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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Pérolas nas Brumas / V. C. Andrews
Pérolas nas Brumas / V. C. Andrews

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Pérolas nas Brumas

 

Querido Paul,

Esperei até ao último instante para te escrever esta carta, principalmente porque ainda não tinha a certeza se iria fazer o que o meu pai pediu: ingressar, juntamente com a minha irmã gémea Gisselle, num colégio interno para raparigas em Baton Rouge. Apesar das promessas que fiz a meu pai, pesadelos acerca de tudo isto têm assombrado o meu sono. Vi as brochuras do colégio, de nome Greenwood. Parece bonito: é uma grande estrutura que engloba salas de aula, um auditório, um ginásio e até uma piscina interior; e ainda três edificios residenciais, cada um rodeado por frondosos salgueiros e robustos carvalhos; um lago cheio de jacintos lilases; belissimos terrenos salpicados de carvalhos vermelhos e de nogueiras; courts de ténis e campos de jogos em terra batida; resumindo, tudo o que se pode desejar. Tenho a certeza de que oferece muito melhores instalações e oportunidades do que o nosso liceu em Nova Orleães.

Mas é um colégio frequentado apenas por meninas ricas, de elevada classe social, vindas das mais finas famílias crioulas da Luisiana. Não é que eu tenha preconceitos em relação a pessoas ricas provenientes de tão respeitáveis origens, mas sei que estarei rodeada por dezenas de raparigas que foram educadas como a Gisselle. Vão pensar como ela, vestir como ela, agir como ela, e sei que vão fazer sentir-me como uma marginal.

O meu pai deposita muita confiança em mim. Ele julga que eu consigo ultrapassar qualquer obstáculo e que estarei à altura de toda e qualquer rapariga snobe que se me atravesse no caminho. Acredita tanto no meu talento artístico que confia que o colégio irá imediatamente reconhecê-lo e até ajudar no desenvolvimento das minhas capacidades e na busca de sucesso, de forma a receber crédito por isso. Sei, no entanto, que ele só está a tentar afastar as minhas dúvidas e receios.

Mas, sejam quais forem os meus sentimentos acerca da ida para esta escola, julgo que é a melhor coisa que posso fazer no momento, pois vai pelo menos afastar-me da minha madrasta, a Daphne.

Quando vieste visitar-nos e me perguntaste se as coisas estavam melhor, respondi-te que sim, mas não estava a contar-te toda a verdade. O que se passa é que eu fui quase posta de parte, abandonada na clínica psiquiátrica onde está o meu tio Jean, irmão do meu pai. A minha madrasta combinou o meu internamento com o director. Com a ajuda do Lyle, um rapaz muito simpático mas profundamente perturbado, fugi e voltei para casa. Disse ao meu pai o que tinha acontecido e ele e a Daphne tiveram uma discussão horrível. Quando as coisas acalmaram, ele propôs mandar-me a mim e à Gisselle para Greenwood, o colégio interno. Percebi como era importante para ele afastar-nos da Daphne e como ela ficou feliz com a decisão de partirmos.

 

Sinto-me então dividida entre dois caminhos a seguir. Por um lado, estou muito nervosa em relação a frequentar Greenwood, mas, por outro lado, estou contente de me afastar do que se transformou numa casa deprimente e opressiva. Sinto-me mal por deixar o meu pai. Em poucos meses, ele aparenta ter envelhecido anos. Madeixas grisalhas apareceram aqui e ali no seu cabelo castanho, e a sua postura não é tão erecta, nem se move tão energicamente como quando cheguei. Sinto-me quase como se estivesse a abandoná-lo, mas ele insiste para que eu e a Gisselle frequentemos este colégio privado e, seja como for, quero fazê-lo feliz e aliviar os seus fardos e tensões.

A Gisselle ainda não parou de se queixar e choramingar. Está constantemente a ameaçar de que não irá para Greenwood. Geme e lamenta-se por estar numa cadeira de rodas e pôs toda a gente cá em casa a correr de um lado para o outro, à mercê dos seus caprichos. Nem uma vez a ouvi admitir que o acidente de carro foi culpa dela e do Martin por terem fumado marijuana. Ao contrário, descarrega na injustiça do mundo. Sei que a verdadeira razão pela qual ela se queixa da ida para Greenwood se deve ao medo de lá não ter tudo o que quer, sempre que o quer. Se ela era mimada antes, não era nada comparado com agora. Tornou-se difícil para mim ter pena dela.

Contei-lhe tudo o que sabia acerca dos nossos antepassados, apesar de ela continuar a não aceitar o facto de a nossa mãe ser uma mulher cajun'. Claro está, ela aceita prontamente tudo o que lhe conto sobre o grandpère Jack: o facto de ele se ter aproveitado da gravidez da nossa mãe para fazer um negócio com o grandpére Dumas e, como consequência, o ter vendido a Gisselle à família Dumas. Ele não sabia que a nossa mãe estava grávida de gémeos, e a grandmére Catherine escondeu-lhe isso até ao dia do nosso nascimento, recusando vender-me. Expliquei à Gisselle que podia muito bem ter sucedido o contrário: ter sido ela a ficar no hayou' e eu a ter sido educada em Nova Orleães. Essa possibilidade fá-la estremecer e por um momento pára de se queixar, mas, apesar de tudo, ela consegue sempre irritar-me, o que me faz desejar nunca ter deixado o hayou.

É claro que muitas vezes recordo o bayou e os dias maravilhosos que lá passámos juntos, quando a grandmére Catherine ainda estava viva, e tu e eu não sabíamos ainda a verdade acerca de nós próprios. Quem disse que a ignorância traz a felicidade estava certo, especialmente em relação a nós os dois. Sei que tem sido difícil para ti enfrentar tudo isto. Tu, talvez ainda mais do que eu, foste obrigado a viver rodeado de mentiras e enganos, mas, se houve uma verdade que aprendi, foi que temos de saber perdoar e esquecer, se queremos continuar a gozar a vida neste mundo.

Sim, quem me dera que não fôssemos meios-irmãos. Sim, iria a correr para ti, para casa e poderíamos construir as nossas vidas juntas no hayou, onde o meu coração está verdadeiramente. Mas o destino reservou nos outros caminhos Quero que sejamos amigos para sempre assim como somos irmãos e a Gisselle deseja o mesmo agora que te conhece. Sempre que recebo uma carta tua, ela insiste em que a leia alto, e sempre que te referes a ela ou a elogias, a Gisselle reluz de interesse. Em bora, com ela, nunca se saiba se tudo não passa de um capricho momentâneo...

 

Adoro as tuas cartas, mas não consigo evitar sentir-me um pouco triste sempre que as recebo. Fecho os olhos e oiço a sinfonia das cigarras ou o piar da coruja. às vezes até imagino que consigo cheirar os cozinhados da grandemère Catherine. Ontem a Nina fez ao almoço uns lagostins estufados, exactamente como a grandmére Catherine fazia, num refogado feito com manteiga e salpicado com alho-francês cortado. Claro que, quando a Gisselle soube que era uma receita cajun, odiou a comida. A Nina piscou-me o olho e rimo-nos às escondidas, pois ambas sabíamos que, em ocasiões anteriores, a Gisselle tinha devorado sofregamente aquele prato.

Seja como for, prometo que te escreverei mal esteja instalada em Greenwood e talvez brevemente, se tiveres oportunidade, possas vir visitar-nos. Pelo menos saberás para onde escrever.

Gostaria de ter notícias do bayou e das pessoas de lá, especialmente dos velhos amigos da grandmére Catherine. Acima de tudo, quero saber de ti. Bem, suponho que uma parte de mim também quer saber acerca do grandpére Jack. Apesar de, quando penso nele, continuar a ser difícil não me lembrar das coisas horríveis que fez. Calculo que esteja a tornar-se um velho tonto e patético.

Tantas coisas tristes aconteceram tão cedo nas nossas vidas. Se calhar... se calhar já tivemos a nossa dose de desgosto e de infelicidade e talvez o resto das nossas vidas seja feliz, repleto somente de coisas boas. Estarei a ser disparatada ao pensar assim?

Imagino agora... Estou mesmo a ver-te a sorrir para mim com esses lindos olhos azuis a piscar.

Hoje está uma noite muito quente aqui. A brisa nocturna traz-me o perfilme do bambu verde, das gardénias e das camélias. É uma daquelas noites em que qualquer som parece poder ser ouvido a quilómetros de distância. Sentada à minha janela, posso ouvir o eléctrico a matraquear pela St. Charles Avenue, e algures noutra casa alguém toca trompete. Soa tão mal e, no entanto, soa tão belo.

Agora oiço o lamento de uma rola vindo do parapeito da varanda, soluçando no seu triste choro. A grandmère Catherine dizia que, ao ouvir o primeiro pombo da noite, devia desejar-se algo de bom a alguém, e fazê-lo rapidamente, se não, o som triste do pombo traria má sorte a alguém que se amasse. Está uma noite boa para sonhar e pedir desejos. Vou pedir um para ti.

Sai e chama o falcão do pântano por mim. E depois pede um desejo em meu nome.

Com o amor de sempre,

Ruby

 

PRIMEIRO DIA

O pique... pique... o picar de um pica-pau acordou-me de um sono tumultuoso. Tinha ficado acordada quase toda a noite, agitando-me e afligindo-me sobre o que o dia seguinte me traria. Finalmente, o peso da fadiga fechou-me os olhos e senti-me atundar num mundo de sonhos retorcidos, até que mais uma vez tive um pesadelo que já me é familiar.

Sentada numa canoa, erro à deriva pelos pântanos. A água é da cor do chá preto. Não tenho vara; a correnteza vai levando-me misteriosamente através duma escuridão de líquenes, que ondulam, fantasmagóricos, na brisa. à tona deslizam cobras verdes, que seguem a minha canoa. Os olhos brilhantes de uma coruja espiam-me suspeitosamente através da escuridão, enquanto penetro cada vez mais nas profundezas do pântano.

É nesta altura do pesadelo que por norma oiço o choro de um bebé. É ainda pequeno, demasiado novo para poder formar palavras, mas o som lamuriante lembra "mamã, mamã". Embora me sinta atraida por este gemido, costumo acordar deste terrível sonho antes de avançar mais na escuridão. Ontem à noite, porém, ultrapassei o ponto mais longínquo que alguma vez tinha atingido e continuei a entrar neste mundo negro e obscuro.

De repente, a canoa desfere uma curva ligeira, acelera, até que posso ver, luminosos, os contornos branco-cal de um esqueleto a apontar o seu longo dedo indicador para a frente, incitando-me a olhar para a escuridão. E aí, finalmente, vejo o bebé, sozinho, abandonado numa cama de rede no alpendre da cabana do grandpère Jack.

A canoa começa a abrandar e, mesmo à frente dos meus olhos, a cabana do grandpére Jack inicia o movimento lento de se atundar no pântano. O choro do bebé soa cada vez mais alto. Consigo alcançar o lado da canoa, de forma a remar eu própria mais rapidamente, mas a minha mão fica enredada nas cobras verdes. A cabana continua a submergir.

Não! grito. A cabana afunda-se cada vez mais na água suja e obscura, até que só resta o alpendre e o bebé na rede. A sua face é pequena, cor de pérola. Tento alcançá-lo à medida que me aproximo, mas, quando finalmente atinjo a rede, o alpendre já se afundou.

Foi aí que ouvi o pique... pique... do pica-pau, e os meus olhos abriram-se para ver a luz do Sol da manhã infiltrar-se através das cortinas, iluminando o dossel de seda pérola da minha grande cama de pinho escuro. Como se estivessem a florescer, também as cores do papel de parede florido clarearam com a quente iluminação. Apesar de mal ter dormido, senti-me feliz por acordar envolvida por tanta luminosidade, especialmente depois daquele pesadelo.

 

Sentei-me e esfreguei a cara com a palma das mãos até ter apagado qualquer vestígio de sono dos olhos e das faces. Respirei profundamente e disse a mim própria para ser forte, estar pronta e ter esperança. Virava-me para a janela, quando ouvi as vozes dos jardineiros que se espraiavam ao cortar as sebes, sachar os jardins e limpar as folhas de bananeira espalhadas na piscina e nos courts de ténis. Daphne, a minha madrasta, insistia que eles tinham de cuidar dos terrenos e dos edificios, de forma a que não se notasse o que tinha acontecido na noite anterior, por muito violento que tivesse sido o vento ou forte a chuva.

Na véspera, tinha escolhido e empacotado a roupa para a viagem até à nossa nova escola. Sabendo que a minha madrasta iria observar ao milímetro a forma como estava vestida, escolhi uma das minhas saias compridas e uma blusa a condizer. Gisselle finalmente acalmou, permitindo que eu preparasse também as suas coisas, embora tenha ido dormir jurando não mais se levantar. Ainda oiço as suas ameaças e juras ecoando nos meus ouvidos.

- Prefiro morrer nesta cama - lamuriava-se - a fazer amanhã essa viagem horrorosa para Greenwood. A roupa que escolheres para mim é a última peça que visto na vida. E será tudo culpa tua! - declarou, atirando-se para a cama de forma teatral.

Por muito tempo que tenha vivido com a minha irmã gémea, nunca me habituei à ideia de sermos tão diferentes; no entanto, os nossos rostos, corpos, cor de olhos e de cabelo são realmente um duplicado. E a diferença também não está só na forma como fomos educadas. Tenho a certeza de que até no útero da nossa mãe não nos demos bem.

Minha culpa? Porque é que a culpa é minha?

Com rapidez, ela levantou se, apoiando se nos cotovelos.

- Porque tu concordaste com isto e o paizinho precisa

sempre da tua aprovação para fazer seja o que for. Devias ter discutido e gritado. Devias ter feito uma birra. Julgava que já sabias fazer uma birra. Não aprendeste nada comigo desde que fugiste dos pântanos? - exigiu saber

Aprender a fazer uma birra?! Aprender a ser uma miuda mimada era o que ela na verdade queria dizer, e essa lição dispenso eu bem, apesar de ela pensar que está a fazer-me um favor ensinando-me a ser como ela. Engoli o meu riso, sabendo que só iria enturecê-la mais.

Estou a fazer o que penso ser o melhor para todos Gisselle. Calculei que tinhas percebido. O paizinho quer-nos' fora daqui. Ele julga que isso vai melhorar a vida dele e da Daphne e também a nossa. Especialmente depois de tudo o que aconteceu! - salientei, abrindo os olhos tanto quanto me era possível.

Gisselle afundou-se na cama e fez beicinho.

- Eu não devia ter de fazer nada por ninguém. Sobretudo depois do que me aconteceu. Toda a gente devia pensar primeiro em mim e no meu sofrimento - murmurou.

- Parece-me que é o que toda a gente faz.

- Quem é que o faz? Quem? - retorquiu com uma força e energia súbita. A Nina cozinha o que tu gostas, não o que eu gosto. O paizinho pergunta primeiro a tua opinião e só depois a minha. O Beau vem cá para te ver a ti, não a mim! Sim!... Até... Até o nosso meio-irmão, o Paul, só te escreve a ti e nunca a mim.

- Ele manda-te sempre cumprimentos.

- Mas não uma carta separada - sublinhou.

- Mas tu também nunca lhe escreveste uma carta - chamei-lhe a atenção.

Gisselle pensou por uns momentos.

- Devem ser os rapazes a escrever primeiro.

- Se forem namorados talvez, mas não se for o teu irmão. Com um irmão não interessa quem é que escreve primeiro.

 

- Então porque é que ele não me escreve? - lamentou-se

- Eu digo-lhe para te escrever - prometi.

- Não, não digas. Se ele não o faz por iniciativa própria

então... não faz, pronto. Vou ficar aqui deitada para sempre, a olhar para o tecto e a pensar no que toda a gente está a fazer, como estão todos a divertir-se... como tu estás a divertir-te - acrescentou com aspereza

- Tu não vais ficar aqui deitada a pensar, Gisselle - disse por fim, não evitando um sorriso - Tu vais para onde queres, quando queres. Mal estalas os dedos, toda a gente salta. Não te comprou o paizinho uma carrinha só para que pudesses ser levada para onde queres na cadeira de rodas?

- Detesto essa carrinha! E detesto ser levada em cadeira de rodas. Pareço uma encomenda a entregar, como pão... ou caixas de bananas. Não hei-de lá entrar - insistiu.

O paizinho tinha querido levar-nos para Greenwood na carrinha de Gisselle, mas ela jurou que não havia de lá entrar. Ele queria usar a carrinha para poder carregar todas as coisas que Gisselle tencionava levar. Ela obrigou Wendy Williams, a nossa criada, a estar durante horas e horas no seu quarto a empacotar, exigindo deliberadamente as coisas mais insignificantes só para tornar tudo mais difícil. Mesmo o facto de eu lhe dizer que tínhamos um espaço limitado no dormitório e que era obrigatório o uso de uniforme não a dissuadiu.

- Eles hão-de arranjar espaço para mim. O paizinho disse que eles farão tudo o que puderem para me instalar - insistiu.

-           E acerca de usar uniforme, logo veremos...

Gisselle queria levar todos os seus bonecos de peluche, os livros e revistas, o álbum de fotografias, quase todas as suas roupas, incluindo os sapatos, e chegou mesmo a pedir a Wendy para arrumar tudo o que se encontrava no seu toucador.

- Quando voltares para casa de férias, arrepender-te-ás - avisei-a. - Não vais ter cá as coisas que queres, e depois...

- Depois mando alguém comprar - respondeu, satisfeita. De repente, sorriu. - Se insistisses mais, o paizinho veria como é horrível esta partida e talvez mudasse de ideias.

Os esquemas malévolos de Gisselle nunca deixaram de me espantar. Disse-lhe que, se ela pusesse mais de metade da energia que gastava a fugir às suas responsabilidades a fazer as coisas que tem de fazer, seria um sucesso, fosse no que fosse.

- Serei um sucesso quando quiser ser, quando tiver de ser - retorquiu, tendo eu então desistido de mais uma conversa

fraternal.

Estávamos na manhã da nossa partida para a nova escola e eu temia entrar no quarto dela. Não precisava de uma das bolas de cristal da Nina para prever a maneira como iria ser recebida e o que esperar. Vesti-me e escovei o cabelo antes de ir ver se faltava muito para ela estar pronta. Encontrei Wendy no corredor, fugindo apressada, quase em lágrimas e falando consigo própria.

-O que foi, Wendy?

 

- Monsieur Dumas mandou-me ajudá-la a preparar as coisas, mas ela não ouve nem uma palavra do que eu digo - queixou-se. - Implorei e voltei a implorar que se mexesse, mas ela fica ali deitada como um morto-vivo, de olhos fechados, fingindo que está a dormir. O que é que eu posso fazer? - gemeu. - Madame Dumas vai gritar comigo, não com ela.

- Ninguém vai gritar contigo, Wendy. Eu vou fazer com que se levante - disse. - Dá-me só um instante.

Sorriu através das lágrimas e limpou-as das suas bochechas rechonchudas. Wendy não era muito mais velha do que Gisselle e do que eu, mas deixara de estudar quando ainda estava no oitavo ano e tinha permanecido como criada na família Dumas. Desde o acidente de carro de Gisselle, Wendy tinha-se tornado o seu bode expiatório, aturando todos os ataques de raiva. O paizinho contratara uma enfermeira particular para cuidar de Gisselle, mas esta também não conseguiu suportar as suas birras. Também a segunda e a terceira enfermeiras que por cá passaram foram mal sucedidas. Desta forma, tomar conta de Gisselle foi infelizmente uma tarefa acrescentada aos deveres de Wendy.

- Não percebo porque se preocupa com ela - disse Wendy, com os seus olhos escuros brilhando de raiva.

Bati à porta de Gisselle, esperei e depois entrei sem aguardar resposta. Estava como Wendy a tinha descrito: ainda debaixo do cobertor com os olhos fechados. Fui à janela e espreitei lá para fora. O quarto de Gisselle tinha vista para a estrada. A luz da manhã resplandecia no passeio de pedra, e havia pouco trânsito. Junto à vedação de milho, azáleas, rosas amarelas e vermelhas e hibisco tinham florido num bouquet de cores extraordinárias. Por muito que tivesse vivido sempre nesta mansão, nesta propriedade do Garden District de Nova Orleães, teria sempre uma grande admiração pelas casas e pela paisagem.

- Que dia maravilhoso - exclamei. - Já pensaste em todas as coisas bonitas que vamos ver durante a viagem?

- É uma viagem aborrecida. Já estive em Baton Rouge antes - respondeu. - Veremos refinarias feias e velhas a vomitar fumo.

- Meu Deus, afinal ela está viva! - declarei, batendo as mãos. - Graças a Deus, estávamos todos convencidos que tinhas morrido durante a noite.

- Isso era o que vocês queriam, queres tu dizer - disse, zangada. Não se sentou. Pelo contrário, virou-se e deixou a cabeça afundar-se na almofada grande e fofa, com os braços ao lado. Amuou.

- Pensei que tinhas finalmente decidido ir sem fazer chinfrim, desde que pudesses levar todas as coisas que querias, Gisselle - disse-lhe pacientemente.

- Eu só disse que tinha desistido. Não disse que concordava em ir.

- Ambas vimos as brochuras. Concordas que parece ser um sítio lindo... - lembrei-lhe. Focou-me com um ar sério, os olhos tornando-se pequenos.

- Como podes ser tão... tão... boazinha? Não te esqueças que também vais deixar o Beau - lembrou-me. -. patrão fora, dia santo na loja.

 

Foi muito difícil para Beau aceitar a minha ida para Greenwood. Já antes era muito complicado estarmos juntos. Desde que Daphne descobrira o meu retrato secreto de Beau, tínhamos de manter os nossos encontros às escondidas. Ele pousara nu para mim; quando ela descobriu a pintura, resolveu dizer aos pais de Beau. Foi severamente castigado e, a partir daí, fomos proibidos de nos encontrarmos. Mas o tempo passou, e gradualmente os pais dele foram acalmando desde que Beau prometesse conhecer também outras raparigas. Coisa que ele não fez. Mesmo quando ia ao baile da escola com alguém ou levava alguém a passear no seu carro desportivo, acabava sempre por ficar comigo.

- O Beau prometeu visitar-me sempre que pudesse - afirmei.

- Mas não prometeu tornar-se um monge - ripostou rapidamente. - Conheço pelo menos meia dúzia de raparigas loucas por deitar-lhe a mão: a Claudine e a Antoniette para começar - acrescentou em tom alegre.

Beau era um dos rapazes mais populares da escola, bonito como um galã de telenovela. Bastava-lhe olhar para uma rapariga com aqueles olhos azuis e sorrir, e logo o coração dela bateria apressadamente, fazendo com que perdesse o fôlego e fizesse ou dissesse um disparate. Ele era alto e bem constituído, uma das estrelas do futebol na escola. Entregara-me completamente a ele, e ele também me confessara o seu profundo amor por mim.

Antes de eu chegar a Nova Orleães, Beau era o namorado de Gisselle, mas ela adorava provocá-lo e atormentá-lo, namoriscando e saindo com outros rapazes. Nunca se apercebera de que ele poderia ser uma pessoa sensível e séria. Para ela, todos os rapazes eram iguais. Gisselle continuava a vê-los como brinquedos, não como seres humanos inspiradores de confiança ou de lealdade. Nem mesmo o acidente lhe mudara as ideias. Continuava a não conseguir estar na companhia de um rapaz sem o atormentar, movendo os ombros provocadoramente ou segredando-lhe promessas de algo exorbitante para quando estivessem sozinhos.

- Não pus uma coleira no pescoço do Beau - disse-lhe.

- Ele pode fazer o que quiser, quando quiser. - Falei de forma tão indiferente que os olhos de Gisselle se abriram surpreendidos. A desilusão inundou-lhe a cara.

- Não estás a falar a sério - insistiu.

- E ele também não me pôs uma coleira. Se o facto de estarmos separados por algum tempo o fizer encontrar outra namorada, alguém de quem ele goste mais, então é porque assim estava escrito - respondi.

- Tu e a tua maldita crença no destino. Suponho que achas que o destino planeou para mim ser uma aleijadinha até ao fim da minha vida, não é?

-Não.

- Então o quê? - exigiu saber.

- Não quero falar mal dos mortos - respondi -, mas nós duas sabemos muito bem o que é que tu e o Martin estavam a fazer no dia do acidente. Não podes culpar o destino.

Gisselle cruzou os braços por cima do peito em sinal de irritação.

- Prometemos ao paizinho que iríamos dar uma oportunidade à escola. Também sabes como é que as coisas estão por aqui - lembrei-lhe.

- A Daphne não me odeia tanto como a ti - disparou, os olhos a faiscar.

 

- Não estejas tão certa disso. Ela está ansiosa por nos expulsar a ambas da vida dela. E sabemos que ela não é a nossa mãe e que o paizinho estava mais apaixonado pela nossa verdadeira mãe do que alguma vez estará por ela. Enquanto nós estivermos aqui, ela não pode fugir á verdade.

- A Daphne não me tinha rancor antes de tu chegares - repetiu Gisselle. - A partir daí toda a minha vida veio por água abaixo, e agora estou a ser empurrada para uma porcaria de um colégio de raparigas. Quem quer estudar numa escola onde não há rapazes? - gritou.

- Na brochura está escrito que de vez em quando a escola organiza bailes com o colégio de rapazes - expliquei-lhe. Mal acabei de proferir estas palavras, arrependi-me. Gisselle não perdia a mais pequena oportunidade para sublinhar a sua paralisia.

- Bailes! E eu lá posso dançar?

- Tenho a certeza de que há muitas outras coisas que podes fazer com um rapaz em Greenwood nos dias em que lhes são permitidas as visitas.

- Permitidas as visitas? Parece pavoroso, como numa prisão. - Começou a chorar. - Quem me dera estar morta, quem me dera...

- Vá lá, Gisselle - implorei. Sentei-me sobre a cama e segurei-lhe na mão. - Prometi-te que faria tudo para que as coisas não fossem tão dificeis para ti. Prometi até ajudar-te nos trabalhos de casa... tudo aquilo de que precisares, não foi?

Ela retirou a mão e limpou as lágrimas dos olhos com os seus pequenos punhos.

- Tudo o que eu quiser?

- Tudo aquilo de que precisares - corrigi.

- E se a escola for horrível, vais pôr-te do meu lado contra o paizinho e insistir para que nos deixe voltar para casa?

Acenei afirmativamente.

- Jura.

- Juro, mas só se for mesmo horrível e não apenas por ser exigente em relação ao cumprimento das regras, as quais tu provavelmente vais odiar.

- Jura por... pela vida do Paul.

- Oh, Gisselle,

- Vá, se não, não acredito em ti - insistiu.

- Está bem, juro pela vida do Paul. às vezes, és absolutamente terrível, sabias?

- Sei - disse, sorrindo. - Vai dizer à Wendy que estou pronta para me levantar, lavar, vestir e tomar o pequeno-almoço.

- Estou aqui - respondeu Wendy, vinda da porta. - Estava aqui à espera.

- Queres dizer que estavas a espiar-nos - acusou Gisselle. - A ouvir a conversa...

 - Não, não estava. - Wendy olhou para mim horrorizada.

- Eu não espio.

- Claro que ela não nos espia, Gisselle.

- Claro que espia, queres tu dizer. Ela gosta de ouvir as nossas conversas e assim pode acreditar que também tem uma vida romântica como a nossa. - Acrescentou, em tom de provocação: - Isso e as revistas românticas, não é, Wendy? Ou tens-te encontrado com o Erie Danicís atrás da cabana todas as noites?

Wendy quase rebentou de vergonha. A sua boca abriu-se e abanou a cabeça.

 

- Se calhar é mesmo melhor que a gente vá para uma escola particular para deixarmos de ser espiadas todo o tempo - continuou Gisselle, suspirando. - Está bem, está bem - interrompeu-se. - Ajuda-me a lavar e a escovar o cabelo e não fiques para aí parada a olhar como se tivesses sido apanhada com a boca na botija

Wendy suspirou. Virei-me de costas para esconder o riso e corri lá para baixo para dizer ao paizinho que tudo estava bem Gisselle estaria vestida e pronta para a viagem

Desde que Daphne tentara internar me na clínica e depois da minha fuga, a vida na casa dos Dumas tornou-se difícil. As nossas refeições juntos quando conseguíamos reunir a família para comer, eram geralmente muito silenciosas, até mesmo formais. O paizinho já não brincava comigo e com Gisselle e quando Daphne tinha algo a dizer era sempre abrupto e directo. A maior parte do tempo era gasta a ter pena de Gisselle ou a prometer-lhe mundos e fundos

Embora algo parecido com uma trégua fosse declarado entre nós, Dapline nunca parou de se queixar ou de procurar coisas em mim para criticar. Acho que foram as continuas queixas que ela fazia ao meu pai que o convenceram por fim a mandar-nos para o colégio interno, acreditando ele que o facto de nos tirar de casa seria a solução mais sensata. Agora Daphne comportava-se como se a ideia tivesse sido dela desde o início, como se tudo fosse o melhor para a família. O meu palpite é que ela tinha medo que nós recusássemos no último instante.

Quando cheguei, o paizinho estava sozinho na sala de estar a ler o jornal da manhã e a beberricar o seu café. Um croissant com manteiga e doce estava sobre um prato ao lado da chávena. Não me ouviu entrar e pude observá-lo por um momento sem ele reparar.

O nosso pai era um homem impressionantemente bonito. Tinha os mesmos olhos verdes claros que eu e Gisselle, mas a sua cara era mais magra e os seus ossos malares mais pronunciados. Nos últimos tempos parecia ter ganho algum peso à volta da cintura, mas mantinha um torso firme com ombros graciosamente delineados. Mostrava-se ainda orgulhoso do seu cabelo farto, cor de castanha, conservando ainda uma pequena poupa, mas a madeixas brancas que tinham invadido as suas têmporas começavam a aparecer tanto atrás como em cima. Ultimamente, na maior parte do tempo, parecia ou cansado ou embrenhado nos seus pensamentos. Passava menos tempo fora de casa, quase nunca ia pescar ou caçar e, como consequência, perdera todo o bronzeado que costumava ter.

- Bom dia, paizinho - disse-lhe, sentando-me. Ele baixou rapidamente o jornal e sorriu, mas percebi pela hesitação dos seus olhos que já tinha havido problemas entre ele e Daphne essa manhã.

- Bom dia. Excitada?

- E assustada - admiti.

- Não estejas. A última coisa que quero fazer é mandar-te para um sítio onde não sejas feliz. Acredita.

- Eu sei - respondi.

Edgar apareceu à entrada com um tabuleiro de prata, trazendo o meu sumo de laranja.

- Esta manhã, também só quero um café e um croissant, Edgar.

 

- A Nina não vai gostar disso, mademoiselle - avisou Edgar. Os seus olhos negros pareciam mais escuros e a cara carrancuda. Com o olhar segui-o enquanto saía da sala de estar e depois voltei-me para o paizinho, que sorria.

- O Edgar gosta muito de ti e tem pena que te vás embora. Tal como eu, ele sabe que o brilho e o som alegre da tua voz farão muita falta.

- Então, se calhar, não devíamos ir. Se calhar é um erro - insisti suavemente. - A Gisselle continua a queixar-se.

- Receio que a Gisselle vá queixar-se sempre - respondeu o paizinho, deixando escapar um leve suspiro. - Não, não, por mais lamentável que seja, julgo que isto é o melhor para ti. E para a Gisselle - acrescentou rapidamente. - Ela passa demasiado tempo sozinha a ter pena de si própria. Estou convencido que não a deixarás fazer isso em Greenwood.

- Eu tomarei conta dela, paizinho.

Ele sorriu.

- Eu sei. Ela não faz ideia da sorte que tem por ter uma irmã como tu - retorquiu. Um sorriso quente iluminou os seus olhos cansados.

- A Daphne não vem tomar o pequeno-almoço? - perguntei.

- Não, hoje ela toma o pequeno-almoço no quarto - respondeu de imediato. - A Nina acaba de o levar.

Não me surpreendeu que Daphne nos evitasse o máximo possível no dia da nossa partida, mas mesmo assim pensei que ela não ia deixar passar esta oportunidade para exibir o seu contentamento. No fim de contas, tinha conseguido o que queria: ver-se livre de mim.

- Vou visitar o Jean na quarta-feira - interrompeu o paizinho. - Tenho a certeza de que ele quererá saber tudo acerca de ti. E da Gisselle, claro.

- Diga-lhe que lhe escreverei - respondi. - Prometo. Escrever-lhe-ei longas cartas descrevendo tudo. Não se esquece de dizer?

- Claro que não. E eu também te visitarei - prometeu o paizinho. Eu sabia que ele se sentia culpado por nos mandar para aquele colégio interno, pois já havia repetido esta promessa pelo menos uma dúzia de vezes na última semana.

Edgar voltou com o meu croissant e o café. O paizinho retomou a leitura do jornal. Comecei a dar pequenos goles no meu café e a mordiscar o croissant, mas sentia-me como se no meu estômago nadasse um peixe, fazendo cócegas nas minhas entranhas com a sua cauda. Alguns momentos depois, ouvimos o chiar da nova cadeira movida a electricidade, que trazia Gisselle escada abaixo. Enquanto descia, ela queixava-se e resmungava, como sempre.

- Isto anda tão devagar! Porque é que o Edgar não vem cá acima e me traz ao colo? Ou o paizinho? Alguém devia ser contratado só para isso. Sinto-me tão estúpida. Ouviste o que eu disse, Wendy? Pára de fingir que não me ouves.

O paizinho baixou de novo o jornal e olhou para mim ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

- É melhor eu ir ajudá-la. - levantou-se e foi auxiliar Wendy a passar Gisselle da cadeira usada nas escadas para a cadeira de rodas do andar de baixo.

 

Nina apareceu de rompante vinda da cozinha e ficou parada à entrada com as mãos nas ancas, fixando-me com o olhar.

- Bom dia, Nina - disse-lhe.

- Que espécie de bom-dia é esse? Não comeu o que a Nina preparou. Vai fazer uma viagem para Baton Rouge e precisa de energia, está a ouvir? Tenho papas de cereal. Tenho ovos mexidos mesmo como gosta.

- Acho que estou demasiado nervosa, Nina. Por favor, não fiques zangada - respondi.

Ela tirou as mãos das ancas e apertou os lábios enquanto abanava a cabeça.

- A Nina não está zangada. - Ficou a pensar por uns instantes e depois aproximou-se, tirando algo de dentro da algibeira. - Quero dar isto antes que me esqueça - disse, estendendo-me uma pequena moeda com um furo no meio por onde passava um fio.

- O que é isto?

- Vai usar isto á volta do tornozelo esquerdo, percebe, e os maus espíritos não a perseguem. Vá, ponha no tornozelo - mandou. Olhei para a porta para ver se ninguém estava a ver e rapidamente fiz como Nina tinha mandado. Ela pareceu aliviada.

- Obrigada, Nina.

- Os maus espíritos estão sempre a pairar sobre esta casa. É preciso ter cuidado - explicou, voltando para a cozinha.

Eu nunca punha em causa amuletos e talismãs, superstições e rituais. A grandmère Catherine fora uma das mais respeitadas traiteurs do bayou, com capacidades para expulsar os maus espíritos e curar pessoas de várias indisposições. Chegara mesmo a ajudar mulheres que não conseguiam engravidar. Toda a gente no bayou, incluindo o nosso padre, tinha grande respeito pela grandmère. No mundo Cajun de onde eu vinha, crenças religiosas e vodu estavam ligados, criando uma visão do mundo mais tranquilizadora.

- Não gosto desta saia - ouvi Gisselle queixar-se, enquanto o paizinho a empurrava para dentro da sala de jantar. - É demasiado comprida, parece que tenho um lençol sobre as pernas. Escolheste esta de propósito porque achas que as minhas pernas agora estão feias, não é? - acusou-me.

- Mas ontem concordaste em usar esta quando escolhemos a roupa - lembrei-lhe.

- Ontem à noite eu só queria despachar isto o mais rápido possível para que tu não me aborrecesses mais - retorquiu.

- O que queres para o pequeno-almoço, querida? - perguntou-lhe o paizinho.

- Um copo de arsénico - respondeu.

Ele sorriu maliciosamente.

- Gisselle, porque é que tornas as coisas mais dificeis do que elas já são?

- Porque detesto ser uma aleijada e detesto a ideia de ser levada para uma escola onde eu não conheço ninguém - - afirmou. O paizinho suspirou e olhou para mim.

- Gisselle, come só qualquer coisa para que possamos partir. Por favor - implorei.

- Não tenho fome.

Amuou por um momento, dirigindo a cadeira de rodas para a mesa.

 

- O que é que estás a comer? Quero o mesmo - ordenou a Edgar, olhando para o meu prato. Este levantou o olhar para o tecto e depois entrou na cozinha.

Mal acabámos de tomar o pequeno-almoço, o paizinho foi ver como estava a nossa bagagem. Foi preciso que Edgar e um dos empregados fizessem quatro viagens de ida e volta para trazer tudo para baixo. Gisselle levava três baús, dois caixotes, três malas e o gira-discos. Eu tinha apenas uma mala de viagem. O paizinho viu-se obrigado a contratar alguém para vir connosco noutra carrinha, visto Gisselle ter insistido em levar tanta coisa.

Quando ia a empurrar Gisselle para a varanda, de onde poderiamos assistir ao carregamento dos veículos, Daphne surgiu no cimo da escadaria. Chamou-nos, dando alguns passos na nossa direcção. O seu cabelo louro-arruivado estava apanhado e usava um roupão chinês vermelho e chinelos.

- Antes da vossa partida - disse -, quero avisar-vos para se portarem bem. Só porque vão para um sítio consideravelmente longe daqui, isso não significa que estejam livres para fazer e dizer o que vos apetece. Não podem esquecer-se que são Dumas e que aquilo que fizerem reflectir-se-á sempre no nome e na reputação desta família.

- O que é que podemos fazer? - gemeu Gisselle. - É apenas uma escola para raparigas tontas.

- Não sejas insolente, Gisselle. Vocês as duas conseguem trazer desrespeito para esta família para onde quer que vão. Só quero que saibam que temos amigos que também mandam os seus filhos para lá. Por isso, estou certa de que seremos informados acerca do vosso comportamento - ameaçou.

- Se tem tanto medo do nosso comportamento fora de casa, não nos mande para lá - retorquiu Gisselle. às vezes até gostava da minha irmã mimada, especialmente quando ela provocava a nossa madrasta.

Daphne deteve-se abruptamente e mirou-nos com os seus frios olhos azuis.

- Para além de outras razões - disse devagar -, vocês precisam ambas dessa escola, especialmente no que diz respeito à disciplina. Foram demasiado mimadas pelo vosso pai. A melhor coisa que pode acontecer-vos é estarem afastadas dele.

- Não - respondi. - A melhor coisa para nós é estarmos longe de si, mãe.

Virei-me de costas e empurrei Gisselle em direcção à porta.

- lembrem-se dos meus avisos - gritou Daphne, mas eu não olhei para trás. Sentia o meu coração a pulsar, as lágrimas de raiva a arder debaixo das pálpebras.

- Ouviste o que ela disse? - murmurou Gisselle. - Disciplina. Eles estão a mandar-nos para um reformatório. Provavelmente as janelas terão grades e haverá mulheres monstruosas a dar-nos reguadas nas mãos.

- Oh, Gisselle, pára - respondi.

 

Ela continuou a vociferar contra tudo e contra todos, mas eu não lhe prestei atenção. Em vez disso, os meus olhos continuavam a perscrutar a rua, e os meus ouvidos á procura do som de um carro desportivo. Beau prometera aparecer antes da nossa partida. Ele sabia que nós tínhamos planeado sair por volta das dez. Eram já um quarto para as dez e ele sem aparecer.

- Provavelmente não vem despedir-se de ti - disse Gisseile em tom de provocação, quando me viu a olhar para o relógio. - De certeza que decidiu não desperdiçar o seu tempo. Possivelmente já marcou um encontro com outra para hoje. Sabes que também é o que os pais dele querem.

Apesar da minha aparente calma, não conseguia deixar de concordar com ela. Receava que os pais dele o tivessem impedido de vir despedir-se de mim nessa manhã.

De repente, porém, o seu carro desportivo surgiu inclinando-se na curva. O motor roncou e os travões guincharam quando parou à frente da nossa casa. Saltou para fora do carro e correu até à varanda. Gisselle ficou muito decepcionada. Deixei-a e corri escadas abaixo para o cumprimentar. Abraçámo-nos.

- Olá, Gisselle - cumprimentou-a, acenando-lhe, e depois puxou-me para junto dele de forma a que pudéssemos estar um pouco sozinhos. Reparou no movimento das bagagens e abanou a cabeça.

- Vais mesmo - afirmou tristemente.

-Sim.

- Para mim vai tornar-se impossível estar aqui - previu. - Sem ti, a minha vida fica com um vazio por preencher. Os corredores na escola vão parecer vazios. Vou levantar os meus olhos no campo de jogos e não te ver nas bancadas... Não vás - implorou. - Recusa!

- Tenho de ir, Beau. É o que o meu pai quer. Eu escrevo-te e telefono-te e...

- E eu irei visitar-te sempre que possa - prometeu. Mas não é a mesma coisa que acordar de manhã sabendo que vou ver-te dentro de pouco tempo.

- Por favor, não tornes isto ainda mais difícil do que já é, Beau.

Ele concordou e continuámos a andar pelos jardins. Dois esquilos cinzentos acompanhavam-nos pela direita, olhando-nos com curiosidade. Pequenos beija-flores esvoaçavam á volta da trepadeira de flores roxas, enquanto um gaio, que tinha poisado num ramo baixo da magnólia, sacudia as asas nervosamente por cima de nós. à distância, um carreiro de pequenas nuvens era levado pela brisa maritima em direcção à costa do golfo da Florida. Excepto isto, o céu conservava um azul-suave.

- Desculpa estar a tornar isto tão difícil. Estou a ser egoísta. Mas não consigo evitar - acrescentou. Depois suspirou resignado e afastou as madeixas louras da testa. - Então... disse - vais para uma escola fina. Aposto que vais conhecer imensos rapazes ricos, filhos de barões do petróleo, que te vão fazer a corte.

Ri-me.

- Qual é a piada?

- A Gisselle espicaçou-me hoje de manhã dizendo que tu irias apaixonar-te por outra rapariga daqui, e agora tu dizes que sou eu que vou apaixonar-me por outra pessoa.

- Não tenho lugar no meu coração para outra pessoa - confessou Beau. - Tu ocupaste demasiado.

 

Parámos em frente do antigo estábulo. O paizinho tinha-me contado que há mais de vinte anos que não se guardava lá um cavalo. Mais à direita, um jardineiro estava a desbastar uma bananeira, as folhas amontoando-se atrás dele. As palavras de Beau encontravam-se ainda suspensas no ar entre nós. O meu coração sofria, e uma mistura de lágrimas de alegria e de tristeza inundava-me os olhos.

- Estou a falar a sério - disse Beau suavemente. - Não há noite que passe que eu não me recorde de nós no teu atelier.

- Pára, Beau - pedi-lhe, pousando o indicador sobre os seus lábios. Ele beijou-o rapidamente, segurando a minha mão de encontro á sua face.

- Eles podem fazer o que quiserem, eles podem dizer o que quiserem... Podem mandar-te para longe, mandar-me a mim para longe, ameaçarem, seja o que for, mas não podem tirar-te daqui - declarou, levando a minha mão à sua testa. E daqui - acrescentou, conduzindo a minha mão para junto do seu coração. Senti o rápido bater e olhei para trás, assegurando que ninguém estava a ver-nos, ao mesmo tempo que ele me atraiu para junto de si e encostou os lábios de encontro aos meus.

Foi um beijo longo mas suave, que me provocou um arrepio no pescoço e me aqueceu o peito. Os beijos dele eram como pequenas lembranças electrificantes da paixão que agora partilhávamos. Avivaram-me a memória do seu toque, os seus dedos nos meus braços, nos meus ombros e, por fim, nos meus seios. A sua respiração quente sobre os meus olhos trouxe-me de volta a imagem do seu corpo nu, naquele dia em que ele me obrigou a desenhá-lo. Como os meus dedos tinham tremido, como eles tremiam agora. A minha excitação era tão grande que me assustava, pois senti que poderia virar costas e fugir com ele, correr, correr até chegarmos a um sítio escuro e calmo onde pudéssemos estar mais juntos do que nunca. Beau provocava-me emoções que eu não sabia que existiam, sentimentos mais fortes que quaisquer avisos, que quaisquer pensamentos. Se fossem libertados, seria impossível voltar a controlá-los.

Dei um passo atrás.

- Tenho de ir andando - afirmei.

Ele concordou, mas, quando comecei a retroceder, pegou-me na mão.

- Espera - pediu. - Quero dar-te isto sem ter uma dúzia de olhos sobre nós.

Pôs a mão no bolso e retirou uma pequena caixa branca atada com uma fita rosa minúscula.

- O que é isto?

- Abre - pediu, pondo a caixa na palma da minha mão. lentamente retirei a fita e descobri um medalhão de ouro numa corrente também de ouro. O medalhão tinha no centro um pequeno rubi rodeado de pequenos diamantes.

- Oh, Beau, é lindo! Mas deve ter sido muito caro.

Ele encolheu os ombros e sorriu.

- Agora, abre o medalhão - disse, e foi o que fiz.

Dentro estava uma fotografia dele e no lado oposto uma fotografia minha. Sorri e beijei-o rapidamente na face.

- Obrigada, Beau. É um presente maravilhoso. Vou pó-lo já - afirmei. - Ajuda-me com o fecho. - Entreguei-lho, virando-me de costas. Ele pendurou o medalhão sobre o meu peito e fechou a corrente. Depois beijou-me no pescoço.

- Agora, se algum rapaz estiver perto de ti, tem de passar por mim para chegar ao teu coração - segredou.

 

- Ninguém vai chegar tão perto, Beau - prometi.

- Ruby - ouvi o paizinho chamar. - Já é tarde, querida.

- Estou a ir, paizinho.

Começámos a percorrer o caminho de regresso. O paizinho e Edgar estavam a tirar Gisselle da varanda e a conduzi-la para o banco de trás do Rolís Royce. A cadeira de rodas tinha sido dobrada e colocada na carrinha.

- Bom dia, Beau - disse o paizinho.

- Bom dia, monsieur.

- Como estão todos lá por casa?

- Muito bem - respondeu. Apesar de, com o passar do tempo, as feridas terem sarado, ainda era difícil para o paizinho e para Beau falarem um com o outro. Daphne tinha contribuído tanto para extremar a situação...

- Pronta, Ruby? - perguntou o paizinho, voltando o olhar para mim. Ele sabia o que significava deixar para trás alguém que se ama. O seu olhar transmitia compreensão.

-           Sim, paizinho.

O meu pai entrou no carro e eu virei-me para Beau para darmos o beijo de despedida. Gisselle olhava através da janela.

- Vá, despachem-se. Não suporto estar aqui sentada sem estar em movimento.

Beau sorriu-lhe e depois beijou-me.

- Telefono-te assim que puder - segredei-lhe.

- E eu irei visitar-te assim que puder. Amo-te.

- Eu também - disse apressadamente e corri para o outro lado para entrar no carro.

- Também podias dar-me um beijo de despedida, Beau Andreas. Ainda não há muito tempo mal conseguias esperar por me beijar sempre que podias - disse Gisselle.

- Nunca esquecerei esses beijos - disse Beau, provocador, inclinando-se e beijando-a rapidamente.

- Isso não foi um beijo - retorquiu Gisselle. - Se calhar, já te esqueceste de como é que se faz. Talvez precises de uma especialista para te ensinar. - Olhou-me de soslaio e depois acrescentou: - Ora, talvez vás praticar enquanto estivermos fora. - Riu-se e encostou-se para trás.

O paizinho estava a conversar com o condutor da camioneta, conferindo o caminho para Baton Rouge e para a escola no caso de nos perdermos uns dos outros.

- O que é isto? - perguntou Gisselle, quando viu o medalhão sobre o meu peito.

- Um presente do Beau.

- Deixa-me ver - pediu, aproximando-se para pôr o medalhão entre os dedos. Tive de me inclinar para trás para que não arrancasse a corrente do meu pescoço.

-           Tem cuidado - avisei.

Ela abriu o medalhão e viu os nossos retratos. A sua boca escancarou-se e espreitou através da janela para Beau, que estava a falar com Edgar.

- Ele nunca me deu nada como isto. Aliás - disse com agressividade -, ele nunca me deu nada.

- Se calhar pensou que tinhas tudo o que querias - afirmei.

 

Ela deixou cair o medalhão sobre o meu peito e afundou-se no banco, amuando. O paizinho entrou no carro e olhou para nós.

- Tudo pronto? - perguntou.

- Não - respondeu Gisselle. - Nunca estarei pronta para isto.

- Estamos prontas, paizinho - afirmei. Olhei pela janela para Beau e gesticulei. - Amo-te. Adeus. - Ele acenou. O paizinho pôs o carro a trabalhar e devagar fomos afastando-nos.

Olhei para trás através do vidro traseiro e vi Nina e wendy na varanda, acenando. Eu acenei para elas, para Edgar e depois para Beau. Gisselle recusou-se a olhar para trás ou a acenar às pessoas. Continuava em fúria, com o rosto virado para a frente.

Quando chegámos ao portão, levantei devagar os olhos e observei a frente da casa, até que foquei uma janela onde as cortinas tinham sido corridas. Depois de um longo olhar e quando as sombras desapareceram, vi Daphne a observar-nos.

Um sorriso de satisfação iluminava-lhe o rosto.

 

LONGE DO "BAYOU"

à medida que nos afastávamos do Garden District e nos dirigíamos para a auto-estrada que nos levaria a Baton Rouge, Gisselle ia ficando inesperadamente silenciosa. Pressionou a cara de encontro à janela e pôs-se a observar o eléctrico cor de azeitona que atravessava a avenida. Olhava com um ar esfomeado para as pessoas que estavam sentadas nos cafés e esplanadas, como se conseguisse sentir o cheiro do café e do pão acabado de fazer. Nova Orleães parecia estar sempre cheia de turistas, homens e mulheres com máquinas fotográficas á volta do pescoço e mapas na mão, de olhos postos nas mansões e nas estátuas. Algumas partes da cidade tinham um ritmo calmo e preguiçoso, enquanto outras se mostravam azafamadas e em alvoroço. Mas a cidade tinha personalidade, uma vida própria, e era impossível viver ali sem fazer parte dela ou impedi-la de fazer parte de nós próprios.

 

Quando passámos pela extensa alameda de carvalhos verdejantes junto às grandes casas e depois pelos jardins cheios de magnólias e cameleiras, também eu me senti de repente nostálgica. Essa sensação surpreendeu-me. Não me tinha ainda apercebido de que já encarava esta terra como minha. Talvez por causa do paizinho, por causa de Nina, de Edgar e de Wendy, ou, acima de tudo, por causa de Beau, sentia agora que finalmente tinha um lar. Dei-me conta de que iria sentir falta dum mundo que, passado um ano, também eu reivindicava como meu.

Iria sentir falta dos cozinhados de Nina, das suas superstições e rituais para afugentar o mal. Iria sentir falta da conversa fiada que por vezes escutava entre ela e Edgar, quando discutiam sobre o poder de uma erva ou sobre um mau-olhado. Iria sentir falta das canções que Wendy cantava para si própria enquanto trabalhava; iria sentir falta do sorriso quente e luminoso do paizinho quando me cumprimentava pela manhã.

Apesar das nuvens de apreensão que Daphne tinha feito pairar sobre nós desde a minha chegada a Nova Orleães, sabia que iria sentir falta da gigantesca casa com o seu enorme átrio, as suas impressionantes pinturas e estátuas e ainda a rica e antiga mobília. Que emoção tinha sido para mim nos meus primeiros dias sair do quarto e descer a grande escadaria como uma princesa num castelo. Esqueceria alguma vez aquela primeira noite quando o paizinho me levou para o que viria a ser o meu quarto e, ao abrir a porta, eu deparei com aquela enorme cama coberta de fofas almofadas e de lençóis de chintz? Iria por certo sentir falta do quadro colocado por cima da minha cama: a imagem de uma bela rapariga num jardim a alimentar um papagaio. Iria sentir falta dos seus grandes armários e da enorme casa de banho com banheira, onde podia ficar durante horas a fio.

 

Tinha começado a sentir-me tão confortável na nossa mansão e, sim, devo confessar, de certa forma tão mimada. Tendo crescido num casinhoto cajun construído a partir de ciprestes e com telhado de zinco, sítio este onde os quartos não eram maiores do que alguns dos roupeiros da casa dos Dumas, era inevitável que ficasse impressionada perante aquela mansão que também era minha por direito. Iria ainda sentir falta das noites em que me sentava no terraço a ler, enquanto os gaios e os beija-flores esvoaçavam à minha volta e pousavam no parapeito do terraço a observarem-me. Iria sentir falta do cheiro da brisa maritima e de ouvir ocasionalmente a sirene de nevoeiro á distância.

E, no entanto, eu não tinha o direito de me sentir infeliz, pensava. O paizinho estava a gastar uma fortuna para nos mandar para aquele colégio interno, e tudo isso para que não tivéssemos dias tristes e cinzentos, para que gozássemos a nossa adolescência sem sermos molestadas pelo pesado fardo dos pecados passados, pecados que ainda estavam por compreender ou mesmo descobrir. Talvez com o tempo alguma alegria regressasse á vida do paizinho. Talvez nessa altura pudéssemos de novo estar todos juntos.

Ali estava eu, acreditando no céu azul, embora só visse nuvens á minha frente, acreditando no perdão onde só via raiva, ciúme e egoísmo. Se ao menos Nina tivesse um ritual mágico, um cântico, uma erva ou um antigo osso que agitasse por cima da casa e dos seus habitantes, dissipando as sombras negras que viviam nos nossos corações...

Fizemos uma curva e fomos obrigados a parar, aguardando que um cortejo funerário passasse, o que acentuou ainda mais o meu estado de desespero.

- Que maravilha - ironizou Gisselle.

- É só um bocadinho - disse o meu pai. Meia dúzia de negros vestidos de luto tocavam instrumentos de sopro e balançavam-se ao som da música. Os carpidores que os seguiam traziam os guarda-chuvas fechados, quase todos também a abanar-se ao mesmo ritmo. Sabia que, se Nina estivesse connosco, ela acharia que isto era um mau presságio e atiraria um dos seus pós mágicos para o ar. Mais tarde, iria pôr uma vela azul a arder, só por precaução. Instintivamente desloquei a mão para baixo e peguei na moeda da sorte que me tinha oferecido.

- O que é isso? perguntou Gisselle.

- É só uma coisa que a Nina me deu como amuleto de boa sorte - respondi.

Gisselle mostrou-se desdenhosa.

- Ainda acreditas nessas parvoices? Até tenho vergonha. Tira-o! Não quero que os meus novos amigos saibam que tu, minha irmã, és tão atrasada - ordenou.

- Tu acreditas no que quiseres, Gisselle, e eu acredito no que quiser.

- Paizinho, explique-lhe que não pode levar amuletos parvos e esse tipo de coisas para Ureenwood. Ela vai envergonhar a família. - Voltou-se de novo para mim. - Já vai ser suficientemente difícil esconder o teu passado - ameaçou.

- Não estou a pedir-te para esconderes nada acerca da minha pessoa, Gisselle. Não tenho vergonha do meu passado.

- Pois devias - disse num rompante, mirando o cortejo fúnebre como se estivesse aborrecida por alguém ter tido a audácia de morrer e de o funeral se realizar quando ela queria passar.

 

Mal o cortejo se afastou, o paizinho seguiu viagem e virámos para a saída que iria conduzir-nos à estrada interestadual e, consequentemente, a Baton Rouge. Foi aí que a realidade do que estava a acontecer-nos voltou a incomodar Gisselle.

- Vou deixar todos os meus amigos. Demora anos a fazer bons amigos, e agora já não os tenho.

- Se eles eram tão bons amigos, porque é que nem um sequer veio despedir-se de ti? - perguntei.

- Estão simplesmente aborrecidos com a minha partida - respondeu.

- Demasiado aborrecidos para se despedirem?

- Sim - retorquiu. - Além disso, falei com toda a gente ao telefone ontem á noite.

- Desde o teu acidente, Gisselle, quase nenhuma pessoa se tem dado contigo. Não vale a pena fingir. São o que se chama amigos de ocasião.

-           A Ruby tem razão, querida - disse o paizinho.

-           A Ruby tem razão - zombou Gisselle. - A Ruby tem sempre razão - murmurou com a respiração pesada.

Quando nos aproximámos do lago Pontchartrain, vi os veleiros que pareciam uma pintura sobre a água e lembrei-me do tio Jean e da confissão do paizinho: aquilo que parecera ser um horrível acidente de barco tinha sido na realidade algo que o paizinho levara a cabo deliberadamente num ataque de ciúmes. Havia passado todos os dias que se seguiram a arrepender-se do seu acto e a sofrer sob o peso da culpa, e assim iria continuar no futuro. Mas agora que eu tinha vivido com o paizinho e com Daphne durante meses, estava certa de que o que acontecera entre o paizinho e o tio Jean era inicialmente culpa da Daphne e não do meu pai. Talvez essa fosse mais uma razão para ela me querer longe da vista. Sabia que, sempre que eu olhava para ela, a via como realmente era: manhosa e hipócrita.

- Vocês vão gostar de frequentar a escola em Baton Rouge - disse o paizinho, mirando-nos através do espelho retrovisor.

-           Detesto Baton Rouge - respondeu Gisselle rapidamente.

-           Só lá estiveste uma vez, querida - explicou-lhe o paizinho -, quando eu te levei a ti e à Daphne para o meu encontro com membros do governo. Surpreende-me que te lembres de alguma coisa. Tinhas só seis ou sete anos.

-           lembro-me perfeitamente. lembro-me que estava desejosa de voltar para casa.

-           Pois agora vais aprender mais sobre a nossa capital e ver o que lá existe de interessante para ti. Tenho a certeza de que a escola terá excursões aos edifícios governamentais, aos museus e ao jardim zoológico. Sabes o que quer dizer o nome Baton Rouge, não sabes? - perguntou o paizinho.

-           Em francês quer dizer pau vermelho - respondi.

Gisselle olhou-me fixamente.

-           Isso eu também sabia. Só não o disse tão rapidamente como ela - declarou, voltando-se para o paizinho.

-           Oui, mas sabes porque se chama assim?

Eu não sabia, e a Gisselle de certeza que não fazia a mínima ideia, nem lhe interessava.

- O nome faz referência a um cipreste alto de casca curtida e coberto de animais recentemente mortos que fazia a fronteira entre os terrenos de caça de duas tribos índias da altura - explicou.

- Formidável - disse Gisselle. - Animais recentemente mortos, que horror!

 

- É a nossa segunda maior cidade e um dos maiores portos do país.

- Cheia de poluição - acrescentou Gisselle.

- Bem, a área de centenas de quilómetros de costa até Nova Orleães é conhecida por "Costa Dourada da Petroquimica", mas não tem só petróleo. Também existem enorrnes plantações de açúcar. é também chamada a "Taça de Açúcar" da América.

-           Somos obrigadas a assistir a uma aula de história? - zombou Gisselle.

O paizinho mostrou desagrado. Parecia que ele não conseguia fazer nada para a animar. Olhou para mim e eu pisquei-lhe o olho, o que o fez sorrir.

-           Seja como for, como é que descobriu esta escola? - inquiriu Gisselle de repente. - Porque é que não encontrou uma mais perto de Nova Orleães?

- Em boa verdade, foi a Daphne quem a descobriu. Está sempre informada acerca deste tipo de coisas. É uma escola de grande reputação e já existe há muito tempo, com uma grande tradição de qualidade. É financiada por meio de doações e do pagamento de propinas de famílias ricas da Luisiana, mas principalmente através de uma doação que lhe foi concedida pela família Clairborne por intermédio do seu único herdeiro, Edith Dilliard Claírborne.

- Aposto que ela é uma relíquia ressequida com mais de cem anos - disse Gisselle.

- Tem cerca de setenta. A sobrinha, Martha Ironwood, é a principal administradora; é a directora. Como vês, vocês vão ter acesso ao que se chama a rica e antiga tradição sulista -afirmou, orgulhoso.

- É um colégio sem rapazes - afirmou Gisselle. - Mais valia darmos entrada num convento.

O paizinho riu-se a bandeiras despregadas.

- Tenho a certeza de que não é nada assim, querida. Logo verás.

- Mal consigo esperar. Esta viagem é tão grande e aborrecida. Pelo menos liga a rádio - pediu Gisselle -, mas não uma daquelas estações que passam música cajun. Põe o Top Quarenta - exigiu.

O paizinho assim fez, mas, em vez de melhorar a sua disposição, embalou-a até adormecer, e durante o resto da viagem, o paizinho e eu conseguimos finalmente ter algumas conversas calmas. Adorava quando o pai estava com disposição para me contar histórias acerca das suas viagens ao Bayou e sobre o seu romance com a minha mãe.

- Fiz-lhe muitas promessas que não consegui cumprir - afirmou com pesar -, mas pelo menos uma promessa vou manter: assegurar que tu e a Gisselle tenham o melhor de tudo, especialmente as melhores oportunidades. Claro está - acrescentou sorrindo -, eu não sabia que tu existias. Sempre achei que a tua chegada a Nova Orleães era um milagre que eu não merecia. E não interessa o que aconteceu a seguir - disse intencionalmente.

 

Como eu viera a amá-lo tanto, pensava, enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas de alegria. Era algo que Gisselle não podia compreender. Mais de uma vez, ela tinha tentado fazer-me odiar o nosso pai. Pensei que era devido aos ciúmes pela relação que depressa se estabelecera entre nós. Mas ela estava constantemente a lembrar-me que ele tinha abandonado a nossa mãe no bayou, depois de a engravidar e estando já casado com Daphne. Depois ele agravara ainda mais os seus pecados, concordando que o seu pai adquirisse o bebé.

- Que tipo de homem faria uma coisa dessas? - inquírira outrora Gisselle, instigando-me com as suas perguntas e acusações.

- Quando são novas, as pessoas cometem erros, Gisselle.

- Não acredites nisso. Os homens sabem o que estão a fazer e o que querem de nós - disse, carregando o seu olhar de cinismo.

- Ele está arrependido do que fez desde então - acrescentei eu. - E ele está a fazer tudo por tudo para nos compensar disso. Se o amas, farás tudo o que puderes para atenuar o seu sofrimento.

- É o que eu faço - respondeu ela alegremente. - Ajudo-o, obrigando-o a comprar-me tudo o que quero sempre que me apetece.

"Ela é incorrigível", pensei. Nem mesmo Nina ou uma das suas rainhas do vodu poderia recitar um cântico ou encontrar um pó que a fizesse mudar. Mas um dia, algo o faria. Tinha a certeza disso; só não sabia o que seria ou quando.

- Ali está Baton Rouge - anunciou o pai algum tempo depois.

O pináculo do capitólio assomou por cima das árvores na zona da baixa. Vi as gigantescas refinarias de petróleo e as fábricas de alumínio ao longo da margem leste do Mississípi.

- A escola é mais acima, por isso vão ter uma vista fantástica.

Gisselle acordou quando saímos da estrada interestadual e seguíamos pelas estradas laterais, passando por uma série de impressionantes casas anteriores á guerra civil que tinham sido restauradas: mansões de dois andares com colunas. Passámos por uma belíssima casa com janelas de vidro Tiffinny onde um banco corrido balouçava na varanda inferior. Duas meninas estavam lá sentadas, ambas com carrapitos castanho-dourados e envergando dois vestidos idênticos cor-de-rosa e sandálias pretas de cabedal. Supus que eram irmãs, e a minha mente começou a criar uma fantasia, na qual me vi com Gisselle a crescer juntas numa casa como aquela, com o paizinho e a nossa mãe verdadeira. Como tudo poderia ter sido diferente...

- Só mais um pouco - explicou o paizinho, apontando para um monte. Após mais uma curva, a escola apareceu no nosso campo de visão. Primeiro vimos as grandes letras de ferro que formavam a palavra GREENWOOD por cima da entrada principal, que consistia em duas colunas de pedra quadradas. Uma cerca forjada em ferro em toda a volta perdia-se de vista pelos montes. Reparei no cefalanto que crescia ao longo da parte inferior da cerca, as suas folhas verdes raiando as pequenas bolas brancas. Ao correr de uma grande parte da cerca, cresciam trepadeiras com flores cor de laranja.

De ambos os lados do carro, podíamos ver ondulantes relvados verdes com esguios carvalhos vermelhos, nogueiras e magnólias. Esquilos cinzentos saltavam com graciosidade de ramo em ramo como se pudessem voar. Vi um pica-pau vermelho pousado num ramo, observando o nosso caminho. Havia passeiOs de pedra com pequenas sebes e fontes por todo o lado, algumas decoradas com estátuas anãs de esquilos, coelhos e pássaros.

 

Um jardim enorme conduzia-nos até ao edificio principal, onde filas e filas de flores se seguiam: tulipas, gerânios, iris, rosas de várias cores e uma imensidão de alegrias-do-lar brancas, cor-de-rosa e vermelhas. Tudo parecia cuidado e arranjado a preceito. A relva estava tão perfeita que parecia ter sido cortada por um exército de jardineiros armados de tesouras. Nem um ramo, nem uma folha, nada estava fora do lugar. Era como se tivéssemos entrado num quadro.

Por cima de nós, surgiu o edificio principal. Era uma estrutura de dois andares feita de tijolo antigo e madeira pintada de cinzento. Hera verde-escura escalava pelo tijolo rodeando as grandes janelas. Uma larga escadaria de pedra conduzia ao enorme pórtico e ás amplas portas da frente. Havia um parque de estacionamento à direita com sinais que diziam RESERVADO AO CORPO DOCENTE e RESERVADO A VISITANTES. Neste momento, o parque encontrava-se repleto de carros. Viam-se pais e raparigas encontrando-se e cumprimentando-se, velhos amigos a renovar a amizade. Era uma explosão de alegria. O ar estava cheio de gargalhadas, os rostos cobertos de sorrisos. Raparigas abraçavam-se e beijavam-se, e todos falavam ao mesmo tempo.

-           Estamos muito longe da parte da frente. E como é que eu vou conseguir subir aquelas escadas todos os dias? É horrível.

-           Espera um pouco - disse o paizinho. - Disseram-me que há uma rampa construída especialmente para as pessoas em cadeiras de rodas.

-           Excelente. Sou provavelmente a única. Todos me vão ver a ser empurrada pela manhã.

- Deve haver outras raparigas deficientes aqui, Gisselle. Não iam construir uma rampa só para ti - assegurei-lhe, mas ela limitou-se a permanecer amuada perante esse episódio que se apresentava à nossa frente.

-           Olha! Toda a gente conhece toda a gente. Somos provavelmente as únicas estranhas na escola.

-           Disparate - retorquiu o paizinho. - Há uma turma de caloiros, não há?

-           Nós não somos caloiras, somos finalistas - lembrou-lhe ela rapidamente.

- Deixem-me descobrir como proceder primeiro - pediu o paizinho, abrindo a porta.

- Prossiga para casa, isso é que é - zombou Gisselle.

O paizinho acenou para o condutor da carrinha, que estacionou ao lado do nosso carro. Depois foi falar com uma mulher vestida de saia e casaco verde, que segurava um dossier entre os braços.

-           Tudo certo - disse o paizinho à volta. - Vai ser fácil. A passagem é ali para a direita. Primeiro vocês vão registar-se, no vestíbulo principal, e depois iremos para o dormitório.

-           Porque é que não vamos primeiro ao dormitório? - exigiu Gisselle. - Estou cansada.

- Disseram-me para vos trazer primeiro aqui, querida, a fim de obter todas as informações acerca das aulas, um mapa das instalações, todo esse tipo de coisas.

-           Não preciso dum mapa das instalações. Tenho a certeza de que vou passar todo o tempo no meu quarto - respondeu Gisselle.

 

-           Oh, estou certo que não - retorquiu o paizinho. - Vou tirar a tua cadeira, Gisselle.

Ela comprimiu os lábios e sentou-se para trás com os braços cruzados por debaixo do peito. Eu saí do carro. O céu estava de um azul-cristalino e as nuvens fofas e cheias, lembrando algodão doce. Havia uma vista maravilhosa para a cidade lá em baixo. Atrás via-se O rio Mississípi, com os seus barcos e batéis a cruzar-se sobre as águas, navegando rio acima e rio abaixo. Senti como se estivéssemos no cimo do mundo.

O paizinho ajudou Gisselle a subir para a cadeira. Ela estava rigida e não cooperava, obrigando-o a erguê-la em todo o seu peso. Quando já estava sentada, o paizinho começou a empurrá-la em direcção à passagem. Gisselle manteve o seu olhar distante, o rosto torcido num malicioso esgar de censura. Raparigas sorriam-nos e algumas até nos diziam "Olá", mas Gisselle fingia não as ver.

A passagem levou-nos através de uma entrada lateral para o vestíbulo principal. Tinha chão de mármore e tectos altos, com grandes lustres e uma gigantesca tapeçaria na parede da direita, representando uma plantação de açúcar. O vestíbulo era de tal modo grande que as vozes das raparigas ecoavam. Estas agrupavam-se por três longas filas, que se formavam a partir da letra inicial do apelido. Mal Gisselle reparou na multidão, amuou.

- Não posso ficar aqui assim à espera - queixou-se Gisselle em voz tão alta que algumas raparigas que se encontravam perto a ouviram. - Em Nova Orleães, na nossa escola, não temos de passar por isto! Pensei que tinha dito que eles sabiam do meu caso e que iam levar isso em consideração.

- Só um minuto - retorquiu calmamente o paizinho. Depois foi falar com um homem alto e magro, de fato e gravata, que estava a encaminhar as raparigas para a fila apropriada e a ajudá-las a preencher correctamente os formulários. Olhou na nossa direcção depois de o pai lhe ter falado, após o que ambos se dirigiram para o balcão sobre o qual se via a tabuleta A-H. O paizinho falou com a professora atrás do balcão e ela entregou-lhe dois sobrescritos. Ele agradeceu-lhe e também ao homem alto e regressou rapidamente para junto de nós.

- Okay - concluiu o paizinho. - Tenho os vossos dossiers de inscrição. O dormitório que vos foi atribuído chama-se Casa Louella Clairborne.

- Que espécie de nome é esse para um dormitório? - perguntou desdenhosamente Gisselle.

- É o nome da mãe de Mister Clairborne. Existem três dormitórios, e a Daphne assegurou-me que vocês ficavam no melhor dos três.

- óptimo.

- Obrigada, paizinho - agradeci, tirando-lhe o meu sobrescrito das mãos. Sentia-me culpada de ser alvo de tratamento especial por causa de Gisselle e evitei os olhares invejosos das raparigas que ainda esperavam nas filas.

- Aqui está o teu sobrescrito - disse o paizinho para Gisselle. Como ela não fez esforço para agarrá-lo, ele colocou-o sobre o seu colo. Depois virou-a e empurrou-a para fora do edifício.

 

- Disseram-me que há um elevador para subir e descer no edificio principal. Todas as casas de banho têm acesso para deficientes e as tuas aulas serão quase todas no mesmo andar, de modo a não teres dificuldades para chegar a tempo de uma para outra - explicou o paizinho.

Gisselle abriu o sobrescrito com relutância à medida que descíamos a passagem. Na primeira página estava uma carta de boas-vindas da Mrs. Ironwood, na qual aconselhava vivamente que lêssemos todas as páginas do manual de orientação e que déssemos especial atenção às regras.

Dois dos dormitórios estavam localizados na ala traseira da direita, e o terceiro, o nosso, na ala traseira da esquerda. Enquanto o carro avançava devagar dando a volta ao edificio principal, em direcção do nosso dormitório, olhei para o declive e vi a casa dos barcos e o lago. Uma camada de jacinto-aquático estendia-se de uma margem à outra, formando um manto de flores de um lilás-pálido com uma ponta de amarelo no meio das pétalas, envolvidas por folhas verdes. A água do lago brilhava como uma pedra polida.

à nossa esquerda, exactamente por trás do edificio, encontravam-se os campos de jogos.

- Que belas instalações - exclamou o paizinho. - E tão bem tratadas.

- Isto é como estar na prisão - retorquiu Gisselle. - Temos de andar quilómetros e quilómetros para encontrar civilização. Estamos encurraladas.

- Oh, que disparate! Vais ter muitas coisas para fazer. Tenho a certeza de que não te aborrecerás - insistiu o paizinho.

Gisselle voltou à sua birra no mesmo instante em que o dormitório surgiu perante os nossos olhos. Estruturado como uma antiga casa de plantação, o dormitório de nome Loucíla Clairborne estava quase escondido da vista pelos enormes carvalhos e salgueiros que livremente estendiam os ramos á sua frente. Era um edificio de madeira de cipreste, e as varandas superior e inferior estavam circundadas por balaustradas, apoiando-se em colunas quadradas que iam até ao telhado triangular. à medida que nos dirigíamos para cima, vimos a rampa, construída ao lado da varanda. Não o quis dizer, mas parecia mesmo que tinha sido especialmente concebida para a Gisselle utilizar.

- Pronto - disse o paizinho. - Vamos lá instalar-vos. Vou dizer à monitora do dormitório que vocês já chegaram. O nome dela é Mistress Penny.

- Provavelmente não vale mais do que isso - troçou Gisselle, rindo do seu próprio sarcasmo. O paizinho subiu rapidamente as escadas da frente e desapareceu dentro do edificio.

- Vais ter de me empurrar deste local para as aulas todos os dias, sabes disso - ameaçou Gisselle.

- Podes facilmente deslocar-te sozinha, Gisselle. O passeio parece liso.

- É muito longe - gritou. - Estaria exausta quando chegasse.

- Se precisas de ser empurrada, eu empurrar-te-ei - assegurei-lhe com um suspiro.

 

- Isto é tão estúpido - queixou-se, cruzando os braços sobre o peito e olhando em frente para o dormitório. Momentos mais tarde, o paizinho apareceu com Mrs. Penny, uma mulher pequena e roliça de cabelo grisalho entrelaçado em tranças á volta da cabeça. Envergava um vestido azul-claro e branco sobre a silhueta corpulenta. Quando se aproximou, vi que tinha uns inocentes olhos azuis, e um sorriso largo e alegre pendia-lhe nos lábios grossos. As suas bochechas como que formavam um balão que quase engolia o pequeno nariz. Juntou as mãos quando me viu sair do carro.

- Bem-vinda, querida! Bem-vinda a Greenwood. Sou Mistress Penny. - Estendeu-me a sua pequena mão de dedos curtos e grossos, que eu apertei.

- Obrigada - respondia-lhe.

- És a Gisselle?

- Não, sou a Ruby. Esta é a minha irmã, a Gisselle.

- Mas que maravilha, ela nem sequer sabe qual é qual - Gisselle murmurou de dentro do carro. Se Mrs. Penny a ouviu, não deu sinal disso.

- Isto é formidável. Vocês as duas são as minhas primeiras gémeas e eu sou monitora de dormitório na Casa Louella Clairborne há mais de vinte anos. Olá, querida - disse, inclinando-se para espreitar Gisselle dentro do carro.

- Espero que tenhamos um quarto no rés-do-chão - vociferou Gisselle.

- Claro, claro que sim, querida. Vocês estão no primeiro quadrante, o quadrante A.

- Quadrante?

- Os nossos quartos estão projectados à volta de uma área de estudo. Cada grupo de quatro quartos partilha duas casas de banho e uma sala de estar - explicou Mrs. Penny. - Todas as outras meninas, excepto uma - acrescentou, intercalando o sorriso com seriedade -, já cá estão. São todas finalistas como vocês. Elas estão ansiosas para vos conhecer.

- E nós mortinhas para as conhecer a elas - cantarolou Gisselle sarcasticamente, enquanto o paizinho lhe trazia de novo a cadeira. Ele ajudou-a a sentar-se e dirigimo-nos para a casa.

O dormitório tinha uma grande sala de visitas á entrada com dois amplos sofás e quatro cadeiras almofadadas de alto espaldar, dispostas em torno de duas compridas mesas de madeira escura. Candeeiros de pé iluminavam os sofás e as cadeiras, bem como algumas mesas mais pequenas e as cadeiras dispostas nos cantos da sala. Num destes cantos, um pequeno canapé e outra cadeira de espaldar alto encontravam-se virados para um televisor. Todas as janelas da sala tinham cortinas de algodão branco e reposteiros azul-claros. O soalho de madeira estava coberto por um grande tapete azul oval, colocado por debaixo e à volta dos sofás. Um enorme retrato de uma elegante senhora de idade adomava a parede traseira. Era o único quadro na sala.

- Nesta pintura temos Mistress Edith Dili iard Clairborne

-           afirmou Mrs. Penny com alguma reverência, acenando com

a cabeça. - Quando era muito mais nova, claro - acrescentou.

- Mas ela parece velha ali - disse Gisselle. - Como é que ela não será agora?!

Mrs. Penny não respondeu, continuando antes a descrever a casa.

 

- A cozinha é na parte de trás - prosseguiu. - Temos hora marcada para o pequeno-almoço e para o jantar, mas sempre que quiserem podem arranjar um snack. Eu tento dirigir esta casa como se todos fizéssemos parte de uma grande e feliz família - explicou, dirigindo-se ao paizinho. Depois olhou para Gisselle. - Mal estejam instaladas, levo-vos para uma visita. O vosso quadrante é por aqui - adiantou, indicando-nos o corredor à nossa direita. - Primeiro vou mostrar-vos onde é que ficam, depois trazemos as vossas coisas. Como é que foi a viagem desde Nova Orleães?

- Boa - respondeu o paizinho.

- Chata - acrescentou Gisselle, mas Mrs. Penny ignorou-a, nunca deixando de sorrir. Era como se ela fosse incapaz de ouvir ou de ver algo que se revelasse desagradável.

Ao longo das paredes do corredor, estavam penduradas pinturas a óleo representando cenas de rua de Nova Orleães, intercaladas com retratos de pessoas que supus serem antepassados dos Clairborne. O corredor estava iluminado por dois lustres suspensos do tecto. Ao fundo encontrava-se a sala de estar que Mrs. Penny já tinha descrito: uma pequena divisão recheada com dois pares de cadeiras de espaldar almofadadas como as da entrada principal, uma mesa oval de madeira de pinho, quatro secretárias na parte de trás e candeeiros de pé.

O som de uma gargalhada chamou-nos a atenção para a primeira porta à direita.

- Bem, podemos já começar com as apresentações - disse Mrs. Penny. - Jacqueline... Kathleen...

Uma rapariga com um metro e setenta e muitos, se não mesmo um metro e oitenta, apareceu primeiro. Pela forma como se mexia quando andava percebi que tinha consciência da sua altura. O rosto era estreito, com um nariz comprido e afilado, por cima de uma pequena boca de lábios finos que pareciam pálidas tiras de borracha, principalmente quando fazia o seu sorriso de desdém. Depressa iria aprender que esse sorriso era a sua expressão facial favorita. A amargura estava bem patente nos seus censuradores olhos castanhos, que se reduziam a pequenas frechas. Parecia alguém cuja tarefa era espiar o mundo, um convidado indesejado que vem a uma festa onde estão pessoas muito mais felizes do que ele.

- Esta é a Jacqueline Gidot. Jacqueline, apresento-te a Gisselle e a Ruby Dumas e também o pai delas.

- Olá - disse Jacqueline, passando o olhar rapidamente de mim para Gisselle. Calculei que as raparigas do nosso quadrante tivessem sido avisadas que Gisselle andava de cadeira de rodas, mas de certeza que enfrentá-la ali sentada era ainda mais impressionante.

- Olá - respondi. Gisselle limitou-se a acenar, mas renovou o seu interesse quando a colega de quarto de Jacqueline se pôs a seu lado.

- E esta é a Kathleen Norton.

Kathleen possuia um sorriso mais afectuoso. Tinha cabelo louro mas baço e era mais ou menos da nossa altura, mas mais larga nas ancas e nos ombros.

- Toda a gente me chama Kate - disse-nos num ápice, dando depois uma risadinha.

 

- Ou Chuhs - acrescentou Jacqueline causticamente. Kate limitou-se a rir. Pareceu-me que se ria sempre que dizia algo ou quando alguém fazia um comentário acerca dela. Era mais uma reacção nervosa. Os seus olhos azuis tornaram-se grandes, como que amedrontados, quando olhou para Gisselle, e eu sabia que Gisselle não ia gostar disso.

-           Chubs? - perguntou Gisselle num tom áspero.

-           Ela come tudo o que está à vista e acumula doces por todo o quarto, tal e qual um daqueles esquilos de cauda cinzenta

- acrescentou Jacqueline de forma desdenhosa. Kate riu-se. Absorvia o sarcasmo de Jacqueline como uma esponja, sorria, e continuava como se nada tivesse sido dito.

- Bem-vindas a Greenwood!

- Obrigada - respondi.

- Qual é o nosso quarto? - exigiu saber Gisselle, com impaciência.

- Mesmo ali do outro lado - disse Mrs. Penny. Depois de darmos a curva, surgiu-nos à entrada do quarto adjacente ao nosso uma adorável loura-arruivada com covinhas nas faces. Parecia uma boneca.

- Esta é a Samantha - apresentou Mrs. Penny.

- Olá - disse Samantha. Parecia muito mais nova do que nós.

- És finalista? - perguntou Gisselle. A pequena Samantha acenou afirmativamente.

- A Samantha é, na verdade, do Mississipi - explicou Mrs. Penny, como se o Mississípi não fosse o estado adjacente, mas sim outro país. - Samantha, estas são a Gisselle e a Ruby Dumas e o pai delas.

-Olá - repetiu ela.

O barulho de alguém a vir pela entrada atrás de nós desviou a nossa atenção para o corredor. Uma rapariga com ar estudioso entrou rapidamente no quadrante. Tinha o cabelo castanho-escuro cortado mesmo por baixo das orelhas e usava óculos de aros pretos com lentes grossas, o que fazia com que os seus olhos castanhos parecessem muito maiores. Tinha as feições marcadas e rudes e, de tão pálida, quase parecia doente, mas tinha um grande peito, quase como o de Mrs. Penny, e o seu corpo, como Jacqueline mais tarde viria a dizer, era mal empregado naquela cara de cavalo.

- Victoria! Mesmo a tempo de conheceres as novas residentes, Ruby e Gisselle Dumas - disse Mrs. Penny. - Esta é a colega de quarto da Samantha - explicou-nos.

- Olá - disse-lhe. - Sou a Ruby.

Victoria tirou os óculos antes de me estender a sua mão de esguios dedos. Apertei-a.

- Acabei de vir da biblioteca - disse de um só fôlego. - Mister Warden já afixou à porta a bibliografia obrigatória para História da Europa.

- A Vicki está decidida a ser a melhor da turma - asseverou Jacqueline da porta do quarto -, ou então suicida-se.

- Não estou nada - ripostou Vicki. - É que é mais esperto adiantar matéria - disse-me. E depois olhou para Gisselle, que ostentava um sorriso quase tão desdenhoso como o de Jacqueline. - Bem-vinda.

- Muito obrigada.

- Mas afinal qual é o nosso quarto? - indagou Gisselle num queixume.

- Por aqui, querida - mostrou-nos Mrs. Penny, apontando em direcção à porta aberta. Quando o paizinho a empurrou, Gisselle fez uma lamúria.

 

Duas camas de solteiro encontravam-se lado a lado, separadas por uma mesa-de-cabeceira. Havia um armário á esquerda e outro à direita. Entre as camas e os armários, no espaço à justa para pôr a cadeira de rodas de Gisselle, situavam-se duas cómodas de madeira escura, que condiziam com a cama. à direita da porta encontrava-se um pequeno toucador com um espelho muito mais pequeno que aqueles que tínhamos nos nossos quartos de Nova Orleães. As janelas localizavam-se acima da cabeceira e tinham as mesmas cortinas lisas de algodão. O único adorno das paredes era um papel de um padrão floral simples. Os soalhos eram de madeira descoberta.

- É demasiado pequeno. Como é que vamos caber aqui? Não há espaço suficiente para as minhas coisas, quanto mais para as da Ruby.

- Ainda bem que alguém concorda comigo - corroborou Jacqueline de trás.

- Não te aflijas, querida - assegurou Mrs. Penny. - Tenho algum espaço onde podes guardá-las.

- Não trouxe todas as minhas coisas para depois ficarem guardadas. Trouxe-as para as usar.

- Ai, meu Deus - disse Mrs. Penny, virando-se para o paizinho.

- Não há problema - garantiu o meu pai. - Primeiro trazemos o essencial, depois...

- Tudo é essencial - declarou Gisselle inflexivelmente.

- Se calhar ela pode pôr algumas das coisas no quarto da Abby - sugeriu Mrs. Penny. - A Abby está sozinha - acrescentou.

- Quem é a Abby? Onde é que ela está? - perguntou Gisselle.

- Ainda não chegou. É a outra rapariga nova - informou Mrs. Penny dirigindo-se ao pai, que concordou. - Seja como for, não vale a pena apoquentares o teu coraçãozinho, minha querida. Mistress Penny está aqui para resolver tudo e fazer com que as suas meninas sejam felizes. Já há muito que o faço

-           disse, sorrindo.

Gisselle virou as costas e fez beicinho.

- Bem, vou começar a trazer as coisas delas para cima - afirmou o paizinho.

- Precisa da minha ajuda, paizinho? - perguntei.

- Não. Fica aqui com a tua irmã - pediu, levantando as sobrancelhas num gesto de cumplicidade. Concordei, e ele saiu com Mrs. Penny.

Jacqueline, Kate, Samantha e Vicki reuniram-se junto à nossa porta.

 - Porque é que trouxeste tanta coisa? - perguntou Vicki. - Não sabes que não é preciso um grande guarda-roupa? Usamos uniforme.

- Eu não vou usar uniforme - gritou Gisselle.

- Tens de usar - afirmou Kate, rindo-se em seguida.

- Eu não tenho de usar. Não posso. Eu tenho problemas especiais - declarou Gisselle. - Tenho a certeza de que o meu pai vai tratar de que eu possa vestir as minhas próprias roupas e, como se pode ver, aqui não há espaço suficiente para todas as minhas coisas. Vão ter de ficar nos baús, ocupando o pouco espaço que temos.

Vicki encolheu os ombros.

 

- Também não vais passar assim tanto tempo no quarto - sublinhou. - A maior parte do tempo estamos cá fora a fazer os trabalhos.

- Tu estás a maior parte do tempo - acusou Jacqueline -, nós não. Então de que parte da Luisiana são vocês?

- Nova Orleães - respondi. - Garden District.

- Isso é lindo - afirmou Samantha, a menina que parecia uma boneca. - O meu paizinho levou-me lá no ano passado quando fomos visitar Nova Orleães. Se calhar passei mesmo á porta da vossa casa.

Gisselle virou a cadeira de rodas, de forma a poder ver melhor as raparigas.

- E de onde é que vocês vêm?

- Eu sou de Shreveport - replicou Jacqueline. - A Cliuhs é de Pineville e a Vicki de Lafayette.

- O meu pai e eu vivemos em Natchez - acrescentou Samantha.

- O que é que aconteceu à tua mãe? - perguntou Gisselle.

- Morreu há dois anos num acidente de viação - respondeu Samantha, mordendo rapidamente o lábio inferior, o que fez as suas covinhas desaparecerem.

- Foi assim que eu fiquei incapacitada - bradou, zangada, Gisselle. Era como se ela acreditasse que a culpa de todos os acidentes era dos carros e não das pessoas. - Mas se és do Mississípi, porque é que vens estudar para aqui? - perguntou Gisselle.

- A família do meu pai é de Baton Rouge.

- Todos os quartos são deste tamanho? - indagou Gisselle, olhando à volta, deixando de escutar Samantha.

- Sim - respondeu Jacqueline.

- E porque é que essa tal Abby tem um quarto só para ela? - inquiriu Gisselle.

- Foi assim que ficou decidido - respondeu Kate, rindo-se. - Uma questão de sorte, talvez.

- Ou se calhar... ninguém quer ficar no quarto com ela. Nós também ainda não a conhecemos - explicou Jacqueline.

- Não está a dizer que ela é... - começou Kate.

- Não - interrompeu Jacqueline. - Não os deixam entrar em Greenwood, proteste quem protestar. Isto é um colégio privado - acrescentou com orgulho.

- Bem, ela que chegue depressa - interveio Vicki. - A reunião de orientação começa daqui a uma hora.

- Que reunião de orientação? - perguntou Gisselle num ápice.

- Não leste a primeira página dos documentos que te deram? A Dama de Ferro faz sempre uma reunião para nos conhecer e para nós a conhecermos a ela.

- Na qual profere um discurso aterrorizador - acrescentou Jacqueline. - Cheio de ameaças do Inferno.

- A Dama de Ferro? - perguntei.

- Quando a ouvires falar e vires, perceberás porque é que lhe chamamos assim - explicou Jacqueline.

- Estas regras estúpidas que aqui estão escritas não são a sério, pois não? - perguntou Gisselle, mostrando o sobrescrito.

- Com ela são, e é melhor tomarem cuidado com os chamados deméritos. A Chubs pode explicar-te tudo acerca disso

- respondeu Jacqueline, apontando para Kate.

- Porquê? - perguntei.

 

- No ano passado apanhei dez e tive de lavar as casas de banho durante um mês inteiro - queixou-se. - E não acreditem que as raparigas são mais asseadas que os rapazes. Estavam todas nojentas - disse.

-           Nunca hão-de ver-me a lavar uma casa de banho - exclamou Gisselle.

-           Duvido que ela te castigasse dessa maneira - afirmou Vicki.

- Porquê? - perguntou Gisselle severamente. - Porque estou numa cadeira de rodas?

-           Claro - respondeu Vicki destemidamente.

Gisselle pensou por um momento e depois sorriu.

- Se calhar isto não é assim tão mau. Se calhar posso safar-me de muito mais coisas do que vocês.

-           Se fosse a ti, não contava com isso - advertiu Jacqueline.

- Porquê?

- Quando conheceres a Dama de Ferro, logo verás com os teus próprios olhos.

- Não é assim tão mau - interveio Samantha. - Isto é um bom colégio. E nós divertimo-nos.

-           E rapazes? - interrogou Gisselle.

Samantha corou. Ela parecia ter parado entre a fronteira da infância e da adolescência, alguém chocado e confuso acerca da sua própria sexualidade. Mais tarde, viria a descobrir que ela estava superprotegida e mimada pelo pai.

-           E rapazes... o quê? - perguntou Vicki.

-           Chegamos a conhecer alguns? - explicou Gisselle.

-           Claro. Nos encontros sociais. São convidados rapazes de colégios decentes. Temos um baile uma vez por mês.

-           Formidável. Uma vez por mês, exactamente como o período - zombou Gisselle.

-           O quê? - perguntou Samantha, o choque estampado no seu pequeno rosto em forma de coração. Kate deu uma discreta risada e Jacqueline escarneceu.

-           O período - repetiu Gisselle. - Sabes o que é, ou ainda não tens?

-           Gisselle - gritei, mas não antes de o rosto de Samantha se tornar carmesim enquanto as outras riam.

-           Oh, que maravilha - disse Mrs. Penny, entrando seguida pelo pai e pelo nosso condutor, que traziam parte da bagagem. - As raparigas já estão a entender-se. Eu bem disse que tudo ia correr bem - acrescentou, olhando para o paizinho.

 

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Meia hora antes de sairmos em direcção ao edifício principal, para assistir à reunião de Mrs. Ironwood, chegou Abby Tyler com os seus pais. Era a mais bonita de todas nós. Mais ou menos da minha altura, mas magra e de feições graciosas tal como a Audrey Hepbum, Abby tinha olhos turquesa e um cabelo escuro e denso, cujos fios lisos tocavam nos ombros. A sua suave tez morena era quase da cor do café, indicando que ela tinha passado mais tempo na praia do que qualquer uma de nós.

Falava com uma voz doce e melódica, com um sotaque estranho, onde se notava uma entoação francesa, obviamente uma herança maternal. Quando sorriu para mim, senti que havia franqueza na expressão do seu rosto. Tal como nós, parecia estar a apalpar terreno e via-se que se sentia pouco segura de si própria, pois também era a sua estreia como estudante em Greenwood.

Após ter sido apresentada a todas as raparigas, Mrs. Penny perguntou-lhe se se importava de guardar parte das coisas de Gisselle no quarto. Eu sabia que Gisselle não gostava de pedir nada a ninguém, mas Abby foi muito prestável.

- Claro que sim - disse, sorrindo para Gisselle. - Entra e usa todo o espaço de que precisares.

- Detesto a ideia de ter de ir de um quarto ao outro para buscar as minhas próprias coisas - queixou-se Gisselle.

- Basta dizeres-me o que é que queres e para quando e eu própria vou buscá-las - sugeri rapidamente.

- Eu também não me importo nada de te trazer as coisas - ofereceu-se Abby. Olhou para mim de uma forma carinhosa

e compreensiva e de imediato senti uma afinidade com aquela rapariga de voz suave e cabelos escuros.

- Está-se mesmo a ver que vou ter de andar de um lado para o outro a implorar às pessoas que me dêem as minhas próprias coisas - continuou Gisselle, a voz quase num guincho. Eu receava que de um momento para o outro ela tivesse um dos seus ataques de raiva e envergonhasse o paizinho.

- Não tens de implorar. É ridículo pôr a situação nesses termos. Pedir algo não é implorar - expliquei.

- Não me importo de te trazer as coisas - acrescentou Abby. - A sério que não me importo.

- Porque é que não te importas? - ripostou Gisselle, em vez de se mostrar agradecida. - Estás a treinar para ser criada de alguém?

O sangue esvaiu-se do rosto de Abby.

- Gisselle! Porque é que não podes mostrar-te agradecida e aceitar a bondade de alguém?

- Porque não quero estar dependente da bondade dos outros - gritou-me aos ouvidos. - Quero estar apenas dependente das minhas próprias pernas.

- Ai Jesus - interveio Mrs. Penny, pressionando as palmas das mãos na cara. - Eu só quero que toda a gente esteja feliz.

- Está tudo bem, Mistress Penny. Se a Abby está disposta a partilhar o espaço que tem no quarto com a minha irmã, a minha irmã ficará feliz - disse-lhe, olhando para Gisselle.

 

Frustrada, Gisselle virou-se para O paizinho, depois de terem trazido toda a bagagem, e começou a queixar-se por ter de usar uniforme, especialmente depois de o ter visto: uma saia e uma blusa cinzentas de lã grossa e uns sapatos pretos de tacão. O código de apresentação na segunda página do manual também especificava que a maquilhagem, até mesmo o báton, era proibida, como o uso ostensivo de qualquer peça de joalharia.

- Estou presa nesta estúpida cadeira de rodas todo o dia - protestou Gisselle - e, ainda por cima, tenho de usar aquelas roupas feias e desconfortáveis. Já toquei no tecido. E demasiado áspero para a minha pele. E aqueles sapatos horrorosos vão magoar-me os pés. São muito pesados.

- Vou falar com alguém acerca disso - acalmou-a o paizinho, saindo em seguida. Regressou quinze minutos mais tarde, dizendo que, devido ás circunstâncias, lhe tinha sido dada permissão para vestir o que a fizesse sentir confortável.

Gisselle afundou-se na cadeira e amuou. Apesar de ter feito todos os esforços possíveis para complicar as coisas e dessa forma tornar difícil a sua chegada a Greenwood, alguém descobrira uma maneira de a apaziguar e de tornar as coisas fáceis.

O paizinho estava pronto para se despedir.

- Eu sei que vocês as duas vão dar-se bem aqui. Só peço... - instruiu, olhando para Gisselle - que dêem uma oportunidade a Greenwood.

- Eu já odeio este Sítio - ripostou Gisselle. - O quarto é demasiado pequeno. Tenho de fazer uma grande deslocação para ir às aulas. E o que faço quando chover?

- O que toda a gente faz, Gisselle. Usas o guarda-chuva - respondeu o paizinho. - Tu não és uma peça de porcelana

delicada e também não derretes pois não?

- Vamos ficar bem, paizinho - prometi

- Tu vais - apressou-se Gisselle a responder - Eu não

- Vamos ambas - insisti

- Tenho de ir embora e vocês tambem já têm coisas para fazer - rematou o paizinho. Baixou-se para dar um beijo e um abraço a Gisselle. Ela voltou-lhe a cara não devolvendo o beijo, nem mesmo um ligeiro beijo na face. Percebi como essa atitude o pôs triste e infeliz; por isso, dei-lhe uma abraço e um beijo maior que o habitual.

- Não se preocupe - segredei-lhe, com os braços à volta do pescoço. - Eu tomo conta dela e asseguro que ela não "larga a batata cedo de mais" - acrescentei, expressão que o paizinho sabia que queria dizer "desistir" entre os Cajuns. Ele riu.

- Telefono-vos dentro de um ou dois dias - prometeu. Despediu-se das outras raparigas e saiu com os pais de Abby, que tinham passado a maior parte do tempo a conversar com Mrs. Penny. Mal partiram, Vicki avisou que tínhamos de ir para a reunião no edifício principal. Isso desencadeou um longo discurso de Gisselle sobre a distância que teria de percorrer do dormitório até ao edifício principal.

- Eles deviam pôr à minha disposição um carro que pudesse levar-me e trazer-me á escola - declarou.

- Não é assim tão longe, Gisselle.

- Para ti, isso é fácil de dizer - contrapôs. - Se quiseres, até podes correr.

- Terei todo o prazer em te empurrar - ofereceu-se Samantha.

Gisselle olhou para ela.

 

- A Ruby empurra-me - declarou de forma acutilante.

- Bem, se alguma vez a Ruby não puder, eu levo-te - ofereceu-se prontamente Samantha.

- Porquê? Dá-te gozo? - disparou Gisselle.

- Não - respondeu Samantha, espantada. Olhou rapidamente de uma para a outra. - Eu só queria...

- É melhor irmos andando - interrompeu Vicki, olhando nervosamente para o relógio. - Não se pode chegar atrasada a uma reunião geral de Mistress Tronwood. Se alguém o fizer, ela grita-lhe em frente de toda a escola e dá-lhe dois deméritos.

Saímos todas. Abby vinha ao meu lado e Gisselle à nossa frente.

- Porque é que vieste para Greenwood no teu último ano? - perguntei-lhe.

- Os meus pais mudaram-se e não gostaram da escola que eu deveria frequentar - explicou de imediato mas afastou o olhar e, pela primeira vez, senti que não estava a ser honesta. Supus que quaisquer que fossem as suas razões, provavelmente eram-lhe dolorosas como as nossas e não insisti.

- Esse medalhão é muito bonito - disse, quando se voltou de novo para mim.

- Obrigada. Deu-me o meu namorado esta manhã, antes de virmos para Greenwood. Cá dentro estão duas fotografias: a minha e a dele. Espreita - mostrei, fazendo uma pausa e inclinando-me.

- Porque é que estás a parar? - indagou Gisselle, mesmo tendo ouvido toda a conversa e sabendo perfeitamente a razão.

- Espera só um bocadinho. Quero mostrar à Abby a fotografia do Beau.

-Para quê?

Rapidamente abri o medalhão e Abby espreitou para as fotografias.

- Muito bonito - observou.

- Por isso é que já deve estar neste momento com outra - insinuou Gisselle. - Eu avisei.

- Também deixaste um namorado? - perguntei, ignorando Gisselle ao mesmo tempo que a empurrava.

- Sim - afirmou Abby tristemente.

- Talvez ele venha visitar-te ou escreva. Pode até telefonar

- sugeri.

Ela abanou a cabeça.

-           Não, não o vai fazer.

- Porquê?

-           Porque não - respondeu. Eu parei, mas ela acelerou o passo para apanhar as outras raparigas.

-           Qual é o problema dela? - perguntou Gisselle.

-           Saudades, suponho - afirmei, pensativa.

- Não a censuro. Até um ôrfão ficava com saudades aqui - acrescentou, rindo-se da sua inteligente zombaria.

Eu não me ri. Viera para ali convencida de que era a pessoa com o passado mais misterioso e com mais segredos para esconder, mas em menos de uma hora tinha-me dado conta de

que não era bem assim. Parecia haver mais portas fechadas no passado de Abby do que no meu. Fiquei a pensar quais seriam os seus motivos e se alguma vez me seria permitido descobri-los.

- Despacha-te - ordenou Gisselle. - Empurras-me como se eu fosse uma velha.

 

Alcançámos as outras, e à medida que continuávamos o nosso caminho para o edifício principal, as conversas centraram-se em torno do que havíamos feito no Verão, os filmes que víramos, os lugares onde tínhamos estado e os nossos cantores e actores preferidos. Gisselle sobressaía em todos os assuntos, impondo a sua opinião peremptoriamente, opiniões que especialmente Samantha secundava, bebendo-lhe as palavras, mais parecendo uma pequena flor sequiosa pela luz e pelo calor do Sol. Mas reparei que Abby continuava a ouvir em silêncio, com um leve sorriso nos lábios.

Quando chegámos ao edifício principal, decidiram todas acompanhar Gisselle a subir a rampa, atitude que lhe agradou, como pude perceber. Estava a ser tratada como se fosse alguém especial e não como uma deficiente.

Dois professores do sexo masculino, Mr. Foster e Mr. Norman, encontravam-se junto às duas entradas do auditório, incitando as raparigas a entrar rapidamente.

- Nós vamos para a esquerda - dirigiu-se Vicki.

- Porquê? - perguntou Gisselle. Agora que já se tinha resignado ao facto de ter de ficar em Greenwood, iria perguntar constantemente porque é que uma coisa não poderia ser branca se fosse preta. Como a grandmére Catherine diria, se ali estivesse: "A Gisselle está decidida a ser a pedra no sapato de toda a gente."

- É onde estão localizados os nossos lugares marcados - respondeu Vicki. - Está explicado no sobrescrito. Ainda não leste nada do que lá está?

- Não, ainda não li nada do que lá está - repetiu Gisselle, imitando o tom condescendente de Vicki. - Seja como for, eu não posso ter um lugar marcado. Estou numa cadeira de rodas... ou ainda não tinhas reparado?

- Claro que reparei. Mesmo assim devias ficar perto de nós - continuou Vicki pacientemente. - É assim que Mistress Ironwood organiza as assembleias da escola. Estamos sentadas de acordo com o nosso dormitório e quadrante.

- E que mais está nesse precioso sobrescrito? Quando é que devemos ir à casa de banho?

Vicki empalideceu e deu um passo em frente para indicar o caminho. Quando chegámos à fila, todas entraram ordenadamente. Gisselle permaneceu na coxia e eu sentei-me no banco de fora, de modo a poder ficar perto dela. Abby sentou-se a meu lado. à nossa volta, as raparigas riam e conversavam, muitas mirando-nos com interesse e curiosidade. Mas, por mais que sorrissem a Gisselle, ela recusava-se a retribuir. Quando a rapariga sentada na coxia à nossa frente nos fixou insistentemente, Gisselle quase lhe ia batendo.

- Para onde é que estás a olhar? Nunca viste ninguém numa cadeira de rodas?

- Eu não estava a olhar.

- Gisselle - murmurei brandamente, pondo a minha mão sobre o seu braço. - Não faças uma cena.

- Porque não? Que diferença faz? - retorquiu.

Jacqueline acenou a algumas amigas, tal como também o fizeram Vicki, Kate e Samantha. Depois Jacqueline começou a explicar-nos quem eram as outras, dando sobre cada uma a sua opinião.

 

- Aquela é a Deborah Stewart. Tem o nariz tão empinado que sangra todos os dias. E aquela é a Susan Peck. O irmão dela anda no Rosedown. Ele é tão giro que toda a gente a lisonjeia na esperança de que ela o apresente quando o colégio onde ele anda participar num dos nossos encontros sociais. Ah, é verdade, aquela é a Camille Ripley. Parece que convenceu os pais a pagarem-lhe a tal operação ao nariz, não é verdade, Vicki?

- Já nem me lembro de como é que ela era - respondeu secamente Vicki.

De repente, uma vaga de silêncio inundou a assembleia de raparigas. Começou na parte de trás e foi caminhando para a frente, acompanhando a chegada de Mrs. Ironwood, que marchava ao longo da coxia.

- Ali está a Dama de Ferro - murmurou Jacqueline de forma audível, acenando com a cabeça nessa direcção. Abby, eu e Gisselle virámo-nos e vimo-la subir as pequenas escadas que a levavam até ao palco do auditório.

Mrs. Ironwood parecia não ter mais do que um metro e setenta. Era corpulenta e tinha o cabelo grisalho apanhado atrás de uma forma severa, preso num carrapito grosso. Tinha uns óculos de aro de pérola numa corrente à volta do pescoço, óculos que descansavam por cima do peito. Vestia com um colete azul-escuro, por baixo do qual se vislumbrava uma blusa branca, e uma saia até ao tornozelo, caminhava firmemente sobre os sapatos pretos de tacão, ombros para trás, cabeça erguida, até que chegou ao pódio localizado no centro do palco. Quando se voltou para a assembleia, nem um sussurro se ouvia. Alguém tossiu, mas rapidamente abafou o som.

- Por que carga de água é que ela não é obrigada a vestir aquele uniforme horroroso? - murmurou Gisselle.

- Schiu - disse Vicki.

- Boa tarde, meninas, e sejam bem-vindas de volta a Grenwood para o que espero ser mais um ano de sucesso para todas. - Fez uma pausa, pôs os óculos e abriu o dossier. Depois levantou o olhar, virou-se para nós, fixando-nos directamente. Mesmo à distância, consegui perceber que os seus olhos eram frios como aço. Tinha sobrancelhas grossas e uma boca assente num maxilar que parecia feito de granito.

- Gostaria de começar por dar as boas-vindas a todas as raparigas que estão connosco pela primeira vez. Estou certa de que as outras farão tudo para que a sua chegada e a sua integração na escola se processe de forma calma e fácil. lembrem-se, já todas foram recém-chegadas.

"A seguir gostaria de apresentar três novos membros do colégio. Para ensinar inglês ao primeiro ano, Mister Risel - afirmou, olhando para a sua direita, onde parte do corpo docente estava sentada.

Um homem alto, magro e louro, de aproximadamente quarenta anos, levantou-se e fez um aceno à assembleia.

- Para ensinar francês avançado, Monsieur Marabeau - disse num francês perfeito.

Um homem baixo e robusto, de cabelo escuro e fino bigode preto, levantou-se e fez uma reverência em direcção à assembleia.

- E, por fim, a nossa nova orientadora de educação visual, Miss Stevens - apresentou, num tom de voz mais severo do que o utilizado para apresentar os outros dois.

 

Uma morena atraente, que mais não tinha do que vinte e oito ou vinte nove anos, levantou-se. Tinha um sorriso quente e amistoso, mas parecia sentir-se desconfortável no seu fato de lã e sapatos de salto alto.

- Espera até que ela saiba dos teus quadros e descubra como és talentosa - zombou Gisselle. Todas as raparigas na nossa fila olharam para ela, e de seguida reparei que Mrs. Ironwood também nos observava. Senti na pele o seu olhar de censura.

- Schiu - avisou Vicki.

- Agora vamos rever as normas de comportamento - continuou Mrs. Ironwood, mantendo o olhar fixo na nossa direcção.

O meu coração batia desordenado, mas Gisselle limitava-se a retribuir-lhe o olhar.

- Como sabem, esperamos que todas levem o trabalho muito a sério. Como consequência, uma média de notas abaixo do "Suficiente Mais" não será tolerada. Se alguma de vocês estiver abaixo desse limite, que consideramos mais que razoável, perderá todas as regalias sociais até que consiga subir a média.

- Que privilégios sociais? - perguntou Gisselle, de novo demasiado alto. Mrs. Ironwood levantou o olhar do dossier e fixou-nos directamente.

- Espero que se mantenham caladas enquanto estou a falar. Uma das exigências de Greenwood é o respeito aos professores e ao pessoal. Não temos nem tempo nem vontade de tolerar qualquer tipo de insubordinação nas aulas, ou em quaisquer outras situações curriculares. Fiz-me entender?

As suas palavras ecoaram na sala silenciosa. Ninguém se mexeu, nem mesmo Gisselle. Apesar de Mrs. Ironwood ter continuado a falar num tom algo mais baixo, a maneira como pronunciava as consoantes era tão afiada que parecia que cortava o ar entre nós com as suas palavras.

- Aconselhava que abrissem a página dez do vosso manual de orientação e decorassem as normas aí enumeradas. Hão-de reparar, ao ler a lista, que a posse de qualquer bebida alcoólica ou de alguma droga dentro do colégio resultará em expulsão imediata. Os vossos pais sabem que isso significa a confiscação dos custos de ensino. Música alta, fumar ou qualquer acto de vandalismo acarreta castigos severos e um grande número de deméritos.

"No ano passado fui mais branda do que deveria ter sido no que diz respeito ao código de apresentação. A não ser que tenham aprovação prévia, todas têm de usar uniforme, conservando-o limpo e bem engomado, e abster-se de usar cosméticos. Ser atraente em Greenwood significa aparentar limpeza e higiene e não pintar a cara.

Fez uma pausa e sorriu friamente.

- Tenho o prazer de anunciar que teremos tantos bailes este ano como no ano transacto. Só ocorreram um ou dois momentos de comportamento inadequado, mas esses transgressores foram detidos a tempo, antes que estragassem tudo para os colegas. Esperamos ainda que vocês se comportem condignamente quando recebem pessoas nos dias de visitas. E lembrem-se: durante a permanência dos vossos convidados no colégio, eles também têm de obedecer às normas e aos regulamentos instituidos como se estudassem cá. Isto - salientou -

aplica-se tanto aos visitantes do sexo masculino como aos do sexo feminino.

 

"lembro-vos ainda mais - disse devagar, puxando os ombros para trás e dirigindo o olhar para o tecto do fundo do auditório. - Todas vocês são agora raparigas de Greenwood, e as raparigas de Greenwood são especiais. Para as recém-chegadas, recomendo que decorem o nosso lema: uma rapariga de Greenwood é, uma rapariga que assume o seu corpo e a sua mente como sagrados. E também uma rapariga que tem consciência de que todos os seus actos recairão sobre ela. Tenham orgulho em ser raparigas de Greenwood e façam-nos sentir orgulhosos de vos ter cá.

"As alunas que necessitarem de uniformes e sapatos devem dirigir-se directamente ao comissariado, na cave. Decorem o vosso horário para saber a que horas têm de estar nas aulas. lembrem-se: um atraso representa um demérito. O segundo atraso vale quatro, o terceiro seis.

- Eu não posso ter deméritos por chegar atrasada - murmurou Gisselle. - Desloco-me em cadeira de rodas...

Algumas das raparigas que a ouviram olharam para ela e depois rapidamente observaram a reacção de Mrs. Ironwood, que mais uma vez parecia fixar-nos friamente, como os pássaros assassinos do bayou. A longa pausa provocou um arrepio de desconforto que assolou toda a assembleia. Senti como se estivesse sentada sobre um monte de formigas e ansiava que Mrs. Ironwood olhasse noutra direcção. Foi o que ela fez, por fim.

- As inscrições aumentaram, mas as turmas são ainda suficientemente pequenas, o que vos permite ter acesso ao ensino individualizado, que consideramos essencial para serem bem sucedidas, se utilizarem todas as vossas capacidades. Boa sorte para todas - concluiu, retirando depois os óculos e fechando o dossier. Olhou para nós uma vez mais e em seguida desceu do pódio. Ninguém se mexeu até à sua saída do auditório. Imediatamente as raparigas, cuja maioria tinha quase sustido a respiração durante toda a assembleia, desataram a conversar em voz alta, á medida que se levantavam para sair.

- Obrigadinha - proferiu Gisselle, virando-se para mim com os olhos cheios de ódio.

- Porquê?

- Por me teres trazido para este inferno. - E afastou-se na cadeira de rodas, empurrando as raparigas que estavam no seu caminho. Depois olhou para trás. - Samantha - chamou.

-O quê?

- leva-me de volta para o dormitório enquanto a minha irmã vai buscar a sua nova e bela roupa - ordenou, rindo-se. Samantha apressou-se a satisfazer a sua ordem e todas saímos do auditório, seguindo-a, como se ela tivesse acabado de ser nomeada rainha.

 

Depois de nos terem sido entregues o uniforme e os sapatos, Abby e eu voltámos para o dormitório. Pelo caminho contei-lhe a história do acidente de viação de Gisselle e da consequente paralisia. Ela ouviu com atenção, e os seus olhos humedeceram quando lhe contei acerca do funeral de Martin e da profunda depressão do paizinho nos dias que se seguiram.

- Então pode-se dizer que foi o acidente que a fez assim - questionou Abby.

 

- Não. Infelizmente, a Gisselle sempre foi a Gisselle, e receio que vá continuar assim ainda por muito tempo.

Abby riu-se.

- E tu, não tens irmãos ou irmãs? - perguntei.

- Não. - Depois de uma longa pausa acrescentou num tom triste: - Eu não... devia ter nascido.

- O que é que isso quer dizer?

- Eu nasci por acidente. Os meus pais não queriam ter filhos - respondeu.

- Porquê?

- Não queriam - retorquiu, mas pressenti que havia outras razões escondidas, razões que ela conhecia mas não podia dizer. Já tinha revelado mais do que tencionava, o que eu atribui ao facto de depressa nos termos dado tão bem. Era natural que Abby e eu quiséssemos estar perto uma da outra. à excepção de Gisselle, éramos as duas únicas raparigas do nosso dormitório que frequentavam pela primeira vez Greenwood. Senti que, com o tempo, eu poderia contar-lhe toda a minha história, que ela era alguém em quem poderia confiar, pois decerto sabia guardar um segredo.

De volta ao quadrante, experimentámos os uniformes. Apesar do tamanho impresso na etiqueta, eles eram tão grandes que quase podíamos nadar lá dentro. Apercebi-me de que aquelas roupas tinham sido concebidas de forma a manter escondida a nossa feminilidade. Vestidas com uma blusa larga e uma saia que ia até aos tornozelos, olhámos uma para a outra na sala de estar e desatámo-nos a rir efusivamente. Gisselle parecia satisfeita. As nossas gargalhadas fizeram com que as outras raparigas saissem dos quartos onde estavam a organizar as suas coisas.

- O que é que é tão engraçado? - perguntou Samantha.

- O que é tão engraçado? Olha para nós - sugeri.

- Estes uniformes foram concebidos pela própria Dama de Ferro - explicou Vicki. - Por isso é melhor não te queixares muito alto.

- Ou ela queima-te na fogueira - acrescentou Jacqueline.

- Pelo menos ainda podemos usar as nossas próprias roupas ao fim-de-semana, nos encontros sociais e quando somos convidadas para o chá de Mistress Claírborne - informou Kate.

- O chá de Mistress Claírborne? - observou Gisselle. - Mal posso esperar.

- Oh, ela tem sempre uns bolinhos maravilhosos - disse Kate. - Epralinés.

- Que a Chuhs consegue sempre desviar para a sua mala para depois os esconder algures no quarto. Não sei como é que não temos ratos - ironizou Jacquelíne.

- Mas o que é exactamente esse chá? - perguntei

- Não é um simples chá. É bastante frequente e só se pode ir com convite. Toda a gente sabe quem é que foi convidado ou não, e os professores têm-te em mais alta consideração se fores convidada mais do que uma vez.

- Três vezes faz de ti uma "rainha do chá" - declarou Jacqueline.

- "Rainha do chá"? - Abby olhou para mim e eu encolhi os ombros.

 

- Guardas o saquinho do chá cada vez que fores convidada e depois pendura-lo na parede do teu quarto, como se fosse um prémio ou uma condecoração - explicou Vicki. - É uma tradição de Greenwood e ao mesmo tempo uma honra. A Jackíe tem razão. As que são convidadas mais vezes são mais bem tratadas.

- Ela está a dizer isso porque é uma "rainha do chá" - zombou Jacqueline. - No ano passado foi convidada quatro vezes.

- E tu? - perguntou Gisselle.

- Uma vez. A Kate foi duas e a Samantha também.

- Todas as raparigas novas são convidadas para o primeiro chá do ano, mas esse não conta porque é automático - continuou Vicki.

- E onde é que são esses chás? - inquiriu Abby.

- Na mansão Clairborne. Mistress Penny leva-te lá ao mesmo tempo que vai contando a história da casa. Aqui, saber isso é quase tão importante como saber a história da América ou da Europa - afirmou Jacqueline. Vicki acenou afirmativamente.

- Mal posso esperar - gozou Gisselle. - Nem consigo aguentar de tanta excitação.

Kate riu-se e Samantha sorriu, mas Vicki ficou chocada com tal comportamento, que em Greenwood era considerado uma blasfémia.

- Então - continuou Gisselle - e quando é que é o primeiro encontro social do mês, o tal com rapazes?

- Ah, não antes de um mês. Não leste o calendário social no teu sobrescrito? - disse Jacqueline.

- Um mês? Eu bem disse ao paizinho que isto mais parecia um convento - lamuriou-se Gisselle, olhando para mim.

-           E ir à cidade?

- O que é que queres dizer com isso? - indagou Vicki.

- Ir à cidade. Não é assim tão difícil de compreender. Não és tu a melhor aluna da turma?

Vicki empalideceu.

-Eu... bem...

- Nenhuma de nós saiu alguma vez do colégio sozinha - respondeu Jacqueline.

- Porque não? - interrogou Gisselle. - Deve haver sítios na cidade onde se pode conhecer rapazes.

- Para começar, tens de ter um pedido de autorização no teu processo para poderes sair do colégio - explicou Vicki.

- O quê? Queres dizer que estou mesmo presa aqui?

- Basta telefonares aos teus pais a pedir-lhes que te preencham um requerimento - disse Vicki com indiferença.

-Então... e vocês? Estão a dizer-me que nenhuma de vocês alguma vez se preocupou com isso? - Mantiveram-se todas caladas. - O que é que vocês são?... Virgens? - gritava Gisselle, frustrada. O seu rosto estava vermelho como uma garra de lagosta cozida a vapor.

A boca de Samantha escancarou-se. Kate olhava com uma expressão facial meio divertida, meio espantada. Vicki permanecia confusa, mas Jacqueline parecia envergonhada. Abby e eu olhámo-nos de relance.

- Não me digam que têm obedecido a todas estas estúpidas regras?! - continuou Gisselle, abanando a cabeça em sinal de incredulidade.

- Os deméritos podem... - começou Vicki.

- Destruir as tuas hipóteses de te tornares "rainha do chá".

 

- Já percebi - interrompeu Gisselle. - Há coisas mais importantes para afixar na parede do que velhos sacos de chá - atalhou com rispidez, dirigindo-se de seguida com a cadeira de rodas em direcção a Vicki, que deu um passo atrás. - Como as cartas de amor. Já alguma vez recebeste uma?

Vicki olhou em volta, apercebendo-se de que todos os olhares se centravam nela. Gaguejou por um momento.

-Eu... Eu tenho de... tenho de começar a leitura obrigatória para História da Europa - disse. - Até logo. - Virou-se e encaminhou-se apressadamente para dentro do quarto. Gisselle virou a cadeira e fixou o olhar em Jacqueline.

- No ano passado, houve uma vez que alguns rapazes de Rosedown quiseram esgueirar-se para o nosso dormitório num fim-de-semana à noite - revelou.

- E?

- Não tivemos coragem - confessou Jacqueline.

- Bem, mas agora estamos neste ano e já temos coragem - incitou Gisselle. Depois olhou para mim. - Havemos de lhes mostrar como as raparigas de Nova Orleães se divertem. Certo, Ruby?

- Não comeces, Gisselle. Por favor.

- Começar o quê? A viver? O que tu gostavas era que eu fosse uma linda e obediente menina de Greenwood, passeando calmamente na minha cadeira de rodas de boca calada, o colo cheio de saquinhos de chá velhos e ressequidos e, acima de tudo, com os joelhos bem juntos, não?

- Gisselle, por favor...

- Quem é que me arranja um cigarro? - exigiu rapidamente. Os olhos de Kate aumentaram. Abanou a cabeça. - Samantha?

- Não, eu não fumo.

- Não fummar. Não ver rapazes. O que é que vocês fazem, meninas? lêem revistas de adolescentes e masturbam-se? - Foi como se um raio tivesse atingido o dormitório. Estava tão envergonhada com o descaramento da minha irmã que tive de baixar os olhos. - Está bem - continuou Gisselle. - Não se preocupem. Agora estou cá eu. As coisas vão ser diferentes. Prometo. Acontece... - disse com um sorriso - que eu própria trouxe uns cigarros clandestinamente.

- Gisselle, vais arranjar problemas a toda a gente e logo no primeiro dia - protestei

- Não são medricas pois não? - perguntou Gisselle dirigindo-se a Jacqueline Kate e Samantha - óptimo - prosseguiu, perante o silêncio das restantes - Venham para o meu quarto. Podem ajudar-me a organizar os discos enquanto partilhamos um cigarro. Talvez consiga em breve arranjar algo melhor - acrescentou sorrindo. Girou a cadeira e encaminhou-se para o nosso quarto. Ninguem se mexeu.

Jacqueline foi a primeira a acompanhá-la, Kate e Samantha seguiram-nas um pouco mais atrás.

- Fecha a porta - ordenou Gisselle, depois de todas terem entrado no quarto.

- Nunca pensei que duas irmãs gémeas pudessem ser tão diferentes - notou Abby, apercebendo-se depois do que tinha acabado de dizer. - Oh, peço desculpa, eu não quis...

- Não há problema. Também nunca pensei. Até que a conheci... - disse eu, mordendo a língua. Mas era tarde de mais.

- Até que a conheceste?

- É uma longa história - afirmei, envergonhada. - Não era suposto contá-la a ninguém daqui.

 

- Eu compreendo - murmurou Abby. Pela maneira como me olhava quando disse isto, percebi que realmente compreendia.

- Mas não me importo de a contar a ti - acrescentei.

Ela sorriu.

- Porque é que não vamos para o meu quarto? - propôs Abby. Olhei para trás, para a porta fechada onde Gisselle comandava as suas novas protegidas. Era uma situação da qual eu nesse momento não queria fazer parte.

- Boa ideia - disse-lhe. - Enquanto falamos, posso ir organizando as coisas da Gisselle que vão ficar contigo. E é melhor que eu lhes dê uma vista de olhos - acrescentei, olhando de lado para a porta do meu quarto. - Sabe-se lá que mais trouxe ela às escondidas.

 

Pouco mais de uma hora depois, Mrs. Penny veio ao nosso quadrante para ver como estávamos. Se por acaso sentiu o cheiro de tabaco vindo do nosso quarto, fez de conta que não. Sinceramente, não percebi como é que não reparou. Sentia-se o fedor no ar e nas roupas das raparigas, apesar de elas terem aberto a janela.

- Estou aqui também para trarismitir formalmente o convite de Mistress Clairborne para a Abby, a Gisselle e a Ruby tomarem chá na sua casa no sábado às duas horas - informou. - Podem vestir o que quiserem, mas devem usar roupa apropriada - acrescentou, piscando o olho. - É um chá formal.

- Oh, não! E eu deixei o meu fato formal para o chá em casa - ironizou Gisselle.

- Desculpa, querida?

- Nada - disse Gisselle, rindo-se. Reparei como Samantha e Kate sorriram atrás das costas de Mrs. Penny. Jacqueline estava com o seu sorriso de desdém habitual, mas era claro que as três se encontravam cada vez mais sob a influência de Gisselle.

- óptimo. Bem, o jantar é daqui a menos de quinze minutos - cantarolou Mrs. Penny. - As novas raparigas não tem tarefas até à segunda semana - acrescentou, saindo de seguida.

- O que é que ela quis dizer? - inquiriu Gisselle, colocando-se no centro da sala de estar. - Que tarefas?

- Todas nós ajudamos na sala de jantar. As responsabilidades são organizadas e afixadas no placar da entrada principal - esclareceu Jacqueline. - Nesta semana, a Vicki, a Samantha, a Chubs e eu somos ajudantes de empregado de mesa. Temos de levantar as mesas e levar os pratos e talheres sujos para a cozinha, depois de todos terem acabado de comer. As raparigas do quadrante B e C são empregadas de mesa, e as raparigas do quadrante D põem a mesa.

- O quê? - Gisselle rodou a cadeira de rodas, de forma a ficar de frente para mim. - Não me avisaste disto.

- Também acabei de saber, Gisselle. Qual é o problema?

- Qual é o problema? Eu não faço trabalhos de criada.

- Estou certa de que ninguém está à espera que o faças, pois tu... - começou Vicki a dizer, mas interrompeu-se.

Gisselle mirou-a.

- Eu sou aleijada? É isso que querias dizer?

- Eu ia dizer "pois tu estás numa cadeira de rodas". Não se pode esperar que transportes pratos para a cozinha.

 

- Ela pode pôr a mesa - sugeri, sorrindo para a minha irmã, que, se o olhar fosse fogo, me teria queimado até às cinzas.

- O que eu posso fazer e o que eu quero fazer são duas coisas bem diferentes. Se estas parvas querem pagar todo este dinheiro num colégio privado e mesmo assim fazer de criada, é com elas - disse Gisselle.

- Todas as raparigas de todos os dormitórios o fazem. Especialmente as dos dormitórios grandes - disse Samantha. - Gisselle lançou-lhe um olhar de tal forma feroz que surtiu o mesmo efeito que uma bofetada., Samantha mordeu o lábio inferior e deu um passo atrás. - É verdade - murmurou baixinho para mim e para Abby.

- Porque é que havemos de ter medo de um bocadinho de trabalho? - indaguei.

- Só poderias ser tu a dizer isso. Tu... - Gisselle parou a tempo de não revelar o meu passado como cajun. Olhou rapidamente para as outras. - Tenho fome. Vamos, Samantha - gritou, e Samantha apressou-se a empurrar a cadeira de rodas de Gisselle.

Na sala de jantar conhecemos as outras raparigas do nosso dormitório. Contando com os quadrantes do andar de cima, éramos ao todo cinquenta e quatro. Três mesas compridas tinham sido postas na sala grande, que estava iluminada por quatro grandes candelabros. As paredes estavam forradas de madeira escura, com reproduções emolduradas de cenas de plantações e do bayou, simetricamente penduradas em cada parede. Todas as raparigas conversavam, animadas, quando chegámos, mas a imagem de Gisselle na cadeira de rodas fez com que de alguma forma se acalmassem. Ela retribuiu cada olhar com o seu ar zangado de condenação, fazendo com que todas olhassem para outras direcções que não a dela. Vicki levou-nos para os nossos lugares. Devido à cadeira de rodas, Gisselle teve de se sentar à cabeceira da mesa, algo que lhe agradava e que ela depressa aprendeu a usar para seu próprio proveito. Em poucos minutos, ela tinha escolhido os temas de conversa, ordenando que lhe passassem isto ou aquilo e iniciando longas descrições sobre o seu excitante estilo de vida anterior, em Nova Orleães.

As raparigas pareciam fascinadas por ela. Algumas, que até para mim aparentavam ser mais snobes que Gisselle, olhavam-na como se ela fosse um fantasma vindo do cemitério da má educação, mas Gisselle não permitia que nada a refreasse. Falava com as raparigas que estavam a servir-nos a comida como se de empregadas contratadas se tratasse, exigindo, queixando-se e nem por uma só vez agradecendo em relação a nada. A comida era boa, mas nada comparada com a comida que

a Nina fazia para nós em casa. Depois de a refeição ter terminado e de as raparigas do nosso quadrante terem começado a levantar a mesa, Gisselle ordenou que eu a levasse de volta ao dormitório.

- Não vou esperar por elas - disse-me. - São completamente idiotas.

- Não, não são, Gisselle - respondi-lhe. - Estão simplesmente a participar no que é nosso. Até é divertido. Faz-te sentir que isto é o teu sítio, a tua casa longe de casa.

 

- Não a mim. Para mim é um pesadelo longe de casa - desdenhou. - leva-me para o quarto. Quero ouvir alguns discos e escrever cartas aos meus amigos, que vão querer saber desta reles imitação de escola - exclamou suficientemente alto para que todas as que estavam à nossa volta pudessem ouvir.

- O Jackie - chamou -, quando vocês tiverem terminado as vossas tarefas, podem vir ao meu quarto para ouvir os meus discos e conhecer as últimas novidades.

Empurrei-a para fora o mais rápido que me era possível. Ela gritou que eu ia despedaçá-la de encontro à parede e isso

era exactamente o que me apetecia fazer. Abby seguiu-nos. Já tínhamos decidido que, depois do jantar, iríamos dar um passeio ao lago. Ia convidar Gisselle para vir connosco, mas, como ela já tinha decidido o que iria fazer, nem sequer lhe mencionei os nOSSOS planos.

- Onde é que vocês vão? - perguntou, depois de eu a ter trazido para o quarto.

- Lá fora, dar um passeio a pé. Queres vir?

- Eu não dou passeios a pé, lembras-te? - ripostou amargamente, fechando a porta.

- Peço desculpa - disse a Abby. - Receio que vá continuar sempre a pedir desculpas pela minha irmã.

Ela sorriu e abanou a cabeça.

- Julgava que tinha uma cruz para carregar e que devia sentir pena de mim própria, mas depois de ver o que tu tens de aturar... - confessou Abby à medida que saíamos do dormitório.

- O que queres dizer com uma cruz para carregar? O que é que poderia ser a tua cruz? Os teus pais parecem muito simpáticos.

- Oh, sim, são. Amo-os muito.

- Então o que querias dizer? Estás a sofrer alguma maleita ou qualquer coisa assim? Pareces tão saudável como um crocodilo bebé.

Abby riu-se.

- Não é isso. Graças a Deus, sou muito saudável.

- E bonita também.

- Obrigada. Tu também.

- Então? Qual é a cruz que tens para carregar? - insisti. - Confiei-te a minha história - disse-lhe um pouco depois.

Ela estava silenciosa. Começámos a descer o passeio em direcção ao lago. Abby ia cabisbaixa, mas eu olhei para a metade de lua que espreitava no ombro de uma nuvem. Os raios prateados iluminavam friamente a noite quente e transformaram o nosso novo mundo em algo etéreo, como os bastidores de um sonho que todas estivéssemos a partilhar. à nossa direita, os outros dois dormitórios estavam todos iluminados e aqui e ali vislumbrámos outras raparigas a passear ou simplesmente reunidas em grupo a conversar.

Quando demos a curva que nos conduziria para junto da água, foi-nos possível ouvir rãs, cigarras e outras criaturas da noite a renascer na sua cantoria que mais não é do que um ritual nocturno, uma sinfonia cheia de coaxos e de grasnos, esteetores e ligeiros assobios.

 

Como estávamos muito longe de qualquer auto-estrada, o barulho do trânsito nunca se fazia ouvir, mas à distância eu podia ver as luzes verdes e vermelhas das barcaças de petróleo no Mississípi e imaginava os sons das sirenes de nevoeiro e as vozes dos passageiros das embarcações fluviais. às vezes, em noites como esta, o som das vozes das pessoas poderia ser transportado por mais de um quilómetro ao longo da água, e, se se fechasse os olhos e prestasse muita atenção, poder-se-ia sentir os nossos movimentos ou os deles quanto maior fosse a separação entre ambos.

Um pouco abaixo, o lago espelhava um reflexo metálico. Estava tão calmo quando nos aproximámos que mal demos conta do ligeiro balancear dos barcos a remos amarrados na pequena doca junto à casa dos barcos.

- Não é minha intenção ser tão reservada - declarou Abby. - Gosto de ti e aprecio que me tenhas confiado a tua história. Não tenho nenhumas dúvidas - acrescentou com amargura - de que a maioria destas raparigas te olharia de cima se soubesse que tu provéns de origens cajuns, mas isso continua a não ser nada comparado com o meu caso.

- O quê? Porquê? - perguntei. - Qual é o problema das tuas origens?

Encontrávamo-nos agora na doca e olhávamos para o lago.

- Há bocado perguntaste-me se eu tinha um namorado, e eu disse que sim, e tu tentaste fazer-me sentir melhor dizendo que ele iria escrever ou telefonar. Eu disse-te logo que ele não o faria, e estou certa que te interrogaste como é que eu tinha tanta certeza.

- Sim - respondi. - É verdade.

- O nome dele é William, William Huntington Cambridge. Foi assim apelidado em homenagem ao seu trisavô - disse-me, no mesmo tom amargo que havia usado anteriormente -, que foi um dos grandes heróis da confederação, algo sobre o qual os Cambridge estão muito orgulhosos - acrescentou.

- Suponho que, se investigares a vida de todas as pessoas aqui, encontrarás a maioria dos antepassados que lutaram pelo Sul - disse brandamente.

- Sim, de certeza. Essa é outra das razões por que eu... - observou à volta, os olhos marejados de lágrimas. - Nunca conheci os meus avós paternos. Foram mantidos como um segredo da família, e essa é a razão por que eu não era para ter nascido - explicou.

Fez uma pausa como se estivesse à espera do meu sinal de concordância mas, como eu não percebera, limitei-me a abanar a cabeça.

- O meu avó casou com uma mulher negra, uma habitante

do Haiti, o que fez com que o meu pai fosse mulato, mas suficientemente claro para poder passar por homem branco.

- E foi por isso que os teus pais nunca quiseram ter filhos? Tinham medo...

- Medo de que eu, o rebento de um mulato e de uma mulher branca, fosse mais escura - acrescentou, acenando afirmativamente. - Mas, seja como for, tiveram-me, o que faz com que eu seja uma cabrita. Mudámo-nos muitas vezes, pois, sempre que assentávamos em qualquer lugar, havia alguém que, de alguma forma, suspeitava.

- E o teu namorado, o William...

- A família dele descobriu. Eles consideram-se de sangue azul e o pai dele procura saber o máximo possível acerca das pessoas com quem os filhos se relacionam.

- Tenho muita pena - manifestei. - É injusto e estúpido.

 

- Sim, mas isso não torna as coisas mais fáceis de suportar. Os meus pais mandaram-me para aqui na esperança de que, estando rodeada pela crême de la créme, as suspeitas se extinguissem, a fim de que no futuro, vá eu para onde for, seja sempre considerada em primeiro lugar uma rapariga de Greenwood, classe alta, de uma boa família, enfim, especial... Nunca ninguém desconfiará que eu sou uma cabrita, segundo a ideia deles. Eu não queria vir para aqui, mas eles querem tanto que eu não esteja sujeita a preconceitos e sentem-se tão culpados por minha causa, que o fiz mais por eles do que por mim. Percebes?

- Sim - sussurrei suavemente. - E obrigada.

- Obrigada? Porquê? - perguntou, sorrindo.

- Por teres confiado em mim.

- Tu também o fizeste - retorquiu. Começámos a abraçar-nos, quando, de repente, um homem gritou atrás de nós.

- Hei! - exclamou. Uma porta da casa dos barcos fechou-se atrás dele. Virámo-nos e vimos um homem a aproximar-se. Era alto e tinha cabelo escuro, e não aparentava ter mais de vinte e quatro, vinte e cinco anos. Estava sem camisola, e o seu tronco musculado brilhava ao luar. Vestia calças de ganga justas e estava descalço. O seu cabelo era longo, cobrindo-lhe parte das orelhas e do pescoço.

- O que estão a fazer aqui em baixo? - perguntou. Aproximou-se o suficiente de forma que pudemos ver os seus olhos escuros e as suas maçãs do rosto altas como as de um índio. As curvas do seu rosto eram angulosas, formando um queixo firme e uma boca estreita. Tinha um trapo nas mãos, com o qual as limpava continuamente ao mesmo tempo que olhava para nós.

- Só viemos dar um passeio - comecei. - E...

- Não sabem que é proibido estar aqui depois de anoitecer? Querem meter-me em sarilhos? Há sempre uma ou outra de vocês que se aventura aqui para baixo para se rir à minha custa - disse rispidamente. - Agora, ou saltam daqui para fora tão rápido como lebres ou ponho Mistress Ironwood à vossa perna, perceberam?

- Desculpe - disse eu.

- Nós não viemos cá para causar problemas a ninguém - acrescentou Abby. Deu um passo em frente, saindo da escuridão. Quando a viu, ele imediatamente se acalmou.

- Vocês são novas, não?

- Sim - respondeu Abby.

- Não leram o manual?

- Todo, não - retorquiu.

- Olhem - avisou -, eu não quero problemas. Mistress Ironwood explicou-me as regras. Não me é sequer permitido falar com vocês nos terrenos sem a presença de um dos professores ou de um dos membros do pessoal depois de anoitecer, percebem? E muito menos aqui em baixo! - acrescentou, olhando à volta para ter a certeza de que ninguém o ouvia.

- Quem és tu? - perguntei.

Ele hesitou por um momento antes de responder.

- O meu nome é Buck Dardar, mas passarei a ser Lama se vocês não derem rapidamente à sola - disse.

- Okay, Mister Lama - gracejou Abby.

- Pisguem-se - ordenou, apontando para o monte.

Demos as mãos e corremos, deixando o rasto das nossas gargalhadas ecoando pelo lago. No cume do monte, parámos para recuperar o fôlego e olhámos de novo para a casa dos barcos. Ele tinha desaparecido, mas a sua imagem continuava a estimular a nossa imaginação como algo ou alguém proibido.

 

Ainda alvoroçadas, com o coração a bater violentamente, corremos de volta ao dormitório, novas amigas unidas pela partilha de um passado obscuro e de uma esperança escondida para os nossos destinos.

 

AMA-SECA DA MINHA IRMÃ

No primeiro dia de aulas, a vida em Greenwood não era muito diferente da de outra escola qualquer, à excepção, claro, de que não havia rapazes nos corredores e nas salas de aula. Seja como for, estava impressionada com a maneira como tudo parecia limpo e novo. O soalho de mármore nos corredores resplandecia. As nossas secretárias mal tinham um arranhão, e, ao contrário da maioria das escolas, nem uma das cadeiras ou qualquer outra mobília ostentava rabiscos ou graffiti que demonstrassem raiva ou decepção.

Mal nos sentámos na sala de aulas, os nossos professores explicaram precisamente os motivos desta conservação. Cada um dava início à aula com uma pequena prelecção acerca da importância de manter a escola com aspecto limpo e novo. As suas vozes ribombavam como se eles quisessem assegurar de que era impossível para Mrs. Ironwood não ouvir o seu esforçado desempenho. A maioria dos professores queria que não restasse qualquer dúvida entre as estudantes que a manutenção da sala bem tratada fazia parte das suas responsabilidades, responsabilidade essa que eles pretendiam assegurar até ao final do ano lectivo.

- Se eles o não fizerem - segredou-me Jackie -, a Dama de Ferro manda-os chicotear.

Para Gisselle as lições eram aborrecidas, mas até ela ficou impressionada com a obediência do corpo discente no que dizia respeito a manter o edifício imaculado. Sempre que uma estudante via um pedaço de papel no chão do corredor, parava para O apanhar. Apesar de ainda ser demasiado cedo para julgar, notava-se um certo decoro e método empregues no quotidiano de Greenwood que, comparativamente, dava a entender que a nossa vida escolar em Nova Orleães não passava de uma grande desordem, embora tivéssemos frequentado uma das melhores escolas da cidade.

O meu horário funcionava de forma a que eu depois de duas horas de aulas tivesse uma hora de estudo. Gisselle, que chumbara em Algebra no ano anterior, teria de repetir a disciplina em Greenwood. Da primeira vez que fomos ao edifício principal, eu empurrei-a desde o nosso quarto até às aulas, mas, no fim da segunda hora, Samantha apareceu em cena quase por desígnio de Deus e ofereceu-se para me substituir.

- Depois desta hora, temos as próximas três aulas juntas

- explicou Samantha. Obviamente, esta sugestão agradava a Gisselle.

- Está bem - afirmei. - Mas não deixes que a minha irmã faça atrasar-te para as tuas aulas.

- Se eu por acaso chegar atrasada só porque demoro mais tempo do que as outras a fazer as coisas, eles vão ter de ser compreensivos - insistiu Gisselle. Percebi que ela já estava a planear demorar-se na casa de banho, talvez a fumar um cigarro.

- Ela vai causar-te problemas, Samantha - avisei, mas era o mesmo que estar a falar para a parede. Não sei por que artes, a minha irmã já tinha transformado aquela rapariga ingénua numa servidora de confiança.

 

Deixei-as e apressei-me em direcção à sala de estudo. Mas, mal me tinha sentado, começando a dedicar-me ao meu novo trabalho, o professor da sala de estudo informou-me que Mrs. Ironwood queria falar comigo.

- O gabinete dela é ao fundo do corredor à direita, depois de um pequeno lanço de escadas - indicou-me. - Não estejas preocupada -, acrescentou sorrindo. - Ela por hábito gosta de conhecer todas as alunas que estão pela primeira vez em Greenwood.

Contudo, não conseguia evitar estar um pouco nervosa. Sentia o coração bater forte à medida que caminhava apressadamente através do corredor silencioso à procura dos ditos degraus. Uma mulher pequena e gorda de óculos cinzentos de lentes bifocais encontrava-se junto aos arquivos quando entrei no gabinete exterior. Na placa sobre a secretária podia-se ler MRs. RANDLE. Perscrutou-me com o olhar por um breve momento, dirigindo-se depois para a secretária onde pousou os olhos num pedaço de papel.

- Suponho que é a Ruby Dumas? - perguntou.

- Sim, senhora.

Ela acenou afirmativamente, mantendo uma expressão rigorosa e séria e depois aproximou-se da porta que dava para o gabinete interno. Após bater suavemente, abriu-a e anunciou a minha chegada.

- Manda-a entrar - ouvi Mrs. Ironwood declarar.

- Por aqui, Ruby - disse, dando-me passagem para o gabinete de Mrs. Ironwood.

Era uma sala ampla mas muito austera, com cortinas cinzento-escuras, um tapete cinzento-claro e uma secretária castanho-escura de grandes dimensões, duas imponentes cadeiras de madeira e um pequeno sofá escuro como o carvão, de rígidas formas, que se encontrava encostado á parede da direita. Por cima deste podia-se ver o único quadro da sala, mais um retrato de Edith Dilliard Clairborne, onde, tal como em todos os outros, ela usava um vestido formal, ficando sentada num jardim ou numa cadeira de espaldar alto numa das salas de estudo. As outras paredes tinham placas e prémios colocados espaçadamente, prémios ganhos por alunas de Greenwood em eventos como debates ou concursos de oratória.

Apesar de em cima da secretária haver um jarro grande com rosas vermelhas e cor-de-rosa, a sala cheirava a um consultório de médico, com um forte odor a desinfectante. O gabinete aparentava ter sido meticulosamente limpo ao ponto de as janelas estarem tão transparentes que pareciam abertas.

Mrs. Ironwood estava sentada, muito direita, por detrás da secretária. Baixou os óculos e fixou-me longamente, perscrutando-me como se quisesse decorar cada pormenor do meu rosto e corpo. Se existia alguma aprovação, não o demonstrou. Os olhos mantinham-se friamente analíticos, os lábios firmes.

- Senta-te, por favor - disse, apontando para uma das imponentes cadeiras. Rapidamente o fiz, segurando os livros no colo.

- Chamei-te aqui - começou - de forma a que pudéssechegar a um acordo o mais rápido possível.

- Acordo?

O canto direito da sua boca afundou-se.

 

- Tenho aqui o teu processo - continuou. - Por baixo encontra-se o da tua irmã. Reli-os cuidadosamente. Para além dos relatórios escolares, o processo contém importantes informações do foro pessoal.

"Devo informar-te - continuou, após uma pausa para se recostar na cadeira - que tive uma longa e esclarecedora conversa acerca de ti com a tua madrasta.

- Oh - exclamei, baixando o tom de voz algumas oitavas. Ela franziu as sobrancelhas escuras e grossas. Como tinha feito referência a Daphne como minha madrasta e não como minha mãe, era óbvio que esta lhe tinha contado tudo sobre a minha vida como cajun.

- Ela contou-me acerca de... das circunstâncias infelizes da tua vida e transmitiu-me a sua frustração por ter falhado em conseguir proporcionar as mudanças necessárias para a tua adequação de uma vida de uma certa forma subdesenvolvida para uma mais civilizada.

- A minha vida nunca foi subdesenvolvida e há muitas coisas na minha vida actual que são incivilizadas - respondi firmemente.

Os seus olhos tornaram-se gradualmente mais pequenos e os lábios empalideceram à medida que os comprimia.

- Posso assegurar-te que não há nada de incivilizado na vida em Greenwood. Orgulhamo-nos da nossa tradição ao serviço das melhores casas desta sociedade, e tenciono que isso se mantenha - disse ela severamente. - A maioria das nossas alunas tem antecedentes apropriados e já sabe comportar-se educadamente na sociedade.

"Então, vejamos - prosseguiu, pondo os óculos e abrindo o meu processo. - Vejo pelo teu trabalho escolar que és uma excelente aluna. Isso é já um bom presságio. Tens já a matéria em bruto sobre a qual trabalhar. Também reparei que foste abençoada com algum talento. Espero bem que venhas a desenvolvê-lo aqui.

"No entanto - continuou -, nada disto será suficiente se as tuas capacidades sociais ou os teus hábitos pessoais te faltarem.

- Penso que não me faltam - respondi -, apesar do que possa pensar sobre o mundo onde cresci e de tudo o que a minha madrasta lhe contou.

Ela abanou a cabeça e, em seguida, disparou as palavras como balas.

- O que a tua madrasta me contou - asseverou Mrs. Ironwood -, manter-se-á encerrado entre estas quatro paredes. É isso que quero que compreendas. Cabe a ti manter o assunto em segredo. Apesar das circunstâncias do teu nascimento e da tua infância, neste momento fazes parte de uma família distinta e tens obrigações perante o nome dessa família. Quais hábitos, práticas ou comportamentos em que te tenhas envolvido antes da tua chegada a Nova Orleães não devem manifestar-se em Greenwood.

"Prometi à tua madrasta observar-te mais de perto do que às outras alunas. Quero que tenhas noção disso.

- Não é justo. Nada fiz para que me tratem de maneira diferente - queixei-me.

- E eu estou determinada a que isso assim se mantenha.

Quando prometo algo aos pais de uma aluna, faço tenções de cumPrir.

 

"O que me faz voltar à tua irmã - disse, ao mesmo tempo que punha o meu processo de parte de forma a poder abrir o de Gisselle. - Os seus trabalhos escolares são, no mínimo, decepcionantes, como também parte do seu comportamento passado. Tenho consciência de que ela agora tem uma séria deficiência e fiz algumas diligências para lhe tornar a vida aqui confortável e bem sucedida, mas quero que saibas que te atribuo a responsabilidade pelo sucesso e pelo comportamento da tua irmã.

- Porquê?

Ela lançou-me o olhar frio.

- Porque tens todas as tuas capacidades a uso e porque o teu pai acredita com todo o ardor em ti - retorquiu. - E porque estás perto da tua irmã, sendo assim a pessoa mais influente para a aconselhar.

- A Gisselle não aceita os meus conselhos. Aliás, na maioria do tempo, nem sequer presta atenção ao que digo. Ela tem a sua própria personalidade, e, no que diz respeito à sua deficiência, ela tira mais vantagens disso do que o contrário - respondi. - Ela não precisa de facilidades, mas antes de disciplina.

- Penso que me cabe a mim tomar essas decisões - afirmou Mrs. Ironwood. Fez uma pausa, olhando-me por breves instantes, a sua mão balouçando levemente. - Percebo agora o que a tua madrasta queria dizer: tens uma veia independente, uma teimosia de cajun, uns modos selvagens que têm de ser controlados.

"Este é o local adequado para levar isso a efeito - ameaçou, deslocando-se para a frente.

Eu não sabia o que dizer. Ela prosseguiu:

- Quero que mantenhas os bons resultados escolares. Quero que a tua irmã melhore o seu rendimento escolar e exijo que ambas se comportem e sigam as nossas regras à letra. No final deste ano, gostaria que a vossa mãe ficasse impressionada com as mudanças do vosso carácter.

Fez uma pausa, como que aguardando alguma reacção da minha parte, mas eu mantive os lábios selados, receando o que poderia sair deles se rebentasse.

- O comportamento da tua irmã durante a reunião de orientação foi abominável. Optei por ignorá-lo porque queria ter esta pequena conversa primeiro. Da próxima vez que ela se comportar de tal forma, não me coibirei de aplicar um castigo árduo a ambas, percebes?

- Quer dizer que eu também serei castigada pelas coisas que a minha irmã faz?

- Quero que sejas a ama de Gisselle, quer gostes ou não.

Lágrimas começaram a arder debaixo das minhas pálpebras. Uma espécie de dormência paralisante apoderou-se de mim enquanto pensava como Daphne deveria dar-se por satisfeita quando soubesse tudo o que tinha preparado para a minha chegada a Greenwood. Parecia que ela estava determinada a pôr obstáculos na minha vida, estivesse eu onde estivesse. Mesmo depois de eu ter concordado em ir para ali e ter, juntamente com Gisselle, saído da vida dela, isso ainda não a satisfazia. Ela queria ter a certeza de que a minha vida era um inferno.

- Tens algumas perguntas? - indagou Mrs. Ironwood.

- Sim - respondi. - Se eu sou a que veio de um mundo subdesenvolvido, porque é que sou considerada a responsável?

A pergunta pareceu tê-la derrubado por um momento. Cheguei mesmo a ver uma centelha de admiração pela minha audácia brilhando nos seus olhos.

 

- Apesar dos teus antecedentes - respondeu calmamente - sinto que tens material em bruto da melhor qualidade, e

também potencial. É com essa parte de ti que estou a falar. Por enquanto, a tua irmã está ainda a sofrer do acidente e dos consequentes prejuízos. Não está ainda pronta para este tipo de conversas.

- A Gisselle nunca estará pronta para este tipo de conversas. Já não estava antes do acidente - acrescentei.

- Então fará parte das tuas obrigações prepará-la, não é? - disse Mrs. Ironwood, sorrindo friamente. levantou-se. - Já

podes regressar à sala de estudo.

levantei-me e saí do gabinete. Mrs. Randle olhou-me de soslaio quando passei pela sua secretária. Apesar da minha calma aparente, tremia tanto que mal podia andar. Tinha a certeza de que o paizinho não fazia a mínima ideia do que Daphne já arquitectara em Greenwood. Se soubesse, provavelmente não nos teria trazido. Estava tentada a telefonar-lhe e a contar-lhe tudo, mas imaginei que Daphne encontraria uma maneira de me fazer parecer culpada por ser tão mal agradecida em relação àquela oportunidade e por pôr em risco as hipóteses de melhoria de Gisselle.

Frustrada, sentindo uma nuvem negra de desespero a sobrevoar a minha cabeça, afundei-me na secretária da sala de estudo e amuei. Apesar da excitação e do entusiasmo da maioria dos meus professores, a má disposição que a Dama de Ferro me havia transmitido permaneceu durante toda a manhã e a maior parte da tarde, desaparecendo somente quando entrei na

aula de Educação Visual de Rachei Stevens, a última aula do dia.

As minhas suspeitas de que Miss Stevens se sentira desconfortável, naquele formal fato de lã e calçando sapatos de salto alto na assembleia, comprovaram-se mal a vi na sala de Educação Visual. Aqui ela parecia uma verdadeira pintora, muito mais à vontade, com o cabelo solto e escovado, pendendo pelos ombros, e um avental por cima da saia curta e da blusa rosa-brilhante. A aula de Educação Visual era opcional e, consequentemente, tinha menos alunas do que as outras aulas. Éramos só seis, o que agradava a Miss Stevens.

Não fazia ideia se, considerando que Daphne tinha contactado a escola e Mrs. Ironwood para revelar o meu passado, o paizinho se havia certificado de que a escola e a minha professora de Educação Visual sabiam dos meus modestos sucessos. Miss Stevens foi suficientemente simpática em não me envergonhar frente às outras alunas, mas, depois de ter explicado o plano curricular e de ter distribuído a cada aluna o caderno de exercícios para folhear, aproximou-se de mim e disse-me o que já sabia.

- Acho que é muito excitante o facto de já teres pinturas expostas numa galeria - afirmou. - O que é que gostas mais de pintar ou desenhar? Animais, natureza?

- Não sei. Acho que sim - respondi.

- Eu também. Sabes o que eu gostava de fazer? Se quisesses, íamos ao rio num domingo procurar coisas para pintar. Oque é que achas?

 

- Adorava - respondi. - Senti a nuvem da depressão levantar-se. Miss Stevens era tão radiosa e cheia de excitação. O seu entusiasmo inspirou o meu e reacendeu a minha necessidade de exprimir os meus sentimentos através de pinturas e desenhos. Tantas coisas tinham acontecido na minha vida ultimamente... desviando a minha atenção da pintura. Se calhar, agora poderia recomeçar com ainda mais energia, mais proveito.

Enquanto as outras continuavam a dar uma vista de olhos pelos cadernos de exercícios, Miss Stevens demorou-se um pouco a falar comigo, tornando-se rapidamente no mais íntimo dos meus professores.

- Em que dormitório é que estás? - perguntou. Respondi-lhe e contei-lhe de Gisselle estar numa cadeira de rodas. - Ela também desenha e pinta?

-Não.

- Tenho a certeza de que ela tem orgulho em ti. Aposto que toda a tua família tem muito orgulho. Sei que o teu pai tem -          acrescentou, sorrindo. Tinha uns olhos azuis muito acolhedores e leves sardas cobrindo-lhe as faces, subindo até às têmporas de ambos os lados. Os seus lábios eram quase cor de laranja, e via-se uma pequena covinha no queixo.

Em vez de dizer algo de desagradável acerca de Gisselle, simplesmente acenei.

- Eu comecei da mesma maneira - disse-me. - Cresci em Biloxi, por isso pintava e desenhava imensas vistas de oceanos. Quando andava na universidade, consegui vender uma pintura através duma galeria - continuou, orgulhosa -, mas nunca mais vendi nada. - Riu-se. - Foi nessa altura que dei conta que era melhor dar aulas, se queria comer e ter um tecto sobre a cabeça.

Fiquei a pensar porque é que uma pessoa tão bonita, doce e talentosa não considerava o casamento como alternativa.

- Há quanto tempo é professora de Educação Visual? - quis saber. Uma rápida espreitadela às outras alunas fez-me perceber que estavam ciumentas por eu dominar a atenção da nossa nova professora.

- Só há dois anos. Numa escola pública. Mas isto é uma profissão maravilhosa. Posso dar aos meus alunos tanta atenção ao nível individual... - Olhou para as outras. - Vamos todas divertir-nos muito - declarou. - Não me importo se vocês quiserem trazer música para ouvir enquanto trabalhamos, desde que não a ponham muito alto para não incomodar as outras aulas.

Miss Stevens lançou-me mais um sorriso de boas-vindas e depois começou a falar dos objectivos da disciplina e dos seus planos de nos levar do desenho à aguarela e, consequentemente, ao óleo. Descreveu o trabalho que iríamos fazer em barro, utilização dos fornos e todas as peças de arte que ela acreditava que iriam resultar da nossa produção. Estava tão entusiasmada que fiquei desiludida quando a campainha tocou a assinalar o fim do dia, mas sabia que não podia demorar-me. Gisselle estaria à minha espera à frente da sala de aulas para a levar de volta para o dormitório. Não tínhamos uma combinação alternativa.

Quando cheguei, ela já não estava lá. Abby acenou-me do fundo do corredor e depressa se juntou a mim.

- Estás à procura da Gisselle?

- Sim.

- Vi a Samantha a levá-la, com a Jackie e a Kate atrás. Como é que foi o teu primeiro dia?

 

- óptimo, excepto o encontro com a Dama de Ferro. Contei-lhe tudo no caminho para o dormitório.

- Se eu fosse chamada ao seu gabinete, ficava aterrorizada, convencida de que podia apenas significar uma coisa: ela tinha descoberto os meus antecedentes familiares.

- Mesmo que ela descobrisse, ela não se atreveria a...

- Já não era a primeira vez - confidenciou-me Abby. - De certeza que vai acontecer-me outra vez.

Queria dizer-lhe coisas optimistas e dar-lhe confiança, mas a Dama de Ferro tinha-me posto também a mim de mau humor. Enquanto caminhávamos em direcção ao dormitório, mantivemo-nOS silenciosas até que ouvimos o barulho de um cortador de relva e vimos Buck Dardar à nossa direita. Também reparou em nós, abrandando para nos ver.

- Mister Lama - disse Abby, comentário que nos trouxe de volta o sorriso à cara e uma nova energia na maneira como caminhávamos. Arriscando uma reprimenda, ambas lhe fizemos um sinal com a mão. Ele acenou; mesmo àquela distância podíamos ver a brancura dos seus dentes quando sorria. Demos as mãos e fomos saltitando todo o caminho de regresso.

Chegámos somente dez minutos depois de Gisselle e das outras, mas Gisselle reagiu como se tivéssemos chegado uma hora depois.

- Onde é que estiveste? - queixou-se, mal entrei no quarto.

- Onde é que eu estive? Porque é que não esperaste por mim a seguir à última hora? Eu disse-te que ia lá ter.

- Fizeste-me esperar e esperar. Como é que achas que me sinto à espera nesta cadeira estúpida enquanto toda a gente se despacha para ir descansar? Não vou ficar à espera como uma peça de mobiliário.

- Vim logo que a campainha tocou. Só fiquei um minuto a falar com a professora.

- Foi muito mais do que um minuto, e eu estava com vontade de ir à casa de banho! É que tu podes levantar-te e ir sempre que quiseres. Sabes muito bem como me é difícil fazer as Coisas mais simples. Sabes isso e ficas nas conversinhas com a tua professora de Educação Visual - admoestou-me, abanando a cabeça.

- Está bem, Gisselle - admiti, exausta com as suas permanentes birras. - Peço desculpa.

- A minha sorte é que já tenho outras amigas que tomam conta de mim. É essa a minha sorte.

- Okay.

A verdade é que nunca me apercebera da sorte que tinha em Nova Orleães, com um quarto só para mim, com paredes a separar-me da minha irmã mimada.

- Como é que foram as tuas aulas? - perguntei, mudando de assunto.

- Horriveis. As salas são demasiado pequenas... e os professores pairam por cima dos nossos ombros e vêem tudo o que fazemos. Aqui não se pode fazer nada!

Ri-me.

- Qual é a graça, Ruby?

- Apesar de não gostares, provavelmente vais melhorar imenso o teu rendimento escolar - disse-lhe.

- Oh, esquece. Não vale a pena falar contigo - retorquiu. - Aposto que vais já sentar-te a fazer os teus trabalhinhos de

casa, não vais?

 

- A Abby e eu vamos fazer os trabalhos agora, para depois já estarmos despachadas.

- óptimo - ironizou. - Vocês serão brevemente estudantes de honra de Greenwood e irão a dúzias de chás - rematou, girando para fora do quarto e entrando no de Jackie e Kate.

Mrs. Ironwood dissera que eu era responsável por Gisselle e pelo seu comportamento? Mais valia tentar mudar os hábitos de um rato ou domesticar um crocodilo, pensei.

 

A nossa primeira semana em Greenwood passou rapidamente. Terça-feira à noite escrevi cartas ao Paul e ao tio Jean, descrevendo tudo. Quarta, Beau telefonou. Tínhamos um telefone disponível no corredor mesmo junto à entrada do nosso quadrante. Jackie veio ao meu quarto avisar-me de que tinha uma chamada.

-           Se for o paizinho, também quero falar com ele - pediu Gisselle, ansiosa por continuar a descarregar as suas toneladas de queixas.

- Não é o teu pai - explicou Jackie. - É alguém chamado Beau.

- Obrigada - disse e fui a correr ao telefone antes que Gisselle tivesse oportunidade de fazer um dos seus comentários maldosos em frente a Jackie.

- Beau! - gritei ao auscultador.

- Pensei dar-te um dia ou dois para te instalares antes de telefonar - disse.

- É tão bom poder ouvir a tua voz.

-           E para mim ouvir a tua. Como é que isso é?

- Difícil. A Gisselle tem tornado a vida insuportável desde que chegámos.

- Não posso negar que estou a torcer por ela - comentou Beau, rindo-se. - Se ela fizer com que ambas sejam expulsas, voltas para aqui.

- Não contes com isso. Se não conseguirmos ficar aqui, de certeza que a minha madrasta arranjará outro local para nos mandar, e talvez o próximo seja duas vezes mais longe. Como está a correr a escola?

- Aborrecida, sem a tua presença, mas mantenho-me ocupado com a equipa de futebol, entre outras coisas. Como é isso aí?

-           A escola é simpática, como também a maioria dos nossos professores. Só não gosto muito da directora. É uma ditadora feita da mais dura pedra, e a Daphne já lhe encheu os ouvidos com histórias acerca do meu horrível passado cajun. Ela acha que eu posso ser a Annie Christmas.

- Quem?

- A famosa personagem dos pântanos conhecida pela sua rudeza e má criação - brinquei. - Não, ela simplesmente acha que eu posso ser uma má influência nas suas preciosas meninas crioulas.

-Oh...

-           Mas estou a gostar das aulas, especialmente de Educação Visual.

-E... em relação a rapazes?

Não há cá nenhum, Beau, lembras-te? Quando é que vens cá? Tenho saudades tuas.

-           Estou a resolver as coisas de forma a poder ir aí no fim-de-semana a seguir ao próximo. Com os treinos de futebol ao fim-de-semana, é complicado.

 

-           Oh, tenta, por favor, Beau. Ficarei meio louca de solidão se não vieres.

-           Hei-de ir... dê por onde der - respondeu. - Claro que vou ter de o fazer ás escondidas, por isso não deixes que ninguém fique a saber, especialmente a Gisselle. Era mesmo dela arranjar maneira de contar aos meus pais.

-           Eu sei. A sua tendência maldosa ainda se tornou pior depois do acidente. É verdade, fiz amizade com uma das raparigas do nosso grupo, mas não tenho a certeza se quero que a conheças.

-           O quê? Porque não?

-           Ela é muito bonita.

-           Só tenho olhos para ti, Ruby - interrompeu-me -, olhos esfomeados - acrescentou suavemente.

Encostei-me á parede e aconcheguei o auscultador de encontro ao meu ouvido como se estivesse a embalar um pequeno bebé junto à face.

- Tenho saudades tuas, Beau. Juro que tenho.

- Tenho saudades tuas, Beau. Juro que tenho - ouvi a voz de Gisselle a imitar-me. Voltei-me e vi que ela estava atrás de mim no corredor, juntamente com Samantha e Kate, as três sorrindo.

- Vai-te embora - gritei. - Isto é uma conversa particular.

- É contra as regras ter conversas picantes ao telefone do dormitório - zombou Gisselle -, página catorze, parágrafo três, linha dois do manual.

Kate e Samantha riram-se.

- O que é que se está a passar? - perguntou Beau.

- É só a Gisselle, a fazer de si própria - respondi. - Não posso falar mais. Ela está decidida a estragar a nossa conversa.

- Seja como for, é demasiado frustrante não poder falar contigo. Telefono-te outra vez, o mais cedo que puder - acrescentou.

- Tenta vir, Beau. Por favor.

- Vou tentar - prometeu-me. - Amo-te e tenho saudades tuas.

- O mesmo daqui - retorqui, lançando um olhar de raiva em direcção à Gisselle e às outras raparigas. - Adeus.

Desliguei o telefone rapidamente e voltei-me para elas.

-Espera... Espera só até ao momento em que quiseres privacidade - ameacei, e com um passo rápido saí dali.

Zangar-me com Gisselle também não me levava a lado nenhum. Ela tinha até prazer em me ver aborrecida. O melhor era simplesmente ignorá-la. Ela não se importava; tinha todas as raparigas do nosso quadrante, que parecia sentirem-se muito confortáveis a passar a maior parte do tempo à volta dela no dormitório, entre as aulas e também na cantina. Empurrada por Samantha, com Kate e Jackie ao lado, Gisselle e a sua comitiva rapidamente se tornaram uma entidade separada, um lobby que se movia unido por todo o edifício. Mais parecia que estavam atadas por fios invisíveis provenientes da cadeira de rodas de Gisselle.

 

A própria cadeira tinha-se transformado numa espécie de trono com rodas, a partir do qual Gisselle emitia os seus desejos e ordens e ainda pronunciava as suas sentenças a respeito das outras estudantes, dos professores e das actividades. Depois das aulas, as três raparigas seguiam obedientemente Gisselle de volta ao dormitório, onde ela continuava a manter a corte, encaminhando-as para maus comportamentos, descrevendo as suas façanhas em Nova Orleães, levando-as a fumar e a negligenciar os trabalhos de casa. Só Vicki, conduzida pelo seu desejo de se distinguir ao nível académico, permaneceu indiferente, o que era algo que Gisselle não perdoava.

Gradualmente, Gisselle foi pondo as outras raparigas contra Vicki. Até mesmo a pequena Samantha, que rapidamente se transformara no alter ego de Gisselle, começou a passar cada vez menos tempo com a sua colega de quarto e a secundar o desprezo de Gisselle por Vicki. Na quinta-feira à noite, como piada, Gisselle mandou Samantha roubar o primeiro trabalho de investigação para História da Europa, um trabalho do qual Vicki estava muito orgulhosa, pois havia-o começado assim que chegara e terminado uma semana antes da data limite. A pobre rapariga estava histérica.

- Tenho a certeza de que estava junto aos meus livros no armário - insistia, puxando o cabelo e mordendo o lábio. Gisselle e as raparigas mantinham-se sentadas na sala de estar, prestando atenção ao distúrbio que ela causava a ver e a rever as suas acções, enquanto tentava descobrir onde por acaso o teria posto. Bastou-me olhar uma vez para a cara de Samantha para compreender o que Gisselle a convencera a fazer.

- Era a minha única cópia. Demorei horas a fazer, horas!

- Da maneira como te conheço, aposto que o sabes todo de cor - interveio Gisselle. - Basta começares a escrever de novo.

-Mas... as minhas referências... as citações...

- Ah, esqueci-me das citações - ironizou Gisselle. - Alguém tem aí alguma citação?

Puxei Samantha para o lado, apertando-lhe com força a parte de cima do braço.

- Foste tu que tiraste o trabalho da tua colega de quarto? - perguntei.

- É só uma piada inofensiva. Vamos devolvê-lo mais tarde ou mais cedo.

- Não tem muita graça fazer uma pessoa passar por tanto sofrimento, só para mostrar como consegues fazer uma graça. Devolve-lho já - ordenei.

- Estás a magoar-me o braço.

- Entrega ou vou chamar Mistress Penny, que por sua vez terá de contar a Mistress Ironwood.

- Está bem. - Os olhos dela estavam repletos de lágrimas de dor, mas eu não me importava. Se ela ia tornar-se a pequena escrava de Gisselle, teria de pagar por isso.

Vicki regressou ao quarto para vasculhar tudo de novo.

-           Isto não tem piada, Gisselle - disse-lhe.

Ela olhou para Samantha primeiro e depois para mim.

-           O que é que não tem piada?

-           Fazer com que a Samantha tirasse o trabalho da Vicki.

- Eu não a forcei a nada, ela fez o que fez por si própria. Não foi, Samantha? - O olhar fixo de Gisselle era suficiente. Samantha acenou afirmativamente.

 

- Devolve o trabalho já - insisti. Samantha pôs a mão por baixo do sofá para tirar de lá o trabalho de Vicki. De repente, o seu rosto passou para uma expressão de choque. Ajoelhou-se e procurou.

- Não está aqui - disse, surpreendida. - Mas foi aqui que eu o pus.

-Gisselle...

-           Não faço a mínima ideia - respondeu, altiva.

E foi nesse mesmo instante que ouvimos um grito proveniente do quarto de Samantha e Vicki. Corremos todas para lá e encontrámos Vicki sentada sobre a cama a berrar. Ao colo jazia o trabalho, completamente encharcado.

-           O que é que aconteceu?

-           Encontrei-o assim debaixo do roupeiro - choramingou.

-           Agora vou ter de copiar tudo de novo. - Olhou para Samantha com ódio.

-           Eu não fiz isso - disse Samantha. - A sério.

- Alguém fez.

-           Se calhar foste tu própria e estás a tentar pôr a culpa numa de nós - acusou Gisselle.

- O quê? Porque é que eu faria isso?

-           Só para causar problemas.

- Isso é ridículo. Especialmente se levares em conta que vou ter de o copiar todo outra vez!

- Então é melhor começar já, antes que a tinta corra toda - sugeriu Gisselle. Virou a cadeira, sendo seguida pelas raparigas.

- A Abby e eu vamos ajudar-te, Vicki - ofereci-me.

- Obrigada, mas prefiro fazer isto sozinha - disse, limpando o rosto.

- às vezes, quando se volta a escrever, até se fazem correcções - acrescentou Abby

Vicki acenou. Depois olhou para mim friamente.

- Nunca antes tinha acontecido nada como isto - disse.

- Peço desculpa - respondi. - Eu vou falar com a Gisselle.

Mais tarde nessa mesma noite, tivemos uma acesa discussão acerca do acontecimento. Gisselle insistia que não tinha mergulhado o trabalho na sanita, chegando mesmo a fingir-se ofendida por eu a acusar de tal façanha. Mas não acreditei nela.

No dia seguinte, Gisselle surpreendeu-me com uma sugestão.

- Se calhar não devíamos partilhar o mesmo quarto - propôs. - Na realidade, não nos damos assim tão bem e não podemos conhecer outras pessoas se só nos virmos uma à outra a maior parte do tempo.

- Nós não nos vemos uma à outra. Mal te vi toda a semana - respondi. - Mas a culpa não é minha.

- Eu não disse que era. Só acho que seria melhor se tu dividisses o quarto com a Abby, de quem te tornaste íntima, e eu divido com outra pessoa.

- Com quem?

- Com a Samantha - retorquiu.

- Ah, queres dizer que a Vicki não quer estar no mesmo quarto que a Samantha desde aquela... graça, não é?

- Não. A Samantha é que detesta dividir o quarto com a Vicki, que de tão envolvida nos seus trabalhos escolares nem presta atenção à higiene pessoal.

- O que estás a insinuar agora, Gisselle?

 

- A Samantha contou-me que a Vicki está com o período há já dois dias mas ainda não se deu ao trabalho de ir buscar pensos higiénicos. Então, enche as cuecas de papel higiénico -   informou Gisselle bruscamente.

- Não acredito nisso.

- Olha, porque é que eu havia de mentir? Vai tu lá perguntar. Vai lá e pergunta o que é que ela tem nas cuecas. Vai - guinchou.

- Gisselle. Okay, tem calma. Eu acredito.

- Não culpes a Samantha por isto - pediu.         - Então?

- Então o quê?

- Queres mudar-te para o quarto da Abby e deixar a Samantha vir para aqui ou quê?

- E em relação às tuas necessidades especiais?

- A Samantha está disposta a fazer tudo o que eu lhe pedir - explicou Gisselle.

- Não sei. O paizinho pode não gostar disto.

- Claro que vai gostar. Se me faz feliz... - acrescentou, sorrindo.

- Também não sei o que é que a Abby vai pensar disto tudo - disse suavemente, ao mesmo tempo adorando a ideia em Segredo.

- Claro que vai adorar. Vocês as duas tornaram-se como... como irmãs - interveio Gisselle, fixando-me o olhar firmemente. Eram ciúmes e inveja o que eu via nos seus olhos ou seria apenas ódio?

- Vou falar com a Abby - prometi. - Suponho que posso sempre regressar, se as coisas não funcionarem. E em relação às tuas outras coisas, as coisas que tu insististe em trazer? Agora se calhar não há lugar para as minhas coisas no quarto da Abby.

- Peço a Mistress Penny que as guarde, como ela tinha sugerido a princípio - retorquiu Gisselle rapidamente. Como era óbvio, contornaria qualquer obstáculo até ver a sua vontade satisfeita. - Seja como for, tu também não tens muita coisa.

- Eu sei porque é que queres ver-te livre de mim - disse eu num tom severo. - Não queres que eu te chateie acerca dos trabalhos para a escola. Mas olha: só porque estou num quarto diferente, não quer dizer que não vá tentar que te esforces, Gisselle.

Ela suspirou profundamente.

- Está bem. Prometo trabalhar mais. Acontece que a Samantha também é uma boa aluna, sabes. Já me ajudou imenso com matemática.

- Fez os trabalhos de casa por ti, é o que queres dizer. Isso não vai ajudar-te a aprender - censurei. Gisselle fingiu não ter ouvido.

Nunca cheguei a contar-lhe acerca do meu encontro com Mrs. Ironwood no primeiro dia de aulas. Pensei que, se ela soubesse o que fora dito e como me tinha sido atribuida a responsabilidade de tomar conta dela, teria um ataque de fúria e exigiria voltar para casa. Mas estava tentada a contar-lhe agora.

- Se não te safares, eu vou de uma forma ou outra ser responsabilizada - disse.

- Porquê? Tu vais dar-te bem. Tu safas-te sempre - murmurou.

 

- É que contam comigo - respondi, estando cada vez mais perto de lhe comunicar o meu encontro com Mrs. Ironwood. Claro está, Gisselle não percebeu nada.

- Bem, eu não conto contigo! Como vês, realmente chateias-me! Preciso de um descanso. E também preciso de estar com pessoas diferentes.

- Está bem, Gisselle. Acalma-te. Terás todas as raparigas daqui.

- Vais perguntar à Abby?

- Sim - respondi. Se calhar não devia ter concordado tão

facilmente, mas a perspectiva de escapar dela era deveras aliciante. Saí e discuti a proposta com Abby, que ficou muito feliz com a ideia.

Naquela noite fizemos as mudanças. Vicki, em vez de se sentir insultada, estava obviamente satisfeita de ter um quarto só para ela. Chegou mesmo a ajudar Samantha a tirar as coisas. Claro que tivemos de avisar Mrs. Penny, que no princípio pareceu ficar confusa, mas depressa mudou de atitude quando reparou como Gisselle estava feliz.

- Desde que as meninas se dêem bem, acho que as vossas combinações particulares não interessam - concluiu. - Mas não te esqueças, Gisselle: tu, a tua irmã e a Abby vão amanhã a casa de Mistress Clairborne tomar chá. Partimos do dormitório à uma hora e cinquenta minutos em ponto. Mistress Clairborne gosta que todas sejam pontuais.

- Mal posso esperar - ironizou Gisselle. Sacudiu as pálpebras e revirou os ombros. - Até já escolhi um vestido formal para a tarde e sapatos a condizer. Azul-claro é uma cor aceitável?

- Oh, tenho a certeza que sim - respondeu Mrs. Penny. - Não é maravilhoso? Quem me dera ser jovem outra vez, a

começar a vida, a experimentar tudo. Suponho que é por isso que adoro o meu trabalho. Dá-me a oportunidade de voltar à minha juventude através de vocês, deliciosas meninas.

Mal Mrs. Penny saiu do alcance da voz, Gisselle juntou as mãos à frente do peito e começou a imitá-la, representando para a sua comitiva de meninas.

- Quem me dera ser virgem outra vez - gozava -, para poder experimentar fazer amor vezes sem conta.

O clube de fãs de Gisselle, título que eu rapidamente atribuira às raparigas, ria-se e encorajava-a. Depois ela atraiu-as para o que tinha sido o nosso quarto, a fim de contar mais uma história de promiscuidade à sua fiel audiência. Estava contente por poder fechar a porta e regressar ao calmo quarto de Abby, que agora era também o meu.

Naquela noite ficámos acordadas durante horas, contando histórias uma à outra sobre as nossas infâncias. Ela adorava ouvir-me falar acerca da grandmère Catherine e do seu trabalho como traiteur. Expliquei-lhe a importância dessa profissão para os Cajuns e como a mágica Catherine podia fazer com que as pessoas ficassem curadas dos seus males menores e receios.

- Tiveste sorte em ter tido uma avó-comentou Abby. - Eu não conheci nenhum dos meus avós. Por causa de estarmOs sempre a mudar, nunca tive muito contacto com a minha família. A Gisselle não faz ideia da sorte que tem - acrescentou depois de um momento. - Quem me dera ter uma irmã.

- Agora já tens - disse-lhe.

 

Ficou quieta por um longo período, reprimindo as lágrimas, tal como eu reprimia as minhas.

- Boa noite, Ruby. Estou contente de estarmos no mesmo quarto.

- Boa noite. Eu também.

Eu estava feliz, muito feliz. Só temia que o paizinho ficasse zangado e que todos me acusassem de ser demasiado egoísta. Mas contava já que Samantha iria sentir-se tão dominada por Gisselle que, mais cedo ou mais tarde, imploraria para voltar para o seu antigo quarto. Mais valia eu aproveitar isso enquando durasse, pensei, e pela primeira vez desde que chegara a Greenwood adormeci contente.

 

TRISTES MELODIAS

O paizinho telefonou na manhã seguinte e imediatamente lhe contei que eu e Gisselle tínhamos deixado de ser companheiras de quarto. Gisselle ficou irritada por ele ter pedido para falar primeiro comigo; por isso, sentou-se na cadeira de rodas à entrada e amuou, ameaçando nem sequer falar com ele, enquanto eu estava ao telefone.

- Isso está a resultar? - perguntou o paizinho, com uma voz surpreendida. - Quero dizer, outra pessoa a partilhar o quarto com a Gisselle?

- A nova colega dela é a Samantha. lembra-se dela? - Ele disse que sim. - Tornou-se amiga da Gisselle muito rapidamente - expliquei.

- Eu posso falar por mim própria - encolerizava-se Gisselle. - Dá-me o telefone. - Pôs a cadeira de rodas ao meu lado e eu entreguei-lhe o auscultador.

- Paizinho! - cuspiu para o telefone. - Detesto isto aqui, mas pelo menos tenho uma companheira de quarto que não me chateia até à morte - acrescentou, olhando para mim.

-           Sim - continuou, tornando-se de repente doce como o mel.

-           Comecei com o pé direito nos meus trabalhos escolares. Ainda ontem recebi um "Excelente Mais" no trabalho de Matemática e um "Excelente" no de Inglês. E tudo sem a ajuda da Ruby - acrescentou. - Mas nada disto quer dizer que eu goste de estar aqui. Pode dizer isso à Daphne - acrescentou, atirando o auscultador para as minhas mãos.

Olá, paizinho.

- Achas que eu deveria ir aí? - perguntou. Parecia tão cansado, a sua voz tímida e não passando de um sussurro.

- Não. Nós ficamos bem. Além disso, temos hoje o chá em casa de Mistress Clairborne.

- Oh, bem, isso parece ser agradável. Não quero sobrecarregar-te, Ruby - avisou -, mas...

- Está tudo bem, paizinho. Com o tempo, a Gisselle vai começar a gostar de estar aqui - intervim, olhando para ela.

-           Tenho a certeza.

- E precisam de alguma coisa, meninas?

- Não, nós estamos bem, paizinho. Como é que o pai está?

- Tenho uma ligeira constipação. Nada sério. Talvez vá para fora durante mais ou menos uma semana, mas tentarei telefonar de onde estiver - prometeu. - E se precisarem de mim... telefonem para o escritório - acrescentou rapidamente. Eu sabia que o que ele queria dizer era que não valia a pena telefonar a Daphne.

- Está tudo bem em casa, paizinho?

- Tudo bem - respondeu.

- Como é que estão a Nina, o Edgar e a Wendy?

Hesitou por uns instantes.

- Substituimos a Wendy - informou-me.

- Substituiram-na? Porquê?

- A Daphne não estava contente com o trabalho dela. Mas tratei que ela levasse uma boa carta de recomendação e algumas indicações. Agora temos uma senhora mais velha. A própria Daphne escolheu-a na agência. O nome dela é Martha Woods.

-Tenho pena da Wendy.

 

- Ela vai ficar bem - acrescentou rapidamente. - Diverte-te no fim-de-semana. Adoro-te - concluiu.

- E nós também o adoramos, paizinho - retorqui.

Gisselle fez um sorriso de desdém.

- O que é que aconteceu com a Wendy? - perguntou.

- A Daphne mandou-a embora.

- Boa. Ela também era demasiado arrogante - ripostou Gisselle.

- Isso é mentira. Ela aturou muito da tua parte, Gisselle. Tenho a certeza de que a nova criada não faria tanto.

- Ai isso é que vai aturar, se não, também vai para o olho da rua - ameaçou Gisselle, com um sorriso nos lábios. - Depois desapareceu, empurrando-se a si própria para o quarto, furiosa. Tinha a certeza de que ela iria fazer qualquer coisa no chá de Mrs. Clairborne para nos envergonhar, talvez usando uma roupa inapropriada só para provocar, mas fiquei surpreendida quando a vi com um bonito vestido azul-claro e sapatos a condizer. Pediu a Samantha que lhe escovasse o cabelo, prendendo-o aos lados. Mrs. Penny tinha-nos dito que Mrs. Clairborne não gostava de ver as raparigas a usar maquilhagem, mas um baton simples e discreto era permitido. Pensei que Gisselle iria como provocação pintar as sobrancelhas e as faces, mas mais uma vez me surpreendeu usando uma maquilhagem bastante discreta.

Samantha emppurrou-a para fora da sala principal para se juntar a Abby e a mim um pouco antes da uma hora e cinquenta.

- A Chubs pediu-me para roubar alguns pralinés para ela

-           disse-nos. - Se uma de vocês tiver oportunidade, enfiem-nos na minha mala.

- A Kate não precisa de mais calorias - respondi.

- Se ela não se importa, porque é que tu te preocupas?

- Os verdadeiros amigos tentam ajudar-se, não alimentam as fraquezas dos outros - retorqui.

- Quem disse que eu era uma verdadeira amiga? - escarneceu. Abby e eu olhámos uma para a outra e abanámos a cabeça.

Momentos depois Mrs. Penny apareceu usando um vestido de algodão com motivos florais com uma faixa larga cor-de-rosa à volta da cintura. Tinha um pequeno bouquet por cima do seio direito, um chapéu-de-sol e uma pequena carteira de pelha com uma rosa bordada em cada um dos lados.

- Bem, tenho o prazer de apresentar... - disse Gisselle - Scarlet O'Hara. - Samantha riu-se e saiu a correr para decerto ir contar às outras o que Gisselle tinha dito.

Mrs. Penny corou.

- Vocês estão todas tão bonitas - afirmou. - Mistress Clairborne vai ficar muito satisfeita. Por aqui, meninas. O Buck teni a carrinha estacionada à frente - acrescentou.

- O Buck? - perguntou Abby, virando-se para mim. Começámos a rir.

- Quem é o Buck? - quis saber Gisselle.

- É o rapaz responsável por quase tudo aqui - explicou

Mrs. Periny, mas Gisselle olhou suspeitosamente para mim e

para Abby, enquanto eu a empurrava pela rampa em direcção à

carrinha.

 

De perto e à luz do dia, Buck parecia ainda mais novo do que naquela noite junto à casa dos barcos ou quando guiava o cortador de relva. Tinha o cabelo quase tão negro como o de Abby, mas os seus olhos eram castanho-escuros. Era de tez esCura, própria do americano nativo que era. Mesmo com a camisa axadrezada, era visível a sua força. Parecia ao mesmo tempo mais alto e mais magro, com cintura e ancas finas e compridas Pernas. Mal nos viu, sorriu suavemente, algo que Gisselle reParou.

- Olá, Mister Lama - zombou Abby. Ele riu e depois fi cou muito surpreendido e algo curioso quando reparou que Gisselle era minha irmã gémea.

- Não me diga que existem duas como a menina - brincou. Eu limitei-me a sorrir.

- Como é que o conhecem? - perguntou Gisselle. Ambas nos mantivemos em silêncio.

- Deixa-me ajudar-te - ofereceu-se Buck, olhando para Gisselle. Colocou o seu braço esquerdo à volta da cintura dela e o direito por debaixo das pernas, levantando-a tão suavemente do assento, como se ela não pesasse mais que cinco quilos. Ela sorriu, o rosto tão perto do dele que os seus lábios quase podiam tocar na sua face. Ele sentou-a de forma confortável na carrinha, dobrando em seguida a cadeira de rodas como se fosse um especialista, o que me levou a crer que não era a primeira vez que o fazia.

Entrámos todas no carro e Mrs. Penny ocupou o lugar da frente.

- Quem é que está a usar todo este cheiro a jasmim? - perguntou Gisselle, mal nos tínhamos acomodado na carrinha.

- Oh, sou eu, querida - respondeu Mrs. Penny. - É o perfume preferido de Mistress Clairborne.

- O meu não é de certeza - fez notar Gisselle. - Além disso, devia usar algo que lhe dê prazer, não o que uma mulher velha e rica gosta.

- Gisselle - gritei, arregalando os olhos. Não teria ela uma ponta de discrição?

-É verdade!

- Eu pessoalmente também gosto muito do cheiro - sossegou-a Mrs. Penny. - Por favor, não te preocupes. Bem, agora deixem-me falar-vos acerca da Mansão Clairborne enquanto prosseguimos viagem. Mistress gosta quando as raparigas já sabem toda a história. Na realidade, ela conta com isso - acrescentou, num tom de voz mais baixo.

- Vamos ser testadas mais tarde? - ironizou Gisselle.

- Testadas? Não, não, querida - respondeu Mrs. Penny, com uma ligeira gargalhada. Depois parou e ficou a pensar por um momento. - Basta serem respeitadoras, e, lembrem-se, é graças à sua generosidade que Greenwood vive.

- É que a sua sobrinha tem um emprego - murmurou Gisselle. Com este comentário até eu sorri, mas Mrs. Penny, como de costume, ignorou tudo o que não lhe agradava e continuou com a sua lição.

- Esta mansão era uma plantação de açúcar muito importante até recentemente, há cerca de dez anos.

- Isso é recentemente? - perguntou Gisselle.

Mrs. Penny sorriu como se Gisselle tivesse dito algo muito disparatado, algo que não necessitava de resposta.

 

- A moradia original, com quatro quartos, foi construída nos finais do século dezoito e está agora ligada à residência por uma passagem para as carruagens, que acaba num arco, servindo de entrada principal durante o tempo inclemente. Na época dourada das plantações de açúcar - continuou Mrs. Penny -, a propriedade possuía quatro unidades de produção de açúcar, cada uma com a sua plantação e o seu próprio núcleo de escravos.

- O meu pai diz que a guerra civil não acabou com a escravatura. Apenas subiu o preço do trabalho de zero para o ordenado mínimo - zombou Gisselle.

Reparei que Buck fez um pequeno sorriso.

- Ai, Nossa Senhora - apoquentou-se Mrs. Penny. - Por favor, não digas nada disso à frente de Mistress Clairborne. E aconteça o que acontecer, não menciones a guerra civil.

- Vou tentar - retorquiu Gisselle, gozando do poder que detinha sobre a nossa monitora do dormitório.

- Seja como for - continuou Mrs. Penny, recuperando o fôlego -, muita da mobília, tal como os armários, data de antes da guerra civil. Os jardins, como vocês em breve poderão observar, foram concebidos de acordo com o estilo francês do século dezassete, com estátuas de mármore importadas de Itália.

Alguns minutos mais tarde chegámos à entrada da propriedade dos Clairbone, continuando Mrs. Penny no seu papel de guia turistica.

- Reparem nas magnólias e nos egrégios carvalhos - apontou. - Ali, por detrás daquele celeiro, encontra-se o cemitério da família. Reparem na vedação em ferro trabalhado sombreada pelos carvalhos.

"Todas as estantes do interior foram feitas à mão em França. Hão-de reparar que a maioria das janelas tem tapeçarias em brocado, cortinas de renda em ponto de rosa e persianas de linho pintadas à mão. O nosso chá vai ter lugar numa das mais bonitas salas de estar. Talvez vocês tenham oportunidade de ver o salão de baile.

- É alguma vez usado? - perguntou Gisselle.

- Agora já não, querida.

- Que desperdício - comentou, mas até ela estava imPressionada com o tamanho da mansão.

A enorme estrutura de dois andares tinha majestosas colunas dóricas com uma varanda superior que corria ao longo de toda a casa. Por cima do segundo andar encontrava-se um belveder com janelas de vidro. O lado oeste da mansão parecia mais escuro, provavelmente devido aos grandiosos salgueiros, cujos ramos se vergavam sob o seu próprio peso, projectando sombras compridas e carregadas por cima das paredes de tijolo e das janelas das águas-furtadas.

Quando chegámos, a porta principal abriu-se e um homem negro, alto e magro, com cabelo de um branco igual à neve, apareceu à entrada. Estava curvado para a frente, de maneira que a sua cabeça sobressaía inesteticamente, fazendo com que ele parecesse que estava a escalar montanhas mesmo quando se limitava a ficar à entrada.

- Este é o Otis, o mordomo dos Clairborne - apresentou Mrs. Penny rapidamente. - Está ao serviço da família Clairborne há mais de cinquenta anos.

- Parece é que ele está aqui há mais de um século - troçou Gisselle.

 

Saimos do carro e Buck foi, velozmente, buscar a cadeira de Gisselle. Ela aguardou, percebendo-se que estava alegre e na expectativa. Quando Buck se aproximou dela, levantou-a de novo e colocou-a na cadeira com suavidade. Felizmente, eram poucos os degraus até ao pórtico, de forma que Buck pôde conduzi-la à vontade. Depois de ter colocado Gisselle na sua cadeira de rodas à entrada, Buck voltou para a carrinha.

- Porque é que o Buck não pode vir connosco? - perguntou Gisselle.

- Oh, isso não, querida - respondeu Mrs. Penny, abanando a cabeça e sorrindo, como se Gisselle tivesse sugerido a coisa mais engraçada do mundo. - O chá de hoje é só para as novas raparigas. Mistress Clairborne receber-vos-á em pequenos grupos durante todo o mês.

- Mister Lama... - Gisselle murmurou-me. - É melhor que me digas como é que o conheces.

Fingi que não a tinha ouvido, e empurrei a cadeira pela entrada. Otis acenou-nos e cumprimentou Mrs. Penny. A partir do momento que entrámos, Mrs. Penny reduziu a sua voz a um sussurro, como se estivéssemos numa igreja ou num famoso museu.

- Todas as salas estão mobiladas com antiguidades francesas e, como irão ver, todas têm divãs púrpura-escuro feitos de nogueira trabalhada.

Os soalhos de mármore reluziam, de tão encerados que estavam. Aliás, tudo, das mesas antigas às cadeiras, passando pelas estátuas ou pelas paredes, brilhava. Se existia ali algum pó, estava decerto escondido debaixo dos tapetes, pensei, mas reparei que o responsável por dar corda ao relógio alto de nogueira, que se encontrava mesmo à entrada, não o tinha feito, pois estava parado nas duas e cinco.

As espaçosas e arejadas salas do primeiro andar davam todas para o átrio central. Mrs. Penny explicou que a cozinha se situava nas traseiras da casa. A meio caminho, via-se uma escadaria graciosamente curvada, com a sua balaustrada de mogno polido e os seus degraus de mármore. Por cima de nós, no átrio, grandes candelabros estavam acesos, reluzindo como dian'antes. De facto, apesar das tapeçarias, dos quadros, dos grandes cortinados e da mobilia púrpura, havia algo de frio naquela mansão. Mesmo sabendo que os Clairborne tinham vivido ali por muito tempo, faltava o calor e a personalidade que uma família oferece a um lar. No fundo não passava de um gélido museu.i Os objectos parecia terem sido acumulados, coleccionados somente pelo seu valor; e a aparência imaculada de tudo o que nos rodeava deu-me a impressão de que aqueles objectos não eram utilizados, servindo apenas para serem vistos. Senti-me numa casa em exposição, mas não num lar onde pessoas amam e vivem.

Fomos levadas até uma sala de estar à direita, onde encontramos um sofá de veludo e um canapé a condizer, dispostos de forma a ficarem de frente para uma cadeira de alto espaldar de veludo azul embutida a ouro, cujos braços e pernas de nogueira escura eram ornamentados por entalhes feitos à mão. Parecia um trono colocado por cima de um gigante tapete persa. O resto do soalho era de madeira clara. Entre a cadeira, os canapés e os sofás, podia-se ver uma comprida mesa de nogueira, que condizia com o resto da mobília.

 

Depois de Abby e eu termos tomado os nossos lugares e de Gisselle ter sido colocada ao nosso lado, tive oportunidade de olhar à volta e reparar no papel de parede com paisagens e nas pinturas a óleo emolduradas, que representavam Várias cenas das plantações de açúcar. Na cornija da lareira, encontrava-se outro relógio parado com os ponteiros apontados para as duas e cinco. Por cima deste, uma pintura retratava um homem bem-parecido, cuja figura ligeiramente enviesada, olhando para baixo, dava a impressão de ser alguém de sangue real.

De repente, ouvimos o baque... baque... baque de uma bengala no chão de mármore da entrada. Mrs. Penny, que estava junto à porta, lembrou-se de algo e aproximou-se rapidamente de nós.

- Esqueci-me de vos dizer, meninas. Quando Mistress Clairborne entrar, por favor, levantem-se.

- Como é que eu posso fazer isso? - proferiu Gisselle automaticamente.

- Ah, tu, é claro, estás dispensada - acrescentou Mrs. Penny. Antes que Gisselle pudesse dizer mais alguma coisa, todos os olhares se voltaram para a porta, à medida que Mrs. Clairborne entrava. Eu e Abby levantámo-nos.

Ela parou à entrada, como se estivesse à espera que lhe tirassem uma fotografia, depois mirou-nos de alto a baixo, passeando o olhar lentamente de Abby para mim e depois para Gisselle. Mrs. Clairborne parecia mais alta e corpulenta do que em qualquer uma das pinturas espalhadas pela escola. Também nenhum dos retratos a representava com a pintura anilada que ela usava no cabelo grisalho, cabelo esse que agora parecia mais fino e curto, mal chegando ao meio das orelhas. Trazia um vestido de seda azul-escuro com gola larga, abotoado até ao pescoço. Pendurado num fio prateado, via-se um relógio de bolso de prata, com os pequenos ponteiros de novo parados nas duas e cinco.

Tive curiosidade em saber se tanto Abby como Gisselle tinham reparado no estranho pormenor dos relógios.

levantei o olhar para os grandes brincos de diamante em forma de lágrima que pendiam das orelhas de Mrs. Clairborne. As mangas do seu vestido terminavam em delicados folhos que iam até à palma das mãos. No pulso esquerdo usava uma bracelete de ouro e diamantes. Os dedos longos e ossudos de ambas as mãos estavam cheios de anéis com pedras preciosas, alguns em platina, outros ainda em ouro ou prata.

Até mesmo nos retratos, Mrs. Clairborne tinha uma cara estreita e angulosa que parecia não condizer com o seu majestoso corpo; em pessoa, essa diferença ainda se acentuava mais. Devido à maneira como o seu nariz longo e fino sobressaía, os olhos escuros parecia afundarem-se ainda mais profundamente no rosto. Tinha uma boca larga e estreita, de tal forma que quando os seus lábios estavam pressionados um de encontro ao outro, mais não parecia do que uma ténue linha feita a lápis do interior de uma face à outra. A sua compleição, isenta da ajuda de qualquer toque cosmético, era de um branco-pálido. com algumas marcas castanhas de envelhecimento na testa e nas faces.

Rapidamente cheguei à conclusão que o pintor que tinha feito os seus retratos tinha usado tanto a sua imaginação como a imagem dela como modelo.

Mrs. Clairborne deu um passo à frente, apoiando-se na bengala.

- Bem-vindas, meninas - disse. - Façam o favor de se sentarem

 

Foi o que eu e Abby fizemos, enquanto Mrs. Clairborne avançou para a sua cadeira, batendo com a bengala a seguir a cada passo, como se para confirmá-lo. Acenou a Mrs. Penny, que se instalou no outro canapé. Só depois se sentou, prendendo a bengala no braço esquerdo da cadeira, enquanto olhava para Gisselle por um momento e depois para Abby e para mim.

- Gosto de ter uma relação pessoal com cada uma das meninas de Greenwood - começou. - O nosso colégio é especial, porque, ao contrário da maioria das escolas públicas, não tratamos as alunas como números ou estatística. Por isso, gostaria que cada uma de vós - acrescentou -, se apresentasse e me contasse um pouco de si própria. Depois, explicar-vos-ei porque é que decidi há já algum tempo assegurar que Greenwood continue a existir e também o que desejo que se obtenha do colégio no presente e nos anos vindouros.

Tinha uma voz firme e rígida, quase tão grave como a de um homem.

- Depois disso - continuou -, o chá será servido.

Por fim, a sua expressão suavizou-se, apesar de continuar a parecer-me mais um trejeito do que um sorriso caloroso.

- Quem quer começar? - perguntou. Mantivemo-nos em silêncio. Depois ela fixou o olhar em mim. - Bem, já que somos todas tão tímidas, porque não começamos com as gémeas, para que não cometamos o erro de não saber qual é qual.

- Eu sou a aleijada - declarou Gisselle com escárnio. Instalou-se um silêncio desconfortável, como se todo o oxigénio da sala tivesse sido sugado. Mrs. Clairborne voltou-se para ela lentamente.

- Espero que só fisicamente - disse.

Gisselle enrusbesceu, caindo-lhe o queixo. Quando olhei para Mrs. Penny, consegui denotar uma expressão de satisfação. Aos seus olhos, Mrs. Clairborne era uma heroína e não podia ser posta em causa. Imagino que raparigas muito mais espertas que Gisselle tivessem tentado o mesmo e acabado por ficar na mesma posição em que ela se encontrava agora: a engolir as próprias palavras.

- Sou a Ruby Dumas e esta é a minha irmã, Gisselle - comecei rapidamente, de forma a preencher o silêncio embaraçOso. - Temos ambas dezassete anos e somos de Nova Orleães. Vivemos no chamado Garden District. O nosso pai é investidor imobiliário.

Os olhos de Mrs. Clairborne tornaram-se mais pequenos. Acenou devagar, porém, perscrutava-me tão intensamente que me senti como se estivesse sentada num monte de lama do pântano, afundando-me gradualmente.

- Conheço muito bem o Garden District, uma das mais belas áreas da cidade. Houve uma altura - acrescentou um pouco saudosamente - em que eu ia a Nova Orleães muitas vezes.

-           Suspirou e depois voltou-se para Abby, que descreveu onde ela e a sua família actualmente viviam e o trabalho do pai como contabilista.

- Então, não tens irmãos?

- Não, madame.

- Estou a ver. - Suspirou de novo, agora mais profundamente. - Estão confortáveis nos nossos quartos?

-           São pequenos - queixou-se Gisselle.

-           Não os achas acolhedores?

-           Não, só pequenos - insistiu Gisselle.

 

-           Se calhar isso deve-se à tua mal-afortunada condição. Estou certa de que Mistress Penny fará tudo o que estiver ao seu alcance para que te sintas confortável enquanto frequentares Greenwood - afirmou Mrs. Clairborne, olhando para Mrs. Penny, que acenou afirmativamente.

Olhando com insistência para Gisselle, prosseguiu:

- E tenho a certeza de que chegarás à conclusão que Greenwood é um sítio maravilhoso para receber a melhor educação. Digo sempre que as nossas alunas chegam aqui como meninas pequenas e saem como jovens mulheres, não somente superiormente educadas como moralmente reforçadas.

"Sinto - continuou, e a sua expressão tornou-se pensativa e calma - que Greenwood é um dos últimos bastiões da fibra moral que outrora fez do Sul a verdadeira capital da gentileza e da graça. Aqui as meninas vão ter contacto com a vossa tradição, com a vossa herança. Noutros lugares, especialmente no Nordeste e no Oeste, os radicais invadem todos os aspectos da nossa cultura, dizimando-a e diluindo o que já foi pura nata para a transformar em leite desnatado.

Suspirou.

- Há tanta imoralidade e falta de respeito por coisas que outrora eram consideradas sagradas na nossa vida. Isso só acontece quando nos esquecemos do que somos e onde pertencemos. Percebem todas o que estou a dizer?

Nenhuma de nós abriu a boca. Gisselle parecia sentir-se constrangida. Troquei rapidamente um olhar com Abby, que o devolveu com ar de cumplicidade.

- Mas já chega desta conversa profunda e filosófica - finalizou Mrs. Clairborne, olhando depois para a porta de entrada, onde duas criadas aguardavam o sinal para trazer o chá, os bolos e os pralinés. A conversa tornou-se mais fluida. Gisselle, depois de alguma insistência, contou a história do acidente, pondo toda a culpa nos travões deficientes. Eu descrevi o meu amor pela arte e Mrs. Clairborne sugeriu que eu desse uma vista de olhos nas pinturas do átrio. Abby era a mais reticente sobre si própria, claro, algo que Mrs. Clairborne reparou, mas que não insistiu.

Mais ou menos a meio do nosso chá, pedi licença para ir à casa de banho, e Otis encaminhou-me para a mais próxima, que se localizava no lado oeste da mansão. Enquanto regressava, ouvi o som de piano vindo de uma sala no fundo do corredor. Soava tão bem que me atraiu, e espreitei por uma porta que se abria para uma belíssima sala de estar, ao fundo da qual se encontrava uma varanda que dava para os jardins. Mais à direita da porta da varanda, via-se um enorme piano com a cauda levantada, o que não me permitiu ver ao princípio quem lá tocava. Dei um passo para a direita para poder ver melhor e fiquei à escuta.

Vestido com uma camisa de algodão branco de colarinho desabotoado e calças largas azul-claras, encontrava-se um homem jovem de cabelo castanho-escuro, cujas madeixas finas e soltas caíam pela cabeça abaixo e sobre a testa, tapando-lhe os olhos. Mas ele não parecia sentir-se incomodado com isso; aliás, nem parecia notar. Estava tão perdido na sua música, os dedos flutuando pelas teclas como se as mãos fossem seres independentes e como se ele se limitasse a ser um observador ou um mero ouvinte, tal como eu.

 

De repente, parou de tocar e virou-se na cadeira em minha direcção. No entanto, os seus olhos olharam à minha direita, parecendo antes que estava a olhar para alguém atrás de mim. Eu própria tive de me virar para ter a certeza de que ninguém me seguira.

- Quem está aí? - perguntou, e foi nessa altura que me dei conta de que era cego.

- Oh, peço desculpa. Não era minha intenção incomodar.

- Quem está aí? - exigiu.

- O meu nome é Ruby. Estou aqui para o chá de Mistress Clairborne.

- Ah, mais uma das caloiras - disse com desdém, os cantos da boca afundando-se. Tinha, no entanto, uma boca forte e

com um nariz perfeitamente desenhado e uma testa lisa que mal se enrugava, mesmo quando fez o trejeito.

- Não sou uma das caloiras - retorqui. - Sou Ruby Dumas, uma nova estudante.

Ele riu-se, cruzando os braços à volta do tronco largo, e recostou-se.

- Estou a ver. És uma pessoa. Exactamente.

Bem, a minha avó e a minha prima Margaret, que conheces por Mistress Ironwood, vão fazer com que tu percas essa mania de independência o mais rápido possível e te transformes numa verdadeira rapariga do Sul: movendo-te por onde e quando te é permitido, falando só quando e como te é permitido, e... - acrescentou com uma gargalhada - pensando só o que te é permitido.

- Ninguém me diz o que pensar ou falar - retorqui desafiadoramente. Desta vez não se riu, mas manteve o sorriso durante um momento, ficando depois sério.

- Há um som estranho na tua voz, parece-me ouvir uma espécie de sotaque. De onde és?

- Nova Orleães - respondi, mas ele abanou a cabeça.

- Não, não, anterior. Deixa-te disso, consigo ouvir as coisas de uma forma mais distinta, mais pura. Essas consoantes... Deixa-me pensar... És do bayou, não és?

Engasguei-me com a precisão dos seus ouvidos. Ele levantou a mão.

- Espera... Sou especialista em sotaques regionais...

- Sou de Houma - confessei. Ele acenou com a cabeça.

- Uma cajun. A minha avó sabe do teu verdadeiro passado?

- É possível. Mistress Tronwood sabe.

- E deixou que te matriculasses? - perguntou, na verdade, surpreendido.

- Sim. Porque não?

- Este colégio é só para sangue azul. E, normalmente, se a pessoa não é crioula... É de uma das mais finas famílias crioulas...

- Mas eu também sou isso - interrompi.

- Sério? Interessante. Ruby Dumas, não é?

- Sim. E quem és tu? - Ele hesitou. - Tocas lindamente - acrescentei em seguida.

- Obrigado, mas não toco. Choro, grito, riu-me através dos dedos. A música passou a ser as minhas palavras, as notas, as minhas letras. - Abanou a cabeça. - Só um outro músico, um poeta ou um pintor poderiam compreender.

- Eu compreendo. Eu sou pintora - afirmei.

- És?

- Sim. Cheguei mesmo a vender alguns quadros através de uma galeria no Bairro Francês - acrescentei, dando comigo a gabarolar-me. Não era propriamente o meu estilo, mas algo na atitude deste rapaz, condescendente e ao mesmo tempo céptico, fez com que me empertigasse e com que o meu orgulho viesse ao de cima. Posso não ter sangue azul suficiente aos olhos de Mistress Clairborne e do seu neto, mas sou neta de Catherine Landry, pensei.

- Verdade? - Sorriu, mostrando uma boca com dentes quase tão brancos como as teclas do piano. - O que é que pintas?

- A maioria dos meus quadros trata de coisas que fiz quando vivia no bayou.

Ele abanou a cabeça e tornou-se mais pensativo.

- Devias pintar o lago á hora do crepúsculo - sussurrou. - Antigamente era o meu local preferido... Quando o sol-poente muda a cor dos jacintos, passando de lilás para púrpura-escuro. -           Falava das cores como se elas representassem amigos mortos há muito perdidos.

- Então não foste sempre cego?

- Não - confessou baixinho. Após um breve momento, voltou-se para o piano. - É melhor que voltes para o chá da minha avó antes que notem a tua falta.

- Não chegaste a dizer-me o teu nome - sugeri.

- Louis - respondeu e de imediato começou a tocar o piano ainda mais fortemente, quase zangado.

Observei-o por mais um momento, voltando de seguida para o chá. Sentia-me muito melancólica, o que Abby percebeu imediatamente. Antes que me pudesse perguntar o que tinha acontecido, Mrs. Clairborue declarou que o chá havia chegado ao fim.

- Fico contente que as meninas tenham vindo ver-me - declarou, levantando-se em seguida. Apoiada sobre a bengala, continuou. - Tenho pena que já tenham de se ir embora, mas sei que vocês, raparigas novas, têm coisas para fazer. Estou certa de que vos convidarei a todas brevemente. Entretanto, trabalhem arduamente e lembrem-se que devem distinguir-se, comportando-se como verdadeiras raparigas de Greenwood.

Começou a sair, batendo com a bengala sobre o mármore, com o relógio parado bamboleando-se na corrente à volta do seu pescoço como um fardo pequeno mas pesado, que ela fora sentenciada a carregar até ao fim da sua vida.

- Vamos andando, meninas - disse Mrs. Penny. Parecia muito satisfeita. - Foi uma bela tarde, não foi?

- Quase tive um ataque cardíaco de tanta excitação - ironizou Gisselle, olhando de seguida para mim com um ar suspeito, curiosa em saber onde é que eu tinha estado e porque é que tinha mudado de disposição. Empurrei-a para fora, e Buck apareceu a subir apressadamente as escadas para a ajudar a atravessar o pórtico. Mais uma vez levantou-a da cadeira gentilmente, só que desta vez ela certificou-se de que os seus lábios aflorassem a face dele. Buck lançou um olhar rápido a mim e a Abby, e muito especialmente a Mrs. Penny, para ver se haviamos reparado no que Gisselle fizera. Ambas fingimos que não, e Mrs. Penny estava demasiado absorta para notar alguma coisa. Buck pareceu aliviado.

Quando já tínhamos entrado todos para o carro, Abby perguntou-me onde tinha estado durante tanto tempo.

- Conheci um rapaz muito interessante, mas também muito triste - disse.

Mrs. Penny engasgou-se.

- Foste ao lado oeste da casa?

- Sim. Porquê?

- Nunca deixo as meninas irem lá. Ai, meu Deus, se Mistress Clairborne descobre... Esqueci-me de vos dizer para não se aventurarem assim.

- Porque é que não nos é permitido ir à ala oeste? - perguntou Abby

- Essa é a área mais privada, onde ela e o seu neto realmente residem - retorquiu Mrs. Penny.

- Neto? - Gisselle olhou para mim. - Foi ele que tu conheceste?

- Sim.

- Quantos anos tem? Como é que é? Como se chama? - perguntou de seguida. - Porque é que não foi convidado para o chá? A não ser que seja tão feio como ela

- Ele disse-me que o seu nome era Louis. É cego, mas não o foi sempre. O que é que lhe aconteceu, Mistress Penny?

- Ai, meu Deus - disse, em vez de responder. - Ai, meu Deus, meu Deus.

- Oh, pare lá e conte-nos o que aconteceu - ordenou Gisselle.

- Ele ficou cego depois de os pais morrerem - respondeu rapidamente. - Ele não é somente cego, também sofre de melancolia. Normalmente não fala com ninguém. Tem estado assim desde a morte dos pais. Só tinha catorze anos nessa altura. Uma tragédia enorme.

- A filha de Mistress Clairborne era a mãe de Louis? perguntou Gisselle.

- Sim - respondeu Mrs. Penny rapidamente.

- O que é melancolia? - continuou Gisselle.

Mrs. Penny não respondeu.

-Uma doença ou quê?

- É uma depressão mental profúnda, uma tristeza que se apodera do teu corpo. Na realidade, as pessoas podem consumir-se de desgosto - disse Abby num tom de voz suave.

Gisselle olhou para ela por um momento.

- Queres dizer... morrer de desgosto?

- Sim.

- Isso é tão estúpido. E este rapaz alguma vez sai? - perguntou Gisselle a Mrs. Penny.

- Ele não é um rapaz, querida. Ele já deve ter á volta dos trinta anos. Mas, para responder á tua pergunta, ele não sai muito, não. Mistress Clairborne toma conta das suas necessidades e insiste que ele não deve ser perturbado. Mas, por favor -    implorou -, não vamos prolongar mais este assunto. Mistress Clairborne não gosta que se fale sobre isto.

- Se calhar é por causa dela que ele é tão triste - sugeriu Gisselle. - Ter de viver com ela.

Mrs. Penny suspirou.

- Pára, Gisselle - intervim. - Não a provoques.

- Não estou a provocá-la - insistiu, mas reparei no leve sorriso que lhe aflorava aos cantos da boca. - Ele contou-te como é que os pais morreram? - perguntou-me.

- Não, eu não sabia que eles tinham morrido. Nós não conversámos durante muito tempo.

Gisselle voltou a dirigir-se a Mrs. Penny.

 

- Como é que morreram os pais dele? - continuou. Quando Mrs. Penny não respondeu, ela exigiu uma resposta. - Não pode contar-nos como é que eles morreram?

- Não é um assunto adequado para nós discutirmos - proferiu Mrs. Penny, a sua cara firme. Era a primeira vez que a víamos tão inflexível. Era certo que a resposta não viria dos seus lábios.

- Então porque é que começou a contar-nos a história? - provocou Gisselle. - Não é justo começar uma coisa e depois não a acabar.

- Eu não comecei nada. Vocês insistiram em saber porque é que ele era cego. Ai, meu Deus. Esta é a primeira vez que uma das raparigas se passeia pela parte oeste.

- Ele não pareceu importar-se assim tanto - disse eu.

- Isso é notável - afirmou Mrs. Penny. - Ele nunca tinha falado com uma das raparigas de Greenwood.

-           Toca piano lindamente.

- Façam o que quiserem, mas, por favor, não comecem a falar dele... a fazer mexericos com as outras raparigas. Por favor - acrescentou.

- Eu não faço mexericos, Mistress Penny. Não faria nada que lhe causasse problemas - declarei.

- Bom. Não vamos falar mais sobre isto. Por favor. Gostaram dos bolinhos?

- Oh, que chatice - interrompeu Gisselle. - Esqueci-me de trazer alguns para a Chuhs. - Olhou para mim durante um bocado, depois olhou para Abby e acenou. - Quero falar com vocês as duas mal estejamos sozinhas - ordenou. Depois fixou o olhar em Buck durante todo o caminho de regresso ao dormitório.

Assim que Mrs. Penny nos deixou lá dentro, Gisselle virou-se na sua cadeira e exigiu saber como é que tínhamos conhecido Buck. Contei-lhe acerca do nosso passeio até à casa dos barcos na primeira noite.

-           Ele vive lá?

- Pelos vistos.

- E é tudo? Isso foi a única vez que o viram? - perguntou, obviamente desapontada.

- E uma vez a cortar a relva - acrescentei. Gisselle ficou a pensar durante um bocado.

- Ele é giro, mas aqui não passa de um empregado. No entanto - disse pensativa -, neste momento ele parece ser o único divertimento por estas bandas.

-           Gisselle! Afasta-te dele e não lhe causes problemas.

- Sim, querida irmã. Mas agora conta-nos acerca do neto

cego e o que é que aconteceu na realidade entre vocês os dois, ou então serei eu a espalhar o mexerico e a causar problemas a Mistress Penny - ameaçou.

Suspirei e abanei a cabeça.

- És mesmo impossível, Gisselle. Já te contei tudo. Ouvi a música, espreitei para dentro da sala e falei com ele durante poucos minutos. É tudo.

-           Ele contou-te como é que os pais morreram?

-Não.

- Bem, e o que é que tu achas que aconteceu? - perguntou.

- Não sei, mas deve ter sido algo horrível.

Abby concordou.

 

- Bem - afirmou Gisselle, sorrindo de orelha a orelha -, pelo menos agora temos algo para descobrir e algo para deter Mistress Penny se ela nos ameaçar com os ditos deméritos.

-           Pára, Gisselle. E não comeces a ter ideias com o teu clubinho de fãs - avisei, mas era a mesma coisa que falar sozinha. Mal as outras raparigas nos viram, Gisselle estava pronta para contar tudo, desde Buck ao neto de Mrs. Clairborne.

Sozinhas de volta ao nosso quarto, depois de termos despido as nossas roupas bonitas e posto calças de ganga e camisolas, contei a Abby mais coisas acerca de Louis. Estávamos deitadas de barriga para baixo, lado a lado na minha cama.

-           Ele não tem as raparigas de Greenwood em muita consideração - expliquei. - Ele acha que Mistress Ironwood e a sua avó nos usam a todas como fantoches.

-           Se calhar não está tão longe da verdade. Ouviste o discurrso de Mistress Clairborne acerca das tradições que temos de manter e de como devemos comportar-nos, não?

-           Reparaste que todos os relógios estavam parados, mesmo o que ela tinha à volta do pescoço?

-           Não - respondeu Abby. - Estavam?

-           Todos à mesma hora e ao mesmo minuto: duas horas e cinco.

- Que estranho.

- Estive para perguntar a Mistress Penny acerca disso, mas como ela ficou toda agitada devido ao meu pequeno passeio e a ter conhecido o Louis, decidi não pôr mais pimenta no gumbo.

Abby riu-se.

-Que foi?

-           De vez em quando, o teu passado cajun aparece sorrateiramente.

- Eu sei. O Louis conseguiu detectar a minha pronúncia e percebeu que eu era do hayou. Ficou surpreendido que me tivesse sido permitido inscrever-me, tendo em conta que eu não sou um puro-sangue.

- O que é que achas que me acontecia a mim se eles descobrissem a verdade sobre o meu passado? - perguntou Abby.

- E que verdade é essa? - exigiu saber Gisselle.

Voltámo-nos ambas e engasgámo-nos ao ver que ela estava à entrada do nosso quarto. Estávamos tão envolvidas na nossa conversa que não a tínhamos ouvido abrir a porta; ou melhor, conhecendo-a como a conhecia, provavelmente abrira a porta tão devagarinho de forma a que nos pudesse espiar. Rodou a cadeira para dentro do quarto e sentou-se na minha cama.

- Estão a ter um téte-â-téte, meninas? - disse em tom de provocação.

- Devias bater antes de entrar, Gisselle. Estou certa de que também gostas que respeitem a tua privacidade.

- Pensei que gostavas que eu aparecesse. Acontece que descobri a história do pobre Louis - disse, sorrindo vitoriosamente. Aliás, lembrava-me mais o sorriso dos ratos-almiscarados que o grandpêre Jack apanhava.

-           E como é que descobriste isso?

-           A Jakie sabia. Parece que afinal não é assim um segredo tão grande como Mistress Penny deu a entender. Há esqueletos no armário de Mistress Clairborne - cantou alegremente.

-           Que tipo de esqueletos? - perguntou Abby.

 

-           Primeiro, qual é o teu segredo?

-           Segredo?

-           A coisa que tu não queres que Mistress Ironwood descubra sobre ti. Vá lá, eu ouvi o que disseste.

-           Não é nada - retorquiu Abby, o seu rosto tornando-se carmesim.

-           Se não é nada, conta ou então eu... eu invento qualquer coisa.

- Gisselle!

- Bem, é uma troca justa. Eu conto-vos o que descobri, mas vocês também têm de me contar alguma coisa. Estava mesmo a ver, partilhas segredos com ela, mas não com a tua irmã gémea. Aposto que também lhe contaste coisas acerca de nós.

- Não contei. - Olhei para Abby, cujo rosto murchava de tristeza, tanto por mim como por ela própria. - Está bem, nós contamos - admiti. Os olhos de Abby arregalaram-se. - A Gisselle sabe guardar um segredo, não sabes?

-           Claro. Sei mais segredos do que tu alguma vez saberás, especialmente acerca do pessoal da nossa antiga escola. Até sei segredos sobre o Beau - acrescentou, contente.

Pensei durante um momento e depois deixei escapar algo que sabia que Gisselle iria acreditar.

-           A Abby foi uma vez suspensa por ter sido apanhada na cave com um rapaz, numa das suas antigas escolas - afirmei. A expressão de surpresa de Abby resultou perfeitamente, pois deu a entender que eu a tinha traído. Gisselle passeou o olhar de uma para a outra, céptica, e depois desatou a rir.

-           Grande coisa - disse. - A não ser... - acrescentou - que tenhas sido apanhada nua. Foi?

Abby olhou para mim por um momento e depois abanou a cabeça.

-           Não, não completamente.

- Não completamente? Então quanto? Tiraste a blusa?

Abby acenou afirmativamente.

- O soutien?

Abby acenou outra vez.

Gisselle parecia impressionada.

- E que mais?

- E tudo - respondeu Abby rapidamente.

- Bem, bem, afinal a menina boazinha não é tão pura como a pintam.

- Gisselle, lembra-te, prometeste.

- Oh, quem se importa? Isso não é suficiente para interessar alguém - asseverou. Pensou por um bocado e depois sorriu - Agora suponho que querem que eu vos diga a razão por que é que o Louis é cego e o que é que aconteceu aos pais dele.

- Disseste que contavas - retorqui.

Hesitou um momento, gozando o poder que detinha sobre nós.

- Talvez mais tarde, se me apetecer - disse, virando a cadeira de rodas e saindo do quarto.

- Gisselle! - gritou Abby.

- Oh, deixa-a ir, Abby - acalmei-a. - Ela só vai provocar-nos cada vez mais.

 

Todavia, não consegui deixar de pensar sobre o que teria transformado aquele belo homem numa alma cega e melancólica, que revelava os seus sentimentos e pensamentos somente através dos dedos nas teclas do piano.

 

UM CONVITE INESPERADO

Apesar de a minha curiosidade ser suficiente para matar uma dúzia de gatos, não dei a Gisselle a satisfação de lhe implorar que nos contasse o que tinha descoberto, e claro que não fui ter com Jackie. Mas, como as coisas se proporcionaram, não me foi preciso pedir nada ao clube de fãs.

Logo depois do pequeno-almoço na manhã seguinte, fui chamada ao telefone para falar com a minha professora de Educação Visual, Miss Stevens.

- Estava de saída para ir fazer algum trabalho e lembrei-me de ti - afirmou. - Conheço um sítio perto da auto-estrada onde temos uma vista maravilhosa do rio. Queres vir?

-Oh, claro, gostava muito.

- óptimo. Está um pouco nebulado, mas o homem da meteorologia garantiu-nos que o céu vai clarear rapidamente e a temperatura subir mais quatro graus. Só tenho vestidas umas calças de ganga e uma camisola - informou-me.

- Também eu.

- Então, estás pronta. Passo por aí daqui a dez minutos para te apanhar. Não te preocupes com o material: tenho tudo de que precisamos no carro.

- Obrigada.

Estava tão entusiasmada com a perspectiva de voltar a pintar e a desenhar cenas da natureza que quase atirei Vicki ao chão no corredor. Trazia os braços carregados de livros que tinha requisitado na biblioteca.

- Para onde é que vais tão depressa? - perguntou-me.

-Pintar... com a minha professora... Desculpa.

Entrei a correr no quarto e contei a Abby o convite que Miss Stevens me fizera. Ela estava enroscada por cima da sua cama a ler o trabalho de Estudos Sociais.

- Isso é óptimo - exclamou. Comecei a tirar os sapatos e a calçar um par de ténis. - Olha, nunca tinha reparado nesse fio que tens à volta do tornozelo - notou Abby. - O que é?

- Uma moeda - retorqui, explicando-lhe porque é que Nina ma tinha dado. - Sei que achas que parece um bocado parvo, mas...

- Não - interrompeu-me, com uma expressão misteriosa -, não acho. O meu pai pratica secretamente vodu. Lembra-te que a minha avó era do Haiti. Conheço alguns rituais... - acrescentou, levantando-se e dirigindo-se ao armário. - Eu tenho isto. - Retirou uma peça de vestuário da mala de viagem e começou a desdobrá-la à minha frente. Era uma saia azul-escura. primeiro pareceu-me que não tinha nada de especial, até que Abby começou a passar a saia através dos dedos e eu vi, cosido na bainha da saia, um pequeno ninho de crina de cavalo trespassado por duas raízes cruzadas.

- O que é isso? - quis saber.

- É para afastar o diabo. Estou a guardá-la para uma ocasião especial. Vesti-la-ei quando sentir que me encontro de alguma maneira em perigo - contou-me.

- Nunca tinha visto nada assim. E pensava eu que a Nina me tinha mostrado tudo o que há em vodu!

 

- Oh, não - contestou Abby, sorrindo. - Uma morna está sempre a inventar coisas novas - riu-se. - Eu estava a esconder isto de ti porque não queria que tu pensasses que eu era estranha, e, olha-me para ti, usas uma moeda no tornozelo para dar boa sorte.

Rimo-nos e abraçámo-nos no mesmo momento em que Samantha, Jackie e Kate vinham a passar pela nossa porta, empurrando Gisselle.

- Olhem para elas! - gritou a minha irmã gémea, apontando. - Isto é o que acontece quando não há rapazes na escola.

O riso delas fez com que as nossas faces enrubescessem de raiva.

- A tua irmã! - encolerizou-se Abby. - Um dia destes ainda a atiro mais a maldita cadeira de rodas por um monte abaixo.

- Põe-te na bicha - avisei-a e desatámos a rir outra vez. Depois saí a correr para esperar por Miss Stevens.

Ela apareceu alguns minutos depois, conduzindo um jipe castanho sem capota, e depressa entrei.

- Estou muito contente que tenhas vindo - disse.

- Estou muito contente que me tenha convidado - respondi.

Tinha o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo e as mangas da camisola puxadas para cima até aos cotovelos. A camisola parecia testemunhar muitas horas de pintura, pois tinha riscos e traços de todas as cores da paleta. Com as suas calças de ganga usadas e os ténis, não parecia ser mais velha do que eu um ano ou dois.

- Como é que te sentes a viver na Casa Louella Clairborne? Mistress Penny é querida, não é?

- Sim. Está sempre alegre. - Depois de uma pausa acrescentei: - Troquei de companheira de quarto.

- Sim?

- Estava a dividir o quarto com a minha irmã gémea, a Gisselle.

- Vocês não se dão bem? - perguntou, abrindo-se depois num sorriso. - Se achas que estou a perguntar coisas demasiado pessoais...

- Oh, não - respondi, e estava a ser sincera. Lembrou-me de uma vez que a grandmère Catherine me disse que a primeira impressão que se tem de uma pessoa é normalmente a mais verdadeira, pois o coração é a primeira coisa a reagir. Logo desde o início, sentia-me confortável com Miss Stevens, e sabia que podia confiar nela, nem que fosse por ambas partilharmos o amor pela pintura.

- Não, não me dou bem com ela - admiti. - E não é porque não queira ou porque não tente. Se calhar, se tivéssemos crescido juntas, as coisas seriam diferentes.      ....... - O sorriso de Miss Stevens não conseguia disfarçar a sua estranheza.

- Conhecemo-nos há pouco mais de um ano - comecei a contar. Dei por mim a relatar-lhe toda a minha história. Ainda estava a falar quando chegámos ao local que tinha vista para o rio. Ela manteve-se calada o tempo todo, limitando-se a ouvir-me com atenção.

- E por isso concordei em vir para Grennwood com a Gisselle - concluí.

 

- Notável - disse. - E eu que costumava pensar que a minha vida era complicada por ter sido criada por freiras num orfanato, o St. Mary's, em Biloxi.

- A sério? O que é que aconteceu aos seus pais?

- Nunca soube ao certo. Tudo o que as freiras me disseram foi que a minha mãe me entregou aos cuidados delas pouco depois de eu ter nascido. Já tentei descobrir mais coisas acerca do meu passado, mas elas eram inflexíveis no que diz respeito a guardar segredos.

Ajudei-a a montar os cavaletes e a tirar do carro o papel e o material necessário para desenhar. O Céu tinha começado a clarear, tal como o boletim meteorológico tinha prometido, e as espessas camadas de nuvens iam-se separando, revelando por detrás um céu azul-claro. Ali ao pé do rio, a brisa era mais forte. Atrás de nós, os ramos dos carvalhos vermelhos e das nogueiras estremeciam e oscilavam, fazendo com que um bando de pardais chilreantes voasse para as margens do rio, seguindo para uma parte mais calma das plantações de algodão.

Uma barca a petróleo e um cargueiro moviam-se rapidamente rio abaixo enquanto, mais ao longe, uma réplica de um barco a vapor, trazendo barulhentos turistas, abria preguiçosamente caminho em direcção a St. Franeisville.

- Acha que alguma vez vai descobrir quem são os seus pais? - indaguei.

- Não sei. Aceitei mais ou menos o facto de que não. - Sorriu. - Não há problema. Tenho uma família ampliada: todos os outros órfãos que conheci e algumas freiras. - Olhou em volta. - Isto é bonito, não é?

- Sim.

- O que é que te chama a atenção?

Observei por uns instantes o rio, os barcos, a margem. Corrente abaixo pude ver que o fumo em espiral que saía das chaminés das refinarias de petróleo era apanhado pelo vento, desaparecendo em seguida de encontro às nuvens; mas foram dois pelicanos castanhos, que se balouçavam à tona de água, que chamaram a minha atenção. Disse-lhe e ela riu-se.

- És como eu. Gostas de pôr animais nas tuas paisagens. Bem, vamos lá começar. Vamos trabalhar a perspectiva e ver se conseguimos captar a sensação de movimentos das águas.

Começámos a desenhar, mas a conversa não parou enquanto trabalhámos.

- Como é que foi o chá com Mistress Clairborne? - quis saber Miss Stevens. Descrevi toda a situação e como tinha ficado impressionada com a casa. Depois falei-lhe acerca de Louis.

- Chegaste mesmo a falar com ele? - perguntou, fazendo uma pausa no trabalho.

-Sim.

- Já ouvi imensas vezes os outros professores falar de Mistress Clairborne e do seu neto, mas há professores que estão cá há anos e nunca puseram a vista em cima do jovem. Como é que ele é?

Descrevi-o e também a forma como tocava piano.

- Depois de lhe ter dito que era pintora, ele sugeriu-me que fosse lá abaixo ao lago durante o pôr do Sol e tentasse captar essa imagem. Ele não foi sempre cego, e tem memórias vivas desse local - contei-lhe.

- Sim. É uma história muito trágica.

- Não a conheço.

 

- Não? Sim, posso perceber porquê. É uma daquelas histórias de que não se fala, um daqueles segredos que todos sabem mas fingem que não - explicou. - Os veteranos daqui já me deram a entender mais do que uma vez para ter cuidado e não ser apanhada a coscuvilhar acerca dos Clairborne.

Acenei em sinal afirmativo.

- Mas a ti posso contar a história - disse-me com um sorriso. - Mesmo que pareça coscuvilhice. Nós somos artistas simpáticas e são-nos permitidas pequenas indiscrições.

Ficou séria durante um momento, enquanto olhava para o rio. Depois iniciou a história.

- Parece que a filha de Mistress Clairborne, a mãe de Louis, tinha um caso com um rapaz mais novo - parou e dirigiu-me o olhar -, um rapaz muito mais novo. Até que o marido dela descobriu e ficou de tal maneira emocionalmente magoado e envergonhado que cometeu o que se chama assassínio-suicídio. Asfixiou a mulher até à morte, usando para isso uma almofada do quarto, e depois deu um tiro na cabeça. O pobre Louis, não se sabe bem como, presenciou toda a cena, e o efeito traumático fez com que ficasse em coma, da qual saiu cego.

"Pelo que me contaram, foi feito um enorme esforço para encobrir toda a história, mas com o tempo a verdade tornou-se pública. Até hoje, Mistress Clairborne recusa-se a aceitar a verdade dos factos, preferindo antes acreditar que a sua filha morreu por falha cardíaca e que o genro, incapaz de aceitar a sua morte, se suicidou.

Miss Steven fez uma longa pausa e depois abriu muito os olhos quando me observou.

- Depois da reunião de orientação para os novos membros do corpo docente - prosseguiu ela -, fomos todos convidados para um chá em casa de Mistress Clairborne. Quando estiveste lá, reparaste em algo de estranho em todos os relógios da casa?

- Sim. Estão todos parados nas duas e cinco.

- Foi a essa hora que supostamente morreu a filha de Mistress Clairborne. Quando perguntei a um dos professores mais velhos acerca disso, ele contou-me que Mistress Clairborne acha que o tempo parou para ela e faz com que isso se torne evidente na casa, como se fosse um símbolo. É realmente uma história muito triste.

- Então não há nada de fisicamente errado com o Louis, os olhos dele não têm nada?

- Pelo que me contaram, não. Ele raramente emerge daquele lado escuro da mansão. Ao longo dos anos tem sido lá tratado e instruído e, pelo que sei, só existe meia dúzia de pessoas com quem ele manteve uma espécie de conversa. Fizeste história - afirmou, sorrindo calorosamente. - Mas, mesmo conhecendo-te há pouco tempo, não me é difícil compreender que uma pessoa relutante em conversar falasse contigo.

- Obrigada - respondi, corando.

- Todos nós temos problemas de comunicação com os outros. Eu sei que tenho. Prefiro comunicar através do meu trabalho artístico. Sou especialmente acanhada no que diz respeito a homens - confessou. - Talvez devido á maneira como fui educada. - Riu-se. - Deve ser por isso que me sinto tão confortável em Greenwood e porque sempre quis ensinar numa escola só de raparigas.

 

Voltou a sorrir para mim.

- Pronto. Já trocámos segredos sobre nós próprias, exactamente como devem fazer verdadeiras companheiras de armas. Na realidade - continuou -, sempre quis ter uma irmã, alguém em quem eu pudesse confiar e que, por sua vez, confiasse em mim. A tua irmã gémea não sabe o que está a perder, tratando-te da maneira como te trata. Tenho inveja dela.

- A Gisselle nunca acreditaria que alguém pudesse ter inveja dela. Seja como for, ela não quer que as pessoas tenham inveja dela, mas sim pena.

- Coitada. Deve ser devastador ter uma deficiência tão severa, depois de ter passado a vida a ser activa. Suponho que terás de a suportar. Mas se alguma vez houver alguma coisa em que eu possa ser útil...

- Muito obrigada, Miss Stevens.

- Por favor, Ruby. Quando não estivermos nas aulas, podes chamar-me Rachel. Gostaria mesmo de sentir que somos mais amigas do que simplesmente professora e aluna. Okay?

- Okay - respondi surpreendida, mas não desagradada.

- Já viste? Estivemos a falar durante tanto tempo que pouco oú nada trabalhámos. Bem, vamos lá. Vamos tentar manter a boca fechada e pôr os dedos a trabalhar - incitou. O seu riso suave e alegre despertou a atenção dos pelicanos, que olharam para nós com uma expressão quase de aborrecimento. No fim de contas, eles só estavam ali porque queriam pescar para se alimentarem.

- "Os animais sentem quando tu os respeitas verdadeiramente", - disse-me um dia a grandmère Catherine. E pena que as pessoas não...

Trabalhámos durante mais ou menos duas horas e meia, depois das quais Miss Stevens achou que devíamos ir almoçar. Levou-me a um pequeno restaurante nos arredores da cidade. Já antes de entrarmos, podíamos sentir o aroma delicioso do caranguejo, dos camarões salteados, do salame, das ostras fritas, das fatias de tomate e das cebolas que compunham uma sanduíche caseira. Passámos um tempo maravilhoso a conversar, comparando as coisas de que gostávamos e não gostávamos em relação a estilos e modas, comida e livros. Senti-me realmente como se estivesse a falar com uma irmã mais velha.

Quando ela me trouxe de volta ao dormitório, estávamos já a meio da tarde. Guardou o meu trabalho, prometendo levá-lo para a sala de Educação Visual para que eu o acabasse na escola.

- Foi divertido - disse-me. - Se te apetecer, havemos de repetir.

- Claro, mas não posso deixar que me pague o almoço todas as vezes.

Ela riu.

- Tem mesmo de ser, porque, se pagasses tu, podia parecer um suborno - disse em provocação.

Despedi-me e apressei-me a entrar no dormitório, onde

encontrei Mrs. Penny com um ar preocupado à minha espera. O seu penteado estava quase desfeito e mordia insistentemente o lábio.

- Ai, graças a Deus que voltaste! Graças a Deus!

- O que é que aconteceu, Mistress Penny? - perguntei rapidamente.

 

Ela respirou profundamente, pressionando a palma da mão direita de encontro ao peito. Em seguida sentou-se no sofá.

- Mistress Clairborne telefonou. A própria. Falei com ela.

Mrs. Penny falava de uma forma tão exaltada como se tivesse recebido um telefonema do presidente dos Estados Unidos.

- Ela pediu para falar contigo, por isso Fui á tua procura, e a tua colega de quarto. a Abby. disse-me que tinhas ido para um sítio ao pé do rio pintar com a tua professora de Educação Visual. Não pode ser! Ela já devia saber que não pode ser!

- O que é que está a dizer? O que é que não pode ser? - perguntei, sorrindo, inquisidoramente. - Sobre o que é que está a falar, Mistress Penny?

- Aos fins-de-semana, se pretendes sair da propriedade do colégio, precisas de uma autorização. Precisas de ter um documento no teu processo.

- Mas nós só fomos lá abaixo ao rio para pintar - expliquei.

- Não interessa. Ela já devia saber. Tive de dizer a Mistress Clairborne que não estavas cá. Ela ficou muito decepcionada.

- O que é que ela queria?

- Aconteceu uma coisa espantosa -exclamou Mrs. Penny, inclinando-se para mim, mas sussurrando em voz alta. Olhou à volta para ter a certeza de que nenhuma das raparigas nos podia ouvir.

- Espantosa?

- O neto de Mistress Clairborne... O Louis. .. Ele pediu que te convidassem a jantar na mansão... hoje à noite!

- Oh! - respondi, surpreendida.

- Nunca nenhuma rapariga de Greenwood foi convidada a jantar na Mansão Clairborne - afirmou Mrs. Penny. Eu limitei-me a olhar para ela. A minha falta de entusiasmo chocou-a.

-           Não percebes? Mistress Clairborne telefonou para te convidar a jantar com eles. Vêm buscar-te às seis horas e vinte. Ojantar é às seis horas e meia em ponto.

- Disse-lhe que eu ia?

- Claro. Como podes pensar em não ir? - inquiriu. Estudou-me por um momento, começando a tremer nervosamente.

-           Vais, não vais?

- Sinto-me um pouco nervosa - confessei.

- Oh, isso é mais que natural, querida - afirmou, aliviada. - Que honra! E ainda por cima uma das minhas meninas! -     exclamou, batendo com as mãos. Mas depressa o seu sorriso se evaporou. - Mas tenho de repreender a tua professora de Educação Visual. Ela já devia saber.

- Não, não vai repreendê-la. Se o fizer, não vou ao jantar de Mistress Clairborne - ameacei.

-O quê?

- hei-de falar com ela sobre esse regulamento e tratarei que o meu pai forneça a autorização necessária, mas não quero que Miss Stevens tenha problemas por minha causa - disse.

-Bem... Eu... E se Mistress Tronwood descobre...

- Ela não vai descobrir.

 

....... então não te esqueças de dizer à tua professora e de arranjar a tal autorização - afirmou. Parou por um momento, voltando a sorrir alegremente. - Agora vai arranjar uma coisa bonita para vestir. Eu vou confirmar que o carro está cá às seis e vinte. Parabéns, querida. Uma das minhas meninas...+  as minhas meninas! murmurou para si própria á medida que se afastava.

Inspirei profundamente. Não conseguia deixar de tremer. Que disparate, pensei. É só um jantar. Não era como se estivesse a fazer um teste ou uma audição para qualquer coisa.

Porém, agora que eu conhecia a terrível história dos Clairborne e o motivo que levara á cegueira de Louis, era inevitável sentir um nó na garganta. Porque tinha eu seguido a melodia daquela triste e doce música e tinha entrado naquela sala?

Claro que, mesmo que eu quisesse, era impossível manter secreto o convite que tinham feito. Mrs. Penny tinha decidido fazer grande alarde acerca de tão distinta honra, e num piscar de olhos todas as raparigas do dormitório sabiam do telefonema de Mrs. Clairborne. Gisselle estava aborrecida porque pensava que eu já sabia do convite desde a véspera, no chá, e tinha escondido dela de propósito.

- É sempre através de estranhos que sei o que se passa com a minha irmã - ralhou, à medida que dirigia a cadeira de rodas para dentro do nosso quarto. Como sempre, Samantha estava a seu lado, á disposição para o que desse e viesse.

- Acabei de chegar. Estive todo o dia a pintar com Míss Stevens junto ao rio. Por isso, também acabei de saber, Gisselle.

- A pintar todo o dia com Miss Stevens... Que bonito!

Olhou para os vestidos que eu tinha posto em cima da cama para que eu e Abby escolhêssemos o mais adequado.

- Até parece que tinhas planeado. Aposto que já sabias disto.

- Não sabia. Acabei mesmo agora de tirar as minhas roupas, não é verdade, Abby?

- Sim - respondeu esta, olhando para Gisselle, que ainda estava irritada.

- Então porque é que ela só te convidou a ti? - exigiu saber Gisselle.

- Não sei.

- É porque o neto dela te quer lá, não é?

Gisselle era de compreensão rápida. Ás vezes era impossível esconder coisas dela. Tantas vezes vagueava a sua mente pelos caminhos tortuosos da fraude e das intrigas, que conhecia todas as saídas melhor que um espião profissional.

- Suponho que sim - admiti.

- Ele nem sequer consegue ver-te e quer-te lá de volta? O que é que vocês os dois fizeram?

- Gisselle! -interrompi-a, olhando de Abby a Samantha e depois de volta para Gisselle. - Não fizemos nada. Falei

com ele durante alguns minutos, ouvi-o tocar e depois saí. Já estou suficientemente nervosa com isto... Portanto, não tornes as coisas ainda mais dificeis. A verdade é que nem sequer me apetece ir, mas Mistress Penny fez com que isto se tornasse o acontecimento do século.

-           Eu gosto do vestido azul-claro - sugeriu Abby -, É elegante mas não demasiado formal.

 

-           Oh, é simplesmente perfeito para um jantarzinho com um cego - ironizou Gisselle, olhando-me de alto a baixo. E, enquanto tu vais estar lá em cima a comer um banquete, nós somos obrigadas a ficar cá em baixo a comer aquela espécie de ração pobre do dormitório.

-           Nós não comemos ração podre - enfureceu-se Abby.

-           Para ti não é, já estás habituada - retorquiu Gisselle. - Empurra-me daqui para fora, Samantha. O ar aqui é demasiado fino para as nossas pobres narinas.

Abby ficou branca como cal e vi que se preparava para mandar uma resposta a Gisselle; por isso, olhei para ela e abanei a cabeça a desaconselhá-la.

-           Não vale a pena irritares-te, Abby - sugeri. - É isso que ela quer.

-           Tens razão - respondeu, e voltámos à nossa tarefa de escolher o meu guarda-roupa.

O vestido azul era elegante. Tinha um delicioso decote ligeiramente revelador, mas decidimos que usando o fio de ouro e o medalhão continuava a parecer discreto. Abby emprestou-me um par de brincos de folha de ouro e uma pulseira, também em ouro. Decidimos que eu devia escovar bem o cabelo e apanhá-lo em cima. Cobri levemente os lábios com um traço de bâton, borrifei no meu corpo uma colónia de jasmim que Mrs. Penny me emprestara, saindo finalmente para esperar pelo carro que viria buscar-me. Mrs. Penny mirou-me de cima a baixo por uma última vez e proferiu a sua aprovação em relação ao meu aspecto.

-           Isto é histórico - continuou. - Fixa cada pormenor na tua mente de forma a que não te esqueças de nada. Mal posso esperar para que me contes tudo. Fico aqui à tua espera, está bem?

-           Sim, Mistress Penny - respondi.

Abby sorriu-me.

-           Diverte-te - desejou.

-           Obrigada, mas estou tão nervosa como uma lebre.

-           Não tens de te preocupar - assegurou Abby, piscando-me o olho. - Tens sempre o teu amuleto de boa sorte.

Dei uma gargalhada. Tinha escondido a moeda no sapato, mas contudo levava-a.

-           A carrinha já chegou - anunciou Mrs. Penny. Despachei-me a sair do dormitório. Buck estava à espera junto á carrinha, segurando a porta para mim. Quando se virou, os seus olhos arregalaram-se e reluziram com um olhar de apreciação, mas nada disse. Entrei e ele depressa deu a volta para se sentar no lugar do condutor. Mrs. Penny manteve-se nas escadas e acenou à medida que nos afastávamos. Quando já estávamos longe, Buck virou-se para mim.

-           Está muito bonita - afirmou.

-           Muito obrigada.

-           Só estou cá há três anos - continuou -, mas esta é a primeira vez que levo uma rapariga de Greenwood à mansão para um jantar. É da família dos Clairborne?

-           Não - respondi, rindo.

Quando chegámos à mansão, ele apressou-se a abrir-me a porta.

-           Muito obrigada - agradeci.

-           Divirta-se.

Sorri-lhe e despachei-me a subir as escadas. A porta abriu-se à minha frente antes que lá chegasse e Otis acenou.

 

-           Boa noite, mademoiselle - cumprimentou, fazendo uma vénia mais baixa do que o costume.

-           Boa noite.

Entrei e ele fechou a porta.

- Por aqui, mademoiselle.

Acompanhou-me pelo corredor abaixo e depois para a direita através de um outro vestíbulo, que nos levou ainda mais para dentro da ala oeste, para a sala de jantar. Ao contrário das outras partes da mansão, a ala oeste era sombria. As paredes tinham um papel escuro, as janelas, cortinas escuras, os soalhos, tapetes escuros. Os quadros pendurados representavam os mais lúgubres locais no rio e no bayou, pântanos cobertos de líquenes fantasmagóricos, apanhados a balouçar na brisa do crepúsculo, e o Míssíssípi num dos seus pontos mais largos, com a sua água cor de ferrugem, os barcos e os navios a projectar sombras de si próprios. Qualquer quadro que eu visse retratava um dos ascendentes austeros, que parecia fixarem-me com um olhar de condenação ou de censura.

A comprida mesa de carvalho tinha sido posta para três pessoas numa das extremidades. Dois candelabros de prata sustinham brancas e compridas velas acesas, as suas pequenas chamas a tremelicar. Por cima da mesa, o lustre estava meio aceso.

Otis dirigiu-se à cadeira à minha direita e puxou-a para fora, indicando que era ali que eu devia sentar-me.

- Muito obrigada - agradeci.

- Madame Clairborne e Monsieur Clairborne estarão aqui em breve - informou-me, e depois deixou-me sozinha, sentada naquela sala solene. Durante alguns momentos, reinou um silêncio de morte, até que ouvi o já familiar baque... baque... baque... da bengala de Mrs. Clairborne a soar cada vez mais perto, à medida que ela descia pelo corredor abaixo e finalmente virava para a sala de jantar.

Usava um vestido preto, cuja bainha quase lhe chegava aos tornozelos. A escuridão do seu traje tornava o relógio parado na corrente ainda mais visível, repousado no rego entre o peito. Não havia qualquer diferença no seu penteado, mas tinha substituído os brincos de diamante por uns de pérola, que condiziam com uma pulseira também de pérola. Conservava os dedos carregados de anéis.

- Boa noite - cumprimentou-me, abrindo caminho para ocupar a cadeira ao topo da mesa.

- Boa noite. - Depois de Otis lhe ter puxado a cadeira e de ela se ter sentado, acrescentei: - Muito obrigada por me ter convidado para jantar.

- Eu não convidei - respondeu rapidamente. àquela distância, pareceu-me que o seu nariz era mais afilado. A sua pele pálida era tão fina que quase parecia transparente. Pude ver as pequenas veias azuis nas suas faces e nas têmporas, e a penugem por cima do lábio era mais escura, mais distinta. Tresandava a jasmim, sobrepondo-se o seu aroma ao meu.

- Não percebo - atrevi-me.

- Foi o meu neto que insistiu. Como regra, não convido alunas da escola para jantar. Há simplesmente demasiadas que o merecem - explicou. - Eu não tinha noção que tinhas passeado pela casa e conhecido o Louis quando estiveste cá para o chá.

- Ouvi o som do piano quando fui à casa de banho e...

 

- Mistress Penny devia ter deixado suficientemente claro

que eu...

- Avó, não estás a portar-te mal, pois não?                   - Ouvimos a

voz, e virei-me, dando com Louis em pé junto à porta. Ao contrário de Mrs. Clairborne, ele não usava uma bengala para guiá-lo através dos corredores e das salas e, pelo que pude entender, ninguém o tinha ajudado a chegar ali.

Estava de certa forma atraente com o seu casaco de jantar, gravata preta e calças largas, com o cabelo cuidadosamente puxado para trás. Mrs. Clairborne.

caminhou com precisão para o seu lugar á mesa.

- Não fiques impressionada, Ruby - explicou, enquanto aguardava que Otis puxasse a sua cadeira. - Há tanto tempo que percorro os mesmos caminhos nesta casa que o soalho já está gasto e já todos sabem que não se pode mudar nada em nenhuma das salas.

- Essa é a razão por que não permito visitas nesta área da casa - acrescentou rapidamente Mrs. Clairborne. - Se alguém muda uma cadeira ou desloca uma mesa...

- Mas porque é que alguém, especialmente a Ruby, faria isso, avó? - perguntou Louis. Mrs. Clairborne suspirou. Acenou a Otis, que começou a servir-nos o jantar, deitando água no copo.

- Hoje não vamos beber vinho? - inquiriu Louis.

- Eu não sirvo vinho às raparigas de Greenwood - retorquiu com firmeza Mrs. Clairborne.

Louis manteve o sorriso.

- Pelo menos temos o nosso jantar especial, não temos, avó?

- Sim, infelizmente - respondeu, virando-se para mim. - O Louis insistiu também que preparássemos uma refeição cajun.

- Deixa-me ser eu a contar-lhe - interrompeu avidamente Louis. - Vamos começar com um caldo de camarão e depois segue-se gumbo de pato. Mas, para sobremesa, pedi um creme de laranja bnulée, uma especialidade de Nova Orleães.

- Parece-me maravilhoso - afirmei.

Mrs. Clairborne suspirou. Depois acenou relutantemente e a refeição começou. Mrs. Clairborne falou muito pouco durante todo o jantar. Louis queria saber tudo sobre os meus quadros e pediu-me que descrevesse os que tinha vendido através da galeria no Bairro Francês. Nunca estivera no bayou e queria conhecer tudo acerca da vida nos pântanos. Numerosas vezes durante a nossa conversa, Mrs. Clairborne deu um estalido com a língua e olhou-me com censura, especialmente quando descrevi a grandmère Catherine e o seu trabalho como traiteur.

- Estou aqui a pensar se uma traiteur poderia ajudar-me a recuperar a visão - disse Louis para si próprio em voz alta, comentário que imediatamente desencadeou uma reacção de Mrs. Clairborne,

- Não hei-de deixar entrar esses charlatões nesta casa. A província está invadida por falsos curandeiros de fé e artistas da burla. Infelizmente, o rio tem atraído essa espécie de pessoas desde que chegaram os colonizadores. Tens tido os melhores médicos.

- Que não fizeram nada por mim - observou Louis amargamente.

- Eles hão-de... Temos de... - interrompeu-se. Louis voltou-se devagar e sorriu.

 

- Ter fé, avó? Era isso que ia dizer?

- Não. Sim... Fé na ciência comprovada, na medicina, não na... banha da cobra. Já só faltava convidarmos alguém para jantar que acreditasse em vodu... - declarou, enquanto eu continha a respiração. Houve um momento de silêncio, interrompido pelo riso de Louis.

- Como podes ver, a minha avó tem opiniões precisas sobre tudo. Torna as coisas mais fáceis - acrescentou tristemente. - Assim, eu não tenho de pensar por mim próprio.

- Nunca ninguém disse que não podias pensar por ti próprio, Louis. Não concordei que esta jovem viesse cá jantar hoje?

- Sim, obrigado, avó. - Virou-se para mim. - Gostaste da comida?

- Estava tudo delicioso.

- Só podia estar. Tenho o melhor cozinheiro de Baton Rouge - disse orgulhosamente Mrs. Clairborne.

- Gostarias de me ouvir a tocar piano? - perguntou Louis.

- Adorava.

- óptimo. Temos permissão para sair, avó?

- Dei instruções ao motorista da escola para a vir buscar às nove em ponto. As raparigas de Greenwood têm os seus trabalhos de casa e horas de recolher.

- Já fiz todos os meus trabalhos de casa - disse rapidamente.

- Mesmo assim, deves voltar cedo para o dormitório - insistiu Mrs. Clairborne.

- Que horas são agora, avó? - perguntou Louis. - Que horas são? - exigiu. Contive a respiração. Iria ela dizer duas e cinco?

- Otis, que horas são? - perguntou ao mordomo que estava junto à porta.

- São sete e quarenta, madame.

- Então, temos imenso tempo - exclamou Louis. - Vamos para o estúdio de música?

levantou-se. Olhei para Mrs. Clairborne, que parecia muito infeliz. Ergui-me em seguida também.

- Muito obrigada pelo maravilhoso jantar, Mistress Clairborne - agradeci.

Os seus lábios finos moveram-se num trejeito grotesco que pretendia ser um sorriso.

- não tens de quê - disse rapidamente.

Louís ergueu o braço e eu dei a volta à mesa; seguindo o seu gesto, dei-lhe o braço e começámos a andar.

- Posso ver que estás a usar o perfume favorito da avó - disse, sorrindo. - Alguém te incitou a isso?

- Mistress Penny, a nossa monitora de dormitório - confessei. Ele riu, conduzindo-me para fora da sala de jantar em direcção ao estúdio. Realmente movia-se pela casa com tanta confiança como se pudesse ver e, quando chegámos ao estúdio, foi directamente para o piano sem uma única hesitação.

 

- Senta-te ao meu lado - sugeriu, dando-me espaço no banco. Depois de ter feito como ele tinha pedido, começou a tocar uma música suave e doce. A melodia parecia sair dos seus dedos e depois voar até ao piano. O seu tronco balançava ligeiramente, os seus ombros roçando nos meus. Observei a sua cara à medida que tocava e reparei nos discretos movimentos perceptíveis nos seus lábios e pálpebras. Quando a peça chegou ao fim, manteve os dedos nas teclas como se a música continuasse a sair dele.

- Foi lindíssimo - disse suavemente.

- O meu professor de piano... que costumava ser uma bota-de-elástico... acredita que a minha cegueira faz com que eu toque melhor. Ele às vezes quase parece invejar-me. Confessou-me mesmo que já chegou a pôr uma venda nos olhos quando está sozinho a tocar. Consegues imaginar?

- Sim - respondi.

Com os dedos ainda por cima das teclas, o corpo em postura para voltar a tocar, continuou, no entanto, a conversa.

- Nunca tive uma rapariga... uma jovem... ao pé de mim antes - confessou -, nunca tão perto.

-Porque não?

Ele riu-se.

- Porque não? - O seu sorriso apagou-se. - Não sei. Tenho tido medo, suponho.

- Medo?

- De estar em grande desvantagem. Mais por causa da minha avó do que por minha causa; eu finjo que estou bem. Claro, ela não me vê a tactear às escuras. Isso asseguro. Ela não ouve os meus lamentos. Não me lembro quando é que foi a última vez que me viu chorar. Nesta casa há muito fingimento.

Tenho a certeza de que já reparaste. Fingimos que está tudo bem. Fingimos que não aconteceu nada.

"Mas estou farto de fingir - disse, virando-se para mim.

-           Quero... alguma realidade. Achas mal?

-Não, não.

- Ouvi algo na tua voz quando vieste cá pela primeira vez, algo de honesto e verdadeiro, algo que me pôs à vontade, que me deu esperança. Foi quase como se... como se pudesse ver-te

-           afirmou. Sei que és linda.

- Oh, não. Não sou. Sou...

- Sim, és. Posso ver pela maneira como a avó fala contigo. A minha mãe era linda - acrescentou rapidamente. Contive a respiração. O meu coração começou a bater mais forte. Iria ele contar-me toda a trágica história? - Importas-te que toque no teu rosto, no teu cabelo?

- Não - respondi. Ele percorreu devagar com os dedos as minhas têmporas e gentilmente desenhou as linhas do meu rosto, os dedos deslizando dos meus lábios até ao queixo.

- Lindo - segredou. A ponta da sua língua molhava o lábio inferior, à medida que percorria com os dedos o meu pescoço e encontrava a clavícula. - A tua pele é tão macia. Posso continuar?

Senti um nó na garganta. O meu coração batia apressadamente. Estava confúsa e ao mesmo tempo receosa de lhe dizer que não. Ele parecia tão desesperado.

- Sim - respondi. - Os seus dedos desceram até à gola e seguiram por entre os seios. Reparei que a sua respiração estava acelerada. Passou com a mão pelo meu peito, movendo e pressionando os dedos como se fosse um escultor dando-lhes forma. As mãos continuaram a descer pelas minhas costelas até à cintura e depois subiram de novo, de forma que as palmas das suas mãos rasparam de novo nos meus seios.

 

De repente, retirou-as apressadamente como se tivesse tocado num fio eléctrico. Baixou a cabeça.

- Está tudo bem - disse-lhe eu. Em vez de responder, voltou a pousar os dedos nas teclas do piano e começou a tocar, só que desta vez a música era alta e violenta. Um fio de suor percorria-lhe a testa. A respiração acelerou. Parecia determinado a levar-se até à exaustão. Finalmente chegou ao fim, desta vez batendo com as palmas por cima das teclas.

- Peço desculpa - disse. - Nunca devia ter pedido à avó para te trazer aqui.

- Porque não?

Lentamente virou a cabeça na minha direcção.

- É um tormento, essa é a razão - afirmou. - Tenho quase trinta e um anos, e tu és a primeira mulher em quem toco. A minha avó e a minha prima têm-me trancado como às bolas de naftalina - acrescentou com amargura. - Se eu não tivesse feito uma birra monstruosa, a minha avó não te tinha chamado para cá vir.

- Isso é horrível. Não devias ser feito prisioneiro na tua própria casa.

- Sim, no fundo estou preso, mas o meu cárcere não é a casa. São os meus próprios pensamentos que me aprisionam! -     gritou, levando as mãos ao rosto. Gemeu profundamente. Pus a minha mão sobre o seu ombro. Ele retirou as mãos e perguntou: - Não tens medo de mim? Não te meto nojo?

- Oh, claro que não.

- Tens pena de mim, é isso? - perguntou com amargura.

- Sim, de certa forma, mas também admiro o teu talento

-           acrescentei.

A sua expressão facial tornou-se mais harmoniosa. Respirou profundamente.

- Gostaria de estar contigo outra vez - pediu. Os meus médicos dizem que eu tenho medo de poder ver outra vez. Achas que é possível?

-Acho que sim.

- Já alguma vez fugiste de uma coisa que não conseguias enfrentar?

- Oh, sim - respondi.

- Falas-me sobre isso um dia destes? Vais voltar cá?

- Se quiseres, sim.

Ele sorriu.

- Compus uma melodia para ti - disse. - Queres ouvi-la?

- A sério? Sim, por favor.

Começou a tocar. Era uma peça que fluía com uma cadência maravilhosa, e que, para espanto meu, me fez lembrar o bayou, a água, as belas flores e os magníficos pássaros.

- É muito bonita - afirmei quando acabou de tocar. - Adoro.

- Dei-lhe o nome de "Ruby". Vou pedir ao meu professor para que escreva as notas e, na próxima vez que vieres, dou-te uma cópia, se quiseres.

- Sim, muito obrigada.

- Gostava de saber mais acerca de ti... especialmente como é que foste criada num mundo cajuJi e acabaste por ficar a viver numa família crioula bem colocada no Garden District.

- É uma história muito comprida.

- óptimo - sorriu. - Espero que seja como a Xerazade e as mil e uma noites... Uma história sem fim, para que tu fiques aqui para sempre.

 

Ri-me, e de novo ele colocou os seus dedos no meu rosto e de novo seguiu as linhas até aos lábios, só que desta vez permaneceu mais tempo.

- Posso beijar-te? - perguntou. - Nunca na minha vida beijei uma rapariga.

- Sim - disse, não completamente segura da razão por que estava a permitir-lhe tanta intimidade. Ele inclinou-se na minha direcção e eu guiei-o com as minhas mãos até aos meus lábios. Foi um beijo curto, mas acelerou a sua respiração. Deixou cair as mãos sobre os meus seios e inclinou-se para de novo me beijar, mantendo os lábios colados aos meus, à medida que os seus dedos acariciavam o meu peito tão levemente como penas. Tentou empurrar o tecido para melhor sentir os meus seios e ficou frustrado.

- Louis, não devíamos...

Foi como se lhe tivesse dado uma bofetada. Não se limitou apenas a afastar-se, mas desta vez levantou-se do banco.

- Não, não devíamos. Agora tens de ir embora - disse num tom de voz zangado.

- Eu não queria...

- Não querias o quê? - gritou. - Fazer-me passar por idiota? Pois fizeste. Estou aqui completamente excitado, não estou? - perguntou.

Bastou-me lançar um olhar para compreender que sim.

-Louis...

- Basta dizeres à minha avó que fiquei cansado - continuou. Os braços penderam pesadamente para os lados e começou a dirigir-se para a porta.

- Louis, espera - gritei, mas ele não parou. Pelo contrário, acelerou o passo. Comecei a sentir-me inundada de pena por ele. Segui até à porta e espreitei-o ao fundo do corredor. Parecia ir-se afundando na escuridão em que cada vez mais mergulhava, até desaparecer por completo. Tentei ouvir os seus passos, mas o silêncio invadira aquele espaço. Curiosa, continuei a avançar mais pela ala oeste, passando por outra sala de estar mais pequena e depois virando a esquina. Parei na primeira porta. Bati levemente.

- Louis?

Não ouvi qualquer resposta, mas seja como for pus a mão na maçaneta. A porta abriu-se e dei de caras com um belíssimo quarto com uma enorme cama de dossel, rodeada por uma rede mosquiteira. O quarto tinha um odor a humidade e a terra, e reparei que as flores nos vasos estavam todas mortas. Dois pequenos candeeiros que parecia serem a petróleo estavam acesos. Encontravam-se nas mesinhas-de-cabeceira, e a luz que difundiam limitava-se a dar forma ao que parecia ser um corpo deitado sobre a cama, mas, vendo mais de perto, percebi que era só uma camisa de dormir.

 

Estava quase a fechar a porta quando, de repente, uma porta adjacente à direita se abriu e Louis apareceu. Quis chamá-lo, mas ele soltou um longo gemido e bateu fortemente com os punhos de encontro aos olhos, enquanto caía de joelhos. O acto susteve-me a respiração. Fiquei parada a tremer junto à porta. Ele contraiu-se, pondo os braços contra o peito, e ficou por alguns momentos a balançar-se. Depois, agarrando na maçaneta, puxou-se até ficar de pé. Cabisbaixo, virou-se e fechou a porta. Esperei por um momento, lancei mais um olhar ao quarto, dando em seguida um passo atrás e fechando a porta com suavidade.

Quase a andar na ponta dos pés, percorri o caminho de volta até ao centro da casa, chegando finalmente à sala de estar onde tínhamos tido o chá. Mrs. Clairborne estava sentada na sua cadeira, olhando para o retrato do marido.

- Peço desculpa - disse. Ela virou-se lentamente. Pareceu-me ver lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo.

- O Louis disse-me que estava cansado e foi para o quarto.

- Oh, muito bem - afirmou, levantando-se. - O motorista está à espera lá fora para te levar de volta ao dormitório.

- Mais uma vez, muito obrigada pelo jantar - agradeci.

Otis apareceu à porta como se tivesse vindo do ar para me abrir a porta.

- Boa noite, mademoiselle - disse, fazendo uma vénia.

- Boa noite.

Saí depressa e desci as escadas em direcção ao carro. Buck saiu rapidamente e abriu-me a porta.

- Divertiu-se? - perguntou.

Não respondi. Entrei e ele fechou a porta. Quando partimos, olhei para trás em direcção à mansão. Louis e a sua avó eram tão ou mais ricos e poderosos do que qualquer família que eu conhecera até então ou que iria conhecer, pensei, mas isso não significava que a tristeza e a infelicidade não lhes entrasse pela porta dentro.

Como eu gostava que a grandmére Catherine ainda estivesse viva. Trazê-la-ia uma noite às escondidas, e ela tocaria em Louis fazendo com que ele voltasse a ver e pusesse de lado toda aquela amargura. Anos depois, iria ouvi-lo a dar um concerto numa magnífica sala. Antes de o concerto terminar, ele levantar-se-ia, anunciando que a próxima peça tinha sido escrita para uma pessoa especial.

"Chama-se Ruby", diria ele, e depois começava a tocar e eu sentir-me-ia como se passeasse sob as luzes da ribalta.

A grandmère diria que tudo isto não passava de pensamentos repletos de desejos, de sonhos tão frágeis como bolas de sabão. Mas depois abanaria a cabeça e diria: "Pelo menos tu podes ter sonhos. Esse pobre rapaz... ele vive numa casa sem sonhos nenhuns. Ele vive verdadeiramente na escuridão."

 

TANTAS REGRAS...

Tal como tinha prometido, Mrs. Penny aguardava o meu regresso à entrada do dormitório. Saltou da cadeira e desceu rapidamente para me cumprimentar, os olhos transbordando de entusiasmo e expectativa.

-           Como é que foi o jantar? - perguntou-me em voz alta. - Foi muito agradável, Mistress Penny - respondi, olhando por cima do ombro dela para as raparigas dos quadrantes A e B, que estavam sentadas frente á televisão. A maioria observava-me com curiosidade.

-           Só agradável? - insistiu, dando a entender alguma desilusão. Ela lembrava uma menina pequenina a quem foi negada a possibilidade de comer mais gelado. Eu sabia que estava à espera que eu desbobinasse uma listagem de superlativos, uma torrente de adjectivos, mas essa não era a minha disposição. Reacendeu-se com uma nova pergunta.

-           O que é que Mistress Clairborne serviu?

Um prato à base de camarão - respondi, não mencionando a receita caiufl. - Ah, e um creme de laranja caramelizado como sobremesa acrescentei. Isso agradou-lhe.

-           Já tinha ideia de que ela iria fazer algo de especial. O que fizeste depois? Ficaram sentadas a conversar na mesma sala onde tivemos o chá ou foram para um dos terraços envidraçados?

-           Estive a ouvir o Louis a tocar piano. Depois ficou cansado e eu voltei para casa - resumi.

Ela acenou com a cabeça.

-           Foi uma honra - exclamou, continuando a acenar - uma honra muito grande. Devias estar orgulhosa.

Por ter sido convidada para um jantar? Não seria uma honra maior pintar um belo quadro ou ter boas notas num exame escolar? Quis fazer a pergunta, mas limitei-me a sorrir e pedi permissão para me retirar.

Quando cheguei, vi Gisselle, rodeada por Samantha, Kate e Jackíe, sentada no sofá a ser o centro das atenções. Pelo tom rosado que todas as raparigas ostentavam nas faces, calculei que Gisselle estivesse a descrever mais uma das suas aventuras sexuais em Nova Orleães. Ficaram todas um bocado decepcionadas com a minha interrupção, mas eu não fazia tenção de me juntar a elas.

- Olhem quem está de volta - ironizou Gisselle -, a princesa de Greenwood.

O riso estalou entre todas.

- Como é que foi a tua noite, princesa?

- Porque não pâras de te armar em parva, Gisselle? - retorquiu.

- Oh, peço desculpa, princesa. Não queria ofender a sua estirpe real - continuou, ouvindo-se em seguida uma gargalhada estridente vinda do clube de fãs. - Nós, pobres mortais, tivemos um jantar sem acontecimentos, exceptuando o facto de eu, sem querer, ter entornado a sopa quente em cima da Patti Denníng. - Riram-se todas de novo. - Como estava o Louis? Pelo menos, conta-nos isso.

- Muito bem - respondi.

 

- Estiveste a brincar ao quarto escuro com ele? - inquiriu. Apesar de não querer, não pude evitar sentir o sangue a subir-me à cabeça. Os olhos de Gisselle arregalaram-se. - Estiveste? - insistiu.

- Pára com isso! - gritei, fugindo rapidamente para o meu quarto. Atirei a porta com toda a força para evitar ouvir de novo aquelas gargalhadas. Abby levantou os olhos do seu livro de estudo, surpreendida com a minha entrada abrupta.

- O que se passa?

- A Gisselle - limitei-me a dizer e ela olhou-me com compreensão. Sentou-se na cama e pousou o livro no colo.

- Como é que correu a noite?

- Oh, Abby - lamentei-me -, foi tão... tão estranho. A verdade é que Mistress Clairborne não me queria lá.

Ela acenou como se já o soubesse.

-E o Louis?

- Ele está a sofrer muito a nível emocional... Uma pessoa tão talentosa, tão sensível, e ao mesmo tempo tão perturbada e destruída por dentro como a erva do pântano na hélice dum barco a motor - respondi. Depois sentei-me e contei-lhe tudo o que tinha acontecido. Tornámo-nos as duas melancólicas e, após nos termos despido e enfiado na cama, ficámos durante horas acordadas a conversar sobre os nossos passados. Contei-lhe acerca de Paul e da enorme frustração que sentira quando soubera que o rapaz por quem eu estava apaixonada era na realidade meu meio-irmão. Ela comparou essa horrível partida que o destino me tinha pregado com as suas descobertas no que dizia respeito a si própria e à sua ascendência familiar.

- Parece que ambas fomos marcadas por acontecimentos sobre os quais nunca tivemos controlo algum... como se tivéssemos sido criadas para pagar pelos pecados dos nossos pais e avós. É tão injusto. Devíamos ter direito a começar de novo.

- Até mesmo o Louis - fiz notar.

- Sim. - Ficou a pensar. - Até o Louis.

Fechei os olhos e adormeci embalada pela memória da composição que ele tinha feito para mim: Ruby.

A semana que se seguiu começou sem incidentes dignos de nota, tudo dando a entender que iria ser a mesma rotina. Até mesmo Gisselle pareceu ficar mais calma, chegando mesmo a dedicar-se aos trabalhos de casa. Dei conta duma mudança notável no seu comportamento, quando estava na escola. Nas duas aulas que tínhamos juntas, ela mantinha-se quieta e prestava atenção. Até me surpreendeu quando uma vez mandou parar o seu clube de fãs para apanhar um papel de pastilha elástica, que alguém tinha deitado fora perto da fonte. Claro que continuava a reunir a sua corte na cantina, refastelando-se majestosamente como se fosse uma nobre duquesa, cujas palavras tinham de ser encaradas com respeito régio enquanto tecia pequenos comentários sobre esta ou aquela, normalmente num tom de gozo que estimulava coros de gargalhadas junto à audiência cada vez maior que se reunia à volta dela.

 

Porém, o sarcasmo que normalmente caracterizava as suas respostas às perguntas que lhe dirigiam na aula e a ridicularização a que sujeitava os professores e os trabalhos de casa tornaram-se ausentes nos seus discursos e comportamento. Por duas vezes aconteceu, quando Mrs. Ironwood se colocava no corredor a ver passar os alunos no intervalo das aulas, Gisselle ter pedido a Samantha para parar de empurrar a cadeira de rodas de forma a que pudesse cumprimentar a Dama de Ferro, que lhe acenava em sinal de aprovação.

No entanto, ao observar o invulgar bom comportamento da minha irmã, senti como se estivesse a ver um fervedor de leite ao lume. Estava destinado, mais tarde ou mais cedo, aquando da fervura, a borbulhar, levantar a tampa e sair por fora. Tinha vivido tempo suficiente com a minha irmã para saber que não podia confiar nas suas promessas, nos seus sorrisos, nas suas amáveis palavras... quando por acaso lhe saíam dos seus lábios trocistas.

O que aconteceu a seguir parecia à primeira vista não ter razão de ser. Fui obrigada a repensar calmamente e a tentar seguir a forma tortuosa como a mente maléfica da minha irmã gémea funcionava, antes que conseguisse descortinar os seus verdadeiros propósitos. Em última instância, a causa encontrava-se na sua raiva inicial por ter sido trazida para Greenwood. Apesar de aparentemente se ter adaptado bem, continuava bastante irritada com essa mudança e, como vim a perceber mais tarde, decidida a voltar para os seus antigos amigos e para a sua antiga maneira de estar.

Na quarta-feira de manhã, foi-me trazida uma mensagem durante a aula de Estudos Sociais, indicando que devia apresentar-me no gabinete de Mrs. Ironwood. Sempre que alguém era dispensado da aula para ver a Dama de Ferro, as outras alunas olhavam com pena e ao mesmo tempo alívio por não ter sido uma delas a convocada. Depois da primeira experiência de uma reunião com a nossa directora, compreendi o medo delas. Mesmo assim, não deixei transparecer nervosismo quando me levantei e saí. Claro que o meu coração estava a bater loucamente quando cheguei ao gabinete. Bastou-me olhar uma vez para a cara de Mrs. Randle para perceber que estava em apuros.

- Só um minuto - vociferou, como se fosse um prolongamento emocional de Mrs. Ironwood, espelhando a sua disposição, os seus pensamentos, as suas raivas e prazeres. Bateu à porta e, desta vez, sussurrou o meu nome. Depois fechou a porta e sentou-se de novo na secretária, deixando-me à espera na expectativa. Mantinha o olhar baixo sobre a papelada. Passei o peso de uma perna para a outra e suspirei profundamente. Quase um minuto depois, Mrs. Ironwood abriu a porta.

- Entra - ordenou, dando um passo atrás. Dei uma olhadela rápida a Mrs. Randle, que levantou e baixou os olhos num ápice, como se olhar para mim fosse tão mortal como o foi para a mulher de Lot, quando, ao olhar para Sodoma, foi transformada numa estátua de sal.

Entrei no gabinete. Mrs. Ironwood fechou a porta atrás de mim e em passo de marcha encaminhou-se para a cadeira.

- Senta-te - comandou. Tomei o meu lugar e aguardei. Lançou-me um olhar zangado e começou. - Nesta altura não seria abusivo da minha parte esperar que uma das minhas novas estudantes já tivesse lido o manual do colégio de Greenwood, especialmente se essa aluna fosse brilhante a nível escolar - afirmou. - Estou certa? - perguntou.

Sim, suponho que sim - disse a medo.

- Já o fizeste?

 

- Sim, embora ainda não o tenha decorado - acrescentei, talvez demasiado espontaneamente, pois os seus olhos reduziram-se a duas frechas e a cara empalideceu, em particular nos cantos da boca. A expressão tornou-se mais carrancuda antes de continuar.

- Eu não peço que o saibam de cor para que possam recitar palavra a palavra. Eu peço que seja lido, compreendido e, acima de tudo, cumprido!

Sentou-se para trás e abriu rapidamente um manual, passando as páginas e depois pondo-o aberto em cima da mesa.

- Secção dezassete, parágrafo dois, no que se refere às saídas do recinto do colégio. Antes que um aluno registado possa sair dos limites do colégio, tem de ter uma autorização específica escrita pelos pais nos ficheiros dos serviços administrativos. Este papel tem de estar datado e assinado.

"A razão para este procedimento é simples - continuou, de olhos postos no manual. - A aceitação de um estudante implica que nos sujeitemos a certas obrigações. Se algo lhe acontece enquanto se encontra sob a nossa responsabilidade, se resolve divertir-se e levar a cabo todos os seus caprichos, as culpas recairiam sobre nós.

"Normalmente, não tenho necessidade de explicar o nosso procedimento, mas neste caso, tendo em conta a particularidade do teu passado, comportei-me de forma a que percebas; ao contrário do que algumas do teu tipo têm tendência a concluir, não estou a implicar contigo.

"A tua professora já devia saber que não podia levar-te a passear no seu carro. Já foi repreendida e o seu comportamento incluido no processo. Na altura da renovação do contrato, este será um dos factores a ter em conta.

Olhei para ela. Sentia dificuldades em respirar, pois receava ficar sufocada no meio de tudo o que estava a acontecer tão subitamente. Era óbvio que Mrs. Penny me tinha traído, pensei, apesar de me ter prometido que não o faria. E agora tinha arranjado problemas tanto para mim como para Miss Stevens.

- Não é justo. Ela só quis dar-me uma oportunidade para poder pintar. Não fomos a nenhum sítio inapropriado. Nós...

- Também te levou a almoçar, não foi? - inquiriu Mrs. Ironwood, o olhar endurecido na minha direcção.

- Sim - admiti. Algo pesado e duro crescia no meu peito, fazendo-me sufocar.

- E se a comida te tivesse feito mal? Quem é que achas que tinha a culpa! A culpa seria nossa - retorquiu, respondendo às próprias perguntas. - Nós podíamos até ser processados pelos teus pais!

- Foi uma simples ida a um restaurante... Foi...

- Isso não vem para o caso, pois não? - interrompeu. Reclinou-se para trás e fixou o olhar frio e distante em mim. - conheço as da tua laia - disse, desdenhosamente.

Enfrentando o seu desprezo, ripostei:

- Porque é que insiste em dizer isso? Eu não sou duma... laia, sou uma pessoa, um individuo, tal como todas as pessoas que frequentam este colégio.

Ela riu-se.

 

- Dificilmente - retorquiu. - És a única com um passado duvidoso. Nenhuma das outras tem na sua história familiar sequer uma mancha. Aliás, mais de oitenta por cento das alunas deste colégio provêm de famílias que podem encontrar na sua linhagem uma das cem Filies á la Cassette ou Casket Giris, que no inicio foram trazidas para a Luisiana.

- O meu pai também pode estabelecer a sua linhagem até elas - respondi, apesar de não dar valor nenhum a essas coisas.

- Mas a tua mãe era uma cajun. Se calhar até tinha uma mistura duvidosa de sangues. Não - continuou, abanando a cabeça -, conheço o teu género, os da tua laia. O vosso mau comportamento é mais traiçoeiro, mais subtil. Vocês descobrem depressa quem são as pessoas mais vulneráveis, com determinadas fraquezas, e é com essas fraquezas que jogam, como uma espécie de parasita dos pântanos - acrescentou.

A minha cabeça escaldava de calor de tal modo que cheguei a pensar que iria rebentar pela nuca. Mas, antes que pudesse responder, ela acrescentou o que eu julgava ser a verdadeira razão para me ter chamado.

- Tal como conseguiste aproveitar-te do meu pobre primo Louis e arranjar maneira de seres convidada para um jantar em casa da minha tia.

Nesse instante, senti o sangue esvair-se das minhas veias.

- Isso não é verdade - gritei.

- Não é verdade? - sorriu ironicamente. - Muitas jovens raparigas tiveram sonhos de conquistar o coração do Louis e tornarem-se as herdeiras desta vasta fortuna, do colégio, de todos estes bens. De outra forma um rapaz cego não é propriamente uma conquista, pois não? Mas ele é vulnerável. E essa é a razão por que temos tido até agora tanto cuidado na escolha das suas companhias.

"Infelizmente, conseguiste impressioná-lo sem o conhecimento da minha tia, mas não penses que irás tirar disso algum proveito - ameaçou.

- Essa nunca foi a minha intenção. Eu nem sequer queria ir jantar à mansão - acrescentei. Abriu os olhos, surpreendida, os lábios tomando a forma de um sorriso céptico. - Eu não queria, mas tive pena do Louís e...

- Tu tiveste pena do Louis? Tu? - Riu-se friamente. Não te preocupes com o Louis - acrescentou. - Ele ficará bem.

- Não, não ficará. É completamente errado mantê-lo fechado naquela casa como uma lagarta num casulo. Ele precisa de conhecer pessoas... em especial raparigas e...

- Como te atreves a cometer a imprudência, mais... a ter a audácia de sugerir o que é bom ou não para o meu primo! Não vou tolerar nem mais uma palavra da tua boca acerca dele, estamos entendidas! Estamos? - guinchou estridentemente.

Desviei o olhar. Os meus olhos ardiam com lágrimas de raiva e frustração ao mesmo tempo.

 

- Muito bem - continuou -, agora que de certeza todo o colégio já sabe que violaste a secção dezassete no código de conduta, torna-se legitimo que te seja incutido um castigo. Uma violação dessas acarreta vinte deméritos, o que significa automaticamente a negação de todos e quaisquer privilégios sociais durante duas semanas. No entanto, como esta é a tua primeira falta e a tua professora também tem algumas culpas a suportar, limitarei o castigo a somente uma semana. A partir de hoje e até ao final da sentença, tens de te apresentar no dormitório mal as aulas terminem e lá permanecer durante o fim-de-semana. Se acaso violares este castigo nem que seja por um minuto, não terei alternativa senão expulsar-te de Greenwood, o que por certo também irá ter consequências na coitada da tua irmã aleijada - afirmou.

Lágrimas frias começaram a correr pela minha face abaixo. Os meus lábios tremiam e na garganta sentia como se tivesse engolido um pedaço de carvão.

- Já podes voltar para a tua aula - concluiu, fechando o manual.

Levantei-me. Sentia as pernas trémulas. Apetecia-me gritar-lhe na cara, desafiá-la, dizer-lhe tudo o que realmente pensava acerca dela, mas só conseguia ver o rosto decepcionado do paizinho e ouvir a tristeza na sua voz. Era exactamente isso o que Daphne queria, pensei. Iria de encontro ás acusações que me fazia e tornaria a vida do paizinho ainda mais difícil. Por isso engoli a minha indignação e sai do gabinete.

Durante o resto do dia, tornei-me muda. Era como se o coração se tivesse transformado numa pedra de gelo. Cumpri as

minhas obrigações, fiz o meu trabalho, tomei os apontamentos necessários e andei de aula em aula, a olhar sempre para a frente, nem para a esquerda nem para a direita, desinteressada de toda e qualquer conversa.

à hora do almoço, contei à Abby o que tinha acontecido.

- Estou tão desiludida com Mistress Penny - concluí.

- Devia estar amedrontada para fazer tal coisa - disse Abby.

- Suponho que não posso culpá-la. A Dama de Ferro consegue até assustar um crocodilo.

Abby riu-se.

- Este fim-de-semana também não vou para lado nenhum

-           disse-me.

- Não precisas de fazer isso: castigar-te injustamente só porque eu fui castigada injustamente.

- Mas eu quero. Aposto que fazias o mesmo por mim - acrescentou sabiamente. Tentei negá-lo, mas ela limitou-se a rir como se eu estivesse a falar chinês. - Além disso, eu não acho que passar o meu tempo contigo seja um castigo - afirmou. Sorri, com o coração cheio por ter feito uma tão grande amiga em tão pouco tempo.

Quando entrei na sala de Educação Visual para ter a última aula do dia, senti como se tivesse engolido um copo cheio de girinos. Mal Miss Stevens me viu, apressou-se a vir ter comigo à secretária.

- Não te preocupes - sussurrou. - Eu fico bem. Na realidade, faz-me mais impressão que te tenha causado problemas a ti do que a mim.

- Isso é exactamente o que eu sinto.

Ela riu-se.

- Parece-me que temos de seguir o conselho do Louis e começar a pintar o lago, pois ainda pertence à propriedade da escola. Até que consigas autorização dos teus pais para sair, claro.

- Ainda não será para esta semana - acrescentei.

- Entretanto, ainda tens a pintura do rio para acabar. - Apertou-me a mão. - Seja como for, ninguém espera que os artistas obedeçam e se comportem segundo as regras. Os artistas são impulsivos e imprevisíveis. Temos de ser assim para poder criar.

 

Ela conseguiu fazer com que eu me sentisse melhor, e não voltei a lembrar-me do meu castigo e do encontro com Mrs. Ironwood até regressar ao dormitório e ver Mrs. Penny a arrumar os móveis à entrada. Fui directamente ter com ela.

- Pensei que tínhamos um acordo - atirei-lhe á cara - pensei que tínhamos concordado...

- Acordo? - sorriu confusa. - O que estás a dizer, querida Ruby?

- Pensei que não ia contar a minha saída e de Miss Stevens para ir pintar ao pé do rio - expliquei.

Ela abanou a cabeça.

- E não contei. Fiquei preocupada com isso, mas não contei nada. Porquê? - Apertou as mãos de encontro ao peito. - Mistress Ironwood descobriu?

- Sim. Sou obrigada a ficar no dormitório durante uma semana. Sem privilégios sociais. Tenho a certeza de que saberá de tudo brevemente.

- Ai, meu Deus, meu Deus - suspirou, levando as mãos rapidamente à cara como se fossem pássaros à procura de um sítio para pousar. - Isso quer dizer que ela vai chamar-me para descobrir porque é que eu não tive conhecimento ou porque não lhe contei quando soube de tudo. Ai, meu Deus.

- Diga que eu saí às escondidas - sugeri rapidamente. - Diga que nunca chegou a saber. Eu confirmá-lo-ei se ela perguntar.

- Não gosto de mentir. Como vês: uma falsidade leva a outra e depois a outra.

- Mas não mentiu.

- Mas não fiz o que devia fazer. Ai, meu Deus. - Afastou-se cambaleando.

Só ao fim da noite, quando tive oportunidade de falar sozinha com Gisselle no quarto dela, é que me dei conta do que realmente sucedera.

- Agora já detestas estar aqui, não detestas? - perguntou-me, depois de eu lhe ter contado acerca do meu encontro com Mrs. Ironwood. - Se calhar agora podes ir dizer ao paizinho que nós devíamos sair daqui e voltar para a nossa antiga escola... - O seu sorriso tornou maldoso. - Eu continuo a querer ir-me embora apesar de a Dama de Ferro gostar mais de mim do que de ti. Ah, nós quase somos amigas - acrescentou, rindo-se.

E foi aí que tudo se tornou claro: porque andava ela a fingir que era uma boa aluna... porque andava a portar-se bem. Tinha caído nas graças de Mrs. Ironwood para depois lhe contar acerca de mim e de Miss Stevens.

- Foste tu que me denunciaste, não foi, Gisselle? Puseste-me a mim e a Miss Stevens em sarilhos.

- Por que carga de água é que eu faria isso! - perguntou, desviando o olhar.

- Para que eu fosse castigada e ficasse infeliz e dessa forma pudesses pressionar-me a pedir ao paizinho para nos tirar daqui. E devido à constante inveja que tens de mim - - acusei.

- Eu? Inveja de ti! - Riu-se. - Dificilmente. Apesar de eu estar nesta cadeira de rodas, ainda estou muito acima de ti. Ainda tens de ultrapassar anos e anos de vida nos pântanos. Tu e a tua família cajun - disse num tom amargo. - Então, vais telefonar ao paizinho, ou não?

 

- Não - respondi. - Não quero partir-lhe o coração e entregar mais uma vitória à Daphne assim de bandeja.

- Ai, tu e a tua estúpida competição com a Daphne. Porque não queres voltar para a nossa antiga escola onde não há nenhuma Dama de Ferro e nem estas estúpidas regras, e onde nós temos namorados e podemos divertir-nos? - Suplicou.

Incapaz de me conter, berrei:

- Pelo que eu posso ver - disse -, estás a divertir-te imenso aqui, seja ás minhas custas ou á dos outros.

Samantha ia a entrar no quarto, mas hesitou quando viu a minha cara e ouviu o tom da minha voz.

- Oh, peço desculpa. Queriam estar sozinhas?

- Podes crer que não - vociferei, com a cara a arder. - E, se eu fosse a ti e às tuas amigas, tinha cuidado com o que dizia e com o que fazia a partir de agora.

- O quê? Porquê? - perguntou Samantha.

Olhei com raiva para a minha irmã gémea.

- Arriscam-se a que as coisas vão parar aos ouvidos de Mistress Ironwood - respondi, saindo do quarto zangada.

Gisselle quase pôde cantar a vitória que ansiava, quando Beau ligou naquela noite. Ele estava muito entusiasmado com a viagem que planeara fazer a Greenwood no próximo sábado. Devido a todos esses problemas, eu quase me esquecera da combinação. O meu coração estava destroçado; à medida que lhe contava o que se passara, lágrimas rolavam pela minha cara abaixo.

- Oh, Beau, não podes vir este fim-de-semana. Não te posso ver. Fui castigada e não posso sair do dormitório.

- O quê? Como?

Contei-lhe tudo o que acontecera entre engasgos e lágrimas.

- Oh, não - disse. - Temos um jogo fora no outro fim-de-semana. Não vou poder ir aí pelo menos até daqui a duas semanas.

- Desculpa, Beau. Tens todo o direito de me esquecer, de encontrar outra pessoa - aconselhei.

- Não vou fazer isso, Ruby - prometeu. - Ando com a tua fotografia no bolso da minha camisa todos os dias, perto do meu coração. De vez em quando na escola tiro-a de lá e olho para ela. às vezes - confessou -, chego mesmo a conversar contigo através da fotografia.

- Oh, Beau, tenho saudades tuas.

-           Se calhar, se eu for aí, podes sair às escondidas e...

-           Não, isso é exactamente o que ela quer, Beau. Além disso, a Gisselle adoraria contar tudo, mesmo que mais ninguém soubesse, só para que eu fosse expulsa.

- até estou com a Gisselle.

- Eu sei, mas ia partir o coração do meu pai e provocar todo um amontoado de problemas em casa. A Daphne arranjaria sempre maneira de me pôr a mim e à Gisselle numa situação ainda pior. E isso seria horrível, apesar de a Gisselle o merecer -         acrescentei, zangada. Beau riu-se.

- Está bem - afirmou. - Telefono-te depois e entretanto vou implorar a Cronos, o deus do tempo, que o faça passar depressa.

Depois de desligar, fiquei parada a soluçar. Quando Mrs. Penny me viu, veio pelo corredor fora ao meu encalço.

 

- O que é que aconteceu agora, querida Ruby? - quis saber.

- Tudo, Mistress Penny - respondi, limpando as lágrimas dos olhos com os meus pequenos punhos ao mesmo tempo que suspirava. - Acima de tudo, tem a ver com o meu namorado. Ele devia vir visitar-me no próximo fim-de-semana e tive de lhe dizer que não me é permitido vê-lo.

- Ai, ai, ai - acrescentou, abrindo os olhos. - Falaste com ele ao telefone?

- Sim. Porquê?

Mrs. Penny olhou para o corredor e depois começou a abanar a cabeça.

- Não podes fazer isso, Ruby. Estás proibida de utilizar o telefone para chamadas pessoais durante uma semana. Mistress Ironwood explicou-te isso perfeitamente.

- O quê? Nem sequer posso usar o telefone?

- Não para chamadas pessoais. Lamento muito. Basta acontecer mais alguma coisa que faça Mistress Ironwood zangar-se comigo, e será o suficiente para que ela me demita - afirmou tristemente. - Vou afixar essa restrição no quadro para que todas as outras saibam que não podem chamar-te ao telefone. Lamento imenso. Se receberes alguma chamada particular, terei de falar com a pessoa em questão e explicar o que se passa. Seja como for, dar-te-ei os recados.

Abanei a cabeça e depois olhei para o chão. Se calhar Gisselle tinha razão. Se calhar era melhor que escapássemos de Greenwood e arriscássemos ficar com Daphne. Senti o coração dividido em dois: por um lado, estava a sofrer pelo paizinho e pelo que poderia vir a acontecer, por outro lado sofria por Beau e por tudo o que já tinha acontecido.

Regressei ao meu quarto com o intuito de afogar as mágoas na minha almofada e de fazer o que Beau tinha prometido:

pedir a Cronos que apressasse os minutos, as horas, os dias.

 

Arrastei-me durante o resto da semana, preparando-me para um fim-de-semana que aparentava transformar-se numa prisão domiciliária, quando se deu o segundo acontecimento inesperado. Na sexta-feira, depois do jantar, quando a maioria das raparigas do dormitório tinha ido para o auditório ver um filme, Mrs. Penny veio ao meu quarto. Abby e eu estávamos entretidas a jogar Scrahble e a ouvir música. Um leve bater à porta fez-me levantar os olhos e deparar com a nossa monitora de dormitório. Mrs. Penny parecia um pouco atordoada e preocupada.

- Recebeste um telefonema - anunciou. Presumi que tinha sido de novo o Beau. Mas Mrs. Penny não continuou a falar, em vez disso levou as mãos aos lábios num movimento nervoso. Rapidamente olhei para Abby, voltando depois a olhar para Mrs. Penny.

-Sim?

- Era o neto de Mistress Clairborne, o Louis.

- O Louis! O que é que ele queria?

- Queria falar contigo. Quando lhe expliquei porque é que tu não podias vir ao telefone, ele ficou muito...

- Muito quê, Mistress Penny?

 

- Muito desagradável - acrescentou, obviamente admirada. - Tentei dar-lhe a entender que a situação não estava nas minhas mãos, que eu não tinha qualquer poder para mudar as coisas, mas ele...

- Mas ele o quê?

- Mas ele começou a gritar comigo e a acusar-me de fazer parte duma conspiração liderada por Mistress Ironwood. Sinceramente - declarou, abanando a cabeça -, nunca ouvi tal coisa. Depois desligou-me o telefone na cara. Até fiquei a tremer -     acrescentou, cruzando os braços sobre os ombros.

- Se fosse a si, não me preocupava com isso, Místress Penny. Como acabou de dizer, a situação não está nas suas mãos.

- Claro está, eu nunca antes o tinha ouvido a falar. Eu...

- Esqueça, Mistress Penny. Quando acabar o meu período de castigo, logo tento falar com ele para saber o que ele queria.

- Sim - respondeu, acenando. - Sim. Tanta raiva. Sinto-me

tão... tão abalada - concluiu, saindo em seguida.

- O que achas que ele queria de ti? - perguntou Abby. Abanei a cabeça em sinal de desconhecimento.

- Consigo no entanto perceber porque acha que tudo é uma conspiração. A avó dele e a Dama de Ferro controlam cada momento da sua vida, especialmente em relação às pessoas com quem ele se dá. E Mistress Ironwood deu bem a entender que não gostou que eu tivesse lá ido jantar - disse.

Contudo, fosse qual fosse o poder que Mrs. Clairborne e Mrs. Ironwood detinham sobre Louis, este parecia estar a enfraquecer, pois bem cedo, na manhã seguinte, Mrs. Penny apareceu no meu quarto a anunciar uma mudança de planos. Ela estava, como era óbvio, bastante excitada e impressionada com tudo aquilo. Eu e Abby mal tínhamos acabado de nos vestir para ir tomar o pequeno-almoço quando Mrs. Penny assomou à nossa porta.

- Bom dia - declarou. - Tive de vir a correr dizer-te.

- Dizer-me o quê, Mistress Penny?

- Mistress Ironwood chamou-me directamente para me dizer que te será permitido sair hoje de manhã durante duas horas.

- Sair? Para onde? - perguntei.

- à plantação dos Clairborne - respondeu, de olhos muito abertos.

- Vai deixar-me sair para ir à plantação? - duvidei, olhando para Abby, que parecia tão espantada como eu. - Mas porquê?

- O Louis - retorquiu Mrs. Penny. - Imagino que ele tenha insistido que queria ver-te hoje.

- Mas se calhar sou eu que não quero vê-lo - afirmei, fazendo com que a boca de Mrs. Penny se abrisse de espanto. - Nunca conseguiria obter autorização para ver o meu namorado, que não poderá vir cá durante mais duas semanas e que, para vir, terá de guiar durante quatro horas, mas tenho autorização para ir à plantação! Estes Clairborne são muito dados a estratagemas e gostam de brincar com os sentimentos dos outros.. erguendo-nos e depois largando-nos como se fôssemos peças num jogo de xadrez - queixei-me eu, recostando-me à cama.

Mrs. Penny juntou as mãos e abanou a cabeça.

-Mas... mas isto deve ser de extrema importância para que

 

a própria Mistress Ironwood esteja disposta de alguma forma a fechar os olhos ao castigo. Como é possível que não queiras ir? Só vai fazer com que todos fiquem ainda mais zangados contigo, tenho a certeza - ameaçou-me. - Podem chegar mesmo a atribuir-me as culpas.

- Oh, Mistress Penny, eles não podem culpá-la de nada.

- Sim, claro que podem. Não te esqueças que fui eu que não disse que tinhas saído da propriedade - lembrou-me. - Foi aí que tudo começou. - Suspirou.

A nuvem de medo, sob a qual toda a gente em Greenwood vivia, provocava-me cada vez mais asco.

- Está bem - cedi. - Quando é que devo ir?

- Depois do pequeno-almoço - disse ela, aliviada. - O Buck terá o carro à tua espera lá à frente.

Triste e aborrecida, mudei de roupa para algo mais apropriado e fui tomar o pequeno-almoço com Abby. Quando Gisselle soube onde eu iria depois da refeição, teve um acesso de raiva à mesa, não permitindo que ninguém conversasse e chamando a atenção para nós de propósito.

- Seja o que for que faças ou onde quer que vás, és sempre tratada como uma menina especial. Até mesmo a Dama de Ferro faz regras especiais para ti, que não se aplicam a todas

-           queixou-se.

- Não me parece que Mistress Ironwood esteja a fazer algo para mim ou mesmo que esteja contente com isso - retorqui, mas Gisselle limitava-se a ver uma coisa: estava a ser-me permitido sair do meu aprisionamento.

- Bem, se alguma de nós for castigada, havemos de lhe lembrar isso - ameaçou, disparando um olhar fulminante sobre todas as que encontravam à mesa.

Depois do pequeno-almoço, saí do dormitório e dirigi-me ao carro. Buck falou pouco, excepto para dizer como as suas reparações estavam sempre a ser interrompidas. Pelos vistos, ninguém gostava muito da minha comparência obrigatória junto aos Clairborne. Mrs. Clairborne nem sequer se dignou a vir cumprimentar-me. Foi Otis que me conduziu pelo comprido corredor até ao estúdio de som, onde Louis aguardava junto ao piano.

- Mademoiselle Dumas - anunciou o mordomo, deixando-nos depois a sós.

Louis, vestido com um casaco cinzento de seda, uma camisa de algodão branca e calças de flanela cinzento-escuras, ergueu a cabeça.

- Por favor, entra - disse, dando-se conta de que eu ainda estava à entrada.

- O que se passa, Louis? - perguntei, não disfarçando um certo aborrecimento na minha voz. - Porque pediste que me trouxessem cá?

- Sei que estás zangada comigo - respondeu. - Tratei-te de forma deplorável e tens o direito de estar furiosa comigo. Fiz-te passar uma vergonha e ainda por cima denunciei-te. Queria que viesses cá de forma a que pudesse pedir desculpa em pessoa. Apesar de não poder ver-te... - acrescentou, com um leve sorriso.

- Não há problema. Não estava zangada contigo.

 

- Eu sei. Tiveste pena de mim, e suponho que até isso mereço. Sou digno de piedade. Não! - exclamou quando eu ia começar a protestar. - Está tudo bem. Eu compreendo e aceito. Eu sou digno de dó. Se eu fico aqui a chafurdar na minha autocomíseração, então por que razão os outros não têm também o direito de me ver de forma patética e de não querer nada comigo?

"É que... Senti algo por ti que fez aproximar-me, que fez com que tivesse menos medo de ser gozado ou ridicularizado... algo que eu sei que a maioria das raparigas da tua idade faria, especialmente as preciosas meninas de Greenwood, as preciosidades da minha avó.

- Elas não iriam rir-se de ti, Louis. Até mesmo a crême de la crême, as descendentes directas das Filies à la Cassette - respondi com algum gozo. Ele abriu o sorriso.

- é isso que eu quero dizer - afirmou. - Tu pensas como eu. Tu és diferente. Sinto que posso confiar em ti. Peço desculpa por ter-te feito sentir como se fosses intimada a comparecer em tribunal - acrescentou num ápice.

- Bem, não foi tanto isso, foi mais o facto de ter sido castigada e...

-Sim... Porque foste castigada? Espero que tenha sido por algo muito perverso - acrescentou.

- Receio que não. - Contei-lhe da minha saída para pintar fora do colégio e ele sorriu.

- Foi só isso?

Apeteceu-me contar-lhe mais: como a prima dele, Mrs. Ironwood ficara ressentida pelo facto de eu ir encontrar-me com ele; porém, decidi não pôr mais achas na fogueira. Ele pareceu aliviado.

- Quer dizer que eu puxei dos galões... E daí? A minha prima há-de superar isso. Nunca antes lhe tinha pedido nada. A avó não ficou encantada, é claro.

- Aposto que fizeste mais do que puxar uns cordelinhos

- afirmei, aproximando-me do piano. - Aposto que fizeste uma fita dos diabos.

Ele riu.

- Só um bocadinho. - Durante algum tempo ficou silencioso; depois entregou-me algumas pautas. - Aqui está - disse -, é a tua música.

No cimo da página podia ler-se o titulo: Ruby.

- Oh! Muito obrigada - agradeci, guardando as pautas na minha mala.

- Gostarias de dar um passeio pelos jardins? - perguntou. - Ou melhor, devo dizer, de me levar a passear?

- Sim, gostava.

Louis ergueu-se, oferecendo-me a mão.

- É só passar pelas portas da varanda e depois virar à direita - indicou. Enfiou o braço no meu e comecei a conduzi-lo.

Estava uma manhã quente, algo nublada, e sentia-se uma ligeira brisa. Com uma precisão surpreendente, ele descreveu as fontes, os fetos suspensos e os filodendros, os carvalhos e os renques de bambu e ainda as latadas transbordantes de glicínias roxas. Conseguia identificar cada flor a partir dos aromas, fossem elas camélias ou magnólias. Tinha guardado na memória todo o ambiente de acordo com os cheiros e soube distinguir quando tínhamos alcançado as portas da varanda da ala oeste da casa, que davam, como disse, para o seu quarto.

- Ninguém a não ser as criadas, o Otis e a minha avó entraram no meu quarto desde a morte dos meus pais - declarou. - Gostaria que tu fosses a primeira estranha, se quiseres.

 

- Sim, quero - respondi. Ele abriu as portadas da varanda e entrámos num quarto bastante espaçoso, que tinha uma cómoda, um armário e uma cama de mogno. Tudo se encontrava perfeitamente limpo e arrumado, como se a criada tivesse acabado de sair. O retrato de uma bonita mulher de cabelos louros encontrava-se por cima da cómoda.

- Aquele retrato é da tua mãe? - perguntei.

-Sim.

- Era muito bela.

- Sim, era - murmurou saudosamente.

Não se viam quaisquer retratos do pai ou do pai e da mãe juntos. Todos os outros quadros na parede representavam cenas de rios. Também não se encontravam quaisquer fotografias em molduras por cima da cómoda. Teria ele retirado todas as imagens do pai?

Reparei na porta fechada que ligava o seu quarto com o quarto que eu sabia ter sido dos pais, o quarto onde eu o tinha visto a agonizar emocionalmente naquela noite.

- Então, o que achas da cela que impus a mim próprio? - quis saber.

- É um quarto bonito. A mobília parece nova. És uma pessoa muito asseada.

Ele riu-se.

E de repente ficou sério, largando-me o braço e dirigindo-se para a cama. Passou com a mão pelo fundo da cama e pelas colunas.

- Durmo nesta cama desde os meus três anos. Esta porta

- afirmou, virando-se - dá para o quarto dos meus pais.

A minha avó mantém-no limpo e arrumado como se fosse qualquer outro quarto ainda em uso.

- Deve ter sido um sítio simpático para se crescer - disse eu. O meu coração começou a tamborilar como se tivesse notado algo que me tinha escapado aos olhos.

- Foi e não foi - respondeu. Os seus lábios contorceram-se à medida que se debatia com as suas memórias. Aproximou-se da porta batendo com a palma das mãos na madeira. - Durante anos e anos, esta porta nunca se fechou - contou ele. - A minha mãe e eu... fomos sempre muito próximos.

Continuou virado para a porta a falar como se através dela pudesse vislumbrar o seu passado.

- Muitas vezes pela manhã, quando o meu pai já tinha saído para ir trabalhar, ela entrava no meu quarto e aninhava-se na minha cama, abraçando-me, para que eu pudesse acordar nos seus braços. E se alguma coisa me assustasse... fosse a que horas fosse, ela vinha ter comigo ou deixava-me ir ter com ela. - Virou-se devagar. - Ela foi a única mulher ao lado de quem eu estive deitado. Não é triste?

- Não és muito velho, Louís. Hás-de encontrar alguém para amar - encorajei-o.

Ele deu uma gargalhada estranha.

- Alguém que me ame? Eu não sou somente cego... Sou retorcido, tão retorcido e feio como o corcunda de Notre Dame.

- Oh, não. És bonito e muito talentoso.

- E rico, não te esqueças disso.

Caminhou de novo para a cama e apoiou-se na coluna. Depois passou suavemente a mão por cima da colcha.

- Costumava deitar-me aqui, acreditando que ela viria ter comigo. Se não viesse por si própria, eu fingia que tinha tido um pesadelo só para a trazer aqui - confessou. - Achas muito mal?

 

-Claro que não.

- O meu pai achava que sim - disse, zangado. - Estava sempre a repreendê-la por me mimar demasiado.

Como eu própria nunca tivera mãe, não fazia ideia o que seria ser mimado dessa maneira, mas calculava que era uma transgressão agradável.

- Ele tinha ciúmes de nós - continuou Louis.

- De uma mãe e de um filho? A sério?

Virou-se na direcção do retrato como se pudesse ver.

- Ele achava que era demasiado velho para tanta atenção maternal. Ela continuava a vir ter comigo e eu continuava a ir ter com ela quando tinha oito, nove, dez anos... Mesmo quando já tinha treze - acrescentou. - Seria errado? - perguntou, virando-se para mim. A minha hesitação fez com que o seu rosto mostrasse sofrimento. - Tu também achas, não achas?

- Não - respondi com suavidade.

- Sim, achas. - Sentou-se na cama. - Pensei que podia contar-te isto. Pensei que compreenderias.

- E compreendo, Louis. Eu não penso mal de ti. Tenho pena que o teu pai assim tenha feito - acrescentei.

Ele levantou o olhar esperançoso.

- Não pensas mal de mim?

- Claro que não. Porque é que uma mãe e um filho não podem confortar-se e amar-se?

- Mesmo que eu... que eu fingisse necessitar de conforto só para que ela viesse ter comigo?

- Acho que sim - respondi, não percebendo na totalidade.

- Eu abria a porta um bocadinho - contou -, e depois voltava para a cama e ficava aqui deitado, assim aninhado. Deitou-se na cama e pôs-se em posição fetal. - E começava a choramingar. - Fez alguns sons para exemplificar. - Vai para o pé da porta - pediu. - Vai. Por favor.

Assim o fiz. O palpitar do meu coração tornava-se cada vez mais forte e rápido, à medida que as suas acções e palavras se tornavam mais desconexas.

- Abre-a - ordenou. - Quero ouvir o ranger das dobradíças...

- Porquê?

- Por favor - implorou, e eu obedeci. Ele parecia tão feliz. - Depois, eu ouvia-a perguntar:

"- Louís? Querido? Estás a chorar, amor?

"- Sim, mamã - respondia-lhe.

"- Não chores, querido - respondia-me ela.

Hesitou por um momento e virou a cabeça na minha direcção. - Podes dizer isso? Por favor?

Fiquei calada.

- Por favor - implorou.

Sentindo-me um pouco ridícula e ao mesmo tempo assustada, fiz o que me pedia.

- Não chores, querido.

-           Não consigo parar, mamã - esticou a mão. - Segura na minha mão - pediu. - Basta segurar.

-           Louis, o que é que...

-           Só quero mostrar-te... Quero que saibas como era e que me digas o que achas.

Segurei-lhe na mão e ele puxou-me na sua direcção.

 

-           Deita-te só um bocadinho ao meu lado. Só um bocadinho ao meu lado. Só um bocadinho. Finge que és a minha mãe. E eu sou o teu pequeno Louis. Finge.

-           Mas porquê, Louis?

-           Por favor - implorou, segurando a minha mão ainda com mais força. Sentei-me na cama e ele puxou-me para baixo na sua direcção.

-           Ela deitava-se exactamente assim e eu fazia festinhas nos seus ombros à medida que ela me acariciava o cabelo e me beijava no rosto, e depois ela deixava que a minha mão lhe percorresse o peito - disse, passando a mão no meu -, para que eu pudesse ouvir o bater do seu coração e sentir-me confortado. Era o que ela queria que eu fizesse. Era errado? Era?

-           Louis, pára com isso - supliquei. - Estás a torturar-te com essas memórias.

-           Depois ela punha a mão aqui - continuou, à medida que levava o meu pulso direito para o meio das suas pernas, onde já se manifestava a sua erecção. Retirei a minha mão como se tivesse tocado em fogo.

As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo.

-           E o meu pai... um dia entrou por aqui dentro e ficou muito zangado com os dois e mandou trancar a porta e... se eu chorasse ou me queixasse, ele entrava e batia-me com um cinto de cabedal! Uma vez bateu tanto ou tão pouco, que fiquei com vergões nas pernas e nas costas, e a minha mãe teve de me pôr um bálsamo em todo o corpo, e depois tentou que eu me sentisse outra vez melhor.

"Mas eu não conseguia ficar melhor e também ela ficou infeliz. Pensou que eu tinha deixado de a amar - prosseguiu, o rosto passando a ter uma expressão de fúria. Depois os lábios começaram a tremer enquanto tentava pronunciar as palavras, palavras que o perseguiam. Num engasgo, vociferou: - Por isso, ela tentou fazer de outro rapaz o seu filho e o meu pai descobriu!

Agarrou a minha mão com ambas as mãos e levou-a até aos lábios e ao rosto, acariciando com as faces as costas da minha

mão.

- Nunca contei isto a ninguém, nem mesmo ao médico, mas já não aguento guardar tudo só para mim. É como se tivesse um enxame de abelhas dentro do estômago e do peito. Peço desculpa por te ter trazido aqui e obrigado a ouvir tudo isto. Desculpa.

- Está tudo bem, Louis - afirmei, fazendo-lhe festas no cabelo com a outra mão. - Está tudo bem.

O seu soluçar tornava-se cada vez mais forte. Pus os meus braços à sua volta e apertei-o com força enquanto chorava. Até que ficou calmo e silencioso. Baixei-lhe a cabeça até à almofada, mas, quando ia retirar a mão ele voltou a segurá-la.

- Receio que tenha voltado a estragar esta visita, mas fica só mais um bocadinho - disse. - Por favor.

- Está bem. Eu fico.

 

Ele relaxou. A sua respiração foi-se tornando mais suave, mais regular. Mal adormeceu, saí da cama e, em pontas dos pés, abri as portas da varanda. Caminhei apressadamente pelos jardins e depois pelo estúdio. Quando percorria velozmente o corredor em direcção à porta, olhei para a direita e vi uma sombra mover-se. Era Mrs. Clairborne, espreitando por uma porta. Parei e comecei a andar na sua direcção, mas ela fechou a porta. Hesitei por mais um momento antes de fugir daquela plantação repleta de sombras e de sofrimento.

 

SUSPEITAS

Quando por fim cheguei ao dormitório, sentia-me como se algo duro e pesado tivesse crescido no meu peito, provocando uma dor imensa, de tal forma que dei graças por Gisselle e o seu clube de fãs não se encontrarem na entrada, prontas para me atacar mal eu desse um passo no nosso quadrante. As revelações que tinha ouvido de Louis sobre si próprio e sobre a mãe e o pai fizeram com que me sentisse como se tivesse violado um confessionário e, por acaso, escutado os pecados alheios. Bastou a Abby olhar para mim uma vez para perceber que algo de horrível se tinha passado comigo.

- Estás bem?            - perguntou docemente.

- Sim, - respondi.

- O que aconteceu?

Limitei-me a abanar a cabeça. Não conseguia arranjar maneira de falar sobre o sucedido, coisa que ela compreendeu. Em vez disso, mergulhei de corpo e alma nos trabalhos de casa e comecei a estudar para os exames de Matemática e de Ciências que se aproximavam. Temia enfrentar as perguntas inquiridoras de Gisselle e receava os comentários que mais tarde lhe suscitaria. Mas, na realidade, Gisselle não me perguntou nada sobre a minha visita á plantação, nem ao almoço nem ao jantar. Não percebi se estava simplesmente a tentar mostrar-me que não estava interessada no que eu tinha feito ou se realmente não se importava. Parecia estar ainda aborrecida pelo facto de o meu castigo ter sido mitigado.

Por acaso, até tivemos uma noite de sábado muito calma. Jackie, Kate e Vicki saíram do dormitório para ir para a biblioteca, que se encontra aberta até às nove horas, e Gisselle e Samantha passaram a maior parte do tempo, ou no quarto ou na entrada, vendo televisão e conversando com as raparigas dos outros quadrantes.

Eu mergulhei num banho quente e depois fui para a cama

cedo. Antes de adormecer, Abby voltou a perguntar-me o que queria Louis. Inspirei profundamente antes de responder.

- Principalmente, pedir desculpa pelo seu comportamento da outra vez - expliquei-lhe. Nem sequer sabia como começar

a narrar-lhe as coisas que ele me dissera sobre o relacionamento com o pai e a mãe.

- Vais voltar a visitá-lo?

- Não me apetece - admiti. - Tenho pena dele, tenho mesmo, mas há mais desvios obscuros e terrenos pantanosos nesta plantação do que no bayou. Ser rico e vir de uma família distinta não garante a felicidade, Abby. De facto, é capaz mesmo de tornar a felicidade ainda mais dificil de encontrar, porque tem de se viver acima das expectativas.

Abby concordou e depois pediu um desejo.

- Gostaria que os meus pais desistissem de tentar esconder a verdade, de omitir às pessoas que sou descendente de uma mulher haitiana. Sou cabrita e não faz sentido fingir que o não sou. Acho que seríamos todos mais felizes se assumíssemos quem somos.

- De certeza - acrescentei.

 

Louis não telefonou nem tentou contactar-me no dia seguinte, mas, na terça-feira, Mrs. Penny trouxe-me uma carta que Louis tinha pedido para entregar no dormitório. Permaneceu por uns momentos à entrada do meu quarto, suponho que na esperança de que eu a abrisse na sua presença, mas eu limitei-me a agradecer e a pôr a carta de parte. Os meus dedos tremiam quando mais tarde resolvi abri-la.

 

Querida Ruby,

Escrevinhei esta nota só para te agradecer por teres vindo de novo visitar-me depois de eu ter sido tão desagradável contigo da primeira vez. Fiquei surpreendido quando acordei no meu quarto horas depois de teres ido embora e de estar completamente sozinho. Nem sequer me lembro o que fiz ou disse antes da tua partida, mas espero que não tenha sido nada que te tenha perturbado. Naturalmente tenho esperanças de que voltes a visitar-me.

E agora algumas noticias excitantes. Ontem quando acordei tive pela primeira vez a sensação de ver uma luz fosca. Na realidade não consigo ver nada, mas consigo distinguir entre luz e sombra. Pode não parecer muito para alguém com as plenas capacidades de visão, mas para mim é quase um milagre. A avó também está entusiasmada com isso, assim como o meu médico, que quer que eu frequente durante algum tempo um instituto para cegos. No entanto, não me sinto ainda preparado para sair de casa e ir para lá, preferindo antes manter as periódicas visitas do médico cá a casa. Por isso, se assim o decidires, estarei aqui em casa e poder-te-ei encontrar sempre que queiras. Gostaria muito que isso acontecesse. Espero que gostes da música que compus para ti. Com os mais sinceros sentimentos,

Louis

 

Guardei a mensagem junto à caixa que continha as cartas que recebera de Paul e de Beau. Depois sentei-me e escrevi uma pequena nota, demonstrando a minha alegria por Louis e a minha esperança de que a sua visão estivesse de facto a ser recuperada. Não fiz menção de outra visita específica, prometendo de uma forma vaga voltar a vê-lo brevemente. Mrs. Penny disse que se asseguraria de que a minha carta seria entregue em condições.

A meio da semana, o entusiasmo à volta do nosso primeiro encontro social, o baile da Noite das Bruxas, começou a crescer. Era na prática o único assunto acerca do qual as raparigas queriam conversar durante o jantar. Fiquei surpreendida quando soube que não era permitido usar máscara. Abby e eu estávamos a discutir sobre isso, quando reparámos em Vicki sentada à entrada, lendo uma biografia de Andrew Jackson. Perguntámos-lhe acerca da proibição. Aborrecida por a termos interrompido, olhou para nós por cima do livro e depois voltou a colocar os óculos na ponta do nariz.

- Foi decidido que não haveria baile de máscaras, porque algumas das máscaras usadas em bailes anteriores foram consideradas inapropriadas - explicou.

 

- Oh, que pena - afirmei, pensando em alguns fatos que eu e Miss Stevens poderíamos criar. Tinha ficado toda a semana depois das aulas a ajudar Miss Stevens, que fora incumbida da decoração do ginásio. Desenhámos e cortámos abóboras e bruxas, duendes e fantasmas. No sábado, ela, eu e alguns membros da comissão de encontros sociais iríamos pôr tudo no ginásio, para além de serpentinas de papel, lanternas japonesas e montanhas de fios dourados e prateados.

- Então, o que é que devemos levar vestido? - perguntou Abby a Vicki.

- Podes vestir o que quiseres, mas aviso-te já que a quem

vestir roupas demasiado decotadas ou sensuais não será permitida a entrada, à porta do ginásio.

- A sério?

- Sim. Mistress Ironwood fica ao lado da entrada e acena afirmativamente com a cabeça ou abana em sinal de negação quando entramos. Depois, o professor de serviço, normalmente Mister Brennan ou Miss Weller, a nossa bibliotecária, aceita ou recusa a tua entrada. Se te for recusada a entrada, tens de regressar ao dormitório e mudar para algo mais adequado.

"Ou seja: vestidos impróprios incluem qualquer coisa que mostre nem que seja um centímetro do rego do peito, uma saia que revele os joelhos ou uma blusa ou camisola que seja demasiado apertada junto aos seios. Uma vez, no ano passado, uma rapariga foi mandada para trás porque usava uma blusa demasiado transparente, que mostrava o contorno do soutien.

- Porque não nos limitamos a usar os nossos uniformes e esquecemos tudo isto? - sugeriu Abby com desdém. - Ou isso é considerado uma máscara?

- Algumas raparigas usam o uniforme.

- Estás a gozar? - perguntei. - Para um baile?

Vickí encolheu os ombros, e pus-me a pensar se ela não seria uma das que levava uniforme.

- Como é o baile? - perguntou Abby

- Os rapazes ficam num lado do ginásio e nós no outro. Pouco antes ou pouco depois de a música começar, eles vêm ter connosco e convidam-nos para dançar. Têm de convidar como deve ser, é claro.

- Claro - imitei. Ela sorriu desdenhosamente.

- Não leram a secção no manual sobre o comportamento adequado a ter nos encontros sociais? - perguntou-nos. - Naturalmente, fumar e beber qualquer bebida alcoólica é estritamente proibido, mas também há uma maneira de dançar aceitável e outra não aceitável. Lá especifica que deve haver pelo menos dois ou três centímetros a separar a rapariga do rapaz quando se está na pista de dança.

- Não li isso - afirmou Abby.

- Está aqui. Repara nas notas de rodapé.

- Notas de rodapé! - gemi e desatei a rir. - Que temem elas que possa acontecer na pista de dança?

 

- Não sei - respondeu Vicki. - Mas é essa a regra. Também não estás autorizada a sair do ginásio sozinha com um rapaz, mas muitas raparigas dão a volta a isso saindo separadamente e depois encontrando-se em algum sítio no exterior - continuou Vicki. - Seja como for, o baile dura exactamente duas horas e meia, depois das quais Mistress lronwood anuncia que o baile chegou ao fim e manda parar a música. Os rapazes são levados a entrar no autocarro e as raparigas devem regressar ao dormitório. Algumas raparigas levam os rapazes que conheceram ao autocarro, mas Mistress Ironwood está lá fora a ver como é que se despedem. Os beijos eróticos são estritamente proibidos, e, se ela apanhar alguma rapariga a deixar que um rapaz a apalpe, essa rapariga levará uma reprimenda e alguns deméritos, que podem impedir a sua entrada no próximo encontro social.

- Mistress Ironwood devia ir a um dos fais dodos no hayou - sussurrei ao ouvido de Abby, que se riu.

Vicki franziu as sobrancelhas em sinal de desaprovação. Seja como for - concluiu -, as bebidas são normalmente deliciosas.

- Parece ser... divertidíssimo - exclamou Abby, e rimos tanto que Vicki voltou a dedicar-se ao livro.

Contudo, apesar das regras, das restrições e da ameaça de sermos seguidas pelos olhos de águia de Mrs. Ironwood e dos outros professores em serviço, o entusiasmo à volta do baile continuou a crescer durante toda a semana.

Gisselle, que deveria estar azeda pelo facto de não poder levantar-se e dançar, encontrava-se bastante excitada com todos os preparativos para a festa. As suas devotas seguidoras reuniam-se à volta dela mais vezes e mais intimamente para ouvir os seus experientes conselhos sobre as relações entre rapariga e rapaz. Obviamente, dava-lhe imenso prazer desempenhar o papel de tutora, ensinando-lhes a ser coquete, isto é, descrevendo todas as coisas que já tinha feito para provocar, atormentar e chamar a atenção do rapaz. Na quinta e na sexta-feira à noite, chegou mesmo a sentar-se à entrada a ensinar a Jackie, Samantha e Kate como andar, virar os ombros provocadoramente, pestanejar os olhos de forma sensual e como arranjar maneira de roçar os seios de encontro ao peito e aos braços de um rapaz que lhes agradasse. Vicki permaneceu à porta do quarto de testa franzida, mas ouvindo e observando como alguém que deseja entrar num mundo desconhecido, enquanto eu e Abby nos mantínhamos de lado, sorrindo, sem nada dizer de modo a evitar uma das tiradas maldosas de Gisselle.

Na manhã de sábado, quando ia sair para ajudar na montagem das decorações, Gisselle surpreendeu-me ao entrar pelo nosso quarto dentro para conversar com Abby. Samantha estava a seu lado.

- Eu sei que não tenho nada a ver com isso, mas acho que devias mesmo usar o cabelo solto e pôr só dois ganchos aos lados para que se veja melhor a tua cara e a tua testa. Todas nós votámos e elegemos-te como a mais bonita, Abby - prosseguiu. - És a que tem mais hipóteses de ser eleita rainha do baile hoje à noite, e isso dava-nos muito orgulho.

Durante um momento, Abby não disse palavra. Olhou para mim e eu correspondi, sorrindo e abanando a cabeça. O que estaria a minha irmã a preparar?, pensei.

- Olha - disse ela, dando a Abby uma fita de seda branca. - Isto ficava perfeito no teu cabelo preto.

Um pouco hesitante, Abby pegou na fita. Olhou para ela por algum tempo, como se estivesse à espera que explodisse nas suas mãos, mas nada mais era do que uma bonita fita de seda.

- Vais vestida de azul ou de cor-de-rosa? - continuou Gisselle.

- Estava a pensar no meu vestido azul-escuro. Pelo menos tenho a certeza que cumpre o tamanho requisitado de saia - afirmou, rindo-se.

- Boa escolha - interveio Gisselle. - E tu, Ruby?

- Pensei usar o verde.

 

- Então eu também. Seremos verdadeiras gémeas este sábado à noite - acrescentou. - Porque não vamos todas juntas para o ginásio e entramos como um quadrante unido?

Abby e eu olhámos uma para a outra, com a desconfiança e a surpresa ainda estampadas no rosto.

- Okay - respondi.

- Ah! - disse Gisselle, quando já estava a virar a cadeira de rodas. - Quase me ia esquecendo. A Susan Peck tem falado ao irmão acerca da Abby. Ele está muito ansioso por vê-la e conhecê-la - acrescentou. - Lembram-se que toda a gente falava do Jonathan Peck? Como as raparigas todas se babam por ele sempre que Rosedown vem aos encontros sociais de Greenwood?...

- A Susan? - interrogou Abby. - Acho que ela nunca me dirigiu a palavra desde que cá estou.

- Ela é tímida - explicou Gisselle. - Mas o Jonathan não é - acrescentou com um sorriso irónico. Vimo-la a virar a cadeira de rodas e depois a esperar que Samantha a empurrasse para fora.

- Porque foi tudo isto? - quis saber Abby.

- Não me perguntes. A minha irmã é mais misteriosa que uma coruja a espiar por detrás dos líquenes num pântano. Nunca sabes o que podes encontrar até que se apresenta à tua frente, e nessa altura, normalmente, já é tarde de mais.

Abby riu-se.

- No entanto é uma bonita fita - afirmou Abby, pondo-a no cabelo enquanto olhava para o espelho. - Acho que vou usá-la.

à medida que o dia ia passando, a atmosfera de entusiasmo tornou-se contagiosa. Raparigas de todos os quadrantes saíam para se ver umas às outras, mostrar um vestido novo, um par de sapatos, uma bracelete e colar, ou simplesmente para falar de penteados e de maquilhagem. Nos encontros sociais era permitido às raparigas de Greenwood usar alguma maquilhagem, desde que não exagerassem e, como dizia o manual, "parecessem um palhaço".

O quarto de Gisselle e de Samantha foi adquirindo cada vez mais importância à medida que as raparigas de outros quadrantes o visitavam, como se para prestar homenagem a quem, por consenso, era atribuído o titulo da pessoa mais experimentada do dormitório. Apesar da sua deficiência, Gisselle permanecia sentada de forma confiante e arrogante na sua cadeira de rodas, enquanto aprovava e desaprovava trajes, penteados, até mesmo maquilhagem, como se toda a vida tivesse estado encarregada do guarda-roupa e da maquilhagem num qualquer estúdio de Hollywood.

- Esta escola está cheia de gente socialmente inapta - - segredou-me mais tarde, quando nos encontrámos na entrada. - Uma das raparigas pensava que orgasmo tinha algo a ver com a

mineração de metais. Estás a perceber?

Foi-me impossível conter o riso. De certa forma estava contente que Gisselle estivesse a divertir-se tanto. Chegara a recear que, à medida que se aproximava o encontro social entre Greenwood e Rosedown, ela se tornasse cada vez mais deprimida e amarga, mas acontecera exactamente o contrário, e senti-me aliviada. Eu própria, que não estava à procura de encontrar um novo namorado ou qualquer coisa do género, imaginava com alguma excitação a distracção que o baile proporcionaria. Ansiosa... estava eu pela chegada de Beau no fim-de-semana seguinte. Sentia-me decidida a não fazer nada que pudesse pôr em risco essa visita, que eu aguardava há já tanto tempo.

 

Ao fim da tarde, depois de ter regressado de montar as decorações, o paizinho telefonou. Foi Gisselle quem falou primeiro com ele e tanto disse, e durante tanto tempo, acerca do baile que o meu pai desatou a rir-se dela quando peguei no telefone e comecei a falar.

- Vou aí ver-vos na quarta-feira - prometeu. Apesar de estar feliz por Gisselle ter aparentemente assentado em Greenwood, havia algo na sua voz que me pôs um peso no peito e fez o meu coração palpitar.

- Como é que está, paizinho? - perguntei.

- Estou bem. Um bocadinho cansado, talvez. Tenho andado a correr de um lado para o outro demasiadas vezes. Surgiiam alguns problemas de negócios que tive de resolver.

- Se calhar não devia fazer a viagem até aqui só para nos ver. Se calhar devia ficar a descansar, paizinho.

- Oh, não. Já não vejo as minhas meninas há muito tempo. Não posso negligenciá-las - disse, rindo-se. Mas ao riso seguiu-se um ataque de tosse. - É só uma constipação teimosa

- acrescentou rapidamente. - Bom, divirtam-se. Vejo-vos em breve - concluiu, antes que eu pudesse prolongar a conversa sobre a sua pessoa e, mais especificamente, sobre a sua saúde.

Fiquei preocupada com a nossa conversa, mas não tive tempo para reflectir sobre ela. As horas passavam velozmente. Estávamos todas a preparar-nos para o duche, para vestir, para arranjar o cabelo... O divertimento era uma coisa tão rara em Greenwood que toda a gente queria acumulá-lo, comemorá-lo e tornar todo este acontecimento em algo maior do que realmente era. Não podia culpá-las. Eu própria me sentia assim.

 

Tal como Gisselle tinha inesperadamente pedido, todas as raparigas do nosso quadrante saíram juntas do dormitório para ir para o ginásio. Gisselle estava pronta às sete e meia. Com Samantha a empurrá-la no topo da comitiva, caminhámos para o edificio principal, os sons das nossas vozes transmitindo a excitação que sentíamos. Todas nós, até mesmo Vicki que, por natureza, não prestava atenção nem ao penteado nem às roupas, estávamos bonitas. Habituadas a ver-nos umas às outras, no dia-a-dia, vestidas sempre de uniforme, demos as boas-vindas a todo o tipo de diferenças, desde o estilo ao material, passando naturalmente pelas cores. Era como se todas tivéssemos entrado nos dormitórios como lagartas incolores tão idênticas como dones e de lá tivéssemos saido como borboletas soberanas, cada uma única e bela.

Graças a Miss Stevens e ao nosso comité, o mesmo se podia dizer do nosso ginásio. As decorações, as luzes e as serpentinas tinham-no transformado num magnífico salão de baile. A orquestra de seis instrumentos estava instalada no canto esquerdo, e todos os músicos estavam vestidos a rigor com smoking e gravata preta. No centro da sala encontrava-se uma pequena secretária e um pódio com um microfone, para que Mrs. Ironwood pudesse fazer os seus anúncios e declarações, e a partir do qual a rainha do baile seria eleita e coroada. O troféu, uma estatueta dourada representando uma rapariga de Greenwood rodopiando num pedestal, brilhava do seu local, no centro da pequena mesa.

 

à direita estendiam-se as compridas mesas para o bufete que tinha sido preparado por todos os cozinheiros dos vários dormitórios. Uma mesa estava reservada só para as sobremesas, coberta por toda a variedade de doces e bolos de festa, desde tartes de amêndoa e pudins com cobertura de caramelo até ao antiquado pão de abóbora e queques de laranja. Havia crepes e dounuts do mercado francês, tabuleiros cheios de pralinés e bolinhos de noz.

- Este é o sítio onde a Chubs vai acampar, não vais, Chubs? - gracejou Gisselle, mal deparámos com a mesa das sobremesas.

Kate corou.

- Hoje à noite vou portar-me bem e não vou exagerar.

- Que seca - rematou Gisselle.

Passámos todas pela entrada. Os olhos das damas de companhia percorriam-nos dos pés à cabeça, enquanto à esquerda Mrs. Ironwood analisava uma a uma as suas pupilas para garantir que estávamos devidamente apresentáveis. Os docentes encontravam-se ao pé dela e conviviam à volta da mesa reservada para eles.

As cadeiras para as raparigas de Greenwood tinham sido colocadas no lado esquerdo do ginásio e as cadeiras para os rapazes de Rosedown no lado direito. Tal como o resto das raparigas, dirigimo-nos para a taça de ponche, segurámos nos copos e demos um pequeno gole, procurando depois lugar para nos sentarmos, enquanto esperávamos a chegada dos rapazes de Rosedown. Um pouco antes das oito horas, Suzzette Huppe, uma rapariga do quadrante A do nosso dormitório, veio a correr anunciar que os autocarros de Rosedown tinham chegado. Todas baixámos as vozes ficando na expectativa, à medida que os rapazes de Rosedown começaram a entrar numa fila ordeira.

Todos vestiam blazers azul-escuros e calças a condizer. No bolso do peito de cada blazer estava a insígnia de Rosedown, um escudo de brocado a ouro com palavras em latim que Vicki traduziu por "Excelência é a nossa tradição". O design era suposto ser um emblema original da família Rosedown em Inglaterra.

Todos os rapazes estavam bem arranjados, os cortes de cabelo quase idênticos. Tal como as raparigas de Greenwood, os rapazes de Rosedown juntavam-se em pequenos grupos. Olhavam para o chão do ginásio nervosamente. Alguns que tinham reconhecido raparigas de outros encontros sociais acenavam. Depois puseram-se todos à volta das taças de ponche como nós fizéramos antes e encheram os copos. O som de risos e de conversa foi aumentando à medida que o último grupo de rapazes de Rosedown entrava para o salão de baile.

- Está ali o Jonathan - indicou Jackie com um aceno de cabeça. Olhámos todas para um rapaz bonito e alto, de cabelo escuro, que parecia ser o centro do seu grupo. Estava bronzeado e tinha ombros largos, mais parecendo um galã de cinema. Era facilmente compreensível porque é que ele era tão popular no seio das raparigas de Greenwood. Mas a sua postura e o modo como se mexia e falava davam a entender que tinha consciência da sua popularidade. Mesmo do outro lado do ginásio, consegui pressentir aquela arrogância sulista que alguns jovens aristocráticos herdaram. à medida que os seus olhos percorriam as raparigas de Greenwood, sorria desdenhosamente, murmurando algo aos seus amigos que lhes provocava o riso; depois, recostou-se, expectante, como se todo aquele encontro social fosse dado em sua honra.

 

Todos ficaram silenciosos enquanto Mrs. Ironwood subia ao pódio para dar as boas-vindas aos rapazes de Rosedown.

- Não vejo necessidade alguma de vos lembrar que vocês são as jovens mulheres e homens descendentes de famílias distintas, que frequentam duas das mais conceituadas escolas neste estado, se não mesmo no país. Estou confiante de que todos se comportarão apropriadamente e sairão como chegaram: orgulhosos e merecedores da honra e respeito que a vossa família goza. Daqui a exactamente uma hora, iremos interromper o baile para que todos possamos partilhar as maravilhosas e deliciosas comidas que os nossos cozinheiros de Greenwood prepararam para esta ocasião.

Fez um sinal ao maestro, que se voltou para os músicos e deu início ao primeiro número musical. Os rapazes de Rosedown, que já conheciam uma rapariga ou outra, atravessaram a sala e convidaram-nas para dançar. Gradualmente, os outros rapazes começavam a criar coragem e aproximavam-se das raparigas. Quando Jonathan Peck iniciou o seu caminho na nossa direcção, todas calculámos que ele ia convidar Abby para dançar, tal como Gisselle tinha sugerido; mas ele surpreendeu-nos a todas ao parar à minha frente, convidando-me para dançar. Olhei para Abby, que sorriu, depois virei-me para Gisselle, que me olhou alegremente, e depois decidi aceitar a mão de Jonathan. Ele levou-me para o centro da pista de dança antes de colocar a sua mão direita na minha anca e pôr a minha mão esquerda ao nível clássico das danças de salão, junto ao meu queixo. Com a perfeita precisão de um dançarino profissional, começou a mover-se e a guiar-me ao ritmo da batida, mantendo uma expressão confiante, que se tornava mais acentuada, pela maneira como me olhava nos olhos.

- Sou o Jonathan Peck - disse.

- Ruby Dumas.

- Eu sei. A minha irmã contou-me tudo acerca de ti e da tua irmã gémea, a Gisselle.

- A sério? O que é que ela te contou?

- Só coisas boas - respondeu, piscando o olho. - Como provavelmente já te deste conta, Rosedown e Greenwood são praticamente escolas gémeas. Nós, os rapazes de Rosedown, sabemos sempre todas as intrigas e podres das raparigas de Greenwood. Não conseguirão nunca esconder seja o que for de nós - acrescentou, convencido, lançando depois um olhar a Gisselle, que reparei já ter atraído a atenção de meia dúzia de rapazes de Rosedown. Mas o que mais me surpreendia era Abby. Estava sozinha, posta de lado. Nenhum dos rapazes de Rosedown a convidara para dançar, como também nenhum dos rapazes que estava perto de Gisselle, rindo e conversando, tinha mostrado qualquer interesse por ela. Até mesmo Kate fora convidada a dançar.

- Por exemplo - continuou Jonathan. - Eu sei que gostas de te fazer passar por... pintora, certo?

- Eu não gosto de me fazer passar por nada! Eu sou uma pintora - ripostei.

O seu sorriso abriu-se e lançou a cabeça para trás com um riso curto, que me soou artificial.

- Claro. Tu és uma pintora. Que falta de delicadeza da minha parte deduzir outra coisa.

- E o que és tu, para além de uma enciclopédia ambulante acerca das intrigas e podres das raparigas de Greenwood? - disparei. - Ou essa é a tua única ambição?

 

- Uau! A Susan tinha razão. Tu e a tua irmã são duas bolas de fogo.

- Então se calhar é melhor teres cuidado - avisei. - Ainda te queimas.

Isso provocou-lhe mais um riso. Piscou os olhos e sorriu aos seus amigos; segurou-me com mais força enquanto me fazia rodopiar, mas eu não perdi a estabilidade. Como já tinha dançado num fais dodo cajun mais de uma dúzia de vezes na vida, não me era dificil manter o equilíbrio e parecer graciosa nas mãos de Jonathan Peck.

- Esta noite vai ser muito interessante - previu Jonathan quando a primeira música chegou ao final. - Hei-de chamar-te outra vez - prometeu. - Mas, primeiro, tenho de satisfazer algumas tãs.

- Oh, não vale a pena esforçares-te - respondi. A minha resposta pronta surpreendeu-o por um momento. Virei-me e deixei-o ali especado, apressando-me a ir ter com Abby.

- O que se passa? - perguntou Abby, vendo como eu estava corada.

- Ele é detestável, mais arrogante que uma cobra, e provavelmente tão venenoso. Aposto que tem espelhos em cada parede do seu quarto.

Abby riu-se. Deu-se ínicio ao segundo número musical, e um rapaz aproximou-se de mim, com ar tímido, o que me pareceu uma mudança agradável. Os rapazes que estavam à volta de Gisselle não saíam dali, tendo um deles ido a correr buscar-lhe mais um copo de ponche. Outra vez, quando olhei da pista de dança, reparei que todas as raparigas do nosso quadrante tinham sido convidadas a dançar, excepto Abby. Deixada sozinha pela segunda vez, parecia sentir-se desconfortável, mas tentava manter um ar alegre, rindo-se e fazendo-me sinais.

- Peço desculpa - disse ao rapaz com quem estava a dançar. - O meu tornozelo está a começar a magoar-me. Torci-o há poucos dias. Porque é que não convidas a minha amiga para me substituir? - Apontei na direcção de Abby. O rapaz, de cabelo ruivo e com sardas na cara, olhou para ela e depois abanou a cabeça rapidamente.

- Não faz mal - respondeu. - Obrigado. - Largou-me e voltou para o pé dos seus amigos.

- O que se passou? - perguntou Abby, quando voltei para o pé dela.

- Devo ter torcido o tornozelo há bocado. Começou a doer, por isso tive de parar de dançar. - Não lhe contei acerca da recusa do rapaz em dançar com ela.

- A música é muito boa - disse ela, balançando-se ao ritmo.

Porque é que nenhum dos rapazes vinha convidá-la para dançar? Havia tantos do outro lado do ginásio ansiosos por convidar uma rapariga para dançar. Espreitei Gisselle, que tinha acabado de atirar a cabeça para trás para se rir de algo que um dos rapazes dissera. Pegou-lhe na mão e puxou-o para baixo de forma a poder sussurrar-lhe algo ao ouvido, o que fez com que os seus olhos brilhassem como as iluminações de Natal. O seu rosto ficou vermelho e depois sorriu nervosamente para os amigos. Gisselle lançou um olhar na nossa direcção e depois mostrou-se cheia de autoconfiança.

 

Quando começou o terceiro número musical, fiquei com esperança de que alguém fosse convidar Abby para dançar, especialmente quando dois rapazes se dirigiam na nossa direcção. Porém, um desviou-se para convidar Jackie e outro veio ter comigo.

- Não, obrigada - agradeci. Tenho de descansar porque torci o tornozelo. Mas a minha amiga está livre - acrescentei, inclinando a cabeça na direcção de Abby. Ele mirou-a e, sem dizer palavra, voltou-se para outro lado para convidar outra pessoa.

- Terei posto o perfume errado ou qualquer coisa assim? - quis saber Abby.

O meu coração começou a bater mais depressa à medida que sentia um pequeno pânico no fundo do estômago, subindo em direcção ao peito. Alguma coisa estava a acontecer, algo muito estranho, pensei, e olhei para a minha irmã gémea. Ela parecia confiante e contente. Dança após dança, os rapazes aproximavam-se de mim; se eu recusasse e sugerisse que convidassem Abby, eles arranjavam desculpas irrisórias e convidavam outra pessoa. Não só me aborrecia como também me surpreendia que a rapariga que, sem dúvida, era uma das mais bonitas, se não a mais bonita, da escola conseguia aguentar este tempo todo sem ser convidada para dançar. Um pouco antes do intervalo para as bebidas, puxei a cadeira de Gisselle para o lado.

- Está alguma coisa a passar-se por aqui, Gisselle - disse eu. - Nem um só rapaz convidou a Abby para dançar nem o fará mesmo que eu o sugira.

- A sério? Que incrível! - respondeu.

- Tu arranjas sempre maneira de saber tudo, Gisselle. O que é que se passa? É alguma gracinha? É que se for...

- Não sei de gracinha nenhuma. Também ninguém me convidou para dançar, se reparares, mas não te vejo tão preocupada com os meus sentimentos - ripostou prontamente.

- Mas tu pareces estar a divertir-te. Todos esses rapazes...

- Estou só a provocá-los para meu gozo pessoal. Achas que gosto de ficar enfiada nesta cadeira enquanto toda a gente pode dançar e mexer-se pelo salão de baile? Coitadinha da Abby... Pobre, pobre Abby - ironizou, pondo os cantos da boca para baixo..- Tu adoptaste-a como tua irmã, porque ela é uma pessoa inteira e não uma deficiente.

- Isso é injusto. Sabes que não tens razão. Foste tu que quiseste trocar de companheira de quarto e...

A música parou e Mrs. Ironwood anunciou que a refeição ligeira ia ser servida. Ouviu-se uma grande ovação e todos começaram a dirigir-se para as mesas.

- Estou com fome e prometi àqueles rapazes que me sentava ao pé deles e os deixava alimentarem-me - disse ela manhosamente. - Podes ir sentar-te com a coitadinha da Abby. Virou-se de costas e olhou em direcção ao expectante grupo de rapazes de Rosedown, que ela de alguma forma tinha transformado em papel mata-moscas. Eles discutiam qual deles iria assumir o papel de Samantha e empurrar Gisselle até ao outro lado. Ela voltou-se para trás para me lançar um olhar superior e depois deu uma risada, estendendo a mão a um dos rapazes, enquanto os outros a rodeavam como borboletas.

- A minha irmã está a ser a pessoa insuportável de sempre - disse eu a Abby. Muitos dos rapazes estavam a ser perfeitos cavalheiros, indo buscar comida para as raparigas de Greenwood antes de o fazer para si próprios, mas ninguém se ofereceu para nos trazer alguma coisa, nem a Abby nem a mim. Os rapazes abriram um espaço para mim à mesa das comidas, mas não fizeram o mesmo para Abby. Depois de termos ido buscar o que queríamos, encontrámos uma mesa vazia mais afastada. Ninguém veio sentar-se connosco, nem mesmo as outras raparigas do nosso dormitório. Ficámos completamente sozinhas.

- Mrs. Ironwood passeava por entre as mesas com Miss Weller, cumprimentando alguns dos rapazes de Rosedown e conversando com algumas das raparigas. Quando passaram pela nossa mesa, Mrs. Ironwood parou, olhou na nossa direcção e depois dirigiu-se para outra área.

- Não estou com sarampo na cara ou qualquer coisa do género, pois não? - perguntou Abby.

- Não. Estás... estás linda.

Ela fez um leve sorriso. Nenhuma de nós tinha muita fome, mas comemos só para ocupar o tempo. Mais à nossa direita, Gisselle estava sentada numa mesa só com rapazes. Fosse o que fosse que ela lhes tivesse a contar, estava a pô-los em pulgas. Não conseguiam parar de lhe fazer favores. Bastava-lhe olhar para alguma coisa que imediatamente tinha dois ou três rapazes a passarem por cima um dos outros para conseguir o que ela queria.

- A tua irmã foi sempre assim tão popular com os rapazes? - perguntou Abby com inveja.

- Desde que a conheço, sim. Ela tem uma maneira de apelar para um lado deles que faz faisca. Quem sabe que tipo de promessas terá ela feito - acrescentei zangada.

O comité social começou a entregar às raparigas os boletins de voto para rainha do baile. Atrás deles seguiam duas raparigas com caixas, nas quais devíamos pôr a nossa escolha.

Aposto que a Gisselle pôs toda a gente a votar nela - murmurei.

- Eu vou votar em ti - afirmou Abby.

-E eu em ti.

Rimo-nos ambas, depois preenchemos os nossos boletins e depositámo-los na caixa.

Depois de termos comido a sobremesa, Abby e eu entrámos na sala das raparigas para nos retocar. Estava repleta de gente a conversar e a mexericar, mas mal entrámos muitas das conversas pararam. Era como se nós fôssemos párias ou leprosas que amedrontávamos as outras, com medo de serem infectadas ou mesmo tocadas. Olhámos demoradamente para cada uma das raparigas, tentando perceber o que se passava.

A segunda parte da noite não foi muito diferente da primeira, excepto que, quanto mais ficava perto de Abby, menos me convidavam para dançar. Quando a penúltima música tocou, Abby e eu éramos as únicas raparigas que não estavam a dançar. Antes de começar a última dança, Mrs. Ironwood voltou a pegar no microfone.

 

- É já uma tradição aqui em Greenwood, como quase todos sabem, que no final de um encontro social, especialmente ao dar por terminado um baile, as raparigas escolham uma rainha do baile. O comité social já contabilizou os votos e pediu-me que chamasse Uisselle Dumas para anunciar os resultados. Abby e eu olhámos uma para a outra surpreendidas. "Quando é que a Gisselle preparara aquilo?", pensei. Afastou-se dos seus admiradores masculinos e avançou pela pista ao som de aplausos. Depois voltou-se e encarou os participantes com um sorriso alegre no rosto. A seguir, um dos membros do comité social trouxe-lhe os resultados. Puseram o microfone mais para baixo de forma a que ela pudesse falar.

- Muito obrigada por esta honra - disse ela. - E simplesmente maravilhoso. - Voltou-se de seguida para a rapariga que tinha os resultados. - O sobrescrito, por favor - continuou, como se fosse a entrega do Oscar. Todas as pessoas se riiam. Até mesmo Mrs. Ironwood descontraiu a boca, que se transformou em algo parecido com um sorriso. Uisselle abriu o sobrescrito e leu para si própria. Depois pigarreou.

- Estamos frente a uma escolha de alguma forma surpreendente - declarou. - É a primeira vez para Greenwood, de acordo com o que o comité escreveu aqui. - Olhou para Mrs. Ironwood, que agora parecia estar mais atenta e interessada. - Vou ler o nome da vencedora e exactamente o que o comité escreveu por baixo. - Olhou na nossa direcção. - As raparigas de Greenwood escolheram a Abby Tyler - anunciou.

Os olhos de Abby abriram-se com a surpresa. Eu abanei a cabeça de espanto, mas era como se a primeira bomba tivesse sido lançada. A sala tornou-se silenciosa. Abby começou a erguer-se. O meu coração batia fortemente, quando reparei na cara das outras raparigas. Todas elas parecia estarem a suster a respiração.

Gisselle deu mais uma mirada no cartão e depois levou a boca ao microfone para acrescentar:

- Que é a primeira rapariga cabrita a ter sido escolhida.

Foi como se de repente tivéssemos mergulhado no centro de um furacão. Não se ouvia um sussurro ou mesmo alguém a tossir. Abby ficou paralisada. Olhou para mim, os olhos demonstrando o estado de choque em que se encontrava. Então esta era a razão por que nenhum dos rapazes a tinha convidado para dançar. Haviam-lhes dito que ela era cabrita. E esta era também a razão por que Gisselle tinha sido tão carinhosa com ela, oferecendo-lhe a fita de seda branca para o cabelo: para que todos os rapazes soubessem quem ela era mal a vissem.

- Quem é que lhe disse? - sussurrou Abby.

Abanei a cabeça em sinal de negação.

- Eu nunca...

- Vem buscar o teu troféu - ouviu-se Gisselle gritar para o microfone.

Abby levantou-se á minha frente, ainda mais erecta e alta do que normalmente, olhando para todos como uma bela princesa.

- Não te preocupes, Ruby - afirmou. - Está tudo bem. Eu já tinha decidido dizer aos meus pais que eles têm de parar de viver uma mentira. Eu tenho orgulho em toda a minha ascendência e nunca mais vou negar qualquer parte dela.

Atravessou a sala e saiu porta fora.

- Pelos vistos, ela não gostou do nosso troféu - gracejou Gisselle.

Ouviu-se um gargalhar geral que continuou mesmo quando eu corri pela sala e saí atrás de Abby. Apressei-me a chegar á entrada e aproximei-me da porta que tinha acabado de se fechar atrás da minha amiga. Quando cheguei lá fora, ela já havia percorrido metade do colégio, a sua bela cabeça erguida, caminhando em direcção da escuridão.

 

- Abby! Espera! - gritei, mas ela não parou. Nessa altura, já estava a atravessar o caminho que dava para a estrada á saída da escola. Dirigi-me nessa direcção, quando ouvi chamarem o meu nome.

- Ruby Dumas!

Virei-me e dei de caras com Mrs. Ironwood que se encontrava atrás de mim, unicamente iluminada pelas luzes vindas da entrada da escola.

- Não te atrevas a sair dos terrenos do colégio - avisou.

- Mas, Mistress Ironwood, a minha amiga... a Abby...

- Não te atrevas!

Voltei-me e olhei para onde Abby tinha desaparecido, mas já só conseguia ver a escuridão, escuridão e sombras que se alargaram e se estenderam o suficiente para envolver o meu próprio coração despedaçado.

 

UMA AMIGA EM APUROS

- Aconselho-te a voltar imediatamente para o baile - avisou Mrs. Ironwood.

Ela tinha descido um degrau e, pairava agora atrás de mim como um falcão pronto a atacar. à distância, via-se que o céu ficara tempestuoso e de mau agouro, anunciando chuva e vento. Por um momento continuei a olhar para o fundo da estrada, na esperança de ver Abby reaparecer, mas nem uma sombra se mexeu. Fiquei especada como uma ilha à volta da qual redemoinha o mar, sentindo-me triste e infeliz.

- Ouviste o que eu disse? - insistiu Mrs. Ironwood.

Cabisbaixa, voltei-me para o edificio e passei ao lado de Mrs. Ironwood, sem sequer olhar para ela.

- Nunca vital comportamento - continuou, seguindo-me com a sua ladainha. - Nunca... Nunca... Nunca na vida uma rapariga de Greenwood envergonhou de tal forma a escola.

- Como é possível que uma estudante bela, inteligente e simpática como a Abby seja uma vergonha? Espero que ela tenha orgulho na sua herança, tal como eu tenho no meu passado cajun - ripostei.

Mrs. Ironwood ergueu os ombros e olhou para baixo com os seus olhos frios como pedra. A sua silhueta projectava-se de encontro ao céu cada vez mais escuro, dando a impressão que se tinha transformado numa presença tão negra e impressionante como um dos espíritos de vodu de Nina.

- Quando as pessoas vão para onde não pertencem, só conseguem arranjar problemas para si próprias - declarou no seu tom de voz inquisidor e autoritário.

- A Abby pertence a este lugar mais do que qualquer pessoa - gritei. - Ela é a mais inteligente, a mais esperta...

- Para além de tudo, isto não é nem o sítio nem a altura de discutir tal assunto e, seja como for, é algo que não te diz respeito - retorquiu, usando cada palavra como uma faca que massacrava as minhas objecções. - Devias antes preocupar-te contigo própria e com o teu comportamento. Pensei que tinha tornado isso bastante claro da última vez que conversámos.

Mirei-a por um momento enquanto um acesso de raiva me inundava a alma. A grandmère Catherine tinha-me ensinado a respeitar os mais velhos, mas de certeza nunca previra que eu teria de mostrar respeito a uma mulher como Mrs. Ironwood. A sua idade e a sua posição não a deviam proteger de uma atitude critica justificada, pensei, mesmo que viesse de alguém tão novo como eu, mas mordi o meu lábio inferior de forma a manter as minhas palavras ferozes dentro da boca.

à Dama de Ferro parecia agradar-lhe o enorme esforço que fazia por me controlar. Lançou-me um novo olhar e ficou à espera, na esperança de que eu me tornasse insubordinada para que ela pudesse justificar um castigo ainda mais penoso, talvez mesmo mandar-me expulsar e impedir que eu voltasse a ver Louis, o que eu suspeitava ser o verdadeiro motivo de toda a sua raiva.

 

Resolvi então engolir as minhas lágrimas e a minha fúria, desviar-me dela e regressar ao salão de baile, onde tinha lugar a última dança. A maioria das raparigas olhou na minha direcção, curiosas e com um sorriso na boca. Fosse o que fosse que elas murmuravam aos seus companheiros masculinos, levava-os a rir às gargalhadas. Fazia-me asco ver tal alegria depois do que tinha acontecido a Abby.

Junto ás mesas, Gisselle continuava a dominar na sua corte, rodeada agora por mais seguidores e admiradores, incluindo Jonathan Peck. O seu riso era tão estridente que se sobrepunha à música.

- Aposto que esta é a primeira vez que uma rapariga recusa o troféu de Greenwood - disse quando me aproximei, mais para mim do que para os outros. Seguiram-se novas gargalhadas.

- Oh, cá está a minha irmã. Faz-nos o relato, Ruby. Para onde é que foi a cabrita?

- Ela chama-se Abby - ripostei. - E graças a ti, ela foi-se embora.

- O que queres dizer com "graças a ti"? Eu limitei-me a ler o resultado da votação, e por que razão alguém fugiria depois de ganhar? - perguntou Gisselle com uma expressão de profunda inocência. Os outros acenaram e sorriram, aguardando ansiosamente a minha resposta.

- Sabes muito bem porquê, Gisselle. Fizeste uma coisa muito maldosa esta noite.

- Não me digas que concordas com a presença de mistura de sangues em Greenwood - notou Jonathan. Empurrou os ombros para trás e começou a acamar o cabelo de lado com a palma das mãos como se estivesse à frente dum espelho e não de uma dúzia de admiradoras femininas. Virei-me para ele.

- O que eu não aceito é a presença de pessoas cruéis e maldosas em Greenwood, como também não aceito a presença de jovens snobes e arrogantes que pensam que são uma dádiva de Deus, quando na verdade estão mais apaixonados por si próprios do que alguma vez estarão por outra pessoa - retorqui.

A cara de Jonathan tornou-se vermelha.

- Bem, posso ver qual a tua posição sobre estabelecer relações com pessoas de classe baixa. Se calhar também tu estás no sítio errado - acrescentou, olhando para os rapazes e raparigas que se tinham juntado à nossa volta, à procura de apoio. Quase todos acenaram, demonstrando que concordavam.

- Se calhar estou mesmo - respondi, com lágrimas escaldantes a arder-me por baixo das pestanas. - Prefiro estar num pântano rodeada de crocodilos do que aqui, onde as pessoas nos olham de lado devido à ascendência familiar.

- Ah, deixa de ser tão boazinha - queixou-se Gisselle. - Isto passa-lhe.

Aproximei-me dela; os meus olhos estavam tão raivosos que as raparigas à volta afastaram-se para abrir caminho. Inclinando-me sobre a sua cadeira, cruzei os braços por cima do peito e atirei-lhe a minha pergunta à cara.

- O que é que fizeste, Gisselle? Estiveste a ouvir atrás da nossa porta, foi?

- Achas que estou assim tão interessada nas vossas conversas pessoais? Achas que já fizeste alguma coisa sobre a qual eu não tenha já lido ou visto? - respondeu, corando com a minha pergunta. - Não preciso de ouvir atrás da porta para saber o que se passa entre ti e a tua amiga cabrita. Mas - continuou, sorrindo enquanto se encostava atrás -, se quiseres confessar, descrever como é que é dormir ao lado dela...

 

- Cala-te! - gritei, incapaz de conter a minha corrente de emoções. - Cala-me essa boca imunda antes que eu...

- Vejam como ela ameaça a sua irmã aleijada - choramingou Gisselle, numa atitude dramática. - Vêem como estou desamparada, como sempre estive desamparada! Agora todos vocês sabem como é ser uma gémea deficiente e ter de viver dia a dia a ver a irmã a divertir-se, a ir para onde quiser, a fazer o que quiser.

Gisselle tapou a cara com as mãos e começou a soluçar. Todos olharam para mim, zangados.

- Oh, não vale a pena - grunhi, e virei as costas no momento exacto em que a música terminava.

Mrs. Ironwood já estava junto ao microfone.

- Parece que vem aí uma tempestade - avisou. - Os rapazes devem encaminhar-se o mais depressa possível para os autocarros e as raparigas devem regressar imediatamente para os dormitórios.

Todas as pessoas começaram a dirigir-se para as saídas, mas Miss Stevens veio para junto de mim.

- Coitada da Abby. O que lhe fizeram foi horrível. Para onde é que ela foi? - perguntou.

- Não sei, Miss Stevens. Ela desceu a entrada em direcção à estrada. Estou preocupada com ela, mas Mistress Ironwood não me deixou ir atrás dela.

- Vou pegar no meu jipe e tentar encontrá-la - prometeu Miss Stevens. - Volta para o dormitório e espera por mim.

- Muito obrigada. Está mesmo a aproximar-se uma tempestade horrível e ela pode ficar isolada. Por favor, se a encontrar, diga-lhe que eu não tive nada a ver com o que a Gisselle fez hoje à noite. Por favor, diga-lhe.

- Tenho a certeza de que ela nem sequer se lembrou disso - acalmou-me Miss Stevens, sorrindo carinhosamente. Demos

conta de que Mrs. Ironwood nos observava de soslaio, à medida que seguíamos a multidão à saída do salão de baile.

Um relâmpago desenhou um traço branco no céu escuro e tempestuoso. Algumas das raparigas guincharam de excitação. Parte dos rapazes de Rosewood conseguiu roubar alguns rápidos beijos de despedida antes de subir para os autocarros. Jonathan Peck tinha uma multidão de pelo menos doze prendadas meninas de Greenwood à sua volta, que aguardavam com esperança que ele tocasse com os seus lábios nos delas, se não, pelo menos nas faces.

O som de outro trovão provocou mais gritos e correrias. Vi Miss Stevens sair a correr para ir buscar o jipe e olhei, com esperança, para a estrada, a fim de descobrir algum sinal de Abby, antes de regressar ao dormitório. Provavelmente, tinha dado uma volta e regressado por si própria, esse era o meu desejo; mas quando cheguei dei de caras com um quarto vazio. Regressei para a entrada principal à espera de Miss Stevens. As outras raparigas foram chegando, falando com entusiasmo acerca do baile e dos rapazes que tinham conhecido. Ignorei-as e, na maioria, elas também me ignoraram.

A tempestade cobriu rapidamente o colégio, vinda do rio. Em pouco tempo, rajadas de vento fizeram dançar os ramos dos

 

gigantescos carvalhos. O mundo lá fora ficava cada vez mais escuro e a chuva começou a cair torrencialmente, batendo nas janelas e inundando os caminhos. As grades da varanda pingavam numa torrente constante, e os relâmpagos continuavam a faiscar nas trevas, iluminando a escola e todo o espaço por uma fracção de segundos, antes de voltar a deixar tudo numa completa escuridão. E se Miss Stevens não encontrasse Abby? Imaginei-a aterrorizada debaixo duma árvore à beira da estrada que a traria de regresso a Greenwood. Talvez tivesse chegado a uma daquelas casas bonitas que havia na estrada, e as pessoas fossem suficientemente simpáticas, oferecendo-se para a abrigar até que a tempestade passasse.

Já tinha quase passado uma hora quando vi, através das janelas da entrada, os faróis de um carro. O jipe de Miss Stevens parou em frente ao nosso dormitório e ela saiu a correr em direcção à entrada, com a gabardina cobrindo-lhe a cabeça. Cumprimentei-a á porta.

- Ela já voltou? - perguntou-me, e senti o coração a afundar-se.

-Não.

- Não? - Retirou a água do cabelo. - Subi e desci a estrada vezes seguidas. Andei muitos mais quilómetros do que ela alguma vez poderia ter feito, mesmo que tivesse ido a correr todo o tempo. E dela nem sinal. Estava com esperanças que tivesse regressado por si própria.

- O que poderá ter acontecido?

- Se calhar alguém parou por causa dela.

- Mas para onde é que ela iria, Miss Stevens? Ela não conhece ninguém em Baton Rouge.

Abanou a cabeça e pela expressão que fez percebi que também estava preocupada. Em silêncio, passaram-nos pela cabeça as mais terríveis possibilidades sobre o que poderia acontecer a uma rapariga bonita, que anda sozinha à noite no meio duma tempestade, por uma auto-estrada vazia.

- Talvez tenha encontrado abrigo em qualquer lado e esteja à espera que a tempestade passe - sugeriu.

Mrs. Penny aproximou-se de nós, de mãos juntas e com a inquietação estampada no rosto.

- Acabei de receber uma chamada de Mistress Ironwood, que queria saber se a Abby já tinha regressado. Para onde foi ela, Ruby?

- Eu não sei, Mistress Penny.

- Ela saiu do colégio... durante uma tempestade... e ainda por cima à noite!

- Não era uma coisa que ela quisesse fazer, Mistress Penny.

- Ai, meu Deus - lamuriou-se Mrs. Penny. - Ai, meu Deus. Nunca antes tivemos este tipo de problemas em Greenwood. Para mim, tem sido sempre um trabalho tão gratificante, uma experiência tão encantadora.

- Tenho a certeza de que tudo vai correr bem - disse-lhe Miss Stevens. - Só não se esqueça de deixar a porta de entrada destrancada para ela poder entrar.

- Mas eu fecho sempre a porta depois da hora de recolher! Também tenho de pensar em todas as outras raparigas. Que devo fazer?

- Não se preocupe com a porta, Mistress Penny. Eu vou ficar aqui sentada à espera até que a Abby regresse - afirmei, sentando-me no sofá da entrada.

- Ai, meu Deus - respondeu. - Os bailes foram sempre momentos tão maravilhosos...

 

- Se precisares de mim, telefona-me - disse Miss Stevens num tom de voz baixo. - Seja como for, telefona-me se ela voltar. Gostaria de saber se está tudo bem.

- Muito obrigada, Miss Stevens - agradeci, depois de ela me dar o número de telefone. Acompanhei-a até à porta. Ela apertou as minhas mãos entre as dela.

- Tudo correrá bem. Vais ver - prometeu, tentando levantar-me o moral. Em vão fiz um esforço para sorrir enquanto via Miss Stevens a cobrir de novo a cabeça com a gabardina, preparando-se para atravessar a correr o caminho entre o dormitório e o jipe. A chuva continuava a cair torrencialmente. Esperei na porta até a ver afastar-se. Alguns momentos depois, Mrs. Penny apareceu e trancou as portas.

- Tenho de telefonar a Mistress Ironwood - disse-me. - Ela vai ficar muito zangada. Diz-me se ela voltar em breve, está bem, querida?

Acenei afirmativamente e depois voltei para o sofá, onde me sentei a olhar para a porta e a ouvir as gotas de chuva a cair, as quais parecia desabarem com tanta força no meu coração como na realidade faziam nas paredes e no telhado do dormitório. De vez em quando, adormecia, acordando abruptamente poucos minutos mais tarde, sempre que me parecia ouvir algum barulho na porta, mas não era mais do que o vento. Exausta devido à preocupação e ao cansaço, resolvi por fim levantar-me e ir para o quarto. Deixei-me cair em cima da cama, soluçando por alguns momentos por causa da Abby, até que finalmente adormeci, só acordando quando dei conta das raparigas que se movimentavam no corredor para ir tomar o pequeno-almoço.

Depressa me virei em direcção á cama de Abby, e o meu coração apertou-se ao ver que ninguém lá tinha dormido.

Dissipando o sono dos olhos, sentei-me e fiquei a pensar por um momento. Em seguida fui à casa de banho e lavei a cara com água gelada. Ouvi ao longe o murmúrio do riso de Gisselle e decidi abrir a porta para a enfrentar naquela manhã.

-           Bom dia, querida irmã - afirmou, olhando para mim e rindo-se. Parecia contente, rejuvenescida e regozijando de satisfação. - Estás com ar de quem ficou acordada até tarde. A... a tua amiga já voltou?

-           Não, Gisselle. Ela não voltou.

-           Oh, não! O que é que vamos fazer com o troféu? - pensou em voz alta, olhando para Jackie, Kate e Samantha, que lhe lançaram um sorriso; depressa aqueles sorrisos se evaporaram, ao olharem para mim. Pelo menos mostravam alguns remorsos, notando-se que Samantha era a que estava mais triste.

-           Já não tem graça, Gisselle. Pode ter-lhe acontecido algo terrível ontem à noite. Para onde é que ela poderá ter ido? O que poderá ter feito?

-           Se calhar encontrou abrigo na cama de um camponês. Quem sabe? - lançou, encolhendo os ombros. - Se calhar... um dos seus familiares perdidos há muito. - Riu-se histericamente. - Vamos embora - ordenou a Samantha. - Estou com uma fome descomunal esta manhã.

 

Envergonhada e ao mesmo tempo enfurecida por me aperceber de que aquela criatura era a minha irmã, baixei a cabeça e regressei para o quarto. Tinha pouca fome e não me apetecia sentar-me à mesa do pequeno-almoço com as outras raparigas, que estariam decerto à espera para ver o que eu faria e diria. Mesmo assim, mudei de roupa. Quando ia para a sala de jantar, chegou Mrs. Penny. Bastou-me olhar uma vez para a sua cara para perceber que ela sabia alguma coisa sobre Abby. Tinha os dedos das mãos entrelaçados como se desse gesto dependesse a sua vida.

-           Bom dia, querida - disse-me.

-           O que aconteceu, Mistress Penny? Onde está a Abby?

-           Mistress Ironwood acabou de me telefonar para dizer que os pais vão passar por aqui à tarde para buscar as coisas dela - disse de uma vez só e suspirou.

-           Então, ela está bem? Encontraram-na?

-           Parece que ela ontem à noite foi até à cidade e lhes telefonou. Só que decidiu desistir do colégio. Seja como for, seria sempre expulsa por sair da propriedade da escola a meio da noite - acrescentou.

-           Oh, ela com certeza seria expulsa, Mistress Penny, mas não por fugir - declarei, abanando a cabeça e lançando o meu olhar zangado à nossa monitora de dormitório. - Essa nunca seria a verdadeira razão de Mistress Ironwood.

Mrs. Penny baixou os olhos e abanou a cabeça em sinal de tristeza.

-           Nunca tivemos problemas deste tipo - murmurou. É tão constrangedor. - Olhou para cima e rapidamente deu uma vista de olhos por toda a sala. - Bom, sei que vocês, raparigas, estão sempre a misturar todas as coisas. Gostaria que separasses o que é teu das coisas dela para que se possa despachar isto o mais rápido possível. Não vai ser agradável para ninguém, muito especialmente para os pais dela - acrescentou.

-           Calculo que não. Está bem. Eu encarrego-me disso - prometi, e comecei a separar as coisas, empacotando os pertences de Abby nas suas malas e caixas, para que fosse mais fácil para os pais. As lágrimas escorriam-me pela cara abaixo enquanto desempenhava aquela triste tarefa.

Quando as raparigas chegaram do pequeno-almoço, já tinha quase tudo organizado e estava sentada em silêncio na ponta da cama, olhando para o chão. Gisselle parou junto à porta com Samantha atrás.

-           O que é que se passa? - quis saber, olhando para as malas e para as caixas empacotadas. - Mistress Penny não me disse nem uma palavra.

levantei a cabeça devagar com os olhos injectados de raiva.

-           Os pais da Abby vêm buscar as coisas dela. Vai deixar Greenwood. Já estás satisfeita? - perguntei amargamente. Samantha mordeu o lábio inferior e depressa desviou o olhar.

-           Em todo o caso, é o melhor para todos - respondeu Gisselle. - De uma forma ou de outra, ia sempre acontecer.

-           Se ela tinha de sair, devia ter saido por sua própria vontade, e não por tu e o teu clube de fãs a terem feito passar uma vergonha em frente de todas as estudantes e de todos aqueles rapazes, - acusei.

-           É o risco que uma pessoa dessas corre quando quer ser como uma de nós - retorquiu Gisselle, sem uma nota de arrependimento na voz. Mostrava-se tão enfatuada e confiante que me provocava ânsias no estômago.

-           Não quero falar mais disto! - exclamei, virando-me de costas para ela.

 

-           Por mim, tudo bem - respondeu, e mandou Samantha empurrá-la.

No entanto, ao princípio da tarde, mesmo antes de os pais

de Abby chegarem, Samantha veio sozinha à porta do meu quarto. Tinha deixado Gisselle na entrada com as outras e viera buscar qualquer coisa para ela.

- O que é que queres? - perguntei azedamente.

- A Gisselle pediu-me que viesse buscar um disco que está guardado no armário da Abby - disse humildemente. - Ela vai emprestá-lo a uma das raparigas do quadrante B.

Virei as costas enquanto ela entrava no quarto e se baixava para vasculhar pelas caixas que estavam no chão do armário. Rapidamente descobriu o que queria e preparava-se para sair. Porém, de repente, parou à entrada e virou-se para mim.

- Tenho muita pena do que sucedeu à Abby - disse. Não estava à espera que acontecesse algo assim.

- Bem, o que esperas quando uma pessoa é exposta daquela maneira à frente de toda aquela gente? E porquê? O que é que ela te fez a ti, ou a qualquer uma das raparigas, para merecer isto? - Samantha baixou a cabeça. - Como é que a minha irmã descobriu... acerca dela? - perguntei, depois de um momento. - Esteve a ouvir atrás da porta as nossas conversas?

-           Samantha abanou a cabeça em sinal de negação. - Então, como?

Samantha olhou primeiro para a direita antes de se voltar para responder.

- Quando ela veio cá uma vez buscar outra coisa que estava no armário da Abby, viu as cartas que ela tinha guardadas, cartas dos pais - revelou Samantha. - Mas, por favor, não lhe digas que eu disse. Por favor - implorou, cheia de medo.

- Porquê? O que é que ela poderia revelar acerca de ti? - perguntei de forma categórica. - A ansiedade de Samantha fez com que abrisse muito os olhos e as suas faces normalmente rosadas empalideceram. - Não deves contar-lhe nada acerca de ti que não queiras que as pessoas saibam - insisti.

Samantha acenou, ciente de que o conselho chegava tarde de mais.

- Seja como for, tenho muita pena da Abby.

Não estava com disposição para perdoar, mas percebi que ela estava a ser sincera; por isso acenei. Ela permaneceu ali mais um bocado e depois saiu, apressada.

Pouco tempo depois, chegaram os pais de Abby.

- Mistress Tyler - gritei, dando um salto quando ela e o seu marido apareceram á porta. - Como é que está a Abby?

- Está muito bem - respondeu Mrs. Tyler com uma expressão de firmeza e de lábios comprimidos. - A minha filha tem mais coragem do que qualquer outra rapariga nesta linda escola - acrescentou amargamente. O pai de Abby desviou o olhar de mim.

-           Tenho de falar com ela, Mistress Tyler. Ela tem de saber que eu não tive nada a ver com este horrível incidente.

Mrs. Tyler levantou as pálpebras.

-           Foi a tua irmã gémea que preparou este trabalho sujo, pelo que percebi - disse.

-           Sim, mas nós somos duas pessoas diferentes, embora sejamos gémeas, Mistress Tyler. A Abby sabe disso.

 

Vi pela maneira como olhou para o marido que Abby também lhe tinha dito o mesmo.

-           Onde é que estão as coisas dela? - pediu Mrs. Tyler.

-           Está tudo posto de parte. Todas as coisas dela estão aqui.

-           Apontei para onde colocara as malas. - Como é que posso falar com ela? Quando posso vê-la?

-           Ela está lá fora no carro - revelou Mrs. Tyler.

-           A Abby está cá?

-           Ela não quis entrar aqui connosco - respondeu a mãe.

-           Não a posso censurar - sussurrei e apressei-me a sair do quarto. à entrada, as raparigas tinham resolvido tecer os seus comentários em voz baixa, enquanto os pais de Abby se encontravam no edificio. Até Gisselle estava a reprimir a voz. Não parei para olhar para elas. Em vez disso, saí porta fora. Vi Abby sentada no carro dos pais e desci a correr as escadas para ir ter com ela. Ela abriu a janela quando me aproximei.

-           Olá - disse-lhe.

-           Olá. Peço descupa por ter continuado a fugir de ti ontem à noite, mas a partir do momento em que comecei foi-me impossível parar. A única coisa que queria fazer era sair daqui.

-           Eu sei, mas estava tão preocupada contigo... Miss Stevens andou com o carro de um lado para o outro à tua procura porque Mistress Ironwood não me deixou sair da propriedade.

Ela sorriu desdenhosamente.

-           A Dama de Ferro - murmurou.

-           Onde é que estavas?

-           Escondi-me durante um bocado até a chuva abrandar e depois arranjei boleia até à cidade e, telefonei aos meus pais.

-           Oh, Abby. Tenho tanta pena. É tão injusto. A minha irmã é ainda mais horrível do que imaginava. Descobri que ela bisbilhotou as tuas coisas e leu algumas cartas dos teus pais.

-          Isso já não me surpreende. Seja como for, não foi tudo obra dela. Tenho a certeza - afirmou Abby -, embora a sua parte lhe tenha dado muito prazer, não foi?

Tive de concordar. Ela sorriu para mim e saiu do carro.

- Vamos dar um pequeno passeio - sugeriu.

- O que vais fazer agora? - quis saber.

- Inscrever-me numa escola pública. De certa forma, até foi bom que isto acontecesse. Os meus pais decidiram parar de esconder quem eu sou, no fundo quem eles são. Acabaram-se as mudanças pelo país fora, acabou-se o fingir que sou outra pessoa. - Olhou à volta pela propriedade. - Acabaram-se as escolas finas.

- Também já tenho a minha conta de escolas finas.

- Oh, não, tu estás a dar-te bem aqui, Ruby. Todos os nossos professores gostam de ti e tens uma relação óptima com Miss Stevens. Hás-de fazer coisas espectaculares em relação ao teu trabalho artístico. Aproveita as oportunidades e ignora o resto.

 

- Não gosto de estar num sitio onde há tanta hipocrisia. A grandmére Catherine não iria ficar contente se soubesse que eu estava aqui.

Abby riu-se.

- Pela maneira como ma descreveste, acho que ela te diria para escavares à procura de coisas boas como um mexilhão, isolares-te dos impostores como uma ostra e agarrares-te ao que queres como um crocodilo. Além disso - Abby continuou num sussurro -, tu sabes como enxotar os maus-olhados. O meu erro ontem à noite foi não ter cosido no vestido azul o meu amuleto de boa sorte.

Piscou-me o olho e desatámos as duas a rir. Sabia-me bem estar com ela, mas dei-me conta de que nunca mais iria ouvir o seu riso, nunca mais íamos ter as nossas conversas de mulher para mulher e nunca mais iríamos partilhar os nossos sonhos e receios. Gisselle tinha razão em ter ciúmes: Abby era a irmã que nunca tivera, a irmã que Gisselle, apesar de os nossos rostos serem idênticos, nunca seria.

- Quem me dera que pudesse fazer mais alguma coisa por ti - lamentei.

- Já fizeste imenso. Foste uma boa companheira e podemos continuar a ser amigas. Escreveremos uma à outra. A não ser que Mistress Ironwood controle o teu correio - acrescentou.

- Não me surpreenderia.

- Vou dizer-te o que podes fazer por mim - disse Abby, animando-se de repente. - Da próxima vez que fores chamada ao gabinete de Mistress Ironwood, seja por que razão for, vê se descobres um cabelo dela em cima da secretária ou no chão. Mete-o num sobrescrito e manda-mo. Dá-lo-ei a uma moma, que com ele fará um boneco onde eu posso espetar alfinetes.

Rimo-nos, mas Abby não estava a brincar. Atrás de nós, os pais dela carregavam o carro. Parámos e ficámos a observá-los por um momento.

- É melhor eu ir andando - disse, por fim.

- Estou contente por ter podido ver-te.

- Foi também essa a razão por que resolvi vir - revelou. - Adeus, Ruby.

- Oh, Abby...

- Nada de lágrimas, se não, também eu começo a chorar e damos à Gisselle e às amigas o que elas querem - declarou desafiadoramente. - Aposto que estão todas com o nariz espetado na janela a observar-nos.

Olhei para trás em direcção ao dormitório. Depressa engoli os meus soluços e fiz um sinal com a cabeça, dando a entender que tinha compreendido.

- Provavelmente - respondi.

- Não te envolvas demasiado com o Louis - avisou-me, os olhos pequenos e pensativos. - Sei que tens pena dele, mas há muitos fantasmas a passear pelos sonos da família Clairborne.

- Eu sei. Não vou envolver-me.

-Bem...

Abraçámo-nos rapidamente, e depois ela dirigiu-se para o carro.

- Olha - chamou-me, sorrindo. - Não te esqueças de dizer adeus a Mister Lama por mim.

- Não esquecerei.

- Escrevo-te o mais depressa que puder - prometeu.

 

O pai dela fechou o porta-bagagens e a mãe entrou no carro. Ela fez o mesmo e o pai sentou-se ao volante. Depois pôs o motor a trabalhar e retirou o carro. Quando passaram por mim, Abby virou-se e acenou. Eu acenei também até o carro desaparecer. Em seguida, sentindo como se tivesse o peito revestido de cimento, regressei ao dormitório, para o meu quarto meio vazio.

 

O resto do dia assemelhou-se a um período de luto. A tempestade da noite anterior passara, mas algumas nuvens espessas e escuras tinham ficado para trás, nuvens que pairavam ameaçadoramente por cima da Baton Rouge e de toda a área circundante. Fui jantar só porque ainda não tinha comido nada durante todo o dia. As raparigas estavam exuberantes e falavam alto, algumas ainda a discutir acerca de Abby, mas a maioria falava de outras coisas como se Abby nunca tivesse existido. Gisselle era um dos exemplos disso. Estava a gabarolar-se acerca dos rapazes mais bonitos que conhecera na sua vida, os quais, comparadoS com Jonathan Peck, faziam-no parecer igual ao monstro de Frankenstein. De acordo com o que ela dizia, tinha saído com todos os galãs da América.

Incomodada e ao mesmo tempo emocionalmente exausta, retirei-me do jantar mal pude e sentei-me sozinha no meu quarto. Decidi escrever uma carta a Paul. Preenchi páginas e páginas enquanto descrevia tudo o que tinha acontecido, tudo o que Gisselle arquitectara.

"Não quero descarregar toda a minha infelicidade em ti, Paul...", escrevi quase no final.

mas até hoje, quando penso em alguém em quem posso confiar os meus mais íntimos sentimentos, lembro-me de ti. Suponho que deveria pensar no Beau, mas há coisas que uma rapariga prefere contar a um irmão e não a um namorado, penso eu. Não sei. Neste momento encontro-me tão confusa. No final de contas, a Gisselle está a conseguir tudo o que quer. Agora já estou a detestar isto aqui e estou quase a telefonar ao paizinho para lhe pedir o que ela quis desde o princípio: tirar-nos de Greenwood. A única pessoa de quem vou sentir a falta é Miss Stevens.

Por outro lado, sinto-me tentada a ficar cá e aturar tudo, só para não satisfazer a vontade da Gisselle. Não sei que fazer. Já não sei o que é certo e o que é errado. São tantas vezes que os bons sofrem e os maus não que pergunto a mim própria se o mundo não está mais cheio de espíritos negativos do que positivos. Tenho tantas saudades da grandmére Catherine, sinto falta da sua sabedoria e da sua força. Seja como for, estou ansiosa por que vás visitar-nos a Nova Orleães durante as férias de Natal, tal como prometeste. Já disse ao paizinho e também ele está ansioso por te ver. Acho que qualquer pessoa ou coisa que lhe lembre a nossa mãe o enche de alegria e paz interior, apenas perceptível no seu franco sorriso.

Escreve rapidamente,

Com amor, Ruby

 

Só quando comecei a dobrar o papel para o enfiar num sobrescrito é que reparei nas manchas provocadas pelas minhas lágrimas.

 

Na manhã seguinte, levantei-me, vesti-me e fui tomar o pequeno-almoço em silêncio, mal olhando ou falando com alguém, excepto com Vicki, que me perguntou se me sentia preparada para o teste de Estudos Sociais. Conversámos acerca da matéria enquanto nos dirigíamos para o edificio principal. No decorrer do dia, não consegui evitar a sensação de que toda a gente estava a olhar para mim. As noticias acerca de Abby tinham-se espalhado rapidamente e era natural que as outras raparigas quisessem saber e ver como eu reagia e me comportava. Decidi não dar a nenhuma delas o prazer de me ver triste, decisão que me foi mais fácil seguir quando entrei na aula de Educação Visual de Miss Stevens.

Começou a dar a lição e todas iniciámos o nosso trabalho. Quando a campainha tocou a assinalar o final da hora, ela veio ter comigo para falar sobre Abby. Contei-lhe como Abby parecia aliviada e mais alegre, agora que tudo tinha acabado.

Ela acenou em concordância.

- O que não te destrói, torna-te mais forte. As dificuldades têm uma maneira de nos fortalecer, quando não dão cabo de nós - disse, sorrindo. - Olha para ti e as coisas dificeis pelas quais já tiveste de passar.

-Não sou uma pessoa forte, Miss Stevens.

- És mais forte do que julgas.

Baixei os olhos para a minha secretária.

- Estava a pensar pedir ao meu pai para me tirar a mim e à Gisselle de Greenwood - disse.

- Oh, não. Odiava perder-te. Tu és a estudante mais talentosa que eu tenho e que provavelmente alguma vez terei. As coisas hão-de melhorar. Têm de melhorar - prometeu. - Tenta não pensar nas coisas negativas. Solta-te na arte. Faz de tudo a tua arte - aconselhou.

- Vou tentar.

- óptimo. E não te esqueças. Estarei aqui sempre que precisares de mim.

- Muito obrigada, Miss Stevens.

Encorajada por aquela pequena conversa, esqueci os acontecimentos negros e infelizes e comecei a aguardar com ansiedade a chegada do paizinho na quarta-feira e a vinda de Beau no sábado. Pelo menos, duas das pessoas que eu mais amava no mundo estariam brevemente comigo e iriam trazer raios de luz para um mundo que se tinha tornado lúgubre e cinzento.

E, quando regressei ao dormitório, descobri que tinha chegado uma carta de Paul, mesmo antes de ter posto a minha no correio. Era uma carta cheia de optimismo e de boas notícias:

como estava a dar-se bem na escola, como o negócio da família tinha melhorado e como o pai dele lhe atribuía cada vez mais responsabilidades.

 

Apesar de ainda ter tempo de pegar na minha canoa e subir o bayou para ir pescar nos meus sítios secretos. Ontem deixei-me descansar na canoa e vi o Sol ficar vermelho, enquanto se punha por entre os ramos dos plátanos. A luz quebradiça fazia com que os líquenes parecessem folhas de seda. Depois as cobras-d'água começaram a aparecer com mais atrevimento. As libelinhas faziam as suas danças rituais por cima da água, e as carpas, entre outros pequenos peixes brancos, saltavam e voltavam a cair nos canais como se eu, com cana de pesca e tudo, nem sequer lá estivesse. Uma garça branca mergulhou tão baixo que pensei que ia aterrar no meu ombro antes de curvar e se afastar corrente abaixo.

 

Virei-me e vi na margem um veado de cauda branca a enfiar a cabeça por entre os ramos de um choupo. Ficou durante algum tempo a observar-me enquanto eu flutuava, para depois desaparecer por entre os salgueiros.

Tudo isto fez-me pensar em ti e nos maravilhosos fins de tarde que passámos juntos, e imaginei como seria para ti estar a viver num sitio completamente diferente, longe do bayou. Fez-me ficar um pouco triste, mas depois lembrei-me de como tu consegues aproveitar tudo e, com esse maravilhoso talento artístico, transformar as coisas que vês numa bela pintura que durará para sempre. Que sorte terão as pessoas que comprarem os teus quadros!

Ansioso por te ver,

Paul

 

A carta dele encheu-me de uma deliciosa forma de felicidade, uma mistura de melancolia e alegria, memórias e esperança. Senti-me distante, por cima de todos os conflitos. Nessa noite, ao jantar, devia estar com um sorriso de verdadeira satisfação. Reparei como Gisselle, frustrada, não parava de olhar para mim.

- O que se passa contigo? - perguntou por fim. Todas as raparigas à nossa volta, que estavam a falar à vontade, pararam para ver e ouvir.

- Nada. Porquê?

- Pareces estúpida, aí sentada com esse sorriso parvo na cara, como se soubesses de algo que nós não sabemos - disse.

Encolhi os ombros.

- Não sei de nada - respondi. Depois pensei por um momento e baixei o garfo. Dobrei os braços por cima do peito e olhei para todas elas. - Excepto o saber que muitas das coisas que vocês pensam que são tão importantes, tal como a linhagem familiar ou a riqueza abundante, não trazem a felicidade.

- Ai, não? - embirrou Gisselle. - Então o que é que a traz?

- Gostar de si próprio - respondi -, por aquilo que verdadeiramente és e não o que os outros querem que sejas.

levantei-me e fui para o meu quarto.

Reli a carta de Paul, fiz uma lista de todas as coisas que queria fazer antes da chegada do paizinho e de Beau, acabei os trabalhos de casa e fui dormir. Fiquei ali estendida de olhos abertos, olhando para o tecto escuro e imaginando que estava na canoa com Paul, a deslizar... Quase me pareceu ver a primeira estrela.

Na manhã seguinte, acordei cheia de ideias para quadros, que queria fazer sob a supervisão de Miss Stevens. A paixão que ela tinha pela Natureza era tão forte como a minha e sabia que ela iria gostar das minhas imagens. Lavei-me, vesti-me a correr e fui uma das primeiras à mesa do pequeno-almoço, o que também pareceu incomodar Gisselle. Percebi ainda que ela estava a ficar cada vez mais intolerante e impaciente com Samantha, zangando-se com ela por não fazer as coisas com a rapidez desejada.

O nosso quadrante tinha outra vez a tarefa de levantar a mesa. Claro está que Gisselle foi dispensada das obrigações, mas tornou as coisas ainda mais dificeis para mim e para os outros, permanecendo tempos infindos à mesa. Quase fez com que todas chegássemos atrasadas às aulas, e eu tinha um teste de inglês.

 

Sentia-me preparada para o teste e ansiosa por o fazer, mas, a meio do exame, uma mensageira entrou na sala. Foi ter directamente com Mr. Risel e sussurrou-lhe ao ouvido. Ele acenou, depois olhou para a turma e anunciou que eu era chamada ao gabinete de Mrs. Ironwood.

- Mas o meu exame... - murmurei.

- Dá-me só o que já fizeste - disse.

-Mas...

- É melhor ires depressa - acrescentou, com os olhos sombrios.

O que poderia ela querer agora?, pensei. De que poderia ela acusar-me dessa vez?

Enraivecida, caminhei pelo corredor a passos largos e entrei no gabinete da directora. Mrs. Randle olhou da sua secretária, mas desta vez não parecia aborrecida ou zangada comigo. A sua cara era antes de compaixão.

- Entra - disse-me. Os meus dedos tremeram um pouco ao tocar na maçaneta. Rodei-a e dei um passo para a frente, descobrindo surpreendentemente que Gisselle estava lá, sentada na sua cadeira de rodas, lenço na mão e com os olhos injectados de sangue.

- O que foi? - gritei, olhando de Gisselle para Mrs. Ironwood, que estava à janela.

- É o teu pai - retorquiu. - A tua madrasta acabou de me telefonar.

-O quê?

- O paizinho morreu! - gritou Gisselle. - Teve um ataque de coração!

De algures de dentro de mim, um grito transformou-se num uivo, aquele uivo que se demora por cima da água, que se enlaça à volta das árvores e dos arbustos, que transforma o dia em noite, que muda o céu de azul para cinzento, que das gotas de chuva faz lágrimas.

Por trás das pálpebras, cerradas para não ver as imagens e não ter consciência do momento, lembrei-me de um velho pesadelo que tinha muitas vezes quando era criança. Nele, encontro-me a percorrer o pântano, a perseguir uma canoa que começa cada vez mais a ganhar velocidade, fazendo uma curva no bayou e levando para longe o homem misterioso a quem queria chamar paizinho.

As palavras engasgaram-se na minha garganta e, um momento depois, ele já tinha desaparecido.

E, mais uma vez, estava sozinha.

 

ORFÃ DE NOVO

No que me diz respeito, o funeral do paizinho começou quando demos inicio à viagem que nos trazia de volta a Nova Orlães. Um pouco antes de partirmos, até mesmo Gisselle se foi tornando gradualmente sombria e silenciosa. O seu habitual rol de lamentações ficou reduzido a uns meros queixumes acerca da falta de tempo que tivera para juntar as suas coisas e acerca da forma brusca como a tinham passado da cadeira de rodas para a limusina enviada por Daphne. Não tinham avisado o motorista que um dos passageiros era deficiente, e o resultado desse esquecimento foi que ele não estava preparado para tal experiência. Não sabia como dobrar a cadeira e enfiá-la juntamente com a nossa bagagem no porta-bagagens. Felizmente, Buck Dardar apareceu para ajudar, o que imediatamente animou a minha irmã e, durante um momento, lhe devolveu o olhar de sedução.

- Graças a Deus que o teu Mister Lama apareceu - declarou suficientemente alto para que Buck ouvisse, o qual continuava a dobrar a cadeira. - De outra forma, o pobre paizinho seria enterrado uma semana antes de nós sairmos daqui.

Lancei-lhe um olhar furioso, mas ela ignorou-o com uma das suas frívolas risadas e depois pôs a cabeça fora da janela para pestanejar de forma sedutora para Buck, enquanto lhe agradecia veementemente por ter aparecido.

- Agora não posso agradecer-te como deve ser - disse-lhe.

- Temos de partir de imediato, mas quando voltarmos...

Buck olhou para mim e depois regressou depressa ao seu

tractor para continuar os trabalhos na terra. O motorista sentou-se atrás do volante e partimos. Todas as outras estudantes estavam nas aulas. Gisselle tinha conseguido dizer ao seu clube de fãs o que acontecera ao paizinho, para depois poder explorar as demonstrações de condolências e de compaixão. Eu só tinha contado a Miss Stevens. Ela ficou muito abalada; os olhos encheram-se de lágrimas quando reparou na minha expressão de desespero.

- Agora sou verdadeiramente orfã, tal como a senhora - disse-lhe.

- Mas ainda tens a tua madrasta e a tua irmã.

- É o mesmo que ser totalmente orfã - retorqui.

Ela mordiscou o lábio inferior e acenou, sem ao menos pôr em questão o que eu tinha acabado de dizer.

- Terás sempre família aqui - disse, abraçando-me. - Sê forte.

Agradeci-lhe e regressei ao dormitório para empacotar as coisas.

 

Agora, a limusina levava-nos para uma jornada que mais parecia um pesadelo, uma viagem que, pelo menos para mim, se assemelhava a um túnel infinitamente negro, cujas paredes eram feitas do mesmo material que os meus maiores receios, o mais avassalador dos quais era o medo de ficar sozinha. Desde o momento em que tivera idade suficiente para perceber que a minha mãe morrera e que o meu pai, segundo o que me contaram, me havia abandonado, senti uma angústia cavernosa no coração, uma sensação monstruosa de que apenas uma fina corda de cânhamo me segurava à margem. Mais de uma vez, acordei a meio da noite com a visão assustadora de ser atirada borda fora enquanto dormia no fundo da minha canoa. A tempestade que corria no bayou chicoteava a ténue corda de cânhamo até que a rasgava em duas partes e me lançava, corrente abaixo, para dentro da noite e do desconhecido.

É claro que era o abraço reconfortante e as palavras brandas da grandmère Catherine que me acalmavam. Ela era a minha fina corda de cânhamo, ela era o meu sentido de segurança; e, quando morreu, ter-me-ia sentido perdida e abandonada às mãos do destino, se ela não me tivesse dado novas esperanças, dizendo-me o nome do meu pai e encorajando-me a que fosse procurá-lo. Como um vagabundo em busca de uma réstia de amor; fui bater-lhe à porta, e o meu coração rejubilou pela maneira calorosa como me aceitou e acolheu na sua casa e no seu próprio coração. Mais uma vez voltei a sentir-me segura, e os meus habituais pesadelos de me perder numa violenta tempestade quase se extinguiram.

Contudo, agora também o paizinho havia desaparecido. Aqueles quadros proféticos que pintara quando era nova, quadros onde eu visualizava o meu misterioso pai a evaporar-se, tinham-se, malogradamente, tornado realidade. As sombras negras estavam a voltar, o vento começava a uivar. Muda até ao lugar mais recôndito da alma, sentei-me na limusina e fiquei a olhar para a paisagem que passava com uma fluidez sombria, dando a entender que o mundo monstruoso estava a perseguir-nos

e que nele, mais tarde ou mais cedo, ficaríamos a flutuar no espaço vazio.

Finalmente, incapaz de reter o silêncio por mais tempo, Gisselle deitou cá para fora um novo rol de queixas.

- Agora a Daphne vai definitivamente mandar em nós - resmungou. - Tudo o que herdámos vai ficar sob administração dela. Vamos ter de fazer tudo o que ela disser e quiser. - Aguardou que eu interviesse com a minha listagem de queixas, mas eu mantive-me calada, a olhar lá para fora enquanto a ouvia protestar, mas mal sentindo a presença dela. - Não ouviste o que eu disse?

- Não me interessa, Gisselle. Neste momento não é importante - murmurei.

- Não é importante? - Riu-se. - Espera só até chegarmos a casa e descobrires como eu tenho razão. Depois logo veremos se é importante ou não - declarou. - Como é possível que ele tenha morrido? - gritou histericamente, não tanto porque estivesse triste pela morte do nosso paizinho, mas mais porque estava zangada com ele por ter sucumbido daquela maneira. - Porque não viu que não estava bem e foi ao médico? E por que razão não estava bem? Ele não era velho.

- Tinha mais dores de coração para suportar do que qualquer homem com o dobro da idade - respondi prontamente.

- E o que quer isso dizer, Ruby? O que é que a menina boazinha está agora a dizer?

- Nada, Gisselle - respondi com um suspiro. - Não vamos discutir hoje. Por favor, Gisselle.

- Não estou a discutir. Só gostava de perceber o que quiseste dizer, só isso. Querias dizer que é tudo culpa minha, porque, se era isso...

 

- Não, não quis dizer isso. O paizinho tinha muito em que pensar para além de ti e de mim. Tinha o pobre tio Jean e a Daphne e os problemas nos negócios...

- Pois é - respondeu, apreciando a minha explicação. - Pois tinha. Mas mesmo assim ele devia ter tido mais cuidado consigo próprio. Sou aleijada e não tenho pai. Achas que a Daphne vai dar-me as coisas que eu quero e quando quero? Nunca. Tu também a ouviste quando fomos embora. Ela acha que o paizinho nos mimou demasiado, que me mimou de mais!

- Não vamos já tirar conclusões - disse, num tom de voz cansado. - A Daphne também deve estar de rastos. Se calhar...

se calhar ela vai estar diferente. Se calhar, vai precisar de nós e vai amar-nos mais.

Gisselle estreitou os olhos, à medida que pensava no que eu dissera. Eu sabia que ela estava apenas a tentar descobrir como poderia aproveitar-se da situação se o que eu dissera fosse verdade, como poderia manobrar o sofrimento de Daphne a fim de obter o que queria. Recostou-se para reflectir mais um pouco, e o resto da viagem prosseguiu calmamente, embora parecesse demorar o dobro do tempo necessário. Adormeci por algum tempo e voltei a acordar quando nos aproximámos do lago pontchartrain. Os contornos de Nova Orleães surgiram no nosso campo de visão e depressa estávamos a percorrer as ruas da

cidade.

Para mim, tudo parecia diferente. Era como se a morte do paizinho tivesse de certa forma mudado o mundo. As pequenas ruas sinuosas, os edificios com as suas varandas de ferro forjado, os graciosos jardins nas passagens, os cafés, o trânsito, e mesmo as pessoas... tudo parecia estranho e diferente. Era como se a alma da cidade tivesse desaparecido juntamente com a alma do paizinho.

Gisselle não teve a mesma reacção. Mal entrámos no Garden District, anunciou em voz alta que já faltava pouco para voltar a ver os seus velhos amigos.

- Tenho a certeza de que todos já ouviram falar do que aconteceu ao paizinho. Aposto que vêm visitar-nos. Mal posso esperar - afirmou. - Vou saber de todas as últimas bisbilhotices. - Sorriu alegremente.

Como podia ela ser tão egoísta?, pensei. Como era possível que a sua mente e o seu coração não estivessem de luto? Não pensaria ela no sorriso do paizinho, na sua voz, no seu terno abraço? Não estaria também ela tolhida pela dor, aquela dolência que transforma OS ossos em pedra e o sangue em gelo? Poderia eu ter saído assim... se tivesse sido a primeira a nascer e daí a escolhida para ser dada à família Dumas? A maldade desse acto ter-se-ia instalado no seu pequeno coração como um escuro monte de carvão e conspurcado cada pensamento e sentimento? Poderia isso ter acontecido comigo?

Como se já estivesse à espera há muitas horas, Edgar abriu-nos a porta mal chegámos. Parecia anos mais velho, os ombros estavam descaídos e a cara empalidecera. Apressou-se a ajudar-nos com as bagagens.

- Olá, Edgar - cumprimentei-o.

Os seus lábios tremeram quando me tentou cumprimentar, mas o mero acto de proferir o meu nome, um nome que o paizinho adorava pronunciar levou lágrimas aos seus olhos e entorpeceu-lhe a língua.

- Tira-me já daqui! - gritou Gisselle. O motorista dirigiu-se rapidamente ao porta-bagagens e Edgar foi ajudá-lo a tirar a cadeira de rodas de Gisselle. - Edgar!

 

- Sim, mademoiselle, vou a caminho - retorquiu, coxeando à volta da traseira do carro.

- A caminho... a caminho vem o Natal.

Conseguiram desdobrar a cadeira de rodas e lá sentaram Gisselle. Mal entrámos em casa, senti a fria escuridão que até as paredes permeava. Todas as luzes estavam reduzidas ao mínimo e as persianas corridas. Um homem alto e magro, de fato e gravata escuros, surgiu da sala de visitas. Tinha um rosto estreito, como se o seu nariz e até mesmo o queixo se dirigissem para um ponto invisível, lembrando-me um pelicano. A sua cabeça calva possuia algumas manchas, mas mesmo assim reluzia, com dois tufos de cabelo castanho-claro a sobressair mesmo por cima das orelhas. Parecia andar furtivamente, deslizando pelo soalho, mal se ouvindo os passos que fazia quando se movimentava.

- A madame pediu que o velório fosse aqui - avisou-nos Edgar. - Este é Monsieur Boche, o agente funerário.

O sorriso de Mr. Boche era de uma placidez quase doentia. Quando movia os lábios dava a ver uns dentes cinzentos, como se a sua boca fosse uma cortina presa pelos cantos. Juntou as mãos uma de encontro à outra e depois fez escorregar a palma direita por cima da mão esquerda, dando-me a impressão que necessitava de as secar antes de estender o braço para nos cumprimentar.

- Mademoiselles - disse -, as minhas mais profundas condolências. Sou Monsieur Boche, e estou aqui para garantir que, nesta hora de perda, todas as vossas necessidades sejam satisfeitas. Se precisarem de alguma coisa, basta simplesmente...

- Onde está o meu pai? - perguntei com mais autoridade do que tencionava. Até os olhos de Gisselle se arregalaram.

- Por aqui, mademoiselle - respondeu, fazendo uma vénia e virando-se com um suave movimento.

-  Não quero olhar para ele agora. - interveio Gisselle.

Virei-me para ela.

- Ele era o teu pai. Nunca mais poderás vê-lo.

- Ele está morto - queixou-se Gisselle. - Como é possível que queiras olhar para um caixão?

- Não queres despedir-te dele? - perguntei.

- Já me despedi. Edgar, leva-me para o meu quarto - exigiu.

- Muito bem, mademoiselle. - Ele ergueu o olhar para mim e depois virou Gisselle em direcção á escadaria. Eu segui Mr. Boche até à sala de visitas, onde se encontrava o caixão aberto do paizinho. Por cima e à volta, viam-se dúzias e dúzias de rosas coloridas. O odor forte e desagradável das flores quase intoxicava a sala. Ao lado do caixão, grandes velas bruxuleavam. Toda esta visão provocou-me um nó na garganta. Era mesmo verdade, nada daquilo era um sonho.

 

Virei-me porque senti o olhar de Daphne fixado em mim. Estava sentada numa cadeira de espaldar alto. Vestida de negro e com um véu escuro que lhe cobria a cara, a sua pose era de rainha-mãe, a quem o marido defunto havia deixado um exuberante dote. Aguardava que eu me ajoelhasse e lhe beijasse a mão. Não estava tão pálida e atormentada pela dor como eu pensara. Apesar de não ter posto rouge, continuava a usar o seu tom favorito de báton e um pouco de eyeliner. Tinha o cabelo preso atrás com pequenas travessas de pérolas, e havia uma elegância na sua maneira de estar que se tornava intimidante.

- Onde está a Gisselle? - quis saber.

- Ela quis ir para o quarto - retorqui.

- Disparate - afirmou, levantando-se da cadeira. - Ela tem de vir imediatamente para aqui.

Saiu da sala e eu aproximei-me do caixão. Ouvi Daphne gritar as suas ordens a Edgar, exigindo que ele trouxesse Gisselle de novo para baixo.

O meu coração batia violentamente e sentia as pernas bambas. Olhei para o paizinho. Vestia o seu smoking preto. e, à excepção do seu rosto, branco papel, parecia que estava simplesmente a dormir. Mr. Boche aproximou-se de mim tão silencioso que quase dei um salto quando me segredou ao ouvido.

- Está com bom aspecto, não está? Um dos meus melhores trabalhos - vangloriou-se. Olhei para ele com tanta raiva que se limitou a fazer uma vénia e afastou-se rapidamente, deslizando naqueles pés escorregadios. Depois cheguei-me ao caixão e peguei na mão direita do paizinho. Já não parecia uma mão; afastei da minha mente a sensação fria e rija que me invadia os dedos, e forcei-me a pensar nele a sorrir, quente e amoroso.

- Adeus, paizinho - sussurrei. - Desculpe por não ter estado cá quando mais precisava de mim. Tenho pena de não o ter tido ao meu lado quando cresci. Tenho pena de termos passado tão pouco tempo juntos. Sei que a minha mãe o amou muito e que o pai também a amou. Acho que herdei o melhor desse amor. Vou sentir a sua falta para todo o sempre. Espero que esteja com a mãezinha, que tenham feito as pazes e que ambos estejam a flutuar, felizes e contentes, numa canoa algures no bayou do céu.

Inclinei-me e beijei-lhe a face, ignorando desesperadamente a sensação de estar a beijar um rosto frio. Em seguida, ajoelhei-me

e rezei uma pequena oração em seu nome. Afastei-me do caixão ao mesmo tempo que Gisselle era empurrada para dentro da sala. Continuava a proferir as suas queixas suficientemente alto para que pudessem ser ouvidas.

- Estou cansada. Foi uma viagem longa e aborrecida. Por que razão tenho de vir aqui?

- Está calada - ordenou Daphne. Acenou a Edgar, o que significava que ele devia sair, regressando seguidamente para a sua cadeira de espaldar alto. Gisselle olhou para mim, depois para Daphne e em seguida amuou. - Aproxima-a mais - exigiu Daphne num tom de voz gelado. Dirigi-me para a cadeira de rodas de Gisselle e empurrei-a para perto de Daphne. - Senta-te - continuou, apontando para a cadeira em frente dela Rapidamente o fiz.

-           Porque não podemos descansar primeiro? - lamentou-se Gisselle.

-           Cala-te - ripostou Daphne.

Até mesmo Gisselle ficou impressionada, chegando a assustar-se com o tom autoritário das suas palavras. Recostou-se de boca aberta. Daphne olhou para ela com uns olhos que pareciam penetrarem nos seus pensamentos.

 

-           Durante muito tempo tive de aturar as tuas queixas, as tuas choraminguices e as tuas birras. Bem, tudo isso acabou. estás a ouvir? Olha para ali - disse, apontando na direcção do paizinho. - Estás a ver o que acontece se só te preocupares com os problemas dos outros, com as necessidades dos outros e com o que os outros gostam ou não gostam? Morre-se e é essa a recompensa.

"Pois não vai ser a minha. A partir de agora, vai haver profundas mudanças aqui, e é melhor que vocês as duas tenham consciência disso o mais depressa possível. Ainda sou uma mulher nova. Não faço tenção de deixar que estes incidentes me envelheçam e me perturbem, e era exactamente isso que aconteceria se deixássemos as coisas como estão.

-           Incidentes? - repeti.

-           Sim, incidentes. Tudo é um incidente. - Os seus lábios desenharam um sorriso maldoso. - Ah, não comeces com os

teus histerismos, Ruby. Conheço-te melhor do que julgas. - O seu sorriso desapareceu, sendo substituído por um olhar de pura raiva. - Vieste para aqui vinda dos pântanos e conseguiste um lugar no coração do teu pai, tornaste-te conivente, lembrando-lhe o grande romance que teve no bayou, com o único intuito de obter a tua parte da herança. Estou certa que foi a vossa grandmére que te convenceu a fazer isso.

Senti o sangue subir-me às faces; porém, antes que pudesse responder, ela continuou:

- Não te preocupes, não te culpo por isso - declarou. - Provavelmente, eu teria feito o mesmo se estivesse no teu lugar. Bem, o que está feito, feito está. Figuras no testamento do teu pai e terás a tua parte. Ambas terão - acrescentou, virando-se para Gisselle -, mas só entrará em vigor quando atingirem os vinte e um anos. Até lá, tudo ficará sob administração, sendo eu a testamenteira. Sou eu que decido o que vocês vão receber agora e o que não recebem. Sou eu que vos digo para onde vão e o que fazem.

Gisselle sorriu maliciosamente.

- Sempre quis ser o patrão, mãe - disse ela com um aceno.

- Sempre fui, minha parva. Acreditaste realmente que era o teu pai que mandava nos negócios? Ele não tinha nenhum sentido prático. Negócios?! Não tinha coração para isso. Nunca conseguia tomar as decisões mais dificeis se estas envolvessem tirar algo de alguém ou pôr alguém de parte. O vosso pai era demasiado brando nos negócios. Se não fosse eu, não teríamos agora metade do que temos. E a verdade é que vocês as duas vãO herdar uma grande parte disso. Demasiado, se quiserem saber a minha opinião, mas é assim que as coisas funcionam.

"Não tenho esperanças de que me fiquem agradecidas, mas espero, sim, que sejam obedientes e colaborem - continuou.

O funeral terá lugar dentro de dois dias - afirmou, sentando-se na cadeira de uma forma ainda mais firme. - Depois disso, regressarão para Greenwood.

- Oh, mas... mãe - lamuriou-se Gisselle.

 

- Sim, vão - insistiu Daphne. - Neste momento, não tenho nem força nem paciência para lidar com vocês as duas diariamente. Quero que voltem, que se dêem bem por lá, que obedeçam a todas as regras e que não se metam em problemas, percebem? Aviso-vos: se me causarem nem que seja uma sombra de aborrecimento, mandar-vos-ei para um local ainda mais severo. E se realmente me irritarem, tratarei de anular a vossa herança, estão a perceber? Depois, Gisselle, enfiar-te-ão numa casa para pessoas deficientes e nessa altura arrepender-te-ás. E tu - afirmou, focando a sua raiva em mim -, tu serás recambiada para o bayou, para viveres com quem quer que tenha sobrado da tua família cajun.

Gisselle baixou a cabeça e fez uma careta. Eu limitei-me a olhar para Daphne. Ela tinha-se transformado na rainha do gelo. água enregelada corria-lhe pelas veias. Tenho a certeza de que, se lhe tocasse naquele momento, estaria mais fria do que o paizinho no seu caixão. Devia ter-me dado conta de que ela ficaria assim. Gisselle tinha razão: Daphne odiava-nos mais do que amara o paizinho.

- Agora leva a tua irmã para cima e preparem-se para cumprimentar os vários pranteadores que estão aqui dentro de breves momentos para prestar as suas últimas homenagens. Assegurem-se de que estão bem vestidas e de que se comportam de maneira apropriada.

- Avisaram o tio Jean sobre o paizinho? - perguntei.

- Claro que não - retorquiu; - Com que objectivo?

- Ele tem o direito de saber. É seu irmão.

- Por favor, o homem nem sequer sabe que dia é hoje ou onde está. Nem mesmo o próprio nome...

-Mas...

Ela levantou-se na nossa direcção, a sua beleza de tal forma endurecida que mais parecia uma estatueta saída de um molde.

- Limitem-se a fazer o que eu vos digo e preocupem-se com vocês. Parece-me - acrescentou, olhando para Gisselle e depois de novo para mim - que têm coisas suficientes com que se preocupar.

Fez um sorriso cavernoso antes de se virar e sair.

Gisselle abanou a cabeça e suspirou.

- Eu avisei-te, não avisei? Não foi? - queixou-se. - Agora vai mandar-nos de volta para Greenwood. Nem sequer tive oportunidade de lhe explicar por que razão não devia fazer isso. Se calhar, podes dizer-lhe qualquer coisa mais tarde. Ela há-de ouvir-te melhor a ti. Tenho a certeza.

- Eu não quero ficar aqui - intervim, furiosa. - Por muito mau que seja Greenwood, prefiro estar lá a ter de ficar aqui com ela.

- Oh, maldita sejas por seres tão estúpida. Depois de uns tempos, ela deixa de nos chatear. Ela fará as suas coisas e deixar-nos-á em paz. Estaremos melhor aqui e poderás estar com o Beau.

- Não quero pensar sobre isso agora. Só quero pensar no paizinho - disse; comecei a empurrá-la para fora da sala.

- O paizinho está morto. Ele não pode ajudar-nos. Nem sequer pode ajudar-se a si próprio!

Edgar estava à espera ao fundo das escadas para dar assistência a Gisselle.

- Onde está a Nina? - perguntei-lhe.

- Está no seu quarto. Ultimamente tem passado a maior parte do tempo lá - respondeu e fez um sinal com a cabeça, de forma a que eu percebesse que Nina se tinha voltado para o vodu para pedir consolo e protecção. Ouvimos alguém nas escadas e olhámos para cima, dando de caras com a nova criada, Martha Woods, uma mulher mais velha, corpulenta, com o cabelo grisalho cortado por cima das orelhas, de olhos castanho-escuros

 

e de boca carnuda, onde se destacava um grosso lábio inferior. Tinha negligenciado a remoção de certos pelos da cara, os quais se enrolavam no queixo.

- Oh, estas devem ser Mademoiselle Gisselle e Mademoiselle Ruby - disse, juntando as mãos. - Peço desculpa por não ter estado cá antes para vos cumprimentar, mas estive a preparar os vossos quartos. Está tudo limpo e arrumado, como se fosse novo em folha - declarou. - E madame insiste que os mantenhamos assim.

- Oh, não - lamuriou-se Gisselle. - leva-me só para o quarto, Edgar.

- Eu ajudo - ofereceu-se Martha.

- O Edgar pode fazê-lo sozinho - ripostou Gisselle. - Olha, vai lavar uma casa de banho qualquer.

Martha ficou engasgada e olhou para mim.

- Eu vou ver a Nina - murmurei e saí o mais depressa possível. Encontrei-a sentada na sua cadeira almofadada, rodeada de pequenas velas azuis. Usava um tignon vermelho a prender-lhe o cabelo com os sete nós a apontar para cima. Quando me viu, os seus olhos luziram e sorriu. levantou-se para me abraçar.

- A Nina tem estado a pensar em si todo o dia - disse ela. Olhou à volta, receosa. - Esta casa está cheia de espíritos malignos, rastejando por cada frecha, desde a morte de Monsieur Dumas. A Nina preparou isto para si. - Estendeu o braço e apanhou um osso que estava em cima duma pequena mesa.

- Isto é mojo, o osso da perna de um gato preto, morto exactamente à meia-noite. Forte amuleto. Ponha no seu quarto.

- Obrigada, Nina - agradeci, guardando o objecto.

- Alguém deve ter queimado uma vela contra o pobre Monsieur Dumas. Os espíritos do mal entraram às escondidas pela casa dentro quando a Nina estava a dormir uma noite e foram e enfiaram os dentes nele. - Parecia sentir-se culpada.

- Oh, Nina. A culpa não foi tua. O meu pai tinha muita coisa em que pensar e não teve cuidado com a saúde. Ele seria o último a culpar-te, Nina.

- A Nina tentou. Rezei à Virgem Maria. Fui ao cemitério e fiz os quatro cantos, parando em cada um para pedir um desejo para Monsieur Dumas ter outra vez saúde. Disse orações à frente da estátua do Santo Expedito, mas os maus espíritos encontraram um tapete de boas-vindas - continuou, estreitando subitamente os olhos. Acenou. - A porta tinha ficado aberta.

-A Daphne! - afirmei.

- A Nina não fala mal da madame.

Sorri.

- Tive saudades tuas, Nina. Tinha-me dado jeito ter algumas das tuas velas e pós em Greenwood.

Ela sorriu para mim.

- Cozinho todo o dia para fazer comida para o velório. Tem de comer. Vai precisar de forças - avisou.

- Muito obrigada, Nina.

Abraçámo-nos outra vez e fui para cima, para o meu quarto, telefonar a Beau a avisá-lo de que estava em casa e que precisava desesperadamente da sua companhia a meu lado.

 

- Lamento que esta seja a razão que te trouxe de volta a casa - disse Beau. - Mas estou ansioso por te ver.

- Também mal posso esperar para te ver - repeti.

- Os meus pais e eu vamos aí apresentar as nossas condolências. Em breve estarei aí - disse-me.

 

Depois de termos falado, mudei de roupa para algo mais apropriado para o velório e fui à porta ao lado ver se Gisselle tinha feito o mesmo. Ela não tinha sequer começado; continuava a falar ao telefone, tentando descobrir as últimas novidades dos antigos amigos.

- A Daphne quer que a gente vá lá para baixo cumprimentar as visitas - avisei-a. Fez um sorriso de desdém e continuou a bisbilhotar ao telefone como se eu não estivesse no quarto. - Gisselle!

- Oh, espera um minuto, Collette. - Pôs a mão a tapar o bocal e virou-se de forma agressiva na minha direcção. - O que é que queres agora?

- Tens de te vestir e vir lá para baixo. As pessoas estão a chegar.

- E depois? Não sei porque tenho de ir a correr lá para baixo. Isto é pior que... pior do que estar em Greenwood - declarou; voltou a concentrar-se na sua conversa ao telefone. Toda a paciência que eu ainda tinha evaporou-se por completo.

Dei meia volta e saí dali para fora. Gisselle era um problema de Daphne, disse a mim própria. Ela é que a tinha educado, incutido aqueles valores e ensinado a ser egocêntrica. Elas mereciam-se uma à outra.

As pessoas tinham começado a chegar: vizinhos, sócios dos negócios, empregados e, claro está, os conhecimentos sociais de Daphne. A maioria chegava até ao caixão do paizinho, ajoelhava-se para dizer uma oração, depois da qual se juntava a Daphne, que cumprimentava as pessoas com uma tal elegância que dir-se-ia ser de sangue real. Reparei que Bruce Bristow, o administrador dos negócios do paizinho, estava constantemente ao lado de Daphne, pronto para acatar qualquer uma das suas ordens. De vez em quando, via-a inclinar-se e sussurrar-lhe algo ao ouvido. Por vezes ele sorria, outras vezes acenava e afastava-se dela aproximando-se de um dos ilustres visitantes, a quem apertava a mão, levando-o depois para junto de Daphne.

Bruce não era muito mais velho do que o paizinho, se por acaso era mais velho. Era mais alto e um pouco mais corpulento, com cabelo castanho-escuro e patilhas. Só o tinha encontrado duas ou três vezes antes, e sempre me sentira um pouco incomodada pela maneira como me observava com aqueles olhos cor de amêndoas, sorrindo modestamente ao mesmo tempo que baixava os olhos e mirava os meus seios. Fixava o olhar ali por um momento e depois continuava a baixar os olhos até que estava praticamente a observar os meus pés, antes de voltar a levantar o olhar e começar de novo todo o percurso contrário. Sempre me sentira pouco confortável na sua presença; era como se me despisse com a sua imaginação, como se estivesse completamente nua aos seus olhos.

Por outro lado, ele arranjara uma alcunha para mim desde a primeira vez que me havia visto. Chamava-me La Ruby, como se eu fosse a jóia da qual me deram o nome. Depois, quando pegou na minha mão para a beijar, os seus lábios permaneceram mais tempo do que deviam, provocando no meu braço um tremor nervoso.

Por um momento, quando não tinha ninguém com quem falar, Daphne atravessou a sala de visitas e veio na minha direcção.

- Onde está a tua irmã? Porque não está já cá em baixo? - inquiriu, colocando as mãos por cima das ancas.

 

- Não sei, mãe - respondi. - Eu disse-lhe para se vestir, mas ela não larga o telefone.

- Vai já lá acima e trá-la imediatamente cá para baixo - ordenou.

- Mas...

- Eu sei... - interrompeu-me com um sorriso maldoso. - Eu sei que tu só estás aqui à espera que o teu precioso namorado Beau chegue com os pais. - O seu sorriso desapareceu. - Se não trazes a Gisselle cá para baixo, encarrego-me de que não consigas passar nem um só momento sozinha com ele. Nem hoje, nem nunca.

- Porque tenho eu de ser responsável pela minha irmã? Ela...

- Porque tu és a querida irmã gémea dela, por inteiro, sem deficiências - retorquiu, voltando a sorrir. - E é mais uma oportunidade para tu fazeres uma boa acção, exerceres uma graça. Gostava que todas estas pessoas vissem como tu és bem capaz de tomar conta da tua irmã mais desafortunada. Agora vai!

- ordenou. Mal ela acabou de proferir estas palavras, Beau e os pais entraram na sala de visitas. A visão dele ergueu a camada de gelo que envolvia o meu coração. - Cada coisa a seu tempo - avisou Daphne, olhando de soslaio em direcção a Beau. - Vai buscar a Gisselle.

- Muito bem, mãe - respondi, levantando-me.

Beau olhou para os pais e depois acorreu ao meu encontro.

- Ruby - chamou, pegando-me na mão e falando num tom formal suficientemente alto para agradar aos pais e a todos os que o rodeavam. - Lamento o que aconteceu ao Pierre. Por favor, aceita os meus mais profundos pêsames.

- Muito obrigada, Beau. Tenho de ir ajudar a Gisselle por um momento. Por favor, desculpa-me.

- Claro - respondeu, dando um passo atrás.

- Estou de volta num instante - Salientei. Corri lá para cima, onde encontrei a teimosa da minha irmã a debicar chocolates de uma caixa na mesinha-de-cabeceira ao lado da cama, ao mesmo tempo que conversava com um dos seus antigos namorados ao telefone.

- Gisselle! - gritei, sentindo a cara inundada de raiva e frustração. Ela voltou-se para mim, surpreendida. - A tua ausência tornou-se embaraçosa para a mãe e para mim, como também para a memória do paizinho. - Atravessei o quarto em fúria e peguei no auscultador. Ela gritou em protesto quando o atirei para o gancho do telefone. - Vais imediatamente pôr o teu vestido preto e descer já comigo!

- Como te atreves!

- Já! - Dei um berro e peguei à bruta na cadeira de rodas, empurrando-a para a casa de banho. - Lava-me mas é essa maquilhagem enquanto eu vou buscar o teu vestido, senão, eu juro - ameacei -, eu juro que te atiro pelas escadas abaixo.

Ela olhou uma vez mais para a minha cara enfurecida e desistiu. Claro que colaborou muito pouco, obrigando-me a ter todo o trabalho de lhe tirar o que tinha vestido e enfiar o fato e os sapatos apropriados; por fim, foi-me possível levá-la para o cimo da escadaria.

- Detesto estas coisas - choramingou. - O que devo eu fazer? Ficar ali sentada a soluçar?

 

- Limita-te a deixar as pessoas apresentarem as suas condolências e fica quieta. Se tiveres fome, podes comer qualquer coisa.

- E estou mesmo com fome - afirmou. - Sim. Isso é uma boa razão para descer.

Edgar veio cá acima e ajudou-me a fazê-la descer pelo elevador. Colocámos Gisselle na cadeira de rodas e empurrei-a até à sala de visitas. Muitas mais pessoas haviam entretanto chegado. Todos olharam na nossa direcção, algumas das mulheres sorrindo placidamente e com tristeza. As pessoas que tinham trazido os filhos mandavam-nos para junto de nós para nos oferecerem a sua solidariedade. Por fim, Beau veio para o nosso lado, baixando-se para beijar Gisselle.

- Bem, já não era sem tempo - disse-lhe ela. - E não tens de me beijar como se eu fosse a avó caquéctica de alguém.

- Eu dei-te o beijo apropriado - retorquiu ele, com os olhos a sorrir quando depois olhou para mim.

- Aposto que darás à Ruby o beijo certo mais tarde - concluiu Gisselle.

Reparei que Daphne estava a olhar para nós, acenando, cheia de satisfação.

Passado algum tempo, Gisselle começou a conversar com alguns dos outros jovens, e eu e Beau tivemos oportunidade de nos escapar. Saímos para o terraço.

- Há já tanto tempo que não estou sozinho contigo - disse. - Sinto-me um pouco nervoso.

- Eu também - confessei.

- É tão dificil acreditar que o Pierre morreu. Há muito tempo que eu não passava por aqui. Por isso, não reparei como ele tinha mudado, mas o meu pai limitou-se a dizer que algo de mal iria acontecer-lhe. Ele parecia estar sempre cansado, cheio de problemas, e tinha perdido a alegria. Já não se juntava aos amigos para o habitual jogo de cartas ou para ir ao teatro. Já era raro verem-no a ele ou á Daphne em qualquer dos restaurantes bons que costumavam frequentar.

- Se ao menos não nos tivessem mandado para Greenwood - lamentei-me. - Eu poderia ter visto o que estava a acontecer e ter feito qualquer coisa. Na última vez que me telefonou, parecia estar muito cansado, mas insistiu que não era nada.

Beau acenou.

- Vais voltar para Greenwood?

- A Daphne insiste que nós temos de ir.

- Já tinha pensado que ela o iria fazer. Não te preocupes. A partir de agora, hei-de ir visitar-te várias vezes. A época do futebol está a acabar.

- Pelo menos, as tuas visitas vão tornar aquilo mais suportável - disse-lhe. - E as férias vêm aí daqui a poucas semanas... e voltaremos para casa.

Ele acenou afirmativamente e pegou na minha mão. Sentámo-nos no banco e ficámos a olhar para a noite parcialmente nublada, que só permitia que algumas estrelas mostrassem todo o seu fulgor.

- Antes de me ir embora, tenho de ver o meu tio Jean, Beau. Ele tem de saber o que aconteceu ao paizinho. Provavelmente está a interrogar-se sobre a razão por que o paizinho não vai visitá-lo. Não é justo. A Daphne não se preocupa em dizer-lhe. Declara apenas que ele não compreenderá... Mas eu vi-o. Sei que ele vai compreender.

- Eu levo-te lá - prometeu Beau.

- levas?

 

- Sim. É só dizeres quando - acrescentou com firmeza.

- E os teus pais? Não vão ficar zangados?

- Eles não têm de saber. Quando?

- Amanhã. Vamos o mais cedo que puderes.

- Eu falto ao treino. O treinador há-de compreender. Passo por aqui por volta das três - sugeriu.

- A Daphne não vai permitir. Tenho a certeza. Por isso encontramo-nos na parte de fora do portão. Detesto fazer coisas às escondidas, mas ela obriga-me.

- Não faz mal - disse Beau, pondo o braço à volta dos meus ombros. Sabia tão bem estar nos seus braços. - Não faz mal fazer qualquer coisa às escondidas se o resultado for algo de bom.

- Oh, Beau, agora estou completamente sozinha. Estou mesmo! - Lamentei num tom mais desesperado do que era minha intenção.

Os seus olhos encheram-se de tristeza.

- Não, não estás. Tens-me a mim, Ruby. Ter-me-às sempre - Jurou.

- Não faças promessas, Beau - interrompi-o, pondo o dedo indicador por cima dos seus lábios. - É melhor não fazer promessas de que fazer alguma que não se possa cumprir.

-Esta... eu posso cumprir, Ruby - garantiu. - E vou selá-la com um beijo.

Juntou os seus lábios aos meus. Sabiam tão bem, mas senti-me culpada por estar a ter prazer no seu beijo ao mesmo tempo que o paizinho jazia morto na sala de visitas. A minha cabeça e o meu coração deviam estar direccionados só para ele, pensei, o que me fez afastar de Beau.

- É melhor voltarmos antes que dêem pela nossa falta, Beau.

-           Okay. Amanhã, às três - repetiu.

Apesar de os visitantes terem saído relativamente cedo, pareceu-me que já era muito tarde. Não me tinha dado conta de quão cansativa era a tristeza emocional. Beau e os pais foram dos últimos a sair. Ele piscou-me o olho de forma conspiradora e continuou a agir formalmente enquanto nos despedíamos.

Depois de todos se terem ido embora, Bruce Bristow e Daphne foram para o escritório do pai para discutir alguns negócios, e Gisselle e eu fomos para os nossos quartos. Consegui ouvi-la falar com alguns dos seus antigos amigos até altas horas da noite. De facto, foi o sussurro da sua voz e as suas parvas risadinhas que me aconchegaram num sono bem-vindo.

 

Daphne não desceu para tomar o pequeno-almoço. Entretanto, o padre chegou pela altura do almoço para discutir os últimos pormenores do funeral. Alguns dos amigos de Gisselle vieram visitá-la, na minha opinião mais por curiosidade do que por lealdade. Deixei-os andar à vontade e retirei-me para o meu atelier de pintura. lembrei-me de como o paizinho ficara entusiasmado e contente da primeira vez que me trouxera a ver aquele local. E depois o meu coração palpitou com uma tremura de exitação, que me aqueceu o peito, ao recordar o dia em que comecei a pintar Beau nu. Uma coisa levou a outra tão rapidamente e com tal intenção que ainda conseguia sentir na pele a deliciosa descida em êxtase que nesse dia tinha inaugurado até à minha mais profunda sexualidade, quando o abraçara, beijara e cedera aos seus desejos avassaladores. Estava tão perdida nessas memórias que quase faltei ao nosso encontro em frente da casa.

Saí a correr pela entrada lateral e desci pelo caminho que dava até ao passeio para aguardar a sua vinda às três horas. Beau chegou pontualmente. Entrei de imediato no seu carro e em poucos minutos estávamos a acelerar em direcção à clínica onde o pobre irmão mais novo do meu pai definhava num mundo confuso de ansiedade mental. Não consegui evitar estar nervosa e assustada. Beau sabia que Daphne tinha outrora tentado confinar-me a esse mesmo local como forma de me afastar da vida dela.

- Eu sei quão assustador deve ser este sitio para ti. Tens a certeza de que consegues fazer isto? - perguntou-me.

-Não... - respondi. - Mas sinto que tenho de o fazer pelo paizinho. É uma coisa que ele gostaria que eu fizesse.

Pouco mais de meia hora depois, encostámos junto ao edificio de estuque cinzento de quatro andares, com grades nas janelas. Devagar, saí do carro e, com Beau ao lado, entrei na clínica. A enfermeira que se encontrava por trás do guichet de vidro mesmo à nossa frente só levantou o olhar quando estávamos praticamente em cima da secretária.

- O meu nome é Ruby Dumas - disse. - Gostaria de ver o meu tio Jean.

- Jean Dumas? - perguntou. - Ah, sim. Acabámos de o mudar, ainda esta manhã, para as suas novas instalações.

- Novas instalações? Mas ele ainda está cá, não está?

- Sim, está cá, mas já não está alojado num quarto privado. Agora encontra-se numa enfermaria.

-Mas... porquê? - quis saber.

Ela fez um sorriso complacente.

- Porque quem está a pagar por ele deixou de satisfazer os honorários extras, e neste momento a sua estada está só coberta pelo seguro - retorquiu.

Olhei para Beau.

- Ela não perdeu tempo, hâ? - disse eu. - Podemos ver o meu tio, por favor? - perguntei à enfermeira.

- Sim. Só um momento. - Premiu um botão, e alguns segundos mais tarde um contínuo apareceu. - leva estas pessoas à enfermaria C para visitar o Jean Dumas.

- Lorde Dumas - afirmou, sorrindo. - Certo. Por aqui

- indicou, e seguimo-lo através de uma porta e por um comprido corredor.

- Porque é que lhe chama Lorde Dumas? - perguntou Beau.

- Oh, é apenas uma piada do pessoal. Apesar dos problemas que ele tem, o Jean adora as suas roupas e tem muito cuidado com a aparência. Pelo menos costumava ter.

- O que quer dizer com "costumava"? - perguntei.

- Desde que o mudaram, e até mesmo um pouco antes,

deixou de se preocupar. Os médicos estão preocupados. Normalmente levamo-lo para a sala de jogos depois do almoço, mas nos últimos dias tem estado um bocado mais deprimido. Por isso, volta sempre para a enfermaria.

Olhei de relance para Beau.

- Como é essa enfermaria? - pensei em voz alta.

O contínuo parou.

- O Ritz não é de certeza - respondeu.

 

Isso bastava como indicação.. A enfermaria masculina consistia simplesmente numa dúzia de camas em fila, cada uma ladeada pelo respectivo armário de metal. Havia três janelas espaçadas de um lado e duas do outro, todas com grades. O chão era de cimento e as paredes estavam pintadas de um castanho insipido. A luz era frouxa, mas era possível ver o tio Jean ao fundo, sentado na ponta da cama. Uma enfermeira tinha acabado de lhe dar qualquer coisa e vinha ao nosso encontro.

- Tenho aqui duas visitas para o Jean - avisou-a o continuo.

- Ele hoje está um bocado deprimido. Nem sequer comeu muito ao almoço. Tive de lhe dar alguns remédios. São da família? - perguntou-nos.

- Eu sou sobrinha. O meu nome é Ruby.

- Oh - disse ela, sorrindo. - A Ruby que lhe escreve cartas de tempos a tempos?

- Sim - afirmei, contente por saber que ele afinal sempre recebia as minhas cartas.

- Ele aprecia muito essas cartas, embora eu às vezes me interrogue se ele realmente lê as palavras. às vezes fica sentado com uma carta na mão durante horas, simplesmente a olhar para ela. Quando estava no seu próprio quarto, de vez em quando eu lia-lhas. São cartas muito simpáticas.

- Muito obrigada. Ele está a ficar pior?

- Receio que sim. A mudança e todas estas coisas também não ajudaram. Ele costumava ter tanto orgulho na maneira como mantinha o quarto...

- Eu sei - disse. - Eu lembro-me.

- Ah, foi visitá-lo lá?

- Não exactamente - declarei. A enfermeira não se encontrava a trabalhar ali quando eu fora obrigada a viver naquela clínica; por essa razão não se lembrava de mim. Mas não vi qualquer motivo para trazer tudo isso ao de cima.

Ainda com Beau ao meu lado, caminhei até junto do tio Jean, sentado a olhar para as mãos. O seu cabelo dourado estava desgrenhado e vestia um par de calças enrugado e uma camisa branca por passar a ferro e com algumas nódoas de comida à frente.

- Olá, tio Jean - arrisquei, sentando-me ao seu lado. Peguei nas mãos dele e ele voltou-se, olhando primeiro para cima, para Beau, e em seguida para mim. Apercebi-me de um brilho de reconhecimento nos seus olhos azul-esverdeados e um pequeno sorriso começou a aflorar-lhe aos lábios.

- lembra-se de mim... A Ruby? Sou a outra filha do Pierre. Sou a que tem mandado as cartas. - O seu sorriso aumentou. - Vim para casa da escola porque... porque aconteceu uma tragédia, tio Jean, e agora vim dizer-lhe porque acho que

também tem direito a saber. Acho que devia saber...

Olhei para Beau, para ver se ele era de opinião que eu devia continuar ou não. Ele acenou. Jean continuava a observar-me, os olhos virando-se ligeiramente de um lado para o outro, ao mesmo tempo que me estudava o rosto.

- É o paizinho, tio Jean... Ele... O coração dele não aguentou e ele... ele morreu - afirmei por fim. - É por isso que não tem cá vindo visitá-lo. É também por isso que o tio

foi mudado para esta enfermaria. Mas eu vou fazer queixa

a Daphne e vou tratar do regresso do tio ao seu quarto. Pelo menos, vou tentar - concluí.

 

Gradualmente, o ligeiro sorriso da sua boca foi murchando e os seus lábios começaram muito suavemente a tremer. Pus a minha mão no seu ombro e acariciei-o com doçura.

- O paizinho gostaria que eu tivesse cá vindo, tio Jean. Tenho a certeza. Ele estava muito infeliz pelo que tinha acontecido entre vocês os dois e sentia-se muito triste com a sua doença. Queria tanto vê-lo melhorar. Ele amava-o muito. Sei que o amava - insisti.

Os lábios do tio Jean tiritavam cada vez mais. Os

olhos começaram a piscar e senti uma tremura nas suas mãos. De repente, abanou a cabeça, primeiro suavemente e depois com mais vigor.

-Tio Jean...

Ele abriu a boca para logo voltar a fechá-la, abanando a cabeça cada vez com mais força. A enfermeira e o contínuo

aproximaram-se. Olhei para eles na mesma altura que o tio Jean começou a fazer um som ininteligível.

-Aaaaaaaaa...

- Jean - interrompeu a enfermeira, aproximando-se rapidamente dele. - O que é que lhe disse? - quis saber.

- Tive de lhe dizer que o seu irmão, o meu pai, morreu - respondi.

- Ai, meu Deus. Calma, Jean - sussurrou-lhe.

Os ombros dele começaram a abanar e ele continuava a abrir e a fechar a boca, provocando aquele som perturbador.

- Agora é melhor que vocês os dois se vão embora - aconselhou a enfermeira.

- Lamento muito. Não queria causar problemas, mas achei que ele devia saber.

- Está tudo bem. Ele vai ficar bem - assegurou-nos, mas percebia-se que estava ansiosa que nós saíssemos.

levantei-me, e o tio Jean mirou-me com desespero. Por um momento, permaneceu silencioso e eu decidi abraçá-lo rapidamente. Assim o fiz.

- Voltarei cá outra vez, tio Jean - prometi, por entre as lágrimas que desciam pela minha face; depois, virei costas para sair. Beau seguiu-me em direcção à porta. Estávamos quase lá quando o tio Jean gritou.

-P... P... Pierre!

Voltei-me e vi-o enterrar a cabeça entre as mãos. A enfermeira ajudou-o a deitar-se na cama e levantou-lhe as pernas para que ele ficasse deitado o mais calmamente possível.

- Oh, Beau - disse. - Não devia ter vindo. A Daphne tinha razão. Não devia ter-lhe contado.

- Claro que devias ter vindo. De outra forma, ele ter-se-ia sentido completamente abandonado pelo facto de o Pierre nunca aparecer. Pelo menos agora, ele percebe porquê e sabe que ainda te tem a ti - acalmou-me Beau, pondo o braço à volta dos meus ombros.

A minha cabeça tombou no seu ombro e depois deixei-o levar-me a casa, onde o paizínho estava deitado à espera das últimas despedidas.

 

O VeRNIZ eSTALA

Pedi a Beau que estacionasse junto ao muro, um quarteirão antes da minha casa.

-           Sinto-me como se fosse a Gisselle, a entrar às escondidas desta maneira - confessei -, mas prefiro que a Daphne não te veja a deixar-me aqui.

Ele riu.

-           Não faz mal. Por vezes, os esquemas da Gisselle até dão jeito. Só é pena que ela também não aprenda qualquer coisa contigo.

Inclinou-se para me dar um suave beijo nos lábios antes de eu sair do carro.

-           Estarei aqui hoje à noite - gritou quando eu já estava a afastar-me. Acenei-lhe um adeus e corri pelo passeio acima para poder entrar às escondidas pela porta lateral.

A casa estava muito silenciosa. Dei a volta lentamente e depois comecei a subir as escadas, que parecia rangerem mais do que o costume só porque tentava ser discreta. Estava quase no cimo quando ouvi Daphne a chamar-me. Virei-me e olhei para ela, que se encontrava lá em baixo com ar zangado. Bruce Bristow estava a seu lado.

-           Onde é que estiveste? - exigiu saber, com as mãos postas sobre as ancas. Usava um dos seus conjuntos de saia e casaco de negócios, rouge, báton e até eyeliner, mas trazia o cabelo solto.

-           Fui ver o tio Jean - confessei. Já tinha decidido que não iria mentir se ela me apanhasse e, seja como for, queria saber porque é que ela tinha cortado os fundos para o tio Jean na clínica, obrigando-o dessa forma a ser transferido para a enfermaria.

-           Fizeste o quê? Vem cá abaixo imediatamente - ordenou, apontando com o indicador em direcção ao chão. Deu uma volta e entrou marchando na sala de estar.

Bruce mirou-me lá de baixo, escamoteando um pequeno sorriso de laivos diabólicos, que lhe assentava confortavelmente nos cantos da boca. Depois virou-se e seguiu Daphne. Estava quase a meio caminho quando Gisselle me chamou de lá de cima, onde se tinha posicionado na cadeira de rodas para ver o meu confronto com a nossa madrasta.

- Eu poderia ter-te encoberto - disse -, mas tu nem sequer me disseste para onde é que ias. - Abanou a cabeça. Nem sequer pude inventar nada quando ela veio à tua procura.

- Não faz mal. Também não me dá gozo nenhum mentir ou andar às escondidas.

- É pena - acrescentou. - Agora vais meter-te em sarilhos.

Fez um sorriso malicioso de gozo antes de dar meia volta com a cadeira e regressar ao quarto. Continuei a descer as escadas velozmente e entrei na sala de estar. Daphne estava sentada no sofá, mas Bruce mantinha-se de pé a seu lado, com as mãos juntas à frente. Franzia a testa, expressão esta que usava mais por causa dela do que por minha.

 

- Anda já cá para dentro - proferiu Daphne, pois eu tinha parado junto à porta. Aproximei-me dela com o coração a bater. - Pensei que te tinha dito para não ires ter com o Jean. E que também tinha dito para não lhe dizeres nada - disse num rompante.

- O paizinho quereria de certeza que ele soubesse - retorqui. - Além disso, se eu não lhe tivesse dito, estaria eternamente à espera do paizinho e a imaginar por que razão ele nunca ia lá.

Ela fez um sorriso de desdém.

- Tenho a certeza de que ele não imagina nada. - Os seus olhos tornaram-se finas brechas e os lábios comprimiram-se por um momento. - Quem te levou? O Beau? - Não respondi e ela acenou com o seu sorriso frio. - Os pais dele não vão gostar de saber que ele fez parte desta desobediência. Desde que estás em Greenwood, ele não se meteu em nenhum problema, mas mal tu voltas...

- Por favor, não lhe provoque qualquer problema. Ele não fez parte de nada. Ele foi simplesmente simpático o suficiente para me levar lá.

Ela abanou a cabeça e lançou um olhar a Bruce, que a acompanhou no seu desdém.

-           Seja como for - continuei, reunindo toda a minha coragem -, agora já sei a verdadeira razão por que não queria que eu o fosse ver. - Falei de forma tão abrupta que até as sobrancelhas de Bruce se levantaram. - Secretamente mudou o tio Jean do seu quarto particular para uma enfermaria.

Ela recostou-se e dobrou os braços por baixo do peito.

- Secretamente? - Riu-se, soltando uma gargalhada oca e estridente, antes de olhar para Bruce. Depois virou-se para mim com um olhar de censura. - Não preciso de fazer nada em segredo. Não preciso de permissão tua, nem da tua irmã, nem de ninguém para fazer o que for relacionado com esta família.

- Porque é que o fez? - gritei. - Nós podemos pagar os custos de o manter num quarto particular.

- Um quarto particular era um gasto inútil de dinheiro. Sempre pensei assim - disse com frieza. - Não que eu tenha de vos explicar as minhas decisões, a ti ou à tua irmã.

- Mas ele agora está a regredir. É o que as enfermeiras dizem. Ele já não se preocupa consigo próprio como costumava e...

- De qualquer maneira, ele não estava a fazer verdadeiros progressos. Tudo o que o Pierre fazia era aliviar a sua

consciência, esbanjando dinheiro extra com o Jean. Era despesa ridícula.

- Não era - insisti. - Eu vi a diferença, a mãe, não.

- Desde quando tens um diploma em doenças mentais? - ripostou. Depois, voltou a sorrir friamente, um sorriso que

provocou um arrepio na espinha. - Ou terás herdado alguns poderes mágicos da tua grandmére curandeira?

Um calor invadiu-me a cara. Daphne nunca perdia uma oportunidade de troçar da memória da minha grandmére.

adorava ridicularizar o mundo cajun. Inspirei profundamente defendi a minha causa com firmeza.

- Não, eu dela só herdei compaixão e bondade humana - respondi. As minhas palavras foram tão directas que ela

meceu. O sorriso de Bruce, fosse ou não diabólico, já desaparecera da cara. Passava o seu peso de uma perna para a outra enquanto olhava de forma apreensiva para Daphne.

- Já chega - disse ela devagar, os seus olhos negros

 

como as sombras no pântano. - Tu desobedeceste-me. Quero que percebas desde o início o que significa ser insubordinada. O teu pai já cá não está para inventar desculpas para ti. Encostou-se e puxou os ombros para cima a fim de proferir a sentença. - Vais lá para cima e vais ficar no teu quarto até à hora do funeral do teu pai. Farei com que a Martha te leve as refeições e não poderás ver ninguém.

- Mas o velório... Cumprimentar os visitantes...

- Arranjaremos uma desculpa para ti. Diremos às pessoas

que não estás a sentir-te bem. Dessa maneira, evitaremos que todos saibam do teu mau comportamento - disse rispidamente.

- Mas não foi mau comportamento - insisti. - Eu tenho todo o direito de ver o tio Jean, ele devia saber o que aconteceu ao paizinho e, além disso, não devia tê-lo mudado para a enfermaria.

Por um momento, a minha continua provocação desarmou-a. Mas Daphne pouco demorou para recuperar toda a sua crueldade . num movimento continuo, inclinou-se para a frente.

- Quando tiveres vinte e um anos - ripostou, arregalando os olhos -, poderás tomar decisões financeiras sem necessitar da minha interferência ou da minha opinião. Podes pegar em toda a tua herança e gastá-la com o Jean, que a mim pouco me importa. Até lá eu sou a única a tomar decisões sobre como castar a fortuna dos Dumas. Tenho um especialista nestas matérias - disse, apontando na direcção de Bruce. - Por isso, não preciso de te ouvir a ti. Estás a perceber? Estás? - insistiu, quando eu não respondi.

- Não - afirmei, batendo com o pé no chão em sinal de desafio. - Não percebo como pode fazer isto ao pobre tio Jean, que não tem qualquer espécie de vida, que não tem nada a não ser a sua mente confusa.

- óptimo. Então, não compreendes. - Voltou a sentar-se.

- Como quiseres - disse, abanando a mão. - Mas, por agora, vai rapidamente lá para cima e fecha a porta atrás de ti ou eu telefonarei aos pais do Beau e farei com que eles o tragam cá para ouvir o que tu e ele fizeram - ameaçou. - E depois castigar-te-ei duas vezes ainda mais severamente. - Os meus olhos ardiam com lágrimas quentes de raiva e frustração.

- Mas eu tenho de estar no velório... Eu devia...

- Tu devias era ouvir o que te dizem - disse firmemente, atirando-me as palavras à cara. Esticou o braço, apontando o indicador na direcção das escadas. - Agora, desaparece!

Baixei a cabeça.

- Não consegue arranjar outra maneira de me castigar? - Implorei, com as lágrimas a correr pela cara abaixo.

- Não. Não tenho nem tempo, nem energia para ficar aqui sentada a imaginar maneiras de punir a tua insubordinação, especialmente quando continuas desobediente nestas circunstâncias. Tenho um marido a enterrar. Não tenho tempo para ser uma ama-seca para meninas mimadas e provocadoras. Limita-te a fazer o que eu digo. Estás a ouvir? - guinchou.

Contive a respiração, virei-me e saí devagar, sentindo o meu estômago como se tivesse engolido um balde de lama do pântano. Quando cheguei ao quarto, atirei-me para cima da cama e lá fiquei a soluçar. Apercebi-me de que não era possível ajudar o tio Jean, pois se eu nem sequer conseguia ajudar-me a mim própria...

 

- Então afinal onde é que foste? - ouvi Gisselle perguntar junto à porta. Virei-me devagar e limpei as lágrimas - Foste Até ao lago Pontchartrain? - perguntou, com um sorriso duma sugestão lasciva a formar-se na boca. - Andaste na marmelada?

- Não. O Beau levou-me a ver o tio Jean - respondi e enseguida descrevi tudo o que tinha visto. - Agora, ela ousou mudá-lo para uma enfermaria, onde ele só tem a cama um e um armário de metal a cair de podre - conclui.

Ela encolheu os ombros, mostrando pouco interesse no que eu dizia.

- Não me surpreende. Eu disse-te o que a Daphne era capaz de fazer, mas tu não quiseste ouvir. Tu pensas que o mundo é todo passarinhos e rosas. E ela também vai cortar muito àquilo que nós temos. Vais ver - afirmou. Aproximou-se de mim e baixou a voz até ficar só um sussurro. - É melhor que fiquemos cá do que ir de novo para Greenwood. Vê lá se usas a tua brilhante mente e o teu tempo a descobrir uma maneira de fazer com que ela nos deixe ficar aqui - aconselhou.

- Deixar-nos ficar? - Desatei a rir de uma forma tão enlouquecida que até me assustei comigo própria. - A Daphne não pode ver-nos à sua frente. Tu é que estás a mergulhar num mundo de ilusões, se achas que ela alguma vez colocaria a hipótese de nos ter cá.

- Bem, isso é mesmo óptimo - lamentou-se Gisselle. - E tu queres simplesmente desistir?

- É assim - respondi num tom de fatalismo que acho que a. Gisselle ficou no meu quarto a mirar-me como se estivesse à espera que eu saisse da minha má disposição e começasse  a dizer-lhe as coisas que gostaria de ouvir.

- Não vais lavar-te e vestir-te para o velório? - perguntou por fim.

- Porque desobedeci à Daphne e fui à clínica ver o Jean, não me é permitido ir ao velório. Estou de castigo.

- Não podes ir ao velório? É esse o teu castigo? Porque não posso eu também ser castigada? - gritou em desespero.

Virei-me de costas para ela de forma tão abrupta que se deslocou para trás.

- O que se passa contigo, Gisselle? O paizinho amava-te.

- Sim, até tu chegares. Depois praticamente esqueceu que eu existia - lamentou-se.

-Isso não é verdade.

-           É verdade, mas agora também já não interessa. Pois bem - afirmou, suspirando profundamente e ajeitando o cabelo -, alguém vai ter de entreter o Beau quando ele chegar. Suponho que vou ter de ser eu... - Sorriu e regressou ao quarto.

levantei-me e olhei através da janela, pensando se não era mais acertado fugir de vez. Teria considerado isso a sério se não fossem algumas promessas que fizera outrora ao paizinho. Tinha de ficar ali para tomar conta da Gisselle o melhor que podia, para ter sucesso na minha pintura e tornar-me alguém que honrasse a sua memória. Jurei para mim mesma que, fosse como fosse, teria de ultrapassar os obstáculos que Daphne seguramente colocaria no meu caminho, e um dia, mais tarde ou mais cedo, iria conseguir fazer o que ela insinuara: ajudar o tio Jean.

 

Voltei para a minha cama e fiquei lá a pensar, enquanto dormitava, até que ouvi Gisselle a dirigir-se para a escadaria e a pedir a Edgar que a ajudasse a descer até ao velório. Ajoelhei-me e recitei as orações que teria dito junto ao caixão do paizinho.

Martha trouxe um tabuleiro com comida para mim e, embora tivesse ordens explícitas de Nina para que eu comesse, só consegui petiscar e mordiscar muito pouco, pois não tinha apetite. O meu estômago estava demasiado contraído e nervoso para conseguir comer.

Horas depois, ouvi um leve bater à porta. Encontrava-me deitada às escuras, só com o luar a brilhar através da janela, iluminando completamente o quarto. Inclinei-me, acendi um candeeiro e disse a quem quer que fosse para entrar. Era Beau, com Gisselle a seu lado.

- A Daphne não sabe que ele está aqui - disse ela num ápice, um sorriso caprichoso nos lábios. Como ela adorava fazer coisas proibidas, mesmo que significasse fazer algo por mim. - Toda a gente pensa que ele está a empurrar-me à volta da casa. Há tanta gente aqui que não vão dar pela nossa falta. Não te preocupes.

- Oh, Beau. É melhor que não fiques aqui. A Daphne ameaçou chamar os teus pais e meter-te em sarilhos por me teres levado à clínica - avisei.

- Eu corro o risco - afirmou. - Mas afinal porque é que ela ficou tão zangada?

- Porque eu descobri o que tinha feito ao meu tio - respondi. - É essa a razão principal.

- É tão injusto que tu, nesta altura, estejas a ser castigada ainda mais - disse, e os nossos olhares cruzaram-se brevemente.

- Posso deixar-vos sozinhos por um momento - sugeriu Gisselle, quando percebeu a maneira como nós olhávamos dum para o outro. - Posso até ir para o cimo das escadas e ser sentinela do amor.

Eu ia para protestar, mas Beau antecipou-se, agradecendo-lhe. Fechou a porta com suavidade e veio sentar-se ao meu lado, pondo o braço por cima dos meus ombros.

- Minha querida Ruby. Tu não mereces isto - sussurrou beijando-me na face. Depois deu uma vista de olhos ao quarto e sorriu. - lembro-me de ter estado aqui uma vez antes... quando tu experimentaste aquela erva da Gisselle, lembras-te?

- Não me recordes isso - respondi, sorrindo pela primeira vez há muito tempo. lembro-me apenas que tu foste um cavalheiro e te preocupaste comigo.

- Hei-de preocupar-me sempre contigo - disse. Beijou-me o pescoço e depois a ponta do queixo antes de juntar seus lábios aos meus.

- Oh, Beau, não o faças isso. Neste momento, sinto-me confusa e transtornada. Claro que quero que me beijes, que toques, mas não consigo deixar de pensar na razão que me trouxe cá, a tragédia que me trouxe de volta.

Ele acenou, em concordância.

- Eu compreendo. É que não consigo tirar os meus lábios de ti quando estou assim tão perto - disse acanhadamente

- Havemos de estar juntos outra vez e muito em breve. Se não fores ter comigo a Greenwood nas próximas duas semanas ver-te-ei quando regressarmos para as férias.

-Sim, isso é verdade - disse ele, permanecendo junto de mim. - Espera até veres o que vou dar-te pelo Natal. Vamos divertir-nos imenso e podemos celebrar a passagem de ano juntos e...

 

De repente, a porta escancarou-se e Daphne apareceu, a mirar-nos de cima a baixo.

- Bem me parecia - disse. - Sai! - gritou a Beau mantendo o braço esticado e apontando em direcção à porta.

-Daphne, eu...

- Não me venhas com histórias ou desculpas. Não devias estar cá em cima e sabes isso perfeitamente.

"Quanto a ti - proferiu lançando-me o olhar gélido -, é assim que lamentas a morte do teu pai? Recebendo o teu namorado no teu quarto? Não terás nenhum sentido de decência, de autocontrolo? Ou será que esse selvagem sangue cajun te corre de forma tão quente nas veias que não consegues resistir à tentação, mesmo quando o teu pai está deitado no caixão exactamente no andar de baixo?

- Mas nós não estávamos a fazer nada! - berrei. - Nós...

- Por favor, poupa-me - interrompeu, erguendo a mão enquanto fechava os olhos. - Beau, sai! Tinha-te na mais alta consideração, mas, pelos vistos, és igual a todos os outros rapazes... Não consegues abdicar de te divertires, sejam quais forem as circunstâncias.

- Isso não é verdade. Nós só estávamos a falar, a fazer planos.

Ela sorriu gelidamente.

- Eu, se fosse a ti, não faria planos que incluíssem a minha filha - declarou. - De qualquer forma, sabes qual é a

opinião dos teus pais sobre vocês os dois estarem juntos, e

quando souberem disto...

-           Mas nós não fizemos nada de mal - insistiu Beau.

- A vossa sorte é que eu não esperei mais uns minutos. Ela poderia ter-te despido as roupas e depois fingia que estava outra vez a pintar-te - insinuou. Beau ficou tão corado que pensei que lhe ia começar a sair sangue do nariz.

- Vai, Beau. Por favor - implorei-lhe. Ele olhou para mim e depois começou a andar na direcção da porta. Daphne afastou-se para o deixar passar. Ele voltou-se ainda uma vez e depois abanou a cabeça, saindo apressadamente escada abaixo. Em seguida, Daphne virou-se para mim.

- E tu quase me partiste o coração há bocado, a implorar que eu te deixasse assistir ao velório... como se realmente te importasses! - acrescentou, fechando a porta entre nós com uma força tal que mais parecia o disparar de uma arma, o que fez o meu coração parar, para logo de seguida começar a bater aceleradamente. Ainda assim estava quando Gisselle abriu a porta alguns momentos mais tarde.

- Desculpa - disse. - Foi só o tempo de virar as costas por um segundo para ir buscar qualquer coisa e, quando dei por isso ela já estava a galopar escadas acima e a passar por mim.

Observei-a com atenção. Tinha na ponta da lingua a pergunta: se a verdade não seria que ela se tornara bastante visível para que a Daphne percebesse que ela e Beau tinham vindo cá para cima... mas tudo isso já não tinha importância. O estrago estava feito e, se Gisselle era ou não responsável, o resultado era o mesmo. Beau era novamente afastado de mim, graças à minha madrasta, que parecia existir com um único propósito: tornar a minha vida insuportável.

 

O funeral do paizinho foi mais concorrido do que qualquer outro funeral que eu alguma vez vira, e até o próprio dia parecia ter sido concebido, por obra divina, para esse fim: nuvens baixas e cinzentas pairavam no céu e a brisa quente estava suficientemente forte para fazer com que as folhas e os ramos dos plátanos, dos carvalhos, dos salgueiros e das magnólias se curvassem ao longo do caminho. Era como se o mundo inteiro quisesse prestar a sua última homenagem a um príncipe caído. Carros dispendiosos faziam fila à frente da igreja, estendendo-se

por vários quarteirões, e uma multidão compacta acotovelava-se. A maioria foi obrigada a ficar à porta ou junto do portão da igreja. Apesar da minha raiva em relação a Daphne, consegui evitar ficar um pouco admirada pela maneira elegante como se vestia e comportava e ainda pelo modo como guiou a mim e à Gisselle durante toda a cerimónia, da casa para a igreja, seguindo para o cemitério.

Durante todo o enterro, desejei arduamente sentir

coisa mais intensa, tal como pressentir a presença do paizinho; no entanto, devido ao constante olhar de Daphne cravado em mim e à forma como os pranteadores nos observavam atentamente, como se fôssemos uma família real cuja obrigação

de manter a dignidade apropriada e actuar de acordo com as suas expectativas, tornou-se-me muito dificil concentrar-me no

paizinho, deitado naquele caixão caro e brilhante. às vezes, até eu própria sentia que estava a presenciar um espectáculo rico e elaborado, uma cerimônia pública desprovida de qualquer sentimento.

Quando chorei, penso que derramei lágrimas também

por mim e pelo que a minha vida e o meu mundo se iam tornar. agora que perdera o pai que a grandmére Catherine me havia devolvido nas suas últimas revelações. A preciosa dádiva de felicidade e esperança tinha-me sido roubada pela Morte ciumenta, cuja presença pairava sempre sobre nós, observando e esperando pela primeira oportunidade de nos afastar de tudo o que lhe lembrava o quão miserável seria eternamente o seu próprio destino. Isto era o que a grandmère Catherine me havia ensinado acerca da Morte e era nisto que eu agora acreditava firmemente.

Daphne não derramou uma única lágrima em público. Somente duas vezes pareceu vacilar: uma na igreja, quando o padre McDermott recordou que tinha sido ele que os casara aos dois; depois, mais tarde, no cemitério, pouco antes de o corpo do paizinho ser sepultado naquilo a que as pessoas de Nova Orleães chamam "forno". Devido aos elevados níveis de água, as sepulturas não eram cavadas no chão, como nos outros locais. As pessoas eram enterradas acima do solo em criptas de cimento, a maioria com o brasão da família incrustado na porta.

Em vez de soluçar, Daphne levou o seu lenço de seda ao rosto e prendeu-o de encontro à boca. Os seus olhos permaneciam focados nos seus próprios pensamentos, o seu olhar baixo. Pegou na minha mão e na de Gisselle quando foi a altura de sairmos da igreja, e mais uma vez à saída do cemitério. Segurou as nossas mãos por poucos minutos, um gesto que me pareceu ter sido mais a pensar nos acompanhantes do que em nós.

 

Durante toda a cerimónia, Beau permaneceu atrás, junto à família. Mal trocámos olhares. Os parentes do lado da família de Daphne ficaram todos perto uns dos outros. As suas vozes não passavam de um sussurro e perseguiam cada um dos nossos movimentos com o olhar. Sempre que alguém se aproximava de Daphne para exprimir os seus pêsames, ela pegava-lhe na mão e pronunciava suavemente: <{Merci beaucoup." As mesmas pessoas dirigiam-se então para nós. Gisselle imitou Daphne na perfeição, chegando ao ponto de dar a mesma acentuação francesa e de não reter as mãos deles nem mais nem menos um segundo do que Daphne fazia. Eu disse simplesmente: "Muito obrigada", em inglês.

Como se temesse que eu ou Gisselle fizéssemos alguma coisa que a envergonhasse, Daphne observava-nos constantemente pelo canto do olho e manteve os ouvidos sempre alerta, em especial quando Beau e os pais se aproximaram. É verdade que segurei a mão de Beau mais tempo do que a das outras pessoas, apesar de sentir que o olhar de Daphne era tão fulminante que quase podia originar queimaduras no pescoço e na cabeça. Tinha a certeza de que o comportamento de Gisselle lhe agradava mais do que o meu, mas eu não estava ali para agradar a Daphne; estava ali para dizer o último adeus ao paizinho e para agradecer às pessoas que realmente se preocupavam, tal como o paizinho teria gostado que eu fizesse: de forma afectuosa, sem pretensões.

Bruce Bristow manteve-se sempre muito perto, de vez em quando sussurrando algo a Daphne, ou recebendo ordens dela. Mal chegámos à igreja, ofereceu-se para me substituir e empurrar Gisselle pelo corredor. É claro que Gisselle gostou desta atenção especial, não se coibíndo de me olhar de quando em quando com um sorriso de auto-satisfação estampado nos lábios.

O momento mais importante do funeral veio quase no fim, quando estávamos a aproximarmo-nos da limusina para voltar para casa. Virei-me para a direita e vi o meu meio-irmão, Paul, a atravessar apressadamente o cemitério. Depois desatou a correr para tentar alcançar-nos, antes que entrássemos no carro.

- Paul! - gritei. Foi-me impossível conter a surpresa e prazer que tive ao vê-lo. Daphne deu um passo atrás, ao pé da porta da limusina, e olhou para mim, zangada. Outras pessoas que se encontravam por perto também nos observaram. Bruce Bristow, que estava a preparar-se para transferir Gisselle da cadeira para o carro, parou para olhar quando Gisselle disse:

- Olhem quem veio no último momento.

Apesar de só terem passado poucos meses, parecia que eu e Paul não nos víamos há anos. Ele tinha um ar muito mais maduro, a sua expressão facial de uma firmeza respeitosa. Vestido num fato e gravata azul-escuros, Paul aparentava ser mais forte e de ombros mais largos. As semelhanças entre a cara de Paul, a de Gisselle e a minha eram visíveis no nariz e nos olhos azul de céu, mas o seu cabelo, uma mistura de louro e moreno, que os Cajuns chamavam chatin, era mais fino e muito comprido. Atirou para trás as madeixas que lhe tinham caído para a testa, quando desatou a correr para me alcançar antes que entrasse no carro.

Sem dizer uma palavra, agarrou em mim e abraçou-me.

- Quem é este? - exigiu saber Daphne.

Os últimos acompanhantes que iam a sair do cemitério também se voltaram para ver e ouvir o que se passava.

 

- É o Paul - respondi rapidamente. - O Paul Tate. - Daphne sabia desde sempre da existência do nosso meio-irmão, mas recusava-se a vê-lo ou sequer mencionar o seu nome. Já da última vez que ele viera a Nova Orleães, ela não mostrara estar nem um pouco interessada em conhecê-lo. De vez, resolveu fazer um trejeito na boca, que condizia com a expressão de desdém.

- Lamento muito a sua dor, madame - disse Paul. - Vim o mais depressa que pude - acrescentou e olhou de nov para mim quando ela não respondeu. - Só descobri quando telefonei para a escola para falar contigo e uma das raparigas do vosso dormitório me disse. Meti-me logo no carro e fui directamente para a vossa casa. O mordomo deu-me as indicações para o cemitério.

- Ainda bem que vieste, Paul - disse-lhe.

- Podemos entrar no carro e ir para casa? - perguntou Daphne. - Ou vocês pretendem ficar o dia a conversar no cemitério?

- Vem atrás de nós até lá a casa - convidei-o, juntando-me a Gisselle.

- Ele é muito giro - sussurrou ela, depois de eu me ter sentado no carro.

Daphne mirou-nos às duas.

- Hoje não quero mais visitas em casa - declarou quando virámos no Garden Distríct. - Conversa com o teu meio-irmão lá fora e faz com que seja breve. Quero que vocês as duas comecem a armmar as vossas coisas, pois voltam para a escola amanhã.

- Amanhã? - gritou Gisselle.

- Claro, amanhã.

- Mas é cedo de mais! Nós devíamos pelo menos ficar mais uma semana em casa por respeito ao paizinho.

Daphne riu-se de forma perversa.

- E o que fariam durante essa semana? Iam ficar sentadas a meditar, a ler e a rezar? Ou ias ficar a falar ao telefone com os teus amigos e a receber visitas todos os dias?

- Bem, não temos de nos transformar em freiras só porque o paizinho morreu - retorquiu Gisselle.

- Precisamente. Amanhã voltam para Greenwood e prosseguem com os estudos. Já tratei dos preparativos - concluiu Daphne.

Gisselle dobrou os braços por baixo do peito, reclinando-se no banco e fazendo birra.

Devíamos fugir - murmurou. - Isso é o que devíamos fazer.

Daphne ouviu e fez um sorriso.

- E para onde fugias, princesa Gisselle? Para o meio maluco do teu tio Jean na clínica? - perguntou, olhando para mim. - Ou juntavas-te à tua irmã e voltavas para o paraíso nos pântanos, para viver com pessoas que têm conchas de caranguejo espetadas nos dentes?

Gisselle virou a cara e pôs-se a olhar pela janela. Pela primeira vez durante todo o dia, lágrimas começaram a correr-lhe pela cara abaixo. Quem me dera poder pensar que ela sentia realmente saudades do paizinho; porém, eu sabia que Gisselle chorava apenas porque estava frustrada com a perspectiva de voltar para Greenwood e com o facto de as visitas dos seus amigos terem ficado por metade.

Quando chegámos a casa, mostrou-se demasiado deprimida, não querendo sequer estar com Paul. Deixou que Bruce a pusesse na cadeira de rodas e a levasse para dentro sem dizer mais nenhuma palavra, quer a mim, quer a Daphne. Esta olhou-me da porta quando Paul estacionou atrás de nós.

- Que seja breve! - ordenou. - Não me agrada muito todos estes cajuns a entrarem-me pela casa dentro.

Virou-me as costas e afastou-se antes que eu pudesse responder.

Fui ter com Paul mal ele saiu do carro e atirei-me para os seus braços reconfortantes. De repente, toda a mágoa e tristeza que tinha guardado dentro dos limites do meu coração maltratado libertou-se. Solucei à vontade; todo o meu corpo tremia e enterrei o meu rosto no seu ombro. Ele acariciou-me o cabelo e beijou-me na testa, sussurrando palavras de consolação. Finalmente recuperei o fôlego e recuei. Ele tinha um lenço pronto para me enxugar o rosto e deixou-me assoar.

- Desculpa - disse, ainda com a voz trémula. - Não consegui evitar, mas ainda não tinha conseguido chorar pelo paizinho desde que vim para casa. A Daphne tornou as coisas tão dificeis para todos nós. Pobre Paul - disse-lhe, sorrindo através dos olhos meio enxutos. - Tens de ser tu a aturar a minha torrente de lágrimas.

- Não, estou contente por poder cá estar e dar-te alguma consolação. Deve ter sido horrível. lembro-me bem do teu pai.

Ele tinha um ar tão novo e vivo da última vez que o vi. Foi muito simpático comigo, um verdadeiro cavalheiro, um homem com classe. Compreendo porque é que a nossa mãe se apaixonou tão perdidamente por ele.

- Sim. Também percebi. - Agarrei-lhe na mão e sorri. - Oh, Paul, é tão bom ver-te. - Olhei para a porta da frente e depois voltei-me para ele. - A minha madrasta não me deixa ter visitas dentro de casa - expliquei, encaminhando-o para um banco perto de uma roseira. - Ela vai mandar-nos de volta para Greenwood amanhã - contei-lhe, depois de nos sentarmos.

- Tão cedo?

- Não suficientemente cedo para ela - disse com amargura. Inspirei profundamente. - Mas não deixes que eu só fale de mim. Conta-me sobre a casa, as tuas irmãs, tudo.

Reclinei-me a ouvir enquanto ele falava, deixando que a minha mente retrocedesse no tempo. Quando vivia no bayou, a vida era mais dificil e sem dúvida mais pobre, mas, devido à grandmére Catherine, conseguia ser também muito mais alegre. E era-me impossível deixar de ter saudades do pântano, das flores e dos pássaros, até mesmo das cobras e dos crocodilos. Havia aromas e sons, locais ou acontecimentos de que me lembrava com prazer, entre os quais sobressaía a memória de flutuar em cima duma canoa ao crepúsculo, com nada mais no coração a não ser uma felicidade contida. Quem me dera estar lá agora...

-           Mistress Livaudis e Mistress Thibodeau ainda estão rijas - disse ele. - Sei que têm muitas saudades da tua grandmère. Riu-se. Era tão bom poder ouvi-lo. - Elas sabem que me tenho mantido em contacto contigo, embora não mo digam de forma frontal. Normalmente o que fazem é falar alto à minha frente sobre a neta da Catherine Landry, a Ruby.

-           Tenho saudades delas. Tenho saudades de toda a gente.

 

- O teu grandpère Jack continua a viver na casa e, claro, sempre que se embebeda, o que não é raro, começa a escavar buracos à procura do tesouro, que ele acredita que a tua grandmére escondeu de forma a que ele nunca o apanhasse. Juro-te que não sei como é que ele se mantém vivo. O meu pai diz que uma parte dele é feita de cobra. O estado da pele dele faz pensar que ele passou por um curtume, e de repente aparece por detrás de arbustos e de sombras, quando menos se espera.

- Quase fugi para regressar ao bayou - confessei.

- Se alguma vez o fizeres... estarei lá para te ajudar - prontificou-se Paul. - Estou agora a trabalhar como gerente na fábrica de conservas - acrescentou com orgulho. - Tenho um bom salário e estou a pensar em construir a minha própria casa.

- Oh, Paul, a sério? - Ele acenou. - E conheceste alguém?

O seu sorriso esvaíu-se.

-Não.

- E tentaste? - insisti. Ele voltou a cara. - Paul?

- Não é fácil encontrar alguém que se compare contigo, Ruby. Não estou à espera que isso aconteça da noite para o dia.

- Mas tem de acontecer, Paul. Devia acontecer! Tu mereces alguém que possa amar-te inteiramente. Mais cedo ou mais tarde, também tu tens de ter a tua própria família.

Ele permaneceu em silêncio. Depois virou-se e sorriu.

-           Gostei mesmo das cartas que me enviaste da escola, especialmente das coisas que me contaste da Gisselle.

- Ela tem sido pior que uma peste e tenho a certeza de que as coisas vão tornar-se ainda mais dificeis agora que o paizinho morreu, mas eu fiz-lhe a promessa de tomar conta dela. Preferia tomar conta de um barril de cobras - disse. Paul riu-se e eu senti o peso da mágoa a levantar-se do meu peito. Era como se de repente pudesse de novo voltar a respirar.

Antes que fosse possível continuar, reparámos que Edgar se aproximava. Parecia carrancudo.

- Peço desculpa, mademoiselle, mas Madame Dumas quer que vá para dentro de casa e se dirija de imediato á sala de visitas - afirmou, levantando as sobrancelhas para indicar quão firmemente ela tinha dado a ordem.

- Muito obrigada, Edgar. Vou já - agradeci. Ele acenou e deixou-nos.

- Oh, Paul, tenho tanta pena que tenhas vindo de tão longe para passar tão pouco tempo comigo.

- Não faz mal - respondeu. - Valeu a pena. Um minuto contigo é como uma hora lá em casa sem ti - acrescentou.

- Paul, por favor - disse, agarrando-lhe as mãos. - Promete-me que procurarás alguém para amar. Promete-me que deixarás que alguém te ame. Promete.

- Está bem - disse ele. - Prometo. Não há nada que eu não faça por ti, Ruby, até mesmo apaixonar-me por outra pessoa, se o conseguir.

- Mais do que conseguir, precisas - disse-lhe.

- Eu sei - disse ele num sussurro. Olhava para mim como se eu o tivesse obrigado a engolir óleo de fígado de bacalhau. Apetecia-me ficar com ele, a falar e a recordar os velhos tempos, mas Edgar mantinha-se à entrada de maneira a dar-me a entender que Daphne estava a ser muito insistente.

- Tenho de ir para dentro, antes que ela faça uma cena que nos envergonhe aos dois, Paul. Faz uma boa viagem de regresso e depois telefona ou escreve para a escola.

 

- Assim o farei - confirmou. Deu-me um beijo rápido na face e depois entrou no carro, forçando-se a nunca olhar para trás. Eu sabia que o fazia porque tinha lágrimas nos olhos que não queria que eu visse.

Senti uma dor no peito quando O vi afastar-se, e durante um momento continuei a recordar a expressão com que ele ficara no dia em que soubemos a verdade sobre nós, a verdade que ambos desejávamos que estivesse enterrada no pântano, juntamente com os pecados dos nossos pais.

Contive a respiração e apressei-me a caminho da entrada principal para ver quais eram as novas regras que Daphne queria estabelecer para mim e para a minha irmã, agora que não tínhamos ninguém para se pôr entre ela e nós, ou para nos proteger.

Daphne estava à espera na sala de visitas, recostada na sua cadeira. Gisselle fora trazida para dentro e também aguardava. Tinha um ar incomodado e parecia muito infeliz. Fiquei surpreendida ao ver Bruce sentado à secretária de pinho escuro. Iria ele agora estar presente em todas as nossas discussões familiares?

- Senta-te - ordenou Daphne, acenando para a cadeira ao lado de Gisselle. Eu assim fiz, o mais rápido possível.

- O Paul já se foi embora? - perguntou Gisselle.

- Sim.

- Caladas as duas. Não vos reuni para conversar sobre um qualquer rapazinho caJun.

- Ele não é um rapazinho, ele é um jovem - respondi. - É gerente da fábrica do pai.

- óptimo. Espero que se torne rei do pântano. Agora, o que interessa... - Mudou de assunto, pondo as mãos nos braços da cadeira. - Bom, vocês vão-se embora amanhã de manhã bem cedo. Por isso gostaria de esclarecer alguns assuntos e enunciar alguns procedimentos antes de me retirar para os meus aposentos. Estou exausta de tudo isto.

- Então, porque temos de ir embora amanhã? - lamentou-se Gisselle. - Nós também estamos exaustas.

- Está decidido: vocês vão! - exclamou Daphne, arregalando os olhos. Depois acalmou-se e continuou: - Primeiro, vou reduzir para metade o dinheiro que o vosso pai vos mandava. Seja como for, vocês não precisam, ou precisam muito pouco, de gastar dinheiro enquanto frequentarem Greenwood.

- Isso não é verdade! - opôs-se Gisselle. - Aliás, se nos der autorização para sair do terreno da...

- Eu não vou fazer isso. Achas que eu sou parva? - Mirou Gisselle como se esperasse uma resposta. - Achas? - escarneceu.

- Não - respondeu Gisselle -, mas é aborrecido ter de ficar dentro da propriedade, especialmente aos fins-de-semana. Porque não podemos apanhar um táxi para a cidade e ir ao cinema ou às compras?

- Vocês estão lá para estudar e trabalhar, não para fazer férias. Se precisarem de mais dinheiro para uma emergência, podem telefonar para o Bruce no escritório, explicar de que se trata e ele encarregar-se-á de que o dinheiro seja entregue... dinheiro esse proveniente da vossa herança, claro.

 

"Nenhuma de vocês precisa de nada de novo no guarda-roupa. O vosso pai foi demasiado tolerante no que diz respeito à indumentária. Ele insistiu que eu te levasse às compras quando chegaste pela primeira vez, Ruby. lembras-te?

- Pensei que a Daphne também quisesse fazê-lo - disse suavemente.

- Eu fiz o que foi preciso para manter alguma dignidade social. Não podia ter-te aqui a viver com ar de uma cajun foragida, pois não? Mas o teu pai nunca achava que eu comprara o suficiente. Nada era de mais para as suas preciosas gémeas. Se juntassem os vossos dois armários, quase podiam abrir um armazém. O Bruce sabe das nossas contas. Não é assim, Bruce?

- É verdade - disse ele, acenando e sorrindo.

- Explica-lhes como é que funciona o legado, de uma forma simples e rápida - instruiu-o Daphne.

Ele chegou-se à frente e observou alguns documentos estavam em cima da secretária.

- Muito simples... todas as vossas necessidades básicas são garantidas: os estudos, as despesas de deslocação, a alimentação e algum dinheiro extra para os luxos, tal como prendas, etc. Conforme requerido, o dinheiro pode ser levantado depois de a Daphne assinar. Se precisarem de uma remuneração extra ponham-na por escrito e mandem para o escritório, que eu darei uma vista de olhos.

- Pó-lo por escrito? Mas agora somos empregados, é isso? - questionou Gisselle.

- Dificilmente o seriam - interveio Daphne num tom

de voz seco; o seu sorriso era falso e cínico. - Os empregados têm de trabalhar para receber.

Ela e Bruce trocaram um olhar de satisfação, antes de Daphne voltar a enfrentar-nos.

- Quero reiterar o que já vos disse acerca do vosso comportamento em Greenwood. Se for chamada a falar com a

directora por qualquer mau comportamento, as consequências serão terríveis, isso posso eu garantir.

- O que poderá ser mais terrível do que ter de ficar em Greenwood? - murmurou Gisselle.

- Existem outras escolas, ainda mais longe, com regras muito mais severas que Greenwood.

- Está a falar de reformatórios? - espicaçou-a Gisselle

- Gisselle - interrompi -, pára de discutir. Não vale a pena.

Ela mirou-me com os olhos repletos de lágrimas.

Abanei a cabeça.

- Ela já uma vez tentou internar-me. É capaz de tudo.

- Já chega! - exclamou Daphne. - Vão lá para cima fazer a mala e lembrem-se dos meus avisos acerca do vosso comportamento na escola. Não quero ouvir nem mais uma palavra. Já é suficiente que o Pierre tenha morrido, obrigando-me a ser guardiã dos frutos da sua indulgência selvagem. Não tenho nem tempo, nem força emocional para isto.

- Não, Daphne, força tem, decididamente - afirmei. - Força é o que não lhe falta.

Ela olhou para mim por um momento e depois levou a mão ao peito.

- O meu coração está a bater a alta velocidade, Bruce. Tenho de subir. Encarregas-te de verificar que elas fazem o que lhes mando e que a limusina está pronta a horas para amanhã as levar para a escola?

- Claro - respondeu.

Levantei-me depressa e empurrei a minha irmã para fora da sala de visitas. Talvez agora ela se tivesse dado conta... talvez agora ela percebesse que, com a morte do paizinho, éramos autênticas ôrfãs e, apesar de o sermos de uma família rica, o nosso lar era mais pobre que o dos mendigos, sem ninguém para amar ou alguém que nos amasse.

 

NUVENS SOMBRIAS

Apesar do que Gisselle escutara e vira na sala de visitas no dia anterior, continuava a culpar-me, insistindo que eu não me esforçara o suficiente para convencer Daphne a deixar-nos ficar em casa e ingressar de novo na escola de Nova Orleães.

- Pelo menos tu tens lá alguma coisa de que gostas - lamentou-se antes de nos deitarmos na véspera de partir. - Tens a tua preciosa Miss Stevens e o teu trabalho artístico para te ocupar o tempo. Além disso, podes sempre ir à mansão dos Clairborne provocar o neto cego de Mistress Clairborne. Enquanto eu... só tenho aquele grupo de miúdas estúpidas e imaturas com que me divertir.

- Eu não provoco o Louis - respondi. - Tenho pena dele. Já sofreu muito emocionalmente.

- E eu? Não sofri também muito emocionalmente? Quase morri, tornei-me uma aleijada. Somos irmãs. Porque não tens pena de mim? - choramingou.

- E tenho - retorqui, embora fosse meio mentira. Apesar de Gisselle estar confinada a uma cadeira de rodas, era-me cada vez mais dificil sentir compaixão pelo estado em que se encontrava. Na maioria das vezes, Gisselle conseguia obter o que queria custasse o que custasse, nem que isso implicasse o sacrifício de outra pessoa.

- Não, não tens! E agora sou obrigada a voltar para aquela... para aquele buraco do inferno - resmungou.

Fez uma birra e começou a girar de um lado para o outro, atirando coisas da cómoda e espalhando roupa por todo o quarto. A pobre da Martha teve de arrumar tudo antes que Daphne descobrisse o que Gisselle fizera.

Na manhã seguinte, sentou-se rígida na sua cadeira de rodas, tão direita como se estivesse petrificada, não ajudando em qualquer movimento, o que tornou a passagem de uma cadeira para a outra e depois para o carro ainda mais dificil. Recusou-se a tomar o pequeno-almoço e manteve os lábios tão cerrados que pareciam cosidos. Embora Gisselle estivesse a fazer tudo aquilo para espicaçar a nossa madrasta, Daphne não presenciou nem um dos seus amuos. Limitou-se a dar ordens a Edgar, à Nina e ao motorista e a fazer-nos chegar algumas notas de advertência. Bruce Bristow apareceu pouco antes de partirmos para garantir que a nossa viagem se desenrolava correcta e pontualmente. Foi essa a única vez que Gisselle pronunciou uma palavra.

Quem és tu agora? - escarneceu. - O moço de recados da Daphne? "Bruce, faz isto. Bruce, faz aquilo." - Riu-se do seu próprio comentário ridículo. A cara de Bruce ficou vermelha, mas cingiu-se a um sorriso, indo em seguida ocupar-se da bagagem. Frustrada e ao mesmo tempo furiosa, Gisselle desistiu e recostou-se com os olhos fechados, lembrando um daqueles doentes em camisa-de-forças da clínica onde residia o tio Jean.

 

A viagem de regresso a Greenwood foi quase tão depressiva como a nossa anterior jornada de volta a casa para o funeral do paizinho. Surtiu, no entanto, um efeito muito mais desolador, com o céu cinzento-escuro a seguir-nos todo o caminho, por vezes entrecortado por pequenos raios de luz que manchavam o pára-brisas, obrigando à utilização dos monótonos limpa-pára-brisas. Gisselle fechou-se como uma concha no canto do banco traseiro, deixando de olhar pela janela a partir do momento em que saímos de Nova Orleães. De vez em quando, mirava-me com uma cara maldosa.

Pela minha parte, dei comigo ansiosa por fazer exactamente o que Gisselle tinha referido: voltar a trabalhar com Miss Stevens e canalizar toda a minha energia e atenção no desenvolvimento do meu talento artístico. Depois de ter passado dias seguidos sob o olhar perscrutador e sob a mão opressiva de Daphne, acolhi de bom grado a aparição de Greenwood, quando abrandámos e pude ver as raparigas a percorrer a propriedade depois das aulas, a rir, a movimentar-se e a falar com uma excitação que eu agora invejava. Até Gisselle se permitiu ficar um pouco mais alegre. Eu sabia que iria mostrar a sua derrota e decepção às discípulas.

Aliás, mal chegou ao nosso dormitório, imediatamente retomou o seu comportamento e conduta anteriores, recusando aceitar quaisquer demonstrações de compaixão e agindo como se a morte e funeral do paizinho tivessem sido somente algo de uma inconveniência terrível. Não estava nem há dois minutos no quarto quando começou a atacar o seu novo bode expiatório, a colega de quarto Samantha, gritando com ela por ter tido a audácia de mexer em alguns dos pertences enquanto estivera fora. Todas nós ouvimos a discussão e viemos ver o que estava a acontecer. Samantha estava, de lágrimas nos olhos, junto à porta, sítio para onde Gisselle a tinha empurrado durante o seu acesso de raiva.

- Como te atreves a tocar nos meus cosméticos? Roubaste um bocado do meu perfume, não foi? Não foi? - Martelava ela. - Sei que tinha mais no frasco.

- Não roubei.

- Sim, roubaste. E também usaste algumas das minhas roupas. - Virou-se na cadeira e olhou para mim. - Vês o que eu tenho de aturar, desde que me obrigaste a sair do teu quarto e partilhar um quarto com esta... - gritou Gisselle.

Quase desatei a rir perante tamanha mentira.

- Eu? Eu disse-te para mudares? Foste tu que quiseste mudar, Gisselle. Foste tu que insististe - respondi. Vicki, Kate e Jackie olharam todas para mim em sinal de compreensão, pois sabiam que eu dizia a verdade. Mas nenhuma estava disposta a vir em minha defesa e correr o risco de ser alvo da fúria de Gisselle.

- Eu não fui - berrou Gisselle, com a cara tão vermelha de raiva e frustração que mais parecia que o topo da cabeça ia explodir. Esmurrou os braços da cadeira de rodas com os punhos e abanava o corpo de um lado para o outro de forma tão vigorosa que pensei que ia cair.

-Tu... tu querias tanto ficar com aquela rapariga cabrita que me mandaste para fora! - Revirou os olhos por baixo das trémulas pálpebras e espumou da boca, gaguejando e quase parecendo sufocar. Toda a gente pensou que ela ia ter uma convulsão, mas eu já a vira comportar-se assim muitas vezes.

- Está bem, Gisselle - disse num tom derrotado -, acalma-te. O que queres tu?

 

- Quero-a fora daqui! - exigiu, apontando o indicador direito em direcção a Samantha, que parecia tão confusa e assustada como um pássaro bebé afastado do ninho.

- Queres voltar a viver comigo, então? É isso que queres? - perguntei, fechando e abrindo os olhos devagar.

- Não. Fico a viver sozinha e tomo conta de mim própria - insistiu, cruzando os braços e recostando-se firmemente na

cadeira. - Desde que ela esteja fora daqui.

- Tu não podes mandar as pessoas para fora ou para dentro do teu quarto como se fossem um joguete nas tuas mãos, Gisselle - censurei. Ela virou a cabeça devagar e fixou o olhar na pequena Samantha, demonstrando todo o ódio que sentia pela lourinha de baixa estatura, a qual deu um passo atrás.

- Não estou a mandá-la embora. Ela quer sair, não queres, Samantha?

Samantha virou-se para mim de forma indefesa e olhou-me com desespero.

- Podes mudar-te para o meu quarto, Samantha - disse-lhe

eu. - Se a minha irmã tem tanta certeza de que se aguenta sozinha...

Agora que Daphne nos obrigara a regressar a Greenwood, eu sabia que Gisselle só tinha uma ideia em mente: tornar a vida de toda a gente tão insuportável como a dela.

- Claro - choramingou. - Vá, põe-te do lado da outra pessoa, como fazes sempre. Somos gémeas, mas alguma vez ages como tal? Alguma vez?

Fechei os olhos e contei até dez.

- Está bem. Então o que queres, Gisselle? Queres que a Samantha saia ou não saia?

- Claro que quero! É uma... uma virgenzinha... patética! - exclamou. Depois contorceu os lábios num sorriso maldoso antes de acrescentar: - Que sonha dormir com o Jonathan Peck. - Dirigiu-se para perto de Samantha. - Não foi isso que me disseste, Samantha? Não estás sempre a imaginar o que seria o Jonathan a tocar nos teus pequenos e preciosos seios e a beijar-te por baixo do umbigo? E a levar a ponta da língua até...

- Pára com isso, Gisselle! - gritei. Contentou-se em fazer um sorriso a Samantha, a quem agora grossas lágrimas corriam pela cara abaixo. Não sabia como reagir, como lidar com aquela tão violenta traição.

- Junta as tuas coisas, Samantha - disse-lhe. - E trá-las para o meu quarto.

- E eu quero todas as minhas coisas que ainda aí estão no MEU quarto - ordenou Gisselle. - A Kate vai ajudar! Não vais, Kate? - perguntou, sorrindo.

- O quê? Sim, claro.

Gisselle abriu um sorriso ainda mais largo para mim, olhou Samantha de alto a baixo e depois virou a cadeira para regressar ao quarto, murmurando em voz alta que iria controlar tudo para ver que coisas mais Samantha teria usado ou roubado.

- Eu não tirei nada dela. Juro! - exclamou Samantha de novo.

- O melhor é saires o mais depressa possível. E não vale a pena tentares explicar ou defender-te - aconselhei-a.

 

Eu não me importava de ter uma nova companheira de quarto e pensei que era bem feito para Gisselle ter de lutar um bocadinho por si própria. Talvez só assim apreciasse a ajuda que toda a gente lhe dava. Não sei se por pirraça, se por provocação, surpreendeu-me ao desfazer todas as malas sozinha, mudando de roupa e de sapatos para o jantar e ainda arranjando o próprio cabelo. A Kate foi dado o privilégio de ser ela agora a empurrar a cadeira de rodas, já que Samantha era persona non grata. Pelo menos durante uns tempos, as coisas pareciam com tendência para acalmar.

Nessa noite, depois do jantar, enquanto Vicki me ajudava

a pôr em dia as aulas que nós as duas tínhamos em comum e

que eu faltara, Jackie veio à minha porta dizer-me que eu

tinha uma chamada telefónica. Saí à pressa, julgando que seria Beau ou Paul, mas acabou por ser Louis.

- Soube por Mistress Penny o que se passou com o teu pai - começou. - Queria telefonar-te para Nova Orleães, mas a

minha prima não me deu o número de telefone. Ela achou que não era próprio. Seja como for, lamento muito.

- Obrigada, Louis.

- Eu sei o que significa perder um ente querido - continuou. Ficou silencioso durante um momento, mudando depois o tom de voz. - A minha visão tem feito progressos lentos mas definitivos - informou. - Consigo distinguir as formas cada vez melhor. Continua a existir uma névoa cinzenta sobre tudo, mas os médicos estão muito optimistas.

- Fico contente por ti, Louis.

- Posso ver-te em breve? Soa tão bem poder dizer "ver-te". Posso?

- Sim, claro.

- Vem amanhã. Para jantar - sugeriu com excitação. - Peço ao cozinheiro para preparar um gumbo de camarões.

- Não, não posso à hora do jantar. É o meu turno e não seria correcto pedir a ninguém para me substituir.

- Então vem depois do jantar.

- Vou ter provavelmente muita matéria para pôr em dia - disse.

- Oh! - Uma voz decepcionada soou ao telefone.

- Dá-me só algum tempo para poder pôr tudo em ordem, se não te importares - pedi.

- Claro. É que estou tão ansioso por te mostrar os meus progressos. Progresso esse... - acrescentou com suavidade - que aconteceu depois de te ter conhecido.

- não É muito simpático da tua parte dizeres isso, Louis. Mas não sei o que posso ter a ver com isso.

- Mas sei eu - foi a sua resposta velada. - Estou a avisar-te. Vou pôr-te maluca até que venhas visitar-me - disse em provocação.

- Está bem - respondi, rindo. - Vou aí no domingo, depois do jantar.

- óptimo. Se calhar nessa altura já fiz ainda mais progressos e vou poder surpreender-te dizendo qual é a cor do teu cabelo, ou dos teus olhos.

 

- Espero que sim - respondi; depois de desligar o telefone, senti uma ansiedade obscura a subir em espiral do fundo do meu estômago até ao coração, onde se instalou como uma dor subtil. Era agradável que Louis sentisse que eu estava a ajudá-lo e era muito lisonjeiro pensar que podia ter um tão grande impacte num problema tão sério como a cegueira, mas sabia que ele estava a dar-me demasiada importância e a depositar uma excessiva confiança na minha companhia. Receava que pensasse estar a apaixonar-se por mim e que imaginasse também que eu estaria a apaixonar-me por ele. Em breve, prometi a mim própria, falar-lhe-ia de Beau. Só agora me dava conta de tudo isso e temia que tal facto ensombrasse a sua delicada recuperação; assim, a sua avó e a sua prima, Mrs. Tronwood, teriam mais um motivo para me culpar.

Regressei ao meu quarto e ao meu trabalho, enterrando-me nas leituras, nos apontamentos e nos estudos, tentando não pensar em todas as coisas tristes que haviam acontecido e nos pesados fardos que era meu destino carregar. No dia seguinte, todos os meus professores foram compreensivos e me auxiliaram, sendo Miss Stevens a mais afectuosa de todos, claro. Regressar á sua aula foi como sair de uma negra tempestade de Verão para de novo sentir o brilho e a luz do Sol. Dediquei-me ao meu quadro inacabado e tentámos marcar um encontro para visitar o lago situado nos terrenos da escola no sábado de manhã, a fim de começar um novo trabalho.

Durante os dias seguintes, Gisselle continuou a surpreender-me a mim e às outras com a sua nova independência. Exceptuando o facto de Kate a empurrar na cadeira de rodas de vez em quando, tomava a seu cargo todas as necessidades, mantendo a porta do quarto bem fechada quando se encontrava lá dentro. Samantha andava atrás delas como um cachorrinho que tinha sido expulso de casa e afastado para longe, sem mais nenhum sítio para onde ir. Seguindo obviamente ordens de Gisselle, Jackie e Kate juntaram-se a ela e recusaram aceitar ou falar com Samantha. Comportavam-se como se ela fosse invisível.

- Porque não tentas fazer novas amigas, Samantha?

- perguntei-lhe. - Se calhar devias até ir falar com Mistress Penny e pedir para ser transferida para outro quadrante.

Ela abanou a cabeça de forma vigorosa. Só a ideia de tomar uma atitude tão drástica, mesmo naquelas condições, aterrorizava-a, como rapariga tímida e insegura que era.

- Não, está tudo bem. Vai tudo ficar bem - disse.

No entanto, na quinta-feira à noite, quando regressava da biblioteca com Vicki, encontrei Samantha aninhada na cama a soluçar baixinho. Fechei a porta e sentei-me logo ao seu lado.

- O que foi, Samantha? O que fez a minha irmã agora? - perguntei num tom de voz já cansado.

- Nada - gemeu. - Está tudo bem. Somos... amigas outra vez. Ela perdoou-me.

- O quê? De que estás a falar? Perdoou-te?

Ela acenou, mas continuou de costas viradas para mim com os cobertores bem aconchegados ao corpo. Algo no

seu comportamento me provocou profundas suspeitas. O meu coração começou a bater rapidamente em expectativa. Pus a minha mão no seu ombro e ela saltou como se eu lhe tivesse tocado com os dedos a queimar.

- Samantha, o que se passou aqui enquanto estive fora? - exigi saber. Ela não parava de chorar cada vez mais alto. - Samantha?

- Tive de o fazer - lamentou-se. - Elas obrigaram-me. Todas. Elas disseram que eu tinha de o fazer.

- Fazer o quê, Samantha? Samantha? - Abanei-lhe os ombros. - Fazer o quê?

De repente, voltou-se e enfiou a cara junto ao meu ventre enquanto punha os braços à volta da minha cintura. Todo o corpo tremia com os soluços.

- Tenho tanta vergonha - gritou.

 

- Vergonha de quê? Samantha, tens de me dizer o que a Gisselle te obrigou a fazer. Diz-me - insisti, agarrando firmemente os seus ombros. Ela recostou-se devagar, de olhos fechados, e deixou a cabeça pender em direcção à almofada. Percebi que estava nua por baixo dos lençóis.

- Ela mandou a Kate chamar-me para ir ao quarto delLa. Quando lá fui, perguntou-me se eu queria fazer outra vez parte do grupo. Eu disse que sim, mas ela disse... disse que eu tinha de fazer uma penitência.

- Penitência? Que espécie de penitência?

- Disse que, enquanto ela tinha estado fora, eu sonhara ser, como ela. Eu queria ser ela, por isso é que tinha usado o seubáton, a sua maquilhagem e o seu perfume. Disse ainda que eu estava tão frustrada sexualmente que até vestira as suas cuecas, coisa que eu não fiz - insistiu Samantha. - Juro, não vesti.

- Eu acredito em ti, Samantha. E depois, o que aconteceu?

Samantha fechou os olhos e engoliu em seco.

- Samantha?

- Tive de me despir e enfiar-me na cama - disse num só fôlego.

Contive a respiração, tomando consciência de todas as coisas sórdidas que Gisselle era capaz de fazer.

- Continua - disse num sussurro.

- Tenho tanta vergonha.

- O que é que ela te obrigou a fazer, Samantha?

- Todas elas obrigaram - gritou. - Gozaram comigo e riram-se... até que cedi.

- Cedeste a quê?

- Tive de pegar numa almofada e fingir que era... que era

Jonathan Peck. Elas obrigaram-me a acariciá-la e a beijá-la e...

- Oh, não, Samantha.

Toda ela tremia com soluços. Acariciei-lhe o cabelo.

- A minha irmã é uma pessoa doente. Lamento muito. Não devias ter-lhe prestado atenção.

- Todas me odiavam - gritou, na defensiva -, até mesmo as outras raparigas no dormitório e as raparigas das nossas aulas. Ninguém falava comigo no quarto das raparigas ou nos vestiários, e hoje alguém despejou um frasco de tinta nos meus apontamentos de Estudos Sociais, manchando todas as páginas.

- Gritava cada vez com mais força.

- Está tudo bem, Samantha. Está tudo bem - afirmei. Embaleia-a até que os seus soluços diminuiram. Depois levantei-me. - Eu e a minha irmã vamos agora ter uma conversinha.

- NÃO! - gritou Samantha, agarrando na minha mão. - Não vás! - Os olhos dela abriram-se, espelhando todo o seu horror. - Se a fizeres zangar, ela põe outra vez as raparigas contra mim. Por favor - implorou. - Promete-me que não vais dizer nada. Ela obrigou-me a jurar que não te contava nada... e depois vai outra vez acusar-me de a trair.

- Ela obrigou-te a prometer isso porque sabe que eu sou capaz de entrar por ali dentro e atirá-la da janela para fora - disse, zangada. Samantha mordeu o lábio inferior, com uma expressão de alarme estampada no rosto. - Tudo bem. Não te preocupes. Mas tu estás bem, Samantha?

 

- Estou bem - respondeu, limpando rapidamente a cara. Fez um esforço para sorrir. - Não foi assim tão mau, e já acabou. Somos todas amigas outra vez.

- Com amigos desses, não precisas de inimigos - concluí. - A minha grandmére costumava dizer que mesmo se vivêssemos num mundo sem doenças e maleitas, sem tempestades e trovões, sem secas e pestes, iríamos sempre arranjar maneira de fazer com que o diabo se sentisse confortável no nosso coração.

- O quê? - perguntou Samantha.

- Nada. Vais voltar a dividir o quarto com ela?

- Não. Ela continua a querer viver sozinha - explicou Samantha. - Não há problema que eu continue a viver contigo?

- Claro que não. Estou só surpreendida. A procissão ainda vai no adro - murmurei, imaginando que esquemas estava Gisselle a conceber para tornar a vida de toda a gente em  Greenwood, especialmente a minha, ainda mais dificil.

 

O resto da semana passou rapidamente e sem qualquer incidente. Calculo que o facto de estar sozinha no dormitório e de tomar conta de todas as suas necessidades básicas punha

Gisselle exausta, pois a verdade é que todas as manhãs, quando Kate a empurrava para a mesa do pequeno-almoço, ela parecia meio drogada. Ficava ali sentada com as pálpebras fechadas enquanto mordiscava qualquer coisa, não prestando nenhuma atenção à conversa à volta da mesa. Ela... que anteriormente era a primeira a interromper e a ridicularizar sempre que alguém dizia qualquer coisa.

Depois, na sexta-feira, Vicki veio ter comigo no corredor a seguir à aula de Ciências para me contar que Gisselle tinha adormecido nas leituras Elementares. Pensei para mim mesma que Gisselle era demasiado teimosa para admitir que tomar conta de si própria estava a consumir-lhe todas as energias que possuia. Assim, ao fim do dia, parei-a no corredor.

- O que é? - perguntou, logo de língua afiada. A fatiga tornara-a ainda mais irritável do que o costume.

- Não podes continuar assim, Gisselle. Adormeces nas aulas, ao almoço, passas pelas brasas mal te sentas. Precisas de ajuda. Ou recebes outra vez a Samantha no teu quarto ou vens viver comigo - sugeri.

A sugestão avivou-lhe as cores e fez com que ela se empertigasse.

- Isso era o que tu querias, não era? - retorquiu num tom de voz suficientemente alto de forma a chamar a atenção de toda a gente que passava. - Queres que eu esteja dependente, e precise de gritar por ajuda sempre que quero escovar o cabelo ou lavar os dentes. Pois bem, não preciso de ti nem da preciosa Samantha para andar de um lado para o outro nesta escola. Não preciso de ninguém - acrescentou, empurrando as rodas da cadeira para se afastar. Até Kate ficou parada, boquiaberta.

- Bem - conclui, encolhendo os ombros. - Fico contente que ela esteja a tentar ser independente. No entanto, avisa-me se te parecer que ela está a ficar doente - pedi a Kate, que acenou e depois saiu a correr atrás de Gisselle. Fui para a minha aula de Educação Visual.

Nessa noite Beau telefonou. Toda a semana tinha estado ansiosa à espera do seu telefonema.

 

- Pensei que podia escapar-me amanhã e ir a Baton Rouge para te ver, mas o meu pai restringiu-me o uso do carro desde que a Daphne teve uma conversa com ele e com a minha mãe. Ela contou-lhes a minha ida contigo ao asilo.

- E isso fez com que eles ficassem de tal forma zangados?

- Disse que nós perturbamos tanto o Jean que ele teve de levar tratamentos de choque.

- Oh, não. Espero que seja uma mentira - choraminguei.

- O meu pai ficou furioso, e depois quando ela lhes contou que eu estava no teu quarto durante o velório... Acho também que ela exagerou no que diz respeito ao que a gente estava a fazer.

- Como é possível que ela seja tão horrível?

- Se calhar anda a tirar lições - gracejou Beau. - Seja Como for, espero que a minha restrição seja levantada durante as férias. São só mais dez dias, certo?

-           Sim, mas ainda assim, os teus pais permitem que tenhas algum envolvimento comigo? - pensei em voz alta.

-           Havemos de nos arranjar. Não há maneira de ninguém me impedir de te ver quando estás cá - prometeu.

Perguntou-me como estavam a correr as coisas na escola, e eu falei-lhe de Gisselle e de como estava a tornar a vida de toda a gente o mais dificil que podia.

-           Estás mesmo de mãos atadas. Não é justo.

-           Fiz promessas ao meu pai - expliquei. - Tenho de tentar.

- Ontem à noite ouvi o meu pai falar com a minha mãe acerca da Daphne - disse Beau. - Ela e o Bruce Bristow tomaram algumas medidas drásticas, retirando a alguns negócios e locatários a sua propriedade. O meu pai disse que o Pièrre nunca seria assim cruel, embora tenha sido um bom negociante.

- Tenho a certeza de que ela está a gozar muito com ele. água gelada é o que lhe corre nas veias - disse-lhe.

Beau riu-se e de novo descreveu o quanto sentia a minha falta, quanto me amava e quanto ansiava por estarmos de novo juntos. Quase podia sentir os seus lábios de encontro aos meus, enquanto mandava um beijo pelo telefone.

Quando regressei ao quadrante, já contava que Gisselle estivesse à minha espera na entrada para me interrogar acerca do telefonema, mas ela tinha a porta do quarto bem fechada. Samanta informou-me que Gisselle tinha decidido ir para a cama Pensei em ir saber como se sentia e pus a mão na maçaneta dando conta de que estava trancada à chave. Surpreendida, chamei gentilmente.

- Gisselle? - Não houve resposta. Ou já estava a dormir ou fingia que não ouvia. - Estás bem?

Esperei, mas continuou a não haver resposta. Se era o que ela queria, pensei, era assim que iria ser. Fui para o quarto ler e escrever uma carta a Paul antes de ir dormir. Stevens e eu tínhamos marcado um encontro para pintar o lago depois do pequeno-almoço na manhã seguinte, e eu estava quase a fechar os olhos, sentindo que de novo me interessava com entusiasmo por qualquer coisa.

 

A manhã de sábado estava linda. O céu de Dezembro era um azul-cristalino, até mesmo as nuvens pareciam de um bastro resplandecente. Miss Stevens já estava junto ao lago a montar os cavaletes que iríamos usar. Reparei que ela também tinha estendido um cobertor e trazido um cesto de piquenique. O próprio lago espelhava um tom azul-prateado. Apesar do sol estar radioso, o ar estava frio mas revígorante. Miss Stivens viu-me a aproximar e acenou.

- Que desafio vai ser misturar tintas para conseguir ficar esta cor - disse, olhando para a água do lago. - Como estás?

-Bem... e ansiosa - respondi, e começámos. Mal demos início, ambas nos concentrámos de tal forma no nosso trabalho que o processo em si nos absorvia, ocupando todo o nosso cérebro. Muitas vezes, imaginava que era um dos animais que costumava pintar nas minhas cenas, observando o mundo com os olhos de uma andorinha ou de um pelicano, ou até de um crocodilo.

Ambas perdemos a concentração quando ouvimos um martelar e olhámos para a casa dos barcos, onde Buck Dardar estava a malhar com uma segadeira. Parou como se se sentisse observado, olhando na nossa direcção por momentos, mas depois retomou o trabalho.

Miss Stevens riu-se.

- Durante uns momentos, esqueci-me do lugar onde estava.

- Eu também.

- Queres beber qualquer coisa fresca? Tenho chá gelado ou sumo de maçã.

- Chá gelado parece-me óptimo - respondi. - Obrigada.

Depois Miss Stevens quis saber como Gisselle estava a aguentar-se após a morte do paizinho. Eu descrevi o seu comportamento. Ela ouviu com atenção e acenou, pensativa.

- Deixa-a sozinha por uns tempos - aconselhou-me. - Tem de conseguir ser independente. Isso vai torná-la mais forte e feliz. Tenho a certeza de que ela sabe que tu estarás lá quando e se precisar - acrescentou.

Senti-me melhor em relação a isso, e depois continuámos a pintar antes de fazer uma pausa para desfrutar do piquenique que ela preparara. Enquanto estávamos sentadas no cobertor a comer e a conversar, outras alunas passaram por nós, algumas acenando, outras a observar-nos com curiosidade. Vi muitos dos meus professores e até reparei em Mrs. Ironwood a olhar para nós durante um momento, antes de atravessar a propriedade.

- O Louis tinha razão em relação a este lago - disse eu, quando demos prosseguimento ao nosso trabalho. - Tem realmente qualquer coisa de mágico. Parece que a sua natureza, as suas cores, até mesmo a sua forma vão mudando à medida que o dia passa.

Adoro pintar cenas que envolvam água. Um destes dias, hei-de fazer uma viagem ao bayou. Se calhar poderás vir comigo e servir-me de guia nos pântanos - sugeriu.

- Não há nada que me desse mais prazer - respondi com agrado. Ela esboçou um sorriso franco, fazendo-me sentir como se tivesse uma irmã mais velha. Aquele dia acabou por ser um dos melhores dias que até então tivera em Greenwood.

 

Nessa noite houve uma "festa de pijama" no nosso dormitório. As raparigas dos outros dormitórios apareciam para ouvir música, comer pipocas e dançar na entrada. Depois, ficavam por ali a dormir, algumas a dividir camas, outras em cima de cobertores no chão. Durante a noite pregavam partidas umas às outras. Algumas das raparigas do quadrante B andavam escada acima, escada abaixo e escolhiam uma porta onde batiam. Quando a abriam, atiravam baldes de água fria, fugindo em seguida. Naturalmente, as outras queriam vingar-se. Não se sabe bem como, nessa noite, conseguiram até apanhar alguns sapos, que lançaram para a entrada do quadrante B, pondo todas as raparigas a berrar pelos corredores. Mrs. Penny via-se de cabeça perdida a correr de um lado para o outro.

Para minha surpresa, Gisselle considerou todas estas brincadeiras imaturas e estúpidas e, em vez de participar e planear coisas para o grupo dela fazer, voltou a retirar-se para os confins do seu quarto, trancando a porta. Comecei a pensar se ela não estaria a entrar numa grande depressão, que se devia parcialmente á fadiga pela qual passava todas as manhãs.

No domingo, pus em dia todos os meus trabalhos de casa. estudei para o meu teste de Inglês e de Matemática com Vicki cumpri as minhas tarefas ao jantar e depois vesti-me para ir ter com Louis. Pedi-lhe que não incomodasse Buck. Preferia ir a pé até à mansão. Estava uma noite agradável, com o céu cheio de estrelas, podendo ver-se com toda a nitidez as constelações da Ursa Menor e da Ursa Maior. Senti um par de olhos a seguir-me à medida que caminhava e olhei para cima e para a direita, onde deparei com um mocho. Imaginei que um ser humano a passear à noite pelo seu domínio lhe suscitava mais curiosidade do que ele a mim. Fez-me lembrar a minha vida no bayou e a sensação que eu tinha de os animais já se terem habituado a mim.

O veado não tinha receio de se aproximar. Os sapos praticamente saltavam por cima dos meus pés; os patos e os gansos voavam tão rente á minha cabeça que chegava a sentir o voo das suas asas a fazer ondear as madeixas do meu cabelo. Eu fazia parte do mundo em que vivia. Talvez o mocho tenha sentido que eu era uma alma gémea, pois não piou, nem sequer levantou voo. Contentou-se em erguer as asas de forma calma, como que a cumprimentar-me, ficando depois a observar-me que nem uma estátua no ramo.

A grande casa da plantação assomava à minha frente, com as luzes a brilhar nas varandas, apesar de muitas das janelas estarem escuras. à medida que me aproximava, podia ouvir os sons melódicos provenientes do piano de Louis. Bati á porta na grande maçaneta de latão e esperei. Uns momentos mais tarde. Otis apareceu. Ficou com um ar preocupado mal me viu, mas fez uma vénia e deu um passo atrás.

- Olá, Otis - disse alegremente. Os seus olhos desviaram-se para a direita para garantir que Mrs. Clairbome não estava a observar-nos antes de devolver o meu cumprimento.

- Boa noite, mademoiselle. Monsieur Louis está à sua esPera no estúdio de música. Por aqui - indicou e começou a guiar-me rapidamente pelo comprido corredor. De repente olhei para a esquerda ao mesmo tempo que uma porta se fechava; julguei ver de soslaio Mrs. Clairborne. Otis levou-me até á porta do estúdio antes de fazer um gesto com a cabeça e sair. Entrei e fiquei a observar Louis a tocar durante algum tempo antes de se aperceber de que eu tinha chegado. Vestia um casaco desportivo de veludo azul, camisa branca e calças azuis. Estava bonito, com o cabelo bem penteado. Quando se voltou em direcção à porta, parou instantaneamente e saltou do banco. De imediato me dei conta de algo diferente na maneira como me olhava, reparando também no modo confiante como agora caminhava.

 

- Ruby! - Apressou-se a atravessar o quarto para pegar na minha mão. - Consigo ver a tua silhueta perfeitamente - declarou. - É já tão excitante ver o mundo em cinzentos e brancos. É tão maravilhoso não ter de me preocupar em bater em qualquer coisa. E o melhor é que às vezes vejo um clarão de cores. - Aproximou a mão do meu cabelo. - Se calhar ainda vejo o teu belo cabelo antes de a noite acabar. Vou fazer um esforço. Vou pensar nisso e fazer um esforço. Se me concentrar com força suficiente... Oh! - Deu um passo atrás.

Aqui estou eu outra vez a falar apenas de mim e nem sequer te perguntei como estás.

- Estou bem, Louis.

- Não podes estar bem - insistiu. - Passaste um momento terrível, verdadeiramente terrível. Vem, senta-te aqui no canapé e conta-me tudo o que quiseres - acrescentou, ainda a pegar na minha mão e encaminhando-me para o sofá. Sentei-me e ele pôs-se a meu lado.

Havia um brilho e uma irradiação nova no seu rosto. Era como se em cada partícula de luz que transpunha a cortina escura que lhe cobria os olhos ele voltasse à vida; sentia que Louis se aproximava cada vez mais de um mundo de esperança e de alegria, regressando a um lugar onde podia sorrir e dar gargalhadas, cantar e falar e, de novo, ter capacidade para amar.

- Não me importo que sejas egoísta, Louis, e que fales dos teus progressos. Prefiro não falar da tragédia e nas coisas que passei. Está tudo ainda muito fresco e doloroso.

- Claro - respondeu. - Só quis ser um bom ouvinte. - Sorriu. - Um ombro onde pudesses chorar... Ao fim ao cabo, eu chorei no teu, não foi?

- Muito obrigada. É simpático da tua parte ofereceres-te assim, especialmente tendo em conta os teus próprios problemas.

- Estamos sempre melhor se não nos preocuparmos com nós próprios e, para fazer isso, temos de nos preocupar com os outros - afirmou. - Ah, até pareço um homem velho e sábio. Peço desculpa, mas tive muito tempo para pensar e meditar nos últimos anos. Seja como for - fez uma pausa para se sentar direito -, decidi ceder e ir para a clínica da Suíça no próximo mês. Os médicos prometeram-me que ficaria lá por pouco tempo mas não internado, podendo frequentar o conservatório de música e prosseguir com os meus estudos artísticos.

- Oh, Louis, isso é maravilhoso!

- Agora - continuou, juntando a minha mão à sua e amaciando a voz -, perguntei ao meu médico porque é que de repente os meus olhos tinham voltado a ver e ele disse que é devido a ter encontrado alguém em quem confiar. - Sorriu.

- O meu médico é mais o que se poderia chamar um psiquiatra

- acrescentou num ápice. - A maneira como ele descreve o meu estado é como se a minha mente tivesse deixado cair uma cortina negra sobre os meus olhos e a tenha mantido todo este tempo. Disse ainda que eu não me permitia melhorar, porque receava voltar a ver. Sentia-me mais seguro fechado no meu mundo de escuridão, deixando que os meus sentimentos se escapassem somente através dos dedos para as teclas do piano.

"Quando lhe descrevi o que sentia por ti, ele concordou comigo que tu tinhas sido uma das mais importantes razões por que estou a recuperar a visão. Desde que te tenha por perto... desde que possa contar contigo para passares algum tempo comigo...

 

- Oh, Louis, não posso arcar com tamanha responsabilidade.

Ele riu-se.

- Já sabia que ias dizer alguma coisa desse género. És demasiado doce e generosa. Não te preocupes. A responsabilidade é toda minha. Claro que - acrescentou num tom mais baixo

-           a minha avó não está muito contente com tudo isto. Ficou tão zangada que queria contratar outro médico. Mandou cà a minha prima para me tentar convencer de que estava a sentir-me assim por ser tão vulnerável. Mas eu disse-lhes... Disse-lhes que era impossível tu seres o tipo de rapariga que elas descreveram: uma pessoa interesseira e que se aproveita dos outros.

"E depois disse-lhes... - Fez uma pausa e a sua expressão tornou-se séria. Não, não lhes disse, exigi, que te seja autorizado visitares-me sempre que possas antes de eu ir para a clínica. Aliás, tornei suficientemente claro que não iria se não pudesse ver-te sempre que quisesse e... claro, sempre que tu quisesses.

"Mas tu queres ver-me, não queres? - perguntou. O tom da sua voz mais parecia uma súplica.

- Louis, não me importo de vir cá sempre que puder, mas...

- óptimo. Então está tudo resolvido - declarou. - Digo-te

o que vou fazer: vou continuar a compor... uma sinfonia inteira. Vou trabalhar durante todo o mês e será dedicada a ti.

- Louís - disse eu, com os olhos a lacrimejar. - Tenho de te dizer que...

Não - interrompeu. - Já decidi. De facto até já tenho uma parte composta. Era o que eu estava a tocar quando chegaste. Queres ouvir?

- Claro, Louis, mas...

Ele levantou-se e foi para o piano antes que eu pudesse pronunciar mais uma palavra. Começou a tocar.

Senti o coração atormentado. Devagar e de forma imperceptível, tinha entrado no mundo de Louis com tal intensidade que parecia agora impossível tentar sair sem o magoar terrivelmente. Talvez depois de ir para a clínica, e quando recuperasse por completo a visão, eu conseguisse fazê-lo perceber que estava envolvida romanticamente com outra pessoa. Nessa altura ele podia suportar a decepção e continuar, pensei. Até lá, não podia fazer nada a não ser ouvir a sua bela música e encorajá-lo a continuar a esforçar-se para voltar a ver.

A sinfonia era maravilhosa. A melodia esvoaçava com tamanha graça que me senti enlevada. Relaxei de olhos fechados e deixei que a sua sinfonia me transportasse para trás no tempo, até que me vi de novo como criança, correndo por cima da relva, o riso da grandmére Catherine a seguir-me enquanto guinchava de prazer aos pássaros que sobrevoam a água e aos peixes que saltavam na lagoa.

- Bem - disse Louis, quando acabou de tocar. - Isto é tudo o que compus até agora. Como é que está a ir?

- É lindo, Louis. E é muito especial. Vais tornar-te um Compositor famoso, tenho a certeza.

Ele voltou a rir-se.

 

- Anda - convidou. - Pedi ao Otis que preparasse café cajun e mandasse vir alguns sonhos do Cafe du Monde, em Nova Orleães. Estão à nossa espera no terraço envidraçado. Podes contar-me tudo acerca da tua irmã gémea e das coisas horriveis que ela tem tramado - acrescentou. Ofereceu-me o braço e depois saimos do estúdio de música. Olhei uma vez mais para trás quando caminhávamos pelo corredor. Nas sombras traseiras, tinha a certeza de ter vislumbrado Mrs. Clairbome parada a olhar. Mesmo àquela distância, sentia o seu descontentamento

Só na manhã seguinte, na escola, é que descobri como ela e a sua sobrinha, Mrs. Ironwood, estavam determinadas a afastar-me da vida de Louis.

 

FALSAS ACUSAÇÕES

Mal o meu professor começara a ler as informações do dia, um mensageiro chegou vindo do gabinete de Mrs. Ironwood ordenanddo a minha presença imediata. Olhei para Gisselle e percebi que ela estava tão confusa e curiosa como todas as outras. Sem dizer palavra, saí e apressei-me pelo corredor abaixo. Quando cheguei ao gabinete de Mrs. Ironwood, dei com Mrs. Randle à entrada com um bloco de notas na mão.

- Entre já - aconselhou-me, dando-me passagem.

Com o coração a bater tão depressa que parecia ir rebentar no meu peito, entrei no gabinete de Mrs. Ironwood. Estava sentada atrás da secretária, de costas direitas e com os lábios retorcidos, os olhos mais raivosos que eu alguma vez vira. As mãos estavam colocadas sobre a secretária, com as palmas viradas para baixo, cobrindo alguns documentos.

- Senta-te - ordenou. Acenou a Mrs. Randle, que entrou depois de mim, fechando a porta em seguida. Mrs. Randle apressou-se depois para uma cadeira ao lado da secretária e pousou o bloco de notas. A mão fechava-se em volta da caneta.

- O que se passa? - perguntei, não aguentando mais aquele silêncio longo e de mau agoiro que tinha caído sobre mim.

- Não me lembro de jamais ter chamado outra aluna ao meu gabinete tantas vezes como já te chamei a ti - começou Mrs. Ironwood, fazendo uma careta onde sobressaía a forma como as suas sobrancelhas castanho-escuras se uniam. Dirigiu um olhar a Mrs. Randle à espera de confirmação e Mrs. Randle acenou ligeiramente, abrindo e fechando os olhos ao mesmo tempo.

- Não tenho culpa disso - proferi.

-Hummm... - murmurou Mrs. Ironwood. Olhou para Mrs. Randle como se as duas ouvissem vozes que eu não escutava. - Não é nunca culpa dela - repetiu, sorrindo desdenhosamente, o que fez com que Mrs. Randle acenasse de novo, abrindo e fechando os olhos como na vez anterior. Parecia um fantoche, cujos fios estavam nas mãos de Mrs. Ironwood.

- Então, porque me mandou chamar? - perguntei.

Antes de responder, Mrs. Ironwood endireitou os ombros de novo com mais firmeza e rigidez. - Pedi a Mistress Randle para estar aqui a tirar notas, pois estou prestes a começar a audiência formal de expulsão.

- O quê? O que é que eu fiz desta vez? - gritei. Olhei para Mrs. Randle que ficara cabisbaixa. Devolvi o meu olhar a Mrs. Ironwood, a qual me observava com tal intensidade que me pareceu sentir o seu olhar a atravessar-me como um raio de calor.

- O que é que não fizeste? É mais isso... - Abanou a cabeça e mirou-me de cima com todo o desprezo. - Desde o início, começando pelo teu passado que a tua madrasta tão sinceramente aqui confessou, da arrogância e desdém que exibiste durante a conferÊncia inicial, à tua atitude em relação às regras, violando os limites do terreno quase de imediato, passando pela maneira como desafiaste a minha vontade, sempre soube que a tua presença em Greenwood era um erro de proporções monstruosas, cujo destino só podia resultar num completo falhanço.

 

½ Castigos, avisos, até conselhos, pouco ou nada fizeram. A tua espécie raramente muda para melhor. O falhanço està-lhe no sangue.

- Exactamente... do que estou a ser acusada? - inquiri.

Em vez de responder de seguida, ela limpou a garganta e pôs os seus óculos de leitura de aros de pérola. Depois, levantou os papéis que tinha debaixo das mãos para começar a ler.

- Isto é para dar início formal ao passo número um do processo de expulsão, como està descrito no regimento interno do Colégio de Oreenwood, estabelecido pelo conselho de direcção. A estudante em questão - começou a ler, olhando em seguida por cima dos óculos para mim -, chamada Ruby Dumas, foi, na data aqui assinalada, convocada para ser informada da sua audiÊncia e para ouvir as acusações levantadas contra ela pela administração do Colégio de Greenwood.

1/2Número um - prosseguiu num tom de voz cada vez mais autoritário. - A aluna, de livre e espontânea vontade e com conhecimento de causa, ultrapassou os assim designados limites da propriedade de Greenwood e permaneceu nesse local até depois da hora de recolher.

- O quÊ? - gritei, voltando a olhar para Mrs. Randle, que tinha a cabeça baixa e escrevinhava rapidamente no seu bloco de notas. - Que local?

- Número dois: a aluna, de livre e espontânea vontade e com conhecimento de causa, exerceu um comportamento imoral dentro da propriedade da escola, enquanto se encontrava sob a supervisão da escola.

- Comportamento imoral?

- As acusações supracitadas serão exaradas e adjudicadas numa audiência formal de expulsão esta tarde às dezasseis horas neste mesmo gabinete.

Baixou de seguida os papéis e os óculos.

- É a minha função dar-te as instruções quanto ao nosso procedimento. Um júri, constituído por dois membros do corpo docente e a presidente do corpo estudantil, Deborah Peck, ouvirá as acusações e as provas e depois delineará um veredicto. Eu estarei a supervisionar todos os procedimentos, é claro.

- Que acusações? Que provas?

- Já te li as acusações - respondeu.

- Não ouvi nada de específico. Onde é suposto eu ter ido fora do limite da propriedade! à mansão? É por causa disso?

-           exigi saber. As suas faces ruborizam-se ao mesmo tempo que lançou uma olhadela rápida a Mrs. Randle, voltando depois

a olhar para mim.

- Não - retorquiu. - Foste vista na casa dos barcos fora de horas.

- Casa dos barcos?

- Onde te dirigiste para ter um encontro ilícito com um empregado, o Buck Dardar.

- O quê? Quem é que me viu?

- Um membro do corpo docente... Um membro muito respeitável e há muito tempo nesta escola, se posso acrescentar.

- Quem? Posso saber o nome do meu acusador? - inquiri. quando ela hesitou.

 

- Mistress Gray, a tua professora de Latim. Por isso, não há dúvida alguma quanto à sua possibilidade de te reconhecer

- concluiu.

Abanei a cabeça.

- Quando?

Ela olhou para os seus papéis, como se responder àquela pergunta exigisse um enorme esforço, e por fim disse:

- Foste vista a entrar na casa dos barcos às sete e meia de ontem à noite?

- Ontem à noite?

- E lá permaneceste depois da hora de recolher - acrescentou. - Todos os outros pormenores do testemunho de Mistress Gray serão dados na audiência formal.

- Confundiram-me com outra pessoa. Eu não podia estar na casa dos barcos às sete e meia de ontem à noite. Basta para isso chamar o Buck aqui e perguntar-lhe - aconselhei.

Ela fez um sorriso de desdém.

- Achas que eu não tenho noção disso e que não o fiz já? Ele foi chamado aqui logo pela manhã e escreveu uma confissão - salientou, mostrando-me outro documento a corroborar o que a nossa testemunha ocular viu.

- Não - disse eu, abanando a cabeça. - Ele... ou está enganado ou está a mentir. Há-de ver quando for à audiência e me vir e se der conta de que...

- O Buck Dardar já não se encontra nesta propriedade. Foi dispensado dos seus serviços e já saiu da escola - declarou.

- O quê? Ele foi despedido devido a estas falsas acusações contra mim? Mas isso não é justo!

- Garanto-te - afirmou, sorrindo friamente - que ele considerou a minha oferta bastante generosa. Vocês, raparigas, são todas menores de idade. Se não fosse pelo potencial escândalo, eu tê-lo-ia entregue á Policia.

- Mas isto não é verdade. Basta perguntar à sua tia onde que eu estava ontem á noite.

- A minha tia? - Mostrava-se estupefacta. - Tu queres que eu envolva Mistress Clairborne neste caso repugnantemente sórdido. Como te atreves a sugerir uma coisa dessas? Os limites da tua imoralidade não têm fim?

- Mas eu estive na mansão ontem á noite e cheguei ao dormitório muito antes da hora de recolher.

- Garanto-te - disse devagar Mrs. Ironwood - que Mistress Clairbome nunca consentiria em dar tal testemunho. - O tom com que proferiu esta frase mostrou como estava confiante e convencida do que dizia.

- Mas então só precisa de telefonar ao Louis...

- Um individuo cego! Também queres envolvê-lo nisto. Estás determinada a desgraçar esta família distinta? É esse o teu motivo? Alguma espécie de ciúmes doentios de origem jun?

- Claro que não, mas tudo isto é um erro - gritei.

- Isto é o que o nosso júri vai decidir às quatro desta tarde. Sê pontual. - Fechou os olhos e depois voltou a abri-los. -    Podes trazer alguém para falar em tua defesa. - Fez umapausa e inclinou-se para a frente, com um sorriso irónico nos lábios. - Claro está, se quiseres evitar toda esta situação desconfortável, podes confessar e admitir as acusações e aceitar a expulsão.

 

- Não - respondi, enfurecida. - Quero enfrentar os meus acusadores. Quero que toda a gente que está envolvida nestas mentiras seja obrigada a olhar-me nos olhos e a tomar consciência do que está a fazer.

- Como quiseres. - Voltou a recostar-se. - Eu sabia que tu serias provocadora até ao fim. Ainda tinha uma pequena esperança de tornar as coisas menos dificeis para a tua família, ainda por cima depois da tragédia que a tua madrasta acabou de enfrentar. Tenho pena de ti, mas provavelmente estarás melhor se regressares para os da tua laia.

- Oh, não há dúvida alguma que estaria bem melhor se fizesse isso, Mistress Ironwood - ripostei. - A minha laia não olha as pessoas de alto só porque são ricos ou descendentes de qualquer família nobre. A minha laia não conspira ou faz tramóias - retorqui. As lágrimas ardiam-me por debaixo das pálpebras, mas mantive-as trancadas nos olhos para não lhe dar a satisfação de me ver a chorar. - Não irei ser empurrada daqui para fora numa canoa construída com materiais fraudulentos e odiosos.

Ela olhou para Mrs. Randle, que rapidamente desviou o olhar para o seu bloco de notas.

- Que conste no processo - ditou Mrs. Ironwood - que esta estudante, Ruby Dumas, nega todas as acusações e deseja prosseguir com a audiência formal. Ela foi informada dos seus direitos...

- Direitos? Que direitos tenho eu aqui? - perguntei com um riso sarcástico.

- Ela foi informada do seus direitos - repetiu Mrs. Ironwood intencionalmente. - Apanhou tudo, Mistress Randle?

- Sim - respondeu.

- Deixe-a assinar os apontamentos como está consignado pelos regulamentos - ordenou Mrs. Ironwood. Mrs. Randle virou o bloco na minha direcção e empurrou-o para mais perto, entregando-me uma caneta ao mesmo tempo.

- Assine aqui. - Deu as instruções, apontando para uma linha desenhada ao fundo da página. Tirei a caneta dos seus dedos e comecei a assinar.

- Não queres ler primeiro? - perguntou Mrs. Ironwood.

- Para quê? - inquiri. - Isto é tudo um jogo muito bem ensaiado, com o resultado determinado já á partida.

- Então porque é que continuas? - perguntou num ápice.

Sim, pensei, porquê continuar? Depois lembrei-me da grandmêre Catherine e de todas as vezes que ela fora chamada a enfrentar a mais dificil das contrariedades, o desconhecido, a escuridão; e como ela fora sempre de livre vontade lutar pelo que estava certo e pelo bem, por mais intransponíveis que fossem os obstáculos que se opunham ao seu sucesso.

- Vou continuar... para que todos os que fazem parte desta conspiração me possam enfrentar e para que eu lhes pese nas suas consciências - respondi.

Os olhos de Mrs. Randle abriram-se em sinal de surpresa e até alguma admiração, admiração que ela tinha a certeza de que Mrs. lronwood não veria.

- Podes regressar à tua aula - ordenou Mrs. Ironwood. - Foi-te dito para apareceres às quatro. Se não apareceres, serás julgada em ausência.

 

- Não tenho dúvidas acerca disso - concluí e levantei-me. As minhas pernas estavam sem forças; fechei os olhos e chamei a mim uma onda de coragem, fria e metódica, vinda do meu coração sobressaltado, que seguiu pelas minhas veias até aos pés. Com os ombros direitos e de cabeça erguida, virei-me e saí do gabinete de Mrs. Ironwood, não vacilando até me sen tar na minha secretária na primeira aula, e só então tomei conciência do que estava a acontecer comigo. Uma espécie de dormência paralisante tomou posse de mim.

Andei que nem um morto-vivo durante o resto do dia. Não falei a ninguém do meu encontro com Mrs. Ironwood e das acusações de que estava a ser alvo, com tudo o que significavam, mas não foi preciso sussurrar uma palavra a ninguém. Mal Deborah Peck foi informada de que iria presenciar uma audiência de expulsão, as notícias correram por todos os corredores e por todas as aulas mais depressa do que uma enguia no pântano se esgueira à procura de comida. A meio da tar toda a gente sabia e todas as alunas falavam de mim. Pouco antes da minha última aula, Gisselle encontrou-se comigo na esquina do corredor, primeiro para me repreender por não ter directamente ido ter com ela contar-lhe o meu problema, e depois para demonstrar a sua alegria, pois, se eu fosse expulsa de Greenwood, também ela seria.

- Não te contei nada por causa da maneira como tens agido ultimamente, Gisselle - disse-lhe. - Sabia como irias regozijar-te e ficar contente.

- Porque é que te preocupas com a audiência? Vamos simplesmente telefonar â Daphne e pedir-lhe que mande a limusina.

- Porque é um monte de mentiras, essa é a razão, e não faço tenções de deixar a Dama de Ferro sair-se desta com tal facilidade, se o puder evitar - retorqui. - Não vou ser expulsa como um condenado, coberta de alcatrão e penas.

- Pois, mas não vais conseguir evitá-lo e estás a ser de uma estupidez e teimosia á moda cajun. Não vás a essa audiência, Ruby - ordenou. - Ouviste o que disse? Não vás.

- Deixa-me ir para a minha aula, Gisselle. Não quero acrescentar uma falta por atraso a todo o resto e dar-lhes mais uma razão para embirrarem comigo - disse, contornando a cadeira de rodas.

Ela agarrou a manga da minha blusa.

- Não vás, Ruby.

Eu soltei o braço.

- Vou - respondi, com os olhos tão cheios de fogo que as minhas faces quase queimavam.

- Estás a perder o teu tempo - gritou-me ainda. - E não vale a pena! Por este sítio, não vale a pena! - berrou.

Acelerei o passo e entrei na sala de Educação Visual ao mesmo tempo que tocou a campainha. Bastou-me olhar uma vez para a cara de Miss Stevens para perceber tudo: ela sabia e estava muito preocupada comigo. Mostrava-se de tal forma inquieta que depressa distribuiu trabalho aos outros, empurrando-me em seguida para o fundo da sala, onde me pediu para lhe contar tudo.

- Não sou culpada, Miss Stevens. São acusações inventadas. Eu não podia ter estado na casa dos barcos ontem à noite. Mistress Gray está enganada.

- Porque não podias lá estar? - perguntou.

Contei-lhe da minha visita a Louis.

- Só que dizem que Mistress Clairbome não testemunhará por mim, e também não vai deixar o Louis ir - expliquei.

Ela abanou a cabeça, os olhos tornando-se turvos pelos negros pensamentos que a trespassavam.

 

- Não consigo imaginar Mistress Gray a fazer parte de uma conspiração para te mandar para fora da escola. Ela é uma mulher excelente, uma pessoa muito simpática. Não te dás bem com ela nas aulas? - perguntou.

- Oh, sim. Acho até que tenho um Excelente na sua disciplina.

- Ela foi como uma mãe para mim - disse Miss Stevens - aconselhando-me, ajudando-me desde o início. Além disso, ela também é uma pessoa bastante religiosa.

- Mas eu não estava lá, Miss Stevens! Juro. Ela tem de estar enganada.

Miss Stevens acenou, pensativa.

- Se calhar ela irá aperceber-se disso e mudará o seu testemunho.

- Duvido. Mistress Ironwood parecia demasiado contente e segura de si própria e, com o Buck já despedido e fora da escola, vai ser a minha palavra contra a de Mistress Gray. Além disso, existe aquela coisa falsa que eles obrigaram o Buck a assinar - lamentei-me.

- Por que razão está Mistress Ironwood contra ti de forma tão inflexível? - quis saber Miss Stevens.

- Principalmente devido ao Louis. Desde o inicio que ela não gosta de mim, e tornou-o perfeitamente claro da primeira vez que nos encontrámos no seu gabinete. Mal chegara, já a minha madrasta pusera uma nuvem negra sobre mim. Não sei por que razão ela faria isso, a não ser para assegurar que a minha estada aqui fosse horrível. Quer que eu falhe, que seja

mal vista, para ter razões para se ver livre de mim... e da Gisselle - expliquei.

- Coitada de ti. Queres que eu vá à audiência contigo e testemunhe acerca do teu talento e sucesso?

- Não. Isso não terá qualquer importância e só a envolveria em todo este problema sujo. Eu só quero ir lá para cuspir-lhes na cara.

Os olhos de Miss Stevens encheram-se de lágrimas. Abraçou-me e desejou-me boa sorte, voltando depois para a parte da frente da aula para dar instruções; eu não conseguia prestar atenção a nada. Depois das aulas, regressei ao dormitório, caminhando numa espécie de sonambulismo e mal me apercebendo do caminho que percorria. Mal cheguei ao meu quarto, comecei a arrumar algumas das minhas coisas. Quando Gisselle chegou, estava excitadíssima.

- Decidiste seguir o meu conselho e desistir? óptimo. Quando é que vem a limusina?

- Estou só a preparar-me para o que sei ser o inevitável, Gisselle. Continuo decidida a ir à audiência, que começará

dentro de uma hora. Queres vir?

- Claro que não. Porque é que deveria ir?

- Para estar comigo.

- Queres dizer, para ficar envergonhada contigo. Obrigada, mas não, obrigada. Ficarei aqui à espera e também vou começar a arrumar as minhas coisas. Graças a Deus poderemos dizer adeus a este sítio e a todas estas pessoas - disse, não se preocupando que algumas das raparigas a pudessem ouvir.

 

- Eu não estaria tão contente com isso, Gisselle. A Daphne terá outro tormento á nossa espera. Vais ver. Iremos ser mandadas para outra escola, provavelmente para um sítio ainda pior, como ela ameaçou.

- Eu não vou. Ato-me toda à cama!

- E ela pedirá aos encarregados das mudanças para também levarem a cama. Está determinada.

- Não me importo. Qualquer coisa é melhor do que isto - insistiu, e afastou-se para começar a arrumar as coisas. Arranjei ainda tempo para tratar do cabelo de forma a aparecer na audíência o mais apresentável e segura de mim própria que me era possível.

 

Iniciei o caminho de regresso à escola às quinze para as quatro. Muitas das raparigas do dormitório estavam lá em baixo a falar sobre mim. Ficaram silenciosas quando me viram aparecer e observaram-me a sair, indo algumas para as janelas a fim de seguir o meu percurso enquanto subia o caminho, de cabeça erguida. Não trazia nada comigo, mas verifiquei que o amuleto de boa sorte de Nina, a moeda no fio, estava à volta do meu tornozelo.

O céu tinha-se tornado cinzento, parecendo-me um mau agoiro. Nuvens moviam-se rapidamente, encobrindo qualquer vestígio de azul e fazendo com que o mundo se apresentasse a meus olhos negro e assustador, no fundo reflectindo a maneira como me sentia no coração. Havia até uma surpreendente brisa fria no ar, o que me fez apressar o passo.

Naquela altura do dia, viam-se poucas alunas a passear pelos arredores. As que lá se encontravam interrompiam o que estavam a fazer para me mirar e sussurrar, à medida que me dirigia para o gabinete de Mrs. Ironwood. A porta para o seu gabinete interno estava fechada e Mrs. Randle não estava à secretária. Sentei-me e fiquei a aguardar, vendo o relógio a aproximar-se cada vez mais das quatro horas. Pontualmente, a essa hora, a porta do gabinete abriu-se. Mrs. Ironwood surgiu, fazendo uma expressão de velada frustração quando me viu à espera.

- Entra e senta-te na cadeira - ordenou e deu meia volta, regressando à sua secretária.

A mobília da sala tinha sido reordenada de forma a parecer uma sala de tribunal. Uma cadeira para as testemunhas estava colocada à esquerda da secretária de Mrs. Ironwood. Mrs. Randle, presente para gravar a audiência, sentava-se numa pequena mesa à direita da secretária. à esquerda do que seria a cadeira das testemunhas situava-se o júri: Mr. Norman, o meu professor de Ciências; Miss Weller, a bibliotecária; e Deborah Peck, que tinha um sorriso irónico de satisfação que fez com que o meu estômago se encrespasse de raiva. Tinha a certeza de que ela iria falar ao telefone com o irmão mal aquilo acabasse. Mrs. Gray sentou-se à esquerda do canapé, parecendo muito infeliz e incomodada.

Havia um lugar para mim, a acusada, de frente para a secretária; Mr. Ironwood indicou-me com um aceno de cabeça, mandando-me sentar. Assim o fiz rapidamente, de olhos postos no júri. Estava decidida a nem fazer cara de assustada nem de pessoa com ar culpado, mas o meu peito sentia-se como se tivesse engolido um enxame de mosquitos do pântano que zumbiam e mordiam o meu coração a palpitar.

 

- Esta audiência formal, que servirá para determinar a expulsão da estudante Ruby Dumas, vai ter início - começou Mrs. Ironwood. Pôs os óculos para de novo ler as acusações. Enquanto lia, sentia o olhar de todos sobre mim, mas não mudei de expressão. Mantive o meu olhar fixo em Mrs. Ironwood de costas direitas e com as mãos pousadas confortavelment sobre o colo. - Declaras-te culpada ou inocente perante

as acusações? - perguntou-me por fim.

- Inocente - respondi. A minha voz ameaçava ceder, mas consegui mantê-la firme, Mrs. Ironwood endireitou-se.

- Muito bem. Iremos então prosseguir, Mistress Gray

- disse, virando-se para uma senhora de pequena estatura e cabelo castanho-escuro, que contrastava com os olhos de um azul suave. Sabia que até então ela gostara bastante de mim, muitas vezes dando-me os parabéns pelos meus trabalhos nas aulas. Mostrava-se muito desgostosa e sentia-se que estava a fazer algo de muito doloroso a si própria, mas ergueu-se, inspirou profundamente e dirigiu-se á cadeira das testemunhas.

- Por favor, descreva ao júri o que sabe e o que viu, Mistress Gray - instruiu Mrs. Ironwood.

Mrs. Gray olhou para mim rapidamente e depois dirigiu-se aos três jurados que iriam decidir o julgamento. - Ontem à noite, aproximadamente ás sete e vinte, sete e vinte e cinco, regressava de ter ido jantar com Mistress Johnson, a monitora do dormitório de Waverly. Tinha deixado o carro no parque de estacionamento dos professores e fizera o resto do percurso a

pé. Quando acabei de dar a volta, vi alguém a correr em direcção ao lago e à casa dos barcos, movendo-se sub-repticiamente por' entre as sombras. Curiosa por me aperceber de que só podia ser uma das nossas estudantes, dei meia volta e fui pelo caminho do lago.

Fez uma pausa para inspirar profundamente e engoliu em seco.

- Ouvi a porta da casa dos barcos abrir-se. Ouvi o que era sem dúvida um riso feminino, e depois ouvi a porta fechar-se. Desci até à doca e continuei. Ao chegar à casa dos barcos, fiz uma pausa, pois a janela estava aberta e eu tinha uma visão perfeita do que se passava lá dentro.

-           E o que é que se passava lá dentro? - perguntou Mrs. Ironwood, quando se apercebeu de que Mrs. Gray hesitava. Ela fechou os olhos, mordeu o lábio inferior e depois voltou a respirar profundamente, retomando a palavra.

-           Vi o Buck Dardar só de cuecas a abraçar uma rapariga. Quando se deslocou um bocadinho para trás, pude ver perfeitamente quem era a rapariga.

-           E quem era a rapariga? - perguntou rapidamente Mrs. Ironwood.

-           Vi a Ruby Dumas. Como é natural, fiquei chocada e francamente decepcionada. Antes que eu pudesse fazer algum ruído, ela desabotoou a sua blusa branca e começou a tirá-la. O Buck Dardar voltou a abraçá-la.

- O que tinha ela vestido nesta altura? - quis saber Mrs. Ironwood.

- Ela estava... estava meio nua - respondeu Mrs. Gray. - Só estava de saia.

Vi a boca de Deborah Peck escancarar-se. Miss Weller abanava a cabeça com repugnância. Mr. Norman somente cerrou um pouco as pálpebras mas a sua cara permaneceu hirta, sem qualquer movimento de lábios, de olhos postos em Mrs. Gray.

-           Continue - instruiu Mrs. Ironwood.

 

-           Fiquei tão espantada e decepcionada que me senti fraca e maldisposta - explicou Mrs. Gray. - Dei meia volta e comecei a subir o caminho.

-           Depois disso telefonou-me para me fazer o relatório. Confirma-se?

Mrs. Gray olhou para mim e acenou com a cabeça.

-           Sim.

-           Muito obrigada.

-           Não fui eu, Mistress Gray - disse num tom de voz suave.

-           Silêncio. Terás a tua vez para falar - ripostou Mrs. Ironood. - Agora já pode sair, Mistress Gray - disse.

-           Peço desculpa. Tinha de contar o que vi - declarou, à medida que se levantava. - Estou muito desiludida.

Abanei a cabeça, com as lágrimas a crescer por detrás das pálpebras.

-           Depois de este relatório me ter sido entregue - começou Mrs. Ironwood logo que Mrs. Gray saiu -, mandei chamar o Buck Dardar a este gabinete logo pela manhã. Confrontei-o com o testemunho de Mistress Gray e mostrei-lhe a fotografia constante do processo de Ruby Dumas, para que ele pudesse confirmar que a rapariga vista com ele na casa dos barcos era de facto Ruby Dumas. Irei agora ler o seu testemunho feito sob palavra de honra e assinado.

Pegou num documento.

- "Eu, Buck Dardar, aqui declaro que, na ocasião citada e noutras ocasiões anteriores" - leu Mrs. Ironwood, levantando as sobrancelhas e olhando para o júri -, "tive relações íntimas com Ruby Dumas. Miss Dumas veio aos meus aposentos pelo menos meia dúzia de vezes para namoriscar e se oferecer a mim. Confesso ter aceite as suas investidas. Na ocasião citada, Ruby Dumas chegou à casa dos barcos às sete e trinta e não saiu antes das nove e trinta. Arrependo-me verdadeiramente de me ter envolvido com esta estudante e aceito o castigo pronunciado por Mistress Ironwood nesta data."

"Como podem ver - concluiu, entregando o documento a Miss Weller -, ele assinou-o.

Miss Weller deu uma vista de olhos ao papel, acenou em concordância, e depois passou-o a Mr. Norman. Ele observou-o e depois entregou-o a Deborah, que permaneceu com ele mais tempo do que os outros, antes de o devolver a Mrs. Ironwood. Parecendo tão satisfeita como um guaxinim de barriga cheia> recostou-se à cadeira.

- Agora podes apresentar a tua defesa - disse Mrs. Ironwood.

Virei-me em direcção ao júri.

- Não duvido que Mistress Gray viu alguém a ir para a casa dos barcos ontem á noite, às sete e trinta, e sei que ela acredita que está a dizer a verdade, mas está enganada. Eu estava...

- Eu digo-lhes onde estavas - ouviu-se. Virei-me na cadeira e vi Miss Stevens a conduzir Louis pela porta.

- O que significa isto? - exigiu saber Mrs. Ironwood.

Acho que fiquei tão chocada como ela. Louis, vestido de casaco e gravata, com o cabelo bem penteado, acenou.

- Estou aqui para testemunhar pela defesa. - Sorriu na minha direcção. - Ruby Dumas - anunciou. - Posso?

- Claro que não. Isto é um assunto da escola, e eu...

 

- Mas eu tenho informações pertinentes em relação a este caso - insistiu. - É essa a cadeira das testemunhas? - Apontou para a direcção correcta.

Mrs. Ironwood lançou um olhar furioso e enraivecido a Miss Stevens e depois olhou para o júri, que a observava à espera de resposta.

- Isto é altamente irregular - declarou.

- O que tem de irregular? Isto é uma audiência, e uma

audiência é o local onde se apresentam as provas, não é? - perguntou Louis. - Tenho a certeza de que querem chegar á

verdade - acrescentou com um sorriso.

Todos viraram o olhar de Louis para Mrs. Ironwood. Louis, aproveitando o seu silêncio, encaminhou-se para a cadeira. Sentou-se e pôs-se em posição confortável.

- O meu nome é Louis Tumbuíl. Sou o neto de Mistress Clairbome e resido na Mansão Clairborne, como é conhecida.

- Voltou-se em direcção a Mrs. Ironwood. - Tenho de dizer a minha idade e ocupação?

- Não sejas ridículo, Louis. Não é da tua conta estares aqui.

- Claro que é da minha conta - retorquiu firmemente. - Muito bem. Tal como percebi, a questão é se a Ruby Dumas esteve ou não esteve na casa dos barcos ontem à noite a partir das sete e trinta, não é verdade? Pois bem, posso assegurar ao júri que ela não esteve. Nessa altura a Ruby estava comigo. Ela chegou às sete e quinze e ficou até às nove horas da noite em minha casa.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala, fazendo com que o tiquetaque do relógio de parede parecesse soar muito mais alto.

- Não é essa a questão? - prosseguiu Louis.

- Muito bem. Se queres realmente ir por aí: como é que podes ter a certeza da hora exacta? - desafiou Mrs. Ironwood.

- Tu és cego. - Olhou para o júri com ar de superioridade.

Louis também se virou para o júri.

- Eu tenho, é certo, vindo a sofrer de um problema de visão. Mas ultimamente tenho feito valiosos progressos. - afirmou; depois, olhou para mim e sorriu. A seguir voltou-se para o relógio de parede, que se encontrava no canto do gabinete. - Deixem-me ver. De acordo com o relógio que a minha prima tem aqui no gabinete, são agora quatro horas e vinte... e dois minutos - declarou. Estava correctissimo. Olhei para o júri. Todos eles estavam impressionados. - Claro que posso deixar verificar tudo isto, bastando para isso um telefonema ao nosso mordomo, o Otis, que recebeu Mademoiselle Dumas e a acompanhou á porta ao fim da noite. Ele também nos serviu um chá durante a visita. Como podem ver, não existe a possibilidade física de ela ter estado na casa dos barcos ontem à noite às sete e trinta, oito, oito e trinta ou mesmo às nove - cantarolou.

- Um membro respeitável do meu corpo docente diz o contrário e tenho uma confissão assinada que...

-           Por favor, vá até ao carro e peça ao Otis para vir cá - disse Louis a Miss Stevens.

-           Isso não será necessário - opôs-se Mrs. Ironwood num rompante.

 

- Mas se há alguma dúvida no que diz respeito ao meu testemunho... - Virou-se de frente para Mrs. Ironwood. - Se for necessário, tenho a certeza de que também convencerei a minha avó a corroborar o meu testemunho.

Mrs. Ironwood observou-me. A fúria que crescia na sua cara tinha-lhe enrubescido as faces até atingir o pescoço, que também ficou carmesim.

-           Não estás a fazer nada de bom para ninguém, Louis - murmurou, enraivecida, Mrs. Ironwood.

-           Excepto para Mademoiselle Dumas - respondeu.

Ela mordeu o lábio inferior e depois recostou-se, engolindo a sua raiva.

- Muito bem. Sob estas circunstâncias e com estes factos contraditórios, não sei como é que podemos pedir ao nosso júri, que chegue a uma sentença justa. De certo que todos concordam comigo - declarou Mrs. Ironwood. Mr. Norman e Miss Deborah, de olhos muito abertos, acenaram em sinal de concordância.

- De comum acordo, declaro que esta audiência se dá por terminada sem chegar a uma conclusão na matéria em causa. Quero salientar que isso não significa que a estudante em questão será ilibada. É simplesmente uma declaração que afirma que, por esta altura, ainda não é possível tirar uma conclusão definitiva. - Olhou para mim. - Estás dispensada - anunciou. Depois virou-se de costas, de tal modo encolerizada pela frustração que quase me pareceu ver fumo a sair-lhe pelas orelhas. O meu coração estava a bater com tanta força, o martelar a fazer eco nos meus ouvidos, que tinha a certeza de que todas as pessoas na sala o podiam ouvir. - Já disse que a audiência está encerrada - insistiu Mrs. Ironwood quando percebeu que ainda não me levantara. Pus-me então de pé.

Louis também se levantou e saiu comigo e com Miss Stevens.

- Porque é que o trouxe, Miss Stevens? - perguntei-lhe mal tínhamos saído do gabinete interior. - Mistress Ironwood está tão furiosa que é capaz de se vingar em si.

- Pensei nisso e cheguei à conclusão de que não podia

perder a minha melhor pintora - respondeu, sorrindo. - Além disso, a partir do momento em que Louis soube o que estava a suceder contigo, não o podia impedir, pois não, Louis?

- Claro que não - concordou, sorrindo.

- E a tua visão melhorou tanto, Louis! - exclamei. - Consegues ver as horas até ao minuto.

Ele sorriu de novo e Miss Stevens desatou a rir.

- O Louis já previa que a sua visão seria testada e perguntou-me as horas exactas antes de entrarmos no gabinete - explicou Miss Stevens.

- Eu sabia que se dissesse um minuto a mais ou a menos continuava a causar boa impressão - acrescentou.

- Mas não erraste. Disseste o minuto exacto - exclamei abraçando-o. - Muito obrigada, Louis.

- Foi divertido. Fiz finalmente algo de bom a outra pessoa - afirmou.

- E é provável que vás arranjar problemas com a tua avó por causa disto - disse-lhe.

- Não faz mal. Estou farto de ser tratado como uma criança. Eu posso tomar as minhas próprias decisões e responder pelas minhas acções - declarou com orgulho.

Continuámos pelo corredor fora em direcção à saída, dando os três as mãos. De repente, desatei a rir.

 

- Porque é que estás a rir? - perguntou-me Louis, já com um sorriso de expectativa estampado na cara.

- A minha irmã, a Gisselle. Mal posso esperar para lhe contar e ver a cara que vai fazer.

 

- O quê!? - berrou Gisselle. - Não foste expulsa de Greenwood?

- A audiência foi encerrada sem se chegar a qualquer conclusão, graças ao Louis e a Míss Stevens. Devias ter estado lá, Gisselle - disse-lhe, tão satisfeita comigo própria que as minhas faces brilhavam de alegria. - Ias gostar tanto de ter visto a cara que Mistress Ironwood fez quando teve de engolir as suas palavras duras e as ameaças vãs.

- Ia gostar... Pensei que íamos para casa! Cheguei mesmo a arrumar a maior parte das minhas coisas!

- Iremos para casa em breve... nas férias - cantarolei, deixando-a quase tão frustrada como Mrs. Ironwood.

Tal como correra pela escola, que nem um furacão, a noticia das acusações de que era alvo e da minha audiência, também rapidamente se espalhou a nova de que não tinha sido expulsa. Estava certa de que todo aquele episódio tivera um efeito contrário ao que Mrs. Ironwood previra. Em vez de ser vista como uma pecadora aos olhos das outras estudantes, eu era agora tomada por heroína. Desafiara o ferro e o fogo, a fúria e o poder da nossa tão temida directora. Eu era o David que tinha lutado contra o Golias e sobrevivido. Para onde quer que fosse, as raparigas reuniam-se á minha volta para ouvir os pormenores; contudo não me vangloriei das minhas façanhas, dando curtas explicações, que a todas decepcionavam.

- Não foi muito agradável - disse. - Não gosto de estar sempre a falar disso. Um grande número de pessoas sofreu com tudo o que se passou.

Pensei no pobre do Buck Dardar, que tinha perdido o emprego, não acalentando qualquer raiva contra ele por ter assinado a falsa confissão. Tinha a certeza de que fora intimidado e só assinara sob a severa ameaça de prisão e de cair em completa desgraça. Mas Mrs. Gray permanecia um mistério, um mistério que só seria resolvido depois de eu ir à sua aula no dia seguinte.

- Ruby! - chamou, mal a campainha soou a anunciar o fim da aula.

Esperei que os outros saissem antes de me aproximar dela.

- Sim, Mistress Gray?

- Quero que saibas que não inventei a minha história - declarou firmemente e com tal sinceridade que não consegui deixar de olhá-la nos olhos. - Tenho conhecimento do testemunho que o neto de Místress Clairborne deu na audiência, mas isso nada muda o que vi e o que contei. Eu não minto, muito menos conspiro contra as pessoas.

- Eu sei, Místress Gray - afirmei. - Mas eu não estava lá. Juro que não.

- Peço desculpa - disse ela. - Mas não acredito em ti. Deu meia volta, e eu sai com o coração pesado.

 

A expressão firme de Mrs. Gray perseguiu-me durante o resto do dia. Era quase como se Mrs. Ironwood lhe tivesse lançado um feitiço que a tivesse feito ver o que ela queria que Mrs. Gray visse e a levasse a dizer o que ela queria que fosse dito. Quem me dera poder ter Nina comigo só por alguns minutos, para que ela pudesse levar a cabo algum ritual de vodu ou um encantamento para mudar as coisas.

lembrei-me de a grandmére Catherine me ter contado um dia a história de um homem que tinha perdido a sua filha de cinco anos num acidente de barco no pântano. Apesar de terem recuperado o corpo dela, ele continuou a acreditar que ela estava perdida no bayou, jurando que a tinha ouvido a chamá-lo

à noite e chegando mesmo a declarar que a via de tempos a tempos.

- Queria tanto acreditar nisso - dissera ela -, que para ele era verdade, e ninguém o convencia do contrário.

Talvez Mrs. Gray não tivesse tanta certeza do que tinha visto quando falou pela primeira vez com Mrs. Ironwood, e possivelmente Mrs. Ironwood tinha-a convencido de que ela me vira a mim.

No entanto, estes pensamentos continuavam a apoquentar-me. Ao regressar ao dormitório no fim do dia, parei para observar a casa dos barcos. Se ao menos eu pudesse encontrar Buck, pensei, e fazer com que ele me dissesse a verdade. Talvez conseguisse convencê-lo a contar tudo a Mrs. Gray. Odiava o facto de ela continuar a ter-me em tão pouca consideração.

Fiquei surpreendida por saber que Gisselle ainda não tinha regressado ao dormitório quando cheguei, mas Samantha apareceu pouco depois para me dizer que a minha irmã tinha ficado retida com Mrs. Weisenberg para rever as suas péssimas notas de matemática. Já sabia que iria estar furiosa quando voltasse.

Desempacotei todas as coisas que tinha arrumado antes e depois espreitei para o quarto de Gisselle a fim de ver se ela fizera o mesmo. O quarto dela estava uma confusão. Na sua frustração e raiva, tinha atirado tudo para fora das malas. Vestidos, saias e blusas estavam espalhados por cima das cadeiras e da cama, e algumas peças no chão. Comecei a apanhar as coisas, dobrando tudo e pendurando as roupas. Ao colocar uma blusa de seda branca com botões de pérola num cabide, fiz uma pausa, recordando uma parte do testemunho de Mrs. Gray.

Não dissera ela que a rapariga estava vestida com uma blusa branca? Eu não costumava vestir nenhuma blusa branca:

usava sempre o uniforme de Greenwood. Os meus olhos desviaram-se para o fundo do armário, onde se encontravam os sapatos de Gisselle. Algo me prendeu a atenção. O meu coração começou a palpitar quando devagar me ajoelhei e peguei nos sapatos, que estavam cheios de lama na parte de baixo e nos lados. Mas como é que...

O tom de voz elevado da minha irmã a debitar as suas queixas sobre ser retida depois das aulas precedeu a sua chegada ao quadrante. Ouvi-a a discursar à medida que Kate a empurrava pelo corredor. levantei-me, sustendo a respiração. A minha mente balançava entre todas as possibilidades, pensamentos que pareciam demasiado fantásticos. Pouco antes de ser empurrada até à porta do seu quarto, enfiei-me dentro do armário e fechei a porta corrediça quase até ao fim.

- Onde está a minha irmã? - exigiu saber Gisselle.

- Ela estava no teu quarto - disse-lhe Samantha. - A arrumar as tuas roupas.

Gisselle deu uma espreitadela e depois sorriu desdenhosamente.

- Quem é que lhe pediu? Seja como for, já cá não está.

 

Samantha aproximou-se de Gisselle e espreitou para o quarto.

- Oh... Deve ter saído quando fui à casa de banho.

- óptimo. Quero contar-lhe todas as coisas horríveis que aquela Mistress Weisenberg me fez passar até acertar com as respostas.

- Queres que vá à procura dela? - perguntou Samantha.

- Não. Conto-lhe depois. Tenho de descansar. - Enfiou-se dentro do quarto, batendo com a porta. Ficou sentada a ponderar uns momentos a olhar para a cama. Depois, esticou-se para a frente e trancou a porta do quarto. Contive a respiração. Mal tinha acabado de trancar a porta, levantou-se sem cambalear, sem sequer fazer um esforço.

E apercebi-me de que a minha irmã podia andar!

Corri devagar a porta do armário, sem fazer muito barulho mas ela sentiu a minha presença e virou-se. Os olhos arregalaram-se de espanto, mas tenho a certeza de que não estavam abertos como os meus.

- O que é que estás a fazer? - Engasgou-se. - A piar-me?

- Tu podes estar de pé! Tu consegues andar! Mon Dieu, Gisselle!

Ela voltou a sentar-se na cadeira de rodas.

- E depois? - perguntou, passado um momento. - Mas não quero que ninguém saiba.

- Mas porquê? Desde quando consegues pôr-te de pé e andar?

- Há algum tempo - admitiu.

- Mas porque mantiveste segredo?

- Assim sou melhor tratada - confessou.

-Gisselle... Como é que pudeste fazer isto? Toda esta gente, todas a trabalhar como escravas para ti... Conseguias andar antes da morte do paizínho? Conseguias? - exigi saber. - Deteve-se calada; nem precisava de responder. Eu sabia que conseguia. - Que horror! Podias tê-lo feito sentir muito melhor.

- Eu ia contar-lhe mal nos fosse permitido voltar para casa, sair deste sítio horrível, mas enquanto tivesse de ficar aqui,

não ia contar a ninguém - declarou.

- Como é que isso aconteceu? Quero dizer, quando é que deste conta de que podias levantar-te?

- Estava sempre a tentar fazê-lo e um dia consegui. Sentei-me na cama com a cabeça a andar à roda. Oh, pára lá de fazer disto uma grande coisa - ordenou.

levantou-se e andou até ao armário. Vê-la a andar com tanta facilidade parecia incongruente. Era como se eu tivesse mergulhado num sonho. Agora, andando de pé e com a possibilidade de usar os seus membros, Gisselle parecia-me diferente. Era como se tivesse ficado mais alta e mais forte por ter estado tanto tempo confinada à sua cadeira de rodas. Observei-a a escovar O cabelo por alguns instantes. Todas as minhas anteriores suspeitas vinham agora à mente.

-           Foste tu, não foste? - gritei, apontando-lhe o dedo. - Eu? De que estás a falar agora, Ruby? - perguntou fingindo não estar a perceber.

-           Foste tu que estiveste com o Buck Dardar naquela noite, não foi? É por isso que os teus sapatos estão cheios de lama. Foste para lá às escondidas e...

 

-           E depois? Ele era o único divertimento aqui na terra, apesar de ter de admitir que era um bom amante. Odiei vê-lo ter de partir, mas, quando foste acusada de ter lá estado, pensei que era perfeito. Finalmente iríamos sair daqui. Então, o teu namoradinho tinha de aparecer e livrar-te. Que grande azar!

-           E o Buck pensava que tu eras eu? Disseste-lhe que o teu nome era Ruby?

-           Disse, mas não sei se ele acreditou ou não. Vamos dizer apenas que ele estava contente fosse eu quem fosse, desde que aparecesse.

- Quantas vezes... Todas as vezes que te trancaste no quarto - concluí, virando-me para a porta. Olhei para a janela.

-           É mesmo isso. Eu escapulia-me através da minha janela e ia ao seu encontro. Verdadeiramente excitante, não? Aposto que gostavas de já ter pensado nisto.

-           Não, não gostava! - Empertiguei-me. - Vais sair imediatamente daqui e contar a verdade - afirmei. - Em especial a Mistress Gray.

-           Ai vou? Ainda não estou preparada para que as pessoas saibam que posso estar de pé e andar - respondeu, voltando para a cadeira de rodas.

-           Não me interessa se estás pronta ou não. Vais contar - insisti, mas ela não parecia intimidada. Gisselle veio ao meu encontro na cadeira de rodas e olhou para mim com um olhar frio e duro.

- Não vou - retorquiu. - E se tu deixas transparecer nem que seja uma palavra a alguém, conto a Mistress Ironwood acerca de ti e da tua querida Miss Stevens. Isso há-de tramá-la de certeza.

- O quê? O que estás a dizer?

Ela sorriu.

- Toda a gente sabe acerca da querida Miss Stevens. que tem medo de rapazes mas gosta de estar rodeada de raparigas... Especialmente de ti, não é?

Era como se um fósforo se tivesse acendido no meu estômago. A chama de raiva fazia tremer o meu coração e enviava fumo para o meu cérebro. Engasguei-me.

- Isso é uma mentira horrível, nojenta... e se contas a alguém uma coisa dessas...

- Não te preocupes. Eu guardo o teu segredo desde que tu guardes o meu - prosseguiu. - Negócio fechado?

Olhei para ela, de boca aberta, mas as palavras não saíam; era como se a minha língua tivesse ficado congelada.

- Presumo que o teu silêncio significa que concordas. óptimo! - Virou-se em direcção à porta, que destrancou. - Agora, realmente preciso de descansar antes do jantar. Ah, é verdade, obrigada por me teres arrumado o quarto. Tenho sido muito exigente comigo própria, a tentar ser independente. Sou capaz de te chamar de vez em quando para que me faças pequenas coisas... Já que temos de cá ficar... - acrescentou.

Claro que, quando sairmos deste sitio...

- Estás a fazer chantagem comigo - acusei por fim. - É isso que estás a fazer.

- Estou simplesmente a tentar aguentar-me por aqui da maneira mais agradável e simples que me for possível. Se fosses uma boa irmã e se realmente te preocupasses comigo, farias o que eu quero, para variar.

 

- Então vais ficar nessa cadeira de rodas e fazer com que toda a gente pense que ainda estás aleijada!

- Enquanto me der jeito - respondeu.

- Espero que te dê jeito para sempre - retorqui e afastei-me de rompante até à porta. - Tenho pena de ti, Gisselle. Odeias-te tanto que nem te dás conta.

- lembra-te só do que eu disse - retorquiu, cerrando os olhos manhosamente. - Estou a falar a sério.

Abri a porta para receber uma lufada de ar fresco e fúgir da minha irmã gémea; apesar das semelhanças fisicas, havia um lado tão maldoso e egoísta que mostrava claramente sermos perfeitas estranhas.

 

PRENDAS INeSPeRADAS

Desde o dia da minha audiência de expulsão até ao início das nossas férias, fiz o melhor que pude para evitar e ignorar Gisselle. Era notório que lhe dava muito prazer ter o poder de me ameaçar. Bastava eu olhar com desdém para ela, quando fingia custar-lhe tanto andar na cadeira de rodas ou quando desatava aos berros dando ordens a uma das suas súbditas, que logo me lançava um sorriso gelado e perguntava.

- Como está Miss Stevens?

Eu limitava-me a abanar a cabeça, enojada, e ia-me embora ou regressava à leitura. Devido a esta constante tensão entre nós em Oreenwood, estava ansiosa por que chegassem as férias do Natal. Sabia que, de regresso a Nova Orleães, Gisselle iria divertir-se com os seus amigos, e era-me mais fácil evitá-la. Claro que estava também ansiosa por ver Beau, o qual me telefonava quase todas as noites, mas antes de me ir embora sabia que ainda tinha de visitar Louis. Telefonara-me a dizer que afinal iria frequentar a clínica na Suíça e o conservatório de música durante as férias em vez de permanecer na Mansão Clairborne para aquilo que ele chamava "mais um Natal medonho". Ele previa um ambiente ainda mais triste devido á minha ausência e ao contínuo desagrado da avó e da tia pelo que fizera por mim na audiência.

Por isso, desloquei-me á mansão para jantar com ele na noite anterior ao início das férias escolares. A avó dele não chegou a aparecer em nenhum dos sítios onde estivemos na casa, nem sequer para me espiar através de uma porta parcialmente aberta, muito menos vir á mesa. Louis e eu sentamo-nos sozinhos na enorme sala de jantar, com as velas a arder, e tivemos um delicioso jantar de pato, seguido de uma fabulosa tarte de chocolate francês.

- Tenho dois presentes para ti - declarou Louis no fim do jantar. - Sim. Fui à cidade pela primeira vez em... não me lembro de há quanto tempo para cá... e comprei-te isto. Retirou uma pequena caixa do bolso do casaco.

- Oh, Louis, sinto-me tão mal. Não te trouxe nada.

- Claro que sim. Trouxeste-me a tua companhia, a tua preocupação e provocaste-me o desejo de querer ver outra vez e de voltar a ser produtivo. Não há maneira de medir o valor de tal prenda, mas garanto-te - disse, pegando-me na mão por um momento - que vale muito mais do que qualquer coisa que eu pudesse oferecer-te.

Ficou a tocar na minha mão e depois aproximou-a dos seus lábios, beijando-me os dedos.

-           Muito obrigado - agradeceu num sussurro sentido. - Encostou-se e sorriu. - E agora abre o teu primeiro presente não escondas as tuas reacções. Ainda não vejo perfeitament< mas consigo ouvir bem.

Ri-me e desatei o pequeno laço de maneira a que pudesse retirar o papel sem o estragar. Depois, abri a pequena caixa e olhei para o que devia ser um autêntico rubi encastrado num anel de ouro. Engasguei-me.

-           É tão bonito como me disseram? - perguntou.

-           Oh, Louis, é o anel mais bonito que alguma vez vi. Devia ter-te custado uma fortuna.

 

-           Se não te servir, peço que o ponham á tua medida. Experimenta - pediu, e assim o fiz.

-           Serve perfeitamente, Louis. Como é que sabias?

-           Memorizei todas as partes do teu corpo em que toquei - proferiu. - É fácil. Senti o dedo da vendedora na loja e disse-lhe que tu eras dois tamanhos mais pequenos. - Sorriu com orgulho.

-           Muito obrigada, Louis. - Inclinei-me para a frente e beijei-o rapidamente na face. O seu rosto ficou sério de repente. Depois, levou os dedos á face como se pudesse ainda sentir o calor dos meus lábios.

-           E agora - disse com firmeza, preparando-se para a minha resposta -, tens de me dizer se o que vejo com o meu coração é verdade.

Contive a respiração. Iria perguntar-me se eu o amava?...

-           Amas outra pessoa... - Surpreendeu-me. - Não amas? Desviei-me ligeiramente e olhei para baixo, mas ele estendeu o braço e levantou-me o queixo.

-           Não olhes para outro lado, por favor. Diz-me a verdade.

-           Sim, Louis, amo. Mas como é que soubeste?

- Ouvi na tua voz, pela maneira como te retraías sempre que falavas carinhosamente comigo. Senti-o agora no teu beijo, que era um beijo de um bom amigo e não de um amante.

- Peço desculpa, Louis, mas nunca quis...

- Eu sei - disse ele, procurando os meus lábios com os

seus dedos. - Não penses que tens de inventar desculpas. Não

te acuso de nada e não espero mais nada de ti. Continuo ainda

e para sempre em dívida contigo. Só espero que, seja quem for

que ames, mereça esse amor e te ame com tanta força como eu o faria.

- Também assim espero - respondi.

Ele sorriu.

- Mas agora não vamos ficar melancólicos. Como nós, os crioulos franceses, dizemos: Je ne regrette rien. Certo? Não me arrependo de nada. Além disso, podemos sempre ser bons amigos, não podemos?

- Claro, Louis. Para sempre.

- óptimo. - Desfez-se num sorriso contagiante. - Não posso pedir melhor presente de Natal. E agora - continuou, levantando-se -, o teu segundo presente. Mademoiselle Dumas chamou, oferecendo-me o braço -, dá-me permissão que a acompanhe, SI'l vous plait.

Dei-lhe o braço e saímos da sala de jantar, encaminhando-nos para o estúdio de música. Primeiro levou-me até ao canapé e depois dirigiu-se ao piano e sentou-se.

- A tua sinfonia está terminada - anunciou.

 

Fiquei ali sentada a ouvi-lo tocar as mais belas e maravilhosas melodias. Senti-me levada pela música; era um verdadeiro tapete mágico que me transportava aos mais magníficos lugares da minha imaginação e memória. De vez em quando, a música lembrava-me o som da água passando pelos canais no bayou, especialmente após uma forte tempestade; outras vezes, ouvia os ruídos matinais dos pássaros. Vi o pôr do Sol... e crepúsculos, e sonhei com céus nocturnos resplandecentes, quando as estrelas estão tão brilhantes que permanecem durante horas nos olhos mesmo enquanto se dorme. Quando a música termínou, senti-me triste por ter acabado. Louis tinha suplantado tudo o que tinha composto anteriormente.

Corri para ele e pus os meus braços à volta do seu pescoço.

- Foi maravilhoso! Tão maravilhoso que não consigo exprimir por palavras!

-Então!... - respondeu, dominado por completo pela minha reacção.,

- É incrivelmente belo, Louis. A sério. Nunca ouvi nada como isto.

- Fico muito contente que tenhas gostado. Tenho uma coisa especial para te dar - disse, e pôs a mão por debaixo do banco, tirando de lá outra caixa embrulhada, esta muito maior que a anterior. Retirei depressa o laço, arranquei o papel para abrir a parte de cima da caixa e vi um disco.

- O que é isto, Louis?

- é a minha sinfonia - explicou. - Gravei-a num disco.

- Gravaste? Mas como...

Olhei para a etiqueta. Estava escrito: "Sinfonia da Ruby, composta e tocada por Louis Tumbuíl."

- Louis, não posso acreditar!

- É verdade! - respondeu, rindo-se. - Eles trouxeram un dia destes as máquinas cá a casa e gravei directamente aqui neste estúdio.

- Deve ter custado imenso dinheiro. - Ele encolheu os ombros.

- Não me importa o que custa - respondeu.

- É uma honra tão grande. Hei-de pôr o disco a tocar para todos os que quiserem. Quem me dera que o paizinho ainda estivesse vivo para poder ouvir - disse eu. Não queria introduzir uma nota de tristeza, mas foi-me impossível evitar. O meu coração estava tão cheio, e não tinha ninguém que eu amassse ali comigo para poder partilhar, nem a grandmére Catherine, nem o paizinho, nem Beau ou Paul.

- Sim - respondeu Louis, ficando com o rosto mais contraído. - É doloroso não ter connosco pessoas que se ame verdadeiramente quando algo de bom acontece. Mas - acrescentou alegremente -, agora tudo isso vai acabar para nós os dois. Eu estou esperançoso, tu não estás?

- Sim, Louis.

- óptimo. Feliz Natal, Ruby, e que tenhas o Ano Novo mais saudável e feliz da tua vida.

- Tu também, Louis. - Voltei a beijá-lo na face.

Nessa noite, quando regressei a pé para o dormitório, sentia-me iluminada. Era como se tivesse bebido duas garrafas do vinho de amora da grandmêre Catherine. Durante todo o caminho fui seguida por uma garça nocturna de crista preta que me chamava com o seu grasnar.

- Feliz Natal também para ti - gritei-lhe quando passou por mim de raspão, dirigindo-se para um ramo de carvalho. Depois desatei a rir e corri para o dormitório. Da porta aberta do seu quarto, Gisselle viu-me a entrar no quadrante e veio ao meu encontro na cadeira de rodas, de forma a impedir-me o caminho

- Tiveste outro jantar amoroso na mansão? - perguntou em tom de provocação.

- Sim, foi amoroso.

 

-Hum... - Depois, reparou na caixa que eu trazia. Os seus olhos arregalaram-se de curiosidade. - O que tens debaixo do braço? - exigiu saber.

- Uma prenda do Louis. Um disco - respondi. - É uma sinfonia que ele compôs e gravou.

- Oh! Grande coisa - ripostou, fazendo um sorriso irónico e começando a afastar-se.

- É uma grande coisa. Ele compô-la para mim e chama-se "Sinfonia da Ruby".

Ela ficou a observar-me durante algum tempo, com uma expressão de inveja.

- Queres ouvi-la? - perguntei-lhe. - Podemos pó-la a tocar no teu gramofone.

- Claro que não - respondeu rapidamente. - Detesto esse tipo de música. Faz-me adormecer. - Começava a virar-se quando reparou no meu anel. Desta vez, os seus olhos quase lhe saltaram das órbitas.

- Também te deu isso?

- Sim - respondi.

- O Beau não vai gostar - declarou depois de semicerrar os olhos. Abanou a cabeça. - Outro homem a dar-te presentes caros...

- O Louis e eu somos apenas bons amigos. Ele compreende isso e aceita - expliquei.

- Claro. Ele gasta todo este dinheiro e tempo contigo, e tudo o que lhe tens dado é conversa - retorquiu com um sorriso maldoso nos lábios. - Com quem pensas que estás a falar? Com alguma menina burra cajun que acredita em contos de fadas?

- verdade, e não vás dizer a ninguém qualquer coisa diferente - avisei-a.

- Se não? - desafiou.

- Se não... eu parto-te o pescoço - ameacei. Dei um passo na sua direcção e ela mirou-me surpreendida. Depois retraiu-se.

- Grande irmã - lamentou-se, num tom suficientemente alto para que todas no quadrante a ouvissem. - Ameaçando a sua irmã gémea deficiente com violência. Feliz Natal - gritou, fazendo girar a cadeira de rodas e encaminhando-se para o quarto.

Não consegui evitar rir-me dela, o que só a enfureceu ainda mais. Bateu com a porta com toda a força, e eu regressei ao meu quarto de forma a poder arrumar as coisas para a nossa viagem de regresso a casa.

 

No dia seguinte, tivemos um horário mais reduzido, no fim do qual entrámos todas para o auditório com o intuito de ouvir o discurso de Mrs. Ironwood. Estávamos à espera de uma curta conversa sobre as férias, com desejos de feliz Natal e boas entradas no Ano Novo. Porém, em vez disso, transformou-se numa pesada série de ameaças, avisando-nos sobre o risco de falhar nos nossos trabalhos escolares e lembrando-nos que pouco depois do regresso teríamos os exames semestrais.

Porém, nada do que ela pudesse dizer conseguia diminuir a excitação que se sentia no ar. Pais chegavam para vir buscar as suas filhas e viam-se limusinas por toda a parte; para onde quer que olhasse, raparigas estavam a abraçar-se e a desejar boas férias umas às outras. Os nossos professores também andavam a cumprimentar pais e a desejar aos estudantes um bom regresso a casa.

 

A nossa limusina foi uma das últimas a chegar, o que fez com que Gisselle tivesse um dos seus ataques de raiva. Mrs. Penny sentiu-se obrigada a ficar com ela e a confortá-la mas isso para Gisselle só significava mais um ouvido para escutar as suas queixas. Pouco antes de a nossa limusina chegar, Miss Stivens apareceu para se despedir e para me desejar feliz Ano Novo.

- Vou passar as férias com uma das irmãs do meu antigo orfanato - informou-me. - É uma espécie de tradição. Já

passámos uma dúzia de Natais juntas. - Ela é o mais próximo que eu tenho de uma mãe.

Gisselle ficou a observar do pórtico do dormitório a ver seu e Miss Stevens nos abraçávamos e beijávamos.

- Nunca lhe agradeci o suficiente pelo que fez por mim na audiência de Míss Stevens. Foi preciso coragem.

- às vezes, fazer a coisa certa requer mais coragem, mas

um sentimento que te provoca cá dentro faz com que valha a pena. Isto é capaz de ser algo que talvez só nós, os artistas, compreendemos - disse com um piscar de olho. - Faz qualquer coisa com o teu tempo livre em casa. Traz-me uma pintura

uma paisagem do Garden District - disse, entrando para dentro do jipe.

-Assim o farei.

- Feliz Ano Novo, Ruby.

Fiquei a vê-la afastar-se e de súbito uma onda de tristeza assombrou-me. Quem me dera também poder levar Miss Stevens para casa. Quem me dera ter uma verdadeira casa com pais que de bom grado a recebessem... Poderíamos todos apreciar a música, a comida, a alegria e o calor de passarmos o Natal juntos.

O seu jipe desapareceu na curva exactamente ao mesmo

tempo que a limusina apareceu. Gisselle fez transparecer a sua alegria, mas, quando o motorista estacionou para pôr as nossas coisas no porta-bagagens, ela começou a berrar com ele impiedosamente por ter chegado tão tarde.

- Saí quando Madame Dumas me disse para sair - protestou. - Não estou atrasado.

Os queixumes de Gisselle começaram a diminuir como o trovão de um final de tempestade no bayou, à medida que nos afastávamos da escola e nos dirigíamos para Nova Orleães. Quando começaram a assomar paisagens familiares, ela reluziu de excitação e ansiedade. Sabia que tinha feito alguns telefonemas para antigas amigas e que já haviam começado a fazer planos preliminares para festas durante as férias. Eu só conseguia imaginar que espécie de recepção Daphne teria reservado para nós.

 

Para minha grande surpresa, não deparámos com a casa escura e deserta. Daphne já tinha mandado pôr as decorações de Natal e havia uma árvore maior do que a do ano anterior na principal sala de estar, debaixo da qual se via um monte de prendas. Momentos depois de chegarmos e enquanto apreciávamos os enfeites natalícios, a porta da frente abriu-se com força e Daphne entrou de rajada, rindo-se à gargalhada. Usava um casaco branco de raposa, calças de montar e um belo par de botas de cabedal. Tinha o cabelo apanhado por baixo de um chapéu de pele a condizer. Os seus brincos de diamantes brilhavam-lhe nos lóbulos, acrescentando ainda mais brilho ao seu rosto inegavelmente belo e vibrante. As suas faces estavam coradas, e fiquei com a ideia de que tinha estado a beber. Não havia dúvida de que o período de luto pelo paizinho chegara ao fim. Bruce, rindo-se quase tão estridentemente quanto ela, estava a seu lado. Os dois pararam à entrada e olharam para mim e para Gisselle.

- Oh, cá estão as minhas queridas - disse Daphne. - Em casa para as férias. - Retirou as luvas de seda e Bruce ajudou-a com o casaco, entregando-o depois a Martha, que esperava obedientemente. - E como estão as minhas preciosas gémeas Dumas?

- Estamos bem - respondi com firmeza. A sua alegria de viver e o seu comportamento aborreciam-me. Este seria o primeiro Natal sem o paizinho. O seu falecimento ainda era tão doloroso como uma ferida aberta e, no entanto, Daphne agia como se nada tivesse mudado; se algo mudara, era para melhor.

- óptimo. Decidi fazer alguns jantares durante as férias. Por isso, haverá convidados a entrar e a sair durante a vossa estada. Eu própria fui convidada para a casa de praia de um amigo para a passagem de ano. Conto com vocês e espero que se portem o melhor possível.

"Podem convidar amigos a vir cá e também ir a festas apropriadas - declarou. A sua indulgência e generosidade apanhou-nos a ambas de surpresa. - Vamos ter de ficar juntas durante anos e anos, por isso é bom convivermos da melhor maneira - acrescentou, olhando para Bruce, que estava radiante, como alguém prestes a explodir com tanta declaração de felicidade. - Esta é a altura mais alegre do ano. Sempre gostei e não faço tenções de ter nem um só momento de tristeza. Portem-se bem, e todos nós nos daremos sem problemas.

"Todos esses presentes por debaixo da árvore são para vocês as duas e para os criados - concluiu. Nem eu nem Gisselle sabíamos como responder. Olhámos uma para a outra, surpreendidas, e depois virámo-nos para Daphne.

- Vão-se refrescar e vestir qualquer coisa agradável. Os Cardin vêm hoje cá jantar. São capazes de recordar que o Charles Cardin é um dos nossos maiores investidores. Bruce - chamou, voltando-se para ele. Este prestou-lhe atenção e seguiu-a para o estúdio.

- Estarei a ouvir bem? - perguntou Gisselle. - Não acredito no que oiço. Mas isso é maravilhoso. Todos aqueles presentes para nós!

Abanei a cabeça.

- O que se passa, Ruby?

- Não sei porquê, mas há algo de estranho em tudo isto - respondi. - A morte do paizinho é ainda tão recente.

- Porquê? Não fomos enterradas na cova com ele. Ainda estamos vivas e a Daphne tem razão: esta é a altura mais alegre do ano. Vamos divertir-nos! Martha! - gritou. Olhou para mim e piscou-me o olho.

- Sim, mademoiselle?

- Ajuda-me a subir as escadas - ordenou Gisselle. Quanto tempo mais iria ela manter a farsa? Fiquei a pensar, mas não estava disposta a desmascará-la para depois ela espalhar histórias nojentas e falsas acerca de Miss Stevens. Deixei-a lamentar-se, gemer e lutar como a aleijada que já não era.

 

No entanto, receando que Daphne regressasse ao seu modo autoritário e controlador, Gisselle comportou-se nessa noite, ao jantar, como uma verdadeira senhora. Nunca a tinha visto tão educada e encantadora. Falava acerca de Greenwood como se adorasse a escola e rejubilava com o meu trabalho artístico como uma irmã orgulhosa. Daphne ficou muito satisfeita e recompensou-nos, permitindo-nos sair da mesa mal o jantar terminou, a fim de telefonar aos nossos amigos e fazer planos para os convidar lá para casa. Daphne, Bruce e os Cardin transferiram-se para a sala de visitas para tomar os digestivos, mas, quando começámos a sair da sala de jantar, Daphne chamou-me.

- Só quero falar com a Ruby por um momento - disse aos seus convidados e a Bruce. - Estarei aí num instante. - Acenou em direcção a Bruce, que conduziu os Cardin para fora da sala. Gisselle saiu por si própria para o corredor, irritada por não tomar parte na conversa.

- Estou muito contente com vocês as duas - começou Daphne. - Estão a aceitar a nova ordem das coisas com sensatez.

Segundo parecia, Mrs. Ironwood não a informara sobre a audiência e as circunstâncias envolventes ou, se o fizera, Daphne decidira ignorar, dado o resultado ter sido favorável, pensei.

- Se quer dizer aceitar que o paizinho morreu, isso é uma coisa que temos de aceitar.

- Claro que é - disse, sorrindo. - Tu és mais esperta que a Gisselle. Sei disso, Ruby, e sei que a tua inteligência te permite tomar as decisões mais acertadas. É essa a razão por que eu sempre concordei com o Pierre acerca de seres tu a tomar conta da tua irmã. Vou dar-vos às duas mais liberdade por causa das férias do que normalmente dou, mas conto contigo para assegurares que ambas se comportam dignamente.

- Pensei que eu era a cajun de sangue quente - retorqui.

O seu sorriso esmoreceu e os seus olhos estreitaram-se por um momento; depois, voltou a sorrir.

- Todos nós dizemos coisas que não sentimos quando estamos muito zangados. Tenho a certeza de que compreendes. Que isto seja mesmo um novo ano, um novo começo para todos nós - declarou. - Façamos tábua rasa e esqueçamos todos os maus episódios que aconteceram no passado. Vamos ver se conseguimos todos dar-nos bem e, quem sabe, ser de novo uma família. Okay?

A mudança na sua atitude inquietava-me. Pressentia que ela estava a ser hipócrita, a preparar-nos para qualquer coisa, e não conseguia evitar essa ansiedade.

- Sim - disse eu cautelosamente.

- óptimo, porque outra coisa tornaria a vida desagradável para todos nós - concluiu, dando a entender uma ameaça velada.

Observei-a enquanto saía e depois segui-lhe os passos. Gisselle estava à espera no corredor.

- O que é que ela queria? - quis saber.

- Queria dizer-me que espera que tenhamos todos um novo começo, que esqueçamos todos os erros do passado e nos amemos de novo como uma família.

- Então, porque estás com esse ar tão infeliz?

- Não confio nela - retorqui, olhando em direcção à sala de visitas.

 

- Só tu, para dizeres uma coisa dessas. Estás sempre a imaginar o pior, estás sempre à procura do lado escuro das coisas, quase nas esperanças de que corram mal, para que possas sofrer muito. Gostas de sofrer. Achas que é nobre - acusou-me.

- Isso é ridículo. Ninguém gosta de sofrer e de ser infeliz.

- Tu gostas. Ouvi até alguém dizer que os teus quadros mostram a tua melancolia. Até mesmo os pássaros... parece que vão desatar a chorar. Pois a mim não me apetece que ponhas uma nuvem escura no meu céu soalheiro. - Depois, foi-se embora telefonar às amigas para combinar as férias.

Teria ela razão? Fiquei a pensar. Seria eu mais propensa à tristeza e à melancolia? Como podia alguém gostar dissE. O problema não era eu gostar; ao estar tão habituada às chuvas torrenciais, não conseguia evitar ficar sempre à espera de uma nuvem negra todas as vezes que algo de bom acontecia e a luz do Sol iluminava o meu caminho. Talvez devesse tentar ser Um pouco como Gisselle, pensei, um pouco mais despreocupada. Fui para o meu quarto esperar o telefonema de Beau. Quando ele ligou, foi muito agradável ouvir-lhe a voz e saber que estava perto.

- Os meus pais já se resignaram com o facto de eu ir ver-te - disse. - Acho que falaram com a Daphne, e ela foi razoável em relação a isso. O que se passa?

- Não sei. Ela está a agir de forma diferente, mas...

- Mas não confias nela?

- Não. A Gisselle acha que estou a ser céptica sem necessidade nenhuma. Mas não consigo evitar.

- Não me interessa quais são os motivos da Daphne, desde que possa ver-te... - afirmou. - Não vamos sequer pensar nela.

- Tens razão, Beau. Também já estou farta de ser infeliz. Vamos simplesmente divertir-nos.

- Apareço por aí depois do pequeno-almoço - sugeriu.

- Se possível, passarei contigo todo o tempo que não estiver a dormir, isto é, se quiseres.

- Não consigo imaginar nada melhor - concordei.

Os dias anteriores ao Natal foram muito divertidos e excitantes. Assim que pude, contei a Beau tudo acerca de Louis e mostrei-lhe a música. Não me apetecia que Gisselle lhe pusesse ideias falsas na cabeça. Ele ficou compreensivelmente ciumento, mas garanti-lhe que Louis era apenas uma pessoa com quem eu fizera amizade e vice-versa. Contei-lhe da audiência de expulsão de Mrs. Ironwood e como Louis tinha testemunhado a meu favor, mesmo que isso significasse arranjar problemas com a avó e a prima.

- Não o culpava se ele realmente se apaixonasse por ti - disse Beau.

- Ele perguntou-me se eu amava outra pessoa, e eu respondi-lhe que sim.

Beau rejubilou.

- E ele compreendeu - acrescentei.

 

Acreditando que Gisselle já não poderia lançar sementes maldosas de dúvida no espírito de Beau, resolvi descontrair-me e gozar o tempo que tínhamos juntos. Beau e eu fomos andar de cavalo, demos passeios e passámos horas enroscados no sofá a conversar. Depois de termos estado durante uma eternidade separados pelo tempo, pela distância e pelos acontecimentos, era como se estivéssemos a conhecer-nos de novo. E se é possível apaixonar-se pela mesma pessoa duas vezes, foi isso o que aconteceu.

Ao princípio pensei que Gisselle iria ficar ciumenta, pois não tinha um namorado certo. Porém, resolveu convidar os seus antigos amigos a irem lá a casa, entrando e saindo a todas as horas. Sempre que Dapline o permitia, organizava festas particulares no seu próprio quarto. Sabia que eles estavam a fumar erva e a beber, mas, desde que mantivessem a porta fechada e não incomodassem os criados, pouco me importava.

Daphne foi todas as noites sair com Bruce para jantares e festas; contudo, na véspera de Natal, tivemos um jantar especial mais cedo só para nós as três, pois Daphne ia a seguir a uma festa de Natal no Bairro Francês.

- Pensei que poderiamos ter um jantar familiar para celebrar o feriado - declarou à mesa. Estava de uma beleza radiosa, num vestido de veludo preto com uma pregadeira de diamantes e brincos a condizer. O seu cabelo nunca antes parecera tão macio e forte. Planeara a ementa para o nosso jantar de Natal, pedindo a Nina que preparasse a sua famosa receita de truta. O tabuleiro das sobremesas estava cheio de escolhas deliciosas, incluindo tarte de pêssego, pão de banana e nozes, mousse de limão e soufflé de chocolate e rum. Gisselle petiscou um pouco de tudo, mas Daphne limitou-se a mordiscar umas bolachinhas rendilhadas. Já nos dissera inúmeras vezes que uma senhora sai sempre da mesa com um pouco de fome. Era essa a melhor maneira de manter a linha.

- Então, o que decidiram fazer na passagem de ano? - perguntou.

Gisselle olhou para mim e depois despejou tudo cá para fora:

- Gostaríamos de organizar uma festa cá em casa só para alguns amigos. - Conteve a respiração, à espera que Daphne rejeitasse a ideia.

- óptimo. Fico mais descansada se souber que vocês as duas estão seguras cá em casa do que a andar de um lado para o outro nas ruas da cidade.

Gisselle ficou radiante. Nessa mesma noite, Daphne ainda permitiu que convidássemos alguns amigos para ir lá a casa.

Porque estaria ela a ser tão condescendente? Porém, como Gisselle diria, a cavalo dado não se olha o dente.

Depois do jantar de Natal, Bruce apareceu, pronto para acompanhar Daphne à festa. Trouxe presentes para ambas e colocou-os debaixo da árvore.

- Amanhã vão demorar pelo menos duas horas a desembrulhar tudo o que vos ofereceram - insinuou, olhando para o monte de prendas. Tive de reconhecer que todos aqueles presentes iriam proporcionar um momento aliciante.

- Diverte-te esta noite, mãe - desejou Gisselle, quando Daphne e Bruce se preparavam para partir.

- Muito obrigada, querida. Vocês também. E não se esqueçam: os vossos amigos só devem ficar até à meia-noite.

- Não vamos esquecer - retorquiu Gisselle, olhando depois com um ar cúmplice para mim. A verdade é que só vinham duas pessoas à nossa casa para a véspera de Natal: Beau e o mais recente namorado de Gisselle, John Darby, um rapaz bonito, de cabelo escuro, cuja família se mudara para Nova Orleães esse ano. Jogava na equipa de futebol de Beau.

 

Antes de eles chegarem, Edgar informou-me que tinha uma chamada telefónica. Fui ao estúdio atender. Era Paul.

- Estava com esperanças de que estivesses em casa para poder desejar-te um feliz Natal - disse.

- Feliz Natal também para ti, Paul.

- Como estão a correr as coisas por aí?

- Foi declarada uma espécie de tréguas. No entanto, continuo à espera que a minha madrasta saia de um armário com um chicote na mão.

Ele riu-se.

-           Nós aqui temos uma casa cheia de gente para jantar.

-           Aposto que têm decorações lindas e uma bonita árvore.

-           Sim - disse, orgulhoso. - Como sempre, mas... Quem me dera que estivesses aqui. lembras-te do nosso primeiro Natal juntos?

-           Claro - respondi num tom de tristeza. - Tens aí alguns amigos, alguma amiga especial?

-           Sim - respondeu, mas percebi que mentia. - Seja como for - acrescentou rapidamente -, só queria desejar-te boas festas. Tenho de desligar. Diz à Gisselle que lhe desejo um feliz Natal e um próspero Ano Novo.

-           Direi - respondi.

-           Falo contigo em breve - prometeu antes de desligar. Fiquei a pensar até que ponto os fios de telefone poderiam testemunhar todos os risos e todas as lágrimas, a alegria e a tristeza que seriam transmitidos através deles naquela noite.

- Quem era? - perguntou Gisselle da porta.

-           O Paul. Pediu-me para te desejar feliz Natal e próspero Ano Novo.

-           Foi simpático. Mas porque estás com essa cara de enterro? Não comeces - ordenou. Tinha uma garrafa de rum nas mãos e sorria, erguendo-a. - Vamos divertir-nos esta noite.

Olhei para ela, a minha irmã gêmea, indulgente, mimada, caprichosa e egocêntrica, sentada numa cadeira de rodas de que não necessitava, explorando a compaixão de todos e utilizando essa situação para levar as pessoas a fazerem e a darem-lhe tudo o que queria. Naquele momento, na véspera de Natal, vi-a como a personificação de todas as tendências maldosas do meu próprio coração e pensei que estava a olhar para o meu lado mais negro, como se fosse o Dr. Jekyll a mirar-se no espelho, onde está reflectido Mr. Hyde. E, tal como o Dr. Jekyll, eu não podia odiá-la como desejava, pois não deixava de ser parte de mim, parte de quem eu era. Senti-me encurralada, atormentada pelas minhas ânsias e sonhos. Talvez estivesse simplesmente cansada de ser a menina boazinha, como Gisselle me apelidara.

-           Tens razão, Gisselle. Vamos divertir-nos.

Ela riu-se alegremente e entrámos para a sala de visitas, à espera de Beau e de John.

 

Meia hora depois de Beau e John terem chegado, Gisselle pediu ao namorado que a levasse lá para cima, para o quarto. Eu e Beau ficámos sozinhos na sala. A casa tinha-se tornado silenciosa. Nina tinha ido para o quarto, Edgar e Martha estavam nos seus aposentos. Só o bater ocasional do relógio do vestíbulo interrompia o silêncio.

Estive durante meses a fio a pensar no que havia de te oferecer como presente de Natal - disse Beau, depois de nos

termos beijado apaixonadamente durante algum tempo.                  O que posso eu dar a uma rapariga que tem tudo?

-Não me parece que eu seja uma rapariga que tenha tudo, Beau. É verdade que vivo nesta casa luxuosa e que tenho tanta roupa que não sei o que fazer com ela, mas...

- O que estás a dizer? Tens-me a mim, não tens?       perguntou, rindo-se. - Prometeste que não irias ficar séria, que iríamos descontrair e divertir-nos, e lá estás tu a levar tudo o que eu digo à letra.

- Tens razão. Desculpa. O que compraste à rapariga que tem tudo?

- Nada - respondeu.

-O quê?

- Ah, é verdade, comprei esta corrente de ouro para usares à volta do pescoço - disse, tirando do bolso a corrente e o anel da escola. Contive a respiração. Para um jovem creole de Nova Orleães, dar o anel da escola ou o crachá da fraternidade era o passo que precedia a oferta de um anel de noivado. Significava que todas as palavras e votos que tínhamos segredado um ao outro, todas as promessas ao telefone iriam transformar-se em realidade. Eu seria a sua namorada e só sua, e ele seria o meu rapaz, não apenas para nós, mas também para a família e para os amigos.

-Oh, Beau!

- Vais usá-lo? - perguntou-me.

Olhei para aqueles suaves olhos azuis, repletos de promessas e de amor.

- Claro que sim, Beau. Claro que o vou usar - respondi. Colocou a corrente à volta do meu pescoço e depois seguiu com os dedos o fio até ao vale entre os meus seios, onde o anel assentou confortavelmente. Pareceu-me sentir o seu calor através da blusa, um calor que entrava no meu coração a uma velocidade estonteante e que o punha a bater aceleradamente. levou os seus lábios aos meus e gemi, sentindo o corpo amolecer e moldar-se ao seu abraço. A sala de visitas estava apenas parcialmente iluminada pela luz de um pequeno candeeiro e pelas chamas crepitantes da lareira. Beau esticou o braço e apagou a luz. Depois virou-me suavemente pelos ombros e deixei que o meu corpo deslizasse por debaixo do seu no sofá. Os seus lábios percorriam-me o pescoço, enquanto os dedos me desabotoavam a blusa para que pudesse abraçar os meus seios em toda a sua plenitude.

Entregando-me ao abandono, cansada das angústias e agonias que sem sossego me tinham perseguido nestes últimos meses, virei-me para Beau com beijos ainda mais exigentes. Para onde quer que os seus dedos viajassem eram bem-vindos, e quando começou a levantar o meu Soutien e beijou os mamilos com a língua e depois com os lábios, mergulhei ainda mais na corrente quente do êxtase, que partia dos meus ombros, passava pela minha cintura e pernas, e desaguava em pequenas cócegas nos dedos dos pés.

 

Mantive os olhos fechados, ouvindo o roçar das suas roupas, e senti os seus dedos a moverem-se por debaixo da saia e a fazerem descer as minhas cuecas. Ergui as pernas e deixei que as tirasse por completo. A consciência da minha nudez aumentou ainda mais a minha excitação. Saboreei a sua língua, os seus lábios e beijei os seus olhos fechados. Ambos murmurávamos "Sim" ao ouvido um do outro. Abri os olhos por um breve momento e vi as sombras e as luzes da lareira a dançar nas paredes e sobre a nossa pele. Por um instante, talvez devido ao calor que criávamos, senti que éramos nós que estávamos dentro da lareira, a consumarmo-nos nas nossas próprias chamas. Mas eu queria, eu queria tanto.

Abri-me a ele e ele pressionou o seu corpo para a frente e para dentro, repetindo o meu nome como se até nesse momento receasse perder-me. Agarrei-lhe os ombros, puxando para baixo as suas costas e fundindo-me com ele numa ondulação que nos fazia sentir como se fôssemos um só. Ondas de paixão, umas atrás das outras, arrastaram-nos. Não conseguia distinguir um beijo do outro. Tornou-se tudo um beijo eterno, um abraço eterno, uma coreografia composta por graciosos passos de dança.

- Amo-te, Ruby. Amo-te - gritou durante o climax. Eu abafei os meus próprios gritos no seu ombro e agarrei-me a ele com toda a minha força, como se isso pudesse prolongar o momento de êxtase. Depois parámos de nos mover e ficámos simplesmente presos um ao outro, a respirar profundamente, á espera que os nossos corações acelerados acalmassem.

Tudo acontecera tão rapidamente. Não houvera grandes hipóteses de reconsiderar, apesar de eu não julgar que o teria feito. Eu recebera-o, recebera o alívio e a paixão, o amor e a ternura, a beleza do sentimento; e, por alguns instantes, fugira da escuridão e da tristeza que há tanto tempo me perseguiam. Desde que Beau estivesse comigo, pensei, teria sempre a luz do Sol na minha vida.

- Estás bem? - perguntou. Acenei afirmativamente. Não queria ser tão...

- Está tudo bem, Beau. Não nos vamos sentir culpados ou sujos. Eu amo-te e tu amas-me. Nada mais interessa, e isso faz com que tudo o que vivemos juntos seja belo e puro, pois é belo e puro para nós.

Oh, Ruby, amo-te mesmo. Não consigo imaginar amar outra pessoa tanto como te amo a ti.

-           Espero que isso seja verdade, Beau.

-           É verdade - prometeu.

Ouvimos o riso de Gisselle vindo da escadaria e ficámos ambos em estado de choque. Vestimos rapidamente a roupa espalhada e acendemos o candeeiro. Depois dei um jeito ao cabelo. Ele levantou-se do sofá e foi para a lareira atiçar as labaredas, no momento exacto em que John, trazendo Gisselle ao colo, entrava na sala.

-           Decidimos vir ver o que andam os dois a fazer - disse ela. - E o John é tão forte, que lhe é mais fácil e mais rápido carregar-me escadas acima e abaixo do que usar aquela estúpida cadeira de rodas eléctrica. - Agarrou-se a ele como um chimpanzé bebé à mãe, com o braço à volta do pescoço e a cara de encontro ao seu peito.

Ajoelhado jundo à lareira, Beau olhou para mim e em seguida para Gisselle.

 

-           Conheço essa expressão, Beau Andreas - disse Gisselle. Depois olhou para mim a sorrir. - Não tentes esconder nada da tua irmã gémea, Ruby. - Em seguida virou-se para John, que a segurava como se ela pesasse menos do que uma pluma. - As irmãs gémeas sentem coisas uma em relação à outra. Sabias disso, John?

-           Sim?

-           Sim. Sempre que estou infeliz, a Ruby consegue imediatamente pressenti-lo e quando ela está excitada...

-           Pára com isso, Gisselle - ordenei, sentindo o calor a regressar-me ao rosto.

-           Espera um minuto - afirmou. - John, leva-me até ao sofá. - Ele assim o fez e ela observou-me com atenção. - O que é isso à volta do pescoço? É o teu anel, Beau?

-           Sim - respondeu Beau, levantando-se.

-           Deste-lhe o teu anel! O que irão dizer os teus pais?

-           Não me importo com o que eles tenham para dizer - retorquiu Beau, vindo para junto de mim. Dei conta de que o

olhar surpreendido de Gisselle depressa foi substituído por um de ciúmes.

-           Bem, aposto que vai haver uma pessoa lá em Greenwood de coração despedaçado - ironizou.

-           Já falei do Louis ao Beau, Gisselle.

-           Já? - perguntou, completamente decepcionada.

-           Sim, já me contou - interveio Beau. - Tenho de ver se consigo agradecer-lhe a ajuda que deu na audiência - acrescentou. Gisselle fez um sorriso de desdém e depois arregalou os olhos, excitada, mudando de expressão tão rapidamente como se o seu rosto fosse uma televisão a saltar de canal.

-           Bem, então vamos celebrar o facto de teres dado o anel à Ruby. Vamos todos a qualquer lado. Que tal o Green Door? Não pedem o bilhete de identidade, ou pelo menos antes não o faziam.

-           Dissemos à Daphne que iríamos ficar em casa esta noite. Além disso, já é tarde, Gisselle. Ela deve estar a chegar a casa.

-           Não, não está. E que diferença faz o que dissemos? Ela está diferente, não está?

-           E é por isso que não a quero aborrecer - ripostei. - E que tal umas pipocas? Podíamos cozinhá-las na lareira e jogar gamão.

-           Ai, isso parece ser deveras divertido. Anda, John. Vamos voltar para o meu quarto e deixar estes dois velhinhos a fazer tricô na sala de visitas.

Passou a mão pelo antebraço de John.

-           Vêem como é forte? Sinto-me como um bebé nos seus braços. - Beijou-o no pescoço, fazendo com que John corasse.

Sorriu de seguida para Beau. - Sou tão desamparada - lamentou-se. - Mas o John é carinhoso, não és, John?

-O quê? Sim, claro.

-           Então, vamos lá para cima. Preciso de mudar a fralda - disse, rindo-se com a sua própria piada. Pensei que John iria deixá-la cair, mas ele deu meia volta, muito corado, e depressa saiu da sala de visitas com Gisselle a balançar-se nos seus braços e a dar risadinhas.

-           Não consigo deixar de pensar... - disse Beau. - Como é possível que eu tenha namorado com ela?

-           Foi o destino. Se isso não tivesse acontecido - respondi-lhe -, eu e tu poderíamos nunca nos ter conhecido.

 

-           Amo-te, Ruby. Adoro a maneira como tu consegues encontrar o lado bom das coisas, mesmo numa pessoa como a Gisselle.

-           Acredita que isso é um desafio constante - admiti, e ambos desatámos a rir. Depois ele pediu-me para pôr a tocar a música composta por Louis. Ficámos sentados a ouvir, ele com o braço à volta dos meus ombros.

- É maravilhoso como tu consegues inspirar uma pessoa a fazer uma coisa tão bela - confessou.

à meia-noite fomos lá acima avisar John para sair do quarto de Gisselle. Ela queixou-se, claro, e fez tudo o que pôde para tentar convencê-lo a ficar, nem que fosse simplesmente para violar a hora imposta por Daphne. Mas Beau não queria correr o risco de Daphne voltar a irritar-se. Com determinação, ordenou a John para sair e assim sucedeu.

Dei um beijo de boas-noites a Beau à entrada e voltei para cima. Gisselle aguardava junto à porta do quarto. Vê-la de pé, apesar de já saber que ela conseguia estar assim sempre que queria, continua a parecer-me inacreditável e surpreendente.

-           Então quem é que está feliz agora? - perguntou-me levianamente. - Tens o Beau Andreas para todo o sempre.

-           Também queres alguém para todo o sempre? - perguntei.

-           Claro que não. Sou nova de mais. Quero explorar, divertir-me, ter uma dúzia de namorados diferentes, antes de casar com alguém cheio de dinheiro - respondeu.

-           Então porque é que estás com ciúmes?

-           Eu não estou com ciúmes. - Riu-se. - Não tenho ciúmes nenhuns.

-           Sim, tens ciúmes, Gisselle. Não consegues admiti-lo, nem sequer para ti mesma. Porém, também tu queres alguém que te ame... Só que... ninguém há-de amar uma pessoa tão egoísta.

-           Ai, não comeces com um dos teus sermões - lamentou-se. - Estou cansada. É que o John é um óptimo amante, sabes... - acrescentou, sorrindo. - Um bocado estúpido, mas um bom amante. A minha pretensão de estar tão desamparada excita-o. Excita-os a todos, se queres saber. Os homens gostam

de pensar que têm o poder, mesmo que isso não seja verdade. Usei-o como... como uma marioneta - disse, rindo-se.

-           Então vais continuar a fingir que és aleijada?

-           Até me fartar. E se estás com ideias de me denunciar...

-           Sinceramente não me interessa o que fazes, Gisselle, desde que não magoes ninguém que eu amo - respondi, perante a sua ameaça. - Porque se o fizeres...

-           Já sei. Partes-me o pescoço. O único pescoço que vai ficar partido aqui é o teu, quando os pais do Beau descobrirem o que ele te ofereceu. Vais ter de o devolver, já sabes. É melhor que contes com isso. Boa noite, querida irmã e, já agora, feliz Natal.

Fechou a porta, deixando-me algo nervosa. Ela estava enganada, pensei, ela só podia estar enganada. E, além disso, no dia seguinte de manhã eu iria mostrar a Nina o anel de Beau e pedir-lhe que preparasse um cântico ou encontrasse um ritual que lançasse um muro de protecção à volta do nosso amor.

 

Fui dormir, embalada pela maravilhosa memória de fazer amor com Beau, memórias e sentimentos que se encontravam ainda tão vivos dentro de mim, como se ele continuasse a meu lado. Cheguei mesmo a esticar o braço, fingindo que ele lá estava.

- Boa noite, Beau - sussurrei. - Boa noite, meu querido Beau.

Sentindo o seu beijo nos meus lábios, afúndei-me na quente escuridão do meu coração repleto de amor.

 

DE PÉS E MãOS ATADOS

Na manhã seguinte, eu também dormi até tarde. Quando era ainda pequena, odiava as horas de descanso entre a véspera e a manhã de Natal. Era uma tortura ter de ficar à espera que o Sol nascesse antes que pudesse ir lá abaixo desembrulhar os presentes. Por muito pobre que o nosso ano tivesse sido, a grandmére Catherine conseguia sempre arranjar-me prendas maravilhosas, para além dos presentes que também as suas amigas ofereciam. Havia sempre uma prenda secreta, uma prenda com o nome no cartão a explicar de quem era. Eu gostava do

que era do meu pai misterioso, e talvez a grandmére

me desse liberdade para imaginar essas coisas de propósito, para que eu continuasse a acreditar que algures havia um pai à minha espera. Profética como só ela, a grandmére

cedo previra o dia em que eu partiria à sua procura.

Porém, sem a grandmére Catherine e agora também sem O paizinho, o entusiasmo e a alegria da manhã de Natal

tinha desaparecido e, para mim, era apenas mais um dia. Embora por motivos diferentes, também Gisselle sentia o mesmo, apesar de vangloriar-se á frente de toda a gente do monte de prendas

que nos aguardava debaixo da árvore. Com tudo o que possuía as toneladas de roupa nos armários e nas gavetas das cómodas, as montanhas de cosméticos e os rios de perfumes, um manancial de jóias dignas de uma rainha e relógios mais bonitos que as horas do dia - fiquei a pensar no que poderiam oferecer-lhe que ainda a conseguisse entusiasmar. Estava certa de que ela pensava da mesma maneira, pois nem a luz matinal nem o bater do relógio a fizeram sair da sua letargia. Supunha que ela estaria de ressaca depois de tudo o que bebera na véspera.

Eu própria fiquei mais tempo na cama, deitada de olhos abertos, pensando apenas em Beau e nas promessas que ambos tínhamos feito um ao outro. Quem me dera poder saltar anos para a frente, até ao dia do nosso casamento, uma cerimónia

que iria salvar-me daquela família fragmentada e dar início a uma nova vida, cheia de esperança e de amor. Imaginei Gisselle de parte, na festa de casamento, a observar-nos com os olhos verdes de inveja, que lhe conferiam à boca um sorriso cruel e frio, à medida que eu e Beau jurávamos amor e fidelidade. Daphne, pensei, estaria feliz por eu finalmente sair da sua vida.

A minha imaginação desenfreada foi interrompida de repente ao ouvir uma voz exclamar "Ho! Ho! Ho!" e o som de campainhas de trenó.

- levantem-se, suas dorminhocas - gritou Bruce do cimo das escadas. levantei-me e espreitei pela porta, encontrando-o vestido de Pai Natal e com uma barba branca falsa.

- A Daphne e eu estamos ansiosos por vos ver abrir as prendas. Vá lá. Acordem!

Encaminhou-se para a porta de Gisselle e fez soar com estridência as campainhas de trenó. Ouvia-a a gritar e a amaldiçoá-lo, o que me fez rir, imaginando como é que aquilo deveria soar a uma pessoa com uma enorme ressaca.

- Estou a ir - gritei, depois de ele fazer o mesmo à minha porta.

 

Lavei-me, vestindo em seguida uma blusa de seda branca com colarinho e mangas rendadas e uma saia rústica. Apanhei o cabelo com uma fita de seda a condizer, apesar de estar pouco entusiasmada e de sentir que me limitava a ser conduzida pelas acções. Martha Woods fora mandada subir para ajudar Gisselle; porém, quando saí do quarto, ela continuava á espera junto à porta, a mexer nas mãos e a murmurar: "Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!"

Espreitei pela porta de Gisselle e vi-a aninhada que nem uma bola por debaixo dos cobertores, só ficando a descoberto algumas madeixas do cabelo.

- Diga-lhes que ela não está interessada nos presentes - declarei suficientemente alto para Gisselle ouvir. No mesmo instante, ela atirou o cobertor para trás.

- Não vai dizer nada diso - gritou, amuando em seguida.- Ai, porque é que eu gritei desta maneira? Ruby, ajuda-me. Sinto como se tivesse na cabeça bolas de bowling a andar de um lado para o outro.

lembrei-me que Nina tinha uma receita de um elixir para curar ressacas.

- Começa a vestir-te - aconselhei -, e eu hei-de

trazer-te alguma coisa para ajudar.

Ela sentou-se, esperançosa.

- A sério? Prometes?

- Já disse que sim. Agora, veste-te.

- Martha, entra - ordenou. - Porque não estás já aqui com  as minhas coisas?

- Ai, o que hei-de eu fazer? Primeiro ela diz-me para eu sair, depois grita para que eu entre - comentou Martha, esgueirando-se, após a minha saída, para o quarto.

Despachei-me a chegar lá abaixo e entrei directamente na cozinha, onde encontrei Nina a preparar-nos o pequeno-almoç de Natal.

- Feliz Natal, Nina - desejei.

- Também um feliz Natal - retorquiu com um sorriso.

- Preciso de duas coisas de ti, Nina, se não te incomodares - pedi.

- O que é que quer, menina?

- Primeiro - disse, sorrindo -, a Gisselle está com a cabeça deste tamanho. - Coloquei as mãos longe das orelhas

-           Sabes porquê? Por ter bebido demasiado rum.

- Esta não ser a primeira vez - comentou Nina, fazendo uma careta. - Não ajudo nada ela... para não ser mais fácil para ela...

- Eu sei, mas ela vai tornar a vida de todos insuportável se estiver mal disposta. E depois a Daphne há-de arranjar maneira de me culpar.

Nina acenou.

- Okay - respondeu. Foi a um armário e começou a procurar os ingredientes. - Melhor fazer um ovo cru com uma pinta de sangue - murmurou ao mesmo tempo que preparava a mistura. - Estive a guardar um que encontrei ontem. - Sorri.

- Se Gisselle soubesse o que iria beber, provavelmente não o faria.

-           Já está - disse Nina, depois de acabar. - Faça-a beber duma vez só, sem entrar ar. Isso é o mais importante.

- Muito bem.

- Que mais? Disse duas coisas que queria da Nina.

- O Beau deu-me o seu anel da escola ontem à noite, Nina.

 

-           afirmei, mostrando-o. - Ele jurou o seu amor por mim e eu jurei o meu por ele. Podes acender uma vela por nós?

- Precisa de enxofre, não de vela, especialmente se o amor foi jurado nesta casa - acrescentou com os olhos muito abertos. - Traz Monsieur Beau ao quarto da Nina mais tarde e

Nina faz isso para os dois enquanto dão as mãos.

- Dir-lhe-ei, Nina - prometi, esboçando um sorriso, por quanto imaginava a resposta de Beau quando lhe fizesse a proposta. - Muito obrigada.

Corri de volta lá para cima a tempo de encontrar Gisselle a desancar injustamente Martha Woods por ter escolhido a roupa e os sapatos errados.

- Esta mulher não tem a mínima noção de bom gosto. Olha! Ela queria que eu usasse esta blusa com esta saia e estes sapatos!

- Pensei que ela quisesse usar as cores do Natal visto que hoje...

- Está tudo bem, Martha. Eu ajudo-a.

- Ah, está bem - suspirou, aliviada. - Tenho outras tarefas esta manhã. - Saiu a correr.

- O que é isso?

- A cura da Nina. Tens de beber de uma vez só. Se não, não faz efeito - instruí.

Ela olhou para o preparado com desconfiança.

- Já alguma vez bebeste isso?

- Bebi uma coisa deste tipo quando tive uma má digestão - retorqui.

Ela fez uma careta.

- Estou pronta para qualquer coisa. Nem que seja cortar

a cabeça. - Choramingou, tirando-me o copo da mão. Prendeu

a respiração e depois levou-o aos lábios. Os seus olhos iam ficando esbugalhados à medida que o elixir lhe passava pela língua e depois pelas papilas gustativas.

- Não pares - ordenei, quando parecia que ela já não iria beber mais. Tenho de admitir que me deu algum prazer ver o seu desconforto. Ela bebeu tudo de uma vez só, ofegando em seguida e pondo a mão junto ao coração.

- Puá! Era horrível. Era provavelmente veneno. O que continha?

- Que eu saiba, um ovo cru. Provavelmente algumas ervas. Algum pó... de osso de cobra...

- Oh, não. Não digas mais nada - gritou, pondo as mãos ao alto. Engoliu com força. - Acho que vou vomitar. - Saltou da cadeira, enfiando-se na casa de banho, mas não vomitou. Uns minutos mais tarde apareceu com outras cores na cara.

- Acho que está realmente a funcionar - declarou, contente.

- Escolhe a roupa que queres vestir. Estão à nossa espera na sala de estar. O Bruce está vestido com um fato de Pai Natal e barba.

- Oh, que lindo - gozou Gisselle.

Quando descemos, encontrámos Daphne de roupão chinês vermelho e chinelas, o cabelo bem penteado e apanhado, e a cara tão maquilhada que parecia que se levantara horas antes para se arranjar. Estava sentada numa cadeira francesa de espal dar alto, a bebericar café duma chávena de prata. Bruce estava em pé junto à árvore de Natal, com um ar divertido.

 

- Já não era sem tempo que as senhoritas descessem. Quando era uma criança, mal conseguia aguentar para abrir as prendas.

- Não somos crianças, mãe - respondeu Gisselle.

- Quando se trata de receber presentes, uma mulher é sempre uma criança - retorquiu Daphne, piscando o olho a Bruce. Este riu-se, segurando a falsa barriga. - Chegou a hora, Pai Natal - continuou ela.

- Ho, ho, ho - gritou Bruce, indo buscar alguns presentes para nos dar. Sentei-me no canapé para abrir o meu e Gissel abriu o seu na cadeira de rodas, enquanto Bruce fazia viagem de ida e volta à árvore. Recebemos mais roupa, camisolas blusas de marca, assim como saias. Ambas ganhámos nove casacos de pele com botas a condizer, e chapéus, também pele, que provavelmente nunca usaríamos. Bruce deu-nos pulseiras com amuletos e havia ainda embrulhos com óleos para banho, pós de talco e perfúmes. Mal Gisselle abria uma prenda e dava uma vista de olhos, punha-a logo de lado e começava abrir a próxima.

- Tanta coisa - espantei-me. Estava ainda desconfiada de tamanha generosidade de Daphne.

- Há aqui uma prenda que julgo que talvez queiras dar ao teu tio Jean - disse, segurando num presente. - É uma dúzia daquelas camisas de seda que ele sempre adorou.

-           Deixa-me ir à clínica? - perguntei, espantada.

- Se quiseres, peço ao nosso motorista que te leve amanhã - retorquiu.

Virei-me para Gisselle.

- Gostarias de vir?

- A casa de malucos? Estás louca?

- Antigamente ias - lembrei-lhe.

- Fui uma vez contrariada e foi só por causa do paizinho - respondeu. - Detestei aquilo.

- Só porque é Natal...

- Por favor - lamentou-se Gisselle.

- leva o Beau, se quiseres - sugeriu Daphne. Olhei para ela não acreditando no que os meus ouvidos escutavam. Fiquei sem fala. - Há aqui alguns presentes do teu meio-irmão acho eu - afirmou. - Bruce!

Ele foi buscá-los, trazendo-os rapidamente para o pé de nós. Eram belíssimos diários com capas feitas à mão de madeira de cipreste, respeitando uma cena nos pântanos com os liquenes, um crocodilo a espreitar e andorinhas-do-mar a mergulhar na água.

-           Um diário! - deixou escapar Gisselle. - Como se eu alguma vez fosse escrever os meus segredos - acrescentou, desatando a rir.

-           Bem - começou Daphne, olhando primeiro para Bruce. - É mais um presente de Natal - disse Gisselle arregalando os olhos ao mesmo tempo que se recostava na cadeira de rodas. Bruce aproximou-se de Daphne. Ela pegou-lhe na mão e depois voltou-se para nós, dizendo:

-           O Bruce e eu vamos casar.

-           Casar! Quando? - quis saber Gisselle.

 

- Depois de ter passado o tempo necessário de luto pela morte do teu pai. - Ficou a olhar para nós, perscrutando-se atentamente em busca de pistas que revelassem os nossos verdadeiros sentimentos. - Espero que vocês fiquem felizes por nós e que recebam o Bruce no seio da nossa família como o vosso novo pai. Eu sei que ao principio pode parecer um pouco repentino, mas era melhor se fôssemos vistos como uma família unida. Posso contar com a vossa colaboração? - perguntou, e eu de repente apercebi-me por que razão tinha sido tão atenciosa.

Aquele casamento iria ser um acontecimento social de grande importância entre as classes de Nova Orleães e, para Daphne, era indispensável que corresse tão bem como se fosse um evento digno da realeza. Iria aparecer em todas as colunas sociais, e a nossa família passaria a ser o centro das atenções, desde o dia do anúncio do noivado até à data do próprio casamento. Pessoas importantes seriam convidadas para jantares entre esta data e o casamento, e é claro que Daphne desejava que nós fôssemos vistos todos juntos no teatro ou na ópera.

- Aos vossos olhos, sei que nunca poderei substituir o vosso pai - começou Bruce. - Porém, gostaria que me dessem uma oportunidade para tentar. Vou fazer tudo o que me for possível para ser um verdadeiro pai para ambas.

-           Pode tentar convencer a nossa mãe a deixar-nos voltar a viver e a estudar aqui? - aproveitou Gisselle para perguntar.

O sorriso de Daphne desapareceu.

- Acaba lá o ano em Greenwood, Gisselle. O Bruce e eu temos imensas coisas para preparar, já sem ter de pensar nas tuas necessidades diárias e da tua irmã. Dar-vos-ei autorização para sair dos terrenos da escola e aumentarei a vossa mesada - acrescentou.

Gisselle pesou as concessões feitas por Daphne.

- Ainda não ouvimos uma palavra de ti, Ruby - disse Daphne, olhando na minha direcção.

- Espero que sejam ambos felizes - desejei. Fixámos os olhos uma na outra por um momento, observando-nos de cada lado da sala como dois gladiadores que meditam se devem começar uma nova batalha ou aceitar tréguas. Ela decidiu contentar-se com a minha fria bênção.

- Muito obrigada. Bem, agora que tudo isto está resolvido, podemos ir tomar o nosso pequeno-almoço de Natal. - Poisou a chávena de café e começou a levantar-se.

- Esperem - gritou Gisselle. Olhou-me de soslaio e depois virou-se para Daphne e Bruce. - Eu também tenho uma surpresa, algo que estive a guardar como presente de Natal para si, mãe. E, agora - acrescentou -, pode também ser a vossa primeira prenda de casamento.

Daphne voltou a sentar-se, obviamente curiosa.

- E o que poderá ser, Gisselle?

- Isto! - respondeu e começou a erguer-se da cadeira de rodas, fingindo que era uma tarefa muito penosa. A expresão de Daphne passou do espanto para a alegria. Bruce riu-se e pôs a mão no braço de Daphne. Fiquei a observar Gisselle primeiro a cambalear, depois a endireitar-se, respirar profundamente, fazer uma careta, como se estivesse com dores e, em seguida, largar os braços da cadeira de rodas, aguentando-se por fim sozinha de pé. Vacilou de olhos fechados, fingindo que tudo isto lhe exigia muita concentração e esforço e, por fim, deu um pequeno passo para a frente, seguindo-se outro. Parecia que ia cair, por isso Bruce apressou-se a agarrá-la e ela tombou nos seus braços.

 

- Oh, Gisselle, que maravilha! - gritou Daphne. Gisselle absorveu algum ar, com a mão junto ao peito, explorando ao máximo a situação.

- Tenho estado a treinar - falou de forma ofegante. - Eu sabia que me conseguia levantar e já tinha antes dado um ou dois passos, mas o meu desejo era conseguir caminhar até si. Estou tão decepcionada - lamentou-se. - Vou tentar ou tra vez.

- Não faz mal. Conseguires fazer isso já é um maravilhoso presente de Natal, não é, Bruce?

- Sem dúvida - respondeu este, continuando a segurar Gisselle. - É melhor ires com calma. - levou-a de volta para a cadeira de rodas. Quando a colocou lá, a primeira coisa que Gisselle fez foi olhar para mim com um ar triunfante.

- Já sabias disto, Ruby? - perguntou Daphne. Olhei para Gisselle e depois para Daphne.

- Não - respondi. A base de sustentação desta casa, aliás desta família, eram as mentiras. A minha inclusão não seria sequer notada e estava convencida de que Daphne e Gisselle se mereciam uma à outra, em termos de falsidade e convivência.

- Que surpresa! E escondê-lo de toda a gente, mesmo da tua irmã gémea, para que o mostrasse pela primeira vez a nós. Foi muito querido da tua parte, Gisselle.

- Prometo, mãe - jurou Gisselle -, que me vou esforçar muito para tentar recuperar toda a minha capacidade de andar, de forma a poder estar mesmo atrás de si quando entrar na igreja para casar com o Bruce.

- Isso seria... simplesmente fantástico - disse Daphne, olhando em seguida para Bruce. - Imagina como é que os convidados do casamento irão reagir... No fundo, é como se... como se o meu novo casamento tivesse restabelecido a saúde desta família.

- Como está a ver, mãe - prosseguiu Gisselle -, agora não posso voltar para Greenwood. Preciso de trabalho diário de reabilitação e da boa comida da Nina, em vez daquelas rações do dormitório. Basta arranjar-me um tutor e posso ficar aqui.

Daphne ficou a pensar por um momento.

- Deixa-me pensar no assunto - prometeu.

Gisselle rejubilou.

- Muito obrigada, mãe.

- Muito bem, mas agora estou mesmo com fome. Este Natal tem corrido muito melhor do que esperava - afirmou Daphne, levantando-se. - Pai Natal?! - Apresentou o braço e Pruce correu para pôr o seu á volta. Vi-os sair, e depois voltei-me para Gisselle. O seu sorriso ia de orelha a orelha.

- Ela vai deixar-nos ficar em casa. Vais ver.

- Se calhar permite que tu fiques em casa, mas não eu - disse. - Não tenho nenhuma deficiência que necessite de uma recuperação miraculosa.

Gisselle encolheu os ombros.

- Seja como for, obrigada por teres ficado de boca fechada e consentido.

- Eu não consenti. Eu resolvi apenas ficar de lado e deixar que vocês as duas se enchessem uma à outra com mentiras.

- Como quiseres. Toma - disse, atirando-me a prenda de Paul. - Como tu provavelmente tens imensos pensamentos secretos, poderás encher dois destes apenas num dia.

 

Peguei no diário e comecei a segui-la enquanto saía da sala na cadeira de rodas; no entanto, parei à porta e olhei de novo para a árvore e o avassalador monte de prendas abertas. Como eu desejava ter outra vez uma verdadeira manhã de Natal, onde o presente mais importante era a dádiva do amor.

 

Beau chegou pouco mais tarde, a seguir a ter trocado as prendas com a família. Dei-lhe o meu presente, uma pulseira de ouro com identificação, que lhe tinha comprado um dia antes de Gisselle e eu termos regressado a casa. Mandara o joalheiro inscrever: "Com todo o meu amor, sempr Ruby."

- Tenho três parecidas com esta enfiadas na minha gaveta em casa - disse, colocando-a à volta do pulso -, mas nenhuma jamais terá o mesmo significado que esta. - Beijou-me os lábios suavemente antes que alguém entrasse na sala de visitas.

- Agora quero pedir-te um favor - disse-lhe. - Não podes rir.

- O que poderá ser? - sorriu com curiosidade.

- A Nina vai queimar algum enxofre para nós, para abençoar o nosso amor e afastar os espíritos malévolos que o possam destruir.

- O quê?

- Vá lá - disse, pegando-lhe na mão. - Não custa jogar pelo seguro.

Ele riu-se à medida que avançávamos pelo corredor em direcção ao quarto de Nina. Bati á porta e entrei depois de nos ter dado autorização. Beau quase suspirou ao ver aquele pequeno quarto recheado da parafemália vodu: bonecas e ossos, pedaços de cabedal, raízes torcidas e tiras de pele de gato e As estantes estavam cheias de pequenos frascos com pós, cobres, molhos de velas amarelas, azuis, verdes e castanhas, frascos com cabeças de cobra, uma fotografia de uma mulher que eu sabia ser Marie Laveau. Nina queimava frequentemente velas brancas à volta desta à noite, ao mesmo tempo que entoava as suas orações.

- Quem é aquela? - perguntou Beau.

- Tu, rapaz de Nova Orleães, e não sabe que ela é Laveau, rainha do vodu?

- Ah, já sei. Acho que já ouvi falar dela. - Olhou-me de raspão e mordeu o lábio inferior

Nina encaminhou-se para as estantes e escolheu um frasco de cerâmica. Ela e eu tínhamos feito uma cerimónia semelhante a esta quando pela primeira vez cheguei do bayou.

- Os dois ficam a segurar - ordenou. Acendeu uma vela

branca e murmurou uma oração. Depois levou a vela até ao frasco de cerâmica e entornou a chama lá para dentro para que o enxofre ardesse, mas este não se incendiou. Olhou para mim, parecendo preocupada, e tentou de novo, segurando a vela durante mais tempo até que um pequeno fio de fumo começou a sair. Beau fez uma careta pois o cheiro era desagradável, mas eu já contava com isso e contive a respiração.

- Ambos fechem os olhos e inclinem-se para que o fumo toque na cara - indicou. Assim o fizemos. Ouvimo-la a sussurrar qualquer coisa.

- Ena, isto está a ficar quente - queixou-se Beau. Os seus dedos começaram a escorregar e eu atrapalhei-me com o frasco, esforçando-me para que ele não caísse. Nina tirou-mo da mão e segurou-o com força.

 

- Este calor é nada - proferiu -, comparado com o calor dos maus espíritos. - Depois abanou a cabeça. - Nina espera que o fumo de enxofre seja suficiente.

- Chega de certeza - garantiu-lhe Beau.

- Muito obrigada, Nina - disse, percebendo que Beau não estava a sentir-se muito à vontade aqui. Ela acenou e Beau empurrou-me em direcção à porta.

- Sim, muito obrigado, Nina - acrescentou. levou-me lá para fora.

- Não te rias, Beau Andreas.

- Não estou a rir - respondeu, mas percebi que se sentia muito aliviado por termos saído e por regressarmos à sala de visitas.

- A minha grandmére ensinou-me a nunca rir das crenças das pessoas, Beau. Ninguém tem o monopólio da verdade no que diz respeito ás coisas espirituais.

- Tens razão - respondeu. - E seja como for, o que te faz sentir bem e feliz é o que me faz sentir bem e feliz. Estou a falar a sério - sublinhou, beijando-me.

Momentos mais tarde, Gisselle surgiu na sua cadeira de rodas, parecendo muito satisfeita consigo própria. Todas as conversas durante o pequeno-almoço tinham sido acerca da magnífica recuperação física. Contaram a Edgar e a Nina, mas ambos ficaram tão pouco impressionados que Gisselle suspeitou que eu já lhes contara.

- Estou a interromper alguma coisa? - perguntou recatadamente a Beau.

- Por acaso até estás - retorquiu Beau, sorrindo.

- Paciência. Contaste-lhe? - perguntou-me Gisselle.

- Contou-me o quê?

- Estou a ver que não, porque não é tão importante para ti como o é para todas as outras pessoas. - Virou-se de seguida para Beau, respirou profundamente e anunciou: - Estou a recuperar a capacidade de mexer as pernas.

- O quê? - Beau olhou para mim, porém mantive-me calada.

- É isso mesmo. A minha paralisia está a desaparecer. Em breve estarei outra vez a competir com a Ruby e ela não está muito satisfeita, não é, Ruby querida?

- Eu nunca competi contigo, Gisselle - retorqui.

- Ai não? Então que nome dás ao teu escaldante romance com o meu antigo namorado? - ripostou.

-Então... Acho que tenho alguma coisa a dizer sobre isto - interveio Beau. - Além do mais, a Ruby e eu já estávamos

juntos muito antes do acidente.

Gisselle fez um sorriso malicioso e depois deu uma gargalhada fria e sardónica.

- Os homens pensam que tomaram uma decisão, mas a verdade é que nós é que os levamos pela trela. Sempre foste demasiado conservador para o meu gosto. Eu é que tornei possível que vocês se encontrassem e... - Pôs na boca um sorriso condescendente. - ... E se pudessem conhecer melhor.

- Sim, está-se mesmo a ver - respondeu Beau, irritado

- Seja como for, na passagem de ano, espero já poder dançar e faço tenções de dançar contigo. Não te importas, pois não, querida irmã?

- Nem por sombras - respondi. - Isto é, se o Beau não se importar.

Gisselle não gostou do tom da minha voz e o seu sorriso ra pidamente desapareceu.

 

- Tenho de telefonar ao John a contar-lhe as boas notícias. Sou capaz é de lhe despedaçar o coração. Gostou tanto, ontem à noite, de me ter completamente indefesa nos seus braços.

- Se calhar o melhor é não recuperares assim tão depressa - sugeri, mas, em vez de se zangar, ela riu-se.

- Talvez não. Nunca digas desta água não beberei - acrescentou, cerrando as pestanas. Depois voltou a rir-se e saiu na cadeira de rodas.

- Ela está a contar a verdade acerca da recuperação?

-Não.

- Não consegue mexer as pernas?

- Sim, mas já consegue fazê-lo há semanas, se não mesmo há meses - continuei, relatando o incidente na escola e por que razão tinha sido eu a acusada.

- Bem, diabos me levem, mas acho que já tiveste a tua parte de surpresas por este ano.

- Há mais.

- Como?

- A Daphne deixa-me ir levar uma prenda ao tio Jean. Disse que podias ir comigo, se quiseres.

- A sério? - Beau abanou a cabeça completamente surpreendido e recostou-se no sofá. Expliquei-lhe então porque estava ela a ser tão simpática comigo e com Gisselle.

- Vão casar?! Já? - perguntou Beau.

- Ela disse que seria depois de um período de luto adequado, mas quem sabe o que é que ela considera como adequado.

- Os meus pais já suspeitavam - disse-me num sussurro. Os dois têm sido vistos juntos em todo o lado. - Baixou o olhar, voltando depois a encarar-me e acrescentou: - Já havia suspeitas ainda antes da morte do teu pai.

- Não duvido. Não me interessa o que ela faz. E, acima de tudo, é assunto sobre o qual não quero falar - disse, zangada.

- Então porque não vamos visitar o Jean hoje e, quando voltarmos, almoçamos num restaurante de estrada? - sugeriu.

Fui buscar a prenda do tio Jean e disse a Daphne que íamos sair.

- Não te esqueças de lhe dizer que é da minha parte - instruiu-me.

Todavia, quando chegámos à clínica e nos conduziram até ao meu tio, apercebi-me imediatamente de que ele não iria compreender de quem era o presente e nem sequer dar conta de que tinha visitas. O tio Jean tinha-se transformado em pouco mais do que uma sombra da sua antiga pessoa. Tal como um dos mortos-vivos de Nina, estava sentado a olhar para o vazio, com os olhos como que virados para dentro, provavelmente a revisitar todos os lugares e tempos que já tinha vivido. Quando lhe falei, segurando-lhe a mão, houve só um piscar mais forte e uma pequena luz nos olhos.

- Ele parece um molusco a fechar-se na sua própria concha - lamentei-me a Beau. - Mal me consegue ouvir.

Sentámo-nos no átrio. Tinha começado a chover no início da nossa viagem e agora a chuva fazia um som tão frenético na janela como um tambor a ribombar. Esse som condizia com o ritmo do meu coração. O tio Jean parecia estar tão mais magro, evidenciando-se os ossos do nariz e das faces. Era como se, devagar, estivesse a morrer por dentro.

 

Tentei de novo comunicar, falei sobre o Natal, sobre algumas das coisas que fizera na escola, as decorações em casa. Mas a sua expressão facial permanecia imóvel e nem sequer olhava na minha direcção. Passado algum tempo, desisti. Inclinei-me e dei-lhe um beijo de despedida no rosto. As suas pálpebras e os seus lábios tremeram, mas manteve-se silencioso, sem nunca chegar a olhar para mim.

Quando já estávamos a sair, parei para falar com a enfermeira.

- Ele alguma vez fala?

- Já não fala há uns tempos - admitiu. - Mas, às vezes - acrescentou, sorrindo -, eles conseguem regressar. Existem novos remédios a sair todos os dias.

- Pode encarregar-se de que ele use as suas novas camisas? Costumava ter tanto orgulho na roupa - disse tristemente. Ela prometeu que sim e eu e Beau retirámo-nos. Visitar o tio Jean tinha transformado este dia de Natal num dia ainda mais negro do que as nuvens cinzentas e a chuva. Mal disse uma palavra e, quando parámos para almoçar, tinha pouca fome. Beau encarregou-se da maior parte da conversa, fazendo planos para o nosso futuro.

- Já decidi. Podemos candidatar-nos os dois a Tulane. Assim ficamos juntos em Nova Orleães. Os meus professores acham que eu devia pensar numa carreira em medicina, porque tenho tão boas notas em Ciências Biológicas. Doutor Andreas... Soa-te bem?

- Soa maravilhosamente, Beau.

- Bem, a tua grandmére era uma curandeira. Temos de manter a tradição. Eu praticarei medicina e tu tornar-te-às uma das pintoras mais famosas de Nova Orleães. As pessoas virão de toda a parte só para comprar os teus quadros. Aos domingos, depois da igreja, passearemos ao longo das ruas no Garden District e eu vangloriar-me-ei ao nosso filho de que a mãe dele tem um quadro nesta casa e também naquela outra, e mais dois ali...

Sorri. Tinha a certeza de que a grandmére Catherine teria gostado de Beau.

- óptimo. Estás a sorrir de novo. Ficas deslumbrantemente bela quando estás feliz, Ruby. Quero fazer-te para sempre feliz, enquanto estiver vivo - afirmou. As suas palavras voltaram a trazer sangue ás minhas faces e calor ao meu coração.

Quando cheguei a casa, encontrei Daphne no escritório do paizinho a falar ao telefone. Pelos vistos, mesmo no dia de Natal, ela continuava a tratar de negócios. Estava vestida com uma saia e um colete de tweed azul-claro, uma blusa branca de seda rendada e tinha o cabelo preso num carrapito.

- E como é que está o Jean? - perguntou desinteressadamente, enquanto mexia em alguns papéis.

- Transformou-se num vegetal - respondi. - Não pode reconsiderar a ideia de o voltar a pôr no seu próprio quarto?

Ela recostou-se e ficou um momento a olhar para mim.

- Faço uma troca contigo - disse.

- Troca? - O que poderia eu ter que lhe interessasse? Fiquei a pensar.

 

- Prometo transferir o Jean de volta para um quarto particular se convenceres a Gisselle a regressar a Greenwood. Não a quero ao pé de mim, pois este período é particularmente difícil.

- Mas ela não me presta atenção - lamentei-me. - Ela odeia tudo que seja regras ou restrições.

Daphne voltou a olhar para a papelada à sua frente.

- A minha oferta é esta - disse friamente. - Cabe-te a ti arranjar uma maneira.

Fiquei ali especada durante alguns instantes. Porque é que o bem-estar do tio Jean dependia dos desejos egoístas de Gisselle? Como era possível algo tão injusto? Mais pessimista que um rato encarcerado nas mandíbulas dum crocodilo, baixei a cabeça e saí da sala, apercebendo-me cada vez mais da falta que o paizinho me fazia.

Passei o resto do meu dia de Natal no estúdio de arte, trabalhando em desenhos e pinturas para Miss Stevens. O estúdio e o trabalho artístico era o meu único refúgio naquele antro de mentiras. Tinha escolhido pintar a vista da janela, tentando captar o frondoso carvalho e os jardins. Decidi pôr em segundo plano um melro de asas vermelhas orgulhosamente emproado. Era bom ter esta sensação de me perder por completo no trabalho. Enquanto pintava, ouvia a música de Louis e não dei conta da entrada de Bruce.

- Ah, com que então é aqui que La Ruby se esconde - disse. Virei-me. Continuava ali especado com as mãos nas ancas, olhando a toda a volta e acenando com a cabeça. Tinha-se mudado para umas calças de lã cinzento-escuras e uma camisa feita do mais macio algodão egípcio. - Muito bem. Isso parece que vai resultar numa pintura bonita - continuou, observando o quadro no cavalete.

- É demasiado cedo para saber - retorqui com modéstia.

- Bem, eu não sou propriamente um crítico de arte, mas sei o valor que a arte de qualidade tem no mercado, claro. Manteve o seu olhar focado em mim de forma intencional, depois sorriu e deu um passo em frente. - Estava com esperanças de ter hoje um pequeno téte-a-téte contigo e com a Gisselle. Já falei com a tua irmã, que me implorou para usar a minha influência sobre a Daphne para a convencer a deixá-la ficar cá e voltar à escola pública de Nova Orleães. Pelos vistos, se eu conseguir fazer-lhe este favor, ela aceitar-me-á na família de braços abertos.

"E agora - continuou, aproximando-se de mim -, o que posso fazer por ti que resulte da mesma maneira?

- Não tenho pedido nenhum para mim própria, mas, se quer fazer alguma coisa para me agradar, convença a Daphne a mudar o tio Jean de novo para um quarto privado.

- Ah, um pedido altruísta. Tu sempre és o que pareces, não és, La Ruby?... Uma jóia inócua, genuína, virtuosa.

tão inocente como aparentas, tão inocente como as flores e os animais dos teus quadros?

- Não sou nenhum anjo, Bruce, mas não gosto de ver ninguém a sofrer desnecessariamente, e é isso que está a passar-se com o tio Jean. Se quer fazer alguma coisa de bom...

Ele sorriu e estendeu o braço para me tocar no ombro.

encolhi-me, dando um passo atrás, porém, ele colocou a mão no meu braço mesmo acima do cotovelo.

- Tu e a Gisselle são gémeas - disse num tom de voz que não passava de um sussurro -, mas um homem teria de ser cego para não conseguir ver as diferenças. Gostaria de ser aquele

em quem pudesses confiar e amar. Sabes, eu sempre te amei, a ti, La Ruby. Mas foste projectada de um mundo para outro no momento exacto em que precisavas de um verdadeiro protector, perdeste-o. Será que me deixas... ser o teu guardião, teu protector e o teu anjo-da-guarda? Sou um homem de bom gosto. Posso transformar-te na princesa que mereces ser. Confia em mim - disse, pondo a mão no meu ombro. Encontrava-se tão próximo que me era possível ver pequenas gotas de suor no lábio superior e sentir o cheiro do último charuto que fumara. Abraçou-me com força e depois levou os lábios à minha testa. Ouvi-o a inalar enquanto cheirava o aroma do meu cabelo. Deixei-o agarrar-me, mas não lhe devolvi o afecto solicitado.

- Não faz mal - disse, quando se apercebeu da minha rigidez. Afastou-se. - Não te censuro por seres cautelosa. Sou uma pessoa nova na tua vida e na realidade pouco sabes sobre mim. Mas faço tenções de despender contigo todo o tempo que tu me permitires, para que possamos conhecer-nos o mais intimamente possível. Tens algum problema com isso?

- É o noivo da minha madrasta - afirmei, como se isso bastasse como resposta.

Ele acenou.

- Vou falar com a Daphne. Talvez eu consiga arranjar um acordo financeiro razoável e convencê-la a satisfazer o teu desejo. Não posso fazer promessas, mas, por ti, farei um esforço.

- Muito obrigada.

- La Ruby - disse, com aquele sorriso devasso na boca. Olhou mais uma vez em volta. - Tens um esconderijo simpático. Depois de eu casar com a Daphne, talvez me deixes partilhá-lo contigo de tempos a tempos, n'est-ce pas?

Acenei afirmativamente, apesar de a ideia me parecer odiosa.

- óptimo - prosseguiu. - Vamos ser uma família maravilhosa, ainda mais respeitada do que agora, e tu e a tua irmã serão a créme de la créme de Nova Orleães. Isto é uma promessa - disse. - Bem, deixo-te regressar ao teu maravilhoso trabalho. Falamos mais tarde.

Observei-o enquanto saía e depois tive de me sentar, pois o meu coração ainda estava a bater com uma violência tal que pensei que iria desmaiar.

 

Apesar das promessas de Bruce, entre o Natal e a passagem de ano, nada mais foi dito no que dizia respeito ao tio Jean. Sentindo-me presa à chantagem de Daphne, tentei inúmeras vezes levar Gisselle a reconsiderar a sua exigência de permanecer em Nova Orleães.

- Fizeste novas amigas e, mais do que admirar-te, elas dependem de ti - disse-lhe, pouco antes de irmos dormir. Era a noite anterior à véspera de Ano Novo. - És a líder delas.

- Podes ficar com essa honra - retorquiu.

- Mas pensa em tudo o que poderás fazer agora que já andas. Além disso, vem aí o baile do Dia dos Namorados.

- Oh, que pena! O baile do Dia dos Namorados... Não se aproximem demasiado e não dêem as mãos durante muito tempo. E, se por acaso conheces alguém interessante, tens logo de dizer adeus. E depois aquelas estúpidas horas de recolher, mesmo ao fim-de-semana!

- A Daphne vai dar-nos autorização para sair da propriedade. Até podemos conhecer rapazes na cidade.

 

- Tu nunca farias isso - afirmou. - Está tudo a correr sobre rodas no teu namoro com o Beau. Espera lá. - Perscrutou-me com um olhar desconfiado. - Porque estás a tentar convencer-me a voltar para Greenwood? O que se passa?

- Sempre que quiseres, farei viagens a Baton Rouge contigo - prometi, fingindo não ter ouvido a pergunta.

- Isso traz água no bico, Ruby. O que é? É melhor dizeres. Uma coisa é certa: nunca irei de volta para Greenwood se não me disseres a verdade.

Suspirei e encostei-me à porta.

- Pedi à Daphne para transferir o tio Jean de novo para o seu quarto. Ele neste momento mais parece um vegetal. Perdeu todo o desejo de viver, de comunicar. Está enclausurado no seu próprio mundo.

- E depois? Seja como for, ele já era maluco.

- Não, não era. Ele estava a fazer progressos. Se ele ao menos tivesse uma família que o amasse à volta...

- Ai, pára de ser a menina boazinha. Mas o que tem isso a ver com o meu regresso a Greenwood?

- A Daphne prometeu que, se eu te convencesse a regressar, ela punha de novo o tio Jean num quarto só para ele

- Bem me parecia que havia qualquer coisa por detrás da tua conversa fiada. Mas, olha, bem podes tirar isso da cabeça - disse, virando-se de costas para se mirar no espelho do toucador. - Não vou voltar para Greenwood. Neste momento, estou a aproveitar-me do John e não faço tenções de desistir dele para que o meu tio louco possa ter o seu próprio quarto no hospital de malucos. - Sorriu. - Então quer dizer que Daphne vai deixar-me ficar de certeza. Ela não quer que transtorne os seus planos. óptimo. Obrigada por me teres dito.

-Gisselle...

- Já disse que não vou voltar. E ponto final no assunto - ripostou. - Agora pára de pensar em coisas desagradáveis ajuda-me a planear a nossa passagem de ano. Convidei quase vinte amigos. A Claudine e a Antoinette vêm para cá amanhã ajudar a decorar a sala. Como ceia, pensei que poderíamos fazer daquelas sanduíches com pão especial. Podemos ainda preparar um ponche de frutas e, depois de a Daphne e do Bruce saírem, condimentamos com rum. O que achas?

- Não me interessa - respondi, indiferente.

- Vê lá se amanhã à noite não ficas imóvel como massa de lama do pântano. Já estou a avisar-te para não estragares a festa.

- Isso era a última coisa no mundo que eu faria, Gisselle, estragar a tua festa. Deus me livre - ripostei, saindo antes que a raiva me fizesse arrancar cada madeixa do seu cabelo.

 

MANTENDO A CALMA

Apesar de me sentir triste, evitei andar de um lado para o outro cabisbaixa e deixar que todos se apercebessem de como me encontrava infeliz. Os amigos de Gisselle estavam muito entusiasmados com a festa da passagem de ano e nunca antes vira Daphne tão simpática e permissiva em relação a todas as propostas que eles faziam. Entrou na sala de estar durante a tarde e deu ideias para a decoração. Claro que todas as raparigas concordaram com ela. Percebi pela maneira como a miravam que a julgavam da família das estrelas de cinema: bela, rica, elegante e cheia de estilo.

Gisselle, porém, conseguiu permanecer no centro das atenções, revelando a sua milagrosa recuperação das pernas e prometendo dançar pela primeira vez desde o acidente. Pediu a Edgar que trouxesse uma escada e depois fez com que as outras raparigas pendurassem serpentinas por todo o tecto da sala. Também encheram balões e enfiaram-nos numa rede, para à meia-noite serem soltos. Enquanto se dedicavam aos preparativos, conversavam acerca dos rapazes que viriam à festa e Gisselle descreveu-lhes as raparigas de Greenwood, vangloriando-se das coisas que lhes ensinara sobre homens e sexo. De tempos a tempos, ela olhava-me de soslaio para ver se eu a contradizia; porém, a partir de certa altura, eu simplesmente deixei de prestar atenção ao que dizia.

Estava ansiosa por passar a noite com Beau. Demorei algum tempo a escolher um vestido e acabei por me decidir por um de veludo preto sem alças, com um decote arrojado em forma de coração. O vestido caía, justo, até à cintura e depois tinha uma comprida saia que terminava quinze centímetros acima dos tornozelos. Planeara usar um colar de pérolas, mas, no último minuto, escolhi pôr apenas o colar de Beau, entusiasmada pela forma elegante como essa reluzente jóia faria sobressair o meu colo e a curva dos meus seios. Fechei os olhos e quase pude sentir os dedos a percorrer suavemente a minha pele, por sobre a clavícula em direcção ao peito.

Nas orelhas, pus um delicado par de argolas de pérola e decidi ainda usar o anel que Louis me oferecera. Tanto eu como Gisselle recebêramos no mínimo meia dúzia de perfumes diferentes. Escolhi um que sugeria o aroma de rosas em flor. Tinha decidido usar o cabelo solto, com ganchos nos lados. A minha franja precisava de ser um pouco acertada e isso fez-me sorrir. lembrava-me de quando a grandmére Catherine me cortava o cabelo, conversando durante o que parecia horas, ao mesmo tempo que penteava o cabelo longo cor do rubi. Vezes sem conta me disse que costumava fazer a mesma coisa à minha mãe.

Fiquei surpreendida ao saber que Gisselle escolhera um vestido parecido com o meu, mas em azul-escuro. Claro que se cobriu com muito mais jóias, usando dois colares de pérolas, compridos brincos pendentes também de pérolas, uma pulseira de ouro num dos pulsos e a pulseira que Bruce lhe tinha oferecido no outro, além de meia dúzia de anéis espalhados pelas duas mãos. Ainda pusera uma pulseira de ouro no tornozelo. Também deixara o cabelo solto, nem sequer preso aos lados, e cobrira a cara de maquilhagem, eyeliner e um báton tão espesso que poderia beijar durante horas sem nunca tingir a pele.

 

- Como estou? - perguntou, depois de se ter encostado à porta do meu quarto.

- Muito bonita - respondi. Sabia que, caso a criticasse, ela ficaria ofendida e raivosa, dizendo que eu estava com ciúmes.

- Bonita? O que queres dizer com isso, é tipo "apresentável"? - inquiriu, fazendo uma careta. Estudou-me por alguns instantes, fazendo comparações. - Porque não pões mais maquilhagem? Ainda consigo ver essas sardas nas bochechas.

- Elas não me incomodam - respondi. - Nem ao Beau - acrescentei propositadamente para a provocar.

- Mas olha que antes incomodavam - fez notar, com os olhos a pestanejar de forma travessa. Como não mordi o isto, ela deixou de sorrir. - Vou descer.

- Eu já vou - respondi. Alguns momentos mais tarde, dei com ela sentada na cadeira de rodas ao centro da sala de estar, olhando à volta com satisfação.

- Esta vai ser a melhor festa de sempre - afirmou. - Nunca mais vais esquecer esta passagem de ano. - Observou-me durante algum tempo. - Tiveste alguma boa passagem de ano nos pântanos?

- Sim.

- A fazer o quê, a pescar? - perguntou desdenhosamente.

- Não. Fazíamos uma festa na aldeia. Toda a rua principal era fechada ao trânsito e os comerciantes ofereciam comida, entre outros. Lançavam fogo-de-artificio e ouvia-se música durante toda a noite para dançarmos um grande fais dodo.

- Ah, o fais dodo, tinha-me esquecido. E dançavam na rua? - perguntou.

Acenei, recordando esses tempos passados.

- Era como se todos nós nos transformássemos numa só família, todos juntos a celebrar - respondi orgulhosamente.

-Parece... estúpido - afirmou, mas percebi que tentava convencer-se a si própria disso.

- Não é preciso gastar uma data de dinheiro e ter boas roupas para uma pessoa se divertir, Gisselle. O divertimento começa aqui - continuei, pondo a mão junto ao coração.

- Eu teria apontado para um sítio diferente - retorquiu, rindo-se em seguida.

- Do que estão a falar que é tão divertido? - perguntou Daphne, entrando na sala com Bruce. Estavam arranjados e prontos para sair. Bruce parecia verdadeiramente bonito no seu smoking e vi-me obrigada a admitir que nunca antes vira Daphne tão deslumbrante. Usava um vestido justo e comprido num tom vivo de bordeaux com a cintura adornada de lantejoulas e um casaco curto a condizer, com a gola também adornada. As lantejoulas do vestido mergulhavam numa curva graciosa por cima dos seios, tornando-se deveras sensual o pouco de pele que mostrava. Não trazia qualquer colar que ocultasse o efeito do vestido, já por si enriquecido com jóias, mas usava brincos de brilhantes. Apanhara ainda o cabelo num carrapito com franja.

- A passagem de ano cajun - respondeu rapidamente Gisselle.

 

- Ah - acenou Daphne, insinuando que compreendia por que razão esse tema era um motivo para rir. - Bem, resolvemos vir aqui só para vos desejar um feliz Ano Novo. lembrem-se que não quero saber de muitas bebidas e loucuras. Tenham respeito por esta casa. Divirtam-se, mas comportem-se como senhoras - acrescentou.

- Claro que o faremos, mãe. Divirtam-se vocês também - desejou Gisselle.

Daphne olhou para mim.

- Estão as duas muito bonitas - disse.

- Muito obrigada - retorqui.

- Posso dar às minhas futuras enteadas um beijo de véspera de Ano Novo? - perguntou Bruce.

- Claro - disse Gisselle. Ele inclinou-se e beijou-a rapidamente no pescoço. Ela tinha fechado os olhos, á espera de um beijo nos lábios. Bruce aproximou-se então de mim, a sorrir, e pôs as mãos em cima dos meus ombros.

- Estás tão bela como sempre - sussurrou num tom de voz suave, inclinando-se em seguida para me beijar. Virei a cara a tempo de evitar que o seu beijo me tocasse nos lábios, mas antes no rosto. Ele mirou-me por alguns instantes e depois riu-se.

- Feliz Ano Novo, meninas - cantarolou, juntando-se a Daphne. Em seguida saíram para a sua noite de gala.

- Finalmente - murmurou Gisselle. - Vamos beber bebida sozinhas antes que os outros cheguem - disse, aproximando a cadeira de rodas do bar. - O que é que queres, rum e cola? - Começou a levantar-se para preparar as bebidas.

- Eu sirvo as minhas próprias bebidas. Muito obrigada respondi, lembrando-me de como Gisselle já antes me tentara embebedar.

- óptimo. Então prepara também a minha - pediu, voltando a sentar-se. Assim o fiz e entreguei-lhe. - Bem, irmã, aqui vai um brinde para que o ano que vai agora iniciar seja mais feliz que o anterior. Que seja cheio de festa, festa e festa.

- A todos os que amamos - acrescentei. Ela encolheu os ombros.

- Está bem, a todos os que amamos. - Bebemos e, breves momentos depois, ouvimos a campainha da porta a tocar.

- Já começam a chegar - gritou Gisselle, dirigindo-se para a porta. Continuava a usar a cadeira de rodas de forma a que, quando mais tarde se erguesse e começasse a andar, o efeito resultante fosse ainda mais dramático.

Todos os convidados de Gisselle chegaram mais cedo do que o previsto. Rapidamente se espalhara a notícia de que a festa ia ser de arromba. Quando Beau chegou, já lá estava muita gente e tinham bebido mais do que uma bebida. A música estava em altos berros e parte da comida já fora debicada.

- Estás ainda mais bonita do que eu imaginava - elogiou Beau, quando o cumprimentei à porta. Beijámo-nos e depois entrámos na festa. Falavam todos altíssimo e alguns tinham até bebido mais do que o corpo tolerava, fazendo figura de parvos.

- Parece uma festa típica da Gisselle - gritou Beau por cima do barulho. Dançámos, comemos qualquer coisa e bebemos algumas bebidas com o resto das pessoas.

 

As dez horas, como tinha planeado, Gisselle baixou a música e anunciou que faria tenções de dançar pela primeira vez depois do acidente. John ficou a seu lado, enquanto ela fingia que lhe custava muito sair da cadeira. Caiu nos seus braços, recompondo-se logo de seguida e dando o que ela queria fazer crer serem os seus primeiros passos de dança. Os convidados bateram palmas e assobiaram à medida que Gisselle e John percorriam o improvisado salão de baile. Não muito depois, Gisselle pediu a uma das raparigas para baixar as luzes e a verdadeira festa começou. Toda a gente se dispôs em pares.

- Podem ir para qualquer lugar da casa - anunciou Gisselle -, desde que façam de maneira a que não se note que lá estiveram. O andar de cima é zona proibida, claro.

- Vamos sair daqui - pediu Beau. Quando ninguém nos observava, escapulimo-nos. Beau parou por breves momentos, a pensar para onde é que poderíamos ir. Puxei-o para a frente e rapidamente subimos as escadas até ao meu quarto.

- Seja como for, não me apetece nada partilhar a minha passagem de ano com eles - admiti. - Para mim, não passam de estranhos.

- Para mim, também - respondeu. Beijámo-nos e depois ficámos ambos a olhar para a minha cama. Sentei-me e Beau pôs-se a meu lado.

- Posso ligar a rádio - sugeri. levantei-me depressa e fiz girar o botão à procura de uma estação de rádio interessante. Não sei por que razão é que ficara de repente tão nervosa, mas o que é certo é que estava. Os meus dedos tremiam à volta do botão e sentia um trepidar no estômago. Era quase como se fosse o primeiro encontro entre mim e Beau. Finalmente decidi-me por uma estação que estava a transmitir o baile de um dos hotéis do centro. Podíamos ouvir o entusiasmo das pessoas a dançar, para além da música. O apresentador veio anunciar que já faltava pouco para a meia-noite.

- Por que razão é a véspera do Ano Novo tão especial? - perguntei.

Beau ficou a pensar por breves segundos.

- Suponho que é uma altura em que as pessoas voltam a ter esperança num futuro melhor. - Riu-se. - Eu costumava ter um brinquedo: o quadro mágico. Escrevia ou desenhava por cima e depois bastava puxar a cobertura de plástico para que tudo o que tivesse feito desaparecesse e pudesse começar de novo. Se calhar é o que toda a gente pensa na véspera do Ano

Novo: que podem puxar a folha mágica e reescrever as suas vidas.

- Quem me dera poder. Mas eu gostaria de voltar atrás muito mais do que um só ano.

Ele acenou com um olhar doce de compaixão.

- Jovens bem sucedidos na vida, como a Gisselle e eu, como todos os que estão lá em baixo a encharcar-se em bebidas, nunca lhes seria possível compreender como dificil tem sido a vida para ti, Ruby. - Esticou-se e pegou-me na mão, mantendo o olhar fixo nos meus olhos. - Tu ainda és uma flor selvagem. Todos nós fomos tratados, mimados, recebemos o melhor de tudo, enquanto tu tiveste de lutar. Mas sabes uma coisa, Ruby! O ter de lutar tornou-te mais forte e mais bela. Tal como uma flor selvagem, tu desabrochaste mais viçosa e por cima de todos os outros, que não passam de ervas. Tu és especial. Sempre o soube, desde a primeira vez que te vi.

- Oh, Beau, isso é tão bonito.

 

Ele puxou-me de encontro ao seu corpo e eu deixei-me ir. Os nossos lábios juntaram-se e as suas mãos pousaram à volta dos meus ombros. Depois, de forma suave e gentil, virou ambos os nossos corpos e ficámos deitados lado a lado na cama. Beijou-me o cabelo, a testa, os olhos, a ponta do meu nariz antes de voltar a beijar-me a boca. Quando as nossas línguas se tocaram, senti que todo o meu corpo ficava mais descontraído.

- Cheiras tão bem - sussurrou. - É como se estivesse no meio de um jardim.

As suas mãos deslizaram pelos meus ombros e descobriram o fecho do vestido. à medida que o abria e que o vestido começava a soltar-se à volta do meu peito, eu gemia, deixando que a minha cabeça se aninhasse na almofada. levou os seus lábios ao meu queixo e depois ao pescoço, voltando a descer até ao vale entre os meus seios.

- Beau, não estamos a ter cuidado - sussurrei, mas apertei-o de encontro a mim como se quisesse discordar do que acabara de dizer e negar tudo o que sabia ser o certo.

- Eu sei - disse. - Mas vamos ter - prometeu. No entanto, começou a tirar-me o vestido por cima dos ombros, passando pelos braços. Deixei que a parte de cima caísse até à minha cintura. Beau sentou-se e despiu o seu casaco desportivo, soltou a gravata e desabotoou a camisa enquanto eu o observava. O seu belo rosto estava iluminado pela ténue luz da Lua que entrava pela janela. Beau mais parecia um fantasma, parte de um sonho, a personificação da minha fantasia mais louca. Fechei os olhos e só voltei a abri-los quanto o senti por cima de mim, sem camisa. Brincou com o meu soutien antes de o desapertar e depois os seus lábios tocaram no meu peito nu, beijando suavemente cada um dos seios até eu o puxar para mim e voltar a beijá-lo na boca.

As suas mãos estavam por debaixo do vestido à procura das minhas cuecas. Eu devia tê-lo feito parar nessa altura, mas, ao contrário, deixei-o tirar-me as cuecas e depois ouvi-o sussurrar o meu nome ao mesmo tempo que levava a sua virilidade erecta de encontro ao meu corpo.

- Beau! - gritei sem forças.

- É bom, Ruby. É maravilhoso. É o certo. De outra forma

nosso amor não era tão forte como o é agora.

Não consegui resistir. Deixei-o penetrar em mim e tocar-me ainda mais longe do que alguma vez fizera. Ergui-me e voltei a cair, imaginando-me numa canoa perto do oceano, cuja água se encrespa com as ondas. De cada vez que era levada para cima, percorria-me a sensação de ficar gradualmente mais leve. Pensei que talvez fosse ficar suspensa no ar como um balão.

Não sei quantas foram as vezes que Beau gritou o meu nome. Não me lembro do que eu própria disse, mas desta vez a experiência de fazer amor foi de tal forma intensa que me vieram lágrimas aos olhos. Por uns momentos, era como se ambos nos tivéssemos fundido um no outro. Os nossos corpos escaldavam. Abracei-o com tanta força que se poderia pensar que receava cair da cama.

Atingimos os nossos clímaxes em simultâneo, cobrindo-nos um ao outro de beijos. Percorremos com a boca a cara um do outro, como se estivéssemos esfomeados de afecto, desejosos de tocar noutro ser humano, sedentos de amor. Abafámos os nossos gritos de encontro ao pescoço e aos ombros um do outro; de seguida, agarrámo-nos ainda ofegando, os corações a bater violentamente em sintonia. Ficámos ambos tão surpreendidos com a nossa paixão que só nos foi possível rir.

- Sente isto - disse Beau, levando a minha mão ao seu coração.

 

- E tu sente o meu.

Ficámos deitados lado a lado, os nossos corações a bater junto à mão um do outro, o ritmo desenfreado a passear-se pelos braços até voltar a entrar nos nossos corações.

Durante algum tempo, permanecemos silenciosos. Depois Beau sentou-se e virou-se para mim, observando-me.

- És maravilhosa - disse. - Amo-te. Não consigo dizê-lo vezes suficientes.

- Amas, Beau? E vais amar-me para todo o sempre?

- Não consigo ver porque não ou por que razão havia de deixar de te amar - respondeu, beijando-me docemente.

Na rádio, o apresentador, num tom de voz muito excitado, começou a contagem decrescente.

- Dez, nove, oito...

Beau pegou-me na mão e recitámos o resto dos números em conjunto.

- Cinco, quatro, três, dois, um... FELIZ ANO NOVO!

Auld Lang Syne começou a ouvir-se na rádio.

- Feliz Ano Novo, Ruby.

- Feliz Ano Novo, Beau.

Beijámo-nos de novo, ficando abraçados e, por breves instantes, parecia que nada neste mundo seria suficientemente forte para nos separar. Há muito tempo que não me sentia tão feliz e realizada. Era uma boa sensação. Andava ansiosa por atingir esse estado mais do que alguma vez tivera consciência.

Vestimo-nos, penteámos o cabelo e recompusemo-nos de tal maneira que parecíamos tão limpos e arranjados como no início da noite. Depois saimos para ir ver o que Gisselle e os seus amigos andavam a aprontar.

Mais valia não termos descido. Para começar, dois rapazes tinham ido a correr na tentativa de chegar à casa de banho,' mas, pelos vistos, não tinham conseguido. Vomitavam e cuspiam no corredor, alternando os seus grunhidos com estúpidas gargalhadas. A casa tresandava ao cheiro enjoativo do adocicado do vinho e do uísque.

Todas as decorações da festa tinham sido arrancadas à meia-noite num frenesim louco. Os balões foram rebentados e encontravam-se por todo o lado. A confusão reinava na sala de estar. Pior que isso, viemos mesmo a confirmar que houvera uma batalha de comida. Tinham entornado bebidas no chão; via-se bolos e pedaços de sanduíches espalhados por cima dos móveis; mostarda e maionese conspurcavam as paredes, as mesas e até mesmo as janelas.

Alguns dos convidados estavam refastelados no chão, enroscados nos braços uns dos outros, a rir-se e a dizer piadas estúpidas. Outros, sentindo que tinham passado da conta, encontravam-se sentados, de olhos fechados, com as mãos a segurar a barriga. No bar, viam-se ainda dois rapazes, a desafiar-se um ao outro com competições de bebidas. Claro que a música estava com o volume no máximo, quase ensurdecedora.

-           Onde está a Gisselle? - gritei. Algumas pessoas olharam-me com indiferença. Antoinette soltou-se do braço do rapaz que dormia sobre os seus ombros e encaminhou-se para nós.

-           A tua irmã saiu da festa com o John para aí há uma hora.

-           Saiu da festa. Onde foram?

Antoinette encolheu os ombros.

- Mas saiu de casa?

 

- Não me parece - respondeu Antoinete, rindo-se em seguida. - Não me parecia indisposta. - É verdade, feliz Ano Novo, Beau - desejou-lhe, inclinando-se para o beijar.

- Feliz Ano Novo - retorquiu Beau, desviando-se para a beijar na face. Antoinette deu um passo atrás, decepcionada, e voltou para o seu parceiro bêbedo.

- Ela não foi para o quarto - comentei com Beau. - De certeza que a teríamos ouvido. A Daphne vai ficar furiosa quando chegar e vir isto. Temos de encontrar a Gisselle! É preciso que ela peça às pessoas para limparem isto e saírem.

- Não me parece tarefa fácil - respondeu Beau, olhando em volta. - Mas vamos procurá-la.

Percorremos a maior parte do andar inferior. No escritório de Daphne demos de caras com um casal abraçado que tivemos de expulsar; no entanto, não descobrimos Gisselle. Corri lá para cima para verificar os outros quartos e, depois de me certificar que não estava lá ninguém, voltei para baixo. Passámos pela cozinha, chegando mesmo a ver no quarto de Nína e no de Edgar.

- Talvez tenha ido para a cabana - sugeriu Beau.

Verificámos lá e na piscina, mas não encontrámos ninguém.

- Onde poderá estar ela? Deve ter saído de casa - disse Beau.

- Só falta ver num Sítio, Beau.

- Qual?

Peguei-lhe na mão e guiei-o de regresso a casa. Passámos

por cima de um rapaz, que estava enroscado no chão da entrada

a dormir, e continuámos em direcção ao meu estúdio. Mal nos

aproximámos da porta, ouvi o riso de Gisselle. Olhei para Beau

e abri a porta de rompante. Por um momento, nenhum de nós

acreditou no que os nossos olhos viam.

John estava nu por cima do sofá e Gísselle, só de cuecas e soutien, estava a pintá-lo. Espalhara tinta verde e vermelha por cima dos seus ombros e peito e enormes manchas de amarelo cobriam-lhe as pernas. No momento em que entrámos, Gisselle pintalgava de preto as suas partes íntimas. John estava obviamente demasiado bêbedo para se importar. Riam-se os dois.

- Gisselle! - gritei. - Que fazes tu?

Virou-se e cambaleou ao mesmo tempo que nos tentava focar.

- olhem quem está aqui... os amantes - balbuciou, voltando de seguida a rir-se.

- O que pensas tu que estás a fazer?

- A fazer? - Olhou para John, que tinha os olhos fechados e um sorriso parvo na boca. - Ah. Estou a pintar o John. Disse-lhe que tinha tanto talento como tu. E, se tu podes pintar o Beau, eu posso pintá-lo a ele. O John concordou. - Riu-se e deu-lhe uma cotovelada. - Não foi, John?

- Sim - respondeu.

- Tira-te daí - ordenou Beau -, e veste-te, idiota.

John levantou a cabeça.

- Olá, olá, Beau. Já é dia de Ano Novo?

- Para ti o ano acaba agora se não te levantares e vestires rapidamente.

- Hen?

- Gisselle, já viste o que os teus amigos fizeram à casa? Há quanto tempo estás fora da festa?

 

- E quanto tempo estiveste tu fora, querida irmã? - rema tou, sorrindo com maldade, enquanto tentava endireitar-se.

- Eles destruíram a casa! Há miúdos a vomitar pelos coredores. As paredes estão com comida colada e...

- Ups... Parece-me uma emergência.

- Beau - gritei. Ele deu um passo à frente e agarrou-o

pelos braços, pondo-o de pé. Depois empurrou-o para a parte de trás do estúdio e obrigou-o a vestir-se.

- Veste-te, Gisselle, e volta depressa para a festa. Tens que os convencer a limpar a casa antes que a Daphne

- Ah, pára de te preocupares com a Daphne. A DAphne ela agora tem de ser muito simpática connosco porque quer casar com o Bruce e fazer com que pareçamos uma família respeitável de Nova Orleães. Sempre tiveste muito medo

da Daphne. Tens medo até da tua própria sombra cajun! - zombou.

Avancei na sua direcção e atirei-lhe com o vestido à cara.

- Mas não tenho medo de te partir o pescoço. Enfia o vestido. Já!

- Pára de gritar. É passagem de ano. É suposto as pessoas divertirem-se. Tu divertiste-te, não foi?

- Pelo menos não destruí nada. Olha para o meu estúdio - gritei. Gisselle tinha entornado tintas, deitado abaixo cavaletes e espalhado barro por cima das mesas.

- Depois de nós sairmos, os criados limpam. É o que fazem sempre - afirmou. Começou a pôr o vestido.

- De certeza que não vão limpar nem esta porcaria nem a da sala de estar. Até mesmo um escravo se revoltava - respondi. No entanto, nada do que eu dizia tinha alguma importância. Gisselle estava demasiado bébeda para ouvir ou se importar. Cambaleou, deu uma gargalhada e finalmente começou

a vestir-se. Beau conseguiu obrigar John a fazer o mesmo. Quando estavam prontos, empurrámo-los para fora do estúdio, em direcção à festa. Até mesmo Gisselle ficou surpreendida com o tamanho dos estragos. Entretanto, alguns dos miúdos, depois de se aperceberem da dimensão dos danos, já tinham partido. Os que ficaram não estariam nas melhores condições para limpar e pôr em ordem a sala de estar.

- Feliz Ano Novo - gritou Gisselle. - Acho que é melhor tentarmos limpar isto. - Riu-se, sem vergonha, começando em seguida a juntar os copos. Porém, agarrou demasiados rápido de mais e deixou-os cair, partindo três.

- É mesmo desajeitada - comentei com Beau.

- Eu convenço-a a sentar-se e a não sair do lugar - respondeu Beau. Enquanto ele fazia isso, tentei persuadir alguns dos miúdos a ajudar-me a apanhar os pratos e os copos que tinham caído no chão. Encontrámos alguns por baixo do sofá, outros atrás das cadeiras, nas estantes e até por baixo das mesas.

Fui à cozinha buscar um balde com água e detergente e algumas esponjas. Quando regressei, apercebi-me de que mais convidados tinham saído. Os que ainda permaneciam, tentavam dar uma ajuda. Antoinete e eu percorremos toda a sala, esfregando as paredes tanto quanto nos era possível, mas a comida tinha feito nódoas díficeis de tirar. Uma catástrofe!

- Vai ser preciso um exército para pôr isto em ordem, Beau - lamentei-me.

 

Ele concordou.

- Vamos pelo menos tirá-los daqui - sugeriu. Anunciámos que a festa tinha acabado. Beau ajudou alguns dos rapazes a saírem, certificando-se de que os mais sóbrios iam a guiar. Depois de todos partirem, demos uma vista de olhos no que ainda havia por fazer. Gisselle ressonava, esparramada no chão da sala de estar junto ao canapé.

- É melhor que também vás, Beau - avisei-o. - Certamente não queres estar cá quando a Daphne chegar.

- Tens a certeza? Eu podia testemunhar e...

- E dizer o quê, Beau? Que nós estávamos lá em cima no meu quarto a fazer amor enquanto a Gisselle e os seus amigos davam cabo da casa?

Ele acenou.

- Que desgraça! - disse. - O que vais dizer?

- Nada. É melhor do que mentir - retorqui.

Ele abanou a cabeça em sinal de concordância.

- Queres que te ajude a pó-la lá em cima? - perguntou, apontando em direcção a Gisselle.

- Não, deixa-a ficar aí.

Acompanhei-o até à porta, onde demos um beijo de despedida.

- Telefono-te amanhã... quando puder - disse. Fiquei a vê-lo ir-se embora e depois fechei a porta, regressando à sala de estar, onde em breve uma terrível tempestade cairia sobre a minha cabeça.

Sentei-me na cadeira à frente de Gisselle, que permanecia estendida no chão, mais morta do que viva. Vomitara, porém. estava demasiado bêbeda para se aperceber ou importar.

O relógio bateu as duas da manhã. Fechei os olhos para só voltar a abrir quando senti alguém a abanar-me com força. Olhei para cima, deparando-me com o rosto enraivecido

de Daphne e, por um breve instante, esqueci-me onde estava ou o que tinha acontecido. Mas ela não permitiu que esse momento du rasse.

- O que fizeram?! O que fizeram vocês?! - gritou-me aos ouvidos, com a boca retorcida e os olhos muito abertos. Bruce encontrava-se junto à porta a abanar a cabeça, com as mãos nas ancas.

- Eu não fiz nada, Daphne - respondi, sentando-me. - Isto é o que a Gisselle e os seus amigos chamam divertimento. Não se esqueça que eu não passo de uma cajun retrógrada.

nunca poderia saber o que é divertir-me.

- Que dizes tu? É assim que me pagas eu ter sido compreensiva contigo? - berrou.

Um gemido de Gisselle fez com que Daphne se virasse.

- levanta-te - gritou-lhe. - Estás a ouvir, Gisselle? Levanta-te já!

As pestanas de Gisselle tremeram; porém, não abriu os olhos. Resmungou e voltou a adormecer.

- Bruce! - gritou Daphne, virando-se para ele.

Ele suspirou e deu um passo em frente. Depois ajoelhou-se e pôs o braço por debaixo do corpo de Gisselle e, não sem algum esforço, levantou-a do chão.

- leva-a já lá para cima - ordenou Daphne.

- Lá para cima?

- Já, estás a ouvir? Não a quero ver.

 

- Vou usar a cadeira de rodas - disse Bruce, sentando Gisselle sem qualquer cuidado, nem sequer se importando com os pedaços de bolo que estavam espalhados na parte de tràs do assento. Ela ficou debilmente sentada, com a cabeça a pender sobre o ombro, e deu mais um gemido. Em seguida, Bruce empurrou-a para fora da mesma maneira que o grandpêre Jack

empurraria um vagão com esterco de vaca, isto é, com a cabeça para trás e os braços estendidos, para que o cheiro a álcool não lhe chegasse ao nariz. Bastou Bruce e Gisselle saírem da sala, para Daphne voltar a atacar-me.

- O que é que se passou aqui?

- Fizeram uma batalha de comida - respondi. - Beberam de mais. Alguns deles não conseguiram aguentar o álcool e vomitaram. Os outros estavam demasiado bêbedos para ter cuidado. Partiram copos, deixaram cair comida, adormeceram no chão. A Gisselle permitiu que eles fossem para onde lhes apetecesse, excepto lá para cima. Encontrei um casal no seu escritório.

- No meu escritório! Mexeram em alguma coisa?

- Só neles próprios, imagino - disse secamente. Bocejei.

- Estás contente que isto tenha acontecido, não estás? Achas que isto prova alguma coisa.

Encolhi os ombros.

- No bayou, já vi pessoas a embebedarem-se e a ficarem sentimentais - disse, lembrando-me do grandpêre Jack. - Acredite que é verdade, e os jovens creoles ricos não são muito diferentes.

- Contava contigo para manter as coisas em ordem - disse, abanando a cabeça.

- Eu? Porquê sempre eu? Porque não a Gisselle? Foi ela que teve a melhor educação, não foi? Foi-lhe ensinado tudo o que há de mais chique na vida, foi-lhe dado tudo isto! - gritei, de braços no ar.

- Ela é aleijada.

- Não, não é. Já viu que não e.

- Não estou a falar das pernas, estou a falar de... de... de...

- Ela é apenas a menina mimada e egoísta que criou - interrompi.

Daphne permaneceu de pé, furiosa.

- Já não me interessa manter as aparências - disse por fim. - Quando ela acordar, podes dizer-lhe que, faça chuva ou faça sol, tu e ela vão voltar para Greenwood. Está decidido. - Deu uma vista de olhos à volta. - Vou ter de contratar uma agência de limpezas para vir limpar e reparar esta casa e a despesa ficará a cargo das vossas mesadas. Diz-lhe também isso.

- Talvez fosse melhor a Daphne dizer-lho pessoalmente.

- Não sejas insolente. - Abanou a cabeça, pensativa. Eu sei porque permitiste que isto acontecesse. Provavelmente nem sequer cá estavas quando tudo se passou, não é? Tu e o teu namorado estavam decerto noutro lado, não? - acusou. Senti-me corar, o que a convenceu de que tinha razão. - Bem, não estou surpreendida - acrescentou. - É a paga que se tem quando se dá às pessoas uma segunda oportunidade.

 

- Lamento que isto tenha acontecido, Daphne - disse. Evitava a todos os custos que ela arranjasse uma maneira de culpar Beau. - A sério. Foi-me impossível evitar. A Gisselle é que tomou conta das operações. Todos os que cá estavam eram sobretudo amigos dela. Não estou a tentar escapar-me das culpas... Mas foi assim que aconteceu. Nunca me teriam ouvido por muito que eu gritasse. Sempre que eu me queixo acerca de algumas das suas acções, a Gisselle ri-se de mim e chama-me nomes. Ela vira-os contra mim e eu não tenho nenhum poder ou autoridade sobre eles.

- Esta casa também é tua, sabes? - disse Daphne intencionalmente.

- Nunca quis que eu partilhasse esse sentimento. Mas continuo a lamentar que isto tenha acontecido.

- Bem, vai dormir. Tratamos disto amanhã. Até chegar, esta tinha sido uma das melhores passagens de ano que eu tivera de há muito tempo para cá.

Fez menção de sair.

- Feliz Ano Novo também para si - murmurei, indo em seguida para a cama.

Gisselle não se levantou antes do meio-dia do dia seguinte; porém, o mesmo se passou com Daphne. Tomei o pequeno-almoço com Bruce.

- Ela está muito zangada - disse-me. - Mas eu vou acalmá-la. No entanto, não me parece que consiga convencê-la a não vos mandar de volta para Greenwood.

- Não me importo - respondi. A esta altura a única coisa que me apetecia era fugir daquela casa infernal. Depois do pequeno-almoço, fui para o pátio junto à piscina e dormitei

ao sol. Um pouco depois da uma da tarde, senti uma sombra mover-se por cima de mim e, quando abri os olhos, dei de caras com Gisselle. O seu cabelo estava desgrenhado e a cara

pálida como a de um peixe morto. Trazia uns óculos de sol e usava um roupão, por debaixo do qual ainda mantinha a lingerie da noite anterior.

- A Daphne disse-me que puseste a culpa toda em cima de mim - acusou.

- Limitei-me a contar a verdade.

- E contaste-lhe que estiveste toda a noite lá em cima com o Beau?

- Por acaso, até não ficámos lá toda a noite, mas também não precisei de lhe dizer nada. Ela percebeu.

- Não podias ter inventado qualquer coisa, como culpar um dos nossos convidados ou uma coisa assim?

- Quem é que acreditaria numa história dessas, Gisselle? E daí? Ontem à noite não parecias tão preocupada quando tentei pôr-te a ti e aos teus amigos a limpar o que fizeram. Se tivéssemos limpo alguma coisa, talvez não fosse tão mau.

- Obrigadínha - respondeu. - Sabes o que está ela agora a dizer, não sabes? Temos de voltar para Greenwood. Não presta atenção a uma única palavra do que eu digo. Nunca a vi tão zangada.

- Talvez seja o melhor.

- Só podias dizer isso. A ti, nada te importa: até gostas de estar em Greenwood. O teu trabalho corre bem e ainda te divertes com a tua Míss Stevens e o Louis.

- O Louis foi-se embora, e dificilmente diria que estava a divertir-me na escola, quando a directora me tentou expulsar por causa de uma coisa que tu fizeste!

- Então, porque queres voltar para lá?

- Estou apenas cansada de lutar contra a Daphne. Não sei mais que fazer. Estou cansada.

 

- Estás é estúpida. Estúpida e egoísta.

- Eu? Chamas-me a mim egoísta?

- Sim. - Pressionou as mãos de encontro às têmporas. Ai, a minha cabeça. Sinto-me como se tivesse uma pessoa a jogar tênis dentro da minha cabeça. Não estás de ressaca? - perguntou.

- Não bebi assim tanto.

- Tu não bebeste assim tanto - imitou-me. - A menina boazinha ataca outra vez. Espero que estejas muito feliz - resmungou. Deu meia volta, mas não se apressou a sair. Tinha de andar lentamente para evitar que a sua cabeça tombasse.

Sorri. Justo castigo, pensei; ela aprendera a lição. Porém, apenas eu tinha consciência de que, fossem elas quais fossem as promessas que fizera e por muito que jurasse estar arrependida, Gisselle esquecer-se-ia de tudo, mal a sua dor cessasse.

Dois dias mais tarde, arrumámos todas as nossas coisas para o regresso a Greenwood, só que desta vez a cadeira de rodas ficou em casa. Gisselle continuava a querer levá-la, protestando que ainda não se sentia suficientemente confiante para andar a pé todo o tempo. Contudo, Daphne não foi na cantiga. Ela nunca iria permitir que Gisselle retrocedesse para a sua antiga maneira de estar, apelando à compaixão de todos e usando o seu estado como desculpa para o mau comportamento.

- Se cá em casa podes andar, dançar e ainda fazer imensos estragos, também podes ir e vir das aulas a pé - disse-lhe Daphne. - Já telefonei à monitora do dormitório e contei boas noticias - acrescentou. - Por isso, agora já todas sabem da tua maravilhosa recuperação.

- Mas, mãe - implorou Gisselle -, em Greenwood os professores odeiam-me.

- Estou certa de que também te odeiam aqui - ripostou Daphne. - E lembrem-se do que eu vos disse: se se portarem mal, mando-vos para uma escola ainda mais rigida, daquelas com arame farpado à volta - ameaçou, deixando Gisselle boquiaberta. Esta era a versão de Daphne de uma despedida maternal.

Fizemos a viagem de regresso num silêncio de morte, roucamente interrompida de tempos a tempos pelo choro e pelos suspiros de Gisselle. Tentei dormir durante a maior parte do caminho. Quando chegámos ao dormitório, era como se fôssem heroinas de regresso a casa ou, pelo menos, Gisselle. Por alguns momentos, a recepção avivou-lhe as cores. Mrs. Pen encontrava-se à entrada com as raparigas do nosso quadrante todas prontas a felicitar Gisselle e a testemunhar o milagre dessa miraculosa recuperação. Mal as viu, Gisselle mudou de disposição.

- Tchan-tchan! - anunciou, saindo do carro. Mrs. Pen juntou as mãos e veio a correr para a abraçar. As raparigas puseram-se à volta dela, disparando perguntas atrás de perguntas: "Como foi que isso aconteceu? Quando foi a primeira vez que deste conta? Doeu? O que disseram os médicos? O que disse a tua mãe? Já andaste muito?"

- Ainda me sinto um pouco fraca - declarou Gisselle - inclinando-se em direcção a Samantha. - Poderia alguém ir buscar o meu casaco? - perguntou num tom de voz enfraquecido.

-           Deixei-o no assento do carro.

 

- Eu vou lá - ofereceu-se Vicki, correndo para o carro.

levantei os olhos em direcção ao céu. Por que razão ninguém, excepto eu, conseguia ver o que estava por detrás da máscara de Gisselle? Por que motivo estavam elas tão ansiosas por ser aceites, enganadas e passar por parvas nas mãos da minha irmã? Elas mereciam que Gisselle as tratasse mal; elas mereciam que Gisselle se aproveitasse delas para as usar e pular, pensei, e nesse preciso instante prometi a mim própria que, a partir desse dia, iria fechar os olhos a tudo e dedicar-me só à minha arte.

Foi, desta forma, com verdadeiro entusiasmo que me dirigi para as aulas no primeiro dia. Ansiava pela primeira lição com

Miss Stevens. Estava confiante de que ela me pediria para ficar depois da aula e iríamos conversar imenso acerca das férias de cada uma. No meu cérebro e, no fundo, também no meu coração, Miss Stevens tornara-se a minha irmã mais velha. Um dia, em breve, pensei, iria confessar-lhe tudo isto.

No entanto, mal entrei no edificio e comecei a descer o corredor em direcção à sala, pressenti que alguma coisa estava errada. Tomei consciência disso quando me dei conta dos pequenos grupos de raparigas que sussurravam aqui e ali, seguindo-me com os olhos enquanto passava. Sem saber porquê, o meu coração começou a bater com força e uma sensação de mal-estar invadiu-me o estômago, como se tivesse uma colmeia repleta de abelhas e dar ferroadas lá dentro. Chegara à escola mais cedo do que as outras; por conseguinte, tinha algum tempo livre. Fosse como fosse, era minha intenção cumprimentar Miss Stevens antes da aula. Apressei-me a chegar ao estúdio de arte e entrei, veloz, pela porta, na expectativa de aí a encontrar no seu avental, o cabelo apanhado e um sorriso aberto nos lábios.

Porém, em vez disso, deparei-me com um homem mais velho vestido com uma bata de pintor. Estava sentado à secretária e passava os olhos por alguns desenhos de estantes. Observou-me atentamente, com alguma surpresa estampada no rosto, enquanto eu percorria toda a sala com o olhar.

- Bem, bom dia - disse.

- Bom dia. Miss Stevens ainda não chegou? - perguntei.

O seu sorriso dissipou-se.

- Ah, lamento, mas Miss Stevens já cá não está. O meu nome é Mister Longo. Sou o seu substituto.

- O quê? - Por um momento as suas palavras pareciam infimamente ridículas. Limitei-me a ficar ali especada, sorrindo, incrédula. O meu coração palpitava desenfreadamente.

- Ela não vai voltar - insistiu ele, mas desta vez com mais firmeza. - És uma estudante de Educação Visual, presumo?

Acenei com a cabeça.

- Não pode ser verdade. Por que razão não vai ela voltar? Porquê? - inquiri.

Ele levantou-se.

- Não sei dos pormenores, mademoiselle.

- Dumas. Que pormenores?

- Como já te disse, não sei, mas...

 

Não deixei que terminasse. Virei-lhe as costas e saí a correr da sala. Desci pelo corredor, confusa, as lágrimas a inundar-me o rosto. Miss Stevens já não estava cá? Ter-se-ia ela ido embora? Porque não me tinha dito nada? A minha história ia crescendo. Nem sequer sabia para onde estava a dirigir-me; limitava-me a correr de um lado ao outro do edificio. Virei uma esquina e regressei para a entrada. Quando estava a chegar, ouvi o riso estridente das gargalhadas de Gisselle. Outras raparigas reuniam-se à sua volta desejosas de ouvir a história da miraculosa recuperação. Parei de correr, caminhando devagar ao seu encontro. O grupo separou-se, de forma a que eu e Gisselle ficássemos frente a frente.

- Acabei de saber - disse. Abanei a cabeça.

- Acabaste de saber o quê?

- Esta manhã estão todos a falar do mesmo. Despediram a tua Miss Stevens.

- Não pode ser. Ela era uma professora maravilhosa. Não pode ser...

- Acho que não foi o seu trabalho como professora que fez com que a despedissem - afirmou Gisselle, olhando para as amigas de forma cúmplice. Também as outras mantinham sorrisos coniventes.

- Então, o que foi? O que foi? Foi despedida por me ter ajudado na audiência? - Exigi uma resposta. - Por favor, alguém me diga. Alguém sabe?

Um momento de silêncio invadiu o espaço. De seguida, Deborah Peck deu um passo à frente.

- Não sei exactamente todos os pormenores - disse, olhando para as outras -, mas a acusação contra ela tinha a ver com imoralidade.

- O quê? Que imoralidade?

Uma gargalhada aberta foi a única resposta que obtive. Virei-me para Gisselle.

- Não me culpes - gritou. - Foi a própria Dama de Ferro que descobriu tudo.

- Mas descobriu o quê? Não havia nada para descobrir.

- Descobriu a razão por que Miss Stevens nunca sai com homens - afirmou Deborah. - É a razão por que ela só queria ensinar numa escola para raparigas - retorquiu. Um riso silencioso cortou o ar. O meu coração parou por um momento de bater, retomando em seguida, desta vez violentamente.

- Isso é mentira, tudo mentiras.

- Ela foi-se embora,, não foi? - perguntou Deborah. A campainha tocou. - É melhor irmos para a aula. Ninguém quer apanhar um demérito logo no primeiro dia.

O grupo começou a dissipar-se.

- Mentiras! - gritei-lhes.

- Pára de fazer figura de parva - disse-me Gisselle. - Vai para a aula. Não estás feliz? Estás de volta à tua preciosa Greenwood.

- A culpa disto tudo é tua! - acusei. - Não sei bem como, mas, de uma maneira qualquer tu és culpada disto, não és?

- Como pode a culpa ser minha? - gritou, fazendo um gesto largo com os braços em direcção a Vicki, Samantha, Jackie e Kate. - Eu nem sequer cá estava quando tudo aconteceu. Vêem como ela me culpa sempre de tudo?

Ficaram todas a olhar para mim. Abanei a cabeça e dei um passo atrás. Depois virei costas e fui pelo corredor até ao gabinete de Mrs. Ironwood. Mrs. Randle ficou surpreendida ao ver-me entrar de rompante pela porta.

- Quero ver Mistress Ironwood - disse.

- Tens de marcar um encontro, querida - retorquiu Mrs. Randle.

 

- Quero vê-la agora! - ordenei.

Ela encostou-se atrás, chocada com a minha insistência.

- Mistress Ironwood está neste momento muito ocupada com todos os procedimentos necessários para reabrir a escola e...

- AGORA! - gritei.

Nesse momento, a porta de Mrs. Ironwood escancarou-se e ela apareceu, olhando, zangada, na minha direcção.

- O que significa isto?

- Por que razão despediram Miss Stevens? - exigi. - Foi porque me ajudou na audiência? É por isso?

Mrs. Ironwood olhou de soslaio para Mrs. Randle, endireitando de seguida os ombros.

- Primeiro - começou -, este não é nem o momento nem o local para discutir tal assunto, mesmo que fosse apropriado ter esta conversa com uma estudante, o que não é o caso. Segundo, quem pensas tu que és para entrar por aqui dentro a fazer-me exigências?

- Não é justo - respondi. - Porque se vingou nela? Não é justo. Ela era uma professora maravilhosa. Não quer bons professores? Não se preocupa com isso?

- Claro que me preocupo com a tua insolência. - acrescentou. Limpei as lágrimas do rosto e fiquei ali especada. Aos poucos, ela foi ficando mais calma. - Não é da tua conta a forma como tomamos as decisões relativas ao corpo docente, mas até te posso dizer que Miss Stevens não foi despedida. Foi ela que se demitiu.

- Demitiu-se? - Abanei a cabeça. - Ela nunca..

- Garanto-te que ela se demitiu. - A campainha voltou a tocar. - Este foi o último toque. Estás atrasada para a aula, dois deméritos - ripostou, dando meia volta para regressar ao seu gabinete. Fechou com força a porta, o que só fez com que a minha confusão aumentasse.

- É melhor que vá andando para a sua sala, mademoiselle, antes que as coisas se tornem piores para si - avisou Mrs. Randle.

- Ela não se demitiria - insisti, saindo em direcção à sala. No entanto, um pouco mais tarde no mesmo dia, continuei

a prestar atenção às bisbilhotices que circulavam e vim a saber que Miss Stevens de facto demitira-se.

Fora acusada de comportamento imoral. Tinham-lhe dado a oportunidade de se demitir e dessa forma não ser obrigada a enfrentar uma terrível audiência. O que constava é que uma das estudantes tivera a coragem de confessar ter sido seduzida por Miss Stevens. Ninguém sabia quem era a estudante; claro, eu tinha as minhas suspeitas.

Gisselle não podia aparentar maior felicidade e Mrs. Ironwood levara a sua avante.

 

UM PESADELO ACORDADO

Durante os dias que se seguiram, a minha postura assemelhava-se à de uma sonâmbula. Com os olhos fixos no nada, deambulava pelos corredores e pelos terrenos de Greenwood, o meu andar pesado e vagaroso. Mal conseguia ouvir as pessoas que falavam comigo ou que conversavam junto de mim. Nem sequer prestava atenção se o Sol estava a brilhar ou não. Uma tarde fiquei completamente estarrecida quando ao chegar ao dormitório, me apercebi de que estava molhada, pois chovera fortemente, coisa que eu não notara.

Dia após dia, sempre que regressava ao dormitório depois das aulas, tinha a infima esperança de encontrar uma mensagem de Miss Stevens, mas tal não aconteceu. Calculava que ela devia ter medo de me arranjar problemas, pois era pessoa para tais pruridos. Tinha tanta pena dela, obrigada a rescindir pela mentira mais estúpida e indecente. Por outro lado, sabia que, apesar de Mrs. Ironwood ter permitido que ela se demitisse, de certeza não tinha perdido tão flagrante oportunidade de manchar a reputação de Miss Stevens com inúmeras suspeitas de comportamento imoral, prejudicando assim as suas hipóteses de encontrar outro emprego.

Um dia, enfim, ao regressar ao dormitório, encontrei uma carta, porém o remetente era Louis.

 

Querida Ruby,

Peço desculpa por ter demorado tanto tempo a escrever-te, mas não quis tentar até conseguir fazê-lo completamente sozinho. O que tu estás a ler neste momento é uma carta escrita exclusivamente por mim, sem qualquer ajuda, onde eu consigo ver cada letra e cada palavra que escrevo. Finalmente, já não tenho de depender de ninguém para executar tarefas que é suposto serem da maior simplicidade. Não tenho de confiar a ninguém os meus mais profundos pensamentos ou ignorar o meu embaraço ao pedir os favores mais básicos. Sou de novo inteiro e, mais uma vez, graças a ti.

Os médicos dizem-me que a minha visão recuperou por si própria quase cem por cento. Estou a fazer alguns exercícios para os músculos dos olhos e por enquanto uso lentes correctoras. Mas já não despendo tanto do dia a preocupar-me comigo mesmo. Pelo contrário, passo a maior parte do tempo no conservatório, onde estou a trabalhar com os melhores professores de música do mundo. E eles estão todos impressionados comigo.

Hoje à noite vou dar um recital na Aula Magna da escola e, para além da presença de todos os professores e respectivas esposas, virão também dignatários da cidade. Estou a tentar não ficar nervoso e sabes o que me ajuda a ultrapassar isto? Pensar em ti e nas maravilhosas conversas que costumávamos ter.

E sabes que mais? Eles vão deixar-me tocar uma parte da tua sinfonia. Enquanto tocar vou recordar as tuas gargalhadas e a tua doce voz a encorajar-me. Sinto muitas saudades tuas e estou ansioso por voltar a ver-te. Ou deverei dizer, ver-te por inteiro pela primeira vez na vida?

 

Recebi uma carta da minha avô e, como de costume, ela incluía algumas notícias sobre a escola.

Porque é que a professora de Educação Visual, Miss Stevens, se demitiu? Tudo o que a avó disse acerca disso é que ela foi rapidamente substituida.

Escreve-me quando tiveres oportunidade e boa sorte para os teus exames,

Como sempre,

O teu querido amigo,

Louis

 

Pus a sua carta à parte e ensaiei escrever uma resposta que não mostrasse a tristeza que me invadia a alma, mas, sempre que começava a explicar por que razão tinha saído Miss Stevens, desatava a chorar e as lágrimas ensopavam o papel. Por fim, escrevinhei apenas uma nota rápida com a desculpa de que estava a meio dos exames e que, em breve, lhe escreveria com mais calma.

Entretanto, só a meio da segunda semana é que recebi notícias de Beau. Pediu desculpas por não me ter telefonado antes.

- Tive de ir para fora, a uma reunião de família, o fim-de-semana inteiro - explicou. Depois acrescentou: - Imagina só o que a Daphne contou sobre a passagem de ano, quando ontem à noite encontrou os meus pais num restaurante. Ela falou de tal maneira que mais parecia que tínhamos participado numa orgia.

- Posso imaginar.

- Porque estás tão em baixo? É porque sentes saudades minhas? Porque se for...

- Não, Beau - respondi, explicando-lhe em seguida a história de Miss Stevens.

- Achas que foi a Gisselle?

- Tenho a certeza de que foi a Gisselle - respondi. - Ela uma vez ameaçou-me com isso se eu revelasse a alguém que ela já não era aleijada.

- Confrontaste-a?

- Ela nega tudo, como sempre - disse. - Também já não tem importância. O estrago está feito e ela conseguiu o que queria: odeio estar aqui.

- Queixa-te à Daphne - sugeriu Beau. - Talvez ela te deixe voltar para casa.

- Duvido - respondi. - Seja como for, já não me interessa. Limito-me a fazer os meus trabalhos e a andar para a frente. Não me estou a dedicar muito à pintura. O novo professor até é simpático, mas não é Miss Stevens.

- Bem, eu vou aí no próximo fim-de-semana - prometeu Beau. - Chego sábado ao fim da manhã.

- Okay.

- Ruby, detesto ouvir-te assim tão triste. Isso faz com que eu também fique triste - disse.

Estava a chorar, mas não permiti que ele escutasse. Acenei, recuperei a respiração e disse-lhe que tinha de acabar alguns trabalhos de casa.

 

No sábado seguinte, Beau apareceu e vê-lo a sair do carro em frente ao dormitório pôs alguma alegria no meu coração. Na cozinha do dormitório, preparara uma sanduíches e sumo de maçã para o piquenique. Depois de observar Beau atentamente, as raparigas do nosso dormitório exprimiram a sua aprovação com júbilos e risos. Com um cobertor dobrado por baixo do braço, apressei-me a ir ao seu encontro e partimos para o outro lado da propriedade.

- A Daphne prometeu mandar-nos uma autorização para que eu e a Gisselle pudéssemos sair da escola aos fins-de-semana, mas não o fez - expliquei. - Por isso não podemos sair da propriedade.

- Não faz mal. Isto aqui até é simpático - respondeu Beau, olhando à volta.

Passeámos pelos terrenos e depois estendemos o cobertor na relva. Deitàmo-nos, apoiando a cabeça nos braços, e ficámos a ver o céu azul com os seus flocos de nuvens brancas ao mesmo tempo que falávamos baixinho. De início a nossa conversa era sobre assuntos exteriores. Ele contava episódios acerca de alguns dos seus amigos em Nova Orleães, as perspectivas para a próxima época de basebol e os seus planos para estudar na universidade.

- Tens de voltar a dedicar-te à pintura - aconselhou-me. - Tenho a certeza de que se Miss Stevens soubesse ficaria

muito aborrecida.

- Eu sei. Mas neste momento todos os meus gestos são mecânicos. Sinto-me como se fosse um robô: levantar-me, vestir-me, ir para a escola, fazer os trabalhos de casa, estudar e ir dormir. Mas tens razão - disse-lhe. - Tenho mesmo de voltar a dedicar-me ao que, para mim, é mais importante.

Sentei-me. Ele brincava com um fio de relva e depois tentou fazer-me cócegas com ele. No entanto, eu estava demasiado consciente de todas as nossas acções. Encontrávamo-nos à vista de todos. Não havia qualquer privacidade em Greenwood e conseguia mesmo imaginar Mrs. Ironwood a observar-nos por uma janela, à espera unicamente de qualquer gesto nosso que ela considerasse errado.

Comemos as sandes, conversámos mais um pouco e depois resolvemos dar outro passeio. Mostrei-lhe algumas partes da escola: a biblioteca, o auditório, a cantina. Durante todo o percurso, senti que éramos observados ou até mesmo seguidos. Não me apetecia levá-lo de volta para o dormitório. Alegrava-me a ideia de não termos deparado com Gisselle. Quando demos por nós, estávamos a andar em direcção à mansão dos Clairborne. Beau achou que era uma impressionante casa antiga, devido à maneira como se encontrava recuada, com a floresta a separá-la da escola.

Estava a fazer-se tarde. Resolvemos, por isso, regressar ao dormitório e ao carro dele; porém, à volta, descobrimos um caminho que se enfiava ainda mais para dentro da floresta e Beau sugeriu que o explorássemos, para ver onde nos levava. Ao principio fiquei reticente, continuando a sentir que estávamos a ser observados. Cheguei mesmo a olhar à nossa volta, deparando-me unicamente com as sombras criadas pelo sol de fim da tarde, mas não vi ninguém nem escutei qualquer som. Deixei-o conduzir-me. Caminhámos para o interior daquela pequena área

arborizada até que ouvimos o som nítido de água a passar por baixo de rochas. Depois de uma curva íngreme, lá estava: uma corrente pequena mas forte originara uma cascata.

- Isto é muito bonito - disse Beau. - Nunca tinhas cá vindo?

- Não e ninguém me falou disto.

 

- Vamos sentar-nos por um bocadinho. Seja como for, não estou com muita pressa para regressar a Nova Orleães - acrescentou. Algo na forma como disse aquilo me desagradou.

- Os teus pais sabem que vieste cá visitar-me, não sabem?

- Mais ou menos - respondeu, rindo-se.

- O que é que isso quer dizer, mais ou menos?

- Disse-lhes que ia dar uma volta - retorquiu, encolhendo os ombros.

-           Só uma volta? Mas vieste até Baton Rouge!

-           É uma volta, não é? - respondeu, rindo-se.

-           Oh, Beau, vais voltar a ter problemas com eles, não vais?

-           Tudo vale a pena só para te ver, Ruby. - Aproximou-se de mim e pôs as suas mãos nos meus ombros, colando os lábios aos meus. Aqui, na solidão da floresta, ele sentia-se livre para demonstrar o seu afecto. No entanto, eu não conseguia evitar estar nervosa. Ainda nos encontrávamos nos terrenos de Greenwood e, na minha retorcida imaginação, antevia já a Da'na de Ferro a aparecer por detrás de uma árvore com um par de binóculos. Beau notou o meu desconforto e sentiu a tensão no meu corpo.

- O que se passa? Pensei que estarias mais ansiosa por me ver - disse, obviamente desiludido.

- Não é por tua causa, Beau. Sou eu. Não me sinto confortável aqui, apesar de estares a meu lado. Continuo a sentir-me... como o meu grandpêre Jack diria, como se tivesse pisado a cauda de um crocodilo a dormir.

Beau riu-se.

- Não está aqui ninguém excepto nós e os pássaros - disse, voltando a beijar-me. - Não há crocodilos. - Deu-me um beijo no pescoço. - Vamos estender o cobertor e descansar durante um bocado - insistiu.

Deixei que ele tirasse o cobertor que estava debaixo do meu braço e fiquei a observá-lo enquanto o estendia sobre a relva. Espreguiçou-se por cima dele e fez-me um aceno com a mão. Dei mais uma vista de olhos à volta e, perante a minha hesitação, Beau esticou-se, pegando na minha mão e puxando-me para junto dele.

 

Por um momento, nos seus braços, esqueci onde estava. Os nossos beijos eram longos e apaixonados. Ele passeava com as mãos suavemente pelos braços acima e pelos meus seios. Depressa senti que o ímpeto do meu próprio sangue estava a competir com o ímpeto da água por cima das rochas. Os sons oriundos do meu corpo tornaram-se tão estridentes como os barulhos exteriores. Senti-me enlevada pelas caricias de Beau. Cada beijo, cada toque afastava as rugas de preocupação da minha testa e mandava embora a tristeza do meu coração, até que dei por mim beijando-o tão louca e apaixonadamente como ele iniciara. Senti as suas mãos a percorrer o meu corpo por debaixo da blusa, a minha roupa a ser afastada para que nos sentíssemos mais perto, pele com pele, batida de coração com batida de coração. Abri-me para ele ansiosamente e encontrei-o, tocando-me, agarrando-me, provando o seu amor e as suas promessas. De algures da floresta, ouvi o cantar do pica-pau. O seu pique... pique... pique tornava-se cada vez mais rápido e alto, como se destruísse toda a floresta. A água continuava a jorrar ao nosso lado. Os meus gemidos tornaram-se mais fortes e frequentes, até que ambos atingimos o máximo do nosso voraz apetite, satisfazendo-nos um ao outro com a rendição dos nossos seres.

Quando acabou, lágrimas desceram pelo meu rosto. O meu coração batia tão violentamente que julguei desmaiar. Beau estava virado de costas, ainda surpreendido e respirando com dificuldade.

- E eu que pensava que o futebol era extenuante - zombou. Depois ficou sério e olhou-me nos olhos. - Estás bem?

- Sim - respondi, enquanto normalizava a respiração -, mas talvez tenhamos mais amor um pelo outro do que os nossos corpos conseguem suportar.

Ele riu-se.

- Não me lembro de mais ninguém em cujos braços eu gostasse de morrer - retorquiu, o que me fez sorrir.

Recompusemo-nos, arrancámos os pedaços de ervas que tínhamos na roupa um ao outro e regressámos pela floresta. Tive de admitir que me sentia mais feliz e leve do que alguma vez julgara possível nestas duas últimas semanas.

- Estou tão contente que me tenhas vindo ver, Beau. Espero que não venhas a ter muitos problemas.

- Valeu a pena - respondeu.

Despedimo-nos junto ao seu carro e reparei que algumas raParigas do dormitório nos observavam pela janela da frente.

- É difícil acreditar que a Gisselle não tenha aparecido á minha frente nem uma só vez - disse Beau.

- Eu sei. Mas seja o que for que ela esteja a preparar, é de certeza algo de maquiavélico para alguém. - Beau riu-se das minhas palavras. Demos um beijo de despedida rápido e fiquei ali a vê-lo partir. Só me virei para regressar ao dormitório depois de o seu carro desaparecer por completo. De seguida, baixei a cabeça e encaminhei-me vagarosamente para o dormitório.

- É melhor que te despaches - avisou-me Sarah Peters, eu entrei no dormitório.

- Porquê?

- Acabámos de saber: o nosso dormitório foi escolhido para uma inspecção inesperada. A Dama de Ferro pode estar a chegar a qualquer momento - explicou.

- Inspecção? Inspecção a quê?

- Qualquer coisa. Os nossos quartos, as casas de banho, qualquer coisa. Ela não precisa de um mandado, sabes.

Quando cheguei ao quadrante, dei de caras com todas as raparigas numa correria, até mesmo Gisselle. Estavam a limpar e a arrumar tudo. Todos os quartos pareciam muito organizados

e asseados. Samantha fizera um belo trabalho no nosso.

- Nós somos as primeiras - informou-me Vicki. - Ela vai por ordem alfabética.

- Como foi a visita do Beau? - perguntou Gisselle da sua porta.

Mirei-a de alto a baixo, sentindo ainda muita raiva perante a sua presença.

- Porquê? Não estavas a espiar-nos? - perguntei. Ela riu-se, de forma um pouco nervosa.

- Tive coisas muito mais importantes para fazer - retorquiu, retirando-se rapidamente para o seu quarto.

 

Mais ou menos meia hora mais tarde, Mrs. Ironwood chegou, escoltada por Mrs. Penny e Deborah Peck; esta ultima trazia uma pasta, onde apontava todas as notas e deméritos que Mrs. Ironwood impunha. A inspecção começou no quarto de Jackie e Kate e depois seguiu para o de Gisselle. Esperava ouvir queixas, mas Mrs. Ironwood saiu de lá com um olhar de satisfação na cara. Entrou no nosso quarto e deu uma vista de olhos.

- Boa tarde, meninas - disse para Samantha e para mim. Samantha parecia aterrorizada e murmurou uma resposta que mal se ouviu. Mrs. Ironwood dirigiu-se a uma das cómodas e passou com o dedo pela superficie. Olhou para os dedos.

- Muito bem - disse. - Fico contente que mantenham os vossos quartos limpos e os considerem como a vossa casa. - Abriu a porta do armário e observou a nossa roupa, acenou, virando-se em seguida para a minha cómoda. Aproximou-se e abriu a gaveta de cima, olhando e acenando. - Bem organizado - disse. Samantha sorriu para mim. Depois Mrs. Ironwood abriu a terceira gaveta. Ficou alguns instantes a observar e depois olhou na minha direcção.

-           Esta é a tua cômoda?

-           Sim - respondi. Ela acenou, voltou a olhar para a gaveta, pôs lá dentro a mão e depois retirou uma garrafa de rum. - Não podias ter escondido isto um pouco melhor? - perguntou com sarcasmo.

Fiquei boquiaberta. Olhei para Mrs. Penny, que estava pasmada, com o olhar fixo em mim, simultaneamente surpreendida e decepcionada. Deborah Peck conservava um sorriso maldoso nos lábios.

- Isso não é meu.

- Acabaste de afirmar que esta cómoda é tua. Há outras pessoas a pôr coisas na tua cómoda?

- Não, mas...

- Então, isto é teu - retorquiu. Entregou a garrafa Mrs. Penny. - Deite isso fora - ordenou. Depois dirigindo-se para Deborah: - Dez deméritos. - Olhou para mim. - Vamos ponderar o teu castigo e serás avisada ainda antes do final do dia. Até lá, estás confinada ao teu quarto.

Virou-se e saiu porta fora. Mrs. Penny continuava a segurar a garrafa com todo o cuidado, como se fosse veneno. Abanou a cabeça em sinal de desagrado.

- Tenho tanta vergonha de ti, Ruby.

- A garrafa não é minha, Mistress Penny.

- Tanta vergonha... - repetiu, saindo do quarto atrás de Mrs. Ironwood e Deborah. Logo de seguida, todas as raparigas do nosso dormitório entraram no quarto.

- O que encontrou ela? - perguntou Jackie.

- Tenho a certeza de que sabem do que se trata - respondi secamente.

- Sabemos o quê? - perguntou Gisselle, vinda de trás.

- Sobre o rum que puseste na minha gaveta.

- Estão a ver? Lá está ela outra vez. A culpa é minha. Eu não sou a única pessoa aqui, Ruby. Além disso, as raparigas dos outros quadrantes também poderiam ter entrado no teu quarto. Não és propriamente a rapariga mais popular na escola, sabes? Talvez alguém tenha ciúmes teus.

- Alguém? - perguntei, sorrindo.

- Ou, talvez - acrescentou, com as mãos junto à anca -, essa garrafa fosse mesmo tua.

Ri-me e abanei a cabeça.

 

- Estou a tentar imaginar o que será o teu castigo - disse Samantha.

- Não interessa. Não me importo. - Falava a sério. Já nada me preocupava.

Pouco antes do jantar, Mrs. Penny informou-me de que eu iria passar a noite a esfregar todas as casas de banho da escola. O chefe de limpezas estaria à minha espera com água, sabão e uma escova. Durante um mês, era suposto eu desempenhar essa tarefa a seguir ao jantar dos sábados.

Aceitei o meu castigo com uma calma resignação que irritou Gisselle e simultaneamente surpreendeu e impressionou as outras raparigas. Nunca ouviram uma queixa da minha parte, mesmo quando isso significava não poder ver um filme ou ir a um baile. Sabia que o chefe de limpezas, Mr. Huíl, sentia pena de mim, o que o fazia encarregar-se de parte do meu trabalho ou limpar toda uma área ainda antes de eu chegar.

- Estas casas de banho nunca estiveram com tão bom aspecto à segunda-feira - disse-me.

Ele tinha razão. Quando me apercebi de que me era impossível evitar o castigo sem causar ainda mais problemas, resolvi dedicar-me a ele com entusiasmo, tornando-o mais suportável. Tirei nódoas que, à primeira vista, pareciam completamente entranhadas e pus os espelhos a reluzir de tal forma que nem uma só mancha se via no vidro. No entanto, ao terceiro sábado, descobri que alguém tinha entupido as sanitas de uma das casas de banho e puxado demasiadas vezes o autoclismo, de forma que a água inundara todo o chão. Como metia algum nojo, Mr. Huíl resolveu ajudar-me, começando por usar a esfregona. Mesmo assim, o cheiro nauseabundo chegou-me ao nariz e tive de ir apanhar ar, o que impediu que vomitasse todo o jantar.

Dois dias depois, acordei com náuseas e fui a correr para a casa de banho vomitar. Pensei que apanhara um daqueles horríveis vírus que atacam o estômago ou então fora envenenada por um dos produtos de limpeza, onde mergulhara continuamente as mãos para limpar as casas de banho. à tarde, quando voltei a sentir náuseas, pedi para me dispensarem da aula e ir à enfermaria.

Mrs. MilIer, a enfermeira da nossa escola, mandou-me sentar e pediu-me que descrevesse todos os sintomas. Aparentava estar muito preocupada.

- Tenho andado mais cansada do que é habitual - admiti, quando ela me inquiriu acerca da minha energia.

- Reparaste se por acaso tens ido mais frequentemente à casa de banho para urinar?

Pensei por um momento.

- Sim - respondi. - Tenho.

Ela acenou.

- Que mais?

- De vez em quando tenho tonturas. Basta-me andar um bocado e de repente parece que as coisas estão a rodar à minha volta.

- Estou a ver. Presumo que acompanhas o teu período com regularidade e que tens pelo menos uma ideia aproximada de quando deveria vir.

O meu coração parou.

- Não tiveste o último? - perguntou instantaneamente, mal se apercebeu da expressão de dúvida no meu rosto.

- Sim, mas... isso já me aconteceu antes.

 

- Tens-te olhado ultimamente ao espelho e reparado em algumas mudanças no teu corpo, em especial nos teus seios? - perguntou.

Eu reparara na aparição de novas pequenas veias, porém disse-lhe que julgava que isso se devia a estar ainda em crescimento. Ela abanou a cabeça.

- Tu já cresceste tudo o que tinhas a crescer - disse. - Receio dizer-te, mas parece-me que estás grávida, Ruby - declarou. - Só tu sabes se isso é possível. É?

Foi nesse instante que senti como se ela me tivesse lançado um balde de água fria pela cabeça abaixo. Por um momento, todo o meu corpo se imobilizou e os músculos do meu rosto pararam de trabalhar. Não conseguia responder. Até acho que o meu coração parara de bater. Era como se, à frente dos seus olhos, me tivesse transformado em pedra.

- Ruby? - perguntou de novo.

E eu desatei a chorar.

- Oh, querida - disse ela. - Minha querida.

Pôs o braço à volta dos meus ombros e encaminhou-me para uma das macas. Aconselhou-me a deitar e a descansar um pouco. lembro-me que, durante o tempo que ali estive deitada, afundando-me numa corrente de autocomiseração, odiando

o destino, amaldiçoando a sorte, pensei como é que o amor podia ser tão maravilhoso se conseguia colocar-me numa situação tão dificil. Parecia que me tinham pregado uma partida muito cruel, no entanto, era óbvio que eu nunca poderia culpar ninguém, excepto a mim própria. Nem sequer culpava Beau, pois tinha consciência de que, fosse como fosse, fora-me concedido o poder de me negar, de o afastar, e eu optara por não o fazer.

Um pouco depois, à medida que o meu choro diminuía, Mrs. Miller puxou duma cadeira e sentou-se ao meu lado.

- Temos de informar a tua família - disse-me. - Isto é um problema muito pessoal e tu e a tua família vão ter de tomar decisões muito importantes.

- Por favor - pedi-lhe, agarrando-lhe a mão. - Não diga a ninguém.

- Não vou contar a ninguém excepto à tua família e, claro está, a Mistress Ironwood.

- Não, por favor. Por enquanto, não quero que ninguém saiba.

- Não posso fazer isso. É demasiada responsabilidade, querida. De certeza que, depois do choque inicial, a tua família dar-te-á apoio, e juntamente com eles tomarás as decisões mais acertadas.

- Decisões? - Parecia-me só haver uma decisão a tomar:

suicídio ou então fugir para longe.

- Ter o bebé ou não, a possibilidade de fazer um aborto, se se deve contar ao pai... decisões. Por isso, como vês, são demasiadas responsabilidades para que possamos manter segredo. As outras pessoas têm de saber. Se não lhes contássemos, estaríamos em falta. Eu seria considerada uma pessoa irresponsável e provavelmente ser-me-ia exigida uma explicação. O mínimo que poderia acontecer era eu ser despedida.

 

- Oh, não quero que isso aconteça, Mistress MilIer. Já sou responsável por uma pessoa ter perdido o emprego aqui. Não quero ter outra pessoa a pesar-me na consciência. Claro, faça o que tem a fazer e não se preocupe comigo - disse.

- Então, então, querida... Vamos continuar a preocuparmo-nos contigo. Já outras raparigas estiveram na mesma situação, sabes? Não é o fim do mundo, embora agora neste momento te possa parecer. - Sorriu. - Vais ficar bem - prometeu, aconchegando-me a mão. - Descansa. Eu farei o que for necessário e o mais discretamente possível.

Ela saiu e eu fiquei ali deitada, desejando que o tecto caísse sobre a minha cabeça e amaldiçoando o dia em que decidira sair do bayou.

Quase uma hora depois, Mrs. Miller apareceu com Mrs. Ironwood, que me informou que Daphne mandaria a limusina buscar-me. Consegui ver o brilho de auto-satisfação que lhe rasgava os olhos à medida que falava.

- Recompõe-te e regressa ao dormitório. Arruma as tuas coisas, todas as coisas. Já não voltas para Greenwood - concluiu.

- Pelo menos há algo de bom no meio disto tudo - declarei.

Ela corou e encolheu os ombros.

- Não estou surpreendida. Era apenas uma questão de tempo até à tua autodestruição. Já é costume na tua espécie - retorquiu, saindo de seguida, sem que eu pudesse responder-lhe

Também já nada me importava. Ironicamente, Gisselle tivera razão: Greenwood seria sempre um sítio horrível, enquanto fosse aquela mulher a dirigir e a administrar a escola. Saí do edificio e regressei ao dormitório, a fim de empacotar tudo. Ao meio-dia, quando Gisselle apareceu a correr aproveitando a hora de almoço, já tinha quase tudo pronto. Entrou pelo quadrante dentro a berrar o meu nome. Quando viu as malas feitas e o armário e as gavetas da cómoda vazias, ficou de boca aberta

- O que se passa? - quis saber. Por isso, contei-lhe. Na primeira vez, ela ficou sem palavras. Sentou-se na minha cama.

- O que vais fazer?

- O que posso eu fazer? Vou voltar para casa. A limusiine deve estar quase a chegar.

- Mas isso não é justo. Vou ficar aqui completamente sozinha.

- Completamente sozinha? Tens as outras raparigas e, como for, nunca quiseste dar-te comigo, Gisselle. Somos irmãs, mas funcionámos quase como duas estranhas que na maior parte do tempo não se cruzam.

- Não vou ficar aqui. Não vou! - insistiu.

- Isso é entre ti e a Daphne - disse.

Saiu do meu quarto, furiosa, e foi fazer um telefonema, porém, não voltou para arrumar as coisas. Imaginei que lhe negara o pedido. Pelo menos por enquanto.

Meia hora mais tarde, apareceu Mrs. Penny, muito pálida. a informar-me de que a limusina chegara. Estava verdadeiramente triste por minha causa e ajudou-me a levar algumas das coisas para o carro.

- Estou muito desiludida contigo - disse. - E Mistr Ironwood também.

- Mistress Ironwood não está desiludida, Mistress Pennv. A senhora trabalha para um monstro. Um dia há-de admitir para si própria e também partirá.

 

- Partir? - declarou quase à beira do riso. - Mas onde iria eu?

- Para qualquer sítio onde as pessoas não sejam hipócritas e maldosas umas com as outras, onde uma pessoa não seja julgada com base na sua conta bancária, onde pessoas simpáticas e talentosas como Miss Stevens não sejam perseguidas por serem honestas e por se preocuparem com os outros.

Ela observou-me por um momento e depois, com um ar tão sério como eu nunca antes vira, proferiu:

- Não existe um sítio assim, mas, se o encontrares, manda-me um postal a explicar como se vai para lá.

Deixou-me, regressando ao dormitório para cumprir a sua função de mãe substituta para todas aquelas raparigas. Entrei na limusina e partimos.

E nunca mais olhei para trás.

 

Quando cheguei, Edgar saiu e ajudou o motorista a levar as minhas coisas para o quarto. Informou-me ainda que Daphne não se encontrava em casa.

- Mas a madame pediu que permanecesse em casa e não falasse com ninguém até ao seu regresso - disse. Fiquei a pensar se ele sabia por que razão tinha eu regressado. Decerto pressentia que alguma coisa terrível acontecera, mas não deu a entender se tinha ou não conhecimento dos pormenores. Nina era outra história. Bastou-lhe olhar para mim uma vez, quando entrei na cozinha para a cumprimentar.

- A menina está com criança...

- A Daphne contou-te.

- Ela anda aí a barafustar e a fazer tanto alarde, que até mesmo os mortos do cemitério de St. Louis devem ter ouvido. Depois veio aqui e disse-me ela própria.

- A culpa é minha, Nina.

- É preciso dois para fazer a magia do bebé - disse. - Não pode ser só culpa sua.

- Oh, Nina, o que vou eu fazer? Os erros que cometo não destróiem apenas a minha vida, mas também a vida dos outros.

- Alguém poderoso lançou-lhe uma maldição. Nenhum dos amuletos de boa sorte de Nina conseguiu evitar - disse pensativamente. - O melhor é ir à igreja e pedir ajuda a São Miguel. Ele ajuda-lhe a combater os seus inimigos - aconselhou-me.

Ouvimos a porta da frente a abrir e fechar e depois o barulho dos saltos de Daphne a percorrer apressadamente o corredor. A isto seguiu-se a entrada de Edgar na cozinha.

- Madame Dumas já cá está, mademoiselle. Deseja vê-la no escritório - avisou-me.

- Preferia ver o diabo - murmurei.

Os olhos de Nina abriram-se com medo.

- Não diga mais isso, está a ouvir? Papa La Bas tem bons ouvidos.

Fui para o escritório. Daphne estava sentada à secretária a falar ao telefone. levantou as sobrancelhas quando apareci e fez-me sinal para me sentar na cadeira à sua frente, enquanto continuava a falar.

- Ela já chegou a casa, John. Posso mandá-la aí imediatamente. Conto com a tua discrição. Claro. Fico agradecida. Muitu obrigada.

 

Pousou devagar o telefone no gancho e recostou-se. Para minha grande surpresa, abanava lentamente a cabeça e ria-se

- Tenho de ser sincera - começou. - Sempre pensei que iria estar sentada aqui a enfrentar a Gisselle nesta situação, nunca a ti. Apesar dos teus antecedentes, fizeste passar a ideia, tanto a mim como ao teu pai, de que eras a mais sensata, a mais esperta e certamente a mais inteligente.

"Mas - continuou -, como agora deves estar a perceber ter mais conhecimentos dos livros não te transforma numa pessoa melhor, certo?

Tentei engolir em seco, mas fui incapaz.

- Que irónico. Eu, que tinha todo o direito de ter um filho. que lhe poderia dar tudo de melhor, fui incapaz de conceber uma criança. E tu, tal como os coelhos, vais e decides ter um bebé com o teu namorado tão displicentemente como se fosse comer uma refeição ou dar um passeio. Estás sempre a dizer como isto e aquilo é injusto. Bem, o que achas desta cruz que eu agora tenho de carregar? E, ainda por cima, pondo ainda mais sal na ferida, sou obrigada a aceitar que entres pela casa dentro, que faças parte desta família, que estejas à espera de uma criança, quando não tens qualquer direito de estar grávida.

- Eu não queria que isto acontecesse - disse. Ela atirou a cabeça para trás e riu-se.

- Quantas vezes, desde que Eva concebeu Caim e Abel, se justificam as mulheres com essa estúpida frase? - Os seus. olhos tornaram-se frechas negras. - O que pensavas que ia acontecer? Pensavas que podias estar tão fogosa como um macaco ou uma cabra e excitares dessa maneira o teu namorado sem ter de arcar com as consequências? Pensavas que eras eu?

- Não, mas...

- Nem mas, nem meio mas - declarou. - O caldo, como se costuma dizer, está entornado. E agora, como sempre, está a meu cargo corrigir o que está errado, remendar as coisas. Já era assim quando o teu pai estava vivo, acredita.

"A limusina está lá fora - continuou. - O motorista já tem as instruções. Não precisas de nada. Sai e enfia-te no carro - ordenou.

- Para onde vou?

Fixou o seu olhar em mim por um momento.

- Um amigo meu, que é médico, encontra-se numa clínica fora da cidade. Está á tua espera. Ele fará um aborto e, salvo a hipótese de surgirem algumas complicações imprevisíveis, mandar-te-á de volta para casa. Ficarás alguns dias lá em cima a recuperar e depois voltarás a ingressar numa escola pública daqui. Já comecei a forjar uma história para encobrir o sucedido. A morte do teu pai deixou-te tão deprimida que não consegues continuar a viver longe de casa. Ultimamente tens andado de um lado para o outro... muito acabrunhada. Penso que as pessoas irão aceitar.

-Mas...

- Já te disse: não quero mas nem meio mas. Agora não faças o médico esperar. Ele está a fazer-me um favor muito delicado.

Levantei-me.

- Só mais uma coisa - acrescentou. - Não vale a pena telefonares ao Beau Andreas. Acabei de vir de sua casa. Os pais dele estão tão furiosos com ele como eu estou contigo e decidiram mandá-lo para fora o resto do ano lectivo.

 

- Para fora? Onde?

- Longe - disse. - Vai viver com familiares e estudar em França.

- França!?

- Exactamente. Penso que ele só tem de ficar mais do que agradecido, visto ser este o único castigo a que está sujeito. Se ele alguma vez falar contigo ou te escrever, e os pais dele descobrirem, será deserdado. Por isso, se também queres destruí-lo, tenta contactá-lo.

"Agora vai - acrescentou com a voz cansada. - Esta é a primeira e a última vez que encubro os teus passos em falso. A partir de agora, serás tu sozinha que sofrerás as consequências de toda e qualquer indiscrição que cometas. Vai! - ordenou, esticando o braço em direcção á porta, com o indicador a tremer no ar. Senti como se ela o tivesse espetado dentro do meu coração.

Virei-me e saí. Sem parar, deixei a casa e entrei na limusina. Nunca antes me tinha sentido tão confusa e perdida. Os acontecimentos guiavam-me por eles próprios. Eu mais parecia uma pessoa que perdera a capacidade de optar. Era como se uma enchente forte tivesse inundado o canal no bayou, empurrando-me para longe na minha canoa e, por muito que tentasse remar na direcção oposta, não o conseguisse. Só podia recostar-me e deixar que a água me levasse para um destino que estava previamente determinado.

Fechei os olhos, só voltando a abri-los quando o motorista disse:

- Já chegámos, mademoiselle.

Devíamos ter andado durante pelo menos meia hora e agora encontrávamo-nos numa qualquer vila pequena, onde todas as lojas estavam fechadas. Conhecendo Daphne, estava à espera de ser trazida para um hospital moderno e caro, mas a limusina encostou por trás de um edificio escuro e deteriorado. Não parecia uma clínica, nem sequer um consultório de médico.

- Estamos no sítio certo? - perguntei.

- Foi para aqui que me mandaram trazê-la - respondeu o motorista. Saiu e abriu a porta de trás. Desci devagar. A porta traseira do edificio abriu-se e uma mulher gorda com o cabelo da cor e da textura dum esfregão de cozinha espreitou.

- Por aqui - ordenou. - Rápido.

à medida que me aproximava, reparei que ela usava bata de enfermeira. Tinha braços grossos e disformes e as

ancas eram tão largas que parecia que a parte de cima do corpo tinha sido acrescentada posteriormente. Uma verruga com alguns pêlos enrolados á volta marcava-lhe o queixo. Os seus lábios grossos comprimiam-se de impaciência.

- Despacha-te - mandou.

- Onde estou? - perguntei.

- Onde pensas tu que estás? - retorquiu, dando-me passagem. Entrei com cautela. A porta traseira dava para um corredor longo e mal iluminado com paredes pintadas de um tom desmaiado de amarelo. O chão parecia gasto e sujo.

- Isto é uma... uma clínica? - perguntei.

- É o consultório do médico - respondeu. - Entra na primeira porta á direita. O médico estará lá num momento.

 

Avançou à minha frente e desapareceu por outra sala á esquerda. Abri a porta da primeira sala á direita e vi uma mesa de cirurgia com perneiras. Sobre esta marquesa estava um lençol de papel. à direita via-se uma mesa metálica, por cima da qual se encontrava um tabuleiro com instrumentos. Um lavatório encostado ao fundo tinha o que parecia instrumentos já usados a secar dentro dum balde. As paredes da sala eram do mesmo amarelo-pardacento que as do corredor. Não se via qualquer quadro, placa, nem mesmo uma janela. Mas havia outra porta, que se abriu, e de onde saiu um homem alto e magro com sobrancelhas cheias e de fino cabelo preto, enfraquecido no topo da cabeça e curto aos lados.

Olhou para mim e acenou, mas não me cumprimentou. Em vez disso, encaminhou-se para o lavatório e começou a lavar as mãos.

Podes sentar-se na mesa - ordenou, de costas viradas para mim.

A mulher pesada entrou e começou a organizar os instrumentos. O médico virou-se e ficou a olhar para mim. Levantou as sobrancelhas de forma inquiridora.

- Na mesa! - repetiu, acenando em minha direcção.

- Pensei... pensei que seria trazida para um hospital - disse.

- Hospital? - Olhou para a enfermeira, que, sempre a olhar para baixo, abanou a cabeça sem falar. - É a tua primeira vez, não é? - perguntou-me o médico.

- Sim - respondi, sentindo a voz tremer. O meu coração batia aceleradamente e gotas de suor formavam-se no meu pescoço e na testa.

- Bem, não vai demorar muito tempo - disse. A enfermeira pegou num instrumento que parecia a broca do grandpêre Jack. Senti o meu estômago revoltar-se.

- Isto é um erro - disse. - É suposto eu ser levada para uma clínica.

Dei um passo atrás, abanando a cabeça. Nem o médico nem a enfermeira se tinham sequer apresentado.

- Isto não pode estar certo - continuei.

- Bem, vamos lá a ver, menina. Estou a fazer um favor à tua mãe. Saí de casa, comi á pressa, para poder estar aqui. Não temos tempo para disparates.

- Foi a fazer disparates que vieste aqui parar - disse a pesada mulher, franzindo a testa. - Quem brinca com o fogo, queima-se - acrescentou. - Vai já para cima da mesa.

Abanei a cabeça.

- Não. Isto não está certo. Não - voltei a dizer. Andei para trás até à porta e encontrei a maçaneta. - Não.

- Não tenho tempo para isto - avisou o médico.

- Não me interessa. Isto não está certo. - Virei-me de costas e abri a porta. Um minuto depois atravessava o corredor sombrio e passava já pela porta traseira. O motorista encontrava-se ainda sentado no carro por trás do volante, com o boné a tapar-lhe os olhos, a cabeça encostada, a dormir. Bati á janela e ele deu um salto, surpreendido.

- Leve-me para casa! - gritei.

Ele saiu rapidamente do carro e abriu-me a porta de trás.

- A madame disse-me que ainda demorava um bocado - explicou, confuso.

- Parta! - gritei. Ele encolheu os ombros, mas voltou a entrar no carro e arrancou. Momentos mais tarde, estávamos de novo na estrada. Olhei para trás para aquela vila escura e sombria. Era como se tivesse entrado e saído de um pesadelo.

 

Porém, quando voltei a olhar para a frente, a dura realidade que me aguardava atingiu-me como uma rajada de vento no meio de um ciclone. Daphne iria ficar furiosa e tornaria a minha vida ainda mais horrível. Aproximámo-nos de um cruzamento na estrada. A seta no sinal que apontava para a esquerda indicava a direcção de Nova Orleães, mas havia também uma seta para a direita, indicando Houma.

- Pare!            ordenei.

- O quê? - O motorista fez uma travagem brusca e virou-se para mim.                   - O que é agora, mademoiselle? - perguntou.

Hesitei. Toda a minha vida me surgiu à frente dos olhos: a grandmêre Catherine á minha espera quando regressava da escola, eu a correr para ela com os totós a saltar, a abraçá-la e a tentar dizer-lhe quase em fôlego tudo o que aprendera e fizera na escola. E Paul numa canoa a acenar-me e eu a correr para o cais para me juntar a ele, com um cesto de piquenique debaixo do braço. As últimas palavras da grandmére Catherine, as minhas promessas, a partida para apanhar o autocarro para Nova Orleães. A chegada à mansão no Garden District. Os olhos doces e amorosos do paizinho, o entusiasmo reflectido na sua cara quando se apercebeu de quem eu era... Todas estas memórias atravessaram a minha mente nesse mesmo instante.

Abri a porta do carro.

- Mademoiselle?

- Podes voltar para Nova Orleães, Charles - disse-lhe.

- O quê? - perguntou não acreditando.

- Diga a Madame Dumas... diga-lhe que ela finalmente se viu livre de mim... - Comecei a andar na direcção a Houma.

Charles ainda ficou à espera, confuso. Mas, quando eu desapareci na escuridão, ele arrancou, e a chique limusina continuou o seu caminho sem mim, as luzes traseiras a tornarem-se cada vez mais pequenas até por completo desaparecerem. Eu estava sozinha na estrada.

Um ano antes, tinha partido de Houma pensando que ia para casa.

A verdade era que neste momento eu regressava para a única casa que alguma vez conhecera.

 

PORQUÊ EU?

à medida que avançava pela escuridão, sentia as lágrimas a correr cada vez com mais força pelo rosto abaixo. Carros e camionetas aceleravam ao meu lado, alguns chegando a buzinar, porém eu persisti na minha caminhada até aparecer uma bomba de gasolina. Encontrava-se encerrada, mas vislumbrei uma cabina telefónica ao lado. Liguei para o número de telefone de Beau, rezando ao mesmo tempo com toda a energia que me restava para que ele tivesse conseguido convencer a família a deixá-lo permanecer em Nova Orleães. Enquanto o telefone tocava, limpei as lágrimas do rosto e recuperei a respiração. Foi Garton, o mordomo da família Andreas, que atendeu o telefone.

- Posso falar com o Beau, por favor, Garton? - perguntei rapidamente.

- Peço desculpa, mademoiselle, mas o Beau não se encontra aqui - respondeu.

- Sabe onde está ou quando regressa? - perguntei, sentindo o desespero a fazer-se notar na voz.

- Ele já vai a caminho do aeroporto, mademoiselle.

- Esta noite? Ele vai-se embora hoje à noite?

- Oui, mademoiselle. Lamento. Quer deixar algum recado?

- Não - respondi, desiludida. - Não tenho nenhum recado. Merci beaucoup, Garton.

Devagar pousei o auscultador e deixei a minha cabeça tombar no telefone. Beau partira antes mesmo de termos uma oportunidade de nos despedirmos. Perguntei a mim própria porque não fugira ele para vir ter comigo; no entanto, depressa me apercebi de como um acto desse género teria sido irracional e disparatado. Que bem viria se ele desistisse da sua família e do seu futuro?

Suspirei profundamente e encostei-me. As nuvens negras que encobriam a Lua, desviaram-se e uma luz de um branco-pálido iluminou a estrada, fazendo-a parecer um caminho coberto de ossos que seguia para uma ainda mais profunda escuridão. A minha decisão já fora tomada, pensei. Agora nada havia a fazer a não ser prosseguir. Retomei o passo.

O som de uma buzina de camioneta a apitar atrás de mim fez-me virar. O condutor de um reboque de tractor abrandou por fim até parar. Inclinou-se através da janela do lugar do morto observou-me.

- Que raio de coisa estás a fazer a andar nesta estrada a meio da noite? - exigiu saber. - Não sabes como é perigoso?

- Vou para casa - respondi.

- E onde é isso?

- Houma.

Ele deu um berro.

- Estás a pensar ir a pé até Houma?

- Sim, senhor - respondi num tom de voz penoso. quando ele se desatou a rir é que me apercebi da quantidade de quilómetros que ainda tinha por percorrer.

- Bem, estás com sorte. Eu vou passar por Houma - disse, abrindo a porta. - Senta-te aqui. Anda lá - acrescentou quando viu que hesitava -, antes que eu mude de ideias.

Entrei na camioneta e fechei a porta.

 

- Então por que carga de água é que uma miúda da tua idade está a andar completamente sozinha por aqui? - perguntou, sem deixar de olhar para a estrada. Parecia ter à volta dos cinquenta anos e já se via algum cabelo grisalho no meio de madeixas castanho-escuras.

- Decidi voltar para casa, é isso.

Ele virou-se para mim, depois acenou em sinal de compreensão.

- Tenho uma filha mais ou menos da tua idade. Um dia decidiu fugir de casa. Estava para aí a oito quilómetros de distância quando se deu conta de que as pessoas em troca de comida e de alojamento querem dinheiro, e que os estranhos normalmente estão-se nas tintas para os outros. Voltou com o rabo entre as pernas depois de um pulha qualquer lhe fazer uma oferta nojenta. Tás a perceber?

- Sim, senhor.

- Podia ter-te acontecido o mesmo hoje á noite, a andar completamente sozinha por esta estrada. Aposto que os teus pais já estão doidos de preocupação. Então, não achas que é disparate?

- Sim, senhor. Acho.

- óptimo. Felizmente, nada de mal aconteceu, mas para a próxima, antes de desatares a fugir para o que julgas ser um sítio melhor, mais vale ficares quieta e dares graças por tudo o que tens - aconselhou-me.

Sorri.

- Vou fazer isso de certeza - respondi.

- Bem, nada de mal aconteceu - repetiu. - A verdade é que, quando eu tinha para aí a tua idade, não... - acrescentou, voltando a olhar para mim -... acho que mais novo... eu também fugi de casa. - Riu-se ao reviver essa memória e depois começou a contar-me a sua história. Dei conta de que guiar uma camioneta de longa distância era uma vida solitária, e aquele homem generoso dera-me boleia para fazer uma boa acção mas também pela companhia.

Quando chegámos a Houma, já sabia que ele e a sua família eram oriundos do Texas, onde estudara, por que razão casara com a namorada de infância, como construíra a sua casa e como se tornara camionista. Foi quando chegámos a uma paragem que ele tomou consciência do tanto que falara.

- Diabos! Já estamos aqui e eu nem sequer te perguntei o nome, - perguntei?

- O meu nome é Ruby - respondi. E depois, talvez para assinalar simbolicamente o meu regresso, acrescentei: - Ruby Landrv. Era de novo uma Landry no que dizia respeito às pessoas de Houma. - Muito obrigada - agradeci.

- Muito bem. Não te esqueças de pensar duas vezes para a próxima que quiseres fugir para te tornares uma menina da grande cidade, tás a ouvir?

- Prometo.

 

Saí da camioneta. Depois de o ver arrancar e desaparecer numa curva, comecei a andar para casa. à medida que caminhava por aquelas estradas já familiares, lembrei-me das várias vezes em que a grandmêre Catherine e eu vínhamos à cidade juntas ou íamos visitar uma das suas amigas. Recordei as inúmeras vezes que ela me trouxera consigo para uma das suas missões de traiteur e de como as pessoas a amavam e respeitavam. De repente, a ideia de regressar para aquela cabana sem a sua presença pareceu-me aterrorizadora, ainda por cima com a perspectiva de enfrentar o grandpêre Jack. Paul contara-me tantas histórias tristes acerca dele.

Parei junto a outra cabina telefónica e tirei mais alguns trocos da minha carteira, desta vez para telefonar a Paul. Foi a sua irmã Jeanrie que atendeu.

- Ruby? - perguntou. - Meu Deus! Já faz tanto tempo desde que falei contigo a última vez. Estás a telefonar de Nova Orleães?

- Não - respondi.

- Onde estás?

-Estou... aqui - disse.

- Aqui! A sério? Que maravilha. Paul! - gritou. - É a Ruby, e está cá.

Alguns momentos mais tarde ouvi a sua voz terna e calorosa, uma voz a quem eu pedia desesperadamente que me desse carinho e esperança.

- Ruby? Estás aqui?

- Sim, Paul. Vim para casa. É uma história demasiado comprida para te contar ao telefone, mas queria que soubesses.

- Vais regressar á cabana? - perguntou incredulamente.

- Sim. Expliquei-lhe onde estava e ele disse-me para não sair daquele local enquanto ele não chegasse.

- Chego aí num abrir e fechar de olhos - prometeu. Parecia mesmo que só haviam passado alguns minutos quando Paul estacionou o carro junto de mim e de lá saltou entusiasmadamente. Abraçámo-nos, tão agarrados um ao outro como nunca.

- Aconteceu algo de terrível, não foi? O que foi que a Daphne fez agora? Ou foi antes a Gisselle? Que raio de coisa poderão elas ter feito que te levou a voltar para cá? - perguntou, reparando em seguida que eu não tinha bagagem. - O que fizeste, fugiste?

- Sim, Paul - respondi, desatando a chorar. Ele levou-me para o carro e abraçou-me até que eu recuperasse a fala. Mas devia parecer um discurso de loucos, pois eu deitei toda a história cá para fora de uma rajada só, acrescentando tudo e nada do que me tinham feito, incluindo a garrafa de rum que Gisselle pusera no meu quarto. Porém, quando lhe descrevi a minha gravidez e o médico carniceiro daquela clínica nojenta, a cara de Paul ficou primeiro branca como a cal para, de seguida, se tornar vermelha de raiva.

- Ela ia fazer isso? Fizeste bem em fugir. Fico feliz que estejas de volta.

- Ainda não sei o que vou fazer - disse, limpando as lágrimas do rosto e recuperando o fôlego. - Por agora, só me apetece regressar à cabana.

- O teu grandpêre...

- O que se passa com ele?

- Ultimamente tenho-o visto num estado lastimoso. Ontem quando passei por lá, cavava na parte da frente da casa e bradava aos quatro ventos, acenando com os braços. O meu pai diz que gastou todo o dinheiro em uísque ordinário e por isso tem delirium tremens. Também pensa que ele está nas últimas.

A maior parte das pessoas está surpreendida que ele se tenha aguentado tanto tempo, Ruby. Não sei se te devo levar de volta para lá, Ruby.

- Tenho de voltar, Paul. Neste momento é a minha única casa - disse com determinação.

 

- Eu sei, mas... vais ver que aquilo está uma confusão incrível, tenho a certeza. Vai dar-te cabo do coração. O meu pai diz que a tua grandmêre deve estar a dar voltas no túmulo.

- Leva-me para casa, Paul. Por favor - implorei.

Ele acenou.

- Sim, por agora - respondeu. - Mas vou tomar conta de ti, Ruby. Juro que vou.

- Eu sei que vais, Paul, mas eu não quero ser um fardo nem para ti nem para ninguém. Vou voltar a fazer o trabalho que eu e a grandmêre Catherine fazíamos, a ver se consigo aguentar-me.

- Disparate - disse. Pôs o motor a trabalhar. - Tenho muito mais do que alguma vez vou precisar. Já te contei que agora sou gerente. Os planos para a construção da minha casa já foram aprovados. Ruby...

- Não fales do futuro, Paul. Por favor. Eu já não acredito no futuro.

- Okay - respondeu. - Mas nada de mal te acontecerá enquanto eu andar por aqui. Esta promessa podes levar para o túmulo - vangloriou-se.

Sorri. Ele parecia realmente muito mais velho. Fora sempre mais maduro e responsável que os outros rapazes da sua idade, e o seu pai não hesitara em dar-lhe um trabalho importante.

- Muito obrigada, Paul.

Pareceu-me que por muito que o desejasse nunca estaria preparada para enfrentar o estado em que se encontrava a cabana e os terrenos à volta. A minha sorte era estar a chegar à noite, quando a maior parte das coisas não se encontra visível; porém, ainda assim, reparei nas covas fundas escavadas à frente. Foi quando observei o alpendre e me dei conta de quanto estava inclinado, a balaustrada rachada e partida e as tábuas do chão destruidas em vários locais, que o meu coração mergulhou numa imensa tristeza.

- Tens a certeza de que queres ir lá dentro? - perguntou-me Paul quando parámos.

- Sim, Paul. Tenho a certeza. Apesar de estar em muito mau estado, outrora foi a minha casa e a casa da minha grandmere.

- Okay. Vou contigo lá dentro para ver o que anda ele a tramar. No estado em que está, é possível que nem sequer se lembre de ti - declarou Paul.

Aproximámo-nos da cabana.

- Cuidado - aconselhou o Paul, quando pus o pé no alpendre. As tábuas queixaram-se alto, a porta da frente rangeu nas dobradiças enferrujadas e, mal a abrimos, ameaçou cair. Toda a casa cheirava como se cada uma das criaturas do pântano tivesse adoptado aquele local como lar.

A única fonte de luz era uma lanterna acesa por cima da mesa da cozinha. A sua minúscula chama tremelicava precáriamente enquanto o vento crescente se passeava pela cabana, oriundo das janelas traseiras.

- De certeza que todos os bichos do bayou já entraram aqui - murmurou Paul.

 

A cozinha estava transformada num chiqueiro. Viam-se garrafas vazias de uísque no chão, por debaixo das mesas e das cadeiras, e nos balcões. O lava-louça estava repleto de louça suja de comida velha, e no chão encontravam-se restos de comida em decomposição, alguns com ar de estarem lá há semanas, se não mesmo meses. Peguei na lanterna e fui até á parte de trás.

A sala de estar não se encontrava em melhores condições. A mesa estava de pernas para o ar, tal como a cadeira onde a grandmére costumava sentar-se e adormecer todas as noites. Também aqui se encontravam garrafas vazias. O chão estava coberto de lama, fuligem e erva do pântano. Ouvimos alguma coisa a rastejar junto à parede.

- São provavelmente ratazanas - explicou Paul -, ou pelo menos ratos-do-campo. Se calhar até é um guaxinim.

-           Grandpêre! - gritei.

Fomos até às traseiras procurar e depois subimos as escadas. Penso que o esforço que o grandpêre necessitava fazer para subir aquelas escadas fora o que poupara essa parte da casa dos mesmos maus tratos da deterioração infligida na parte de baixo. A sala do tear não mudara muito, e o mesmo se passava com o meu antigo quarto ou o da grandmére Catherine, excepto que tudo o que poderia ser aberto e vasculhado já o fora. O grandpêre chegara até a arrancar algumas tábuas da parede.

- Onde poderá estar ele? - pensei em voz alta.

Paul encolheu os ombros.

- Talvez lá em baixo, numa das tascas, a implorar que lhe dêem uma bebida - disse, mas, quando voltámos a descer as escadas, ouvimos os gritos estridentes do grandpêre Jack vindos das traseiras. Fomos a correr para lá e vimo-lo nu mas coberto de lama, agitando um saco de serapilheira por cima da cabeça e a ganir como um cão que persegue a sua presa.

- Espera aí - aconselhou-me Paul. - Jack - Chamou.

-           Jack Landry!

O grandpêre parou de agitar o saco e tentou ver-nos por entre a escuridão.

- Quem está aí? Ladrões, gatunos, chispem daqui!

- Não somos ladrões. É o Paul Tate.

- Tate? Tu vai-te embora, tás a ouvir? Não te vou dar nada. Vai-te embora. Este tesouro é meu. Fui eu que o ganhei, fui eu que o encontrei. Cavei e cavei até o encontrar, tás a ouvir? Para trás, se não, atiro-te uma pedra para cima. Para trás! gritou de novo, mas ele próprio é que recuou.

- Grandpêre! - gritei. - Sou eu, a Ruby. Voltei para casa.

- Quem? Quem está aí?

- É a Ruby - repeti, dando um passo em frente.

- Ruby? Não. A culpa não é minha. Não. Nós precisávamos do dinheiro. Não me ponham a culpa em cima. Não me comeces a culpar. Catherine, tu não me faças sentir culpado! - berrou. Depois, agarrando o saco de serapilheira com toda a força junto ao peito, desatou a correr em direcção ao canal.

- Grandpêre!

- Deixa-o ir, Ruby. Ele ficou maluco por causa de todo aquele uísque de má qualidade.

Ouvimo-lo a gritar mais uma vez e depois um chapão na água.

- Paul, ele vai afogar-se!

Paul ficou a pensar por um momento.

- Dá-me a lanterna - pediu, partindo em seguida no encalço do grandpére. Ouvi mais barulho de chapinhar e gritos.

 

- Jack! - gritou Paul.

- Não, é meu. É meu! - retorquiu o grandpêre. Ouviu-se mais barulho na água e depois tudo ficou silencioso.

- Paul? - Aguardei um pouco e depois enfiei-me pela escuridão fora, afundando-me na macia erva do pântano. Corri em direcção à luz e dei de caras com Paul a olhar para a água.

- Onde está ele? - perguntei num sussurro.

- Não sei, eu... - Olhou de soslaio e depois apontou.

- Grandpére! - berrei.

O corpo do grandpêre Jack parecia um grosso tronco a flutuar. Correu de encontro a algumas rochas para a seguir ser apanhado pela corrente, prosseguindo até ficar encalhado em algumas plantas aquáticas.

- É melhor irmos pedir ajuda - sugeriu Paul. - Anda.

Passado pouco mais de uma hora, os bombeiros retiraram o corpo do grandpêre da água. Agarrava ainda o saco de serapilheira que, em vez de um tesouro escondido, estava repleto de velhas latas de conserva.

 

Seria possível um pior regresso a casa? Apesar das coisas horríveis que o grandpêre Jack fizera e de se ter tornado uma criatura patética, não conseguia deixar de o recordar dos tempos em que eu era criança. Também ele tivera os seus momentos de doçura. Lembrava-me de ir ter com ele à sua cabana do pântano e de ele falar sobre o bayou como se fosse o seu melhor amigo. Chegara até a tornar-se uma lenda. Nunca houvera melhor caçador de armadilha. Sabia ler o pântano, sabia quando as águas estavam ora a subir ora a descer, quando nadava o sargo e, mais importante ainda, onde dormiam os crocodilos e se aninhavam as cobras.

Além disso, dava-lhe prazer conversar acerca dos seus antepassados, dos salafrários que trouxeram o inferno para o Mississipi, os famosos jogadores e os zingadores das barcaças. A grandmére Catherine dizia que ele extraía a maior parte dessas histórias da sua própria imaginação, mas a mim pouco me importava se era tudo verdade ou não. Bastava-me a maneira como ele contava as histórias. Adorava quando o seu olhar se perdia nos líquenes, fumando o seu cachimbo de espiga de milho enquanto prosseguia a narração, só parando ocasionalmente para dar um trago no cântaro. Para beber arranjava sempre uma desculpa. Ou era porque precisava de limpar a garganta das porcarias que esvoaçavam pelo ar do pântano, ou porque tinha de dar cabo de uma constipação. às vezes era simplesmente para manter o estômago quente.

Apesar da separação entre a grandmére Catherine e o grandpére Jack, após ele ter feito um contrato de venda de Gisselle à família Dumas, pressenti que outrora, há muito tempo atrás, eles teriam estado verdadeiramente apaixonados. Até mesmo a grandmére, durante um dos seus momentos de tranquilidade, admitira que ele fora um belo e viril rapaz, a galanteá-la com os seus olhos verde-esmeralda e com a pele bronzeada do sol. Ele fora também um bom dançarino, fazendo melhor figura do que qualquer outro num fais dodo.

 

Mas o tempo tem uma forma só sua de trazer á superficie o veneno que temos dentro de nós. A maldade que se aninhara no coração do grandpére Jack saiu cá para fora e mudou-o ou, como a grandmêre Catherine gostava de dizer, transformou-o no que ele sempre fora: um velhaco irresponsável que pertencia à família das coisas que escorregam e rastejam, tal como as cobras.

Talvez ele se tenha voltado para o seu uísque ordinário como forma de negar o que era ou a imagem que via reflectida quando na sua canoa se inclinava para mirar a água. Fosse como fosse, os diabos dentro dele levaram a sua avante e por fim puxaram-no para baixo, para o mais fundo das águas, que ele outrora amara e celebrara, se não mesmo venerara. O bayou, sobre o qual ele construíra a sua vida, reclamara finalmente essa mesma vida.

Apesar das súplicas de Paul, decidi ficar na cabana. Pensei que, se eu não me obrigasse a permanecer lá na primeira noite, encontraria sempre uma desculpa para as noites seguintes. Fiz a minha antiga cama tão confortável como me era possível, depois de todos terem partido e de me ter despedido de Paul, prometendo aguardar o seu regresso na manhã seguinte. Fui-me deitar e depressa adormeci graças ao cansaço que carregava no corpo.

Não demorou mais do que uma hora depois do nascer do Sol para que todas as amigas da grandmêre soubessem que eu regressara. Para elas, o objectivo da minha vinda era tomar conta do grandpêre Jack. Levantei-me cedo e pus-me a limpar a cabana, começando pela cozinha. Havia pouco para comer; no entanto, antes de ter passado uma hora, as antigas amigas da grandmêre começaram a chegar, cada uma trazendo-me qualquer coisa. Ficaram completamente chocadas com o estado da cabana, claro está. Nenhuma delas voltara a entrar ali depois da morte da grandmêre e da minha partida. Se uma pessoa estivesse com dificuldades, as mulheres cajuns prontificavam-se imediatamente a ajudar o próximo, como se fizéssemos parte de uma só família. Quando, de repente, me dei conta, estavam todas a esfregar o chão e as paredes, a sacudir os tapetes, a limpar o pó á mobília e a lavar as janelas. Lágrimas de alegria encheram-me os olhos. Ninguém me interrogou sobre onde estivera ou o que fizera. Eu estava de volta e precisava de ajuda delas, era só isso que interessava. Agora, sim, senti que finalmente regressara à minha casa.

Mais tarde, apareceu Paul, cheio de sacos que os pais dele tinham mandado, com coisas que ele sabia que eu iria necessitar. Com um martelo e alguns pregos, arranjou todas as tábuas soltas que encontrou na cabana. Depois pegou numa pá e começou a encher as dúzias e dúzias de buracos que o grandpére Jack cavara à procura do tesouro que, na sua opinião, a grandmêre Catherine escondera. Reparei como as mulheres observavam Paul a trabalhar e falavam baixinho umas com as outras, sorrindo na minha direcção. Se elas soubessem a verdade, pensei, se elas soubessem... Mas ainda havia segredos que precisavam de ser trancados nos nossos corações, ainda havia pessoas que amávamos e que por essa razão tínhamos de proteger.

O funeral do grandpére Jack foi rápido e simples. O padre Rush aconselhou-me a organizá-lo o mais brevemente possível.

- Estou certo de que não queres atrair pessoas da espécie do Jack Landry para tua casa, Ruby. Sabes bem que essa gente está só à espera de uma desculpa para beber e causar distúrbios. O melhor é deixá-lo descansar em paz e rezar em nome dele sozinha.

- Pode dizer uma missa por ele, padre? - perguntei.

 

- Assim faremos. O bom Senhor tem compaixão suficiente para perdoar até a uma alma perdida como o Jack Landry e, seja como for, não nos cabe a nós julgar - respondeu.

Depois do enterro, as amigas da grandmére Catherine regressaram à minha casa e só agora começavam a fazer perguntas sobre o meu paradeiro depois da morte da grandmêre. Eu contei-lhes que ficara a viver com familiares em Nova Orleães, mas, que, no entanto, tivera muitas saudades do bayou. Não era mentira e chegava para lhes satisfazer a curiosidade.

Paul andou á volta do terreno e da cabana, arranjando tudo o que podia, enquanto as mulheres ficavam sentadas a conversar até à noite. Depois de elas se retirarem, Paul ainda permaneceu mais um pouco, o que ainda instigava mais a curiosidade das amigas da grandmére.

- Sabes o que elas pensam, não sabes? - perguntou-me Paul, quando ficámos finalmente sozinhos. - Que tu voltaste para ficar comigo.

-Eu sei.

- O que vais fazer quando se começar a perceber?

- Ainda não sei - respondi.

- A coisa mais fácil seria casares comigo - disse com firmeza, e nos seus olhos azuis vi reflectir-se a esperança.

- Oh, Paul, tu sabes que isso nunca poderá acontecer.

- Porque não? A única coisa que não podemos é ter filhos nossos, mas também já não precisamos. Tu tens o nosso bebé no teu forno - disse.

- Paul, não deves sequer pensar numa coisa dessas. Além disso, o teu pai.

- O meu pai não tem nada a dizer - ripostou Paul, zangado. Já não me lembrava de quando fora a última vez que o vira tão aborrecido e sombrio. - Se dissesse alguma coisa, teria também de confessar ao mundo os pecados que cometeu. Eu dava-te uma boa vida, Ruby. Juro que sim. Vou ser um homem

rico e tenho um bom bocado de terra onde vou construir a minha casa. Se calhar não vai ser tão chique como a casa onde viveste em Nova Orleães, mas...

- Oh, não são casas chiques e ricas o que eu quero, Paul. Já antes te disse uma vez que devias tentar arranjar uma mulher

com quem possas constituir família. Tu mereces ter a tua própria família.

- Tu és a minha família, Ruby. Sempre foste a minha família.

Virei a cara para que ele não visse as lágrimas que brotavam dos meus olhos. Não o queria magoar.

- Não me podes amar sem ter filhos comigo? - perguntou. Mais parecia uma súplica.

- Paul, não é só isso...

- Mas tu amas-me, não amas?

- Eu amo-te, Paul, mas nunca mais pensei em nós da maneira que tu estás a pensar, desde... desde que descobrimos a verdade sobre nós.

- Mas podes voltar a amar-me se pensares em nós de outra maneira - disse esperançosamente. - Estás de volta e...

Abanei a cabeça.

- É mais do que isso, não é?

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.

 

- Ainda amas esse Beau Andreas, apesar de ele te ter engravidado e de seguida deixado, não é? Não é? - exigiu saber.

- Sim, Paul, acho que sim.

Observou-me durante um momento e suspirou.

- Bem, isso não muda nada. Eu ficarei sempre à tua espera - disse com firmeza.

- Paul, não faças com que eu me arrependa de ter voltado.

- Claro que não - afirmou. - Bem, é melhor eu ir para casa - continuou, encaminhando-se para a porta. Parou e voltou a olhar para mim. - Sabes o que as pessoas vão pensar, de uma maneira ou de outra, não sabes, Ruby?

-Oquê?

- Que o bebé é meu - disse.

- Direi a verdade quando for necessário - respondi.

- Não vão acreditar em ti - insistiu. - E como o Rhett Butler disse em E tudo o vento levou: "Frankly, my dea,; I don 't give a damn."

Desatou a rir-se e saiu, deixando-me mais confusa do que nunca e ao mesmo tempo assustada perante o que o futuro me reservava.

Consegui sentir-me de novo em casa mais depressa do que calculara. No espaço de uma semana, já retomara o trabalho na sala do tear lá em cima, tecendo retalhos de algodão em cobertores para vender nas bancas junto á estrada. Cosi folhas de palmeira em chapéus e fiz cestos de vime. Não era tão boa como a grandmêre Catherine a cozinhar gumbo; no entanto, não desisti e fiz um razoavelmente bom para vender ao almoço. Trabalhava à noite e pela manhã já estava lá fora a montar a banca. De vez em quando pensava em pintar; porém, por enquanto, não tinha tempo livre. Paul foi o primeiro a chamar-me a atenção para isso.

- Andas a trabalhar tanto para poderes comer e para sobreviver que pouco tempo tens para desenvolver o teu talento, Ruby, e isso é um pecado - disse.

Não respondi porque me apercebi onde queria chegar.

- Juntos podíamos ter uma vida boa, Ruby. Serias de novo uma mulher com meios, com a possibilidade de fazer as coisas que ambicionas. Teríamos uma ama para o bebé e...

- Paul, não comeces - implorei. Os meus lábios tremiam e ele rapidamente mudou de assunto, porque se havia uma coisa que Paul jamais me faria era chorar, pôr-me triste.

As semanas passaram a meses, e depressa senti como se jamais tivesse partido. à noite, sentava-me no alpendre a observar os carros que passavam ocasionalmente ou a olhar a Lua e as estrelas, enquanto esperava que Paul chegasse. Por vezes, ele trazia a sua harmónica e tocava algumas músicas. Se algo soava demasiado melancólico, rapidamente passava à frente e tocava uma música mais alegre, dançando e fazendo-me rir ao mesmo tempo que saíam as notas.

Muitas vezes dava longos passeios pelo canal, exactamente como fazia em criança. Em noites de lua cheia, as teias de aranha dos pântanos reluziam, os mochos piavam e os crocodilos deslizavam graciosamente pelas águas sedosas. De vez em quando, passava perto de um que dormia na margem e contornava-o cuidadosamente. Sabia que ele pressentia a minha presença, mas mal abria os olhos.

 

Foi só a partir do início do meu quinto mês que se começou a notar a minha gravidez. Ninguém disse nada; contudo os olhos de todos demoravam-se um pouco mais na minha barriga

e sabia que o meu estado começara a ser o tema mais frequente, das conversas quotidianas. Por fim, recebi a visita de uma delegação de mulheres liderada por Mrs. Thibodeau e Mrs. Livau duas antigas amigas da grandmêre Catherine. Aparentemente Mrs. Livaudis fora escolhida como porta-voz.

- Bem, Ruby, viemos aqui porque tu já não tens ninguem que possa falar por ti - começou.

- Eu posso falar por mim própria sempre que sentir necessidade.

- Talvez possas. Sendo neta da Catherine Landrv, tenho a certeza que podes, mas não custa nada teres algumas de nós, velhas galinhas, a defender o teu poleiro - continuou, acenando às outras, que anuíram com um ar decidido.

- E com quem é suposto irmos falar, Mistress Livaudis?

- Iremos falar com o homem responsável - respondeu, fazendo-me um sinal. - Com esse mesmo. Todas nós julgamos saber quem é esse homem e, além do mais, ele pertence a uma família bastante abastada daqui.

- Peço desculpa a todas - intervim. - Mas o rapaz que vocês estão a pensar não é pai do meu filho.

As bocas escancararam-se e os olhos arregalaram-se.

- Então, quem é? - perguntou Mr. Livaudis. - Ou não podes dizer?

- É alguém que não vive aqui, Mistress Livaudis. É uma pessoa de Nova Orleães.

As mulheres entreolharam-se, com uma expressão de cepticismo na cara.

- Não estás a fazer bem nenhum, nem a ti nem ao bebé, livrando o pai das suas responsabilidades, Ruby - ralhou Mrs. Thibodeau. - A tua grandmêre nunca consentiria que fizesses uma coisa dessas, isso posso eu assegurar.

- Eu sei que não - disse, sorrindo ao imaginar uma prelecção similar da grandmêre Catherine.

- Então, deixa-nos ir contigo e ajudar-te a fazer com que o rapaz assuma a sua parte - propôs rapidamente Mr. Livaudis. - Se ele tiver nem que seja um pingo de decência, fará a coisa certa.

- Estou a dizer-vos a verdade. Ele não vive aqui - respondi o mais sinceramente que podia, mas elas abanaram a cabeça e olharam-me com piedade.

- Só queremos que saibas, Ruby, que, quando chegar a altura de fazer o que está certo, nós estaremos contigo - disse Mrs. Thibodeau. - Queres um médico ou um traiteur? Há um a viver junto a Morgan City, que poderá vir ver-te.

A ideia de ir a um outro traiteur que não a grandmère Catherine incomodava-me.

- Irei ver o médico - disse-lhes.

- As contas deviam ser pagas por quem tu sabes - comentou Mrs. Livaudis, lançando um olhar às outras, que acenaram em conjunto com um ar firme.

- Eu fico bem - garanti-lhes.

 

Saíram, ainda convencidas de que o que elas acreditavam era a verdade. Paul tivera razão, claro. Ele conhecia a nossa gente melhor do que eu. Mas agora era este o meu fardo, algo com que eu teria de viver e lidar à minha maneira. Claro que eu pensava em Beau e imaginava o que ouvira falar de mim, se por acaso ouvira alguma coisa.

Tal como se tivesse escutado os meus pensamentos, Gisselle mandou-me uma carta através de Paul.

- Isto chegou hoje á tarde - disse-me, quando trouxe a carta. Eu estava nessa altura na cozinha a preparar um gumbo de camarão. Limpei as mãos e sentei-me.

- A minha irmã escreveu-me? - sorri, surpreendida, e abri o sobrescrito. Paul permaneceu junto á porta, observando-me enquanto lia.

 

Querida Ruby,

Aposto que nunca sonhaste que irias receber uma carta minha. A coisa mais comprida que eu alguma vez escrevi foi aquele estúpido exercício de Inglês acerca dos antigos poetas ingleses e mesmo isso metade foi redigido pela Vicki.

Seja como for, encontrei as antigas cartas que o Paul te escreveu, quando a Daphne me mandou ir ao teu quarto escolher o que quisesse antes de dar o resto aos mais necessitados. Ela pediu à Martha Woods para tirar tudo do teu quarto e fechá-lo. Ela ainda disse que, pela parte que lhe tocava, tu nunca exististe. Mas é claro que ela ainda tem o problema do testamento pela frente. Uma noite destas, ouvi a Daphne e o Bruce a falarem disso e ele sugeriu que ela te retirasse do testamento. Iam ser precisas imensas manobras legais e era capaz de ser prejudicial aos seus próprios interesses, por isso, por enquanto, ainda és uma Dumas.

Imagino que estás a pensar porque estou eu a escrever de Nova Orleães. Adivinhas? Pois é, a Daphne deu a mão á palmatória e deixou-me voltar para casa e frequentar a escola daqui. Sabes porquê? Espalhou-se a história da gravidez pela escola. Nem imagino como... Seja como for, tornou-se uma vergonha, e a Daphne não conseguiu aguentar isso, especialmente quando eu lhe telefonava todas as noites a contar o que as raparigas diziam, como os professores olhavam para mim e o que Mistress Ironwood pensava. Desta forma, ela deu o braço a torcer e deixou-me voltar para casa, onde o teu segredo pode ser bem mantido.

A Daphne disse a toda a gente que fugiste para o bayou para viver com os teus cajuns, porque tinhas muitas saudades deles. É claro que as pessoas ficam a pensar o que se passou com o Beau.

"Imagino que estás a pensar o que aconteceu com ele, hen?", escreveu ao fundo da página, dando a entender que não iria dizer-me mais nada.

Só podia ser da Gisselle, pensei, a provocar-me mesmo numa carta. Voltei a página e encontrei o resto.

 

O Beau ainda está em França, onde está a dar-se muito bem. Monsieur e Madame Andreas andam a contar a toda a gente acerca das suas proezas e de como ele também lá ficará a estudar na universidade. E parece que ele anda a sair com uma francesa muito rica, cuja linhagem remonta a Louis Napoleon.

 

Recebi uma carta dele no mês passado, onde me implorou para lhe contar seja o que for acerca de ti. Escrevi-lhe hoje a dizer que nada sabia sobre ti. Disse-lhe que tentara encontrar-te, escrevendo para um dos teus familiares cajuns, mas que ouvira que era provável teres casado numa daquelas cerimónias matrimoniais cajuns numa jangada no pântano com cobras e aranhas aos teus pés.

É verdade, esqueci-me de te dizer. Antes de sair de Greenwood, recebi uma visita no dormitório. Aposto que sabes quem foi: o Louis. Ele foi muito simpático e é muito bonito. Ficou com o coração despedaçado quando soube que estavas a espera de bebé e que fugiras para viver nos pântanos com os teus cajuns. Ele compôs uma página de música que gostaria de te enviar, por isso prometi que, se alguma vez descobrisse para onde te poderia escrever, lhe diria.

Mas as promessas foram feitas para não se cumprir, não é?

Estou só a brincar. Não sei se virei a saber algo de ti ou se até vais receber esta carta. Espero que sim e que me respondas. É mais ou menos porreiro ter uma irmã famosa. Estou a divertir-me imenso a inventar diferentes histórias sobre ti.

Porque não fizeste o que a Daphne queria e te livraste do bebé? Já tomaste consciência de tudo aquilo de que abdicaste?

Da tua querida irmã gémea, Gisselle

 

- Más noticias? - perguntou Paul, quando pus a carta de lado e me encostei atrás. Lágrimas enchiam-me os olhos, mas sorri.

- Sabes como é a minha irmã... está sempre a tentar magoar-me - disse, por entre as lágrimas.

-Ruby...

- Ela inventa coisas. Fica ali sentada a pensar... "O que poderá magoar mais a Ruby?" E depois escreve tudo nesta carta. É tudo. É isso que ela está a fazer. E só isso.

As minhas lágrimas começaram a descer mais rapidamente. Paul veio ao meu encontro e abraçou-me.

- Oh, Ruby, minha Ruby. Não chores, por favor.

- Está tudo bem - disse, recuperando o fôlego. - Vai ficar tudo bem.

- Ela escreveu qualquer coisa sobre ele, não foi? - perguntou Paul oportunamente. Fiz sinal que sim. - Talvez não seja mentira, Ruby.

- Eu sei.

- Estarei sempre do teu lado.

Olhei para ele e percebi que o seu coração estava repleto de amor e compaixão por mim. Provavelmente nunca iria encontrar ninguém assim tão devotado. Porém, não conseguia aceitar a proposta que me fazia. Não seria justo para com ele.

- Eu fico bem. Obrigada, Paul - respondi, limpando as lágrimas dos olhos.

- Uma rapariga tão nova como tu, aqui sozinha e, ainda por cima, grávida - murmurou. - Preocupa-me.

- Sabes que tudo vai correr bem - afirmei. Tinha-me levado ao médico duas vezes, o que ainda contribuíra mais para fomentar o rumor de que ele era o pai da criança. Na nossa pequena comunidade, pouco demorava para que as pessoas soubessem das novidades; no entanto, ele não se importava, mesmo depois de eu lhe dizer o que as amigas da grandmère Catherine acreditavam.

 

Durante a segunda metade do meu sétimo mês e a primeira metade do oitavo, Paul vinha a minha casa todos os dias, chegando mesmo a aparecer mais do que uma vez. Não foi antes do oitavo mês que a minha barriga começou a ficar mesmo grande e o meu andar pesado. Nunca fiz qualquer tipo de queixa a Paul; porém, algumas manhãs ele aparecia sem eu dar pela sua presença e apanhava-me a gemer e a lamentar-me, com as mãos atrás das costas. Nessa altura, sentia-me como um pato, porque gingava mais do que andava.

Quando o médico me disse que não tinha a certeza absoluta de quando daria eu á luz, mas que seria algures na semana seguinte, Paul decidiu que iria passar todas as noites comigo. Durante o dia, era-me fácil contactá-lo ou a outra pessoa, mas ele receava pelo que poderia acontecer à noite.

Ao princípio de uma tarde no início do meu nono mês, Paul apareceu quase em estado de choque.

- Estão todos a dizer que vamos ser atingidos por um furacão - declarou. - Quero que venhas para minha casa.

- Oh, não, Paul. Não posso fazer isso.

- Este sítio não é seguro - avisou. - Olha para o céu. Apontou para o pôr do Sol, cujo tom baço e vermelho se devia

a uma fina camada de nuvens. - Quase que o podemos cheirar

-           acrescentou. O ar tornara-se quente e peganhento e a pequena brisa que acompanhara o dia desaparecera.

No entanto, eu não me sentia bem em ir para casa dele e ficar com a sua família. Estava demasiado envergonhada e receosa dos olhos do pai e da mãe. Por certo, eles estavam ressentidos por ter regressado e criado todos aqueles boatos.

- Fico bem aqui - disse. - Já antes passámos por outras tempestades.

- És tão teimosa como o teu grandpêre - disse Paul. Estava zangado comigo; porém, eu não dei o braço a torcer. Em vez disso, fui para dentro e preparei qualquer coisa para jantarmos. Paul foi para o seu carro para ouvir a rádio. Os meteorologistas faziam previsões medonhas. Voltou para dentro de casa e começou a atar tudo o que podia. Eu preparei duas taças de gumbo, mas, mal nos sentámos, o vento começou a uivar com grande ferocidade. Paul olhou para as traseiras da casa, em direcção aos canais, e suspirou. Uma nuvem negra de tempestade apareceu rapidamente e via-se que as chuvas torrenciais se aproximavam.

- Aí vem ela - anunciou Paul,. Poucos segundos mais tarde, a chuva e o vento desabaram. água caía pelo telhado abaixo penetrando pelas várias frechas da cabana. O vento chicoteava nas tábuas soltas. Ouvimos o som de objectos a serem levantados e atirados para longe, alguns batendo contra a casa, com tanta força que mais parecia que iam deitar a estrutura abaixo. Gritei e retirei-me para a sala de estar, aninhando-me no sofá. Paul correu de um lado para o outro, fechando e amarrando todas as aberturas que conseguia; porém o vento entrava pela casa dentro, fazendo voar coisas das prateleiras e das bancadas e chegando mesmo a virar uma cadeira de pernas para o ar. Pensei que o telhado de zinco iria levantar-se e que em breves instantes estaríamos expostos às garras daquela violenta tempestade.

- Devíamos ter saído daqui! - gritou Paul. Eu, por meu lado, soluçava, agarrando-me ao sofá com toda a força que possuía. Paul desistiu de tentar amarrar fosse o que fosse, vindo antes para meu lado e abraçando-me. Fícámos sentados bem juntos, agarrados um ao outro, ouvindo o vento uivante e tempestuoso a arrancar todas as árvores pela raiz.

 

De repente, tão depressa como começara, a tempestade parou. Uma calma mortífera desceu sobre o bayou. A escuridão dissipou-se. Recuperei o fôlego e Paul levantou-se para inventariar os estragos. Ambos espreitámos pela janela e abanámos a cabeça, perplexos perante a visão das árvores que tinham sido arrancadas. O mundo parecia virado do avesso.

E depois os olhos de Paul arregalaram-se quando a pequena área de céu azul por cima de nós começou de novo a desaparecer.

- Era apenas o centro da tempestade - declarou. - Para trás, para trás...

A cauda da tempestade atingiu-nos, agitando-se e urrando como uma furiosa criatura gigante. Desta vez a casa chegou até a abanar. As paredes começaram a abrir fendas e as janelas quebravam-se em estilhaços, com farpas de vidro a saltar para todos os lados.

- Ruby, temos de ir para debaixo da casa! - berrou Paul. A ideia de sair de casa aterrorizava-me. Soltei-me dos seus braços e retirei-me para a cozinha. Mas pus sem querer o pé numa poça que formara por debaixo duma goteira do tecto e escorreguei. Caí com a cara para a frente, protegendo-me a tempo de evitar bater com o nariz no chão. No entanto, bati com a barriga. A dor era lancinante. Virei-me de costas e não consegui parar de gritar. Paul correu para se colocar a meu lado, tentando erguer-me.

- Não consigo, Paul. Não consigo... - protestei. Sentia as pernas como se fossem chumbo, demasiado pesadas para se dobrarem ou se porem de pé. Ele tentou levantar-me, mas eu tornara-me um peso morto, demasiado corpulento para as suas capacidades, e também ele começara a escorregar no chão molhado. De repente, senti a dor mais aguda da minha vida. Era como se alguém tivesse começado com uma faca a cortar do meu umbigo para baixo. Apertei com força o ombro de Paul.

- Paul! O bebé!

A sua cara ficou aterrorizada. Virou-se em direcção à porta como se ainda considerasse a hipótese de pedir ajuda. Dando-se conta de como isso era impossível, voltou-se de novo para mim e simultaneamente rebentaram-me as águas.

- O bebé está a sair!

O vento continuava a cirandar pela casa. O telhado de zinco gemia e parte dele já se tinha soltado, batendo de encontro ao esteio.

- Tens de me ajudar, Paul! Já não há tempo!

Tinha a certeza de que iria desmaiar ou até mesmo morrer no chão da cabana. Pensava como poderia alguém resistir a tanta agonia e sobreviver. Sentia contracções dolorosas e tensas. Num movimento contínuo, as contracções começaram a acelerar até que senti o bebé a mexer. Paul ajoelhou-se à minha frente, com os olhos tão abertos que julguei que fossem rebentar. Abanou a cabeça em sinal de desespero.

O esforço foi tal que deixei de ouvir a tempestade ou de ter consciência de que ainda não abrandara. Sentia-me naufragar entre um estado consciente e inconsciente, até que por fim dei um valente empurrão e Paul exclamou de alegria. O bebé estava ao seu colo.

- É uma menina! - gritou. - É uma menina!

 

O médico explicara-me tudo acerca do cordão umbilical. Dei instruções a Paul e desta forma foi ele que o cortou e atou. Depois a minha bebé começou a gemer. Ele colocou-a nos meus braços. Ainda me encontrava deitada no chão, e a tempestade, apesar de mais calma, continuava a rodear-nos, com a chuva a cair desenfreadamente.

Paul trouxe-me algumas almofadas e recostei-me, olhando para o pequeno rosto que se virava para mim, já á procura de conforto, segurança e amor.

- Ela é linda! - disse Paul.

A chuva torrencial transformou-se num pequeno aguaceiro, o pequeno aguaceiro deu lugar a uns pingos fracos e depois os raios do sol-poente atravessaram as nuvens e entraram pela janela, trazendo uma luz quente para cima de mim e da minha bebé. Cobri-lhe o rosto com beijos.

Tínhamos sobrevivido. Iríamos continuar juntas.

 

Estava com as mãos por detrás da cabeça, um rebento de relva na boca e elogiava-me pela forma como eu tomava conta da menina e também pelas deliciosas refeições. Eu sabia o que ele queria, mas fingia que não.

Uma tarde, algumas semanas após o nascimento de Pearl. Paul chegou com outra carta de Gisselle. Esta era muito mais curta, porém mais dolorosa.

 

Por incrível que pareça, a frágil cabana da grandmêre Catherine sobreviveu ao que toda a gente no bayou apelidou da pior tempestade as últimas décadas. Muitas outras não tinham tido tanta sorte e as suas casas foram barbaramente arrastadas com as chuvas torrenciais e as rajadas de vento. As estradas estavam cortadas pelos troncos e pelos ramos das árvores que foram arrancados. Parecia que iria demorar dias, se não mesmo semanas, para que as coisas regressassem à normalidade.

Mal se espalhou a notícia de que o meu bebé tinha nascido, recebi visitas das amigas da grandmêre Catherine e cada uma delas trouxe algo de que necessitava.

- Como se chama a menina? - perguntou Mrs. Livaudis.

- Pearl - respondi. E depois expliquei-lhes que tivera outrora um sonho com o meu bebé e que nesse sonho o seu rosto assemelhava-se à cor da pérola. Todas elas acenaram, de olhos fixos no bebé, com ar de quem compreendia. Ao fim ao cabo, eu era a neta de Catherine Landry. Estava no meu destino acontecerem-me coisas místicas.

Paul vinha a minha casa regularmente, chegando todos os dias com os braços cheios de prendas para o bebé, e também para mim. No dia seguinte à tempestade, trouxe consigo alguns dos empregados da fábrica e começaram a consertar tudo o que podiam; Foi nessa altura que as mulheres apareceram.

- É muito simpático que ele faça todas estas coisas por ti - disse Mrs. Thibodeau -, mas ele deveria tomar a seu cargo

responsabilidades maiores - sussurrou. Não valia a pena protestar e explicar tudo de novo, apesar de eu sentir pena de Paul e da sua família. Por muito mal que isso tudo parecesse, ele recusava-se a afastar-se de mim.

à noite, a seguir ao jantar, eu sentava-me na antiga cadeira de balouço da grandmêre Catherine com Pearl aos meus braços e embalava-a até adormecer. Paul deitava-se no chão da varanda.

Querida Ruby,

Não me respondeste, mas o Paul sim. Disse à Daphne onde estavas e que agora já tinhas um bebé. Ela não quis saber de uma só palavra. Estava prestes a contar ao Beau mal o visse, mas acabei de saber que ele não vai voltar da Europa. Vai ficar lá a estudar numa universidade para se formar como médico. E, como já tinha escrito antes, parece que ele está apaixonado por uma filha de um duque ou de um conde qualquer que vive num castelo a sério.

A Daphne e o Bruce anunciaram a data de casamento. Não era espectacular se tu aparecesses com o teu bebé nos braços? Vou-te mantendo informada de todos os pormenores. Sei que estás morta por saber tudo o que se passa por aqui, apesar de fingires que não te importas.

Porque não me escreves? Posso depois ler a tua carta à Daphne. Acabei de me lembrar de uma coisa divertida:

não apenas sou eu tia, como ela é tecnicamente avó. Hei-de lembrar-lhe isto sempre que ela for desagradável comigo. Obrigada. Finalmente fizeste qualquer coisa da qual eu posso tirar algum proveito.

Estou só a brincar.

Fico a pensar se nos voltaremos a ver.

A tua querida irmã gémea, Gisselle

 

- Porque lhe escreveste, Paul? - perguntei-lhe.

- Pensei que a tua família deveria saber o que se passa contigo e...

- E querias que o Beau soubesse, não era? - continuei. Ele encolheu os ombros. - Já não interessa - disse num tom de voz derrotado.

- Então é mesmo verdade que vais ficar aqui? Vais ficar cá?

- Para onde poderia ir? Para onde poderíamos ir, eu e a Pearl?

- Então deixa que eu construa um lar para ti - implorou.

- Não sei, Paul - respondi. - Deixa-me pensar sobre Isso

- óptimo - disse, encorajado pelo facto de eu não ter

imediatamente dito que não.

Naquela noite, depois de ele partir, sentei-me à varanda e fiquei a ouvir o mocho. Pearl estava a dormir lá dentro, por enquanto aconchegada e segura. Mas eu tinha percorrido um longo caminho para fazer um círculo inteiro e sabia que o mundo não era um local seguro onde se pudesse ficar aninhado para sempre. Era duro e frio, cruel e repleto de trágicas possibilidades. Era bom ter alguém que tomasse conta de nós, que nos protegesse, que nos mantivesse aconchegados e seguros. Pensei se era possível considerar esse desejo um pecado, se não para mim, pelo menos para a minha filha.

- Grandmêre, - murmurei. - Dá-me um sinal. Ajuda-me a tomar as decisões acertadas, a percorrer agora o caminho certo.

O mocho parou de piar quando um falcão do pântano desceu rapidamente e pousou em frente da casa. Sacudiu as asas por alguns momentos e depois virou-se na minha direcção. à luz do luar conseguia ver os seus olhos redondos e amarelos fixos no meu rosto. Abriu as asas como que para me cumprimentar e depois, tão rápido como surgira, levantou voo em direcção à escuridão onde, eu sabia, se iria empoleirar noutro ramo para continuar a observar a casa, a observar-me a mim e a observar o meu bebé.

E senti no meu coração que a grandmêre Catherine estava ali, murmurando na brisa, enchendo-me de esperança. Eu iria tomar as decisões certas.

 

                                                                                            V. C. Andrews

 

                      

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