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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PEQUENO LORD / Frances Burnett
PEQUENO LORD / Frances Burnett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PEQUENO LORD

 

   Publicado em 1886, este romance é um dos mais populares da literatura infantil anglo-saxônica. O pequeno Lorde permanece até hoje um dos heróis prediletos do pequeno mundo. Cedric Errol, filho do capitão Errol e de uma americana jovem e bela, mas de condição modesta, após a morte do pai e dos irmãos dele, vê-se herdeiro do título enquanto ainda vive o velho Lord Fauntleroy, o avô ríspido e cheio de preconceitos contra a América e a burguesia. Todavia, desejando o avô que o menino receba uma educação digna de sua condição, manda-o vir para a própria casa: por meio da bondade espontânea, da graça ingênua do menino, o velho misantropo aprende a aproximar-se do seu próximo — de modo particular da nora, a extremosíssima mãe de Cedric, nunca desejara conhecer tornando-se ele também, mais sereno e melhor.

   Mais do que um romance, este livro imortal poderia ser chamado "uma fábula humanizada", e é esta característica que explica o sucesso da obra.

  

  

                             UMA GRANDE SURPRESA

   Cedric ficara pequenino, quando o pai faleceu. Mas, se fechava os olhos e se concentrava um pouco, revia-o em espírito: alto, de olhos azuis, bigodes que faziam cócegas nas faces do pequeno, quando aquele pai afetuoso se inclinava para beijá-lo, antes de o pôr aos ombros e fazer um giro em torno do quarto.

   O pai de Cedric era inglês, como repetira muitas vezes ao filhinho a própria mãe. Pobre mãe! A criança evitava fazer-lhe perguntas sobre o papai, porque notava que ela sofria muito quando falava sobre ele. Durante o período de sua última doença, a criança fora mandada passar uns dias fora, e, quando voltou, já não encontrou seu querido papai. Sua mãe, também adoecera. Costumava sentar-se na poltrona, perto da janela, pálida, emagrecida, desfigurada, infinitamente triste, no seu luto severo. Os seus olhos pareciam maiores, encaixados no pequeno rosto macilento, que já não tinha as suas belíssimas covinhas.

   — Fátina — perguntara-lhe Cedric, que gostava de chamá-la, como a chamava seu pai — como vai meu papai?

   Os braços que apertavam a criança começaram a tremer. Cedric levantou os olhos para contemplar o doce rosto materno, e percebeu que Fátina estava para desatar em pranto.

   Um tanto atemorizado, repetiu a pergunta acrescentando:

   — Dize-me, mãezinha, papai está melhor?

   Também não recebeu resposta. Então, lançou-se ao pescoço da mãe, e beijou-a afetuosamente, enquanto ela recostava a cabeça aos seus ombros, chorando e apertando-o contra o coração, como se alguém quisesse arrebatar-lhe dos braços seu filhinho adorado.

   Entre soluços, murmurou:

   — Sim, filhinho, está bem, mas... nós ficamos sozinhos no mundo e não temos mais ninguém por nós, ninguém que nos queira bem!

   Cedric entendeu: o seu papai já não voltaria! Tinha morrido! Esta palavra, mesmo sem a entender bem, ele já ouvira dizer e redizer muitas vezes, e agora sentia, por experiência própria, a tristeza que fazia nascer no coração. E como a mamãe sempre chorava, quando pronunciava o nome do papai, a criança resolveu falar sobre ele raramente, porque não queria ver sofrer a sua querida mamãe, e muito menos queria que ficasse afogada naquela grande poltrona, com os olhos fixos, a olhar vagamente, tão desolada, tão abatida, como se uma fadiga esmagadora a prostrasse por completo. Cedric e sua mãe viviam muito isolados e se podiam contar com os dedos as pessoas de suas relações. Somente, quando estava um pouco maior, ele entendeu por que ninguém dava atenção à sua pobre mãezinha, nem se apiedava da sua orfandade.

   Soube tantas coisas! que ela era órfã, quando o papai a conheceu, que era muito bela e vivia em companhia de uma senhora de idade, muito rica, porém não muito boa: Prova-o um dia em que o capitão Cedric Errol a encontrou debulhada em lágrimas, na escadaria, e se comoveu diante de sua miséria. Depois se viram outras vezes e começaram a se gostarem, e apesar das dificuldades e obstáculos, como se amavam verdadeiramente, chegaram a unir-se por toda a vida, pelos laços do matrimônio.

   As núpcias do capitão com aquela moça, que vivia em companhia de uma velha, irritou terrivelmente um despeitado conde inglês, de família nobilíssima e riquíssima, mas de péssimo caráter, que não podia ouvir falar da América nem dos americanos.

   Este senhor era o pai do capitão Cedric. Além dele, tinha mais dois filhos, maiores, aos quais de direito tocariam o título e as riquezas da família, em ordem de idade; devia, pois, ser herdeiro o primogênito, e, em caso de morte, toda a herança passaria ao irmão; sendo ele terceiro filho, o capitão não tinha nenhuma probabilidade nem de se gloriar com o título de nobreza de sua família, nem de entrar em possessão do rico patrimônio do pai.

   Em compensação, Cedric Errol era dotado de muitos outros predicados que seus irmãos não tinham, nem poderiam jamais possuir: era belo, alto, elegante, trazia sempre um sorriso à flor dos lábios, e a todos se fazia simpático pela entoação agradabilíssima de sua voz. Ademais, era bondoso e inteligente. Conquistava de pronto a simpatia de quantos o procuravam, o que não acontecia com os outros dois irmãos Errol, que não eram bons, nem belos, nem inteligentes. No colégio, todos os antipatizavam, e na Universidade, onde, em vez de estudar, malbaratavam tempo e dinheiro, não conseguiram fazer um amigo sequer. O nobilíssimo chefe de família não aprovava esta conduta, e se irritava particularmente contra o primogênito, que não se podia dizer fizesse honra à sua ilustre linhagem, pródigo, egoísta e despudorado como era. Pelo contrário, o terceiro filho, condenado a viver quase em extrema pobreza, reunia todas as virtudes e méritos que faltavam aos irmãos. O velho conde se irritava freqüentemente, e fazia confrontos desfavoráveis ao primogênito, de modo que resolveu um dia afastá-lo de casa, enviando-o à América. Ficou então sozinho, aturando os dois estróinas, que lhe davam continuamente dores de cabeça. Bastaram porém seis meses para que ele começasse a sentir saudades daquele filho modelo, que ele, a seu modo, amava profundamente. Não pôde mais sofrer a separação e escreveu-lhe que voltasse para a casa paterna. Mas, a carta se cruzara com uma de Cedric, que falava ao pai de seu grande amor por uma linda americana, com quem queria casar. A ira do velho conde subiu de ponto!... Nunca fora visto tão fora de si, de cólera. Tendo passado o primeiro acesso de indignação, escreveu friamente ao filho, que não queria mais saber dele, era livre de fazer o que bem entendesse, mas, que não aparecesse mais diante dos olhos de seu pai, nem de seus irmãos! Esta carta causou imensa dor ao capitão, que era muito afeiçoado à sua família e à Inglaterra. Contudo, assim que voltou a si do golpe recebido, convenceu-se de que a decisão paterna era certamente irrevocável e que ele nada mais tinha que esperar, nem dele, nem de seus irmãos! Era necessário pensar na vida, o que lhe era um pouco difícil, pois não estava habituado ao trabalho!

   Assim pediu voluntariamente sua demissão de oficial, e lançou-se corajosamente a procurar um emprego. Conseguiu colocar-se em Nova York, casando-se logo após com a jovem que idolatrava. A sua vida estava mudada, mas ele não deixava transparecer muito sofrimento. Era jovem, feliz e tinha confiança de alcançar, um dia, uma posição elevada. Os dois esposos passaram a viver num pequeno apartamento, em rua calma e pouco freqüentada. Fora aí que nascera o pequeno Cedric, acolhido desde o primeiro instante que abriu os olhos para a luz, por tanto amor! Oh! o capitão não lamentava decerto ter dado adeus à vida que levara antes de encontrar aquela jovem que o fizera tão feliz! Como era linda a sua querida esposa! A criança se parecia um pouco com ela e um pouco com o pai; crescia cheio de encanto! Gozava de ótima saúde e fazia a alegria de quantos se lhe acercavam, pela sua beleza e candura. Era formosíssimo com a cabecinha enricada de ouro, grandes olhos negros, louras sobrancelhas de seda e lábios entreabertos em contínuo sorriso. Com nove meses apenas começara a andar. Parecia convencido de que todos lhe deviam querer bem, e na rua, se alguém se inclinava sobre o seu carrinho para lhe fazer uma carícia, longe de estranhar e mostrar esquivo, sorria, arregalando seus lindos olhos, serenos, transparentes e puros. Nas vizinhanças gozava da simpatia geral. Porém, quem o adorava (imagine-se!) era o quitandeiro da esquina!... Esta amizade constituía a força mais convincente do belo caráter de Cedric.

   Quando a criança começou a sair a passeio, acompanhada de sua aia, de roupinha branca e chapeuzinho de feltro, ficava tão bela e encantadora, que chamava a atenção de todos. Muitas vezes a aia contava à senhora Errol como o pequenino era abordado na rua por senhoras desconhecidas, que lhe perguntavam o nome, e ficavam encantadas da maneira como ele respondia. Talvez o encanto de Cedric consistia menos na graça natural, que na sua ingenuidade, sem timidez, nem acanhamentos... Era uma criança tão boa e afetuosa, que sentia necessidade de querer bem, e de fazer-se amar. Certamente se acostumou a isto, pela convivência com seus queridos pais que eram tão gentis, tão nobres e tão bem educados. Nunca trocaram entre eles uma palavra ríspida, e, se se dirigiam à criança, era sempre com um sorriso e com uma carícia. Ouvindo sempre chamar a mamãe com os mais amorosos nomes, tinha-o ele adotado, e aprendera do pai a ser um pouco o protetor de Fátina, como ele gostava de chamá-la. Assim, quando pôde certificar-se de que seu papai não voltava mais, e da dor de sua mamãe, compreendeu que ele devia fazê-la feliz! E, por isso, tinha que ser bom, obediente e afetuoso. Este pensamento não o abandonava jamais, e transparecia claro nos seus olhos, quando subia aos joelhos da sua querida mamãe para abraçá-la, quando lhe levava os seus brinquedos e livros infantis ou quando se enrodilhava ao seu lado no divã. Não podia fazer mais, por ser muito pequeno ainda; contudo, mesmo assim era já o conforto daquela pobre viúva desolada. Uma vez Cedric ouvira-a dizer à sua velha e querida doméstica:

   — Mary, estou certa de que, embora pequenino, faz tudo para consolar-me. Surpreendo-o, às vezes, a olhar-me com olhos melancólicos, como se sofresse por mim, e, depois, lança os seus bracinhos ao meu pescoço e me aperta contra o coração. É já um homenzinho e estou certa de que entende muitas coisas! E que boa companhia fazia à sua mamãe! Saíam juntos, conversavam juntos, brincavam juntos. Aprendera a ler, desde a mais tenra idade, e, muitas vezes, à tarde, estendido no tapete diante da lareira, lia em voz alta algum livro ou revistas infantis.

   Mary, da cozinha, ouvia a senhora Errol sorrir por alguma graça que Cedric dizia. Falando com o quitandeiro, Mary comentava um dia:

   — É impossível a gente deixar de rir, quando Cedric diz as suas piadas! Imagine o senhor que, no dia da eleição do Presidente, veio ter comigo à cozinha, parou diante do fogão, de mãos nos bolsos, com um semblante sério e pensativo, como se fosse um advogado, e me disse: “Mary, esta eleição me interessa. Eu e mamãe somos republicanos, e tu, Mary?” Respondi-lhe: Sinto muito, Cedric, mas sou democrática! — Olhou-me então contrariado e rebateu à queima-roupa:

— Mas então, Mary, todo o país, caminhará para a ruína!

   Desde então, todas as noites, quando o levo a dormir, se esforça por me fazer mudar de opinião.

   Mary adorava o pequeno Cedric e sentia orgulho dele. Vivia em casa dos Errol, desde que a criança nascera, e depois da morte do capitão ficara somente para ser aia e cozinheira. Alegrava-se vendo-o crescer, tão sadio, forte e belo; sentia um orgulho especial dos seus cachos de ouro. De boa vontade se levantava cedo e deitava tarde, para ajudar a senhora Errol cozinhar e arrumar a roupinha de Cedric. Era necessário ouvi-la, quando tecia elogios ao seu pupilo! “Gostaria de ver, dizia — se na Rua Cinco há uma criança como ele! Quando o levo a passeio, com sua roupinha de veludo preto, e com os cabelos soltos sobre os ombros, todos se voltam para o contemplar: parece mesmo um condezinho!” Mas isto Cedric não sabia, como também não sabia com precisão o que significava ser conde! O melhor amigo do menino era aquele quitandeiro da esquina, enjoado com todos, mas leite e mel com Cedric, que, da sua parte, o respeitava e admirava, e cria também que o sr. Hobbs fosse um nobre, porque tinha uma carroça, um cavalo e a casa sempre muito sortida de tantas coisas boas: ameixas, figos secos, laranjas, biscoitos, etc... Por mais que Cedric gostasse do verdureiro, do leiteiro e do padeiro, estas amizades não se podiam comparar com o afeto que votava ao Sr. Hobbs. Visitava-o diariamente, e ficava horas esquecidas com ele, a discretear sobre os últimos acontecimentos do dia... argumentos, tinha-os em barda... E se começavam a falar de Independência, não acabavam mais. Ao quitandeiro, os ingleses não inspiravam muita simpatia. Sabia de cor toda a história da guerra da Independência, com mil particularidades comoventes sobre o heroísmo dos americanos, e sobre os horrores cometidos pelos ingleses. A declaração da Independência, recitava-a, às vezes por extenso, sem omitir uma vírgula. E Cedric o escutava com as faces em chamas de entusiasmo e olhos cintilantes...

   Oh! Ninguém podia negá-lo: fora mesmo o Sr. Hobbs que interessara pela política seu louro amigo. O quitandeiro devorava os jornais e depois contava, com toda seriedade deste mundo ao seu pequeno amigo, o que se passava em Washington e o punha ao par de todos os atos do Presidente. É de supor-se que, se uma vez, a propósito de uma eleição, o Sr. Hobbs e Cedric não se batessem pela causa justa, o país realmente acabaria mal.

   Naquela ocasião o quitandeiro levou a criança a ver o circo, e houve muita gente que sorria, vendo um homem forte e robusto, que de pé ao lado de uma lanterna, equilibrava sobre os ombros uma criança que gritava a plenos pulmões, e agitava o seu gorrinho.

   Cedric andava pelos oito anos, quando algo de estranho aconteceu na sua vida, e a mudou, pode dize-se, quase milagrosamente.

   O mais interessante foi que o acontecimento, do qual nos ocupamos, se deu justamente no dia em que ele e seu amigo, o quitandeiro, tinham discutido longamente sobre a Inglaterra, e sobre a Rainha Vitória, e o Sr. Hobbs não tivera papas na língua para dizer as verdades a propósito de condes e marqueses. Entrando Cedric na venda para descansar um pouco, depois de ter passado a manhã brincando de soldadinho com os seus amigos das vizinhanças encontrara o quitandeiro carrancudo,com cara de poucos amigos, olhando no jornal ilustrado um clichê que reproduzia uma recepção na corte.

   — Aproveitem, malandros! — Comentava com azedume — mas há de chegar o dia em que todos os que foram abatidos se rebelarão e darão uma lição a toda essa cáfila de condes e marqueses!

   Cedric, como de costume, subira a um banco alto, de chapéu na nuca e mãos nos bolsos, copiando fielmente uma das atitudes habituais do Sr. Hobbs.

   — O senhor conheceu muitos condes e marqueses? Perguntou-lhe a criança.

   O quitandeiro negou com certa indignação.

   — E gostaria de que passasse pela cabeça de algum deles pôr o pé aqui dentro! Não quero nem ouvir falar de tiranos, ávidos e egoístas a sentarem-se aqui em minha casa!

   Ditas estas palavras, passou o lenço na testa para enxugar o suor, e lançou um olhar à volta, orgulhoso da sua origem.

   — Talvez não quisessem mais ser condes, se soubessem quanto o senhor sabe, disse a criança.

   — Estão contentes de serem aquilo que são! São uns malandros de raça! Justamente naquele momento a porta se abriu e entrou Mary. Cedric pensou que tivesse vindo comprar açúcar, mas se enganou: ela estava pálida, com o rosto convulso. Dirigindo-se a Cedric, disse:

   — É preciso que tu venhas imediatamente para casa: tua mãe te espera.

   Cedric desceu do banco.

   — É para ir contigo, Mary? — E despediu-se do seu amigo: — Adeus Sr. Hobbs, ver-nos-emos mais tarde.

   Mary continuava a olhar para Cedric com uma expressão estranha que desorientava a criança.

   — Que há? — perguntou ansioso. — Alguma doença?

   — Não, não... é coisa muito diferente, se soubesses que surpresas estão acontecendo! — Mamãe está doente?

   — Não, não se trata disso.

   Chegando a casa Cedric, já da porta, percebeu o eco de vozes que vinham da sala de visita. Era sua mamãe que falava com alguém.

   Mary apressada vestiu a criança com a sua roupinha de flanela branca e cintura de seda vermelha, penteou-lhe os- cachos louros, enquanto falava de si para si:

   — São nobres? São condes? Pobres de nós! Creio que será uma grande desgraça...

   Cedric estava estupefato, mas não pediu explicações a Mary, certo de que saberia tudo da boca de sua mamãe. Quando estava pronto, correu para a sala de visita.

   Um velho alto e magro estava sentado na poltrona. A mamãe achava-se em pé, pálida, com os olhos cheios de lágrimas.

   Vendo a criança, exclamou:

   — Cedric! — E o estreitou contra o coração — Filhinho!

   O desconhecido levantou-se, começou a olhar para o menino, afogando a barba com a sua mão descarnada. Tinha certo ar de satisfação, quando disse acentuando as palavras:

   — É este o pequeno Lord Fauntleroy?

  

                           OS AMIGOS DE CEDRIC

   Durante a semana seguinte, Cedric teve tantas surpresas que parecia sonhar. Antes de tudo, a mamãe lhe contou uma história tão estranha, que para entendê-la bem a criança pediu que a repetisse mais de uma vez. Que pensaria de tudo isso o sr. Hobbs? Era o que fazia pensar a Cedric. Com efeito, naquela história bizarra, entravam muitos condes. Conde era o avô que a criança não tinha conhecido, e o mais velho dos irmãos do seu papai deveria ter ficado conde por sua vez, depois da morte do avô, se, em conseqüência de uma queda de cavalo, não tivesse perdido a vida. O título tocava, pois, ao outro irmão, mas também este atacado de Tifo, enquanto se encontrava em Roma, sucumbira. Por conseguinte conde deveria ser o pai de Cedric, o seu querido papai, que já não existia. Tendo desaparecido todos, depois da morte do avô, o título de Lord Fauntleroy estava reservado para Cedric. Toda essa história era um pouco difícil de se entender, mas Cedric acabou por orientar-se naquele Dédalo de parentes, ficou um pouco pálido de emoção e exclamou:

   — Mamãe, eu não queria ser conde... que faremos? Nenhum dos meus amigos é conde; só eu, mamãe?...

   Mas, não era possível! Fátina procurou explicar à criança: Falaram demoradamente sobre o assunto naquela tarde, sentados à janela. Cedric, na sua cadeirinha, apertava os joelhos entre os braços e tinha o rosto abrasado pelo esforço de prestar atenção e procurar entender o que lhe explicava a mamãe. A coisa mais importante era esta: O avô queria que Cedric fosse para a Inglaterra, e a senhora Errol procurava convencer o filho de que era necessário obedecer. Fixando na criança os seus olhos doces e tristes, dizia-lhe:

   — Estou certa de que também o papai deseja que obedeças. Amava a sua casa! E depois há tantas outras razões que compreenderás mais tarde... agora és muito pequeno. Pensa contudo que eu seria uma mãe egoísta, se eu não te convencesse de partir.

   Cedric balançou a cabeça, entristecido.

   — Tenho muita pena de deixar o Sr. Hobbs, sei que, se eu partir, ele terá saudades de mim, e eu também dele!

   No dia seguinte quando voltou o Sr. Havisham, que era advogado do conde de Dorincourt, vindo expressamente à América para levar o Lord Fauntleroy para a Inglaterra, Cedric veio a saber muitas outras coisas que o deixaram contudo indiferente. Parecia que não lhe importava nada tornar-se um dia senhor de maravilhosos castelos com parques e jardins, com minas e campos povoados de famílias de camponeses. Cedric só pensava no seu amigo fiel; e logo depois de cear foi fazer-lhe uma visita.

   Encontrou o Sr. Hobbs lendo o jornal do dia. Aproximou-se dele, cheio de ansiedade.

   Não era fácil abordar o assunto. De caminho, Cedric ia pensando como dar ao amigo aquela notícia inesperada.O Sr. Hobbs saudou-o:

   — Bom dia, Cedric.

   — Bom dia, Sr. Hobbs; e em vez de trepar no seu banco alto, como sempre, sentou-se sobre um caixão e, contra o seu costume, ficou em silêncio.

   Admirado, o Sr. Hobbs levantou os olhos do jornal:

   — Que há de novo, Cedric?

   A criança compreendeu que chagara o momento de falar:

   Tomou coragem e disse:

   — O senhor se recorda do que falamos ontem de manhã?

   — Parece-me que sobre a Inglaterra.

   — Sim... mas precisamente o senhor recorda do que estávamos dizendo quando Mary me veio buscar?

   O Sr. Hobbs coçou a cabeça.

   — Creio — disse pensativo — que estávamos falando sobre a rainha Vitória e a aristocracia.

   — Isto mesmo... — Cedric hesitava — e... falamos também acerca dos condes, o senhor não se lembra?

   — Certamente, e eu deveria ter dito tudo o que merece essa gente!

   Cedric enrubesceu. Nunca se sentira tão embaraçado e temia também causar embaraço ao Sr. Hobbs. Todavia continuou corajosamente:

   — O senhor disse, se não me engano, que não queria jamais ver nenhum conde em sua casa.

— Disse-o e repito! Experimentem e verão o que farei!

   — Contudo, Sr. Hobbs, há um conde aqui!.. sentado em sua casa...

   O velho levantou-se de um salto. —- Que estás dizendo?

   — Sim! — Cedric baixou os olhos com modéstia — Sr. Hobbs, eu sou um conde, ou ao menos um dia o serei. Quero ser sincero com o senhor.

   O Sr. Hobbs não achou outro expediente a não ser relancear os olhos inquietos ao termômetro.

   — Talvez... faz hoje um calor insuportável! Dizia procurando mudar de assunto.

   — O calor não te incomoda? Não tens dor de cabeça? — E estava todo ansioso enquanto passava a sua mão de dimensões respeitáveis sobre a cabecinha loura do seu pequeno amigo.

   Mas Cedric protestou:

   — Asseguro-lhe que estou passando muito bem. Pode ficar certo de que sinto muito dever repetir tudo o que lhe disse; é a pura verdade. Mary veio ontem buscar-me porque estava lá em casa o Sr. Havisham, que é advogado, e disse à mamãe que eu sou conde.

   O quitandeiro não se convencia, e, sentando-se novamente na cadeira, enxugou o suor e exclamou:

   — Será que estou ouvindo bem? Estarei sonhando?

   — Não, não Sr. Hobbs — insistiu Cedric — é a pura verdade, e não há nada que fazer. O Sr. Havisham veio de propósito da Inglaterra para nos transmitir esta notícia e foi o meu avô que o enviou.

   — Teu avô? Mas quem é ele?

   E o quitandeiro olhava fixo o rosto da criança que revestia grande seriedade.

   Cedric não respondeu, mas pôs a mão nos bolsos e tirou uma folha de papel, na qual ele mesmo, com a sua caligrafia irregular, tinha escrito alguma coisa.

   — Tive que escrevê-lo — disse — é um nome difícil — e acentuou:

   — John Arthur Molyneux Errol, conde de Dorincourt. É o vovô que se chama assim, e mora num castelo, mas me parece que há uns dois ou três. Papai era o seu caçula, e eu não seria conde se papai não tivesse morrido, e também ele não seria conde, se não tivessem morrido antes os seus dois irmãos maiores. Mas que todos morreram, só resta eu. É por isso que devo ser conde e começar a morar na Inglaterra: assim disse o vovô.

   As faces do quitandeiro estavam afogueadas; não fazia mais que passar o lenço sobre a testa calva para enxugar o suor, enquanto respirava com dificuldade. Tinha a intuição de que havia acontecido alguma coisa extraordinária, todavia olhando para aquela criança sentada diante de si, imóvel, como vira tantas vezes, com o mesmo rostinho gracioso, apesar de estar anuviado por certa seriedade que lhe não era comum, cria com dificuldade naquelas histórias de condes e viagem à Inglaterra.

   Matutando consigo, não encontrou outra saída senão perguntar:

   — Então, como te chamas agora?

   — Chamo-me Cedric Errol, Lord Fauntleroy?... — respondeu o pequeno. — Quando entrei ontem na sala, aquele senhor mandado pelo vovô, disse: — Então, este é o pequeno Lord ?...

   — Prefiro ser massacrado se toda esta história é verdade! — disse com indignação o quitandeiro.

   Deveria estar muito irritado, porque somente em caso semelhante se saía com uma interjeição daquele gênero. Naquele momento, não encontrou outra exclamação, e Cedric considerava absolutamente apropriada à circunstância. A criança queria-lhe tanto bem e tinha tão grande admiração pelo Sr. Hobbs, que aprovava tudo o que ele dizia. E porque não tinha ainda muita prática dos hábitos da boa sociedade, não podia perceber que a educação do Sr. Hobbs apresentava algumas lacunas.. Notava que ele era diferente de sua mãe, isso sim, mas ela era uma senhora, e os homens não podem ser como as senhoras.

   Houve um momento de silêncio entre os dois. Em seguida Cedric perguntou olhando com ansiedade para o Sr. Hobbs:

   — A Inglaterra é muito longe?

   — É sim! Para chegar lá, tens de atravessar o mar!

   — Que pena! — suspirou Cedric — Temo que não nos veremos por muito tempo, Sr. Hobbs... e já começo a sentir saudades, sim, muitas saudades!

   — Acontece, às vezes, que mesmo os melhores amigos deste mundo se devam separar.

   — E nós somos amigos desde muitos anos, não é verdade? — Desde quando vieste ao mundo. Devias ter cerca de seis semanas, quando te vi passar diante de minha venda, pela primeira vez, no teu carrinho.

   — Naquele tempo não pensava ainda em ser conde... suspirou Cedric, que parecia vagamente preocupado.

   — Não acreditas que possa haver alguma intervenção? — Creio que não. Mamãe diz que papai queria também que eu fosse para a Inglaterra para a casa do vovô. Mas, não tem nada! Se devo mesmo ser conde, procurarei, ao menos, fazer o possível para ser um conde bom. Não quererei ouvir falar em ser tirano, e asseguro-lhe que se houvesse perigo de outra guerra com a América, farei tudo para impedi-la.

   A conversa entre os dois amigos foi longa e séria. Passados a primeira surpresa e o primeiro sobressalto, o Sr. Hobbs acalmou-se e parecia quase resignado a aceitar a nova situação. Começou a fazer um mundo de perguntas à criança, e quando não recebia resposta, porque Cedric não sabia, o que responder, o Sr. Hobbs dava-se a si mesmo a resposta e uma vez tendo iniciado o argumento a propósito de condes, marqueses e congêneres, disse tudo o que sabia sobre o assunto. Certamente, se o Sr. Havisham tivesse podido ouvi-lo, ficaria surpreso.

   Mais surpresas, teve-as, uma após outras, naqueles dias, o enviado do conde de Dorincourt. Vivera sempre na Inglaterra e na América não conhecia nem o povo nem os costumes. Advogado, do conde há quarenta anos, estava a par de tudo o que dizia respeito à nobre família, e não deixaria de se interessar pela formação do caráter da criança destinada a ser o herdeiro daquele título de nobreza e de riquezas consideráveis. O Sr. Havisham recordava muito bem todos os desgostos causados ao velho conde por seus filhos mais velhos e a sua cólera por causa do casamento do terceiro filho, com aquela americana, para a qual mesmo sem a conhecer, o irascível e injusto velho só tinha palavras injuriosas, convencido de que ela era uma moça vulgar e que só casara com seu filho por interesse. À força de ouvi-lo dizer, também o Sr. Havisham tinha acabado por convencer-se disto. Foi esta a razão pela qual, ao encontrar-se na modesta casa da viúva do capitão Errol, não pôde deixar de sentir-se perturbado pelo pensamento de que o herdeiro do castelo de Dorincourt, das Torres de Wyndham, de Charlworth e de outras magníficas propriedades, tivesse vindo ao mundo naquele ambiente, que ele desprezava. Quem sabe, como seria aquela criança e que espécie de mulher seria a sua mãe! Para dizer a verdade, o advogado não tinha lá grandes desejos de vê-los... Porque orgulhoso como era, de ser já desde tantos anos a pessoa de confiança do conde de Dorincourt, ter-se-ia irritado de dever tratar com uma mulher interesseira, ambiciosa, certamente mal educada e ignorante, que não tinha nenhum amor à pátria e ao nome do marido, enquanto aquele nome era quase sagrado para o Sr. Havisham.

   Introduzido pela empregada na modesta sala de visita, o advogado lançou à sua volta um olhar crítico: nada porém notou de vulgar, nem de banal. Felizmente não pendiam das paredes litografias grosseiras, nem havia em toda a sala nenhum adorno que denotasse mal gosto. Pelo contrário. Quadros interessantes estavam dispostos em perfeita ordem e lindos bibelôs revelavam o fino gosto da dona da casa.

   — Bem, assim, à primeira vista, passa... certamente foi o capitão que arranjou esta sala... disse consigo o Sr. Havisham. Mas bastou olhar para a senhora Errol, para convencer-se de que o seu gosto devia estar em perfeita conformidade com o do marido. Se o advogado não fosse um velho rabugento e brigão, não teria podido conter um gesto de surpresa diante de uma figura feminina que parecia mais a de uma moça que da mãe de um menino de sete anos. A senhora Errol, elegante mesmo, no seu vestido de luto, tinha “um rosto belíssimo com dois suaves olhos negros cheios de tristeza”. Não a abandonara mais aquela melancolia desde o tempo em que o adorado companheiro da sua vida a deixara para sempre. Cedric já estava acostumado com os olhos tristes da mamãe, mas sabia que aquela tristeza parecia desfazer-se um pouco, quando Fátina brincava com ele, ou ouvia repetir com toda a seriedade o que tinha lido nos jornais do Sr. Hobbs.

   O velho conde se enganara em crer vulgar e interesseira a nora que nunca vira. Não foi preciso muito tempo para que o advogado se convencesse plenamente desta verdade.

   Ele, que não tinha conhecido as alegrias da família porque vivia só e nunca quis casar-se, compreendeu logo que, se a mãe do pequeno Lord Fauntleroy tinha casado com o capitão Errol, fora somente porque se enamorara dele, e não do seu título de nobreza e de suas riquezas. Compreendeu também que não encontraria impedimento no desempenho de sua tarefa e começou a crer que a criança pudesse ser, em tudo e por tudo, digna de pertencer à nobre família paterna. Quanto ao físico não deveria ser feio, pois o capitão fora um jovem simpático e a senhora Errol era verdadeiramente uma mulher bonita.

   Quando a mãe de Cedric soube o porquê da visita daquele senhor que não conhecia, ficou pálida e com voz cheia de angústia murmurou:

   — Então, querem levar meu filhinho? Eu o amo tanto, como poderei viver sem ele? E enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas continuou:

   — Só tenho a ele no mundo, e sempre procurei ser uma boa mãe... oh! se o senhor soubesse, quanto eu amo o meu filho!

   O Sr. Havisham, um pouco perturbado, respondeu:

   — Sinto muito ser obrigado a dizer-lhe, senhora, que o conde de Dorincourt não a vê com bons olhos. Que fazer? Está avançado em anos, e os seus preconceitos estão radicados profundamente. Nunca teve simpatia, nem pela América nem pelos americanos e a notícia de seu filho ter casado com uma americana, foi um verdadeiro golpe para ele, Sei que o que vou dizer-lhe senhora, lhe causará pena, mas devo ser sincero: por ora ao menos o conde não quer vê-la e tenciona que o Lord Fauntleroy vá viver com ele e seja educado sob sua direção. Seu filho morará no castelo de Dorincourt, onde o conde vive habitualmente, pois sofre de gota e não tem muita simpatia pela capital. E faz-lhe a oferta da vila chamada “Chateau”, a pouca distância do castelo, e uma boa pensão. Lord Fauntleroy irá muitas vezes vê-la, mas a senhora não deverá jamais ir ao castelo, nem entrar nos parques adjacentes. Contudo, já que a senhora pode sempre vê-lo, não deverá de modo nenhum considerar-se separada de seu filho... Peço, senhora, que reflita um pouco, pois as condições impostas pelo conde poderiam ser mais duras e rigorosas. Creio além disso que a senhora percebe as vantagens que advém a Lord Fauntleroy do ambiente e educação que o esperam.

   Enquanto falava tão sabiamente, o Sr. Havisham pensava que de um momento para o outro aquela mulher fraca começaria a chorar, o que o teria aborrecido bastante.

   Porém nada disso aconteceu. A mãe de Cedric deu apenas alguns passos em direção à janela com ares de quem olhava algo lá fora: certamente fazia um grande esforço para dominar-se. Finalmente falou:

   — Meu marido amava muito Dorincourt e sua pátria, e sofria estar afastado dela. Tinha orgulho do seu nome e da sua família, e certamente nada lhe causará maior prazer do que saber que seu filho está sendo educado de maneira digna da sua linhagem, sob o olhar protetor dos seus antepassados...

   A senhora Errol voltou-se para o advogado e, fixando-o com olhos cheios de doçura, continuou:

   — É porque sei que se fosse vivo, esta seria a vontade do meu marido, que eu quero respeitar e fazer o futuro de meu filho. Quero esperar, porém, que o conde não terá coração de ensinar a meu filho não me amar... aliás, mesmo se o tentasse fazer, não o conseguiria, estou certa. Parece-se muito com o pai, e seu coração é tão afetuoso e tão leal! Ninguém, nem coisa alguma deste mundo seria capaz de afastá-lo de mim. Amar-me-á sempre mesmo se não devesse mais ver-me. — Quanto a mim, basta que não o arrebatem de todo e que possa continuar a estreitá-lo nos meus braços, e creio... creio que poderei resignar-me com a separação. O advogado dizia de si para consigo:

   — Não pensa em si, não impõe condições... e em alta voz declarou:

   — Senhora, admiro os nobres sentimentos que a animam. Certamente um dia, quando puder compreender o seu sacrifício, seu filho lhe será grato pela abnegação. Da minha parte, posso assegurar-lhe que Lord Fauntleroy será educado com todo o cuidado e, na medida do possível, será feliz. O conde de Dorincourt procurará fazer por ele tudo o que a senhora tem feito até hoje.

   — Oh! espero somente que lhe queira um pouco de bem... — replicou a pobre mãe com voz que tremia... Cedric está acostumado a ser amado por todos. É uma criança tão afetuosa! Na realidade o advogado não sabia o que pensar: o velho conde, tão egoísta e de coração empedernido pelas vicissitudes da vida e desgostos que lhe tinham causado seus filhos mais velhos, dificilmente se afeiçoaria a quem quer que fosse. Todavia era de esperar que ao menos fosse bom com o pequenino, que estava destinado a suceder-lhe, e por pouco que desse boas esperanças, o avô sentiria orgulho dele.

   Convencido disso, o Sr. Havisham repetiu à senhora Errol:

   — Sim, Lord Fauntleroy será feliz. A senhora não deve duvidar disto, e é também para que nada falte à sua felicidade que o conde deseja que a senhora more perto de seu filho, e que possa vê-lo à vontade.

   O advogado não podia decerto repetir as palavras precisas do conde, privadas absolutamente de qualquer benevolência para com viúva de seu filho, e preferia pôr alguma coisa de seu para não desencorajar aquela pobre mãe.

   Quando Mary, saindo para ir buscar Cedric, disse onde imaginava encontrá-lo, o advogado sentiu-se chocado. O pequeno Lord estava na casa de um quitandeiro! E Mary explicou-se como se fosse a coisa mais natural deste mundo:

   — Deve estar com o Sr. Hobbs sentado no “seu” banco, falando de política, (Deus o livre de ser político!) ou certamente estará brincando entre os sacos de batatas e as caixas de velas, tranqüilo e impassível como sempre.

   E a senhora Errol acrescentou, dirigindo-se ao hóspede:

   — O Sr. Hobbs conhece Cedric desde que veio ao mundo, e lhe quer muito bem. — O advogado não disse palavra. Pensava que na Inglaterra os filhos dos nobres não fazem amizade com os filhos dos quitandeiros. A coisa era realmente estranha... Será que o menino goste de companhias vulgares?

   Estava absorto em tais pensamentos, quando Cedric entrou. A surpresa que o advogado recebeu foi profunda. Encontrava-se inesperadamente diante de uma das crianças mais encantadoras que já tinha visto. Cedric era belo e robusto, o seu porte nobre, cheio de dignidade, e parecia-se de maneira impressionante com seu pai, se bem que tivesse os olhos da mãe: brilhantes e vivos, quase arrogantes na sua inocência, como olhos de quem nunca, jamais conhecera a dúvida nem o temor.

   O Sr. Havisham disse com seus botões:

   — Nunca vi em minha vida uma criança tão bela e de modos tão aristocráticos! E em alta voz exclamou:

   — Sim, é este o pequeno Lord Fauntleroy!

   Esta primeira surpresa foi seguida de muitas, outras. O advogado não se interessava por crianças mesmo tendo muitas vezes ocasião de estar no meio delas: rosadas e louras, vivas ou tímidas, sempre seguidas de professoras e aias, pouco interessantes em geral, para um velho solteirão, como o advogado Havisham.

   Mas, Cedric atraía-o particularmente e quanto mais o advogado o olhava o achava digno de interesse. Quanto à criança que não tinha consciência de ser objeto de estudo da parte daquele hóspede inesperado, não mudara em nada o seu modo de ser, desembaraçado e reservado ao mesmo tempo. Depois de ter apertado a mão ao Sr. Havisham, Cedric respondeu à sua pergunta, com a mesma simplicidade com a qual respondia ao seu amigo, o quitandeiro. O menino não era nem tímido, nem demasiado ingênuo, enquanto o advogado falava com a sua mãe, ele ouvira com toda a seriedade, como se fosse uma pessoa grande.

   — Parece-me uma criança precoce, observou o Sr. Havisham.

   — Também me parece, respondeu a senhora Errol. O que é certo é que aprende tudo com facilidade e criou o hábito de trabalhar com o cérebro, estando sempre em companhias de pessoas grandes. Diria até que gosta de usar palavras difíceis e expressões complicadas, que ouve ou lê, mas ao mesmo tempo gosta de brincar e até mesmo de traquinar, quando está de veneta...

   E o Sr. Havisham pôde logo convencer-se disse, no dia seguinte: enquanto dava uma volta na sua carruagem pelo quarteirão, viu um grupo de meninos que faziam grande algazarra, torcendo por dois do seu partido, que estava para começar uma corrida: um dos dois, e talvez o mais entusiasta, era Cedric. Ao sinal: um... dois... três... o pequeno Lord precipitou-se em disparada para a meta...

   O Sr. Havisham observava-o do seu carro. Cedric devorava a pista com velocidade de raio, de punhos cerrados, cabeleira ao vento, faces em brasa. Entretanto os seus companheiros, divididos em dois partidos, gritavam calorosamente.

   — Viva Cedric! Viva Bill! Pique!... pique!... pique!... Cedric! Cedric! Cedric! Bill! Bill! Bill!...

   O advogado que, apesar de toda a seriedade, se sentia transportado para aquela atmosfera vibrante de entusiasmo esportivo, começou a torcer pelo Lord Fauntleroy, e dizia convencido:

   Ele vai vencer! Ele vai vencer!

   Foi realmente o que sucedeu. O futuro conde de Dorincourt, enquanto os rapazes gritavam a plenos pulmões, chegava ao poste que fazia as vezes de meta, exatamente dois segundos antes do seu antagonista. Aquela vitória acolhida vibrantemente pelos vivas dos companheiros enquanto da sua parte o advogado, retirando o rosto da janela da sua carruagem, sorria satisfeito,exclamando:

   — Muito bem, pequeno Lord! Muito bem! Quando o carro parou diante da porta da senhora

   Errol, ele notou o vencedor e o vencido seguidos dos seus respectivos teams. Cedric pairava animadamente com Bill, com as mãos nos bolsos, faces afogueadas, a cabeleira em desalinho...

   Que pensas tu? explicava ao companheiro, com intenção de louvá-lo e de fazer-lhe pensar menos na derrota. — Se eu venci, foi somente, pelo menos assim o creio, porque tenho as pernas mais compridas... é natural, tenho três dias mais que tu, e isto me dá vantagem. Três dias são alguma coisa, não achas?

   Examinando as coisas segundo este ponto de vista, a gente se sente animada, e Bill William se animou de tal modo que chegou a vangloriar-se, como se, em vez de perder, tivesse ganho a partida. Cedric deveria estar satisfeitíssimo porque era a sua especialidade fazer a todos contentes. Mesmo na glória do triunfo, como tinha bom coração não podia deixar de pensar que seu companheiro tinha perdido e devia estar triste. Por isso dava a entender que afinal de contas, sem algumas circunstâncias especiais, o vencedor teria podido ser o amigo.

   Naquele dia o advogado teve uma conversa com Cedric que lhe fez sorrir: ficaram os dois a sós, por alguns momentos, porque a senhora Errol precisou afastar-se, e o advogado queria encontrar uma ocasião para sondar a criança. Era urgente prepará-lo para o encontro com o avô, e com a vida diferente que o esperava na Inglaterra. Cedric não tinha a mínima idéia do ambiente no qual deveria viver. Nem sabia que não podia viver mais com a sua mãe, porque, segundo tinham combinado o Sr. Havisham e a senhora Errol, julgaram oportuno não dizer nada à criança sobre esta condição imposta pelo avô, senão no último momento.

   E agora o advogado e Cedric estavam a sós: o Sr. Havisham sentado numa poltrona, junto à janela, e Cedric mergulhado noutra poltrona ainda maior, onde quase desaparecia, olhava o hóspede, apoiando a cabecinha loura no espaldar com as mãos nos bolsos, como de costume, e as perninhas cruzadas. Durante todo o tempo em que o advogado estivera falando com a sua mãe, tinha-o fixado atentamente, e ainda continuava a observá-lo com a mesma curiosidade cheia de respeito. Foi ele o primeiro a quebrar o silêncio:

   — Acredita-me, senhor, que eu não entendo bem o que vem a ser um conde?

   — Ah! não?

   — Não, repetiu Cedric, acrescentando: — Penso que um menino que deve ser conde deve saber do que se trata afinal, não acha o senhor?

   — Sem dúvida...

   — O senhor não gostaria, pediu a criança com respeito, de dar me a explicação? (Acentuou a palavra um pouco longa para ele). Os condes... quem é que os fez?

   O advogado respondeu:

   — Em geral são os reis e as rainhas que os criam. O fato é este: Um conde torna-se tal, por uma nobre ação ou por um grande serviço prestado a seu rei.

   — Então é como o Presidente? observou Cedric.

   — Ah! é por isso que são eleitos os vossos presidentes? Com gravidade a criança respondeu: — Sim, senhor, quando alguém é muito instruído, elegem-no presidente, e então fazem muitas festas com muitos discursos. Às vezes, já pensei que poderia ser um dia presidente, mas, nunca pensei que poderia vir a ser conde. Claro, pois, nem mesmo sabia o que fosse um conde, aliás, se eu soubesse teria também desejado sê-lo. — E isto disse Cedric para não parecer descortês.

   — Mas não é a mesma coisa ser presidente! Replicou o advogado.

   — Por que não se fazem festas e discursos para os condes? O advogado refletiu um pouco, e depois tendo decidido a enfrentar o argumento, começou:

   — Tu deves saber que um conde... um conde é uma pessoa muito importante.

   — Por isso não, porque um presidente é também importante, replicou Cedric. As festas que se fazem por ele são muito bonitas, com fogos de artifício e música. Eu o sei, porque sempre fui assistir a elas com o Sr. Hobbs.

   O Sr. Havisham continuou, mas não sabia muito bem como argumentar com Cedric:

   — Um conde é muitas vezes de antiga linhagem.

   — Antiga linhagem... que quer dizer?

   — Quer dizer de família muito antiga.

   — Compreendi, disse Cedric enfiando ainda mais as mãos nos bolsos. Certamente a verdureira da esquina, deve ser de antiga linhagem, porque é muito velha e quase não se pode manter em pé, deve ter pelo menos cem anos, mas vem todos os dias, mesmo quando está chovendo. Temos tanta pena dela, eu e meus companheiros! Uma vez Bill William tinha quase um dólar, e eu lhe pedi que comprasse a ela, cada dia, algumas maçãs, mas depois de uma semana o dinheiro do meu amigo terminou. Felizmente um senhor me deu meio dólar e então eu comecei a comprar-lhe as maçãs. Realmente faz compaixão uma pessoa que é muito pobre e é de linhagem antiga. Pobrezinha da verdureira! Dizem que é muito doente de reumatismo e sofre muito com o frio.

   O Sr. Havisham ficou embaraçado: olhou a criança que estava com o rostinho muito sério e absorto e lhe disse.

   — Temo que não entendeste bem o que te disse: “Linhagem antiga” não quer dizer velhice, mas significa que o nome de uma família é conhecido desde muito tempo e que desde anos e anos os componentes de tal família são nomeados na história de seu país.

   — É justamente o caso de Washington! interrompeu Cedric. Sempre ouvi falar dele desde que nasci e ele já estava antes de mim no mundo há um bocado de tempo. O Sr. Hobbs disse que ninguém o esquecerá jamais. Parece que era mesmo um grande homem...

   O Sr. Havisham, sem atender à celebridade de Washington, declarou com solenidade:

   — O nome dos condes de Dorincourt tem quase quatrocentos anos!

   — Mesmo? — E a criança mostrava um ar de intensa admiração. — E o senhor disse isso a “Fátina”? Deve-lhe ser muito agradável, porque todas as coisas nobres lhe interessam. E depois de a gente ser conde, o que é que faz?

   — Houve muitos que ajudaram governar a Inglaterra, outros deram prova de coragem, combatendo em batalhas que ficaram célebres.

   — Oh! isto é que me agradaria! — exclamou Cedric com o rosto inflamado de entusiasmo. — Também papai era soldado muito valoroso. Estou certo que o era ao menos como Washington. Talvez o era porque, se não tivesse morrido, teria sido conde. Gosto muito de saber que os condes devem ser corajosos! Imagine o senhor que uma vez, quando eu era muito pequeno, tinha um pouco de medo do escuro... mas depois me curei completamente pensando nos soldados da Revolução e em Washignton.

   — Mas os condes não têm somente coragem, — declarou lentamente o advogado enquanto perscrutava o rosto de seu pequeno interlocutor, — quase sempre têm também muito... muito dinheiro.

   — Ah! sim! — Cedric pareceu ficar satisfeito e com toda ingenuidade respondeu: — Que coisa boa! Eu também gostaria de ter muito dinheiro!

   — Deveras? E que farias desse dinheiro?

   — Ah! sei muito bem o que faria com ele! Se eu fosse rico daria àquela pobre verdureira, da qual lhe falei, uma bela lona para cobrir o seu banco, uma casinha, e, quando chovesse, lhe daria dinheiro para que pudesse ficar em casa, e lhe daria também um chalé, para que ela se abrigasse do frio. A pobrezinha não é como nós, sofre muito de reumatismo e parece que, a cada movimento, lhe doem os ossos. Talvez se eu lhe desse todas essas coisas que lhe disse, ela ficaria curada. — Talvez... mas dize-me um pouco, que mais farias se tivesses dinheiro, muito dinheiro?

   — Oh! nem mesmo eu sei tudo aquilo que poderia fazer! Antes de tudo compraria muitas belas coisas para “Fátina”: leques, um belo dedal, muitos anéis, talvez uma enciclopédia, uma carruagem para não ficar tão cansada, andando a pé. Gostaria também de lhe comprar um vestido de seda vermelha, mas ela gosta mais de roupa escura. Levá-la-ia comigo aos grandes armazéns e lojas, onde há tantas coisas belas e lhe compraria tudo o que ela quisesse. E depois pensaria em Dick.

   — Dick? Quem é Dick?

   — Ê o engraxate da estação, respondeu Lord Fauntleroy. É o mais simpático menino que conheço. Está sempre na estação, e já é meu amigo há muitos anos. E é um pouco curioso o modo como nos conhecemos. Foi assim: um dia, quando eu era ainda muito pequeno, estava passeando com “Fátina”, que me tinha comprado uma bola de borracha. A certo ponto, ela me escapou das mãos, e foi cair ao meio da rua, onde passavam os carros. Eu comecei a chorar... era muito pequeno e Dick, que estava engraxando sapatos, começou a gritar; “Ei! Ei! Atenção”! E se meteu por entre as pernas dos cavalos para apanhar a minha bola, e depois de a limpar um pouco com a manga da camisa, entregou-a, dizendo: “Olhe aqui, amigo, não se rasgou, não...” Imagine como “Fátina” e eu ficamos contentes, e agora não há perigo que saia e não faça uma visita a Dick. Eu o saúdo, ele me responde à saudação e me conta como é que vão os seus negócios. Há tempo que lhe vão mal.

   — E o que querias fazer por Dick?

   — Eis o que faria: compraria a parte de Jake.

   — E quem é Jake?

   — É o sócio de Dick. Mas parece que não seja bom menino. Não é muito honesto e isto não agrada a Dick. Garanto que o senhor se zangaria, se tivesse que engraxar sapatos o dia inteiro, honestamente, sabendo que tem um sócio que não é pessoa de bem. Os fregueses estão por Dick, mas muitas vezes não voltam mais por causa de Jake. Eu sei muito bem o que é que faria se fosse rico. Compraria a parte de Jake e daria a Dick uma bela nota só para ele, e lhe presentearia com muitas escovas e latas de graxa.

   Era divertido ouvir Cedric falar de seu amigo engraxate, usando quase o mesmo jargão, e sem lhe vir ao pensamento que toda aquela história não poderia interessar em absoluto ao seu velho hóspede. Mas não é verdade, porque o Sr. Havisham se interessava muitíssimo, não somente pela verdureira, e pelo engraxate, como também, e sobretudo por aquele menino que tanto pensava nos outros, não tendo um só pensamento para si.

   O advogado não pôde deixar de perguntar-lhe:

   — E para ti, não farias nada?

   — Oh! sim! Cem mil coisas! Antes de tudo daria dinheiro a Mary para Brígida, que é sua irmã, e que tem o marido desempregado e doente com dez filhos. Tantas vezes vem aqui chorando, e “Fátina” lhe dá muita coisa. Então Brígida recomeça a chorar e diz: “Deus lhe pague, senhora Errol. Deus lhes pague!” E depois deveria comprar alguma coisa para o Sr. Hobbs. Talvez gostasse de um relógio de ouro com uma linda corrente e de um belo cachimbo. E depois, gostaria de comandar uma companhia.

   O advogado olhou-o interrogativamente, e Cedric explicou-se.

   — Sim, uma Companhia Republicana, com flâmulas e com belos uniformes para todos os rapazes e para mim, para fazermos exercícios militares. Sim, isto é que me agradaria, mais, se eu fosse rico.

   Naquele momento, a senhora Errol entrou e disse ao advogado:

   — Desculpe, Sr. Havisham, tê-lo deixado sozinho tanto tempo, é que me procurava uma pobrezinha das vizinhanças.

   — Estávamos em animada palestra, respondeu o advogado, e ele me contava a história de seus amigos e o que pretendia fazer por cada um deles, se fosse rico.

   — Brígida é também sua amiga, disse a senhora Errol, e era justamente ela que estava à minha espera na cozinha, chorando, porque seu pobre marido está de cama com ataque de artrite.

   Cedric deixou logo a poltrona.

   — Vou falar com Brígida, disse, e perguntar pelo seu marido. É tão simpático e sabe fazer tantas coisas! Lembro-me de que uma vez me fez uma linda espada de madeira.

   E a criança saiu, enquanto o Sr. Havisham se levantou por sua vez. Dirigindo-se à senhora Errol, disse-lhe tudo o que lhe pesava no coração:

   — Recebi do conde de Dorincourt algumas instruções antes de partir. O conde deseja que a criança se prepare para conhecê-lo de bom ânimo, e que goste de viver com ele. Recebi o encargo de fazer ao Lord Fauntleroy que a riqueza lhe dará um futuro brilhante, e não terá mais que manifestar um desejo seu, para que seja logo atendido. Todavia, apesar de estar o conde bem disposto para com o seu neto, creio poder afirmar, que nunca pôde pensar em desejos do gênero que Lord Fauntleroy me expôs. Mas naturalmente se a criança quer socorrer àquela pobre, que está no momento na casa da senhora, é preciso contentá-lo... estou certo de que este seria o desejo do conde.

   Realmente a linguagem do velho senhor era bem diversa. Ao seu advogado ele dissera exatamente assim:

   — “A criança deve saber que terá de mim tudo o que quiser, deve saber o que significa ser neto do conde de Dorincourt. Compre-lhe tudo o que ele desejar, encha-lhe os bolsos de dinheiro, e diga-lhe que sou eu quem assim o deseja”. Realmente esta maneira de agir seria fatal, se tanto Cedric como a sua mãe não fossem desinteressados. A senhora Errol, na grande bondade de sua alma, pensava que sendo velho, o conde procurava agir dessa maneira para conquistar o afeto do netinho. E que bom poder também ajudar um pouco a pobre Brígida!

   Contente, pois, com aquela mudança de situação, vendo que era concedido a seu filho fazer bem a quem tanto desejava, respondeu com ardor ao advogado:

   — Como é bom o conde! Cedric se sentirá feliz em poder socorrer Brígida e Miguel. São pessoas que o merecem, e também eu, quando, pude, procurei ajudá-los. Miguel tem tanta vontade de trabalhar, mas está quase sempre doente, e tem necessidade de ser muito bem tratado de se alimentar melhor. Estou certa que tanto ele como a sua mulher saberão fazer bom uso do dinheiro que receberem

   O advogado tirou do bolso interno do paletó uma carteira. Enquanto se notava no seu semblante uma expressão estranha: pensava como teria julgado o conde, tão indiferente e tão egoísta, o primeiro desejo manifestado pelo seu netinho desconhecido.

   Talvez, senhora, disse, não tenha consciência das grandes riquezas do conde de Dorincourt e do seu vivo desejo de satisfazer a todos os caprichos do seu netinho.É em obediência às suas ordens que eu ponho à disposição de Lord Fauntleroy, se a senhora me permite, cinco libras esterlinas para aquelas pessoas de quem falamos.

   — Vinte e cinco dólares! Exclamou a senhora Errol. — É um patrimônio! Parece-me quase impossível! O advogado sorriu com ar de compaixão.

   — Sim, senhora, a vida de seu filho está para transformar-se completamente, e uma grande força estará nas suas mãos!

   — Mas, é tão pequenino! Tanto dinheiro em seu poder! Saberei eu ensinar-lhe a fazer bom uso dele? Quase tenho medo, de toda essa riqueza!

   Tão doces e tímidos eram os olhos da mãe de Cedric, que o velho coração seco do advogado se comoveu.

   — Bastou-me falar um pouco com seu filho para convencer-me de que o futuro conde de Dorincourt saberá empregar bem o seu dinheiro. Pode-se confiar nele, mesmo hoje, porque ele já é o pequeno Lord Fauntleroy.

   Assim falou o advogado da nobre família inglesa. A senhora Errol deixou-o um momento para ir à procura de Cedric. O pequeno estava no corredor e o Sr. Havisham ouvia-o dizer:

   — É artrite inflamativa... parece que é a mais perigosa de todas... ele está desesperado porque não sabe como pagar o aluguel da casa e assim piora muito mais, diz Brígida, e é também uma tristeza que Pat não tenha nem ao menos um vestidinho apresentável sem rasgões! Nem pode empregar-se como menino de recados! — Cedric estava com o rostinho triste quando entrou na sala, dizendo ao advogado:

   — “Fátina” me disse que o senhor procura-me: estava na cozinha com Brígida. O advogado olhou para a criança um pouco embaraçada, porque afinal era apenas uma criança e disse-lhe:

   — O conde de Dorincourt... Mas não foi mais capaz de continuar e olhou para a senhora Errol, como a pedir-lhe ajuda. E então Fátina, estreitando nos braços a criança, disse-lhe: — Filhinho, o conde é teu avô. pai de teu querido papai. Ele te quer muito bem e é muito bom, e quer que também tu o ames, porque seus filhos, que ele tanto amava, morreram todos. Teu avô deseja somente que sejas feliz e que possas também fazer feliz aos outros, e como ele é muito rico, deu dinheiro ao Sr. Havisham para que ele te dê, a fim de que tu possas gastá-lo como quiseres. De todo esse dinheiro, poderias dar um pouco à pobre Brígida, para que ela possa pagar o aluguel da casa e comprar remédios para seu marido. Seria uma bela ação! Teu vovô é muito bom, e deves estar muito contente com ele!

   Cedric arregalou os olhos, olhando alternativamente para sua mãe e o advogado. Em seguida murmurou:

   — Poderei dar logo o dinheiro à Brígida? Ela estava quase de saída... (O Sr. Havisham entregou à criança algumas notas, novas em folha, e Cedric precipitou-se a cozinha gritando;)

   — Brígida, Brígida, espera um pouco. Tenho aqui dinheiro para que pagues o aluguel e compres uma roupinha para Pat! Foi meu avô quem o enviou e é para ti e para Miguel!

   A voz de Brígida fazia-se ouvir na sala de visitas e percebia-se que a pobrezinha estava sobremaneira comovida:

   — Mas, o que é isto, Cedric? São vinte e cinco dólares! Onde está tua mãe?

   A senhora Errol sorriu:

   — Preciso que eu vá explicar-lhe tudo... e se afastou.

   Tendo ficado só, o advogado assomou à janela. Pensava no velho conde, isolado na sua magnífica biblioteca, rodeado de luxo e esplendor. Ninguém o amava, nem ele amou jamais a alguém, porque, fechado no seu cego egoísmo, prepotente, colérico, não se preocupava de outra coisa em toda a sua vida, a não ser de si mesmo. Só tinha empregado, para sua própria vantagem, as riquezas, a autoridade e o poder que lhe advinham de seu nome e da sua estirpe, e agora era já velho, doente, cansado, inútil a si e aos outros. Tratava a todos com profunda aversão. Poder-se-ia dizer que não havia em toda a Inglaterra um velho nobre, menos amado e mais isolado que o conde de Dorincourt. Podia muito bem convidar a todos que quisesse para a sua mesa e para as suas caçadas, nos seus castelos suntuosos, mas sabia que, se os tais amigos aceitassem aqueles convites, isto não queria dizer que sentissem a mínima simpatia pelo senhor do qual temiam as extravagâncias bizarras e os sarcasmos pungentes. Aborrecido como era, tornara-se ainda mais antipático, com o correr dos anos. Divertia-se muitas vezes, pondo embaraço à gente com as suas palavras mordazes e não tinha escrúpulo de fazer sofrer àqueles que eram demasiado sensíveis, tímidos ou orgulhosos. E aqui, pelo contrário, na modesta casa, onde o capitão Cedric Errol tinha vivido, quanta diferença! Parecia ainda ao advogado ver aquela bela criança de cachos louros, acantoada numa poltrona a falar, todo interessado e preocupado com os negócios de seu amigo Dick e com a pobreza da verdureira.

   Pensando nas magníficas possessões, nas rendas consideráveis, nas riquezas que permitem fazer tanto mal ou tanto bem, que um dia talvez não muito longe, passariam a pertencer ao pequeno Lord Fauntleroy, o Sr. Havisham disse de si para consigo, com profunda convicção:

   — Oh! as coisas mudarão... haverá uma grande diferença, uma diferença enorme...Quando a mãe e o filho voltaram, Cedric estava radiante. Sentou-se com as mãos cruzadas sobre os joelhos, ainda todo comovido pela gratidão da pobre Brígida.

   — Chorava! disse ele. — Falou que era de alegria, mas eu nunca vi ninguém chorar quando está muito contente. Certamente vovô deve ser muito bom. Começo a pensar que ser conde é uma coisa muito bela... estou quase satisfeito de ser também conde. .

  

                                     A PARTIDA

   Com o passar dos dias, Cedric se convencia sempre mais de que ser conde constituía situação vantajosa, mas isto porque todos os seus desejos, apenas expressos, eram logo atendidos. Parecia-lhe quase impossível, e é de crer-se que não caísse na conta disse. Mas finalmente, depois de ter falado ainda com o advogado, mensageiro do avô, convenceu-se de que podia verdadeiramente realizar os projetos que tinha mais a peito, e dedicou-se a isto com tal paixão, que causava assombro e dava que refletir ao Sr. Havisham, na alma de quem deviam permanecer impressas as visitas feitas em companhia de Cedric a Dick e a maravilha da verdureira “de antiga linhagem”, quando o viu parar diante de seu balcão para dizer que teria uma soma de dinheiro, uma bela lona para cobrir o seu banco, e um chalé para agasalhar-se do frio e finalmente um pequeno fogareiro para amparar-se das intempéries. Com a sua adorável graça, Cedric declarou à sua velha amiga:

   — Eu devo ir para a Inglaterra e ser conde, e não gostaria de que todas as vezes que começasse a chover eu tivesse de pensar no seu reumatismo; ou não sofro nada e não entendo como é possível que você sofra tanto... mas certo é que só em pensar nisso, me dá muita pena e desejaria poder curá-la completamente.

   Depois que deixaram a pobrezinha quase sem fala por toda aquela riqueza que lhe caía do céu, Cedric disse ao companheiro:

   — É mesmo uma senhora e tanto, imagine que um dia dei uma queda e ralei os joelhos e então ela me deu uma maçã e não quis nem um centavo. Como ela é bondosa, não acha? Eu me recordo sempre deste fato.

   Era natural para aquele coraçãozinho reto recordar-se dos benefícios recebidos e não imaginava que não existisse gente que facilmente os esquece.

   A conversa com o engraxate foi uma das mais interessantes. Justamente naqueles dias, Dick que por causa do seu sócio pouco recomendável, tinha tido uma porção de aborrecimentos, andava muito mal-humorado. Ouvindo dizer Cedric que tinha vindo trazer-lhe uma soma de dinheiro, que ao pobre engraxate pareceu enorme ficou, sem palavra. O menino expôs o fim da sua visita com tanta clareza e simplicidade que mesmo o Sr. Havisham ficou admirado.

   Quando Dick conseguiu finalmente compreender que seu amigo era um menino de família aristocrática e que seria finalmente conde se vivesse até lá, arregalou os olhos, abriu a boca e deu um salto, tão rápido, que o seu gorro voou pelos ares. Curvando-se para apanhá-lo, rompeu em exclamações que não impressionara muito a Cedric, porque já estava habituado àquelas maneiras do seu amigo, mas produziu um efeito estranho no impassível e impecável Sr. Havisham.

   Por que foi que Dick comentou desta maneira os acontecimentos? Julgava talvez que seu amigo estivesse brincando!

   Cedric, que tinha ficado um pouco embaraçado, procurou dar uma explicação.

   — Sei muito bem que de início ninguém quer acreditar. Imagine que o Sr. Hobbs julgava que eu estivesse doente! E também isto me estava fazendo certa impressão... mas agora já me habituei com tudo e nada me incomoda. Atualmente não sou ainda conde, porque o é meu avô, e é ele que me concede tudo o que me agrada. É muito, muito bom, mesmo sendo conde; e enviou-me o Sr. Havisham com muito dinheiro, e assim vim trazer-te este dinheiro que é preciso para mandar Jake passear.

   Foi assim que Dick pôde separar-se do seu sócio e ficar senhor absoluto da “firma”, com dinheiro no bolso e um bom número de escovas novas.

   Dick estava radiante com aqueles presentes tão belos, mas custava crer que aquela riqueza era mesmo dele, do mesmo modo que vivera tivera dificuldade em fazer acreditar à verdureira de “antiga linhagem”. Continuava a olhar para Cedric com ares de quem não sabe se está sonhando ou acordado, e não voltou a si, senão quando, estendendo-lhe a mão para despedir-se, Cedric lhe disse:

   — E agora, adeus! — A voz lhe tremia um pouco e os olhos lhe brilhavam de lágrimas, se bem que desejasse simular bravura. Espero que teus negócios correrão bem de agora por diante. Sinto muito ter de partir e deixar--te, mas pode ser que volte e me encontre contigo, quando for conde. Deveras escrever-me porque fomos sempre bons amigos. Mas recomendo-te enviares as cartas para Lord Fauntleroy, porque agora não me chamo mais Cedric Errol. Adeus Dick!

   O menino fechou os olhos marejados de lágrimas. Não era um engraxate que ia ter o fingimento de procurar palavras bonitas naquela hora comovente. Contentava-se em fechar os olhos e engolir em seco, procurando pôr um dique à onde de emoção que lhe extravasava do peito.

   Tentou contudo balbuciar meias palavras:

   — Queria que tu não fosses embora...

   Olhou depois para o advogado tirando o seu gorrinho:

   — Eu lhe agradeço, senhor, por me ter trazido aqui a Cedric. e por tudo que o senhor fez. É um menino muito bom e eu lhe quis sempre muito bem.

   Durante muito tempo ficou o pobre Dick a seguir com os olhos banhados de lágrimas a silhueta da criança, que se afastava, viva e alegre, ao lado do Sr. Havisham.

   Estas eram visitas ligeiras. Ao Sr. Hobbs foi que fez a sua “grande” despedida. Vários dias antes de partir, demorava-se com ele largo tempo. Seu velho amigo parecia triste e abatido, de tal modo que nem soube exprimir sua alegria, quando seu amiguinho com ar triunfante lhe levou um belíssimo relógio de ouro com uma linda corrente, como lembrança.

   O quitandeiro, tendo colocado o estojo do relógio sobre os joelhos, tirou do bolso o lenço e assoou o nariz ruidosamente. Cedric entretanto fez notar:

   — Há alguma coisa escrita dentro do estojo. Fui eu que a ditei: “Ao Sr. Hobbs, meu maior amigo, Lord Fauntleroy. Quando olhares para este relógio, pensa em mim”. Certamente, porque não quero que o senhor se esqueça do seu amigo.

   O quitandeiro assoou novamente o nariz, comovido:

   — Oh! sim! Não me esquecerei nunca! E tinha a voz tão emocionada como a de Dick. — Mas também tu não deveras esquecer-me, mesmo quando fores conde...

   — Sim, eu não me esquecerei nunca do senhor!

   Assegurou o pequeno gentil homem, — e como poderia fazê-lo? Passei na sua companhia muitas das minhas horas mais belas. Gostaria tanto se um dia o senhor fosse visitar-me! Que prazer vê-lo outra vez, creio que até meu avô teria satisfação em conhecê-lo. Pode ser que, quando lhe falar do senhor, ele o convide. E o senhor não tem nada a dizer, se ele é conde? Quero dizer: não recusará o seu convite, somente porque ele é conde, sim?... O quitandeiro prometeu benignamente:

   — Irei visitar-te — condescendendo com o seu jovem amigo que, se o conde o convidasse friamente para ele ir à Inglaterra passar alguns meses no castelo de Dorincourt, teria posto de lado todos os seus preconceitos republicanos e arranjaria logo as malas.

   Ultimados todos os preparativos para a partida de Cedric e de sua mamãe, chegou o dia em que as malas foram levadas para bordo, e a carruagem os esperava à porta. Improvisamente, Cedric se sentiu só. A mamãe ficou encerrada no seu quarto e, quando descera, tinha os olhos vermelhos de chorar e seus lábios tremiam. Inclinou-se para Cedric, e abraçou-o. A criança sentia que seu coração estava muito triste e não disse outra coisa senão estas poucos palavras.

   — Queríamos tanto bem à nossa casinha, não é verdade mamãe?! E lhe queremos sempre muito bem...

   — Sim, filhinho, sempre...

   Quando subiram para o carro, sentou-se junto à senhora Errol e tomou-lhe uma das mãos, enquanto “Fátina” olhava para fora, como a dizer adeus a tudo que deixava.

   A bordo reinava a maior confusão. A afluência dos passageiros que chegavam agitados, porque muitos não reconheciam as próprias bagagens e temiam chegar atrasados. Malas e maletas obstruíram a ponte e os marinheiros corriam de um lado para outro arrastando rolos de cordas. Os oficiais transmitiam ordens... Entretanto, homens, mulheres e crianças com as suas amas, continuavam a subir a bordo. Uns iam sorrindo e brincando, outros tristes, alguns choravam.

   Cedric, olhando à volta, encontrou muitas coisas que o interessavam: Grandes porões, complicadas maquinarias, e mil outras coisas, e no coração sonhava travar amizade com os marinheiros para poder perguntar-lhes se seria possível encontrar piratas durante a viagem. Estava apoiado no parapeito da ponte observando os últimos preparativos, e se divertia grandemente com todo aquele movimento, com toda aquela confusão, com os gritos dos marinheiros e dos carregadores do porto, quando lhe pareceu notar certo tumulto de gente em terra, e percebeu que era um rapazinho que procurava abrir passagem, agitando alguma coisa vermelha que tinha na mão: Era Dick!

   Dick gritava — Dei uma corrida! Mas queria ver-te partir. E não foi fácil! Somente com o apurado de ontem pude comprar isto para que ponhas no pescoço, quando estiveres no meio daqueles grandes senhores: É um lenço! O papel no qual estava embrulhado, perdi-o por culpa daquela gente que não queria deixar-me passar.

   Não tinha ainda acabado de falar, quando ouviu o sinal de partida, e antes mesmo que Cedric pudesse responder alguma coisa, Dick foi obrigado a afastar-se gritando: — Adeus! Adeus! Põe o meu lenço quando fores conde!

   E o engraxate saltou para terra enquanto os marinheiros retiravam a escada.

   Ficou no cais acenando com o seu gorrinho enquanto Cedric respondia ao adeus, agitando o lenço que tinha recebido como lembrança.

   Começaram a ouvir apitos e rumores confusos: Do cais ao navio trocavam-se adeuses calorosos:

   — Adeus! Adeus! Boa viagem! Escreve-me! Recorda-te de nós! Adeus! Envia-nos notícias de Liverpool!

   Lord Fauntleiroy assomou ao parapeito e gritou:

   — Adeus Dick! Adeus e obrigado!

   E o navio começava a afastar-se lentamente. A senhora Errol desceu o véu sobre a face. No cais uma massa confusa se agitava ainda e gritava. Mas o pobre engraxate não via senão um rostinho alegre, emoldurado por uma auréola de cabelos de ouro, e ouvia apenas a última saudação da voz cordial e amiga. Adeus Dick!

   E entretanto Lord Fauntleroy zarpava do seu país natal para a pátria dos seus antepassados.

  

                                   NA INGLATERRA

   Durante a viagem a mamãe teve que decidir-se a dizer a Cedric que na Inglaterra não poderiam morar juntos, e com tal notícia sofreu tanto, que o Sr. Havisham começou a pensar que não seria possível fazer que o pequeno Lord suportasse a separação, se o velho conde não concedesse à senhora Errol morar a pouca distância do castelo e pudesse muitas vezes ver o filhinho. Ela empregou toda a doçura de seu coração e todo o seu poder persuasivo para conseguir que Cedric se resignasse. Todas às vezes que voltava àquele assunto, “Fátina” não fazia senão repetir.

   — Asseguro-te, Cedric, que a casa onde eu vou morar é tão perto do castelo, que poderás diariamente ir ver-me. Imagina quantas coisas temos que contar, e que felicidade todas as vezes que estivermos novamente juntos! O castelo é belíssimo! Teu pai me falava dele porque o amava muito. Verás como vais gostar.

   — É minha vontade que pudesses vir comigo — rebatia Cedric suspirando. Não conseguia encontrar a razão daquela estranheza: sua mãe numa casa e ele noutra! Nunca o teria imaginado, mas...

   A senhora Errol desviava sempre o assunto.

   — Desejo que, ao menos por agora, não saiba o verdadeiro motivo desta disposição do conde — explicava o advogado — não entenderia e, sentindo-se ofendido, não poderia ser espontâneo e afetuoso para com o avô, como será, ignorando que ele detesta sua mãe. Cedric nunca soube o que fosse ódio e aversão, e seria um golpe demasiado forte para ele, vir a saber que alguém odeia sua mãe. Quer-me tanto bem! É muito melhor para ele, que venha a saber todas estas coisas mais tarde, e é melhor para o conde também. Isso constituiria um obstáculo quase insuperável entre eles, mesmo sendo Cedric uma criança.

   Cedric ficou vagamente maravilhado quando a mãe, mencionando apenas a questão, disse-lhe que era ainda muito pequeno para compreender a razão pela qual não deviam morar juntos: mais tarde compreenderia tudo. Todavia não indagou muito a fundo, e a senhora Errol soube de tal maneira esconder as sombras negras daquele quadro, que o conjunto se apresentava maravilhoso. Algumas vezes, porém, o Sr. Havisham surpreendia a criança muito séria olhando fixamente para o mar...

   Durante uma de suas palestras com o advogado, lhe disse: — Se soubesse quanto sofro porque a mamãe não pode vir comigo! Mas há tantas dores neste mundo, e é preciso que as suportemos: Mary o diz sempre e o repetiu sempre o Sr. Hobbs. E sobretudo é Fátina que quer que eu vá viver com o vovô, porque todos os seus filhos morreram e ele vive só, e isto é certamente uma grande desgraça.

   O que agradava mais a quem observava o pequeno Lord, era a seriedade com que falava e a gravidade de alguma de suas observações, que, unida à expressão infantil de seu rostinho inocente, era algo de fascinante. Era de tal modo encantador, quando estava sentado, segurando os joelhos com as mãozinhas gordas e falando com tanta seriedade, que quem o ouvia ficava deslumbrado.

   É mais que todos o advogado que via aumentar cada dia mais o seu interesse pelo filho do capitão Cedric.

   — Tu gostas mesmo do conde? — perguntou-lhe um dia.

   — Certamente, respondeu Cedric, somos parentes e entre parentes é preciso que haja amor, e sobretudo porque vovô tem sido muito bom para comigo; como se poderia deixar de querer bem a uma pessoa que faz tantas coisas por nós e nos contenta em tudo, mesmo se não fosse parente? Sendo-a, amaremos muito mais.

   — Mas tu acreditas mesmo que o conde te quer bem?

   — Creio que sim, porque sou filho do seu filho, e aliás deve já querer-me bem, doutra maneira não me teria enviado o senhor para levar-me à Inglaterra e não lhe teria dado tanto dinheiro para gastar comigo e satisfazer a todos os meus desejos.

   — Pensas que tudo é assim mesmo?

   — Claro! Não lhe parece que um avô deva querer bem ao seu neto?

   Tendo passado o enjôo, os passageiros, que agora subiam ao tombadilho para apreciar melhor a travessia, foram aos poucos tomando conhecimento da história de Lord Fauntleroy e vinham, tomados de grande interesse, conversar com aquela criança viva que se divertia a correr pelo navio, ou passeava ao lado de sua mamãe ou daquele senhor alto e magro que o levava à Inglaterra ou pairava com os marinheiros. Todos lhe tinham grande simpatia e faziam amizade com ele. Quando passeava no tombadilho, com certos senhores que ficaram seus amigos, e acolhiam sempre suas brincadeiras com alvoroço, procurava, fazer como eles, andando com passos largos e compassados. Se o chamavam para o meio de um grupo de homens, fazia-os rir. As crianças o adoravam, porque inventava continuamente novos brinquedos, para se divertirem.

   Mas os seus amigos preferidos eram os marinheiros. Estava sempre ao lado deles pedindo que lhe contassem histórias de corsários, de naufrágios e de ilhas desertas. Queria aprender a torcer as cordas, a fabricar barquinha em miniatura e queria até manejar o leme, cuja complicada nomenclatura não era mais segredo para ele. Tinha já adquirido, sem o perceber, o linguajar dos marinheiros e um dia fez arrebentar de riso um grupo de passageiros que estavam no tombadilho, envoltos em suas mantas e agasalhos, exclamando com seu ar gentil e sério ao mesmo tempo:

   — Estou com os ossos estalando com este frio danado!

   E não entendia porque começaram a rir. Aquela exclamação, que lhe agradava tanto, aprendera-a com Jerry, um velho lobo do mar, que a dar-lhe crédito, já tinha feito ao menos duas ou três mil travessias com igual números de naufrágios diante de ilhas povoadas de canibais. Parecia que tivesse sido colocado sobre grelhas, e algum canibal tivesse feito um banquete com os pedacinhos de sua carne viva. A pele deviam-na ter arrancado pelo menos uma dúzia de vezes.

   Era por isso que era inteiramente calvo... — explicava Cedric com grande seriedade à sua mãe.

   As vezes quando fazia mal tempo e os passageiros não podiam sair ao convés, pediam a Cedric que repetissem as histórias de Jerry. O pequeno Lord não se fazia de rogado e começava a narrar com tanto brio e vivacidade que fazia crer que antes dele nenhuma criança tão simpática e divertida tinha atravessado o Atlântico.O melhor era que ele não tinha consciência de haver conquistado tanta simpatia.

   — Vejam só como todos se interessam pelas histórias de Jerry! Dizia à mãe. A mim, algumas vezes não parecem verdadeiras, mas como sucederam com ele, em pessoa... Certamente são muito extravagantes, mas... E pode acontecer que às vezes ele se engane em referi-las ou se esqueça de alguma coisa. De resto, se entende. Já lhe arrancaram o couro da cabeça tantas vezes!

   Exatamente onze dias depois da partida, Cedric desembarcou em Liverpool, e na tarde do décimo-segundo dia com a sua mãe e o advogado chegaram de carro, de uma estação vizinha, ao portão do “Palacete”.

   Era já ao cair da noite e a criança pôde somente distinguir uma grande alameda ladeada de altas árvores. Depois de percorrer breve trecho da estrada, o carro parou diante de uma porta da qual bruxoleava uma luz. Mary tinha precedido os viajantes com os quais fizera a travessia no navio, de tal modo que, descendo do veículo, Cedric viu-a em pé à porta, enquanto dois criados permaneciam imóveis, um pouco atrás, no vestíbulo, profusamente iluminado.

   A criança saudou-a com efusão e, dirigindo-se à sua mãe, disse-lhe: — É Mary, mamãe.

   E nas faces enrugadas da fiel doméstica o pequeno Lord depositou um afetuoso ósculo.

   Em voz baixa a senhora Errol confiou a Mary.

   — Estou satisfeita de que estejas aqui... assim não me sentirei tão sozinha — e estendeu a mão, que Mary tomou entre as suas, infundindo-lhe ânimo e coragem. Entendia muito bem a melancolia e a solidão que esperava a senhora Errol, longe da sua pátria, e em breve separada também de seu filho!

   Os criados do “Palacete” olhavam os recém chegados com curiosidade. Sabiam já muitas coisas a seu respeito. Tinham sido muitas vezes testemunhas dos acessos de cólera do velho conde por ocasião do casamento de seu filho e estavam bem informados de tudo o que se estabelecera sobre a permanência da senhora Errol no “Palacete” e do menino no castelo. O pequeno Lord Fauntleroy herdaria um dia o grande patrimônio do velho irascível, prostrado pela gota, mas, em vez de invejá-lo, todos diziam:

   — Pobre criança, quem sabe a vida que o espera!

   Todavia, nenhum conhecia ainda a alma e o caráter do futuro conde de Dorincourt, o qual, como se estivesse acostumado a fazer tudo por si, tirou o paletòzinho, olhando à sua volta, para admirar o vestíbulo, os quadros, os chifres de veado que pendiam da parede, tantas coisas que lhe pareciam estranhas, porque nas casas que freqüentara nunca vira coisas semelhantes.

   — Mãezinha, esta casa me parece bela e grande: estou muito contente que venhas morar aqui.

   Certamente a casa era bela e grande, sobretudo se se comparasse com a modesta casinha de Nova York.

   Mary conduziu a senhora Errol e o menino a um quarto de dormir, onde um belo fogo ardia na chaminé e sobre o tapete branco do pavimento dormia um magnífico gato angorá.

— Enviou-o para a senhora a empregada do castelo, que preparou tudo isso aqui. Deve ser muito boa! Falei com ela um momento: queria tanto bem ao capitão, e chorou muito quando ele morreu! E me disse que lhe mandou este gato para que a casa não lhe parecesse demasiado deserta. Conheceu seu marido em criança que era um menino muito belo e quando jovem muito elegante e gentil para com todos! Então eu lhe disse: “Deixou um filho como ele, a mais bela criança que já vi”.

   Momentos depois, mãe e filho desciam a escada para outro quarto magnificamente iluminado, com móveis de muito bom gosto, com grandes poltronas de alto espaldar e algumas estantes e uns pequenos armários cheios de objetos raros. O gato angorá seguira Cedric, fazendo-se acariciar, e se deitou junto dele sobre o tapete diante da chaminé. A criança, ocupada em mimá-lo, não atentava no que diziam o Sr. Havisham e a senhora Errol, que falavam em voz baixa:

   — Ah! esta noite, não, pelo amor de Deus! Que ele fique comigo, pelo menos esta noite!

   Está bem, respondeu o advogado. Não há necessidade que parta esta noite. Irei ao castelo e falarei ao conde, anunciando-lhe a chegada do neto.

   A senhora Errol olhou para Cedric: estava deitado sobre o tapete. As labaredas da chaminé iluminavam-lhe o rostinho rosado e os lindos cachos de ouro! O gato satisfeito brincava com Cedric, que o acariciava com a sua tenra mão infantil.

   "Fátina" sorriu, mas no seu sorriso havia tanta tristeza!

   — O conde de Dorincourt não sabe o que me está arrebatando! disse, e, voltando-se para o advogado, acrescentou: — Gostaria que o senhor tivesse a fineza de lhe comunicar que prefiro não aceitar o dinheiro que me ofereceu

   — A senhora não se refere, por acaso, à pensão que lhe está destinada! O advogado parecia muito surpreendido.

   — Sim, é justamente isto que penso não ser justo que aceite, replicou com firmeza a senhora Cedric Errol. A casa não a recuso, antes estou muito grata que me seja concedido viver ao lado de meu filho, mas, quanto ao dinheiro, tenho uma renda que me permite viver modestamente e não desejo mais. O conde me detesta de tal modo que me parecia vender-lhe Cedric, se aceitasse o seu dinheiro. Se eu lhe mando meu filho é somente porque quero o seu bem e estou certa de que o seu pai desejaria que eu agisse deste modo.

   O Sr. Havisham olhava fixo para o solo: parecia muito preocupado.

   — É um caso muito sério, disse, Penso que se encolerizara e de modo nenhum aceitará a sua recusa, senhora Errol.

   — Creio que sim, se refletir um pouco. Enfim não tenho necessidade do seu dinheiro e por que deveria aceitá-lo, então, como coisa supérflua, sobretudo de um homem que tanto me odeia, que quis separar-me de meu filho, que é filho de seu próprio filho?

   — Bem, farei o que a senhora pede, replicou o advogado, depois de alguns instantes de reflexão.

   Depois foram todos cear, enquanto o gato, enrascado junto de Cedric, dormia despreocupadamente.

   Quando o Sr. Havisham chegou ao castelo, dirigiu--se logo aos aposentos particulares do conde. Encontrou-o sentado junto à chaminé, numa ampla poltrona, com o pé atingido pela gota apoiado num escabelo. O velho senhor, franzindo as sobrancelhas, fixou os olhos no advogado que percebeu como o conde, apesar de ostentar a sua indiferença habitual, deveria estar nervoso e agitado.

   Finalmente o velho conde falou:

   — Já estás de volta, Havisham, que há de novo?

   — Lord Fauntleroy ficou com sua mãe, amanhã eu mesmo o trarei ao castelo.

   O conde, que tinha um cotovelo apoiado no braço da poltrona, levantou a mão como para proteger os olhos da luz, e disse:

   — Então pode falar. Tinha-lhe dito que não me escrevesse nada, por isso não estou a par dos acontecimentos. Gostaria de saber, que tal é o menino. Veja bem que não é sobre a mãe dele que lhe peço informações, é sobre ele.

   O Sr. Havisham encheu o copo de vinho do Porto e, tendo-o ainda entre as mãos, respondeu.

   — Direi que não é fácil julgar do caráter de uma criança de sete anos! O conde, que por nada deste mundo teria renunciado aos seus preconceitos inveterados, deixou escapar uma imprecação: — Entendi... trata-se de um estúpido ou de um mal-educado? Aliás, compreende-se: sangue americano!

   Um pouco secamente o advogado replicou:

   — Quanto a isto, penso que não há nada que temer. Eu não entendo muito de crianças, mas diria que me parece um menino educado e de bons sentimentos.

   Falava deliberadamente com frieza, exagerando também a sua maneira habitual de ser, e isto porque julgava ser talvez melhor não preparar o conde para o encontro com o netinho, a fim de poder julgá-lo com plena liberdade.

   — Então como é ele? É sadio e bem-educado?

   — Uma coisa e outra, ao menos em aparência.

   — E de aspecto, como é ele? Simpático?

   O Sr. Havisham não pôde deixar de sorrir. Via a criança belíssima, deitada no tapete, como a tinha deixado no “Palacete”, com as faces rosadas e os belos cachos louros caídos sobre os ombros.

   — Segundo o meu parecer, é uma criança bela, resolveu declará-lo, mas já lhe disse que de crianças eu não entendo muito. Penso porém que o achará um pouco diferente das crianças que estamos habituados a ver na Inglaterra.

   — Oh! não duvido um segundo! E o conde contorceu a boca porque tinha sentido uma dor aguda no pé doente. — Os meninos americanos são todos desavergonhados, já o sabia.

   O advogado corrigiu a expressão pouco respeitosa do conde:

   — Não se trata de falta de vergonha. Confesso que não saberia dizer que diferença existe entre o seu neto e um menino inglês, mas talvez se trate de um misto de madureza e infantilidade, devido ao fato de que Lord Fauntleroy viveu muito mais com adultos que com crianças da sua idade. O conde balançou a cabeça:

   — Já o sei, já o sei! Trata-se de alguma coisa que os americanos costumam chamar precocidade e liberdade. Eu o chamo com o nome que merece: péssima educação e impertinência bem americana! O Sr. Havisham continuava a tomar goles de vinho.

   Estava acostumado a não discutir nunca acaloradamente com o nobre senhor, sobretudo quando estava atacado de gota. Silenciou, e só depois de longa hesitação quebrou o silêncio, para dizer:

   — Tenho uma mensagem para transmitir-lhe, senhor conde, da parte da senhora Errol.

   — Não me interessa! Não quero ouvir nada daquela mulher, murmurou com os dentes cerrados o velho iracundo.

   — Trata-se de coisa muito importante, insistiu o advogado. A senhora Errol recusa terminantemente aceitar a pensão que o senhor lhe destina.

   — Que estás dizendo?

   O conde parecia estupefato. O advogado repetiu:

   — É a pura verdade. Diz que não tem necessidade de pensão, e não sendo amigáveis as relações entre V. S. e ela...

   — Desafio! — Interrompeu o velho irritando-se. Fico com os nervos rilhados somente em pensar que existe aquela mulher! Imagina o que aconteceria se a visse! Uma americana vulgar e venal!

   — Venal, V. S. não a pode chamar! Não somente não pede nada, mas recusa até aquilo que se lhe oferece.

   O conde não cedeu, e retorquiu asperamente ao advogado:

   — Se está pensando em fazer-se de importante, de figurona, se crê que eu vá admirar a sua famosa independência americana, engana-se! Pouco se me dá dela, mas não quero que viva como mendiga à minha porta: é a mãe de meu neto! E isto a põe numa situação que deve suportar, queira ou não. Por isso deverá aceitar o meu dinheiro.

   — Mas fique certo, V. S. que não o gastará.

   — Que me importa? — Gritou enfurecido o conde. Basta-me que lhe seja dado o dinheiro, ao menos assim não poderá dizer que é obrigada a viver pobremente por minha causa. O que é que ela não faria, para dar à criança uma péssima opinião de mim? Imagino como procurou indispor o menino contra seu avô!

   — Não, afirmou com toda calma o advogado. E a este respeito devo dizer-lhe ainda outra coisa, para provar-lhe que não é verdade aquilo que V. S. pensa.

   — Não quero explicações! Vociferou o velho que corria o risco de ficar sem fôlego, atacado por um acesso de raiva ou de gota.

   Mas o Sr. Havisham, imperturbável, continuou:

   — A senhora Errol pede-lhe que não diga a Lord Fauntleroy nada que lhe possa fazer entender que V. S. o separa de sua mãe, por que a não quer ver, certa do imenso amor que a criança nutre por ela, a senhora teme com razão que, vindo a conhecer os sentimentos de hostilidade de V. S. a seu respeito, a criança o temeria e certamente não sentiria nenhum afeto para com seu avô. Explicou ao filho que não pode dizer-lhe os motivos pelos quais o separam hoje dela, porque não poderia entendê-los. Mais tarde saberia de tudo... Mas, pelo que se refere ao presente, a senhora deseja vivamente que não haja nem uma sombra de desconfiança ou desafeto entre avô e neto no primeiro encontro.

   O conde deixou-se cair pesadamente sobre a poltrona com os olhos em chama.

   — Vamos! continuava a repetir. — Não tentes fazer-me crer que ela não lhe tenha dito nada!

   — Nem ao menos uma palavra, asseguro a V. S., afirmou com frieza o advogado. Assim a criança está disposta a considerar V. S. como um avô afetuoso e que o ama, sobre todos os respeitos. Não só lhe quer bem, como também tem um grande reconhecimento, pois em Nova York tive o cuidado de executar a suas ordens, satisfazendo a todos os seus desejos.

   — Sim? murmurou o conde. O advogado continuou:

   — Dou minha palavra de honra que a impressão que receberá Lord Fauntleroy a seu respeito, dependerá exclusivamente de V. S. E ousarei sugerir que julgo útil para que a criança se afeiçoe cada vez mais a V. S., não lhe falar em tom áspero e de desprezo...

   — Quantas histórias! Quantas histórias! Finalmente trata-se apenas de uma criança de sete anos, não é?

   — Sim, senhor conde, mas estes sete anos, ele os passou ao lado de uma mãe que o adora!

  

                                       NO CASTELO

   No dia seguinte à chegada à Inglaterra de Lord Fauntleroy, uma carruagem o conduziu através de uma longa avenida que levava ao castelo dos Dorincourt. O conde queria que seu netinho fosse admitido à sua presença perto da hora do jantar.

   Durante o percurso, tendo apoiado a cabecinha loura nas almofadas macias do veículo, Cedric olhou em derredor curioso. De resto não tinham deixado de despertar o seu interesse a viatura, os adornos brilhantes, os cavalos, o cocheiro e o empregado em uniforme, e sobretudo o brasão gravado na portinhola da carruagem, cujo significado desejou conhecer. Quando a carruagem chegou defronte do imponente portão do parque, a criança assomou à janela, atraído pelos leões de mármores que pareciam guardar a entrada do castelo.

   De uma casinha pouco distante, revestida de trepadeiras, correu a abrir o portão uma senhora sorridente. Seguiam-na duas crianças de olhos arregalados sobre aquele rapazinho da viatura, que, por sua vez, os olhava com curiosidade. A um sinal da mãe, que se curvava numa inclinação profunda, também eles fizeram a sua reverência.

   Lord Fauntleroy perguntou, como falando consigo mesmo: — Conhecem-me? — e acrescentou: — Certamente que me conhecem! — e, tirando o seu gorrinho, saudou alegremente a senhora: — Boa tarde, como vai?

   Com o semblante radiante, ela respondeu: — Bem-vindo! Que Deus abençoe o belo rostinho de Vossa Senhoria! Saúde, fortuna e felicidade para vós, Lord Fauntleroy!

   Cedric lhe sorriu continuando a agitar o gorrinho. Voltou-se depois ao advogado para comunicar-lhe as suas impressões:

   — Como é simpática aquela senhora, e como deve querer bem às crianças! Gostaria de brincar com aqueles meninos. Há muitos nas redondezas para formarmos um grupo?

   O Sr. Havisham conservou-se em silêncio. Pensou que seria muito cedo para dizer-lhe que, dificilmente, obteria licença de fazer amizade com os filhos dos empregados. A carruagem que tinha retomado o seu caminho desfilava agora, entre dois renques de árvores frondosas, que sombreavam a avenida. Eram árvores tão altas e de troncos tão grossos, que encantaram a Cedric, pois não se recordava ter visto jamais coisa semelhante. A criança não podia certamente saber que o castelo de Dorincourt era célebre em toda a região pela sua beleza, e que o parque que o circundava era magnífico. Achava que tudo aquilo que via lhe agradava grandemente, isto sim, e olhava demoradamente para os fortíssimos ramos atravessados pelos últimos raios de sol, como por setas de luz. Como era agradável o silêncio absoluto que reinava naquele arvoredo, e como tudo era cheio de interesse! As moitas pareciam massas espessas de sombras, as árvores isoladas. aqui e ali e arbustos floridos ondulavam levemente à brisa vespertina, quando, um coelho passava em desfilada, agitando comicamente a cauda branca, e levantava vôo um par de perdizes. Extasiado, Cedric batia palmas e dava gritos de alegria... — Como é bonito aqui! exclamou. Agrada-me muito mais do que o parque de Nova York!

   Admirado, pois, do comprimento daquela alameda, que parecia não acabar mais, perguntou:

   — Qual é a distância do começo da alameda ao castelo?

   O Sr. Havisham respondeu-lhe:

   — Devem ser 3 ou 4 milhas.

   — Mas, como estamos longe da entrada! — comentou a criança, que, notando alguns cervos uns sobre a relva, outros olhando fixamente a carruagem, espantados, prontos a correr, em casos de perigo e com uma vozinha toda cheia de alegria, interrogou: — Oh! que beleza! Os cervos! Parece que deixaram aqui um circo! De quem são?

   — O parque é a casa deles, respondeu o advogado. E o dono deles é o conde, teu avô.

   Majestoso e imponente, com as janelas que pareciam feitas de ouro, pelos derradeiros raios de sol, apareceu finalmente o castelo, cheio de torre e torrões, muitas vezes revestido de cortinas espessas de hera. Diante da construção majestosa, havia amplos terraços alternados com prados verdejantes e canteiros floridos.

   A alegria brilhava nos olhos de Cedric, e lhe tingia de púrpura as faces rosadas. Bateu novamente as mãos exclamando:

   — Parece-me estar no palácio de um rei, como já li nos livros de fadas.

   O grande portão estava aberto. Duas filas de criados aprumavam-se à espera. Cedric observou os seus uniformes e perguntou a si mesmo o que é que eles estavam fazendo ali. Não podia de modo nenhum imaginar que estivessem ali a esperá-lo, para homenagear a criança destinada a ser o senhor do castelo, que parecia uma habitação de fadas, com aquele parque magnífico de árvores centenárias, cheio de lebres, de coelhos, de cervos e cabritos.

   Diante da criadagem, encontrava-se de pé uma anciã vestida de negro com uma touca na cabeça grisalha. Descendo da carruagem pareceu que lhe quisesse dizer alguma coisa. Mas o Sr. Havisham, continuando à segurar o menino pela mão, disse, voltando-se para a senhora:

   — Eis aqui Lord Fauntleroy, senhora Mellon — e depois a Cedric: — Lord Fauntleroy, esta é a senhora Mellon, a governanta do castelo. Cedric estendeu-lhe a mão, olhando-a com seus olhos grandes, belos e vivos: — Foi a senhora que mandou o gato? Como a senhora é gentil! Muito obrigado!

   O rosto simpático da mulher entreabriu-se num sorriso, como a mulher do vigia, quando Cedric lhe falou; e disse:

   — Oh! reconheceria V. S. em qualquer parte! Parece-me ver o capitão! Senhor advogado, hoje é realmente um grande dia.

   Que queria dizer? Isto Cedric não entendeu e olhou para a senhora Mellon com certa curiosidade: “ela tinha os olhos cheios de lágrimas”... mas, por quê?

   Contudo continuava a sorrir e agora dizia à criança:

   — Mandarei para os aposentos de V. S. dois gatinhos que são um amor!

   Mas agora o Sr. Havisham perguntava-lhe algo em voz baixa.

   — À biblioteca, foi a resposta da senhora Mellon, e acrescentou — Sua senhoria deve ir só.

   Foi assim que um imponente camareiro de uniforme acompanhou Cedric até à porta da biblioteca e a abriu solenemente:

   — Lord Fauntleroy, senhor conde.

   Era apenas um doméstico, mas entendia que não era um dia como os outros, o dia em que o herdeiro de um dos maiores patrimônios da Inglaterra era admitido pela primeira vez à presença do velho conde, que lhe tinha legado tudo. Cedric parou à porta: a sala era magnífica e severa, com enormes estantes de madeira esculpida, cheias de livros e de tal modo espaçosa, com tapeçarias e cortinas, janelas guarnecidas com lindos vitrais, que naquela hora do entardecer dava um aspecto ainda mais austero ao ambiente. Cedric pensou que não havia ninguém na biblioteca, porém, apurando mais os olhos, viu que, junto da chaminé, onde ardia um grande fogo, havia uma poltrona grandíssima e nesta poltrona, estava mergulhado alguém, que, no primeiro momento, nem mesmo se voltou para ver quem entrara. Mas houve outro que deu mostra de agitação: um enorme cão lobo, de pêlo ruivo, que parecia quase um leão, levantando-se do tapete ao pé da poltrona, onde estava deitado, se dirigiu para Cedric com passo lento.

   — Dougal, vem para cá! — ordenou uma voz.

   Não havia perigo de que o pequeno Lord tivesse medo. Com toda a naturalidade, tomou o cão pela coleira, enquanto Dougal bufava ligeiramente, e entraram juntos na sala da biblioteca. O conde levantou a cabeça. Cedric viu um velho alto, de cabelos e sobrancelhas brancas, nariz pronunciadamente aquilino, dois olhos cavados nas órbitas, cintilantes de arrogância. Por sua vez o nobre castelão percebeu uma elegante figurinha, em veludo negro e colarinho de seda branca, rostinho luminoso e sereno, aureolado de cabelos louros, dois grandes olhos inocentes, que o olhavam com curiosidade e afeto.

   Se o castelo era semelhante a um palácio encantado, Cedric tinha a expressão de um principezinho de fada, sem o saber. O coração empedernido do velho misantropo sentiu um ímpeto de comoção e de orgulho, diante daquela bela criança que o olhava calmíssima, continuando a segurar o cão pela coleira. O conde estava gostando de ver que o seu netinho não tinha medo dele, nem do cão. Cedric aproximou-se da poltrona do avô, e olhando-o, como teria olhado o vigia e a governanta, disse com sua costumada gentileza:

   — O senhor é o conde? Eu sou o seu neto, que vim para a Inglaterra com o Sr. Havisham. — Sou Lord Fauntleroy — e espontaneamente lhe estendeu a mãozinha, convencido de que também os condes deviam fazer assim. Depois, prosseguiu: — Espero que o senhor esteja bem. Tenho muito prazer em o ver.

   O conde apertou a sua mãozinha, com um raio de alegria nos olhos, e ficou de tal modo admirado, que nem soube o que dizer. Continuava intrigado a olhar aquela figurinha infantil. Finalmente falou:

   — Disseste então que sentes prazer em ver-me?

— Sim, muito, respondeu Cedric. E olhando à volta descobriu junto da chaminé uma cadeira e se sentou. Quase que desaparecia nela e não conseguia tocar os pés no chão. Mas era de tal modo, desembaraçado, que parecia achar-se perfeitamente à vontade, e continuava a olhar o avô com olhos cheios de interesse.

   De repente observou:

   — Pensei muitas vezes no aspecto do vovô! Freqüentemente a bordo, quando estava deitado, acordava dizendo: “Quem sabe se você não se parece com o papai?!”

   — E que te parece agora?

   — Mas eu era muito pequeno, quando papai morreu, por isso não posso recordar-me bem como ele era. É talvez por isso, que penso que o senhor não se parece com ele.

   — Acho que isso não te agrada.

   — Oh! Não! (Apressou-se em protestar gentilmente Cedric). — Naturalmente gostaria que o senhor se parecesse com o papai, mas o avô, mesmo se não se parece com o papai, agrada da mesma forma. Os parentes se admiram sempre.

   — Completamente desorientado, o velho apoiou a cabeça no espaldar da poltrona. Pensando bem, não podia dizer que tivesse algum dia admirado os seus parentes. Pelo contrário, passara a vida a litigar com eles satisfeitíssimo de achar-se longe deles, e de poder dizer mal de todos, todas as vezes que tinha ocasião, com o belo resultado de fazer-se odiar de todos. Enquanto assim refletia, ouviu o netinho dizer.

   — Todo neto deve amar o seu avô, tanto mais quando o avô é tão bom, como o vovô!

   — Julgas que sou bom para contigo?

   — Se soubesse quanto lhe sou grato por Brígida, pela quitandeira, e por Dick!

   O conde de Dorincourt não entendia absolutamente nada!

   — Dick, Brígida, a quitandeira!... (De que gente falava o menino?).

   — Sim, vovô tentou explicar Cedric. Foi para eles que o senhor deu dinheiro ao Sr. Havisham.

   — Ah! tu falas daquele dinheiro? Devias gastá-lo como te aprouvesse. O que foi que compraste? Gostaria de o saber!

   Enquanto dizia estas palavras, o velho olhava fixamente o netinho, curioso de saber seus gostos.

   — Realmente... — disse Cedric — deveria ter explicado melhor ao vovô. O senhor certamente não conhece nem o Dick, nem Brígida, nem a quitandeira, a que vende maçã no parque de Nova York: eram todos meus amigos. Miguel, pobrezinho, estava doente!

   — Miguel? E quem é Miguel?

   — É o marido de Brígida! Coitadinhos! Sofriam tanto! Aliás, se entende! Quando um homem está doente e tem dez filhos, sem poder trabalhar, as coisas não correm bem! Mas Miguel é sempre muito trabalhador, por isso é que Brígida vinha à nossa casa, chorando. E uma tarde, quando estava lá em casa o Sr. Havisham, Brígida chorava ainda mais, porque não tinha nada para dar de comer aos meninos e não podia nem mesmo pagar o aluguel, o advogado disse-me que o senhor tinha dado tanto dinheiro para mim. Então eu corri à cozinha e dei logo um bocado de dinheiro a Brígida para que arranjasse tudo, e ela nem mesmo podia acreditar, de tão contente que estava! É por isso, vovô, que sempre lhe serei grato.

   Com voz profunda o conde comentou:

   — Isto é uma das coisas que fizeste com o dinheiro, e depois?

   Apenas Cedric se sentou na poltrona, Dougal enroscou-se aos pés e começou a olhá-lo, como se entendesse tudo o que dizia, porque Dougal era um cão majestoso e tinha ares de tomar tudo a sério. O conde, que conhecia a fundo o animal, observava-o com interesse. Sabia que não era fácil em fazer amizade e se surpreendia em vê-lo aceitar tão de boa vontade as carícias do menino.

   De fato, justamente naquele momento, como se tivesse acabado o seu exame, Dougal levantou as patas, pousou-as sobre os joelhos da criança, que, sem se amedrontar, continuava a sua narrativa:

   — Depois havia Dick, que eu desejava socorrer. Estou certo de que o senhor gostaria dele! Dick é tão reto.

   — Reto? Que significa isto?

   Cedric hesitou um momento. Realmente não sabia bem o que significava aquele termo, só pensava que fazia um elogio a seu amigo, porque Dick o empregava muitas vezes. Decidiu-se:

   — Eu creio que se diz de uma pessoa que não engana nunca a ninguém, nem bate nas crianças e engraxa os sapatos do povo, o mais conscienciosamente que pode. Certamente, porque Dick é engraxate de primeira.

   — E era um de teus amigos? perguntou o Conde.

   — Era, sim, um dos meus velhos amigos! Não tão velho como o Sr. Hobbs, mas quase... Quando parti, foi a bordo despedir-se e levar-me uma lembrança.

   Tirou do bolso um objeto vermelho, cuidadosamente embrulhado, e mostrou ao avô com orgulho: era um lenço vermelho, com cabeças de cavalo e ferradura.

   — Ele deu-me de lembrança, explicou Cedric, e eu o conservarei sempre. Serve para pôr no pescoço, mas se pode também usar no bolso. Imagine que comprou este lenço com o primeiro dinheiro que ganhou, depois que eu o separei de Jake, que era sócio de Dick, e comprei para meu amigo muitas escovas novas e uma placa. E ele, como agradecimento e como lembrança, me deu este lenço! Quando o vejo, sempre penso em Dick, como o Sr. Hobbs sempre pensa em mim, quando lê o que mandei escrever no relógio que lhe dei: “Quando olhares para este relógio, pensa sempre em mim”.

   O ilustríssimo senhor conde de Dorincourt estava absolutamente estupefato e não entendia nada do que ouvia. Ele, um homem “lido e corrido” que conhecia bem o mundo! Mas, desta vez, tratava-se de algo tão diferente, que não sabia o que fazer.

   Nunca tivera muita simpatia por crianças, e de resto tinha muito que fazer em cuidar de si próprio, para lhe sobrar tempo a fim de se ocupar de meninos. Aliás seus filhos tinham-no deixado frio e indiferente.

   O que poderia saber aquele velho rústico dos tesouros de ternura escondidos na alma inocente de uma criança? Para ele as crianças eram pequenos animais aborrecidos, que era necessário ter em freio para que não incomodassem com as suas trampolinas barulhentas.

   Quando resolveu mandar vir da América seu netinho, não lhe passara nem por sonho pela mente, poder afeiçoar-se a ele. Se o queria no castelo, era só por orgulho do nome de sua casa, que não podia sofrer que o seu herdeiro fosse mal-educado e o desonrasse o nome dos Dorincourt.

   Estava de tal modo convencido que ia encontrar-se diante de uma criança traquinas e sem criação, que evitaria contemplá-lo de frente, quando Lord Fauntleroy entrou na biblioteca, sozinho, como o conde lhe dissera, justamente porque não queria que nenhum estranho fosse testemunha do desapontamento que ele deixaria transparecer no rosto, ao encontrar-se face à face com aquele menino desconhecido, vindo da América.

   Mas como tinha acontecido tudo ao contrário! E que aperto de coração, naquele velho coração apesar de não estar de todo endurecido, sentira o conde de Dorincourt, vendo dirigir-se para ele, calmo, sereno, com as mãozinhas no pescoço do grande cão, que já se fizera seu amigo, um menino louro, belíssimo.

   Nunca pensara, nem mesmo nas suas raras horas de otimismo, que teria um herdeiro tão encantador! E as surpresas continuavam... era tão simpática a sua conversa infantil!

   E o conde estava estranhando que, apesar de inspirar a todos sujeição e temor, não incutira a mínima timidez no seu netinho! Realmente Cedric não sabia o que fosse acanhamento ou medo. Não por retraimento natural, mas porque ignorava que houvesse motivo de temor e, tratando o avô com toda a espontaneidade, como amigo, não duvidava um segundo que não lhe correspondia.

   É claro que aquela criança sentada na poltrona, discorrendo com a maior serenidade, nunca teria suposto que aquele ancião de aspecto tão grave sem a mínima atração, que estava diante de si examinando-o, não sentisse prazer em vê-lo, e não fosse tão gentil, como ele.

   Da sua parte, fazia o possível para conquistar-lhe as simpatias e confiava que estava dulcificando a alma amargurada do conde, acostumado a ser misantropo e intratável.

   Experimentava sempre grande satisfação em ver-se defronte de alguém que o contemplava amavelmente com confiança e serenidade, fosse embora uma pessoa de mau caráter. Sim, era alguma coisa que lhe dava prazer, mesmo se, afinal de contas, não se tratava senão de uma criança. Assim, levado por aquela nova sensação que lhe dava um não sei quê de indizível alegria, o velho conde mergulhou mais ainda na sua poltrona e, continuando a fixar os olhos do netinho, com estranha luz nas pupilas o encorajou a continuar a discorrer. Lord Fauntleroy se distendeu a falar sobre Dick e Jake, sobre a verdureira que sofria de reumatismo, sobre o Sr. Hobbs, e descreveu ao avô as festas com tochas e fogos de artifício os cortejos e as passeatas de Nova York por ocasião da comemoração da República e chegou finalmente ao tema que mais o apaixonava: a Revolução. Mas calou-se abruptamente.

   — Por que não continuas? perguntou-lhe o avô. Lord Fauntleroy hesitou um momento antes de responder e depois confessou:

   — Desculpe-me... Não havia pensado que podia desagradar-lhe o que estava dizendo.. Esquecera de que o senhor é inglês e que talvez houvesse alguém de sua família na guerra.

   — Não! Não havia nenhum dos meus... mas parece que te esqueces de que és também inglês.

   — Eu, não! exclamou Cedric. — Eu sou americano! O conde então rebateu. És inglês como teu pai! Cedric nunca pensara nisso. Corou até a raiz dos cabelos, mas não se deu por vencido.

   — Nasci na América, declarou, e quem nasce na América é por força americano.

   Pareceu arrepender-se de seu tom resoluto e acrescentou.

   — Perdão, se o contradigo, mas me recordo de que o Sr. Hobbs me disse uma vez, que se devesse haver outra guerra, eu... deveria estar ao lado dos americanos.

   O conde deu uma risadinha seca.

   — Deveras?

   Não podia sofrer nem a América, nem os americanos, mas o tom de absoluta convicção do pequeno patriota, o divertia e fazia pensar que afinal de contas um americano tão bom podia vir a ser um inglês... Razoável.

   Tratavam ainda daquele assunto, quando vieram anunciar que o jantar estava na mesa. Lord Fauntleroy levantou-se e aproximando-se do conde, notou seu pé envolto em faixas.

   — O senhor quer que eu o ajude? — perguntou com gentileza. Quer apoiar-se em mim? O Sr. Hobbs fazia sempre assim, quando lhe caíam em cima as caixas de batatas.

   Alguém naquele momento correu o risco de perder toda a sua reputação: era o empertigado mordomo, que tinha, para sua glória, todo um passado de serviço impecável prestados nas casas mais aristocráticas da Inglaterra, e nunca tinha esboçado um sorriso, convencido como estava de que seria uma descortesia digna dos mais vulgares servos. Teve que fixar os olhos num quadro pouco interessante que pendia da parede, por trás dos ombros do conde, para impedir seus lábios de se contraírem num sorriso indiscreto. Entretanto o velho conde, depois de ter medido da cabeça aos pés aquele homenzinho que lhe oferecia a sua ajuda, interpelou-o bruscamente:

   — Pensas mesmo que podes ajudar-me?

   — Oh! sim, posso! Sou forte e já tenho sete anos! Penso que o senhor faria muito bem, em se apoiar de um lado ao seu bastão, e do outro ao meu ombro. Dick dizia sempre que eu tinha bons músculos para sete anos. E levantou o braço, apertando o punho para fazer ressaltar aqueles músculos que o engraxate, na sua bondade, achara hercúleos. Estava com o rosto tão sério, que o mordomo teve de desviar novamente os olhos da criança e fixá-lo no retrato pela segunda vez.

   — Então, experimente, disse o conde.

   Cedric ofereceu-lhe o bastão e quis ajudá-lo a levantar-se da poltrona. Esta tarefa tocava ao criado, que, todas as vezes que Sua Senhoria sofria daquela nova dor no pé doente, ouvia algum epíteto pouco lisonjeiro. A gentileza não era o forte do conde de Dorincourt, e, por vezes, tinha certos modos rudes que fazia tremer como varas verdes os criados, mesmo engalanados nos seus esplêndidos uniformes. Mas naquela tarde, apesar de se terem repetido as crises, não se ouviu uma imprecação sequer. O conde estava demasiado absorto naquela experiência original. Levantou-se lentamente e pôs a mão sobre o ombro que lhe foi oferecido.

   — Apóie-se, disse confiante em si mesmo o pequeno Lord, que se aproximara com precaução, temendo ferir o pé doente. Irei devagar.

   É claro que se o conde tivesse sido ajudado, como de costume, pelo seu servo, teria pesado muito sobre o seu braço que sobre o bastão. Todavia, fazia parte da experiência fazer que o netinho sentisse um peso que não fosse lá muito leve. Antes, devia ser notável, porque, dados somente alguns passos, Cedric ficou com o rosto afogueado e sentiu o seu coraçãozinho bater apressado. Mas continuava a resistir. Não tinha Dick elogiado os seus músculos? Contudo, murmurava com a vozinha um pouco cansada: pode apoiar-se, está muito bem, se o caminho não é... muito longe...

   Realmente não era, mas pareceu a Cedric muito longe a sala de jantar e longe a poltrona posta à cabeceira da mesa. A cada passo, parecia-lhe que a mão sobre o ombro pesasse mais e a fronte se lhe orvalhava de pérolas de suor e a respiração se lhe tornava difícil, mas nem por longe lhe passava pelo pensamento dar-se por vencido. Enrijava os músculos e levantava a cabeça, continuando a encorajar o avô:

   — Pode apoiar-se... pode... O pé lhe dói muito? O senhor nunca o pôs em água quente com um pouco de mostarda, como fazia o Sr. Hobbs? Mas ouvi também dizer que arnica nestes casos faz bem.

   Atrás dele, vinha, com passos lentos, o cão. Quanto ao criado, estava boquiaberto, notando o esforço da criança para resistir àquele peso, que lhe devia ser demasiado.

   De quando em quando, o conde olhava também para o rostinho enrubescido de Cedric. Finalmente chegaram à sala de jantar, que pareceu a Cedric vastíssima e imponente. Da mesma maneira imponente lhe parecia o segundo servo que estava em pé atrás da poltrona do conde, arregalando os olhos àquele espetáculo O conde ergueu a mão do ombro da criança e sentou-se. Cedric tirou do bolso o lencinho que lhe dera Dick e passou-o na fronte.

   — Faz calor esta tarde, não lhe parece? — disse. — talvez o senhor precise de aquecer o seu pé doente... mas eu acho que aqui dentro faz um calor tremendo.

   Na sua delicadeza, procurava agradar em tudo ao avô. Por isso, não dizia que achava nada desagradável, como, por exemplo, queixando-se daquele calor excessivo.

   — Penso que te cansaste, observou o conde.

   — Não, não me cansei, só senti um pouco de calor. Aliás, estamos no verão... — e continuava a passar o lenço no rostinho banhado de suor.

   O lugar de Cedric era na cabeceira da mesa defronte do avô, e devia sentar-se numa poltrona certamente destinada a personagens de maior estatura e corpulência que a sua. De resto, tudo quanto a criança tinha visto até àquele momento: salas, móveis, o cão, os criados, empertigados, o próprio conde, era de proporções tão notáveis que fazia ressaltar a sua pequenez! Mas Cedric não se perturbava com nada disso. Considerava-se sempre pequeno e pouco importante e disposto a se adaptar em qualquer lugar. Era o que fazia de boa vontade agora. Mas não devia ter parecido tão pequeno como naquela poltrona na outra cabeceira da mesa.

   Bem que amante da solidão, o conde de Dorincourt nem por isso gostava menos do fausto e do esplendor: amava um bom prato e tinha sempre diante de si uma mesa lautamente preparada. Aos olhos de Cedric, que, pela primeira vez, via uma mesa daquele gênero; os cristais e as pratas das baixelas despediam raios ofuscantes. O quadro era realmente um tanto bizarro, de modo a fazer rir a quem não estivesse acostumado ao ambiente: um” sala amplíssima, servos em trajes de gala, profusão de luzes, serviço cerimonioso, na cabeceira da mesa um velho aristocrático, rígido e orgulhoso, diante de uma criança vestida de veludo escuro, com uma golinha de renda branca e cachos louros, que lhe caíam sobre os ombros.

   Não era coisa de brincadeira um jantar para o conde, sobretudo para o cozinheiro, tanto mais quando Sua Senhoria estava de mau humor ou perdia o apetite. Mas naquela noite as coisas andaram de outra maneira, talvez por que havia algo que fazia esquecer ao conde criticar com azedume a salada o ou preparo da carne. Nunca teria acreditado que pudesse interessar-se pela conversa de uma criança. Contudo foi o que aconteceu! O pequeno Lord divertia-o e deixava-o estupefato.

   De chofre Cedric saiu-se com esta pergunta:

   — Mas o senhor não traz sempre a coroa?

   — Não, não gosto muito, respondeu o conde, mordendo os lábios para não sorrir.

   O Sr. Hobbs pensava que o senhor a trazia sempre, mas depois, refletindo melhor, disse que algumas vezes devia trazê-la... quando o senhor põe o chapéu.

   — Justamente! Às vezes, eu a uso.

   Um dos criados levou a mão à boca para sufocar um acesso de tosse. Cedric acabou de jantar e, apoiando-se no espaldar da poltrona, olhou em derredor.

   -— Realmente a casa do vovô é uma maravilha! Certamente o senhor se sente orgulhoso aqui dentro, eu nunca vi uma casa assim. Aliás, tenho somente sete anos e ainda não vi muitas coisas.

   — Parece-te mesmo que eu deva sentir orgulho de minha casa? disse o conde.

   — Todos teriam orgulho dela, e eu seria o primeiro se ela fosse minha — declarou Cedric.

   — É tão bonito tudo o que há aqui! A casa, o parque, as árvores, as flores... — Calou-se um instante e olhou para o avô, um pouco admirado, quase perplexo, mas não é uma casa um pouco grande para duas pessoas somente?

   — Parece-te?

   Lord Fauntleroy hesitou um instante, depois acrescentou:

   — Duas pessoas que não fizessem boa companhia uma à outra numa casa tão grande, talvez pudessem sentir-se muito sozinhas.

   — Mas não acreditas que eu poderei ser uma boa companhia ?

   — Oh! sim! O Sr. Hobbs e eu éramos ótimos amigos, os dois. Antes, era ele o meu melhor amigo, a não ser “Fátina”, se entende.

   Franzindo as sobrancelhas, o conde perguntou:

   — Quem é “Fátina”?

   — É mamãe, respondeu Cedric em voz baixa. Talvez se sentisse um pouco cansado. Aliás, era tarde e naqueles dias tinha passado tantas emoções, mas certamente à fadiga se unia um pouco de tristeza: naquela noite, não adormeceria sob os olhares amorosos de sua adorada “Fátina”, a sua maior amiga. Oh! se pensava nela, passava toda a vontade de conversar! Mas fizera muita força de maneira a não ceder à tristeza e, ao voltarem à biblioteca, a mão do avô se apoiou ainda ao ombro do afetuoso netinho, um pouco mais levemente, porém, enquanto do outro lado o sustentava um criado.

   Cedric sentou-se diante da chaminé acariciando Dougal, que se tinha deitado a seus pés olhando fixamente para os tições em brasa. Suspirou levemente.

   O conde notou que estava um tanto triste e perguntou-lhe:

   — Em que pensas tu pequeno, Lord Fauntleroy esforçou-se por sorrir, enquanto respondia:

   — Penso em “Fátina”. Talvez é melhor que me levante e passeie um pouco pela sala. E de fato, com as mãozinhas no bolso, começou a andar de um lado para outro na biblioteca. De cabeça erguida e passo firme, mas em seus olhos havia uma nuvem de tristeza, enquanto conservava os lábios obstinamente cerrados. Dougal levantou-se e começou a segui-lo. Cedric fez-lhe uma carícia.

   — É bom, — disse — quer me bem e sabe o que eu sinto neste momento.

   — O que é que tu sentes? — O conde sentia-se algo perturbado pela luta evidente da criança contra a saudade que sentia pela primeira vez, mas admirava os esforços do pequeno Lord para dominar-se. Aproximando-se do avô, confessou:

   — Nunca estive fora de minha casa! — E seus olhos ficaram mais tristes e parece-me coisa muito difícil passar a noite num castelo onde nunca estive. Felizmente “Fátina” não está longe e me disse que pensasse sempre nela... e eu já sou grande: tenho sete anos. Aliás, posso olhar o seu retrato... — Tirou do bolso um pequeno estojo de veludo.

   — Olhe aqui! Basta apertar o botão, ele se abre e aparece o rosto de “Fátina”!

   No ato de abri-lo estava apoiado no braço da poltrona e no braço do conde com toda a naturalidade.

   — Olhe aqui mamãe! — disse sorrindo. O conde franziu a testa. Não desejava ver aquele retrato, mas não podia deixar de contemplá-lo: viu, pois, um rostinho feminino, jovem e suave e de tal modo semelhante à fisionomia da criança, que se sentiu desconcertado.

   — Tu lhe queres muito bem?— Oh! sim, quero! — disse com entusiasmo o pequenino. Veja: o Sr. Hobbs era meu amigo e também Dick e Brígida e Miguel e Mary, mas “Fátina” é minha amiga, mais amiga que todos, e nós nos dizemos sempre tudo... Papai me confiou a ela e, quando eu for grande, trabalharei e procurarei ganhar muito dinheiro para ela;

   — E que pensas poderás fazer?

   Cedric sentou-se no tapete, tendo o retrato nas mãos, refletiu um momento e depois respondeu:

   — Pensei muito a sério entrar em sociedade com o Sr. Hobbs. Mas gostaria mais de ser Presidente.

   — E agora te mandam para Câmara dos Lords!

   — Bem, se não posso ser Presidente, e se trata de um bom negócio, eu aceito, porque, realmente, ser quitandeiro não rende muito.

   Silenciou e continuou a olhar fixamente o fogo, mas provavelmente a questão de seu futuro fazia ainda refletir. O conde também permanecia em silêncio, continuando a contemplar o netinho. Que multidão de pensamentos estranhos e esquisitos naquela cabecinha! Dougal adormecera apoiado sobre as patas. Quando mais tarde o Sr. Havisham foi introduzido na biblioteca, reinava o mais profundo silêncio. O conde imóvel na sua poltrona, notando a chegada do advogado, levantou a mão quase involuntariamente para lhe pedir que não fizesse o menor rumor. Dougal não despertara e junto dele, com a cabecinha loura apoiada ao braço jazia adormecido Lord Fauntleroy.

  

                           O CONDE E O NETINHO

   Quando, na manhã seguinte, Cedric abriu os olhos, — na noite anterior tinham-no levado a dormir sem que se apercebesse — notou o crepitar alegre das labaredas na chaminé e um murmúrio de vozes perto dele, mas de tal modo baixo, que não dava para distinguir as palavras. Eram duas mulheres que falavam entre si, e diziam uma à outra:

   — Cuidado! Dawson... é preciso que o menino não venha a saber por que ela não pode morar aqui.A resposta foi:

   — As ordens de Sua Senhoria devem ser observadas, já se entende. Mas se tu me permites, visto que entre nós se pode falar, devo dizer-te que me parece uma crueldade separar a pobre mãe de seu filhinho! Uma criança tão bela e tão bem-educada! Ontem à noite, durante a ceia, Tiago e Tomás diziam que nem eles dois, nem nenhum dos outros criados tinham visto nunca uma pessoa com os bons modos daquele senhorzinho, tão simples e tão desembaraçado, como se estivesse sentado à mesa com o seu maior amigo, quando estava com Sua Senhoria! Tem o caráter de um anjo, justamente o contrário daquilo que todos conhecem e que, desculpa que te diga, às vezes, faz gelar o sangue nas veias. Como é encantador! Ontem, à tarde, quando eu e Tiago fomos chamados à biblioteca para ir buscá-lo para dormir, e Tiago o tomou nos braços, com aquele rostinho corado e aqueles cabelinhos louros caídos sobre os ombros, era um amorzinho! Comovia a gente! Deve ter causado impressão mesmo ao conde, porque o contemplava... o contemplava de um modo... E depois disse a Tiago:

   — Cuidado para não o acordar!

   Neste ponto, Cedric mexeu-se entre os lençóis e abriu resolutamente os olhos. Havia duas senhoras no quarto, atapetado ricamente e adornado com flores, e uma chaminé acesa, apesar de estar inundado de sol. Lord Fauntleroy reconheceu a senhora Mellon, a governanta. A outra era uma mulher de meia idade, de aspecto agradável e simpático.

   — Bom dia, senhorzinho! — disse a senhora Mellon. — Dormiu bem?

   Cedric esfregou os olhos e sorriu.

   — Bom dia, respondeu gentilmente. — Como é que estou aqui?

   — Trouxeram-no para a cama adormecido, ontem, à noite — explicou a governanta.

   — V. S. está no seu quarto e Dawson cuidará para que nada lhe falte.

   Levantou-se para sentar-se na cama, estendendo a mão a Dawson com o mesmo garbo com que a oferecia ao conde.

   — Bom dia, repetiu. — Como está a senhora? É muito gentil por querer ocupar-se de mim.

   A governanta sorriu.

   — Chame-a antes, Dawson, senhorzinho.

   — Senhora ou senhorita Dawson?

   — Dawson somente — replicou a doméstica com as faces vermelhas de emoção.

   — Chame-me assim, senhorzinho, e Deus o abençoe pela sua almazinha tão boa! Quer levantar-se agora, e quer que o vista? O café está pronto!

   — Não, senhora! Sei vestir-me sozinho! Há tanto tempo que aprendi! protestou Cedric. — Ensinou-me Fátina. É mamãe, como a senhora sabe, Mary tinha sempre tanto que fazer em casa, porque se ocupava de tudo, ela sozinha, e lavava a roupa, e por isso não quero ser de incômodo. Também sei tomar banho sozinho.

   A senhora Mellon trocou um olhar com Dawson e depois anuiu:

   — Faremos tudo o que deseja V. Senhoria. Pode vestir-se, se assim o deseja, mas eu estarei aqui para ajudá-lo, se tiver necessidade.

   — Obrigado, respondeu Cedric. — Às vezes não sou capaz de abotoar-me e então preciso de alguém que me ajude.

   Antes que Lord Fauntleroy tivesse acabado de vestir-se, já era velho amigo de Dawson e já sabia toda a sua história. Dawson perdera o marido na guerra, tinha um filho marinheiro, que havia navegado em todos os mares, e conhecia os piratas, os canibais, os turcos, os chineses e, todas às vezes que voltava a casa, trazia lindas conchas, e corais que Dawson conservava na mala e mostrava às suas visitas. Cedric soube também que Dawson tinha sido aia por muitos anos no castelo, onde educara uma linda menina. Lady Hwyneth Vaughan.

   — É ainda parente de V. S. — disse a boa senhora a Lord Fauntleroy. E V. S. a conhecerá logo.

   — Mesmo? — exclamou Cedric. — Que alegria para mim! Gosto muito de meninas, apesar de nunca as ter tido por amigas.

   Entrando no quarto contíguo para o café, e notando que era muito grande e que tinha ao lado outro ainda muito maior, Cedric sentiu-se de novo tão pequenino, que não pôde deixar de confiar esta sua impressão a Dawson, enquanto tomava lugar à mesa, diante do opíparo café que lhe fora preparado.

   Com certo ar de melancolia, confessou: —Não acha que sou um menino muito pequeno para morar num castelo tão grande e ter tantos quartos todos para mim?

   — Oh! respondeu Dawson — V. S. se acostumará logo e estará à vontade. É tudo tão bonito aqui!

   — Sim, é tudo muito bonito, — e Cedric suspirou — mas gostaria muito mais, se Fátina estivesse comigo! Eu sempre tomava café com ela, e era eu que punha o leite e o açúcar na xícara e lhe preparava o pão com manteiga. Fazíamos tão boa companhia um ao outro!

   — Mas V. S. pode vê-la todos os dias! E quantas coisas bonitas pode V. S. contar-lhe! Bastará que dê uma voltinha e veja os cães, as cavalariças, com cavalos tão belos! E há um cavalinho que lhe agradará mais que todos os outros:

   — Sim, eu gosto muito de cavalos! Queria tanto bem a Jim, o cavalo que puxava a carroça do Sr. Hobbs! A senhora devia ver como era brioso e como não tropeçava!

   — Espere só para ver aquele que está na estrebaria... e ainda V. S. não entrou no quarto aqui do lado, amorzinho!

   — O que há lá?

   — Acabe V. S. de tomar café, e já verá tudo!

   Dawson despertara tanto a curiosidade de Cedric com aquelas palavras, que ele apressara o café: quem sabe o que há naquele quarto? Dawson tinha uns ares tão misteriosos!

   Levantou-se. — Acabei, disse. — Posso ir agora?

   Dawson consentiu e, sorrindo sempre com mistério acompanhou o pequeno Lord até à porta: depois abriu-a. O menino parou à soleira e olhou para dentro. Não disse uma palavra, mas estava radiante, seus olhos brilhavam e, com seu gesto habitual, pôs as mãos nos bolsos. Realmente qualquer criança se impressionaria diante de tudo o que estava exposto no quarto misterioso. Era grande, como todos os quartos do castelo, mas a Cedric pareceu o mais belo de todos: os móveis não eram antigos, nem maciços, e as tapeçarias não eram pesadas. Tudo era claro e alegre. Havia estantes de livros bem alinhados em prateleiras e mesas cheias de brinquedos bonitos, daqueles que parará tantas vezes para admirar nas vitrinas de Nova York. Finalmente disse alguma coisa.

   — Mas este é o quarto de um menino? E de quem são tantas coisas?

   — São de V. S. — respondeu Dawson.

   Então Cedric exclamou:

   — Minhas! Minhas! Mas por que são minhas? E quem mas deu? Correu em seguida a ver de perto os brinquedos com ar de quem teme seja somente um sonho aquilo que vê, e exclamou com os olhos a brilhar de alegria:

   — Sim, foi o vovô! Foi o vovô!

   — Sim, foi mesmo V.S. — confirmou Dawson, e se fores bom menino e gostares de estar aqui, o vovô te dará tudo o que quiseres.

   A manhã foi cheia de interesse, de curiosidade e de surpresas para Cedric. Tudo que havia no quarto o atraía de tal modo, que parecia não se cansar de contemplar tanta beleza. Era um deslumbramento contínuo, uma alegria que se renovava a cada minuto. E como era estranho pensar que todas aquelas maravilhas foram preparadas de propósito para ele, quando estava ainda na América.

   Voltou-se para Dawson:

   — Tu crês que é possível existir no mundo um avô tão bom como o meu?

   A criada ficou perplexa: não estava no castelo senão há poucos dias, mas já todos a tinham informado sobre o mau caráter do conde, cujo primeiro mordomo, Tomás, dizia que era o homem mais rabugento e colérico que conhecera. Foi Tomás quem contou a Dawson tudo o que ouvira dizer ao conde, falando com o advogado Havisham:

   — Bastará dar-lhe muitos brinquedos, muitos jogos, ensinar-lhe a ler e fazer todas as suas vontades, para que se esqueça de sua mãe. Mas inconsciente de tudo aquilo, Cedric passou uma manhã deliciosa, enquanto o conde despertara de péssimo humor. Mandou chamar o netinho, e logo depois do café, o viu atravessar o vestíbulo correndo. Quando chegou à sua presença, tinha o rostinho transfigurado de alegria.

   — Estava esperando a hora em que o senhor me mandasse chamar! — disse. — Estou pronto desde manhãzinha. Agradeço-lhe, vovô, todas aquelas coisas bonitas que o senhor preparou para mim. Brinquei a manhã toda!

   — E te divertiste muito?

   — Ora, o senhor nem pode imaginar! Calcule que há um jogo que é como futebol de botão, que se joga num tabuleirozinho com muitos jogadores de branco e preto, e os pontos se marcam com umas contas enfiadas num arame. Procurei ensiná-lo a Dawson, mas talvez não conseguisse ensinar-lhe muito bem... Aliás ela é mulher e nunca deve ter jogado futebol. O senhor, sim, mas...

   — Creio que não, replicou o conde — mas penso que aquele jogo de que gostas tanto deve ser americano.

   — O Sr. Hobbs me levou muitas vezes ao futebol. Como é divertido! Se fosse buscar minha caixa para jogar com o senhor?! Pode ser que lhe agrade e faça esquecer um pouco o seu pé... esta manhã, como vai? Está doendo?

   — Ora, se... muito mais do que eu desejava!

   — E o senhor não se aborreceria, se eu lhe explicasse aquele jogo?

   — Não. Vai buscá-lo!

   Pensava no entanto que era algo fora do comum o que lhe sucedia. Em vez de sentir-se aborrecido, estava sendo arrastado por aquela novidade: uma criança que queria ensinar-lhe um de seus jogos! Havia alguma coisa como um sorriso naqueles lábios, que, no passado, foram sempre amargos, quando Cedric entrou com a caixa de jogos.

   — Posso aproximar a mesinha da poltrona do vovô? — perguntou.

   — Chama Tomás.

   — Oh! não é necessário! Eu mesmo posso puxá-la. Não é pesada!

   — Então, vejamos!

   Olhando de soslaio a criança toda embebida nos seus preparativos, o velho conde sorria, satisfeito. Cedric conseguiu arrastar a mesinha para perto da poltrona do avô e começou a explicar-lhe o jogo:

   — É muito interessante! Vamos fazer assim: o senhor toma os jogadores de preto e eu os de branco. Devemos considerá-los seriamente como homens e fazê-los meter muitos gols. Estes são os limites dos quais a bola não deve sair, e estes são os pontos dos quais se pode tirar as penalidades.

   Com grande vivacidade explicou longamente os detalhes e a tarefa que tocava a cada jogador, recordando uma partida interessante, a que tinha assistido em companhia do Sr. Hobbs. Acabadas as explicações e as descrições, começou o jogo verdadeiro e o interesse do conde aumentou em vez de diminuir, porque o menino jogava com tanta paixão, e era tão parcial a respeito de um bom golpe do adversário, que já era um divertimento vê-lo jogando! Se oito dias antes, alguém tomasse a liberdade de dizer ao conde de Dorincourt que, em certa manhã, não teria pensado na gota, nem no seu constante mau humor, por causa de uma brincadeira de criança, (futebol de botão) teria recebido uma boa resposta! Contudo era mesmo assim: o velho senhor sentia tanto prazer em jogar com aquele menino encantador, que tinha como rival na partida, que parecia caíra das nuvens, quando Tomás lhe veio anunciar uma visita.

   Era o pároco da aldeia. Um ancião todo vestido de preto, que, vendo aquele espetáculo, ficou de tal modo estupefato, que por pouco não recuou, arriscando-se a cair por cima de Tomás. O Reverendo não viera realmente para visitar o conde com muito entusiasmo, pois considerava aquelas visitas de obrigação ao nobre castelão como um dos deveres menos simpáticos do seu ofício e isto porque era justamente o nobre que tornava as visitas mais penosas. De fato, o conde de Dorincourt era conhecido pela sua antipatia à Igreja em geral e às obras de caridade em particular. Se, pois, alguns de seus súditos se permitiam ir pedir-lhe um auxílio para uma causa de beneficência ou para aliviar algum doente, ou algum infeliz, era acolhido com a maior indiferença, especialmente, se chegava num daqueles dias nos quais estava atormentado de gota. Se não se sentia muito mal ao pedido do padre pelos seus pobres paroquianos, o conde respondia, dando uma pequena soma de dinheiro, fazendo-o antes sofrer por todos os modos, investindo contra os seus subordinados, chamando-os estúpidos e vagabundos. E parecia ter um gostinho especial em ser de tal modo insolente e sarcástico, que o Rev. P. Mordaunt estava convencido de que era realmente lamentável o resultado de quem tentasse incutir na alma do Exmo. Sr. Conde algum sentimento de compaixão para com os miseráveis...

   Naquele dia o digno pároco viera falar ao velho de um caso doloroso e durante o caminho estava preocupado com o resultado da visita. Sabia que desde vários dias o conde não se sentia bem e estava tão irritadiço, que dera que falar no povoado, como lhe dissera uma das criadas, à sua irmã, a senhora Dibbles, proprietária de uma mercearia, onde se vendiam comestíveis, doces, vinhos, etc, e onde se falava sobre tudo e sobre todos.

   Soubera-se no vilarejo que o único herdeiro do conde deveria ter chegado ao castelo, na tarde anterior, esperado sem amor nem alegria, porque Sua Senhoria, antes mesmo de o ter visto, estava convencido de que não passava de um garoto mal-educado, indigno do seu nome. O reverendo prometia-se que na realidade, havia ao menos dez probabilidades contra uma, de que as previsões do conde tinham fundamento, e vinte contra uma que, irritado, por aquela nova peça que a vida lhe pregara, estivesse de péssimo humor, a ponto de derramar a sua bílis sobre o primeiro infeliz que lhe estivesse ao alcance, e no caso presente, era o próprio Padre Mordaunt em pessoa. É para imaginar-se o estupor do reverendo, quando, apenas Tomás abrira a porta da biblioteca, chegou aos seus ouvidos uma risadinha infantil, seguida desta exclamação: “Duas penalidades! O senhor não vê que está fora da linha de novo?”

   Olhando para dentro da sala, o pároco viu o conde na poltrona com o pé enfaixado sobre o escabelo e diante dele uma mesinha onde havia alguma coisa que atraía atenção de uma criança, porque estava curvada com toda a concentração, enquanto se apoiava no joelho sadio do conde, repetindo: Duas penalidades! O senhor não teve sorte desta vez.

   Quando o conde levantou os olhos parecia menos aborrecido que de ordinário. Saudou-o, sim, com a mesma voz áspera das outras vezes, mas lhe estendeu a mão com bastante gentileza:

   — Bom dia, P. Mordaunt... como está vendo, ocupo-me hoje de algo novo... — apoiou depois a mão nos ombros de Cedric e talvez sentisse no coração um frêmito de orgulho por aquele herdeiro que podia apresentar:

   — É o novo Lord Fauntleroy! — disse. Em seguida, voltando-se à criança, acrescentou: — Fauntleroy apresento-te o P. Mordaunt, o nosso Vigário.

   Cedric estendeu a mão com sua graça habitual ao recém-chegado:

   — Muito prazer, Padre — disse recordando a maneira como o Sr. Hobbs acolhia os seus fregueses de consideração.

   O pároco tomou por um instante as mãozinhas da criança entre as suas e, com um sorriso acolhedor, contemplou-a. O pequeno Lord conquistou logo a simpatia do padre, como aliás conquistava a de toda a gente, não somente pela sua beleza mas pela sua bondade espontânea que se sentia em cada palavra, mesmo se algumas vezes poderia ser esquisita. Olhando para Cedric o P. Mordaunt, esqueceu-se do conde e parecia-lhe que a imensa biblioteca estava iluminada e vivificada por uma luz singular.

   — Alegro-me em vê-lo aqui, Lord Fauntleroy —-disse voltando-se para o pequeno — sei que V. S. fez uma grande viagem para vir até nós, e todos nós alegramos com a sua chegada.

   — Oh! sim, a viagem foi um pouco longa — respondeu Cedric — mas como eu estava com Fátina, minha mãe, nem mesmo notei, porque quando se está perto da mamãe, se está sempre bem, e além disso o navio era muito bonito.

   Convidado pelo conde, o Padre sentou-se, e olhando ora o conde, ora a criança, disse com grande cordialidade:

   — Regozijo-me de coração com V. S.!

   Parece que o velho não queria saber de comentário, porquanto atalhou logo, dizendo bruscamente:

   — Assemelha-se ao pai. Esperemos que seja mais bem sucedido na vida!

   Houve uma pausa e em seguida o conde perguntou:

   — Então, que há de novo? Tem alguns casos para me contar? Ou pobres para socorrer?

   Realmente o pároco esperava pior acolhida, mas não pôde deixar de ter uma ligeira dúvida e hesitação, antes de começar o seu discurso.

   — Vim aqui para falar a V. S. de Higgins, o empregado da fazenda do “Cantão”. Pobrezinho! Esteve doente durante todo o outono e agora seus filhos estão com escarlatina. Não digo que tenha grandes habilidades, mas certamente a desgraça o persegue e não consegue jamais livrar-se dela, agora está muito atrasado no aluguel, e Nevick lhe disse que, se não arranjar o dinheiro, o porá na rua. Seria um caso muito sério para ele. Imagine que tem também a mulher doente. Ontem veio ter comigo para pedir que intercedesse por ele junto a V. S., está certo de que, se receber um bom óbolo, poderá pagar o seu débito pouco a pouco, e satisfazer às suas necessidades...

   — Ora, todos dizem a mesma coisa! — E o conde mostrou uma cara de fria indiferença. Cedric deu um passo adiante, postando-se entre o avô e o visitante, escutando as suas palavras com atenção: as desgraças de Higgins lhe interessaram logo. Queria saber quantos filhos tinha e se caíram mesmo de cama gravemente, com escarlatina. De olhos fixos no P. Mordaunt, começou a defender o seu pobrezinho: Higgins é uma boa criatura, o senhor sabe.

   — Higgins é homem bom, mas como inquilino é péssimo, não está em dia nem um mês. Nevick está sempre a me dizer — rebateu,o velho senhor.

   O fato é que as coisas lhe vão mal, sobretudo no momento. E se tivesse de sair agora do sítio, iria morrer de fome com a mulher e os filhos. Atualmente já luta com tanta dificuldade, ademais agora que dois dos pequenos ficaram tão fraquinhos e têm necessidade, como diz o médico, de beberem um pouco de vinho e de se alimentar melhor.

   Cedric interrompeu a conversa:

   — Justamente como Miguel! — exclamou.

   — Ah! esquecia-me que tínhamos em casa um filantropo! — Interveio o conde com um laivo de malícia nos olhos e voltou-se para perguntar a Cedric:

   — E quem é esse Miguel?

   — O marido de Brígida — explicou Lord Fauntleroy que adoeceu e por isso não podia pagar o aluguel nem comprar o que comer. Mas com o dinheiro que o senhor lhe mandou por meio do Sr. Havisham, pudemos ajudá-lo.

   O conde franziu os sobrolhos, sem todavia parecer irritado, e, olhando o pároco, exclamou:

   — Não sei realmente que raça de proprietário virá a ser! Tinha recomendado a Havisham que lhe desse tudo o que quisesse, e parece-me que tenha unicamente pedido dinheiro para dar aos mendigos! Neste ponto, Cedric, como o conde ofendesse aos seus amigos, protestou: — Não são mendigos! Todos trabalham e Miguel é um bom pedreiro!

   — Sério? Todos, gente muito importante! Um pedreiro, um engraxate, uma verdureira... — interrompeu suas palavras fixando a criança, pensando em alguma coisa que queria pôr em execução. Chamou para perto de si Lord Fauntleroy e lhe perguntou:

   — Dize-me, cá! Que é que farias para Higgins?

   A sensação que o P. Mordaunt sentiu naquele momento era indefinível. Era homem sério e ponderado, tinha a seu cargo, por largos anos, a paróquia de Dorincourt e conhecia bem todos os seus paroquianos. Tanto os ricos como os pobres, tanto os camponeses como os trabalhadores e os preguiçosos, honestos e pouco recomendáveis, de tal modo que podia compreender qual a possibilidade de fazer bem ou mal, seria um dia concedida à criança que estava diante de si, mas ele também dizia consigo que, tal possibilidade lhe fosse outorgada antes de tempo, unicamente pelo capricho, de um homem obstinado e egoísta, viria a ser também de grande dano a ele e aos outros.

   Sempre continuando a fixar os olhos no netinho, o conde desistiu: Mas o que farias, então?

   Fauntleroy amigavelmente apoiou a mão sobre o joelho são do avô e respondeu:

   — Oh! Se eu fosse rico, e grande deixar-lhe-ia a casa e lhe daria tantas coisas boas para seus filhos... Mas não posso fazer nada porque sou muito pequeno. -— Calou-se, mas foi por pouco tempo, porque com olhos chamejantes retomou o fio da conversa:

   — O senhor poderá fazer tudo isso, não é verdade?

   — Pensas mesmo a sério no que me estás perguntando? — Era um pouco brusca a tonalidade da voz do conde, todavia não parecia irritado. O pequeno Cedric, como que retificando o que tinha dito, acrescentou. — Mas o senhor pode dar tudo o que quer, não pode? — Quem é Nevick?

   — O meu feitor. Muitos dos meus moradores não simpatizam com ele.

   — Então, quer escrever logo para ele? Vou buscar já pena e papel. Voltarei em seguida.

   Cedric não tinha pensado nem por um momento, que fosse permitido ao feitor sem coração agir segundo as suas intenções.

   — Sabes escrever? perguntou-lhe o conde.

   — Sim... mas não muito bem.

   — Não faz mal. Vai buscar à minha escrivaninha caneta e papel e senta-te naquela mesa.

   O pároco permanecia calado, porém, interessava-se imensamente pelo andamento da conversa. Com a maior naturalidade Cedric trouxe os objetos solicitados e disse com vivacidade:

   — Pronto, agora pode escrever.

   — Tu é que o deves fazer. — Disse-lhe o avô. O pequeno Lord enrubesceu.

   — Eu? Mas é preciso mesmo que eu escreva? Não tenho aqui ninguém que me corrija, temo que não vá escrever muito bem.

   — Ora, vai sair òtimamente, e quanto a Higgins, asseguro-te que não se incomodará com a ortografia, e és tu quem deve escrever, porque o filantropo não sou eu! Vamos, molha a pena!

   Fauntleroy obedeceu e depois com o braço apoiado à mesa, em ótima posição para escrever, perguntou-lhe:

   — Que é que eu devo dizer?

   — Bastará que escrevas que por ora Higgins não será desalojado. E assina Fauntleroy.

   Cedric molhou a pena e começou a escrever. A empresa era longa e fatigante, mas via-se que o menino empregava os máximos esforços para escrever bem. Quando acabou, mostrou a folha ao conde, perguntando com ansiedade:

   — O senhor pensa que esta carta poderá ir?

   O avô leu-a e esboçou um sorriso:

   — Sim, pode ir. Creio que Higgins ficará muito contente:

   Voltando ao padre, apresentou-lhe a carta e o P. Mordaunt leu-a por sua vez:

   “Caro senhor Nevick, eu lhe peço que por ora o Sr. Higgins não seja despedido e fará um grande prazer ao vosso devotíssimo Fauntleroy”.

   (Havia certamente erros de ortografia, porque, afinal de contas, Lord Fauntleroy era apenas uma criança de sete anos).

   O Sr. Hobbs assinava sempre assim as suas cartas — comentou Cedric — e depois pensei que era melhor dizer-lhe: peço-lhe... mas as palavras estão mesmo apropriadas ?

   Ora, havia algumas que não estavam escritas no dicionário — respondeu-lhe o avô.

   — Oh! eu já o imaginava! Sucede sempre assim: quando se trata de palavras um pouco extensas, não há jeito de as escrever certo. Agora vou passar a limpo.

   Fê-lo assim realmente e tudo ficou muito bonito, porque o próprio conde serviu a Cedric de vocabulário.

   O P. Mordaunt despediu-se com a carta no bolso e com alguma coisa mais: uma profunda sensação de confiança, de esperança, como não tinha nunca sentido desde quando freqüentava o castelo dos Dorincourt.

   Depois de o ter acompanhado à porta, Cedric dirigiu-se ao avô:

   — Poderia agora visitar Fátina? — perguntou. Está à minha espera.

   O conde não respondeu logo. Somente poucos minutos depois lhe disse. Toca a campainha... mas, antes deves ir ver uma surpresa que está na cavalariça.

   — Obrigado... — Cedric corou — mas se o senhor me permitisse, creio que preferiria ir à cavalariça amanhã. “Fátina” me está esperando...

   — Bem, vamos mandar preparar a carruagem, então. — Uma pausa e depois com grande indiferença o conde murmurou. — É um belo cavalinho.

— Um cavalinho! E Cedric arregalou os olhos. De quem é?

   — Teu.

   — Meu? Assim como todas aquelas coisas que vi hoje de manhã para brincar?

   — Certamente, queres vê-lo, não é? Posso ordenar que o tragam imediatamente para aqui!

   Fauntleroy mostrava cada vez mais ansiedade:

   — Nunca pensei que teria um cavalinho, nunca, nunca! Como Fátina ficará contente! O senhor me dá tudo, tudo!

   — Ora... queres vê-lo? Insistiu o conde. Fauntleroy suspirou:

   — Oh! sim, queria tanto vê-lo, mas penso que não terei tempo hoje.

   — E deves mesmo ir hoje ver a tua mãe? Não podes deixar a visita para amanhã?

   Cedric interrompeu replicando:

   — Mas, se durante toda a manhã, não fiz outra coisa senão pensar nela, e ela não fez outra coisa se não pensar cm mim ?!

   — Realmente? Então, toca a campainha.

   Meia hora depois avô e neto atravessavam o parque numa carruagem. O conde conservava-se taciturno e Cedric tagarelava alegremente.

   Enchia o conde de perguntas sobre o cavalinho. Quantos anos tinha? Era grande? E de que cor? Que comia? Na manhã seguinte a que hora poderia vê-lo? Como Fátina ficará contente! — dizia. — E como pensará que o senhor é bom para comigo! Ela sabe que eu gosto muito de cavalos, porém, nunca imaginamos que eu viria a possuir algum. Olhe aqui: Na rua 5, morava um amigo que tinha um belo cavalinho e todas as manhãs o levava a passear. Passávamos sempre diante da casa dele, só para vê-lo. Calou-se por um instante, apoiando a cabecinha nas almofadas da viatura, e, de repente, saiu-se com esta exclamação: — Sabe vovô, eu penso que o senhor é o melhor homem do mundo! O senhor só faz o bem e só pensa nos outros! Fátina, continuou — diz que esta é a maior bondade: Não pensarmos nunca em nós mesmos, mas nos outros, e é isto mesmo que o senhor faz.

   Estupefato de ouvir aquela descrição de si próprio, o conde não achou palavra para responder: causava-lhe profunda impressão ver o seu egoísmo, transformado em generosidade e bondade pela simplicidade de uma criança.

   Olhando sempre com admiração, o pequeno Lord continuou: Pense um pouco em quanta gente o senhor fez feliz! Miguel, Brígida e os seus dez filhos, a verdureira, Dick, o Sr. Hobbs, e agora mesmo o sr. Higgins, com sua mulher, filhos e o P. Mordaunt, porque também ele ficou contente; depois Fátina e eu mesmo com o cavalinho e aquelas coisas todas bonitas que o senhor me deu. Já as sei de cor, a dedo: o senhor foi bom, com vinte e sete pessoas... escute, são alguma coisa vinte e sete pessoas!

   — Mas, fui eu quem foi bom para com elas? -— indagou o conde.

   — Sem dúvida! O senhor fez a todas muito felizes!

   E pensar que... — Cedric hesitou com delicadeza — há pessoas que tenham opinião pouco favorável para com os condes! Mas é porque não os conhece! Tenho de escrever tudo ao S. Hobbs.

   — Por quê? Que opinião tinha o Sr. Hobbs dos condes?

   — Ah! eu creio que é porque ele nunca viu condes, como o vovô... e acreditava no que lia nos livros. Por isso o senhor não se deve incomodar. Ele estava convencido de que fossem todos tiranos e dizia que nunca deixaria que um conde entrasse em sua casa. Mas se tivesse conhecido o vovô, por certo não falaria assim, tenho certeza! Porém eu vou escrever a ele!

   — E que vai dizer-lhe?

   — Contarei — disse Cedric — que o senhor é a melhor pessoa do mundo e que só pensa nos outros para lhes fazer bem, e que eu quero ser como o senhor, quando for grande!

   — Como eu!? — Sua Senhoria contemplou o rostinho emocionado, radiante e enrubesceu. Voltou a cabeça e começou a olhar pensativo para a margem da estrada, vendo o desfilar das faias de folhas brilhantes e douradas, pelos raios de sol.

   — Sim! Como o senhor! — repetiu Cedric e acrescentou: — Tenho medo que não o consiga, mas, vou-me esforçar.

   O veículo percorria agora magnífica avenida, ladeada de árvores seculares. Manchas de sombra espessa alternavam com zonas fulgurantes de sol.

   O pequeno Lord contemplava as flores variadas dos campos e os cervos estendidos na relva úmida, levantando a cabeça para olhar a carruagem, com olhos surpresos, os coelhos a fugirem, o trinar dos passarinhos, e sobretudo se encantara com o vôo das perdizes. Tudo lhe parecia ainda mais belo, do que da primeira vez que o vira. Seu coraçãozinho batia de alegria. Coisas bem diversas no entanto, via e escutava o conde. Passava-lhe diante de si sua longa vida isenta de sentimentos nobres ou de ações generosas. Revia os anos em que, jovem e rico, desfrutara da saúde, da juventude e da riqueza, unicamente para divertir-se e passar o tempo em prazeres... O tempo passara, e ele se encontrava velho, sozinho no meio daqueles esplendores e riquezas rodeado de pessoas que o temiam, detestavam e lisonjeavam hipocritamente. Ninguém que tivesse um pensamento de bondade e de afeição desinteressado, para com o conde de Dorincourt!

   Olhava os seus domínios! As terras se perdiam no horizonte! Sabia que patrimônio magnífico constituíam. Quanta gente vivia naquelas colinas! No entanto, em toda aquela extensão, não existia uma só pessoa invejosa de sua riqueza, de sua nobreza e do seu poder, não existia uma só, que o julgasse “bopi”, e muito menos que desejasse ser semelhante a ele, como aspirava a criança na sua ingenuidade comovente.

   E esta não era certamente uma reflexão que desse prazer, nem mesmo tratando-se de um velho cético e egoísta, que por setenta anos nunca se ocupara senão de si mesmo, zombando da opinião que faziam de sua “bondade”.

   Mas, talvez, na realidade, nunca pensara no julgamento dos outros, e se o fazia agora era somente porque uma criança o havia julgado erradamente, expressando o seu desejo de imitá-lo, o levara a perguntar-se, se realmente ele era um modelo digno de imitação.

   Dando conta do silêncio e da meditação do avô, Fauntleroy pensou que o pé lhe estivesse doendo, e para não perturbá-lo, ficou em silêncio, gozando a beleza do panorama que se descortinava.

   Quando transpuseram a entrada, após breve percurso por entre macios tapetes de relva, a viatura parou.

   Tinham chegado ao “Palacete”. Cedric saltou em terra, quase mesmo antes que lhe fosse aberta a porta da carruagem.

   Voltando a si das suas reflexões, o avô exclamou:

   — Chegamos?

   — Sim, respondeu-lhe Cedric — aqui está a bengala, mas é melhor que se apóie em mim para descer.

   — Não, não vou descer — declarou bruscamente o conde.

   — O senhor não vai descer? Então o senhor não quer ver Fátina? — A criança parecia surpresa e sentida.

   — Fátina me desculpará — disse secamente. — Dize-lhe que nem mesmo o desejo de ver o cavalinho te impediu de visitá-la.

   — Oh! Ela sentirá tanto não falar com o vovô! Desejava tanto vê-lo!

   — Penso que não... — foi a resposta. — E acrescentou: — Voltarei a buscar-te mais tarde. E voltando-se a Tomás, ordenou: — Dize a Jeffres que vá também com Lord Fauntleroy.

   Tomás fechou a portinhola, e Cedric, depois de fitar um tanto desconcertado o avô, dirigiu-se correndo pela alameda, seguido a passos largos por Jeffres. O conde viu que perninhas ligeiras devoravam o espaço. A criança não queria perder tempo. Enquanto a viatura voltava lentamente, o conde, olhando pela janelinha, via o “Palacete”, não tirando os olhos da porta de entrada. De um salto, viu Lord Fauntleroy subir os poucos degraus. Uma figurinha gentil e delicada lhe correu ao encontro. Mãe e filho se abraçaram afetuosamente.

  

                                      NA IGREJA

   Naquele domingo a igreja ficou cheia. O pároco não se lembrava de ter visto tanta gente na paróquia há muito tempo. Estavam presentes mesmo pessoas que habitualmente não se faziam ver à missa: Vinha gente até da paróquia limítrofe de Haselton. Havia camponeses queimados de sol com suas mulheres corpulentas, em trajes domingueiros, com todos os filhos. Não faltaram os Kimsey, marido e mulher, merceeiros, farmacêuticos aos quais todo o distrito recorria, e num dos bancos a senhora Dibbles, ladeada pelas suas amigas mais íntimas: a costumeira e a modista da aldeia. Viam-se também o assistente do médico, e o caixeiro da farmácia. Cada família fazia-se portanto representar. Naquela semana só se falava de Lord Fauntleroy, e se tinha contado dele histórias fantásticas. A campainha da porta da senhora Dibbles estava quase desesperada de ser apertada com tanta fúria pelos fregueses que vinham à mercearia para fazerem suas compras e colherem... notícias... porque ela estava ao par de tudo: dos magníficos jogos que se tinham preparado no castelo para o pequeno Lord, dos brinquedos, dos cavalinhos, da caleça com acabamento de ouro e prata e do escudeiro que teria a Sua Senhoria. E sabia também a faladora vendeira que todos os criados do castelo não faziam outra coisa senão afirmar que a criança era mesmo um amor e que era uma vergonha querer que vivesse separada da mãe. E sobretudo tinha-se tomado de domínio público a história de Higgins, que no mercado se viu rodeado de gente que queria saber como tinham andado as coisas... Quanto a Nevick, corria que mostrara a um amigo a carta que lhe enviara Lord Fauntleroy. E que imaginaria as conversas das comadres nas cozinhas e que se dizia nos bares e nas pracinhas!

   Aquela numerosa assistência à igreja, a pé ou em caleça, era causada pela curiosidade geral de ver o herdeiro do conde de Dorincourt!

   O conde geralmente não freqüentava a igreja, mas no primeiro domingo, depois da chegada de Fauntleroy ao castelo, resolveu deixar-se ver em público, na luxuosa bancada, reservada à sua família, tendo ao lado o netinho.

   Ao longo da estrada, era densa a multidão dos curiosos que em grupos paravam junto à cancela ou ficavam à espera sob o pórtico. Todos queriam saber se S. Senhoria levaria o netinho à igreja e quando mais entusiasmada estava a conversa, ouviu-se de pronto uma mulher exclamar:

   — Aquela deve ser a mãe dele! Como é linda!

   Todos se voltaram para ver a senhora vestida de preto que vinha só pela estrada. O véu levantado descobria-lhe o rosto de uma expressão dulcíssima, aureolado de cabelos louros que caíam de sob o chapéu de luto. Não atentava nas pessoas com quem cruzava no caminho, pois seu pensamento se ocupava somente de Cedric, que fora visitá-la no dia anterior, montado na sela, no seu cavalinho baio, que constituía agora toda a sua felicidade. Mas apesar de absorta naqueles doces pensamentos, a senhora Errol acabou por perceber que todos a fitavam curiosamente, e naquele momento, uma mulher de saia vermelha lhe fez uma grande reverência, enquanto outra a saudava sorrindo. — “Deus a abençoe!” e quase todos os homens tiravam o chapéu, cumprimentando-a. Mas seria mesmo para ela? Fátina custou a acreditar no que via, mas refletiu que toda aquela gente se mostrava tão cortês, era porque ela era a mãe do pequeno Lord Fauntleroy. Sorria, enquanto um leve rubor tingia-lhe as faces, e agradeceu aos que estavam mais próximos, saudando os outros com acenos de cabeça. Estava comovida e se alegrava, mas também sentia-se profundamente perturbada por aquele acolhimento tão amável. Vivera sempre à sombra, naquela grande cidade regorgitante que deixara para sempre! Apenas a senhora Errol entrou na igreja, deu-se o fato tão ansiosamente aguardado: chegava a carruagem do castelo com os criados em uniformes de gala, à alameda.

   — Aí vêm eles! Foi um murmúrio geral, e a carruagem parou.

   Tomás abriu a portinhola e saltou em terra uma belíssima criança, vestida de veludo azul, com os seus caracóis dourados, esparsos sobre o colarinho de renda branca. Todos os olhares se concentraram nele. Os que se recordavam do pai de Cedric, não puderam deixar de exclamar:

   — É o retrato do capitão! Parece-me estar a vê-lo, quando pequeno!

   Cedric esperava que o avô descesse da carruagem e o contemplava afetuosamente. Quando lhe pareceu o momento oportuno, estendeu a mãozinha para ajudá-lo, e lhe ofereceu os ombros para que se apoiasse.

   O conde de Dorincourt podia inspirar verdadeiro terror a toda região pelo seu temperamento exótico, porém o netinho não sentia nem sombra de temor, e todos podiam afirmar isso.

   Com toda a simplicidade voltou-se ao conde, dizendo-lhe:

   — Apóie-se em mim, vovô! E acrescentou: — Como todos gostam de ver o vovô!

   — Tira o gorrinho, Fauntleroy, respondeu o conde, eles não se cansam de te saudar.

   — De me saudar?! Cedric parecia estupefato. Tirou logo o gorro, mostrando a cabecinha loura, que resplandecia aos raios do sol matinal. Quisera saudar a todos, agradecer a todos. A mulher de saia vermelha que saudara a senhora Errol, dizendo-lhe: “Deus a abençoe!” Agora voltava-se ao filho dizendo-lhe: Que Deus abençoe o coração de V. S.!

   — Obrigado, senhora, respondeu gentilmente Lord Fauntleroy, entrando na igreja apoiado do avô! Todos os olhares os seguiam, ao atravessarem a nave central, para tomar assento no banco adornado com damasco vermelho. Logo que se sentou, Cedric, notou que do outro lado da nave se sentava sua mãe a sorrir-lhe carinhosamente e depois percebeu sobre a coluna de pedra dois anjos de mãos postas em atitude de oração, vestidos à antiga. Por baixo deles havia uma lápide, que conseguiu ler era parte, apesar de estar escrita com caracteres difíceis de decifrar-se. “Aqui jazem os restos mortais de Gregorio Artur, primeiro Conde de Dorincourt, e de sua esposa Luísa Ildegarda”.

   Instigado pela curiosidade, Cedric inclinou-se para o avô.

   — Posso falar-lhe, vovô? — perguntou. — Que queres?

   — Quem são aqueles? — E apontou-lhe a lápide com o dedinho.

   — São teus antepassados, Fauntleroy, que viveram há mais de um século passado!

   E a criança continuou a olhar as duas figuras de pedra, ajoelhadas, mas agora notava-se em sua face um quê de veneração.

   Quando começou o canto, levantou-se, procurando com os olhos sua mãe. Ela gostava tanto de cantar! E foi com alegria que também ele se uniu ao coro, com sua vozinha suave e pura como a de um passarinho, esquecendo tudo o mais que estava à sua volta. Até o conde não se ocupava mais consigo, enquanto observava o netinho do seu lugar, protegido pelas cortinas vermelhas: em pé, segurando o grosso missal, com as duas mãozinhas, cantando com uma expressão celestial, enquanto pelos vitrais um raio de sol acariciava os seus cabelos de ouro. Também a senhora Errol contemplou por um momento o filhinho, e suas meigas orações eram por ele. Orava para que aquela alminha inocente conservasse a brancura da pureza, para que as riquezas nunca viessem a perturbá-lo, nem contaminá-lo de amarguras. Aquele coração materno sofria ânsias e preocupações. Quando, na tarde anterior, o estreitou nos braços, sentindo um aperto no coração, disse-lhe com toda a ternura de mãe.

   — “Como me alegro por ver-te dizer tantas coisas belas e elevadas! Mas para que sejas sempre obediente, corajoso e sincero, como agora, é preciso que nunca, nunca faças mal a ninguém, porque só deves poder fazer o bem! Quem sabe quanta coisa neste mundo não mudará para melhor por tua mãozinha inocente? E isto será minha maior alegria! Ver que o mal possa se converter em bem, por tua causa, porque és puro e bom!”

   De volta ao castelo naquela tarde, Fauntleroy repetira ao avô as palavras de sua mãe, acrescentando:

   — Quando Fátina me falou assim, pensei logo no senhor e lhe disse, que o vovô é o melhor do mundo, e que eu espero ser como o senhor, quando for grande!

   Com certa inquietação, Sua Senhoria quis saber:

   — E... que foi que ela disse?

   — Respondeu-me que era justo, e que devemos imitar sempre o que há de bom nas pessoas.

   Talvez o nobre castelão pensava naquela sua conversa com o netinho, enquanto se encontrava atrás daquelas cortinas balançantes. Procurou contemplar mais vezes no meio da multidão a figura feminina que levava o seu nome e viu aquele rosto suave que inspirava amor, e aqueles olhos semelhantes aos da criança que estava ao seu lado. Em que pensava o velho misantropo? A sua alma tão árida, tão fechada, será em que começava a sentir algum sentimento de ternura?

   À saída da igreja, todos esperavam ver passar o conde e Lord Fauntleroy. Alguém diante da porta do cemitério adiantou-se com o chapéu na mão, e depois como que hesitando, parou, mas o conde adiantou-se:

   — Que há, Higgins? Cedric, voltou-se de súbito: — É o sr. Higgins — Sim — respondeu o conde bruscamente. — Imagino que veio ver como é o seu novo patrãozinho.

   Higgins corou. Sim, senhor conde — afirmou.

   — O Sr. Nevick me disse que foi o senhor quem teve a bondade de pensar em mim e é por isso que, se não é demasiada liberdade de minha parte, quereria agradecer-lhe.

   Parecia um pouco estranho que quem tivesse feito tanto bem a ele, fosse apenas uma criança que estava ali a contemplá-lo, justamente como faziam os seus filhos, inconsciente de que era um personagem tão importante.

   — Devo agradecer ao senhorzinho, oh! devo agradecer-lhe muito disse.

   Cedric então declarou surpreso:

   — Mas eu escrevi somente a carta: quem fez tudo foi o vovô que é sempre muito bom para com todos, não é verdade? E a senhora Higgins, como vai?

   Ao ouvir falar da bondade de S. Senhoria, Higgins ficou boquiaberto, olhando Cedric. Depois voltando a si, disse:

   — Minha mulher está melhor... agora as coisas melhoraram um pouco.

   — Estou contente! exclamou Cedric. E acrescentou: — Estávamos tão tristes, o vovô e eu, porque os seus filhos estavam com escarlatina. Também vovô tinha filhos, o senhor não sabe? Eu sou filho de seu filho.

   Higgins estava estupefato. Sabia, como toda gente, que o amor paterno do conde consistia em ver seus filhos, somente uma ou duas vezes por ano, e deixá-los no castelo sozinhos, se adoecessem, para não ser aborrecido por médicos, enfermeiros e criados.

   Por isso, era interessante pensar que Sua Senhoria se preocupava com a escarlatina dos pequenos Higgins.

   O conde sorriu sarcàsticamente, enquanto dizia:

   — Estás vendo, Higgins? Parece que todos vocês pensavam mal de mim... Lord Fauntleroy acredita que me conhece melhor. Se quiseres mais informações exatas sobre a minha pessoa, é só pedi-las ao meu neto. Vamos! Sobe à carruagem, Fauntleroy.

   A criança obedeceu e a viatura pôs-se a caminho entre os prados verdejantes. Ao longo da estrada, um sorriso amargo pairava nos lábios do conde de Dorincourt.

  

                       CEDRIC APRENDE A CAVALGAR

   Ainda nos dias que se seguiram, o sorriso dos lábios do conde devia ser mesclado de amargura, mas pouco a pouco, enquanto aprendia a conhecer melhor o netinho, o sorriso se tornou mais freqüente, naquele rosto austero, mas já não com tanta amargura.

   É preciso considerar que antes da chegada de Lord Fauntleroy ao castelo e especialmente nos últimos tempos, o velho senhor tinha começado a sentir, a fadiga de viver doente, de ter chegado quase aos setenta anos sozinho. Não era de modo nenhum interessante ficar só, em absoluta solidão, numa sala enorme, apesar de magnífica, com um pé estendido sobre um escabelo, tendo como única distração a de tratar mal um criado constantemente sobressaltado, que naturalmente detestava o patrão.

   Ah! não era de modo nenhum interessante, sobretudo se se pensar que tal desventura acontecia ao homem que tinha passado uma vida brilhante e mesmo movimentada.

   O conde era perfeitamente consciente da antipatia de seus criados, e notava facilmente que ninguém vinha visitá-lo, somente por simpatia, apesar de haver sempre alguém que experimentasse certo fascínio na eloqüência à base de sarcasmos e malignidades, que não perdoava a ninguém e por onde passasse ia deixando o sinal.

   Até quando gozava de boa saúde e sentia toda a sua força física, empreendera longas viagens, iludindo-se que se estava divertindo muito, quando, na realidade, não fazia outra coisa senão aborrecer-se. Ao chegarem a velhice e os achaques, retirou-se para o seu castelo faustoso, não tendo por companheiros, senão a gota, os livros e os jornais. Todavia, não podendo sempre ler, às vezes sentia-se devorado pela melancolia, e parecia-lhe que o tempo não passava nunca e se tornava sempre mais misantropo e rabugento.

   Chegou de além mar o pequeno Lord e já desde a primeira vez que o vira, sentiu satisfeito o seu orgulho racial, e isso foi um grande bem para Cedric, porque se não fosse uma criança tão bem dotada, o avô se teria irritado contra ele de tal modo, que certamente não se interessaria por outras qualidades do filho de seu filho. Gostou de crer que a beleza e a coragem fossem, no novo Lord Fauntleroy, uma herança dos Dorincourt, e assim tinha mostrado certo interesse, mas quando pôde convencer-se de ter diante de si uma criança inteligente, boa e educada, apesar de completamente inconsciente, como criança que era, da importância do seu nome e da sua posição, o conde começou a lhe querer bem verdadeiramente e também a não se entediar mais.

   Se permitira ao pequeno fazer bem a Higgins, não fora porque aquele pobre diabo tivesse despertado o mínimo de interesse em Sua Senhoria, mas porque dava prazer a Lord Fauntleroy e esperava também que, desde cedo, se tornasse popular e benquisto pelos seus futuros súditos. Assim tinha acompanhado Cedric à igreja, para ver o interesse que suscitara, certo de que a gente da aldeia não teria podido deixar de admirar aquele menino tão desembaraçado e belo, que se portava tão elegantemente. Sabia já o conde de Dorincourt, antes mesmo de ouvi-lo de uma senhora, que todos disseram que aquele menino “nascera para ser um senhor”.

   Muito orgulhoso do seu nome e do seu discernimento, era o soberbo aristocrático, para deixar de mostrar ao mundo que a casa dos Dorincourt podia, finalmente, ufanar-se de ter um herdeiro digno do seu nome e da sua posição.

   Na manhã na qual Cedric pela primeira vez montara no cavalinho em sela, o avô se sentiu de tal modo satisfeito, que parecia esquecer-se completamente de que sofria de gota. O escudeiro conduzira ao parque o garboso animal de pêlo reluzente e cabeça erguida, e, da janela aberta da biblioteca, o conde assistiu à primeira lição de equitação de Lord Fauntleroy, perguntando-se a si mesmo, se a criança não sentiria nenhum temor.

   Realmente, não se tratava de um cavalinho pequeno, e o conde se recordava de ter visto meninos com fama de corajosos, ficarem atemorizados, quando da primeira vez, tentavam montar a cavalo.

   Mas Cedric estava sereno e radiante, enquanto Wilkins, o moço da cavalariça, o guiava puxando o cavalo pela rédea de um lado para o outro do prado.

   Mais tarde, falando aos amigos, Wilkins dizia:

   — Que criança corajosa! Olha que não quis que ninguém a ajudasse a montar e quisera que vissem como estava direito na sela. E me perguntava muitas vezes: “Wilkins, como estou? Vi no circo que estão todos aprumados”. E eu lhe respondia: “Oh! senhorzinho, o senhor monta a cavalo tão aprumado como uma seta!” Então começou a rir e me disse todo satisfeito: “Está bem, mas se não estou direito tu deves dizer-me, Wilkins!”

   A Cedric, porém, estar direito e ser guiado a passo, passado o primeiro momento, não era realmente um grande prazer, porque perguntou ao avô, que estava a olhá-lo da janela:

   — Posso agora ir só? E um pouco mais depressa? Aquele menino da Rua 5 andava a trote e galopava.

   — Mas, tu sabes galopar?

   — Ora, gostaria de experimentar!

   O conde fez um aceno a Wilkins e o escudeiro, montando no seu cavalo, tomou o cavalinho de Cedric pelas rédeas.

   — Faça-o andar a trote.

   Nos primeiros momentos Cedric achou que o trote era menos fácil que o passo, e quando o cavalo acelerava marcha, sentia-se sacudir todo. E dizia ao companheiro. Sacode muito... não sente também as sacudidelas?

   — Não, senhorinho — respondia Wilkins. — Tudo está em se habituar. Apóie-se nos estribos.

   Cedric o fazia, mas quando se levantava e se sentava novamente, lhe dava tantas sacudidelas que o desorientava um pouco. Ficava muito vermelho e ofegava mas continuava a manter-se firme e direito na sela, que era um prazer contemplá-lo. O conde viu-os da janela de relance, mas logo os perdeu de vista, porque desapareceram por entre o arvoredo. Quando reapareceram, o pequeno cavaleiro estava sem chapéu, tinha as faces afogueadas, apertava os lábios, mas, trotava ainda com tenacidade.

   — Pára! — Que fizeste do chapéu?

   — Caiu — respondeu ao conde, Wilkins que se divertia à vontade.

   Com tom brusco perguntou-lhe o seu patrão:

   — Tem medo?

   — Nem por sonho! Parece que não sabe que coisa quer dizer medo. Já ensinei muitas vezes a meninos montar a cavalo. Mas, nunca vi um tão corajoso assim!

   — Estás cansado? E o conde voltou-se para o netinho — Queres apear?

   — Não... — respondeu Cedric. — Sacode um pouco, mais do que pensava, e estou também um tanto cansado, mas quero continuar. Respirarei um momento, e vou depois procurar o chapéu.

   Certamente, se alguém tivesse querido ensinar a Cedric a melhor maneira de se tornar simpático ao avô, não poderia encontrar outra melhor. Quando o cavalo partiu a trote, as faces do conde se avermelharam levemente e nos seus olhos apareceu visibilíssima uma satisfação que ele mesmo nunca sentira, enquanto esperava que o trote dos cavalos se tornasse mais próximo. Quando os dois cavaleiros voltaram, Wilkins trazia na mão o chapéu do Lord Fauntleroy, que já galopava seguro, com os cabelos ao vento e as faces em chamas.

   — Chegamos! exclamou. — Galopei finalmente, não tão bem como o menino da rua 5, mas consegui galopar, sem cair!

   E assim nasceu uma grande amizade entre aqueles três: Lord Fauntleroy, Wilkins e o cavalinho baio. Não havia dia que não saíssem a dar belos galopes, estrada afora, ou pelas campinas. Nas casas acorriam as crianças, que se encantavam olhando o cavalo e o pequeno cavaleiro que empertigado na sela saudava a todos completamente desprovido de etiqueta, mas, em compensação, com muita cordialidade: Bom dia! Como vai?

   Algumas vezes Lord Fauntleroy parava para trocar algumas palavras com as crianças e um dia — isto contou depois Wilkins a todos os criados do castelo — desceu para fazer montar a cavalo e levar a sua casa um menino aleijado.

   — Não houve meio de o impedir — disse o escudeiro — e não quis que eu apeasse com a desculpa de que o meu cavalo era muito grande e aquela criança se sentiria mau. Pensa um pouco! Tive de pô-lo na sela — e o senhorzinho se foi a pé com as mãos nos bolsos, e o barrete na nuca, pairando que era um prazer. Quando chegamos a casa do menino, saiu para fora a mãe, toda amedrontada a ver o que sucedia e ele então, tirou o barrete e lhe fez uma grande saudação: “Trouxe para casa seu filho, senhora, porque estava doente da perna. Mas não me parece que lhe baste aquele bordão para caminhar bem. Pedirei ao vovô que mande fazer para ele um bom par de muletas!” Era de ver-se o rosto daquela mulher — concluiu Wilkins. Quanto a mim... pensei que desmaiava!

   Não havia motivo na realidade, porque o conde, quando soube do sucedido, não teve a menor excitação, antes sorriu e quis que o seu netinho mesmo lhe contasse toda a história e mostrava divertir-se imensamente. Poucos dias depois, viu a carruagem do castelo parar diante da casinha do menino aleijado e descer Lord Fauntleroy, levando a tiracolo, como se fosse um fuzil, um belo par de muletas novas em folhas, fortes mas leves, que deu à criança, dizendo-lhe:

   — É uma lembrança do vovô, senhora, trouxe-a para seu filho, espero que em breve se curará.

   Voltando para a viatura, Cedric disse ao avô:

   — Dei lembranças do senhor a ela: o senhor não me tinha dito nada, mas eu pensei que se tivesse esquecido. Fiz bem?

   Uma risadinha foi a única resposta. Cada dia avô neto se tornavam mais amigos e sempre mais viva se fazia na alminha de Cedric a confiança na bondade do avô. E como teria podido duvidar da generosidade do conde? Não havia desejo que, apenas formulado por Cedric, não fosse ouvido, e ele ficaria de tal modo cheio de presentes, que estava quase estupefato. Realmente podia fazer e ter tudo o que queria. O sistema adotado pelo castelão, na maior parte dos casos, não seria recomendável, mas, com o pequeno Lord Fauntleroy, obtinha os melhores resultados. Ele não corria o menor perigo de se tornar uma criança viciada, porque a mãe se ocupava dele. Ela pensava no filhinho com a mais amorosa solicitude e lhe inculcava os melhores sentimentos durante as horas que passavam juntos no “Palacete”. Cedric nunca deixava a sua “Fátina”, sem ter as facezinhas quentes de beijos e o coração reavivado pelas suas palavras serenas, cheias de amor, de conselhos e de admoestações. Mas, havia algo que intrigava e aborrecia a criança, e que a preocupava mais do que sua mãe o pudesse supor: (não falemos do conde, que disse era completamente inconsciente) perguntava-se na ingenuidade de sua alminha pura e sincera: “Por que seria que a mamãe e o vovô nunca se viam?”

   De fato, quando a carruagem do castelo parada diante do “Palacete”, o conde não descia, e quando acompanhava o netinho à igreja, deixava-o sozinho para falar com sua mãe no pórtico, e levá-la a casa. Todavia, diariamente a senhora Errol recebia flores e frutos dos magníficos jardins e pomares do castelo. Isto confirmara a ótima opinião que, na sua inocência, Cedric fizera do avô, desde o primeiro domingo, no qual vira a senhora Errol voltar a pé da missa, triste por não ter levado ramalhetes de flores para as imagens, como sempre gostara de fazê-lo na América.

   O conde de Dorincourt vira também que a senhora Errol, Lady Fauntleroy, andava a pé. por falta de uma carruagem. E assim, um dia, enquanto Cedric se preparava para visitar sua mãe, encontrara à porta, uma grande carruagem com uma parelha enorme de cavalos árabes, uma grandiosa charrete com um lindo cavalo branco.

   O conde dissera bruscamente a Cedric:

   — Deves presentear esta charrete a tua mãe, para que não ande por aí a pé. Vê que é um presente que tu lhe dás.

   Cedric feliz, só pensava na hora de parar diante do “Palacete”.

   Quando chegou, a senhora Errol estava passeando pelo parque.

   O menino, tendo apeado de um salto, lançou-se nos braços maternos exclamando: — Fátina, viste o carro, no qual vim? É para ti! E eu é quem devo presentear-te, para que tu não andes por aí, a pé.

   Como poderia a senhora Errol recusar? A alegria do menino era tão grande, que ela não ousava perturbá-lo não aceitando aquele riquíssimo presente, que não podia alegrá-la, vindo de um homem que se lhe mostrava sempre inimigo. Assim, sorriu e subiu à charrete, fazendo um bonito giro, enquanto Cedric não se cansava de falar da bondade e da generosidade do avô. Havia tanta ingenuidade nas suas palavras, que por vezes a senhora Errol não podia conter o riso, ao apertá-lo contra o coração e cobri-lo de beijos, contente de vê-lo descobrir tantas virtudes naquele velho misantropo, que não tinha sequer um amigo sincero.

   Foi justamente no dia seguinte ao presente da charrete à mamãe que Fauntleroy escreveu uma longa carta ao Sr. Hobbs, e, depois de fazer o rascunho, mostrou ao avô, dizendo-lhe: — Não sei ainda escrever bem, por isso se vovô quiser corrigi-la, por certo a copiarei melhor.

   Escrevera o seguinte:

   — “Caro Sr. Hobbs, escrevo-lhe para dizer-lhe que vovô é o melhor conde do mundo, e o senhor se enganava quando dizia que todos os condes são tiranos, porque ele não tem nada de tirano, e gostaria que o senhor o visse, pois estou certo de que ficaria logo seu amigo. Ele sofre de gota num pé, que lhe dói muito, mas tem tanta paciência, que eu lhe quero cada dia mais bem, porque quem não gosta de um conde tão bom?! Sabe tudo, e a gente pode perguntar a ele o que quiser, e ele responde, só não sabe o que é jogar futebol de botão. Deu-me tantas coisas, e um belo cavalinho, uma carruagem, à mamãe, presenteou com uma linda charrete, para não andar mais a pé, e eu tenho três quartos grandes, todos para mim só, e tantos brinquedos bonitos, que o senhor não pode nem pensar, e quem sabe como o senhor ficaria se visse o parque e o castelo, que a gente pode até perder-se neles! Diz Wilkins, o rapaz que me ensinou a cavalgar, que debaixo da terra há um subterrâneo, mas em cima tudo é tão bonito, e no parque há árvores tão belas, tantos cervos, coelhos e passarinhos... porque o vovô é muito rico, mas não é soberbo como o senhor dizia que eram todos os condes, e eu me dou muito bem com ele e gosto tanto do povo daqui, porque são todos gentis para comigo, os homens tiram o chapéu, as mulheres fazem reverência e dizem às vezes: “Deus o abençoe”, falam sobre mim. Agora ando a cavalo, mas no começo sentia-me muito dolorido. O senhor deve saber que o vovô deixou a casa a um pobrezinho que não podia pagar o aluguel porque estava doente, justamente como o pobre Miguel, e a governanta do castelo levou para seus filhinhos vinho bom, e muitas outras coisas. Eu gostaria tanto de ver o senhor e queria também que minha Fátina viesse morar comigo no castelo, mas quando não penso nisso, sou muito feliz e quero muito bem ao vovô e a todos também lhe querem bem. O senhor deve responder-me logo, porque eu sou seu afetuosíssimo velho amigo, Fauntleroy”.

   “P. S. Ia-me esquecendo de dizer-lhe que nos subterrâneos não há ninguém morrendo de fome, porque o vovô jamais o permitiria! É tão bom que me faz sempre pensar no senhor”.

   O conde restituiu a carta a Cedric e lhe perguntou:

   — Disseste que, faltando tua mãe, te falta muito?

   — Oh! sim! — respondeu com ardor a criança. — Sempre me falta! Depois, acercando-se do avô, apoiou a mãozinha sobre seus joelhos e perguntou-lhe: — Ao senhor não faz falta, não é?

   — Eu não a conheço! —- O tom de voz de S. Senhoria foi quase brusco.

   — Já sei — replicou Cedric. — e não entendo a razão. Mas, como mamãe recomendou-me que não fizesse perguntas ao vovô, é por isso que eu não faço, mas às vezes penso nisso, e não entendo nada, e nem assim pergunto nada! Quando sinto mesmo, que me falta tanto, vou à janela do meu quarto e, através das árvores, vejo a luzinha que põe todos os dias quando está escuro e sei o que ela quer dizer.

   — O que é? indagou curioso o conde.

   — “Dorme bem, que Deus te proteja”. Dizia-me assim todas as noites, quando estávamos juntos, antes de eu me deitar. E também pela manhã, quando eu despertava: “Deus te abençoe”. E assim eu estava sempre muito contente.

   — Sim, não o duvido... — replicou o conde um tanto embaraçado, e, franzindo os sobrolhos, fixou os olhos na criança, que não podia em absoluto imaginar o que pensaria o conde, àquele momento.

  

                             OS POBRES DA ALDEIA

   Parecia, há tempo, que S. Senhoria, o excelentíssimo conde de Dorincourt, não tinha mais tempo para se aborrecer, tendo na cabeça uma multidão de pensamentos novos, que diziam respeito, mais ou menos, ao netinho. O novo Lord Fauntleroy satisfazia plenamente ao seu orgulho de velho aristocrático, e como podia dizer que o orgulho estava na base do seu caráter, tinha vastos motivos para achar no neto um novo e inesperado interesse na vida.

   O conde sentia íntima satisfação em mostrar à sociedade que herdeiro o destino concedera à Casa dos Dorincourt, que no passado, em matéria de herdeiros, só tinha que se lastimar. No cérebro do velho senhor havia um amontoado de projetos para o futuro e na sua alma, de quando em quando, aflorava uma sensação estranha que se assemelhava muito ao remorso de não ter vivido uma vida límpida e pura, que agora pudesse servir de exemplo ao netinho. Não podia contar a sua vida àquela criança, porque era doloroso pensar que uma sombra sequer empanasse aquele delicado rostinho, resplandecente de pureza e ingenuidade, se viesse a saber que o avô, que ele julgava “o melhor avô do mundo”, por muitos anos tinha sido apenas conhecido pelo apelativo de “aquele pérfido conde de Dorincourt”.

   Acontecia ao conde, às vezes, esquecer as crises da gota, tão preocupado se achava com outros pensamentos. Não só. Mas esquecer-se do seu mal, já lhe era salutar, porque seu médico, com legítima surpresa, notou que a saúde do seu nobre cliente ia sempre melhorando de dia para dia.

   Uma manhã, com surpresa geral, Lord Fauntleroy foi visto a cavalgar, tendo ao seu lado, no lugar de Wilkins, alguém em sela, num belo cavalo castanho: era S. Senhoria que não tinha podido resistir à graça de seu netinho, quando o vira, voltando para ele um rostinho sinceramente ansioso suplicante: como gostaria que vovô viesse comigo quando monto a cavalo! Sinto-me tão triste quando penso deixar o vovô sozinho no castelo!

   E assim todas as manhãs, Selim via ao lado do cavalinho baio, e do seu juvenil cavaleiro, um rosto rígido e severo, contrastando com aquele rostinho alegre, gentil e confidente, do herdeiro dos Dorincourt.

   O conde soube logo que a senhora Errol estava bem longe de levar uma vida ociosa e que, nos seus domínios, os pobres e os infelizes já a conheciam muito bem. Não havia de fato uma casa onde reinassem a miséria e a desgraça, diante da qual a charrete de Fátina não parasse como anjo bem fazejo.

   O senhor sabe, — contava Fauntleroy ao avô — quando a vêem, todos lhe dizem: — “Que Deus a acompanhe!” É de ver-se os meninos como ficam contentes. Convida a sua casa as meninas para ensinar-lhes serviço caseiro. Diz sempre que se sente muito rica e que não pode deixar de ajudar assim aos pobres.

   Tudo considerado, o conde gostava que a viúva de seu filho fosse jovem e bela, com um aspecto tão distinto, que podia dar lições a uma duquesa, e sentia viva satisfação, constatando que se fazia querer bem por todos.

   Contudo, não podia deixar de sentir-se ciumento, notando que a sua imagem dominava de maneira soberana no coraçãozinho de Lord Fauntleroy.

   Uma manhã parou um momento o cavalo no outeiro que atravessavam e, mostrando com o azorrague a aldeia que os circundava, disse, voltando-se para Cedric: — Toda esta terra é minha, como sabes, não é?

   — Deveras! — exclamou a criança encantada. — Para uma pessoa só, é muito grande!

   — E um dia, toda esta terra será tua... e ainda muitas outras mais — continuou o conde.

   — Minha! — Cedric parecia impressionado vivamente e perguntou ingenuamente. — E quando será minha?

   — Quando eu morrer.

   — Então não a quero, e senhor deve viver sempre! Com seu modo de falar brusco, o conde replicou:

   — Tu és muito bom, falando desta maneira. Isto não tira naquele dia do qual te falo, tudo isto será teu. E então é que tu serás o conde de Dorincourt.

   Endireitando-se na sela, a criança calou um instante. Seus olhos vagavam pelas campinas verdejantes, pelas colinas, pelas florestas circunvizinhas, pelos bosques espessos e pelas casas espalhadas aqui e ali e pela grande aldeia, dominada pelas torres cinzentas do castelo dos Dorincourt.

   Deu um suspiro.

   — Em que pensas tu? — perguntou-lhe o avô.

   — Penso que sou muito pequeno ainda! E penso, também, naquilo que me disse Fátina.

   — Que te disse?

   — Disse-me que não é fácil saber ser rico e bom, e que sucede muitas vezes que quem tem tudo, se esquece de que existe também no mundo, quem tem muito pouco, e às vezes quem nada tem, e que é dever de quem tem tudo pensar nos desprotegidos da sorte. Eu lhe digo sempre que o senhor é muito bom, e então ela me responde que isto é uma coisa muito bela, porque um conde é uma pessoa muito importante, e se pensa somente em divertir-se, não se ocupando com a gente que habita nos seus domínios, poderia suceder que esse povo vivesse na mais completa miséria, sem que ele desse por isso, enquanto que, sabendo-o, poderia remediar a tudo aquilo. E então, neste momento, eu estava pensando que, quando fosse grande, deveria saber tudo aquilo que acontece em minhas terras. E o senhor, como é que faz para saber sempre tudo?

   — É Nevick quem se preocupa com tudo, por mim. Confiou nervosamente os bigodes grisalhos e mudou de assunto: penso que já é hora de voltarmos... quando fores conde, deves procurar ser melhor do que eu.

   Passaram oito dias e Cedric, voltando de uma visita feita ao “Palacete”, entrou na biblioteca muito sério, com ares de quem estava muito preocupado. Sentou-se naquela famosa poltrona, onde se tinha acantonado na primeira noite da sua chegada ao castelo, e pôs-se a fixar imóvel as labaredas da chaminé em silêncio. O conde observava-o esperando que dissesse alguma coisa. Vendo porém que a criança continuava calada, imaginou que devia ter algum pensamento que a preocupava, e de fato, Cedric, levantando os olhos, perscrutou o avô, perguntando-lhe subitamente:

   — Mas, é mesmo Nevick que sabe tudo o que sucede?

   — Deveria saber... porém, a que vem a tua pergunta? Julgas que ele esqueceu alguma coisa?

   O interesse de Lord Fauntleroy pela gente da região divertia e encantava o conde. Ele nunca tinha experimentado pessoalmente tal interesse, mas achava bem, que naquela cabecinha loura, onde só deviam haver pensamentos de folguedos, alegria e serenidade, houvesse também certa seriedade e tendência para a reflexão.

   Cedric contava agora, e uma sombra havia nos seus olhos tristes.

   — Fátina viu um lugar fora da aldeia, onde as casinhas caem aos pedaços de tão velhas! E se respira um ar tão mau! A gente é muito pobre e muitas pessoas se encontram doentes a morrerem à míngua, as crianças são as que mais morrem, e aquela gente então se torna má, porque as coisas não correm bem. É pior do que estavam Miguel e Brígida. Fátina foi até lá, para ver uma pobre mulher, e quando voltou não quis abraçar-me antes de mudar de roupa e, contando-me todas estas coisas, chorava.

   Também Cedric tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto referia ao avô, o que lhe dissera a sua mamãe mas, nos seus lábios havia um tímido sorriso. Apoiando-se nos braços da poltrona de avô, continuou: — Disse Fátina que o senhor não devia saber de nada disso e que eu lhe dissesse tudo, para que o senhor pudesse mudar as coisas, como fez para Higgins, porque é claro que Nevick se esqueceu de dizer-lhe.

   Oh! não! Nevick não se esquecera! O conde sabia bem quantas vezes lhe tinha falado das condições miseráveis daquele grupo de cabanas, chamado na região “Corte do Conde”: tratava-se de tugúrios caindo, sem água, sem ar, sem sol, úmidos, escuros, antros de doenças e de misérias. Também o padre tinha falado ao castelão sobre eles e com termos bastante fortes, mais fortes de que as frases humildes de Nevick, mas em resposta não recebera senão palavras duras e ásperas, e, mesmo um dia em que o conde sofria mais de gota, não tivera escrúpulos de declarar que esperava que aquela gente fosse para o inferno o mais depressa possível, porquanto não queria mais ouvir falar dela.

   Mas agora, com aquela mãozinha apoiada sobre os seus joelhos e aquelas faces mimosas que estavam tão perto das suas, envergonhava-se um pouco de seu modo de proceder.

   Procurou brincar, acariciando a mãozinha de Cedric e exclamou:

   — Talvez pensas fazer de mim um proprietário de casa, modelo, não é verdade?

   Com toda a seriedade, Cedric respondeu:

   — É preciso derrubar aqueles mocambos feios! Foi Fátina que o disse! Vamos logo, dizer que derrubem todas aquelas casas miseráveis! Gostarão tanto de ver o senhor ali!

   Os olhos de Cedric brilharam como duas estrelas.

   — Sim, mas por agora vamos dar um passeio no terraço, depois falaremos disso com mais calma.

   O conde, levantando-se, descansou a mão no ombro do netinho, olhando-o no rosto e a sorrir intimamente.

  

                                   ALARME NO CASTELO

   A senhora Errol descobrira muitas coisas tristes durante as suas visitas à aldeia, que parecia tão pitoresca quando se olhava do alto do monte, e tão miserável, quando se via de perto. Onde deveriam reinar o trabalho e o conforto, Fátina só encontrara a miséria, a ignorância e a preguiça. A maior parte das desgraças que ali havia, tinha-as descoberto por si mesma, de outras lhe falara o pároco, lamentando-se das dificuldades e das desilusões encontradas cada vez que tinha tentado fazer mudar aquele horrível estado de coisas. De fato, os agentes do conde tinham preferido não o aborrecerem mais, de tal modo que a penúria e as doenças minavam em toda a parte, mas de modo particular nos pardieiros da “Corte do Conde”, que apresentavam realmente um espetáculo repugnante. A senhora Errol ficara completamente estupefata. Olhando aquelas crianças subnutridas, sujas e órfãs, pensou em seu filho, uma espécie de principezinho, servido e reverenciado, satisfeito em todos os seus desejos, cercado por uma atmosfera de luxo e de beleza. Uma idéia audaz germinou no seu coração, pensando na influência que Cedric exercia sobre o conde.

   Já que o castelão nada recusava ao netinho, por que não procurava tirar partido para o bem da sua munificência? Sabia que poderia fiar-se do coração de seu filho, por isso teve só de contar-lhe o que tinha visto na “Corte do Conde”, para ficar certa de que Cedric referiria as suas palavras ao avô, com bom resultado.

   E de fato aconteceu como ela tinha pensado. Toda influência de Cedric, consistia na perfeita confiança que demonstrava ao avô, na sua absoluta certeza de achá-lo sempre bem disposto à bondade e à generosidade. E para o conde era de tal modo agradável a novidade de sentir-se considerando como um benfeitor, um Mecenas, que não repeliu a idéia de sorrir à criança, dizendo consigo mesmo: — Mas que importa “Corte do Conde... E a sua gente?” Assim mesmo querendo obstinar-se em não fazer caso do que lhe tinha dito Cedric, teve com ele uma palestra, durante a qual acabou por tomar a decisão de derrubar todos os tugúrios e de construir, em seu lugar, habitações novas. Assim, com seu costumado tom brusco, se justificou:

   — É Lord Fauntleroy que o quer assim. Diga portanto que agradeçam a ele — e olhou interrogativamente. O pequeno Lord estendido sobre o tapete brincava com Dougal que se tinha já tornado o seu companheiro inseparável.

   Quando se começou a falar dos melhoramentos projetados e da demolição da “Corte do Conde”, muitos ficaram surpreendidos e houve também quem se mostrasse totalmente cético a respeito. Mas toda dúvida desapareceu, quando viram chegar algumas turmas de operários que começaram logo as obras de demolição das casinholas infectas. Ainda uma vez Lord Fauntleroy tinha levado a cabo uma boa obra, e se devia a ele que a vergonha das casas da “Corte do Conde” acabava.

   Cedric teria arregalado os olhos maravilhados, se pudesse ouvir o que se dizia de boca em boca, e como lhe prediziam um magnífico futuro. Entretanto, ele continuava a viver como uma criança comum, dando grandes corridas pelos parques, perseguindo os coelhos, ou estendendo-se sobre a relva ou sobre o tapete da biblioteca a ler livros interessantíssimos, cujos enredos narrava-os ao avô e a mãe. Não se esquecia de escrever ao Sr. Hobbs e a Dick, dos quais recebia resposta bizarras, e cavalgava todas as manhãs, tendo ao lado o conde, ou então, escoltado por Wilkins. Via que a gente se voltava a olhá-lo e lhe dizia: — Mas, como este povo deve querer bem ao senhor! Quisera que um dia me amassem assim... é tão bom sentir-se amado de todos!

   E o pequeno Lord se sentia orgulhoso de ser neto de um conde tão admirado e amado.

   Muitas vezes avô e neto foram visitar as obras de reconstrução das casas da “Corte do Conde”. Cedric se interessava por tudo. Fazia amizade com os pedreiros e queria saber como faziam para servir-se dos tijolos, do cal e de todo o resto, e contava como tinha visto construir casas na América. Conseguiu finalmente fazer para o avô a descrição de uma fornalha de tijolos, concluindo: — Gostaria de aprender todas estas coisas, mas não sei o que pode acontecer...

   Quando foi embora, os operários não faziam senão falar daquele menino que era um verdadeiro prodígio e se divertiam era lembrar o que lhes tinha dito. Queriam-lhe muito bem e sentiam-se felizes quando podiam ver, no meio deles, a discorrer como pessoas grandes, com as mãos nos bolsos e gorrinho de lado, todo sorridente.

   — Que criança estranha! diziam os operários. Tem tanto juízo e fala de um modo tão encantador!...

   Em casa de Lord Fauntleroy às esposas, e estas por sua vez às amigas, e assim, não havia pessoa nas vizinhanças que não conhecesse Cedric, e que não soubesse que o “pérfido Conde”, tinha finalmente encontrado a quem amar, alguém que devia ter tocado o seu coração empedernido. Mas ninguém podia imaginar até que ponto... Quando Cedric compreendeu, realmente, que o avô lhe queria muito bem, parecia que não podia mais afastar-se dele: na biblioteca, à mesa, na carruagem, a cavalo e até quando passeava no terraço.

   — O senhor se lembra — disse um dia Cedric ao avô, quando estava no tapete diante da estufa — que na primeira noite quando nos conhecemos, disse-lhe que devíamos fazer amizade? E agora parece-me difícil encontrar dois amigos mais íntimos do que nós!

   — Sim... fazemos boa companhia ao outro — respondeu o avô, e acrescentou: — Aproxima-te um pouco.

   Cedric obedeceu.

   — Dize-me... desejas ainda alguma coisa?

   Aqueles olhos infantis fixaram-se quase suplicantes na sua face austera, e a criança respondeu em voz baixa:

   — Sim, uma só coisa. — Que coisa?

   Lord Fauntleroy não respondeu logo.

   — Mas, o que é que tu queres? — insistiu o conde.

   — Desejo que Fátina viva comigo.

   O velho conde perturbou-se instantaneamente:

   — Mas... tu a vê todos os dias... não é bastante?

   A criança replicou:

   — Antes estávamos sempre juntos e ela me beijava todas as noites antes de deitar e todas as manhãs quando vinha despertar-me, e, quando tínhamos alguma coisa para dizer, dizíamos logo, sem esperar como agora.

   Em silêncio os olhos do velho se encontraram com os da criança. — Depois, franzindo as sobrancelhas, perguntou:

   — Mas tu nunca esqueces tua mãe?

   — Oh! não, nunca! — replicou Cedric e ela nunca se esquece de mim! Aliás, nunca poderia nem mesmo esquecer o vovô. E se não estivéssemos um dia morando juntos, eu pensaria ainda mais no senhor.

   — Na realidade o creio — exclamou o conde, e o sentimento de ciúme que o atormentava, todas as vezes que o netinho lhe falava de sua mãe, se fez mais agudo.

   Mas outras penas e preocupações o esperavam nos dias seguintes e seriam de tal modo graves que lhe fariam quase esquecer a aversão que tinha pela viúva de seu filho.

   Mas, disto nos ocuparemos depois. Continuando a nossa narração, vemos que, na tarde pouco antes que as novas habitações da “Corte do Conde” estivessem ultimadas, deu-se no castelo um grande jantar de gala como fazia anos que não se via nos domínios dos Dorincourt. Alguns dias antes, a única irmã do conde Lady Lorridaille, chegava ao castelo, em visita, com o seu esposo. Este acontecimento causara em todo o povoado a maior agitação, o que fez soar ininterruptamente a campainha da senhora Dibbles, porque todos sabiam que Lady Lorridaille, desde quando se casara, isto é, desde há 35 anos, só viera uma vez ao castelo, para dizer ao seu irmão o que pensava dele e do seu modo de vida. Depois disto, nunca mais se fizera ver.

   Quando Lady Lorridaille, soube que seu irmão chamara da América o filho do nobre capitão Errol, para fazer dele um perfeito Lord Fauntleroy, disse ao marido: — Vai estragá-lo, como estragou seus filhos, se a mãe da criança não tiver bastante fortaleza de alma, para impor a sua vontade sobre a educação do filho.

   Soube depois que fora interdito à senhora Errol o acesso ao castelo, separando-a assim do seu filho. Indignou-se com esta medida tão severa.

   É uma vergonha! Separar da mãe uma criança daquela idade, para pô-la ao lado de um companheiro como meu irmão! — dizia ao marido. — Veremos o que vai acontecer: Fará dele um menino viciado e insuportável, isto se simpatizar com ele, senão, o tratará tão mau, que lhe tornará a vida impossível!

   Em seguida Lady Lorridaille ouvira falar tanto de Lord Fauntleroy e de seu comportamento a respeito dos pobres e das relações que parecia se tinham estabelecido entre ele e o avô, que experimentava uma vivíssima curiosidade de conhecer o pequeno americano. Como fazer? A coisa não era fácil dada a hostilidade que existia entre ela e o irmão, desde há tantos anos, mas, justamente enquanto a senhora que tinha belas faces cor de rosa e uma cabeleira de neve, procurava um meio de satisfazer o seu desejo, chegara-lhe enchendo-a de estupefação, uma carta do conde, pedindo-lhe para que fosse fazer, uma visita a Dorincourt.

   — Deve ser verdade que aquela criança faz milagres — comentou Lady Lorridaille, contente afinal com aquela aproximação.

   De acordo com o marido, decidiu, partir para Dorincourt, e, quando aí chegou, pela tarde, subiu aos aposentos que lhe estavam destinados, sem ver o seu irmão, vestiu-se para o jantar e desceu ao salão. Junto à chaminé estava o conde mais que nunca imponente, ao lado brincava um menino vestido de veludo vermelho com golinhas de rendas brancas, sorridente, iluminado por dois olhos tão límpidos que a nobre senhora não pôde conter uma exclamação de alegre surpresa:

   — Este é o menino, Molyneux?

   Lady Lorridailly não chamara mais o irmão por este nome desde o tempo em que eram ambos crianças.

   — Como vai titia? — perguntou gentilmente Cedric. A velha matrona apoiou um momento a mão sobre os ombros de Cedric e deu-lhe um ósculo.

   — Chama-me tia Constância — disse-lhe. — Queria tanto bem ao teu pai, e penso que tu te pareces muito com ele.

   — Oh! como me alegro, quando me dizem — replicou o pequeno Lord porque estou certo de que todos deviam querer-lhe bem, do mesmo modo como Fátina, tia Constância.Lady Lorridaille, toda sorridente, beijou de novo Cedric, que desde aquele momento se tornou logo seu ótimo amigo.

   — Mais tarde, sussurrou ao seu irmão:

   — Creio realmente, Molyneux, que não poderia ser melhor!

   — Parece-me também a mim, respondeu Sua Senhoria, é um bom menino, estamos sempre de acordo. Acredita que pensa que eu sou um verdadeiro filantropo e não se cansa de tecer louvores à minha generosidade. Devo confessar-te mesmo, Constância, antes que tu o percebas, que aquele menino fará um velho rejuvenescido.

   Lady Lorridaille não fez comentários, mas perguntou abruptamente:

   — E que pensa de ti a mãe dele?

   Um pouco aborrecido, o conde replicou.

   — Nunca lhe perguntei.

   — Contudo, — declarou resolutamente a senhora — gostaria de dizer-te sem rodeios: Não aprovo a tua maneira de agir a respeito da senhora Errol e, quanto a mim, tenho intenção de ir falar com ela o mais cedo possível, se te ofendes, dize-me logo. Bastou-me ver e ouvir a criança, para convencer-me de que deve tudo à sua mãe, que, apenas chegada à nossa terra, conquistou o respeito e a veneração de todos, cuja fama de bondade chegou até nós.

   — Quanto a respeito e veneração, é a ele — e o conde apontou para Fauntleroy — que respeitam e veneram. A senhora Errol... é realmente bastante simpática e não se pode negar que a ela devemos a beleza da criança. Se queres, podes ir falar com ela. Custa-me somente que permaneça no “Palacete” e que não lhe tenha passado pelo, pensamento convidar-me para visitá-la. E, dizendo estas últimas palavras, o conde mostrou-se deveras aborrecido.

   Mais tarde Lady Lorridaille dizia ao marido: por carta:

   — Tenho a impressão que a sua hostilidade contra a mãe da criança diminuiu notavelmente. No dia seguinte, a irmã do conde fez uma visita à Senhora Errol e, de volta ao castelo, disse ao conde: — Posso assegurar-te, Molyneux, que nunca vi uma mulher mais simpática! Tem uma voz encantadora, e basta ouvi-la falar para que a gente se convença de que a criança deve tudo à sua mãe. Deu-lhe muito mais que a sua beleza! Repito-te: — Acho que fazes mal em não convidá-la para morar no castelo, não somente para ocupar-se da criança, mas também de ti. Quanto a mim, convidá-la-ei a fazer-me uma visita.

   — Oh! não aceitará, para não afastar-se de seu filho.

   — Pode ser, então talvez acreditasses no que te digo — replicou sorrindo Lady Lorridaille. Estava completamente convencida de que aquele seu orgulhoso irmão tinha concentrado todas as suas ambições, e as suas esperanças, e todos os seus afetos naquela criaturinha expansiva e simples que, com confiança absoluta e encantadora ternura, tanto se afeiçoara ao avô rabugento. E sabia também a senhora, que o conde dava aquele jantar unicamente para poder apresentar à sociedade o seu herdeiro e para que vissem que Lord Fauntleroy não só merecia a fama que gozava, mas a excedia de muito. Realmente na tarde do jantar não houve um convidado que não viesse expressamente para saber alguma coisa mais sobre aquela nobre criança que se tornara famosa em toda a região, e com a esperança íntima de poder vê-lo. Falando de Lord Fauntleroy, o conde dissera aos seus amigos:

   É muito bem-educado, e não aborrece ninguém. Em geral os meninos são todos uns tolos e aborrecidos, mas esta criança sabe perfeitamente quando deve falar e quando deve calar. Não há perigo que se torne importuno. Aquela tarde porém não calou realmente. Todos o rodeavam, pedindo-lhe que falasse e as senhoras elegantes o acariciavam e os homens brincavam com ele, do mesmo modo que os passageiros a bordo do navio. Foi uma tarde divertidíssima para Cedric. As magníficas salas do castelo estavam cintilantes de luzes e tão adornadas de flores que pareciam um jardim. Os hóspedes eram afáveis e alegres, e as senhoras estavam adornadas de jóias que pareciam emitir cintilações fulgurantes. Havia, porém, uma senhora muito linda que Cedric não podia deixar de encantar-se contemplando-a: Era alta e magra, de rosto oval, morena, olhos cor de violeta e os seus lábios pareciam serem feitos de pétalas de rosas. Vestia um lindo vestido branco e tinha ao pescoço um lindíssimo colar de pérolas. Rodeavam-na tantos jovens obsequiosos e cheios de atenções para com ela, que a princípio Cedric pensou que aquela bela senhora fosse uma princesa e se sentiu de tal modo encantado por ela, que quase inconscientemente, foi para o lado dela, sem deixar de fixá-la, até que em dado momento, sorrindo, ela lhe falou:

   — Dize-me: por que tu me olhas assim, Lord Fauntleroy?

   — Porque a senhora é muito bonita! — foi a resposta graciosa da criança, e todos sorriram, inclusive a senhora que ficara totalmente embaraçada, corando muito. Com a sua ingênua sinceridade, Cedric continuou:

   — Não creio ter visto ninguém tão bela como a senhora, a não ser Fátina, entende-se. Nenhuma pode ser linda como ela... eu penso que ela seja a pessoa mais bela do mundo.

   A graciosa senhora, que se chamava Miss Herbert, beijando a criança docemente, e, sorrindo, assegurou-lhe que também ela pensava da mesma maneira.

   Por quase toda a noite, a moça teve junto de si, Lord Fauntleroy e toda a atenção dos presentes, se concentrou neles. A certo ponto Cedric, sem notar mesmo, começou a falar da América, das procissões com tochas, de Dick, do Sr. Hobbs, e, em dado momento, tirou do bolso com orgulho para mostrar a todos, o belo lenço flamejante, que lhe tinha presenteado o seu amigo engraxate. E explicou: pus hoje no bolso para a festa. Se Dick o soubesse, gostaria muito, estou certo disto. .

   Na realidade, o lenço era muito vistoso e no meio de toda aquela refinada elegância, destoava um pouco, mas ninguém teve coragem de o dizer, porque a seriedade da criança em falar do presente recebido tinha algo de comovedor.

   — Gosto tanto deste lenço — afirmava — porque é um presente de Dick que é meu amigo.

   O conde tinha dito bem. Cedric não aborrecia ninguém e naquela mesma tarde, quando não insistiam muito para fazê-lo falar, conservava-se calado escutando o que diziam as pessoas grandes, encostando-se a cada momento na poltrona do avô ou sentando-se a seus pés, sobre um escabelo atento às suas palavras.

   O Sr. Havisham, que fora esperado por toda a tarde, chegou atrasado, justamente na hora do jantar. Aproximando-se do conde, tinha um aspecto de tal modo agitado, que surpreendeu o castelão que lhe perguntou o motivo daquela perturbação. O advogado, em voz baixa, respondeu que o desculpasse por ter chegado atrasado, por causa de um acontecimento absolutamente imprevisto.

   Havisham, tão metódico e tão pontual, atrasado e nervoso! Alguma coisa de grave deveria ter acontecido. À mesa, o advogado não comeu quase nada e sucedeu que alguém, dirigindo-lhe a palavra, viu-o estremecer como se tivesse com o pensamento muito distante. O estado de agitação e nervosismo de Havisham pareceu aumentar quando apareceu na sala Lord Fauntleroy, à hora da sobremesa. A própria criança o notou porque já conhecia muito bem o advogado, que só o contemplava com um sorriso amigo, porém, naquela noite, seu rosto estava severo e contraído que não pressagiava nada de bom.

   E como poderia não estar agitado o advogado Havisham, sabendo que mesmo antes de acabar a noite, devia comunicar ao conde algo muito grave, tão inesperado, que nem mesmo se podia imaginar quais seriam as conseqüências? Havisham olhava em torno de si. Toda aquela gente que enchia os salões do castelo, qual era o fim de sua visita, além de ver Lord Fauntleroy? Sorria o herdeiro do conde de Dorincourt e seu avô tinha uma expressão feliz de orgulho. Uma tristeza surda se difundiu do coração do velho advogado. Sofria pelo golpe que devia infligir. Estava de tal modo absorto nos seus pensamentos, que não dava por mais nada do que acontecia à sua volta. Notava apenas os olhares do conde a se dirigirem para ele com surpresa.

   Acabado o jantar, passaram ao salão. Sentando-se no divã, junto a Miss Herbert, Lord Fauntleroy falou-lhe: Devo à senhora ter-me divertido muito nesta festa que é a primeira a que realmente assisto.

   Quando os jovens rodearam novamente a gentil senhora, que se tornara amiga de Cedric, ele ficou a escutar o que diziam, mas depois, com o cansaço, seus olhos começaram a fechar-se. Com esforço os reabria, porque não queria dormir, mas atrás dele havia uma poltrona tão macia! Bastou que apoiasse a cabeça para que os olhos se lhe cerrassem, e desta vez, definitivamente, mas minutos depois os entreabriu. Alguém o beijava suavemente nas faces e uma vozinha acariciante lhe desejava boa noite: era Miss Herbert.

   Àquela saudação, Cedric respondeu meio adormecido, como já se encontrava:

   — Boa noite... estou tão contente de tê-la conhecido... a senhora é tão bonita. — Na manhã seguinte não se recordava mais daquelas palavras, lembrava-se de que ouvira risadas, mas quem sabe porque sorriam?

   Quando todos os convidados se despediram, Havisham aproximou-se do divã. O pequeno Lord estava estendido com o braços de comprido e as pernas pendentes, suas faces estavam mais vermelhas que de costume, circundado pelos seus lindos cabelos louros. Era um quadro encantador!

   A voz áspera do conde ressoou por detrás dos ombros do advogado:

   — Então, Havisham, pode-se saber o que há de novo? Podes dizer-me?

   — Más notícias! — foi a resposta do advogado, passando a mão no queixo, com seu gesto habitual, todas às vezes que alguma coisa o preocupava.

   — Más notícias!? surpreendeu-se o conde.

   — Sim, más — repetiu — realmente péssimas e desastrosas... digo-lhe que sinto muito dever comunicar-lhas...

   O conde já durante o jantar devia ter o pressentimento de alguma coisa pouco agradável, porque tivera algumas crises de nervosismo e irritação. Agora falava asperamente ao advogado:

   — Gostaria de saber por que olhavas o menino daquele modo estranho, e o fizeste por toda a festa... como se... vamos, Havisham. Não queiras ser ave de mau agouro... que tem que ver Lord Fauntleroy com as tuas más notícias?

   O advogado decidiu-se:

   — Mas — começou — o que devo dizer-lhe se refere unicamente a Lord Fauntleroy, que, a julgar pelo que soube, não é Cedric, de modo nenhum Lord Fauntleroy, mas... somente o filho do capitão Cedric Errol, nada mais. Já porque o verdadeiro Lord Fauntleroy parece que é o filho de seu filho Névis, que atualmente se encontra num Hotel em Londres!

   O conde apertou fortemente os braços da poltrona com tal estremecimento, que as veias se lhe saltaram na fronte e nos pulsos, Com o rosto lívido, gritou: — Que dizes? Estás louco? Quem inventou tal mentira?

   — Se é mentira, tem toda a aparência de verdade... suspirou o advogado. — Esta manhã uma senhora veio ter comigo para dizer-me que há 6 anos em Londres casara-se com o filho de V. S., Névis, e, para dar valor às palavras que me dizia, mostrou-me os seus documentos legalizados. Contou-me em seguida, que um ano depois separou-se de Névis, que, não querendo mais vê-la, lhe concedeu uma pensão. Esta senhora tem um filho: uma criança de 5 anos. É uma americana de baixa condição social, ignorante e vulgar, que até pouco tempo não tinha consciência dos direitos de seu filho, mas bastou consultar um advogado para sabê-lo.

   Após breve pausa, Havisham prosseguiu.

   — Por isso, agora aquela senhora pretende que seu filho seja reconhecido como Lord Fauntleroy, herdeiro do título e do patrimônio dos Dorincourt.

   A loura cabecinha abandonada à almofada apenas se moveu, enquanto um calmo e profundo suspiro saía dos pequeninos lábios entreabertos. Talvez ao menino adormecido, pouco se lhe dava não ser o Lord Fauntleroy e não poder ser o conde de Dorincourt. Seu rostinho voltou-se ligeiramente, como para que pudesse ver melhor o avô que o contemplava imóvel, com um sorriso amargo.

   Finalmente o conde falou:

   — Não daria crédito em uma só palavra de tudo isto, se a refletir bem, não fosse uma felonia digna em tudo e por tudo do Névis, deste meu filho que foi sempre uma desonra para a família Dorincourt; fraco, mentiroso, sem nenhuma virtude... E aquela mulher disseste que é ignorante, vulgar?

   — Assina seu nome com dificuldade... e deve ser de uma venabilidade revoltante. Seu único pensamento deve ser o dinheiro. Não digo que não seja bela, apesar de o ser de maneira trivial, mas... Havisham, habituado a tratar com a aristocracia, fez um gesto muito expressivo.

   Gotas de suor frio banhavam a fronte enrugada do conde, e ele as enxugou com um lenço. E o sorriso de seus lábios acentuava-se cada vez mais amargo. Murmurou:

   — E eu me opunha à outra... à sua mãe — e apontou para a criança adormecida. — Não queria nem mesmo conhecê-la... Fui castigado. É justo, muito justo!

   Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro da sala. Sentia-se com a alma flamejante de indignação de ódio ou de desilusão! Uma verdadeira tempestade de cólera se desencadeava nele e parecia sacudido como o furacão sacode e abate uma árvore. Todavia, o advogado notou que S. Senhoria não se esquecia da criança adormecida e tinha cuidado de lançar suas imprecações em voz baixa, para não acordá-la.

   — Poderia esperar por esta! — repetia entre dentes. — Aqueles dois filhos desde o dia em que nasceram foram a minha vergonha! Custa-me crer em coisa semelhante, mas, se for verdade, lutarei com todas as forças!

   Enfureceu-se novamente, fez mais perguntas sobre a mulher e sobre os documentos que mostrara, e, a cada resposta do advogado, ficava lívido e fora de si, trêmulo pela ira que o devorava.

   De repente, encostado no diva, confessou doloridamente:

   — Se alguém me predissesse... um dia que me afeiçoaria a um menino... — a voz, apesar de áspera, agora lhe tremia — não o teria acreditado. Nunca suportei crianças, mas a este menino quero bem, eu o sei... — sorriu tristemente — não me teme e tenho muita confiança nos seus atos. Ocuparia o meu posto melhor e com mais honraria do que eu, é digno do nome dos condes de Dorincourt.

   Inclinou-se sobre a face cor de rosa, franzindo as sobrancelhas, mas era uma expressão de infinda tristeza e perturbação. Levantou docemente da fronte de Cedric os anéis encaracolados dos seus louros cabelos e depois, voltando-se, tocou a campainha. Quando o criado entrou, disse-lhe o conde com a voz um tanto trêmula:

   — Leva... Lord Fauntleroy ao seu quarto...

  

                                   NA AMÉRICA

   Os velhos amigos estão na América. O Sr. Hobbs sentira-se muito só quando, passada de agitação na qual o tinha imergido a notícia inesperada de que o amigo era um Lord, e deveria ir para a Inglaterra, convenceu-se de que entre ele e Cedric estava de permeio o Oceano Atlântico. O bom vendeiro se tinha realmente afeiçoado à criança, e não podia de modo nenhum substituí-la em seu coração, e isto porque afinal não era homem muito brilhante, nem de grande espírito, e tinha bem poucos conhecidos. Os divertimentos não o atraíam e tinha como única distração a leitura dos jornais e as contas do seu negócio. Esta última ocupação não era das mais fáceis, pois, antes de estar certo de que as somas estavam exatas, perdia muito tempo. Cedric, que era bastante inteligente, o ajudava algumas vezes um pouco. Brincar com o menino era o seu prazer. Interessava-se tanto por tudo o que estava nos jornais e ficava a ouvir com muita atenção as palavras do Sr. Hobbs sobre a Revolução, sobre os ingleses, sobre as eleições e sobre os republicanos. Não era para admirar que deixasse um vazio tão grande na venda.

   Os primeiros dias pareciam ao Sr. Hobbs que não era verdade que Cedric tivesse partido de Nova York. Mas, (oh! dura realidade!) um belo dia, levantando os olhos do jornal, o teria visto à porta, vestidinho de branco, com as calcinhas vermelhas e o gorrinho na nuca, e sua vozinha alegre o teria saudado como de costume:

   — Bom dia, Sr. Hobbs. Que há de novo? Como vai a vida?

   Mas nada disso era verdade, e os dias passavam e o quitandeiro se tornava cada vez mais melancólico. Não tinha mais gosto nem mesmo para ler os jornais, porque não tinha com quem comentar os acontecimentos. Muitas vezes o deixava cair sobre os joelhos e como que sonhando, fixava o banco onde tantas vezes viu Cedric sentar-se. Nas pernas duma cadeira que Cedric muitas vezes também ocupara, havia tantas marcas de pés que entristeciam ao pobre Sr. Hobbs. Cedric os fizera batendo com os pés entusiàsticamente, quando à discussão se animava. E aquelas marcas estavam ali, como a provarem que também os pequenos condes, apesar do seu sangue nobre, e sua fina linhagem, gostam às vezes de dar pontapés nas cadeiras.

   Quando estava cansado de olhar aqueles sinais da passagem de Cedric, o Sr. Hobbs tirava do bolso o relógio de ouro, abria-o e lia: “Ao Sr. Hobbs, seu velho amigo Lord Fauntleroy”. E depois fechava-o com um gesto triste, levantava-se com um suspiro e dirigia-se à porta por entre as caixas de maçãs e sacos de batatas e olhava para cima, para o céu azul. Ao cair da noite, depois de fechar as portas, acendia o cachimbo e ia dar um passeio até a casa onde o pequeno Cedric morou. Olhava para o cartaz: “Aluga-se”, balançava a cabeça, puxava com mais força baforadas de fumo, do cachimbo, e voltava mais triste ainda para casa. Passaram duas semanas assim, até que brotou na mente do Sr. Hobbs uma idéia. Era um pouco retardatário em tudo, e em geral desconfiava das novidades, mantendo-se fiel às suas tradições. Contudo, notando que as coisas iam de mal a pior, porque não fazia outra coisa senão pensar no seu pequeno amigo, que nunca mais vira, nem viria talvez jamais, começou a amadurecer um projeto: ir procurar o engraxate Dick. Cedric tinha-lhe falado tanto nele, ou? justamente o Sr. Hobbs pensou que seria um alívio estar com ele, para recordarem juntos o pequeno amigo que perderam, talvez para sempre. E assim, um dia, Dick, ocupadíssimo em engraxar os sapatos de um freguês, viu um homem alto e calvo parar na calçada a fixar a placa que dizia. “Dick, o Insuperável!” Estava tão encantado em contemplá-la, que Dick, depois de ter despachado o freguês, que servia no momento, dirigiu-se ao Sr. Hobbs, perguntando-lhe:

   — Quer engraxar, senhor?

   O quitandeiro apresentou o pé ao engraxate, anuindo, mas, quando Dick engraxava seus sapatos, o novo freguês não fazia senão fixá-lo ao mesmo tempo que a placa também, até que perguntou:

   — Quem te deu?

   — Um amigo — foi a resposta de Dick. E também me deu todo o resto do que tenho... um menino tão bom, o melhor amigo do mundo. Agora foi para a Inglaterra para ser conde.

   Bem pausadamente, o Sr. Hobbs, pronunciou:

   — Lord... Lord... Fauntleroy, que será conde de Dorincourt!

   A escova caiu por terra. Dick arregalou os olhos exclamando: o senhor o conhece?

   — Desde que nasceu — afirmou o Sr. Hobbs, passando o lenço na fronte — éramos velhos amigos... eis o que éramos...

   Comovia-se falando daquele tempo. Tirou do bolso o relógio e mostrou a Dick a dedicatória lendo em voz alta:

“Quando olhares isto, pensarás em mim”. Deu-me para que não me esquecesse dele, mas imagina se eu poderia esquecer-me dele... mesmo que não me tivesse dado o relógio e se eu soubesse que nunca mais o veria! E como se poderia esquecer de um amigo como ele? Calou-se e por sua vez Dick começou a falar.

   — Nunca conheci um amigo como ele, e como era corajoso... Queria-lhe muito bem... e ficamos amigos, desde o dia em que lhe salvei uma bola que lhe tinha caído debaixo das rodas de um carro. Desde então, vinha sempre falar comigo acompanhado de sua mãe ou da aia, e logo de longe já gritava para mim: “Olá Dick!” como se fosse um homem feito e não pequenino, ainda de calcinhas curtas, estava sempre alegre e quando os negócios me iam mal eu me consolava falando com ele sobre os meus assuntos.

   — Assim mesmo! exclamou o Sr. Hobbs.

   — É uma pena que tenham querido fazê-lo conde! Na venda, não te digo o que viria a ser, e mesmo num negócio de fazenda, com aquele garbo, aquela sua inteligência! Um portento!

   E balançou a cabeça com tristeza.

   Entrados em argumentos os dois tinham tanta coisa que dizer que entenderam como não era fácil falar tudo de uma vez e fizeram uma combinação: Na tarde seguinte Dick iria visitar o Sr. Hobbs na sua venda. A idéia agradou ao engraxate que era um menino às direitas, sem família, e que sempre desejara um pouco de tranqüilidade e de paz. Desde quando se livrara, graças à intervenção de Cedric, do seu sócio, ganhava o suficiente para poder pagar um leito para dormir e não passar as noites ao ar livre, e esperava que com o tempo a sua situação fosse sempre melhorando. Agora aquele convite de um ancião respeitável, proprietário de uma venda bem sortida, de uma carroça e de um cavalo, para Dick era um verdadeiro acontecimento.

   Antes de despedir-se, o Sr. Hobbs perguntou ao jovem:

   — Tu sabes alguma coisa sobre os condes e sobre os castelos? Gostaria muito de saber alguma coisa em particular a respeito.

   Dick respondeu: — No jornalzinho que custa cinqüenta centavos que eu compro sempre, há uma história intitulada: “O dileto da dama da corte” ou “A vingança da condessa Maria”. É muito interessante e cada semana vem um capítulo novo.

   — Traze-me amanhã que eu te pagarei, recomendou o quitandeiro e traze-me também tudo o que encontrares sobre marqueses ou duques, apesar de ele não me falar nada sobre o assunto. Iniciou-se assim uma grande amizade entre o Sr. Hobbs e Dick.

   Na tarde antes da primeira visita, o quitandeiro acolheu o engraxate com grande cordialidade. Fê-lo sentar perto das caixas de maçãs, dizendo-lhe:

   — Serve-te; acendeu o cachimbo e depois olhou os jornais trazidos por Dick, e os dois se engolfaram em. grandes discussões, sobre a nobreza britânica. A certo ponto, o Sr. Hobbs indicou ao menino o banco que tinha aqueles sinais nas pernas:

   — Sabes o que são aquelas marcas? São pontapés de Lord Fauntleroy. Porque era ali que ele se sentava, comia biscoitos das latas, maçãs das caixas e lançava as cascas à rua. E agora vive num castelo... e aquelas são marcas dos pés de Lord Fauntleroy, que um dia serão os sinais feitos por um conde. Aseguro-te, que às vezes digo comigo sério. “Desejaria ser massacrado!”

   A visita de Dick e as suas palavras foram de grande conforto para o Sr. Hobbs. Antes que o seu hóspede se despedisse, exigiu que ceasse com ele numa sala que tinha atrás da venda e lhe ofereceu queijos e sardinhas,biscoitos e conservas de sua venda, abrindo por fim, com certa solenidade, uma garrafa de cerveja, com a qual encheu dois copos.

   — À saúde! — exclamou antes de levar aos lábios o seu. — E que possa dar boas lições a todos os condes, duques e marqueses!

   Depois daquela tarde, os dois novos amigos, se reviram muitas vezes e o Sr. Hobbs sentiu-se um pouco mais consolado. Ele e Dick, lendo o jornal de cinqüenta centavos e outras folhas interessantes do mesmo gênero, começaram a se instruírem sobre os hábitos da aristocracia, conhecimentos que sem dúvida teriam antes surpreendido a dita nobreza, se fosse informada a respeito. Um dia, pois, o Sr. Hobbs foi de propósito à uma livraria e pediu alguma coisa que servisse para enriquecer a sua biblioteca naquele gênero. Entrou e, apoiando-se no balcão, dirigiu-se ao caixeiro: — Quero um livro que fale de condes.

   — De que?

   — Um livro que fale de condes — repetiu pacientemente o quitandeiro. ao que, sempre com o mesmo ar de admiração, replicou o caixeiro:

   — Talvez não tenhamos tal livro.

   — Sim? — disse perplexo o Sr. Hobbs. — Então há alguma coisa que fale de marqueses e duques?

   — Mas, a falar a verdade, não conheço livros que falem dessa gente — respondeu o caixeiro.

   O Sr. Hobbs sentiu-se vagamente perturbado: olhou para o pavimento, depois o teto e insistiu: — Um livro ao menos que fale de condessas...

   — Penso que nem há desses livros... — e o caixeiro sorriu ligeiramente.

   — Ora bolas! Então? — exclamou o Sr. Hobbs e estava para sair desiludido quando o caixeiro o chamou, que tinha um livro no qual todos os protagonistas eram nobres e se lhe agradava tal livro. Em falta de melhor, o quitandeiro resolveu contentar-se com aquele, e o caixeiro lhe vendeu um romance intitulado: “A torre de Londres”, e o Sr. Hobbs o levou para casa.

   À noite, quando veio Dick, os dois amigos começaram a lê-lo achando-o interessantíssimo: Tratava-se de um episódio do reino daquela célebre rainha da Inglaterra, chamada Maria, a Sanguinária, e quando o Sr. Hobbs conheceu os seus feitos e o seu belo hábito de cortar a cabeça e queimar viva a gente, ficou tomado da mais profunda agitação; tirava o cachimbo da boca, punha-o novamente, enxugava o suor com o lenço encarnado e olhava para Dick, abrindo muito os olhos, até que, finalmente, rompeu em exclamações:

   — Mas então, está em perigo? Se naquele país uma senhora pode sentar-se tranqüilamente num trono e ordenar aquelas atrocidades quem sabe o que pode suceder-lhe de um momento para o outro? É um desastre!Dick, apesar de não estar muito tranqüilo, da sua parte, procurou acalmar o amigo.

   — Agora as coisas mudaram, — disse — não é mais a mesma rainha quem manda. A de agora chama-se Vitória, e a do livro chamava-se Maria.

   — É verdade... admitiu o Sr. Hobbs — passando mais uma vez o lenço sobre a fronte — e é verdade que os jornais de agora não dizem nada de torturas, de fogueiras, de patíbulos, mas que queres que te diga, eu sempre tenho medo que lhe suceda alguma coisa, no meio desta gentalha que não festeja nem ao menos o 4 de julho. O Sr. Hobbs ficou inquieto por longo tempo e se tranqüilizou somente um pouco quando recebeu uma carta de Cedric e a leu e releu, juntamente com Dick, que por sua vez a fez ler ao quitandeiro a que tinha recebido.

   Aquelas cartas eram mesmo um alívio! Os dois amigos as comentavam palavra por palavra e levavam horas a compilar as respostas que liam e reliam antes de enviá-las. Na realidade, para Dick, escrever era um verdadeiro trabalho dada a pouca instrução, que tinha adquirido como pudera, enquanto vivia junto com o irmão mais velho. Fora então a uma escola noturna e, sendo muito esperto, soube aproveitar-se daqueles poucos meses de estudo, e depois continuava sempre a se exercitar, lendo alguns jornais ou escrevendo a giz nas paredes. Contava agora ao Sr. Hobbs o tempo transcorrido com o irmão que fora muito bom para com ele quando começaram a viver juntos, depois de terem perdido seus pais. Bem se ocupara Dick até que ele pudera ganhar a sua vida, vendendo jornais e fazendo pequenos recados. Quanto a Ben, que era um jovenzinho ativo e de boa vontade, tinha uma ótima colocação numa casa de negócios.

   — Tudo andaria prosperamente se Ben não se tivesse casado — contava Dick com a voz irritada. — Imagine o senhor que se enamorou de uma menina, como um bobo, e se casou com ela. Começaram a viver ambos em dois quartos. Ela era uma verdadeira fúria! Quebrava tudo que tinha nas mãos, quando estava nervosa e estava sempre irritada. E quando começava a berrar! E o filho de Ben e daquela mulher era justamente como a mãe, não fazia outra coisa senão chorar, dia e noite, e, se eu não me precipitasse a calentá-lo, minha cunhada jogava-me na cabeça o primeiro objeto que encontrasse à mão. Foi assim que um dia me jogou um prato, mas, em vez de acertar em mim, acertou no menino, e lhe fez um ferimento no queixo. O médico disse que a cicatriz ficaria por toda a vida. Que raça de mulher! E que vida fazia viver meu irmão e seu marido! Também a seu filho e a mim! Como odiava de morte porque dizia que não ganhava bastante, um dia ele saiu de casa com um rapaz que tinha uma criação de gado, porque também já não podia mais suportá-la. Fiquei eu, mas oito dias depois que Ben partira, voltando a casa — naquele tempo eu vendia jornais — não encontrei mais ninguém e uma vizinha disse que Mina tinha ido embora levando a criança. E nem eu, nem Ben, soubemos de mais nada. Creio que meu irmão não se tenha lamentado, nem tenha tido saudades dela, mas, quando a conhecera, ficara tão enamorado daquela bruxa! Aliás, ela não era feia, quando estava bem vestida e de bom humor. Tinha os olhos negros e cabelos compridos até os joelhos, e os olhos lhe brilhavam de uma maneira...

   Ben freqüentemente escrevia a Dick, que falasse dele ao Sr Hobbs. Parecia que não tivesse tido muita sorte, andara de um lado para outro e depois se domiciliara na Califórnia, juntamente com um criador de gado e se encontrava ainda ali.

   Uma tarde, Dick confiou ao Sr. Hobbs:

   — Aquela Mina arruinou realmente meu irmão: asseguro-lhe que às vezes ficava com pena... estavam sentados à porta da venda e o quitandeiro, enquanto ouvia o seu amigo, enchia o cachimbo e dizia: — Teu irmão não devia casar-se — levantou-se para ir buscar um fósforo, encostando-se ao banco para apanhar a caixa, exclamou: — uma carta! Como é que não dei por ela? Vê-se que o carteiro a colocou entre os jornais. Olhou-a de todos os lados e continuou: — mas... é sua, foi ele quem a escreveu! Não pensou mais no cachimbo nem nos fósforos, e, todo agitado, voltou a sentar-se junto de Dick, murmurando: — Que dirá de novo esta vez?

   Abriu o envelope com o canivete e começou a ler:

   — “Caro Sr. Hobbs, escrevo-lhe com grande pressa, porque lhe devo dizer uma coisa realmente extraordinária que o senhor ficará maravilhado. Aconteceu uma grande embrulhada: eu não sou mais Lord Fauntleroy e nunca ficarei conde, porque apareceu uma senhora que se tinha casado com meu tio Névis que morreu e deixou um menino e então agora é ele Lord Fauntleroy, porque na Inglaterra se faz assim: o filho mais velho de um conde, fica sendo conde, quando os outros morreram, e então eu me chamo de novo Cedric Errol como quando estava na América, e tudo aquilo que me tinha dado o vovô aquele menino me tomará, menos o cavalinho, pois vovô não o consentirá. Não lhe agrada nada, e creio que não gosta daquela senhora; mas talvez pense que Fátina e eu estamos aborrecidos porque eu não serei mais conde, é pena, porque gostava muito do castelo e do parque e todos me queriam bem, finalmente é muito bom a gente ser rica, porque pode fazer muitas coisas, mas eu não sou rico, porque meu papai, que era o terceiro filho do vovô, não podia ser rico nem conde, e então, quando for grande, trabalharei para sustentar Fátina, e, se Wilkins me ensinar a tratar de cavalos, poderei tornar-me escudeiro ou cocheiro. Aquela senhora veio ao castelo com o seu filho e meu avô e o Sr. Havisham lhe falaram, e ela se zangou e gritou tanto que o vovô se enfureceu como nunca eu tinha visto. Eu não queria que se zangassem assim todos! Quis escrever-lhe aquilo que sucedeu, ao senhor e a Dick, porque sei que lhes interessará, mas por hoje basta, e creia-me o seu amigo, Cedric Errol, não mais Lord Fauntleroy”.

   O Sr. Hobbs caiu pesadamente sobre a cadeira de braços, enquanto a carta, o envelope e o canivete, se espalharam por terra, e gemeu exclamando:

   — Com mil demônios, não entendo nada!

   Estava de tal modo estupefato que tinha transformado, sem o perceber a sua maneira de falar que nunca chegava a exclamações tão fortes.

   Quando Dick conseguiu falar, disse:

   — Então está tudo por terra?

   — Ah! eu sei que é toda essa história! É um complô daqueles belos senhores, condes, duques, marqueses, para derrubá-lo, porque é americano! Odeiam-nos e agora se vingam nele! Eu lhe tinha dito que estava em perigo... viste que coisa sucedeu? Estão de acordo até com o governo, acredita-me, para espoliá-lo de tudo aquilo que lhe pertence de direito!

   O Sr. Hobbs estava fora de si... A princípio, não tinha acolhido com entusiasmo a mudança de vida do seu pequeno amigo, depois, gradualmente, se habituara e antes se poderia dizer que sentia certo orgulho quando chegavam aquelas cartas de Cedric, que descreviam tantos esplendores.

   Se o Sr. Hobbs não tinha grande opinião dos condes, como bom americano apreciava de tal modo o dinheiro que não podia dar-se conta de tudo o que podia significar perdê-lo de um golpe, juntamente com um título de tão alta dignidade.

   Derrubam-no — exclamava — eis o que fazem lá em cima, e outros que têm dinheiro deveriam pensar em defendê-lo. Entretinha a Dick por longo tempo, porque não podia falar com outros a desventura que lhe sucedera, e da ruína do seu amigo, e, quando o engraxate se despediu, o Sr. Hobbs lhe fez companhia até a esquina, parou um momento diante da casa que ainda mostrava a placa “Aluga-se” e continuava a fumar o seu cachimbo, mas permanecia mais do que nunca preocupado.

                               OS RIVAIS SE APRESENTAM

   Apenas poucos dias depois do grande jantar que houve no castelo, todos os leitores de jornais da Inglaterra ficaram informados das vicissitudes romanescas de Dorincourt que, para dizer a verdade, era de interesse palpitante. A história era narrada com todos os seus pormenores. Falava-se do pequeno americano vindo para ser educado, como convinha a Lord Fauntleroy, era belo, dizia-se nas cortes, e já amado de todos. Ocupavam o primeiro plano nas crônicas, o conde, tão orgulhoso do seu herdeiro, e a jovem mãe à qual não fora ainda concedido perdão, pelo casamento com o capitão Errol. Contava-se depois o casamento ainda mais bizarro do Lord Fauntleroy defunto com uma senhora desconhecida de todos, que de improviso aparecia na ribalta, pedindo que fossem reconhecidos os direitos de seu filho, o autêntico Lord Fauntleroy. Era o assunto do dia, e despertava em todos imenso interesse. Soube-se depois que o conde de Dorincourt, que escondia sua grande cólera, propunha-se a examinar a fundo a questão por meio de seus advogados, de modo que se podia concluir que o processo seria um daqueles que atraem a atenção de todos.

   Mas, particularmente, era em torno do castelo que se faziam as rodinhas dos comentários. As comadres convidavam-se mutuamente cada dia para novos assuntos e davam opiniões a respeito do caso de Dorincourt. Como sempre, a mais bem informada era a senhora Dibbles, procurada por todos.

   As coisas vão mal — afirmava — e se quereis saber o meu parecer, eu vos digo que isto é um castigo, por terem tratado tão mal aquela senhora, separando-a de seu filho. Ela sim, que é uma verdadeira senhora, mas a outra... não o creio! Não passa de uma desavergonhada e uma grande impertinente, e, quanto a seu filho, nem se pode fazer uma comparação com aquela outra bela criança. Só Deus sabe o que sucederá e como acabará toda essa história! A agitação reinava em toda a parte! Na biblioteca onde o conde e o advogado se entretinham por longo tempo a discutir; nos quartos dos empregados, onde Tomás, o mordomo, e toda a criadagem perdiam o tempo em conversas fúteis, nas cavalariças onde Wilkins com ar tristonho, tratava do cavalinho baio com mais carinho que antes, dizendo ao seu colega que nunca ensinara a cavalgar a um menino tão esperto e corajoso, que era um verdadeiro prazer, vê-lo a cavalo.

   Entre tanta gente perturbada o único que permanecia calmo e tranqüilo era o interessado. Quando explicaram a Lord Fauntleroy o estado das coisas, ficou primeiramente muito admirado e ligeiramente perplexo, mas, não porque a sua ambição ficasse lograda. Enquanto o conde lhe falava do assunto, a criança se conservava sentada sobre o escabelo, apertando os joelhos com os bracinhos como fazia muitas vezes, quando escutava algo que lhe interessava. Finalmente, levantou o rosto no qual se lia certa ansiedade, dizendo:

   — Não sei... sinto alguma coisa de estranho, muito estranho, mas não saberia dizer o que é.

   O conde contemplava-o sem dizer palavra. Também ele sentia algo de estranho, como nunca sentira antes, sobretudo vendo aquele rostinho, que estava habituado ver alegre e sereno, perturbado por esquivos pensamentos. Finalmente Cedric murmurou com voz inquieta:

   — Vão levar a charrete de Fátina? E ela também deve deixar o “Palacete”?

   — Oh! não! — exclamou o avô.

   — Realmente?

   E Cedric parecia aliviado, mas olhou ainda cheio de ansiedade o avô:

   — E o outro menino... — perguntou, e a voz tremia-lhe — será seu filho como eu o fui?

   — Não! — O velho senhor pronunciou o monossílabo com tanta força, que Cedric se assustou.

   — Não!? — murmurou — cria... — Levantou-se do escabelo e perguntou: — Continuarei a ser seu neto, mesmo se não me tornar conde? Será o mesmo como antes?

   Uma viva ansiedade se lia em seu rostinho: O conde olhou para ele e seus olhos lhe brilharam cruelmente sobre as densas sobrancelhas contraídas.

   — Meu filho! — exclamou. Falava em tom cortante e resoluto, mas a sua voz tremia-lhe um pouco; Nunca! — e acrescentou — até a minha morte, tu serás sempre meu filho... às vezes me parece que és realmente meu único filho!

   Cedric enrubesceu de alegria e de alívio e, com as mãos nos bolsos, olhou para o avô:

   — Então não me importa nada de ser ou não conde! E eu cria que aquele que fosse conde deveria tornar-se seu filho era meu lugar, e era por isso que eu sentia uma coisa esquisita aqui dentro...

   O avô, apoiando-lhe uma mão no ombro, aproximou-o a si:— Nunca te levarão nada de tudo o que puder conservar para ti — murmurou comovidamente — e ainda não quero crer que te possam levar nada. O título é teu, e farei tudo para te conservar, mas qualquer coisa que venha a acontecer, mesmo assim, terás tudo o que te poderei dar, tudo! — Não parecia que falasse com a criança tal a expressão do seu rosto e a decisão da sua voz. Parecia que antes fazia uma promessa a si mesmo que, talvez, nunca se chegasse a cumprir. Alguns dias depois de ter falado com o Sr. Havisham, a senhora que pretendia ser Lady Fauntleroy chegou ao castelo com seu filho. O conde mandou dizer-lhe que não queria recebê-la e que tinha encarregado do assunto o seu advogado. Esta mensagem estava a cargo de Tomás, e ele, falando com seus companheiros, declarou que aquela não era de modo nenhum uma senhora, e de verdadeiras senhoras entendia muito bem, dado os anos que tinha prestado serviço em famílias senhoris.

   Com certo ar de superioridade, acrescentou também; — a que está no “Palacete”, será americana toda a vida, mas é uma grande senhora, não há nada a dizer sobre isto, e um homem que tenha pouco discernimento nota-o logo, aliás, eu mesmo já o disse a Henrique no primeiro dia em que a vimos.

   Repelida pelo conde, a senhora retirou-se um pouco temerosa, mesmo encolerizada como estava. O advogado, todas as vezes que falara com ela, já notara que tinha um caráter iracundo e maneiras profundamente vulgares, com uma boa dose de insolência; todavia não era nem inteligente, nem sagaz, como assim queria ser. Não era nem mesmo o caso de se falar, que ela estivesse à altura da posição à qual aspirava. Falando à senhora Errol, disse o Sr. Havisham:

   — Deve ser de baixa condição, completamente ignorante e mal-educada, incapaz sequer de tratar de igual para igual, pessoas como nós. Não sabe de modo nenhum comportar-se. A sua visita ao castelo deixou-a irritadíssima, mas também a impressionou de modo evidente. O conde não quis nem recebê-la, mas eu o aconselhei ir comigo ao hotel para vê-la. Quando entrou, aquela mulher ficou lívida e logo não encontrou melhor saída do que irritar-se, e todas as suas perguntas eram mais ameaças.

   Realmente Sua Senhoria, aparecendo em toda a nobreza da sua impotente figura aristocrática, media a senhora de alto a baixo, franzindo as sobrancelhas sem preocupação de ocultar a sua repugnância. Deixou que falasse sem interrompê-la, e, somente quando ficou quase sem palavra, replicou friamente o conde:

   — A senhora, diz que é a esposa de meu filho mais velho: se é verdade, quero dizer, se as suas provas puderem convencer-nos, a senhora terá a lei da sua parte, e seu filho será Lord Fauntleroy. Pode ficar certa de que o caso será examinado a fundo e, se as suas pretensões forem justas, a senhora alcançará tudo o que lhe for devido. Mas, lembre-se bem, que enquanto eu for vivo, sou eu o conde de Dorincourt, e não quero vê-los, nem à senhora nem a seu filho! Desgraçadamente não posso dispor do que acontecerá depois da minha morte. A senhora é a pessoa que podia supor escolhida por meu filho Névis.

   Ditas essas palavras, voltou-lhe as costas, saindo majestosamente do hotel como tinha entrado. Alguns dias depois a senhora Errol escrevia nos seus aposentos do “Palacete”, quando uma das empregadas anunciou agitadíssima:

   — Senhora, é o conde de Dorincourt.

   Quando entrou no salão, a senhora Errol viu em pé, diante da chaminé, um velho de elevada estatura, imóvel, com um severo perfil, nariz aquilino, longos bigodes grisalhos e duas pupilas que a fitavam com obstinação e agudeza.

   O visitante disse:

   — A senhora Errol!?...

   — Sou eu — respondeu, imperturbável, a mãe de Cedric.

   — Sou o conde de Dorincourt — calou-se um instante olhando-a nos olhos, naqueles grandes olhos afetuosos semelhantes aos olhos infantis que de alguns meses se erguiam para ele com uma confiança inabalável. A senhora Errol o fitava com aquela mesma confiança, de uma forma tão comovedora, que emocionou o conde. Quase com rudeza afirmou:

   — Seu filho parece muito com a senhora!

   — Oh! já me disseram tantas vezes, conde, mas parece também muito com o seu pai, e isto me consola tanto...

   Doce e triste era a voz da senhora Errol, com seu porte esbelto e cheio de dignidade, como assim tinha dito Lady Lorridaille ao seu obstinado irmão, a viúva do capitão Cedric Errol não parecia, de modo nenhum embaraçada pela visita inesperada.

   —- De fato — anuiu o velho senhor — parece-se muito com meu filho Errol — e passou a mão nos bigodes nervosamente — A senhora sabe o motivo da minha visita? — perguntou.

   — O Sr. Havisham disse-me que já estão bem adiantadas as pretensões.

   O conde a interrompeu:

   — Eu vim dizer à senhora que serão examinadas com a maior atenção e, se possível, combatidas as preterições da senhora Névis! Vim dizer-lhe também que seu filho será defendido com todo o poder da lei. Os seus direitos...

   Agora foi a senhora Errol que interrompeu o velho conde; mas, com grande doçura:

   — Oh! o pequeno não deve ter nada que não seja seu de direito, nem mesmo se a lei o consentisse.

   — Mas a lei não pode muito num caso deste gênero... fará o que for possível, e nada mais. Aquela insolente e seu filho!...

   — Talvez lhe queira bem como eu quero a Cedric — murmurou a senhora Errol — e se é verdade que o filho de V. S. a desposou, é seu filho que é o Lord Fauntleroy e não o meu!

   Como a Cedric, a Fátina também o conde não inspirava nenhum temor. Ela o olhava da mesma maneira como o fazia Cedric, e isto sem incomodar o conde, aliás, muito o agradava. Era uma espécie de novidade para ele, habituado a ver tremer a gente, quando estava diante dele, que quase o divertia. Franzindo imperceptivelmente a fronte, perguntou:

   — Diria quase que a senhora prefere que o seu filho não seja o conde de Dorincourt!

   Um leve sorriso aflorou aos lábios de Fátina, que lhe respondeu:

   — Oh! sei muito bem o que significa ser o conde de Dorincourt, mas me preocupa muito mais que Cedric seja como o seu pai; honesto, bom, justo e corajoso!

   Com sarcasmo o conde replicou:

   — Evidentemente tudo o contrário do que foi o seu avô...

   — Até hoje, não tinha tido o prazer de conhecer o avô de meu filho, mas, sei que ele crê... — parou, depois com olhos fixos no rosto do conde acrescentou: — sei que Cedric lhe quer bem.

   — A senhora pensa que ele me quereria bem igualmente, se lhe tivesse dito que eu não queria que a senhora viesse ao castelo? — perguntou bruscamente o conde.

   — Não, realmente não o creio, e é precisamente por isso que preferi não lho dizer.

   — Bem, pigarreou o conde — poucas mulheres seriam capazes de guardar silêncio.

   E pôs-se a caminhar de um lado para outro pelo quarto, confiando nervosamente os bigodes.

   Subitamente exclamou:

   — Sim, a criança me quer bem e eu também lhe quero. Creio que nunca amei a ninguém em toda a minha vida, mas a ele sim, eu o quero muito. Gostei dele assim que o vi. Sou velho e me sentia tão cansado de viver, mas aquela criança deu um escopo a minha existência. Sinto-me orgulhoso dele e pensava com alegria que um dia seria a personificação dos nossos antepassados gloriosos!

   Parou de andar de um lado para outro e, detendo-se diante da viúva de seu filho, deixou escapar:

   — Sinto-me tão infeliz! Tão infeliz... confessou — e via-se que nem mesmo o seu orgulho lhe impedia o tremor da voz e das mãos. Por um momento, até parece que seus olhos estivessem marejados de lágrimas.

   Olhou fixo a senhora Errol, e continuou:

   — Vim, talvez, somente porque me sentia assim infeliz... e a odiei porque tinha-lhe profunda inveja. Mas agora tudo mudou. Bastou-me ver aquela mulher vulgaríssima que afirma ser a esposa de meu filho Névis e Lady Fauntleroy, para cair na conta da consolação que teria, fazendo-lhe uma visita. Oh! mas que velho bobo e rabugento fui! Certamente tratei mal a senhora, não o duvido. A senhora se assemelha muito a seu filho... e agora não tenho mais no mundo ninguém, senão a ele.

   Por seu amor, trate-me o menos mal possível, bem o mereço!

   Pronunciava estas palavras em tom áspero, mas parecia de tal modo abatido, que a senhora Errol se comoveu. Levantou-se, empurrou para diante uma poltrona, e disse quase afetuosa:

   — O senhor não gostaria de sentar-se um pouco? Esses dias de luta devem tê-lo cansado, e é justamente agora que o senhor precisa de toda a sua força!

   Que alguém lhe dirigisse a palavra com tanta gentileza e bondade, era mais uma novidade para o conde. Pensou no netinho e, quase sem o perceber, obedeceu. Na realidade, depois de ter dado apenas um relance de olhos naquela mulher estúpida que se dizia a esposa de Névis, qualquer figura feminina lhe pareceria agradável, tão simples e cheia de dignidade era no gesto e nas palavras a senhora Errol, que o conde, como se alguém tivesse exercido sobre ele um influxo benéfico, se sentiu melhor e pôde enfim falar mais livremente. Assim recomeçou:

   — De resto, aconteça o que acontecer, eu tomarei conta da criança.

   Depois, antes de despedir-se, perguntou:

   — A senhora gosta desta casa?

   — Oh! sim, muito — respondeu sorrindo a mãe de Cedric.

   — Realmente... é uma estância alegre. Posso, posso voltar para que falemos ainda, a sós de todas estas coisas?

   — Todas às vezes que o queira — foi a resposta.

   O conde subiu à carruagem e voltou ao castelo. Tomás e Henrique não sabiam realmente o que pensarem de todas aquelas novidades.

  

                                 DICK EM CAMPO

   Depois dos jornais ingleses, foram os jornais americanos que se ocuparam de toda aquela história de Dorincourt. O argumento era demasiado interessante para que não o disputassem. Todavia as versões eram de tal modo diversas umas das outras, que seria interessante ler diversos jornais para fazer os confrontos depois, Mas o Sr. Hobbs, pelo contrário, à força de ler tinha acabado por não entender mais nada. Com efeito, num jornal encontrava descrito o seu amigo Cedric, como uma criança ainda lactente, e em outro o via tornar-se nada menos que um brilhante estudante universitário, um verdadeiro gênio na literatura grega. E havia um jornalista que conjecturava, com perfeita convicção, do noivado do ex-Lord Fauntleroy com a lindíssima filha de um duque, em completo contraste com o seu colega que falava do casamento consumado. Em suma diziam de tudo, menos a verdade: Que era um menino de sete anos, com a cabecinha linda, encaracolada de ouro e duas perninhas ligeiras. Ouvia-se também repetir nas diversas rodas que aquele menino não era de modo nenhum o neto do conde de Dorincourt, mas um pequeno vagabundo, vendedor de jornais, com uma mãe astuta, que soubera muito bem enganar o advogado, enviado à América pelo conde, à procura do herdeiro. E como os jornais se distendiam nas descrições do novo Lord Fauntleroy e da mãe que, vez por outra, aparecia como uma cigana, uma espanhola, uma atriz, etc. Os cronistas, porém, estavam todos de acordo em afirmar que o conde não queria saber de reconhecer como herdeiro o filho de Névis, Lord Fauntleroy, e não cederia, senão obrigado pela lei. E já que os documentos exibidos não eram convincentes de todo, estava em vista um rumoroso processo que interessaria a todo o mundo.

   O Sr. Hobbs não fazia outra coisa senão ler o dia todo, assim, a tarde, estava com dor de cabeça, o que não o impedia de discutir calorosamente sempre sobre o mesmo argumento com Dick. E à força de ler e de falar, conseguiu finalmente entender que raça de personagem era o avô de Cedric, e quanto devia ser rico, com todas as suas possessões, o castelo, o parque e todo o resto.

   Assim o quitandeiro concluiu:

   — Em suma, é preciso fazer alguma coisa, conde ou não conde não se pode deixar escapar toda aquela graça de Deus!

   Mas o Sr. Hobbs e o pobre Dick que poderiam fazer para ajudarem seu amigo? Nada mais que escrever-lhe mostrando a sua solidariedade pelos acontecimentos imprevistos. De fato, mandaram duas cartas a Cedric, sem mesmo terem conseguido fazer uma idéia exata da situação, mas, antes de enviá-las, leram um para o outro as respectivas cartas.

   Assim dizia a carta de Dick:

   — “Caro amigo, recebi a carta que me mandaste e também o Sr. Hobbs a recebeu, sentimos muito que as coisas vão tão mal, mas resista quanto puderes, e não te deixes enganar. Há tantos ladrões em giro que, se entende, procurarão arrebatar tudo o que puderem de ti, se não tiveres os olhos bem abertos. Eu quero dizer-te que não me esqueço de tudo o que fizeste por mim e assim, se na Inglaterra não encontrares nada de melhor, volta para aqui, e vem ser meu sócio. Agora os negócios vão bem, e eu cuidarei de estar atento para que não te suceda nada, porque, se algum malandro quisesse te ofender, tinha de se haver com Dick Tipton. Por hoje te saúda o afetuosíssimo Dick”.

   Por sua vez Dick leu a carta do Sr. Hobbs:

   — “Egrégio senhor, recebi a sua carta, e diria verdadeiramente que as coisas não andam como deviam. Creia-me: aqui há uma conjuração e é preciso que se descubra quem a tramou. Eu lhe escrevo, para dizer duas coisas: A primeira que eu quero interessar-me no caso, não se mova, que eu procurarei um advogado e tomarei conselho. Em segundo lugar, digo-lhe que, se não houver remédio, e todos aqueles condes o puserem para fora, enganando-o, dê um pontapé em todos e volte para a América, que aqui encontrará ótima colocação no comércio, na minha venda, e depois também uma casa e um amigo que lhe quer bem e por hoje se subscreve, o seu devotíssimo Silas Hobbs”.

   O “devotíssimo” Silas Hobbs, comentou assim as duas cartas:

   — Depois de tudo, mesmo se não for conde, entre mim e ti, dará no mesmo.

   — Entende-se — anuiu Dick — eu sempre lhe quis bem.

   Na manhã seguinte um dos fregueses habituais de Dick teve uma surpresa. Era um jovem advogado que começava então a sua carreira, muito pobre e desembaraçado, inteligente e dotado de um caráter esplêndido. Tinha um escritório pobre, justamente ao lado da banca do engraxate, e todas as manhã tinha o prazer de engraxar os sapatos, que, a dizer a verdade, não estavam em bom estado, o que não o impedia de brincar com Dick.

  

   Na manhã de que falamos, o jovem, preparando-se para engraxar os sapatos, trazia entre as mãos um jornal ilustrado, uma daquelas folhas sensacionais, recheadas de notícias exageradas, exemplificadas com grande quantidade de fotografias. Lera-o todo, de modo que, antes de sair, deu a Dick, dizendo-lhe:

   — Faço-te um presente, dá-lhe uma vista enquanto tomas café, no restaurante de luxo da esquina. Verás um castelo inglês, e a nora de um conde. Diria que é uma bela senhora, com olhos e cabelos muito negros, mas está fazendo um barulho louco! Tu deves acostumar-te a tratar com os grandes, Dick. Começa pois com o excelentíssimo conde de Dorincourt e com Lady Fauntleroy... mas, que há? Enlouquecestes?

   As fotografias das quais tinha falado o jovem estavam justamente na primeira página e Dick fixava uma com o rosto lívido, olhos arregalados e lábios entreabertos de espanto. Vendo a atitude do menino, o advogado insistiu curioso:

   — Mas, finalmente, Dick, que houve?!...

   Realmente não se poderia saber o que pensar vendo o menino segurando aquele jornal estupefato. Enfim conseguiu falar, e mostrou o retrato da senhora sobre o qual estava escrito em letras garrafais:

   “A mãe do pretendente, Lady Fauntleroy”. Parecia uma linda senhora com duas trancas enormes, em volta da cabeça.

   Com uma risada, exclamou.

   — Olha aqui, eu a conheço como ao senhor, esta senhora, e melhor ainda!

   — Realmente? — E se pode saber onde a encontrastes? Não terá sido no ano passado, quando fizeste aquela viagem de recreio a Paris? ou na praia?

   Mas agora Dick já não ria. Apanhava as escovas e arranjava as latas de graxas, como se tivesse a intenção de sair.

   Às palavras do freguês, replicou:

   — Digo-lhe que a conheço... o resto não importa. E, por hoje, encerro o expediente.

   De fato, cinco minutos depois se dirigia à venda. O Sr. Hobbs devia ficar estupefato vendo-o chegar como um raio, em céu sereno, brandindo na mão um jornal. Ofegante pela corrida, Dick sacudiu o jornal sobre o banco, antes de falar, tão emocionado estava.

   — Que há? — exclamou o Sr. Hobbs — alguma coisa de mau?

   Finalmente Dick pôde falar e disse de um só fôlego:

   — Veja esse retrato! Vê aquela senhora ali? Nem tão pouco é a esposa de um nobre, nem senhora nenhuma. O diabo me carregue se aquela não for Mina, a mulher de meu irmão, e como não poderia reconhecê-la? É bem ela, asseguro-lhe.

   — Foi ela quem fez toda essa trama! exclamou Dick, cheio de indignação, foi sempre uma grande embusteira, e sabe que coisa me veio à cabeça vendo o seu retrato? Num dos jornais que lemos diz que seu filho tem uma cicatriz no queixo; ponha juntos este retrato e aquela cicatriz, e verá que aquele menino não é tão nobre quanto eu! É o filho de Ben, e aquela cicatriz fê-la Mina, quando o feriu com o prato que me tinha jogado na cabeça.

   Dick era bastante inteligente e à força de ganhar para si o pão cotidiano, correndo pelas ruas, de uma grande cidade, tinha-se tornado sagaz e desembaraçado. Aprendera ter os olhos abertos e se interessara enormemente por todos aqueles acontecimentos. Se o pequeno Lord Fauntleroy pudesse por um momento, apenas naquela manhã, ver a venda do seu amigo, ter-se-ia divertido a valer, se toda aquela discussão só tivesse por argumento a sorte de outro menino e não a sua.

   O Sr. Hobbs, agora, sentia-se quase opresso pela sensação da sua responsabilidade, mas Dick não, pelo contrário, sentia-se todo vibrante de energia e de espírito de iniciativa. Antes de tudo escreveu a Ben, enviando-lhe o retrato recortado do jornal e o Sr. Hobbs, por sua vez, escreveu a Cedric e ao avô dele. Os "dois amigos estavam ocupados em escrever, quando no cérebro de Dick nasceu uma idéia:

   — O freguês que me deu o jornal é advogado, vamos perguntar a ele o que se deve fazer, os advogados sabem tudo.

   O Sr. Hobbs ficou admirado com aquela idéia magnífica, o que confirmava mais uma vez a inteligência de Dick e seu espírito empreendedor e a aprovou.

   — Bem, aqui, precisamos mesmo de um advogado.

   Tendo entregue a venda ao caixeiro, vestiu o paletó e saiu com Dick à casa do advogado Harrison, que ficou bastante surpreendido com toda aquela história, que à porfia narraram os dois amigos de Cedric. De fato, se não fosse tão jovem e desocupado, e com grande vontade de fazer alguma coisa, talvez tivesse achado inverossímil aquela história tão complicada. Mas precisava trabalhar, e conhecia Dick, que soubera expor-lhe os fatos com tanta precisão. Por sua vez, o Sr. Hobbs acrescentou:

   — Quero que o senhor investigue até ao fundo todo esse negócio: pelo tempo que empregar, eu me responsabilizo e lhe apresentou seu cartão de visitas: “Silas Hobbs, secos e molhados”, com o respectivo endereço.

   — Está bem — respondeu o advogado — creio que acabaremos tendo razão. E será uma bela fortuna para Lord Fauntleroy, e também um pouco para mim. Como quer que seja, é preciso fazer investigações profundas.

   Parece que a senhora se contradisse sobre a idade do menino e tenha despertado suspeitas. Antes de tudo, é necessário escrever ao irmão de Dick e ao advogado do conde de Dorincourt.

   De fato, antes que o sol se pusesse, partiam duas cartas: Uma para a Inglaterra e outra para a Califórnia, a primeira endereçada ao advogado Havisham e a outra a Benjamin Tipton.

   Naquela tarde, depois de fechar a venda, o Sr. Hobbs e Dick ficaram até a meia-noite a comentar os acontecimentos do dia.

  

                                       VOLTA A SERENIDADE

   Não nos enganamos afirmando que as coisas mais inverossíveis podem acontecer em tempo estranhamente breve: Poucos minutos foram suficientes para mudar a sorte da criança que balançava as perninhas do alto do banco do Sr. Hobbs, fazendo dele um filho da aristocracia inglesa, herdeiro de um título histórico e de um patrimônio ingente. Poucos minutos bastaram também para fazer dele um pequeno impostor, presumivelmente, sem o mínimo direito a todos os esplendores, que por alguns meses tinha gozado. E, por fim, bastou pouquíssimo tempo para mudar a face das coisas outra vez, de modo que a criança reavesse tudo o que perdera. Na realidade a coisa não foi tão difícil, porque aquela que se fazia chamar então Lady Fauntleroy não era bastante astuta para manter a sua parte, e interrogada habilmente pelo Sr. Havisham, sobretudo no que dizia respeito ao seu casamento com o filho do conde de Dorincourt e sobre o seu filho, se contradissera muitas vezes não deixando de suscitar suspeitas, finalmente, perdendo a cabeça de todo, se atraiçoara.

   As contradições se referiam à criança porque, sobre o se casamento com Névis, parecia não deixar dúvidas. Ele a tinha desposado verdadeiramente separando-se dela pouco tempo depois e dando-lhe uma soma de dinheiro para a sua manutenção. Mas, que a criança tivesse nascido em certo bairro de Londres, era falso. À agitação produzida por tal descoberta se acrescentou a causada pela carta do advogado de Nova York, e por quanto tinha escrito o Sr. Hobbs.

   O Sr. Havisham leu aquelas duas cartas ao conde na sua biblioteca e aquela tarde ficou realmente memorável!

   Depois de tê-las discutido e comentado, o advogado da casa de Dorincourt disse:

   — Depois da minha terceira conversa com aquela mulher, as minhas suspeitas se transformaram em convicções. A criança parecia-me maior do que a idade declarada pela mãe, e, falando da data do nascimento, lhe escapara um erro que inutilmente procurara emendar. Agora estas cartas são uma Confirmação das minhas suspeitas. Parece-me que o melhor que se pode fazer é mandar chamar imediatamente aqueles dois Tiptons, sem que a senhora o saiba, e depois, quando menos o esperar, confrontá-los com eles. Se, como creio, as suas palavras não passam de uma impostura, se atraiçoará, vendo-os.

   Foi o que aconteceu. O Sr. Havisham não disse uma palavra do seu projeto a Mina, e impediu que pudesse nascer nela qualquer suspeita, continuando a declarar-lhe que as suas pretensões estavam sendo examinadas, e assim que, tranqüilizada, ela se tornava cada vez mais insolente e pretensiosa.

   Mas, uma manhã, enquanto estava no Hotel, a construir para si grandiosos planos para o futuro, anunciara-lhe o Sr. Havisham, mas quando entrou não vinha só. Seguiam-no três pessoas: um jovem rapaz, um menino de aspecto vivo e inteligente, e por último, quem? O conde de Dorincourt.

   A mulher levantou-se abruptamente e um grito de pavor fugiu-lhe dos lábios trêmulos: pensava que aquelas duas pessoas estivessem longe, milhas e milhas de distância, e, se uma vez ou outra pensava neles, afastava-os imediatamente do pensamento, julgando que nunca mais os veria.

   Dick, sorridente saudou-a:

   — Olá, Mina!

   Ben, ao contrário, pôs-se a fitá-la em silêncio.

   — Conhecem-na? — perguntou-lhes o advogado.

   — Muito bem... e também ela me conhece — respondeu Ben que, lhe voltou as costas, dirigindo-se à janela, como se não pudesse nem mesmo suportar o seu aspecto.

   Dick ria ouvindo os seus esbravejos e as suas ameaças de vingança, mas Ben dirigiu-se ao advogado:

   — Estou disposto a jurar quem é ela, em qualquer tribunal e com uma dúzia de testemunhas, se necessário. Seu pai é um homem honesto, mesmo pobre, sua mãe era como ela. Agora é morta, mas o pai ainda vive, e é um homem bastante honesto para reconhecê-la como filha, mesmo que se envergonhe de tal filha. Ele poderá dizer-lhe se somos ou não casados.

   Cerrou os punhos de raiva e perguntou-lhe:

   — Onde está a criança? Para ele e para mim, acabaram-se as relações contigo.

   Justamente naquele instante se abriu a porta e a criança, talvez atraída pelas vozes, um tanto ásperas e entrou. Não era um menino bonito, mas tinha um rostinho simpático muito parecido com o de Ben, no queixo notava-se visível a cicatriz. O pai tomou-lhe as mãos... e as suas tremiam:

   — Sim, — afirmou — poderia também jurar, por quanto diz respeito a ele — dirigindo-se ao menino, disse-lhe:

   — Eu sou teu pai, e te levarei comigo, onde está teu chapéu? A criança lhe mostrou em cima de uma cadeira e parecia contente com a novidade de ter um pai. Tinha passado por tantas coisas, que nem mesmo estranhava que um homem de quem nunca se recordara de tê-lo visto, lhe dissesse de repente ser seu pai. Nunca tivera a menor simpatia por aquela que um belo dia chegada ao povoado onde morava com a sua mãe de criação, dizendo-lhe que era a sua mãe; de modo que aquela nova mudança muito lhe agradava.

   Ben aproximou-se da porta dizendo ao advogado:

   — Se tem novamente necessidade de mim, sabe onde pode encontrar-me — e saiu com a criança, sem mesmo dirigir um último olhar àquela que um dia fora a sua esposa, e que bramava impropérios como uma possessa, enquanto o conde, calmíssimo, a fixava por cima dos óculos.

   Entretanto, o advogado dizia:

   — Creio, senhora, que é melhor acalmar-se, de nada adiantarão os seus esbravejos, deve dar-se por muito feliz por não entregarmos à polícia como uma... impostora!

   O Sr. Havisham tinha uma voz tão gélida dizendo estas palavras, que Mina, sentindo um calafrio de medo, compreendeu que era melhor para ela, ir-se embora, e depois de olhar longamente pela última vez, saiu batendo a porta num último acesso de ódio, e refugiou-se no quarto contíguo.

   — Não nos dará mais aborrecimentos — afirmou tranqüilamente o advogado — e de fato, naquela mesma tarde, ela partiu para Londres e dela não se soube mais nada.

   Saindo do Hotel, o conde subiu na carruagem, ordenando a Tomás: depressa ao “Palacete”.

   — Ao “Palacete” — repetira Tomás ao cocheiro,acrescentando: — eu não tinha dito que as coisas tomariam outra forma... inesperada?...

   Quando a carruagem parou diante do “Palacete”, Cedric estava na sala com sua mãe. O conde entrou sem mesmo fazer-se anunciar: parecia feliz e rejuvenescido. Os olhos lhe brilhavam felizes.

   — Onde está Lord Fauntleroy? — perguntou.

   A senhora Errol, enrubescendo levemente, adiantou-se-lhe:

   — Mas é mesmo Lord Fauntleroy? — replicou — mesmo?

   O conde estreitou-lhe a mão sorrindo:

   — Sim senhora — respondeu, depois apoiando a outra mão nos ombros de Cedric, que acorrera ao seu encontro e com sua acostumada maneira autoritária disse:

   — Fauntleroy, pergunta a tua mãe quando quer ir morar conosco no castelo.

   Cedric lançou os braços em volta do pescoço da sua mãezinha:

   — Mamãe, vai morar conosco! Ficar conosco! Para sempre!

   O conde contemplava a senhora Errol e ela o fitava longamente. Sua Senhoria dissera seriamente, porque assim o decidira e não queria perder mais tempo. Começava agora a compreender que tinha todo o interesse em fazer amizade com a mãe de seu herdeiro.

Docemente Fátina perguntou:

   — O senhor quer mesmo que eu vá morar no castelo?

   Com toda a franqueza o conde respondeu:

   — Oh! sim, certíssimo! Realmente há muito tempo que o queremos, mas não tínhamos compreendido o quanto, até este momento. Esperamos que a senhora venha.

  

                     CEDRIC FESTEJA O SEU OITAVO ANIVERSÁRIO

   Ben voltou para a Califórnia levando o seu filho e lia-se no seu rosto a mais viva satisfação. O conde, desejoso de fazer alguma coisa por aquela criança, que por um momento pensara ser Lord Fauntleroy, seu herdeiro, decidiu adquirir na Califórnia uma grande fazenda, e oferecê-la a Ben a fim de que pudesse tirar dela boa renda, assegurando assim o futuro do seu filho. Comunicou esta boa notícia a Ben, pelo seu advogado, e Ben partiu com a esperança de ser em breve o feitor de uma grande fazenda, destinada a se tornar mais tarde sua propriedade, depois de algum tempo. E realmente assim aconteceu, enquanto Tom crescia, tão bom e trabalhador, que compensava o pai dos desgostos que tinha sofrido.

   O Sr. Hobbs e Dick, que atravessaram o oceano para estarem certos que o negócio se arranjasse em prol do seu pequeno amigo não voltaram logo: o conde, de fato, quis tomar conta de Dick e dar-lhe uma boa educação, e, quanto ao Sr. Hobbs, tendo entregue a venda ao caixeiro, resolveu ficar na Inglaterra para assistir às festas que se realizariam em Dorincourt, por ocasião do oitavo aniversário de Lord Fauntleroy. Todos os moradores foram convidados. Preparava-se um grande banquete no parque e muitos jogos e numerosos fogos de artifício para a noite.

   — Justamente como para 4 de julho! — comentava entusiàsticamente Cedric. É pena que o meu aniversário não seja no mesmo dia. Assim poderíamos festejar juntamente as duas datas.

   Para sermos sinceros, o sr. Hobbs e o conde não fizeram logo amizade, como seria de esperar, para o bem da aristocracia inglesa. Talvez porque o conde, na sua vida, não tivera ocasião de conhecer quitandeiros, e o Sr. Hobbs não tivera muita intimidade com os nobres. E, durante os seus raros encontros, a conversa passava logo a perder o interesse. E também o Sr. Hobbs ficara um pouco desorientado pela magnificência que Cedric fizera um dever mostrar-lhe. Desde o primeiro momento, o portão de entrada e os leões de mármores impressionaram o Sr. Hobbs, e depois, quando vira o castelo, o jardim, os viveiros, os terraços, os brasões, as escadarias, cavalariças, o subterrâneo, a criadagem uniformizada, ficara realmente boquiaberto. Mas, o que mais chamara a sua atenção, foi a galeria dos retratos.

   — Não é um pouco como um museu? — perguntara a Cedric, que apesar de um pouco em dúvida, lhe respondera: — Não, não creio que seja museu: vovô diz que aqueles são todos os meus antepassados.

   — Deus meu! -— Todos? Todos mesmo? Mas que raça de família tinha o teu avô e como fazia para manter toda aquela gente?

   O Sr. Hobbs parecia preocupado com aquele problema, cuja solução não era fácil encontrar.

   Com certa dificuldade, Cedric explicou-lhe que os retratos da galeria não pertenciam aos membros de uma só família, contudo foi necessário a ajuda da governanta, informadíssima de tudo que dizia respeito aos retratos e aos pintores que os realizara, para esclarecer o assunto, com muitas narrações interessantes sobre as damas e os cavalheiros que revestiam as suas efígies magníficas, as paredes marmóreas do castelo. O Sr. Hobbs ficou encantado e criou logo tal simpatia pela galeria que muitas vezes vinha do hotel, onde estava hospedado, para passar ali uma meia hora a contemplar aquela gente imóvel, que por sua vez o Contemplava e balançava a cabeça a cada passo, dizendo:

   — E pensar que todos estes condes ou pouco menos!... murmurava. — E pensar que um dia também ele será conde e senhor de todas estas belas coisas!

   Sentia-se um pouco menos descontente dos condes e do seu modo de viver, e era para temer-se que seus princípios, rigidamente republicanos, se ressentissem um pouco, com aquela sua intimidade com castelos, antepassados, etc.

   Um dia o Sr. Hobbs deixou escapar uma declaração inteiramente inesperado e notável:

   — Ora, apesar de tudo, não me desgostaria muito de ser um deles...

   Realmente era uma grande confissão!

   Que dia passou Lord Fauntleroy pelo seu aniversário, e como se divertiu! O parque estava estupendo, com toda aquela gente que se apinhava nas alamedas, vestida de festa, com todas aquelas barracas embandeiradas, e a bandeira dos Dorincourt, a tremular do alto do castelo. Todos os que puderam acorreram à festa, porque sentiam grande satisfação que Lord Fauntleroy ficasse sendo a criança que todos aprenderam a amar, e que no seu lugar não viesse outro desconhecido. Todos queriam ver Cedric e sua mãe, que se fizera amar em toda a região. Todos faziam agora melhor opinião do conde, porque o netinho lhe demonstrava tanta afeição, e também por que se reconciliara com a senhora Errol e tratava-a com grande respeito: dizia-se até que lhe queria muito bem, e era de esperar-se que, por causa daquela criança e de sua mamãe, o conde se tornaria um “grande” senhor, em prol de todos os seus súditos.

   Quanta gente debaixo das árvores e nos campos, à sombra das barracas. Camponeses e camponesas em trajes de festa, meninos e meninas, moças e velhas com seus garridos chalés domingueiros.

   No castelo, pelo contrário, encontravam-se os nobres senhores que tinham vindo juntamente com suas esposas, para assistirem à festa, a dar os parabéns ao conde e felicitar a mãe dê Fauntleroy, que, pela primeira vez, era apresentada oficialmente como Lady Fauntleroy.

   Lady Lorridaille viera com o marido, Sir Tomás Asshe, com as filhas. Estavam naturalmente o advogado Havisham e a graciosa Miss Herbert, que vestia de branco, com uma sombrinha de organdi florido, era algo encantador, e um brilhante séquito de admiradores, aos quais, todavia, a moça preferiu a companhia do pequeno Lord, que, apenas a vira, lhe correra ao encontro para abraçá-la. Ela retribuiu o abraço, e, tratando-o afetuosamente como se fosse um seu irmãozinho, disse-lhe:

   — Meu querido pequeno Lord Fauntleroy! Como estou contente!

   Depois deu um giro pelo parque levando a criança pela mão, ouvindo as suas explanações sobre tudo. Quando encontraram Dick e o Sr. Hobbs, Cedric os apresentou a Miss Herbert:

   — Este é o meu velho amigo, Sr. Dick Tipton, e este é outro velho amigo, Sr. Silas Hobbs. Já sabem que a senhora é muito bonita e que eu esperava que não faltasse a esta festa, para conhecê-los.

   Então miss Herbert apertou a mão dos dois amigos de Lord Fauntleroy, pedindo notícias de sua viagem e se gostavam da Inglaterra, enquanto Cedric a contemplava extático, feliz de ver que também Dick e o Sr. Hobbs achavam Miss Herbert... realmente bonita.

   Tinha dito Dick, com certa solenidade:

   — É realmente a mais bela moça da festa. Parece uma flor, sou eu quem te diz.

   De fato, todos olhavam quando ela passava, mas também contemplavam a Lord Fauntleroy. E o sol descambava, e as bandeiras se agitavam no ar, e as pessoas bailavam alegres. Naquela tarde linda, o pequeno Lord estava de tal modo feliz, que o mundo inteiro lhe parecia um sonho maravilhoso.

   Mas havia outra pessoa que, talvez, pela primeira vez na vida, se sentia verdadeiramente feliz, talvez porque se sentisse um pouco melhor: era o conde de Dorincourt, que apesar de ser de nascimento nobre e rico, não tinha muitos motivos para sentir-se satisfeito da sua existência. Na realidade não se tornara de um dia para outro perfeito, como pensava Cedric, mais ao menos agora amava alguém, e experimentava certo prazer em levar a cabo as boas obras que lhe sugeria a bondade de seu netinho, e esta já era uma promessa para o futuro. Achava cada dia mais simpática a viúva de seu filho, e se podia dizer, sem temor de engano, que já começava a amá-la. Certo, porque gostava de contemplá-la, de ouvi-la falar, com aquela voz suave e encantadora. Pela primeira vez, o velho senhor ouvia palavras afetuosas e começava a entender como tinha sido possível que uma criança, que vivera numa modesta casinha de Nova York, amigo de um quitandeiro e de um engraxate, se comportasse como criança perfeitamente bem-educada e soubesse sempre fazer-se honrar em qualquer ocasião sempre à altura da sua nova situação.

   Parece uma coisa pequena, mas, na realidade, não há nada que tenha mais importância neste mundo. O pequeno Lord não sabia nada de condes e de castelos, e de patrimônios, mas sabia fazer-se querido de todos, porque era simples, modesto e afetuoso, e quem é assim é bem digno de ser até filho de um rei.

   Justamente por isso, naquele dia, o velho conde estava tão contente, vendo passear de um lado para outro seu netinho no parque, apinhado, saudando aqueles que conhecia, respondendo graciosamente àqueles a quem desconhecia, e conversando animadamente com seus amigos americanos, ou parando perto de sua mãe ou de miss Herbert para ouvir atento o que diziam. Nunca se sentira tão feliz o avô de Cedric, quando pôde entrar, tendo ao lado o pequeno Lord, debaixo de uma ampla barraca, na qual os moradores mais importantes das terras de Dorincourt se reuniam diante de uma mesa, magnificamente preparada. Naquele momento estavam brindando, e, depois de terem bebido à saúde do conde com entusiasmo, mais que o ordinário, alguém propôs que se fizesse um brinde a Lord Fauntleroy. Se houvesse alguém que duvidasse da popularidade de Cedric, seria convencido, apenas assomando a cabeça naquela barraca, onde o nome de Lord Fauntleroy se confundia com o entre chocar de brindes, aplausos, champanha, e bênçãos. Aquela boa gente amava de tal modo o netinho do castelão, que não sentiam nem ao menos que eram súditos, agora que ambos vieram do castelo para saudá-los. Debaixo da barraca fazia-se um grande rumor, e as mulheres, vendo aquela bela criança no meio delas, entre a mãe e o avô, comovidas, murmuraram de coração:

   — Deus o proteja!

   Cedric estava radiante, sorria e saudava a todos, dizendo a sua mamãe:

   — Por que me querem tanto bem, mamãe? É mesmo verdade? Estou tão contente!

   O conde, pondo a mão nos ombros de Cedric, disse-lhe:

   — Fauntleroy, é preciso que agradeças a todas essas pessoas que são tão gentis para contigo.

   Cedric olhando ligeiramente para a mãe e depois para o avô, estava um pouco intimidado, e, por isso, perguntou em voz baixa:

   — Devo fazê-lo? — mas Fátina sorriu e também miss Herbert, que chegava, acenou com a cabeça que sim.

   E então Cedric adiantou-se um pouco, enquanto todos o contemplavam, tão belo, com seu rostinho confiante; sua voz firme e clara fêz-se ouvir no silêncio, que se estabelecera de repente:

   — Estou agradecido pela vossa gentileza, e espero que vos tenhais divertido na minha festa, porque também eu me diverti e estou muito contente de dever um dia ser conde. Antes não acreditava que gostaria, mas, agora sim, e amo tanto a este país, que muito me agrada e... quando for conde, procurarei ser bom como o vovô.

   Deu um passo atrás, tomando fôlego, enquanto ressoavam os aplausos, e, dando a mãozinha ao conde, se apoiou nele, contente e sorridente.

   E depois disto a nossa história estaria terminada, mas há ainda alguma coisa que vos devo dizer:

   O Sr. Hobbs sentiu-se de tal modo atraído pela vida aristocrática e de tal modo desejoso de não deixar mais o seu pequeno amigo inglês, que decidiu vender a sua mercearia de Nova York, e estabelecer-se na povoação de Erlebor, onde abriu um negócio, que protegido pelos senhores do castelo, não deixou naturalmente de prosperar. Apesar de não conseguir, mal grado a sua boa vontade, de tornar-se amigo íntimo do conde, todavia, com o andar dos tempos, acabou, por fazer-se ainda mais aristocrático do que S. Senhoria, em pessoa, o conde, até o ponto de ler cada manhã, com a maior atenção, as notícias da Corte, e as discussões da câmara dos Lordes.

   Quanto a Dick, quando dez anos depois acabou a sua educação, partiu para a Califórnia, para viver com seu irmão Ben, e perguntou ao Sr. Hobbs, se queria partir com ele, mas ouviu a seguinte resposta:

   — Oh! não, para viver ainda aí, não. Quero ficar perto dele, bem pertinho. A América é um país que está bem para quem é jovem e tem vontade de trabalhar, mas tem também os seus inconvenientes... lá não há antepassados... e nem sequer um conde!

 

                                                                                Frances Burnett  

 

                      

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