Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Perelandra / C. S. Lewis
Perelandra / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Perelandra

 

Esta história pode ser lida sozinha, mas é também uma certa seqüência de Além do Planeta Silencioso no qual se apresenta um relato das aventuras de Ransom em Marte — ou, como os seus habitantes lhe chamam, Malacandra. Todos os personagens humanos deste livro são puramente fictícios e nenhum deles tem caráter alegórico.

 

Ao deixar a estação e a estrada-de-ferro de Worchester e ao enfrentar as três milhas de caminho até a pequena casa de campo de Ransom, refletia eu que ninguém naquela plataforma tinha possibilidade de adivinhar a verdade sobre o homem que ia visitar. A charneca plana que se estendia na minha frente (pois a aldeia fica toda por detrás e a norte da estação) parecia uma charneca comum.. o céu sombrio das cinco horas era o mesmo que se pode ver em qualquer tarde de outono. As poucas casas e os grupos de árvores vermelhas ou amareladas não eram de forma alguma dignas de nota. Quem podia imaginar que, um pouco mais adiante nesta paisagem tranqüila, eu iria encontrar e apertar a mão a um homem que vivera, comera e bebera num mundo distante de Londres quarenta milhões de milhas, que vira esta Terra de onde ela parece um simples ponto de fogo verde e que falara cara a cara com uma criatura cuja vida começou antes de o nosso próprio planeta ser habitável?

Pois Ransom tinha encontrado outras coisas em Marte além dos marcianos. Encontrara as criaturas chamadas eldila, e especialmente o grande eldil, que é quem manda em Marte, ou, para usar a língua deles, que é o oyarsa de Malacandra. Os eldila são muito diferentes de quaisquer criaturas planetárias; o seu organismo físico, se se lhe pode chamar organismo, é completamente diferente quer do humano quer do marciano. Não comem, não respiram, não têm filhos nem são atingidos pela morte natural, e nessa medida assemelham-se mais a minerais pensantes que a qualquer ser que pudéssemos reconhecer como animal. Embora apareçam em planetas e possa mesmo parecer aos nossos sentidos que por vezes neles residem, a precisa localização espacial de um eldil num dado momento apresenta grandes problemas. Eles próprios consideram o espaço (ou “Céu distante”) o seu verdadeiro habitat, e os planetas são para eles não mundos fechados mas apenas pontos móveis — talvez mesmo interrupções — naquilo que nós conhecemos como Sistema Solar e eles como o Campo de Arbol.

 

Presentemente ia ter com Ransom em resposta a um telegrama que dizia: “Vem até cá quinta-feira, se possível. Negócios”. Calculei que espécie de negócio ele queria significar, e era por isso que continuava a dizer a mim próprio que seria perfeitamente delicioso passar uma noite com Ransom e ao mesmo tempo continuava a sentir que afinal não estava a apreciar a idéia tanto como deveria. O que me perturbava eram os eldila. Eu ainda podia habituar-me à idéia de que Ransom estivera em Marte... mas ter-se encontrado com um eldil, ter falado com algo cuja vida parecia praticamente não terminar... Mesmo a viagem já era uma coisa complicada. Um homem que esteve num outro mundo não regressa de lá sem vir diferente. Não se pode por em palavras a diferença. Quando o homem é um amigo nosso, o caso pode tornar-se doloroso: a velha relação não é fácil de retomar. Mas muito pior era a minha crescente convicção, desde o regresso dele, os eldila não o deixavam em paz. Pequenas coisas na sua conversa, pequenos maneirismos, alusões acidentais que fazia e de que em seguida pedia desculpa, embaraçado, tudo sugeria que tinha companhia estranha; que havia... bem, visitantes... naquela casa de campo.

 

À medida que, vagarosamente caminhava pela estrada vazia e aberta que atravessa pelo meio dos baldios públicos de Worchester, tentava desfazer a sensação de mal-estar, analisando-a. De que tinha eu medo, afinal? Mal fiz a mim próprio esta pergunta, logo me arrependi, chocou-me verificar que tinha usado mentalmente a palavra “medo”. Até aí tentara fingir que apenas sentia aversão, ou embaraço, ou mesmo aborrecimento. Mas a singela palavra “medo” pusera as coisas a claro. Compreendia agora que minha emoção não era outra senão o Medo, nem mais nem menos. E compreendi que tinha medo de duas coisas — medo de, mais dia menos dia, eu mesmo me encontrar com um eldil, e medo de “me ver metido naquilo”. Suponho que toda a gente sabe o que é este medo de “se ver metido em qualquer coisa” — o momento em que uma pessoa compreende que aquilo que tinha parecido meras especulações está a chegar ao ponto de fazê-lo entrar no Partido Comunista ou na Igreja de Cristo —, a sensação de que uma porta se fechou com estrondo, conosco do lado de dentro. Era uma simples questão de pouca sorte. O próprio Ransom fora levado para Marte (ou Malacandra) contra sua vontade e quase por acidente. Contudo, estávamos ambos a ficar cada vez mais envolvidos naquilo que eu poderia descrever apenas como política interplanetária. Quanto ao meu intenso empenho em nunca ter qualquer contato com os eldila, não estou bem certo de poder fazer os leitores compreendê-lo. Era algo mais que tudo o que ouvira a respeito deles levava a ligar duas coisas que a mente de cada um de nós tem tendência a manter separadas, e essa ligação produzia um certo choque. Temos tendência a pensar acerca de inteligências não humanas em duas categorias distintas, que rotulamos respectivamente “científicas” e “sobrenaturais”. Numa certa disposição de espírito, pensamos nos marcianos do Sr. Wells (muito pouco parecidos com os verdadeiros naturais de Malacandra, diga-se de passagem) ou nos seus selenitas. Noutra disposição de espírito totalmente diferentes, divagamos sobre a possibilidade de existirem anjos, fantasmas, fadas e coisas assim. Mas no preciso momento em que somos obrigados a reconhecer uma criatura de qualquer destas classes como real, a distinção começa a tornar-se menos nítida: e quando se trata de uma criatura como um eldil, a distinção desaparece de todo. Estas coisas não eram animais — nessa medida teriam de ser classificados no segundo grupo; mas possuíam um certo veículo material cuja presença podia (em princípio) ser verificada cientificamente. Nessa medida pertenciam ao primeiro grupo. A distinção entre natural e sobrenatural de fato desaparecia; e depois de tal acontecer, dávamos conta do enorme conforto o que representara — como tinha tornado mais leve o fardo de intolerável estranheza que este universo fez pesar sobre nós, ao fazer a divisão em duas partes e ao levar o nosso espírito a nunca pensar em ambas no mesmo contexto. Qual o preço que poderemos ter pago por este conforto, na forma de falsa segurança e conformada confusão de pensamento é outra questão.

“Aqui está uma estrada comprida e monótona”, pensei para mim próprio. “Graças a Deus não trago nada comigo”. E então me lembrei com um sobressalto que devia trazer um saco, contendo as minhas coisas para passar a noite. Praguejei no meu íntimo. “Devo ter deixado o saco no comboio”. Será que me acreditam se disser que o meu impulso imediato foi voltar à estação e “fazer qualquer coisa para resolver o caso”? É claro que nada havia a fazer que não pudesse igualmente ser feito telefonando da casa de campo. O comboio, e com ele o meu saco, a esta hora já estava a milhas de distância.

 

Agora vejo as coisas com a mesma clareza com que os leitores o fazem. Mas no momento pareceu-me perfeitamente óbvio que devia inverter a marcha, e tinha realmente começado a andar para trás quando a razão ou a consciência despertaram e me puseram de novo a caminhar no sentido inicial. Nessa altura descobri mais claramente que antes quão pouco me apetecia fazê-lo. Era uma tarefa de tal modo pesada que me sentia como se estivesse a andar contra um vento forte; mas na realidade estava uma daquelas tardes calmas em que nem um raminho mexe e começava a cair um pouco de nevoeiro.

 

Quanto mais eu seguia, tanto mais impossível me parecia pensar no que quer que fosse enceto nestes eldila. Afinal de contas, que é que realmente Ransom sabia acerca deles? Segundo o seu mesmo relato, os tipos que encontrara não visitam usualmente o nosso planeta — ou apenas o começaram a fazer depois do seu regresso de Marte. Nós tínhamos os nossos próprios eldila, dizia ele, eldils telúricos, mas eram de uma espécie diferente e na sua maioria hostis para o homem. Essa era, de fato, a razão porque o nosso mundo estava impedido de comunicar com os outros planetas. Descreveu-nos como estando em estado de sítio, como sendo, na realidade, um território ocupado pelo inimigo, submetido por eldils que estavam em guerra tanto conosco como os eldils do “céu distante” ou “Espaço”. Como as bactérias a nível microscópico, também estes parasitas, que coabitam a nível macroscópico conosco, penetram de forma invisível em toda a nossa vida e constituem a explicação real daquela inclinação fatal que é a principal lição da história. Se tudo era verdade, então, é claro, devíamos acolher com satisfação o fato de eldila de uma espécie melhor terem finalmente passado a fronteira (fica, dizem eles, na órbita da Lua) e começado a visitar-nos. Assumindo sempre que o relato de Ransom estava correto.

Ocorreu-me uma idéia desagradável. Por que não estaria Ransom a ser tolo? Se alguma coisa vinda do espaço exterior estivesse a tentar invadir o nosso planeta, que melhor cortina de fumo poderia arranjar do que exatamente esta história de Ransom? Havia afinal a mais ligeira prova da existência dos supostamente maléficos eldils nesta nossa Terra? E se o meu amigo fosse a ponte involuntária, o Cavalo de Tróia, por meio do qual um possível invasor estivesse efetivamente a desembarcar em Tellus? E então, uma vez mais, tal como quando descobrira que não tinha o saco, voltou-me o impulso de não ir mais além.

— Volta para trás, volta para trás — murmurava-me ele —, manda-lhe um telegrama, diga-lhe que estavas doente, diga que vem noutra ocasião... qualquer coisa. — a força do sentimento deixou-me atônito. Fiquei imóvel por uns momentos dizendo a mim mesmo para não ser parvo, e quando finalmente retomei a marcha perguntava a mim próprio se isto poderia ser o princípio de um esgotamento nervoso. Mal esta idéia me ocorreu, tornou-se também numa nova razão para não visitar Ransom. Obviamente não me encontrava em condições para quaisquer “negócios” complicados, que era quase certeza aquilo a que o telegrama dele se referia. Eu não estava sequer em condições para passar um fim-de-semana comum fora de casa. O meu único caminho sensato era voltar imediatamente para trás e chegar a casa em segurança, antes que perdesse a memória ou ficasse histérico, e entregar-me nas mãos de um médico. Era pura loucura continuar.

 

Estava agora a chegar ao fim da charneca e descia uma pequena colina, com um souto à minha esquerda e alguns edifícios industriais aparentemente desertos à minha direita. Ao fundo, a névoa do anoitecer era parcialmente espessa.

“Começam por chamar de esgotamento”, pensei. Não há uma doença mental qualquer, na qual os objetos mais comuns se apresentam ao doente como incrivelmente ominosos?... se apresentam efetivamente como aquela fábrica abandonada se me apresenta agora a mim? Enormes bolbos de cimento, estranhos duendes de tijolo, fitavam-me, ameaçadores, por cima da erva seca e enfezada, picada de poças cinzentas e cruzada pelos restos de uma linha para vagonetas. Recordavam-me as coisas que Ransom tinha visto no tal outro mundo: só que lá era pessoas. Longos gigantes, em forma de fuso, a quem chamam sorns. O que tornava as coisas piores é que os considerava esplêndidas pessoas — muito melhores, na realidade, que a nossa própria raça. Sentia-se um deles! Como sabia que eu ele era mesmo tolo? Podia ser algo de pior... e de novo estaquei.

 

O leitor, que não conhece Ransom, não compreenderá como esta idéia era contrária a tudo o que é razoável. A parte racional da minha mente, mesmo nesse momento, sabia perfeitamente que, ainda que todo o universo fosse louco e hostil, Ransom era são de espírito, sólido de princípios e honesto. E foi esta parte da minha mente que, no fim de tudo, me fez prosseguir — mas com uma relutância e uma dificuldade que dificilmente posso por em palavras. O que me permitia prosseguir era saber (cá bem dentro de mim) que a cada passo que dava ficava mais perto daquele meu amigo: mas o que sentia era que ia ficando mais perto daquele inimigo — do traidor, do feiticeiro, do homem conluiado com “eles”... caindo na armadilha de olhos abertos, como um tolo.

— A princípio chamam de esgotamento — dizia no meu íntimo — e o mandam para uma casa de saúde; mais tarde o passam para um hospício.

Tinha já passado a fábrica e entrara no nevoeiro, onde estava muito frio. Então houve um instante — o primeiro — de completo terror e tive de morder os lábios para não gritar. Era apenas um gato que atravessara a estrada a correr, mas encontrava-me completamente enervado.

— Dentro em pouco há de estar realmente aos gritos — disse ao meu atormentador interno —, a correr de um lado para o outro aos gritos e sem ser capaz de parar.

Ao lado da estrada havia uma pequena casa vazia, com a maior parte das janelas fechadas com tábuas pregadas exceto uma delas que lembrava um olho aberto de um peixe morto. Peço que compreendam que em ocasiões normais a idéia de uma “casa assombrada” não tem para mim mais significado que para qualquer outra pessoa. Não tem mais; mas também não te menos. Naquele momento o que me veio à mente não era nada tão definido como a idéia de um fantasma. Era só a palavra “assombrada”. “Assombrado”... “assombração”... mas que força existe nas primeiras sílabas! Não haveria uma criança, que nunca ouvira antes a palavra e não sabia o que significava, de estremecer só devido ao som se, ao fim do dia, ouvisse uma pessoa mais velha dizer a outra: Essa casa está assombrada?

 

Por fim cheguei ao cruzamento junto à pequena capela da Igreja de Wesley onde tinha de virar á esquerda, sob as faias. Devia já estar a ver as luzes das janelas de Ransom — ou já seriam horas de ocultação de luzes? O meu relógio tinha parado, e por isso não sabia. Estava bastante escuro mas isso podia ser devido ao nevoeiro e às árvores. Não era o escuro que me metia medo, quero que compreendam. Todos nós conhecemos ocasiões em que objetos inanimados parecem quase ter expressões faciais, e era da expressão deste pedaço de estrada que eu não gostava.

— Não é verdade — dizia intimamente — que as pessoas que estão mesmo a ficar loucas nunca pensam que isso está a acontecer? — Suponhamos que a insanidade mental tinha escolhido este preciso local para se manifestar? Nesse caso é claro que a negra hostilidade daquelas árvores gotejantes — a expectativa horrível que causavam — seria apenas uma alucinação. Mas isso não melhorava em nada as coisas. Pensar que o espectro que estamos a ver é uma ilusão não lhe retira o terror: apenas acrescenta o terror suplementar da própria loucura — e por cima disso, a conjectura terrível de que aqueles a quem os outros chamam loucos sejam afinal os únicos que vêem o mundo como ele realmente é.

Era isto que eu sentia em mim. Avancei cambaleante dentro do frio e da escuridão, meio convencido de que devia estar a entrar naquilo a que chamam Loucura. Mas a cada instante a minha opinião sobre sanidade mental ia mudando. Alguma vez teria sido mais que uma convenção — um confortável par de antolhos, uma forma combinada de pensamentos cor-de-rosa, que excluíam da nossa vida todo o mistério e malevolência do universo que somos forçados a habitar? As coisas que começara a saber eram mais do que a “sanidade” admitiria; mas eu fora demasiado longe para as por de lado como irreais. Punha em dúvida a interpretação dele, ou a sua boa fé. Não duvidava da existência das coisas que ele encontrara em Marte — os Pfifltriggi, os Hrossa, e os Sorns — nem dos interplanetários eldila. Não punha em dúvida sequer a realidade desse ser misterioso ao qual os eldila chamam Maleldil e ao qual parecem prestar uma tal obediência total que não tem comparação com a que qualquer ditador terráqueo pode impor. Sabia aquilo que Ransom pensava ser Maleldil.

Aquela era de certeza a casa de campo. As luzes estavam perfeitamente ocultas. Um pensamento infantil e lamentoso surgiu no meu espírito: por que é que ele não estava ao portão a receber-me? E um pensamento ainda mais infantil veio a seguir. Talvez estivesse no jardim à minha espera, escondido. Talvez para me assaltar pelas costas. Talvez eu viesse a ver uma figura que parecia Ransom, de pé e de costas para mim, e ao falar-lhe ela virava-se e mostrava um rosto que não era de todo humano...

Naturalmente não tenho desejo algum de me alargar sobre esta fase da minha história, o estado de espírito em que me encontrava era de molde a que o recorde com um sentimento de humilhação. Teria passado por cima se não achasse que era preciso um relato qualquer dos meus pensamentos para a completa compreensão do que se segue — e, talvez, algumas outras coisas. Em qualquer caso, não sou realmente capaz de descrever como cheguei à porta da frente da casa. De uma forma ou de outra, a despeito da repugnância e do desânimo que me puxavam para trás e de uma espécie de parede invisível de resistência que se erguia na minha frente, lutando para dar cada passo e quase soltando um grito quando um inofensivo raminho da sebe me tocou na cara, lá consegui passar o portão e subir o carreiro. E aí estava eu, batendo à porta, torcendo o puxador e clamando que me deixasse entrar, como se disso dependesse a minha vida.

Não houve resposta alguma — nem um som, exceto o eco dos sons que eu mesmo estava fazendo. Havia apenas qualquer coisa branca que tremelicava na aldraba da porta. Pensei, é claro, que era uma nota. Ao acender um fósforo para a ler, descobri como as minhas mãos estavam a tremer, e quando o fósforo se extinguiu dei conta de como a noite se tinha tornado escura. Depois de várias tentativas, consegui ler.

 

Desculpa. Tive de ir a Cambridge. Não devo estar de volta antes do último comboio. Há que comer na despensa e a cama está feita no seu quarto habitual. Não me esperes para cear a não ser que te sintas para aí virado. E.R.

 

E de imediato o impulso para me retirar, que já me assaltara por diversas vezes, me acometia com uma espécie de violência demoníaca. Ali estava aberta a retirada, positivamente convidando-me. Aquela era a minha oportunidade. Se alguém esperava que eu entrasse naquela casa e lá ficasse sentado sozinho horas seguidas, estava bem enganado! Mas nessa altura, à medida que a idéia da viagem de volta começava a tomar forma no meu espírito, vacilei. O pensamento de me meter a caminho para atravessar de novo a avenida de faias (agora estava realmente escura) com esta casa por detrás de mim (tinha-se a sensação absurda de que ela podia seguir uma pessoa) não era atraente. E então algo de melhor, espero , me veio à mente — um resto de sa­nidade e uma certa relutância em deixar ficar mal Ransom. Pelo menos podia experimentar a porta para ver se realmente não es­tava fechada. Assim fiz. E não estava. No instante Seguinte, nem sei bem como, dei comigo dentro de casa e com a porta fechada atrás de mim.

Estava muito escuro, e quente. Avancei uns passos às apalpa­delas, bati violentamente com a canela de encontro a qualquer coisa e caí. Fiquei sentado durante alguns segundos, esfregando a perna. Pensava conhecer bastante bem a disposição da entra­da/sala de estar de Ransom e não conseguia imaginar com que é que tinha ido chocar. Na altura apalpei o interior: do bolso, tirei os fósforos e tentei acender um deles. A cabeça do fósforo saltou. Pisei-a e inspirei para me certificar de que não ficara a arder na carpeta. Assim que inspirei fiquei ciente de um cheiro estranho na sala. Não conseguia, nem que a minha vida disso dependesse, descobrir qual era ele. Fazia uma diferença tão grande dos chei­ros domésticos comuns como o de alguns produtos químicos, mas não era de forma alguma um gênero de cheiro químico.Acen­di então outro fósforo. Bruxuleou e apagou-se quase de seguida — o que não deixava de ser natural, uma vez que u estava sen­tado no tapete da porta e há poucas portas da frente que não dei­xem passar correntes de ar. Mesmo em casas mais bem construí­das que a casa de campo de Ransom. Nada vira exceto a palma da minha mão, em concha, na tentativa de proteger a chama. Obviamente tinha de me afastar da porta. Pus-me de pé camba­leante e fui apalpando o caminho. Encontrei logo um obstáculo ­algo macio e muito frio que se erguia pouco acima dos meus joe­lhos. Quando lhe toquei percebi que estava ali a origem do chei­ro. Deslizei pelo lado esquerdo e cheguei à extremidade. Parecia apresentar diversas superfícies e não conseguia.idealizar a sua forma. Não era uma mesa, pois não tinha tampo. A minha mão deslizou ao longo do rebordo de uma espécie de muro baixo — o polegar do lado de fora e os outros dedos do lado de dentro, no in­terior do espaço fechado. Se tivesse dado a sensação de madeira teria pensado que era um caixote grande. Mas não era madeira. Pensei por um momento que estava molhado; mas cedo resolvi que estava a confundir frio com umidade. Quando cheguei à ex­tremidade acendi o terceiro fósforo.

Vi qualquer coisa branca e semitransparente — algo como ge­lo. Uma coisa grande, muito comprida, uma espécie de caixa, uma caixa aberta: e com uma forma inquietante que não reconheci imediatamente. Era suficientemente grande para se lhe meter um homem dentro. Então dei um passo à retaguarda, elevando mais o fósforo aceso para obter uma visão mais completa, e no mesmo instante tropecei em qualquer coisa atrás de mim. Dei por mim estendido no chão, na escuridão, não na carpeta mas em ci­ma da substância fria e com o cheiro esquisito. Quantas daque­las coisas infernais ali se encontravam?

Estava eu a preparar-me para me erguer de novo e ir procu­rar sistematicamente uma vela na sala quando ouvi pronunciar o nome de Ransom; e quase simultaneamente, mas sem o ser mesmo, vi a coisa que há tanto tempo temia ver. Ouvi pronunciar o nome de Ransom:mas não quereria dizer que ouvi uma voz pronunciá-lo. O som era completa e espantosamente diferente de uma voz. Era perfeitamente articulado: era até bastante belo, su­ponho. Mas era, se me faço entender, inorgânico. Sentimos a di­ferença entre vozes animais (incluindo as do animal humano) e todos os outros ruídos de uma forma perfeitamente clara, imagi­no, embora seja difícil defini-la. O sangue e os pulmões e a cavi­dade quente e úmida da boca são de uma certa forma indicados em todas as vozes. Aqui não eram. As duas sílabas soavam mais como se fossem tocadas num instrumento em vez de faladas: e contudo também não pareciam mecânicas. Uma máquina é algo que fazemos com materiais naturais; neste caso era antes como se rocha, cristal ou a luz se tivessem posto a falar. E atravessou­-me do peito ao baixo ventre, como o arrepio que nos percorre quando nos falha a mão ao escalar um penhasco.

Isso foi o que ouvi. O que eu vi era simplesmente uma haste ou pilar, muito tênue, de luz. Não acho que fizesse um círculo de luz quer no chão quer no teto, mas não estou seguro disso. Cer­tamente tinha uma capacidade muito reduzida para iluminar o que estava em volta. Até aqui, tudo bem. Mas tinha outras duas características que eram menos fáceis de aprender. Uma era a cor. Uma vez’ que eu via a coisa, obviamente tinha-a visto ou branca ou colorida; mas não há esforços de memória que me tra­gam a mais tênue idéia de qual era essa cor. Experimentei o azul, o ouro, o violeta, o vermelho, mas nenhum condizia. Como é que é possível ter uma sensação visual a qual logo a seguir e desde en­tão se torna impossível recordar, não tentarei explicar. A outra era ângulo que apresentava. Não fazia um ângulo reto com o pavimento. Mas assim que digo isto, tenho de acrescentar que es­ta forma de expressão é uma reconstrução posterior. O que se sentia realmente na altura era que a coluna de luz era vertical mas o chão é que não estava horizontal — toda a sala parecia ter adornado como se estivesse a bordo de um navio. A impressão, produzida fosse como fosse, era de que esta criatura tinha como referência uma certa horizontal, um certo sistema completo de referência, baseado fora da Terra, e que a sua simples presença impunha sobre mim esse sistema exótico e abolia o horizonte ter­restre.

Não tinha de todo dúvidas de que estava a ver um eldil, e poucas dúvidas tinha de que estava a ver o arconte de Marte, o oyar­sa de Malacandra. E agora que a coisa acontecera já não me en­contrava numa condição de pânico abjeto. As minhas sensações eram, é verdade, de certa maneira muito desagradáveis. O fato de ser obviamente inorgânico — o conhecimento de que a inteli­gência estava de alguma forma localizada neste cilindro homogêneo de luz mas não ligada a ele como a nossa consciência está li­gada ao cérebro e aos nervos — era profundamente perturbador.[1] Não se encaixava nas categorias que temos. A resposta que ordi­nariamente dirigimos a uma criatura viva e aquela que dirigimos a um objeto inanimado eram ambas igualmente inadequadas. Por outro lado, todas aquelas dúvidas que eu tinha antes de en­trar em casa sobre se estas criaturas eram amigas ou inimigas e se Ransom era um pioneiro ou um tolo tinham de momento desa­parecido. O meu temor era agora de outra natureza. Sentia-me, seguro de que a criatura era aquilo a que chamamos «boli», mas não tinha a certeza de gostar da «bondade» tanto quanto supuse­ra. Isto é uma experiência verdadeiramente terrível. Enquanto aquilo que tememos é qualquer coisa má, podemos ainda ter es­perança de que os bons venham em nosso auxílio. Mas suponha­mos que, vencendo todas as dificuldades, chegamos aos bons e ve­rificamos que são aterradores também? Que tal se a própria co­mida se revelar exatamente aquilo que não, podemos comer, e o lar o lugar em que não podemos viver e a pessoa que nos confor­ta exatamente aquela que nos causa desconforto? Nesse caso, na verdade, não há salvação possível: foi jogada a última carta. Por um segundo ou dois fiquei quase nessas condições. Aqui estava finalmente um pedaço daquele mundo para lá do mundo, que eu sempre supusera que amava e desejava, ultrapassando obstácu­los e revelando-se aos meus sentidos: e não me agradava, queria que se fosse embora. Entre mim e ele queria toda a distância pos­sível, golfo, cortina, cobertor ou barreira. Mas não caí completamente no golfo.              

Por estranho que pareça foi a própria sensação de desampa­ro que me salvou e serviu de apoio. Pois que agora eu estava obviamente «metido no caso». A agonia acabara. A decisão se­guinte não me cabia a mim.

Então, como um ruído vindo de um mundo diferente, chegou o abrir da porta e o som de botas no tapete de entrada e vi, em si­lhueta contra o cinzento da noite na porta aberta, a figura que re­. conheci ser de Ransom. O falar que não era uma voz saiu outra vez da haste de luz: e Ransom, em vez de se mexer, ficou imóvel e respondeu-lhe. Ambas as frases eram numa linguagem polis­silábica estranha que eu não tinha ouvido antes. Não faço qual­ quer tentativa para desculpar os sentimentos que surgiram dentro de mim quando ouvi o som não humano que se dirigia ao meu amigo e o meu amigo a responder na língua não humana. Não tem, de fato, desculpa; mas se pensam que são improváveis em tal conjuntura, devo dizer-lhes simplesmente que não leram com muito proveito nem a história nem o próprio coração. Eram sen­timentos de ressentimento, horror e ciúme. Veio-me à cabeça bradar: «Deixa o seu parente em paz, meu mágico de um raio, e presta-me atenção».

O que efetivamente disse foi:

— Oh, Ransom. Graças a Deus que você veio.

 

A porta fechou-se com o estrondo (pela segunda vez naquela noite) e depois de uns momentos às apalpadelas Ransom veio a encontrar e acender uma vela. Dei rapidamente uma vista de olhos em volta e não vi mais ninguém a não ser nós próprios. A coisa mais digna de nota dentro da sala era o tal objeto grande e branco. Desta vez reconheci o formato perfeitamente bem. Era uma em forma de caixão, aberta. Ao lado, no chão, estava a’.tampa, e fora sem dúvida nesta que eu tinha tropeçado. Ambas , eram feitas do mesmo material branco, que parecia gelo, mas me­nos transparente e menos brilhante.

— Por Júpiter, estou satisfeito por te ver — disse Ransom avançando e vindo apertar-me a mão. — Esperava poder encon­trá-lo na estação, mas tudo teve de ser organizado tão às pressas e vi no último momento que tinha de ir até Cambridge. Nunca tive a intenção de deixá-lo fazer aquela viagem sozinho. — E en­tão, vendo, suponho, que eu continuava a olhá-lo, pasmado, algo estupidamente, acrescentou: — Quero dizer... você está bem, não está? Passaste através da barragem sem qualquer dano?

— A barragem? Não entendo.

— Achei que pudesse encontrar certas dificuldades para chegar aqui...

— Oh, isso — disse eu. — Quer dizer que não eram só os meus nervos? Havia realmente alguma coisa no caminho?

— Sim. Eles não queriam que viesse até aqui. Estava com re­ceio de que algo do gênero pudesse acontecer, mas não havia tem­po para fazer nada. Tinha a certeza de que de uma forma ou de outra, haveria de passar.   .

— Por eles quer dizer os outros... os, tais seus eldila?

— Claro. Apanharam no ar o que está se passando...

Interrompi-o.

— Para dizer a verdade, Ransom — disse eu —, estou ca­da vez mais preocupado com esta história toda. Veio-me à cabe­ça quando estava a caminho para aqui... ­

— Oh, se deixar, eles te põe toda a espécie de coisas na cabeça — disse Ransom, de ânimo leve. — O melhor a fazer é não ligar e continuar em frente. Não tente responder. Gostam de nos meter numa discussão interminável.

— Mas olha lá — disse eu. — Isto não é brincadeira de crian­ças. Tem absoluta certeza de que esse tal Senhor das Trevas, es­se maligno oyarsa de Tellus, existe realmente? Será que sabe mesmo se há dois lados ou qual é o nosso lado?

Fixou-me subitamente com um dos seus olhares de soslaio, suaves, mas estranhamente impressionantes.

— Tem realmente dúvidas sobre qualquer dessas coisas? — perguntou.

— Não — disse eu, depois de uma pausa; senti-me bastante envergonhado.

— Então; está tudo bem — disse Ransom animadamente.­

Agora vamos tratar da ceia e vou explicando enquanto o fazemos;

— Que negócio é aquele do caixão? — perguntei quando íamos para a cozinha.

— É naquilo que vou viajar.

— Ransom! — exclamei. — Ele... a coisa— o eldil... não vai te levar de volta para Malacandra?

— Não diga isso! — disse ele. — Oh, Lewis, você não compreende. Levar-me de volta para Malacandra? Se ao menos ele o fizesse! Daria tudo o que possuo... só para poder olhar outra vez para uma daquelas gargantas lá embaixo e ver a água muito azul serpenteando através dos bosques. Ou estar lá no alto... para ver um Som deslizando pela encosta abaixo. Ou ter voltado lá, ao cair da noite, quando Júpiter está nascendo, tão brilhante que se não pode fitar, e todos os asteróides como uma Via Láctea, com cada uma das estrelas tão brilhantes como Vênus parece vista da Terra! E os aromas! Raramente isto me sai do pensamento. Se­ria de esperar que fosse pior à noite quando Malacandra está aci­ma do horizonte e realmente posso vê-lo. Mas não é nessa hora que eu sinto realmente o aperto no peito. É nos dias quentes de Verão... olhando para cima, para o azul profundo e pensando que lá, milhões de milhas ao longe, onde não posso nunca, nun­ca mais voltar, existe um lugar que conheço, e flores crescendo nesse momento sobre Meldilorn, e amigos meus, tratando da sua vida, que me receberiam bem se eu voltasse. Não. Não vou ter essa sorte. Não é para Malacandra que vão me mandar. É para Perelandra.

— Isso é aquilo a que chamamos Vênus, não é?

— Sim.

— E você diz que vão te mandar.

— Sim. Se estiver lembrado, antes de eu deixar Malacandra, o Oyar­sa deu a entender que a minha ida até lá podia ser o come­ço de toda uma nova fase na vida do sistema solar... o Campo de Arbol. Podia significar, disse ele, que o isolamento do nosso mun­do, o cerco, estava em vias de chegar ao fim.

— Sim, me lembro.

— Pois bem, parece realmente que alguma coisa do gênero es­tá para acontecer. Por um lado, as duas partes, como você cha­ma, começaram a distinguir-se de forma muito mais clara, muito menos miscuídos, aqui na Terra, nos nossos próprios as­suntos humanos... a mostrar de certa maneira um pouco mais as suas verdadeiras cores.

— Entendo perfeitamente.    

— A outra coisa é esta. O arconde negro... o nosso trapaceiro Oyarsa... está tramando uma espécie qualquer de ataque a Pere­landra.

— Mas ele tem assim tanta liberdade no Sistema Solar? Ele pode chegar lá?

— Aí é que está justamente o ponto. Ele não pode chegar lá em pessoa, ou seja lá o que é que podemos chamar. Como sabe, ele foi for­çado a retirar-se para dentro destes limites séculos antes de exis­tir qualquer espécie de vida humana no nosso planeta. Se se aventurasse a aparecer fora da órbita da Lua seria obrigado a retirar-se de novo... à força. Isso seria um gênero diferente de guerra. Eu ou você não poderíamos contribuir para ela mais do que uma pulga podia contribuir para a defesa de Moscovo. Não. Ele deve estar a tentar atingir Perelandra de qualquer outra maneira diferente.               

— E onde é que você entra?               

— Bem... eu fui simplesmente mandado para lá.

— Pelo... pelo Oyarsa, quer dizer?

— Não. A ordem vem de muito mais alto. Todas elas vêm, bem sabe, no fim das contas.

— E o que é que você tem que fazer quando chegar lá?

— Não me disseram.

— É apenas parte do entourage do Oyarsa?

— Oh não. Ele não vai estar lá. Vai transportar-me para Vênus... vai me deixar lá. Depois disso, tanto quanto sei; ficarei só.

— Mas, olhe, Ransom... quero dizer... — a minha voz arras­tou-se até desaparecer.     

— Eu sei — disse ele com um dos seus sorrisos singularmen­te desconcertantes. — Está vendo o absurdo de tudo isto. O Dr. Elwin Ransom me­tendo-se a caminho para combater, de mãos nuas, potências e principados. É capaz até de perguntar a você mesmo se não sofro de megalomania.

— Eu não queria dizer bem isso — disse eu.

— Oh, mas eu acho que sim. De qualquer maneira isso é o que eu mesmo tenho sentido desde que a coisa me caiu em cima. Mas quando se pensa bem no caso, será mais estranho que aquilo que todos nós temos de fazer todos os dias? Quando a Bíblia usa­va essa mesma expressão acerca de lutar contra principados e potências e seres hipersomáticos malignos nas grandes alturas, (a nossa tradução é muito enganadora nesse ponto, diga-se de passagem) queria dizer que eram as pessoas absolutamente comuns que tinham que travar a luta.

— Oh, atrevo-me a dizer... — disse eu. — Mas isso é bastante diferente. Isso se refere ao conflito moral.

Ransom inclinou a cabaça para trás e riu.

— Oh, Lewis, Lewis — disse ele —, você é inimitável, simples­mente inimitável.

— Diga o que quiser, Ransom, existe uma diferença.

— Sim. Existe. Mas não uma diferença que torne em megalo­mania pensar que qualquer de nós possa ter que lutar de um lado ou de outro. Lhe direi como vejo o caso. Não notou como na nos­sa própria pequena guerra aqui na Terra existem fases diferen­tes, e quando qualquer das fases está a decorrer as pessoas adqui­rem o hábito de pensar e proceder como se ela viesse a tomar-se permanente? Mas na realidade a coisa está a mudar sob as nos­sas mãos durante o tem por todo, e nem as vantagens de cada uma nem os perigos são os mesmos neste ano que eram no ano ante­rior. Ora a sua idéia de que as pessoas comuns nunca terão de arrostar os eldila Maléficos de qualquer forma à exceção da for­ma moral; ou lógica... como tentações ou coisa parecida... é sim­plesmente uma idéia que se agüentou durante uma certa fase da guerra cósmica: a fase do grande cerco, a fase que deu ao nosso planeta o seu nome de Thulcandra, o planeta silencioso. Mas su­ ponhamos que essa fase está a passar? Na próxima fase pode ser tarefa de um qualquer de nós enfrentá-los... bem, nalguma modalidade muito diferente.

— Entendo:

— Não imagines que fui escolhido para ir para Perelandra por ser alguém especial. Nunca se pode ver, ou só muito mais tarde se vê, por que razão um qualquer foi escolhido para qualquer ta­refa. E quando se vê, é usualmente por alguma razão que não dei­xa motivo para vaidade. Com certeza nunca é por aquilo que a própria pessoa teria considerado como as suas principais quali­ficações. Imagino bem que estou a ser enviado porque aqueles dois patifes que me raptaram e me levaram para Malacandra fizeram uma coisa que nunca tencionavam: nomeadamente, de­ram a um ser humano a oportunidade de aprender aquela língua.

— Que língua você quer dizer?

— Hressa-Hlab, é claro. A língua que aprendi em Malacan­dra.

— Mas seguramente não pensa que em Vênus hão de falar a mesma língua?                .

— Não te falei a respeito disso? — disse Ransom, inclinando­ se para a frente. Estávamos agora à mesa e tínhamos quase terminado a nossa carne fria, cerveja e chá. — Espanta-me não o ter feito, pois descobri há dois ou três meses, e cientificamente é uma das coisas mais interessantes de todo este caso. Parece que está­ vamos totalmente enganados ao pensar que Hressa-Hlab era a linguagem particular de Marte. Na realidade é o que se podia chamar Solar Antigo, Hlab-Eribol-ef-Cordi.

— Que diabo você quer dizer?

— Quero dizer que originalmente havia uma língua comum para todas as criaturas que habitam os planetas do nosso siste­ma: quer dizer, aqueles que alguma vez foram habitados... aqui­lo a que os eldils chamariam Mundos Inferiores. A maior parte de­les, é claro, nunca foram habitados e nunca serão. Pelo menos o que nós chamaríamos habitados. Essa linguagem original per­deu-se em Thulcandra, o nosso próprio mundo, quando toda a nossa tragédia teve lugar. Nenhum idioma humano hoje conhe­cido no mundo é derivado dela.

— E que há então acerca das outras duas línguas de Marte?

— Confesso que não entendo o que se passa com elas. Uma coisa sei, e creio que poderia provar em bases puramente filológicas. São incomparavelmente menos antigas que o Hressa­-Hlab, em especial o Surnibur, a linguagem dos Sorns. Creio que se podia demonstrar que o Surnibur é, pelos padrões de Malacandra, um desenvolvimento muito moderno. Duvido que o seu nas­cimento possa reportar-se a uma data anterior ao nosso Período Câmbrico.

— E pensa que vai encontrar o Hressa-Hlab, ou Solar An­tigo, falado em Vênus?

— Sim. Vou lá chegar conhecendo a língua. Livra-me de uma série de problemas... embora, como filólogo; ache isso bastante desapontador.

— Mas não tem idéia alguma do que tem a fazer, ou de quais as condições que vais encontrar?

— Idéia nenhuma do que hei de fazer. Há tarefas, sabe, em que é essencial que não se saiba demasiado antecipadamente... coisas que se podem ter que dizer e que não se poderiam dizer eficazmente se tivessem sido preparadas. Quanto às condições, bem, não sei muita coisa. Estará quente; é para ir nu. Os nossos astrônomos não sabem mesmo nada a respeito da superfície de Perelandra. A camada exterior da sua atmosfera é demasiado es­pessa. O problema principal, aparentemente, é se ela gira ou não sobre o seu mesmo eixo, e a que velocidade. Existem duas esco­las de pensamento.Há um homem chamado Schiaparelli que acha que ele gira uma vez sobre si mesma no mesmo tempo que leva a dar uma volta em torno de Arbol... do Sol, quero dizer. Ou­tras pessoas pensam que ela gira sobre o seu eixo uma vez em ca­da vinte e três horas. Essa é uma das coisas que hei de descobrir.              

— Se Schiaparelli tem razão haverá dia perpétuo num lado e noite perpétua no outro?

Acenou que sim com a cabeça, meditando.

— Seria uma fronteira — acabou por dizer. — Pensa só. Vai­-se ter a um país de eterno crepúsculo, que se torna mais frio e mais escuro a cada milha que se prossegue. E a certa altura não se seria capaz de ir mais além porque não haveria mais ar. Per­gunto a mim próprio se se pode ficar onde é dia, mesmo no lado certo da fronteira, e olhar para dentro da noite onde nunca se po­de chegar? E ver talvez uma estrela ou duas... no único lugar on­de se podem ver, pois que naturalmente nas Terras do Dia elas nunca seriam visíveis... Claro que se tiverem uma civilização científica podem ter fatos de mergulho ou coisas como submari­nos com rodas para penetrar na Noite.

Os olhos dele cintilavam, e mesmo eu, que estivera principal­mente a pensar em como lhe iria sentir a falta e ponderando que probabilidades havia de alguma vez o Ver de novo, senti um ar­repio de admiração e de ânsia de saber. Logo a seguir voltou a fa­lar.

— Não me perguntou ainda onde é que você entra nisto — dis­se ele.

— Quer dizer que também é suposto eu ir? — disse eu, com um arrepio do gênero exatamente posto.

— Nada disso. O que digo é que você terás de me embalar e de estar pronto a desembalar-me quando voltar... Se tudo correr bem.

— Embalar-te? Oh, tinha-me esquecido dessa questão do caixão. Ransom, como diabo vais viajar nessa coisa? Qual é a energia motriz? E quanto a ar, alimentos, água? Mal dá para você lá te estenderes.

— O Oyarsa de Malacandra em pessoa será a energia motriz. Pura e simplesmente fá-lo-á deslocar-se para Vênus. Não me perguntes como. Não faço idéia alguma de que órgãos ou instru­mentos eles usam. Mas urna criatura que tem mantido um pla­neta na sua órbita durante vários bilhões de anos será capaz de chegar para urna caixa de embalagem.

— Mas que vais você comer? Como é que vais respirar?

— Ele diz que não vou precisar de fazer qualquer das coi­sas. Estarei numa espécie de estado de morte aparente, tanto quanto consigo perceber. Mas esse é um problema dele.

— Sentes-te perfeitamente feliz com a idéia? — disse eu, pois um certo sentimento de horror começava urna vez mais a trepar por mim acima. — Se quer significar... Será que a minha razão aceita a posição de que ele me fará chegar são e salvo, acidentes à parte, à superfície de Perelandra?.. a resposta é sim — disse Ransom. — Se quer dizer: Os meus nervos e a minha imaginação ajustam-se bem à idéia... receio que a resposta já não... Podemos acreditar na anestesia e sentir na mesma pânico quan­do nos põem realmente a máscara na cara. Acho que me sinto como um homem que acredita na vida eterna se sente quando o levam para a frente de um pelotão de fuzilamento. É capaz de ser bom como prática.

— E sou eu quem te vai embalar nessa malfadada coisa? ­disse eu.

— Sim — disse Ransom. — Esse é o primeiro passo. Temos de ir para o jardim tão cedo se erga o sol e apontá-la de tal forma que não haja nenhuma árvore ou edifício na frente. De um lado ao ou­tro do canteiro das couves. Depois eu entro... com uma ligadura a tapar-me os olhos, dado que aquelas paredes não evitarão a en­trada da luz do sol logo que esteja para lá da atmosfera... e você apertas os parafusos.” Depois disso, penso que apenas me verá     deslizar por aí fora.

— E a seguir?        .

— Bem, aí vem a parte difícil. Tem de te manter pronto a voltar outra vez aqui no momento em que fores intimado, para re­tirar a tampa e me deixar sair quando eu voltar.

— Quando esperas voltar?

— Ninguém pode dizer. Seis meses... um ano... vinte anos.

Essa é a questão. Receio estar a deixar um fardo bem pesado em cima de ti.

— Até posso estar morto.

— Bem sei. Receio que parte desse fardo seja escolher um su­cessor: e de imediato, além do mais. Existem quatro ou cinco pes­soas em quem podemos confiar.

— E qual vai ser a intimação? .

— Oyarsa fá-lo-á. Não será confundível com qualquer outra coisa. Não precisas de te incomodar com esse aspecto. Um outro ponto. Não tenho qualquer razão especial para supor que vou re­gressar ferido. Mas, pelo seguro, se puderes encontrar um médi­co ao qual possamos confiar o segredo, é capaz de ser boa idéia tra­zê-la contigo quando vieres até aqui para me deixar sair.

— Humphrey serviria?

— É o homem certo. E agora vamos a assuntos mais pessoais.

Tive de te deixar de fora no meu testamento, e queria que soubes­ses porquê.

— Meu velho, nunca pensei no seu testamento até este ins­tante.

— Claro que não. Mas eu gostaria de ter deixado qualquer coisa. A razão porque o não fiz é esta. Eu vou desaparecer. É pos­sível que não regresse. É concebível em princípio que possa ter lu­gar um julgamento por assassinato e se assim for todo o cuidado nunca será de mais. Quero dizer, por sua causa. E agora mais urna ou duas disposições de caráter privado.

Aproximamos a cabeça um do outro e durante um grande bocado falamos daqueles assuntos que normalmente se discutem com os parentes e não com os amigos. Fiquei a saber muito mais acerca de Ransom do que sabia antes e, pelo número de pessoas estranhas que recomendou aos meus cuidados— «Se alguma vez acontecesse eu ter possibilidade de fazer qualquer coisa» — fiquei a ter a noção da dimensão e do caráter íntimo da caridade que exercia. A cada frase, a sombra da separação que se aproximava e uma espécie de melancolia de cemitério começou a pesar com mais ênfase sobre nós. Dei por mim a notar e a apreciar nele toda a espécie de pequenos maneirismos e expressões como notamos, sempre na mulher que amamos, mas que num homem só nota­mos quando estão a acabar as últimas horas da sua licença ou se torna mais próxima a data da operação provavelmente fatal. Sen­ti a incredulidade incurável que faz parte da nossa natureza; e mal podia crer que aquilo que estava agora tão próximo, tão tangível e (em certo sentido) tão à minha disposição, estaria dentro de poucas horas totalmente inacessível, apenas uma imagem­ — em breve, mesmo uma ilusiva imagem — na minha memória. E por fim estabeleceu-se entre nós um certo embaraço, porque ca­da um sabia o que o outro estava a sentir. Estava muito frio.

— Em breve temos de ir — disse Ransom.

— Não antes de ele... o Oyarsa... voltar — disse eu, embora na verdade, agora que a coisa estava tão próxima, eu desejasse que chegasse ao fim.

— Ele nunca nos deixou — disse Ransom —, tem estado todo este tempo aqui em casa.

— Quer dizer que ele tem estado à espera na sala do la­    do todas essas horas?         

— À espera, não. Nunca passam por isso. Você e eu temos con­     ciência da espera, porque temos um corpo que fica cansado e im­    paciente e consequentemente um sentido de duração acumulati­va. Podemos além disso distinguir obrigações e poupar tempo e portanto temos uma concepção de ócio. Com ele não é assim. Tem estado aqui o tempo todo, mas não podes chamar a isso esperar do mesmo modo que não podes chamar esperar a toda a sua existência. Seria como se dissesses que uma árvore num bosque es­tá à espera, ou que a luz do sol está à espera sobre o lado de uma colina. — Ransom bocejou. — Estou cansado — disse — e você também está. Eu hei de dormir bem naquele meu caixão. Vamos. Tratemos de o arrastar lá para fora.

Passamos à sala do lado e tive de ficar de pé ,em frente da cha­ma incaracterística que não esperava mas se limitava a estar, e ali, com Ransom como intérprete, fui de certa maneira apresen­tado e na minha própria língua fui ajuramentado para este grande empreendimento. Depois retiramos as cortinas de ocultação de luzes e deixamos entrar a manhã cinzenta e desconsolada.

Carregamos lá para fora, os dois, o caixão e a tampa, tão frios que nos pareciam queimar os dedos. Havia um orvalho denso na rel­va e fiquei logo com os pés completamente ensopados. O eldil estava conosco,lá fora, no pequeno relvado; mal visível de todo pe­las meus olhos,à luz do dia. Ransom mostrou-me as fivelas da tampa e como é que esta era para ser presa, e depois houve um rondar infeliz por ali e então o momento final em que entrou em               casa e reapareceu, nu; um espantalho de um homem, alto, bran­co, fatigado, tremendo de frio àquela hora agreste e descorada. Depois de se ter metido dentro daquela horrenda caixa fez-me atar uma ligadura espessa em volta da sua cabeça e olhos. Depois deitou-se. Eu não tinha naquela altura pensamentos alguns so­bre o planeta Vênus nem nenhuma crença real em voltar a vê-lo. Se me tivesse atrevido teria desistido do plano todo: mas aquela outra coisa — a criatura que não esperava — estava ali, e o medo dela estava comigo. Com sentimentos que desde então me têm voltado em pesadelos fechei a fria tampa por cima do homem vivo que lá estava e recuei um pouco. No momento seguinte estava só. Não vi como tudo se passou. Voltei para dentro de casa e fui vomitar. Umas horas mais tarde fechei a casa de campo e regressei a Oxford..

Depois os meses passaram e passou um ano e mesmo um pouco mais de um ano, e tivemos raras e más notícias e esperanças adiadas e a terra inteira ficou cheia de trevas e de cruéis habita­ções, até à noite em que Oyarsa de novo veio ter comigo. Depois disso, para mim e para Humphrey houve uma viagem à pressa, estadas em corredores apinhados e esperas às primeiras horas em plataformas ventosas e finalmente o momento em que nos encontramos de pé, à claridade do sol nascente, na pequena selva de ervas daninhas em que se tornara agora o jardim de Ransom e vimos uma pinta negra sobre o sol que despontava, e a seguir, quase em silêncio, o caixão tinha descido em vôo planado para o meio de nós. Lançamo-nos sobre ele e tínhamos a tampa tirada em cerca de minuto e meio.

— Santo Deus! Tudo partido em pedaços — gritei ao primei­ro olhar para o interior.

— Espera lá — disse Humphrey. E enquanto ele falava, a figura dentro do caixão começou a mexer e sentou-se, sacudindo, ao fazê-lo, uma massa de coisas vermelhas que lhe tinham cober­to a cabeça e os ombros e que eu momentaneamente tomara por destroços e sangue. À medida que elas se desprendiam e eram levadas pelo vento, reconheci que eram flores. Pestanejou um se­gundo ou dois, chamou-nos pelo nome, apertou a mão a cada um de nós e saiu cá para fora, para cima da relva.

— Como estão ambos? — disse ele. — Parecem-me bastante estourados.

Fiquei em silêncio por um momento, atônito perante a forma que se erguera daquela estreita casa — quase que um novo Ran­som, resplandecente de saúde e bem musculado e parecendo dez anos mais jovem. Nos velhos tempos tinha começado a apresen­tar alguns cabelos grisalhos; mas agora a barba que lhe varria o peito era de ouro puro.

— Olá, cortou o pé — disse Humphrey, e vi nesta altura que Ransom sangrava num calcanhar.

— Uf, está frio aqui em baixo — disse Ransom. — Espero que tenham a caldeira acesa e água quente... e alguma roupa.

— Sim — disse eu, e fomos atrás dele para dentro de casa. ­— Humphrey pensou em tudo. Receio que eu não o teria feito.

Ransom estava agora na casa de banho, com a porta aberta, oculto por nuvens de vapor, e Humphrey e eu estávamos no pa­tamar a falar com ele. As nossas perguntas eram mais numero­sas do que ele podia responder.

— Aquela idéia de Schiaparelli está de todo errada — bradou ele. — Por lá, têm um dia e uma noite comuns; e... Não, não me dói o calcanhar, ou pelo menos só agora começou a doer e... Obrigado, qualquer roupa já usadas serve. Deixem-nas em cima da cadeira e... Não, obrigado. Não me apetecem muito ovos com presunto ou qualquer coisa no gênero. Não há fruta? Não faz mal. Pão, flocos de aveia ou qualquer outra coisa e... Dentro de cinco minutos estarei aí embaixo.

Fartou-se de perguntar se realmente estávamos bem e pare­cia achar que tínhamos ar de doentes. Desci para tratar do pequeno-almoço, e Humphrey disse que ia lá ficar para examinar e tra­tar do corte no calcanhar de Ransom. Quando ele se juntou a mim estava eu a observar uma das pétalas vermelhas que tinham vindo na urna.

— Aqui está uma flor bem bonita — disse, entregando-a.

— Sim — disse Humphrey, estudando-a com as mãos e os olhos de um cientista. — Que extraordinária delicadeza! Faz uma violeta inglesa parecer uma erva grosseira.

— Vamos pôr algumas dentro de água.

— Não servirá de muito. Repare, já estão murchando.

— Como acha que ele está?

— Em boa forma, em geral. Mas não gosto muito daquele cal­canhar. Diz ele que a hemorragia já dura há muito tempo.

Ransom veio ter conosco, todo vestido, e serviu-se de chá. E durante todo o aquele dia e pela noite fora contou-nos a história que vem a seguir.

 

Com que é que se assemelha viajar num caixão celeste foi uma coisa que Ransom nunca descreveu. Dizia que não podia. Mas fo­ram aparecendo alusões dispersas a respeito daquela viagem, numa altura ou noutra, quando falava de assuntos completa­mente diferentes.

De acordo com o seu mesmo relato não estivera aquilo a que chamamos consciente e todavia, ao mesmo tempo, a experiência era muito positiva e com uma qualidade que a distinguira. Numa certa ocasião, alguém tinha estado a falar acerca de «ver a vida» no sentido popular de andar pelo mundo fora e conhecer gente, e B.,que estava presente (e que é um antroposofista), disse qual­quer coisa que não recordo bem acerca de «ver a vida», com um sentido muito diferente. Acho que se estava a referir a um sistema de meditação que afirmava fazer «a própria forma da Vida» visível ao olhar interior. De qualquer modo Ransom deixou-se apanhar num comprido requisitório por não ter ocultado o fato de que ligava a isto uma certa idéia bem definida. Foi mesmo até ao ponto — depois de muito pressionado — de dizer que via a vi­da, naquelas condições, como uma «imagem colorida». Pergunta­do — de que cor? — deu-nos um olhar curioso e apenas foi ca­paz de dizer — que cores! — Sim, que cores! — Mas depois estra­gou tudo ao acrescentar — claro que na realidade não era cor ne­nhuma. Quero dizer, não aquilo a que chamaríamos de cor — e ao ca­lar-se completamente por todo o resto da noite. Uma outra alu­são surgiu quando um amigo nosso, céptico, — chamado McPhee estava a argumentar contra a doutrina cristã da ressurreição do corpo humano. Na altura era eu a sua vítima e ele acossava-me, à boa maneira escocesa, com questões como — Pensa então que vai ter tripas e paladar para sempre num mundo em que não se comerá, e órgãos genitais num mundo sem cópula carnal? Sim se­nhor, vai servir-te de muito! — quando Ransom subitamente ex­plodiu, com grande excitação — oh, não está vendo, seu burro que há diferença entre uma vida que transcende os sentidos e uma vida onde não existem sentidos — Isto, é claro, atraiu para ele o fogo de McPhee. O que emergiu foi que na opinião de Ran­som as atuais funções e apetites do corpo desapareceriam, não porque se atrofiassem mas porque eram, como ele disse, «engoli­dos» — interiorizados. Usou a palavra «transsexual», recordo, e começou à procura de algumas palavras similares para aplicar a comer (depois de rejeitar «transgastronômico) e, uma vez que não era o único filólogo presente, isso desviou a conversa pra outros rumos. Mas estou bem certo de que ele estava a pensar em algo porque passara na sua viagem para Vênus. Mas a coisa mais mis­teriosa que ele alguma vez disse a este respeito foi talvez esta. Eu estava a fazer-lhe perguntas sobre o assunto-coisa que ele não permite muitas vezes — e tinha dito descuidadamente — Claro que compreendo que tudo é demasiado vago para o pores em pa­lavras — quando ele me corrigiu de forma assaz ríspida, para um homem tão paciente, dizendo — Pelo contrário, são as palavras que são ondas. A razão pela qual a coisa não pode ser expressa é que ela é definida de mais para a linguagem. — E isto é mais ou menos tudo que vos posso dizer da sua viagem. Uma coisa é cer­ta, ele regressou de Vênus ainda mais mudado do que voltara de Marte. Mas é claro que isso pode ter sido devido ao que lhe acontecera depois de aterrar.

A essa aterragem, como Ransom me contou, vou agora pas­sar. Parece que foi acordado (se esta é a expressão correta) do seu indescritível estado celestial pela sensação de ir a cair — por ou­tras palavras, quando já estava suficientemente perto de Vênus, para Vênus lhe aparecer do lado de baixo. A coisa que notou a se­guir foi que sentia muito calor num lado e muito frio no outro, embora nenhuma das sensações chegasse ao ponto de ser realmen­te dolorosa. Como quer que fosse, ambas cedo foram dissolvidas na prodigiosa luz branca que vinha de baixo que começou a pene­trar através das paredes semi opacas da urna. Aquilo aumentou de forma constante e tornou-se aflitivo a despeito do fato de ele ter os olhos protegidos. Não havia dúvida de que aquilo era o albedo, o véu exterior de atmosfera muito densa pelo qual Vênus é cercada e que reflete com um poder intenso os raios solares. Por alguma razão obscura, não estava consciente, como estivera na aproximação a Marte, do rápido incremento do seu mesmo peso. Quando a luz, branca estava mesmo a tornar-se insuportável, de­sapareceu completamente, e muito em breve o frio no lado es­querdo e o calor no direito começaram a diminuir e a ser substi­tuídos por uma tepidez uniforme. Segundo me parece ele estava agora na camada exterior da atmosfera de Perelandra — num crepúsculo, primeiro pálido e depois matizado. A cor predomi­nante, tanto quanto podia ver através dos lados da urna, era doi­rada ou cobreada. Por esta altura devia estar muito perto da su­perfície do planeta, com a dimensão maior da urna a fazer um ân­gulo reto com ela — caindo de pés para a gente como um homem num elevador — A sensação de cair — indefeso como ele estava e in­capaz de mexer os braços — tornou-se aterradora. Então, subi­tamente, veio uma grande escuridão verde, um ruído não identi­ficável — a primeira mensagem do novo mundo — e uma acen­tuada descida da temperatura. Parecia ter agora assumido a posição horizontal e além disso, para sua grande surpresa, estar a mover-se não para baixo mas sim para cima; conquanto, na altura julga isso uma ilusão. Todo este tempo devia ter estado a fazer esforços débeis, inconscientes, para mexer os membros, porque então repentinamente deu por os lados da sua casa — pri­são cederem à pressão. Estava a mexer os membros, entravados por qualquer substância viscosa. Onde estava a urna? As suas sensações eram muito confusas. Umas vezes parecia ir a cair, outras a elevar-se nos ares por ali acima,e ainda outras vezes a des­locar-se no plano horizontal. A substância viscosa era branca. A cada instante parecia haver menos... uma matéria branca, nebulosa, tal e qual, a urna, só que não era sólida. Com um choque ter­rível compreendeu que era a urna, a urna que se derretia, que se dissolvia, dando lugar a uma confusão de cor indescritível — um mundo rico, variegado, no qual nada, de momento, parecia palpável. Não havia já urna alguma. Tinha sido despejado — depo­sitado — solitário. Estava em Perelandra.

A sua primeira impressão não era nada mais definido que uma sensação de que algo estava inclinado — como se estivesse a olhar por uma fotografia que tivesse sido tirada quando a máquina não estava de nível. E mesmo isto durante um momento apenas. A inclinação foi substituída por uma inclinação diferente; então as duas inclinações correram uma para a outra e cons­tituíram um pico, e o pico achatou-se subitamente numa linha horizontal, e a linha horizontal tombou e tornou-se nos bordos de uma vasta encosta fulgurante que se precipitava furiosamente sobre ele. No mesmo momento sentiu que estava a subir. Eleva­va-se cada vez mais alto até parecer que tinha de chegar à cúpu­la ardente de ouro que pendia sobre ele em vez do céu. A seguir es­tava num cume; mas antes quase de. que o seu olhar tivesse re­gistrado um enorme vale que se abria abaixo dele — um verde bri­lhante como vidro e raiado por veios de um branco espumoso — estava a precipitar-se nesse vale a talvez trinta milhas à hora. E agora verificava que existia uma frescura deliciosa em todas as partes do corpo exceto na cabeça, que os pés não se apoiavam em nada e que vinha há algum tempo executando inconscientemente os movimentos de um nadador. Estava em cima da ondulação sem espuma de um oceano, fresco e calmo, depois das furiosas temperaturas do céu, mas quente pelos padrões da Terra — tão quente como uma baía, pouco profunda e com fundo de areia, num clima subtropical. Enquanto se arrojava com suavidade pela encosta convexa da onda seguinte acima ficou com a boca cheia de água. Mas sabia a sal; era potável como água doce e só, num grau infinitesimal, menos insípida. Embora não tivesse dado por estar com sede até ao momento, o que bebeu deu-lhe um prazer espantoso. Era quase como conhecer o próprio Prazer pela primeira vez. Enfiou o rosto enrubescido no verde translúcido, e quando o tirou encontrou-se uma vez mais no topo de uma onda.

Não havia terra à vista. O céu era ouro puro e plano como o fun­do de um quadro medieval. Parecia muito distante — tão afastado como os cirros parecem vistos da Terra. Ao longe, o oceano também era de ouro, salpicado de inúmeras sombras. As ondas mais próximas, embora douradas quando as cristas apanhavam a luz, eram verdes nas vertentes: primeiro esmeralda, e um verde gar­rafa lustroso mais abaixo, tornando-se azul ao passarem sob a sombra das outras ondas.

Tudo, isto ele viu num relâmpago; a seguir estava mais uma, vez correndo por ali abaixo na cava da onda. Sem saber como, dei-’ tara-se de costas. Viu a cobertura dourada daquele mundo palpitando com uma rápida variação de luzes mais pálidas, como um, teto palpita com a luz do sol refletida na água do banho, quando entramos nela numa manhã de Verão. Achou que isso era o reflexo das ondas onde nadava. E um fenômeno observável três dias: em cada cinco no planeta do amor. A rainha daqueles mares vê-se continuamente num espelho celestial.

De novo pela crista acima e nada de terra à vista. Algo que parecia nuvens — ou podiam ser navios? — lá muito para a esquer­da. Depois, por ali abaixo, abaixo, abaixo — pensou que nunca chegaria ao fim... desta vez observou como a luz estava reduzida. Uma talor a tépida na água — um banho assim glorioso, como teria sido c amado na Terra, sugeria como natural acompa­nhamento um sol abrasador Mas ali não havia tal coisa. A água cintilava, o céu ardia doirado, mas tudo era rico e baço, e os olhos enchiam-sei daquilo sem ficarem ofuscados nem coloridos. Os próprios ter os de verde e de ouro, que fora forçado a usar ao des­crever a cena, são demasiado grosseiros para a delicadeza, a mu­da iridescência, daquele mundo tépido, maternal, refinadamen­te esplendoroso. Era tão suave de olhar como o anoitecer, quen­te como o meio-dia no Verão, meigo e sussurrante como o romper da aurora era extremamente gratificante. Deu um suspiro.

Na sua frente havia agora uma onda tão alta que metia pavor. Falamos distraidamente no nosso próprio mundo de mar da al­tura de uma montanha, quando não é muito mais alto que o mas­tro. Mas aquilo era a sério. Se a mole enorme fosse um monte em terra e não a água, podia ter gasto uma manhã inteira ou mais subindo pela encosta antes de chegar ao alto. A onda colheu-o dentro de si mesma e arremessou-o por aquela elevação acima numa questão de segundos. Mas antes de alcançar o topo, quase soltou um grito de terror. Pois aquela onda não tinha um topo li­so como as outras. Apareceu uma crista horrível: formas fantás­ticas, recortadas e encapeladas, mas sem serem naturais, nem líquidas, na aparência, brotavam dela. Rochedos? Espuma? Animais? A questão mal tivera tempo de lhe atravessar o pensamen­to e já a coisa estava em cima dele. Fechou os olhos involuntaria­mente. E depois deu por si, mais uma vez, precipitando-se na descida. Fosse o que quer que fosse, tinha ficado para trás. Mas alguma coisa fora. Tinha apanhado uma pancada na cara. Pas­sando nesta com a mão não encontrou sangue. Alguma coisa lhe tinha batida que não lhe causara dano mas meramente magoara como uma chibata, devido à velocidade a que se tinham cruzado. De novo rodou sobre si mesmo — voando já, ao fazê-lo, milha­res de pés por ali acima até ao alto da água da crista seguinte. Lá muito abaixo dele, num vasto vale momentâneo, viu a coisa que falhara. E a um objeto de forma irregular, com muitas curvas e reentrâncias. Era variegado de cores, como uma colcha de retalhos cor de fogo, azul ultramarino, carmesim, cor de laran­ja, amarelo Sião e violeta. Não podia dizer mais sobre o caso pois ,olhar todo durara tão pouco tempo. O que quer que a coisa fosse, flutuava, pois precipitou-se pela vertente acima da onda ,posta, pelo alto dela e para fora da vista. Assentava na água como uma pele, curvando-se quando a água curvava. Tomou a erma da onda no topo, de forma que por um momento dela estava já fora da vista para lá da crista e a outra metade jazia na parte mais alta da vertente. Comportava-se muito como um tapete de plantas num rio — um tapete de plantas que absorve todos os contornos das pequenas ondulações que se fazem ao remar passando por ele — mas numa escala muito diferente. A coisa em questão era capaz de ter doze hectares de área ou mais. As palavras são lentas. Não se pode perder de vista o fato de toda a sua vida em Vênus até agora ter durado menos de cinco mi­nutos. Não estava minimamente cansado e ainda não seriamen­te alarmado quanto à sua capacidade de sobreviver em tal mun­do. Tinha confiança naqueles que para lá o tinham mandado, e entretanto a frescura da água e a liberdade dos seus membros eram ainda uma novidade e uma delícia; mas, mais que todas estas, era uma outra coisa à qual já aludi e que dificilmente pode ser posta em palavras — a estranha sensação de prazer excessi­vo que parecia de algum modo ser-lhe transmitida através de todos os sentidos ao mesmo tempo. Uso a palavra «excessivo» por­que o próprio Ransom apenas a podia descrever dizendo que nos seus primeiros dias em Perelandra era perseguido, não por um sentimento de culpa, mas pela surpresa de não experimentar es­te sentimento. Havia uma exuberância ou prodigalidade de doçu­ra acerca do mero ato de viver que a nossa raça acha difícil não associar a ações proibidas e extravagantes. E contudo era também um mundo violento. Mal tinha perdido de vista o obje­to flutuante quando os seus olhos foram varados por uma luz in­suportável. Uma luz azul-violeta, que tudo nivelava, fez o céu dourado parecer escuro por comparação e numa fração de tem­po revelou mais do novo planeta do que aquilo que tinha visto até aí. Viu a vastidão perdida das ondas estendendo-se ilimitadas diante dele, e longe, muito longe, no fim do mundo, contra o céu, uma coluna singela e lisa, de verde lívido, de pé, a única coisa fi­xa e vertical naquele universo de encostas movediças. Então o crepúsculo magnífico voltou a investir (parecendo agora quase escuridão) e ele ouviu o trovão. Mas tinha um timbre diferente do trovão terrestre, mais ressonância, e mesmo, quando distante, uma espécie de vibração. Era o riso, mais que o rugido, do céu. Seguiu-se um outro relâmpago e ainda outro e depois a tempestade estava sobre ele. Enormes nuvens púrpura vieram meter-se entre ele e o céu dourado, e sem pingos preliminares começou a cair uma chuva como nunca presenciara. Não existiam nela linhas; a água por cima dele mal parecia menos contínua que ornar e sentiu dificuldade em respirar. Os relâmpagos eram incessan­tes. Entre um e outro, quando olhava em qualquer direção exceto a das nuvens, via um mundo completamente modificado. Era como estar no centro de um arco-íris, ou numa nuvem multicolorida de vapor. A água que agora enchia o ar tornava mar e céu numa confusão de transparência flamejantes que se deba­tiam. Estava atordoado e pela primeira vez um pouco assustado. Com os relâmpagos viu, como antes, apenas o mar sem fim e a coluna verde e imóvel, no fim do mundo. Terra não se via em parte alguma — nem a sugestão de uma margem, de um extremo ao outro do horizonte.

Os trovões eram ensurdecedores e era difícil aspirar o ar suficiente. Toda a espécie de coisas parecia cair com a chuva-apa­rentemente coisas vivas. Assemelhavam-se a rãs airosas e gra­ciosas de uma forma preternatural — uma sublimação das rãs — e tinham a cor das libélulas, mas ele não se encontrava em condições de poder fazer observações cuidadosas. Estava a começar a sentir os primeiros sintomas de exaustão e sentia-se completamente confuso pela orgia de cores na atmosfera. Quanto durou este estado de coisas não podia dizer, mas a próxima coisa que se lembra de ter notado com certo rigor foi que a ondulação estava a decrescer. Tinha a impressão de estar perto do fim de uma ca­deia de montanhas de água e a olhar para as terras mais baixas lá no fundo. Durante um largo período não havia maneira de chegar a estas terras mais baixas; o que parecia, por comparação com o mar que encontrara à chegada, serem água calmas, acabava sempre por serem ondas apenas ligeiramente menores, quando nelas se precipitava. Parecia haver por ali uma boa quantidade dos grandes objetos flutuantes. E estes, mais uma vez, a certa distância pareciam um arquipélago, mas sempre, à medida que chegava mais perto e dava com a irregularidade das águas em que flutuavam, tomavam mais o aspecto de uma esquadra. Mas, finalmente, não havia dúvida alguma de que a ondulação estava a abater. A chuva parou. As ondas eram apenas de altura atlântica. As cores do arco-íris tornaram-se mais débeis e mais transparentes e o céu doirado primeiro mostrou-se timidamente através delas e depois estabeleceu-se outra vez de um extremo ao outro do horizonte. As ondas tornaram-se ainda menores. Começou a respirar livremente. Mas agora estava realmente cansado, e a começar a ter tempo para sentir medo. Um dos grandes tapetes de material flutuante deslizava por uma onda abaixo, não mais que algumas centenas de jardas afastado. Olhou-o ansiosamente, perguntando a si mesmo se poderia subir para cima de uma daquelas coisas para descansar. Tinha grandes suspeitas de que demonstrariam ser simples tapetes de plantas, ou os ramos superiores de florestas submari­nas, incapazes de poderem com ele. Mas enquanto pensava isto, aquele em que os seus olhos se tinham fixado em particular trepou por uma onda e interpôs-se entre ele e o céu. Não era plano. Da sua superfície fulva erguia-se toda uma série de formas onduladas e emplumadas, muito desiguais em altura; pareciam escuras contra o fulgor amortecido da abóbada doirada. Depois todas se inclinaram para o mesmo lado e a coisa que as transpor­tava enrolou-se sobre a crista das águas e mergulhou para fora da vista. Mas ali estava outra, a não mais de trinta jardas, e que vinha para cima dele. Dirigiu-se a ela, notando ao fazê-lo como os braços estavam fracos e cansados e sentindo o primeiro arre­pio de verdadeiro medo. Quando se aproximou, viu que termina­va numa franja de material indubitavelmente vegetal; arrasta­va, na realidade, uma saia vermelha escura de tubos, fibras e bol­sas. Lançou-lhes a mão e verificou que não estava ainda suficien­temente perto. Desatou a nadar desesperadamente, pois a coisa deslizava ;na sua frente a algumas dez milhas à hora. Lançou outra vez a mão e ficou com ela cheia de fibras vermelhas que pareciam chicotes, mas estas soltaram-se da mão e quase o cor­taram. Então atirou-se mesmo para o meio delas, agarrando-se furiosamente a tudo o que estava na sua frente. Por um instan­te ficou numa espécie de sopa vegetal de tubos gorgolhantes e de bolsas que rebentavam; no momento seguinte as mãos apanha­ram algo mais firme em frente, uma coisa assim como madeira muito macia. Então, com o fôlego quase esgotado e um joelho contuso, deu consigo deitado de cara para baixo numa superfície re­sistente. Puxou por si uma polegada mais ou coisa assim. Sim — agora não havia dúvida nenhuma; não se passava para o outro la­do; era algo em que uma pessoa se podia estender.

Parece que deve ter ficado longo tempo deitado de barriga, sem fazer nem pensar nada. Quando a seguir começou a dar pe­lo que o rodeava estava, para todos os efeitos, bem repousado. A primeira descoberta que fez era que estava estendido numa su­perfície seca, a qual ao ser examinada com cuidado veio a revelar-se consistir de uma substância muito parecida com urze ex­ceto pela cor que era acobreada. Esgravatando distraidamente com os dedos encontrou qualquer coisa friável, como terra seca, mas em muito pouca quantidade, pois que logo de seguida deu com uma base de fibras rijas entrelaçadas. Virou-se então de cos­tas, e ao fazê-lo descobriu a extrema resistência da superfície on­de estava deitado. Era mais qualquer coisa do que a flexibilida­de da vegetação tipo urze, e dava mais a impressão de que toda aquela ilha flutuante, sob a vegetação, era uma espécie de col­chão. Voltou-se e olhou «para terra» — se é esta a palavra certa — e por um momento aquilo que via parecia muito ser um cam­po. Estava a correr os olhos por um comprido e solitário vale, com o fundo cor de cobre bordejado em cada lado por encostas suaves cobertas por uma espécie de floresta de muitas cores. Mas mes­mo quando registrava esta imagem, ela tornou-se uma comprida crista cor de cobre, com a floresta descendo de cada lado. Claro que devia estar já preparado para isso, mas diz ele que lhe causou um choque de o pôr doente. A coisa tinha parecido, naquele primeiro olhar de relance, tão semelhante a terreno autêntico que se tinha esquecido que ela estava a flutuar — uma ilha, se se quiser com montes e vales, mas montes e vales que trocavam de lugar a cada minuto ou coisa assim, de forma que só o cinema podia fazer o mapa dos seus contornos. E esta é a natureza das ilhas flutuantes de Perelandra. Uma fotografia, omitindo as cores e a permanente variação de forma, faria parecer com paisagens do nosso próprio mundo, mas a realidade é bem dife­rente; pois são secas e férteis como terra, mas a sua única forma é a forma inconstante da água debaixo delas. Todavia, a seme­lhança que apresentavam com a terra provou ser difícil de resis­tir. Conquanto o seu cérebro já tivesse aprendido o que estava a passar-se, Ransom ainda o não fizera com os músculos e os ner­vos. Levantou-se e deu alguns passos para o interior — e a des­cer, como o solo se apresentava quando se levantara — e de ime­diato se encontrou de cara no chão, sem se magoar devido à maciez das ervas. Pôs-se rapidamente de pé — viu que tinha uma encosta íngreme a subir-e caiu segunda vez. Um relaxar aben­çoado da tensão em que estivera a viver desde a chegada descontraiu-o numa risada fraca. Rolou para cá e para lá na superfície macia e odorífera num ataque de riso nervoso de au­têntico menino de escola.

Aquilo passou. E então, na hora ou duas seguintes, esteve a ensinar a si mesmo a andar. Era muito mais difícil que a bordo de um navio, pois que faça o mar o que fizer o convés do navio mantém-se plano. Mas aquilo era como aprender a andar sobre a própria água. Levou-lhe diversas horas a afastar-se uma cen­tena de jardas da borda, ou costa, da ilha flutuante; e ficou mui­to orgulhoso quando conseguiu dar cinco passos sem cair, braços estendidos, joelhos flexionados prontos para uma súbita mudança de equilíbrio, todo o seu corpo tenso e oscilante como alguém que está a aprender a andar no arame. Talvez tivesse aprendido mais depressa se as suas quedas não tivessem sido tão suaves, se não fosse tão agradável, depois de cair, deixar-se ficar quieto a contemplar a cúpula dourada, a ouvir o ruído cl amante e contínuo da água e a respirar o aroma curiosamente deleitoso da verdura. E ainda, além disso, era tão esquisito, depois de ter virado os pés pe­la cabeça para dentro de uma pequena ravina achar-se sentado no pico de uma montanha no centro de toda a ilha olhando, qual Robinson Crusoé, para os campos e florestas lá em baixo até as margens em todas as direções, que era difícil a uma pessoa não se deixar ficar sentada uns minutos mais — e depois ficar de no­vo retida porque, ao levantar, tanto o monte como o vale tinham sido obliterados e toda a ilha estava plana e horizontal.

Acabou finalmente por chegar à parte arborizada. Havia tufos baixos de vegetação plumosa, com cerca da altura das moi­tas de groselhas, com a cor de anêmonas do mar. Por cima disto havia vegetação mais alta — árvores estranhas com troncos co­mo tubos de azul e púrpura espalhando magníficos dosséis sobre a sua cabeça, nos quais o cor de laranja, a prata e o azul eram as cores predominantes. Aqui, com a ajuda dos troncos das árvores podia mais facilmente aguentar-se de pé. Os aromas da floresta ultrapassavam tudo o que alguma vez concebera. Dizer que o fa­ziam sentir com fome e com sede seria induzir em erro; mas qua­se faziam nascer um novo gênero de fome e de sede, um desejo que parecia fluir do corpo e entrar na alma, e senti-lo era como estar no céu. Vezes sem conta ficava imóvel, agarrando-se a um ramo para se equilibrar profundamente, como se o respirar se tivesse tornado uma espécie de ritual. E ao mesmo tempo a paisagem da floresta fornecia o que na Terra teria sido uma dúzia de paisagens — ora um bosque a nível, com árvores tão verticais como torres, ora um leito profundo onde era surpreendente não se encontrar um regato, ora um bosque crescendo na encosta de uma colina, ora ainda o alto de um outeiro de onde se olhava através dos tron­cos oblíquos para o mar distante, lá em baixo. Salvo o som não or­gânico das ondas à volta dele, havia um silêncio total. A sensação de solidão tornou-se intensa sem de forma alguma passar a ser dolorosa— acrescentando apenas, na realidade, um último toque de extravagância aos prazeres extraterrenos que o rodeavam. Se algum receio tinha agora, era uma débil apreensão de que o seu juízo pudesse estarem perigo. Havia qualquer coisa em Perelandra que poderia ultrapassar a capacidade de um cérebro hu­mano.

Chegara agora a uma parte do bosque onde grandes globos de fruta amarela pendiam das árvores em cachos, como os balões de brincar se juntam em cachos nas costas do homem dos balões, e mais ou menos com o mesmo tamanho. Apanhou um e deu-lhe voltas sobre voltas. A casca era lisa e firme e parecia impossível de abrir. Então, por acaso, um dos dedos rompeu-a e penetrou em qualquer coisa fria. Depois de um momento de hesitação levou a pequena abertura aos lábios. Tinha a intenção de extrair o menor trago experimental, mas o primeiro sabor fez fugir toda a precaução. Era, é claro, tanto um sabor como a sua fome e a sua sede tinham sido fome e sede. Mas por outro lado era tão diferen­te de todos os outros sabores que parecia simples pedantice se­quer chamar-lhe sabor. Era como a descoberta de um genus de prazer totalmente novo, algo de que nunca se ouvira entre os ho­mens, para além do que se pode calcular ou estabelecer. Por um trago daquilo se travariam guerras na Terra e nações seriam traídas. Não podia ser classificado. Nunca foi capaz de nos dizer, quando regressou ao mundo dos homens, se era picante ou doce, apetitoso ou voluptuoso, cremoso ou penetrante: Não se parecia com isso — era tudo o que era capaz de dizer quando tais ques­tões eram postas. Quando deixou cair a cabaça vazia e estava prestes a puxar uma segunda, veio-lhe à cabeça que já não esta­va nem com fome nem com sede. E contudo o que parecia óbvio fa­zer era repetir um prazer tão intenso e tão espiritual. A sua ra­zão, ou aquilo que comumente tomamos por ser a razão no nos­so próprio mundo, era toda a favor de saborear de novo aquele mi­lagre; a inocência quase infantil do fruto, os trabalhos por que passara, as incertezas do futuro, tudo era de molde a aconselhar essa ação. Todavia, havia qualquer coisa que parecia opor-se à «razão». É difícil supor que a oposição vinha do desejo, pois que desejo se afastaria de tamanha delícia? Por um motivo qualquer, parecia-lhe melhor não provar de novo. Talvez que a experiência tivesse sido tão completa que repeti-la seria uma vulgaridade — como pedir para ouvir a mesma sinfonia duas vezes num dia.

Enquanto, de pé, ponderava sobre tudo aquilo, perguntando a si mesmo quantas vezes na sua vida na Terra tinha repetido prazeres não levado pelo desejo, mas em oposição a este e por obe­diência a um racionalismo espúrio, verificou que a luz estava a mudar. Por detrás dele estava mais escuro do que estivera; em frente, céu e mar brilhavam através do bosque com uma intensi­dade modificada. Sair da floresta seria obra de um minuto na Ter­ra; naquela ilha ondulante levou-lhe mais tempo, e quando final­mente emergiu para o exterior um espetáculo extraordinário es­perava os seus olhos. Durante todo o dia não houvera nenhuma variação em qualquer ponto da abóbada dourada que indicasse a posição do sol, mas agora a metade completa do céu revelava-a. A orbe propriamente continuava invisível, mas no bordo do mar descansava um arco de um verde tão luminoso que não podia fi­tá-lo, e, para além disso, estendendo-se quase até ao zênite, um grande leque de cor, como a cauda de um pavão. Olhando para trás por cima do ombro viu toda a ilha abrasada em azul, e atra­vés dela e para lá dela, mesmo até aos confins do mundo, a sua própria e enorme sombra. O mar, agora de longe mais calmo do que até aio vira, fumegava para o céu em imensos dolomites e ele­fantes de vapor azul e púrpura, e um vento ligeiro, cheio de sua­vidade, levantava-lhe o cabelo sobre a testa. O dia acabava como se estivesse a arder. A cada instante as águas ficavam mais hori­zontais, algo não muito afastado do silêncio começou a sentir-se. Sentou-se de pernas cruzadas, na borda da ilha, senhor desola­do, segundo parecia, daquela solenidade. Pela primeira vez atravessou-lhe a mente que podia ter sido enviado para um mundo desabitado, e o terror adicionou, na realidade, uma sensação de «à beira do abismo» a toda aquela profusão de prazer.

Uma vez mais, um fenômeno que a razão podia ter antecipado apanhou-o de surpresa. Estar nu e apesar disso quente, deam­bular por entre frutos de Verão e estender-se em urze macia — tudo isto tinha-o levado a contar com uma noite com crepúscu­lo, de um cinzento ligeiro de meio do Verão. Mas antes de o gran­de colorido apocalíptico ter desaparecido a oeste, o céu a oriente estava negro. Uns momentos mais e a escuridão tinha atingido a parte ocidental do horizonte. Uma breve claridade avermelhada demorou-se no zênite por um tempo, durante o qual tratou de se arrastar de volta para os bosques. Já era, em locução corrente, «demasiado escuro para se ver o caminho». Mas, antes de se ter deitado no chão nomeio das árvores, a noite autêntica chegara— uma escuridão sem descontinuidades, não como a da noite mas como a da cave do carvão, escuridão na qual uma mão posta em frente da cara era totalmente invisível. A escuridão absoluta, a que não tem dimensões, a impenetrável, pesava-lhe nos olhos. Não há lua naquela terra, estrela alguma fura a abóbada doura­da. Mas a escuridão era tépida. Novos e doces aromas despren­diam-se dela. O mundo agora não tinha dimensão. Os limites dele eram o comprimento e a largura do seu mesmo corpo e o pe­queno tapete de fragrância macia que constituía a sua maca, os­cilando suavemente, sempre e sempre. A noite cobriu-o como uma manta e afastou dele toda a solidão. O negrume podia ter si­do o seu mesmo quarto. O sono chegou como um fruto que nos cai na mão quase antes de termos tocado no seu pé.

 

Ao acordar aconteceu a Ransom algo que talvez nunca acon­teça a uma pessoa, até estar fora do seu mesmo mundo: viu a rea­lidade e pensou que era um sonho. Abriu os olhos e viu uma ár­vore colorida de forma estranha e heráldica carregada de frutos amarelos e de folhas cor de prata. Em torno da base do caule azul índigo estava enroscado um pequeno dragão coberto de escamas de ouro vermelho. Reconheceu de imediato o jardim das Hespérides.

«Este é o mais real dos sonhos que alguma vez tive», pensou. De um modo ou de outro compreendeu então que estava acorda­do, mas um extremo conforto e uma sensação de estar quase em transe, tanto no sono que acabara de o deixar como na experiên­cia que estava a ter ao acordar, levaram-no a quedar-se deitado e imóvel. Recordou-se de como no mundo tão diferente chamado Malacandra — aquele mundo frio e arcaico como lhe parecia ago­ra — tinha encontrado o Ciclope original, um gigante numa caverna, que era também pastor. Estariam todas as coisas que apa­reciam na Terra como mitologia dispersas pelos outros mundos como realidades? Então a percepção raiou nele: «Está num pla­neta desconhecido, nu e só, e este pode ser um animal perigoso». Mas não se sentia muito atemorizado. Sabia que a ferocidade dos animais terrestres era, pelos padrões cósmicos, uma exceção, e tinha encontrado ternura em criaturas mais estranhas que aque­la. Mas deixou-se estar quieto um pouco m ais e examinou-a. Era um ser do tipo lagarto, com um tamanho da ordem do de um cão S. Bernardo, com o dorso em dente de serra. Tinha os olhos aber­tos.

Nesta altura aventurou-se a erguer-se sobre um cotovelo. A criatura continuou a olhar para ele. Reparou que a ilha estava perfeitamente horizontal. Sentou-se e viu, através dos caules das árvores, que se encontravam em águas calmas. O mar pare­cia vidro coberto a ouro. Retomou o estudo do dragão. Será que era um animal racional — um Knau, como diziam em Malacan­dra — e exatamente aquilo que o tinham mandado encontrar ali? Não parecia, mas valia a pena tentar. Falando na língua So­lar Antiga formou a primeira frase — e a sua própria voz não lhe soou familiar.

— Estrangeiro— disse. — Fui enviado ao seu mundo através do Céu pelos servos de Maleldil. Dás-me as boas-vindas?

A coisa olhou para ele com muita atenção e possivelmente com muita sabedoria. Então, pela primeira vez, fechou os olhos. Isto não parecia um começo prometedor. Ransom decidiu pôr-se de pé. O dragão reabriu os olhos. Ficou a olhar para ele enquan­to se podia contar até vinte, muito indeciso quanto ao que fazer a seguir. Viu então que começara a desenroscar-se. Por um gran­de esforço de vontade manteve-se onde estava; quer aquilo fos­se racional ou irracional, a fuga não o ajudaria por muito tempo. O bicho afastou-se da árvore, sacudiu-se todo e abriu duas asas reptilianas brilhantes — de um ouro azulado e parecidas com as dos morcegos. Depois de tê-las sacudido e fechado outra vez, di­rigiu a Ransom um outro olhar prolongado, e por fim, meio bam­boleante meio rastejante, caminhou até aborda da ilha e mergulhou na água o focinho comprido e de aspecto metálico. Depois de ter bebido, levantou a cabeça e soltou uma espécie de balido crocitante que não era totalmente desprovido de musicalidade. De­pois voltou-se, olhou ainda outra vez para Ransom e finalmen­te aproximou-se. «E loucura ficar à espera do que possa aconte­cer», dizia o falso raciocínio, mas Ransom cerrou os dentes e ficou. O bicho veio ter com ele e começou a empurrar-lhe os joelhos com o seu focinho frio. Sentia uma grande perplexidade. Seria ele ra­cional e aquela a forma de ele falar? Seria irracional mas amis­toso — e, se assim era, como devia ele responder? Dificilmente se podia acariciar com a mão um ser com escamas! Ou estava ele me­ramente a coçar-se de encontro a si? De momento, com uma pre­cipitação que o convenceu tratar-se apenas de um animal, pare­ceu esquecer-se totalmente dele, virou-lhe as costas e começou a despedaçar a verdura com grande avidez. Sentindo que a hon­ra estava salva, Ransom, por sua vez, virou-se também e voltou para o bosque.

Havia árvores perto dele carregadas com a fruta que já pro­vara, mas a sua atenção foi desviada por uma aparição estranha um pouco mais longe. No meio da folhagem mais escura de um tu­fo cinzento esverdeado havia alguma coisa que parecia cintilar. A impressão, apanhada pelo canto do olho, fora a do telhado de uma estufa com o sol a bater-lhe. Agora que olhava diretamen­te para lá, lembrava-lhe vidro, mas vidro em movimento perma­nente. A luz parecia ir e vir de uma forma espasmódica. Mesmo quando se deslocava para investigar o fenômeno sobressaltou-o um toque na perna. O animal seguira-o. Mais uma vez se esfre­gava e lhe tocava com o focinho. Ransom apressou o passo. O mes­mo fez o dragão. Parou; ele também. Quando avançou de novo, o bicho acompanhou-o, tão encostado que o flanco fazia pressão nas suas coxas e por vezes um pé frio, duro e pesado descia sobre o seu. O arranjo era tão pouco do seu gosto que começava a inter­rogar-se seriamente como é que havia de lhe pôr fim quando su­bitamente toda a sua atenção foi atraída por outra coisa. Sobre a sua cabeça, pendia de um ramo peludo e de aspecto tubular um grande objeto esférico quase transparente e brilhante. Conti­nha uma área de luz refletida e num ponto uma sugestão das cores do arco-íris. Era então esta a explicação da aparição seme­lhante a vidro dentro do bosque. E olhando em volta apercebeu-se de inúmeros globos tremeluzentes da mesma natureza, em todas as direções. Começou a examinar atentamente o que esta­va mais próximo. Primeiro pensou que se movia, depois pensou que não. Levado por um impulso natural estendeu a mão para lhe tocar. Imediatamente a cabeça, rosto e ombros ficaram encharca­dos por aquilo que parecia (naquele mundo tépido) um banho de chuveiro gelado, e as narinas cheias de um perfume vivo, pene­trante, raro, que de certo modo lhe fazia vir ao pensamento o ver­so de Pope «morrer de uma rosa em dor aromática». Tal foi o refri­gério, que lhe parecia ter estado, até à altura, apenas meio des­perto. Quando abriu os olhos — que involuntariamente cerrara ao choque do líquido — todas as cores à sua volta pareciam mais ricas e a relativa obscuridade daquele mundo parecia ter-se tornado mais clara. O encantamento reapoderou-se dele. O animal doirado à sua beira não mais parecia nem um perigo nem um incômodo. Se um homem nu e um dragão sábio eram efetivamente os únicos habitantes daquele paraíso flutuante, então também isto era ajustado, pois naquele momento tinha a sensação, não de estar a viver uma aventura mas sim de estar a pôr de pé um mi­to. Ser a figura que era naquele esquema não terreno parecia-lhe suficiente. Virou-se de novo para a árvore. A coisa que o tinha en­charcado desaparecera de todo. O tubo ou ramo, privado do glo­bo pendente, terminava agora num pequeno orifício trêmulo do qual estava pendurada uma conta de umidade cristalina. Olhou em roda com uma certa perplexidade. O pequeno bosque conti­nuava cheio da sua fruta iridescente mas percebia agora que ha­via um contínuo movimento lento. Um segundo mais tarde tinha apreendido o fenômeno. Cada uma das esferas brilhantes ia au­mentando de tamanho muito gradualmente e cada uma delas, ao alcançar uma certa dimensão, desaparecia com um tênue ruído, e em seu lugar havia uma momentânea umidade no solo e uma frequência deliciosa e uma frialdade no ar que cedo se desvane­ciam. De fato, as tais coisas não eram nada fruta mas sim bolhas. As árvores (batizou-as naquele momento) eram árvores-bo­lhas. A vida delas, aparentemente, consistia em chupar água do oceano e em expeli-la desta forma, mas depois de enriquecida na sua curta permanência no interior pleno de seiva. Sentou-se pa­ra que os seus olhos se banqueteassem com o espetáculo. Agora que conhecia o segredo podia explicar a si mesmo porque é que aquele bosque parecia e se sentia ser tão diferente de todas as outras partes da ilha. Cada bolha, observada individualmente, podia ser vista emergir do seu ramo-mãe como uma simples con­ta, do tamanho de uma ervilha, e inchar e rebentar; olhando pa­ra o bosque no seu conjunto tinha-se apenas consciência de uma contínua e tênue agitação da luz, uma ilusiva interferência no si­lêncio prevalecente em Perelandra, uma frescura não usual no ar e uma qualidade mais fresca no perfume. Para um homem nas­cido no nosso mundo dava mais a sensação de um lugar ao ar li­vre do que as partes abertas da ilha, ou mesmo o mar. Olhando para um molho fino de bolsas que pendiam por cima da sua cabe­ça pensou com seria fácil chegar lá e enfiar-se uma pessoa naque­le conjunto e sentir, logo no mesmo instante, aquele refrigério mágico multiplicado dez vezes. Mas foi detido pelo mesmo gênero de sensação que o impedira durante a noite de saborear uma segunda cabaça. Sempre detestara as pessoas que pediam a re­petição da área favorita numa ópera: Isso só serve para estragar — fora o seu comentário. Mas isso agora lhe parecia como um princípio de aplicação muito mais lata e com mais pro­funda importância. Aquele desejo veemente de experimentar uma vez mais as coisas, como se a vida fosse um filme que se podia desenrolar duas vezes ou até mesmo fazer correr da frente para trás... estaria aí possivelmente a raiz de todos os males? Não: é claro que o amor ao dinheiro é que era assim chamado. Mas o dinheiro em si mesmo — pode ser que se lhe desse valor como uma defesa contra a sorte, uma garantia de se ser capaz de ter as coi­sas uma vez mais, um meio de fazer parar o desenrolar do filme.

Foi despertado bruscamente da sua meditação pelo descon­forto físico de um certo peso nos joelhos. O dragão tinha-se esten­dido no chão e tinha depositado a cabeça comprida e pesada em cima deles.

— Você sabe — disse-lhe em inglês — que é uma considerá­vel maçada? — Nem se mexeu. Decidiu que era melhor tentar fa­zer amizade com ele. Passou-lhe a mão pela cabeça seca e dura, mas a criatura não deu por isso. Depois passou a mão mais abai­xo e encontrou uma superfície mais mole, ou mesmo uma fenda naquela armadura. Ah... ali é que o bicho gostava que lhe fizes­se cócegas. Grunhiu e disparou uma comprida língua, cilíndrica e cor de ardósia, para lambê-lo. Deitou-se de costas revelando uma barriga quase branca, que Ransom massageou com o dedo grande do pé. As suas relações com o dragão floresciam magnifi­camente. No fim o bicho pôs-se a dormir.

Ransom ergueu-se e tomou segundo chuveiro de uma árvore de bolhas. Isto fez com que se sentisse tão fresco e desperto que começou a pensar em comida. Tinha-se esquecido onde é que se encontra­vam na ilha as cabaças amarelas, e ao pôr-se à procura delas des­cobriu que era difícil andar. Por um momento interrogou-se se o líquido das bolhas teria propriedades embriagantes, mas uma passagem de olhos em redor assegurou-o da verdadeira razão. A urze plana e cor de cobre diante dele, mesmo quando a observa­va, inchou até ser uma pequena colina e a pequena colina deslocava-se na sua direção. Fascinado de novo à vista da terra ro­lando para ele, como a água numa onda, esqueceu-se de se pre­parar para o movimento e perdeu o equilíbrio. Pondo-se de pé, prosseguiu com mais cuidado. Desta vez não havia dúvida algu­ma. O mar estava a crescer. Onde dois bosques vizinhos faziam uma vista até à borda daquela jangada viva podia ver as águas revoltas, e o vento morno era agora suficientemente forte para lhe agitar o cabelo. Caminhou cautelosamente em direção à cos­ta, mas antes de lá chegar passou algumas moitas que tinham abundância de bagas verdes e ovais com cerca de três vezes o ta­manho de amêndoas. Apanhou uma e partiu-a ao meio, a polpa era meio seca e parecida com pão, qualquer coisa do gênero de ba­nana. Revelou-se boa para comer. Não causava o prazer orgíaco e quase alarmante das cabaças, mas antes o prazer próprio da simples comida— o deleite de mastigar e sentir-se alimentado, uma «Sóbria certeza de bem-estar ao despertar». Um homem, pelo menos um homem como Ransom, sentia que devia dar gra­ças por isso, e assim fez realmente. As cabaças teriam antes requerido uma oratória ou uma meditação mística. Mas a refeição tinha os seus aspectos inesperados. De vez em quando dava-se com uma baga com um centro brilhante e vermelho; e estas eram tão saborosas, tão memoráveis entre um milhar de sabores, que teria começado a procurá-las e a comê-las apenas a elas, mas disso foi uma vez mais proibido pelo mesmo conselheiro interior que já lhe falara por duas vezes desde que viera para Perelandra. «Se fosse na Terra», pensou Ransom, «logo haveriam de descobrir como se criavam aquelas bagas de coração vermelho, e elas cus­tariam bem mais do que as outras». Dinheiro, de fato, fornece­ria os meios de dizer encore numa voz que não podia ser desobedecida.

Quando acabou a sua refeição desceu até à orla da água para beber, mas antes de lá chegar já era «subir» até à orla da água. A ilha nesse momento era um pequeno vale de terra brilhante aninhada entre colinas de água verde, e enquanto estava deita­do de barriga para baixo para beber teve a experiência extraor­dinária de mergulhar a boca num mar que estava mais alto que a costa. Então sentou-se direito por um bocado com as pernas bamboleando sobre a borda, entre as ervas vermelhas que mar­ginavam aquele pequeno território. A sua solidão tornou-se um elemento mais persistente na sua consciência. Tinha sido trazi­do ali para fazer o quê? Passou-lhe pela cabeça a idéia louca de que aquele mundo tinha estado à espera dele como seu primeiro habitante, que tinha sido designado para ser o fundador, o inicia­dor. Era estranho que a solidão total durante todas aquelas ho­ras não o tivesse perturbado tanto como uma noite de isolamento em Malacandra. Pensava que a diferença residia nisto, que o me­ro acaso, ou aquilo que ele tomava por acaso, o tinha deixado à de­riva em Marte, mas aqui ele sabia que era parte de um plano. Já não estava desligado, já não se encontrava de fora.

À medida que o seu território trepava as montanhas lisas de água de um lustro baço, ele teve frequente oportunidade de ver muitas outras ilhas estavam mesmo à mão. Diferiam da sua pró­pria ilha, e entre elas, pelo seu colorido, mais do que teria pensa­do possível. Era uma maravilha ver aqueles grandes tapetes ou carpetas de terra andando de um lado para o outro à sua volta como iates num porto em dia de mau tempo — as árvores fazen­do ângulos diferentes, tal como os mastros dos iates fariam. Era uma maravilha ver uma orla de verde vivo ou carmesim aveluda­do vir deslizando por sobre a crista de uma onda muito acima de­le e depois esperar até que todo o território se desenrolasse pela vertente de uma onda abaixo para ele estudar. Algumas vezes a sua própria terra e uma terra vizinha estavam em encostas opos­tas de uma garganta, apenas com um estreito braço de água en­tre ambas; e, então, no momento, era-se iludido pela semelhança com uma paisagem terrestre. Parecia exatamente como se se estivesse num vale bem florestado com um rio lá no fundo. Mas en­quanto se olhava para lá, o tal rio aparente fazia o impossível. Tanto se atirava para cima que a terra ficava em declive de am­bos os lados dele; e ainda mais para cima, empurrando metade da paisagem para fora da vista, para lá do cume; e tornava-se um imenso lombo de água’ ouro-esverdeado pendurado no céu e ameaçando engolir a nossa própria terra, que agora era côncava e cambaleava para trás em direção ao rolo seguinte e, ao precipitar-se para o alto, se tornava outra vez convexa.

Um ruído estridente de zumbido sobressaltou-o. Por um mo­mento imaginou que estava na Europa e que um avião voava baixo sobre a sua cabeça. Reconheceu então o seu amigo dragão. A cauda listada estava estendida para trás de maneira que parecia uma lagarta voadora e dirigia-se para uma ilha afastada cerca de uma milha. Seguindo com os olhos a sua rota, viu duas longas linhas de objetos alados, escuros sobre o firmamento de ouro, e que se aproximavam da mesma ilha, vindos da esquerda e da di­reita. Mas aqueles não eram répteis com asas de morcego. Pers­crutando com cuidado ao longe, decidiu que eram aves, e um ruí­do chilreante e musical, na altura trazido pelo ar até ele por uma alteração do vento, confirmou aquela convicção. Deviam ser um pouco maiores que cisnes. A sua aproximação constante à mesma ilha para a qual o dragão se dirigia fixou a sua atenção e encheu-o de uma sensação onda de expectativa. O que se passou a seguir levou esta a autêntica excitação. Tomou consciência de uma cer­ta perturbação leitosa e com espuma na água, muito mais perto, e que se dirigia para a mesma ilha. Uma frota inteira de objetos deslocava-se em formatura. Pôs-se de pé. Nessa altura, o cres­cer de uma onda tirou-os da sua vista. No momento seguinte es­tavam outra vez visíveis, centenas de pés lá em baixo. Objetos da cor da prata, todos vivos, num círculo fervilhante de movimen­to... perdeu-os de novo e praguejou. Num mundo assim tão des­provido de acontecimentos tinham-se tornado importantes. Ah!... Lá estavam eles outra vez. Peixes certamente. Peixes muito grandes, obesos, parecidos com golfinhos, duas colunas compri­das uma ao lado da outra, alguns deles esguichando pelo nariz colunas de água com as cores do arco-íris, e com um chefe. Havia algo de esquisito no que respeita ao chefe, uma certa espécie de excrescência ou malformação nas costas. Se ao menos aquelas coisas se mantivessem visíveis por mais do que cinquenta segun­dos de cada vez! Estavam já a chegar à tal outra ilha, e as aves desciam todas para os encontrar na margem. Lá estava outra vez o chefe, com a sua corcova ou pilar nas costas. Seguiu-se um mo­mento de louca incredulidade, e depois Ransom estava em equi­líbrio, com as pernas bem abertas, na parte mais extrema da margem da sua ilha, gritando tão alto quanto podia. Pois no momento em que o peixe da frente alcançara a terra vizinha, o solo erguera-se, em cima de uma onda, entre ele e o céu; e vira, recor­tada em silhueta perfeita e inconfundível, a coisa que estava no dorso do peixe revelar-se como uma forma humana — uma for­ma humana que saltou em terra, se virou com uma ligeira incli­nação do corpo em direção ao peixe e depois desapareceu da vis­ta quando toda a ilha deslizou sobre a parte saliente das águas. Com o coração a bater, Ransom esperou até ela estar de novo à vista. Desta vez não se encontrava entre ele e o céu. Por um se­gundo ou coisa que o valha a figura humana manteve-se invisí­vel. Uma pontada de algo assim como o desespero atravessou-o. Depois apanhou-a de novo — uma minúscula forma meio escu­ra que se movia entre ele e um talhão de vegetação azul. Acenou e gesticulou e gritou até a garganta ficar rouca, mas ela não deu por nada. De vez em quando perdia-a de vista. Mesmo quando voltava a encontrá-la, duvidava por vezes se não seria uma ilu­são de ótica — qualquer configuração ocasional da folhagem que o seu intenso empenho assimilara à forma de um homem. Mas sempre, mesmo quando estava a desesperar, de novo se tornava inconfundível. Depois os olhos começaram a ficar cansados e re­conheceu que quanto mais tempo olhasse menos veria. Mas con­tinuou a olhar, não obstante.

Por fim, de mera exaustão, sentou-se. A solidão, que até ago­ra fora pouco dolorosa, tornara-se um horror. Qualquer regres­so a ela era uma possibilidade que não se atrevia a encarar. A beleza fascinante e fatigante desaparecera do que o rodeava; retirasse-se dali aquela forma humana e todo o resto do seu mundo era agora um pesadelo, uma cela horrível ou uma ratoeira na qual estava aprisionado. A suspeita de estar a sofrer de alucina­ções cruzou-lhe o pensamento. Teve uma imagem de viver para sempre naquela ilha medonha, na realidade sempre sozinho, mas sempre perseguido pelos fantasmas de seres humanos, que se lhe chegariam de m aos estendidas e sorriso nos lábios para de­pois se desvanecer quando ele se aproximasse. Baixando a cabe­ça sobre os joelhos, cerrou os dentes e empenhou-se em pôr as idéias em ordem. De início verificou que estava apenas a escutar a sua própria respiração e a contar as pancadas do coração; mas tentou outra vez e então conseguiu. Nessa altura, como uma re­velação, veio-lhe a idéia muito simples de que, se desejava atrair a atenção daquela criatura de aparência humana, tinha de espe­rar até estar na crista de uma onda e então pôr-se de pé para que ele o visse recortado sobre o céu.

Três vezes esperou até que a costa em que se encontrava se tornasse uma saliência, e se ergueu, oscilando com o movimento daquele território estranho, a gesticular. À quarta vez teve êxito. A ilha vizinha estava, é claro, estendida lá em baixo como um vale. Deforma absolutamente inconfundível a pequena figura es­cura acenou em resposta. Destacou-se de um fundo confuso de vegetação esverdeada e começou a correr para ele — isto é, para a costa mais próxima da sua própria ilha — através de um campo cor de laranja. Corria com facilidade: a superfície palpitante do campo não parecia incomodá-la. Depois a sua própria terra os­cilou para baixo e para trás e um a grande parede de água elevou-se e interpôs-se entre os dois territórios e separou cada um deles da vista do outro. Um momento mais tarde e Ransom, do vale em que se encontrava agora, viu a terra cor de laranja despejando-se como uma encosta móvel descendo ao longo da vertente leve­mente convexa de uma onda muito acima dele. A criatura corria ainda. A largura de água entre as duas ilhas era cerca de trinta pés,e a criatura estava a menos de cem jardas dele. Agora sabia que não era simplesmente semelhante ao homem, mas um homem mesmo — um homem verde num campo laranja, verde como o escaravelho lindamente colorido de verde num jardim in­glês, correndo em direção a ele com passadas ligeiras e muito velozes. Depois as águas elevaram a sua própria terra e o homem verde tornou-se um a figura esboçada lá muito abaixo dele, como um ator visto da galeria de Convent Garden. Ransom estava de pé mesmo na borda da sua ilha, todo esticado para a frente e gri­tando a altos brados. O homem verde olhou para cima. Aparentemente estava também aos gritos, com as mãos em concha em volta da boca; mas o rugido dos mares abafava o som e no momento seguinte a ilha de Ransom caiu na cava da onda e a lomba ver­de do mar cortou-lhe a vista. Era de endoidecer. Torturava-o o medo de que a distância entre as ilhas pudesse estar sempre a au­mentar. Graças a Deus: lá vinha a terra laranja por cima da cris­ta descendo atrás dele para o fundo do poço. E aí estava o estra­nho, agora na própria costa, cara a cara com ele. Por um instan­te, os olhos do estrangeiro fixaram os seus cheios de amor e de bom acolhimento. Depois todo o rosto se alterou: um choque de al­guma coisa como desapontamento e espanto passou sobre ele. Ransom percebeu, não sem um certo desapontamento da sua par­te, que tinha sido confundido com alguém que não era ele. A cor­rida, os acenos, os gritos, não lhe eram destinados. E o homem verde não era um homem, mas sim uma mulher.

É difícil dizer por que é que isto o surpreendeu tanto. Admi­tindo a forma humana, era presumivelmente tão provável encon­trar uma fêmea com um macho. Mas o fato é que ficou surpreen­dido, de tal forma que só quando as duas ilhas uma vez mais começaram a afastar-se em cavas da onda diferentes é que ele percebeu que nada lhe tinha dito, mas ficara de pé de olhos arre­galados como um tolo. E agora que ela estava longe da vista sentia o cérebro a arder de dúvidas. Era para se encontrar com aquilo que ele fora enviado? Tinha estado à espera de maravilhas, es­tava preparado para maravilhas, mas não para uma deusa apa­rentemente talhada em pedra verde, mas todavia viva. E então cruzou-lhe o espírito num relâmpago — não o notara enquanto a cena estivera na sua frente — o fato de ela estar estranhamen­te acompanhada. Estava ereta no meio de um bando de animais e de aves, como um salgueiro alto se ergue entre as moitas — grandes aves cor de pombo e aves cor de fogo e dragões, e criatu­ras parecidas com castores e do tamanho de ratos e peixes pare­cendo símbolos heráldicos no mar a seus pés. Ou imaginara ele isso? Seria isso o começo das alucinações que temia? Ou outro mito que passava para o mundo do real — talvez um mito mais ter­rível, o de Circe ou de Alcina? E a expressão no rosto dela... que é que ela tinha esperado encontrar que transformava o encontrá-lo em tão grande desapontamento?

A outra ilha tornou-se outra vez visível. Tivera razão quan­to aos animais. Estavam à roda dela, a dez ou vinte passos do fundo, todos virados para ela, a maior parte deles imóvel, mas alguns à procura de lugar, como numa cerimônia, com movimentos de­licados e silenciosos. As aves estavam em compridas colunas e pa­recia que a cada momento estavam outras mais a pousar na ilha e a juntar-se às colunas. De um bosque de árvores das bolhas por detrás dela meia dúzia de criaturas semelhantes a porcos com­pridos e com pernas muito curtas — os baixotes do mundo dos porcos — bamboleavam-se a caminho da assembléia. Pequenos animais parecidos com rãs, como aqueles que vira a cair com a chuva, andavam aos saltos em volta dela, por vezes mais alto que a sua cabeça, outras pousando-lhe nos ombros; as cores deles eram tão vivas que ao princípio tomou-os por alciões. No meio disto tudo, ela continuava a fitá-lo; ereta, os pés unidos, os bra­ços pendentes, o olhar firme e sem temor e sem nada transmitir. Ransom decidiu-se a falar, usando a língua Solar Antigo:

— Sou de um outro mundo — começou e então parou. A Da­ma Verde fizera uma coisa para a qual não estava de todo preparado. Ergueu o braço e apontou para ele: não em ar de ameaça, mas como a convidar as outras criaturas a observá-lo bem. No mesmo momento o rosto dela alterou-se outra vez e por um ins­tante pensou que fosse chorar. Em vez disso desatou a rir-gar­galhada sobre gargalhada até o corpo todo estremecer, até se do­brar quase em duas, com as mãos descansando nos joelhos, rin­do ainda e apontando repetidamente para ele. Os animais, como os nossos próprios cães em circunstâncias semelhantes, com­preendiam vagamente que havia alegria no ar; toda a espécie de cabriolas, de bater de asas, de roncos e de corpos que se levanta­vam sobre as pernas traseiras começou a ser exibida. E a Dama Verde continuava a rir até que de novo a onda os separou e ela ficou fora da vista.

Ransom ficou assombrado. Teriam os eldila mandado encontrar-se com um idiota? Ou um espírito mau que troçava de­le? Ou, afinal de contas, era uma alucinação? — pois assim era exatamente como se.esperaria que uma alucinação se compor­tasse. Ocorreu-lhe então uma idéia que a mim ou ao leitor leva­ria talvez muito mais tempo a ocorrer. Podia ser que não fosse ela a estar louca mas sim que ele estivesse ridículo. Olhou para si mesmo. Certamente que as suas pernas constituíam um espe­táculo estranho, porquanto uma era vermelha-acastanhada (como os flancos de um sátiro de Ticiano) e a outra estava bran­ca, por comparação, quase um branco leproso. Até onde uma auto-inspeção podia chegar, mantinha em todo o corpo a mesma aparência de colorido parcial — um resultado não artificial da sua exposição de um só lado ao sol durante a viagem. Fora esta a graça? Sentiu uma impaciência momentânea para com a cria­tura que era capaz de manchar o encontro de dois mundos com o riso devido a um fato tão trivial. Depois sorriu, a despeito de si, à carreira tão pouco distinta que estava a ter em Perelandra. Pa­ra perigos vinha preparado; mas para ser primeiro um desapon­tamento e depois um absurdo... Olá! Cá estavam a Dama e a sua ilha de novo à vista.

Tinha ultrapassado a vontade de rir e estava sentada com as pernas caídas no mar, acariciando meio distraidamente uma criatura parecida com um a gazela que enfiara o focinho macio de­baixo do braço dela. Era difícil acreditar que alguma vez tinha es­tado a rir, que alguma vez fizera outra coisa que não estar sen­tada na costa da sua ilha. Ransom nunca tinha visto um rosto tão calmo, e tão pouco terreno, a despeito do aspecto totalmente hu­mano das suas feições todas. Decidiu mais tarde que a qualida­de não terrena era devida à completa ausência desse elemento de resignação que se mistura, num grau pequeno que seja porven­tura, com a profunda imobilidade, em qualquer rosto terrestre. Aquela era uma calma que não fora precedida por nenhuma tem­pestade. Podia ser idiotia, podia ser imortalidade, podia ser qual­quer condição de espírito em relação à qual a experiência terres­tre não fornecia pista algum a. Um a sensação curiosa e assas ter­rificante trepou por ele acima. No antigo planeta Malacandra en­contrara criaturas que na forma não eram sequer remotamente humanas que tinham revelado, depois de relações mais intensas, serem amistosas e racionais. Sob um exterior totalmente dife­rente descobrira um coração igual ao seu. Estaria agora a ter a experiência inversa? Pois constatava que apalavra «humano» se refere a algo mais que a forma corporal ou mesmo o espírito racional. Refere-se além disso àquela comunhão de sangue e de experiência que une todos os homens e mulheres na Terra. Mas aquela criatura não era da sua raça; reviravolta alguma, por mais intrincada, de qualquer árvore genealógica podia jamais es­tabelecer uma conexão entre ele e ela. Nesse sentido nem uma go­ta do sangue nas veias dela era «humano». O universo produzira de forma totalmente independente as espécies a que ambos per­tenciam.

Tudo isto passou muito depressa pelo seu espírito, e foi rapi­damente interrompido pela percepção de que a luz estava a mu­dar. Primeiro pensou que a Criatura verde tinha, por si, começa­do a tornar-se azulada e a brilhar com um estranho esplendor elétrico. Depois notou que a paisagem toda era uma fogueira de azul e púrpura — e quase ao mesmo tempo que as duas ilhas não estavam já tão juntas como tinham estado. Relanceou os olhos pe­lo céu. A fornalha multicolor do anoitecer de curta duração estava ateada em toda a sua volta. Dentro de uns minutos seria escuro como breu... e as ilhas à deriva afastavam-se uma da outra. Fa­lando devagar naquela língua antiga, gritou-lhe:

— Sou um estrangeiro. Venho em paz. É seu desejo que eu na­de para a sua terra?

A Dama Verde olhou para ele rapidamente com uma expres­são de curiosidade.

— O que é «paz»? — perguntou.

A Ransom apetecia dançar de impaciência. Já estava sensi­velmente mais escuro e não havia agora dúvida alguma de que a distância entre as ilhas estava a aumentar. Mesmo quando ele ia a falar de novo, ergueu-se uma onda entre ambos e uma vez mais ela ficou fora da vista, e enquanto essa onda pendeu lá em cima, brilhando de púrpura à luz do pôr do Sol, constatou como o céu ao longe se tinha tornado escuro. Foi já através de uma espécie de crepúsculo que ele, da crista seguinte, olhou para baixo para a ou­tra ilha num nível muito inferior. Lançou-se à água. Por alguns segundos teve dificuldade em se afastar da costa. Depois pareceu conseguir e seguiu em frente. Quase de imediato encontrou-se de novo entre as ervas vermelhas e as bolsas. Seguiu-se um momen­to ou dois de violenta luta e depois estava livre — e a nadar fir­memente — e então, quase sem aviso, a nadar no meio da escu­ridão total. Continuou a nadar, mas o desespero de encontrar a outra terra, ou mesmo de salvar a vida, acometia-o agora. A per­manente mudança da enorme ondulação eliminava todo o senti­do de orientação. Apenas por acaso podia ir ter a uma terra qual­quer. Na realidade, calculou pelo tempo que já tinha passado na água, que deveria ter estado a nadar ao longo do espaço entre as ilhas e não a atravessá-lo. Experimentou alterar o rumo, depois duvidou da prudência em fazê-lo, tentou voltar ao rumo original e ficou tão confuso que não era capaz de ter a certeza de ter feito uma ou outra coisa. Dizia constantemente a si mesmo que não podia perder a cabeça. Estava a começar a ficar cansado. Desis­tiu de todas as tentativas para se orientar. Subitamente, muito tempo depois, sentiu vegetação a deslizar por ele. Da escuridão chegaram-lhe odores deliciosos a fruta e a flores. Puxou ainda com mais força pelos braços doridos. Finalmente deu por si, sal­vo e ofegante, na superfície ondulante seca e bem-cheirosa de uma ilha.

 

Ransom deve ter adormecido quase logo que pôs os pés em ter­ra, pois de nada mais se recordava até o que parecia o canto de um a ave lhe ter interrompido os sonhos. Abrindo os olhos, viu que era realmente uma ave, uma ave pernalta parecida com uma ce­gonha muito pequena, cantando como um canário. Em toda a vol­ta, plena luz do dia — ou aquilo que em Perelandra passa por tal — e no seu íntimo uma premonição de acontecimentos felizes o fez sentar de imediato e pôr-se de pé, um momento mais tar­de. Esticou os braços e olhou em volta. Não se encontrava na ilha cor de laranja mas sim na mesma ilha que for ao seu lar desde que chegara àquele planeta. Flutuava numa calma podre e por isso não teve dificuldade alguma em caminhar até à costa. E aí esta­cou, atônito. A ilha da Dama flutuava ao lado da sua, dividida apenas por cinco pés de água ou coisa assim. O semblante todo do mundo mudara. Não havia agora extensão alguma de mar visível — apenas uma paisagem plena e arborizada até onde os olhos po­diam alcançar, em qualquer direção. Na realidade, umas dez ou doze ilhas jaziam juntas ali, formando um continente de curta duração. E ali, andando em frente dele, como se do outro lado de um regato, estava a dama em pessoa — caminhando com a cabe­ça levemente baixa e as mãos ocupadas a entregar umas flores azuis. Ia cantando para si mesma em voz baixa mas parou e vi­rou-se quando ele a chamou, e olhou-o em cheio na cara.

— Ontem era jovem — começou ela, mas Ransom não ouviu o resto das suas palavras. O encontro, agora que realmente ocor­rera, provava ser esmagador. Não se deve entender mal a histó­ria neste ponto. O que esmagava não era de todo o fato de ela, como ele mesmo, estar completamente nua. Embaraço e desejo estavam ambos a um milhar de milhas da sua aventura: e se ele estava um pouco envergonhado do seu corpo, essa era uma ver­gonha que nada tinha a ver com a diferença de sexo e se centrava apenas no fato de saber que o seu corpo era um tanto feio e um tanto ridículo. Menos ainda era a cor dela motivo de horror para ele. No seu mundo aquele verde era belo e ficava bem; o branco e a severa queimadura do sol é que eram a monstruosidade. Te­ve de lhe pedir nessa altura para repetir o que estivera a dizer.

— Ontem era jovem — disse ela. — Quando ri de ti. Agora sei que as pessoas no seu mundo não gostam que se riam delas.

— Você diz que era jovem?

— Sim.

— Mas então hoje não é jovem também?

Ela pareceu pensar por uns momentos, tão atentamente que as flores lhe caíram, desprezadas, da mão.

— Entendo agora — disse ela, então. — É muito estranho di­zer que se é novo no momento em que se está a falar. Mas ama­nhã estarei mais velha. E então hei de dizer que era jovem hoje. Tem toda a razão. Trazes contigo grande sabedoria, oh Homem Malhado.

— Que quer dizer?

— Este olhar para trás e para diante ao longo de uma linha e verificar como um dia tem uma certa aparência quando se aproxima e outra quando estamos nele e uma terceira quando eleja ficou para trás. Tal como as ondas.

— Mas ontem pouco mais velha eras.

— Como é que sabe isso?

— Quero dizer — disse Ransom —, uma noite não é assim tanto tempo.

Ela pensou de novo e depois, de repente, falou, o rosto iluminado:

— Estou agora a ver — disse. — Pensa que o tempo tem di­mensão própria. Uma noite é sempre uma noite, faça o que fize­r durante ela, e desta árvore até àquela são sempre tantos pas­sos, quer os dê depressa ou devagar. Suponho que de certa ma­neira é assim. Mas as ondas nem sempre chegam a intervalos iguais. Vejo que vem de um mundo cheio de sabedoria... Se é que isto é sabedoria. Antes nunca o tinha feito... passar para o lado da vida e olhar para mim própria, estando a viver, como se não es­tivesse viva. Todos fazem isso no seu mundo, Malhado?

— Que é que você sabe a respeito de outros mundos? — perguntou Ransom.

— Sei isto. Para lá da abóbada tudo é Céu Distante, o lugar nas alturas. E a parte baixa não está na realidade espalhada como parece estar — (e aqui apontou a paisagem toda) — mas es­tá enrolada em pequenas bolas: pedaços pequenos da parte bai­xa nadando nas alturas. E os maiores e mais antigos deles tem em si aquilo que nunca vimos nem ouvimos e não podemos de todo compreender. Mas nos mais novos, Maleldil fez crescer as coisas como nós, que respiram e procriam.

— Como é que descobriu tudo isso? O seu céu é tão denso que a sua gente não pode ver o Céu Distante através dele nem olhar para os outros mundos.

Até aí o rosto dela permanecera grave. Nessa altura bateu com as mãos uma na outra e um sorriso como Ransom nunca vi­ra modificou-a por completo. Sorriso assim não se vê por aqui ex­ceto nas crianças, mas não havia nela nada de criança.

— Oh, entendo — disse ela. — Agora estou mais velha. O seu mundo não tem cobertura. Olhas para as alturas diretamen­te e vês a grande dança com os seus próprios olhos. Vives perma­nentemente nesse terror e nesse encanto, e aquilo em que nós podemos apenas acreditar você contemplas. Não é isto uma mara­vilhosa invenção de Maleldil? Quando era jovem não podia con­ceber outra beleza que não esta do nosso próprio mundo. Mas Ele pode conceber tudo, e tudo muito diferente.

— Essa é uma das coisas que me está a deixar perplexo — dis­se Ransom. — Que você não seja diferente. Tem as formas das mu­lheres daminha própria espécie. Não estava à espera disso. Já es­tive num outro mundo além do meu. Mas lá as criaturas não são nem de longe parecidas contigo e comigo.

— Que é que há de espantoso nisso?

— Não vejo por que é que mundos diferentes hão de produ­zir criaturas semelhantes. Será que árvores diferentes produzem frutos parecidos?

— Mas esse outro mundo era mais velho que o seu — disse ela.

— Como é que sabe isso? – perguntou Ransom, estupefato.

— Maleldil está a dizer-me — respondeu a mulher. E, à me­dida que falava, a paisagem tornara-se diferente, embora essa diferença não fosse identificada por nenhum dos sentidos. A luz era baça, o ar leve e todo o corpo de Ransom estava banhado nu­ma suprem a felicidade, mas o jardim do mundo onde se encontra­vam parecia cheio até acima e, como se sobre os seus ombros tivesse sido colocado um peso insuportável, as pernas cederam e, meio sentando-se meio caindo, acabou por ficar na posição de sentado.

— Tudo vem à minha mente agora — continuou ela. — Vejo as grandes criaturas peludas, e os gigantes brancos... como é que lhe chamavas?... os Sorns, e os rios azuis. Oh, que enorme prazer seria vê-los com os meus olhos do corpo, tocá-los, e tanto maior quanto não aparecerão mais nenhuns dessa espécie. E apenas nos mundos antigos que ainda se conservam.

— Porquê? — disse Ransom num murmúrio, fitando-a.

— Deves sabê-lo melhor que eu — disse ela. — Pois então não foi no seu mesmo mundo que tudo isso aconteceu?

— Tudo quê?

— Pensei que serias você a contar-me — disse a mulher, ago­ra por sua vez estupefata.

— De que é que está a falar? — disse Ransom.

— Quero dizer — disse ela — que foi no seu mundo que pela primeira vez Maleldil tomou ele mesmo esta forma, a forma da sua raça e da minha.

— Sabe isso? — disse Ransom bruscamente. Aqueles que já tiveram um sonho muito bonito mas do qual, não obstante, dese­jaram ardentemente acordar, entenderão as suas sensações.

— Sim, sei disso. Maleldil fez-me envelhecer essa quantida­de desde que começamos a falar. — A expressão no rosto dela era tal que ele nunca vira e não podia contemplar fixamente. Aque­la aventura toda estava a escapar-lhe das mãos. Houve um longo silêncio. Debruçou-se sobre a água e bebeu antes de falar de novo.

— Oh, Senhora minha — disse ele —, por que você diz que tais criaturas apenas se conservam nos mundos antigos?

— É assim tão jovem? — replicou ela. — Como poderiam apa­recer de novo? Desde que o nosso Bem-Amado se tornou um ho­mem, como poderia a Razão em qualquer mundo tomar uma ou­tra forma? Compreendes? Está tudo acabado. Há um tempo no meio dos tempos que dobra a esquina e tudo do outro lado é no­vo. Os tempos não andam para trás.

 

— E pode um pequeno mundo como o meu ser essa esquina?

— Não compreendo. Uma esquina entre nós não designa um tamanho.

— E você — disse Ransom com alguma hesitação —, e você sabe por que veio então ele para o meu mundo?

Durante toda esta parte da conversa achara difícil olhar mais alto que os pés dela, de forma que a sua resposta era meramen­te uma voz no ar por cima dele.

— Sim — disse a voz. — Sei a razão. Mas não é a que conhe­ces. Havia mais que uma razão, e há uma que eu sei e não posso dizer e outra que sabe e não podes dizer-me.

— E depois disso — disse Ransom — todos serão homens.

— Você diz isso como se tivesse pena.

— Acho — disse Ransom — que não tenho mais entendimen­to que um animal. Não sei muito bem o que estou a dizer. Mas eu gostava mui to da gente peluda que encontrei em Malacandra, es­se velho mundo. São para ser varridos dali para fora? São apenas lixo no Céu Distante?

— Não sei o que significa lixo — respondeu ela — nem o que está a dizer. Não quer dizer que estão pior por terem apareci­do na história mais cedo e não aparecerem outra vez? Eles ocu­pam a sua parte própria da história e não outra.Nós estamos des­te lado da onda e eles no lado de lá. Tudo é novo.

 

Uma das dificuldades de Ransom era a sua incapacidade de ter plena certeza de quem estava a falar em qualquer momento naquela conversa. Pode ter sido (ou não) devido ao fato de não ser capaz de olhar muito tempo para a cara dela. E agora queria que a conversa acabasse. Já tinha tido «a sua conta» — não no sentido meio cômico em que usamos estas palavras para signifi­car que uma pessoa já tomou de mais de qualquer coisa, mas no sentido literal. Tinha a sua medida, como um homem que dormiu ou comeu o suficiente. Ainda há um a hora, teria achado difícil ex­primir isto tão rudemente; mas agora pareceu-lhe natural dizer:

— Não quero falar mais. Mas gostava de passar para a sua ilha de forma a nos encontrarmos outra vez quando desejarmos.

— A qual chamas minha ilha? — disse a Dama.

— Aquela onde está — disse Ransom. — Que outra seria?

— Vem — disse ela, com um gesto que fazia do mundo todo uma casa e dela a dona da casa. Ransom deslizou para dentro de água e trepou para o lado dela. Então inclinou-se na sua frente um pouco desajeitadamente como acontece com todos os homens modernos e afastou-se dali, para dentro de um bosque próximo. Sentia as pernas bambas e a doer-lhe; de fato, uma curiosa exaustão física tomava conta dele. Sentou-se para descansar por alguns minutos e caiu imediatamente num sono sem sonhos.

 

Acordou completamente restabelecido mas com uma sensa­ção de insegurança. Isso nada tinha que ver com o fato de, ao acordar, se encontrar estranhamente acompanhado. Aos seus pés, e com o focinho descansado parcialmente sobre eles, estava estendido o dragão; tinha um olho aberto e outro fechado. Quando se ergueu apoiado no cotovelo e olhou em volta verificou que tinha outro guardião à cabeceira: um animal peludo um tanto pareci­do com um pequeno canguru, mas amarelo. Era a coisa mais ama­rela que jamais tinha visto. Assim que se mexeu, ambos os ani­mais começaram a empurrá-lo ao de leve. Não o deixaram em paz até se pôr de pé, e depois de se ter posto em pé não o deixavam ca­minhar senão numa certa direção. O dragão era demasiado pesado para ele o empurrar para fora do seu caminho, e o animal amarelo dançava à roda dele de uma maneira que o desviava de todas as direções salvo aquela em que queria que ele fosse. Cedeu à pressão deles e deixou-se conduzir, primeiro através de um bosque de árvores mais altas e mais castanhas do que ele tinha visto até ali e depois por um pequeno espaço aberto e para uma espécie de álea de árvores de boinas e depois disso uns vas­tos campos de flores cor de prata que cresciam até à cintura. E en­tão viu que o tinham trazido para ser presente à senhora deles. Ela estava de pé, uma jardas afastada, imóvel mas aparente­mente não desocupada — — fazendo qualquer coisa com a cabeça, talvez mesmo com os músculos, que ele não percebia. Era a primeira vez que olhava fixamente para ela, sem estar ele mesmo a ser observado, e parecia-lhe ainda mais estranha do que antes. Não existia categoria alguma na mente terrestre que se lhe adap­tasse.

Nela encontravam-se extremos opostos e fundiam-se de uma forma para a qual não temos imagem. Um modo de a apresentar seria dizer que nem a nossa arte sacra nem a arte profana podiam retratá-la. Bela, nua, desconhecendo a vergonha, jovem — era obviamente uma deusa: mas aí o rosto, o rosto tão calmo que fu­gia à insipidez pela própria concentração da sua suavidade, o ros­to que era como a súbita frescura e quietude de uma igreja quan­do nela entramos vindos de uma rua quente, isso fazia dela uma Madona. O silêncio interior e vigilante que espreitava por aque­les olhos intimidava-o; contudo, a qualquer momento ela podia pôr-se a rir como uma criança, ou a correr como Artemis ou a dan­çar como uma Ménade. Tudo isto tendo como fundo o céu doura­do que parecia estar à distância de um braço por cima da sua ca­beça. Os animais avançaram a correr para a saudar e ao rompe­rem pela vegetação plumosa espantaram de lá montes de rãs, de forma que era como se enormes gotas de orvalho vivamente colo­ridas estivessem a ser atiradas ao ar. Ela virou-se quando se aproximaram e deu-lhes as boas-vindas, e uma vez mais o qua­dro era meio idêntico a muitas cenas terrenas mas diferente de todas elas no seu aspecto total. Não era realmente como uma mu­lher fazendo festas a um cavalo, nem mesmo uma criança brin­cando com um cachorrinho. Havia no seu rosto uma autoridade, nas suas carícias uma condescendência, a qual ao tomar a sério a inferioridade dos seus adoradores os fazia de algum modo me­nos inferiores — elevava-os da posição de animais de estimação à de escravos. Quando Ransom se aproximava, ela curvou-se e murmurou qualquer coisa ao ouvido da criatura amarela e de­pois, dirigindo-se ao dragão, baliu-lhe quase na própria voz de­le. Ambos, tendo recebido a dispensa respectiva, dispararam de volta para dentro dos bosques.

— Os animais, no seu mundo, parecem quase racionais — dis­se Ransom.

— Todos os dias nós os fazemos ficar mais velhos — respon­deu ela. — Não é isso que significa ser um animal?

Mas Ransom agarrou-se à utilização por ela da palavra nós.

— É a respeito disso que venho falar-te — disse. — Maleldil mandou-me para o seu mundo com algum propósito. Sabe qual é ele?

Ela ficou um momento como alguém a escutar e respondeu:

— Não.

— Então deves levar-me ao seu lar e mostrar-me a sua gente.

— Gente? Não sei o que está a dizer.

— Os seus parentes... os outros da sua raça.

— Quer dizer o rei?

— Sim. Se tem um rei, é melhor que eu lhe seja apresentado. — Não posso fazer isso — respondeu ela. — Não sei onde o en­contrar.

— Ao seu lar, então.

 

— Que é o lar?

— É o lugar onde as pessoas vivem juntas e têm os seus per­tences e criam os seus filhos.

Ela abriu as mãos para indicar tudo o que estava à vista:

— Este é o meu lar — disse.

— Vives aqui sozinha? — perguntou Ransom.

— Que é sozinha?

Ransom tentou uma nova abertura:

— Leva-me onde eu vá encontrar outros da sua raça.

— Se quer dizer o rei, já te expliquei que não sei onde ele está. Quando éramos novos... muitos dias atrás... andávamos a sal­titar de ilha para ilha e quando ele estava numa e eu noutra as ondas levantaram-se e ficamos separados.

— Mas podes levar-me para junto de outros da sua raça? Orei não pode ser o único.

— Ele é o único. Não sabias?

— Mas deve haver outros da sua raça...os seus irmãos e irmãs, os seus parentes, os seus amigos.

— Não sei o que essas palavras significam.

— Quem é esse rei? — perguntou Ransom em desespero. — E ele mesmo, é o rei — disse ela.-Como é que se pode res­ponder a uma pergunta dessas?

— Olha lá — disse Ransom. — Você deve ter tido mãe. Está vi­va? Onde está ela? Quando é que a viu pela última vez?

— Eu tenho mãe? — disse a Dama Verde, fitando-o intensa­mente com um olhar de admiração. — Que quer dizer? Eu sou a Mãe. — E uma vez mais a sensação de que não era ela quem falara assaltou Ransom. Nenhum outro som atingia os seus ou­vidos, pois o mar e os ares estavam calmos, mas pairava em tor­no dele uma sensação fantasmagórica, de música de um vasto coral. O temor que as respostas aparentemente simplórias dela tinham estado a dissipar nos últimos minutos voltou a apoderar-se dele.

— Não compreendo — disse.

— Nem eu — respondeu a Dama. — Só o meu espírito louva Maleldil que desce do Céu Distante até este lugar cá em baixo e há de fazer com que eu seja abençoada por todos os tempos que vêm rolando em direção a nós. Ele é que é forte e me faz forte e enche mundos vazios com criaturas boas.

— Se você é uma mãe, onde estão os seus filhos?

— Ainda não — respondeu ela.

— Quem vai ser o pai deles?

— O rei... quem mais?

— Mas o rei... não teve pai?

— Ele é o Pai.

— Quer dizer — disse Ransom lentamente — que você e ele são os únicos dois da vossa raça em todo o mundo?

— Pois claro. — E então o rosto dela mudou realmente. — Oh, como tenho sido jovem. Agora estou entendendo. Sabia que havia mui­tas criaturas nesse mundo antigo dos Hrossa e dos Sorns. Mas tinha me esquecido que o seu era também um mundo mais velho que o nosso. Compreendo... hoje existem muitos como tu. Tinha pensado que também só havia dois como tu. Pensei que eras o Rei e o Pai do seu mundo. Mas hoje há filhos dos filhos dos filhos e você é talvez um destes.

— Sim — disse Ransom.

— Dá as minhas melhores saudações à sua Mãe e Senhora quando voltares ao seu mundo — disse a Dama Verde. E agora pe­la primeira vez havia um a nota de cortesia deliberada, de cerimônia mesmo, na sua fala. Ransom compreendeu. Ela sabia agora, finalmente, que não se estava a dirigir a um igual. Era uma rai­nha a enviar uma mensagem a outra rainha por intermédio de um plebeu, e os seus modos para com ele foram a partir dali mais benevolentes. Ransom achou difícil dar-lhe a resposta seguinte.

— A nossa Mãe e Senhora está morta — disse.

— Que é morta?

— Entre nós as pessoas desaparecem depois de um certo tempo. Maleldil tira-lhes a alma e põe-na noutro lugar qual­quer... no Céu Distante, é a nossa esperança. Chamam a isso morte.

— Não te espantes, oh Homem Malhado, que o seu mundo tivesse sido escolhido para ser a esquina do tempo. Vivem a espreitar sempre para o próprio céu e, como se isto não chegas­se, Maleldil leva-os a todos para lá no fim. São os mais favoreci­dos dos mundos todos.

Ransom abanou a cabeça.

— Não. Não é nada assim — disse.

 

— Pergunto a mim mesma — disse a mulher — se foste man­dado cá para nos ensinar a morte.

— Não percebes — disse ele. — Não é nada disso. E horrível. Tem um cheiro fétido. O próprio Maleldil chorou quando a viu. — Tanto a sua voz como a expressão facial eram aparentemente al­go de novo para ela. Viu o choque, não de horror mas de total es­tupefação, no rosto dela por um instante e depois, sem esforço, o oceano da sua calma tudo engoliu como se nada tivesse existi­do e perguntou o que queria ele dizer.

— Nunca poderias entender, Senhora — replicou. — Mas no nosso mundo nem todos os acontecimentos são agradáveis ou bem-vindos. Poderá haver coisas tais que seríamos capazes de cortar tanto os braços como as pernas para as impedir de se dar... e contudo elas acontecem: acontecem-nos a nós.

— Mas como poderíamos evitar com a nossa vontade que qualquer dessas ondas que Maleldil faz rolar na nossa direção nos atingisse?

Contra o seu melhor critério, Ransom deu por si arrastado para a discussão.

— Mas mesmo você — disse —, quando me viu pela primeira vez agora sei que esperavas e desejavas que fosse o rei. Quando verificou que não era, o seu rosto mudou. Não era aquele acon­tecimento bem-vindo? Não desejavas que fosse de outra ma­neira?

— Oh — disse a Dama. Virou-se para o lado, com a cabeça baixa e as mãos entrelaçadas, refletindo profundamente. Levantou os olhos e disse. — Fazes-me ficar mais velha mais depressa do que posso suportar-e afastou-se um pouco. Ransom perguntou a si mesmo o que tinha feito. Veio-lhe subitamente à cabeça que a pureza e a paz dela não eram, como pareciam, coisas fixas e inevitáveis, como a pureza e a paz de um animal, que estavam vivas e consequentemente eram quebráveis, um equilíbrio mantido pelo espírito e, por conseguinte, em teoria pelo menos, capaz de ser perdido. Não há razão alguma para uma pessoa numa estra­da lisa perder o equilíbrio numa bicicleta; mas pode acontecer. Não havia razão para ela abandonar a sua felicidade e adquirir a psicologia da nossa raça; mas também não havia nenhuma parede no meio para a impedir de o fazer. A sensação de precariedade aterrorizava-o: mas quando ela o fitou de novo, mudou es­sa palavra para Aventura, e então todas as palavras se extingui­ram no seu espírito. Uma vez mais não era capaz de olhar para ela fixamente. Sabia agora aquilo que os pintores antigos esta­vam a tentar representar quando inventaram o halo. Alegria e gravidade juntas, um esplendor como o do martírio sem todavia haver nela dor alguma, pareciam derramar-se do seu semblan­te. Quando falou, porém, as palavras dela eram de desaponta­mento.

— Tenho sido tão jovem até este momento que toda a minha vida parece agora que foi uma espécie de sono. Pensava estar a ser transportada e, vê lá, estava a caminhar.

Ransom perguntou o que é que ela queria dizer.

 

— Aquilo que me fizeste ver — respondeu a Dama — é tão claro como o céu, mas nunca o vi antes. E contudo acontece todos os dias. Uma pessoa vai à floresta colher alimentos e já a idéia de um fruto em vez de outro se formou no seu espírito. Depois, pode ser que se encontre um fruto diferente e não aquele em que se pen­sou. Esperava-se uma alegria e recebeu-se outra. Mas nunca tinha antes dado por isso... que no próprio momento do achado há no espírito uma espécie de idéia de afastamento, de pôr de lado. A imagem do fruto que não achamos continua a estar, por um mo­mento, diante dos nossos olhos. E se desejássemos... se fosse pos­sível desejar... podia lá continuar. Podíamos recusar o bem real; podíamos fazer com que o fruto real fosse insípido, à força de pen­sar no outro.

Ransom interrompeu:

— Isso não é bem a mesma coisa do que encontrar um estra­nho quando querias o seu marido.

— Oh, é assim que acabo de perceber tudo isto. Você e o rei di­ferem mais que duas qualidades de frutos. A alegria de o encon­trar outra vez e a alegria de todos os novos conhecimentos que re­cebi de ti são mais dissemelhantes que dois sabores; e quando a diferença é assim tão grande, e cada uma das duas coisas é tão grande, então a primeira imagem permanece muito tempo no es­pírito... muitas pulsações do coração... depois de o outro bem ter chegado. E nisto, oh Malhado, está a glória e a maravilha que me fizeste ver; sou eu, eu mesma, quem passa do bem que aguarda­va para o bem que recebi. E é do meu mesmo coração que o faço. Pode conceber-se um coração que o não fizesse, que se agarras­se ao bem no qual pensara em primeiro lugar e considerasse que nada valia o bem que lhe era dado.

— Não vejo a maravilha e a glória de nada disso — disse Ran­som.

Os olhos dela pousaram nele com uma expressão de tal ma­neira triunfante sobre os seus pensamentos que em olhos terre­nos seria escárnio; mas naquele mundo não era escárnio.

— Pensava — disse ela — que era transportada pela vonta­de daquele que amo, mas agora vejo que caminho com ela. Pen­sava que as coisas boas que Ele me enviou me arrastavam para dentro delas como as ondas levantam as ilhas;mas agora vejo que sou eu quem nelas mergulha, pelas minhas próprias pernas e braços, como quando vou nadar. Sinto como se estivesse a viver nesse seu mundo sem teto por cima, onde os homens caminham indefesos sob o céu nu. E o encanto com terror também. O nosso próprio ser a caminhar de um bem para outro, andando ao lado d’Ele como Ele mesmo andaria, sem mesmo dar as mãos. Como é que Ele me fez tão apartada d’Ele? Como é que entrou no Seu espírito conceber tal coisa? O mundo é tão mais vasto do que eu pensava. Pensava que nós seguíamos caminhos já feitos mas parece que não os há. O nosso ir faz o caminho.

— E não tem medo — disse Ransom — que alguma vez seja difícil virar o seu coração daquilo que querias para aquilo que Maleldil te envia?

— Entendo — disse nessa altura a Dama. — A onda na qual mergulhas pode ser muito rápida e muito grande. Podes precisar de toda a sua força para nadar ao seu encontro. Quer dizer, Ele podia mandar-me um bem assim?

— Sim... ou como uma onda tão rápida e tão grande que toda a sua força era ainda pouca.

— Acontece muitas vezes ao nadar — disse a Dama. — Não é isso parte do encanto?

— Mas você está feliz sem o rei? Não quer o rei?

— Querê-lo? — disse ela. — Mas como podia haver alguma coisa que eu não quisesse?

Existia algo nas suas respostas que começava a repelir Ran­som.

— Não lhe deves querer muito se sem ele te sentes feliz — dis­se, e imediatamente se sentiu surpreendido com o enfado na sua própria voz.

— Porquê? — disse a Dama. — E por que é que, oh Malhado, fazes montes e vales na sua testa e por que é que ergues os om­bros ao de leve? São sinais de alguma coisa no seu mundo?

— Não querem dizer nada — disse Ransom depressa. Era uma pequena mentira, mas ali não servia. Rasgava-o por dentro à medida que a pronunciava, como um vômito. Tornou-se de uma importância infinita. O prado cor de prata e o céu dourado pare­ciam arremessá-la de volta para ele. Como se atordoado por uma raiva incomensurável do próprio ar, balbuciou uma correção: — Não querem dizer nada que eu pudesse explicar-te. — A Dama estava a olhar para ele com uma expressão nova e mais judicio­sa. Talvez, na presença do filho da primeira mãe que ela jamais vira, estava já a prever vagamente os problemas que podiam sur­gir quando tivesse filhos, dela mesmo.

— Já falamos demais — disse por fim. Ao princípio Ran­som pensou que ela ia virar-se e deixá-lo. Então, quando ela não se mexeu, saudou-a inclinando a cabeça e recuou um passo ou dois. Ela continuava a nada dizer e parecia tê-lo esquecido. Voltou-se e refez o caminho através da vegetação cerrada até esta­rem fora das vistas um do outro. A audiência chegara ao fim.

 

Assim que a Dama ficou fora da vista, o primeiro impulso de Ransom foi passar as mãos pelos cabelos, expelir o ar dos pulmões num longo assobio, acender um cigarro, enfiar as mãos nos bol­sos e, de uma forma geral, percorrer todo o ritual de relaxamento que um homem executa ao encontrar-se só depois de uma entre­vista assas penosa. Mas ele não tinha cigarros nem bolsos: nem realmente se sentia só. Aquela sensação de estar na Presença de Alguém que descera sobre ele com um peso tão insuportável durante os primeiros momentos da sua conversa com a Dama não desaparecera quando ela o deixara. Tinha, se alguma coisa, au­mentado. A sua companhia fora, em certo grau, uma proteção contra ela e a sua ausência deixara-o não na solidão mas numa espécie mais assustadora de privacidade. Primeiro era quase in­tolerável, como disse ao contar a história. — Parecia não haver espaço – mas mais tarde descobriu que só era intolerável em cer­tas alturas — de fato, exatamente naquelas (simbolizadas pe­lo seu impulso para fumar e para enfiar as mãos nos bolsos) em que um homem afirma a sua independência e sente que final­mente agora está por sua conta. Quando se sente isso, então o ar parece demasiado carregado para respirar, uma densidade total parece excluir-nos de um local que, não obstante, somos incapa­zes de largar. Mas quando nos entregamos, quando desistimos, não há fardo para suportar. Tornou-se não uma carga mas um meio, uma espécie de esplendor, como se fosse ouro comestível, be­bível e respirável, que nos alimenta e transporta e não só entra dentro de nós como jorra de nós igualmente. Tomado da manei­ra errada, sufocava; tomado da maneira certa, fazia a vida terre­na parecer, por comparação, um vácuo. Ao princípio, é claro, os momentos errados ocorriam muitas vezes. Mas, como um homem que tem uma ferida que o magoa em certas posições e que gra­dualmente aprende a evitar essas posições, Ransom aprendeu a não fazer esse gesto íntimo. O seu dia tornou-se melhor e melhor à medida que as horas passavam.

Durante o correr do dia explorou a ilha muito completamen­te. O mar continuava calmo e teria sido possível alcançar ilhas vi­zinhas em muitas direções com um simples salto. Estava colo­cado na orla daquele arquipélago temporário e, num lado da cos­ta, viu-se a olhar para o mar aberto. As ilhas estendiam-se, ou antes, seguiam à deriva muito lentamente, na vizinhança da enorme coluna verde que vira momentos depois da sua chegada a Perelandra. Tinha uma excelente vista deste objeto à distân­cia de cerca de uma milha. Era claramente uma ilha montanho­sa. A coluna revelou-se na realidade um molho de colunas — isto é, de penhascos muito mais altos que largos, assim ao jeito de do-lomites exageradas, mas mais lisas: de tal modo mais lisas, de fato, que se podia com verdade descrevê-las como pilares da Cal­cada dos Gigantes, aumentados até à altura de montanhas. Aquela enorme massa vertical não se erguia porém diretamen­te do mar. A ilha tinha uma base de terreno escarpado mas com terra mais lisa junto à costa e uma sugestão de vales com vege­tação entre as lombas e ainda de vales mais fundos e mais a pi­que que de certa forma corriam entre as escarpas centrais. Era certamente terra, terra firme real, com as raízes na superfície só­lida do planeta. De onde ele se encontrava podia vagamente ter idéia da textura da rocha verdadeira. Parte dela era terra habi­tável. Sentiu um grande desejo de explorá-la. Dava a idéia deque desembarcar lá não apresentaria dificuldade alguma, e até mesmo a grande montanha podia revelar-se acessível à subida.

Nesse dia não voltou a ver a Dama. Cedo, na manhã seguin­te, depois de se ter recreado nadando um pouco e ter comido a sua primeira refeição, estava outra vez sentado na costa a olhar pa­ra a Terra Firme. De súbito ouviu a voz dela atrás de si e olhou para ela. Tinha vindo dos bosques com alguns animais, como de costume, a segui-la. As suas palavras tinham sido palavras de saudação, mas não mostrou qualquer disposição para conversar. Aproximou-se e ficou de pé, na orla da ilha flutuante, ao lado dele, e olhou como ele para a Terra Firme.

— Hei de ir até lá — disse por fim. — Posso ir contigo? — perguntou Ransom. — Se quiseres-disse a Dama. — Mas está vendo que é a Ter­ra Firme.

— É por isso que quero caminhar em cima dela — disse Ran­som. — No meu mundo todas as terras são firmes, e me daria prazer caminhar de novo numa terra assim.

Com uma súbita exclamação de surpresa ela olhou-o, espan­tada.

— Onde é que então se vive no seu mundo? — perguntou.

— Nas terras.

— Mas disseste que eram todas terra firme.

— Pois é. Vivemos em terra firme.

Pela primeira vez desde que se tinham encontrado, algo não muito diferente de uma expressão de horror e desgosto passou-lhe pelo rosto.

— Mas que fazem durante as noites?

— Durante as noites — disse Ransom, estupefato. — Que há de ser! Dormimos, naturalmente.

— Mas onde?

— Onde vivemos. Em terra.

Ela ficou a pensar profundamente, tanto tempo que Ransom receou que nunca mais voltasse a falar; quando o fez, a voz era contida e tranquila mais uma vez, embora a nota de júbilo ainda não tivesse regressado a ela.

— Ele nunca vos intimou a não o fazer — disse ela, menos como pergunta que como declaração.

— Não — disse Ransom.

— Pode haver, então, leis diferentes em mundos diferentes.

— Há uma lei no seu mundo para não se dormir na Terra Fir­me?

— Sim — disse a Dama. – Ele não quer que lá residamos. Po­demos lá ir e lá andar, pois o mundo pertence-nos. Mas ficar lá... dormir e acordar lã... — concluiu com um estremecimento.

— No nosso mundo não podíamos ter essa lei — disse Ransom. — Entre nós não há nenhuma ilha flutuante.

— Quantos existem de vós? — perguntou subitamente a Da­ma.

Ransom descobriu que não sabia a população da Terra, mas arranjou forma de lhe dar a idéia de muitos milhões. Esperara que ela ficasse atônita, mas parecia que os números não lhe in­teressavam.

— Como é que todos arranjam lugar na vossa Terra Firme?— perguntou.

— Não há uma única terra firme, mas muitas — respondeu ele. — E são grandes: quase tão grandes como o mar.

— Como é que conseguem suportar isso? — exclamou ela.— Quase metade do vosso mundo está vazio e morto. Massas e mas­sas de terra, todas imobilizadas. O simples pensar nisso não vos esmaga?

— De forma nenhuma — disse Ransom. – A mera idéia de um mundo que fosse todo ele mar, como o teu, faria o meu povo infe­liz e temeroso.

— Onde irá isto acabar — disse a Dama, falando para si mesma mais que para ele. — Fiquei tão velha nestas poucas últimas horas que toda a minha vida antes disso parece apenas a haste seca de uma árvore, e que agora se sentisse com ramos disparan­do em todas as direções. Estão a ficar tão afastados que dificil­mente posso suportar. Primeiro ter aprendido que caminho de bem para bem com os meus próprios pés... isso já era esforço bas­tante. Mas agora parece que o bem não é a mesma coisa em todos os mundos; que Maleldil proibiu num aquilo que permitiu noutro.

— Talvez o meu mundo esteja errado nisto — disse Ransom debilmente, pois estava consternado por aquilo que fizera.

— Não é assim — disse. — O próprio Maleldil me disse ago­ra. E não podia ser assim, se o vosso mundo não tem ilhas flutuan­tes. Mas não me está a dizer por que nos proibiu a nós.

— Há provavelmente alguma boa razão — começou Ransom, quando foi interrompido pelo seu riso repentino.

— Oh, Malhado, Malhado — disse ela, ainda a rir. — Como a gente da sua raça fala tantas vezes!

— Desculpa — disse Ransom, um pouco desconcertado.

— De que é que pedes desculpa?

— Peço que me desculpe se pensa que falo demais.

— Demais? Como posso eu dizer o que será para ti falar demais?

— No nosso mundo, quando dizem que uma pessoa fala muito querem dizer que desejam que ela fique calada.

— Se é isso que querem dizer, por que não o dizem?

— Que é que te fez rir? — perguntou Ransom, achando a ques­tão que ela pusera demasiado difícil.

 

— Ri, Malhado, porque você te interrogavas, como eu, quanto a esta lei que Maleldil fez para um mundo e não para outro. E você nada tinha para dizer, e no entanto desse nada fizeste muitas palavras.

— Contudo, tinha alguma coisa para dizer — disse Ransom, quase em surdina. — Pelo menos — acrescentou em voz mais al­ta — esta proibição não é gravosa num mundo como o vosso.

— Isso é também uma coisa estranha de dizer — replicou a Dama. — Quem é que pensou que era custoso? Os animais não pensariam ser custoso se eu lhes dissesse para andarem de cabe­ça para baixo. Seria para eles um encanto andar de ca­beça para baixo. Eu sou o animal Dele e todas as determinações Dele são alegrias. Não é isso que me torna pensativa. Mas esta­va a entrar no meu espírito a questão de saber se há duas espé­cies de determinações.

— Alguns dos nossos sábios disseram... — começou Ransom, quando ela o interrompeu.

— Vamos esperar e perguntar ao rei— disse ela. — Pois que eu penso, Malhado, que não sabe a este respeito muito mais que eu.

— Sim, orei, com certeza — disse Ransom. — Se o chegarmos a encontrar. — Então, de todo involuntariamente, acrescentou em inglês: — Com um raio! Que foi aquilo? — Ela também solta­ra uma exclamação. Alguma coisa assim como uma estrela ca­dente parecia ter traçado uma linha de fogo através do céu, mui­to ao longe para o lado esquerdo, e alguns segundos mais tarde um ruído indefinido chegou-lhes aos ouvidos.

— Que foi aquilo? — perguntou de novo, desta vez em Solar Antigo.

— Alguma coisa caiu do Céu Distante — disse a Dama. O seu rosto mostrava admiração e curiosidade: mas na Terra tão raramente se vêem estas emoções sem uma certa mistura de temor defensivo que a expressão dela lhe pareceu estranha.

— Acho que tem razão — disse ele. — Olá! Que é isto? — O mar calmo tinha-se levantado e todas as fibras na orla daquela ilha estavam em movimento. Uma única onda passou debaixo da ilha e tudo voltou outra vez a estar calmo.

— Alguma coisa caiu com certeza no mar — disse a Dama. De­pois retomou a conversa como se nada tivesse acontecido.

— Era para ir à procura do rei que eu tinha resolvido passar hoje para a Terra Firme. Ele não está em nenhuma destas ilhas por aqui, porque já procurei em todas. Mas se subirmos bem al­to lá na Terra Firme e olharmos em volta, então veremos até uma grande distância. Podemos ver se há outras ilhas mais, perto de nós.

— Vamos a isso — disse Ransom. — Se pudermos nadar até tão longe.

— Vamos a cavalo — disse a Dama. A seguir ajoelhou na cos­ta... e havia tal graciosidade em todos os seus movimentos que era uma maravilha vê-la ajoelhar... e chamou por três vezes, num tom baixo e sempre na mesma nota. Ao princípio não era vi­sível resultado algum. Mas em breve Ransom viu uma parte da água agitada dirigir-se rapidamente na direção deles. Um mo­mento mais tarde e o mar ao lado da ilha era uma massa de gran­des peixes cor de prata: esguichando água, ondulando o corpo, apertando-se uns contra os outros para chegarem mais perto, e os mais próximos tocando na terra com o focinho. Tinham não só a cor mas o polimento da prata. Os maiores tinham cerca de no­ve pés de comprido e todos eram encorpados e de aparência pode­rosa. Eram muito diferentes de qualquer espécie terrestre, pois a base da cabeça era sensivelmente mais larga que a parte dian­teira do tronco. Mas, também, o próprio tronco se tornava mais espesso em direção à cauda. Sem esse bojo do lado da cauda pa­receriam sapos gigantescos. Como eram, lembravam antes ve­lhos de peito estreito e barriga grande, com grandes cabeças. A Dama pareceu levar muito tempo a escolher dois deles. Mas a partir do momento em que o fez, todos os outros recuaram umas tantas jardas e os dois candidatos bem sucedidos rodaram sobre si mesmos e ficaram imóveis, de cauda para terra, mexendo sua­vemente as barbatanas.

— Agora, Malhado, é assim — disse ela, e sentou-se, uma perna para cada lado, na parte estreita do peixe do lado direito. Ran­som seguiu-lhe o exemplo. A grande cabeça na sua frente servia-lhe de apoio, de forma que não havia perigo de escorregar da montada abaixo. Observou a sua anfitriã. Ela aplicou ao peixe um ligeiro toque com o calcanhar. Fez o mesmo ao seu peixe. Um momento mais tarde deslizavam os dois pelo mar fora a cerca de seis milhas à hora. O ar por cima da água era mais fresco e a bri­sa levantava-lhe o cabelo. Num mundo onde até aí apenas tinha caminhado e nadado, a progressão do peixe causava a impressão de uma velocidade extremamente excitante. Olhou para trás de relance e viu a massa plumosa e encapelada das ilhas a afastar-se e o céu a ficar mais vasto e mais marcadamente dourado. Em frente, a montanha colorida e de formas fantásticas dominava todo o seu campo de visão. Notou com interesse que o cardume to­do dos peixes rejeitados continuava junto deles — uns atrás, mas a maior parte cabriolando em duas alas que se estendiam ampla­mente para a esquerda e para a direita.

— Eles vêm sempre atrás, como agora? — perguntou.

— Os animais não vos seguem no seu mundo? — replicou ela. — Não podemos montar mais que dois. Seria duro se aqueles que não escolhemos não fossem sequer autorizados seguir-nos.

— Foi por isso que levou tanto tempo a escolher os dois pei­xes, Senhora? — perguntou.

— Pois claro — disse a Dama. — Procuro não escolher o mes­mo peixe vezes de mais.

A terra aproximava-se deles depressa e aquilo que parecera uma linha de costa lisa começou a abrir-se em baías e a avançar em promontórios. E agora já estavam perto o bastante para ver que naquele oceano aparentemente calmo havia uma ondulação invisível, uma subida e descida muito tênue da água na praia. Um momento mais tarde os peixes ficaram sem fundo para nadar mais para a frente, e, seguindo o exemplo da Dama Verde, Ransom fez deslizar ambas as pernas para um dos lados do peixe e apalpou em baixo com os dedos dos pés. Oh maravilha! — toca­ram em seixos sólidos. Não tinha percebido até então que estava em ânsias por «terra firme». Olhou para cima. Até à baía em que estavam a desembarcar descia um vale estreito e alcantilado com penhascos baixos e a florações de uma rocha avermelhada e, mais abaixo, bancos de uma espécie qualquer de musgo e algumas árvores. As árvores quase podiam ter sido terrestres: plantadas em algum território do sul do nosso próprio mundo não parece­riam dignas de nota para ninguém exceto um botânico bem trei­nado. Melhor de tudo, no meio do vale, lá no fundo-e grato aos olhos e ouvidos de Ransom, como um vislumbre do lar ou do céu — corria um pequeno ribeiro, um ribeiro escuro e translúcido on­de uma pessoa podia ter esperança de encontrar uma truta.

— Gostas desta terra, Malhado? — disse a Dama, olhando-o de soslaio.

— Sim — disse ele —, é como o meu mesmo mundo. Começaram a caminhar pelo vale acima até à nascente.

Quando estavam debaixo das árvores, as semelhanças com uma área terrena diminuíam, pois havia tão pouca luz naquele mundo que a clareira, que deveria produzir apenas uma pequena som­bra, causava a obscuridade de uma floresta. Até ao topo do vale era cerca de um quarto de milha; lá, estreitava até ficar uma me­ra fenda entre rochedos baixos. Com um ou dois puxões e um pulo, a Dama estava em cima deles, e Ransom seguiu-a. Estava espan­tado com a sua força. Emergiam num terreno elevado e alcanti­lado coberto por uma espécie de vegetação rasteira que teria si­do muito parecida com relva senão fosse termais azul na cor. Pa­recia ter sido cortada rente e estar salpicada de pequenos obje­tos penugentos, até onde o olhar podia alcançar.

— Piores? — perguntou Ransom. A Dama riu-se.

— Não. Estes são os Malhados. Dei-te o nome deles. — Por um momento ficou intrigado, mas nessa altura os objetos prin­cipiaram a mover-se e logo a mover-se rapidamente, em dire­ção ao par humano que aparentemente tinham farejado — pois estavam já tão alto que havia uma brisa forte. Num instante es­tavam todos aos saltos à roda da Dama, dando-lhe as boas-vindas. Eram animais brancos com malhas negras-mais ou menos do tamanho de carneiros mas com as orelhas de tal maneira maiores, os focinhos tão mais móveis e as caudas tão maiores que a impressão geral era antes de serem ratos enormes. As patas, parecidas com garras ou quase com mãos, eram claramente fei­tas para trepar e a vegetação azulada era o seu alimento. Depois de apropriada troca de cortesias com aquelas criaturas, Ransom e a Dama continuaram a sua jornada. O círculo de mar dourado abaixo deles espalhava-se agora numa enorme extensão e os pi­lares de rocha verde lá em cima quase pareciam suspensos. Mas era uma longa e dura subida até à sua base. A temperatura ali era muito mais baixa, conquanto ainda fosse morna. O silêncio era também digno de atenção. Lá em baixo, nas ilhas, embora não se notasse na altura, devia haver um ruído de fundo contínuo cau­sado pelas águas, pelas bolhas e pelo movimento dos animais.

Estavam agora a penetrar numa baía ou reentrância de vegetação entre dois dos pilares verdes. Vistos de baixo estes tinham parecido tocar um no outro, mas agora, embora tivessem avança­do tão profundamente entre dois deles que a maior parte da vis­ta era cortada de ambos os lados, havia ainda espaço para um ba­talhão marchar em linhas. A encosta ficava mais a pique a cada momento, e à medida que ficava mais a pique o espaço entre os dois pilares também ficava mais estreito. Em breve estavam a rastejar sobre as mãos e os joelhos num local onde as paredes ver­des os entalavam de tal forma que tinham de ir em fila indiana, e Ransom, olhando para o alto, dificilmente podia ver o céu lá em cima. Por fim foram confrontados com um bocado de autêntica obra em rocha-uma gargantilha de pedra com cerca de oito pés de alto que juntava, como cola de rocha, as bases dos dois monstruosos dentes da montanha. «Daria muito para ter em cima de mim um par de calças», pensou Ransom para consigo enquanto olhava para aquilo. A Dama, que estava à frente, esticou-se nas pontas dos pés e ergueu os braços para agarrar uma saliência na extremidade da rocha. Então viu-a puxar, com a aparente inten­ção de elevar todo o seu peso nos braços, e num único movimen­to deu um balanço até ao topo.

 

— Olha lá, não podes fazer isso desse modo — começou ele, falando inadvertidamente em inglês, mas antes de ter tempo pa­ra se corrigir já ela estava em pé na borda, por cima dele. Não via exatamente como aquilo fora feito, mas não havia qualquer si­nal de que ela tivesse despendido um esforço anormal. A sua pró­pria subida foi um caso menos revestido de dignidade e foi um homem ofegante, a transpirar e com uma mancha de sangue no joelho, que finalmente se pôs de pé ao lado dela. A Dama estava curiosa a respeito do sangue, e quando lhe explicou o fenômeno tão bem como podia, quis raspar um pouco de pele do próprio joelho para ver se o mesmo lhe acontecia. Isto levou-o a tentar explicar-lhe o que se queria dizer por dor, o que só a tornou mais an­siosa de tentar a experiência. Mas no último instante Maleldil aparentemente disse-lhe para não o fazer.

Ransom tratou então de examinar os arredores. Lá muito em cima, e parecendo em perspectiva inclinar-se do lado de dentro um para o outro e quase ocultar o céu, erguiam-se os imensos pi­lares de rocha — não dois ou três deles, mas nove. Alguns, como aqueles dois entre os quais tinham entrado no círculo, estavam muito juntos. Outros estavam afastados muitas jardas. Circun­davam um planalto aproximadamente oval de talvez uns três hectares coberto com uma vegetação mais fina que qualquer conhecida no nosso planeta e salpicada de pequenas flores escar­lates. Um vento rijo zumbia e trazia como se fosse a quinta essên­cia fresca e apurada de todos os cheiros do mundo, mais genero­so lá em baixo, e mantinha estes numa agitação contínua. Vis­lumbres da vastidão do mar, visível entre os pilares, fazia-os con­tinuamente conscientes da grande altitude; e os olhos de Ran­som, há muito habituados à miscelânea de curvas e de cores nas ilhas flutuantes, descansavam nas linhas puras e nas massas es­táveis daquele local com grande alívio. Deu uns passos em frente para o interior do planalto, que tinha o espaço de uma catedral, e quando falou a sua voz fez eco.

— Oh, isto é bom — disse. — Mas talvez você... você para quem is­to é proibido... não sintas assim. — Mas um olhar de relance para o rosto da Dama disse-lhe que estava enganado. Não sabia o que ia na mente dela, mas a sua cara, como uma ou duas vezes antes, parecia resplandecer com qualquer coisa perante a qual ele baixou os olhos. — Examinemos o mar — disse ela então.

Deram metodicamente a volta ao planalto. Por detrás deles fi­cava o grupo de ilhas de onde tinham partido naquela manhã. Visto daquela altitude era ainda maior do que Ransom supuse­ra. A riqueza das suas cores — a sua cor de laranja, de prata, a púrpura e (para sua surpresa) os seus negros lustrosos — tornava-o quase heráldico. Era daquela direção que vinha o vento; o aroma daquelas ilhas, embora fraco, era como o som da água cor­rente para um homem sequioso. Mas em todos os outros lados na­da mais se via a não ser o oceano. Pelo menos não viam nenhu­mas ilhas. Mas quando tinham feito o circuito quase completo, Ransom gritou e a Dama apontou quase ao mesmo tempo. A cer­ca de duas milhas, escuro sobre o fundo verde acobreado da água, havia um pequeno objeto redondo. Se estivesse a olhar para um mar da Terra, Ransom teria tomado, à primeira vista, por uma bóia.

— Não sei o que é aquilo — disse a Dama. — A não ser que se­ja a coisa que esta manhã caiu do Céu Distante.

«Queria ter aqui um par de binóculos», pensou Ransom, pois as palavras da Dama tinham despertado nele uma suspeita sú­bita. E quanto mais fitava a escura ampola mais se confirmava a sua suspeita. Parecia ser perfeitamente esférica; e pensou que já tinha visto antes uma coisa parecida.

 

Já ouviram que Ransom tinha estado naquele mundo a que os homens chamam Marte mas cujo verdadeiro nome é Malacandra.

Mas não tinha sido para lá levado pelos eldila. Fora levado por homens, e levado numa nave espacial, uma esfera oca de vidro e aço. Tinha sido, de fato, raptado por homens que pensavam que os poderes que dominavam Malacandra exigiam um sacrifício humano. A coisa toda tinha sido um equívoco. O grande Oyarsa, que governava Marte desde o princípio (e que os meus próprios olhos, num certo sentido, contemplaram num vestíbulo da casa de campo de Ransom), não lhe fizera mal algum, e não tivera qualquer intenção de fazê-lo. Mas o seu principal captor, o pro­fessor Weston, esse tivera intenção de lhe causar bastante mal. Era um homem obcecado pela idéia, que neste momento circula por todo o nosso planeta em obras obscuras de «cientificação», em pequenas Sociedades Interplanetárias e Clubes de Foguetões e entre as capas de revistas monstruosas, ignoradas ou alvo de tro­ça por parte dos intelectuais, mas prontas, caso o poder alguma vez lhes vá parar às m aos, a abrir um novo capítulo de miséria pa­ra o universo. É a idéia de que a humanidade, tendo já corrom­pido suficientemente o planeta em que surgiu, deve a todo o cus­to conceber o modo de espalhar as suas sementes sobre uma área mais vasta: que as enormes distâncias astronômicas, que são as regras de quarentena de Deus, têm de ser, de uma forma qualquer, ultrapassadas. Isto para começar. Mas para além disto en­contra-se o doce veneno do falso infinito — o sonho louco que, pla­neta a seguir a planeta, sistema a seguir a sistema e no fim galá­xia após galáxia, podem ser obrigados a manter, em toda a par­te e para todo o sempre, o gênero de vida que está contida nos ór­gãos de reprodução da nossa espécie — um sonho gerado pelo ódio da morte mais o medo da verdadeira imortalidade, acarinhado em segredo por milhares de homens ignorantes e centenas que não são ignorantes. A destruição ou escravização de outras espé­cies no universo, se as houver, é para estes espíritos um corolá­rio bem aceite. No professor Weston o poder tinha-se finalmen­te encontrado com o sonho. O grande físico descobrira a energia motriz para a sua nave espacial. E aquele pequeno objeto preto, agora a flutuar lá em baixo nas águas sem pecado de Perelandra, parecia a Ransom a cada momento mais semelhante à nave es­pacial.

«Então é isto», pensou ele, «é por causa disto que fui manda­to para cá. Ele não teve êxito em Malacandra e agora vem para aqui. E cabe a mim fazer qualquer coisa a respeito disto.» Uma sensação terrível de incapacidade invadiu-o. Na última vez, em Marte, Weston tinha apenas um único cúmplice. Mas ti­nha armas de fogo. E quantos cúmplices teria ele agora? E em Marte fora frustrado não por Ransom mas pelos eldila especial­mente o grande eldil, o Oyarsa, daquele mundo. Voltou-se rapi­damente para a Dama.

— Não vi nenhuns eldila no seu mundo — disse.

— Eldila ? — repetiu ela como se fosse um nome novo para ela.

— Sim. Eldila — disse Ransom —, os grandes e antigos ser­vos de Maleldil. As criaturas que não se reproduzem nem respi­ram. Cujos corpos são feitos de luz. Que nós mal podemos ver. A quem se deve obedecer.

Ela cismou por um momento e depois falou.

— Doce e delicadamente desta vez, Maleldil faz-me mais ve­lha. Mostra-me toda a natureza dessas criaturas abençoadas. Mas não há que obedecer-lhes agora; neste mundo não. Isso era tudo a ordem antiga, Malhado, o lado de lá da onda que passou por nós e não voltará outra vez. Esse mundo muito antigo para onde viajou foi posto debaixo dos eldila. No seu mesmo mundo eles também dominaram em tempos: mas não desde que o nosso Bem-Amado se fez Homem. No seu mundo ainda vagueiam por lá. Mas no nosso mundo, que foi o primeiro a despertar depois da grande mudança, não têm poder algum. Não existe nada hoje entre nós e Ele. Eles ficaram menos e nós aumentamos. E agora Ma­leldil põe no meu espírito que isto é a glória deles e a sua alegria. Receberam-nos... a nós, coisas dos mundos inferiores, que respiram e têm filhos... como animais fracos e pequenos aos quais o seu toque mais ligeiro podia destruir, e a glória deles foi acarinhar — nos e fazer-nos mais velhos até sermos mais velhos que eles — até eles poderem cair aos nossos pés. É uma alegria que nunca teremos. Por muito que eu ensine aos animais, nunca serão me­lhores que eu. Mas é uma alegria que ultrapassa tudo. Não que seja uma alegria melhor que a nossa. Todas as alegrias são maiores que as outras. O fruto que comemos é sempre o melhor fruto de todos.

— Tem havido eldila que não acham isso uma alegria — dis­se Ransom.

— Como?

— Falou ontem, Senhora, de nos agarrarmos ao antigo bem, em vez de pegarmos no bem que chegou.

— Sim... por umas tantas pulsações do coração.

— Houve um eldil que se manteve agarrado mais tempo... que se mantém assim desde quando os mundos ainda não tinham si­do feitos.

— Mas o antigo bem teria deixado por completo de ser um bem se ele fez isso.

 

— Sim. Deixou mesmo. E contudo ele continua agarrado.

Ela fitou-o, pasmada, e estava prestes a falar, mas ele inter­rompeu-a.

— Não há tempo para explicar.

— Não há tempo? Que é que aconteceu ao tempo? — pergun­tou ela.

— Escuta — disse Ransom. — Aquela coisa lá em baixo veio do meu mundo através do Céu Distante. Lá dentro está um ho­mem: talvez muitos homens.

— Olha-disse ela—, está a fazer — se em duas... uma gran­de e uma pequena.

Ransom viu que um objeto negro se destacara da nave espa­cial e estava a afastar-se dela de forma algo incerta. O caso in­trigou-o por um momento. Então raiou no seu espírito a idéia de que Weston — se era Weston — conhecia provavelmente a super­fície aquosa que tinha a esperar em Vênus e trouxera um gênero qualquer de barco desmontável. Mas poderia ser que não tives­se contado com marés ou temporais e não tivesse previsto vir a ser-lhe impossível recuperar a nave espacial? Não era próprio de Weston cortar a sua própria retirada. E Ransom de certeza que não desejava que a retirada de Weston fosse cortada. Um Weston que não pudesse, ainda que o escolhesse, regressar à Terra era um problema insolúvel. De qualquer forma, que podia ele, Ran­som, ter possibilidade de fazer sem o apoio dos eldila? Começou a afligir-se sob a sensação de injustiça. Qual era o benefício de o mandarem a ele — um simples estudioso — haver-se com uma situação daquelas? Qualquer pugilista comum ou, melhor ainda, qualquer homem que soubesse utilizar uma pistola-metralhadora, teria sido mais adequado. Se ao menos pudessem encontrar o tal rei de quem a Dama Verde continuava a falar...

Mas enquanto estes pensamentos lhe passavam pela cabeça, teve consciência de um murmúrio em surdina ou grunhido que gradualmente se fora sobrepondo ao silêncio havia algum tempo.

— Olha — disse a Dama e apontou para a massa das ilhas. A superfície delas já não estava horizontal. No mesmo momento percebeu que o ruído era das ondas: por enquanto ainda ondas pequenas, mas começando nitidamente a fazer espuma nas cos­tas altas e rochosas da Ilha Fixa. — O mar está a crescer — dis­se a Dama. — Temos de descer e abandonar de imediato esta ter­ra. Em breve as ondas serão demasiado grandes... e eu não posso estar aqui à noite.

— Por aí não — bradou Ransom. — Por onde vás encontrar o homem do meu mundo, não.

— Porquê? — disse a Dama. — Sou a Senhora e a Mãe deste mundo. Se o rei cá não está, quem mais deve receber um estran­geiro?

— Eu recebê-lo-ei.

— Este não é o seu mundo, Malhado — replicou ela.

— Você não compreendes — disse Ransom. — Este homem... é amigo daquele eldil de que te falei, um dos que se agarram aos bens errados.

— Então tenho de lhe explicar — disse a Dama. — Vamos e tratemos de torná-lo mais velho — e com isto pendurou-se do bor­do rochoso do planalto e começou a descer a encosta da montanha. Ransom demorou mais a ultrapassar os rochedos, mas logo que os seus pés se encontraram outra voz sobre a vegetação começou a correr tão depressa quanto podia. A Dama soltou um grito de surpresa quando ele passou por ela como um relâmpago, mas ele não ligou importância. Podia agora ver claramente qual a baía para onde se dirigia a pequena embarcação e toda a sua atenção estava ocupada em manter o rumo e a ver onde punha os pés. No bote havia apenas um homem. Correu sem parar pela encosta abaixo. Agora estava numa dobra do terreno, agora num vale ser­penteante que momentaneamente impedia a vista do mar. Ago­ra finalmente na própria enseada. Olhou para trás de relance e para sua consternação viu que a Dama viera também a correr e estava apenas algumas jardas atrás. Olhou outra vez para a frente. Havia ondas, embora ainda não muito grandes, rebentando na praia de calhaus. Um homem em calções e camisa e com um capacete de mineiro estava com água pelo tornozelo patinhando em direção a terra e puxando atrás de si uma pequena chata de lona. Era realmente Weston, embora o seu rosto ostentasse qualquer coisa que, de uma forma sutil, não parecia familiar. Achava Ransom de vital importância impedir um encontro entre Weston e a Dama. Tinha visto Weston assassinar um habitante de Malacandra. Virou-se para trás, estendendo os braços para lhe cor­tar a passagem e gritando:

— Volta para trás. — Ela estava perto demais. Por um segun­do ficou quase nos seus braços. Depois recuou, arquejando da cor­rida, surpreendida, a boca aberta para falar. Mas nesse momen­to ouviu a voz de Weston, atrás dele, dizendo em inglês:

— Posso perguntar-lhe, Dr. Ransom, que é que isto significa?

 

Em todas as circunstâncias teria sido razoável esperar que Weston ficasse muito mais desconcertado pela presença de Ran­som do que este pela sua. Mas se ficou, não deu sinal algum dis­so, e Ransom dificilmente podia deixar de admirar o egoísmo ma­ciço que permitia àquele homem, no próprio momento da sua che­gada a um mundo desconhecido, estar ali inalterável em toda a sua vulgaridade autoritária, as mãos nos quadris, o semblante carrancudo e os pés tão solidamente plantados naquele solo não terreno como se estivesse com as mãos viradas para a lareira no seu mesmo escritório. Então, com um choque, reparou que Wes­ton estava a falar para a Dama na língua Solar Antigo com per­feita fluência. Em Malacandra, em parte por incapacidade e muito mais devido ao seu desprezo pelos habitantes, nunca dela adquirira mais que um conhecimento superficial. Ali estava uma novidade inexplicável e inquietante. Ransom sentiu que a sua única vantagem lhe tinha sido retirada. Sentiu que estava ago­ra na presença do incalculável. Se a balança fora subitamente carregada só de um lado neste aspecto, o que podia vir a seguir?

Acordou da sua abstração para verificar que Weston e a Da­ma tinham estado a conversar fluentemente, mas sem mutua­mente se entenderem.

— Não serve de nada — dizia ela. — Você e eu não somos sufi­cientemente velhos para falar um com o outro, é o que parece. O mar está a crescer, vamos voltar para as ilhas. Ele vem conosco, Malhado?

— Onde estão os dois peixes? — disse Ransom.

— Estarão à espera na próxima baía — disse a Dama.

— Rápido, então — disse-lhe Ransom; e depois, em resposta ao olhar dela: — Não, ele não vem. — Ela não compreendia, pre­sumivelmente, a sua urgência, mas os olhos dela estavam no mar e ela compreendia a sua própria razão para a pressa. Começara a subir a encosta do vale, com Ransom a segui-la, quando Weston bradou.

— Não, você não — Ransom voltou-se e viu-se sob a ameaça de um revólver. O súbito calor que varreu o seu corpo era o úni­co sinal pelo qual sabia que estava assustado. A sua cabeça per­manecia calma.

— Vai também começar neste mundo por assassinar um dos seus habitantes? — perguntou.

— Que está você a dizer? — perguntou a Dama, parando e olhando para trás, para os dois homens, com um rosto perplexo mas tranquilo.

— Fique onde está, Ransom — disse o professor. — Essa na­tiva pode ir para onde quiser; quanto mais cedo, melhor.

Ransom estava prestes a implorar à Dama para concretizar a sua retirada, quando percebeu que não era preciso. De forma racional supusera que ela compreenderia a situação; mas apa­rentemente ela nada mais via que dois estrangeiros falando de qualquer coisa que ela de momento não compreendia — isso, e a sua própria necessidade de deixar imediatamente a Terra Firme.

— Você e ele não vêm comigo, Malhado? — perguntou.

— Não — disse Ransom, sem se virar. — Pode ser que você e eu não nos encontremos outra vez tão cedo. Saúda o rei por mim se o encontrares e fala de mim sempre a Maleldil. Eu fico aqui.

— Encontrar-nos-emos quando aprouver a Maleldil — res­pondeu —, ou, se não, algum bem maior nos sucederá em vez dis­so. — Depois ouviu o som dos seus passos, atrás dele, durante al­guns segundos, e depois deixou de os ouvir e soube que estava a sós com Weston.

— Você permitiu-se usar a palavra assassínio, ainda agora, Dr. Ransom — disse o professor —, em referência a um aciden­te que ocorreu quando estávamos em Malacandra. Em qualquer caso, a criatura morta não era um ser humano. Permita-me dizer-lhe que considero a sedução de uma rapariga nativa como um processo quase igualmente infeliz de apresentar a civilização a um novo planeta.

— Sedução? — disse Ransom. — Oh, entendo. Você pensou que eu estava a fazer amor com ela.

— Quando encontro um homem civilizado nu abraçado a uma mulher selvagem nua, num lugar solitário, esse é o nome que lhe dou.

— Não estava abraçado a ela — disse Ransom, melancólico, pois toda aquela situação de ter de se defender naquela matéria lhe parecia, na altura, um mero cansaço para o espírito. — E nin­guém usa roupas por aqui. Mas que é que isso interessa? Prossi­ga com a tarefa que o traz a Perelandra.

— Está a pedir-me para acreditar que tem estado aqui a viver com aquela mulher e nestas condições num estado de inocên­cia assexuada?

— Oh, assexuada! — disse Ransom, com ar aborrecido. — Pois seja, se assim deseja. É uma descrição da vida em Perelandra quase tão boa como seria dizer que um homem se esqueceu do que é a água só porque as Cataratas do Niágara não lhe fazem ime­diatamente vir à idéia transformá-las em chávenas de chá. Mas tem muita razão se quer dizer que não pensei mais em desejá-la do que... do que... — faltaram-lhe os termos de comparação e a sua voz extinguiu-se. Depois começou de novo: — Mas não diga que estou a pedir-lhe para acreditar nisso, ou para acreditar nal­guma coisa. Nada lhe estou a pedir a não ser que comece e termi­ne tão depressa quanto possível os morticínios e os saques, quais­quer que sejam, que veio cá fazer.

Weston olhou-o por um momento com uma expressão curio­sa, depois, inesperadamente, enfiou de novo o revólver no coldre.

— Ransom — disse —, está a fazer-me um a grande injustiça.

Durante vários segundos reinou o silêncio entre eles. Ondas largas vinham rolando com cristas brancas como novelos de lã e rebentavam na enseada, exatamente como na Terra.

— Sim — disse por fim Weston —, e vou começar por fazer um a franca confissão. Tire dela o proveito que lhe aprouver. Não é isso que me deterá. Digo deliberadamente que eu estava, nal­guns aspectos, enganado... seriamente enganado... na minha concepção de todo o problema interplanetário quando fui para Malacandra.

Em parte devido ao relaxamento que acompanhava o desapa­recimento da pistola e em parte devido ao ar enfatuado de mag­nanimidade com que falava o grande cientista, Ransom sentiu-se muito disposto a desatar a rir. Mas ocorreu-lhe que aquela era possivelmente a primeira ocasião em toda a sua vida na qual Weston tinha alguma vez reconhecido não ter razão, e mesmo o falso despontar de humildade, que continha ainda noventa e no­ve por cento de arrogância, não devia ser repelido — ou pelo me­nos não por ele.

— Bem, isso é muito simpático — disse. — E que é que você quer dizer?

— Vou dizer-lhe já — disse Weston. — Entretanto tenho de trazer as minhas coisas para terra. — Entre os dois encalharam a chata na praia e trataram de carregar o fogão de petróleo, la­tas, a tenda e outros embrulhos cerca de duzentas jardas para o interior da ilha. Ransom, que sabia ser toda aquela parafernália desnecessária, não pôs objeção alguma, e em cerca de um quar­to de hora fora estabelecido algo parecido com um acampamen­to num local coberto de musgo, debaixo de umas árvores de tron­co azul e folhas cor de prata, ao lado de um regato. Os dois homens sentaram-se, e Ransom escutou, primeiro com interesse, depois com estupefação e finalmente com incredulidade, Weston cla­reou a garganta, deitou o peito para fora e assumiu a sua postura de conferencista. Através da conversação que se seguiu, Ransom foi tomado por uma sensação de louca irrelevância. Ali estavam dois seres humanos, atirados juntos para um mundo estranho sob condições de inconcebível singularidade: um separado da sua nave espacial, o outro acabado de ser liberto da ameaça de mor­te imediata. Era de bom senso — era imaginável — que viessem a encontrar-se logo a seguir envolvidos numa discussão filosófi­ca que podia igualmente ter ocorrido numa sala de reuniões de Cambridge?E contudo era nisso, aparentemente, que Weston in­sistia. Ele não mostrava interesse algum na sorte da sua nave es­pacial; e parecia até não sentir nenhuma curiosidade acerca da presença de Ransom em Vênus. Poderia ser que ele tivesse via­jado mais de trinta milhões de milhas no espaço em busca de... uma conversa? Mas à medida que ele continuava a falar, Ransom sentia-secada vez mai sem presença de um monomaníaco. Como um ator que não é capaz de pensar em mais nada a não ser na sua própria celebridade, ou um amante que não pode pensar em nada que não seja a sua paixão, tenso, aborrecido e implacável, o cientista perseguia a sua idéia fixa.

— A tragédia da minha vida — disse ele —, e na verdade do mundo intelectual moderno em geral, é a rígida especialização do conhecimento acarretada pela complexidade crescente daquilo que é conhecido. E minha parcela pessoal nessa tragédia que uma inicial devoção à Física me tenha impedido de dedicar a atenção adequada à Biologia até ter passado os cinquenta. Para fazer jus­tiça a mim próprio, deveria deixar claro que o falso ideal huma­nista do conhecimento como um fim em si mesmo nunca me en­tusiasmou. Sempre quis saber, a fim de obter utilidade. Ao prin­cípio, essa utilidade naturalmente apresentava-se numa forma pessoal — queria graus acadêmicos, rendimentos, e aquela posi­ção geralmente reconhecida no mundo sem a qual um homem não tem peso nenhum. Quando estes foram alcançados, comecei a olhar para mais longe: para a utilidade da raça humana!

Fez um a pausa quando concluiu esta parte, e Ransom fez-lhe sinal com a cabeça para prosseguir.

— A utilidade da raça humana — continuou Weston — a lon­go prazo depende rigidamente da possibilidade de viagens interplanetárias ou até intersiderais. Esse problema já resolvi. A chave para o destino humano foi colocada nas minhas mãos. Se­ria desnecessário... e doloroso para ambos... recordar-lhe como ele foi de mim arrancado em Malacandra por um membro de uma espécie inteligente hostil cuja existência, admito, não tinha an­tevisto.

— Não exatamente hostil — disse Ransom—, mas continue.

— Os rigores da nossa viagem de regresso de Malacandra levaram a um sério prejuízo para a minha saúde.

— Para a minha também — disse Ransom.

 

Weston pareceu algo abalado pela interrupção e prosseguiu.

— Duran te a minha convalescença tive o vagar para reflexão, que durante anos negara a mim próprio. Refleti em particular sobre as objeções que você sentira a liquidação do habitante não humano de Malacandra que era, é claro, o preliminar necessário para a sua ocupação pela nossa espécie. A forma tradicional e, se posso dizer assim, humanitária sob a qual você apresentou essas objeções escondera até então de mim a sua verdadeira força. Es­sa força, começo agora a entendê-la. Comecei a ver que a minha própria devoção exclusiva à utilidade humana era realmente baseada num dualismo inconsciente.

— Que é que você quer dizer?

— Quero dizer que toda a minha vida tinha estado a fazer uma dicotomia ou antítese, inteiramente não científica, entre Homem e natureza...via a mim próprio lutando e o Homem contra o seu ambiente não humano. Durante a minha doença mergulhei na Biologia, e em particular no que pode chamar-se fi­losofia biológica. Até aí, como físico, tinha-me sentido satisfeito em considerar a Vida como um assunto fora do meu âmbito. As opiniões conflituais entre aqueles que traçam uma linha nítida entre o orgânico e o inorgânico e aqueles que mantêm que o que chamamos Vida era inerente à matéria mesmo desde o início, não me tinham interessado. Agora, sim. Vi quase logo que não podia admitir nenhuma violação, descontinuidade alguma, no desen­volvimento do processo cósmico. Tornei-me um crente convicto na evolução emergente. Todos somos um. A essência do espírito, o dinamismo inconscientemente intencional, está presente desde o princípio.

Aqui fez uma pausa. Ransom ouvira já muitas vezes este gênero de coisas e estava curioso por saber quando é que o seu companheiro se deixava de rodeios e entrava no assunto. Quan­do Weston retomou a palavra foi num tom de solenidade ainda mais profunda.

— O espetáculo majestoso desta tendência cega, inarticula­da, abrindo caminho em direção ao alto e sempre mais alto, numa unidade interminável de realização diferenciadas no sentido de um a cada vez mais crescente complexidade de organização, no sentido da espontaneidade e da espiritualidade, varreu por com­pleto a minha velha concepção de um dever para com o Homem como tal. O homem em si mesmo nada é. O movimento da Vida no sentido do progresso... a espiritualidade crescente... é tudo. Digo-lhe com toda a franqueza, Ransom, que eu estaria errado se exterminasse os malacandrianos. Era um mero preconceito que me fazia preferir a nossa própria raça à deles. Espalhar a espiritualidade, e não a raça humana, é a minha missão daqui para a frente. Isto servirá de pedra final no edifício da minha car­reira. Trabalhei primeiro para mim próprio, depois para a ciên­cia, depois para a humanidade, mas agora, finalmente, para o próprio Espírito... podia até dizer, pedindo emprestada a lingua­gem que para si será mais familiar, o Espírito Santo.

— E então que quer você dizer exatamente com isso? — per­guntou Ransom.

— Quero dizer — disse Weston — que nada agora nos divide, a si e a mim, exceto nuns tantos pormenores teológicos de natu­reza técnica e já gastos, com os quais a religião se deixou infeliz­mente incrustar. Mas eu penetrei nessa crusta. Debaixo dela o Significado está tão verdadeiro e tão vivo como nunca. Se me dá licença para pôr as coisas deste modo, a verdade essencial da vi-são religiosa da vida encontra um notável testemunho no fato de lhe ter facultado a você, em Malacandra, abarcar, à sua maneira mítica e imaginativa, uma verdade que para mim ficou oculta.

— Não sei lá muito bem a que é que as pessoas chamam a vi­são religiosa da vida — disse Ransom, franzindo o sobrolho. — Está vendo, eu sou cristão. E aquilo que designamos por Espírito Santo não é uma tendência cega e inarticulada.

— Meu caro Ransom — disse Weston —, compreendo-o per­feitamente. Não tenho dúvida alguma de que a minha fraseolo­gia lhe parecerá estranha e talvez até chocante. Associações an­tigas e respeitadas podem colocar fora do seu alcance reconhecer nesta nova forma precisamente as mesmas verdades que a reli­gião preservou por tanto tempo e que a ciência está agora, final­mente, a redescobrir. Mas quer você possa vê-la ou não, creia-me, estamos ambos a falar exatamente da mesma coisa.

— Não tenho de forma alguma a certeza de que estejamos.

— Isso, se me permite dizê-lo, é uma das reais fraquezas da religião organizada... essa aderência a fórmulas, essa incapaci­dade para reconhecer os próprios amigos. Deus é um espírito, Ransom. Agarre-se a isso. Você já está familiarizado com isso. Mantenha-se assim. Deus é um espírito.

— Bem, isso é evidente. Mas e depois?

— E depois? Pois é isso: espírito, mente, liberdade, esponta­neidade... é disso que estou a falar. Essa é a meta em direção à qual caminha todo o processo cósmico. A abertura final para es­sa liberdade, essa espiritualidade, é o trabalho ao qual dedico a minha própria vida e a vida da humanidade. A meta, Ransom, a meta: pense nela. Espírito puro: o vórtex final da atividade auto-pensante e auto-criadora.

— Final? — disse Ransom. — Quer dizer que ainda não existe?

— Ah — disse Weston. — Vejo que o preocupa. Claro que sei. A religião apresenta-a como existindo desde sempre. Mas certa­mente que isso não é uma diferença real. Para a criar seria neces­sário levar o tempo demasiado a sério. Uma vez que lá se chegue, então pode dizer-se que Ele ali estava tanto no começo como no fim. O tempo é uma das coisas que Ele transcenderá.

— Já agora — disse Ransom —, Ele é, em certo sentido, pes­soal... está vivo?

Uma expressão indescritível passou pelo rosto de Weston. Deslocou-se para um pouco mais perto de Ransom e começou a falar em voz mais baixa.

— É isso que nenhum deles compreende — disse ele. Tinha um tal ar de bandoleiro e um murmúrio de rapaz de escola, e tão pouco parecido com o seu estilo oratorial usual de conferencista, que Ransom experimentou por um momento a sensação de re­pugnância.

— Sim — disse Weston. — Eu mesmo não era capaz de acre­ditar, até recentemente. Uma pessoa, não, é claro. O antropomor­fismo é uma das doenças infantis da religião popular (aqui já ti­nha readquirido os seus modos públicos), mas o extremo oposto, da abstração excessiva, tem talvez, no conjunto, provado ser mais desastroso. Chame-lhe uma Força. Uma grande, inescru­tável Força, fluindo por nós acima vinda dos fundamentos obscu­ros do ser. Uma Força que pode escolher os seus instrumentos. Foi só ultimamente, Ransom, que fiquei a saber, por experiência vivida, algo em que você acreditou toda a sua vida, como parte da sua religião. — Aqui ele subitamente desceu de novo para um murmúrio, um murmúrio crocitante nada parecido com a sua voz habitual. — Guiado — disse ele. — Escolhido. Guiado. Fiquei consciente de que sou um homem designado. Por que é que me de­diquei à Física? Por que é que descobri os raios Weston? Por que é que fui para Malacandra? Ele... a Força... era quem me impe­lia todo este tempo. Estou a ser guiado. Agora sei que sou o maior cientista que o mundo jamais produziu. Fui assim feito com um propósito. É através de mim que o próprio Espírito avança nes­te momento em direção ao seu objetivo.

— Olhe lá — disse Ransom —, é preciso ser-se cuidadoso com coisas deste gênero. Existem espíritos e espíritos, você sabe.

— Eh — disse Weston —, de que está você a falar?

— Quero dizer que uma coisa pode ser um espírito e não ser boa para si.

— Mas eu pensei que você concordava que o Espírito era o bem... o fim de todo o processo? Eu pensava que vocês, pessoas re­ligiosas, eram todas a favor da espiritualidade. Qual é a finalida­de do ascetismo... jejuns e celibato e tudo isso? Não concordamos que Deus é um espírito? Deixam de O adorar por Ele ser puro es­pírito?

— Deus do Céu, não! Nós adoramo-lo porque Ele é sábio e bom. Não há nada de especialmente distinto em ser simplesmen­te um espírito. O Diabo é um espírito.

— Ora o ter você mencionado o Diabo é muito interessante — disse Weston, que por esta altura retomara totalmente os seus modos normais. — E uma coisa extremamente interessante na religião popular, esta tendência para a fissiparidade, para criar pares de opostos: céu, inferno, Deus e Diabo. Mal preciso dizer que, na minha opinião, não é admissível dualismo real algum no universo; e com essa base estaria disposto, mesmo só há umas semanas atrás, a rejeitar estes pares de duplos como pura mito­logia. Teria sido um erro profundo. A causa desta tendência reli­giosa universal tem de ser procurada muito mais fundo. Os duplos são na realidade retratos do espírito, da energia cósmica... auto-retratos, efetivamente, pois foi a própria Força Vida que os depositou nos nossos cérebros.

— Que diabo quer você dizer? — perguntou Ransom. Ao falar, pôs-se de pé e começou a andar para trás e para diante. Um can­saço e um mal-estar espantoso tinham descido sobre ele.

— O seu Deus e o seu Diabo — disse Weston — são ambos retratos da mesma Força. O seu céu é uma imagem da perfeita es­piritualidade à nossa frente; o seu inferno uma imagem do impul­so ou nisus que nos conduz e ela pelo lado de trás. Daí a paz está­tica de um, e o fogo e a escuridão do outro. O próximo estádio da evolução emergente, chamando-nos para diante, é Deus; o está­dio ultrapassado, que nos expeliu, é o Diabo. A sua própria reli­gião, afinal, diz que os demônios são anjos caídos.

— E você está a dizer precisamente o contrário, tanto quan­to posso entender... que os anjos são demônios que se ergueram no mundo.

— Vem a dar na mesma coisa — disse Weston. Houve outra longa pausa.

— Olhe lá — disse Ransom —, é fácil equivocarmo-nos um e outro sobre um ponto como este. O que você está a dizer soa-me como o mais horrível engano em que um homem pode cair. Mas isso pode ser porque, no esforço para ajustá-lo às minhas supos­tas «opiniões religiosas», está a dizer bastante mais do que tinha na idéia. Tudo isso a respeito de espíritos e forças é somente uma metáfora, não é? Espero que tudo o que realmente quer dizer é que sente ser seu dever trabalhar para espalhar a civilização e o conhecimento e essa espécie de coisas. – Tentara manter fora da sua voz a involuntária ansiedade que tinha começado a sentir. No momento seguinte encolheu-se horrorizado pelo riso cacarejante, quase um riso infantil ou senil, com o qual Weston replicara.

— Aí vai você, aí vai você — disse ele. — Como toda essa sua gente religiosa. Falam e tornam a falar a respeito destas coisas toda a vida, e no momento em que encontram a realidade ficam aterrados.

— Que prova-— disse Ransom (que na verdade se sentia ater­rado) —, que prova tem você de que está a ser guiado ou apoia­do por alguma coisa exceto a sua própria mente individual e os livros de outras pessoas?

— Não reparou, caro Ransom — disse Weston —, que eu me­lhorei um tanto desde que nos encontramos pela última vez no meu conhecimento da linguagem extraterrestre? Você é um filó­logo, dizem.

Ransom sobressaltou-se.

— Como é que o fez? — disse sem pensar.

— Direção, sabe, direção — grasnou Weston. Estava acoco­rado junto às raízes da sua árvore, com os joelhos erguidos, e o rosto, agora de cor alvadia, ostentava um esgar fixo e até ligeira­mente contorcido. — Direção. Direção — continuou. — Coisas que me vêm à cabeça. Estou a ser preparado o tempo todo. A ser feito um receptáculo adequado para o que vier.

— Isso devia ser bastante fácil — disse Ransom, impaciente­mente. — Se essa Força-Vida é algo tão ambíguo que Deus e o Diabo são retratos dela igualmente bons, suponho que qualquer receptáculo é igualmente adequado, e o que quer que se possa fa­zer é igualmente uma expressão dela.

— Há uma coisa a que se pode chamar corrente principal — disse Weston. — E uma questão de um a pessoa se entregar a isso, tornar-se o condutor do propósito central, vivo e ardente, tornar-se o próprio dedo que se estende para a frente.

— Mas pensei que esse era o aspecto diabólico dela, há instantes atrás.

— Esse é um paradoxo fundamental. A coisa que procuramos alcançar ia à frente é aquilo a que você chamaria Deus. O ato de procurar alcançar, o dinamismo, é aquilo a que pessoas como vo­cê chamam sempre o Diabo. As pessoas como eu, que executam o ato de procurar alcançar, são sempre mártires. Vocês injuriam-nos, e por nosso intermédio chegam ao vosso objetivo.

— Significa isso, em linguagem mais chã, que as coisas que a Força quer que pratique são aquilo que as pessoas normais cha­mam diabólicas?

— Meu caro Ransom, desejo que não continue a recair no ní­vel popular. As duas coisas são momentos apenas da realidade única e singular. O mundo salta para a frente através de grandes homens e a grandeza transcende sempre um mero moralismo. Quando se completa o salto, o nosso «diabolismo», como você lhe chamaria, torna-se a moralidade do estádio seguinte; mas, enquanto o executamos, chamam-nos criminosos, heréticos, blas­femos...

— Até onde se vai? Obedeceria ainda à Força-Vida se a achasse incitando-o a assassinar-me?

— Sim.

— Ou a vender a Inglaterra aos alemães?

— Sim.

— Ou a publicar mentiras como investigação séria num perió­dico científico?

— Sim.

— Deus o ajude! — disse Ransom.

— Você continua ligado aos seus convencionalismos — disse Weston. — A lidar ainda com abstrações. Será que não pode se­quer conceber uma total dedicação, uma entrega a alguma coisa que anula totalmente todos os nossos insignificantes escaninhos éticos?

Ransom agarrou-se àquela palha que lhe era estendida.

— Espere, Weston — disse abruptamente. — Esse pode ser um ponto de contato. Você diz que é uma entrega total. Isto é, es­tá a entregar-se a si mesmo. Você não o está a fazer para seu benefício próprio. Não, espere meio segundo. Este é o ponto de con­tato entre a sua moralidade e a minha. Ambos reconhecemos...

— Idiota — disse Weston. A voz dele era quase um uivo e tinha-se posto de pé. — Idiota — repetiu. — Não é capaz de com­preender nada? Vai sempre tentar fazer recuar tudo para dentro do quadro miserável do seu velho calão sobre a própria pessoa e o sacrifício do próprio? Isso é o velho e amaldiçoado dualismo sob outra forma. Não há distinção possível, em pensamento concre­to, entre mim e o universo. Na medida em que sou o condutor da pressão central do universo para diante, sou o universo. Está vendo, seu tolo tímido, promotor de escrúpulos? Eu sou o universo. Eu, Weston, sou o seu Deus e o seu Diabo. Chamo essa Força para dentro de mim, completamente...

Então começaram a acontecer coisas horríveis. Um espasmo, como o que precede um vômito mortal, contorceu o rosto de Wes­ton, tornando-o irreconhecível. Assim que passou, algo seme­lhante ao velho Weston reapareceu por um segundo — o velho, fixando-o com olhos de horror e uivando.

— Ransom, Ransom! Por amor de Deus, não os deixe... — e instantaneamente o seu corpo todo rodou como se tivesse sido atingido por uma bala de revólver e caiu por terra, e lá ficou rolando aos pés de Ransom, babando-se e rangendo os dentes e arrancando a erva às mãos cheias. Gradualmente as convulsões diminuíram. Ficou estendido imóvel, respirando pesadamente, os olhos abertos mas sem expressão. Ransom estava agora ajoelhado ao lado dele. Era óbvio que o corpo estava vivo, e Ransom perguntava a si mesmo se aquilo era uma apoplexia ou um ata­que epiléptico, pois nunca tinha visto nenhum deles. Vasculhou entre os embrulhos e encontrou uma garrafa de brande que desarrolhou e aplicou na boca do paciente. Para sua consterna­ção, os dentes abriram-se, fecharam-se em torno do gargalo da garrafa e partiram-no com uma dentada. Nenhum vidro foi cus­pido.

— Oh meu Deus, matei-o — disse Ransom. Mas, para além de um esguicho de sangue nos lábios, não houve mudança algu­ma na sua aparência. O rosto sugeria que ou ele não tinha dor ne­nhuma ou sofria dores que ultrapassavam toda a compreensão humana. Ransom ergueu-se por fim, mas antes de fazê-lo arran­cou o revólver do cinto de Weston e então, tendo descido até à praia, atirou-o ao mar, tão longe quanto pôde.

Ficou por alguns momentos de pé, contemplando a baía, inde­ciso sobre o que fazer. Dali a pouco virou-se e trepou a lomba com relva que limitava o pequeno vale do lado esquerdo. Encontrou-se num terreno elevado sensivelmente horizontal com uma boa vista para o mar, agora violentamente agitado e alterado do seu dourado regular para um desenho constantemente modificado de luz e de sombras. Por um segundo ou dois não pôde obter vista das ilhas. Depois, subitamente, apareceram os topos das árvores, pendendo lá em cima, com o céu a servir de fundo e largamente separadas. O tempo, aparentemente, estava a fazê-las afastarem-se – e quando ele estava a pensar isto, justamente, desapa­receram uma vez mais dentro de um vale invisível. Qual era a sua possibilidade, desejaria saber, de alguma vez as encontrar outra vez? Uma sensação de solidão atingiu-o, e depois um sentimen­to de furiosa frustração. Se Weston estava a morrer, ou mesmo que Weston viesse a viver, preso com ele ali numa ilha que não podiam deixar, qual fora o perigo que o tinham mandado desviar de Perelandra? E assim, tendo começado a pensar em si mesmo, verificou que estava com fome. Não tinha visto nem fruta nem ca­baças na Terra Firme. Talvez fosse uma armadilha mortal. Sor­riu amargamente, pela tolice que o tornara tão satisfeito, essa manhã, por trocar aqueles paraísos flutuantes, onde cada peque­no bosque derramava doçura, por aquela rocha estéril. Mas tal­vez afinal não fosse estéril. Determinado, a despeito do cansaço que a cada momento descia sobre ele, a fazer uma busca de ali­mentos, estava mesmo a virar-se para o interior quando as rápi­das mudanças de cor que anunciam o anoitecer daquele mundo o alcançaram. Inutilmente, apressou o passo. Antes de ter desci­do ao vale, o pequeno bosque onde deixara Weston era uma sim­ples nuvem de escuridão. Antes de o ter atingido estava dentro da noite sem fendas e sem dimensões. Um esforço ou dois, para às apalpadelas descobrir o caminho para o local onde os aprestos de Weston tinham sido depositados, serviu apenas para eliminar por completo o seu sentido de orientação, Foi forçado a sentar-se. Chamou em voz alta por Weston uma ou duas vezes, mas como esperava, não recebeu resposta alguma.

«Mesmo assim, estou contente por lhe ter tirado a arma», pen­sou Ransom; e depois: «Bem, qui dort dine[2], e suponho que tenho de aguentar de cara alegre até de manhã.»

Quando se estendeu, descobriu que a terra sólida e o musgo da Terra Firme eram muito menos confortáveis que as superfí­cies a que se acostumara ultimamente. Isso e a idéia de outro ser humano estar estendido, sem dúvida, por ali perto com os olhos abertos e os dentes cerrados sobre vidro estilhaçado, e o bater repetido e sombrio das ondas na praia, tudo fez a noite inconfortável.

— Se eu vivesse em Perelandra — murmurou —, Maleldil não precisava de me proibir esta ilha. Queria nunca ter posto os olhos nela.

 

Acordou, depois de um sono perturbado e cheio de sonhos, já dia alto. Tinha a boca seca, uma cãibra no pescoço e os membros doridos. Era tão pouco parecido com todas as outras alvoradas no mundo de Vênus que por um momento se imaginou regressado à Terra: e o sonho (pois assim se lhe apresentava) de ter vivido e ca­minhado sobre os oceanos da Estrela da Alva atravessou-lhe a memória com uma sensação de doçura perdida que era verdadei­ramente insuportável. Depois sentou-se e os fatos apresenta­ram-se outra vez como eram.

«E quase realmente o mesmo que ter acordado de um sonho», pensou. Fome e sede tornaram-se de imediato as suas sensações dominantes, mas tomou como um dever examinar primeiro o ho­mem doente — embora com muito pouca esperança de o poder ajudar. Olhou cuidadosamente em roda. Lá estava o bosque de árvores prateadas, mas não era capaz de ver Weston. Depois passou os olhos pela baía: também não estava lá nenhuma chata. Admitindo que na escuridão tivesse ido ter por engano ao vale errado, levantou-se e aproximou-se do regato para beber. Ao er­guer o rosto da água, com um longo suspiro de satisfação, os seus olhos tombaram subitamente sobre uma pequena caixa de ma­deira — e depois, para lá dela, num par de latas. O cérebro dele estava a trabalhar assaz devagar e levou-lhe alguns segundos a constatar que afinal estava no vale certo, e alguns mais a tirar conclusões do fato que a caixa estava aberta e vazia e que alguns aprestos tinham sido retirados e outros deixados ficar. Mas seria possível que um homem nas condições físicas de Weston pudes­se ter recuperado suficientemente durante a noite para levantar o acampamento e ir-se embora de carga às costas? Seria possível que homem algum pudesse enfrentar um mar daqueles numa chata desmontável? Era verdade, como notava agora pela pri­meira vez, que a Tempestade (que tinha sido um simples agua­ceiro pelos padrões de Perelandra) parecia ter-se esgotado du­rante a noite, mas havia ainda uma tremenda ondulação e pare­cia fora de questão que o professor pudesse ter deixado a ilha. Muito mais provavelmente tinha deixado o vale a pé e levado a chata consigo. Ransom decidiu que tinha de encontrar Weston imediatamente: tinha de manter o contacto com o seu inimigo. Pois que, se Weston tinha recuperado, não havia dúvida de que planeava algum malefício. Ransom não tinha completa certeza de ter compreendido toda a sua conversa louca do dia anterior mas aquilo que compreendera desagradara-lhe mesmo muito, e suspeitava que aquele misticismo vago a respeito de «espiritua­lidade» se revelaria ser algo ainda pior que o seu velho, e compa­rativamente mais simples, programa de imperialismo planetá­rio. Seria injusto levar a sério as coisas que o homem dissera ime­diatamente antes de ter o ataque, sem dúvida; mas mesmo sem essas havia que bastasse.

 

Ransom passou umas tantas das horas seguintes pesquisan­do a ilha, em busca de comida e de Weston. No que respeitava a comida, foi recompensado. Uns frutos semelhantes aos de aran­do podiam ser apanhados às mãos cheias nas encostas mais altas, e nos bosques dos vales abundava uma espécie de nozes ovais. A semente tinha uma consistência macia e resistente, um tanto como a cortiça ou rins, e o gosto, embora austero e prosaico depois da fruta das ilhas flutuantes, não era desagradável. Os ratos gi­gantes eram tão mansos como os outros animais perelândricos mas pareciam mais estúpidos. Ransom subiu até ao planalto cen­tral. O mar estava salpicado com ilhas em todas as direções, su­bindo e descendo com a ondulação, e todas separadas umas das outras por vastas extensões de água. Os seus olhos destacaram logo uma ilha cor de laranja, mas não sabia se era aquela onde ti­nha vivido, pois viu pelo menos outras duas em que predomina­va a mesma cor. De uma vez contou vinte e três ilhas flutuantes ao todo. Isso, pensou, era mais do que o arquipélago temporário contivera, e permitia-lhe ter esperança de que qualquer daquelas que via pudesse abrigar o rei — ou que o rei pudesse até nesse momento estar já reunido com a Dama. Sem o pensar com mui­ta clareza, tinha vindo a depositar no rei quase todas as suas es­peranças.

Não conseguiu encontrar qualquer traço de Weston. Parecia realmente, a despeito de toda a improbabilidade, que ele tinha de alguma maneira imaginado forma de abandonar a Ilha Fixa; e a ansiedade de Ransom era muito grande. Daquilo que Weston, na sua nova veia, podia fazer, não tinha qualquer idéia. O melhor que se podia esperar era que ele viesse pura e simplesmente a ignorar o senhor e a senhora de Perelandra, como meros selva­gens ou «nativos».

Lá mais pelo dia adiante, estando cansado, sentou-se na cos­ta. Havia agora uma ondulação muito pequena e as ondas, antes de rebentar, mal chegavam ao joelho. Os pés dele, tornados ma­cios pela superfície acolchoada sobre a qual se anda naquelas ilhas flutuantes, estavam quentes e doridos. Decidiu na altura refrescá-los andando um pouco na água. A qualidade deliciosa desta atraiu-o até ficar mergulhado até à cintura. Enquanto ali estava, absorto em pensamentos, percebeu de repente que aquilo que tinha tomado por um efeito da luz na água era na realidade o dorso de um dos grandes peixes prateados.

«Gostava de saber se ele me deixava montá-lo», pensou, e en­tão, observando como o animal se chegava a ele e se conservava em águas tão baixas quanto era capaz, veio-lhe à idéia que esta­va a tentar atrair a sua atenção. Poderia ter sido enviado? Mal o pensamento lhe tinha atravessado a mente e já ele decidira fazer a experiência. Pôs a mão nas costas da criatura e ela não estre­meceu ao seu toque. Então, com alguma dificuldade, trepou para a parte estreita por detrás da cabeça e sentou-se lã, escarranchado, e enquanto o fazia o bicho mantinha-se tão quieto quanto podia; mas assim que se encontrou firmemente na sela, ele rodou sobre si mesmo e largou para o mar.

Se quisesse retirar-se muito em breve seria impossível fazê-lo. Já os pináculos verdes da montanha, quando olhava para trás, tinham removido os cumes de dentro do céu e a linha de cos­ta da ilha começara a ocultar as suas baías e cabos. A rebentação já não era audível — apenas os ruídos prolongados sibilantes ou rangentes da água em redor dele. Eram visíveis muitas ilhas flu­tuardes, embora vistas daquele nível fossem simples silhuetas emplumadas. Mas o peixe não parecia ir apontado a nenhuma delas. Sempre em frente, como se soubesse o seu caminho, o ba­ter das grandes barbatanas transportou-o por mais de um a hora. Depois o verde e a púrpura encharcaram o mundo todo, e a seguir a escuridão.

De qualquer maneira mal sentia qualquer estranheza ao achar-se a subir e a descer rapidamente as baixas colinas de água através da negra noite. E aqui não era toda negra. Os céus tinham desaparecido, e a superfície do mar, mas por baixo dele, muito longe do coração do vazio através do qual ele parecia ir a viajar, apareciam estranhos projéteis que explodiam em estre­las ou listas retorcidas de uma luminosidade verde-azulada. Ao princípio eram muito distantes, mas em breve, tanto quanto po­dia julgar, estavam mais perto. Um mundo inteiro de criaturas fosforescentes parecia estar a brincar não longe da superfície — enguias que se enrolavam e coisas que dardejavam, completa­mente couraçadas, e depois formas heraldicamente fantásticas perante as quais o hipocampo das nossas próprias águas seria absolutamente comum. Estavam todos em volta dele — vinte ou trinta, muitas vezes à vista ao mesmo tempo. E misturadas com todo este tumulto de centauros do mar e dragões do mar, via ain­da formas mais estranhas: peixes, se é que eram peixes, cuja par­te da frente era tão aproximadamente humana na forma que quando os avistou pela primeira vez pensou que tinha começado a sonhar e sacudiu-se para acordar. Mas não era sonho. Ali — e ali outra vez — era inconfundível: agora um ombro, agora um perfil, e depois, por um segundo, um rosto em cheio: verdadeiros tritões ou sereias. A semelhança com a espécie humana era na verdade maior, e não menor, do que supusera ao princípio. O que por um momento a tinha ocultado dele era a ausência total de ex­pressão humana. Os rostos todavia não eram idiotas; não eram sequer caricaturas brutais da qualidade humana como a dos nos­sos macacos terrestres. Era mais ou menos como caras humanas a dormir, ou caras nas quais a humanidade dormia enquanto ou­tra vida qualquer, nem bestial nem diabólica, mas meramente fantasmagórica, fora da nossa órbita, estava acordada de forma irrelevante. Recordou-se da sua velha suspeita de que o que era mito num dos mundos podia sempre ser realidade noutro qual­quer. Perguntava-se também se o rei e a rainha de Perelandra, embora sem dúvida o primeiro par humano daquele planeta, po­deriam no lado físico ter antepassados marinhos. E se assim era, que haveria quanto a ser parecidos com o homem antes de es­te ter aparecido no nosso próprio mundo? Tinham na verdade de ter sido os seres brutais e ávidos cujas imagens vemos em livros populares sobre evolução? Ou eram os velhos mitos mais verda­deiros que os mitos modernos? Mas disse — Calado — ao seu es­pírito nesta altura, pelo mero prazer de aspirar a fragrância que agora começava a correr para ele da escuridão em frente. Tépida e doce, e a cada instante mais doce e mais pura, e a cada instan­te mais forte e mais cheia de todos os encantos, chegava até ele. Sabia bem o que era. Reconheceria daí por diante em todo o universo – o hálito noturno de uma ilha flutuante na estrela Vênus. Era estranho estar cheio de saudade de lugares onde a sua permanência fora tão breve e que eram, por qualquer padrão objetivo, tão alheias em relação a toda a nossa raça. Ou seriam mesmo? O cordão de ardente desejo que o puxava para a ilha in­visível parecia-lhe naquele momento ter sido amarrado antes, muito antes devir para Perelandra, muito antes dos tempos mais remotos que a memória podia recordar na sua meninice, antes do seu nascimento, antes do nascimento do próprio homem, antes das origens do tempo. Era agudo, doce, louco e santo, tudo a o mesmo tempo, e em qualquer mundo onde os nervos dos homens ti­vessem deixado de obedecer aos seus desejos centrais teria sido sem dúvida também afrodisíaco, mas não em Perelandra. O pei­xe já não se mexia. Ransom estendeu a mão. Verificou que esta­va a tocar em ervas. Arrastou-se para a frente sobre a cabeça do peixe monstruoso e puxou-se para cima da superfície suavemen­te móvel da ilha. Por curta que a sua ausência tivesse sido de tais lugares, os seus hábitos de treino terrestre quanto a andar tinham-se reafirmado e caiu mais do que uma vez à medida que procurava o caminho às apalpadelas na terra palpitante. Mas cair ali não fazia mal nenhum, graças a Deus! Havia árvores por toda a parte à sua volta no escuro e quando um objeto liso, fres­co e redondo lhe ficou na mão, levou-o, sem receio, aos lábios. Não era nenhum dos frutos que tinha saboreado antes. Era melhor que qualquer deles. Razão tinha a Dama em dizer do seu mundo que o fruto que se comia num dado momento era, nesse momen­to, o melhor. Cansado pelo dia a andar e a trepar, e, ainda mais, exausto por uma total satisfação, afundou-se num sono sem so­nhos.

Sentiu que eram várias horas passadas quando acordou e se encontrou ainda na escuridão. Soube também que tinha sido acordado de repente: e um momento mais tarde escutava o som que o acordara. Era o som de vozes — a voz de um homem e a de uma mulher em conversa animada. Calculou que estivessem muito próximos dele — pois na noite perelândrica um objeto não é mais visível a seis polegadas do que se estiver a seis milhas. Per­cebeu logo quem eram os interlocutores, mas as vozes tinham um som estranho e as emoções de quem falava eram para ele obscu­ras, sem expressão alguma do rosto que as exteriorizasse.

— Gostava de saber — dizia a voz da mulher — se todas as pessoas do seu mundo têm o hábito de falar sobre a mesma coi­sa mais do que uma vez. Já disse que estamos proibidos de nos instalarmos na Terra Firme. Por que é que não fala de outra coi­sa qualquer ou então para de falar?

— Porque essa proibição é de tal forma estranha — disse a voz de homem — e tão pouco parecida com os usos de Maleldil no meu mundo. E ele não te proibiu de pensar em te instalares na Terra Firme.

— Isso seria uma coisa esquisita... pensar naquilo que nunca irá acontecer.

— Não, no nosso mundo fazemos isso constantemente. Jun­tamos palavras para significar coisas que nunca aconteceram e lugares que nunca existiram, belas palavras, bem arrumadas umas junto das outras. E depois contamo-las uns aos outros. Chamamos-lhe histórias ou poesia. Naquele velho mundo de que falou, Malacandra, fizeram o mesmo. E para regozijo, admira­ção e sabedoria.

— Qual é a sabedoria que existe nisso?

— É porque o mundo é feito não só por aquilo que é mas tam­bém por aquilo que podia ser. Maleldil conhece ambos e quer que nós os conheçamos a ambos.

— Isso é m ais do que algum a vez imaginei. O outro, o Malha­do, já me tinha dito coisas que me fazem sentir como uma árvo­re cujos ramos crescem afastando-se cada vez mais. Mas isso ul­trapassa tudo. Sair do que é e entrar naquilo que podia ser e fa­lar e fazer aí coisas... ao lado do mundo. Hei de perguntar ao rei o que é que ele pensa disto.

— Está vendo, voltamos sempre ao mesmo. Se ao menos não te tivesses separado do rei.

— Oh, compreendo. Essa é também uma das coisas que po­diam ter sido. O mundo podia ter sido feito de forma que o rei e eu nunca nos separássemos.

— O mundo não teria de ser diferente, apenas a maneira como vivem. Num mundo em que as pessoas vivem na Terra Firme elas não ficam subitamente separadas.

— Mas lembra-te de que nós não devemos viver na Terra Firme.

— Não, mas Ele nunca os proibiu de pensar sobre isso. Não se­rá essa uma das razões por que estão proibidos de o fazer... para que tenham um Podia Ser sobre que pensar, para fazer História sobre isso, como nós dizemos?

— Vou pensar mais nisto. Hei de fazer com que o rei me tor­ne mais velha a respeito deste assunto.

— Como eu desejo encontrar esse seu rei! Mas no capítulo de Histórias é capaz de não ser mais velho que você própria.

— Esse seu dito é como uma árvore sem frutos nenhuns. O rei é sempre mais velho que eu, a respeito de todas as coisas.

— Mas o Malhado e eu já te fizemos mais velha a respeito de certas matérias que o rei nunca te referiu. Esse é o novo bem que nunca esperou. Pensou que haveria de aprender tudo com o rei; mas agora Maleldil enviou-te outros homens nos quais nunca te passou pela cabeça pensar e eles têm-te ensinado coi­sas que o próprio rei não podia saber.

— Começo agora a perceber por que é que o rei e eu fomos separados nesta altura. Este é um grande e estranho bem que ele me destinou.

— E se você recusares aprender coisas comigo e continuares a dizer que vais esperar e perguntar ao rei, não será isso o mesmo que recusar o fruto que encontrou em favor do fruto que espe­rava?

— Essas são perguntas profundas, Estrangeiro. Maleldil não está a pôr muito a respeito delas no meu espírito.

— Não está vendo porquê?

— Não.

— Desde que o Malhado e eu viemos para o seu mundo, me­temos na sua mente muitas coisas que Maleldil não tinha lã me­tido. Não vês que ele está a largar um pouco a sua mão?

— Como poderia Ele? Ele está onde quer que nós vamos.

— Sim, mas de uma outra forma. Ele está a tornar-te mais ve­lha, fazendo-te aprender coisas não diretamente Dele mas atra­vés dos seus próprios encontros com outras pessoas e das suas próprias questões e pensamentos.

— Ele está com certeza a fazer isso.

— Sim. Ele está a fazer de ti uma mulher autêntica, pois até aqui tinhas sido apenas meia feita... como os bichos que nada fa­zem por eles mesmos. Desta vez, quando voltares a encontrar o rei, serás você quem tem coisas a dizer-lhe. É você quem será mais velha que ele e quem o tornará mais velho.

 

— Maleldil não fará acontecer uma coisa dessas. Seria como um fruto sem sabor.

— Mas teria sabor para ele. Não achas que o rei se sentirá por vezes cansado de ser o mais velho? Não te amaria mais se fosses mais sábia que ele?

— Isso é aquilo a que chamas Poesia ou quer dizer o que na realidade é?

— Eu quero dizer uma coisa que realmente é.

— Mas como podia alguém amar mais o que quer que fosse? É como dizer que uma coisa podia ser maior que ela própria.

— Eu apenas queria dizer que podias tornar-te mais pareci­da com as mulheres do meu mundo.

— Como são elas?

— Têm um espírito muito forte. Estendem sempre as mãos para o bem novo e inesperado, e vêem que ele é bom muito antes de os homens o entenderem. As suas mentes correm à frente da­quilo que Maleldil lhes disse. Não precisam de esperar que Ele lhes diga o que é bom, mas conhecem-no por si mesmas, como Ele faz. São como se fossem pequenos Maleldil. E por causa da sua sa­bedoria, a beleza delas é maior que a tua, tanto como a doçura destas cabaças ultrapassa o gosto de água. E por causa da sua beleza, o amor que os homens têm por elas é muito maior que o amor que orei tem por ti, tanto como a fogueira ardente do Céu Distan­te vista do meu mundo é mais maravilhosa que a vossa abóbada dourada.

— Gostava de as poder ver.

— Gostava que pudesses.

— Quão belo é Maleldil e quão maravilhosas são todas as Suas obras! Talvez Ele faça sair de mim filhas tão maiores que eu como sou maior que os animais. Será melhor do que eu pensava. Pen­sava que teria de ser sempre rainha e Dama. Mas vejo agora que posso ser como os eldila. Posso ser designada para as criar com cuidado enquanto forem crianças pequenas e fracas que cresce­rão e me ultrapassarão e a cujos pés me prostrarei. Vejo que não são só as perguntas e pensamentos que crescem de forma cada vez mais larga, com os ramos de uma árvore. A alegria também se expande e chega onde nós nunca pensamos.

— Agora vou dormir — disse a outra voz. Quando disse isto tornou-se, pela primeira vez, inequivocamente na voz de Weston... e de Weston enfadado e rabugento. Até agora Ransom, em­bora constantemente decidido a entrar na conversa, tinha-se mantido calado numa espécie de incerteza entre dois estados de espírito antagônicos. Por um lado, estava certo, tanto pela voz co­mo por muitas das coisas que esta dissera, que o orador mascu­lino era Weston. Por outro lado, a voz, separada da aparência do homem, soava curiosamente diferente dela mesma. Ainda mais, a maneira paciente è persistente como era usada era muito pou­co parecida com a usual alternância do professor entre a prele­ção pomposa e a intimidação abrupta. E como podia um homem, acabado de sair de uma crise física como aquela pela qual ele vi­ra Weston passar, ter recuperado um tal domínio de si mesmo em algumas horas? E como podia ele ter chegado à ilha flutuante? Ao longo do diálogo entre os dois, Ransom vira-se perante uma con­tradição intolerável. Alguma coisa que era mas não era Weston estava a falar: a sensação desta monstruosidade, afastada ape­nas alguns pés, na escuridão, tinha-lhe feito passar arrepios de esquisito horror ao longo da espinha, e levantado questões no seu espírito que procurava afastar como fantásticas. Agora que a con­versa acabara, constatou também a intensa ansiedade com que a estivera a seguir. Ao mesmo tempo tinha a consciência de uma sensação de triunfo. Mas não era ele quem ficara triunfante. A es­curidão toda em redor dele ressoava vitória. Em sobressalto pôs-se meio de pé. Tinha havido algum som na realidade? Escutan­do com atenção não era capaz de ouvir nada mais a não ser o som baixo e murmurante do vento morno e da ondulação suave. A su­gestão de música tinha de ter vindo de dentro dele. Mas assim que se deitou outra vez teve a certeza de que não era. Vindos de fora, com toda a certeza de fora, mas não através dos sentidos do ouvido, uma orgia festiva e dança e esplendor derramaram-se den­tro dele — sem som, e todavia numa forma tal que não podia ser recordada exceto como música. Era como ter um novo sentido. Era como estar presente quando as estrelas da manhã cantam em conjunto. Era como se Perelandra tivesse sido criada nesse momento-e talvez, em certo sentido, assim fosse. A sensação de ter sido evitado um grande desastre entrou à força no seu espíri­to e com ela veio a esperança de não haver uma segunda tenta­tiva; e depois, mais agradável que tudo o mais, a sugestão de que fora trazido ali, não para fazer coisa alguma mas como especta­dor ou testemunha. Alguns minutos mais tarde estava a dormir.

 

O tempo mudara durante a noite. Ransom sentou-se a obser­var, da orla da floresta onde tinha dormido, o mar chão onde não havia outras ilhas à volta. Acordara alguns minutos antes e en­contrava-se estendido sozinho num tufo fechado de hastes, que no aspecto eram bastante semelhantes a juncos, mas rijas como as do vidoeiro, e que ostentava um teto quase plano de folhagem espessa. Deste pendiam frutos lisos e brilhantes e redondos como bagas de azevinho, algumas das quais comeu. Depois achou o seu caminho até terreno aberto junto às bordas da ilha e olhou em re­dor. Nem Weston nem a Dama estavam à vista e começou a ca­minhar de forma vagarosa à beira do mar.

Os seus pés nus afundavam-se um pouco num tapete de ve­getação cor de açafrão, que os cobriu com uma poeira aromática. Quando olhava para baixo, para isto, notou subitamente algo mais. Primeiro pensou que era uma criatura com uma forma mais fantástica que tudo que tinha até aí visto em Perelandra. A sua forma era não apenas fantástica, mas medonha. Pôs um joe­lho em terra para a examinar. Por fim tocou-lhe, com relutância. Um momento depois retirou as mãos como quem tocou numa cobra.

Era um animal mutilado. Era, ou tinha sido, uma das rãs de cores brilhantes. Mas tinha-lhe acontecido um acidente qual­quer. As costas todas tinham sido rasgadas numa espécie de in­cisão em forma de V, em que o vértice do V estava um pouco atrás da cabeça. Alguma coisa tinha aberto uma chaga que alargava para trás — como fazemos ao abrir um sobrescrito — ao longo do tronco, e puxado com tanta força por detrás do animal que as pa­tas traseiras quase tinham sido também arrancadas. Estavam tão arruinadas que a rã não podia saltar. Na terra teria sido meramente uma visão desagradável.mas até àquele momento Ran­som nunca tinha visto nada morto ou destroçado em Perelandra, e foi como uma pancada na cara. Era como o primeiro espasmo de uma dor bem conhecida avisando um homem, que pensara estar curado, de que a família o enganara e que afinal estava mesmo a morrer. Era como a primeira mentira da boca de um amigo em cuja verdade se está pronto a apostar mil libras. Era irrevogável. O vento morno como o leite que soprava sobre o mar dourado, os azuis, os prateados e os verdes do jardim flutuante, o próprio céu — todos estes se tinham tornado, num instante, meramente na margem iluminada de um livro cujo texto era o pequeno horror que se debatia a seus pés, e ele mesmo, no mesmo instante, tinha entrado num estado de emoção, o qual não podia controlar nem entender. Disse a si mesmo que uma criatura daquela espécie ti­nha provavelmente muito pouca sensibilidade. Mas tal nem por isso melhorava muito as coisas. Não era simplesmente a pieda­de pela dor que tinha subitamente alterado o ritmo das suas pul­sações. A coisa era de uma obscenidade intolerável que o afligia de vergonha. Teria sido melhor, ou assim pensou nesse momen­to, que todo o universo nunca tivesse existido do que ter aconte­cido aquela única coisa. Depois resolveu, a despeito da sua cren­ça teórica que o bicho era um organismo demasiado inferior para sentir dor, que era melhor m atá-lo. Não tinha botas, nem pedra, nem pau. A rã demonstrou ser notavelmente difícil de matar. Quando era já demasiado tarde para desistir viu claramente que tinha sido um tolo em fazer a tentativa. Qualquer que pudesse ter sido o sofrimento do animal, ele com certeza aumentara-o e não o diminuíra. Mas tinha de ir até ao fim. A tarefa pareceu levar quase uma hora. E quando por fim o estropiado resultado esta­va totalmente imóvel e desceu à borda de água para se lavar, es­tava doente e abalado. Parece estranho dizer isto de um homem que tinha estado no Somme; mas os arquitetos dizem-nos que nada é grande ou pequeno, salvo pela posição.

Por fim pôs-se de pé e retomou a marcha. No momento seguinte teve um sobressalto e olhou outra vez para o chão. Apressou o passo e depois parou uma vez mais e olhou. Ficou imó­vel como uma estátua e cobriu o rosto com as mãos. Pediu em voz alta aos céus que desfizessem o pesadelo ou que o deixassem en­tender o que estava a acontecer. Um rasto de rãs mutiladas estendia-se pela borda da ilha. Pisando com cuidado, seguiu-o. Contou dez, quinze, vinte: e o vigésimo primeiro levou-o a um lo­cal onde o bosque chegava à borda da água. Entrou no bosque e saiu do outro lado. Aí estacou e arregalou os olhos. Weston, ain­da vestido mas sem o seu capacete de mineiro, estava de pé cer­ca de trinta pés afastado: e, enquanto Ransom observava, esta­va a rasgar uma rã-silenciosamente e quase cirurgicamente introduzia o indicador, com a sua unha comprida e bicuda, sob a pele por detrás da cabeça do bicho e rasgava-a completamente. Ransom não tinha antes reparado que Weston tinha um as unhas tão notáveis. Depois ele terminou a operação, atirou fora a ruína sangrenta e levantou a vista. Os olhos de ambos encontraram-se. Se Ransom nada disse, foi porque não podia falar. Via um ho­mem que certamente não estava doente, a julgar pelo seu porte seguro e pelo uso poderoso que acabara de fazer dos dedos. Via um homem que era certamente Weston, a julgar pela altura e cons­tituição e pela cor e pelas feições. Nesse sentido era perfeitamen­te reconhecível. Mas o terror vinha de ele ser também irreconhe­cível. Não parecia um homem doente: mas parecia imenso um homem morto. O rosto que ergueu depois de torturar a rã tinha aquele terrível poder, que o rosto de um cadáver por vezes tem, de simplesmente repelir toda a atitude humana concebível que se possa adotar para com ele. A boca sem expressão, a fixidez sem tremor dos olhos, qualquer coisa de pesado e de inorgânico nas próprias dobras das faces diziam claramente: «tenho feições como você tem, mas não há nada em comum entre você e eu». Era is­to que mantinha Ransom sem fala. Que se podia dizer que ape­lo ou ameaça podia ter algum sentido perante aquilo ? E nessa al­tura, abrindo caminho à força para dentro da sua consciência, ar­redando para o lado qualquer hábito mental e qualquer desejo de não acreditar, veio a convicção de que aquilo, na realidade, não era um homem: que o corpo de Weston era mantido a andar e sem se decompor, em Perelandra, por uma espécie de vida completa­mente diferente, e que o próprio Weston já não estava ali.

Olhou para Ransom em silêncio, e por fim começou a sorrir. Todos nós falamos muitas vezes — o próprio Ransom tinha fala­do muitas vezes — de um sorriso diabólico. Compreendia agora que nunca levara as palavras a sério. O sorriso não era amargo, nem de fúria, nem, no sentido corrente, sinistro; nem sequer era trocista. Parecia convidar Ransom, com uma ingenuidade horrí­vel de acolhimento, para o mundo dos seus prazeres pessoais, como se todos os homens se sentissem bem nesses prazeres, como se estes fossem a coisa mais natural do mundo e nenhum a discor­dância pudesse haver acerca deles. Não era furtivo, não era en­vergonhado, nada havia nele de conspiratório. Não desafiava a bondade, ignorava-a até ao ponto de aniquilação. Ransom perce­beu que até aí nunca vira nada senão tentativas indiferentes e não empenhadas em praticar o mal. Aquela criatura punha no mal todo o coração. Os extremos onde chegava este mal passavam além de todos os combates e alcançavam um estado que mostra­va uma horrível similitude com a inocência. Estava para além do vício, como a Dama estava para além da virtude.

A imobilidade e o sorriso duraram talvez dois minutos completos: não menos, certamente. Então Ransom fez menção de dar um passo em direção à coisa, sem uma clara noção do que faria quando chegasse ao pé dela. Tropeçou e caiu. Teve uma dificul­dade curiosa em pôr-se outra vez de pé, e quando se pôs desequilibrou-se e caiu pela segunda vez. Houve então um momento de escuridão cheio de barulho de muitos comboios expressos rugin­do. Depois disso o céu dourado e as ondas coloridas regressaram e viu que estava sozinho e a recuperar de um desmaio. Enquan­to ali estava deitado, ainda incapaz e talvez sem desejo de se le­vantar, veio-lhe à idéia que, em certos velhos filósofos e poetas que tinha lido, a simples vista dos demônios era um dos maiores entre os tormentos do Inferno. Parecera-lhe até ali meramente um a fantasia curiosa. E contudo (como estava a ver) até as crian­ças sabem melhor: criança alguma teria qualquer dificuldade em compreender que podia haver um rosto cuja simples contempla­ção era uma calamidade final. As crianças, os poetas e os filóso­fos tinham razão. Assim como existe uma Face, acima dos mun­dos todos, tal que meramente vê-la é a alegria inapagável, tam­bém, no fundo de todos os mundos, está uma face à espera, cuja simples vista é a desgraça, da qual ninguém que a tenha contem­plado pode recuperar. E conquanto parecesse haver, e na verda­de houvesse, um milhar de estradas pelas quais um homem po­de caminhar através do mundo, não havia uma única que mais cedo ou mais tarde não levasse quer à Visão Beatífica quer à Ma­léfica. Ele mesmo tinha, é claro, visto apenas uma máscara ou um tênue esboço da coisa; mesmo assim, não tinha completa cer­teza de continuar vivo.

 

Quando foi capaz, levantou-se e pôs-se a caminho em busca da coisa. Precisava de tentar evitar que ela se encontrasse com a Dama ou, pelo menos, de estar presente quando se encontrassem. O que podia fazer, não sabia; mas era claro, para lá de todas as dúvidas, que era para aquilo que ele ali fora enviado. O corpo de Weston, viajando numa nave espacial, tinha sido a ponte pela qual outra coisa qualquer invadira Perelandra — se era aquele mal supremo e original a quem em Marte chamam o Maléfico, ou um dos seus seguidores mais baixos, não fazia diferença alguma. Ransom era todo pele de galinha e os joelhos estavam constante­mente a ficar um na frente do outro. Surpreendia-o que pudesse experimentar um terror tão extremo e contudo estar a caminhar e a pensar — como os homens na guerra ou na doença se sur­preendem ao descobrir quanto se é capaz de suportar: «vai pôr-nos loucos... vai matar-nos logo», dizemos; e então a coisa acon­tece e damos conosco nem doidos nem mortos; ainda capazes de aguentar.

O tempo mudou. A planície sobre a qual ia caminhando in­chou com uma onda de terra. O céu tornou-se mais pálido: em breve era mais amarelo-esverdeado do que ouro. O m ar ficou mais escuro, quase da cor do bronze. Cedo a ilha estava a trepar coli­nas consideráveis de água. Uma ou duas vezes teve de se sentar e descansar. Depois de várias horas (pois o seu progresso era mui­to lento) viu subitamente duas figuras humanas no que era de momento a linha base do céu. No momento seguinte estavam fo­ra de vista pois que o terreno levantou-se entre ele e os dois. Levou cerca de meia hora a alcançá-los. O corpo de Weston esta­va de pé — oscilando e equilibrando-se para acompanhar cada alteração do solo, de uma forma da qual o autêntico Weston teria sido incapaz. Estava a falar com a Dama. E o que mais surpreen­deu Ransom foi que ela continuava a escutar, sem se virar para o acolher ou mesmo para emitir um comentário sobre a sua che­gada, quando ele veio sentar-se ao lado dela na vegetação macia.

— E uma grande expansão — estava ele a dizer. — Este fazer de histórias ou de poesia acerca de coisas que podiam ser mas não são. Se retrocedes perante isso, não está a fugir do fruto que te é oferecido?

— Não é do fazer de uma história que eu retrocedo, oh Estran­geiro — respondeu ela —, mas sim desta história que vieste pôr na minha cabeça. Posso fazer histórias, eu mesma, sobre os meus filhos ou sobre o rei. Posso fazer com que os peixes voem e os bi­chos da terra nadem. Mas se tentar fazer a história a respeito de viver na Terra Firme, não sei como fazer no que respeita a Maleldil. Porque, se eu faço de conta que ele alterou a sua ordem, is­so não posso. E se faço de conta que estamos lá vivendo contra a sua ordem, isso é como fazer o céu todo negro e fazer que a água seja tal que se não possa beber e o ar tal que se não possa respi­rar. Mas além disso, não vejo qual seja o prazer de tentar fazer essas coisas.

— Para te fazer mais sábia, mais velha — disse o corpo de Weston.

— Tem a certeza de que elas farão isso? — perguntou ela.

— Sim, a certeza — replicou ele. — Foi assim que as mulhe­res do meu mundo se tornaram tão grandes e tão belas.

— Não o ouças — interrompeu Ransom —, manda-o embora. Não ouça o que ele diz, não pense nisso.

Ela virou-se para Ransom pela primeira vez. Tinha havido uma certa alteração, muito ligeira, na cara dela desde que a vi­ra pela última vez. Não estava triste, nem profundamente per­plexa, mas a sugestão de alguma coisa precária tinha aumenta­do. Por outro lado, ela ficara claramente satisfeita por o ver, em­bora surpreendida pela sua interrupção; e as primeiras palavras dela revelaram que o fato de não o saudar quando chegara tinha resultado de ela nunca ter concebido a possibilidade de uma conversa entre mais de dois interlocutores. E de uma ponta à outra do resto da conversa, a sua ignorância da técnica da conversa generalizada dava a toda a cena uma qualidade curiosa e inquie­tante. Não possuía qualquer noção de como passar o olhar rapi­damente de um para o outro ou desenredar duas observações ao mesmo tempo. Por vezes escutava inteiramente Ransom, por ve­zes inteiramente o outro, mas nunca ambos.

— Por que é que principias a falar antes de este homem ter acabado, Malhado? — inquiriu ela. — Como é que fazem no seu mundo, onde são muitos e mais de dois hão de estar juntos mui­tas vezes? Não falam à vez; ou têm uma arte para compreender, mesmo quando falam todos juntos? Não sou velha o suficiente para isso.

— Não quero que o ouças de todo — disse Ransom. — Ele é — e então hesitou. «Mau», «mentiroso» «inimigo», nenhuma destas palavras teria, por enquanto, qualquer significado para ela. Tor­cendo o cérebro, pensou na conversa prévia deles acerca do gran­de eldil que se tinha agarrado ao bem antigo e recusado o novo. Sim, esse seria para ela o único acesso à idéia de maldade. Esta­va prestes a falar mas era tarde de mais. A voz de Weston ante­cipou-se.

— Este Malhado — dizia — — não quer que me ouças porque quer manter-te jovem. Não quer que te aproximes dos novos fru­tos que nunca saboreou antes.

— Mas como podia ele querer manter-me mais jovem?

— Não viu já — disse o corpo de Weston — que o Malhado é dos tais que retrocedem sempre, frente à onda que se aproxima de nós, e gostaria, se pudesse, de trazer de volta a onda que pas­sou? Na própria primeira hora da conversa dele contigo, não dei­xou ele transparecer isto? Ele não sabia que, desde que Maleldil se fez homem, tudo é novo e que agora todas as criaturas com o dom da razão serão homens. Tinha de se lhe ensinar isto. E quan­do o aprendeu não o aceitou como bom. Tinha pena de que não houvesse mais daquela gente com pêlos. Se pudesse traria de vol­ta o velho mundo.E quando lhe pedisses para te ensinar o que era a Morte, não o faria.Queria que continuasses jovem, e não apren­desses o que era a Morte. Não foi ele o primeiro que pela primei­ra vez pôs na sua mente exatamente a idéia de que era possível não desejar a onda que Maleldil faz rolar na nossa direção; e encolher-se uma pessoa tanto que cortaria pernas e braços para a impedir de chegar?

— Quer dizer que ele é assim tão novo?

— Ele é aquilo a que no meu mundo chamamos Mau — dis­se o corpo de Weston. — Um dos que rejeitam o fruto que lhe é da­do por amor ao fruto de que estavam à espera ou do fruto que en­contraram da última vez.

— Temos então de o tornar mais velho — disse a Dama, e embora não olhasse para Ransom, tudo o que nela era rainha e mãe foi-lhe revelado e soube que ela lhe queria infinitamente bem, a ele e a todas as coisas. E ele... ele nada podia fazer. A sua arma tinha-lhe sido arrancada da mão.

— E vais ensinar-nos o que é a Morte? — disse a Dama para a figura de Weston onde a mesma se erguia, acima dela.

— Sim — disse ele —, foi para isso que aqui vim, para que te­nhas Morte em abundância. Mas tem de ser muito corajosa.

— Corajosa. Que quer isso dizer?

— E aquilo que te faz ir nadar num dia em que as ondas são tão grandes e rápidas que alguma coisa dentro de ti te pede pa­ra ficar em terra.

— Eu sei. E esses são os melhores dias para nadar.

— Sim. Mas para encontrar a Morte, e com a Morte a velhi­ce autêntica e a forte beleza e amais vasta expansão, tem de mer­gulhar em coisas maiores que as ondas.

— Continua. As suas palavras não são parecidas com quais­quer outras que eu tenha ouvido. São como as bolhas que reben­tam da árvore. Fazem-me pensar em... em... nem sei em que é que me fazem pensar.

— Pronunciarei palavras ainda maiores que estas; mas tenho de esperar até estares mais velha.

— Torna-me mais velha.

— Dama, Dama — interrompeu Ransom—, não te fará Ma­leldil mais velha na Sua própria altura e da Sua própria manei­ra, e não será muito melhor assim?

O rosto de Weston não se virou na sua direção nem neste pon­to nem noutro momento qualquer durante a conversa, mas a sua voz, dirigida inteiramente à Dama, respondeu à interrupção de Ransom.

— Está vendo — dizia. — Ele mesmo, embora não o quises­se dizer ou desejasse fazer, te fez ver há alguns dias atrás que Maleldil está a começar a ensinar-te a andar sozinha, sem te con­duzir pela mão. Essa foi a primeira expansão. Quando vieste a sa­ber isso, estavas a ficar realmente mais velha. E desde então Ma­leldil deixou-te aprender muito... não pela Sua própria voz, mas pela minha. Está a tornar-te em ti própria. É isso que Maleldil quer que você faças. E por isso que Ele te deixou ficar separada do rei e até, de certa forma, d’Ele mesmo. A sua forma de te fazer mais velha é fazer com que você mesma te faças mais velha. E con­tudo este Malhado a queria sentada à espera que Malel­dil fizesse tudo.

— Que é que temos de fazer ao Malhado para o tornar mais velho? — disse a Dama.

— Não acho que o possa ajudar até você mesma ser mais velha — disse a voz de Weston.-Ainda não podes ajudar ninguém. É corno uma árvore sem fruto.

— É verdade — disse a Dama. — Continua.

— Então escuta — disse o corpo de Weston. — Compreendes­te já que esperar pela voz de Maleldil quando Maleldil quer que você caminhes por ti própria é uma espécie de desobediência.

— Acho que sim.

— A forma errada de obedecer pode ser uma desobediência.

A Dama pensou por alguns momentos e depois bateu palmas.

— Entendo — disse ela. — Entendo! Oh, como você me fa­zes mais velha. Antes, corri atrás de um animal por brincadeira. E ele compreendeu e fugiu de mim. Se tivesse ficado quieto e me tivesse deixado apanhá-lo isso teria sido um a espécie de obediência... mas não a melhor espécie.

 

— Compreendes muito bem. Quando tiveres crescido comple­tamente serás mais sábia e mais bela que as mulheres do meu mesmo mundo. E vês que poderá assim ser a convite de Maleldil.

— Penso que não entendo claramente.

— Tem a certeza de que Ele realmente quer ser sempre obe­decido?

— Como podemos não obedecer a quem amamos?

— O animal que fugiu de ti amava-te.

— Pergunto a mim mesma — disse a Dama — se isso é a mes­ma coisa. O animal sabe muito bem quando quero que ele fuja de mim e quando quero que venha ter comigo. Mas Maleldil nunca nos disse que alguma das Suas palavras ou alguma das Suas obras fosse uma brincadeira. Como podia o nosso Bem-Amado precisar de brincar ou divertir-se como nós fazemos? Todo ele é uma alegria ardente e uma força. Era como pensar que ele pre­cisava de comer ou de dormir.

— Não, não seria uma brincadeira. Era uma coisa parecida com isso, mas não a mesma coisa. Mas podia o retirar a sua mão da mão d’Ele... o crescer completamente, o caminhar pelo próprio caminho... podia isso alguma vez ser perfeito a não ser que tives­ses, uma só vez que fosse, parecido desobedecer-lhe?

— Como é que se pode parecer desobedecer?

— Fazendo aquilo que Ele apenas parece proibir. Poderia haver um mandamento a que Ele desejasse que faltasses.

— Mas se Ele nos dissesse que era para não cumprir, então não seria mandamento algum. E se Ele o não fizesse, como sabe­ríamos nós?

— Como te está a tornar sábia, minha bela — disse a boca de Weston. — Não. Se Ele dissesse para faltares ao que ele determi­nou, não seria um verdadeiro mandamento, como já viu. Pois você tem razão, ele não faz brincadeiras. Uma desobediência autêntica, uma autêntica expansão, isso é aquilo a que Ele secretamen­te aspira, porque contar-te estragaria tudo.

— Começo a perguntar-me — disse a Dama depois de uma pausa — se serás assim muito mais velho que eu. Com certeza o que está a dizer é como a fruta sem sabor. Como posso eu sair da Sua vontade sem ser para entrar em alguma coisa que se não pode desejar? Devo começar a tentar não O amar... ou o rei... ou os bichos? Seria como tentar caminhar por cima da água ou na­dar atravessando as ilhas. Devo tentar não dormir, ou beber ou rir? Pensei que as suas palavras tinham um sentido. Mas parece-me agora que não têm nenhum. Sair para fora da Sua vonta­de é caminhar para dentro do nada.

— Isso é a verdade de todos os Seus Mandamentos, exceto um.

— Mas esse pode ser diferente?

— Pois é: você própria vês que é diferente. Os outros manda­mentos Dele... amar, dormir, encher este mundo com os seus fi­lhos... você vês por ti própria que são bons. E são os mesmos em to­dos os mundos. Mas o mandamento contra viver na Ilha Fixa não é assim. Já aprendeste que Ele não fixou tal mandamento para o meu mundo. E não podes ver onde está a bondade dele. Não ad­mira. Se fosse realmente bom, não deveria Ele tê-lo estabeleci­do para todos os mundos por igual? Pois como poderia Maleldil não determinar o que era bom? Não há bondade alguma nele. O próprio Maleldil está neste momento a mostrar-te isso, através da sua própria razão. É um mero mandamento. É proibir pelo simples desejo de proibir.

— Mas porquê...?

— A fim de você poderes faltar ao seu cumprimento. Que outra razão pode haver? Não é bom. Não é o mesmo para outros mun­dos. Ergue-se entre ti e toda a vida instituída, todo o domínio dos seus próprios dias. Não está Maleldil a mostrar-te, tão claramen­te como pode, que tudo foi montado como uma prova... uma gran­de onda por cima da qual tem de passar para poderes ficar real­mente velha, realmente separada dele?

— Mas se isso me diz respeito tão profundamente, por que é que Ele não põe nada disso na minha mente? Tudo está a vir de ti, Estrangeiro. Não há murmúrio algum, sequer, da Voz dizen­do Sim às suas palavras.

— Mas não está vendo que não pode ser? Ele aspira... oh, como Ele tanto aspira... a ver a Sua criatura tornar-se inteiramente ela própria, erguer-se sobre a sua própria razão e a sua própria coragem, mesmo contra Ele. Mas como pode Ele dizer-lhe para fazer isso? Isso estragaria tudo. O que quer que ela fizesse depois disso seria somente mais um passo dado com Ele. Esta é a única, entre todas as coisas que Ele deseja, na qual tem de não pôr as mãos. Pensa que Ele não está cansado de não ver nada senão Ele mesmo em tudo o que fez? Se isso O contentasse, por que é que havia Ele sequer de criar? Encontrar o Outro... aquele cuja von­tade já não é a Sua... esse é o desejo de Maleldil.

— Se eu ao menos pudesse saber isso...

— Ele tem de não te dizer. Ele não pode dizer-te. O mais que Ele pode aproximar-se de te dizer é deixar que outra criatura qualquer te diga em vez d’Ele. E repara, Ele o fez. Foi para na­da, ou sem a Sua vontade, que eu viajei através do Céu Distan­te para te ensinar aquilo que Ele queria que soubesses mas tinha de não ser Ele mesmo a ensinar-te?

— Senhora — disse Ransom —, se eu falar, você ouves-me?

— Com muito gosto, Malhado.

— Este homem disse que a lei contra viver na Ilha Fixa é di­ferente das outras Leis, dado que não é a mesma para todos os mundos e porque não podemos ver o benefício dela. E até aí falou bem. Mas depois diz que ela é assim diferente para você lhe pode­res desobedecer. Mas pode haver uma outra razão.

— Diz qual é, Malhado.

— Penso que Ele fez uma lei dessa natureza a fim de que pu­desse haver obediência. Em todos os outros casos aquilo a que chamas obedecer-Lhe mais não é que fazer o que parece bom também aos seus próprios olhos. O amor contenta-se com isso? Você faz as coisas porque é essa, realmente, a Sua vontade, mas não apenas por serem a Sua vontade. Onde é que você podes expe­rimentar a alegria de obedecer a não ser que Ele te mande algu­ma coisa em relação à qual a única razão de a fazeres seja o Seu mandato? Quando falamos pela última vez, disseste que se man­dasses os bichos andarem de cabeça para baixo eles ficariam encantados de o fazer. Por isso sei que compreendes bem o que es­tou a dizer.

— Oh, bravo, Malhado — disse a Dama Verde —, isso é o me­lhor que disseste até agora. Isso faz-me muito mais velha, toda­via não parece a mesma velhice que este outro me está a propor­cionar. Oh, como eu vejo tudo bem! Nós não podem os afastar-nos da vontade de Maleldil; mas Ele deu-nos uma maneira de nos afastarmos da nossa vontade. E não podia haver uma maneira assim exceto um mandamento como este. Fora da nossa própria vontade. É como atravessar a abóbada do mundo e entrar no Céu Distante. Tudo para além é o Próprio amor. Eu sabia que havia alegria em olhar para a Ilha Fixa e em abandonar toda a idéia de alguma vez lá viver, mas até agora não compreendia. — O rosto dela estava radioso enquanto falava, mas depois uma sombra de estupefação atravessou-o. — Malhado — disse ela —, se é tão jovem como este outro diz, como é que sabe estas coisas?

— Ele diz que eu sou jovem, mas eu digo que não.

 

A voz da cara de Weston falou subitamente, e era mais forte e profunda do que antes e menos parecida com a voz de Weston.

— Eu sou mais velho que ele — disse —, e ele não se atreve a negá-lo. Antes de as mães das mães da mãe dele serem conce­bidas, eu já era mais velho do que ele pode imaginar. Eu estive com Maleldil no Céu Distante, onde ele nunca foi, e ouvi os con­cílios eternos. E na ordem da criação sou maior que ele e ao pé de mim ele nada vale. Não é assim? — O rosto que parecia o de um cadáver nem mesmo nesta altura se virou para ele, mas tanto quem falava como a Dama pareciam estar à espera que Ransom replicasse. A falsidade que lhe saltara à mente morreu nos seus lábios. Naquele ambiente, mesmo quando a verdade parecia fa­tal, apenas a verdade serviria. Passando a língua pelos lábios e sufocando uma sensação de náusea, respondeu:

— No nosso mundo ser mais velho nem sempre é ser mais sá­bio.

— Olha para ele — disse o corpo de Weston à Dama —, repa­ra como as faces se tornaram brancas e como a testa está úmi­da. Não tinhas visto tais coisas antes; vais vê-las mais vezes da­qui por diante. É o que acontece... é o começo do que acontece... às criaturas inferiores quando se opõem às superiores.

Um esquisito arrepio de medo percorreu a espinha de Ran­som. O que o salvou foi a cara da Dama. Não afetada pelo mal tão próximo dela, afastada como se fosse uma viagem de dez anos ao interior da sua própria inocência, e por essa inocência ao mes­mo tempo tão protegida e tão posta em perigo, olhou para cima para a Morte que se erguia sobre ela, e disse: — Mas ele tinha razão, Estrangeiro, acerca desta proibição. É você quem precisa de se tornar mais velho. Não é capaz de ver isso?

— Eu sempre vi o todo, enquanto ele vê só a metade. É abso­lutamente verdade que Maleldil te deu uma maneira de saíres da sua própria vontade... mas da sua mais profunda vontade.

— E que é isso?

— A sua mais profunda vontade, presentemente, é obedecer-lhe... ser sempre como é agora, apenas o Seu animal ou a Sua criança muito jovem. O caminho para sair disso é árduo. Foi feito árduo para que apenas os muito grandes, os muito sábios, os muito corajosos se atrevessem a percorrê-lo, a prosseguir pa­ra fora da pequenez na qual agora vivem... através da negra on­da da Sua proibição, para a vida autêntica, a Vida Profunda, com toda a sua alegria, e esplendor e dureza.

— Ouça, Senhora — disse Ransom. — Há uma coisa que ele não está lhe dizendo. Tudo aquilo de que estamos falando já foi fa­lado antes. Aquilo que ele quer que tentes já foi tentado antes. Há muito tempo, quando o nosso mundo começou, só havia nele um homem e uma mulher, como você e orei estão neste. E lá estava ele, uma vez, como agora está, a falar com a mulher. Tinha-a encon­trado só, como ele te encontrou só. E ela ouviu e fez a coisa que Maleldil a tinha proibido de fazer. Mas daí não veio alegria algu­ma nem esplendor. O que daí veio eu não posso dizer-te, porque não tem disso qualquer imagem na sua mente. Mas todo o amor foi perturbado e tornado frio e a voz de Maleldil fez-se difícil de ouvir, de forma que entre eles a sabedoria pouco cresceu; e a mulher estava contra o homem e a mãe contra o filho e quando pro­curaram o que comer não havia fruta alguma nas árvores deles, e a busca de comida tomava-lhes o tempo todo, de forma que a sua vida se tornou mais estreita, e não mais ampla.

— Ele escondeu metade do que aconteceu — disse a boca de Weston, que parecia a de um cadáver. — Dali proveio muita di­ficuldade, mas também esplendor. Fizeram com as suas próprias mãos montanhas mais altas que a sua Ilha Fixa. Fizeram para eles Ilhas Flutuantes maiores que as suas, que podem deslocar-se à vontade através do oceano mais depressa do que qualquer pássaro pode voar. Porque nem sempre havia alimento bastan­te, uma mulher podia dar o único fruto ao filho e ao marido e co­mer a morte em vez de comida... podia dar-lhes tudo, como você, na sua mesquinha vida, a beijar, a brincar e a cavalgar peixes, nun­ca fizeste, nem farás até faltares ao mandamento. Porque o co­nhecimento era mais duro de encontrar, os poucos que o encon­travam tornaram-se belos e ultrapassaram os seus companhei­ros, como você ultrapassas os bichos, e milhares disputavam o seu amor...

— Acho que vou dormir agora — disse a Dama subitamente. Até esta altura tinha estado a escutar o corpo de Weston com a boca aberta e os olhos escancarados, mas quando ele falou das mulheres com milhares de amantes bocejou, com o bocejo não premeditado e não escondido de um gato jovem.

— Ainda não — disse o outro. — Há mais. Ele não te contou que foi esta falta ao mandamento que trouxe Maleldil ao nosso mundo e foi por causa dela que Ele se fez homem. Ele não se atre­ve a negá-lo.

— Você diz isto, Malhado? — perguntou a Dama.

Ransom estava sentado com os dedos tão apertados uns nos outros que os nós dos dedos estavam brancos. A injustiça de tu­do aquilo feria-o como arame farpado. Injusto... injusto. Como podia Maleldil esperar que ele lutasse contra aquilo, lutar quan­do todas as armas lhe tinham sido retiradas, proibido de mentir e todavia trazido a lugares onde a verdade parecia fatal? Era in­justo! Surgiu dentro dele um impulso súbito de ardente rebelião. Um segundo mais tarde, a dúvida, como uma onda imensa, veio derramar-se sobre ele. E se o inimigo tivesse razão, ao fim e ao cabo? Félix peccatum Adae.[3]A própria Igreja lhe diria que da de­sobediência, no fim, veio o bem. Sim, e era também verdade que ele, Ransom, era uma criatura tímida, um homem que recuava perante coisas novas e difíceis. Em que lado, afinal, se encontra­va a tentação? O progresso passou diante dos seus olhos numa grande visão momentânea: cidades, exércitos, grandes veleiros, bibliotecas e a grandiosidade da poesia jorrando, como uma fon­te, dos labores e das ambições dos homens. Quem poderia ter a certeza de que a Evolução Criadora não era a verdade mais pro­funda? De toda a espécie de escaninhos secretos na sua própria mente, de cuja existência nunca antes tinha suspeitado, qual­quer coisa extravagante e inebriante e deliciosa começou a bro­tar para fluir em direção à figura de Weston. «E um espírito, é um espírito», dizia esta voz interior, «e você é apenas um homem. Ele passa de século em século. Você é apenas um homem...»

— Você diz isto, Malhado? — perguntou a Dama uma segunda vez.

O encanto fora quebrado.

— Eu vou contar-te o que digo — respondeu Ransom, pondo-se de pé num salto. — É claro que dali veio bem. Será Maleldil um animal ao qual podemos parar no seu caminho, ou uma folha que podemos torcer e alterar a sua forma? Do que quer que você faças Ele fará aparecer o bem. Mas não o bem que Ele prepara­ra para ti se lhe tivesses obedecido. Esse ficou perdido para sem­pre. O primeiro rei e a primeira mãe do nosso mundo praticaram o que era proibido; e disso Ele fez nascer o bem, no final. Mas o que eles fizeram não era bom; e aquilo que perderam, não chegamos a vê-lo. E há alguns para os quais não adveio bem nenhum nem nunca advirá. — Virou-se para o corpo de Weston. — Você — disse — conte-lhe tudo. Que bem adveio para ti? Regozija-se que Maleldil se tenha feito homem? Conte-lhe das suas alegrias, e qual o benefício que teve quando fez Maleldil e a morte conhecidos um do outro.

No momento que seguiu esta fala aconteceram duas coisas que eram totalmente diferentes da experiência terrena. O corpo que tinha sido o de Weston atirou a cabeça para trás, abriu a bo­ca e soltou um longo e melancólico uivo como o de um cão; e a Da­ma deitou-se no chão, completamente desinteressada, fechou os olhos e caiu instantaneamente no sono. E enquanto estas duas coisas aconteciam, o pedaço de solo em que estavam de pé os dois homens e deitada a mulher corria vertiginosamente para baixo ao longo de uma grande encosta de água.

Ransom mantinha os olhos cravados no inimigo, mas este não ligava importância alguma. Os seus olhos mexiam-se como os olhos de um homem com vida, mas era difícil ter a certeza daqui­lo para onde estava a olhar ou sequer de ele estar a usar os olhos como órgãos de visão. Tinha-se a impressão de uma força que as­tutamente mantinha as pupilas daqueles olhos fixas numa dire­ção conveniente enquanto a boca falava, mas que, para o seu mesmo propósito, usava modalidades de percepção completamente diferentes. A coisa sentou-se perto da cabeça da Dama, do lado oposto àquele em que Ransom se encontrava. O corpo não adqui­riu a posição acocorada com os movimentos normais de um homem: era mais como se alguma força externa o conduzisse a po­sição certa e depois o deixasse cair. Era impossível salientar qual­quer movimento em particular que fosse decididamente não hu­mano. Ransom tinha a sensação de estar a ver uma imitação de movimentos de um ser vivo, a qual tinha sido muito bem estuda­da e estava tecnicamente correta mas a que faltava de alguma forma o toque de mestre. E estava gelado de um horror indefini­do, como as crianças têm à noite sozinhas no quarto de dormir, pe­la coisa com a qual tinha de lidar, o cadáver dirigido, o duende, o Não-homem .

Nada mais havia afazer a não ser vigiar: estar ali sentado, pa­ra sempre se necessário fosse, guardando a Dama contra o Não-homem, enquanto a ilha deles trepava interminavelmente por Alpes e Andes de água lustrosa. Os três estavam imóveis. Bichos e aves vinham muitas vezes examiná-los. Horas mais tarde, o Não-homem começou a falar. Não olhou sequer na direção de Ransom; lenta e pesadamente, como se por meio de algum meca­nismo que precisasse de ser oleado, fez aboca e os lábios pronun­ciarem o nome dele.

— Ransom — disse.

— Então? — disse Ransom.

— Nada — disse o Não-homem . Ransom deitou-lhe um olhar inquiridor. Estaria a criatura louca? Mas, como anteriormente, mais parecia morto do que louco, ali sentado com a cabeça curva­da e a boca um pouco aberta, uma poeira amarela proveniente do musgo metida nas rugas das faces, as pernas cruzadas como um alfaiate e as mãos, com as suas compridas unhas de aspecto me­tálico, ambas apoiadas no solo na sua frente. Afastou o problema do seu espírito e regressou aos seus próprios pensamentos pou­co confortáveis.

— Ransom — disse ele outra vez.

— Que é que há? — disse Ransom desabridamente.

— Nada — respondeu ele.

De novo se fez silêncio; e outra vez, cerca de um minuto mais tarde, a boca horrível disse:

— Ransom! — Desta vez não deu resposta. Outro minuto mais e de novo pronunciou o nome dele; e depois, como uma ar­ma de repetição: — Ransom... Ransom... Ransom — talvez uma centena de vezes.

— Que raio você quer? — rugiu ele por fim.

— Nada — disse.a,voz. Da vez seguinte decidiu não respon­der, porém quando a voz chamou por ele cerca de um milhar de vezes deu por si a responder, quer quisesse quer não, e «Nada» foi a resposta. Obrigou-se por fim a manter-se calado; não que a tor­tura de resistir ao seu impulso de falar fosse menor que a tortu­ra da resposta, mas porque alguma coisa dentro dele se ergueu para lutar contra a certeza do atormentador de que ele tinha no fim de ceder. Se o ataque tivesse sido de um gênero mais violen­to poderia ser mais fácil resistir. O que o gelava e quase o intimi­dava era a união da malevolência com algo quase infantil. Esta­va de certa maneira preparado para tentação, para blasfêmia, para uma completa bateria de horrores, mas dificilmente para aquele importunar mesquinho e infatigável, como de um rapaz pequeno mal-comportado numa escola preparatória. Na realida­de, nenhum horror imaginado podia ter ultrapassado a sensação, que crescia dentro dele à medida que as horas passavam lentas, de que aquela criatura estava, por todos os padrões humanos, vi­rada do avesso — o coração estava à superfície e a superficialida­de no coração. A superfície, grandes desígnios e um antagonismo face ao Céu que envolvia o destino dos mundos; mas lá no fundo, quando todos os véus tinham si do trespassados, nada mais havia, afinal de tudo, do que uma negra puerilidade, uma malevolência vazia e sem objetivo, contente em satisfazer-se com as cruelda­des mais insignificantes, como o amor não desdenha as menores delicadezas. O que o mantinha firme, muito depois de terem desaparecido todas as possibilidades de pensar sobre ou­tra coisa qualquer, era a decisão de que, se ele tinha de ouvir ou a palavra Ransom ou a palavra Nada um milhão de vezes, prefe­riria a palavra Ransom.

E durante todo o tempo a pequena terra cor de jóia ia por ali acima até ao firmamento amarelo e lá ficava pendente por um momento e inclinava os seus bosques e corria para baixo, para dentro das profundezas tépidas e lustrosas entre as ondas: e a Dama dormia, deitada com um braço debaixo da cabeça e os lábios levemente separados. Dormia, garantidamente — pois tinha os olhos fechados e a respiração era regular — e todavia não pare­cia exatamente como os que dormem no nosso mundo, porquan­to o seu rosto era pleno de expressão e inteligência, e os membros pareciam estar prontos a saltar a qualquer momento, e no con­junto ela dava a impressão de que o sono não era uma coisa que lhe acontecesse mas sim um ato que ela praticava.

Então, de repente, era noite.

— Ransom... Ransom... Ransom... Ransom — continuava a voz. E subitamente cruzou-lhe o espírito que embora ele a certa altura necessitasse dormir, o Não-homem talvez não precisasse de fazê-lo.

 

O sono provou ser na verdade o problema. Durante o que pare­ceu um longo tempo, cansado e com cãibras, e em breve também com fome e com sede, esteve sentado imóvel na escuridão, tentan­do não dar atenção à repetição persistente de— Ransom... Ran­som... Ransom. — Mas a certa altura deu por si a escutar uma conversa da qual sabia não ter ouvido o princípio, e compreendeu que tinha dormido. A Dama parecia estar a dizer muito pouco. A voz de Weston estava a falar com delicadeza e continuamente. Não falava da Terra Firme nem mesmo acerca de Maleldil. Pa­recia estar a contar, com extrema beleza e paixão, um certo número de histórias, e ao princípio Ransom não conseguia distin­guir qualquer elo de ligação entre elas. Eram todas sobre mulheres, mas sobre mulheres que aparentemente tinham vivido em períodos distintos da história do mundo e em circunstâncias absolutamente diferentes. Das respostas da Dama, parecia que as histórias continham muito que ela não entendia; mas por estranho que fosse, o Não-homem não se importava. Se as ques­tões levantadas por qualquer das histórias provavam ser difíceis de responder, o narrador abandonava simplesmente essa histó­ria e começava no mesmo instante uma outra. As heroínas das histórias pareciam todas ter sofrido muito — tinham sido oprimi­das pelos pais, postas de lado pelos maridos, abandonadas pelos amantes. Os seus filhos tinham-se erguido contra elas e a socie­dade tinha-as expulsado. Mas as histórias todas, num certo sen­tido, acabavam bem: algumas vezes com honras e louvores a uma heroína ainda viva, mais vezes com o tardio reconhecimento e lá­grimas sem proveito depois da morte dela. A medida que a disser­tação interminável prosseguia, as perguntas da Dama tornavam-se cada vez mais raras; um certo sentido para as palavras Morte e Desgosto-embora Ransom não pudesse sequer imagi­nar que espécie de sentido — estava aparentemente a ser criado no espírito dela pela mera repetição. Por fim fez-se luz no seu es­pírito a respeito daquilo de que tratavam todas aquelas histórias. Cada uma daquelas mulheres tinha avançada sozinha e enfren­tado terríveis riscos pelo filho, pelo amante ou pelo seu povo. Cada uma fora mal compreendida, vilipendiada e perseguida, mas também magnificamente justificada pelos acontecimentos. Os detalhes precisos muitas vezes não eram fáceis de seguir. Ransom tinha mais do que uma suspeita de que muitas daquelas no­bres pioneiras tinham sido aquilo a que chamamos, na lingua­gem terrestre corrente* bruxas ou pervertidas. Mas tudo isso fica­va no pano de fundo. O que ressaltava das histórias era mais uma imagem do que uma idéia — a imagem da figura alta, esguia, sem baixar a cabeça, embora o peso do mundo assentasse nos seus om­bros, adiantando-se, sem medo e sem amigos, para dentro da es­curidão, para fazer pelos outros aquilo que eles lhe proibiam que fizesse mas que contudo precisavam que fosse feito. E o tempo to­do, como uma espécie de pano de fundo para estas figuras de deu­sa, o narrador ia construindo uma imagem do outro sexo. Pala­vra alguma era diretamente pronunciada sobre o assunto: mas sentiam-se ali como uma multidão imensa e baça de criaturas lastimosamente infantis e complacentemente arrogantes; tími­dos, meticulosos, sem originalidade; lentos como bois, quase com raízes na terra devido à sua indolência, prontos para nada ten­tar, nada arriscar, para não fazer qualquer esforço e apenas ca­pazes de ascender a uma vida plena pela virtude, rebelde e não objeto de gratidão, das suas fêmeas. Estava muito bem feito. Ransom, que tinha pouco orgulho de sexo, deu por si por alguns momentos a quase acreditar naquilo.

No meio de tudo, a escuridão foi subitamente rasgada pelo clarão de um relâmpago e uns segundos mais tarde chegou a fo­lia da trovoada de Perelandra, como o tocar de um tamborim ce­lestial, e depois a chuva morna. Ransom não apreciou muito o que se passava. O clarão mostrara-lhe o Não-homem sentado muito direito, a Dama apoiada num cotovelo, o dragão acordado e dei­tado junto à cabeça dela, um tufo de árvores mais além e grandes ondas sobre o horizonte. Estava a pensar no que tinha visto. Per­guntava a si mesmo como é que a Dama era capaz de ver aque­la cara — aquelas mandíbulas movendo-se monotonamente como se estivessem a mastigar em vez de falar — e não entender que a criatura era maligna. Via, é claro, que isto não era razoá­vel da parte dele. Aos olhos dela, ele mesmo era sem dúvida uma figura estranha; ela não podia ter para a guiar conhecimento al­gum, tanto acerca do mal como da aparência normal de um homem terrestre. A expressão do seu rosto, revelada pela súbita luz, era uma que ele não lhe tinha visto antes. Os olhos dela não se encontravam fixos no narrador: tanto quanto se podia julgar, os seus pensamentos podiam estar um milhar de milhas distan­tes. Os lábios estavam fechados e um pouco franzidos. As sobran­celhas ligeiramente erguidas. Ainda anão tinha visto parecer-se tanto cora uma mulher da nossa própria raça; e contudo a sua expressão era uma que não encontrara muitas vezes na Terra, como verificou com sobressalto, no palco. — Como a rainha de uma tragédia — foi a comparação desagradável que se levan­tou no seu espírito. Claro que era um exagero grosseiro. Era um insulto, pelo qual não podia perdoar a si mesmo. E contudo... e contudo... o quadro revelado pelo relâmpago tinha ficado fotogra­fado no seu cérebro. Fizesse o que fizesse, achava impossível não pensar naquela nova expressão no rosto dela. Um a rainha de tra­gédia muito boa, sem dúvida. A heroína de uma tragédia muito grande, desempenhada de uma forma muito nobre por uma a­triz que na vida real era uma mulher boa. Pelos padrões terres­tres, uma expressão a ser louvada, mesmo a ser venerada: mas, lembrando-se de tudo que eleja tinha lido no seu semblante, a radiância não afetada, a santidade travessa, a profundeza da sua tranquilidade que lhe recordava umas vezes a infância e ou­tras a velhice extrema, ao mesmo tempo que a juventude fogosa e o vigor do rosto e do corpo negavam ambos, achava que esta no­va expressão o horrorizava. O toque fatal de grandeza solicitada, de paixão desfrutada-a assunção, embora ligeira, de um papel — parecia uma vulgaridade odiosa. Talvez ela não estivesse afa­zer mais — e tinha muita esperança de que não estivesse a fazer mais — que responder de uma maneira puramente imaginativa àquela nova arte de História ou Poesia. Mas, pelo amor de Deus, era melhor não! E pela primeira vez na sua mente formulou-se o pensamento: «Isto não pode continuar».

— Vou para onde as folhas nos protegem da chuva — disse a voz dela na escuridão. Ransom mal se tinha apercebido de que es­tava a ficar todo molhado... num mundo sem roupas era menos importante. Mas levantou-se quando a ouviu se mexer e seguiu-a, tão bem como podia, de ouvido. O Não-homem parecia estar a fa­zer o mesmo. Avançavam na escuridão total sobre uma superfí­cie tão variável como a da água. De vez em quando havia um outro clarão. Viu a Dama caminhando ereta, o Não-homem caminhan­do desajeitadamente ao lado dela, com a camisa e os calções de Weston agora encharcados e colados a ele, e o dragão soprando e patinhando atrás. Por fim chegaram a um lugar onde o tapete sob os seus pés estava seco e onde havia o ruído tamborilante da chu­va nas folhas firmes por cima das suas cabeças. Estenderam-se de novo.

— E era outra vez — começou logo o Não-homem —, havia uma rainha no nosso mundo que governava uma pequena terra...

— Psh — disse a Dama —, vamos ouvir a chuva. — Depois, após um momento, acrescentou: — Que foi isto? Foi algum bicho que nunca ouvi antes — e, na verdade, tinha havido algo muito parecido com um rosnar rouco mesmo ao lado deles.

— Não sei — disse a voz de Weston.

— Acho que sei — disse Ransom.

— Psh — disse outra vez a Dama, e nada mais foi dito naque­la noite.

 

Este foi o início de uma série de dias e noites que Ransom lem­brou com repugnância pelo resto da sua vida. Tinha estado mais que certo ao supor, mie o seu inimigo não precisava de dormir. Felizmente a Dama precisava, mas precisava um bom bocado menos que Ransom e possivelmente, à medida que os dias passa­vam, veio a dormir menos do que precisava. Parecia a Ransom que de cada vez que passava pelo sono, acordava para encontrar o Não-homem já à conversa com ela. Estava morto de cansaço. Di­ficilmente teria aguentado aquilo tudo, não fora o fato de a sua anfitriã com muita frequência os mandar retirar da presença de­la. Em tais ocasiões, Ransom mantinha-se perto do Não-homem . Era um descanso da batalha principal, mas era um descanso mui­to imperfeito. Não se atrevia a deixar o inimigo fora da sua vis­ta por um momento, e a cada dia a sua associação se tornava mais insuportável. Teve plena oportunidade de ficar a saber a falsida­de da máxima que diz que o Príncipe das Trevas é um cavalhei­ro. Vezes sem fim pensou que um Mefistófeles suave e subtil, com capa vermelha e estoque e uma pena no boné, ou mesmo um som­brio e trágico Satan, do Paraíso Perdido, teria sido uma bem-vinda isenção da coisa que ele estava presentemente sentenciado a ver. Nada tinha de parecido com lidar com um político perverso, era muito mais semelhante a ter sido posto de guarda a um im­becil ou um macaco ou uma criança muito intratável. Aquilo que o abalara e o repugnara quando ele primeiro começara a dizer— Ransom... Ransom... — continuava a repugnar-lo todos os dias e todas as horas. Mostrava muita subtileza e inteligência quan­do falava com a Dama; mas Ransom cedo percebeu que ele con­siderava a inteligência única e simplesmente como uma arma, que não tinha mais desejo de utilizar nas horas de folga do que um soldado tem de fazer exercícios de baioneta quando está de li­cença. O pensamento era para ele um engenho necessário para determinados fins, mas o pensamento em si mesmo não lhe inte­ressava. Assumia a razão de uma forma tão exterior e inorgâni­ca como assumira o corpo de Weston. No instante em que a Da­ma desaparecia da vista, parecia recair. Grande parte do tempo de Ransom era gasto a proteger dele os animais.

Logo que se encontrava fora da vista, ou até umas jardas à frente, tentava deitar a mão a qualquer bicho ou ave que estives­se ao alcance e arrancar pêlo ou penas. Ransom procurava sem­pre que possível meter-se entre ele e as suas vítimas. Em tais ocasiões havia momentos desagradáveis quando se encontravam frente a frente. Nunca chegaram a lutar, pois o Não-homem limitava-se a sorrir arreganhando os dentes, cuspia e recuava um pouco, mas antes de isso acontecer Ransom usualmente tinha oportunidade de descobrir quão horrivelmente o temia. Pois lado a lado com a repugnância, o terror mais infantil de viver com um fantasma ou um cadáver mecanizado nunca o abandonava por muitos minutos. O fato de estar sozinho com ele por vezes invadia-lhe o espírito com tal consternação que era necessária to­da a sua racionalidade par a resistir ao desejo de companhia — ao impulso para se precipitar loucamente pela ilha fora até encon­trar a Dama e para lhe pedir proteção. Quando o Não-homem não podia apanhar animais contentava-se com plantas. Gostava de lhes dilacerar as camadas exteriores com as unhas, ou extirpar as raízes, ou puxar as folhas, ou até arrancar mãos cheias da ve­getação rasteira. Para com o próprio Ransom dispunha de inúme­ros jogos para pôr em prática. Tinha todo um repertório de obs­cenidades para executar com o próprio corpo — melhor dizendo, com o corpo de Weston — e a mera imbecilidade delas era quase pior que a sua imundície. Era capaz de estar sentado horas a fio a fazer-lhe caretas, ou voltar à sua velha repetição de — Ran­som... Ransom. Muitas vezes as suas caretas atingiam uma se­melhança horrível com pessoas que Ransom conhecera e amara no nosso mundo. Mas piores que tudo eram os momentos em que permitia que Weston regressasse ao seu semblante. Então a voz dele, que era sempre a voz de Weston, começava um titubear hesitante, digno de dó.

— Toma cuidado, Ransom. Estou lá bem no fundo de um gran­de buraco negro. Não, apesar de tudo não estou em Perelandra. Não posso pensar muito bem, mas isso não interessa, ele pensa tudo por mim. Há de ficar muito fácil, na realidade. Aquele ra­paz continua a fechar as janelas. Está tudo bem, tiraram-me a cabeça e puseram-me a de outra pessoa qualquer. Daqui a pou­co estou bem. Não me deixam ver os meus recortes de imprensa. Por isso eu fui e disse-lhe que se não me queriam nos Primeiros Quinze, podiam perfeitamente passar sem mim, está vendo. Havemos de dizer a esse cachorrinho que é um insulto aos exa­minadores apresentar este gênero de trabalho. O que eu queria saber era por que é que hei de pagar um bilhete de primeira clas­se e depois ser atirado fora desta maneira. Não é justo. Não é jus­to. Nunca tive intenção de prejudicar. Podia tirar-me um pouco do peso do meu peito, não quero todas estas roupas. Deixem-me em paz. Deixem-me em paz. Não é justo. Não é justo. Que enor­mes moscas varejeiras. Dizem que nos habituamos a elas — e então terminava num uivo canino. Ransom nunca conseguia concluir se era um estratagema ou se uma energia psíquica em decadência, do que fora em tempos Weston, estava na verdade in­termitente e miseravelmente viva dentro do corpo que se senta­va ao lado dele. Descobriu que qualquer ódio que tivesse um dia sentido contra o professor estava morto. Achou natural rezar fer­vorosamente pela sua alma. Contudo, o que sentia por Weston não era exatamente piedade. Até àquele momento, sempre que pensara no Inferno tinha imaginado as almas perdidas como sen­do ainda humanas; agora, à medida que o abismo aterrador que separa o mundo doe espíritos do mundo dos homens se escanca­rava na sua frente, a piedade era quase engolida pelo horror — na inconquistável aversão da vida dentro dele contra a Morte, po­sitiva e auto-destruidora. Se os restos de Weston estavam, em tais momentos, a falar pelos lábios do Não-homem , então Weston já não era de forma alguma um homem. As forças que tinham come­çado, talvez havia anos, a devorar a sua qualidade humana ti­nham completado já o seu trabalho. A vontade embriagada que tinha vindo a envenenar lentamente a inteligência e as afeições tinha-se agora finalmente envenenado a si mesma e todo o orga­nismo psíquico se tinha feito em pedaços. Apenas ficara um fan­tasma — uma perpétua agitação, um desmoronar, uma ruína, um cheiro a decomposição. «E este», pensou Ransom, «poderá ser o meu destino; ou o dela.»

Mas é claro que as horas gastas a sós com o Não-homem eram como horas numa área de retaguarda. A verdadeira questão era a conversação interminável entre o Tentador e a Dama Verde. Considerado de hora para hora, o progresso era difícil de estimar, mas à medida que os dias passavam, Ransom não era capaz de resistir à convicção de que o andamento geral era a favor do inimi­go. Havia, é claro, altos e baixos. Muitas vezes o Não-homem era inesperadamente repelido por qualquer coisa simples que pare­cia não ter previsto. Muitas vezes, também, os próprios contribu­tos de Ransom para o terrível debate eram de momento coroados de êxito. Havia alturas em que ele pensava: «Graças a Deus! Fi­nalmente ganhamos». Mas o inimigo nunca se fatigava e Ransom ficava cada vez mais estafado; e já pensava poder ver sinais de que a Dama estava também a ficar cansada. Por fim pôs-lhe a questão a ela e pediu-lhe que os mandasse embora a ambos. Mas ela repreendeu-o, e a sua repreensão revelou quão perigosa a si­tuação já se tornara.

— Devo então ir-me embora, descansara brincar — pergun­tou ela—, enquanto tudo isto se encontra nas nossas mãos? Não, até ter a certeza de que não há nenhum grande feito a praticar por mim em prol do rei e dos filhos dos nossos filhos.

Era por estas linhas que o inimigo agora trabalhava quase ex­clusivamente. Embora a Dama não tivesse palavra alguma para Dever, ele a fez pensar, à luz de um Dever, que devia continuar a acariciar a idéia de desobediência, e convenceu-a de que seria uma covardia se ela o repelisse. As idéias de Grande Feito, de Grande Risco, eram-lhe apresentadas todos os dias, num milhar de formas variadas. A noção de esperar para perguntar antes de tomar uma decisão fora arredada discretamente. Não pôde pensar numa tal «covardia». Todo o valor da ação dela — to­da a sua grandeza — residia em a empreender sem conhecimen­to do rei, em o deixar completamente livre para a repudiar, para que todos os benefícios fossem dele; e todos os riscos dela; e com o risco, é claro, toda a magnanimidade, a paixão, a tragédia e a originalidade. E além disso, sugeria o Tentador, não valia a pena pedir ao rei, pois ele não aprovaria certamente a ação: os homens eram assim, orei tinha de ser obrigado a ser livre. Agora, enquan­to ela estava entregue a si mesma — agora ou nunca — o nobre objetivo tinha de ser alcançado; e com esse «Agora ou nunca», ele começou a jogar com um receio que a Dama aparentemente com­partilhava com as mulheres da Terra — o medo de que a vida pu­desse ser estragada, alguma grande oportunidade deixada fugir.

— Como se eu fosse uma árvore que podia dar cabaças e não desse nenhuma — dizia ela. Ransom tentou convencê-la de que as crianças já eram frutos suficientes. Mas o Não-homem pergun­tou se aquela divisão esmerada da raça humana em dois sexos não poderia ter outro sentido além da reprodução?... uma ques­tão que poderia ter sido providenciada mais simplesmente, como era em muitas plantas. Um momento mais tarde estava a expli­car que no seu mesmo mundo homens como Ransom, homens desse tipo intensamente macho e retrógrado que se retraem perante o novo bem, se tinham continuadamente empenhado em manter a mulher unicamente destinada a gerar filhos e em igno­rar o alto destino para o qual a tinham efetivamente criado. Dizia-lhe que homens assim já tinham causado prejuízos incalcu­láveis. Ela que visse que nada desse tipo viesse a acontecer em Perelandra. Foi por esta altura que começou a ensinar-lhe mui­tas palavras novas: palavras como Criadora e Intuição e Espiri­tual. Mas esse foi um dos seus passos em falso. Quando lhe fez compreender finalmente o que significava «criadora», ela esque­ceu tudo a respeito do Grande Risco e da trágica solidão e riu du­rante um minuto até ao fim. Por fim disse ao Não-homem que ele era ainda mais novo que o Malhado, e mandou-os a ambos em­bora.

Ransom ganhou terreno nesse caso; mas no dia seguinte perdeu-o todo, ao perder a cabeça. O Inimigo tinha estado a fazer pressão sobre ela, com mais ardor que o habitual, sobre a nobre­za do auto-sacrifício e da dedicação, e o encantamento parecia ir-se aprofundando a cada momento no espírito dela, quando Ran­som, acicatado para além de toda a paciência, se pusera de pé de um salto e se tinha realmente voltado contra ela, falando exces­sivamente depressa, quase aos gritos e esquecendo mesmo o seu Solar Antigo, e entremeando palavras em inglês. Tentava dizer-lhe que tinha visto aquela espécie de abnegação em ação, dizer-lhe das mulheres que ficavam doentes com fome de preferência a começar a comer antes de o homem da casa voltar, embora sou­bessem perfeitamente bem que não havia nada de que ele menos gostasse; das mães que se consumiam até ficar um novelo para casar uma filha com um homem que ela detestava; de Agripina e de Lady Macbeth.

— Não está vendo — bradou — que te está a fazer dizer coi­sas que nada significam? Qual é o benefício de dizer que farias isto pelo rei quando sabe que isso mesmo é aquilo que o rei mais odiaria? É por acaso Maleldil para que sejas você a decidir o que é bom para o rei? — Mas ela compreendeu apenas uma parte mui­to pequena daquilo que ele dizia e estava desnorteada pelos seus modos. O Não-homem tirou proveito desta sua fala.

 

Mas através destes altos e baixos, todas as alterações da linha da frente, todos os contra-ataques, resistências retiradas, Ransom veio a ver cada vez com mais clareza a estratégia de toda a operação. A resposta da Dama à sugestão de vir a ser uma pionei­ra trágica e a enfrentar riscos era ainda uma resposta saída principalmente do seu amor pelo rei, pelos seus filhos ainda não nas­cidos, e até, num certo sentido, pelo próprio Maleldil. A idéia de que Ele podia realmente não desejar ser obedecido à letra era a comporta através da qual toda a torrente de sugestões fora admi­tida no seu espírito. Mas misturada com esta resposta, desde o momento em que o Não-homem começara as suas histórias trá­gicas, existia um toque muito tênue de teatralidade, o primeiro indício de uma inclinação auto-admirativa para deitar a mão a um grande papel no drama do seu mundo. Era evidente que to­do o esforço do Não-homem era incrementar este elemento. Des­de que isto não fosse por assim dizer mais que uma gota no mar do espírito dela, ele não teria efetivamente êxito. Talvez, en­quanto assim se mantivesse, ela estivesse protegida de autênti­ca desobediência: talvez nenhuma criatura racional, até um tal motivo se tornar dominante, pudesse realmente atirar fora a fe­licidade em troca de algo tão vago como o tagarelar do Tentador acerca de Vida Mais Profunda ou da Senda Lá para Cima. O egoísmo velado da concepção da revolta nobre tinha de ser au­mentado. E Ransom pensou, a despeito dos muitos momentos de apoio da parte dela e dos muitos desaires sofridos pelo inimigo, que ele estava, muito lenta mas contudo perceptivelmente, a aumentar. O caso era, é claro, cruelmente complicado. Aquilo que o Não-homem dizia era sempre muito próximo da verdade. Devia ser certamente parte do plano Divino que esta criatura feliz vies­se a amadurecer, viesse a tornar-se cada vez mais dotada do livre arbítrio, viesse a ser, em certo sentido, mais distinta de Deus e do seu marido a fim de, desse modo, constituir uma unidade com eles de uma forma mais rica. De fato vira este mesmo processo desenvolver-se a partir do momento em que a encontrara, e ele tinha-o inconscientemente ajudado. Esta presente tentação, se dominada, seria ela própria o próximo e maior passo na mesma direção; uma obediência mais livre, mais raciocinada, mais consciente do que qualquer que ela tivesse conhecido antes, estava a ser posta na sua mão. Mas por essa mesma razão o passo fatal que, uma vez dado, a enterraria na escravidão terrível dos apetites e do ódio e da economia e do governo, que a nossa raça conhece tão bem, podia ser feito parecer o verdadeiro. O que o fazia sentir certo de que o elemento perigoso dentro do seu interesse estava a crescer era a progressiva indiferença dela face à essência intelectual singela do problema. Tornava-se mais difícil recolocar o seu espírito perante os dados: mandamentos de Maleldil, uma incerteza completa quanto aos resultados de o quebrar, e uma felicidade atual tão grande que dificilmente qualquer mudança podia ser para melhor. O túrgido arfar das imagens indistintamente esplêndidas que o Não-homem despertara e a importância transcendente da imagem central levaram tudo isto consigo. Ela estava ainda em plena inocência. Nenhuma má intenção se formara ainda no seu espírito. Mas se a vontade dela ainda não fora corrompida, metade da sua imaginação estava já cheia de formas brilhantes e venenosas. “Isto não pode continuar” pensou Ransom pela segunda vez. Mas todos os seus argumentos provaram ser, no fim de tudo, improdutivos, e aquilo continuou.

Chegou uma noite em que ele estava tão cansado que perto da manhã caiu num sono de chumbo e dormiu pelo dia seguinte fora. Ao acordar estava só. Um grande terror cobriu-o.

— Que podia eu ter feito? Que podia eu ter feito? — exclamou ele, pois pensava estar tudo perdido. Com o coração doente e a cabeça dolorida, cambaleou até a orla da ilha: a idéia dele era encontrar um peixe e perseguir os fugitivos até à Ilha Fixa, para onde tinha poucas dúvidas de que eles tinham ido. Na amargura e confusão do seu espírito esqueceu-se de que não tinha qualquer noção quanto à direção em que ficava agora a terra nem quanto à distância até lá. Apressando-se através dos bosques, veio a sair num espaço aberto e de repente viu que não estava só. Duas figuras humanas, vestidas até aos pés, erguiam-se na sua frente, caladas sob o céu amarelo. As roupas eram de púrpura e azul, as cabeças tinham grinaldas de folhas de prata e os pés estavam nus. Pareciam-lhe ser, um, o mais feio, e o mais belo dos filhos de Deus. Então um deles falou e ele percebeu que não eram outros senão a própria Dama Verde e o corpo assombrado de Weston. As vestimentas eram de penas, e ele sabia bem de que aves de Perelandra elas eram provenientes; a arte de tecer, se se podia chamar tecer, estava para lá da sua compreensão.

— Bem-vindo, Malhado — disse a Dama—, dormiu muito tempo. Que pensa de nós nas nossas folhas?

— Os pássaros — disse Ransom: — Os pobres pássaros! Que é que ele lhes fez?

— Ele encontrou as penas num lugar qualquer — disse a Da­ma descuidadamente. — Eles deixam-nas cair.

— Por que é que fizeste isso, Senhora?

— Ele tem estado a fazer-me mais velha outra vez. Por que é que nunca me contou, Malhado?

— Contar o quê?

— Nós não sabíamos. Este aqui mostrou-me que as árvores têm folhas e os animais têm pelo, e disse que no seu mundo os ho­mens e as mulheres também penduram neles coisas bonitas. Por que é que não nos diz como parecemos? Oh, Malhado, Malha­do, espero que este não venha a ser outro dos novos bens dos quais retiras a sua mão. Não pode ser novidade para ti se todos o fazem no seu mundo.

— Ah — disse Ransom —, mas lá é diferente. Lá é frio. — Assim disse o Estrangeiro — respondeu ela. — Mas não em todas as partes do seu mundo. Ele diz que procedem assim até quando faz calor.

 

— E ele disse por que é que o fazem?

— Para serem belos. Que mais poderia ser? — disse a Dama, com um certo pasmo no rosto.

«Graças aos céus», pensou Ransom, «ele está apenas a ensinar-lhe a vaidade», pois temera qualquer coisa pior. Todavia, poderia ser possível, a longo prazo, usar roupas sem aprender o recato, e através do recato a lascívia?

— Achas que estamos mais belos? — disse a Dama, interrom­pendo os seus pensamentos.

— Não — disse Ransom; e depois, corrigindo-se:-Não sei. — Não era, na verdade, fácil responder. O Não-homem , agora que os prosaicos calções e camisa de Weston estavam escondidos, pa­recia uma figura mais erótica e portanto mais imaginativa e me­nos esquálida e medonha. Quanto à Dama — que ela parecia de certa forma pior não era duvidoso. Todavia existe simplicidade na nudez — como nós falamos de pão «simples». Com o manto púrpura viera uma espécie de riqueza, uma extravagância,uma concessão, na realidade, às concessões inferiores do que é belo. Pela primeira vez (a última) ela aparecia-lhe naquele momento como uma mulher que um homem nascido na Terra podia imagi­nar amar. E isso era intolerável. A horrível inconveniência da idéia tinha roubado, num só momento, alguma coisa às cores da paisagem e ao aroma das flores.

— Pensas que estamos mais belos? — repetiu a Dama.

— Que é que isso interessa? — disse Ransom melancolica­mente.

— Toda a gente devia desejar ser tão bela quanto pudesse — respondeu ela. — E nós não podemos ver-nos a nós próprios.

— Podemos — disse o corpo de Weston.

— Como pode ser isso? — disse a Dama, virando-se para ele. — Mesmo se pudesse rolar os olhos para trás, para olhar para dentro, só veriam escuridão.

— Não é dessa maneira — respondeu ele. — Eu mostro-lhe. — Deu alguns passos até onde estava a mochila de Weston, na ve­getação rasteira amarela. Com aquela curiosa precisão que mui­tas vezes nos atinge quando estamos ansiosos e preocupados, Ransom registrou a forma e marca exata da mochila. Devia ser da mesma loja de Londres onde ele tinha comprado a sua: e es­se pequeno fato, recordando-lhe de repente que Weston fora em tempos um homem, que também ele tivera uma vez os prazeres e as dores de um espírito humano, quase lhe trouxe lágrimas aos olhos. Os dedos horríveis que Weston não voltaria nunca mais a usar abriram as fivelas e tiraram para fora um pequeno objeto brilhante — um espelho de algibeira inglês, que podia ter custa­do três shillings e meio. Entregou-o à Dama Verde. Ela deu-lhe voltas com as mãos.

— Que é isto? Que é que eu faço com isto? — disse ela.

— Olha para ele — disse o Não-homem .

— Como?

— Olha! — disse ele. Então, tirando-o de sua mão, colocou-o em frente do rosto. Ela fitou-o por um tempo bastante considerável sem aparentemente nada perceber. Depois deu um salto para trás com um grito e tapou a cara. Ransom sobressaltou-se tam­bém. Era a primeira vez que a via ser um mero recipiente passi­vo de uma emoção. O mundo em redor dele era uma grande mudança.

— Oh, oh — exclamou ela. — Que é isto? Vi um rosto.

— Apenas o seu mesmo rosto, minha bela — disse o Não-homem .

— Eu sei — disse a Dama, evitando ainda o espelho com os olhos. — O meu rosto... ali... olhando para mim. Estou a ficar mais velha ou é outra coisa qualquer? Sinto-me... sinto-me... te­nho o coração a bater com força de mais. Não estou quente. Que é isto? — Passava os olhos de um para o outro.

Todo o mistério tinha desaparecido do seu rosto. Era tão fá­cil de ler como o de um homem num abrigo quando uma bomba vem a chegar.

— Que é isto? — repetiu ela.

— Chama-se Medo — disse a boca de Weston. Depois, a cria­tura virou a cara diretamente para Ransom e sorriu num esgar.

— Medo — disse ela. — Isto é o Medo — ponderando a desco­berta; depois, com brusca decisão: — Não gosto dele.

— Há de ir embora — disse o Não-homem, quando Ransom interrompeu.

— Nunca mais irá embora se fizer o que ele deseja. Es­tá a levar-te cada vez mais para dentro do medo.

— É — disse o Não-homem — para dentro das grandes ondas, e através delas e para além delas. Agora que sabe o que é o Me­do, está vendo que tem de ser você quem o deve experimentar em prol da sua raça. Sabe que o rei não o fará. Nem quer que ele o faça. Mas não há razão para medo nesta coisa insignificante, antes para alegria. Que é que há de temeroso nela?

— O serem duas coisas quando são uma só — replicou a Da­ma deforma decidida. — Essa coisa — (apontou para o espelho) — sou eu e não sou.

— Mas se não olhar nunca saberás como é bela.

— Vem-me à idéia, Estrangeiro — respondeu ela —, que um fruto não se come a si mesmo, e um homem não pode juntar-se consigo próprio.

— Um fruto não o pode fazer porque é apenas um fruto — dis­se o Não-homem . — Mas nós podemos fazê-lo. Chamamos a es­ta coisa um espelho. Um homem pode gostar de si mesmo e estar junto consigo próprio. E isso que significa ser homem ou mulher... caminhar ao lado de si mesmo como se fosse uma segunda pes­soa e encantar-se com a sua própria beleza. Os espelhos foram feitos para ensinar esta arte.

— E isso é bom? — — disse a Dama.

— Não — disse Ransom.

— Como se pode descobrir sem tentar? — disse o Não-homem.

— Se se tenta e não é bom — disse Ransom —, como é que se sabe se se será capaz de cessar de fazê-lo?

— Eu já estou a caminhar ao lado de mim própria — disse a Dama —, mas ainda não sei o que é que pareço. Se me tornei em duas, é melhor saber o que é a outra. Quanto a ti, Malhado, um só olhar mostrar-me-á acara dessa mulher, por que hei de en­tão olhar mais do que uma vez?

Tomou o espelho, tímida mas firmemente, ao Não-homem, e olhou para ele em silêncio durante quase um minuto. Depois dei­xou-o tombar e ficou a segurá-lo ao lado do corpo.

— É muito estranho — disse ela por fim.

— É muito belo — disse o Não-homem . — Não pensas assim?

— Sim.

— Mas ainda não descobriu aquilo que te meteste a desco­brir.

— Que era isso? Já me esqueci.

— Se o manto de penas te fazia mais bela ou menos bela.

— Só vi um rosto.

— Segura-o mais afastado e verás por inteiro a mulher que está ao seu lado... a outra que é você mesma. Ou não... eu seguro-o.

As sugestões comuns daquela cena tornaram-se grotescas nesta fase. Ela olhou para si mesma primeiro com o manto, de­pois sem ele, depois outra vez com ele, finalmente decidiu-se em contrário e atirou-o fora. O Não-homem apanhou-o.

— Não o vais guardar? — disse ele. — Poderás querer usá-lo alguns dias, mesmo que não o queiras todos os dias.

— Guardá-lo? — perguntou ela, sem entender bem.

— Tinha-me esquecido — disse o Não-homem. — Tinha-me esquecido de que não vais viver em Terra Firme, nem construir uma casa, nem de qualquer maneira tornar-te dona do seu mesmo destino. Guardar significa pôr uma coisa onde sabe que a podes sempre encontrar outra vez, e onde a chuva, os bichos e ou­tras pessoas não possam alcançá-la. Eu dar-te-ei este espelho para o guardar. Seria o espelho da rainha, um presente trazi­do do Céu Distante para o mundo: as outras mulheres não o te­riam. Mas você lembrou-me. Não pode haver presentes, nem se pode guardar, nem fazer previsões, enquanto viveres como vi­ves... de um dia para o outro, como os bichos.

Mas a Dama não parecia estar a escutá-lo. Estava como uma pessoa quase ofuscada com a riqueza de um sonho diurno. Não se parecia nada com uma mulher a pensar num novo vestido. A ex­pressão do rosto dela era nobre. E um grande bocado nobre de mais. Grandeza, tragédia, profundo sentimento — isto era o que obviamente lhe ocupava os pensamentos. Ransom percebeu que a questão dos mantos e do espelho estivera apenas superficial­mente relacionada com aquilo que é vulgarmente chamado vai­dade feminina. A imagem do seu corpo belo tinha-lhe sido ofere­cida apenas como um meio de despertar a imagem da sua gran­de alma, de longe mais perigosa. A concepção externa da própria individualidade, dramática como era, constituía o verdadeiro al­vo do inimigo. Estava a fazer do espírito dela um teatro no qual essa individualidade fantasma ocuparia o palco. Eleja tinha es­crito a peça.

 

Porque tinha dormido até tão tarde nessa manhã, Ransom achou fácil manter-se acordado na noite seguinte. O mar torna­ra-se calmo e não havia chuva. Estava sentado direito na escuridão com as costas contra uma árvore. Os outros estavam muito perto dele — a Dama, a julgar pela sua respiração, a dormir, e o Não-homem sem dúvida à espera de a acordar e retomar as suas solicitações no momento em que Ransom adormecesse.

Pela terceira vez, com mais força que anteriormente, veio-lhe à cabeça: «Isto não pode continuar».

O Inimigo estava “a usar métodos do terceiro grau. Parecia a Ransom que, salvo por um milagre, a resistência da Dama esta­va sujeita a esgotar-se no fim. Por que é que não vinha nenhum milagre? Ou antes, porquê nenhum milagre no lado certo? Pois que a presença do Inimigo era em si mesma uma espécie de mi­lagre. Teria o Inferno a prerrogativa de fazer maravilhas? Por que é que o Céu não fazia nenhuma? Sem ser pela primeira vez, deu consigo a pôr em causa a Justiça Divina. Não podia com­preender por que é que Maleldil se havia de manter ausente quando o Inimigo estava ali em pessoa.

Mas enquanto estava a pensar isto, tão subitamente e tão vi­vamente como se a sólida escuridão em redor dele tivesse falado com voz distinta, soube que Maleldil não estava ausente. Essa sensação-tão bem-vinda e porém nunca bem recebida sem ven­cer primeiro uma certa resistência — essa sensação de Presença que experimentara uma ou duas vezes antes em Perelandra, voltara-lhe. A escuridão era absoluta. Parecia comprimir-lhe o tronco de maneira que mal podia utilizar os pulmões; parecia apertar-lhe o crânio como uma coroa de peso intolerável, de for­ma que por um bocado mal podia pensar. Mais ainda, de um mo­do indefinível qualquer, teve a consciência de que ela nunca es­tivera ausente, de que apenas uma certa atividade inconscien­te da sua parte tinha permitido ignorá-la naqueles últimos dias.

Para a nossa raça, o silêncio interior é uma proeza difícil. Há um a parte tagarela do espírito que continua, até ser corrigida, a tagarelar mesmo nos locais mais sagrados. Por isso, enquanto uma parte de Ransom permanecia, no caso, prostrada num silên­cio de medo e amor que se assemelhava a uma espécie de morte, uma outra coisa qualquer dentro dele, absolutamente nada atin­gida por veneração, continuava a despejar dúvidas e objeções dentro do seu cérebro. «É ótima», dizia aquele crítico volúvel, «uma presença dessa natureza! Mas o Inimigo está realmente aqui, a dizer e afazer realmente coisas. Onde está o representan­te de Maleldil?»

A resposta que lhe ocorreu, rápida como a de um esgrimista ou de um jogador de tênis, naquele silêncio e escuridão, quase lhe cortou a respiração. Parecia uma blasfêmia.

— De qualquer maneira que posso eu fazer? — balbuciou a parte volúvel de si mesmo. — Eu fiz tudo o que podia. Falei até ficar enjoado. Não serve de nada, é o que te digo. — Tentou persuadir-se de que ele, Ransom, não podia de forma alguma ser o representante de Maleldil tal como o Não-homem era o represen­tante do Inferno. A sugestão era, argumentava, diabólica em si mesma... uma tentação de orgulho fátuo, de megalomania. Picou horrorizado quando a escuridão, simples e quase impaciente­mente, lhe lançou em rosto o mesmo argumento. E então — es­pantou-se como aquilo lhe tinha escapado até à altura — foi for­çado a perceber que a sua própria vinda para Perelandra era pelo menos uma maravilha tão grande como a do Inimigo. O milagre no lado certo, que ele tinha exigido, ocorrera de fato. O milagre era ele mesmo.

— Oh, mas isso não faz sentido — disse a parte volúvel.’Ele, Ransom, com o seu ridículo corpo malhado e os seus argumentos dez vezes derrotados... que espécie de milagre é esse? O seu es­pírito lançou-se cheio de esperança por uma vereda lateral que parecia oferecer uma saída. Mui to bem então. Ele fora trazido pa­ra ali miraculosamente. Estava nas mãos de Deus. Enquanto ele fizesse o seu melhor... e ele tinha feito o seu melhor... Deus se en­carregaria da questão final. Ele não tinha tido sucesso. Mas tinha feito o seu melhor. Nada mais podia fazer. — Não está nas mãos dos mortais determinar o sucesso. — Não tinha que se preocupar com o resultado final. Maleldil se encarregaria disso. E Malel­dil havia de levá-lo de volta para a Terra, são e salvo, depois dos seus muito reais, embora infrutíferos, esforços. Provavelmente a intenção autêntica de Maleldil era que ele viesse a tornar públi­cas para a raça humana as verdades que aprendera no planeta Vênus. Quando à sorte de Vênus, isso não podia realmente apoiar-se nos seus ombros. Estava nas mãos de Deus. Uma pes­soa deve ficar satisfeita por lá a deixar. Deve-se ter Pé...

Partiu-se como uma corda de violino. De todas aquelas eva­sivas nem um farrapo ficou. Implacavelmente, sem sombra de engano, a Escuridão introduzia nele o conhecimento de que este quadro da situação era absolutamente falso. A sua viagem para Perelandra não fora um exercício de moral, nem uma luta a fin­gir. Se a questão estava nas mãos de Maleldil, Ransom e a Dama eram essas mãos. A sorte de um mundo dependia realmente da forma como se comportassem nas horas mais próximas. A coisa era irredutível, de uma realidade evidente. Podiam, se assim o escolhessem, declinar salvar a inocência daquela nova raça, e se o fizessem a inocência dela não seria salva. Não dependia de nenhuma outra criatura, em todo o tempo ou em todo o espaço. Ele via isto claramente, embora por enquanto não tivesse indício algum daquilo que podia fazer.

A parte volúvel do seu ser protestou, desordenadamente, ve­lozmente, como a hélice de um navio desarvorando quando sai fo­ra de água. A imprudência, a injustiça, o absurdo daquilo! Maleldil queria perder mundos. Qual era o sentido de arranjar as coi­sas de maneira que algo de realmente importante viesse a depen­der em final e em absoluto de um homem de palha assim como ele? E naquele momento, lá longe na Terra, como ele agora não podia deixar de lembrar-se, homens estavam em guerra, e subal­ternos de rosto brancos e cabos sardentos que só ultimamente ti­nham começado a fazer a barba, de pé em brechas horríveis ou avançando de rastos na escuridão mortal, despertavam como ele para a verdade absurda de que tudo realmente dependia das suas ações; e ao longe no tempo, Horácio estava de pé na ponte, e Constantino resolvia na sua mente se havia ou não de seguir a no­va religião e a própria Eva estava a olhar para o fruto proibido e o Céu dos Céus esperava a sua decisão. Ele torcia-se e rilhava os dentes, mas não podia deixar de ver. Assim, e não de outra ma­neira, foi feito o mundo. Ou nada tem de depender de escolhas in­dividuais, ou alguma coisa depende. E se alguma coisa depende, quem é que podia traçar os limites? Uma pedra pode determinar o curso de um rio. Ele era essa pedra naquele momento horrível que se tornara o centro de todo o universo. Os eldila de todos os mundos, os organismos sem pecado feitos de luz eterna, estavam em silêncio no Céu Distante para ver aquilo que Elwin Ransom, de Cambridge, faria.

Então chegou um alívio abençoado. Subitamente constatou que não sabia o que podia fazer. Quase riu de alegria. Todo o seu pavor tinha sido prematuro. Não havia na sua frente nenhuma tarefa definida. Tudo o que lhe estava a ser exigido era uma re­solução preliminar e geral de se opor ao Inimigo da maneira que as circunstâncias pudessem mostrar ser desejável: de fato, e voou de novo para as palavras reconfortantes como uma criança voa para os braços da mãe: «fazer o seu melhor», ou antes conti­nuar a fazer o seu melhor, pois ele realmente tinha vindo a fazê-lo desde sempre.

— Que complicações fazemos desnecessariamente das coisas! — murmurou ele, ajeitando-se numa posição levemente mais confortável. Um suave fluxo do que lhe parecia ser piedade jovial e racional brotou e inundou-o.

Olá. Que era aquilo. Sentou-se outra vez direito, o coração a bater-lhe desordenadamente no peito. Os seus pensamentos ti­nham tropeçado numa idéia, da qual tinham recuado de um sal­to como um homem recua de um salto ao tocar num atiçador quente. Mas desta vez a idéia era realmente demasiado infantil para tomar em consideração. Desta vez tinha de ser uma misti­ficação, saída da sua própria mente. Estava-se a ver que uma lu­ta com o Diabo queria dizer uma luta espirra... a noção de combate físico apenas servia para um selvagem. Se ao menos fosse tão simples como isso... mas aqui a parte volúvel cometera um erro fatal. O hábito da honestidade intelectual estava demasiado en­raizado em Ransom para o deixar brincar mais do que um segun­do com a ilusão de que temia menos a luta corporal com o Não-homem do que temia qualquer outra coisa. Imagens expressivas empilharam-se sobre ele... o frio mortal daquelas mãos (já tinha tocado na criatura acidentalmente algumas horas antes)... as longas unhas metálicas... rasgando estreitas tiras de carne, ar­rancando tendões. Uma pessoa morreria lentamente. Até mesmo ao fim aquela idiotia cruel sorriria na cara de uma pessoa. E a pessoa cederia muito antes de morrer — pediria misericórdia, prometeria ajuda, adoração, o que quer que fosse.

Era afortunado que alguma coisa tão horrível devesse estar tão obviamente fora de questão. Quase, mas não totalmente, Ransom decretou que fosse o que fosse que o silêncio e a Escuri­dão parecessem estar a dizer acerca daquilo, uma tal luta gros­seira, materialista, não podia de forma alguma ser aquilo que Maleldil realmente tinha em mente. Qualquer sugestão em con­trário devia ser apenas imaginação mórbida sua. Iria degradar a guerra espiritual à condição de mera mitologia. Mas aqui encon­trou mais um obstáculo. Há muito tempo, quando em Marte, e mais vivamente desde que viera para Perelandra, Ransom tinha vindo a perceber que a tripla distinção entre a verdade e o mito e entre ambos e os fatos era puramente terrestre — era parte e parcela dessa infeliz divisão entre a alma e o corpo que resultou da Queda. Mesmo na terra existem os sacramentos como perma­nente advertência de que a divisão não é salutar nem final. A En­carnação fora o começo do seu desaparecimento. Em Perelandra não teria qualquer significado. O que quer que aqui acontecesse seria de tal natureza que os homens da Terra lhe chamariam mi­tológico. Tudo isto já ele tinha pensado antes. Agora sabia-o. A Presença na escuridão, nunca antes tão formidável, estava a me­ter-lhe estas verdades nas mãos, como jóias terríveis.

A parte volúvel do seu ser fora quase expulsa da sua pose argumentadora — tornara-se por alguns segundos na voz de uma criança choramingando, pedindo que alargassem e deixassem ir para casa. Depois recuperou. Explicou com precisão onde residia o absurdo de uma batalha física com o Não-homem . Seria abso­lutamente irrelevante para o aspecto espiritual. Se a Dama vies­se a ser mantida em obediência devido apenas à remoção pela for­ça do tentador, qual era a utilidade disso? Que é que isso prova­ria? E se a tentação não era uma prova ou um ensaio, por que é que era permitido que se verificasse? Sugeriria Maleldil que o nosso próprio mundo podia ter sido salvo se o elefante tivesse por acidente passado por cima e destruído a serpente um momento antes de Eva estar prestes a ceder à tentação? Era tudo tão sim­ples e amoral como isso? A coisa era claramente absurda!

O silêncio terrível continuava. Ficou cada vez mais como um rosto, um rosto não sem uma certa tristeza, um rosto que olha pa­ra nós quando estamos a dizer mentiras, e nunca nos interrom­pe, mas gradualmente ficamos a saber que ele sabe, e vacilamos, e caímos em contradições e remetemo-nos ao silêncio. Aparte vo­lúvel acabou por desaparecer. Quase que a Escuridão disse a Ransom: «Sabe que estiveste só a perder tempo». A cada minu­to tornava-se mais claro que o paralelo que tentara traçar entre o Éden e Perelandra era grosseiro e imperfeito. O que acontecera naTerra, quando Maleldil nasceu corno homem em Belém, tinha alterado para sempre o universo. O novo mundo de Pere­landra não era uma mera repetição do velho mundo Telhas. Maleldil nunca Se repetia. Como dissera a Dama, a mesma onda nunca vinha duas vezes. Quando Eva caiu, Deus não era Homem. Ele ainda não fizera dos homens membros do Seu corpo: desde en­tão Ele fizera. E através deles, daí por diante, Ele iria salvar ou sofrer. Um dos propósitos para os quais Ele tinha feito tudo aqui­lo era para salvar Perelandra não por Ele mesmo, mas por Ele mesmo em Ransom. Se Ransom recusasse, o plano, então, fracas­sava. Para esse ponto da história, um a história bem mais compli­cada do que ele concebera, fora ele quem tinha sido selecionado. Com uma estranha sensação, percebeu que se pode, de igual ma­neira, chamar a Perelandra o centro, e não a Tellus. Podia olhar-se para a história de Perelandra meramente como uma conse­quência indireta da Encarnação na Terra: ou podia-se olhar pa­ra a história da Terra como uma mera preparação para os novos mundos, dos quais Perelandra era o primeiro. Uma não era nem mais verdadeira do que a outra, nem menos. Nada era mais ou menos importante que qualquer outra coisa, nada era uma cópia ou modelo de outra coisa qualquer.

Ao mesmo tempo, ele também percebia que o seu eu volúvel tinha dado asas à questão. Até este ponto a Dama tinha repelido o seu assaltante. Ela estava abalada e cansada, e havia talvez al­gumas manchas na sua imaginação, mas tinha aguentado. Nes­se aspecto a história já fazia diferença de qualquer coisa que ele soubesse com certeza acerca da mãe da nossa própria raça. Ele não sabia se Eva tinha chegado a resistir, e se sim, por quanto tempo. Ainda menos sabia como teria acabado a história se ela ti­vesse resistido. Se a «serpente» tivesse sido frustrada, e voltado no dia seguinte, e no outro... e então? Iria a prova durar eterna­mente? Como teria Maleldil feito cessar aquilo? Aqui em Perelan­dra a sua própria intuição fora, não que não tivesse de ocorrer tentação alguma mas sim que: «Isto não pode continuar». Este parar de uma solicitação do «terceiro grau», já mais de uma vez recusada, era um problema para o qual a Queda terrestre não oferecia pista alguma — uma nova tarefa, e para essa nova tarefa um novo personagem no drama, que parecia (muito infelizmen­te) ser ele mesmo. Em vão retornava o seu espírito, vezes segui­das, ao Livro da Gênese, perguntando — Que teria acontecido?— mas a isto a escuridão não lhe dava resposta alguma. Paciente e inexoravelmente trazia-o de volta ao «aqui e agora»—, e à crescen­te certeza daquilo que era, aqui e agora, exigido. Quase sentia que as palavras «teriam acontecido» não tinham sentido — — simples convites para deambular por aquilo a que a Dama teria chama­do um «mundo ali ao lado», que não tinha qualquer realidade. S,ó o presente era real: e cada situação presente era nova. Ali em Pe­relandra a tentação seria parada por Ransom ou não pararia mesmo. A Voz — pois era quase com uma Voz que ele estava ago­ra a discutir — parecia criar em torno desta alternativa um va­zio infinito. Este capítulo, esta página, esta frase mesmo, da his­tória cósmica eram totalmente e eternamente eles próprios; ne­nhuma outra passagem que tivesse ocorrido ou que jamais vies­se a ocorrer podia substituí-la.

Recuou para uma linha de defesa diferente. Como podia ele lutar contra o inimigo imortal? Mesmo que fosse um combaten­te — em vez de um estudioso sedentário com olhos fracos e uma ferida um tanto má da última guerra —, qual a utilidade de lu­tar contra ele? Ele não podia ser morto, não é? Mas a respos­ta era quase imediatamente fácil. O corpo de Weston podia ser destruído, e presumivelmente esse corpo era o único apoio do Ini­migo em Perelandra. Através desse corpo, quando esse corpo ain­da obedecia a uma vontade humana, tinha penetrado no novo mundo: expulso dele, não teria sem dúvida nenhuma outra habi­tação. Tinha entrado naquele corpo a convite do próprio Weston, e sem um convite desses não podia entrar em nenhum outro. Ran­som lembrava-se de que os espíritos sujos, na Bíblia, tinham hor­ror a ser lançados nas «profundas». E pensando nestas coisas per­cebeu afinal, com um baque no coração, que, se lhe era na verda­de pedida ação física, era uma ação não impossível nem deses­perada, pelos padrões ordinários. No plano físico era um corpo se­dentário de meia-idade contra outro, e ambos desarmados, sal­vo quanto a punhos, dentes e unhas. Ao pensar nestes detalhes, o terror e a repugnância dominaram-no. Matar a coisa com tais armas (recordava-se do que fora matar a rã) seria um pesadelo; ser morto — quem sabia quão devagar?-era mais do que ele po­dia encarar. De que ele seria morto, tinha a certeza.

— Quando — perguntou ele — venci eu um combate em toda a minha vida?

Já não fazia esforços para resistir à convicção daquilo que pre­cisava ser feito. Tinha esgotado todos os seus esforços. A respos­ta era simples, para lá de todos os subterfúgios. A Voz da noite disse-lha de uma forma tão incontestável que, conquanto não houvesse ruído algum, quase achou que iria acordar a mulher que dormia perto dele. Enfrentava o impossível. Tinha de fazer aquilo: não era capaz de fazer aquilo. Em vão lembrava a si mesmo as coisas que rapazes não crentes podiam naquele momen­to estar a fazer na Terra por uma causa menor. A sua vontade encontrava-se naquele vale onde o apelo à vergonha se torna inútil — pelo contrário, faz o vale mais escuro e mais profundo. Acre­ditava que podia enfrentar o Não-homem com armas de fogo: mes­mo que seria capaz de se pôr de pé desarmado e enfrentar a mor­te certa se a criatura tivesse conservado o revólver de Weston. Mas chegar a vias de fato com ele, ir voluntariamente para den­tro daqueles braços mortos, e contudo vivos, agarrar-se a ele, pei­to nu contra peito nu... Loucuras terríveis vieram-lhe à mente. Deixaria de obedecer à voz, mas tudo estaria bem porque mais tarde se arrependeria, quando estivesse de volta na Terra. Per­deria a coragem como S. Pedro tinha feito, e como S. Pedro seria perdoado. Intelectualmente, é claro, sabia a resposta àquelas tentações perfeitamente bem; mas encontrava-se num daqueles momentos em que todas as expressões do intelecto soam como histórias contadas pela segunda vez. Então um vento qualquer cruzou o seu espírito e mudou a sua disposição. Talvez ele lutas­se e vencesse, talvez até sem ficar muito maltratado. Mas da es­curidão não veio amais pequena indicação de uma garantia nes­se sentido. O futuro era negro como a própria noite.

— Por alguma razão tem o nome de Ransom — disse a Voz.

E ele sabia que aquilo não era fantasia sua. Sabia-o por uma razão muito curiosa — porque ele sabia há muitos anos que o seu apelido era derivado não de «resgate» (ransom) mas de «filho de Ranolf». Nunca lhe teria ocorrido, por isso, associar as duas pa­lavras. Relacionar o nome Ransom com o ato de resgatar teria sido para ele um mero gracejo. Mas nem mesmo o seu eu volúvel se atreveria agora a sugerir que a Voz estava a fazer um jogo de palavras. Num só momento percebera que o que era, para filólo­gos humanos, uma simples semelhança acidental de dois sons, não era na verdade acidente algum. Toda a distinção entre coisas acidentais e coisas determinadas, tal como a distinção entre fa­to emito, era puramente terrena. O esquema é tão vasto que den­tro do pequeno quadro da experiência terrestre aparecem peda­ços dele entre os quais não podemos ver ligação alguma e outros pedaços entre os quais podemos. Daí que nós, com razão, para nosso próprio uso, distingamos o acidental do essencial. Mas saiamos desse quadro e a distinção cai no vazio, batendo asas inú­teis. Ele tinha sido forçado a sair do quadro, apanhado para den­tro do esquema mais vasto. Sabia agora por que é que os velhos filósofos tinham dito que não há coisas como acaso ou fortuna para lá da Lua. Antes de a sua mãe o ter gerado, antes de os seus antepassados se terem chamado Ransom, antes de ransom (res­gate) ter sido o nome para um pagamento que liberta, antes de ter sido feito o mundo, todas essas coisas tinham estado de tal forma juntas na eternidade que o próprio significado do esquema neste ponto residia em elas virem juntas exatamente dessa maneira. E abaixou a cabeça e gemeu e lamentou a sua sorte — continuar a ser um homem e todavia ser forçado a subir para o mundo me­tafísico, para pôr em prática aquilo que a filosofia apenas pensa.

— O meu nome também é Ransom — disse a Voz. Demorou algum tempo até o conteúdo deste dito começar a ser entendido por ele. Aquele aquém os outros mundos chamam Maleldil era o resgate do mundo, o seu mesmo resgate, como ele bem sabia. Mas com que propósito era isso dito agora? Antes de a res­posta lhe chegar sentiu a sua insuportável aproximação e esten­deu os braços na sua frente como se pudesse impedi-la de abrir à força a porta do seu espírito. Mas ela chegou. Então essa era a questão real. Se ele falhasse agora, este mundo seria também re­dimido depois disso. Se não fosse ele o resgate, um outro seria. Contudo, nada era jamais repetido. Não uma segunda crucifica­ção: talvez — quem sabe — nem mesmo uma segunda Encarna­ção... algum ato de amor ainda mais espantoso, alguma glória de ainda mais profunda humilhação. Pois eleja tinha visto como se desenvolve o esquema e como de cada mundo ele brota para o próximo através de outra qualquer dimensão. O pequeno malefício externo que Satanás tinha praticado em Malacandra era apenas um a linha: o mal mais profundo que praticara na Terra era já um quadrado: se Vênus caísse, o seu mal seria um cubo — a sua Re­denção para lá do concebível. Contudo redimida havia de ser. Há muito que sabia que importantes resultados dependiam da sua escolha; mas ao compreender agora a verdadeira extensão da as­sustadora liberdade que lhe estava a ser posta nas mãos — um a extensão perante a qual toda a infinidade meramente espacial parecia pequena — sentia-se como um homem colocado sob o céu nu, à beira de um precipício, suportando a força do vento que che­gava uivando vindo do Pólo. Tinha-se imaginado, até aí, de pé pe­rante o Senhor, como Pedro. Mas era pior. Estava sentado na Sua frente como Pilatos. Era com ele, salvar ou desperdiçar. As suas mãos estavam vermelhas, como estavam as de todos os homens, pelos morticínios antes da fundação do mundo; agora, se o esco­lhesse, mergulharia de novo no mesmo sangue.

— Piedade — gemeu ele, e depois: — Senhor, porquê eu? — Mas não houve resposta.

A coisa ainda parecia impossível. Mas gradualmente algo lhe aconteceu que só lhe tinha acontecido uma ou duas vezes antes na vida. Acontecera uma vez quando tentava decidir-se a efe­tuar uma tarefa muito perigosa na última guerra. Acontecera outra vez quando estava a impor a si mesmo a resolução de ir ver um certo homem em Londres e fazer-lhe uma confissão excessi­vamente embaraçosa que a justiça exigia. Em ambos os casos a coisa tinha parecido uma pura impossibilidade: não tinha pensa­do mas sim sabido que, sendo ele o que era, era psicologicamen­te incapaz de se lhe furtar; e então, sem qualquer movimento apa­rente da vontade, tão objetivo e não emocional como a leitura de um mostrador, tinha-se erguido diante dele, com perfeita certe­za, o conhecimento: «amanhã por esta altura, terás feito o impos­sível». A mesma coisa acontecia agora. O seu medo, a sua vergo­nha, o seu amor, todos os seus argumentos, não se tinham mini­mamente alterado. A coisa não era nem mais nem menos teme­rosa do que antes tinha sido. A única diferença era que ele sabia — quase como um fato histórico-que aquilo ia ser feito. Ele po­dia pedir, chorar ou revoltar-se — podia amaldiçoar ou adorar—, cantar como um mártir ou blasfemar como um demônio. Não fa­zia a mais leve diferença. A coisa ia ser feita. Com o correr do tem­po, ia chegar o momento no qual ele a faria. O ato futuro ali es­tava, fixo e inalterável como se eleja o tivesse praticado. Era um mero detalhe irrelevante acontecer que ele ocupasse a posição a que chamamos futuro em vez daquela a que chamamos passado. A luta toda tinha acabado, e todavia parecia não ter havido ne­nhum momento de vitória. Podia dizer-se, se se quisesse, que o poder de escolher fora simplesmente posto de lado e substituído por um destino inflexível. Por outro lado, podia dizer-se que ele tinha sido liberto da retórica das paixões e tinha emergido numa liberdade inatacável. Ransom não era capaz, mesmo que disso dependesse a sua vida, de ver qualquer diferença entre estas duas afirmações. Predestinação e Liberdade aparentemente eram dinâmicas. Não podia mais ver qualquer sentido nas muitas discussões que sobre este assunto tinha ouvido.

Mal tinha descoberto que tentaria com certeza matar o Não-homem no dia seguinte e já o fazê-lo lhe parecia um problema menor do que supusera. Podia dificilmente lembrar-se por que é que se acusara de megalomania quando a idéia lhe ocorrera pela primeira vez. Era verdade que, se ele a deixasse por fazer, o Pró­prio Maleldil faria em seu lugar alguma coisa maior ainda. Nes­se sentido ele representava Maleldil; mas não mais do que Eva O teria representado, simplesmente não comendo a maçã, ou do que qualquer homem O representa ao praticar uma boa ação qualquer. Da mesma forma que não existe nenhuma comparação entre pessoas, também nenhum a existe no sofrimento — ou ape­nas a comparação que pode haver entre um homem que queima o dedo ao apagar uma fagulha e o bombeiro que perde a vida a combater o incêndio, porque essa faúlha não foi apagada. Já não perguntava — Eu, porquê? Tanto podia ser ele como um outro. Tanto podia ser outra escolha qualquer como aquela. A luz violenta que ele vira incidindo naquele momento de decisão, incidia na realidade em todos.

 

— Pus o seu Inimigo a dormir — disse a Voz. — Não vai acor­dar antes da manhã. Levanta-te. Caminhe vinte passos de vol­ta ao interior do bosque; aí, dorme. A sua irmã dorme também.

 

Quando chega alguma manhã temida, usualmente acorda­mos de imediato completamente preparados para ela. Ransom passou, sem estados intermédios nenhuns, de um sono sem so­nhos para a consciência plena da sua tarefa. Encontrou-se sozi­nho — a ilha a balançar suavemente num mar que não era nem calmo nem tempestuoso. A luz dourada, cintilando através dos troncos índigo das árvores, disse-lhe em que direção se encon­trava a água. Foi até lá e banhou-se. Depois, tendo voltado a ter­ra, estendeu-se no chão e bebeu. Ficou de pé alguns minutos pas­sando as mãos pelo cabelo molhado e esfregando devagar os mús­culos. Olhando para o próprio corpo notou quanto se tinham reduzido a queimadura do sol, num lado, e a palidez no outro. Dificilmente seria crismado Malhado, se a Dama o viesse a en­contrar agora pela primeira vez. A sua cor tinha-se tornado mais como o marfim, e os dedos dos pés, depois de tantos dias de nu­dez, tinham começado a perder a forma prensada e esquálida im­posta pelas botas. Tudo visto, pensou melhor de si mesmo como animal humano do que antes pensara. Sentia-se seguro a valer que nunca mais voltaria a servir-se de um corpo não mutilado até chegar para todo o universo uma manhã maior, e alegrava-se por o instrumento ter sido assim afinado até àquele ponto antes de ele ter de entregá-lo.

 

— Quando acordar idêntico à sua imagem, ficarei satisfeito — disse para consigo.

Então caminhou para o interior do bosque. Acidentalmente— pois na altura estava à procura de alimento — foi dar no meio de uma nuvem inteira de bolhas arbóreas. O prazer era tão agu­do como quando pela primeira vez o experimentara, e a sua pró­pria passada era diferente quando saiu do meio delas. Embora aquela estivesse para ser a sua última refeição, nem mesmo as­sim achou apropriado procurar algum fruto favorito. Mas o que encontrou foram as cabaças. «Um bom pequeno-almoço na ma­nhã em que se é enforcado», pensou fantasiosamente enquanto deixava cair da mão a casca vazia, cheio, naquele momento, com tal prazer que parecia fazer uma dança do mundo inteiro. «Tudo visto», pensou, «valeu a pena. Tive um rico tempo. Vivi no Pa­raíso.»

Avançou um pouco mais para dentro do bosque, que para aqueles lados se tornava mais espesso, e quase tropeçou na figura adormecida da Dama. Era pouco habitual ela estar a dormir àquela hora do dia, e assumiu que era obra de Maleldil. «Nunca mais a torno a ver», pensou, e depois: «Nunca mais olharei para um corpo feminino exatamente da mesma maneira que olho para este.»

Enquanto se encontrava de pé olhando para baixo, para ela, o que mais sentia era o desejo veemente, como o de um órfão, de ter podido, ainda que só por uma única vez, ver a grande Mãe da sua própria raça assim, em toda a sua inocência e esplendor.

— Outras coisas, outras bênçãos, outras glórias — murmu­rou. — Mas isso nunca mais. Isso, em todos os mundos, nunca mais. Deus pode fazer bom uso de tudo o que acontece. Mas a per­da é real. — Olhou para ela uma vez mais e depois afastou-se bruscamente do lugar onde estava deitada. «Tinha razão», pen­sou, «isto não podia continuar. «Era tempo de fazê-lo parar.»

Levou-lhe longo tempo, vagueando assim, dentro e fora dos tufos escuros embora coloridos, até achar o Inimigo. Deu com o seu velho amigo, o dragão, tal e qual como da primeira vez que o vira, enrolado no tronco de uma árvore, mas também estava a dormir; e notava agora que, desde que acordara, não registrava nenhum chilrear de pássaros, nenhum sussurrar de corpos es­guios ou espreitar de olhos castanhos através da folhagem, nem ouvia qualquer ruído além do da água. Parecia que Deus Nosso Senhor tinha lançado toda a ilha, ou talvez todo o mundo, em so­no profundo. Por um momento isso deu-lhe uma sensação de desolação, mas quase de imediato alegrou-seque nenhuma lembrança de sangue e raiva viesse a ficar impressa naqueles espí­ritos felizes.

Depois de cerca de uma hora, ao rodear um pequeno grupo de árvores das bolhas, deu de caras com o Não-homem . «Já está fe­rido?», pensou quando a primeira visão de um peito manchado de sangue o atingiu. Depois viu que o sangue, é claro, não era dele. Um pássaro, já meio depenado e com o bico todo aberto num bra­do mudo de estrangulamento, debatia-se debilmente nas suas mãos compridas e hábeis.Ransom deu por si a atuar antes de sa­ber o que tinha feito. Algumas recordações de boxe, dos tempos da escola preparatória, deviam ter despertado, pois viu que tinha desfechado um direto da esquerda com toda a sua força ao queixo do Não-homem . Mas tinha-se esquecido que não estava a comba­ter com luvas; o que o lembrou foi a dor quando o punho embateu na mandíbula — pareceu-lhe quase ter partido os nós dos dedos — e o abalo nauseante por todo o braço acima. Ficou imóvel por um momento, sob o choque, e isso deu ao Não-homem tempo para recuar uns seis passos. Também ele não apreciara o primeiro sabor do encontro. Tinha aparentemente mordido a lín­gua, pois o sangue saiu-lhe em borbotões pela boca quando ten­tou falar. Tinha ainda o pássaro na mão.

— Quer medir forças — disse em inglês, com voz pastosa.

— Larga esse pássaro — disse Ransom.

— Mas isso é muito tolo — disse o Não-homem. — Não sabe quem eu sou?

— Sei aquilo que é — disse Ransom. — Qual deles, não in­teressa.

— E pensa, meu pequeno — respondeu ele —, que pode lu­tar comigo? Pensa talvez que Ele vai ajudá-lo? Muitos pensa­ram isso. Eu o conheço há mais tempo que você, meu pequeno. Todos pensam que Ele vai ajudar... até que voltam a si, gritan­do retratações tarde demais, no meio do fogo, desfazendo-se em pó em campos de concentração, contorcendo-se debaixo de ser­ras, debatendo-se em manicômios, ou pregados em cruzes. Pôde ajudar-se a si mesmo? — e a criatura subitamente atirou a cabeça para trás e gritou num a voz tão alta que parecia que o céu dourado se ia partir: — Eloi, Eloi, lama sabachthani,[4]

E no momento em que ele o fez, Ransom teve a certeza de que os sons que proferira eram perfeito aramaico do século primeiro. O Não-homem não estava a citar, ele recordava. Aquelas eram as próprias palavras ditas na Cruz, guardadas como um tesouro du­rante todos aqueles anos na memória incandescente da criatura proscrita que as tinha ouvido, e agora as apresentava numa paródia medonha; o horror fez com que ficasse momentaneamente agoniado. Antes de ter recuperado, o Não-homem estava em cima dele, ui­vando como o temporal, com os olhos tão escancarados que pare­ciam não ter pálpebras e com todo o cabelo eriçado na cabeça. Apertara-o com toda a força contra o peito, com os braços em tor­no dele e as unhas rasgando-lhe grandes sulcos nas costas. Os seus próprios braços estavam contidos no abraço e batendo desor­denadamente; não conseguia acertar um golpe. Virou a cabeça e mordeu profundamente no músculo do braço direito do adversá­rio, primeiro sem êxito, e depois mais fundo. Ele deu um uivo, ten­tou aguentar e depois subitamente Ransom sentiu-se livre. A de­fesa do outro por um momento não estava pronta, e encontrou-se fazendo chover socos na região do coração, mais rápido e com mais força do que supusera possível. Podia ouvir através da boca aberta os grandes sopros do fôlego que lhe estava a arrancar. De­pois as mãos dele avançaram de novo, os dedos arqueados como garras. Não tentava jogar boxe. Queria agarrar-se. Afastou-lhe o braço direito com um choque horrível de osso contra osso e apli­cou-lhe um soco curto na parte carnuda do queixo: ao mesmo tempo, as unhas de fera rasgaram-lhe o lado direito. Deitou-lhe as mãos aos braços. Mais por sorte que por arte agarrou-o por am­bos os pulsos.

O que se seguiu, no minuto próximo ou assim, dificilmente teria parecido de algum modo uma luta para qualquer especta­dor. O Não-homem estava a tentar, com cada uma das onças de energia que podia encontrar no corpo de Weston, arrancar os bra­ços das mãos de Ransom, e este, com cada onça da sua energia, tentava manter a sua prisão, tipo algema, em torno dos pulsos. Mas este esforço, que fazia descer torrentes de suor pelas costas abaixo de ambos os combatentes, resultava num movimento len­to, e aparentemente descansado e mesmo sem objetivo, dos dois pares de braços. Nenhum deles podia de momento atingir o ou­tro. O Não-homem inclinou a cabeça para a frente e tentou mor­der, mas Ransom estendeu os braços e manteve-o à distância. Não parecia haver razão alguma para aquilo alguma vez acabar. Então, subitamente, o outro esticou uma perna e dobrou-a para trás do joelho de Ransom. Este foi quase atirado a terra. Os movimentos tornaram-se rápidos e confusos de ambos os lados. Ransom por sua vez tentou passar uma rasteira; e falhou. Come­çou a dobrar o braço esquerdo do Inimigo para trás com toda a for­ça com a idéia de parti-lo, ou pelo menos luxar. Mas no esforço de tal objetivo devia ter enfraquecido a sua presa no outro pulso. Assim, o braço direito ficou livre. Mal teve tempo de fechar os olhos antes de as unhas lhe rasgarem ferozmente a face, e a dor pôs fim aos golpes que a sua esquerda fazia já chover nas coste­las do outro. Um segundo mais tarde — não sabia bem como tal acontecera — estavam afastados, o peito arfando em grandes haustos, um a olhar para o outro fixamente.

Ambos eram sem dúvida tristes espetáculos. Ransom não podia ver as suas próprias feridas mas parecia estar coberto de sangue. Os olhos do Inimigo estavam quase fechados e o corpo, onde quer que os restos da camisa de Weston o não escondiam, era uma massa do que em breve seriam nódoas negras. Isso, e a respiração opressa do outro, e a própria amostra da sua força nas vezes em que se tinham agarrado, tinha alterado completamen­te o estado de espírito de Ransom. Tinha ficado espantado de o não ter encontrado mais forte. Tinha desde o princípio, a despei­to do que lhe dizia a razão, esperado que a força do corpo do ou­tro fosse sobre-humana, diabólica. Tinha contado com braços que não podiam ser apanhados ou parados como não podem as pás da hélice de um avião. Mas agora sabia, por experiência real, que a sua força corporal era simplesmente a de Weston. No pla­no físico era um estudioso de meia-idade contra outro. Weston fo­ra dos dois homens o de mais poderosa compleição, mas estava gordo; o seu corpo não aguentava bem a punição. Ransom era mais ligeiro e tinha mais fôlego. A sua antiga certeza da morte parecia-lhe agora ridícula. Era um desafio muito equilibrado. Não havia razão alguma para ele não ganhar — e viver.

Desta vez foi Ransom quem atacou e o segundo assalto foi muito semelhante ao primeiro. Aquilo em que tudo deu foi que, sempre que podia jogar boxe, Ransom era superior; quando se chegava a dente e garra, era batido. A sua mente, mesmo no m ais aceso da luta, estava agora absolutamente clara. Viu que o resultado do dia estava pendente de uma questão muito simples — se a perda de sangue o derrubaria antes de os socos ao coração e aos rins derrubarem o outro.

Todo aquele mundo magnífico estava a dormir em torno de­les. Não havia regras, nem árbitro, nem espectadores;mas a sim­ples exaustão, obrigando-os constantemente a afastarem-se, di­vidia o grotesco duelo em assaltos tão rigorosamente como podia ser desejado. Ransom nunca se poderia lembrar quantos desses assaltos foram combatidos. A coisa tornou-se em frenéticas repe­tições de delírio, e a sede um sofrimento maior do que qualquer que os adversários se podiam infringir mutuamente. Às vezes es­tavam ambos juntos no chão. Uma vez chegou a estar sentado no peito do Inimigo, apertando-lhe a garganta com ambas as mãos e — verificou, para sua surpresa — bradando uma frase de A Batalha de Maldon: mas o outro de tal maneira lhe rasgou os bra­ços com as unhas e bateu nas costas com os joelhos, que foi lan­çado abaixo.

Depois lembra-se — como nos lembramos de uma ilha de consciência precedida e seguida por uma longa anestesia — de avançar ao encontro do Não-homem pela que parecia ser a milé­sima vez, sabendo claramente que não podia combater mais. Lembra-se de ver o Inimigo por um momento, parecendo não Weston mas um macaco, e compreendendo quase de imediato que aquilo era delírio. Vacilou. Então passou-se com ele uma expe­riência que talvez nenhum homem bom possa jamais ter no nos­so mundo — uma torrente de ódio, legal e perfeitamente sem mis­tura. A energia de odiar, nunca antes sentida sem uma certa, cul­pa, sem um certo conhecimento difuso de que estava a não ser completamente capaz de distinguir o pecador do pecado, subiu-lhe dentro dos braços e das pernas até sentir que eram colunas de sangue a arder. O que estava na sua frente já não parecia ser uma criatura de vontade corrupta. Era a própria corrupção, à qual a vontade estava ligada apenas como instrumento. Épocas atrás tinha sido uma Pessoa: mas as ruínas da personalidade so­breviviam agora nela apenas como armas de uma negação raivo­sa que se auto-exilara. E talvez difícil de entender por que é que isto enchia Ransom não de horror m as de uma espécie de alegria. A alegria vinha de encontrar finalmente aquilo para que fora fei­to o ódio. Tal como um rapaz com um machado se alegra ao en­contrar uma arvorejou um moço com uma caixa de giz de cor se alegra ao achar uma pilha de papel perfeitamente branco, assim ele se alegrava com a perfeita congruência entre a sua emoção e o objetivo desta. Sangrando e tremendo de fadiga como estava, sentia que não havia nada para lá do seu poder, e quando se ati­rou sobre a Morte que vivia, o eterno Número Irracional na ma­temática universal, estava estupefato, e todavia (a nível mais fundo) nada estupefato, com a sua própria força. Os braços pare­ciam mover-se mais rápidos que os seus pensamentos. As suas mãos ensinaram-lhe coisas terríveis. Sentiu-lhe as costelas que­brarem e ouviu-lhe o maxilar estalar. A criatura inteira parecia estar a crepitar e a rachar sob as suas pancadas. As dores pró­prias, onde ele o rasgava de uma maneira qualquer, não chega­vam a importar. Sentia que podia lutar assim, odiar assim, com um ódio tão completo, durante um ano inteiro.

De repente achou-se a bater no ar. Encontrava-se em tal es­tado que ao princípio não podia compreender o que estava a acon­tecer-não podia acreditar que o Não-homem tinha fugi do. A sua momentânea estupidez deu a este um avanço; e quando caiu em si foi mesmo a tempo de o ver desaparecer dentro do bosque, com uma passada incerta e a coxear, com um braço pendente, inútil, e com o seu uivo de cão. Arremeteu atrás dele. Por um segundo ou coisa assim ficou oculto dele pelos troncos das árvores. Depois estava outra vez à vista. Começou a correr com toda a sua ener­gia, mas o outro manteve o avanço. Era uma caça fantástica, den­tro e fora da luz e das sombras, e acima e abaixo, nas cristas e nos vales que se deslocavam lentamente. Passaram pelo dragão on­de ele dormia. Passaram pela Dama, dormindo com um sorriso no rosto. O Não-homem abaixou-se curvado para a arranhar. A teria ferido se se atrevesse, mas Ransom estava perto e ele não podia arriscar-se ao atraso. Passaram através de um bando de grandes aves cor de laranja todas profundamente adormecidas, cada uma sobre uma perna só e com a cabeça debaixo da asa, de forma que pareciam um pequeno bosque de arbustos formais e floridos. Tiveram de ter cuidado como punham os pés onde pares e famílias dos pequenos cangurus amarelos jaziam de costas com os olhos cerrados e as pequenas patas dianteiras dobradas sobre o peito, como se fossem cruzados esculpidos em túmulos. Dobra­ram-se debaixo de ramos que estavam curvados para o chão porque neles estavam os porcos arborícolas, fazendo um ruído confortável como o ressonar de uma criança. Romperam com estron­do através de tufos de árvores das bolhas e esqueceram, por um momento, a sua fadiga. Era uma ilha grande. Saíram dos bosques e correram pelos vastos campos de açafrão e de prata, por vezes metidos até aos tornozelos e por vezes até aos pulsos nos odores frescos e agudos. Correram por ali abaixo, para dentro ainda de outros bosques que se estendiam, quando se aproximavam deles, no fundo de vales secretos, mas se erguiam, antes de lá chegarem, para coroar os cumes de colinas solitárias. Ransom não conseguia aproximar-se da sua presa. Era um prodígio como uma criatura tão maltratada podia manter aquele passo. Se o tornozelo esta­va realmente torcido, como suspeitava, devia sofrer indescritivelmente a cada passo. Então veio-lhe à mente a horrível idéia de que talvez o outro pudesse de qualquer modo passar a dor para ser suportada por quaisquer restos da consciência de Weston ain­da sobreviventes no seu corpo. A idéia de que algo, que uma vez fora da sua própria espécie e se alimentara ao peito humano, pu­desse ainda agora estar aprisionado na coisa que ele perseguia redobrou o seu ódio, que era diferente de quase todos os outros ódios que jamais conhecera, pois a sua força aumentava.

Ao emergirem de talvez o quarto bosque, viu o mar na fren­te deles amenos de trinta jardas de distância. O Não-homem con­tinuou a avançar como se não fizesse distinção entre terra e água e mergulhou com grande estardalhaço. Podia ver-lhe a cabeça, escura sobre o mar cobreado, à medida que nadava. Ransom alegrou-se, pois natação era o único desporto em que se aproxima­ra alguma vez da excelência. Quando entrou na água perdeu por um momento de vista o Não-homem ; depois, olhando por cima e sacudindo da cara o cabelo enquanto avançava em perseguição(o cabelo já estava agora muito comprido), viu o corpo dele direito e acima da superfície como se estivesse sentado no mar. Uma se­gunda olhadela e compreendeu que tinha montado num peixe. Aparentemente o sono encantado abarcava apenas a ilha, pois o Não-homem na sua montada estava a fazer um bom andamento. Estava curvado para baixo, a fazer qualquer coisa ao seu peixe, que Ransom não conseguia distinguir. Devia sem dúvida de ter muitos processos para fazer o animal apressar a marcha.

Por um momento ficou desesperado: mas tinha esquecido a natureza amiga do homem daqueles cavalos do mar. Verificou quase de imediato que se encontrava num cardume inteiro das criaturas, que saltavam e cabriolavam para atrair a sua atenção. A despeito da boa vontade deles não era uma questão fácil pôr-se em cima da superfície escorregadia do belo espécime que as mãos ansiosas tinham alcançado primeiro: enquanto se esforçava por montar, a distância entre ele e o fugitivo alargava-se. Mas por fim conseguiu. Acomodando-se atrás da grande cabeça de olhos arregalados, tocou ao de leve o animal com os joelhos, deu-lhe pancadas com os calcanhares, murmurou-lhe palavras de elogio e encorajamento e em geral fez tudo o que podia para despertar o seu brio. Começou a avançar espadanando a água. Mas ao olhar em frente, Ransom já não conseguia ver qualquer sinal do Não-homem, mas apenas a comprida e vazia crista da onda seguin­te que se aproximava. Depois verificou que não tinha motivo para se preocupar acerca da direção. A encosta de água estava total­mente salpicada com os grandes peixes, cada um assinalado por um monte de espuma amarela e alguns deles esguichando água também. O Não-homem possivelmente não levara em conta o ins­tinto que os fazia seguir como chefe de fila qualquer um do seu grupo em que se sentasse um ser humano. Todos avançavam em linha reta, não mais incertos na sua rota que pombos-correios ou cães de caça atrás do cheiro. Quando Ransom e o seu peixe su­biram ao topo da onda, viu-se a olhar para baixo numa vasta e pouco funda fenda, com uma forma muito semelhante a um va­le dos concelhos dos arredores de Londres. Lá ao longe, e agora aproximar-se da vertente oposta, estava a pequena silhueta es­cura e semelhante a um fantoche do Não-homem : e entre um e o outro espalhava-se todo o cardume dos peixes, em três ou quatro colunas. Era evidente que não havia perigo de perder o contacto. Ransom estava à caça dele com o peixe, e os outros não deixariam de os seguir. Riu em voz alta.

— Os meus galgos são filhos da raça espartana, tão velozes, tão valentes — bradou ele.

Então, e pela primeira vez, despertou-lhe a atenção o fato abençoado de já não estar a lutar e nem mesmo estar de pé. Tra­tou de adotar um a posição mais descontraída e foi dela vivamen­te arrancado por uma dor aguda de lado a lado das costas. Tola­mente foi lá atrás com a mão para verificar o que tinha nos om­bros, e quase gritou de dor com o seu mesmo toque. As costas pareciam estar em tiras e as tiras pareciam grudadas umas às ou­tras. Ao mesmo tempo notou que tinha perdido um dente e que quase toda apele tinha desaparecido dos nós dos dedos; e por bai­xo do pungente sofrimento superficial, dores mais profundas e mais ominosas atormentavam-no da cabeça aos pés. Não imaginara estar tão arrasado.

 

Então lembrou-se de que estava com sede. Agora, que tinha começado a arrefecer e ficar rígido, achou a tarefa de conseguir beber na água que corria a seu lado extremamente difícil. A sua primeira idéia fora dobrar-se todo até a cabeça ficar quase de ci­ma para baixo e enterrar a cara na água: mas uma única tenta­tiva o fez desistir da idéia. Estava reduzido a estender para bai­xo as mãos em concha, e mesmo isto, à medida que crescia nele a rigidez, tinha de ser feito com infinita cautela e com muitos gemidos e apertões. Levou muitos minutos a conseguir um peque­no sorvo que apenas iludiu a sua sede. Sossegar aquela sede man­teve-o ocupado pelo que pareceu ser meia hora — meia hora de dores agudas e prazeres insanos. Nunca nada lhe tinha sabido tão bem. Mesmo depois de ter acabado de beber, continuou a apa­nhar a água e a espalhá-la por cima de si. Esse estaria entre os mais felizes momentos da sua vida — se porventura as dores da costas não parecessem estar a ficar piores e ele não estivesse com medo de que houvesse veneno nos golpes. As pernas continua­vam a colar-se ao peixe e a terem de ser descoladas à custa de dores e cuidado. De vez em quando o negrume ameaçava tomar conta dele. Podia facilmente ter desmaiado, mas pensava «Não pode ser» e fixava os olhos em objetos ali à mão e pensava em coi­sas simples e assim se manteve consciente.

Todo este tempo o Não-homem continuou a cavalgar na sua frente, onda acima onda abaixo, e os peixes iam atrás e Ransom ia atrás dos peixes. Parecia agora haver mais, como se a perseguição tivesse encontrado outros cardumes e os tivesse incorporado em si em jeito de bola de neve: e em breve havia outras criaturas além dos peixes. Aves com longos pescoços como cisões-não po­dia dizer a cor delas pois pareciam pretas contra o céu — chega­ram, rodando primeiro, mesmo por cima, mas depois formaram longas colunas — todas seguindo o Não-homem . O clamor destas aves era muitas vezes audível, e era o som mais bárbaro que Ran­som jamais ouvira, o mais solitário, e aquele que menos tinha a ver com o Homem. Não havia terra alguma avista, nem tinha havido por muitas horas. Estava no alto-mar, os lugares desertos de Perelandra, como não tinha estado desde a sua chegada ao planeta. Os ruídos do mar enchiam-lhe continuamente o ouvido: o cheiro do mar, inconfundível e estimulante como o dos nossos oceanos telúricos, mas extremamente agradável no seu calor e doçura, penetrou-lhe no cérebro. Era também rude e estranho. Não era hostil: se fosse, a sua rudeza e a sua estranheza teriam sido menores pois a hostilidade é uma relação e um inimigo não é um completo estranho. Veio-lhe à cabeça que nada sabia acer­ca daquele mundo. Algum dia, sem dúvida, seria povoado pelos descendentes do rei e da rainha. Mas todos os seus milhões de anos de passado despovoado, todas as suas não contadas milhas de água risonha no solitário presente... existiriam somente para aquilo? Era estranho que ele, para quem um bosque ou um céu matinal, na Terra, tinham por vezes sido um gênero de refeição, tivesse de ter vindo para outro planeta a fim de entender a Na­tureza como uma coisa por direito próprio. O significado difuso, o caráter inescrutável que tinha estado tanto em Tellus como em Perelandra, desde que eles se separaram do Sol, que seria, em certo sentido, deslocado pelo advento do homem imperial e con­tudo, num outro sentido, não seria nada deslocado, envolveu-o por todos os lados e levou-o para dentro dele.

 

A escuridão tombou sobre as ondas tão subitamente como se tivesse sido despejada de uma garrafa. Assim que as cores e as distâncias foram dessa forma retiradas, o som e a dor tornaram-se mais enfáticos. O mundo ficou reduzido a uma dor embotada e súbitas pontadas, e ao bater das barbatanas do peixe e os ruí­dos da água, monótonos e todavia infinitamente variados. Então deu com ele quase a cair do peixe, recuperou a posição de senta­do com dificuldade e compreendeu que tinha estado a dormir, tal­vez durante horas. Previu que esse perigo havia de repetir-se constantemente. Depois de alguma ponderação arrancou-se do­lorosamente da estreita sela por detrás da cabeça e estendeu o corpo ao comprido sobre o dorso do peixe. Afastou as pernas e apertou-as em torno da criatura, tão longe quanto podia, e fez o mesmo com os braços, esperando que assim poderia manter-se montado enquanto dormia. Era o melhor que podia fazer. Uma sensação excitante e estranha percorreu-o, comunicada indubi­tavelmente pelo movimento dos músculos do bicho. Dava-lhe a ilusão de ser parte da sua forte vida animal, como se estivesse a transformar-se também em peixe.

Muito depois disto, deu por si a olhar para qualquer coisa parecida com um rosto humano. Devia tê-lo aterrorizado mas, como por vezes nos acontece num sonho, não o fez. Era um rosto azul-esverdeado, que brilhava aparentemente com luz que lhe era própria. Os olhos eram muito maiores que os de um homem e davam-lhe a aparência de um duende. Um a franja de membra­nas encarquilhadas dos lados sugeria suíças. Com um choque compreendeu que não estava a sonhar, mas sim acordado. A coi­sa era real. Continuava deitado, dorido e fatigado, no corpo do peixe, e aquele rosto pertencia a qualquer coisa que ia a nadar ao seu lado. Lembrou-se dos homens submarinos que nadavam, ou tritões, que tinha visto antes. Não ficou nada assustado, e achou que a reação da criatura a respeito dele era exatamente a mes­ma que a sua — uma perplexidade inquieta mas não hostil. Cada um era completamente irrelevante para o outro. Encontravam-se como se encontram os ramos de árvores diferentes quando o vento os junta uns aos outros.

Ransom ergueu-se uma vez mais até à posição de sentado.Verificou que a escuridão não era completa. O seu mesmo peixe nadava num banho de fosforescência e o mesmo fazia o estranho a seu lado. A toda a sua volta estavam outras ampolas e lâminas de luz azul e ele podia de uma maneira confusa distinguir pelas formas quais eram peixes e quais as gentes do mar. Os movimentos dele indicavam tenuemente os contornos das ondas e introduziam na noite um certo esboço de perspectiva. Notou na altura que diversos elementos das gentes do mar na sua vizinhança imediata pareciam estar a alimentar-se. Estavam a apanhar da água umas massas escuras de qualquer coisa com as mãos, com membranas como as das rãs, e a devorá-las. Enquanto mastigavam, pendiam-lhes da boca em molhos espessos e retalhados e pareciam bigodes. É significativo que nunca lhe ocorreu tentar estabelecer qualquer contato com aqueles seres, como tinha feito com todos os outros animais em Perelandra, nem eles tentaram estabelecê-lo consigo. Não pareciam ser súbditos naturais do homem, como eram as outras criaturas. Ficou com a impressão de que simplesmente partilhavam com ele um planeta, como carneiros e cavalos partilhavam um campo, cada espécie ignorando a outra. Mais tarde isto veio a ser uma perturbação no seu espírito:: mas de momento estava ocupado com um problema mais prático. A vista deles a comer recordava-lhe que estava com fome e estava a perguntar-se intimamente se a matéria que eles comiam seria comestível para ele. Levou-lhe muito tempo, colhendo a água com as mãos, a apanhar um bocado. Quando por fim o fez, acabou por ser da mesma estrutura geral das nossas algas marinhas menores e ter pequenas bolhas que estouravam quando se apertavam. Eram duras e escorregadias mas não salgadas como as algas de um mar tepúrico. A que é que sabiam, nunca foi capaz de descrever convenientemente. É de notar em toda esta história que, enquanto Ransom esteve em Perelandra, o seu sentido do gosto se tornara em algo mais do que era na Terra: fornecia conhecimento tanto como prazer, embora não um conhecimento que pudesse ser reduzido a palavras. Assim que comeu alguns bocados das algas marinhas sentiu a sua mente estranhamente alterada. Sentia que a superfície do mar era o topo do mundo. Pensava nas ilhas flutuantes como pensamos nas nuvens; via-as em imaginação como elas apareceriam vistas de baixo — tapetes de fibras com compridas plumas pendentes delas, e achou-se assustadoramente consciente da sua própria experiência em andar na parte de cima delas como sendo um milagre ou um mito. Sentiu a sua recordação da Dama Verde, e todos os seus prometidos descendentes e todos os assuntos que o tinham ocupado desde que viera para Perelandra, a desvanecer-se rapidamente do seu espírito, como um sonho se desvanece quando acordamos, ou como se fossem empurrados para o lado por todo um mundo de interesses e emoções aos quais não podia atribuir nome nenhum. Isto aterrou-o. A despeito da sua fome atirou fora o res­to das algas.

Deve ter adormecido outra vez, pois a cena seguinte de que se lembra foi à luz do dia. O Não-homem era ainda visível lá à fren­te, e o cardume de peixes continuava espalhado entre os dois. As aves tinham abandonado a perseguição. E então finalmente des­ceu sobre ele a completa e prosaica sensação da sua posição. E uma falha curiosa da razão, a julgar pela experiência de Ransom, que, quando um homem vai para um planeta estranho, ao prin­cípio esquece completamente o seu tamanho. Esse mundo inteiro é tão pequeno em comparação com a sua jornada através do es­paço que se esquece das distâncias no interior dele: dois lugares quaisquer em Marte, ou em Vênus, parecem-lhe a ele dois luga­res na mesma cidade. Mas agora, quando Ransom olhava mais uma vez em redor e nada via em qualquer direção a não ser o céu doirado e ondas revoltas, o completo absurdo da sua ilusão era-lhe imposto. Mesmo que houvesse continentes em Perelandra, podia muito bem estar separado do mais próximo deles pela lar­gura do Pacífico ou mais. Mas ele não tinha razão nenhuma para supor que houvesse algum. Não tinha razão alguma para supor que mesmo as ilhas flutuantes fossem muito numerosas, ou que estivessem distribuídas de forma igual sobre a superfície do planeta. Mesmo que o seu arquipélago disperso se estendesse por um milhar de milhas quadradas, que é que isso seria senão uma sarda desprezível num oceano sem terra que rolava para sempre à roda de um globo não muito menor que o Mundo dos Homens? Em breve o seu peixe estaria cansado. Já não estava, imaginou ele, a nadar com a sua velocidade inicial. O Não-homem sem dúvida havia de torturar a sua montada para a fazer nadar até morrer. Mas ele não podia fazer isso. Quando estava a pen­sar nestas coisas e a olhar para a frente, viu algo que lhe fez res­friar o coração. Um dos outros peixes saiu deliberadamente da forma, esguichou uma pequena coluna de espuma, mergulhou e reapareceu afastado algumas jardas, aparentemente à deriva. Em alguns minutos tinha-o perdido de vista. O peixe achara que já chegava.

E agora as experiências do dia e noite anteriores começavam a fazer um assalto direto à sua fé. A solidão dos mares e, ainda mais, as experiências que se tinham segui do a ter provado das al­gas marinhas, insinuaram uma dúvida quanto àquele mundo pertencer em qualquer sentido real aos que se chamavam a si mesmos os seus rei erainha. Como podia ser feito para eles quan­do a maior parte era, de fato, inabitável por eles? Não era a pró­pria idéia ingênua e antropomórfica no mais alto grau? Quanto à grande proibição, da qual tanta coisa parecera depender-era ela realmente assim tão importante? Que é que aquelas ondas coroadas de espuma amarela, e aquelas gentes esquisitas que nelas viviam, se importavam que aquelas pequenas criaturas, agora muito longe, vivessem ou não numa rocha particular? O pa­ralelismo entre as cenas que ultimamente testemunhara e as registradas no Livro da Gênese, e que até ali lhe tinham dado a sensação de saber por experiência aquilo em que outros homens apenas acreditam, agora parecia reduzir-se em importância. Teria alguma coisa mais a provar além de tabus irracionais simi­lares terem acompanhado o alvorecer da razão em dois mundos diferentes? Estava muito bem falar de Maleldil: mas onde se en­contrava agora Maleldil? Se este oceano ilimitado dizia qualquer coisa, dizia qualquer coisa muito diferente. Como todas as soli­dões era, realmente, assombrado; mas não por uma Divindade antropomórfica, antes pelo totalmente inescrutável, perante o qual o homem e a sua vida se mantêm eternamente irrelevantes. E para além daquele oceano estava o próprio espaço. Em vão se tentava Ransom lembrar de que tinha estado no «espaço» e o achara o Céu, latejante com uma plenitude de vida para a qual o próprio infinito não era sequer uma polegada cúbica grande de­mais. Tudo isso parecia um sonho. Aquela modalidade oposta de pensar, de que tinha muitas vezes troçado e chamado por troça O Demônio Empírico, vinha a surgir dentro da sua mente — o grande mito do nosso século com os seus gases e galáxias, os seus anos-luz e evoluções, as suas perspectivas, como pesadelos, de aritmética simples, nas quais tudo o que possa conter possivel­mente significância para a mente se torna o mero subproduto da desordem essencial. Sempre até agora o tinha minimizado, tinha tratado com um certo desdém os seus superlativos monótonos, o seu espanto da palhaço por coisas diferentes deverem ser de di­ferentes tamanhos, a sua volúvel munificência com números. Mesmo agora a sua razão não estava totalmente subjugada, em­bora o seu coração não desse ouvidos à sua razão. Uma parte de­le ainda sabia que o tamanho de uma coisa é a sua característi­ca menos importante, que o universo material extraía do poder de comparar e de criar mitos, existentes dentro dele, a própria majestade diante da qual era agora solicitado ele mesmo a humilhar-se, e que os meros números não podiam aterrorizar-nos a não ser que lhes emprestássemos, dos nossos próprios recursos, aquele terror que eles próprios não podem fornecer, como o registro da contabilidade de um banqueiro não pode. Mas este conhe­cimento continuava a ser uma abstração. A mera grandeza e a solidão deprimiam-no.

Estes pensamentos devem ter durado diversas horas e absorveram-lhe toda a atenção. Foi despertado por aquilo que menos esperava — o som de uma voz humana. Saindo do seu devaneio, viu que todos os peixes o tinham abandonado. O seu mesmo pei­xe ia a nadar debilmente: e ali, a algumas jardas, já não a fugir dele mas deslocando-se lentamente na sua direção, estava o Não-homem . Estava sentado abraçado a si mesmo, os olhos qua­se fechados pelas equimoses, apele da cor do fígado, a perna apa­rentemente partida e a boca torcida pela dor.

— Ransom — disse ele debilmente.

Ransom susteve a língua.Não ia encorajá-lo a começar aque­le jogo outra vez.

— Ransom — disse o outro de novo com a voz entrecor­tada —, por amor de Deus fale comigo.

Olhou para ele, surpreso. Tinha lágrimas nas faces.

— Ransom, não me ignore — disse o outro. — Diga-me o que é que aconteceu. Que é que nos fizeram? Você... você está todo a sangrar. A minha perna está partida... — a voz dele morreu num queixume.

— Quem é você? — perguntou-lhe bruscamente.

— Oh, não finja que não me conhece — murmurou a voz de Weston. — Eu sou o Weston: Você é o Ransom... Elwin Ransom, de Leicester, Cambridge, filólogo. Tivemos as nossas questões, bem sei. Peço desculpa. Atrevo-me a dizer que eu estava errado. Ransom, você não me vai abandonar neste lugar horrível, para morrer, não é?

— Onde é que você aprendeu aramaico? — perguntou Ran­som sem soltar os olhos do outro.

— Aramaico? — disse a voz de Weston. — Não sei de que é que está a falar. Não é grande proeza fazer troça de um homem a morrer.

— Mas você é realmente Weston? — disse Ransom, pois come­çava a pensar que Weston regressara realmente ao seu corpo.

— Quem é que havia de ser? — Veio a resposta, numa erupção de mau gênio sem força, à beira das lágrimas.

— Onde tem estado? — perguntou Ransom. Weston — se é que era Weston — estremeceu.

— Onde estamos agora? — acabou por perguntar.

— Em Perelandra... Vênus, como sabe — respondeu Ransom.

— Encontrou a nave espacial? — perguntou Weston.

— Nunca a vi senão à distância — disse Ransom. — E não tenho idéia alguma onde ela esteja agora... a um par de centos de milhas daqui, tanto quanto sei.

— Quer dizer que estamos na ratoeira? — disse Weston, quase num grito.

Ransom não disse nada e o outro baixou a cabeça e chorou como uma criança.

— Vá lá — disse Ransom por fim —, não se ganha nada em levar as coisas assim. Deixe disso; se estivesse na Terra não estava mais bem servido. Lembre-se que estão a ter por lá uma guerra. Os alemães são capazes de estar a fazer Londres em boca­dos, à bomba, neste momento! — Depois, vendo a criatura ainda a chorar, acrescentou: — Levante a cabeça, Weston. É a morte apenas, ao fim e ao cabo. Teríamos de morrer um dia, bem sabe. Água não vos vai faltar e a fome... sem sede... não é demasiado má. Quanto a afogarmo-nos... bem, uma ferida de baioneta, ou o cancro, seriam piores.

— Quer dizer que vai me abandonar — disse Weston.

— Não posso, mesmo que o quisesse — disse Ransom. — Não vê que estou na mesma situação que você?

— Promete-me que não vai embora e não me abandona?— disse Weston.

— Muito bem, prometo, se o deseja. Onde é que eu podia ir?

Weston olhou muito devagar em redor e depois fez chegar o seu peixe mais perto do de Ransom.

— Onde está... a coisa? — perguntou num sussurro. — Você sabe — e fez um gesto sem sentido.

— Podia fazer-lhe a mesma pergunta — disse Ransom.

— A mim? — disse Weston. O seu rosto estava, desta e da­quela maneira, tão desfigurado que custava ter a certeza da ex­pressão dele.

— Tem alguma idéia do que tem estado a acontecer-lhe durante os últimos dias? — disse Ransom.

Weston uma vez mais olhou em toda a volta, embaraçado.

— É tudo verdade, sabe — disse ele por fim.

— Que é que é verdade? — disse Ransom. Subitamente, Weston voltou-se contra ele com um resmungar de raiva.

— Está tudo muito bem para você — disse. — Morrer afoga­do não dói, e a morte de qualquer modo há de chegar, e toda es­sa insensatez. Que é que você sabe acerca da morte? É tudo ver­dade, digo-lhe eu.

— De que é que está a falar?

— Tenho-me andado a encher com muita insensatez toda a minha vida — disse Weston. — Tentando persuadir-me a mim próprio que é relevante o que acontecer à raça humana... tentan­do acreditar que qualquer coisa que se possa fazer tornará supor­tável o universo. Tudo isto é tolice, está vendo?

— E há qualquer outra coisa mais verdadeira?

— Sim — disse Weston, e depois ficou calado durante muito tempo.

— Era melhor pormos os nossos peixes aproados à onda — dis­se Ransom, com os olhos no mar — ou ficaremos separados. — Weston obedeceu sem parecer notar o que fazia, e durante um tempo os dois homens seguiram muito devagar lado a lado.

— Vou dizer-lhe o que é m ais verdadeiro — disse Weston dali a pouco.

— Uma criança pequena que vai de gatas pela escada acima, quando ninguém está a olhar, e muito devagar vira o puxador da porta para dar uma espiadela para dentro do quarto onde es­tá estendido o corpo morto da sua avó... e depois foge e vai ter maus sonhos. Uma avó enorme, compreenda.

— Que é que quer significar ao dizer que é mais verdadeiro?

— Quero dizer que a criança fica a saber qualquer coisa a res­peito do universo que toda a ciência e toda a religião procuram ocultar.Ransom não disse nada.

— Imensas coisas — disse então Weston, — As crianças têm medo de atravessar um cemitério à noite e as pessoas crescidas dizem-lhes para não serem patetas: mas as crianças é que sa­bem, melhor que os adultos. Pessoas na África Central fazendo coisa brutais com máscaras postas, no meio da noite... e os mis­sionários e funcionários civis dizem que é tudo superstição. Pois bem, os pretos sabem mais acerca do universo que a gente branca. Padres sujos nas ruelas em Dublin aterrando crianças imbecis com histórias a respeito da morte. Você diria que não são escla­recidos. São: exceto que pensam que existe uma porta de saída. Não existe. Esse é o universo real, sempre tem sido, sempre se­rá. Isso é o que tudo isto quer dizer.

— Não está completamente claro para mim — começou Ran­som, quando Weston o interrompeu.

— É por isso que é tão importante viver tanto quanto se puder. Todas as boas coisas são agora... uma pequena e fina casca daquilo a que chamamos vida, apresentada apenas para espetáculo e depois... o universo real para todo o sempre. Dar mais um centí­metro à espessura da casca... viver mais uma semana, mais um dia, mais meia hora... é a única coisa que importa. E evidente que você não sabe isso: mas qualquer homem que está à espera de ser enforcado sabe-o. Você diz: Que diferença faz uma pequena mo­ratória?

— Que diferença!! — mas ninguém precisa de lá ir ter, — disse Ransom.

— Sei que é nisso que você acredita — disse Weston. — Mas está errado. É apenas uma pequena parcela das pessoas civiliza­das que pensa isso. A Humanidade no seu todo sabe melhor. Sabe... Homero sabia... que todos os mortos se afundaram na es­curidão interior, debaixo da tal casca. Todos sem alma, todos a tremer, falando incoerentemente, em decomposição. Duendes. Qualquer selvagem sabe que todos os espíritos odeiam os vivos que estão ainda aproveitando a casca: tal como as mulheres ido­sas odeiam as moças que ainda têm a sua boa aparência. E perfeitamente certo ter medo dos espíritos. De qualquer maneira to­dos nós vamos ser espíritos.

— Você não acredita em Deus — disse Ransom.

— Bem, já agora, esse é um outro ponto — disse Weston. — Quando era rapaz fui à Igreja da mesma maneira que você foi. Há mais sentido em partes da Bíblia do que aquilo que vocês, pessoas religiosas, sabem. Não diz que Ele é o Deus dos vivos, não dos mortos? É justamente isso. Talvez o seu Deus exista... mas não faz qualquer diferença se Ele existe ou não. É claro que você não veria as coisas assim, mas um dia verá. Não penso que tenha apreendido a idéia da casca... afina pele exterior a que chamamos vida... realmente com clareza. Imagine o universo como uma lu­va infinita com essa crosta muito fina na parte de fora. Mas.lem­bre-se de que a sua espessura é uma espessura de tempo, É cer­ca de setenta anos nos melhores lugares. Nascemos à sua super­fície e durante toda a nossa vida vamo-nos afundando no seu in­terior. Quando penetramos completamente ficamos então o que chamamos Mortos: entramos na parte escura do interior, o globo real. Se o seu Deus existe, Ele não está no globo: Ele está do la­do de fora, como uma lua. Ao passarmos para o interior, saímos para fora do alcance da Sua vista. Ele não nos segue lá para den­tro. Você exprimiria o fato dizendo que Ele não está no tempo... o que acharia reconfortante! Por outras palavras, Ele deixa-se fi­car à luz e ao ar, cá fora. Mas nós estamos no tempo. Nós «movemo-nos com os tempos». Isto é, do ponto de vista Dele, nós afastamo-nos para dentro daquilo que Ele considera uma não entida­de, onde Ele nunca nos segue. Isto é tudo o que para nós existe, tudo o que sempre existiu. Pode ser que Ele esteja naquilo a que chama «Vida», ou pode ser que não. Que diferença faz isso? Nós não vamos lá estar por muito tempo.

— Isso dificilmente podia ser a história toda — disse Ransom. — Se todo o universo fosse assim, então nós, sendo parte dele, ha­víamos de nos sentir bem em tal universo. O próprio fato de is­so nos impressionar como monstruoso...

— Sim — interrompeu Weston —, isso estaria muito bem se não fosse o caso de o raciocínio, como tal, só ser válido enquanto se está na tal casca. Nada tem a ver com o universo real. Mesmo os cientistas... como eu mesmo era em tempos... come­çam a descobrir isso. Você não está vendo o significado real de todas estas teorias modernas a respeito dos perigos da extrapo­lação e do espaço curvo e da indeterminação do átomo? É claro que o não dizem com todas as letras, mas aquilo a que chegam, mesmo antes de morrerem nos dias de hoje, é o mesmo a que che­gam todos os homens quando morrem: o conhecimento de que a realidade nem é racional, nem consistente, nem qualquer outra coisa. Em certo sentido podia dizer-se que não está lá. «Real» e «irreal», «verdadeiro» e «falso»... existem apenas superficialmen­te. No momento em que se apertam, cedem.

— Se tudo isso fosse verdade — disse Ransom —, qual seria o interesse em dizê-lo?

— Ou do que quer que seja? — replicou Weston. — O único in­teresse em qualquer coisa é que não há interesse algum. Por que é que os fantasmas gostam de meter medo? Porque são fantas­mas. Por que é que havia de ser?

— Estou a perceber a idéia — disse Ransom. — Que a descri­ção que um homem dá do universo, ou de qualquer outra constru­ção, depende muito do lugar onde ele se encontra.

— Mas especialmente — disse Weston — do fato de estar do lado de dentro ou do lado de fora. Todas as coisas em que gosta­mos de passar a vista são coisas do lado de fora. Um planeta como o nosso, ou como Perelandra, por exemplo. Ou um belo corpo hu­mano. Todas as cores e formas agradáveis estão meramente on­de isto acaba, onde isto deixa de ser. Do lado de dentro que vamos encontrar? Escuridão, vermes, calor, pressão, sal, sufocação, fe­dor.

Seguiram por alguns minutos em silêncio, lavrando as ondas que se iam tornando mais largas. Os peixes pouco pareciam avan­çar.

— É claro que você não se importa — disse Weston. — Que é que vocês, que estão na tal casca, se importam conosco? Você ainda não foi puxado lá para baixo. É como um sonho que tive uma vez, embora não soubesse então quão verdadeiro era. Sonhei que estava estendido morto...está vendo, muito bem preparado no átrio de uma enfermaria, com a cara arranjada pelo empregado da agência funerária e grandes lírios na sala. E depois uma espé­cie de uma pessoa que estava toda a cair aos pedaços... como um vagabundo, sabe, só que era ele mesmo e não as suas roupas quem estava a ficar em bocados... veio e ali ficou aos pés da cama, só a lançar-me o seu ódio. «Muito bem», disse ele, «muito bem. Pensa que está magnífico com o seu lençol limpo e o seu caixão brilhante que está a ser preparado. Eu comecei assim. Todos começamos. Espera e verás aquilo a que chegas no fim.»

 

— Francamente — disse Ransom. — Penso que bem podia calar-se.

— Depois há o Espiritismo — disse Weston, ignorando a su­gestão. — Costumava pensar que era tudo asneira. Mas não é. É tudo verdade. Já notou que todos os relatos agradáveis dos mor­tos são tradicionais ou filosóficos? Aquilo que a experiência real descobre é muito diferente. Ectoplasma... finas películas que saem da barriga de um médium e que fabricam grandes caras, caóticas e decadentes. Escrita automática produzindo resmas de lixo.

— Você é o Weston? — disse Ransom, voltando-se subitamente contra o seu companheiro. A voz persistente e murmu­rante, tão bem articulada que tinha de se forçar os ouvidos para acompanhar o que ela dizia, estava a começar a irritá-lo.

— Não se zangue — disse a voz. — Não serve de nada zangar-se comigo. Pensei que tivesse pena. Meu Deus, Ransom, é hor­rível. Não compreende. Lá no fundo, debaixo de camadas e cama­das. Sepultado vivo. Tentamos ligar as coisas e não podemos. Tiraram-nos a cabeça... e nem sequer podemos olhar para trás, para a vida como ela era na superfície, porque sabemos que ela nunca mais quis dizer nada, mesmo desde o início.

— Que é você? — gritou Ransom. — Como é que sabe como é a morte? Deus sabe que eu o ajudaria se pudesse. Mas indique-me os fatos. Onde esteve você estes últimos dias?

— Psh — disse o outro subitamente —, que é isto?

Ransom escutou. Parecia certamente haver um novo elemen­to no grande concerto de ruídos pelo qual estavam rodeados. Ao princípio não podia defini-lo. O mar era agora muito cavado e o vento estava forte. No mesmo instante o seu companheiro esten­deu a mão e ferrou-a no braço de Ransom.

— Oh, meu Deus! — gritou ele. — Oh Ransom, Ransom! Va­mos ser mortos. Mortos e postos debaixo da casca. Ransom, você prometeu ajudar-me. Não os deixe apanharem-me outra vez.

— Cale-se — disse Ransom, desgostoso, pois a criatura esta­va a gemer e a chorar de maneira que não podia ouvir nada mais: e ele queria muito identificar a nota m ais baixa que se tinha mis­turado ao assobiar do vento e ao rugir das águas.

— Rebentação — disse Weston —, rebentação, seu louco! Não ouve? Há terra ali adiante! Há costa de rochas. Olhe ali... não, pa­ra a direita. Vamos ficar esmagados em geléia. Olhe... Oh, Meu Deus, aí vem a escuridão!

E a escuridão veio. Terror da morte tal como nunca tinha conhecido, horror pela criatura aterrada a seu lado, caiu sobre Ransom: e finalmente, um terror sem objeto definido. Em pou­cos minutos pôde ver, através da noite negra como breu, a nuvem luminosa da espuma. Da forma como ela subia quase na vertical calculou que estava a rebentar em penhascos. Pássaros invisí­veis, com um guincho, passavam baixo sobre as suas cabeças, precipitadamente.

— Está aí, Weston? — bradou Ransom. — Então que é isso? Aguente-se firme. Todas essas coisas que tem estado a dizer são baboseiras. Diga a oração de uma criança se não é capaz de dizer a de um homem. Arrependa-se dos seus pecados. Tome a minha mão. Neste momento há centenas de simples jovens enfrentan­do a morte na Terra. Havemos de fazer boa figura.

A mão dele foi agarrada no escuro, com bastante mais força do que ele desejava:

— Não sou capaz de aguentar, não sou capaz de aguentar — veio na voz de Weston.

— Firme agora. Deixe-se disso — bradou em resposta, pois Weston tinha-lhe de súbito deitado ambas as mãos ao braço.

— Não sou capaz de aguentar — repetiu a voz.

— Hei! — disse Ransom. — Largue. Que diabo está você a fa­zer? — e, quando ele falava, uns braços fortes tinham-no arran­cado da sela, tinham-no rodeado num terrível abraço mesmo abaixo das coxas, e, agarrando-se inutilmente à superfície lisa do corpo do peixe, foi arrastado para baixo. As águas fecharam-se sobre a sua cabeça e o Inimigo continuava a puxá-lo para baixo, para o fundo morno, e ainda mais para baixo para onde já não era morno.

 

— Não consigo suster a respiração mais tempo — pensou Ransom. — Não consigo. Não consigo. — Coisas frias e viscosas desli­zavam para cima, sobre o seu corpo em agonia. Decidiu deixar de suster a respiração, abrir a boca e morrer, mas a sua vontade não obedeceu à sua decisão. Não só o peito mas também as têmporas pareciam ir estourar. Era inútil lutar. Os braços não encontravam o adversário e as pernas estavam imobilizadas. Teve consciência de se estarem a mover para cima. Mas isso não lhe dava qualquer esperança. A superfície estava demasiado longe, não conseguia aguentar até lá chegarem. Na presença imediata da morte todas as idéias de uma vida posterior desapareceram-lhe da mente. A mera proposição abstrata — Este é um homem a morrer-flu­tuava diante dele de uma forma não emocional. Subitamente um rugido de som penetrou-lhe nos ouvidos-estrondos e ruídos es­tridentes. Aboca abriu-se automaticamente. Estava a respirar outra vez. Numa escuridão de breu cheia de ecos estava a agar­rar o que parecia ser cascalho e a dar furiosamente pontapés para se libertar do torno que continuava a prender-lhe as pernas. E então ficou livre e a combater outra vez: uma luta às cegas meio dentro meio fora de água naquilo que parecia ser uma praia de ca­lhaus, com pedras mais aguçadas aqui e ali que lhe cortavam os pés e os cotovelos. A escuridão estava cheia de pragas ofegantes, ora na sua própria voz, ora na de Weston, com uivos de dor, pancadas estrondosas, e o ruído de respiração cansada. No final estava montado em cima do Inimigo. Apertou-lhe os lados entre os joelhos até as costelas estalarem e cerrou as mãos em torno do pescoço dele. Fosse como fosse, foi capaz de resistir ao rasgar fe­roz dos seus braços pelo adversário — e continuou a apertar. Já uma vez tinha tido de apertar assim, mas isso fora numa artéria, para salvar uma vida, não para matar. Pareceu durar anos. Mui­to depois de a criatura ter deixado de estrebuchar ele ainda não se atrevia a abrandar o seu aperto. Mesmo quando ele estava to­talmente certo de que já não respirava, manteve-se sentado no peito e conservou as mãos cansadas na garganta do seu adversário, embora agora sem fazer força. Estava ele mesmo quase a des­maiar, mas contou até mil antes de mudar deposição. Mesmo en­tão continuou sentado no corpo dele. Não sabia se naquelas últi­mas horas o espírito que falara com ele era realmente o de Wes­ton ou se ele fora vítima de um ardil. Na verdade, isso fazia pou­ca diferença. Havia, sem dúvida, uma confusão de pessoas na condenação final: aquilo que os panteístas falsamente espera­vam do Céu, os maus recebiam realmente no Inferno. Eram fun­didos dentro do seu Mestre, como um soldado de chumbo se aba­te e perde a sua forma no colherão colocado sobre o bico de gás. A questão de saber se é Satanás que está a atuar numa dada oca­sião, ou alguém que Satanás absorveu, não tem a longo prazo qualquer significado claro. Entretanto, o importante era não ser outra vez iludido.

Não havia nada a fazer, então, exceto esperar pela manhã. Pelo troar dos ecos todos em redor dele concluiu que estavam nu­ma baía muito estreita entre penhascos. Como lá tinham chega­do era um mistério. Amanhã devia estar muitas horas afastada. Isto era um incômodo considerável. Decidiu não deixar o corpo até o ter examinado à luz do dia e talvez ter tomado outras me­didas para garantir que ele não podia ser reanimado. Até lá tinha de passar o tempo o melhor que pudesse. A praia de calhaus não era muito confortável e quando tentou encostar-se para trás en­controu uma parede irregular. Felizmente estava tão cansado que por um tempo o mero fato de estar sentado e quieto o satisfez. Mas esta fase passou.

Tentou tirar o melhor partido da situação. Resolveu desistir de calcular que horas eram. — A única resposta segura — disse para consigo — é pensar na hora mais matutina que se supusesse possível, e depois admi­tir que a hora autêntica é duas horas mais cedo que essa. — En­ganou o tempo recapitulando toda a história da sua aventura em Perelandra. Recitou tudo o que podia recordar da Ilíada, á Odisseia, da Eneida, da Canção de Rolando, Paraíso Perdido, da Kalavala, a Caça ao Snark, e uma rima acerca das leis dos sons ale­mãs que compusera quando calouro da universidade. Tentou demorar-se tanto quanto podia atrás dos versos de que não conse­guia recordar-se. Pôs a si mesmo um problema de xadrez. Ten­tou esboçar um capítulo para um livro que estava a escrever. Mas tudo isso falhou.

Aquelas coisas continuaram, alternando com períodos de inatividade obstinada até lhe parecer que dificilmente podia recordar qualquer momento anterior daquela noite. Mal podia acreditar que, até mesmo para um homem maçado e de vela, doze horas pudessem parecer tão longas. E o ruído — o desconforto desgastante e incerto! Era muito estranho, agora que pensava nisso, que aquela terra não tivesse nenhuma daquelas doces bri­sas noturnas que encontrara por todas as outras partes em Perelandra. Era também estranho (mas este pensamento veio-lhe, parecia, horas mais tarde) que nem sequer tivesse as cristas fos­forescentes das ondas em que deleitar os olhos. Muito lentamen­te raiou nele uma possível explicação para ambos os fatos: e explicaria também por que é que a escuridão durava tanto tem­po. A idéia era demasiado terrível para permitir quaisquer faci­lidades ao medo. Controlando-se, ergueu-se rigidamente e começou a caminhar com cuidado ao longo da praia. O seu progresso foi muito lento: mas os seus braços estendidos acabaram por tocar rocha perpendicular. Pôs-se em bicos dos pés e esticou os braços para cima até onde podia. Nada mais encontraram além de rocha.

— Não te excites — disse para consigo mesmo. Começou a ca­minhar às apalpadelas em sentido inverso. Chegou ao corpo do Não-homem , passou por ele e foi mais além, seguindo a curva da praia oposta. Encurvava rapidamente, e aí, antes de ter andado vinte passos, as mãos — que levava erguidas por cima da cabe­ça — encontraram, não uma parede, mas um teto de rocha. Al­guns passos mais e ficava mais baixo. Depois teve de se curvar. Um pouco mais tarde e tinha de andar de joelhos. Era óbvio que o teto descia até finalmente encontrar a praia.

Agoniado de desespero, apalpou o caminho de volta até ao corpo e sentou-se. A verdade estava agora fora de dúvidas. Não havia vantagem alguma em esperar pela manhã. Não haveria manhã nenhuma ali até ao fim do mundo, e talvez já tivesse es­perado uma noite e um dia. Os ecos ressoantes, o ar parado, o pró­prio cheiro do lugar, tudo confirmava isso. Ele e o seu Inimigo, quando se afundaram, tinham claramente, por uma probabilida­de de um centésimo, sido levados através de um buraco nos roche­dos bem abaixo do nível das águas e vindo à tona na praia de uma caverna. Era possível inverter o processo? Desceu até à beira da água — ou antes, apalpou o caminho a descer até os seixos esta­rem molhados; a água veio até ele. Troou sobre a sua cabeça e até muito para trás dele, e depois recuou com um puxar a que só resistiu deitando-se na praia, de pernas e braços abertos e deitan­do as mãos às pedras. Seria inútil mergulhar naquilo — iria sim­plesmente partir as costelas contra a parede oposta da caverna. Se se tivesse luz e um ponto alto para daí mergulhar, seria até concebível que se pudesse ir até ao fundo e daí dar com a saída... mas muito duvidoso. E de qualquer maneira, não se tinha luz al­guma.

Embora o ar não fosse muito bom, supôs que a sua prisão tinha de ser abastecida de ar por algum lado — mas se o era por alguma abertura que ele pudesse alcançar era outra questão. Voltou-se de imediato e começou a explorar a rocha por detrás da praia. Ao princípio parecia não haver esperança, mas a convicção de que as cavernas podem conduzir a uma parte qualquer custa a morrer, e depois de algum tempo as suas mãos às apalpadelas encontraram uma plataforma com cerca de três pés de altura. Trepou para cima dela. Esperava que tivesse apenas algumas polegadas de fundo, mas as suas mãos não puderam encontrar nenhuma parede em frente. Com extremo cuidado deu alguns passos em frente. O seu pé direito tocou em qualquer coisa afia­da. Assobiou de dor e prosseguiu ainda com mais cautela. Depois encontrou uma rocha vertical-lisa por ali acima até onde alcan­çava. Virou para a direita e deixou de ter parede. Virou à esquer­da e começou a avançar outra vez e quase logo a seguir bateu com o dedo do pé. Depois de massageá-lo por um momento passou a an­dar de mãos e joelhos no chão. Parecia estar entre blocos, mas o caminho era praticável. Durante dez minutos ou coisa assim fez assaz bom andamento: o caminho era bastante íngreme, por vezes em seixos escorregadios, por vezes sobre o topo de grandes pedras. Depois chegou a um outro rochedo. Parecia haver neste uma plataforma a cerca de quatro pés de altura, mas desta vez uma realmente estreita. Subiu par a ela de um a maneira qualquer e colou-se à superfície, tateando para a esquerda e para a direi­ta à procura de pontos onde se agarrar.

Quando encontrou um e compreendeu que agora estava pres­tes a tentar trepar a valer, hesitou. Lembrou-se de que o que lhe ficava por cima podia ser um penhasco que mesmo à luz do dia e devidamente vestido nunca se atreveria a trepar: mas a esperan­ça murmurava-lhe que podia bem ter, igualmente, apenas sete pés de alto e que alguns minutos de calma podiam levá-lo a es­sas passagens suavemente serpenteantes, até ao coração da montanha que tinha, nessa altura conquistado uma posição fir­me na sua imaginação. Decidiu prosseguir. Aquilo que o preocu­pava não era, de fato, o medo de cair, mas o medo de ficai com o acesso cortado à água. Pensava que podia enfrentar a fome: a sede, não. Mas continuou. Durante alguns minutos fez coisas que nunca fizera na Terra. Sem dúvida que era de certo modo auxiliado pela escuridão: não tinha qualquer sensação real de altura, nem vertigens. Por outro lado, operar só pelo tacto dava origem a trepar de forma doida. Sem dúvida que, se alguém o tivesse vis­to, teria parecido num dado momento correr riscos loucos e nou­tro entregar-se a excessiva cautela. Tentou manter afastada do seu espírito a possibilidade de estar a trepar para no fim encon­trar simplesmente um teto.

Cerca de um quarto de hora depois encontrou-se numa exten­sa superfície horizontal — uma plataforma muito mais profunda ou o topo do precipício. Descansou ali por um tempo e cuidou das suas feridas. Depois levantou-se e começou a avançar com cau­tela, esperando a todo o momento encontrar outra parede de rocha. Quando, depois de cerca de trinta passos, ainda tal não acontecera, experimentou gritar e pelo som concluiu que estava num espaço bastante aberto. Então continuou. O solo era de sei­xos pequenos e subia com inclinação sensível. Havia pedras maiores mas ele aprendera a dobrar para cima os dedos do pé quando este apalpava o chão à sua frente e agora já raramente batia com eles. Um inconveniente menor era que, mesmo na­quela escuridão perfeita, não podia evitar forçar os olhos para ver. Causou-lhe dor de cabeça e originou luzes e cores fantasmas.

Aquela lenta caminhada a subir através da escuridão durou tanto que começou a ter medo de estar a andar à volta, em círculo, ou de ter ido parar por engano a uma galeria que seguia eterna­mente sob a superfície do planeta. A subida constante, de certa maneira, sossegou-o. A fome de luz tornou-se muito dolorosa. Deu por si a pensar na luz como um homem esfomeado na comi­da — imaginando encostas em Abril com nuvens leitosas a cor­rer sobre elas nos céus azuis ou círculos de luz de candeeiros so­bre mesas agradavelmente pejadas com livros e cachimbos. Por uma curiosa confusão da mente achou impossível não imaginar que a vertente sobre a qual caminhava não era meramente escu­ra, mas sim negra por direito próprio, como com fuligem. Achou que os pés e as mãos deviam estar enegrecidos por lhe tocar. Sem­pre que se imaginava a chegar a qualquer luz, imaginava tam­bém essa luz a revelar-lhe um mundo de fuligem todo à volta dele.

Bateu seriamente com a cabeça contra qualquer coisa e sentou-se no chão meio atordoado. Quando recuperou, verificou às apalpadelas que a encosta de seixos tinha chegado ao teto de ro­cha lisa. Tinha o ânimo muito em baixo enquanto ali esteve sen­tado, digerindo a sua descoberta. O som das ondas subia fraca e melancolicamente lá em baixo e dizia-lhe que estava agora a uma grande altura. Por fim, embora com muito pouca esperança, começou a andar para a direita, mantendo contacto com o teto com os braços levantados. Ao fim de pouco tempo o teto recuou para fora do seu alcance. Muito tempo depois disso ouviu o som de água. Prosseguiu mais devagar, com grande medo de encon­trar uma queda de água. Os seixos começaram a ficar molhados e por fim chegou a um pequeno charco. Virando à esquerda foi realmente dar com uma queda de água, mas era um pequeno ri­beiro, sem força de corrente que o pudesse pôr em perigo. Ajoe­lhou nas águas encrespadas e bebeu da cachoeira e pôs a cabeça dorida e os ombros cansados debaixo dela. Depois, muito refres­cado, tentou abrir caminho por ela acima.

Conquanto as pedras fossem escorregadias com uma espécie de musgo e muitos dos charcos fossem fundos, não se apresenta­ram dificuldades sérias. Em cerca de vinte minutos tinha alcan­çado o topo, e tanto quanto podia julgar, gritando e notando o eco, estava agora num a caverna realmente muito vasta. Tomou o ri­beiro como guia e tratou de o seguir. No escuro sem feições, era uma espécie de companhia. Uma certa esperança real — distin­ta da mera convenção de esperança que sustenta os homens em situações desesperadas — começou a penetrar-lhe no espírito.

Foi pouco depois disto que começou a ficar preocupado com os ruídos. O último ruído fraco do mar no pequeno buraco de onde ele tinha partido tantas horas atrás tinha-se agora desvanecido e o som predominante era o suave tinir do regato. Mas agora começava a pensar que ouvia outros ruídos misturados com ele. Umas vezes seria um barulho surdo como se alguma coisa tives­se escorregado para dentro de um dos charcos para trás dele: ou­tras vezes, mais misteriosamente, um matraquear seco, como se metal estivesse a ser arrastado sobre pedras. Ao princípio pôs o caso de lado como sendo imaginação. Então parou uma vez ou duas para escutar e nada ouviu, m as de cada vez que prosseguiu o som começava de novo. Por fim, parando uma vez mais, ouviu de forma absolutamente inequívoca. Poderia ser que o Não-homem tivesse apesar de tudo voltado ávida e estivesse ainda a se­gui-lo? Mas isso parecia improvável, pois todo o seu plano tinha sido escapar. Não era tão fácil eliminar a outra possibilidade — que aquelas cavernas pudessem ter outros habitantes. Toda a sua experiência, na verdade, garantia-lhe que, se existissem tais habitantes, seriam provavelmente inofensivos, mas de algum modo não podia acreditar totalmente que algo que vivesse em tal lugar viesse a ser agradável, e um pequeno eco da conversa do Não-homem — ou era de Weston — voltou-lhe à idéia.-Tudo muito belo à superfície, mas lá dentro, no fundo... es­curidão, calor, horror e fedor.

Depois ocorreu-lhe que se alguma criatura estivesse a segui-lo pelo regato acima, talvez fosse bom deixar as margens e es­perar até a criatura ter passado. Mas se o estivesse a perseguir estaria presumivelmente a fazê-lo pelo cheiro, e em qualquer ca­so não se arriscaria a perder o regato. Por fim, continuou.

Quer devido à fraqueza — pois estava agora realmente com muita fome — ou porque os ruídos atrás dele o fizessem apressar involuntariamente o passo, deu por si desagradavelmente quen­te, e mesmo o regato não parecia muito refrescante quando me­tia nele os pés. Começou a pensar que, quer fosse perseguido ou não, tinha de ter um curto descanso — mas nesse preciso momento viu a luz. Os seus olhos tinham sido enganados tantas vezes antes que ao princípio não queria acreditar. Fechou-os enquan­to contava até cem e olhou outra vez. Deu meia volta e sentou-se durante vários minutos, rezando para que não fosse um a ilusão, e olhou outra vez.

— Bem — disse Ransom — se é uma ilusão, é uma ilusão mui­to teimosa. — Uma pequena luminosidade, trêmula, muito baça, levemente vermelha na cor, estava na sua frente. Era demasia­do fraca para iluminar alguma coisa mais, e naquele mundo de escuridão não podia dizer se distava cinco pés ou cinco milhas. Partiu de imediato, com o coração a bater. Graças aos céus, o re­gato parecia conduzi-lo à luz.

Quando pensava estar ainda a uma grande distância achou-se quase a pôr-lhe os pés em cima. Era um círculo de luz que ba­tia n a superfície da água, que formava ali um charco fundo e trêmulo. Vinha de cima. Entrando no charco olhou para cima. Uma mancha de luz de forma irregular, agora distintamente verme­lha, estava imediatamente acima dele. Desta vez era suficiente­mente forte para lhe mostrar os objetos que o rodeavam de mais perto, e quando os seus olhos os dominaram percebeu que esta­va a olhar por uma chaminé ou fissura por cima de si. A abertu­ra encontrava-se no teto da sua caverna, o qual se devia encon­trar ali apenas a poucos pés acima da sua cabeça: a abertura su­perior era obviamente no pavimento de uma câmara superior e separada, de onde vinha a luz. Podia ver o lado irregular da cha­miné, reduzidamente iluminado, e revestido com placas e faixas de uma vegetação de aspecto gelatinoso e bastante desagradável. Por aquilo abaixo escorria água que lhe caía na cabeça e ombros, numa chuva morna. Este calor, juntamente com a cor vermelha da luz, sugeriam que a caverna superior era iluminada por fogo subterrâneo. Não será claro para o leitor, e não era claro para Ransom quando depois pensou nisso, porque é que ele decidiu imediatamente passar para a caverna superior se lhe fosse pos­sível fazê-lo. Aquilo que o movia, pensou, era a mera fome de luz. A simples primeira olhadela à chaminé restaurou dimensões e perspectiva ao seu mundo, e isto em si mesmo era como a liber­tação da prisão. Parecia dizer-lhe bastante mais daquilo que o rodeava do que efetivamente dizia: restituía-lhe todo o quadro de direções espaciais sem as quais um homem com dificuldades parece capaz de chamar seu ao próprio corpo. Depois daquilo, qualquer regresso ao horrível vácuo negro, ao mundo de fuligem e de sujidade, ao mundo sem tamanho nem distância, no qual tinha andado a vaguear, estava fora de questão. Talvez também tivesse a idéia de que o que quer que fosse que o estava a seguir deixaria de o fazer se ele pudesse passar para a caverna ilu­minada.

Mas isso não era fácil de fazer. Não conseguia alcançar a aber­tura da chaminé. Mesmo quando saltava, apenas chegava a tocar as orlas da sua vegetação. Por fim assentou num plano imprová­vel, o qual era o melhor que podia pensar. Havia ali luz à justa para ele ver um certo número de pedras maiores no meio do cas­calho, e pôs-se ao trabalho para construir uma pilha no centro do charco. Trabalhou assaz febrilmente e muitas vezes teve de des­fazer o que tinha feito, e experimentou várias vezes antes de ela chegar à altura realmente suficiente. Quando finalmente ficou pronta e ele se encontrou de pé, a suar e a tremer, no alto dela, o risco real ainda estava para ser corrido. Tinha de agarrar a vegetação de cada lado, por cima da cabeça, confiando na sorte para que ela aguentasse, e meio pular meio puxar tão depressa quanto pudesse, uma vez que, se aguentasse alguma coisa, tinha a certeza de que não aguentaria muito. Mas conseguiu. Conse­guiu entalar-se dentro da fenda, com as costas contra um dos la­dos e os pés contra o outro, como um montanhista naquilo a que se chama uma chaminé. A espessa vegetação mole e úmida pro­tegia-lhe a pele e, depois de alguns esforços para subir assim, verificou que as paredes da passagem eram tão irregulares que podia trepar por elas da forma habitual. O calor aumentava ra­pidamente.

— Sou maluco por vir aqui para cima — disse Ransom; mas ao acabar de dizer isto chegara ao topo.

Ao princípio ficou cego pela luz. Quando por fim pôde absor­ver o que o rodeava encontrou-se num vasto átrio tão cheio de luz do fogo que lhe dava a impressão de ser escavado em barro ver­melho. Estava a olhar no sentido do comprimento. O pavimento era um declive, do lado esquerdo. No direito subia para o que pa­recia ser o bordo de um rochedo, para além do qual ficava um abis­mo de brilho que cegava. Um rio largo e pouco fundo corria no meio da caverna. O teto era tão alto que era invisível, mas as pa­redes remontavam na escuridão com curvas largas como as raí­zes de uma faia.

Cambaleou ao pôr-se de pé, chapinhou ao atravessar o rio (que ao tocar era quente) e aproximou-se do bordo do rochedo. O fogo parecia estar milhares de pés abaixo e não conseguia ver o outro lado do poço no qual ele inchava e rugia e se retorcia. Os seus olhos apenas o suportavam por um segundo ou coisa assim e, quando virou as costas, o resto da caverna parecia às escuras. O calor no corpo era doloroso. Afastou-se da borda do rochedo e sentou-se de costas para o fogo para assentar idéias.

Assentou-as de uma forma que não buscava. Subitamente e irresistivelmente, como,um ataque de tanques, aquela visão com­pleta do universo que Weston (se era Weston) tanto lhe tinha pre­gado ultimamente tomou posse quase total do seu espírito. Pareceu-lhe ver que tinha estado a viver toda a sua vida num mun­do de ilusão. Os espíritos, os malditos espíritos, tinham razão. A beleza de Perelandra, a inocência da Dama, os sofrimentos dos santos e as afeições carinhosas dos homens, todos eram uma apa­rência e espetáculo exterior. Aquilo a que chamara mundos não eram mais que a pele dos mundos: um quarto de milha abaixo da superfície, e a partir daí através de milhares de milhas de escu­ro e de silêncio e de fogo infernal, até ao coração mesmo de cada um, vivia a Realidade — a idiotia onipotente e sem sentido para a qual todos os espíritos eram irrelevantes e perante a qual todos os esforços eram vãos. O que quer que o estava a seguir havia de subir por aquele buraco molhado e escuro, havia de ser dali a pouco expelido por aquela conduta medonha, e então ele morre­ria. Fixou os olhos na escura abertura da qual ele mesmo tinha acabado de emergir. E então.— Pensei isto mesmo — disse Ransom.

Vagarosamente, tremulamente, com movimentos não natu­rais e inumanos, uma forma humana, escarlate à luz do fogo, saiu a rastejar para o pavimento da caverna. Era o Não-homem , é cla­ro: arrastando a sua perna partida e com o maxilar inferior caído, aberto como de um cadáver, ergueu-se até à posição de pé. E en­tão, mesmo atrás dele, alguma coisa mais saiu para fora do buraco. Primeiro veio o que parecia serem ramos de árvores e de­pois seis ou sete pontos luminosos, agrupados irregularmente como uma constelação. Depois uma massa tubular que refletia o clarão vermelho como se fosse polida. O seu coração deu um grande pulo quando os ramos subitamente se transformaram em antenas compridas semelhantes a arames e os pontos de luz se tornaram nos muitos olhos de uma cabeça com um capacete em forma de concha e a massa que se seguia revelou-se um grande corpo aproximadamente cilíndrico. Seguiram-se coisas horríveis — pernas angulares, com muitas articulações, e depois de tudo, quando pensava que todo o corpo estava à vista, um segundo corpo veio a seguir e depois desse um terceiro. A coisa era em três partes unidas por uma espécie de estrutura como — uma cinta de vespa — três partes que não pareciam estar verdadeiramente ali­nhadas e que davam à coisa o ar de ter sido pisada — uma enorme deformidade palpitante, com muitas pernas, que se erguia logo atrás do Não-homem de forma que as sombras horríveis de ambos dançavam, como uma enorme e unida ameaça, na parede de rocha por detrás deles.

— Querem aterrorizar-me — disse qualquer coisa no cérebro de Ransom, e no mesmo momento ficou convencido de que o Não-homem tinha convocado aquele grande ser rastejante, e também de que os maus pensamentos que tinham precedido a aparição do Inimigo tinham sido introduzidos na sua mente pela vontade do Inimigo. O conhecimento de que os pensamentos podiam ser as­sim manipulados de fora não despertou terror mas raiva. Ran­som verificou que se tinha erguido, que se estava a aproximar do Não-homem , que estava a dizer coisas, talvez coisas loucas, em in­glês.

— Pensa que vou suportar isto? — bradou. — Sai do meu cérebro. Não é teu, digo-te eu! Sai de lá para fora. — Enquanto gritava tinha apanhado uma pedra grande e irregular do lado do regato.

— Ransom — regougou o Não-homem —, espere! Estamos ambos apanhados na ratoeira... — Mas Ransom já estava em ci­ma dele.

— Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, lá vai... que­ro dizer, Amen — disse Ransom, e arremessou a pedra com toda a força que podia contra a cara do Não-homem . Este caiu, como cai um lápis, a cara esmagada e totalmente irreconhecível. Ran­som não lhe deitou um olhar, mas virou-se para enfrentar o ou­tro horror. Mas para onde tinha ido o horror? A criatura estava ali, uma criatura de formas curiosas, sem dúvida, mas toda a re­pugnância tinha desaparecido da sua mente, de forma que nem então nem em qualquer outra ocasião a conseguia recordar, nem jamais entenderia de novo por que é que uma pessoa havia de travar-se de razões com um animal pelo fato de este ter mais per­nas ou olhos do que ela. Tudo o que sentia desde criança sobre in­setos e répteis morreu nesse momento: morreu completamente, como a música medonha morre quando se desliga o rádio. Apa­rentemente, tudo fora, mesmo desde o começo, um feitiço negro do Inimigo. Uma vez, quando estava sentado a escrever perto de uma janela aberta em Cambridge, olhara para cima e estreme­cera ao ver, como supunha, um escaravelho de muitas cores e uma forma especialmente horrenda rastejando através do seu papel. Um segundo olhar mostrou-lhe que era uma folha morta, movida pela brisa; e simultaneamente as próprias curvas e reentrâncias que faziam a sua fealdade tornaram-se na sua beleza. Naquele momento tinha quase a mesma sensação. Viu logo que a criatura não lhe queria fazer mal algum — na verdade, não mostrava qualquer intenção de tal. Tinha sido arrastada para ali pelo Não-homem , e agora estava parada, movendo as antenas, apalpando o ar. Então, não gostando aparentemente do que o ro­deava, deu laboriosamente a volta e começou a descer para den­tro da cova através da qual tinha saído. Quando viu a última sec­ção do seu corpo tripartido rolar pela borda da abertura e depois finalmente virar para cima no ar a sua cauda em forma de torpedo, Ransom quase desatou a rir.

— Como um comboio de corda de corredor — foi o seu comen­tário. Virou-se para o Não-homem . Dificilmente lhe restava algu­ma coisa a que se pudesse chamar uma cabeça, mas pensou que era melhor não correr riscos alguns. Agarrou-o pelos tornozelos e arrastou-o por ali acima até à borda do rochedo; então, depois de descansar por uns segundos, empurrou-o para lá da borda. Viu a sua forma negra, por um segundo, sobre um mar de fogo; e aí foi o fim de tudo.

Rolou, mais do que rastejou, de volta ao regato e bebeu pro­fundamente. «Este pode ser o meu fim ou pode não ser», pensou Ransom. «Pode haver saída destas cavernas ou pode não haver. Mas hoje não dou mais um passo. Nem que fosse para salvar a vi­da..nem para salvar ávida. Isto é categórico. Louvado seja Deus. Estou estafado.» Um segundo mais tarde estava a dormir.

 

Durante o resto da viagem subterrânea, depois do seu longo sono na caverna iluminada pelo fogo, Ransom estava algo fraco da cabeça, com a fome e a fadiga. Lembra-se de estar estendido imóvel depois de ter acordado pelo que pareciam ser muitas ho­ras e mesmo de ter debatido consigo próprio se valia a pena pros­seguir. O momento de decisão autêntico tinha-se desvanecido do seu espírito. As imagens regressavam de uma forma caótica e desconjuntada. Havia uma comprida galeria aberta num lado para o poço de fogo e um lugar terrível onde nuvens de vapor su­biam perpetuamente. Sem dúvida, uma das muitas torrentes que rugiam ali nas vizinhanças caía nas profundezas do fogo. Pa­ra lá disso estavam grandes átrios, ainda reduzidamente ilumi­nados e cheios de riqueza mineral desconhecida, que faiscava e dançava na luz e lhe enganava os olhos, como se ele estivesse a explorar uma sala de espelhos com o auxílio de uma lanterna de bolso. Parecia-lhe, além disso, embora tal pudesse ser delírio, que ele atravessava o espaço de uma vasta catedral, que era mais o trabalho da arte que o da Natureza, com dois grandes tronos num extremo e cadeiras de cada lado, demasiado largas para os ocupantes humanos. Se as coisas eram reais, nunca para elas achou qualquer explicação. Havia um túnel escuro em que sopra­va um vento, vindo sabe o céu de onde, que lhe atirava areia para a cara. Havia também um lugar onde ele mesmo caminhou no escuro e olhou para baixo através de braças atrás de braças de pi­lares e arcos naturais e golfos serpenteantes até um pavimento liso iluminado com uma luz verde e fria. E quando ele estava a olhar, pareceu-lhe que quatro dos grandes escaravelhos de den­tro da terra, reduzidos pela distância ao tamanho de mosquitos e rastejando a dois e dois, vieram a ficar lentamente à vista. E vi­nham a arrastar atrás deles um carro sem taipais, e no carro, muito direita, firme, erguia-se uma forma coberta por um man­to, enorme, imóvel e esbelta. E conduzindo as suas estranhas parelhas continuou com insuportável majestade e desapareceu de vista. Seguramente o interior daquele mundo não era para o homem. Mas era para uma coisa qualquer. E pareceu a Ransom que poderia haver, se uma pessoa conseguisse encontrá-la, algu­ma maneira de renovar a velha prática de propiciar aos deuses locais de lugares desconhecidos de uma forma tal que não cons­tituísse ofensa ao Próprio Deus, mas apenas um pedido de descul­pa prudente e cortês pela intrusão. Aquela coisa, aquela forma enfaixada na sua carruagem, era sem dúvida uma criatura como ele. Não se seguia que eles fossem iguais ou tivessem direitos iguais na terra lá em baixo. Muito tempo depois chegou o bater de tambor — o boom-ba-baa-boom-boom vindo da escuridão de breu, distante ao princípio, depois a toda a sua volta, depois de­saparecendo após um prolongamento infindável de ecos no labi­rinto negro. Depois veio a fonte de luz fria — uma coluna, como de água, brilhando com qualquer radiância própria, e pulsando, e nunca mais próxima por muito que ele andasse, e que por fim subitamente se eclipsou. Não descobriu o que era. E assim, depois de mais coisas estranhas e grandeza e labor do que eu posso con­tar, chegou um momento em que os seus pés escorregaram sem aviso no barro — um deitar a mão desordenado, um espasmo de terror-e aí estava ele debatendo-se atabalhoadamente na água profunda e correndo velozmente. Pensou que mesmo se escapas­se a morrer espatifado contra as paredes do canal, iria no fim de tudo mergulhar junto com o regato no poço de fogo. Mas o canal devia ser muito retilíneo e a corrente era menos violenta do que supusera. Em qualquer caso nunca tocou nos lados. Encontrou-se, afinal, deslizando desamparado através da escuridão res­soante. Durou imenso tempo.

Compreende-se que com a perspectiva da morte, e o cansaço, e o grande ruído, a sua mente estivesse confusa. Mais tarde, olhando para trás para a aventura, parecia-lhe que flutuava para fora da escuridão e para dentro do cinzento e depois para um caso inexplicável de azuis, verdes e brancos semitransparentes. Havia uma sugestão de arcos por cima da sua cabeça e de colu­nas levemente reluzentes, mas todos vagos e todos a obliterarem — se uns aos outros logo que eram vistos. Parecia uma caverna de gelo, mas quente de mais para isso. E o teto por cima parecia ele mesmo ondular comova, água, mas isso era sem dúvida reflexo. Um momento mais e foi arremessado para a luz do dia, para o ar livre e para o calor, e rolado, pés por cima da cabeça, e deposi­tado, maravilhado e sem fôlego, nos fundos baixos de uma extensa lagoa.

Estava agora quase fraco de mais para se mexer. Qualquer coisa no ar, e o amplo silêncio que fazia de pano de fundo para o solitário clamor dos pássaros, disse-lhe que estava no alto de uma alta montanha. Rolou mais do que rastejou para fora da la­goa e para cima da vegetação azul e cheirosa. Olhando para trás, para o local de onde tinha vindo, viu um rio que fluía da boca de uma caverna, uma caverna que realmente parecia ser feita de gelo. Debaixo dela a água era de um azul espectral, mas perto de onde estava estendido era de uma cor de âmbar, quente. Havia orvalho e frescura a toda a sua volta. Ao seu lado erguia-se um penhasco com um manto de vegetação brilhante, em faixas, mas fulgurante como o vidro onde a própria superfície se mostrava através dela. Mas a isto pouca atenção prestou. Havia ricos ca­chos de uns frutos parecidos com uvas, luzindo sob pequenas fo­lhas pontiagudas, e podia alcançá-las sem ter de se pôr de pé. Do comer passou ao dormir, por uma transição de que nunca pôde lembrar-se.

Nessa altura torna-se cada vez mais difícil transmitir as ex­periências de Ransom numa ordem determinada qualquer. Não tinha idéia alguma de quanto tempo estivera estendido ao lado do rio, à boca da caverna, comendo e dormindo e acordando so­mente para comer e dormir outra vez. Ele pensa que foi apenas um dia ou dois, mas pelo estado do seu corpo quando este perío­do de convalescença terminou, imaginaria que mais devia ter si­do uma quinzena ou três semanas. Era um período para ser re­cordado apenas em sonhos, tal com recordamos a infância. Na verdade foi uma segunda infância, na qual foi amamentado pe­lo próprio planeta Vênus: apartado apenas quando saiu daquele lugar. Três impressões daquele longo Sabbath mantinham-se. Uma era o som infindável da água jubilosa. Outra era a vida de­liciosa que sugava dos cachos que quase pareciam inclinar-se, sem lhes ser pedido, para dentro das suas mãos estendidas para o alto. A terceira era o cântico. Ora bem alto, no ar por cima de­le, ora brotando como se viesse de desfiladeiros e vales lá muito em baixo, flutuava através do sono e era o primeiro som a cada despertar. Não tinha forma, como um canto de um pássaro, e todavia não era a voz de um pássaro. Como a voz de um pássaro está para uma flauta, assim estava aquilo para um violoncelo: baixo, maduro e terno, profundo, rico e castanho-dourado, apai­xonado também, mas não com as paixões dos homens.

Porque ele foi afastado tão gradualmente daquele estado de repouso, não posso dar as suas impressões sobre o lugar onde se encontrava, pedaço a pedaço, à medida que as foi absorvendo. Mas quando ficou curado e o seu espírito se desanuviou, isto é o que ele viu. Os penhascos para fora dos quais o seu rio rompera através da caverna não eram de gelo, mas de uma espécie qual­quer de rocha translúcida. Um pequeno estilhaço partido delas era tão transparente como o vidro, mas os próprios penhascos, quando se olhava para eles de perto, pareciam tornar-se opacos a cerca de seis polegadas da superfície. Subindo o regato até den­tro da caverna e então voltando-se para trás e olhando para a luz, os bordos do arco que formava a boca da caverna eram nitidamen­te transparentes: e dentro da caverna tudo parecia azul. Ele não sabia o que acontecia no topo daqueles penhascos.

Na sua frente, o campo de vegetação rasteira azul manti­nha-se horizontal por cerca de trinta passos, e depois caía com declive pronunciado, levando o rio para baixo numa série de ca­taratas. A encosta estava coberta de flores que abanavam conti­nuamente com uma brisa ligeira. Descia uma grande distância e acabava num vale serpenteante e florestado que se curvava para fora da vista do seu lado direito, em torno de uma encosta majes­tosa: mas para além, mais abaixo — tão mais abaixo que até era quase incrível — avistavam-se os picos do alto das montanhas, e para lá disso, ainda mais tênue, a sugestão de vales ainda mais baixos, e depois tudo se desvanecia numa neblina dourada. No la­do oposto deste vale a terra saltava para cima em grandes voltas e dobras de altura quase como a do Himalaia até às rochas ver­melhas. Não eram vermelhas como os rochedos de Devonshire: eram de um autêntico rosa-vermelho, como se tivessem sido pin­tadas. O seu brilho deixava-o estupefato, e o mesmo acontecia com a agudeza, semelhante à de uma agulha, das suas aspiras, até lhe ocorrer que se encontrava num mundo jovem e que aque­las montanhas podiam estar, geologicamente falando, na sua in­fância. Além disso, podiam estar mais distantes do que pareciam. Para a esquerda dele e atrás, os penedos de cristal impediam a vista. Para a sua direita cedo terminavam, e para lá deles o ter­reno subia até outro pico mais próximo — um pico muito mais bai­xo que aqueles que via do outro lado do vale. A fantástica incli­nação de todas as encostas confirmava a sua idéia de que estava numa montanha muito jovem.

Exceto pelo cântico, tudo aquilo estava muito em sossego. Quando via pássaros a voar, estes estavam usualmente lá muito em baixo. Nas encostas para a sua direita e, menos nitidamente, na encosta do grande maciço que estava de frente para ele, havia um efeito contínuo de ondulações que não conseguia explicar. Era como água a correr: mas uma vez que, se fosse uma corrente na montanha mais longe, teria de ser uma corrente com duas ou três milhas de largo, isso parecia-lhe improvável.

Ao tentar ligar o quadro completo, omiti algo que, de fato, tornou o obter esse quadro numa tarefa demorada para Ransom. O local todo era sujeito a neblina. Estava sempre a desaparecer num véu de açafrão e de ouro muito pálido e a reaparecer de no­vo — quase como se o céu-teto dourado, que parecia só uns pés acima do cume das montanhas, estivesse a abrir-se e a despejar cá para baixo as suas riquezas sobre o mundo.

Dia a dia, à medida que vinha a conhecer mais sobre o lugar, Ransom também veio a conhecer mais do estado do seu mesmo corpo. Durante muito tempo estava quase demasiado inteiriçado para se mexer e mesmo uma inspiração mais descuidada o fazia estremecer com a dor. Sarou, contudo, surpreendentemente de­pressa. Mas, tal e qual como um homem que deu uma queda só descobre onde se magoou realmente quando as equimoses e gol­pes menores passam a doer menos, também Ransom estava quase bom quando detectou o seu dano corporal mais sério. Era uma ferida no calcanhar. A forma tornava completamente claro que a ferida fora infligida por dentes humanos — os dentes rom­bos e desagradáveis da nossa própria espécie que esmagam e moem mais do que cortam. Bastante estranhamente, não tinha nenhuma recordação daquela dentada em particular, em qual­quer das suas inúmeras rixas com o Não-homem . Não tinha mau aspecto, mas sangrava ainda. Não sangrava com abundância, mas nada que pudesse fazer conseguia estancar o sangue. Mas pouco se preocupou com isso. Nem o passado nem o futuro real­mente lhe interessavam naquele período. Desejar e temer eram modalidades de consciência para as quais parecia ter perdido a capacidade.

Não obstante, chegou o dia em que sentiu necessidade de uma certa atividade, e contudo ainda não se achava pronto para dei­xar o pequeno fogo entre o charco e o penhasco que se tinha tor­nado num lar. Empregou esse dia a fazer uma coisa que pode parecer assaz tola e contudo na altura pareceu-lhe que dificil­mente podia omiti-la. Descobrira que a substância do penedo translúcido não era muito rija. Então agarrou uma pedra aguça­da de material diferente e abriu uma larga clareira na parede de vegetação do penedo. Depois tirou medidas e espaçou tudo cuida­dosamente e depois de algumas horas tinha produzido o seguin­te. A língua era Solar Antigo, mas as letras eram romanas.

 

Dentro destas cavernas foi queimado

o corpo de Eduardo Rolles Weston

Um sábio hnau do mundo ao qual

os que o habitam chamam Tellus

mas que os eldila chamam Thulcandra

Nasceu quando Tellus tinha completado

Mil oitocentas e noventa e seis translações

em torno de Arbol

Desde o tempo em que Maleldil Bendito seja

 

Nasceu como hnau em Thulcandra

Estudou as propriedades dos corpos

E primeiro entre os telúricos viajou através do Céu

Profundo para Malacandra e para Perelandra

Onde entregou vontade e espírito ao Maléfico

Quando Tellus estava a fazer

a milésima nonacentésima quadragésima segunda

translação depois do nascimento de Maleldil

Bendito seja

 

— Isto foi uma coisa tola — disse Ransom satisfeito, ao estender-se outra vez no chão. — Ninguém jamais vai ler. Mas de­via haver algum registro. No fim de tudo ele era um grande físico. De qualquer forma, deu-me um certo exercício. — Bocejou pro­digiosamente e acomodou-se para outras doze horas de sono.

No dia seguinte estava melhor e começou a dar pequenas ca­minhadas, sem descer mas passeando para trás e para diante na encosta da colina de cada lado da caverna. No dia seguinte esta­va ainda melhor. Mas no terceiro dia estava bem e pronto para aventuras.

Partiu de manhã muito cedo e começou a seguir o curso de água pela colina abaixo. A encosta era muito íngreme mas não existiam aflorações de rocha e a vegetação era macia e elástica e para sua surpresa verificou que a descida não lhe trazia cansaço aos joelhos. Quando já ia a andar há cerca de meia hora e os pi­cos das montanhas opostas estavam agora demasiado altos para se verem e os penedos de cristal por detrás dele eram apenas um resplendor distante, chegou a um novo gênero de vegetação. Es­tava a aproximar-se de uma floresta de árvores pequenas cujos troncos tinham apenas dois pés e meio de alto; mas do topo de ca­da tronco cresciam compridas faixas que não se erguiam no ar mas planavam ao vento apontadas para baixo e paralelas ao ter­reno. Assim, quando chegou ao meio delas, encontrou-se enfia­do até ao joelho e mais, num mar delas continuadamente ondu­lante — um mar que abanava em toda a sua volta tão longe quanto a vista podia alcançar. Era azul na cor, mas mais claro que o azul da vegetação — quase um azul Cambridge no centro de cada faixa, mas a morrer para as bordas, ornadas de borlas e emplu­madas, tomando um delicado cinzento azulado para rivalizar, o qual no nosso mundo exigiria os mais subtis efeitos de fumo e nu­vens. As carícias das compridas e finas folhas na sua pele, ma­cias, quase impalpáveis, a música murmurante, baixa, cantante, sussurrante e o movimento travesso a toda a sua volta, começa­ram a pôr-lhe o coração abater com aquela quase formidável sen­sação de delícia que tinha sentido antes em Perelandra. Com­preendeu que aquelas florestas anãs-aquelas árvores ondulan­tes como já as tinha crismado-constituíam a explicação do mo­vimento semelhante ao da água que ele tinha visto nas encostas mais distantes.

Quando se sentiu cansado, sentou-se e achou-se de imedia­to num mundo novo. Estava numa floresta feita por anões, uma floresta com um teto azul transparente, movendo-se continua­mente e produzindo uma dança sem fim de luzes e sombras sobre o seu pólo de musgo. E viu nessa altura que tinha sido efetiva­mente feita para anões. Através do musgo, que aqui era de ex­traordinária delicadeza, viu o andar para cá e para lá daquilo que a princípio tomou por insetos mas que provou, numa inspeção mais rigorosa, serem minúsculos mamíferos.Havia muitos ratos da montanha, esquisitos modelos à escala dos que tinha visto na Ilha Proibida, cada um com o tamanho aproximado de uma abe­lha grande. Havia pequenos milagres de graça que se pareciam mais com cavalos que qualquer coisa que ele tivesse já visto na­quele mundo, embora se assemelhassem mais a «protohipos» do que ao seu representante moderno.

— Como é que eu posso evitar pisar milhares destes animais? — perguntou-se intimamente. Mas não eram realmente nume­rosos, e a maior quantidade deles parecia toda afastar-se, do seu lado esquerdo. Quando fez menção de se levantar notou que ha­via já muito poucos deles à vista.

Continuou a patinhar através das faixas ondulantes (era como uma espécie de surf vegetal) durante cerca de uma hora mais. Então entrou nos bosques e acabou por chegar a um rio com um curso rochoso que corria cruzando o seu caminho. Tinha, de fato, alcançado o vale florestado, e sabia que o terreno que se apresentava em encosta ascendente através das árvores do lado de lá da água era o começo de uma grande subida. Ali havia som­bra cor de âmbar e solene altura abaixo do teto florestal, e rochas molhadas por cataratas e, acima de tudo, o ruído do tal cântico profundo. Era agora tão forte e tão cheio de melodia que desceu à parte baixa da corrente, um pouco fora do seu trajeto, para pro­curar a sua origem. Isto levou-o quase de imediato para fora das áleas majestosas e das clareiras abertas, para um gênero diferente de bosque. Em breve estava a abrir caminho através de tufos sem espinhos, todos em flor. A cabeça ficou coberta pelas pétalas que choviam sobre ele, os flancos dourados com pólen. Muito do que os seus dedos tocavam era pegajoso e a cada passo que dava o seu contacto com o solo e com a mata parecia despertar novos odores que dardejavam para dentro do seu cérebro e aí geravam enormes e desordenados prazeres. O ruído era agora muito for-te e a mata muito densa, de forma que não conseguia ver uma jar­da à sua frente, quando a música cessou subitamente. Houve um som sussurrante e de ramos quebrados e ele avançou apressada­mente nessa direção, mas nada encontrou. Quase decidira desistir da busca quando o canto recomeçou um pouco mais lon­ge. Uma vez mais foi à procura dele; uma vez mais a criatura parou de cantar e fugiu dele. Deve ter andado a jogar assim às es­condidas com aquilo durante quase uma hora antes de a sua bus­ca ser recompensada.

Pisando cuidadosamente durante uma das mais estrondosas explosões de música, viu finalmente através dos ramos floridos uma coisa qualquer preta. Estacando e permanecendo imóvel sempre que a criatura parava de cantar, e avançando com gran­de cautela sempre que ela começava outra vez, perseguiu-a durante dez minutos. Finalmente ficou completamente à vista, cantando e ignorando que estava a ser observada. Sentava-se di­reita como um cão, preta, lustrosa e brilhante, mas os ombros fi­cavam bem acima da cabeça de Ransom, e as pernas dianteiras, pelas quais eram sustentados, eram como árvores novas, e os lar­gos e macios chumaços em que se apoiavam eram grandes como os de um camelo. A enorme barriga arredondada era branca, e muito lá para cima dos ombros erguia-se o pescoço como o de um cavalo. De onde Ransom se encontrava, a cabeça estava de per­fil — a boca toda aberta enquanto cantava de alegria em trinados em tom cheio, e a música quase ondulava de forma visível na gar­ganta polida. Picou a olhar pasmado para os olhos grandes e líquidos e para as narinas sensíveis e trêmulas. Então a criatu­ra parou, viu-o e fugiu como um a seta e ficou parada, agora a al­guns passos de distância, com as quatro patas no chão, não mui­to mais pequena que um elefante jovem, abanando uma compri­da e enorme cauda. Era a primeira coisa em Perelandra que pare­cia mostrar medo do homem. Todavia não era medo. Quando a chamou, ela aproximou-se. Enfiou o focinho aveludado na sua mão e tolerou o contacto; mas quase de imediato recuou e, do­brando o pescoço comprido, escondeu a cabeça entre as patas. Não conseguiu fazer progressos com ela, e quando por fim ela se retirou para fora da vista não a seguiu. Fazê-lo teria parecido uma ofensa à sua timidez de corça, à dócil suavidade da sua ex­pressão, ao seu evidente desejo de ser para sempre um som, e ape­nas um som, no centro mais espesso dos bosques nunca devassados. Retomou a sua viagem: alguns segundos mais tarde o can­to irrompeu atrás dele, mais forte e mais belo que antes, como se num hino triunfal de regozijo pela liberdade recuperada.

Ransom ocupou-se então a sério da subida à grande monta­nha e em alguns minutos emergiu dos bosques para a parte mais baixa da encosta. Continuou a subir e era tão íngreme que usou as mãos tanto como os pés durante cerca de meia hora e ficou in­trigado ao achar-se afazer isso quase sem fadiga alguma. Então chegou outra vez a uma região de árvores ondulantes. Desta vez o vento não soprava as faixas no sentido descendente mas sim para cima, de forma que o seu trajeto, para os olhos, tinha o as­pecto espantoso de atravessar uma grande queda de água azul que corria no sentido errado, curvando-se e espumando no sen­tido do ponto mais alto. Sempre que o vento falhava por um segundo ou dois, os extremos das faixas começavam a dobrar pa­ra trás sob a influência da gravidade, de forma que parecia que os topos das ondas estavam a ser atiradas para trás por um ven­to forte. Continuou a subir através daquilo durante muito tem­po, sem sentir nunca qualquer real necessidade de descansar, mas descansando ocasionalmente, não obstante. Estava agora tão alto que os penedos de cristal de onde ele tinha partido apa­reciam ao mesmo nível que ele estava, quando olhava para trás para o outro lado do vale. Via agora que a terra saltava para ci­ma para além deles, numa grande extensão da mesma formação translúcida que terminava numa espécie de planalto de vidro. Debaixo do sol nu do nosso planeta aquilo teria sido demasiado brilhante para se poder olhar para lá: ali, era uma neblina trêmula que mudava a cada momento sob as ondulações que o céu de Perelandra recebe do oceano. Para a esquerda do planalto havia alguns picos de rocha esverdeada. Prosseguiu. A pouco e pouco os picos e o planalto foram-se afundando e tornando menores, e dali a pouco surgiu para além deles uma neblina esquisi­ta, como ametista em vapor e esmeralda e ouro, e o bordo desta neblina erguia-se quando ele se erguia e tornou-se por fim no ho­rizonte domar, bem alto acima dos montes. E o mar cresceu fican­do cada vez maior e as montanhas menores, e o horizonte do mar subiu, subiu até as montanhas mais baixas por detrás dele pare­cerem encontrar-se no fundo de uma grande taça de mar; mas em frente, a interminável encosta, ora azul, ora violeta, ora vacilan­te com o movimento ascendente como o fumo das árvores ondu­lantes, elevava-se cada vez mais, até ao céu. E agora o vale ar­borizado, onde encontrara o bicho que cantava, estava invisível, e a montanha da qual ele tinha partido não parecia mais que um pequeno inchaço na encosta da grande montanha, e não havia um único pássaro no ar, nem qualquer criatura debaixo das faixas e continuava ainda sem sentir cansaço, mas sangrando um pouco do calcanhar. Não se sentia só nem com medo. Não tinha desejos e nem sequer pensava em chegar ao cume nem por que é que ha­via de lá chegar. Estar sempre a trepar não era, na sua disposi­ção atual, um processo mas sim um estado, e sentia-se satisfei­to nesse estado da vida. Atravessou-lhe até o espírito que ele ti­nha morrido e não sentia qualquer cansaço porque já não tinha corpo. A ferida no calcanhar convenceu-o de que não era assim; mas se tivesse sido assim e se aquelas fossem montanhas para além da morte, a sua viagem dificilmente podia ser maior e mais estranha.

Nessa noite estendeu-se na encosta, entre os caules das árvo­res ondulantes, tendo por cima da cabeça o teto delicadamente murmurante, docemente perfumado, à prova de vento, e quando veio a manhã retomou a viagem. Ao princípio trepou através de densas névoas. Quando estas abriram, encontrou-se tão alto que o côncavo do mar parecia fechá-lo por todos os lados menos por um; e nesse lado viu os picos cor-de-rosa-vermelha, já não muito distantes, e uma passagem entre os dois picos mais próximos, através da qual viu de relance qualquer coisa macia e lisa. Então começou a sentir uma mistura estranha de sensações — uma sen­sação do perfeito dever de entrar naquele lugar secreto que os pi­cos estavam a guardar, combinada com uma sensação idêntica de assim violar uma interdição. Não se atrevia a atravessar aque­la passagem: e não se atrevia a proceder de outra maneira. Olhou e viu um anjo com uma espada flamejante: sabia que Maleldil o convidava a prosseguir. «Esta é a mais santa coisa que jamais fiz, e a mais ímpia», pensou; mas prosseguiu. E agora estava mesmo na passagem. Os picos de cada lado não eram de rocha vermelha. Tinham de ter interiores de rocha, mas aquilo que via eram gran­des matterhorns[5] vestidos de flores — uma flor com a forma algo como a de um lírio, mas colorida como uma rosa. E em breve o chão que pisava estava atapetado dessas mesmas flores, e tinha de as esmagar ao caminhar, e aí, finalmente, o sangue que lhe vi­nha a correr não deixava sinal visível.

Do colo entre os dois picos olhou um pouco mais para baixo, pois o cume da montanha era uma taça de pouco fundo. Viu um vale, com alguns hectares, tão secreto como um vale no topo de um a nuvem; um vale de puro rosa-vermelho, com dez ou doze dos picos resplandecentes à roda dele, e no centro uma lagoa, casada na clareza pura e sem agitação com o ouro do céu. Os lírios des­ciam mesmo até à borda e marginavam todas as baías e cabos. Cedendo sem resistência ao temor respeitoso que o estava a do minar, avançou a passos largos e de cabeça curvada. Havia qual­quer coisa branca perto da borda da água. Um altar? Uma man­cha de lírios brancos entre as flores vermelhas? Um túmulo? Mas túmulo de quem? Não, não era um túmulo mas sim um caixão, aberto e vazio, e a tampa estava no chão, ao lado.

Então, é claro, compreendeu. Aquela coisa era irmã gêmea do veículo parecido com um caixão, dentro do qual a força dos anjos o tinha trazido da Terra para Vênus. Estava preparado para o seu regresso. Se tivesse dito *é para o meu enterro», os seus senti­mentos não teriam sido muito diferentes. E enquanto pensava nisso ficou gradualmente consciente de que havia algo de singu­lar no que respeitava às flores em dois lugares na sua vizinhan­ça imediata. A seguir, percebeu que a singularidade era na luz: em terceiro lugar, que a singularidade estava no ar assim como no terreno. Então, enquanto o sangue lhe picava as veias e o pos­suía uma sensação, familiar e contudo estranha, de redução da sua pessoa, compreendeu que estava na presença de dois eldila. Ficou imóvel, de pé. Não lhe cabia a ele falar.

 

Uma voz clara como o dobrar de sinos longínquos, uma voz sem sangue, falou saindo do ar e produziu-lhe formigueiros no corpo.

— Já firmaram o pé na areia e estão a começar a ascensão — disse ela.

— O menor vindo de Thulcandra já aqui está — disse uma segunda voz.

— Olha para ele bem-amado e ama-o — disse a primeira.— Na verdade ele não é mais que pó que respira e um toque descui­dado o destruiria. E nos seus melhores pensamentos há coisas tão confundidas que, se nós as pensássemos, a nossa luz perece­ria. Mas ele está no corpo de Maleldil e os seus pecados são per­doados. O seu nome, na sua própria língua, é Elwin, o amigo dos eldila.

— Como é grande o seu conhecimento! — disse a segunda voz.

— Estive lá embaixo dentro do ar de Thulcandra — disse a primeira —, aquém os menores chamam Tellus. Um ar es­pesso e tão cheio do maléfico como o Céu profundo está de Luz. Ouvi os que lá estão prisioneiros falando nas suas línguas dife­rentes e Elwin ensinou-me como é com eles.

Por essas palavras soube que com quem falava era o Oyarsa de Malacandra, o grande arconte de Marte. É claro que não reconheceu a voz, pois não há diferença alguma entre a voz de um eldil e a de outro. E por arte, e não pela natureza, que atingem os tímpanos humanos e as suas palavras nada devem a pulmões ou lábios.

— Se for conveniente, Oyarsa — disse Ransom —, diz-me quem é este outro.

— É Oyarsa — disse o Oyarsa —, e aqui esse não é o meu nome. Na minha própria esfera sou Oyarsa. Aqui sou apenas Ma­lacandra.

— Eu sou Perelandra — disse a outra voz.

— Não compreendo — disse Ransom. — A Mulher disse-me que não havia eldila neste mundo.

— Não viram o meu rosto até hoje — disse a segunda voz —, exceto como a vêem na água e no teto do céu, nas ilhas, cavernas e árvores. Não fui destinado a dirigi-los, mas enquanto eram jovens dirigia tudo o mais. Fui eu quem arrendou esta bola quando ela saiu de Arbol. Enrolei o ar em volta dela e teci o seu teto. Construí a Ilha Fixa e isto, a Montanha Sagrada, como Ma­leldil me ensinou. Os bichos que cantam e os bichos que voam, e tudo o que nada no meu seio, e tudo o que rasteja e abre túneis dentro de mim até ao centro foi meu. E hoje tudo me foi retirado. Abençoado seja Ele.

— Aquele que é pequeno não te entenderá — disse o Senhor de Malacandra. — Pensará que, a seus olhos, isso é um agravo.

— Ele não o diz, Malacandra.

— Não. Essa é outra coisa estranha no que respeita aos filhos de Adão. Houve um momento de silêncio e então Malacandra dirigiu-se a Ransom.

 

— Pensará melhor sobre isto se pensar à semelhança de certas coisas do seu mesmo mundo.

— Penso que entendo — disse Ransom, pois um dos que falam em nome de Maleldil já nos contou. E como quando os filhos de uma casa importante atingem a sua maioridade. Então aqueles que administraram todas as suas riquezas, e os quais pode ser que eles nunca tenham visto, vêm e põem tudo nas suas mãos e entregam as chaves.

— Percebeste bem — disse Perelandra. — Ou como quando o bicho que canta deixa a mãe muda que o amamentou.

— O bicho que canta? — disse Ransom. — De bom grado ouvi­ria mais coisas a esse respeito.

— Os bichos dessa espécie não têm leite e aquilo que geram é sempre amamentado pela fêmea de uma outra espécie. Ela é grande, bela e muda, e até o jovem bicho que canta ser desmama­do fica entre as suas crias e está sujeito a elai Mas quando está crescido torna-se o mais delicado e magnífico de todos os bichos e afasta-se dela. E ela fica maravilhada com o seu canto.

— Por que é que Maleldil fez uma coisa assim? — disse Ransom.

— Isso é o mesmo que perguntar por que é que Maleldil me fez a mim — disse Perelandra. — Mas por agora é suficiente dizer que, dos hábitos destes dois bichos, muita sabedoria há de vir para os espíritos do meu rei e da minha rainha e dos seus filhos. Mas a hora está a chegar, e isto já basta.

— Que hora? — perguntou Ransom.

 

— Hoje é o dia da manhã — disseram uma ou outra ou ambas as vozes. Mas em torno de Ransom havia alguma coisa mais que o som e o seu coração começou a bater depressa.

— Amanhã...quer dizer...? — perguntou. — Está tudo bem? A rainha encontrou o rei?

— O mundo nasce hoje — disse Malaeandra. — Hoje, pela pri­meira vez, duas criaturas dos mundos inferiores, duas imagens de Maleldil que respiram e se reproduzem como os animais, su­biram o degrau onde os vossos pais caíram e sentam-se no trono a que estavam destinados. Nunca tal foi visto antes. Porque não se verificou no seu mundo, aconteceu uma coisa ainda maior, mas não esta. Porque essa coisa maior aconteceu em Thulcandra, es­ta e não a coisa maior acontece aqui.

— Elwin está a cair no chão — disse a outra voz.

— Anima-te — disse Malaeandra. — Não é feito teu. Não é grande, embora tenhas evitado uma coisa tão grande que o Céu Distante vê isso com estupefação. Anima-te, você que é pequeno, e dá-te por satisfeito. Não tenhas medo, não são os seus ombros que estão carregando este mundo. Olha! Está debaixo da sua ca­beça e carrega-te.

— Eles vêm cá? — perguntou Ransom algum tempo depois.

— Já estão bem acima, na encosta da montanha — disse Pe­relandra. — E a nossa hora está a chegar. Preparemos as nossas figuras. Somos difíceis de ver por eles enquanto permanecemos como somos.

— Está muito bendito — respondeu Malacandra. — Mas sob que forma nos devemos apresentar para os honrarmos?

— Vamos aparecer a este que aqui está — disse o outro.

— Pois ele é homem e pode dizer-nos o que lhes é agradável aos sentidos.

— Entendo... entendo qualquer coisa agora — disse Ran­som.

— Quererias que o rei tivesse de forçar os olhos para ver aque­les que vieram para lhes prestar honras? — disse o arconte de Pe­relandra. — Olha antes para isto e diz-nos o que te parece.

A luz muito tênue — as quase imperceptíveis alterações no campo visual — que caracteriza um eldil desvaneceu-se repen­tinamente. Os picos róseos e a lagoa calma desapareceram igual­mente. Um tornado de autênticas monstruosidades pareceu desabar sobre Ransom. Pilares dardejantes cheios de olhos, pul­sações relampejantes de chamas, garras e bicos e massas enca­peladas do que lembrava neve, voavam através de cubos e heptágonos para um vazio infinito.

— Parem... Parem — bradou, e a cena aclarou-se. Olhou em roda, a pestanejar, pelos campos delírios, e acabou por fazer os eldila compreenderem que aquele gênero de aparência não era o adequado para as sensações humanas.

— Olha então para isto — disseram as vozes outra vez. E ele olhou com alguma relutância, e lá ao longe, entre os picos no ou­tro lado do pequeno vale, surgiram rodas a rolar.Não haviamais nada além disso... rodas concêntricas movendo-se com assaz nauseante lentidão uma dentro da outra. Nada havia de terrível nelas se uma pessoa se pudesse habituar ao seu espantoso tama­nho, mas também nada havia de significativo. Pediu-lhes que tentassem uma terceira vez. E subitamente duas figuras huma­nas surgiram diante dele, no lado oposto do lago.

Eram mais altas que os Sorns, os gigantes que tinha encon­trado em Marte. Tinham talvez trinta pés de altura. Eram de um branco ardente como o ferro levado ao rubro branco. A silhueta dos seus corpos, quando olhou para eles com demora contra a pai­sagem vermelha, parecia estar a ondular tênue e rapidamente como se a permanência das suas formas, como as das quedas de água ou das chamas, coexistisse com um movimento impetuoso da matéria que continham. Dentro de uma parcela de uma pole­gada para o interior do contorno, a paisagem era visível através deles: para lá daí eram opacos.

De cada vez que olhava diretamente para eles, pareciam precipitar-se sobre ele com enorme velocidade: sempre que os seus olhos se detinham no que os rodeava, compreendia que estavam estacionários. Isto pode ter sido devido em parte ao fato de o lon­go e cintilante cabelo deles estar esticado para trás, como sob um forte vento. Mas se havia vento não era feito de ar, pois nenhu­ma das pétalas das flores era sacudida. Eles não se encontravam totalmente verticais em relação ao leito do vale: mas para Ran­som parecia (como me tinha parecido a mim na Terra, quando vi um deles) que os eldils estavam verticais. Era o vale — era todo o mundo de Perelandra — que estava inclinado. Lembrou-se das palavras de Oyarsa há muito tempo em Marte: «Eu não estou aqui do mesmo modo que você está aqui». Era-lhe veiculado que as cria­turas se moviam realmente, embora não o fazendo em relação a ele. Aquele planeta que inevitavelmente lhe parecia, enquanto nele estava, um mundo imóvel — o mundo, na realidade — era para eles uma coisa que se movia através dos céus. Em relação ao seu mesmo quadro celestial de referência, avançavam veloz­mente para se manter a par do vale da montanha. Se se tivessem mantido parados, teriam passado por ele demasiado depressa para ele os ver, duplamente deixados para trás pela rotação do planeta em torno do seu mesmo eixo e pela sua marcha para dian­te à roda do Sol.

Os seus corpos, disse ele, eram brancos. Mas um rubor de di­versas cores começava por volta dos ombros e subia pelo pescoço, tremulava sobre o rosto e cabeça e sobressaía em torno da cabe­ça como plumagem ou um halo. Disse-me que podia, em certo sentido, lembrar-se daquelas cores — isto é, conheceria se as visse outra vez — mas não era capaz, por mais esforço que fizes­se, de reconstruir uma imagem visual delas ou de lhes atribuir qualquer nome. As próprias poucas pessoas com as quais ele e eu podemos discutir estes assuntos dão todas a mesma explicação. Pensamos que quando criaturas da espécie hipersomática resol­vem aparecer-nos, não estão de fato impressionando nada a nossa retina mas sim manipulando diretamente as partes apro­priadas do nosso cérebro. Sendo assim, é perfeitamente possível que possam aí produzir as sensações que devíamos ter se os nos­sos olhos fossem capazes de receber aquelas cores do espectro que estão atualmente para além do seu alcance. A «plumagem» ou halo de um eldil era extremamente diferente da do outro. O Oyarsa de Marte brilhava com as cores de manhã, frias, de uma pure­za um pouco metálica, duras e estimulantes. O Oyarsa de Vênus reluzia com um esplendor quente, cheio de sugestões de uma vi­da vegetal transbordante.

Os rostos surpreenderam-no imenso. Nada menos semelhan­te ao «anjo» da arte popular se podia realmente imaginar. A rica variedade, a indicação de capacidade ainda não desenvolvidas, que constituem o interesse dos rostos humanos, estavam inteira­mente ausentes. Uma única e imutável expressão — tão clara que fazia doer e o ofuscava-estava estampada em cada um e não havia lá absolutamente mais nada. Nesse sentido, os rostos deles eram tão «primitivos», tão pouco naturais, se o desejarmos, como os das estátuas arcaicas de Aegina. O que era esta expressão, ele não podia estar certo. Concluiu no fim que era caridade. Mas era aterradoramente diferente da expressão da caridade humana, que vemos sempre quer desabrochando, quer apressando-se a descer ao interior, da afeição natural. Ali não existia qualquer afeição: nenhuma memória dela, mínima e hesitante, mesmo à distância de dez milhões de anos, nenhum gérmen do qual ela pudesse brotar num futuro qualquer, mesmo remoto. O amor puro, espiritual, intelectual projetava-se dos seus rostos como um relâmpago farpado. Era tão pouco semelhante ao amor que nós experimentamos, que a sua expressão podia facilmente ser con­fundida com ferocidade.

Ambos os corpos estavam nus, e ambos estavam livres de quaisquer características sexuais, quer primárias quer secundá­rias. Isso teria sido de esperar. Mas de onde vinha aquela curio­sa diferença entre eles? Verificou que não podia salientar qual­quer característica única onde residisse essa diferença, contudo era impossível de ignorar. Podia tentar-se — Ransom tentou cem vezes — pôr em palavras. Disse ele que Malacandra era como o ritmo e Perelandra como a melodia. Disse que Malacandra o im­pressionava como uma métrica quantitativa, e Perelandra como de cadência. Pensa que o primeiro tinha na mão qualquer coisa parecida com uma lança, mas as mãos do outro estavam abertas, com as palmas viradas para ele. Mas não sei se algumas destas tentativas me ajudou muito. Em todo o caso, o que Ransom viu nesse momento foi o significado real do gênero. Toda a gente por vezes perguntou a si mesma porque é que, em quase todas as lín­guas, certos objetos inanimados são masculinos e outros femini­nos. Que é que há de masculino numa montanha ou de feminino em certas árvores? Ransom curou-me de acreditar que isto seja um fenômeno puramente morfológico, dependente da forma da palavra. Ainda menos o gênero é uma extensão do sexo pela imaginação. Os nossos antepassados não fizeram masculinas as montanhas porque projetavam nelas características de macho. O processo real é o inverso. O gênero é uma realidade, e uma realidade mais fundamental que o sexo. O sexo ê, de fato, mera­mente a adaptação ávida orgânica de uma polaridade fundamen­tal que divide todos os seres criados. O sexo feminino é simples­mente uma das coisas que são do gênero feminino; existem mui­tas outras, e Masculino e Feminino encontram-nos em planos da realidade onde macho e fêmea simplesmente não teriam signifi­cado. Masculino não é macho atenuado, nem feminino fêmea ate­nuada. Pelo contrário, o macho e fêmea das criaturas orgânicas são reflexos assaz tênues e esbatidos de masculino e feminino. As suas funções reprodutivas, as suas diferenças em força e tama­nho, exibem em parte, m as também em parte confundem e representam erradamente, a polaridade real. Tudo isto Ransom viu, como era, com os seus próprios olhos. As duas criaturas brancas não tinham sexo. Mas o de Malacandra era masculino (não ma­cho); a de Perelandra era feminina (não fêmea). Malacandra parecia-lhe ter o ar de alguém de pé e armado, nas muralhas do seu mesmo mundo remoto e arcaico, em vigilância incessante, os olhos vagueando sempre no horizonte para o lado da terra, de on­de o perigo viera há muito tempo.

— O olhar de um marinheiro — disse-me uma vez Ransom; — sabe... olhos que estão impregnados de distância. — Mas os olhos de Perelandra era como se abrissem para dentro, como se fossem o portão com cortinas para o mundo de ondas e ares mur­murantes e errantes, de vida que balançava ao vento e se esparramava em pedras com musgo e descia como o orvalho e subia em direção ao sol, na delicadeza finalmente entretecida na névoa. Em Marte as próprias florestas são de pedra; em Vênus as terras nadam. Pois agora já não pensava mais neles como Malacandra e Perelandra. Chamava-os pelos seus nomes telúricos. Profun­damente maravilhado, pensava para consigo próprio: «Os meus olhos viram Marte E Vênus. Vi Ares e Afrodite». Perguntou-lhes como é que eram conhecidos dos velhos poetas de Tellus. Quan­do e de quem tinham os filhos de Adão aprendido que Ares era um guerreiro e que Afrodite saíra da espuma do mar? A Terra fora cercada, um território ocupado pelo inimigo, desde antes de a his­tória ter começado. Os Deuses não tiveram intervenção aí. Como, então, sabemos nós deles? Isso vem, disseram-lhe, de há muito, e em muitas escalas. Existe um ambiente dos espíritos como existe o do espaço. O universo é uno — uma teia de aranha onde ca­da espírito vive segundo cada linha, uma vasta galeria murmu­rante onde (salvo pela ação direta de Maleldil), embora nenhu­ma notícia se propague em forma imutável, segredo algum pode ser guardado rigorosamente. Na mente do Arconte caído, sob o qual o nosso planeta geme, a memória do Céu Distante e dos deu­ses com os quais ele em tempos convivera está ainda viva. Não, na própria matéria do nosso mundo, os traços da comunidade ce­lestial não estão completamente perdidos. A memória passa através do ventre materno e paira no ar. A musa é uma coisa real. Um tênue sopro, como diz Virgílio, alcança até as gerações ulte­riores. A nossa mitologia é baseada numa realidade mais sólida do que sonhamos: mas está também a uma distância quase infi­nita dessa base. E quando eles lhe contaram isto, Ransom com­preendeu por fim por que é que a mitologia era o que era — ful­gores de força celestial e beleza, tombando sobre uma relva de imundície e imbecilidade. As faces ardiam-lhe por causa da nos­sa raça, quando olhava para os verdadeiros Marte e Vênus e se recordava das loucuras que na terra tinham sido contadas a seu respeito. Então tocou-o uma dúvida.

— Mas eu vejo-os como realmente são? — perguntou.

— Só Maleldil vê qualquer criatura como ela realmente é — disse Marte.

— Como se vêem um ao outro? — perguntou Ransom.

— Não há no seu espírito lugar onde caiba uma resposta a isso.

— Então estou vendo apenas a aparência? Não é nada real?

— Vês apenas uma aparência, pequeno homem. Nunca viu mais que uma aparência do que quer que fosse... nem de Arbol, nem de uma pedra, nem do seu mesmo corpo. Esta nossa aparên­cia é tão verdadeira como a que vês das outras coisas.

— Mas... houve aquelas outras aparências.

— Não. Houve apenas a falha de aparência.

— Não compreendo — disse Ransom. — Todas aquelas outras coisas... as rodas e os olhos... eram mais reais que isto, ou menos?

— A sua pergunta não tem sentido — disse Marte. — Podes ver uma pedra, se estiver à distância conveniente de ti e se você e ela se estiverem a deslocar a velocidades não muito diferentes. Mas se te atirarem a pedra a um olho, qual é então a aparência?

— Eu sentiria dor e veria talvez as estrelas — disse Ransom. — Mas não sei se chamaria a isso uma aparência da pedra.

— Contudo, seria a verdadeira atuação da pedra. E aí tem a sua pergunta respondida. Estamos agora à distância certa de ti.

— E estavam mais perto naquilo que vi primeiro?

— Não quero dizer esse gênero de distância.

— E depois — disse Ransom, ainda a ponderar-há o que eu pensava que era a sua aparência usual... a luz muito débil, Oyarsa, como eu costumava ver-te no seu mesmo mundo. E então essa?

— Isso é a aparência suficiente para através dela te falarmos. Não era preciso mais nada entre nós: nem mais é preciso agora. E para honrar o rei que apareceremos melhor agora. A tal luz é o transbordar ou eco, dentro do mundo dos seus sentidos, de veí­culos feitos para aparecermos uns aos outros ou aos eldila supe­riores.

Nesse momento Ransom notou subitamente uma crescente perturbação de som nas suas costas — de som não coordenado, ruídos roucos e tamborilantes que se intrometiam no silêncio da montanha e nas vozes cristalinas dos deuses, com uma deliciosa nota de quente animalidade. Olhou em volta. Folgando, cabrio­lando, palpitando, deslizando, rastejando, patinhando, com toda a espécie de movimentos — em todos os gêneros de feitio, cor ou tamanho —, um jardim zoológico de bichos de pêlo e de aves derramava-se no vale florido, através das passagens entre os picos, por detrás dele. Vinham sobretudo aos pares, macho e fêmea jun­tos, acariciando-se um ao outro, trepando um por cima do outro, mergulhando por debaixo da barriga um do outro, empoleirados nas costas um do outro. Plumagem flamejante, bicos dourados, flancos lustrosos, olhos líquidos, grandes cavernas vermelhas de bocas plangentes ou que baliam, e tufos de caudas que se sacu­diam, rodeavam-no por todos os lados. «Uma autêntica Arca de Noé!», pensou Ransom, e depois, com súbita seriedade: «Mas nes­te mundo não vai ser precisa nenhuma arca.»

O cântico de quatro bichos cantores ergueu-se num triunfo quase ensurdecedor por cima da multidão agitada. O grande eldil de Perelandra manteve as criaturas do lado de cá da lagoa, deixando vazio o lado oposto do vale, exceto pelo objeto seme­lhante ao caixão. Não ficou claro para Ransom se Vênus falou aos animais ou até se eles tinham consciência da presença dela. A sua ligação com eles era talvez de um gênero mais subtil-totalmen­te diferente das relações que observara entre eles e a Dama ver­de. Ambos os eldila estavam agora no mesmo lado da lagoa que Ransom. Ele e eles e todos os animais estavam virados para a mesma direção. A coisa começou a arranjar-se por si. Primeiro, mesmo na borda da lagoa, estavam os eldila, de pé; entre eles e um pouco atrás, estava Ransom, sentado ainda no meio dos lírios. Atrás dele os quatro animais cantores, sentados nos quartos tra­seiros como cães de chaminé, e proclamando alegria para todos os ouvidos. Atrás destes, de novo, os outros animais. A sensação de cerimônia aprofundou-se. A expectativa tornou-se intensa. A nossa tola maneira humana, fez uma pergunta com o propósito meramente de a quebrar.

— Como é que eles podem trepar até aqui e descer outra vez até lá abaixo e apesar disso sair desta ilha antes de anoitecer? — Ninguém lhe respondeu. Não precisava de uma resposta, pois de certa maneira sabia perfeitamente bem que aquela ilha nunca lhes fora proibida, e que o único propósito ao proibir a outra fora conduzi-los ao trono que lhes estava destinado. Em vez de responder, os deuses disseram: — Fique quieto.

Os olhos de Ransom tinham-se tornado tão habituados à suavidade colorida da luz do dia de Perelandra — especialmente desde a sua viagem nas entranhas escuras da montanha — que dei­xara completamente de notar a sua diferença em relação à luz do dia do nosso próprio mundo. Foi por isso com um choque de dupla estupefação que ele então viu os picos no lado mais afastado do vale a aparecerem realmente escuros contra o que parecia uma aurora terrestre. Um momento mais tarde, sombras nítidas e bem definidas — longas, como as sombras de manhã cedo — es­tavam a estender-sede cada animal, e cada desigualdade do ter­reno e cada lírio tinha o seu lado com luz e o seu lado escuro. Cada vez mais para cima vinha a luz da encosta da montanha. Enchia o vale todo. As sombras desapareceram outra vez. Tudo se encon­trava numa luz do dia pura que não parecia vir de parte nenhu­ma em particular. Ficou a saber para sempre o que se quer dizer por uma luz «pousada em» ou «ofuscando» uma coisa santa, mas não sendo dela proveniente. Pois quando a luz atingiu a sua per­feição e se fixou, realmente, como um senhor no seu trono ou como vinho no seu cálice, e encheu toda a taça florida do topo da mon­tanha e cada fenda com a sua pureza, a coisa santa, o próprio Paraíso nas suas duas Pessoas, o Paraíso caminhando de mãos dadas, os dois corpos brilhando na luz como esmeraldas, mas sem ser demasiado brilhantes para se olhar para eles, apareceram à vista no cavado entre os dois picos, e detiveram-se um momen­to com a mão masculina erguida numa bênção real e pontifícia e depois desceram até ficar no outro lado da água. E os deuses ajoe­lharam e curvaram os enormes corpos diante das formas peque­nas daqueles jovens rei e rainha.

 

Houve um grande silêncio no topo da montanha e Ransom também se prostrou perante o par humano. Quando por fim ergueu os olhos dos quatro pés abençoados, deu por si a falar in­voluntariamente, embora a voz fosse entrecortada e os olhos baços.

— Não se afastem, não me ponham de pé — disse ele. — Nun­ca antes vi um homem ou uma mulher. Vivi toda a minha vida entre sombras e imagens quebradas. Oh meu Pai e minha Mãe, meu Senhor e Senhora minha, não se mexam, não me respondam ainda. Nunca vi os meus próprios pai e mãe. Tomem-me como filho. Temos estado sós no meu mundo há muito tempo.

Os olhos da rainha pousaram nele com amor e reconheceram-no, mas não era na rainha que mais pensava. Era difícil pensar em qualquer coisa a não ser no rei. E como hei de eu — eu que não o vi — dizer-lhes como era ele. Era difícil até para Ransom contar-me como era a cara do rei. Mas não nos atrevemos a omi­tir a verdade. Era o rosto que homem algum pode dizer que não conhece. Poderia perguntar como era possível olhar para ele e não cometer idolatria, não o confundir com Aquele de que ele tinha a aparência. Pois a semelhança era, à sua maneira própria, infinita, de tal forma que se podia uma pessoa espantar de não en­contrar tristeza alguma na sua face e nenhumas feridas nas suas mãos e nos seus pés. E contudo não havia perigo algum de enga­no, nem um único momento de confusão, nem o menor arranco da vontade no sentido de uma reverência proibida. Onde a seme­lhança era maior, menos possível era o engano. Talvez seja sem­pre assim. Um hábil trabalho em cera pode ser feito tão pareci­do com um homem que por momentos nos ilude: o grande retrato, que é muito mais profundamente como ele, não o faz. Imagens de gesso do Santíssimo podem, antes de agora, ter chamado a si a adoração que eram destinadas a despertar para com a realidade. Mas ali, onde a Sua imagem viva, como Ele interior e exterior, fei­ta pelas Suas próprias mãos nuas do funda da arte divina, a Sua obra-prima de auto-retratos saída da Sua oficina para delícia de todos os mundos, caminhava e falava diante dos olhos de Ransom, nunca podia ser tomada por mais que uma imagem. Não, a verdadeira beleza dela estava na certeza de que era uma cópia, parecida, mas não a mesma coisa, um eco, uma rima, a esquisi­ta reverberação da música não criada, prolongada num instru­mento criado.

Ransom perdeu-se por um tempo na admiração maravilhada de tudo aquilo, de forma que quando voltou a si verificou que Perelandra estava a falar, e o que ouviu parecia ser o final de uma longa oração.

— As terras flutuantes e as terras firmes — estava ela a dizer —, o ar e os cortinados nos portões do Céu Distante, os mares e a Montanha Sagrada, os rios cá de cima e os rios debaixo da ter­ra, o fogo, o peixe, os pássaros, os bichos e as outras ondas que ain­da não conheces; tudo isto pôs Maleldil na sua mão a partir des­te dia, enquanto viveres no tempo e depois disso. Daqui em dian­te a minha palavra nada é: a sua palavra é lei imutável e filha au­têntica da Voz. Em todo o círculo que este mundo percorre em tor­no de Arbol, você é Oyarsa. Aproveita-o bem. Dá nomes a todas as criaturas, guia toda a natureza até à perfeição. Dá força aos mais fracos, torna mais claros os m ais escuros, ama a todos. Vive, e alegra-te, oh homem e mulher, Oyarsa de Perelandra, o Adão, a Coroa, Tor e Tinidril, Baru e Boru’ah, Ask e Embla, Yatsur e Yat-surah, caros a Maleldil. Bendito seja Ele!

Quando o rei falou em resposta, Ransom olhou outra vez pa­ra ele. Viu que o par humano estava agora sentado num montí­culo baixo que se erguia perto da margem da lagoa. Tão forte era a luz, que eles produziam reflexos claros na água como teriam fei­to no nosso próprio mundo.

— Apresentamos-te agradecimentos, bela mãe adotiva — disse o rei —, e especialmente por este mundo no qual trabalhas-te durante longos períodos como a própria mão de Maleldil, para que tudo pudesse estar pronto para nós quando acordássemos. Não te conhecemos até hoje. Muitas vezes perguntamos a nós próprios de quem era a mão que víamos nas longas ondas e nas ilhas brilhantes e cujo o hálito nos deliciava no vento, de manhã. Pois, embora nós fôssemos jovens então, vimos indistintamente que dizer «é Maleldil» era verdade, mas não toda a verdade. Rece­bemos este mundo: a nossa alegria é tanto maior porque o toma­mos por dádiva sua e também Dele. Mas que é que Ele estabele­ceu ao vosso espírito fazer daqui por diante?

— Fica ao seu critério, Tor-Oyarsa — disse Perelandra —, se agora me integro apenas no Céu Distante ou também na parte do Céu Distante que para ti é um Mundo.

— É muito nosso desejo — disse o rei — que continues conosco, quer pelo amor que te dedicamos, quer também para que nos possas fortalecer com o seu conselho e até com as suas opera­ções. Sem que tenhamos dado antes muitas vezes a volta a Arbol, não estaremos à altura de gerir o domínio que Maleldil põe nas nossas mãos: nem estaremos ainda prontos para conduzir o mundo através do Céu, nem fazer com que caiam sobre nós a chuva e o bom tempo. Se te parece bem, fica.

— Estou satisfeita — disse Perelandra.

Enquanto este diálogo prosseguia, era maravilhoso que o con­traste entre Adão e os Eldila não fosse motivo de discórdia. Num dos lados, a voz cristalina e sem sangue, e a expressão imutável do rosto branco de neve; no outro, o sangue correndo nas veias, o sentimento tremendo nos lábiosefaiscando nos olhos, o poder dos ombros do homem, a maravilha dos seios da mulher, um esplen­dor de virilidade e uma riqueza de feminilidade desconhecidos na Terra, uma torrente viva de animalidade perfeita — contudo, quando se encontraram, um não parecia ter um grau superior, nem o outro parecia espectral. Animal rationale — um animal, mas também uma alma racional: tal, lembrava-se ele, era a ve­lha definição de Homem. Mas até à altura nunca tinha visto a realidade. Pois agora via aquele Paraíso Vivo, o Senhor e a Da­ma, como a resolução das discórdias, a cumeada que atravessa o que de outra forma seria uma solução de continuidade na criação, a pedra que fecha o arco, completando-o. Ao entrar naquele va­le da montanha tinham subitamente unido a quente multidão dos brutos que estava atrás dele com a inteligência transcorpórea, a seu lado. Fecharam o círculo, e com a sua chegada todas as notas separadas de força ou de beleza, que aquela assembléia ti­nha até aí feito vibrar, tornaram-se uma única música. Mas ago­ra o rei estava de novo a falar.

— E como isto não é simplesmente uma dádiva de Maleldil — disse ele —, mas também uma dádiva de Maleldil por seu inter­médio, e por isso mesmo mais rica, e por isso mais uma vez mais rica. E estas são as primeiras palavras que pronuncio como Tor-Oyarsa de Perelandra; que no nosso mundo, enquanto mundo for, não chegará manhã alguma nem noite sem que nós e os nos­sos filhos falemos a Maleldil de Ransom, o homem de Thulcandra, e o louvemos entre nós. E a ti, Ransom, digo isto, que você nos chamou Senhor e Pai, Senhora e Mãe. E muito bem, pois esse é o nosso nome. Mas, por outra forma, chamamos-te a ti Senhor e Pai. Pois parece-nos que Maleldil te mandou para o nosso mundo naquele dia em que o tempo de sermos jovens estava a chegar ao fim, e a partir daí temos agora de ir para cima ou ir para bai­xo, cair na corrupção ou subir à perfeição. Maleldil levou-nos on­de ele entendia que estivéssemos: mas dos instrumentos de Ma­leldil para isso, você foste o principal.

Fizeram-no atravessar a água para ir ter com eles, patinhan­do, pois a água chegava-lhe apenas aos joelhos. Teria caído a seus pés mas não o deixaram. Ergueram-se para o acolher e ambos o beijaram, boca na boca, coração a coração, como iguais se abra­çam. Teriam feito com que se sentasse no meio deles, mas quando viram que isto o perturbava; deixaram-no. Desceu e sentou-se no chão horizontal, abaixo deles e um pouco para a esquerda. Aí estava voltado para a assembléia — as enormes formas dos deuses e a multidão dos bichos. E então falou a rainha.

— Logo que eliminou o Maléfico — disse ela—, e eu acordei do sono, a minha mente estava esclarecida. É um espanto para mim, Malhado, que durante todos aqueles dias você e eu pudésse­mos ter sido tão jovens. A razão para não se viver ainda na Ter­ra Firme é agora tão evidente. Como podia eu desejar viver lá se­não por que era Firme? E por que desejaria eu o que era Firme a não ser para ter a certeza... para ser capaz num dado dia de de­terminar onde ia estar no dia seguinte e o que me ia acontecer? Eu ia rejeitar a onda... ia tirar as minhas mãos das de Maleldil e dizer-lhe: Dessa maneira não, desta sim... ia pôr em nosso poder aquilo que os tempos haviam de fazer rolar em nossa direção... como se juntássemos hoje os frutos para comer amanhã, em vez de receber o que vier. Isso teria sido um amor frio e fraca confian­ça. E perdidos estes como poderíamos jamais regressar outra vez ao amor e à confiança?

— Estou entendendo isso bem — disse Ransom. — Embora no meu mundo passasse por tolice. Há tanto tempo que somos maus — e aí parou, com dúvidas de ser compreendido, e surpreso de ter usa­do o termo para mau que até aí não sabia que sabia, e que não ou­vira em Marte ou em Vênus.

— Sabemos agora essas coisas — disse o rei, vendo a hesita­ção de Ransom. — Tudo isso, tudo o que aconteceu no seu mun­do, Maleldil meteu na nossa mente. Ficamos a saber do mal, em­bora não como o Maléfico queria que aprendêssemos. Aprende­mos mais que isso, e sabêmo-lo melhor, pois é o estar acordado que compreende o sono e não o sono que compreende o estar acor­dado. Existe uma ignorância do ma] que provém de ser jovem: há uma ignorância mais tétrica que vem de o praticar, como os ho­mens, ao dormir, perdem o conhecimento do sono. Em Thulcandra, agora, são mais ignorantes do mal que nos dias antes de os vossos Senhor e Senhora começarem a praticá-lo. Mas Maleldil tirou-nos de uma ignorância, e nós não penetramos na outra. Foi por intermédio do próprio Maléfico que nos tirou da primeira. Pouco sabia esse espírito obscuro da incumbência que o tinha realmente trazido a Perelandra!

— Perdoa-me, meuPai, se falar insensatamente — disse Ransom. — Vejo como o mal foi levado ao conhecimento da rainha, mas não como o foi ao teu.

 

Então, inesperadamente, o rei riu-se. O corpo dele era muito grande e o seu riso era como se nele houvesse um terremoto, rui­doso, profundo e prolongado, até que no fim Ransom também riu, embora não tivesse visto a graça, e a rainha riu também. E as aves começaram a bater as asas e os bichos a abanar as caudas, e a luz parecia mais brilhante e o pulso de toda a assembléia apressou-se, e novas modalidades de alegria que nada tinha a ver com júbilo, como nós o compreendemos, penetraram em todos eles, como se viesse do próprio ar, ou como se houvesse dança no Céu Distante. Alguns dizem que há sempre.

— Sei o que ele está a pensar-disse o rei, olhando para a rai­nha. — Ele está a pensar que você sofreu e lutou e eu tenho um mundo como recompensa. — Depois virou-se para Ransom e con­tinuou: — Tem razão — disse ele. — Sei agora o que se diz no seu mundo sobre a justiça. E pode ser que digam certo, pois nesse mundo as coisas vão cair sempre abaixo da justiça. Mas Maleldil vai sempre mais acima. Tudo é um dom. Eu sou Oyarsa, não pe­la sua dádiva apenas mas pela da nossa mãe adotiva, não pela desta somente mas pela sua, não só pela sua mas também pela da minha esposa... e não só; de certa maneira pela dádiva dos pró­prios bichos e pássaros. Através de muitas mãos, enriquecida por muitas espécies diferentes de amor e de labor, a dádiva chegou a mim. É a Lei. Os melhores frutos são colhidos para cada um por uma mão qualquer, que não a sua.

 

— Isso não é a totalidade daquilo que aconteceu, Malhado — disse a rainha. — O rei não te contou tudo. Maleldil conduziu-o para muito longe, para dentro de um mar verde onde as florestas crescem do fundo através das ondas...

— O seu nome é Lur — disse o rei.

— O seu nome é Lur — repetiram os eldila. E Ransom com­preendeu que o rei tinha pronunciado não uma observação mas sim uma determinação.

— E lá em Lur (é longe daqui) — disse a rainha — coisas es­tranhas lhe sucederam.

— Será que é bom fazer perguntas sobre essas coisas? — dis­se Ransom.

— Houve muitas coisas — disse Tor, o rei. — Durante muitas, muitas horas aprendi as propriedades das formas, traçando li­nhas no chão de uma pequena ilha, sobre a qual eu estava. Durante muitas horas aprendi novas coisas sobre Maleldil e sobre o Seu Pai e sobre a Terceira Pessoa. Pouco sabíamos disto enquanto éramos jovens. Mas depois disso, Ele mostrou-me na escuridão o que estava a acontecer à rainha. E eu sabia que era possível ela ser destruída. E então vi o que se passara no seu mundo e como a sua Mãe caiu e como o seu Pai caiu com ela, não lhe fazendo com isso bem nenhum e trazendo a escuridão para cima de todos os seus filhos. E então estava diante de mim, como uma coisa que vem ter à minha mão... o que eu havia de fazer num ca­so semelhante. Aí aprendi o mal e o bem, a angústia e a alegria. Ransom esperara que orei relatasse a sua decisão, mas quan­do a voz dele se extinguiu num silêncio pensativo não teve o atrevimento de lhe perguntar.

— Sim... — disse orei. — Embora um homem fosse para ser rasgado em duas metades... embora metade dele se tornasse em terra... A metade viva ainda tem de seguir Maleldil. Pois que, se também essa se deitasse e se tornasse em terra, que esperança haveria para o conjunto? Mas enquanto uma metade vivesse, através dela Ele podia voltar a dar vida à outra. — Aí fez uma lon­ga pausa, e depois falou de novo, algo mais rapidamente. — Não me deu garantia alguma. Terra firme nenhuma. Uma pessoa tem sempre de se atirar para dentro da onda. — Depois assumiu uma expressão mais satisfeita e virou-se para os eldila e falou com ou­tra voz.

— Certamente, oh mãe adotiva — disse ele —, temos muita necessidade de conselhos, pois já a sentimos crescer dentro dos nossos corpos e a nossa jovem sabedoria dificilmente a pode ultrapassar. Não hão de ser sempre corpos ligados aos Mundos Inferiores. Ouve a segunda palavra que digo como Tor-Oyarsa de Perelandra. Enquanto este mundo der dez mil vezes a volta à ro­da de Arbol, deste trono julgaremos e inspiraremos o nosso povo.

O seu nome é Tai Harendrimar, A Colina da Vida.

— O seu nome é Tai Harendrimar — disseram os eldila. — Na Terra Firme, que em tempos foi proibida — disse Tor, o rei —, faremos um grande lugar para o esplendor de Maleldil. Os nossos filhos dobrarão em arcos os pilares de rocha.

 

— O que são arcos? — disse Tinidril, a rainha.

— Arcos — disse Tor, o rei — são quando os pilares de pedra enviam ramos como as árvores e enlaçam os seus ramos uns nos outros e sustentam um grande domo como se fosse folhagem, mas as folhas serão pedras talhadas. E aí os nossos filhos farão imagens.

— O que são imagens? — disse Tinidril.

— Esplendor do Céu Distante! — exclamou o rei com uma grande risada. — Parece que há demasiadas palavras novas no ar. Eu tinha pensado que estas coisas tinham saído da sua mente para dentro da minha, e afinal não tinhas pensado nada nelas. Todavia penso que Maleldil as passou para mim através de ti, não obstante. Hei de mostrar-te casas. Pode ser que nesta matéria as nossas naturezas se invertam e sejas você quem gera e eu quem dá à luz. Mas falemos de assuntos mais simples. Vamos encher este mundo com os nossos filhos. Havemos de conhecer este mun­do até ao centro. Faremos os bichos mais nobres tão sábios que eles se tornarão hnau e falarão: as vidas deles hão de despertar para uma nova vida em nós, como nós despertamos em Maleldil. Quando o tempo estiver maduro para isso e os dez mil círculos es­tiverem quase no fim, rasgaremos a cortina celeste e o Céu Dis­tante tornar-se-á familiar aos olhos dos nossos filhos, como as árvores e as ondas para os nossos.

— E o quê depois disso, Tor-Oyarsa? — disse Malacandra.

— Então, é propósito de Maleldil tornar-nos livres do Céu Distante. Os nossos corpos serão mudados, m as não todos muda­dos. Seremos como os eldila, mas não como os eldila em tudo. E assim mudarão os nossos filhos e filhas na altura da sua matu­ridade, até ser atingido o número que Maleldil leu na mente de Seu Pai antes de os tempos correrem.

— E isso — disse Ransom — será o fim? Tor o rei fitou-o admirado.

— O fim? — disse ele. — Quem falou em fim?

— O fim do seu mundo, quero eu dizer — disse Ransom.

— Esplendor do Céu! — disse Tor. — Os seus pensamentos são diferentes dos nossos. Por essa altura não deveremos estar longe do começo de todas as coisas. Mas haverá uma questão are-solver antes de o começo começar justamente.

— O que é? — perguntou Ransom.

— O seu mesmo mundo — disse Tor —, Thulcandra. O cerco ao seu mundo há de ser levantado, a mancha negra limpa, antes do autêntico começo. Nesses dias Maleldil irá para a guerra... em nós, e em muitos que um dia foram hnau e, no fim de tudo, Nele mesmo a descoberto, Ele descerá em Thulcandra. Alguns de nós irão primeiro. Está no meu espírito, Malacandra, que você e eu es­taremos entre esses. Cairemos sobre a vossa lua, onde existe um mal secreto, e que funciona como o escudo do Maléfico Senhor de Thulcandra... com cicatrizes de muitos golpes. Quebrá-la-emos. A sua luz será extinta. Os seus fragmentos cairão no seu mundo e os mares e o fumo crescerão tanto que os residentes em Thul­candra deixarão de ver a luz de Arbol. E à medida que Maleldil se aproximar, as coisas más no seu mundo mostrar-se-ão despi­das de disfarce, de forma que pragas e horrores cobrirão as suas terras e os seus mares. Mas no fim tudo será purificado e até a memória do seu Oyarsa Negro obliterada, e o seu mundo será belo e doce e reunido ao campo de Arbol e o seu verdadeiro nome será de novo ouvido. Mas poderá ser, Amigo, que nenhum rumor de tu­do isto tenha sido ouvido em Thulcandra? Pensa o seu povo que o seu Maléfico Senhor conservará para sempre a sua presa?

— A maior parte das pessoas — disse Ransom — deixaram de vez de pensar em coisas dessas. Alguns de nós têm ainda o conhecimento: mas não vi de imediato de que é que estavas a falar, por­que aquilo a que chamou o começo estamos nós acostumados a chamar as Ultimas Coisas.

— Eu não lhe chamo o começo — disse Tor o rei. — Não é mais que o eliminar de uma falsa partida de forma a que o mundo pos­sa então começar. Como quando um homem se estende para dor­mir, se encontrar uma raiz retorcida debaixo do ombro mudará de lugar... e depois disso começa o seu sono autêntico. Ou como um homem que ao pôr um pé numa ilha pode dar um passo em fal­so. Firma-se melhore depois disso começa a jornada. Não chama­rias a esse firmar-se uma última coisa?

— E toda a história da minha raça não é mais do que isso? — disse Ransom.

— Não vejo mais que começos na história dos Mundos Inferio­res — disse Tor o rei. — E no seu uma falha em começar. Palas de tardes antes de o dia ter raiado. Eu avanço mesmo agora com uma preparação de dez mil anos... Eu, primeiro da minha raça, a minha raça a primeira das raças, para começar. Digo-te que quando o último dos meus filhos tiver chegado à maturidade e a maturidade se tiver espalhado deles para todos os Mundos Infe­riores, murmurar-se-á que a manhã está a chegar.

— Estou cheio de dúvidas e de ignorância — disse Ransom. — No nosso mundo aqueles que conhecem alguma coisa de Maleldil acreditam que a Sua vinda ao meio de nós e o ter-se feito homem é o acontecimento central de tudo o que acontece. Se me tirar isso, Pai, para onde me vai levar? Certamente que não para a conversa do inimigo que empurra o meu mundo e a minha raça para um canto remoto e me dá um universo sem centro al­gum, mas milhões de mundos que não levam a lado nenhum ou (o que é pior) a mais e mais mundos, para sempre, e me assalta com números e espaços vazios e repetições, e me pede que me cur­ve perante a grandeza. Ou fazes do seu mundo o centro? Mas es­tou embaraçado. Que se vai passar com o povo de Malacandra? Iriam eles pensar também que o seu mundo era o centro? Nem mesmo vejo como o seu mundo pode com razão ser chamado teu. Você foi feito ontem e ele vem da antiguidade. A maior parte de­le é água onde não podes viver. E as coisas que estão debaixo da sua crosta? E o que há com os grandes espaços onde não existem mundos nenhuns? Há uma resposta fácil ao Inimigo quando Ele diz que é tudo sem plano nem sentido? Tão cedo pensamos ver um e logo ele se derrete em nada, ou em qualquer outro plano com que nunca sonhamos, e aquilo que era o centro torna-se no bordo, até duvidarmos se alguma forma ou plano ou esquema foi alguma vez mais que uma partida dos nossos próprios olhos, ludibriados pela esperança ou cansados por olhar de mais. Onde é que tudo isto nos conduz? O que é a manhã de que fala? De que é ela o prin­cípio?

— O princípio do Grande Jogo, da Grande Dança — disse Tor. — Ainda pouco sei a esse respeito. Deixemos os eldila falar.

A voz que falou a seguir parecia ser a de Marte, mas Ransom não tinha a certeza. E quem falou depois disso, não sabia de todo. Pois que na conversação que se seguiu-se aquilo podia chamar-se uma conversação —, embora creia que ele mesmo foi por ve­zes quem falou, nunca sabia que palavras eram dele ou de um ou­tro, ou mesmo se um homem ou um eldil estava a falar. Os dis­cursos seguiam-se uns aos outros — se, na realidade, não tinham lugar todos ao mesmo tempo — como partes de uma música em que todos os cinco tivessem entrado como instrumentos ou como vento soprando pelo meio de cinco árvores que se erguem juntas no topo de uma colina.

— Não falaríamos disso dessa maneira — disse a primeira voz. — A Grande Dança não espera, para ser perfeita, até que os povos dos Mundos Inferiores se lhe juntem. Não falamos de quan­do ela vai começar. Começou antes de sempre. Não houve tempo algum em que não nos alegrássemos perante o Seu rosto, como agora. A dança que dançamos está no centro e todas as coisas fo­ram feitas para a dança. Bendito seja Ele!

Uma outra disse: — Ele nunca fez duas coisas iguais; nunca Ele pronunciou uma palavra duas vezes. Depois de terras, terras melhores não, mas sim bichos; depois dos bichos, bichos melhores não, mas sim espíritos. Depois de uma queda, não a recuperação mas uma no­va criação. Saída de uma nova criação, não uma terceira, mas a própria modalidade de mudança é mudada para sempre. Bendi­to seja Ele!

E uma outra disse: — Está carregada de justiça como uma árvore se curva com a fruta. Tudo é retidão e não há igualdade. Não como quando as pedras estão postas no chão, mas como quando as pedras supor­tam e são suportadas num arco, assim é a Sua ordem; domínio e obediência, gerar e dar à luz, o calor incidindo em baixo e a vida crescendo. Bendito seja Ele!

Uma disse: — Aqueles que juntam anos a anos em grosseira coleção, ou milhas a milhas e galáxias a galáxias, não se aproximaram de Sua grandeza. O dia dos campos de Arbol há de desvanecer-se e os dias do próprio Céu Distante estão marcados. Não é por isso que Ele é grande. Ele habita (todo Ele habita) dentro da semen­te da mais pequena flor e não está apertado: o Céu Distante es­tá dentro Dele, que está dentro da semente, e não o distende. Ben­dito seja Ele!

— O bordo de cada natureza faz fronteira com aquilo de que não contém nenhuma sombra ou semelhança. De muitos pontos sai uma linha, de muitas linhas uma figura de muitas figuras um corpo sólido; de muitos sentidos e pensamentos uma pessoa; de três pessoas Ele mesmo. Assim como os círculos estão para a es­fera, assim os mundos antigos, que não necessitavam de reden­ção, estão para o mundo onde Ele nasceu e morreu. Como o pon­to está para a linha, assim está esse mundo para os frutos mais distantes da sua redenção. Bendito seja Ele!

— E contudo o círculo não é menos redondo que a esfera, e a esfera é o lar e a pátria dos círculos. Infinitas multidões de círcu­los encontram-se encerradas em cada esfera, e se falassem diriam: As esferas foram criadas para nós. Que nenhuma boca os contradiga. Bendito seja Ele!

— Os povos dos mundos antigos que nunca pecaram, para quem Ele nunca desceu cá abaixo, são os povos para benefício dos quais foram feitos os Mundos Inferiores. Pois embora curar o que foi ferido e endireitar o que foi dobrado seja uma nova dimensão da glória, o que é direito não foi feito para poder ser dobrado nem o que está intacto para poder ser ferido. Os povos antigos estão no centro. Bendito seja Ele!

— Tudo aquilo que não é em si mesmo a Grande Dança foi fei­to para que Ele possa descer ao seu interior. No Mundo Caído, Ele preparou para Si mesmo um corpo e uniu-se com o Pó e o fez pa­ra sempre glorioso. Este é o fim e a causa final de toda a criação, e o pecado pelo qual apareceu é chamado Afortunado e o mundo onde isto teve lugar é o centro dos mundos. Bendito seja Ele!

— A árvore foi plantada nesse mundo mas o fruto amadure­ceu neste. A fonte que brotou com sangue e vida misturados no Mundo Caído aqui corre apenas com vida. Passamos as primei­ras cataratas, e daqui para a frente o rio corre profundo e vira em direção ao mar. Esta é a Estrela da Manhã que Ele prometeu aos que conquistam; este é o centro dos mundos. Até agora, tudo tem estado à espera. Mas agora a trombeta soou e o exército está em marcha. Bendito seja Ele!

— Embora homens ou anjos os governem, os mundos são para eles próprios. As águas onde não flutuou, os frutos que não colheste, as cavernas dentro das quais não desceste e o fogo atra­vés do qual o seu corpo não pode passar, não estiveram à espera de você chegar para buscarem a perfeição, embora te obedeçam quando você vier. Vezes sem conta dei a volta a Arbol enquanto não era vivo, e esses tempos não eram um deserto. Neles esta­va a sua voz própria, não meramente um sonho com o dia em que havias de despertar. Também eles estavam no centro. Animem-se, pequenos imortais. Não são a voz que enuncia todas as coisas, nem há eterno silêncio nos locais onde não podem chegar. Pés alguns caminharam no gelo de Glund, nem o farão; olho algum espreitou de baixo para o Anel de Lurga, e a Planície de Ferro em Neruval é casta e vazia. Contudo não é para nada que os deuses caminham incessantemente em torno dos campos de Arbol. Ben­dito seja Ele!

— Esse próprio Pó que está tão disperso no Céu e do qual todos os mundos, e os corpos que não são mundos, são feitos, está no centro. Não espera até que olhos criados o tenham visto ou mãos manuseado, para ser em si mesmo uma força e um esplendor de Maleldil. Apenas uma parte muito pequena já serviu, ou servirá um dia, um bicho, um homem, ou um deus. Mas sempre, e para lá de todas as distâncias, antes de terem chegado e depois de te­rem partido e onde nunca chegam, o que é, é, e pronuncia o cora­ção do santíssimo com a sua própria voz. De todas as coisas, está mais longe Dele, pois não tem vida, nem sensibilidade, nem ra­zão; de todas as coisas, está mais próximo Dele pois sem alma a intervir, como as faúlhas saltam do fogo, Ele manifesta em cada grão de pó a imagem sem confusão da Sua energia. Cada grão, se falasse, diria, eu estou no centro; todas as coisas foram feitas pa­ra mim. Que nenhuma boca se abra a dizer o contrário. Bendito seja Ele!

— Cada grão está no centro. O Pó está no centro. Os Mundos estão no centro. Os bichos estão no centro. Os antigos povos es­tão lã. A raça que pecou está lá. Tor e Tinidril estão lá. Os deu­ses também lá estão. Bendito seja Ele!

— Onde estiver Maleldil, está o centro. Ele está em toda apar­te. Não algo Dele num lugar e algo noutro, mas em cada lugar Ma­leldil na Sua totalidade, mesmo na pequenez para além do que se pensar. Não existe caminho algum fora do centro, salvo para den­tro da Vontade Maléfica que se projeta no Nada. Bendito seja Ele!

— Cada coisa foi feita para Ele. Ele é o centro. Porque esta­mos com Ele, cada um de nós está no centro. Não é como numa ci­dade do Mundo das Trevas onde dizem que cada um tem de viver para sempre. Na Sua cidade todas as coisas são feitas para cada um. Quando Ele morreu no Mundo Caído, Ele morreu não por mim, mas por cada homem. Se cada um dos homens tivesse sido o único homem criado, Ele não teria feito menos. Cada coisa, do simples grão de Pó ao mais poderoso eldil, é o fim e a causa últi­ma de toda a criação e o espelho no qual o raio de luz do Seu es­plendor Vem pousar e regressa a Ele. Bendito seja Ele!

— No plano da Grande Dança, planos sem número encadeiam-se, e cada movimento torna-se, na sua altura, o florescer do esquema completo para o qual tudo o mais fora orientado. As­sim cada um está igualmente, e nenhum lá está por serem iguais, mas uns por darem lugar e outros por o receberem, as pequenas coisas pela sua pequenez e as grandes pela sua grandeza, e todos os esquemas ligados e entrelaçados uns nos outros pelas uniões de um amor ajoelhado e outro com o cetro real. Bendito seja Ele!

— Ele tem incomensurável uso para cada coisa que é feita, de forma que o Seu amor e o Seu esplendor possam correr como um rio forte que precisa de um amplo leito e enche igualmente pro­fundas lagoas e pequenas fendas, que são igualmente cheias e se mantêm desiguais; e quando as encheu até aos bordos, transbor­da e abre novos canais. Nós também necessitamos, para além das medidas, de tudo o que Ele fez. Amai-me, meus irmãos, pois sou-vos infinitamente necessário e fui feito para vosso encanto. Ben­dito seja Ele!

-— Ele não tem necessidade alguma de qualquer coisa que te­nha sido feita. Um eldil não é mais indispensável para Ele que um grão de Pó: um mundo povoado não mais indispensável que um mundo que está vazio, mas todos igualmente dispensáveis, e aquilo que todos somam para Ele é nada. Nós também para na­da precisamos de qualquer coisa criada. Amai-me, irmãos, pois sou infinitamente supérfluo e o vosso amor será como o Dele, não nascido da vossa necessidade nem do meu merecimento, mas uma simples concessão. Bendito seja Ele!

— Todas as coisas são feitas por Ele e para Ele. Ele manifesta-Se também para Seu mesmo deleite e vê que Ele é bom. Ele é por Si mesmo gerado e aquilo que Dele provém é Ele mesmo. Bendito seja Ele!

— Tudo o que é feito parece não ter plano para a mente obscura, porque h amais planos do que ela procurava. Nestes ma­res há ilhas onde os fios da vegetação do solo são tão finos e tão estreitamente entretecidos que, a não ser que um homem olhas­se longamente para eles, não veria nem os fios, nem o tecido, nem nada, mas apenas tudo igual e plano. Assim é com a Grande Dan­ça. Ponhamos os olhos num movimento e ele levar-nos-á através de todos os esquemas e parecer-nos-á o movimento base. Mas o que parece, será verdade. Que nenhuma boca se abra a dizer o contrário. Parece não haver plano algum porque tudo é plano: parece não haver centro nenhum porque tudo é centro. Bendito seja Ele!

— Porém este parecer é também o fim e a causa última para os quais Ele estende o Tempo até tão longe e o Céu até tão fun­do, para que, se nunca encontrarmos o escuro, e a estrada que não leva a parte nenhuma, e a pergunta para a qual não é imaginá­vel resposta alguma, não tenhamos nas nossas mentes nada de semelhante com o Abismo do Pai, dentro do qual, se uma criatu­ra deixar cair os seus pensamentos, jamais ouvirão o eco de vol­ta. Bendito seja Ele!

E nessa altura, por uma transição que não notou, parecia que o que começara como falta se tornara em visão ou em qualquer coisa que apenas pode recordar-se como tendo sido vista. Pensou que via a Grande Dança. Parecia ser tecida pela ondulação entre­laçada de muitos cordões ou bandas de luz, saltando por cima e por baixo umas das outras e abraçadas mutuamente em arabes­cos e desenhos delicados parecidos com flores. Cada figura, quan­do olhava para ela, tornava-se a figura central ou foco de todo o espetáculo, por meio do que o seu olhar desenredava tudo o mais e o fazia incorporar-se na unidade — somente para ser por sua vez enredado, quando olhava para aquilo que tinha tomado por meras decorações marginais e verificava que também aí era re­clamada a mesma hegemonia, e reclamada com razão; mas o pri­meiro esquema não perdia por isso a sua posição, mas antes en­contrava na sua nova subordinação um significado maior que aquele de que tinha abdicado. Podia também ver (apalavra «ver» é porém agora claramente inadequada) onde quer que as fitas ou serpentes de luz se intersectavam, minúsculos corpúsculos de momentâneo brilho: e de algum modo sabia que essas partículas eram as generalidades seculares de que a História fala— povos, instituições, correntes de opinião, civilizações, artes, ciências e coisas assim —, cintilações efêmeras que entoavam o seu curto canto e desapareciam. As próprias fitas ou cordões, nos quais mi­lhões de corpúsculos viviam e morriam, eram coisas de uma na­tureza diferente. Ao princípio não podia dizer o quê. Mas no fim sabia que a maior parte delas eram entidades individuais. Sen­do assim, o tempo no qual se desenvolve a Grande Dança é mui­to pouco semelhante ao tempo como o conhecemos. Alguns dos mais finos e mais delicados cordões eram seres a que chamamos de curta vida: flores e insetos, um fruto ou ura temporal com chu­va e uma vez (pensou ele) uma onda do mar. Outras eram daque­las coisas que nós pensamos também serem duradoiras: cristais, rios, montanhas ou mesmo estrelas. Muito acima destas, em pe­rímetro e luminosidade, e faiscando com cores para além do nos­so espectro, estavam as linhas de seres pessoais, e contudo tão di­ferentes umas das outras no seu esplendor como todas elas de to­das as da classe anterior. Mas nem todos os cordões eram indivi­duais; alguns eram verdades universais ou qualidades univer­sais. Não o surpreendeu então verificar que estas e as pessoas eram cordões e ambos se erguiam juntos contra os meros átomos de generalidade que viviam e morriam no choque das suas cor­rentes; mas mais tarde, quando voltou à Terra, teve dúvidas. E por essa altura a coisa deve ter fugido totalmente do âmbito da visão, como a entendemos. Pois ele diz que a completa figura sólida daqueles círculos enamorados e inter-inanimados foi subi­tamente revelada como as simples superfícies de um esquema muito mais amplo em quatro dimensões, e essa figura como a fronteira de ainda outras em outros mundos: até que, subitamen­te, à medida que o movimento se tornou ainda mais veloz, o en­trelaçamento ainda mais arrebatado, a relevância de todos para todos ainda mais intensa, à medida que dimensão era acrescen­tada à dimensão, e essa parte dele, que ainda conseguia racioci­nar e lembrar, caía cada vez mais para trás da parte que via, mes­mo então, no próprio zênite da complexidade, a complexidade era absorvida e desvanecia-se, como uma fina nuvem branca se des­vanece no azul forte e ardente do céu, e uma simplicidade para além de toda a compreensão, antiga e nova como a Primavera, in­comensurável, diáfana, arrastava-o com cordões de infinito de­sejo para dentro da sua imobilidade. Subiu a uma tal quietude, privacidade e frescura que, no próprio momento em que se encon­trava mais afastado do nosso modo ordinário de ser, tinha a sen­sação de se despir de impedimentos e acordar de um transe e vir a si. Com um gesto de relaxamento olhou em volta dele...

Os animais tinham partido. As duas figuras brancas tinham desaparecido. Tor e Tinidril e ele mesmo estavam sós, na luz do dia normal em Perelandra, de manhã cedo.

— Onde estão os bichos? — disse Ransom.

— Foram tratar dos seus pequenos assuntos — disse Tinidril, foram educar as suas crias e pôr os seus ovos, e construir os seus ninhos e tecer as suas teias e cavar as suas galerias, e cantar e brincar e comer e beber.

— Não esperaram muito — disse Ransom —, pois sinto que ainda é de manhã cedo.

— Mas não da mesma manhã — disse Tor.

— Estivemos aqui bastante tempo, então? — perguntou Ran­som.

— Sim — disse Tor. — Até agora, não sabia. Mas completamos um círculo inteiro em torno de Arbol desde que nos encontramos no topo desta montanha.

— Um ano? — disse Ransom. — Um ano inteiro. Oh Céus, o que pode nesta altura ter acontecido no meu mundo obscuro! Sa­bia, Pai, que estava a passar tanto tempo?

— Não o senti passar — disse Tor. — Acredito que as ondas do tempo hão de muitas vezes mudar para nós daqui por dian­te. Vai depender da nossa própria escolha se vamos estar acima delas e ver muitas ondas ao mesmo tempo ou se as alcançaremos uma de cada vez, como costumávamos fazer.

— Veio-me à idéia — disse Tinidril — que hoje, agora que o ano nos trouxe de volta ao mesmo lugar no Céu, os eldils hão de vir buscar o Malhado para levá-lo de regresso ao seu mesmo mundo.

— Tem razão, Tinidril — disse Tor. Depois olhou para Ransom e disse: — Está a sair um orvalho vermelho do seu pé, como uma pequena nascente.

Ransom olhou para baixo e viu que o seu calcanhar ainda es­tava a sangrar.

— Sim — disse —, foi onde o Maléfico me mordeu. O verme­lho é do Arz (sangue).

— Senta-te, amigo — disse Tor —, e deixa-me lavar o seu pé nesta lagoa. — Ransom hesitou, mas o rei obrigou-o. De modo que acabou por se sentar na pequena duna e o rei ajoelhou na frente dele, na água pouco profunda, e tomou-lhe o pé.

— Então isto é ohru— disse por fim. — Nunca tinha visto an­tes um fluido assim. E esta é a substância com que Maleldil re­fez os mundos antes de ter sido feito mundo algum.

Lavou o pé durante muito tempo mas o sangue não deixava de correr.

— Quer isso dizer que o Malhado vai morrer? — disse Tinidril, por fim.

— Não penso assim — disse Tor. — Penso que qualquer um da sua raça que tenha respirado o ar que ele respirou e bebido as águas que ele tem bebido desde que veio para a Montanha Sagrada não achará fácil morrer. Diz-me, Amigo, não foi no seu mun­do que, depois de terem perdido o paraíso, os homens da sua ra­ça não aprenderam a morrer depressa?

— Tenho ouvido — disse Ransom — que as primeiras gera­ções eram de vida longa, mas a maior parte considera isso apenas uma História ou uma Poesia, e eu nunca tinha pensado na causa.

— Oh — disse subitamente Tinidril. — Os eldila vêm buscá-lo.

Ransom olhou em volta e viu, não as formas brancas seme­lhantes a figuras humanas sob as quais vira pela última vez Mar­te e Vênus, mas apenas as luzes quase invisíveis. Orei e arainha aparentemente reconheceram os espíritos também sob aquele aspecto: tão facilmente, pensou ele, como um rei terrestre reco­nheceria os das suas relações mesmo quando não se encontras­sem com o traje da corte.

O rei largou o pé de Ransom e os três dirigiram-se à uma branca. A tampa estava ao lado, no chão. Todos sentiram um im­pulso para atrasar.

— Que é isto que nós sentimos, Tor? — disse Tinidril.

— Não sei — disse o rei. — Um dia hei de dar-lhe um nome. Este não é o dia para fabricar nomes,

— É como um fruto com um a casca muito grossa — disse Tini­dril. — A alegria do nosso encontro quando nos encontrarmos ou­tra vez na Grande Dança é a parte doce. Mas a casca é espessa... anos mais espessa do que posso contar.

— Vês agora — disse Tor — aquilo que o Maléfico nos teria feito. Se lhe tivéssemos dado ouvidos estaríamos agora a tentar chegar à parte doce sem mordermos através da casca.

— E assim não seria nada a «tal parte doce»-disse Tinidril.

— Agora é altura de ir — disse a voz tilintante de um eldil. Ransom não encontrou palavras nenhumas para dizer enquan­to se estendia na urna. Os lados erguiam-se bem alto acima dele, como muros; para além deles, como se enquadrados numa jane­la em forma de caixão, via o céu dourado e os rostos de Tor e Tini­dril. — Têm de me tapar os olhos — disse ele dali a pouco: e as duas formas humanas desapareceram da sua vista por um mo­mento e regressaram. Os braços vinham cheios dos lírios rosa-vermelho. Ambos se debruçaram e o beijaram. Viu a mão do rei erguida numa bênção e depois nada mais viu naquele mundo. Cobriram-lhe o rosto com as pétalas frescas até ficar cego por uma nuvem vermelha e que cheirava bem.

— Está tudo pronto? — perguntou a voz do rei.

— Adeus, Amigo e Salvador, boa viagem — disseram ambas as vozes. — Adeus, até nós três sairmos das dimensões do tem­po. Pede por nós sempre a Maleldil como nós pediremos sempre por ti. O esplendor, o amor e a força sejam contigo.

Depois veio o grande e incômodo ruído da tampa a ser aferro­lhada por cima dele. Depois, por alguns segundos, sem ruídos, no mundo do qual estava eternamente separado. Depois a sua cons­ciência mergulhou no vazio.



 

[1] No texto, naturalmente, ative-me ao que pensei e senti na altura, uma vez que só isto constitui testemunho em primeira mão: mas existe obviamente espaço para ulteriores especulações quanto à forma sob a qual os eldila se revelam aos nossos sentidos. As únicas considerações sérias sobre a questão, ao que se sabe, devem procurar-se nos princípios do século XVII. Como ponto de partida para investigações futuras, recomendo o que se segue, de Natvilcius (De Aethereo et aerio Corpore, Ba­sileia 1627, n, XII); Liquet simplicem flammem sensibus nostris subjectam non esse corpus proprie dictum angeli vel daemonis, sed potius aut illius corporis sensorium aut superficiem corporis in coelesti dispositione locorum supra cogitationes humanas existentis “Parece que a chama homogênea captada pelos nossos sentidos não é o Corpo, propriamente dito, de um anjo ou demônio, mas antes quer o sensorium desse corpo quer a superfície de um corpo que existe, de uma forma que ultrapassa a nossa concepção, no quadro celestial de referência espacial”.) Por quadro celestial de referência espacial, estou em crer que ele queria dizer aquilo a que chamaríamos agora “espaço multidimensional”. Não, é cla­ro, que Natvilcius soubesse alguma coisa sobre geometria multidimensional, mas chegara empiricamente onde a matemática chegou depois em bases teóricas...        

[2] Em francês no original: Quem dorme, janta. (N. do T.)

[3] Em latim no original: Feliz pecado de Adão. (N. do T.)

[4] Em hebreu no original: Pai, Pai, porque me abandonaste. (N. do T.)

[5] Em alemão no original: grande montanha dos Alpes. (N. do T.)

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades