o público da geral, ao mesmo tempo que choviam ameixas e maçãs sobre o palco.

 

Mr. Spoforth continuava a tentar acalmar a turba com gestos apaziguadores, mas isso só serviu para torná-lo num alvo e teve de abaixar-se quando uma torrente de fruta arremessada com excelente pontaria se esborrachou contra o seu camarote.

 

Lágrimas de divertimento escorriam pelas faces de Lord Alexander.

 

- Gosto tanto do teatro - disse -, meu doce bom Deus, gosto mesmo tanto. Isto deve ter custado àquele jovem palerma no mínimo duas mil libras!

 

Sandman não conseguiu ouvir o que o amigo dissera e, portanto, inclinou-se para ele.

 

- O quê? -perguntou.

 

Ouviu então algo a embater contra a parede traseira do camarote e viu, na obscuridade que ali reinava, uma nuvem de pó. Só então se apercebeu de que um tiro havia sido disparado no teatro e, atónito, olhou para cima e pasmou ao avistar um rolo de fumo nas sombrias alturas de um camarote acima do seu. Uma espingarda, pensou. Soava de uma forma diferente de um mosquete. Vieram-lhe à memória os uniformes verdes em Waterloo, recordou-se dos distintos sons dos disparos das diversas armas, e, compreendendo que alguém tinha disparado contra ele, experimentou tamanho choque que ficou paralisado por segundos. Em vez de se mover, contemplou o fumo que alastrava e deu-se conta de que os espectadores haviam mergulhado no silêncio. Alguns tinham ouvido o tiro sobre o tremendo fragor dos estalidos das matracas, dos assobios e dos berros, outros haviam notado o intenso odor a pólvora, e depois alguém gritou no balcão superior. Miss Lasorda olhou para cima, de boca aberta. Sandman abriu de rompante a porta do camarote e viu dois homens a subir as escadas, de pistolas em punho. Bateu com a porta.

 

- Vem ter comigo ao Wheatsheaf - disse a Lord Alexander e, passando as pernas sobre a balaustrada, tomou balanço e saltou. Aterrou desastradamente, torcendo o tornozelo esquerdo e quase tombando. O público aplaudiu, convencido de que o salto de Sandman fazia parte do espectáculo, mas logo de seguida algumas pessoas da geral começaram a gritar, porque distinguiram no camarote de Lord Alexander dois homens, que, conforme podiam ver, se encontravam armados de pistolas.

 

- Capitão! - bradou Sally, apontando para as alas laterais. Sandman tropeçou. Sentia uma dor no tornozelo, uma dor terrível que

 

o fez cambalear em direcção ao ídolo que guardava a boca da gruta. Voltou-se para relancear os dois homens no camarote, ambos apontando-lhes as suas armas, mas nenhum deles se atreveu a disparar contra o palco atulhado de bailarinas. Então um dos homens passou uma perna sobre a borda doirada do camarote e Sandman arrastou-se a coxear até um dos bastidores laterais, onde um homem vestido de arlequim, e outro com o rosto enegrecido, uma pomposa coroa e uma lâmpada mágica aguardavam a sua vez de entrar em cena. Sandman empurrou-os para abrir caminho, tropeçou num montão de cordas, desceu uns degraus e, ao fundo, meteu-se por um corredor. Não lhe parecia que tivesse partido o tornozelo, mas deveria tê-lo torcido e cada passo era uma agonia. Parou no corredor, com o coração a bater, e espalmou-se contra a parede. Chegaram-lhe aos ouvidos os gritos das bailarinas no palco, e, em seguida, os passos pesados de um homem descendo as escadas. Um segundo depois, contornou a esquina e Sandman passou-lhe uma rasteira, aplicando-lhe em seguida com toda a força um golpe na nuca. O homem emitiu um grunhido e Sandman retirou-lhe a pistola da mão débil. Virou-o para si.

 

- Quem és tu? - perguntou-lhe, mas o sujeito limitou-se a cuspir na cara de Sandman, que lhe bateu com o cano da pistola, vasculhando-lhe em seguida as algibeiras, onde encontrou uma mão-cheia de munições. Sandman ficou ali por momentos, estremecendo por causa da dor na perna esquerda, e depois lá foi coxeando corredor fora até à porta dos bastidores. Mais passos soaram atrás dele e voltou-se, de pistola apontada, mas era Sally quem corria para ele com as suas roupas normais embrulhadas numa capa.

 

- Está bem? - perguntou-lhe.

 

- Torci um tornozelo.

 

- Vai para ali uma confusão dos diabos - informou Sally -, há mais fruta no maldito convés do que no mercado.

 

- Convés?

 

- Palco - explicou ela sucintamente, abrindo em seguida a porta.

 

- Devias voltar para lá.

 

- Pois devia fazer uma data de um raio de coisas, mas não faço retrucou Sally -, portanto, venha daí. - Arrastou-o para a rua. Um homem assobiou perante o espectáculo das suas longas pernas enfiadas em meias brancas, e ela rosnou-lhe que fosse dar uma curva, lançando em seguida a capa sobre os ombros. - Apoie-se em mim - sugeriu a Sandman, que coxeava e gemia de dor. - Está num raio de um estado lastimoso, não está?

 

- Tornozelo deslocado. Não creio que esteja partido.

 

- Como é que sabe?

 

- Porque não o sinto esfolar-me a perna a cada passo.

 

- Diabo de coisa. O que sucedeu?

 

- Alguém disparou contra mim. Com uma espingarda.

 

- Quem?

 

- Não sei - disse Sandman. O Clube dos Serafins? Parecia bastante provável, sobretudo depois de Sandman ter recusado o seu grandioso suborno, mas isso não condizia com o aviso de Jack Hood de que a sua cabeça se encontrava a prémio. Por que pagaria o Clube dos Serafins a criminosos para desempenharem a tarefa que eles próprios, ou os seus empregados, poderiam levar a cabo mais eficazmente? - Realmente não sei - repetiu, perplexo e assustado.

 

Tinham vindo das traseiras do teatro e caminhavam agora, ou pelo menos Sally caminhava enquanto Sandman coxeava, sob as arcadas do mercado de Covent Garden. O entardecer de Verão proporcionava ainda alguma luz, que já projectava porém sombras sobre as pedras da calçada, sujas com restos de legumes e fruta esborrachada. Ele não cessava de virar-se para trás, mas não havia inimigos notórios à vista. Nenhum sinal do sargento Berrigan, ou de qualquer libré amarela e preta; nenhum sinal de Lord Robin Halloway ou do marquês de Skavadale.

 

- Estão com certeza a calcular que eu regresse ao Wheatsheaf - disse a Sally.

 

- Mas não podem adivinhar por que raio de porta vai entrar, pois não? - redarguiu Sally -, e, uma vez lá dentro, ficará a salvo como o raio, capitão, porque não há ali um único homem que não esteja disposto a protegê-lo. - Voltou-se de súbito em pânico ao ouvir passos apressados atrás deles, mas era apenas uma criança a fugir de um homem encolerizado, que a acusava de ser carteirista. As vendedoras de flores estavam ocupadas a arranjar os seus cestos no chão, preparando-se para as multidões que em breve sairiam dos dois teatros ali próximos. Soaram assobios e matracas.

- É o raio dos chuis a caminho da barafunda - explicou Sally, querendo dizer que os polícias de Bow Street se dirigiam para o teatro de Covent Garden. Franziu o nariz à vista da pistola que Sandman empunhava. - Esconde esse pau. A última coisa que nos faltava era um chui a meter-se contigo.

 

Sandman enfiou a pistola num bolso.

 

- Tens a certeza de que não deverias estar ainda no teatro?

 

- Não vão nunca recomeçar com aquele raio de circo, se é que chegou alguma vez a começar, que é que lhe parece? Morto à nascença. Não, a noitada de glória de Miss Sacharissa lixou-se, não foi? Atenção, que o nome dela não é Sacharissa Lasorda.

 

- Nunca pensei que fosse.

 

- Chama-se Flossie, e costumava ser a parceira de um engolidor de fogo no Astleys. Deve andar pelos trinta anos, nem menos um dia, e da última vez que ouvi falar dela andava a ganhar o pilim numa academia.

 

- Tornou-se professora? - perguntou Sandman, surpreendido, porque poucas mulheres escolhiam essa profissão, e Miss Lasorda, ou como quer que ela se chamasse, não tinha ar de professora.

 

Sally desatou a rir com tamanha vontade que, para não cair, teve de ser ela a amparar-se a Sandman.

 

- Deus do céu, adoro-o, capitão - disse, por entre as gargalhadas. - Uma academia não serve pr’aprender. Pelo menos letras. É um bordel!

 

- Oh! - exclamou Sandman.

 

- Já não estamos muito longe - disse Sally quando se acercaram do teatro de Drury Lane, de onde saía o som de um coro de aplausos. - Como vai o seu tornozelo?

 

- Parece-me que consigo andar - respondeu Sandman.

 

- Experimente - encorajou-o Sally, e ficou a olhar Sandman dar uns passos cambaleantes. - É melhor não tirar essa bota esta noite - aconselhou. - O seu tornozelo vai inchar terrivelmente se o fizer. - Avançou à frente dele e abriu a porta fronteira do Wheatsheaf. Sandman quase esperava deparar-se com um homem de pistola em punho à sua espera, mas o átrio estava vazio.

 

- Para não termos de passar o resto da noite a olhar por cima do ombro - observou Sandman -, vou averiguar se a saleta das traseiras está desimpedida. - Conduziu Sally através do bar apinhado de homens, onde o senhorio presidia a uma espécie de conselho numa mesa. - A saleta das traseiras está livre de perigo? - perguntou-lhe. Jenks fez um sinal afirmativo.

 

- O cavalheiro disse que o senhor voltaria para aqui, capitão, e pediu para reservá-la. E chegou também uma carta para si, trazida por um arrumador.

 

- Um criado de quarto - traduziu Sally para Sandman - e que cavalheiro foi esse que reservou a espelunca lá de trás?

 

- Deve ser Lord Alexander - explicou Sandman -, porque queria que nós dois ceássemos com ele. - Pegou na carta que Jenks lhe estendia e sorriu para Sally. - Não a incomoda a companhia de Lord Alexander?

 

- Incomodar-me com Lord Alexander? Ele vai limitar-se a pasmar para mim de boca aberta como um bacalhau de Billingsgate, não é verdade?

 

- Que inconstantes são os seus afectos, Miss Hood! - notou Sandman, recebendo em paga uma palmada no ombro.

 

- Bem, mas é precisamente o que ele faz! - insistiu Sally, procedendo a uma imitação cruelmente exacta da figura de Lord Alexander a esbugalhar os olhos de admiração por ela. - Pobre velhote aleijado - acrescentou gentilmente, olhando em seguida de relance para a sua minúscula saia de xadrez por baixo da capa. - É melhor mudar para qualquer coisa mais decente, se não os olhos ainda acabam por saltar-lhe.

 

Sandman fingiu-se desolado.

 

- Agrada-me bastante essa saia escocesa.

 

- E eu a julgar que o senhor era um cavalheiro, capitão - retorquiu Sally, desatando em seguida a rir e subindo as escadas, enquanto Sandman abria à força de ombro a porta da saleta das traseiras e, com imenso alívio, se afundava numa cadeira. Estava escuro na sala porque as portadas da janela se encontravam fechadas e as velas apagadas, o que o levou a inclinar-se para a frente a fim de abrir a portada mais próxima, verificando então que não era Lord Alexander quem reservara a saleta, mas sim um cavalheiro completamente diferente - se é que o sargento Berrigan podia considerar-se um cavalheiro.

 

O sargento estava espreguiçado num banco, mas de imediato ergueu a pistola e apontou-a à testa de Sandman.

 

- Querem vê-lo morto, capitão - afirmou -, querem mesmo vê-lo morto. Portanto enviaram-me a mim, porque, quando querem que um trabalhinho sujo seja feito como deve ser, escolhem um soldado. Não é verdade? Manda-se um soldado.

 

Portanto, tinham mandado o sargento Berrigan.

 

Sandman sabia que tinha de fazer rapidamente qualquer coisa. Atirar-se para a frente? Mas o seu tornozelo latejava e sabia também que nunca poderia mover-se mais rapidamente do que o sargento Berrigan, que estava em excelente forma e dispunha de vasta experiência. Pensou em sacar da pistola que arrancara ao seu atacante no teatro, mas quando acabasse de tirá-la do bolso já Berrigan teria disparado, de modo que achou que o melhor seria tentar prolongar a conversa até Sally chegar e dar o sinal de alarme. Ergueu o pé esquerdo e repousou-o sobre uma cadeira.

 

- Desloquei o tornozelo - explicou a Berrigan - ao saltar para o palco.

 

- O palco?

 

- No espectáculo de Miss Hood. Alguém tentou matar-me lá.

 

- Não fomos nós, capitão - garantiu Berrigan.

 

- Foi alguém armado de uma espingarda.

 

- Sobraram muitas das guerras - comentou Berrigan. - Pode arranjar-se uma Baker em segunda mão por sete ou oito xelins. Com que então, mais alguém além do Clube dos Serafins quer vê-lo morto, hem?

 

Sandman fitou o sargento nos olhos.

 

- Tem a certeza de que não foi obra do Clube dos Serafins?

 

- Mandaram-me a mim, capitão, apenas a mim - assegurou Berrigan e eu não fui ao teatro.

 

Sandman ficou a olhar para ele, perguntando a si próprio quem, em nome de Deus, teria posto a sua cabeça a prémio.

 

- Deve ser uma grande sorte ser-se desonesto - observou. Berrigan arreganhou os dentes.

 

- Sorte?

 

- Ninguém anda a tentar matá-lo a si, e não sente escrúpulos por aceitar milhares de libras para fazer o trabalhinho. Eu diria que isso é uma grande sorte. O meu problema, sargento, é que tinha tanto medo de vir a tornar-me igual ao meu pai que passei a comportar-me de forma diametralmente oposta. Resolvi ser obstinadamente virtuoso. Era imensamente maçador para mim, e aborrecia o meu pai até à raiz dos cabelos. Suponho que foi por isso que segui esse caminho.

 

Se Berrigan ficou surpreendido ou desconcertado por esta estranha confissão, não o demonstrou. Pareceu sobretudo intrigado.

 

- O seu pai era desonesto?

 

Sandman confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Se houvesse justiça neste mundo, sargento, teria sido enforcado em Newgate. Não era um bandido do tipo dos que vivem aqui. Não atacava diligências nem roubava carteiras nem assaltava casas; em vez disso, comprometia o dinheiro alheio em negócios fraudulentos, e continuaria a fazê-lo ainda hoje se não lhe tivesse saído ao caminho um homem mais esperto do que ele, que lhe devolveu a graça. Pela parte que me toca, fazia grande gala de ser um poço de virtudes, mas a verdade é que levei a vida inteira a gastar o dinheiro dele, não é?

 

O sargento Berrigan baixou o cano da pistola, pousando-a depois sobre a mesa.

 

- O meu pai era um homem honesto.

 

- Era? Já não é?

 

Berrigan usou uma caixa de pederneira para acender duas velas, e em seguida levantou do chão um jarro de cerveja que mantivera escondido

 

- O meu pai morreu há uns anos. Era um ferreiro de Putney, e queria que eu aprendesse o ofício, mas claro que eu não estava para isso. Julgava-me mais esperto do que ele, claro. - Havia uma nota de amargura na sua voz. Queria arranjar um modo de vida mais fácil do que passar o tempo a ferrar cavalos e a martelar correntes.

 

- Então alistou-se no exército para fugir à bigorna? Berrigan riu-se.

 

- Alistei-me no exército para escapar à forca. - Serviu-se da cerveja e empurrou uma caneca na direcção de Sandman. - Era caçador de cargas, sabe o que isso é?

 

- Eu vivo por estas bandas, não se esqueça - replicou Sandman.

 

Os caçadores de carga eram homens que se dedicavam a assaltar o compartimento das bagagens da parte traseira dos coches, e, se a tarefa fosse bem executada, nem o cocheiro nem os passageiros se apercebiam de que os seus baús tinham sido retirados da bagageira. Para evitar que tal sucedesse, muitos coches eram providos de correntes de aço com que se atavam as malas, mas um bom caçador de cargas trazia consigo um pé-de-cabra para arrancar os grampos que prendiam as correntes à base dos coches.

 

- Fui apanhado - prosseguiu Berrigan - e o toga preta deu-me a escolher entre ir a julgamento ou tornar-me tropa. E, nove anos depois, era sargento.

 

- Boa, hem?

 

- Sabia manter a ordem - disse o sargento Berrigan friamente.

 

- Também eu, por estranho que pareça - afirmou Sandman, e o facto não era assim tão estranho como ele apregoava. Muitos oficiais confiavam a manutenção da ordem aos sargentos, mas Sandman possuíra uma autoridade espontânea e natural. Fora um bom oficial e bem o sabia, e, se quisesse ser honesto consigo próprio, tinha saudades desses tempos. Tinha saudades da guerra, das certezas do exército, da excitação das campanhas e da camaradagem do regimento. - Passámos tempos tão felizes em Espanha Com coisas terríveis à mistura, claro, mas dessas já me esqueci. Esteve em Espanha?

 

- De 1812 a 1814.

 

- Foi a melhor época - disse Sandman -, mas detestei Waterloo.

 

O sargento assentiu.

 

- Foi mau.

 

- Nunca tive um maldito susto como aquele em toda a minha vida prosseguiu Sandman. Tremera dos pés à cabeça quando a guarda imperial subira a colina. Lembrava-se de o seu braço direito sacudido por estremeções, e tivera vergonha de exibir tamanho medo; só muito mais tarde lhe ocorrera que a maioria dos homens que defendiam o topo da colina, bem como a maioria dos que vinham atacá-los, deviam estar tão amedrontados como ele, e igualmente envergonhados do seu medo. - O ar estava quente - evocou -, como se tivessem aberto a porta de um forno. Lembra-se?

 

- Quente - concordou Berrigan, para logo assumir uma expressão grave. - Há muita gente que o quer ver morto, capitão.

 

- Estou completamente baralhado - admitiu Sandman. - Quando Skavadale me ofereceu todo aquele dinheiro, julguei que ou ele ou Lord Robin tinham assassinado a condessa, mas, e agora? Agora andam por aí outras pessoas atrás de mim. Talvez se trate dos verdadeiros assassinos, mas o mais estranho é que não tenho a menor pista sobre quem poderão ser. A menos que a resposta esteja aqui? - pegou na carta que o proprietário lhe tinha entregue. - Importa-se de chegar-me uma vela?

 

A carta estava escrita em papel verde pálido, e numa caligrafia dolorosamente familiar. Era a de Eleanor, e ele recordou-se de como o seu coração desatava aos pulos quando recebia as cartas dela em França ou em Espanha. Tratou de romper o lacre verde com o sinete dela, e desdobrou a fina folha de papel. Tivera a esperança de que a carta lhe revelasse o paradeiro de Meg, mas, em vez disso, Eleanor pedia a Sandman que se encontrasse com ela na manhã seguinte na confeitaria Gunter, em Berkeley Square. Havia um post scriptum: Penso que talvez tenha novidades, escrevera ela. Mas nada mais.

 

- Não - disse ele - ainda não cheguei à verdade, mas julgo que não tardarei a alcançá-la. - Pousou a carta sobre a mesa. - Não lhe compete dar-me um tiro?

 

- Numa hospedaria? - Berrigan abanou a cabeça. - Seria mais provável que lhe cortasse a garganta. Mas estou a tentar decidir se Miss Hood voltará alguma vez a falar-me caso eu pratique tal acto.

 

- Duvido que o faça - retorquiu Sandman com um sorriso.

 

- E da última vez eu estava do seu lado - lembrou Berrigan -, as coisas estavam feias, mas levámos a melhor.

 

- Tal como contra a guarda do Imperador - concordou Sandman.

 

- De forma que me parece que estou outra vez do seu lado, capitão concluiu o sargento.

 

Sandman sorriu e ergueu a sua caneca num brinde trocista.

 

- Mas, se não me matar, sargento, poderá voltar ao Clube dos Serafins? Ou não será que eles vão encarar a sua desobediência como justa causa de despedimento?

 

- Não posso voltar - disse Berrigan, apontando para um pesado baú, um saco de viagem e a sua velha mochila de soldado, colocados lado a lado no chão.

 

- Dividiremos a recompensa, capitão.

 

- Há uma recompensa?

 

- Quarenta libras - elucidou Berrigan - é o que os magistrados pagam a quem quer que lhes entregue um bandido procurado pela lei. Quarenta.

- Apercebeu-se de que tal recompensa era uma novidade para Sandman, e abanou a cabeça, incrédulo. - Como é que pensa que os guardas ganham a vida?

 

Sandman sentiu-se muito tolo.

 

- Não sabia. Berrigan tornou a encher ambas as canecas.

 

- Vinte para si, capitão, e vinte para mim. - Esboçou um sorriso malicioso. - Então o que vamos fazer amanhã, capitão?

 

- Amanhã - retrucou Sandman - começaremos por ir a Newgate. A seguir irei encontrar-me com a tal senhora, e você... enfim, não sei o que fará, mas logo veremos, não acha? - Girou na cadeira ao ouvir a porta abrir-se nas suas costas.

 

- Com seiscentos raios - exclamou Sally, chocada por ver a pistola em cima da mesa. Depois fitou Berrigan. - Que diabo está a fazer aqui?

 

- Vim cear consigo, claro - respondeu Berrigan.

 

Sally corou, e Sandman pôs-se a olhar pela janela para evitar embaraçá-la, reflectindo que o seu actual leque de aliados consistia num aristocrático reverendo, de pé boto e opiniões radicais, uma actriz de língua afiada, um sargento com um passado criminoso - e, segundo esperava, Eleanor

 

E, todos juntos, dispunham apenas de três dias para caçar um assassino.

 

Chovia na manhã seguinte quando Sandman e Berrigan se encaminharam para a prisão de Newgate. Sandman continnuava a coxear bastante, e fazia uma careta de dor cada vez que o peso do seu corpo recaía sobre o pé esquerdo. Tinha enrolado uma ligadura muito apertada em torno da bota esquerda, mas o tornozelo ainda lhe parecia feito de fogo gelatinoso.

 

- Nem devia andar - disse-lhe Berrigan.

 

- Pois também não devia andar quando torci o outro tornozelo em Burgos - ripostou Sandman - mas era isso ou ser apanhado pelos franciús. Portanto, pus-me a caminho de volta para Portugal.

 

- O senhor, um oficial? Não tinha quatro patas que o levassem?

 

- Tinha, mas emprestei-as a uma pessoa que estava realmente ferida. Berrigan deu alguns passos em silêncio.

 

- Na verdade, tínhamos uma boa quantidade de bons oficiais - disse, após essa pausa.

 

- Ora - atalhou Sandman -, e eu que estava convencido que era caso único.

 

- Porque os maus oficiais não duravam muito tempo - prosseguiu Sandman -, sobretudo quando havia combates. Fantástico o que uma bala nas costas consegue fazer.

 

O sargento havia dormido na saleta das traseiras do Wheatsheaf depois de se ter tornado óbvio que não seria convidado para o leito de Sally, embora Sandman, que os observara de perto ao longo do serão, estivesse convencido de que fora por uma unha negra. Lord Alexander, completamente alheio ao facto de estar a perder Sally a favor de um rival de baixo nascimento, pasmara diante dela em muda admiração até ganhar coragem para lhe contar uma anedota, mas, como a piada só fazia sentido para quem conhecesse o gerúndio latino, falhara miseravelmente nesse esforço. Quando

 

Nota: Quatro patas, No original gee-gee: designação coloquial de cavalo. [N. da T.]

 

Lord Alexander finalmente adormecera, o sargento Berrigan carregara com ele para a sua carruagem, que o levara a penates.

 

- Sabe beber, este fulano - dissera o sargento em tom de admiração.

 

- Não sabe beber - contrariara Sandman - e é esse o problema dele.

 

Na sua opinião, Lord Alexander aborrecia-se de morte, e o tédio levava-o a beber, ao passo que a vida de Sandman era tudo menos aborrecida.

 

Ficara acordado metade da noite a tentar descobrir quem, para lá do Clube dos Serafins, poderia querer a sua morte, e fora só quando o sino de St. Paul batera as duas da madrugada que a resposta lhe surgira, com tamanha clareza e evidência que se sentiu envergonhado de não lhe ter ocorrido antes uma solução tão óbvia. Contou-a a Berrigan enquanto desciam Holborn debaixo de nuvens tão baixas que davam a impressão de tocarem as chaminés fumegantes.

 

- Já sei quem está disposto a pagar bom dinheiro para me ver morto.

 

- Não é o Clube dos Serafins - reafirmou Berrigan. - Nesse caso, ter-me-iam dito para não interferir com o trabalho de outro sujeito qualquer.

 

- Não é o clube - concordou Sandman -, porque, embora tenham decidido comprar-me, o único membro com fundos suficientes e imediatamente disponíveis era Lord Robin Holloway, que me detesta.

 

- Lá isso é verdade - admitiu Berrigan -, mas todos contribuíram.

 

- Não, não contribuíram - afirmou Sandman. - A maioria dos membros encontra-se nas suas residências do campo e não houve tempo para solicitar-lhes o dinheiro. Quanto a Skavadale, está sem um tostão. É possível que um ou outro membro que esteja em Londres tenha feito um donativo, mas o grosso dos vinte mil guinéus veio do bolso de Lord Robin Holloway, e apenas porque Skavadale lho pediu, ou ordenou, ou o persuadiu, e estou convencido de que provavelmente, ao mesmo tempo que aceitava pagar-me, tratou, por vias próprias, de mandar matar-me antes de eu poder aceitar o dinheiro, ou de, Deus me livre, levantar o seu cheque.

 

Berrigan ponderou a ideia, e acabou por assentir relutantemente.

 

- Lá capaz disso é ele. É um autêntico bandalho.

 

- Mas talvez mande recolher os seus cães - indagou Sandman -, agora que sabe que não vou ficar com o dinheiro dele?

 

- Salvo se matou a condessa - sugeriu Berrigan -, porque, nesse caso, continuará a querer arrumá-lo. Que diabo se passa aqui? - O motivo da pergunta era o facto de nada se mover em Newgate Hill, excepto um regato de água suja que escorria pelo esgoto. As carroças e as carruagens estavam paradas na rua, impedidas de avançar por uma carreta que entornara a sua carga de rebentos de pereira na esquina entre Old Bailey e Newgate Street. Homens gritavam, chicotes estalavam, os cavalos enfiavam os focinhos nos embornais, mas ninguém avançava. Berrigan abanou a cabeça.

- Quem é que poderá querer meia tonelada de pés de pereira?

 

- Talvez alguém que goste muito de pêras?

 

- É mas é alguém que precisa que lhe tratem dos miolos - resmungou o sargento, detendo-se em seguida para examinar a fachada da prisão de Newgate. Era achatada, sombria e nua, apenas rasgada por escassas janelas, sólidas e de aspecto proibitivo. A chuva caía agora com mais força, mas o sargento não despegava os olhos do edifício, aparentemente fascinado. - É aqui que os enforcam?

 

- Mesmo diante da Porta dos Devedores, seja lá isso o que for.

 

- Nunca assisti a um enforcamento neste lugar - admitiu Berrigan.

 

- Nem eu.

 

- Tentei assistir a um na prisão de Horsemonger Lane, mas ali enforcam-nos no telhado do arco da entrada, e da rua não se consegue ver grande coisa. Umas sacudidelas, é tudo. A minha mãe gostava de ir a Tyburn.

 

- A sua mãe gostava?

 

- Para ela era um dia de passeio - Berrigan, apercebendo-se do espanto de Sandman, assumiu um tom defensivo. - Gosta de dar um passeio de vez em quando, lá disso a minha mãe gosta, mas diz que o Old Bailey fica demasiado longe de casa - ainda um dia hei-de alugar um coche e trazê-la aqui. - Sorriu ao subir os degraus da prisão. - Sempre pensei que havia de acabar neste lugar.

 

Um guarda acompanhou-os ao longo do túnel que conduzia ao Press Yard, e apontou para a grande cela onde os condenados à forca passavam a sua última noite.

 

- Se quiser assistir a um enforcamento - confidenciou a Sandman venha cá na segunda-feira, porque a Inglaterra vai ver-se livre de dois sacanas, mas não haverá aqui multidão. Pelo menos, uma grande multidão, porque nenhum dos dois é o que se poderá chamar famoso. Quer uma grande assistência? Enforque uma pessoa famosa, senhor, alguém realmente famoso, ou então passe a corda ao pescoço de uma mulher. O Maggie and Strump despachou na passada segunda-feira cerveja que chegava para uma quinzena, e tudo porque esganaram uma rapariga. As pessoas apreciam muito ver uma mulher ser estrangulada. Soube o fim que essa levou?

 

- O fim?

 

- Morreu e foi levada pelos anatomistas, senhor, nem imagina como gostam de um pedaço de carninha fresca para retalhar, mas ela foi enforcada pelo roubo de um colar de pérolas e ouvi dizer que a dona o encontrou na semana passada. - O homem soltou uma risada. - Caído nas costas de um sofá! Pode não passar de um boato, claro, pode não passar de um boato. - Abanou a cabeça em sinal de perplexidade pelas arbitrariedades do destino. - Mas é um negócio esquisito, a vida, não é?

 

- A morte é de certeza.

 

O guarda atrapalhou-se com os pesados ferrolhos do portão do Press Yard, sem suspeitar que a sua insensibilidade havia desencadeado a cólera de Sandman. Berrigan apercebeu-se do facto e tentou distrair o capitão.

 

- Então porque é que vamos ter com esse tal Corday? Sandman hesitou. Ainda não falara ao sargento acerca de Meg, a criada desaparecida, e passou-lhe pela cabeça a ideia de que Berrigan poderia, afinal de contas, não ter mudado de campo. O Clube dos Serafins tê-lo-ia enviado como espião? No entanto, essa hipótese afigurava-se improvável, e a transformação de sentimentos do sargento parecia sincera, mesmo que se devesse mais à sua atracção por Sally do que a um genuíno arrependimento.

 

- Havia uma testemunha - acabou por confidenciar a Berrigan - e preciso de saber mais acerca dela. E, se a encontrar... - Não concluiu o curso dos seus pensamentos.

 

- E se a encontrar?

 

- Então alguém há-de ser enforcado - disse Sandman -, mas não o Corday. - Após um breve sinal de agradecimento ao guarda que desaferrolhara o portão, conduziu Berrigan através do fedorento pátio até à sala de reuniões. Estava à cunha, porque a chuva havia levado os prisioneiros e os seus visitantes a refugiar-se debaixo de tecto, e todos olharam com ressentimento para Sandman e para o seu companheiro ao vê-los abrir caminho entre as mesas até ao sombrio recanto da sala onde Sandman esperava encontrar Corday. O artista era obviamente um novo homem, porque, em vez de acobardar-se ante os seus perseguidores, reinava agora numa das mesas mais próximas da lareira, onde, armado de uma grande pilha de folhas de papel e um lápis de carvão, se ocupava a desenhar o retrato da mulher de um dos presos. Uma pequena multidão rodeava-o, admirando o seu talento, e afastaram-se relutantemente para dar passagem a Sandman. Corday fez um breve sinal de reconhecimento ao avistar os seus visitantes, e logo desviou o olhar.

 

- Preciso de falar consigo - disse-lhe Sandman.

 

- Ele fala consigo quando tiver acabado - grunhiu um homenzarrão de cabelo preto, longa barba e peito musculoso, sentado no banco ao lado de Corday -, e tão depressa não vai acabar, portanto tratem de esperar, seus trouxas.

 

- E quem é você? - perguntou Berrigan.

 

- Sou o indivíduo que está a dizer-vos para esperarem - respondeu o homem. Tinha pronúncia do oeste, roupas engorduradas e uma barba espessa e emaranhada. Enfiou um dedo numa das suas vastas narinas enquanto encarava Berrigan com um ar beligerante, depois retirou-o e inspeccionou atentamente a colheita. Limpou a unha raspando-a na barba, e, em seguida, defrontou Sandman com um ar de desafio. - O tempo do Charlie é valioso - explicou - e já não lhe resta muito.

 

- É a sua vida que está em jogo, Corday - observou Sandman.

 

- Não lhe dês ouvidos, Charlie! - disse o grandalhão. - Não tens nenhum amigo neste mundo cão, excepto eu, e bem sei o que... - Deteve-se abruptamente e emitiu um guincho ofegante, ao mesmo tempo que os olhos se lhe esbugalhavam com o choque. O sargento Berrigan tinha-se postado atrás dele e desferiu-lhe com a mão direita nova trancada, que fez o homenzarrão renovar o uivo de dor.

 

- Então, sargento! - repreendeu-o Sandman com falsa preocupação.

 

- Estava só a ensinar o trouxa a ter boas maneiras - explicou Berrigan, enquanto amolgava os rins do homem pela segunda vez. - Quando o capitão quer conversar, ó seu esburacador de esterco da penca, pões-te imediatamente em sentido, olhar para a frente, boca fechada, calcanhares unidos e costas direitas! Não lhe dizes para esperar, que isso é má educação.

 

Corday olhava aflito para o homem barbudo.

 

- Estás bem?

 

- Não há-de ser nada - respondeu Berrigan no lugar da sua vítima. Trata mas é de conversar aqui com o capitão, garoto, porque ele está a tentar salvar o raio da tua miserável vida. Queres brincadeira, trouxa? - O homem da barba tinha-se levantado e esforçava-se por espetar o cotovelo na barriga de Berrigan, mas desta feita o sargento desferiu-lhe um golpe no ouvido, pregou-lhe uma rasteira e, antes de ele conseguir recuperar o equilíbrio, desancou-o expeditamente até a criatura se estatelar sobre uma mesa, de cabeça para baixo. - Vais ficar aí quietinho como o raio, trouxa, até resolvermos o nosso assunto. - Bateu na nuca do homem à laia de encorajamento, depois marchou até à mesa de Corday. - Parada a postos, capitão

- relatou -, pronta e de boa vontade.

 

Sandman afastou para o lado uma mulher a fim de sentar-se diante de Corday.

 

- Preciso de falar contigo acerca da criada - disse-lhe em tom suave -, acerca da tal Meg. Calculo que não saibas o apelido dela? Não? Então, diz-me como era a Meg?

 

- O seu amigo não devia ter-lhe batido! - queixou-se Corday, ainda concentrado na dor do companheiro.

 

- Qual era o raio do aspecto dela, filho? - berrou Berrigan no seu melhor estilo de sargento, e Corday retorceu-se com súbito terror, pôs de parte o retrato inacabado e, sem proferir palavra, começou a desenhar um esboço numa folha em branco. Trabalhava depressa, com o bocado de carvão a fazer um ligeiro rangido na grande sala agora silenciosa.

 

- É ainda nova - informou Corday, uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos, talvez. Tem a pele marcada por bexigas e cabelo cor de rato. Os olhos são esverdeados e tem uma verruga aqui - acrescentou, marcando um sinal na testa da rapariga. - Maus dentes. Só lhe desenhei a cara, mas fiquem a saber que tinha ancas largas e peito estreito.

 

- Mamas pequenas, é o que queres dizer? - rosnou Sandman. Corday corou.

 

- Era pequena da cintura para cima - explicou - mas grande daí para baixo. - Concluiu o desenho, mirou-o atentamente por momentos, depois fez um sinal de satisfação e entregou o papel a Sandman.

 

Sandman observou o retrato. A rapariga era feia, pensou, e depois pareceu-lhe que era até mais do que feia. Não se tratava apenas da pele bexigosa, do queixo afunilado, do cabelo em farripas e dos olhos pequenos, mas também de uma expressão de dureza astuta que assentava mal num rosto tão jovem. Se o retrato correspondesse à realidade, Meg não era apenas repelente, mas também maldosa.

 

- Porque é que a condessa tinha ao seu serviço semelhante criatura?

 

- Trabalharam juntas no teatro - explicou Corday.

 

- Trabalharam juntas? Meg foi actriz? - Sandman estava espantado.

 

- Não, era assistente de guarda-roupa. - Corday olhou para o retrato com um ar embaraçado. - Segundo creio, era mais do que assistente de guarda-roupa.

 

- Mais como?

 

- Proxeneta - respondeu Corday, erguendo o olhar para Sandman.

 

- Como é que sabe?

 

O pintor encolheu os ombros.

 

- É estranho o à-vontade com que as pessoas falam quando lhes estão a pintar o retrato. Esquecem-se de que está ali mais alguém. É como se fizéssemos parte da mobília. Portanto, a condessa e Meg conversavam, e eu escutava-as.

 

- Sabia que não foi o conde quem encomendou o retrato? - perguntou Sandman.

 

- Não foi ele? - Tratava-se, obviamente, de uma novidade para Corday. - Sir George disse-me que foi ele.

 

Sandman abanou a cabeça.

 

- O retrato foi encomendado pelo Clube dos Serafins. Alguma vez ouviu falar dele?

 

- Ouvi falar dele - admitiu Corday -, mas nunca lá fui.

 

- Então não tem nenhuma ideia do motivo que os terá levado a encomendar o retrato?

 

- Como é que haveria de saber? - estranhou Corday.

 

Berrigan viera postar-se atrás do ombro de Sandman. Fez uma careta perante o retrato de Meg, e Sandman virou o desenho por forma a que Berrigan pudesse observá-lo melhor.

 

- Alguma vez a viste? - perguntou, porque havia a possibilidade de a rapariga ter sido levada ao Clube dos Serafins, mas Berrigan abanou a cabeça.

 

Sandman voltou a encarar Corday.

 

- Há uma hipótese - afirmou - de virmos a encontrá-la.

 

- Grande ou pequena? - Os olhos de Corday cintilavam.

 

- Não sei - retorquiu Sandman, e viu a esperança desvanecer-se dos olhos de Corday. - Tem aqui tinta? - perguntou. - E uma pena?

 

Corday possuía ambos os artigos, e Sandman rasgou uma das grandes folhas de desenho ao meio, mergulhou o aparo de metal no tinteiro, escorreu-o e começou a escrever.

 

- Caro Witherspoon - começou -, o portador desta carta, o sargento Samuel Berrigan, é meu colaborador. Serviu no 1º batalhão da Guarda e confio nele absolutamente. (Sandman não tinha a certeza de que as três últimas palavras correspondessem exactamente à verdade, mas, naquele ponto dos acontecimentos, não tinha outro remédio se não acreditar que Berrigan era inteiramente digno de confiança.) Voltou a molhar o aparo na tinta, ciente de que Corday, no lado oposto da mesa, estava a ler o que ele escrevia. - Lamentavelmente, ocorre a possibilidade de me ver forçado a comunicar com sua senhoria no próximo domingo, e, assumindo que sua senhoria não se encontrará no ministério nesse dia, venho solicitar-lhe que me informe onde poderei encontrá-lo. Peço encarecidas desculpas por abusar do seu precioso tempo, e asseguro-lhe que apenas o faço por existir a possibilidade de ter um relatório referente a assuntos da máxima urgência a apresentar. - Sandman releu a carta, assinou-a, e soprou na tinta para secá-la. - Ele não vai gostar disto - afirmou, sem se dirigir a ninguém em particular, e, em seguida, dobrou o papel e levantou-se.

 

- Capitão! - Corday, com os olhos cheios de lágrimas, apelava para Sandman.

 

Sandman sabia o que o rapaz desejava ouvir, mas não podia oferecer-lhe quaisquer garantias.

 

- Estou a fazer o melhor que posso - disse-lhe em tom enfiado - mas nada posso prometer.

 

- Tudo vai correr bem, Charlie - consolou-o o barbudo do oeste, e Sandman, que nada podia acrescentar de mais esperançoso, guardou o retrato dentro do casaco e conduziu Berrigan de volta até à entrada da prisão.

 

O sargento abanou a cabeça com manifesta estupefacção quando chegaram à antecâmara.

 

- Não me tinha dito que ele era um raio de um maricas!

 

- E isso importa?

 

- Seria mais reconfortante saber que estávamos a esforçar-nos por salvar um homem como deve ser.

 

- É um excelente pintor.

 

- O meu irmão também.

 

- Deveras?

 

- É um pintor de casas, capitão. Goteiras, portas e janelas. E né um raio de um maricas, como aquele verme.

 

Sandman abriu a porta exterior da prisão e estremeceu à vista da chuva que caía a potes.

 

- Também não gosto lá muito do Corday - confessou -, mas, se estiver inocente, sargento, não merece a corda.

 

- Muitos dos que são enforcados não a mereciam.

 

- Talvez. Mas o Corday, maricas ou não, é assunto nosso. - Entregou a Berrigan a carta dobrada. - Ministério do Interior. Peça para ser recebido por um tipo chamado Sebastian Witherspoon, entregue-lhe isto, e depois venha ter comigo à confeitaria Gunter, em Berkeley Square.

 

- E todo este trabalho por um maldito maricas, hem? - insistiu Berrigan, mas lá enfiou a carta no bolso e, fazendo uma careta à chuva, arremeteu para o meio do trânsito. Sandman, coxeando penosamente, seguia mais devagar.

 

Receava que a chuva tivesse levado Eleanor e a mãe a renunciar à sua planeada excursão, mas nem por isso desistiu de dirigir-se a Berkeley Square, e estava completamente ensopado quando finalmente chegou à porta do Gunter’s. Um lacaio abrigado sob o toldo do estabelecimento lançou uma olhadela desconfiada ao surrado casaco de Sandman, mas lá acabou por abrir-lhe a porta de má vontade, como que para dar a Sandman tempo para reflectir sobre se realmente queria ou não entrar ali.

 

A fachada do estabelecimento consistia em duas amplas montras, através das quais se avistavam balcões dourados, cadeiras requintadas e candelabros de muitos braços, que haviam sido acesos por o dia estar tão sombrio. Cerca de uma dúzia de mulheres atarefavam-se a comprar as famosas gulodices de Gunter: chocolates, merengues esculpidos e deliciosos bolinhos de açúcar, maçapão e fruta cristalizada. As conversas pararam no momento em que Sandman entrou, e as mulheres voltaram-se para vê-lo, escorrendo água para o chão de azulejos, mas depois retomaram a tagarelice quando Sandman se encaminhou para a vasta sala das traseiras, onde um conjunto de mesas se distribuía sob a vasta clarabóia de vitrais. Eleanor não se encontrava sentada a nenhuma das poucas mesas ocupadas, de modo que Sandman pendurou o casaco e o chapéu num bengaleiro e instalou-se numa cadeira ao fundo da sala, num lugar onde ficava quase oculto por uma coluna. Mandou vir café e um exemplar do Morning Chronichle.

 

Sandman pôs-se a ler o jornal para matar o tempo. Tinham ardido mais medas de feno no Sussex, dera-se um motim por causa da falta de pão em Newcastle, e três moinhos haviam sido incendiados e os seus engenhos destruídos em Berbyshire. A milícia havia sido chamada para evitar desacatos em Manchester, onde a farinha atingira o preço de quatro xelins e nove pence por arrátel. As autoridades de Lancashire solicitavam ao ministro do Interior a suspensão do habeas corpus, como meio de restabelecer a ordem. Sandman consultou o seu relógio e verificou que Eleanor estava já dez minutos atrasada. Beberricou o café, com uma sensação de desconforto, porque tanto a cadeira como a mesa eram demasiado pequenas, dando-lhe a impressão de ter voltado aos bancos de escola. Um rio transbordara na Prússia e receava-se que pelo menos cem pessoas tivessem morrido afogadas. A baleeira Lydia, de Whitehaven, era dada como desaparecida, bem como toda a sua tripulação, ao largo dos Great Banks. Calliope, um navio da Companhia das índias Orientais, aportara a Londres com um carregamento de porcelana, gengibre, índigo e noz-moscada. Um tumulto no teatro do Covent Garden tinha provocado uma razia de cabeças e ossos partidos, mas nenhum ferido grave. Testemunhos segundo os quais havia sido disparado um tiro no teatro eram negados pelas autoridades. Houve um bater de saltos no pavimento, uma lufada de perfume, e uma sombra que subitamente incidiu sobre o jornal de Sandman.

 

- Estás com um ar melancólico, Rider - articulou a voz de Eleanor.

 

- Não tenho boas notícias - retorquiu ele, pondo-se de pé. Olhou para ela e pareceu-lhe que o coração lhe parava de bater, a ponto de mal conseguir falar. - Na verdade - lá conseguiu dizer -, não há boas notícias em parte nenhuma do mundo.

 

- Então teremos que arranjar algumas - ripostou Eleanor -, tu e eu.

 

- Entregou o guarda-chuva e o casaco molhado a uma das empregadas, e em seguida aproximou-se de Sandman e pespegou-lhe um beijo na face.

 

- Parece-me que ainda continuo zangada contigo - disse-lhe suavemente, mantendo-se de pé junto dele.

 

- Comigo?

 

- Por teres vindo para Londres e não me dizeres.

 

- O nosso noivado foi rompido, lembras-te?

 

- Oh, tinha-me esquecido por completo - respondeu ela acidamente, lançando uma olhadela às outras mesas. - Estou a provocar um escândalo, Rider, ao ser vista a sós com um homem encharcado. - Voltou a beijá-lo e afastou-se um pouco, de modo a que ele pudesse puxar uma cadeira para ela. - Portanto, elas que gozem o escândalo, enquanto eu vou gozar um daqueles gelados de baunilha do Gunter, com chocolate em pó e amêndoas esmagadas. E tu também.

 

- Eu contento-me com o café.

 

- Disparate, vais mas é tomar o que puserem à frente. Pareces-me demasiado magro - declarou ela, sentando-se e tirando as luvas. - O seu cabelo vermelho estava penteado ao alto, sob um chapelinho preto decorado com pequenas contas de ónix, e uma pluma discreta. O seu vestido, com um discreto fundo castanho onde mal se destacava um padrão de flores bordadas a preto, e gola muito subida, era pouco vistoso, quase banal, e apenas adornado com um pequeno broche; no entanto, ela parecia-lhe bem mais sedutora do que as bailarinas seminuas que tinham fugido espavoridas quando ele saltara para o palco na noite anterior. - A mãe está a tomar medidas para um novo espartilho - disse Eleanor, fingindo não reparar no exame dele à sua pessoa - de modo que dispomos pelo menos de duas horas. Ela julga que eu estou no Massingberds, a escolher um chapéu. A minha criada Lizzie está a fazer o papel de meu chaperon, mas subornei-a com dois xelins e ela foi visitar aquela mulher de cabeça de mula ao Lyceum.

 

- Cabeça de mula? Queres dizer, casmurra?

 

- Não sejas parvo, Rider, calculo que todas as mulheres sejam casmurras. Chamo a esta cabeça de mula por causa da sua fealdade. Segundo me contam, funga a comida da gamela, e tem uns bigodes cor-de-rosa todos espetados. Dá a impressão de ser um animal bem esquisito, mas a Lizzie estava encantada com a possibilidade de encontrar-se com ela, e eu senti-me bastante tentada a acompanhá-la, mas, em vez disso, aqui me tens. Estarei enganada, ou vi-te coxear?

 

- Torci ontem um tornozelo - explicou ele, e depois teve de contar toda a história, que, evidentemente, deixou Eleanor deliciada.

 

- Estou cheia de inveja - disse, depois de ele ter acabado. - A minha vida é tão insípida! Não ando por aí a saltar para palcos, perseguida por bandidos! Sinto-me terrivelmente invejosa.

 

- Mas tens alguma novidade? - perguntou Sandman.

 

- Penso que sim. Ou melhor, tenho, sem dúvida. - Eleanor voltou-se para a empregada e encomendou-lhe chá, a especialidade de baunilha com chocolate e amêndoas e, como que num impulso súbito, bolachinhas com aroma de brandy. - Têm uma casa de gelo nas traseiras - confidenciou a Sandman, depois de a rapariga se ter retirado - e, há umas semanas, pedi que ma mostrassem. É como uma adega, com o tecto em abóbada, e todos os invernos trazem para lá gelo da Escócia embrulhado em serradura, e fica sólido durante o Verão inteiro. Havia uma ratazana congelada presa entre dois dos blocos, o que os deixou deveras embaraçados.

 

- Calculo. - Sandman teve de repente uma consciência aguda do seu estado enxovalhado, dos punhos da camisa no fio e do remendo mal cosido no alto das suas botas. Por sinal que tinham sido excelentes botas, compradas no Kennets da Silver Street, mas mesmo as melhores botas do mundo precisam de ser cuidadas. Só para ficar mais ou menos decentemente vestido, Sandman necessitava de uma hora por dia, e não dispunha dessa hora.

 

- Tentei convencer o meu pai a construir uma casa de gelo - prosseguiu Eleanor -, mas ele amuou e começou a lamuriar-se da despesa. Está a atravessar de momento numa daquelas suas fases de economia, de modo que lhe disse que lhe pouparia a despesa de um casamento de alta sociedade.

 

Sandman perscrutou os olhos verde-acinzentados dela, esforçando-se por descobrir que mensagem estaria a transmitir-lhe sob a sua tagarelice aparentemente fútil.

 

- Ele ficou contente?

 

- Limitou-se a resmungar que a prudência era uma das virtudes primordiais Suponho que ficou atrapalhado com a minha oferta.

 

- E como é que tencionas poupar-lhe a despesa? Ficando solteira?

 

 

- Fugindo com o meu noivo - respondeu Eleanor, com um olhar determinado.

 

- Com Lord Eagleton?

 

A gargalhada de Eleanor preencheu todo o espaço da sala das traseiras da confeitaria, provocando um ligeiro alvoroço nas outras mesas.

 

- O Eagleton é tão maçador! - afirmou Eleanor, em tom bem mais alto do que o recomendado pelas regras de conveniência. - A mamã tem grande empenho em que eu me case com ele, porque nesse caso, a devido tempo, me tornaria em sua senhoria, e então é que ela ficaria insuportável. Não me digas que julgaste que eu estava noiva dele?

 

- Ouvi dizer que sim. Informaram-me de que o teu retrato era um presente para ele.

 

- A mãe achava que deveríamos dar-lho, mas o pai quere-lo para si mesmo. A mãe só quer que eu me case com um título, não importa qual nem de quem, e Lord Eagleton pretende desposar-me, o que é uma maçada, porque eu não consigo suportá-lo. Funga antes de começar a falar. - Deu ela própria uma ligeira fungadela. ”Querida Eleanor, fungue, nem imagina como fica encantadora quando funga. Até vejo a Lua reflectida nos seus olhos, fungue mais.”

 

Sandman mantinha-se muito sério.

 

- Nunca te disse que via a Lua reflectida nos teus olhos. Receio que tenha sido uma lacuna da minha parte.

 

Olharam um para outro e desataram a rir à gargalhada. Sempre tinham conseguido provocar o riso um do outro desde a primeira vez que se haviam encontrado, pouco depois de Sandman regressar a casa após ter sido ferido em Salamanca, quando Eleanor tinha apenas vinte anos e a firme determinação de não se deixar impressionar pelas fardas; mas aquele soldado tinha-a feito rir e continuava a fazê-lo, da mesma forma que ela o divertia a ele.

 

- Estou convencida - disse Eleanor - de que o Eagleton gastou uma semana inteira a ensaiar a frase acerca da lua, mas estragou tudo com a fungadela. De facto, Rider, conversar com o Eagleton é o mesmo que conversar com um cãozinho de estimação asmático. Tanto a mãe como ele parecem estar convencidos de que, se insistirem por tempo suficiente, eu acabarei por render-me às suas fungadelas, e dei-me conta de que corriam rumores de que estava noiva dele, de modo que pedi propositadamente ao Alexander que te informasse que não iria desposar aquele nobre fungador. Verifico agora que o Alexander não chegou a contar-te?

 

- Receio bem que não.

 

- Mas eu expliquei-lhe tudo tão bem! - indignou-se Eleanor. - Encontrei-o no Egyptian Hall.

 

- Até aí disse-me ele - disse Sandman -, mas esqueceu-se por completo da qualquer mensagem que me tenhas enviado. Aliás, também se tinha esquecido do motivo por que fora ao Egyptian Hall.

 

- Para assistir a uma palestra de um tal professor Popkin acerca das mais recentes descobertas a respeito da localização do Jardim do Paraíso Quer convencer-nos de que o paraíso se encontra na confluência dos rios Ohio e Mississipi. Informou-nos de que uma vez comeu ali uma excelente maçã.

 

- Parece-me uma prova conclusiva - afirmou Sandman gravemente -, mas terá ele alcançado a sabedoria após provar o fruto?

 

- Tornou-se erudito, culto, sagaz e inteligente - respondeu Eleanor, e Sandman notou que ela tinha lágrimas nos olhos. - E queria incitar-nos a largar a nossa terra e segui-lo até esse novo mundo de leite, mel e maçãs.

 

- Gostarias de ir para lá, Rider?

 

- Contigo?

 

- Poderíamos viver nus nas margens dos rios - sugeriu Eleanor, com uma lágrima furtiva a escorrer-lhe pela face - inocentes como bebés e fugindo das serpentes. - Não conseguiu prosseguir e baixou o rosto a fim de que ele não pudesse ver-lhe as lágrimas. - Tenho tanta pena, Rider.

 

- De quê?

 

- Nunca deveria ter-me deixado persuadir pela mamã a romper o noivado. Ela afirmava que a desonra da tua família era intolerável, mas isso não passava de um disparate.

 

- A desonra é uma coisa medonha.

 

- Mas foi o teu pai que se cobriu de vergonha. Não tu!

 

- Por vezes penso que sou muito parecido com o meu pai.

 

- Nesse caso, ele era melhor homem do que eu julgava! - declarou Eleanor impetuosamente, e em seguida enxugou os olhos com um lenço. A empregada trouxe-lhes os gelados e as bolachinhas de brandy, e, imaginando que Eleanor tinha ficado entristecida por algo que Sandman dissera, lançou-lhe um olhar reprovador. Eleanor aguardou que a rapariga se afãstasse. - Detesto chorar - disse.

 

- É raro chorares.

 

- Tenho sido uma autêntica fonte de lágrimas nestes últimos seis meses - disse Eleanor, erguendo o olhar para ele. - Ontem à noite disse à mamã que me considero como tua noiva.

 

- Sinto-me muito honrado.

 

- Bem, competia-te antes dizeres que o sentimento é recíproco. Sandman esboçou um pálido sorriso.

 

- Bem gostaria que fosse possível, acredita.

 

- O meu pai não se importa - disse Eleanor -, pelo menos não julgo que ele vá importar-se.

 

- Mas a tua mãe sim?

 

- Ela sim! Ontem à noite, quando lhe falei dos meus sentimentos, teimou em que eu deveria ir consultar o Dr. Harriman. Já ouviste falar dele? Claro que não. Segundo diz a mamã, é tido como um grande especialista em histeria feminina, a ponto de se considerar uma honra ser-se tratada por ele. Mas eu não preciso dele para nada! Não sou nenhuma histérica, estou simplesmente, inconvenientemente, apaixonada por ti, e se o teu maldito pai não se tivesse suicidado a estas horas estaríamos casados. Tenho muita inveja dos homens.

 

- Porquê?

 

- Podem dizer palavrões sem que ninguém se escandalize.

 

- Diz palavrões à vontade, querida - apoiou Sandman. Foi o que Eleanor fez, e depois desatou a rir.

 

- Sabe maravilhosamente. Oh céus, um dia haveremos de estar casados e eu direi demasiados palavrões e tu vais ficar aborrecido comigo. - Fungou, e em seguida soltou um suspiro ao provar o gelado. - Isto é que é o autêntico paraíso - declarou, esmiuçando o gelado com a longa colher de prata - e juro que não existe nada na confluência dos rios Mississipi e Ohio que se lhe possa comparar. Pobre Rider. Não devias sequer pensar em casar comigo. Farias melhor em dirigir as tuas atenções para a Caroline Standish.

 

- Caroline Standish? Nunca ouvi falar dela. - Provou o gelado, que era, conforme Eleanor assegurara, puramente paradisíaco.

 

- Caroline Standish é talvez a mais rica herdeira de Inglaterra, Rider, e além disso bem bonita, mas devo avisar-te que é metodista. Cabelo doirado, raios a partam, um rosto verdadeiramente encantador e um rendimento de provavelmente trinta mil por ano. O inconveniente é que não podes beber qualquer álcool forte na sua presença, nem fumar, nem blasfemar, nem tomar rapé, enfim, não podes divertir-te de forma alguma. O pai dela fez dinheiro na cerâmica, mas agora vivem em Londres e frequentam devotamente aquela capelinha em Spring Gardens. Tenho a certeza de que conseguirias seduzi-la.

 

- Também tenho essa certeza - concordou Sandman com um sorriso.

 

- E estou convencida de que ela aprecia o críquete - prosseguiu Eleanor - desde que não o jogues ao sábado. Ainda te dedicas ao críquete, Rider?

 

- Não com tanta frequência como Lord Alexander gostaria.

 

- Ouvi dizer que Lord Frederick Beauclerk ganha seiscentas libras por ano em apostas de críquete. Poderias fazer o mesmo?

 

- Sou melhor batedor do que ele - declarou Sandman, com inteira verdade. Lord Frederick, um amigo de Lord Alexander, e, tal como ele, um aristocrata ordenado sacerdote, era o secretário do Clube de Críquete Marylebone, cujo campo era o de Thomas Lord. - Mas sou pior apostador

- prosseguiu. - Além disso, Beauclerk arrisca dinheiro que pode dar-se ao luxo de perder, e eu não disponho de semelhantes fundos.

 

- Então desposa a piedosa Miss Standish - aconselhou Eleanor. Repara que existe o ligeiro senão de ela se encontrar já noiva, mas correm boatos de que não está completamente convencida de que o futuro duque de Ripon seja um homem de perto ou de longe tão devoto como aparenta na sua presença. Ele frequenta a capela de Spring Gardens, mas suspeita-se de que apenas com o propósito de a sugar até ao tutano após o casamento

 

- O futuro duque de Ribon? - indagou Sandman.

 

- Ele tem o seu próprio título, evidentemente, mas não me lembro dele. A mãe deve saber.

 

Sandman ficou muito sério.

 

- Ripon?

 

- Uma cidade com uma catedral em Yorkshire, Rider.

 

- O marquês de Skavadale é o título usado pelo herdeiro do ducado de Ribon.

 

- Esse mesmo! Bom trabalho! - Eleanor franziu o sobrolho. - Disse algo que não devia?

 

- Skavadale não é devoto nenhum - garantiu Sandman, lembrando-se do relato do conde de Avebury acerca da chantagem que a sua esposa exercia com os jovens aristocratas que com ela se envolviam. Teria Skavadale sido alvo de chantagem por parte da condessa? Apesar das notórias dificuldades financeiras, e do facto de as propriedades do seu pai se encontrarem obviamente hipotecadas até às últimas, Skavadale lograra ficar noivo da mais rica herdeira de Inglaterra. E, se entretanto andara a explorar os encantos da condessa de Avebury, ela tê-lo-ia certamente considerado um perfeito alvo de chantagem. A família dele poderia ter perdido o grosso da sua fortuna, mas sempre restaria algum numerário, bem como porcelanas, pratas e pinturas vendáveis; mais do que o suficiente para manter a condessa satisfeita.

 

- Estás a baralhar-me! - queixou-se Eleanor.

 

- Julgo que o marquês de Skavadale é o meu assassino - explicou Sandman -, ele, ou algum dos seus amigos. - Se Sandman fosse obrigado a apostar na identidade do assassino, escolheria Lord Robin Holloway em lugar do marquês, mas sentia-se bastante seguro de que se tratava de um deles.

 

- Nesse caso, não te interessa saber o que a Lizzie descobriu? - perguntou Eleanor, desapontada.

 

- A tua criada? Claro que quero saber. Preciso de saber.

 

- A Meg não gozava de grande popularidade entre os outros serviçais. Pensavam que ela era uma bruxa.

 

- Pelo aspecto, é o que parece.

 

- Já a encontraste? - perguntou Eleanor, toda excitada.

 

- Não, só vi um retrato dela.

 

- Parece que, hoje em dia, toda a gente se faz retratar - observou Eleanor. - Refiro-me a este retrato - esclareceu Sandman, retirando o esboço do interior do casaco e mostrando-o a Eleanor.

 

- Rider, não acreditas que ela seja a mulher com cabeça de porco, pois não? - perguntou Eleanor. - Não, não pode ser, não tem bigodes. - Suspirou. - Pobre rapariga, que feia que é. - Contemplou o retrato por um bom bocado, e em seguida voltou a enrolá-lo e devolveu-o a Sandman. - Onde é que eu ia? Ah, pois, a Lizzie descobriu que a Meg foi levada da casa de Londres da condessa numa carruagem, uma carruagem muito elegante, que ou era preta ou azul-escura, e tinha um estranho brasão pintado na porta. Não se tratava propriamente de um brasão, apenas um escudo representando um anjo dourado sobre um fundo vermelho. - Eleanor mordiscou uma bolachinha. - Perguntei ao Hammond se conhecia um tal escudo de armas, e ele puxou pelos seus galões. - Fundo goles, Miss Forrest - corrigiu-me - com um anjo de tintura amarela. Mas, estranhamente, não sabia a quem pertencia o escudo, o que o deixou bastante perturbado.

 

A ideia de o mordomo de sir Henry Forrest ter de confessar-se incapaz de identificar um brasão fez Sandman sorrir.

 

- Ele não precisava de afligir-se - declarou -, porque duvido muito que o Conselho de Heráldica tenha legitimado aquela insígnia. Trata-se do emblema do Clube dos Serafins.

 

Eleanor fez uma careta, recordando-se do que Sandman lhe contara a ela e ao pai no princípio da semana, embora, na verdade, Sandman não lhes tivesse revelado tudo o que sabia acerca dos Serafins.

 

- E o marquês de Skavadale - indagou ela calmamente - é membro do Clube?

 

- Pois é - confirmou Sandman. O rosto dela ensombrou-se.

 

- Então é ele o teu assassino? Tão simples como isso?

 

- Os membros do Clube dos Serafins - ripostou Sandman - consideram-se acima da lei. Acreditam que o seu estatuto social, o seu dinheiro

 

Nota: Tintura Amarela, Tanto ”goles” [guies) como ”tintura amarela” (or) são vocábulos próprios da heráldica. [N da T.]

 

e os seus privilégios lhes conferem total impunidade. E é bem possível que tenham razão, a menos que eu consiga encontrar Meg.

 

- Caso ela esteja viva - observou calmamente Eleanor.

 

- Caso ela esteja viva - concordou Sandman.

 

Eleanor fitou Sandman com uns olhos que pareciam maiores e mais brilhantes do que nunca.

 

- Estou a sentir-me muito egoísta - declarou.

 

- Porquê?

 

- Toda preocupada com os meus pequenos problemas, enquanto tu precisas de descobrir um assassino.

 

- Os teus problemas são pequenos? - perguntou Sandman, sorrindo. Eleanor não lhe devolveu o sorriso.

 

- Não estou disposta a desistir de ti, Rider - respondeu. - Bem tentei. Ciente de quanto lhe tinha custado fazer semelhante admissão, Sandman tomou-lhe a mão e beijou-lhe os dedos.

 

- Eu nunca desisti de ti - assegurou-lhe -, e na próxima semana voltarei a falar com o teu pai.

 

- E se ele recusa? - perguntou ela, apertando-lhe os dedos.

 

- Nesse caso, iremos para a Escócia - replicou ele. - Iremos para a Escócia. Eleanor continuou a agarrar-lhe firmemente a mão. Sorriu.

 

- Rider? O meu prudente, bem comportado e escrupuloso Rider admite fugir comigo para casarmos?

 

Ele devolveu-lhe o sorriso.

 

- Ultimamente, minha querida - respondeu - tenho pensado muito naquela tarde e princípio de noite que passei no topo da colina em Waterloo, e lembrei-me de uma decisão que tomei na altura, e de que corro constantemente o risco de me esquecer. Naquele dia, jurei a mim próprio que, caso sobrevivesse à batalha, nunca iria morrer arrependido. Que, chegada a hora da morte, não teria a lamentar aspirações, sonhos e desejos por cumprir. Portanto, sim, se o teu pai não consentir no nosso casamento, levo-te comigo para a Escócia e o diabo que se dane.

 

- Porque eu sou a tua aspiração, o teu sonho e o teu desejo? - perguntou Eleanor, com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios.

 

- Porque és tudo isso - respondeu Sandman - e porque, além do mais, amo-te.

 

E, de súbito, o sargento Berrigan estava diante deles, pingando água da chuva e encantado por ter surpreendido Sandman em tão delicado momento.

 

O sargento começou a assobiar a canção Spanish Ladies enquanto subiam Hay Hill, a caminho de Old Bond Street. Assobiava alegremente, como que dando a entender o seu total desinteresse pela cena a que assistira, e escolhera perspicazmente uma toada que, no exército, teria sido considerada como manifesto acto de insubordinação, porém impune a qualquer castigo. Sandman, coxeando ainda, desatou a rir.

 

- Estive em tempos noivo de Miss Forrest, sargento.

 

- Olhe ali um coche alemão, já viu, capitão? Que raio de coisa mais pesada. - Berrigan continuava a fingir-se desinteressado, optando por apontar para uma carruagem maciça que derrapava perigosamente sobre as escorregadias pedras da calçada molhada de chuva. O cocheiro puxava pelos freios, os cavalos escorregavam nervosamente, mas, entretanto, as rodas embateram no passeio e o veículo recuperou o equilíbrio. - Não deviam ser permitidos - prosseguiu Berrigan -, estes malditos coches estrangeiros que rebentam com as nossas estradas. Ou obrigavam aqueles malandros a pagar uma taxa do caraças, ou os recambiavam através do maldito canal lá para a terra deles.

 

- E Miss Forrest rompeu o noivado porque os pais se opunham a que ela desposasse um indigente - intercalou Sandman. - Portanto, sargento, agora já sabe a história toda.

 

- Aquela cena, senhor, não me pareceu propriamente a de um raio de noivado desfeito. Com ela a devorar-lhe os olhos como se o sol, a lua e todo o esplendor do mundo lá estivessem concentrados.

 

- Bem, admito isso. A vida é complicada.

 

- Nunca tinha reparado - ripostou Berrigan sarcasticamente. Observou o estado do tempo com um trejeito de mau humor, apesar de a chuva ter deixado de ser torrencial, passando a meros salpicos. - E, a propósito de contrariedades - prosseguiu -, devo informá-lo de que Mr. Sebastian Witherspoon não ficou nada satisfeito. Muito pelo contrário. Na verdade, falando preto no branco, diria que está absolutamente danado.

 

- Ah! Chegou à conclusão de que não estou exactamente a agir como ele esperava?

 

- Queria saber o que diabo andava o senhor a fazer, capitão, e eu disse-lhe que não tinha a menor ideia.

 

- Calculo que ele se tenha recusado a admitir semelhante resposta?

 

- Eu estava-me nas tintas para o que ele quisesse admitir ou não, limitei-me a ir-lhe dizendo sim, senhor, não, senhor, não sei peva, vá dar uma volta ao bilhar grande, vá para o diabo que o carregue, senhor, mas tudo isto numa linguagem absolutamente respeitosa.

 

- Por outras palavras, comportou-se como um sargento? - comentou Sandman, desatando outra vez a rir. Recordava-se bem daquele género de insolência subserviente por parte de alguns sargentos às suas ordens: uma máscara de cooperação fictícia, ocultando uma oposição intransigente. - Mas chegou a dizer-lhe onde é que o ministro se encontrará no domingo?

 

- Sua senhoria não se encontrará na sua própria casa, capitão, porque a casa está em obras, e o empreiteiro que prometeu instalar-lhe umas novas escadas até ao fim de Maio último nem sequer começou ainda com as pinturas, de modo que sua senhoria está a residir provisoriamente em Great George Street. Mr. Witherspoon afirma que sua senhoria não tem o menor desejo de avistar-se consigo nos próximos dias, e que, de qualquer forma, lhe ficaria muito grato se não insistisse em incomodá-lo num domingo, atendendo a que é o dia do Senhor; além de que, tal como o seu piedoso patrão, o próprio Mr. Witherspoon está profundamente convicto de que o maldito maricas há-de ser pendurado pelo seu maldito pescoço até ficar mortinho de todo, que é a maldita sorte que merece.

 

- Estou certo de que não foi ele a ter a última palavra da conversa.

 

- Pois não - admitiu Berrigan jovialmente -, eu tantas lhe disse que Mr. Witherspoon começou a formar uma boa opinião a meu respeito. Mais uns minutos e ele tê-lo-ia mandado a si à fava, nomeando-me investigador em seu lugar.

 

- Nesse caso, que Deus acudisse ao Corday, certo?

 

- O infeliz mariconço iria parar à forca tão depressa que nem teria tempo para sentir os dedinhos dos pés tocarem a plataforma - reconheceu Berrigan com grande satisfação. - Então, onde vamos agora?

 

- Vamos visitar sir George Phillips, porque quero averiguar se ele sabe dizer-me ao certo quem encomendou o retrato da condessa. Assim que descobrirmos o nome desse homem, sargento, apanharemos o nosso assassino.

 

- Julga o senhor - respondeu Berrigan em tom dubitativo.

 

- Miss Hood também se encontra no estúdio de sir George. Trabalha para ele como modelo.

 

- Ah! - proferiu Berrigan, já mais animado.

 

- E, mesmo que sir George não queira falar, fui informado de que a minha testemunha de estimação foi transportada na carruagem do Clube dos Serafins.

 

- Numa das carruagens deles - emendou Berrigan -, possuem duas.

 

- Portanto, parto do princípio de que um dos cocheiros do clube saiba dizer-nos para onde a levaram.

 

- Parece-me bem possível - admitiu Berrigan -, embora talvez venha a ser necessário algum trabalho de persuasão.

 

- Que perspectiva deliciosa - comentou Sandman, no momento em que chegavam à porta contígua à da ourivesaria. Bateu, e, tal como da vez anterior, quem veio atender foi Sammy, o pagem negro, que imediatamente tentou fechar-lhes a porta na cara. Sandman forçou a entrada, sem lhe dar qualquer hipótese. - Vai dizer a sir George - ordenou em tom autoritário - que o capitão Rider Sandman e o sargento Samuel Berrigan vieram conversar com ele.

 

- Ele não quer conversar convosco - ripostou Sammy.

 

- Trata mas é de ires dizer-lhe, miúdo! - insistiu Sandman.

 

Em vez disso, num gesto mal calculado, Sammy tentou desviar-se de Sandman e fugir para a rua, com o resultado de chocar contra o sargento Berrigan, que o agarrou em peso e o atirou contra o pilar da porta.

 

- Onde é que julgavas que ias, moço? - perguntou-lhe Berrigan.

 

- Desandem mas é daqui! - replicou Sammy arrogantemente, para logo de seguida desatar a uivar de dor. - Não ia a lado nenhum! - Berrigan aplicou-lhe outro murro. - Ele deu-me ordens para, no caso de voltarem a aparecer por aqui - apressou-se Sammy a esclarecer -, ir procurar ajuda.

 

- Ao Clube dos Serafins? - sugeriu Sandman, e o rapaz confirmou com um aceno. - Segure-o bem, sargento - recomendou Sandman, antes de começar a subir as escadas. - Um dó, li, tá! - trauteou, esganiçando-se ao máximo - cheira-me a sangue inglês! - O objectivo dessa chiadeira era alertar Sally, a fim de poupá-la a ser vista nua pelo sargento Berrigan. Embora não lhe restasse a menor dúvida de que Berrigan não tardaria a conseguir arrastá-la de livre vontade para tal situação, Sandman tinha também a certeza de que Sally pretendia ser ela própria a escolher o momento. - Sir George! - berrou. - Está aí em cima?

 

- Quem diabo é você? - gritou sir George. - Sammy?

 

- O Sammy é meu prisioneiro - gritou Sandman.

 

- C’um caraças! É você? - Para um homem tão obeso, sir George reagiu com notável rapidez, precipitando-se para um armário de onde retirou um pistolão. De arma em punho, correu para o patamar das espadas e apontou-o a Sandman. - Nem mais um passo, capitão - urrou -, se é que tem amor à vida!

 

Sandman olhou o pistolão de relance e continuou a subir.

 

- Não se arme em idiota, sir George - advertiu, em tom de cansaço. Se disparar contra mim, a seguir terá de disparar contra o sargento Berrigan, e depois precisará de fechar a boca a Sally, ou seja, de pregar-lhe também um tiro, de modo que acabará por ficar a contas com três cadáveres. - Venceu os poucos degraus que restavam, e, sem qualquer rebuliço, tomou o pistolão das mãos do pintor. - Quando se quer realmente meter medo aos outros, é preferível pôr ao menos o dedo no gatilho - acrescentou, antes de voltar-se e acenar para Berrigan. - Permita-me que lhe apresente o sargento Berrigan, ex-membro da Guarda de Sua Majestade, mais tarde guarda do Clube dos Serafins, e presentemente um voluntário da minha própria brigada de justiça. - Com considerável alívio, Sandman verificou que Sally tinha entendido o seu aviso, embrulhando-se, consequentemente, num casaco. Tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia. - Apresento-lhe os meus respeitos, Miss Hood.

 

- Pelos vistos, continua manco? - replicou Sally, corando de imediato assim que viu aparecer o sargento Berrigan.

 

- O estupor está mesmo a magoar-me! - queixou-se Sammy.

 

- O estupor vai mesmo dar-te cabo do coiro se não fechares a boca bradou Berrigan, tratando em seguida de cumprimentar Sally. - Prazer, Miss Hood. Depois olhou para a tela, os olhos escancararam-se-lhe de admiração, e Sally corou ainda mais.

 

- Agora podes largar o Sammy - disse Sandman a Berrigan - porque ele já desistiu de ir em busca de socorro.

 

- Ele fará o que eu lhe mandar fazer! - atalhou sir George em tom beligerante.

 

Sandman foi postar-se diante do quadro e examinou a figura central, que era a de Nelson. Reflectiu que, desde o falecimento do almirante, tanto os pintores como os gravadores tinham passado a representar o herói de forma cada vez mais idealizada, a ponto de agora quase se assemelhar a um espectro.

 

- Se mandar o Sammy procurar auxílio, sir George - avisou Sandman tratarei de proclamar aos quatro ventos que, no seu estúdio, defrauda mulheres, pintando-as vestidas e apresentando depois os seus retratos como nus.

- Voltou-se e encarou o pintor com um sorriso. - Que efeito é que acha que isso terá sobre a sua tabela de preços?

 

- Passará para o dobro! - replicou sir George com basófia. Mas, ao aperceber-se de que a ameaça de Sandman não era brincadeira, a basófia murchou-lhe como um balão furado. Com a mão manchada de tinta, deu uma bofetadela a Sammy. - Não vais daqui a lado nenhum.

 

Berrigan largou a mão do rapaz.

 

- Em vez disso, bem podes ir fazer chá - alvitrou Sandman.

 

- Eu ajudo-te, Sammy - disse Sally, seguindo o moço escadas abaixo. Sandman calculou que ela fosse tratar de vestir-se.

 

Sandman virou-se para sir George.

 

- O senhor está velho - disse-lhe -, velho, gordo e bêbado. As suas mãos tremem-lhe. Por enquanto ainda consegue pintar, mas até quando? Está a viver de glórias passadas, mas eu bem posso dar-lhe cabo da mama. Estou em posição de assegurar que pessoas como sir Henry Forrest jamais voltem a encomendar-lhe retratos das suas esposas ou filhas, por receio de que venha a fazer-lhes o que se preparava para fazer com a condessa de Avebury.

 

- Nunca faria semelhante coisa... - começou sir George, tentando defender-se.

 

- Cale-se - interrompeu-o Sandman. - E também posso referir no meu relatório para o ministro que o senhor tentou deliberadamente ocultar a verdade. - Esta última ameaça era, na verdade, bem menos perigosa, só que sir George não sabia disso. Apenas sabia do seu pânico ante a perspectiva de ser acusado, levado ao banco dos réus, e daí para a prisão. Ou, talvez, deportado para a Austrália. Daí que desatasse a tremer de absoluto terror.

- Sei que me mentiu - disse-lhe Sandman -, portanto, agora, vai dizer-me a verdade.

 

- E, nesse caso, o que é que me acontece?

 

- Nem eu nem o sargento Berrigan iremos denunciá-lo. Porque é que haveríamos de preocupar-nos consigo? Sei perfeitamente que não assassinou a condessa, e ela é a única pessoa que me interessa neste caso. Resumindo e concluindo, conte-nos a verdade, sir George, e deixamo-lo em paz.

 

Sir George deixou-se cair sobre um banco. Os aprendizes e os dois homens que lhe serviam de modelos para Nelson e Neptuno fitaram-no perplexos, até ele finalmente lhes rosnar que fossem para baixo. Só depois de terem saído ergueu o olhar para Sandman.

 

- O quadro foi encomendado pelo Clube dos Serafins.

 

- Até aí já eu sei. - Sandman dirigiu-se aos fundos do estúdio, passando pela mesa atafulhada de trapos, pincéis e frascos. Estava à procura do retrato de Eleanor, mas não conseguiu encontrá-lo. Voltou para trás. A informação que pretendo, sir George, é quem, entre os membros do clube, o encomendou.

 

- Não sei. Juro que não! Não sei! - O seu tom era implorante, o seu medo quase tangível. - Eles eram uns dez ou onze, não consigo recordar-me ao certo.

 

- Uns dez ou onze?

 

- Sentados à volta de uma mesa - explicou sir George -, como na Última Ceia, só que sem Cristo. Disseram-me que pretendiam que eu pintasse aquele retrato para figurar na sua galeria privativa, e prometeram-me que me encomendariam outros.

 

- Outros retratos?

 

- De senhoras da alta sociedade, capitão, nuas. - Sir George quase cuspiu a última palavra. - Explicaram-me a coisa nos seguintes termos: se mais de três membros do clube se tivessem divertido com a mesma mulher, achavam-se no direito de exibi-la na sua galeria.

 

Sandman consultou Berrigan com o olhar, e este encolheu os ombros.

 

- Parece-me plausível - disse o sargento.

 

- Eles têm uma galeria?

 

- No corredor do andar de cima - esclareceu Berrigan -, mas só há pouco tempo começaram a pendurar lá quadros.

 

- O marquês de Skavadale era um dos tais onze? - perguntou Sandman a sir George.

 

- Não sei se eram dez ou onze - emendou sir George, manifestamente irritado por ter de corrigir Sandman -, e sim, o Skavadale era um deles. Lord Pellimore era outro. Recordo-me também da presença de sir John Lassiter, mas, na maior parte, não os conhecia.

 

- Não se apresentaram ao senhor?

 

- Não. - A negação de sir George vinha carregada de hostilidade, porque implicava obviamente que o Clube dos Serafins o havia tratado, não como um cavalheiro, mas como um mero artesão.

 

- Parece-me provável - afirmou Sandman tranquilamente - que um desses dez ou onze homens seja o assassino da condessa. - Lançou a sir George um olhar enigmático, como que aguardando dele uma confirmação.

 

- Não faço ideia - respondeu sir George.

 

- Mas deve ter suspeitado que Charles Corday não cometeu o crime?

 

- O Charliezinho? - Por um momento sir George pareceu divertido, mas depois reparou na expressão irritada de Sandman e encolheu os ombros.

 

- Parecia-me improvável - admitiu.

 

- E, no entanto, não interveio em sua defesa? Não subscreveu a petição da mãe dele? Não fez nada para ajudá-lo!

 

- Ele foi julgado, não foi? - replicou sir George. - Foi-lhe ministrada justiça.

 

- Duvido disso - disse Sandman amargamente -, duvido muito disso. Sandman examinou o pistolão que havia retirado das mãos de sir George e verificou que não estava carregado.

 

- Onde estão a pólvora e as balas? - perguntou e, ao ver o medo estampado na face do pintor, franziu o sobrolho. - Não lhe vou dar um tiro, seu pateta! A pólvora e as balas destinam-se a outras pessoas, não a si.

 

- Naquele armário - sir George apontou para um canto da sala. Sandman abriu a porta do armário e deparou-se com um pequeno arsenal, na sua maior parte vocacionado, segundo calculou, para uso artístico. Havia sabres da marinha e do exército, pistolões, mosquetes e uma caixa de munições. Atirou um pistolão da cavalaria ao sargento Berrigan, depois pegou numa mão-cheia de balas e enfiou-as num bolso, antes de inclinar-se para agarrar numa faca.

 

- O senhor mentiu-me, o senhor causou-me bastantes incómodos. - Atravessou a sala de faca em punho e viu a expressão de terror de sir George.

 

- Sally! - gritou Sandman.

 

- Estou aqui! - respondeu-lhe ela lá de baixo.

 

- Quanto é que sir George te deve?

 

- Duas libras e cinco xelins!

 

- Pague-lhe - ordenou Sandman.

 

- Não está com certeza à espera de que eu traga comigo dinheiro líquido.

 

- Pague-lhe! - berrou Sandman, e sir George por pouco não se borrou.

 

- Apenas tenho três guinéus - gemeu.

 

- Penso que Miss Hood vale bem essa quantia - disse Sandman. - Entregue os três guinéus ao sargento.

 

Sir George entregou o dinheiro e Sandman voltou-se para examinar o quadro. Britannia estava praticamente pronta, de mamas ao léu e olhar orgulhoso, sentada no seu rochedo iluminado pelo Sol. A deusa era indubitavelmente Sally, apesar de sir George ter transformado a sua habitual expressão brincalhona numa pose de calma superioridade.

 

- O senhor causou-me de facto incómodos - disse Sandman a sir George -, e pior do que isso, estava disposto a deixar morrer um rapaz inocente.

 

- Disse-lhe tudo o que sabia!

 

- Agora sim, é verdade, mas antes mentiu-me e acho que está na altura de ser também incomodado. Precisa de aprender, sir George, que todos os pecados se pagam. Em suma, merece ser castigado.

 

- Seu insolente... - começou sir George a ripostar, mas depois foi-se abaixo das canelas e emitiu um protesto. - Não!

 

Berrigan segurou-o firmemente no chão enquanto Sandman se dirigia, de faca em punho, para a ”Apoteose de Lord Nelson”. Sammy, que chegara justamente naquele momento ao patamar, carregado com o seu tabuleiro de chá, ficou horripilado ao ver Sandman golpear a tela, de cima para baixo e de lado a lado.

 

- Um amigo meu - explicava Sandman à medida que ia esfacelando o quadro - vai provavelmente casar-se muito em breve. Nem ele nem a futura noiva sabem ainda disso, mas é óbvio que gostam um do outro, e quero oferecer-lhes uma prenda de casamento quando a hora chegar. - Golpeou de novo o quadro, cortando a parte de cima. A tela rasgou-se com um ruído agudo e arrepiante, deixando os fios à mostra, Ele fez nova incisão, de modo a extrair do enorme quadro um retrato do busto de Sally em tamanho natural. Atirou a faca para o chão, enrolou a imagem de Britannia e sorriu para sir George. - Acho que isto será um óptimo presente, só falta mandá-lo envernizar e emoldurar. Mil agradecimentos pela sua ajuda. Sargento? Julgo que mais nada temos a fazer aqui.

 

- Vou com vocês! - gritou Sally do fundo das escadas. - Só preciso que alguém me ajude a abotoar o vestido.

 

- O dever chama por si - disse Sandman a Berrigan. - Às suas ordens, sir George.

 

Sir George fitou-o, incapaz de articular palavra. Sandman já sorria quando começou a descer as escadas, e ria abertamente ao chegar a rua, onde esperou por Berrigan e Sally.

 

Vieram ter com ele, após o vestido de Sally ter sido devidamente abotoado.

 

- Quem é que julga que se casará em breve? - perguntou Berrigan.

 

- Oh, duas pessoas minhas amigas - replicou Sandman em tom desprendido -, e, se isso não acontecer, que importa? Bem posso ficar com o retrato para mim.

 

- Capitão! - repreendeu-o Sally.

 

- Casados? - Berrigan mostrava-se chocado.

 

- Sou muito conservador - ripostou Sandman -, e acredito piamente na moral cristã.

 

- A propósito disso - atalhou Berrigan -, para que é que precisamos das pistolas?

 

- Porque o nosso próximo destino, sargento, é o Clube dos Serafins, e não me apetece ir lá desarmado. Gostaria também de que eles não se apercebessem de que andamos a rondar por ali, portanto, qual é a melhor altura de lhes fazermos uma visita?

 

- Qual é a ideia? - quis saber Berrigan.

 

- Falar com os cocheiros, claro.

 

O sargento reflectiu por uns segundos, depois acenou em sinal de concordância.

 

- Nesse caso, o melhor é irmos depois do Sol posto, porque será mais fácil introduzirmo-nos à socapa, e pelo menos um dos cocheiros há-de estar lá.

 

- Resta-nos esperar que seja o homem certo - respondeu Sandman, abrindo bruscamente a tampa do relógio. - Não antes do escurecer? Isso significa que tenho a tarde livre. - Meditou por momentos. - Vou aproveitar para ir falar com uma pessoa amiga. Encontramo-nos às nove da noite, de acordo? Nas traseiras do clube?

 

- Vá ter comigo à entrada das cocheiras, que fica num beco da Charles II Street - sugeriu o sargento.

 

- A menos que prefira fazer-me companhia? - alvitrou Sandman. - Vou só matar o tempo com um amigo.

 

- Não - respondeu Berrigan, corando. - Preciso de descansar.

 

- Nesse caso, tenha a bondade de guardar isto no meu quarto - respondeu Sandman, entregando a Berrigan o rolo do retrato de Sally. - E quanto a si, Miss Sally? Não tenho a menor ideia das suas intenções para esta tarde. Acaso deseja acompanhar-me na visita a uma pessoa amiga?

 

Sally deu o braço ao sargento, dirigiu a Sandman o mais doce dos sorrisos, e disse-lhe com ternura:

 

- Raspe-se daqui para fora, capitão.

 

Sandman riu-se e obedeceu à ordem. Raspou-se dali para fora.

 

BUNNY BARNWELL era considerado como o melhor arremessador do clube de críquete de Marylebone, apesar da sua estranha forma de correr, uma espécie de trote que terminava num duplo salto antes de atirar a bola. O duplo salto tinha-lhe valido a alcunha, e de momento jogava contra Rider Sandman, que treinava à defesa numa das balizas do novo campo de críquete do clube Thomas Lord, situado numa encosta de St. John’s Wood, um elegante subúrbio a norte de Londres.

 

Lord Alexander Pleydell, postado junto da rede, seguia ansiosamente todos os lances.

 

- Achas que o Bunny está a desviar a bola no relvado? - perguntou a Sandman.

 

- De modo algum.

 

- Diz-se que ele consegue dar um efeito à bola de modo a ela vir parar entre as tuas pernas. O Crossley confidenciou-me que se trata de um arremesso extremamente desorientador.

 

- O Crossley desorienta-se com facilidade - retorquiu Sandman, rebatendo a bola vigorosamente, enquanto Sir Alexander recuava de susto.

 

Barnwell revezava-se com Hughes, o criado de Lord Alexander, na tarefa de arremessar contra Sandman. Hughes tinha-se na conta de um arremessador competente, mas começava a sentir-se frustrado por não conseguir lançar qualquer bola que Sandman não defendesse com a sua pá, de modo que exagerou no esforço e acabou por atirar uma bola rasa, que Sandman de pronto fez voar sobre a rede, e que acabou por ressaltar na relva húmida, gerando um belo repuxo prateado no sítio onde três homens, a meio da encosta, se atarefavam a mondar. Sandman achava completamente absurda a ideia de se instalar um campo de críquete numa colina de declive tão acentuado como aquele, mas Sir Alexander dedicava um estranho carinho ao novo campo de Thomas Lord, apesar de, entre as duas linhas limítrofes, haver um desfasamento de pelo menos seis ou sete pés de altura.

 

Barnwell tentou um arremesso diferente, mas, para sua consternação, viu a bola seguir a mesma trajectória da do anterior lance de Hughes, encosta acima. Um dos rapazes da defesa experimentou um fulminante lance de bola contra as pernas de Sandman, sendo recompensado com uma retaliação que por pouco não lhe arrancou a cabeça.

 

- Estás com um humor desgraçado - comentou Lord Alexander.

 

- Nem por isso. Dia húmido, bolas lentas. Nada mais - mentiu Sandman. Na verdade, estava de péssimo humor, perguntando aos seus botões

 

como haveria de cumprir a promessa feita a Eleanor, e interrogando-se até por que diabo lhe prometera um casamento clandestino no caso de o pai dela se recusar a dar-lhes a sua bênção. Bom, de facto sabia a resposta à segunda questão. Tinha-se comprometido com Eleanor, porque, tal como sempre, ficara absolutamente subjugado pelo seu fascínio, pela sua aparência, pela cumplicidade entre ambos e pelo seu intenso desejo dela. Mas como poderia cumprir a promessa? Rebateu contra a rede oposta com tamanha violência que a bola projectou as malhas até à linha de fundo, fazendo oscilar os pilares e sobressaltando um bando de pardais que dispararam em voo picado. Como poderia raptar a noiva, perguntava Sandman a si próprio. Como poderia desposar uma mulher que não tinha meios para sustentar? E que dignidade havia na treta de uma cerimónia de casamento na Escócia, que dispensava proclamas e certificados? Com a fúria a subir-lhe à cabeça, saiu da linha e rebateu uma bola na direcção dos estábulos onde os membros do clube guardavam os seus cavalos durante os jogos.

 

- Um humor extremamente bárbaro - comentou Lord Alexander, pensativamente. Em seguida, retirou um lápis da orelha, sob o cabelo emaranhado, e um bocado de papel bastante amarrotado do bolso. - Pensei que o Hammond seria capaz de aguentar o wicket, concordas?

 

- É esta a equipa que arranjaste para jogar por Hampshire?

 

- Não, Rider - respondeu o outro sarcasticamente -, esta é a minha aposta num novo diácono e novos cónegos para a catedral de St. Paul. Que é que te parece?

 

- O Hammond parece-me uma excelente escolha - respondeu Sandman, firmando-se num dos joelhos para rebater uma bolada particularmente virulenta. - Boa! - gritou a Hughes.

 

- O Edward Budd já disse que alinha connosco.

 

- Esplêndido! - O entusiasmo de Sandman era sincero, porque considerava Edward Budd, não só como o único batsman superior a ele, como também um excelente camarada.

 

- E o Simmons também está disponível.

 

- Nesse caso não estou eu - replicou Sandman. Rebateu a última bola com a ponta do bastão e devolveu-a a Hughes.

 

- O Simmons é um excelente batsman - insistiu Lord Alexander.

 

- Não duvido - disse Sandman -, mas deixou-se subornar para decidir um jogo no Sussex há dois anos.

 

- Isso não voltará a acontecer.

 

- Pois não, se eu jogar na mesma equipa. A escolha é tua, Alexander, ele ou eu.

 

Lord Alexander suspirou.

 

- Ele é de facto excelente!

 

- Então opta por ele - replicou Sandman, inabalável.

 

- Vou ponderar o assunto - disse Lord Alexander, na sua melhor toada senhorial.

 

A bolada seguinte atingiu Sandman nos tornozelos, e ele retribuiu-a com um lance que atirou a bola pelos ares até uma taberna próxima da linha inferior do campo, onde uma dúzia de homens acompanhava o jogo a partir do pátio. Estariam entre eles alguns lacaios de Lord Robin Halloway? Sandman deitou um olhar ao seu casaco dobrado sobre o relvado húmido, e sentiu-se reconfortado ao avistar o cabo do pistolão emergindo de um dos bolsos.

 

- Talvez possas dar uma palavra ao Simmons? - sugeriu Lord Alexander. - Tê-lo connosco na equipa proporcionar-nos-ia uma tremenda força, Rider, decididamente uma força extraordinária. Tu, o Budd e o Simmons? Estabeleceríamos recordes nunca vistos!

 

- Estou disposto a falar com ele - replicou Sandman -, mas não a jogar com ele.

 

- Por amor de Deus, homem! Sandman afastou-se do wicket.

 

- Ouve, Alexander. Eu adoro o críquete. Mas, se permitirmos que seja viciado por subornos, deixará de ser um desporto. A única forma de lidar com os subornos é puni-los radicalmente. - Estava furioso. - É de admirar que o jogo esteja a morrer? Este clube teve em tempos um campo decente, agora recorre à encosta de uma colina. O jogo entrou em decadência, Alexander, porque se deixou corromper pelo dinheiro.

 

- Fica-te muito bem falar assim - ripostou Lord Alexander, melindrado -, mas o Simmons tem mulher e dois filhos. Não conheces a palavra tentação?

 

- Acho que sim, sem dúvida - respondeu Sandman. - Ofereceram-me ontem vinte mil guinéus. - Voltou a colocar-se na linha e fez sinal ao arremessador seguinte.

 

- Vinte mil? - A voz de Lord Alexander quase desfaleceu. - Para perderes um jogo de críquete?

 

- Para permitir que um inocente seja enforcado - esclareceu Sandman, rebatendo a bola sem entusiasmo. - É demasiado fácil - deplorou.

 

- O quê?

- Este bolwling ”intelectual” - A modalidade de arremesso em que a bola era atirada com o braço esticado à altura do cotovelo tinha a curiosa designação de ”estilo intelectual”. - Não tem qualquer rigor - deplorou.

 

- Mas tem muita força - rebateu Lord Alexander veementemente -, muito mais do que os lances feitos com o braço dobrado abaixo do ombro.

 

- Os arremessos deveriam ser feitos com o braço dobrado acima do ombro.

 

- Nem pensar! Nem pensar! Estraga absolutamente o jogo! Que sugestão mais ridícula e abominável! O clube ainda nem sequer decidiu se alguma vez irá tolerar o arremesso à altura do ombro, quanto mais acima. - Lord Alexander interrompeu-se para extrair uma baforada do cachimbo. - Não, se nos preocuparmos em manter um justo equilíbrio entre arremessador e batedor, a resposta é óbvia.

 

- O que acho é que o arremesso acima da linha do ombro conjuga a força com a pontaria - argumentou Sandman -, e poderá até constituir um desafio para o batedor.

 

- Estás a falar a sério, quer dizer, acerca dessa história de te terem oferecido vinte mil libras?

 

- Guinéus, Alexander, guinéus. E as pessoas que me fizeram a oferta consideram-se cavalheiros. - Sandman recuou e desviou a bola violentamente contra as malhas, perto do sítio onde Lord Alexander acompanhava o jogo.

 

- Por que motivo te ofereceram tamanha quantia?

 

- Porque sempre é um preço menor a pagar do que a morte na forca, não achas? O problema é que não sei ao certo qual dos membros do Clube dos Serafins é o assassino, mas conto descobri-lo esta noite. Estarias por acaso disposto a emprestar-me a tua carruagem?

 

Lord Alexander mostrou-se perplexo.

 

- A minha carruagem?

 

- Aquela coisa com quatro rodas, Alexander, e com uns cavalos atrelados à frente. - Sandman rebateu outra bola colina acima, rasando o chão.

- É por uma boa causa, não te parece? A salvação dos inocentes.

 

- Bem, com certeza - aquiesceu Lord Alexander - e sentir-me-ei muito honrado por te ajudar. Nesse caso, espero por ti na pensão?

 

- Fazendo companhia a Miss Hood? - perguntou Sandman. - Porque não? - Riu-se ao ver Alexander corar, e logo de seguida afastou-se dos postes ao avistar um jovem que, vindo da taberna, se encaminhava para o wicket oposto. Havia nele um ar de determinação que por pouco não levou Sandman a sacar da pistola, mas, à medida que o jovem se aproximava, reconheceu nele a pessoa de Lord Christopher Carne, o herdeiro do conde de Avebury. - O teu amigo vem ter connosco - disse a Lord Alexander.

 

- O meu amigo? Oh, o Kit!

 

Lord Christopher correspondeu com um aceno à entusiástica saudação de Lord Alexander, só depois se apercebendo da presença de Sandman. Empalideceu e estacou, com um ar arreliado. Por um segundo, Sandman julgou que ele se preparava para dar a volta aos calcanhares e regressar para de onde viera, mas, em vez disso, o jovem das lunetas dirigiu-se-lhe de caras.

 

- Não me informou - disse, em tom acusador - de que tencionava visitar o meu pai.

 

- Deveria tê-lo feito? - Uma bola chegou e Sandman desviou-a, fazendo-a embater contra as malhas atrás de si.

 

- Eu teria sido c-cortês - queixou-se Lord Christopher.

 

- Se precisasse de lições de cortesia - ripostou Sandman acidamente trataria de ir recebê-las das pessoas que me tratam com correcção.

 

Lord Christopher refreou-se, sem coragem de exigir a Sandman um pedido de desculpas pelo seu tom agressivo.

 

- Falei consigo con-confidencialmente - protestou -, sem a menor desconfiança de que iria trans-transmitir o conteúdo da conversa ao meu pai.

 

- Não transmiti nada ao seu pai - garantiu Sandman calmamente. Não lhe repeti uma única das palavras que me disse. Mais, nem sequer o informei da nossa entrevista.

 

- Pois ele escreveu-me - afirmou Lord Christopher - a dizer-me que o senhor o tinha visitado e que eu não deveria voltar a falar consigo. Portanto, é óbvio que está a mentir-me! De-decerto que lhe disse que tinha falado comigo!

 

Aquela carta, conjecturou Sandman, viajara certamente na mesma mala-posta em que ele mesmo regressara a Londres.

 

- O seu pai deve ter tirado as suas próprias conclusões - redarguiu e, quanto ao senhor, deveria ter mais cuidado com quem acusa de ser mentiroso, a menos que saiba lidar melhor com a pistola ou com a espada do que o homem a quem dirige a acusação. - Sem se preocupar com o efeito da tirada, dançou dois passos rápidos e rebateu uma bolada com todas as suas forças. Mesmo antes de atingir a bola com o bastão, já tinha a certeza da excelência do seu lance. A bola disparou e os três homens que mondavam ao longe pasmaram ao vê-la voar sobre as suas cabeças, ressaltar no chão mesmo à beira da linha de fundo, e prosseguir no seu trajecto, sem aparente perda de velocidade, até se sumir na vegetação do topo da colina. Tal como um tiro de espingarda de calibre máximo, pensou Sandman, um momento antes de ouvir o ruído da bola a chocar contra a vedação do campo, acompanhado pelo mungido de protesto de uma vaca que pastava num prado próximo.

 

- Santo Deus - murmurou Lord Alexander debilmente, olhando para o alto da colina - meu santo Deus lá no alto.

 

- As minhas acusações foram precipitadas - admitiu Lord Christopher, num esfarrapado tom de desculpa -, mas, ainda assim, continuo a não entender o motivo que o levou a visitar Carne Manor.

 

- Reparaste na força com que ele rebateu aquela bola? - perguntou Lord Alexander.

 

- Com que finalidade? - insistiu Lord Christopher, agastado.

 

- Já lhe disse - replicou Sandman. - Para tentar descobrir se uma certa criada da residência de Londres da sua madrasta fora levada para ali.

 

- Claro que ninguém iria fazer semelhante coisa - retrucou Lord Christopher.

 

- Da última vez que falámos afigurava-se-lhe possível.

 

- Porque ainda não tinha re-reflectido de-devidamente sobre o assunto. Sem dúvida que a criadagem estaria perfeitamente a par do infame comportamento da minha madrasta em Londres, e decerto que a última coisa que o meu pai desejaria era que tais ru-rumores chegassem a Wiltshire.

 

- Concordo - admitiu Sandman. - Em suma, fiz uma jornada em vão.

 

- Entretanto, tenho uma boa notícia para ti, Rider! - atalhou Lord Alexander. - Mr. William Brown aceitou o meu pedido para que tu e eu fôssemos lá assistir na próxima segunda-feira! - Todo ele irradiava satisfação. - Não é esplêndido, Rider?

 

- Mr. Brown? - estranhou Sandman.

 

- O director da prisão de Newgate. Supunha que um homem na tua posição lhe conhecesse o nome. - Lord Alexander virou-se para um perplexo Lord Christopher. - Kit, ocorreu-me que, dado que Rider está a trabalhar oficialmente como investigador para o ministro da Administração Interna, certamente que lhe compete investigar o que se passa no cadafalso. Deve ficar a saber ao certo a sorte que aguarda pessoas como o Corday. Portanto, escrevi ao director e ele teve a decência de me convidar, a mim e ao Rider, para o pequeno-almoço. Rins à diabo, nada menos! Sempre tive um fraco por rins à diabo cozinhados como deve ser.

 

Sandman tornou a afastar-se dos postes.

 

- Não tenho o menor desejo de assistir a um enforcamento - declarou.

 

- Os teus desejos não são para aqui chamados - replicou Lord Alexander displicentemente. - É uma questão de dever.

 

- Não tenho qualquer dever de assistir a um enforcamento - insistiu Sandman.

 

- Claro que tens - afirmou Lord Alexander. - Confesso que me sinto apreensivo. Discordo da forca, mas, ao mesmo tempo, não posso negar que me desperta alguma curiosidade. Mais que não seja, Rider, pode ser uma experiência pedagógica.

 

- Pedagogia uma ova! - Sandman recuou para a área do wicket e rebateu certeiramente uma bola bem lançada. - Não vou, Alexander, e ponto final. Não! A minha resposta é não!

 

- Por mim, gostaria de ir - disse Lord Christopher em voz tímida.

 

- Rider! - admoestou Lord Alexander.

 

- Não e não! - reagiu Sandman. - Da melhor vontade enviarei o verdadeiro assassino para o cadafalso, mas não estou disposto a assistir ao circo de Newgate. - Dirigiu a Hughes um aceno de despedida. - Por hoje já treinei o bastante - explicou, afagando a pá do seu bastão. - Tens óleo de linhaça, Alexander?

 

- O verdadeiro assassino? - perguntou Lord Christopher. - Tem alguma ideia de quem seja?

 

- Espero vir a sabê-lo esta noite - replicou Sandman. - Se mandar chamar a tua carruagem, Alexander, podes ficar certo de que descobrirei a minha testemunha. Caso contrário? Bem, paciência.

 

- Que testemunha? - perguntou Lord Christopher.

 

- Se o Rider persistir na sua teimosia - disse Lord Alexander a Lord Christopher - talvez não te importes de me acompanhar àquele pequeno-almoço de rins que o director oferece na segunda-feira? - Pôs-se às voltas com a caixa da pederneira, esforçando-se por acender outro cachimbo. - Estava a pensar que devias mesmo inscrever-te no nosso clube, Rider. Precisamos de mais membros.

 

- Não duvido. Quem é que quererá ligar-se a um clube de críquete cujo campo se assemelha a um prado alpino?

 

- É um campo perfeitamente razoável - redarguiu Lord Alexander, ofendido.

 

- Uma testemunha? - interrompeu Lord Christopher, tornando à pergunta.

 

- Faço votos de que mandes chamar a carruagem! - exclamou Lord Alexander, radiante. - Quero ver aquele desgraçado do Sidmouth em apuros. Obriga-o a conceder o perdão, Rider. Fico à espera de notícias tuas no Wheatsheaf.

 

- Vou acompanhá-lo na espera - anunciou Lord Christopher, sendo recompensado com um trejeito de contrariedade por parte de Lord Alexander. Sandman, a quem a careta não escapou, compreendeu que se devia ao facto de Lord Alexander não estar interessado em disputar com um rival as atenções de Sally; mas Lord Christopher, tomando-a por um insulto, assumiu uma expressão ofendida.

 

Lord Alexander contemplou os três trabalhadores que, de costas dobradas, continuavam a segar o relvado com as suas foices, enquanto iam comentando uns com os outros a bolada de Sandman, que passara por eles como um tiro.

 

- Já muitas vezes pensei - afirmou Lord Alexander - que há uma fortuna à espera do primeiro homem que conseguir inventar um aparelho para cortar relva.

 

- Chama-se carneiro - observou Sandman -, também conhecido por pássaro lanudo.

 

- Refiro-me a um dispositivo que não faça esterco - ripostou Lord Alexander acidamente, voltando-se em seguida com um sorriso para Lord Christopher Carne. - Claro que é óptima ideia passarmos o serão juntos, meu caro amigo. Talvez consiga explicar-me as lucubrações daquele fulano, o tal Kant? Alguém me remeteu o último livro dele, acaso já o leu? Calculo que sim. O homem parece bastante sensato, mas, afinal de contas, era um prussiano, certo? Bem, admito que isso não fosse culpa dele. Bem, proponho que antes tomemos um chá. Rider? Vais querer chá? Claro que sim. E quero apresentar-te a Lord Frederick Já sabias que ele é o actual secretário do clube? Devias realmente tornar-te membro. Querias óleo de linhaça para o teu bastão? Servem aqui um chá bastante razoável.

 

E foi assim que Sandman se deu ao luxo de um chá de grã-finos.

 

O dia entardeceu enevoado, e o céu de Londres tornou-se ainda mais escuro porque, como não havia vento, a fumarada do carvão das chaminés formou um espesso manto impenetrável sobre os telhados e os pináculos. Reinava o sossego nas ruas adjacentes à praça de St. James, dado que não era uma zona de negócios e a maior parte dos residentes se haviam ausentado para as suas residências de campo. Sandman apercebeu-se de que um guarda-nocturno estava de olho nele, e a sua reacção foi ir ao encontro do homem, dizer-lhe boa-noite e perguntar-lhe em que regimento servira. O resultado foi passarem um bom bocado a trocarem recordações acerca de Salamanca, que, na opinião de Sandman, era talvez a mais bela cidade que jamais vira. O acendedor de lampiões apareceu com o seu escadote, e logo a inovadora iluminação a gás irrompeu, um candeeiro após outro, com um clarão azulado que em breve passava a branco.

 

- Algumas destas casas já usam iluminação a gás - confidenciou o guarda-nocturno - lá dentro!

 

- Lá dentro?

 

- Hão-de arrepender-se, senhor. Não é coisa natural, pois não? - O guarda-nocturno ergueu o olhar para a luz periclitante dos candeeiros mais próximos. - Vai haver fogos e espirais de fumo, senhor, tal como foi anunciado no livro santo, senhor, fogo e fumo. Tudo a arder como numa terrível fornalha, senhor.

 

Sandman foi poupado a mais profecias apocalípticas pelo aparecimento de uma carruagem de aluguer na rua, os cascos do cavalo ecoando alto contra as fachadas brancas das casas envoltas em sombras. Deteve-se perto de Sandman, a portinhola abriu-se, e dela se apeou o sargento Berrigan. Atirou uma moeda ao cocheiro, e depois manteve a porta aberta para dar passagem a Sally.

 

- Não podes... - começou Sandman a dizer.

 

- Bem te avisei que ele iria dizer isto mesmo - jactou-se Berrigan para Sally -, não te avisei que ele havia de dizer que não podias vir connosco?

 

- Sargento! - insistiu Sandman. - Não podemos...

 

- Vão à procura da Meg, certo? - interveio Sally. - E ela não vai aceitar às boas que dois velhos tropas tentem espremê-la, pois não? Precisa de um toque de persuasão feminina.

 

- Estou certo de que estes dois velhos soldados serão capazes de conquistar-lhe a confiança - rebateu Sandman.

 

- A Sally não conhece a palavra ”não” - explicou-lhe o sargento.

 

- Além do mais - prosseguiu Sandman -, Meg não se encontra no Clube dos Serafins. Só vamos lá à procura do cocheiro, a fim de que ele nos diga para onde a levou.

 

- Talvez ele esteja mais disposto a dar-me informações a mim do que ao senhor - respondeu Sally a Sandman com um sorriso deslumbrante, virando-se em seguida para o guarda-nocturno. - Não tem nada de melhor para fazer do que pôr-se à escuta da conversa dos outros?

 

O homem ficou estarrecido, mas lá se afastou rua abaixo atrás do acendedor de lampiões, enquanto o sargento Berrigan vasculhava a algibeira do casaco até de lá retirar uma chave que mostrou a Sandman.

 

- É a da porta das traseiras, capitão - informou, e depois olhou para Sally. - Escuta, meu amor, bem sei...

 

- Basta, Sam! Vou contigo.

 

Berrigan pôs-se a caminho, abanando a cabeça.

 

- Não sei como isto é - resmungou -, as senhoras estão sempre a queixar-se de que a vida não é justa porque os homens detêm todos os privilégios, mas os bonzinhos nunca conseguem levar a vontade deles por diante contra a delas. Já reparou, capitão? É pobrezinha de mim para aqui, pobrezinha de mim para ali, mas, no fim de contas, quem fica com a seda, o ouro e as pérolas, hem?

 

- Estás a referir-te a mim, Sam Berrigan? - perguntou Sally.

 

- Eis o verdadeiro amor - murmurou Sandman. Berrigan pôs-lhe um dedo nos lábios quando chegaram perto de um grande portão de entrada e saída de carruagens, rasgado num muro branco, ao fundo de uma viela.

 

- A nossa vantagem - disse Berrigan baixinho - é que o clube costuma estar quase deserto a esta hora do dia. Devemos conseguir esgueirar-nos lá para dentro. - Dirigiu-se a uma pequena porta ao lado do portão, experimentou abri-la, e, ao verificar que se encontrava fechada, recorreu à chave. Empurrou a porta, perscrutou o pátio e, não descortinando quaisquer indícios de perigo, transpôs o limiar e convidou Sandman e Sally a segui-lo.

 

O pátio estava desimpedido, aparte uma carruagem pintada de azul-escuro debruado a ouro, que obviamente tinha sido lavada há pouco tempo, porque reluzia no lusco-fusco, com pingos de água ainda a escorrer dos lados, e baldes abandonados ao pé das rodas. A insígnia do anjo dourado figurava na portinhola.

 

- Por aqui, depressa - disse Berrigan, e Sandman e Sally seguiram o sargento até aos estábulos imersos na penumbra. - Um dos moços deve estar a lavar o coche, mas o cocheiro há-de encontrar-se agora na cozinha das traseiras - explicou, apontando para uma janela iluminada no anexo que dava para o pátio. Mas alarmou-se, quando uma porta da casa principal se escancarou de súbito. - Por aqui! - indicou em voz sibilante, e os três seguiram em cortejo por um caminho lateral aos estábulos. Soaram passos no pátio.

 

- Aqui? - perguntou uma voz, que Sandman não conseguiu identificar.

 

- A uns bons quatro metros de profundidade - respondeu outra voz entre paredes de pedra e com uma laje de alvenaria no topo.

 

- Não há espaço por aí além. Que largura terá o buraco?

 

- Uns três metros, talvez.

 

- Poças, homem, é no sítio onde as carruagens dão a volta!

 

- Então fá-la na rua.

 

Berrigan inclinou-se sobre o ombro de Sandman.

 

- Estão a falar da construção de uma casa de gelo - soprou-lhe ao ouvido -, há um ano que andam a discutir o assunto.

 

- E se a fizéssemos na traseira dos estábulos? - perguntou a primeira voz.

 

- O espaço não chega - replicou o outro homem.

 

- Refiro-me ao espaço entre os estábulos e o muro das traseiras - especificou o primeiro interlocutor.

 

Sandman ouviu os passos dele aproximar-se, e não lhe restaram dúvidas de que seriam descobertos numa questão de segundos. Mas, entretanto, Berrigan examinou rapidamente o fundo da estreita álea onde se encontravam, e, não avistando vivalma, atravessou-a a correr, transpôs um pátio mais pequeno e desembocou junto de uma porta nas traseiras da casa.

 

- Por aqui! - sussurrou.

 

Sandman e Sally correram atrás dele e deram consigo numa escada de serventia, que obviamente fazia a ligação entre a cozinha da cave e os andares superiores.

 

- Vamos esconder-nos lá em cima - sussurrou Berrigan - até a costa ficar livre.

 

- Por que não nos escondemos aqui mesmo?

 

- Porque aqueles estupores podem voltar a entrar na casa através desta maldita porta - explicou Berrigan, conduzindo-os através da escada às escuras. A meio da subida, abriu sorrateiramente outra porta que dava acesso a um corredor revestido por uma espessa alcatifa, e com as paredes forradas com espesso papel púrpura; mas não havia luz suficiente para se discernir o padrão do papel de parede, nem os pormenores dos quadros que se encontravam pendurados nos intervalos entre as portas de madeira polida. Berrigan escolheu uma ao acaso, abriu-a e deparou-se com um aposento vazio. - Ficaremos em segurança aqui - afirmou.

 

Tratava-se de um quarto de dormir: amplo, luxuoso e confortável. O leito era alto e vasto, com um colchão macio coberto por uma espessa colcha escarlate bordada com a imagem de um serafim adejando as asas, em vias de levantar voo. Não faltava uma lareira destinada a manter o quarto quente durante o Inverno. Berrigan atravessou o aposento e dirigiu-se à janela, afastando os reposteiros para observar o pátio. Enquanto Sandman ajustava lentamente o olhar à obscuridade reinante, ouviu Sally desatar a rir, e voltando-se na sua direcção, verificou que ela mirava um quadro pendurado sobre o leito.

 

- Santo Deus! - escandalizou-se Sandman.

 

- Há por aqui muitos deste género - comentou secamente o sargento Berrigan.

 

O quadro representava um alegre grupo de homens e mulheres sob uma arcada sustentada por colunas de mármore. Em primeiro plano, um menino tocava uma flauta e outro dedilhava uma harpa, ambos aparentemente alheios aos adultos que, completamente nus, acasalavam à luz do luar que banhava a arcada com um esplendor irreal.

 

- Caramba - disse Sally, impressionada - nunca imaginei que uma rapariga pudesse pôr as pernas naquela posição.

 

Sandman não achou necessário responder-lhe. Dirigiu-se à janela e olhou para baixo, mas o pátio parecia novamente deserto.

 

- Calculo que tenham voltado para dentro - disse Berrigan.

 

- E aqui está outro - comentou Sally, pondo-se em bicos de pés para examinar o quadro pendurado sobre a lareira.

 

- Achas que virão para aqui? - perguntou Sandman. Berrigan abanou a cabeça.

 

- Só usam estes miseráveis ninhos no Inverno.

 

Sally emitiu um risinho de troça perante o quadro, e voltou-se para Berrigan.

 

- Trabalhavas num bordel Sam Berrigan

 

- É um clube!

 

- É mas é um raio de um bordel! - repetiu Sally desdenhosamente.

 

- Despedi-me, não foi? - protestou Berrigan. - De resto, para os empregados não era bordel nenhum. Só para os membros.

 

- Quais membros? - perguntou Sally, rindo da sua própria piada. Berrigan fez-lhe sinal para calar-se, não devido à grosseria do seu comentário, mas porque se ouviam passos lá fora no corredor. Aproximaram-se da porta, seguiram, desvaneceram-se.

 

- Não estamos lá muito bem aqui - comentou Sandman.

 

- Vamos aguardar que as coisas se acalmem - respondeu Berrigan e depois voltamos a escapulir-nos para o pátio.

 

A maçaneta da porta começou a rodar com um clique. Berrigan recuou rapidamente para trás de um biombo que ocultava um bacio, mas a pessoa que estava às voltas com a maçaneta devia ter ouvido as vozes e recuado bruscamente, de modo que a porta se abriu de rompante e uma rapariga surgiu no limiar. Era alta e esbelta, com o cabelo preto puxado para o alto da cabeça num coque bem arranjado, preso por longos alfinetes com cabeças de madrepérola. Também os seus sapatos eram adornados com contas de madrepérola, ostentava brincos de pérolas e trazia, em redor do seu elegante pescoço de cisne, um colar de pérolas de duas voltas; mas, de resto, encontrava-se completamente nua. Não prestou a menor atenção a Sandman, que se preparava já para sacar da pistola, mas, em contrapartida, dirigiu um sorriso a Sally.

 

- Não sabia que trabalhavas aqui, Sal!

 

- Não estou propriamente em missão de trabalho, Flossie - explicou Sally.

 

Só então Sandman identificou a rapariga. Era a dançarina da ópera que se autodenominava Sacharissa Lasorda, e que, voltando-se nesse momento para observá-lo, teve artes de fazê-lo sentir-se muito pouco à-vontade, apesar de se encontrar nua em pêlo e ele completamente vestido. Mirou-o da cabeça aos pés, e depois voltou a sorrir para Sally.

 

- Com que então, lá caçaste o bonitão, hem? Mas ele está a fazer-te esperar, não é? - Os olhos escancararam-se-lhe de espanto quando o sargento Berrigan emergiu de trás do biombo. - Um trabalhinho a três?! - perguntou, antes de reconhecer o sargento.

 

- Eu não estou aqui, Flossie - resmungou Berrigan -, portanto trata de desandares, de fechares a porta atrás de ti, e de não te esqueceres que não me viste. A propósito, julgava que tinhas partido para voos mais altos?

 

- Não resultou, Sam - respondeu ela, fechando de facto a porta mas permanecendo do lado de dentro.

 

- O que aconteceu com o Spofforth? - quis saber Sally.

 

- Pôs-se ao fresco esta manhã, foi o que aconteceu - replicou Flossie, com uma fungadela. - Grande sacana! Ora eu preciso do raio da massa, não preciso? E neste lugar sempre se vão ganhando uns trocos - prosseguiu, sentando-se na cama. - Mas que diabo está você a fazer aqui? - perguntou a Berrigan.

 

- E que diabo estás tu a fazer aqui? - perguntou Berrigan por seu turno.

 

- Costumamos vir aqui às escondidas para descansar um pouco - respondeu Flossie - dado que, no Verão, ninguém aparece por estas bandas.

 

- Bem, mete mas é na cabecinha que não estamos aqui - proferiu Berrigan em tom autoritário. - Não estamos aqui, não nos viste e não nos vais perguntar seja o que for.

 

- Com mil diabos! - replicou Flossie, nada intimidada. - Mil perdões por me atrever a respirar.

 

- E com quem é que deverias estar neste momento? - indagou Berrigan.

 

- Com o Tollemere. Só que se embebedou e, neste momento, ressona. Tornou a fungar e olhou para Sally. - Estás a trabalhar aqui?

 

- Não.

 

- Ganha-se boa massa - comentou Flossie. - Descalçou um dos sapatos e massajou o pé. - Então o que é que me acontece se for lá abaixo dizer-lhes que vocês estão aqui? - perguntou a Berrigan.

 

- Da próxima vez que te puser os olhos em cima - garantiu Berrigan - prego-te uma sova de caixão à cova.

 

- Sargento! - protestou Sandman, não obstante dar-se conta de que Flossie não se mostrava minimamente abalada pela ameaça.

 

- Juro que dou cabo dela! - barafustou Berrigan.

 

- Sam, és o género de cão que ladra mas não morde - replicou Flossie, com um sorriso irónico.

 

- Não tencionamos fazer mal a ninguém - atalhou Sally, aflita -, pelo contrário, estamos a tentar ajudar uma pessoa.

 

- Não vou contar a ninguém que estão aqui - prometeu Flossie -, por que faria tal coisa?

 

- Nesse caso, diz-nos quem está aqui esta noite - pediu Berrigan. Ela desfiou um rol de nomes sem qualquer interesse para Sandman,

 

dado que nem o marquês de Skavadale nem Lord Robin Holloway figuravam na lista. Flossie tinha a certeza de que nenhum dos dois se encontrava no clube.

 

- Não tenho nada contra o marquês - afirmou -, porque é um cavalheiro às direitas, mas, quanto àquele maldito Lord Robin, não passa de um estupor. - Voltou a calçar o sapato, bocejou e pôs-se de pé. - Bem, agora é melhor ir verificar se sua senhoria não deu pela minha falta. Não vai tardar a querer a sua ceia. - Franziu o cenho. - Não me importo de trabalhar aqui - continuou -, ganha-se bem, o ambiente é simpático, mas detesto do fundo da alma ter de cear em pêlo com os gajos. Uma pessoa sente-se esquisita, compreendem, com todos aqueles homens vestidos a rigor e nós ali despidas. - Abriu a porta e abanou a cabeça. - E entorno sempre o raio da sopa.

 

- Vais manter-te caladinha, Flossie? - perguntou o sargento Berrigan ansiosamente.

 

Ela atirou-lhe um beijo.

 

- Por ti faço tudo, Sam, tudinho mesmo - disse, e desapareceu.

 

- ”Por ti faço tudo, Sam?” - desafiou Sally.

 

- Ela não estava a falar a sério - apressou-se a garantir Berrigan.

 

- Mr. Spofforth tinha razão - interrompeu-os Sandman.

 

- Acerca de quê? - quis saber Sally.

 

- Ela tem de facto boas pernas.

 

- Capitão! - exclamou Sally, chocada.

 

- Já vi melhores - afirmou galantemente o sargento Berrigan, e Sandman teve a satisfação de ver Sally corar.

 

- Só por curiosidade - perguntou Sandman, acercando-se da porta -, quanto custa ser membro do clube? - Abriu uma fresta da porta e espreitou, mas o corredor encontrava-se deserto.

 

- Duas mil de jóia, e tem de ser por convite, mais trezentas por ano esclareceu Berrigan.

 

Privilégios de ricos, pensou Sandman. Ora, se a condessa de Avebury andava a exercer chantagem sobre um dos membros, ou talvez uns dois ou três, não teriam eles decidido matá-la a fim de preservarem a sua permanência naquela mansão hedonística? Voltou a espreitar pela janela. Agora reinava a escuridão lá fora, mas aquela espécie de escuridão luminosa própria de uma noite de Verão numa cidade iluminada a gás.

 

- Não será altura de irmos à procura do nosso cocheiro? - sugeriu a Berrigan.

 

Voltaram a descer as escadas de serventia e atravessaram o pátio. A carruagem ainda rebrilhava de molhada sobre o chão empedrado, mas os baldes haviam desaparecido. Ouvia-se o bater de cascos de cavalos no interior dos estábulos. Berrigan dirigiu-se à porta lateral do anexo, aplicou o ouvido por uns segundos, e em seguida ergueu dois dedos para indicar que lhe parecia haver dois homens nos fundos do casinhoto. Sandman retirou o pistolão do bolso do casaco. Resolveu não o engatilhar, porque não queria que a arma disparasse acidentalmente, mas assegurou-se de que estava carregada antes de afastar para o lado o sargento Berrigan, abrir a porta e irromper lá dentro.

 

A sala servia de cozinha, posto de muda de cavalos e armazém. Havia uma panela ao lume, cheia de água a ferver. Um par de velas ardia sobre a cornija da lareira, e encontravam-se mais algumas sobre a mesa, à qual se sentavam dois homens, um jovem, o outro de meia idade, diante de canecas de cerveja e pratos com pão, queijo e carnes frias. Sobressaltados pela entrada de Sandman, ergueram os olhos da comida, fitaram-no, e o mais velho, de boca aberta de espanto, deixou cair o seu cachimbo de barro, que se partiu contra a borda da mesa. Sally vinha atrás de Sandman, seguida pelo sargento Berrigan, que fechou a porta nas suas costas.

 

- Faça as apresentações - pediu Sandman. Embora não tivesse a pistola apontada a nenhum dos homens, nem um nem outro conseguiam, manifestamente, desviar os olhos dele.

 

- O mais novo é um moço de estrebaria chamado Billy - explicou Berrigan -, e o de queixo caído é Mr. Michael Mackeson, um dos dois cocheiros do clube. Onde está o Percy, Mack?

 

- Sam?! - reagiu Mackeson em voz desfalecida. Tratava-se de um homem corpulento, com um belo bigode de pontas enceradas e uma massa de cabelo negro que começava a tornar-se grisalho nas têmporas. Trajava com apuro e não era de estranhar que pudesse permitir-se esse luxo, dado que os bons condutores eram pagos a peso de ouro. Sandman tinha ouvido falar de um cocheiro que ganhava por ano mais de duzentas libras, e todos eles eram considerados como detentores de um talento invejável, a ponto de a maior parte dos jovens bem-nascidos desejarem imitá-los. Os futuros lordes usavam muitas vezes capas idênticas às dos cocheiros profissionais, e esforçavam-se por aprender a sua arte de empunhar o chicote com uma mão e segurar o conjunto de rédeas com a outra. Eram tantos os aristocratas aspirantes a cocheiros que ninguém podia ter a certeza se determinada carruagem estava a ser dirigida por um duque ou por um cocheiro assalariado. Porém, a despeito do seu elevado estatuto, Mackeson limitou-se a engasgar perante Berrigan, que, tal como Sandman, exibia uma pistola.

 

- Onde está o Percy? - repetiu Berrigan.

 

- Foi levar Lord Lucy a Weybndge - respondeu Mackeson.

 

- Bem, esperemos que sejas tu o nosso homem - replicou Berrigan.

 

- E quanto a ti, Billy, não vais a lado nenhum - apostrofou o moço de estrebaria, vestido com um puído exemplar da libré amarela e preta do Clube dos Serafins -, a menos que estejas desejoso de que eu te rache a cabeça.

 

- O moço, que fizera menção de levantar-se do banco, voltou a sentar-se.

 

Sem mesmo ter consciência do facto, Sandman foi invadido pela cólera. Era possível que o cocheiro do bigode possuísse a informação de que tão desesperadamente precisava, e a ideia de se encontrar tão perto do seu objectivo e, ainda assim, correr o risco de não chegar à verdade, despoletava-lhe a raiva. Uma raiva fria e controlada, que, no entanto, transparecia no seu tom de voz, ríspido e martelado, provocando o pânico de Mackeson.

 

- Há umas semanas - disse Sandman -, um cocheiro deste clube foi buscar uma criada à residência da condessa de Avebury em Mount Street. Foi você?

 

Mackeson engoliu em seco, aparentemente incapaz de articular palavra.

 

- Foi você? - insistiu Sandman, brutalmente.

 

Mackeson assentiu com um lento aceno de cabeça, olhando de soslaio para Berrigan com o ar de quem não acreditava que aquilo pudesse estar a suceder-lhe.

 

- Para onde a levou? - perguntou-lhe Sandman. Mackeson voltou a engolir em seco, dando em seguida um salto no assento perante a reacção de Sandman, que foi a de bater com a pistola na mesa.

 

Mackeson desviou o olhar de Sandman para Berrigan, que o encarou de cenho franzido.

 

- Eles vão matar-te, Sam Berrigan - advertiu - vão limpar-te o sebo de vez se te encontrarem aqui.

 

- Nesse caso, é preferível que não me encontrem - ripostou Berrigan.

 

O cocheiro sobressaltou-se de novo ao ouvir o som da pistola de Sandman a ser engatilhada. Com os olhos esbugalhados de pânico, fitou a boca da arma e emitiu um gemido.

 

- Só lhe repetirei a minha pergunta com bons modos mais uma vez disse Sandman -, depois disso, Mr. Wackeson, vou...

 

- Nether Cross - apressou-se Mackeson a responder.

 

- Onde fica Nether Cross?

 

- Muito longe daqui - respondeu o cocheiro, cautelosamente. - Umas sete ou oito horas de jornada.

 

- Mas onde? - insistiu Sandman, enfurecido.

 

- Perto da costa, senhor, para as bandas de Kent.

 

- E quem é que vive por essas bandas - indagou Sandman -, em Nether Cross?

 

- Lord John de Sully Pearce-Tarrant - elucidou Berrigan, em lugar do cocheiro -, visconde de Hurstwood, conde de Keymer, barão de Highbrook, lorde de tudo isto e de sabe Deus que mais, herdeiro do ducado de Ripon, e também conhecido, capitão, como marquês de Skavadale.

 

Sandman experimentou um intenso alívio. Obtivera, finalmente, a sua resposta.

 

A carruagem lá foi estrepitando através do emaranhado de ruas da margem sul do Tamisa. Levava os dois lampiões acesos, mas emitiam uma luz tão fraca que de pouco ou nada servia para iluminar o caminho, de modo que, quando alcançaram o topo de Shooters Hill, onde não havia praticamente postes de iluminação e a estrada para Blackheath se estendia diante deles numa escuridão impenetrável, estacaram. Desatrelaram os cavalos e prenderam-nos a uns postes, e entretanto trancaram os dois prisioneiros no interior da carruagem graças ao simples expediente de amarrarem os fechos das portinholas com as rédeas soltas, que em seguida enrolaram em torno do veículo, atando-as firmemente. Após taparem as janelas com bocados de madeira, restava a Sandman e a Berrigan alternarem turnos de vigia durante o resto da noite.

 

Os dois prisioneiros eram o cocheiro, Mackeson, e Billy, o moço de estrebaria. Fora Berrigan quem tivera a ideia de utilizarem a carruagem do Clube dos Serafins, lavada de fresco. A princípio Sandman opusera-se, argumentando que já tinha combinado com Lord Alexander que ele lhe emprestaria o seu coche com a respectiva equipagem, além de que não se sentia no direito legal de requisitar uma das carruagens do Clube dos Serafins; mas Berrigan desdenhara de semelhantes escrúpulos.

 

- Acha que o cocheiro de Lord Alexander conhece o caminho para Nether Cross? - perguntara sagazmente. - Portanto, isso significa que, de qualquer forma, precisamos de levar o Mackeson connosco, e, consequentemente, mais vale pô-lo a conduzir um veículo que está habituado a manejar. E, atendendo a todas as patifarias que aqueles sacanas praticaram, não creio que nem Deus nem os homens venham a censurá-lo por se ter apropriado da sua carruagem.

 

Ora, dada a necessidade de raptar o coche e o cocheiro, seguia-se que Billy, o moço de estrebaria, devia ser também feito prisioneiro, a fim de impedi-lo de dar à língua acerca do facto de Sandman andar à procura de Meg. O rapaz não oferecera qualquer resistência, pelo contrário, até ajudara Mackeson a atrelar os cavalos, sendo em seguida atado de pés e mãos e enfiado dentro da carruagem, enquanto que Mackeson se sentava à boleia, vigiado por Berrigan. Os poucos membros do clube que lá se encontravam, banqueteando-se em sossego na sala de jantar, nem por sombras se deram conta de que a sua carruagem fora levada por estranhos.

 

E agora, encalhados em Blackheath, Sandman e os seus cúmplices precisavam de arranjar maneira de passar o tempo durante as horas de escuridão. Berrigan levou Sally para uma hospedaria próxima onde alugou um quarto para pernoitarem juntos, enquanto Sandman permaneceu de guarda à carruagem. Só depois de soarem as badaladas das duas Berrigan voltou a emergir na escuridão.

 

- Uma noite calma, capitão?

 

- Perfeitamente calma - assegurou Sandman, e em seguida sorriu. - Há muito tempo que não fazia trabalho de sentinela.

 

- Aqueles dois têm-se portado nos conformes? - perguntou Berrigan, apontando para a carruagem.

 

- Como cordeirinhos - tranquilizou-o Sandman.

 

- Pode ir dormir agora - sugeriu Berrigan -, é a minha vez de ficar de atalaia.

 

- Daqui a pouco - respondeu Sandman. Estava sentado sobre as ervas, de costas apoiadas contra uma das rodas, e ergueu a cabeça para contemplar as estrelas que ora apareciam ora desapareciam entre os farrapos de nuvens. - Lembras-te das marchas nocturnas em Espanha? - perguntou. As estrelas eram tão brilhantes que quase nos davam a sensação de que poderíamos estender a mão e apagá-las.

 

- Recordo-me das fogueiras dos acampamentos - disse Berrigan -, colinas e vales semeados de fogo. - Virou-se e olhou para oeste. - Um pouco como aquilo.

 

Sandman voltou por seu turno a cabeça para contemplar Londres, estendida a seus pés como uma manta de retalhos de fogo, esborratada por uma nuvem de fumo avermelhada. No alto da charneca onde se encontrava, o ar era límpido e fresco, mas, ainda assim, chegava-lhe o cheiro da fumarada de carvão emitida pela cidade imensa, que irradiava as suas turvas luzes até à linha do horizonte, a poente.

 

- Tenho mesmo saudades de Espanha - confessou.

 

- A princípio estranhei tudo - disse Berrigan -, mas depois gostei. Aprendeu a língua?

 

- Aprendi. Berrigan riu-se.

 

- Aposto que até a falava muito bem.

 

- Tornei-me bastante fluente, de facto.

 

Berrigan estendeu a Sandman uma garrafa de litro.

 

- Brandy - anunciou. - Ora ocorreu-me - prosseguiu - que, se realmente vier a dedicar-me à importação dos tais charutos, precisarei de um sócio que saiba falar espanhol. O senhor e eu? Poderíamos ir juntos até aquelas paragens, podíamos trabalhar juntos.

 

- A ideia agrada-me - respondeu Sandman.

 

- Não me restam dúvidas de que seria um negócio lucrativo - reforçou Berrigan. - Em Espanha, pagávamos meio tostão furado por aqueles charutos, ao passo que aqui custam uma fortuna, além de que é extremamente difícil encontrá-los.

 

- Plenamente de acordo - replicou Sandman, sorrindo à ideia de que, afinal de contas, talvez houvesse um emprego no seu horizonte. ”Berrigan Sandman, Fornecedores dos Melhores Charutos?” O pai de Eleanor apreciava um bom charuto e costumava adquiri-los a preços astronómicos, de modo que Sir Henry talvez encarasse o projecto como suficientemente rentável para levá-lo a consentir no enlace da filha com Sandman, na convicção de que ela não desposaria, nesse caso, um homem desprovido de recursos. Era provável que Lady Forrest jamais reconhecesse em Sandman um marido apropriado para a filha, mas Sandman calculava que Eleanor e o pai superariam as suas objecções. Ele e Berrigan precisariam de dinheiro para o negócio, mas quem melhor do que Sir Henry para financiá-los? Teriam de percorrer a Espanha de uma ponta à outra, alugar navios e arranjar um escritório numa zona elegante de Londres, mas o negócio tinha todas as condições para prosperar. Disso não lhe restavam dúvidas.

 

- Magnífica ideia, sargento - disse-lhe.

 

- Então atiramo-nos a isso mal despachemos este imbróglio?

 

- Por que não? Com certeza. - Estendeu a mão e Berrigan apertou-lha, selando o pacto.

 

- Velhos soldados como nós devem manter-se unidos - afirmou Berrigan - porque já provámos o nosso valor. Portámo-nos bem como o raio, capitão. Perseguimos aqueles malditos franciús através de toda a Europa, por fim regressámos ao nosso país e nenhum daqueles sacanas no poder nos agradeceu, pois não? - Interrompeu-se, meditativo. - Havia uma regra no Clube dos Serafins. Ninguém podia jamais aludir à guerra. Ninguém.

 

- Nenhum dos membros esteve alistado?

 

- Nem um único. Recusavam até a admissão de quaisquer candidatos que tivessem passado pelo exército ou pela marinha.

 

- Por despeito?

 

- Provavelmente.

 

Sandman bebeu um trago da garrafa.

 

- No entanto, deram-lhe emprego a si.

 

- Gostavam da ideia de terem um ex-membro da Guarda no seu átrio. Proporcionava aos sacanas uma sensação de segurança. E podiam dar-me ordens a torto e a direito, o que também apreciavam bastante. Era Berrigan faz isto, Berrigan faz aquilo. - O sargento resmungou um agradecimento quando Sandman lhe passou a garrafa. - Na maioria das vezes não havia nada de mal nas suas ordens. Tratava-se apenas de fazer recados para os estupores, mas, de vez em quando, pediam-me outras coisas. - Calou-se, e Sandman respeitou o seu silêncio. A noite estava extraordinariamente serena. Passado um bocado, conforme Sandman calculara, Berrigan retomou a palavra. - Uma vez, houve um sujeito que pretendeu denunciar as actividades do clube à justiça, de modo que lhe demos uma lição. Os Serafins enviaram uma carrada de flores para cobrir-lhe a campa, lá isso fizeram eles. Quanto às garotas, como é óbvio, pagámo-lhes para manterem o bico calado. Não me refiro às do género da Flossie, que sabe cuidar bem de si própria, mas as outras? Calámo-las com umas dez ou doze libras.

 

- Que tipo de garotas?

 

- Raparigas vulgares, capitão, que lhes tinham atraído a atenção no meio da rua.

 

- Raptavam-nas?

 

- Raptavam-nas - confirmou Berrigan. - Raptavam-nas, violavam-nas e compravam-lhes o silêncio.

 

- Todos os membros do clube participavam nessas actividades?

 

- Alguns eram piores do que os outros. Há sempre uma meia dúzia capaz de qualquer atrocidade, tal como acontece num batalhão de soldados. E depois há os que se deixam arrastar, e entre esses, invariavelmente, um ou outro com a pele mais sensível. Foi por isso que sempre me custou a acreditar que tivesse sido Skavadale a espatifar a condessa. Não é má pessoa. Todo empertigado e convencido, mas, no fundo, um homem desprovido de maldade.

 

- Também eu apostava mais em Lord Robin - reconheceu Sandman.

 

- Não passa de um pulha maluco, a abarrotar de dinheiro - afirmou Berrigan. - Vergonhosamente rico, velhaco e doido - acrescentou.

 

- Mas o Skavadale tem mais a perder - observou Sandman.

 

- Já perdeu quase tudo - replicou Berrigan. - Deve ser o membro mais pobre do clube. O pai dele desbaratou toda a fortuna da família.

 

- Mas o filho - adiantou Sandman - está noivo de uma rapariga riquíssima, talvez a mais rica herdeira de toda a Inglaterra. Desconfio que ele andava a divertir-se com a condessa de Avebury, e essa dama tinha o péssimo hábito de dedicar-se à chantagem. - Sandman reflectiu por momentos.

- O Skavadale bem podia estar nas últimas, mas, mesmo assim, aposto que, em caso desesperado, conseguiria ainda desencantar um milhar de libras. E tratava-se provavelmente do género de quantia que a condessa lhe exigia, a troco de renunciar a escrever uma carta à sua abastadíssima e piedosa noiva.

 

- E, portanto, matou-a? - indagou Berrigan.

 

- Portanto, matou-a - confirmou Sandman. Berrigan raciocinou por instantes.

 

- Nesse caso, por que motivo encomendaram o retrato?

 

- No fim de contas - respondeu Sandman -, se calhar isso nada teve a haver com o assassínio. O que aconteceu é que vários dos membros do Clube dos Serafins, tendo mantido relações com a condessa, pretendiam um retrato dela à laia de troféu. Portanto, lá estava o pobre Corday, todo atarefado a pintá-lo, quando o Skavadale resolve visitá-la. Sabemos que subiu pela escada das traseiras, o acesso privativo, e que o Corday foi afastado dali à pressa quando a condessa se apercebeu de que um dos seus amantes vinha a caminho.

 

Naquele momento, Sandman estava certo de que era precisamente assim que os factos se haviam desenrolado. Na sua mente, revia a cena com total nitidez: o surdo embaraço reinante no quarto, Corday pintando, a condessa, reclinada no leito, trocando impressões indiferentes com a aia; o ruído do lápis de carvão a arranhar a tela, o som de passos subindo pela escada privativa - o início do martírio de Corday.

 

Berrigan bebeu mais um trago antes de devolver a garrafa a Sandman.

 

- Portanto - resumiu - a tal Meg arrasta o mariconço para o andar de baixo, põe-no na rua, volta a subir as escadas e depara-se com o quê? Com a condessa morta?

 

- Provavelmente. A condessa morta ou moribunda, e o marquês de Skavadale ali no quarto. - Teria a condessa ficado feliz ante o inopinado aparecimento do marquês? - perguntou Sandman a si próprio. Ou seria que aquela relação adúltera estava já comprometida? Era possível que Skavadale tivesse ido lá simplesmente para suplicar à condessa que desistisse das suas pretensões, e que a condessa, faminta de dinheiro, se tivesse rido na sua cara. Talvez ela lhe tivesse exigido uma quantia ainda maior, despertando nele uma fúria assassina que o levara a pegar numa faca. Mas qual faca? Um homem do tipo de Skavadale não trazia facas consigo, portanto deveria haver algures no quarto uma faca. Meg estava certamente a par de tudo. Se calhar, a condessa tinha estado a comer fruta, e portanto haveria por ali uma faca de descascar, da qual Skavadale se teria apoderado para esfaquear a amante; em seguida, vendo-a lívida e agonizando numa poça de sangue, ter-lhe-ia ocorrido a esperteza de espetar numa das feridas o utensílio aguçado que Corday usava para misturar as tintas na paleta. E, justamente naquele momento, ou pouco depois, Meg regressara. Ou, em alternativa, teria escutado a briga e aguardado diante da porta, até ver Skavadale sair do quarto.

 

- Nesse caso, porque é que Skavadale não a matou também a ela?

 

- Porque Meg não representava uma verdadeira ameaça para ele sugeriu Sandman. - A condessa estava a pôr em risco o seu noivado com uma rapariga cujo dote lhe permitiria provavelmente liquidar todas as hipotecas das propriedades da família - todas! A condessa tinha o poder de desfazer tal noivado, e não há maior tragédia para um aristocrata do que ver-se sem dinheiro, porque, quando o dinheiro se vai, vai-se o estatuto. Desde o berço que lhes instilam a convicção de que são melhores do que gentalha como nós, mas é puro engano, são apenas muito mais ricos, e precisam da fortuna para preservarem as suas ilusões de superioridade. A condessa poderia atirar com ele para a valeta, portanto ele odeia-a e mata-a, mas não mata a criada porque ela não constitui para ele uma verdadeira ameaça.

 

Berrigan ponderou a argumentação.

 

- Portanto, em vez de matá-la, remete-a para uma das suas propriedades hipotecadas?

 

- É o que me parece - afirmou Sandman.

 

- Assim sendo, porque é que Lord Robin anda a tentar matá-lo a si?

 

- Porque me tornei num perigo para o amigo dele, claro - redarguiu Sandman impetuosamente. - A última coisa que lhes interessa é que a verdade venha ao de cima, portanto tentaram subornar-me, e a seguir vão tentar matar-me.

 

- Um grande suborno, lá isso foi - concordou Berrigan.

 

- Nada que se compare com a fortuna que a noiva de Skavadale irá proporcionar-lhe - replicou Sandman -, e a condessa pôs esse noivado em risco. Portanto, tinha de morrer, e agora é o Corday que tem de morrer para que toda a gente esqueça o crime.

 

- Muito bem - concedeu Berrigan. - Mas continuo sem perceber por que motivo não arrumaram também com a tal criada Meg. Se a considerassem como um perigo, não a teriam deixado viva.

 

- Talvez a tenham matado - admitiu Sandman.

 

- Nesse caso, estamos a desperdiçar o nosso tempo - observou sombriamente Berrigan.

 

- Mas não creio que se tenham dado ao trabalho de levar Meg para as lonjuras de Nether Cross apenas a fim de matá-la - retorquiu Sandman.

 

- Então o que fizeram dela?

 

- Talvez lhe tenham simplesmente proporcionado um lugar para viver sugeriu Sandman - em condições suficientemente favoráveis para que ela não se sinta tentada a revelar o que sabe.

 

- Nesse caso, é agora ela a chantagista?

 

- Não sei - replicou Sandman. No entanto, ponderando o alvitre do sargento, afigurou-se-lhe bastante inverosímil a figura de Meg no papel de chantagista de Skavadale. - Talvez - prosseguiu -, mas, se tiver algum juízo na cabeça, não deve estar a exigir mundos e fundos, motivo pelo qual lhe vão poupando a vida.

 

- Mas, se ela está a exercer chantagem sobre o Skavadale, não é lá muito provável que nos conte a verdade, pois não? Tem o Skavadale sob controlo, não é verdade? Está com a faca e o queijo na mão. Por que haveria de renunciar ao bodo apenas para salvar a vida de um desgraçado maricas?

 

- Porque vamos tratar de apelar ao seu lado bom - respondeu Sandman. Berrigan soltou uma gargalhada azeda.

 

- Excelente ideia - disse -, assim fica logo tudo resolvido!

 

- A táctica funcionou consigo, sargento - relembrou Sandman suavemente.

 

- Graças à Sally, foi tudo por causa dela. - Berrigan fez uma pausa, e, quando retomou a palavra, parecia embaraçado. - Sabe que, ao princípio, naquela noite no Wheatsheaf? Bem, julguei que houvesse um caso entre vocês os dois.

 

- Lamento, mas não - esclareceu Sandman -, pela minha parte estou comprometido, e a Sally é inteiramente sua, sargento, pelo que o considero um homem cheio de sorte. Tal como eu próprio, aliás. Mas, por outro lado, sou também um homem extremamente cansado. - Arrastou-se para debaixo da carruagem, chocando dolorosamente a cabeça contra o eixo dianteiro. Depois de Waterloo - gemeu -, nunca pensei que voltasse a dormir uma noite ao ar livre.

 

Sob a carruagem, a erva estava seca. As molas do veículo rangeram quando um dos prisioneiros se agitou lá dentro; os cavalos amarrados às estacas batiam os cascos, o vento silvava por entre um aglomerado de árvores próximo. Sandman recordou centenas de noites dormidas a céu aberto, e, justamente na altura em que chegara à conclusão de que o sono jamais viria naquela noite, o sono veio. E ele adormeceu.

Ao alvorecer da manhã seguinte, Sally levou-lhes um cesto com bacon, ovos cozidos, pão e uma garrafa de chá gelado, pequeno-almoço esse que partilharam com os dois prisioneiros. Mackeson, o cocheiro, manifestava a maior fleuma a respeito da sua sorte.

 

- Não tiveram muita escolha, pois não? - disse a Berrigan. - Não tinham outro remédio se não manter-nos de bico calado, mas não vos servirá de nada, Sam.

 

- Por que não?

 

- Já alguma vez viste um lorde ser enforcado?

 

- O conde Ferrers morreu na forca - interveio Sandman -, por ter assassinado o seu criado.

 

- Não! - exclamou Sally, incrédula. - Enforcaram um conde? De verdade mesmo?

 

- Foi conduzido ao cadafalso na sua própria carruagem - garantiu-lhe Sandman -, vestido com o seu fato de casamento.

 

- Essa agora! - ripostou Sally, obviamente encantada com a informação. - Um lorde, hem?

 

- Mas isso passou-se há muito tempo - objectou Mackeson, retirando peso ao facto -, há muito, muito tempo. - O seu bigode, de pontas tão garbosamente enceradas quando Sandman o vira pela primeira vez, apresentava-se agora emaranhado e descaído. - Portanto, qual é o plano? - perguntou em tom sombrio.

 

- Vamos a Nether Cross - elucidou Sandman -, pegamos na rapariga, e tu trazes-nos de regresso a Londres, onde escreverei uma carta aos teus patrões explicando-lhes que foste obrigado a faltar aos teus deveres.

 

- Há-de servir-me de muito - resmungou Mackeson.

 

- És um cocheiro profissional, Mack - atalhou Berrigan -, não terás dificuldade em arranjar outro emprego. O resto do pessoal pode andar todo a morrer de fome, mas para os cocheiros há sempre trabalho.

 

- Está na altura de nos prepararmos para partir - decidiu Sandman, observando a alvorada. Uma leve neblina corria sobre a charneca. Os cavalos foram levados a beber numa vala de água, e em seguida reconduzidos para junto da carruagem, onde foi precisa uma eternidade para equipá-los com os respectivos conjuntos de freios, barrigueiras, gamarras, cilhas, coleiras, tirantes, rabichos de arreios, coxins e correias. Depois de Mackeson e Billy terminarem a sua tarefa de arrear as montadas, Sandman obrigou o jovem a descalçar-se e a retirar o cinto. O moço de estrebaria tinha-lhe suplicado que o libertasse das amarras nos tornozelos e nos pulsos e Sandman satisfizera-lhe o pedido - mas, sem sapatos e com os calções caídos à altura dos joelhos, não seria fácil para o jovem uma tentativa de fuga. Sandman e Sally instalaram-se no interior da carruagem, juntamente com um Billy bastante embaraçado; Mackeson e Berrigan içaram-se para a boleia, e em seguida, com uma chiadeira de rodas, um tinido de arreios e um forte solavanco, a carruagem arrancou, bamboleando-se sobre o capim, em direcção à estrada. A jornada recomeçava.

 

Rumaram a sudeste, por entre campos de lúpulo, pomares e grandes propriedades senhoriais. Ao princípio da manhã, Sandman tombara involuntariamente no sono, ao qual foi arrancado em sobressalto quando a carruagem ressaltou sobre um trilho da estrada. Pestanejou, e apercebeu-se então de que Sally se apoderara da sua pistola e mantinha uma estreita vigilância sobre Billy, que não podia estar mais apavorado.

 

- Pode continuar a dormir à vontade, capitão - disse-lhe ela.

 

- Desculpa, Sally.

 

- Ele não se atreveria a tentar fosse o que fosse - ripostou Sally desdenhosamente -, muito menos depois de eu lhe ter dito quem é o meu irmão.

 

Olhando pela janela, Sandman verificou que estavam a subir um declive, por entre um bosque de faias.

 

- Pensei que talvez nos cruzássemos com ele ontem à noite.

 

- Ele não gosta de atravessar o rio - informou Sally -, de modo que só trabalha nas estradas para norte e oeste. - Verificando que ele se encontrava já plenamente acordado, devolveu-lhe a pistola. - Acha que um homem que tenha andado na má vida pode ser capaz de endireitar-se? perguntou.

 

Sandman calculou que a pergunta não visasse o irmão dela, mas antes Berrigan. Não que o sargento andasse exactamente na má vida, pelo menos no sentido em que o termo era usado no Wheatsheaf, mas, na sua qualidade de empregado do Clube dos Serafins, teria certamente participado em actividades criminosas.

 

- Claro que pode - assegurou Sandman convictamente.

 

- Poucos o conseguem - declarou Sally, não em tom desafiador, mas mais como alguém que procura ser tranquilizado.

 

- Todos nós temos de ganhar a vida, Sally - replicou Sandman -, e, falando honestamente, ninguém gosta de trabalhar no duro. É esse o fascínio da má vida, não é? O teu irmão consegue angariar o seu sustento trabalhando apenas uma em cada três noites.

 

- Mas o Jack é mesmo assim, não é verdade? - Parecia desolada, e em vez de encarar Sandman de frente, contemplava, através da janela poeirenta, um pomar que ladeava a estrada.

 

- Ora, talvez o teu irmão assente quando encontrar a mulher certa para ele - consolou-a Sandman. - Acontece com muitos homens. Começam a andar por maus caminhos mas, a dada altura, passam a dedicar-se a um trabalho honesto, e de um modo geral a causa da mudança é terem conhecido uma mulher. Nem imaginas a quantidade de soldados às minhas ordens que não prestavam absolutamente para nada, patetas alegres que serviam melhor a causa do inimigo do que a nossa, e que, após travarem conhecimento com alguma espanholita que mal lhes dava pelo ombro, se tornavam em soldados exemplares num abrir e fechar de olhos. - Ela voltou-se para ele, olhos nos olhos, e ele sorriu-lhe. - Não acho que precises de te preocupar, Sally.

 

Ela devolveu-lhe o sorriso.

 

- Considera-se um bom avaliador de homens, capitão?

 

- Sim, Sally, isso mesmo.

 

Ela riu-se, e, em seguida, dirigiu-se a Billy.

 

- Fecha a matraca antes que lá entrem moscas - recomendou-lhe e pára de escutar as conversas alheias!

 

O rapaz corou e pregou os olhos numa sebe que desfilava através da janela. Como não podiam mudar de cavalos, Mackeson refreava as duas parelhas, de modo que progrediam lentamente, e a viagem tornava-se ainda mais demorada porque a estrada se encontrava em mau estado e eram obrigados a parar de cada vez que um toque de corneta anunciava a presença de uma diligência normal ou do correio no seu encalço. As carruagens da mala-posta eram as mais assustadoras, porque surgiam precedidas por um toque de urgência estridente, e, com a sua estrutura leve e molas excelentes, passavam por eles com um estrépito de cascos, velozes como um tiro. Sandman invejava-lhes a velocidade, preocupado como estava pela premência do tempo, mas depois reflectiu que ainda era sábado e, partindo do princípio de que Meg se encontrava realmente refugiada em Nether Cross, poderiam estar de regresso a Londres na tarde de domingo, o que lhes daria uma boa folga para procurarem o paradeiro de Lord Sidmouth e arrancar-lhe a suspensão da sentença. O ministro tinha mandado dizer que não pretendia ser incomodado no dia do Senhor, mas Sandman estava-se nas tintas para os sentimentos devotos de sua senhoria. Em prol da justiça, não hesitaria em privar o governo em peso do cumprimento dos seus deveres dominicais.

 

A meio da manhã, Sandman trocou de lugar com Berrigan, assumindo por seu turno a tarefa de vigiar Mackeson. Abriu as abas do casaco para exibir a pistola, mas o cocheiro mostrava-se amedrontado e dócil. Conduzia a carruagem por atalhos cada vez mais estreitos, de modo que tanto ele como Sandman roçavam constantemente pelos galhos das árvores. Detiveram-se à beira de um riacho que podia ser atravessado a vau, para permitirem aos cavalos saciar a sede. Sandman perdeu-se na contemplação das libélulas que adejavam sobre a corrente agitada, até que, com um estalido de língua, Mackeson deu aos cavalos sinal de partida e a carruagem avançou água adentro, provocando uma miríade de repuxos. Chegada à outra margem, subiu por uma encosta aprazível, onde homens e mulheres se ocupavam na ceifa das searas. Cerca do meio-dia, pararam junto de uma estalagem onde Sandman adquiriu cerveja, pão e queijo, que foram comendo e bebendo enquanto a carruagem vencia, gemebunda, a última etapa da jornada. Passaram por uma igreja circundada por uma sebe viva entrelaçada com flores de laranjeira, e em seguida atroaram, com o ruído do trote dos cavalos, uma aldeia onde meia dúzia de homens jogavam críquete no relvado. Sandman observou o desenrolar do jogo à medida que a carruagem chocalhava pela estrada, à beira do campo. Tratava-se de uma versão provinciana do críquete, muito aquém da sofisticação londrina do jogo. O wicket resumia-se a dois postes cruzados por uma trave, e os jogadores cingiam-se estritamente à modalidade de arremesso com o braço dobrado abaixo do ombro, porém os atacantes exibiam excelente postura e uma pontaria certeira; Sandman ouviu os gritos da assistência aplaudindo um lance em que uma bola mal arremessada foi rebatida para um charco de patos. Um rapazinho entrou na água para recuperar a bola. Entretanto, com uma destreza resultante de muita prática, Mackeson orientou os cavalos num estreito caminho ladeado de muros de tijolo, acalmou-os à passagem entre duas fornalhas, e conduziu-os para uma estreita vereda que atravessava uma espessa mata de carvalhos.

 

- Já não falta muito - anunciou.

 

- Os meus parabéns por se lembrar tão bem do caminho - elogiou Sandman. O cumprimento era sincero, porque a jornada fora tortuosa, e a certa altura chegara a suspeitar de que Mackeson tentava enganá-lo, perdendo-se deliberadamente no emaranhado de veredas. Mas na última curva, diante das casas das fornalhas, avistara um marco que apontava para Nether Cross.

 

- Já percorri este caminho uma meia dúzia de vezes, conduzindo sua senhoria - ripostou Mackeson, hesitando em seguida antes de confrontar Sandman.

 

- O que é que vai acontecer se não encontrarmos a tal mulher?

 

- Havemos de encontrá-la - replicou Sandman. - Trouxe-a para aqui, não trouxe?

 

- Mas há já muito tempo, patrão - disse Mackeson -, já lá vai bastante tempo.

 

- Quanto?

 

- Cerca de sete semanas - elucidou o cocheiro. Sandman compreendeu então que Meg devia ter sido removida para as lonjuras do campo imediatamente após o assassínio, ou seja, um mês antes do julgamento de Corday. - Já se passaram sete semanas - prosseguiu Mackeson - e, em sete semanas, muita coisa pode acontecer, não é verdade? - Fitou Sandman com um olhar malicioso. - Além de que sua senhoria bem pode encontrar-se na residência, já pensou nisso? Nesse caso, o caldo ficaria entornado, não lhe parece?

 

Já tinha ocorrido a Sandman a incómoda hipótese de Skavadale se encontrar de facto em Nether Cross, mas chegara à conclusão de que nada lhe adiantava preocupar-se antecipadamente com esse eventual contratempo. No fundo, tanto lhe fazia que sua senhoria se encontrasse ou não lá, e que ele fosse ou não forçado a confrontá-lo. O que realmente o preocupava era a possibilidade de Meg ter levado sumiço. Talvez estivesse já morta? Ou então, se de facto exercia chantagem sobre Skavadale, bem podia viver refastelada numa confortável vida de província, e, nesse caso, não lhe interessaria abdicar dos privilégios recentemente adquiridos.

 

- De que espécie de mansão se trata? - perguntou ao cocheiro.

 

- Oh, nada que se compare àqueles grandes solares que a família possui lá para o norte - esclareceu Mackeson. - Tanto quanto sei, esta mansão veio parar-lhes às mãos graças a um casamento, em tempos remotos.

 

- Confortável?

 

- Melhor do que o senhor ou eu conseguiremos jamais habitar - replicou Mackeson, e em seguida, com outro estalido de língua, fez arrebitar as orelhas dos cavalos e, manejando habilmente as rédeas, encaminhou-os sem esforço para um portão duplo, inserido entre altos pilares de pedra.

 

Sandman abriu o portão, que estava trancado mas não fechado à chave, e voltou a fechá-lo depois de a carruagem o ter transposto. Tornou a subir para a boleia, e Mackeson conduziu os cavalos por uma longa álea que serpenteava ao longo de um parque de veados, por entre faias, até chegarem a uma pequena ponte, de onde avistaram, por entre as altas sebes de buxo de um jardim mal cuidado, uma diminuta mas deliciosa mansão elisabetana, com travejamentos negros, estuque branco e chaminés de tijolo vermelho. - Cross Hall, é como se chama - informou Mackeson.

 

- Pois eu chamo-lhe uma bela prenda de casamento - retorquiu Sandman com alguma inveja, porque a casa lhe parecia perfeitamente maravilhosa, banhada pelo sol da tarde.

 

- Hipotecada de alto a baixo - afirmou Mackeson -, pelo menos é o que corre por aí. A propriedade precisa de uma autêntica fortuna para ser devidamente mantida, e eu preciso de ir cuidar destes cavalos. Dar-lhes água, uma boa ração, escovar-lhes o pêlo e deixá-los repousar.

 

- Cada coisa a seu tempo - replicou Sandman. Estava a observar as janelas, e não detectava qualquer movimento por detrás delas. Além disso, nem uma única se encontrava aberta, o que era mau sinal, atendendo ao calor que se fazia sentir naquele belo dia de Verão; mas, ao reparar num fio de fumo que se evolava de uma das altas chaminés das traseiras, recuperou o optimismo. A carruagem estacou e ele saltou da boleia, com um sobressalto de dor ao apoiar-se sobre o tornozelo magoado. Berrigan abriu a portinhola e desdobrou os degraus, mas Sandman recomendou-lhe que aguardasse ali e vigiasse Mackeson, não fosse o homem lembrar-se de pura e simplesmente de levar os cavalos a galope pela álea abaixo.

 

Sandman dirigiu-se, a coxear, até à porta principal, e bateu nos seus antiquíssimos painéis de madeira escura. Reflectiu que nem sequer tinha o direito de se encontrar ali. Estava provavelmente a invadir propriedade alheia. Reanimou-se ao sentir na algibeira a carta do ministro do Interior que lhe conferia plenos poderes de investigação. Até ali nunca recorrera ao documento, mas pensou que talvez se tornasse útil naquela ocasião. Tornou a bater à porta, e em seguida recuou uns passos para ver se alguém o observava de alguma das janelas. O pórtico estava recoberto de hera, e, sob as folhas, distinguiu um brasão esculpido no estuque, onde se inscreviam cinco conchas de vieira. Não vislumbrou ninguém às janelas, de modo que se dirigiu de novo à porta. Ergueu o punho para bater mais uma vez, mas, nesse preciso instante, a porta escancarou-se e um esquálido ancião surgiu no limiar, examinando-o a ele e à carruagem marcada com a insígnia do Clube dos Serafins.

 

- Não contávamos hoje com visitas - disse-lhe, manifestamente perplexo

 

- Viemos buscar a Meg - replicou Sandman num impulso súbito. O homem, presumivelmente um serviçal, a avaliar pelo traje, reconhecera perfeitamente a carruagem e não estranhava a sua presença ali. Chegara inopinadamente, talvez, mas era-lhe obviamente familiar. Sandman fez votos para que o criado se convencesse de que fora enviada pelo marquês.

 

- Ninguém me avisou de que a Meg iria ser levada daqui fosse para onde fosse - observou o sujeito, desconfiado.

 

- Para Londres - afirmou Sandman.

 

- Afinal de contas, quem é o senhor? - O homem era de estatura elevada, com um rosto profundamente engelhado, emoldurado por uma cabeleira branca em desalinho.

 

- Já lhe disse. Viemos buscar a Meg. O sargento Berrigan acompanha-me.

 

- Sergeant? - O homem não reconheceu o nome, mas pareceu alarmado. - O senhor trouxe um advogado consigo?

 

Nota: Sergeant, Sargento, mas também um nome próprio. [N. da T]

 

- Ele faz parte do clube - ripostou Sandman, apercebendo-se de que a conversa resvalava para uma troca de mal-entendidos.

 

- Sua senhoria não me disse nada a respeito da partida dela - contestou o homem, cautelosamente.

 

- Ele quere-la em Londres - repetiu Sandman.

 

- Bem, nesse caso vou buscar a moça - replicou o sujeito, e, sem dar a Sandman tempo para reagir, bateu-lhe com a porta na cara e correu o ferrolho, tudo isto com tal rapidez que deixou Sandman boquiaberto. Continuava ainda aparvalhado, de olhos postos na porta, quando ouviu uma campainha soar no interior, e compreendeu que devia tratar-se de um aviso urgente destinado a Meg. Praguejou.

 

- Ora é a isto que eu chamo um bom começo - comentou Berrigan, sarcasticamente.

 

- Mas a mulher está aqui - animou-se Sandman, regressando para junto da carruagem - e o homem diz que vai chamá-la.

 

- Acha que sim? Sandman abanou a cabeça.

 

- De acordo, é mais provável que vá tratar de escondê-la, o que significa que teremos de ir à sua procura. Mas o que é que havemos de fazer com estes dois? - acrescentou, apontando para Mackeson.

 

- Abater os sacanas e enterrá-los bem fundo - resmungou Berrigan, sendo a sua sugestão acolhida com um eloquente gesto de dois dedos por parte de Mackeson. Por fim, levaram a carruagem para junto dos estábulos, onde se depararam com as cavalariças desertas e os comedouros vazios, sendo o espaço unicamente ocupado por um bando de galinhas chocas. Entretanto, descobriram um anexo de tijoleira, dotado de uma porta resistente e desprovido de janelas, onde aferrolharam Mackeson e o moço de estrebaria. Quanto aos cavalos, deixaram-nos no pátio, atrelados à carruagem.

 

- Cuidaremos deles mais tarde - declarou Sandman.

 

- E, nessa altura, trataremos também de recolher alguns ovos - redarguiu Berrigan sorrindo, porque o pátio do estábulo estava entregue às galinhas, centenas delas, ao que parecia, algumas empoleiradas na beira do telhado, outras nos parapeitos das janelas, mas na sua maioria entretidas a debicar os grãos de cereal espalhados por entre as ervas daninhas que cresciam entre as alvas pedras da calçada. Do alto do seu poleiro, um jovem galo mirou-os de soslaio, abanando a crista e desatando a cacarejar vigorosamente. Sandman conduziu Berrigan e Sally até à porta traseira de Cross Hall. Estava fechada, como, aliás, todas as outras portas da residência. Mas a casa não era propriamente uma fortaleza. Sandman lá conseguiu desencantar uma janela com os fechos mal corridos, sacudiu-a energicamente até conseguir abri-la, e, uma vez transposta, deu consigo numa saleta apainelada, com uma lareira de pedra vazia e a mobília tapada com lençóis empoeirados. Berrigan seguiu-o.

 

- Deixa-te ficar aí fora - gritou Sandman a Sally, e ela fez que sim com a cabeça, mas, um momento depois, já trepava para a janela. - É possível que haja luta - avisou-a Sandman.

 

- De qualquer forma, vou entrar - teimou ela. - Detesto o raio das galinhas.

 

- A estas horas, a moça é bem capaz de já ter partido - observou Berrigan.

 

- É possível - admitiu Sandman. Mas o seu primeiro instinto fora o de que a rapariga teria corrido a esconder-se no interior da casa, e não mudara ainda de ideia. - De qualquer forma, vamos procurá-la - declarou, abrindo a porta da saleta, que dava para um longo corredor igualmente apainelado. Reinava absoluto silêncio na casa. Não havia quadros nas paredes, nem tapetes sobre o chão de tábuas escurecidas que rangiam sob os seus passos. Sandman ia abrindo as portas, mas deparava-se apenas com aposentos onde a pouca mobília restante se encontrava recoberta por lençóis de resguardo. Do átrio principal partia uma escadaria, ornada de uma balaustrada magnificamente esculpida. Sandman relanceou o piso de cima, mergulhado na penumbra, mas preferiu dirigir-se às traseiras da casa.

 

- Não vive ninguém aqui! - exclamou Sally, à medida que iam descobrindo mais salas vazias. - Só galinhas!

 

Ao abrir mais uma porta, Sandman avistou uma enorme mesa de jantar, também ela tapada por lençóis.

 

- Lord Alexander contou-me que o pai dele se esqueceu certa vez por completo de certa casa que possuía - confidenciou a Sally. - E, por sinal, uma casa bem grande. Deixaram-na ir caindo aos bocados até que finalmente se lembrarem de que eram eles os donos.

 

- Que gente mais distraída - comentou Sally, com desprezo.

 

- Estás a referir-te ao teu admirador? - perguntou Berrigan, divertido.

 

- Cuidado com a língua, Sam Berrigan. Basta-me levantar o dedo mindinho para me tornar Lady Não-sei-o-quê, e, nessa altura, não terás outro remédio se não fazer-me vénias e rapapés.

 

- Far-te-ei rapapés com o maior prazer, está descansada, rapariga respondeu Berrigan.

 

- Meninos, então - repreendeu-os Sandman. Mas, nesse instante, voltou-se bruscamente ao ouvir uma porta abrir-se no fundo do corredor.

 

O alto e esquálido dono da cabeleira branca surgiu no limiar, empunhando um cacete na mão direita.

 

- A moça que procuram - declarou - não se encontra aqui. - Quando Sandman avançou direito a ele, ergueu o cacete, sem grande convicção, mas por fim optou por largá-lo e desviar-se. Sandman empurrou-o e penetrou numa cozinha equipada com um grande fogão negro, um aparador e uma mesa comprida. Uma mulher - talvez a esposa do homem esquelético estava sentada a um dos topos da mesa, remexendo uma mistela de farinha numa grande tigela de louça. - Quem é você? - perguntou Sandman ao sujeito.

 

- O administrador desta propriedade. E ali a minha esposa é a governanta - esclareceu a criatura, apontando para a mulher.

 

- Quando é que a rapariga se foi embora daqui? - perguntou Sandman.

 

- Não tem nada a haver com isso! - disparou a mulher. - E também não tem nada a fazer aqui! Está a invadir propriedade privada. Portanto, o melhor é pôr-se ao fresco, antes que venham prendê-lo.

 

Sandman reparou que, sobre o rebordo da chaminé, se encontrava uma espingarda de caça.

 

- E quem é que virá prender-me? - perguntou.

 

- Já chamámos por socorro - retorquiu a mulher, em tom de desafio. Usava o cabelo branco apertado num carrapito rígido, que fazia sobressair a dureza das feições, marcadas por um nariz adunco confluindo para a saliência de um queixo aguçado. Uma cara de quebra-nozes, pensou Sandman, absolutamente desprovida de quaisquer indícios de bondade humana.

 

- Vocês chamaram por socorro, mas eu sou um delegado do ministro do Interior - contrapôs Sandman. - Na minha qualidade de representante do governo, disponho de autoridade - acrescentou, em tom realmente autoritário -, de modo que, se não querem arranjar sarilhos, aconselho-os a dizerem-me onde se encontra a rapariga.

 

O homem lançou um olhar apreensivo à esposa, mas a tirada de Sandman não a havia intimidado nem um pouco.

 

- Não tem o direito de andar por aqui a coscuvilhar, senhor, e, pela minha parte, aconselho-o a desandar antes que eu resolva fazê-lo prisioneiro por esta noite!

 

Sandman não fez caso das palavras dela. Abriu a porta da copa e procurou na despensa, mas não encontrou quaisquer vestígios de Meg. No entanto, continuava convencido de que a rapariga se escondia algures dentro da casa.

 

- Prossiga a busca neste piso, sargento - disse a Berrigan -, entretanto eu vou pesquisar o andar de cima.

 

- Acredita realmente que ela esteja aqui? - redarguiu Berrigan, duvidoso.

 

Sandman confirmou com um aceno.

 

- De certeza absoluta - afirmou com uma convicção que não assentava em qualquer base sólida, apenas na sensação intuitiva de que tanto o administrador como a esposa lhe mentiam. E o administrador, pelo menos, dava sinais de estar amedrontado. A mulher aguentava-se bem, mas, do alto da sua elevada estatura, o cônjuge não conseguia disfarçar o nervosismo.

 

Em vez de apoiá-la na sua postura de desafio, insistindo no argumento de que Sandman invadira uma propriedade privada, o homem encolhera-se na atitude de alguém que procura esconder algo, e Sandman apressou-se a correr escadas acima para descobrir o que seria esse algo.

 

As divisões do andar superior apresentavam-se tão despojadas e desertas como as do andar de baixo. Mas, mesmo ao fundo do corredor, ao pé de umas escadas estreitas que conduziam ao sótão, Sandman deparou-se com um amplo quarto de dormir, obviamente em uso. Havia tapetes orientais espalhados sobre o chão de tábuas de madeira escura, e a bela cama de dossel, de cujos postes pendiam tapeçarias puídas, estava revestida de lençóis e cobertores amarfanhados. Algumas peças de vestuário feminino haviam sido descuidadamente atiradas para uma cadeira, enquanto outras se empilhavam em desordem sobre os bancos de pedra que ladeavam a janela, de onde se avistava um relvado delimitado por um muro de tijolos, para lá do qual, a uma distância inopidamente curta, se erguia uma igreja. Um gato alaranjado dormia num dos bancos da janela, refastelado sobre um monte de saiotes. O quarto de Meg, depreendeu Sandman, com a nítida sensação de que ela o abandonara apenas momentos antes. Voltou à porta e espreitou para o corredor, onde à primeira vista não descortinou nada, excepto partículas de poeira pairando sob os raios de luz do Sol poente, defronte das portas que havia escancarado.

 

Mas depois, ao atentar no soalho de tábuas irregulares, detectou a marca das suas próprias pegadas no pó que as recobria, e resolveu voltar atrás pelo corredor, revistando de novo cada aposento. No quarto mais amplo, aquele que se situava mesmo junto ao patamar da bela escadaria, e cuja imensa lareira ostentava uma cornija esculpida com cinco gaviões, distinguiu outras pegadas no soalho empoeirado. Alguém estivera há pouco tempo naquele lugar, deixando um rasto que ia da lareira até à janela mais próxima, mas que não se reconduzia até à porta. O quarto estava deserto e ambas as janelas fechadas. Sandman observou as marcas impressas no soalho, perguntando a si mesmo se não resultariam apenas de um efeito de luz e sombra, mas sentia-se capaz de jurar que se tratava realmente de um rasto de pegadas, que terminava à beira da janela. Foi direito a ela mas não conseguiu abri-la, porque os varões estavam tão enferrujados que não era possível deslocá-los. Portanto, Meg não fugira pela janela, apesar de as suas pegadas - agora confundidas com as do próprio Sandman - terminarem ali. Rais partam, desabafou Sandman com os seus botões, de certeza que ela não foi longe! Procurou debaixo do poeirento lençol que recobria a cama, abriu o guarda-fatos, mas não encontrou ninguém.

 

Sentou-se na borda do leito - que, tal como o outro, era de dossel - e, de olhos fitos na lareira, distraiu-se a contemplar um par de cães modelados em argila negra, que repousavam sobre a cornija. Sob o efeito de um impulso súbito, correu para a lareira, agachou-se, olhou pela chaminé acima, e verificou que a enegrecida abertura se estreitava logo após a base, não proporcionando esconderijo a ninguém. No entanto, continuava convicto de que, pouco tempo antes, Meg permanecera naquele quarto.

 

O som de passos na escada levou-o a erguer-se do leito e a sacar da pistola, mas, afinal, tratava-se apenas de Berrigan e Sally, que surgiram no limiar da porta.

 

- Não conseguimos encontrá-la - anunciou Berrigan, desolado.

 

- Deve haver uma centena de esconderijos nesta casa - redarguiu Sandman.

 

- Ela deve ter fugido - opinou Sally.

 

Sandman voltou a sentar-se na cama e a observar a lareira. No escudo que a encimava, seis gaviões: três na primeira fila, dois na segunda e um último a rematar. Por que motivo figuraria aquele brasão nos aposentos da casa, enquanto que a fachada ostentava um escudo com cinco conchas de vieira? Cinco conchas. Contemplou os gaviões, e, de repente, veio-lhe à memória uma cantiga - uma toada acompanhada de versos meio esquecidos, que escutara pela última vez em redor da fogueira de um acampamento militar em Espanha.

 

- Vou começar com um sete - anunciou.

 

- Vai começar pelo quê? - estranhou Berrigan, enquanto Sally olhava para Sandman como se julgasse que ele enlouquecera de repente.

 

- Sete pelas sete estrelas do céu - prosseguiu Sandman, impassível -, seis pelos seis indomáveis caminhantes.

 

- Cinco pelas insígnias pregadas à nossa porta - recitou Berrigan, enunciando o verso seguinte.

 

- E há cinco conchas gravadas no frontispício desta casa - comentou Sandman em voz baixa, subitamente alertado para a possibilidade de haver alguém a ouvi-lo. A letra da canção era bastante misteriosa. Não restavam a Sandman grandes dúvidas de que o ”quatro” se referia aos evangelhos de Cristo, porém a simbologia do sete-estrela escapava-lhe por completo, do mesmo modo que não tinha a menor ideia de quem seriam os tais seis indomáveis caminhantes. Em contrapartida, conhecia perfeitamente o significado das insígnias quíntuplas. Tinha-o aprendido muitos anos antes, na época em que fora condiscípulo de estudos de Lord Alexander, quando Lord Alexander descobrira, excitadíssimo, que um conjunto de cinco conchas esculpido sobre uma porta, ou ostentado na empena de uma casa, significava que os respectivos habitantes perfilhavam a religião católica. As conchas haviam sido inicialmente colocadas no tempo das perseguições religiosas do reinado da rainha Isabel, quando ser-se padre em Inglaterra implicava o risco de encarceramento, tortura e morte. Contudo, tinha havido resistentes que não abdicavam do consolo da sua fé, e que assinalavam as suas residências com uma marca, de forma a que correligionários perseguidos pudessem reconhecê-las como local de refúgio. Por outro lado, como os leais acólitos da rainha Isabel conheciam tão bem o significado das cinco conchas como qualquer católico, para recolher um padre em casa tornava-se necessário proporcionar-lhe um esconderijo; e assim se multiplicaram os chamados ”esconderijos de padres”, minúsculos cubículos tão bem disfarçados entre a espessura das paredes que conseguiam despistar os investigadores protestantes por dias a fio.

 

- O senhor parece muito mergulhado nos seus pensamentos - comentou Berrigan.

 

- Do que eu preciso é de achas - replicou Sandman brandamente. - De achas, de boa lenha para a fogueira, de uma pederneira para acendê-la, e vai à cozinha ver se lá encontras um caldeirão.

 

Berrigan, curioso acerca dos planos de Sandman, hesitou sobre se devia ou não interrogá-lo, mas, por fim, compenetrando-se de que, mais tarde ou mais cedo, haveria de conhecê-los, voltou para baixo com Sally. Sandman atravessou a sala e correu os dedos pelos painéis revestidos de linho que contornavam a lareira, mas, tanto quanto pôde aperceber-se, não havia falhas nas junções. Bateu nos painéis, mas nada soava a oco. Não se esquecia, porém, de que o grande trunfo dos ”esconderijos de padres” era justamente o facto de ser praticamente impossível detectá-los. Tanto a parede da janela como a do corredor eram manifestamente demasiado estreitas para ocultarem algo, portanto o esconderijo teria forçosamente de situar-se, ou atrás da parede da lareira, ou atrás da parede oposta, onde se inseria o aparador. No entanto, Sandman não conseguiu descobrir qualquer entrada. Também não estava à espera de encontrá-la facilmente. Os fiscais da rainha Isabel haviam sido funcionários eficazes, impiedosos e aliciados por uma retribuição estimulante, no caso de desencantarem padres escondidos, e, no entanto, alguns esconderijos haviam escapado aos seus melhores esforços persecutórios.

 

- Pesa toneladas - queixou-se Berrigan, entrando no quarto a cambalear, carregado com um caldeirão que deixou cair ao chão. Sally seguia-a a poucos passos de distância, transportando um molhe de lenha.

 

- Onde está o administrador? - perguntou Sandman.

 

- Sentado na cozinha, a deitar fumo pelos olhos - informou Berrigan.

 

- E a mulher?

 

- Sumiu-se.

 

- Ele não ficou interessado em saber o que andavas a fazer com isso?

 

- Disse-lhe que lhe abriria um buraco na testa se ele se atravesse a perguntar - esclareceu Berrigan alegremente.

 

- Ora é a isso que eu chamo tacto diplomático - aprovou Sandman. Nunca falha.

 

- Então qual é o seu plano? - perguntou Sally.

 

- Deitar fogo ao raio da casa - respondeu Sandman, alteando a voz. Arrastou o caldeirão até junto do resguardo da lareira. - A casa não está a ser utilizada por ninguém - prosseguiu, num tom de voz que poderia perfeitamente ser ouvido dois quartos adiante -, e o telhado precisa de conserto. Sai mais barato queimar a casa de alto a baixo do que fazer-lhe uma boa limpeza, não concordam? - Colocou as achas sob o caldeirão, arrancou uma faísca da pederneira e soprou-a contra o linho carbonizado até arrancar-lhe uma chama, colocando-o então sobre as achas. Alimentou a chama por uns momentos, e, quando as achas começaram a crepitar e o fogo a alastrar, atirou-lhes para cima um pouco de lenha.

 

Os maiores toros levaram alguns minutos a pegar fogo, mas, por essa altura, já uma espessa fumarada branco-azulado emergia do caldeirão, e, dado que este se encontrava colocado, não dentro da lareira propriamente dita, mas à beira do resguardo, praticamente nenhum fumo se escapava pela chaminé. A ideia de Sandman era a de obrigar Meg a abandonar o seu refúgio, e, para o caso de o ”esconderijo de padre” abrir para o corredor, tinha mandado Sandman montar guarda no exterior do quarto, enquanto que ele e Sally permaneciam no interior, com a porta fechada. O fumo começava a sufocá-los, impelindo Sally a agachar-se junto do leito, porém sem vontade de fugir dali até saber se o expediente daria ou não resultado. Sandman sentia os olhos a arder e a garganta seca, mas isso não o impediu de ir lançando mais lenha para a fogueira, com o resultado de a barriga do caldeirão começar a resplandecer com um fulgor avermelhado. Abriu uma fresta da porta para deixar sair algum fumo e entrar algum ar puro.

 

- Queres ir-te embora, Sally? - sibilou. Mas ela abanou a cabeça. Inclinando a cabeça e ombros na direcção em que a fumarada era menos espessa, Sandman pensava em Meg confinada no ”esconderijo de padre”, um buraco escuro, negro, apertado, assustador. Esperava que o cheiro a queimado estivesse já a agravar-lhe o terror, e que o fumo se fosse infiltrando através dos engenhosos alçapões, postigos e falsas portas que ocultavam o acesso ao seu antiquíssimo refúgio. Um toro de lenha estalou e desfez-se em mil pedaços, e o caldeirão começou a fumegar por entre as altas labaredas. Sally apertava a cobertura de lençol contra a boca, e Sandman compreendeu que não conseguiriam aguentar durante muito mais tempo. Mas, nesse preciso instante, ouviu um rangido, acompanhado por um grito e seguido por um abalo semelhante ao de um disparo de canhão, e viu uma secção inteira da parede deslizar como uma porta - só que, em vez de ser de um dos lados da lareira, o fenómeno ocorreu entre as janelas, na parede exterior que ele julgara demasiado estreita para albergar um esconderijo. Sandman puxou as mangas da camisa para cobrir as mãos, e, assim protegido, empurrou o caldeirão para debaixo da chaminé, ao mesmo tempo que Sally agarrava pelos pulsos a mulher apavorada e aos gritos, que, supondo-se encurralada dentro de uma casa a arder, se esforçava agora por emergir daquela espécie de estreito poço com degraus que desembocava nos painéis deslocados na parede.

 

- Calma, calma, o perigo já passou! - ia dizendo Sally a Meg, enquanto a encaminhava para a porta.

 

E Sandman, com o casaco todo chamuscado e enegrecido, seguiu as duas mulheres até ao amplo patamar, onde pôde aspirar uma grande lufada de ar puro e fresco, e observar pela primeira vez Meg, cujos olhos se encontravam debruados a vermelho. Reflectiu então que Charles Corday era de facto um grande artista, dado que a jovem lhe pareceu realmente, não só monstruosamente feia, como de aspecto malévolo. Desatou subitamente a rir, ao compenetrar-se de que a tinha finalmente encontrado e que, graças a ela, chegaria à verdade; mas, tomando a gargalhada dele por troça, ela avançou e pregou-lhe uma valente bofetada.

 

Foi exactamente nesse momento que uma arma disparou no átrio de entrada.

 

Sally soltou um grito, e Sandman obrigou-a a abaixar-se, desviando-a da linha de fogo. Meg, pressentindo uma oportunidade de fuga, correu em direcção às escadas, mas Berrigan derrubou-a com uma rasteira. Tropeçando sobre o corpo de Meg, Sandman coxeou até à balaustrada, e, olhando para baixo, verificou que fora a carrancuda esposa do administrador, muito mais corajosa que o marido, quem disparara um tiro de caçadeira para o alto das escadas. Mas, à semelhança de muitos recrutas novatos, fechara os olhos no momento de premir o gatilho e atirara demasiado alto, de modo que o tiro disparado às cegas se limitara a raspar o cabelo de Sandman. Meia dúzia de homens encontravam-se atrás dela, um deles armado com um mosquete, e, num reflexo rápido, Sandman obrigou Berrigan a baixar a sua própria pistola.

 

- Nada de tiros! - gritou. - Nada de mortes!

 

- Não tem nada que fazer aqui! - berrou-lhe a governanta lá de baixo. Estava lívida, porque nunca tivera a intenção de disparar a caçadeira, mas, ao arrancá-la das mãos do marido, apontando-a para o topo das escadas a título de ameaça, premira involuntariamente o gatilho. O grupo de homens que a secundava era chefiado por um gigante louro, armado com um mosquete. Os restantes vinham equipados com porretes e foices. Sandman tomou-os por campónios desejosos de ajudar a queimar a mansão, enquanto que, na verdade, se tratava de rendeiros que haviam acorrido em defesa da propriedade do duque de Ripton.

 

- Temos perfeitamente o direito de estar aqui - mentiu Sandman, controlando a voz e sacando do bolso a carta do ministro, que, na verdade, não lhe concedia quaisquer direitos. - O governo encarregou-nos de investigar um assassínio - prosseguiu em tom sereno à medida que ia descendo as escadas, sem tirar os olhos do homem armado. Era um indivíduo extraordinariamente alto, musculoso, talvez no início da casa dos trinta, vestido com uma imunda camisa branca e umas calças creme cingidas por um pedaço de tecido verde que lhe servia de cinto. A sua figura afigurava-se a Sandman como estranhamente familiar, e ocorreu-lhe que o homem talvez tivesse sido soldado. O mosquete que empunhava era indiscutivelmente um velho mosquete do exército, decerto abandonado no terreno após a última derrota de Napoleão; mas parecia impecavelmente limpo, estava carregado e o gigante manejava-o com perfeito à-vontade. - Trago comigo a credencial do ministro do Interior - declarou Sandman, brandindo a carta com o seu impressionante timbre oficial -, e não viemos aqui para fazer mal a ninguém, para roubar ou para danificar seja o que for. Apenas pretendemos fazer algumas perguntas.

 

- Não tem nenhum direito de estar aqui! - guinchou a governanta.

 

- Cale-se, mulher - ordenou Sandman, no seu melhor tom de comando de tropas. A afirmação dela era absolutamente correcta, mas a mulher estava de cabeça perdida, e Sandman apostava em que aqueles homens mais depressa se deixariam arrastar por um discurso razoável do que por um berreiro histérico. - Há aqui alguém que deseje ler a credencial assinada por sua excelência? - desafiou, erguendo o papel, e bem ciente do efeito provocado pela alusão a ”sua excelência”. - E, a propósito - acrescentou, apontando para o patamar superior das escadas, onde o fumo já se dissipava -, a casa não está a arder e não há perigo algum. Bem, quem deseja ler a carta de sua excelência?

 

O homem do mosquete não parecia nada interessado no papel. Em vez disso, fitou Sandman de cenho franzido, e perguntou:

 

- O senhor não é o capitão Sandman? Sandman confirmou com um aceno de cabeça.

 

- O próprio.

 

- Valha-me Deus, vi-o marcar setenta e cinco pontos contra a nossa equipa, em Tunbridge Wells! - exclamou o homem. - E com jogadores da categoria do Pearson e do Willes a arremessar contra si, mas o senhor rebatia-lhes as bolas com golpes absolutamente loucos e geniais! - Baixara o cão do mosquete e dirigia a Sandman um sorriso radiante. - Foi no ano passado, bem me lembro, e eu alinhava com a equipa de Kent. O senhor teria arrumado completamente connosco, se a chuva não tivesse vindo em nosso auxílio!

 

E nesse momento, graças ao auxílio divino, o nome do gigante acorreu à memória de Sandman.

 

- Estou a falar com Mr. Wainright, não é verdade?

 

- Ben Wainright em pessoa, senhor. - Wainright, que, a avaliar pelo vestuário, deveria ter sido surpreendido pela chamada de socorro em pleno jogo de críquete, passou a mão pelo cabelo.

 

- O senhor rebateu uma bola por sobre a meda de feno, recordo-me perfeitamente - declarou Sandman. - Pouco faltou para derrotar-nos sem o auxílio dos seus companheiros!

 

- Oh, nada que se comparasse às suas jogadas, senhor, nada que se comparasse.

 

- Benjamin Wainright! - trovejou a governante. - Não estás aqui para...

 

- Cala-te, Doris - reagiu Wainright, desengatilhando o mosquete. O capitão Sandman é um homem às direitas. - Os acólitos que o acompanhavam emitiram um murmúrio de concordância. Não lhes importava que Sandman houvesse invadido a residência legítima ou ilegitimamente, nem que tivesse enchido de fumo o piso superior: o que contava era o facto de ele ser um famoso jogador de críquete, de modo que agora todos se desfaziam em sorrisos, procurando agradar-lhe. - Ouvi dizer que o senhor desistiu do jogo - prosseguiu Wainright, aparentemente desolado com a ideia. - Será verdade?

 

- Oh não, de forma alguma - assegurou Sandman - o que se passa é que só estou disposto a participar em jogos limpos.

 

- E nos tempos que correm bem poucos o são, na verdade - reconheceu Wainright. - Mas muito gostaria de tê-lo hoje na nossa equipa, senhor. Estamos a levar uma boa sova, disso não restam dúvidas, de uma equipa de Hastings. Já fui ”queimado” - acrescentou, justificando assim o seu afastamento da partida.

 

- Não lhe faltarão outras oportunidades - consolou-o Sandman -, mas, para já, o que pretendo é levar esta jovem para o jardim e conversar um pouco com ela. A menos que haja aqui perto uma estalagem onde possamos discutir o assunto diante de uma boa caneca de cerveja? - sugeriu, ocorrendo-lhe que seria prudente levar Meg para fora dos domínios do duque de Ripon, antes que por ali aparecesse alguém versado nas mais elementares noções de jurisprudência, acusando-o de invadir propriedade alheia e explicando a Meg que nada a obrigava a falar com ele.

 

Wainright assegurou-lhe que o Castle and Bell servia perfeitamente para o efeito; e a governanta, furiosa com este acto de traição, desandou porta fora, para grande alívio de Sandman.

 

- Meg? - interpelou a rapariga. - Se quiser levar consigo para Londres alguma bagagem, vá buscá-la agora. Sargento? - Sandman estava perfeitamente ciente de que a rapariga pretendia protestar, ou talvez até voltar a

 

Nota: ”Queimado”, No jogo do críquete, o objectivo do arremessador é ”queimar” os rebatedores, ou seja, obrigá-los a serem substituídos por outro elemento da equipa, o que pode acontecer de diversas formas. (N. da T)

 

esbofeteá-lo, mas não lhe deu qualquer oportunidade. - Sargento? Cuide de que os cavalos bebam água suficiente. E parece-me boa ideia levar a carruagem para ao pé da estalagem. Sally querida, ajuda Meg a preparar a mala. E quanto a si, Mr. Wainright - disse Sandman com um sorriso, voltando-se para o batsman de Kent - dar-me-á a honra de conduzir-me à estalagem? Lembro-me tão bem das suas jogadas! Bem gostaria de discuti-las consigo. O confronto estava definitivamente pacificado. Apesar de bastante contrariada, Meg já não tentava fugir, e Sandman alimentava a esperança de que tudo terminasse em bem. Uma conversa franca, uma corrida até Londres, e a justiça - esse bem raro entre os mais raros - triunfaria.

 

Meg estava ressentida, amarga e furibunda. Cheia de rancor contra Sandman, por se ter metido na vida dela, mas, aparentemente, não menos rancorosa contra a vida em geral. Sentados face a face no jardim das traseiras do Castle and Bells, recusava-se mesmo a dirigir-lhe a palavra. De olhar perdido no vácuo, despejou um cálice de gim e logo de seguida, num tom de voz gemebundo, encomendou outro. Entretanto, mal Benjamin Wainright os deixou, ansioso por ir ver como estavam a correr as coisas para a sua equipa, Meg exigiu a Sandman que a levasse de volta a Cross Hall.

 

- As minhas queridinhas precisam de que alguém tome conta delas.

 

- As galinhas? - perguntou Sandman, incrédulo.

 

- Sempre adorei galinhas - replicou ela, em tom de desafio. Sandman, com a face ainda a arder da bofetada que ela lhe pregara,

 

abanou a cabeça, estupefacto.

 

- Não vou levar-te de volta para a casa - resmungou -, e já vais com muita sorte se não fores deportada para o resto dos teus dias. É isso que queres? Uma viagem até à Austrália e o resto da vida passado numa colónia penal?

 

- Vai à merda - replicou ela. Usava uma coifa branca e um simples vestido de sarja castanha, com penas de galinha agarradas. Um feio traje, porém a condizer perfeitamente com o seu rosto de facto repulsivo, e, no entanto, extraordinariamente arrogante. Por pouco Sandman não cedeu à admiração pelo espírito de luta dela, embora consciente de que tamanha combatividade iria tornar muito difícil dar-lhe a volta. Ela observava-o com o ar de estar a ler-lhe os pensamentos, e, aparentemente, deu-se conta da sua hesitação, porque soltou uma risada trocista e volveu o olhar para a carruagem do Clube dos Serafins, que, coberta da poeira da jornada, chegava naquele momento ao prado comunal. Berrigan tratou de ir dar de beber aos cavalos num charco, enquanto Sally, munida de meia dúzia de moedas que o sargento lhe confiara, se encarregou de ir comprar um jarro de cerveja e outro de gim. Um bando de pombos atarefava-se a debicar num campo de trigo recentemente ceifado, do lado oposto da sebe que delimitava o Castle and Bell, enquanto que os gaivões se empoleiravam no beiral da cobertura de colmo da estalagem.

 

- Gostavas muito da condessa, não é verdade? - perguntou Sandman a Meg.

 

Em resposta, ela cuspiu-lhe na cara, no preciso instante em que Sally saía da estalagem num trote enfurecido.

 

- Estupores! - barafustava. - Rais parta estes campónios! Recusam-se a servir mulheres!

 

- Bem, nesse caso vou lá eu - ofereceu-se Sandman.

 

- Não é preciso, vem um moço a caminho com as bebidas - explicou ela. - Não queriam atender-me, mas mudaram de ideias quando eu lhes disse umas certas verdades. - Com gesto de mão irritado, afastou de si uma vespa, a qual foi direita a Meg, levando-a a soltar um pequeno grito; depois, não conseguindo desembaraçar-se do insecto, a rapariga rompeu em pranto. - A que propósito é que estás a babar o avental? - perguntou-lhe Sally. Meg, atónita perante uma expressão que lhe era inteiramente desconhecida, limitou-se a fitá-la, de olhos esgazeados. - Quer dizer, por que raio estás a chorar? - traduziu Sally. - Não tens motivo nenhum para choradeiras. Tens andado a gozar a bela vida, enquanto o outro desgraçado passa os dias à espera que lhe passem uma corda pelo pescoço.

 

Neste ponto dos acontecimentos, o moço da taberna, manifestamente morto de medo de Sally, chegou junto deles com uma bandeja carregada com canecas, copos e jarros. Sandman encheu uma caneca com cerveja e estendeu-a a Sally.

 

- Não te parece boa ideia ir levá-la ao sargento? - sugeriu. - Eu fico aqui à conversa com a Meg.

 

- Ou seja, está a convidar-me a desamparar a loja - ofendeu-se Sally.

 

- Dá-me só uns minutos - pediu Sandman. Sally afastou-se com a caneca de cerveja, enquanto Sandman oferecia a Meg um cálice de gim, que ela se apressou a arrancar-lhe das mãos. - Gostavas muito da condessa, não gostavas? - tornou a perguntar-lhe.

 

- Não tenho nada a dizer-lhe - ripostou Meg -, absolutamente nada.

 

- Despejou o cálice de gim de um trago e estendeu a mão para o jarro, que Sandman imediatamente retirou do seu alcance. - Como é que te chamas? - perguntou-lhe.

 

- Não tem nada a ver com isso, trate mas é de me fornecer o raio da pinga! - rosnou ela, atirando-se ao jarro, que Sandman puxou ainda para mais longe.

 

- Como é que te chamas? - perguntou Sandman de novo, recebendo como resposta um murro no queixo. Retaliou despejando uma boa porção de gim no relvado, o que teve o condão de acalmar imediatamente Meg, que de pronto assumiu uma postura cordata. - Vou levar-te para Londres

- garantiu-lhe Sandman - e tens duas maneiras de chegares lá. Ou te portas como deve ser, e, nesse caso, serás bem tratada, ou insistes na má-criação, e, nesse caso, prego contigo na cadeia.

 

- Não me pode fazer isso! - desdenhou ela.

 

- Posso fazer o que me der na real gana! - vociferou Sandman, sobressaltando-a com a sua súbita irrupção de cólera. - Lembre-se, minha menina, de que sou um delegado do ministro do Interior, e de que está a ocultar-me provas relativas a um caso de assassínio. A cadeia? Já vais com muita sorte se te ficares pela cadeia, e não fores dali para a forca.

 

Por instantes, ela fulminou-o com o olhar, depois encolheu os ombros.

 

- O meu nome é Hargood - informou em tom agreste -, Margaret Hargood.

 

Sandman voltou a encher-lhe o copo de gim.

 

- Em que sítio nasceu, Miss Hargood?

 

- Em nenhum que lhe importe saber.

 

- O que eu sei - replicou Sandman - é que o ministro do Interior me encarregou de investigar o assassinato da condessa de Avebury. E fê-lo, Miss Hargood, por recear que esteja prestes a ser cometida uma tremenda injustiça.

 

Ao dizer isto, Sandman não conseguia deixar de reflectir só no dia em que as galinhas tivessem dentes o visconde de Sidmouth se preocuparia com injustiças infligidas a membros das classes inferiores; mas seria essa a última coisa que admitiria perante aquela rapariga disforme que despejava a sua segunda dose de gim como se estivesse a morrer de sede.

 

- O ministro acredita, tal como eu, que Charles Corday nunca tocou com um dedo no cabelo da sua patroa - prosseguiu Sandman -, e estamos convencidos de que a menina poderá confirmá-lo.

 

Meg estendeu-lhe o copo vazio, sem dizer palavra.

 

- Estavas lá, não estavas? - insistiu Sandman. - Quer dizer, no dia em que a condessa foi assassinada?

 

Ela acenou-lhe com o copo, reclamando nova dose, mas manteve-se em silêncio.

 

- E sabes perfeitamente - prosseguiu Sandman - que o Charles Corday não praticou o crime.

 

Nesse momento a atenção da rapariga foi atraída por uma maçã meio podre, decerto caída da árvore e arrastada pelo vento até aos seus pés. Ao reparar que uma vespa se passeava sobre a casca engelhada do fruto, Meg soltou um grito, largou o copo e levou as mãos à cara, numa desesperada tentativa de proteger-se. Sandman pisou a vespa, esmagando do mesmo passo a maçã.

 

- Meg, por favor - disse.

 

- Não vou contar-lhe absolutamente nada - persistiu ela, continuando embora a perscrutar o solo com temor, aparentemente aterrorizada pela hipótese de a vespa poder ressuscitar.

 

Sandman pegou no copo que ela deixara tombar, encheu-o de gim e estendeu-lho.

 

- Se estiver disposta a cooperar connosco - declarou-lhe, em tom oficial - posso garantir-lhe que nada de mau virá a acontecer-lhe.

 

- Não sei nada acerca desse assunto - teimou ela -, não sei nada de assassínio nenhum - desafiou Sandman, com um olhar duro como pedras.

 

Sandman soltou um suspiro.

 

- Quer ver morrer um homem inocente?

 

Desta feita, a rapariga nem se dignou responder-lhe; deu meia volta, afastou-se dele e pôs-se mirar o horizonte para lá da vedação. Sandman sentiu a cólera a trepar por ele. Só lhe apetecia bater-lhe e envergonhava-se da intensidade desse impulso, tão violento que desatou a caminhar de um lado para o outro.

 

- Por que é que está a viver em casa do marquês de Skavadale? - perguntou, sem obter qualquer resposta. - Está convencida - prosseguiu - de que o marquês vai continuar a protegê-la? A ele só lhe convém que você lá fique até ao momento em que enforcarem o homem errado. Uma vez Corday morto e enterrado, de que é que julga que irá servir ao marquês? Ele tratará mas é de matá-la, para impedir qualquer hipótese de você o denunciar. Muito me espanta, aliás, que não a tenha ainda assassinado. Esta última observação despertou, por fim, uma certa reacção na rapariga - mais que não fosse, voltar-se e encará-lo de frente.

 

- Puxa pela cabeça, moça! - apelou Sandman, impetuosamente. - Por que motivo é que o marquês te poupou até hoje a vida? Porquê?

 

- Não sabe nada de nada, pois não? - replicou Meg, sarcasticamente.

 

- Eu digo-te o que é que sei - respondeu Sandman, com a cólera prestes a irromper em violência. - Sei que está nas tuas mãos salvar um homem inocente da forca, sei que não estás disposta a fazê-lo, e sei que isso te coloca na posição de cúmplice do assassinato, o que bem te pode levar à forca, menina. - Sandman aguardou o efeito destas palavras, mas Meg permaneceu de boca fechada e ele compreendeu que havia fracassado. O facto de se ter deixado arrastar pela ira era em si mesmo um vergonhoso sinal de fracasso, só em parte desculpável pela certeza de que, caso Meg não se dispusesse a contar o que sabia, não havia salvação possível para Corday. Meg podia derrotá-lo recorrendo apenas à arma do silêncio, e, para cúmulo, ele confrontava-se agora com um monte de complicações - estúpidas e triviais dificuldades a resolver. Pretendia levar Meg de volta a Londres o mais depressa possível, mas Mackeson alegava que os cavalos se encontravam demasiado cansados para trotarem sequer uma milha, e, no fundo, Sandman dava-lhe razão. Mas isso implicava que teriam de passar a noite na aldeia, com três reféns à sua guarda para vigiar e alimentar - já sem falar nos cavalos. Enfiaram Meg na carruagem, trancando em seguida janelas e portinholas por meio de cunhas. A rapariga passou pelas brasas, embora por duas vezes acordasse Sandman a meio da noite com berros e punhadas às janelas. Por fim, estilhaçou uma e preparava-se para escapulir-se através dela, quando Sandman ouviu um grunhido, um grito abafado, e, em seguida, um baque.

 

- Que se passa aqui? - perguntou.

 

- Nada, já está tudo resolvido - respondeu-lhe o sargento Berrigan. Berrigan, Sandman e Sally tinham resolvido dormir no relvado, montando guarda a Mackeson e a Billy, apesar de nenhum deles manifestar já qualquer espírito de resistência; antes pareciam confusos, assustados e dóceis. Lembravam a Sandman um coronel francês que ele e os seus homens haviam feito prisioneiro nas montanhas da Galiza, um sujeito espalhafatoso que não cessara de queixar-se e de barafustar contra as condições do cativeiro, até que, exasperado, o coronel de Sandman resolvera libertá-lo só para se ver livre dele.

 

- Desande daqui para fora - dissera-lhe, em francês -, é um homem livre. - E, posto isto, o coronel francês, apavorado pela perspectiva de cair nas mãos dos camponeses espanhóis, suplicara-lhe que voltasse a prendê-lo. Também Mackeson e Billy, dispondo de excelentes oportunidades para fugir aos seus exaustos captores, nem sequer tentaram, demasiado assustados como estavam por se encontrarem numa aldeia desconhecida, imersos na escuridão e reduzidos a regressar a Londres pelos seus próprios meios.

 

- Então o que fazemos agora? - perguntou Berrigan a Sandman, na alvorada da breve noite de Verão.

 

- Levamo-la à presença do ministro - respondeu Sandman, desanimado -, e esperamos que ele lhe pregue um bom susto.

 

De nada serviria, pensou, mas que alternativa lhe restava? Algures no escuro um cão latiu, e, passando o turno de vigilância a Berrigan, Sandman deixou-se adormecer.

 

LOGO QUE A ALVORADA ROMPEU, o portão principal da prisão de Newgate foi desaferrolhado e aberto, e as diversas estruturas que compunham o cadafalso começaram a ser levadas para o Old Bailey. O gradeamento destinado a vedar o espaço do patíbulo foi transportado em primeiro lugar e colocado no meio da rua, a fim de desviar o pouco trânsito que houvesse entre Ludgate Hill e Newgate Street às primeiras horas de uma manhã de domingo. William Brown, o director de Newgate, veio até ao portão, bocejou, coçou a careca, acendeu um cachimbo, e afastou-se para dar passagem às pesadas traves que formavam a estrutura do cadafalso.

 

- Vamos ter um lindo dia, Mr. Pickering - comentou para o contramestre.

 

- E bem quente, senhor.

 

- Com bastante cerveja a correr pela rua.

 

- Deus seja louvado por isso, senhor - disse Pickering, voltando-se em seguida para observar a fachada da prisão. Apontou para uma janela situada precisamente em cima da Porta dos Devedores. - Estava a pensar, senhor, que pouparíamos muito trabalho se colocássemos uma plataforma debaixo daquela janela. Uma estrutura permanente, entende? Colocávamos lá um alçapão com uma trave por cima, e, assim deixávamos de ter de passar a vida a montar o cadafalso.

 

O director olhou para cima, ponderando a questão.

 

- Está a sugerir uma bela maneira de perder o seu próprio emprego, Mr. Pickering.

 

- Antes prefiro passar os meus domingos em casa, senhor, na companhia de Mrs. Pickering. E se a plataforma estivesse colocada ali no alto, senhor, não impediria o trânsito e proporcionaria ao público uma melhor perspectiva do espectáculo.

 

- Talvez até demasiado boa? - contrapôs o director. - Não tenho a certeza de que seja muito conveniente oferecer à multidão uma visão clara das convulsões da morte. - Com o cadafalso montado no sítio actual, e flanqueado por panejamentos, só as pessoas que alugassem lugares nos pisos superiores das casas fronteiras à prisão tinham a oportunidade de contemplar lá do alto o fosso, e acompanhar assim o processo de sufocação até à morte dos homens e mulheres pendentes da corda.

 

- Em Horsemonger Lane toda a gente pode assistir às convulsões - lembrou Pickering -, e o povo aprecia vê-los morrer com todos os pormenores! É por isso que gostavam tanto de Tyburn. Em Tyburn não lhes escapava nada!

 

No século passado, os condenados à forca eram levados de Newgate em carroças até uma vasta planura em Tyburn, onde se erguia um cadafalso fixo, provido de três longas traves e rodeado por uma arena de lugares sentados. A viagem de Londres até lá durava duas horas, com pausas junto das estalagens à beira da estrada, onde a populaça obstruía o caminho. O ambiente carnavalesco que sempre envolvia os enforcamentos em Tyburn repugnava às autoridades oficiais, o que, conjugado com a sua convicção de que as execuções levadas a cabo diante de Newgate se revestiriam de maior dignidade, as levara a proceder à demolição do velho cadafalso triangular, pondo assim termo à tumultuosa jornada.

 

- Assisti ao último enforcamento em Tyburn - disse Pickering. - Tinha só sete anos, nem mais um dia, e nunca hei-de esquecê-lo!

 

- A ideia é ser um facto memorável - concordou o director -, de outra forma não serviria como factor dissuasor do crime, pois não? Acho que tem toda a razão, Mr. Pickering, e transmitirei a sua sugestão ao conselho municipal.

 

- Bondade a sua, senhor, muita bondade - agradeceu Pickering, levando os dedos à testa. - Portanto, vamos ter um dia bastante atarefado amanhã, não é verdade, senhor?

 

- São só dois - respondeu o director -, mas um deles é o tal pintor, o Corday. Lembra-se dele? O sujeito que apunhalou a condessa de Avebury. É capaz de atrair uma boa multidão - suspirou.

 

- E o bom tempo ajuda, senhor.

 

- Lá isso é verdade - concordou o director -, há-de ajudar à festa, caso se mantenha assim tão agradável. - Afastou-se para facilitar o caminho a uma das criadas de cozinha às ordens de sua esposa, que, transportando um enorme jarro de louça, se apressava escadas abaixo, ao encontro de uma jovem leiteira carregada com dois baldes, suspensos de um pau sobre os ombros. - Cheira o leite, Betty - gritou-lhe à passagem -, cheira-o bem! Na semana passada trouxeram-nos algum azedo.

 

As peças do cadafalso foram devidamente montadas e encaixadas umas nas outras, e, entretanto, os panejamentos laterais e a cortina de espesso tecido preto que haveriam de envolver o patíbulo foram sendo empilhados no chão. O director bateu com o seu cachimbo na maçaneta negra da porta, e regressou aos seus aposentos a fim de trocar de roupa para o serviço religioso matinal. Não havia muito movimento em Old Bailey; apenas meia dúzia de ociosos miravam distraidamente os trabalhos de montagem do cadafalso, enquanto um grupo de meninos de coro, que se apressavam rumo à igreja do Santo Sepulcro, estacava embasbacado perante o espectáculo da grande trave da forca, com os seus ganchos de ferro, a ser trazida do interior da prisão. Um criado do Magpie and Stump levou aos trabalhadores uma bandeja carregada de canecas de cerveja - uma gentileza da parte do dono da estalagem, que iria tratar de manter os doze homens bem abastecidos durante todo o dia. O hábito de fornecer cerveja grátis aos montadores do cadafalso era não só tradicional como também compensador, porque a montagem da forca significava uma avalanche de clientes na manhã seguinte. Para as bandas de leste, em Wapping, um fabricante e vendedor de velas abriu a porta das traseiras do seu estabelecimento, que, dado ser domingo, se encontrava encerrado ao público, para atender um cliente muito especial.

 

- Parece que vamos ter um belo dia amanhã, Jemmy - disse o homem das velas.

 

- Vai ser um convite à multidão - concordou Mr. Botting, penetrando na loja por entre fieiras suspensas de cordas e de bigotas -, e eu adoro multidões.

 

- Um profissional competente merece uma audiência à altura - disse o homem das velas, encaminhando o cliente até uma mesa sobre a qual se encontravam já duas cordas de cânhamo, cada qual com cerca de três metros e meio de comprimento, aguardando a inspecção de Botting. - Cordas de dois centímetros e meio de espessura, Jemmy, bem fervidas e oleadas - garantiu o fabricante.

 

- Excelentes, Leonard, excelentes - replicou Botting, abaixando-se para cheirar as cordas.

 

- És capaz de adivinhar de onde vieram? - perguntou o comerciante, muito orgulhoso das duas cordas que fervera para as expurgar de impurezas, amaciando-as em seguida com óleo de linhaça para torná-las maleáveis. Posto isso, formara carinhosamente um laço em cada uma delas, e atara nós nas respectivas pontas.

 

- Hum, parece-me cânhamo de Bridport - sugeriu Botting, embora soubesse perfeitamente que não era. Esforçava-se apenas por ser simpático com o fabricante.

 

O homem soltou uma casquinada de gozo.

 

- Pois de facto ninguém diria que não é cânhamo de Bridport, Jemmy, mas a verdade é que não é. Estas cordas são feitas de sisal, bom sisal entretecido.

 

- Não me digas! - Botting, com o rosto todo apanhado por tiques nervosos, debruçou-se para examinar mais de perto as cordas. Tinha ordens para empregar apenas o melhor material de Bridport, e a conta que tencionava apresentar ao conselho municipal incluiria sem dúvida duas caríssimas cordas desse cânhamo, mas, por outro lado, sempre o indignara a ideia de desperdiçar boas cordas com aquela escumalha dos condenados à forca.

 

- Vieram de uma barrica de adriças de um navio carvoeiro - elucidou o comerciante. - Uma bodega qualquer vinda da África ocidental, suponho, mas, depois de bem fervida, oleada e revestida com um pouco de graxa preta, quem notará a diferença? Uma abébia para ti, Jemmy.

 

- Bom negócio - reconheceu Botting. Pagaria dois xelins pelas cordas e debitá-las-ia na contabilidade por nove xelins e seis pence; em seguida, após terem cumprido a sua Missão, trataria de vendê-las aos pedaços pelo melhor preço de mercado. Embora nenhum dos dois homens destinados à forca na manhã seguinte desfrutasse de grande popularidade, a curiosidade despertada pelo assassinato da condessa de Avebury bem poderia elevar o preço da corda de Corday até aos seis pence por polegada. De qualquer forma, haveria um bom lucro a arrecadar. Testou o nó corredio de uma das cordas a fim de certificar-se de que apertaria bem, e fez um aceno de satisfação. - Vou também precisar de cordas vulgares para amarrá-los - acrescentou -, quatro delas.

 

- Tenho uma barrica de amarras suecas à tua disposição, Jemmy - sossegou-o o fabricante de velas. - Com que então, continuas a ser tu a atá-los pelas mãos e cotovelos?

 

- Mas não por muito mais tempo! - garantiu Botting. - Agradecido! Esta última exclamação devia-se ao facto de o interlocutor ter enchido duas canecas com brandy. - Aquando da última dança, apareceram por lá dois membros do conselho municipal, fazendo de conta que era só pelo gozo, mas eu topei-os à distância - prosseguiu Botting. - E um deles era Mr. Logan, uma excelente pessoa. Compreende perfeitamente as necessidades. Já o outro, via-se bem que preferiria estar a milhas dali. Acabou por vomitar, nada menos! Não suportou a cena! - desdenhou, sufocando o riso. - Mas, quando aquilo acabou, Mr. Logan piscou-me o olho e disse-me que iam dar-me um ajudante.

 

- Todos os profissionais precisam de um ajudante.

 

- Lá isso precisam, é bem verdade. - Jemmy Botting despejou o seu brandy de um trago, pegou nas cordas para a forca e, em seguida, acompanhou o comerciante até à barrica que continha as amarras. - Trabalhinho fácil para amanhã de manhã, hem? - comentou. - Encontramo-nos lá?

 

- Não me parece, Jemmy.

 

- A seguir beberemos umas cervejolas - aliciou-o Botting - e almoçaremos umas belas costeletas.

 

Saiu dez minutos depois, com as cordas e as amarras bem guardadas na mala. Agora só lhe faltava ir buscar dois sacos de algodão a uma costureira para ficar completamente preparado. Botting era um genuíno carrasco inglês, e na alvorada da manhã seguinte desempenharia a sua função.

 

Sandman estava de péssimo humor naquela manhã de domingo. Mal tinha pregado olho durante a noite, sentia-se agressivo e tenso, e as lamúrias de Meg ainda mais lhe agravavam a irritação. Também Berrigan e Sally não pulavam de alegria, mas tiveram o bom senso de guardar o silêncio, ao passo que Meg, após infinitas queixas contra o facto de ser arrastada para Londres contra a sua vontade, desatou aos guinchos de protesto, quando Sandman a acusou brutalmente de egoísmo e estupidez.

 

Billy, o moço de estrebaria, fora deixado para trás, na aldeia. Atendendo a que dificilmente conseguiria regressar a Londres antes de a carruagem lá chegar, não poderia avisar o Clube dos Serafins acerca dos acontecimentos, e, portanto, não havia perigo em abandoná-lo.

 

- Como é que hei-de voltar para casa? - perguntou, num queixume.

 

- Faz como todos nós fizemos para ir de Lisboa até Toulouse - recomendou-lhe Sandman, agastado. - Mete os pés ao caminho.

 

Os cavalos encontravam-se num estado lastimoso e exaustos. Tinham andado a debicar a relva do prado comunal, desviando-se das arremetidas dos gansos contrariados pela sua intromissão, mas, sendo animais habituados a alimentar-se de aveia e trigo, e não de ervinhas, manifestaram uma preguiçosa relutância ao serem atrelados ao coche. Porém, depressa o chicote de Mackeson os obrigou a reagir, e, na altura em que o Sol se ergueu a leste sobre o arvoredo, já corriam para norte a todo o vapor. As badaladas de um sino de igreja atroaram o céu estival, onde nuvens altas e brancas derivavam para oeste.

 

- Costuma frequentar a igreja, capitão? - perguntou Berrigan, convencido de que o bom ritmo a que avançavam teria já melhorado a disposição de Sandman.

 

- Claro que sim.

 

Sandman partilhava a boleia com Berrigan e Mackeson, reservando o interior da carruagem para Sally e Meg. A ideia de ficarem as duas a sós lá dentro tinha partido de Sally.

 

- Ela não me mete medo - dissera Sally -, e, além disso, quem sabe se não se abrirá com uma rapariga?

 

- Não sou muito de ir à igreja - declarou Berrigan. - Não tenho tempo para isso, mas gosto de ouvir os sinos. - Em redor, vindas de todos os lados, soavam as badaladas da matina, tocadas nas torres e pináculos de igrejas ocultas pelos espessos bosques de Kent. Um cabriole passou por eles em grande velocidade, carregado de crianças vestidas com os seus melhores trajes domingueiros, e munidas dos seus livros de oração para a prática matinal. As crianças acenaram-lhes entusiasticamente.

 

À hora de início do cerimonial religioso, os sinos calaram-se. A carruagem chegou a uma aldeia cuja rua principal se encontrava deserta. Ao passarem diante da igreja local, chegou aos ouvidos de Sandman, por entre o ressoar do trote dos cavalos, a música de um violoncelo que entoava o velho hino: ”Acordai a minha alma com o sol que todos os dias cumpre a sua volta.” Recordava-se bem de o ter cantado com os seus homens na manhã da batalha de Salamanca, com as vozes graves e ásperas a elevar-se para um céu onde o Sol em ascensão depressa se tornou impiedoso, abrasando de calor um dia incendiado pela morte.

 

Mackeson conduziu a equipagem até um vau situado do lado oposto da aldeia, onde os cavalos pararam para beber, enquanto Sandman baixava os degraus do veículo a fim de permitir a Sally e a Meg descerem para esticar as pernas. Olhou interrogativamente para Sally, que abanou a cabeça.

 

- A tipa é mesmo casmurra - murmurou para Sandman.

 

Meg desceu, fitou Sandman, e em seguida inclinou-se para levar um pouco de água à boca. Depois resolveu sentar-se na margem, contemplando as libelinhas.

 

- Mato-te - disse a Sandman -, se descubro que as raposas comeram as minhas galinhas.

 

- Importas-te mais com as tuas galinhas do que com a vida de um homem inocente?

 

- Por mim, podem enforcá-lo à vontade. - Tinha perdido a touca, e as finas farripas do seu cabelo apresentavam-se em desordem.

 

- Vais ser obrigada a falar com outras pessoas em Londres - disse-lhe Sandman - e elas não se vão mostrar meigas contigo.

 

A rapariga não respondeu. Sandman soltou um suspiro.

 

- Eu sei o que aconteceu - afirmou. - Estavas no quarto da condessa naquele dia, com Corday a pintar-lhe o retrato, quando ouviste alguém a subir pela escada das traseiras. Apressaste-te então a levar Corday dali para fora pela escada principal, não foi? Deixaste ficar a tela e os pincéis no quarto e arrastaste o homem para a rua, porque um dos amantes da condessa estava a chegar, e eu bem sei de quem se tratava. Era o marquês de Skavadale.

- Meg franziu as sobrancelhas, por instantes pareceu prestes a dizer algo, mas optou por continuar a fitar o horizonte distante. - Ora o marquês de Skavadale - prosseguiu Sandman - está noivo de uma herdeira riquíssima, e precisa desesperadamente do dinheiro que esse casamento lhe proporcionará, porque a família dele se encontra praticamente arruinada. Porém, a rapariga romperia o noivado caso viesse a saber que ele mantinha um caso com a condessa, motivo pelo qual a condessa andava a chantageá-lo. Ela ganhava a vida desse modo, não era?

 

- Ai era? - perguntou Meg, indiferente.

 

- Tu eras a alcoviteira dela, não é verdade?

 

Meg voltou para ele os seus olhos pequeninos e amargos.

 

- Eu era a sua protectora e amiga de peito, e Deus sabe como ela precisava de uma amiga. Deixava-se arrastar pela bondade contra os seus próprios interesses, essa é que é a verdade.

 

- Mas tu não a protegeste, pois não? - acusou-a Sandman rudemente. - Permitiste que o marquês a matasse, e só depois descobriste a verdade. Ainda o encontraste no quarto? Se calhar até ouviste os gritos da condessa a ser assassinada? Ou talvez tenhas mesmo assistido ao assassínio? Portanto, ele tratou de esconder-te bem longe dali e aliciou-te com promessas de dinheiro. Mas, mais dia, menos dia, Meg, ele vai fartar-se de comprar o teu silêncio. Só lhe interessa manter-te viva até o Corday ser enforcado, porque, depois disso, ninguém acreditará que o culpado foi outro.

 

Meg esboçou uma amostra de sorriso.

 

- Nesse caso, porque é que ele não me matou logo ali e agora, hem? desafiou, lançando a Sandman um olhar provocador. - Se matou a condessa, por que não haveria de matar a criada? Vá, responda-me!

 

Mas Sandman não dispunha de qualquer resposta para essa questão. Tratava-se, de facto, da única coisa para a qual não encontrava explicação, embora tudo o resto se encaixasse perfeitamente, e ele acreditasse até que, a devido tempo, mesmo esse mistério seria desvendado.

 

- Quem sabe se ele não gosta de ti? - sugeriu.

 

Meg dirigiu-lhe um olhar incrédulo durante alguns segundos, depois soltou uma casquinada rancorosa.

 

- Um homem da laia dele gostar de mim? - perguntou, amarga. - Nem sonhar. - Afastou um insecto que lhe pousara na saia. - Deixou-me ir tomar conta da capoeira, nada mais. Gosto de galinhas. Sempre gostei de galinhas.

 

- Capitão! - exclamou Berrigan que, do alto da boleia, perscrutava o horizonte para norte. - Capitão! - chamou de novo. Sandman pôs-se de pé e encaminhou-se para a carruagem, de onde por seu turno dirigiu o olhar na direcção norte. A paisagem desdobrava-se em campos de cultivo até uma colina baixa e espessamente arborizada, em cujo topo, precisamente no ponto onde a estrada para Londres se desenhava na linha do horizonte, rasgando o arvoredo, avistou um grupo de homens a cavalo. - Têm estado a observar-nos lá do alto, quais dragões franceses a tentar avaliar com quantos casacas-vermelhas teriam de defrontar-se.

 

Sandman não dispunha de binóculos, e os cavaleiros encontravam-se a demasiada distância para poder distingui-los com clareza. Percebeu apenas que seriam uns seis ou sete, e ficou com a impressão - mas não mais do que isso - de que dirigiam a sua atenção para o coche, e que pelo menos um deles empunhava binóculos.

 

- Podem não ter nada a haver connosco - comentou.

 

- É possível - admitiu Berrigan -, só que Lord Robin Holloway aprecia trajos de montar com casaca branca, e possui um grande cavalo negro.

 

O homem central do grupo envergava uma casaca branca, e montava um grande cavalo negro.

 

- Rais parta - comentou Sandman calmamente. Teria Flossie dado à língua no Clube dos Serafins? Teria informado os respectivos membros da intrusão de Sandman? Nesse caso, decerto que o haviam relacionado com o desaparecimento do coche, e, inquietos acerca de Meg, refugiada em Kent, bem poderiam ter enviado uma expedição para resgatá-la e impedir que Sandman a levasse para Londres. Mas, enquanto se perdia nestas conjecturas, viu o grupo de cavaleiros esporearem as montadas e desaparecerem na espessura do arvoredo. - Usa o chicote! - ordenou a Mackeson. - Sargento! Meta a Meg na carruagem! Despache-se!

 

Quanto tempo levariam os cavaleiros a alcançá-los? Dez minutos? Provavelmente ainda menos. Sandman lembrou-se de inverter a trajectória da carruagem, a fim de regressarem à aldeia, de onde partiam inúmeros atalhos; mas não havia espaço suficiente para o veículo dar a volta, de modo que, mal trancaram Meg no interior, MacKeson apressou os cavalos, e Sandman indicou-lhe que virasse no primeiro desvio da estrada. Qualquer vereda ou carreiro rural serviria para o efeito, mas, desgraçadamente, não aparecia nenhum, e, à medida que o coche avançava aos solavancos, Sandman esperava a todo o momento ver surgir junto deles o grupo de cavaleiros. Olhava em frente, atento à poeirada que os cascos dos cavalos deveriam levantar por sobre as árvores. Do mal, o menos, a região que atravessavam estava coberta de bosques cerrados, o que significava que a carruagem permaneceria oculta para os seus perseguidores praticamente até ao momento de se cruzarem. E então, quando Sandman começava já a desesperar de encontrar qualquer saída, deparou-se-lhes à direita uma estreita vereda, e ordenou a Mackeson que seguisse por ali.

 

- É uma velha estrada, e está em péssimo estado - avisou-o Mackeson.

 

- Cale-se e vire!

 

O coche meteu-se pelo atalho, dando a curva em equilíbrio precário e por pouco não chocando contra um nodoso ramo de carvalho ao efectuar a manobra.

 

- Espero bem que isto vá dar a algum lado - comentou Mackeson, em tom jocoso - porque, se não, estamos entregues aos bichos.

 

O coche balançava-se e dava saltos alarmantes, porque o atalho não passava de um velho trilho de carroças traçado na lama seca; porém, corria entre sebes espessas e vastos pomares, e, a cada jarda que avançavam, afastavam-se mais da estrada de Londres. Depois de percorrerem umas duzentas jardas, Sandman ordenou a Mackeson que parasse, e trepou à capota da carruagem para verificar se eram seguidos, mas não avistou quaisquer cavaleiros na sua peugada. Seria que os seus receios o haviam levado a exagerar as precauções? Foi então que Meg desatou aos gritos, e Sandman, apressando-se a rastejar da capota para baixo, ouviu o som de uma bofetada. A gritaria cessou no momento em que ele saltava para o chão. Berrigan baixou a janela, que se encontrava intacta.

 

- Foi só uma maldita vespa - explicou, atirando o insecto morto para as moitas. - A avaliar pelo estardalhaço que ela fez, qualquer um julgaria que se tratava da porra de um crocodilo!

 

- Pois eu julguei que ela estivesse a matar-te - declarou Sandman. Preparava-se para trepar de novo para boleia, quando Berrigan o deteve com um gesto de alerta. Estacou, apurou o ouvido e chegou-lhe o som de cascos de cavalos.

 

Mas o som desvaneceu-se na distância. O grupo de cavaleiros prosseguia o seu caminho pela estrada principal, tendo desprezado aquela estreita vereda. Sandman levou a mão ao punho da pistola enfiada no seu cinto, e recordou certo dia nos Pirinéus, quando, chefiando um pequeno esquadrão de batedores, fora surpreendido e perseguido por um grande grupo de dragões. Perdera três dos seus homens nesse dia, todos três retalhados pelo gume afiado dos sabres franceses, e ele próprio só conseguira escapar porque um oficial espanhol acorrera em seu auxílio com uma dúzia de fuzileiros que afugentaram os cavaleiros a tiro. Mas hoje não havia qualquer hipótese de lhe aparecer por ali um fuzileiro amigo. Lembrar-se-iam os cavaleiros de pesquisar o atalho? Apesar de o ruído de cascos de cavalo se ter sumido ao longe, Sandman hesitava em mandar a carruagem prosseguir caminho, por causa da barulheira das rodas; mas, reflectindo que os gritos de Meg haviam sido ainda muito mais sonoros, e, no entanto, não tinham atraído os seus perseguidores, trepou para a capota e fez sinal a MacKeson para arrancar.

 

- Com calma, sim? - recomendou. - Fá-la apenas rolar.

 

- Ora outra coisa não posso eu fazer - replicou Mackeson, apontando para a frente, onde, a curta distância, o atalho inflectia bruscamente para a esquerda. - Vou ser obrigado a sair do trilho, e, mesmo assim, será uma curva e pêras.

 

- Trata de ires devagarinho. - Sandman ergueu-se na boleia e inspeccionou a retaguarda, mas não havia cavaleiros à vista.

 

- Bem, que vamos fazer agora? - perguntou Mackeson.

 

- Há-de haver uma quinta por aí algures - retorquiu Sandman. - Entretanto, na pior das hipóteses, desatrelamos os cavalos, empurramos a carruagem até ela dar a curva, e depois voltamos a atrelá-los.

 

- Esta carruagem não foi feita para andar na estrada - observou Mackeson em tom reprovador. No entanto, deu um estalido com a língua e um toque quase imperceptível às rédeas. A vereda era estreita e a curva extremamente apertada, mas os cavalos abordaram-na serenamente. A carruagem deu uma guinada quando as rodas embateram contra os bordos da vereda, e os cavalos, sentindo o obstáculo, abrandaram o esforço. Mackeson fez estalar o chicote sobre as suas cabeças, torceu as rédeas, e, nesse preciso instante, a roda esquerda dianteira resvalou para um valado oculto pelas ervas e por um montão de folhas mortas, a carruagem inclinou-se perigosamente, Mackeson perdeu o equilíbrio, e foi Sandman quem, lá do alto, deitou a mão ao varal. Os cavalos relincharam em protesto e Meg desatou outra vez aos gritos, enquanto os raios da roda afundada na cova oculta, sobre os quais recaía agora todo o peso da carruagem, começaram a partir-se um atrás do outro, até que, como era inevitável, o próprio aro se desfez e a carruagem se enfiou de borco no valado. Milagrosamente, Mackeson conseguira aguentar-se no seu posto. - Bem lhe disse que ela não foi feita para o campo - comentou, ressentido -, é um veículo citadino.

 

- Agora já não é veículo de espécie nenhuma - contrapôs Sandman, tratando de ajudar as duas mulheres a saírem do interior da carruagem, inclinada a pique.

 

- E o que tenciona fazer agora?

 

Sandman vacilava sobre a capota do coche, perscrutando o caminho atrás deles, com os ouvidos bem alerta. A roda da carruagem quebrara-se com grande estrépito, ao qual se seguira o estrondo da própria carruagem tombando na valeta. Convenceu-se de que escutava de novo um tropel de cavalos.

 

Sacou da pistola.

 

- Atenção! - rugiu baixinho. -Todos calados!

 

Agora já não lhe restavam dúvidas de que o que lhe chegava aos ouvidos era realmente o som de cascos, e que o tropel se aproximava rapidamente. Engatou a pistola, saltou para o chão e aguardou.

 

O reverendo Horace Cotton, capelão de Newgate, dava a impressão de encolher-se no púlpito, de olhos fechados, como se estivesse a reservar todas as suas energias físicas e mentais para uma suprema provação. Inspirou fundo, cerrou os punhos, e soltou um grito angustiado que ecoou na alta abóbada da capela da prisão.

 

- Fogo! - gemeu. - Fogo, e dor, labaredas e agonia! Aguardam-vos todos os bestiais tormentos do diabo! O fogo eterno, dores inauditas, torrentes de choro inconsolável, dentes a ranger. E, quando a dor vos parecer insuportável, quando julgarem que nenhuma alma, nem mesmo as de miseráveis como vós, seria capaz de aguentar semelhantes torturas por mais um único instante, hão-de compenetrar-se de que aquilo é só o princípio!

 

- Deixou a última frase a pairar por momentos na capela, antes de abaixar a voz num tom de doce compreensão, que mal passava de um murmúrio.

 

- É apenas o princípio da vossa agonia. Apenas o início de um castigo que vos afligirá por toda a eternidade. Mesmo depois de todas as estrelas do céu terem morrido e de novos firmamentos despontarem, heis-de continuar a retorcer-vos entre labaredas de fogo que vos retalharão as carnes como um gancho do talho, ou como um tição em brasa. - Inclinou-se sobre o púlpito, de olhos esgazeados, contemplando do alto a Bancada Negra, onde os dois condenados se encontravam sentados diante do caixão pintado de preto. - Não passareis de meros brinquedos nas mãos dos demónios - garantiu -, e eles se encarregarão de torturar-vos, queimar-vos, espancar-vos e rasgar-vos as carnes, num suplício sem fim. Uma agonia interminável. Um tormento sem mercê.

 

O silêncio que reinava na capela foi quebrado pelo som das marteladas do cadafalso a ser erigido no exterior, e também pelos gemidos de Charles Corday. O reverendo Cotton endireitou-se no púlpito, satisfeito por ter conseguido quebrar o ânimo a um dos dois malditos. Do alto do púlpito, contemplou os bancos onde se sentavam os restantes prisioneiros, alguns aguardando a sua vez de virem por seu turno a ocupar a Bancada Negra, outros limitando-se a passar o tempo até serem embarcados para a Austrália e para o olvido. Em seguida, o reverendo ergueu o olhar para as galerias superiores, onde, como de costume na véspera de um dia de enforcamentos, se aglomerava uma multidão ávida, composta por devotos dispostos a pagar bom dinheiro para assistirem ao serviço fúnebre dos condenados. Como a manhã estava quente, desde os primeiros momentos do cerimonial que algumas mulheres da assistência procuravam refrescar-se abanando os leques; mas o temor era geral. Toda a gente permanecia imóvel e silenciosa, subjugada pelas terríveis palavras que o capelão encadeava, qual teia mortal tecendo-se sobre as cabeças dos dois condenados.

 

- Não sou eu quem vos condena a esta sorte - advertiu o reverendo Cotton -, não fui eu a determinar o tormento das vossas almas. Foi Deus! O vosso destino foi decretado pelo Senhor! Por toda a eternidade, os santos hão-de reunir-se nas margens do rio de cristal, entoando cânticos de louvor a Deus, enquanto que vós jamais cessareis de soltar gritos de agonia!

 

Charles Corday soluçava, de cabeça baixa e com os frágeis ombros sacudidos pelos soluços, que faziam tilintar a corrente de ligação entre as grilhetas dos pés e o aro de ferro que lhe envolvia a cintura. Entretanto, o director da prisão, instalado no seu banco reservado à sua família, atrás da Bancada Negra, franzia o cenho. Não estava lá muito convencido de que aqueles famosos sermões contribuíssem para a manutenção da ordem na cadeia, dado que reduziam homens e mulheres a um estado de terror irracional, ou, em alternativa lhes despertavam desesperados ímpetos de revolta. Agradar-lhe-ia infinitamente mais um serviço fúnebre piedoso e sóbrio, debitado num murmúrio embalador; mas o que Londres esperava do capelão era um espectáculo de primeira, e Cotton sabia perfeitamente como corresponder à expectativa.

 

- Amanhã - tonitruou Cotton - sereis levados para o meio da rua, erguereis o olhar e contemplareis a claridade do céu divino pela derradeira vez. Em seguida, os vossos olhos serão tapados por uma venda, sentirão o nó corredio envolver-vos o pescoço, e escutarão o adejar das grandes asas do diabo, revoluteando sobre as vossas cabeças à espera de apoderar-se das vossas almas. ”Acudi-me, Senhor!”, implorareis em altos gritos, ”vinde em meu auxílio, Senhor!” - O bento homem agitava as mãos na direcção do tecto, como que tomando Deus por sua testemunha. - Mas já será demasiado tarde, demasiado tarde! - Foram os vossos pecados, os vossos terríveis pecados, a vossa malvadez, que vos arrastaram até àquele horrendo patíbulo, de onde penderão na ponta de uma corda, sufocando e contorcendo-se na ânsia de respirar, mas de nada vos valerá o esforço, apenas sofrerão mais e mais! E depois a escuridão abater-se-á sobre as vossas cabeças, e as vossas almas desprender-se-ão dos males deste mundo, evolando-se para o supremo tribunal onde a justiça divina vos aguarda. Deus! - Cotton voltou a erguer aos céus as suas mãos papudas, desta vez numa pose suplicante, repetindo e tornando a repetir a invocação. - O Senhor está à vossa espera, em toda a Sua majestade e misericórdia, e examinará todos os vossos actos! Sereis sujeitos ao julgamento de Deus! E Ele vai achar-vos culpados! Amanhã! Já amanhã! - Apontou o dedo a Corday, que permanecia de cabeça baixa. - Vais avistar-te com Deus. Vós dois irão defrontar-se face a face com a ira do Senhor, tão claramente como me vedes neste momento. E Deus nosso senhor, o Pai de todos nós, abanará a Sua divina cabeça em sinal de desapontamento, e ordenará que sejais levados à sua presença, porque haveis pecado. Havei-Lo ofendido a Ele, que nunca nos ofendeu a nós. Haveis traído a confiança do nosso Criador, que nos enviou o Seu próprio filho para salvar-nos, e, como castigo, sereis arrastados dos pés do Seu grandioso trono de misericórdia e mergulhados nas profundezas do inferno. Atirados às chamas, atirados ao fogo! Sofrendo eternamente as mais terríveis dores! - Foi abrandando o tom de voz até não passar de um trémulo murmúrio, e depois, ao ouvir o gemido apavorado de uma mulher na galeria, tornou à invectiva. - Condenados à dor eterna! - bradou sonoramente, fazendo em seguida uma pausa a fim de que toda a assistência pudesse ouvir claramente os soluços da mulher. Depois debruçou-se na direcção da Bancada Negra e reduziu a voz a um áspero sussurro. - E haveis de sofrer, ó, como haveis de sofrer, e o vosso sofrimento, o vosso suplício, vai começar amanhã de manhã. - À medida que elevava o tom de voz, ia esbugalhando cada vez mais os olhos. - Pensem nisso! À hora em que todos nós, os que merecemos viver, estaremos a tomar o nosso pequeno-almoço, vós estareis a afundar-vos na agonia. No momento em que nós, os justos, estaremos de olhos fechados e mãos juntas, agradecendo a bondade de Deus, que nos concedeu a graça da nossa papa de aveia e dos nossos ovos com bacon, acompanhados de torradas e costeletas, iscas grelhadas, ou até mesmo... - e neste ponto o reverendo Cotton sorriu, porque gostava sempre de introduzir um toque pessoal nos seus sermões - e até mesmo, talvez, de um prato de rins à diabo - prosseguiu -, nesse preciso instante, vós começareis a gritar sob o tormento das primeiras e terríveis dores da eternidade! E, por toda a eternidade, esses tormentos hão-de tornar-se cada vez mais horripilantes, cada vez mais insuportáveis e tremendos! Jamais haverá alívio para o vosso sofrimento, e o vosso sofrimento inicia-se amanhã! - Encontrava-se agora debruçado sobre o púlpito resguardado por um dossel, a tal ponto inclinado que a sua voz feria a Bancada Negra como uma lança. - Amanhã ireis ao encontro do diabo. Encontrar-vos-eis com ele face a face, e eu chorarei por vós. Porém, acima de tudo, agradecerei ao meu Deus e Salvador, Jesus Cristo, por me ter poupado às vossas dores, contemplando-me antes com o prémio dos justos, em sinal de que alcancei a salvação. - Retomou a postura erecta e cruzou os punhos fechados sobre o peito. - Alcancei a salvação! Fui redimido! Fui purificado pelo sangue do cordeiro, e abençoado pela graça d’Aquele único que detém o poder de afastar de nós o sofrimento!

 

Neste ponto, o reverendo Cotton fez nova pausa. Havia três quartos de hora que pregava, e competia-lhe prolongar ainda o sermão por outro tanto tempo. De olhos postos nos condenados, bebeu uns goles de água. Verificando que, enquanto um deles se desfazia em lágrimas, o outro mantinha ainda a compostura, sentiu-se na obrigação de esforçar-se mais.

 

Inspirou fundo, apelou a todas as suas reservas de energia, e retomou a prédica.

 

Não se vislumbrava qualquer cavaleiro ao fundo do atalho. Por algum tempo, o ruído dos cascos trotando sobre a estrada de Londres continuou a ressoar ao longe, mas foi-se atenuando e acabou por desvanecer-se na atmosfera quente da manhã. Algures, a grande distância, os sinos de uma igreja tocaram a matinas.

 

- E agora, que tenciona fazer? - tornou a perguntar Mackeson, desta feita com uma indisfarçável nota de triunfo na voz. Convicto de que o desastre da carruagem pusera um ponto final à aventura de Sandman, comprazia-se a tirar de certa forma a desforra das humilhações a que havia sido sujeito por um dia e duas noites.

 

- O que eu tenciono fazer não é da sua conta - replicou Sandman -, mas o que você vai fazer é ficar aqui a tomar conta da carruagem. Sargento? Desatrele os cavalos.

 

- Não aguento mais aqui! - guinchou Meg.

 

- Então, trata de pôr os pés ao caminho - rosnou-lhe Sandman, voltando-se em seguida para ambas as raparigas. - Vocês as duas vão ter de montar os cavalos em pêlo.

 

- Não sei montar! - protestou Meg.

 

- Nesse caso, terás de caminhar a pé até Londres - replicou Sandman, com a sua perigosa cólera a subir-lhe à cabeça. - E podes crer que não me escapas! - acrescentou, arrancando o chicote das mãos de Mackeson.

 

- Ela vai montar o cavalo, capitão - atalhou Sally, laconicamente. E de facto, após as parelhas terem sido soltas dos varais, Meg desceu obedientemente, embora aos tropeções, os degraus da carruagem, e içou-se para o amplo dorso de um dos cavalos, onde se instalou de lado, com as pernas a baloiçar, inseguras, contra um dos flancos do animal, enquanto se agarrava com todas as suas forças à ponta da fita entrançada na respectiva crina. Parecia aterrorizada, ao passo que Sally, mesmo sem sela, montava graciosamente.

 

- O que segue agora? - interrogou Berrigan.

 

- A estrada principal - replicou Sandman, que, com o auxílio do sargento, conduziu os cavalos de volta ao longo da vereda. Era arriscado retomar a estrada de Londres, mas, caso os cavaleiros persistissem ainda na sua perseguição à carruagem roubada, era mais provável que tivessem rumado para sul. Sandman avançava cautelosamente, mas não se cruzaram com vivalma até chegarem a uma aldeia onde um cão saltou a ladrar para os cavalos, sobressaltando a montada de Meg, que, sentindo-se em risco de tombar ao chão, irrompeu em berros aflitos. Uma mulher saiu do seu casebre, empunhando uma vassoura com a qual afugentou o cão.

 

À saída da aldeia, um marco da estrada indicou-lhes que Londres se encontrava a quarenta e duas milhas de distância.

 

- Temos um longo dia à nossa frente - comentou Berrigan.

 

- Um dia e uma noite - replicou Sandman, sombriamente.

 

- Não vou conseguir aguentar aqui o resto do dia e mais uma noite lamuriou-se Meg.

 

- Vais mas é fazer o que te mandarem - resmungou Sandman. Mas, ao passarem pela aldeia seguinte, Meg desatou a gritar que tinha sido raptada, conseguindo assim atrair as atenções de um grupo de populaça que se pôs no encalço dos cavalos, até que o pároco da aldeia, de guardanapo ao pescoço, porque fora interrompido a meio da refeição, se decidiu a sair de casa para averiguar a causa do tumulto.

 

- A mulher é louca - explicou Sandman ao sacerdote.

 

- Louca? - O pároco ergueu o olhar para Meg, e estremeceu perante a maldade estampada no seu rosto.

 

- Fui raptada! - berrou a rapariga.

 

- Estamos a levá-la para Londres - declarou Sandman - a fim de ser examinada pelos médicos.

 

- Estão mas é a arrancar-me para longe do meu querido lar!

 

- Ela tem macaquinhos no sótão - acudiu Sally, com grande sentido de oportunidade.

 

- Não fiz nada de mal! - esganiçou-se Meg, enquanto se apeava e tentava fugir de Sandman, que, correndo atrás dela, não tardou a alcançá-la, dominando-a e ajoelhando-se em seguida a seu lado. - Mais uma destas e parto-te o pescoço, mulher - sussurrou-lhe.

 

O pároco, um cavalheiro rubicundo, ornado de uma frondosa grenha de cabelo branco, tentou então arredar Sandman da rapariga.

 

- Gostaria de falar com a moça - declarou -, insisto em ouvir a versão dela.

 

- Primeiro leia isto - disse-lhe Sandman, que, subitamente recordado da credencial do ministro, a retirou do bolso para apresentá-la ao vigário. Pressentindo sarilhos, Meg atirou-se ao papel, mas entretanto o pároco, impressionado pelo timbre oficial do documento, afastou-se dela para examinar a folha amarfanhada. - Mas, se ela está louca - perguntou a Sandman, uma vez terminada a leitura - que é que o visconde de Sidmouth tem a haver com assunto?

 

- Não estou louca! - protestou Meg.

 

- Para ser franco consigo - disse Sandman ao vigário em voz baixa a verdade é que ela está acusada de assassínio, mas eu não quis alarmar os seus paroquianos. Mais vale pensarem que se trata de uma doente, não concorda?

 

- Com certeza, com certeza. - O sacerdote, alarmado, apressou-se a devolver a Sandman a sua credencial, como se receasse que o papel estivesse infectado por qualquer doença contagiosa. - Mas talvez não fosse má ideia amarrar-lhe as mãos?

 

- Ouviste isto? - perguntou Sandman a Meg. - O padre diz que eu devia amarrar-te as mãos, e é o que farei se voltares a fazer barulho.

 

Reconhecendo a derrota, Meg desatou a praguejar, o que só contribuiu para mais convencer o pároco da veracidade das alegações de Sandman. Tratou então de acenar com o seu guardanapo como uma bandeira de paz para tranquilizar as suas ovelhas e desviar-lhes a atenção da perigosa moça, a qual, por seu turno, verificando o fracasso da sua tentativa de libertação, e receando que Sandman a manietasse caso ela não se dispusesse a colaborar, se firmou numa pedra da conduta de água para voltar a içar-se para o cavalo. Praguejava ainda quando o pequeno grupo transpôs os limites da aldeia.

 

Retomaram a marcha. Estavam todos exaustos e com os nervos em franja, além de que o calor, e a estrada aparentemente interminável, iam consumindo as energias de Sandman. Sentia a roupa imunda e pegajosa colar-se-lhe ao corpo, e uma bolha a formar-se no calcanhar direito. Continuava a coxear devido à entorse que sofrera ao saltar para o palco do teatro de Covent Garden, mas, tal como qualquer outro militar de infantaria, acreditava piamente que a melhor maneira de curar um tornozelo torcido era caminhar com ele. Mesmo assim, havia muito tempo que não fazia a pé uma jornada tão longa. Sally sugeriu-lhe que montasse um dos cavalos, mas Sandman, cuidando de reservar pelo menos uma montada fresca, abanou a cabeça e entregou-se à marcha automática do soldado comum, abstraindo-se da paisagem em redor, enquanto os seus pensamentos recuavam para as infindas e poeirentas estradas espanholas, por onde os seus subordinados haviam arrastado as botas, entre searas do milho que brotara dos grãos caídos das carroças saqueadas. E, mesmo nessa altura, raramente recorrera ao seu cavalo, preferindo mantê-lo fresco para uma eventual emergência.

 

- E como é que é, quando chegarmos a Londres? - perguntou Berrigan, quebrando o silêncio após terem ultrapassado mais uma aldeia.

 

Sandman pestanejou como se tivesse acordado naquele mesmo instante. Notou que o Sol estava já a pôr-se, e que os sinos da igreja mais próxima badalavam as vésperas.

 

- A Meg vai contar a verdade - respondeu, após uma breve pausa. Meg soltou uma risada de escárnio, e Sandman controlou o seu ímpeto de cólera. - Meg - disse-lhe gentilmente -, o que tu queres é regressar ao solar do marquês, não é verdade? Voltar para junto das tuas galinhas?

 

- Bem sabe que sim - respondeu ela.

 

- Pois hás-de voltar - garantiu ele -, mas, para isso, tens de contar-me ao menos uma parte da verdade.

 

- Uma parte? - estranhou Sally.

 

- Uma parte da verdade - confirmou Sandman. Ao longo da marcha, inconscientemente, reflectira sobre o dilema com que se defrontava, e, de súbito, a resposta surgira-lhe com total clareza. Não tinha sido contratado para descobrir o assassino da condessa, mas sim para averiguar se Corday era ou não culpado. Portanto, apenas lhe competia fornecer ao ministro a resposta a essa questão. - Não me importa saber quem assassinou a condessa - declarou a Meg. - A única coisa que me importa é o facto de tu saberes que não foi o Corday. Arrastaste-o para fora do quarto quando ela estava ainda viva e de boa saúde, e é só isso que pretendo que digas ao ministro.

 

Ela limitou-se a mirá-lo em silêncio.

 

- Foi assim que as coisas se passaram, não é verdade? - insistiu Sandman. Ela continuou calada, e ele suspirou. - Meg, está na tua mão regressares à casa do marquês. Podes fazer o que quiseres com o resto da tua vida, mas, primeiro, tens de contar-me pelo menos uma parcela da verdade. Sabes bem que o Corday está inocente, certo?

 

E por fim - finalmente, finalmente, ao cabo de tantas tentativas por parte de Sandman, e de mais uma longa pausa por parte dela -, Meg fez um aceno afirmativo.

 

- Acompanhei-o até à porta da rua - afirmou serenamente.

 

- E, entretanto, deixaste a condessa bem viva no quarto?

 

- Claro que sim - confirmou Meg. - Ela até lhe disse para voltar na tarde seguinte, mas, por essa altura, já o tinham prendido.

 

- E estás disposta a contar tudo isso a sua excelência o ministro do Interior?

 

Após uma breve hesitação, ela assentiu com a cabeça.

 

- Estou disposta a contar ao ministro o que lhe disse agora mesmo, mas nada mais.

 

- Obrigado - disse-lhe ele.

 

Um marco da estrada informou Sandman de que Charing Cross se encontrava a dezoito milhas de distância. A fumarada londrina contaminava os céus com uma espessa neblina acinzentada, enquanto que, à sua direita, o refulgente curso do Tamisa, liso como um espelho, surgia esporadicamente entre colinas, sobre as quais a escuridão da noite ia caindo. O cansaço de Sandman evaporou-se. Bastava uma parcela de verdade, pensou, para que, graças a Deus, pudesse cumprir a sua Missão.

 

Jemmy Botting, digno carrasco inglês, encaminhou-se para o Old Bailey ao entardecer, a fim de inspeccionar o cadafalso, já então completamente montado. Um ou dois transeuntes com que se cruzou, reconhecendo-o, dirigiram-lhe irónicos parabéns, mas Botting ignorou-os.

 

Não havia grande coisa a inspeccionar. O carrasco confiava plenamente em que as traves do patíbulo tivessem sido solidamente encaixadas, as tábuas do estrado devidamente pregadas, e os panejamentos adequadamente suspensos. Na verdade, o estrado oscilava um pouco, mas isso já era costume, e o balanço não era pior do que o que se experimentava no convés de um navio, sobre uma ondulação suave. Examinou o puxador que inibia o mecanismo do alçapão, e em seguida desceu às sombrias profundezas sob o estrado, onde pegou na corda que accionava esse mesmo mecanismo. A corda cedeu com um rangido, e a porta do alçapão desviou-se, dando entrada aos raios do Sol poente.

 

Aquele rangido não agradou a Botting. Não estava ninguém junto do alçapão, e, contudo, o mecanismo oferecera resistência. Portanto, tratou de abrir o saco que trazia consigo, de onde extraiu um pequeno pote de sebo, oferta do fabricante de velas seu amigo. Trepou pela armação de madeira, untou a trave do dispositivo até a sua superfície ficar perfeitamente escorregadia, e, em seguida, sem grandes cuidados, abriu a porta do alçapão e voltou a colocar a trave na posição correcta. Barafustou contra duas ratazanas que seguiam atentamente os seus movimentos. Tornou a descer até ao pátio do Old Bailey, puxou de novo pela corda, e, desta vez, o mecanismo deslizou na perfeição, e a porta do alçapão escancarou-se, chocando estrondosamente contra os dois suportes verticais.

 

- Uma trabalheira dos diabos, hem? - confidenciou Botting às ratazanas, nada intimidadas pela sua presença.

 

Voltou a colocar no devido sítio a porta do alçapão e a respectiva trave, guardou o pote de sebo no saco e, em seguida, trepou ao alto do cadafalso, onde, em primeiro lugar, testou de novo o puxador do mecanismo, para em seguida experimentar a solidez do alçapão, avançando com um pé sobre as tábuas e atrevendo-se depois, cautelosamente, a apoiar todo o seu peso sobre a perna. Tinha a certeza de que a porta do alçapão era segura e que aguentaria com todo o peso do seu corpo, mas, ainda assim, deu-se ao cuidado de testá-la. A última coisa que lhe interessava era tornar-se no alvo da chacota de Londres, à conta de um alçapão que cedesse sob os pés de um condenado, ainda antes de lhe terem passado a corda ao pescoço. A simples ideia de semelhante eventualidade fê-lo sorrir. Depois, convicto de que tudo estava a postos, dirigiu-se à Porta dos Devedores, e bateu sonoramente. Conforme o hábito, dar-lhe-iam de jantar na prisão, e em seguida permitir-lhe-iam dormir num pequeno quarto sobre o pátio.

 

- Tens algum veneno para ratos? - perguntou ao guarda que lhe abriu a porta. - É que, debaixo do cadafalso, há ratazanas do tamanho de raposas. Aquele estrado não pode ter sido montado há mais de duas horas, e, no entanto, está já infestado de bichos.

 

- Ratazanas há por toda a parte - ripostou o guarda, voltando a aferrolhar a porta.

 

No piso inferior, apesar de a noite estar quente, as catacumbas de Newgate eram percorridas por rajadas gélidas. Portanto, antes de Charles Corday e os restantes condenados serem conduzidos à cela da morte, os guardas acenderam uma pequena pilha de carvão na minúscula lareira da cela. A princípio, o espaço encheu-se de fumarada, porque a chaminé escoava mal; mas, uma vez aquecida, começou a absorver o fumo e a atmosfera aligeirou-se um pouco, embora o intenso cheiro a carvão continuasse a pairar no ar. Um vaso higiénico foi colocado num canto da cela, porém sem qualquer resguardo que proporcionasse aos seus utilizadores um pouco de privacidade.

 

Dois estreitos catres de ferro, providos de esteiras de palha e de delgados cobertores, foram encostados contra uma parede da cela, logo seguidos por uma mesa e várias cadeiras, destinadas ao conforto dos guardas encarregados de vigiar os prisioneiros durante a noite. Penduraram-se lampiões nos ganchos das paredes. Ao crepúsculo, os dois condenados foram conduzidos para a cela da morte e contemplados com uma refeição composta por sopa de ervilhas, costeletas de porco e couves cozidas. O director da prisão veio visitá-los a meio da ceia e, enquanto aguardava que terminassem, meditou sobre o extraordinário contraste entre os dois homens. Enquanto que Charles Corday era uma criatura esguia, pálida e nervosa, Reginald Venables correspondia ao tipo do grandalhão abrutalhado, com uma barba negra e hirsuta e uma carantonha ameaçadora. Porém, dos dois, era Corday quem cometera um assassínio, ao passo que Venables fora parar à forca pelo simples roubo de um relógio.

 

Corday mal debicou a comida. Com as grilhetas dos pés a chocalhar, dirigiu-se ao seu catre, onde se estendeu e se pôs a fitar de olhos vazios as pedras húmidas da abóbada.

 

- Amanhã... - começou o director a discursar, assim que Venables terminou a refeição.

 

- Só espero que aquele maldito padre não esteja lá - interrompeu-o Venables.

 

- Silêncio, que o director está a falar! - grunhiu o carcereiro-mor.

 

- O pregador estará lá - elucidou o director -, para oferecer todo o conforto espiritual ao seu alcance. - Fez uma pausa, aguardando que um guarda retirasse os talheres da mesa, e depois retomou a ladainha. - Amanhã sereis levados daqui para a Sala de Reuniões, onde vos quebrarão as grilhetas e vos amarrarão os braços. Antes disso já vos terá sido oferecido o pequeno-almoço, mas haverá brandy à vossa disposição na Sala de Reuniões, e aconselho-vos a tomá-lo. Em seguida, seguiremos em cortejo para a rua. Interrompeu-se de novo. Venables fuzilava-o com o olhar, enquanto que Corday parecia muito longe dali. - Faz parte dos usos da casa - prosseguiu o director - entregar uma moeda ao carrasco, porque está nas mãos dele a possibilidade de atenuar o sofrimento da vossa passagem para o outro mundo. Não é que eu, pessoalmente, aprove tal gratificação, mas, atendendo a que ele não é um empregado da prisão, mas sim um funcionário municipal, nada posso fazer para pôr cobro a essa prática. Contudo, mesmo se não pagardes esse bónus, asseguro-vos que a vossa punição não será excessivamente dolorosa, e que terminará num instante.

 

- Mentiroso de um raio - rosnou Venables.

 

- Silêncio!

 

- Não se preocupe, Mr. Carlisle - disse o director ao zeloso carcereiro. - Há um certo tipo de homens - prosseguiu - que, em vez de se dirigirem de boa vontade para a forca, porfiam em dificultar o normal decurso dos trabalhos. Nada ganham com isso. Aqueles que se debatem, que oferecem resistência, que nos provocam transtornos, acabam por ir na mesma parar à forca, só que, nesse caso, com sofrimento agravado. Mais vale cooperarem. É mais fácil para vós e para os vossos entes queridos que eventualmente estejam a assistir.

 

- Mais fácil para ti, é o que queres dizer - comentou Venables.

 

- O cumprimento do dever nunca é tarefa fácil - declarou o director, beatificamente -, sobretudo quando levado a cabo com a devida persistência. - Dito isto, encaminhou-se para a porta. - Os guardas permanecerão aqui toda a noite - acrescentou ainda. - Se sentirem necessidade de conforto espiritual, podem pedir-lhes para chamar o capelão. Desejo uma boa noite a todos.

 

Corday falou pela primeira vez.

 

- Estou inocente - afirmou, num fio de voz.

 

- Pois sim - replicou o director, embaraçado -, pois sim, claro. - Não lhe ocorrendo qualquer outro comentário sobre o assunto, limitou-se a acenar aos guardas. - Muito boa-noite, meus senhores.

 

- Boa-noite, senhor director - retribuiu Mr. Carlisle, o carcereiro-mor, assumindo uma pose vigilante até os passos do patrão se sumirem no corredor. Depois, mais descontraído, voltou-se para os prisioneiros. - Se vos apetecer conforto espiritual - aconselhou-os -, em vez de me incomodarem a mim e ao reverendo Cotton, o melhor que têm a fazer é pregarem com os vossos malditos joelhos no chão e tratarem de incomodá-Lo a Ele lá no alto, suplicando-Lhe o raio do Seu perdão. Não é assim mesmo, George?

- perguntou aos seu parceiro -, e o trunfo é espadas, certo?

 

Entretanto, em Birdcage Walk, o nome por que era conhecida a passagem subterrânea que fazia a ligação entre a cadeia e as salas de audiência do tribunal, dois delinquentes aplicavam-se a manobrar pás e picaretas. Lanternas suspensas do tecto iluminavam uma pilha de lajes de granito que haviam sido arrancadas ao pavimento e encostadas a um dos lados da passagem, onde nesse momento pairava um terrível fedor, composto por uma mortífera mistura de gás, visgo e carne podre.

 

- Valha-me Deus! - exclamou um dos presos, recuando perante a onda de mau cheiro.

 

- Não é nesta catacumba que irás encontrá-Lo - comentou um dos guardas, afastando-se da zona onde o pavimento fora arrancado. Quando da construção de Birdcage Walk, as lajes haviam sido directamente aplicadas

 

Nota: Walk, Literalmente, ”Passeio dos Engaiolados” [N da T]

2 Pás, No original, spades, palavra que, na língua inglesa, tem o duplo significado de ”espadas” (naipe do baralho de cartas) é ”pás”. [N da T]

 

sobre a argila do subsolo londrino; mas agora, à luz vacilante das lanternas cobertas de humidade, a argila apresentava um aspecto esquisito, escurecida e sarapintada de manchas.

 

- Quando é que esta secção do corredor foi utilizada pela última vez? - perguntou um dos presos.

 

- Para aí há uns dois anos - respondeu-lhe o guarda, pouco convicto das suas próprias palavras. - É isso, há pelo menos dois anos.

 

- Dois anos? - escarneceu o preso. - Qual quê, ainda para aqui estão muitos que só lhes falta respirar.

 

- Trata mas é de despachar-te, Tom - espicaçou-o o guarda -, lembra-te de que, quando terminares, tens direito a isto. - Brandia-lhe uma garrafa de brandy diante dos olhos.

 

- Que Deus nos acuda - resmungou Tom, mas logo inspirou fundo e voltou a aplicar-se à sua pá.

 

A Missão dele e do seu camarada era a de escavarem as sepulturas dos dois homens que seriam executados na manhã seguinte. Por vezes, os corpos dos enforcados iam parar às mesas de dissecação, mas como, a despeito do seu intenso apetite por cadáveres, os anatomistas não conseguiam dar vazão a todos, a maioria acabava por ser enterrada naquela passagem subterrânea, em sepulturas anónimas. Porém, o túnel não era suficientemente longo, de modo que, apesar de os mortos serem sepultados em cal viva a fim de se apressar a sua decomposição, e da estreita observância da regra da rotatividade na escavação dos vários troços da passagem - regra essa destinada a evitar que se remexessem sepulturas ainda frescas -, as pás e as picaretas embatiam continuamente contra ossadas e fétido barro putrefacto. O chão era todo ele altos e baixos, dando a impressão de ter sido abalado por um terramoto, efeito esse que afinal derivava apenas do desigual afundamento das lajes sobre os cadáveres em decomposição. Contudo, apesar do fedor insuportável, e da argila amalgamada com restos de corpos, continuavam a enterrar-se naquele esterco mais e mais cadáveres.

 

Tom, com o calcanhar bem enterrado na fossa que abrira, retirou de lá um crânio amarelado que fez rolar pelo corredor fora.

 

- Tem ar de estar bem-disposto, não vos parece? - gracejou, desencadeando nos dois guardas e no seu próprio companheiro um interminável surto de gargalhadas.

 

Mr. Botting ceou costeletas de carneiro, acompanhadas de batatas cozidas e nabos. Em seguida, o serviço culinário do director da prisão contemplou-o com um pudim de mel, e, para rematar, uma caneca de chá forte e um cálice de brandy. Nada mais restava a Mr. Botting se não entregar-se ao sono dos justos, e foi o que fez.

 

Entretanto, dois vigilantes montavam guarda ao cadafalso. Pouco depois da meia-noite, o céu cobriu-se de nuvens, e um aguaceiro gelado abateu-se para as bandas de Ludgate Hill. A chuvada arrancou ao sono meia dúzia de criaturas, que, desejosas de assegurar um bom posto de observação para os acontecimentos da manhã seguinte, junto da cerca que protegia o patíbulo, haviam resolvido dormir sobre as pedras da calçada. Após alguns resmungos de descontentamento, enroscaram-se ainda mais nos cobertores e trataram de voltar a adormecer.

 

A aurora chegou cedo. As nuvens dissiparam-se para revelar um céu de madrepérola, raiado por delgadas colunas de fumo de carvão acastanhado. Londres saltou da cama.

 

E, em Newgate, preparavam-se rins à diabo para o pequeno-almoço.

 

CAVALO DE SALLY, um exemplar capado, tinha começado a coxear logo ao cair da noite de domingo. Como se isso não bastasse, a sola da bota do pé direito de Berrigan soltou-se, e resolveram então prender o cavalo manco a uma árvore, enquanto Berrigan se içava para o dorso do terceiro cavalo, e Sandman, cujas botas lá se iam aguentando, assumia o comando das montadas de ambas as raparigas.

 

- Se não conseguimos devolvê-los todos ao Clube dos Serafins - comentou Sandman, preocupado com a sorte do animal que haviam abandonado à beira da estrada - arriscamo-nos a ser acusados do crime de roubo de cavalos.

 

- E a ir parar à forca à conta disso - replicou Berrigan, disfarçando um sorriso. - Mas no seu lugar, capitão, não me preocuparia demasiado com essa eventualidade. Com tudo o que sei acerca do Clube dos Serafins, não me parece que lhes apeteça acusar-me de seja o que for.

 

Os três cavalos que lhes restavam estavam a tal ponto exaustos que Sandman chegou à conclusão de que o grupo avançaria mais depressa sem eles; mas, atendendo a que Meg havia finalmente acedido a contar a sua parte da verdade, não estava nada interessado em perturbá-la de novo com a proposta de uma caminhada a pé, tanto mais que ela entretanto voltara às suas lamúrias, declarando que as suas preciosas galinhas iriam certamente ser devoradas pelas raposas, e só parando com os queixumes quando Sally começara a cantar para distraí-la. A primeira canção escolhida por Sally fora uma balada muito apreciada pelos soldados, chamada O Tambor-Mor, que falava de uma rapariga a tal ponto apaixonada pelo seu soldadinho que correra a alistar-se no regimento dele com a função de tambor-mor, logrando iludir toda a gente até ao dia em que, ao banhar-se num regato, por pouco não fora violada por um camarada do amante. Conseguira fugir-lhe, mas não ocultar por mais tempo a sua verdadeira identidade, de modo que os oficiais responsáveis haviam insistido no seu casamento com o amado.

 

- Gosto de histórias que acabam bem - comentou Berrigan, desatando em seguida a rir quando Sally iniciou a sua segunda canção, também muito popular entre os soldados, mas desta feita acerca de uma rapariga que não escapara a tempo. Sandman ficou um pouco chocado, embora não excessivamente surpreendido, ao verificar que Sally sabia a letra da canção de uma ponta à outra, e que Berrigan fazia coro com ela. Até Meg soltou uma gargalhada no ponto em que, chegada a vez do coronel, o homem falhava lastimosamente, e Sally gorjeava ainda quando um guarda da patrulha, até então escondido atrás de uma árvore inclinada sobre a beira da estrada, lhes saltou em cima.

 

Suspeitando, não sem alguma razão, que aqueles quatro viajantes de aspecto imundo haviam sido os autores do roubo dos três cavalos da equipagem do coche, o guarda montado enfrentou-os de pistola apontada. O cano da arma, bem como os botões metálicos do uniforme, composto por casaca azul sobre colete vermelho, rebrilhavam ao luar.

 

- Quietos, em nome do Rei! - ordenou, sublinhando a invocação de sua majestade, a fim de não ser confundido com um salteador de estradas.

- Quietos! Quem sois vós? E para onde vos dirigis?

 

- E quem é o senhor? - retaliou Sandman prontamente. - Nome e patente, se faz favor? Em que regimento serviu? - A patrulha montada era quase integralmente composta por antigos soldados de cavalaria: homens maduros, porque, no pressuposto de que os jovens cederiam mais facilmente à tentação, era entre ex-militares bem batidos e com provas dadas que as autoridades recrutavam os membros da corporação encarregada de manter as estradas reais livres de assaltantes.

 

- Quem faz aqui as perguntas sou eu - ripostou o guarda, porém algo intimidado perante a autoridade manifestamente patente no tom de Sandman. Apesar do estado lastimoso do seu traje, amarfanhado e coberto de lama, não podiam restar dúvidas de que fora um oficial superior do exército.

 

- Abaixe a pistola! Imediatamente, criatura! - ordenou Sandman, recorrendo deliberadamente à sua voz de comando militar. - Encontro-me aqui em missão oficial, como delegado do ministro do Interior, o visconde de Sidmouth, e apresento-lhe a minha credencial, com o timbre e assinatura de sua excelência. Caso não saiba ler, sugiro-lhe que nos conduza imediatamente à presença do seu magistrado.

 

O guarda travou cuidadosamente a pederneira da arma, que em seguida enfiou num dos coldres da sela.

 

- Perdeu o seu coche, senhor?

 

- Partiu-se-lhe uma roda trinta milhas atrás - afirmou Sandman. - Bem, sempre se resolve a ler este papel ou prefere levar-nos ao seu magistrado?

 

- Estou certo de que está tudo em perfeita ordem, senhor. - A verdade é que o guarda não queria confessar que não sabia ler, e muito menos ir incomodar o seu magistrado superior, que, àquelas horas, deveria estar a preparar-se para uma lauta ceia, de modo que se limitou a afastar o cavalo para o lado, dando passagem a Sandman e aos seus três companheiros. Sandman tinha calculado que o homem insistiria em conduzi-los à presença do magistrado, e que nesse caso, a carta do ministro do Interior serviria para proporcionar-lhes outra carruagem, ou, pelo menos, quatro montadas frescas. Mas, como desperdiçariam assim um tempo precioso, correndo ademais o risco de abalar a frágil boa vontade de Meg, retomaram a caminhada até que, já bem depois da meia-noite, alcançaram a Torre de Londres, rumando daí ao Wheatsheaf, Sally levou Meg para o seu quarto e Sandman emprestou o dele a Berrigan, indo em seguida repousar para a sala das traseiras, onde se instalou, não num dos cadeirões, mas no próprio chão de tábuas, para certificar-se de que despertaria a espaços. Quando os sinos de Saint Giles bateram as badaladas das seis da manhã, arrastou-se escadas acima, acordou Berrigan e disse-lhe para ir arrancar as raparigas à cama. Depois barbeou-se, procurou a sua camisa mais limpa, escovou o casaco e limpou o melhor possível a lama e a poeira das suas esfrangalhadas botas. Eram seis e meia quando, acompanhado de Berrigan, de Sally, e de uma relutante Meg levada a reboque, se dirigiu para Great George Street, e, segundo esperava, para o termo da sua investigação.

 

Lord Alexander Pleydell e o seu amigo Lord Christopher Carne por pouco não vomitaram ao penetrarem no Press Yard, porque o fedor era terrível, pior que o das emanações fétidas dos esgotos a céu aberto no ponto em que Fleet Ditch despejava o seu nauseabundo conteúdo no Tamisa. O guarda prisional que os escoltava soltou um risinho de escárnio.

 

- Já nem reparo no cheiro, excelências - disse -, mas suponho que deve ser a modos que mau como a morte, mesmo mau como a morte. Cuidado com estes degraus, excelências, tende cuidado.

 

Afastando cautelosamente o lenço do nariz, Lord Alexander perguntou-lhe:

 

- Porque é que chamam a isto Press Yard?

 

- Em tempos que já lá vão, senhor, era aqui que se prensavam os prisioneiros. A gente amassava-los, meu senhor. Esmagávamos-os com pedras bem pesadas, senhor, para convencê-los a dizer a verdade. Hoje em dia já não fazemos isso, o que é pena, porque assim teimam em mentir como miseráveis indianos, senhor, como capachos da índia.

 

- Espremiam-nos até à morte? - indagou Lord Alexander, chocado.

 

- Oh não, meu senhor, não até à morte. Nunca até à morte, salvo se, por erro de cálculo, amontoássemos demasiadas pedras sobre eles! - casquinou de gozo, achando a ideia divertida. - Não, excelência, limitávamo-nos a prensá-los até eles cuspirem a verdade cá para fora. Asseguro-lhe que meia tonelada de pedras em cima do peito de um homem ou de uma mulher constitui um argumento de peso. - O guarda riu-se de novo. Era um homem gordo, vestido com bragas de cabedal e um gibão enodoado, e munido de um sólido cacete. - Custava-lhes um bocadinho a respirar - acrescentou, ainda perdido de riso -, custava-lhes mesmo muito.

 

Lord Alexander estremeceu perante o terrível fedor.

 

- Não há fossas sanitárias neste lugar? - perguntou.

 

- A prisão é muitíssimo moderna, excelência - apressou-se o guarda a garantir - do mais moderno que existe, com fossas sanitárias e retretes tapadas. A verdade, excelência é que os estragamos com mimos, palavra de honra, mas não passam de bestas imundas, senhor, autênticas bestas. Emporcalham o seu próprio ninho, que lhes oferecemos nas melhores condições de limpeza e higiene. - Pousou o cacete a fim de fechar e aferrolhar o portão gradeado por onde haviam entrado no pátio, que era comprido, estreito e rodeado de altos muros. Mesmo num dia seco como aquele, as pedras da calçada pareciam húmidas, como se a miséria e o pavor seculares houvessem impregnado o granito e não pudessem mais ser-lhe arrancados.

 

- Se deixaram de prensar os prisioneiros - quis saber Lord Alexander -, para que é que o pátio é usado agora?

 

- Os prisioneiros podem passear-se aqui durante o dia, senhor - explicou o guarda -, o que é mais um exemplo, excelências, da bondade com que os tratamos. Estragamo-los com mimos, repito, senhores. Em tempos que já lá vão, uma prisão era uma prisão, não uma taberna cheia de comodidades.

 

- Vendem-se aqui bebidas alcoólicas? - indagou Lord Alexander, acidamente.

 

- Deixámo-nos disso, excelência. Mr. Brown, o actual director, mandou encerrar o estaminé da pinga devido às desordens causadas pela escumalha bêbada, mas ficou tudo na mesma, porque agora mandam vir as bebidas do Lamb ou do Magpie and Stump. - Aplicou o ouvido às badaladas de um sino de igreja que assinalavam o quarto de hora. - Valha-me Deus, o sino do Santo Sepulcro está já a bater as sete menos um quarto! Se tiverdes a amabilidade de voltar agora à esquerda, excelências, podereis reunir-vos a Mr. Brown e aos demais cavalheiros na Sala de Reuniões.

 

- A Sala de Reuniões? - perguntou Lord Alexander, intrigado.

 

- É onde os prisioneiros se reúnem entre o nascer e o pôr do Sol, meu senhor - explicou o guarda -, excepto em dias feriados ou especiais como o de hoje, e, aquelas janelas que vedes à vossa esquerda são as das salgadeiras.

 

A despeito da sua convicta oposição à prática de enforcamento de criminosos, Lord Alexander deu consigo a experimentar um curioso fascínio por tudo o que lhe era mostrado, e fitou atentamente as quinze janelas gradeadas.

 

- Sabe informar-me de onde deriva essa designação de ”salgadeiras”?

 

- Nem de onde deriva nem onde desemboca, excelência - riu-se o guarda -, só desconfio que lhes chamam assim por estarem empilhadas como barricas de peixe salgado.

 

- As salga-ga-deiras são o quê? - perguntou por seu turno Lord Christopher, que, nessa manhã, se apresentava extremamente pálido.

 

- Com franqueza, Kit - respondeu-lhe Lord Alexander, com desnecessária severidade -, toda a gente sabe que são as celas onde os condenados à morte passam os seus últimos dias de vida.

 

- As salas de visita do diabo - acrescentou o guarda, abrindo a porta da Sala de Reuniões e estendendo-lhes ostensivamente uma mão de palma virada para cima.

 

Lord Alexander, que se ufanava do seu espírito democrático, estava prestes a forçar-se a apertar a mão do homem quando compreendeu o verdadeiro significado da palma erguida.

 

- Ah - murmurou, perturbado, apressando-se a vasculhar o bolso, de onde extraiu a primeira moeda em que tocou. - Muito agradecido, bom homem - disse.

 

- Obrigado, excelência, muito obrigado - replicou o guarda, verificando, para sua estupefacção, que havia sido contemplado com um soberano de oiro de gorjeta. Tirou precipitadamente o chapéu e enfiou os dedos na cabeleira hirsuta. - Deus o abençoe, excelência, que Deus o abençoe.

 

William Brown, o director da prisão, apressou-se a vir ao encontro dos seus dois novos convidados. Embora nunca se tivesse cruzado com qualquer deles, reconheceu Lord Alexander pelo seu pé boto, de modo que lhe tirou o chapéu, inclinando-se numa vénia respeitosa.

 

- Brown, presumo? - perguntou Lord Alexander.

 

- Sim, William Brown, excelência, o próprio. O director de Newgate, excelência.

 

- Apresento-lhe Lord Christopher Carne - replicou Lord Alexander, indicando o amigo com um vago aceno de mão. - O assassino da madrasta dele vai ser enforcado esta manhã.

 

O director voltou a curvar-se, desta feita na direcção de Lord Christopher.

 

- Espero que vossa excelência venha a sentir-se simultaneamente vingado e confortado pela experiência que vai presenciar. Permitis-me que vos acompanhe agora até junto do Ordinário de Newgate? - Conduziu-os a um recanto da sala onde um homem corpulento, ornado de uma peruca antiquada e paramentado com sotaina, sobrepeliz e bandas de Genebra, os aguardava com um sorriso estampado na face rubicunda - Apresento-vos o reverendo Horace Cotton - disse o director.

 

- É vossa senhoria muito bem-vinda - declarou Cotton, com uma ligeira vénia a Lord Alexander. - Creio que, tal como eu, vossa senhoria tomou as santas ordens?

 

- É verdade - confirmou Lord Alexander -, e este senhor aqui é o meu grande amigo Lord Christopher Carne, que tenciona igualmente vir tornar-se membro do clero.

 

- Ah! - O reverendo Cotton uniu as mãos em sinal de graças e ergueu o olhar para as vigas do tecto. - Considero como uma verdadeira bênção

- declarou - que membros da nobreza, os genuínos chefes da nossa sociedade, assumam tão claramente os valores da cristandade. É um magnífico exemplo para a populaça, não concordais? E, quanto a vossa senhoria - prosseguiu, dirigindo-se a Lord Christopher - fui informado de que ireis assistir esta manhã à aplicação da justiça no caso de um grave atentado praticado contra a vossa família?

 

- Assim o espero - afirmou Lord Christopher.

 

- Francamente, Kit! - repreendeu-o Lord Alexander. - A vingança de que a tua família está à espera terá lugar na eternidade, infligida pelas chamas do inferno...

 

- Glória a Deus! - interpôs o reverendo.

 

- E não me parece decente, ou, sequer, civilizado, da parte de seres humanos como nós, antecipar o destino a que esses outros seres humanos estão fatalmente condenados - concluiu Lord Alexander.

 

O director da prisão ficou assombrado.

 

- Decerto que vossa senhoria não defende a abolição da pena de morte?

 

- Enforcar um homem - declarou Lord Alexander - equivale a privá-lo de qualquer hipótese de arrependimento. É negar-lhe a oportunidade ser dia e noite atormentado pelos remorsos da sua consciência. Na minha opinião, seria castigo suficiente deportar todos os criminosos para a Austrália, que, conforme sei de fontes seguras, é um autêntico inferno à face da terra.

 

- Os remorsos da consciência hão-de igualmente persegui-los no verdadeiro inferno - rebateu Cotton.

 

- Não duvido, senhor - admitiu Lord Alexander -, mas, ainda assim, acho preferível conceder aos criminosos a oportunidade de se arrependerem neste mundo, dado que, no próximo, não lhes resta qualquer possibilidade de salvação. Ao executarmos esses homens na forca, negamo-lhes a hipótese de jamais reconquistarem a graça de Deus.

 

- É a primeira vez que ouço esse argumento - redarguiu Cotton, em tom duvidoso.

 

Lord Christopher, que até então acompanhara o debate com a silenciosa atenção de um perdigueiro, interrompeu-os intempestivamente.

 

- O senhor não será por acaso parente de Henry Cotton? - perguntou ao capelão, com um olhar fulminante.

 

A súbita e despropositada intervenção de Lord Christopher matou instantaneamente a conversa. Mas, recompondo-se, o capelão perguntou-lhe:

 

- Parente de quem, excelência?

 

- De Henry Cotton - repetiu Lord Christopher, aparentemente subjugado por uma violenta emoção, como se lhe fosse praticamente insuportável a ideia de encontrar-se no interior da prisão de Newgate. Estava lívido, com a testa perlada de gotas de suor e as mãos tomadas por um tremor incontrolável. - Foi em tempos leitor de g-grego em Christ Church - elucidou -, e hoje em dia é bibliotecário adjunto em Bodleian.

 

O ordinário recuou um passo, como que receando que Lord Christopher estivesse prestes a sofrer um ataque cardíaco.

 

- Tanto quanto sei, excelência - replicou - não tenho quaisquer laços de parentesco com esse cavalheiro, mas sim com o visconde de Combermere. Laços distantes, aliás.

 

- Henry Cotton é uma exce-ce-lente pessoa - prosseguiu Lord Christopher -, um homem admirável. E um grande erudito.

 

- Um pedante - resmungou Lord Alexander. - Com que então, o senhor é da família do Combermere, ou seja, parente de Sir Stapleton Cotton? Por pouco não perdeu o braço direito na batalha de Salamanca, o que teria sido uma autêntica tragédia.

 

- Oh, decerto - assentiu o capelão piedosamente.

 

- Não costumas ter grande simpatia por militares - observou Lord Christopher, dirigindo-se ao amigo.

 

- Combermere tem-se por vezes revelado como um rebatedor arguto

- elucidou Lord Alexander -, sobretudo à defesa de bolas lançadas com muito efeito. O senhor joga críquete, Cotton?

 

- Não, excelência.

 

- Convém saber lidar com o vento - declarou Lord Alexander, enigmaticamente. Em seguida, do alto do seu estatuto de grão-senhor, tratou de inspeccionar a Sala de Reunião, examinando as vigas do tecto, tacteando o tampo de uma das mesas, por fim espreitando o conteúdo das panelas e caldeirões suspensos sobre as brasas da lareira. - Vejo que os nossos presos não são aqui maltratados - decretou, lançando em seguida ao amigo um olhar apreensivo. - Estás a sentir-te bem, Kit?

 

- Claro que sim, estou óptimo - apressou-se Lord Christopher a declarar, embora o seu aspecto nada denunciasse de bom. Escorriam-lhe gotas de suor da testa, e o rosto apresentava-se mais pálido que nunca. Tirou os óculos e esfregou-os com um lenço. - Acontece apenas que a perspectiva de ver um homem ser directamente atirado para a eternidade do além suscita muita reflexão - explicou. - Dá realmente muito que pensar. Não se trata de uma experiência que possamos encarar de ânimo leve.

 

- Nisso concordo contigo - ripostou Lord Alexander, examinando em seguida, com a sua arrogância de grão-senhor, os restantes convidados para o pequeno-almoço, que davam a impressão de aguardarem os acontecimentos da manhã com uma jovialidade pouco cristã. Três deles, postados perto da porta, trocavam entre si piadas e gargalhadas. Lord Alexander lançou-lhes um olhar reprovador. - Pobre Corday - comentou.

 

- Por que motivo vos apiedais do homem? - estranhou o reverendo Cotton.

 

- Parece-me muito verosímil que esteja inocente - ripostou Lord Alexander -, mas igualmente verosímil que as provas da sua inocência jamais venham a lume.

 

- Se ele estivesse inocente, senhoria - observou o capelão, com um sorriso de superioridade nos lábios -, tenho plena confiança de que Deus nosso Senhor nos teria já revelado essa verdade.

 

- Está a dizer-me que tem a certeza de que nunca acompanhou à forca um único homem ou mulher inocentes? - desafiou-o Sir Alexander.

 

- Deus nunca o permitiria - assegurou o reverendo.

 

- Nesse caso, oxalá que Deus esteja bem alerta esta manhã - replicou Lord Alexander, cuja atenção foi subitamente desviada para uma porta gradeada, situada no lado oposto da sala, que se escancarou de rompante, com um rangido áspero. Por momentos ninguém surgiu no limiar e dir-se-ia que todos os convidados continham a respiração, mas logo se desenhou no umbral a figura de um homem notoriamente ofegante, baixo e entroncado, carregando consigo um volumoso saco de couro. O homem, de rosto sanguíneo, trajava polainas castanhas, calções pretos e um casacão igualmente preto, tão apertado que quase estourava sobre o seu ventre protuberante. Ao avistar a selecta audiência, tirou respeitosamente o chapéu, mas não cumprimentou ninguém, tal como nenhum dos presentes na Sala de Reuniões se dignou dar mostras de ter reparado na chegada da criatura.

 

- É Botting, o carrasco - informou o reverendo num sussurro.

 

- Esquisito nome para um carrasco - comentou Lord Alexander, em voz despropositadamente elevada. - Já Ketch seria um nome apropriado para um verdugo. Mas Botting? Soa a doença de gado.

 

Botting lançou um olhar hostil na direcção do alto e ruivo Lord Alexander, que se manteve perfeitamente indiferente perante aquela manifestação de animosidade, ao passo que Lord Christopher recuava em pânico, provavelmente horrorizado pelo aspecto bovino do rosto do carrasco, desfigurado por verrugas, quistos e cicatrizes, e contraído por tiques que lhe arrepanhavam as feições com intervalos de poucos segundos. Após mirar os demais convidados com uma expressão mordaz, Botting afastou o banco de uma mesa, sobre a qual depositou o seu saco de couro. Consciente de que todos o observavam, abriu as fivelas do saco, do qual retirou quatro pedaços de

 

Nota: Ketch, Caçador ou perseguidor implacável. [N. da T.]

 

fina corda branca, que dispôs sobre a mesa. Em seguida, extraiu do saco outras duas cordas bem mais grossas, cada qual com um nó corredio passado numa das extremidades, e um gancho amarrado na outra, e colocou-as igualmente sobre a mesa, juntamente com dois sacos de algodão. Após recuar um passo para contemplar orgulhosamente o efeito da sua obra, cumprimentou o director da prisão.

 

- Bom dia, senhor.

 

- Oh, é você, Botting! - A avaliar pelo tom de surpresa da saudação, dir-se-ia que só nesse momento o director se apercebera da presença do carrasco. - Muito bom dia também para si.

 

- Um belo dia, de facto - replicou Botting. - Mal se vê uma nuvem no céu, está praticamente limpo. Continuamos apenas com dois clientes para hoje, senhor?

 

- Apenas esses dois, Botting.

 

- Atraíram uma boa multidão - observou Botting -, nada do outro mundo, ainda assim, uma afluência considerável.

 

- Óptimo, óptimo - murmurou vagamente o director.

 

- Botting! - atalhou Lord Alexander, coxeando pesadamente sobre o pé aleijado, à medida que avançava ao encontro do carrasco, através do soalho coberto de imundícies. - Diga-me, Botting, sempre é verdade que enforcam os membros da aristocracia com uma corda de seda? - Botting não pôde ocultar o seu espanto ao ver-se interpelado por um dos convidados de honra do director, tratando-se, para mais, de uma personagem tão fantástica como o reverendo Lord Alexander Pleydell, com o seu topete de cabelo ruivo, o nariz de ave de rapina e os seus passos desengonçados. - Então? - insistiu Lord Alexander em tom imperioso. - é ou não verdade? Ouvi falar no assunto, mas, em matéria de forca, estou certo de que é o senhor o fons et origo da informação mais fidedigna. Não concorda?

 

- Uma corda de seda, senhor? - perguntou Botting, em voz sumida.

 

- O termo é ”vossa senhoria” - corrigiu o reverendo.

 

- Vossa senhoria! Hã-hã! - exclamou Botting, recuperando o ânimo, e intimamente divertido com a ideia de que, possivelmente, Lord Alexander estava a contemplar a hipótese de vir a ser ele próprio executado. - Por muito que me custe desiludir vossa senhoria - declarou -, a verdade é que não saberia o que fazer com uma corda de seda. Em contrapartida, com este material - prosseguiu o carrasco, afagando carinhosamente um dos dois nós corredios dispostos sobre a mesa -, o melhor cânhamo de Bridport, e nem vossa senhoria conseguiria encontrar uma qualidade superior em parte alguma, sou capaz de lidar como com os dedos da minha mão. O magnífico cânhamo de Bridport não tem segredos para mim. Mas a seda? Isso é

 

Nota: Fons es Origo, Expressão latina traduzível por ”fonte e origem primordial”. [N. da T.]

 

uma história completamente diferente, permita-me que diga a vossa senhoria, e nem saberia por que ponta pegar-lhe. Não, excelência. Se acaso algum dia tiver o alto privilégio de enforcar um membro da nobreza, pode estar vossa senhoria certa de que usarei uma boa corda de cânhamo de Bridport, tal como faço com toda a gente.

 

- E fará muito bem, meu bom homem! - aprovou Lord Alexander, encantado com os instintos de rebeldia social manifestados pelo carrasco.

- Os meus parabéns! Muito obrigado!

 

- Vossa senhoria permite-me? - atalhou o director, sugerindo com um gesto a Lord Alexander a conveniência de afastar-se da ala central que separava as duas fileiras de mesas.

 

- Estou a atrapalhar o caminho? - perguntou Lord Alexander, deveras surpreendido.

 

- Só por uns momentos, excelência - respondeu o director, e mal tinha terminado a frase quando chegou aos ouvidos de Lord Alexander o som combinado de um tilintar de grilhetas e de passos arrastados. Os restantes convidados ergueram-se dos seus assentos e assumiram uma expressão conforme à solenidade da ocasião. Quanto a Lord Christopher Carne, mais lívido do que nunca, voltou-se na direcção da porta que dava acesso ao Press Yard.

 

A primeira pessoa a entrar na sala foi um guarda prisional, que, após dirigir uma espécie de continência ao director da prisão, se postou ao pé de uma pequena pilha de lascas de madeira bem arrumadas no chão. O guarda vinha equipado com um impressionante martelo e um formão metálico, utensílios sobre cuja finalidade Lord Alexander se interrogava, sem se atrever, contudo, a fazer perguntas. E, logo de seguida, os convidados que se encontravam mais perto da porta tiraram os chapéus da cabeça, saudando o delegado da Coroa e o seu adjunto, que conduziam os dois condenados para o interior da Sala de Reuniões.

 

- É servido de brandy, senhor? - ofereceu um funcionário do director, surgindo subitamente, de bandeja em punho, junto de Lord Christopher Carne.

 

- Obrigado - respondeu distraidamente Lord Christopher, sem conseguir entretanto desviar os olhos do frágil e pálido jovem que fora o primeiro dos dois condenados a transpor a porta, arrastando as pernas amarradas por pesadas grilhetas. - Aquele é que é o Corday? - perguntou Lord Christopher ao funcionário.

 

- É sim, excelência.

 

Lord Christopher despejou o seu brandy de um trago e pegou imediatamente noutro cálice.

 

E, nesse momento, dois sinos - o da prisão e o da igreja do Santo Sepulcro - irromperam simultaneamente no dobre a finados.

 

Sandman contava que fosse um criado a atender à porta da grande mansão de Great George Street, mas, afinal, quem lha abriu foi Sebastian Witherspoon, o secretário particular do visconde de Sidmouth, que franziu o sobrolho de espanto.

 

- Não creio que seja uma hora apropriada para visitas, capitão? - observou Witherspoon, lançando um olhar escandalizado ao desalinho do traje de Sandman e ao aspecto lastimoso dos seus três acompanhantes. - Espero bem que não tenham vindo aqui para tomar o pequeno-almoço? - acrescentou, pleno de desdém.

 

- Esta mulher - atalhou Sandman, saltando sobre as formalidades dos cumprimentos da praxe - pode testemunhar que Charles Corday não é o assassino da condessa de Avebury.

 

Witherspoon levou aos lábios um guardanapo manchado de gema de ovo. Após uma breve mirada a Meg, encolheu os ombros, dando a entender que o testemunho dela não teria qualquer valor.

 

- Que grande maçada - murmurou.

 

- O visconde de Sidmouth encontra-se em casa? - perguntou Sandman.

 

- Estamos a trabalhar, Sandman - ripostou Witherspoon em tom severo. - Conforme decerto sabe, sua senhoria enviuvou recentemente, e, desde essa trágica perda, tem procurado consolo na sua aplicação ao dever. Começa de manhã cedo, acaba tarde, e não tolera interferências no trabalho.

 

- Isto é um assunto de trabalho.

 

Witherspoon tornou a olhar para Meg, e, desta vez, pareceu atentar na sua aparência.

 

- Será necessário recordar-lhe - perguntou a Sandman - que o rapaz foi condenado por um tribunal e que, no devido curso da justiça, falta menos de uma hora para lhe ser aplicada a sentença? Não vejo realmente o que possa ser feito em tão tardia conjuntura.

 

Sandman recuou do umbral da porta para a calçada.

 

- Apresente os meus cumprimentos a Lord Sidmouth - disse - e comunique-lhe que vamos directamente daqui para uma audiência com a Rainha. - Não tinha qualquer certeza de que a rainha se dispusesse a recebê-lo, mas, em contrapartida, também não lhe restavam dúvidas de que nem Witherspoon nem o seu ministro estavam interessados em entrar em conflito com a realeza, atendendo a que, de momento, a coroa constituía a sua principal fonte de honrarias e abonos. - Segundo as informações de que disponho - prosseguiu Sandman - sua Majestade interessou-se particularmente por este caso, e creio que ficará perplexa ao tomar conhecimento da sua nobre atitude. Tenha um bom dia, Witherspoon.

 

- Capitão! - apelou Witherspoon, escancarando de novo a porta. - Capitão! É melhor fazer o favor de entrar.

 

Foram imediatamente conduzidos para uma antecâmara deserta. Apesar de situada numa rua luxuosa, a pouca distância do Parlamento, a casa tinha todo o aspecto de uma residência provisória. Era obviamente o tipo de casa em que ninguém residia a título permanente, destinando-se antes a ser alugada, por breves períodos, a políticos como Lord Sidmouth, carecidos de um refúgio temporário. O mobiliário da antecâmara consistia, ao todo e por junto, num par de poltronas estofadas, ambas com o forro desbotado, e numa sólida escrivaninha, com o competente cadeirão a imitar um trono. Sobre a escrivaninha encontrava-se um livro de orações esplendidamente encadernado, lado a lado com uma desordenada pilha de jornais regionais, todos eles com artigos assinalados a tinta. Assim que ficaram a sós no desolado aposento, Sandman pôde verificar que os artigos destacados se referiam invariavelmente a perturbações da ordem pública. De uma ponta à outra do país, o povo saía à rua para protestar contra o preço do trigo, ou contra a introdução de maquinaria nas oficinas fabris.

 

- Às vezes chego a pensar - comentou Sandman - que este mundo moderno é um lugar muito triste para viver.

 

- Tem as suas compensações, capitão - redarguiu Berrigan em tom despreocupado, lançando um olhar a Sally.

 

- Motins, searas queimadas - prosseguiu Sandman. - Nada disto acontecia antigamente. Malditos Franceses, que espalharam a anarquia pelo mundo inteiro!

 

Berrigan sorriu.

 

- As coisas corriam melhor nos bons velhos tempos, hem? Quando a vida era só críquete e leite-creme?

 

- Nos intervalos da luta contra os franciús? Pois sim, acho que a vida era bela.

 

- Não, capitão - contrariou Berrigan, abanando a cabeça. - O que acontecia era que, nesse tempo, o senhor abarrotava de dinheiro. Tudo se simplifica quando uma pessoa tem os bolsos recheados.

 

- Ámen, plenamente de acordo - assentiu Sally fervorosamente, virando-se de seguida em sobressalto ao ouvir a porta abrir-se, empurrada por Witherspoon, que introduziu o ministro na sala.

 

O visconde de Sidmouth envergava um roupão de seda lavrada, sobre a camisa e as calças que conservava vestidas. Estava barbeado de fresco e a sua alva cútis reluzia, dando a impressão de ter sido esticada e polida. Como sempre, o seu olhar era frio e reprovador.

 

- Pelos vistos, capitão Sandman - acusou, num tom ácido - resolveu importunar-nos?

 

- Não resolvi nada de semelhante, excelência - ripostou Sandman.

 

Surpreendido pela arrogância daquele tom de voz, Sidmouth franziu o sobrolho de contrariedade, desviando em seguida o olhar para o trio formado por Berrigan e as duas raparigas. Dos fundos da casa chegava à saleta o tilintar de louça a ser levantada da mesa das refeições, o que levou Sandman a aperceber-se da intensa fome que o assaltava.

 

- Pois então - proferiu o ministro, agastado - quem é que o senhor me traz?

 

- Os meus sócios, o sargento Berrigan e Miss Hood...

 

- Sócios? - atalhou Sidmouth, divertido.

 

- É meu dever reconhecer os seus préstimos, excelência, tal como, sem dúvida, sua Majestade o fará, quando tomar conhecimento do resultado das nossas investigações.

 

Aquela pouco subtil insinuação provocou uma careta no ministro. Observou Meg, e por pouco não recuou de susto perante a malevolência patente nos seus olhos pequeninos, para já não falar dos dentes estragados e da pele bexigosa.

 

- E quem é esta senhora? - indagou friamente.

 

- Esta senhora é Miss Margaret Hargood - Sandman tomou a seu cargo as apresentações -, antiga aia da condessa de Avebury. Estava presente no quarto da condessa no dia em que ela foi assassinada, e acompanhou Charles Corday até à porta da rua antes de o crime ter sido cometido. Viu-o abandonar a casa, e pode testemunhar que ele não regressou. Resumindo, excelência, está em condições de provar a inocência de Corday. - Sandman debitou esta tirada com uma boa dose de orgulho e satisfação. Sentia-se exausto, faminto, o tornozelo doía-lhe e as suas roupas denotavam claramente os efeitos de uma caminhada de Kent até Londres, mas, graças a Deus, alcançara a verdade.

 

Os lábios de Sidmouth, já de si muito finos, comprimiram-se até se reduzirem a um risco exangue, ao interpelar Meg.

 

- É verdade, mulher?

 

Meg pôs-se de pé, muito direita, e de modo algum intimidada por sua excelência o ministro. Em vez disso, mirou-o de alto a baixo, concluindo o exame com uma fungadela.

 

- Não sei nada de nada - declarou.

 

- Perdão, creio que não a ouvi bem - retorquiu o ministro, empalidecendo perante a insolência que transparecia na voz dela.

 

- Aquele tipo aparece e rapta-me! - guinchou Meg, apontando para Sandman. - O que não tinha o menor direito de fazer, raios o partam! Separou-me das minhas queridas galinhas. Por mim, bem pode voltar para o buraco de onde veio, e que me importa que ela tinha sido assassinada por este ou por aquele? Que me importa quem vai pagar pelo crime?

 

- Meg - interveio Sandman, esforçando-se por acalmá-la.

 

- Tira as tuas malditas patas de cima de mim!

 

- Santo Deus - proferiu o visconde de Sidmouth num queixume, encaminhando-se para a porta. - Witherspoon - acrescentou -, estamos a desperdiçar o nosso tempo.

 

- Pudera - interveio Sally, abrindo a boca pela primeira vez. - Com tantas vespas na Austrália a suplicar a clemência do senhor ministro.

 

Sucedeu que nem mesmo o visconde de Sidmouth, a despeito da mesquinha tacanhez da sua mentalidade de jurista, se mostrou imune aos encantos de Sally. Ela surgiu-lhe como um raio de sol na penumbra da saleta, e, apesar de mal ter compreendido o sentido das suas palavras, o ministro abriu-se num sorriso para a jovem.

 

- Desculpe, o que estava a dizer-me?

 

- Tantas vespas na Austrália - prosseguiu Sally - e é lá que há-de ir parar esta ordinária, por ter fugido a apresentar-se como testemunha no julgamento do Charlie. Era essa a sua obrigação, mas não a cumpriu. Preferiu dar cobertura ao amante, percebe? Portanto, agora, o senhor ministro vai deportá-la, não é verdade, excelência? - Sally acompanhou esta pergunta retórica com uma graciosa mesura.

 

O ministro ficou atrapalhado.

 

- Deportá-la? Esse tipo de decisão compete aos tribunais, minha linda, não está no meu poder decidir quem... - A voz sumiu-se-lhe de repente, ao olhar para Meg, que, para sua estupefacção, estremecia de pavor.

 

- Enormes, as vespas da Austrália - reforçou Sandman. - Famosas pelo seu tamanho.

 

- Aculeata Gigantus, é o seu nome em latim - elucidou Witherspoon, com grande sentido de oportunidade.

 

- Não! - gritou Meg.

 

- Gigantescas - contribuiu Sally, perfeitamente deliciada -, com ferrões do tamanho de alfinetes de chapéu.

 

- Não foi ele - berrou Meg -, e eu não quero ir para a Austrália! Sidmouth contemplava-a atónito, com uma reacção muito semelhante

 

à do público que pasmara perante a exibição no Coliseu da mulher com cara de porco.

 

- Está agora a afirmar - perguntou, com uma entoação gélida - que Charles Corday não foi o autor do crime?

 

- Não foi o marquês! Não foi ele!

 

- Não foi qual marquês que não fez o quê? - perguntou Sidmouth, agora completamente baralhado.

 

- Ela refere-se, excelência, ao marquês de Skavadale, que lhe deu abrigo na sua residência - esclareceu Sandman.

 

Nota: Vespas Em sentido figurado, patifes impenitentes. [N. da T.]

 

- Ele só chegou lá depois do assassínio. - Meg, apavorada pelas míticas vespas, esforçava-se agora desesperadamente por explicar tudo. - Quando o marquês chegou, já ela estava morta. Vinha muitas vezes visitá-la. E o outro ainda lá estava!

 

- Quem é que ainda lá estava? - inquiriu Sandman.

 

- Ele continuava lá!

 

- O Corday?

 

- Não! - replicou Meg, irritada. - O outro! - Calou-se por instantes, olhando ora para Sandman ora para o ministro, cuja expressão denotava ainda total perplexidade. - O enteado dela - declarou por fim -, que há meio ano andava a espetar o pau no terreno do pai.

 

Sidmouth esboçou uma careta de repulsa.

 

- O enteado?

 

- Lord Christopher Carne, excelência - precisou Sandman -, enteado da condessa e herdeiro do título e propriedades do pai.

 

- Bem o vi de faca em punho - rosnou Meg - e o marquês também. Lavado em lágrimas, lá isso estava. Aquele Lord Christopher! Odiava-a, percebem, mas, apesar disso, não conseguia manter as suas miseráveis patas longe dela. Oh, foi ele quem a matou! Não aquele pintor amaricado!

 

Durante o breve silêncio que se seguiu a estas extraordinárias declarações, Sandman foi assaltado por uma avalanche de dúvidas. Mas Lord Sidmouth não hesitou em vociferar as suas ordens a Witherspoon.

 

- Transmita os meus cumprimentos à esquadra de polícia de Queen Square - a esquadra situava-se a poucos minutos de caminho - e comunique-lhes que lhes ficarei muito grato se me fornecerem imediatamente quatro polícias e seis cavalos de sela. Mas, primeiro que tudo, Witherspoon, dê-me uma pena. Uma pena, papel, lacre e o carimbo oficial. - Virou-se para consultar um relógio colocado sobre a pedra da lareira. - E temos de despachar-nos, homem. - O ministro exprimia-se num tom agastado, como que ressentido contra a carga de trabalhos que inesperadamente lhe caíra em cima, mas Sandman sentia-se incapaz de criticá-lo. Afinal de contas, a criatura estava a cumprir o seu dever, e, para mais, com exemplar rapidez.

- Temos de despachar-nos - repetiu o ministro.

 

E lá foram tratar de despachar-se.

 

- O pé em cima do bloco, moço! Nada de engonhanços! - rosnou o carcereiro para Charles Corday, que, engolindo em seco, pousou o pé direito sobre o bloco de madeira. O guarda inseriu o formão no primeiro rebite, e aplicou-lhe toda a força do martelo. Corday soltava um gemido a cada martelada, e desatou a choramingar quando a grilheta cedeu. Lord Alexander pôde então verificar que o tornozelo do rapaz era um anel de chagas.

 

- O outro pé, moço - exigiu o carcereiro.

 

Ambos os sinos continuavam a repicar, e nenhum deles se calaria até ao momento em que os dois cadáveres fossem soltados das respectivas cordas. Os convidados do director mantinham-se em silêncio, perscrutando os rostos dos condenados como se os seus olhos, que em breve contemplariam o além, pudessem fornecer-lhes alguma pista sobre os segredos da eternidade.

 

- Muito bem, moço, agora vai ter com o carrasco! - ordenou o carcereiro, e Charles Corday emitiu um fraco grito de surpresa ao dar os primeiros passos sem grilhetas nos pés. Cambaleou, mas conseguiu evitar cair apoiando-se numa mesa.

 

- Não sei - começou Lord Carne a dizer, mas logo se interrompeu abruptamente.

 

- O quê, Kit? - perguntou Lord Christopher, obsequiosamente. Lord Christopher, que nem sequer se dera conta de ter aberto a boca, estremeceu de sobressalto, mas lá conseguiu recompor-se.

 

- Dizes que há dúvidas acerca da sua culpabilidade? - perguntou.

 

- Pois há, e até bastantes, de facto. - Lord Alexander fez uma pausa para acender o seu cachimbo. - Sandman está perfeitamente convencido da inocência do rapaz, mas, segundo parece, é impossível prová-la. Uma pena, uma grande pena.

 

- Mas, se o verdadeiro assa-sassino for alguma vez descoberto - indagou Lord Christopher, de olhos postos em Corday, que tremia como varas verdes diante do carrasco - será que poderá ainda ser condenado pelo crime, depois de Corday ter sido considerado cul-culpado e enforcado?

 

- Ora aí está uma boa pergunta! - retrucou Lord Alexander vivamente. - E para a qual sou forçado a admitir que não conheço ao certo a resposta. Mas presumo - não sei se estarás de acordo comigo - que, caso o verdadeiro assassino venha a ser identificado, Corday deverá ser contemplado com uma absolvição póstuma, e resta-nos esperar que esse perdão terreno se reflicta no Além, e que o pobre rapaz seja resgatado das profundas do inferno para o paraíso.

 

- Quieto, moço - grunhiu Jemmy Botting para Corday. - Bebe um pouco daquilo, se achas que te serve de ajuda - acrescentou, apontando para um frasco de brandy, mas Corday abanou a cabeça. - É lá contigo, rapaz, é lá contigo - resmungou Botting, enquanto pegava numa das quatro cordas de amarrar e a passava em torno dos cotovelos de Corday, cruzados atrás das costas, num laço tão apertado que o infeliz arqueou a espinha, projectando o peito para fora.

 

- Não exageres, Botting - admoestou o director.

 

- Nos bons velhos tempos - refilou Botting -, o carrasco dispunha de um ajudante para assisti-lo nesta tarefa. Chamavam-lhe o ”Oficial da Corda”, e tinha como função manietar os condenados, coisa que não faz parte das minhas incumbências. - Na verdade, o que o levara a dar as primeiras voltas da corda de uma forma tão dolorosa para Corday fora o facto de ele não lhe ter amaciado as patas com a gorjeta da praxe, mas, perante o responso, lá abrandou um pouco o aperto antes de puxar-lhe os braços para a frente, amarrando-lhe os pulsos sobre o peito.

 

- Isto aqui vale para nós dois - interveio o segundo condenado, o gigantesco e barbudo Reginald Venables, atirando uma moeda para cima da mesa. - Portanto, trate de aliviar as amarras do meu amigo.

 

Botting olhou para a moeda, e, comovido por tamanha generosidade, afrouxou ligeiramente ambas as amarras de Corday, antes de lhe passar ao pescoço o laço corredio da grossa corda com que iria realmente ser enforcado. Corday arrepiou-se ao sentir o toque do sisal, e, entretanto, o reverendo Cotton aproximou-se e pousou-lhe uma mão sobre o ombro.

 

- Deus é o nosso refúgio e a nossa força, meu jovem amigo - sentenciou o reverendo -, uma presença amiga que nunca nos falha nas horas de aflição. Apela ao Senhor, e Ele escutar-te-á. Arrependes-te dos teus infames pecados, jovem?

 

- Não fiz nada de mal! - guinchou Corday.

 

- Calma, meu filho, calma - recomendou Cotton -, tem ao menos a decência de guardar silêncio enquanto meditas sobre os teus pecados.

 

- Não fiz nada de errado! - urrou Corday.

 

- Charlie - atalhou Venables -, não lhes dês essa satisfação! Lembra-te do que eu te disse, parte deste mundo como um verdadeiro homem! - Engoliu um trago de brandy, e ofereceu as costas a Botting, para que ele lhe amarrasse os cotovelos.

 

- Mas certamente que, após um homem ter sido con-condenado e exe-xe-cutado por determinado crime - sugeriu Lord Christopher a Lord Alexander - as autoridades não se mostrarão muito dispostas a reabrir o caso?

 

- A justiça acima de tudo - replicou Lord Alexander, com o espírito algures - mas essa tua observação parece-me assaz pertinente. Ninguém gosta de admitir que cometeu um erro, e os políticos ainda menos que os restantes mortais, de modo que é bem provável que o verdadeiro assassino se sinta bastante mais tranquilo a partir do momento em que Corday morra na forca. Pobre rapaz, que desgraça. Vai ser sacrificado no altar da incompetência do nosso sistema penal, hem?

 

Botting passou a segunda corda sobre os ombros de Venable, ao mesmo tempo que o reverendo Cotton, distanciando-se um passo dos condenados, abria o seu livro de orações na página do serviço fúnebre.

 

- ”Sou a Ressurreição e a Vida” - declamou - ”e aqueles que crêem em Mim viverão para além da morte.”

 

- Não fiz nada de mal! - berrou Corday, contorcendo-se para a esquerda e para a direita, como que à procura de uma via de fuga.

 

- Calma, Charlie - aconselhou Venables brandamente -, não percas a calma.

 

O delegado da Coroa e o seu adjunto, ambos revestidos da majestade das suas togas e insígnias oficiais, ambos empunhando bastões rematados com pontas de prata, e ambos manifestamente satisfeitos pelo facto de os condenados haverem sido sujeitos aos trâmites da praxe, dirigiram-se ao director da prisão, que os saudou com uma vénia cerimoniosa, entregando em seguida ao magistrado uma folha de papel. O delegado da Coroa examinou o papel, e, com um aceno de assentimento, guardou-o num dos bolsos da sua toga debruada com peles. Os prisioneiros, que até então haviam estado sob a alçada do director de Newgate, passavam a partir daquele momento a pertencer ao delegado da Coroa, que, por seu turno, não tardaria a confiá-los à guarda do diabo. O magistrado afastou as abas da toga para extrair o seu relógio do respectivo bolsinho. Abriu a tampa e consultou o mostrador.

 

- Falta um quarto para as oito - declarou, virando-se para Botting. O senhor está pronto?

 

- Perfeitamente pronto, excelência, e inteiramente às vossas ordens - ripostou Botting. Voltou a pôr o chapéu na cabeça, pegou nos dois sacos de algodão branco e enfiou-os numa algibeira.

 

O delegado da Coroa fechou a tampa do relógio, ajustou as abas da toga e encaminhou-se para o Press Yard.

 

- Meus senhores, temos um compromisso marcado para as oito horas proclamou -, portanto, tratemos de cumpri-lo.

 

- Rins à diabo! - exclamou Lord Alexander. - Santo Deus, já lhes sinto o cheiro! Anda daí, Kit!

 

Juntaram-se ao cortejo.

 

E os sinos continuavam a badalar.

 

A distância não era grande. Uns quatrocentos metros ao longo de Whitehall e chegava-se ao Strand, daí menos de um quilómetro até Temple Bar, e depois faltava apenas percorrer um troço de pouco mais de quinhentos metros em Fleet Street, atravessar a valeta e subir por Ludgate Hill até ao desvio que, à esquerda, conduzia a Old Bailey. Uma distância, que sendo já de si insignificante, se tornou ainda mais fácil de vencer graças ao concurso dos cavalos disponibilizados pela esquadra policial de Queen Square. Tanto Sandman como Berrigan foram contemplados com montadas, tendo cabido ao sargento uma égua, que um membro da corporação lhe afiançou ser muito mansa, e a Sandman um cavalo capado e estrábico, porém supostamente mais impetuoso. Witherspoon saiu de casa a correr, brandindo o documento de revogação da sentença, que entregou a Sandman, com o lacre do timbre ainda morno.

 

- Que Deus o ajude a chegar a tempo - foi o voto do secretário do ministro.

 

- Encontramo-nos mais tarde no sheaf, Sal! - gritou-lhe Berrigan alegremente, antes de quase perder o equilíbrio na sela quando a sua égua espinoteou, disparando no encalço do cavalo de Sandman, que rumava já a Whitehall. Três polícias montados encarregavam-se de desimpedir-lhes o caminho, um deles soprando um apito e os outros dois manejando os seus cacetes para afastar as carroças, vagões e carruagens que circulavam na rua. Um varredor saltou da via para o passeio, berrando uma praga. Sandman enfiou o precioso papel no bolso e olhou para trás para verificar que, tal como suspeitava, Berrigan esporeava impiedosamente a sua égua.

 

- Calma com os estribos, sargento! Calcanhares para baixo! Não puxe pelas rédeas, deixe-a correr à vontade! Ela toma conta de si!

 

Deixaram para trás os estábulos reais, e enveredaram pela calçada do Strand. Ao passarem diante da loja de Kidman, o boticário, afugentaram dois transeuntes que correram a refugiar-se no vasto pórtico do estabelecimento, e em seguida rasaram a cutelaria de Carrington, onde Sandman adquirira a sua primeira espada, que, conforme recordou, se quebrara no decurso do assalto a Badajoz. O feito nada tivera de heróico. Sucedera apenas que Sandman, frustrado pela manifesta incapacidade do seu exército para romper as linhas francesas, perdera a cabeça e, ao arremeter à toa contra uma carroça de munições extraviada, o punho da sua espada soltara-se da lâmina. O grupo ultrapassou a galope o teatro de Sans Pareil, onde a actriz Célia Collet havia seduzido o conde de Avebury. Daí resultara o casamento entre um velho gagá e uma jovem oportunista, e, quando se tornou óbvio que o eterno amor que os unia não passava de luxúria mal correspondida por uma das partes, o casal separara-se e a jovem instalara-se em Londres, onde, a fim de manter o luxuoso nível de vida a que entretanto se habituara, recorrera aos serviços de alcoviteira da sua antiga colega das lides teatrais, Margaret Hargood. Fora assim que a condessa atraíra amantes sobre quem fora exercendo uma chantagem razoavelmente proveitosa, até ao dia em que apanhara na sua teia uma mosca bem mais gorda: o ingénuo e inocente Lord Christopher Carne apaixonara-se pela madrasta, que o seduzira, fascinara, e compelira a suplicar-lhe de joelhos os seus favores, ameaçando-o em seguida de revelar a verdade a toda a gente, desde os curadores do legado familiar até ao seu próprio pai, a menos que ele lhe entregasse uma fatia acrescida da sua substancial mesada. Portanto, Lord Christopher, consciente de que, quando entrasse na plena posse da herança, a madrasta lhe iria exigir mais e mais, sugando-o até ao tutano, resolvera matá-la.

 

Sandman chegara a todas estas conclusões enquanto o visconde de Sidmouth redigia pelo seu próprio punho a anulação da sentença.

 

- Em rigor - comentara o ministro - é ao Conselho da Coroa que cabe emitir um documento deste tipo.

 

- Mas o tempo urge, excelência - redarguira Sandman.

 

- Eu sei disso, capitão - respondeu o visconde de Sidmouth azedamente. Com o aparo de metal a arranhar o papel e a soltar minúsculas gotas de tinta, acabou de traçar a sua assinatura cheia de floreados. - Encarrego-o de entregar este documento, com os meus cumprimentos - disse, lançando areia sobre a tinta húmida - ao delegado da Coroa ou a algum dos seus adjuntos, que certamente se encontrarão junto do cadafalso. Se lhe perguntarem por que razão a ordem não vai assinada pelo Conselho da Coroa, nem lhe é entregue em mãos pelo Oficial de Registos de Londres, explique que não houve tempo para cumprir as devidas formalidades. Entretanto, terá a bondade de passar-me aquela vela e o pau de lacre?

 

Agora, enquanto Sandman e Berrigan se apressavam no caminho, com o selo do perdão ainda quente, Sandman meditava nos remorsos que deviam assaltar Lord Christopher, com a agravante de que o assassínio da condessa não lhe trouxera decerto grande alívio, uma vez que fora praticamente surpreendido em flagrante pelo marquês de Skavadale, cuja família se encontrava à beira da penúria, e a quem oferecera afinal, de uma penada, a solução de todos os seus problemas. Meg era a única testemunha capaz de identificar Lord Christopher como o autor do crime, de modo que, enquanto continuasse viva e sob a protecção do marquês de Skavadale, Lord Christopher não teria outro remédio se não ir-lhe comprando o silêncio. E, quando Lord Christopher se tornasse conde, entrando na posse da fortuna do avô, seria forçado desfazer-se dela até ao último tostão. Toda a herança iria parar direitinha aos bolsos de Skavadale, enquanto que Meg, o instrumento através do qual ele se apropriaria do património dos Avebury, se deixaria alegremente subornar com um bando de galináceos.

 

Sidmouth enviara mensageiros para os portos do canal, bem como para Harwich e Bristol, a fim de impedirem uma eventual tentativa de fuga por parte de Lord Christopher Carne.

 

- E a respeito de Skavadale? - perguntara Sandman.

 

- Não sabemos se ele começou já a extorquir dinheiro sob o efeito de ameaças - retorquira Sidmouth friamente -, aliás, a fazer fé nas palavras da rapariga, só tencionavam iniciar a sua Missão predatória depois de Lord Christopher herdar o título e a fortuna. Podemos reprovar os seus planos, capitão, mas não puni-lo por um crime ainda por cometer.

 

- Skavadale ocultou a verdade! - exclamara Sandman, indignado. - Mandou chamar os polícias e disse-lhes que não conseguira identificar o assassino! Estava disposto a consentir na morte de um inocente!

 

- E como é que se propõe provar isso? - desafiou Sidmouth incisivamente. - Já deve dar-se por muito satisfeito por ter conseguido descobrir o verdadeiro assassino.

 

- E ganho as quarenta libras de recompensa - atalhou Berrigan jovialmente, o que lhe valeu um olhar fulminante por parte de sua senhoria.

 

Prosseguindo à desfilada, com o ruído dos cascos dos cavalos a ecoar contra as paredes da igreja de Saint Clement, Sandman viu em seguida o reflexo da sua imagem multiplicada por doze nas vidraças do talho de Clifton, e veio-lhe à ideia como lhe saberiam bem naquele momento umas costeletas de porco, acompanhadas de um bom prato de rins. Logo adiante passaram por Marble Arch, onde o espaço sob a arcada se encontrava à cunha de carroças e transeuntes. Os polícias gritavam aos condutores que desimpedissem o caminho, instando-os a usar o chicote, ao mesmo tempo que esporeavam as suas próprias montadas. Uma carreta carregada de flores frescas atravancava a passagem, e um dos polícias arremeteu contra ela a poder de cacete, espalhando uma chuva de pétalas e folhas sobre as pedras da calçada.

 

- Deixem-nos em paz - berrou Sandman -, deixem-nos em paz! Ao obrigar o cavalo a desviar-se precipitadamente de uma cova, atirou

 

ao chão um sujeito magro, ornado de um chapéu alto. Com Berrigan sempre colado à sua peugada, Sandman transpôs o arco erguendo-se sobre os estribos, e o seu cavalo seguiu à desfilada rumo a Fleet Ditch, arrancando faíscas às pedras da calçada.

 

Ao ouvir os sinos das igrejas começarem a repicar as oito da matina, Sandman experimentou a sensação de que a cidade inteira se encontrava envolta numa cacofonia de badaladas, tropel de cavalos, pânico e apocalipse.

 

Voltou a assentar-se na sela, deu uma palmada na garupa do cavalo, e galopou à velocidade do vento.

 

Ao transpor o arco rasgado na alta torre da Porta dos Devedores, Lord Alexander deparou-se com o sombrio e profundo fosso do patíbulo, e ocorreu-lhe que se assemelhava bastante ao fosso da orquestra dos teatros. Visto da rua, onde a multidão se aglomerava para assistir ao espectáculo, o cadafalso da forca surgia como uma estrutura pesada, fixa e sombria, envolta nos seus panejamentos negros, mas, do posto de observação de Lord Alexander, não passava de um artifício ilusório, montado sobre toscas traves de madeira. Tratava-se apenas de um palco preparado para a encenação de uma tragédia cujo desfecho era a morte. À sua direita, um lance de degraus de madeira imergia na escuridão antes de, inflectindo abruptamente para a esquerda, desembocar num pavilhão coberto, que constituía a parte traseira do patíbulo. Esse pavilhão assemelhava-se, por seu turno, aos camarotes de luxo dos teatros, onde os espectadores privilegiados podiam desfrutar da melhor perspectiva da peça que se desenrolava no palco.

 

Sendo o primeiro dos notáveis a emergir do alto da escadaria, Lord Alexander foi saudado por grandes vivas da assistência, não porque alguém o conhecesse ou estivesse interessado em conhecer, mas porque o seu aparecimento prenunciava a chegada dos dois condenados, e a populaça estava cansada de esperar. Pestanejando ante a súbita irrupção da luz do dia, Lord Alexander tirou o chapéu e dirigiu uma vénia à multidão que, lisonjeada pelo gesto, riu e aplaudiu. Embora não fosse particularmente numerosa naquele dia, a turba enchia a rua até cem jardas a sul e entupia completamente o cruzamento com Newgate Street, do lado norte. Todas as janelas do Magpie and Stump haviam sido alugadas, e havia inclusivamente um punhado de espectadores empoleirados no telhado da hospedaria.

 

- Pediram-nos para ocuparmos as cadeiras do fundo - observou Lord Christopher, quando Lord Alexander se instalou na fila da frente.

 

- O que nos foi solicitado foi que deixássemos dois lugares da frente livres para o delegado da Coroa - corrigiu-o Lord Alexander - e ali estão eles. Senta-te, Kit, vá lá. Que dia maravilhoso! Achas que o tempo irá aguentar-se? Para Budd no sábado, hem?

 

- O Budd no sábado? - indagou Lord Christopher, perplexo e abalroado pelos convidados que procuravam alcançar as filas de trás.

 

- Críquete, meu caro amigo! Conseguiu finalmente persuadir o Budd a jogar uma partida de um só wicket contra Jack Lambert, e Lambert, um óptimo sujeito, aceitou ceder o seu lugar a Sandman se este estiver de acordo! Informou-me da sua decisão ontem, à saída da igreja. Ora, é a isso que eu chamo uma partida de sonho, hem? O Budd contra o Sandman. Irás assistir, não é verdade?

 

A conversa à beira do cadafalso foi momentaneamente abafada pelo coro de vivas com que a multidão acolheu o delegado da Coroa e o seu adjunto, inconfundíveis no seu traje composto por calções, meias de seda, sapatos com fivelas de prata e mantos debruados com peles. Lord Christopher, aparentemente alheado da chegada dos magistrados, concentrava-se antes na trave de onde os enforcados haveriam de pender, parecendo desiludido ao verificar que não se encontrava manchada de nódoas de sangue. Em seguida olhou mais para baixo, e sobressaltou-se perante a inesperada visão dos dois caixões que aguardavam o respectivo recheio.

 

- Ela era uma mulher diabólica - comentou brandamente.

 

- Claro que não faltarás ao jogo - prosseguiu Lord Alexander, franzindo de seguida o sobrolho. - O que é que disseste, meu caro?

 

- A minha madrasta. Era diabólica. - Apesar de não estar frio nenhum, Lord Alexander parecia acometido de arrepios. - Ela e aquela sua maldita criada, um autêntico par de bruxas!

 

- Estás a tentar justificar o assassínio?

 

- Ela era diabólica - repetiu Lord Christopher ainda com mais ênfase, sem dar mostras de ter escutado a pergunta do amigo. - Dizia-me que tinha direitos sobre a propriedade e que iria reivindicá-los juntos dos curadores, apenas porque eu lhe escrevera algumas cartas. Tudo mentira, Alexander, tudo mentira! - Estremeceu ao recordar-se das longas cartas em que vertera toda a sua paixão pela madrasta. Não havia conhecido qualquer outra mulher antes de se deitar na cama com ela, e ficara totalmente subjugado. Implorara-lhe que fugisse com ele para Paris e ela encorajara a sua loucura até ao dia em que, escarnecendo dele, o encurralara na sua armadilha. Ou ele lhe dava todo o dinheiro que ela quisesse, ou, segundo garantia, haveria de torná-lo no alvo da chacota de Paris, Londres e demais capitais europeias. Ameaçara-o de mandar fazer cópias das suas cartas e de enviá-las a toda a gente a fim de tornar bem pública a sua vergonha, de modo que ele não tivera outro remédio se não satisfazer as suas exigências, e ela fora-lhe exigindo somas cada vez mais elevadas, até não lhe restarem quaisquer dúvidas de que aquela chantagem jamais teria fim. Portanto, matara-a.

 

Nunca se havia considerado capaz de cometer um assassínio, mas naquele dia, no quarto, quando lhe suplicara pela última vez que ela lhe devolvesse as cartas, ela troçara dele, chamara-lhe um pau mandado, dissera-lhe que ele não passava de um tolo e de um incapaz. Fora então que ele sacara da faca que trazia ao cinto. Era pouco mais que um velho canivete com que costumava rasgar as páginas dobradas dos livros, mas, tomado de uma fúria insana, servira-lhe perfeitamente para apunhalá-la, golpeá-la e retalhar-lhe aquela pele tão bela quanto odiada. Em seguida correra para o patamar, mas defrontara-se com a criada e com um homem que o fitava do átrio do rés-do-chão. Em pânico, apressara-se a subir de novo para o quarto da condessa, onde desatara a soluçar, esperando a cada instante ouvir o som de passos na escada. Mas ninguém aparecera, e ele obrigara-se a si próprio a recuperar a calma e reflectir. Ao fim e ao cabo, apenas permanecera um segundo no patamar, decerto não o tempo suficiente para ser reconhecido! Pegara então num dos utensílios aguçados que figuravam no estaminé do pintor, espetara-o no cadáver raiado de sangue, e, após revolver a escrivaninha da defunta condessa, fugira pela escada das traseiras munido das preciosas cartas, que se apressara a queimar mal chegara a casa. Escondera-se a tremer sob o travesseiro, receando que a qualquer momento o viessem prender, mas, no dia seguinte, soubera que quem havia sido detido pela polícia fora o pintor.

 

Lord Christopher rezava por Corday. A sua morte seria certamente uma injustiça, mas, por outro lado, não conseguia convencer-se de que ele próprio merecia morrer pelo assassínio da madrasta. Consagraria toda a sua fortuna em prol do bem! Dedicar-se-ia à caridade! Pagaria mil vezes pelo seu crime e pelo sacrifício de Corday. Quando Sandman surgira como uma ameaça contra esse piedoso exercício de arrependimento, Lord Christopher conferenciara com o seu lacaio de confiança, e, garantindo-lhe que Rider Sandman empreendera uma vendeta contra ele e que tencionava processar os curadores da herança, levando-a assim a ficar retida às ordens da Chancelaria, persuadira-o a anunciar uma recompensa de mil guinéus para quem livrasse a propriedade de semelhante perigo. Por seu turno, o lacaio contratara outros homens, a quem Lord Christopher pagara generosamente por uma simples tentativa de atentado à vida de Sandman. Mas afigurava-se-lhe agora que não seriam necessárias mais despesas, uma vez que Sandman fracassara obviamente na sua Missão. Corday estava prestes a ser enforcado, e, após a sua morte, ninguém quereria admitir a responsabilidade de ter enviado um inocente para a dança do palco de Botting.

 

- Mas certamente que a tua madrasta não dispunha de quaisquer direitos sobre a propriedade da tua família - redarguiu Lord Alexander, após uma reflexão sobre o comentário do amigo -, a menos que o vínculo atribuísse especificamente uma parte da herança à viúva do teu pai. É esse o caso?

 

Lord Christopher pareceu confundido pela pergunta, mas, com um grande esforço, lá conseguiu apreender o sentido da interrogação do amigo.

 

- Não - esclareceu -, o património está integralmente consignado ao herdeiro do título. Ou seja, a mi-mim.

 

- Nesse caso, virás a tornar-te num homem prodigiosamente rico, Kit observou Lord Alexander -, e desejo-te as maiores felicidades com essa fortuna. - A sua atenção foi desviada do amigo por um tremendo aplauso, o maior da manhã, com que a multidão saudava a chegada do carrasco ao cadafalso.

 

- ”A minha boca permanecerá como que amordaçada” - recitava o reverendo Cotton em crescendo, à medida que subia as escadas atrás do primeiro condenado -, ”enquanto me encontrar na presença dos ímpios...”

 

Um guarda encabeçava a procissão, seguido de Corday, que, ainda não reacostumado a caminhar sem grilhetas, avançava aos tropeções, chocando contra Lord Alexander, que o segurou pelo cotovelo.

 

- Calma, aguente-se aí, bom homem - disse-lhe Lord Alexander.

 

- Abaixo os chapéus! - urrou a turba contra os espectadores da primeira fila. - Abaixo os chapéus! - O coro subiu de tom à medida que a multidão se comprimia contra o baixo gradeamento de madeira que circundava o patíbulo. Os homens da guarda municipal, postados rente às grades, ergueram os seus bastões e lanças em sinal de advertência.

 

Lord Alexander sentiu-se agredido pela gritaria que ecoava contra a fachada de granito da prisão. Era uma perfeita imagem da política inglesa, reflectiu, conceder à populaça um ligeiro gosto a sangue, na esperança de que, assim apaziguada, abdicasse de maiores exigências. Uma criança encavalitada aos ombros do pai berrava obscenidades a Corday. Este chorava abertamente, angariando assim o desprezo da multidão, que valorizava a coragem dos homens e mulheres capazes de se encaminharem destemidamente para a morte. Lord Alexander foi acometido por um súbito impulso de aproximar-se do jovem, consolá-lo, rezar com ele, mas conteve-se e permaneceu quieto e calado na sua cadeira, porque o reverendo Cotton se encontrava já ao lado de Corday.

 

- ”Revelai-nos o número dos nossos dias” - entoava o capelão na sua ladainha -, ”a fim de que possamos enveredar os nossos corações pelos caminhos da sabedoria.”

 

Neste ponto, Corday esbarrondou-se, e a multidão irrompeu em gargalhadas de escárnio. Botting chegara a meio do escadote e preparava-se para pendurar num dos ganchos da forca a outra extremidade da corda passada em torno dos ombros do condenado, quando as pernas de Corday se transformaram em geleia. O reverendo Cotton deu um salto para trás, o guarda prisional precipitou-se para a frente, mas Corday não conseguia manter-se de pé. Todo ele tremia, sacudido por soluços.

 

- Acaba com esse miserável, Jemmy! - gritou um homem da multidão.

 

- Preciso de um ajudante - resmungou Botting para o delegado da Coroa -, e de uma cadeira.

 

Um dos convidados de honra dispôs-se a levantar-se e a oferecer ao carrasco a sua cadeira, que, sob a intensa luz do sol, foi transportada para junto da porta do alçapão. Compreendendo que iria assistir a uma execução fora do comum, a assistência regozijou-se. Com o auxílio do guarda, Botting içou Corday para o assento, e em seguida, com grande destreza, desatou a corda que amarrava os cotovelos do preso e serviu-se dela para amarrá-lo à cadeira. Agora já estava em condições de ser enforcado. Botting trepou os restantes degraus do escadote, colocou uma ponta da corda num gancho da trave, voltou a descer e passou brutalmente o nó corredio da outra ponta pela cabeça de Corday.

 

- Ó meu sacana choramingas - sibilou, enquanto lhe apertava a corda ao pescoço -, vê lá se consegues morrer como um homem. - Retirou do bolso um dos sacos de algodão branco, e enfiou-lho na cabeça.

 

Lord Alexander, agora remetido ao silêncio, observava o saco a dilatar-se e contrair-se, ao sabor da respiração de Corday. Como a cabeça do rapaz lhe descaíra sobre o peito, o movimento do saco sob a sua boca era o único sinal de que se encontrava ainda vivo.

 

- ”Mostrai aos Vossos servos a Vossa obra” - ia lendo o reverendo Cotton - ”e aos seus filhos a Vossa glória.”

 

Ao chegar ao topo dos degraus, Venables foi contemplado com uma saudação quase indiferente por parte da turba, que esgotara praticamente todo o seu entusiasmo à conta de Corday. No entanto, o gigante não deixou de agradecer com uma vénia ao seu público, encaminhando-se em seguida com a maior das calmas para a porta do alçapão, aguardando pela corda e pelo saco. O estrado do patíbulo rangeu sob o seu peso.

 

- Fá-lo depressa, Jemmy - pediu em voz bem audível -, e trata de fazê-lo bem.

 

- Vou cuidar de ti - prometeu-lhe o carrasco -, vou tratar-te o melhor possível. - Retirou o outro saco de algodão branco da algibeira e enfiou-o na cabeça de Venables.

 

- ”O que o Senhor nos deu, o Senhor nos leva” - proclamava o reverendo Cotton.

 

Lord Alexander, horrorizado por estas últimas cenas, mal se apercebeu de uma agitação que entretanto despontava para as bandas do estreito término sul da rua do Old Bailey.

 

- ”Louvado seja o Senhor!” - prosseguia, imperturbável, o capelão.

 

- Rais partam isto! - barafustou Sandman, ao deparar-se com o caminho bloqueado por um ajuntamento de tráfego, na confluência entre Farringdon Street e Ludgate Hill. À sua direita, o esgoto de Fleet Ditch tresandava sob o sol matinal. Uma carroça de carvão encalhara na curva para Fleet Street, e uma dúzia de transeuntes oferecia os seus conselhos sobre a melhor forma de lhe dar a volta, enquanto que um advogado, deslocando-se num coche de aluguer, ordenava ao respectivo condutor que chicoteasse os cavalos do carregador de carvão, alheio ao facto de não restar ao homem qualquer espaço de manobra, dado que, entretanto, uma carroça ainda maior, transportando toros de carvalho, chocara contra a dele. Os polícias da escolta montada de Sandman, que, em vez de o precederem, vinham já atrás dele, chegaram à embrulhada do cruzamento apitando e brandindo os seus cacetes. Sandman atirou com um peão para o passeio, puxou violentamente pelas rédeas a fim de desviar-se para a esquerda, praguejou contra o advogado cujo coche lhe barrava o caminho, e, por fim, viu o freio do seu cavalo ser agarrada por um cidadão bem-intencionado, convencido de que ele estava a fugir dos polícias.

 

- Tire imediatamente as suas malditas patas de cima de mim! - berrou-lhe Sandman, mas, numa fracção de segundo, Berrigan postava-se a seu lado e arremetia contra a cabeça do honesto cidadão, esmagando-lhe o chapéu e levando-o a libertar o cavalo de Sandman, que, uma vez solto, pregou no dito chapéu um coice que o fez voar para a carroça dos toros de carvalho.

 

- De nada lhe adianta pressa! - comentou o carroceiro. - Isto é, se o que pretendia era ir assistir aos enforcamentos. A estas horas já os trouxas estão a balançar na corda! - De facto, todos os sinos da cidade haviam já cessado de bater as oito badaladas que assinalavam a hora fatal, tanto os que soavam pontualmente como os mais preguiçosos estavam já calados, mas, como a igreja do Santo Sepulcro continuava a dobrar a finados, Sandman alimentava uma réstia de esperança de que Corday se encontrasse ainda vivo, de modo que, furando por entre o emaranhado de trânsito, esporeou o cavalo na direcção da Catedral de São Paulo, que, com a sua escadaria, colunas e cúpula, ocupava todo o cume da colina de Ludgate.

 

A meio da subida da colina, virou para Old Bailey, e, por alguns metros, ao longo da parte da rua para onde davam as salas de audiência do tribunal, encontrou o caminho abençoadamente desimpedido, mas, passado o grande pátio da prisão de Newgate, onde a via se alargava, deparou-se subitamente com a multidão efervescente que atravancava por completo a rua, impedindo-o de avançar. Ao ver a trave da forca desenhada no céu e, sob ela, a sombria plataforma do patíbulo, não hesitou em investir com o cavalo contra a multidão. Ergueu-se sobre os estribos, aos brados, tal como as tropas inglesas, escocesas e irlandesas haviam feito ao acometer contra os franceses que haviam acabado por aniquilar em Waterloo.

 

- Abram caminho! - gritava Sandman. - Abram caminho! - Do ponto onde se encontrava, podia avistar os dois enforcados e pareceu-lhe que, estranhamente, um deles estava sentado numa cadeira, e avistou também sobre o patíbulo um padre, bem como um punhado de espectadores ou funcionários, e a turba, irrompendo em protestos contra a sua bárbara investida, ofereceu-lhe resistência, e ele desejou ardentemente ter consigo qualquer arma com que pudesse afastar aquela gente, mas logo se lhe juntaram os polícias da escolta, abrindo caminho à cacetada.

 

Mas, nesse momento, perpassou pela assistência uma espécie de suspiro, e Sandman já não avistava ninguém se não o padre, sobre a negra plataforma do patíbulo que ocupava metade do trecho mais largo da rua.

 

O que significava que a porta do alçapão já fora aberta.

 

E os sinos da igreja do Santo Sepulcro dobravam a finados.

 

Venables praguejou contra o capelão e amaldiçoou o director da cadeia, mas coibiu-se bem de dirigir qualquer insulto a Jemmy Botting, porque sabia perfeitamente que estava nas mãos do carrasco o poder de apressar-lhe e suavizar-lhe o fim.

 

- Pára com a choradeira - recomendou a Corday.

 

- Não fiz nada de mal! - protestou o pintor.

 

- Julgas que vais ser o primeiro inocente a morrer aqui em cima? - apostrofou-o Venables. - O primeiro, ou, mesmo, o centésimo? Isto é a forca, Charlie, e a forca não sabe distinguir entre culpados e inocentes. Estás aí, Jemmy? - Com o capuz branco a tapar-lhe os olhos, Venables não pudera aperceber-se de que o carrasco deslizara para um dos cantos do estrado, a fim de soltar o manípulo de segurança. - Estás aí, Jemmy?

 

- Já não falta muito, rapazes, tenham paciência - sossegou-os Jemmy, antes de sumir-se pelas escadas traseiras.

 

- É o Rider! - exclamou Lord Alexander, pondo-se de pé, para grande aborrecimento dos convidados sentados atrás dele. - O Rider chegou!

 

Entretanto, os membros da assistência começavam finalmente a aperceber-se de que algo de estranho se passava. O primeiro indício foi-lhes sugerido pela alta e estrambólica figura de Lord Alexander, erguendo-se no pavilhão e acenando freneticamente na direcção da colina de Ludgate, e depois, ao voltarem as cabeças, repararam nos polícias montados que se esforçavam por abrir caminho entre a multidão.

 

- Deixem-nos passar! - gritaram algumas pessoas.

 

- O que é que está a acontecer? - grunhiu Venables, da porta do alçapão. - O que é que se passa?

 

- Tenha a bondade de voltar a sentar-se, senhor - recomendou o delegado da Coroa a Lord Alexander, que ignorou por completo a recomendação.

 

Jemmy Botting soltou uma praga porque, ao puxar pela corda da tranca do alçapão, tão cuidadosamente ensebada, a tranca dera de si, mas não se movera.

 

- Raios te partam, maldita! - gritou ele para a tranca. Voltou a pegar na corda e deu-lhe um segundo puxão, tão violento que, desta feita, a tranca deslizou instantaneamente e Botting foi atirado para trás, tombando de costas e deparando-se com um quadrado de céu azul que se abria ante os seus olhos. A porta do alçapão abriu-se, e os dois corpos ficaram suspensos no vazio do poço do patíbulo. Venables dançava na corda, asfixiando aos poucos, enquanto que as pernas de Corday embatiam convulsivamente contra as pernas da cadeira.

 

- Magistrado! Senhor magistrado! - gritava Sandman, aproximando-se do cadafalso. - Senhor delegado da Coroa!

 

- Trata-se de um perdão? - urrava Lord Alexander. - É a suspensão da sentença?

 

- Sim!

 

- Kit! Ajuda-me aqui! - apelou Lord Alexander, coxeando o mais depressa que o pé boto lhe permitia para acudir a Corday, que, suspenso da corda, se contorcia e vomitava. - Ajuda-me a içá-lo!

 

- Largue o homem! - berrou o delegado da Coroa, no momento em que Lord Alexander lançava a mão à corda.

 

- Não interfira, excelência! - exigiu, por seu turno, o reverendo Cotton. - Não é um procedimento apropriado!

 

- Tire imediatamente as mãos de cima de mim, seu grande idiota! - rosnou Lord Alexander, afastando Cotton com um empurrão. Pegou na corda, puxou por ela num esforço desesperado para içar de novo Corday para o estrado, mas estava longe de possuir a força suficiente para o efeito. O saco de algodão branco que cobria a cabeça de Corday agitava-se de forma alarmante diante da sua boca.

 

Entretanto, Sandman conseguira desviar do caminho as poucas pessoas que ainda lhe faziam frente, e impelira o seu cavalo contra a barreira protectora. Vasculhou as algibeiras à procura do papel do perdão, por um momento de pesadelo convenceu-se de que o tinha perdido, mas lá o achou e estendeu-o na direcção do patíbulo, mas o delegado da Coroa não se dispôs a aproximar-se da cerca para recebê-lo.

 

- É uma revogação de sentença! - berrou Sandman.

 

- Kit, ajuda-me! - Apesar de estar a aplicar todas as suas débeis forças à corda de Corday, Lord Alexander não lograva fazer subir o moribundo um centímetro que fosse, e por isso apelava a Lord Christopher. - Kit! Acode-me aqui! - Porém, Lord Christopher, de olhos esgazeados por detrás das suas espessas lunetas, permaneceu imóvel.

 

- Que raio é que julga que está a fazer? - berrou Jemmy Cotting a Lord Alexander, dos fundos do cadafalso. Em seguida, para assegurar-se de que não falharia uma morte, trepou pelas vigas laterais até se encontrar em posição de agarrar as pernas de Corday e puxá-las para baixo - Não vais apanhá-lo! - guinchou lá de baixo para Lord Alexander. - Não vais apanhá-lo! Este homem é meu! Pertence-me a mim e só a mim!

 

- Pegue nisto! - exigiu Sandman em altos berros ao delegado da Coroa, que persistia na sua recusa de inclinar-se sequer um milímetro para aceitar o papel do perdão das mãos daquele emissário. Mas, nesse preciso instante, um homem trajado de negro postou-se ao lado de Sandman.

 

- Entregue-mo a mim - disse o recém-chegado que, sem esperar pelo consentimento de Sandman, lhe arrancou o papel das mãos, correu para a cerca que protegia o patíbulo, e, com um salto prodigioso, catapultou-se para a beira do estrado do cadafalso. Por instantes, as suas botas pretas debateram-se entre as pregas do negro reposteiro, em busca de um apoio firme, mas o respectivo dono não tardou a conseguir segurar-se numa das bordas do quadrado deixado em aberto pelo deslizamento da porta do alçapão, içando-se em seguida para o estrado. Tratava-se do irmão de Sally, vestido de preto da cabeça aos pés e com uma fita preta a amarrar-lhe a negra cabeleira, e, de repente, a assistência irrompeu numa grande ovação, porque os frequentadores habituais do espectáculo, que o haviam reconhecido, lhe votavam uma profunda admiração. Era Jack Hood em pessoa, o moderno Robin Hood - o homem que todos os magistrados e polícias de Londres desejavam ver dançar no palco de Jemmy Botting, e que os cobria de ridículo ao comparecer regularmente nos enforcamentos de Newgate. Agora, finalmente instalado no patíbulo, atirou o perdão de Corday à cara do delegado da Coroa. - Pegue nele, diabos o levem! - gritou-lhe Hood, e o magistrado, atónito perante a desfaçatez do jovem, acabara mesmo por pegar no papel.

 

Hood acorreu em seguida em auxílio de Lord Alexander, juntando forças com ele para puxar pela corda; mas, entretanto, receoso de que a sua presa lhe fosse roubada no último instante, Jemmy Botting resolvera apoiar os seus próprios pés no colo de Corday, aumentando assim a pressão sobre o nó que estrangulava o pescoço da vítima.

 

- Este homem é meu! - urrou lá de baixo para Lord Alexander e para Hood. - É meu e só meu! - A respiração ofegante de Corday perdia-se no ruído da manhã. Hood puxava pela corda com todas as suas forças, mas não lograva vencer o peso combinado de Corday e de Botting. - O homem é meu! Meu, muito meu! - berrava Botting.

 

- O senhor aí! - Sandman dirigia-se a um dos membros da Guarda Municipal. - Ceda-me o seu sabre! Imediatamente!

 

O homem, perplexo, mas sobretudo intimidado pelo tom de comando de Sandman, retirou nervosamente do cinto a curta e curva lâmina, mais vocacionada para efeitos ornamentais do que propriamente para finalidades práticas. Sandman arrancou-lha das mãos, e foi imediatamente atacado por um dos vigilantes do patíbulo, convencido de que Sandman se preparava para arremeter contra o delegado da Coroa.

 

- Pira-te daqui, desgraçado! - invectivou-o Sandman, ao mesmo tempo que Berrigan aplicava um bom murro na careca do homem.

 

- Larga o sabre! - ordenou a Sandman o chefe da Guarda Municipal.

 

- Hood! - apelou Sandman, firmando-se sobre os estribos. - Hood! Várias mãos se ergueram numa tentativa de apeá-lo da sela, mas, entretanto, já conseguira atrair a atenção do salteador de estradas, a quem atirou o sabre. - Corta-lhe a corda, Hood! Corta-lhe a corda!

 

Hood apanhou habilmente o sabre lançado pelos ares. Os polícias que haviam escoltado Sandman e Berrigan desde Whitehall tratavam agora de arredar os homens da Guarda Municipal. Lord Christopher Carne, de olhos esgazeados e boca escancarada, fitava com horror Rider Sandman, que finalmente se deu conta da presença de sua senhoria.

 

- Senhor polícia - disse Sandman ao membro da escolta montada que se encontrava mais próximo - é aquele o homem que deve prender. Aquele ali! - reforçou, apontando para Lord Christopher, que, entretanto, voltava já as costas, numa tentativa de fuga. O óbice era que as escadas do pavilhão apenas conduziam aos subterrâneos da cadeia.

 

Jemmy Botting passara os braços em torno do pescoço de Corday, envolvendo-o como um amante, ao mesmo tempo que aplicava todo o peso do seu corpo saltitante sobre o colo do enforcado.

 

- És meu - cantarolava -, todo meu. - Ouviu a garganta do rapaz arrepanhar-se, e, logo de seguida, o ruído da lâmina do sabre com que Jack Hood lhe serrava a corda. - Não! - uivou Botting. - Não! - Mas, a despeito de ter sido supostamente fabricada com o melhor cânhamo de Bridport, a corda cedeu como um cordel de embrulho, e, de súbito, Corday e Botting, ainda enlaçados no seu odioso abraço, precipitaram-se no fundo do alçapão, enquanto as pernas da cadeira se espatifavam contra as pedras, e a ponta solta da corda ondulava ao sabor da brisa londrina.

 

- Temos de cortar-lhe a corda - declarou o delegado da Coroa, após se ter por fim dignado ler o documento do perdão.

 

A multidão, volúvel como sempre, dava agora vivas porque a vítima que há pouco fora alvo do seu desprezo conseguira afinal levar a melhor sobre o carrasco. O homem continuaria a viver, seria libertado, voltaria a pintar.

 

Sandman apeou-se do cavalo e confiou as rédeas a um polícia. Outros elementos da corporação tratavam de dar uso ao escadote preparado para os elementos do público desejosos de tocar a mão de um enforcado, e que agora tentavam apoderar-se da mão de Lord Christopher Carne. Sandman viu que sua senhoria chorava, e não sentiu qualquer compaixão. Pior ainda, chegava-lhe aos ouvidos o arfar de Venables, no seu sufoco final, e avistava a corda do enforcado balouçando-se sobre a plataforma contornada por panejamentos negros. Afastou-se cabisbaixo, tentando, sem êxito, encontrar algum consolo no facto de, nessa manhã, pelo menos uma alma ter sido arrebatada à forca.

 

- Obrigado, sargento - disse a Berrigan.

 

- Portanto, está tudo acabado - ripostou Berrigan, apeando-se por seu turno do cavalo.

 

- Tudo acabado - assentiu Sandman.

 

- Rider! - chamou-o Lord Alexander, ainda de pé no patíbulo. - Rider! Sandman virou-lhe as costas.

 

Lord Alexander coxeava em torno do buraco aberto pela queda do alçapão.

 

- Rider! Não estarás disposto a jogar uma partida de um só wicket? No próximo sábado?

 

Atónito, Sandman fitou o amigo por instantes, mas logo desviou o olhar para Hood.

 

- Muito obrigado! - gritou-lhe, mas as palavras perderam-se no ulular da multidão. Sandman fez uma vénia. - Obrigado! - gritou de novo.

 

Hood correspondeu à vénia, mas, logo de seguida, acenou-lhe com um único dedo da mão.

 

- Foi só um, capitão - gritou, por seu turno -, apenas um, e eles hão-de enforcar mais um milhar antes que o senhor consiga voltar a roubar-lhes outra presa.

 

- Terás como adversário o Budd! - berrou Lord Alexander. - Rider, estás a ouvir-me? Rider! Onde é que vais?

 

Sandman voltara-lhe outra vez as costas, passando agora um braço sobre os ombros de Berrigan.

 

- Se quiseres tomar o pequeno-almoço no sheaf - explicou ao sargento -, mais vale apressares-te, antes que a multidão invada a sala de refeições. E transmite a Sally os meus agradecimentos, está bem? Sem ela, não teríamos conseguido.

 

- Quanto a isso, não me restam dúvidas - concordou Berrigan. - E o senhor? Para onde vai agora?

 

Arrastando o tornozelo magoado, Sandman afastou-se da forca, ignorado pela multidão que agora reclamava a comparência de Corday, o seu novo herói, no alto do cadafalso.

 

- Eu, Sam? - replicou Sandman. - Vou ter com um sujeito para negociar um financiamento, a fim de que tu e eu possamos ir a Espanha comprar alguns charutos.

 

- Tenciona ir pedir um empréstimo com as botas nesse estado? - ironizou Berrigan.

 

Abaixando-se para examinar as botas, Sandman pôde comprovar que ambas tinham as solas soltas.

 

- Vou pedir a esse homem um empréstimo - declarou -, e também a mão da sua filha em casamento, e aposto consigo o preço de um par de botas novas em que ele acederá a ambos os pedidos. O cavalheiro em causa não vai arranjar um genro rico, Sam, terá mesmo de contentar-se comigo.

 

- Sorte a dele.

 

- Sorte a sua, Berrigan - lembrou-lhe Sandman -, sua e de Sally. - Sorria ao descer o caminho do Old Bailey, lado a lado com Berrigan. Deixavam para trás Venables, que sufocava lentamente enquanto que, sobre a sua cabeça, Corday pestanejava à luz do sol de um novo dia. Chegado ao cruzamento de Ludgate Hill, Sandman voltou-se uma última vez para contemplar a forca, que lhe pareceu tão negra como a alma do diabo. Mas depois virou a esquina, e tudo desapareceu.

Nota Histórica

Ao ESCREVER ESTE ROMANCE, procurei respeitar, tanto quanto foi possível, a verdade histórica. Existiu de facto, a dada altura, um Investigador especial, encarregado de averiguar as circunstâncias que envolviam determinados casos de condenação à pena capital, e quem o destacou para essa função foi o homem que, em 1817, ocupava o cargo de ministro do Interior: Henry Addington, primeiro visconde de Sidmouth.

Esta nomeação coincidiu com um dos períodos de maior azáfama para as forcas de Inglaterra e do País de Gales (então, como agora, a legislação escocesa era diferente). O chamado ”código sangrento” inspirou-se na convicção de que formas de punição extremas e brutais contribuiriam para desencorajar a criminalidade, de modo que, por volta de 1820, a lei contemplava com a pena de morte mais de duzentas espécies de delitos. Embora a lista fosse maioritariamente composta por atentados contra o património (roubo, fogo posto e burla), incluía também o homicídio, a tentativa de homicídio e a violação entre os crimes puníveis pela forca - tal como, aliás, a sodomia (no período compreendido entre 1805 e 1832, em Inglaterra e no País de Gales, 102 pessoas foram executadas pelo crime de violação e 50 por sodomia). Mas o assalto à mão armada permanecia como a principal causa de enforcamento (938 casos nesse mesmo período), com o assassínio a figurar em segundo lugar (395 casos). No conjunto, de 1805 a 1832, 2028 pessoas foram enforcadas nos patíbulos de Inglaterra e do País de Gales, incluindo mulheres e pelo menos uma criança de quatorze anos de idade. Isto corresponde a uma média anual de cerca de 75 execuções, um quinto das quais levadas a cabo em Newgate, e as restantes em Horsemonger Lane ou em condados providos de tribunais de primeira instância. Mas a média estatística oculta o facto de, em certos anos, a forca ter estado particularmente activa: entre 1816 e 1820, o período mais intenso, o ritmo ascendeu a cem execuções anuais. No entanto - e este ponto é crucial - apenas cerca de dez por cento das pessoas condenadas à forca pelo poder judicial morreram no cadafalso; a grande maioria viu a sua sentença comutada, quase sempre para uma pena de deportação para a Austrália. Assim, as 5853 condenações à morte, decretadas pelos tribunais ingleses e galeses entre 1816 e 1820, resultaram em apenas 518 enforcamentos.

Como se justifica esta colossal discrepância? Por um sentimento de compaixão? Mas a compaixão não estava na moda na altura, pelo contrário, e os arquivos da época denunciam um perverso controlo social levado a cabo pelas classes dirigentes. Os amigos e parentes de uma pessoa condenada à morte dirigiam, quase invariavelmente, uma petição de clemência à coroa (ou seja, na prática, ao ministro do Interior), esforçando-se ao máximo por incluir entre os signatários destacados membros da sociedade, como aristocratas, políticos e figuras proeminentes do clero, uma vez que uma petição assinada por tais nomes tinha muito maiores hipóteses de ser atendida. E assim se formavam laços de gratidão subserviente. Embora esta prática nunca fosse claramente assumida, a sequência do processo de condenação-petição-perdão encontrava-se de tal forma enraizada nos hábitos e, por assim dizer, institucionalizada, que não pode haver outra explicação para a referida discrepância entre o número de condenados e número de execuções.

Mas os muitos infelizes cujas petições eram rejeitadas, ou que não logravam sequer apresentar uma petição, viam a sua morte transformada num espectáculo grotesco. Em Londres, as execuções costumavam ter lugar na famosa forca de Tyburn, conhecida pela ”árvore de três ramos”, instalada no sítio onde fica hoje Marble Arch, até que, em finais do século xviii, o patíbulo foi transferido para Old Bailey. No primeiro e último capítulos do presente livro, esforcei-me por reconstituir, com a maior exactidão possível, passados que são duzentos anos, o cenário dos enforcamentos em Newgate, com todos os passos e particularidades do processo, recorrendo, para tal, a nomes verdadeiros de intervenientes que nele realmente participaram: é o caso do director da prisão de Newgate, William Brown (que na verdade servia ”rins à diabo” aos seus convidados para assistir à execução), do capelão Horace Cotton e do carrasco James (”Jemmy”) Botting, que, em 1817, requisitou um ajudante. Charles Corday é, obviamente, uma personagem de ficção, mas, caso tivesse existido, seria bem possível que conseguisse sobreviver ao enforcamento. Aconteceu a muitos, geralmente por lhes cortarem a corda antes de tempo; só muito depois daquela data se viria a adoptar o método da ”queda livre”, que garantia uma morte praticamente instantânea. Quero aqui expressar a minha dívida de gratidão para com Donald Rumbelow, autor de, entre muitas outras obras excelentes, Tlie Triple Tree, pelo seu contributo para me ajudar a destrinçar os confusos pormenores do funcionamento de Newgate na época da Regência. Apresento também os mais sinceros agradecimentos a Elizabeth Cartmale-Freedman, que me auxiliou na pesquisa, bem como a James Hardy Vaux, um homem que aproveitou o seu involuntário exílio na Austrália para compilar e publicar, em

1812, o seu Vocabulary of the Flash Langucige (dicionário de calão).

 

 

A ideia de escrever ”A Pena Capital” (The Gallows Thief) foi-me inspirada pela leitura de um livro da autoria de V.A.C. Gatrell, The Hanging Tree (Oxford, 1994). Trata-se de um relato erudito e académico das práticas de execução em Inglaterra e no País de Gales no período compreendido entre 1770 e 1868, em que porém o autor deixa transparecer, numa linguagem elegante e contida, a sua profunda indignação contra a pena capital. A própria capa do livro, baseada num desenho de Gericault representando uma cena de enforcamento público em Inglaterra, constitui um libelo impressionante contra a barbaridade daquela forma de punição. Registo aqui a minha profunda gratidão para com o Professor Gatrell, ressalvando contudo que a responsabilidade de quaisquer erros eventualmente contidos no presente livro não lhe deve ser imputada a ele nem a qualquer outra fonte, mas sim, e exclusivamente, ao autor.

 

                                                                                Bernard Cornwell  

 

                      

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