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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PERIGO DE VIDA / Alfred Hitchcock
PERIGO DE VIDA / Alfred Hitchcock

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

13 grandes escritores de histórias de crime, mistério e suspense assinam os contos deste novo volume da série Alfred Hitchcock, os melhores livros do gênero publicados no Brasil.

 

AQUELA NOITE DE SEGUNDA-FEIRA - Pauline C. Smith
BIG TONY - Jack Ritchie
DR. MARTIN, ADVOGADO DE DEFESA - Jaime Sandaval
SALA DE ESPERA - Charles W. Runyon
GRITANDO O TEMPO TODO - Michael Collins
LADRÕES DE BAZAR - W. L. Heath
O CARCEREIRO - Clark Howard
UM BOM SUJEITO - Richard Deming
UM LUGAR ESQUISITO PARA ESTACIONAR - James Holding
A ESTATUETA DE JADE - Bill Pronzini
UM PEQUENO SINAL COMO ADIANTAMENTO - Stephen Wasylyk
INTERVALO PARA O CAFÉ - Arthur Porges
OS VOLUNTÁRIOS - Reynold Junker

 

 

 

 

AQUELA NOITE DE SEGUNDA-FEIRA
Às nove horas da noite daquela segunda-feira, tão logo terminou a novela das oito, Jim Copeland levantou-se e acendeu a luz da varanda. Sua filha Michele deveria chegar às nove e meia, vinda do trabalho. Era muito pontual.
Bocejou, espreguiçou-se e deu uma olhadela na programação da TV. Como o filme do Canal Quatro era muito longo, passou para o Canal Dois. A seguir, foi até à cozinha, abriu uma lata de cerveja, voltou à sala, sentou-se em frente ao aparelho de televisão e às nove e quinze já estava dormindo.
O vídeo esgotou seus comerciais e deu início a um musical de Doris Day, prosseguindo com os exageros cômicos de Carol Burnett...
Jim Copeland continuava dormindo.
A Sra. Carrie Mason - uma viúva de meia-idade, que morava na casa ao lado - também estava com a televisão ligada, mas já se acomodara na cama. A janela de seu quarto dava para a varanda da casa de Copeland, de modo que ela percebeu quando a luz foi acesa às nove horas. Era para Michele, pensou ela, sabendo que a moça trabalhava, nas noites de segunda-feira, na Loja Harper no Centro Comercial Plaza. Ela deveria chegar pontualmente às nove e meia, apagando a luz em seguida.
Carrie, absorvida com o enredo do filme, só se deu conta de que a luz da varanda continuava acesa quando o filme terminou, às 11 horas. Sua primeira idéia foi de que Jim Copeland se esquecera de apagá-la, após a chegada de Michele.
- Esses homens... - comentou ela, sabendo que Sue, a mulher de Jim, se encontrava em Tremont ajudando a filha casada, que tinha três crianças. Como Sue não estava em casa, Jim Copeland deixava a luz da varanda acesa até àquela hora!
Carrie desligou a televisão, foi até à cozinha, tomou um gole de uísque para ajudar o sono, voltou ao quarto, apagou a luz e abriu a janela apenas parcialmente, de modo que a cortina não permitisse que o sol matinal a acordasse abruptamente, com a triste sensação de que era uma viúva e estava sozinha. Ao correr a cortina, olhou para o pátio onde Michele costumava estacionar o carro e encontrou-o vazio.
Com o coração confrangido, sua mente formulou quatro hipóteses, em rápida sucessão. A primeira: Aquela mocinha de 18 anos, que parecia tão séria, tão estudiosa e tão responsável, talvez fosse como as outras de sua geração, andando por aí, sabe Deus como. A segunda: Aquele pai, que parecia um homem tão cuidadoso, estava deixando sua filha transar à vontade, enquanto ele permanecia com os olhos grudados na televisão, cuja luz a Sra. Mason podia ver na sala de Copeland. A terceira hipótese admitia que pudesse haver acontecido alguma coisa: Michele sempre viera para casa, ao deixar a loja, e seu pai também jamais saíra nos fins de semana. A quarta: Ela deveria ir até lá, para saber o que tinha acontecido, principalmente por ser uma mulher e Sue estar ausente. Lembrou-se, então, que era uma viúva de 40 anos... bem... 45... e seu ato de samaritana poderia ser mal interpretado, especialmente com o bafo do uísque que ingerira.
Preferiu deitar-se, mas dormiu mal, preocupada com aquele lugar vazio no estacionamento do pátio vizinho.
Foi despertada a uma hora da madrugada, com o ruído do automóvel de Jim Copeland, saindo apressadamente da garagem.
Levantou-se e foi espiar pela fresta da cortina. O pátio se encontrava vazio e coberto por uma cerração baixa; a garagem, aberta e escura; a luz da varanda ainda brilhava, bem como a da sala de estar.
Alguma coisa estava errada.
A cidadezinha se localizava entre o mar e as montanhas, calma e sossegada. Com uma crescente megalópole ao sul e uma distante cidade indiferente ao norte, ela não aparecia no noticiário da AP e da UPI, e era ignorada nas previsões do tempo transmitidas pela televisão. Uma localidade esquecida.
Às nove e meia da noite daquela segunda-feira, Linda Fisher, uma colega ("Estou lotada na joalheria, mas Michele passa de um departamento para outro, porque freqüenta o colégio - compreende? - e trabalha apenas duas noites por semana, mais o sábado...") viu Michele no estacionamento profusamente iluminado.
- Tenho certeza, naturalmente, de que era Michele Copeland. Ela estava em pé junto ao carro, aquele seu fusquinha verde, e abanou quando meu marido e eu entramos em nosso carro. Ele me apanha às nove e vinte, mais ou menos. Costuma estacionar na Seção A e, quando chego, passamos para a Seção D, que fica próxima a um bar onde fazemos um lanche ligeiro.
O bar - conforme Linda Fisher explicou à polícia na terça-feira, ao ser interrogada - fica aberto até às 10 da noite. Ela e o marido saíram pouco antes do fechamento. Havia apenas um carro na Seção D, no momento em que eles partiram, provavelmente o do dono do bar, o que foi confirmado por este, acrescentando que saíra uns cinco minutos depois de seus últimos fregueses, mas rumou em direção oposta. Ao sair da Seção D, fazendo o retorno em Sargent, não havia - pelo menos era a idéia que tinha - mais nenhum automóvel no estacionamento. É claro que não prestara muita atenção e também não olhara para trás, na direção da Seção A, onde estacionavam os carros da Harper. Por que deveria ter olhado? Seu caminho era na outra direção.
Quando Linda Fisher e seu marido deixaram o estacionamento da Seção D, após o lanche, eram mais ou menos 9:55 e, ao passarem novamente pela Seção A, viram que o carro de Michele continuava lá, com um pneu arriado. Imaginaram então que ela tivesse ido com o amigo que a estava ajudando, pois o carro dele não estava mais no estacionamento.
- Um amigo? - perguntou a polícia.
Como Linda sabia que se tratava de um amigo? Ela e o marido tinham visto aquele homem apenas às nove e meia, aproximadamente. Não, não o conheciam e somente puderam perceber que ele era alto, magro e moreno. Trazia um macaco na mão e seu carro - pelo menos o que parecia ser seu carro - estava estacionado ao lado do de Michele; por isso, pensaram que, ao sair da loja, Michele encontrara um pneu furado e pedira o auxílio de um amigo.
Perguntada sobre a cor do carro, Linda não soube responder com certeza; clara, provavelmente branca.
De qualquer forma, Michele acenara para Linda e evidentemente não o faria se houvesse algo errado, não é verdade?
Linda não confessou que seu marido quisera parar.
- Talvez eu possa ajudar - dissera ele, querendo ser delicado.
- Não seja intrometido - respondera Linda. - Ela já tem quem a auxilie.
Na verdade, Michele era bonita e o dever de Linda incluía o de manter o marido afastado de garotas bonitas.
Apesar de tudo, desde aquela manhã de terça-feira, quando depôs na polícia, Linda estava espicaçada pela angustiosa suspeita de que talvez o gesto de Michele, acenando para ela às nove e meia da noite de segunda-feira, não fosse uma saudação carinhosa, mas um desesperado pedido de socorro.
Deveria ela transmitir essa suspeita à polícia? E o que adiantaria isso agora?
Na manhã de terça-feira, Sue Copeland, mãe de Michele, se preparava para deixar a casa de sua filha Dorrie, em Tremont, imediatamente após o café da manhã.
- Mas mamãe, por que tão cedo? São somente duas horas de viagem e, quando você chegar lá, papai estará no escritório e Michele na escola. Por que não espera mais um pouco, partindo à tarde?
Sue não sabia a razão da pressa, salvo se, desacostumada com as peraltices de três crianças durante um longo fim de semana, de repente sentisse saudades do sossego de seu lar.
- Ora, Dorrie, é melhor eu ir logo. Acho que preciso dar uma arrumação lá em casa...
A desculpa era evidentemente esfarrapada, pois Michele sempre fora muito cuidadosa e Jim seria incapaz de colocar alguma coisa fora de seu lugar.
Dorrie não se mostrava disposta a aceitar o argumento e retrucou:
- Bem, se você não se interessa em ouvir sobre a viagem e o discurso que Hal fez na convenção... - Uma irritada tentativa para encobrir a egoísta posição de uma filha casada que manda chamar sua mãe, distante duas horas de automóvel, para uma visita de três dias, apenas porque é uma solução mais barata e mais conveniente do que contratar uma babá para cuidar das crianças à noite, uma garota que não varre a casa, não lava a roupa e não cozinha. - Se não tem prazer em fazer-nos uma visita... Pensei que ficasse um pouco mais, pelo menos até que tivéssemos voltado para casa e Hal ido para o escritório. Assim, poderíamos conversar sozinhas. Sempre pensei que você só fosse embora à tarde, ou pelo menos ao meio-dia.
- Desculpe, querida - respondeu Sue vagamente, juntando suas malas e apanhando as chaves do carro. - Desculpe - repetiu, com uma enorme vontade de voltar para casa, sem saber o motivo.
Beijou os três netos e a filha, embarcando no carro.
- Gostaria de contar-lhe a respeito de nossa viagem, mamãe - disse Dorrie, apoiando-se na janela do carro e apelando para as lágrimas, agora que sua mãe estava mesmo resolvida a partir. - Gostaria que ficasse mais tempo. Não parece justo
que, depois de haver tomado conta das crianças e da casa, você vá-se embora assim de repente.
- Fica para outra vez, querida - replicou Sue, ligando o motor e sentindo-se incapaz de explicar sua obsessão em voltar imediatamente para casa.
Enfrentou o tráfego matinal, saindo da cidade e tomando a estrada do norte, em meio à cerração e às nuvens baixas do inverno. Conseguiu fazer o percurso em menos de duas horas, deixando a auto-estrada, contornando o trevo de Sargent, passando pelo estacionamento do Centro Comercial Plaza, sem notar o pequeno carro verde que, com um pneu arriado, continuava estacionado na Seção A, diretamente atrás da loja Harper.
Sue percorreu as ruas residenciais na direção da velha zona suburbana e se dirigiu para Rio Mesa. Logo que fez a curva, na extremidade do quarteirão, notou que o carro de Michele não se encontrava no pátio, como seria de esperar, em se tratando de uma terça-feira, às 10 horas. Fez a curva para entrar na garagem e foi obrigada a frear o carro repentinamente.
Por que o automóvel de Jim estava em casa àquela hora da manhã?
Estacionou seu carro ao lado do de seu marido e subiu correndo as escadas da varanda, tendo notado a lâmpada acesa, brilhando no dia cinzento.
Já alarmada, Sue usou sua chave e abriu a porta da frente. Jim estava afundado em sua poltrona, a cabeça entre as mãos. Antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa, ele levantou a cabeça e murmurou:
- Michele desapareceu.
- Desapareceu? - A palavra na voz de Sue era um grito de angústia. - O que você quer dizer com isso?
Jim então contou que fora dormir e, acordando a uma hora da madrugada, descobriu que Michele não estava em seu quarto nem o automóvel no pátio.
Sue encostou-se na porta, fazendo com que esta se fechasse com seu peso. Fora para isso que ela voltara tão depressa para casa?
Com uma voz incolor, que Sue nunca ouvira antes, Jim relatou o que fizera: tirara seu carro da garagem e percorrera as ruas adormecidas até o Centro Comercial Plaza, onde encontrara o pequeno automóvel verde de Michele, o único em todo o estacionamento, com um pneu arriado e o sobressalente no chão, ao lado. Mas nenhum sinal de Michele; apenas o automóvel.
Com voz angustiada, Jim prosseguiu descrevendo sua nervosa procura de um telefone público em meio à cerração e às lojas de luzes apagadas, até que conseguiu encontrar um e chamar a polícia.
A confusão teve início logo com as primeiras palavras. A polícia entendeu, a princípio, que Jim Copeland estava pedindo para que alguém fosse trocar um pneu de seu carro; depois, que se tratava do roubo do automóvel de sua filha. Finalmente, conseguiu expor a situação - na verdade sem convencer inteiramente a polícia, que, mesmo depois de chegar ao estacionamento, de ver o carro com uma roda apoiada no macaco e de ouvir o relato de Jim, ainda demonstrou desconfiar que o caso de Michele era semelhante ao de tantas outras garotas que, saindo à noite, se esqueciam do caminho de casa...
- O senhor sabe com quem ela pode ter fugido? - perguntou um dos policiais.
Outro chegou a falar em drogas e possível gravidez.
Entretanto, não autuaram Jim quando ele agrediu um dos policiais, limitando-se a informá-lo de que não dispunham de meios para encontrar a garota.
Na delegacia, o detetive de plantão anotou as necessárias informações. Nome: Michele Copeland. Idade: 18 anos. Altura: l,55m. Peso: 44kg. Olhos castanhos. Cabelos louros. Ocupação: estudante e empregada, com horário especial, na Loja Harper. Não era uma descrição completa, uma vez que não mencionava o caráter firme de Michele e sua personalidade reservada, mas o homem de plantão julgou que tais informações não eram necessárias.
Uma vez que Michele já fizera 18 anos, sendo legalmente adulta, a polícia não podia, antes de decorridas 72 horas, publicar um boletim de desaparecimento; entrementes, por intermédio de entrevistas com estudantes e professores do colégio, assim como com colegas de trabalho na loja, ficou bem claro que Michele era realmente uma garota séria, conscienciosa e reservada, bem diferente do tipo das que não hesitam em fazer um programa com qualquer estranho.
Isto levou a polícia a formular duas hipóteses. Ou o tal sujeito alto, magro e moreno, descrito pela Sra. Linda Fisher, usara de violência física para obrigar Michele a embarcar no carro dele - hipótese que exigia uma busca por todos os recantos rochosos da praia e pelos pequenos córregos que desciam das colinas, na esperança de encontrar o corpo - ou o mesmo sujeito alto, magro e moreno era um amigo com quem Michele saíra voluntariamente; para atender esta hipótese, as patrulhas das estradas receberam ordem para vasculhar os penhascos e as regiões de mato mais denso, procurando um automóvel destroçado, provavelmente de cor branca e possivelmente contendo dois corpos.
- Não é possível termos uma descrição melhor desse automóvel? - perguntaram na polícia aos Fishers. - Sabemos apenas- que era de cor clara, provavelmente branca. E quanto à marca? Era um modelo novo? Seda, conversível, camioneta, talvez um carro esporte?
Linda confessou que não saberia distinguir uma marca de outra; ademais, não prestara atenção ao automóvel. Apenas respondera ao gesto de Michele, acenando também ao passarem por ela.
Nessa altura, o marido de Linda encarou-a, ressentido. Nunca a perdoaria por tê-lo impedido de parar naquela noite de segunda-feira. Bem que ele quisera, chegando mesmo a reduzir a velocidade, mas, conhecendo bem sua mulher - que agia como se controlasse até o ar que ele respirava - pisou de novo no acelerador, enquanto ela, virando-se para o lado, acenava de
volta e sorria para a pobre garota que estava agora sabe Deus onde.
- Lamento muito - disse o marido de Linda Fisher. - Também não prestei atenção ao automóvel, notando apenas que era de cor clara, provavelmente branca e estava estacionado não muito longe do carrinho verde da moça. A mala estava aberta e parecia que o sujeito carregava um macaco e uma chave de rodas. Assim, tudo levava a crer que o problema estava resolvido.
Terminou seu pedido de desculpas por não ter ajudado com um profundo suspiro, sentindo-se apenas parcialmente absolvido, mas condenando totalmente a esposa. Voltou a encará-la.
- É verdade que o pneu tinha um corte? - perguntou.
Jim Copeland afirmara que o pneu estava cortado. "A parte lateral fora perfurada por um instrumento pontiagudo", declarara ele à imprensa. O relatório técnico da polícia adotara um ponto de vista mais conservador: o pneu poderia ter sido cortado acidentalmente por uma pedra ou um caco de garrafa.
Carrie Mason não sabia o que fazer.
Vira quando Jim Copeland regressara às sete horas da manhã de terça-feira, justamente quando estava começando a clarear o curto dia de inverno. Observando da janela de seu quarto, com a cortina cuidadosamente entreaberta, ela vira o carro entrar na garagem e Jim Copeland subir desanimadamente os degraus da varanda, cuja luz continuava acesa. O pátio estava vazio e ela não sabia como proceder. Deveria ir até lá? Afinal, ela era vizinha e muito amiga de Sue. Todavia, tratando-se de uma viúva e considerando a ausência de Sue, poderia parecer... Não faltaria quem achasse estranho, como se ela estivesse tentando... bem... explorar a situação.
Às oito e meia, viu o carro da polícia parar em frente à casa de Copeland e descerem dois policiais, que logo foram recebidos.
O que estaria acontecendo?
Às nove horas, eles deixaram a casa e embarcaram novamente no carro-patrulha. Carrie Mason continuou sem resposta para a angustiosa pergunta: o que fazer? Oferecer seus préstimos, seus pêsames, sua simpatia, qualquer coisa assim? Sentia um certo remorso por não ter-se manifestado mais cedo, mas também não podia continuar pacatamente em sua casa, sabendo que um vizinho enfrentava sério problema. Santo Deus! Uma filha desaparecida durante toda a noite e até aquela hora, as entrevistas com a polícia! Já era tempo, seguramente, de passar por cima de certos escrúpulos. Embora fosse uma atraente viúva quarentona - bem... quase cinquentona - ainda assim estaria cumprindo um dever; antes, porém, precisava fazer algo para acalmar seus nervos tensos, por ter visto o carro-patrulha e os policiais; assim, foi até à cozinha para tomar um gole de uísque, que a acalmou, mas também fez com que se desse conta de que não seria próprio para uma viúva decente visitar o vizinho com cheiro de álcool no hálito.
Uma hora mais tarde, viu Sue Copeland entrar com seu carro na garagem.
Ante o surpreendente relato de Jim, a reação de Sue foi imediata. Atirou-se nos braços dele para confortá-lo. A partir desse momento, até que ele tivesse conseguido, na quinta-feira, trazer o carrinho verde de Michele ou talvez por causa da chegada de Dorrie, que também ocorreu na quinta, Sue não deixou de encorajar o marido. Um passou a ser o esteio do outro, sem a menor idéia de recriminação por aquela tragédia acidental.
Os dois foram entrevistados por um jovem repórter na terça-feira, pelo meio-dia, e fizeram juntos uma descrição de sua filha - uma garota excelente, responsável, incapaz de sair com um desconhecido, de modo que deveria ter havido algo de anormal. Informaram que ela usava na ocasião um vestido de lã marrom e um casacão da mesma cor, acentuando que, sendo muito cuidadosa, não podia ser admitida a hipótese de um gesto negligente. Suas notas na escola eram ótimas. Não tinha problemas. Sim, ia a festas, mas não muito freqüentemente, por causa dos estudos e de seu emprego em tempo parcial; não, não tinha namorado.
A pedido do repórter, Sue lhe deu a última fotografia de Michele - a de sua formatura, no ano anterior - ressalvando que ela usava então cabelos compridos, que depois cortara, conforme se via em fotos mais recentes. A pobre mãe então não pôde mais conter as lágrimas, sentindo-se desolada e temerosa, como se, entregando o retrato de Michele, estivesse confirmando a perda de sua filha.
Sue passou aquele primeiro dia tomando inúmeras xícaras de café e guardando o bule cheio para quando Jim regressasse de sua angustiosa visita à delegacia de polícia ou da inquietante busca ao longo de estradas desertas. Sem conseguir acalmar-se, ela passou a telefonar para os amigos de Michele, na esperança de obter alguma informação. Ninguém sabia de nada ou pelo menos era a resposta de todos.
Sue esforçou-se para dominar sua aversão ante o prato de biscoitos trazidos às duas horas da tarde por Carrie Mason, com muitas desculpas; sentiu o cheiro do dentifrício com que sua vizinha procurava disfarçar o hálito e ouviu com certa surpresa seus argumentos e suas escusas por não ter vindo antes. Então Sue se deu conta de que a Sra. Mason, viúva e sentindo-se humilhada por isso, provavelmente ficara espiando, atrás de sua cortina, quando a paz do lar dos Copelands se desmoronava, querendo saber o que havia, tomar parte nos acontecimentos, mas sem coragem para fazê-lo, por ser uma viúva e ter inveja de quem não era.
Sue contou-lhe tudo o que sabia e ambas choraram abraçadas.
O jornal, com o retrato de Michele e a história de seu desaparecimento na primeira página, foi entregue às cinco horas, quando no inverno já começa a anoitecer. Sue leu a reportagem sobre sua filha e, com os olhos no céu escuro, sentiu que ela estava viva, em algum lugar.
Durante a noite, Sue foi várias vezes até a varanda escura e deserta, como se penitenciando de estar desfrutando de conforto e segurança, e lá se deixou ficar, no meio da noite, imaginando o que poderia estar acontecendo com Michele, até que Jim a levou para dentro, confortando-a.
Foi durante esse tempo que Jim e Sue se tornaram mais íntimos, com a compaixão de um pela dor do outro, sem qualquer idéia de apurar responsabilidades pela tragédia - pelo menos até quinta-feira, depois de decorridas 72 horas, quando foram distribuídos volantes aos 250 postos policiais no Estado e nos vizinhos; quando o caso constou do noticiário da televisão e das agências AP e UPI; quando o pequeno carro verde voltou para seu lugar no pátio da casa dos Copelands e Dorrie chegou.
Na quarta de manhã, Carrie Mason dividiu seu tempo entre as cortinas da janela de seu quarto e o fogão, preparando a comida que os Copelands possivelmente não conseguiriam ingerir.
Ela ficou ainda mais agitada ao ver a equipe de televisão descarregar o equipamento em frente à casa vizinha e ocupar a varanda. Mais uma vez se lamentou pelo gole de uísque que a impedira, na noite de segunda-feira, de falar com o repórter que ela agora identificava, ao vê-lo pela segunda vez entrevistando os Copelands. Continuou entre a cozinha e a janela, recriminando-se por haver, com escrúpulos de viúva, pecado por omissão; na verdade, se ela tivesse tomado a iniciativa de acordar Jim Copeland naquela noite, a garota talvez agora estivesse em casa.
A notícia do jornal local, na tarde de quarta-feira, cobria mais da metade da primeira página, ilustrada pelo retrato de Michele - uma foto em que ela aparecia com os cabelos cortados e sorrindo - o que provocou uma crise de nervos em Sue. Acima do retrato, cm largas letras, a manchete: ALGUÉM VIU ESTA GAROTA?
Foi então que Sue resolveu telefonar para sua filha casada, convencida de que não poderia continuar ocultando o desaparecimento, na esperança de que não houvesse grande divulgação. Agora, se não fosse avisada, Dorrie sofreria o choque de ficar sabendo de tudo pelo jornal ou pelo noticiário da televisão. • Dorrie mostrou-se logo alarmada.

- Quando foi? Na segunda-feira à noite? Quando você estava aqui? Então - acrescentou, após um pequeno silêncio - talvez nada teria acontecido se você estivesse em casa. Mas o que papai fazia durante esse tempo todo? Dormindo? - Apegou-se a este detalhe como querendo esconder sua culpa. - Quer dizer que ele não fez nada, mamãe? Irei imediatamente para aí - arrematou, transferindo para o pai a responsabilidade decorrente da forçada ausência de Sue, de modo que, havendo culpa, era dele e não dela. - Mãe, partirei de carro amanhã de manhã, depois de arrumar as coisas aqui com Hal e as crianças.
- Não, querida - protestou Sue, conhecendo a tendência de Dorrie de querer resolver tudo como um buldôzer empilhando destroços. Sue não queria forçar soluções, mas esperar pacientemente, conservando a calma, justamente quando a confusão se tornava mais angustiante.
- Não proteste, mãe - replicou Dorrie. - Isto tudo é horrível. Sim, horrível. Estarei aí. Não faça nada. Tomarei conta de tudo.
Tal como Michele não podia legalmente ser considerada uma pessoa desaparecida, antes de decorridas 72 horas, também seu automóvel não seria tido como abandonado durante esse mesmo período: assim o pequeno carro verde permaneceu no estacionamento, no lugar em que ela o deixara. Não foram encontradas impressões digitais, o que não constituiu surpresa, em virtude do pesado nevoeiro da noite de segunda-feira e da manhã de terça.
Na tarde de quinta, o sol apareceu como uma pálida promessa, enquanto Jim Copeland trocava o pneu do automóvel de sua filha.
Os fregueses que haviam estacionado na Seção A - a maioria dos quais tinha lido a notícia no jornal e ouvido as informações da estação local da televisão - acercaram-se, com um gesto de simpatia, do local onde se encontrava o carro de Michele, sendo consertado por Jim. Todos se mostravam pesarosos e constrangidos, exceto um homem que estacionou seu carro esporte de cor cinza, desceu e passou a auxiliar Jim na troca do pneu.
Jim aceitou a ajuda amável daquele homem magro, simpático, aparentando uns 35 anos, bem vestido, cabelos castanhos, altura mediana - a menos, naturalmente que fosse visto na meia-luz dos postes de iluminação imersos no nevoeiro, alongando as sombras e tornando ilusoriamente alta qualquer pessoa, especialmente ao lado de uma garota de l,55m, do mesmo modo que a noite faz parecer negros os cabelos castanhos, em particular se contrastando com uma cabeleira loura.
Com o sobressalente no lugar e o pneu furado mais o macaco e a chave de rodas acomodados na mala do carro, o jovem encostou-se no seu carro e começou a falar sobre a noite de segunda-feira.
Grato pela gentileza do desconhecido, Jim Copeland ouviu-lhe as impressões, que não eram tão objetivas quanto as da polícia nem tão emocionais como as do próprio Jim, mas uma combinação inteligente que valia a pena considerar.
- Li a história no jornal ontem à noite - disse o desconhecido - e ouvi o noticiário irradiado durante todo o dia. Sou um vendedor e ando muito tempo de automóvel, sempre com o rádio ligado. Tenho minhas dúvidas de que a polícia esteja trabalhando na pista certa.
- Eu também - confessou Jim Copeland. - Eles nem têm certeza se o homem que viram junto de Michele tem algo a ver com o caso. Dizem que é possível que ele tenha ido embora e Michele saiu a pé, em busca de um telefone; qualquer coisa que tenha acontecido, aconteceu depois.
O homem sacudiu a cabeça.
- Ele está metido na história - afirmou com convicção. - Sou capaz de apostar. O sujeito do carro branco.
- Também acho - disse Jim. - Furou o pneu de Michele e esperou por ela.
O desconhecido examinou o pneu arriado.
- Não. Em primeiro lugar, como iria saber que o motorista era uma garota? Mesmo que olhasse a documentação, como poderia ter certeza de que ela estava sozinha? Quem quer que tenha sido o raptor, o crime não foi premeditado. Aconteceu, apenas.
Jim fechou a mala do carro e apoiou-se nela.
- Você acha que o pneu estava arriado, ele notou e ficou esperando? Ao ver que se tratava de uma garota, ainda por cima bonita, perdeu a cabeça e, tão logo o estacionamento ficou deserto, obrigou-a a entrar no automóvel dele? Tenho absoluta certeza de que ela não entraria voluntariamente.
- E se se tratasse de um sujeito alinhado? Bem vestido, simpático, amável, não um desses cabeludos que andam por aí, nem um velhote metido a conquistador, mas um homem de aspecto decente que, oferecendo-se para ajudar, traz um macaco e começa a agir? O que pode haver de errado nisso, com tanta gente ao redor? Então, ele tira o pneu sobressalente, examina-o e diz que está meio vazio...
- Mas ele está perfeito - interrompeu Jim, batendo com a ponta do sapato no pneu.
- Concordo - insistiu o homem - mas a sua filha iria notar a diferença, se alguém dissesse que não estava?
Jim Copeland aceitou o argumento. Tudo o que Michele entendia a respeito de um automóvel era guiá-lo. Realmente, as coisas poderiam ter acontecido da maneira como o homem descrevera.
- Então, ele sugere que seria melhor irem até o próximo posto de gasolina, para encher o pneu. O posto fica logo ali na esquina. O senhor pode vê-lo daqui.
Obedientemente, Jim Copeland - que era antigo freguês do posto - dirigiu o olhar para a esquina de Sargent com Oaks, onde se percebia a parte superior do distintivo do posto.
- Ü que faria ela? Mesmo uma garota como a sua filha, incapaz de aceitar o convite de um estranho para entrar em seu carro, desta vez não iria suspeitar de nada. Afinal, o sujeito não a estava forçando e era suficientemente honesto para não ir embora com o pneu, deixando-a sozinha e temerosa de que pudesse tratar-se de um ladrão, que não mais regressaria - arrematou o homem, com um sorriso em que combinava uma arrogante piedade pelo pai e um pretensioso pesar pela filha.
- Então o senhor acha que ela pode ter sido iludida para entrar no carro daquele desconhecido? - perguntou Jim Copeland.
- Não exatamente iludida, pois o sujeito talvez não seja um criminoso. Pode tratar-se de um doente.
- Doente?
- Olhe, baseio esta hipótese na psicologia. Estava estudando para exercer a profissão de psicólogo, quando minha esposa adoeceu e tive de deixar a faculdade e ganhar dinheiro para o tratamento dela. Isto já faz alguns anos. Desde então, não soube o que era vida matrimonial e tive de abandonar a carreira. Trabalho como vendedor para dar à minha esposa inválida as coisas de que ela necessita. Era isso - acrescentou, sacudindo a cabeça em um gesto de piedade de si mesmo - o que eu estava fazendo aqui na noite de segunda-feira: uma receita, um pote de creme, uma bolsa para água quente ou gelada... coisas assim.
- Quer dizer que o senhor estava aqui no Centro Comercial naquela noite? - perguntou Jim Copeland, debruçando-se sobre a mala do pequeno carro verde e agarrando o homem pela gola do paletó. - Estava mesmo aqui na segunda-feira e não viu nada? Nenhum indício da cena que acabou de descrever?
O homem recuou, desvencilhando-se.
- Já disse que tudo o que falei foi uma hipótese. A polícia, num caso como este, quer impressões digitais ou fios de cabelo ou outro indício concreto para ficar satisfeita, enquanto os pais continuam afirmando que "minha filha seria incapaz disso". Tudo o que estou demonstrando é que sua filha poderia ter embarcado no carro voluntariamente, pois tenho estudado esses casos e os compreendo. E acho que o homem é um doente, mas do tipo pacífico, de modo que sua filha entrou no carro dele...
Jim Copeland alisou a lapela amassada do casaco de seu interlocutor. Afinal, ele estava apenas querendo ajudar e sabe lá Deus se sua hipótese seria mais plausível que a da polícia, preocupada com drogas, gravidez e abandono de casa, situações que não se aplicavam a Michele!
- Assim, minha opinião é que se trata de um doente - explicou o homem. - Não, é claro, de um doente comum, mas apenas quando sofre um acesso. Pode ser até que seja um sujeito amável. Sua filha não iria aceitar o auxílio de um tipo qualquer...
Jim Copeland concordou com um movimento de cabeça.
- Ele não deve ter planejado nada. As coisas simplesmente aconteceram.
- Como assim?
- É a psicologia de um crime não premeditado e acho que não houve premeditação, mas um extemporâneo impulso resultante de uma série de circunstâncias. O sujeito se encontra sob pressão, a ponto de explodir. Entra com seu carro no estacionamento já quase na hora de fechar. Está com pressa e provavelmente nem nota o pequeno automóvel verde com um pneu arriado. Quando se dispõe a partir, o local ainda está repleto de gente, fregueses que voltam para casa com suas esposas carregadas de pacotes. Ele liga o motor do carro. Nesse momento, a garota chega e vê o pneu furado; o homem desliga o motor e desce do carro.
Jim Copeland engoliu em seco. As coisas poderiam ter acontecido exatamente assim.
- Podia ser um sujeito amável - repetiu o homem. - Queria apenas ajudar e não perdeu tempo, começando a colocar o macaco. As pessoas continuaram passando, as mesmas pessoas que disseram na polícia terem visto sua filha e o homem. Diminuíram a marcha de seus carros e acenaram. E o sujeito poderia estar pensando se a garota simplesmente respondia aos acenos ou se rejeitava o auxílio. Mas ele continua a suspender o carro; a seguir, apanha as chaves de rodas para afrouxar as porcas. É então que acontece a explosão dentro dele. Retira o pneu sobressalente e o deixa cair sobre o piso. Todas as coisas se ajustam em seu favor. Está em crise e não pode evitar o que vai acontecer.
Jim Copeland desviou os olhos, sentindo um mal-estar.
A luz pálida do sol mal conseguia furar as nuvens que se acumulavam no horizonte. Iria chover novamente, seria sem dúvida mais uma noite chuvosa.
- Ele então sugere a ida ao posto de gasolina. A garota aceita, por não saber que outra coisa poderia fazer. O homem se dirige para seu carro, abre a porta para ela, faz a volta e senta-se atrás do volante, abandonando o sobressalente no chão. Depois, arranca e, antes que ela tivesse tempo sequer para gritar, já havia ganho velocidade.
Jim Copeland sentia-se como se estivesse nadando nas réstias de luz do dia invernoso.
- O senhor acha - murmurou fracamente - que foi assim que aconteceu? Que alguém tivesse a coragem de...
- Essa é a maneira como talvez tenha acontecido - corrigiu o homem. - Não há sinais de luta. A polícia ressaltou este detalhe. O senhor declarou que sua filha não seria capaz de sair voluntariamente com um desconhecido; não resta outra hipótese. É uma teoria psicologicamente correta que um homem doente, mas aparentemente normal, encontre uma situação propícia para agir, justamente no momento em que sua crise explode.
Jim Copeland ainda uma vez desviou o olhar. Então o homem lhe deu uma esperança.
- Entretanto, uma pessoa doente assim sabe de seu estado e deseja ser impedida.
Jim Copeland voltou a encarar o desconhecido, ouvindo-o com a maior atenção.
- Ele age furtivamente... o instinto de autopreservação, o senhor compreende, sendo a primeira lei da natureza... mas ao mesmo tempo deixa pistas, na esperança de que alguém as encontre e consiga impedir que ele faça o que já foi feito.
O homem abriu a porta de seu carro e entrou.
- Lamento muito, Sr. Copeland - disse, em tom de verdadeiro pesar.
Ligou o motor e o som do rádio se ouviu imediatamente, fraco a princípio, depois mais alto, irradiando as últimas notícias.
... "Nada de novo a respeito do desaparecimento de Michele Copeland", dizia o locutor. "Quem souber de algum indício ou desconfiar de alguém..."
O homem reduziu o volume ao mínimo e engrenou o carro em marcha à ré, para sair do estacionamento.
Jim Copeland endireitou o corpo que estava inclinado sobre a mala do pequeno carro verde.
- O que é que o senhor acha que ele fez com ela? - perguntou.
- Qual é o seu palpite? - replicou o homem. Jim Copeland engoliu em seco outra vez.
O homem completou a manobra e acelerou o carro na direção da saída da Seção A do estacionamento.
- Escute! - gritou Jim Copeland. - Não fiquei sabendo seu nome.
O homem se inclinou na janela e disse qualquer coisa, mas o som se perdeu no vento que aumentara com o cair da noite; ademais, o ronco do motor se tornou mais forte quando o carro enfrentou a subida na direção de Sargent.
A polícia não deu muita atenção à teoria que Jim Copeland repetiu na delegacia, informando que lhe fora exposta por um desconhecido que encontrara no estacionamento, ao buscar o automóvel de Michele.
- Um desses maníacos - comentou o policial de plantão. - Temos exemplares deles aqui todos os dias. Uma mãe que traz seu filho mal-educado e quer que o coloquemos no xadrez, atirando a chave fora. Ou uma ilustre dama que vem denunciar as falcatruas de seu ex-namorado. Depois de tantos anos lidando com tipos assim, já conhecemos bem suas histórias.
- Mas esta é uma hipótese muito possível - insistiu Jim. O homem é muito entendido em psicologia e baseia sua teoria em conhecimentos psicológicos.
- Todo maníaco se julga um psicólogo - replicou o policial. Eles são capazes de falar sobre qualquer assunto, mas não sabem de nada. É apenas o prazer de se mostrar.
- Entretanto - ponderou ainda Jim - a história que ele contou era como se tivesse realmente acontecido. Tinha todo o jeito de verdadeira. Se o senhor falasse com ele...
- Está bem - concordou o policial, apanhando o lápis e o bloco de notas. - Vamos falar com ele. Não será o primeiro. Dê-me o nome e o endereço.
Jim não sabia uma coisa nem outra. Talvez fosse essa a informação que ele não conseguira ouvir, quando o homem saiu do estacionamento. E talvez também fosse apenas mais um maníaco, como dissera o policial. Afinal, o que tinha o homem para apresentar? Apenas uma teoria.
Dorrie chegou no fim da tarde de quinta-feira, juntamente com a tempestade que se vinha armando havia horas, o sol pouco aparecendo e as nuvens se fechando novamente. A tempestade desabou, violenta, e Dorrie mal teve tempo de entrar em casa, exatamente quando seu pai chegava, guiando o automóvel verde de Michele, e o estacionava em seu lugar no pátio.
A partir de então, toda vez que Sue olhava pela janela, avistava o pequeno carro da filha e estremecia; quando desviava os olhos, Dorrie não perdia oportunidade de acusar Jim como responsável pelo desaparecimento de Michele, até que Sue aceitou a idéia como verdadeira.
- A sua própria filha - disse ela ao marido - e você dormindo o tempo todo!
- Mas o que eu poderia ter feito? Ela desapareceu às 10 horas. Foi o que disse o pessoal que estava no estacionamento.
- Com você aqui em casa, dormindo - insistia Sue, espantada com sua própria sede de vingança, mas confortada por ter, enfim, encontrado uma vítima.
- Se eu estivesse acordado - argumentava Jim, confuso - não teria ido procurá-la às 10 horas. Não havia razão para isso. Teria imaginado que ela estivesse tomando café com alguma amiga.
- Mamãe não teria pensado assim - interrompeu Dorrie. - Se mamãe estivesse aqui, sabendo que Michele nunca se atrasara, teria saído logo à procura dela.
- Mas por que ela não estava aqui? - perguntou Jim, vislumbrando uma oportunidade de localizar a culpa, sabendo que, se conseguisse livrar-se, outro seria o bode expiatório. - Ela estava em Tremont, cuidando dos netos. Essa é a razão pela qual não se encontrava em casa.
Aceitando o desafio. Dorrie replicou, triunfante:
- Não. Foi porque ela confiou em você. Acreditou que podia sair, pois você tomaria cuidado e protegeria Michele, evitando que acontecesse tamanha desgraça.
Na edição vespertina de quinta-feira o noticiário do jornal já foi mais sucinto e sem fotografias, apenas com a manchete PROSSEGUEM AS BUSCAS, com a costumeira e vaga promessa de uma breve solução.
A televisão cortou vários trechos do vídeo-teipe para apresentar aspectos e comentários a respeito da tempestade que prosseguia, relatando desabamentos de encostas na parte norte da cidade e inundações dos rios, invadindo a megalópole no sul. Entre os dois centros, a cidadezinha continuava ignorada como sempre, exceto para a rápida entrevista com os pais de Michele Copeland.
Apesar dos inconvenientes provocados por pequenas erosões nas colinas e algumas margens inundadas, o maior problema eram as ruas intransitáveis e, mais particularmente, a interseção de Sargent e Sexton, onde estava sendo construído um grande conjunto de casas. Naquele ponto, a água subiu tanto que invadiu o canteiro de obras, carregando lama e detritos, entupindo os bueiros e inundando o estacionamento do Centro Comercial Plaza, interditando o trânsito e ameaçando as lojas.
A tempestade durou três dias.
Durante esse tempo, Sue não conseguiu dormir, suas noites povoadas de temores pela sorte da filha, sozinha ou acompanhada de um monstro em algum lugar, talvez exposta à chuva e ao frio, ou mesmo morta ou agonizante. Sue não podia comer, tendo constantemente ante os olhos cenas de tortura e horror. Vivia à base de xícaras de café, com a insônia conseqüente, fazendo de Jim o alvo de seu descontrole e esmerando-se nessa tarefa, como se, depois de tantos anos de vida em comum, somente agora tivesse descoberto sua capacidade para magoá-lo.
Dorrie, tendo conseguido transferir o peso de sua própria culpa, agravava ainda mais a situação. Seus pais, sempre tão amigos, agora se recriminavam. E era por sua culpa?
- Mamãe, nunca a ouvi falar desse jeito com papai.
- É que ele ainda não tinha matado minha filha.
Periodicamente Jim guiava seu carro em meio à tempestade para ir à delegacia, mas sempre encontrava os policiais às voltas com problemas de trânsito e acidentes nas ruas.
- Alguma notícia de minha filha? - perguntava Jim Copeland ansiosamente, com seu constrangimento agravado pelo sentimento de culpa que sua mulher incutira nele.
- Estamos trabalhando no caso, Sr. Copeland - dizia o delegado. - Distribuímos aqueles volantes, como o senhor sabe. É pena que não tenhamos mais informações, tais como uma descrição melhor do homem e o tipo do carro que ele guiava. Fizemos o melhor do pouco de que dispomos. Imprimimos o retrato de sua filha nos volantes e, se houver qualquer indício suspeito... bem... o senhor será avisado. Sabemos como se sente, Sr. Copeland.
Jim Copeland olhou para ele inexpressivamente. O delegado, jovem demais para ter filhas moças e sofrer aquele tipo de responsabilidade, dificilmente poderia saber como ele se sentia. Jim deixou a delegacia certo de que voltaria em breve para ter as mesmas respostas negativas, mas tinha de voltar, pois um simples telefonema não o satisfaria. Tinha de percorrer as ruas alagadas pela tempestade, subir as escadas, abrir pesadas portas e perguntar qual o delegado que estava de serviço na ocasião.
- Há alguma notícia a respeito de minha filha? Tinha de repetir tudo isso. Nada mais havia a fazer.
A tempestade reduziu o ritmo das buscas, mas não o ânimo da Sra. Carrie Mason. Todos os dias, protegida por um toldo feito com a capa de chuva de seu falecido marido, ela atravessava o pátio com uma iguaria que preparara para oferecer aos Copelands.
Sempre que o fazia, procurava chegar quando Sue estivesse na cozinha. Apesar de haver mudado tão drasticamente durante os últimos dias, deixando de ser uma pessoa preocupada mas amável, para tornar-se ríspida e fria, ainda assim era melhor do que sua filha Dorrie. Esta, muito ciosa de sua juventude e de sua posição de bem-casada, deixava Carrie Mason humilhada por ser uma viúva cinquentona - na verdade ia fazer 52 anos e bem o demonstrava.
Assim, constrangida quando encontrava Dorrie na cozinha, entregava o prato que havia preparado e perguntava timidamente se não havia alguma novidade.
Dorrie, recebendo o prato coberto e sem mesmo procurai saber o conteúdo, encarava a vizinha do alto de sua importância e respondia que nada havia de novo, mas "obrigada por sua gentileza".
- Ora, não me custa nada - protestava Carrie. - Na noite de segunda-feira é que eu devia ter sido mais ativa, pois estava convencida de que havia alguma coisa errada. Às 11 horas, vi a luz da varanda acesa e o pátio vazio. Deveria então ter avisado e não vim.
- Mas àquela hora já teria sido tarde demais - ponderou Dorrie.
Talvez não, pensou Carrie. Nas noites de segunda-feira a vila está adormecida às 11 horas, com poucos automóveis na rua e isso poderia ter facilitado encontrar Michele.
Carrie não conseguia absolver-se de sua parcela de culpa, não sendo suficientemente jovem nem egoísta. Assim, tomou uma firme resolução: daquele momento em diante seria prestativa em qualquer situação, sem hesitar nem vacilar, não se preocupando com as aparências. Decidira ajudar, cooperar, socorrer, ser amável com qualquer pessoa que necessitasse dela. E ficaria atenta para descobrir situações assim.
No domingo, a tempestade passou.
Na segunda-feira, uma semana após o desaparecimento de Michele, o serviço de limpeza das ruas se iniciou a todo vapor, procurando determinar os pontos que estavam obstruídos em toda a área que se estendia da base das colinas até ao Centro Comercial Plaza, que estava coberto de lama. A causa de tudo foi descoberta na interseção da estrada que conduzia para o novo conjunto de casas em construção. O sistema de drenagem de águas pluviais entupira, provocando o acúmulo de água e detritos desde o entroncamento de Sargent, espalhando-se pelas ruas vizinhas e inundando o estacionamento.
Quando a turma de reparações procurou a causa do entupimento, descobriu o corpo de Michele dobrado ao meio e obstruindo a boca do encanamento.
Linda Fisher ouviu a notícia no rádio. Era seu último dia de trabalho na Loja Harper, iniciando-se a uma da tarde e se estendendo até a hora de fechar, às nove. Por isso, naquela manhã de segunda-feira, ela estava varrendo seu apartamento com o rádio ligado, quando o programa foi interrompido com a notícia da descoberta do corpo de Michele Copeland. Ela teve um arrepio de medo, imaginando o que teria acontecido se tivesse concordado com a intenção de seu marido, de parar ao aceno de Michele! Ele também estaria morto. Com esse raciocínio, ela se absolveu de qualquer culpa e transformou um gesto provocado pelo ciúme em um ato de nobreza.
O marido ouviu a notícia à hora do almoço.
- Aquela garota - dizia o homem sentado no tamborete a seu lado - acabou de ser encontrada. Você deve-se lembrar... a que desapareceu na semana passada.
O marido de Linda mal pôde engolir o naco do sanduíche que começara a comer e, colocou lentamente o restante no prato.
- O corpo estava socado dentro do encanamento, na interseção de Sargent e Sexton. Horrível!
O marido da Sra. Fisher empurrou seu prato, levantou-se e saiu atordoado da lanchonete. Caminhou até o estacionamento perto do escritório da firma onde trabalhava, entrou no carro e guiou cuidadosamente pela rua principal, passou pelos sinais de ATENÇÃO onde os homens trabalhavam e alcançou a auto-estrada que levava para o norte.
Não queria ver Linda outra vez. Nunca mais. Desapareceria em alguma cidade longe dali e tentaria esquecer que, se sua mulher não o tivesse impedido, Michele agora estaria viva.
Naquela manhã de segunda-feira, Carrie Mason se dedicava a preparar uma boa sopa de legumes para a família Copeland. O rádio na cozinha estava, como de costume, ligado para a estação local, mas ela já sabia, mesmo antes de ser irradiada a notícia, que o corpo de Michele fora encontrado. Deduziu tudo quando o automóvel da polícia chegou e dois policiais, com os semblantes graves e pálidos, subiram os degraus da varanda dos Copelands. Confirmada a notícia pelo rádio, Carrie reafirmou sua decisão de ser sempre amável e prestativa. Embora a sopa ainda não estivesse pronta e seu hálito cheirasse a uísque, levaria a terrina para os vizinhos e dedicaria cada minuto de seus quase 53 anos a fazer o bem.
Jim Copeland recebeu a notícia como um homem arrasado e plenamente certo de que não poderia jamais recuperar-se.
Sue desfechou-lhe o golpe final - "A culpa é toda sua" --sabendo que nunca mais lhe dirigiria a palavra outra vez.
Dorrie, dando-se conta de que contribuíra para essa nova desgraça, chegou a preferir a responsabilidade pela primeira, compreendendo que seria agora vítima de um remorso difícil de suportar.
Na noite de segunda-feira, depois de devidamente identificado, o corpo foi entregue à família.
Nessa mesma noite, às 9:10, Linda Fisher saiu da Loja Harper e se dirigiu para o estacionamento do Centro Comercial Plaza. Estava acompanhada de uma colega, que trabalhava em tempo parcial no departamento de artigos de costura, o mesmo de Michele. A garota não se lembrava dela, mas Linda achou melhor dizer que haviam freqüentado o mesmo colégio, estavam lotadas no mesmo departamento e tudo fora terrivelmente excitante.
- Nós chegamos a vê-la naquela noite - disse Linda e a garota a fitou extasiada. - Foi uma sorte meu marido não ter parado o carro. Podia ter sido assassinado também.
Havia poucos automóveis ainda estacionados na Seção A. As duas caminharam atentas para as poças d'água e os restos de lama.
- Bem, este é o meu carro - disse a garota. - Seu marido ainda não veio? Quer uma carona?
- Não, obrigada. Não se preocupe - replicou Linda, consultando o relógio. - Ele não vai demorar. Saí um pouco mais cedo. Estará aqui às nove e vinte, seguramente. Nunca se atrasa.
Somente às 9:40 Linda começou a preocupar-se, quando o último carro deixou a Seção A. Logo depois, sentiu-se alarmada e correu até à lanchonete, ainda aberta, mas sem nenhum freguês. O proprietário estava fechando a casa.
- O senhor me leva até em casa? -- pediu Linda, ofegante. - Pode me fazer esse favor? Estou com medo de ficar esperando meu marido lá fora, sozinha, depois do que já aconteceu aqui...
O homem respondeu que teria muito prazer. Guardou os últimos copos, cobriu o prato dos bolos, apagou as luzes e fechou a porta; mostrando-se muito amável e solícito, ajudou-a a entrar no automóvel e rumou para onde a Sra. Fisher disse que morava.
Foi somente quando eles chegaram ao retorno em Sargent, que Linda se deu conta de que se encontrava exatamente na mesma situação que Michele Copeland enfrentara àquela mesma hora, uma semana antes.
Ela se encolheu no banco e sua voz, ao indicar a localização da casa, era apenas um fio tênue, contrastando com os agourentos comentários do homem a seu lado, relativamente aos perigos que corre uma mulher andando sozinha à noite. Ela morava a poucos quarteirões do Centro Comercial Plaza, mas tinha a impressão de que nunca chegaria em casa. Entretanto, o homem seguiu diretamente para o local indicado e ela não pôde esconder sua surpresa quando o carro parou em frente ao edifício de seu apartamento. Desceu e, ao fechar a porta do automóvel, mal teve voz para os agradecimentos, após aqueles momentos de terror. Subiu correndo as escadas e entrou em seu apartamento. Foi então que avaliou, horrorizada, o mal que havia feito, impedindo que o marido atendesse ao apelo de Michele Copeland. E foi também nesse momento que concluiu que o marido a abandonara e nunca mais voltaria, pelo que ela havia feito a Michele e também a ele.
O enterro foi na manhã de quarta-feira. Na capela, durante o velório, Dorrie sentou-se entre seu pai e sua mãe, cada um chorando sozinho durante a cerimônia.
Na tarde desse dia, Carrie Mason preparou uma torta de abóbora e Dorrie teve de empilhar um monte de pratos usados e de panelas por lavar, a fim de acomodar o presente da vizinha.
A cozinha dava impressão de ter sido varrida por um tufão. Sue andava de um lado para outro, atarefada, dobrando lençóis, empilhando louça e fazendo anotações. Carrie Mason não podia atinar com o que estava acontecendo e imaginou que talvez Jim e Sue Copeland, ficando sozinhos e com menores necessidades, tinham resolvido, para recompensar Dorrie pelo sacrifício que fizera, presenteá-la com parte dos objetos de casa.
- Você provavelmente não vai demorar-se - disse Carrie a Dorrie.
- Partirei amanhã.
- Vou com ela - acrescentou Sue, sem interromper seus afazeres.
- Acho que faz bem - comentou Carrie, julgando que seria conveniente, para uma mãe enlutada, distrair-se um pouco, em companhia da filha e dos netos, ao invés de ficar em casa, curtindo sua dor juntamente com a do angustiado marido. - É uma decisão acertada. Trate de esquecer e goze umas boas férias...
Interrompeu-se, constrangida pela má escolha das palavras e sem ter prestado atenção ao que Sue continuava dizendo:
-...e não voltarei. Nunca mais. Vou morar com Dorrie e a família dela.
- Isso mesmo - confirmou Dorrie. - Mamãe vai morar conosco.
No momento em que ouviu a frase, Sue percebeu que não desejava ir embora, que seria horrível abandonar Jim. Quando pronunciou aquelas palavras "vou morar com Dorrie", percebeu que teria de enfrentar o domínio de sua filha e a tirania de três crianças mimadas.
Quando Dorrie confirmou que "mamãe vai morar conosco", Sue compreendeu que passara a ser uma hóspede de sua filha, uma sogra não desejada pelo genro e uma avó que não saberia como aturar os netos nem ser aturada por eles. Agora, o mal estava feito, tanto para ela como para toda a família.
Dorrie e Sue, com seus dois automóveis carregados, partiram na quinta-feira, deixando Jim Copeland sozinho. Carrie Mason bem que desejava levar-lhe alguma iguaria, mostrar-se amável e prestativa, conforme havia resolvido, mas não conseguia encontrá-lo. Continuava indo ao trabalho, naturalmente, mas voltava para casa tarde e silenciosamente. A luz da varanda nunca mais se acendeu, nem a da sala de estar. Carrie Mason sequer percebia se a TV era ligada.
Jim ficara em casa apenas duas vezes nos fins de semana; uma, quando um grande caminhão de mudanças levou várias peças da mobília; outra, quando outro caminhão menor transportou o restante.
Três semanas após o enterro, o pequeno automóvel verde de Michele foi também levado, sendo a casa fechada e colocada no pátio uma tabuleta com o aviso: À VENDA.
Somente então Jim Copeland veio visitar Carrie Mason.
Ela lhe ofereceu café, que ele recusou, alegando que estava com muita pressa. Carrie notou como ele emagrecera e procurou agradá-lo, esquecendo-se dos goles de uísque que deveriam alterar-lhe o cheiro do hálito, mas desejando apenas ser útil e atenciosa.
Jim comunicou-lhe que estava morando num pequeno apartamento na cidade e desejava vender a casa; por isso viera falar com ela, pedindo-lhe que ficasse com uma das chaves da porta da frente.
- Para atender alguma eventualidade - acrescentou e Carrie não ficou sabendo se ele se referia a um possível regresso de Sue ou à visita de algum comprador em perspectiva, querendo dar uma olhada na casa.
As outras chaves, explicou Jim, haviam ficado com o corretor de imóveis, encarregado de tratar da venda, mas, "para atender alguma eventualidade..."
Depois, ele foi-se embora e a Sra. Mason não teve mais o que espiar através das cortinas de seu quarto; nada, a não ser as venezianas fechadas das janelas da casa vizinha e o aviso À VENDA, no meio do pátio.
O dinheiro estando escasso e os juros muito elevados, poucas pessoas vieram ver a casa, mas um número suficiente para que Carrie Mason identificasse o automóvel do corretor e tivesse a certeza de que não era ele quando o carro esporte cinzento estacionou em frente à casa dos Copelands. Passados alguns dias, apareceu novamente.
Quando o viu pela terceira vez, ela estava no jardim, plantando as últimas mudas de seus crisântemos e apressando-se para terminar o trabalho antes que anoitecesse. Levantou-se ao ver o carro parar junto à calçada, largou a pequena pá e dirigiu-se para o pátio vizinho.
- Se o senhor está interessado na casa - disse ela ao jovem que guiava o automóvel - tenho uma chave e posso abrir a porta, mas é preciso andar depressa, porque a eletricidade foi cortada e está escurecendo. Não haverá muito tempo.
- Oh, sim! - disse ele, tomado de surpresa, como se estivesse tão fascinado pela casa que nem se dera conta da chegada de Carrie. - Era aqui que moravam os Copelands?
- Era. Que tragédia horrível! - comentou a Sra. Mason, não podendo ver muito claramente o jovem no interior do carro. Entretanto, ele parecia uma pessoa distinta. - O senhor os conhecia?
- Encontrei a garota apenas uma vez.
- Michele? A que foi assassinada?
- Sim. Ela mesma. E também conversei com o pai dela. - Abruptamente, como se de súbito tivesse tomado conhecimento da existência de Carrie, o homem debruçou-se na janela do carro e falou à luz do crepúsculo: - Tenho uma esposa, compreende? É inválida...
Carrie murmurou umas palavras de simpatia.
- Moramos num apartamento e acho que, se ela tivesse uma casa, poderia mais facilmente sair para passear.
- Oh! É claro! Seria maravilhoso para ela!
- Sou um vendedor e passo muito tempo fora, de modo que procuro ter bons vizinhos, a fim de não me preocupar em deixá-la sozinha. Vizinhos pacatos e amáveis. Gente decente.
Carrie esmerou-se em descrever o espírito pacato e a respeitabilidade da vizinhança, até que o homem a interrompeu:
- Gostaria muito de visitar a casa, mas, como a senhora mesma me alertou, já está um pouco tarde para isso. Entretanto, se fosse possível dar uma olhadela na vizinhança, Sra...
- Sra. Carrie Mason.
- Sra. Mason, acho que esta pode ser justamente a casa que procuro. Voltarei amanhã, naturalmente, para vê-la por dentro; mas preciso primeiro ter uma impressão da vizinhança. Será que poderia mostrar-me...
Carrie recuou um passo.
- Apenas uma volta em torno do quarteirão, para eu ver onde fica o supermercado e a farmácia mais próximos. Minha mulher - acrescentou o homem, meio constrangido - precisa e pede tantas coisas nas horas menos esperadas: uma receita, um pote de creme, uma bolsa de água quente ou gelada, coisas assim...
Carrie se lembrou de sua firme decisão de ajudar, de ser útil de alguma maneira.
- Se eu tivesse alguém para me servir de guia, ficaria em condições de descrever a vizinhança para minha mulher esta noite. Talvez ela ficasse interessada e então, amanhã...
Carrie olhou para trás, para seu jardim agora quase mergulhado na escuridão, para as mudas e a pá que jaziam no chão, para sua casa com a porta aberta e as luzes apagadas.
- Serão apenas alguns minutos? - perguntou ela.
- Apenas alguns minutos - garantiu o homem.
Ela entrou e o carro esporte cinzento partiu rua acima.


Jack Ritchie
BIG TONY
- Tenho três filhas e já é tempo delas se casarem - disse Big Tony, voltando-se para O'Brien. - Trate de resolver esse problema.
Pensei duas vezes antes de responder.
- Você quer que eu ande por aí, batendo de porta em porta e perguntando quem quer casar com uma das filhas de Big Tony?
- Não - replicou ele, tirando um charuto da caixa. - Qual o motivo que você acha que me fez deixar River Hills há três anos e vir para cá?
- Você queria misturar-se com gente fina? Mas eles nem falam com você nem ninguém convida suas filhas para sair!
- Talvez eu jamais consiga entrar de sócio no clube, mas as garotas não têm problemas com os rapazes. Há quanto tempo você não as vê, O'Brien?
- Quatro anos. Quando você me mandou para a Costa Oeste.
Ele sacudiu a cabeça, concordando.
- Bem. Elas estão mais bonitas que nunca.
- Mas ainda não casaram?
- Pra você ver, O'Brien. Sou o pai delas e meu nome aparece de vez em quando no jornal, embora não nas colunas sociais - disse ele, pisando forte no tapete espesso. - Não quero ser um desses pais metidos nos namoros das filhas, mas sei onde pega o carro e isso me entristece. Ele me apontou com o charuto.
- Como no caso de Angelina e Herbert Bradford. São loucos um pelo outro, mas nem assim ele faz o pedido.
- Por quê?
- Porque Herbie tem medo do pai. Este tal de Grover Bradford diz que Herbie deve escolher uma garota cujos ancestrais utilizaram os recifes de Plymouth como cais. E você sabe que meus pais por pouco não foram ao fundo no porão do Titanic.
- E qual é o problema com Faustina?
- Morley Wilson.
- Do que é que ele tem medo?
- Quinze milhões de dólares. É quanto ele deixará de receber da avó, se casar com Faustina.
- E ele não está disposto a perder 15 milhões de dólares por causa de Faustina?
- Olhe aqui, O'Brien - disse Big Tony. - Não condeno muito o rapaz. Uma mulher é uma mulher, mas 15 milhões são 15 milhões.
- E sou desafiado a conseguir os 15 milhões de dólares e um final feliz?
Big Tony sorriu maliciosamente.
- Quando mandei você para a Costa Oeste, parecia que tudo estava desabando por lá. Na verdade, eu não esperava que você conseguisse muita coisa. Entretanto, tudo entrou nos eixos e passou a funcionar. Admiro qualquer pessoa que faça um trabalho como você e espero que consiga outro milagre semelhante aqui.
- Qual é o problema de Cecelia?
- Philip Courtland. Joga futebol por um desses colégios de primeira classe da Costa Leste e tem cerca de um milhão em seu nome.
- E o que o torna tão tímido?
- Não sei. Descubra e faça alguma coisa a respeito. Uma das portas da sala se abriu e Cecelia entrou.
- Ora viva! Não é que O'Brien está de volta? Há anos que não vejo você. - Seus olhos cor de cinza me examinaram de alto a baixo. - O que fez você voltar do Oeste? Negócios?
- Uma visita de amigo - explicou Big Tony. - Ele vai ficar por aqui algum tempo. - Deu uma olhadela no relógio e acrescentou: - Tenho um encontro marcado com meu professor de golfe. Por que você não mostra a casa para O'Brien?
Ao chegarmos ao jardim, Cecelia perguntou:
- Qual a verdadeira razão de você estar aqui?
- Você não está na relação dos que podem sabê-lo.
- Pouco me importa - replicou ela, sacudindo os ombros. A seguir, apontou para umas sebes. - Logo ali encontraremos Angelina e Herbert de mãos dadas. Todas as terças e quintas, entre as duas e as quatro, Herbie foge da cancha de tênis do clube e vem visitar Angelina.
Contornamos a sebe e lá estavam os dois, sentados num banco.
Angelina era trigueira, provavelmente com l,55m.
- Como vai, Sr. O'Brien? Cecelia sorriu para eles.
- Aqui temos uma réplica do caso dos Montecchios e Capuletos. Às vezes me dá vontade de raptar vocês dois e levá-los ao juiz de paz mais próximo. Angelina meneou a cabeça.
- As coisas não são feitas mais assim no século XX, Cecelia.
Herbert concordou.
- Veja só, Sr. O'Brien. Apesar de meu pai não me ligar a menor importância, ainda assim tenho uma incorrigível necessidade de sua aprovação para as coisas que faço. Sou um sujeito de personalidade extremamente dependente.
Um Jaguar entrou no pátio e parou em frente a casa.
- Minha aula de tênis - disse Cecelia - mas posso cancelá-la. se você fizer questão.
- Não. Tenho um trabalho a fazer.
O homem que estava atrás do volante desceu e veio ao nosso encontro.
- Philip Courtland - apresentou Cecelia. - E este é Jim O'Brien.
Courtland era quase de minha altura e nos examinamos mutuamente.
- O'Brien é um dos sócios de meu pai - esclareceu Cecelia. - É o encarregado de dar sumiço nos corpos e coisas assim.
- Não me esquecerei disso - replicou Courtland.
Esperei que eles partissem e então fui até o centro, tomar um drinque com um velho amigo do Morning Chronicle. Ao sairmos do bar, ele me levou ao arquivo do jornal e me deixou fazer umas buscas.
Na manhã seguinte, quando deixei a casa de Big Tony, comprei uma pasta e me dirigi à sede dos Laboratórios Brad-ford. Dei meu nome à secretária e me sentei para esperar.
A secretária falou com seu chefe e anunciou:
- Faça o favor de entrar. O Sr. Bradford o receberá. Era um enorme escritório, com um grosso tapete. Grover Bradford levantou-se de sua mesa e estendeu a mão.
Era um homem corpulento e provavelmente passava seus fins de semana em um iate.
Esperou que eu me sentasse e então disse:
- Minha secretária informou que o senhor é da Administração de Alimentos e Drogas.
- Exatamente.
Ele ficou esperando, cautelosamente.
- Sr. Bradford - disse eu - seis meses atrás meu departamento o notificou de que deveria suspender a campanha de anúncios proclamando as propriedades de um produto chamado Durma Fácil. O senhor foi multado em 500 dólares.
A fisionomia do homem não se alterou.
- São águas passadas. A multa foi paga.
Sorri.
- Precisamente. O senhor deixou de produzir Durma Fácil e pagou 500 dólares. Isso, porém, representou uma ninharia, em relação ao milhão e meio que o senhor faturou com Durma Fácil, antes que o departamento entrasse na história e agisse.
Ele não disse nada.
- O departamento trabalha com muita precaução e é lento - continuei. - Algumas firmas exploram esta vantagem e ganham dinheiro. Acho que estivemos testando Durma Fácil durante mais de ano e meio, antes de agirmos e aplicarmos a multa. - Parei por um momento. - E agora o senhor apresenta um novo produto, Sonho-8. Duas pequeninas pílulas ao deitar e a pessoa dorme como uma criança durante oito horas. O senhor começou a produzir e a anunciar Sonho-8 não faz dois meses. Isto lhe dará outro milhão de dólares, pelo menos, antes que o departamento entre na jogada e lhe aplique nova multa de 500 dólares.
Ele abriu a caixa de charutos e tirou um enorme. Não foi capaz de perguntar se eu não gostava de charutos. Esperei até que ele o acendesse e então ataquei:
- O departamento age com lentidão, mas pode agir depressa. Por um milhão de dólares hoje. Ou amanhã.
Bradford me olhou longamente, estudando minhas possibilidades.
- Quer dizer que você é capaz de fazer com que o departamento atue lenta ou rapidamente?
Desta vez eu é que fiquei em silêncio. Mas sorri. Ele se inclinou sobre a mesa.
- Está bem. Reconheço uma chantagem a quilômetros de distância. Quanto é que você quer?
- Nada em dinheiro. Já fui comprado. Quero felicidade. Para mim. Para você. Para todo mundo.
Os olhos dele se apertaram.
- Seja mais específico.
- Há uns dois dias, um sujeito veio falar comigo. Queria saber se eu podia fazer com que o departamento agisse com rapidez no caso do Sonho-8. Olhei para o dinheiro que ele trazia e respondi que era capaz de dar um jeito. Aconteceu, porém, que ele realmente não queria que eu fizesse coisa alguma, a menos que...
Fiz a interrupção de propósito, para que ele insistisse:
- A menos o quê?
- Parece que o homem tem uma filha chamada Angelina e quer que ela seja feliz. A idéia que ela tem de felicidade e casar com um sujeito que se chama Herbert Bradford.
Grover Bradford deu um soco na mesa:
- Não permitirei isso!
Levantei-me.
- O problema é seu, Sr. Bradford. Um milhão ou Herbie
- Espere um minuto. Durante quanto tempo você pode retardar a ação do departamento?
- Possivelmente uns dois anos - disse eu. - Se fizer bastante força.
Os olhos dele faiscaram e me deram a impressão de que estava fazendo operações de aritmética. Parei na porta.
- Mais uma coisa, Sr. Bradford. Big Tony gostaria de ser sócio do Country Club. Por favor, veja o que é possível fazer por ele.
Naquela noite, na casa de Big Tony, fui apresentado a Morley Wilson. Era um sujeito magro, com sinais de calvície. Confessou-me seu problema.
- Vovó é uma criatura incompreensível. Proíbe terminantemente meu casamento com Faustina, mas não faz objeções às minhas visitas aqui. Até insiste para que eu venha.
- Você já tomou suas cápsulas de vitamina C? - perguntou Faustina.
Wilson fez que sim com a cabeça.
Faustina era pálida por natureza e provavelmente continuaria assim até morrer, aos 97 anos.
- Estou certa de que não levarei muito tempo para convencer meu médico de que necessito tomar umas pílulas para a tireóide, Morley.
- Olhe, Morley - interveio Big Tony. - Acabei de comprar uma fábrica de enlatados em Illinois. Milho, ervilha e demais produtos da estação. Darei tudo como presente de casamento.
Wilson considerou a oferta durante uns minutos.
- Quanto vale tudo?
- Trezentos mil dólares.
- Não - respondeu Wilson, meneando a cabeça. - Não poderia dormir à noite. Ficaria pensando nos 15 milhões que perdi.
Herbie Bradford e Angelina entraram na sala.
- Papai deu permissão para eu casar com Angelina - anunciou ele, orgulhosamente.
- E vai haver uma grande festa - disse Angelina. - Daremos uma recepção no jardim, quando formos anunciar a data.
Na manhã seguinte, após o café. fui à garagem buscar meu carro. Cecelia apareceu atrás de mim.
- Mais negócios?
- Exatamente.
- Mas não vai me dizer que negócios são esses?
- Por que deveria obedecer-lhe?
- Porque sou a filha do patrão e porque sou curiosa. Estão acontecendo coisas por aqui e tenho a sensação de que você é de algum modo o responsável. Então por que não me diz o que anda fazendo?
- Talvez algum dia.
- Quando?
- Depois que você casar.
A mansão da avó de Morley Wilson distava menos de um quilômetro dali.
Hilda Wilson usava uns velhos culotes de montaria, mocassins e um suéter.
- Alô, garotão - disse ela, dirigindo-se ao pequeno bar no fundo da sala. - Aceita um drinque?
- É um pouco cedo - respondi.
- Na minha idade nada é cedo... Em geral é tarde demais. Embora não possa me queixar de ter perdido minhas oportunidades. - Serviu-se de uma dose de uísque. - Vamos lá, garotão. O que posso fazer por você?
- Sra. Wilson - comecei - sou um autor, especializado em escrever as biografias de famílias famosas. Há alguns pontos que eu gostaria de esclarecer a respeito da família Wilson, antes de prosseguir.
- Continue, garotão.
- Bem... Ê verdade que seu marido começou a fazer a fortuna dos Wilsons no Colorado, apossando-se dos direitos de exploração da mina de um sócio?
- Bill com certeza deve ter feito uma coisa assim. Paz à sua alma.
- E aproximadamente há um ano ele matou um homem durante uma briga de bêbados?
- Um tiro bem no meio dos olhos - disse Hilda. - Bill deveria ser enforcado, mas comprou o júri.
Tive a impressão de que as coisas não iam andando exatamente como eu queria.
- Sra. Wilson, acho melhor que essa biografia não seja escrita.
- É mesmo? - Ela foi até o bar, preparou outro drinque e o trouxe para mim. - Beba isto, garotão. Acho que está precisando de um gole.
Recebi o copo e esperei.
- Garotão - disse ela - até agora já vieram aqui seis sujeitos com a história de que estão escrevendo a biografia da família Wilson. Depois de algum rodeio, acabam dizendo que talvez possam suspender o trabalho se eu lhes pagar 10 mil dólares ou coisa parecida. É isso o que você planejou?
Engoli o drinque de um trago e não disse nada. Hilda Wilson continuou:
- A família Wilson não é tão célebre assim, que alguém se importe com o que ela fez. Todos os nossos amigos, aliás, conhecem bem nossa história e, quanto aos inimigos ou estranhos, pouco me importa o que eles pensem de nós. Qual a quantia que você iria pedir? Dez mil? Quinze mil?
- Eu não iria pedir dinheiro.
- Mas veio aqui atrás de alguma coisa. O que é?
- Nada que lhe interesse.
Ela riu.
- Aceita outro drinque, garotão?
- Traga a garrafa - respondi. - E, por favor, pare de me chamar de garotão.
Ela foi buscar a garrafa e dois copos.
- Você me faz lembrar meu marido. Vou chamá-lo de Bill.
Puxou uma cadeira e sentou-se a meu lado.
- Por que diabo a senhora não deixa seu neto casar com Faustina? - perguntei.
Seus brilhantes olhos azuis soltaram faíscas.
- Ah, então é isso? Você iria me chantagear até que desse licença para o casamento de Morley? Por que acha você que venho deixando Morley freqüentar a casa de Big Tony todo este tempo?
- Desisto.
- Morley é um bobalhão - disse Hilda. Tem olhos mas não enxerga. Quero que ele case com Cecelia.
Fiquei com o olhar grudado no copo vazio:
- Cecelia?
- Ela mesma. Faustina é bastante bonita, mas Cecelia é a que tem cabeça e tutano.
Pensei um pouco antes de replicar.
- Está bem - disse, por fim. - Vamos admitir isso. Mas se a senhora fosse Cecelia casaria com Morley?
Ela agarrou novamente a garrafa.
- Se ele tivesse 15 milhões de dólares, casaria.
- Big Tony tem alguns milhões também. Não creio que o dinheiro fosse influir na decisão de Cecelia.
Bebemos mais um drinque em silêncio. Finalmente, Hilda suspirou:
- Está bem, Bill. Morley não vale grande coisa e acho que estive querendo mais do que devia. Talvez ele e Faustina sejam felizes, repartindo entre si as suas pílulas de vitamina.
Quando cheguei de volta à casa de Big Tony, ele estava colocando seu saco de tacos de golfe no assento da frente do carro.
- Sabe da última? Grover Bradford convidou-me para uma partida no Country Club. Tenho a impressão de que agora vou ser admitido como sócio.
Naquela noite Morley Wilson veio fazer uma visita.
- Vovó aprovou meu casamento com Faustina - anunciou ele.
- Você tomou seus comprimidos de hoje? - perguntou Faustina.
Morley confirmou com um movimento de cabeça.
Big Tony esperou até que nós dois ficássemos sozinhos.
- Diabos me levem se não há dedo de você nisso. E em menos de 48 horas. - Acendeu o charuto. - E imagino que agora vai agarrar Philip Courtland?
- Claro.
Resolvi falar com Courtland na segunda-feira, mas não precisei esperar tanto. Ele veio a meu encontro no sábado de tarde. Estudou-me durante algum tempo, depois perguntou;
- Você é o braço direito de Big Tony, não é?
- Qualquer coisa desse gênero.
- Já fez um bocado de coisas por ele, não?
- Algumas.
Isto pareceu satisfazê-lo.
- Você gostaria de ganhar um bocado de dinheiro? Dinheiro grosso?
- Até que não seria mau.
Courtland decidiu acender um cigarro antes de continuar.
- Tenho alguns armazéns na cidade. Se eles se incendiassem, eu ficaria muito grato. Vinte mil dólares.
- Você está querendo - repliquei com um sorriso - que eu toque fogo em alguns armazéns, por causa do seguro? Pois olhe: eu pensava que você tivesse alguns milhões espalhados por aí.
Ele enrubesceu ligeiramente.
- Não interessa o que eu tenha ou deixe de ter. Você topa o serviço?
- Está bem - disse eu. - Mas não quero dinheiro. Ele me encarou, desconfiado.
- Então que diabo você vai querer?
Por um momento, pensei que não teria coragem para dizer, mas afinal desembuchei:
- Quero que você peça Cecelia em casamento. Os olhos dele faiscaram.
- É esse o seu preço?
- Você não ouviu?
Deu mais tragadas, depois jogou o cigarro fora e me olhou longamente.
- Se é esse o preço que você cobra, estou disposto a pagar. Fui até à porta, abri e disse:
- Vá falar com ela e faça o pedido. Ele sacudiu a cabeça:
- Não. Primeiro, os armazéns.
Depois que ele saiu, tive necessidade de um drinque. Big Tony voltou ao Country Club cerca de uma hora depois e contei-lhe toda a história. Ele esfregou o pescoço.
- Então ele quer tocar fogo nos seus armazéns? O que é que ele está pensando que nós somos?
- A mesma coisa que todo mundo pensa. Big Tony sacudiu a cabeça.
- Tenho andado na linha há tanto tempo que já nem conheço alguém capaz de incendiar um armazém. Tenho que pensar um pouco sobre esse assunto.
Voltei ao bar e tomei outro drinque.
Cecelia entrou na sala e se debruçou sobre minha cadeira.
- O que foi que você andou fazendo na Califórnia, O'Brien? Levando garotas para passear ou raptando crianças?
- Estive cuidando das pequenas lanchonetes que Tony comprou e organizando-as em uma cadeia. Não matei mais ninguém desde que fiz cinco anos, mas acho que sou capaz de recomeçar agora. - Olhei fundo nos olhos dela. - O que diabo tem esse Philip Courtland de tão especial?
- Especial? - repetiu ela, piscando várias vezes. - Quem disse que ele tem alguma coisa de especial?
- Então por que você quer casar com ele?
- Quem disse que eu quero casar com ele?
- Então você não quer?
- Claro que não. Já me pediu uma dúzia de vezes. Não é verdade, papai?
Olhei para Tony, mas ele estava ocupado, acendendo um charuto.
Suspirei fundo e me dirigi para o telefone. Quando a ligação foi completada, disse para Philip Courtland:
- Vá para o inferno com seus armazéns. Desliguei e resolvi enfrentar Big Tony.
- O que quer dizer tudo isto?
Ele terminou de acender o charuto.
- Quando mandei chamá-lo, O'Brien, não pensei que você conseguisse o casamento de Faustina. Nem o de Angelina. Nunca imaginei que alguém fosse capaz disso e agora não espero mais nada.
- Então por que se lembrou de mim em primeiro lugar?
Big Tony mostrou seu largo sorriso.
- Cecelia já fez 20 anos e achei que era tempo dela casar-se. Mesmo que eu tivesse de ir à Costa Oeste, procurar alguém que me agradasse.
Foi até a porta e olhou para trás.
- Deixo o resto por sua conta, O'Brien. Você é quem está no leme.


Jaime Sandaval
DR. MARTIN, ADVOGADO DE DEFESA
O telefone na minha mesinha-de-cabeceira tocou quando já passavam dez minutos da meia-noite, acordando-me. Acendi a lâmpada e peguei o fone.
- Dr. Martin? Sou eu, Mickey Bananas - disse uma voz de baixo, falando apressadamente. - Estou numa enrascada. Eles acabaram de me trancafiar no xadrez. Que tempo você vai levar para vir até cá?
Recoloquei o fone no gancho, apaguei a luz e me virei para o outro lado. No que me dizia respeito, qualquer que fosse o problema que Michael - "Mickey Bananas" - estivesse tendo com a polícia, era exclusivamente dele. Eu era advogado e não um joguete. Na última vez em que Mickey teve problemas com a polícia, dei-lhe toda a assistência possível, mas ele pagou apenas a metade de meus honorários. Isto é uma atitude imperdoável no relacionamento advogado-cliente.
Não havia perigo de Bananas me chamar novamente e perturbar outra vez meu sono. Os prisioneiros têm direito a um telefonema e ele já fizera o dele. De manhã, entretanto, um sujeito que fora posto em liberdade levou um recado para um dos amigos de Mickey, que pagou a fiança. Por volta do meio-dia, ele foi ao meu escritório, gritou com minha secretária e exigiu que ela o deixasse entrar.
Esperei até que o barulho na outra sala não permitiu mais minha concentração para resolver um problema de palavras cruzadas; então, apertei o botão do interfone e disse à garota que o deixasse entrar.
- Por que você cortou minha ligação? - perguntou Mickey, avançando escritório adentro e parando diante de minha mesa. Era um sujeito de rosto vermelho, com ar pacato, quarentão, com mais de l,80m de altura e pesando seus 120 quilos - um conjunto de traços característicos que, no passado, tornaram muito fácil às testemunhas reconhecê-lo e identificá-lo por ocasião dos depoimentos. - Por que você cortou minha ligação? - repetiu ele, com sua voz passando do tom de beligerância inicial para um magoado ressentimento. - Não lhe disse que estava numa enrascada?
- Sou um homem muito ocupado, Sr. Murdock - respondi com toda a formalidade. - Tenho meu tempo todo dedicado aos meus clientes.
- Mas eu sou um cliente! - protestou ele.
- O senhor era um cliente - corrigi. - Deixou de ser no julgamento daquele roubo, três meses e cinco mil dólares atrás.
Mickey odeia pagar suas contas, mas sabe quando está imprensado. Com a polícia apertando por um lado e eu pelo outro, ele teve de escolher entre abrir mão de seus dólares ou tomar o trem para Sing Sing ou Attica, sem lutar contra a polícia. Então, relutantemente, tirou do bolso um maço de 50 cédulas novinhas de 100 dólares cada uma.
Depois de certificar-me de que não eram notas falsas, guardei-as na gaveta e me recostei na poltrona, com ar de quem está satisfeito.
- Isto soluciona o caso anterior - disse eu. - Agora, você não se incomoda em depositar um sinal?
Esperei até que um maço adicional de cédulas fosse ainda mais relutantemente tirado do bolso. Mickey contou o dinheiro três vezes antes de colocá-lo em cima de minha mesa.
- É bom que o senhor faça jus a isto! - resmungou ele.
- Você sabe que valho mais do que me paga - retruquei. - Não fosse assim, não teria vindo me procurar. É melhor agora contar-me tudo direitinho.
Os advogados criminais têm três categorias de clientes: os que mentem e tornam impossível uma defesa com êxito; os que não se confessam nem inocentes nem culpados, mas dizem simplesmente: "Esta é a minha história"; e os que contam tudo minuciosamente, até o último detalhe, deste modo evitando que o promotor surpreenda o advogado de defesa com fatos inesperados e desagradáveis.
Mickey pertencia a este terceiro grupo e contou tudo, não escondendo sequer detalhes que lhe devem ter ferido o orgulho. Havia roubado um quadro a óleo de uma catedral de uma cidade do interior, na frente de meia dúzia de testemunhas, todas elas freiras. Fora capturado minutos mais tarde por um padre de meia-idade, ex-campeão de boxe, que o alcançara poucos quarteirões adiante, quando Mickey tentava tomar um táxi.
Pensativamente. tamborilei sobre a mesa com a ponta dos dedos. Não se poderia dizer que era um belo conjunto de circunstâncias. Tudo levava a crer que a carreira criminosa de Mickey chegara ao fim.
- Qual é a acusação? - perguntei-lhe.
-- Furto de objeto de valor. O quadro estava estimado em uns 200 mil dólares.
A quantia era perfeita para a qualificação do crime, isto é, perfeita para o promotor. Mickey não apenas fora apanhado com o quadro nas mãos; havia ainda seis testemunhas oculares do furto e nenhum júri seria capaz de pôr em dúvida seus depoimentos.
- O senhor acha que pode me livrar desta? - perguntou Mickey, sorrindo constrangidamente e sacudindo a cabeça num esforço inconsciente, mas sem convicção para estimular uma resposta favorável de mim.
Abstive-me de replicar. Se eu quisesse mesmo receber integralmente meus honorários, aquela era uma oportunidade sem igual. Depois que um cliente se acostumou a ver o sol nascer quadrado, é muito difícil que se disponha a pagar seu advogado. Disse a Mickey que não me empenharia em sua defesa no presente caso antes que ele saldasse o restante de sua conta e anunciei o total.
A prova de sua ansiedade foi que ele arranjou o dinheiro e me pagou em 24 horas. Utilizei a verba para duas semanas de bem merecidas férias em Las Vegas. O caso de Mickey não era daqueles que o advogado pode preparar a defesa de antemão, de modo que resolvi não perder meu tempo. Tudo o que me restava fazer era esperar por um milagre e essa espera tanto podia ser em Las Vegas como em meu escritório.
Passou-se mais de um ano antes que o processo de Mickey entrasse em pauta. O Juiz Charles Fitch deveria presidir o julgamento. Fitch era um excêntrico, mas, à sua maneira, inigualável. Em julgamentos anteriores eu observara que os réus que se divertiam com trens elétricos nos portões de suas casas, ou tinham coleções de selos ou de moedas, raramente recebiam dele sentenças máximas. Disse a Mickey que comprasse um velho álbum de selos e o pusesse debaixo do braço todas as vezes em que comparecesse ao tribunal. Se as coisas corressem tão mal quanto eu suspeitava, dar-lhe esse conselho era praticamente tudo o que eu poderia fazer para justificar meus honorários.
O promotor era Bill Ogden, um veterano de 20 anos de tribunal. Bill não costumava cometer muitos erros, nem tampouco suas testemunhas, cuidadosamente instruídas. Tínhamos sido adversários dezenas de vezes e estávamos mais ou menos iguais em vitórias e derrotas. Pude perceber, pela dilatação das narinas de Bill, que ele levava este caso na certa, para passar à frente.
A seleção do júri operou-se rapidamente, nenhum de nós apresentando restrição. Depois, Bill convocou as seis freiras e, uma por uma, elas depuseram, descrevendo o furto e identificando Mickey. A seguir, foi a vez do padre que agarrara Mickey e dos policiais que o prenderam. Eles acentuaram que Mickey estava com o quadro na mão. Escutei atentamente o que disseram as testemunhas, mas declinei de inquiri-las, embora notasse que Mickey estava ficando nervoso.
Passada esta fase, Bill Ogden pediu que o quadro furtado fosse trazido para a sala, como prova nº 1 da acusação. Depois, chamou nova testemunha - Monsenhor O'Malley, administrador da catedral. Na qualidade de guardião do quadro, embora não seu proprietário, o monsenhor fora o signatário da queixa criminal que legalizou a prisão de meu cliente. Eu não podia contestar isso.
É praticamente impossível interrogar-se um clérigo sem indispor o júri contra o advogado e seu cliente, mas desta vez não tive escolha. Quando Ogden terminou suas perguntas, levantei-me e apresentei as minhas.
- Monsenhor O'Malley, foi o senhor quem relatou à polícia o furto do quadro?
- Sim.
- Foi um relatório completo?
- Comuniquei que ele fora retirado da catedral, se é isso o que o senhor está perguntando.
- E fez menção ao valor do quadro? Bill Ogden se pôs de pé imediatamente.
- Objeto à pergunta, meritíssimo. Não acho que ela seja relevante neste momento.
O Juiz Fitch meditou durante uns segundos, depois se dirigiu a mini:
- Dr. Martin, não sei se o Monsenhor O'Malley é um entendido em pintura, mas se o senhor deseja apenas uma ordem de grandeza do valor do quadro, permito que a resposta seja dada agora, ao invés de ter de chamar novamente a testemunha.
- Obrigado, meritíssimo - disse eu, voltando-me depois para o depoente. - Monsenhor O'Malley, na ocasião em que o senhor comunicou o furto, fez referência ao valor do quadro?
- Declarei que o quadro em questão era tido como de grande valor - respondeu ele, cautelosamente.
As respostas eram tais que não tive dúvida de que Ogden havia informado à testemunha algumas verdades a meu respeito.
- O senhor chegou a especificar o que queria dizer grande valor?
- Não. Era o que diziam os jornais, na época em que o quadro foi doado à catedral.
- O que diziam os jornais... - repeti. - Em que época ocorreu a doação?
- Creio que em 1955 ou 1956. Não tenho bem certeza da data, mas foi em um desses anos.
- O senhor sabe qual o valor que foi atribuído ao quadro nessa época?
Ogden estava de pé novamente:
- Objeto à pergunta, meritíssimo. Seria uma declaração por ouvir dizer.
- Se ele sabe por conhecimento próprio, pode responder - decidiu o Juiz Fitch.
Ogden, porém, não estava disposto a desistir tão facilmente.
- Meritíssimo, a pergunta, tal como apresentada, é relativa ao valor dado por outrem e, em conseqüência, ficarei impossibilitado de fazer minhas perguntas quanto ao mérito desse valor.
Ogden gesticulava muito ao falar. Sempre sou capaz de afirmar quando um promotor assiste na televisão a série reprisada de filmes de Perry Mason.
O Juiz Fitch olhou para mim.
- Dr. Martin, aceito a objeção quanto à forma em que foi apresentada a pergunta.
Resolvi tentar uma nova linha de ação.
- Monsenhor O'Malley, sabe quem foi que doou o quadro à catedral?
- Sei.
- Quem foi o doador?
- O Sr. Nicholas Fisher.
- O mesmo Nicholas Fisher, ator de cinema e de televisão?
- Sim.
- Nicholas Fisher é membro da congregação local?
- Não.
- O senhor sabe por que ele doou o quadro à catedral?
- Não.
- Quem fez a doação por ele?
- O Sr. Sylvester Benton.
- O Sr. Benton é um residente local?
- Se Brooklin for considerada residência local, sim - respondeu o monsenhor, permitindo-se um leve sorriso.
- O senhor sabe qual é a profissão do Sr. Benton?
- É um crítico de arte e um avaliador profissional. Concordei com um movimento de cabeça.
- Quando o Sr. Benton fez a doação em nome do Sr. Fisher, foram anexadas certidões ou documentos atestando a autenticidade do quadro?
- Não me lembro de ter visto algum.
Com isto terminamos o primeiro dia do julgamento.
Eu me sentia satisfeito com o que até então havíamos conseguido, mas Mickey Murdock não participava de minha satisfação. Não lhe parecia que eu tivesse feito qualquer progresso.
- O senhor não está me passando para trás, está? - rosnou ele, quando nos dirigíamos para a saída do edifício.
- Mickey - esclareci pacientemente - você foi acusado de um furto de grande valor, mas até agora ninguém provou que o quadro valha mais de 10 centavos. Podem jurar que você o tirou da catedral, mas isso não é suficiente para justificar o tipo de crime em que querem enquadrá-lo. É indispensável a prova do valor do quadro. Ao invés de dar-se ao trabalho de convocar um especialista, acho que o promotor permitirá que você confesse um pequeno furto, quando retomarmos os trabalhos amanhã.
Mas eu estava enganado.
Ao invés de oferecer um acordo entre nós dois, Ogden chamou Sylvester Benton como primeira testemunha da manhã. Benton era um homenzinho de altura bem abaixo da média. Estava ficando calvo, restando apenas uns poucos cabelos brancos na base do crânio rosado. Notei que seus tornozelos sobressaíam muito acima dos sapatos, indicando que ele usava palmilhas sob os calcanhares, para parecer mais alto. Na idade dele, isso era uma demonstração de vaidade e me interessei em explorá-la. Defendendo uma causa perdida, eu tinha de apelar para qualquer recurso que me aparecesse.
Benton prestou o juramento e Bill Ogden deu início ao interrogatório:
- Quer declarar seu nome, por favor?
- Sylvester Benton.
- Qual a sua atividade ou profissão, senhor?
- Sou o crítico de arte de um jornal e de várias revistas da cidade. Sou também um avaliador de objetos de arte, especializado nas obras dos mestres italianos.
- O senhor mora na cidade de Nova York ou em suas cercanias?
- Sim, em Brooklin.
- Onde o senhor fez seu curso?
- Na Universidade de Colúmbia.
- E que matérias estudou lá?
- Arte e história.
- Fez algum curso de extensão?
- Sim.
- Onde, senhor?
- Na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e na Akademie Der Bilden Kunsten, em Munique, Alemanha.
- Colou grau?
- Sim. Mestrado.
- Estudou ainda em algum outro lugar?
- No Kunthis Torisches Institut em Florença, Itália. O nome é alemão porque é operado pelo governo da Alemanha.
- Durante quanto tempo o senhor estudou lá? - Cerca de um ano.
- Há quantos anos vem exercendo suas atividades de crítico de arte e avaliador?
- Mais de vinte - replicou ele.
Ogden sacudiu a cabeça com satisfação e dirigiu-se ao Juiz Fitch:
- Meritíssimo, nesta altura creio ter provado que o Sr. Benton é um especialista não apenas em arte, mas especialmente nas obras dos mestres italianos.

- O senhor deseja interrogar a testemunha quanto às suas qualificações, Dr. Martin? - perguntou-me o juiz.
Levantei-me e respondi que não, sentando-me novamente. Mickey me olhou com ar carrancudo, mas eu o ignorei.
- Muito bem. Pode continuar, Dr. Ogden - disse o Juiz Fitch.
- Meritíssimo, queria solicitar que o cavalete fosse deslocado mais para perto do júri, a fim de que ele possa observar o quadro mais facilmente.
- Pode deslocar o cavalete - permitiu o juiz.
Até então o quadro estivera num cavalete em frente à mesa do juiz. Ogden, com o auxílio de dois meirinhos, colocou o cavalete entre a bancada do júri e a cadeira da testemunha, de frente para a audiência, de modo que todos pudessem ver perfeitamente o quadro.
Satisfeito com a posição em que ficara o cavalete, Ogden voltou a inquirir a testemunha.
- Sr. Benton. quer fazer o favor de ficar perto do quadro por um momento?
Benton levantou-se e veio postar-se junto ao quadro. Este tinha uns 75cm de largura por um metro de altura. Na posição em que se encontrava, a parte superior do cavalete ficava quase um palmo acima da cabeça do avaliador. Procurei imaginar a situação de Mickey Murdock, tentando enfiar aquele retângulo pela portinhola do táxi. Olhei de soslaio para ele, e, adivinhan-do-me os pensamentos, meu cliente dignou-se enrubescer.
- O senhor teve oportunidade de examinar esta pintura anteriormente?
Nada se compara com o estudado respeito que um promotor demonstra por sua testemunha, exceto, talvez, o cuidadoso desdém que ele reserva para as testemunhas de defesa.
- Sim - respondeu Benton. - Examinei-a detalhadamente para uma avaliação que o Sr. Nicholas Fisher me solicitou, antes de doar o quadro à catedral.
- O senhor chegou a uma conclusão quanto à antigüidade e ao valor da obra?
- Não tenho a menor duvida de que se trata de um trabalho realizado entre 1500 e 1530, provavelmente neste último ano. Estimo seu valor atual em aproximadamente 200 mil dólares.
Ogden esboçou um largo sorriso.
- O senhor quer ter a bondade de explicar às senhoras e aos senhores do júri, bem como ao meritíssimo juiz e a todos os presentes, incluindo o Dr. Martin, em que se baseou essa opinião e como chegou à conclusão final?
Benton apontou para o quadro com um largo gesto. Era evidente que estava gozando aquela notoriedade.
- Há inúmeras pinturas muito semelhantes a esta, reconhecidas como sendo obra de Marco Delgardi e seus discípulos. Poucas, entretanto, revelam o fino acabamento deste quadro que, por isso mesmo, atribuo ao próprio mestre.
Benton apoiou-se na ponta dos pés, encantado consigo mesmo.
- Delgardi e seus discípulos pintaram uma centena de madonas como esta. As mesmas normas foram observadas em cada caso. A Virgem aparece sentada ou em pé, com uma cortina ao fundo. Esta cortina é geralmente verde como se vê aqui. O Menino Jesus está nos braços da Virgem ou sentado em seu colo. Vêem-se colinas e nuvens ao fundo e...
- Quem são as duas outras pessoas em primeiro plano? - interrompeu o Promotor Ogden.
- O homem de joelhos, que está sendo abençoado pelo Menino Jesus, é uma representação, um retrato, se o senhor preferir, da pessoa que encomendou a pintura. Os cabelos compridos, não muito diferentes dos da moda de hoje, eram comuns na Venécia, a área em torno de Veneza. A quarta pessoa é o santo padroeiro do homem ajoelhado, apresentando-o à Virgem e ao Menino Jesus. Neste caso, o santo padroeiro é São Nicolau de Bari, como se pode concluir pelo barrete de bispo e pelos três globos de ouro que ele tem na mão.
Benton estava no auge de seu entusiasmo:
- São Nicolau aparece em muitas destas pinturas porque havia na Itália, naquela época, grande número de homens importantes chamados Nicolò. Ele é identificado primeiro pelo chapéu de bispo, embora tenha havido muitos bispos santos, e pelos três globos de ouro, que simbolizam uma de suas boas ações. Conta-se que uma mulher muito pobre queria casar, mas não tinha o dote exigido para a união. São Nicolau veio uma noite e deixou os três globos de ouro junto à cama, enquanto ela dormia. É esta história que deu origem ao uso de São Nicolau, com sua sacola de presentes, na época de Natal; na Europa, o seu dia é comemorado quase com o mesmo fervor que o Natal.
- Sr. Benton - perguntou Ogden - pode nos dizer algo mais a respeito da técnica do artista?
- Com prazer. Esta pintura foi feita inteiramente à maneira de Delgardi. A parte mais difícil, a Virgem, foi pintada com esmalte transparente sobre um fundo branco. Esta técnica dá à cor mais intensidade do que é comum encontrar-se em outras escolas de pintura e o processo existiu somente até 1530, no máximo. Detalhes tais como a posição das pessoas e a cor do vestido da Virgem, azul neste caso, muitas vezes variam. Os artistas devem ter-se cansado de fazer tudo exatamente igual, cada vez que pintavam uma Madona encomendada, e a escolha das cores por certo influía no custo da obra, uma vez que alguns pigmentos eram mais caros do que outros. Todavia, as cores tipicamente venezianas e a finura do traço do pincel levam-me à certeza de que se trata de um genuíno Delgardi, pintado ao tempo em que sua habilidade artística estava no auge.
- Tenho apenas mais uma pergunta, Sr. Benton - disse Ogden suavemente. - O senhor declarou que estima o valor do quadro em 200 mil dólares, não foi?
- Exatamente.
- Quer fazer o favor de nos dizer como chegou a essa importância?
- Alguns meses atrás, um museu de Chicago adquiriu uma obra similar em um leilão de arte no Sotheby de Londres. O preço pago foi de 75 mil libras, aproximadamente 200 mil dólares. A meu ver esta pintura é, em todos,os sentidos, comparável à que foi leiloada.
- Obrigado, Sr. Benton. Não tenho mais perguntas no momento - disse Ogden.
- Dez minutos de recesso - anunciou o Juiz Fitch, dando ordens ao meirinho para levar o júri para a sala dos jurados.
Mickey e eu fomos até ao corredor, para que ele fumasse um cigarro. Eu já abandonara o pernicioso vício alguns anos atrás. Mickey deu umas baforadas apressadamente, enquanto me perguntava qual a minha opinião sobre o rumo que as coisas estavam tomando. Respondi com resmungos ininteligíveis, para parecerem altamente confidenciais, e continuei a fazer o que durante todo o tempo vinha fazendo: esperando por um milagre.
Não que tivesse deixado de pensar furiosamente. Um criminoso bem-sucedido deve ser capaz de imaginar-se na pele de um policial, do mesmo modo que um bom policial deve poder saber colocar-se no papel de um criminoso; assim, um advogado tem de ter mais imaginação que os dois, ou terá mais casos perdidos que vitoriosos.
Infelizmente eu não estava em condições de fazer as vezes de um especialista em obras de arte. Como não pretendia interrogá-lo, não me preparei para essa tarefa. Não me ocorreu que o valor do quadro fosse anunciado por uma testemunha, mas sim por uma nota fiscal ou outro documento qualquer. Nem eu queria arriscar-me a formular perguntas cujas respostas já não soubesse de antemão - a coisa mais perigosa que um advogado pode fazer em um interrogatório.
Mickey atirou a ponta de seu cigarro no cinzeiro junto à porta do salão e retornamos aos nossos lugares. O juiz ocupou sua poltrona no alto do estrado, o escrivão anunciou o reinicio dos trabalhos e os jurados voltaram da sala. Benton retomou sua posição de testemunha e comecei a interrogá-lo.
- Sr. Benton, foi o senhor quem doou esta pintura à catedral?
- Sim, na qualidade de representante do Sr. Fisher.
- O Monsenhor O'Malley declarou anteriormente que não havia documentos comprovando a antigüidade da pintura, na época em que o senhor a entregou à catedral. Concorda com essa declaração?
- Concordo.
- O senhor testemunhou que fez uma avaliação do preço do quadro, antes que ele fosse doado à catedral. Quer dizer ao júri qual o valor que o senhor atribuiu na ocasião e como chegou a essa importância?
- Avaliei o quadro em 150 mil dólares, depois de certificar-me de que se tratava de um genuíno Delgardi. A avaliação se baseou na demanda da época, nos preços que eram cobrados por Madonas de Delgardi ou de seus discípulos.
- O senhor não acha que a falta de uma documentação, certificando a história do quadro, pode indicar que a obra é falsificada?
- Pelo contrário. Raras vezes presto atenção a certificados. Esses papéis são mais facilmente forjados do que a própria obra de arte. Acredito mais no meu julgamento do que em qualquer documentação.
A vaidade do Sr. Benton não estava produzindo impressão muito favorável no júri, mas suas afirmativas eram seguras. Tratei de inventar uma alavanca para arrancá-lo de seu pedestal.
- Sr. Benton, na qualidade de especialista em arte italiana, há algum livro que o senhor recomendaria a quem desejasse aprender mais sobre Delgardi e suas obras?
- Delgardi e I Delgardiani, que significa Delgardi e pintores de sua escola, é um trabalho bem completo sobre o assunto. O livro, porém, foi escrito em italiano e nunca publicado em inglês.
- O senhor lê bem em italiano?
- Naturalmente - respondeu Benton com um sorriso.
- Por que razão o senhor respondeu... - percebi tarde demais a conclusão evidente - "naturalmente"?
- Porque fui eu quem escreveu o livro.
O Promotor Ogden escondeu o sorriso com uma das mãos. O Juiz Fitch parecia estar com pena de mim. Eu começara tentando pôr em dúvida a credibilidade da testemunha e acabara por proclamar seus méritos com uma ênfase que nem o próprio promotor conseguira.
- Dr. Martin - perguntou o Juiz Fitch caridosamente, enquanto eu me mostrava mais deslocado do que um peixe fora d'água - o senhor tem muitas perguntas mais a fazer a esta testemunha?
Olhei para o relógio da parede e vi que já passavam alguns minutos do meio-dia. Não me ocorria uma única pergunta capaz de quebrar a empáfia de Sylvester Benton, mas me agarrei àquela tábua de salvação.
- Sim, senhor - menti. - Tenho ainda algumas poucas perguntas mais.
- Nesse caso, parece que chegamos ao momento adequado para a interrupção do almoço -- anunciou o Juiz Fitch. - O tribunal entra em recesso até às duas horas da tarde.
Mickey e eu saímos juntos do salão, mas nos separamos na porta. Ele atravessou a rua e foi almoçar, enquanto eu, com raiva de mim mesmo, tomei um táxi para ir à Biblioteca Pública da Rua 42. Mickey retornou ao tribunal com o estômago cheio de lasanha e eu com a cabeça recheada de fatos. Tinha a impressão de que Mickey iria presenciar como faço jus a meus honorários. De todas as acusações que podiam ser lançadas contra Mickey, eu achava que o promotor havia escolhido uma que ele não podia provar.
Esperei até que o crítico de arte Benton se sentasse novamente na cadeira das testemunhas e então comecei:
- Não é verdade, Sr. Benton, que foram utilizados vários pigmentos, em épocas diferentes, para se obterem as cores empregadas pelos artistas e que os tipos de pigmentos podem indicar a idade da pintura?
- Sim, é verdade.
- O senhor fez algum teste para determinar exatamente que pigmentos foram utilizados na pintura desta suposta Madona de Delgardi?
- Não é suposta! - protestou ele. Pela primeira vez eu conseguira atingi-lo. - O senhor está tentando...
- Faça o favor de responder à pergunta - interveio o Juiz Fitch.
- Não - respondeu Benton com relutância. - Não achei necessário.
- Pode dizer-nos sobre que material a Madona foi pintada?
- A madeira, o senhor quer dizer?
- O perito não sou eu, Sr. Benton. Então é madeira?
- Sim - respondeu ele, com evidente mau humor. Eu não estava agindo de acordo com as boas normas e louvando a sapiência da testemunha.
- Quando foi que os artistas começaram a pintar sobre tela?
- Em meados do século XVI. Por volta da metade desse século, lá por 1550, a tela comprovou ser tão vantajosa, que praticamente a madeira não foi mais usada.
O homenzinho estava ganhando confiança outra vez, animado pelo som da própria voz.
- Pode dizer-nos que espécie de madeira foi utilizada neste caso?
- Bem... - Ele hesitou por uns instantes. - Uma vez que se trata de uma pintura italiana, deve ter sido algum tipo de madeira também italiana.
- Mas o senhor não sabe qual é?
- Não - respondeu ele, defensivamente. - A parte de trás do quadro está coberta por um berço.
- Um berço?
- Sim. Os quadros antigos, pintados sobre madeira, são muitas vezes reforçados por uma armação, então chamada de berço, que tinha por fim impedir que a madeira se encurvasse.
- De modo que, por isso, o senhor não pode afirmar com certeza sobre que tipo de madeira foi pintado este quadro?
- Com certeza, não.
- Talvez pudesse ter sido uma madeira compensada moderna?
- Claro que não! Ora essa, eu...
- Mas o senhor declarou não ter examinado a madeira, de modo que podemos admitir que se trate de qualquer espécie, não acha o senhor?
- Sim, realmente...
- Pode dizer-nos por que não fez um exame mais minucioso de uma pintura julgada tão valiosa, Sr. Benton?
- Não achei que fosse necessário - respondeu ele, rispidamente.
- É verdade que os velhos mestres da pintura têm sido vítimas de falsificações com êxito?
- O que quer o senhor dizer "com êxito"? - perguntou ele, desconfiado.
Fingi um ar de infinita paciência:
- Nunca aconteceu que alguém fosse capaz de pintar um quadro que, sem exame detalhado, foi tido como sendo obra de um famoso artista do passado?
- Bem... tem havido alguns exemplos, mas um perito que conhece seu ofício deve ser capaz de detectar a falsificação.
- O senhor já ouviu falar de Hans von Meegeren?
Benton fez uma cara de quem deu uma dentada em uma maçã estragada.
- Já ouvi falar dele.
- É um falsificador de obras de arte, não é? Um falsificador profissional?
- Sim - respondeu Benton secamente, os lábios comprimidos.
- Dizem que vendeu quadros no valor de milhões de dólares, com certificados de peritos declarando que eram Vermeers legítimos. É verdade?
- É.
- E este falsário pintou quadros que eram completamente diferentes uns dos outros, mas todos revelando o estilo, os temas e a técnica de execução característicos de um genuíno Vermeer?
- Bem... sim, acho que é isso mesmo.
- Então a façanha de Hans von Meegeren foi bem mais difícil do que simplesmente copiar formas que já haviam sido pintadas em dezenas de obras relativas ao mesmo tema, com desenhos similares? Apenas para comparar, não seria muito mais fácil para um artista habilidoso, pintar um falso Delgardi?

Houve um penoso silêncio. O Juiz Fitch ficou olhando para Benton.
- Sim - declarou a testemunha finalmente.
Fiz uma pausa, para que o júri tivesse tempo de assimilar toda a importância de minhas perguntas e das respostas de Benton; depois, segui outro rumo:
- Sr. Benton, segundo o seu depoimento, o Sr. Nicholas Fisher pediu-lhe que avaliasse o quadro e também que o senhor fosse o representante dele, na doação da pintura à catedral.
Não se tratava propriamente de uma pergunta, mas Benton respondeu que sim.
- O senhor fez outras avaliações para o Sr. Fisher?
- Fiz.
- De pinturas?
- Sim.
- E essas obras de arte - fiz uma cara ainda mais amargurada que a de Benton anteriormente - foram também doadas?
- Sim.
- O senhor pode dizer-nos por que o Sr. Fisher se mostrou tão zeloso em estabelecer o valor de objetos que ele não pretendia vender nem conservar?
Bill Ogden se levantou imediatamente.
- Meritíssimo, a testemunha é um especialista, crítico de arte, e não um vidente, capaz de ler o pensamento alheio. Por isso - acrescentou, olhando para mim - não é de se esperar que ele saiba os motivos, quaisquer que tenham sido, para que seu cliente tenha agido dessa forma.
Eu não podia permitir que a objeção fosse aceita.
- Meritíssimo - protestei - estou certo de que o Sr. Benton nos provará que a atitude do Sr. Fisher não foi inusitada e que o Sr. Benton estava perfeitamente a par das razões de tal procedimento.
O Juiz Fitch concordou comigo:
- Se a testemunha pode responder com base em seu conhecimento pessoal, deve fazê-lo.
Voltei-me para Benton:
- Bem, a pergunta é: por que o Sr. Fisher solicitou uma avaliação dessa pintura e de outras, conforme o senhor mesmo mencionou?
Benton hesitou, depois respondeu lentamente:
- É uma norma geralmente observada pelas pessoas que pretendem doar uma obra de arte a instituições de caridade, ou outras sem fins lucrativos, fazer uma avaliação do objeto doado.
- Por que isto, Sr. Benton?
- Por causa do imposto de renda. O avaliador estabelece o preço corrente da obra de arte.
- Em outras palavras, as suas avaliações servem de base para as deduções que uma pessoa pode legalmente fazer, quando da doação de um objeto de arte?
- Exatamente.
- O senhor é pago para fazer avaliações?
- Sim.
- Bem pago?
- Razoavelmente bem.
- Então não seria vantajoso para o senhor ser muito rigoroso na análise das pinturas que lhe fossem apresentadas para avaliação?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer - repliquei, aproximando-mc da testemunha e sacudindo um dedo junto ao rosto subitamente pálido de Benton - é que o senhor tinha todo o interesse em receber o maior número possível de obras de arte para avaliação; e mais: ao estabelecer preços elevados para pinturas duvidosas, o senhor se garantiu de que haveria futuras encomendas muito bem remuneradas.
Bill Ogden estava nas pontas dos pés, furioso, como um cão ganindo à lua:
- Meritíssimo, protesto contra a conduta do advogado de defesa! Ele está insultando a testemunha!
- Protesto aceito - decidiu o Juiz Fitch, mas não havia censura em sua voz. - Faça o favor de limitar suas perguntas, Dr. Martin, aos aspectos relevantes do caso e evite ataques à testemunha durante o interrogatório.
- Peço desculpas, meritíssimo - repliquei, voltando-me a seguir para Benton, com um olhar feroz que o Juiz Fitch não podia ver. - Sr. Benton, se esta pintura fosse falsificada, qual seria seu valor?
Bill Ogden se levantou outra vez:
- Meritíssimo, o Sr. Benton não é...
- Se a testemunha é qualificada para estabelecer o valor de uma pintura autêntica - interrompi - é evidente que deve também saber quanto vale uma falsificação comprovada.
- A testemunha pode responder - decidiu o Juiz Fitch.
- Se se tratasse de uma falsificação - admitiu Benton - acho que não teria qualquer valor, exceto como uma curiosidade.
- Obrigado, Sr. Benton. Outra pergunta: o senhor está familiarizado com os processos dos falsificadores de obras de arte, pessoas como Hans von Meegeren?
- De um modo geral, sim. Elas tentam fazer exatamente como foi feito no passado pelo artista que estão imitando.
- Quer dizer que usam o mesmo tipo de materiais, madeira ou tela, pigmentos, pincéis, etc?
- Sim. Tentam também imitar a técnica do artista.
- Em outras palavras, um falsificador procura utilizar materiais idênticos aos empregados pelo artista original e tenta proceder exatamente como este? Copia tanto os materiais como os processos?
- Sim.
- Sr. Benton, nunca lhe pareceu estranho que o artista, qualquer que ele seja, tenha declarado chamar-se Nicholas a pessoa que lhe encomendou o quadro?
Benton olhou para mim com renovada suspeita ante este novo ataque:
- Não. Por que deveria estranhar? Já tive ocasião de mencionar que o nome Nicolò era muito comum na Itália, durante aquele período.
- O primeiro nome do Sr. Fisher também era Nicholas.
- Coincidência, naturalmente - respondeu Benton.
Dirigi-me à mesa sobre a qual deixara minha pasta e a abri, retirando uma revista de programas de cinema.
- Comprei esta revista durante o recesso do almoço - disse eu, mostrando-a para o júri.
- Meritíssimo, é difícil entender o que as preferências de leitura do Dr. Martin têm a ver com este caso - vociferou o Promotor Ogden.
Voltei novamente para junto do júri:
- Se me permitir continuar, meritíssimo, esclarecerei logo minhas razões.
O Juiz Fitch considerou o problema por alguns segundos.
- Prossiga, Dr. Martin - disse ele por fim. Ogden sentou-se com uma expressão de desespero no rosto.
Abri a revista na página que havia marcado quando estava no táxi, de volta para o tribunal. A página continha um retrato de perfil de um homem alto, de meia-idade e completamente calvo. A cabeça dele parecia a de Yul Brynner, mas a foto sugeria um tipo pacato, ao invés da masculinidade de Brynner.
Estiquei o braço, mostrando a fotografia a Benton:
- Este não é o retrato de seu cliente, Nicholas Fisher?
Uma vez que a legenda da fotografia identificava o ator como sendo Nicholas Fisher, não tive dúvida quanto à resposta de Benton.
- Sim, é um retrato do Sr. Fisher.
- Permite que chame sua atenção para a pintura da Madona? O senhor declarou anteriormente, quando foi interrogado pelo Dr. Ogden, que a pessoa ajoelhada é uma representação, um retrato de quem encomendou a pintura. Foi isso?
- Sim.
- Examine aquela cabeça e aquele rosto no quadro, Sr. Benton, e diga-me se acha qualquer semelhança com seu cliente, o Sr. Fisher.
- Oh, não! - replicou Benton, em tom de voz que pretendia indicar que eu estava troçando dele. - Não vejo a menor semelhança.
Tomei a revista das mãos dele e rapidamente, com um lápis, acrescentei umas costeletas e uma cabeleira comprida no perfil do ator. Nicholas tinha agora o mesmo estilo de cabelos da personagem do quadro.
- Olhe agora outra vez - disse a Benton, mostrando-lhe a fotografia alterada.
Benton era mais impressionável do que eu imaginara. Seu queixo caiu e a cabeça passou a movimentar-se da foto para o quadro, parecendo o espectador de uma partida de tênis.
- Ora essa! É o Sr. Fisher! - exclamou.
- Obrigado, Sr. Benton. Não tenho mais perguntas, meritíssimo.
O Promotor Ogden tentou desesperadamente reparar as falhas que eu revelara em sua tese, mas seus esforços foram inúteis. Durante o restante do interrogatório, ele cometeu o erro de concentrar-se nas implicações provocadas pela sonegação de impostos, enquanto a expectativa do tribunal era quanto à vaidade tão tola de um ator que encomendara a um falsificador que lhe pintasse o retrato na obra forjada. Ogden não tornou a convocar o testemunho de Benton, para que ele reafirmasse o valor do quadro furtado.
Quando a promotoria deu por terminada sua parte, rapidamente também encerrei a minha. Apresentei então uma moção solicitando um veredicto de absolvição, sob o argumento de que o valor da pintura não fora suficientemente provado para justificar a acusação de furto vultoso.
Mickey Murdock saiu do tribunal como um homem livre, enquanto eu me sentia na verdade satisfeito. Fiquei mais ainda quando, uns 10 dias depois, li nos jornais que a Madona de Delgardi fora examinada por vários peritos que a submeteram a vários testes, a fim de determinarem sua autenticidade e a época em que fora pintada. A opinião unânime dos especialistas foi que se tratava realmente de uma habilidosa falsificação, possivelmente não tendo mais de 15 anos de idade.
Na noite em que o artigo foi publicado, meu telefone tocou quando já passavam 10 minutos da meia-noite, acordando-me. Acendi a lâmpada da mesinha-de-cabeceira e apanhei o fone.
- Ei, Martin! - Reconheci a voz de Mickey Murdock, ressoando através do fio com uma agressividade alcoólica.
- Já leu o que os jornais estão dizendo? Você tem de devolver o dinheiro que lhe paguei. Eu realmente não cometi qualquer crime de furto de valor e, se soubesse disso, nunca o teria contratado... Todo mundo sabe que Deus protege os inocentes.
Cortei a ligação, interrompendo as alegres expansões de meu cliente. Depois, por precaução, deixei o fone fora do lugar.
Pode-se lá prever a petulância daquele trapaceiro?


Charles W. Runyon
SALA DE ESPERA
Pawley observava a chuva bater contra o vidro sujo da janela. Gostava de ver como os pequenos pingos d'água se formavam na parte de cima, mantinham-se lá por um momento, começavam a rolar para baixo, até encontrarem um companheiro; paravam novamente por instantes e logo iniciavam uma descida rápida até embaixo, carregando com ele todos os demais que se encontravam no caminho. A vida é assim. Ninguém gosta de rolar abaixo sozinho.
O ar dentro do velho posto era morno, pesado e úmido, cheirando a poeira de estrada e a borracha velha. Borracha nova era melhor, forte e acre. Ao tempo em que ele era criança, adorava o cheiro de borracha nova. Também sempre gostou de ficar olhando a chuva bater na vidraça. Engraçado: correra como um doido durante 32 anos apenas para voltar ao ponto de partida. Não em um sentido geográfico, naturalmente. A planície do sul da Califórnia era um bocado diferente das colinas do Arkansas, cobertas de pinheiros. Lisa como uma mesa, como se não se estivesse na terra, mas em uma espécie de espelho.
Pawley era um homem alto, quase esquelético. Seu nariz grande encurvava-se levemente e seus olhos azuis pareciam sumidos no fundo das órbitas. Usava casaco de gabardine e calças cinzentas, uma camisa branca e gravata marrom. Vestia-se como as pessoas que não prestam atenção às roupas que escolhem, suas cores não combinavam e ele também não tentava melhorar sua aparência. Havia pregas no colarinho e, embora a gravata estivesse apertada em seu pescoço, o primeiro botão da camisa estava faltando. O chapéu era de feltro marrom, usado meio de banda, como se fosse difícil adaptar sua forma à do crânio estreito de Pawley. O cabelo acima das orelhas mostrava alguns fios brancos.
Pawley encostou a palma da mão no rosto e com a ponta dos dedos deu um piparote no chapéu, atirando-o para trás da cabeça. Encostou a testa na janela, não se surpreendendo por ser a temperatura do vidro igual à da sala. Olhando para a direita, viu as plantações de repolho, em longas filas de um verde pálido que se estendiam a perder de vista, com valetas de água entre elas. Encontrando uma vidraça quebrada, tirou da cintura sua pistola 45 e a enfiou pela janela, curvando o cotovelo em um ângulo reto. A arma deu um pinote na mão dele. Um esguicho de água e lama se levantou com o impacto e o pedaço de uniforme azul desapareceu.
Pawley recolheu o braço. Pelo menos estava seco. Os policiais deviam estar encharcados. Deu uma risada.
John levantou os olhos, seu largo rosto exprimindo o espanto provocado pelo gesto do outro. Era um sujeito atarracado, de ombros curvos, onde seu casaco marrom parecia pendurado. Tinha sempre um olhar de quem não estava compreendendo o que via.
- Quantas você ainda tem? - perguntou.
Pawley destravou o carregador e retirou o pente de balas, contando os estojos que reluziam através da fenda.
- Quatro.
- Estou sem nenhuma. - John rodou o tambor de seu 38 e deixou cair no chão os cartuchos vazios - Tunc! - contra o concreto. Pawley ouviu o som ecoando dentro de sua cabeça. Tunc! O ruído de um esquilo alcançado por uma bala e caindo do alto do pinheiro. Tunc! O som da batida do bastão no jogo de beisebol. Tunc! O soco contra o queixo. Tunc, tunc, tunc. Bem. Já vi e sofri todas essas coisas.
Reparou que John estava amarrando os sapatos.
- Está pensando em sair?
John esticou as pernas, os saltos apoiados no chão, as pontas dos sapatos voltadas para cima. Cobriu a virilha com suas grossas mãos em concha e sacudiu a cabeça.
- Não iria muito longe. Eles já recolheram dois mortos. Ainda há outro no carro. Acho que estão com um bocado de raiva de nós.
Pawley espiou pela janela. A faixa de asfalto se estreitava à medida que subia pela montanha. A 50 metros de distância se achava o carro-patrulha com dois buracos no pára-brisa. As rodas dianteiras estavam tortas e parcialmente mergulhadas na vala; as traseiras ainda se mantinham na estrada, deixando o carro muito inclinado para a frente. Havia uma nota cômica nesses carros acidentados; Pawley, sempre que os via, novos e reluzentes nas exposições, imaginava que eles acabariam também assim, parecendo gafanhotos mortos.
Avistou seu próprio carro, arrastado para junto das bombas. Tudo saíra bem, até encontrarem o carro-patrulha. O guarda do banco devia ter feito uma boa descrição, porque, ao vê-los, o carro-patrulha deu uma meia-volta rápida e seguiu no encalço deles. Cento e cinqüenta quilômetros por hora e um tiro feliz furou o tanque do carro. Bem em frente ao posto de gasolina,* fechado e vazio. Pawley compreendeu, com certo alívio, que chegara ao fim.
Do lugar onde estava podia ver o bloqueio da estrada a uns 500 metros adiante, os carros começando a amontoar-se atrás dele. Espectadores, repórteres, uma porção de gente chegando para assistir ao desenlace. Ficaria famoso por um dia. Mas que diabo! Quem disse que ele queria ficar famoso? Apenas aplicara alguns golpes, era como um jogo. Sempre atirara para matar - fazia parte do jogo. Sempre comia até fartar-se. Sempre arranjava mulher, quando precisava de uma.
Um velho de azul apareceu contra o fundo verde. Ele fez a pontaria e sentiu a pistola saltar em sua mão. O homem caiu. Quantas vezes essa mesma cena se repetiu: a pontaria, o salto da pistola, a queda do alvo...
Leve-o para trás da serra e o mate. Agindo com displicência, você estalou os dedos e Brindle, o velho vira-lata peludo a quem ninguém ligava, foi com você para trás da cerca e lá ficaram os dois, em meio às bolotas pretas deixadas pelas ovelhas. O cão ficou olhando, com a cabeça meio de lado, e você ajeitava a espingarda de cano octogonal, calibre 22. O animal continuava olhando-o, tentando adivinhar qual seria a brincadeira, enquanto você se esforçava para sentir a raiva que deveria dominá-lo. Maldito cão comedor de ovelhas! Ele se aproximou e lambeu sua mão; você o enxotou e o ameaçou, chamando-o de comedor de ovelhas, mas o sentimento foi de mal-estar; Brindle esticou sua comprida mandíbula, apoiado nas patas traseiras, sempre olhando para você, enquanto a bala penetrava entre aqueles olhos surpreendidos. Embora você então não soubesse, houve duas mortes naquela tarde - a do garoto e a do cão. Você se lembra também do calor daquele dia de julho, o cheiro acre dos dejetos das ovelhas; o sol já se escondera, mas o calor ainda se irradiava do velho galpão de pinho. Há momentos como esse, inseridos entre as fases de sua vida, Pawley, marcando-as, ligando-as costas com costas, como um par de ases; as coisas entre elas servem apenas para preencher o vazio, porque você vive a sua vida inteiramente nessa tensão - você se consome...
Maldito comedor de ovelhas. O homem de uniforme azul engatinhou ao longo da vala, deixando seu traseiro à mostra, como uma lagarta se arrastando. Vocação para herói. Pawley apontou a pistola e seria um tiro fácil, mas uma névoa súbita em seus olhos perturbou a pontaria e ele decidiu poupar a bala para outro candidato a herói. Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa, aproveitando para limpar os olhos.
- Mais três balas apenas - disse ele.
- Quanto tempo você acha que vai demorar?
- Meia hora, apenas um palpite. Eles vão trazer fuzis, ficando fora de nosso alcance. Seremos obrigados a manter-nos abrigados, enquanto os outros se aproximam.
O posto fora construído de madeira até mais ou menos um metro de altura; daí até ao telhado eram painéis de vidro de 25cm, dentro de armações de aço, pintados de vermelho. As janelas ficavam no mesmo plano da estrada, cerca de metro e meio acima da baixada onde se situava o posto. A única parte em que a madeira ia até o teto era no quarto de banho, ocupando uma área de dois metros quadrados no canto noroeste. Pawley ficou uma porção de tempo olhando para a porta fechada. Shirley estava lá dentro havia bem uns 15 minutos. Ele acabou por impacientar-se, perguntando o que é que ela estava fazendo.
- Mudando minha roupa de baixo.
Pawley olhou para John, que se limitou a sacudir os ombros. Foi então que compreendeu. Ela sabia que chegara o fim e queria morrer usando roupa limpa. Achou essa preocupação engraçada e começou a rir.
A moça apareceu momentos depois, os olhos sem expressão. Era estranha a maneira como as maçãs de seu rosto, salientes, tornavam os olhos duas fendas estreitas, por onde passavam pontas de estiletes que o atingiam e o faziam estremecer Ela sempre conseguira isso - desnudá-lo de qualquer simulação. O cabelo dela, de um vermelho-escuro, estava penteado em cachos que cobriam as orelhas e se encurvavam para a base do pescoço. A ossatura dos ombros e do peito aparecia acima do decote da blusa de um jérsei transparente, pontilhado de pingos dourados. Ele não gostava desse tipo de tecido e estranhava que ela fosse usar coisas assim justamente naquela ocasião. Nenhuma pintura no rosto, a boca carnuda, o lábio superior sobressaindo. O nariz, uma linha reta, lustrosa; depois, a testa larga. O cheiro de sua pele, jamais apagado por qualquer perfume, lembrava montes de feno, caramelos e nozes quebradas, provocando-lhe uma sensação que esticava seus nervos até a exaustão.
Pawley ficou olhando para ela, vendo-a sentar-se na cadeira giratória atrás da escrivaninha e acender um cigarro. Um pedacinho de papel grudou em seu lábio inferior; ela o retirou com as pontas das unhas longas sem polimento. Cada um desses movimentos tinha um encanto especial. A curva do cotovelo era mais importante para ele do que a articulação de seus próprios músculos. Conhecera-a quando Shirley tinha 16 anos e agora já fizera 24. Ele não saberia dizer se gostava dela ou não; apenas, quando não a sentia por perto, tudo lhe parecia vazio e morto; o vinho e as outras mulheres nada representavam. Vinte e quatro anos. Tão jovem!
- Você poderia sair - disse ele. - Não acredito que a polícia tenha coragem de atirar em você. Continuará vivendo.
- Para quê?
Casual e final. Você escolheu livremente, pensou ele.
Depois, achou que ela não tivera escolha. Desde o dia em que se conheceram, encaixaram-se mutuamente. Ele nunca falou a respeito de seus sentimentos, nem referiu as emoções que ela lhe despertava. Shirley simplesmente as fazia vir à tona, sem provocá-las. Contentava-se em saber que elas lá estavam e não dava a menor importância aos sentimentos ou ao orgulho dele ou qualquer coisa dessa natureza. Contentava-se em tê-lo.
Ele pensou na carne dela, na morte dessa carne - os dentes despedaçados, a barriga aberta, o crânio estourado pelo chumbo de uma bala. Sentiu então por ela um desejo que não era sexual, uma vontade de envolvê-la com seus braços e receber todas as balas no próprio corpo.
Olhou para um calendário pendurado na parede. Estava oito anos atrasado e naturalmente fora colocado ali muito tempo depois do posto haver deixado de funcionar. A ilustração mostrava uma garota de corpo incrivelmente perfeito e sem mácula, com uns seios tão bem-feitos que pareciam... Como era mesmo a palavra? Clichê. Quando ele dizia alguma coisa de que Shirley não gostava, ela dizia que ele estava usando clichês. Bem, garota, o que acha disto como clichê. Vamos morrer. Todo mundo morre.
Anotações à margem do calendário. Avisar a Sra. Cardoza a respeito da lubrificação. Provavelmente o carro era agora ferro-velho e a mulher já deveria ter morrido. Alguém escrevera Thelma e desenhara uma seta contra a garota do calendário. Onde andaria Thelma agora? Ali estava ela, encantadora, jovem como sempre, desejada e desejável. E a Sra. Cardoza ainda estaria esperando por sua lubrificação. Nada ali agora fazia sentido com qualquer outra coisa.
- Será que eles tinham mulher e filhos?
Shirley estava olhando pela janela e se referia aos policiais, pensando a respeito de si mesma. Oito anos de amor e violência, chegando agora ao fim.
- Não tem importância - disse Pawley.
- Como pode você dizer que não tem importância?
- Com meus lábios, minha língua e minha garganta. Assim acrescentou, inclinando-se sobre ela e exagerando o movimento dos lábios. - Não tem importância.
Ela levantou o rosto e olhou fixamente para ele. A luz bateu em cheio no rosto de Shirley e revelou a penugem branca das maçãs de seu rosto. Por uns instantes Pawley percebeu um toque de violência nos olhos dela, como uma serpente prestes a dar o bote. Mas tudo logo desapareceu e ela perguntou em tom de sincera curiosidade:
- Você está maluco?
Ele refletiu por um momento, antes de responder:
- Isso também não tem importância. John esfregou os pés no concreto.
- Nós todos estamos malucos, acho eu.
Pawley voltou-se para olhá-lo de frente. John estava sentado indolentemente com as costas contra a parede, a valise entre os joelhos. Com um sorriso irônico, tirou um maço de cédulas e esticou até rebentar a fita de borracha que as prendia. O maço se desintegrou e as cédulas voaram como penas ao vento.
- Está aí. Foi o que arranjamos. E agora para que diabo serve isso?
Pawley viu a desolação nos olhos dele. Agachou-se, apanhou uma nota de 50 dólares, riscou um fósforo e a acendeu. Depois, tirou um cigarro do bolso e encostou-lhe a ponta na cédula em chamas. Finalmente, entregou o cigarro a John, encarando-o de frente.
- Tudo serve para alguma coisa. Cada um ficou olhando no fundo dos olhos do outro. Aos poucos o temor desapareceu, substituído pelo constrangimento.
- Pawley, por que foi sempre...?
Pawley esperou, mas o constrangimento se acentuou.
- Sempre o quê? John sacudiu a cabeça.
- Não sei. Por uns instantes pareceu-me que eu era outra pessoa... esperando a chegada dos índios.
- Costumávamos brincar de índios lá no Arkansas. Você nunca brincou de índia, Shirley?
- Como não? Era sempre amarrada e... torturada.
Pawley olhou para ela. Quantas vezes haviam-se arranhado até que o sangue dos dois se misturasse. A vida era um processo de fusão, de mistura. A vida era...
Sacudiu a cabeça. A vida era. Ponto.
John estava amarrando de novo os sapatos.
- Jamais gostei de brincar de índio. Isso foi coisa sua. Nunca fiz o que quis. Você achou que devíamos fazer uma dupla. Bem, entrei na dupla. Deixo a escola e vou para a costa, embarcar em um navio e conhecer o mundo. Mas fizemos a dupla. Quando encontrei uma garota e quis casar, você disse que ela não me servia e a deixei.
Pawley vigiava pela vidraça. Tudo quieto há muito tempo. Em breve...
- Ela não servia para você.
- Está bem, mas era problema meu descobrir isso.
- E por que não descobriu?
- Não acho que ela fosse assim. Você é que acabou com ela. Botou os olhos nela e a convenceu de que não prestava para nada.
- Bem, se ela era tão fácil de se deixar influenciar é porque... bem... porque não prestava mesmo. Olhe, John. Você a deixou e veio conosco. Talvez seja melhor você descobrir por que veio conosco.
- Por quê? É preciso saber? Por que estamos aqui? Quero dizer... - Bateu com a palma da mão no chão de concreto, depois fez um gesto largo, como que abarcando o mundo. - Aqui. Você compreende.
- Temos de descobrir por que estamos aqui - disse Shirley. Ela estava olhando pela vidraça. Não havia qualquer expressão no seu rosto. Pawley desejou ser também assim como ela, ter belos pensamentos. Ao imaginar o que iria acontecer, seu cérebro se assemelhou a uma maçaneta de marfim, toda branca e reluzente, com coisa nenhuma dentro.
- Por que então estamos aqui? - perguntou John. - Sentados num velho posto abandonado. Papai que nos criou, por que fez isso?
- Porque viemos para cá - disse Pawley.
- Mas viemos...
- Shirley já lhe disse. Para descobrir por que estamos aqui.
John levantou-se e caminhou até o centro da sala. Seus sapatos pisavam nas cédulas verdes. Seus olhos estavam arregalados.
- Você quer dizer que não há motivo? Nada disto faz qualquer diferença?
- Nada.
John olhou para Shirley:
- Você concorda com o que ele disse?
- Concordo.
John olhou para ela agora mais longamente; depois seu rosto revelou que ele tomara uma decisão.
- Durante oito anos desejei fazer uma coisa. Shirley olhou para ele.
- Então faça.
Ele deu um passo para a frente, agarrou a blusa de Shirley pelas alças e puxou-a para baixo. Os pequeninos seios ficaram â mostra.
- Isto faz alguma diferença? Ela sacudiu os ombros levemente.
- Será que faz?
- Que inferno! - exclamou John, afastando-se dela rapidamente, atravessando a sala e voltando-se. - Está bem. Não faz qualquer diferença. Então por que simplesmente não abrimos a porta e não saímos para fora?
- Porque quero fumar um cigarro - disse Pawley. Acendeu dois e entregou um a John, que o recebeu e se encostou contra a parede, olhando para um ponto no chão, entre seus pés. Depois, curvou-se, apoiou as mãos nos joelhos, o cigarro fumegando entre os dedos.
Passado um minuto, Shirley endireitou a blusa, caminhou até onde estava John e sentou-se a seu lado. Tirou o cigarro dos dedos dele e deu uma longa tragada, olhando para Pawley. Alguma coisa brilhava nos olhos dela. Pawley ajoelhou-se, encarando-a. John desviou o olhar e, por um momento, os três ficaram como que agarrados por uma grande mão suarenta, respirando pelas mesmas narinas, vendo com um único olho...
Uma bala estilhaçou uma das vidraças de cima. Eles agora tinham fuzis, mas estavam dando apenas tiros de advertência. Isso não duraria muito. Pawley aproximou-se mais e apertou o ombro de Shirley, sentindo os ossos sob a mão. Depois apoiou-se no joelho de John e levantou-se, não que fosse preciso, mas porque ele queria fazer um último gesto exclusivamente de sua inteira decisão.
Shirley levantou-se e foi colocar-se ao lado dele. John fez o mesmo no outro lado. Pawley pensou em dizer-lhe: Ela poderia ter sido sua a qualquer momento, garoto, mas não tive coragem de suportar isso, porque então eu perderia os dois. Mas não havia necessidade de dizer coisa alguma.
- Este é o caminho que nos resta, John.
- Sim, mas não sou obrigado a gostar dele.
- Não, você não é obrigado a gostar dele. E então as balas começaram a chegar.


Michael Collins
GRITANDO O TEMPO TODO
Quando tenho um pesadelo, é sempre eu caindo de uma grande altura, gritando desesperadamente durante toda a queda no abismo. Acordo banhado em suor, com uma dor aguda no braço que me amputaram e que não devia doer. Acendo a luz. Fico algum tempo sem tentar dormir. Tenho um medo horrível da visão de minha queda para a morte.
É por isso que me lembro muito bem do que o Capitão Gazzo chamava "O Caso das Torres de Sussex".
Tudo começou com a entrada no meu escritório, em uma quente segunda-feira de agosto, de um homenzinho metido a elegante", em seu terno tropical cinzento, e maneiras desembaraçadas. O calor que penetrava por minha janela deve tê-lo feito pensar que estava num pântano, porque ele caminhava como se seus pés estivessem metidos na lama até os tornozelos.
Reparou que eu não tinha um braço.
- O senhor é Daniel Fortune?
O tom de sua voz e a surpresa em seus olhos vivos estavam perguntando em silêncio: "Você? Um aleijado?"
Tive vontade de dizer-lhe que ele não iria jogar dinheiro fora, pois eu tinha duas cabeças para compensar a falta de um braço; todavia, apesar do que aparece nas fitas de cinema, a humildade rende mais do que a inteligência.
- Sou eu mesmo, senhor - respondi respeitosamente. - Em que posso lhe ser útil?
- O senhor é um detetive particular credenciado?
- Atualmente estão dando credenciais a qualquer um - disse eu, completando minha dose de humildade e boas maneiras. Felizmente ele tinha outros problemas na cabeça. Sentou-se sem ao menos recompensar minha cortesia com um leve sorriso.
- Meu nome é Wallace Kuhns. Sou advogado. Tenho um serviço para você: dois homens para guardarem 250 mil dólares em notas, entre as cinco da tarde e as nove horas da manhã. Cinqüentão por dia para cada homem.
- Cinqüenta não é muito - disse eu, pronto a barganhar.
- Ora, não me venha com essa - disse Kuhns, transformando-se ante meus olhos. O verniz que o cobria desapareceu, ele se escarrapachou na cadeira, esticou as pernas, acendeu um cigarro e pareceu 10 anos mais moço.
- Tudo isto é uma amolação. Olhe, Fortune, bem sei que 50 dólares é uma insignificância. Se Ajemian não fosse um grande cliente, eu nem teria vindo aqui.
- Quem é Ajemian?
- Ivan Ajemian, presidente da Companhia Tiflis de Tapetes e Tecidos. Fábricas em Nova Jersey, Carolina do Norte e Connecticut. Escritórios na Rua 26 Leste. Comando verdadeiro no apartamento 16-A das Torres de Sussex. É onde ele mora.
- Ele tem 250 mil dólares guardados em casa?
- Tem. É um empresário moderno, com algumas manias. Uma delas é, uma vez por ano, durante a reunião anual dos vendedores, em agosto, distribuir gratificações aos mais capazes. Faz isso pessoalmente. Cada vendedor vem sozinho ao apartamento dele, bebe um drinque, ouve um discursinho e recebe seu prêmio em dinheiro.
- A companhia de seguros não deve gostar disso.
- Pode imaginar. Duas semanas atrás o apartamento foi arrombado. O pessoal de seguros botou a boca no mundo. Exigem dois guardas. Ajemian concordou, mas não paga mais de 50 dólares por dia por pessoa.
- O que foi roubado há duas semanas?
- Nada. A polícia acha que Ajemian chegou no justo momento e espantou os ladrões. O pessoal do seguro julga que os ladrões estavam com olho no dinheiro das gratificações • errou por duas semanas.
- Por que guardas somente à noite?
- Ajemian alega que dois homens da companhia podem vigiar durante o dia e assim ele economiza salário. À noite o pagamento é em dobro.
- Quando começo?
- Esta noite. Dá tempo de arranjar o outro homem?
- Dá. Pague 50 adiantadamente para cada um de nós.
Foi assim que a coisa começou. Depois que Kuhns saiu, telefonei para Ed Green. Já trabalhamos juntos mais de uma vez e ele aceitou os 50 dólares.
Quando chegamos ao apartamento 16-A das Torres de Sussex, às cinco e meia da tarde, Green estava resmungando a respeito do calor e dos miseráveis 50 dólares.
- Espero que pelo menos haja ar condicionado - disse ele.. Havia. Era um apartamento fresco, amplo e bem montado.
Ivan Ajemian escolhera um mobiliário de palácio de xá, todo decorado com cortinas de veludo, tapetes persas - tipo dessas residências de gente podre de rica, que têm quartos e nem sabe direito onde ficam.
- São os detetives? - perguntou Ajemian, quando fomos introduzidos por um criado oriental. - Com um braço só? O que é que Kuhns está pensando?
- Sou sorrateiro como uma cobra - disse eu.
- Dispenso as gracinhas. Preciso de proteção, não de palhaçadas. Tenho em casa uma importância elevada, não sou muito de briga e o instinto me diz que o último assalto que sofri foi um trabalho de gente da casa.
- Por que seu instinto lhe diz isto? - perguntei.
- Venham comigo.
Fomos atrás dele até à porta dos fundos que ligava a cozinha com a escada de serviço. O dono da casa era bem diferente do tipo que eu esperava encontrar, baseado nas informações de Kuhns. Segundo este, Ajemian era um homem idoso, mas na realidade não passava dos 50 anos. Corpulento, com uns gestos calmos e, apesar do que dissera a respeito de sua coragem, dava uma impressão de energia, com uns olhos argutos de quem é capaz de tomar conta de si.
- Olhem aqui - disse ele. - Reparem na fechadura. Olhei. Green fez o mesmo.
- Há uns arranhões - comentou Green - mas pode ser um despistamento. O que acha você, Dan?
Examinei os arranhões. Podiam ter sido feitos por uma gazua, pois tinham todos os sinais de um trabalho assim, mas podiam também ser apenas uns arranhões feitos de propósito, fingindo um arrombamento.
- Não tenho muita certeza - respondi. - Alguém pode ter tentado criar a impressão de que a porta foi forçada pelo lado de fora.
- É o que eu penso - disse Ajemian. - Quero as portas cuidadosamente vigiadas, entenderam? Outra coisa: recebo muitas visitas e não quero que sejam incomodadas. Tratem de sumir. O dinheiro está no cofre de meu escritório. Fiquem por lá ou junto às portas. Em mais lugar nenhum. Alguma dúvida?
Dirigi-me para a porta.
- Vamos embora, Ed.
Green concordou com um movimento de cabeça e veio atrás de mim. Ajemian ficou olhando para nós.
- Está bem - disse por fim. - Vocês ganharam. O que querem?
Fiz meia-volta e aproximei-me dele:
- Nós decidiremos o que fazer e como fazer. Aceite ou desista. Estou sempre pronto para tirar uma soneca.
Ajemian deu uma risada.
- Nervosinho, hem? Sempre disse que um defeito físico torna as pessoas mais duras. Muito bem, mas tratem de não aparecer muito. É que tenho uma amiga que costuma aparecer por aqui seguidamente, entendeu?
Ajemian piscou um olho. Entendi.
- Vou agora contar o dinheiro - disse eu.
- Contar o dinheiro? Por quê?
- Fui contratado para vigiar um cofre que bem pode estar vazio.
Pensei que ele fosse ter um ataque de coração, mas conseguiu dominar-se e rumou para o escritório. Green foi atrás dele.
- Deixe que eu conto - disse Green. - Você dá uma olhada na planta.
Examinei a planta do apartamento. Tudo muito claro. Uma porção de salas, mas apenas duas portas para fora. A da frente abria para o corredor principal, onde se encontravam os elevadores. A de trás ligava a cozinha com a escada de serviço. O escritório onde se achava o dinheiro tinha duas portas internas, uma para a sala de estar e outra para a cozinha. Nada além de uma mosca poderia entrar pelas janelas, embora houvesse uma borda no lado de fora das janelas do escritório.
- O dinheiro confere - anunciou Green.
- As únicas entradas são pelas duas portas e somos justamente dois - repliquei. - Serão umas férias remuneradas, bastando ficarmos acordados.
Green concordou comigo. Fiquei com a porta da frente e ele se instalou junto à da cozinha. Ajemian ficou no escritório, com o dinheiro. Tudo levava a crer que seria um tranqüilo fim de semana.
Não foi.
Lá pelas 10 horas da noite ouvi uma chave girar na porta da frente. Ajemian já havia ido para o quarto. Saltei para junto da parede, ficando atrás da porta quando ela se abrisse, e empunhei meu velho revólver. Segundos depois, entrou na sala uma das mais bem torneadas garotas que eu jamais vira.
- Ivan, meu querido!
Ela era do tipo miúdo e usava um terninho de verão que se ajustava esplendidamente em seu corpo. Ao ver-me, encostado à parede e com o queixo caído, sorriu, quis fazer um agradinho e então viu minha manga vazia.
- Santo Deus! O que foi que aconteceu com seu braço?
- A mocinha dispõe de bastante tempo para ouvir toda a história?
Ela deu uma risadinha.
- Aposto que você foi ferido em combate.
- Como é seu nome, senhorita?
- Mary Kane. Ivan não está?
Este era então o motivo da piscadela de Ajemian. Ela não usava bolsa e não podia esconder sequer uma lâmina de barbear embaixo da roupa, sem que alterasse a harmonia de suas curvas.
- Já foi para o quarto.
Ela atravessou a sala, chamando:
- Ivan,! Onde está você, querido?
Voltei para a minha cadeira. Mary Kane possuía uma chave. Procurei imaginar quem mais poderia ter outras cópias. Era um exercício nervoso de imaginação. O visitante seguinte não tinha chave. Pelo menos não a usou. Bateu na porta, levemente.
Uma vez que havia uma maçaneta, aproximei-me da porta com cautela. A batida dava a impressão de que alguém estava procurando saber se havia gente no apartamento. Abri a porta de repente, o revólver em minha única mão.
Um homem alto e magro arregalou os olhos ao ver meu revólver.
- Entre! - ordenei. - Não se vire. Rápido.
Ele entrou sem se virar, enquanto eu espiava o corredor. Vazio. Fechei a porta e fui falar com o homem.
- Quem é você?
- Maxi Alvis. - Seu nervosismo era evidente. - Vice-presidente executivo da Companhia de Tapetes Tiflis. Você é um dos detetives?
- Sim. Dan Fortune.
- Está sozinho?
- Meu companheiro anda por aí.
- Vocês sempre trabalham separados?
- Não fazemos nada sempre do mesmo jeito. Misturamos.
- Entendo. Muito bem pensado.
- Nada disso. Todo o mundo procede assim. Alvis concordou:
- Parece que Kuhns contratou gente capaz. Criou-se uma situação muito desagradável. Seria melhor se a companhia de seguros nunca soubesse da tentativa de arrombamento. Poderíamos continuar durante anos sem necessidade de contratar guardas. Aquela estúpida tentativa não teve, aliás, a mínima importância - acrescentou, correndo os olhos pela sala. - O Sr. Ajemian não está?
- No quarto.
- Sozinho?
- Não.
- Ah! - disse Alvis. - Bem, acho que meu assunto pode esperar.
O vice-presidente executivo fez meia-volta, encaminhou-se para a porta e saiu. Green apareceu atrás de mim.
- O que é que está havendo? - perguntou.
- Não sei. Imagino que ele resolveu mudar de idéia, se é que tinha mesmo um motivo real para vir até cá.
- Pode ser - replicou Green, sem muita convicção. - Pelo menos esse não tem chave. Vamos trocar de postos. Você está recebendo todas as visitas.
- Ajemian não vai trabalhar mais esta noite. Vou-me sentar no escritório.
Fui para lá. Tudo estava em silêncio. Abri a porta que dava para a cozinha e sentei-me de maneira a poder enxergar a porta de serviço. Pensei em Max Alvis. O que teria ele vindo fazer realmente? Houve qualquer coisa na minha conversa com ele que me intrigou, mas não pude identificar o que era.
Fiquei pensando nisso e devo ter cochilado um pouco, mas minha atenção foi despertada quando ouvi vozes na sala de estar - a de um homem, a de uma mulher e a de Green. O homem era Ajemian e ele entrou no gabinete com um braço em torno da cintura de uma mulher alta, vestida de preto. Ajemian era todo sorrisos. Ela não.
- A minha querida esposa está exigindo seu maldito dinheiro - disse ele. - Vou abrir o cofre. Querem fazer o favor de guardar essas armas.
- Ivan tem um enorme senso de humor - comentou a mulher. - Foi por isso que o deixei. Fazia com que eu risse demais.
- Dois anos, Beth, e nada de divórcio - replicou Ajemian. - Confesse que você tem sentido falta de mim.
A Sra. Beth Ajemian não era uma boneca, como a pequena Mary Kane, mas uma imponente figura de mulher. Cabelos vermelhos e um corpo bem-feito, ela caminhava com graça e com o exato balanço das cadeiras. Era uma mulher digna de admiração, sabia disso e gostava.
- Sinto falta de você, Ivan, exatamente como você sente de mim. Será que você quer o divórcio para casar-se com sua última amiguinha?
- Jamais tentei passar por santo, Beth.
- Eu não queria um santo, mas apenas um marido que ficasse em casa com sua mulher de vez em quando.
Ajemian sacudiu os ombros.
- Acho que isso são águas passadas.
Abriu a porta do cofre e tirou um envelope. Vi que o volumoso maço dos 250 mil estava intacto. Ajemian entregou o envelope à sua ex-mulher.
- Acrescentei um pequeno extra, Beth. Não deixe meu advogado saber.
- Obrigada, Ivan.
Ela correu os olhos pelo gabinete, lentamente, como se estivesse recordando melhores dias. Ou estudando a localização do cofre? Depois, saiu, atravessou a sala e dirigiu-se para a porta sem olhar para trás.
- Nós não conseguimos nos acertar - explicou Ajemian.
- Por que cargas d'água ela vem buscar o dinheiro a estas horas?.- perguntei.
Ajemian olhou-me durante uns segundos.
- Não sei - respondeu por fim. - Telefonou, dizendo que estava precisando. Por que pergunta?
- Nenhuma razão especial.
Ajemian voltou para Mary Kane, que o esperava no quarto. Green retomou seu posto na sala de estar. Continuei no escritório, mas não me sentindo satisfeito. Fui até à cozinha e examinei a fechadura outra vez. Os arranhões estavam lá e tanto poderiam ser obra de uma gazua ou de alguém que quisesse fingir que tentara um arrombamento.
Voltei para o escritório e me instalei. Consegui não cochilar, porém nada mais aconteceu naquela noite.
Fomos substituídos às nove horas da manhã seguinte. Quando nos dirigíamos para o elevador, cruzamos com o primeiro vendedor. Ele tinha nos olhos o brilho provocado pela gratificação.
Green foi para casa dormir. Eu não. Atravessei a rua e me sentei num banco do parque, de onde eu podia ver tanto a porta da frente como a de serviço das Torres de Sussex. A noite anterior havia sido muito agitada, cheia de visitantes no apartamento. Estranhei isso. Ajemian estava visivelmente nervoso. Max Alvis também. E o que houvera de estranho na conversa de Alvis comigo?
Há apenas duas maneiras de planejar um crime e ter sucesso: escondê-lo ou disfarçá-lo.
Os amadores tendem a disfarçar o crime. Eles procuram fazer com que o trabalho se pareça com qualquer outra coisa ou tenha sido executado por outrem, para evitar que alguém investigue no lugar certo, levado por motivos óbvios. Eles se apegam à ilusão.
A maior parte dos profissionais escondem o crime, mas não o disfarçam. Não se importam se o crime for conhecido como tal, desde que não sejam apanhados cometendo-o ou que mais tarde seja provado que eles fizeram aquele determinado serviço.
Os dois processos têm seus problemas e ambos exigem certo planejamento, de modo que continuei sentado no parque, vigiando as Torres de Sussex. Durante algumas horas não vi nada mais interessante do que o que parecia ser ansiosos vendedores entrando apressadamente no edifício; nada suspeito, ninguém com jeito de assaltante profissional ou amador.
De repente, Max Alvis apareceu descendo de um táxi, não em frente à entrada principal, mas à de serviço. Acompanhei-lhe atentamente os passos. Ele parou, olhando para a porta dos fundos, como se a estudasse. Depois entrou. Esperei que ele saísse logo, mas demorou cerca de meia hora e desta vez usou a porta da frente, embarcando imediatamente em um táxi. Tomando uma decisão rápida, corri atrás de outro. Felizmente as Torres de Sussex parecem atrair táxis.
- Não se trata de brincadeira - fui avisando logo. - Siga aquele táxi.
O motorista resmungou, mas obedeceu. A corrida acabou num edifício de escritórios depois da Rua 30 Leste. Alvis entrou e fui atrás dele até os elevadores. Aí não havia jeito de segui-lo sem ser notado, de modo que me limitei a ler a relação dos inquilinos, pendurada na parede. Wallace Kuhns, advogado, tinha um escritório na sala 310.
Quinze minutos mais tarde, Alvis tornou a aparecer no saguão. Kuhns estava com ele - e também a Sra. Beth Ajemian.
Eles saíram apressadamente e logo se separaram. Alvis tomou outro táxi, enquanto Kuhns e Beth Ajemian caminhavam na direção da Terceira Avenida. Não tive escolha, pois não apareceu mais nenhum táxi, de modo que tive de seguir o casal. Aliás, era o que teria feito mesmo; Kuhns segurava a mão de Beth Ajemian - com força.
Chegados à Terceira Avenida, eles entraram num bar de classe. Entrei também. O salão era repartido em pequenos compartimentos, com um balcão ao fundo, tudo à meia-luz. Kuhns e Beth Ajemian escolheram um compartimento no centro, eu me sentei num tamborete do balcão e fiquei observando. Os dois tinham toda a aura de amantes e não de amantes recentes.
Kuhns continuava segurando a mão dela enquanto falava, parecendo nervoso e apressado. Quando bebia minha terceira cerveja, vi que Kuhns puxara a carteira. Saí primeiro e foi fácil segui-los, pois o casal voltou para o escritório de Kuhns.
Fui para casa. Não havia nada de extraordinário no fato de Kuhns ser íntimo de Beth Ajemian. Ela e o marido haviam seguido rumos diferentes e Kuhns deveria ser velho conhecido de Beth. Lembrei-me de Ajemian haver recomendado "Não conte nada para meu advogado", quando entregou à ex-mulher uma quantia extra, na noite anterior. Isso mostrava que Ajemian sabia que sua mulher e Kuhns eram íntimos.
Ademais, fora Kuhns quem me contratara - ou isto fazia parte de algum esquema? Senti-me um tanto inquieto. Quem sabe se Kuhns não foi forçado a contratar detetives contra sua própria vontade? Era um ponto que deveria ser considerado. Foi o que fiz e, por causa disso, não dormi as horas de que necessitava, depois de uma noite em claro.
Voltei às Torres de Sussex quando faltavam 10 minutos para as cinco, encontrando Green a postos, os homens da companhia indo embora e Ajemian com um humor de cão.
- Preciso trabalhar durante duas horas - ele foi logo avisando. - Não cheguem nem perto de meu escritório e não façam barulho. Se vier alguém, digam que fui para a China.
Tudo levava a crer que teríamos pela frente uma longa noite. Contei para Green o que eu tinha visto naquele dia, enquanto aguardávamos a saída dos últimos homens da Companhia de Tapetes Tiflis.
- É melhor ficarmos de olho nas pessoas que possuem chave - sugeriu Green.
- Falou.
Quando o último empregado foi embora e Ajemian se fechou em seu escritório, corri os ferrolhos da porta da frente, depois fui revistar todos os quartos, para certificar-me de que não havia ninguém escondido em algum canto.
Não encontrei ninguém nos quartos, olhando os armários e embaixo das camas. Faltava apenas um quarto para ser revistado, quando ouvi um tiro - um único tiro que ecoou dentro de mim como se fosse uma bomba atômica.
O som viera dos fundos - do escritório!
Corri com meu velho revólver na mão que me restava. Cheguei na porta do escritório que dava para a sala, mas não me arrisquei a entrar diretamente. Seria suicídio. Encostei-me à porta, abri-a com um pontapé, depois saltei, agachado, com a velha arma em punho.
Ajemian estava no chão, sangrando. Não havia ninguém no escritório. Corri para o ferido, que procurava levantar-se.
- Um homem. Mascarado! Tratem de agarrá-lo - disse ele, entre gemidos. - Estava esperando por mim aqui. Apanhou tudo!
- Deixe-me ver esse ferimento...
- Não foi nada. Pegou de raspão. Ele deve estar fugindo pela porta dos fundos!
Hesitei durante uns segundos. Não há dinheiro que pague uma vida, não importa o que pense a vítima, mas o ferimento realmente não parecia grave e corri para a cozinha.
Green estava estendido no chão, desmaiado. Um galo enorme no lado esquerdo da cabeça dele mostrava o que havia acontecido.
A porta dos fundos estava aberta. Fui até à escada de serviço. A única maneira de sair das Torres de Sussex era descendo. Mesmo que o ladrão tivesse fugido para um dos andares de cima, mais cedo ou mais tarde teria de descer. Comecei a correr escadas abaixo por aqueles 16 lanços o mais rapidamente que me foi possível, com o ouvido atento. Não se escutava qualquer ruído que lembrasse o de um homem correndo.
Chegando no andar térreo, parei para escutar. Nada. Dirigi-me para a aléia atrás do edifício. Sob o sol quente não se via sequer um gato. Corri até a rua ao lado do parque. Àquela hora o tráfego era intenso e se ele tivesse chegado até ali, não havia meios de encontrá-lo, muito mais se se tratasse de um profissional.
Um grito agudo, tipicamente feminino, sacudiu a tarde calorenta.
Olhei para as janelas do apartamento de Ajemian, no 16º andar.
Por um breve instante, tudo pareceu imobilizar-se em um silêncio gelado, sem o mais leve som. Dezesseis andares acima vi o homem como que pairando no espaço, o rosto encoberto por uma máscara, os braços abertos, as pernas trançadas, uma valise preta flutuando junto dele. Tudo pareceu imóvel durante aquela fração de segundo.
Então levantei-me e assisti à queda do homem ao longo de 16 intermináveis andares no mais completo silêncio, como uma cena grotesca de algum antigo filme do cinema mudo.
Ele bateu na capota de um automóvel estacionado junto à calçada e foi estatelar-se no meio da rua. Dois carros passaram por cima dele, antes que pudessem parar. A valise preta caiu na calçada, a uns cinco metros de distância, abriu-se e encheu a rua de maços de cédulas. Um pequeno revólver também caiu junto à valise.
Em meio à confusão provocada por gritos e freadas violentas, procurei aproximar-me do homem estendido no chão, numa poça de sangue. Agachei-me ao lado do corpo. O homem ainda estava com a máscara no rosto. Tirei-a.
Era Wallace Kuhns. Não sobrara muita coisa de seu rosto, mas era ele, com certeza. Fiquei durante um tempo contemplando aquela fisionomia descomposta, depois levantei os olhos para o alto edifício, isolado dos demais que o cercavam.
Agarrei pelo braço o sargento que saltara do carro-patrulha.
- Coloque um homem vigiando a porta da frente e outro a de serviço! Imediatamente!
- Quem diabo é você? O que está pensando a respeito... Mostrei-lhe minha licença.
- Dan Fortune. Chame o Capitão Gazzo, do Departamento de Homicídios. Peça informações a meu respeito e diga-lhe para vir o mais rapidamente que puder. Mas não deixe de colocar os homens vigiando as portas. Ninguém poderá entrar nem sair. Ninguém, entendeu?
Tive sorte. O sargento era um bom policial e sabia que não era hora de correr riscos. Talvez eu fosse um maluco qualquer, mas ele teria tempo para descobrir isso. Por outro lado, havia a hipótese de eu saber o que estava fazendo.
O sargento destacou um policial para a porta da frente e outro para a de serviço. Ninguém poderia entrar ou sair até novas ordens. As janelas dos dois primeiros andares do edifício eram gradeadas. Isso era ótimo. Transcorrera menos de um minuto desde o momento da queda de Kuhns.
Voltei ao apartamento.
Reanimei Green e dei uma olhada no ferimento de Ajemian. Nesse momento o médico chegou.
Logo depois, foi a vez do Capitão Gazzo. Ele olhou para mim, depois para Green e para Ajemian; e então começou a trabalhar.
- Bem, qual é a história?
O ferimento de Ajemian não tinha gravidade - uma perfuração na carne, que sangrava muito mas não era séria. Green apresentava um enorme galo e se queixava de dor de cabeça.
Ajemian começou a falar:
- Ele estava escondido aqui no escritório quando eu cheguei esta noite. Usava uma máscara. Apontou-me um revólver e me obrigou a abrir o cofre. Ouviu quando Fortune correu o ferrolho da porta da frente e foi revistar os quartos. Também ouviu Green na cozinha.
Green sacudiu a cabeça, concordando.
- Eu estava verificando a fechadura da porta de serviço, quando senti que havia alguém atrás de mim. O sujeito me bateu com força e não vi mais nada.
- Depois que ele atacou Green - continuou Ajemian com voz trêmula - tentei agarrá-lo. Foi então que ele atirou em mim, correndo depois pela porta dos fundos. Fortune entrou no escritório. O resto o senhor já sabe.
- O senhor não sabia que Kuhns não tinha saído do escritório esta noite?
- Mas ele saiu. Cerca de uma hora antes de você chegar. Deve ter entrado de novo pela porta dos fundos e se escondido no escritório.
Gazzo me dirigiu um olhar esquisito e saiu. Fiquei sentado, enquanto o médico voltava a examinar Ajemian e Green. Gazzo regressou cerca de 15 minutos depois.
- O médico-legista diz que Kuhns morreu em conseqüência da queda, sem dúvida - informou o capitão. - Encontramos uma sacola para carregar dinheiro junto à escada de serviço, no lado de fora da porta dos fundos. Há uma borda na parede junto à janela. Parece que ele tentou esconder ali a sacola, quando Fortune seguiu atrás dele, pelas escadas. Foi então que escorregou.
- Bobagens - disse eu.
Gazzo não tirava os olhos de mim.
- Há marcas recentes de gazua na porta dos fundos - continuou o capitão - mas achamos que foram feitas de propósito. Kuhns tinha no bolso as chaves do apartamento. Estava a par do sistema de vigilância adotado por vocês dois e esperou que cada um fosse para seu posto. Se Ajemian não o obrigasse a atirar, ele teria conseguido fugir. Falta de sorte.
- Falta de sorte coisa nenhuma - repliquei. - Kuhns foi assassinado, capitão.
Gazzo sacudiu a cabeça com ar cansado.
- Imagino que foi por isso que você mandou chamar o Departamento de Homicídios. O que foi que você inventou desta vez, Dan?
- Kuhns não caiu, foi jogado. Quem quer que tivesse feito isso não teve tempo para sair do edifício. Não há outra maneira, a não ser pelas duas portas, de modo que o assassino ainda está aqui dentro. Mantenha o edifício interditado, não deixe ninguém entrar ou sair sem identificação.
- Você quer dizer que Kuhns não estava sozinho? Quer fazer o favor de explicar como chegou a essa conclusão?
- Não. O senhor não me acreditaria.
- Pode ser - replicou Gazzo secamente. - Tem alguma idéia de quem seja?
- Alguém que conheça Kuhns, o apartamento e o local onde o dinheiro estava guardado - respondi e depois voltei-me para Ajemian. - Há alguém, além de sua ex-esposa Beth, de Max Alvis, de Mary Kane e do pessoal de seguros, que preencha essas condições?
- Eu - replicou Ajemian - e mais os guardas da companhia que estiveram aqui durante o dia. O pessoal de seguros não conhece o apartamento.
- É isso aí - disse para Gazzo. - São esses os que integram a lista de suspeitos. Investigue.
- Vou investigar. E também outras coisas, se você não se importa. As atividades de Kuhns, por exemplo.
- Por que o senhor não se limita a imitar o que estou fazendo agora, capitão?
- E o que é?
- Esperar - respondi e foi o que fiz. Esperei.
Green foi levado para o hospital, para observação. Ajemian e eu ficamos sozinhos no apartamento. Ele ainda agüentou umas duas horas observando-me, enquanto eu assistia a programas de televisão. Afinal, explodiu:
- Você vai ficar sentado aí desse jeito, Fortune? Espera que eu lhe pague por isso?
- O que é que o senhor quer que eu faça?
- Que trabalhe! Se você acha que Kuhns foi assassinado, levante-se e vá resolver o caso!
- Está sendo resolvido, Ajemian.
- Pela polícia? Você não tinha obrigação de ajudá-la, pelo que lhe estou pagando?
- Não será pela polícia, mas pelo tempo. É o tempo que vai resolver o caso e já dei minha contribuição. O assassino ainda está no edifício, com toda a certeza. Ninguém saiu até agora. Mais cedo ou mais tarde teremos o criminoso.
- Esperando sentados aqui? Convenhamos que não é muito imaginativo.
- A maior parte do trabalho policial não é - disse eu. - Siga a rotina, formule sua hipótese e espere. Esta é a maneira que dá mais resultado na maioria das vezes. Por que você não vai para a cama, se a espera o irrita?
- Com um assassino escondido em algum canto do edifício?
- Há um policial vigiando cada porta.
Ele foi dormir. Sentei-me e fiquei esperando sozinho. Foi uma longa noite. O mais leve ruído me fazia saltar da cadeira e. de quando em vez, via em pensamento Kuhns caindo silenciosamente ao longo daqueles 16 andares, para encontrar a morte.
Gazzo chegou às oito horas da manhã seguinte. Eu estava tonto de sono. Ajemian havia dormido muito bem e apresentava ótimo aspecto. Gazzo não dormira mais do que eu, porém tinha o mesmo ar saudável de Ajemian.
- A história é a seguinte, Dan - contou Gazzo. - Kuhns precisava de dinheiro. Havia perdido alguns clientes e tinha grandes compromissos. Beth Ajemian admite que Kuhns lhe propusera casamento, mas ela não estava disposta a divorciar-se de Ajemian antes que Kuhns ficasse rico. Ela também admite que Kuhns poderia ter mandado fazer uma cópia das chaves do apartamento. A sacola para o dinheiro foi comprada ontem por Kuhns. O revólver pertencia à Tiflis e desaparecera há uns dois meses. Ele provavelmente não queria contratar detetives, mas foi forçado e então escolheu os mais baratos que pôde encontrar. Provavelmente achou que você e Green eram uns analfabetos. Talvez tivesse razão.
- Provas circunstanciais - repliquei, sacudindo os ombros - e tudo bem arranjadinho. Alguém queria que a história parecesse apenas que Kuhns estava roubando ou talvez o tivesse mesmo obrigado a fazê-lo. Ninguém tentou ainda sair do edifício?
- Não - respondeu Gazzo. - Estou apenas esperando um telefonema para acabar com esse seu palpite.
- Que telefonema? - perguntou Ajemian.
- Fortune já percebeu o que é - respondeu Gazzo.
- Você sabe - disse eu - que a primeira tentativa de arrombamento não passou de uma farsa. Se se tratasse de ladrões desconhecidos seria coincidência demais. Se foi Kuhns, então ele estava maluco, chamando atenção justamente quando o dinheiro não estava lá. Estou certo de que foi uma encenação, para que todo o mundo pensasse que se tratava de um roubo. Tudo muito bem arrumadinho, apenas com um tom de irrealidade que me deixou intrigado.
- O que quer dizer com isso, Fortune? - perguntou Ajemian. - Tem certeza de que não está imaginando coisas, conforme demonstrou o capitão?
Antes que eu tivesse tempo para responder - o que, aliás, não pretendia fazer - o telefone tocou. Gazzo atendeu. Ficou ouvindo durante um minuto ou dois, sacudiu a cabeça algumas vezes e desligou, brindando-me com um largo sorriso.
- São as informações finais, Dan. Tudo verificado. Beth Ajemian não saiu de casa a noite passada, Max Alvis está em seu escritório, Mary Kane em sua escola de modelos e até os homens da companhia de seguros estão em seus postos. Nenhuma dessas pessoas se encontra neste edifício.
- Está bem - disse eu. - Então o assassino é Ajemian
O corpulento diretor da companhia de tapete? pôs-se em pé, vermelho ao invés de pálido, e avançou para mim.
- Que brincadeira é essa, Fortune? Eu o contratei...
- Não é brincadeira. Simples processo de eliminação. Eu lhe disse que o tempo resolveria o caso. Ninguém saiu deste edifício. Você é o único que ainda se encontra aqui. Então é você.
Ajemian estava tão vermelho que pensei que ele fosse ter um ataque de coração. Virou-se para Gazzo:
- Você vai deixar esse sujeito sentado aí e me acusando? Vou rebentar com vocês dois!
Gazzo não disse nada. Ficou olhando para Ajemian e para mim, esperando minha história. Desembuchei:
- Kuhns nunca saiu daqui do apartamento. Você, Ajemian, fez com que ele perdesse os sentidos e o escondeu no escritório, mas, como ele poderia voltar a si, você completou o serviço, tão logo Green e eu ficamos sozinhos. Depois, atacou Green, abriu a porta dos fundos e deu um tiro na própria coxa. Enquanto eu corria atrás do suposto ladrão, você arrastou Kuhns até a janela e jogou-o para fora, com o dinheiro e o revólver. Foi uma sorte que eu tivesse descido. Você me viu lá embaixo e achou que o detalhe era perfeito: eu veria a queda de Kuhns. Mas foi aí que você se enganou. Apareceu o tal toque de irrealidade.
Ajemian tentou forçar uma risada.
- Você acha que alguém vai acreditar nessa história? Um esquema assim tão intrincado?
- Não é tanto. Quase que deu certo. O trabalho preparatório era mais difícil do que o truque do assassinato. Você tinha de mostrar que Kuhns estava mal de dinheiro e providenciou para que muitos clientes o deixassem. Como ele era seu advogado, foi fácil autorizá-lo a empregar uma grande importância, mas no nome dele. Arranjar o revólver não constituía problema e ele compraria uma sacola para você, desde que lhe pedisse. Aposto que ele tinha outras sacolas que poderia ter usado com mais segurança.
- Tinha mesmo - informou Gazzo, sem alterar o tom de voz. - Encontramos duas.
Agradeci com um movimento de cabeça.
- Imagino que você estava realmente com ciúmes e queria sua esposa de volta. Isto será fácil de provar. É o motivo que justifica a encenação do roubo. Gazzo não terá problemas para descobrir todas as chaves. De qualquer modo, um teste de parafina demonstrará que você disparou um revólver ontem à noite e...
Ajemian não esperou mais. Tinha um revólver e disposição. Atirou em mim, errou e correu para a porta. Gazzo procurou detê-lo e correu atrás dele. Continuei sentado e acendi um cigarro. Um homem com um braço só não é de muita utilidade numa caçada e dou muito valor à minha pele. Agarrá-lo não era obrigação minha.
Instantes depois, soaram tiros no telhado e fui até à janela espiar. Ouvi então um grito e debrucei-me para saber o que era. Olhei justamente quando ele caía, o revólver ainda na mão. Gritou durante todo o tempo que durou a queda.
E estava ainda na janela quando Gazzo retornou.
- Não dispúnhamos de muitas provas - disse ele. - Você sabe que não usamos mais o teste de parafina, porque é sem valor. Nenhum tribunal o aceita mais.
- Ele ignorava esses detalhes - repliquei. - O que vale, Gazzo, não é a verdade, mas o que o povo pensa que é a verdade. Ele sabia que era o culpado e devia ser um pouco desmiolado.
- Está bem. Agora me conte como foi que você desconfiou. Prometo acreditar.
- Houve uma coisa que Max Alvis disse. Ele não sabia como foi que o pessoal de seguros soube da primeira tentativa de arrombamento, aliás falsa. Somente três pessoas poderiam ter contado. Alvis não foi, nem Kuhns. Sobrava apenas Ajemian. Ele queria que a companhia de seguros soubesse, pois assim se justificaria a necessidade de guardas. Ajemian precisava de testemunhas para representar a cena do roubo.
- Isso veio depois, Dan. Por que foi que você começou a suspeitar que se tratava de um assassinato?
- O que foi que aconteceu no telhado há poucos momentos?
- Ele tentou atirar, escorregou e não pôde segurar-se. - Caiu, não foi? E caiu gritando o tempo todo.
- Sim, mas e daí?
- Eles sempre gritam, Gazzo. Ou quase sempre.
- Está bem, eles gritam. E o que tem isso, Dan?
- Kuhns não gritou. Caiu de uma altura de 16 andares sem o menor som. Até mesmo quando saltam voluntariamente eles costumam gritar; acho que é um reflexo. Kuhns caiu por acidente e não deu um único grito. Só há uma explicação para isso: Kuhns estava inconsciente. Foi jogado lá de cima... assassinado.
Gazzo ficou olhando para mim.
- Ora essa, Dan! Como é que se vai provar que as pessoas gritam quando caem? Talvez Kuhns fosse um homem que não gostasse de gritar!
- Isso não tem mais importância. Foi o pequeno detalhe que me deixou intrigado. Obrigou-me a pensar.
Gazzo deu um suspiro.
- Dan, você teve uma sorte danada.
- Conforme já lhe disse, não é verdade o que conta, mas o que as pessoas pensam que é a verdade. Se você se apoia numa teoria, tem que ir até o fim. Não acredito que um homem possa cair do alto de 16 andares sem soltar um grito. Em conseqüência, não pude aceitar a história inventada por Ajemian.
Gazzo não tinha mais nada para dizer. Era apenas um policial e sofrerá com medo de que meu frágil raciocínio estivesse errado. Eu não tive esse medo. Talvez um dia eu encontre um sujeito capaz de cair do alto de 16 andares sem soltar um gemido e então ficará provado que errei. Desta vez, porém, meu palpite estava certo e isso é o que conta no trabalho de um detetive.


IV. L. Heath
LADRÕES DE BAZAR
Não sou um homem dado a suspeitas, mas há algumas pessoas de quem desconfio quase que à primeira vista. Na profissão que exerço, sou obrigado a viajar constantemente e, sem querer elogiar-me exageradamente, acho que posso dizer que aperfeiçoei um bom faro para detectar um trapaceiro.
Há um montão deles nos países do Levante e do Oriente, através dos quais faço a maioria de minhas viagens. Trapaceiro de todas as formas, cores e tamanhos, mas é claro que todos são farinha do mesmo saco e facilmente reconhecíveis, depois de vê-los agir uma vez. Todos eles oferecem a mesma mercadoria, isto é, uma trapaça, uma fraude qualquer, de uma natureza ou de outra. Em menos tempo do que o necessário para pagar-lhes quatro uísques com soda, eles descreverão, à meia voz, como dar um bom golpe naquela noite - contanto, naturalmente, que você esteja disposto a arriscar uns cheques de viagem. Eles enxameiam nos bares de segunda classe, desde Casablanca a Hong Kong e, embora a maioria não passe de simples alcoviteiros, alguns chegam a ser perigosos. Se você acha que estou exagerando, é porque nunca teve oportunidade de viajar por aquela parte do mundo.
Thompson era um trapaceiro e, pelo jeito, um trapaceiro nato, do tipo dos pobres desamparados, que você encontra de quando em vez. Andam sempre sozinhos e pobremente vestidos; se você pergunta qual o emprego deles, respondem que trabalham em "importação-exportação". É a resposta clássica. Bastou-me a aparência de Thompson para despertar-me suspeitas, mas as circunstâncias de nosso encontro e sua exagerada cortesia em relação a Jan foram os fatores que realmente me puseram em guarda.
Conhecemos Thompson num bar em frente ao Teatro Paraíso, em Karachi. Jan e eu estivéramos fazendo compras desde o meio-dia no bazar e tínhamos sentado por um momento para um refresco, antes de voltarmos ao hotel. Era um bar típico da variedade do Oriente, muito mais parecido com uma lanchonete americana do que com um salão de bebidas.
Sentamo-nos embaixo de um ventilador, pedi uma bebida e Jan colocou suas compras sobre a mesa, para melhor admirá-las.
- Ainda não estou satisfeita - disse ela.
- Por que não? Você comprou todos os presentes clássicos: o pente de marfim, o sari, o sino de bronze em forma de elefante. O que mais poderão esperar os seus parentes lá de Filadélfia?
Ela me encarou com um brilho maroto nos olhos castanhos. -i Uma safira-estrela, Dave. Não me conformo em deixar o país sem ter comprado uma safira-estrela. Eu estava cansado. " - Está bem. Amanhã veremos isso.
- Não teremos tempo amanhã. Venha comigo esta tarde, por favor.
Colocou sua mão sobre a minha e dirigiu-me aquele olhar suplicante que eu já a vira usar nos pedidos a seu pai. Jan era uma bela garota, com umas longas pestanas negras e aquele ar saudável que tanto caracteriza uma debutante americana rica.
- O navio partirá somente às quatro - disse eu.
- Eu sei, mas há tanta coisa para fazer: arrumar as malas e essa coisa toda. Estou certa de que não teremos tempo para fazer mais compras amanhã.
- Mas Jan, meus pés estão na miséria. Não agüento mais. Ela sorriu e pensei que iria desistir, mas nesse momento o homem que disse chamar-se Thompson fez sua entrada, surgindo de repente ao lado de Jan. Tossiu discretamente e fez uma mesura. Era um homem corpulento, pálido, de olhos empapuçados, usando casaco de alpaca e tendo na mão um topee velho e sujo.
- Queiram perdoar minha intromissão. Não pude deixar de ouvir o que a madame estava dizendo.
O resto aconteceu tão rapidamente que nem tive tempo para intervir. Quando dei por mim, Thompson já se tinha apresentado e puxado uma cadeira e eu estava pagando mais um gim-tônica.
- O mais importante, quando se compra uma gema, é reconhecer o que ela realmente vale - dizia ele. - Presumo que saibam fazer a avaliação?
- Não, não sei - respondeu Jan. - Aí é que está o problema.
Thompson franziu levemente a testa e tamborilou no topee.
- Então receio que esteja se arriscando. Naturalmente não quero dizer que vão ser logrados, pois muitos negociantes são honestos, mas, por outro lado, estamos em país estrangeiro e estes orientais... - Deixou a frase incompleta, com uma nota de pesar, depois olhou para mim e sorriu. - O que gostaríamos de fazer é eliminar o elemento de dúvida, não é mesmo?
- O que eu gostaria de fazer era colocar meus pés de molho - disse eu.
Ele me replicou com uma risada.
- Fazer compras com este calor cansa mesmo qualquer um. Voltou-se para Jan e sorveu seu drinque pensativamente,
enquanto eu tentava adivinhar sua nacionalidade. Inglês, possivelmente; ou, quem sabe, americano com sotaque britânico.
- Talvez o senhor possa recomendar uma casa onde seguramente não seremos enganados - sugeriu Jan.
- Na verdade, era isso mesmo o que ia sugerir - disse Thompson. As coisas estavam correndo maravilhosamente. - Há uma pequena loja ali adiante... mas não, os senhores nunca a encontrariam se fossem sozinhos. - Seu rosto se iluminou subitamente e ele consultou o relógio. - Vamos fazer o seguinte: estou indo nessa mesma direção e terei muito prazer em levá-los até lá.
- Ótimo - replicou Jan.
- Não - disse eu.
- Por que não?
- Não podemos impor a este cavalheiro que se desvie de seu caminho.
- Não diga isso - protestou Thompson. - Não é uma imposição, mas um privilégio. Sempre digo que nós, os anglo-saxões, devemos ser unidos, entende? Cuidar uns dos outros.
- Agradeço sua cortesia - repliquei - mas não...
- Ora, vamos lá, Dave. Pode ser a minha última oportunidade.
Thompson explorou logo sua vantagem; ainda argumentei, mas sem êxito. Jan havia mordido a isca e, embora eu não a conhecesse bem, sabia que era o tipo de garota acostumada a fazer o que lhe dá na veneta. Finalmente, receando que ela tentasse ir sozinha, consenti em acompanhá-la. O pior que poderia acontecer, pensei comigo mesmo, provavelmente não seria muito ruim e, se ela estava disposta a jogar fora uma centena de dólares, convencida de que estava fazendo um grande negócio em uma lojinha qualquer, o problema era dela, não meu. Seu pai provavelmente pagaria a conta sem protestar, mas talvez a lição fosse útil para ela.
Quando estávamos para sair do bar, Thompson pediu licença e foi até o fundo da sala, dar um telefonema. Eu já contava com isso também. Esperamos na porta. Quando ele veio juntar-se a nós, perguntei-lhe o que fazia em Karachi.
- Trabalho no ramo importação-exportação.
Chamamos um táxi - na verdade uma carruagem puxada por dois cavalos - e Thompson deu ao cocheiro umas instruções em urdu, dialeto que ele parecia falar muito bem. Enquanto rodávamos através da cidade, na direção do bazar, ele, sentado num pequeno banco à nossa frente, de costas para o cocheiro, conversou amavelmente, perguntando o que estávamos fazendo no Paquistão. Expliquei-lhe que eu era um fotógrafo de Geographics lllustrated, retornando de uma missão que tivera de cumprir no Ceilão.
- Então não são casados?
- Oh, não! - respondeu Jan. - Nós nos conhecemos não faz duas semanas, a bordo de um navio- que pegamos em Calcutá.
- E estão viajando sozinhos?
- Não, meu pai está comigo - disse ela. - Ficou no hotel esta tarde, dormindo a sesta.
A seguir, explicou que o pai era um fabricante de aço de Filadélfia e que estavam fazendo uma viagem ao redor do mundo. Sua mãe morrera em fevereiro do ano anterior e ela insistira com: o pai para fazerem a viagem, com esperança de que ele se distraísse e se refizesse do golpe sofrido.
Thompson, aparentemente satisfeito com as explicações, manteve-se em silêncio e nós trotamos ao longo da Rua Pedra do Elefante e depois por uma larga avenida margeada nos dois lados por altas árvores de galhos secos. Eu nunca estivera nessa parte da cidade e não sabia exatamente onde me encontrava. Atravessamos um parque, depois enveredamos por uma rua estreita e atravancada, onde crianças seminuas corriam atrás da carruagem, pedindo baksheesh - um prato de comida.
Paramos finalmente na porta de uma loja com um toldo de zinco ondulado e desci com maus pressentimentos. Era a parte pobre da cidade e comecei a ficar preocupado por haver deixado Jan vir até lá. A fachada do edifício era toda decorada e acima da calçada havia uma espécie de torre - uma construção hexagonal, encimada por uma coroa com janelas nos lados e pequenos minaretes entalhados. Em frente à lojinha, um mendigo cego estava sentado numa esteira suja.
Subimos um lanço de escada de pedra e entramos por uma porta em arco, onde fomos recebidos por um homenzinho usando terno de alpaca preto e um fez.
- Boa tarde - disse ele, indicando que sabia falar inglês. Fez uma mesura, sorriu e nos encaminhou para uma espécie
de ante-sala à direita da entrada. O local parecia muito limpo, mas os odores da rua se faziam sentir. Thompson nos apresentou, explicando para o proprietário que estávamos interessados em pedras preciosas. Depois que nos sentamos, o homem com o fez na cabeça começou a trazer as pedras. Thompson ficou sentado a um canto, muito quieto.
Acho que estivemos na loja cerca de meia hora e procurei manter-me o mais atento possível. Entretanto, nada vi que me parecesse errado. O homenzinho da loja foi paciente e atencioso, enquanto Thompson não teve a menor interferência nas compras.
Jan se mostrou desapontada com os preços, o que me causou surpresa, pois pensei que eles fossem razoavelmente baixos. Ela olhou primeiro as safiras, depois os rubis e finalmente pediu para ver diamantes. Torci para que ela não resolvesse comprar um diamante, porque essa pedra é a mais difícil de ser reconhecida como autêntica.
Por fim, e em parte por insistência minha, ela comprou uma pequena safira por 90 rúpias. Agradecemos ao proprietário e preparamo-nos para sair.
- Você volta conosco? - perguntou Jan e Thompson.
- Não, obrigado - respondeu ele. - Tenho de ir em outra direção.
Foi até a porta conosco, para chamar uma carruagem, depois despediu-se. Toda aquela história me deixara muito intrigado. Não tinha percebido nada de errado, mas alguma coisa me parecia estar cheirando mal.
Na viagem de volta para o hotel, pedi que Jan me mostrasse a safira outra vez. Ela abriu a bolsa e me entregou a pedra. Examinei-a cuidadosamente, na palma de minha mão. Era uma bela pedra que, embora pequena, tinha um azul-escuro e era quase perfeitamente lapidada. Pareceu-me que valia bem o que Jan tinha pago, talvez até um pouco mais.
- Conte seu dinheiro outra vez - sugeri. - Veja se o troco está certo.
- Está tudo aqui - disse ela, contando as notas. - O que é que você está suspeitando?
- Não sei, honestamente não sei. Tive um estranho pressentimento, quando estávamos lá naquela loja. Alguma coisa errada, que não consigo identificar. Era como assistindo a esses trapaceiros que escondem uma bolinha debaixo de cascas de nozes. Entende o que quero dizer?
- Sim, acho que entendo. Também tive a mesma sensação.
Quando olhei para ela, achei-a ligeiramente pálida.
De volta ao meu quarto no hotel, preparei um drinque e sentei-me na pequena varanda, gozando a frescura da tarde. Momentos depois, ouvi uma batida na porta e Jan entrou.
- Papai ainda está dormindo. Achei que era melhor vir até cá e tomar um drinque com você.
- Ótimo. Posso dar-lhe um uísque com soda, mas não tenho gelo.
- Isso é bem do lugar. Vá lá, prepare mesmo sem gelo, mas bem forte. Aquela lojinha mexeu com meus nervos.
Sentou-se na cama, enquanto eu preparava a bebida. Depois, ao prová-lo, pediu um cigarro, como acompanhamento. Ela vestia uma saia branca de linho, tendo tirado o casaquinho que usara durante as compras e a blusa estava desabotoada na parte de cima. Pelo decote não pude deixar de perceber que ela tirara o sutiã, mas atribuí o fato ao calor e fui sentar-me perto da janela, onde a vista não era tão provocante.
- Sabe de uma coisa? - disse ela. - Temos andado constantemente juntos nestas duas últimas semanas e você nem ao menos tentou beijar-me.
- Sou um homem casado, conforme já lhe disse. Tenho mulher e filhos lá em casa, garota.
Ela fez um muxoxo e me olhou com ar de reprovação.
- Não quis dizer que eu deixaria, mas não é muito lisonjeiro você nem ao menos ter tentado.
-' O que se passa com você é que apanhou muito sol. Ela riu e levantou-se.
- Acho que tem razão. Permite que eu vá passar um pouco de água no rosto? Sinto-me verdadeiramente empoeirada desde que saí daquela loja. Era melhor não termos ido lá.
Quando ela voltou do banheiro, notei que a blusa estava toda abotoada e senti-me mais aliviado.
- Qual o programa para o jantar? - perguntei.
- Encontramo-nos no bar às seis, isto é, se eu conseguir acordar papai. Ele dormia profundamente ainda há pouco.
Depois que ela saiu, tomei um banho, fiz a barba e desci para o bar, a fim de esperar por eles. Ainda estava desconfiado de Thompson, mas não encontrava a menor irregularidade em toda a história: Jan comprara a pedra por um bom preço, recebera o troco certo e o sempre atencioso Thompson se retirara sem sequer sugerir uma gratificação por seus serviços. Era um tanto esquisito, como diriam os ingleses. Não fazia sentido, pelo menos segundo o que eu sabia a respeito de homens como Thompson. Mas onde estava o golpe?
Tomei um segundo drinque, enquanto fazia minhas conjeturas, e de repente me dei conta de que já estava esperando muito tempo. Já eram seis e meia e Jan não aparecera com seu papai. Eu tinha absoluta certeza de que ela dissera que desceria para o bar às seis. Não vou afirmar que ela fosse a pessoa mais pontual do mundo, mas meia hora era tempo demais para um atraso e, se tivesse acontecido alguma coisa, eles teriam avisado. Comecei a ficar preocupado. Minutos depois, decidi voltar ao meu apartamento e telefonar para eles.
Ao sair do bar ainda dei uma olhada no saguão, para certificar-me de que não houvera engano quanto ao local do encontro, mas não vi ninguém. Então, subi de dois em dois os degraus atapetados de vermelho, sentindo-me cada vez mais apreensivo. A presença de Thompson criara em meu espírito um clima de acentuada suspeita.
No segundo pavimento, virei à esquerda no longo corredor e imediatamente vi que havia alguém no meu quarto. A luz estava acesa e a porta aberta. Quando cheguei, a primeira coisa que me despertou a atenção foi minha mala. Ela estava aberta em cima da cama, tendo ao lado uma das minhas câmeras, já fora do estojo de couro. Os lençóis tinham sido retirados da cama e jaziam no chão, amontoados. Várias gavetas da cômoda se encontravam abertas e reviradas. Minha atenção foi a seguir atraída pela figura do homenzinho de roupa de alpaca preta e usando fez - o dono da lojinha das pedras preciosas. Ele estava encostado junto à porta do banheiro, olhando para mim por cima do ombro, como se tivesse sido surpreendido. Havia uma pistola em sua mão.
Quando ele se virou para o meu lado, dei um passo para trás e procurei abrigar-me, mas colidi com um sujeito grandalhão, uniformizado e usando um turbante. Ele avançou contra mim e me segurou pelo braço. Quando tentei livrar-me, senti o braço torcido. Virei-me o mais rapidamente que pude na direção oposta e bati-lhe no queixo com toda a força de meu punho esquerdo. O homem me soltou e levou as duas mãos à boca. Aproveitei para golpeá-lo outra vez, atirando-o contra a parede. Agora, porém, outro grandalhão surgiu não sei de onde, uniformizado como o primeiro. Quando tentei evitá-lo, ele me bateu com o cassetete. O golpe não atingiu minha cabeça, mas me pegou pelo ombro, fazendo-me cair de joelhos, segurando-o pela cintura. Ele bateu novamente e então apaguei durante um bocado de tempo.
Quando recobrei os sentidos, estava deitado em minha própria cama, olhando para o mosquiteiro. O homenzinho com o fez na cabeça passava uma toalha úmida na minha testa.
- Lamentamos muito o que aconteceu - disse ele.
- E eu mais ainda - repliquei, sem encontrar uma frase melhor.
Ele atravessou o quarto e voltou com meu passaporte na mão.
- Verificamos todos os seus documentos e estabelecemos sua identidade. Vimos então que se tratava de um engano.
- Estou de acordo com isso. Mas que tipo de engano?
- Pensávamos que o senhor era cúmplice da moça. Agora já esclarecemos tudo.
- Jan? Onde está ela?
- Os dois foram presos.
- Presos? Mas por quê?
- Pelo roubo de vários milhares de dólares em pedras preciosas - replicou, enquanto tirava do bolso um envelope e esvaziava seu conteúdo na mão. Havia meia dúzia de rubis e pérolas, uma esmeralda e um grande diamante amarelado. - Encontramos tudo isto aqui no seu banheiro. Evidentemente, ela ficou desconfiada depois de sair da loja e trouxe as pedras para escondê-las aqui.
- Um momento - interrompi. - Ainda não sei quem é o senhor. Não vai me dizer que é da polícia?
- Exatamente, sahib. Fomos alertados pelas autoridades de Bombaim para vigiarmos aquela dupla, de modo que, quando os dois chegaram aqui, preparamos uma armadilha para eles. Vinham aplicando o mesmo golpe por todo o caminho, desde Hong Kong.
- Que espécie de golpe?
- Veja. Eles tinham um estoque de pedras sintéticas. A moça substituía uma pedra verdadeira por outra sintética, sempre que encontrava duas de tamanho e forma semelhantes. Hoje, quando o senhor a acompanhava, ela palmeou um rubi e este diamante de seis quilates, deixando duas pedras sintéticas em lugar das verdadeiras.
Procurei levantar-me e coloquei as pernas para fora da cama. Meus ouvidos ainda zuniam e eu sentia uma forte dor acima de minha orelha esquerda. O grandalhão de turbante estava em pé junto à porta, com um lábio bem inchado. Era realmente um policial.
- Lamentamos muito o que aconteceu - repetiu o homem com o fez na cabeça - mas havia muita confusão e não sabíamos ainda quem era o senhor.
- E quanto ao pai de Jan?
O homenzinho sacudiu a cabeça tristemente.
- Desconfiamos que o homem não era pai dela, sahib. Uma situação muito constrangedora.
Ficamos em silêncio durante alguns instantes. Minha cabeça estava começando a clarear.
- E Thompson? Ele era usado pelos senhores como isca, não é verdade?
- Não entendi.
- Foi ele quem nos levou até a loja.
- Ah, sim! Thompson - disse o homenzinho com um sorriso. - Ele nos tem ajudado em numerosas ocasiões.
- Mas não 6 um policial?
- Oh. não! Thompson é... Como poderemos chamá-lo? É desses sujeitos que fazem qualquer papel para ganhar um dinheirinho.
- Um trapaceiro - disse eu. - Reconheci logo. Esses tipos não me enganam por um minuto sequer.


Clark Howard
O CARCEREIRO
Charles Lawson, o novo diretor do presídio, tomou posse ao meio-dia de uma cinzenta e chuvosa segunda-feira. Uma hora depois, reuniu seus auxiliares imediatos.
- Senhores - começou ele, atrás da escrivaninha até aquela manhã ocupada por seu antecessor - todos sabem quem sou eu e por que me encontro aqui. Fui designado pelo governador para substituir o antigo diretor desta instituição e recebi carta branca para agir da maneira que achar melhor para os interesses do Estado.
Lawson levantou-se e foi até à janela atrás de sua poltrona. Dali podia avistar o grande pátio, ainda com sinais do motim que fora dominado não fazia ainda 48 horas.
- Dois prisioneiros mortos - disse Lawson com voz calma. - Dezesseis homens feridos, inclusive cinco guardas. E mais - acrescentou voltando para a poltrona - muitos milhares de dólares em danos sofridos pela prisão.
Inclinou-se para trás e tirou do bolso um velho cachimbo. As pessoas sentadas à frente dele - o subdiretor, o capitão e os três tenentes da guarda - ficaram esperando que ele enchesse cuidadosamente o cachimbo com o fumo que tirara de uma pequena bolsa de couro. Depois que o fornilho ficou suficientemente cheio, ele colocou a haste entre os dentes, riscou um fósforo e encostou a chama no fumo, chupando até que a sala ficou impregnada de fumaça.
- As instruções que recebi do governador abrangem três aspectos - disse ele, sacudindo o fósforo e atirando-o dentro do cinzeiro do antigo diretor. - Primeiro e mais importante: restaurar completamente a ordem em toda a prisão. Segundo: reforçar e manter estrita segurança interna. E terceiro: realizar uma profunda investigação para determinar as causas factuais do motim, denunciar as partes culpadas e corrigir, se possível, as condições que mais contribuíram para que se iniciasse a perturbação da ordem. Assim - continuou ele, recostando-se na poltrona com que ainda não se acostumara - gostaria de ouvir sugestões quanto às medidas para a consecução do primeiro objetivo: restaurar completamente a ordem em toda a prisão.
- Posso dar-lhe imediatamente uma resposta - disse Fred Hull, o capitão da guarda da prisão. - Na realidade, posso sugerir a maneira de atingir todos os objetivos. Ponha Ralph Starzak na solitária e atire a chave fora.
- Ralph Starzak - murmurou Lawson, tamborilando silenciosamente com a ponta dos dedos no braço da poltrona. - É o famoso Ralph Starzak, o maior receptador do início dos anos 50? O que está aqui há 14 ou 15 anos?
- Dezesseis - corrigiu Hull. - Está cumprindo 20 e ficará até o fim, pois a comissão de livramento condicional negou um pedido dele não faz três meses; somente poderá requerer novamente daqui a quatro anos, de modo que terá de cumprir toda a pena.
- Você está dizendo que Starzak é a resposta para tudo. capitão? Que é ele a causa de todos os problemas da prisão?
- Exatamente, senhor - respondeu Hull secamente.
- Compreendi - disse Lawson.
Tirou umas baforadas do cachimbo e sacudiu lentamente a cabeça.
- E o que acham os demais? Concordam com o Capitão Hull?
Por um momento houve completo silêncio na sala. Os três tenentes da guarda se entreolharam, mas nada disseram. Finalmente Roger Stiles, o jovem subdiretor, tomou a palavra.
- Senhor, com todo o respeito pela posição e experiência do Capitão Hull, receio que tenha de discordar dele. Estou certo de que serei o único a fazê-lo, mas penso que o capitão está exagerando a importância de Starzak entre os prisioneiros. Não creio que ele desfrute sequer a metade da influência que o Capitão Hull lhe atribui...
- Influência? - interrompeu Hull. - Ele é a fonte de qualquer das confusões que acontecem no presídio! Controla todos os prisioneiros que exercem funções de confiança aqui dentro.
- Isso não é inteiramente verdadeiro - contestou Stiles em tom brando. - Ele não controla, por exemplo, os prisioneiros professores da escola...
- Os professores da escola! - exclamou Hull, como se cuspisse as palavras. - Quem se importaria em controlá-los? Não representam coisa alguma entre os demais prisioneiros! Estou-me referindo ao controle sobre os que realmente interessam: os dos depósitos de gêneros, do refeitório, da lavanderia. Estou-me referindo aos que os prisioneiros têm de pagar, se quiserem uniformes limpos duas vezes por semana, uma fatia maior de carne em seu prato e uma porção completa de fumo, ao invés de apenas três quartos.
- Você está insinuando que Starzak controla tudo isso? - perguntou Lawson.
- Isso e muito mais - replicou Hull. - E não estou insinuando, mas denunciando um fato. Não há a menor dúvida a respeito.
- Uma opinião sem provas não é um fato - argumentou Stiles calmamente.
- Não posso deixar de considerar a observação - disse o novo diretor a Hull. - Você tem alguma prova, capitão? Alguma infração do regulamento dos presos, que possa ser imputada a ele?
Hull olhou por um momento para o jovem subdiretor sentado a seu lado.
- Não - replicou, quase como um resmungo.
- Há prisioneiros que estejam dispostos a colaborar conosco em uma investigação sobre Starzak? - perguntou Lawson.
Hull sacudiu a cabeça negativamente.
- Deve haver um informante ou dois no pátio - disse Lawson. - Nunca vi uma prisão onde não houvesse.
- É claro - admitiu Hull - que temos nossos informantes. Eles nos comunicam infrações de qualquer prisioneiro, menos de Starzak.
- Então não dispomos de base para uma ação disciplinar, é isso?
- Não, a menos que o senhor aceite minha sugestão e o coloque na solitária - replicou Hull com veemência.
Lawson tamborilou novamente com os dedos na mesa.
- Vou pensar no assunto - disse ele, para ganhar tempo. - Preciso primeiro ter uma idéia melhor da instituição. Voltarei a discutir o problema com os senhores antes de tomar uma decisão final. Entrementes, acho que o melhor é nos preocuparmos com o primário objetivo de restauração da ordem em todos os setores. Qual é a situação no momento?
- Estamos em boas condições de segurança - respondeu Hull. - Os Blocos A e B se encontram totalmente sob controle e as Galerias Um até Cinco, no Bloco C, já foram dominadas. A Galeria Seis no Bloco C está interditada; eles estão fazendo greve de fome e nada comeram desde a primeira refeição de sábado.
- Quanto tempo você acha que eles ainda resistirão? Hull cocou o queixo pensativamente.
- Terça-feira ao meio-dia, o mais tardar.
- Está bem. Alguma coisa mais?
- Oito dos amotinados estão ainda fechados na oficina de conserto de calçados. Não possuem armas, mas... - acrescentou, olhando propositadamente para o Subdiretor Stiles - recebemos ordens para não tirá-los de lá à força.
Lawson dirigiu o olhar para Stiles, levantando as sobrancelhas com ar interrogativo.
- Temos lá mais de 20 mil dólares de máquinas de fabricar calçados - explicou o subdiretor. - Os prisioneiros as destruirão, se forem forçados a sair. Estou negociando com eles por intermédio do nosso capelão, o Padre Cahill; tenho esperanças de que eles sairão voluntariamente - acrescentou, devolvendo o olhar a Hull - sem que o Estado tenha de pagar uma nova oficina de calçados.
- Está bem - disse Lawson e depois dirigiu-se a Hull. - O que mais?
O capitão da guarda sacudiu os ombros.
- É a respeito da extensão do motim. O setor do isolamento está quase cheio, assim como a enfermaria. Todos os três blocos estão sendo fechados mais cedo e suspensos quaisquer privilégios.
- Muito bem - aprovou Lawson. - Agora vou dizer-lhes o que devem fazer: continuar mantendo o fechamento mais cedo, mas restabelecer os privilégios de leitura e rádio em todas as celas, exceto na galeria onde há a greve de fome. Na hora do jantar desta noite, mandem levar umas tigelas de sopa fumegante e ofereçam uma bandeja de comida quente a cada participante da greve; todo aquele que aceitar, passa a ocupar seu lugar na sala de refeições. Quanto aos homens da oficina de calçados, vamos deixar o capelão continuar em suas tentativas, conversando com eles. Quanto a vocês - prosseguiu, dirigindo-se aos três tenentes - quero amanhã ao meio-dia um relatório de cada um sobre a situação em todos os blocos de celas, um por um, além de sugestões sumárias a respeito das medidas gerais que deverão ser tomadas. Não precisam mencionar o caso de Starzak; trataremos dele posteriormente, em nova reunião. Alguma pergunta mais?
- Não, senhor - replicou Hull, levantando-se da cadeira, no que foi imitado por seus três tenentes. Os quatro, com Hull à frente, saíram da sala em coluna um por um.
Quando Stiles e Lawson ficaram sozinhos, o jovem subdiretor limpou a garganta e disse:
- Lamento a divergência que houve, senhor. Seria bem melhor se a primeira reunião que o senhor promoveu tivesse corrido mais cordialmente.
- Não ligue para isso - replicou Lawson com um sorriso. - Sinceramente, à luz da presente situação, não esperava que corresse tão bem. Agora - acrescentou, parando por um momento e colocando o. cachimbo no canto da boca - vamos até a sala de refeições, para conversarmos um pouco mais, tomando uma xícara de café.
Na enorme sala agora deserta, exceto com alguns prisioneiros que ali trabalhavam, Lawson e Stiles apanharam duas tigelas de metal e se serviram de café, de um grande bule sobre o aquecedor. Depois, dirigiram-se para uma mesa de alumínio, os bancos presos ao chão. Os passos dos dois homens ressoaram soturnamente na amplidão do refeitório. Lawson sorveu seu café em silêncio, depois fixou o olhar no rosto de seu jovem auxiliar.
- Lamento ter de colocá-lo em uma possível situação difícil, quando ainda mal nos conhecemos - começou Lawson sem rebuços - mas, como você sabe, a minha também não é fácil. Não é preciso dizer que pretendo resolvê-la o mais rapidamente possível. Assim, qual é a sua impressão a respeito do Capitão Hull como funcionário de uma casa de correção?
Stiles sorriu meio sem jeito:
- O senhor não é, pelo visto, dos que costumam usar de subterfúgios para fazerem suas perguntas?
- Normalmente não seria tão incisivo, mas, no caso presente, não temos tempo para isso. Se desejar, por enquanto não tomarei as suas informações como oficiais.
Stiles sacudiu os ombros.
- Isso não altera minhas opiniões. Responderia a mesma coisa, em caráter oficial ou não.
- Ótimo - replicou Charles Lawson. - Gosto disso. Vamos a elas.
- Está bem - disse Stiles, tomando um rápido gole de café. - Fred Hull é provavelmente um dos mais hábeis e eficientes oficiais de segurança para qualquer prisão. Acabou com um motim em dois dias, quando, em outro lugar poderia ter durado uma semana. Se se trata de manter os prisioneiros atrás das grades, não há quem tenha mais jeito do que Hull. Um perfeito exemplo de sua competência é o fato de que ele está aqui há 16 anos e durante todo esse tempo não houve um único caso de fuga. Todavia - e ele baixou a voz, sabendo como ressoaria no grande salão - nas áreas de reabilitação, educação de presos, instrução vocacional, enfim, em todos os aspectos modernos da penalogia, o Capitão Hull é um completo fracasso. Fica totalmente fora de seu elemento; uma regressão aos dias das punições corporais. As idéias dele, relativamente às motivações dos presos visando à melhoria das próprias condições, são tão arcaicas como as correntes nos pés. Em resumo, ele pensa que a função da penitenciária é única e simplesmente punir, o que a meu ver está de todo errado.
Lawson ficou uns instantes pensativo.
- Você gosta pessoalmente do Capitão Hull? - perguntou de repente.
- Não - respondeu Stiles. - Receio que não. Repare: não é que eu desgoste dele. Apenas, como não temos nada em comum, não há base para uma amizade.
- Compreendo. Bem, agradeço e aprecio sua franqueza... - replicou Lawson, tamborilando, como parecia ser seu cacoete, na tampa reluzente da mesa. Stiles observou que, onde os dedos tocavam, as impressões digitais ficavam nítidas na superfície polida. - E quanto a Starzak? É mesmo o chefão dos prisioneiros aqui ou não é?
- Hull acha que sim - respondeu Stiles, sacudindo os ombros. - Eu não.
- Hull não se limita a achar - corrigiu Lawson. - Está completa e firmemente convencido de que tem razão. Por quê?
- Sr. Diretor, não sei responder. Serei o primeiro a admitir que Starzak tem-se envolvido em uma ou duas trapalhadas; quero dizer que, estando aqui há uma década e meia e, como qualquer outro prisioneiro antigo, tem suas relações e procura fazer sua vida um pouco mais fácil. Não acredito, entretanto, que ele controle todo o conjunto de prisioneiros.
- Você acha que o Capitão Hull tem uma implicância pessoal contra Starzak, por um motivo ou outro?
Stiles cocou o queixo pensativamente antes de responder:
- É possível. Os dois estão aqui há muito tempo; pode ser que tenha havido alguma briga, no começo.
Lawson considerou a hipótese durante uns instantes, depois decidiu:
- Bem, teremos em breve ocasião de explorar essa possibilidade, talvez mesmo amanhã, quando eu interrogar Starzak a propósito de sua opinião quanto à evolução das condições de vida aqui na prisão.
Stiles franziu a testa, surpreso:
- O senhor vai perguntar a Starzak como melhorar a prisão?
- Vou. A Starzak e a todos os prisioneiros antigos aqui. Experimentei essa manobra antes, quando fui diretor de Danville. Você ficaria surpreso ante os ensinamentos que resultam de entrevistas dessa natureza, sem falar nas críticas construtivas que se ouvem. Estou certo de que você vai aprovar - acrescentou Lawson, ao ver que Stiles substituíra o ar carrancudo por um sorriso.
- Integralmente - replicou o subdiretor. - É o tipo de orientação adequada de que a instituição precisa.
- Bem, espero que tenhamos bons resultados. Peço-lhe que organize as entrevistas de amanhã, começando às nove horas. Vamos incluir todos os prisioneiros condenados a 15 anos ou mais. Preveja um quarto de hora para eu conversar com cada um deles. Gostaria de ter as fichas de todos eles hoje às seis horas, em meu gabinete, de maneira que possa estudá-las durante a noite.
- Sim, senhor. Providenciarei isso.
- Obrigado - disse Lawson, terminando seu café. - Podemos voltar?
Os dois homens se levantaram e se dirigiram para a porta mais próxima, seus passos novamente ecoando no enorme salão.
Às nove horas da manhã seguinte, o Diretor Charles Lawson começou a entrevistar individualmente os prisioneiros que cumpriam pena maior. Observou as normas do regulamento com eficiência, profissionalmente, sondando os pensamentos de cada um do mesmo modo que um cirurgião capaz examina um paciente, à procura de um tumor. A diferença era que Lawson não utilizava os dedos, mas inteligência alerta, escolhendo palavras que encorajassem os homens, como indivíduos, a se expressarem com a maior franqueza. Tendo lido as fichas deles na noite anterior, estava a par da situação de todos como criminosos perante a sociedade e como prisioneiros da instituição. Agora, procurando explorar a experiência deles adquirida na prisão, teve o cuidado de conduzir o diálogo à base de uma conversa entre homens maduros.
Lawson ficou satisfeito ao ver que seu plano estava dando resultados melhores que os obtidos em Danville. A maioria dos prisioneiros antigos estava não apenas disposta, mas ansiosa para colaborar. Do sobrevivente de uma famosa dupla de assassinos, por exemplo, que agora já se aproximava da velhice, depois de 32 anos atrás das grades, Lawson ficou a par de algumas sérias deficiências na orientação do chamado Depósito de Diagnósticos, a seção da prisão onde os recém-chegados eram mantidos até serem incluídos no quadro geral dos prisioneiros. Na entrevista com um ex-cirurgião condenado à prisão perpétua pelo assassinato de sua mulher, ficou sabendo do mau funcionamento do ambulatório da prisão, e através de um célebre gangster do Meio-Oeste, agora trabalhando como açougueiro da prisão, Lawson foi informado da qualidade inferior da carne que estava sendo vendida à prisão por um fornecedor local. Do mais antigo de todos os prisioneiros, ex-líder de uma quadrilha que raptara um rico contrabandista de bebidas na década de 20, o novo diretor concluiu que o consenso geral dos prisioneiros era que o motim fora provocado por uma série de pequenos descontentamentos acumulados durante um longo período, e não por um incidente que pudesse ser apontado como a causa direta.
Depois de Lawson haver entrevistado meia dúzia de prisioneiros antigos, chegou a vez de Ralph Starzak. O diretor se surpreendeu com a aparência do detento, quando ele entrou no gabinete e se sentou. Ao contrário do multimilionário receptador que, no início da década de 50 fora condenado a 20 anos de prisão, quem se encontrava em frente a Lawson era agora um homem de ombros caídos, cabelos ralos e olhos empapuçados, de aspecto doentio e dificilmente capaz de influenciar um único prisioneiro, muito menos liderar um motim de todos eles.
- Starzak - disse o diretor, depois de se haver recobrado da surpresa inicial que o prisioneiro lhe causara - estou entrevistando todos os detentos mais antigos na instituição, com o objetivo de saber se, a juízo deles, há alguma coisa a ser feita para melhorar as condições da penitenciária. Você tem alguma sugestão que nos possa ser útil?
Starzak, sentado bem na ponta da cadeira e segurando com as duas mãos, em atitude apreensiva, seu gorro de prisioneiro, sacudiu os ombros como quem não quer comprometer-se.
- Eu... eu não entendo nada de... de condições da penitenciária, senhor.
- Starzak, você não deve ter medo de dizer o que pensa - insistiu Lawson. - Antes que termine o expediente já terei falado com todos os prisioneiros condenados a 15 anos ou mais. Não há o menor risco de alguém saber o que cada um deles me contou. Agora, faça o favor de ser franco comigo. Estou certo de que você tem algumas idéias no sentido de melhorar as condições da prisão.
Starzak sacudiu os ombros outra vez.
- Bem, o senhor tem razão, diretor, quero dizer... o senhor sabe, há uma porção de coisas que podem ser melhoradas. A comida é uma delas: há muita fritura no cardápio; alguns filmes que estão passando aos domingos são tão velhos que Dean Martin ainda aparece com o nariz antes de ser operado...
- Essas reclamações são de ordem geral - interrompeu Lawson. - Alguns prisioneiros estão sempre se queixando da comida e muitos gostariam de outros filmes aos domingos. O que estou querendo saber são coisas específicas, Starzak, em particular as causas de descontentamento que podem provocar explosões. Por exemplo - e Lawson folheou o grosso fichário de Starzak - não é possível haver guardas, até mesmo oficiais, que favorecem certos detentos, enquanto são ao mesmo tempo muito rigorosos com outros? Você acha que aqui existe algum caso semelhante?
Starzak rodou o gorro entre os dedos e evitou o olhar de Lawson.
- Talvez sim, talvez não. A respeito disso não sei de nada.
Lawson tamborilou na tampa da mesa com a ponta dos dedos.
- Você comunicaria se achasse que algum oficial estava sendo injusto com você, Starzak?
- Naturalmente. Por que não? Quero dizer que estou aqui já faz muito tempo e tenho minha ficha limpa. O senhor pode ver aí - acrescentou, fazendo um sinal com a cabeça na direção do fichário. - Não tenho sequer uma repreensão nestes 16 anos. Já teria obtido livramento condicional há muito tempo, se conseguisse um emprego e tivesse uma família com quem morar...
- Então você não hesitaria em denunciar qualquer guarda, mesmo sendo um oficial, que estivesse perseguindo você e quisesse prejudicá-lo?
- Sim, senhor, certamente - retrucou Starzak com convicção - e como tenho minha ficha limpa, tenho o direito de esperar um tratamento decente.
- Compreendo o que quer dizer, Starzak. É uma atitude bem realística.
Lawson fingiu que estudava mais detidamente uma página do fichário de Starzak; depois, com ar de surpresa, indagou:
- Você se dá bem com o Capitão Hull? Starzak sacudiu a cabeça:
- O capitão não gosta muito de mim - admitiu.
- Por quê? Você teve alguma desavença com ele?
- Bem... sim, senhor, uma vez... mas nada de realmente grave.
- Deixe que eu julgue quanto à gravidade. O que foi que houve e quando aconteceu?
- Creio que foi há uns cinco anos - replicou Starzak, puxando a ponta de uma orelha. - Talvez um pouco mais. Eu trabalhava como fiscal na lavanderia - a mesma função que exerço agora. O que eu tinha a fazer era verificar se a roupa de cama de determinadas galerias e blocos estava sendo recolhida nos dias marcados. Os prisioneiros deviam retirar as peças de seus beliches, dobrá-las e colocá-las no corredor no lado de fora de suas celas. Então os homens da lavanderia chegavam, apanhavam aqueles montinhos e levavam para a lavanderia. A roupa era fervida e esfregada; depois de seca era passada em uma máquina que a dobrava, e retornava antes da hora de recolher do mesmo dia...
- Estou bem a par da rotina do serviço da lavanderia - interrompeu Lawson. - Conte-me apenas o que aconteceu entre você e o Capitão Hull.
- Sim, senhor. O Capitão Hull veio a mim numa segunda terça-feira de determinado mês e disse que meus auxiliares não haviam coletado a roupa de cama das celas de B-5 e B-6. Eu respondi que aquelas duas galerias somente seriam atendidas na terça-feira seguinte. O capitão disse que eu estava maluco, que havia montes de roupa de cama em frente a cada cela de B-5 e B-6. Repliquei que isso poderia ter acontecido, mas que a segunda terça-feira não era o dia delas. Ele então gritou que eu não sabia o que estava fazendo e que não poderia desempenhar qualquer função de responsabilidade; em seguida, fui demitido de meu cargo.
- E depois?
- Bem, achei que havia sofrido uma injustiça e fui me queixar ao subdiretor, que era o Sr. Grimes, antes da vinda do Sr. Stiles. Bem, o Sr. Grimes estudou o assunto e concluiu que eu tinha razão e o Capitão Hull se enganara. O dia de recolher a roupa de cama das celas da B-5 e B-6 era a terça-feira seguinte. O que aconteceu foi que algum prisioneiro da galeria B-5 confundiu os dias e por engano colocou sua roupa de cama no lado de fora da cela. Um companheiro viu aquilo e, sem pensar, o imitou. Dentro em pouco houve uma espécie de reação em cadeia e todos os detentos das duas galerias empilharam suas trouxas no corredor. Quando o Capitão Hull viu aquilo, naturalmente pensou que tinha havido alguma falha da lavanderia...
- E você ficou com raiva dele pelo que aconteceu?
- Nem um pouquinho - replicou Starzak enfaticamente.
- Eu teria pensado a mesma coisa se estivesse no lugar dele. Quero dizer que ninguém iria esperar que em duas galerias todo o pessoal fosse cometer o mesmo engano ao mesmo tempo.
- Qual foi o resultado de sua queixa ao subdiretor?
- O Sr. Grimes me reconduziu ao cargo - respondeu Starzak com certa vaidade. - Era a única coisa decente que ele poderia fazer.
- E você não acha que o assunto foi suficientemente grave para que o Capitão Hull ficasse com raiva de você?
- Não, senhor. Tudo não passou de um pequeno engano e foi resolvido no mesmo dia. Acho até que ninguém ficou sabendo de nada, exceto naturalmente o Sr. Grimes, o Capitão Hull e eu.
- Quer dizer - comentou Lawson com um sorriso - que você não instiga os outros prisioneiros, para fazerem troça do Capitão Hull?
- Deus me livre! - exclamou Starzak rapidamente. - Não sou desses, Sr. Diretor. Tenho juízo suficiente para não me meter em encrencas.
Lawson permaneceu alguns instantes olhando fixamente para aquela figura insignificante, de ombros curvos e acentuada calvície, que estava sentada à sua frente. Então tudo não passara de um simples incidente, em que Hull ficara no lado errado e o prisioneiro com a razão. Um fato que em si não tivera importância, mas que provavelmente ferira o orgulho de Hull, que sabia que errara e - o que era pior - que Starzak também sabia. Aí talvez estivesse, pensou Lawson, a explicação de tudo. Hull era tão antigo na prisão quanto Starzak; apenas carregava um cassetete, enquanto o outro usava um número. O oficial era, como assinalara Stiles, uma reminiscência dos velhos tempos, quando o guarda sempre tinha razão e o detento sempre estava errado
- os velhos tempos em que os motins eram dominados com tiros de fuzis e golpes de cassetetes.
Lawson suspirou pensativamente e guardou o fichário.
- Bem, Starzak, acho que isto é tudo. Agradeço sua franqueza e estou certo de que o que você me disse será de grande valia para que nossa instituição volte a seus dias de paz. Obrigado.
Lawson apertou um botão, para avisar ao guarda que Starzak estava saindo.
A segunda reunião foi convocada pelo diretor para realizar-se no fim do expediente de quarta-feira. Novamente o Capitão Hull, os três tenentes e o Subdiretor Roger Stiles sentaram-se, com as cadeiras em arco na frente da escrivaninha de Lawson.
-i Não tomarei muito tempo dos senhores - começou o diretor, em atenção a dois dos tenentes, que estavam de folga. Colocou o cachimbo sobre a mesa e folheou uns relatórios que recebera na véspera. - Li os resumos da situação nas celas e creio que eles foram muito bem feitos. As sugestões apresentadas, visando a uma melhoria geral das condições de segurança e proteção contra futuros motins, me pareceram particularmente boas. Após um estudo adicional, estou certo de que implementaremos a maior parte das sugestões, ou até mesmo todas elas. - Colocou os relatórios de lado e passou os olhos em um bloco de notas. - Qual é a situação dos oito homens que se apossaram da oficina de calçados?
- Já saíram, senhor - informou Stiles, sem poder resistir à tentação de um olhar de soslaio para Hull. - Deixaram a oficina voluntariamente e não se registrou o menor dano na maquinaria.
- Onde estão esses oito homens?
- Na solitária.
- Correto.
Fez uma anotação no bloco e voltou-se para Hull:
- Informaram-me que a greve de fome na C-6 já foi suspensa.
- Sim, senhor. A sua idéia de usar comida fumegante deu ótimos resultados. Na refeição da manhã de hoje havia apenas três homens na galeria que ainda se recusavam a comer. Mandei levá-los para a solitária, de modo que agora todas as galerias do Bloco C estão nas mesmas condições das demais dos dois outros blocos.
- E qual é o ambiente predominante, capitão? - perguntou Lawson. - Qual a sua impressão pessoal?
- Calmo - afirmou Hull, com a confiança de sua experiência. - Diria que a centelha apagou-se.
- E não acha que possa acender-se outra vez?
- Seria preciso que acontecesse alguma coisa muito séria.
- Por exemplo?
- Um guarda matar um prisioneiro - respondeu Hull, sacudindo os ombros. - Algo igualmente grave.
- Estou certo de que não é provável que aconteça coisa assim tão séria - disse Roger Stiles secamente.
- Eu não estaria tão confiante - replicou Hull, olhando friamente para o subdiretor. - Aconteceu quatro vezes em quatro prisões diferentes no ano passado. Um detento é chamado por um oficial ou talvez tenha pedido permissão para falar com ele; fica sozinho com o oficial em uma sala do corpo da guarda; inesperadamente, ele salta sobre o oficial e este responde com um tiro. Isso pode acontecer a qualquer momento, Sr. Subdiretor. Tem acontecido.
- Bem - interrompeu Lawson - vamos admitir que não ocorra nada dessa magnitude. Sem contar com algum incidente imprevisível, os senhores acham que o motim está dominado?
- Sim, senhor - admitiu Hull.
- Muito bem - comentou Lawson, fazendo outra anotação no bloco e depois voltando-se para os tenentes. - Se tudo correr bem esta noite e amanhã, fica sem efeito a ordem de recolher mais cedo e todos os privilégios recreacionais serão restaurados, inclusive a reabertura do ginásio e o funcionamento dos aparelhos de televisão das galerias, a partir de amanhã à noite. Entretanto, todos os movimentos continuam restritos às galerias dos blocos de celas e instruam os guardas para permanecerem no interior das guaritas de controle das galerias. Não quero guardas nos corredores depois da ordem de recolher. Entendido?
- Sim, senhor - disseram os três tenentes ao mesmo tempo.
- Ótimo. Quanto aos homens que estão na solitária, vamos conservá-los lá até que possamos examinar as transgressões que cada um cometeu. Começaremos esse trabalho amanhã. Por hoje - acrescentou, consultando o relógio - creio que é tudo. Capitão Hull, quer fazer o favor de permanecer na sala por mais uns minutos?
Roger Stiles e os três tenentes se retiraram. Hull, com um ar grave, continuou sentado.
- Hull - disse Lawson, quando os dois homens ficaram sozinhos. - Estive verificando sua teoria relativamente à conexão de Ralph Starzak com o motim e, francamente, não encontrei a menor base que possa justificá-la...
- Não era provável que o senhor encontrasse. Starzak é um sujeitinho esperto.
- Mesmo que fosse o maior esperto do mundo, não pode ser capaz de tanta coisa - replicou Lawson incisivamente. - Será que não há alguém em toda esta instituição que seja capaz de apoiar a sua tese?
- Os meus tenentes... - começou Hull, mas Lawson sacudiu a cabeça energicamente.
-- Você sabe que isso não adianta, Hull. Os tenentes se sentirão obrigados a apoiar o que você disser. Certamente deve haver alguma testemunha, cm outro departamento da prisão. O que acha do pessoal do hospital, dos chefes de turma das oficinas, dos professores voluntários...
- Eles não sabem de nada - resmungou Hull. - Tudo o que fazem é trabalhar aqui. Não têm que tomar conta da prisão.
- Então você admite que não pode apresentar um depoimento independente em apoio do seu? Não tem condições de provar que Ralph Starzak é mil vezes pior que qualquer outro prisioneiro antigo que ocasionalmente viola uma norma regulamentar, como acontece com tantos.
- O senhor quer dizer que preciso provar? Que sem provas não se pode meter na solitária um sujeito como Starzak?
- É exatamente isso o que estou dizendo, não apenas em relação a Starzak, mas a qualquer outro prisioneiro aqui. Não podemos exigir honestidade, a menos que sejamos os primeiros a praticá-la.
Hull encostou-se na cadeira e franziu os lábios pensativa-mente.
- Pensei que o senhor tivesse sido nomeado para apertar a segurança, mas o senhor fala como se sua intenção fosse passar a mão pela cabeça desses vagabundos.
- Não pretendo passar a mão pela cabeça de ninguém - replicou Lawson friamente - quer se trate de prisioneiros ou de guardas. Acho que já discutimos suficientemente este assunto
- acrescentou, levantando-se e começando a arrumar sua pasta.
- Se você descobrir um jeito de comprovar sua opinião a respeito de Starzak, não terei dúvida em reabrir a questão; caso contrário, faça o favor de providenciar para que ele tenha o mesmo tratamento dispensado a qualquer outro detento. E já que falamos em tratamento, é bom que você alerte seus tenentes e, através deles, o restante da guarda, de que não tolerarei perseguições nem represálias de qualquer espécie, enquanto estiver dirigindo esta instituição. A menor violação desta ordem resultará em imediata suspensão, a falta sendo submetida à consideração do.Conselho Diretor. Entendido?
- Sim, senhor - respondeu Hull, levantando-se também e esperando tranqüilamente que Lawson terminasse de arrumar a pasta e a fechasse.
- Não se esqueça, Hull - continuou Lawson, saindo de trás da escrivaninha e se dirigindo para a porta - que lhe faltam apenas quatro anos para poder requerer aposentadoria. Em face das contínuas alterações nas normas e na administração da penitenciária, você talvez preferisse aposentar-se e arranjar outro tipo de trabalho. Não tenho intenção de ser rude - acrescentou depois de uma pausa, colocando amistosamente a mão sobre o ombro de Hull - mas a verdade é que certas pessoas não se adaptam às mudanças com a mesma facilidade que outras. Você é... vamos dizer... um carcereiro; Stiles e eu, pelo contrário, consideramos que nossa missão é reabilitar, reeducar esses homens. Você já prestou excelentes serviços, mas lamento dizer que seu tempo já passou. - Apertou com mais força o ombro de Hull, depois retirou a mão. - Espero que você não pense que se trata de uma questão pessoal.
-i Não - respondeu Hull em tom calmo. - Não penso.
Seguiu atrás de Lawson para fora do gabinete; os dois homens atravessaram a sala de recepção e entraram no largo saguão. Deixaram o edifício da administração e, descendo alguns degraus de concreto, dirigiram-se para o local de estacionamento privativo do diretor. Lawson colocou sua pasta no automóvel e sentou-se atrás do volante.
- Não seja rancoroso - aconselhou. - Evite essas tentativas de infernizar a vida de sujeitos como Starzak. Se eles se tornarem problemas, Stiles e eu tomaremos conta do caso. Limite-se a deixar correr esses quatro anos e vá gozar sua aposentadoria.
Lawson manobrou o carro e fez uma curva na direção do portão de saída. Hull ficou ainda uns instantes no meio do estacionamento, observando o automóvel de Lawson desaparecer atrás do paredão. Ao voltar-se, encontrou um de seus tenentes, Finer, que estava de plantão da noite e acabara de sair do edifício.
- Capitão! - disse ele, com um toque de nervosismo na voz.
- O que há? - perguntou Hull, sem olhar para ele.
- O senhor acha que o novo diretor tem razão? Que o motim está mesmo totalmente dominado?
- Provavelmente - replicou Hull. - A menos que aconteça alguma coisa, como tive oportunidade de dizer lá dentro; que um prisioneiro seja morto ou qualquer coisa assim.
Finer concordou com um movimento de cabeça. Estava visivelmente aliviado.
- Bem, conforme declarou o subdiretor, não é provável que isso aconteça.
- Não - confirmou Hull, com ar distraído. - Não é provável que isso aconteça. Outra coisa: Você já fez sua ronda?
- Ia começar agora mesmo.
-- Qual é o itinerário desta noite? Finer tirou um cartão do bolso da camisa.
- Bloco B, depois o A e finalmente o C. Hull consultou o relógio.
- Quando tiver terminado, espere-me no refeitório, para tomarmos uma xícara de café.
- Sim, senhor.
Enquanto Finer atravessava o pátio, Hull subiu de volta os degraus de concreto e lentamente entrou no edifício da administração. Quando atravessava o saguão, olhou para a direita e para a esquerda, para certificar-se de que não havia mais nenhum funcionário trabalhando. Não se preocupou com o gabinete do diretor, sabendo que estava vazio, e rumou para a porta da sala do subdiretor. Parou por um momento e bateu discretamente na porta fechada, depois a abriu. Enfiando a cabeça pela fresta, verificou que Stiles também já encerrara o expediente. Com exceção do próprio Hull. não havia mais ninguém no edifício da administração.
O capitão da guarda dirigiu-se então para seu gabinete, no fundo do saguão. Entrou e sentou-se em sua poltrona. Deixou que transcorressem exatamente 15 minutos, para ter certeza de que o Tenente Finer já completara a inspeção no Bloco B; só então telefonou para o sargento de serviço no bloco.
- Aqui é o Capitão Hull. Traga Ralph Starzak, número 1172307, ao meu gabinete.
O guarda que escoltou Ralph Starzak até ao gabinete de Hull era um dos novos contratados, que o capitão mal conhecia. O guarda e o prisioneiro entraram juntos e permaneceram de pé em frente à escrivaninha de Hull. Este olhou rapidamente para Starzak, enquanto apanhava a papeleta que o novo guarda lhe apresentava, de acordo com as instruções.
- Não precisa esperar - disse ele, ao assinar a papeleta. - Vou para aqueles lados daqui a pouco e levarei o prisioneiro para a cela.
- Sim, senhor - respondeu o guarda, recebendo a papeleta e levando a mão à aba de seu boné, à guisa de continência.
- Faça o favor de fechar a porta quando sair.
- Sim, senhor - disse o guarda retirando-se e cumprindo a ordem.
No silêncio que se fez no gabinete, Ralph Starzak e Hull trocaram olhares por cima da escrivaninha. Depois, displicentemente, Hull abriu a gaveta de baixo e tirou uma garrafa de uísque e um copo, onde derramou uma dose dupla, empurrando-o depois na direção de Starzak. O prisioneiro esvaziou o copo de um trago e recolocou-o sobre a mesa. A seguir, deu um suspiro profundo e estirou-se na cadeira.
- Estava precisando disto - comentou.
- Foi o que imaginei - replicou Hull, tapando a garrafa e guardando-a de novo na gaveta.
Starzak inclinou-se para frente.
- Muito bem. Agora conte-me o que houve.
- Fique descansado. O nosso novo diretor é um reformista. Vai ficar tão atarefado em reabilitar os detentos que não poderá prestar atenção aos fuxicos da prisão.
- Tem certeza? - perguntou Starzak. -- Quer dizer que vamos ter um período de tranqüilidade para as nossas manobras.
- É claro que tenho certeza - confirmou Hull, levantando-se e indo até à janela, de onde podia ver os blocos de celas iluminadas, as torres dos guardas, o pátio e o muro. Ficou olhando para aquilo que considerava como seu domínio. - Você deve confessar que bolamos uma boa coisa para nós, Ralph; eu sei que foi ótima.
Colocou entre os dentes um charuto de alto preço e o acendeu. Depois de uma baforada, prosseguiu:
- Temos relacionados dois mil detentos aqui e cada dia de todas as semanas pelo menos a metade deles paga 15 ou 25 centavos por um serviço ou outro. Os pequenos prazeres da vida: uniforme bem passado, um passe especial, um livro reservado na biblioteca, uma carta adicional, uma segunda porção de sorvete no jantar de domingo, uma ração extra de cigarros... Apenas essas coisinhas que tornam a vida aqui pelo menos tolerável.
Hull voltou as costas para a janela e encarou Starzak, sorrindo com o cachimbo preso entre os dentes.
- De 15 a 25 centavos por dia, Ralph. Parece uma ninharia, não é mesmo? Mas, somando todas as fontes, a quanto importa?
Starzak sacudiu os ombros.
- Fazemos em média 180 a 200 dólares por dia.
- Correto. E você e eu ficamos com cem para repartirmos entre os dois, utilizando a diferença para pagar o pessoal da biblioteca e do refeitório, os escriturários e algum outro mais que precisa ser comprado. Primeiro, porém - e Hull aproximou-se da escrivaninha e bateu nela com a palma da mão - primeiro, meu amigo, tiramos o que é de nós dois, os nossos cem. Correto?
- Perfeitamente - disse Starzak e sacudiu os ombros outra vez. - Por que deixaríamos de fazer assim? Afinal de contas, fomos nós que bolamos o esquema, que o organizamos...
- Exatamente - apoiou Hull. - É invenção nossa e temos direito à parte maior. Há 14 anos que estamos fazendo a máquina funcionar, 14 longos anos. Você sabe - acrescentou sorrindo novamente - quanto já temos em nossa conta no banco suíço, Ralph? Mais de 300 mil dólares! Veja só: são mil dólares por mês somente de juros. Dentro de quatro anos, Ralph, quando você tiver cumprido sua pena e eu pedir a minha miserável aposentadoria, teremos perto de meio milhão de dólares.
- Isto se o novo diretor não começar a querer passar por esperto - disse Starzak - como aconteceu com seu antecessor.
- Se ele tentar - replicou Hull, já não mais sorrindo - nós nos livraremos dele, como fizemos com o outro. Organizaremos novo motim e quem quer que coopere com ele, que lhe der qualquer informação, vai ser vitimado no próximo, exatamente como aconteceu com os dois boquirrotos dos quais nos livramos no último. Nós, você e eu, estamos dirigindo esta máquina, Ralph, e não vamos deixar ninguém interferir! Não terá sido em vão que dediquei 14 anos de minha vida cuidando do funcionamento de todas as peças.
Apagou o charuto com raiva no cinzeiro, apanhou o copo de Starzak e guardou-o na gaveta junto com o uísque.
- Nenhum diretor metido a sabichão nem qualquer reformador vai desmanchar o que levei 14 anos para organizar! - exclamou o capitão, fechando a gaveta e apanhando o quepe. - Vamos indo. Tenho de levá-lo para a cela.
Os dois homens deixaram o gabinete e caminharam lado a lado pelo longo corredor. Alcançaram a porta, desceram os degraus de concreto e começaram a atravessar o pátio. Hull deu um profundo suspiro e olhou para o céu.
- Uma noite bem agradável - comentou distraidamente.
- É mesmo - concordou Starzak, também levantando a cabeça. - Uma porção de estrelas. Quando se está preso, é gostoso ver noites bem estreladas. A gente fica com uma boa recordação, depois que as luzes da cela se apagam.
- Nunca tinha pensado nisso, Ralph. É uma observação interessante.
Os dois homens continuaram caminhando juntos através do grande pátio da prisão, até que, por fim, não eram mais do que duas sombras, parecendo impossível distinguir uma da outra.


Richard Deming
UM BOM SUJEITO
O caso veio parar em nossas mãos, ao invés de ser encaminhado para a Divisão de Furtos, porque, quando alguém é ferido ou morto num assalto, o problema passa a ser da Divisão de Homicídios. O local foi uma pequena joalheria, no quarteirão dos oitocentos da Franklin Avenue. Todas as lojas dessa zona são modestas, geralmente com um ou dois empregados. A joalheria estava enquadrada de um lado por uma casa de penhores e de outro por uma barbearia com um único barbeiro.
Na vitrine estava escrito com letras douradas: Bruer & Benjamin - Joalheiros. Um carro da polícia estacionara em frente à loja e um policial jovem e musculoso, com seu uniforme bem-passado, montava guarda na calçada junto à porta. Alguns curiosos se aglomeravam perto da casa de penhores e da barbearia, mas a área em frente à joalheria estava vazia.
Não reconheci o policial, mas ele sabia quem eu era. Fez continência, murmurou um "alô, sargento" e afastou-se para um lado, a fim de que eu pudesse passar.
No lado de dentro a loja era comprida e estreita, com armários cheios de estojos nos dois lados e apenas um corredor de menos de dois metros entre eles. Havia ainda um armário menor no fundo da sala, com uma porta ao lado.
Outro policial uniformizado, este meu conhecido, se encontrava dentro da loja. Era um veterano com 20 anos de serviço, chamado Phil Ritter, e também sargento.
- Bom dia, Phil - disse eu.
- Como vai, Sod? - replicou ele, depois apontou com o polegar para um vão atrás do armário do fundo. - A vítima está ali.
Fiz com a cabeça um sinal de ter entendido e olhei para o outro ocupante da loja, um pacato sujeitinho de uns 60 anos, sentado a um canto e tendo no rosto um reflexo do choque que o paralisara.
- Testemunha - disse Ritter secamente.
Sacudi a cabeça outra vez e continuei caminhando até o fundo da loja. Havia um vão atrás de cada lado do balcão do fundo. Avancei mais um pouco e olhei para a figura imóvel estendida no chão. O homem estava de lado, com os joelhos encolhidos, na posição fetal. Era magro, de rosto comprido, com longas costeletas e um bigodinho que o tornava parecido com um vilão de algum melodrama da era vitoriana. Imaginei que ele devia ter quarenta e muitos anos.
Seu braço direito ocultava parcialmente o peito, mas um filete de sangue que corria por baixo do braço indicava que havia um ferimento. O sangue não era muito, o que levava a crer que a morte fora instantânea.
Contornei o balcão e perguntei ao Sargento Ritter:
- Algum médico já o examinou?
- Apenas para atestar que o homem está morto. Foi um doutor chamado Vaughan, com consultório na vizinhança. O Sr. Bruer mandou chamá-lo.
Apontou para Bruer, que continuava imóvel em sua cadeira.
- O médico disse que tinha de voltar para o consultório, mas avisou que, se precisassem dele, bastava telefonar. Disse também que não mexera no corpo.
- Ótimo.
Olhei para o homenzinho sentado. Não teria mais de l,65m de altura e pesava talvez uns cinqüenta e poucos quilos. O cabelo era ralo, usava óculos de aros de metal e tinha um jeito de coelho assustado.
Tenho sido acusado de intimidar as testemunhas, devido aos meus modos bruscos, mas aquela se mostrava tão facilmente impressionável que procurei dar à minha voz o tom mais amável possível, ao apresentar-me:
- Sou o Sargento Sod Harris, do Departamento de Homicídios. Seu nome é Bruer?
- Sim, senhor - respondeu ele com voz tremida. - Fred Bruer. Sou um dos sócios da joalheria.
- E ele era o outro? - perguntei, apontando para trás do balcão.
- Era sim, senhor. Andrew Benjamin. Foi uma coisa terrível. Éramos sócios há mais de 10 anos.
- Ah, sim? Imagino que tenha sido um choque para o senhor, mas faremos todo o possível para prender a pessoa que matou o seu sócio. O senhor estava aqui quando ocorreu o crime?
- Sim, senhor. Fui eu que o amparei. Eu estava aqui na parte da frente e Andy lá atrás, na oficina. Acabara de reunir o dinheiro para o depósito semanal no banco... sempre faço isso nas sextas-feiras de manhã... e estava fechando a sacola em que costumo carregar o depósito, quando o tal sujeito entrou e me apontou um revólver. Acho que ele deve nos ter observado durante algum tempo e conhecia nossa rotina. Estava de olho, como eles dizem.
- Hã-hã. E o que é que fez o senhor pensar que ele estava de olho?
- Porque parecia saber o que havia na sacola, pois foi logo dizendo: "Deixe isto comigo, velhote." Entreguei sem discutir. Depois, ele veio para trás do balcão onde me encontrava e esvaziou a caixa registradora, juntando tudo na sacola; a seguir, fez o mesmo com aquela outra.
Olhei para os dois lados e vi as duas registradoras idênticas, em cada extremidade do balcão.
- Em que lado o senhor estava? - perguntei.
Ele apontou para o direito de quem olha para a porta e acrescentou:
- Posso dizer-lhe exatamente quanto foi que ele levou, sargento.
- É mesmo? Quanto?
- Tenho uma duplicata da papeleta de depósito em dinheiro e em cheques e havia exatamente mais 50 dólares em cada registradora. É a quantia que mantemos para troco e ainda não havíamos atendido nenhum freguês. Tínhamos aberto a loja havia apenas uns 30 segundos, quando o bandido entrou. Sempre preparo o depósito antes de levantar a cortina da porta nas sextas-feiras de manhã.
- Compreendo. Bem, o senhor não precisa entrar nestes detalhes por enquanto. Primeiro, vamos ver o que aconteceu. Por que ele atirou no seu sócio?
-' Acho que ficou assustado. Estava recuando na direção da porta, com a sacola na mão, quando Andy apareceu de repente, vindo da oficina lá atrás. Ele nem sabia que a loja estava sendo assaltada. Acho que meu sócio tinha vindo para tomar conta da parte da frente, pois era de seu conhecimento que eu deveria sair a qualquer momento para ir ao banco. Mas como ele abriu a porta da oficina e apareceu tão de repente, o bandido se assustou. Deu o tiro e fugiu.
Bem típico, pensei com amargor. É essa espécie de nervosismo que faz com que os policiais julguem os assaltantes armados como os mais perigosos de todos os criminosos. São todos assassinos potenciais.
- Qual era o aspecto desse sujeito?
- Um homem de cerca de 40 anos, alto e magro, com mais ou menos l,80m de altura e pesando uns 80 quilos. Tinha uma cicatriz branca e fina, que ia desde o canto esquerdo da boca até perto do lóbulo da orelha; tinha também uma grande verruga aqui - acrescentou, apontando para o centro de sua bochecha direita. - A pele era morena como a de um cigano, o cabelo preto e penteado para trás e o nariz grande e curvo. Estou certo de reconhecê-lo tão logo possa pôr os olhos em cima dele outra vez.
- Imagino que sim - repliquei, surpreso com os detalhes da descrição; as testemunhas raramente são tão observadoras. - Como estava ele vestido?
- Calças de cor marrom, casaco de couro e chapéu de feltro também marrom, com a aba virada para baixo na parte da frente e para cima na de trás. Ah! Ia-me esquecendo: nas costas da mão que segurava o revólver... - Parou para refletir, depois afirmou, como que surpreso com sua observação: - Na mão esquerda, agora que estou recordando melhor, havia a tatuagem de uma serpente azul em torno de um coração vermelho.
- O senhor é um bocado observador - comentei e depois fiz um sinal com a cabeça para Phil Ritter.
- Irradiamos a descrição tão logo chegamos aqui - disse Ritter. - Entretanto, o Sr. Bruer ainda não havia mencionado a tatuagem nem que o bandido era canhoto.
- É melhor então irradiar uma descrição suplementar - sugeri. - Talvez essa torne mais fácil encontrá-lo. O sujeito é facilmente identificável.
Eu estava começando a sentir-me um pouco menos entusiasmado a respeito do caso do que quando o tenente me encarregou dele. Em geral não se encontra a mais leve pista para trabalhar, porém agora contávamos com a excelente descrição que Fred Bruer fizera do bandido.
De acordo com os dados compilados pelo FBI, 80 por cento dos homicídios nos Estados Unidos são cometidos por parentes, amigos ou conhecidos das vítimas, o que nos fornece uma base para trabalhar; todavia, em assassinato ocorrido num assalto típico, muitas vezes algum assaltante nervoso mete uma bala em um caixeiro de loja ou num freguês que ele nunca vira antes em toda a sua vida. Não é raro que a única pista seja uma descrição física, geralmente vaga e, quando há mais de uma testemunha, pode ser até contraditória. Também se pode normalmente apostar que o criminoso é suficientemente esperto para atirar a arma..no fundo d'água do alto de uma ponte.
Enquanto Phil Ritter estava no lado de fora, irradiando o complemento da descrição do bandido, perguntei a Bruer se ele notara qual a marca do revólver usado pelo assaltante. Ele respondeu que era um revólver de aço azul, mas que não podia precisar o calibre, por não ser entendido em armas.
Perguntei-lhe depois se o bandido tocara em alguma coisa que pudesse ter deixado impressões digitais.
- As duas registradoras - replicou Bruer. - Ele apertou a tecla de troco de cada uma.
Ritter voltou, acompanhado por Art Ward, do laboratório do Departamento, que trazia sua aparelhagem e uma câmera fotográfica.
- Bom dia, Sod - disse para mim. - Que tipo de encrenca você me arranjou desta vez?
- Atrás do balcão - repliquei, apontando para o local. - Depois procure impressões digitais nas duas caixas registradoras, com particular atenção nas teclas de troco.
- Sim, patrão.
Deixou sua sacola e foi, levando a câmera, para o fundo da loja. Enquanto ele tirava fotografias do corpo sob vários ângulos, examinei o compartimento dos fundos. Era uma pequena oficina para consertos de relógios e jóias. Na parte dos fundos havia uma porta com ferrolho corrido e com a chave na fechadura. Puxei o ferrolho, girei a chave, abri a porta e dei uma olhada na aléia atulhada de latas de lixo das pequenas lojas da Franklin Avenue.
Eu não estava procurando nada em particular. Ao longo dos anos, adquiri o hábito de meter o nariz em tudo. Fechei a porta novamente e corri o ferrolho.
De volta à sala principal, perguntei ao Sargento Ritter se ele havia encontrado mais alguma testemunha entre os negociantes ou empregados das lojas vizinhas, antes de minha chegada.
- O barbeiro aqui do lado e o homem de penhores, do outro, acham que ouviram o tiro. Como sempre, pensaram que se tratava de um motor de automóvel e nem mesmo olharam na calçada. Ninguém veio investigar, até que nosso carro-patrulha chegou, mas isso deu margem logo a que se formasse uma pequena multidão de curiosos. Ninguém com quem falamos, exceto os dois já mencionados, viu ou ouviu qualquer coisa de anormal, mas não fizemos um interrogatório casa por casa. Apenas interrogamos as pessoas que passaram por perto.
- Enquanto eu estiver interrogando os dois vizinhos, o que acha você de percorrer as casas nos dois lados da rua neste quarteirão, para saber se alguém viu o bandido chegando ou saindo?
- Está bem, Sod - respondeu Ritter, sacudindo os ombros. Avisei a Art Ward que regressaria dentro de pouco tempo
e saí com o Sargento Ritter. Este parou para falar com seu auxiliar e continuei, entrando na casa de penhores.
O proprietário, que se encontrava sozinho, era um velho de ar bondoso, chamado Max Jacobs. Nada tinha para acrescentar ao que já declarara a Phil Ritter, exceto que anotara a hora em que ouvira o que ele pensou ser a explosão do motor de um automóvel: eram exatamente nove horas e um minuto. Explicou que seu sobrinho de 20 anos de idade, que trabalhava com ele, ainda não tinha chegado e que não tirara os olhos do relógio, para registrar exatamente o atraso. Agora já eram quase 10 horas e o rapaz ainda não aparecera nem sequer telefonara. Também o telefone da casa onde ele morava não respondia.
- Qual é o nome de seu sobrinho? - perguntei.
- Herman. Herman Jacobs. Filho de um irmão meu.
- O Sr. Bruer, da joalheria aqui do lado, conhece o rapaz? Jacobs me olhou, espantado.
- Mas é claro. Herman trabalha para mim desde que deixou o ginásio.
Esta era uma pista boba, como logo me dei conta. O joalheiro descrevera o assaltante como sendo um sujeito quarentão e o sobrinho de Jacobs tinha a metade dessa idade.
- Depois do tiro, o senhor não viu nem ouviu mais nada? Como se alguém passasse correndo em frente à sua porta, por exemplo?
O velho judeu sacudiu a cabeça negativamente.
- Eu não estava prestando atenção a isso. Passei todo o tempo olhando o relógio e tentando telefonar para Herman, esse malandro.
Parecia não haver mais nada que eu pudesse arrancar dele. Agradeci-lhe e dirigi-me para a porta.
- Como o pobre Fred está enfrentando o golpe? - perguntou ele nas minhas costas.
Parei e fiz meia-volta.
- O senhor se refere ao Sr. Bruer? Está bem abalado.
- Um homem tão bom - suspirou Jacobs. - Sempre fazendo o bem para todo o mundo. Pergunte a qualquer pessoa na vizinhança; não vai encontrar uma única que diga uma palavra contra Fred Bruer. Um sujeito com um grande coração.
- É mesmo?
- Muito mão aberta. Concede crédito a qualquer pessoa. O Sr. Benjamin, porém, era vinho de outra pipa. Não gosto de falar de quem já morreu, mas eu não simpatizava com ele.
O que me chamou a atenção foi que ele tratava o sobrevivente dos dois sócios da joalheria pelo primeiro nome, mas se referia ao falecido como o Sr. Benjamin. Talvez este, sendo mais jovem, fosse seu conhecido há menos tempo. Resolvi perguntar:
- O senhor já se dava com o Sr. Bruer quando conheceu o Sr. Benjamin?
- Não, claro que não - replicou Jacobs, parecendo surpreendido com a pergunta. - Eles abriram a joalheria aqui ao lado há uns 10 anos e fui apresentado aos dois no mesmo dia.
- Mas o senhor era mais amigo do Sr. Bruer, não é verdade?
- Como é que o senhor percebeu isso? - perguntou ele, com uma evidente e agradável admiração por minha habilidade dedutiva. - Sim, é verdade. Mas todo o mundo é amigo de Fred e ninguém morria de amores pelo Sr. Benjamin.
- E qual a razão disso?
- Era um homem vingativo. Quando tinha qualquer desavença com alguém, nunca mais esquecia. Ficava esperando uma oportunidade para vingar-se, como aconteceu com Amelio Lapaglia, o barbeiro do outro lado da joalheria. Na última vez em que subiram os preços dos cortes de cabelo, o Sr. Benjamin se recusou a pagar, houve uma discussão e Amelio ameaçou chamar a polícia. O Sr. Benjamin afinal pagou, mas não se limitou a mudar de barbeiro depois disso. Começou a fazer coisas, como telefonar para a polícia, dizendo que Amelio estacionava o carro em local proibido, e ao Departamento de Limpeza Pública, denunciando a falta de tampa na lata de lixo. Para ser franco, acho que o Sr. Benjamin roubou a tampa, mas o caso é que Amelio foi multado por violar as normas sanitárias. Fiz uma careta.
- Conheço esses tipos. Tive um como vizinho.
- Acho que nem o próprio Fred gostava dele, embora estivesse sempre procurando desculpá-lo. Duvido que a sociedade tivesse durado tanto tempo, se eles não fossem cunhados.
Encarei-o realmente surpreendido:
- Eles eram cunhados?
- Sim, senhor. O Sr. Benjamin é... era casado com a irmã mais moça de Fred. Ela não é hoje uma garota, naturalmente, já tendo feito 40, mas é 21 anos mais jovem que Fred. Era uma meninazinha quando seus pais faleceram e foi Fred quem a criou. É para ele mais uma filha do que uma irmã. Fred nunca se casou, de modo que Paula e seus dois filhos representam toda a família que ele tem. É louco pela menorzinha.
- Que menorzinha?
- Paula teve uma filha há apenas dois anos. O mais velho já fez 20 e está servindo o Exército.
A campainha do telefone tocou no fundo do escritório. Quando o Sr. Jacobs pediu licença e foi atender, fiquei pensando se alguém se teria lembrado de telefonar para a viúva, comunicando que seu marido morrera.
O dono da casa de penhores pegou o fone e falou:
- Pequenos Empréstimos Jacobs às suas ordens. Após uma ligeira pausa, sua voz se tornou mais aguda:
- Onde está você e qual é a desculpa desta vez?
Nova pausa e novamente a voz irritada de Jacob:
- E você acha que isso é uma justificativa? Venha para cá o mais rapidamente que puder, está ouvindo?
Bateu com o fone e voltou para onde eu estava, perto da porta.
- O meu sobrinho - explicou, em tom indignado. - Dormiu fora, na casa de um amigo e perdeu a hora, segundo disse. O mais provável é que tivesse passado a noite jogando pôquer e somente agora chegou em casa. Por passar a noite em claro, não vai servir para nada o dia inteiro.
Murmurei umas palavras de simpatia, agradeci-lhe novamente a atenção e retirei-me.
O jovem policial estava ainda guardando a entrada da joalheria, quando cheguei de volta, o grupo de curiosos, porém, havia diminuído consideravelmente, mas não se dispersaria de todo enquanto o corpo não fosse retirado, disso eu tinha certeza. Há sempre, em qualquer multidão, umas pessoas mórbidas que perdem um tempo enorme somente pela oportunidade de ver um cadáver.
Perto da esquina do quarteirão, na mesma calçada da joalheria, avistei Phil Ritter saindo de uma loja e entrando em outra. Pela média das visitas que ele fizera até então, podia-se concluir que não demoraria em completar os dois lados.
Amelio Lapaglia ficou cortando o cabelo de um homem durante todo o tempo em que falei com ele. Disse que estava trabalhando quando ouviu o que ele também pensara ser o ruído de um motor de automóvel. Não prestara atenção à hora, mas devia ser um pouco depois das nove, pois acabara de abrir a barbearia e iniciara o atendimento ao primeiro freguês.
Em resposta à minha pergunta, informou que esse freguês também deveria ter ouvido a explosão, mas nenhum dos dois fez qualquer comentário.
- Há uma porção de caminhões por aqui, roncando o dia todo - disse o barbeiro. - A gente ouve esses estouros a toda hora.
Também não notara qualquer pessoa passar correndo em frente à sua porta, imediatamente após o tiro, mas ressalvou que estava concentrado em seu trabalho.
Não me preocupei em inquiri-lo a respeito de sua rixa com o falecido, porque isso não interessava ao caso. O barbeiro não era certamente o assaltante.
Quando voltei à joalheria, Art Ward tinha acabado de tirar as fotos e as impressões digitais nas registradoras. Não encontrara nada que se aproveitasse, o que não me surpreendeu.
Disse-lhe que podia ir embora e fui fazer um exame mais detalhado do corpo. Além de descobrir que o buraco da bala era bem no centro do peito, nada mais encontrei que fosse de utilidade.
A seguir, pedi a Bruer a papeleta do depósito que ele iria fazer no banco. Somando os 100 dólares que estavam nas caixas registradoras à quantia constante da papeleta, o total roubado fora de 740 dólares em dinheiro e 233 em cheques. O palheiro informou que esse total representava a média da receita de uma semana.
Fred Bruer me forneceu o número do telefone do médico que havia examinado o corpo e telefonei-lhe, pedindo que enviasse um relatório ao Dr. Swartz, nosso médico-legista. Com isto, nada mais me restava a fazer exceto esperar que viessem buscar o corpo e que Phil Ritter terminasse seu trabalho.
Enquanto esperava, perguntei a Bruer se ele tinha avisado sua irmã. O joalheiro me olhou espantado.
- Eu... eu não havia pensado nisso.
- Talvez até tenha sido conveniente. O telefone não é o meio mais apropriado para transmitir uma notícia dessa natureza. Ela deve ser notificada pessoalmente. Posso fazer isso pelo senhor, se achar melhor. De qualquer modo terei de falar com ela.
- O senhor se encarregará disso? - perguntou, surpreso.
- Faz parte da rotina, nos casos de homicídio, interrogar os parentes mais próximos, mesmo quando se trata apenas de uma formalidade, como agora. Qual é o endereço dela?
Ele hesitou por um momento antes de responder:
- Ela mora na zona sul, mas está passando uns tempos comigo em meu apartamento na Rua 20 Norte. A notícia vai ser um rude golpe, sargento, porque ela e Andy tiveram uma pequena desavença. É terrível saber-se que morreu uma pessoa íntima, quando o relacionamento com ela não anda muito bem. Parece que a gente não se perdoa por ter brigado justamente naquela ocasião.
- Entendo - foi o que consegui dizer, tirando do bolso meu caderno de notas e escrevendo o endereço que Bruer me ditava.
Os enfermeiros do necrotério chegaram para levar o corpo antes que Phil Ritter tivesse aparecido, mas ele não demorou.
- Nada - disse logo. - Ninguém viu o assaltante entrar nem sair, caminhar ou correr pela rua. Se alguém ouviu o tiro, além dos dois vizinhos que já depuseram, não prestou atenção e não se lembrou de qualquer coisa anormal.
Nada mais havia a fazer na cena do crime. Dispensei o Sargento Ritter e seu auxiliar, retirando-me também.
O apartamento da Rua 20 era no primeiro andar de um edifício moderno e bem cuidado. Uma senhora morena, de uns 40 anos, esbelta e atraente, abriu a porta.
- É a Sra. Benjamin? - perguntei, tirando o chapéu.
- Eu mesma. Mostrei-lhe meu distintivo.
- Sou o Sargento Sod Harris, da polícia, minha senhora. Posso entrar?
Ela não escondeu sua surpresa.
- Da polícia? Mas o que... - Interrompeu a frase e deu um passo para o lado. - Desculpe. Faça o favor de entrar.
Penetrei numa confortável saleta e ela fechou a porta atrás de mim. Uma linda garotinha de uns dois anos estava sentada no chão, brincando com sua boneca. Um homem de cabelos vermelhos, quarentão, com ombros largos e um rosto simpático e alegre, estava sentado no sofá, muito à vontade. Havia tirado os sapatos, o casaco se encontrava dobrado sobre o encosto do sofá, a gravata afrouxada e o colarinho desabotoado. Um copo com um resto de cerveja estava sobre a mesinha do centro, ao lado da garrafa.
O homem levantou-se. A garotinha sorriu carinhosamente para mim:
- Oi, moço!
- Como vai, beleza? - respondi, sorrindo também. A mulher apresentou:
- Robert Craig e Sargento...
- Harris - completei - Sod Harris.
Robert Craig me estendeu a mão. Ele cumprimentava com firmeza.
- E esta é minha filha Cindy - disse a Sra. Benjamin, orgulhosamente, olhando para a garotinha com evidente adoração.
Sorri para a criança outra vez e ela me retribuiu alegremente. Compreendi o quanto o tio deveria ser louco por ela. Eu, que acabara de conhecê-la, já estava completamente conquistado!
- Em que lhe posso ser útil, sargento? - perguntou a Sra. Benjamin.
- Receio que as notícias não sejam boas, senhora - respondi olhando para a criança. - Talvez seja melhor que ela não me ouça.
Paula Benjamin empalideceu. O homem de cabeleira vermelha interveio:
- Cindy, vamos ver se as outras bonecas já estão dormindo Pegou a garotinha no colo e levou-a para fora da saleta. A Sra. Benjamin me olhou muito aflita:
- O meu... não houve nada com meu irmão, não é?
- Não. Com seu marido.
A cor voltou a seu rosto e tive a curiosa impressão de que ela ficara aliviada.
- Meu marido? O que aconteceu?
Sua reação estava longe da que Fred Bruer fizera com que eu imaginasse. Paula Benjamin se comportou como se não tivesse dado muita importância à notícia. Não vi vantagem em dourar a pílula, de modo que fui direto ao assunto.
- A joalheria foi assaltada esta manhã. Seu irmão estava desarmado, mas o assaltante atirou no Sr. Benjamin. Ele está morto.
Ela piscou várias vezes, mas não tornou a empalidecer. Limitou-se a dizer "oh!" e permaneceu em silêncio.
Robert Craig voltou sem a garotinha. A Sra. Benjamin olhou para ele e disse:
- Andy está morto.
Uma expressão de surpresa tomou conta do rosto do homem de cabelos vermelhos. Depois, ele esboçou um sorriso:
- Bem, isso pelo menos resolve o problema de Cindy. Paula Benjamin olhou para ele com ar grave:
- Como é que você pode pensar nisso numa hora como esta?
- Você quer que eu me debulhe em lágrimas? - perguntou, depois olhou para mim. - Desculpe se pareço sem sentimentos, sargento, mas Andy Benjamin estava longe de ser um amigo meu. Ele me citou como co-responsável em uma ação de divórcio. Do que foi que ele morreu?
- Um assaltante deu-lhe um tiro - respondi e olhei para a mulher.
O rosto dela estava vermelho de raiva:
- Você precisava falar a respeito disso? - perguntou a Craig. - O Sargento Harris não tem nada a ver com nossos assuntos particulares.
- Você e seu irmão! - comentou Craig, sacudindo os ombros. - Fazem tudo para que os vizinhos não vejam a roupa suja. Todo o mundo iria saber, quando a notícia fosse publicada nos jornais, não iria?
- Agora não vai mais ser publicada! - replicou ela com veemência.
Más logo sua atenção foi desviada pela pequena Cindy, entrando de volta na saleta, aos tropeços, com duas bonecas nos bracinhos. A mãe pegou-a logo no colo.
- Minha querida! - exclamou Paula, beijando-a. - Você agora vai ficar com sua mãezinha para sempre!
Achei que era uma boa oportunidade para despedir-me. Disse a Craig e à Sra. Benjamin que tivera prazer em conhecê-los, troquei um sorriso com Cindy e fui embora.
Já era mais de meio-dia. Parei para um almoço rápido e depois, ao invés de passar pelo Departamento, fui ao tribunal, a fim de passar os olhos pela ação de divórcio do casal Benjamin.
A acusação de Andrew Benjamin já constava do processo, mas ainda não havia dado entrada a defesa de Paula Benjamin. O desacordo entre os dois era bem mais do que a pequena desavença a que se referira Fred Bruer e a reação de Andrew Benjamin fora caracteristicamente vingativa.
O processo começava sob a forma normal de casos semelhantes, mas o que chocava era a declaração de que Benjamin e um detetive particular haviam surpreendido Paula e Craig no quarto de um motel e tinham uma prova fotográfica. O divórcio era requerido sob a acusação de adultério, não tendo a mulher direito a qualquer pensão e cabendo exclusivamente ao pai a custódia da pequena Cindy. O espírito vingativo de Benjamin se evidenciava na solicitação seguinte, no sentido de que a mãe fosse proibida até de visitar a criança, sob a alegação de que ela não tinha um comportamento moral que lhe permitisse sequer falar com a filha. Como prova, ele alegava adultérios anteriores com uma série de homens não citados e acusava Paula de ser uma incurável ninfomaníaca.
Depois de sair do tribunal, sentei-me no carro e fiquei pensando durante algum tempo. Os notáveis poderes de observação de Fred Bruer apresentava um significado diferente, depois do que eu acabara de saber. Talvez a detalhada descrição não tivesse resultado, afinal, de um agudo sentido observador, mas simplesmente produto de sua imaginação.
Guiei o carro de volta à Franklin Avenue. A cortina de aço da joalheria estava arriada e havia uma tabuleta na porta: Fechada.
Dirigi-me então à casa de penhores. Um rapaz gordo e pálido, de uns 20 anos, com cara de quem curtia uma ressaca, atendia um freguês. O Sr. Jacobs, no fundo da loja, me viu quando entrei e correu ao meu encontro. Esperei por ele bem perto da porta, o mais longe que pude dos outros dois, para evitar que nossa conversa fosse ouvida.
- Sr. Jacobs, será que o senhor pode informar-me se os sócios da joalheria possuíam um revólver?
Ele primeiro pareceu surpreender-se com a pergunta, depois ficou pensativo.
- Humm - resmungou afinal. - O Sr. Benjamin possuía um. Tinha-me esquecido porque faz muito tempo, mas estou certo de que era do Sr. Benjamin, não de Fred. Logo depois de instalarem a joalheria, o Sr. Benjamin comprou de mim um revólver de segunda mão. Era bom tê-lo na loja, para o caso de um assalto, explicou ele. Sim, tenho certeza de que foi o Sr. Benjamin.
- O senhor ainda guarda a fatura?
- Ora, é claro - replicou em tom de crítica a si mesmo. - Não deve estar muito longe, no arquivo das armas. Não vendemos mais de uma dúzia por ano.
Foi até o balcão e tirou uma pasta da gaveta de baixo. Eu me dirigi para o lado oposto, enquanto ele folheava os documentos da pasta. O jovem gorducho, que imaginei ser o sobrinho Herman, estava examinando um anel de brilhante através de uma lupa, com o freguês à sua frente.
Max Jacobs continuava correndo o indicador pela coluna de nomes de cada folha. Finalmente, o dedo parou.
- Está aqui. Dia 10 de setembro, há 10 anos. Andrew J. Benjamin, Rua Eichelberger, nº 1726. Um revólver Colt calibre 38, número de série 231.840.
Tirei meu caderninho do bolso e anotei os dados.
- Por que o senhor quer saber? - perguntou o velhote, com curiosidade.
Dei-lhe a vaga resposta de costume:
- Rotina, apenas.
Agradeci-lhe e fui saindo, antes que ele fizesse outras perguntas. O freguês estava contando o dinheiro no momento em que deixei a loja e o jovem Herman guardava o anel num pequeno envelope.
Os assassinos não amadores em geral não sabem onde esconder as armas do crime, mas, embora não fosse o caso - o assaltante era um profissional - ao chegar ao departamento providenciei uma busca nas latas de lixo na aléia atrás da joalheria. Não encontraram a arma.
Eu não tinha mais nada a fazer até que me chegasse às mãos o relatório que especificava o calibre da bala que matara Andrew Benjamin. Deixei o caso para o dia seguinte.
No outro dia pela manhã encontrei sobre minha mesa as fotografias que Art Ward havia tirado, um relatório preliminar post-mortem e um memorando do laboratório, informando que o projétil encontrado no corpo da vítima era uma bala de chumbo, calibre 38 e em condições de ser utilizada para fins de comparação, se pudéssemos achar o revólver do qual ela foi disparada. Havia também uma sacola de couro acompanhada de uma papeleta da agência do correio local, esclarecendo que a sacola fora colocada na caixa de correio a dois quarteirões da joalheria. A sacola continha a papeleta original do depósito (a duplicata já estava comigo), 233 dólares em cheques e nada em dinheiro.
Conversei com o tenente e depois subimos juntos até o terceiro andar do edifício do tribunal, que fica no outro lado da rua, para uma entrevista com o promotor. Como resultado de nossa conferência, fomos os três falar com o juiz da Vara Criminal.
Ao sairmos, eu levava no bolso três mandados de busca e apreensão.
De volta à minha sala, tentei telefonar para a joalheria, mas ninguém atendeu à chamada. Disquei então o número do telefone do apartamento de Fred Bruer e consegui falar com ele. Comunicou-me que resolvera não abrir a joalheria antes do enterro de seu sócio.
- Preciso dar uma olhada lá na loja - disse eu. - Pode ir encontrar-se comigo?
- É claro. Agora?
- Hã-hã.
Bruer respondeu que sairia imediatamente. Como o departamento fica mais perto da loja, cheguei primeiro e tive de esperar uns cinco minutos.
Depois que ele abriu a porta e me fez entrar na frente, fui direto ao ponto:
- Quero ver o revólver 38 que o senhor tem aqui.
Fred Bruer olhou para mim com um ar de surpresa que imaginei fosse simulado.
- Nós não temos revólver aqui, sargento.
- Seu cunhado comprou um na loja de penhores, tão logo a joalheria foi aberta, Sr. Bruer. Ele disse ao Sr. Jacobs que era para proteção contra ladrões.
- Ah, sim! - disse Bruer, com ar de quem se recorda - mas levou a arma para casa já faz alguns anos. Eu reclamei ao saber o que ele havia feito. Não gosto de armas. Elas me deixam nervoso.
Perguntei então com o ar mais inocente do mundo:
- Posso dar uma olhada?
-' Não vejo razão para isso - replicou ele com certa arrogância. - Já lhe disse que não há arma alguma aqui.
Embora constrangido, apresentei-lhe o mandado de busca. Ele não gostou, mas nada podia fazer. Revistei a loja de alto a baixo. Não encontrei arma alguma.
- Já lhe disse que ele tinha levado a arma para casa - insistiu Bruer em tom zangado.
- Daremos uma busca por lá, se não a encontrarmos em seu apartamento - repliquei. - É melhor até irmos primeiro onde o senhor mora.
- O senhor tem um mandado de busca para lá também? - arriscou ele.
Mostrei-o.
Segui com meu carro atrás do dele até seu apartamento. Paula Benjamin e Cindy já haviam saído. Bruer informou que elas tinham voltado para casa na noite anterior. Revistei também todo o apartamento. A arma não estava lá.
- Vamos fazer uma visita à sua irmã - sugeri. - O senhor pode deixar seu carro aqui e iremos no meu.
- Imagino que o senhor tenha um terceiro mandado de busca - replicou ele, amargamente.
Admiti que sim, com um resmungo.
Paula Benjamin ainda morava no mesmo endereço que constava dos arquivos da casa de penhores, Eichelberger Street. 1726, que é na parte sul de St. Louis. Era uma pequena casa de cinco compartimentos.
A Sra. Benjamin alegou que jamais soubera que seu marido havia comprado um revólver; se tinha trazido algum para casa. ela nunca vira.
Não tive de exibir meu terceiro mandado de busca, porque ela não fez qualquer objeção à minha entrada. Procedi da mesma maneira como o fizera nas duas vezes anteriores. A pequena Cindy me acompanhou continuamente e ajudou a procurar, mas não achamos a arma. Não estava lá.
Paula Benjamin quis naturalmente saber a razão de tudo aquilo.-Até aquele momento seu irmão não demonstrara a mesma curiosidade, o que me levou a acreditar que ele já sabia. Agora, com atraso, ele reforçou o pedido de esclarecimentos. Sugeri que Cindy não ouvisse a conversa.
Já era então quase meio-dia, de modo que a Sra. Benjamin pôde resolver facilmente o problema, levando Cindy para a cozinha, para almoçar. Quando ela regressou, sozinha, expus tudo sem rodeios aos dois irmãos.
Após ter cuidadosamente alertado Fred Bruer quanto a seus direitos constitucionais, disse:
- Os fatos, a meu ver, observaram a seguinte seqüência. Sr. Bruer. O senhor abriu a loja ontem de manhã e preparou o depósito no banco. Apenas, o senhor não colocou nenhuma quantia em dinheiro na sacola de couro, mas somente a papeleta de depósito e os cheques. Também não ensacou o dinheiro das caixas registradoras, mas simplesmente guardou-o no bolso. Depois, o senhor foi até à caixa do correio mais próxima, largou a sacola dentro dela e voltou para a loja, antes que seu cunhada tivesse chegado para o trabalho. Até suspeito que o senhor somente levantou a cortina da frente depois de ter dado o tiro nele, pois assim não correu o risco de ter a presença de um freguês antes do tempo. Somente então o senhor abriu a porta e telefonou para a polícia.
Paula Benjamin não tirava os olhos de mim, com o queixo caído.
- O senhor deve estar louco - murmurou. - Fred seria incapaz de matar alguém. É o coração mais bondoso do mundo.
- Particularmente a respeito da senhora e de Cindy - acrescentei. - A senhora ficaria admirada se soubesse quantos homens bondosos se transformam em tigres quando vêem algum de seus entes queridos em perigo. Nenhum dos negociantes colegas de seu irmão na Franklin Avenue, nem provavelmente qualquer dos vizinhos aqui sabiam o que o seu marido estava tentando fazer contra a senhora, porque resolveram manter suas angústias em segredo. Acontece, porém, Sra. Benjamin, que li a petição de divórcio de seu falecido marido.
Paula Benjamin pestanejou, depois olhou para o irmão, como pedindo socorro, e ele conseguiu esboçar um sorriso.
- Você sabe que eu seria incapaz de fazer uma coisa dessas, Paula. O sargento está redondamente enganado. Afinal - acrescentou, virando-se para mim - onde está a arma que utilizei, sargento?
- Provavelmente no fundo do Rio Mississippi - repliquei. - Infelizmente, não tive a idéia de procurar por ela, antes que o senhor tivesse oportunidade de jogá-la fora. Entretanto, podemos provar, pelos arquivos de Max Jacobs, que o seu cunhado comprou um revólver.
- E o levou para casa há muitos anos, sargento, ou talvez o tenha vendido a outra casa de penhores.
- Não creio que ele tenha feito isso.
- Prove que ele não fez.
Aí é que estava a dificuldade. Trouxe Bruer de volta para o centro e três de nós o interrogamos durante o resto do dia, mas ele permaneceu firme com sua história. Fizemos com que repetisse dezenas de vezes a detalhada descrição do imaginário assaltante, mas sua versão foi invariavelmente a mesma.
Finalmente, tivemos de libertá-lo. Levei-o para casa, mas na manhã seguinte fui buscá-lo outra vez e reiniciamos o enfadonho interrogatório. Por volta do meio-dia, ele resolveu chamar um advogado e, de acordo com a recente jurisprudência da Suprema Corte, teríamos de atendê-lo ou libertá-lo novamente.
Eu não ignorava o que aconteceria no primeiro caso. O advogado nos acusaria de termos maltratado seu cliente e insistiria no sentido de que ou apresentássemos uma acusação formal contra ele ou o deixássemos em paz. Não dispúnhamos de provas suficientes para fazermos a acusação e, se recusássemos libertá-lo, o advogado sem dúvida apresentaria uma denúncia contra nós.
Em face do falatório que estava havendo a respeito da brutalidade da polícia, era de todo inconveniente a notícia de que tínhamos torturado um pacato senhor de 60 anos, muito conceituado entre seus colegas. Tivemos de soltá-lo.
Tenho o costume de comentar com minha mulher os casos que particularmente me deixam aborrecido. Naquela noite despejei nos ouvidos de Maggie todas as minhas frustrações a respeito do caso de Andrew Benjamin.
Depois de pacientemente ouvir toda a história, ela observou:
- Não vejo por que você está tão irritado, Sod. Qual a razão de estar tão aflito para agarrar o homem que matou Benjamin?
- Porque ele é um assassino, ora essa!
- Mas de acordo com o que você mesmo disse, o assassinado era um sujeito horroroso - replicou Maggie calmamente. - O mal que ele estava tentando fazer àquela pobre criancinha, apenas para vingar-se da mãe dela, era criminalmente condenável. Esse Fred Bruer, por sua vez, você o descreve como um bom sujeito, do tipo dos que devotam a vida a ajudar os outros e são incapazes de praticar uma maldade.
- Você daria um policial de meia-tigela. Segundo sua teoria, deveríamos ter duas coleções de leis, uma para os sujeitos bons, outra para os salafrários. Realmente, Fred Bruer é um bom sujeito, mas você acha que devemos dar a todos como ele licença para matar?
Depois de considerar o problema por uns instantes, ela confessou, com relutância:
- Não, naturalmente.
Ficou imóvel mais uns segundos, pensando, e afinal sugeriu:
- Se ele é realmente o sujeito decente que você descreveu, há uma técnica que pode ser tentada. Por que você não o força a confessar?
Fiquei olhando para ela sem entender, até que de repente uma luzinha se acendeu no meu cérebro e substituí minha carranca por um largo sorriso. Levantando-se de minha poltrona, fui até ela e dei-lhe um grande beijo.
- Retiro o que disse ainda agora, achando que você daria um policial de meia-tigela. Na verdade, você é bem melhor do que eu.
Às dez horas da manhã seguinte telefonei para Fred Bruer.
- Tenho de lhe pedir desculpas, Sr. Bruer. Apanhamos o assaltante que matou seu cunhado.
- O quê?
- Ele ainda não confessou, mas estamos certos de que é o assassino. O senhor pode vir até aqui, para fazer a identificação?
Houve um longo silêncio, antes que ele respondesse:
- Irei imediatamente, sargento.
Tão logo o pequeno joalheiro chegou no departamento, levei-o para a sala de projeções, já devidamente escurecida e com as luzes do palco acesas. O Tenente Wilkins ficara junto ao microfone, no fundo da sala. Levei Bruer para a primeira fila, de onde se podia ver melhor os suspeitos que desfilassem no palco. Depois de nos sentarmos, Wilkins ordenou que os homens entrassem.
Foram cinco, todos da mesma compleição, os que apareceram à nossa frente, vestidos de maneira semelhante - calças de cor marrom e casacos de couro. Quando se alinharam, pudemos ver que a altura deles era mais ou menos a mesma, em torno de l,80m.
O primeiro a desfilar tinha exatamente essa altura. O cabelo preto penteado para trás, moreno, nariz curvo. Uma cicatriz esbranquiçada corria desde o centro da boca à ponta da orelha esquerda e havia uma verruga no centro de sua bochecha direita. Os braços estavam caídos, as costas das mãos viradas para o nosso lado. Na mão esquerda havia uma tatuagem - uma serpente azul em torno de um coração vermelho.
Virei-me para Fred Bruer. Os olhos dele não podiam estar mais arregalados.
- Não tente identificar ninguém por enquanto - disse-lhe baixinho. - Espere até ouvir a voz deles.
Falei então ao tenente:
- Tudo bem, Wilkins, vamos ouvi-los. O Tenente Wilkins falou no microfone:
- Número um, dê um passo à frente.
O homem moreno, com o nariz adunco, aproximou-se mais de nós e Wilkins lhe perguntou:
- Qual é o seu nome?
- Manuel Flores - respondeu o homem, mal humorado.
- Idade?
- Quarenta.
Seguiu-se uma série de perguntas a todos os suspeitos, visando mais a permitir que as testemunhas fizessem ouvir suas vozes do que para colher qualquer informação. Agora, porém, o Tenente Wilkins deixava a rotina de lado.
- Onde você trabalha, Manuel?
- Na Companhia de Construções Frick.
- Como quê?
- Simples servente.
- Você é casado, Manuel?
- Sou.
- Filhos?
- Cinco.
- Idade de cada um?
- Maria tem treze anos, Manuel Júnior dez, José nove, Miguel seis e Consuelo dois.
- Você já foi preso alguma vez, Manuel?
- Não.
- Nunca se meteu em encrencas?
- Não.
- Está bem. Pode voltar para seu lugar. Número dois, um passo à frente!
A rotina se repetiu com os outros quatro homens, mas não creio que Fred Bruer estivesse prestando atenção. Seus olhos não se desgrudavam do primeiro homem.
Quando acabou o interrogatório, os cinco homens foram retirados do palco. Fred Bruer e eu deixamos a sala e descemos um andar, em direção ao Departamento de Homicídios. Ele se deixou cair numa poltrona e ficou olhando para mim. Permaneci em pé.
- E então? - perguntei.
O joalheiro passou a língua nos lábios secos.
- Compreendo que os senhores tinham toda a razão em prender aquele primeiro homem, sargento, pois ele corresponde exatamente à descrição do assaltante. Entretanto, lamento dizer que não é o homem que procuram.
Depois de olhar para ele por uns instantes, sem qualquer reação em minha fisionomia sacudi a cabeça como quem não acredita.
- Seus amigos em toda a Franklin Avenue e sua irmã me avisaram que o senhor tem um coração mole, Sr. Bruer, mas não queira fazer os outros de bobos. Seria inacreditável que duas pessoas diferentes tivessem tantas características similares, até mesmo a cicatriz, a verruga e a tatuagem. Ainda por cima, Manuel Flores é canhoto, exatamente como o assaltante.
- Mas não é ele - insistiu Bruer com um tremor na voz. - Tudo não passa de uma incrível coincidência.
- Está bem - disse eu. - Tão incrível que não acredito nela. Você está-se deixando impressionar pelo passado limpo do homem e pelas cinco crianças. Ele não tem álibi para a hora em que se deu o assalto. Dissera à mulher que iria para o trabalho, porém nunca mais apareceu. No dia seguinte ao do roubo, andou mostrando um maço de notas. Alegou - acrescentei, carregando no tom sarcástico de minha voz - que acertara em um azarão nas corridas.
- Já lhe disse que ele não é o homem! - exclamou Fred Bruer, quase aos gritos.
- Ora, vamos - insisti, mostrando-me irritado. - O senhor vai proteger um assassino somente porque ele tem cinco filhos menores?
O pequeno joalheiro levantou-se lentamente da cadeira. Empertigando-se todo, como se quisesse parecer mais alto, disse com dignidade:
- Sargento, já lhe disse que não foi aquele homem quem matou Andy. Se insistir em apontá-lo como culpado, declararei sob juramento que ele é inocente.
Depois de encará-lo por uns instantes, sacudi os ombros, desanimado:
- Acho que, apesar disso, iremos em frente, Sr. Bruer. Quando apanhamos o verdadeiro culpado, em um caso como este, em geral conseguimos que ele confesse.
- O que é que o senhor quer dizer com isso? - perguntou, espantado.
- Manuel Flores não é um cidadão respeitável como o senhor. Não passa de um pobre infeliz, sem instrução e que nem mesmo ainda conseguiu naturalizar-se americano. É um imigrante mexicano que possui apenas a certidão de nascimento. Não tem sequer um advogado para quem apelar. Não seremos obrigados a tratá-lo com luvas de pelica, como foi o caso com o senhor.
- Quer dizer que pretendem arrancar-lhe uma confissão! - exclamou Bruer, desesperado.
- Ora, quem está dizendo uma coisa dessas? Jamais recorremos a esses processos aqui. Não usamos mais do que técnicas científicas de interrogatório.
Tomei-o pelo braço e caminhamos na direção da porta.
- Se, pensando melhor, o senhor resolver cooperar, telefone-me, Sr. Bruer. Não creio, porém, que seu testemunho seja indispensável. Gostaria de poder agradecer-lhe por ter vindo até aqui, mas não me parece, em face das circunstâncias, que eu deva fazê-lo.
Ao chegarmos ao saguão, despedi-me.
- Até outro dia, Sr. Bruer.
Fiz meia-volta e ele estava ainda olhando para mim quando subi as escadas para o andar de cima.
Encontrei Sam Wiggens no banheiro daquele andar. Ele acabara de tirar a peruca e o nariz falso e estava esfregando a mão, para remover a serpente e o coração da tatuagem. Depois de passar novamente o sabonete perguntou:
- A encenação funcionou? Sacudi os ombros.
- Não creio que ele tenha suspeitado de alguma coisa, mas é muito cedo para uma conclusão. Vamos ver até que ponto ele é de coração mole, quando aumentarmos a pressão amanhã.
Deixei Fred Bruer agoniado durante 24 horas e telefonei-lhe no dia seguinte, às 11 da manhã.
- Não vamos precisar de seu testemunho, afinal, Sr. Bruer. Manuel Flores acaba de confessar.
- Não foi ele! - gritou o joalheiro no outro lado da linha. - Os senhores não podem fazer isso com um inocente pai de cinco filhos!
- Ora, não se deixe levar por um coração tão mole - disse-lhe eu. - O homem é um assassino! - acrescentei, desligando.
Bruer entrou no departamento 20 minutos depois. Estava muito pálido, mas os ombros se mantinham resolutamente puxados para trás.
- Quero prestar um depoimento, sargento - disse com voz firme. - Desejo confessar o assassinato de meu cunhado.
Puxei uma cadeira e ele se sentou, mantendo a espinha muito reta. Depois de convocar um estenografo, esperei sentir aquela onda de triunfo que nos inunda, quando conseguimos resolver um caso.
A onda não aconteceu. Ao longo de todos estes anos, tenho conseguido arrancar confissões de suspeitos, explorando-lhes a ganância, o espírito de vingança, os temores e outras emoções capazes de quebrar a resistência deles. Esta, porém, era a primeira vez que eu apanhava um assassino porque ele tinha bom coração. Às vezes fico pensando por que escolhi esta profissão.


James Holding
UM LUGAR ESQUISITO PARA ESTACIONAR
A princípio, não acreditei no garoto. Janie, que toma conta do telefone e da recepção para nós, trouxe-o pela mão e o deixou de pé na porta da minha sala.
- Quero falar com o xerife - disse ele, engrossando a voz. Tinha cabelos vermelhos espetados, o rosto cheio de sardas e um dente torto bem na frente. Calculei que devia ter uns 10 anos.
- Sou o xerife, meu filho. O que posso fazer por você? - perguntei.
Ele me encarou, com seus olhos castanhos bem sérios, e reclamou:
- O senhor não é o xerife. Ele é gordo. Vi seu retrato no jornal.
Garoto esperto. Expliquei-lhe que o xerife não estava, que eu era o ajudante e estava pronto a atendê-lo. Ou será que ele queria ver o xerife em pessoa?
Depois de considerar a pergunta por uns instantes, o garoto concordou:
- Acho que o senhor mesmo serve. Eu queria contar para o xerife a respeito daqueles dois homens que vi ainda agora.
- Que dois homens?
- Não sei o nome deles. Estão amarrados. Com arame em volta das mãos.
Endireitei-me na cadeira e pela primeira vez encarei-o seriamente.
- Arame em volta das mãos? - perguntei. Essa garotada anda vendo televisão demais.
- Isso mesmo. Bem, talvez fosse melhor dizer em torno dos pulsos. Não dava para ver, quando passei.
- Bem, o que interessa é que eles estavam amarrados, é isso?
Ele fez que sim com a cabeça e seus olhos ficaram parados, do jeito que os garotos ficam quando estão procurando lembrar-se de alguma coisa.
- E tinham também um papel, parecendo fita adesiva, tapando a boca.
- Onde foi isso, garoto?
- Lá no Trevo Donaldson.
Isso ficava a uns quatro ou cinco quilômetros fora do povoado, no meio da planície cultivada, onde a rodovia estadual 26 cruza a do nosso município. Fora da jurisdição da polícia. Nosso território, portanto. Então disse ao garoto:
- Não há viva alma no Trevo Donaldson, nem mesmo um posto de gasolina. Você tem certeza que é lá?
- É onde eu moro. Passo pelo Trevo Donaldson cada vez que venho ao povoado.
Pareceu-me que estávamos fugindo do assunto, mas era um dia tranqüilo e eu não tinha coisa melhor a fazer do que me divertir com o garoto.
- Então você passou por lá hoje, não foi?
- É o que lhe estou dizendo. Na minha bicicleta. E vi aqueles homens amarrados.
- Onde é que eles estavam?
- Na vala. Perto daquela tubulação que passa embaixo da estrada.
Devia ser imaginação dele, mas continuei, como se tivesse acreditado.
- E então você passou montado em sua bicicleta?
- Isso mesmo.
- E por que não parou? Talvez pudesse dar-lhes uma ajuda. Ele sacudiu a cabeça com ar grave.
- Ah, não! Não devo meter-me com gente estranha, é o que diz minha mãe. Toda a vez que estiver sozinho e presenciar qualquer coisa que me pareça estranha ou me assuste, mamãe disse que devo contar ao xerife - respondeu ele e parou, meio confuso. - Mas o senhor não é o xerife. Ele é bem mais gordo.
- Já lhe expliquei isso. Mas como é que ninguém, a não ser você, viu esses homens? Isso é que não compreendo. Uma porção de automóveis passando por lá.
- Não sei - replicou ele, sacudindo os ombros. Depois, como se só então se tivesse lembrado: - Eu pedalo bem pela direita, pelo ombro da estrada. Dali se pode ver a vala.
- E é muito funda? Fica embaixo do bueiro?
- O que é isso?
- O tubo que passa por baixo da estrada.
- É funda, sim - confirmou, sacudindo a cabeça. - É lá que os homens estão. Na vala. Todos amarrados. Com uma coisa tapando-lhes a boca. E deitados.
Ele falava com tal convicção que quase acreditei. Mas disse, com ar zangado:
- Vocês, garotos, gostam de divertir-se pregando mentiras para a polícia, não é? Pensam que são muito espertos. Como nos filmes da televisão, onde os "tiras" fazem o papel de bobos.
- Não estou pregando mentira alguma. Estou fazendo bem como a mamãe me ensinou. - Havia certo desprezo no tom de sua voz, quando ele deu o assunto por encerrado: - Bem, acho que já fiz o que devia. Agora, vou-me embora.
Fez meia-volta e foi saindo, sem olhar para mim. Corri atrás dele.
- Espere um pouco! Não quer ir até lá comigo, para mostrar onde foi que viu os homens amarrados?
- Não - replicou ele, parando. - Não posso. Tenho que estar no dentista às 10 horas. Foi o que mamãe disse.
- Quem é o seu dentista?
- O Dr. Charles. Ele está arrumando estes aqui - explicou o garoto, arreganhando os dentes da frente, como um tigre bocejando. Eram realmente tortos.
- Como é o seu nome?
- Donald Start.
- Sente-se ali e espere um minuto, sim, Don?
Ele voltou e se sentou na cadeira ao lado de minha escrivaninha, olhando com ar aborrecido o relógio de parede. Faltavam 10'minutos para as 10 horas.
Peguei o fone e pedi a Janie que me ligasse com o consultório do Dr. Charles. Quando a enfermeira atendeu, perguntei-lhe se um Donald Start tinha consulta marcada para as 10 horas. Ela respondeu que sim, por quê? Estava cancelando? Respondi que não, que ele estava para chegar e desliguei.
O olhar grave de Donald, agora um tanto acusador, não me largou um segundo. Depois que desliguei, ele reclamou:
.- Devia ter falado com o xerife. O senhor não acredita em mim.
Limpei a garganta, disfarçando meu embaraço:
- Claro que acredito. Mas você tem de admitir que a história parece maluca. Vou até lá agora mesmo, verificar o que você relatou.
Levantei-me e Don me imitou. Ao chegarmos à porta, um trem passou pelo aterro logo atrás de meu gabinete. Como sempre, tive a impressão de que ele iria irromper através das paredes da sala. O cinzeiro em cima de minha mesa deu uns pulinhos com a vibração.
Depois que foi possível tornar a ouvir-nos uns aos outros, perguntei a Don:
- Os dois homens que você viu ainda estavam vivos quando passou por eles? Pode esclarecer esse ponto?
Agora, eu estava levando o garoto a sério. No que me dizia respeito, o telefonema para o consultório do Dr. Charles fizera com que Don deixasse de ser um garoto moleque para transformar-se em respeitável cidadão que estava cooperando para manter a lei.
- Eles estavam completamente imóveis.
- Acho que não precisavam ficar amordaçados, se estivessem mortos - disse eu, batendo-lhe no ombro, como numa conversa de homem para homem. - Você pode ir ao seu dentista agora. E obrigado pela informação a respeito dos homens, Don. Você agiu muito bem. Vou tomar conta deles, pode ficar descansado.
- Está bem.
Ao certificar-se de que eu acreditara em sua história e iria agir, Don pareceu um tanto decepcionado por não poder me acompanhar até ao Trevo Donaldson. Nenhum garoto gosta de perder uma aventura assim, muito mais quando provocada por ele. Entretanto, a mãe de Don parecia não brincar em serviço. Quando mandou que Don fosse ao dentista, ele teria mesmo que ir, por mais homens que ele visse amarrados dentro de uma vala.
Avisei Janie sobre o que eu iria fazer e saí. Don Start estava nesse instante passando, montado em sua bicicleta, por dentro do arco que permite à Front Street atravessar a linha férrea por baixo. Fiquei pensando que, se aqueles dentes fossem endireitados, o garoto de cabelo vermelho seria mais tarde um belo rapagão - desde que não deixasse o cabelo chegar até à cintura e coisas assim.
Eu estava tirando o primeiro turno daquele dia, tendo começado às seis, de modo que era gostoso dar uma caminhada, esticar as pernas. Era um radiante sábado de outubro, um pouco frio e a folhagem das árvores deveria oferecer um belo espetáculo, salpicada de todas as cores do outono. Entretanto, isso não acontecia em Circleville, especialmente na Front Street, onde se localizava a Prefeitura, porque não se via uma única árvore ou arbusto, pois as lojas e edifícios formavam blocos compactos nos dois lados da rua, espremendo o tráfego como um funil até o aterro da linha férrea e da passagem por baixo, através do arco.
Caminhei pela Front até o local onde estacionara meu carro-patrulha, ao chegar para o turno das seis. Normalmente utilizamos o estacionamento da Prefeitura, mas ele era aberto somente às sete horas, ficando fechado à noite por um grande portão, a fim de impedir a presença de pares românticos e também que algum ladrão resolvesse levar um dos carros oficiais que costumam passar a noite ali. Qualquer de nós que é escalado para o primeiro turno sempre deixa seu carro estacionado na rua.
O meu se achava escondido atrás de um enorme caminhão de mudanças, estacionado bem na frente dele. O nariz do caminhão quase ultrapassava os cinco metros que devem ficar livres em cada lado da entrada do estacionamento. Anotei a irregularidade e teria chamado a atenção do motorista, mas não havia ninguém na cabine. Provavelmente estava tomando o café da manhã no botequim do Grego, no outro lado da rua.
Entrei no meu carro, contornei o caminhão e embiquei até o portão do nosso estacionamento, para poder depois dar marcha à ré, fazer a meia-volta e rumar para o norte, pela Front Street, em direção ao Trevo Donaldson.
Quando cheguei lá, o trevo estava inteiramente deserto. É uma interseção em forma de T: a rodovia estadual 26 - uma antiga rodovia de pista dupla que vai de Tri-Cities para oeste de Circleville e se encontra com a do nosso município. Quem por esta estrada virar para o sul, na interseção, vai parar em Circleville; se virar para o norte, desembocará na grande auto-estrada que vai diretamente para Chicago e Nova York.
Segui à esquerda na 26 e rodei uns 100 metros, até o único bueiro à vista. Estacionei na margem da estrada e desci do carro. Entretanto, antes que meu pé tocasse o chão, ouvi uma voz gritando por socorro, no outro lado da estrada. Atravessei-a - não se avistava nenhum carro aproximando-se - e olhei para a vala, cavada na extremidade do bueiro.
E lá estavam eles, justamente como o garoto havia descrito.
Dois sujeitos, com os pulsos amarrados às costas, se encontravam deitados de lado; a extremidade do arame que lhes prendia os pulsos estava enrolada nos pilares de concreto que suportavam o bueiro, de modo que eles não podiam levantar-se. Uma grossa fita adesiva tapava-lhes as bocas, exceto a de um deles, que conseguira soltar uma das pontas da fita, esfregando o rosto no chão; era o que estava gritando por socorro.
Quando me debrucei sobre a extremidade do bueiro, ele me viu e disse:
- Companheiro! Que prazer em vê-lo,!
Havia uma satisfação enorme no tom de sua voz, mas o homem já estava rouco, pois deveria ter começado a gritar muito tempo antes.
Fiz-lhe um sinal com a mão, pedindo calma:
- Descerei até aí dentro de um minuto. Vou buscar o alicate no meu carro.
Apanhei a ferramenta e deslizei pela encosta até o bueiro. A primeira coisa que fiz foi arrancar a fita adesiva da boca do segundo homem. Ele esfregou o queixo durante algum tempo, cuspiu e afinal falou:
- Obrigado. Aquele garoto de bicicleta foi quem deu o aviso?
- Foi. Sou da delegacia de polícia. O garoto esteve lá, comunicando a ocorrência - respondi, tentando desenrolar o arame dos pilares.
- Quase morri, quando o garoto continuou pedalando sem olhar para trás - disse o primeiro homem. - Eu sabia que ele nos tinha visto, mas o caso é que não parou e eu não podia chamá-lo, pois ainda estava amordaçado.
- Não lhe teria adiantado nada - repliquei, enquanto cortava o arame com meu alicate. - A mãe dele lhe deu ordem para não se envolver com pessoas desconhecidas.
Acabei de libertá-los e avisei:

- Vai ficar com os pulsos doídos durante algum tempo. O arame estava bastante apertado.
O sujeito apenas sacudiu a cabeça, mas levantou-se e esticou os braços, espreguiçando-se. Vestia calças jeans azuis e um casaco de couro; uma vasta cabeleira negra lhe descia até os ombros. Libertei o segundo homem e ele se levantou também. Os dois começaram a esfregar as mãos, reativando a circulação.
- Agora, rapazes, vamos à história - disse eu.
O segundo sujeito tinha os cabelos cor de manteiga recém-cortados e estava vestido igual ao seu companheiro. Chamava-se Pete. O moreno era Joe. Pete disse:
- Fomos assaltados.
Ajudei-os a subir a rampa até a estrada.
- Motoristas de caminhão?
- Éramos - explicou Joe - até que aqueles camaradas nos assaltaram e levaram nosso caminhão esta manhã.
A palavra que ele empregou não foi "camaradas", mas entendi o que ele queria dizer.
- Vamos até o meu carro e lá conversaremos melhor. Ficaram muito tempo amarrados na vala?
- Se desde quinze para as seis é muito tempo... - replicou Pete, sarcasticamente.
Entraram no carro e se sentaram no banco de trás, ainda esfregando as mãos e resmungando palavrões. Continuei meu interrogatório:
- Como é que ninguém viu vocês, exceto o garoto?
- Os motoristas que se dirigem para leste diminuem a marcha ao verem o sinal de PARE na interseção - esclareceu Joe - e ficam olhando para a frente, acho. Os que vão para oeste, estando no outro lado da estrada, não podem enxergar a vala. Mesmo depois de ter-me livrado da mordaça, não consegui que alguém me ouvisse.
Havia agora bastante tráfego na estrada e alguns carros diminuíam a marcha por curiosidade, como faz todo o mundo, quando vê um carro-patrulha.
- Bem - disse eu. - Lamento que haja acontecido isto aqui na nossa zona. Querem fazer o favor de contar toda a história?
- Levávamos uma carga de aparelhos de televisão a cores, da Universal, consignados a um distribuidor em Chicago - começou Pete. - Tínhamos reduzido a marcha para pararmos ali na interseção, depois virarmos para a esquerda, a fim de tomarmos a auto-estrada direta para Chicago. Estava começando a clarear e, nesse momento, um Chevrolet nos dá uma fechada e nos assalta, bem no meio da estrada, aqui em cima deste bueiro. A estrada é muito estreita neste trecho, de modo que não pudemos desviar. Fomos obrigados a parar atrás do Chevrolet, mal tendo tempo de frear para não bater nele. Tão logo o caminhão parou, apareceu um sujeito com uma meia de mulher enfiada na cabeça. Apontando uma espingarda de dois canos, foi logo ordenando que eu saltasse. Ao mesmo tempo, outro sujeito, também com a cara metida numa meia, abriu a porta da cabine no lado de Joe.
- Ele tinha na mão uma pistola automática do tamanho de um canhão e mandou que eu saltasse também - completou Joe, correndo a mão pelos cabelos curtos e cocando o crânio.
- E aí?
- Então nós dois saltamos - disse Joe. - O que mais poderíamos fazer? Ninguém é doido para discutir com quem está armado daquele jeito. Nós, pelo menos, não somos.
- Enquanto acontecia tudo isso, nenhum carro passou nem se aproximou?
- Nem um único. Você notou alguém, Pete? O outro sacudiu a cabeça.
- Àquela hora da manhã nunca há muito tráfego nessas estradas municipais. Um dos sujeitos ficou apontando a espingarda para nós, enquanto dois outros nos amarraram e nos levaram para a vala, onde nos obrigaram a deitar, amarrando-nos no pilar do bueiro.
- Um momento - interrompi. - Eram três homens?
- Exatamente. Havia um em cada lado da estrada, quando paramos, e o terceiro guiava o carro que nos deu a fechada. Este também veio ajudar a nos conduzir para a vala. Depois, ele voltou para seu carro e deu partida, enquanto os outros dois entravam em nosso caminhão e seguiam atrás.
- Para que lado eles viraram na estrada municipal? - perguntei, já com certo pressentimento me mexendo com os nervos.
- Não podíamos vê-los - respondeu Pete - mas pelo ruído do motor me pareceu que foi para o sul.
Meu pressentimento se reforçou.
- Aparelhos de televisão Universal. Na carroceria do caminhão não estava pintada a marca do fabricante?
- Não. Nos dois lados está escrito Royal. É a Companhia de Transportes Royal, de Chicago. Nós fazemos os carretos para a Universal, entende?
- A carroceria é de aço inoxidável? - perguntei.
- Alumínio - corrigiu Pete em tom amargo. - E novinha em folha. O patrão vai fazer um barulho danado quando souber disto.
Faltava-me apenas a prova decisiva.
- Qual o número da placa?
- Illinois T24-783 - informou Pete. - Tem também placas de Indiana, Ohio e Pensilvânia, mas não me lembro dos números.
- O de Illinois é suficiente - disse eu. - Como é que vocês estão se sentindo, rapazes? Ainda em condições de guiar o caminhão?
Eles me olharam, espantados, sem saber o que dizer.
- Se estão bem, é melhor irmos ao local onde se encontra o caminhão roubado.
- Mas o senhor sabe onde está?
- Quando saí do povoado, 15 minutos atrás, ele estava estacionado bem em frente ao xerifado.
Enquanto rodávamos de volta para Circleville, fiz ainda algumas perguntas a respeito do assalto.
- De que cor era o Chevrolet que fechou vocês?
- Preto ou azul-marinho, com um capo de vinil branco. Modelo novo, quatro portas - replicou Pete prontamente.
- Lembra-se do número da placa?
- Não cheguei a ver. Estava muito ocupado em evitar a batida. Que pena não ter reparado.
- E você, Joe?
- Também não. Provavelmente estava coberta com lama ou arrancada. No vidro traseiro havia uma dessas figurinhas de cachorro que sacode a cabeça com o balanço do carro. Lembro-me bem deste detalhe.
-- E havia encosto para a cabeça apenas no banco do motorista - acrescentou Pete.
-- E a respeito dos homens? Vocês não se recordam de alguma coisa que ajude a identificá-los?
- O caso é que estavam com as cabeças enfiadas em meias de mulher. Os três eram mais ou menos da minha altura e de Pete. Não se podia ver muito bem no escuro.
- Escuro?
Isso mesmo. Quando subiram na cabine, trataram logo de apagar nossas luzes. Já tinham feito o mesmo com as do carro.
- Vi uma coisa - lembrou Pete. - O sujeito que apontava a espingarda para nós não tinha um dedo. Apertava o gatilho com o do meio, porque o indicador era apenas um toco.
- De que mão?
- Direita - respondeu Pete, depois de pensar por uns instantes.
- E a espingarda?
- Calibre 16, mais ou menos, parecida com uma que tenho para matar passarinho.
- Alguma particularidade no jeito de falar, que vocês possam ter notado?
Pete negou com um movimento de cabeça, mas Joe disse: - O sujeito que me mandou descer gaguejava um pouco.
Disse "va-vamos andando", uma coisa assim. Pode ser que ele apenas estivesse nervoso ou assustado.
- Por que estaria assustado? - perguntou Pete. - Nós é que deveríamos estar.
Ainda faltava um quarteirão para chegarmos ao edifício da Prefeitura, rodando para o sul pela Front Street, quando Pete se inclinou sobre o encosto do banco da frente e exclamou para Joe:
- Lá está ele, companheiro! Tenho certeza absoluta. É o nosso caminhão!
Depois, com a boca bem perto de meu ouvido direito, acrescentou:
- Puxa! Nunca vi um xerife assim! O senhor é formidável!
- Trata-se apenas de uma boa memória - disse eu modestamente. - Reparei no caminhão, quando saí do xerifado para libertar vocês. Decorei o número da placa e outros detalhes sem mesmo me aperceber do que estava fazendo. É assim que minha memória funciona.
Entrei no estacionamento da Prefeitura e disse:
- Antes de mais nada, vamos ver se os aparelhos de televisão ainda se encontram lá dentro.
- Não podem estar - afirmou Joe com convicção. - Do contrário, por que iriam deixar o caminhão aqui? A carga, a esta hora, ou está escondida em algum lugar ou foi transferida para outro caminhão e já se encontra longe daqui.
Saltamos de meu carro e nos dirigimos para o local onde estava estacionado o caminhão. Pete desaferrolhou a porta traseira da enorme carroceria e espiou para dentro dele.
- Que coisa! As televisões estão todas lá dentro!
Joe não podia acreditar. Nem eu, tampouco. Arrisquei uma explicação:
- Os assaltantes devem ter parado por falta de gasolina. Pete sacudiu a cabeça, discordando:
- Havia ainda 40 galões no tanque.
- Bem - disse eu. - Então vocês devem admitir que este é um lugar esquisito para estacionar um caminhão cheio de televisões roubadas.
- Esquisito ou não, o caso è que estamos mais do que felizes por termos encontrado nossa carga - disse Joe.
- Vamos até lá dentro - pedi - porque preciso anotar os detalhes para o meu relatório. Depois, vocês podem prosseguir para Chicago.
Entramos. Vinte minutos mais tarde, saímos de volta e fui para o meio da rua, interrompendo o tráfego, a fim de que Pete manobrasse o enorme caminhão, andando de ré até à entrada de nosso estacionamento e fazendo uma meia-volta, a fim de dirigir-se para o norte e tomar a auto-estrada para Chicago. Não foi fácil completar a manobra, mas Pete finalmente conseguiu. Aproximei-me então da cabine e lhe recomendei:
- Agora, faça o favor de não deixar qualquer automovelzinho parar vocês, antes de chegarem em Chicago, entendeu?
- Não tenha medo - retrucou Pete. - E obrigado, Bill. Nessa altura, eles já estavam me tratando por Bill.
- Adeus, rapazes.
Afastei-me um pouco e o grande caminhão reiniciou sua viagem para o norte.
Johnny Martin, o repórter policial do único jornal de Circleville, estava parado ao pé da escada do edifício da Prefeitura, quando me encaminhei para a minha sala. Pelo jeito, ele assistira a tudo, eu detendo o tráfego enquanto o vasto caminhão fazia a sua difícil meia-volta. Perguntou, curioso:
- O que quer dizer tudo isso, Bill?
Contei-lhe então o assalto e a pronta recuperação das televisões roubadas. Acho que falei com certo orgulho, pois pensei que tivesse sido provavelmente a mais rápida recuperação de bens roubados que os arquivos registram e que o xerife bem podia ser alvo de uma boa publicidade, muito mais agora que as eleições estavam próximas. O jornal de Johnny - o Chronicle de Circleville - já se havia declarado a favor do candidato da oposição e não se cansava de publicar uma série de coisas a respeito da ineficiência do xerife candidato à reeleição e de seu auxiliar, isto é, o Xerife Blore e eu.
Bati à máquina o relatório do assalto e o deixei sobre a mesa do delegado, para que ele lesse quando chegasse. Durante todo o tempo mal pude conter meu orgulho, pois não havia dúvida de que o caminhão fora recuperado com tanta rapidez graças principalmente a mim e à minha boa memória.
Realmente, eu me sentia orgulhoso - mas não por muito tempo. Vinte e quatro horas, para ser exato. Até que o Xerife Blore entrou como um raio na minha sala, na manhã seguinte, e encostou sua enorme barriga na beira de minha mesa, dizendo, com um tom de voz inusitadamente venenoso, mesmo se tratando dele:
- Bill, você está despedido!
Percebi, pelo brilho de seu olho, que ele estava falando sério.
Disse olho no singular, porque o xerife tem apenas um. O outro está coberto por uma venda preta. Todavia, o olho bom enxerga de sobra pelos dois. O xerife é realmente um tanto indolente para a função; os cidadãos que tentam violar a lei em nosso povoado têm-se beneficiado dessa indolência, mas desta vez ele estava descarregando toda a sua energia em cima de mim.
Tinha numa das mãos um exemplar da Chronicle e os óculos na outra. Cheguei a recear que ele os quebrasse, tal a força com que gesticulava.
É claro que fui tomado de surpresa:
- Eu? Despedido? O que foi que fiz?
- Está despedido por ter exposto o xerifado ao ridículo, objeto de troça de todo o povoado - disse aos gritos. - Ê por isso que está despedido,!
Atirou o jornal em cima de minha mesa e apontou, com um dedo mais gordo e redondo que um charuto de um dólar, para a manchete da página dois. Eu ainda não tivera tempo de passar os olhos pelo jornal e não vira o título escandaloso: A EFICIÊNCIA DO XERIFE MELHORA COM A APROXIMAÇÃO DAS ELEIÇÕES.
- Isso é um elogio - disse eu. - Uma boa propaganda. Por que o senhor está tão enraivecido? Já leu meu relatório sobre o caminhão assaltado?
- Claro - respondeu ele. - Mas leia este artigo.
Obedeci. O jornal contava como os aparelhos de televisão tinham sido recuperados quase imediatamente após a denúncia de seu desaparecimento. E o local. Longe de elogiar nossa eficiência, o artigo insinuava que o xerife estava forjando uns pequenos incidentes, à medida que se aproximava a data das eleições, para fazer com que o funcionamento do xerifado parecesse eficiente - exemplos de fiscalização e manutenção da lei para desmentir as acusações da oposição a respeito do seu fraco rendimento. A notícia da recuperação das televisões roubadas sugeria claramente que se tratava de um dos tais incidentes forjados.
O xerife continuava com o olho fuzilando na minha direção.
- Eles poderiam até dizer que fomos nós que roubamos o caminhão, apenas para impressionar os eleitores pela maneira rápida com que o recuperamos.
Enfiou o polegar embaixo da venda, afastou-a meio centímetro e depois soltou-a de volta contra a órbita vazia - indício seguro de completa irritação.
- Credo! - exclamei. - Eles estão fazendo um papel sujo.
- Foi você quem contou a história para eles, não foi?
- Claro. Para Johnny Martin, ontem. Achei que era uma boa publicidade. Nunca me passou pela cabeça que Johnny fosse torcer as coisas desse jeito...
O xerife se acalmou um pouco.
- Acredito que você tenha sido tapeado, mas o caso é que ele torceu. E a estação de rádio incluiu o artigo no noticiário das 11 horas. As mesmas insinuações. O resultado é que nós dois somos apresentados como políticos desonestos, dando golpes baixos para ganharmos uma eleição. - Deu um puxão na venda outra vez. - Para citar as palavras do Chronicle, foi realmente um lugar esquisito onde o ajudante do xerife encontrou o caminhão roubado: Justamente junto à calçada do próprio xerifado!
- Pois é... - murmurei, sem achar mais nada para dizer.
- Por quê? - exclamou o xerife. - Por que eles abandonaram o caminhão bem aqui em frente? Isso é que precisamos descobrir, se quisermos provar que o artigo é injusto, Bill. Uma vez que você foi tão esperto, localizando o caminhão num instante, que tal descobrir também por que razão ele foi deixado aqui, ainda mais com sua carga intacta?
Olhei para ele - um 1,65m e 90 quilos encimados por uma venda preta - e disse:
- Pete e Joe afirmaram que o sujeito que guiou o caminhão desde o Trevo Donaldson era um péssimo motorista. Eles ouviram as reações das engrenagens por ocasião das mudanças de marcha. Concluíram então que o caminhão era grande demais para ser dirigido por um barbeiro.
Minha exposição provocou nele um resmungo.
- Ainda que seja essa a verdade, não nos serve para nada. Precisamos descobrir uma boa razão que explique por que o caminhão foi deixado aqui em frente. Você que é tão observador, Bill - escarneceu ele, com um meio sorriso de canto de boca - talvez possa inventar uma explicação em que o pessoal acredite!
Fez meia-volta e saiu gingando em direção à sua sala.
Coloquei os pés em cima de minha mesa e fechei os olhos. Conforme dissera na véspera a Pete e a Joe, tenho excelente memória. Assim, resolvi fazê-la trabalhar e recapitulei tudo o que eu sabia a respeito do assalto, cena por cena. Nada de novo forneceu qualquer pista para o meu problema, até que eu já estivesse quase no fim da linha.
Então, de repente, tive o estalo. Com um suspiro de alívio - pois eu realmente não desejava ser despedido - fui até à janela e levantei a veneziana o bastante para que pudesse enxergar a extremidade sul da rua, onde ela passava por baixo do leito da estrada de ferro. A seguir, entrei no gabinete do xerife e sentei-me em seu velho sofá de couro, com a solução na cabeça.
Ele se mostrou surpreso ao ver-me tão depressa.
- Você descobriu alguma coisa, Bill?
- Não - repliquei, gracejando. - Vim para aqui para pedir demissão, de modo que você não precisa me botar na rua.
Seu único olho fitou-me por uns segundos.
- Deixa de brincadeiras. Este assunto é muito sério.
- Está bem. Já imaginei o que aconteceu, Clint. Os assaltantes não pararam por falta de coragem, nem o caminhão por falta de gasolina. O que faltou mesmo foi espaço. Bem aqui em frente ao xerifado - acrescentei com um sorriso.
- Espaço? Que negócio é esse?
- Dei uma olhada dentro da cabine do caminhão, antes que os rapazes embarcassem ontem, e sabe o que foi que eu vi pregado no painel, bem na frente do motorista?
Eu estava esticando a história, como vingança por ele ter tentado me despedir.
- O que foi?
- Um aviso.
Ele deu um puxão na venda.
- Que espécie de aviso? Diga logo!
- O seguinte: Cuidado! Este caminhão é muito alto, precisando de um vão livre de quatro metros.
- E então?
- Então acontece o seguinte: Você sabe qual é a altura do vão livre, no arco por onde passa a Front Street? - perguntei, apontando o polegar na direção do aterro do leito da via férrea.
- É isso! - gritou ele. - O caminhão era alto demais para passar por baixo!
- Exatamente. O arco tem apenas 3,80m de altura. Acabei de verificar a placa, que se vê de minha janela.
- Ótimo, ótimo! - O raciocínio dele estava funcionando a todo vapor. - Assim, quando os assaltantes trouxeram o caminhão até aqui, de repente viram que não poderiam passar pelo arco. Tinham de dar meia-volta e seguir pelo norte, mas o caminhão era grande demais para permitir a manobra. Além de a rua ser muito estreita, a entrada do estacionamento estava fechada, somente abrindo pela manhã. Qual seria outra solução? Ir de marcha à ré até o posto de gasolina de Worley, onde há bastante espaço para manobrar? O diabo é que eles eram uns motoristas "barbeiros" e não ousariam tamanha aventura. Andar em marcha à ré com esses monstros, mesmo num pequeno percurso, é uma tarefa difícil, mesmo para motoristas profissionais. O que então lhes restava para fazer? Estacionar o caminhão onde tinham chegado e cair fora. O que lhe parece esta versão?
- Bem possível. O que pensa você?
- Penso que você acaba de me reeleger, Bill. Agora dispomos de algo valioso para apresentar. Mostraremos ao Chronicle quem é ineficiente aqui!
Cumpriu à risca a sua palavra. Ele pode ser muito gordo na cintura, mas não há tecido adiposo entre suas orelhas. Durante dois dias não parou um minuto, entrando no escritório e saindo logo depois, dando telefonemas apressados, requerendo mandados de busca e não sei quantas coisas mais. Na terceira manhã me mandou convocar uma entrevista com a imprensa.
Isso era uma maneira engraçada de falar. Em Circleville temos somente um jornal e uma estação de rádio, de modo que a imprensa se resume normalmente em dois sujeitos no máximo: Johnny Martin do Chronicle e Abe Calhoun, redator do noticiário da rádio. De qualquer modo, os dois se apresentaram às duas da tarde, conforme eu convocara, e levei-os para o gabinete do xerife. Ele estava sentado atrás de sua escrivaninha e havia trocado a venda por uma nova. Nós três nos sentamos no surrado sofá de couro.
O xerife não perdeu tempo.
- Boa tarde, rapazes. Vocês dois me têm malhado por causa de um caminhão que foi assaltado há alguns dias, não é mesmo? Insinuaram que esta delegacia anda inventando crimes, a fim de capitalizar vantagens políticas ao resolvê-los. Acusaram-me de não sermos apenas ineficientes, mas ainda por cima trapaceiros.
- Espere um pouco, xerife. Não foi bem assim - interrompeu Johnny.
- Cale o boca. Quero relatar a vocês alguns pequenos fatos a respeito do tal assalto. Fatos, notem bem, não meras opiniões, como vocês costumam fazer. Antes de mais nada, quero dizer que, se eu não fosse um sujeito decente, poderia também espalhar uma porção de coisas a meu respeito, a propósito desse caminhão encontrado aqui em frente do xerifado. Poderia dizer, por exemplo, que a cena foi arranjada deliberadamente, não por nós, para parecermos eficientes, mas por nossos adversários políticos, para nos ridicularizar - justamente o que vocês dois estão fazendo como se fôssemos os responsáveis. Mas não sou dos que fazem acusações sem base. Apresento fatos. Vamos lá. Primeiro fato: Aquele caminhão não ficou estacionado em frente ao xerifado porque alguém quisesse debochar do xerife. Estava aqui simplesmente porque não tinha outra solução.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Abe Calhoun sem muito interesse. Até então a exposição do xerife lhe parecera um discurso político de má qualidade.
O xerife Blore mencionou então o detalhe da altura do arco sob a via férrea, na Front Street, bem perto do xerifado. Os dois mostraram-se um pouco mais interessados.
- Bem - prosseguiu Blore - supõe-se que o xerife deste povoado, faça algo mais do que recuperar coisas roubadas. Espera-se que ele prenda os ladrões também, não é mesmo? No caso das televisões, fiz justamente isso.
Agora eles estavam prestando a máxima atenção. Johnny Martin chegou até a tirar da pasta um bloco de papel e um lápis. O xerife continuou sua exposição:
- Antes que eu conte a vocês quem foi que roubou o caminhão, vou explicar como foi que descobri os criminosos e qual foi meu raciocínio, para que vocês vejam como trabalha um xerife eficiente. Não estou certo? - perguntou, esticando o elástico de sua venda, como se quisesse dar mais ênfase às palavras. - Pois bem. Uma coisa me chamou logo a atenção nesse assalto e não me saiu da cabeça: Tratava-se do trabalho de amadores, não de assaltantes profissionais. Deixando os motoristas presos na vala, praticamente à vista de quem passasse; escolhendo mal o trecho da estrada, perto do bueiro, onde quase ficaram com seu Chevrolet amassado pelo caminhão; cobrindo o rosto com meias de mulher, como se fossem um bando de crianças brincando de bandido; a inexperiência do motorista escolhido para guiar aquele enorme caminhão... tudo isso são indícios de um trabalho amadorista. Entretanto, o fato mais surpreendente foi que os assaltantes somente tarde demais se deram conta de que o caminhão não poderia passar por baixo do arco aqui na Front.
- Mas como chegaram a essa conclusão? - perguntou Johnny Martin. - Por que ao menos não tentaram passar?
- Olhem, é preciso convir que, mesmo se tratando de amadores, eles devem ter estudado o assalto com alguma antecedência, certo? Por isso, sabiam que o transporte de televisões Universal era feito pela rodovia 26, em caminhões da Royal, duas vezes por semana, desde Tri-Cities até Chicago. E provavelmente sabiam a hora em que os caminhões da Royal passavam pelo Trevo Donaldson. Então escolheram esse ponto para deter o caminhão e esconder os motoristas. Também é quase certo que planejaram o itinerário de fuga, incluindo naturalmente a passagem pelo arco da Front Street. Estão me acompanhando?
- Mas o senhor não respondeu à pergunta de Johnny - ponderou Abe.
O xerife sorriu para ele, com ar paciente.
- Respondi, sim. Apenas está parecendo que vocês não são suficientemente espertos para perceberem onde estava o furo do plano. Os assaltantes haviam planejado roubar uma carga de aparelhos de televisão transportada por um caminhão igual a todos os outros que eles cansaram de ver trafegando pela 26, na direção do Trevo Donaldson, com sua carga de televisões Universal. Como, porém, eram amadores e, conseqüentemente, muito afobados e nervosos, quando realizaram o assalto não perceberam que o caminhão assaltado era novinho em folha e maior do que aqueles que foram observados na fase de planejamento. Somente quando viram a passagem inferior surgir na frente deles, com seu enorme letreiro alertando que o vão vertical tinha apenas 3,80m, foi que o motorista se lembrou do aviso pregado no painel, bem sob seus olhos, recomendando atenção para a altura do caminhão. Foi aí que eles reconheceram que estavam fritos. Então, abandonaram o caminhão, a carga e tudo o mais.
- Se fosse eu - disse Johnny - teria ido buscar um caminhão menor, capaz de passar pelo arco sob a via férrea, baldearia a carga e me mandava.
Os assaltantes poderiam ter feito justamente isso - disse o xerife com um sorriso - se não houvesse o fator tempo. Desta vez Abe Calhoun percebeu a alusão:
- O senhor quer dizer que já era dia claro quando eles chegaram aqui, sendo portanto impossível transferir a carga bem em frente ao xerifado? Sem que alguém desconfiasse - acrescentou, sorrindo também.
- Isso mesmo - disse o xerife. - Ou reconhecesse os ladrões.
Johnny Martin não se conteve mais:
- Quem são eles, xerife? Queremos os nomes dos autores do assalto. Confessamos que o senhor é supereficiente, mas diga logo quais foram os assaltantes.
- Calma, mocinho - respondeu o xerife. - Vocês vão ouvir o resto da história para aprenderem a ser justos. Onde estava eu?
- O fator tempo - lembrou Abe.
- Isso mesmo. Foi também o tempo que me deu outra pista. Cheguei à conclusão de que se tratava de um crime local, isto é, cometido por alguém de Circleville ou pelo menos com cúmplices aqui.
- Como foi isso? - perguntou Johnny, agora tomando notas.
- Depois que clareasse o dia, os dois motoristas que estavam amarrados na vala não demorariam a ser descobertos. Nada mais evidente. E uma vez descobertos, imediatamente seria dado um alarme geral, fornecendo as características do caminhão roubado. Assim, concluí que os assaltantes esperavam estar com o caminhão fora da estrada e devidamente escondido antes que amanhecesse, entenderam? Infelizmente para eles, a reduzida altura do arco impediu que chegassem ao esconderijo. Muito bem. Mas o próprio fato de terem utilizado a Front Street como itinerário de fuga reforçou minha convicção de que o crime era local. É que a Front desemboca na rodovia 67, a uns 500 metros depois de atravessar a via férrea, e, como vocês sabem, a 67 não leva a nenhum lugar onde alguém possa livrar-se rapidamente de uma carga de aparelhos de televisão valendo mais de 50 mil dólares. Para uma operação desse vulto, é preciso ir a Chicago ou outra grande cidade, onde exista um bom mercado negro. Ora, a 67 conduz apenas a Dempsey City e a uma série de fazenda na parte sul do Estado. Vocês estão acompanhando meu raciocínio?
Abe e Johnny acenaram com a cabeça.
- Perfeitamente. Sua exposição é bastante clara - disse Abe.
- Muito bem. Comecei então a refletir sobre o seguinte ponto: para onde estaria indo o caminhão roubado, se pretendia passar pelo arco da Front? Obviamente para algum lugar suficientemente grande, capaz de escondê-lo, enquanto os assaltantes o disfarçavam alterando a pintura, ou transferiam a carga para outro caminhão, ou ainda guardavam as televisões para venderem mais tarde. Correto? Pois imaginem o que foi que encontrei na 67, a uns seis quilômetros daqui? Um enorme galpão de uma velha fazenda. É a única construção entre Circleville e Dempsey City com capacidade para esconder o caminhão; é a única também onde os assaltantes poderiam chegar antes que o dia clareasse.
Abe e Johnny se entreolharam, procurando descobrir que lugar era aquele a que o xerife se referia, mas não tiveram de esperar muito.
- Outro detalhe interessante - continuou ele - foi que o velho galpão estava sendo utilizado como oficina de lanternagem de carrocerias, com equipamento pulverizador para pintura, tintas, etc.
- A garagem de Weldon! - exclamaram Abe e Johnny ao mesmo tempo.
- Exatamente. E não era só o equipamento de pintura que encontrei por lá. Levei um mandado de busca e pessoalmente vasculhei todo o local. Encontrei as seguintes provas interessantes...
O xerife fez uma pausa, esperando que Johnny virasse a página de seu caderno de notas, e continuou:
- Primeira: um Chevrolet de quatro portas, azul-marinho, com capo de vinil branco, uma figurinha de cachorro no vidro traseiro, somente um encosto para a cabeça no banco do motorista e o registro em nome de Arthur Weldon. Segunda: uma espingarda de dois canos, calibre 16. Terceira: uma pistola automática 45, descarregada mas bem azeitada, com certeza um souvenir de guerra. Quarta: um sujeito chamado Arthur Weldon Júnior, não tendo o indicador da mão direita. E quinta: um pobre-diabo que vive de expedientes, conhecido como "Ganso" Hervey, que gagueja um pouco.
- Art Weldon e seu filho! - exclamou Calhoun. E "Ganso" Hervey,! Onde estão eles agora, xerife?
- No xadrez, ora essa! - replicou o xerife, referindo-se aos dois quartos com janelas gradeadas que temos nos fundos do edifício da Prefeitura e que geralmente estão vazios. - Antes que eles pudessem impedir, "Ganso" Hervey contou tudo. Ele achava que o assalto era uma grande aventura.
- Por que eles foram pegar o pobre "Ganso"? - perguntou Johnny. - Ele é meio pateta.
- Precisavam de alguém para guiar o Chevrolet. E "Ganso", naturalmente, prometeu não falar nada, mas não pôde deixar de vangloriar-se um pouco.
Johnny tentou fazer um comentário sobre processos para obter confissões, mas o xerife olhou para ele severamente e declarou:
- "Ganso" foi informado de seus direitos e havia um advogado presente. Mais alguma coisa?
- Por que - perguntou Abe - os Weldons tentaram roubar um caminhão cheio de aparelhos de televisão? Eles tinham uma boa oficina instalada lá.
- Mas não rendendo o suficiente para pagar os 20 mil que Art tinha perdido no jogo. O filho nos contou isso. E agora - acrescentou depois de uma pausa - se vocês ainda pensam que o xerife deste povoado é mole e ineficiente, podem continuar dizendo isso no jornal e na rádio. Caso contrário, acho que a única coisa decente que lhes resta fazer é contar a história tal qual aconteceu. Certo?
Johnny e Abe se levantaram.
- É o que faremos - prometeu Johnny. - Mais uma coisa, xerife: peço desculpas por aquelas insinuações que escrevi. Mas o senhor há de concordar que foi um lugar muito esquisito para estacionar um caminhão roubado.
Os dois saíram. Arrisquei um comentário, dizendo para o xerife que os rapazes iriam cumprir a promessa.
Eles realmente assim fizeram. Mas alguém é capaz de adivinhar qual foi o retrato que eles usaram no jornal? Não foi o do xerife, para desgosto dele, nem o meu, embora tivesse sido eu quem realmente descobriu a parte principal.
Não. Eles publicaram o retrato daquele garoto de cabelos vermelhos, com um dente torto na frente. Don Start.


Bill Pronzini
A ESTATUETA DE JADE
La Croix não havia mudado muito desde o tempo em que o vi pela última vez. Ainda tinha o mesmo sorriso insinuante. Sentamo-nos em uma mesa no fundo do Bar dos Marinheiros, perto do Rio Cingapura. Eram 11:30 da manhã.
La Croix limpou uma imaginária mancha na manga de seu terno de tropical branco.
- Você aceita, mon ami?
- Não - disse eu.
O sorriso dele desapareceu.
- Mas lhe ofereci uma grande quantia.
- Isso não tem nada a ver com a recusa.
- Não compreendo.
- Não estou mais nesse negócio. O sorriso voltou.
- Você não fala sério, é claro.
- Tenho cara de quem está brincando? O sorriso fugiu outra vez.
- Mas você tem de me ajudar. Talvez se eu lhe contasse que...
- Não quero ouvir sua história. Há outros em Cingapura. Por que não fala com um deles?
- Você e eu fizemos muitas coisas juntos - argumentou La Croix. - É o único em quem posso confiar. Dobrarei minha oferta. Sou capaz até de triplicá-la.
- Já lhe disse. O problema não é o dinheiro.
- Mon ami, estou-lhe pedindo! - exclamou ele, seus olhos de uma cor verde-cinza fitando-me ansiosamente; gotas de suor brotavam em sua testa.
Já havíamos realmente feito alguns trabalhos antes, mas eu não lhe devia nada. Mesmo que pudesse, não o ajudaria agora. Resolvi ser mais enérgico.
- Minha resposta é não, La Croix - disse com voz pausada. - Lamento, mas é a minha decisão. Espero que encontre outra pessoa.
Levantei-me, afastei a cortina de contas e pedi uma cerveja gelada.
La Croix avançou até a cortina e me pegou pelo braço.
- Peço que reconsidere essa decisão, M'sieu Connell - murmurou. - Vou correr um grave perigo se permanecer em Cingapura.
- La Croix, quantas vezes terei de repetir? Não há nada que eu possa fazer por você.
- Mas eu já...
Interrompeu a frase, os olhos postos nos meus, como se procurasse ler o que eu tinha em mente; depois, voltou-se e foi embora.
Terminei de beber minha cerveja e fui enfrentar o que os malaios chamam onda quente, o calor opressivo e irritante que faz em Cingapura ao meio-dia. Havia alguns turistas europeus na rua, falando animadamente, tirando fotos como é a mania deles; os nativos, porém, tinham juízo suficiente para se abrigarem onde estava mais fresco.
Caminhei na direção da margem do rio. A água era escura, de um verde oleoso. A parte mais estreita estava, como sempre, coalhada de sampanas, prahus, pequenas jangadas chinesas feitas de bambu, e as pesadas chatas tong-kangs, ou barcaças. Havia no ar um cheiro constante de lixo em decomposição, misturado com o de maresia, gasolina, borracha e perfume adocicado de jasmim. Os telhados de cerâmica que cobrem a maior parte dos edifícios de Cingapura reluziam sob o sol nos dois lados do rio.
Caminhei ao longo do cais até chegar a um pequeno depósito. Ali encontrei, sem dificuldade, Harry Rutledge, um inglês corpulento e alegre, que supervisionava a descarga de uma barcaça atulhada de copra.
- Há uma vaga para mim hoje, Harry? - perguntei.
- Desculpe, meu velho. Há uma porção de cules trabalhando nesta descarga.
- E amanhã?
Ele esfregou o narigão vermelho.
- Vamos receber uma carga de óleo de palmeira que está por chegar - disse ele, depois de pensar um instante. - Umas sobras, aguardando transbordo. Posso empregar você nisso.
- A que horas é esperada a chata?
- Onze, provavelmente.
- Estarei aqui.
- Está bem, meu velho.
Voltei sobre os meus passos pela margem do rio. Na verdade, nunca me habituara com aquele calor, mesmo depois de 15 anos no Mar Meridional da China. Fiquei com vontade de tomar outra cerveja gelada, mas decidi que seria melhor se primeiro comesse alguma coisa. Estava de estômago vazio.
Ao longo do cais havia diversas lanchonetes. Entrei na primeira que apareceu e sentei-me num daqueles tamboretes altos, sob uma tenda de lona. Pedi shashlick, arroz e um prato de mangostão. Mal havia acabado de descascar a fruta, os três homens entraram na lanchonete, caminhando lado a lado.
Os dois nas extremidades eram de um moreno escuro, com os semblantes carregados e olhares atentos. Ambos trajavam terno de linho branco.
O homem do meio aparentava uns 50 anos, era baixo e muito gordo; sua pele parecia coberta por uma camada de farinha cor-de-rosa. Sua nacionalidade era provavelmente belga ou holandesa. Também estava de branco, mas qualquer semelhança entre sua roupa e a dos outros dois se resumia na cor. O terno impecavelmente cortado, a camisa de seda, os sapatos feitos à mão, cuidadosamente lustrados, completavam sua indumentária. No dedo mínimo da mão esquerda usava um enorme anel de ouro com uma pedra de jade sob a forma de uma cabeça de leão - simbolizando, acho eu, a Cidade do Leão.
Ele se sentou cerimoniosamente no tamborete ao lado do meu. Os outros dois ficaram em pé.
O homenzinho gordo sorriu, como se tivesse encontrado um velho parente.
- É com o Sr. Connell que tenho o prazer de falar, não é verdade? - perguntou em inglês sem sotaque.
- Sou eu.
- Meu nome é Jorge Van Rijk. Continuei comendo o mangostão.
- Meus cumprimentos.
Ele achou a resposta divertida. Apareceram obturações de ouro quando riu, mas a risada tinha um som estridente que me fez correr um frio pela espinha.
- Você foi visto há pouco no Bar dos Marinheiros - disse Van Rijk - conversando com um conhecido meu.
- Foi mesmo?
- Foi. M'sieu La Croix.
- Interessante.
- Não é mesmo? Posso perguntar-lhe qual foi o assunto tratado?
Olhei no fundo de seus olhos:
- Não me parece que isso seja de sua conta.
- Ah, mas você se engana! É muito de minha conta.
- Então por que não pergunta a La Croix?
- Está aí uma excelente sugestão. Entretanto, parece que M'sieu La Croix está em... quero dizer, não foi encontrado.
- É uma pena.
- Assim, sou obrigado a perguntar a você.
- Desculpe, mas era um assunto particular.
- Compreendo - replicou Van Rijk, sorrindo e me estudando com seus suaves olhos azuis. - Informaram-me que você é um piloto de aviões.
- Então você foi mal informado.
- Acho que não. E foi por isso mesmo que La Croix veio falar-lhe.
- Verdade?
- Queria que você o levasse para fora de Cingapura.
- Ah! Era isso o que ele queria?
- E você aceitou a proposta dele?
- Que proposta?
- Quero saber para onde ele queria ir. Sacudi os ombros:
- Não poderia dizer-lhe...
- Para onde, Sr. Connell?
- Bem... Ele falou na Antártida, não me lembro o lugar. Dizem que lá é muito agradável nesta época do ano.
Ele se contraiu ligeiramente e replicou em tom gelado:
- Estou ficando aborrecido com este jogo de palavras, Sr. Connell. Seria mais prudente se me respondesse o que estou perguntando. Muito melhor.
- Não tenho que lhe dar satisfações - respondi, sem alterar o tom de voz. - Não sei quem é você, nem quero saber. Somente sei que não vou com sua cara, com seus modos e com suas insinuações. Fui bastante claro?
Vi que seus olhos mudaram. Não eram mais suaves.
- Não sou um sujeito com muita paciência, Sr. Connell. Quando perco a pequena pose que possuo, passo a ser um adversário incômodo. Normalmente, abomino a violência, mas há ocasiões em que não encontro outra alternativa.
- Acho que entendi - disse eu, apoiando as duas mãos bem abertas sobre a mesa e inclinando-me ligeiramente para ele. - Está bem, Van Rijk. Você já fez seu discurso. Agora, vou fazer o meu. Não vou levá-lo para lugar algum, se é isso o que você pretende. Estou certo de que seus dois guarda-costas, ou que diabo sejam eles, estão armados até os dentes, mas não creio que você vá deixá-los dando tiros num lugar freqüentado como este. Na verdade, não creio que você prefira qualquer tipo de encrenca. Seus rapazes entrariam nela também e acho que você sabe o que isso significaria. Será que você não se importa se passar algum tempo em uma penitenciária da cidade, por provocar distúrbios na rua, Van Rijk?
Suas bochechas rosadas se tornaram vermelhas de raiva. Os outros dois homens estavam prontos a se lançarem sobre mim. aguardando apenas um sinal de Van Rijk quanto à maneira de fazê-lo.
Ele se levantou de repente.
- Haverá outra ocasião, Sr. Connell - rosnou com os dentes cerrados - quando as ruas não estiverem tão cheias e o dia tão claro.
Depois rodou sobre os calcanhares e saiu arrogantemente, ziguezagueando entre as mesas, com os dois homens atrás dele. Logo depois os três desapareceram na confusão do cais.
Fiquei sentado ainda um tempo, pensando. Estava um pouco preocupado com as ameaças de Van Rijk, mas tudo bem podia não passar de um blefe. Acabei achando que me havia conduzido razoavelmente bem. Estava um tanto curioso a respeito de seu relacionamento com La Croix, mas não o bastante para deixar-me envolver no problema deles. Era qualquer coisa que me soava como familiar.
Levantei-me também e não pensei mais no assunto, decidindo que chegara a hora daquela cervejinha gelada.
"Há em Jalan Barat um bar chamado Jardins Malaios. O nome é totalmente enganador. Se algum dia foi cultivada uma flor, um simples arbusto num raio de 100 metros do bar, jamais me dei conta disso. Com uma fachada lembrando uma construção chinesa, seu interior, mais parecido com um celeiro, não justifica aquela impressão, tanto pela decoração - ou ausência dela - como pelos odores característicos dos lugares onde mora muita gente, misturados com o incenso perfumado.
Em resumo, Jardins Malaios não passa de uma espelunca que descobri há muitos anos e nem sei explicar por que continuo a freqüentá-lo mais ou menos regularmente. Talvez porque o preço de sua cerveja não tenha paralelo em moderação, qualquer que seja o bar da ilha, ou talvez porque lá se abriguem sujeitos como eu, que desejam um mínimo de conversa e um máximo de solidão para tomarem suas bebedeiras.
Pedi minha cerveja gelada naquela tarde e, depois de uma sesta em meu quarto e de um jantar num pequeno restaurante barato, resolvi retornar ao Jardins para uma porção generosa não apenas de sua solidão, mas também de sua cerveja; não havia muita coisa mais a fazer.
Já estava lá havia umas três horas, sentado a uma mesa no fundo e revolvendo velhos e inúteis pensamentos, quando notei pela primeira vez a presença da moça. Ela se encontrava em pé sob o arco da entrada e parecia estar olhando para mim, ou pelo menos na minha direção. Sua atitude parecia incerta, como se estivesse pronta a disparar ao menor sinal de qualquer confusão.
Fiquei observando seus movimentos por cima da borda de meu copo, mas depois de alguns instantes nossos olhos se encontraram. Sua boca fez um pequeno círculo e ela meio que se voltou na direção da rua, mas logo seu corpo se retesou, como quem toma uma resolução, e caminhou rapidamente para onde eu estava.
Enquanto ela se aproximava, vi que era uma garota alta, bem-feita de corpo; o rosto oval, perfeitamente simétrico, sugeria uma ascendência européia ou pelo menos ocidental. Os cabelos eram longos e ondulados. No ambiente enfumaçado do Jardins se tornava difícil calcular sua idade, mas achei que não passaria muito dos 21 anos.
Ela parou em frente à minha mesa, parecendo muito nervosa, muito constrangida ou talvez uma combinação das duas atitudes. Conseguiu balbuciar:
- O senhor é... Daniel Connell, não é mesmo? A voz refletia a incerteza de sua posição.
- Sim - respondi, sacudindo a cabeça.
- Será que posso falar com o senhor? Ê... é muito importante.
Indiquei uma cadeira vaga no outro lado da mesa e convidei-a para sentar.
- Nem sei como começar - disse ela. -- Não sou muito versada... neste tipo de coisas.
- Que tipo de coisas?
- Bem... - replicou ela, hesitando. - Intrigas, acho que é como chamam.
Não pude deixar de sorrir.
- É uma palavra muito melodramática.
A voz dela passou a ser quase um sussurro:
- Sr. Connell, disseram-me que o senhor de vez em quando faz certos... certos favores para algumas pessoas.
- Favores? Não estou entendendo.
Ela mordeu o lábio inferior. Depois, em uma catadupa, como se quisesse livrar-se da pressão das palavras:
- Disseram-me que o senhor é piloto, um piloto que trabalha por empreitada, transportando pessoas para qualquer lugar onde queiram ir, sem perguntar por que procedem assim, desde que lhe paguem bem.
Fiquei em silêncio durante uns momentos, depois perguntei:
- Quem lhe disse isso?
- Certas pessoas... pessoas com quem falei.
- Que pessoas?
- Não sei o nome delas. Eram várias. Tentei ser bastante discreta a respeito disto, mas não sou muito boa nessas coisas. Andei perguntando ao longo do cais e na Raffles Square se havia alguém em Cingapura que fosse capaz de me levar daqui, sem fazer uma porção de perguntas, e várias pessoas disseram que Daniel Connell era o homem que eu devia procurar; informaram que provavelmente o encontraria aqui à noite, de modo que...
Sua voz apagou-se e ela baixou os olhos, fitando as mãos. Esvaziei meu copo e então perguntei:
- Para onde pretende ir?
- Para as Filipinas - respondeu ela. - Luzon.
- Os seus informantes erraram ao dizer-lhe que não faço perguntas. Por que você quer ir para Luzon com tamanha pressa? E por que tão secretamente?
Ela hesitou, como se avaliasse o grau de confiança que eu merecia. Afinal, murmurou à meia voz:
- Trata-se de... de meu pai.
- Seu pai?
- Recebi um telegrama esta tarde, ao voltar para meu hotel. Era da... da polícia de Luzon. Dizia que meu pai fora preso. Houve lá ultimamente uma série de atos terroristas e a polícia acha que ele está envolvido com uma espécie de organização comunista, responsável por esses atos. - Respirou profundamente; fiquei com a impressão de que ela precisava desesperadamente de alguém em quem confiar. - Não é verdade! Não pode ser! Conheço meu pai. É um patriota e um individualista; jamais se misturaria com essa gente.
Fiquei calado durante algum tempo. Depois, lentamente, pedi:
- Acho que é melhor você começar do princípio. Por me dizer o seu nome, por exemplo.
Novamente ela mordeu o lábio inferior.
- Tina Kellogg.
- Você está gozando férias em Cingapura?
- Mais ou menos isso. Acabei de me formar pela Universidade de Manila e achei que seria uma boa idéia uma viagem de turismo pelo Oriente,, antes de assumir um cargo que me ofereceram em Luzon.
- É lá que você mora?
- Sim.
- E seu pai? O que faz ele?
- Trabalha no ramo de importação-exportação; é realmente um pequeno negociante com poucos fregueses europeus e americanos. É justamente por isso que chega a ser ridículo pensarem que ele está metido com guerrilhas comunistas. Que vantagens teria nisso?
A pergunta era retórica. Perguntei pacientemente:
- Entendo que você queira voltar para casa imediatamente, mas por que não viaja num desses vôos diários para as Filipinas?
- Não tenho dinheiro para isso e não consegui crédito em nenhuma das companhias de aviação. Meu pai deveria ter-me mandado um cheque para atender as despesas do mês, porém aconteceu isso e... acho que não pôde.
- Você não pode telegrafar para sua casa, pedindo dinheiro? Para sua mãe ou outra pessoas da família?
- Minha mãe morreu quando eu tinha 11 anos. Papai é o único parente que me resta.
- E os sócios dele? Algum amigo pessoal? Ela sacudiu a cabeça, com ar desanimado.
- Não há ninguém. Talvez pudesse arranjar um empréstimo no banco de papai, mas isso levaria dias, talvez semanas. E não temos amigos íntimos em Luzon; somos muito fechados, entende? Mas mesmo que tivéssemos, eles não me ajudariam com medo de serem acusados de ligações com comunistas.
- E o Consulado filipino? Não tentou falar com o cônsul?
- Tentei. Fui lá imediatamente após ter recebido o telegrama, mas ninguém quis me ajudar. Disseram que se meu pai andava metido com guerrilheiros, eles nada poderiam fazer. Argumentei que se tratava de um engano, mas de nada adiantou.
- Entendo - repliquei, enquanto rodava lentamente meu copo na tábua da mesa. Apesar da meia-luz do ambiente, eu podia ver o apelo nos olhos de Tina. Decidi ignorá-lo: não havia outro jeito - Tina, lamento muito; gostaria de ajudá-la, mas não há nada que possa fazer. Não vôo mais e o que disseram a meu respeito é puro boato. Já há dois anos que não piloto um avião.
- Mas vou-lhe pagar, juro que vou - disse Tina, com uma nota de desespero na voz. - Depois que eu chegar lá, posso arranjar dinheiro no banco de meu pai...
- Não quero ser grosseiro, mas não me obrigue a repetir minha negativa. Não posso ajudá-la. É simplesmente isso.
- Então... então o que é que vou fazer? - balbuciou ela, já quase chorando.
Senti raiva de mim mesmo, mas eu já tinha um bocado de peso para carregar.
- Vamos - disse-lhe carinhosamente. - Vou chamar uni táxi para levá-la ao hotel. Talvez aconteça alguma coisa boa até amanhã.
- Não... sei que não.
- Tina, o que você está pedindo não é uma solução conveniente. Se eu concordar em fazer o que você quer, ou se arranjar outra pessoa para levá-la, você está violando a lei. Não vá arranjar mais complicações. Ouça o que lhe digo, pois é um bom conselho. Se eu fosse você, voltaria ao consulado filipino pela manhã e não sairia da porta do gabinete do cônsul. Ele dará um jeito de embarcar você, posso garantir-lhe.
A princípio, julguei que ela fosse protestar, implorar, mas Tina deu um suspiro de resignação e levantou-se. Peguei-a pelo braço e acompanhei-a até à rua.
Já estava bem escuro - os postes de iluminação em Jalan Barat são muito espaçados - e o ar da noite conservava o mesmo calor úmido da tarde. Havia poucos automóveis circulando, Eu sabia que no quarteirão seguinte havia um ponto de táxi e guiei Tina nessa direção. Ela me olhou uma vez, como se fosse dizer alguma coisa, mas parece que se arrependeu e caminhou em silêncio.
Mal tínhamos alcançado o quarteirão seguinte, quando ouvi o ruído do automóvel descendo a Jalan Barat, atrás de nós, a toda a velocidade. Virei a cabeça, curioso, e vi um pequeno automóvel inglês quando ele justamente chegava na esquina. Ouvi um guincho, os pneus gemeram sob a ação dos freios, o motorista torceu a direção violentamente fazendo o carro derrapar e subir na calçada, a uns 10 metros do lugar onde Tina e eu nos encontrávamos.
As duas portas da frente se abriram simultaneamente e logo saltaram dois homens. Sob a luz mortiça de um luar tropical, pude ver claramente o rosto dos dois. Eram os mesmos que acompanhavam Van Rijk naquela tarde.
Mal tive tempo para pensar que ele estava, afinal, cumprindo sua ameaça. Empurrei Tina para um lado, bem no momento em que o motorista me atacou. Seu braço direito apontava meu corpo, com a mão espalmada, no jeito de um golpe de caratê. Levantei meu braço esquerdo e bloqueei seu golpe. A força da impulsão fez com que ele perdesse o equilíbrio, tornando-o vulnerável. Bati em seu estômago com toda a força de meu punho direito, logo abaixo do esterno. Seus pulmões ficaram sem ar. Ele cambaleou para trás, fazendo esforços para não vomitar, e sentou-se ofegante na calçada.
Seu companheiro já então havia chegado, mas vendo o motorista cair, parou. Vi que ele procurava qualquer coisa sob o casaco de linho branco. Avancei rapidamente contra ele e golpeei-o duramente nos rins. O homem deu um grito de dor e ouvi o ruído metálico, como se um revólver ou um punhal tivesse caído na calçada. Dei-lhe com toda a força dois rápidos socos no rosto, fazendo com que ele girasse sobre si mesmo e então bati com a ponta de meu cotovelo em seus rins. O golpe atirou-o cambaleando para a frente, até chocar-se com o carro e deslizar lentamente até ao chão, onde ficou imóvel.
Olhei de novo para o motorista, mas ele estava ainda sentado na calçada, apertando o estômago com as duas mãos. Procurei voltar à calma, respirando profundamente. Não havia sinal de Tina. Toda aquela cena deveria tê-la assustado e senti pena da moça, que já tinha suficientes problemas.
Ouvi gritos vindos do Jardins Malaios e, quando procurei saber do que se tratava, várias pessoas começaram a correr em nossa direção. A princípio achei que deveria esperar os policiais e contar-lhes a história, mas logo desisti. Quanto menos contato eu tivesse com eles, melhor para mim. Mesmo que já tivessem decorridos dois anos desde minha última complicação, as lembranças perduram no Mar Meridional da China.
Se eu fosse fazer alguma coisa contra Van Rijk, tinha tempo para resolver. Assim, comecei a andar ao encontro das pessoas que vinham correndo do Jardins. Um homem de cabelos grisalhos, que vinha na frente, perguntou-me, ofegante:
- O que aconteceu aqui?
- Um acidente - disse eu. - Bem perto de mim.
- Mas o senhor está bem? - perguntou, olhando-me de alto a baixo.
- Acho que sim - respondi, continuando a caminhar.
- E onde vai agora?
- Avisar a polícia.
Ele pareceu satisfeito com a resposta e o grupo se desinteressou por mim, passando a examinar os dois homens que estavam no automóvel. Atravessei a rua e dobrei a esquina, dirigindo-me para oeste sem olhar para trás.
Alguém estava batendo na porta.
Afastei o lençol úmido de suor e abri os olhos. Já era de manhã e o sol, visto através da janela do quarto de meu apartamento no bairro chinês, parecia uma bola vermelha suspensa por fios incandescentes. Tornei a fechar os olhos e permaneci imóvel, ouvindo as batidas impacientes. Isso durou alguns minutos, sem que eu me movesse, mas, quem quer que fosse o visitante, continuava insistindo.
- Está bem - disse eu por fim. - Já vou abrir.
Abri o mosquiteiro e saltei da cama. Espreguicei-me e fui até à cadeira de palhinha no canto do quarto. O ventilador sobre a mesinha havia parado durante a noite, o que explicava aquele cheiro de ar confinado. Vesti minhas calças caqui e fui abrir a porta.
Deparei com um homenzinho magro, bem moreno, debaixo de um capacete branco e trajando bermudas também brancas, com meias que quase lhe alcançavam os joelhos, sapatos pretos e uma jaqueta de mangas curtas. Estava na posição de sentido, muito orgulhoso de seu uniforme, como acontece com um malaio nativo quando promovido a oficial.
- O senhor é Daniel Connell? - perguntou.
- Sim.
- Sou o Inspetor Kok Chin Tiong, da polícia de Cingapura. Gostaria de trocar umas palavras com o senhor.
- A respeito do quê?
- Posso entrar?
- Se não reparar na desarrumação - repliquei, saindo da frente dele.
O policial entrou e se deteve no meio do quarto, olhando ao redor. Depois, esperou que eu fechasse a porta e encarou-me, com uns olhos parados.
- O senhor conhece um francês chamado La Croix, Sr. Connell?
Fui até a mesinha e tirei um cigarro do maço que eu deixara lá.
- Por quê? - perguntei.
- Conhece?
- Talvez.
- Temos informações seguras de que o senhor conversou um bocado de tempo com ele ontem.
Achei que era melhor não implicar com ele.
- Está bem. Conheço, sim.
- Intimamente?
- Estivemos juntos algumas vezes.
- Conhece-o há muito tempo?
- Uns dois ou três anos.
- Por que houve o encontro de ontem?
- Ele me procurou.
- Com que fim?
- Queria contratar-me.
- Para fazer o quê?
- Levá-lo de avião para fora de Cingapura.
- Qual o lugar de destino?
- Não me disse.
- Cingapura tem uma excelente rede de vôos comerciais para todas as grandes cidades - observou Tiong incisivamente.
- Talvez não tivesse encontrado vaga.
- Foi esse o motivo que ele mencionou?
- Não foi mencionado motivo algum.
- E o senhor concordou com o que ele queria?
- Não.
- Por quê?
- Não piloto mais.
- Ah, sim! - disse Tiong. - Houve um acidente, faz mais ou menos dois anos, não é verdade? Um acidente com seu avião.
- Sim - respondi secamente. - Houve um acidente.
- O senhor era, nessa época, co-proprietário de uma empresa de transporte aéreo de carga, a Connell & Falco - Transportes Aéreos. O avião, pilotado pelo senhor, acho eu, acidentou-se, certa noite, em condições muito estranhas, num setor remoto da selva de Penang. O senhor se salvou, tendo sofrido apenas leves escoriações, mas seu sócio, Lawrence Falco, morreu no local.
Apertei os lábios com força, nada respondendo.
- O que estavam os dois fazendo naquela região de Penang, Sr. Connell? E àquela hora da noite? Não havia plano de vôo autorizado para essa viagem.
- Houve uma investigação completa na época - repliquei. - Dei meu depoimento. Basta ler no processo.
- Já fiz isso - disse ele, sorrindo levemente. - Houve muitos boatos de que o senhor e seu sócio estavam envolvidos em negócios de contrabando. Entre outras coisas.
- Nada disso foi provado.
- Realmente, a carga do avião ficou totalmente carbonizada - replicou Tiong - mas, apesar de tudo, sua licença foi revogada.
Eu já suportara o suficiente.
- Olhe - disse-lhe eu. - Não sei por que o senhor veio aqui, inspetor, mas o que fiz ou deixei de fazer há dois anos é um assunto morto, tão morto como Larry Falco. Nunca mais pilotei um avião desde esse dia e não pretendo recomeçar. Agora se não se incomoda, eu gostaria de lavar-me e vestir-me.
Seus olhos negros fitaram-me durante um momento, depois ele cruzou as mãos nas costas e foi até à janela, onde ficou olhando a Punâang Street e a movimentação dos chineses, de um lado para outro. Após alguns minutos, disse pausadamente:
- Gostaria de saber o que o senhor fez ontem à noite.
Contei-lhe. Então ele me perguntou a que horas eu havia chegado ao Jardins Malaios e quanto tempo ficara lá. Disse-lhe isso também. Ele cocou o lábio superior com a ponta de um dedo e perguntou:
- O senhor conhece a Estrada da Costa Leste, perto de Bedok, Sr. Connell?
- Mais ou menos.
- O seu amigo francês foi encontrado lá, pouco depois de meia-noite. Estava morto já havia umas três horas. Muito machucado e depois liquidado com uma bala, disparada contra sua cabeça por uma arma de calibre 25.
Bem lentamente, amassei a ponta de meu cigarro no cinzeiro de vidro que estava sobre a mesinha.
- O que quer o senhor dizer com muito machucado?
- Torturado. Metodicamente, segundo as aparências, e com requintes de sadismo.
Senti um calafrio percorrer-me a espinha.
- E o senhor pensa que tenho alguma coisa que ver com isso, é assim?
Ele se afastou da janela e encarou-me friamente outra vez.
- E não tem, Sr. Connell?
- Já lhe disse o que fiz ontem à noite.
- Realmente. O senhor tem revólver?
- Não.
- Importa-se se eu revistar seu apartamento?
- Ã vontade - repliquei. - Mas vou dizer-lhe uma coisa. O senhor está perdendo seu tempo comigo. Não matei La Croix. Não tinha qualquer motivo para isso. Acho, porém, que sei quem é o responsável. Procure um sujeito chamado Van Rijk, Jorge Van Rijk, e faça-lhe as mesmas perguntas que fez a mim.
Os olhos de Tiong se estreitaram.
- O que sabe o senhor de Van Rijk?
Eu continuava não querendo envolver-me naquela história, mas a morte de La Croix e a maneira como, segundo Tiong, ele havia morrido, alteraram minha decisão.
- Tivemos uma conversinha ontem - disse eu. - Van Rijk também queria saber o que La Croix e eu havíamos falado. Neguei-lhe qualquer informação e ele fez algumas ameaças bem claramente. Ontem à noite, quando eu saía do Jardins Malaios. os dois homens que estavam com ele saltaram sobre mim. Feliz.-mente, não levaram vantagem.
- Entendo - comentou Tiong pensativamente.
- Pelo jeito, o senhor conhece bem Van Rijk? - perguntei.
- Muito bem.
- Quem é ele?
Tiong hesitou por um momento, depois sacudiu levemente os ombros e respondeu:
- Ostensivamente, Jorge Van Rijk é um negociante de fumo em Johore Bahru, mas temos razões para acreditar que ele tem interesses mais lucrativos... e mais ilegais. É também um apaixonado colecionador de obras raras de jade.
Tiong revelou este último detalhe como se eu devesse dar-lhe grande importância.
- De jade?
- Exatamente. O senhor naturalmente deve ter ouvido falar do recente roubo havido no Museu de Arte Oriental, não ouviu?
-' Não.
- A notícia foi publicada em todos os jornais.
- Não costumo ler jornal.
- No começo da semana passada - explicou Tiong - uma estatueta de jade branco, a Burong Chabak, de valor incalculável, desapareceu de uma exposição no museu. O roubo foi magistralmente executado, revelando uma meticulosa e inteligente preparação.
- E o senhor acha que Van Rijk está metido nisso?
- Temos quase certeza de que está, assim como o francês assassinado.
Comecei a ter uma idéia do que significava tudo aquilo. Eu sabia que La Croix havia passado alguns anos em uma prisão francesa, cumprindo pena por um roubo cometido. Ele era muito competente no assunto. E, pelo menos quanto sei, nunca ouvira falar naquela história de honra entre ladrões. Tudo estava me parecendo que La Croix tentara enganar alguém e o tiro lhe saíra pela culatra. Transmiti essa impressão a Tiong, mas ele não se surpreendeu, limitando-se a sacudir os ombros.
- Possivelmente.
- Van Rijk já foi ouvido?
- Ainda não conseguimos encontrá-lo. Tive uma idéia de repente:
- Escute, Tiong, se está de posse de todas essas informações, então por que anda atrás de mim? A menos que lhe tenha passado pela cabeça que eu estava mancomunado com La Croix.
- Essa possibilidade nos ocorreu - replicou Tiong calmamente. - Afinal, o senhor é tido por nós como envolvido em contrabandos. E foi visto conversando com o francês no próprio dia de seu assassinato. É claro que tudo isso despertou nossa curiosidade.
Senti certa raiva subindo por minha espinha até a nuca. Depois que se adquire uma reputação no Mar Meridional da China, ela fica rodando em torno da gente como um satélite; sempre que há uma encrenca e a polícia nos descobre dentro de um raio de 100 quilômetros do local, ela começa a nos importunar, como Tiong estava fazendo comigo. Arrematei friamente:
- Está satisfeito agora?
- Talvez sim, talvez não. O senhor não tem nada mais que gostaria de dizer-me?
- Não.
Ele ficou imóvel por uns instantes, tentando ler nos meus olhos; depois, parece que desistiu e disse:
- Muito bem. Não tomarei mais do seu tempo. Posso sugerir que o senhor não tente sair de Cingapura até que este caso seja resolvido?
- Não estava pretendendo sair.
Foi até à porta, abriu-a e saudou-me cortesmente, virando-se para mim:
- Então, selamat jalan, Sr. Connell.
- Pois sim - repliquei, batendo com a porta na cara dele.
O sol batia em cheio sobre as minhas costas nuas. As calças caqui estavam molhadas de suor e minha nuca ardia sob os efeitos da onda quente.
Empurrei outro barril de óleo de palmeira sobre o convés do tonk-kang até à prancha e daí para o cais. Um dos carregadores chineses o apanhou, colocando-o no seu carrinho de mão. Um velho caminhão estava estacionado mais adiante.
Enxuguei o suor de minha testa com as costas das mãos e comecei a sonhar com o gosto de uma cerveja gelada quando acabasse o serviço do dia. Era um pensamento consolador e estava me divertindo com ele quando Harry Rutledge veio ao meu encontro:
- Como vão as coisas?
- Mais uma hora e teremos terminado.
- Bem, há uma visita para você. Por sinal que muito impaciente.
- Visita?
- E um bocado boa. Vocês, americanos, têm uma sorte danada.
- Uma mulher?
Ele sacudiu a cabeça afirmativamente.
- "Preciso falar com o Sr. Dan Connell", disse-me ela. Urgente. Ora, não gosto que essas garotas andem rondando por aqui, atrás de meus empregados quando eles estão no trabalho. Mas, como disse, trata-se de algo especial e muito jovem também. Nunca pude dizer não para alguém assim.
- Você perguntou o nome dela, Harry?
- Tina. Tina Kellogg.
Não gostei da notícia. Estava convencido de que nunca mais a veria, depois de minha delicada mas firme recusa na noite anterior - sem falar no incidente em Jalan Barat.
- Está bem - disse a Harry. - Onde posso falar com ela?
- No meu escritório. Você conhece o caminho. -- Obrigado, Harry.
- Divirta-se, meu velho - replicou ele com um piscar de olhos.
Apanhei minha camisa e a vesti; depois, entrei no vasto armazém e, passando por cima de barris e engradados, cheguei ao pequeno gabinete de Harry.
Tina estava sentada numa cadeira de bambu perto da janela. Usava um tailleur branco, com a saia bem curta que deixava à mostra as pernas bem torneadas. À luz do dia, ela me pareceu mais velha do que eu julgara a princípio.
Quando entrei, ela se levantou, sorrindo um tanto embaraçada. Vi que seus olhos eram verdes e que havia neles uma angustiosa súplica.
- Sr. Connell, eu... eu lamento muito incomodá-lo, mas estava preocupada com o que aconteceu ontem à noite... aqueles homens...
Tentei tranqüilizá-la com um sorriso.
- Eram tigres de papelão. Há sempre esses riscos em Cingapura.
- Tem razão. Em todo o caso, eu não deveria ter fugido da maneira como o fiz, mas na verdade eu estava muito assustada.
- Você tomou a decisão certa.
- Obrigada - disse ela, voltando a sentar-se na cadeira e começando a torcer nervosamente as mãos.
- Vamos ser francos - comecei em tom amável. - Sua preocupação a meu respeito é muito lisonjeira, Tina, mas não creio que essa tenha sido a única razão de sua presença agora aqui. Estou certo?
Suas faces se enrubesceram.
- Eu... eu voltei ao Consulado filipino esta manhã, como o senhor me aconselhou, mas o cônsul está em Manila, numa conferência, e não voltará antes de uma semana. O homem que me atendeu repetiu as mesmas coisas que disse ontem. Eles não podem ajudar-me. Então...
De repente, começou a chorar. Seus ombros se sacudiram e grossas lágrimas lhe resvalaram pelo rosto. Fiquei parado, em pé, sem saber o que fazer. O que podia dizer-lhe?
O silêncio foi-se tornando pesado, pois ambos sabíamos o que viria a seguir. Dei-me conta do calor terrível que fazia ali. Por fim, Tina pediu com um fio de voz:
- Sr. Connell, por favor, ajude-me. Não esqueci o que o senhor me disse ontem à noite, mas não conheço ninguém mais em Cingapura. Não sei para que lado virar-me e, se não puder chegar em casa a tempo de ajudar meu pai...
- Tina - repliquei, o mais carinhosamente que pude - há sérias razões que me impedem de ajudá-la, a primeira das quais é que seria uma viagem inteiramente ilegal. Minha situação perante o governo aqui é bastante delicada, como se eu estivesse caminhando sobre uma camada de gelo muito fina. Já me avisaram que, se houver qualquer irregularidade de minha parte, serei considerado persona non grata. Além disso, quando lhe afirmei à noite passada que não piloto mais, estava falando a pura verdade. Não tenho mais licença para voar. Basta esta razão para impossibilitar o atendimento de seu pedido de levá-la para Luzon.
- Mas... umas pessoas com quem falei disseram que o senhor ainda tem um DC-3 escondido num hangar junto a uma pista abandonada da ilha. O avião ainda está lá? - perguntou ela, depois de enxugar os olhos.
Encarei-a durante um longo tempo, depois fui até à desarrumada escrivaninha de Harry. Sentei-me sobre uma borda e tirei um cigarro do bolso.
- Sim, ainda está lá.
- E então?
Fiquei examinando a situação com muito cuidado, metodicamente, pesando certas coisas que eu tinha em mente. Isso não é comigo, pensei. Não é problema meu. Não devo meter-me em complicações. E então disse:
- Está bem, Tina.
- O senhor vai ajudar-me?
- Vou ajudá-la.
-- Oh, Sr. Connell! Muito e muito obrigada - exclamou ela, levantando-se e colocando os braços ao redor de meu pescoço. - Nunca esquecerei o que está fazendo por mim!
Afastei-a delicadamente.
- Acho que não passo de um tolo incorrigível, mas se seu pai está sendo falsamente acusado, como penso que está, vale a pena correr o risco.
Os olhos dela agora continuavam úmidos, mas de gratidão e alívio.
- Quando poderemos partir?
- Terá de ser esta noite, lá pelas 11 horas. Seria imprudência tentar a decolagem durante o dia.
- Onde nos encontraremos?
Eu já havia pensado nesse detalhe.
- Você sabe onde é a esquina da Esplanada com a Cecil Street?
- Sei, sim.
- Então esteja lá às dez e meia.
- Fique descansado - disse ela, imóvel, olhando para mim; depois, com um gesto rápido, levemente, de filha para pai, beijou-me. - Obrigada, Sr. Connell - repetiu ainda uma vez e, segundos depois, atravessou o depósito e saiu por um dos portões, sob o sol brilhante da tarde.
Choveu no começo da noite, uma daquelas chuvas torrenciais que duram talvez duas horas e deixam no ar, como acontece com as chuvas de verão, uma impressão de limpeza e frescura; entretanto, às 10 horas, quando deixei meu apartamento, o calor já voltara a ser novamente opressivo.
Avistei Tina esperando no vão de uma porta perto da esquina, quando dobrei na Cecil Street. Ela trocara o tailleur branco, que usara de tarde, por umas calças caqui e uma jaqueta cinza. Depois de nos cumprimentarmos perguntei:
- E a bagagem, Tina?
- Assim fica mais fácil. Não quis chamar atenção. Mandarei buscá-la mais tarde.
- Está bem. Então é melhor irmos andando.
Chamei um dos táxis amarelos que enxameiam nas ruas de Cingapura. O motorista, um sikh barbudo, não fez qualquer pergunta, quando lhe disse para onde queríamos ir. Acho que ele não costumava ter muitos fregueses para aquele remoto setor da ilha, que eu acabara de mencionar, pois se trata de uma região pantanosa, com apenas alguns kampongs de pescadores nativos; entretanto, como todos os competentes motoristas do Mar Meridional da China, ele guardou suas impressões para si mesmo. Rodamos em silêncio.
Já eram 10:50 quando entramos na Estrada Kelang Bahru, que levava ao aeroporto abandonado, Mikko Field. A lua era uma laranja brilhante no céu escuro; a estrada, suficientemente iluminada, permitia andar com os faróis apagados.
Quando chegamos à trilha que levava à pista, o sikh diminuiu a marcha.
- O senhor quer que eu tente chegar a Mikko Field, sahib? A estrada está muito ruim.
- Avance o máximo que puder. Faremos o testo a pé.
- Sim, sahib.
Ele enveredou pela trilha, mal conservada, cheia de buracos e tomada em alguns pontos por uma vegetação alta. O carro se arrastou ainda por uns 500 metros. Finalmente, à luz do luar, divisei a longa e abandonada pista de concreto, sobre um aterro de uns três metros, construído ao longo do mangue. Em uma das extremidades, à nossa esquerda, avistavam-se uns velhos edifícios de madeira e, mais longe, um grande hangar abobadado. A pista fora abandonada desde a expulsão dos japoneses de Cingapura, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Poucas pessoas se lembravam dela, mas a pista ainda lá estava.
O sikh parou o táxi. A trilha se tornara intransitável; a vegetação, muito alta e densa, era agora reforçada por trepadeiras parasitas e arbustos espinhentos que formavam uma barreira mais eficaz do que uma obstrução deliberadamente construída. O sikh voltou a cabeça e me olhou.
- Não dá mais, sahib.
- Aqui está bem.
Tina e eu saltamos, mergulhando na noite. O ar estava agitado por ondas de mosquitos de toda espécie e se ouviam os guinchos das cigarras malaias. Sentíamos o cheiro da vegetação apodrecida e a umidade da chuva.
Paguei o sikh, agradeci-lhe e fiquei esperando que ele fizesse meia-volta e retomasse a trilha. Depois que suas luzes desapareceram, procurei de novo a pista.
Tina não havia pronunciado uma única palavra durante a viagem. Agora, ela perguntava, quase num sussurro:
- Para onde vamos? Fiz um esforço para falar:
- Faça de conta que...
Interrompi a frase, para escutar melhor. Era o roncar inconfundível do motor de um automóvel de quatro cilindros, engrenado em segunda, que se aproximava. Virei-me para olhar a trilha de acesso. Não consegui ver coisa alguma, apesar do luar, e o ruído agora era muito próximo. O carro deveria estar com os faróis apagados. Um calafrio percorreu-me a espinha.
- Alguém vem vindo aí.
- Mas quem pode ser? - perguntou Tina.
- Não sei ainda, mas tenho fortes suspeitas.
Peguei-a pelo braço e corremos para trás do aterro, mas com certeza fomos vistos, com nossos vultos projetados contra o céu. Os faróis se acenderam e ouvi o ruído característico das freadas bruscas. Sem diminuir a corrida, dobrei à esquerda, procurando a parte mais alta da vegetação à beira do aterro. Ouvi um grito rouco atrás de nós. Empurrei Tina mais para dentro do brejo paralelo à pista. Meus braços já estavam arranhados pelos espinhos, insetos que eu não via batiam-me no rosto e o capim mais alto tolhia meus passos.
Tínhamos andado talvez uns 50 ou 60 metros, quando a vegetação começou a rarear, deixando-nos sem proteção. Eu tinha a impressão que havia dois homens, possivelmente três, chapinhando no brejo atrás de nós. Olhei em torno de mim, procurando uma saída. À esquerda estava a estrada de acesso, relativamente sem vegetação naquela altura e iluminada pelo luar, passando ao lado das construções de madeira. Afastei essa solução imediatamente. A única que restava era a própria pista, e eu sabia que, se pudéssemos alcançá-la e encontrar um lugar para nos esconder haveria uma chance.
Empurrei Tina para a direita, esmagando uns arbustos e subindo a encosta do aterro. A terra estava escorregadia, por causa da chuva de véspera, mas conseguimos subir até a pista.
- Corra! - murmurei no ouvido de Tina.
Corremos os dois. Nossos sapatos enlameados escorregavam no concreto molhado. Ouvi outro grito atrás de nós e o som do tiro de uma pistola de grosso calibre. Olhei por cima de meu ombro. Dois deles já estavam na base do aterro, mas eu não podia divisar seus rostos. Um terceiro permanecia entre os faróis de um automóvel inglês, estacionado no ponto que havíamos atingido com o nosso. Era esse terceiro homem o que estava atirando e, embora não pudesse ver-lhe o rosto, sabia quem era ele - Van Rijk.
Continuamos correndo. Estávamos quase alcançando as construções. Ouvi ainda outro tiro, mas a distância já era muito grande.
A construção mais próxima era uma casa comprida retangular, de teto baixo, utilizada para alojamento do pessoal de serviço. Todas as janelas estavam com seus vidros quebrados, já devia fazer muito tempo, e algumas tábuas tinham apodrecido ou talvez sido arrancadas, deixando buracos escuros, como em uma boca onde faltam dentes. Em um dos lados havia uma espécie de choupana que parecia prestes a cair.
Levei Tina nessa direção e contornamos a construção retangular, caminhando abrigados por ela até a choupana. Na parte de trás, havia o buraco de uma tábua arrancada, como a boca de uma caverna.
Paramos por um instante, respirando fundo.
- Entre por aí! - ordenei.
Ela obedeceu imediatamente. Ajoelhou-se e passou pelo buraco para o interior da choupana. Segui logo atrás dela.
Tênues raios de luar se infiltravam pelo teto em ruínas e permitiam alguma visibilidade no interior. A choupana estava vazia e fora mantida fechada, conservando um calor úmido como o de uma estufa de orquídeas.
A respiração de Tina era ofegante. Ela se deixou cair de joelhos, com a cabeça abaixada. Deixei-a e arrastei-me pelo chão enlameado até a parte da frente da choupana. Olhando por uma das fendas das tábuas, podia divisar quase toda a pista.
Vi então os faróis - dois pares de faróis - deslocando-se pela estrada de acesso em alta velocidade. Senti que a tensão de meus nervos se afrouxara um pouco. Eu não podia ver a parte da estrada onde estava Van Rijk, junto ao carro inglês, mas avistei logo os outros dois homens, já na pista, a uns 50 metros de onde eu me encontrava. Eles estavam parados, olhando em torno, como procurando que rumo tomar.
O ruído de freadas bruscas, de portas batendo, de homens gritando chegou até meus ouvidos, quebrando o silêncio da noite. As sirenes não tinham sido ligadas. Parte da pista estava iluminada pelos faróis dos automóveis.
- O que é isto? - perguntou Tina, aproximando-se de mim para ver melhor. Já não estava mais ofegante. - O que está acontecendo?
- A polícia chegou, Tina.
- A polícia?
Procurei com os olhos os dois homens que estavam na pista. Um deles estendeu o braço, agachou-se e vi uma arma em sua mão; antes, porém, que pudesse usá-la, soou uma rajada curta e brusca de uma arma automática. O homem caiu de comprido. O outro virou-se para a direita, correndo em ziguezague. A arma automática disparou novamente. Ele foi jogado pelo lado do aterro, como um nadador saltando de uma plataforma. Ainda soaram três tiros de pistola e, logo depois, outra rajada da automática. Seguiu-se, então, um pesado silêncio.
Virei-me para Tina:
- Acabou tudo - limitei-me a dizer.
Os dedos dela fizeram pressão sobre meu braço.
- O avião -- murmurou. - Talvez ainda haja tempo de alcançar o avião, Sr. Connell...
Procurei levantar-me, apoiando as mãos sobre os joelhos, sem tirar os olhos dela.
- Não há avião algum, Tina.
O rosto dela estava na sombra e eu não podia ver-lhe os olhos.
- Eu não... não estou entendendo.
- Não há avião algum aqui - disse outra vez, destacando as sílabas. - Está fazendo agora dois anos.
Ela me encarou durante um longo minuto e então, subitamente, enfiou a mão na cintura, embaixo da jaqueta. Seu gesto foi tão rápido que não tive tempo para reagir, antes que ela estivesse com a arma apontada para o meu estômago. À luz do luar que se infiltrava por uma das frestas do teto, pude ver que era uma pistola automática de calibre 25, de fabricação belga. Disse lentamente:
- Foi com essa arma que você matou La Croix, depois de havê-lo torturado?
Ela se inclinou um pouco para frente e pude então ver-lhe o rosto. A garota assustada já não existia mais; em seu lugar estava uma mulher fria, calculista e perigosa.
- Está certo - disse ela. - Então você sabe.
-i Fiquei sabendo esta tarde, Tina. Na verdade, você representou muito bem, foi uma farsa bastante inteligente. Confesso que conseguiu enganar-me ontem à noite, no Jardins Malaios, e também durante algum tempo hoje de tarde. Mas então você cometeu um erro e não demorei muito a ver as coisas como realmente eram.
Olhei para a pistola. A mão não tremia. Continuei:
- Você disse que uma das pessoas com quem falara, havia mencionado uma pista abandonada onde eu costumava aterrissar um DC-3. Mas o que você não sabia nem podia saber era que somente três homens, além de mim, e possivelmente da polícia, tinham conhecimento de que, por uns tempos, eu guardava um avião no hangar lá existente. Um desses homens era o meu sócio na empresa de transporte aéreo de cargas, e está morto há dois. anos. Outro é um sujeito chamado Heinrich, que está cumprindo pena de 10 anos numa prisão de Jacarta, por assalto. E o terceiro, o único homem de quem você poderia arrancar a informação, era um francês chamado La Croix. Este, porém, andava escondido, procurando fugir de Cingapura, e certamente não se arriscaria a passear na Raffles Square. Não há hipótese de ter sido ele uma das pessoas com quem você disse que falou. Isso me levou a pensar, Tina, em uma porção de coisas e na maneira como elas se sucederam. Mas, para ter bastante certeza, fui ao Consulado filipino, depois que nos separamos esta tarde, e fiz algumas perguntas apropriadas. Lá ninguém ouvira falar de Tina Kellogg nem muito menos de um negociante que fora preso, acusado de conspirador comunista. Então, fui conversar com um inspetor chamado Tiong, na delegacia de polícia, e ele me forneceu algumas informações bem interessantes, tais como o fato de o seu verdadeiro nome ser Tina Jeunet, nascida no Canadá; ter sido acusada, embora sem que pudessem provar, de tomar parte no roubo de alguns diamantes valiosos na Inglaterra, há cerca de dois anos; e encontrar-se em Bruxelas, no mês de julho deste ano, quando um Gauguin original foi roubado de um colecionador belga. Também neste caso não houve provas, mas a polícia está convencida de que você foi cúmplice. Depois de analisarmos todos estes fatos, o inspetor e eu examinamos detalhadamente o roubo da Burong Chabak, a estatueta de jade do Museu de Arte Oriental. Sugeri então esta pequena armadilha hoje de noite e usei como isca o compromisso de levá-la para Luzon. Não contávamos que Van Rijk também mordesse a isca, mas acho que foi melhor assim. O combinado era prendê-la logo na esquina da Esplanada, se eu percebesse que você carregava a estatueta; o inspetor estava lá, esperando apenas que eu lhe fizesse o sinal. Fiquei um pouco confuso, quando vi que você não a tinha, nem pretextava qualquer motivo para que eu mandasse parar o táxi em alguma rua, de modo a poder apanhá-la. Foi então que me lembrei de uma coisa que La Croix começara a me dizer, anteontem, e que não lhe dei tempo para terminar. Hoje tenho a certeza de que ele tentara avisar-me que a estatueta estava escondida aqui em Mikko Field. Você não conseguiu arrancar esta informação dele e, por isso, veio procurar-me, a fim de descobrir o nome do velho aeroporto, sabendo que a Burong Chabak estava escondida nele.
Ela sorriu, encurvando o canto dos lábios com desprezo:
- Você vai me mostrar onde se encontra a estatueta. Agora mesmo.
- Não seja tola, moça. Toda a área está cercada de policiais. Você não conseguirá passar por eles.
- Nós passaremos por eles - replicou ela incisivamente. Sorri na escuridão.
- Se está pensando em usar-me como uma espécie de refém, desista da idéia. Eles não me dão a menor importância.
- Vamos tirar a prova disso.
- Não - repliquei. - Não vamos tirar prova alguma.
Ela esqueceu a pistola por um segundo e era isso exatamente o que eu estava esperando. Levantei a mão em que me apoiava sobre o joelho esquerdo e bati firme contra o cano da arma, atirando-a para cima. Houve um estrondo, quando ela instintivamente acionou o gatilho. Uma sensação de ferro em brasa percorreu meu antebraço, mas a bala foi alojar-se em uma tábua do teto. Torci o punho de Tina com minha mão direita e empurrei-a com violência. Ela deu um grito de dor e a arma caiu no chão.
Apanhei-a e, recuando dois passos, coloquei-a na cintura. A bala me ferira de raspão e, embora o braço me ardesse muito, senti que nada sofrerá de grave. Espiei por uma das frinchas. Quatro homens corriam agora pela pista. Um deles portava uma metralhadora e os outros estavam armados de pistolas. O Inspetor Kok Chin Tiong corria na frente. Olhei para trás e vi Tina Jeunet sentada no chão, com o ódio estampado no rosto.
- Vamos andando - disse-lhe eu.
Ela continuou imóvel. Sacudi os ombros. Sentia-me terrivelmente cansado e agora nada mais fazia diferença. Dirigi-me para o fundo da choupana e atravessei de cócoras o buraco por onde havíamos entrado. Ao aparecer do lado de fora, os homens que vinham pela pista me avistaram e diminuíram a corrida. Tiong se aproximou de mim, ofegante, e perguntou:
- Está bem, Sr. Connell?
- Estou. Nada de grave.
- E a moça?
- Ali dentro da choupana. Não está ferida, mas não acredito que seja fácil tirá-la de lá.
Tiong disse qualquer coisa em malaio para um de seus homens. O policial acenou com a cabeça e encaminhou-se para a choupana.
- E quanto a Van Rijk? - perguntei.
- Já está detido.
- E os outros dois?
- Mortos.
- Quase que o senhor poderia dizer a mesma coisa a meu respeito. Demorou muito a chegar aqui.
- Quando seu táxi deixou a Esplanada - replicou ele com um sorriso - vimos que um automóvel o seguia de perto. Os faróis estavam apagados e nele viajavam três homens.
- E o senhor concluiu que um deles era Van Rijk.
- Exatamente.
- Mas por que não o prendeu logo, ao invés de deixá-lo vir até aqui?
- É que nós queríamos... como é que dizem os americanos?... dar-lhe mais corda para enforcar-se.
- Compreendo - repliquei, tirando a pistola da cintura e entregando-a, tendo antes o cuidado de segurá-la pelo cano. Ele recebeu a arma com um movimento amável de cabeça, depois passou-a para um de seus homens.
Ouviu-se um barulho vindo da choupana. O policial que Tiong havia destacado estava trazendo Tina com as mãos algemadas na frente, conduzindo-a para o local onde haviam ficado os carros da polícia.
Acompanhei-os com os olhos durante alguns momentos, depois comecei a repetir a Tiong o que havia contado a Tina Jeunet, a respeito da Burong Chabak. Ela ouviu em silêncio. Acrescentei:
- Acho que o senhor encontrará a estatueta num lugar que La Croix e eu usávamos, quando tínhamos algum negócio em comum. Ele deixava lá a importância correspondente ao pagamento dos meus serviços, depois que tudo estivesse concluído.
Levei Tiong para trás do grande hangar abobadado, até perto de dois grandes tanques enferrujados que antigamente usávamos para estocar combustível para o avião. Junto deles, enterrado no chão embaixo de uma camada de folhagem, havia uma caixa de madeira contendo as válvulas do encanamento de água do aeroporto.
A Burong Chabak estava lá.
Soube de toda a história na manhã seguinte, sentado no pequeno gabinete de Tiong, no edifício da delegacia policial. Era justamente o que eu havia imaginado, quando falei com ele na tarde anterior, depois da visita de Tina Jeunet à lanchonete.
La Croix e Tina tinham sido os autores do roubo da estatueta do museu, mas a idéia original fora de Van Rijk. Entretanto, ao invés de entregarem a Burong Chabak a Van Rijk, depois de roubada, os dois resolveram enganá-lo. Talvez tudo acabasse bem para eles, se La Croix não tivesse tentado mais um golpe, guardando a estatueta para si e deixando Tina na mesma situação de Van Rijk.
Foi então que La Croix me procurou. Alguém, sabedor de que Van Rijk estava procurando tanto por Tina como por La Croix, viu o francês falando comigo e avisou Van Rijk. Este já percebera, evidentemente, que fora enganado, mas pensava que La Croix e Tina ainda trabalhavam juntos. O plano dele era que, por meu intermédio, chegaria a La Croix, a Tina e finalmente à estatueta.
Tiong me informara que La Croix fora assassinado em algum lugar, por volta das nove horas; admitindo que o assassino fosse Van Rijk. então não havia motivos para seguir-me, às 11 horas. A informação que ele desejava de mim já teria arrancado de La Croix.
Tiong e eu concluímos então que, se Van Rijk não cometera o crime, restava somente um suspeito - Tina Jeunet. Ela descobriu onde La Croix se ocultara e o torturou, sabendo então que ele havia escondido a estatueta num aeroporto abandonado, em local que somente ele e eu conhecíamos, mas morreu antes de revelar o nome do aeroporto e o esconderijo. Tina Jeunet disparara a pistola contra a cabeça dele num momento de raiva e então foi procurar por mim.
Foi assim que aconteceu.
Vi a estatueta de jade pela primeira vez no gabinete de Tiong. Delicada e laboriosamente esculpida, ela representava uma ave noturna - uma burong chabak - em pleno vôo, as asas abertas, a cabeça estendida como se enfrentasse um forte vento. O pássaro era de jade branco, o mais puro e valioso de todos os jades; o pedestal retangular era de jade verde.
- Não é uma beleza? - perguntou Tiong, quando eu a examinava.
Não respondi. Senti uma umidade levemente repulsiva nas mãos.
- Quanto pode valer isto no mercado negro? - perguntei.
- Para um colecionador anônimo, é claro.
- Talvez uns 400 mil dólares dos daqui, mas é claro que não tenho uma idéia exata.
- Cento e cinqüenta mil dólares americanos - disse eu,
- Era por isso que Tina queria ir para Luzon. Deveria ter um comprador lá.
- Possivelmente - replicou Tiong, olhando-me demorada-mente por cima da escrivaninha, como se alguma coisa lhe estivesse incomodando. - É um bocado de dinheiro. O bastante para tentar qualquer pessoa.
Limitei-me a concordar.
- Apesar disso, o senhor preferiu notificar a polícia, no momento em que suspeitou que a moça estava de posse da estatueta. A sua ficha, Sr. Connell, não autorizava uma atitude assim. Por que fez isso, Sr. Connell?
- Bem - disse eu. - A principal razão foi Larry Falco.
- O seu antigo sócio?
- O meu falecido antigo sócio. Um sujeito formidável, com uma porção de idéias sadias sobre a maneira de se viver confortavelmente com os lucros de uma companhia aérea de transporte de carga e que morreu porque eu tinha outras idéias... fazer contrabando, por exemplo, utilizando um pequeno aeroporto abandonado. Larry tentou me afastar desse negócio, mas não lhe dei ouvidos. Posso muito hem aterrissar aqui, disse-lhe eu. Estava enganado e Larry morreu por causa disso. O morto deveria ter sido eu.
Tiong permaneceu em silêncio durante um longo tempo. Por fim, comentou com voz grave:
- Entendo.
Não estou certo de que ele tenha realmente entendido.


Stephen Wasylyk
UM PEQUENO SINAL COMO ADIANTAMENTO
Quando Lazarus Neap acabou de arrumar sobre a mesa todas as fotografias da garota morta, uma rajada de vento entrou pela janela e espalhou várias delas pelo chão.
Neap deu um suspiro. Até as pequenas coisas estavam saindo erradas naquela semana. Começara na segunda-feira. Arbosh, um detetive novato, fora colocado à disposição de Neap e os dois receberam a missão de prender o suspeito de um arrombamento, mas o homem reagiu. A falta de experiência de Arbosh custara a Neap um soco violento na parte superior direita de seu rosto, provocando um corte que latejava incomodamente e, tendo inchado, fechava parcialmente um de seus olhos. Longe de situar-se entre os mais alinhados sargentos-detetives da polícia, Neap, com aquele esparadrapo sobre a bochecha inchada, ficara com um ar ainda mais satânico.
Depois, na terça-feira, uma moça chamada Ann Cheyney fora encontrada estrangulada em seu apartamento. Passadas 24 horas, Neap ainda não tinha a menor pista. A moça, com apenas 22 anos, morava sozinha, tinha poucos amigos e trabalhava como secretária em um escritório de advocacia. Ninguém no edifício de seu apartamento vira ou ouvira qualquer coisa suspeita.
Agora, na quarta-feira, apareceu outra moça estrangulada. O tenente, lutando com falta de pessoal, entregou logo o caso também a Neap, porque este trabalhara durante algum tempo na vigilância dos parques e o corpo fora encontrado em um deles, ali atirado evidentemente por um carro passando discretamente. A rua que atravessava o parque era pouco freqüentada, principalmente à noite, e a areia em suas margens não acusava marcas de pneus. Ainda uma vez, Neap não dispunha de qualquer indício como ponto de partida.
Neap baixou o vidro da janela, impedindo a entrada da brisa da tarde de primavera, e tornou a arrumar as fotos sobre a mesa.
- Este caso é ainda pior do que o outro - resmungou ele. - Não sabemos sequer o nome dela.
Examinou as fotos, impressionado pela semelhança parcial daquela desconhecida Fulana de Tal com Ann Cheyney. Ambas eram jovens, com longos cabelos louros e haviam morrido da mesma maneira. Neap ficou imaginando que deveria haver alguma ligação entre os dois crimes. O relatório preliminar sobre a desconhecida confirmava que ela fora também estrangulada.
Arbosh, com um largo sorriso em seu rosto redondo, entrou trazendo uma bolsa de mulher que ele agitava na extremidade de uma longa correia. Depositou-a cuidadosamente junto às fotos e esclareceu:
- Vejam o que encontramos no parque.
- Perto do corpo? - perguntou Neap, quase sorrindo. -- Cerca de um quilômetro de distância, em um terreno baldio, como se tivesse sido atirada de um carro. Neap olhou para ele com ar de dúvida:
- Você já a examinou?
- Ninguém tocou na bolsa. Pensamos que deva haver impressões digitais neste couro tão liso. Quer que a leve para o laboratório?
- Imediatamente - resmungou Neap. - Nem me arrisco a abri-la aqui.
Short, o técnico do laboratório, precisou de apenas alguns minutos para achar uma impressão que não estava manchada.
- Mesmo esta não é boa - explicou ele. - Não dá para ser apresentada no tribunal.
- Isso não me surpreende - disse Neap. - Vamos ver o que havia lá dentro.
Short tirou suas luvas de algodão e esvaziou a bolsa em cima da mesa. Em meio às coisas usuais, havia um distintivo de plástico, para identificar os empregados de uma loja do Centro Comercial, e uma carteira com algum dinheiro.
Short examinou o distintivo de identificação.
- Pertence à nossa desconhecida e o nome dela era Needa Stone.
Examinou o conteúdo da carteira.
- Não houve roubo e não deve ter havido a intenção de apossar-se da bolsa. O dinheiro está aqui.
- A carteira não contém um cartão de identidade? - perguntou Arbosh.
- Sim. Needa Stone, Rua Doze Sul, 127.
- Conheço o lugar - disse Neap. - Dois apartamentos em cima de uma confeitaria.
- O senhor acha que a nossa desconhecida é Needa Stone? - perguntou Arbosh.
- Sou capaz de apostar. Vamos tirar uma foto e comparar.
- Vou levar todas estas coisas e ver se encontro alguma impressão digital - disse Short.
- Faça o máximo possível. Precisamos de todo o auxílio que pudermos.
Neap tinha razão quanto ao endereço na carteira de identidade. O prédio era antigo e a confeitaria estava apertada entre um edifício-garagem e um hotel. O sobrenome Stone, pintado sobre uma caixa de correio no saguão, indicava que a moça ocupara o apartamento dos fundos do segundo andar.
O proprietário da confeitaria estava colocando doces em uma caixeta de papelão.
- Como tem passado, Sr. Satinsky? - perguntou Neap, abanando a mão.
Satinsky, um velho empertigado, sorriu:
- Você por aqui, Lazarus? Não tem aparecido desde que virou detetive. Quem lhe fez isso no rosto?
- É uma história muito comprida - replicou Neap, apresentando Arbosh e mostrando a fotografia a Satinsky. - Esta é uma de suas inquilinas?
- É a Srta. Stone - respondeu ele, olhando a foto de perto e demonstrando certeza. - Está morta?
- Está. Talvez você possa ir até ao necrotério e identificá-la.
- Não. Gostaria de ser útil, mas não posso sair agora, compreende? Como foi que ela morreu?
Neap contou. O velho sacudiu a cabeça. - Agarre esse bandido, Lazarus. Ela era uma excelente moça.
- Tinha amigos ou parentes?
- Amigas, algumas. Moças como ela. Nada de homens. Parentes, não sei.
- Você a viu ontem à noite?
- Não. Creio que não veio para cá. Costumava passar aqui pela loja, para comprar qualquer coisa, mas ontem não passou.
- Gostaríamos de dar uma olhada no apartamento dela - disse Arbosh.
Neap hesitou. Não tinha outra solução, a não ser encarregar Arbosh de outra coisa e ver o que ele podia fazer.
- Deixe que eu revisto o apartamento. Você pega o carro e dá um pulo até o escritório onde ela trabalhava, a fim de verificar o que diz a ficha de registro do pessoal. Talvez descubra alguma amiga. Precisamos de alguém para identificar o corpo. Se você achar um voluntário, leve para a delegacia.
Arbosh despediu-se:
- Farei o que puder.
- O apartamento era pequeno: sala, quarto, cozinha e banheiro. A mobília parecia ser de segunda mão e mostrava muitos anos de uso.
Needa Stone fizera algumas tentativas para imprimir a marca de sua personalidade no apartamento, mas não tivera êxito. As cortinas nas janelas e o papel das paredes somente serviram para acentuar a velhice do prédio.
Engraçado - pensou Neap. Não havia realmente muita diferença entre aquele apartamento e o de Ann Cheyney. Moças que moram sozinhas devem ter o mesmo estilo de vida e apartamentos feios parecem fazer parte deste estilo.
O detetive inspecionou o quarto de dormir. A cama estava bem arrumada, sem sinais de que alguém se tivesse deitado nela. No guarda-roupa, uma pequena variedade de vestidos. O quarto não revelava nada.
O banheiro não exigiu mais de um minuto; a cozinha, também. Needa Stone era uma pessoa muito cuidadosa.
De volta à sala, o detetive passou a mão sobre o rosto, fazendo uma careta. Se houvesse no apartamento algum indício útil, deveria estar ali.
Junto à parede encontrava-se um velho sofá; o aparelho de televisão tinha à sua frente uma poltrona; na parede oposta havia uma vitrola e, no canto, uma pequena escrivaninha, com uma comprida prateleira cheia de livros de bolso e revistas. Outra semelhança, pensou Neap. O apartamento de Ann Cheyney também" tinha muito material de leitura.
Neap foi examinar a escrivaninha. Havia duas gavetas. A de cima continha uma caixa de metal, tendo no interior apenas um talão de cheques e um extrato de conta. Neap folheou os canhotos do talão de cheques. Os emitidos para pagar o apartamento e o supermercado eram fáceis de identificar, bem como alguns para lojas de roupa e para sacar dinheiro. Um dos cheques, porém, chamou a atenção de Neap. Era de 25 dólares e dizia simplesmente encontro. O detetive tomou nota do número e da data.
O extrato de conta indicava que Needa Stone economizava religiosamente 10 dólares por semana.
Neap mordeu o lábio, pensativamente. Apenas com diferenças nas quantias, ele encontrara o mesmo quadro no outro apartamento: o talão de cheques com um pequeno saldo, o extrato de conta demonstrando depósitos regulares. Esta semelhança o deixou intrigado. Não havia praticamente diferença no tipo de vida das duas moças estranguladas. Era como se elas se conhecessem e tivessem resolvido observar a mesma rotina.
Neap fechou a caixa e abriu a gaveta inferior, tirando dela uma pasta em forma de sanfona. Continha os cheques pagos, que conferiam com os canhotos do talão, excetuando-se apenas o emitido para encontro, que não fora descontado. Neap anotou o número, a data e o nome do banco. A seguir, fechou a escrivaninha, esperando ter mais sorte inquirindo os vizinhos.
Não levou muito tempo. A ocupante do apartamento da frente era uma senhora idosa e meio surda, que conhecia Needa Stone apenas de vista e nada vira nem ouvira na noite anterior. Neap consultou o relógio. Teria de mandar Arbosh vasculhar a vizinhança completamente, se quisesse descobrir alguma coisa.
A tarde se tornara mais fria, o sol se escondera atrás de pesadas nuvens e o vento tornava mais dolorida a ferida no rosto do detetive.
Neap resolveu voltar para a delegacia. Quando passava em frente ao banco onde Needa Stone tinha conta-corrente, ele se lembrou do canhoto onde estava anotado encontro. Entrou e foi encaminhado a um gerente chamado Dial, que não podia ser mais atencioso. Bastou-lhe um telefonema para localizar o cheque nos arquivos do banco.
- Foi emitido em favor de Encontros S. A. - informou o gerente.
Neap franziu a testa.
- Nunca ouvi falar nessa companhia. Dial sorriu:
- Que eu saiba, a empresa se dedica a propiciar encontros marcados por um computador. Homens e mulheres se inscrevem e, mediante uma remuneração, a companhia procura apresentar cada candidato a alguém do sexo oposto, que seja do mesmo nível social. Não conheço muitos detalhes sobre o assunto, a não ser que atualmente é muito popular. Há várias firmas na cidade dedicadas ao mesmo tipo de serviço.
Neap tomou nota da empresa em seu caderninho.
- O cheque foi descontado?
- Há pelo menos três semanas.
Neap agradeceu, pensando que Needa Stone deveria ser uma moça muito solitária e desejosa de uma companhia masculina, para pagar 25 dólares a uma firma que lhe prometia arranjar um encontro.
O detetive já entrava em sua sala quando parou, chamando-se a si mesmo de idiota.
Arbosh estava sentado atrás de sua mesa, conversando com uma bela moça.
- Esta é Terry Hutton - apresentou ele. - Amiga da Srta. Stone. Já identificou o corpo no necrotério.
Neap dirigiu um sorriso para Terry Hutton, que parecia ter estado chorando e prestes a recomeçar.
- A senhorita conhecia bem Needa Stone?
- Muito bem. Trabalhávamos juntas.
- Sabe por acaso onde ela esteve ontem à noite?
- Needa me falou a respeito de um encontro, mas não disse o nome do homem. Estava muito excitada, porque não costumava sair muitas vezes.
- E contou alguma coisa a respeito desse homem?
- Acho que não havia muita coisa que ela pudesse dizer, pois se tratava de um "encontro cego", isto é, os dois não se conheciam.
- Ele ficou de apanhá-la no apartamento dela?
- Não. Deveriam encontrar-se, depois do expediente, na águia.
Arbosh resmungou qualquer coisa e Neap adivinhou por quê. No centro do andar térreo da loja onde Needa trabalhava havia uma grande águia de bronze que dominava todo o salão. Era um ponto natural de referência para encontros e vinha sendo utilizado por milhares de pessoas ao longo dos anos. Com aquela porção de gente andando de um lado para outro, não era provável que um homem e uma moça despertassem atenção.
- A senhorita tem idéia de quem foi que arranjou o encontro e como?
- Ela não me disse.
- Alguma vez lhe falou sobre Encontros S. A.?
- Nunca.
A Srta. Hutton nada mais tinha a acrescentar e Neap ficou com a impressão de que não adiantaria um passo, embora houvesse um fio de esperança na débil pista fornecida pela Encontros S. A.
O detetive ficou olhando a moça sair, enquanto as cabeças dos homens que se encontravam na sala se viraram todas para vê-la passar. Esta, pelo menos, dispensava o auxílio de uma firma para arranjar um encontro.
- Você descobriu alguma coisa mais na loja? - perguntou ele a Arbosh.
- O parente mais próximo, segundo consta da ficha, é uma tia que mora no interior. Já providenciei para que ela seja avisada. E o senhor?
Neap contou-lhe o que sabia da Encontros S.A.
- O senhor acha que ela marcou o encontro através da firma?
- Vale a pena verificar. Tome nota do endereço e vamos até lá.
A Encontros S.A. tinha sede no 15*? andar de um dos mais novos edifícios no centro da cidade. Arbosh comentou, quando saíram do elevador:
- Nunca seria capaz de pensar que a solidão levasse a tanto.
- Esta é uma grande cidade - replicou Neap, melancolicamente - com uma porção de pessoas que se ignoram umas às outras.
Aproximou-se da jovem recepcionista de minissaia e mostrou o distintivo:
- Gostaria de falar com o chefe daqui.
- Qual é o assunto? - perguntou ela, desembaraçadamente.
Neap havia arranjado uma dor de cabeça para fazer companhia à sua bochecha dolorida. Inclinou-se sobre a mesa da recepcionista.
- Diga a seu chefe para vir aqui agora - disse ele mansamente.
O sorriso da garota se desvaneceu; ela pegou o fone e trocou algumas palavras em tom baixo, depois levantou a cabeça:
- O Sr. Owen já vai atendê-lo.
A única palavra que ocorreu a Neap para definir Owen foi "almofadinha". Do último fio de seus cabelos cuidadosamente aparados até a ponta dos sapatos lustrosos, Owen dava a impressão de que acabara de sair da vitrine de uma loja de artigos de homem. Ao ver a cara inchada de Neap não ocultou um movimento de repulsa.
- Em que lhe posso ser útil? - perguntou com voz macia. Ninguém deveria ser tão perfeito, pensou Neap, enervado.
Perguntou logo:
- O senhor tem entre seus clientes alguém com o nome de Needa Stone?
Owen levou os visitantes para seu gabinete.
- Vou mandar ver - disse ele, apertando um botão do interfone em cima de sua mesa.
Logo apareceu outra moça, que recebeu uma ordem rápida e desapareceu.
- Como funciona o seu serviço? - perguntou Arbosh.
- Muito simplesmente - replicou Owen com um sorriso. - As pessoas que desejam inscrever-se preenchem uma ficha. Codificamos os dados e passamos para um computador. Se o senhor, por exemplo, se inscrever, informamos ao computador o que consta de sua ficha e ele fornecerá os nomes e endereços de moças com características pessoais da categoria das suas. É apenas isso.
- E quanto à Seleção dos clientes? - perguntou Neap. - O senhor pode receber pedidos de inscrição de personalidades instáveis.
- O questionário anexo à ficha é cientificamente preparado para eliminar pessoas assim.
- Espero que eliminem - retrucou Neap secamente, enquanto a moça voltava com uma ficha que entregou a Owen.
- A Srta. Stone indicou o nome de um Carleton Hoopes - disse Owen.
- E Hoopes havia indicado o nome dela? - perguntou Neap.
- Certamente. É assim que nosso sistema funciona. Fornecemos os nomes aos candidatos. A partir daí, o entendimento é da responsabilidade deles.
- Gostaria de ver a ficha de Hoopes - pediu Neap, cautelosamente.
Owen olhou para ele, visivelmente contrariado.
- Alguma razão especial?
- Sim, tenho uma.
Owen fez sinal para a moça, que saiu logo.
- Gostaríamos de que nosso fichário fosse considerado como confidencial - disse ele, amargurado.
- Eu poderia facilmente trazer uma ordem judicial, mas assim economizamos o tempo de todos.
-- Espero que o senhor ache o que procura.
- Eu também - replicou Neap.
A moça voltou com outra ficha, entregando-a a Owen.
- O Sr. Hoopes mencionou três nomes: Ann Cheyney, a Srta. Stone e Donna Whitford.
Arbosh deu um pequeno assobio e Neap se recostou na cadeira, não mais se sentindo como um idiota.
Acharam alguma coisa interessante? - perguntou Owen.
- Duas destas moças foram encontradas estranguladas - disse Neap. - Parece algo um pouco mais do que uma coincidência,
- É realmente muito singular - comentou Owen.
- Precisamos saber o endereço de Hoopes e da terceira moça - pediu Neap.
- Acho que não tenho alternativa e sou obrigado a fornecer.
- Sem dúvida.
- O endereço do Sr. Hoopes é Crescent Hotel, na esquina da Rua Sete com a Sul; o da Srta. Whitford e Monrovia, 1417.
Arbosh anotou tudo em seu caderninho.
- É curioso - comentou ele. - Por que Hoopes recebe três nomes de candidatas e a Srta. Stone recebeu apenas um?
- O preço, naturalmente - explicou Owen secamente. - O Sr. Hoopes pagou mais, enquanto a moça deu um sinal como adiantamento, segundo um programa especial.
- Teria outro homem dado os nomes destas três moças?
- Não nesta combinação - explicou Owen com relutância. Como o senhor vê, as respostas do computador são arranjadas...
Estava perdendo tempo, falando para uma cadeira vazia. Neap já se encontrava junto à porta. Arbosh se esforçava para acompanhar-lhe as largas passadas.
- O senhor nem esperou que o homem terminasse...
, - Não tinha mais tempo a perder - replicou Neap. - Jeitoso demais, tentando convencer-nos de que todo o serviço é científico e legítimo, mas prefiro o casamento do interior. Este pelo menos sabia com quem estava lidando e não exigia sinal nem muito menos pagamento adiantado. Alguma coisa nessa organização não me cheira bem. Lembre-me de perguntar a Davis, em Bunco, a respeito disto.
- Onde iremos primeiro?
- Ao hotel. Se Hoopes tem mesmo um encontro com a moça Whitford esta noite, e acho que tem, ainda é muito cedo. Ela provavelmente trabalha até às cinco.
- Uma coisa já sabemos a respeito de Hoopes - observou Arbosh. - Se ele mora no Crescent não deve ter muito dinheiro.
- Não se apresse em tirar conclusões. Talvez o local de moradia não seja importante para ele.
O sujeito que atendia a recepção do Crescent era baixinho, de ombros estreitos, com cabelos pretos bem aparados e usava óculos de grossas lentes. Estava lendo um livro que tinha na capa como ilustração um homem e uma mulher, ambos nus. Uma tabuleta no balcão dizia que seu nome era E. G. Bauer.
Neap foi logo perguntando por Hoopes.
Bauer fechou o livro, hesitou, tirou os óculos e limpou as lentes vagarosamente.
- O Sr. Hoopes não é mais hóspede nosso. Foi embora hoje.
- Que azar! - resmungou Arbosh.
- Deixou seu novo endereço? - perguntou Neap. Bauer sorriu:
- As pessoas que se hospedam aqui nunca fazem isso.
- Quer descrevê-lo para mim? - pediu Arbosh, com o caderninho de notas em punho.
- Isso não é nada fácil.
- Mas você o viu, não foi?
- Somente umas poucas vezes. Mas o que quero dizer é que o Sr. Hoopes não tem nada de especial. É igual a uma porção de outros homens.
- Dispensamos os comentários de ordem geral - resmungou Neap.
- Altura média - apressou-se a dizer Bauer. - Cabelos castanhos, compridos. Uns 25 anos. Ombros largos, parecendo um atleta.
- Cor dos olhos?
- Não presto atenção à cor dos olhos dos homens - replicou Bauer, sorrindo.
- Alguma coisa especial de que você se recorde?
- Nada. Já disse: ele é igual a milhões de outros homens.
- Devia ter um carro de sua propriedade ou alugado - disse Neap. - Você nunca reparou?
- Acho que gosto de ler demais - respondeu Bauer, sacudindo a cabeça. - Só presto atenção ao que aparece aqui em frente ao balcão. E mesmo assim - acrescentou, indicando os óculos - não enxergo muito bem.
- Talvez tenhamos de falar com você outra vez - anunciou Neap. - A que horas deixa o serviço?
- Às cinco. Moro aqui mesmo no hotel. Terei muito prazer em colaborar no que estiver ao meu alcance.
- Pode colaborar agora - disse Neap, esfregando a nuca.
- Tem uma aspirina?
Ao chegarem na rua, Arbosh comentou:
- O senhor deveria ter seguido o conselho do médico e tirado um ou dois dias de licença.
- Você me explica de que jeito e terei o prazer de tirar. Temos de procurar imediatamente essa moça Whitford e verificar se ela tem um encontro com Hoopes esta noite.
Arbosh guiou o carro habilidosamente através do trânsito.
- Talvez ele tivesse telefonado para ela e já saíram juntos.
- Nesse caso, ela nos poderá fornecer uma boa descrição de Hoopes, mas duvido que isso tenha acontecido, ou ela estaria morta. Ele saiu com as outras duas noites sucessivas e meu palpite é que ele irá procurar a terceira hoje. Talvez tenha deixado e hotel porque está pensando em mudar de endereço. Seria uma providência despistadora.
- Se ele for o homem que cometeu os dois crimes, é um bom planejador. O senhor acha que é a primeira vez?
- Quem pode saber? Ele parece ter uma aversão especial contra certo tipo de mulher. Essas empresas que se encarregam de arranjar encontros não podiam ser de maior utilidade para ele.
Arbosh consultou o relógio.
- Ainda é um pouco cedo para a Srta. Whitford estar em casa, se ela trabalha até às cinco.
- Do jeito em que as coisas andam - queixou-se Neap
- ela provavelmente já se mudou.
A Monrovia Street era de paralelepípedos, dando passagem apenas para um carro. Antigamente uma zona de ricas mansões, foi aos poucos se transformando em pequenas casas de dois pavimentos. Donna Whitford morava num sobrado.
Neap apertou o botão da campainha, ouviu a chamada em algum lugar na parte de cima e esperou, aliás sem muita convicção. Tentou novamente, pensando que a única coisa que lhes restava fazer era aguardar que a moça chegasse. Depois, lembrou-se de que ela talvez não viesse para casa.
Resolveu apertar o botão do primeiro andar.
A porta se entreabriu e uma menina loura e esguia olhou para eles. Neap mostrou o distintivo.
- Estamos procurando por Donna Whitford.
- Ouvi a campainha tocando no apartamento dela. Donna vai chegar muito tarde hoje.
Neap sentiu os nervos se distenderem.
- Sabe onde poderemos localizá-la?
- Ela tem um encontro não sei onde.
Arbosh resmungou qualquer coisa. Neap olhou para o relógio. Eram quase cinco horas.
- Você sabe onde ela trabalha?
A menina fez que sim com a cabeça.
- Pode chamá-la ao telefone para nós?
- Não sei... É proibida a entrada de pessoas estranhas no prédio.
- Você estará prestando um grande serviço à Srta. Whitford.
- Espere um pouco - respondeu a menina, fechando a porta.
- A polícia não tem muito prestígio por aqui - comentou Arbosh.
- É que não estamos fardados e o distintivo pode ser falso. Ademais, quem pode confiar num sujeito com a cara que tenho agora?
A porta se entreabriu outra vez.
- Ela já tinha saído - informou a garota.
- Você tem certeza de que não sabe onde poderemos falar com ela? - insistiu Neap. - Faça um esforço. Ela não disse nada a respeito do local onde se encontraria com seu par?
A menina meneou a cabeça:
- Já lhe disse que não sei.
- Diga-nos como é que ela se parece.
- Um pouco mais alta do que eu. Usa o cabelo amarrado em forma de rabo-de-cavalo.
- Loura, morena, ruiva?
- Loura, com olhos castanhos.
Neap resmungou qualquer coisa. Isso ele já sabia.
- Como é que estava vestida?
- Não vi quando ela saiu.
Neap agradeceu, dirigiu-se com Arbosh para o carro e sentou-se, afagando o rosto dolorido. Ainda latejava um pouco, mas a aspirina acabara com a dor de cabeça.
- E agora? - perguntou Arbosh. - E antes que o senhor responda, aposto que não iremos para muito longe daqui.
- Se você fosse Hoopes, onde marcaria o local para se encontrarem?
- Bem... Esta é uma grande cidade. Além disso, não sabemos se o encontro é mesmo com Hoopes.
- Você quer apostar que não é?
- Nada disso - replicou Arbosh. - Acho que vamos achá-la. A questão é como? Ele poderia ter reservado uma mesa em um restaurante e lá esperar por ela.
- Acho que ele não deseja ser notado - disse Neap pensativamente. - Deve preferir um local onde não chame a atenção de ninguém. Talvez prefira ver primeiro como é ela, antes de apresentar-se. Não se esqueça de que é um "encontro cego".
Arbosh ficou em silêncio. Neap esperou que ele percebesse a pista que havia recebido.
- Ah! A águia outra vez - disse finalmente.
- Acho que sim - replicou Neap com um sorriso. - Já foi usada antes e se presta bem para o caso.
A loja era enorme e ocupava todo o quarteirão. A águia de bronze, bem visível, estava situada no centro do andar térreo, dominando um labirinto de balcões em torno dos quais se apinhava uma porção de gente.
Neap correu os olhos pelo local. O pavimento superior era uma galeria baixa, onde estava localizada a livraria com uma grande coleção de livros de bolso. O detetive fez um sinal para Arbosh e ambos, tendo subido a escada, se debruçaram na amurada que dominava o andar térreo e de onde podiam observar,, sem serem notados, o que se passava embaixo, com a vantagem ainda de estarem tão perto que bastava descer alguns degraus para interceptar qualquer freguês entre os balcões. Assim permaneceram durante algum tempo, até que Arbosh sussurrou:
- Acho que lá está ela. A de casacão vermelho.
Neap procurou a moça com os olhos. Não podia ser mais parecida com Needa Stone.
- Parece que sim.
- Podemos descer e interrogá-la.
- Nada disso. Vamos espantá-lo, se ele estiver observando.
- Não entendo - ponderou Arbosh. - Estamos vigiando uma garota que pensamos ser Donna Whitford, mas esperamos que chegue um sujeito que nunca vimos mais gordo.
- Não vamos ter azar todas as vezes - alegou Neap.
- Mas se tivermos uma pobre moça vai morrer esta noite.
- Sei disso tanto quanto você - replicou Neap, irritado. - Se tiver uma sugestão melhor, terei prazer em ouvi-la.
Arbosh ficou calado, ante a expressão do rosto de Neap, e deu uma volta por dentro da livraria. Logo após, bateu de leve no braço de Neap.
- Olhe só quem está ali.
Neap se voltou. Quase escondido atrás das altas prateleiras estava Bauer, o empregado do Crescent Hotel, examinando os títulos de alguns livros.
O detetive ainda deu uma olhada para a loja embaixo, depois se dirigiu rapidamente ao encontro de Bauer.
- O que você está fazendo aqui?
Bauer quase deixou cair o livro que tinha nas mãos.
- Procurando alguma coisa para ler. Esta livraria é a que tem os melhores livros de bolso da cidade.
Neap apertou-lhe o braço com força.
- Estamos à procura de Carleton Hoopes. Você pode ajudar, pois o conhece e nós não.
Bauer tentou esquivar-se.
- Não quero me meter em encrencas.
- Já está metido - replicou Neap, empurrando-o até a amurada:
- Tudo o que tem a fazer é avisar-nos se ele está por ali. Bauer ajeitou os óculos e olhou para baixo.
- Não enxergo muito bem.
- Faça um esforço.
A moça com o cabelo amarrado à moda rabo-de-cavalo e usando um casacão vermelho caminhava impacientemente de um lado para outro em torno da águia.
Neap consultou o relógio. Já estava lá havia meia hora e ninguém se aproximara da moça.
Um jovem de ombros largos, usando um sobretudo marrom, se colocara no lado oposto da águia, olhando a moça disfarçadamente. Neap teve uma suspeita e chamou a atenção de Bauer.
- Aquele sujeito ali é Hoopes?
- Está muito longe para eu poder dizer - alegou Bauer. Neap o agarrou pelo braço.
- Então vamos chegar mais perto.
Levou Bauer escada abaixo até o andar térreo e colocou-o junto ao balcão, próximo ao local onde se encontrava o homem de sobretudo marrom.
- Está vendo melhor agora?
Bauer piscava os olhos, esticando o pescoço.
- Talvez seja ele. A luz não é muito boa.
Nesse momento, o homem começou a caminhar na direção da moça.
- A luz é excelente - retrucou Neap, irritado. - Olhe bem!
- Ele está usando chapéu - disse Bauer, ainda hesitando. - Nunca vi Hoopes de chapéu.
Neap ficou imóvel, indeciso. O homem estava falando com a moça.
- E agora, o que vamos fazer? - perguntou Arbosh. - Se eles começarem a andar, vamos perdê-los em meio à multidão.
O detetive tomou uma decisão.
- Está na hora combinada e quem mais, a não ser Hoopes, iria falar com ela? - disse ele, encaminhando-se na direção do casal.
Neap mostrou o distintivo.
- É a Srta. Whitford?
Tomada de surpresa, a moça confirmou com um gesto de cabeça.
Neap deu um suspiro de alívio e virou-se para o homem.
- O seu nome é Hoopes?
O jovem pareceu espantado, sacudindo a cabeça.
- O que quer dizer isto?
Neap voltou a interrogar a moça.
- Você deveria encontrar-se aqui com um homem chamado Hoopes, não é mesmo?
Igualmente espantada, ela respondeu com um movimento de cabeça, concordando.
- Já o viu alguma vez?
- Não.
- Então não sabe se este sujeito é Hoopes ou não é.
- Podia ser - arriscou ela, arregalando os olhos. O homem tentou desvencilhar-se de Arbosh.
- Tire suas mãos de cima de mim!
- Cuidado, moço. Você está encrencado.
- Mas por quê? Tudo o que fiz foi tentar falar com ela.
- Muito mais do que isso, Hoopes.
- Meu nome não é Hoopes, é Foster.
-- Olhe - disse Neap, meio desanimado - esta moça tinha um "encontro cego" com um sujeito chamado Hoopes. Você chegou e começou a falar com ela e agora diz que não se chama Hoopes. É capaz de explicar isso?
- Não há o que explicar. Vi essa moça parada aqui e imaginei que nada tinha a perder. O que há de errado nisto?
- Coisa nenhuma, se for verdade. Você precisa provar isso.
- Mesmo que ele seja Hoopes - disse Donna Whitford - que diferença faz? Nós havíamos marcado um encontro.
- Não, não marquei encontro algum! - exclamou Foster. - É a primeira vez que vejo você,!
O jeito dela era de quem ia chorar. Virou-se para Neap:
- Viu o que você fez?
Neap correu os olhos pela multidão de curiosos que já se formara e suspirou.
- Não vamos discutir este assunto aqui. É melhor irmos para a delegacia. Leve Bauer - acrescentou, dirigindo-se a Arbosh. - Pode nos ser útil.
- Ele já se foi - disse o auxiliar.
Neap teve a desagradável sensação de que tudo dera errado outra vez, que o azar que o perseguira durante toda a semana estava voltando. Olhou para Arbosh com raiva.
- Tão logo acabemos com este, vamos tratar dele. Duas horas depois, o moço ainda insistia em afirmar que
não era Hoopes e que queria chamar um advogado. Tudo o que sabia a respeito de Ann Cheyney e Needa Stone era o que havia lido nos jornais; nunca recorrera a Encontros S.A. e tinha álibis para as noites de segunda e terça, que Arbosh estava verificando.
Donna Whitford foi para casa depois que Neap lhe explicou por que estava tão interessado em descobrir Hoopes. O detetive ficou com a impressão de que ela o culpava por ter-lhe arruinado a noite e que, se Hoopes tivesse aparecido, ela teria saído muito feliz com ele. Quando, em seu depoimento, a moça contou que Hoopes lhe havia telefonado, acrescentou que a voz dele era grave e carinhosa.
- Falou como uma pessoa bem-educada - disse ela, soluçando. - E foi muito amável.
Isso certamente não combinava com Foster, de modo que Neap não se surpreendeu quando Arbosh chegou acompanhado do irmão de Foster.
- Foster falou a verdade. Não há hipótese de ser Hoopes. Seus álibis para as duas noites são perfeitos.
O irmão levou uns 10 minutos dizendo a Neap o que pensava da polícia em geral e de Neap em particular.
Depois que eles saíram, Neap deixou-se ficar sentado pensativamente junto à janela. Sua dor de cabeça voltara e a bochecha latejava. Arbosh ofereceu-lhe uma xícara de café.
- Passamos o dia inteiro sem comer.
- Não tenho fome. Perdi o apetite.
- Pelo menos salvamos Donna Whitford - disse Arbosh, à guisa de consolo. ,- E ainda temos oportunidade de apanhar Hoopes. Ele vai aparecer.
- Poderíamos tê-lo pegado. Estava para cair em nossas mãos.
- Provavelmente agora vai sumir.
- Não - disse Neap. - Se ele for como eu penso, reaparecerá. Deve ter visto toda a cena e caiu fora. Agimos cedo demais. Se tivéssemos esperado mais um pouco, a moça teria se livrado de Foster, logo que descobrisse que ele não era Hoopes.
- Não podíamos correr esse risco - justificou-se Arbosh. - Bauer também não nos serviu para nada. É uma pena que ele seja tão míope.
- Quanto mais penso nele, mais intrigado fico. Para um sujeito que vive lendo, os olhos não podem ser tão ruins. Ma? você não conseguiu achá-lo?
Ainda não voltou para o hotel. Tenho uma porção de gente atrás dele.
- É um tipo engraçado - comentou Neap. Os dois homens se entreolharam.
- O senhor não está pensando a mesma coisa que eu? - perguntou Arbosh.
- Ele poderia ter usado o nome Hoopes e dado o hotel como endereço, sabendo que poderia interceptar as cartas.
- E foi uma coincidência sintomática que ele estivesse na loja justamente na hora que Hoopes marcara.
- Aquele sujeitinho é bem capaz de ser Hoopes - concluiu Neap. - Do jeito em que as coisas estão acontecendo ultimamente, nada mais me surpreenderia.
Arbosh levantou-se.
- A questão é saber-se onde ele está agora. Em que lugar poderia ter-se metido? O senhor acha que ele deixou a cidade?
- Não há razão para tanto. Pelo que ele sabe, nós não suspeitamos que ele seja Hoopes. Não perderia seu tempo com isso.
- Provavelmente está sentado em algum lugar, rindo de nós.
- Não creio. Um sujeito como ele não tem senso de humor. Neste momento, está frustrado porque não o deixamos aproximar-se da moça. Isso deve dominar seus pensamentos. Para ele, foi um serviço inacabado.
- Estou-me lembrando de um caso assim - comentou Arbosh. - Não tinha a menor probabilidade de escapar, mas assim mesmo tentou.
- Talvez este tente também - replicou Neap, empurrando a cadeira. - Espero apenas que essa moça Whitford tenha acreditado no que lhe contei a respeito de Hoopes. Ela me deu a impressão de estar pensando que eu não sabia o que estava dizendo.
A Monrovia Street durante o dia era calma e silenciosa. A noite, inteiramente deserta, ficava iluminada apenas por dois postes de luz, do tipo antigo, largamente espaçados. Neap reparou que todas as janelas dos andares térreos estavam fechadas e tinham grades. Uma porção de coisas poderia acontecer naquela rua, sem que ninguém percebesse.
Neap tocou a campainha do apartamento de Donna Whitford, mas não recebeu resposta, embora se pudesse ver, pela frincha da janela, que a luz estava acesa. Neap girou a maçaneta da porta e, para sua surpresa, esta se abriu. Um lanço de escadas conduzia para o andar de cima, iluminado fracamente por uma lâmpada na parede. Neap subiu os degraus dois a dois. No topo da escada havia uma plataforma e mais uma porta. Sem mais cerimônias, o detetive resolveu forçá-la, mas esta também não estava trancada.
Na meia-luz do aposento, Neap divisou dois vultos.
Os olhos de Donna Whitford estavam arregalados e se fixaram nele num apelo desesperado, enquanto uma grande mão lhe tapava a boca. O outro braço do homem a enlaçara pela cintura e a cabeça dele estava meio oculta. Neste momento, ela fez um esforço para libertar-se e derrubou a única lâmpada acesa, que se encontrava sobre a mesinha do centro. A sala mergulhou na escuridão.
Neap pressentiu, mais do que ouviu, o ruído de passos em sua direção e abaixou-se tarde demais. Um soco atingiu-lhe a bochecha inchada. Atrás dele, ainda na escada, Arbosh deu um grito.
O punho direito de Neap atingiu o homem no estômago. A seguir, desfechou com o esquerdo um gancho que carregava, além de todo o seu peso, as frustrações dos últimos três dias. Sentiu uma dor aguda em sua mão, quando o soco atingiu qualquer coisa dura e o homem foi arremessado no saguão.
Neap se encostou na parede, esfregando sua mão esquerda dolorida e olhando para o corpo de Owen, o homem da Encontros S.A., estendido no chão.
Donna Whitford, muito trêmula, aproximou-se da porta.
- Ele disse que queria falar comigo a respeito de uma prestação. Eu nunca poderia supor...
- Nem as outras moças - completou Neap. Arbosh olhou para eles.
- Também não fomos tão espertos.
O apetite de Neap voltou depois de ter sido medicado e instalar-se com Arbosh para saborearem a primeira refeição daquele dia. Com a mão esquerda enfaixada e na tipóia, o lado direito do rosto mais inchado do que nunca e o olho quase fechado, Neap ficou olhando para o bife que a garçonete lhe trouxera.
- O que está faltando?
- Pensei que minha sorte tinha mudado. Pedi malpassado. Veio cozido demais.
- Mande de volta.
- Não vai adiantar. Com o azar que me persegue, provavelmente vão torrá-lo.
- Mas até que não nos saímos mal - argumentou Arbosh. - Agarramos o sujeito que matou duas moças e quase a terceira.
- Nós somos os maiores detetives do mundo - replicou Neap sarcasticamente. - Nem mesmo pensei em Owen, embora sabendo que ele, sentado naquele escritório, ficava sabendo o nome de todas as moças que se inscreviam para terem um encontro. Ele poderia escolher à vontade as que quisesse.
- Ainda não me convenci - disse Arbosh. - Um homem como aquele...
- Esqueça isso. Limite-se a agarrá-los. Não trate de compreendê-los ou ficará maluco. Qualquer maníaco pode querer aproveitar-se de jovens louras solitárias. Enfim, terminou.
- O interessante é que ele escolheu as três que se destinavam a Hoopes.
- Não há nada de interessante. Ele imaginou utilizar Hoopes como pretexto e embarcamos nesta canoa. A única coisa que ele ignorava era que não havia Hoopes nenhum. Era Bauer quem usava este nome, com a tola impressão de que Carleton Hoopes soava mais romanticamente do que Bauer. É claro que ele não recebeu carta alguma. Owen providenciava para que elas não fossem remetidas.
- Owen tinha um bocado de coragem - prosseguiu Neap. - Sabia que estávamos procurando por Hoopes e por Donna Whitford, mas assim mesmo foi até lá perto da águia, para ver o que aconteceria. Se não tivéssemos aparecido, ele teria saído com a moça e ela agora estaria morta. Já avisei você que essa gente não pensa da mesma maneira que nós. Owen tentava provar qualquer coisa matando-a. Por isso foi até ao apartamento dela. Você poupará um bocado de esforço se desistir de procurar certas explicações.
Cortou com dificuldade um pedaço de seu bife e perguntou:
- Eu estava muito ocupado para prestar atenção a outros detalhes, mas como foi que encontraram o Bauer?
- Dois dos policiais escalados logo o descobriram, quando entrava em uma livraria. Depois o interrogaram. Ele disse que quase desmaiou, quando nós chegamos perguntando por Hoopes; sem saber o que fazer, ocorreu-lhe dar a descrição de um personagem do livro que estava lendo. Assim, quando o agarramos na loja e insistimos para que ele identificasse um sujeito que nunca existiu, tudo o que ele podia fazer era alegar que não enxergava bem, tratando de desaparecer na primeira oportunidade.
Neap mastigava penosamente.
- Acho que Donna Whitford não vai mais querer saber de encontros arranjados por firmas especializadas. Provavelmente se conformará em morrer como solteirona.
- Não se fie muito nisso. Talvez o tal computador funcione mesmo. A última vez que a vi, ela e Bauer estavam de mãos dadas, discutindo literatura. Já vi alguns casais mais feios.
Neap deu um suspiro e empurrou o prato. A mão esquerda enfaixada dificultava o uso do garfo, ao cortar a carne, e a bochecha inchada lhe doía quando mastigava. Mesmo com o bom trabalho de Arbosh, aqueles não seriam certamente os três dias melhores de sua vida.
- Isso não acontece muitas vezes - comentou ele.
- O quê? - perguntou Arbosh.
- Donna Whitford pagou um pequeno sinal como adiantamento por um pouco de excitação e romance. Pode gabar-se de ter sido uma das raras pessoas que empregaram bem o seu dinheiro.


Arthur Porges
INTERVALO PARA O CAFÉ
- Sempre pensei que crimes em quartos fechados ocorressem apenas nas histórias de detetives.
O tom da voz do Sargento Black era de lamento, como se estivesse acusando todo o universo de ser injusto com a polícia.
Ulysses Price Middlebie, a quem era dirigida a observação, fora professor de história e de filosofia, mas agora, aposentado, servia ocasionalmente como consultor da polícia.
Depois de meditar um instante, o professor esclareceu:
- Sem dúvida eles começaram a aparecer nas novelas de mistério, mas a vida realmente imita a arte. Em outras palavras, estou certo de que muitos crimes brilhantes e bem concebidos se inspiraram em histórias engenhosas e até mesmo copiaram seus detalhes.
- O que quer dizer que, além de sermos mais espertos do que um bando de macacos, temos ainda de estar à frente dos melhores escritores de novelas de mistério! - reclamou o sargento. - Estou certo de que o senhor nunca leu essas bobagens.
- Muito pelo contrário - contestou Middlebie. - Sempre apreciei uma boa história policial, especialmente quando o crime é misterioso. E agora, mais do que nunca - acrescentou, olhando para seu tornozelo, fortemente enfaixado, apoiado em uma almofada.
- Meu azar está parecido com o seu - disse Black. - É o tipo do caso em que a gente pensa que é fácil, mas de repente não sabe como começar e, para qualquer lado que se vire, não encontra saída.
- De qualquer modo, conte-me a história - pediu Middlebie. - Pode ser que eu seja útil. Afinal - acrescentou secamente - minha cabeça não está enfaixada.
Black teve a gentileza de enrubescer levemente.
- É claro que o senhor tem razão. É para o seu cérebro que temos apelado tantas vezes. Mas o senhor deve admitir - insistiu o sargento - que muitas vezes me escapam detalhes que são significativos para o senhor, por causa de seus conhecimentos científicos.
- É verdade, mas tentarei arrancar de você até mesmo coisas que você viu sem prestar atenção nelas. Mas é melhor irmos logo aos fatos.
O sargento fez uma pausa para arrumar seus pensamentos e então começou:
- A vítima é um homem chamado Cyrus Denning, um solteirão de 62 anos. A hipótese é que ele se envenenou com cianureto. As impressões digitais que estavam no copo eram todas dele. Foi encontrado morto num quarto fechado por dentro. Ninguém havia estado com ele pelo menos durante a meia hora que precedeu sua morte. Daqui por diante - sugeriu Black - é melhor adotarmos aquele método... socrático, não é o nome?... de que o senhor tanto gostava na faculdade; é que realmente não sei mais o que dizer ou em que seqüência.
- Está bem - respondeu o professor amavelmente. -- Esta é uma maneira tão boa como qualquer outra de atacar o problema. Você disse que a porta estava trancada. De que modo?
- Trancada por dentro, com um grosso ferrolho de bronze.
- Isso não constitui uma impossibilidade. Pode-se trancar uma porta amarrando um barbante ou um arame no ferrolho e correndo-o pelo lado de fora.
- Não neste caso - replicou Black teimosamente. - A porta é hermeticamente fechada, sem a menor frincha. Além disso, não se encontrou barbante nem arame e o meu suspeito não teria tempo para removê-lo.
- Muito bem. E quanto às janelas?
- Uma só, no fundo. Foi fechada há muitos anos, com pregos, e ninguém a forçou, isso eu posso garantir. Examinei-a centímetro por centímetro, com uma lente.
-- A vidraça não poderia ter sido removida e depois recolocada? - perguntou o velho mestre, com uma piscadela de seus olhos cinzentos. - Este artifício eu aprendi em uma história policial, já faz alguns meses.
- Impossível. É uma daquelas velhas vidraças, firmemente encaixadas.
- Por que a janela estava condenada, fechada com prego?
- Denning não fazia questão de ar fresco e era muito introvertido. Imaginava-se um cientista e inventor. O local era uma cabana de uma única peça, perto do Lago Bradley, que ele convertera em oficina e laboratório. A porta da frente, única que havia na cabana, ele costumava fechar com cadeado, quando saía. Mas sempre que ficava trabalhando, corria o ferrolho pelo lado de dentro.
Middlebie enrugou a testa, com ar de dúvida:
- Acho que está na hora de perguntar por que, ante todos esses fatos, você não acredita que ele tenha-se suicidado.
Black apertou os lábios.
- Instinto, além do fato de ele não ter deixado sequer um bilhete. Segundo minha experiência, um suicida quase sempre deixa uma explicação. E há também a circunstância de que Denning era escandalosamente rico. Quando há muito dinheiro como isca, os ratos vorazes costumam aparecer.
- Você desconfia de algum roedor especial?
- Acertou. O sobrinho do velho. Ele apareceu logo que encontraram o corpo e é o jovem herdeiro de 200 mil pratas, sabendo bem direitinho como gastá-las rapidamente.
- Então ele esteve na cabana? Dê-me alguns detalhes.
- O rapaz... seu nome é Jerry Doss... admite ter visto o tio no laboratório ao meio-dia. Algumas vezes ele auxiliava Denning e conseguia arrancar alguns dólares do tio, não muitos, pois o velho não abria a mão nem para dizer adeus. Naquele dia, ele deixou Denning à uma e meia, vivo, segundo seu depoimento. Depois, Doss dirigiu-se para a outra margem do lago, a uns 100 metros de distância, para bater um papo com um sujeito que aluga botes para passeios. Tudo estava sossegado por ali.
- E então?
- Ele ficou conversando durante cerca de meia hora, depois se retirou, tendo pedido ao barqueiro para ficar de olho na porta de Denning, o que para mim é sinal de que havia coisa planejada. O rapaz estava evidentemente estabelecendo um álibi.
- Que razão ele deu para justificar tão estranho pedido?
- Disse que Denning vinha sendo incomodado por uns garotos, que batiam na porta e faziam enorme algazarra. Doss pediu ainda ao barqueiro que, se pudesse agarrar alguns dos garotos e identificá-los, o tio lhe pagaria umas 10 pratas.
- Uma boa desculpa - comentou Middlebie com um sorriso. - O rapaz tem imaginação, se foi ele quem inventou a história.
- Acho que foi. De qualquer modo, até essa altura tudo é muito claro. Doss deixara Denning meia hora antes e não mais se aproximara da porta, segundo o testemunho do barqueiro. Este não tirara os olhos da cabana, vigiando os garotos, com esperança de ganhar 10 dólares sem grande esforço. Então, uns 15 minutos depois que o rapaz se retirou, o barqueiro o vê dando murros na porta da cabana e gritando. A seguir, volta-se para ele, faz sinal, pedindo que vá ajudá-lo. Quando o homem chega lá, Doss lhe diz que tinha olhado pela janela e visto seu tio morto ou desmaiado. A janela é nos fundos, não se esqueça, de modo que ninguém poderia ver o rapaz olhando por ela.
- E depois?
- Depois arrombaram a porta, tendo sido necessário o esforço conjunto de ambos, por causa do grosso ferrolho. Encontraram Denning morto, com um copo de veneno na mão. Estava caído sobre a mesa, perto da janela.
- Ele não poderia ter sido morto quando Doss esteve visitante o tio. antes de ir falar com o barqueiro?
- Aí é que está! - resmungou Black. - Havia sobre a mesa uma xícara de café ainda fumegando de tão quente. O café devia ter sido preparado poucos minutos antes e era nele que estava o cianureto. Água fria não era o suficiente para este suicida. Ele tinha de colocar o veneno em café quente, recém-preparado!
- E isso não é tudo - prosseguiu o sargento. - Um cigarro fumegando estava colocado na borda do cinzeiro. Ele só poderia ter sido aceso poucos minutos antes.
Black ficou olhando para o professor; todo o seu rosto era um aflitivo ponto de interrogação.
- Hum - murmurou Middlebie. - Estou começando a ver por que você está tão intrigado.
- A conclusão é que deve ter sido suicídio e não passo de um idiota - disse o sargento, agora mais calmo com o desabafo. - O diabo é que não gosto do sorriso fingido daquele sobrinho, nem do jeito furtivo de seu olhar. Ele deve ter engendrado alguma coisa e quero agarrá-lo!
O professor guardou silêncio durante alguns instantes, depois comentou com ar distraído:
- Você deve ter lido a respeito de Sherlock Holmes. Black ficou imóvel, sem saber o que responder.
- Estou pensando no irmão dele, Mycroft - disse Middlebie, sorrindo.
- Mycroft?
- Como eu, ele passava a maior parte do tempo sentado. No caso dele, por pura preguiça e gordura. Entretanto, ele resolveu alguns dos mais intricados mistérios sem sair de sua cadeira, enquanto o mano Sherlock se encarregava do trabalho externo. Por que - acrescentou com um sorriso zombeteiro - você não tenta o mesmo processo?
- Tentarei qualquer coisa - replicou o sargento. - Sou bom nesses trabalhos que exigem esforço físico. Acho até que é só para o que sirvo.
- Bobagem. Você tem inteligência e imaginação - assegurou-lhe o professor. - Vou dizer-lhe o que eu gostaria que você fizesse. Traga-me umas boas fotografias do laboratório, bem grandes, tiradas do lado de dentro e também do de fora, mostrando bem cada uma das paredes internas, vistas de diferentes pontos. Fechou os olhos por um momento, depois perguntou:
- Você tem certeza de que o ferrolho é de bronze e não apenas pintado dessa cor?
- Pintado? Não, mas por que... - Interrompeu a pergunta e assegurou com voz grave: - Vou verificar.
- Faça isso e me comunique o resultado. Há um telefone no laboratório?
- Sim.
- Então me ligue de lá. E traga as fotos tão logo estiverem prontas.
- Telefonarei dentro de três horas. As fotografias deverão ficar prontas amanhã à tarde.
- Ótimo.
Middlebie esperou que o sargento saísse, depois abriu uma gaveta de sua escrivaninha, tirou uma garrafa de uísque e, embora se movimentando com dificuldade, preparou seu drinque favorito, misturando cerveja, uísque e açúcar mascavo. Sorveu-o com prazer, enquanto uma ruga na testa revelava o esforço de sua concentração.
Duas horas e 48 minutos mais tarde, Black telefonou.
- O ferrolho parece ser mesmo de bronze - informou o sargento. - Pelo menos não é de ferro, de aço nem de alumínio.
- Hum - resmungou Middlebie, revelando seu desapontamento. - É uma pena.
Após alguns instantes, falou novamente, desta vez em tom enérgico:
- Quero que você raspe o ferrolho e o examine com essa lente que costuma ter sempre à mão. Telefone-me se descobrir alguma coisa.
- O que devo procurar? - perguntou o sargento, um tanto irritado.
- Faça apenas um cuidadoso exame e veja o que aparece - replicou o professor, desligando.
Meia hora depois, Black telefonou outra vez. Havia uma nota de excitação em sua voz.
- Não sei como foi que o senhor suspeitou, mas alguém andou mexendo no ferrolho. Parece que fizeram um buraco nele e introduziram uma espécie de pino.
- Ah! - exclamou Middlebie. - É o pedaço de ferro doce de que eu suspeitava. A primeira hipótese se confirmou.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Black, ansiosamente.
- Você saberá quando tivermos aquelas fotografias. Pode trazê-las amanhã?
- Fique descansado. Irei levá-las. Mas pode dizer-me...
- Amanhã - foi a firme resposta. - As coisas ainda não estão bem claras - acrescentou o professor, desligando.
No dia seguinte, logo no início da tarde, o sargento apareceu com uma coleção de fotos. Middlebie examinou-as impacientemente e por fim selecionou uma tirada do lado de dentro. Olhou para ela longamente e resmungou uma praga.
- O que houve? - perguntou Black.
- A mesa - replicou Middlebie, visivelmente pesaroso. - Está muito longe da janela. Se ao menos estivesse um pouco mais perto... Não há uma maneira de colocar lá dentro o café e o cigarro, depois de fechada a porta?
- Nenhuma - confirmou o sargento. - É verdade que há a chaminé da lareira, mas gostaria de conhecer um sujeito suficientemente hábil para descer por ela uma xícara cheia de café quente e um cigarro aceso. Ademais, a chaminé fica bem à vista de Wilson, o barqueiro.
- Outra boa hipótese que foi água abaixo - comentou o professor. - A propósito - perguntou - o bule do café também estava quente?
- Tinha que estar. Eu o encontrei ainda sobre o bico de gás.
Middlebie sacudiu a cabeça num gesto de admiração.
- Este assassino, quem quer que ele seja... e se houve mesmo assassinato... é um bocado inteligente. Pena que seja apanhado. O rapaz conseguiu até evitar que alguém notasse uma discrepância entre o café fumegante na xícara e o bule apenas morno. Então deixou o gás aceso... muito bem imaginado.
Um pouco menos confiante agora, o professor estudou as fotos. De súbito, seu olhar se aguçou.
- O que há atrás da cabana? Esta coisa em cima do pilar? Parece um telescópio astronômico.
- E é mesmo o que ele é - replicou o sargento. - Denning se dedicava à astronomia também. Dizem até que ele descobriu um novo cometa.
- Este parece ser um telescópio refrator.
- Talvez. Não prestei muita atenção.
- Pois é melhor prestar. Quero saber o nome do fabricante. Mas não toque nele; pode haver impressões digitais.
- De quem? E que diferença faz? Gostaria de saber o que anda em sua cabeça nestes últimos dias - disse o sargento, visivelmente exasperado.
- Vou-lhe dizer tão logo tenha certeza. Não quero que você pense que já estou ficando senil. Seja um bom rapaz e volte a examinar esse telescópio. Procure o nome do fabricante e, se não estiver gravado no aparelho, veja o diâmetro da objetiva, aquelas lentes da extremidade. Mas cuidado para não tocar em nada. Entendeu?
- Entendi - replicou Black, depois sorriu discretamente. - Mycroft!...
Middlebie olhou para ele, espantado. Era a primeira vez que o sargento arriscava um gracejo na frente dele. As coisas estavam melhorando. Já era tempo de haver menos formalidade no relacionamento entre eles.
- Antes de eu ir embora - pediu Black, encarando o professor - quer ter a bondade de me explicar aquela história do ferrolho? O senhor parecia ter muita certeza de que havia ferro embutido nele.
- Ah, sim! Mas não pretendi esconder coisa alguma. Abra aquele armário ali e tire o que está na segunda prateleira.
O sargento obedeceu e ficou espantado com sua anterior incompreensão.
- Ê isso aí - disse Middlebie. - Apenas um ímã, mas dos grandes. Pesa mais de dois quilos e tem uma capacidade de indução magnética de dois mil gauss. Isso significa que, mesmo através de uma espessa porta de madeira, o ímã é capaz de agir sobre um pedaço de ferro embutido em um ferrolho de bronze, fazendo com que ele deslize para os lados. Você reparou se o ferrolho se deslocava com facilidade, talvez azeitado?
- Pois não é que estava? - exclamou Black. - Azeitado! Que burro que fui! Tudo o que Doss tinha a fazer era sair, fechar a porta com seu tio morto lá dentro, e fazer o ferrolho correr, com o auxílio do ímã, movendo-o da esquerda para a direita na altura adequada da porta.
Dando vazão a seu entusiasmo, o sargento passava de uma das mãos para outra o pesado magneto. De súbito, sua fisionomia se anuviou.
- Mas ainda estamos às escuras, quanto ao café e ao cigarro. Sabemos que ele esteve fora da cabana por mais de meia hora. O café teria então esfriado e o cigarro estaria consumido.
- Estou bem ciente desta dificuldade - replicou o professor. - Foi justamente por isso que torci para que a mesa estivesse mais perto da janela. A propósito - perguntou - como é que estava o dia, as condições do tempo?
-- Muito boas; um dia fresco, claro, ensolarado. Qualquer pessoa, com exceção de um velho idiota, estaria ao ar livre ou pelo menos com a janela aberta, para aproveitar o ar fresco.
- Há gosto para tudo - comentou Middlebie. - Seja bon-zinho e vá dar uma olhada naquele telescópio, como lhe pedi.
Black tinha ainda algumas perguntas para fazer, porém a fisionomia do professor não era nada convidativa. Com um suspiro, o sargento despediu-se.
À tarde, quando regressou, foi encontrar Middlebie às voltas com um microscópio binocular e não parecia muito disposto a tratar de crimes. Afinal, empurrou a cadeira para trás, rosnou uma palavra de resignação e ergueu as sobrancelhas, como quem espera uma resposta.
- E então?
- Não encontrei a marca do fabricante. A objetiva tem 22 centímetros de diâmetro.
- Ótimo. Um telescópio com tal objetiva deve ter uma distância focai de dois e meio a quatro metros.
- O que significa isso? - perguntou Black em tom lamuriento. Estava cansado de andar de um lado para outro e quase arrependido de não haver encerrado o caso, classificando-o como suicídio. Somente uma teimosa persistência, associada à convicção de que era um bom policial, fez com que ele ainda estivesse às voltas com tantas complicações.
- Vou-lhe dizer o que deve ter acontecido - respondeu Middlebie, em tom um tanto pretensioso. - Doss foi visitar o tio e talvez tivesse trabalhado um pouco com ele no laboratório; depois, tomaram café, porque era costume ou possivelmente o rapaz tenha sugerido. Há uma série de vidros de produtos químicos na prateleira da parede do lado sul, como claramente mostram as fotografias que você tirou. Foi fácil para Doss colocar cianureto na xícara do tio. No momento em que o veneno fez efeito, o rapaz apagou suas impressões digitais que deveriam estar na xícara, reforçou as de Denning e saiu, fechando a porta atrás de si. Antes, porém, colocou um cigarro apagado na borda do cinzeiro.
- Uma vez no lado de fora - continuou Middlebie - Doss, disfarçadamente, para o caso de alguém estar observando, ficou em frente à porta e com um ímã, provavelmente do laboratório do tio, correu o ferrolho. Suponho que, por ocasião de uma visita anterior, quando ficou sozinho na cabana, ele tenha furado o ferrolho e inserido um pedaço de ferro doce, a fim de que o ímã pudesse funcionar.
- E depois?
- Depois ele foi falar com o barqueiro e criar o álibi de meia hora. Feito isso, aproximou-se da cabana pela parte de trás, onde não seria visto pelo barqueiro, apanhou o telescópio... já tirado de seu tripé, acho eu, porque o rapaz me parece ter planejado tudo muito bem... e se colocou a uns 50 centímetros da janela. Então, ajustou os raios do sol brilhante.
- Meu Deus! - exclamou Black, aturdido, interrompendo a exposição do professor.
- Um vidro de aumento comum somente funcionaria se a mesa estivesse muito perto, mas as lentes de um telescópio podem agir a uma distância de dois e meio a quatro metros. A vidraça da janela absorveria uma fração do calor, mas ainda sobraria o suficiente para ferver o bule de café e acender o cigarro. Feito isso, restava-lhe correr para a porta da frente, bater nela com ansiedade e finalmente pedir o auxílio do barqueiro. Tudo muito simples!
- O senhor explicou tudo - disse Black. - Não há a menor dúvida. Mas - acrescentou, sacudindo a cabeça com ar desanimado - como provar essas coisas perante um tribunal?
- Bem - ponderou o professor. - O ferrolho furado é uma prova material.
- Mas não suficiente, acho eu.
- Impressões digitais no telescópio?
- Uma prova fraca. Afinal, o rapaz ajudava o tio em seus trabalhos científicos.
- Ah! - exclamou Middlebie - mas se você tiver sorte, deve haver algumas na parte interior da objetiva. Essas impressões seriam difíceis de ser explicadas, muito difíceis mesmo, uma vez que raramente um astrônomo precisa desmontar uma objetiva. Há problemas de realinhamento, poeira, coisas assim, mas francamente, se a prova for apresentada de surpresa, o rapaz poderá trair-se. Ele nem sonha que estamos de olho nele. Acho que se sente perfeitamente salvo.
Black olhou para aquele rosto magro e pareceu-lhe ver um ar zombeteiro.
O sargento achou que não era o único a ter essa impressão do professor e não escondeu um sorriso divertido. Entretanto, em voz alta comentou apenas:
- Afinal de contas, o senhor nos deu uma excelente contribuição. Nenhum Mycroft teria feito melhor.


Reynold Junker
OS VOLUNTÁRIOS
Em algum lugar um sino estava tocando. Era um som longínquo, perdido em algum sótão, sob uma pilha de brinquedos quebrados ou escondidos no fundo de um barril cheirando a vinho azedo. Havia uma criança, um garotinho, enfiado na roupa branca da primeira comunhão, debatendo-se freneticamente. Ele sentia a aspereza da gola engomada roçando em seu pescoço. A roupa pertencera a seu irmão mais velho. E antes desse irmão? E ainda antes?
Então o sino passou a bater dentro da cabeça dele, afastando o doce torpor do sono. A criança começou a chorar.
Santro Ristelli sentou-se na cama, passando a mão pelo rosto, sentindo arranhar sua barba de um dia. A cama rangeu em suas juntas. Ele se recostou no travesseiro e ficou escutando. O único ruído era a respiração ofegante da criança dormindo em seu berço no quarto da frente.
O telefone tocou. Santro não se mexeu. Ainda sonolento, ficou imaginando quantas vezes aquela campainha havia soado. Ele acordara apenas há alguns segundos. Maria, sua mulher, sobressaltou-se com o tinido. Como o marido, ela era morena e gorda, mas se movia com agilidade. Tendo cinco filhos, tinha de ser assim.
- O que está havendo? O que é isto?
A voz dela era pastosa de sono.
Santro estava certo de que ela não demoraria a ficar bem acordada, mas agora sua voz soava assim, como se ela receasse dizer todas as coisas que tinha dentro de si. Antigamente, ela costumava cantar e rir e chorar, mas já não havia mais nada que justificasse uma canção ou um riso e de que adiantaria chorar? Havia apenas a voz arrastada, perguntando:
- Está havendo alguma coisa errada?
Sem responder, Santro deixou a cama, pisando com os pés descalços o chão de madeira. Atravessou, em meio à escuridão, o quarto da frente e chegou à varanda. Iluminado pela luz mortiça do corredor, seu corpo atarracado se assemelhava a um urso de circo. Tirou o fone do gancho do aparelho pregado na parede, antes que a campainha parasse de tocar.
- Alô?
- Santro?
Mesmo que não estivesse sonolento, teria reconhecido a voz. Era como um prolongado sussurro em seus ouvidos, alguém contando um grande segredo, com receio de que pudesse ser ouvido por outrem.
- Johnny? Que diabo quer você?
- Santro, meu velho, isso é maneira de falar com um velho camarada?
- Camarada. Estamos no meio da noite, preciso dormir e não de conversar. Sou um sujeito que tem de trabalhar para viver, não sabia?
- Claro, Santro, claro. Como é que poderia esquecer? Trabalhar o dia inteiro, dormir a noite inteira. Algum dia você será o padroeiro da classe operária.
- Deixa de ser engraçadinho, Johnny. O que você quer? - perguntou Santro, sentindo que já havia perdido o sono.
- Então escute, amigo velho, e escute bem. Não se trata de papo-furado. Houve um desastre de trem logo depois de Fairfield. Um daqueles expressos vindos de Miami saltou dos trilhos ou avançou um sinal. Não sei exatamente.
- E aí? - perguntou Santro, ouvindo a criança chorando no quarto da frente.
Johnny replicou incisivamente no outro lado da linha:
- É só isso o que você tem a dizer? Olhe, Santro. Use a cabeça pelo menos uma vez. O expresso está cheio de um punhado de ricaços que nada mais têm a fazer do que andar de um lado para outro, entre Nova York e Miami, procurando um lugar onde possam gastar seu dinheiro.
Johnny fez uma pausa, depois prosseguiu, falando mais devagar. Pronunciava cada palavra cuidadosamente, como se receasse que o outro não entendesse:
- Fairfield é uma pequena aldeia. Estão convocando voluntários para ajudar a recolher os corpos. A polícia não tem pessoal suficiente. Precisa de auxílio... São muitos corpos.
- Não sei... - murmurou Santro, mais para si mesmo do que no telefone.
A voz de Johnny tornou-se insistente. Santro se lembrou do tempo em que ele, mais jovem, fizera um discurso no sindicato local. Recordou a voz, os olhos, os braços levantados e baixando energicamente.
- Santro, preste atenção. Será que preciso ir até lá e trazer as coisas para mostrar a você? Tudo o que tem a fazer é apanhar o que está no chão ou, no máximo, esvaziar alguns bolsos ou arrancar uns anéis. Eles estão mortos! Não precisam mais disso. Mortos, entende? O que me diz?
- Cale a boca. Fique calado ao menos por uns instantes, está bem? Preciso pensar um pouco. Há outras coisas...
Fechou os olhos e tentou dizer para si mesmo quais eram essas outras coisas. As velhas palavras e respostas que aprendera quando criança voltaram a seus ouvidos através dos anos, mas ele nunca mais seria de novo a mesma criança vestida de branco para a primeira comunhão. Como eram fáceis as respostas então! Ele decorara todas elas, mas ninguém realmente lhe explicara as perguntas. Nunca lhe disseram que ele teria de escolher e que, qualquer que fosse essa escolha, alguém ficaria ferido. Teve de aprender isso por si mesmo. Alguém sempre acaba sendo ferido. Cada porta que a gente abre conduz a outra porta.
A voz de Johnny era um sussurro.
- E como vai a patroa? E as crianças? O pequeno Santro já ficou bom da coqueluche? Coitadinho, tossindo tanto. Às vezes parecia que ia rebentar o peito.
- Fingido - murmurou, mas não havia rancor em sua voz. Passou a mão no rosto, molhado de suor. A voz de Johnny estava zumbindo em seu ouvido. Tentou engolir. Sentiu na boca um gosto amargo. - Quando é que você vai para lá?
- Tão logo possa.
- Tenho que me vestir.
- É melhor comer qualquer coisa.
- Não tenho fome. Preciso de tempo apenas para me vestir.
- Está bem. Esta noite estaremos comendo um belo bife. A sua mulher...
- Não venha à minha casa. Vou esperá-lo na esquina.
- Está certo. Irei guiando a camioneta de meu primo Guido. Precisamos de duas picaretas, duas pás e talvez algum...
- Providencie. Traga o que quiser.
Santro desligou sem esperar a resposta e ficou de ouvido atento, mas o silêncio era total. Sentia-se pouco à vontade. Tentou raciocinar, mas conseguiu apenas recordar.
Maria estava sentada na beira da cama.
- O que aconteceu? Alguma coisa errada?
- Era Carlos - mentiu Santro, falando rapidamente. - Houve um desastre de trem perto de Fairfield e estão pedindo para irmos lá, para ajudar... ajudar a socorrer os feridos. A polícia não dá conta do serviço. Parece que foi um grande desastre.
- Mas por que chamaram você? E os outros, os mais moços?
O som da voz dela provocava em Santro uma vontade de gritar, de agredi-la.
- Há uma porção de gente convocada. Foi muito grave. Sentia as palavras lhe arranharem a garganta. Fez um esforço para não gritar.
- Você não vai faltar ao trabalho? Vão pagar-lhe por isso?
Ele a encarou, enraivecido. A mulher lhe parecia muito distante, como um fantasma ou parte de um sonho.
- Dinheiro! - replicou em tom amargo. As palavras agora lhe ocorriam sem dificuldade. - Sempre o dinheiro. Será que não há alguma coisa mais? Por que tudo tem de ser medido em dinheiro?
Olhou para a mulher e surpreendeu-se desejando que ela fosse capaz de dizer-lhe qualquer coisa que ele próprio não conseguira achar. Ainda havia uma chance. Em algum lugar, em um momento qualquer talvez houvesse algo que lhe tivesse escapado.
- Como é que pode haver alguma coisa mais para nós?
A voz dela não se elevava nem baixava. As palavras lhe saíam dos lábios simplesmente porque os músculos se contraíam e se expandiam.
- Desculpe - disse ele mansamente. - A companhia quer que a gente vá. Ficará bem para ela. Seremos pagos. Talvez haja até uma gratificação.
Terminou de vestir-se em silêncio. Quando olhou de novo para a cama, Maria tinha se virado para a parede e talvez já estivesse dormindo de novo. Ele apanhou o casaco, apagou a luz e dirigiu-se para a porta, atravessando o quarto da frente.
Santro caminhava lentamente sob a luz tênue da madrugada. As ruas silenciosas estavam mergulhadas numa camada de ar fresco. Os pensamentos dele estavam voltados para Maria e as crianças. Eles se agrupavam na mente dele não separada e distintamente, mas fundidos numa só pessoa, uma mistura de nomes e rostos, sem que nenhum deles fosse definido: a voz de Maria, os olhos do garoto, uma tosse, um grito. Eles se amontoavam confusamente. Era como se estivesse olhando para um calidoscópio de brinquedo ou, melhor ainda, dentro dele. Tudo estava confundido nos contornos imprecisos e mutáveis dos vidros multicores. Todas as coisas que ele imaginara fossem definidas, pareciam agora tornar-se confusas, alterando-se cada vez que se moviam. Não tinha certeza de mais nada, exceto que ele estava andando, não sabendo para onde, mas andando.
Virou-se bruscamente ao ouvir o ruído da camioneta fazendo a curva junto à esquina. Houve um guincho dos freios e a porta da cabine foi aberta. Santro subiu para dentro da camioneta e puxou a porta atrás dele. Recostou-se na almofada do velho banco e levantou a gola de seu casaco, para melhor proteger o pescoço. Johnny limitou-se a um leve sorriso, sacudiu os ombros e calcou no acelerador. A camioneta fez a curva e se arrastou pesadamente na direção da auto-estrada.
- Não faça essa cara, Santro. Isto não é o fim do mundo.
- Talvez não seja. Para alguns - replicou, evitando os olhos de Johnny.
- Os fracos devem morrer, a fim de que os fortes possam viver, não é, Santro?
- E os abutres. Não se esqueça dos abutres.
Johnny deu uma risadinha. Estendeu o braço e bateu de leve na perna de Santro.
- Você e eu, abutre e amigo. Os abutres pilhando os abutres. Eles se alimentam de nós, quando estão vivos, e nós, como abutres que se prezam, retribuímos a cortesia. Ah-ah.
Rodaram em silêncio em direção à auto-estrada, no ponto em" que ela ruma para o norte, passando por Fairfield. Johnny continuava assobiando a mesma musiquinha, repetindo-a tantas, vezes que até parecia uma goteira pingando em algum lugar no meio da noite. Santro cerrou as pálpebras, como se assim deixasse de ouvi-la, e tentou relaxar sua tensão.
- Sabe qual é o seu mal, Santro? É que você é italiano.
Ele pronunciava aitaliani, como se fosse uma palavra que nunca ouvira antes, exceto em anedotas de bar. Santro abriu os olhos e ficou contemplando a estreita faixa branca que separava as pistas da auto-estrada. Já começara a amanhecer.
- E você sabe o que há de errado com os aitaliani? É uma raça que só tem estômago. Estômago. As mulheres estão sempre grávidas e os homens sempre comendo. Acho que não apareceu um aitaliani com qualquer coisa dentro da cabeça desde o tempo de... desde Da Vinci.
- E de você, Giovanni mio; é preciso não esquecer você.
- Eu, não. Sou um rapazinho ainda - retrucou Johnny, sorrindo e batendo na cabeça, junto do ouvido. - Aqui dentro, uma porção de idéias, idéias americanas.
- Johnny. Johnny, o americano. Salve ele.
Eles se aproximaram de Fairfield pelo sul, correndo pela auto-estrada paralela à ferrovia e depois tomaram à direita, uma estrada de terra, também ao longo da linha, mas do lado oposto. O desastre só se tornou visível quando eles fizeram uma curva apertada à direita e venceram uma pequena elevação. A camioneta desceu a encosta lentamente. Santro nunca vira antes um desastre assim. Os únicos trens de que se lembrava eram aqueles, azuis e prateados, que passavam apitando pelas turmas trabalhando perto dos trilhos, ou velhos vagões de madeira que trafegavam ao longo da costa, ligando as pequenas cidades balneárias. O que ele tinha agora diante dos olhos era qualquer coisa parecida com o que certa vez vira em um cinejornal, uma cena rápida e violenta que explodira e logo depois se transformara em um amontoado silencioso. Vigas e pedaços de madeira e de metal se amontoavam em posições inimagináveis na massa confusa de destroços. Aqui e ali, sobre o leito da ferrovia, pequenos rolos de fumaça surgiam timidamente. O estreito trecho de terra ao lado dos trilhos estava repleto de cobertores. Santro sentiu de novo o mesmo engulho. Alguns corpos ainda estavam à mostra. Talvez já houvesse falta de cobertores.
Johnny guiou a camioneta até perto de uma tenda de lona que fora erguida junto aos destroços. Um homem queimado e gordo apareceu e fez sinal para que parassem. Johnny acenou para ele e deteve a camioneta.
- Bem a tempo - murmurou para Santro.
- Dificilmente haverá alguém ainda vivo aqui.
- Foi justamente por isso que disse havermos chegado bem a tempo.
Santro abriu a porta da cabine para sair, mas Johnny segurou-lhe a manga do casaco.
- No caso de perguntarem por nomes, sou Johnny Williams e você é Santro Candoli, entendeu?
- Entendi, Johnny Williams.
Saltaram da camioneta e Johnny fez a volta rapidamente, passou por Santro e se dirigiu para onde se encontrava o homem gordo.
- Sou Johnny Williams e este meu amigo se chama Santro Candoli. Viemos ajudar. O rádio está noticiando que a polícia luta com falta de meios e está convocando voluntários.
O homem deu uma cusparada na terra a seus pés e sacudiu os ombros.
- Coisas do rádio.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que o rádio sempre acha um jeito de exagerar as coisas.
- Então este trem - e Johnny estendeu o braço na direção dos destroços - não é o expresso de Miami?
O sorriso já havia desaparecido de seu rosto.
- Mocinho, este não é nem o especial de Hoboken - disse o gordo, cuspindo outra vez.
.Santro olhou mais detidamente os vagões de pintura desbotada e sorriu discretamente.
- Mas já que vocês vieram até cá, podem nos dar uma ajuda para desembaraçar a linha. Temos falta de ferramentas. Vocês trouxeram alguma?
- Picareta e pá - respondeu Santro.
Sentiu de súbito uma vontade de rir, como se alguém lhe contasse uma anedota bem engraçada. Ainda tinha tempo para ir tomar o café da manhã e chegar ao trabalho, mas havia uma coisa que ele não queria perder: o americano, o homem de idéias. Afinal, tinham vindo para ajudar, ele e Johnny Williams.
- Então podem pegar suas ferramentas e trabalhar na linha. Parece que já conseguimos reunir todos ou quase todos os corpos. Não devia haver muitos passageiros. Se vocês encontrarem algum, chamem um de meus rapazes, para marcá-lo ou cobri-lo. Talvez seja melhor falar com eles, para saber se há algum ponto que necessite de prioridade.
Cuspiu ainda uma vez e voltou para dentro da tenda.
Johnny começou a caminhar pelo leito da estrada, ao encontro de um grupo de homens que removiam escombros. Santro voltou à camioneta e apanhou duas pás e uma picareta. Colocou as pás no ombro e atirou a picareta para Johnny.
- Vamos trabalhar, voluntário.
- Que azar! Que bruto azar! Estou com uma raiva danada! Santro riu baixinho. A vontade que tinha era de dar uma
gargalhada, batendo nas costas de Johnny. Lá estavam eles, voluntários, desobstruindo a linha, a fim de que o expresso de Miami não sofresse o mínimo atraso. Todos aqueles ricaços que nada mais tinham a fazer do que andar de um lado para outro, entre Nova York e Miami, procurando algum lugar onde pudessem jogar fora seu dinheiro e voltar para Nova York, antes do jantar - toda essa gente estava dependendo do esforço de uns voluntários.
Os dois continuaram a caminhar na direção do grupo de homens, Johnny atrás de Santro, dando pontapés nos montinhos de terra, evitando levantar os olhos para o companheiro. Santro estava certo de que ele não o faria, pelo menos durante algum tempo.
- Filho da... Isso é que se chama falta de sorte! Ora, até que era uma boa idéia.
Santro procurou falar em tom indiferente. Não queria dar a Johnny oportunidade para explodir. Isso acabaria com a gozação cedo demais e Santro desejava prolongá-la o máximo que pudesse.
Aproximaram-se de um homem que estava encostado no cabo de uma pá, observando o trabalho de alguns outros. Um pequeno pacote de cartões amarelos para identificação aparecia no bolso de seu casaco.
- Voluntário - explicou Santro, quando o homem olhou para eles.
Os olhos eram iguais aos do gorducho da tenda e Santro chegou a pensar que ele ia cuspir. Ao invés disso, endireitou o corpo e apontou para a parte da linha que aparecia além do último vagão tombado.
- Já acabamos com todo este lado. Não sei para que mandaram vocês aqui. Que tal pegarem no outro lado? O pessoal que foi para lá começou o trabalho depois de nós e talvez precise de ajuda.
Santro concordou com um gesto de cabeça e fez um sinal para Johnny. Ambos voltaram a caminhar pela linha até o último vagão. Santro consultou o relógio. Já estava na hora de ir para o trabalho. Nenhum dos dois disse uma palavra. Johnny apanhou uma pedra e atirou-a contra uma das vigas que estava atravessada na frente deles. A pedra bateu em qualquer coisa fofa e levantou um pouco de terra. Alguma coisa amarela brilhou momentaneamente na nuvem de poeira. Ouviu-se um gemido. Santro apertou o ombro de Johnny.
- Escute!
O gemido se repetiu. Santro prendeu a respiração. Olhou rapidamente para trás, onde estavam os outros homens. Um vagão impedia que ele e Johnny fossem vistos. Novamente um objeto amarelo brilhou no chão.
Johnny ajoelhou-se e começou a afastar a terra com as mãos. 'Apoiou-se nos calcanhares e mostrou um bracelete de ouro. Santro atirou as pás no chão e deu-lhe um empurrão, afastando-o da mulher. Johnny caiu sentado, olhando para o outro, sem entender. Santro agarrou a picareta.
- Seu maluco! Ela está viva,! Não está ouvindo?
- Quem está maluco é você. Não se ouve coisa alguma - replicou Johnny, recusando a picareta. Era apenas um gesto, mas Santro sentiu que ele não a usaria.
- Ajude-me a tirá-la daqui.
Cada um segurou uma das pontas da viga, tirando-a de cima do corpo da mulher. Depois, com as mãos, ambos limparam a terra que a cobria e a puxaram para fora dos destroços. Ela ficara presa de barriga para baixo.
- Vamos virá-la devagar.
Deitaram-na de costas. Santro ajoelhou-se e colou o ouvido no peito da mulher. O coração batia debilmente, mas havia outros ruídos. Ruídos de alguma coisa quebrada dentro dela.
- Ainda está viva - disse Santro, pondo-se de pé. Johnny se colocara um pouco atrás dele. Santro virou-se
c o encarou. Os olhos do seu jovem companheiro pareciam os de uma criança assustada. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras morreram dentro dele e tudo o que conseguiu foi emitir um leve gemido. Tirou o bracelete do bolso e deixou-o cair no chão.
- O rosto dela... a pobrezinha! - murmurou com voz débil.
Santro olhou então pela primeira vez para a mulher deitada a seus pés. Toda a cabeça estava quebrada e cheia de cortes, os olhos azuis arregalados.
Santro ouviu Johnny cair de joelhos. Estava vomitando. Santro colocou a mão sobre o peito da mulher e sentiu as leves batidas cadenciadas de seu coração. Olhou novamente para o rosto dela. O calidoscópio desaparecera. Todos os rostos que haviam povoado sua mente se fundiam agora em um único, definitivo...
Apoiou com força a palma da mão contra o peito da mulher. Um último jato de sangue aflorou à boca retorcida, antes que os olhos se apagassem de todo.
Santro abaixou-se e desprendeu um broche do vestido da mulher morta. Retirou dos dedos uma aliança e um anel de diamante.
- Ela está morta - disse, rompendo o silêncio que os cercava. - As crianças têm direito a uma oportunidade para viverem. Lamento muito, mas as coisas são assim, pelo menos para nós.
Permaneceu imóvel junto do corpo. Johnny desaparecera. A picareta ainda estava onde ele a deixara. Santro abaixou-se e apanhou o bracelete, voltou-se e caminhou em direção à camioneta. As jóias pesavam no bolso de seu casaco.

 

 

                                                                  Alfred Hitchcock

 

 

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