Biblio "SEBO"
CAPÍTULO 16
Nevin agarrou no postal que Lynley segurava entre os dedos. Após uma rápida olhadela, colocou-o cuidadosamente sobre a mesa de vidro - impecavelmente limpa - que estava entre o sofá amarelo-claro e o cadeirão do mesmo tom, formando ambos um ângulo recto. Instalara-se no sofá e deixara o cadeirão para Lynley e Nkata. Este, no entanto, recusara-se a cooperar com o estratagema e posicionara- se junto à porta do apartamento, os braços cruzados e o corpo proclamando, de forma eloquente, que não havia fuga possível.
- É você a estudante retratada no cartão, não é verdade? - começou Lynley.
Vi foi buscar o álbum que mostrara a Havers e a Nkata na véspera e pousou-o sobre o tampo da mesa.
- Eu poso para fotografias, inspector. É essa a minha profissão e é para isso que me pagam. Não faço ideia de quem possa usar essas fotografias e para que fins e, francamente, não é algo que me interesse saber. Desde que me paguem.
- Está a querer dizer que serve apenas de modelo para serviços de natureza sexual que são disponibilizados por outras pessoas?
- É isso, precisamente, que estou a dizer.
- Estou a perceber. Nesse caso, se você não é a estudante em questão por que motivo é que o seu número de telefone aparece impresso no cartão?
Ela desviou o olhar. Era uma mulher perspicaz, relativamente bem- educada, inteligente e com facilidade de expressão, mas não fora capaz de antecipar aquele raciocínio.
- Eu não sou obrigada a falar consigo, sabe? - disse. - E não estou a fazer nada de ilegal, por isso agradeço que não se comportem como se assim fosse.
Não viera até ali, informou Lynley, com o propósito de lhe explicar minudências legais. Todavia, se de facto ela estivesse envolvida em actividades ligadas à prostituição...
- Mostre-me onde é que está escrito no cartão que alguém me paga para eu fazer seja o que for - pediu ela.
Se, tornou a dizer Lynley, ela estivesse de facto envolvida em actividades ligadas à prostituição, seria de esperar que soubesse qual a melhor conduta a adoptar. Assim sendo...
- Eu não ando a passear pelas ruas. Não ando a aliciar ninguém em locais públicos, pois não?
Assim sendo, prôsseguiu Lynley sem hesitações, seria igualmente de esperar que Miss Nevin estivesse ciente de quão imprecisas e generalizadas podiam ser as interpretações que um magistrado com pouca paciência para malabarismos linguísticos poderia dar à palavra bordel. Lançou um olhar pelo apartamento, não fosse ela não ter compreendido exactamente o alcance da sua observação.
- Bófia - disse ela, com desdém.
- Com efeito - foi a resposta afável de Lynley.
Ele e Nkata tinham vindo directamente para Fulham depois de terem saído da New Scotland Yard. Tinham encontrado Vi Nevin no momento em que ela retirava alguns sacos de compras do interior de um Alfa Romeo recentemente adquirido. Quando vira Nkata sair do Bentley, interpelara-o:
- Porque está aqui outra vez? Porque é que não anda à procura de quem matou Nikki? Oiça, eu não tenho tempo para falar consigo, tenho um compromisso dentro de quarenta e cinco minutos.
- Nesse caso, deverá desejar que saiamos antes dessa hora - dissera Lynley.
Olhara de soslaio para os dois homens, tentando perceber as suas intenções.
- Ajudem-me aqui, então - dissera, entregando-lhes dois sacos de compras bem cheios.
Retirara os produtos perecíveis de dentro dos sacos e arrumara-os num enorme frigorífico: pâté, azeitonas gregas, presunto italiano, Camembert...
- Vai dar uma festa? - perguntara Lynley. - Ou a comida fará talvez parte do... compromisso?
Vi Nevin fechara a porta do frigorífico com gestos expeditos e encaminhara-se para a sala de estar, instalando- se no sofá. E aí continuava sentada, uma figura algo anacrónica, com os seus sapatos de pele e peúgas brancas, calças de ganga com virola, camisa branca com mangas enroladas e colarinho levantado, lenço amarrado ao pescoço e um rabo-de-cavalo. Parecia uma refugiada de um filme do James Dean. Só faltava a pastilha elástica.
Todavia, não falava como uma refugiada de um filme de James Dean. Podia estar vestida como uma típica e fervorosa amante de bop, mas falava como uma mulher que ou nascera num meio social privilegiado ou se esforçava para dar a entender que assim era. A última hipótese era a mais provável, pensava Lynley enquanto a interrogava. De vez em quando, a máscara que ela usava tão cuidadosamente caía. Uma palavra aqui e ali, ou um som mal pronunciado que, inadvertidamente, traía as suas origens. Fosse como fosse, não correspondia ao que ele esperava encontrar do outro lado de um postal publicitando actividades sexuais afixado numa cabina telefónica.
- Miss Nevin - disse Lynley. - Não estou aqui para ameaçá-la ou coagi-la. Estou aqui, porque uma mulher foi assassinada, e se o seu assassínio estiver de alguma forma relacionado com a sua fonte de rendimentos...
- É sempre por aí que vocês pegam, não é? Precisamente por um dos nossos clientes. - Ela não passava de uma rameira e teve o que merecia. Muita sorte teve ela em ter durado o tempo que durou, com o tipo de vida
que levava e os tipos com quem se dava. E era a isso que vocês gostariam de pôr termo, não é? Ao tipo de vida. Por isso, não me venha agora dizer quais são, ou não, as suas intenções, no que diz respeito à minha fonte de rendimentos - olhou-o com firmeza. - Se ao menos soubessem quantos cartões de identificação são postos de lado quando um tipo mal pode esperar para baixar as calças. Posso muito bem referir alguns nomes.
- Não estou interessado nos seus clientes. O que me interessa é descobrir o assassino de Nicola Maiden.
- Que, segundo julga, é um dos clientes dela. Porque é que não quer admitir que assim é? E como acha que esses clientes vão reagir quando a bófia for bater-lhes à porta? E por acaso sabe quais vão ser as consequências para o negócio quando constar que eu estou a revelar nomes? Se é que eu sei os nomes deles, sequer. Que não sei, aliás. Tratamo-nos apenas pelo nome próprio, e isso não vai servir- vos de muito.
No outro lado da sala, Nkata tirou o bloco-notas, abriu-o e disse:
- Já nos damos por satisfeitos com os elementos que nos puder fornecer, Miss.
- Nem pense, detective. Não sou assim tão estúpida.
Lynley inclinou-se para ela.
- Então sabe como seria fácil para mim prendê-la. Qualquer polícia uniformizado que percorresse esta rua de cima abaixo de quinze em quinze minutos poderia, julgo eu, causar alguns prejuízos à privacidade dos seus clientes. Tal como uma palavrinha enviada discretamente a um ou dois tablóides eventualmente interessados em saber se alguma figura pública costuma visitá-la.
- Você não se atreveria! Eu conheço os meus direitos.
- Nenhum dos quais impossibilita a presença de jornalistas, paparazzi no encalço de alguma celebridade, desde estrelas de cinema a membros da Família Real, ou até o polícia da sua área de residência cuja missão é velar pela segurança nas ruas, para que as velhotas possam passear os seus cães tranquilamente.
- Seu nojento...
- Vivemos num mundo cruel - interrompeu Nkata, com gravidade. Ela olhou para ambos.
O telefone tocou e ela precipitou-se para atendê-lo.
- Qual é o seu desejo... - perguntou ela.
Nkata ergueu os olhos para o céu.
- Aguarde um momento, por favor - disse Vi. - Vou só consultar a minha agenda.
Folheou as páginas de uma agenda.
- Lamento muito, mas não vai ser possível. Já tenho uma marcação... percorreu a página com o dedo, dizendo: - Podia recebê-lo às quatro horas... Deseja uma sessão de quanto tempo... - ouviu e, em seguida, murmurou:
- E não é verdade que sai sempre daqui pronto para ir ter com ela? E, dizendo isto, escrevinhou qualquer coisa na agenda. Desligou, mas os seus dedos continuaram pousados no telefone, como se reflectisse por momentos, virada de costas para eles. Suspirou e disse em voz baixa, Está bem, então. Foi até à cozinha e regressou trazendo um sobrescrito que entregou a Lynley.
- É disto que estão à procura. Espero que o facto de estarem redondamente enganados não vos cause nenhum desgosto.
O sobrescrito estava aberto. Lynley retirou o que estava no interior: uma folha de papel contendo uma única mensagem formada com caracteres que pareciam ter sido recortados de revistas. DUAS CABRAS VÃO MORRER AFOGADAS NO SEU PRóPRIO VóMITO. VÃO IMPLORAR POR MESeRICóRDIA E NÃO VÃO TER MAIS NADA SENÃO SOFRIMENTO. Quando terminou de ler a mensagem, Lynley entregou-a a Nkata. O detective examinou-a e, em seguida, ergueu a cabeça.
- É igual às que foram encontradas no local.
Lynley concordou com um aceno de cabeça e colocou Vi Nevin ao corrente dos bilhetes anónimos que tinham sido deixados na cena do crime.
- Fui eu que lhos enviei - revelou ela.
Perplexo, Lynley virou o sobrescrito. Viu que estava endereçado a Vi Nevin e que tinha o carimbo de correio de Londres.
- Mas este parece ser idêntico aos que encontrámos.
- Não estou a dizer que os enviei tal como estão aí - esclareceu ela.
- Sem nome. Como uma ameaça. O que quero dizer é que me foram enviados a mim. Para esta morada. Para minha casa. Tenho-os recebido ao longo do Verão. Falava sempre neles de todas as vezes que Nikki telefonava, mas ela limitava-se a rir à gargalhada. Por isso, acabei por lhos enviar através de Terry, porque queria que ela visse com os seus próprios olhos que a situação estava a agravar-se cada vez mais e que nós duas precisávamos de tomar algumas precauções. O que - acrescentou, com amargura - Nikki não fez. Mas porque é que ela nunca ouvia ninguém, santo Deus?
Lynley tornou a pegar no bilhete, recebendo-o das mãos de Nkata. Examinou-o mais uma vez, antes de o dobrar cuidadosamente e de o guardar dentro do sobrescrito.
- Talvez seja melhor começar pelo princípio - disse.
- O princípio chama-se Shelly Platt - foi a resposta dela. Vi aproximou-se da janela que dava para a rua. Olhou para baixo, como se esperasse ver alguém.
- Éramos amigas - começou. - Era sempre Shelly e Vi, e há anos que era assim. Foi então que Nikki apareceu e eu percebi que fazia muito mais sentido se me associasse a ela. Shelly não conseguiu suportar a situação e começou a arranjar sarilhos. Eu sabia... - a voz tremeu-lhe e ela calou-se por instantes, antes de continuar. - Eu sabia que ela acabaria por fazer alguma coisa. Mas Nikki nunca acreditou em mim. Reagia a tudo aquilo sempre com uma gargalhada.
- A tudo aquilo?
- Às cartas. E aos telefonemas. Ainda nem cá estávamos há dois dias - fez um gesto na direcção do apartamento - e já Shelly tinha conseguido descobrir o número de telefone e tinha começado a telefonar. Depois começou a mandar cartas, a aparecer na rua, a roubar os cartões... - Vi dirigiu-se ao carrinho das bebidas, onde estava um balde de gelo. Levantou-o e tirou um pequeno monte de postais que estava por baixo. - Disse que ia destruir-nos. É terrivelmente ciumenta - soltou um suspiro. - É ciumenta, está tudo dito.
Os cartões mostravam os mesmos anúncios da estudante que Lynley já conhecia. Nestes, porém, o rosto da rapariga fora desfigurado pelas designações de diversas doenças sexualmente transmissíveis, rabiscadas com uma caneta de feltro de cor viva.
- Terry costumava encontrá-los durante as suas passagens pelas cabinas - disse Vi. - Era obra de Shelly. Ela só se vai dar por satisfeita quando me tiver destruído.
- Fale-nos sobre Shelly Platt - pediu Lynley.
- Era a minha empregada doméstica. Conhecemo-nos na C'est la Vie. Conhece o sítio? É uma padaria e cafetaria francesa na estação de South Kensington. Eu tinha aquilo a que se pode chamar um acordo com o chefe dos padeiros... baguetes, quiches e tartes em troca de algumas familiaridades na casa de banho dos homens. E uma manhã, lá estava Shelly, engolindo croissants de chocolate quando Alf e eu fomos para debaixo das escadas. Viu-o dar-me a comida depois sem aceitar dinheiro e ficou interessada em saber o que se passava.
- A fim de fazer chantagem consigo?
A pergunta pareceu deixar Vi sinistramente divertida.
- Ela queria saber o que tinha de fazer para ter os croissants de graça. Além disso, gostou da maneira como eu estava vestida... Mary Quant, na manhã daquele dia... e queria ter acesso a isso também.
- Às suas roupas?
- Queria a minha vida, conforme vim a descobrir.
- Compreendo. E na qualidade de sua empregada, com acesso a todas as suas coisas...
Vi riu-se. Tirou dois cubos de gelo de dentro do balde de gelo que estava no carrinho de bebidas e pegou numa lata pequena de sumo de tomate que se encontrava na prateleira mais alta. Com gestos hábeis, preparou um Bloody Mary, exibindo uma precisão e perícia feita de anos de experiência.
- Ela não era esse tipo de empregada, inspector. Era o outro género de empregada. Atendia os telefonemas dos clientes e fazia as marcações na minha agenda.
Vi mexeu a bebida com uma vareta de vidro que terminava num papagaio verde-vivo. Colocou-o, em seguida, sobre um guardanapo com gestos cuidadosos e voltou a instalar-se no sofá, pousando o copo sobre a mesa baixa antes de prosseguir com a sua história. Antes de conhecer Shelly Platt na C'est la Vie, tivera uma filipina de meia-idade que lhe marcava os encontros na agenda. Nos dias que corriam, porém, toda a gente contratava filipinas de meia-idade, por isso pensou que poderia ser uma mais-valia para ela confiar essa tarefa a uma adolescente. Depois de arranjada, Shelly até nem teria mau aspecto. E mais importante do que isso, o seu desconhecimento das regras do ofício era tal que Vi percebeu que poderia pagar-lhe uma ninharia.
- Dava-lhe cama e comida e ainda lhe pagava trinta libras por semana - disse Vi. - E, acreditem-me, era mais do que ela conseguia sacar à saída da estação de Earl's Court, que era o que ela fazia para se sustentar quando a conheci.
Viveram juntas durante quase três anos, continuou. Foi nessa altura que Vi conheceu Nikki Maiden e se apercebeu das imensas possibilidades que se abriam a ambas se abrissem um negócio juntas.
- De início mantivemos Shelly connosco. Mas ela odiava Nikki, porque com ela cá em casa, já não éramos só nós duas. A Shelly é assim, embora eu não o soubesse quando a conheci.
- É assim como?
- Ela coloca o seu ferrete numa pessoa e pensa que é dona dela. Devia tê-lo percebido da primeira vez que me contou o que se tinha passado com o namorado dela. Ela veio atrás dele de Liverpool até Londres e qúando cá chegou e descobriu que ele já não queria namorar com ela, criou uma rotina: seguia-o para todo o lado, telefonava-Lhe constantemente, não largava o apartamento dele, enviava- lhe cartas, dava-lhe presentes. Só que eu não sabia que aquela era, de facto, a rotina dela, percebem? Julguei que era uma situação isolada, a forma como ela tinha reagido ao fracasso de uma primeira experiência amorosa - ingeriu uma dose generosa da bebida. - Que parva que eu fui.
- Ela fez o mesmo consigo?
- Eu devia ter percebido, obviamente. Stan, o namorado dela, veio cá a casa depois de ela lhe ter furado os pneus do carro. Estava furioso e deve ter pensado que ia pô-la na ordem. Mas quem foi posto na ordem foi ele.
- Como?
- Ela feriu-o com um cutelo.
Nkata olhou de soslaio na direcção de Lynley, que lhe fez sinal com a cabeça. Um assassino possuía, em geral, uma arma predilecta. Mas porquê matar Nicola quando era Vi o alvo de Shelly? E porquê esperar tantos meses para o fazer?
Vi pareceu reconhecer as interrogações silenciosas de Lynley.
- Ela não sabia onde Nikki estava - disse. - Mas sabia que ela e Terry eram unha com carne. Se o seguisse, seria apenas uma questão de tempo até a encontrar - bebeu mais um gole, limpando depois o canto da boca com um guardanapo. - Cabra assassina - deixou escapar baixinho. - Espero que apodreça na cadeia.
- Esta cabra já deu o que tinha a dar - murmurou Lynley, conhecendo agora a origem do bilhete encontrado no bolso de Nicola Maiden. Precisamos da morada dela - disse. - Se a tiver. E vamos precisar igual mente da lista dos clientes de Nicola.
- Isto não tem nada á ver com clientes. Acabei de vos dizer isso.
- Pois acabou. No entanto, também fomos informados da existência de um homem em Londres com quem Nicola mantinha um relacionamento que ultrapassava os limites do que seria de esperar entre um cliente e... procurou um eufemismo.
- A sua acompanhante nocturna - sugeriu Nkata.
- E é muito possível que o descubramos entre os homens com quem ela se encontrava regularmente - concluiu Lynley.
- Bem, se de facto havia alguém, eu desconheço - disse Vi.
- Tenho dificuldade em acreditar nisso - disse Lynley. - Não estará à espera que eu acredite que um apartamento como este é pago unicamente com o que você ganha com o negócio do sexo.
- Acredite no que quiser - retorquiu Vi Nevin. Os dedos dela procuraram o lenço que atara em volta do pescoço e soltou-o com gestos rápidos.
- Miss Nevin, nós estamos à procura de um assassino. Se ele é o homem que instalou Nicola Maiden neste apartamento, então terá de nos dizer o seu nome. Porque se ele pensou que tinha qualquer espécie de acordo com ela e descobriu que a realidade era bem diferente, pode perfeitamente ter sido compelido a matá-la. Além disso, acho que ele não há-de gostar de a ver por aqui, vivendo às custas dele, agora que Nicola já não é viva.
- Já lhe dei a minha resposta.
- Esse tipo é Reeve? - perguntou Nkata.
- Reeve? - Vi tornou a pegar no copo.
- Martin Reeve. MKR Financial Management.
Não bebeu. Em vez disso, fez girar o líquido dentro do copo e ficou a vê-lo deslizar por entre os cubos de gelo, que tilintavam contra as paredes de vidro.
- Menti acerca da MKR - disse, por fim. - Eu nunca trabalhei para Martin Reeve. Nem sequer o conheço. Tudo o que sabia sobre ele e Tricia era o que Nikki me contava. E quando me perguntaram por ele ontem, não vos contrariei. Ignorava o que vocês sabiam. Sobre mim, sobre Nikki. E na minha profissão, confiar na polícia é algo que não faz sentido nenhum.
- E como é que vocês duas se juntaram, afinal? - perguntou-lhe Nkata.
- Nikki e eu? Conhecemo-nos num pub. No Jack Horner em Tottenham Court Road, perto da faculdade dela. Ela estava a levar uma cantada de um tipo calvo com barriga e dentes podres. Quando ele a deixou em paz, rimo-nos um bocado à custa dele. Começámos a conversar e... - encolheu os ombros.
- Entendemo-nos. Era fácil conversar com Nikki. Era fácil dizer-lhe a verdade. Ela estava interessada no meu trabalho e quando descobriu a quantidade de dinheiro que se podia ganhar neste tipo de vida... uma quantia muito superior à que ela estava a ganhar na MKR... decidiu experimentar.
- Não a incomodou a concorrência? - perguntou Lynley.
- Não havia.
- Não compreendo.
- Nikki não gostava de relações normais - explicou Vi. - Ela apenas aceitava homens, se eles quisessem sexo esquisito. Fatos, encenações, subjugação. Eu faço de rapariguinha para homens que preferem estar com garotas de doze anos sem correrem o risco de irem parar à prisão. Mas não vou mais longe do que isso. Trabalho com as mãos e sexo oral juntamente com a encenação da garota, claro. Tirando isso, o que tenho para oferecer é precisamente aquilo a que Nikki não dava a mínima importância: romantismo, sedução e compreensão. Ficariam espantados se soubessem como este tipo de sentimentos são muito pouco frequentes entre maridos e mulheres.
- Pode então dizer-se que juntas - concluiu Lynley, esquivando-se a qualquer discussão sobre os efeitos perniciosos do casamento para uma relação entre duas pessoas -, cobriam todos os gostos e preferências?
- Exactamente - confirmou ela. - E Shelly sabia-o. Tal como sabia que eu não estaria disposta a escolhê-la a ela em vez de Nikki, caso as duas não conseguissem entender-se quando Nikki e eu nos associámos. E é por isso que têm de falar com ela e não com um cliente imaginário com dinheiro suficiente para manter a Nikki numa casa como esta.
- Onde é que podemos encontrar essa Shelly - perguntou Nkata. Vi não tinha o endereço dela, mas, segundo afirmou, não seria difícil localizá-la. Costumava frequentar o Tlre Stocks, um clube em Wandsworth que satisfazia os desejos de indivíduos com interesses específicos. Mantinha uma amizade especial com o empregado de bar, acrescentou Vi.
- Se ela não estiver lá agora, ele saberá dizer-vos onde podem encontrá-la - informou Vi.
Lynley observou-a desde o cadeirão onde estava sentado. Concluiu que apesar da quantidade de informação que ela lhes fornecera, ele ainda queria submetê-la a uma espécie de teste da verdade. A fluência e facilidade de expressão eram essenciais para se poder sobreviver numa profissão como a dela, e a sensatez - já para não falar nos anos de convívio próximo com aqueles que viviam à margem da lei - sugeriam que não devia tomar as palavras dela como a verdade nua e crua.
- As actividades de Nicola Maiden nos meses que antecederam a sua morte parecem ser contraditórias, Miss Nevin - disse ele. - Acha possível que ela tenha decidido dedicar-se à prostituição como forma de ganhar rapidamente o dinheiro suficiente para se manter até começar a obter alguns rendimentos como advogada?
- Não há trabalho de advogado que renda tanto como este - disse Vi. - Não enquanto somos jovens, pelo menos. Foi por isso que Nikki deixou a Faculdade de Direito. Ela sabia que podia voltar a dedicar-se à advocacia quando tivesse quarenta anos, mas não podia fazer brincadeiras com essa idade. Para ela, fazia sentido juntar dinheiro enquanto pudesse.
- Nesse caso, porque passou o Verão a trabalhar para um advogado? Ou não estava só a trabalhar para ele?
- Essa é uma pergunta que vai ter de fazer ao advogado - respon deu Vi com um encolher de ombros.
Barbara Havers trabalhou ao computador até ao meio-dia. Saíra do gabinete de Lynley de tal modo dominada pelo esforço violento para con trolar a raiva que a invadia, que ao fim de uma hora em frente ao ecrã cintilante ainda não conseguira assimilar uma informação que fosse. Depois de ter lido sete relatórios, no entanto, sentia-se mais calma. A raiva metamorfoseara-se, entretanto, numa concentração cega. O seu desempenho na investigação deixara de ser uma forma de se redimir aos olhos de um homem que há muito respeitava. Agora, tratava-se de provar a ambos - tanto a ela própria como a Lynley - que tinha a razão do seu lado.
Teria suportado tudo, excepto a indiferença profissional com que ele lhe confiava as tarefas que presentemente tinha de desempenhar. Se tivesse discernido o mais leve indício de desprezo, impaciência, indiferença ou aversão no seu rosto aristocrático, podia tê-lo confrontado e, juntos, podiam ter travado uma luta franca e aberta como tinham feito no passado. Só que ele,
obviamente, concluíra que ela era incompetente do ponto de vista criminal, marginalmente histérica e, por conseguinte, indigna da sua atenção. E nada do que pudesse dizer para explicar o seu comportamento iria fazê-lo mudar de ideias. A sua única saída era provar-lhe quão erradas eram as suas conclusões.
Só havia uma forma de o conseguir. Barbara sabia que ao optar por esta via estaria a pôr em risco toda a sua carreira. No entanto, também sabia que no momento presente a sua carreira pouco valor tinha, e que jamais voltaria a ter se não se libertasse dos juízos de valor que presentemente a retraíam.
Começou por pensar em ir almoçar. Estava na Yard desde muito cedo e já merecia uma pausa. Porque não, então, aproveitar essa pausa para ir dar um passeio? Não estava escrito em lado nenhum que tinha de comer todas as suas refeições em Victoria Street. Com efeito, um curto passeio até ao Soho seria a oportunidade ideal para praticar um pouco de exercício antes de ter de passar mais algumas horas a pesquisar os arquivos do 5010 no CRIS.
Apesar disso, porém, não estava tão seduzida pela combinação Soho e exercício físico ao ponto de considerar sequer a hipótese de se deslocar a pé até lá. O tempo era um factor da maior importância, por isso encaminhou-se para o seu Mini, que estava no parque de estacionamento subterrâneo da Yard, e dirigiu-se a toda a pressa para o Soho seguindo pela Charing Cross Road.
As ruas estavam cheias de gente. Numa zona de Londres como o Soho onde havia de tudo, desde livrarias a lojas de tatuagens, desde mercados ao ar livre, onde era possível comprar legumes e flores, a sex shops que vendiam vibradores e sucedâneos de vaginas trepidantes, os passeios das ruas estariam sempre cheios de gente. E num sábado soalheiro do mês de Setembro, ainda durante a estação turística, as multidões transbordavam dos passeios para as ruas, tornando-se difícil atravessar a zona congestionada dos teatros em Shaftesbury Avenue e seguir na direcção de Frith Street.
Barbara ignorou os restaurantes que lhe acenavam como sereias. Respirava pela boca, a fim de evitar os convidativos aromas da cozinha italiana que invadiam as ruas. Permitiu- se soltar um suspiro de alívio quando finalmente avistou a estrutura de madeira - um misto de caramanchão e telheiro - que se erguia no centro da praça. Contornou a zona uma vez à procura de um lugar onde estacionar o carro. Não encontrando nada, localizou o edifício que procurava e resignou-se à ideia de gastar meio dia de salário num parque de estacionamento a escassos metros de Dean Street. Fez o percurso de regresso à praça, procurando dentro da mala a tiracolo o pedaço de papel amarfanhado onde estava escrito um endereço e que encontrara nas calças de Terry Cole quando estivera no apartamento dele. Confirmou o endereço: 31-32 Soho Square.
Muito bem, pensou. Vamos lá então descobrir em que é que o nosso Terry andava metido.
Contornou a esquina de Carlisle Street e encaminhou-se para o edifício em passo lento. Estava situado na esquina sudoeste da praça e era uma construção moderna de tijolo com um telhado de mansarda e janelas de travessa. Um pórtico suportado por colunas dóricas protegia uma entrada formada por portas envidraçadas, sobre a qual se lia, composta em caracteres de latão, a designação dos ocupantes do edifício: Triton International Entertainment.
Barbara tinha poucas informações sobre a Triton, mas estava certa de ter visto o logótipo deles no fim do genérico de séries de televisão ou no cinema nos créditos de entrada dos filmes, o que a levou a interrogar-se sobre se Terry Cole teria alimentado esperanças de fazer carreira como actor, a par das suas outras actividades duvidosas.
Experimentou empurrar a porta. Estava trancada. Murmurou uma expressão de desagrado e tentou ver através do vidro colorido, tentando chegar a algumas conclusões a partir do átrio do edifício. Não foi muito feliz, conforme descobriu.
Conseguiu distinguir um chão liso de mármore, cuja superfície era interrompida por cadeiras de couro em tom sépia que, aparentemente, formavam uma zona de espera. Ao centro havia um escaparate, onde estavam anunciados os últimos filmes da Triton. Perto da porta, havia um balcão de recepção arredondado feito de madeira de nogueira e que se erguia à altura do peito. Do lado oposto à recepção, estavam três portas de elevador em bronze polido, onde se reflectia a figura de Barbara para seu deleite pessoal, se bem que incerto.
Era sábado, e não havia sinal de vida no átrio. No entanto, no momento em que Barbara se preparava para amaldiçoar a sua sorte e regressar à Yard, as portas de um dos elevadores abriram-se para deixar sair um agente de segurança uniformizado. O homem, de cabelos já grisalhos, estava entretido com o fecho das calças e tentava aconchegar os testículos balanceando o corpo. Ao entrar no átrio, sobressaltou-se quando viu Barbara à porta e com um gesto pediu-lhe que se fosse embora.
- Estamos fechados - gritou, e mesmo através do vidro, Barbara con seguiu distinguir a pausa glótica característica das pessoas nascidas e criadas no Norte de Londres.
Tirou a identificação e encostou-a ao vidro.
- Polícia - anunciou. - Posso dar-lhe uma palavrinha, por favor? Ele hesitou, olhando para um enorme relógio com um mostrador de latão, suspenso na parede à esquerda da porta, por cima de uma série de fotografias de celebridades.
- Estou na minha hora de almoço - retorquiu ele.
- Melhor ainda - respondeu Barbara. - Eu também. Saia um bocadinho. Pago-lhe o almoço, se quiser.
- O que é que se passa, afinal?
Aproximou-se da porta, mas manteve a distância, permanecendo atrás de um tapete de borracha enrugado.
- Estamos a investigar um crime - Barbara agitou a identificação com gestos eloquentes. Não se importa de prestar atenção a isto, queria ela dizer.
Ele percebeu. Exibiu, em seguida, um chaveiro que parecia ser constituído por cerca de duas mil chaves e, com gestos vagarosos, procurou aquela que correspondia à porta de entrada.
Quando entrou no edifício, Barbara não perdeu tempo com rodeios. Estava a investigar a morte de um jovem londrino chamado Terry Cole que fora assassinado em Derbyshire, revelou imediatamente ao segurança, cuja placa de identificação indicava que se chamava Dick Long. Encontrara o endereço do edifício no meio dos pertences de Cole e estava a tentar descobrir porquê.
- Cole, diz a senhora? - repetiu o guarda. - Primeiro nome, Terence? Nunca tivemos cá ninguém com esse nome. Pelo menos, que eu saiba. O que não lhe serve de muito, porque eu só trabalho aos fins-de-semana. Aos dias de semana sou segurança na BBC. O dinheiro não é muito, mas ao menos dá para não ter de dormir por aí.
Inspirou ruidosamente pelo nariz e fitou atentamente os dedos, tentando perceber se revelara algum dado interessante.
- Terry Cole tinha este endereço no meio dos seus objectos pessoais - disse Barbara. - Pode ter cá vindo fazendo-se passar por uma espécie de artista. Um escultor. Acha possível?
- Não há cá ninguém que compre obras de arte. O que a senhora anda à procura é de uma dessas galerias finas. Daquelas que ficam em Mayfair e em sítios desse género. Embora isto realmente se pareça um bocado com uma galeria, hein? E esta? O que é que acha?
O que achava era que não tinha tempo para discutir a decoração de interiores da Triton Entertainment.
- Será possível que ele tenha tido uma reunião com alguém da Triton?
- Ou com alguém das outras companhias - disse Dick.
- Há outras companhias além da Triton neste endereço? - perguntou ela.
- Claro que há. A Triton é apenas uma delas. É o seu nome que está por cima da porta, porque é a companhia que ocupa mais espaço. As outras não se importam, já que pagam uma renda mais baixa.
Dick inclinou a cabeça na direcção dos elevadores e conduziu Barbara até junto de um quadro colocado entre as duas portas. Estava cheio de nomes, designações de departamentos e listas de empresas. Havia editoras, produtoras teatrais e cinematográficas. Levaria horas - talvez dias - a falar com todos os nomes da lista. E com todos os que dela não constavam, por serem actores secundários.
Barbara afastou-se dos elevadores e reparou no balcão da recepção. Conhecia o significado daquela peça de mobiliário na Yard, onde a segurança era fundamental. Perguntou a si mesma se ali teria o mesmo significado.
- Os visitantes costumam assinar algum registo, Dick?
- Oh, sim. Claro que assinam.
Óptimo.
- Posso dar uma espreitadela ao livro de registos?
- Isso é que já não pode ser, miss... er, detective. Desculpe-me.
- Trabalho de polícia, Dick.
- Pode ser, mas está fechado aos fins-de-semana. Pode experimentar as gavetas da secretária para se certificar, se quiser.
Barbara assim fez, passando para o outro lado do balcão da recepção e puxando gaveta atrás de gaveta, sem sucesso. Raios, pensou. Detestava ter de esperar até segunda-feira. Estava desesperada por enfiar as algemas num culpado qualquer e desfilar com ele à frente de Lynley, gritando, Está a ver? Está a ver? E o facto de ter de esperar quase quarenta e oito horas para dar mais um passo na direcção do autor dos homicídios de Derbyshire era como atiçar os cães com o cheiro de uma raposa para ter apenas direito a um pedaço de pele no momento de avistar a presa.
Havia apenas uma alternativa. Não era muito do seu agrado, mas estava disposta a perder algum tempo com ela.
- Diga-me uma coisa, Dick, você tem uma lista das pessoas que tra balham aqui?
- Oh, miss... isto é, detective... quanto a isso... - tornou a inalar ar pelo nariz com grande ruído e pôs um ar embaraçado.
- Tem, não tem? Porque se houver alguma confusão nalguma parte do edifício, você precisa de saber quem deve contactar, não é? Dick, eu preciso dessa lista.
- Eu não estou autorizado a...
-... mostrá-la a ninguém - concluiu ela. - Eu sei. Mas você não estaria a mostrá-la a ninguém. Estaria a mostrá-la à polícia, porque alguém foi assassinado. E você compreende que se não nos ajudar na nossa investigação, pode dar a entender que de alguma maneira está envolvido no caso.
Ele fez um ar ofendido.
- Oh, não, miss. Eu nunca estive em Derbyshire.
- Mas alguém aqui do edifício pode ter estado. Na terça-feira à noite. E proteger essa pessoa... O CPS nunca vê uma coisa dessas com bons olhos.
- O quê? Acha que há um assassino a trabalhar aqui? - Dick lançou um olhar rápido na direcção dos elevadores, como se esperasse que as portas se abrissem a todo o momento para deixar sair Jack, o Estripador.
- É possível, Dick. Muito possível.
Reflectiu sobre o assunto. Barbara deixou-o pensar. Mais uma vez, olhou, alternadamente, para as portas dos elevadores e depois para o balcão da recepção.
- Uma vez que é a polícia... - disse, por fim, indo juntar-se a Barbara atrás do balcão, onde abriu o que parecia ser um armário de despensa cheio de resmas de papel e de pacotes de café. Tirou um molho de folhas agrafadas que estava na prateleira de cima e entregou-as a Barbara. - Aqui está ela - disse.
Barbara agradeceu-lhe entusiasticamente. Estava a dar o seu contributo em nome da justiça, disse ela. Ia precisar de levar uma cópia do documento com ela, no entanto. Teria de telefonar a todos os funcionários que constavam da lista e ele não estava à espera que ela o fizesse ali sentada no átrio vazio do edifício.
Ainda relutante, Dick concedeu a sua autorização e desapareceu durante cinco minutos para ir fazer uma cópia do documento. Quando voltou, Barbara esforçou-se o melhor que pôde para sair do edifício caminhando com dignidade, e não saltitando de contentamento. Mantendo a pose, não tornou a olhar para a lista se não depois de ter virado para Carlisle Street. Aí, no entanto, examinou-a com olhos ansiosos.
O seu ânimo afundou-se radicalmente. As páginas sucediam-se interminavelmente, contendo pelo menos cerca de duzentos nomes impressos.
Gemeu ao pensar no trabalho que tinha pela frente.
Duzentos telefonemas sem ter ninguém que a ajudasse. Tinha de haver uma forma mais eficaz de provar a Lynley a veracidade do seu ponto de vista. Depois de pensar durante alguns instantes, decidiu-se pelo procedimento a seguir.
O plano do inspector Peter Hanken era roubar uma hora ao horário de trabalho daquele sábado para adiantar a montagem do novo baloiço de Bella, um plano de que foi obrigado a abdicar ainda nem vinte minutos tinham passado desde o seu regresso do Aeroporto de Manchester. Regressara a casa por volta do meio-dia, depois de ter passado a manhã à procura da massagista do Hilton do Aeroporto que atendera Will Upman na noite da terça-feira anterior. Quando falara com ela pelo telefone que se encontrava no átrio do Hilton, a sua voz soara quente, sensual e sedutora. Todavia, acabara por deparar-se-lhe uma Valquíria de oitenta quilos completamente vestida de branco, com mãos de jogador de râguebi e ancas tão largas como o pára-choques dianteiro de um camião.
Confirmara o álibi de Upman referente à noite em que a filha dos Maiden fora assassinada. Fora, efectivamente, atendido, por Miss Freda - era esse o seu nome -, e quando ela acabara de descontrair os seus tendões rígidos deixara-lhe, como sempre, uma generosa gorjeta.
- Deixa gorjetas à americana - disse ela a Hanken num tom de voz amigável. - Desde o primeiro dia que cá veio, por isso fico sempre feliz por vê-lo.
Era um dos seus clientes habituais, explicara Miss Freda. Vinha duas vezes por mês, pelo menos.
- O trabalho dele provoca muita acumulação de tensão - dissera ela. A sessão de Upman durara uma hora apenas, e ela atendera o advogado no quarto de hotel onde ele estava instalado, a partir das sete e meia.
Algo que, segundo Hanken, dava a Upman tempo suficiente para ir até Calder Moor, no regresso de Manchester, despachar sem dificuldade a filha dos Maiden e o companheiro cerca das dez e meia e, depois, correr precipitadamente até ao Hilton do Aeroporto para consolidar o seu álibi. O advogado continuava, pois, na corrida.
E um telefonema de Lynley colocara Upman no centro dos aconteci mentos, pelo menos aos olhos de Hanken.
Recebera a chamada no telefone portátil de sua casa. Acabara de espalhar as peças do baloiço de Bella no chão da garagem e dera um passo atrás para estudá-las enquanto contava o número de parafusos e de cavilhas que vinham juntamente com o baloiço. Lynley comunicara-lhe que os seus subordinados tinham conseguido descobrir o paradeiro de uma jovem que era a nova companheira de apartamento de Nicola Maiden e que ele próprio acabara de interrogá-la. Ela insistira em afirmar que não existia nenhum amante em Londres - uma afirmação de que Lynley parecia discordar - e sugerira também que a polícia devia tornar a conversar com Upman, se quisesse saber as razões que tinham levado Nicola Maiden a decidir passar o Verão em Derbyshire. Ao ouvir isto, Hanken reagira:
- A palavra de Upman é a única garantia que temos de que a rapariga tinha um amante no Sul, Thomas.
- Só que não faz nenhum sentido que ela tenha deixado a Faculdade de Direito em Maio e, mesmo assim, tenha passado o Verão a trabalhar para Upman... a não ser que ambos tivessem um arranjinho qualquer - replicara Lynley. - Tem tempo para lhe arrancar mais alguma informação, Peter?
Hanken sentira-se feliz - exultante, mais exactamente - perante nova oportunidade para arrancar mais qualquer coisa àquele idiota bajulador, mas procurara arranjar um fundamento consistente que justificasse a marcação de uma nova entrevista com o advogado de Buxton. Se, até ao momento, Upman não tinha convocado o seu próprio advogado para estar presente durante os interrogatórios, muito provavelmente passaria a fazê-lo se começasse a acreditar que a investigação estava a evoluir na sua direcção.
- Nicola recebeu uma visita mesmo antes de se ter mudado de Islington para Fulham. Terá sido no dia 9 de Maio - explicara Lynley. - Foi um homem. Tiveram uma discussão e foram ouvidos pelos vizinhos. O homem disse que preferia vê-la morta a deixar que ela o fizesse.
- Fizesse o quê? - perguntara Hanken.
E Lynley contara-Lhe. Hanken ouvira a história com alguma dose de incredulidade. A meio da narrativa, deixara escapar: Com mil diabos. Raios partam. Espere aí um segundo, Thomas. Preciso de tirar algumas notas, e, saindo da garagem, dirigira-se à cozinha, onde a mulher dava o almoço às duas filhas enquanto o seu filho mais novo dormitava numa cadeira de bebé colocada sobre a bancada da cozinha. Abrindo um pequeno espaço ao lado de Sarah, que separara a sua sanduíche de ovo em duas metades que esfregava no rosto, retomara o telefonema com um, Muito bem. Continue, começando a escrevinhar nomes de lugares, actividades e nomes de pessoas. Assobiara baixinho quando Lynley lhe contara a história da vida clandestina que Nicola Maiden levava como prostituta em Londres. Baralhado, olhara para as duas filhas enquanto Lynley especificava a especialidade da rapariga assassinada. Descobriu que se sentia dividido entre a necessidade de tirar notas precisas e o desejo de abraçar fortemente Sarah e Bella - completamente sujas de maionese e ovo -, como se com esse gesto pudesse assegurar-se de que o futuro de ambas seria abençoado pela segurança de uma vida normal. Fora, de facto, a pensar nas duas filhas que Hanken perguntara, quando Lynley concluíra as suas observações explicando que o seu próximo passo seria tentar descobrir Shelly Platt, a antiga companheira de apartamento de Vi Nevin, a autora das cartas anónimas:
- E quanto a Maiden, Thomas? Se, por algum acaso, ele descobriu que a filha andava na vida em Londres... Consegue imaginar os efeitos que isso produziria nele?
- Acho mais proveitoso pensar nos efeitos que uma notícia do género teria causado no homem que julgava que era seu amante. Upman e Britton, e até Ferrer, parecem candidatos mais prováveis ao papel de Némesis do que Andy.
- Não, se considerarmos o raciocínio de um pai: Eu dei-lhe a vida. E se ele pensasse que da mesma forma que lhe dera vida, também podia tirá-la.
- Estamos a falar de um polícia, Peter, de um polícia honesto. Um polícia exemplar sem uma única mácula em toda a sua carreira.
- Pois é, mas esta situação não tem rigorosamente nada a ver com a carreira de Maiden. E se foi ele quem foi a Londres? E se por acaso deu de caras com a verdade? E se tentou convencê-la a abandonar aquele estilo de vida... sinto náuseas só de lhe chamar estilo de vida... e, vendo que não conseguia, percebeu que havia apenas uma forma de lhe pôr termo? Porque, se não o fizesse, Thomas, a mãe da rapariga teria acabado por descobrir a verdade e Maiden não conseguia suportar a ideia das repercussões que isso teria na mulher que ama.
- Isso é igualmente válido para os outros - contrapôs Lynley. - Para Upman e Britton. Qualquer deles haveria de querer convencê-la a desistir do tipo de vida que levava. E tinham razões mais fortes para tal. Santo Deus, Peter, o ciúme sexual pode conduzir a actos mais extremos do que o desejo de proteger uma mãe da verdade acerca de um filho. Você tem de concordar que é assim.
- Ele encontrou o carro. Que estava escondido. Atrás de um muro. No meio do maldito White Peak.
- Pete, as crianças... - repreendera a mulher de Hanken, enquanto servia um copo de leite a cada uma das filhas.
Hanken concordara com um movimento de cabeça, enquanto Lynley dizia:
- Eu conheço este homem. Não há um grão de violência dentro dele. Ele foi obrigado a sair da Yard, santo Deus, porque já não tinha estômago para o trabalho. Assim sendo, onde e quando terá ele desenvolvido a capacidade, o apelo do sangue, para esmagar o crânio da filha? Vamos fazer umas investigações sobre Upman e Britton, e até sobre Ferrer, se tiver de ser. São elementos desconhecidos. Existem pelo menos duzentas pessoas na Yard que podem testemunhar que Andy Maiden não é. Agora, a companheira de apartamento, Vi Nevin, insiste em que devemos tornar a falar com Upman. Pode estar a tentar ganhar tempo, mas eu sou de opinião que devemos começar por ele.
Hanken reconhecia que era o ponto de partida mais lógico. Só que havia algo na ideia de conduzir o inquérito naquela direcção que não fazia sentido para ele.
- Você não está a levar isto como um assunto pessoal, pois não?
- Eu podia fazer-lhe precisamente a mesma pergunta a si - respondera Lynley.
Antes que Hanken tivesse tempo de contra-argumentar, o inspector de Londres concluíra o telefonema informando-o de que o blusão de cabedal de Terry Cole não estava entre os objectos pessoais registados no recibo que fora entregue à mãe, na manhã do dia anterior.
- Faz algum sentido verificar se ele está, ou não, entre as provas recolhidas na cena do crime, antes de mandarmos reunir as tropas - notou.
Em seguida, como se com isso desejasse sanar a discordância que existira entre ambos, acrescentara:
- Qual é a sua opinião?
- Vou tratar disso - dissera Hanken.
Concluído o telefonema, olhara para a família: Sarah e Bella despedaçando as respectivas sanduíches e mergulhando os pedaços de pão dentro do leite; PJ, que acordava e começava a choramingar por comida, a sua querida Kathleen, desabotoando a blusa, soltando o sutiã e guiando o filho até ao peito intumescido. Um milagre, era dessa forma que ele via a sua pequena família. Faria qualquer coisa, por mais extrema que fosse, para a proteger de todo o mal. Sabia isso.
- Temos muita sorte, Katie - dissera à mulher quando ela se sentara na mesa no momento em que Bella inseria uma cenoura na narina direita do nariz da irmã. Sarah protestara ruidosamente, fazendo sobressaltar PJ. Este parara então de mamar e começara a gemer baixinho.
Kathleen abanara a cabeça, num gesto fatigado.
- Tudo depende da definição, acho eu - indicara o telefone móvel com uma inclinação de cabeça. - Vais sair outra vez, é?
- Receio bem que sim, querida.
- E o b-a-l-o-i-ç-o?
- Vai ficar pronto a tempo, prometo.
Tirara as cenouras da mão das filhas, pegara num pano da loiça que estava sobre o lava-loiça e limpara parte da mesa da cozinha que elas tinham sujado.
A mulher embalava, cantarolava e acalmava PJ. Bella e Sarah faziam uma tentativa de reconciliação.
Depois de ter dado ordens ao detective Mott para examinar em pormenor tudo o que tinha sido retirado da cena do crime e de ter telefonado para o laboratório, a fim de se certificar de que o blusão de Terry Cole não fora acidentalmente omitido da lista de roupa enviada para análise, Hanken predispôs-se a travar mais um duelo com Will Upman. Encontrou o advogado na garagem da sua casa de Buxton, uma construção estreita que se destacava do resto do edifício. Vestido informalmente, com
calças de ganga e camisa de flanela, estava de cócoras junto de uma bicicleta de montanha com muito bom aspecto limpando a corrente e a roda dentada com uma mangueira, uma pequena embalagem de solvente em spray e uma escova com dentes de plástico e uma extremidade em forma de crescente.
Não estava só. Inclinada sobre a capota do carro dele, fitando-o com aquela inconfundível expressão de avidez, típica de uma mulher ansiosa por selar um compromisso, uma mulher morena de baixa estatura dizia, no momento em que Hanken se aproximou deles:
- Tu disseste meio-dia e meia, Will. E tenho a certeza de que desta vez não estou enganada.
- Não posso ter dito isso, querida - respondeu Upman. - Já tinha planeado limpar a bicicleta. Por isso, se estás pronta para almoçar tão cedo...
- Não é cedo. E ainda vai ser menos cedo quando lá chegarmos. Bolas, se não te apetecia ir, gostava que ao menos uma vez mo tivesses dito.
- Joyce, eu disse... dei até a entender... - Upman viu Hanken. - Inspector - cumprimentou, pondo-se de pé e atirando a mangueira para o lado. Esta ficou a verter água, formando uma torrente desde a garagem até ao caminho de acesso. - Joyce, apresento-te o inspector Hanken, do CID de Buxton. Importas-te de fechar a torneira, por favor, querida?
Joyce soltou um suspiro e foi fechar a água. Regressou para junto do carro e colocou-se à frente de um dos faróis dianteiros.
- Will - disse, falando num tom que parecia querer dizer tenho tido a paciência de um santo.
Upman sorriu-Lhe.
- Trabalho - disse, inclinando a cabeça na direcção de Hanken. - Queres dar-nos alguns minutos a sós, Joy? Esqueçamos o almoço e vamos comer qualquer coisa aqui perto. Podemos ir até Chatsworth depois. Passear um bocadinho, conversar.
- Tenho de ir buscar os miúdos.
- Às seis. Não me esqueci. E vamos conseguir chegar a horas. Sem problema.
Novo sorriso. Mais íntimo desta vez, o género de sorriso a que um homem recorre quando pretende dar a entender a uma mulher que ambos partilham uma linguagem especial apenas inteligível para ambos. A maioria das vezes, eram só tretas, decidiu Hanken, mas Joyce parecia suficientemente carente para aceitar o tema central subjacente àquele tipo de linguagem.
- Podes fazer umas sanduíches para nós, querida? Enquanto eu acabo isto aqui? Há frango no frigorífico.
Upman não se referiu à presença de Hanken, nem à privacidade que a ida de Joyce até à cozinha proporcionaria a ambos.
Joyce tornou a suspirar.
- Está bem. Por esta vez. Mas gostava muito que começasses a registar por escrito as horas a que queres que eu venha até cá. Com os miúdos, não é propriamente muito fácil...
- Vou passar a fazê-lo. Palavra de honra - atirou-Lhe um beijo. - Desculpa.
Ela aceitou tudo.
- Às vezes, pergunto a mim mesma porque é que me preocupo - disse, num tom nada convincente.
Todos nós sabemos a resposta para essa pergunta", pensou Hanken. Quando ela desapareceu dentro de casa, decidida a dar mostras dos seus dotes de dona de casa, Upman tornou a concentrar-se na bicicleta. Baixou-se e aspergiu uma pequena dose de solvente na roda dentada e ao longo da corrente. O aroma agradável a limão encheu o ar. Fez mover o pedal em sentido inverso enquanto aplicava o líquido, dando uma volta completa à corrente. Quando a corrente e a roda ficaram completamente molhadas, afastou-se ligeiramente e apoiou o peso do corpo sobre os calcanhares.
- Não sei que mais podemos ter para conversar - disse a Hanken. Já lhe disse tudo o que sabia.
- Pois é. E eu já tomei nota de tudo o que sabe. Desta vez, quero saber o que pensa.
Upman pegou na escova de plástico que estava pousada no chão.
- Acerca de quê? - perguntou o advogado.
- A filha dos Maiden mudou-se para uma casa em Londres há quatro meses. Deixou a Faculdade de Direito na mesma altura e não fazia tenções de retomar os estudos. Na verdade, tinha enveredado por uma actividade completamente diferente. Qual é a sua opinião acerca do assunto?
- Acerca da nova actividade profissional? Não tenho qualquer opinião sobre o assunto, acho eu.
- Então, por que razão passou o Verão a exercer o tipo de trabalho que um estudante de Direito costuma exercer no intervalo das aulas para adquirir experiência? Ela não iria ganhar nada com isso, pois não?
- Não sei. Não lhe fazia esse tipo de perguntas. - Upman aplicou a escova à corrente da bicicleta, limpando-a com gestos meticulosos.
- Sabia que ela tinha deixado a faculdade? - perguntou Hanken. E quando Hanken disse que sim com a cabeça, reagiu com exasperação: - Por amor de Deus, homem. Que é que se passa consigo? Porque é que não nos disse nada quando falámos consigo ontem?
Upman fitou-o.
- Os senhores não mo perguntaram directamente - disse, secamente. E a implicação era óbvia: ninguém no seu perfeito juízo respondia a perguntas que a polícia não colocava.
- Está certo. O erro foi meu. Mas estou a fazer-lhe a pergunta agora. Ela disse-lhe que tinha deixado a faculdade? Disse-lhe porquê? E quando é que lhe deu a novidade?
Upman observou atentamente a corrente da bicicleta enquanto trabalhava nela, centímetro a centímetro. A sujidade formada pela combinação de poeira, sujidade e lubrificante para bicicletas começou a dissolver-se em pequenas bolas de espuma castanhas, algumas das quais deslizaram para o chão por baixo da bicicleta.
- Ela telefonou-me em Abril - disse Upman. - Eu e o pai tínhamos-lhe arranjado um trabalho para o Verão o ano passado. Isto foi em Dezembro, claro. Nessa altura, disse-lhe que a escolhia devido à forte amizade que me ligava ao pai dela... bem, na verdade era mais um conhecimento, e pedi-lhe que me prevenisse logo que encontrasse alguma actividade mais do seu agrado, para que eu pudesse oferecer o emprego a outro estudante. Quando lhe falei numa actividade que fosse mais do seu agrado, estava a referir-me à área do Direito, mas quando ela me telefonou em Abril, disse-me que ia desistir por completo de exercer advocacia. Arranjara um emprego de que gostava mais, disse ela. Dava mais dinheiro e ocupava menos horas. Não é isso que todos queremos?
- Ela não especificou o tipo de actividade?
- Mencionou uma empresa em Londres. Não me lembro do nome que lhe deu. Não perdemos muito tempo com esse assunto, falámos apenas alguns minutos, principalmente sobre o facto de ela não ir trabalhar comigo durante o Verão.
- Mas ela acabou por vir. Porquê? Conseguiu convencê-la?
- De modo nenhum. Ela voltou a telefonar algumas semanas depois, disse que tinha mudado de ideias acerca do emprego e perguntou-me se podia vir trabalhar comigo como estava combinado, caso eu não tivesse arranjado ninguém entretanto.
- Tinha mudado de ideias acerca da faculdade?
- Não, ia deixar a faculdade à mesma. Fiz-lhe precisamente essa pergunta e ela confirmou. Mas acho que não estava preparada para contar aos pais. Eles davam muita importância aos progressos dela. E qual é o pai que não dá, não é? Afinal, o pai dera-se a tanto trabalho para lhe arranjar um emprego, e ela sabia-o. Eram muito próximos e acho que ela começou a hesitar em decepcioná-lo, pois ele não perdia uma oportunidade para a enaltecer aos olhos de toda a gente. A minha filha advogada. Entende o que eu quero dizer, não?
- Então, porque é que lhe deu o emprego? Quando ela já abandonara a faculdade, quando já deixara bem claro que não ia retomar... ela já não era estudante de Direito. Porquê contratá- la?
- Conhecendo o pai dela, não quis contribuir para lhe causar nenhuma decepção, pelo menos durante algum tempo.
- Porque será que tudo isso me soa como não passando de uma grande treta, Upman? Você tinha um caso com a filha dos Maiden, não tinha? Esta história do trabalho de Verão não passava de um disfarce. E você está farto de saber o que ela andava a fazer em Londres.
Upman afastou a extremidade arredondada da escova da corrente da bicicleta, fazendo escorrer para o chão uma porção de resíduo espumoso sujo. Olhou para Hanken.
- Eu disse-lhe a verdade ontem, inspector. Está certo, ela era atraente. E inteligente. E eu não era totalmente avesso à ideia de ter uma rapariga atraente e inteligente no escritório entre Junho e Setembro. Seria uma distracção para os olhos, pensei eu. E eu não sou homem para deixar de prestar atenção ao meu trabalho por causa de um pretexto agradável à vista. Por isso, quando ela quis vir trabalhar comigo, fiquei contente por poder tê-la comigo. Tal como os meus associados, aliás.
- Tê-la, foi o que disse?
- Que diabo. Vamos lá. Não estamos a brincar ao jogo do interrogatório-da-testemunha-hostil. Não vale a pena tentar apanhar-me em falso com algum deslize da minha parte, porque eu não estou a esconder nada. Está a perder o seu tempo.
- Onde estava na noite do dia 9 de Maio? - insistiu Hanken.
A testa de Upman franziu-se.
- No dia 9? Teria de consultar a minha agenda, mas suponho que devo ter tido reuniões com clientes, como habitualmente. Porquê? - fitou Hanken e pareceu fazer uma leitura exacta do rosto do inspector. - Ah, compreendo. Alguém deve ter ido a Londres visitar Nicola. Não foi? Para tentar convencê-la, talvez forçá-la, a vir passar um radioso Verão em Derbyshire a registar depoimentos de donas de casa separadas dos maridos. É nisso que está a pensar? - pôs-se de pé e aproximou-se da mangueira. Abriu a torneira e puxou a agulheta. Molhou delicadamente a corrente da bicicleta, movendo-a para um lado e para outro, ficando a observar a sujidade desaparecer empurrada pela água.
- Talvez tenha sido o senhor - disse-lhe Hanken. - Talvez quisesse impedi-la de exercer a outra actividade. Talvez quisesse certificar-se de que ia ter a - sentiu o lábio contorcer-se - distracção para os olhos que procurava. Uma vez que ela era tão atraente e inteligente como diz.
- Na segunda-feira, faço-Lhe chegar uma cópia da minha agenda respondeu Upman num tom de voz neutro.
- Acompanhada de nomes e números de telefone, espero?
- Como queira - Upman inclinou a cabeça para a casa, na direcção da porta através da qual desaparecera a sofredora Joyce. - Caso não tenha reparado, já tenho mulheres atraentes e inteligentes que bastem na minha vida, inspector. Não me teria dado ao trabalho de ir a Londres para arranjar outra, acredite. Todavia, se os seus pensamentos estão a orientar-se nessa direcção, poderá querer debruçar-se sobre quem não tinha acesso a esse género de mulheres. E acho que ambos sabemos quem é esse pobre desgraçado.
Teddy Webster ignorou a ordem do pai, proferida na sua voz toni truante. Tendo vindo dos lados da cozinha, onde os pais estavam a acabar de almoçar, sabia que dispunha de um bom quarto de hora até nova ordem. E dado que a mãe, por uma vez, fizera bolo de maçã para sobremesa - um acontecimento raro, tendo em conta que a oferta habitual consistia num pacote de biscoitos de figo que ela abria sem cerimónia e atirava para o centro da mesa enquanto levantava os pratos -, aquele quarto de hora poderia muito bem estender-se a meia hora. Se assim acontecesse, Teddy teria tempo suficiente para ver o resto do episódio de Hulk, O Invencivel antes que o pai gritasse, Desliga a porcaria da televisão e põe-te fora de casa imediatamente! Estou a falar a sério, Teddy. Quero- te lá fora, na rua, ao ar livre. Já. Já! Antes que te arrependas de me teres obrigado a dizer a mesma coisa.
Eram sempre assim, os sábados: uma monótona e pateta repetição de todos os outros sábados, igualmente monótonos e patetas, desde que se tinham mudado para os Peaks. Aos sábados acontecia sempre o mesmo: o pai arrastava-se pesadamente à volta da casa pelas sete e meia, bramindo que era óptimo estar finalmente longe da cidade e que eles estavam radiantes por poder respirar ar puro e ter espaços para explorar, rodeados pela história, pela cultura e pela tradição que saltava de debaixo de cada um dos estúpidos montes de pedras que havia nos campos estúpidos que os rodeavam por todos os lados. Só que aqui não havia campos, pois não? Havia a charneca e eles eram extremamente sortudos e abençoados e... estupidamente especiais por viver num lugar de onde podiam sair de casa e rumar directamente para norte e caminhar durante seis biliões de quilómetros sem ver sequer uma alma que fosse? Aquilo não se parecia nem um pouco com Liverpool, pois não, rapaziada? Aquilo era o paraíso. Aquilo era a Utopia. Aquilo era...
Um lugar de merda, pensou Teddy. Às vezes dizia-o, o que deixava o pai irritado, punha a mãe a chorar e provocava um ataque de fúria na irmã, que desatava a lamuriar-se dizendo que nunca iria para a escola de teatro e nunca se tornaria uma verdadeira actriz, se fosse obrigada a viver no meio de nenhures como uma leprosa.
E era nessa altura que o pai ficava realmente irritado e desviava as atenções de Teddy, que aproveitava a oportunidade para se escapulir para a frente do televisor e sintonizar o canal onde mostravam a cena daquele momento sempre penoso em que um vagabundo ignorante gastava a paciência do esquelético Dr. David Banner, provocando-lhe um daqueles ataques muito fixes durante os quais os olhos se encovavam dentro da cabeça dele e os braços e pernas lhe saltavam de dentro das roupas enquanto o peito inchava fazendo saltar os botões e ele pregava um susto de morte a toda a gente que estava por perto.
Terry soltou um suspiro de pura e genuína felicidade quando o Hulk deu cabo dos seus mais recentes algozes. Era precisamente aquilo que Teddy tinha vontade de fazer aos cretinos com cérebro de galinha que encontrava todas as manhãs à porta da escola e que o perseguiam - escarnecendo dele, empurrando-o, rasteirando-o e dando-lhe encontrões - mal punha um pé no recreio. Se fosse o Hulk, dar-lhes-ia uma tareia tal que os faria cuspir as tripas. Um de cada vez ou todos ao mesmo tempo. Seria indiferente, porque teria mais de dois metros de altura e 160 quilos de puro músculo, e eles nem sequer saberiam nem porquê nem como ele surgira. E quando estivessem estatelados no chão, chafurdando no seu próprio vomitado e na sua própria urina, ele levantaria um deles pelos cabelos e diria, Deixem o Teddy Webster em paz, estão a ouvir? Caso contrário, tornarei a fazer- vos uma visita. E depois deixaria cair o idiota novamente no chão e, esmagando-lhe o rosto com o pé, afastar-se-ia. E depois...
- Raios partam, Ted. Quero-te daqui parafora.
Teddy pôs-se de pé em sobressalto. Estava de tal maneira embrenhado na sua fantasia que não ouvira o pai entrar na sala.
- Estava quase no fim - apressou-se a dizer. - Queria ver como é que...
O pai segurava uma tesoura na mão. Agarrou no fio suspenso na parte de trás do aparelho de televisão.
- Não trouxe a minha família para o campo para que ela gastasse os tempos livres com o nariz colado à televisão. Tens quinze segundos para sair desta casa, caso contrário corto o fio. De vez.
- Pai! Eu só queria...
- Estás surdo, Ted?
Esgueirou-se em direcção à porta. Aí deteve-se:
- Então, e a Carrie? Porque é que ela não...
- A tua irmã está a fazer os trabalhos da escola. Queres ir fazer os teus? Ou vais lá para fora brincar?
Carrie estava a fazer os trabalhos de casa tanto quanto ele estava a fazer uma operação ao cérebro, e Teddy sabia-o. No entanto, também sabia reconhecer uma derrota. Vou brincar,, respondeu ao pai e arrastou- se para fora de casa, vangloriando-se por não ter denunciado a irmã. Ela estava no quarto suspirando debruçada sobre um exemplar da Flicks e escrevendo cartas de amor patetas para um actor qualquer, ainda mais pateta. Era uma maneira bem estúpida de gastar o tempo, mas Teddy compreendia-a. Tinha de fazer alguma coisa para afastar as teias de aranha da cabeça.
Ele recorria à televisão. Ver televisão fazia-o sentir-se bem. E depois, que mais havia para fazer?
Não se atrevia, no entanto, a fazer essa pergunta ao pai. A primeira vez que a fizera - pouco depois de terem chegado de Liverpool -, recebera como resposta uma tarefa doméstica a desempenhar. Por isso, no que tocava a tempos livres, Teddy deixara de pedir sugestões. Saiu de casa e fechou a porta, não sem antes proporcionar a si mesmo a satisfação de lançar um sinistro olhar por cima do ombro no momento em que o pai regressava à cozinha.
- É para bem dele - foram as últimas palavras que Teddy ouviu o pai proferir.
E ele sabia - desesperadamente - qual era o significado daquelas quatro palavras.
Tinham-se mudado para o campo por causa dele, um garoto gordo que usava óculos, tinha borbulhas nas pernas, usava aparelho nos dentes, tinha peito como as raparigas e era agredido na escola desde o primeiro dia em que lá entrara. Escutara por acaso o Grande Plano no momento em que os pais o discutiam.
- No campo, ele vai poder praticar exercício. Vai querer fazer exercício, os rapazes são assim, Judy, e depois vai perder peso. Não terá de se preocupar com o facto de estar a ser observado enquanto estiver a treinar, tal como acontece aqui. E vai ser bom para todos nós, também.
- Não sei, Frank...
A mãe de Teddy era do tipo hesitante. Não gostava de rupturas, e uma mudança para o campo era uma Ruptura a Multiplicar por Dez.
O pai de Teddy, no entanto, estava decidido a levar a sua ideia por diante, e ali estavam eles, a viver numa quinta, onde os carneiros e a terra estavam arrendados a um fazendeiro que vivia no Peak Forest, o que havia de mais parecido com uma cidade num raio de vários quilómetros. Só que não era uma cidade, nem sequer era uma aldeia. Era um aglomerado de casas, uma igreja, um pub e uma mercearia, onde se por acaso um tipo decidisse surripiar um pacote de batatas fritas ao lanche - e mesmo se o tipo pagasse por elas, aliás -, era quase certo que às seis da tarde a mãe do tipo já estaria ao corrente do sucedido. E então é que eram elas. Teddy odiava aquele lugar. Toda aquela imensidão que se estendia
até ao infinito para onde quer que se olhasse, o céu que de um momento para o outro se tingia de negro com o nevoeiro, o vento que rugia durante toda a noite, fustigando a casa e fazendo estremecer a janela do quarto dele, como se um grupo de extraterrestres estivesse a tentar entrar, os carneiros que baliam sem parar como se pressentissem algo de errado, mas que desatavam a fugir logo que alguém dava um passo na sua direcção. Odiava aquele maldito lugar e pronto. Quando Teddy saiu de casa e atravessou pesadamente o pátio, um bocado de terra - empurrada pelo vento como se fosse um míssil - esvoaçou bem junto dos seus óculos, entrando-lhe no olho e fazendo-o soltar um grito. Odiava aquele lugar.
Tirou os óculos e limpou o olho com a bainha da T-shirt. Sentia picadas e um ardor, que fizeram aumentar ainda mais a sensação de injustiça que tomara conta dele. Com a vista turva, encaminhou-se, cambaleante, para a parte de trás da casa, onde a roupa lavada baloiçava energicamente na corda que se estendia desde o beiral até um varão enferrujado, próximo de um muro de pedra em ruínas.
Teddy murmurou qualquer coisa. No chão, perto da casa, encontrou um ramo fino e comprido. Juntou-o e transformou-o numa espada. Brandia-a à medida que avançava na direcção da roupa lavada, escolhendo como alvo uma fileira formada por pares de calças de ganga do pai.
- Não se mexam - ordenou-lhes, em tom sibilino. - Estou armado. E se julgam que podem apanhar-me vivo... Ah! Enfiem esta! E esta! E esta!
Vinham da Estrela da Morte de propósito para o matar. Sabiam que ele era o Último dos Jedi. Se conseguissem dar cabo dele, o imperador poderia Governar o Universo. Não podiam matá-lo, no entanto. Nem pensar. Tinham ordens para fazê-lo prisioneiro, para que servisse de Exemplo para Todos os Rebeldes do Sistema Estelar. Ora, ah! E ah! NUNCa o apanhariam. Porque ele tinha uma espada laser e zás trás pás. Mas... oh meu Deus. Um momento. Eles tinham revólveres laser. E não queriam nada capturá-lo! Queriam matá-lo e... uiiiiiiiiiiiiiiii! Ele estava em grande desvantagem! Corre! corre! corre!
Teddy deu meia volta e desatou a fugir, brandindo a espada no ar. Pro curou a protecção do muro de pedra que se erguia na fachada da propriedade e se prolongava ao longo da berma da estrada. Bastou um salto para que tudo acabasse. O seu coração batia descompassado. Os ouvidos latejavam.
São e salvo, pensou. Deslocara-se à velocidade da luz, deixando para trás os Guerreiros Estelares do Imperador. Aterrara num planeta ainda por descobrir. Jamais o encontrariam, nem num zilião de anos. Agora, ELE seria Imperador.
Zás. Algo passou por ele a grande velocidade. Teddy pestanejou. Sentiu a força do vento contra o seu corpo, como se estivesse a ser agredido pelos punhos de um fantasma enraivecido, e os seus olhos humedeceram-se. Não conseguia ver muito bem. Todavia, tinha a impressão de que... Não. Não podia ser. Teddy olhou a medo para a direita e para a esquerda. Horrorizado, percebeu onde tinha aterrado. Não fora num planeta novinho em folha. Fora parar ao Parque Jurássico! E aquilo que passara por ele à velocidade do relâmpago e movido pela fome fora um velociraptor no encalço da sua presa.
Meu Deus, meu Deus. E ele não trouxera NADA com ele. Nem uma espingarda de alta potência, nenhuma arma. Apenas um pau velho e estúpido. E de que lhe serviria ISSo quando estivesse frente a frente com um dinossauro obcecado por carne humana?
Tinha de se esconder. Atrás de um velociraptor vinha sempre outro. E dois significavam vinte. Ou cem! Ou mil!
Meu Deus! Correu pela estrada fora.
Um pouco mais à frente avistou um esconderijo seguro. Um caixote amarelo espreitava por entre as ervas, à beira da estrada. Podia esconder-se lá dentro até que o perigo tivesse passado.
Zás. Zás. Outros velociraptors passaram velozmente enquanto Teddy enfiava o corpo dentro do caixote. Baixou-se e cobriu o esconderijo com a tampa.
Teddy sabia o que os dinossauros podiam fazer a uma pessoa. Ai isso é que sabia. Estraçalhavam-lhe a carne, sugavam-Lhe as órbitas e esmagavam-lhe os ossos como se fossem batatas fritas do McDonald's. E o seu petisco preferido eram os rapazinhos de dez anos.
Tinha de fazer alguma coisa. Tinha de se salvar. Baixou-se ainda mais e, sentindo-se seguro dentro do caixote, tentou pensar num plano.
Dentro do caixote estavam restos da areia grossa do ano anterior, uns bons quinze centímetros dela, que sobrara do último Inverno, época em que era lançado sobre a estrada para que os pneus dos carros não resvalassem na superfície gelada. Teddy sentia os seixos e os cacos picando-lhe as palmas das mãos.
Será que podia usar a areia? Fazer dela uma arma? Formar uma bola e transformá-la num poderoso míssil que atiraria aos dinossauros, ferindo-os e forçando-os a deixarem-no em paz? Se conseguisse fazê-lo, teria tempo para...
Os seus dedos agarraram um objecto rígido, algo que estava enterrado na areia a cerca de sete centímetros. Era um objecto delgado, do tamanho da palma de uma mão. Depois de afastar a areia que o cobria por completo soltou-o e aproximou-o da luz fraca que penetrava através das paredes amarelas do esconderijo.
Genial, pensou. Grande descoberta, aquela. Estava salvo. Tinha uma faca.
Julian Britton estava ocupado com o que sempre fazia no final de uma operação de busca e salvamento: verificava o seu equipamento à medida que o guardava. Só que não estava a ser tão exaustivo, nem tão cuidadoso como costumava ser quando organizava e acondicionava o equipamento. Os seus pensamentos estavam muito longe das cordas, botas, picaretas, martelos, bússolas, mapas e tudo o mais que era suposto usar-se quando alguém se perdia ou ficava ferido e a equipa era chamada para resgatar as vítimas.
Pensava nela. Em Nicola. No que acontecera e no que podia ter acontecido se ao menos ela tivesse concordado em representar o papel adequado na peça que ele escrevera para a relação entre ambos.
- Mas eu amo-te - dissera-lhe, e até mesmo aos seus ouvidos, aquelas quatro palavras tinham soado patéticas e ansiosas.
- Eu também te amo - retorquira ela, em voz meiga. Pegara até na mão dele e segurara-a - palma virada para cima -, como se tivesse tenções de lá colocar alguma coisa. - Só que o tipo de amor que sinto por ti não é suficiente. E o tipo de amor que tu queres, e mereces, Jules... bem, não é o género de amor que possa sentir seja por quem for.
- Mas eu faço-te bem. Tu própria o disseste por diversas vezes ao longo destes anos. É o suficiente, não é? O outro tipo de amor... aquele de que falas... será que não pode nascer deste? Isto é, nós somos amigos. Companheiros. Somos... somos amantes, santo Deus... E se isso não quer dizer que entre nós existe algo de especial... que quer dizer, então, que diabo?
Ela soltara um suspiro. Olhara através da janela do carro e fitara a escuridão. Podia ver a silhueta dela reflectida no vidro.
- Jules, comecei a trabalhar como acompanhante - dissera. - Sabes o que isso significa?
A afirmação e a pergunta tinham surgido de repente, vindas do nada. Por isso, durante alguns instantes, ele pensara ridiculamente em guias turísticas, das que se sentam no banco da frente dos autocarros e falam para um microfone enquanto o veículo se arrasta pesadamente pelo campo fora apinhado de turistas.
- Fazes viagens? - perguntara.
- Saio com homens por dinheiro - replicara ela. - Passo o serão com eles. Às vezes fico até de manhã. Entro em hotéis, engato-os e fazemos tudo o que eles quiserem. Tudo. Depois eles pagam-me. Duzentas libras por hora. Mil e quinhentas, se dormir com eles a noite inteira.
Ele olhara-a fixamente. Ouvira-a claramente, mas o cérebro recusara-se a processar a informação.
- Entendo - dissera. - Tens alguém em Londres, então.
- Jules - retorquira ela -, não estás a ouvir o que te estou a dizer.
- Estou, sim. Disseste...
- Estás a ouvir, mas não estás a prestar atenção. Estes homens pagam-me para que eu lhes faça companhia.
- Para saíres com eles.
- Sim, acho que lhe podemos chamar isso: jantamos, vamos ao teatro, à inauguração de uma galeria ou a uma festa, sempre que algum deles quer ser visto na companhia de uma mulher bonita. Eles pagam-me por isso. E também me pagam para fazer sexo com eles. E, neste caso, dependendo do que faço com eles, pagam-me muito dinheiro. Mais do que eu alguma vez teria julgado possível pagar-se só por ir para a cama com um estranho, para ser sincera.
As palavras dela saíram como balas. E ele reagira como se ela tivesse trespassado o seu corpo com uma salva de artilharia. Ficara em estado de choque. Não o estado de choque que sempre surge quando se é sujeito a um traumatismo físico como um acidente de carro ou uma queda do alto do telhado de um celeiro, mas sim o tipo de choque que abala de tal maneira a mente que uma pessoa apenas consegue assimilar um só pormenor, habitualmente aquele que menos ameaça a tranquilidade do indivíduo.
Assim, vira apenas os cabelos dela, a forma como a luz incidia sobre ele, como cintilava por entre as madeixas de cabelo fazendo com que ela se parecesse com um anjo preso à terra. Todavia, o que ela lhe dizia estava longe de ser angelical. Era chocante e repugnante. E ela continuara a falar, e ele continuara a morrer.
- Ninguém me forçou a nada - dissera, tirando um rebuçado de den tro da mala. - A entrar no negócio das acompanhantes. Ou no outro, o do sexo. A decisão foi minha, mal vi as possibilidades e logo que percebi o quanto tinha para oferecer. Comecei por ir tomar um copo com eles, apenas. As vezes ia jantar, ou ao teatro. Tudo muito decente, percebes? Umas horas de conversa, ser boa ouvinte, dar-lhes réplica se eles quisessem, ou então fazer um olhar sonhador. Mas perguntavam sempre, todos eles, se eu fazia mais alguma coisa. De início decidi que não, não seria capaz. Afinal, não os conhecia. E sempre pensei... Isto é, não me passava pela cabeça ir para a cama com alguém que eu realmente não conhecesse. Mas uma vez, um deles perguntou-me se podia tocar-me. Só tocar. Cinquenta libras para pôr a mão nas minhas cuecas e acariciar os meus pêlos púbicos - sorriu. - No tempo em que eu os tinha. Antes... Sabes. E então, deixei-o tocar-me e não foi assim tão mau. Teve até muita piada. Comecei a rir... por dentro, claro... porque a situação me pareceu tão... tão pateta. Ali estava um tipo, mais velho que o meu pai, arfando, os olhos cheios de lágrimas só porque tinha a mão entre as minhas pernas. Por isso quando ele me pediu, Toca-me tu também, por favor, disse-Lhe que isso ia custar-lhe mais cinquenta libras.
Foi então que ele disse, Pago o que for preciso, meu Deus. E eu fiz-lhe a vontade. Cem libras para lhe apalpar o pirilau e por deixá-lo acariciar-me os pêlos.
- Pára - finalmente conseguira articular as palavras. Ela, porém, estava desejosa que ele compreendesse. Afinal, eram amigos. Sempre tinham sido. Tinham-se tornado companheiros desde que se tinham conhecido em Bakewell. Ela tinha dezassete anos, uma maneira de estar e de andar que dizia, estou aberta a tudo, algo de que ele nunca se apercebera até àquele momento. Quase três anos mais velho do que ela, Julian estava de férias quando a conhecera, consumido de preocupação pela forma como o pai bebia e pelo estado de conservação de uma casa que se estava a desmoronar diante dos seus olhos. Só que naquela época, Nicola não vira as suas preocupações. Vira apenas uma oportunidade de arranjar outra diversão. E aproveitara-a de bom grado. Compreendia-o agora.
- O que estou a tentar explicar é que esta é uma forma de vida que neste momento resulta bem para mim. Não vai ser sempre assim, claro. Mas hoje é. E por isso vou aproveitar esta oportunidade, Jules. Seria uma parva, se não o fizesse.
- Tu endoideceste - afirmara ele, perplexo. - Londres pôs-te neste estado. Precisas de voltar para casa, Nick. Precisas de estar com os teus amigos. Precisas de ajuda.
Ela olhou-o, inexpressiva.
- É óbvio, não é? Algo está errado. Não podes estar no teu perfeito juízo e andar a vender o teu corpo todas as noites.
- Muitas vezes, várias vezes por noite.
Ele agarrara a cabeça com as mãos.
- Caramba, Nick... Precisas de falar com alguém. Deixa-me arranjar-te um médico, um psiquiatra. Não conto nada a ninguém. Será o nosso segredo. E quando estiveres recuperada...
- Julian - ela afastara-lhe as mãos da cabeça. - Não há nada de errado comigo. Se eu achasse que mantinha um relacionamento com estes tipos, aí sim, não estaria bem. Se eu julgasse que estava no caminho do verdadeiro amor, não estaria bem. Se estivesse a tentar vingar um mal ou a magoar alguém ou se vivesse num mundo de fantasia, nessa altura, sim, precisaria de ser imediatamente enfiada num manicómio. Mas não é isso que acontece. Faço isto, porque gosto, porque me pagam bem, porque o meu corpo tem algo a oferecer aos homens, e embora me pareça uma tolice que me paguem para o ter, estou perfeitamente disposta...
Fora nessa altura que Lhe batera. Que Deus o perdoasse, mas batera-lhe porque estava ansioso para que ela se calasse. Por isso, agredira-a com um punho bem cerrado. A cabeça dela foi projectada para trás com violência e embateu na janela do carro.
Em seguida ficaram a olhar um para o outro, ela com as pontas dos dedos no sítio onde os nós dos dedos dele lhe tinham tocado o rosto, ele travando esses mesmos nós dos dedos com a mão esquerda, os ouvidos reverberando com um zumbido alto e contínuo que fazia lembrar o chiar dos pneus de um carro em derrapagem. Não havia nada a dizer. Nem uma única palavra de desculpas pelo que fizera, ou pelo que ela estava a fazer aos dois com as opções que estava a tomar e a vida que estava a levar. Apesar de tudo, fizera uma tentativa.
- Como é que tudo isto aconteceu? - perguntara com voz rouca. - Porque tem de haver uma explicação para isto, Nick. Não é assim que as pessoas normais vivem.
- Um segredo desagradável, é isso que queres dizer? - retorquira ela, jovialmente, os dedos ainda pousados na face.
A voz continuava igual, mas a expressão do olhar alterara-se, como se estivesse a vê-lo de maneira diferente. Como o inimigo", pensara ele. E sentira um desespero imenso apoderar-se dele, de tanto que a amava.
- Não, Jules. Não tenho nenhuma justificação conveniente. Ninguém a quem atribuir culpas. Ninguém a quem acusar. Algumas experiências foram simplesmente dando origem a outras experiências. Exactamente como te disse. Comecei por ser acompanhante, depois seguiram-se umas breves apalpadelas, depois... - sorrira. - Depois veio tudo o resto.
Naquele instante, vira-a como ela verdadeiramente era.
- Deves desprezar-nos a todos. Aos homens. Àquilo que queremos. Àquilo que fazemos.
Ela agarrara na mão dele. O punho continuava cerrado e ela obrigara-o a relaxar a mão. Aproximara-a dos seus lábios e beijara-lhe as articulações com que ele a agredira.
- Tu és como és - dissera ela. - O mesmo acontece comigo, Julian. Ele, todavia, fora incapaz de aceitar a simplicidade daquelas palavras. Vociferara contra elas e contra ela. E tomara a resolução de a fazer mudar de ideias, custasse o que custasse. Ela acabaria por cair em si, decidira. Receberia ajuda, se fosse preciso.
Em vez disso, encontrara a morte. Uma recompensa justa, diriam alguns, em troca do que oferecera à vida.
Julian sentia-se entorpecido enquanto guardava o equipamento dentro da mochila. O seu espírito fervilhava de recordações, e ele estava disposto a praticamente tudo para silenciar as vozes que ressoavam dentro da sua cabeça.
O pai proporcionou-lhe a distracção que desejava. Avançou com passos incertos pela passagem do primeiro andar no momento em que Julian colocava a mochila dentro do velho baú. Jeremy Britton segurava um copo numa das mãos, o que não era de surpreender, e um inesperado conjunto de brochuras na outra.
As palavras do pai soaram nítidas, fazendo com que Julían lançasse um olhar curioso para o copo que o pai segurava. O líquido incolor sugeria
que devia tratar-se de gin ou vodca. O copo, porém, era suficientemente grande para conter pelo menos uma generosa quantidade de líquido, e uma vez que estava quase vazio, que Jeremy jamais teria servido uma dose tão
reduzida num copo que tinha capacidade para mais, e dado que não falava com uma voz pastosa, uma só hipótese era possível: o copo não continha nem vodca nem gin. O que, por seu turno, queria forçosamente dizer... Julian sacudiu mentalmente a cabeça. Meu Deus, estava a enlouquecer a passos largos.
- Claro que tenho.
Fez o possível para não olhar para o copo e para não inalar o seu conteúdo.
Jeremy sorriu, ergueu o copo e disse:
- É água, Julie. A boa e velha H2o. Já quase me tinha esquecido do seu sabor.
Ver o pai bebendo água era o mesmo que ter uma visão da Ascensão ao Paraíso durante um passeio pela charneca.
- Água?
- O melhor que há. Alguma vez reparaste, meu filho, que a água pro veniente das nossas terras sabe muito melhor do que a engarrafada? Que a água engarrafada, quero eu dizer - acrescentou com um sorriso. - Evian, Perrier. Percebes o que quero dizer. - Levantou o copo e engoliu um pouco de líquido. Fez estalar os lábios. - Tens uns minutinhos para o teu pai? Quero pedir-te um conselho, filho.
Perplexo, desconfiado, atónito perante a mudança verificada no pai - induzida, aos olhos de Julian, por nenhum motivo em particular - seguiu-o até à saleta. Jeremy sentou-se na sua cadeira habitual, depois de rodar outra de modo a ficar de frente para ele. Com um gesto, pediu a Julian que se sentasse. Julian obedeceu, hesitante.
- Não reparaste ao almoço, pois não? - perguntou Jeremy.
- Não reparei em quê?
- Na água. Nada mais. Era o que eu estava a beber. Não viste?
- Peço desculpa, tenho andado preocupado. Mas fico contente com isso, pai. Que bom para si. Óptimo.
Jeremy assentiu com um movimento de cabeça, parecendo satisfeito consigo mesmo.
- Pensei muito a semana passada, Julie. E está decidido: Vou curar-me. Tenho andado a pensar no assunto desde... ora, não sei desde quando. Acho que chegou o momento.
- Vai parar? De beber? Vai parar de beber?
- Já chega. Ando... ando embriagado há perto de trinta e cinco anos. Pensei em tentar passar os próximos trinta e cinco sóbrio que nem um juiz.
O pai já manifestara a mesma intenção antes. Só que, habitualmente, dizia-o ou quando estava embriagado ou quando estava com ressaca. Desta vez, não parecia encontrar-se nem num estado nem noutro.
- Vai aderir aos Alcoólicos Anónimos? - perguntou Julian. Havia reuniões em Bakewell, outras em Buxton, Matlock e em Chapel-en- le-Frith. Em mais de uma ocasião, Julian telefonara para cada uma destas cidades a pedir os horários das reuniões, que eram enviados para o solar e depois atirados para o caixote do lixo.
- É sobre isso que te quero falar - disse Jeremy. - Sobre a melhor forma de vencer o demónio para sempre desta vez. O que eu penso é o seguinte, Julie - e mostrou o conjunto de brochuras que tinha na mão, espalhando-as sobre os joelhos de Julian. - Existem clínicas - disse. - Casas de desintoxicação. Um indivíduo inscreve-se por um mês... dois ou três, se for preciso... e faz a cura. A alimentação certa, exercício físico, sessões com um psiquiatra residente. É assim que se começa. Pela desintoxicação. Depois de se dar os primeiros passos, é que vamos para os AA. Vê aqui, filho. Diz-me o que pensas.
Julian não precisava de ver nada para saber o que pensava. As clínicas eram privadas. Caras. E não havia dinheiro para as pagar, a não ser que abdicasse do seu trabalho em Broughton Manor, que vendesse os lebreiros e arranjasse um emprego a sério. Internar o pai numa clínica, seria o fim do seu sonho de recuperar a propriedade.
Jeremy olhava-o, esperançoso.
- Eu sei que sou capaz desta vez, filho. Sinto-o dentro de mim. Sabes como é. Com uma ajudinha consigo fazê-lo. Vou vencer o demónio no seu próprio terreno.
- Acha que a ajuda dos AA não chega? - perguntou Julian. - É por que, como vê, pai, para o internar num sítio destes... isto é, posso verificar como estão os nossos seguros e vou fazê-lo, claro. Mas acho que não vão cobrir... O nosso seguro de saúde é dos mais simples, sabe. A não ser que queira que eu...
Não queria fazê-lo, e o sentimento de culpa provocado pela relutância que sentia provocava-lhe um sofrimento tão intenso como uma goiva que lhe cortasse a alma. No entanto, obrigou-se a si mesmo a continuar. Aquele homem ali, na sua frente, era seu pai, afinal.
- Eu podia deixar de trabalhar na propriedade. Podia arranjar um emprego a sério.
Jeremy inclinou-se para a frente e recolheu as brochuras com gestos rápidos.
- Não quero isso. Não quero isso, Julie, diabos me levem. Não quero isso. Quero que Broughton Manor recupere a sua glória, tal como tu. Não te vou afastar desse objectivo, meu filho. Não. Eu cá me arranjarei.
- Mas se acha que precisa de uma clínica...
- Preciso, preciso. Ficaria curado de vez e teria uma base sólida para recomeçar a minha vida. Mas se não há dinheiro... e só Deus sabe como eu acredito em ti, meu rapaz... não há dinheiro e não se fala mais no caso. Talvez outro dia...
Jeremy enfiou as brochuras no bolso do casaco. Lançou um olhar taciturno na direcção da lareira.
- Dinheiro - murmurou -, tudo se resume sempre ao dinheiro. A porta da saleta abriu-se e Samantha entrou.
Era como se lhe tivessem dado a réplica que a colocaria em cena.
- Desculpem-me queridos, mas o acesso é reservado. Foi assim que Lynley e Nkata foram recebidos em Wandsworth, quando se aproximaram de um púlpito instalado ao cimo de umas escadas. Estas conduziam a uma cavidade escura que parecia ser a entrada para o The Stocksl, guardada, naquele início de tarde, por uma mulher com ar de mãe de família que ocupava o tempo
fazendo renda. Além da indumentária bizarra, um fato de cabedal negro com um fecho éclair prateado aberto até à cintura e revelando uns seios descaídos cujo aspecto fazia lembrar a desagradável textura da pele de galinha, podia ser avó de alguém, e provavelmente era. O cabelo grisalho parecia ter sido penteado de propósito para a missa de domingo, e encavalitados na ponta do nariz tinha uns óculos em forma de meia-lua. Olhou para os dois detectives por cima das lentes e acrescentou:
- A não ser que queiram tornar-se membros. É isso que pretendem? Aqui têm. Dêem lá uma espreitadela, então.
Entregou uma brochura a cada um deles.
The Stocks, conforme leu Lynley, era um clube privado para adultos discretos e inteligentes que gostavam das práticas de dominação. Em troca de uma modesta anuidade, os membros tinham acesso a um mundo em que as suas mais secretas fantasias poderiam tornar-se as suas mais excitantes realidades. No mesmo ambiente onde podiam saborear refeições ligeiras e saudáveis, tomar uma bebida e ouvir música na companhia de outros entusiastas, tinham também oportunidade de experimentar, testemunhar ou participar na concretização dos sonhos mais sombrios da humanidade. As identidades e profissões de cada membro seriam escrupulosamente protegidas por uma gerência empenhada em assegurar total discrição, ao mesmo tempo que todos os seus desejos seriam concretizados por uma equipa de funcionários dedicada à satisfação das suas necessidades. O The Stocks estava aberto do
' Designação de instrumento de tortura medieval que consistia numa armação a que se prendiam as pernas e os braços dos indivíduos acusados de crimes não graves. [N. da T. ]
meio-dia às quatro horas da manhã, de segunda a sábado, incluindo dias feriados. Os domingos eram considerados dias de culto.
Culto de quê? interrogou-se Lynley. Não fez qualquer pergunta, no entanto. Enfiou a brochura no bolso do casaco, esboçou um sorriso afável, disse, Obrigado. Vou pensar no assunto e mostrou a sua identificação.
- Polícia. Gostaríamos de falar com o vosso empregado de bar.
O Fato de Cabedal Negro não era propriamente a encarnação de Cérbero, mas conhecia bem as regras do jogo.
- Este é um clube privado, inspector. Não é de modo nenhum uma casa de desordeiros. Ninguém entra aqui dentro sem me mostrar o cartão de membro e quando uma pessoa quer aderir, tem de apresentar um documento de identificação com fotografia e indicação da data de nascimento. Só aceitamos adultos e o registo criminal dos nossos funcionários é minuciosamente examinado antes da sua contratação.
Quando ela fez uma pausa para respirar, Lynley falou:
- Minha senhora, se quiséssemos encerrar...
- Não podem. Tal como vos disse, este é um clube privado. Temos um advogado da Liberty, por isso conhecemos os nossos direitos.
Lynley esforçou-se por responder de forma calma.
- Folgo muito em sabê-lo. Sou de opinião que o cidadão comum está muito mal informado. No entanto, uma vez que esse não é o vosso caso, estará ciente de que se quiséssemos encerrar o vosso estabelecimento, ou sequer fazer uma tentativa para o encerrar, dificilmente nos apresentaríamos à entrada do vosso clube exibindo a nossa identificação. O meu colega e eu pertencemos ao CID, não trabalhamos como agentes infiltrados.
Ao lado de Lynley, Nkata apoiava-se ora num pé ora noutro. Parecia não saber muito bem para onde devia dirigir o olhar. O decote da mulher ocupava precisamente o seu campo de visão, e o mais provável era que nunca tivesse tido oportunidade de contemplar um corpo menos digno de ser contemplado.
- Estamos a tentar localizar uma rapariga chamada Shelly Platt
- explicou Lynley. - Fomos informados de que o vosso empregado de bar conhece o seu paradeiro. Se quiser chamá-lo, podemos falar com ele aqui mesmo. Ou, então, podemos descer. A escolha é sua.
- Ele está a trabalhar - retorquiu ela.
- Nós também - Lynley sorriu. - E quanto mais depressa falarmos com ele, mais cedo poderemos ir trabalhar para outro lado.
Cedeu com um relutante Está certo e discou um número no telefone. Falou para o bocal mas manteve os olhos fixos em Nkata e em Lynley, como se ambos pudessem desatar a correr escada abaixo, se não o fizesse.
- Tenho dois maduros aqui em cima que querem encontrar uma tal Shelly Platt... Dizem que tu a conheces... Não. CID. Queres subir ou queres que eu... Tens a certeza? Está bem, pode ser.
Tornou a colocar o auscultador no lugar e inclinou a cabeça na direcção das escadas.
- Podem descer - disse. - Ele não pode sair do bar, pois de momento estamos com falta de pessoal. Disse que vos pode dar alguns minutos.
- E ele chama-se? - perguntou Lynley.
- Podem tratá-lo por Lash.
- Mr. Lash? - inquiriu Lynley em tom sério.
Ao ouvir a pergunta, a mulher conteve um sorriso.
- Você tem uma carinha laroca, querido, mas não abuse da sua sorte. Desceram as escadas e foram dar a uma passagem ao longo da qual se viam luzes vermelhas suspensas sobre paredes nuas pintadas de preto. Ao fundo do corredor, um cortinado de veludo negro escondia uma entrada, que dava acesso ao The Stocks, evidentemente.
A música perpassava através do veludo como se fosse um raio de luz. Não era a sonoridade rouca e agressiva do heavy metal, produzida por guitarras punk que chiavam como robôs sacrificados numa roda de tortura, mas sim uma melodia que fazia lembrar um cântico gregoriano entoado por monges a caminho da oração. Os monges não o teriam cantado tão alto, no entanto, como se o volume, mais do que o significado, fosse o principal requisito da cerimónia que se estava a realizar. Agnus dei qui tollis peccata mundi, cantavam as vozes. Em jeito de resposta, o som de uma chicotada ecoou como um tiro de pistola.
- Bem-vindo ao mundo do & - disse Lynley a Nkata, enquanto afastava o cortinado para o lado.
- Santo Deus, que irá dizer a minha mãezinha quando souber tudo isto - foi a resposta do detective.
Num início de tarde de sábado, Lynley esperava encontrar o clube deserto. Enganava-se. Embora suspeitasse que o cair da noite atrairia a presença de muito mais membros, que à socapa abandonariam os seus esconderijos diurnos, havia ainda admiradores das masmorras em número suficiente para que eles ficassem com uma ideia bastante precisa da aparência do The Stocks em dias de lotação esgotada.
No centro do clube via-se o instrumento de tortura pública da Idade Média, de onde provinha a designação do estabelecimento. Tinha capacidade para cinco blasfemos, mas naquele sábado apenas um pecador pagava o preço exigido pela prática de um malefício. Era um homem atarracado com uma calvície reluzente, que estava a ser chicoteado por uma mulher baixa e rechonchuda, pontuando cada chicotada com um Mau! Mau! Mau". O homem estava nu, mas ela usava um espartilho de cabedal preto, ao qual estavam presas meias de renda. Calçava sapatos com uns saltos tão altos que podia dançar em pontas sem grande esforço.
Chicotada. [N. da T. )
Por cima das cabeças deles, havia um suporte de iluminação giratório directamente para baixo de maneira a iluminar o instrumento de tortura, enquanto os outros formavam uma espécie de braços que giravam juntamente com o suporte, iluminando lentamente as restantes actividades que decorriam no clube.
- Caramba - murmurou Nkata.
Lynley não podia censurar o detective pela sua reacção.
Movendo-se ao ritmo do cântico gregoriano, alguns homens com coleiras presas a trelas davam a volta ao clube, conduzidos por mulheres com aspecto ameaçador, vestidas com fatos coleantes pretos ou com cuecas de cabedal de tipo fio dental e botas à altura da coxa. Um homem mais idoso, vestido com um uniforme nazi prendia algo aos testículos de um indivíduo mais jovem, despido e algemado a uma parede de tijolos pretos, enquanto uma mulher atada a uma jangada se contorcia e gritava por Mais! à medida que uma substância fumegante dentro de uma caneca de estanho ia sendo derramada sobre o seu peito nu e entre as pernas. Uma loura despenteada enfiada num colete de PVC de cintura bem cingida estava de pé em cima de uma mesa, punhos apoiados nas ancas, enquanto um homem com uma máscara de cabedal e uma cueca de metal de tipo fio dental lambia os saltos agulha dos sapatos de couro que ela tinha calçados. E enquanto estas actividades decorriam em recantos, nichos e noutros sítios bem visíveis, uma secção de roupas parecia gozar de um sucesso razoável junto dos sócios, que alugavam de tudo, desde sotainas de cardeal a gatos de nove rabos.
Ao lado de Lynley, Nkata tirou do bolso um lenço imaculadamente branco e limpou rapidamente a testa.
Lynley olhou para ele.
- Para um homem que costumava organizar lutas de facas em Brixton, você teve uma vida muito protegida, Winston. Vejamos o que Lash tem a dizer a seu favor.
O homem em questão parecia totalmente alheio às actividades que decorriam no clube. Não deu mostras de se ter apercebido da presença dos dois detectives a não ser depois de ter vertido seis pequenas doses de gin para dentro de um copo misturador, de lhes ter adicionado vermute e algumas gotas de um líquido retirado de um frasco de azeitonas verdes. Fechou a tampa do misturador e começou a agitá-lo. Foi nesse momento que olhou para eles.
No momento em que uma das luzes giratórias incidiu sobre ele, Lynley percebeu a origem da alcunha do homem: uma cicatriz irregular atravessava-lhe a testa e uma das pálpebras, abrindo um veio que fizera desaparecer a ponta do nariz e metade do lábio superior. Slash teria sido um nome mais
' Corte ou golpe. [N. da T. ]
adequado, já que a cicatriz fora obviamente deixada por uma faca. Ele, todavia, devia ter querido manter-se fiel ao tema do clube, já que Lash sugeria que um dos voluntários do estabelecimento estivera envolvido na sua mutilação.
Lash não olhou para Lynley, mas sim para Nkata. Abruptamente, pousou o copo misturador.
- Merda - murmurou -, eu devia ter dado cabo de ti quando pude, Demónio. A ideia do resgate foi uma treta.
Lynley olhou para o detective com uma expressão de curiosidade.
- Vocês dois conhecem-se?
- Nós... - Nkata procurava, obviamente, uma forma delicada de transmitir a informação ao seu superior hierárquico. - Cruzámo-nos uma ou duas vezes nas hortas perto de Windmill Gardens - disse Nkata. - Já foi há alguns anos.
- Para limpar as ervas daninhas, suponho - comentou Lynley secamente.
Lash sorriu com escárnio.
- Estávamos a mexer em ervas, lá isso é verdade - disse, virando- se depois para Nkata: - Sempre quis saber onde te tinhas metido. Podia ter adivinhado que seria uma coisa deste género.
Deu um passo na direcção deles e olhou mais de perto para Nkata. Os lábios assimétricos entreabriram-se de repente e esboçaram o que pretendia ser um sorriso.
- Sacana! - gritou, soltando uma gargalhada estridente. - Eu sabia que te tinha marcado naquela noite, tinha a certeza que aquele sangue não era só meu.
- Marcaste-me, sim - retorquiu Nkata em tom afável, passando o dedo pela cicatriz que lhe atravessava a face. Estendeu a mão. - Como estás, Dewey?
Dewey, interrogou-se Lynley.
- Lash - disse Dewey.
- Muito bem, então. Lash. Estás bem? Ou não?
- Ou não - respondeu Lash, sorrindo novamente. Aceitou a mão que Nkata lhe estendia e apertou-a: - Eu sabia que te tinha marcado, caraças, Demo. Tu, tão bom com a faca. Merda. Olhem só para esta caneca, se não acreditam em mim - o último comentário foi dirigido a Lynley e a Nkata. - Mas eu sempre fui rápido com a lâmina.
- Lá isso é verdade - confirmou Nkata.
- Que é que vocês têm a ver com Shelly Platt, então? - Lash sorriu. Não podem estar à procura do que ela normalmente tem para oferecer.
- Gostaríamos de conversar com ela sobre um crime - revelou Lynley. - De Nicola Maiden. O nome diz-lhe alguma coisa?
Lash exibiu uma expressão pensativa enquanto distribuía martinis por quatro copos dispostos numa bandeja. Escolheu algumas azeitonas verdes
recheadas, duas para cada copo, enfiou-as num palito e mergulhou-as nas bebidas, antes de lhes responder.
- Sheila! - gritou. - Estão prontos.
E quando a empregada se aproximou, precariamente equilibrada sobre um par de botas com solas grossas e vestida com uma camisola sem mangas feita de um tecido que fazia lembrar uma rede de pesca, empurrou a bandeja na direcção dela e virou-se para os detectives.
- Maiden', excelente nome. Para um sítio como este. Nunca me ia esquecer. Não, não a conheço.
- Mas Shelly, sim, ao que parece. E agora ela está morta.
- A Shelly não é nenhuma assassina. É uma cabra e uma puta má como as cobras. Mas que eu saiba nunca fez mal a ninguém.
- Seja como for, gostávamos de falar com ela. Segundo sei, ela vem cá com frequência. Se por acaso não estiver aqui agora, agradecíamos que nos dissesse onde podemos encontrá-la. Duvido que nos queira por aqui, à espera que ela chegue.
Lash lançou um rápido olhar na direcção de Nkata.
- Ele fala sempre desta maneira?
- Nasceu para isto.
- Merda. Isso deve dar cabo do teu estilo.
- Cá me arranjo - disse Nkata. - Podes ajudar-nos, Dew?
- Lash.
- Lash, claro. Estou sempre a esquecer- me.
- Posso, sim - respondeu Lash. - Em nome dos bons velhos tempos e essas histórias todas. Mas eu não te disse nada, percebeste?
- Entendido - concordou Nkata, pegando no bloco-notas de pele. Lash esboçou um sorriso irónico.
- Santa Mãe de Deus, estás mesmo dentro da lei, tu.
- Não contes nada a ninguém, meu, está bem?
- Porra, um Demónio da Morte transformado em chui - comentou, rindo.
Shelly Platt fazia as ruas nas imediações da estação de Earl's Court revelou ele. Àquela hora do dia, porém, não iriam certamente encontrá-la lá. Fazia o turno da noite e, por isso, devia estar em casa a dormir. Deu-lhes o endereço.
Agradeceram com um aceno de cabeça e encaminharam-se para a saída do clube. Ao atravessarem o corredor pintado de negro, repararam que uma das suas secções, dividida em compartimentos, estava aberta. O que antes parecera ser uma extensão de estuque pintada num tom fúnebre estava agora afastada para o lado. No seu lugar, via-se uma pequena loja com um balcão
' Maiden - donzela. [N. da T. ]
a toda a largura. Atrás dele, estava uma mulher de aspecto vampírico com cabelo roxo arranjado num estilo que fazia lembrar a atmosfera da Noiva de Frankenstein. Os lábios e pálpebras estavam realçados a negro enquanto o rosto e as orelhas estavam cobertos de piercings. Fazia lembrar um habitante do reino do mal.
- Estão ligeiramente fora do vosso ambiente, vocês dois - disse a mulher com um sorriso dengoso quando Lynley e Nkata passaram por ela.
- Mas eu posso fazer com que não se arrependam de ter cá vindo, se quiserem. Lynley fixou a sua atenção nos artigos que ela tinha expostos na loja. Havia de tudo, desde bonecos com alusões sexuais a vídeos pornográficos. O próprio balcão consistia numa vitrina de vidro decorada com um conjunto de frascos, artisticamente dispostos, contendo Shaft, o Lubrificante Pessoal e com objectos e dispositivos de couro e metal de diversas formas e tamanhos. Lynley absteve-se de especular sobre as possíveis utilizações de tais artigos. Ao passar pela loja, no entanto, reparou num desses objectos e abrandou o passo até ficar completamente parado. Baixou-se em frente da vitrina.
- Inspector - disse Nkata, no tom de voz angustiado próprio de um garoto, cujo pai tivesse cometido uma indiscrição imperdoável.
- Um momento, Winrúe - retorquiu Lynley, e virando-se para a mulher de cabelo roxo, perguntou: - Diz-me, por favor, o que é isto?
Ela pegou num cilindro cromado, idêntico ao que fora encontrado entre os objectos retirados do carro de Nicola Maiden.
- Isto - anunciou ela, orgulhosa - é importado de Paris. Bonito, não acha?
- Muito - concordou Lynley. - O que é?
- Um tensor de testículos.
- Um quê?
Ela sorriu. Agarrou num boneco insuflável, de tamanho real e anatomicamente correcto, que estava pousado no chão atrás do balcão e levantou-o, pedindo a Nkata:
- Mantenha-o direito, está bem? Está quase sempre deitado, mas para uma demonstração... Agarre-o pelo traseiro ou coisa semelhante. Descanse que ele não morde, querido.
- Eu não conto nada disto à sua mãe - segredou Lynley a Nkata. Os seus segredos estão seguros comigo.
- Muito engraçadinho - retorquiu Nkata. - Nunca toquei no traseiro de um tipo. De plástico ou de outro material qualquer.
- Ah. As primeiras vezes são sempre as que causam mais ansiedade, não é verdade? - Lynley sorriu. - Vá lá, dê uma ajuda à senhora, por favor.
Nkata pareceu receoso, mas fez o que lhe pediam, pousando as mãos sobre as nádegas de plástico do boneco, que foi colocado de lado em cima do balcão, uma perna para cada lado.
- Óptimo - disse a empregada da loja. - Vejam lá, então. Pegou no tensor de testículos e desaparafusou as duas cavilhas dos dois lados do objecto. Este abriu-se, ficando apenas preso pela dobradiça, de modo a poder ser encaixado em torno do escroto do boneco de plástico e a deixar os testículos suspensos. Em seguida, ela pegou nas cavilhas e tornou a colocá-las no sítio certo, explicando que a dominadora as aparafusava até onde o subjugado conseguisse suportar, fazendo aumentar a pressão sobre o escroto até que o subjugado implorasse por misericórdia ou proferisse a palavra previamente acordada como sinal para interromper a tortura.
- Também se pode pendurar pesos aqui - acrescentou ela, satisfeita, indicado os orifícios das cavilhas. - Tudo depende das preferências individuais e no que cada um necessita para atingir o orgasmo. A maior parte dos tipos quer ser espancado ao mesmo tempo. Mas isso são os homens. Quer que embrulhe?
Lynley conseguiu conter um sorriso perante a ideia de aparecer diante de Helen acompanhado daquela recordação do seu dia de trabalho.
- Fica para outra vez.
- Bom, já sabe onde nos pode encontrar - disse ela. De regresso à rua, Nkata soltou um suspiro irritado.
- Nunca pensei que alguma vez iria ver uma coisa daquelas. Aquele lugar provocou-me calafrios, meu.
- Demónio da Morte? Quem diria que uma pessoa com encontro marcado com Mr. Lash para umas navalhadas, ficaria de joelhos a tremer diante de uma singela sessão de tortura?
Os lábios de Nkata torceram-se e, em seguida, abriram-se num sorriso declarado.
- Se alguma vez me chamar Demónio em público, a nossa relação está acabada.
- Estou avisado. Vamos lá embora, então.
Barbara Havers decidiu que seria ridículo fazer todo o caminho de regresso à Yard, uma vez que comprara o almoço num daqueles carrinhos que vendiam sanduíches de shoarma ao fundo de Walker Court. Afinal, Cork Street ficava ali tão perto. Com efeito, encaixada a noroeste da Royal Academy, Cork Street encontrava-se a uma escassa meia-dúzia de passos do parque de estacionamento onde Barbara deixara o Mini antes de sair à procura do edifício situado nos números 31-32 de Soho Square. E uma vez que teria de pagar por uma hora de estacionamento, quer esgotasse o tempo até ao último segundo quer não o fizesse, parecia-lhe muitíssimo mais económico dirigir-se a pé até Cork Street enquanto se encontrava nas suas imediações do que regressar no final do dia depois de, obedientemente - já para não dizer inutilmente - ter passado mais algumas horas em frente a um termi nal de computador.
Procurou o cartão que encontrara no apartamento de Terry Cole e confirmou o nome da galeria. Bowers, assim se chamava o sítio, situado em Cork Street. Por baixo, lia-se Neil Sitwell. Era tempo de descobrir quais tinham sido os desejos ou as expectativas de Terry Cole quando guardara aquele cartão.
Atravessou calmamente Old Brompton Road, virou para Brewer Street, esquivando-se dos fregueses de sábado, das imensas filas de carros que vinham dos lados de Piccadilly Circus e dos turistas que procuravam o Café Royal, em Regent Street. Não teve qualquer dificuldade em descobrir a Bowers, já que um enorme camião estacionado mesmo em frente ao edifício em Cork Street, bloqueava o trânsito, provocando a ira de um motorista de táxi que vociferava imprecações contra dois homens que descarregavam uma grade de madeira para o passeio.
Barbara entrou no que parecia ser não uma galeria - como fora inicialmente levada a supor a partir dos elementos contidos no cartão, da morada nele impressa e das aspirações artísticas de Terry -, mas sim uma casa leiloeira do género da Christies. Devia haver um leilão marcado para breve, e o que estava a ser descarregado do camião estacionado na rua deviam ser os artigos a leiloar. Por todo o lado havia quadros com molduras douradas trabalhadas: empilhados sobre grades, encostados aos balcões, pendurados nas paredes e deitados no chão. No meio deles, funcionários vestidos com fatos de trabalho azuis seguravam capas onde faziam anotações que pareciam encaminhar cada peça para áreas identificadas por designações como Molduras Danificadas, Restauro e Válidos.
Atrás de um balcão, estava pendurado um quadro de vidro com cartazes anunciando leilões passados e futuros. Além de pinturas, a casa já vendera tudo, desde quintas situadas na República da Irlanda a prata, jóias e objets d'art.
A Bowers era muito maior do que parecia vista da rua, onde duas janelas e uma porta sugeriam a entrada para um estabelecimento mais modesto. No interior, no entanto, as salas pareciam multiplicar-se até ao cimo de Old Bond Street. Barbara deambulou pelas divisões à procura de alguém que pudesse indicar-lhe onde poderia encontrar Neil Sitwell.
Sitwell acabou por revelar-se o responsável pelas actividades previstas para aquele dia. Quando Barbara se aproximou dele, estava de cócoras examinando uma tela desemoldurada onde estavam representados três cães de caça saltitando debaixo de um carvalho. Pousara a capa no chão e enfiava a mão através de um enorme rasgão que atravessava a tela desde o canto direito como um relâmpago. Ou como um comentário ao próprio trabalho, pensou Barbara. Um esforço praticamente inútil, era assim que ela o via.
Sitwell retirou a mão e disse em voz alta para um jovem assistente que passava, apressado, carregando nos braços várias outras telas:
- Leva-a para o Restauro e diz-Lhes que a queremos de volta daqui a seis semanas.
- Sim, Mr. Sitwell - respondeu o rapaz. - Volto num instante. Vou só aos Válidos e volto já.
Sitwell pôs-se de pé. Cumprimentou Barbara com uma inclinação de cabeça e em seguida indicou a tela que acabara de examinar.
- Vai chegar aos dez mil.
- Está a brincar - disse ela. - É por causa do pintor?
- São os cães. Sabe como são os ingleses. Eu próprio também não os suporto. Aos cães, claro. Em que posso ajudá-la?
- Gostaria de trocar algumas impressões consigo, se houver um sítio onde possamos conversar.
- Umas impressões sobre quê? Estamos cheios de trabalho neste momento. E esperamos receber mais duas entregas esta tarde.
- Sobre um crime - Barbara mostrou-lhe a identificação. Sem perder tempo. Era todo ouvidos.
Conduziu-a até umas escadas apertadas, ao cimo das quais ficava o seu gabinete, enfiado num cubículo com vista para as salas de exposição. A decoração era simples: uma secretária, duas cadeiras e um armário de arquivo. As únicas peças decorativas - se é que assim se podiam chamar - eram as paredes. Tinham sido revestidas com painéis de cortiça do chão até ao tecto e sobre eles tinham sido afixados e colados documentos ilustrativos da história da empresa onde trabalhava Mr. Sitwell. Ao que parecia, a casa leiloeira tinha um passado distinto. Todavia, à semelhança de uma criança pouco notada numa casa de irmãos sobredotados, precisava de fazer ouvir bem alto a sua voz, a fim de superar a notoriedade de que gozavam a Sotheby e a Christies.
Rapidamente, Barbara colocou Sitwell ao corrente da morte de Terry Cole. Um jovem - encontrado morto em Derbyshire - guardara um cartão onde estava impresso o nome de Neil Sitwell entre os seus objectos pessoais, relatou ela. Será que Mr. Sitwell tinha alguma explicação para esse facto?
- Ele era uma espécie de artista - acrescentou Barbara. - Um escultor. Trabalhava com utensílios de jardinagem e alfaias agrícolas. Para as suas esculturas, claro. É por essa razão que o senhor poderá tê-lo conhecido. Numa exposição, talvez... Isto diz-Lhe alguma coisa?
- Receio bem que não - respondeu Sitwell. - Vou a inaugurações, naturalmente. Uma pessoa tem que se manter actualizada em relação ao que está a acontecer no mundo da arte. É uma forma de manter a nossa intuição em sintonia com o que é vendável ou não. Mas essa é a minha distracção... acompanhar as últimas tendências... não a minha área de trabalho. Uma vez que somos uma casa leiloeira e não uma galeria, não tenho motivos para dar o meu cartão a nenhum jovem artista.
- Porque não faz leilões de peças de arte moderna, é isso?
- Porque não leiloamos trabalhos de artistas não consagrados. Por razões óbvias.
Barbara reflectiu sobre o que ele acabara de lhe dizer, perguntando a si própria se Terry Cole teria tentado fazer-se passar por um escultor consagrado. Era pouco provável. E embora Cilla Thompson tivesse mencionado a venda de pelo menos uma das suas peças rebarbativas, parecia muito improvável que uma casa leiloeira tentasse integrá-la no seu catálogo através do seu companheiro de apartamento.
- Será possível que ele tivesse vindo cá, ou que se tivesse encontrado consigo noutro sítio, por outra razão?
Sitwell juntou as pontas dos dedos sob o queixo.
- Há três meses que estamos a tentar contratar um restaurador de quadros qualificado. Sendo ele um artista...
- Usei a palavra no seu sentido mais lato - advertiu Barbara.
- Compreendo. Bom, uma vez que ele se considerava a si mesmo como um artista, talvez tivesse alguns conhecimentos sobre restauro de pintura e tivesse marcado uma entrevista comigo. Deixe-me ver.
Tirou uma agenda preta da primeira gaveta da secretária e começou a percorrê-la página a página, assinalando os dias com o indicador à medida que revia os compromissos registados em cada data.
- Não encontro ninguém chamado Cole, Terry ou Terence. Ninguém com esse nome.
Em seguida, virou-se para uma caixa de metal amolgada, dentro da qual estavam arquivados cartões por detrás de separadores ordenados alfabeticamente. Explicou que tinha o hábito de guardar os nomes e endereços dos indivíduos cujos talentos considerava poderem vir a ser úteis à Bowers, e talvez o nome Terence Cole estivesse entre eles... Mas não, também não estava nesse arquivo. Lamentava muito, mas ao que parecia não iria poder ajudar a detective na sua investigação.
Barbara tentou uma última pergunta. Seria possível que Terry Cole tivesse encontrado o cartão de Mr. Sitwell por outras vias? Tanto quanto sabia pela mãe e a irmã do rapaz, ele sonhava abrir a sua própria galeria de arte. Talvez tivesse encontrado Mr. Sitwell algures, e depois de ter conversado com ele tivesse acabado por ficar com um dos seus cartões e com a promessa de um encontro posterior.
Barbara sugeriu tudo isto num tom de voz encorajador, mas sem muita esperança de ser bem-sucedida. No entanto, quando pronunciou as palavras abrir a sua própria galeria, Sitwell levantou o dedo indicador, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa.
- Sim, sim. A galeria de arte, claro. Agora me lembro. O que me confundiu foi o facto de ter mencionado primeiro que ele era escultor, está a perceber? Esse jovem nunca se apresentou como escultor quando veio falar comigo. Nem sequer como artista, aliás. Apenas me confidenciou que esperava...
- Lembra-se dele? - Barbara interrompeu-o, ansiosa.
- Pareceu-me um plano bastante dúbio para alguém que falava de uma maneira tão... - Sitwell lançou-lhe um olhar rápido e apressou-se a mudar de direcção -, bem, para alguém que se vestia de uma maneira... - Sitwell hesitou, sem saber como continuar o seu raciocínio.
Era óbvio que se apercebera que estava prestes a ser indelicado. O sotaque de Barbara traía as suas origens, muito idênticas às de Terry Cole. E quanto à sua maneira de vestir, não precisava de um espelho para saber que não era nenhuma candidata a figurar nas páginas da Vogue.
- Muito bem. Vestia-se sempre de preto e falava com sotaque de classe operária - disse Barbara. - Usava uma barbicha. Cabelo bem curto e rabo-de-cavalo.
Sim, era esse mesmo, confirmou Sitwell. Estivera na Bowers na semana anterior. Trouxera uma amostra qualquer que julgava que a casa poderia estar interessada em leiloar. Os lucros obtidos com o leilão, confiara-lhe ele, ajudá-lo-iam a financiar a galeria que desejava abrir.
A amostra de uma peça para leiloar? O primeiro pensamento de Barbara foi para a caixa de cartões das prostitutas que encontrara debaixo da cama de Terry Cole. Objectos mais estranhos do que aqueles tinham já sido colocados à venda. Não lhe ocorria nenhum, todavia.
- Era o quê? Não era nenhuma das suas esculturas?
- Parte de uma partitura musical - replicou Sitwell. - Disse-me que tinha lido algures que alguém tinha vendido uma canção manuscrita de Lennon e McCartney, ou um cadernos de letras, algo desse género, e tinha esperanças de conseguir vender um conjunto de partituras que tinha em sua posse. A folha que ele me mostrou fazia parte do conjunto.
- Uma composição assinada Lennon e McCartney, é o que me está a dizer?
- Não, tratava-se de uma composição de Michael Chandler. O rapaz disse-me que tinha mais doze folhas iguais à que me trouxe e esperava poder leiloá-las. Suponho que estaria a imaginar milhares de fãs do teatro musical em fila durante horas, à espera da oportunidade de pagar vinte mil libras por uma folha de papel na qual um homem já morto fizera outrora uns rabiscos a lápis.
Sitwell sorriu, olhando para Barbara com a mesma expressão de troça tolerante e paternalista com que devia ter brindado Terry. Sentiu vontade de lhe bater, mas conteve-se.
- A música não valia nada, então? - perguntou Barbara.
- Nada disso.
Sitwell passou a explicar que a música podia muito bem valer uma fortuna mas que isso não interessava, pois independentemente da forma como fora parar às mãos de Terry Cole, continuava a pertencer ao espólio de Chandler. Por essa razão, a Bowers não podia leiloá-la, a não ser que os herdeiros de Chandler autorizassem a sua venda. Nesse caso, o dinheiro pertenceria aos sobreviventes da família de Chandler.
- Mas então, como é que a partitura foi parar às mãos dele?
- Orfam? Vendas de artigos em segunda mão? Não sei. Às vezes, as pessoas desfazem-se de objectos pessoais sem se aperceberem disso, não é verdade? Ou enfiam-nas dentro de uma mala ou de uma caixa de cartão que acaba por cair nas mãos de outras pessoas. Seja como for, o rapaz não me disse nada sobre isso e eu não perguntei. Ofereci-me para descobrir quem eram os advogados encarregues de gerir os bens de Chandler e devolver-lhes a partitura, a fim de que a mesma fosse entregue à viúva e aos filhos. Mas Cole preferiu fazer isso pessoalmente, na esperança, conforme disse, de obter ao menos uma recompensa pela devolução de bens alheios encontrados.
- Bens alheios encontrados?
- Era assim que ele se referia à partitura.
No final da entrevista com Sitwell, o rapaz limitara-se a perguntar qual seria a melhor maneira de descobrir os advogados de Chandler. Sitwell indicara-lhe a King-Ryder Productions, dado que - como qualquer pessoa razoavelmente consciente durante as duas últimas décadas saberia - Michael Chandler e David King-Ryder tinham sido sócios até à morte trágica e prematura do primeiro.
- Pensando bem, acho que também lhe devia ter indicado os herdeiros de King-Ryder - disse Sitwell com uma expressão contemplativa, acrescentando logo em seguida, Pobre diabo, referindo-se aparentemente ao suicídio de David King-Ryder ocorrido no princípio do Verão. - Mas como a companhia produtora ainda está activa, achei que fazia sentido começar por aí.
Um intrigante molho de brócolos, pensou Barbara. Interrogou-se sobre se todos aqueles pormenores estariam relacionados com os crimes ou se fariam parte de algo completamente diferente.
Diante do silêncio dela, Sitwell tentou desculpar-se. Lamentava não poder ajudá-la mais. A visita do rapaz nada tivera de sinistro. Nada de excepcional, tão-pouco. Sitwell esquecera-se por completo do encontro com o rapaz e, ainda agora, não conseguia explicar de que maneira ele tivera acesso ao seu cartão, já que não se lembrava de todo de lho ter dado.
- Tirou um - disse Barbara, fazendo sinal para o suporte de cartões que estava sobre a secretária de Sitwell.
- Claro. Entendo. Não me lembro de nada, mas suponho que pode ter sido isso que aconteceu. Mas para quê?
- Para esconder a pastilha elástica - esclareceu Barbara, pensando, E ainda bem.
Percorreu o caminho de regresso à rua e saiu do edifício. Procurou den tro da mala a lista de funcionários que lhe fora fornecida por Dick Long,
no 31-32 Soho Square. Estava ordenada alfabeticamente por apelidos e i incluía o número de telefone do local de trabalho da pessoa em questão,
o endereço e número de telefone da residência, bem como a empresa para a qual trabalhava cada indivíduo.
Barbara percorreu a lista até encontrar o que procurava. King-Ryder Productions, o décimo nome da lista.
Bingo", pensou.
Não existia qualquer tipo de dispositivo de segurança no endereço de Shelly Platt. Ela vivia perto da estação de Earl's Court, numa casa antiga con vertida em apartamentos, outrora protegida pelo tipo de porta cujo trinco podia ser destravado pelos residentes premindo um botão no interior de cada apartamento. Naquele momento, porém, a porta estava aberta. Reagindo automaticamente ao dar com a porta entreaberta, Lynley parou para examinar o trinco. Embora a porta estivesse munida das componentes necessárias, a ombreira que a circundava fora danificada em tempos. Ainda era possível fechar a porta, mas não prendia. Entrai e Roubai, podia perfeitamente ser a epígrafe do edifício.
Não havia elevador, por isso Lynley e Nkata dirigiram-se para as escadas, ao fundo do corredor. Shelly vivia no quarto andar, o que deu aos dois homens a oportunidade de testar as respectivas condições físicas. Nkata estava em melhor forma, conforme Lynley descobriu. Os seus lábios jamais tinham sentido o sabor do tabaco, e essa abstinência - sem contar com a intolerável juventude do homem - dava os seus frutos. Nkata, no entanto, foi suficientemente cortês para não mencionar nenhum destes aspectos. O que não impediu o raio do homem de fazer de conta que parava para contemplar uma hipotética vista, ao alcançar o mezanino do segundo andar, a fim de dar a Lynley o tempo necessário para recobrar o fôlego. Coisa que ele jamais faria diante de um dos seus subordinados.
Havia dois apartamentos no quarto andar. Um deles estava virado para a rua, o outro tinha vista para as traseiras do edifício. Shelly Platt vivia neste último, um pequeno estúdio, como viriam a descobrir.
Tiveram de bater à porta várias vezes até obterem uma resposta. Quando, finalmente, se abriu uma estreita fresta com a largura permitida por uma insignificante corrente de segurança, entreviram um rosto franzido e ensonado emoldurado por uma massa revolta de cabelos cor de laranja.
- O que é? Ah, são dois, é? Não querendo ofender, querido, não vou com negros. Não é nenhum preconceito, reparem. É só um acordo que tenho com uma miúda e que dura há anos. Posso dar-vos o número dela, se quiserem - a rapariga falava com o sotaque distintamente adenoidal próprio de quem crescera a norte de Mersey.
- Miss Platt? - perguntou Lynley.
- Quando estou consciente - sorriu, exibindo uma dentadura cinzenta. - É raro ver alguém do seu tipo por aqui. Qual é a sua ideia?
- Queremos conversar - Lynley mostrou a identificação e rapidamente deu um passo em frente quando ela tentou fechar a porta. - CID disse ele. - Gostaríamos de falar consigo, Miss Platt.
- Vocês acordaram-me - subitamente soou ofendida. - Voltem depois,
quando eu já tiver tomado o pequeno-almoço.
- Duvido que queira que façamos isso - retorquiu Lynley. - Sobre tudo se mais tarde estiver ocupada com um compromisso. Podia ser mau para o negócio. Deixe-nos entrar, por favor.
- Ora, que se lixe - protestou ela, desprendendo a corrente de segurança e deixando que fossem eles a abrir a porta.
Lynley empurrou-a e ambos entraram numa única divisão com uma janela de travessa coberta por um cortinado feito de contas, daqueles que geralmente eram usados para tapar portas. Por baixo da janela, um colchão estendido no chão fazia as vezes de cama. Shelly Platt caminhou até ele arrastando os pés descalços e, pisando-o sem cerimónia, agarrou num monte de ganga que veio a revelar-se ser um macacão. Vestiu-o por cima da pouca roupa que tinha vestida e que consistia numa T-shirt muito debotada estampada com o rosto imediatamente identificável do garoto de rua do musical Les Misérables. Agarrou num par de mocassins e calçou-os. Em tempos, os sapatos tinham sido decorados com contas, mas tudo o que restava eram minúsculas partículas azul-turquesa que ela ia arrastando atrás dela quando caminhava.
A cama estava desfeita. A cobri-la havia uma colcha indiana amarela e cor de laranja e um único cobertor às riscas roxas e cor-de- rosa com um rebordo acetinado e bastante puído. Shelly afastou-se da cama e atravessou a divisão até junto de um lavatório, onde encheu um tacho com água. Colocou-o sobre um dos queimadores de uma chapa colocada sobre o tampo riscado de uma cómoda.
No quarto havia apenas um sítio onde sentar: um sofá desmontável preto manchado de nódoas, todas elas de uma tonalidade acinzentada. Tinham formas variadas, como se fossem nuvens. Com um pouco de imaginação, era possível ver nelas toda a espécie de seres, desde unicórnios a focas. Shelly fez sinal para o sofá enquanto voltava para a cama.
- Podem abancar aí, se quiserem - disse, com indiferença. - Um dos dois vai ter de ficar em pé.
Nenhum deles deu um passo na direcção da peça de mobiliário imunda.
- Façam como quiserem - disse ela, deixando-se cair sobre o colchão. Agarrou numa das duas almofadas existentes e aconchegou-a contra o estômago. Com o pé afastou outro monte de roupa - uma mini-saia em PVC encarnado, meias de rede pretas ainda presas aos suspensórios e um top verde, aparentemente manchado com nódoas da mesma cor das que tingiam o sofá. Fitou Lynley e Nkata sem trair a menor das emoções. Os olhos destacavam-se pela ausência de vida e pelo aspecto da pele das pálpebras, que Lhe conferia o ar nada atraente dos heroinómanos, ultimamente muito promovido pelos modelos das revistas de moda.
- E então? O que é que querem? Falou em CID, não na brigada de costumes. Por isso, não tem nada a ver com o negócio, pois não?
Lynley tirou do bolso a carta anónima que Vi Nevin lhe mostrara horas atrás e entregou-lha. Shelly demorou algum tempo a inspeccionar o bilhete, chupando o lábio inferior e mordiscando- o com uma expressão pensativa.
Nkata abriu o bloco-notas e ajustou a grafite da lapiseira, enquanto Lynley passeava os olhos livremente pelo quarto. Tinha duas características assinaláveis, além do odor inconfundível a sexo, ligeiramente abafado pelo aroma de incenso de jasmim recentemente queimado. Uma delas era a existência de um velho malão de viagem aberto, deixando ver fatos de cabedal, algemas, máscaras, chicotes e objectos afins. A outra consistia numa colecção de fotografias coladas às paredes. Estas representavam dois temas apenas: um jovem geralmente retratado com uma guitarra eléctrica a tiracolo e Vi Nevin numa série de poses desde a sedutora à brincalhona: corpo infantil e expressão recatada.
Shelly surpreendeu Lynley olhando para as fotografias quando levantou a cabeça depois de examinar as cartas anónimas.
- E então? Que é que têm? - perguntou, referindo-se aparentemente ao que tinha na mão.
- Foi você que as enviou? - quis saber Lynley.
- Não acredito que ela tenha chamado a bófia por causa disto. Que grande prima-dona que ela me saiu.
- Foi então você que as enviou? E outras iguais a essas também?
- Não foi isso que eu disse, pois não?
Shelly atirou a carta para o chão. Deitou- se de barriga para baixo e tirou uma caixa de cores alegres que estava escondida por baixo de vários exemplares amarelados do Daily Express. Lá dentro havia trufas de chocolate, que ela remexeú até encontrar uma do seu agrado. Passou a língua pela superfície do bombom antes de o enfiar na boca. As faces moviam-se como foles e ela chupava-o com movimentos exagerados. Soltou um gemido de suposto prazer.
No lado oposto do quarto, Nkata tinha cara de quem começava a interrogar-se sobre se haveria alguma possibilidade de o seu dia piorar ainda mais.
- Onde estava na terça-feira à noite?
A pergunta era sobretudo uma formalidade. Lynley não conseguia acreditar que aquela rapariga tivesse neurónios suficientes - já para não dizer a força - para dar cabo de dois adultos jovens e saudáveis, por mais que Vi Nevin pensasse o contrário. Apesar de tudo, fez a pergunta. Era sempre impossível prever a quantidade de informação que se podia obter com uma simples demonstração de suspeita policial.
- Onde estou sempre - replicou ela, deitando-se um pouco mais até ficar apoiada num cotovelo, a mão sob a cabeça coberta por uma massa de cabelo cor de laranja. - Na estação de Earl's Court... dando indicações a quem se perde à saída do metro, claro - sorriu ironicamente. - Estive lá a noite passada e vou lá estar esta noite. E na terça-feira à noite também lá estive. Porquê? A Vi diz que não estive, é isso?
- Ela diz que você Lhe enviou estas cartas e que a perseguiu durante alguns meses.
- Pois então dêem-lhe ouvidos - disse Shelly, num tom trocista. - Estamos num país livre, se bem me lembro. Posso andar por onde muito bem me apetece e se ela por acaso estiver nos sítios onde eu ando... azar. Azar o dela, claro. Eu estou-me a lixar para isso.
- Mesmo que ela esteja com Nicola Maiden?
Shelly não respondeu, limitando-se a enfiar a mão na caixa de chocolates. Era extremamente magra e o estado repelente dos seus dentes era um testemunho silencioso do modo como conseguia sobreviver, apesar de uma alimentação à base de trufas.
- Cabras - disse. - São umas aproveitadoras, as duas. Eu devia ter percebido isso antes, só que pensei que a amizade significava alguma coisa para certas pessoas. E não significa, obviamente. Espero que recebam a paga que merecem pela forma como me trataram.
- Nicola Maiden já recebeu - disse Lynley. - Foi assassinada na terça-feira à noite. Há alguém que possa confirmar o seu paradeiro entre as dez e a meia-noite, Miss Platt?
- Assassinada? - Shelly endireitou o corpo. - Nikki Maiden foi assassinada? Como? Quando? Eu nunca... Está a dizer que ela foi assassinada? Porra. Tenho de telefonar à Vi. Tenho de telefonar à Vi!
Pôs-se de pé de um salto e dirigiu-se ao telefone que, tal como a chapa, estava em cima da cómoda. A água no tacho começara a ferver, proporcionando a Vi um momento de pausa na sua ânsia de entrar em contacto com Vi Nevin. Levou o tacho até ao lavatório e deitou um pouco de água dentro de uma chávena cor de alfazema, repetindo, Assassinada. Como é que ela está? A Vi está bem, não está? Ninguém fez mal nenhum à Vi, pois não?
- Ela está bem.
A mudança súbita na atitude dela deixou Lynley curioso sobre o que revelava acerca dela, acerca do caso.
- Ela pediu-lhe que me viessem contar, não foi? Merda. Coitada! Shelly abriu um armário que ficava por cima do lava-loiça e tirou um frasco de café solúvel Gold Blend, um segundo frasco de leite em pó e uma lata de açúcar. Enfiou a mão dentro do frasco de leite para tirar uma colher com aspecto sebento. Usou-a para encher a chávena com os vários ingredientes, mexendo energicamente entre cada adição. Nunca secou a colher, e no final da operação o talher estava coberto de uma camada acastanhada de aspecto nada atraente.
- Bem, vamos com calma - disse, tendo aparentemente aproveitado o tempo que demorara a preparar a chávena de café para reflectir sobre a notícia que Lynley lhe comunicara. - Não vou propriamente voltar a correr para casa dela, independentemente da vontade dela. Ela fez-me mal e sabe muito bem disso, por isso se quiser que eu volte, vai ter de me pedir com muito jeitinho. E eu posso não ir, calha bem. Também tenho o meu orgulho.
Lynley perguntou a si mesmo se ela teria ouvido a pergunta que ele lhe fizera. Se compreenderia as implicações contidas nessa pergunta, não só em relação ao seu papel no que dizia respeito à investigação do assassínio de Nicola Maiden, mas também no que se referia ao estado das suas relações com Vi Nevin.
- O facto de ter enviado cartas de ameaça coloca-a sob suspeita, Miss Platt - disse. - Compreende isso, não é verdade? Vai ter de arranjar alguém que possa confirmar o seu paradeiro na noite de terça-feira entre as dez e a meia-noite.
- Mas a Vi sabe que eu nunca... - Shelly franziu o sobrolho. Algo parecia estar a subir até ao nível da sua consciência, como uma toupeira avançando através das raízes de uma roseira. O seu rosto espelhava o que começava a tomar forma no seu espírito: se a polícia estava ali, no estúdio onde ela morava, assustando-a com a morte de Nikki Maiden, só podia haver uma explicação e só podiam ter chegado até ela através de uma pessoa.
- Foi a Vi que vos mandou vir até aqui, não foi? Foi a Vi... que vos mandou vir falar comigo. Ela pensa que fui eu que limpei o sebo à Nikki. Merda. Grande Cabra. Cabra de uma figa. Ela é capaz de tudo só para se vingar de mim, não é?
- Vingar-se de si porquê? - perguntou Nkata.
O jovem de guitarra a tiracolo, retratado numa fotografia de grandes dimensões, espreitava por cima do ombro, mostrando a língua. Esta estava ornada por uma fileira de piercings. De um deles pendia uma corrente prateada, que descrevia uma curva sobre uma das suas faces até se transformar em argola na orelha.
- Vingar-se de si porquê? - Nkata repetiu pacientemente, lápis pousado sobre o bloco e rosto animado pelo interesse e curiosidade.
- Por ter bufado ao Reeve Bafo de Onça - afirmou Shelly.
- Da MKR Financial Management? - perguntou Nkata. - Martin Reeve?
- Esse mesmo - Shelly caminhou sobre o colchão, segurando a caneca do café na mão e ignorando o líquido quente que pingava para o chão. Baixou-se, escolheu uma trufa e mergulhou-a dentro da caneca. Pegou noutro chocolate e enfiou-o na boca. Chupou o bombom energicamente e com grande concentração. Esta parecia ser dirigida - finalmente - ao perigo razoável que ameaçava a sua situação. - Pronto, está bem. Contei-lhe tudo
- confessou. - E depois? Ele tinha o direito de saber que elas estavam a mentir-lhe. Oh, claro, ele não merecia saber, cretino como é, mas uma vez que estavam a fazer com ele o mesmo que tinham feito comigo, e uma vez que iam continuar a fazer a mesma coisa a outros desde que ninguém as descobrisse, passou a ter o direito de saber. Porque, se as pessoas usam os outros, então devem pagar por isso. É o mesmo que fazem os clientes, na minha opinião.
Nkata tinha o ar de uma pessoa que estava a ouvir grego e se esforçava por fazer uma tradução para latim. Lynley também não se sentia lá muito esclarecido.
- Está a referir-se a quê, exactamente, Miss Platt?
- Estou a referir-me a Reeve, o Bafo de Onça. Vi e Nikki mamaram- lhe o mais que puderam e quando já tinham os bolsos cheios - decididamente, ela não era o tipo de pessoa que se preocupasse com a coerência interna da linguagem figurativa que usava - puseram-se a andar sem dizer nem água vai nem água vem. Só que antes de darem à sola, trataram de sacar todos os clientes delas. Nikki e Vi estavam era a preparar-se para acabar com o Bafo de Onça, estabelecendo-se por conta própria, e como eu achei que não era justo, contei-Lhe tudo.
- Então, sempre é verdade que Vi Nevin trabalhava para Martin Reeve? - Lynley perguntou a Shelly.
- Claro que trabalhava. Trabalhavam as duas. Foi assim que se conheceram.
- E você, também trabalhava para ele?
Ela soltou uma gargalhada.
- Isso era muito difícil de acontecer. Eu bem me esforcei, lá isso é verdade. Logo depois de terem contratado Vi. Mas eu não fazia o género de mulher que ele andava à procura, conforme ele próprio me disse. Queria requinte, queria que as raparigas que trabalhavam para ele soubessem alimentar uma conversa, qual o garfo que combina com afaca de peixe, que fossem capazes de assistir a uma ópera sem adormecer a meio e que pudessem frequentar um cocktail como acompanhantes de um tipo feio e gordo que desejasse apresentá-las como namoradas por uma noite e...
- Já percebemos onde quer chegar - interrompeu Lynley. - Mas para que não reste nenhuma dúvida, deixe-me perguntar-lhe o seguinte: a MKR é um serviço de acompanhantes, certo?
- Que se faz passar por uma empresa de gestão financeira - acrescentou Nkata.
- É isso que está a tentar dizer-nos? - Lynley perguntou a Shelly. Que tanto Nicola como Vi trabalharam como acompanhantes para a MKR até ao dia em que decidiram lançar o seu próprio negócio? É isso que está a dizer, Miss Platt?
- Tão certo como o Sol que nasce todos os dias - afirmou ela. - Martin contrata raparigas e diz que elas são estagiárias na porcaria de uma empresa ligada a dinheiro que nem sequer existe. Ele mete-as lá dentro e depois dá-lhes uma carrada de livros para estudarem e aprenderem as linhas gerais do negócio, e uma semana depois mais ou menos pergunta-lhes se elas lhe podem fazer um favor e fingir que são as acompanhantes de um dos importantes clientes da MKR que veio a Londres para participar numa conferência e gostaria de ter companhia para jantar. Diz-lhes que Lhes paga um extra por isso, se Lhe fizerem aquele favor só por uma vez. E depois esta vez transforma-se noutra até que elas percebem qual é mesmo a actividade da MKR. E aí começam a sacar que fazem muito mais massa como acompanhantes de um vendedor de computadores coreano, de magnatas do petróleo árabes, ou de políticos americanos, ou seja lá de quem for, do que alguma vez con seguiriam fazer nos empregos que tinham antes de começarem a trabalhar para o Bafo de Onça. Além disso, podem fazer ainda mais, se proporcionarem aos seus companheiros um pouco mais do que companhia. E é nessa altura que o Bafo de Onça as introduz nas verdadeiras características do negócio dele. Que não têm puto que ver com investir o dinheiro de ninguém em lugar nenhum, podem acreditar em mim.
- Como é que ficou a saber tudo isto? - quis saber Lynley.
- Vi convidou Nikki para ir lá a casa uma vez. Começaram a conversar e eu ouvi o que estavam a dizer. Vi foi contratada pelo Bafo de Onça de forma diferente, e elas estavam a contar e a comparar as histórias uma da outra.
- E a de Vi era?
- Era diferente, como eu disse. Ela era a única acompanhante que ele contratara directamente da rua. As outras eram estudantes. Raparigas que andavam na universidade e que andavam à procura de um trabalho complementar. Mas a Vi fazia o seu negócio colando o cartão dela em cabinas telefónicas...
- E você era empregada dela?
- Pois era. E o Bafo de Onça encontrou um dos cartões, gostou do aspecto dela... se calhar não tinha mais nenhuma rapariga que pudesse ter ar de quem não tem mais de dez anos de idade como a Vi consegue quando quer - e telefonou-lhe. Eu fiz-lhe uma marcação, tal como fazia para os outros, mas quando ele apareceu disse que queria falar de negócios - ela ergueu a caneca de café e bebeu, fitando atentamente Lynley por cima do rebordo da caneca. - E foi assim que Vi começou a trabalhar para ele - disse.
- E deixou de precisar de si - concluiu Lynley.
- Mas eu não a abandonei. Cozinhava para ela, lavava-lhe a roupa, mantinha o apartamento arrumado. Depois ela quis que Nikki viesse morar com ela e que fosse sócia dela, e eu fiquei fora da jogada. Assim, sem mais nem menos - fez estalar os dedos. - Um dia, era eu quem lhe lavava as cuecas, no outro estava a baixar as minhas para dar uma queca de dez libras com tipos que estavam à espera do comboio para os subúrbios.
- E foi nessa altura que decidiu informar Martin Reeve sobre os planos delas - observou Lynley. - Foi uma boa provocação da sua parte, que serviu para você se vingar.
- Eu não fiz mal a ninguém! - gritou Shelly. - Se estão à procura de alguém que seja capaz de tratar da saúde a alguém, isto é, de matar uma pessoa, têm é de ir falar com o Bafo de Onça, não comigo.
- E, no entanto, não é a ele que Vi acusa - disse Lynley. - O que seria de esperar que fizesse, caso suspeitasse dele. Como é que explica isso? Ela afirma até que não o conhece de parte nenhuma.
- Ora, isso é lógico - retorquiu Shelly. - Se aquele tipo sequer sonhasse que ela andava a dar com a língua nos dentes à polícia sobre... como é que hei-de dizer... bem, sobre o negócio de acompanhantes, além de já se ter servido dele para fazer uma lista de clientes e depois ter- se posto a andar para se estabelecer por conta própria... - Shelly deslocou o polegar ao longo da garganta, num gesto que indicava degolação. - Não duraria nem dez minutos depois de ele ter descoberto. O Bafo de Onça não gosta de traidores e ia certificar-se de que ela pagava o preço por o ter traído.
Shelly parecia estar a ouvir atentamente o que estava a dizer, tendo consciência plena de todas as implicações das suas palavras. Lançou um olhar nervoso na direcção da porta, como se estivesse à espera que Martin Reeve entrasse de rompante, pronto a vingar-se dela pelos factos que ela acabara de revelar.
- Se assim é - disse Lynley -, se Reeve é, de facto, responsável pela morte de Nicola Maiden, ou pelo menos é isso que suponho que esteja a sugerir quando fala nos preços que as pessoas têm de pagar por o terem traído...
- Eu nunca disse nada disso!
- Certo. Nunca o disse directamente. Sou eu que estou a deduzi-lo a partir das suas palavras.
Lynley ficou à espera que ela desse mostras de o ter compreendido. Ela pestanejou, uma reacção que o deixou satisfeito.
- Deduzindo que Reeve é responsável pela morte de Nicola Maiden, por que motivo teria ele esperado tanto tempo para a matar? Ela deixou de trabalhar para ele em Abril. Estamos no mês de Setembro. Como é que explica que ele tenha esperado cinco meses para se vingar dela?
- Eu nunca lhes disse onde elas estavam - revelou Shelly com uma ponta de orgulho. - Fingi que não sabia. Achei que ele merecia saber o que elas estavam a planear fazer, mas ele é que tinha de descobrir onde elas estavam. E foi isso que ele fez. Acreditem que foi.
Peter Hanken acabara de regressar ao seu gabinete, depois da conversa com Will Upman quando lhe deram a notícia de que um rapazinho de dez anos chamado Theodore Webster, que jogava às escondidas dentro de um contentor de areia grossa situado na estrada entre Peak Forest e Lane Head, encontrara um canivete enterrado no que restava da areia utilizada para impedir a acumulação de gelo nas estradas durante o Inverno anterior. Tratava-se de um canivete suíço de tamanho razoável, apetrechado com lâminas e todo o tipo de acessórios que o tornavam presença obrigatória no equipamento de um campista ou caminhante. O rapaz podia tê-lo mantido escondido durante anos, segundo dissera o pai, se não tivesse precisado de ajuda para abrir as lâminas. Fora, então, ter com ele, julgando que o problema se resolveria com algumas gotas de óleo. O pai, no entanto, reparara no sangue seco que se acumulara na faca e lembrara-se da história sobre as mortes ocorridas em Calder Moor que tivera honras de primeira página no High Peak Courier. Telefonara imediatamente para a polícia. Podia não ser o canivete que fora usado para matar uma das duas vítimas de Calder Moor, Hanken fora informado pelo telemóvel pela agente que recebera a chamada, mas o inspector talvez quisesse dar-lhe uma vista de olhos antes que fosse enviado para o laboratório. Hanken disse-lhe que ele próprio entregaria o canivete no laboratório, pelo que virou para norte, para a A623, e dirigiu-se para Sparrowpit, a sudeste. Este trajecto dividia Calder Moor em duas metades iguais, descrevendo um ângulo recto na orla noroeste da charneca, definida pela estrada onde o carro da filha dos Maiden ficara estacionado.
No local, Hanken examinou o contentor de areia dentro do qual a arma fora encontrada. Registou mentalmente que um assassino, que aí tivesse largado uma arma, podia em seguida ter prosseguido caminho até alcançar um cruzamento a menos de oito quilómetros de distância. Aí, ou teria virado para leste e depois para norte na direcção de Padley Gorge, ou seguia directamente para sul na direcção de Bakewell e de Broughton Manor, que ficava a uns escassos três quilómetros. Depois de ter confirmado este raciocínio com uma consulta rápida ao mapa, examinou o canivete propriamente dito na cozinha da quinta da família Webster.
Era de facto um modelo Swiss Army, agora colocado dentro de um saco de provas pousado no assento do carro ao seu lado. O laboratório iria com certeza efectuar todos os testes necessários para aferir se o sangue encontrado nas duas lâminas e na bainha pertencia de facto a Terry Cole. Todavia, antes que esses testes fossem realizados, uma outra identificação, de carácter menos científico, podia fornecer informações preciosas aos investigadores.
Hanken encontou Andy Maiden no fundo do caminho de acesso que conduzia ao Hall. O antigo agente do 5010 instalava a nova tabuleta do hotel, actividade que envolvia a utilização de um carrinho de mão, uma pá, uma pequena misturadora de cimento, vários metros de fio e um número considerável de projectores. A velha tabuleta fora retirada e repousava agora à sombra de um limoeiro. A nova, em todo o seu esplendor de ornatos feitos e pintados à mão, aguardava ali perto o momento em que seria montada num robusto poste feito de madeira de carvalho e ferro forjado.
Hanken estacionou o carro na berma do caminho e ficou a observar Maiden que trabalhava com uma energia feroz, como se a substituição da tabuleta tivesse de ser efectuada em tempo recorde. Transpirava abundantemente, e o suor formava gotículas que lhe escorriam pelas pernas e lhe empapavam a T-shirt colando-a ao tronco. Hanken confirmou que o homem se encontrava em excelente condição física, tendo o aspecto de um indivíduo que tinha a força e a resistência de um jovem de vinte anos.
- Mr. Maiden - chamou, enquanto abria a porta do carro -, posso dar-lhe uma palavrinha, por favor?
Não obtendo resposta, chamou num tom de voz mais alto:
- Mr. Maiden?
Com movimentos lentos, Maiden interrompeu o trabalho, mostrando o rosto. Hanken ficou estupefacto ao verificar o que a expressão do rosto dele revelava sobre o seu estado de espírito. Se era certo que o corpo dele podia perfeitamente pertencer a um tipo de uma geração mais jovem, o seu rosto, por sua vez, era o de um velho. A avaliar pelo seu aspecto, tinha-se a impressão de que a única razão que mantinha Maiden de pé era a abstracção proporcionada pelo esforço do momento. Se tivesse de fazer algo que implicasse outra coisa que não fosse esforço físico e transpiração, o invólucro do homem em que ele se tornara estilhaçar-se-ia em mil pedaços como uma carapaça frágil atingida por um martelo.
Quando viu o antigo agente do 5010, Hanken sentiu-se dividido entre duas reacções antagónicas: um sentimento instintivo de piedade, rapidamente substituído pela recordação de um pormenor importante. Na qualidade de agente infiltrado, Andy Maiden sabia muito bem como representar um papel.
Hanken enfiou o saco de provas dentro do bolso do casaco e foi ao encontro de Andy Maiden. Este viu-o aproximar- se, sem expressar o menor vestígio de emoção.
Hanken esboçou um gesto na direcção da tabuleta que Maiden se preparava para pendurar, admirando o talento com que tinha sido esculpida.
- É mais bonito do que o sinal de trânsito de Cavendish.
- Obrigado.
A experiência de Maiden como agente na Met era suficiente para impedi-lo de pensar que o inspector incumbido da investigação do assassínio da sua filha viera até ali para uma conversa amena sobre a tabuleta de sinalização de Maiden Hall. Deitou uma porção de cimento dentro do buraco que escavara anteriormente e enterrou a pá na superfície de terra ao lado do buraco.
- Tem notícias para nós - disse, tentando ler a resposta no rosto de Hanken antes de a ouvir.
- Encontrámos um canivete suíço.
Hanken explicou rapidamente ao outro polícia a forma como a arma viera parar às mãos da polícia.
- Há-de querer que eu o veja, certamente - disse Maiden. Hanken tirou o saco de provas de dentro do bolso e colocou-o na palma da mão. Maiden não pediu para o segurar. Em vez disso, olhou-o fixamente, como se a bainha, as lâminas nela encaixadas, ou o sangue que as manchava, pudessem fornecer-lhe a resposta às perguntas que ele ainda não estava disposto a colocar.
- Disse-nos que lhe tinha dado o seu canivete - disse Hanken. - É possível que seja este? - E quando Maiden assentiu com um movimento de cabeça: - Há algum pormenor relativo ao canivete que deu à sua filha que o distinga de outros do mesmo género, Mr. Maiden?
- Andy? Andy? - uma voz de mulher soou cada vez mais alta à medida que ela descia por entre as árvores, vinda da direcção do hotel. Andy, meu querido, trouxe-te uma... - Nan Maiden deteve-se abruptamente quando viu Hanken. - Desculpe-me, inspector. Não fazia ideia que estava... Andy, trouxe-te uma garrafa de água. Por causa do calor, sabes. Pode ser Pellegrino?
Entregou a água ao marido. Levou os dedos às têmporas dele, dizendo:
- Não estás a exagerar, pois não?
Ele estremeceu.
Hanken sentiu os pêlos da nuca eriçarem-se, como se um espírito lhe tivesse feito uma carícia. Olhou para o marido e depois para a mulher, avaliou a cena que ambos acabavam de protagonizar e teve a certeza de que se avizinhava o momento de colocar a questão que ainda ninguém se atrevera a pronunciar.
Depois de ter cumprimentado a mulher de Maiden com uma inclinação de cabeça, começou por dizer:
- Haverá alguma marca que possa diferenciar o canivete que deu à sua filha de outros canivetes da Swiss Army...
- Uma das lâminas da tesoura partiu-se há alguns anos e eu nunca a substituí - respondeu Maiden.
- Mais alguma coisa?
- Que eu me lembre, não.
- Quando deu o canivete à sua filha, possivelmente este, comprou outro para si?
- Tenho outro, sim - disse ele. - Mas é mais pequeno do que esse e mais fácil de transportar.
- Tem-no consigo?
Maiden meteu a mão no bolso dos jeans. Tirou um canivete de outro modelo, também da Swiss Army, e entregou-o a Hanken. O inspector examinou-o, soltando a lâmina maior com o polegar. Devia ter cerca de cinco centímetros de comprimento.
- Inspector - disse Nan Maiden -, não estou a perceber o que é que o canivete de Andy tem a ver com o caso... - e, em seguida, sem dar tempo ao outro para responder -, querido, ainda não almoçaste. Queres que te traga uma sanduíche?
Andy Maiden, no entanto, olhava fixamente para Hanken, que abria o seu canivete e avaliava as dimensões de cada uma das lâminas. Hanken sentia os olhos do antigo agente colados nele. Conseguia pressentir a intenção por detrás do olhar que fitava atentamente os seus dedos.
- Andy? Queres que te traga... - insistiu Nan Maiden.
- Não.
- Mas tu tens de comer alguma coisa. Não podes...
- Não.
Hanken levantou os olhos. O canivete que Maiden comprara em substituição do que dera à filha era demasiado pequeno para ser a arma do crime. Este pormenor, todavia, não eliminava a necessidade de colocar a pergunta que, conforme ambos sabiam, ele iria colocar. Ele tinha, afinal, admitido que ajudara a filha a arrumar o equipamento de campismo dentro da mala do carro dela, na terça-feira. E fora ele próprio quem lhe dera o canivete que mais tarde viria a dar por desaparecido.
- Mr. Maiden - disse Hanken -, onde estava o senhor na terça-feira à noite?
- Essa é uma pergunta monstruosa - disse Nan Maiden em voz baixa.
- Suponho que seja - concordou Hanken. - Mr. Maiden? Maiden olhou na direcção do hotel, que ficava por cima deles, como se o que estava prestes a dizer necessitasse de uma corroboração que seria fornecida pela própria existência do hotel.
- Na terça-feira à noite, tive alguns problemas de visão. Subi mais cedo porque estava a ter perdas de visão. Fiquei assustado e decidi deitar-me durante um bocado, a ver se me sentia melhor.
Perdas de visão? pensou Hanken incrédulo. Ali estava certamente um álibi e tanto.
Maiden adivinhou os pensamentos de Hanken a partir da expressão do seu rosto e acrescentou:
- Aconteceu durante a hora de jantar, inspector. Não há quem consiga preparar bebidas ou servir refeições quando o seu campo de visão é tão reduzido quanto a área de uma moeda de cinco pence.
- É verdade - garantiu Nan. - Ele subiu ao andar de cima e foi descansar para o quarto.
- A que horas foi isso?
A mulher de Maiden respondeu pelo marido.
- Tínhamos acabado de servir as entradas aos nossos primeiros hóspedes, por isso Andy deve ter subido por volta das sete e meia.
Hanken olhou para Maiden, procurando a confirmação da hora. Maiden franziu a testa, como se travasse um complexo diálogo interior.
- Durante quanto tempo permaneceu no quarto?
- O resto da noite - respondeu Maiden.
- E a sua visão não melhorou?
- Exactamente.
- Já consultou um médico? Pelo que vejo, um problema desse género pode tornar-se bastante preocupante.
- Não é a primeira vez que estas coisas acontecem - informou Nan.
- São situações passageiras. Ele fica bem desde que descanse, e foi isso que fez na terça-feira à noite. Descansou.
- Suponho, no entanto, que será necessário controlar bem esse tipo de problemas. Podem evoluir para algo pior. Uma trombose, quem sabe? A primeira coisa que vem à cabeça de uma pessoa é uma trombose. Eu pessoalmente chamaria a ambulância de imediato, mal sentisse os primeiros sintomas.
- Não foi a primeira vez que aconteceu uma situação destas. Sabemos como devemos agir - disse Nan Maiden.
- E o que fazem, exactamente? - inquiriu Hanken. - Colocam sacos de gelo? Técnicas de acupunctura nas têmporas? Massagens corporais? Meia dúzia de aspirinas? O que é que faz quando suspeita que o seu marido poderá estar a ter uma trombose?
- Não é uma trombose.
- Nesse caso, deixou-o a descansar sozinho, não foi? Desde as sete e meia da tarde até... até que horas pode ter sido, Mrs. Maiden?
O cuidado com que o casal evitava olhar-se era tão conspícuo quanto teria sido o gesto súbito de cair nos braços um do outro. Nan Maiden disse:
- Claro que não deixei Andy sozinho, inspector. Subi ao quarto duas vezes para ir ver como estava. Três vezes, talvez. Durante a noite.
- E as horas a que isso aconteceu?
- Não faço ideia. Às nove, provavelmente. E depois às onze - e vendo que Hanken olhava na direcção de Maiden, ela continuou: - Não vale a pena fazer a pergunta a Andy. Ele tinha adormecido e eu não o acordei. Mas estava no quarto, sim, e aí ficou. Toda a noite. Suponho que não queira fazer mais perguntas sobre o assunto, inspector Hanken, porque só de pensar... só a ideia de que...
Os seus olhos tornaram-se mais brilhantes quando os pousou sobre o marido. Este olhava na direcção do vale em forma de U, cuja extremidade sul podia ser vislumbrada, no sítio onde a estrada curvava para norte.
- Suponho que não tenha mais perguntas a fazer - disse ela apenas, pronunciando as palavras com uma tranquila dignidade.
Hanken, no entanto, disse:
- Têm alguma ideia do que a vossa filha planeava fazer quando regressasse a Londres, no final do Verão?
Maiden fitou-o com um olhar firme, embora a mulher tivesse desviado o dela.
- Não - respondeu -, não sei de nada.
- Entendo. E tem a certeza do que está a dizer? Não deseja acrescentar mais nada? Nem explicar mais nada?
- Mais nada - respondeu Maiden, e dirigindo-se à mulher: - E tu, Nancy?
- Nada - disse ela.
Hanken descreveu um gesto com o saco das provas, dentro do qual se encontrava o canivete.
- O senhor conhece os procedimentos, Mr. Maiden. Depois de termos recebido o relatório pormenorizado do especialista forense, o mais provável é que queira tornar a conversar consigo.
- Compreendo - disse Andy Maiden. - Faça o seu trabalho, inspector. E faça-o bem. É tudo o que lhe peço.
Não olhou para a mulher, todavia.
Hanken teve a impressão de estar na presença de dois estranhos parados na plataforma de uma estação de caminhos-de- ferro, presos de alguma forma a um convidado que estava de partida e que nenhum dos dois queria admitir que conhecia.
Nan Maiden viu o carro do inspector afastar-se. Sem ter consciência do que fazia, começou a roer o pouco que restava das unhas da mão direita. Ao lado dela, Andy colocou a garrafa de Pellegrino que ela lhe trouxera numa reentrância que o seu calcanhar cavara na terra mole em torno do buraco cheio de cimento. Ele odiava água Pellegrino. Desdenhava todo o tipo de águas que sendo dotadas de melhores propriedades do que as contidas num copo de água proveniente do poço deles. Ela sabia-o. Todavia, quando espreitara à janela do mezanino do primeiro andar e vira, por entre as árvores, o carro parar na berma da estrada e o inspector da polícia sair do interior do automóvel, a garrafa de água fora a única desculpa de que se lembrara para justificar o seu súbito aparecimento junto do marido a tempo de interceptar a chegada do detective. Baixou-se para apanhar a garrafa e limpou a terra que se acumulara, como uma erupção de sarna, contra as paredes cheias de gotas de água.
Andy agarrou no grosso poste de carvalho no qual seria pendurada a nova tabuleta de Maiden Hall. Colocou-o na posição vertical e fixou-o com quatro resistentes tábuas de madeira. Com a pá, ajeitou o resto do cimento em volta da base do poste.
Quando poderemos conversar? perguntou a si mesma. Quando será o momento certo? Tentou convencer-se de que ao fim de trinta e sete anos de casamento, a conversa tornara-se desnecessária, mas sabia que tal não era verdade. Era apenas nos dias calmos e tranquilos do namoro, do noivado e na época de excitação própria dos recém-casados que entre um homem e uma mulher bastava um olhar, um toque ou um sorriso. E no caso deles, muitas décadas os separavam já desses dias calmos e tranquilos. Trinta anos e uma morte devastadora mediavam entre o tempo presente e a época em que as palavras eram menos importantes do que o conhecimento do companheiro, tão imediato e natural como o acto de respirar.
Em silêncio, Andy pressionava o cimento de encontro ao poste. Com gestos cuidadosos, raspou os restos da mistura que sobrara dentro do balde até não restar nenhum vestígio de cimento. Em seguida, concentrou- se nos projectores. Nan comprimiu a garrafa de água Pellegrino contra o peito e virou-se para iniciar a subida do declive que a levaria de volta ao hotel.
- Porque disseste aquilo? - perguntou o marido.
Ela virou-se novamente para ele.
- O quê?
- Tu sabes. Porque Lhe disseste que foste ver como é que eu estava, Nancy?
Sentiu a garrafa de água colar-se à palma da sua mão e as suas paredes duras comprimindo-lhe o peito.
- Mas eu fui ver como tu estavas - disse ela.
- Não foste, não. Ambos sabemos que não foste.
- Fui, querido. Estavas a dormir, deves ter dormitado. Dei uma espreitadela rápida pela fresta da porta e depois voltei ao trabalho. Não me admira que não me tenhas ouvido.
Ele permanecia de pé, segurando os projectores. Ela queria correr para ele, proteger o seu corpo contra os demónios e afugentar o desespero. Mas ficou onde estava, alguns metros acima dele no declive, segurando uma garrafa de água Pellegrino, cujo conteúdo, conforme ambos sabiam, ele não queria e jamais iria beber.
- Ela era a razão de tudo - disse ele, calmamente. -Todas as viagens na vida têm um fim. No entanto, se tivermos sorte, encontramos outro começo dentro dela. Nick era a razão de tudo. Compreendes, Nancy?
Os olhares de ambos cruzaram-se por um momento. Os olhos dele, que ela contemplava havia trinta e sete anos feitos de amor, frustração, risos, medos, felicidade e ansiedade, enviavam-lhe uma mensagem inequívoca mas incompreensível. O corpo de Nan estremeceu com um arrepio de frio, com a certeza de que não podia permitir-se entender nada daquilo que o homem que amava quisesse dizer- lhe dali por diante.
- Tenho um assunto a resolver no hotel - disse.
Começou a subir o declive por baixo dos limoeiros. Sentiu a brisa fresca trazida pelas sombras, como se fosse aspergida pelas folhas das árvores em forma de aguaceiro ligeiro. Tocou- lhe as faces primeiro, depois escorreu para os ombros. E foi o movimento da brisa fresca roçando-lhe a pele que a levou a virar-se para o marido para lhe fazer uma última pergunta.
- Andy - disse, falando num tom de voz normal. - Consegues ouvir-me?
Ele não reagiu. Não levantou a cabeça. Não fez nada, a não ser colocar o primeiro projector na posição correcta, no chão por baixo do poste onde iria ficar a nova tabuleta de Maiden Hall.
- Oh, meu Deus - murmurou Nan Maiden.
Virou-se e continuou a subir.
Depois da conversa com o tio Jeremy na noite anterior, Samantha tentara manter-se longe dele. Vira-o à hora do pequeno-almoço e ao almoço, mas evitara qualquer contacto visual e furtara-se a todo o tipo de diálogo. Mal terminara a refeição, levantara o seu prato e saíra da sala.
Estava no pátio mais antigo, preparando- se para lavar a sujidade que recobria as vidraças das janelas havia mais de cinquenta anos, quando viu o primo. Estava sentado à secretária, no seu escritório, situado exactamente no lado oposto ao monte de pedras onde ela se encontrava, desenrolando uma comprida mangueira. Parou para observá-lo, admirando a forma como a luz outonal entrava pela janela aberta e incidia sobre a sua cabeça inclinada, tingindo-lhe o cabelo de uma tonalidade entre o dourado e o avermelhado. Viu-o alisar as rugas de preocupação que Lhe sulcavam a testa, e esse gesto fê-la adivinhar de imediato o que ele estava a fazer, embora não lhe revelasse as razões por que o fazia.
Era muito bom com números, por isso estava a rever as contas, tal como fazia todas as semanas, avaliando os montantes referentes ao rendimento, aos bens e aos investimentos da propriedade familiar. Devia estar a analisar tudo: o dinheiro que entrara com a venda dos cachorros lebreiros e o que saíra para a manutenção do canil; o acumulado das rendas vencidas na propriedade e o que sobrava dos lucros e se destinava a manter os edifícios da quinta em condições de serem usados; os rendimentos proporcionados pelos torneios e eventos realizados em Broughton Manor e os custos resultantes dos danos e estragos que eram de esperar quando outros que não os seus donos legítimos usavam uma propriedade; os juros do capital investido e o montante desse capital que se esvaía quando as despesas do mês excediam os seus lucros.
Quando terminasse esta verificação, passaria à análise dos livros, nos quais registava meticulosamente cada tostão gasto na renovação de Broughton Manor. Em seguida, reavivaria a memória relativamente às dívidas que faziam igualmente parte do Retrato Financeiro da Família Britton. No final de tudo, teria uma ideia da situação e, nessa altura, poderia delinear os planos para a semana seguinte.
Samantha não ficou, por isso, surpreendida quando o viu inclinado sobre os livros. Ficou, sim, admirada por vê-lo fazer isso pela segunda vez em quatro dias.
Enquanto o observava, viu-o enterrar uma das mãos no cabelo e puxá-lo para trás. Introduziu alguns números numa máquina de calcular antiga. No outro lado do pátio, Samantha conseguia ouvir os ruídos e estalidos produzidos pela velha calculadora à medida que ia somando lentamente os valores introduzidos. Quando obteve a resposta que procurava, Julian arrancou o talão que saía da parte de trás da máquina e estudou-o durante alguns instantes. Depois amarfanhou o pedaço de papel e atirou-o para trás das costas. Tornou a concentrar-se nos livros.
Samantha sentiu um aperto no coração. Perguntou a si própria se alguma vez teria existido um homem tão responsável como Julian. Um filho menos atento à história da sua família e menos consciente do seu sentido de dever há muito que teria fugido do pesadelo que representava a preservação de uma casa ancestral. Um filho menos carinhoso teria abandonado o pai, deixando-o entregue à sua caminhada rumo ao delirium tremens, à cirrose hepática, a uma morte prematura. O primo Julian, no entanto, não era esse tipo de filho. Sentia o apelo do sangue e o peso das obrigações impostas pela sucessão. Ambos eram fardos. Ele, porém, suportava-os com dignidade. Se tivesse
agido de outra maneira, Samantha não teria vindo a gostar dele tão profundamente como gostava. Ao testemunhar a sua luta, aprendera a distinguir nele uma vontade férrea que estava muito próxima da sua própria forma de viver.
Estavam certos um para o outro, ela e o primo. Pouco importava que a relação sanguínea fosse próxima, não seria a primeira vez que dois primos formariam uma aliança e contribuiriam para enriquecer a família a que ambos pertenciam.
Formar uma aliança. Que maneira de pôr as coisas, pensou Samantha. E, no entanto, não era verdade que tudo funcionava de forma mais sensata no tempo em que os casamentos eram celebrados precisamente com essa finalidade? Na época dos casamentos políticos e financeiros, ninguém falava em amor verdadeiro. Não havia nem sofrimento, nem expectativa, nem prostração até ao dia em que o eleito decidisse aparecer. O que havia era uma constância e uma devoção nascidas do entendimento do que era esperado de uma pessoa. Nada de ilusões, nem de fantasias. Apenas um acordo que ligava uma vida a outra, em circunstâncias muito vantajosas para ambas as partes: dinheiro, posição, propriedades, autoridade, protecção e reconhecimento. Esta última talvez fosse a mais importante. Ninguém se sentia completo se não se casasse, ninguém estava casado enquanto a união não fosse consumada através do coito e legitimada pela reprodução. Tudo muito simples. Não havia a antecipação do romance, da paixão e da entrega ardente. Apenas a certeza vitalícia de que o companheiro era aquele que os mais velhos tinham previamente determinado.
Sensato, concluiu Samantha. E se vivessem num mundo em que homens e mulheres formassem alianças desse género, ela tinha a certeza de que agentes agindo em seu nome e no de Julian há muito que teriam chegado a um acordo.
Eles, porém, não viviam nesse mundo. E o mundo em que viviam fazia crer que as almas gémeas estavam permanentemente a um passo de distância, como no cinema: rapaz encontra rapariga, apaixonam-se, debatem-se com alguns problemas que são resolvidos no Acto III, e seguem-se os créditos. Era um mundo exasperante, porque Samantha sabia que se o primo fosse partidário desse tipo de amor, ela estaria condenada ao fracasso. Estou aqui, queria gritar, mangueira em riste. Tenho o que precisas. Olha para min: Olha para mim.
E como se tivesse ouvido o seu grito silencioso, Julian levantou os olhos nesse preciso momento e surpreendeu-a enquanto ela o observava. Inclinou-se para a frente e abriu a janela. Samantha atravessou o pátio na direcção dele.
- Pareces pensativo. Não consegui deixar de reparar. Apanhaste-me quando eu estava a tentar inventar uma cura para o mal que te atormenta.
- Achas que tenho futuro como falsificador? - perguntou ele. O sol iluminava-lhe directamente o rosto, obrigando-o a semicerrar os olhos. - Pode ser a única solução.
- Achas que sim? - perguntou ela, em tom jovial. - Não há nenhuma criatura jovem e rica à espera de ser seduzida que se perfile no teu horizonte?
- Não me parece. - Viu-a observar o vasto conjunto de documentos e livros de contabilidade espalhados sobre a sua secretária, certamente muito mais numeroso do que aquele que habitualmente verificava quando fazia as contas para a semana seguinte. - Estou a tentar perceber qual é a nossa situação - explicou. - Tinha esperanças de sacar cerca de dez mil libras da... bem, de nada, acho eu.
- Porquê? - notou a expressão tristonha do rosto dele e apressou-se a acrescentar: - Julie, há alguma emergência? Passa-se alguma coisa?
- Aí é que está o busílis. Há alguma coisa que vai bem. Ou melhor, há alguma coisa que podia ser consertada. Só que não há dinheiro suficiente para fazer muito mais a não ser sobreviver até ao fim do mês.
- Espero que saibas que podes sempre pedir-me - hesitou, não desejando ofendê-lo, sabendo que ele era um homem tão orgulhoso quanto responsável. Colocou a questão de outra maneira. - Somos da mesma família, Julie. Se surgir alguma coisa e tu precisares de algum dinheiro... nem sequer seria um empréstimo. És meu primo e podes ficar com ele.
Parecia horrorizado.
- A minha intenção não era que tu pensasses...
- Pára, eu não estou a pensar em nada.
- Óptimo, porque não poderia. Nunca.
- Muito bem, não vamos discutir. Mas, por favor, conta-me o que aconteceu. Pareces mesmo abatido.
Ele suspirou, disse, Ora, que se lixe, e num movimento rápido subiu para cima da secretária e passou pela janela para ir ter com ela ao pátio.
- Que estás a fazer? Ah, as janelas. Fazes ideia de quanto tempo passou desde a última vez em que foram lavadas, Sam?
- Desde o tempo em que Edward deitou tudo a perder para ficar com Wallis, não? Tonto como era.
- Isso é especulação.
- O quê, exactamente? A suposição em si mesma, ou o facto de ele ter deitado tudo a perder por causa dela?
Ele esboçou um sorriso resignado.
- Nesta altura, não tenho a certeza.
Samantha absteve-se de verbalizar o primeiro pensamento que lhe ocorreu, isto é, que há uma semana atrás ele não teria dado aquela resposta. Limitou-se a reflectir durante breves instantes sobre as implicações da resposta dele.
Num gesto de companheirismo mútuo, decidiram dedicar-se à lavagem das janelas. As velhas vidraças estavam encaixadas nos caixilhos de chumbo de forma demasiado precária para que pudessem ser lavadas com a mangueira, pelo que tiveram de recorrer ao processo mais penoso e demorado de limpar as vidraças uma a uma com a ajuda de panos húmidos.
- Vamos ficar aqui até cairmos de velhos - comentou Julian em voz séria ao fim de dez minutos de trabalho silencioso.
- Também acho que sim - retorquiu Samantha.
Queria perguntar-lhe se ele estava preparado para que ela ficasse ao seu lado durante tanto tempo, mas afastou essa ideia do pensamento. Ele estava seriamente preocupado com alguma coisa, e ela tinha de descobrir de que se tratava, nem que fosse para lhe provar que se sentia constantemente preocupada com todos os aspectos da vida dele. Fez uma tentativa para abordar o assunto, dizendo calmamente:
- Julie, tenho muita pena que estejas preocupado. A acrescentar a tudo o resto. Não há nada que eu possa fazer... bem... - descobriu que não conseguia sequer pronunciar o nome de Nicola Maiden. Pelo menos, naquele momento e naquele sítio. Não em frente de Julian. -... sobre os acontecimentos dos últimos dias - foi a melhor solução que encontrou. - Mas se eu puder fazer alguma coisa...
- Lamento muito - replicou ele.
- Mas é claro que lamentas. Como poderias sentir outra coisa que não isso?
- O que quero dizer é que lamento o que disse... a forma como me comportei... quando duvidei de ti, Sam: Sobre aquela noite, sabes.
Ela prestou particular atenção a uma vidraça suja de excrementos de pássaro que, ao longo de uma centena de anos, tinham escorrido dos ninhos encaixados na fenda por cima deles.
- Estavas perturbado.
- Mas não precisava de te ter acusado. De... fosse do que fosse.
- De ter assassinado a mulher que amavas, é isso que queres dizer? - olhou na direcção dele. O rubor que Lhe cobria o rosto intensificara-se.
- Às vezes, não sou capaz de conter as vozes que oiço dentro da minha cabeça. Desato a falar e, de repente, tudo o que as vozes me gritam salta cá para fora. Não tem nada a ver com aquilo que eu penso e em que acredito. Peço desculpa.
Mas ela não era a pessoa certa para ti, Julie, queria ela dizer. Por que razão nunca percebeste que ela não era a pessoa certa para ti? E quando vais perceber o significado da morte dela? Para ti. Para mim. Para nós, Julie. Ficou calada, no entanto, porque se dissesse alguma coisa, estaria a revelar-lhe aquilo que não podia, que não suportava até, revelar-lhe. Em vez disso, respondeu:
- Pedido de desculpas aceite.
- Obrigado, Sam. És um amor - disse ele.
- Outra vez.
- O que quero dizer. Ela sorriu.
- Não há problema, eu compreendo. Passa-me a mangueira. Estas aqui precisam de um banho agora.
O melhor que podiam fazer era aplicar um borrifo de água nas velhas janelas. Num futuro incerto, ia ser necessário substituir todos os caixilhos de chumbo, caso contrário tudo o que restava das vidraças antigas ficaria definitivamente destruído. Mas isso era um problema para discutir noutra ocasião. Preocupado como estava com a actual escassez de dinheiro, Julian não precisava de ouvir os ditames de Samantha sobre como salvar outra parte da propriedade familiar.
- É o pai - disse ele.
- O quê? - respondeu ela.
- O que anda a preocupar-me. A razão por que estive a verificar os livros. É o pai - em seguida, passou a explicar o que se passava, terminando em tom pesaroso: - Há anos que espero que ele opte por estar sóbrio...
- Todos nós esperamos.
-... e agora que ele escolheu, eu não sou capaz de arranjar uma maneira de agarrar a oportunidade antes que ela passe. Eu sei como isto é, já li o suficiente sobre o assunto para saber que ele tem de fazer tudo sozinho. Ele tem de querer. Mas se o tivesses visto, se tivesses ouvido a maneira como ele falou... acho que não bebeu nem uma gota o dia inteiro.
- Ai não? Realmente não deve ter bebido.
E lembrou-se do comportamento do tio na noite anterior: nem uma só palavra mal articulada, tentando arrancar-lhe uma confissão que ela não queria fazer. Sentiu-se invadir por uma intensa tranquilidade, que lhe advinha do facto de saber que também ela podia aproveitar a oportunidade que se lhe apresentava - podia usá-la e moldá-la - ou deixá-la passar. Cautelosamente, disse:
- Talvez desta vez ele queira mesmo deixar a bebida, Julie. Está a envelhecer. Está a enfrentar a sua... bom, a sua mortalidade.
A sua mortalidade, pensou, não a sua morte. Não queria usar esta palavra, pois naquele instante era crucial manter o equilíbrio delicado da conversa.
- Suponho que todas as pessoas acabam por ter de enfrentar... bem, acabam por tomar consciência de que nada dura para sempre. Talvez ele se sinta velho de repente e queira endireitar-se enquanto ainda tem oportunidade para o fazer.
- Mas é precisamente essa a questão - disse Julian. - Será que ele tem de facto oportunidade para o fazer? Como pode fazê-lo sem ajuda quando nunca foi capaz disso antes? E agora que finalmente pediu ajuda como posso eu recusar-lha? Porque eu quero ajudá-lo, quero que ele seja bem-sucedido.
- Todos nós queremos, Julie. A família inteira. Todos queremos.
- Por isso decidi ir verificar os livros. Por causa do nosso seguro de saúde. Nem sequer preciso de ler todas as alíneas para saber que não há hipótese... - observou a vidraça que estava a limpar, raspando o vidro com a unha.
Unhas sobre um quadro de ardósia. Samantha sentiu um arrepio. Desviou a cabeça para não ter de ouvir o som.
E foi então que o viu, no sítio habitual. Junto à janela da saleta. Observava-a enquanto ela conversava com o filho. E ao vê-lo olhar para ela, Samantha reparou que o tio erguia a mão. Um dos dedos tocou a têmpora antes de a mão tornar a baixar. Pode perfeitamente tê-lo feito para afastar uma madeixa de cabelo do rosto. A realidade, porém, era que aquele gesto se assemelhava muito à imitação de uma continência.
Bem, entrámos logo - disse Nkata quando não obtiveram qualquer resposta depois de terem premido a campainha colocada ao lado da porta pintada de branco. - Se calhar Shelly Platt avisou-os que vínhamos cá e puseram-se a mexer. O que é que acha?
- Não fiquei com a impressão de que Shelly Platt sentisse especial simpatia pelos Reeve. - Lynley tornou a premir a campainha da MKR Financial Management. - Pareceu-me muito feliz por poder causar-lhes algumas dores de cabeça, desde que a sua identidade permanecesse oculta. Os Reeve vivem e trabalham aqui, não é, Winnie? Tem todo o ar de ser uma casa particular.
Lynley afastou-se da porta, descendo depois os degraus que davam para o passeio. Embora o edifício, que parecia uma construção de açúcar cristalizado, parecesse estar desabitado, ele tinha a nítida impressão de que estava a ser observado a partir do interior. Tal sentimento podia perfeitamente ficar a dever-se à sua ansiedade em ter Martin Reeve sob a sua alçada e em poder espremê-lo até à última gota. Acontecia, porém, que conseguia quase distinguir uma silhueta atrás dos cortinados finos de uma das janelas do segundo andar. Enquanto a observava, os cortinados agitaram-se inesperadamente.
- Polícia - gritou ele. - É do seu interesse deixar-nos entrar, Mr. Reeve. Preferia não ter de pedir ajuda à esquadra de Ladbroke Grove.
Passou um minuto, durante o qual Nkata premiu a campainha e Lynley foi até ao Bentley a fim de telefonar para a esquadra de Ladbroke Grove. A estratégia deu resultado, pois enquanto falava com o sargento de serviço, ouviu Nkata chamá-lo.
- Podemos entrar, inspector - gritou, empurrando a porta e entrando no vestíbulo, onde ficou à espera de Lynley.
A casa estava silenciosa e no ar perpassava um suave aroma a limão. Devia ser do polimento usado para preservar o impressionante armário Sheraton que se encontrava no corredor. Enquanto Lynley e Nkata fechavam a porta de entrada, uma mulher descia as escadas.
Quando a viu, Lynley pensou de imediato que parecia uma boneca. Na verdade, parecia uma mulher que tinha gasto uma quantidade considerável de tempo e energia - sem falar no dinheiro - para se transformar a si própria numa réplica exacta da Barbie. Estava vestida de licra preta dos pés à cabeça, exibindo um físico de tal modo perfeito, que apenas podia resultar de uma combinação entre imaginação e silicone. Só pode ser Tricia Reeve, pensou Lynley. Nkata descrevera-a na perfeição.
Lynley apresentou-se, dizendo:
- Gostaríamos de trocar algumas impressões com o seu marido, Mrs. Reeve. Importa-se de lhe dizer que estamos aqui, por favor?
- Ele não está.
Detivera-se no degrau mais baixo das escadas. Era alta, conforme Lynley podia confirmar, e ao recusar-se a descer até ao nível deles, ficara ainda mais alta.
- E onde é que ele foi?
Diligentemente, Nkata preparou-se para tomar nota da informação. A mão de Tricia estava pousada sobre o corrimão, exibindo uns dedos longos e esqueléticos adornados por uma profusão de anéis. A pressão que ela exercia sobre a madeira de carvalho era enorme: o braço tremia devido à força, fazendo com que os diamantes cintilassem.
- Não sei.
- Dê-nos algumas sugestões - disse Nkata. - Eu tomo nota. Nós não nos importamos de dar umas voltas à procura dele. Tempo não nos falta.
Silêncio.
- Ou então podemos ficar aqui à espera - disse Lynley. - Onde podemos esperar, Mrs. Reeve?
O olhar dela vacilou. Olhos azuis, viu Lynley. Pupilas enormes. Nkata dissera-lhe que ela consumia. E naquele preciso momento parecia estar atestada.
- Camden Passage - revelou, passando a língua pálida pelos lábios gretados. - Há um negociante de arte que tem uma loja lá. Miniaturas. Martin faz colecção. Foi ver o que tinha resultado da venda do recheio de uma propriedade realizada a semana passada.
- O nome do negociante de arte?
- Não sei.
- O nome da galeria? Ou da loja?
- Não sei.
- A que horas é que ele saiu?
- Não sei, estava fora.
Lynley interrogou-se sobre a acepção em que ela estaria a utilizar a palavra fora. Quase podia adivinhá-lo.
- Nesse caso, nós preferimos esperar. Podemos instalar-nos na recepção? É esta a porta, Mrs. Reeve?
Ela seguiu-os, apressando-se a dizer:
- Ele foi a Camden Passage. Depois ia encontrar-se com uns pintores que estão a trabalhar numa casa que temos em Cornwall Mews. Eu tenho a morada. Posso dá-la aos senhores, se quiserem.
A mudança de atitude foi demasiado rápida. Só havia duas hipóteses: ou Reeve estava em casa, ou ela lembrara-se de um plano qualquer para o avisar de que a polícia andava à sua procura. O que não seria difícil de concretizar. Lynley tinha dificuldade em imaginar um homem como Reeve andando às voltas por Londres sem um telemóvel. Mal ele e Nkata pusessem um pé na rua e saíssem no seu encalço, a mulher de Reeve precipitar-se-ia para o telefone para avisá-lo.
- Acho que mesmo assim vamos esperar - disse Lynley. - Faça-nos companhia, Mrs. Reeve. Posso telefonar para a estação de Ladbroke Grove e pedir que enviem para cá uma agente, caso não se sinta confortável a sós connosco. Quer que faça isso?
- Não!
Agarrou o cotovelo do braço esquerdo com a mão direita. Consultou o relógio, e os músculos do pescoço estremeceram quando engoliu em seco. O efeito estava a passar, especulou Lynley, e ela tentava calcular quando poderia tomar nova dose em relativa segurança. A presença da polícia era um obstáculo à satisfação da necessidade, e isso podia ser-lhes útil.
- Martin não está em casa - insistiu ela. - Se eu soubesse mais alguma coisa, dir-vos-ia. Mas a verdade é que não sei.
- Não estou convencido disso.
- Estou a dizer a verdade!
- Diga-nos outra, então. Onde estava o seu marido na terça-feira à noite?
- Na terça... - ela parecia sinceramente confusa. - Não faço a... Estava aqui em casa. Comigo. Estava aqui. Passámos a noite em casa.
- Há alguém que possa confirmar isso?
Era óbvio que a pergunta a colocara em alerta máximo, já que se apressou a dizer:
- Saímos por volta das oito e meia para ir comer um caril no Star of India, na Old Brompton Road.
- Não passaram a noite em casa, nesse caso?
- Passámos o resto da noite aqui.
- Tinham mesa reservada no restaurante, Mrs. Reeve?
- O Chefe de Sala lembra-se de nós, com certeza. Ele e Martin trocaram algumas palavras menos agradáveis pelo facto de não termos feito reserva antecipadamente. De início, não queriam arranjar-nos uma mesa, apesar de algumas estarem vazias quando lá chegámos. Jantámos e depois viemos para casa. E essa é a verdade. Na terça-feira. Foi tudo o que fizemos.
Não teriam dificuldade em confirmar a presença deles no restaurante, pensou Lynley. No entanto, quantos Chefes de Sala seriam capazes de recordar o dia exacto em que tinham tido uma altercação com um cliente exigente que se esquecera de reservar uma mesa, privando-o assim de um álibi fidedigno?
- Nicola Maiden trabalhava para os senhores.
- Martin não matou Nicola! - disse ela. - Sei muito bem que essa é a razão por que estão aqui, por isso não vale a pena fingir o contrário. Ele esteve aqui comigo na terça-feira à noite. Fomos jantar ao Star of India. Regressámos a casa por volta das dez horas e não tornámos a sair. Perguntem aos nossos vizinhos. Alguém há-de ter-nos visto ou à saída ou no regresso. E agora, querem o endereço da casa de Corwall Mews, ou não? Porque, caso não queiram, gostaria que saíssem.
Novo olhar ansioso para o relógio.
Lynley decidiu pressioná-la. Virando- se para Nkata, disse:
- Vamos precisar de um mandado de busca, Winnie.
- Para quê? - gritou Tricia. - Disse- vos tudo. Podem telefonar para o restaurante. Falar com os vizinhos. Como podem arranjar um mandado de busca quando nem sequer se preocuparam em verificar se eu estou, ou não, a dizer a verdade?
Parecia horrorizada. Melhor ainda, parecia assustada. A última coisa que ela queria, supunha Lynley, seria ter uma equipa policial a revistar-lhe a casa, independentemente do que estivessem à procura. Podia não estar envolvida na morte de Nicola Maiden, mas se fosse apanhada por posse de narcóticos não a deixaria em muito boa posição perante os Advogados da Coroa, e ela sabia-o.
- Às vezes arrepiamos caminho - explicou Lynley, amável. - Esta parece uma boa ocasião para o fazer. Estamos à procura da arma do crime e de duas peças de roupa pertencentes à rapariga e ao rapaz mortos, e se algum desses artigos estiver cá em casa, vamos querer saber porquê.
- Quer que telefone, então, chefe? - perguntou Nkata, suavemente.
- Martin não matou Nicola! Há meses que ele não a vê! Nem sequer sabia onde ela estava! Se estão à procura de alguém que possa ter querido vê-la morta, há muitos homens que... - calou-se.
- Sim? - perguntou Lynley. - Muitos homens que? Dobrou o braço esquerdo e amparou o cotovelo direito, como antes fizera com o braço direito e o cotovelo esquerdo. Passeou pela recepção.
- Mrs. Reeve - disse Lynley -, nós sabemos exactamente em que tipo de actividade é que a MKR Financial Management está realmente envolvida. Sabemos que o seu marido contrata estudantes universitárias para trabalharem para ele como acompanhantes e prostitutas. Sabemos que Nicola era uma dessas estudantes e que deixou de trabalhar para o seu marido juntamente com Vi Nevin, a fim de se estabelecerem por conta própria. As informações de que dispomos neste momento podem constituir motivo suficiente para acusá-la a si e ao seu marido, e espero que esteja bem consciente disso. Por isso, se quiser evitar uma acusação, um julgamento, uma sentença e um encarceramento, sugiro que colabore connosco a partir de agora.
Ela estava rígida. Os lábios mal se moveram quando ela falou.
- O que é que querem saber?
- Quero saber que tipo de relação existia entre o seu marido e Nicola Maiden. Os proxenetas têm o hábito de...
- Ele não é um proxeneta!
-... demonstrar o seu desagrado sempre que uma das suas crias decide abandonar o redil.
- Não é assim que as coisas se passam. Não foi assim que as coisas se passaram.
- Ai não? - perguntou Lynley. - Como foi, então? Vi e Nicola decidiram iniciar um negócio próprio, do qual o seu marido estava excluído. Fizeram-no, no entanto, sem lhe dar conhecimento. É impossível que ele tenha ficado satisfeito quando descobriu o que se estava a passar.
- Estão redondamente enganados.
Dirigiu-se à secretária decorada com ornatos e tirou um maço de Silk Cut de dentro de uma gaveta. Tirou um cigarro e acendeu-o. O telefone começou a tocar. Ela olhou para o aparelho, inclinou-se para a frente para premir um botão, mas deteve-se no último momento. Ao fim de vinte toques, o telefone calou-se definitivamente. Só que menos de dez segundos mais tarde recomeçou a tocar.
- O computador devia estar a apanhar as chamadas - disse ela. Não percebo por que razão...
E com um olhar inquieto na direcção da polícia, levantou o auscultador e disse num tom de voz tenso:
- Global.
Depois de escutar o que diziam do outro lado durante alguns minutos, respondeu no tom mais suave que conseguiu:
- Depende do que pretende, na verdade... Sim. Isso não deverá constituir qualquer problema. Posso ficar com o seu contacto, por favor? Tornarei a ligar-lhe logo que possível.
Escrevinhou qualquer coisa num papel. Em seguida, ergueu um olhar de desafio, como se com ele quisesse instigar Lynley a provar o que devia estar a pensar acerca do telefonema que ela acabara de atender.
Ele fez-lhe a vontade, sem a menor das contrariedades.
- Global? - perguntou. - É esse o nome da agência de acompanhantes, Mrs. Reeve? Global quê? Encontros? Desejos? O quê?
- Global, Serviço de Acompanhantes. E não há nada de ilegal em proporcionar a companhia de uma mulher educada a um homem de negócios que esteja de passagem para participar numa conferência, pois não?
- Mas tirar proveitos de ganhos imorais é. Mrs. Reeve, está mesmo interessada em que a polícia se apodere dos seus livros de contabilidade? Partindo do princípio, é claro, que a MKR Financial Management possui, de facto, uma contabilidade organizada. Podemos fazê-lo, sabe. Podemos solicitar a apresentação da documentação relativa a cada tostão ganho por vós. E mal tenhamos concluído a nossa pesquisa, podemos entregar tudo directamente às Finanças, para que os seus funcionários se certifiquem se a empresa contribuiu com a parte que lhe compete para o progresso da nação. O que é que pensa sobre tudo isto?
Deixou-a reflectir durante alguns momentos. O telefone recomeçou a tocar. Ao fim de três toques, um estalido suave indicou que a chamada tinha sido transferida para outra linha. Algum pedido sendo despachado a partir de outro local qualquer, concluiu Lynley. Por telemóvel, controlo remoto ou satélite. O progresso era maravilhoso, de facto.
Tricia pareceu tomar consciência de alguma coisa. Era óbvio que estava ciente de que a Global, Serviço de Acompanhantes e a posição dos Reeve estavam comprometidas: uma palavra de Lynley às Finanças ou até mesmo aos rapazes da brigada de costumes da esquadra de polícia de Ladbroke Grove e todo o modo de vida dos Reeve se desmoronaria como um castelo de cartas. E isto sem sequer pensar no que sucederia se uma busca à casa deles trouxesse a lume a existência de certas substâncias, escondidas algures, prontas a operar maravilhas em Tricia. Ela pareceu tomar consciência de tudo isto de forma violenta.
Tentou acalmar-se.
- Muito bem. Se eu vos der um nome... se eu vos der o nome, não posso ter sido eu a fonte, entendido? Porque se fica a saber-se que nós cometemos uma indiscrição desse género, o negócio... - deixou o resto da frase em suspenso.
Indiscrição, ora ali estava uma maneira insólita de colocar as coisas, pensou Lynley. E porque diabo acharia ela que estava em posição de negociar com ele?
- Mrs. Reeve - disse ele -, o negócio, como a senhora lhe chama, está acabado.
- Martin - retorquiu ela -, não será dessa opinião.
- Martin - contrapôs Lynley -, será acusado, se não for.
- E nessa altura, Martin pedirá uma fiança. Estará livre em vinte e quatro horas. E o senhor, inspector, onde estará o senhor nessa altura? Nem um passo mais perto da verdade, creio bem.
Podia ser parecida com a Barbie, podia ter destruído metade do cérebro com a droga, mas aprendera alguma coisa sobre as formas de negociação, e naquele momento estava a pôr em prática o que aprendera com alguma perícia. Lynley admitiu que o marido haveria de sentir-se orgulhoso dela. Não dispunha de qualquer tipo de base de apoio legal, mas mantinha-se firme, fazendo de conta que assim era. Tinha de admirár a genica dela, pelo menos.
- Posso dar-vos um nome... o nome, como disse antes... e os senhores podem seguir o vosso caminho. Eu posso não vos dizer nada e os senhores revistam a casa, mandam-me para a prisão, prendem o meu marido, e não ficam nem um centímetro mais perto do assassino de Nicola Maiden. Oh, claro, hão-de ter acesso aos nossos livros e aos nossos registos. Mas com certeza não acham que nós possamos ser estúpidos ao ponto de indicar a nossa lista de clientes pelos seus nomes, pois não? Que terão então a ganhar, nesse caso? E quanto tempo vão perder?
- Estou disposto a agir com sensatez se a informação for boa. E durante o tempo que preciso para verificar a viabilidade da informação, deduzo que a senhora e o seu marido considerariam a possibilidade de encontrar uma nova localização para a empresa. Estou a lembrar-me de Melboume, por causa das alterações na legislação.
- Isso poderia demorar algum tempo.
- Tal como demorará a verificação da informação.
Olho por olho, dente por dente. Ele ficou a aguardar a decisão dela. Decidindo-se, finalmente, agarrou num lápis pousado sobre a secretária.
- Sir Adrian Beattie - disse à medida que escrevia. - Era doido por Nicola. Estava disposto a pagar o que ela quisesse, se ela o aceitasse como seu cliente exclusivo. Duvido que ele achasse graça ao facto de ela estar a pensar em expandir o negócio, não acham?
Entregou-lhes o endereço. Ficava nos Boltons.
Tanto quanto parecia", pensou Lynley, tinham finalmente encontrado o amante de Londres.
Ao chegar a casa nessa noite, Barbara Havers encontrou um bilhete na porta de entrada, e só então se lembrou da lição de costura.
- Bolas. Diabos levem tudo isto - desabafou, censurando-se pelo esquecimento. Era verdade que estava a trabalhar num caso, e não tinha dúvidas de que Hadiyyah iria compreender. Mas Barbara detestava pensar que tinha sido motivo de desilusão para a sua jovem amiga.
Temos o prazer de convidar V. Ex.a a admirar os trabalhos das Alunas da Aula de Costura de Miss Jane Bateman, dizia o bilhete, meticulosamente redigido numa caligrafia infantil que Barbara reconheceu de imediato. Na base do convite, alguém desenhara um divertido girassol ligeiramente inclinado, enquanto a data e a hora do evento apareciam num dos lados da folha. Barbara prometeu a si própria que assinalaria ambas no seu calendário.
Ficara mais algumas horas na Yard depois do encontro com Neil Sitwell. Estava ansiosa por começar a telefonar a cada um dos funcionários da King-Ryder Productions incluídos na listagem a que tivera acesso, mas optara por agir com prudência, não fosse o inspector Lynley aparecer de repente e exigir que ela lhe apresentasse os resultados das suas pesquisas nos arquivos informatizados da Yard. Que pareciam não ter fim, claro. Prò diabo com ele, começara a pensar quando cumpria a oitava hora de trabalho consecutivo em frente ao computador. Se o que ele tanto queria era um maldito relatório sobre cada um dos execráveis indivíduos com quem o inspector Andrew Maiden teria convivido durante os anos em que trabalhara como infiltrado, era exactamente isso que ia ter. Não seriam essas informações, no entanto, que o colocariam na pista do assassino de Derbyshire. Quanto a isso, estava até disposta a apostar a própria vida.
Saíra da Yard por volta das quatro e meia, depois de ter passado pelo gabinete de Lynley para deixar o relatório, a que juntara uma mensagem pessoal. O relatório expressava claramente o seu ponto de vista. Não cedera à tentação de incluir algo que pudesse deixar Lynley irritado, nem enveredara pela linha de actuação óbvia. Eu tenho razão, o senhor não, mas mesmo assim vou alinhar com o seu jogo idiota eram palavras que não sentia necessidade de proferir abertamente. O seu momento haveria de chegar. Além disso, sentia-se infinitamente grata pela forma como Lynley estava a conduzir a investigação, proporcionando-lhe mais autonomia do que supunha. No bilhete que deixara a Lynley juntamente com o relatório, comunicava-lhe, com a maior das formalidades, que iria passar em Chelsea para entregar o processo relativo às autópsias redigido em Derbyshire pela Dra. Sue Myles. E assim fizera, logo que saíra da New Scotland Yard.
Encontrara Simon St. James e a mulher no jardim da casa de Cheyne Row, onde viviam. Sob o olhar atento de St. James, Deborah, mãos e joelhos assentes no chão, avançava lentamente ao longo do canteiro de flores que se estendia a todo o comprimento do muro do jardim. Atrás de si arrastava um borrifador, e a intervalos regulares parava para borrifar a terra energicamente com um insecticida que exalava um cheiro acre e intenso.
- Há biliões delas, Simon - dizia. - E mesmo quando as borrifo, continuam a andar de um lado para o outro. Santo Deus, se alguma vez rebentar uma guerra nuclear, as formigas serão as únicas criaturas sobreviventes.
St. James, reclinado num canapé, o rosto protegido por um chapéu de aba larga, retorquiu:
- Borrifaste aquela zona ao lado das hidrângeas, meu amor? Parece-me que também passaste por cima daquele bocado ao lado das fúcsias.
- Sinceramente, tu esgotas a paciência de uma pessoa. Preferes ser tu a fazê-lo? Odeio saber que estou a perturbar a tua paz de espírito com tanto desmazelo.
- Hum - St. James pareceu reflectir um pouco sobre a sugestão dela.
- Não, acho que não. Tens feito tantos progressos ultimamente. Nada como a prática para aprender a fazer algo bem feito, e eu detestaria privar- te dessa oportunidade.
Deborah riu-se e fez de conta que o borrifava. Foi nesse momento que viu Barbara à porta da cozinha.
- Perfeito. Era só o que me faltava. Uma testemunha. Olá, Barbara! Faça o favor de registar qual das duas partes está a trabalhar que nem uma escrava no jardim e qual a que não está. Em devido tempo, o meu advogado irá solicitar-lhe o seu testemunho por escrito.
- Não acredite numa só palavra do que ela está a dizer - disse St. James. - Acabei de me sentar neste preciso momento.
- Algo na posição do seu corpo me faz pensar que está deitado retorquiu Barbara, enquanto atravessava o relvado na direcção do canapé.
- Além disso, o seu sogro acabou agora mesmo de sugerir que eu acendesse um pau de dinamite debaixo do seu traseiro.
- Ai sim? - inquiriu St. James, franzindo o sobrolho na direcção da janela da cozinha, onde era possível distinguir a silhueta de Joseph Cotter, movendo-se de um lado para o outro.
- Obrigada, pai - gritou Deborah na direcção da casa. Barbara riu-se do arrufo calmo e carinhoso entre os dois. Puxou uma cadeira de jardim e afundou-se nela. Em seguida, entregou o processo a St. James, dizendo:
- Sua Senhoria pede-lhe que examine isto.
- O que é?
- As autópsias realizadas em Derbyshire. Da rapariga e do rapaz. O inspector deve querer que examine com maior atenção os dados relativos à rapariga.
- Você, pelo contrário, não me faria o mesmo pedido, pois não?
Barbara sorriu misteriosamente.
- Tenho cá as minhas ideias.
St. James abriu o processo. Deborah aproximou-se, ainda agarrada ao borrifador.
- Há fotografias - advertiu St. James.
Ela hesitou.
- São más?
- Ferimentos múltiplos numa das vítimas, causados por um objecto cortante - disse Barbara.
Ela empalideceu e sentou-se no canapé aos pés do marido. St. James passou os olhos rapidamente pelas fotografias, antes de as pousar sobre a relva viradas para baixo. Folheou o relatório, parando para ler uma ou outra página.
- Tommy está à procura de algo em especial, Barbara?
- O inspector e eu não contactamos directamente. Neste momento, eu sou o seu estafeta. Ordenou-me que viesse trazer-lhe o relatório e eu bati os calcanhares e cumpri as suas ordens.
St. James ergueu a cabeça.
- A situação ainda está assim tão má entre vocês dois? Helen disse-me que você estava a trabalhar no caso.
- Pouco.
- Ele há-de mudar de ideias.
- Como sempre - acrescentara Deborah. Marido e mulher trocaram um olhar e Deborah continuou, não sem algum embaraço. - Bem... sabes o que quero dizer.
- Sei, sim - replicou St. James passados alguns instantes, esboçando um sorriso breve e carinhoso na direcção dela. Depois, virando-se para Barbara, disse:
- Vou dar uma olhadela nesta papelada, Barbara. Suponho que ele esteja à procura de inconsistências, anomalias, discrepâncias. O costume. Diga-lhe que depois lhe telefono.
- Muito bem - respondeu ela. - Estou a pensar numa coisa, Simon... - continuou, delicadamente.
- Sim?
- Será que não me podia telefonar também? Isto é, se conseguir descobrir alguma coisa. - Como ele não respondeu de imediato, apressou-se a comentar: - Eu sei que é um procedimento irregular, e não quero colocá-lo numa posição delicada perante o inspector. Mas ele não me conta quase nada e sempre que eu faço uma sugestão, responde-me com um Volte para o computador, detective. Por isso, se fizer o favor de me manter actualizada... sim, eu sei que ele ficaria fulo se soubesse, mas juro-lhe que nunca lhe diria que...
- Eu telefono-lhe a si também - interrompeu St. James. - Mas posso perfeitamente não encontrar nada. Conheço a Sue Myles, e se há coisa que ela costuma fazer é um trabalho absolutamente exaustivo. Para ser franco, não percebo por que razão Tommy quer que eu examine o trabalho dela.
Eu também não, era o que Barbara queria dizer-lhe. No entanto, o facto de ele ter prometido telefonar-lhe deixara-a mais animada, e no final do dia, o seu estado de espírito era incomparavelmente melhor do que nessa manhã.
Quando vira o bilhete de Hadiyyah, porém, o seu bom humor ressentira-se. A garota não tinha mãe - pelo menos uma mãe que estivesse presente ou que viesse a estar presente num futuro próximo - e embora Barbara não esperasse vir a ocupar o seu lugar, entre ela e Hadiyyah nascera uma amizade que constituía uma enorme fonte de prazer para ambas. Hadiyyah alimentara esperanças de que Barbara estaria presente na sua aula de costura naquela tarde e Barbara desiludira-a. Não era algo de que se orgulhasse.
Assim, depois de ter pousado a mala sobre a mesa da sala de jantar e de ter ouvido as mensagens deixadas no atendedor de chamadas - Mrs. Flo falando-lhe sobre o estado de saúde da mãe, esta relatando-lhe uma viagem fantástica à Jamaica, Hadiyyah dizendo-lhe que lhe deixara um bilhete na porta de entrada e querendo saber se Barbara o tinha visto -, caminhou até à parte da frente do enorme edifício eduardiano. As janelas francesas da sala de estar do apartamento do rés-do-chão estavam abertas e, lá dentro, uma voz de criança dizia:
- Mas não me servem, pai. A sério que não me servem. Hadiyyah e o pai estavam no interior. Ela estava sentada numa otomana de cor creme e ajoelhado aos pés dela como um apaixonado, estava Taymullah Azhar. O objecto da atenção de ambos parecia ser os sapatos que Hadiyyah tinha calçados. Eram sapatos pretos de atacadores, do género que se usa com uniformes escolares, e Hadiyyah não parava de torcer os pés, como se os sapatos fossem um novo instrumento de tortura expressamente concebido para arrancar informações a agentes duplos.
- Os meus dedos estão todos esmagados, e os nós dos dedos doem- me:
- E tens a certeza que essas dores não têm nada a ver com o desejo de seguir uma moda qualquer, khushi?
- Oh, pai - pelo tom de voz de Hadiyyah, dir-se-ia que estava agonizante. - Por favor. São sapatos de escola, não vês?
- E como ambos sabemos - disse Barbara, no patamar -, os sapatos de escola não têm pinta nenhuma, Azhar. Estão sempre fora de moda. É por isso que são sapatos de escola.
Pai e filha levantaram as cabeças e Hadiyyah gritou:
- Barbara! Deixei-te um bilhete. Na porta. Viste-o? Prendi-o com fita-cola.
Azhar, ainda de cócoras, recuou ligeiramente para observar melhor os sapatos da filha.
- Ela diz que já não lhe servem - disse ele a Barbara. - Mas eu não estou convencido.
- É necessária a intervenção de um árbitro - disse Barbara. - Posso entrar...
- Claro - Azhar pôs-se de pé e recebeu-a com a formalidade que lhe era característica.
O apartamento cheirava a caril. Barbara viu que a mesa estava posta para o jantar e apressou-se a dizer:
- Oh, desculpem-me. Nem olhei para o relógio, Azhar. Ainda nem sequer jantaram, e... Preferem que volte mais tarde? Acabei de ler o bilhete
de Hadiyyah e decidi aparecer. Sabe como é. A aula de costura desta tarde. Eu tinha-lhe prometido... - calou-se. Já chega, pensou.
Ele sorriu.
- Talvez queira juntar-se a nós.
- Oh, não. Quer dizer, eu própria ainda não jantei, mas nem por sombras...
- Tens de ficar - disse Hadiyyah, alegremente. - Pai, diz-lhe que ela tem de ficar. Vamos comer galinha biryani. E dal. E caril de legumes, a especialidade do meu pai, que faz a mamã chorar, porque é muito picante. Ela costuma dizer, Hari, pões demasiado picante, e depois a maquilhagem dos olhos dela fica toda borrada. Não é, pai?
Hari, repetiu Barbara para si mesma.
- É, sim, khushi - retorquiu para a filha. E olhando para Barbara disse:
- Teremos muito prazer em que jante connosco, Barbara.
O melhor é fugir. Esconder-me, pensou. Todavia, o que disse, foi:
- Nesse caso, aceito. Obrigada.
Hadiyyah ficou exultante e rodopiou, os pés enfiados nos sapatos alegadamente demasiado apertados. O pai olhou para ela com uma expressão séria e disse, num tom de voz expressivo:
- Ora muito bem. E como estão os teus pés, Hadiyyah...
- Eu encarrego-me disso - interveio Barbara, rápida. Hadiyyah correu, ligeira, para a otomana e deixou-se cair sobre ela.
- Estão muito apertados. Mesmo agora. A sério, pai.
Azhar deu uma gargalhada e foi para a cozinha.
- A decisão cabe a Barbara - disse à filha.
- Estão mesmo muito apertados - insistiu Hadiyyah. - Vê como tenho os dedos esborrachados à frente.
- Não sei, Hadiyyah - disse Barbara, pressionando a biqueira do sapato. - E como vais substituí-los? Compras outros iguais?
A garota não respondeu. Barbara levantou a cabeça. Hadiyyah mordia o lábio.
- Então? - perguntou Barbara. - Mudaram o tipo de sapatos que podes usar com o uniforme, Hadiyyah?
- São tãofeios - murmurou. - Parece que tenho uns barcos enfiados nos pés. Os novos sapatos são daqueles em que basta enfiar o pé, Barbara. Têm uma fita a toda a volta numa pele linda e uma borla pequenina e amorosa. São um bocado caros, por isso é que nem toda a gente tem uns ainda, mas eu sei que podia usá-los para sempre se os tivesse. A sério - os seus enormes olhos castanhos reflectiam uma expectativa enorme.
Barbara perguntou a si própria como conseguiria o pai negar-lhe fosse o que fosse. Empenhada na sua missão de árbitro, disse:
- Aceitas um compromisso?
A testa de Hadiyyah contraiu-se quase tanto como os dedos dos seus pés.
- O que é um compromisso? - perguntou.
- É um acordo em que as duas partes envolvidas obtêm o que querem, só que não exactamente na altura em que estavam à espera.
Hadiyyah reflectiu um pouco, balançando os pés apertados dentro dos sapatos.
- Está bem - concordou -, acho. Mas os sapatos são mesmo bonitos, Barbara. Se tu os visses, ias entender.
- Não tenho dúvidas - disse Barbara. - Já deves ter percebido que eu sou uma verdadeira escrava da moda. - Pôs-se de pé. Com uma piscadela de olhos na direcção da cozinha, disse em voz alta: - Eu diria que estes ainda vão durar mais alguns meses, Azhar.
Hadiyyah parecia triste.
- Alguns meses - gemeu.
- Mas não há dúvida que vai precisar de um novo par de sapatos antes do feriado do 5 de Novembro - acrescentou Barbara.
Olhando para Hadiyyah, pronunciou a palavra compromisso em silêncio e observou-a enquanto ela calculava mentalmente o tempo que mediava entre os meses de Setembro e Novembro. O número de semanas pareceu deixá-la satisfeita.
Azhar apareceu à porta da cozinha. Prendera uma toalha de loiça ao cós das calças a servir de avental. Na mão, segurava uma colher de pau.
- Consegue ser assim tão precisa no que diz respeito a análise de sapatos, Barbara? - perguntou ele, sério.
- Às vezes, até eu fico pasmada com os meus talentos.
Caril era outra das coisas que Azhar parecia saber fazer sem o menor esforço. Recusou todas as ofertas de ajuda, mesmo no momento de lavar a loiça, dizendo:
- A sua presença constitui em si mesma uma oferenda à nossa refeição, Barbara. Não lhe pedimos mais nada.
Mesmo assim, e depois de alguma insistência, conseguiu pelo menos levantar os pratos da mesa de jantar. E enquanto o pai lavava e secava a loiça na cozinha, ela fazia companhia à filha, que era o que mais prazer lhe dava.
Logo que a mesa de jantar ficou arrumada, Hadiyyah empurrou Barbara na direcção do seu quarto, anunciando que tinha uma coisa especial
' Bonfire Night ou Guy Fawkes Night, dia feriado em que os Britânicos lançam fogo-de-artifício e acendem fogueiras em comemoração da data em que Guy Fawkes tentou destruir o edifício do
Parlamento, em Londres, em 1605. [N. da T. ]
e secreta para Lhe mostrar. Coisas de raparigas, deduziu Barbara. Todavia, em vez de uma colecção de fotografias de uma estrela de cinema ou de alguns bilhetes escritos a lápis que Lhe tivessem sido entregues sorrateiramente na escola, Hadiyyah tirou um saco que estava escondido debaixo da cama, cujo conteúdo despejou amorosamente sobre a colcha.
- Acabei-o hoje - anunciou, orgulhosa. - Na aula de costura. Devia tê-lo deixado lá em exposição... viste o meu convite para a exposição de costura, Barbara?... mas prometi a Miss Bateman que o levaria de volta novinho em folha. Só que eu tinha de o ter para poder dá-lo ao pai. É que ele já estragou um par de calças. Quando estava a cozinhar o jantar.
Era um avental com peitilho. Hadiyyah escolhera uma chita de cor clara sobre a qual tinham sido impressas uma fileira de patas que conduziam a sua ninhada para um lago onde cresciam juncos. As patas usavam todas chapéus idênticos e as crias levavam debaixo da asa minúscula um utensílio de praia diferente.
- Achas que ele vai gostar? - perguntou Hadiyyah, ansiosa. - Os patos são tão queridos, não são, mas se calhar para um homem... Eu gosto muito de patos, sabes. O pai e eu damos-lhes comida às vezes, em Regents Park, por isso quando vi este tecido... Mas acho que podia ter escolhido uma coisa mais masculina, não podia?
A imagem de Azhar envolto nas dobras do avental fez com que Barbara sentisse vontade de rir. Reprimindo uma gargalhada, examinou as costuras em ziguezague e a bainha cosida à mão por mãos pouco firmes mas carinhosas.
- Está perfeito. Ele vai adorar.
- Achas que sim? É o meu primeiro trabalho, sabes, e eu não sou muito boa. Miss Bateman queria que eu começasse por uma coisa mais simples, como um lenço, por exemplo. Mas eu sabia o que queria fazer, porque o pai tinha estragado as calças, como eu te disse, e eu sabia que ele não queria estragar mais nenhumas calças na cozinha. E foi por isso que eu trouxe isto para casa para lhe dar.
- E vamos fazer isso agora, então? - perguntou Barbara.
- Oh, não. É para amanhã - disse Hadiyyah. - Eu e o pai temos um dia especial amanhã. Vamos ver o mar. Vamos fazer um piquenique na praia. Vou dar-lhe o avental nessa altura. Como agradecimento por me levar a passear. E depois vamos andar na montanha- russa que há no cais, e o pai vai-me tirar um boneco de dentro de uma caixa. Ele é muito bom nisso.
- Eu sei que é. Vi-o fazer isso uma vez, lembras-te?
- Pois viste - recordou Hadiyyah, com vivacidade. - Queres vir connosco até à praia, Barbara? Vai ser um dia tão especial. Vamos fazer um piquenique ao almoço e depois vamos até ao parque de diversões que há
no cais. E há a caixa dos bonecos também. Vou perguntar ao pai se podes
- pôs-se de pé num salto, dizendo em voz alta: - Pai! Pai! A Barbara...
- Não! - Barbara interrompeu-a de imediato. - Não, Hadiyyah. Não, miúda, eu não posso ir. Estou no meio de uma investigação e tenho montanhas de trabalho. Nem sequer devia estar aqui a esta hora, com todos os telefonemas que tenho para fazer antes de me ir deitar. Mas obrigada por te teres lembrado de mim. Fica para outra vez.
Hadiyyah ficou parada, a mão pousada no puxador da porta.
- Nós vamos ao parque de diversões do cais - repetiu, tentando aliciá-la.
- Vou estar com vocês em pensamento - assegurou-lhe Barbara. E pensou na rápida capacidade de recuperação das crianças, maraviLhando-se perante a forma como aceitavam o que lhes era oferecido. Tendo em conta o que sucedera da última vez que Hadiyyah estivera perto do mar, Barbara não podia deixar de se sentir surpreendida pelo facto de ela querer ir novamente à praia. As crianças são diferentes dos adultos, pensou. Aquilo que não conseguem suportar, esquecem, simplesmente.
Pelo menos passamos despercebidos - assinalou o detective Winston Nkata quando entraram em Boltons, uma pequena zona residencial em forma de bola de râguebi, encaixada entre Fulham Road e Old Brompton Road. A zona consistia em duas ruas arborizadas que descreviam um arco ovalado em volta da Igreja de St. Mary the Boltons e tinha como características predominantes o número de câmaras de segurança montadas no exterior das mansões e o aparato de Rolls-Royces, Mercedes-Benz e Range Rovers, arrumados do outro lado dos portões de ferro de muitas das residências.
Quando Lynley e Nkata estacionáram em Boltons, os candeeiros da rua ainda não estavam acesos e os passeios encontravam-se, na sua maioria, desertos. Um gato avançando furtivamente ao longo de um algeroz, possivelmente no encalço de outro felino, e uma criada filipina - vestida com um anacrónico uniforme preto e branco - que, bolsa de mão debaixo do braço, entrava num Ford estacionado junto ao passeio fronteiro à casa que Lynley e Nkata procuravam, eram os únicos sinais de vida.
O comentário de Nkata fora uma referência ao Bentley de Lynley, que se coadunava perfeitamente com as características da zona, tal como acontecera em Notting Hill. Excepção feita ao veículo, todavia, os dois detectives não podiam estar mais deslocados: Lynley devido à profissão que escolhera, muito pouco provável num homem cujas origens familiares remontavam à época de Guilherme, o Conquistador, e cujos antepassados mais recentes teriam considerado a zona de Boltons aquém dos locais que habitualmente frequentavam. Nkata pelo seu inconfundível sotaque antilhano, contaminado pelas sonoridades próprias da Margem Sul do Tamisa.
- A polícia não deve aparecer muito por aqui, suponho eu - disse Nkata, observando atentamente os gradeamentos de ferro forjado, as câmaras, as caixas de alarme e os intercomunicadores que pareciam ser parte integrante de todas as residências. - Mas apetece perguntar qual é a vantagem de ter tanto dinheiro, se para usufruir dele é preciso uma pessoa barricar-se.
- Não posso deixar de concordar consigo - retorquiu Lynley, aceitando o Opal Fruit que o detective lhe oferecia. Desembrulhou-o e guardou o papel, cuidadosamente dobrado, dentro do bolso para não macular o passeio impecavelmente limpo. - Vejamos o que Sir Adrian Beattie tem para nos dizer.
Lynley reconhecera o nome quando Tricia Reeve o mencionara quando eles a tinham entrevistado em Notting Hill. Sir Adrian Beattie era o homólogo britânico de Christiaan Barnard. Autor do primeiro transplante cardíaco realizado em Inglaterra, trabalhara no mundo inteiro ao longo das últimas décadas, alcançando níveis de sucesso que lhe asseguravam não só um lugar de honra na história da medicina, mas também uma fortuna considerável. Esta última, aliás, estava bem patente em Boltons: a casa de Beattie era uma fortaleza com paredes de uma brancura glacial e janelas protegidas por gradeamentos de ferro forjado. O portão principal barrava a entrada a todos os que não apresentassem uma identificação aceitável aos olhos dos seus moradores, exigida através de um intercomunicador por uma voz fria e impessoal, num tom que deixava entrever que nem todas as respostas eram válidas.
Partindo do princípio que a designação New Scotland Yard teria uma ressonância com a qual uma palavra simples como Polícia jamais conseguiria rivalizar, Lynley indicou o local de trabalho de ambos juntamente com as respectivas patentes quando proferiu o seu nome e o de Nkata. Em resposta, o portão abriu-se com um estalido. Quando Lynley e Nkata chegaram ao fim dos seis degraus da entrada, a porta fora já aberta por uma mulher que usava um incongruente chapelinho em forma de cone.
Apresentou-se como sendo Margaret Beattie, filha de Sir Adrian. A família comemorava uma festa de aniversário naquele momento, explicou apressadamente, soltando o elástico que prendia o chapelinho debaixo do queixo e retirando o cone que Lhe cobria a cabeça. A filha dela completava cinco anos de feliz convívio com os seus semelhantes. Passava-se algo de anormal na zona? Não se tratava de um assalto, esperava. Lançou um olhar ansioso para a rua, atrás deles, como se os arrombamentos e os assaltos fizessem parte da rotina diária de Boltons, e ela, inadvertidamente, estivesse a incentivá-la ao manter a porta aberta mais tempo do que era necessário.
Estavam ali para falar com Sir Adrian, explicou Lynley. E não, a visita deles nada tinha que ver com a área e a sua vulnerabilidade às incursões de ladrões profissionais.
- Compreendo - disse Margaret Beattie, hesitante, convidando-os a entrar.
Se não se importassem, pediu, aguardavam uns momentos no escritório do pai, que ficava no andar superior, enquanto ela ia chamá-lo.
- Espero que a vossa conversa não se prolongue por muito tempo disse, com aquela insistência sorridente a que recorrem as mulheres edu cadas quando pretendem transmitir o que pensam sem terem de o dizer
directamente. - Molly é a sua neta preferida e ele prometeu-lhe que lhe dedicaria toda a sua atenção esta noite. Prometeu que lhe lia um capítulo inteiro de Peter Pan. Quando lhe perguntou o que ela queria como prenda de aniversário, ela pediu-lhe isso, precisamente. Extraordinário, não concordam?
- Bastante.
Foram conduzidos ao escritório por uma Margaret Beattie exultante, inequivocamente feliz, que os deixou em seguida para ir chamar o pai.
O escritório de Sir Adrian ficava situado no primeiro andar da casa, ao cimo de uma escadaria larga. Mobilada com poltronas de couro vermelho-escuro que assentavam num chão coberto por uma carpete verde-escura, a divisão albergava uma vasta biblioteca, que incluía desde obras sobre medicina a outras versando temas mais mundanos. Um testemunho silencioso de dois aspectos díspares da vida de Sir Adrian. A vida profissional do seu proprietário estava representada por condecorações, certificados, prémios e recordações tão diversos quanto os antigos instrumentos médicos e gravuras centenárias representando o coração humano. A sua vida privada revelava-se em dezenas de fotografias. Estas estavam por todo o lado: sobre a lareira, encaixadas nas prateleiras de livros, alinhadas, como bailarinas prontas para uma pirueta, sobre o tampo da secretária. Retratavam membros da família do médico: em férias, em casa, na escola, ao longo dos anos. Lynley pegou numa das fotografias e examinou-a, enquanto Nkata se baixava para observar de perto os instrumentos antigos, cuidadosamente dispostos sobre uma pequena estante de livros com portas de vidro.
O médico tinha quatro filhos, ao que parecia. Na fotografia que Lynley observava, Beattie posava rodeado por eles e pelos respectivos cônjuges. Um patriarca orgulhoso da sua prole com a mulher ao lado e onze netos reunidos à sua volta como minúsculas gotas de óleo acumuladas em redor de outra, maior e mais central, que tenta absorvê-las. A fotografia fora tirada no Natal. Cada neto segurava a respectiva prenda e Beattie aparecia disfarçado de Pai Natal sem a barba. Todos os retratados riam ou sorriam, o que levou Lynley a questionar-se sobre as eventuais alterações nos seus semblantes caso a ligação de Sir Adrian com uma dominadora passasse a ser do conhecimento público, ou familiar até.
- Inspector Lynley?
Lynley virou-se ao ouvir uma agradável voz de tenor. Parecia pertencer a um homem mais jovem, mas tratava-se, de facto, do corpulento cirurgião, que se encontrava à entrada do escritório. Usava um chapéu de capitão feito de cartolina e na mão segurava uma taça de champanhe.
- Estávamos a preparar-nos para fazer um brinde em honra da nossa Molly. Ela vai abrir os presentes neste preciso momento. Não podemos adiar a nossa conversa por uma hora?
- Receio bem que não - Lynley colocou a fotografia no lugar de onde a tirara e apresentou Nkata, que enfiou a mão no bolso do casaco e retirou o bloco-notas e o lápis.
Beattie reagiu ao facto com aparente consternação. Entrou no escritório e fechou a porta atrás de si.
- Os senhores estão aqui por razões profissionais? Passa-se alguma coisa? A minha família... - lançou um olhar na direcção de onde viera e interrompeu o que ia dizer. Era óbvio que a polícia não estava ali para lhe anunciar uma notícia desagradável sobre alguém da sua família. Estavam todos reunidos ali em casa naquele momento.
- Uma jovem chamada Nicola Maiden foi assassinada em Derbyshire, na noite de terça-feira - informou Lynley.
Beattie permaneceu absolutamente imóvel. Era a personificação da espera. Os seus olhos estavam fixos em Lynley. As mãos de cirurgião - as mãos de um homem idoso que mantinham a agilidade de um indivíduo trinta anos mais jovem - não traíram o mais leve tremor, não aumentaram a pressão em torno do copo, não esboçaram sequer o mais pequeno movimento. Os seus olhos pousaram depois em Nkata, baixando até encontrarem o bloco-notas que o detective segurava na palma da mão enorme e tornaram a fixar-se em Lynley.
- O senhor conhecia Nicola Maiden, não conhecia, Sir Adrian? - perguntou Lynley. - Embora talvez a conhecesse apenas pelo seu nome pro fissional: Nikki Temptation.
Beattie aproximou-se e, com extremo cuidado, colocou a taça de champanhe sobre a secretária. Em seguida, instalou-se atrás da sua mesa de trabalho, numa cadeira de costas altas, e com uma inclinação de cabeça indicou as poltronas de couro.
- Sente-se, por favor, inspector - disse, por fim. - O senhor também, detective. - E quando ambos já estavam sentados, continuou: - Não li um único jornal. O que é que lhe aconteceu, podem dizer-me, por favor?
Era o género de pergunta que um homem habituado a desempenhar funções de liderança poderia ter colocado a um subordinado. A reacção de Lynley, todavia, foi tentar deixar bem claro qual dos dois iria controlar o rumo da conversa.
- Conhecia, então, Nicola Maiden? - inquiriu num tom de voz calmo. Beattie entrelaçou os dedos. Dois deles, conforme Lynley pôde ver, tinham unhas escurecidas, ambas deformadas por uma espécie de fungo que parecia alastrar a partir do interior. Era uma visão desconcertante num homem ligado à medicina, e Lynley perguntou a si próprio por que motivo Beattie não teria tomado providências para minorar o problema.
- Sim, conhecia Nicola Maiden - admitiu Beattie.
- Fale-nos sobre a vossa relação.
Atrás dos óculos de armação dourada, os olhos dele exibiam uma
expressão desconfiada.
- Estou sob suspeita?
- Todas as pessoas que a conheciam estão sob suspeita.
- Terça-feira à noite, foi o que disse?
- Foi exactamente isso que eu disse, sim.
- Estava cá na terça-feira à noite.
- Nesta casa?
- Nesta casa, não. Estava em Londres. No meu clube, em St. Jame's. Deseja que eu lhe apresente alguma corroboração, inspector? É essa a palavra correcta, não é? Corroboração.
- Fale-nos sobre Nicola - pediu Lynley. - Quando a viu pela última vez? Beattie pegou na taça de champanhe e bebeu um gole. Para ganhar tempo, acalmar o nervosismo. Impossível de dizer.
- Na manhã da véspera do dia em que ela partiu para o Norte.
- Isso terá sido no passado mês de Junho? - perguntou Nkata. E quando Beattie confirmou a data com um movimento de cabeça, Nkata acrescentou: - Em Islington?
- Islington? - Beattie franziu a testa. - Não. Aqui. Ela vinha cá a casa. Vinha sempre cá a casa quando eu. quando eu precisava dela.
- O vosso relacionamento era, então, de natureza sexual - disse Lynley. - O senhor era um dos clientes dela?
Beattie desviou a cabeça e fitou a lareira onde se encontrava exposta a numerosa colecção de fotografias de família.
- Suponho que já conheça a resposta a essa pergunta. Dificilmente se teriam deslocado até minha casa num sábado à noite, se não tivessem sido devidamente informados sobre o lugar que eu ocupava na vida de Nikki. Por isso, a resposta é sim, eu era um dos seus clientes, se é assim que lhe querem chamar.
- E o senhor, que nome lhe daria?
- Tínhamos um acordo mutuamente compensatório. Ela prestava-me um serviço indispensável e eu pagava-lhe generosamente por ele.
- O senhor é uma figura pública muito conhecida - assinalou Lynley.
- Tem uma carreira de sucesso, mulher, filhos, netos e todos os sinais exteriores de uma vida afortunada.
- E os interiores também - disse Beattie. - Tenho, de facto, uma vida afortunada. Por que razão, então, havia eu de correr o risco de a perder, mantendo uma ligação com uma vulgar prostituta? É isso que quer saber, não é? Só que é essa precisamente a questão central, inspector Lynley. Nikki não era vulgar, em nenhum aspecto.
Algures dentro de casa, soaram os acordes de uma melodia executada ao piano com ardor e talento. Chopin, aparentemente. Depois, a música parou abruptamente, entrecortada por gritos, e foi substituída pelo compasso vivo e alegre de uma peça de Cole Porter, acompanhada por um coro de vozes exuberantes alheio a quaisquer regras de afinação. Call me irreSPONsible, call me unreLlable', entoava o grupo, ora gritando, ora rindo, ora cantando. Seguiu-se um coro de gargalhadas e uma sequência de frases bem-dispostas: uma comemoração em casa de uma família feliz.
- É o que começo a perceber - concordou Lynley. - O senhor não é a primeira pessoa a referir que ela estava muito acima do comum. E, no entanto, por que motivo estaria o senhor disposto a arriscar tudo por um caso...
- Não se tratava disso.
- Por um acordo, então. Por que motivo arriscaria tudo por ele é o que eu quero saber. Estou mais interessado em saber exactamente o que estaria disposto a fazer para salvaguardar o que possui... esses sinais exteriores e interiores da sua vida... caso a sua manutenção estivesse de algum modo ameaçada?
- Ameaçada?
A voz de Beattie traía demasiada perplexidade para que Lynley acreditasse que se tratava de uma reacção ingénua. Era impossível que ele não soubesse os riscos enormes que corria, ao manter uma relação com uma prostituta.
- Todos os homens têm inimigos - disse Lynley. - Até o senhor, diria eu. Se, por acaso, algum indivíduo de carácter duvidoso descobrisse o seu acordo com Nicola Maiden e decidisse prejudicá-lo tornando público esse acordo, o senhor teria muito a perder, e nem todas essas perdas seriam palpáveis.
- Ah, já estou a perceber onde quer chegar: o desfecho tradicional por ter ousado desafiar as leis da sociedade.
Ladrão que rouba a minha bolsa, murmurou em seguida. Em seguida adoptou um tom mais íntimo, criando em Lynley a estranha impressão de que podiam perfeitamente estar a discutir as previsões meteorológicas para o dia seguinte:
- Isso jamais poderia ter acontecido, inspector. Nikki frequentava esta casa, como lhe disse antes. Vestia-se de forma conservadora, aparecia sempre acompanhada de uma pasta e conduzia um Saab. Aparentemente, vinha cá para receber instruções ou para ajudar a organizar uma festa. E dado que os nossos encontros decorriam bem longe das janelas, ninguém jamais poderia ver fosse o que fosse.
- Mas ela não usava nenhuma venda, suponho?
- Claro que não. Seria difícil prestar-me um serviço satisfatório, se o
fizesse.
' Chamem-me irresponsável, chamem-me inConstante. [N. da T.]
- Nesse caso, concordará comigo se eu lhe disser que ela devia saber certos pormenores sobre si. Pormenores esses, que uma vez revelados, podiam confirmar uma história... que, por sua vez, podia ser vendida a um tablóide, quem sabe?... e servir de prova para todos os factos que ela decidisse levar ao conhecimento de uma opinião pública, para quem as intrigas e mexericos nunca são suficientemente depravados.
- Santo Deus - desabafou Beattie, com ar pensativo.
- Por esse motivo, a apresentação de uma corroboração é incontornável, conforme adivinhou - continuou Lynley. - Vamos precisar de saber o nome do seu clube.
- O senhor está a sugerir que eu matei Nicola, porque ela estaria a exigir-me mais do que eu lhe pagava? Ou porque, tendo eu decidido que já não precisava dela, ela terá ameaçado divulgar a nossa relação, caso eu não continuasse a pagar-lhe? - acabou de beber o champanhe, soltando depois uma gargalhada rouca enquanto empurrava a taça para o lado. Levantou-se, dizendo: - Santa Mãe de Deus, se ao menos assim tivesse sido. Esperem um momento, por favor.
E saiu do escritório.
Nkata pôs-se rapidamente de pé.
- Chefe, quer que...
- Espere. Vamos ver o que acontece.
- Ele pode perfeitamente estar ao telefone a combinar o álibi.
- Não acredito.
Lynley não conseguia explicar o que o levava a tirar esta conclusão, a não ser o facto de haver algo de inequivocamente estranho nas reacções de Sir Adrian Beattie, não só à notícia do assassínio de Nicola Maiden, mas também à implicação lógica de que o seu envolvimento com ela continha amplas possibilidades de destruir tudo o que ele parecia valorizar.
Quando regressou, passados cerca de dois minutos, vinha acompanhado de uma mulher, que apresentou aos detectives como sendo a sua mulher. Lady Beattie, assim a chamou, dirigindo-se depois à mulher:
- Chloe, estes senhores estão aqui por causa de Nikki Maiden. Lady Beattie - uma mulher magra com cabelo penteado ao estilo de Wallis Simpson e uma pele reluzente em resultado de demasiados tratamentos anti-rugas - levou os dedos ao colar de pérolas de três voltas que lhe adornava o pescoço e fazia lembrar um conjunto de bolas de golfe.
- Nikki Maiden? - repetiu. - Ela não está em apuros, espero bem.
- Infelizmente, foi assassinada, minha querida - disse o marido, colocando uma mão no cotovelo dela, não fosse ela achar a notícia chocante.
O que parecia ser o caso, já que reagiu, dizendo:
- Oh, meu Deus, Adrian...
Ele deslizou a mão ao longo do braço dela e entrelaçou os dedos nos dela, num gesto que, aos olhos de Lynley, parecia imbuído de um carinho genuíno.
- Terrível - disse ele. - Um horror. Os senhores detectives vieram cá, porque pensam que eu posso estar envolvido. Por causa do acordo.
Lady Beattie soltou a mão que o marido prendia entre a sua. Ergueu uma sobrancelha bem delineada e disse:
- Mas as probabilidades de Nikki te magoar eram muito maiores do que o contrário, não é verdade? Ela não permitia que ninguém a dominasse, pois não? Lembro-me que ela deixou isso bem claro quando a entrevistámos pela primeira vez. Eu não fico por baixo, foram exactamente estas as suas palavras. Experimentei uma vez apenas e achei repugnante. E em seguida pediu desculpa, julgando que podia ter-te ofendido. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Tu, não, querido?
- Suponho que ela não foi morta durante uma sessão - Beattie disse à mulher. - Os senhores disseram que tinha sido em Derbyshire, e ela tinha arranjado aquele trabalho de Verão com o tal advogado, lembras-te?
- E nas horas vagas, ela não...
- Isso era só em Londres, tanto quanto sei.
- Compreendo.
Lynley sentia-se como se tivesse passado para o outro lado do espelho. Olhou de relance para Nkata e viu que o detective, cujo rosto era o retrato da estupefacção, sentia o mesmo.
- Talvez queiram explicar-nos que tipo de acordo era esse, Sir Adrian, Lady Beattie - pediu Lynley. - A informação ajudar-nos-á a entender melhor o caso que temos em mãos.
- Com certeza.
Lady Beattie e o marido tinham todo o gosto em fazer-lhes um relato exaustivo das preferências sexuais de Sir Adrian. Movendo-se com graciosidade, Lady Beattie sentou-se num sofá perto da lareira. Os homens retomaram as suas posições iniciais. E enquanto o marido os punha ao corrente da verdadeira natureza da relação que mantinha com Nicola Maiden, ela ia acrescentando alguns pormenores importantes, sempre que ele se esquecia deles.
Conhecera Nicola por volta do dia 1 de Novembro do ano anterior, sensivelmente nove meses depois de a artrite que atacava as mãos de Chloe se ter tornado demasiado dolorosa para que ela pudesse executar os rituais de disciplina que ambos tinham aprendido a apreciar desde que estavam casados.
- De início pensámos simplesmente em renunciar - disse Sir Adrian.
- À dor, não ao sexo propriamente dito. Julgávamos que íamos conseguir sobreviver sem ela, agir segundo os moldes tradicionais e tudo o mais. Mas não demorou muito até que percebêssemos que a minha necessidade...
fez uma pausa, como se procurasse uma explicação concisa que não os obrigasse a penetrar demasiado no intrincado labirinto da sua psique -, porque é, defacto, uma necessidade, percebem? Têm de compreender isto, se quiserem compreender tudo o resto.
- Continue - disse Lynley.
Lançou um olhar na direcção de Nkata. O detective tomava notas novamente, embora a expressão do seu rosto traduzisse algo do género, Deus me ajude, que irá a minha mãe dizer quando souber disto?, quase tão eloquentemente como se o dissesse em voz alta.
Conscientes de que teriam de arranjar uma maneira de satisfazer a necessidade de Sir Adrian, se quisessem continuar a manter uma vida sexual activa, os Beattie decidiram, então, procurar uma pessoa jovem, saudável, forte e - mais importante do que tudo - capaz de agir com total discrição.
- Nicola Maiden - adivinhou Lynley.
- A discrição era... é... crucial - disse Sir Adrian. - Para um homem na minha posição.
Era óbvio que não podia escolher uma dominadora ao acaso, através de um número de telefone deixado numa cabina telefónica ou de um anúncio de revista. Tão-pouco podia pedir a amigos e colegas que lhe recomendassem alguém. E deslocar-se a um clube sadomasoquista - ou até a um dos centros de transacção de carne humana menos importantes que havia em Soho, na esperança de encontrar uma candidata à altura - não seria uma atitude muito sensata da parte dele, já que havia sempre a possibilidade de ser visto, reconhecido e, consequentemente, sujeito ao tratamento habitual dos tablóides para grande desgosto dos seus próprios filhos, dos respectivos cônjuges e dos filhos destes.
- E de Chloe, evidentemente - acrescentou Sir Adrian com um movimento de cabeça. - Já que embora ela esteja a par... sempre esteve, aliás... desta ânsia que me domina, as suas amizades e conhecimentos não sabem de nada. E suponho que ela queira continuar a mantê-los na ignorância.
- Obrigada, querido - agradeceu Chloe.
Assim, Sir Adrian contratara um serviço de acompanhantes - a Global, Escorts, mais exactamente - e fora através dessa empresa que viera a conhecer Nicola Maiden. A primeira entrevista com ela - que consistira num lanche com chá, scones e uma conversa tranquila e satisfatória - fora seguida de uma segunda, na qual tinham sido definidos os termos do acordo inicial.
- Acordo? - perguntou Lynley.
- Sobre a periodicidade dos serviços dela - explicou Chloe -, o que estes implicavam e a quantia que receberia por eles.
- Chloe e eu conversámos ambos com ela nas duas entrevistas, a fim de acertar pormenores - disse Sir Adrian. - Era fundamental que ela percebesse que não havia qualquer vantagem em manter uma ligação que pudesse vir a causar sofrimento à minha mulher.
- Que não causava, de facto - disse Chloe. - Não a mim, pelo menos.
- Não queres mostrar a câmara a estes senhores, minha querida? perguntou Sir Adrian à mulher. - Eu vou lá abaixo ter com as crianças e dizer-Lhes que já não nos demoramos muito.
- Mostro, claro - replicou ela. - Querem fazer o favor de me acom panhar, inspector, detective.
E com a mesma graciosidade com que se sentara, levantou-se, condu ziu-os até à porta do escritório e depois ao longo de dois lanços de escadas, enquanto Sir Adrian descia para uma breve troca de palavras com o resto da família. Ironicamente, esta cantarolava, I get no kicks from champagne,1.
Lady Beattie levou-os até ao último andar da casa. Do interior de um antigo armário para roupas, situado num corredor estreito, tirou uma chave com que abriu uma das portas. Entrou antes deles e ligou uma lâmpada de fraca voltagem.
- No início, ele realmente só queria disciplina - explicou ela -, o que, ainda que me parecesse um pouco estranho, para ser sincera, eu consegui dar-lhe. Reguadas nas palmas das mãos, uns açoites no traseiro, golpes na parte de trás das pernas com um cinto. Só que ao fim de alguns anos ele começou a querer mais, e quando eu deixei de ter forças suficientes... Bom, mas ele já vos explicou tudo isso, não é verdade? Seja como for, era aqui que se realizavam as sessões, e onde eu e ele tínhamos as nossas quando eu podia.
A câmara, como eles chamavam à divisão, fora adaptada a partir dos antigos quartos do pessoal doméstico. Algumas paredes tinham sido suprimidas, outras tinham sido reforçadas e insonorizadas. A existência de um sistema de ventilação eliminava a necessidade de usar as janelas - que estavam fechadas, a fim de impedir a hipotética curiosidade alheia. Os Beattie tinham, assim, criado um mundo de fantasia que era uma combinação de um gabinete de reitor com uma sala de operações cirúrgicas, uma masmorra e uma câmara de tortura medieval. Sob as caleiras tinha sido encaixado um conjunto de armários. Lady Beattie abriu-os para que eles vissem os diversos fatos e instrumentos de disciplina, como ela lhes chamava, usados em Sir Adrian.
Estavam explicadas as razões por que Nicola Maiden não trazia nada para dentro daquela casa a não ser o seu desejo de ser útil a Sir Adrian e de ser bem paga pelos serviços prestados. Entre os fatos arrumados dentro dos armários havia um hábito de freira em lã grossa e um uniforme de guarda prisional, acompanhado do respectivo bastão. Havia, também, as
indumentárias mais tradicionalmente associadas aos rituais sadomasoquistas: fatos em PVC vermelhos ou pretos, corpetes e máscaras de couro e botas de salto alto. Além disso, os instrumentos utilizados para as sessões de disciplina de Sir Adrian, meticulosamente arrumados como os instrumentos cirúrgicos antigos que ele guardava no escritório, explicavam também por que razão ela se deslocava a casa deles com tão pouca bagagem. Tudo o que era necessário para impor disciplina, causar dor e humilhação fora reunido e guardado naquela divisão.
Após tantos anos de actividade policial, Lynley sabia que já tinha tido tempo suficiente para ter visto um pouco de tudo. No entanto, sempre que pensava isso, a vida encarregava-se de o surpreender. E neste caso em particular, não era tanto a existência da câmara na casa dos Beattie que o deixava estupefacto. Era, sim, a atitude do próprio casal em relação a ela, sobretudo da mulher. Era como se estivesse a mostrar-lhe uma sofisticada cozinha ultramoderna:
Ela pareceu ter consciência do tipo de sentimentos que provocava nele. Observando Lynley desde a porta da câmara, fitando atentamente Nkata que deambulava pela divisão, o rosto denunciando claramente a actividade febril da sua imaginação, que lhe enchia o cérebro com imagens relacionadas com o uso dado a todos aqueles fatos e equipamento, disse, em voz baixa:
- Eu nunca teria seguido esta via, se não tivesse sido uma escolha. Uma pessoa espera, de facto, fazer um casamento tradicional. Só que amar alguém significa ter de fazer um compromisso de vez em quando. E quando ele me explicou a importância que tudo isto tinha para ele... - fez um gesto que abarcou toda a divisão. As articulações dos dedos estavam inchadaS em consequência da doença que precipitara a entrada de Nicola Maiden no mundo privado dos Beattie. - Uma necessidade não passa de uma necessidade. Desde que o nosso espírito crítico se mantenha intacto, as necessidades não têm força suficiente para nos magoar.
- Incomodava-a que fosse outra mulher a satisfazer a necessidade dele?
- O meu marido ama-me. Nunca tive quaisquer dúvidas acerca disso. Lynley questionou-se sobre a veracidade destas palavras. Sir Adrian veio ter com eles, dizendo à mulher:
- Chamam-te lá abaixo, querida. Molly não está disposta a adiar a abertura dos presentes nem por mais cinco minutos.
- Mas tu...
Comunicaram daquela forma peculiar aos casais que estão casados há mais de uma geração.
- Logo que tenha despachado este assunto. Já não demora muito mais. Depois de ela os ter deixado, Sir Adrian permaneceu calado durante alguns instantes antes de dizer, em voz baixa:
- Há algo, claro, que eu preferia que Chloe não soubesse, pois apenas iria fazê-la sofrer desnecessariamente.
Nkata preparou o bloco-notas, enquanto Lynley tentava adivinhar as implicações contidas nas palavras do cirurgião.
- O senhor contactou-a através do pager, durante o Verão. Todavia, como ela não podia ter-lhe prestado nenhum serviço desde Derbyshire, tenho a impressão de que os contornos do vosso acordo, não se limitavam ao que nos contou na presença da sua mulher.
- O senhor é muito bom, inspector - Beattie fechou a porta da câmara. - Eu estava apaixonado por ela. No início, não, naturalmente. Não nos conhecíamos. Mas ao fim de um ou dois meses, apercebi-me da intensidade dos meus sentimentos por ela. Comecei por dizer a mim mesmo que tudo não passava de dependência: o facto de ter uma nova mulher disciplinando-me fazia aumentar a minha excitação, e eu queria sentir essa excitação com uma frequência cada vez maior. Só que era mais do que isso, porque ela superou todas as minhas expectativas. E, por isso, queria ficar com ela.
- Como sua mulher?
- Eu amo Chloe. Mas na vida de um homem não há apenas um tipo de amor... coisa que o senhor pode saber já ou que poderá vir a saber, um dia... e, egoistamente, eu tinha esperanças de o poder viver. - Baixou os olhos e fitou as unhas deformadas. - Sentia um amor sexual por Nikki, aquele tipo de sentimento que tem a ver com uma espécie de posse física. Um desejo animal. O amor que sinto por Chloe, por sua vez, é feito da matéria de que é feita a nossa história comum. Quando me apercebi de que sentia esse tipo de amor por Nikki, este sentimento de natureza sexual que à medida que os nossos encontros se sucediam se ia tornando mais difícil de esquecer, tentei convencer-me que era uma reacção natural. Ela satisfazia uma necessidade tremenda que existia dentro de mim. E estava disposta a fazer tudo o que eu lhe pedisse. Todavia, quando percebi que era mais do que uma simples dominadora...
- Começou a sentir relutância em partilhá-la com outros homens.
- Uma dedução intuitiva. Pois é, o senhor é, defacto, muito bom. Nicola deslocava-se até Boltons pelo menos cinco vezes por semana, segundo lhes disse Beattie. E ele justificava a frequência das sessões junto de Chloe com o recrudescer de tensão provocado pelo seu trabalho, já que a existência de médicos mais jovens e os progressos na medicina tinham contribuído para aumentar os seus níveis de ansiedade a um ponto tal que só a disciplina podia proporcionar-lhe algum alívio.
- Disse a Nikki que sempre que sentisse desejo, queria que ela estivesse disponível para mo satisfazer de imediato - disse.
- Mas a realidade era bem mais complicada, não era?
- A realidade era infinitamente simples. Eu não conseguia sequer imaginar Nikki com outros homens, fazendo com eles... e representando para eles... aquilo que fazia comigo e aquilo que representava para mim. Imaginá-la com outra pessoa qualquer significava uma rápida descida aos infernos. E eu não estava à espera disso, de ter esse tipo de sentimento por uma prostituta. Todavia, quando a contratei, ignorava que ela se ia tornar muito mais do que uma mera prostituta.
Sem o conhecimento da mulher, ele propusera a Nicola um acordo especial. Ele pagaria para a ter - e pagar-Lhe-ia mais do que ela alguma vez sonhara vir a receber - fosse em que circunstâncias fosse: um apartamento, uma casa, uma suite de hotel, uma casa de campo. Era-lhe indiferente, desde que ela lhe prometesse que o tempo dela estaria reservado apenas para ele.
- Disse-lhe que já não queria ficar na fila à espera da minha vez, nem de marcar uma hora com ela - explicou Beattie. - Só que se, de facto, a queria disponível para mim a qualquer hora, tinha de a colocar numa situação em que ela fosse livre.
O duplex em Fulham proporcionava-lhe essa situação. E uma vez que era sempre Nicola quem vinha ao encontro de Sir Adrian, e não o contrário, ele não se importara quando ela pedira para ter uma companheira de apartamento, alguém que lhe fizesse companhia durante os períodos em que ele não precisava dos serviços dela.
- Não vi qualquer inconveniente nisso - disse-lhes ele. - Tudo o que eu queria era que ela estivesse disponível sempre que eu lhe telefonasse. E durante o primeiro mês foi isso que aconteceu. Cinco, seis vezes por semana, às vezes duas vezes no mesmo dia. Ela chegava cerca de uma hora depois de eu a ter contactado pelo pager e ficava o tempo que eu quisesse. O nosso acordo funcionava bem.
- Foi então que ela decidiu regressar a Derbyshire. Porquê?
- Disse-me que tinha de honrar o compromisso de trabalhar para um advogado local, que iria lá passar o Verão apenas. Eu estava perdidamente apaixonado, mas não ao ponto de acreditar nesta história. Disse-lhe que não continuaria a pagar a casa de Fulham, se ela não estivesse em Londres para atender as minhas chamadas.
- Mas ela foi na mesma. Estava disposta a correr o risco de perder o que o senhor lhe proporcionava. Que tem a dizer sobre isso?
- O óbvio. Eu sabia que se ela ia voltar para Derbyshire apesar do que eu lhe pagava, e da vida que eu Lhe proporcionava, para ficar em Londres, era porque havia alguma razão para isso, e a razão só podia estar relacionada com dinheiro. Alguém de lá estava a pagar- lhe mais do que eu. O que, por sua vez, significava que havia outro homem.
- O advogado.
- Confrontei-a com essa possibilidade. Ela negou. E sou forçado a admitir que um advogado comum não teria posses para a manter, a não ser que possuísse uma fonte de rendimento independente. Por isso, era outra pessoa. Ela, porém, recusou-se a dizer-me de quem se tratava, por mais que eu a ameaçasse. É só durante o Verão, insistia e eu ripostava, furioso, E isso que me importa.
- Discutiram, então.
- Violentamente. Eu retirei-lhe o meu apoio. Sabia que ela ia ter de voltar a trabalhar no serviço de acompanhantes... ou na rua, até... se quisesse continuar no duplex quando regressasse a Londres, e estava quase certo de que ela não ia querer optar por essa via. Mas estava enganado. Ela deixou-me na mesma. E aguentei quatro dias até me precipitar para o telefone, disposto a dar-lhe tudo para tê-la de volta. Mais dinheiro. Uma casa. Até o meu nome, meu Deus.
- Mas ela não voltou.
- Disse-me que não se importava de trabalhar na rua. Ocasionalmente. Como se eu lhe tivesse perguntado que tal ela se estava a dar em Derbyshire. Eu e Vi mandámos imprimir cartões e os dela já estão em cir culação, disse-me ela. Os meus vão estar na rua também quando eu voltar a Londres. Não guardo nenhuma espécie de ressentimento sobre o que aconteceu entre nós, Ady. Além disso, a Vi diz que o telefone não pára de tocar noite e dia, por isso cá nos arranjaremos.
- Acreditou nela?
- Acusei-a de estar a tentar dar comigo em doido. Censurei-a. Depois pedi-lhe desculpa. Em seguida, ela começou a provocar-me ao telefone. Desejava-a desesperadamente e não conseguia suportar imaginar o que ela estaria a fazer com ele, fosse ele quem fosse. Censurei-a novamente. Fui estúpido, absolutamente estúpido. Mas estava louco para tê-la de volta. Teria feito tudo... - calou-se, parecendo ter consciência das implicações contidas nas suas palavras.
- E na noite de terça-feira, Sir Adrian? - perguntou Lynley.
- Eu não matei Nikki, inspector. Jamais seria capaz de lhe fazer mal. Não a vejo desde Junho. Não estaria certamente aqui a contar-lhe tudo isto, se tivesse... Seria incapaz de a magoar.
- O nome do seu clube?
- Brook's. Encontrei-me com um colega para jantar, na terça-feira. Ele confirmar-lhe-á isso mesmo, tenho a certeza. Mas, por amor de Deus, não vão contar-lhe que eu... Ninguém sabe de nada, inspector. É um segredo meu e de Chloe.
E de todos aqueles a quem Nicola tenha decidido contar o que se passava, pensou Lynley. Que significado teria para Sir Adrian Beattie ter o seu segredo mais bem guardado suspenso sobre a sua cabeça como uma espada de Dâmocles? Que faria ele, se se sentisse ameaçado?
- Nicola chegou a apresentar-lhe a companheira de apartamento?
- Uma vez, sim. Quando lhe entreguei as chaves do duplex.
- Nesse caso, Vi Nevin, a rapariga que morava com ela, estava a par do vosso acordo?
- Talvez. Não sei.
Todavia, porquê correr sequer o risco de que alguém viesse a saber o que se passava? interrogou-se Lynley. Porquê admitir a cumplicidade de uma companheira de apartamento, sujeitando-se, assim, aos perigos decorrentes do facto de um estranho ter conhecimento de uma preferência sexual capaz de causar uma humilhação extrema a um homem na posição de Beattie?
O próprio Beattie pareceu ler essa pergunta nos olhos de Lynley.
- Sabe o que é desejar uma mulher tão desesperadamente? - perguntou. - Tão desesperadamente ao ponto de concordar com tudo, ao ponto de fazer tudo só para a ter? Era isso que eu sentia.
- E quanto a Terry Cole? Onde é que ele encaixava?
- Não conheço nenhum Terry Cole.
Lynley tentou avaliar o grau de veracidade da resposta. Não conseguiu. Beattie era demasiado hábil em manter uma expressão franca e só isso bastava para fazer aumentar as suas suspeitas.
Agradeceu ao cirurgião o tempo que lhes tinha dispensado e saiu com Nkata, devolvendo Beattie à companhia da família. Num gesto incongruente, o homem conservara na cabeça o chapéu de capitão feito de cartolina durante todo o encontro. Lynley perguntou a si próprio se o facto de o usar o teria mantido firmemente ancorado à vida da família ou se funcionara como um símbolo falso de uma devoção que ele não sentia.
Quando se encontravam já na rua, Nkata disse:
- Deus Todo-Poderoso. Os sarilhos em que as pessoas se envolvem, inspector.
- Pois é - concordou Lynley. - E aqueles de que se livram também.
- Não acredita na história que ele nos contou?
Lynley deu uma resposta indirecta.
- Fale com o pessoal do Brook's. Eles devem ter registos que provem quando é que ele lá esteve. Depois siga para Islington. Você já viu Sir Adrian em carne e osso. Martin Reeve também. Fale com a senhoria de Nicola Maiden, com os vizinhos. Vamos tentar descobrir se alguém se lembra de ter visto algum destes cavalheiros por lá no dia 9 de Maio.
- Isso é pedir muito, Chefe. Quatro meses depois.
- Confio nos seus dotes para arrancar informações - Lynley desactivou o sistema de alarme do Bentley, dizendo por cima do tejadilho do carro: - Entre, deixo-o no metro.
- E o senhor, que vai fazer, inspector?
- Vi Nevin. Se há alguém que possa confirmar a história de Beattie, é ela.
Azhar recusou-se a permitir que Barbara percorresse sozinha os cerca de seis metros que a levavam até sua casa, ao fundo do jardim. Podia ser assaltada, violada, abordada ou atacada por um gato com uma predilecção especial por tornozelos grossos.
Assim, deitou a filha, trancou escrupulosamente a porta do seu apartamento e acompanhou Barbara até à parte de trás da casa. Ofereceu- Lhe um cigarro. Ela aceitou e pararam ambos para acender cada um o seu. A chama do fósforo acentuou o contraste da pele de um e de outro quando ela levou o cigarro aos lábios e ele protegeu a chama, colocando as mãos perto da boca dela.
- Um vício terrível - disse ela, em jeito de conversa. - Hadiyyah não pára de me pedir que deixe de fumar.
- E a mim também - disse Azhar. - A mãe dela é... pelo menos era... uma antitabagista militante, e Hadiyyah parece ter herdado de Angela não só a sua aversão ao tabaco, mas também o seu espírito de cruzada.
Aquelas palavras constituíam a totalidade das referências que Azhar fizera até ao momento sobre a mãe da sua filha. Barbara queria perguntar-lhe se ele informara a filha de que a mãe dela partira definitivamente, ou se ainda continuava a alimentar a historieta de que Angela Weston se encontrava de férias no Canadá, férias essas que já duravam há quase cinco meses. Todavia, o que disse foi:
- Pois é. Bom, sendo pai dela, suponho que ela quererá mantê-lo por perto por mais alguns anos.
Caminhavam ao longo do carreiro que ia dar a casa dela.
- Obrigada pelo jantar, Azhar. Estava óptimo. Quando eu tiver ultrapassado a fase da pizza requentada, gostava de retribuir a sua simpatia, se me deixar.
- Terei muito prazer nisso, Barbara.
Esperava que ele se virasse, pronto para voltar a casa, dado que a sua casota estava já bem à vista. Havia, por isso, poucas hipóteses de tropeçar nalgum sarilho durante os cinco escassos minutos de caminho que a separavam da porta de entrada. Ele, porém, manteve-se ao seu lado, caminhando com a tranquilidade que lhe era característica.
Alcançaram a porta de casa dela. Não a trancara, e quando a abriu, Azhar franziu a testa e comentou que a sua noção de segurança não era tão perfeita quanto devia ser. Ela concordou, mas alegou que a sua intenção fora apenas dar um salto a casa dele e pedir desculpa a Hadiyyah por se ter esquecido da aula de costura a que tinha prometido ir assistir. Não estava nos seus planos ficar para o jantar, que aproveitava para agradecer uma vez mais. Ele era um cozinheiro fantástico: Ou já lhe teria dito isso antes?
Educadamente, Azhar fingiu que ela não tinha ainda feito qualquer referência aos seus dotes culinários até àquele momento, e depois insistiu em entrar em casa com ela, a fim de se certificar de que não havia nenhum visitante indesejado escondido no duche ou debaixo da cama. Quando se deu por satisfeito, aconselhou-a a trancar bem a porta quando ele saísse. Só que não saiu. Em vez disso, olhou de relance para a mesa de jantar, onde Barbara pousara as coisas quando chegara a casa depois do trabalho. Estas consistiam na velha e deformada mala a tiracolo e numa pasta, dentro da qual enfiara a lista de funcionários do número 31-32 Soho Square, a cópia da autópsia que fotocopiara sub-repticiamente antes de entregar o original a St. James e o rascunho do relatório que redigira para Lynley, contendo as informações que obtivera a partir da leitura dos ficheiros do 5010 correspondentes a Andy Maiden.
- Esta nova investigação mantém-na ocupada - disse Azhar. - Você deve sentir-se feliz por estar novamente junto dos seus colegas.
- Pois sinto - disse Barbara. - Foi uma longa espera. Regents Park e eu estávamos a tornar-nos mais do que meros conhecidos, contrariamente ao que eu esperava a princípio.
Azhar inalou o fumo do cigarro, sem desviar os olhos dela. Não gostava quando ele a fitava daquela maneira. Era um olhar que a deixava sempre na expectativa do que iria passar-se em seguida.
- Mais uma vez, obrigada pelo jantar.
- Obrigado por nos ter feito companhia.
Todavia, não manifestou qualquer intenção de ir embora, e ela percebeu porquê quando ele finalmente disse:
- A letra D, Barbara. Corresponde a uma patente policial, não é verdade.
O coração dela disparou. Queria esquivar-se à conversa que estavam prestes a iniciar, mas não conseguia lembrar-se de uma forma rápida de o fazer. Por isso, disse:
- Sim, geralmente, sim. Acho que depende daquilo a que estão associadas. Como Washington D. C. por exemplo. Aqui não se trata de uma patente. Mas, claro, também não estamos a falar de uma força policial.
Sorriu. Demasiado forçado, concluiu.
- Mas se estiver associada ao seu nome? Detective Havers, é isso? Raios, pensou Barbara, mas o que disse foi:
- Oh, sim, claro.
- Nesse caso, foi despromovida. Eu vi as letras no bilhete que aquele cavalheiro lhe deixou. Primeiro pensei que se tratasse de um engano, mas como não tem trabalhado com o inspector Lynley...
- Eu nem sempre trabalho com o inspector, Azhar. Às vezes, ficamos com partes diferentes da investigação de um determinado caso.
- Ah, sim? - Mas ela percebeu que ele não acreditava nela. Ou pelo menos julgava que havia algo mais por detrás daquela história. - Despromoção. E, no entanto, não houve qualquer redução no número de agentes, pois não? Acho que me falou nisso há algum tempo, não foi? E se assim for, acho que você deve estar a fugir à verdade. Comigo, claro. E pergunto a mim mesmo porquê?
- Azhar, não estou a fugir de coisa nenhuma. Que diabo, nós não andamos propriamente amarrados um ao outro, pois não? - reagiu Barbara, corando em seguida violentamente ao perceber que as suas palavras sugeriam um grau de intimidade que ela não fizera tenções de sugerir. Merda, pensou. Porque é que todas as conversas com aquele homem eram um campo minado? - O que quero dizer é que não falamos muito de trabalho, você e eu. Nunca falámos. Você dá as suas aulas na universidade e eu ando pela Yard tentando fazer alguma coisa de indispensável.
- A despromoção é um assunto sério em qualquer profissão. E neste caso, deduzo que vem na sequência do que se passou em Essex, não é verdade? Que se passou, exactamente, Barbara?
- Eh, lá. Como é que você fez essa ligação?
Ele apagou o cigarro num cinzeiro, onde pelo menos dez beatas de Players se destacavam do conjunto de tabaco queimado como vegetais em flor. Fitou-a.
- A minha suposição está correcta, não está? Você foi castigada por causa do seu trabalho em Essex, no mês de Junho? Que se passou, Barbara?
- É uma situação algo particular - tentou ganhar tempo. - Ou seja, é um assunto pessoal. Porque quer saber?
- Porque me sinto confuso em relação às leis britânicas e gostaria de as entender melhor. Como posso eu ajudar o meu povo quando eles têm problemas legais se não sou capaz de perceber claramente como é que as leis do vosso país são aplicadas ao indivíduo que as viola?
- Mas ninguém violou nenhuma lei neste caso - disse Barbara. Fora uma mera transgressão. Afinal de contas, ela não fora colocada no banco dos réus acusada de assalto ou de tentativa de homicídio, por isso conseguira convencer-se de que aos olhos da lei nunca fora culpada.
- Seja como for, sendo você minha amiga, pelo menos eu assim o espero...
- Claro que sou.
- Então, talvez me ajude a compreender um pouco melhor a sua sociedade.
Tretas, pensou Barbara. Ele compreendia melhor a sociedade britâ nica do que ela própria. Só que dificilmente poderia dirigir a discussão nessa direcção. Era mais que certo que depressa terminaria num diálogo de surdos. Por isso, decidiu-se a dizer:
- Não aconteceu nada de especial. Eu tive uma discussão com a inspectora que estava a tomar conta do caso em Essex, Azhar. Estávamos em plena perseguição, e a única coisa que um subordinado nunca deve fazer é questionar ordens no meio de uma perseguição. Foi isso que aconteceu e foi por isso que fui despromovida.
- Por questionar uma ordem.
- Eu tenho tendência para questionar mais vezes do que a média - disse, em tom jovial. - É um hábito que aprendi na escola. Sou baixa, perco-me no meio de uma multidão se não me fizer ouvir. Devia ouvir-me pedir uma caneca de cerveja no Load of Hay quando os adeptos de futebol estão a ver o jogo do Arsenal pela televisão. Só que quando usei o mesmo tipo de abordagem com a inspectora Barlow, ela não gostou lá muito.
- Seja como for, uma despromoção... é uma medida muito severa, com certeza. Estão a fazer de si um exemplo, é isso? Não pode protestar? Não há um sindicato ou uma organização que possa representá-la com a agressividade necessária para...
- Numa situação como esta - interrompeu Barbara -, o melhor é não fazer ondas. Deixar a poeira assentar, percebe? Deixar acalmar os ânimos - era a Rainha do Lugar-Comum, resmungou para dentro. - Quando já tiver passado tempo suficiente, há-de resolver-se por si. A situação, sabe como é.
Esmagou o seu cigarro entre os outros, pondo um ponto final na conversa. Ficou à espera que ele se despedisse, mas em vez disso, ele disse:
- Amanhã, Hadiyyah e eu vamos passar o dia na praia.
- Ela disse-me. Está muito entusiasmada com a ideia. Sobretudo com o parque de diversões. E está a contar com uma boa caçada na máquina dos bonecos, Azhar. Espero que tenha praticado muito com as tenazes.
Ele sorriu.
- Ela é tão pouco exigente. E, no entanto, a vida parece retribuir-lhe de forma tão generosa.
- Talvez seja por isso - assinalou Barbara. - Se não passarmos o tempo à procura de algo em especial, aquilo que acabarmos por encontrar talvez acabe sendo do nosso agrado.
- Palavras sensatas - admitiu ele.
Sabedoria barata, pensou Barbara. Abriu a pasta que estava sobre a mesa e retirou a lista de nomes de Soho Square. O dever chamava, percebeu ele pelo gesto dela. E Azhar era muito astuto quando se tratava de inferir a partir de sugestões não verbalizadas.
O trajecto desde a casa de Sir Adrian Beattie até ao duplex de Vi Nevin foi praticamente um passeio turístico ao longo de Fulham Road, devido ao pouco tráfico existente. Apesar de curta, a viagem proporcionou a Lynley tempo suficiente para reflectir sobre o que Beattie lhe contara e sobre os seus sentimentos em relação a tudo o que ouvira. Os longos anos de experiência profissional no CID permitiam-Lhe concluir que não havia espaço naquela investigação para meditar sobre o que sentia em relação às revelações de qualquer um dos intervenientes, e ainda menos no que se referia ao que acabara de ouvir da boca de Sir Adrian. E, no entanto, era-lhe impossível travar o curso dos seus pensamentos. Justificava o rumo que eles tomavam naquele momento dizendo para si mesmo que era natural que eles se Lhe impusessem daquela maneira. Os desvios sexuais tinham tanto de aberrante como uma criatura de duas cabeças. Este tipo de anomalia podia deixar uma pessoa horrorizada, mas era impossível não pensar nela, ainda que por breves instantes.
E era isso que ele estava a fazer: reflectia sobre um comportamento desviante, em primeiro lugar devido à sua componente anómala, depois com o objectivo de avaliar a possibilidade de o desvio sexual constituir em si mesmo o pormenor relevante que lhe permitiria descobrir a identidade do assassino de Nicola Maiden. A única dificuldade que enfrentava ao tentar usar o desvio sexual como meio para descobrir o assassino consistia no facto de ter consciência de que ele próprio se sentia incapaz de se abstrair da mera existência desse desvio.
Porque seria? Sentir-se-ia agradavelmente excitado por ele? Impelido a adoptar uma atitude sentenciosa e condenatória? Intrigado? Estupefacto? Seduzido? Quais eram os seus sentimentos, afinal?
Não sabia. Sabia que ele existia, claro. Era o que alguns chamariam o lado obscuro do desejo. Estava familiarizado com alguns dos enquadramentos teóricos construídos por alguns estudiosos da psique humana para o explicar. Dependendo da escola de pensamento que se adoptasse, o sadomasoquismo podia ser considerado uma blasfémia erótica com origem numa dissenção sexual; um vício das classes privilegiadas resultante de uma educação em escolas privadas onde os castigos corporais eram uma rotina diária - e quanto mais ritualizados melhor; uma reacção de desafio à rigidez de uma educação conservadora; a expressão de um ódio pessoal à mera existência de pulsões sexuais; ou a única forma de intimidade física para todos aqueles para quem o terror causado pela perspectiva de um contacto íntimo era mais forte do que a sua vontade de o superar. O que não sabia era por que razão, naquele momento, a ideia de desvio o deixava tão atormentado. E era o porquê desse sentimento que o afligia.
Que tem isto que ver com amor? Lynley tivera vontade de perguntar ao cirurgião. Que relação existia entre ser magoado, espancado, ferido e humilhado e a inefável e - pronto, estava disposto a concordar que soava absurdamente romântico, mas fosse como fosse usaria o termo – transcendente alegria que acompanhava o acto de possuir e de ser possuído por outro ser? Não seria essa alegria o fim que os parceiros sexuais deviam aspirar alcançar quando faziam amor? Ou seria ele um recém-casado demasiado recente para poder retirar quaisquer ilações sobre o significado da palavra devoção entre adultos livres e conscientes? E teria o sexo alguma coisa que ver com o amor? E deveria ter, aliás? Ou era esse o erro que todos cometiam, o de atribuir uma importância a uma função fisiológica que devia ter tanto valor como o acto de escovar os dentes?
Só que aquele raciocínio tinha apenas uma saída: o sofisma. Ninguém tinha necessidade de lavar os dentes. Ninguém sentia essa necessidade. E era o facto de se sentir essa necessidade - o crescimento lento de uma tensão, inicialmente subtil e, no final, impossível de ignorar - que era determinante para a vida. Porque era essa sensação de necessidade que conduzia a um desejo ardente que obrigava à satisfação. E era o desejo de satisfação que levava um indivíduo a renegar tudo aquilo que se opusesse à saciedade procurada. Prescindia voluntariamente da honra, da responsabilidade, da tradição, da fidelidade e do sentido do dever em prol da fruição da sua paixão. E porquê? Porque queria.
Se recuasse mais de vinte anos no tempo, Lynley seria capaz de perceber de que modo o desejo dilacerara a sua própria família. Ou, pelo menos, de que modo ele próprio permitira que o desejo - que nessa época mal compreendia - a dilacerasse. Um sentimento de honra mantivera a sua mãe ligada ao seu pai. A responsabilidade e a tradição tinham-na mantido presa ao lar familiar e a uma sucessão de condessas de Asherton que durante mais de duzentos e cinquenta anos tinham assegurado a sua conservação e glória. O sentido do dever exigira-lhe que se preocupasse com a saúde frágil do marido e com o bem- estar dos seus filhos. E a fidelidade impusera-lhe que o fizesse sem reconhecer abertamente, dentro de si ou em privado que ela própria poderia desejar outra coisa - ou algo mais, pelo menos - do que a opção que tomara aos dezoito anos quando se casara. Lidara bem com tudo até que a doença começara a consumir-lhe o marido. Mesmo nessa altura, porém, conseguira manter a vida tal como a família sempre conhecera, até que o simples acto de ter de lidar com a situação, de ter de representar um papel em vez de, simplesmente, ser capaz de o viver, fizera nascer nela o desejo de ser libertada. E a libertação acabara por surgir, ainda que apenas temporariamente.
Cabra, prostituta, meretriz, chamara-lhe tudo. E tê-la-ia agredido fisicamente - a ela, a mãe que ele adorava - se ela não o tivesse feito primeiro, e com uma violência, uma frustração e uma raiva tais que lhe abrira uma ferida no lábio superior.
Porque teria ele reagido tão violentamente quando ficara a saber que ela era infiel? interrogava-se Lynley enquanto travava para evitar chocar com um grupo de ciclistas que se preparava para virar à direita para North End Road. Observou-os com uma expressão vaga, protegidos pelos seus capacetes e fatos de licra, e reflectiu sobre a pergunta, não só pelo que revelava sobre a sua adolescência, mas também pelas implicações que a sua resposta teria para o caso que tinha entre mãos. A resposta, decidiu, tinha a ver com amor e com as insidiosas, e muitas vezes excessivas, expectativas que pareciam estar sempre associadas ao próprio facto de amar. Quantas vezes queremos que o objecto do nosso amor seja uma extensão de nós próprios. E quando tal não acontece - porque nunca pode acontecer - a nossa frustração exige que tomemos medidas para acalmar o tumulto que nos assalta.
Todavia, começava a tornar-se aparente que nos relacionamentos de Nicola Maiden não havia apenas um tipo de tumulto. Embora a sua vida - e muito provavelmente a sua morte - tivesse sido marcada por um desejo frustrado, ele não podia ignorar o lugar ocupado pelo ciúme, a vingança, a avareza e o ódio. Todas estas paixões mutiladoras causavam tumulto. Qualquer delas podia levar alguém a cometer um assassínio.
Rostrevor Road ficava a uns escassos oitocentos metros de Fulham Broadway, e ao subir os degraus da entrada, Lynley verificou que a porta do edifício onde vivia Vi Nevin estava aberta. Um aviso manuscrito colado na ombreira da porta explicava porquê, tal como o barulho proveniente de um dos apartamentos do rés-do-chão, cuja porta estava igualmente aberta. Casa de Tildy e Steve nas Traseiras era o que estava escrito a caneta de feltro multicor numa folha de papel branco. Por baixo lia-se ainda, Fumem na rua, por favor!
O barulho que vinha do interior do apartamento era ensurdecedor, pois os convivas apreciavam os talentos musicais de um grupo de vozes masculinas não identificadas que, guturalmente, aconselhavam os membros do seu sexo a usar e abusar dela, a possuí-la e a deixá-la, acompanhados por instrumentos de percussão, uma guitarra eléctrica e metais. A combinação não soava particularmente melíflua, concluiu Lynley. Estava mais velho
- e mais enfadonho, infelizmente - do que julgava. Dirigiu-se às escadas e subiu ao andar de cima.
As luzes do corredor eram comandadas por um temporizador, e para ligá-las bastava premir um interruptor colocado ao fundo das escadas. Havia janelas no patamar, mas como já era noite, de pouco serviam para atenuar a escuridão que envolvia tudo o que se encontrava acima do andar térreo do edifício. Lynley acendeu as luzes do andar de Vi Nevin e encaminhou-se para a porta do apartamento dela.
Ela recusara-se a contar a verdade acerca da forma como tinha conhecido Nicola Maiden. Recusara-se a revelar o nome do homem que financiara a casa onde vivia. Havia provavelmente uma dezena de outros factos que ela podia confessar, se a pressão psicológica fosse exercida com subtileza suficiente.
Lynley sentia-se à altura dessa tarefa. Embora Vi Nevin não se deixasse enganar com facilidade e dificilmente pudesse ser levada a revelar algo contra sua vontade, o facto era que também vivia à margem da lei e, tal como acontecia com os Reeve, estaria disposta a fazer um compromisso, se disso dependesse a sobrevivência do seu negócio.
Bateu à porta. Havia um batente de metal, por isso sabia que ela o ouviria apesar da música e dos gritos vindos da festa que decorria no andar de baixo. No entanto, não obteve qualquer resposta do interior, o que pensando bem não era de surpreender, dado que era sábado à noite e - ou saíra em serviço ou tivera outro compromisso - uma mulher fora de casa num sábado à noite não era motivo para alarme.
Tirou um dos seus cartões do bolso do casaco, colocou os óculos e pegou numa caneta para lhe escrever um bilhete. Quando acabou de escrever, tornou a guardar a caneta e prendeu o cartão à porta, à altura do puxador.
E foi então que viu.
Sangue. A marca inconfundível de uma impressão digital no puxador da porta. Uma segunda mancha alguns centímetros mais acima, partindo da ombreira e deixando um rasto irregular na superfície da porta.
- Santo Deus - Lynley deu um soco na porta. - Miss Nevin? chamou, gritando em seguida: - Vi Nevin!
Não obteve resposta. No interior, tudo continuava silencioso. Lynley tirou a carteira de dentro do bolso das calças, agarrou num cartão de crédito e tentou forçar a fechadura, uma Banham antiga.
CAPÍTULO 22
Tens noção do que fizeste? Por mais pequena que seja? Quanto tempo teria passado desde que ela se injectara pela última vez? interrogava-se Martin Reeve. E será que podia alimentar a esperança, praticamente improvável, de que aquela criatura patética tivesse inventado a entrevista num momento de alucinação e que esta não tivesse realmente acontecido? Era possível, mas apenas teoricamente. Tricia nunca abria a porta a ninguém quando ele não estava em casa. Era demasiado paranóica para o fazer. Por que razão, então, o teria feito desta vez, quando quase todo o seu estilo de vida estava à beira do precipício, à espera que alguém desse um passo em falso e o empurrasse encosta abaixo?
Só que ele conhecia bem a resposta a essa pergunta. Ela teria aberto a porta, sim, porque não passava de uma imbecil, porque era incapaz de manter uma linha de raciocínio lógica durante mais de cimco minutos, porque se alguém ao cimo da terra a levasse sequer a imaginar que o seu fornecimento regular de droga estava em risco de acabar, ela faria tudo para impedir que isso acontecesse. E abrir a porta era o gesto mais insignificante de todos. Venderia o corpo, venderia a alma, vendê-los-ia a ambos. E, aparentemente, fora isso que aquela cabra desmemoriada conseguira fazer enquanto ele estava fora.
Encontrara-a no quarto, cabeceando na cadeira de baloiço branca que estava junto à janela, o ombro e o seio esquerdos iluminados por um ténue fio de luz proveniente do candeeiro da rua. Estava completamente nua, e um espelho alto oval, junto à cadeira, reflectia a perfeição fantasmagórica do seu corpo.
- Que diabo estás a fazer, Tricia? - perguntara, num tom de voz que não era totalmente agressivo, já que ao fim de vinte anos de casamento, estava habituado a encontrar a mulher nas mais variadas condições: ora impecavelmente vestida com um fato de marca que custara uma fortuna, ora enfiada na cama às três da tarde vestida com um babygro e chuchando numa garrafa de pina colada.
Assim, de início pensara que ela se arranjara daquela maneira para lhe agradar. E embora não estivesse com disposição para ir para a cama com ela, admitira que o dinheiro que gastara com os cirurgiões de Beverly Hills fora um investimento que produzira resultados visualmente agradáveis.
Esse pensamento, porém, apagara-se como a chama de uma vela apanhada por uma corrente de ar, quando Martin percebera o quanto a mulher exagerara na dose. Embora, na maioria das vezes, o estado de semi-sonolência em que o pó a deixava o incitasse a possuí-la naquele estilo violento e dominador que tanto lhe agradava quando fazia sexo com qualquer mulher que se dispusesse a receber os seus ensinamentos, a tarde e a noite não lhe tinham corrido de acordo com o que planeara. Conhecia suficientemente bem o funcionamento do seu corpo e da sua mente para ter consciência de que caso se deixasse excitar ao ponto de sentir vontade de possuir outra mulher naquele dia - sobretudo uma que não lhe oferecesse luta -, a sua escolha não recairia certamente sobre uma tipa cuja capacidade de reacção era semelhante à de um frasco de plasma. Isso dificilmente lhe proporcionaria o entretenimento que procurava.
Deste modo, no início, não só a pusera de parte a ela como descartara qualquer possibilidade de obter uma resposta coerente às suas perguntas. E ignorara-a quando ela murmurara, Temos d'ir pr' a Melbourne, Marty. Temos d'ir já. Os disparates típicos de quem está a dormir em pé, pensara. Dirigira-se à casa de banho, pusera a água do duche a correr e ensaboara as mãos por baixo da torneira, massajando as articulações e o rosto com o sabonete cremoso preferido de Tricia.
Junto à janela, ela recomeçara a falar. Dessa vez, porém, a sua voz soara mais alta, num esforço para se fazer ouvir por cima do barulho do jacto de água.
- EnTão tlefonei pr'a vários sítios. Pr a saber os preços. Log'qu' possível, Marty. Querido? Viste o qu'eu disse? Temos d'ir pr' a Melbourne.
Ele aparecera à porta, secando as mãos e o rosto numa toalha. Ela sorrira ao vê-lo. Os seus dedos bem tratados deslizaram ao longo da coxa, acariciaram primeiro o estômago e depois - provocadoramente - o mamilo, que endurecera. O seu sorriso tornara-se mais ainda rasgado. Martin permanecera imóvel.
- S'rá qu'Austrália é muit' quente? - perguntara. - Eu sei que tu não gostas muito de calor. Mas nós temos d'ir pr a Melbourne, porqu'eu prometi-lhe que íamos.
Nessa altura, Martin começara a levá-la mais a sério. Fora aquele Lhe que chamara a sua atenção.
- De que estás a falar, Tricia?
Ela respondera, com um trejeito de desagrado:
- Não tás a ouvir, Marty. Odeio quando não ouves o que te digo. Martin sabia como era importante manter um tom de voz suave e agradável, pelo menos durante alguns momentos.
- Eu estou a ouvir-te, sim, querida. Melbourne. O calor. Austrália. Uma promessa. Ouvi tudo. Só não compreendo onde é que tudo isso se encaixa e o que quer dizer. Talvez se me explicares...
- O que quer dizer... - fizera um gesto vago com a mão na direcção do quarto, apontando para tudo e para coisa nenhuma. Em seguida, o seu comportamento alterara-se radicalmente, uma reacção do género Jekyll e Hyde muito característica dos indivíduos dependentes, e dissera com desdém: - Pareces tão maricas, Marty. Talvez se m'explicares...
As reservas de paciência de Martin estavam praticamente esgotadas. Mais dois minutos de charadas verbais e ele estaria capaz de a estrangular.
- Tricia, se tens algo importante a dizer-me, fá-lo. Caso contrário, vou tomar um duche. Entendido?
- Oooohhh - troçara ela. - Ele vai tomar um duche. E aposto que todos nós sabemos porquê, se o cheirarmos. Sabemos que cheiro vamos encontrar. Quem foi, então, desta vez? Com qual das senhoras estiveste hoje? E nã mintas, Marty, que eu sei o que se passa contigo e c'as raparigas. Elas contam-me, sabes? Até se queixam. O que, desconfio bem, tu nunca imaginaste que elas fizessem, pois não?
Por momentos, Martin hesitara, indeciso sobre se havia de acreditar no que ela dizia. Só Deus sabia como, por vezes, o simples acto de exigir e tomar o que não estava à venda não bastava para o satisfazer. De tempos a tempos, as situações acumulavam-se de tal maneira que só um determinado nível de brutalidade era capaz de compensar o seu descontrolo perante as infindáveis irritações do dia-a- dia, que o perseguiam como moscas em volta de mel. Tricia, no entanto, ignorava essa sua faceta. Quanto a isso, não tinha quaisquer dúvidas. Além disso, nenhuma das raparigas que trabalhavam para ele seria estúpida ao ponto de lhe ir contar fosse o que fosse. Por isso, Martin virara costas à mulher sem dar resposta ao comentário dela. Despira a camisa, preparando-se para tomar o seu duche.
- Por isso diz adeus, diz adeus a tudo isto. Estás preparado para isso, Marty? - perguntara ela, no quarto.
Ele abrira o fecho das calças e despira-as, atirando-as ao chão. Em seguida, descalçara as meias, sem lhe dar resposta.
Ela continuara a falar.
- Ele disse que se fôssemos pr'Austrália, tu e eu, ele ficaria de bico calado acerca dos negócios. Por isso, acho qu'é isso que temos de fazer.
- Ele - Martin tornara a entrar no quarto, vestido apenas com os boxers. - Ele? - insistira. - Ele, Tricia?
Começara a sentir uma irritação crescer-lhe nas entranhas, o princípio de uma náusea que sugeria que algo anteriormente inconcebível podia, de facto, ter acontecido durante o tempo em que ele deixara a mulher sozinha em casa.
- Exactamente - confirmara ela. - Uma barra de chocolate. E doce, posto, se por acaso eu tivesse qu'rido prová-lo. Desta vez não veio com aquela vaca, p'r isso podia ter tentado, acho. Só que ele não veio sozinho.
Santo Deus,. Eles tinham voltado, os sacanas. Tinham entrado em casa. E tinham falado com a pateta da mulher dele.
Aproximara-se da cadeira de baloiço. Agarrara violentamente a mão que ela pousara sobre os seios.
- Conta-me - ordenara com rispidez. - A polícia esteve aqui. Conta-me.
- Hei! - protestara ela, tornando a pousar a mão sobre o mamilo. Ele prendera-lhe os dedos com a mão. Apertara-os até os ossos começarem a ceder como galhos frágeis e quebradiços.
- Eu corto-a - dissera. - Gostas dessa tua maminha bonita, acho eu. Não queres ficar sem ela, pois não? Então, diz-me tudo já, ou eu não respondo pelas consequências.
E para se certificar de que ela percebia o alcance das suas palavras, soltara os dedos dela e apertara- lhe o pulso. Há muito que descobrira que uma boa torcidela valia mais do que uma centena de chicotadas. E, mais importante do que isso, não deixava marcas para, mais tarde, mostrar à mamã e ao papá.
Tricia soltara um grito. Ele aumentara a pressão. Ela gritara, Marty! ele insistira, Fala. "
Ela tentara deslizar da cadeira de baloiço para o chão, mas ele, que estava em vantagem, colocara-se por cima dela. Pressionando-lhe a garganta com um braço, conseguira imobilizar-lhe a cabeça contra as costas da cadeira de verga.
- Queres mais? - perguntara. - Ou chega assim?
Ela optara pela segunda alternativa e contara-lhe tudo o que se tinha passado. Ele ouvira-a com um crescente sentimento de incredulidade e invadido por um desejo tão forte de esbofetear o rosto da mulher que não estava seguro de conseguir controlar-se. O facto de ter deixado a polícia entrar em casa roçava, só por si, os limites do absolutamente fantástico. Que lhes tivesse falado sobre o serviço de acompanhantes era inacreditável. Agora, que lhes tivesse, de facto, fornecido o nome e o endereço de Sir Adrian Beattie - que lhos tivesse entregue alegremente, sem sequer parar para pensar no que significava trair a confiança de um homem, cujas singulares necessidades tinham em tempos sido atendidas pela Global Escorts, e cujas singulares necessidades voltariam novamente a ser atendidas pela Global Escorts, agora que a cabra da Maiden estava finalmente fora do filme - constituía um acto de insanidade tal que Martin não sabia como conter a sua fúria.
Por isso perguntara:
- Tens noção do que fizeste? - enquanto as entranhas se lhe revolviam como um bocado de pano torcido. - Por mais pequena que seja? e puxando-a pelos cabelos, empurrou a cabeça dela para trás.
- Pára com isso! Tás a magoar-me. Marty! Pára!
- Sabes o que fizeste, minha cabra estúpida? Tens a noção de que deste definitivamente cabo de nós?
- Não! Estás a magoar-me!
- Oh, ainda bem, minha querida. - E, com gestos violentos, puxou a cabeça dela para trás com tamanha violência que conseguia contar os músculos da parte da frente do pescoço. - Tu não vales nada, minha querida - disse-lhe ao ouvido. - És lixo, minha querida esposa. Se o teu pai tivesse só uma dúzia de conhecimentos a menos, largava-te no meio da rua e não te punha mais a vista em cima.
Ela desatou a chorar ao ouvir isto. Tinha medo dele, sempre tivera, e a consciência desse medo normalmente produzia nele um efeito afrodisíaco. Mas esta noite, não. Esta noite, queria matá-la.
- Eles iam prender-te - gritou ela. - Que querias que eu fizesse? Que não fizesse nada para o impedir?
Colocou a outra mão debaixo do maxilar dela, o polegar apertando um dos lados e o indicador fazendo pressão sobre o outro. Este golpe podia deixar uma marca ou duas. Mas, com os diabos, ela era uma cretina tal que quase valia a pena enfrentar as consequências de a magoar.
- Ah, iam? - segredou-lhe ele, ao ouvido. - E sob que acusação?
- Marty, eles sabiam de tudo. Sabiam da Global, de Nicola, de Vi, sabiam que elas tinham querido estabelecer-se por conta própria. Não fui eu quem lhes disse isso. Mas eles sabiam. Perguntaram-me onde tinhas estado na terça-feira, eu disse-lhes que tínhamos ido ao restaurante, mas não foi o suficiente. Eles iam fazer uma busca e ver os nossos livros e entregá-los nas Finanças e acusar-te de manteres um negócio ilegítimo e...
- Pára com a tagarelice!
Aumentou ainda mais a pressão do polegar e do dedo indicador sobre a pele dela para reforçar o que acabara de dizer. Precisava de tempo para pensar e jamais conseguiria raciocinar se ela continuasse a vomitar disparates.
Muito bem, pensou, uma das mãos agarrando ainda os cabelos de Tricia enquanto a outra lhe prendia o pescoço. Tinha acontecido o pior. A sua amantíssima esposa - dotada de tanta presença de espírito como um cubo de gelo - fora quem lidara com a bófia na sua segunda deslocação a Lansdowne Road. Fora um azar, mas agora não havia nada a fazer. E o regresso de Sir Adrian Beattie, esquecendo os milhares que ele estava disposto a gastar num só mês apenas para satisfazer o mais excêntrico dos seus desejos, estava sem dúvida perdido. Podia arrastar outros com ele, se quisesse fazer transpirar junto dos cobardolas seus amigos que o seu nome e inclinações tinham sido revelados à polícia por uma fonte até ao momento desconhecida. Havia, porém, uma saída: os chuis não tinham nada a apontar a Martin Reeve, pois não? Apenas o palavreado inconsequente de uma viciada, cuja credibilidade era quase tão inatacável quanto a de um gatuno apanhado a vender colares de ouro, de dezoito quilates na estação de metro de Knightsbridge.
Podiam vir prendê-lo. Que viessem! Ele tinha um advogado capaz de o tirar da choça tão depressa que as grades da prisão podiam nem sequer chegar a fechar-se depois de ele entrar no calabouço. E se ele alguma vez tivesse de comparecer perante um magistrado, ou se alguma vez fosse acusado de algo mais que não fosse o facto de apresentar cavalheiros com uma predilecção especial por encontros de gosto duvidoso a mulheres jovens, atraentes e inteligentes dispostas a desempenhar um papel activo nesses encontros, tinha na sua posse uma lista de clientes em posições de tal modo influentes que a multiplicidade de cordelinhos que podia manobrar a seu favor faria com que as Inns of Court, o Old Bailey e a Metropolitan Police parecessem congressos de marionetas.
Não. Não tinha nada com que se preocupar a longo prazo. E as probabilidades de ir parar à Austrália eram tão grandes quanto as de viajar até à Lua. A situação podia tornar-se um pouco desagradável durante algum tenpo. Seria talvez necessário pagar a certos editores de alguns jornais para abafar uma história aqui e ali. Mas nada mais para além disso, à parte o dinheiro que provavelmente teria de pagar ao seu advogado. E esta provável - e significativa - despesa deixava-o muito, muito irritado. Tanto, que quando pensava nisso, quando juntava tudo, quando se detinha durante um brevíssimo nanossegundo na maldita causa de todo este conjunto de contrariedades, meu Deus, só tinha vontade de esmagar aquele rosto, de lhe abrir o nariz, de lhe deixar os olhos negros, de investir para dentro dela quando ela estivesse seca, sem vontade, prestes a gritar e a implorar- lhe que parasse, a fim de que ao menos: por um momento ele fosse tão supremo, que ninguém, ninguém, ninguém nesta vida tornasse a olhar para ele e pensasse que ele era menos importante, ou mais pequeno, ou mais fraco, ou meu Deus, meu Deus, meu Deus, como queria magoá-la e mutilar toda a gente que dissesse Martin Reeve sem dizer primeiro Mister, toda a gente que sorrisse com olhos trocistas, que se atravessasse no seu caminho sem se afastar para ele passar, que se atrevesse sequer a pensar...
Tricia parara de se contorcer. Já não se debatia. As suas pernas estavam imóveis. Os braços estavam moles.
Martin baixou os olhos e viu a sua própria mão, o polegar e o dedo indicador desenhando uma meia circunferência na parte superior da garganta da mulher.
Sobressaltou-se, afastou-se dela e recuou de um salto. Estava pálida como o luar, imóvel como mármore.
- Tricia - chamou em voz rouca. - Raios te partam, sua cabra!
O cartão de crédito de Lynley bastou para soltar o trinco da fechadura e abrir a porta do duplex. No interior reinava a escuridão. Não se ouvia um único som, a não ser o que provinha da festa que decorria no apartamento do rés-do-chão.
- Miss Nevin? - chamou Lynley:
Não houve resposta.
A luz do corredor projectava no chão um paralelogramo cintilante. No meio deste estava caída uma almofada grande, quase toda fora da sua fina capa de brocado amarelo. Junto dela, uma mancha de líquido em forma de crocodilo ensopara o tapete. Logo depois estava o carrinho das bebidas derrubado e rodeado pelas garrafas - abertas e vazias -, os copos e os jarros.
Lynley estendeu a mão para um interruptor na parede à direita da porta e premiu-o. As luzes embutidas no tecto acenderam-se, expondo a verdadeira extensão do caos por baixo delas.
Tanto quanto conseguia ver da porta, o duplex estava em ruínas: sofá e canapés virados ao contrário, capas das almofadas arrancadas, quadros retirados das paredes com ar de terem sido destruídos deliberadamente contra os joelhos de alguém, aparelhagem sonora e televisor atirados ao chão - as ligações de tudo, auscultadores e televisão cortadas grosseiramente - e, no canto esquerdo da sala, álbum desfeito em dois com as respectivas fotografias espalhadas pelo chão. Nem a alcatifa escapara, tendo sido arrancada com uma violência que denunciava uma fúria há muito acalentada e amplamente saciada.
Na cozinha, as marcas de destruição eram idênticas: tachos e panelas jaziam espalhados no chão de ladrilhos brancos, todos os objectos tinham desaparecido das prateleiras e encontravam-se, destruídos, onde aparentemente tinham caído, quer sobre as bancadas quer por baixo delas. O frigorífico fora igualmente esventrado, pelo menos em parte. Tudo o que se encontrava no congelador estava praticamente liquefeito, misturado com os restantes detritos. O conteúdo das resistentes gavetas tinha sido esmagado como se tivesse sido pisado por uma fila de camiões em fuga, deixando manchas sobre os ladrilhos, na argamassa e nas portas dos armários.
Marcadas no que restava de uma garrafa de ketchup e de um boião de mostarda partidos, uma série de pegadas iam da cozinha até ao corredor exterior. Uma delas estava intacta, como se tivesse sido impressa nos ladriLhos com uma tinta amarelo-escura.
Ao longo das escadas, os quadros tinham sido arrancados das paredes tendo sofrido sorte idêntica aos da sala de estar. À medida que subia os degraus, Lynley sentia crescer-lhe dentro do peito uma raiva lenta e surda, que se misturava, no entanto, com um arrepio de medo. E deu consigo desejando que o estado em que se encontrava o duplex significasse que Vi Nevin estava ausente do edifício no momento em que o intruso - tão obviamente decidido a fazer-lhe mal - tinha descarregado a sua frustração nos seus pertences e objectos pessoais.
Tornou a chamar por ela. E de novo não obteve qualquer resposta. Acendeu as luzes do primeiro quarto de dormir. Novo cenário de destruição. Não havia um móvel que não tivesse sido mexido.
Meu Deus, murmurou. E foi nesse momento que o ritmo da música proveniente do andar inferior cessou abruptamente, talvez enquanto uma nova forma de entretenimento estivesse a ser preparada.
Então, nesse breve momento de silêncio, ouviu um som. Uma arranhadela, como o barulho de roedores correndo sobre uma superfície de madeira. Vinha do quarto onde ele se encontrava, da parte de trás de um colchão precariamente equilibrado contra uma das paredes. Alcançou-o numa fracção de segundo. Afastou-o para o lado. Santo Deus, exclamou e inclinou-se sobre o corpo agredido, cujos cabelos - tão longos e de um louro tão intenso como o de Alice no País das Maravilhas nos sítios onde não estava empapado em sangue - lhe confirmou que Vi Nevin estava, de facto, em casa quando a vingança batera à porta do apartamento de Rostrevor Road.
O ruído era produzido pelas unhas dela, sacudidas por espasmos regulares, ao embaterem no estrado branco, manchado com o seu sangue. Este saía profusamente da cabeça, em especial do rosto, que fora agredido repetidamente, destruindo a beleza juvenil que fora a sua imagem de marca e o seu ganha-pão.
Lynley segurou a mão pequena. Não queria correr o risco de a mover. Queria fazê-lo, teria pegado nela logo depois de ter telefonado a pedir socorro e teria segurado o seu corpo magoado até à chegada da ambulância. Todavia, não sabia qual a extensão das lesões internas - ou se as havia, sequer -, pelo que se limitou a segurar-lhe na mão.
A arma ensanguentada jazia ali perto, um pesado espelho de mão. Parecia feito de uma espécie de metal, mas agora estava tingido de vermelho e tinha um aspecto repelente, impregnado de madeixas de cabelo loiro e de pequenos pedaços de carne. Lynley fechou os olhos por momentos quando o viu. Tendo observado cenas de crime muito piores e vítimas com ferimentos muito mais graves e extensos, não sabia explicar por que razão um objecto tão simples como um espelho o afectava daquela maneira, a não ser que fosse pelo facto de o espelho ser um objecto tão inocente, uma prova da vaidade feminina que subitamente fazia de Vi Nevin uma presença viva aos seus olhos, muito mais do que fora antes. Porquê? interrogava-se. E nesse preciso instante, viu Helen segurando um espelho exactamente igual, examinando a forma como arranjara o cabelo e dizendo, Que horror. Pareço um ouriço com caracóis. Meu Deus, Tommy. Como podes amar uma mulher tão absolutamente inútil como eu?
E Lynley desejou que ela estivesse ali com ele. Desejou poder abraçá-la, como se o gesto simples e primitivo de abraçar a mulher pudesse proteger todas as mulheres de todas as ameaças possíveis.
Vi Nevin soltou um gemido. Lynley apertou ainda mais a mão dela.
- Está tudo bem, Miss Nevin - disse-lhe, embora duvidasse que ela pudesse ouvi-lo ou entender o que ele lhe dizia. - A ambulância vem a caminho. Aguente só mais um pouco até ela chegar. Eu fico aqui consigo. Está tudo bem. Está mesmo tudo bem.
Apercebeu-se pela primeira vez de que ela estava vestida com as rou pas de trabalho. Usava um uniforme escolar com a saia apanhada bem acima das coxas. Por baixo, as cuecas, que não eram mais do que um diminuto pedaço de renda preta, e umas meias também de renda presas a um cinto de ligas. Por cima das meias usava umas peúgas até ao joelho e calçava os sapatos típicos de uma colegial. Era, sem dúvida, um conjunto destinado a provocar a excitação de um cliente, diante do qual Vi Nevin se apresentava como a inocente colegial que ele desejava.
Céus, interrogou-se Lynley, porque seria que as mulheres se tornavam vulneráveis perante homens que podiam magoá-las? Porque seria que enveredavam por um caminho que podia garantidamente destruí-las, de uma forma ou de outra?
As primeiras sirenes quebraram a quietude nocturna quando a ambu lância virou para Rostrevor Road. Momentos depois, no andar inferior, alguém abriu a porta do duplex.
- Aqui em cima - gritou Lynley.
E Vi Nevin mexeu-se.
- Esqueci-me... - murmurou. - Gosta de mel. Esqueci-me. E em seguida os paramédicos invadiram o quarto, enquanto lá em baixo, na rua, as sirenes soaram novamente anunciando a chegada da polícia.
No interior do edifício, por seu turno, uma nova partitura musical parecia ter sido escolhida, já que começaram a fazer-se ouvir os acordes musicais da banda sonora de Rent. Todo o elenco cantava um hino ao amor.
CAPÍTULO 23
Em parte era uma bênção e em parte não deixava de ser uma maldição, o facto de uma grande parte dos cientistas forenses que trabalhavam no laboratório da polícia serem rapazes e raparigas com uma curiosidade insaciável. A bênção decorria da sua disponibilidade para trabalhar dias, noites, fins- de-semana e feriados, sempre que se sentissem intrigados por uma prova submetida ao seu escrutínio. A maldição provinha do conhecimento que cada um tinha da existência da bênção. Com efeito, a consciência de que o laboratório forense tinha ao seu serviço cientistas cujas naturezas inquisidoras os impeliam a permanecer colados aos microscópios quando outros indivíduos, mais sãos de espírito, ficavam em suas casas ou saíam para se divertirem, fazia crescer a obrigatoriedade de tomar conhecimento das informações que esses cientistas estavam tão dispostos a fornecer.
Era por esta razão que, num sábado à noite, o inspector Peter Hanken se encontrava, não no conforto do lar familiar em Buxton, mas, antes, em frente a um microscópio, enquanto Miss Amber Kubowsky - técnica-chefe de provas naquele momento - explanava entusiasticamente o que descobrira sobre o canivete da Swiss Army e os ferimentos encontrados no corpo de Terry Cole.
O sangue encontrado no canivete - confirmava ela, satisfeita, enquanto coçava o couro cabeludo com a borracha encaixada na ponta do lápis, como se quisesse apagar algum rabisco na cabeça - pertencia, de facto, a Cole. E depois de um exame minucioso às diversas lâminas e apetrechos que integravam o canivete, estava em condições de confirmar que a lâmina da tesoura estava partida, tal como afirmara Andy Maiden. Assim sendo, a conclusão inevitável a tirar era que o canivete em questão, não só era responsável pelos ferimentos encontrados no corpo de Terry Cole, como também apresentava uma forte semelhança com o canivete que Andy Maiden alegadamente dera à filha.
- Muito bem - disse Hanken.
Ela pareceu ficar satisfeita ao ouvir este comentário às suas observações.
- Veja isto, então - pediu e fez sinal para o microscópio. Hanken espreitou através da lente. Tudo o que Miss Amber Kubowsky dissera era de tal maneira óbvio que ele se surpreendia com o grau de excitação que ela evidenciava. Se a pobre rapariga ficava tão entusiasmada por uma coisa daquelas, era porque no laboratório - já para não falar na vida dela - tudo devia ser tão excitante como um prato de flocos de aveia.
- E eu estou a olhar para quê, exactamente? - perguntou ele a Miss Kubowsky, erguendo a cabeça e gesticulando na direcção do microscópio. Não me parece que aquilo seja exactamente a lâmina de uma tesoura. Ou sangue, já agora.
- E não é - confirmou ela, alegremente. - E é essa a questão, ins pector Hanken. É isso que é tão intrigante em tudo isto.
Hanken olhou para o relógio pendurado na parede. Havia já mais de doze horas que trabalhava ininterruptamente, e antes de dar o dia por encerrado queria ainda confrontar as informações que recolhera com o resultado das averiguações desenvolvidas em Londres. Por isso, a última coisa que queria era entrar num jogo de adivinhas com a técnica forense dos cabelos encaracolados.
- Se não é para a lâmina, nem para o sangue de Cole, então para onde é que eu estou a olhar, Miss Kubowsky?
- É agradável encontrar alguém tão bem-educado como o senhor, inspector - elogiou ela. - Conforme tenho vindo a descobrir, nem todos os detectives têm as suas maneiras.
Pois iria começar a descobrir muito mais, se não começasse rapidamente a elucidá-lo, pensou Hanken. No entanto, agradeceu o elogio e fez saber que teria muito prazer em ouvir tudo o que ela tivesse para lhe dizer, desde que fosse breve.
- Oh, claro - retorquiu ela. - Isso que aí tem é o ferimento da omoplata. Não todo, claro. Se o aumentássemos até ao máximo, ficaria com cerca de cinco centímetros de comprimento. O que aí vê é apenas uma parte.
- O ferimento da omoplata?
- Exacto. Foi o golpe maior e mais profundo encontrado no corpo do rapaz. A médica não Lhe disse nada? Não lhe falou num golpe nas costas? Nas costas do rapaz, claro, não da médica.
Hanken recordou o relatório da Dr. a Myles. Uma das feridas estilhaçara a omoplata esquerda e roçara uma das artérias do coração.
- Em circunstâncias normais, não me teria dado ao trabalho de a examinar - disse Miss Kubowsky -, mas li no relatório que a omoplata... um dos ossos das costas, sabia?... apresentava a marca de um ferimento causado por uma arma. Por isso decidi compará-la com as lâminas do canivete. Com todas elas. E sabe que mais?
- O quê?
- Aquela marca não foi provocada pelo canivete, inspector Hanken. Nem há a menor possibilidade de tal ter acontecido, por isso esqueça.
Hanken olhou-a fixamente. Tentava processar a informação que ela acabava de Lhe fornecer. Mais do que isso, perguntava a si próprio se ela se teria enganado. Parecia tão distraída - metade da bainha da bata estava descosida e na frente havia uma nódoa de café -, que a possibilidade de ser pouco eficiente em termos profissionais não estava fora de questão.
Amber Kubowsky não só pareceu ter percebido a dúvida espelhada no rosto dele, como também compreendeu a necessidade de a desfazer. Quando tornou a falar, fê-lo recorrendo a uma terminologia absolutamente científica, pontuando o seu discurso com referências a radiografias realizadas, espessuras de lâminas, ângulos e micromilímetros. Não deu por concluídas as suas observações enquanto não teve a certeza de que ele tinha compreendido a importância das suas palavras: a ponta da arma que perfurara as costas de Terry Cole, dilacerando a sua omoplata e fracturando o osso tinha uma forma diferente da ponta de qualquer uma das lâminas do canivete da Swiss Army. Embora pontiagudas - o que era óbvio, porque como poderiam elas ser lâminas de canivete se nãofossem pontiagudas, perguntava ela e com razão - faziam um ângulo maior e totalmente diferente da marca produzida pela arma que fracturara o osso das costas de Terry Cole.
Hanken soltou um assobio inexpressivo. As declarações dela eram impressionantes, mas ele sentia-se compelido a perguntar:
- Tem a certeza do que está a dizer?
- Estou pronta a jurar que foi isso que aconteceu, inspector. Ninguém teria dado pelo facto, se eu não tivesse uma teoria pessoal sobre radiografias e microscópios, que neste momento me abstenho de desenvolver.
- Mas os outros ferimentos presentes no corpo foram feitos pelo canivete?
- Todos, à excepção do ferimento na omoplata.
Ela tinha ainda outras informações a fornecer-lhe e, por isso, conduziu-o até outra zona do laboratório, onde abordou a questão de uma mancha que parecia pertencer a uma liga de estanho e cuja análise fora igualmente solicitada.
Depois de ter ouvido tudo o que Amber Kubowsky tinha para lhe dizer sobre este último assunto, Hanken dirigiu- se de imediato a um telefone. Era tempo de descobrir onde parava Lynley.
Hanken ligou para o telemóvel do colega e descobriu que Lynley se encontrava na enfermaria de acidentados do Chelsea and Westminster Hospital. Lynley pô-lo ao corrente do que sucedera de forma rápida e concisa:
Vi Nevin fora brutalmente atacada no duplex onde morava com Nicola Maiden.
- E qual é o estado dela?
Ouviu um barulho de fundo, alguém que gritava, Aqui! seguido do som agudo e cada vez mais alto da sirene de uma ambulância.
- Thomas? - chamou Hanken elevando a voz. - Qual é o estado dela? Conseguiu sacar-lhe alguma coisa?
- Absolutamente nada - Lynley respondeu finalmente. - Ainda não conseguimos que ela fizesse um depoimento. Nem sequer nos conseguimos aproximar dela. Há uma hora que estão a tratar dela.
- Qual é a sua opinião? A agressão tem alguma relação com o caso?
- Eu diria que sim.
Lynley contou-lhe, então, o que descobrira desde a última vez que tinham conversado, começando pelo encontro com Shelly Platt, continuando com o relato minucioso da sua ida à MKR Financial Management e termi nando com a conversa com Sir Adrian Beattie e a mulher deste.
- Conseguimos descobrir quem era o amante de Londres, mas ele tem um álibi, que ainda precisa de confirmação, aliás. Mesmo que não o tivesse, tenho de admitir que não consigo imaginá-lo a atravessar a charneca para esfaquear uma vítima e perseguir outra. Deve ter mais de setenta anos.
- Nesse caso, o que Upman nos disse era mesmo verdade - comentou Hanken -, pelo menos no que diz respeito ao pager e aos telefonemas que ela recebia durante as horas de trabalho.
- Parece-me bem que sim, Peter. Mas Beattie afirma que tinha de haver alguém em Derbyshire que lhe fornecesse dinheiro, caso contrário ela nunca teria decidido voltar.
- Upman não pode estar a sacar assim tanto dinheiro com as suas divorciadas. Já que falamos no assunto, ele disse que não tinha estado em Londres no mês de Maio e que a agenda dele era a prova disso.
- E quanto a Britton?
- Ainda está na minha lista. Fui apanhado de surpresa pelo canivete da Swiss Army.
Hanken contou a Lynley as novidades a este respeito, incluindo as notícias acerca do ferimento da omoplata. Era evidente, disse ele a Lynley, que o rapaz fora ferido com outra arma.
- Outra faca?
- Possivelmente. E Maiden tem uma, que chegou até a mostrar-me.
- Você não pode estar a pensar que Andy seria suficientemente parvo para lhe mostrar uma das armas do crime. Ele é polícia, Peter, não é um cretino qualquer.
- Espere lá. De início, quando a vi, não pensei que a faca de Maiden pudesse ter sido usada para ferir o rapaz, porque as lâminas são demasiado pequenas. Só que nessa altura, eu estava a pensar nos outros ferimentos e não na omoplata. A que profundidade fica uma omoplata, afinal? Mas lá porque Kubowsky descartou a possibilidade de o ferimento na omoplata ter sido feito por um canivete da Swiss Army, isso significa que não possa ter sido produzido por outro tipo de canivete.
- Isso leva-nos mais uma vez à questão do motivo, Peter. Andy não tem nenhum. Ao contrário de todos os outros homens da vida dela, para não falar de uma ou duas mulheres.
- Não seja tão rápido a riscá-lo da lista - objectou Hanken -, porque há mais. Oiça isto. Já tenho a identificação daquela substância que está naquele cilindro cromado esquisito que encontrámos na mala do carro dela. O que acha você que é?
- Diga-me.
- Sémen. E havia ainda mais dois resíduos de sémen. Dois provêm de glândulas secretoras... isto sem contar com aquele que você e eu vimos... e o outro não. Kubowsky só não me disse o que era o maldito cilindro. Nunca vi nada igual e ela também não.
- É um tensor de testículos - esclareceu Lynley.
- Um quê?
- Espere um minuto, Peter.
No outro extremo da linha, Hanken ouviu um rumor de vozes masculinas em contraponto com os ruídos contínuos característicos de um hospital. Lynley retomou a chamada, dizendo:
- Ela vai safar-se, graças a Deus.
- Consegue falar com ela?
- Neste momento está inconsciente.
Depois, dirigindo-se a alguém:
- Protecção 24 horas. Nada de visitas sem a minha autorização. E peçam a identificação a toda a gente que aparecer por aqui... Não, não faço a mais pálida ideia... Muito bem.
E novamente para Hanken:
- Peço desculpa. Onde é que eu ia?
- No tensor de testículos.
- Ah, sim.
Hanken ouviu o colega explicar-lhe os pormenores relativos ao dispositivo de tortura e sentiu os seus próprios testículos encolherem-se em reacção às palavras dele.
- A minha teoria é que deve ter rolado para fora de uma das malas dela, durante uma visita a um cliente quando ela ainda trabalhava para Reeve - concluiu Lynley. - Podia estar dentro da mala do carro.
Hanken reflectiu sobre o que acabara de ouvir e viu outra possibilidade. Sabia que Lynley ia recusá-la, por isso abordou o assunto com precaução.
- Ela podia ter-se servido dele em Derbyshire, Thomas. Em alguém que não queira admiti-lo, talvez.
- Não estou a ver nem Upman nem Britton como adeptos de rituais que envolvam chicotes e correntes. E quanto a Ferrer, parece-me muito mais o género que usa algo nas suas mulheres do que o contrário. Quem mais poderia ser?
- O pai.
- Céus, Peter, isso são ideias muito doentias.
- São, não são? Mas o universo sadomasoquista é doentio, e pelo que você acaba de me contar, os protagonistas parecem ser pessoas absoluta mente normais.
- Não há hipótese nenhuma...
- Oiça só o que Lhe vou dizer.
E Hanken contou-lhe o encontro que tivera com os pais da rapariga assassinada, incluindo a interrupção de Nan Maiden e o álibi inconsistente apresentado por Andy Maiden.
- Quem pode garantir, sem a mais pequena dúvida, que Nicola não estava a prestar serviços ao pai juntamente com os outros todos?
- Peter, você não pode passar o tempo a reinventar o caso de forma a adequá-lo às suas suspeitas. Se ela estava, de facto, a prestar serviços ao pai... coisa que eu, aliás, contesto vivamente... ele nunca poderia tê-la morto por causa do estilo de vida que ela levava, que, conforme você se lembrará, era a sua teoria anterior.
- Então, você concorda que ele tem um motivo?
- Eu digo é que você está a distorcer as minhas palavras. Seguiu-se uma nova sequência de barulho: sirenes e um rumor de vozes. Hanken tinha a impressão de que o outro inspector estava a conversar com ele em plena auto-estrada. Quando o barulho diminuiu ligeiramente, Lynley disse:
- Ainda temos de levar em consideração o que se passou com Vi Nevin. O que se passou esta noite. Se estes acontecimentos estiverem relacionados com o que aconteceu em Derbyshire, é impossível que você não veja que Andy Maiden não está envolvido.
- Quem está, então?
- Eu aposto em Martin Reeve. Ele tinha contas a ajustar com as duas. Segundo Lynley; o melhor que podiam esperar era que Vi Nevin ficasse consciente e identificasse quem a atacara. Nessa altura, teriam um motivo sólido e consistente para arrastar Martin Reeve até à Met, que era onde ele devia estar.
- Vou ficar aqui mais um pouco, a ver se ela acorda - disse. - Se i sso não suceder no espaço de uma ou duas horas, deixo ordens para que me liguem logo que haja alterações no seu estãdo de saúde. E você?
Hanken suspirou. Esfregou os olhos cansados e esticou o corpo para aliviar a tensão que Lhe tolhia os músculos das costas. Pensou em Will Upman e nas suas massagens contra a tensão no Hilton do Aeroporto de Manchester. Uma dessas sessões viria mesmo a calhar naquele momento.
- Vou ver se consigo falar com Julian Britton - disse. - Verdade seja dita, no entanto, que não consigo imaginá-lo a assassinar seja quem for. Não me parece que um tipo que dedica os tempos livres a embalar cachorros seja capaz de esmagar o crânio da namorada. E no que diz respeito a esfaquear um tipo até à morte... o mais provável era que atiçasse os cães contra alguém.
- E se ele estivesse convencido que tinha uma razão suficientemente forte para a matar... - perguntou Lynley.
- Oh, claro - concordou Hanken. - Há quem acredite que ele tinha uma razão forte para matar Nicola Maiden.
O médico receitara-lhe uns comprimidos para dormir, mas Nan Maiden deixara de os tomar depois da primeira noite. Não podia dar-se ao luxo de não estar vigilante, por isso nada fazia para encorajar estados de sonolência. Nas raras ocasiões em que se deitava, dormitava apenas. Na maioria do tempo, porém, ou passeava pelos corredores como se fosse uma figura fantasmagórica ou sentava-se no cadeirão do quarto e ficava a observar o sono agitado do marido.
Naquela noite, Nan enroscara as pernas protegidas pelas calças do pijama debaixo do corpo, cobrira os ombros com um cobertor feito à mão e aconchegara-se no cadeirão observando o marido que não parava de dar voltas na cama. Não sabia se ele estava realmente a dormir ou se estava a fingir, mas isso era irrelevante. Vê-lo ali deitado despertava dentro dela uma complicada teia de emoções que, naquele momento, lhe merecia mais atenção do que a autenticidade do repouso do marido.
Ainda o desejava. Era estranho que ao fim de tantos anos ainda sentisse por ele o mesmo desejo de outrora. Assim era, no entanto. E entre ambos esse desejo nunca esmorecera. Antes pelo contrário, parecia ter crescido com o tempo, como se a longevidade do casamento deles tivesse, de alguma forma, temperado a paixão que sentiam um pelo outro. Não deixara, por isso, de notar quando Andy deixara de se virar para ela à noite. E percebera quando ele deixara de a procurar e de reclamar a posse do seu corpo com uma segurança e familiaridade nascidas de um casamento feliz e duradoiro.
Temia as consequências dessa mudança.
Já acontecera antes - a mesma perda de interesse por parte dele pelo que sempre fora a área mais vital do relacionamento de ambos - e fora há tanto tempo que Nan gostava de acreditar que já quase esquecera a situação. Esta, porém, não era a questão central, e a segurança proporcionada pela escuridão ajudava Nan a admitir esta evidência, enquanto o marido dormia, ou não, a uns escassos dois metros de distância.
Ele trabalhava como agente infiltrado numa operação de narcóticos. Os jogos de sedução faziam parte da sua rotina diária. A manutenção da credibilidade do papel que lhe tinha sido confiado exigia que ele correspondesse a todos os avanços que lhe fossem feitos, independentemente da forma que os mesmos tomassem. E quando alguns deles eram abertamente sexuais... Que outra coisa podia ele fazer a fim de não prejudicar a personagem que tinha de interpretar? perguntara-Lhe mais tarde. Como podia agir de forma a não comprometer toda a operação e a não pôr em risco a vida dos agentes envolvidos no caso?
Mas não retirava qualquer prazer dessas situações, dissera-Lhe quando lhe confessara o sucedido. O contacto íntimo com o corpo firme e jovem de raparigas com idade suficiente para serem suas filhas não lhe provocara nenhuma sensação. Tudo o que fizera, fizera-o porque lhe era exigido, e queria que a mulher dele percebesse isso. Eram actos de acasalamento sem alegria. Tratava-se apenas de executar um acto, vazio de sentimento quando era realizado sem amor.
Eram palavras ditas num estilo empolado. Exigiam a compaixão, o perdão, a aceitação e a compreensão de uma mulher inteligente. Todavia, eram palavras que na época haviam deixado Nan Maiden intrigada quanto às razões que tinham levado Andy a confessar-lhe a sua transgressão.
Com os anos, no entanto, e à medida que fora conhecendo o marido, aprendera a responder a essas perguntas. E apercebera-se de como o seu temperamento se alterava sempre que não era fiel a si próprio. Fora, aliás, por isso que o trabalho no 5010 acabara por se transformar num pesadelo, porque o obrigava, dia após dia, durante meses a fio, a ser alguém que, muito simplesmente, não era. O trabalho exigia-lhe que protagonizasse histórias fictícias durante longos períodos, e ele achava que a sua mente, a sua alma e a sua psique não permitiriam qualquer dissimulação sem exigir ao seu corpo uma espécie de retribuição, fosse ela qual fosse.
De início, esta assumira formas extremamente fáceis de ignorar, relegadas para o domínio das reacções alérgicas ou dos primeiros sinais de velhice. A língua envelhece e, por isso, a comida deixa de ter o mesmo sabor, pelo que a única forma de a tornar saborosa é inundá-la de molhos ou saturá-la de pimenta. E que pensar exactamente, quando se deixava de sentir o aroma subtil do jasmim? Ou o odor bafiento de uma igreja rural? Não era difícil ignorar todas estas pequenas ocasiões de privação sensorial.
Foi então que surgiram as privações mais graves, aquelas que não podem ser ignoradas sem pôr em risco o bem-estar pessoal. E depois de médicos e especialistas terem feito os seus testes, avançado os seus diagnósticos, culminando num encolher de ombros que traduzia um enlouquecedor misto de fascínio, perplexidade e derrota, os guerreiros da psiquiatria tinham abalroado o navio que era o estado de saúde de Andy, navegando como Vikings em direcção aos mares desconhecidos que era a psique do marido. O mal que o afligia jamais fora nomeado, apenas fora dada uma explicação da condição humana tal como era vivida por determinados indivíduos. Ele entrou em colapso lentamente. A confidência era a única maneira de impor ordem na sua vida novamente, de reclamar quem ele era realmente por intermédio de um acto de purgação. Mas no fim, por mais diários que escrevesse, por mais análises, discussões e confissões a que se submetesse, nada fora suficiente para o curar.
Infelizmente, tendo em conta o trabalho que exerce, o seu marido, pura e simplesmente, não pode levar uma vida dicotómica, disseram-lhe ao fim de meses e anos passados em consultórios médicos. Isto, é claro, desde que ele deseje sentir-se totalmente integrado enquanto indivíduo.
Como? perguntara ela. Dicotómica... o que é isso?
Andrew não pode levar uma vida feita de contradições, Mrs. Maiden. Não consegue compartimentalizar. É incapaz de assumir uma identidade que esteja em oposição às características básicas da sua personalidade. É a adopção de identidades sucessivas que parece estar na origem do colapso de uma parte do seu sistema nervoso. Um outro homem podia considerar este tipo de vida excitante, um actor, por exemplo, ou, a um nível mais extremo, um sociopata ou um maníaco- depressivo. O seu marido, não.
Mas não é o mesmo que brincar aos mascarados? perguntara ela. Quando trabalha como infiltrado, especificou.
Acrescido de uma responsabilidade enorme, informaram-na, e de riscos e custos ainda maiores.
Nos primeiros tempos, sentira-se verdadeiramente afortunada por estar casada com um homem que apenas podia ser exactamente aquilo que era. E desde que ele se reformara da New Scotland Yard, anos antes, o futuro que ambos tinham construído em Derbyshire conseguira apagar, uma por uma, todas as mentiras e complicados subterfúgios a que Andy fora obri gado a recorrer na sua vida passada.
Até agora.
Devia tê-lo percebido no dia em que ele não reparara nas nozes queimadas que estavam na cozinha, apesar de o cheiro ter impregnado todos os cantos do hotel como se fosse uma peça musical tocada demasiado alto, com grande entusiasmo e totalmente desafinada. Nessa ocasião, devia ter percebido que algo não estava bem. Não percebera, no entanto, porque tudo não estava bem havia já tantos anos.
- Não consigo dizer... - murmurou Andy, deitado na cama.
Nan inclinou-se para a frente, ansiosa.
- O quê? - sussurrou.
Ele virou-se, escondendo o ombro na almofada. Não. Falava alto enquanto dormia. Não. Não.
Os olhos de Nan turvaram-se. Reviu mentalmente os acontecimentos dos últimos meses, tentando desesperadamente descobrir alguma coisa que pudesse ter feito para alterar o desfecho dos acontecimentos. Apenas conseguiu lembrar-se, todavia, de ter tido a coragem e a vontade de exigir franqueza e honestidade, o que não fora uma opção realista.
Andy tornou a virar-se. Ajeitou a almofada e deixou-se cair na cama de lado. Tinha os olhos fechados.
Nan levantou-se da cadeira e aproximou-se da cama, onde se sentou. Inclinou-se e passou os dedos ao de leve pela testa do marido, sentindo a pele quente e húmida. Há trinta e sete anos que ele era o centro do seu mundo, e não estava disposta a perder o centro do seu mundo agora que se encontrava no Outono da vida.
Todavia, apesar da sua determinação, Nan sabia que naquele momento a sua vida estava semeada de incertezas. E eram essas incertezas que davam origem aos seus pesadelos, outra das razões que a levavam a recusar-se a dormir.
Passava pouco da uma da manhã quando Lynley abriu a porta de sua casa. Sentia-se exausto e deprimido. Era difícil acreditar que o seu dia começara em Derbyshire, e ainda mais difícil era pensar que terminara com a entrevista em Notting Hill.
Homens e mulheres possuíam a infinita capacidade de o deixar estu pefacto. Há muito que aceitara esse facto, mas começava a aperceber-se de que estava a sentir-se saturado das constantes surpresas que tinham para lhe oferecer. Ao fim de quinze anos no CID, queria poder dizer que vira tudo. O facto de tal não ser verdade, ou seja, que alguém fosse ainda capaz de fazer algo que pudesse surpreendê-lo, pesava-lhe como uma rocha que carregasse sobre os ombros. Não tanto, porque fosse incapaz de perceber os actos de alguém, mas porque nunca conseguia antecipar-se a eles.
Ficara junto de Vi Nevin até ela recuperar a consciência. Tinha esperanças de que ela conseguisse identificar o seu agressor e dar-lhe, assim, motivos suficientes para deter o patife imediatamente. Quando Lynley a interrogara, no entanto, limitara-se a abanar negativamente a cabeça inchada e envolta em ligaduras. Tudo o que conseguira arrancar à vítima fora que o ataque tinha sido demasiado rápido e inesperado e que não tivera tempo de distinguir o rosto de quem a atacara. Se as suas palavras não passavam de uma mentira para se proteger a ela própria era algo que Lynley fora incapaz de perceber. Todavia, certo de que sabia de quem se tratava, tentara encontrar uma maneira de fazer com que ela proferisse as palavras certas mais facilmente.
- Conte-me o que aconteceu, então. Momento a momento, porque pode haver alguma coisa, um pormenor de que se lembre, que possamos usar para...
- Por agora chega - interrompera a enfermeira, e o seu rosto de escocesa genuína indicava a sua determinação férrea.
- Homem ou mulher? - insistira Lynley.
- Eu fui bem clara, inspector - ripostara a enfermeira. E, em seguida, inclinara-se protectoramente sobre a paciente, executando o que pareciam ser ajustamentos desnecessários aos lençóis, almofadas e drenos.
- Miss Nevin? - tornara a insistir Lynley.
- Rua! - ordenara a enfermeira, enquanto Vi murmurava: Um homem.
Ao ouvir estas palavras, Lynley decidira que era o suficiente para identificar o suspeito. Ela não estava, afinal, a dizer-Lhe nada que ele já não soubesse. Apenas quisera eliminar a possibilidade de Shelly Platt - e não Martin Reeve - ter decidido fazer uma visita à sua antiga companheira de apartamento. Assim sendo, sentira que tinha bases suficientes para passar ao nível seguinte.
Iniciara o processo com uma passagem pelo Star of India, em Old Brompton Road, onde depois de uma breve conversa com o chefe de sala, comprovara que Martin Reeve e a mulher Tricia - ambos clientes habituais do restaurante - tinham, de facto, jantado lá no início da semana. Ninguém soube dizer, porém, em que noite se tinham sentado na sua mesa habitual junto à janela. Os empregados estavam equitativamente divididos entre segunda e terça-feira, enquanto o chefe de sala parecia recordar-se apenas do que anotara no seu livro de reservas.
- Pelo que vejo, não reservaram mesa - informara na sua voz melodiosa e ritmada. - E sem reserva antecipada, ninguém consegue mesa no Star of India.
- Exacto. A senhora afirma que não reservaram mesa - confirmara Lynley. - Acrescentou que essa circunstância foi motivo para uma altercação entre o senhor e o marido dela. Na terça-feira à noite.
- Eu não tenho altercações com os clientes, senhor - esclarecera o homem, friamente. E sentira-se de tal modo ofendido com a observação de Lynley que a sua memória ficara seriamente afectada.
A natureza inconclusiva da corroboração obtida no Star of India impeliu Lynley a fazer uma visita aos Reeve, apesar do adiantado da hora. Enquanto fazia o percurso de carro até casa deles, gravara na mente a imagem do rosto destruído de Vi Nevin. Quando, finalmente, conseguira alcançar o cimo de Kensington Church Street e virara para Notting Hill Gate, sentia-se dominado por uma raiva surda que o incentivara a tocar insistentemente à campainha da MKR Financial Management quando ninguém respondera ao toque inicial.
- Tem ideia das horas que são? - fora a saudação de Martin Reeve depois de escancarar a porta de entrada com gestos violentos.
Nem sequer precisara de se identificar para que Lynley ficasse a saber quem ele era. O candeeiro que lhe iluminava o rosto e incidia directa e conspicuamente sobre quatro fundos arranhões muito recentes numa das faces fora suficientemente eloquente.
Empurrara Reeve para trás, obrigando-o a recuar até ao corredor da entrada da casa. Imobilizara-o junto à parede - o que não fora nada difícil de fazer, pois o proxeneta era muito mais baixo do que Lynley imaginara - e mantivera-o nessa posição, esmagando uma das faces contra o elegante padrão listrado do papel de parede.
- Olhe lá! - protestara Reeve. - Quem é que você julga que...
- Fale-me sobre Vi Nevin - pedira Lynley, torcendo-lhe o braço violentamente.
- Espere aí! Se você julga que pode entrar pela minha casa dentro e... - o seu braço torceu-se ainda mais. Reeve soltara um grito. - Vá-se foder!
- Nem pense - Lynley aumentara a pressão sobre ele e levantara-lhe o braço. Falando-lhe junto ao ouvido, continuara: - Conte-me como passou a sua tarde e o princípio da noite, Mr. Reeve. Conte-me tudo, com todos os pormenores. Estou exausto e preciso que me contem uma história de encantar antes de me meter na cama. Faça-me a vontade. Por favor.
- Mas você perdeu o juízo ou quê? - Reeve torcera a cabeça na direcção das escadas e gritara: - Trish... Trish! Chama a polícia.
- Boa tentativa - dissera Lynley -, mas a polícia já chegou. Vamos embora, Mr. Reeve. Vamos conversar - empurrara o homem mais baixo, obrigando-o a caminhar à sua frente. Ao chegarem à recepção, atirara Reeve para uma cadeira e acendera a luz.
- Acho bem que tenha uma justificação de muito peso para isto rugira Reeve. - Porque, caso contrário, pode ficar à espera de um processo como nunca ninguém viu ainda neste país.
- Poupe-me às suas ameaças - replicara Lynley. - Podem funcionar na América, mas aqui nem uma chávena de café lhe garantem.
Reeve massajara o braço.
- É o que vamos ver.
- Vou ficar a contar os minutos até lá. Onde esteve esta tarde? E ao princípio da noite também? Que se passou com a sua cara?
- O quê? - a pergunta fora proferida num tom incrédulo. - Acha que eu vou responder a essas perguntas?
- Se não quiser esta casa encerrada pela brigada de costumes, deduzo que me vai contar tudo até ao mais ínfimo pormenor. E não me provoque, Mr. Reeve. Tive um dia longo e não sou uma pessoa razoável quando estou cansado.
- Vá-se foder - Reeve virara a cabeça para a porta e gritara: - Tricia! Põe-te cá em baixo já. Telefona ao Polmanteer. Não lhe estou a pagar rios de dinheiro para que ele...
Lynley agarrara num pesado cinzeiro que se encontrava sobre a mesa da recepção e arremessara-o na direcção de Reeve. O objecto rasara a cabeça
do homem e fora embater num espelho, estilhaçando-o.
- Diabos! - gritara Reeve. - Que raio você...
- Tarde e princípio de noite. Quero respostas. Já. Quando Reeve não respondera, Lynley avançara para ele, agarrara- o
pelo colarinho do casaco do pijama, empurrara-o para trás e torcera o colarinho até apertar o pescoço de Reeve. - Diga-me quem lhe fez esses arranhões, Mr. Reeve. E diga-me porquê.
Reeve respirava com dificuldade, como se estivesse a sufocar, e Lynley descobriu que o som lhe agradava.
- Ou prefere que seja eu a preencher os espaços em branco? Eu até conheço as personagens - à medida que ia enumerando os nomes ia torcendo ainda mais o colarinho em volta do pescoço do outro - Vi Nevin. Nicola Maiden. Terry Cole. E, pensando bem, Shelly Platt.
Reeve arquejara.
- es... tá... completa... mente... louco - dissera, levando as mãos à garganta.
Nesse momento Lynley libertara-o, atirando-o para a frente como um trapo velho.
- O senhor está a pôr à prova a minha paciência. Começo a achar que um telefonema para a esquadra da zona não é má ideia. Umas noites na companhia da malta na cadeia de Ladbroke Grove pode ser a solução ideal para lhe desenferrujar a língua.
- Você é um homem morto. Conheço pessoas suficientes para...
- Sobre isso não tenho quaisquer dúvidas. O mais provável é que você conheça gente daqui até Istambul. E embora cada uma dessas pessoas esteja disposta a sair alegremente em sua defesa, caso seja acusado de pro xenetismo, você vai descobrir que as agressões a mulheres não gozam assim de tanta popularidade no seio das figuras públicas. Sobretudo, se pensarmos em como eles iriam alimentar a imprensa sensacionalista, se viesse a saber-se que tinham decidido ajudá-lo. Assim sendo, quando eu o apresentar como proxeneta, vão achar que o assunto é demasiado delicado para que possam sair em sua defesa. Esperar mais deles... Eu não seria tão insensato, Mr. Reeve. E agora responda à minha pergunta. Que lhe aconteceu à cara?
Reeve permanecera em silêncio, mas Lynley conseguia ver a sua cabeça a trabalhar. Tentava adivinhar os factos que a polícia conseguira apurar. Vivia à margem da lei há tempo suficiente para saber de que forma a lei podia ser aplicada à sua vida pessoal. Sabia que se Lynley possuísse, de facto, elementos consistentes sobre ele - uma testemunha ocular ou um depoimento assinado de alguma das suas vítimas, por exemplo - tê-lo-ia detido de imediato. Porém, também sabia que vivendo à margem da lei como vivia, as suas opções eram consideravelmente menores se fosse apanhado numa situação comprometedora.
- Está bem. É Tricia - confessara. - Está viciada no pó. Cheguei a casa, depois de ter ido visitar duas das minhas miúdas, cuja produtividade diminuiu. Encontrei-a completamente passada. Perdi a cabeça. julguei que estava morta, caramba. Agredi-a, dei-lhe uns estalos, em parte devido ao medo, em parte devido à raiva que senti. E descobri que não estava tão passada como julgara. Ela reagiu e agrediu- me.
Lynley não acreditara numa só palavra do que ele dissera.
- Está a querer dizer-me que foi a sua mulher, afogada em drogas, quem lhe pôs a cara nesse estado?
- Estava lá em cima num estado miserável. Há meses que não a via assim. Não consegui lidar com a situação depois de ter tido de resolver os problemas das miúdas. Não posso servir de paizinho para toda a gente. E perdi a cabeça.
- Que tipo de problemas?
- O quê?
- As miúdas. Os problemas delas.
Reeve lançara um olhar na direcção da mesa da recepção e do monte de brochuras que estavam sobre ela, anunciando ostensivamente os serviços financeiros fornecidos pela MKR.
Eu sei que está a par do negócio. O que provavelmente não sabe é o trabalho que tenho para as manter saudáveis. Fazem análises de sangue a cada quatro meses, despiste de drogas, exames físicos, têm uma alimentação equilibrada, praticam exercício...
- Um autêntico sorvedouro de dinheiro - comentara Lynley secamente.
- Raios partam. Pouco me interessa o que você pensa. Tenho uma empresa de serviços e se não for eu a fornecê-los, outros o farão. Não estou a tentar justificar-me. Posso fornecer raparigas asseadas, saudáveis e educadas que vivem num ambiente decente. Qualquer tipo que passe algum do seu tempo na companhia de uma delas dá o seu dinheiro por bem empregue sem correr o perigo de levar doenças para casa. E foi por isso que cheguei a casa aborrecido, por causa de duas miúdas com problemas.
- Alguma doença?
- Herpes genital. Por isso estava chateado. E depois quando vi Tricia e o estado em que se encontrava, perdi o controlo. E é tudo. Se quiser, terei muito prazer em fornecer-lhe nomes, moradas e números de telefone.
Lynley fitara-o atentamente, interrogando-se sobre se tudo aquilo não passaria de um risco calculado da parte do proxeneta ou se o facto de exibir as marcas das unhas da mulher no rosto precisamente na noite em que Vi Nevin fora atacada seria mera coincidência.
- Nesse caso, vamos chamar Mrs. Reeve e pedir-lhe que nos conte a sua versão do sucedido - dissera.
- Ora, vá lá. Ela está a dormir.
- Isso não o impediu de gritar por ela há minutos, pedindo-lhe que chamasse a polícia. E Polmanteer... o seu advogado, correcto? Podemos telefonar-lhe, se quiser.
Reeve olhara fixamente para Lynley, o desprezo e o desagrado estampados no rosto. Finalmente, dissera:
- Eu vou chamá-la.
- Sozinho, não.
A última coisa que Lynley desejava era dar a Reeve uma oportunidade de coagir a mulher a corroborar a sua história.
- Como queira. Venha comigo, então.
Reeve conduzira-o ao longo de dois lances de escadas que conduziam ao segundo andar da casa. Entrara num quarto de dormir virado para a rua, aproximara- se de uma cama do tamanho de um campo de jogos e acendera o candeeiro da mesa-de- cabeceira. A luz incidira sobre o corpo da mulher. Estava deitada de lado, enroscada numa posição fetal e dormia profundamente.
Reeve virara-a de costas, agarrara-a passando as mãos por baixo dos braços e sentara-a na cama. A cabeça dela tombara para a frente como se pertencesse a uma boneca de trapos. Ele empurrara-a para trás e encostara o corpo dela à cabeceira da cama.
- Boa sorte - dissera ele a Lynley com um sorriso. Apontara para uma série de equimoses em volta do pescoço dela e acrescentara: - Tive de ser mais duro com esta cabra do que queria. Ela estava descontrolada. Julguei que ia matar-me.
Com um movimento de cabeça, Lynley indicara a Reeve que queria que ele se afastasse dela. Ele obedecera-lhe. Lynley tomara o lugar dele junto da cama. Agarrara no braço de Tricia, vira as marcas avermelhadas das seringas e procurara sentir-lhe o pulso. Nesse momento, ela soltara um suspiro profundo, tornando o seu gesto desnecessário. Dera- lhe umas palmadinhas leves no rosto e dissera:
- Mrs. Reeve. Mrs. Reeve. Consegue acordar?
Reeve movera-se atrás dele, e antes que Lynley percebesse quais eram as suas intenções, agarrara num vaso, atirara as flores ao chão e lançara a água sobre o rosto da mulher.
- Raios te partam, Tricia. Acorda!
- Afaste-se! - ordenara Lynley.
Os olhos de Tricia entreabriram-se, as faces molhadas pela água que lhe escorria pelo rosto. O seu olhar aturdido fixara-se primeiro em Lynley e depois na figura do marido. Estremecera, e essa reacção fora suficientemente elucidativa.
- Desapareça daqui, Reeve - dissera Lynley entredentes.
- Vá-se lixar - retorquira Reeve, continuando em tom rude. - Ele quer que tu lhe digas que discutimos, Tricia. Que eu te bati e que tu me bateste. Tu lembras-te como tudo aconteceu, por isso diz-lhe que me agrediste na cara para que ele se ponha a andar daqui para fora rapidamente.
Lynley levantara-se de um salto.
- Eu disse-lhe para desaparecer daqui!
Reeve apontara um dedo à mulher.
- Conta-lhe o que aconteceu. Olhando para nós, ele percebe que lutámos, mas não está disposto a acreditar numa palavra do que eu digo, se não confirmares que é verdade. Por isso conta-Lhe.
Lynley empurrara-o para fora do quarto e fechara a porta com estrondo. Voltara para junto da cama, onde Tricia continuava sentada, tal como ele a deixara. Não fizera o mais pequeno gesto para se secar.
Havia uma casa de banho no quarto e Lynley encontrara aí uma toalha. Com gestos suaves, enxugara-lhe o rosto, o pescoço magoado e o peito encharcado de água. Tricia fitara-o apática durante alguns instantes, antes de virar a cabeça e olhar fixamente para a porta por onde ele expulsara o marido.
- Conte-me o que aconteceu entre ambos, Mrs. Reeve - pedira ele. Ela tornara a virar os olhos para ele, humedecendo os lábios com a língua.
- O seu marido agrediu-a, não foi? A senhora reagiu da mesma maneira?
Era uma pergunta absurda e ele estava plenamente consciente desse facto. Como poderia ela tê-lo feito? Os heroinómanos podiam ter muitos talentos, mas a capacidade de autodefesa não estava certamente entre eles.
- Deixe-me telefonar para alguém. Precisa de sair daqui. É impossível que não tenha um único amigo. Irmãos ou irmãs? Pais?
- Não!
Ela agarrara-lhe na mão. Não conseguia fazê-lo com muita força, mas as suas unhas - compridas e artificiais como toda ela, aliás - cravaram-se na pele dele.
- Não acredito nem por um minuto que tenha oferecido luta ao seu marido, Mrs. Reeve. E o facto de não acreditar nisso vai tornar tudo mais difícil para si quando o seu marido sair em liberdade depois de ter pago a fiança. Gostaria de a tirar daqui antes que isso aconteça, por isso se me der o nome de alguém a quem possamos telefonar...
- Prender? - murmurara, parecendo estar a fazer um esforço monumental para aclarar as ideias. - Vai... prender? Mas o senhor disse...
- Eu sei. Mas isso foi antes. Aconteceu algo esta noite, que faz com que me seja impossível cumprir a minha palavra. Lamento muito, mas não tenho outra opção. E agora, gostaria de telefonar a alguém que tome conta de si. Não quer dar-me um número?
- Não. Não. Foi... Eu bati-lhe. A sério que bati. Tentei... dar-lhe uma dentada.
- Mrs. Reeve, eu sei que está assustada. Mas tente entender...
- Arranhei-o. Com as minhas unhas. Na cara. Arranhei-o. Arranhei-o. Porque ele estava a sufocar-me e eu queria que ele... parasse. Por favor. Por favor. Eu arranhei... cara. Fi-lo sangrar. Fui eu, a sério que fui.
Lynley percebera que ela estava cada vez mais agitada. Soltara uma imprecação silenciosa. Amaldiçoara a forma manhosa e bem-sucedida como Reeve se insinuara no início da sua conversa com a mulher; amaldiçoara as suas malditas falhas, a maior das quais fora o ter-se deixado dominar pela raiva, algo que sempre obscurecia a sua visão e toldava o seu raciocínio. Tal como sucedera esta noite.
Agora, na sua casa em Eaton Terrace, Lynley reflectia sobre tudo o que se passara. O sentimento de injustiça e a necessidade de vingar Vi Nevin tinham tomado conta dele, dando a Martin Reeve a possibilidade de o derrotar. O medo que Tricia sentia do marido - combinado, talvez, com uma dependência da heroína que ele sem dúvida alimentava - acabara por a incitar a confirmar as declarações de Reeve. Mesmo assim, Lynley poderia ter obrigado aquela ratazana traiçoeira a acompanhá-lo até à esquadra para seis ou sete horas de interrogatório, mas o americano não chegara até ali desconhecendo por inteiro os seus direitos. A representação legal estava-lhe garantida e ele tê-la-ia exigido antes mesmo de sair de casa. Tudo se resumiria a uma noite em claro que não beneficiaria ninguém, e no final, Lynley acabaria ele próprio por descobrir que não estava mais perto do autor dos crimes do que quando chegara a Londres, nessa manhã.
Todavia, o desfecho dos acontecimentos de Notting Hill tinham ficado a dever-se a um erro de cálculo da parte de Lynley, e era forçoso que ele o admitisse. Ansioso por que Tricia estivesse consciente e fosse capaz de articular um discurso suficientemente coerente para tomar parte numa conversa, permitira que o marido passasse tempo bastante na presença dela para lhe fornecer o texto de que ela iria precisar para a sua entrevista com Lynley. Perdera, assim, toda e qualquer vantagem que pudesse ter ganho sobre Martin Reeve ao chegar a casa deste na calada da noite. Era um erro caro, o tipo de erro próprio de um principiante.
Queria convencer-se de que aquele erro de cálculo era o resultado de um dia longo e extenuante, de uma atitude cavalheiresca mal dirigida, do mais puro estado de exaustão. Todavia, a inquietação que lhe invadia a alma e que começara a apoderar-se dele mal vira o cartão com o anúncio aos serviços de Nikki Temptation remetia para uma origem totalmente distinta. E porque não desejava meditar, nem sobre a origem nem sobre as implicações da origem, Lynley desceu até à cozinha. Abriu o frigorífico e examinou o seu interior até descobrir um recipiente com as sobras de uma paella.
Foi buscar uma Heineken para acompanhar a refeição improvisada, que pousou na mesa depois de aberta. Deixou-se cair pesadamente numa das cadeiras e bebeu um longo trago de cerveja. Ao lado de uma taça com maçãs estava uma brochura pouco espessa, e enquanto esperava que o microondas aplicasse os seus poderes mágicos à comida, tirou os óculos do bolso e decidiu passar os olhos pelo que era, afinal, um programa teatral.
Denton, concluiu, lograra vencer a massa de gente que tentava obter bilhetes para o espectáculo que, naquele momento, mais furor fazia no West End. Impressa a prateado sobre a capa cor de ébano, composta num grafismo ousado, lia-se uma única palavra: Hamlet. Acompanhavam-na um florete e as palavras Produções King-Ryder, inserida com bom gosto sobre o título do espectáculo. Lynley abanou a cabeça e soltou uma gargalhada curta à medida que folheava as páginas repletas de fotografias impressas em papel brilhante. Se bem conhecia Denton, durante os meses que se aproximavam, Eaton Terrace iria permanecer ininterruptamente exposta a todas as melodias da ópera-pop que tivessem encontrado eco na sua alma ferida pela paixão do palco. Se bem se recordava, tinham sido necessários perto de nove meses para que Denton deixasse de cantarolar The Music of the Night,', ao mais pequeno pretexto.
Pelo menos, desta vez não se tratava de um espectáculo LloydWebber, pensou com um certo alívio. Em tempos, considerara a hipótese do homicídio como a única alternativa viável a ter de escutar Denton entoando, semanas a fio, o tema principal - que parecia ser o único - de Sunset Boulevard.
O microondas deu sinal, e ele tirou o recipiente, derramando o seu conteúdo sem cerimónias para um prato. Concentrou-se na refeição tardia. No entanto, o gesto de espetar o garfo na comida, mastigá-la e engoli-la não era suficiente para distrair os seus pensamentos, pelo que começou à procura de outras formas de distracção.
' The Music of the Night, um dos temas da banda sonora do espectáculo musical O Fantasma da Ópera, com música de Andrew Lloyd Webber e letra de Charles Hart. [N. da T.]
Lembrou-se de Barbara Havers.
Àquela altura, já teria certamente conseguido reunir algo de útil. Estivera sentada em frente ao computador desde essa manhã, pelo que apenas podia concluir que, finalmente, conseguira gravar no cérebro dela a mensagem de que esperava que ela continuasse no CRIS até obter alguma informação que valesse a pena transmitir.
Agarrou o telefone que estava pousado sobre a bancada e, ignorando a hora, marcou o número dela. A linha estava ocupada. Olhou para o relógio. Ora essa, com quem estaria Havers a conversar ao telefone à uma e vinte da madrugada? Não era ninguém que ele conhecia, certamente. A única resposta possível era que o diabo da mulher devia ter tirado o telefone do descanso. Pousou o auscultador e pensou no que iria fazer em relação a Havers. Só que essa era uma via que apenas prenunciava uma noite agitada, o que não beneficiaria em nada o seu desempenho na manhã do dia seguinte.
Terminou a refeição, tornando a concentrar as suas atenções no programa do Hamlet, e em silêncio agradeceu a Denton o facto de lhe ter proporcionado uma distracção.
As fotografias eram realmente boas. E o texto constituía uma leitura interessante. O suicídio de David King- Ryder estava ainda bem vivo na memória do público para conferir uma aura de romance e melancolia a tudo o que estivesse associado ao seu nome. Além disso, não era tarefa árdua contemplar a voluptuosa donzela que fora escolhida para interpretar a figura de Ofélia. Brilhante, a ideia do desenhador de guarda-roupa, de a fazer ir ao encontro da sua própria morte envolta num vestido de tal modo diáfano que usá-lo era praticamente desnecessário. Iluminada por trás, lá estava ela, prestes a afogar-se, uma criatura presa entre dois mundos. O vestido de gaze reclamava a sua alma para o céu, enquanto o seu corpo terreno a mantinha firmemente acorrentada - em toda a sua beleza sensual - à terra. Era a combinação perfeita entre...
- Estás mesmo a cobiçá-la, Tommy? Casado há três meses e já te apanho a cobiçar outra mulher?
Helen estava à porta da cozinha, pestanejando, cabelo em desalinho, prendendo o cinto do roupão à cintura.
- Só porque estavas a dormir - replicou Lynley.
- Essa resposta foi demasiado pronta. Imagino que já a tenhas usado com mais frequência do que me interessa saber.
Atravessou a cozinha ao encontro dele e espreitou por cima do ombro do marido, pousando uma mão magra e fresca na sua nuca.
- Ah, compreendo.
- É só uma leitura ligeira para acompanhar o jantar, Helen. Nada mais do que isso.
- Hum. Sim, claro. Bonita, não achas?
- Ela? Oh, estás a referir-te a Ofélia? Nem sequer tinha reparado. Fechou o programa e pegou na mão da mulher, aproximando a palma dos seus lábios.
- Mentes muito mal.
Helen beijou-o na testa, libertou a sua mão da dele e encaminhou-se para o frigorífico de onde tirou uma garrafa de Evian. Apoiou-se na bancada enquanto bebia a água, observando-o com um olhar terno.
- Estás com um aspecto horrível - comentou. - Comeste alguma coisa hoje? Não, não precisas de responder. Essa é a tua primeira refeição desde o pequeno-almoço, não é?
- Sou obrigado a responder a essa pergunta? - perguntou Lynley, sensatamente.
- Deixa estar. Está escrito na tua cara. Querido, diz-me como é que tu podes passar dezasseis horas sem comer enquanto eu sou incapaz de deixar de pensar em comida durante dez breves minutos?
- É a diferença entre um coração puro e outro impuro.
- Ora aí está uma nova opinião sobre a gulodice.
Lynley soltou uma gargalhada. Pôs-se de pé, aproximou-se dela e abraçou-a. Cheirava a limão e a sono, e quando baixou a cabeça e enterrou o rosto nos cabelos dela sentiu-os macios e suaves como uma brisa de ar fresco.
- Ainda bem que te acordei - murmurou, abraçando-se mais a ela e sentindo um enorme conforto.
- Não estava a dormir.
- Ah, não?
- Não. Estava a tentar adormecer, mas não estava a ser muito bem- sucedida.
- Isso nem parece teu.
- E não é, eu sei.
- Estás preocupada com alguma coisa, então?
Soltou-a e olhou para ela, afastando-lhe o cabelo do rosto com um gesto terno. Os seus olhos escuros cruzaram-se com os dele, e Lynley fitou-os atentamente, procurando descobrir o que revelavam e o que tentavam dissimular.
- Diz-me o que se passa.
Ela roçou os lábios dele com a ponta dos dedos.
- Amo-te mesmo - disse. - Muito mais do que quando me casei contigo. Mais até do que te amava na primeira vez que dormi contigo.
- Fico contente por saber isso. Algo me diz, porém, que não é isso que te preocupa.
- Não é, não. Não é isso que me preocupa. Mas já é tarde, Tommy. E tu estás demasiado exausto para conversares. Vamos para a cama.
Ele queria fazê-lo. Nada se lhe afigurava melhor do que enterrar a cabeça numa almofada fofa e procurar o tranquilizante esquecimento proporcionado pelo sono ao lado do corpo quente e reconfortante da mulher. Todavia, havia algo na expressão de Helen que lhe dizia que essa não era a decisão mais sensata a tomar naquele preciso momento. Havia ocasiões em que as mulheres diziam uma coisa e pretendiam outra, e aquela parecia ser uma dessas ocasiões. Em parte falando verdade, em parte mentindo, disse:
- Eu estou de facto estafado. Mas hoje não tivemos uma conversa como deve ser, e não vou conseguir dormir se não a tivermos.
- A sério?
- Tu já me conheces.
Examinou o rosto dele e pareceu ficar satisfeita com o que viu.
- Não é nada de importante, na verdade - disse. - Ginástica mental, suponho. Passei o dia inteiro a pensar nos esforços que as pessoas fazem quando não querem enfrentar alguma coisa.
Ele sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo.
- O que foi? - perguntou ela.
- Alguém caminhando sobre a minha sepultura. O que te levou a pensar em tudo isso?
- O papel de parede.
- O papel de parede?
- Para os quartos de hóspedes, lembras-te? Reduzi o leque de escolhas para seis hipóteses... o que me pareceu admirável, tendo em conta as minhas dificuldades em fazer sequer uma simples escolha... e passei a tarde a reflectir sobre elas. Colei as amostras à parede, coloquei alguns móveis à frente delas, pendurei quadros. E mesmo assim não consegui decidir-me.
- Porque estavas a pensar noutra coisa? - perguntou ele. - Acerca da questão de as pessoas não enfrentarem o que precisam de enfrentar?
- Não. Aí é que está. Estava obcecada com o papel de parede, e o facto de ter de tomar uma decisão acerca dele... ou, melhor, o facto de me achar incapaz de tomar uma decisão... transformou-se numa metáfora da minha vida. Entendes?
Lynley não entendia. Estava demasiado arrasado para entender fosse o que fosse. Mas abanou a cabeça, pôs uma expressão pensativa e esperou que isso bastasse.
- Tu terias escolhido e dado o assunto por encerrado. Mas eu não consegui fazer isso, por mais que me esforçasse. Porquê? perguntei finalmente a mim própria. E a resposta surgiu de forma muito simples: por causa de quem sou. Por causa de quem fui moldada para ser. Desde o dia em que nasci até à manhã do dia do meu casamento.
Lynley pestanejou.
- De quem foste moldada para ser?
- Tua mulher - disse ela. - Ou a mulher de alguém exactamente como tu. Nós éramos cinco e a cada uma de nós... a cada uma de nós, Tómmy... foi distribuído um papel. Em determinado momento estávamos em segurança dentro da barriga da nossa mãe e no momento seguinte estávamos nos braços do nosso pai, que olhava para nós, dizendo: Hum. Mulher de um conde, creio eu. ou então Quase que aposto que ela vai ser a próxima Princesa de Gales. E quando soubemos qual era o papel que ele nos tinha destinado, agimos em concordância com ele. Éramos obrigadas a fazê-lo, claro. E é mais do que certo que nem Penélope nem Iris agiram de acordo com o que ele tinha planeado para elas. Mas as outras três, Cybele, Daphne e eu, ora, nós três não fomos mais do que barro mole nas mãos dele. E quando percebi isto, Tommy, tive de dar o passo seguinte. Tive de perguntar porquê.
- Porque foste barro mole?
- Sim. Porquê? E quando fiz essa pergunta e examinei atentamente a resposta, que achas tu que era?
Sentia a cabeça a andar à roda e os olhos a arder de fadiga. Contudo, Lynley reagiu de uma forma que Lhe pareceu sensata.
- Helen, que tem isto a ver com o papel de parede?
E de imediato percebeu que de certa maneira a defraudara. Ela libertou-se dos braços dele.
- Deixa lá. Este não é o momento certo. Eu sabia que não era. Estás
exausto, vamos para a cama. Ele tentou retomar o assunto.
- Não, eu quero ouvir o que tens para me dizer. Admito que estou cansado e que me perdi na dança do barro mole. Mas quero conversar con tigo e ouvir o que tens a dizer, e saber...
Saber o quê, interrogou-se. Era incapaz de dizer.
Ela olhou para ele, franzindo a testa, um claro sinal de aviso que lhe dizia que devia ter prestado atenção e que tal não acontecera.
- O quê? Dança do barro mole? Estás a falar de quê?
- De nada. Foi uma estupidez. Sou uma idiota. Esquece o que eu disse. Chega aqui, por favor. Quero abraçar-te.
- Não. Explica o que querias dizer.
- Não foi nada, Helen. Uma mera frivolidade.
- Uma frivolidade originada pelo que eu estava a dizer. Ele suspirou.
- Peço desculpa. Tens razão, estou arrasado. Quando fico neste estado, digo coisas sem pensar. Disseste que duas das tuas irmãs não cumpriram os planos dele ao contrário das outras, o que fez delas barro mole. Eu peguei nisso e perguntei a mim própria de que forma é que o barro mole poderia cumprir os planos dele e... Desculpa, foi uma observação estúpida. Não estou a pensar como deve ser.
- E eu não estou a pensar, ponto final - disse ela. - Algo, aliás, que não devia constituir uma surpresa para nenhum de nós. Mas era isso que querias, não era?
- O quê?
- Uma mulher incapaz de pensar. Foi como se o tivessem esbofeteado.
- Isso não só é um perfeito disparate, Helen, como é também um insulto para nós dois.
Aproximou-se da mesa, agarrou no prato e nos talheres e levou-os para o lava-loiça. Passou-os por água, demorou demasiado tempo olhando a água rodopiar pelo ralo abaixo, até que, por fim, desabafou com um suspiro, Merda.
Virou-se para ela.
- Desculpa-me, querida. Não quero que estejamos em conflito um com o outro.
O rosto dela suavizou-se.
- E não estamos - disse.
Ele voltou para junto dela, puxou-a para si e disse:
- Que se passa, então? - perguntou.
- Sou eu que estou em conflito comigo mesma.
CAPÍTULO 24
a tarefa de localizar o indivíduo com quem Terry Cole se encontrara na sede das Produções King-Ryder acabara por se revelar mais difícil do que Barbara Havers imaginara depois da conversa com Neil Sitwell, mesmo estando na posse da lista completa dos funcionários da empresa. Além de esta ser constituída por cerca de três dúzias de nomes, a maior parte não
se encontrava em casa, dado tratar-se de um sábado à noite. Afinal, era tudo gente do teatro. E a gente do teatro - conforme estava a descobrir não tinha por hábito ficar em casa, vegetando tranquilamente no remanso do lar quando podia perfeitamente estar a divertir-se fora de casa. Passava já das duas da madrugada quando conseguira identificar o contacto de Terry Cole no número 31-32 Soho Square. Tratava-se de Matthew King-Ryder, filho do falecido fundador da companhia de produções teatrais.
Aceitara encontrar-se com ela - depois das nove, se não se importa. Estou absolutamente estoirado - na sua casa de Baker Street.
Eram nove e meia quando Barbara descobriu o endereço que acompa nhava o nome e número de telefone de Matthew King-Ryder. Era um daqueles enormes edifícios vitorianos de tijolo que, no final do século xIx, tinham assinalado a passagem de um estilo de vida caracterizado por espaços amplos e graciosos para outros mais discretos e confinados. Em termos relativos, evidentemente. Comparado com a casita onde Barbara morava, o apartamento de King-Ryder era um autêntico palácio, ainda que, defacto, se parecesse mais com um daqueles apartamentos de grandes dimensões convertidos em casas mais pequenas, onde a ventilação e a iluminação natural tinham sido sacrificadas a fim de garantir ao proprietário do imóvel uma avultada renda mensal.
Foi essa, pelo menos, a conclusão a que chegou Barbara quando Matthew King-Ryder a convidou a entrar. Pediu-lhe desculpa pela desarru mação - típica de quem estava em vésperas de mudar de residência -, referindo-se ao amontoado de detritos e de sacos de lixo que aguardavam, junto à porta do apartamento, a passagem da equipa de limpeza do edifício, e conduziu-a até à sala de estar ao fundo de um pequeno corredor mal iluminado. Várias caixas de cartão abertas deixavam entrever livros, troféus e diversos objectos decorativos embrulhados em papel de jornal. Encostados às paredes, aguardando idêntico destino, havia fotografias e cartazes de espectáculos teatrais encaixilhados.
- Finalmente vou tornar-me proprietário - confidenciou King-Ryder. - Tenho o dinheiro suficiente para a compra da casa, mas não para pagar a casa e o pessoal das mudanças. Portanto, vai ter de ser uma espécie de faça-você-mesmo. Daí, toda esta confusão. Peço imensa desculpa. Sente-se, por favor - agarrou numa rima de programas e pousou-a no chão. - Posso oferecer-lhe um café? Ia agora mesmo fazer um para mim.
- Claro - aceitou Barbara.
Dirigiu-se à cozinha, situada logo depois de um recanto que funcionava como sala de jantar. Enquanto moía o café, ia falando com descontracção através de uma abertura numa das paredes.
- Vou viver para a margem sul do rio. Não será tão fácil chegar ao West End, claro, mas é uma casa, não um apartamento. Tem um jardim razoável e, o que é mais importante, é uma propriedade alodial. E é minha - inclinou a cabeça e sorriu. - Peço desculpa, mas estou muito entusiasmado com tudo isto. Tenho trinta e três anos e, finalmente, consegui assinar um contrato de empréstimo. Quem sabe o que virá a seguir. O casamento, talvez. Gosto dele forte. Refiro-me ao café, claro. Está bem para si assim?
Óptimo, confirmou Barbara. Quanto mais cafeína, melhor. Enquanto esperava, examinou, distraidamente, um conjunto de fotografias encaixiLhadas que se encontrava perto da cadeira onde estava sentada. Na maioria delas aparecia a figura familiar do mesmo indivíduo, posando ao longo dos anos ao lado de personalidades teatrais ainda mais familiares.
- É o seu pai? - perguntou Barbara, em tom de conversa, ainda que desnecessariamente, elevando a voz para se fazer ouvir por cima do ronco grave produzido pelo moinho de café.
King-Ryder espreitou pela abertura e viu o que ela estava a fazer.
- Oh! - exclamou. - É o meu pai, sim. Entre os dois homens havia muito poucas semelhanças. Matthew fora abençoado com todos os atributos físicos que a natureza negara ao pai. Enquanto este fora baixo, com um rosto que fazia lembrar o de um sapo, onde pontuavam uns olhos exoftálmicos característicos de quem tinha pro blemas de tiróide, bochechas de bon viveur e verrugas faciais típicas de um vilão de contos de fadas, o filho fora brindado com uma estatura mais elevada, um nariz aristocrático e o tipo de pele, olhos e boca pelos quais muitas mulheres estariam dispostas a pagar avultadas fortunas a qualquer cirurgião plástico.
Não eram muito parecidos - notou Barbara. - O senhor e o seu pai.
Matthew olhou-a e esboçou um sorriso triste.
- Não. Ele não era nenhuma estampa, pois não? E tinha noção disso, infelizmente. Demasiadas escaramuças na juventude. Acho que foi por isso que ao longo dos anos nunca deixou de andar atrás de mulheres diferen tes, para provar alguma coisa a ele próprio.
- É uma pena que tenha morrido. Tive pena quando soube... entende o que quero dizer, não é verdade?
Barbara sentiu-se constrangida. Que se podia dizer sobre um suicídio, afinal?
Matthew disse que sim com a cabeça, mas não respondeu. Tornou a concentrar-se na preparação do café, e Barbara voltou a examinar as fotografias. Verificou que apenas numa delas pai e filho apareciam juntos. Era uma fotografia de escola que retratava Matthew, ainda criança, segurando um troféu, o rosto iluminado por um sorriso extasiado. A seu lado, estava o pai, semblante carregado, segurando um rolo de papel que parecia ser o programa de um espectáculo. Matthew estava equipado com um fato desportivo, exibindo, orgulhoso, a tira de pele que lhe cingia o tronco na diagonal, à maneira dos soldados da Primeira Guerra Mundial. David, por sua vez, envergava o seu uniforme pessoal: um fato de executivo que remetia para o imenso número de reuniões de negócios que estaria a perder naquele momento.
- Ele não parece muito feliz nesta fotografia - comentou Barbara, separando a fotografia das restantes e examinando-a mais de perto.
- Oh, essa. Dia de competições desportivas na escola. O meu pai odiava esse tipo de coisas. Era tão atlético como um touro. Mas a minha mãe era exímia quando se tratava de apelar ao sentimento de culpa sempre que conseguia apanhá-lo ao telefone, por isso ele geralmente estava presente. Mas não gostava muito da experiência. E sabia como fazer sentir aos outros que não gostava do que estava a fazer. O artista típico, está tudo dito.
- Deve ter sido duro.
- Nem por isso. Nessa altura, os meus pais já estavam divorciados, por isso eu e a minha irmã aproveitávamos ao máximo o tempo que ele nos dedicava.
- Onde está ela agora?
- Isadora? Trabalha como desenhadora de guarda-roupa. No RSC, sobretudo.
- É caso para dizer que ambos seguiram as pisadas do vosso pai.
- Isadora mais do que eu. É uma criativa como o meu pai. Eu sou apenas um processador de números.
Regressou à sala de estar, trazendo um velho tabuleiro de estanho onde colocara duas canecas de café, um jarro de leite e alguns cubos de açúcar
num pires. Pousou-o sobre um monte de revistas que estava em cima de uma otomana e passou a explicar que fora o agente e director da compa nhia de teatro do pai. Negociava os contratos, controlava o pagamento de direitos de autor relativos à produção dos inúmeros espectáculos do pai no mundo inteiro, encarregava-se da venda dos direitos de futuras produções dos espectáculos e controlava os gastos e despesas sempre que a companhia montava uma nova ópera-pop em Londres.
- Sendo assim, o seu trabalho não acabou com a morte do seu pai?
- Não, porque no fundo a obra dele... a música em si mesma... nunca há-de morrer, não é verdade? Desde que as suas óperas estejam a ser encenadas em qualquer parte, o meu trabalho continuará. Iremos talvez acabar por reduzir a equipa da produtora, mas terá de haver alguém que faça o controlo dos direitos. Além disso, há o fundo.
- O fundo?
Matthew adicionou três cubos de açúcar à sua caneca e mexeu o café com uma colher de cabo de cerâmica. Alguns anos antes, explicou, o pai criara uma fundação destinada a artistas. O dinheiro era usado para financiar a formação de actores e músicos, para apoiar novas produções, lançar novas peças escritas por dramaturgos desconhecidos e subsidiar letristas e compositores em início de carreira. Com a morte de David King-Ryder, todos os lucros gerados pela sua obra deviam ser canalizados para esse fundo. Além de uma doação deixada à sua quinta e derradeira mulher, o David King-Ryder Fund era o único beneficiário do testamento de King-Ryder.
- Não sabia - disse Barbara, impressionada. - Um homem generoso. Belo gesto da sua parte, esse de dar um empurrão aos outros.
- O meu pai era um homem bom. Não foi um bom pai quando eu e a minha irmã éramos mais novos, e não acreditava em distribuir esmolas ou mimos fosse por quem fosse. Mas apoiava o talento sempre que o descobria e desde que o artista estivesse disposto a trabalhar. E esse é um legado notável, na minha opinião.
- Uma pena o qe aconteceu. Isto é... sabe a que me refiro.
- Obrigado. Foi, sim... Eu ainda não entendo muito bem o que sucedeu. - Matthew estudou atentamente o rebordo da caneca. - O que é mais estranho é que ele tinha finalmente alcançado um êxito ao fim de tantos anos de infelicidade. O público ficou doido antes mesmo do cair do pano, e ele estava lá. Viu tudo. Até os críticos aplaudiram de pé, por isso as críticas iam ser maravilhosas. Era impossível que ele não soubesse disso.
Barbara conhecia a história. Noite de estreia de Hamlet. Um sucesso retumbante depois de anos de fracasso. Sem deixar qualquer bilhete que justificasse a natureza do seu acto, o letrista e compositor saíra de cena depois de ter disparado um único tiro na cabeça enquanto a mulher tomava banho no quarto ao lado.
- Tinham uma relação próxima, o senhor e o seu pai - notou Barbara, contemplando as inequívocas marcas de pesar no rosto de Matthew King- Ryder.
- Quando era criança e adolescente, não. Mas nos últimos anos, sim. Éramos, de facto, muito chegados. Só que não o suficiente, obviamente. - Matthew pestanejou e ingeriu um gole de café. - E agora chega. Veio até aqui por motivos profissionais. Disse-me que queria falar comigo acerca de Terence... o rapaz vestido de preto que se encontrou comigo em Soho.
- Exactamente, Terence Cole - Barbara forneceu-lhe os factos que apurara. - Neil Sitwell, o director da Bowers, em Cork Street, disse-me que lhe tinha sugerido que viesse ter consigo para lhe mostrar o excerto de uma partitura musical manuscrita da autoria de Michael Chandler que ele encontrara por acaso. Calculou que o senhor pudesse indicar-lhe qual a melhor maneira de pôr Terry em contacto com os advogados encarregues de gerir os bens de Chandler.
Matthew franziu a testa.
- Ai sim? Mas isso é muito estranho.
- Porque o senhor desconhecia a forma de entrar em contacto com os advogados? - perguntou Barbara. Parecia-lhe uma hipótese altamente improvável.
Matthew apressou-se a corrigi-la.
- É óbvio que conheço os advogados de Chandler. Conheço a família Chandler, aliás. Michael tinha quatro filhos e todos eles vivem em Londres. Tal como a viúva. Só que o rapaz não mencionou a Bowers quando veio falar comigo. Nem se referiu a ninguém chamado Neil Sitwell. Mais importante do que isso, nem sequer falou em nenhuma partitura musical.
- Não falou numa partitura? Nesse caso, por que razão foi ter consigo?
- Disse-me que tinha ouvido falar no Fundo. O que era lógico, uma vez que a imprensa deu imensa cobertura ao facto quando o meu pai morreu. Cole tinha esperanças de conseguir um apoio financeiro. Trouxe-me até algumas fotografias dos seus trabalhos.
Barbara teve a impressão de que um emaranhado de teias de aranha se espalhava no interior da sua cabeça, dado o carácter inesperado das informações.
- Tem a certeza do que está a dizer?
- Claro que tenho a certeza. Trouxe o portfolio para me mostrar e, de início, julguei que ele pretendia um apoio financeiro enquanto tirava o curso de cenógrafoou de desenhador de guarda-roupa. Porque, como lhe disse, o Fundo apoia este tipo de pessoas, artistas de alguma forma ligados ao teatro. Não artistas em geral. Mas ele não sabia deste pormenor, ou fez confusão, ou entendeu mal os pormenores indicados algures. não sei.
- Ele chegou a mostrar-lhe os trabalhos que trazia no portfolio?
- Eram fotografias de trabalhos dele, na sua maioria horríveis. Utensílios de jardinagem torcidos para um lado e para outro. Sei muito pouco sobre arte moderna, mas pelo que vi, diria que o melhor que ele tinha a fazer era mudar de profissão.
Barbara reflectiu durante alguns instantes. Quando é que Terry Cole fora visitá-lo, perguntou.
Matthew pensou um pouco e saiu da sala, voltando logo em seguida com a agenda aberta na palma da mão. Não anotara a reunião, já que o rapaz não lhe telefonara a marcar uma hora. Todavia, fora no mesmo dia em que Ginny - a viúva do pai - passara pelo escritório, e ele tomara nota disso. Matthew forneceu a data a Barbara. A reunião realizara-se precisamente no dia da morte de Terry Cole.
- É evidente que não Lhe disse exactamente o que pensava sobre o trabalho dele. Não havia necessidade de o fazer. Além disso, ele parecia muito empenhado.
- Cole nunca lhe falou na música? Numa partitura musical? Nem em Michael Chandler. Nem sequer no seu pai?
- Nada. Ele sabia quem o meu pai era, claro. Chegou a mencioná-lo, até. Mas pode tê-lo feito apenas na esperança de vir a conseguir algum dinheiro do Fundo. Uma tentativa para abrir algumas portas à custa de um ou dois elogios, entende o que quero dizer? Mas foi tudo - Matthew sentou-se novamente, fechou a agenda e pegou na caneca. - Lamento muito. Não estou a ser grande ajuda, pois não?
- Não sei - replicou Barbara, pensativa.
- Posso saber por que razão está a reunir informações sobre o rapaz? Ele fez alguma coisa... É que, sendo a senhora da polícia.
- Foi assassinado no mesmo dia em que se encontrou consigo.
- No mesmo... Meu Deus, isso é terrível. Estão na pista do assassino, então?
Barbara sentia-se intrigada. Não havia dúvidas de que tivera a sensação de estar na pista de qualquer coisa. Tinha a aparência e o cheiro de uma pista. Todavia, pela primeira vez desde que o inspector Lynley lhe ordenara que retomasse o seu trabalho no Sistema de Informações do Registo Criminal, com indicações expressas para examinar os antigos casos de Andrew Maiden em busca de uma hipotética ligação com a morte da filha deste, e pela primeira vez desde que rejeitara essa linha de investigação por considerá-la inútil naquele caso particular, via-se forçada a interrogar-se sobre se estaria no caminho certo. Não conseguia decidir-se.
Tirou a chave do cárro de dentro do saco e disse a Matthew King-Ryder que entraria em contacto com ele, se entretanto lhe ocorressem mais perguntas. E se ele, por acaso, se lembrasse de mais algum pormenor relacionado com Terry Cole. Entregou-lhe o seu número de telefone. Será que se importava de Lhe telefonar? perguntou-lhe.
Claro que não, garantiu Matthew King-Ryder. E para o caso de Terry Cole ter descoberto o nome dos advogados de Chandler sem a ajuda de King-Ryder, queria que a polícia ficasse com o nome e número de telefone da firma. Abriu a agenda nas últimas páginas, folheou-as até encontrar uma lista telefónica e com o dedo percorreu uma lista de nomes e números. Encontrando o que pretendia, ditou as coordenadas, que Barbara anotou. Esta agradeceu ao jovem a colaboração prestada e desejou-lhe boa sorte na sua mudança para a margem sul do rio. Ele acompanhou-a até à porta e, bem ao jeito de todos os londrinos sensatos e prevenidos, trancou a porta do apartamento depois de ela ter saído.
Sozinha no corredor, Barbara reflectiu sobre o que ouvira e pensou na forma como as informações que tinha reunido encaixavam no puzzle que era a morte de Terry Cole, se é que encaixavam. Terry falava de uma grande encomenda, recordou. Estaria a referir-se às suas esperanças de conseguir uma bolsa do King-Ryder Fund? Deduzira que a sua visita a King-Ryder estaria forçosamente relacionada com a partitura de Michael Chandler. No entanto, se alguém o tinha informado de que essa partitura não tinha qualquer valor, por que razão se teria dado ao trabalho de localizar uma firma de advogados e de devolver o documento à família de Chandler? De certeza que estaria à espera de receber uma recompensa por parte dos Chandler. Todavia, mesmo que assim tivesse sucedido, será possível que ela tenha igualado o montante correspondente a uma bolsa artística concedida pela King-Ryder, permitindo-lhe, assim, prosseguir a sua duvidosa carreira como escultor? Dificilmente, concluiu Barbara. Teria sido muito mais vantajoso tentar impressionar um mecenas de renome com o seu talento do que ficar à espera de um acto de generosidade da parte de desconhecidos, gratos por poderem reaver algo que lhes pertencia.
Exacto. Aquilo, sim, fazia sentido. E o mais provável era que Terry Cole tivesse descartado qualquer possibilidade de fazer dinheiro a partir da partitura manuscrita da autoria de Chandler mal soubera quão necessário era poder contar com a amabilidade e generosidade de estranhos para concretizar as suas ambições com sucesso. Depois de ter falado com Sitwell, o mais certo era que tivesse amarfanhado a partitura ou que a tivesse levado para casa e guardado no meio das suas coisas. O que, obviamente, conduzia à questão de saber por que motivo ela e Nkata não a tinham encontrado quando tinham revistado o apartamento. Mas teriam eles sequer reparado numa folha de música perdida no meio dos pertences do rapaz? Sobretudo, depois de os seus sentidos terem sido bombardeados com exemplos da arte dos dois ocupantes do apartamento.
Arte. Era este o elo de ligação entre todos os pormenores do caso. Arte. Artistas. O King-Ryder Fund. Matthew dissera que as bolsas só eram atribuídas a artistas ligados ao teatro. Isso, porém, seria somente uma forma de desencorajar um artista de inveredar para o teatro apenas para deitar a mão a algum dinheiro? Se Terry Cole tivesse tido esta ideia, se se tivesse de facto apresentado como designer e não como escultor, se, de facto, a grande encomenda de que falava fosse, na realidade, uma fraude perpetrada sobre um fundo destinado a prolongar a memória de uma figura de primeira grandeza do teatro...
Não, estava a exagerar. Estava a meter demasiadas possibilidades distintas dentro do mesmo saco. Ia arranjar uma dor de cabeça e tornar as águas ainda mais turvas. Precisava de pensar, apanhar ar fresco, dar um passeio revigorante por Regent's Park, a fim de poder analisar o amontoado de dados que.
Os pensamentos de Barbara abrandaram a sua marcha veloz quando o seu olhar se deteve no monte de lixo acumulado à porta da casa de King-Ryder. Não lhe prestara muita atenção à chegada, mas agora observava-o atentamente. Tinham conversado sobre artistas, sobre o facto de não saberem muito sobre arte moderna. E aquilo que via à porta de King-Ryder atraiu a sua atenção justamente pelo facto de terem tido esta conversa.
Entre os objectos de que King-Ryder estava a desfazer-se encontrava-se uma tela. A frente estava virada para a parede onde estava encostada, rodeada por uma pilha de sacos de lixo.
Barbara olhou para a esquerda e para a direita. Tomou a decisão de ver o que Matthew King-Ryder considerava como arte, descartável ou não. Desviou os sacos de lixo e afastou a tela da parede.
- Com mil diabos - murmurou, quando viu o que acabava de descobrir: uma loura grotesca com uma enorme boca escancarada, deixando ver um gato defecando sobre a língua.
Barbara tivera já oportunidade de contemplar uma dezena, ou mais, de variações sobre este tema problemático. Estivera e falara com a artista, Cilla Thompson, que lhe anunciara, orgulhosa, que tinha vendido um quadro ainda a semana passada, a um cavalheiro com bom gosto.
Barbara olhou fixamente para a porta fechada da casa de Matthew King-Ryder. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Do outro lado daquela porta vivia um assassino, concluiu. E naquele momento, naquele preciso lugar, decidiu que ela seria o chui que iria levá-lo à barra do tribunal.
Lynley encontrou o relatório de Barbara Havers em cima da secretária, quando chegou à Yard pelas dez horas da manhã. Leu os resumos e conclusões que ela desenvolvera relativamente aos processos que analisara no CRIS, sem deixar de reparar no sentimento de agravo que perpassava a sua escolha de palavras. Naquele momento, porém, não tinha tempo para pensar na crítica superficialmente velada que ela tecia às ordens que ele lhe dera. Aquela manhã já lhe trouxera alguns dissabores, e tinha assuntos mais urgentes com que se preocupar do que a insatisfação de uma detective em relação às tarefas que lhe eram atribuídas.
Fizera um desvio no seu trajecto habitual entre Eaton Terrace e Victoria Street, e dirigira-se ao Chelsea and Westminster Hospital em Fulham, a fim de se inteirar do estado de saúde de Vi Nevin. Os médicos da jovem tinham-lhe concedido quinze minutos para visitá- la, mas ela estava muito sedada e permanecera imóvel durante todo o tempo. Um cirurgião plástico aparecera entretanto para a examinar, o que implicara a remoção das ligaduras. A doente, porém, continuou a dormir enquanto era observada.
Enquanto o cirurgião examinava a amiga, Shelly Platt chegara ao hospital vestida com um fato de linho e sandálias, o cabelo laranja dissimulado por um chapéu de ráfia de abas largas e os olhos escondidos atrás de um par de óculos de sol. Alegando que desejava manifestar o seu pesar pela morte de Nicola Maiden, telefonara várias vezes a Vi desde o dia em que Lynley fora visitá-la à sua casa de Earl's Court. Como não conseguira localizá-la dirigira-se finalmente a Rostrevor Road, onde a vizinhança não tinha outro tema de conversa a não ser o ataque à sua antiga companheira de apartamento.
- Tenho de a ver! - ouvira Lynley dentro do quarto, enquanto o cirurgião plástico estudava o rosto destruído de Vi e falava calmamente sobre ossos estilhaçados como se fossem vidro, enxertos de pele e cicatrizes, com o ar desinteressado de um homem mais talhado para a investigação médica do que para o tratamento de doentes. Reconhecendo a articulação característica dos sons e das palavras e até a voz que ressoava no corredor, Lynley pedira licença ao médico e saíra ao encontro de Shelly Platt que tentava escapar ao controlo do agente de polícia e da enfermeira responsável pelo serviço.
- Foi ele, não foi? Foi ele? - gritara Shelly Platt quando o vira. Eu disse-lhe e ele encontrou-a, não foi? Foi ele. E apanhou-a exactamente da forma como eu pensava que ia apanhá-la. E agora há-de vir atrás de mim quando souber que eu lhe contei a verdade sobre o negócio dele. Como é que ela está? Como está Vi? Deixe-me vê-la. Tenho de vê-la.
A voz dela elevara-se até aos limites da histeria, e a enfermeira perguntara se a criatura era familiar da doente. Sheila arrancou os óculos escuros da cara, exibindo os olhos raiados de sangue e olhando na direcção de Lynley num apelo mudo.
- É irmã dela - Lynley revelara à enfermeira, conduzindo Shelly pelo braço. - Pode entrar.
Dentro do quarto, Shelly atirara-se para cima da cama a chorar, no momento em que uma outra enfermeira substituía as ligaduras de Vi Nevin, enquanto o cirurgião plástico lavava as mãos antes de sair. - Vi. Vi - disse. - Vi, querida. Eu não estava a falar a sério. Nem por um segundo.
Pegou na mão inerte, pousada sobre a coberta da cama e pressionou-a sobre o coração, como se os batimentos que Lhe agitavam o peito ossudo pudessem de alguma forma confirmar a veracidade das suas palavras.
- Que se passa com ela? - perguntara à enfermeira. - O que é que Lhe fizeram?
- Está sob o efeito de sedativos, miss - a enfermeira comprimira os lábios num trejeito de reprovação, enquanto colocava o último pedaço de adesivo sobre a gaze.
- Mas ela vai ficar boa, não vai?
Lynley olhara de relance para a enfermeira antes de responder.
- Vai recuperar.
- Mas e a cara dela. Estas ligaduras todas. O que é que ele fez à cara dela?
- Foi o sítio onde foi espancada.
Shelly Platt desatou a chorar ainda com mais força.
- Não. Não. Oh, Vi. Desculpa-me. Eu não queria causar-te nenhum mal. Estava chateada, só isso. Já sabes como é que eu sou.
A enfermeira torcera o nariz perante esta demonstração de emoção e saíra do quarto.
- Ela vai precisar de fazer cirurgia plástica - Lynley dissera a Shelly quando ficaram a sós. - E depois. - procurara encontrar as palavras exactas, mas delicadas, para explicar-lhe quais seriam as perspectivas de futuro para Vi Nevin. - Há fortes probabilidades de que as suas opções profissionais se tornem mais reduzidas do que antes.
Ficara à espera que Shelly desse mostras de ter entendido o alcance da sua explicação. Destituída de atributos físicos, mas mesmo assim capaz de exercer a profissão, não podia deixar de adivinhar o efeito que as cicatrizes faciais teriam na vida de uma mulher que ganhava a vida incarnando a figura de uma Lolita.
O olhar angustiado de Shelly desviara-se de Lynley para se fixar na amiga.
- Eu vou tomar conta dela. A partir de hoje, minuto a minuto. Vou tomar conta da minha Vi - beijara a mão de Vi e apertara-a com mais força, começando a chorar ainda mais convulsivamente.
- Ela precisa de descansar, agora - dissera Lynley.
- Vou ficar ao lado de Vi até ela saber que eu estou aqui.
- Pode esperar lá fora ao lado do agente de serviço. Darei ordens para que a deixem entrar no quarto de hora a hora.
Fora com grande relutância que Shelly largara a mão de Vi. Quando estavam no corredor, dissera:
- Vai apanhá-lo, não vai? Vai atirá-lo para a prisa imediatamente? Estas duas perguntas ensombraram o espírito de Lynley enquanto fazia o trajecto que o levava até à Yard.
Martin Reeve tinha tudo para ser ele o autor da agressão a Vi Nevin: motivo, meios e oportunidade. Tinha um estilo de vida a manter e estava casado com uma mulher, cuja toxicomania tinha de alimentar permanentemente. Não podia dar-se ao luxo de perder nenhuma fonte de rendimento. Se uma das raparigas conseguisse deixar de estar ao seu serviço, não haveria nada que impedisse uma outra - ou dez delas - de seguir o seu exemplo. E se ele permitisse que isso acontecesse, em breve estaria totalmente arruinado. Os dois intervenientes necessários no negócio da prostituição são, na verdade, as próprias prostitutas e os seus ávidos clientes. Os proxenetas são dispensáveis. E Martin Reeve sabia-o. O controlo sobre as mulheres que trabalhavam para ele era exercido com recurso ao exemplo e ao medo, especificando os actos extremos que estava disposto a praticar a fim de salvaguardar os seus domínios e fazendo ver - por meio desses actos extremos - que o que acontecera com uma rapariga podia perfeitamente suceder com outra. Vi Nevin funcionava como uma lição para todas as outras raparigas que trabalhavam para Martin Reeve. A única questão que se impunha era a de saber se Nicola Maiden e Terry Cole também o eram.
Havia só uma maneira de o descobrir: trazer Reeve até à Yard sem a presença de um advogado e agir com inteligência. Para consegui-lo, no entanto, Lynley sabia que teria de ser mais astuto do que Reeve, e as suas opções nesse domínio específico eram limitadas.
Lynley procurou encontrar uma forma de manipulação inspeccionando as fotografias tiradas ao duplex, que lhe tinham sido entregues nessa manhã pelo fotógrafo da polícia. Estudou atentamente a pegada deixada no chão da cozinha, perguntando a si próprio se o padrão daquela sola de sapato, em hexágonos, seria suficientemente raro para ter importância para o caso. Bastaria arranjar um mandado de busca, era certo. E com o documento na mão, três ou quatro agentes podiam vasculhar a MCR Financial Management de cima a baixo até descobrirem provas que pusessem a nu a verdadeira natureza do negócio operado por Reeve, mesmo que ele tivesse sido esperto o suficiente para se desfazer dos sapatos com solas aos hexágonos. Logo que estivessem na posse dessas provas, estariam em posição de intimidar o proxeneta. E era precisamente aí que Lynley queria chegar.
Examinou mais algumas fotografias, dispondo-as uma por uma sobre a secretária. Estava ainda imerso nesta observação atenta, quando Barbara Havers entrou de rompante no seu gabinete.
- Caramba, inspector - desabafou sem qualquer preâmbulo -, espere só até ouvir o que eu tenho para lhe contar.
E começou a desfiar uma história sobre uma casa leiloeira em Cork Street, sobre alguém que dava pelo nome de Sitwell, passando depois para Soho Square e a King-Ryder Productions.
- E foi quando ia a sair de casa dele que vi o quadro - concluiu triunfante. - E vá por mim, inspector, se tivesse dado uma espreitadela aos trabalhos de Cilla em Battersea, concordaria que só por uma grande coincidência eu poderia cruzar-me com alguém à face da Terra que fosse capaz de comprar algum daqueles quadros horrorosos.
Afundou-se numa das cadeiras em frente à secretária dele e agarrou nas fotografias. Depois de lhes dar uma olhadela rápida, continuou:
- King-Ryder é o nosso homem. E pode escrever isso com o meu sangue, se quiser.
Lynley fitava-a por cima dos óculos.
- O que a leva a chegar a essa conclusão? Descobriu alguma ligação entre Mr. King-Ryder e o tempo em que Maiden trabalhou no 5010? Porque, se assim é, o seu relatório não refere. - deteve-se, intrigado, nada satisfeito com o que adivinhava. - Havers, como é que você chegou a King-Ryder?
Ela continuou a estudar as fotografias enquanto respondia à pergunta dele. A sua voz, porém, soou apressada.
- Foi assim, inspector. Encontrei um cartão no apartamento de Terry Cole. E um endereço, também. Então pensei. Bem, eu sei que lho devia ter entregue imediatamente, mas esqueci-me de o fazer quando me ordenou que retomasse a minha investigação no CRIS. Acontece que como ontem tive algum tempo livre, depois de acabar o relatório e. - hesitou, a sua atenção ainda concentrada nas fotografias. No entanto, quando finalmente ergueu os olhos, a sua expressão alterara-se, parecendo menos confiante do que quando entrara no gabinete. - Uma vez que tinha o cartão e o endereço, fui até Soho Square, depois Cork Street e. Bolas, inspector. O que é que interessa saber como cheguei até ele? King-Ryder está a mentir e se está a mentir, ambos sabemos que só há uma razão para isso.
Lynley pousou o resto das fotografias sobre a secretária.
- Não estou a perceber - disse. - Estabelecemos uma ligação entre as nossas duas vítimas: prostituição e publicidade a actividades ligadas à prostituição. Desenvolvemos ainda um outro motivo possível: um vulgar acto de vingança por parte de um proxeneta na sequência da traição de duas das suas funcionárias, uma das quais, aliás, foi espancada a noite passada. Ninguém consegue confirmar o álibi do proxeneta para terça-feira à noite, além da mulher, cuja palavra não parece ter qualquer validade. Apenas nos resta descobrir a arma do crime que se encontra desaparecida, e que pode muito bem estar algures dentro da casa de Martin Reeve. Ora, estando tudo isto assente, Havers, e assente, permita-me que acrescente, através do tipo de investigação policial que parece andar a evitar nos tempos que correm, ficar-Lhe-ia muito agradecido se conseguisse enumerar os factos que fazem de Matthew King-Ryder o nosso assassino.
Ela ficou calada, mas Lynley viu o intenso rubor que começava a tingir-Lhe o pescoço.
- Barbara - disse ele -, espero que as suas conclusões sejam o resultado de trabalho no terreno e não fruto da intuição.
Havers corou ainda mais intensamente.
- O senhor está sempre a dizer que num crime não há coincidências, inspector.
- É verdade. Mas onde é que está a coincidência neste caso?
- Naquele quadro. Na monstruosidade pintada por Cilla Thompson. Para que quer ele um quadro pintado pela companheira de apartamento de Terry Cole? Ninguém pode dizer que o comprou para o pendurar na parede, uma vez que estava no lixo. Por isso tem de haver algum significado nisto.
E eu acho que...
- Você acha que isso significa que ele é um assassino. Mas não tem nenhum motivo que o tivesse levado a cometer qualquer crim pois não?
- Ainda mal comecei. A única razão que me levou a encontrar-me com King-Ryder foi o facto de Terry Cole o ter contactado por indicação deste tipo,Neil Sitwell. Não estava à espera de descobrir um dos quadros de Cilla à porta de casa dele. E quando isso aconteceu,fiquei estúpida.
E quem não ficaria,aliás? Cinco minutos antes,King-Ryder tinha estado a dizer-me que Terry Cole tinha vindo pedir-lhe uma bolsa de estudos. Saio do apartamento,tentando raciocinar sobre estas novas informações e tropeço num quadro,no meio do lixo,que me diz que existe uma ligação entre King-Ryder e este crime que ele está a esconder.
- Uma ligação com o crime? - Lynley deixou que o seu cepticismo reforçasse as suas palavras. - Havers,tudo o que você descobriu até ao momento é que King-Ryder pode estar relacionado com alguém que está relacionado com alguém que foi assassinado na companhia de uma mulher com a qual não tinha qualquer ligação.
- Mas...
- Não,nada de mas,Havers. Nada de e,nem de se,aliás. Você tem andado a medir forças comigo desde o início desta investigação e isso tem
de parar. Eu confiei-lhe uma tarefa,que você praticamente ignorou,porque não é do seu agrado. Avançou sozinha na investigação em detrimento da equipa...
- Isso não é justo! - protestou ela. - Eu apresentei o relatório. Deixei-o em cima da sua secretária.
- Pois deixou, e eu já o li - Lynley procurou o documento. Pegou nele e serviu-se dele para enfatizar as suas palavras. - Julga que eu sou estúpido, Barbara? Acha-me incapaz de ler nas entrelinhas daquilo que pretende passar pelo trabalho de um profissional?
Ela baixou os olhos, redobrando a atenção a algumas das fotografias da casa destruída de Vi Nevin, que ainda segurava. A pressão dos seus dedos sobre o papel aumentou, tingindo as articulações de uma tonalidade pálida, enquanto o rosto se tornava cada vez mais ruborizado.
Graças a Deus, pensou Lynley. Finalmente, conseguira prender a atenção dela.
- Quando alguém nos dá uma ordem - prosseguiu -, espera que a cumpramos na íntegra. Sem a questionar ou discutir. E quando terminamos a tarefa que nos é confiada, o que se espera de nós é que entreguemos um relatório que reflicta a linguagem desapaixonada própria do profissional imparcial. E, depois disso, devemos ficar a aguardar a atribuição de nova tarefa mantendo um espírito aberto, capaz de assimilar informações. Aquilo que não se espera de nós é que teçamos críticas veladas à forma como a investigação está a ser conduzida, por mais que discordemos do rumo que a mesma está a levar. Isto - bateu com o relatório na palma da mão - ilustra na perfeição a razão pela qual se encontra na presente situação. Ao receber uma ordem que não lhe agrada e com a qual não concorda, você decide tomar o assunto em mãos. Decide seguir o seu próprio caminho, desrespeitando tudo, desde a cadeia de comando à segurança pública. Fê-lo há três meses em Essex e está a fazê-lo novamente agora. Na sua situação, qualquer outro detective faria o possível e o impossível para redimir o seu nome e a sua reputação, se não a sua carreira. Mas você não, você insiste obstinadamente em seguir o curso de acção que mais lhe agrada no momento. Não é assim?
Ela continuou calada, a cabeça ainda baixa. A sua respiração, no entanto, alterara-se, tornando-se superficial devido ao esforço que fazia para conter a emoção. Pelo menos naquele momento, parecia ter sido suficientemente castigada, o que o encheu de satisfação.
- Muito bem - continuou. - Agora, oiça bem o que tenho para dizer. Quero um mandado de busca para revistar a casa de Reeve de cima a baixo. Quero uma equipa de quatro agentes destacada para esse trabalho. Estou à procura de um par de sapatos com hexágonos nas solas e de todas as provas que consigam descobrir relacionadas com o serviço de acompanhantes. Posso confiar-lhe esta missão e ficar descansado quanto ao seu cumprimento integral?
Ela não lhe respondeu.
Sentiu um sentimento de exasperação crescer dentro dele.
- Está a ouvir-me, Havers?
- Uma busca?
- Exactamente. Foi isso mesmo que eu disse. Quero um mandado de búsca. E quando o tiver, quero que faça parte da equipa destacada para revistar a casa de Reeve.
Ela desviou os olhos das fotografias.
- Uma busca - disse, o rosto completamente alterado, iluminado por um sorriso. - Sim, claro. Claro. Caramba, inspector. É exactamente isso.
- Isso o quê? - Não percebe? - agitou uma das fotografias, excitada. - Não está a perceber, inspector? Está a pensar em Martin Reeve, porque ele tem um motivo tão óbvio que, quando comparado com ele, qualquer outro é uma ninharia. E porque o motivo dele é tão óbvio, tudo o que conseguimos descobrir acaba por ser relacionado com ele, quer esteja quer não. Mas se esquecer Reeve por momentos, verá, a partir destas fotografias, que...
- Havers.
Lynley tentava fazer frente à onda de incredulidade que o invadia. Aquela mulher era insubmissa, insubmersível e ingovernável. Pela primeira vez, perguntava a si próprio como tinha sido capaz de trabalhar com ela.
- Não torno a referir-me à sua próxima tarefa depois desta conversa. Vou confiar-lha e você vai executá-la.
- Mas eu só quero que veja que...
- Não! Raios a partam! Basta. Arranje o mandado. Não me interessa o que tenha de fazer para o conseguir. Arranje-o,é tudo. Forme uma equipa
de agentes do CID,vá até àquela casa,reviste-a de cima a baixo,traga-me
uns sapatos com hexágonos nas solas e provas relativas ao serviço de acompanhantes. Mais do que isso,traga-me uma arma que possa ter sido usada Para matar Terry Cole. Fui claro? E agora,vá.
Ela fitou-o. Por momentos,ele acreditou que Barbara iria,de facto, enfrentá-lo. E durante esses instantes,percebeu exactamente como a inspectora Barlow se deve ter sentido,em plena perseguição a um suspeito no mar
do Norte,ao ver todas as suas decisões postas em causa por uma subordinada incapaz de guardar as suas opiniões para si própria. Havers tinha muita sorte por Barlow não estar armada,quando se encontravam ambas dentro do barco. Se assim tivesse sido,a perseguição no mar do Norte poderia ter conhecido um desfecho muito diferente.
Havers pôs-se de pé. Com gestos cuidadosos,pousou as fotografias tiradas ao duplex de Vi Nevin em cima da secretária dele.
- Um mandado,uma busca. Uma equipa de quatro agentes. Vou já tratar disso,inspector - disse.
Falou com um tom de voz controlado,extremamente formal,profundamente respeitoso e absolutamente adequado à situação. Lynley preferiu ignorar as implicações desta atitude.
Martin Reeve tinha comichão nas palmas das mãos. Cravou nelas as unhas dos dedos até começar a sentir um ardor. Tricia apoiara-o quando ele necessitara do apoio dela para se livrar daquele chui cretino, mas não tinha garantias de que ela se manteria fiel à história. Se alguém lhe prometesse uma dose de pó suficientemente generosa num momento em que as suas reservas estivessem desguarnecidas e ela quisesse reforçá-las, diria ou faria o que fosse preciso para a obter. Bastava que a polícia a apanhasse sozinha, fora de casa, para que em menos de duas horas obtivesse dela tudo o que queria. E a verdade é que ele não podia passar o resto da vida vigiando-a a cada malfadado minuto de cada maldito dia a fim de se certificar de que nada disso acontecia.
Qu'é que quer saber? Passe pra cá o produto.
Basta apenas que assine aqui em baixo, Mrs. Reeve, e ele será seu. E estava feito. Não, pior ainda. Ele estava feito. Por isso, tinha de consolidar a sua história.
Por um lado, podia arrancar uma mentira a alguém que já soubesse por experiência própria o que poderia suceder caso se recusasse a aceder ao seu pedido. Por outro, podia exigir a verdade a uma pessoa que interpretasse o seu apelo como um sinal de fraqueza. Se optasse pela primeira hipótese, acabaria por ficar a dever um favor, que era o mesmo que colocar as rédeas da sua vida nas mãos de outra pessoa. Se escolhesse a segunda, passaria por um fraco que podia ser pisado sem receio de represálias.
Encontrava-se, por isso, num beco sem saída. Preso entre a espada e a parede, Martin queria encontrar dinamite suficiente para abrir uma passagem e, ao mesmo tempo, reduzir os estragos ao mínimo.
Foi até Fulham. Todos os seus problemas do momento provinham e era lá que estava decidido a encontrar as soluções certas.
Entrou no edifício de Rostrevor Road pela via mais fácil, ou seja, toc a todas as campainhas e ficou à espera que um qualquer idiota lhe abrisse a porta, deixando-o entrar sem lhe pedir que se identificasse através do intercomunicador.
Subiu as escadas em passo rápido, detendo-se ao chegar ao patamar.
Viu um aviso, afixado na porta do duplex. Mesmo no sítio onde se encontrava conseguia ler o que dizia: Cena de crime. Proibida a Entrada.
- Merda - disse Martin.
E nesse momento tornou a ouvir a voz baixa e lacónica do polícia, nítida como se ele estivesse ali, ao lado dele, no patamar. Fale-me sobre Nevin.
- Merda - protestou Martin. Estaria morta?
A resposta,obteve-a descendo as escadas e indo bater à porta do apartamento que ficava exactamente por baixo do duplex de Vi Nevin.
Tinham dado uma festa na noite anterior,mas com certeza que não teriam estado assim tão atarefados com os respectivos convidados - ou demasiado atordoados - que não se tivessem apercebido da chegada de uma ambulância. Os paramédicos tinham feito de tudo para esconder o corpo coberto que carregaram para fora do edifício,mas a pressa com que a levaram e a chegada subsequente do que parecia ter sido uma vintena de polícias,que começaram imediatamente a fazer perguntas a toda a gente que se encontrava no edifício,indicava que ela devia ter sido vítima de um crime.
- Estava morta? - Martin agarrou o braço do jovem,quando este se virou para tornar a entrar no apartamento e retomar o sono que a visita de
Martn interrompera. - Espere um momento,raios partam. Ela estava morta?
- Não estava enfiada dentro de um saco - foi a resposta indiferente.
- Mas pode perfeitamente ter batido as botas no hospital,durante a noite.
De regresso ao carro,Martin amaldiçoou a sua sorte e dispôs-se a consultar o seu exemplar do London Streetfinder. O hospital mais próximo dali
era o Chelsea and Westminster em Fulham Road,e foi para lá que se dirigiu de imediato. Se ela tivesse morrido,estava tramado.
A enfermeira informou-o de que Miss Nevin fora transferida. Era parente dela? quis ela saber.
Um velho amigo,respondeu Martin. Passara em casa dela e descobrira que ocorrera um acidente... um problema qualquer... Se pudesse ver Vi e certificar-se de que ela se encontrava bem... para que assim pudesse informar os amigos comuns e a família... Devia ter feito a barba,pensou.
Devia ter vestido o casaco Armani. Devia ter-se preparado para outra eventualidade para além do simples gesto de bater a uma porta,entrar e arrancar cooperação à força.
Miss Schubert - era esse o nome inscrito na placa de identificação - observou-o com a animosidade indisfarçada de quem sofre de excesso de trabalho e de escassez salarial. Consultou um processo e disse-lhe o número de um quarto. Não lhe passou despercebido que mal ele agradeceu e se dirigiu aos elevadores a enfermeira pegou no telefone.
Não ficou,por isso,surpreendido quando viu um agente uniformizado à porta do quarto de Vi Nevin. Foi,no entanto,totalmente apanhado de surpresa por um monstro de cabelos cor de laranja,enfiado num fato amarrotado,que estava sentado ao lado do polícia. Mal viu Martin,pôs-se de pé de um salto e desatou a correr na sua direcção.
- É ele,é ele,é ele! - gritou.
Lançou-se sobre Martin como um falcão esfomeado que tivesse avistado um coelho,e cravou as garras na parte da frente da camisa dele,berrando:
- Eu mato-te! Sacana. Sacana!
Empurrou-o de encontro à parede e barricou-o com a cabeça. Ele sentiu a sua própria cabeça ser projectada para trás e embater no rebordo de um painel de informações. Os seus maxilares cerraram-se violentamente, os dentes enterraram-se na língua e ele sentiu o gosto a sangue. Quando, finalmente, o agente conseguiu segurá-la, já lhe tinha arrancado os botões da camisa e preparava-se para lhe agarrar o pescoço. Nessa altura, tornou a gritar:
- Prenda-o! Foi ele! Prenda-o! Prenda-o!
O agente policial pediu a Martin que se identificasse. Tinha conseguido dispersar a pequena multidão que se juntara ao fundo do corredor para testemunhar a cena que se desenrolava diante dos seus olhos. Um pequeno gesto de atenção que Martin agradeceu.
Olhando a mulher imobilizada a alguma distância de si, Martin conseguiu reconhecê-la, por fim. Fora a cor do cabelo que o confundira. Quando se tinham conhecido - no dia da sua primeira e única entrevista na MKR - ela tinha cabelo preto. À parte isso, a sua aparência mantinha-se inalterada. Continuava esquelética, lívida, mantinha os mesmos dentes estragados, um hálito ainda mais nauseabundo e o corpo cheirava a Halibut com três dias.
- Shelly Platt - disse.
- Foi você! Tentou matá-la!
Martin tentou imaginar de que forma o seu dia podia vir a revelar-se ainda pior. Obteve a resposta instantes depois. O polícia examinou a sua identificação, sem deixar de segurar Shelly com pulso firme.
- Uma coisa de cada vez - disse-lhe, arrastando-a consigo até junto do telefone no gabinete dos enfermeiros, onde marcou um número.
- Oiça - chamou Martin. - Só quero saber se Miss Nevin se encontra bem. Falei com uma pessoa da unidade de sinistrados, que me disse que ela tinha sido transferida para aqui.
- Ele quer matá-la! - gritou Shelly.
- Deixe-se de idiotices - reagiu Martin. - Não ia propriamente aparecer por cá em pleno dia com a identificação à vista, se fizesse tenções de a matar. Que aconteceu, afinal?
- Como se você não soubesse!
- Só quero falar com ela - disse ao agente, quando este lhe devolveu a identificação e lhe recusou acesso ao quarto. - Mais nada. Não demoro cinco minutos sequer.
- Lamento - foi a resposta que obteve.
- Escute. Acho que não me entendeu bem. Trata-se de um assunto
urgente e.
- Não vai prendê-lo? - interrompeu Shelly. - Que mais é preciso que ele lhe faça para que vocês o metam na prisão?
- Não se importa ao menos de a manter calada enquanto eu explico que.
- Ordens são ordens - disse o agente, e diminuiu ligeiramente a pressão da mão que agarrava Shelly Platt. O suficiente para que Martin percebesse que teria de retirar-se, pelo menos de momento.
Retirou-se da maneira mais calma e elegante que conseguiu, perante a algazarra provocada pela megera de cabelos cor de laranja que fizera convergir para ele as atenções de todos os que se encontravam naquele piso do hospital. Tornou a entrar no Jaguar, ligou o ar condicionado no máximo, direccionando todas as saídas para o rosto.
Merda", pensou. Foda-se, raios, merda. Tinha poucas dúvidas sobre a identidade de quem atendera o telefonema do agente, pelo que corria o risco de receber nova visita da polícia. Reflectiu sobre a explicação que iria apresentar para justificar aquela ida ao Chelsea and Westminster Hospital. A tentativa de garantir corroboração para a história da noite anterior não lhe parecia um argumento muito credível, sobretudo tendo em conta a pessoa junto de quem ele tentara obter essa corroboração.
Pôs o carro a trabalhar e saiu do parque de estacionamento a alta velocidade. Ao passar novamente pela Fulham Road, baixou a paleta e, com a ajuda do espelho, tentou averiguar os estragos feitos por Shelly Platt. A tipa tinha umas garras e tanto. Conseguira fazer-lhe sangue no peito quando lhe agarrara a camisa. O melhor que tinha a fazer era levar uma antitetânica sem demora.
Virou para Finborough Road e iniciou o trajecto para casa, enquanto meditava sobre as alternativas que se lhe apresentavam naquele momento. Aparentemente, não havia maneira de conseguir aproximar-se de Vi Nevin num futuro próximo, e uma vez que o polícia destacado para guardar o quarto dela telefonara, sem sombra de dúvida, para o palhaço que aparecera em Lansdowne Road a meio da noite anterior, era mais do que evidente que jamais conseguiria aproximar-se dela. Pelo menos enquanto a polícia andasse no encalço do assassino daquela puta chamada Nicola Maiden, o que podia prolongar-se durante meses a fio. Tinha de arquitectar outro plano, a fim de confirmar o seu álibi. Dentro da sua cabeça, hipóteses e alternativas sucediam-se a uma velocidade vertiginosa.
Parou junto de um semáforo no lado da Estação de Earl's Court que dava para o Exhibition Hall. Com um aceno livrou-se de um garoto que queria lavar-lhe o pára-brisas por cinquenta pence e observou uma prostituta que negociava com um potencial cliente junto à entrada do metropolitano. Em poucos segundos, avaliou a figura enfiada numa saia diminuta de licra de cor magenta e numa blusa em poliéster preto com um decote vertiginoso ornado por uns folhos disparatados. Usava uns saltos altos muito finos e meias de rede. Aquela só trabalha com as mãos e com a boca, concluiu. Vinte e cinco libras, se o tipo estiver desesperado e não mais do que dez, se ela tiver um vício para sustentar.
O semáforo caiu para verde e, enquanto arrancava, Martin sentiu crescer dentro dele um rancor cada vez mais intenso pela polícia. Estava a fazer um grande favor àquela cidade merdosa, decidiu, e ninguém - muito menos os chuis - pareciam perceber ou apreciar esse facto. As miúdas dele não calcorreavam os passeios negociando com clientes e, decididamente, não poluíam a paisagem vestindo roupas que pareciam saídas dos sonhos eróticos de um adolescente. Eram mulheres elegantes, educadas, atraentes e discretas, e se era certo que recebiam dinheiro em troca de um ou dois encontros de natureza sexual, e se era certo que lhe entregavam uma pequena percentagem, que lhes proporcionava a oportunidade de desfrutarem da companhia de homens ricos e bem-sucedidos dispostos a recompensá-las generosamente pelos serviços prestados, que raio de importância tinha isso? Quem saía prejudicado? Ninguém. A questão central era que o sexo ocupava um lugar na vida dos homens diferente daquele que ocupava na vida das mulheres. Para os homens tratava-se de um gesto de afirmação, necessário à sua identidade. As respectivas mulheres cansavam- se dele ou ficavam entediadas, mas os homens não. E se havia pessoas preparadas para proporcionar a esses homens o acesso a mulheres dispostas a aceitar as suas atenções, mulheres dispostas a transformar os seus corpos na massa macia e maleável sobre a qual esses homens derramavam os seus fluidos e deixavam até gravada a marca indelével da sua personalidade, por que razão esse tipo de serviços não podia implicar uma troca de dinheiro. E por que razão alguém - como ele - possuidor das necessárias competências organizativas e do talento suficiente para recrutar mulheres excepcionais para entretenimento de homens excepcionais não podia ganhar o seu sustento dessa maneira?
Se as leis fossem escritas por visionários como ele e não por um grupo de patetas sem carácter, mais preocupados em alimentar-se da gamela do povo do que em defender uma posição minimamente realista em relação a actividades praticadas por adultos livres e conscientes, pensou Martin, ele não estaria na situação em que se encontrava naquele preciso momento. Não estaria desesperadamente à procura de alguém que pudesse confirmar o seu paradeiro e livrá-lo da polícia, porque esta jamais teria vindo importuná-lo. E mesmo que tivesse vindo fazer-lhe uma visita para lhe fazer suas perguntas e exigências, não poderiam chantageá-lo em troca da colaboração, porque, muito simplesmente, ele não estaria entre os que vivem do lado errado da lei.
E que raio de país era aquele, afinal, onde a prostituição era ilegal? onde a obtenção de ganhos financeiros a partir dela era punida por lei? O que era a prostituição se não um meio de subsistência? E quem pretendiam eles enganar quando tentavam regulamentá-la a partir de Westminster, quando três quartos dos hipócritas que sentavam o rabo naqueles bancos forrados a cabedal verde andavam a papar todas as secretárias, estudantes ou assistentes parlamentares que lhes dessem o menor dos encorajamentos?
Merda, toda aquela situação dava-lhe vontade de esmurrar paredes. E quanto mais pensava nisso, maior era a raiva que sentia. E quanto mais esta crescia, mais ele se concentrava na causa de todos os problemas que presentemente o afligiam. Maiden e Nevin não tinham nada a ver com o assunto. Eram um caso encerrado. Não tinham sido elas quem tinha papagueado tudo à polícia. Tricia, por seu turno, era um assunto ainda por resolver.
Durante o resto do trajecto, reflectiu sobre a melhor maneira de abordar a questão. As soluções que lhe ocorreram não eram agradáveis, mas que havia de agradável no facto de uma figura proeminente dos círculos sociais perder a mulher nas garras da heroína, apesar de todos os esforços para a salvar de si própria e para a proteger das reacções negativas da sua família e das diatribes de uma opinião pública implacável.
Sentiu que a boa disposição regressava. Curvou os lábios para cima e começou a cantarolar. Ao chegar a Lansdowne Walk virou para Lansdowne Road.
E foi então que os viu.
Quatro homens subiam os degraus da entrada de sua casa. POLíCIAS À PAISANA. Não enganavam ninguém. Eram musculosos, altos e treinados para provocar estragos. Pareciam um grupo de gorilas num baile de máscaras.
Martin carregou no acelerador e guinou o carro para entrar no acesso. Saiu do Jaguar e galgou os degraus atrás deles antes que algum tivesse tido tempo de tocar à campainha.
- Que querem daqui? - perguntou.
O Gorila Número Um tirou um envelope branco de dentro do bolso de um blusão de cabedal.
- Temos um mandado de busca - disse.
- O quê? Busca de quê?
- Quer abrir a porta, ou prefere que a arrombemos?
- Vou telefonar ao meu advogado - Martin passou por eles e abriu a porta.
- Como queira - disse o Gorila Número Dois.
Entraram atrás dele. O Gorila Número Um deu instruções enquanto Martin correu até ao telefone, seguido de perto por dois dos agentes, que entraram no gabinete dele. Os outros dois subiram as escadas em passo pesado.
Merda, disse para si próprio, e gritou:
- Ei! Oiçam lá, a minha mulher está aí em cima!
- Eles cumprimentam-na, não se preocupe - comentou o Gorila Número Um.
Enquanto Martin marcava um número de telefone com gestos frenéticos, o Número Um começou a afastar os livros das prateleiras e o Número Dois dirigiu-se a um arquivador.
- Quero-vos daqui para fora, meus sacanas - disse-lhes Martin.
- Claro que quer - disse o Número Dois.
- Todos nós queremos alguma coisa - retorquiu o Número Um com um sorriso irónico.
No andar superior, uma porta foi empurrada contra uma parede. O som de vozes abafadas acompanhou os ruídos produzidos pelo arrastar de móveis no interior de uma das divisões. No escritório de Martin, os agentes prosseguiam a sua busca com um mínimo de esforço e o máximo de desarrumação. Os livros foram espalhados pelo chão, os quadros arrancados das paredes, o arquivador onde Martin guardava relatórios pormenorizados sobre o serviço de acompanhantes foi esvaziado. O Gorila Número Dois, os dedos manchados pelo fumo de charuto, baixou-se e começou a folheá-los.
- Merda - murmurou Martin, segurando o auscultador junto ao ouvido. Onde se teria metido o sacana do Polmanteer?
No outro extremo da linha, o toque duplo do telefone de casa do seu advogado soou quatro vezes. O atendedor de chamadas foi accionado. Martin soltou uma imprecação, desligou e tentou o telemóvel do advogado. Onde poderia ele estar num domingo? Era pouco provável que o estupor tivesse ido à missa.
O telemóvel não lhe trouxe melhores resultados. Atirou o auscultador para cima do descanso e examinou a secretária à procura do cartão do advogado. O Gorila Número Dois afastou-o para o lado com uma cotovelada.
- Peço desculpa - disse ele. - Não posso permitir que tir.
- Não estou a tirar coisíssima nenhuma. Estou à procura do pager do meu advogado.
- É pouco provável que ele o guardasse na sua secretária, não acha? perguntou o Número Um junto à estante, onde continuava a sua busca, derrubando ainda mais livros.
- Sabe muito bem o que quero dizer - Martin dirigiu-se ao Número Dois. - Quero o número do pager. Está escrito num cartão. Eu conheço os meus direitos. Agora, saia daqui ou eu não respondo por.
- Martin? Que se está a passar? Que é isto? O nosso quarto está cheio de homens, esvaziaram o guarda-vestidos e. que está a acontecer?
Martin virou-se de repente. Tricia estava à entrada do escritório. Não tinha tomado duche, não se tinha vestido, e estava sem maquilhagem. Parecia uma daquelas bruxas velhas e feias que se sentavam em cima dos sacos a pedir esmola no metropolitano, em Hyde Park Corner. Parecia exactamente aquilo que era: uma drogada.
Começou a sentir novamente um formigueiro nas mãos. Enterrou as unhas nas palmas das mãos. Tricia fora a única responsável por cada um dos obstáculos que tivera de enfrentar ao longo dos últimos vinte anos. E agora era a causadora da sua desgraça.
- Raios partam! Raios partam! Tu!
E, dizendo isto, atravessou o escritório a correr. Agarrou-a pelos cabelos e conseguiu bater com a cabeça dela contra a ombreira da porta antes que os polícias o imobilizassem.
- Puta estúpida! - gritou quando eles o obrigaram a largá-la. Em seguida, dirigiu-se aos agentes e disse, tentando soltar-se: - Tudo bem. Tudo bem! Telefonem para o idiota do vosso chefe. Digam-lhe que estou disposto a fazer um acordo.
CAPÍTULO 25
Era quase meio-dia quando Simon St. James finalmente conseguiu arranjar tempo para analisar os relatórios das autópsias dos crimes ocorridos em Derbyshire, que lhe tinham sido enviados por Lynley por intermédio de Barbara Havers. Não tinha a certeza do que devia procurar. Os exames feitos a Nicola Maiden pareciam estar correctos. As conclusões apontavam para um hematoma epidural, o que parecia estar de acordo com o golpe encontrado na cabeça. A indicação de que o mesmo teria sido desferido em sentido descendente por um indivíduo destro confirmava, de igual modo, a hipótese segundo a qual ela teria tropeçado - ou teria sido derrubada - enquanto corria, ao tentar a fuga através da charneca imersa na escuridão. Além do golpe na cabeça e dos arranhões e contusões que o corpo apresentava e que seriam de esperar na sequência de uma queda violenta em solo irregular, nada mais havia digno de registo. A não ser, evidentemente, o extraordinário número de orifícios que a própria vítima fizera em todas as partes do corpo, desde as sobrancelhas aos órgãos genitais. E esta dificilmente se afigurava como uma via de investigação merecedora de interesse, tendo em conta que o acto de espetar agulhas em diversas partes do corpo se tornara há muito um dos poucos gestos de desafio de uma geração de jovens cujos pais tinham já protagonizado todo o tipo de provocações.
Após a leitura do relatório sobre Nicola Maiden, St. James ficou com a impressão de que todos os aspectos tinham sido tidos em conta: hora, causa e forma de morte e indícios - ou a sua ausência - de luta. As radiografias e as fotografias estavam correctas, e o corpo fora examinado com grande minúcia. Os diversos órgãos tinham sido estudados, retirados e comentados. Amostras de fluidos corporais tinham sido enviadas para efeitos de realização de exames toxicológicos. O relatório terminava com uma opinião expressa de forma clara e concisa: a morte da rapariga fora causada por golpe na cabeça.
St. James analisou as conclusões uma vez mais, a fim de se certificar que não deixara escapar nenhum pormenor pertinente. Em seguida, pegou no segundo relatório e concentrou a sua atenção na morte de Terence Col.
Lynley telefonara-lhe para o informar de que uma das feridas no corpo do rapaz não fora infligida pelo canivete suíço, que era aparentemente responsável pelos restantes ferimentos, incluindo a perfuração fatal da artéria femoral. Depois de percorrer as principais informações que constavam do relatório, St. James passou a examinar mais atentamente todos os dados relacionados com este ferimento em particular. Tomou nota do tamanho, da sua posição no corpo e da marca deixada no osso. Olhou fixamente para o texto e depois encaminhou-se para a janela do laboratório, de onde ficou a ver Peach, que se rebolava, deliciado, num canto do jardim, expondo a sua barriga de dachshund, tipicamente peluda, ao sol do meio-dia.
O canivete suíço, segundo sabia, fora encontrado dentro de um con tentor de areia. Porquê, então, a outra arma não fora abandonada no mesmo local? Porquê esconder uma arma e não fazer o mesmo com a outra? Aquela era, sem dúvida, uma pergunta que pertencia ao foro dos detectives destacados para o caso e não dos cientistas. Ele, porém, achava que era uma questão que não podia deixar de ser colocada.
Duas respostas, apenas, pareciam possíveis: ou a segunda arma identificava o assassino de forma demasiado óbvia para que pudesse ter sido deixada no local, ou fora defacto deixada no local e a polícia confundira-a com outro objecto qualquer.
Caso a sua primeira suposição fosse a hipótese correcta, não havia nada que ele pudesse fazer. Se fosse a segunda, impunha-se a realização de um exame mais minucioso às provas recolhidas na cena do crime. Não tinha acesso a estas provas e sabia que a sua presença em Derbyshire, com o objectivo de proceder à análise das provas, não seria vista com bons olhos. Assim, tornou a concentrar-se no relatório da autópsia e decidiu procurar algo que pudesse dar-lhe uma pista.
A Dr. a Sue Myles não deixara escapar nenhum pormenor. Cobrira tudo, desde os insectos que se tinham alojado no interior dos dois corpos e sobre eles durante as horas em que tinham permanecido na charneca antes de terem sido descobertos, às folhas, flores e galhos que se tinham enredado nos cabelos da rapariga e às feridas no corpo do rapaz.
Foi a este último pormenor - uma lasca de madeira com dois centímetros de comprimento encontrada no corpo de Terence Cole - que St. James decidiu prestar mais atenção. A lasca de madeira fora enviada para o laboratório a fim de ser analisada, e alguém acrescentara uma observação a lápis numa das margens do relatório. Resultado de um telefonema, sem dúvida. Quando os agentes encarregues de um caso tinham pressa, nem sempre esperavam pelas conclusões oficiais do laboratório da polícia antes de prosseguirem o seu trabalho.
Cedro, alguém escrevera à margem, numa caligrafia elegante. E, ao lado, entre parênteses, as palavras Port Orford. St: James não era botânico, por issoesta última designação não Lhe dizia nada. Sabia que seria muito pouco provável que conseguisse localizar, num domingo, o botânico forense que identificara a madeira, pelo que reuniu a papelada e desceu as escadas até ao escritório.
Deborah estava lá, absorta na leitura da revista do Sunday Times.
- Algum problema, meu amor? - perguntou.
- Ignorância - respondeu ele. - O que já é um problema suficiente. Encontrou o livro que procurava entre os volumes cobertos de uma espessa camada de pó. Enquanto o folheava, Deborah veio ter com ele junto à estante.
- O que é?
- Não sei - disse ele. - Cedro. E Port Orford. Diz-te alguma coisa?
- Parece o nome de um lugar. Port Isaac, Port Orford. Porquê?
- Uma lasca de madeira de cedro foi encontrada no corpo de Terence Cole. O rapaz que morreu na charneca.
- O caso em que Tommy está a trabalhar?
- Exacto - St. James passou directamente às últimas páginas do livro e percorreu com o dedo o índice por baixo da palavra cedro. - Atlas, azul, incenso chinês. Sabias que havia tantas espécies de cedro?
- É importante?
- Começo a achar que pode vir a ser.
Continuou a percorrer o índice até chegar ao fim da página. E foi então que viu as duas palavras: Port Orford. Apareciam indicadas como sendo uma das variedades da árvore.
Abriu o livro na página indicada. Primeiro observou a fotografia que ilustrava um exemplar da folhagem da conífera e só depois leu o texto que a acompanhava.
- Curioso - comentou com a mulher.
- O quê? - perguntou ela, enfiando o braço no dele. Falou-lhe sobre as conclusões do relatório da autópsia: uma lasca de madeira identificada por um botânico forense como sendo uma variedade de cedro chamada Port Orford fora encontrada numa das feridas do corpo de Terence Cole.
Deborah pôs uma expressão pensativa enquanto afastava uma madeixa de cabelos espessos.
- E isso é curioso porquê? Eles foram mortos ao ar livre, não foram Na charneca? - em seguida, os seus olhos dilataram-se. - Oh, claro. Agora entendo.
- Exactamente - reforçou St. James. - Em que charneca é que se pod encontrar cedros? Mas é ainda mais curioso do que isso, minha querida: Esta variedade de cedro, especificamente, existe na América, nos Estados Unidos. No Oregon e no Norte da Califórnia, segundo diz aqui.
A árvore podia ter sido importada, não podia? - perguntou Deborah com razão. - Para o jardim de alguém, ou para um parque? Ou para uma estufa, até. Sabes o que quero dizer, não sabes? Como se faz com as palmeiras e os cactos.
St. James aproximou-se da secretária e pousou o livro. Sentou-se na cadeira e disse:
- Muito bem. Digamos que foi importada para ser colocada no jardim de alguém ou num parque.
- É claro - ela acompanhava o raciocínio dele - que isso não deixa de implicar que façamos a pergunta óbvia, não é verdade? Como é que um cedro destinado ao jardim de uma pessoa ou a um parque foi parar à charneca?
- E como é que foi parar a uma parte da charneca que fica a quilómetros de distância do jardim de uma pessoa ou de um parque?
- Alguém o terá plantado no local por motivos religiosos?
- O mais provável é que ninguém o tenha plantado.
- Mas disseste... - Deborah franziu a testa. - Oh, claro, entendo. Deduzo, então, que o botânico forense se enganou?
- Julgo que não.
- Mas Simon, se o que existia era apenas uma lasca de madeira...
- Um bom botânico forense não necessita de mais do que isso - prosseguiu St. James.
Um pequeno fragmento de madeira, explicou ele, continha o padrão dos canais e vasos por onde circulavam todos os fluidos desde a base ao topo de uma árvore. As árvores de madeira branca - e todas as coníferas, acrescentou, faziam parte deste grupo - sofrem uma evolução menor, sendo por isso mais facilmente identificáveis. A análise microscópica de uma lasca desse tipo de madeira revela uma quantidade de características básicas que distinguem esta espécie de todas as outras. Um botânico forense cataloga estas características, cruza-as com uma chave, ou com um sistema de identificação por computador, por exemplo, e através dessas informações e da chave obtém a identificação exacta da árvore. Tratava-se de um processo exacto e infalível, ou pelo menos tão exacto como qualquer outra identificação feita a partir de análises microscópicas, humanas ou por computador.
- Está certo - disse Deborah devagar, aparentemente céptica. Então, é um cedro, é isso?
- Cedro Port Orford. Acho que podemos aceitar isto como uma verdade irrefutável.
- E é um pedaço de cedro proveniente de uma árvore que não existe na região, certo?
- Certo. Por isso, a questão que se coloca é a de saber qual a proveniência desse cedro e a razão por que apareceu no corpo do rapaz.
- Eles tinham ido acampar, não é verdade?
- A rapariga, sim.
- Levou tenda? E que me dizes à estaca de uma tenda? E se a estaca da tenda fosse feita de cedro?
- Ela tinha saído para uma caminhada. Duvido que tivesse levado esse tipo de tenda.
Deborah cruzou os braços e encostou-se à secretária, reflectindo sobre as palavras do marido.
- E um banco de campismo. As pernas do banco, por exemplo?
- É possível. Se é que foi encontrado algum banco no local.
- Ou utensílios. Ela deve ter levado alguns utensílios com ela. Um machado para cortar madeira, uma pá pequena, qualquer coisa do género. A lasca podia ter vindo de uma das pegas.
- Teriam de ser utensílios leves, que ela pudesse transportar numa mochila.
- E que me dizes a utensílios de cozinha? Colheres de pau? St. James sorriu.
- Gastrónomos no campo?
- Não te rias - disse ela, com uma gargalhada. - Estou a tentar ajudar.
- Tenho uma ideia melhor - confidenciou ele. - Vem comigo. Subiram até ao laboratório, onde o computador zumbia baixinho, num canto próximo da janela. Ele sentou-se em frente do ecrã e, com Deborah apoiada no seu ombro, acedeu à Internet, dizendo:
- Consultemos a Suprema Inteligência em linha.
- Os computadores deixam-me sempre nervosa.
St. James pegou na mão dela e beijou- a.
- Podes ficar descansada, ninguém vai saber o teu segredo. Ao fim de alguns instantes, o ecrã do computador ganhou vida, e St. James seleccionou o motor de pesquisa que costumava utilizar. Introduziu a palavra cedro no campo de busca e soltou uma exclamação consternada quando obteve como resultado 600 mil entradas.
- Santo Deus - exclamou Deborah. - Isso não ajuda muito, pois não?
- Vamos reduzir as nossas hipóteses.
St. James alterou a selecção para Cedro Port Orford. O resultado foi uma alteração imediata para 183 entradas. Todavia, quando começou a percorrer a lista, verificou que havia de tudo, desde um artigo sobre Orford, no Oregon, a um tratado sobre raízes de madeira. Reclinou-se na cadeira e reflectiu durante alguns momentos, e introduziu a palavra utilizações a seguir à palavra cedro, acrescentando as aspas adequadas e os respectivos vocábulos de adição. Absolutamente nada. Substituiu utilizações por mercado e premiu a tecla para accionar a busca. O ecrã alterou-se e forneceu-lhe a resposta.
Leu a primeira listagem e murmurou, Santo Deus, quando viu de que se tratava.
Deborah, que desviara as suas atenções para a câmara escura, voltou para junto dele.
- O que é? - perguntou. - O que é?
- É a arma - respondeu ele, apontando para o ecrã. Deborah leu a informação e soltou um suspiro.
- Queres que entre em contacto com Tommy?
St. james considerou esta hipótese. O pedido de Lynley para que examinasse os relatórios das autópsias tinha-lhe sido transmitido por Barbara Havers. E isso era indicação suficiente de que existia uma cadeia de comando que lhe dava a desculpa de que precisava para tentar trazer a paz entre duas partes em conflito.
- Vamos tentar localizar Barbara - disse à mulher. - Pode ser ela a dar a notícia a Tommy.
Barbara Havers dobrou a esquina para Anhalt Road e esperou arden temente que a sua sorte durasse por mais algumas horas. Conseguira localizar Cilla Thompson no estúdio dela, aplicando os seus talentos a uma tela na qual uma boca cavernosa, onde se viam umas amígdalas que faziam lembrar foles, se abria sobre uma rapariga com três pernas que saltava à corda sobre uma língua de aspecto esponjoso. Bastaram algumas pergun tas para obter dados mais precisos sobre o cavalheiro de bom gosto" que adquirira uma das obras-primas de Cilla na semana anterior.
Cilla não conseguia lembrar-se do nome dele. Pensando bem, ele nunca chegara a revelar-lho. No entanto, passara-lhe um cheque que ela fotocopiara, para assim provar aos cépticos - pensava Barbara - que abundavam no mundo artístico que conseguira, de facto, vender uma tela. Colara a fotocópia no interior da caixa de tintas de madeira, e apressou-se a mostrá-lo, dizendo:
- Pois é, aqui está o nome do tipo. Caramba. Olhe-me só para isto. Será que ele é da família?
Conforme Barbara conseguiu ver, Matthew King-Ryder pagara uma soma exorbitantemente elevada por um quadro que não tinha qualquer
valor. Usara um cheque de um banco sediado em St. Helier, na ilha de Jersey. Sobre o nome dele lia-se Banca Privada, gravado em relevo. Rabiscara a quantia como se estivesse com pressa. E talvez estivesse", pensou Barbara.
Como teria Matthew King-Ryder vindo parar a Portslade Street? perguntara ela à artista. A própria Cilla devia ser a primeira a admitir, julgava ela, que aquela secção específica do caminho-de-ferro, onde ficava situado
o estúdio, não era conhecida em Londres como um foco da arte moderna.
Cilla encolheu os ombros. Ignorava como ele viera ali parar, mas não era, obviamente, o tipo de pessoa que costumava morder a mão que lhe dava de comer. Quando ele aparecera pedindo-Lhe para dar uma vista de olhos e demonstrara interesse pelos trabalhos dela, ela ficara feliz que nem um passarinho e deixara-o à vontade. Tudo o que se lembrava era de que o tipo do livro de cheques passara uma boa hora contemplando cada uma das peças de arte que havia no estúdio.
As de Terry também? quis saber Barbara. Perguntara pelos trabalhos de Terry? Mencionara o nome de Terry?
Não. Quisera apenas ver os quadros dela, explicou Cilla. Todos eles. E não conseguindo descobrir nenhum de que gostasse, perguntara-lhe se ela tinha outros. Nessa altura, dera-lhe o endereço do apartamento, depois de ter telefonado a Mrs. Baden pedindo-lhe que o acompanhasse a casa dela quando ele chegasse. Ele foi imediatamente para lá e escolheu um dos seus quadros. Enviara-lhe o cheque logo no dia seguinte por correio.
- Pagou-me o que lhe pedi - disse Cilla, orgulhosa. - Nem regateou, E bastava aquela pequena informação - que Matthew King-Ryder conseguira ter acesso à casa onde vivia Terry Cole, movido por uma razão qualquer - para que Barbara carregasse no acelerador enquanto atravessava Battersea, de regresso ao apartamento de Cilla.
Nem por um instante pensou no que devia estar a fazer em vez de estacionar ao fundo de Anhalt Road. Obtivera o mandado de busca como lhe tinha sido ordenado e constituíra uma equipa. Chegara até a encontrar-se com eles em frente do Snappy Snaps, em Notting Hill Gate e informara-os em pormenor sobre o que o inspector queria que procurassem em de Martin Reeve. Omitira um único pormenor: era suposto que os acompanhasse. Não era difícil justificar esta omissão. A equipa que constituíra - dois dos elementos que a integravam eram lutadores de boxe amador nos seus tempos livres - eram capazes de revistar uma casa e intimidar os seus habitantes com muito mais eficácia se não estivessem acompanhados por uma mulher que atenuasse a ameaça sugerida pela sua imponente constituição física e pela tendência para comunicar por monossílabos. Além disso, ao não acompanhar os agentes enviados a Notting Hill para revista à casa dos Reeve, estaria a matar dois coelhos - ou três, ou quatro talvez - de uma só cajadada. Enquanto eles estavam ocupados com a operação, ela podia aproveitar o tempo de que dispunha para tentar descobrir mais alguma coisa em Battersea. A capacidade para delegar responsabilidades era a marca de um agente com potencial de liderança. Era assim que encarava a situação. E afastou do pensamento a vozinha desagradável que tentava insistentemente chamar-lhe outra coisa.
Pressionou o botão da campainha do apartamento do rés-do-chão, onde vivia Mrs. Baden. O som baixo de um piano tocado de forma hesitante parou subitamente. Os cortinados finos que decoravam a janela saliente foram ligeiramente afastados para o lado.
- Mrs. Baden? - chamou Barbara Havers. - New Scotland Yard, CID. A porta destrancou-se com um zumbido e Barbara entrou sem perda de tempo.
- Santo Deus, não fazia ideia que os detectives trabalhavam aos domingos - disse Mrs. Baden, amavelmente. - Espero que vos dêem tempo para ir à missa.
Ela própria fora à primeira missa da manhã, confiou sem esperar que Barbara respondesse. Depois, participara numa reunião de administradores da paróquia, onde expressara os seus pontos de vista sobre a hipótese de organização de umas noites de bingo com o objectivo de angariar fundos para a reparação do tecto do coro da igreja. Era a favor da ideia, embora em geral não concordasse com a prática de jogos de azar. Neste caso, porém, o jogo era em benefício de Deus, e isso era completamente diferente do tipo de jogos que contribuía para encher os bolsos seculares dos proprietários dos casinos, que reuniam verdadeiras fortunas colocando ao alcance dos avaros uma panóplia de jogos de azar.
- Por isso, não tenho nenhuma fatia de bolo para lhe oferecer - concluiu Mrs. Baden, pesarosa. - Levei o que sobrou para oferecer na reunião desta manhã. É muito mais agradável discutir ideias à volta de uma fatia de bolo e de uma chávena de café do que com o estômago vazio, não acha? Sobretudo - e neste ponto sorriu da sua presença de espírito - quando já há espaços vazios que cheguem.
Por momentos, Barbara ficou a olhar para ela confusa. Depois lembrou-se da sua visita anterior.
- Oh, o bolo de limão. Os seus colegas devem ter adorado o bolo, Mrs. Baden, imagino.
A velhota baixou os olhos timidamente.
- Acho que é importante darmos o nosso contributo quando fazemos parte de uma congregação. Antes de estes terríveis tremores começarem - ergueu as mãos, que naquele dia tremiam como se ela sofresse de malária - eu costumava tocar órgão durante a missa. Para ser franca, as minhas preferidas eram as missas dos funerais, mas é claro que nunca podia ter confessado semelhante coisa aos administradores, pois podiam achar que eu tinha gostos um pouco macabros. Quando os tremores começaram, tive de desistir de tudo isso. Agora toco piano no coro infantil, onde o facto de eu me enganar numa nota ou outra, de tempos a tempos, não tem grande importância. As crianças são muito compreensivas. Mas suponho que nos funerais as pessoas tenham menos razões para serem compreensivas, não é verdade?
- Faz sentido - concordou Barbara. - Mrs. Baden, acabei de conversar com Cilla.
Contou à velhota o que a artista lhe dissera.
Enquanto falava, Mrs. Baden dirigiu- se ao velho piano vertical, colocado num dos cantos da divisão, onde ressoavam os compassos ritmados de um metrónomo e o ruído surdo de um temporizador. Parou o metrónomo e desligou o temporizador. Arrumou o banco do piano, ajeitou diversas pautas, tornou a colocá-las no suporte e sentou-se com as mãos cruzadas e uma expressão atenta. Do lado oposto do piano, os tentilhões chilreavam no interior da enorme gaiola esvoaçando de um poleiro para outro. Mrs. Baden lançou-lhes um olhar terno enquanto ouvia o que Barbara dizia.
- Oh, sim, claro, ele esteve cá, esse cavalheiro, Mr. King-Ryder - confirmou Mrs. Baden quando Barbara se calou. - Reconheci o seu nome quando ele se apresentou, claro. Ofereci-lhe uma fatia de bolo de chocolate, mas ele recusou, nem chegou a entrar em minha casa. Estava muito interessado nos quadros.
- Deixou-o entrar no apartamento? Isto é no apartamento de Terry e de Cilla?
- Cilla telefonou-me e disse que ia aparecer um cavalheiro para ver uns quadros dela e pediu-me que lhe abrisse a porta e lhos mostrasse. Não me disse o nome dele... aquela tolinha nem sequer lhe tinha perguntado, veja bem... mas dado que é raro ter uma fila de coleccionadores de arte à porta a pedir-me para ver os trabalhos dela, quando ele apareceu, deduzi que era a pessoa certa. Além disso, não o deixei ficar no apartamento sozinho; a não ser depois de ter confirmado com Cilla.
- Então, ele ficou sozinho lá em cima? Depois de a senhora ter falado com ela? - mentalmente, Barbara esfregou as mãos de contentamento: Agora, sim, estavam a chegar a algum lado. - Ele pediu para ficar sozinho?
- Quando o levei até lá acima e ele viu a quantidade imensa de quadros que lá estão, disse que ia precisar de algum tempo para os examinar bem antes de fazer a sua escolha. Enquanto coleccionador, queria...
Ele disse que era coleccionador, Mrs. Baden?
- A arte é a sua maior paixão, disse- me ele. Mas como não é rico, colecciona obras de artistas desconhecidos. Lembro-me especialmente disso, porque ele mencionou as pessoas que compravam as obras de Picasso antes de ele ser. bem, antes de Picasso ser Picasso. Deixavam-se guiar apenas pela fé e deixavam que a história da arte se encarregasse do resto - disse ele. Era o que ele estava a fazer, disse.
Mrs. Baden deixara-o, então, sozinho no apartamento. E durante mais de uma hora, ele contemplara os trabalhos de Cilla Thompson até, finalmente, se ter decidido por um deles.
- Ele mostrou-mo depois de ter fechado o apartamento à chave quando me veio devolver a chave - disse a velhota a Havers. - Não posso dizer que tenha compreendido a escolha dele. Mas. bem, eu não sou uma coleccionadora, não é verdade? Além dos meus passarinhos, não colecciono mais nada.
- Tem a certeza de que ele esteve lá em cima durante uma hora?
- Mais de uma hora. É que, bem vê, eu costumo tocar piano à tarde. Noventa minutos todos os dias. Não me serve de muito nesta fase, claro, com as minhas mãos no estado em que estão. Mas acredito que devemos tentar, aconteça o que acontecer. Tinha acabado de dar corda ao metrónomo e de ligar o temporizador quando Cilla telefonou a avisar-me que ele vinha. Nessa altura, decidi que só começaria a tocar depois de ele ter entrado e saído. Detesto interrupções. mas, claro, por favor, não me leve a mal, minha querida. Esta nossa conversa é uma excepção à regra.
- Obrigada. E...
- E quando ele disse que precisava de tempo para observar bem os quadros, decidi tocar. Estava a tocar... sem grande sucesso, devo dizer... há uma hora e dez minutos quando ele bateu à minha porta pela segunda vez. Trazia um quadro debaixo do braço e pediu-me que dissesse à Cilla que lhe enviaria um cheque pelo correio. Oh, santo Deus - Mrs. Baden endireitou-se subitamente, levando uma mão à garganta onde um colar de quatro voltas de missangas redondas lhe rodeava o pescoço engelhado -, não me diga que ele não enviou o cheque à Cilla?
- Enviou o cheque, sim.
Baixou a mão.
- Graças a Deus. Fico tão aliviada por saber isso. Estava terrivelmente preocupada com a minha música naquele dia, admito, porque queria tocar pelo menos uma peça para o querido Terry, no final da semana. Afinal, ele tinha-me dado um lindo presente. Não era o dia do meu aniversário, nem o Dia da Mãe, nem nada disso, mas mesmo assim... Não que eu esperasse que um rapaz que nem era meu filho, repare, me desse uma prenda no Dia da Mãe, mas ele era um querido, sempre tão generoso, e eu achei que devia mostrar-lhe o quanto tinha apreciado a sua generosidade, sendo capaz de tocar a música. Só que não me estava a correr nada bem... o meu ensaio, quero eu dizer... porque os meus olhos já não são o que eram e ler uma partitura manuscrita torna-se muito complicado. Por isso, estava muito preocupada, sabe? Mas o jovem, Mr. King-Ryder, parecia uma pessoa honesta e de confiança, por isso nunca me passou pela cabeça que não fosse fiel à sua palavra quando disse que enviava o cheque. E fico satisfeita por saber que foi, de facto.
Barbara mal ouviu os seus últimos comentários. As palavras da velhota tinham-na deixado petrificada.
- Mrs. Baden - disse, falando muito devagar, inspirando com precaução, como se o facto de o fazer com demasiado vigor fosse o suficiente para fazer desaparecer os factos que, segundo acreditava, estava prestes a obter da velhota. - Está a dizer-me que Terry Cole lhe deu uma partitura musical?
- Claro que deu, minha querida. Mas acho que mencionei isso quando cá esteve no outro dia. Era um rapaz encantador, o Terry. Tão bom rapaz, realmente. Sempre pronto a ajudar-me no que eu precisasse cá em casa. Era ele quem dava de comer aos meus pássaros quando eu não estava em casa, e adorava lavar as janelas e aspirar as carpetes. Pelo menos era o que ele dizia.
Esboçou um sorriso terno.
Barbara desviou a velhota do tema das carpetes e trouxe-a de volta ao tema principal.
- Ainda tem essa partitura, Mrs. Baden? - perguntou.
- Claro que tenho. Está aqui mesmo.
Lynley ordenou que Martin Reeve fosse levado para uma das salas de interrogatório da Yard. Recusara-se a falar com ele ao telefone quando o detective Steve Budde, da equipa de busca, lhe telefonara para a Yard da casa do proxeneta em Notting Hill, informando-o que Reeve estava disposto a fazer um acordo. Segundo dissera Budde, Reeve desejava fornecer informações que poderiam vir a revelar-se preciosas para a polícia em troca da oportunidade de emigrar para Melbourne, uma cidade que Reeve parecia subitamente ansioso por conhecer. Quais eram, então, as ordens do inspector Lynley? A Scotland Yard, fora a resposta de Lynley, não fazia acordos com assassinos. Deu instruções ao detective Budde para transmitir esta mensagem e para deter o proxeneta.
Tal como Lynley desejara, Reeve chegara sem a companhia do advogado. Tinha um ar cansado, barba por fazer e vestia umas calças de ganga e uma camisa havaiana. Através da abertura, espreitava um peito pálido onde era ainda visível o trilho de sangue deixado recentemente pelas unhas de alguém.
- Mande chamar os seus gorilas - disse Reeve sem rodeios quando Lynley se encontrou com ele. - Os amiguinhos imbecis deste tipo - inclinou a cabeça na direcção do detective Budde - continuam a escaqueirar a minha casa. Quero-os de lá para fora imediatamente, caso contrário não vou colaborar.
Lynley fez sinal ao detective Budde para que se sentasse numa cadeira que estava encostada à parede, de onde podia observar claramente o que se passava. O detective tinha a estatura do Abominável Homem das Neves e a cadeira de metal rangeu, cedendo sob o peso do seu corpo.
Lynley e Reeve sentaram-se à mesa.
- O senhor não está em posição de fazer exigências, Mr. Reeve - disse Lynley.
- O diabo é que não estou. Estou, desde que você pretenda saber informações. Tire aqueles sacanas de dentro da minha casa, Lynley.
Em resposta, Lynley introduziu uma cassete nova no gravador, premiu o botão que accionava a gravação, indicou a data, a hora e os nomes de todos os presentes. Em seguida, pronunciou uma advertência formal, sobretudo por causa de Reeve.
- Prescinde do direito a um advogado?
- Meu Deus. Mas que se passa aqui? Vocês querem saber a verdade ou vamos todos dançar sapateado?
- Responda à pergunta, por favor.
- Não preciso de nenhum advogado para fazer o que venho aqui fazer.
- O suspeito declara que prescinde do seu direito a representação legal - disse Lynley falando para o gravador. - Mr. Reeve, o senhor conhecia Nicola Maiden?
- Deixemo-nos de rodeios, está bem? O senhor sabe que eu a conhecia, sabe que ela trabalhava para mim. Ela e Vi Nevin despediram-se na Primavera passada, e eu nunca mais vi nenhuma das duas desde essa altura. Ponto final na história. Mas eu não vim aqui para falar nisso.
- Quanto tempo depois de elas terem deixado de trabalhar para si é que o senhor foi informado por Shelly Platt de que Nicola Maiden e Vi Nevin se tinham estabelecido por conta própria no negócio da prostituição?
Os olhos de Reeve encobriram-se.
- Quem? Shelly quê?
- Shelly Platt. Não pode alegar que não a conhece. Segundo o meu homem que se encontra no hospital, ela reconheceu-o mal o viu esta manhã.
- Muita gente me reconhece. Eu apareço muito. Tricia também. As nossas caras devem aparecer nos jornais uma vez por semana.
- Shelly Platt afirma que lhe disse que as duas raparigas tencionavam estabelecer-se por conta própria. Uma notícia que, com certeza, não lhe terá agradado e que terá sido muito pouco proveitosa para a sua reputação de homem que tem o seu rebanho controlado.
- Oiça, uma gaja que queira montar um negócio por conta própria é uma coisa que me deixa fora de mim, admito. Elas percebem rapidamente o trabalho e o dinheiro que estão envolvidos no negócio de atrair clientes do calibre a que estão habituadas. Mas depois voltam, e se estiverem num dia de sorte e eu estiver bem-disposto, aceito-as de volta. Já aconteceu antes, vai acontecer novamente. Eu sabia que era isso que ia acontecer com Nicola Maiden e Vi Nevin, se tivesse paciência e esperasse o tempo suficiente.
- E se elas não quisessem voltar? Se fizessem mais sucesso do que o senhor previa? Que aconteceria nessa altura? Que pode o senhor fazer para impedir que as outras raparigas que trabalham para si não tentem a sua sorte como empresárias por conta própria?
Reeve recostou-se na cadeira onde estava sentado.
- Estamos aqui para falar de gajas em geral ou está interessado em ouvir respostas directas às perguntas que me fez a noite passada? A escolha é sua, inspector. Mas não demore muito, que eu não tenho tempo para estar aqui sentado em amena cavaqueira consigo.
- Mr. Reeve, o senhor não está em posição de negociar. Uma das suas raparigas está morta, a outra... sócia dela... foi espancada quase até à morte, E das duas, uma: ou se trata de uma notável coincidência ou existe alguma relação entre os dois casos. Os elos de ligação parecem ser o senhor e a decisão que elas tomaram de deixar de trabalhar para si.
- O que faz com que elas deixem de ser as minhas raparigas - retorquiu Reeve. - Eu não estou envolvido.
- Deseja, então, que acreditemos que uma prostituta pode deixar de trabalhar para si, estabelecer-se por conta própria e fazer-lhe concorrência, sem quaisquer receios de represálias. Estamos, então, em plena lógica; da economia do mercado livre, em que os despojos cabem a um ou a outro dos intervenientes, juntamente com o produto superlativo. É isso?
- Eu não diria melhor.
- Que ganhe o melhor? Ou a melhor, neste caso?
- Uma regra de ouro em matéria de negócios, inspector.
- Compreendo. Nesse caso, não verá nenhum problema em dizer onde estava ontem, enquanto Vi Nevin era atacada.
- Dir-Lhe-ei de bom grado, se isso corresponder à minha parte do acordo, e logo que saiba qual é a sua.
Lynley sentiu-se cansado dos subterfúgios do proxeneta.
- Dêem-lhe voz de prisão - disse ao detective Budde. - A acusação é assalto e homicídio.
O detective pôs-se de pé.
- Hei! Calma aí! Eu vim aqui para conversar. Você propôs um acordo a Tricia ontem e eu estou a reivindicá-lo hoje. Você só tem que pôr as cartas na mesa, para que ambos saibamos o acordo que estamos a fazer.
- As coisas não funcionam assim - Lynley levantou-se. O detective Budde agarrou no braço do proxeneta.
- Vamos - disse.
Reeve soltou-se com um movimento brusco.
- Merda para isso. Quer saber onde eu estava? Está bem, eu digo - Lynley tornou a sentar-se. Não desligara o gravador e, agitado como estava, o outro nem sequer se apercebera disso.
- Continue.
Reeve esperou até Budde regressar ao sítio onde estava sentado.
- Ponha um açaime ali na fera. Não gosto de ser agarrado.
- Teremos isso em consideração.
Reeve massajou o braço, como se contemplasse a hipótese de os acusar de violência policial.
- Está bem, eu não estive em casa ontem. Saí à tarde e só regressei à noite. Por volta das nove ou dez horas.
- E onde esteve?
Reeve pareceu estar a tentar calcular os danos que se preparava para infligir a si próprio.
- Fui até lá - disse. - Confesso. Mas não estava lá quando.
Lynley especificou, para que ficasse registado.
- O senhor foi a Fulham? A Rostrevor Road?
- Ela não estava. Andei atrás delas o Verão inteiro, atrás de Vi e de Nikki. Quando aqueles dois chuis... o preto e a tipa baixota com os dentes da frente partidos... apareceram lá em casa na sexta-feira, tive a sensação de que, se agisse como deve ser, podiam levar-me até Vi. Por isso mandei alguém segui-los e fui lá no dia seguinte - sorriu. - Grande reviravolta, hem? Seguir os chuis em vez do inverso.
- Para que conste na gravação, Mr. Reeve, o senhor esteve ontem em Rostrevor Road.
- E ela não estava. Não estava ninguém em casa.
- Por que razão foi visitá-la?
Reeve examinou as unhas. Pareciam ter sido arranjadas recentemente: As articulações, no entanto, estavam inchadas e feridas.
- Digamos que fui marcar uma posição.
- Por outras palavras, o senhor espancou Vi Nevin.
- Nada disso. Eu disse que não tinha tido oportunidade para o fazer. E você não pode prender-me por causa de algo que eu queria fazer, tão certo como eu estar aqui agora. Se é que eu sequer queria bater-lhe, uma coisa que não estou a confessar, note-se - sentou-se melhor na cadeira, sentindo-se mais confortável, mais seguro de si. - Como já lhe disse, ela não estava em casa. Passei por lá três vezes ontem à tarde, mas a sorte não estava do meu lado e comecei a ficar mal, irrequieto. Quando fico assim... - Reeve bateu com o punho na palma da mão. - FaÇo qualquer coisa. Ajo. Não vou para casa como um banana à espera que apareça alguém para me tramar.
- Tentou descobrir onde ela se encontrava? Deve ter uma lista dos clientes dela, pelo menos daqueles que ela atendia quando trabalhava para si. Se ela não estava em casa, seria lógico que fosse à procura dela. Sobretudo, se estivesse a sentir-se... como foi que disse, exactamente?... irrequieto.
- Eu disse que faço coisas, Lynley. Ajo, quando estou a sentir-me enervado, está bem? Queria marcar uma posição com a puta e não podia, e isso deixou-me irritado. Por isso, decidi marcar posição com outra pessoa.
- Não percebo de que forma é que isso satisfez a sua necessidade.
- Satisfez lindamente as minhas necessidades daquele momento, porque comecei a pensar que era tempo de tratar as outras com rédea mais curta. Não quero sequer que pensem em arrancar uma só página que seja do livro Nikki-Vi. As putas julgam que os homens são trouxas, por isso, se queremos dirigi-las, temos de estar dispostos a fazer o que for preciso para que nunca deixem de nos respeitar.
- O que implica o recurso à violência, suponho.
Lynley estava estupefacto com a posição de Reeve. Como era possível que o proxeneta não se apercebesse de que estava a cavar a sua própria sepultura a cada frase que proferia? Acharia ele, de facto, que estava a melhorar a sua posição ao fazer semelhantes declarações?
Reeve prosseguiu. Começara a visitar as suas funcionárias à tarde, disse, visitas inesperadas cujo objectivo era reforçar a sua posição de autoridade em relação a elas. Apoderava-se das suas cadernetas bancárias, das agendas e contas com a intenção de as comparar com os seus próprios registos. Escutava as mensagens deixadas nos atendedores de chamadas para saber se tinham incitado os respectivos clientes a passarem por cima da Global Escorts quando queriam marcar uma sessão. Examinava o guarda- roupa delas, procurando roupas que indicassem a posse de rendimentos superiores ao que ele lhes proporcionava. Verificava-lhes as reservas de preservativos, geleias lubrificantes e objectos sexuais, a fim de confirmar que tudo estava de acordo com o que ele sabia sobre a clientela de cada rapariga.
- Algumas não gostavam do que eu fazia - disse Reeve. - Queixavam-se. Nessa altura, eu metia-as na ordem.
- Batia-lhes.
- Bater-lhes? - Reeve riu-se. - Nada disso. Fodia-as. Foi isso que viu na minha cara ontem à noite. É o que eu chamo preliminares com unhas.
- Há outro termo para isso.
- Eu não violei ninguém, se é aí que quer chegar. E não há uma que lhe diga o contrário. Mas se quiser chamá-las para vir até aqui... às que eu fodi... e espremê-las, esteja à vontade. Eu vim para lhe dar os nomes delas, afinal. Elas hão-de confirmar a minha história.
- Não tenho dúvidas de que vão fazê-lo - disse Lynley. - É evidente que quem não o fizer, irá provavelmente sentir na pele a sua forma de... o que é que Lhe chamou? Metê-las na ordem?
Pôs-se de pé e deu por concluída a gravação do interrogatório. Dirigindo-se a Budde, disse:
- Quero-o acusado. Dêem-lhe um telefone, porque vai desatar a gritar pelo advogado antes mesmo que nós.
- Olhe lá! - Reeve levantou-se de um salto. - Que está você a fazer? Eu não toquei em nenhuma daquelas duas putas. Você não tem nada contra mim.
- O senhor é um proxeneta, Mr. Reeve. Tenho a sua confissão gra vada. Não é um mau começo.
- O senhor propôs-me um acordo e eu estou aqui para o reclamar. Digo o que tenho a dizer e em seguida parto para Melbourne. O senhor disse isso mesmo a Tricia e...
- E Tricia pode vir reclamar esse acordo, se assim o desejar - Lynley disse para Budde. - Temos de enviar uma equipa da brigada de costumes a Lansdowne Road. Telefone para lá e diga a Havers que espere até eles chegarem.
- Oiça cá! - Reeve contornou a mesa. O detective Budde agarrou-o pelo braço. - Tire a merda das mãos de cima.
- Ela já deve ter tido tempo suficiente para reunir provas suficientes para o acusarmos de proxenetismo - comentou Lynley, dirigindo-se a Budde. - Por agora chega.
- Vocês não sabem com quem se estão a meter, seus cretinos! O detective Budde agarrou-o ainda com mais força.
- Havers? Mas ela não está em Notting Hill, chefe. Quem está a passar revista à casa são Jackson, Stille e Smiley. Quer que descubra onde ela está?
- Não está lá? - disse Lynley. -Então, onde...
Reeve barafustava, imobilizado nos braços de Budde. - Vou lixá- los por causa disto.
- Calma, amigo. O senhor não vai a lado nenhum. Budde disse, então, a Lynley:
- Ela encontrou-se connosco no local e entregou-nos o mandado de busca. Quer que eu tente.
- Merda para isto!
A porta da sala de interrogatórios abriu-se.
- Inspector? - Era Winston Nkata. - Precisa de ajuda? - Está tudo sob controlo - disse Lynley. E depois, dirigindo-se a Budde: - Dêem-lhe um telefone e deixem-no ligar ao advogado. Depois tratem do resto da papelada.
Budde passou por Nkata e seguiu pelo corredor fora arrastando Reeve a a seu lado. Lynley deixou-se ficar junto à mesa, os dedos pousados no gravador, não tendo mais nada em que pudesse tocar. Sabia que se tomasse alguma atitude sem dar a si próprio tempo para reflectir sobre as possíveis consequências, acabaria por vir a arrepender-se.
- Havers, pensou. Cristo. Que seria preciso fazer? Nunca fora fácil trabalhar com ela, mas aquilo era inaceitável. Era extraordinário que tivesse desobedecido a uma ordem directa depois de tudo aquilo por que já passara. Uma de duas: ou tinha um forte desejo de morrer, ou perdera a cabeça. Fosse o que fosse, no entanto, Lynley sabia que tinha finalmente atingido os limites da sua paciência em relação àquela mulher.
- Demorei algum tempo a descobrir qual a empresa de reboques que controla a zona, mas valeu a pena - dizia Nkata.
Lynley levantou os olhos.
- Peço desculpa - disse. - Estava a milhas de distância. O que é que descobriu, Winnie?
- Verifiquei o clube de Beattie, e ele está safo. Depois fui até Islington - informou Nkata. - Falei com os vizinhos da antiga casa de Nicola Maiden. Ninguém reconheceu Beattie ou Reeve como sendo uma das visitas de Nicola, nem sequer quando lhes mostrei as fotografias deles. Encontrei uma de cada um num exemplar do Daily Mail, por falar nisso. Ter um informador na redacção de um jornal dá sempre jeito.
- Mas daí, nada.
- Com conversa, não. Só que enquanto andei pela zona, vi um Opel mal estacionado prestes a ser rebocado, o que me levou a pensar em hipóteses alternativas.
Nkata contou, então, que telefonara para todas as empresas de reboque de Londres, a fim de tentar descobrir qual delas operava nas ruas de Islington. Fora um tiro no escuro, mas uma vez que nenhuma das pessoas com quem falara fora capaz de identificar Martin Reeve ou Sir Adrian Beattie como sendo o homem que visitara Nicola Maiden antes de ela se ter mudado para Fulham, decidira verificar se o proprietário de algum veículo que tivesse sido rebocado naquela zona no dia 9 de Maio, podia ter alguma ligação com Nicola Maiden.
- E acertei em cheio - disse.
- Muito bem, Winnie - disse Lynley, com afabilidade. Uma das melhores qualidades de Nkata sempre fora o seu espírito de iniciativa. Que descobriu, então?
- Um dado que pode vir a ser perigoso.
- Perigoso? Porquê?
- Por causa da identidade da pessoa, cujo carro foi rebocado. Subitamente, o detective mostrou-se constrangido. E isso devia ter sido o suficiente para deixar Lynley de sobreaviso. Só que o inspector não se apercebeu do facto, desconcentrado como estava por um optimismo excessivo em relação à forma como decorrera o interrogatório de Martin Reeve.
- Quem é? - perguntou.
- Andrew Maiden - revelou Nkata. - Ao que parece, ele esteve em Londres no dia 9 de Maio. O carro dele foi rebocado na esquina a seguir casa de Nicola.
Enquanto fechava a porta de casa e subia as escadas, Lynley sentiu o estômago contorcer-se por uma forte sensação de náusea. Dirigiu-se ao quarto, pegou na mesma mala que trouxera de Derbyshire na véspera, e abriu-a sobre a cama. Separou pijamas, camisas, calças, peúgas e sapatos e atirou-os para dentro da mala sem a preocupação de escolher aquilo que realmente necessitava de levar consigo. Arrumou o estojo da barba e surripiou o sabonete de Helen que estava na banheira.
A mulher entrou no momento em que ele fechava uma mala que teria deixado Denton de cabelos em pé.
- Pareceu-me ter-te ouvido entrar. Que se passa? Vais partir novamente? Aconteceu alguma coisa, meu querido?
Ele pousou a mala no chão e olhou em volta em busca de uma expli cação. Limitou-se a relatar os factos sem lhes acrescentar nenhum tipo de interpretação.
- O rasto da investigação aponta novamente para o Norte - disse- Lhe. - Parece que Andy Maiden está envolvido.
Helen arregalou os olhos.
- Mas porquê? Como? Mas isso é terrível, meu Deus. E tu que o admiravas tanto, não era?
Lynley contou-lhe o que Nkata tinha descoberto. Referiu o que o detective conseguira apurar anteriormente sobre a discussão e a ameaça ouvidas em Maio. Acrescentou o que ele próprio concluíra a partir dos seus encontros com o agente do 5010 e a mulher deste e terminou com as informações que Hanken lhe comunicara por telefone. Só não cedeu à tentação de se perder num monólogo sobre as razões prováveis que teriam levado Andy Maiden a solicitar que fosse um tal inspector Thomas Lynley - um notável e monumental fracasso como agente do 5010 - o agente da Scotland Yard destacado para auxiliar na investigação. Lidaria com essa questão mais tarde, quando o seu orgulho próprio estivesse preparado para suportar as implicações desse facto.
- No início, achei que a hipótese Julian Britton fazia sentido - concluiu. - Depois mudei para Martin Reeve. Agarrei-me teimosamente primeiro a um e depois ao outro e fechei os olhos a todos os indícios que apontassem noutra direcção.
- Mas é possível que ainda tenhas razão, querido - contrapôs Helen. - Sobretudo em relação a Martin Reeve. Ele tem mais motivos do que qualquer outra pessoa, não tem? E, efectivamente, podia ter seguido Nicola Maiden até Derbyshire.
- E pela charneca fora também? - perguntou Lynley. - Como?
- Seguindo o rapaz, talvez. Ou mandando seguir o rapaz.
- Não há uma única prova que indique sequer que Reeve conhecia o rapaz, Helen.
- Mas pode ter sabido da sua existência através dos cartões deixados nas cabinas telefónicas. Afinal, ele é o tipo de pessoa que segue de perto a concorrência, não é? Se por acaso tivesse descoberto a identidade de quem distribuía os cartões de Vi Nevin e tivesse contratado alguém para o seguir, tal como fez com Barbara e com Winston em Fulham. Pode perfeitamente ter descoberto o paradeiro de Nicola da mesma maneira, ou não? Alguém pode ter seguido o rapaz durante semanas, Tommy, certo de que assim acabaria por encontrar Nicola.
Helen começou a defender a sua teoria com entusiasmo. Por que razão, perguntou, uma pessoa contratada por Reeve para seguir o rapaz não podia ter continuado no seu encalço quando este saíra de Londres e rumara para Derbyshire a fim de se encontrar com Nicola na charneca? Mal tivesse descoberto o paradeiro da rapariga, bastaria um telefonema feito a partir do pub mais próximo. Nessa altura, Reeve podia ter dado a ordem de execução a partir de Londres, ou então podia ter viajado de avião até Manchester - ou ter feito o percurso de carro até Derbyshire em menos de três horas - e ter ele próprio resolvido o assunto.
- Não tem de ser Andy Maiden - concluiu.
Lynley fez-lhe uma carícia numa das faces.
- Obrigado por saíres em minha defesa.
- Não me descartes, Tommy. E não te descartes a ti próprio. Pelo que me disseste, Martin Reeve tem um motivo de peso. Por que razão haveria Andy Maiden de matar a própria filha?
- Por causa daquilo em que ela se tornara - replicou Lynley. - Por que não conseguia fazê-la mudar de ideias. Porque não conseguia demovê-la através da razão, da persuasão ou da ameaça. Por isso, deteve-a da única forma que pôde.
- Nesse caso, porque não mandá-la prender, simplesmente? A ela e à outra rapariga.
- Vi Nevin.
- Isso, Vi Nevin. Estavam ambas envolvidas no mesmo tipo de actividade. Não é considerado bordel, desde que haja duas pessoas envolvidas? Não,podia ele simplesmente ter telefonado a um velho amigo da polícia e tê-la mandado prender?
- Para que todos os antigos colegas ficassem a saber aquilo em que ela se tornara? Aquilo em que a sua própria filha se tornara? Ele é homem orgulhoso, Helen. Nunca aceitaria uma solução dessas. - beijou-a na testa e depois nos lábios. Pegou na mala. - Volto assim que puder.
Ela seguiu-o escada abaixo.
- Tommy, não conheço ninguém mais severo consigo próprio do que tu. Como podes ter a certeza de que não estás a ser intransigente contigo próprio neste momento? E com consequências muito mais desastrosas?
Ele virou-se para responder, mas a campainha da porta soou. Era um toque insistente, como se do outro lado da porta estivesse alguém encostado à campainha.
A visita era Barbara Havers e quando Lynley pousou a mala junto à porta e a convidou a entrar, ela passou por ele sem perda de tempo segurando um sobrescrito na mão e dizendo:
- Caramba, inspector. Ainda bem que o apanho. Estamos um passo mais próximos do paraíso.
Cumprimentou Helen e entrou na sala de estar, onde se deixou cair num sofá e começou a espalhar o conteúdo do sobrescrito sobre uma mesa baixa.
- Era isto que ele procurava - anunciou, enigmática. - Passou mais de uma hora dentro do apartamento de Terry Cole, fingindo que observava os quadros de Cilla, a qual julgava que ele estava apaixonado pelo trabalho dela. - Havers passou as mãos pelo cabelo com gestos vivos que ilustravam o estado de grande excitação em que se encontrava. - Só que ele esteve sozinho naquele apartamento, inspector, e teve tempo suficiente para o passar a pente fino. Não conseguiu encontrar o que procurava, no entanto porque Terry tinha-o dado a Mrs. Baden quando percebeu que não ia conseguir pô-lo em leilão na Bowers. E Mrs. Baden deu-mo. Está aqui, veja.
Lynley permaneceu onde estava, junto à porta da sala de estar. Helen aproximou-se de Barbara e olhou para as inúmeras folhas de papel que ela retirara do interior do sobrescrito.
- É música - Barbara disse, dirigindo-se a Lynley. - Uma quanti dade de páginas com música composta por Michael Chandler. Neil Sitwell da Bowers disse-me que tinha enviado Terry Cole para os escritórios das Produções King-Ryder, onde poderiam fornecer-lhe o nome dos advogados de Chandler. Mas Matthew King-Ryder negou tudo. Ele disse que Terry foi pedir-lhe uma bolsa de estudos. Porquê então é que nenhuma das pessoas com quem falámos mencionou a existência dessa bolsa?
- Diga-me você - disse Lynley, inexpressivo.
Havers ignorou - ou não percebeu - o tom de voz dele.
- Porque King-Ryder está a mentir com quantos dentes tem. Ele seguiu-o. Seguiu Terry Cole por Londres inteira, onde quer que ele fosse, tentando deitar a mão a esta partitura.
- Porquê?
- Porque a galinha dos ovos de ouro estava morta - disse Havers, triunfante. - E a única esperança que King-Ryder tinha de se manter à tona de água durante mais alguns anos era criar um novo espectáculo.
- Está a baralhar as metáforas - notou Lynley.
- Tommy - a expressão de Helen continha um apelo silencioso. Afinal, conhecia-o melhor do que ninguém, e, ao contrário de Havers, notara a inflexão na sua voz. Apercebera-se, igualmente, de que ele não abandonara o lugar que ocupava à porta da sala, e sabia o que isso significava.
Alheia a tudo isto, Havers continuou, sorrindo:
- Pois estou. Peço desculpa. Bom, King- Ryder disse-me que o pai deixou expresso em testamento que todos os lucros provenientes dos espectáculos actualmente em cena deviam ser canalizados para um fundo especial que apoia tipos do teatro. Actores, dramaturgos, técnicos, esse tipo de gente. A última mulher recebe uma doação, mas é a única beneficiária. Matthew e a irmã não vêem um tostão. Ele fica com um cargo qualquer, presidente do Conselho de Administração ou responsável pelo fundo, que não é nada comparado com o cacau que podia ganhar se montasse outro espectáculo do pai. Um espectáculo novo, inspector. Uma produção póstuma, que não fosse abrangida pelos termos do testamento. Aí tem o motivo. Ele tinha de agarrar esta partitura com unhas e dentes e eliminar a única pessoa que sabia que ela tinha sido escrita por Michael Chandler e não por David King-Ryder.
- E Vi Nevin? - inquiriu Lynley. - Onde é que ela encaixa neste figurino, Havers?
O rosto dela iluminou-se ainda mais.
- King-Ryder julgava que era Vi quem tinha a partitura. Não a encontrou no apartamento. Não a encontrou quando seguiu Terry Cole e o despachou e depois quando revistou o acampamento. Por isso voltou para Londres e fez uma visita ao apartamento de Vi Nevin quando ela não estava em casa. E quando estava à procura da partitura pela casa toda, ela apareceu-lhe de surpresa.
- O apartamento foi destruído, não foi revistado, Havers.
- Nada disso, inspector. As fotografias provam que foi revistado. Veja-as novamente. Objectos dispersos, abertos e atirados ao chão. Se alguém quisesse pôr Vi Nevin fora de circulação, teria borrado as paredes com spray: Teria destruído os móveis, rasgado as carpetes e esburacado as portas.
- E tê-la-ia agredido no rosto - interpôs Lynley. - Precisamente o que fez Reeve.
- Foi King-Ryder. Ela viu-o. Ou pelo menos, ele pensou que ela o tinha visto, e não podia correr riscos. Tanto quanto sabia, ela podia perfei tamente saber da existência da partitura, porque também conhecia Terry. E que interessa isso, aliás? Vamos metê-lo dentro e fazê-lo suar um bocado - nesse momento pareceu reparar, pela primeira vez, na mala pousada junto à entrada da sala. - Onde é que vai?
- Fazer uma detenção. Porque enquanto você cirandava alegremente por Londres, o detective Nkata, cumprindo as ordens que lhe tinham sido dadas, estava a fazer o trabalho para que tinha sido destacado em Islington. E o que ele conseguiu descobrir não tem absolutamente nada a ver com Matthew King-Ryder ou com qualquer outra pessoa com esse apelido.
Havers empalideceu. Ao seu lado, Helen pousou a página da partitura que tinha estado a examinar no cimo das restantes. Ergueu uma das mãos num gesto cauteloso, descansando-a na base do pescoço. Lynley reconheceu o gesto, mas ignorou-o.
- Você tinha uma tarefa a cumprir - disse ele a Havers.
- Arranjei o mandado de busca, constituí a equipa e encontrei-me com eles. Disse-lhes o que.
- Você recebeu ordens para fazer parte dessa equipa, Havers.
- Mas acontece que eu acreditava. tinha uma intuição.
- Não, nada disso. Nada de intuições. Não na situação em que você se encontra.
- Tommy - disse Helen.
- Não, não interessa. Está feito. Você tem-me feito frente desde o primeiro instante, Havers. Está fora do caso.
- Mas...
- Prefere que eu repita o que acabei de dizer, letra a letra?
- Tommy - Helen aproximou-se dele. Ele percebeu que ela queria i ntervir, de tanto que odiava a raiva que o dominava. Tentou, por isso, controlar-se o melhor que podia.
- Qualquer outra pessoa que estivesse na sua situação... despromo vida e tendo escapado por pouco a uma acção judicial... e com o seu historial de fracassos no CID.
- Essa é baixa - as palavras de Havers eram quase inaudíveis.
-. teria agarrado todas as mãos que lhe tivessem estendido a partir do momento em que o comissário-adjunto Hillier pronunciou a sua sentença.
- Hillier é um porco, e o senhor sabe isso.
- Qualquer outra pessoa - prosseguiu ele, inamovível -, teria agido com o máximo de escrúpulos. No seu caso, tudo o que se lhe pedia era que fizesse uma pequena investigação a alguns dos casos do 5010, investiga ção essa que lhe foi pedido que retomasse mais do que uma vez nos últi mos dias.
- E eu fi-la. O senhor tem o relatório. Foi o que eu fiz.
- E depois decidiu agir por conta própria.
- Porque vi aquelas fotografias no seu gabinete. Esta manhã, vi que o apartamento de Fulham tinha sido revistado e tentei dizer-lhe isso mesmo, mas o senhor não quis dar-me ouvidos. Perante isso, que queria que fizesse?
- Não esperou por uma resposta, prevendo talvez aquilo que ele iria dizer. - E quando Mrs. Baden me mostrou esta partitura e eu vi quem a tinha composto, percebi que tínhamos encontrado o nosso homem, inspector.
Está bem, aceito. Devia ter acompanhado a equipa a Notting Hill. O senhor disse-me que fosse e eu não fui. Mas será que não consegue ver o tempo que poupei à nossa investigação? O senhor está de partida para Derbyshire não está? Poupei-lhe o trabalho dessa viagem.
Lynley pestanejou.
- Havers, acha mesmo que eu vou dar alguma credibilidade a todo este disparate?
Disparate. Limitou-se a mover os lábios, mais do que a repetir a palavra em voz alta.
Helen olhou para um e para outro. Deixou descair a mão. De Semblante triste, pegou numa das páginas da partitura. Havers olhou para ela, o que deixou Lynley ainda mais furioso. Ele não iria consentir que a mulher fosse colocada entre ambos.
- Apresente-se no gabinete de Webberly amanhã de manhã - disse a Havers. - Será ele quem a destacará para o seu próximo trabalho.
- O senhor nem sequer está a olhar para o que tem diante dos olhos - retorquiu Havers. O tom argumentativo ou provocador, no entanto, tinha desaparecido, e ela parecia apenas estupefacta, o que o deixou mais furioso ainda.
- Será que tenho de desenhar-lhe um mapa para sair daqui, Barbara? - perguntou-lhe.
- Tommy! - exclamou Helen.
- Vá-se lixar - foi a reacção de Havers.
Pôs-se de pé com razoável dignidade. Agarrou no saco já esfarrapado. Quando passou pela mesa baixa e saiu da sala, cinco páginas da partitura de Chandler esvoaçaram e deslizaram até ao chão da sala.
CAPÍTULO 26
O estado do tempo em Derbyshire coincidia com o estado de espírito do inspector Hanken: eram ambos sombrios. Seguia pela estrada que liga Buxton a Bakewell, debaixo de um céu argênteo que se diluía em chuva, tentando perceber por que motivo o blusão de cabedal preto não estava entre as provas recolhidas em Nine Sisters Henge. Fora fácil explicar o desaparecimento do impermeável. O mesmo, porém, não se podia dizer do blusão. Um único assassino não precisava, de facto, de duas peças de vestuário para esconder o sangue de uma vítima morta por esfaqueamento.
A busca pelo blusão de cabedal que pertencera a Terry Cole não fora feita sem assistência. O detective Mott acompanhara-o, equipado com uma guloseima. Enquanto oficial responsável pelas provas, a presença de Mott era fundamental. Ele, porém, pouco fizera para o ajudar. Em vez disso, enquanto Hanken tentava encontrar a peça de vestuário, ele entretivera-se a mastigar o bolo de aveia ruidosamente e com evidente prazer labial, declarando que nunca tinha visto nenhum blusão de cabedal preto.
A exactidão dos registos feitos por Mott acabara por levar a melhor. Não encontrara nenhum blusão. Depois de ter informado Londres sobre as suas buscas infrutíferas, Hanken rumara para Bakewell e Broughton Manor. Com ou sem blusão, havia ainda que esclarecer se Julian Britton se manteria, ou não, na lista de suspeitos.
Ao atravessar a ponte que ligava as duas margens do rio Wye, Hanken entrou repentinamente noutro século. Apesar da chuva que continuava a cair sem descanso, uma espécie de prenúncio de um mal que se avizinhava, travava-se uma batalha feroz nos arredores do solar. Ao longo da encosta que descia em direcção ao rio, cinco ou seis dezenas de soldados Realistas, ostentando as cores variadas do Monarca e da nobreza, combatiam, espada em punho, contra igual número de Parlamentaristas protegidos por armaduras e elmos redondos. Mais abaixo, no prado, outros soldados de armadura empurravam um canhão tentando colocá-lo em posição de ataque, enquanto, numa encosta mais afastada, um grupo de soldados de infantaria, cabeças protegidas por elmos e armados com pistolas, avançava na direcção da entrada sul do solar. No meio dos homens, um aríete rolava len tamente.
Os Realistas e os Cabeças-Redondas recriavam uma das batalhas da Guerra Civil, concluiu Hanken. Mais uma das estratégias de Julian Britton para juntar o dinheiro de que precisava para restaurar a casa.
Uma empregada de vacaria, vestida à moda do século xvii, que estava abrigada debaixo de um guarda-chuva Burberry fez sinal a Hanken para que estacionasse num parque de estacionamento improvisado, a pouca distância da casa. Aí, encontravam- se outros actores que participavam na reconstituição histórica, vestidos com trajes Realistas. Havia camponeses, rendeiros, nobres, cirurgiões e mosqueteiros. À porta de uma caravana, o malogrado Carlos I - a cabeça envolta numa ligadura ensanguentada - comia uma sopa e ensaiava uma cantata a uma criada que transportava um cesto de pão ensopado pela chuva. Não muito longe dali, Oliver Cromwell, trajando de negro, tentava libertar-se da armadura evitando a todo o custo desapertar os cordões que a prendiam. Cães e crianças corriam por entre a multidão, e uma barraca de refeições ligeiras vendia com sucesso tudo o que podia, desde que fosse quente e fumegante.
Hanken parou o carro e perguntou pelos Britton. Indicaram-lhe uma zona de observação no interior de um dos três jardins que havia no solar, todos eles num estado deplorável. Aí, na ala sudoeste do edifício, uma multidão compacta, instalada em bancadas improvisadas e cadeiras de praia, assistia à reconstituição, debaixo de um conjunto de guarda-chuvas multicores.
Numa das extremidades da bancada, sentado num banco de tripé, do tipo que os artistas ou caçadores de safari usavam no princípio do século, estava um homem sozinho. Usava um fato antigo em tweed e um velho capacete colonial, abrigando-se da chuva debaixo de um guarda-chuva listrado. Observava a cena através de um telescópio desmontável. Aos seus pés tinha uma bengala. Jeremy Britton, pensou Hanken, vestido com os trajes dos seus antepassados, como sempre.
Hanken aproximou-se dele.
- Mr. Britton? O senhor não deve lembrar-se de mim, com certeza, Sou o inspector Peter Hanken, CID de Buxton.
Britton virou-se. Tinha envelhecido consideravelmente desde a última e única vez em que se tinham encontrado na esquadra de polícia de Buxton cinco anos antes. Britton estava embriagado nessa ocasião, e o seu carro fora assaltado na High Street enquanto ele tomava as águas, - um euf mismo, sem dúvida, para designar o líquido que estivera a beber, consideravelmente mais forte do que a água mineral da cidade - e ele aparecera na esquadra, exigindo satisfações e insistindo para que fossem tomadas providências e aplicado um castigo imediato aos vândalos andrajosos e de baixa condição que o tinham violado de forma tão ignóbil.
Olhando agora para Jeremy Britton, Hanken via o resultado de uma vida inteira entregue ao álcool. A cor e a textura da pele de Britton, bem como a coloração amarelada que lhe tingia os olhos denunciavam problemas de fígado. Hanken reparou na garrafa térmica colocada no outro lado do banco de campismo onde Britton estava sentado. Duvidava de que o seu conteúdo fosse café ou chá.
- Estou à procura de Julian - anunciou Hanken. - Ele também está a tomar parte na batalha, Mr. Britton?
- Julie? - Britton semicerrou os olhos, tentando ver através da chuva. - Não sei onde ele se terá metido, mas naquilo não é com certeza - fez um gesto na direcção da cena dramática que estava a ser representada mais abaixo.
O aríete estava preso na lama e os Realistas tiravam partido deste revés nos planos dos Cabeças-Redondas. Espadas em riste, um grupo deles precipitou-se encosta abaixo decidido a abrir uma brecha nas forças Parlamentaristas.
- Julie nunca gostou de uma boa sacudidela deste género - disse Britton, engasgando-se ligeiramente ao pronunciar a palavra sacudidela. Não consigo entender por que razão ele permite que a propriedade seja utilizada desta maneira. Mas é divertido, não acha?
- Todos parecem muito envolvidos - concordou Hanken. - O senhor gosta de História?
- De modo nenhum! - respondeu Britton e, dirigindo-se aos soldados, gritou: - Traidores, malditos sejam! Hão-de arder no Inferno se tocarem num só fio de cabelo daquele que foi ungido pelo Senhor.
Realista, concluiu Hanken. Estranha posição para um membro da pequena nobreza na época da guerra civil, mas nada inesperada, se o cavalheiro em questão não tivesse quaisquer ligações ao Parlamento.
- Onde posso encontrá-lo?
- Foi levado para fora do campo de batalha, com um ferimento na cabeça. Ninguém pode acusar o pobre desgraçado de não ter dado mostras de alguma coragem, não concorda?
- Estava a referir-me a Julian, não ao rei Carlos I.
- Ah, Julie.
Com um gesto decidido, Britton apontou o telescópio para oeste. Um novo grupo de Realistas acabava de chegar numa carruagem, que os deixava na zona mais afastada da ponte, onde corriam a armar-se. No meio deles, um nobre trajando um fato muito trabalhado parecia estar a gritar instruções.
- Não deviam permitir aquilo, na minha opinião - comentou Britton.
- Não chegaram a horas, não entravam. O que disse? - virou-se novamente para Hanken. - O rapaz estava em casa, se é por isso que cá vem.
- Ele costuma ir a Londres com frequência? Uma vez que a antiga namorada vivia lá, suponho...
- Namorada? - Britton soltou um suspiro de desdém. - Disparates. Uma namorada pressupõe que haja reciprocidade. E entre eles não havia
nenhuma. Ele desejava que houvesse, claro. Desejava-a. Ela é que não queria nada com ele, além de sexo, se estivesse para aí virada. Se ao menos ele tivesse feito uso dos olhos que Deus lhe deu, teria visto isso desde o primeiro momento.
- O senhor não gostava da filha dos Maiden.
- Ela não trazia nada de novo - Britton tornou a observar a batalha e gritou Tenham cuidado, criaturas desonradas, na direcção dos soldados Parlamentaristas, enquanto os Realistas passavam o rio Wye a vau e avançavam, encharcados, encosta acima em direcção à casa.
Um homem sem problemas de fidelidade, pensou Hanken.
- Será que posso encontrar Julian dentro do solar? - perguntou. Britton observou o estrondo inicial quando os Realistas chocaram com os Cabeças- Redondas que tinham ficado para trás tentando desprender o aríete atolado na lama. Subitamente, a tendência da batalha inverteu-se. Os Cabeças- Redondas pareceram ficar reduzidos a uma proporção de três para um.
- Salvem-se, idiotas! - gritou Britton.
E, dizendo isto, riu divertido quando os rebeldes começaram a perder vantagem. Alguns homens tombaram, perdendo as armas. Britton aplaudiu.
- Vou ver se o encontro lá dentro - disse Hanken.
Britton deteve o detective quando este se afastava.
- Eu estava com ele. Na terça à noite, percebe?
Hanken tornou a virar-se para ele.
- Estava com Julian? Onde? A que horas?
- Nos canis. Não me lembro que horas eram, por volta das onze, talvez. Uma das cadelas estava prestes a parir e Julie estava com ela.
- Quando falei com o seu filho, ele não me disse que o senhor também estava presente, Mr. Britton.
- Não podia. Não me viu. Quando percebi o que ele estava a fazer, deixei-o sozinho. Fiquei a observá-lo junto à porta durante um bocado. Há algo de especial num processo de nascimento, independentemente de quem esteja a dar à luz, não acha? Passado algum tempo fui- me embora.
- É essa a sua rotina habitual? Visitar os canis às onze da noite.
- Não tenho nenhuma rotina habitual. Faço o que quero, quando quero.
- O que o levou a ir até aos canis, então?
Britton enfiou uma mão trémula no bolso do casaco e tirou um cigarro junto de brochuras muito amarfanhadas.
- Queria falar com Julie sobre isto.
Conforme Hanken viu, eram folhetos publicitários de clínicas que tinham programas de recuperação para alcoólicos. Sujas e dobradas, pareciam ter sido encontradas na secção de livros do Oxfaml. Ou Britton as acariciava há muitas semanas ou adquirira-as algures, em segunda mão, antecipando aquele momento.
- Quero curar-me - disse Britton. - Já é tempo, acho eu. Não quero que os filhos de Julie tenham um avô que não passa de um bêbedo.
- Julian está a pensar em casar?
- Eu diria que tudo caminha nesse sentido.
Britton estendeu a mão pedindo a devolução das brochuras e Hanken baixou-se na direcção do guarda-chuva para as entregar.
- É um bom rapaz, o nosso Julie - disse Britton, agarrando nos folhetos e tornando a guardá-los no bolso do casaco. - Não se esqueça disso. Dará um bom pai, e eu farei com que tenha orgulho em mim como avô.
Subsistia apenas uma réstia de dúvida em relação a este propósito. O hálito de Britton podia ter sido aceso com um fósforo, de tal maneira estava impregnado de gin.
Julian Britton conversava com os organizadores da reconstituição histórica nas ameias do telhado quando o inspector Hanken apareceu. Dera pela presença do detective quando este conversava com o pai e vira Jeremy mostrar-lhe as brochuras sobre as clínicas para alcoólicos. Sabendo que era muito pouco provável que Hanken se tivesse deslocado a Broughton Manor para discutir o tema do alcoolismo com o pai, não foi apanhado de surpresa quando o polícia finalmente descobriu o seu paradeiro.
A conversa entre ambos foi breve. Hanken queria saber com exactidão quando Julian tinha estado em Londres pela última vez. Julian conduziu-o até ao escritório, onde se encontrava a sua agenda, sobre a secretária, perdida no meio dos livros de contabilidade, e entregou-a ao inspector. Os seus registos eram irrepreensíveis, e a agenda confirmava que a sua última ida a Londres ocorrera na Páscoa, no início de Abril. Ficara hospedado no Lancaster Gate Hotel. Hanken podia telefonar, se quisesse, a fim de confirmar, porque o número de telefone estava igualmente registado na agenda à frente do nome do hotel.
- Fico sempre lá quando vou a Londres - disse Julian. - Porque quer saber?
Hanken respondeu à pergunta dele com outra.
- Não ficava em casa de Nicola Maiden?
- Ela tinha apenas um quarto - Julian corou. - Além disso, preferia que eu ficasse num hotel.
- Mas você foi a Londres para estar com ela, não?
Era verdade.
Fora uma imbecilidade, na verdade, dizia Julian para si próprio enquanto observava Hanken que passava pelo meio do grupo de Realistas que povoavam o pátio, aglomerados debaixo de toldos e guarda-chuvas enquanto se preparavam para rodar a fase seguinte da batalha. Fora a Londres, porque adivinhara uma mudança nela. Não só pelo facto de Nicola não ter vindo passar a Páscoa a Derbyshire - como costumava fazer desde que estava na universidade -, mas também porque em todos os encontros que tinham tido desde o Outono sentira que estavam cada vez mais distantes um do outro. Desconfiava da existência de outro homem, e quisera saber o pior em primeira mão.
Sorriu amargamente ao lembrar-se de tudo o que acontecera na viagem a Londres. Nunca lhe perguntara directamente se havia mais alguém, porque no fundo não queria saber. Dera-se por satisfeito pelo facto de não a ter surpreendido na companhia de ninguém e quando, após uma inspecção sub-reptícia aos armários da casa de banho, ao armário dos medicamentos e à cómoda, não encontrara nada que um homem pudesse ter deixado para usar de manhã depois das tarefas nocturnas. Além disso, Nicola fizera amor com ele. E, imbecil como era na época, pensara que o facto de ela fazer amor com ele significava, de facto, alguma coisa.
Fazia tudo parte da profissão dela, no entanto, compreendia ele agora. Fazia apenas parte do que Nicola fazia por dinheiro.
- Está tudo esclarecido com os chuis, Julie.
Julian voltou-se e viu que o pai viera ter com ele ao escritório, aparentemente saturado da chuva, da reconstituição ou da companhia dos outros espectadores. Jeremy trazia um guarda-chuva encharcado pendurado no braço, um banco de campismo numa mão e uma garrafa térmica na outra. O telescópio do tio-avô espreitava no bolso do peito do casaco, que pertencera ao seu avô.
Jeremy sorriu, parecendo satisfeito consigo próprio.
- Arranjei-te um álibi, meu filho. Sólido como uma rocha. Julian olhou- o fixamente.
- O que disse?
- Disse ao chui que estava contigo e com os cachorrinhos recém-nascidos, na terça-feira. Que os tinha visto saltar cá para fora e que tu Lhes tinhas pegado ao colo.
- Mas pai, eu nunca disse que o senhor tinha lá estado! Eu só lhes disse... - Julie suspirou. Começou a folhear os livros de contabilidade empilhando-os por anos. - Agora vão ficar a matutar nas razões que me levaram a não ter dito nada. Percebe isso, não percebe? Não percebe, pai?
jeremy tamborilava o dedo trémulo na têmpora.
- Eu já previa isso, meu rapaz, por isso disse-lhe que não tinhas dado por mim. Estavas a fazer as vezes de parteira, e eu não quis interromper a tua concentração. Disse-Lhe que tinha ido conversar contigo sobre o meu desejo de deixar o álcool, que tinha ido mostrar-te isto - Jeremy tornou a tirar as brochuras de dentro do bolso. - esperto, não achas? Tu até já as viste, percebes? Por isso, quando ele te perguntou sobre elas, disseste-lhe, não foi?
- Ele não fez nenhuma pergunta sobre a noite de terça-feira. Queria saber quando é que eu tinha ido a Londres pela última vez. Por isso, neste momento, de certeza que está a pensar porque diabo o pai se deu ao trabalho de me arranjar um maldito álibi, quando ele nem sequer lhe pediu nenhum.
Passado o momento de exasperação, Julian percebeu subitamente as implicações subjacentes à atitude do pai.
- Por que razão me arranjou um álibi, pai? Sabe que eu não preciso, não sabe? Eu estava, de facto, com os cães. Cassie estava a parir. Além disso, como é que sabia?
- A tua prima contou-me.
- Sam? Porquê?
- Ela acha que a polícia te vê de uma forma esquisita e ela não gosta disso. Como se Julie fosse capaz de fazer mal a alguém, diz ela. Fica toda danada, Julie. É uma mulher e tanto. Lealdade como aquela... é digno de ver.
- Eu não preciso da lealdade de Sam. Nem da sua ajuda, aliás. Não matei Nicola.
Jeremy desviou os olhos do filho e pousou-os sobre o tampo da secretária.
- Ninguém está a dizer que o fizeste.
- Mas se o pai julga que tem de mentir à polícia, só pode ser porque... Acha que fui eu quem a matou, pai? Acredita sinceramente... Meu Deus.
- Ora, não é preciso ficares nervoso. Estás todo corado, e eu já sei o que isso quer dizer. Não disse que pensava coisa nenhuma. Eu não penso nada, só quero facilitar-te um pouco a vida. Nem sempre temos de aceitar aquilo que a vida nos impõe, Julie. Podemos fazer algo para moldar os nossos destinos, sabes.
- E foi isso que fez? Moldar o meu destino?
Ele abanou a cabeça.
- Sacana egoísta. Estou a moldar o meu próprio destino - ergueu as brochuras e pousou-as sobre o coração. - Quero deixar de beber. Já é hora de o fazer. Quero mesmo. Mas Deus sabe e eu próprio sei que não consigo fazê-lo sozinho.
Julian convivia com o pai há tempo suficiente para reconhecer quando estava a ser vítima de uma estratégia de manipulação. Viu acender-se o sinal amarelo que aconselhava precaução.
- Pai, eu sei que quer ficar sóbrio. Admiro-o por isso. Mas esses programas... a despesa...
- Tu podes fazer isto por mim. Podes fazê-lo, sabendo que eu faria o mesmo por ti.
- Não é que eu não queira fazer isso por si. Acontece que nós não temos o dinheiro necessário. Já analisei os livros vezes sem conta, e ele simplesmente não existe. Já pensou em telefonar à tia Sophie? Se ela soubesse das suas intenções, acho que lhe emprestaria...
- Emprestar? Ora! - jeremy descartou esta possibilidade juntamente com as brochuras que tinha na mão. - A tua tia nunca aceitará uma coisa dessas. Ele há-de parar quando quiser parar, é assim que ela pensa. Não vai levantar um dedo para me ajudar.
- E se eu lhe telefonasse?
- E que lhe és tu, Julie? Não passas de um parente que ela nunca viu e que lhe vem pedir uma esmola do dinheiro que o marido se esforçou tanto por ganhar. Não, não podes ser tu a pedir.
- E se falasse com Sam?
Jeremy recusou a ideia, gesticulando como se estivesse a afugentar um mosquito.
- Não lhe posso pedir uma coisa semelhante. Ela já nos tem dado bastante. Tempo, esforço, cuidado, afecto. Não lhe posso pedir mais nada, e não o vou fazer - soltou um suspiro e tornou a guardar as brochuras dentro do bolso. - Deixa estar, eu hei-de aguentar-me.
- Eu podia pedir a Sam que falasse com a tia Sophie. Podia explicar-lhe.
- Não, esquece. Eu consigo vencer isto. Já o fiz antes... Demasiadas vezes, pensou Julian. A vida do pai estendia-se ao longo de mais de cinco décadas de promessas não cumpridas e de boas intenções que nunca tinham resultado em nada. Vira Jeremy deixar o álcool mais vezes do que conseguia lembrar-se. E vira jeremy voltar à bebida outras tantas. Havia alguma verdade nas palavras do pai. Se desta vez queria derrotar o monstro, não podia travar essa batalha sozinho.
- Oiça, pai. Eu vou falar com Sam. Quero fazer isto.
- Queres? - repetiu Jeremy. - Queres mesmo? Não é porque te sentas obrigado a isso, por achares que deves alguma coisa ao teu pai?
- Não, quero fazê-lo. Eu falo com ela.
Jeremy parecia mais humilde. Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Ela ama-te, Julie. Uma mulher fantástica como ela é e ama-te, filho.
- Eu vou falar com ela.
A chuva ainda não parara de cair quando Lynley subiu o caminho de acesso a Maiden Hall.
Barbara Havers acabara por fazê-lo esquecer, durante alguns minutos, a perturbação que se apoderara dele quando tomara conhecimento da deslocação de Andy Maiden a Londres. Na verdade, conseguira substituir a agitação pela raiva em relação ao comportamento indisciplinado de Barbara, de modo nenhum apaziguada quando Helen tentara, delicadamente, justificar o comportamento da detective.
- Talvez ela tenha entendido mal as tuas ordens, Tommy - dissera ela depois de Havers ter deixado Eaton Terrace. - Na agitação do momento, pode ter deduzido que tu não querias que ela integrasse a equipa destacada para fazer a busca em Notting Hill.
- Por amor de Deus, Helen - retorquira ele. - Não a defendas. Tu ouviste o que ela disse. Sabia o que tinha a fazer e optou por não o fazer. Decidiu agir por conta própria.
- Mas tu admiras o espírito de iniciativa. Sempre admiraste. Sempre me disseste que o espírito de iniciativa de Winston é um dos melhores...
- Que diabo, Helen. Quando Nkata decide tomar um assunto em mãos, fá-lo depois de ter completado uma tarefa, não antes. Não discute, não se queixa, nem ignora o que tem diante dos olhos só porque acha que tem uma ideia melhor. E quando é advertido... o que é raro, aliás... não comete o mesmo erro duas vezes. Seria de esperar que Barbara tivesse aprendido alguma coisa este Verão, sobre as consequências de desafiar uma ordem. Mas não aprendeu. Tem uma cabeça de chumbo.
Cuidadosamente, Helen tornara a juntar as páginas da partitura musical que Barbara deixara em casa deles. Colocara-as, não dentro do sobrescrito, mas sobre a mesa baixa da sala.
- Tommy, se tivesse sido Winston Nkata, e não Barbara Havers, quem tivesse estado naquele barco com a inspectora Barlow... se tivesse sido Winston Nkata, e não Barbara Havers, quem tivesse agarrado naquela arma... olhara-o com uma expressão séria. - Terias ficado tão zangado?
Ele reagira de forma rápida e acalorada.
- Não é uma questão de género. Conheces-me bem de mais para pensar uma coisa dessas.
- Conheço-te, sim - respondera ela, calmamente.
E, no entanto, não deixara de pensar na pergunta dela durante os primeiros quilómetros da viagem de carro até Derbyshire. Todavia, por mais que analisasse as suas possíveis reacções, tanto à pergunta da mulher como ao incrível acto de insubordinação da parte de Havers no mar do Norte, a resposta era sempre a mesma. Havers protagonizara um ataque, não dera mostras de iniciativa. E nada havia que justificasse uma atitude semelhante. Se tivesse sido Winston Nkata quem tivesse empunhado a arma - a situação mais risível que Lynley seria capaz de imaginar - ele teria reagido da mesma maneira. Tinha a certeza.
Naquele momento, enquanto entrava no parque de estacionamento de Maiden Hall, a sua raiva há muito que esmorecera para ser substituída pela mesma inquietação que se apoderara dele quando soubera da visita que Andy Maiden fizera à filha. Parou o carro e deixou-se ficar a contemplar o hotel por entre a chuva.
Não queria acreditar naquilo que os factos lhe pediam que acreditasse, mas reuniu toda a sua coragem e pegou no guarda-chuva que estava no banco de trás do carro. Atravessou o parque de estacionamento debaixo de chuva e, ao entrar no hotel, pediu ao primeiro funcionário que encontrou que fosse chamar Andy Maiden. Quando o antigo agente do 5010 apareceu, cinco minutos mais tarde, vinha sozinho.
- Tommy - cumprimentou -, tens novidades? Vem comigo.
Conduziu-o até ao escritório que ficava junto da Recepção, fechando a porta depois de ambos terem entrado.
- Fala-me sobre Islington, em Maio passado, Andy - disse Lynley sem rodeios, ciente de que qualquer hesitação da sua parte equivaleria a proporcionar ao outro homem uma oportunidade de apelar à sua compaixão, algo que ele não podia permitir que acontecesse. - Fala-me sobre esta frase: Antes quero ver-te morta a permitir que o faças.
Maiden sentou-se e, com um gesto, indicou a Lynley que fizesse o mesmo. Permaneceu em silêncio até Lynley estar sentado, e ainda assim pareceu recolher-se por momentos, como se estivesse a reunir forças antes de responder.
- O reboque - disse. Ao que Lynley replicou:
- Nunca ninguém pôde acusar-te de seres um polícia incompetente.
- O mesmo se pode dizer a teu respeito. Tens feito um bom trabalho, Tommy. Sempre achei que ias sobressair no CID.
O elogio teve o efeito de uma bofetada, pondo a nu de forma inequívoca as razões que tinham levado Andy Maiden a escolhê-lo - cego, como estava, pela admiração que sentia por ele - para investigar o caso em Derbyshire.
- Trabalho com uma boa equipa - referiu Lynley, com voz firme. Fala-me de Islington.
Entraram, finalmente, na questão, e nos olhos de Maiden transpareceu uma angústia tal, que Lynley percebeu que ainda - e até num momento como aquele - tinha de se conter para não se deixar dominar por um acto de compaixão pelo seu velho amigo.
- Ela pediu-me que fosse vê-la - disse Maiden. - E eu fui.
- Foste a Londres, em Maio último - clarificou Lynley. - Foste visitar a tua filha a Islington.
- Exactamente.
Julgara que Nicola queria iniciar os preparativos para a sua mudança para o Derbyshire no Verão, antes de começar a trabalhar com Will Upman, tal como tinham combinado em Dezembro. Por isso, levara o Land-Rover, para que pudesse trazer algumas das coisas dela, caso ela estivesse disposta a separar-se delas antes do fim das aulas.
- Só que ela não queria voltar para casa - disse Maiden. - Não foi por isso que ela quis que eu fosse a Londres. Queria conversar comigo sobre os seus planos para o futuro.
- Prostituição - retorquiu Lynley. - A casa de Fulham. Maiden pigarreou e murmurou:
- Oh, meu Deus.
Mesmo tentando manter-se imune a qualquer sentimento de empatia para com o amigo, Lynley descobriu que não conseguia obrigá-lo a falar sobre o que descobrira em Londres, naquele dia. Decidiu, então, ser ele a fazê-lo. Relatou os factos tal como ele próprio ficara a conhecê-los, desde o emprego de Nicola na MKR Financial Management, primeiro como estagiária e depois como acompanhante até à sua associação com Vi Nevin e à sua especialização na arte da dominação.
- Sir Adrian acha que ela só pode ter decidido vir passar o Verão ao Norte, em vez de ter ficado em Londres, por uma única razão: dinheiro - concluiu.
- Foi um acordo. Fê-lo por mim.
Tinham discutido violentamente, mas ele conseguira persuadi-la a trabalhar para Upman durante o Verão e a tentar fazer carreira como advogada. Pagando-lhe mais dinheiro do que ela teria ganho se tivesse ficado em Londres, disse ele, conseguira convencê-la a aceitar a proposta. Tivera de contrair um empréstimo bancário para reunir a quantia que ela exigira como recompensa, mas considerava que era dinheiro bem empregue.
- Estavas assim tão convencido de que ela acabaria por deixar-se seduzir pela advocacia? - perguntou Lynley. Parecia-lhe uma hipótese altamente improvável.
- Acreditava que Upman a conquistaria - replicou Maiden. - Já tive oportunidade de o observar na companhia de outras mulheres e tem uma maneira especial de lidar com elas. Pensei que ele e Nicola... Eu estava disposto a tentar qualquer coisa, Tommy. O homem certo, pensava eu, podia fazê-la ganhar juízo.
- E Julian Britton não teria sido uma escolha melhor? Já estava apaixonado por ela, não estava?
- Julian desejava-a com demasiada intensidade. Ela precisava de um homem que a seduzisse, mas que a deixasse na expectativa. Upman parecia-me a pessoa indicada para o fazer - Maiden pareceu ter consciência do que dizia, porque hesitou durante alguns instantes, antes de começar a chorar. - Santo Deus, Tommy. Foi ela que me levou a isso - disse, tapando a boca com um punho cerrado, como se com aquele gesto conseguisse aliviar o sofrimento.
Lynley viu-se, então, obrigado a encarar o que não desejara ver. Recusara aceitar a culpa daquele homem por causa do que ele tinha sido na New Scotland Yard, quando o que revelava a sua culpabilidade era precisamente o que ele fora quando trabalhara na New Scotland Yard. Um mestre na arte do engano e da dissimulação, Andy Maiden passara décadas movendo-se no mundo infernal dos agentes infiltrados, onde as fronteiras entre os factos e a fantasia, entre a ilegalidade e a honra começavam por ficar esbatidas e imprecisas e acabavam por desaparecer definitivamente com o passar do tempo.
- Conta-me como tudo aconteceu - pediu Lynley, imperturbável. Diz-me o que usaste além do canivete.
Maiden deixou cair a mão.
- Meu Deus... - a sua voz soou rouca. - Tommy, não podes estar a pensar... - depois pareceu reflectir sobre o que tinha dito, tentando identificar a origem exacta do mal-entendido gerado entre ambos. - Ela levou-me ao suborno. A ter de Lhe pagar para que ela trabalhasse para Upman, para que ele conseguisse conquistá-la... para que a mãe nunca tivesse de descobrir o que ela era... porque isso tê-la-ia destruído. Mas não. Não. Não podes pensar que eu a matei. Eu estava aqui na noite em que ela morreu. Estava aqui no hotel. E... meu Deus, ela era a minha única filha.
- E tinha-te traído - disse Lynley. - Depois de tudo o que tinhas feito por ela, depois da vida que lhe tinhas proporcionado...
- Não, eu amava-a! Tens filhos? Uma filha? Um filho? Sabes o que é ver o futuro no teu filho ou na tua filha e saber que viverás, aconteça o que acontecer, apenas porque ele ou ela existem?
- Como prostituta? - perguntou Lynley. - Como uma mulher da vida, que ganha dinheiro fazendo visitas domiciliárias a homens que domina com a ponta do chicote? Antes quero ver-te morta a permitir que o faças. Foram estas as tuas palavras. E ela ia regressar a Londres na semana seguinte, Andy. Tudo o que tinhas conseguido, pagando-lhe para trabalhar em Buxton, fora adiar o inevitável.
- Não fui eu! Tommy, ouve o que te estou a dizer! Eu estava aqui na terça-feira à noite.
Maiden começara a falar num tom de voz mais alto, e nesse momento alguém bateu à porta do escritório. Esta abriu-se antes que algum dos dois tivesse tido tempo de falar. Nan Maiden apareceu à entrada do quarto, olhando ora para Lynley ora para o marido. Não disse uma palavra.
Não precisava de dizer fosse o que fosse, no entanto, para explicar o que Lynley conseguia ler no seu rosto. Ela sabe o que ele fez, pensou. Sabe-o desde o primeiro instante, meu Deus!
- Deixa-nos sozinhos - gritou Andy Maiden para a mulher.
- Acho que não será necessário - disse Lynley.
Barbara Havers nunca estivera em Westerham, e depressa descobriu que não seria fácil lá chegar a partir da casa de St. James, em Chelsea. Passara rapidamente por casa deles depois de deixar Eaton Terraceporque não, pensara já que estava ali tão perto de King Road, bastaria um pequeno desvio para chegar a Cheyne Row, -, ansiosa por desabafar com o casal que, conforme suspeitava, numa ou noutra ocasião devia ter já sido vítima em primeira mão de um dos acessos de irracionalidade presunçosa da parte do inspector Lynley. Todavia, nem sequer tivera tempo de contar a sua história, pois Deborah St. James, que viera abrir-lhe a porta, soltara uma exclamação de felicidade na direcção do escritório, puxando- a imediatamente para dentro de casa como se ela fosse alguém que regressasse inesperadamente da guerra.
- Olha só quem chegou, Simon! - anunciou. - Diz lá que não parece de propósito?
E fora o encontro entre os três que motivara a deslocação de Barbara até Kent. Para lá chegar, no entanto, tivera de vencer o labirinto de ruas não identificadas que transformavam a designação sul do rio um sinónimo de passagem pelo inferno. Perdera-se no outro lado de Albert Bridge, onde um instante de desatenção tivera como resultado vinte exasperantes minutos dando voltas a Clapham Common, à procura da A205. Quando finalmente a encontrara e conseguira fazer o trajecto até Lewisham, começara a interrogar-se sobre quão eficaz seria a internet enquanto método de localização de testemunhas periciais.
Neste caso em particular, a testemunha vivia em Westerham, onde era proprietária de uma pequena loja, situada a pouca distância de Quebec House.
- Não há nada que enganar - dissera ele ao telefone. - Quebec House fica no cimo de Edenbridge Road. Tem um sinal à frente. Quebec House está aberta hoje, por isso é provável que encontre uma ou duas carruagens no parque de estacionamento. Eu estou a menos de quinhentos metros para sul.
E assim era, descobriu ela, ao dar com um edifício de madeira que ostentava um letreiro sobre a porta onde se lia Quiver Me Timbers.
Chamava-se Jason Harley e a loja era também a sua casa. O edifício original fora dividido em duas metades erguendo uma parede precisamente na zona central da casa. Uma porta excessivamente larga fora aberta nessa parede, e foi através dela que Jason Harley surgiu, rolando numa sofisticada cadeira de rodas igual às dos maratonistas, quando Barbara premiu a campainha da loja.
- Detective Havers? - perguntou Harley.
- Barbara - retorquiu ela.
Ele atirou para trás das costas uma massa de espessos cabelos loiros, muito lisos.
- Barbara será, então. Teve sorte em apanhar-me em casa. Costumo praticar tiro aos domingos - fez recuar ligeiramente a cadeira de rodas e convidou-a a entrar. - Certifique-se de que o sinal de fechado se mantém virado para fora, por favor. Tenho um clube de admiradores locais que gosta de aparecer quando percebe que estou aberto - esta última observação foi feita em tom irónico.
- Problemas? - perguntou Barbara, pensando em rufias, vândalos e nos tormentos que estes podiam infligir a um paraplégico.
- Garotos de nove anos. Fui fazer uma palestra à escola deles e agora vêem-me como um herói - Harley sorriu afavelmente. - Em que posso ajudá-la, então, Barbara? Disse-me que queria ver o que eu tinha.
- Exactamente.
Tinham-no descoberto através da internet, onde ele mantinha uma página na Web, e o facto de viver próximo de Londres fora o factor decisivo que a levara a escolhê-lo como testemunha pericial. Ao telefone, que servia
a casa e a loja em simultâneo, Jason Harley dissera-lhe que não estava aberto aos domingos, mas quando ela lhe explicara as razões que estavam por detrás do seu telefonema, concordara em encontrar-se com ela.
Agora, que estava na loja dele, aproveitou para observar rapidamente o tipo de artigos e materiais que Jason Harley vendia: fibra de vidro, carbono. Encostados à parede viam-se alguns armeiros, enquanto ao longo da única parede lateral da casa se alinhavam algumas vitrinas. O extremo mais afastado da casa era ocupado por uma pequena zona de montagem. Ao centro havia um expositor de madeira de ácer, dentro do qual fora colocada, dentro de um estojo de vidro, uma medalha presa a uma fita. Tratava-se de uma medalha de ouro olímpica, conforme Barbara pôde comprovar quando a examinou de perto. Jason Harley não era apenas conhecido ali.
Quando tornou a dar-lhe atenção, viu que ele a observava.
- Estou impressionada - confessou. - Ganhou-a nessa cadeira de rodas?
- Podia tê-lo feito - disse ele. - E fá-lo-ia hoje, também, se tivesse um pouco mais de tempo livre para praticar. Mas na época não andava de cadeira de rodas. Isso aconteceu mais tarde, na sequência de um acidente de asa delta.
- Duro, isso - comentou ela.
- Adaptei-me. Melhor do que muitos, devo dizer. Em que posso aju dá-la, Barbara?
- Fale-me sobre flechas de cedro - pediu ela.
A medalha de ouro olímpica ganha por Jason Harley representava o culminar de anos de treino e competição. Esses anos de treino e competição tinham-lhe conferido um elevado grau de conhecimentos no campo do tiro ao arco. O acidente de asa delta obrigara-o a reflectir sobre a forma como poderia usar as suas proezas desportivas e os seus conhecimentos e ganhar o dinheiro suficiente para se sustentar a si próprio e à família que ele e a namorada desejavam constituir. O resultado fora aquela loja, onde vendia as delgadas flechas de carbono utilizadas pelos arcos modernos feitos de fibra de vidro ou de madeira laminada. Era também lá que fabri cava, à mão, e vendia as flechas de madeira usadas nos arcos tradicionais que, desde a Batalha de Agincourt, tanto prestígio tinham dado ao tiro ao arco britânico.
Os seus clientes podiam ainda adquirir na sua loja o equipamento necessário para a prática do tiro ao arco,desde as complicadas protecções para as mãos e para o corpo usadas pelos atiradores,até às pontas das flechas,que diferiam consoante a utilização que era dada à flecha.
E quanto a matar um rapaz de dezanove anos pelas costas? era o que Barbara gostaria de perguntar ao atirador. Que tipo de ponta seria necessário para isso? Decidiu prosseguir com calma,no entanto,sabendo que ia necessitar de reunir um elevado conjunto de informações para fornecer a Lynley e,assim,tentar amolecer ligeiramente a resistência firme que ele lheopunha.
Pediu a Harley que lhe falasse sobre as flechas de madeira que ele próprio fabricava,em particular sobre as que eram feitas a partir de cedro Port Orford.
Ele só fazia flechas de madeira de cedro, corrigiu ele. As hastes vinham do Oregon. Aí, eram pesadas e classificadas uma por uma, sendo depois submetidas a um teste de flexibilidade antes de serem despachadas por barco.
- São extremamente fiáveis - disse ele -, o que é importante, porque quando o arco é pesado, é necessária uma flecha suficientemente resistente para o suportar. Pode-se fazer flechas em pinho ou em freixo - continuou, depois de lhe ter passado um exemplar feito com madeira de cedro para que ela o examinasse -, algumas até com madeira da região e outras com madeira sueca. Só que é mais fácil adquirir cedro de Oregon, devido à quantidade, presumo eu. Todas as lojas de material de tiro ao arco em Inglaterra as vendem, penso eu.
Conduziu-a até à parte de trás da loja, onde ficava situada a zona de trabalho. Aí, construída à altura da cintura dele, uma linha de montagem de tamanho reduzido permitia-lhe mover-se facilmente entre a serra redonda que abria uma ranhura na haste da seta até ao aparelho de empenagem, onde eram coladas as penas de galo. A ponta da flecha, por sua vez, era colada com Araldite. E, tal como já dissera, esta diferia consoante o uso que seria dado à flecha.
- Alguns arqueiros preferem fazer as suas próprias flechas - revelou -, mas uma vez que se trata de um tipo de trabalho exigente, como pode comprovar pessoalmente, a maioria procura um fabricante que seja do seu agrado e a quem possa comprar as flechas. O fabricante pode gravar a marca que o arqueiro quiser... sem exageros, claro... desde que ele lhe diga que tipo de identificação pretende.
- Identificação?
- Por causa das competições - explicou Harley. - Hoje, este tipo de arco é usado sobretudo para esse fim.
Os arqueiros participavam em dois tipos de competições: torneios e tiro ao ar livre. Nos primeiros, atiravam para alvos tradicionais: doze dúzias de setas atiradas para uma mosca a partir de distâncias diferentes. No segundo praticavam em bosques ou encostas. As flechas tinham como alvo animais cujas imagens estavam reproduzidas em papel. Nos dois casos, porém, a única forma de determinar o vencedor era através das marcas de identificação individualizadas feitas nas flechas. E todo o arqueiro de competição em Inglaterra tomava as devidas precauções para que as suas flechas fossem diferentes das flechas de qualquer outro arqueiro, igualmente em competição.
- De que outra forma seria possível distinguir uma flecha que tivesse atingido o alvo? - perguntou Harley com razão.
- Certo - disse Barbara. - De que outra forma, realmente. Ela lera o relatório da autópsia de Terry Cole. Sabia, pela conversa que tivera com St. James, que Lynley fora informado da existência de uma terceira arma além do canivete e da pedra já identificadas como tendo sido usadas para agredir as vítimas. Agora que a terceira arma estava praticamente identificada, começava a perceber como ocorrera o crime.
- Diga-me, Mr. Harley, com que rapidez é que um bom arqueiro, com dez ou mais anos de experiência, consegue atingir um alvo com flechas sucessivas? Usando um arco deste tipo, claro.
Ele reflectiu sobre a pergunta, os dedos repuxando o lábio inferior.
- Dez segundos, diria eu. No máximo.
- Tanto tempo?
- Eu mostro-lhe.
Ela pensou que Harley fosse ele próprio fazer a demonstração. Em vez disso, porém, tirou uma aljava do armeiro, enfiou seis flechas lá dentro e fez sinal a Barbara para que se aproximasse.
- Dextra ou canhota? - perguntou.
- Dextra.
- Muito bem. Agora vire-se.
Sentindo-se um pouco ridícula, deixou que ele passasse a aljava pelo seu corpo, ajustando o tirante em volta do tórax.
- Imagine que tem o arco na mão direita - explicou-lhe depois de ter ajustado a aljava. - Agora leve a mão atrás para tirar uma flecha. Uma só.
Quando a agarrou - não sem alguma dificuldade - ele fez-lhe notar que, em seguida, teria de a encaixar na corda Dracon do arco. Depois, teria de puxar a corda e apontar para um alvo.
- Não é como uma arma - lembrou ele. - Temos de carregar e apontar novamente depois de cada tiro. Um bom arqueiro consegue fazê-lo abaixo dos dez segundos. Mas alguém como a senhora, sem querer ofender...
Barbara riu-se.
- Dê-me vinte minutos.
Olhou para o seu reflexo no espelho que estava pendurado na porta por onde Jason aparecera quando ela entrara na loja. De pé, praticou o movimento de levar a mão atrás das costas e tirar uma flecha. Imaginou- se armada com um arco e tentou visualizar um alvo na sua frente: não uma mosca ou um animal em papel, mas um ser humano. Dois, para ser mais exacta, sentados junto a uma fogueira, a única fonte de luz no local.
Ele não atirou para a rapariga, porque não andava atrás dela, pen sou. Só que não dispunha de outra arma, e estava desesperado para matar o rapaz, por isso tinha de usar a que trouxera e ter esperança que o tiro o matasse, porque - com outra pessoa presente - não iria correr o risco de atirar na direcção de Cole uma segunda vez.
Que se passara, então? Falhara o tiro. Talvez o rapaz se tivesse mexido no último momento. Talvez tivesse feito pontaria para o pescoço, mas tivesse acabado por atingi-lo mais abaixo, nas costas, por exemplo. A rapariga, percebendo que havia alguém no escuro a tentar fazer-lhes mal, deve ter-se posto de pé num salto pronta para sair dali. E uma vez que tinha desatado a correr e que estava escuro, era inútil tentar atingi-la com o arco e a flecha. Por isso, lançara-se rapidamente no seu encalço, desfizera-se dela e voltara para junto do rapaz.
- Jason - disse Barbara -, que sentiria se fosse atingido nas costas por uma destas flechas? Perceberia que tinha sido atingido? Por uma flecha, quero eu dizer.
Harley olhou atentamente para o armeiro onde se encontravam as flechas, como se a resposta estivesse escondida no meio delas.
- Suponho que primeiro sentiria um forte impacte - disse, lentamente. - Como se tivesse sido atingido por um martelo.
- Ficaria capaz de se mexer? De ficar em pé?
- Não vejo porque não. Até me aperceber do que me tinha realmente acontecido, claro. Depois, o mais provável era que entrasse em estado de choque, sobretudo se levasse a mão atrás e sentisse a haste espetada nas costas. O que seria muito feio, o suficiente para...
- Desmaiar - acrescentou Barbara. - Perder os sentidos ou cair.
- Exacto - concordou ele.
- Nessa altura a flecha partir-se-ia, não?
- Dependendo da forma como a pessoa caísse.
O que, concluiu ela em pensamento, deixaria provavelmente uma lasca enterrada no corpo, quando o assassino - ansioso por retirar do corpo uma prova que acabasse por levar a polícia a identificá-lo - puxou a flecha, arrancando-a das costas da vítima. Nessa altura, porém, Terry Cole não estaria ainda morto, apenas em estado de choque. O que implicava que o assassino teria, ainda, de o matar depois de se ter livrado da rapariga. Não possuía outra arma a não ser o arco, pelo que seria obrigado a procurar uma alternativa no acampamento.
E tendo-a encontrado, depois de ter esfaqueado mortalmente o rapaz; pôde procurar livremente aquilo que supunha que Terry Cole tinha levado com ele: a partitura musical de Chandler, a fonte da fortuna que lhe tinha sido negada pelo testamento do pai.
Havia apenas um último ponto que ela gostaria que Jason Harley clarificasse.
- Jason, é possível que a extremidade da flecha...
- A ponta - corrigiu-a ele.
- A ponta, exacto. É capaz de perfurar o corpo humano? Ou seja, sempre pensei que quando usadas em eventos públicos, as flechas tinham de ter pontas de borracha ou coisa do género.
- Está a referir-se às ventosas? - perguntou ele com um sorriso. Como as que existem nos arcos e flechas para crianças?
Passou por ela na cadeira de rodas e aproximou-se das costas de uma das vitrinas, de onde tirou uma caixa pequena, que esvaziou em cima do balcão de vidro. Eram pontas usadas nas extremidades das flechas de ced A mais vulgarmente usada no tiro ao arco ao ar livre. Barbara podia verificar como era aguçada, se assim o desejasse.
Tratava-se de uma peça cilíndrica de metal, adaptada ao formato de flecha, mas que se ia tornando progressivamente mais delgada até formar uma ponta de quatro lados que seria mortal, se disparada com força suficiente. Enquanto ela espetava a ponta no dedo, Harley ia-lhe falando sobre os outros tipos de pontas que tinha à venda. Mostrou-lhe pontas largas e pontas de caça e explicou-lhe as utilizações de cada uma. Finalmente, separou-as das reproduções medievais.
- Quanto a estas - concluiu -, são usadas em demonstrações e em batalhas.
- Batalhas? - perguntou Barbara, incrédula. - Mas há mesmo pessoas que andem a atirar flechas umas às outras?
- Não são batalhas verdadeiras, claro, e quando o combate começa, as extremidades das setas são protegidas com aplicações de borracha para que não constituam perigo para ninguém. São reconstituições de batalhas. Há grupos de guerreiros de fim-de-semana que se reúnem nos terrenos de algum castelo ou solar para reconstituir a Guerra das Rosas. Em todas as zonas rurais acontecem coisas do género.
- Há, então, pessoas que viajam para participar nessas reconstituições? Levando arcos e flechas na mala do carro?
- É precisamente isso que essas pessoas fazem.
CAPÍTULO 27
Chovia sem parar. O vento surgira entretanto. No parque de estacionamento do Black Angel Hotel, o vento e a chuva ensopavam o cimo de um monte de lixo que enchia por completo uma vagoneta. O vento empurrava e fazia rodopiar caixas de cartão e jornais, enquanto a chuva colava uns e outros aos pára- brisas e aos rodados dos automóveis vazios.
Lynley saiu do Bentley e enfrentou a tempestade de final de Verão armado com o guarda-chuva. Carregando a mala na mão, contornou em passo rápido o edifício até alcançar a porta do hotel. Logo à entrada, um cabide exibia uma profusão de sobretudos e casacos encharcados pertencentes a mais de uma dezena de clientes de domingo, cujas silhuetas Lynley conseguia distinguir através do vidro âmbar que decorava a parte superior da porta de acesso ao bar do hotel. Ao lado do cabide, cerca de dez guarda-chuvas amontoavam-se num suporte comprido de ferro, cintilando, molhados, sob a luz da entrada. Antes de entrar, Lynley tentou secar os sapatos molhados. Em seguida, pendurou o sobretudo no meio dos restantes, enfiou o guarda-chuva junto dos que já lá se encontravam e atravessou o bar dirigindo-se à Recepção.
Se o proprietário do Black Angel ficou surpreendido por vê-lo de volta tão cedo, não o demonstrou. Afinal, a época turística estava quase no fim, pelo que todos os clientes que lhe entrassem porta dentro nos meses que se avizinhavam eram mais do que bem- vindos. Entregou uma chave a Lynlly - do mesmo quarto que ele ocupara durante a sua estada anterior, infelizmente - e quis saber se o inspector desejava que alguém levasse a até ao quarto ou se preferia ele próprio encarregar-se disso. Lynley entregou-lhe a mala e dirigiu-se ao bar decidido a comer qualquer coisa.
A hora de almoço terminara já há algum tempo, mas ainda era possível prepararem-lhe uma salada fria ou uma batata recheada, desde que não tivesse preferência especial por nenhum tipo de recheio. Não tinha, pediu que lhe trouxessem os dois pratos.
Quando lhe trouxeram a comida, no entanto, Lynley descobriu que não tinha tanta fome como julgara. Tirou um bocado de batata com recheio de queijo cheddar, mas quando levou o garfo aos lábios, sentiu a língua contrair-se diante da perspectiva de engolir algo sólido, mastigado ou não. Baixou o garfo e pegou no copo de cerveja. Podia sempre embriagar-se.
Queria acreditar neles. Queria acreditar neles, não porque tivessem conseguido apresentar-lhe provas, por mínimas que fossem, que confirmavam a veracidade das suas declarações, mas sim porque não queria acreditar em mais nada. De tempos a tempos havia polícias que se deixavam corromper, e só um louco seria capaz de negar esse facto. Birmingham, Guildford e Bridgewater eram apenas três lugares associados a números - seis, quatro e quatro, respectivamente - referentes à quantidade de réus condenados com base em provas falsas, obtidas à força de espancamentos durante interrogatórios e de confissões fabricadas validadas por assinaturas forjadas. Cada uma dessas condenações tivera origem em incompetências policiais, para as quais não havia qualquer desculpa possível. Os maus polícias existiam, portanto, quer fossem considerados excessivamente zelosos, tendenciosos, absolutamente corruptos ou apenas demasiado indolentes ou ignorantes para exercerem as suas funções da forma que deviam exercê-las. Lynley, porém, não queria acreditar que Andy Maiden se tornara um mau polícia. Não queria sequer acreditar que Andy era apenas um pai que atingira os limites da tolerância na sua relação com a filha. Mesmo naquele momento, depois de ter conversado com Andy, depois de ter testemunhado a acção combinada entre ele e a mulher e tendo de avaliar o significado de cada palavra e de cada gesto trocados entre ambos, Lynley descobria que o seu coração e a sua mente se debatiam ainda com os principais factos do caso. Nan Maiden viera ter com eles ao escritório confinado que ficava atrás da Recepção de Maiden Hall. Fechara a porta. O marido dissera-lhe, Não percas tempo connosco, Nancy. Os hóspedes... Nan, não és necessária
aqui", olhando para Lynley, com uma expressão de súplica que traía um pedido silencioso a que Lynley não atendeu. Necessária, era precisamente aquilo que Nan Maiden era, se quisessem apurar com exactidão o que se passara com Nicola em Calder Moor.
- Não estamos à espera de mais ninguém hoje - dissera ela a Lynley. - Eu disse ao inspector Hanken, ontem, que Andy ficou em casa naquela noite. Expliquei-lhe...
- Sim, eu sei - confirmara Lynley. - Ele disse-me.
- Nesse caso, não percebo a vantagem de nos fazer mais perguntas - permanecera teimosamente junto à porta, e quando prosseguira as suas palavras soaram tão tensas e rígidas como o seu corpo. - Sei que foi para isso que cá veio, inspector: para interrogar Andy em vez de nos trazer informações sobre a morte de Nicola. Andy não estaria no estado em que está, commo se estivesse a ser devorado por dentro, se não lhe tivesse vindo perguntar se ele de facto... se foi até à charneca para... e aqui, a voz falhara-lhe.
- Ele estava aqui na terça-feira à noite. Eu disse isso ao inspector Hanken. Que mais quer de nós?
Toda a verdade, pensara Lynley. Queria ouvi-la. Mais, queria que ambos a enfrentassem. No último instante, porém, quando podia ter-Lhe revelado a verdadeira natureza da vida que a filha levava em Londres, calara-se. Todos os factos relacionados com Nicola acabariam por ser postos a nu, mais cedo ou mais tarde. Nas salas de interrogatório, nos depoimentos legais e durante o julgamento. Não havia, por isso, razão nenhuma para os trazer ao de cima naquele momento, como se fossem ossos de um esqueleto arrancados à força de dentro de um armário e de cuja existência a mãe da rapariga nem sequer suspeitava. O mínimo que podia fazer naquele momento era satisfazer os desejos de Andy Maiden, e estava decidido a fazê-lo.
- Existe alguém que possa confirmar as suas declarações, Mrs. Maiden? - perguntara. - O inspector Hanken disse- me que Andy tinha ido deitar-se cedo nessa noite. Alguém o viu?
- Quem mais o podia ter visto? Os nossos funcionários não frequentam a zona privada da casa, a não ser que recebam ordens para tal.
- E não pediu a nenhum deles que fosse espreitar Andy nessa noite?
- Eu mesma fui ver como ele estava.
- Percebe, então, qual é a nossa dificuldade, não é verdade?
- Não, não percebo. Porque eu estou a dizer-lhe que Andy não cerrara os punhos junto da garganta e fechara os olhos com força. - Ele não a matou.
Finalmente, alguém pronunciara as palavras. Todavia, mesmo depois de terem sido ditas, a pergunta lógica que Nan Maiden podia ter colocado permaneceu por dizer. Ela nunca perguntou, Porquê? Por que razão o meu marido teria morto a sua única filha? E esta era uma omissão reveladora.
A pergunta teria sido o melhor desafio que Nan Maiden podia ter lançado às conjecturas da polícia acerca do marido, era um gatilho que podia ter puxado, que obrigava a polícia a apresentar uma razão credível que justificasse a realização de um crime impensável contra a natureza humana. Ela, porém, não a fizera. E tal como quase todas as pessoas que não colocam questões quando estas se impõem, denunciou-se. Ao fazer a pergunta, com efeito, estaria a dar a Lynley uma oportunidade para plantar no seu espírito a semente de uma dúvida que ela, obviamente, não podia permitir que germinasse. Era preferível negar e evitar a ter de pensar o impensável, primeiro, e depois ter de aprender a aceitá-lo.
- Tanto quanto sabiam, quais eram os planos da vossa filha para o futuro? - perguntara Lynley aos dois, dando a Andy Maiden a oportunidade de revelar à mulher o pior sobre a filha de ambos.
- A nossa filha não tem futuro - respondera Nan. - Por isso, os planos dela, fossem eles quais fossem, são irrelevantes, não é verdade?
- Vou pedir um teste no polígrafo - dissera Andy Maiden, abruptamente.
Lynley percebeu que se tratava de uma estratégia da parte dele para evitar que a mulher soubesse o tipo de vida que a filha levava em Londres.
- Não deve ser muito difícil de conseguir, pois não? Deve ser possível arranjar alguém... Eu quero fazê-lo, Tommy.
- Não faças isso, Andy.
- Se for preciso, fazemos os dois - acrescentara Maiden, ignorando a mulher.
- Andy!
- De que outra maneira podemos provar-lhe que está enganado? perguntara Maiden à mulher.
- Mas os teus nervos - insistira ela -, no estado em que te encontras... Andy, eles vão espremer-te, dar-te a volta. Não faças isso.
- Não é nada que me assuste.
E não assustava de facto, conforme Lynley pudera ver. E fora sobre isso que reflectira durante o trajecto de regresso a Tidewell, onde ficava situado o Black Angel Hotel.
Agora, diante da refeição, Lynley pensava sobre essa ausência de medo e no que ela podia significar: inocência, bravura ou dissimulação. Qualquer uma das três hipóteses era válida, e apesar de tudo o que sabia sobre o outro homem, não tinha dúvidas sobre aquela em que depositava ainda as suas esperanças.
- Inspector Lynley?
Ergueu os olhos. A empregada do bar olhava com uma expressão desconfiada para a refeição intacta. Preparava-se para se desculpar por ter pedido um prato que era incapaz de comer,quando ela disse:
- Tem uma chamada de Londres. O telefone está atrás do bar,se quiser atender.
Era Winston Nkata,e a sua voz soou urgente.
- Está feito,chefe - disse conciso,mal ouviu a voz de Lynley. - As autópsias mencionam um pedaço de madeira de cedro encontrado no corpo de Cole. St. James diz que a primeira arma foi uma flecha. Disparada no escuro. A rapariga desatou a correr,por isso ele não conseguiu atingi-la e teve de ir atrás dela para a liquidar com a pedra.
Nkata explicou em pormenor as conclusões a que chegara St. James após a leitura do relatório,a sua interpretação das informações nele contidas,bem como os dados que ele - Nkata - conseguira recolher sobre arcos e flechas junto de um atirador de Kent.
- O assassino terá levado a flecha com ele,porque a maior parte dos arcos é usada em competições - concluiu Nkata -,e todas as flechas têm uma marca que as identifica.
- Que tipo de marca?
- As iniciais do atirador.
- Santo Deus. Isso identifica o autor do crime.
- É, não é? As iniciais podem ser talhadas, gravadas a quente na madeira ou decalcadas. Seja como for, se fossem deixadas no local do crime, teriam o mesmo efeito de impressões digitais.
- Boa, Winnie - disse Lynley. - Excelente trabalho.
O detective pigarreou.
- Bom, o trabalho está aí para ser feito.
- Nesse caso, se encontrarmos o atirador teremos o assassino - comentou Lynley.
- Parece que sim - Nkata fez a pergunta que se impunha. - Falou com os Maiden, inspector?
- Ele quer ser submetido a um teste poligráfico - informou Lynley, referindo-se depois ao encontro que tivera com os pais da rapariga.
Quando acabou de lhe contar o episódio, Nkata lembrou.
- É preciso certificarmo-nos de que lhe perguntam se ele costuma brincar à Guerra dos Cem Anos nas suas tardes livres.
- Como?
- É o que as pessoas que praticam tiro ao arco costumam fazer. Participam em competições, torneios e reconstituições. Será que o nosso Mr. Maiden anda a combater os franceses para se divertir aí em Derbyshire?
Lynley reteve a respiração. Foi como se lhe tivessem tirado um peso de cima dos ombros, no preciso instante em que, no interior do seu cérebro, se dissipava uma cortina de nevoeiro.
- Broughton Manor.
- O quê?
- É onde vou descobrir um arco - explicou Lynley. - E tenho quase a certeza que conheço alguém que sabe utilizá-lo.
Em Londres, Barbara viu Nkata pousar o telefone. Ele olhou-a com uma expressão carregada.
- O que foi? - sentiu um aperto no coração. - Não me digas que ele não acreditou no que Lhe disseste, Winnie.
- Acreditou, sim.
- Graças a Deus - olhou para ele com mais atenção. Parecia preocupado. - Que se passa, então?
- O trabalho é teu, Barb. Não gosto de receber louros que não mereço.
- Ah, isso. Ora, não estavas à espera que ele fosse acreditar em mim, se tivesse sido eu a telefonar-lhe. É melhor assim.
- Favorece-me em relação a ti, e não me agrada saber que não fiz nada para o merecer.
- Esquece isso. Era a única maneira. Tenho de ficar fora de cena, para que Sua Alteza Real não tenha um ataque. E ele, vai fazer o quê?
Nkata disse-lhe que Lynley fazia tenções de procurar o arco em Broughton Manor. Barbara abanou a cabeça perante a inutilidade deste raciocínio.
- Ele está a perseguir fantasmas, Winnie. Não vai encontrar arco nenhum em Broughton Manor.
- Como podes estar tão certa?
- Sinto-o - juntou o material que trouxera para o gabinete de Lyn ley. - É provável que telefone a dizer que estou com gripe, mas tu não me ouviste dizer nada, está bem?
Nkata concordou.
- Vais fazer o quê, tu?
Barbara pegou no que Jason Harley lhe dera antes de ela ter deixado a loja dele, em Westerham. Era uma extensa lista com os contactos dos indivíduos que recebiam os seus catálogos trimestrais. Entregara-lha generosamente, juntamente com os registos de todos os pedidos de encomendas recebidos nos últimos seis meses.
- Não devem servir de muito - dissera-lhe -, porque há uma quantidade enorme de lojas em todo o país onde o seu homem podia ter encomendado as flechas. Mas se quiser, pode levá-los.
Ela aceitara de imediato, trazendo inclusive dois catálogos como referência. Uma opção de leitura para um domingo à noite, pensara enquanto os enfiava no saco. Da maneira como a vida lhe estava a correr, não ia ter muito que fazer nos próximos tempos.
- E tu? - perguntou a Nkata. - O inspector deu-te alguma tarefa?
- É domingo, dia da minha saída nocturna com o papá e a mamã.
- Ora aí está o que eu chamo uma missão.
Cumprimentou-o e preparava-se para sair quando o telefone que estava sobre a secretária de Lynley tocou.
- Oh, podes dizer adeus ao passeio de domingo à noite, Winston.
- Merda - resmungou ele, agarrando no telefone.
- Não, não está aqui. Desculpe... Em Derbyshire... Detective Winston Nkata... Sim. Exacto. Quase, mas não é exactamente o mesmo caso...
Seguiu-se uma pausa mais demorada, como se alguém continuasse a falar sem parar.
- Ai está? - retomou Nkata com um sorriso.
Olhou para Barbara e, por alguma razão, fez-lhe um sinal com o polegar erguido.
- Boas notícias, essas. As melhores possíveis. Obrigado - ouviu durante mais um bocado e consultou o relógio pendurado na parede.
Certo. Perfeito. Trinta minutos, está bem assim? Sim, é claro que temos alguém que pode ir até aí registar um depoimento.
Desligou o telefone pela segunda vez e fez sinal a Barbara.
- És tu.
- Eu? Espera aí, Winnie, não tens nenhuma autoridade para me dares ordens - protestou Barbara, vendo os seus planos para domingo à noite irem por água abaixo.
- Pois não, mas não me parece que queiras deixar passar esta.
- Estou fora do caso.
- Eu sei que estás. Mas de acordo com o que diz o chefe, isto também já não faz propriamente parte do caso, por isso não vejo por que razão não podes ser tu a ocupar-te disso.
- A ocupar-me de quê?
- De Vi Nevin. Está consciente, Barb. E alguém tem de ir recolher o seu depoimento.
Lynley telefonou para casa do inspector Hanken, e foi encontrá-lo isolado na pequena garagem, tentando perceber as instruções de montagem de um pequeno baloiço de criança.
- Não sou nenhum engenheiro - desabafou, zangado, aparentemente agradecido por ter um pretexto que o desviasse da tarefa inglória.
Lynley pô-lo ao corrente dos últimos acontecimentos. Hanken concordou com a hipótese de a arma desaparecida ser uma flecha e o respectivo arco.
- isso explica porque não foi atirada para dentro do contentor de areia juntamente com o canivete - disse. - E se o que vamos encontrar na flecha são, de facto, iniciais, tenho quase a certeza de quem se trata.
- Estou a lembrar-me do que me contou sobre as diversas formas que Julian Britton encontrou para fazer dinheiro em Broughton Manor -, comentou Lynley. - Parece-me que estamos, finalmente, a aproximarmo-nos dele, Peter. Vou até lá agora para...
- Vai até lá? Onde diabo está você? - perguntou Hanken. - Não está em Londres?
Lynley alimentava poucas dúvidas sobre as conclusões a que Hanken iria chegar quando ficasse a conhecer as razões que tinham levado Lynley a regressar tão depressa a Derbyshire, e o colega não o desiludiu.
- Eu sabia que era Maiden - exclamou Hanken quando Lynley concluiu a sua explicação. - Foi ele que encontrou o carro na charneca, Thomas. E jamais podia tê-lo descoberto, se não soubesse desde o início onde ele estava. Ele sabia que ela andava na vida em Londres e não conseguiu suportar a ideia. Por isso, limpou-lhe o sebo. Era a única forma, devo dizer que ele tinha de a impedir de contar as novidades à mãe.
As conclusões de Hanken aproximam-se de tal modo do verdadeiro desejo de Maiden que a perspicácia demonstrada pelo colega provocou-lhe um arrepio. No entanto, disse:
- Andy diz que quer passar pelo detector de mentiras. Não acredito que se oferecesse para uma coisa dessas, se tivesse as mãos manchadas com o sangue de Nicola.
- O diabo é que não se oferecia - contrapôs Hanken. - Este tipo foi agente infiltrado, não nos podemos esquecer desse facto. Se não tivesse sido capaz de mentir na perfeição, neste momento seria um homem morto. Fazer um teste poligráfico a Andy Maiden vai ser uma brincadeira. Às nossas custas, aliás.
- Mas Julian Britton continua a ser quem tem o motivo mais consis tente - observou Lynley. - Deixe-me ver se consigo abalá-lo um pouco.
- Você está a entrar no jogo de Maiden. Sabe isso, não sabe? Ele está a manipulá-lo, como se tivessem andado na escola juntos.
O que, em certo sentido, não deixava de ser verdade. Lynley, no en tanto, recusava-se a deixar-se influenciar pela história que tinham em comum. Recusava-se a deixar-se influenciar de todo. Era tão imprudente acreditar sem a menor sombra de dúvida que Andy Maiden era o assassino como o era ignorar a possível culpa de outra pessoa com um motivo mais consistente.
Hanken desligou. Lynley telefonara-lhe do quarto de hotel, pelo que reservou cinco minutos para desarrumar a mala antes de se dirigir a Broughton Manor. Deixara o guarda-chuva e o impermeável na entrada quando subira para fazer a chamada, e foi apanhá-los depois de ter dei xado a chave do quarto na recepção.
A maioria dos clientes do Black Angel já se tinha ido embora. Restavam apenas três guarda-chuvas no suporte junto à entrada e, além do seu impermeável, havia somente um casaco pendurado no cabide.
Em circunstâncias diferentes, um casaco pendurado num cabide não teria prendido a sua atenção. Todavia, enquanto tentava soltar o cabo do seu guarda-chuva, que ficara preso nas varetas de um outro, fez com que o casaco que estava pendurado caísse no chão, o que o obrigou a apanhá- lo para tornar a pô-lo no sítio.
O facto de se tratar de uma peça de cabedal não lhe disse nada, inicialmente. Tal como o facto de ser preto não lhe causou nenhuma estranheza. Foi só quando o silêncio e a semiobscuridade que envolvia o bar do hotel, anteriormente cheio de gente, lhe confirmou que todos os clientes tinham de facto partido que ele percebeu que aquele blusão não tinha dono.
Olhou primeiro para a porta do bar, cujas luzes estavam agora apagadas, e depois para o blusão de cabedal preto, sentindo um formigueiro percorrer-Lhe o couro cabeludo. Não, não pode ser, pensou. Todavia, as palavras ainda mal se formavam dentro da cabeça e já os seus dedos tocavam o forro teso. Havia apenas uma substância capaz de ter um efeito semelhante num tecido macio, porque essa substância não seca, coagula...
Lynley largou o guarda-chuva. Pegou no blusão e aproximou-o da janela do vestíbulo, onde a iluminação mais intensa lhe permitia examiná-lo melhor. E aí viu que, além da substância que alterara a textura do forro, o cabedal apresentava outros danos. Havia um buraco nas costas, do tamanho de uma moeda de cinco pence, talvez.
À parte o facto de saber que o forro do blusão estivera outrora ensopado em sangue, Lynley não precisava de ser estudante de Anatomia para perceber que o buraco feito no casaco coincidia exactamente com a zona onde assentara a omoplata esquerda do desgraçado que o usara.
Nan Maiden foi dar com ele no seu refúgio, que ficava próximo do quarto deles. Saíra do escritório mal o detective deixara o hotel, e ela não o seguira. Passara quase uma hora a arrumar o salão após a saída do último cliente, preparando a sala de jantar para receber os hóspedes e outros clientes que pretendessem comer uma refeição ligeira. Só depois de ter concluído estas duas tarefas, de ter confirmado que a cozinha iniciara já a confecção da sopa do jantar e de ter dado algumas orientações a um grupo de turistas americanos, aparentemente empenhados em recriar cenas de Jane Eyre em North Lees Hall, se dispôs a ir procurar o marido.
A comida era a sua desculpa. Não o via comer há alguns dias, e se continuasse daquela maneira, acabaria certamente por ficar doente. A realidade, porém, era um pouco diferente: não podia deixar que Andy levasse por diante a intenção de ser submetido a um interrogatório em que o seu corpo era perpassado por uma série de eléctrodos. Nenhuma das suas respostas podia ser rigorosa, tendo em conta o estado em que ele se encontrava.
Arranjara um tabuleiro com tudo o que ele podia achar convidativo. Incluíra dois tipos de bebidas e subira as escadas ao encontro dele.
Estava sentado à escrivaninha, e na sua frente tinha uma caixa de sapatos sem tampa, cujo conteúdo espalhara sobre o tampo da secretária. Nan chamou-o, mas ele não a ouviu, absorto como estava nos papéis que tirara de dentro da caixa.
Aproximou-se do marido. Espreitando por cima do seu ombro, viu que ele contemplava um conjunto de cartas, bilhetes, desenhos e postais que cobriam um período de tempo de quase vinte e cinco anos. Cada um deles correspondia a uma ocasião diferente. A origem, porém, era a mesma. Representavam todos os desenhos e outros tipos de missivas que Andy recebera de Nicola ao longo da vida dela.
Nan pousou o tabuleiro ao lado do velho e confortável cadeirão onde Andy se sentava às vezes para ler.
- Trouxe-te alguma comida, querido - disse.
Não ficou surpreendida quando ele não respondeu. Não sabia se não conseguia ouvi-la, ou se apenas desejava ficar sozinho e não queria confessá-lo. Fosse como fosse, não tinha importância. Ela obrigá-lo- ia a ouvi-la e não o deixaria a sós.
- Por favor, não faças o teste do detector de mentiras, Andy - pediu. - Não estás num estado de saúde normal, há meses que não estás bem. Vou telefonar àquele polícia amanhã de manhã para lhe dizer que mudaste de ideias. Não há nada de mal nisso, tens todo o direito a mudar de ideias. Ele há-de compreender.
Andy mexeu-se. Entre os dedos, segurava um desajeitado desenho de criança subordinado ao tema papá saindo do banho, que anos antes tanto os fizera rir à gargalhada. Naquele momento, porém, a contemplação da representação que uma garota fazia do pai nu - que incluía um pénis, hilariantemente desproporcionado - causava calafrios a Nan, seguidos da suspensão de uma das suas funções corporais básicas e de uma parte das emoções do seu coração.
- Eu vou fazer o teste - disse Andy, pondo o desenho de lado. É a única maneira.
A única maneira de quê? apetecia-lhe perguntar. E tê-lo-ia feito, se se sentisse mais preparada para ouvir a resposta. Em vez disso, perguntou:
- E se não passares?
Nessa altura,ele virou-se para ela. Na mão segurava uma carta antiga.
- Nan conseguia distinguir as palavras Querido papá escritas na caligrafia arrojada e firme de Nicola.
- E porque não haveria de passar?
- Por causa do estado em que estás - respondeu ela. - Se os teus nervos estão a piorar,vão dar leituras incorrectas. A polícia vai pegar nestas leituras e interpretá-las da forma errada. A máquina vai dizer que o teu corpo não está a funcionar,mas a polícia há-de chamar-Lhe outra coisa. Chamam-lhe culpa.
A frase pairava entre os dois. Nan teve subitamente a impressão de que tanto ela como o marido se encontravam em continentes diferentes.
Sentia que era ela quem estava a criar o oceano que se interpunha entre ambos,mas não podia correr o risco de o estreitar.
- Um polígrafo mede a temperatura,o pulso e a respiração - disse Andy. - Não haverá nenhum problema. Não tem nada a ver com nervos.- Quero fazê-lo.
- Mas porquê? Porquê?
- Porque é a única maneira.
Alisou a carta sobre o tampo da secretária. Com o dedo indicador, percorreu os contornos das palavras Querido papá.
- Eu não estava a dormir - disse-lhe ele. - Tentei dormir, mas não fui capaz, porque fiquei muito enervado quando a vista me falhou. Porque lhes disseste que tinhas vindo ver como eu estava, Nancy? - ergueu os olhos e os olhares de ambos encontraram- se.
- Trouxe-te comida, Andy - disse ela com vivacidade. - Há-de haver aqui alguma coisa que te interesse. Queres que barre um bocado de uma baguete com um pouco de patê?
- Nancy - volveu ele -, diz-me a verdade, por favor. Não podia. Não podia. Ele criara a vida dele. Vira-a crescer. Guardara cada uma das suas missivas e preservara cada palavra como se fossem tesouros. Estivera ao lado dela durante a doença em criança, nos acessos de cólera próprios da adolescência, na vida adulta, de que ele tanto se orgulhava. Se houvesse, por isso, uma hipótese - nem que fosse a mais ínfima das possibilidades - de o seu estado de saúde físico nada ter a ver com a morte de Nicola, ela agarrá-la-ia com todas as suas forças. Daria a sua vida por isso, se preciso fosse.
- Ela era maravilhosa, não era? - murmurou Nan Maiden, indicando com um gesto as recordações de Nicola que o marido tirara de dentro da caixa onde estavam arrumadas. - A nossa menina era a melhor, não era?
Vi Nevin não estava sozinha no quarto quando Barbara Havers chegou ao Chelsea and Westminster Hospital. Sentada ao lado da cama dela, a cabeça enterrada no colchão como uma suplicante de cabelos laranja aos és de uma deusa envolta em ligaduras estava uma rapariga com braços e pernas finos como os raios de uma bicicleta e os pulsos e tornozelos de un dietista que estivesse em vias de se matar à fome. Levantou a cabeça quando a porta se fechou nas costas de Barbara.
- Como é que entrou aqui? - perguntou, pondo-se de pé numa atitude defensiva e posicionando o corpo desproporcionado entre a intrusa e a cama. - O chui que está lá fora é suposto não deixar entrar ninguém.
- Esteja tranquila - disse Barbara, procurando a identificação dentro do saco. - Eu sou um dos bonzinhos.
A rapariga deu um passo em frente, arrancou o cartão das mãos de Barbara e leu-o, um olho fixo no cartão e o outro em Barbara, não fosse ela executar algum movimento precipitado. Na cama, atrás dela, a doente mexeu-se e murmurou:
- Está tudo bem, Shell. Eu já a conheço. Estava com o negro no outro dia. Lembras-te?
Shell - que se apresentou como a melhor amiga de Vi à face da Terra, Shelly Platt, que se propunha tomar conta de Vi até ao fim dos tempos, que ninguém se esquecesse disso - devolveu a Barbara o cartão de identificação e tornou a sentar-se. Barbara pegou num bloco-notas e numa esferográfica roída e puxou a outra cadeira que havia no quarto, colocando-a numa posição em que tanto ela como Vi Nevin pudessem ver-se uma à outra.
- Lamento muito o que lhe aconteceu - disse. - Eu própria também fui agredida há alguns meses. Uma situação para esquecer, mas ao menos consegui identificar o patife. E a senhora? De que se lembra?
Shelly aproximou-se da cabeceira da cama, pegando na mão de Vi e começando a acariciá-la. A sua presença deixava Barbara irritada. Era como se tivesse sido atacada subitamente por uma dermatite. Todavia, a jovem deitada na cama parecia retirar algum conforto da sua presença. Tudo o que ajudar, pensou Barbara. Ficou sentada, com a esferográfica na mão.
Sob as ligaduras, tudo o que era possível ver do rosto inchado de Vi Nevin eram os olhos, uma pequena parte da testa e um lábio inferior ainda cheio de pontos. Parecia uma vítima do tipo de explosivos que projectam estilhaços em todas as direcções. Falou com uma voz tão sumida que Barbara teve de fazer um esforço para conseguir ouvi-la.
- Estava à espera de um cliente, um tipo idoso. Gosta de ser barrado com mel. Primeiro besunto-o... percebe? Depois lambo-o.
Que delícia, pensou Barbara.
- Certo. Mel, foi o que disse? Óptimo. Continue.
Vestira-se para o encontro com o fato de colegial que era o preferido do cliente. No entanto, quando fora buscar o frasco do mel, apercebera-se de que não tinha a quantidade suficiente para barrar todas as partes do corpo que ele habitualmente preferia. - Havia o suficiente para o pirilau - disse Vi com a franqueza de uma profissional. - Mas se ele quisesse mais, eu precisava de o ter à mão.
- Estou a perceber - retorquiu Barbara.
Na cabeceira da cama, Shelly ergueu uma coxa esquelética e apoiou-a na cama.
- Já estou a ver o que vai acontecer - disse. - Vais ficar estafada. Vi abanou a cabeça e prosseguiu com a sua história. Não havia muito a acrescentar.
Saíra para ir comprar mel antes que o cliente chegasse. Quando regressara, deitara o mel dentro do frasco onde normalmente o guardava e preparara um tabuleiro com panos de linho e as restantes guloseimas - comestíveis ou bebíveis - que usava nas suas sessões com aquele cliente. Quando levava o tabuleiro para a sala de estar ouviu um ruído numa das divisões do piso superior.
Muito bem, pensou Barbara. Estava prestes a ver confirmada a sua interpretação das fotografias tiradas na cena do crime em Fulham. No entanto, querendo ter absoluta certeza, procurou esclarecer, perguntando:
- Era o seu cliente? Chegou antes de si?
- Não era ele - disse Vi num murmúrio.
- Não está a ver que ela está rebentada? - Shelly disse para Barbara. - Por agora chega.
- Só um momento - replicou Barbara. - Tinha um tipo no andar de cima, mas não era o seu cliente? Então, como é que ele entrou? Não tinha trancado a porta?
Vi ergueu a mão a que Shelly não estava agarrada, elevando-a escassos centímetros acima da cama antes de a deixar cair novamente.
- Eu só saí para ir comprar mel - lembrou ela a Barbara. - Demorei dez minutos, se tanto.
Não vira, por isso, razão nenhuma para trancar a porta. Quando ouviu o barulho no piso superior, explicou, foi investigar o que se passava e encontrou um tipo no quarto dela, que estava virado do avesso.
- Conseguiu vê-lo?
Vislumbrara apenas uma sombra no momento em que ele se lançara sobre ela, explicou Vi.
Óptimo, pensou Barbara, porque um vislumbre podia ser o bastante.
- Isso é bom. É fantástico - disse. - Conte-me tudo aquilo de que se lembrar. Seja o que for. Um pormenor, uma cicatriz, uma marca. Qualquer coisa - pediu, evocando o rosto de Matthew King-Ryder, a fim de comparar com tudo o que Vi Nevin dissesse.
Todavia, o que ela lhe forneceu foi a descrição de um homem comum: estatura média, constituição média, cabelo castanho, pele clara. E embora estes traços assentassem em Matthew King- Ryder que nem uma luva, também se adequavam a pelo menos setenta por cento da população masculina.
- Demasiado depressa - arquejou Vi. - Aconteceu tudo demasiado depressa.
- Mas não era o cliente de que estava à espera? Quanto a isso tem certeza?
Os lábios de Vi curvaram-se, e ela contraiu-se quando sentiu os pontos repuxarem.
- O tipo tem oitenta e um anos. Nos seus melhores dias... quase consegue subir as escadas.
- E não era Martin Reeve?
Ela abanou a cabeça.
- Outro dos seus clientes, então? Um antigo namorado, talvez?
- Ela disse... - interrompeu Shelly Platt, com vivacidade.
- Estou a eliminar todas as possibilidades - disse-lhe Barbara. Não há outra hipótese. Quer que engavetemos quem a deixou neste estado, não quer?
Shelly resmungou e fez uma festa no ombro de Vi. Barbara tamborilou com a caneta no bloco-notas e analisou as opções que se lhe apresentavam.
Muito dificilmente conseguiriam arrastar Vi Nevin até uma sessão de i dentificação de suspeitos, e mesmo que tal fosse possível, naquele momento não tinham razão alguma para convocar Matthew King-Ryder para se deslocar à esquadra da sua área de residência a fim de participar numa dessas sessões. Precisavam de uma fotografia, mas a mesma teria de provir de um jornal ou de uma revista. Ou das Produções King- Ryder, mediante uma desculpa qualquer. Porque ao mais pequeno indício de que estavam na sua pista, King-Ryder amarraria o arco e as flechas ao primeiro bloco de cimento que encontrasse e largá-lo-ia no Tamisa num abrir e fechar de olhos.
Iriam precisar de algum tempo para conseguir uma fotografia, já que precisavam do original - nítido e bem definido -, não de uma reprodu ção enviada por faxe para o hospital. E com ou sem faxe, onde diabo iriam eles buscar uma fotografia de Matthew King-Ryder às - Barbara consultou o relógio - sete e meia de um domingo? Não havia forma de a conseguir. Era tempo de dar um tiro no escuro. Respirou fundo e arriscou.
- Por acaso conhece um tipo chamado Matthew King-Ryder? Vi deu a mais inesperada das respostas.
- Conheço, sim.
Lynley segurou o casaco pelo forro acetinado. Fora,sem dúvida,tocado por uma dezena de pessoas desde que fora retirado do corpo de Terry Cole, na terça-feira à noite. Todavia,fora igualmente tocado pelo assassino,e se não soubesse que era quase tão fácil recolher impressões digitais no cabedal como no vidro ou na madeira pintada,havia grandes hipóteses de que, involuntariamente,tivesse deixado a sua marca na peça de vestuário. Quando o proprietário do Black Angel compreendeu a importância do pedido de Lynley,reuniu todos os funcionários no bar,para que lhes fossem colocadas algumas perguntas. Ofereceu chá,café ou qualquer outra bebida ao inspector para acompanhar o interrogatório,procurando ser solícito e dando mostras de uma ansiedade em agradar própria das pessoas que,inadvertidamente,descobrem que se encontram na linha de demarcação que separa o crime da respeitabilidade. Lynley recusou todas as ofertas.
Queria apenas algumas informações,explicou.
De nada adiantou,no entanto,ter mostrado o blusão ao proprietário do hotel e a todos os funcionários. Os blusões eram todos muito parecidos entre si e ninguém sabia dizer, nem como nem quando a peça de roupa que Lynley tinha nas mãos tinha aparecido no hotel. Fizeram as adequadas exclamações de horror e aversão quando ele chamou a atenção para a copiosa quantidade de sangue ressequido que cobria o forro e para o buraco nas costas. E embora tivessem olhado para ele com as devidas expressões de pesar quando ele mencionou as duas mortes recentemente ocorridas em Calder Moor, nem uma só pestana se mexeu quando ele sugeriu que o assassino podia estar entre eles.
- Acho que alguém deve ter deixado isso aqui. Foi isso que aconteceu, não há dúvida - disse o empregado do bar.
- Há casacos que ficam pendurados na entrada o Inverno todo - referiu uma das criadas. - Nunca reparo neles.
- Mas é precisamente por isso - disse Lynley. - Não estamos no Inverno. E até hoje, acho que posso dizer que ainda não tinha chovido o suficiente para obrigar alguém a sair à rua de impermeável, blusão ou sobretudo.
- Onde quer chegar, então? - perguntou o proprietário.
- Como é possível que nenhum de vós tenha reparado num blusãu de cabedal pendurado no cabide, quando é a única peça de roupa que está pendurada?
Os dez funcionários reunidos no bar começaram a andar de um lado para o outro, adoptaram uma expressão tímida ou pesarosa. Nenhum deles, porém, foi capaz de arranjar uma explicação para a presença do blusão nem para a forma como o mesmo tinha vindo ali parar. Entravam pela porta das traseiras, quando vinham trabalhar, e não pela da frente, disseram, E saíam pela mesma porta por onde entravam. Por isso, num dia de trabalho normal, nunca teriam reparado no blusão pendurado no cabide. Além disso, era frequente as pessoas esquecerem-se de coisas no Black Angel como guardas-chuvas, bengalas, apetrechos para a chuva, mochilas, mapas. Tudo acabava por ir parar aos Perdidos e Achados, e até que as coisas lá chegassem, ninguém lhes prestava muita atenção.
Lynley decidiu tentar uma abordagem mais frontal. Todos eles conheciam a família Britton? quis saber. Seriam capazes de reconhecer Julian Britton se o vissem?
O proprietário falou em nome de todos.
- No Black Angel toda a gente sabe quem são os Britton.
- Algum de vocês viu Julian, na terça-feira à noite?
Ninguém.
Lynley autorizou-os a voltar às respectivas tarefas. Pediu que lhe arranjassem um saco onde pudesse guardar o blusão e enquanto esperava que lho trouxessem, caminhou até à janela. Contemplando a chuva que caía, pensou em Tideswell, no Black Angel e no crime.
Ele próprio confirmara que Tideswell era contígua ao lado leste de Calder Moor, e o assassino - muito mais familiarizado com o White Peak do que Lynley - também devia sabê-lo. Assim sendo, estando na posse de um blusão com um orifício incriminatório que teria contado toda a história do crime caso tivesse sido encontrado na cena do crime, tinha de se livrar dele o mais depressa possível. Nada seria mais fácil do que parar no Black Angel Hotel, no caminho para Calder Moor, sabendo, enquanto cliente habitual do bar, que casacos e blusões se acumulavam durante uma estação inteira antes que alguém pensasse sequer em olhar para eles.
Teria Julian Britton, no entanto, sido capaz de pendurar o blusão de cabedal numa entrada sem ser visto por alguém? Era possível, pensou Lynley. Terrivelmente arriscado, mas possível.
E naquele momento, Lynley estava disposto a aceitar o que fosse possível. Obrigava-o a manter o que era provável longe do seu espírito.
Barbara inclinou-se para a frente e perguntou, esforçando-se para que a sua voz não traísse a excitação que sentia:
- Conhece-o? A Matthew King-Ryder? Conhece-o?
- Terry - murmurou Vi.
As pálpebras começavam a pesar-lhe. Barbara, porém, continuou a pressionar a jovem, contrariando os protestos cada vez mais veementes de Shelly Platt.
- Terry conhecia Matthew King-Ryder? Como?
- Música - explicou Vi.
Barbara sentiu a sua confiança reduzir-se de imediato. Merda, pen sou. Terry Cole, a partitura musical de Chandler e Matthew King-Ryder. Não havia nenhuma novidade em tudo aquilo. Estavam novamente num impasse.
Foi então que Vi disse:
- Terry encontrou-a no Albert Hall.
Barbara franziu as sobrancelhas.
- No Albert Hall? Terry encontrou a partitura lá?
- Debaixo de uma cadeira.
Barbara estava atónita. Esforçava-se para que a sua mente percebesse o que Vi Nevin lhe contava.
Terry costumava colocar cartões nas cabinas telefónicas de South Kensington. Trabalhava sempre à noite, pois as probabilidades de ser apanhado em flagrante pela polícia eram menores a essas horas tardias. Durante uma das suas passagens por Queen's Gate, ouvira tocar o telefone de uma das cabinas.
- Na esquina de Elvaston Place com uma das entradas para uma zona de residências particulares - precisara Vi.
Por graça, Terry decidira atender o telefonema e, do outro lado do fio, ouvira uma voz masculina que dissera:
- A encomenda está no Albert Hall. Balcão Q, Fila 7, Lugar 19. Terry sentira-se imediatamente seduzido pela natureza misteriosa do telefonema. A palavra encomenda - remetendo para uma entrega de dinheiro ou de droga ou para uma caixa de correio fora de uso - apontava para a existência de uma transacção. Estando tão próximo de Kensington Gore, onde ficava situado o Royal Albert Hall, virado para o lado sul de Hyde Park, Terry decidira ir até lá ver do que se tratava. Chegara no final de um concerto, pelo que a entrada para a sala de espectáculo estava aberta. Descobrira o lugar num dos balcões mais altos e encontrara um maço de folhas de uma partitura musical escondido debaixo da cadeira.
A partitura de Chandler, concluiu Barbara. Mas que diabo estaria ela a fazer naquele sítio?
Inicialmente, Terry pensara que fora objecto de uma brincadeira destinada ao primeiro idiota que atendesse o telefone na esquina de Elvaston Place. E quando fora ter com Vi Nevin para que ela lhe entregasse uma nova colecção de cartões para distribuir, contara-lhe a sua breve aventura.
- Achei que ele podia conseguir algum dinheiro com aquilo - confessou Vi. - E Nikki pensou o mesmo quando lhe contámos.
Shelly soltou a mão de Vi abruptamente, dizendo:
- Não quero ouvir o nome dessa cabra.
Ao que Vi replicou:
- Vá lá, Shell. Ela está morta.
Shelly voltou para a cadeira onde estivera sentada antes. Sentou-se pesadamente e pôs uma expressão contrariada, cruzando os braços sobre o peito ossudo. Barbara reflectiu por alguns instantes sobre o futuro difícil que estava reservado à relação entre as duas, numa situação em que uma delas se encontrava num estado de perigosa dependência. Vi ignorou a atitude embirrenta da amiga.
Todos eles tinham ambições, contou a Barbara. Terry tinha o seu projecto da Destination Art, e Vi e Nikki estavam a planear abrir uma agência de acompanhantes de luxo. Além disso, precisavam de arranjar uma forma de subsistência depois de Nikki ter rompido com Sir Adrian Beattie. As duas operações dependiam de uma injecção de dinheiro, e a partitura musical afigurara-se-Lhes como uma boa maneira de o conseguir.
- Lembrei-me que a Sotheby's, ou outra casa qualquer, ia leiloar uma peça de Lennon e McCartney, percebe. E neste caso era apenas uma única folha de papel que supostamente ia render alguns milhares de libras. Nós tínhamos um maço inteiro delas. Disse a Terry que ele devia tentar vendê-las e Nikki ofereceu-se para fazer uma pequena investigação e descobrir a casa leiloeira mais indicada. Quando conseguíssemos vender a partitura, dividiríamos o dinheiro entre nós.
- Mas porque haviam de receber uma parte? - perguntou Barbara. Você e Nikki. Afinal, tinha sido Terry quem tinha encontrado as folhas.
- Pois, mas ele tinha um fraco por Nikki - disse Vi, simplesmente. Queria impressioná-la, tinha esse feitio.
O resto da história, Barbara já conhecia. Neil Sitwell, da Bowers, elucidara Terry sobre a questão dos direitos de autor, indicara-Lhe o número 31-32 Soho Square e informara o rapaz de que as Produções King-Ryder o poria em contacto com os advogados de Chandler. Terry encontrara- se com Matthew King-Ryder, levando consigo a partitura. Matthew King-Ryder vira-a e percebera de imediato que era uma forma de conseguir a fortuna que o testamento do pai lhe negava. Mas nesse caso, porque não comprara a partitura ao rapaz? Porquê matá-lo? Melhor ainda, por que razão não terá ele decidido comprar os direitos da música à família de Chandler? Se o espectáculo montado com base na música se parecesse minimamente com os espectáculos passados da dupla King-Ryder/Chandler, o dinheiro obtido em royalties entraria a rodos, mesmo que metade fosse para os Chandler.
Vi dizia nesse momento algo como, não consegui perceber o nome, quando Barbara voltou a si.
- Como? - disse. - Peço desculpa. O que disse?
- Matthew King-Ryder não deu o nome do advogado a Terry. Nem sequer lhe deu tempo para que ele perguntasse fosse o que fosse. Pô-lo fora do escritório mal viu o que Terry levava.
- Quando viu a partitura?
Ela confirmou com um movimento de cabeça.
- Terry disse que ele tinha chamado a segurança. Dois vigilantes que apareceram logo a seguir e puseram-no fora.
- Mas Terry tinha lá ido apenas para pedir o endereço dos advogados de Chandler,não é verdade? Era tudo o que ele queria de Matthew King-Ryder? Não queria dinheiro,pois não? Nem uma recompensa ou outra coisa qualquer?
- Dinheiro era o que nós queríamos que os Chandler lhe dessem, quando soubemos que a partitura não podia ser vendida em leilão.
Nesse momento entrou uma enfermeira com um pequeno tabuleiro quadrado na mão. Sobre ele havia uma agulha hipodérmica. Hora de tomar a medicação,disse ela.
- Só uma última pergunta - disse Barbara. - Por que razão Terry foi a Derbyshire na terça-feira?
- Porque eu Lhe pedi que fosse - disse Vi. - Nikki achava que eu estava a ser um pouco pateta em relação a Shelly - ao ouvir estas palavras, a outra ergueu a mão e Vi passou a falar mais para ela do que para Barbara. - Ela continuava a mandar aquelas cartas, não parava de aparecer e eu estava a ficar com medo.
Shelly ergueu uma das suas mãos magras e apontou-a para o peito.
- De mim? - perguntou. - Estavas com medo de mim?
- Nikki desatou a rir quando eu lhe falei no assunto. Julguei que se ela visse as cartas com os seus próprios olhos, talvez pudéssemos encontrar uma maneira de lidar com Shelly. Escrevi um bilhete a Nikki e pedi a Terry que lho levasse juntamente com as cartas. Ele tinha um fraco por ela, como eu já disse, e não perdia uma oportunidade para estar com ela. Percebe o que eu quero dizer, não é verdade?
Naquele instante, a enfermeira interrompeu a conversa.
- Agora tem mesmo de ser - disse, segurando a seringa.
- Está bem, então - disse Vi Nevin.
Barbara parou para fazer umas compras na mercearia no caminho de regresso a Chalk Farm, por isso passava já das nove horas quando chegou a casa. Retirou as compras de dentro do saco e enfiou-as nos armários e no frigorífico minúsculo. Enquanto se movia de um lado para o outro não parava de pensar no que lhe contara Vi Nevin. Algures no depoimento dela estava a chave de tudo o que acontecera, não só em Derbyshire, mas também em Londres. Bastaria certamente que ordenasse as informações recolhidas pela ordem correcta para que ficasse a saber tudo.
Acompanhada de uma dose de rogan josh que comprara na secção de comida pronta a levar da mercearia - de que Barbara rapidamente se tornara cliente habitual desde que se mudara para o bairro - instalou-se na pequena mesa de jantar, junto à janela do bungalow. Escolheu uma Base morna para acompanhar a refeição e pousou o bloco-notas ao lado da caneca de café, o único recipiente lavado. No lava- loiça diminuto acumulavam-se tachos, pratos, talheres e copos das refeições dos dias anteriores. Bebeu um gole de cerveja, espetou um bocado de carne de borrego no garfo e passou os olhos pelas notas que tirara durante o seu encontro com Vi Nevin.
Depois de ter tomado a medicação para dores, a doente adormeceu Mas não antes de responder a mais uma série de perguntas. Empenhada no seu papel de Argos protegendo vi, Shelly Platt protestara ininterruptamente contra a presença de Barbara. Vi, no entanto, deslizara para um estado de relaxamento provocado pelo medicamento, sussurrara as respostas cooperativamente até os seus olhos se fecharem e a sua respiração se tornar mais regular.
Ao rever as suas notas, Barbara concluiu que o ponto de partida mais lógico para desenvolver uma hipótese sobre o caso era o telefonema que Terry Cole interceptara em South Kensington. Esse fora o acontecimento que desencadeara tudo o resto. Além disso, dava azo a um número de perguntas suficiente para levar a pensar que a descodificação do significado desse telefonema - as razões que o teriam motivado e as consequências exactas que dele teriam advindo - conduziria inexoravelmente à descoberta das provas que lhe permitiriam identificar Matthew King-Ryder como o assassino.
Embora estivessem no mês de Setembro, Vi Nevin afirmara claramente e sem hesitações que Terry Cole interceptara a chamada telefónica em South Kensinton durante o mês de Junho. Não era capaz de precisar a data, mas sabia que tinha sido nos primeiros dias do mês, porque recebera um conjunto novo de cartões no início desse mês, que entregara a Terry, para que ele os distribuísse, precisamente no mesmo dia. Fora nessa altura que ele lhe contara o estranho episódio do telefonema.
Não foi no princípio de Julho? Barbara quisera saber. Ou de Agosto? De Setembro, até?
Fora em Junho, insistira Vi Nevin. Lembrava-se bem, porque ela e Nikki já se tinham mudado para Fulham, e porque desde que Nikki partira para Derbyshire Terry tivera dúvidas em colocar os cartões dela nas cabinas telefónicas estando ela fora de Londres. Vi tinha a certeza absoluta do que dizia. Quisera que Terry distribuísse os cartões dela o mais cedo possível, dissera, para que pudesse continuar a constituir a sua carteira de clientes. Dissera ao rapaz que esperasse até à véspera do regresso dela, no Outono, para tornar a colocar os cartões de Nikki.
Por que razão, então, teria Terry demorado tanto tempo a ir à Bowers mostrar a partitura que encontrara?
Primeiro, informara Vi, porque ela não falara logo a Nikki sobre a descoberta de Terry. E depois, porque a partir do momento em que contara o sucedido a Nikki e que tinham delineado um plano para tentar conseguir algum dinheiro com a música, Nikki levou algum tempo até descobrir as casas leiloeiras mais adequadas ao negócio que eles pretendiam realizar.
- Não queríamos pagar muitos honorários a vendedores - murmurara ela, pálpebras semicerradas. - Primeiro, Nikki pensou que seria melhor optar por uma leiloeira situada numa área rural. Telefonou para diversos sítios e falou com pessoas que percebiam do assunto.
- E foi assim que descobriu a Bowers?
- Exacto. - Vi virou-se para o lado. Shelly aconchegou o cobertor em torno dos ombros da sua protegida, tapando-a até ao pescoço.
Agora, enquanto mastigava o seu rogan josh no seu bungalow de Chalk Farm, Barbara reflectia mais uma vez sobre o telefonema. Por mais que pensasse nele, todavia, chegava sempre à mesma conclusão. O telefonema devia ser dirigido a Matthew King-Ryder, que não conseguira estar no local à hora combinada. Ao ouvir um simples Está lá proferido por uma voz masculina - a voz de Terry Cole - o autor do telefonema deduzira que a sua mensagem sobre o Albert Hall estava a ser recebida pela pessoa certa. E uma vez que fosse quem fosse que estivesse na posse da partitura musical da autoria de Chandler preferia manter o anonimato - que outro motivo haveria para fazer um telefonema para uma cabina pública? - seria lógico concluir que, ou a transferência da partitura das suas mãos para as de King-Ryder constituía um acto ilegal, ou o autor do telefonema apoderara-se da partitura musical de forma ilegal, ou a mesma iria ser utilizada por King-Ryder com uma finalidade ilegal. Fosse como fosse, o autor do telefonema julgara que tinha passado a partitura a King-Ryder, que sem dúvida terá pago uma quantia significativa para a adquirir. Na posse do dinheiro - provavelmente pago antecipadamente e em dinheiro - o autor do telefonema terá desaparecido de circulação, deixando King-Ryder sem o dinheiro, sem a partitura e em situação de total desvantagem. Assim, quando Terry Cole lhe entrara pelo gabinete dentro exibindo uma página da partitura de Chandler, Matthew King-Ryder deve ter pensado que estava a ser deliberadamente ridicularizado por alguém que já o traíra uma vez. Porque, se de facto chegou a South Kensington apenas um minuto depois da hora marcada, deve ter ficado horas a fio à espera que o telefone tocasse e deve ter concluído que tinha sido intrujado.
Havia de querer vingar-se. Havia de querer a partitura também. E havia apenas uma maneira de conseguir ambas.
A história de Vi Nevin confirmava a suspeita de Barbara de que Matthew King-Ryder era o homem de que andavam à procura. Infelizmente, não cons tituía uma prova disso, e sem algo mais consistente do que meras conjecturas, Barbara sabia que o seu caso não tinha qualquer hipótese aos olhos de Lynley. Confrontá-lo com um conjunto de factos irrefutáveis iria ser a única forma de alguma vez conseguir redimir-se aos seus olhos. Ele interpretara sua desobediência como mais uma demonstração da indiferença que ela votava a uma cadeia de comando. Tinha agora de interpretar essa mesma obediência como uma prova de dinamismo que desmascarava um assassino.
Enquanto meditava sobre tudo isto, Barbara ouviu alguém chamar o seu nome no exterior do bungalow. Levantou a cabeça e viu Hadiyyah sal tando ao longo do caminho que ia dar ao jardim das traseiras do prédio. As lâmpadas controladas por sensores de movimento acendiam-se à medida que ela passava por elas, criando um efeito que fazia lembrar uma bailarina, cujos movimentos fossem constantemente acompanhados por um holofote.
- Já voltámos, já voltámos, já voltámos da praia! - cantarolava Hadiyyah. - E olha o que o pai ganhou para mim!
Barbara acenou à garota e fechou o bloco-notas. Dirigiu-se à porta e abriu-a precisamente no momento em que Hadiyyah concluía uma pirueta. Uma das suas longas tranças soltara-se do laço que a prendia e começara a desfazer-se, deixando ver um rasto de cetim prateado, como um cometa riscando os céus. As meias estavam descidas e a T-shirt estava manchada de mostarda e ketchup. O seu rosto, porém, irradiava alegria.
- Divertimo-nos tanto! - gritou. - Gostava tanto que tivesses vindo connosco, Barbara. Andámos na montanha-russa e nos barcos à vela e no carrocel com o avião, e... oh, Barbara, espera até ouvires esta... eu guiei o comboio! Até fomos ao Burn House Hotel e eu estive um bocadinho com Mrs. Porter, mas não o dia todo porque o pai foi buscar- me. Almoçámos na praia e depois fomos andar de barco no mar, mas a água estava tão fria que decidimos ir para a arcada - parou para respirar.
- Estou admirada que ainda consigas aguentar-te de pé depois de um dia tão cheio.
- Dormi no carro - explicou Hadiyyah. - Vim a dormir quase todo o caminho - estendeu o braço e Barbara reparou que ela segurava um boneco pequeno em forma de sapo. - Olha o que o pai ganhou para mim na máquina dos bonecos, Barbara. Ele é tão bom com aquela máquina.
- É bonito - disse Barbara, olhando apreciativamente para o sapo. É bom para praticar enquanto és pequenina.
Hadiyyah franziu a testa e examinou o boneco.
- Praticar o quê?
- Pois, praticar. Beijos - Barbara sorriu diante da confusão da garota. Colocou a mão sobre o ombro minúsculo, conduziu-a até à mesa e disse: Deixa lá, era uma piada parva. Tenho a certeza de que quando chegar a tua altura, os encontros amorosos já terão melhorado muito. E que mais trouxeste?
Trouxera um saco de plástico, cujas pegas estavam presas a um dos ilhós do cinto dos calções.
- Isto é para ti - disse. - Também foi o pai que ganhou. Na máquina. Ele é tão...
- Bom com aquela máquina - completou Barbara. - Pois é. Eu sei.
- Porque eu já te tinha dito.
- Mas há coisas que vale a pena repetir - disse Barbara. - Deixa ver o que temos aqui, então.
Com alguma dificuldade, Hadiyyah conseguiu desatar as pegas do saco e entregou-o a Barbara, que o abriu descobrindo no seu interior um pequeno coração de veludo vermelho, com uma renda branca a toda a volta.
- Meu Deus - comentou Barbara.
Com gestos cautelosos, pousou o coração sobre a mesa de jantar.
- Não é um amor? - Hadiyyah contemplou o coração com grande ternura. - O pai ganhou-o na máquina, Barbara. Tal como o sapo. Eu disse-lhe,
Tira um sapinho para Barbara, para que ela também tenha um e os dois possam ser amigos. Mas ele disse, Não. Um sapo não serve para a nossa amiga, pequena khushi. É assim que ele me chama.
- Khushi. Pois é, eu sei.
Barbara sentiu um formigueiro na ponta dos dedos e olhou fixamente para o coração, com a mesma devoção de um santo na presença de uma relíquia.
- E então ele fez pontaria para o coração. Só conseguiu tirá-lo à terceira tentativa. Acho que ele podia ter tirado o elefante, tinha sido muito mais fácil. Ou podia ter tirado primeiro o elefante, para o tirar do caminho, e dá-lo a mim, só que eu já tenho um elefante, e acho que ele se lembrou disso, não achas? Mas ele queria o coração. Se calhar ele queria ter trazido o coração para te dar, mas eu pedi-lhe para ser eu e ele disse que sim, desde que tivesses a luz acesa e ainda estivesses acordada. Fiz bem? Estás com uma cara esquisita. Mas a tua luz estava acesa e eu vi-te à janela. Achas que não te devia ter dado o coração, Barbara?
Hadiyyah olhava-a com uma expressão ansiosa. Barbara sorriu e pôs um braço à volta dos ombros dela.
- É tão bonito que não sei o que dizer. Obrigada. E agradece ao teu pai por mim, está bem? A falta de habilidade para manejar a máquina não é um talento muito popular.
- Ele é tão...
- Bom. Pois é. Esqueces-te que eu já o vi fazer isso pessoalmente. Hadiyyah lembrou-se de quando fora. Encostou o sapo a uma das faces.
- É superespecial ter uma recordação de um dia na praia, não achas? Sempre que fazemos alguma coisa especial juntos, o pai compra-me uma recordação, sabias? Para que eu não me esqueça de que nos divertimos muito. Ele diz que é importante. Lembrarmo-nos das coisas que acontecem. Ele diz que é tão importante lembrarmo-nos de coisas como fazermos coisas.
- Concordo com ele.
- Só gostava que tivesses vindo connosco. Que fizeste hoje?
- Trabalhei - Barbara fez um gesto na direcção da mesa, onde deixara o bloco-notas, ao lado da lista de contactos e dos catálogos da loja de Jason Harley. - E ainda estou a trabalhar.
- Nesse caso, vou-me embora - ela recuou em direcção à porta.
- Não tem importância - apressou-se a dizer Barbara. Naquele momento, percebeu como desejava ter uma companhia. - Eu não queria.
- O meu pai disse que eu só podia vir visitar-te por cinco minutos. queria que eu fosse logo para a cama, mas eu perguntei-lhe se podia vir entregar-te o teu presente e ele disse, Cinco minutos, khushi. " É assim que ele.
- Te chama. Já sei.
- Ele foi tão simpático em ter-me levado à praia, não foi, Barbara?
- O mais simpático que pode haver.
- Por isso, tenho de fazer o que ele diz, Cinco minutos, khushi. É uma maneira de lhe dizer obrigada.
- Ah, claro. Nesse caso é melhor ires.
- Mas tu gostas mesmo do coração, não gostas?
- Mais do que qualquer outra coisa no mundo - respondeu Barbara. Depois de a garota ter saído, Barbara aproximou-se da mesa. Caminhou devagar, como se o coração fosse uma criatura tímida, que pudesse assustar-se com movimentos súbitos. Sem desviar os olhos do veludo encarnado e da renda, agarrou no saco, procurou o maço de cigarros e acendeu um. Examinou o coração enquanto fumava.
Um sapo não serve para a nossa amiga, pequena khushi. Nunca dez palavras tinham soado tão portentosas.
anken manuseou o blusão de cabedal preto de forma quase reverente. Calçou umas luvas de latex antes de tocar no saco onde Lynley guardara a peça de vestuário, e quando pousou o blusão sobre uma das mesas da sala de jantar do Black Angel Hotel, agora vazia, fê-lo com o tipo de veneração habitualmente reservada aos serviços religiosos.
Lynley telefonara ao colega pouco depois de ter concluído o interrogatório ao pessoal do Black Angel, que se revelara inconclusivo. Hanken interrompera o jantar para atender o telefonema e garantira-lhe que estaria em Tideswell meia hora depois. Foi fiel à sua palavra.
Agora, inclinava-se sobre o blusão de cabedal e examinava o orifício nas costas do casaco. Tem aspecto de ser recente, disse a Lynley, que estava de pé, do outro lado da mesa, observando o colega enquanto este estudava cada milímetro do buraco circular. Obviamente, só teriam certezas quando o blusão fosse examinado ao microscópio, continuou Hanken, mas o orifício parecia ter sido aberto há pouco tempo devido ao estado em que se encontrava o cabedal em redor da abertura. Mas seria fantástico se a equipa forense conseguisse encontrar vestígios de madeira de cedro em torno daquele orifício, nem que fosse em quantidades ínfimas.
- Logo que obtenhamos confirmação de que este sangue pertence a Terry Cole, qualquer vestígio de madeira de cedro será um mero pormenor académico, não acha? - observou Lynley. - Afinal, temos a lasca de madeira retirada do ferimento.
- Pois temos - concordou Hanken. - Mas eu gosto dos meus bolsos com cobertura - tornou a guardar o blusão dentro do saco depois de examinado o forro manchado de sangue. - Isto bastará para obtermos mandado, Thomas. Será mais do que suficiente para um mandado.
- Vai tornar tudo mais fácil, sim - concordou Lynley. - E o facto de ele autorizar que o solar seja utilizado para torneios e eventos do género deverá ser suficiente para...
- Espere aí. Não estou a falar de um mandado para virar do avesso o território dos Britton. Isto - Hanken ergueu o saco - é mais um prego no caixão de Maiden.
- Não percebo como - depois, quando percebeu que Hanken se preparava para discorrer sobre as razões que justificavam o pedido de um mandado para uma busca em Maiden Hall, apressou-se a acrescentar: - Oiça-me por um instante. Está de acordo comigo em que o arco é a nossa terceira arma?
- Comparando essa sugestão com o buraco neste blusão, sim - disse Hanken. - Onde está a querer chegar?
- Estou a querer chegar ao facto de já conhecermos o sítio onde pro vavelmente têm sido utilizados arcos deste tipo. Broughton Manor é o sítio onde têm decorrido torneios, certo? Reconstituições e festividades, segundo você mesmo me disse. Nesse caso, e sendo Julian o homem que tinha esperanças de casar com uma mulher que, como nós bem sabemos, o traiu com outros dois homens, e isto só em Derbyshire, que motivos teríamos nós para fazer uma busca a Maiden Hall?
- Porque o pai da rapariga que morreu foi o homem que a ameaçou em Londres - contrapôs Hanken. - Porque lhe disse aos gritos que preferia vê-la morta a permitir que ela fizesse o que estava a pensar fazer. Por que ele pediu um maldito empréstimo bancário para a subornar e persuadir a viver como ele queria que ela vivesse, e ela embolsou esse dinheiro, alinhou no jogo conforme as regras impostas por ele durante três curtos meses e depois disse, Bom, muitíssimo obrigada pelo cacau. Diverti-me imenso, pai, mas vou para Londres ganhar dinheiro a espremer os tomates de uns tipos dentro de um cilindro. Espero que compreenda. E ele não compreendeu. Que pai compreenderia?
- Peter - disse Lynley -, eu sei que o quadro não é muito favorável a Andy...
- E por mais voltas que dê ao caso, o quadro continuará a não ser favorável.
- Mas quando perguntei ao pessoal do hotel se algum deles conhecia os Britton, a resposta foi sim. Foi mais do que um sim, para ser franco. Foi conhecemos os Britton de vista. Porquê, pergunto eu - Lynley não esperou que Hanken respondesse. - Porque eles frequentam o hotel, porque vêm tomar um copo ao bar, porque vêm jantar ao hotel. E é muito fácil fazerem-no, porque Tideswell forma praticamente uma linha recta entre Broughton Manor e Calder Moor. E você não pode passar directamente a uma busca a Maiden Hall sem parar um bocado para pensar no significado de tudo isto.
Hanken olhava fixamente para Lynley enquanto este falava. Quando ele terminou de expor o seu ponto de vista, disse, Venha comigo, meu rapaz e conduziu o colega à recepção do hotel, onde pediu um mapa do White Peak. Levou Lynley para o bar e abriu o mapa sobre uma mesa, num dos cantos da sala.
Lynley não estava enganado, admitiu ele. Tideswell ficava no extremo leste de Calder Moor. Um bom caminhante que tivesse a intenção de cometer um assassínio podia sair do Black Angel Hotel, subir até à parte mais alta da cidade e atravessar a charneca até Nine Sisters Henge. Demoraria algumas horas a fazer o percurso, tendo em conta a extensão da charneca, e não seria tão eficaz como se tivesse seguido simplesmente pela estrada que a rapariga tomara logo a seguir à aldeia de Sparrowpit. Mas era possível. Por outro lado, o mesmo assassino podia ter feito o percurso todo de carro. Teria estacionado no mesmo local onde Nicola deixara o Saab, atrás do muro de pedra e, depois de ter morto as vítimas, teria regressado a casa, não só passando pelo Black Angel Hotel, mas também atravessando a aldeola de Peak Forest, perto da qual se teria livrado do canivete.
- Exactamente - disse Lynley. - É precisamente essa a minha opinião. Está a ver, então...
Mas, contestou Hanken, se o colega não se importasse de observar o mapa com mais atenção, veria que o mesmo pequeno desvio de menos de três quilómetros que o assassino teria feito para abandonar o blusão de cabedal no Black Angel e depois regressar a casa seguindo para sul, na direcção de Bakewell e de Broughton Manor, era quase o mesmo desvio de menos de três quilómetros que o assassino podia ter feito para deixar o blusão de cabedal no Black Angel, seguindo depois para norte na direcção de Padley Gorge e de Maiden Hall.
Lynley seguiu os dois percursos descritos por Hanken. Tinha de admitir que o outro inspector tinha razão. Olhando para o mapa, percebia que o assassino - tendo abandonado a cena do crime e feito o percurso de carro através de Peak Forest para abandonar o canivete no contentor de areia, tendo depois feito um pequeno desvio para Tideswell, a fim de largar o casaco no sítio onde permanecera pendurado sem atrair as atenções de ninguém - podia ter continuado em frente até ao cruzamento de Wardlow Mires. Daí partia uma estrada que ia dar a Padley Gorge e outra que seguia na direcção de Bakewell. E quando dois dos suspeitos de uma investigação tinham meios e oportunidade, a polícia tinha a obrigação, imposta pela lógica e pela ética, de se concentrar primeiro no mais provável dos suspeitos. Im punha-se, assim, uma busca a Maiden Hall.
A situação seria insustentável para Andy e para a mulher, mas Lynley via-se forçado a concluir que era inevitável. Todavia, uma réstia da velha lealdade que sentia em relação a Andy impeliu-o a pedir a Hanken uma só garantia. Os Maiden nunca saberiam aquilo que a polícia pretendia encontrar na busca a Maiden Hall. Não havia razão para continuar a trazer ao de cima a vida que Nicola levava em Londres.
- Você só está a adiar o inevitável, Thomas. A não ser que morra antes que façamos uma detenção e antes do início do julgamento, Nan Maiden vai acabar por ficar a saber o pior sobre a filha. Mesmo que... e eu
não acredito nisso, mas estou disposto a dar-lhe o benefício da dúvida por agora... mesmo que ela não tenha sido morta pelo pai. Se foi Britton quem lhe tratou da saúde... - Hanken fez um gesto vago com a mão.
O pior viria sempre a público, concluiu Lynley em silêncio. Sabia que assim era. Todavia, já que não podia poupar o antigo colega à humilhação de ver a sua casa e o seu negócio passados em revista, podia ao menos poupar-lhe um momento de sofrimento acrescido que seria o ter de testemunhar a dor da única pessoa que restava do seu mundo.
- Marcamos para amanhã - disse Hanken, dobrando o mapa e levando consigo o saco e o seu conteúdo incriminador. - Eu levo isto para o laboratório. Quanto a si, veja se consegue dormir.
Era uma directiva que ele teria dificuldade em cumprir, pensou Lynley.
Na manhã seguinte, em Londres, a mulher de Lynley acordou sorum bática, depois de uma noite agitada. Noites mal dormidas eram uma ano malia na vida de Helen. Em geral, mergulhava num estado semelhante à inconsciência pouco depois de a sua cabeça ter tocado a almofada, e assim permanecia até à manhã do dia seguinte. Por este motivo, Helen concluiu que o facto de ter dormido mál era um sinal inequívoco de que algo a atormentava. E não foi preciso uma pesquisa muito demorada aos obscuros recantos da sua psique para que percebesse de que se tratava.
As reacções e comportamentos de Tommy em relação a Barbara Havers, nos últimos dias, tinham sido uma espécie de estilhaço muito pequeno que fora infectando a pouco e pouco sob a pele de Helen. Era algo com que ela não tinha necessariamente de se confrontar na sua vida diária, mas que era simultaneamente perturbador e doloroso quando trazido à sua atenção. E assim acontecera - de forma gritante, aliás - durante o último confronto entre o marido e Barbara Havers.
Helen compreendia a posição de Tommy. Ele dera a Barbara uma série de instruções, e ela não se mostrara nada cooperante. Tommy interpretara esta atitude como uma prova de fogo que a sua antiga colega de equipa não conseguira superar. Barbara encarara essas directivas como uma puni ção. Nenhum dos dois estava disposto a reconhecer o ponto de vista do outro, e quando se tratava de defender um ponto de vista era Barbara quem pisava o terreno menos firme. Por esse motivo, Helen não tinha dificuldade em admitir que a reacção final ao facto de Barbara ter desobedecido às ordens que ele lhe dera era justificada. Sabia, além disso, que os superiores dele concordariam com a decisão que ele tomara.
Fora essa mesma decisão, no entanto, quando analisada em conjunção com a sua decisão anterior de trabalhar com Winston Nkata e não com Barbara Havers, que incomodara Helen. Que estaria, de facto, no cerne da animosidade do marido em relação a Barbara, interrogava-se Helen en quanto saía da cama e vestia o roupão. Seria o facto de ela lhe ter desobedecido, ou o facto de ela ser mulher e de lhe ter desobedecido? É claro que, antes da partida dele na véspera, Lhe fizera uma pergunta que era uma variação desta questão, e, sem que isso a surpreendesse, ele rejeitara categoricamente a hipótese de o género ter fosse o que fosse a ver com a sua reacção em relação a Barbara. A verdade, no entanto, era que toda a história pessoal de Tommy contradizia todas as suas negações.
Lavou o rosto, passou uma escova pelo cabelo e reflectiu sobre este pormenor. Tommy tinha um passado povoado de mulheres: mulheres que desejara, mulheres que tivera, mulheres com quem trabalhara. A sua primeira amante fora a mãe de um colega de escola, com quem ele mantivera uma tumultuosa ligação durante mais de um ano, e antes da relação com Helen, a sua paixão mais intensa fora pela mulher que era agora casada com o seu amigo mais íntimo. À parte este último relacionamento, todas as associações de Tommy com mulheres tinham uma característica em comum, tanto quanto Helen conseguia perceber: era Tommy quem detinha as rédeas da relação. E as mulheres, cooperativamente, aceitavam as regras do jogo.
Para ele, era simples conquistar e manter este exercício de comando. Ao longo dos anos, um número infindável de mulheres sentira-se de tal modo atraída pela sua beleza física, pelo seu título nobiliárquico, ou pelo seu dinheiro que entregarem-se a ele de corpo e alma era para elas um preço insignificante a pagar em comparação com o que esperavam obter em troca. E Tommy habituara-se a esse poder. Que ser humano não se habituaria?
A verdadeira questão era saber por que razão ele agarrara o poder da primeira vez com a primeira mulher. Era jovem, é certo, mas embora pudesse ter escolhido encontrar-se com essa amante e com todas as outras que se seguiram num terreno que ele próprio nivelasse apesar da relutância da mulher ou da sua inabilidade para insistir nesse nivelamento, não o fizera. E Helen tinha a certeza de que era o porquê da influência que Tommy exercia sobre as mulheres que estava por detrás das dificuldades com que se confrontava na sua relação a Barbara Havers.
Mas Barbara agiu mal, Helen conseguia ouvir a insistência do marido; e não tens maneira de distorcer os factos de forma a fazer crer que ela agiu bem.
Helen não conseguia discordar de Tommy neste ponto. Gostaria de poder dizer-lhe, contudo, que Barbara Havers era apenas um sintoma, A doença era algo diferente, quanto a isso não tinha dúvidas.
Saiu do quarto e desceu até à sala de jantar, onde Denton preparara seu pequeno-almoço preferido. Serviu-se de um pouco de ovos e cogumelos, encheu um copo com sumo e uma chávena com café e colocou tudo sobre a mesa de jantar. Ao lado dos talheres havia um exemplar do Daily Mail e logo por baixo a cópia do Times, o jornal de Tommy. Passou os olhos pelo correio enquanto adicionava leite e açúcar ao café. Pôs as contas de lado - não havia razão para estragar o pequeno-almoço -, juntamente com o Daily Mail em cuja primeira página, a última amante real, nada atraente, decididamente, era descrita como uma presença radiosa no chá anual em benefício das Crianças Desfavorecidas. Tão-pouco havia razão para estragar o resto do dia.
No momento em que abria uma carta da sua irmã mais velha - o carimbo de correio de Positano dizia-lhe que Daphne conseguira impor ao marido a escolha do local onde iriam passar o vigésimo aniversário de casamento - Denton entrou na sala.
- Bom dia, Charlie - cumprimentou Helen, alegremente. - Hoje, excedeste-te nos cogumelos.
Denton retribuiu o cumprimento dela com igual entusiasmo.
- Lady Helen... - disse, hesitando, ou pelo menos Helen assim julgou, entre a confusão e o desgosto.
- Espero que não vás ralhar-me por causa do papel de parede, Charlie. Telefonei para a Peter jones e pedi-lhes mais um dia. Juro.
- Não - esclareceu Denton. - Não se trata do papel de parede - e mostrou o sobrescrito que tinha na mão, encostando-o ao peito.
Helen pousou a torrada.
- Que se passa, então? Pareces tão...
Como é que ele parecia ao certo? perguntou a si mesma. Bastante agitado, concluiu.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou. - Não recebeste más notícias, espero! Está tudo bem com a tua família, não está? Meu Deus, Charlie, meteste-te em sarilhos por causa de uma mulher, é isso?
Ele abanou a cabeça negativamente. Helen viu que tinha um pano de limpeza pendurado no braço e, de repente, as peças encaixaram-se: andara em limpezas e queria, sem dúvida, dar-lhe uma lição acerca da sua desarrumação. Pobre homem. Não sabia por onde havia de começar.
Viera da sala de estar, e Helen percebeu que não tinha arrumado as páginas da partitura musical que Barbara deixara lá em casa antes de sair abruptamente na tarde do dia anterior. Denton não gostava disso, pensou Helen. Era tão parecido com Tommy no que tocava a arrumações.
- Apanhaste-me - confessou, inclinando a cabeça na direcção do sobrescrito. - Barbara trouxe isso ontem para mostrar a Tommy. Acho que me esqueci completamente delas, Charlie. Acreditas em mim se eu prometer que vou tentar fazer melhor da próxima vez? Receio bem que não. Estou sempre a prometer o mesmo, não é?
- Onde foi encontrar isto, Lady Helen? Isto... isto? - e Denton gesticulava na direcção do sobrescrito, como se não tivesse palavras para descrever o seu conteúdo.
- Acabei de te dizer. Foi Barbara Havers quem o trouxe. Porquê? É importante?
Como resposta, Charlie Denton agiu de forma inesperada. Pela primeira vez desde que Helen o conhecia, puxou de uma cadeira e, sem pedir permissão, sentou-se.
- O sangue é o mesmo - Hanken comunicou a Lynley sem rodeios. Estava a telefonar de Buxton, onde acabara de falar para o laboratório forense.
- É o blusão do rapaz.
Hanken disse-Lhe que estavam prestes a conseguir o mandado de busca para revistar Maiden Hall.
- Tenho seis tipos que conseguem encontrar uma agulha num palheiro. Se ele tiver escondido o arco em casa, havemos de o encontrar.
Hanken lembrou que, desde a noite dos crimes, Andy Maiden tivera tempo mais que suficiente para se desfazer do arco em mais de uma dezena de sítios nas imediações do White Peak, o que dificultava ainda mais a busca da polícia. Todavia, pelo menos não sabia que eles tinham conseguido descobrir que a arma desaparecida era uma flecha, o que os colocava numa posição de vantagem em relação a ele, se por acaso ele não se tivesse livrado do resto do equipamento.
- Não temos o mais pequeno indício que nos leve a concluir que Andy Maiden pratica tiro ao arco - assinalou Lynley.
- Quantos papéis representou ele enquanto foi agente infiltrado? contrapôs Hanken. Antes de desligar, disse: - Se quiser, pode vir connosco; Vá ter connosco ao hotel dentro de noventa minutos.
Lynley desligou o telefone, sentindo o coração pesar-lhe dentro do peito.
Hanken estava a tomar a atitude correcta ao optar por investigar Andy Quando praticamente todas as informações recolhidas apontavam para um suspeito em particular, as regras diziam que se devia aprofundar a investigação desse mesmo suspeito. Ninguém se recusava a pensar o impensável só porque não era capaz de afastar do espírito a recordação do dia do vigésimo quinto aniversário e de uma operação clandestina há muito desejada. Fazia-se o que se tinha a fazer, como qualquer profissional.
Todavia, mesmo sabendo que o inspector Hanken estava a agir de acordo com os regulamentos, Lynley não conseguia deixar de se debater com as dificuldades impostas pelas provas, factos e conjecturas, ao procurar algo que demonstrasse a verdade acerca de Andy. Era o mínimo que podia fazer, teimava em acreditar.
Aparentemente, havia apenas um facto passível de ser utilizado: o equipamento para a chuva que pertencia a Nicola e que não se encontrava entre os pertences dela encontrados em Nine Sisters Henge. Sozinho, no quarto, ouvindo os sons matinais do hotel crescerem à sua volta, Lynley pensava apenas nesse impermeável e no significado da sua ausência da cena do crime.
Tinham começado por pensar que o assassino levara o impermeável consigo, servindo-se dele para esconder as roupas cheias de sangue. No entanto, se tivesse entrado no Black Angel Hotel na terça-feira, depois dos crimes, era quase certo que, numa noite quente de Verão, não iria aparecer vestido com roupa para a chuva. Não iria querer correr o risco de ser notado, e poucas coisas seriam tão conspícuas como alguém vestido com um impermeável precisamente numa altura do ano em que a região de Derbyshire era conhecida pelos seus longos períodos de bom tempo.
Lynley, no entanto, preferiu certificar-se e ligou para o proprietário do Black Angel. Uma única pergunta - repetida aos gritos por todo o andar térreo de funcionário para funcionário - bastou para que Lynley se certificasse de que ninguém no hotel presenciara uma cena parecida nos últimos tempos. Que teria sido feito do impermeável, então?
Lynley começou a andar de um lado para o outro dentro do quarto. Pensou na charneca, nos crimes, nas armas e analisou demoradamente a imagem mental que formara sobre o modo como os crimes tinham sido executados.
Se o assassino tivesse levado a peça de vestuário do local do crime, mas não a tivesse vestido, então só podia tê-la usado de duas maneiras. Ou o impermeável fora transformado numa espécie de saco onde o assassino transportara algo ao deixar a cena do crime, ou fora usado por ele de alguma maneira enquanto assassinava as duas vítimas.
Lynley eliminou a primeira hipótese, que lhe pareceu muito improvável. As duas vítimas tinham-se dirigido até ao local a pé. Que poderiam elas ter levado consigo, cujo transporte implicasse a utilização de algo com as dimensões de um impermeável? Debruçou-se, então, sobre a segunda hipótese. E depois de ter passado em revista tudo o que sabia sobre os dois crimes, as suas conclusões acerca deles e o que descobrira no Black Angel Hotel, conseguiu finalmente ver a resposta.
O assassino imobilizara o rapaz com uma flecha. Em seguida, lançara-se no encalço da rapariga, que se pusera em fuga entretanto, e despachara-a sem dificuldades de maior. Regressando ao círculo de pedras, percebera que o rapaz estava gravemente ferido, mas não estava morto. Olhou em volta e procurou uma forma rápida de o eliminar. Podia ter posto o rapaz em pé - à maneira das vítimas dos pelotões de fuzilamento - e tê- lo transformado num S. Sebastião moderno. Dificilmente, porém, conseguiria a colaboração da vítima para levar por diante esse plano. Assim, revirara o acampamento de alto a baixo, até encontrar o canivete e o impermeável. Vestira-o para cobrir a roupa que trazia vestida enquanto esfaqueava o rapaz. Deste modo, horas mais tarde pôde entrar no Black Angel Hotel na maior das impunidades.
Um impermeável manchado de sangue, no entanto, não podia ser abandonado ao lado do blusão de cabedal preto. O sangue que tingira o blusão tinha sido absorvido pelo forro, ficando por isso disfarçado pela cor do tecido. Podiam passar meses até que o blusão fosse descoberto. Um impermeável coberto de sangue, pelo contrário, não passaria despercebido tão facilmente.
E, no entanto, o assassino tinha de ver-se livre dele. E quanto mais cedo melhor. Mas onde...
Lynley continuou a passear de um lado para o outro enquanto imaginava os acontecimentos daquela noite, as mortes, e o que sucedera depois.
O canivete fora abandonado ao longo do percurso que o assassino fizera ao fugir da cena do crime. Era muito fácil enterrá-lo na areia que enchia um contentor de beira de estrada, uma operação que provavelmente não teria demorado mais de trinta segundos. O impermeável, todavia, não podia ser enterrado, porque dentro do contentor não havia areia em quantidade suficiente, e, além disso, teria sido uma perfeita imbecilidade parar numa estrada pública, ainda que fosse noite, durante o tempo necessário para enterrar algo tão volumoso num contentor de areia.
Contudo, o local ideal para abandonar uma peça de vestuário seria um desses contentores ou algo muito semelhante, algo que fosse utilizado diariamente, para onde as pessoas olhassem sem prestar muita atenção, algo que ficasse no caminho do hotel onde - conforme sabia o assassino - um blusão de cabedal preto podia ser largado bem à vista de toda a gente, sem que ninguém reparasse na sua existência...
Um marco de correio? interrogou-se Lynley. Eliminou a possibilidade quase de imediato. Além do facto de o assassino não ter querido dar-se ao trabalho de enfiar o impermeável, centímetro a centímetro, através da abertura destinada às cartas, o correio era recolhido todos os dias.
O caixote de lixo de alguém? O problema continuava a ser o mesmo.
A não ser que o autor dos crimes tivesse conseguido esconder o impermeável no fundo do caixote de lixo, mal o dono do caixote quisesse livrar-se de um saco cheio de lixo, encontraria o impermeável. A não ser, evidentemente, que tivesse conseguido encontrar um caixote fabricado de maneira a que o lixo já depositado no seu interior não pudesse ser visto por quem lá fosse colocar mais lixo. Os caixotes de lixo dos jardins e parques públicos poderiam ter sido uma solução, dado que eram recipientes onde o desperdício era colocado através de uma abertura situada no tampo ou numa das paredes laterais. Mas onde é que, na estrada que ia de Calder Moor para Tideswell, existia um jardim ou um parque desse género onde pudesse haver um contentor de lixo semelhante? Era isso que precisava de descobrir.
Lynley desceu as escadas e dirigiu-se à Recepção para pedir o mesmo mapa do White Peak que Hanken usara na noite anterior. Depois de ter inspeccionado a região, a área mais parecida com um parque público situada nas proximidades era uma reserva natural perto de Hargatewell. Franziu a testa quando viu a distância que separava esta última da estrada mais directa. O assassino teria sido forçado a fazer um desvio de alguns quilómetros. Valia a pena tentar, no entanto.
A manhã apresentava-se quase idêntica ao dia anterior: cinzenta, ventosa e chuvosa. Só que, ao contrário do dia anterior, à hora a que Lynley chegara, o parque de estacionamento do Black Angel Hotel estava praticamente deserto. Era ainda demasiado cedo para que até o mais ébrio dos clientes habituais do hotel se instalasse no bar. Assim, guarda- chuva em punho e colarinho do casaco subido, Lynley contornou apressadamente a esquina do edifício - fugindo às poças de água -, dirigindo-se ao único sítio onde conseguira parar o Bentley na tarde do dia anterior.
E foi então que finalmente viu algo que já vira, mas em que mal reparara quando chegara.
O sítio que descobrira para deixar o Bentley estava vago no dia anterior, porque seria sempre o último lugar onde alguém deixaria o seu carro. Ninguém que tivesse apreço pela pintura do carro iria estacioná- lo ao lado de uma vagoneta que, mesmo debaixo de vento e chuva como sucedia naquele momento, transbordava de lixo.
Claro, pensou Lynley ouvindo atrás de si o ruído característico de uma caixa de mudanças que lhe indicou que um camião se aproximava do local.
Ao que parecia, chegara junto da vagoneta escassos minutos antes que a brigada de limpeza da cidade viesse recolher o lixo que o Black Angel acumulara ao longo de uma semana.
Samantha ouviu o barulho ainda antes de ver o tio. O som de garrafas embatendo umas nas outras ecoava ao longo da velha escadaria de pedra à medida que Jeremy Britton descia os degraus que levavam à cozinha, onde Samantha lavava a loiça do pequeno-almoço. Olhou de relance para o relógio, que colocara numa prateleira perto do lava- loiça. Parecia ser demasiado cedo para beber, mesmo tendo em conta os hábitos do tio Jeremy.
Esfregou a frigideira onde preparara o bacon daquela manhã e esforçou-se por ignorar a presença do tio. Atrás dela, ouviu o som de passos arrastados. As garrafas continuavam a tilintar, embatendo umas nas outras. Quando não conseguiu conter a curiosidade por mais tempo, Samantha olhou em volta a fim de ver o que o tio estava a fazer.
Jeremy trazia um cesto enorme enfiado no braço. Dentro dele, colocara talvez uma dúzia de garrafas de bebidas espirituosas, na sua maioria gin. Começou a percorrer os armários da cozinha, remexendo no seu interior e retirando mais garrafas. Eram miniaturas, escondidas dentro dos compartimentos da farinha, do arroz, do esparguete e do feijão, no meio de latas de fruta em calda e, no fundo dos armários, no sítio onde eram guardados os tachos e as panelas. À medida que o conjunto de garrafas ia crescendo dentro do cesto que trazia enfiado no braço, o tio Jeremy passeava pela cozinha como se fosse o Fantasma do Natal Passado.
- Desta vez vou conseguir - murmurava.
Samantha colocou a última panela no escorredor da loiça e destapou o buraco do lava-loiças para deixar sair a água. Secou as mãos na parte da frente do avental e ficou a observá- lo. Desde que ela viera viver para o Derbyshire, o tio nunca parecera tão envelhecido como naquele momento. E os tremores que agitavam o seu corpo não atenuavam a impressão geral que ele causava: a de um homem atingido por uma doença grave.
- Tio Jeremy? - perguntou. - Está doente? Passa-se alguma coisa?
- Vou livrar-me dele - replicou ele. - É um demónio maldito. Primeiro tenta-nos e depois manda-nos para o inferno.
Começara a transpirar, e vista à luz fraca da cozinha, a sua pele parecia um limão coberto de azeite. Com mãos trémulas, ergueu o cesto pesado e colocou-o sobre a bancada do lava-loiça. Agarrou firmemente a primeira garrafa. Bombay Sapphire, o seu verdadeiro amor. Destapou-a e esvaziou o conteúdo para dentro da pia. O cheiro a gin espalhou-se rapidamente pela cozinha como uma fuga de gás.
Quando a garrafa ficou vazia, Jeremy quebrou-a contra uma das esqui nas da pia.
- Não quero mais - disse. - Acabou-se este veneno, juro que acabou! Não quero mais.
E depois desatou a chorar. Era um soluçar seco e sofrido que agitava o corpo todo de forma mais intensa do que a falta de álcool nas veias.
- Tenho tanto medo. Não consigo fazer isto sozinho. Samantha sentiu pena dele.
- Oh, tio Jeremy. Deixe-me ajudá-lo. Eu seguro o cesto, está bem? Ou prefere que abra as garrafas?
Pegou numa delas - Beefeater's, desta vez - e deu-a ao tio.
- Isto vai acabar por matar-me - gritou ele. - É o que já está a acontecer. Olha para mim.
E esticou as mãos,a fim de lhe mostrar o que ela já vira: o tremor horrível. Agarrou na garrafa de Beefeater's e partiu-a de encontro à esquina da pia sem sequer a esvaziar,respingando-os aos dois com gin. Pegou noutra garrafa.
- Maldito - chorou. - Miserável. Estupor. Já me livrei de três,mas não foi suficiente. Não,não. Ele não se dará por satisfeito enquanto sobrar alguma garrafa.
Samantha tentou perceber o que o tio queria dizer. Devia estar a referir-se à mulher e aos filhos,decidiu. A irmã,o irmão e a mãe de Julian tinham abandonado o solar há muito tempo,mas ela não acreditava que Julian fosse capaz de deixar o pai.
- Julian ama-o,tio Jeremy - disse-Lhe ela. - Não vai deixá-lo. Só quer o melhor para si. É por isso que tem trabalhado tanto para recuperar o solar.
Enquanto ela falava,Jeremy esvaziava outro meio litro de gin para dentro da pia.
- É um rapaz maravilhoso. Sempre foi. E eu recuso-me,recuso-me.
Chega - outra garrafa foi juntar-se às outras. - Ele está a trabalhar tanto para fazer alguma coisa deste sítio,e enquanto isso o velhaco do pai passa o tempo a beber tudo o que lhe vem parar às mãos. Mas agora basta.
O lava-loiças enchia-se rapidamente de vidros partidos,mas Samantha não se importava que assim fosse. Conseguia ver que o tio estava a viver um processo de transformação tão importante que,comparados com ele,um ou dois quilos de vidro partido não tinham qualquer significado.
- Vai deixar de beber,tio Jeremy? - perguntou. - Está a pensar seriamente em deixar de beber?
Tinha algumas dúvidas em relação à sinceridade dele e,no entanto, as garrafas iam desaparecendo,uma a uma. Depois de ter destruído todas, apoiou-se no lava-loiças e começou a rezar com um fervor que Samantha podia sentir na sua própria pele.
Jurou pela vida dos filhos e dos futuros netos que não beberia nem mais uma gota de álcool. Recusava-se a ser,dizia,um exemplo vivo dos males provocados por uma vida dedicada ao álcool. Viraria as costas à bebida a partir daquele momento e jamais olharia para trás. Era algo que devia senão a ele mesmo pelo menos ao filho,cujo afecto o levara a permanecer naquela casa em ruínas quando poderia muito bem ter partido e construído uma vida decente,saudável e normal.
- Se não fosse por mim,ele já estaria casado. Teria uma mulher, filhos. Teria uma vida. Eu roubei-Lhe tudo isso. Roubei. Fui eu.
- Tio Jeremy,não pode pensar dessa maneira. Julie ama-o. Ele sabe como,no fundo,Broughton Manor é importante para si e quer transformá-la num lar novamente. Além disso, ainda nem sequer fez trinta anos. Tem muitos anos à sua frente para constituir família.
- A vida está a passar-lhe ao lado - disse Jeremy. - E vai continuar a passar, enquanto ele gastar o tempo todo a lutar dentro de casa. E vai odiar-me por isso quando acordar e perceber o que aconteceu.
- Mas isto é viver - Samantha pousou uma mão reconfortante no ombro do tio. - O que estamos a fazer aqui no solar, dia após dia. Estamos a viver, tio Jeremy.
Ele endireitou-se ainda junto ao lava- loiças, enfiando a mão no bolso para tirar um lenço muito bem dobrado com o qual se assoou antes de se virar de frente para ela. Pobre homem,, pensou ela. Quando terá sido a última vez que chorou? E por que motivo ficavam os homens tão envergonhados quando, finalmente, cediam a uma emoção intensa?
- Quero fazer parte dela outra vez - disse ele.
- Parte dela?
- Da vida. Quero viver, Sammy. Isto... - fez um gesto na direcção da pia - afasta uma pessoa de tudo o que é vida, e para mim basta.
Que estranho, pensou Samantha. Parecia tão forte de repente, como se nada se interpusesse entre ele e a esperança de alcançar a sobriedade. E, de forma inesperada, desejou que ele a conseguisse: a vida que imaginava para si próprio, a felicidade numa casa que fosse sua, ocupado e rodeado pelos netos adorados. Podia até vê-los, esses netos amorosos ainda por conceber.
- Fico tão contente, tio Jeremy - disse. - Fico tão, tão contente. E Julian... Julian vai ficar encantado. Vai querer ajudá-lo, eu sei que vai.
Jeremy abanou a cabeça, os olhos fixos nela.
- Achas que sim? - perguntou, hesitante. - Ao fim de tantos anos... comigo... neste estado?
- Eu sei que ele vai ajudá-lo - repetiu ela. - Tenho a certeza. Jeremy ajeitou as roupas que trazia vestidas. Assoou o nariz ruidosamente mais uma vez e tornou a guardar o lenço dobrado dentro do bolso.
- Tu ama-lo, não é verdade?
Samantha vacilou.
- Não és como a outra. Farias qualquer coisa por ele.
- Faria - confessou Samantha. - Faria, sim.
Quando Lynley chegou a Padley Gorge, já a operação de busca a Maiden Hall estava no seu auge. Hanken levara seis agentes com ele e distribuíra-os de forma económica e meticulosa. Três deles passavam revista aos aposentos privados, ao andar dos hóspedes e ao piso térreo do hotel propriamente dito. Outro examinava os anexos e os últimos dois inspeccionavam os terrenos. Hanken coordenava a operação, e quando Lynley parou o carro no parque de estacionamento, encontrou o colega próximo de um carro descaracterizado fumando um cigarro por baixo de um guarda-chuva, enquanto um dos agentes encarregados da busca aos aposentos privados lhe apresentava o seu relatório.
- Juntem-se aos que estão no jardim, então - ordenou Hanken. Quero que me descubram todo e qualquer vestígio de escavações, como se fossem cães no rasto da raposa. Entendido? E não se esqueçam da nova tabuleta ao fundo do caminho de acesso.
O agente afastou-se na direcção do declive que se prolongava até à estrada. Aí, Lynley conseguiu distinguir dois polícias inspeccionando cuidadosamente o terreno sob as árvores.
- Nada até agora - Hanken informou Lynley. - Mas há-de estar por aqui, algures. Pelo menos há-de haver alguma coisa relacionada com isto. E nós havemos de a encontrar:
- Encontrei o impermeável - disse Lynley.
Hanken ergueu uma das sobrancelhas e atirou o cigarro para o chão.
- Encontrou? Bom trabalho, Thomas. Onde?
Lynley descreveu-lhe o raciocínio que o conduzira à vagoneta. Soterrado por baixo de uma semana de lixo produzido pelo hotel, encontrara o impermeável à custa de uma forquilha e da paciência da equipa de recolha de lixos, que chegara ao local logo depois dele, a fim de esvaziar a vagoneta.
- Você não tem propriamente ar de quem andou a vasculhar o conteúdo de uma vagoneta.
- Tomei banho e mudei de roupa antes de vir - confessou Lynley. O lixo acumulado na vagoneta - empilhado sobre o impermeável durante quase uma semana - acabara por protegê-lo da chuva. Se não fosse isso, quaisquer vestígios que ele pudesse conter teriam desaparecido. A peça de roupa de plástico não fora, por isso, tocada, apresentando apenas marcas deixadas por grãos de café, cascas de legumes, sobras de refeições, jornais velhos e lenços de papel amarrotados. E uma vez que fora virado do avesso, apenas o seu interior ficara manchado conferindo- lhe a aparência de uma lona estragada. O lado direito estava praticamente intacto, pelo que as manchas de sangue que apresentava estavam praticamente iguais ao que eram na noite da terça-feira anterior: testemunhos silenciosos dos acontecimentos de Nine Sisters Henge. Lynley enfiara o impermeável dentro de um saco de supermercado, que estava na mala do Bentley.
- Vamos lá ver isso, então.
- Antes disso - disse Lynley inclinando a cabeça na direcção do hotel -, os Maiden estão cá?
- Não precisamos de uma identificação do impermeável, se estiver manchado com o sangue do rapaz, Thomas.
- A minha pergunta foi feita fora do âmbito profissional. Como estão eles a reagir à busca?
- Maiden diz que descobriu um tipo em Londres que lhe pode fazer o teste do detector de mentiras. Tem uma empresa chamada Polygraph Professionals, ou algo do género.
- Se é isso que ele quer...
- Tretas - Hanken interrompeu-o, irritado. - Você sabe que os polígrafos não valem absolutamente nada. E Maiden também sabe isso. Só que são uma bela táctica para atrasar o processo, não são? Por favor, não me prenda. Vou fazer um teste de polígrafo. Pró diabo com isso. Vamos lá ver esse impermeável, então.
Lynley entregou-lho. Estava virado do avesso, tal como quando fora descoberto. Uma das suas extremidades, no entanto, estava visível, precisamente no sítio onde o sangue formara uma mancha arroxeada em forma de folha.
- Ah! - exclamou Hanken quando a viu. - Vamos mandar isto já para o laboratório. Mas eu apostava que estamos a chegar ao fim.
Lynley não estava tão certo. Porque seria? interrogou-se. Seria porque não conseguia acreditar que Andy Maiden matara a filha, ou porque os factos apontavam, de facto, noutra direcção.
- Parece deserto - comentou, referindo- se ao hotel.
- É a chuva - disse Hanken. - Mas eles estão lá dentro. Todos eles. A maioria dos hóspedes já saiu, já que é segunda-feira. Mas os Maiden estão em casa, tal como o pessoal. À excepção do chefe de cozinha, que só costuma aparecer depois das duas, segundo me disseram.
- Falou com eles? Com os Maiden, quero eu dizer?
Hanken pareceu ler o significado subjacente à pergunta dele, porque a sua reacção foi:
- Não contei nada à mulher, Thomas.
Em seguida, colocou o impermeável no assento da frente do carro.
- Fryer! - gritou na direcção do declive.
O agente que passara revista aos aposentos privados do hotel levantou a cabeça e, quando Hanken lhe fez sinal, caminhou ao encontro deles.
- Laboratório - disse, inclinando a cabeça para o carro. - Leve aquele saco para uma análise ao sangue. Veja se consegue que o trabalho seja feito por uma rapariga chamada Kubowsky. Ela não deixa passar nada e nós estamos com pressa.
O agente pareceu ficar satisfeito por poder sair da chuva. Despiu o corta-vento cor de lima e entrou no carro, desaparecendo em menos de dez segundos.
- É apenas uma formalidade - comentou Hanken. - O sangue pertence ao rapaz.
- Sem dúvida - concordou Lynley.
Os seus olhos, no entanto, continuavam fixos no hotel.
- Importa-se que eu vá falar com Andy?
Hanken olhou para ele.
- Não consegue aceitar, não é?
- Não consigo esquecer-me de que ele é polícia.
- É um ser humano, governado pelas mesmas paixões que todos nós - disse Hanken.
Felizmente, não disse o resto: que Andy Maiden era melhor do que as outras pessoas quando tocava a tomar uma atitude em relação a essas paixões. Em vez disso, referiu, antes de se afastar na direcção dos anexos:
- Não se esqueça disso.
Lynley encontrou Andy e a mulher no salão, no mesmo recanto onde ele e Hanken tinham conversado com eles pela primeira vez. Não estavam juntos desta vez, no entanto. Estavam ambos sentados, em silêncio, em dois sofás de frente um para o outro. As suas posições eram idênticas: inclinados para a frente, braços apoiados logo acima dos joelhos. Andy esfregava as mãos uma na outra. A mulher observava-o.
Lynley apagou do espirito a imagem shakesperiana invocada pela atenção que Andy dedicava às mãos. Chamou o antigo colega pelo nome. Andy ergueu os olhos.
- Eles andam à procura de quê? - perguntou.
Não passou despercebido a Lynley a utilização do pronome, nem o que a sua utilização deixava entrever: a distinção entre ele e a polícia local.
- Como estão? - retorquiu ele.
- Como espera que estejamos? Não basta que nos tenham tirado Nicola, agora também temos de suportar que invadam a nossa casa e o nosso local de trabalho sem terem a decência de nos dizer porquê. Basta acenar com um bocado de papel nojento assinado por um magistrado para nos entrarem pela casa dentro como um bando de vândalos... - a raiva de Nan Maiden ameaçava transformar-se em lágrimas. Cruzou as mãos com força e, num gesto semelhante ao do marido, esfregou-as uma na outra, como se isso lhe permitisse manter um controlo que já perdera.
- Tommy? - insistiu Andy.
Lynley disse-lhe o que podia revelar.
- Encontrámos o impermeável dela.
- Onde?
- Está manchado de sangue, provavelmente do rapaz. Presumimos que o assassino o terá usado para proteger as roupas que trazia vestidas. Pode haver outras provas. De tê-lo passado pela cabeça para o despir.
- Estás a pedir-me que te dê uma amostra do meu cabelo?
- Talvez seja melhor arranjares um advogado.
- Não pode estar a pensar que foi ele quem fez isto! - gritou Nan Maiden.
- Achas que eu preciso de um advogado? - Maiden perguntou a Lynley.
Ambos sabiam qual era realmente a pergunta: Até que ponto me conheces, Thomas? E: Acreditas que sou quem pareço ser?
Lynley não podia dar a Maiden a resposta que ele queria ouvir. Em vez disso, perguntou:
- Por que razão pediste para que fosse eu a investigar o caso? Quando telefonaste para a Yard, porque falaste em mim?
- Por causa das tuas qualidades - replicou Maiden. - Entre as quais a honra, que colocaste sempre em primeiro lugar. Sabia que podia contar com isso. Que tu tomarias a atitude certa. E, se preciso fosse, manter-te-ias fiel à tua palavra.
Trocaram um longo olhar. Lynley sabia o que ele significava, mas não podia correr o risco de ser tomado por parvo.
- Estamos a aproximar-nos do fim, Andy. O facto de ser ou não fiel à minha palavra não irá alterar nada. Precisas de um advogado.
- Não preciso, não.
- Claro que não precisas - concordou a mulher em voz baixa, sentindo-se mais forte, aparentemente, diante da calma demonstrada pelo marido. - Não fizeste nada. Quem não tem nada a esconder não precisa de um advogado.
Os olhos de Andy tornaram a pousar nas suas mãos, e ele recomeçou a massajá-las. Lynley deixou o salão.
A busca a Maiden Hall e aos seus arredores continuou durante mais uma hora. No final, todavia, os cinco agentes que tinham ficado no local não conseguiram encontrar nada que se parecesse com um arco, com os restos de um arco, ou com qualquer outro objecto relacionado com tiro ao arco. Hanken ficou à chuva, o vento agitando-lhe a gabardina em volta das pernas. Fumava e meditava, estudando Maiden Hall como se o seu exterior de pedra calcária escondesse o arco num sítio bem visível. A sua equipa ficou a aguardar instruções, ombros curvados, cabelos colados à cabeça e pestanas salpicadas de chuva. Lynley sentiu-se compensado pelo insucesso de Hanken. Se o outro inspector se atrevesse a dizer que Andy Maiden, o assassino eliminara todos os vestígios relacionados com o tiro ao arco - sem sequer saber que tinham descoberto uma ligação entre uma das mortes e o tiro ao arco - estava disposto a enfrentá-lo. Nenhum assassino pensava em tudo, Mesmo que esse assassino fosse um polícia, haveria de cometer um erro mais cedo ou mais tarde, e esse erro acabaria por denunciá-lo.
- Vamos a Broughton Manor, Peter - sugeriu Lynley. - Temos a equipa reunida e não demorará muito a conseguir um segundo mandado.
Hanken voltou à vida.
- Podem voltar para a esquadra - ordenou aos seus homens. Em seguida, virando-se para Lynley, depois de os agentes terem partido, disse:
- Quero aquele relatório do 5010. Aquele que um dos seus agentes de Londres preparou.
- Não é possível que ainda pense que se trata de uma vingança. Pelo menos de uma vingança relacionada com o passado de Andy.
- Não penso isso - disse Hanken. - Mas o nosso rapaz com passado pode ter usado esse passado de uma maneira que ainda não levámos em consideração.
- Como?
- Para descobrir alguém disposto a fazer um trabalho sujo por ele. Venha daí, inspector, estou a pensar em dar uma olhadela pelos registos do Black Angel Hotel.
CAPÍTULO 29
Ainda que tivesse realizado uma busca escrupulosa, a polícia agira com moderada simpatia na forma como manuseara os objectos pessoais dos Maiden e os equipamentos do hotel. Andy Maiden testemunhara buscas muito piores no seu tempo, e esforçou-se por retirar algum conforto do facto de os seus colegas não terem destruído a casa onde morava enquanto a revistavam de alto a baixo. Apesar de tudo, o hotel teria de ser totalmente limpo e arrumado. Depois de a polícia ter saído, Andy, a mulher e o pessoal distribuíram-se por diferentes zonas da casa e deram início às arrumações.
Andy sentiu-se aliviado quando Nan concordou com o plano de acção que ele lhe propôs. Mantinha-a longe dele durante algum tempo. Odiava-se por não querer estar perto dela. Sabia que ela precisava dele, mas depois de a polícia os ter deixado, Andy sentiu que precisava desesperadamente de estar só. Tinha de pensar. Sabia que não seria capaz de o fazer se tivesse Nan por perto, tentando sublimar a sua dor através de um empenho obsessivo e vão de tomar conta dele. Naquele momento, não desejava os cuidados da mulher. As coisas tinham ido demasiado longe para isso.
A roda posta em marcha com a morte de Nicola parecia aproximá-los cada vez mais do ponto de ruptura. Andy sabia que podia proteger Nan enquanto a investigação estivesse em curso, mas ignorava como poderia continuar a fazê-lo a partir do momento em que a polícia fizesse uma detenção. O facto de este momento estar cada vez mais próximo ficara bem claro na breve conversa que mantivera com Lynley. E o conselho de Tommy para que Andy procurasse a ajuda de um advogado fora uma indicação inequívoca de qual seria exactamente o próximo passo da polícia.
Tommy era um homem bom, pensou Andy. Mas não se podia pedir tudo a um homem bom. Quando esse homem bom atingia o seu limite, uma pessoa tinha de confiar em si própria.
Ali estava um princípio que Nicola compreendera. Combinada com seu insaciável desejo de ver satisfeitos os seus desejos - de imediato - sempre que se sentia atraída por alguma coisa, a confiança que depositava em si própria, mais do que nos outros, fora o que a levara a seguir o percurso que escolhera.
Há muito que Andy sabia que a ambição da filha era, muito simples mente, nunca passar necessidades. Testemunhara as economias que os pais tinham feito, tanto para conseguirem comprar uma casa no campo como para ajudar financeiramente o pai de Andy, cuja pensão não era suficiente para sustentar o seu estilo de vida extravagante. E, em mais de uma ocasião, sobretudo quando os pais se recusavam a satisfazer alguma das suas exigências, declarara que nunca se deixaria chegar a uma situação em que tivesse de amealhar e poupar, negando a si própria os pequenos prazeres da vida, renunciando a eles em prol de gestos tão estéreis como remendar lençóis e fronhas, virar colarinhos de camisas e passajar meias.
- É melhor não acabares como o avô, pai - dissera-lhe mais do que uma vez. - Porque eu pretendo gastar todo o meu dinheiro comigo.
E, no entanto, a avareza não era a característica dominante do seu comportamento. No mais fundo dela mesma, parecia existir antes um profundo vazio que procurava colmatar com posses materiais. Quantas vezes tentara fazê-la entender o dilema fundamental da humanidade: somos gerados pelos nossos pais, nascemos no seio de famílias, por isso tecemos relações. Todavia, estamos sempre sós. O nosso primitivo sentimento de isolamento cria um vazio dentro de nós, que apenas pode ser preenchido se alimentarmos o espírito. Pois, mas eu quero aquela moto, responderia ela, como se ele não tivesse tentado explicar-lhe, segundos antes, por que razão a aquisição de uma moto não contribuiria para apaziguar o espírito de alguém, cujas singulares necessidades ansiavam por um reconhecimento. Ou aquela guitarra, pediria ela, em resposta. Ou aqueles brincos de ouro, aquela viagem a Espanha, aquele carro fantástico.
- E se há dinheiro para a comprar, não vejo porque não havemos de o fazer. Que tem o espírito a ver com o facto de termos dinheiro para com prar uma moto, pai? Mesmo que queira, não posso gastar dinheiro no meu espírito, pois não? Por isso, que devo fazer com o dinheiro quando o tiver? Atirá-lo à rua?
E em seguida desatava a enumerar todos os indivíduos, a quem os fei tos ou a posição social garantiam imenso dinheiro: a Família Real, antigas estrelas de rock, magnatas do mundo dos negócios e empresários.
- Todos eles têm casas, carros, barcos e aviões, pai - dizia. E nunca andam sozinhos, nem têm ar de quem tenha um grande vazio i nterior, se quer que lhe diga.
Nicola sabia ser persuasiva quando queria alguma coisa, e nada do que ele dissesse era suficiente para fazê-la compreender que o que ela via era apenas o lado exterior dessas pessoas, cujas vidas ela tanto admirava. Aquilo que elas eram por dentro - o que sentiam - era algo que ninguém conhecia, à excepção delas próprias. E quando finalmente obtinha aquilo por que implorara, não era capaz de perceber que a satisfação que sentia era apenas passageira. Os seus olhos estavam fechados a este conhecimento, porque o obstáculo era sempre o desejo pelo objecto seguinte que, segundo ela acreditava, seria capaz de apaziguar a sua alma.
E tudo isto - que teria tornado difícil a educação de qualquer criança - combinava-se com a propensão natural de Nicola para viver à beira do abismo. Aprendera isso com ele, vendo-o mudar constantemente de personalidade ao longo dos anos em que trabalhara como infiltrado e ao escutar as histórias que os colegas contavam à mesa durante os jantares de família encorajados por um copo de vinho a mais. Andy e a mulher tinham mantido a filha afastada do outro lado desses actos de bravura que tanto a fascinavam. Ela nunca ficara a conhecer o preço pessoal que o pai tivera de pagar, à medida que o seu estado de saúde se ia debilitando devido à incapacidade do cérebro para separar a pessoa que ele realmente era das que era obrigado a encarnar por força do seu trabalho. Devia ver o pai sempre como um homem forte, completo e indómito. Tudo o resto serviria apenas para abalar os alicerces da personalidade da filha, supunham eles.
Era, por isso, natural que Nicola não tivesse visto qualquer problema em contar-lhe a verdadeira natureza dos seus planos para o futuro. Telefonara-lhe e pedira-lhe que fosse a Londres visitá-la. Será um encontro entre pai e filha, dissera ela. Feliz perante a ideia de que a sua linda filha desejava um tempo especial só com ele, fora até Londres. Encontrar-se-iam - faria o que ela desejasse, dissera-lhe ele - e, entretanto, ele aproveitaria a oportunidade para trazer algumas das suas coisas de volta para Derbyshire, onde ela arranjara emprego durante o Verão. Foi só quando deu uma olhadela ao apartamento dela e quando, esfregando as mãos, lhe perguntara o que desejava que ele levasse para o Land-Rover que ela lhe contara a verdade.
- Mudei de ideias em relação ao emprego no escritório de Will - começara por dizer. - Também tenho andado a pensar na questão do Direito, e Era sobre isso que queria falar contigo. Embora o nosso encontro sorrira, e como ficava bonita quando sorria, santo Deus - tenha sido maravilhoso. Foi a primeira vez que fui ao Planetário.
Preparara um chá para os dois, convidara-o a sentar-se, arranjara um prato com sanduíches que tirara de dentro de uma lata do Marks & Sp e perguntara:
- Alguma vez estiveste em contacto com o mundo da dominação quando trabalhavas como infiltrado, pai?
De início julgara que era apenas um tema de conversa como outro qualquer: um desfiar de recordações de um pai já com uma certa idade pi cado pelas perguntas interessadas da filha. Não tivera muito contacto com actividades sadomasoquistas, dissera-lhe. Era uma área da responsabilidade de outra divisão da Yard. Claro que tivera de entrar em clubes e em lojas sadomasoquistas algumas vezes, e tinha havido até uma festa em que um imbecil se vestira de colegial e fingira que estava a ser chicoteado numa cruz. Nada mais do que isso, porém. E ainda bem, porque havia certas coisas na vida que faziam com que uma pessoa se sentisse tão nojenta que um simples banho não seria o suficiente para apagar a sensação. E o sadomasoquismo ocupava o primeiro lugar da lista.
- É apenas um estilo de vida, pai - dissera Nicola, agarrando numa sanduíche de fiambre que mastigara com uma expressão pensativa. Depois de tudo o que viste, surpreende-me que o condenes.
- É uma doença - dissera ele à filha. - São pessoas que têm problemas e têm medo de enfrentá-los. Acham que a perversão é a resposta certa quando é apenas uma parte do mal que as afecta.
- Achas, então - lembrara Nicola, delicadamente. - Mas a realidade pode ser muito diferente, não pode? Aquilo que para ti é uma aberração, pode ser um comportamento perfeitamente normal para outra pessoa. Na verdade, aos olhos dela podes ser tu a verdadeira aberração.
Supunha que sim, admitira ele. Mas não seria a normalidade determinada por números? Não era esse o significado primeiro da palavra norma? E a norma, não seria determinada pelas acções e comportamentos da maioria?
- Isso faria do canibalismo um comportamento normal, pai, entre os canibais.
- E imagino que assim seja, entre os canibais.
- E se um grupo desses canibais decidisse que não gostava de comer carne humana? Seriam considerados anormais? Ou será que podemos dizer que os seus gostos tinham sofrido alterações? E se algum dos membros da nossa sociedade decidisse juntar-se aos canibais e descobrisse que preferia o sabor a carne humana? Poderemos considerá-lo anormal? E em relação a quem?
Andy sorrira ao ouvir as perguntas da filha.
- Vais dar uma excelente advogada - dissera.
E fora esse comentário que lhes abrira as portas do inferno.
- Quanto a isso, pai - começara ela -, quanto ao Direito...
Primeiro referira-se à sua decisão de não trabalhar para Will Upman e de ficar em Londres durante o Verão. Inicialmente julgara que ela tinha encontrado um emprego mais do seu agrado, numa das firmas da cidade.
Talvez, pensara esperançoso, tivesse conseguido estabelecer-se numa das WInns of Court. Não era esse o destino que sonhava para ela, mas não ignorava o quanto uma posição desse tipo seria um privilégio para a filha. - Tenho pena, claro. Tal como a tua mãe. Mas nós sempre encarámos Will como uma solução de recurso, na eventualidade de não surgir nada mais vantajoso. De que se trata, então?
E ela contara-lhe. Primeiro, pensara que se tratava de uma brincadeira, embora nunca tivesse sido pessoa para brincadeiras quando se tratava do que queria fazer. Na verdade, sempre expusera as suas intenções exactamente da mesma maneira como as expusera naquele dia em lslington: este é o plano, esta é a justificação, este é o resultado pretendido.
- Achei que devias saber - concluíra ela. -Tens o direito de saber, uma vez que foste tu que pagaste o curso de Direito. Dinheiro que eu faço questão de te pagar, aliás.
E sorrira novamente, aquele sorriso doce e enfurecedor tão típico de Nicola, que sempre acompanhava tudo o que ela anunciava como umfait accompli. Vou fugir de casa, ameaçava quando os pais lhe recusavam um pedido que consideravam fora dos limites do razoável. Hoje, não volto para casa depois da escola. Pensando melhor, nem sequer vou à escola. Não contem comigo para o jantar. Nem para o pequeno-almoço de amanhã. Vou fugir de casa.
- Antes do final do Verão, já devo ter o dinheiro suficiente para te pagar. Já podia tê-lo, mas tivemos de comprar alguns artigos e eles custam uma fortuna. Quer vê-los, por falar nisso?
Ele continuara a pensar que se tratava de uma brincadeira. Mesmo quando ela lhe mostrara o equipamento e explicara a utilização de cada um daqueles objectos obscenos: os chicotes de couro, os ganchos decorados com pequenos pregos cromados, as máscaras e as algemas, as correntes e as coleiras.
- Algumas pessoas não conseguem sentir prazer a não ser quando sentem dor e humilhações, percebes, pai? - explicara ela ao pai, como se ele não tivesse passado anos em contacto com toda a espécie de aberrações humanas. - Querem fazer sexo... o que é natural, não é verdade? Não queremos todos?... mas se não estiver relacionado com algo de degradante ou doloroso, ou não conseguem sentir satisfação ou nem sequer conseguem fazê-lo e pronto. E depois há outros que parecem sentir uma necessidade de expiar qualquer coisa. É como se tivessem cometido um pecado e, por isso, se tomarem o remédio como é suposto que tomem - seis palmadas para os rapazinhos que se portaram mal, esse género de coisa - sentem-se felizes, perdoados e podem prosseguir com as suas vidas normalmente. Vam para casa, para junto das mulheres e dos filhos e sentem-se, bem, sentem-se... imagino que deve parecer esquisito, mas é como se se sentissem refrescados.
Nessa altura, pareceu perceber algo no rosto do pai, que a levou a franzir o rosto, porque esticou o braço sobre a mesa a que estavam sentados. cobriu o punho cerrado do pai com a sua mão.
- Eu sou sempre a dominadora, pai. Sabes isso, não sabes?
Nunca deixaria que me fizessem as coisas que eu faço... Não me interessa, é tudo. Faço-o, porque se ganha imenso dinheiro, é inacreditável, e enquanto for jovem, bonita e forte o suficiente para fazer oito ou nove sessões por dia...
- esboçou um sorriso travesso quando pegou no último objecto que tinha para lhe mostrar. - O rabo-de-cavalo é o mais ridículo, na verdade. Não podes imaginar como é ridículo olhar para um velho de setenta anos com uma coisa destas pendurada no... bom, tu sabes.
- Diz - pedira ele, recuperando finalmente a fala.
Ela olhara para ele sem compreender, o suporte de plástico preto com as suas fitas de couro baloiçando na sua mão magra e bonita.
- O quê?
- A palavra. Pendurada onde? Se não consegues dizê-la, como con segues fazê-lo?
- Oh,isso. Bom,só não a digo porque és meu pai.
E aquela confissão destruíra algo dentro dele,um último vestígio de controlo e uma contenção obsoleta, resultante de uma depressão que o acompanhara e durara toda a sua vida.
- Olho do cu - gritara. - Pendurada no bendito olho do cu,Nick.
E com um gesto atirara ao chão todos os dispositivos de tortura que ela trouxera para Lhe mostrar.
Nicola compreendera - finalmente - que fora longe de mais. Recuara enquanto ele deixava que a raiva,a incompreensão e o desespero tomassem todas as formas possíveis. Virou móveis,partiu loiça e arrancou os livros de Direito das respectivas encadernações. Vira o medo estampado no rosto dela e pensara nas vezes em que podia tê-lo inspirado no passado e optara por não o fazer. E isso deixara-o ainda mais enfurecido,até que a destruição avassaladora que lançara sobre o apartamento da filha a reduzira a um monte formado pelas roupas de seda,pele de antílope e linho que trazia vestidas. Aninhara-se a um canto da sala,cobrindo a cabeça com os braços, mas isso não fora o suficiente para o deter. Atirara-lhe os equipamentos nojentos e gritara:
- Antes quero ver-te morta a permitir que o faças!
Fora apenas mais tarde,quando tivera tempo de pensar da forma como Nicola pensava,que compreendera que havia outra maneira de dissuadir a filha de prosseguir a sua recém-descoberta vocação. Havia a solução Will Upman e a possibilidade de ele vir a fazer com ela o mesmo que,a acreditar na sua reputação,fazia com tantas outras mulheres. Telefonara-lhe dois dias depois da sua ida a Londres e propusera-lhe o acordo. E Nicola,vendo que podia fazer muito mais dinheiro em Derbyshire do que em Londres, mostrara-se disposta a aceitar um compromisso.
Comprei algum tempo, pensara ele. E não falaram sobre o que se tinha passado entre eles naquele dia,em Islington.
Pensando em Nancy,Andy passara o Verão tentando fingir que, no final, tudo acabaria bem. Se Nick,de facto,retomasse o curso de Direito no Outono, ele estaria disposto a fazer de conta até morrer que o episódio de Islington nunca acontecera.
- Não contes nada disto à tua mãe - dissera ele à filha, quando faziam os preparativos.
- Mas pai, a mãe...
- Não. Que diabo, Nick, não vou discutir contigo. Quero que me dês a tua palavra em como vais ficar de boca fechada em relação a este assunto quando voltares para casa. Fui claro? Porque se um só sussurro sobre isto chega aos ouvidos da tua mãe, de mim não receberás nem um tostão. Estou a falar a sério. Por isso dá- me a tua palavra.
Ela assim fizera. E se alguma graça redentora restava da vida horrível que Nick levara e do horror da sua morte, era o facto de Nancy ter sido poupada aos pormenores daquilo em que a vida da filha se transformara.
Agora, porém, a revelação desses factos ameaçava trazer ainda mais destruição ao mundo de Andy. Perdera a filha para um mundo de degradação e conspurcação, mas não estava disposto a ver a mulher sucumbir à dor e à angústia contando-Lhe a verdade.
Percebeu que havia apenas uma maneira de deter o ciclo de destruição causado pela roda da morte de Nicola. Sabia que tinha uma forma de lhe pôr fim. Apenas rezava para que no último momento não lhe faltasse a vontade.
Que importância tinha o sacrifício de mais uma vida? Havia homens que tinham morrido por menos, por uma causa válida. E mulheres, também.
A meio da manhã de segunda-feira, Barbara Havers reunira informações suficientes sobre tiro ao arco. No futuro seria capaz de discutir com os melhores especialistas as vantagens do Mylar sobre a utilização de penas nas empenagens ou sobre as diferenças entre arcos e arcos de rodas. Quanto a estar mais perto de prender a medalha William Tell na lapela do casaco de Matthew King- Ryder... não tivera sorte nenhuma.
Percorrera a lista de contactos que Jason Harley lhe fornecera de fio a pavio. Conseguira até contactar por telefone todos os nomes da lista com morada de Londres, a fim de verificar se King-Ryder usara um pseudónimo. Ao fim de três horas, todavia, não conseguira chegar a lado nenhum, e o catálogo - embora contribuísse para enriquecer o seu reportório de trivialidades para aqueles momentos em que, no meio de uma recepção chique, uma pessoa procura desesperadamente um tema de conversa - não a ajudara em nada. Assim, quando o telefone tocou e ouviu a voz de Helen do outro lado da linha, perguntando-lhe se podia ir até Belgravia, aceitou o convite sem hesitar. Helen era muito escrupulosa no que tocava às horas das refeições, e a hora do almoço aproximava-se a passos largos sem que tivesse no frigorífico outra coisa que não fossem refeições pré- cozinhadas do género do rogan josh. Barbara achou, por isso, que uma mudança seria bem-vinda.
Chegou a Eaton Terrace uma hora depois do telefonema. Foi Helen quem lhe abriu a porta. Estava, como era habitual, impecavelmente vestida com umas calças castanho-amareladas e uma camisa verde-escura. Ao vê- la, Barbara teve a impressão de que era um bocado de queijo bolorento. Tendo telefonado para a Yard a dizer que estava doente, vestira-se ainda com menos cuidado do que habitualmente. Usava uma T- shirt bastante larga e umas calças de malha pretas e calçava ténis encarnados de pala subida sem meias.
- Não faça caso do meu aspecto. Estou incógnita - disse ela à mulher de Lynley.
Helen sorriu.
- Obrigada por ter vindo tão depressa. Eu teria ido ter consigo, mas pensei que talvez quisesse estar nesta zona da cidade depois de ouvir o que tenho para Lhe dizer.
O que tinha para me dizer? ", pensou Barbara. Belas notícias. A perspectiva do almoço mantinha-se decididamente.
Helen convidou Barbara a entrar, dizendo:
- Charlie? Barbara já chegou. Já almoçou, Barbara?
- Bem, não - respondeu Barbara, acrescentando logo de seguida: Não exactamente.
Um acesso súbito de honestidade levara-a a admitir que a tosta barrada
com creme de alho que comera para enganar a fome podia ser considerado almoço em alguns sítios.
- Tenho de sair. Pen chega esta tarde de Cambridge sem as crianças e prometemos a nós próprias que íamos almoçar a Chelsea. Mas Charlie pode preparar-lhe uma sanduíche ou uma salada,se estiver com fome.
- Hei-de sobreviver - disse Barbara,embora ela própria tivesse dúvidas.
Seguiu Helen até à bonita e confortável sala de estar,onde reparou que o armário onde Lynley guardava a aparelhagem de som estava aberto.
Todos os componentes estavam ligados e sobre o gira-discos estava uma caixa de CD aberta. Helen fez sinal a Barbara para que se sentasse enquanto se instalava no mesmo sítio onde estivera sentada na tarde do dia anterior, antes de Lynley a ter expulso do caso.
- Deduzo que o inspector chegou a Derbyshire são e salvo? - disse para início de conversa.
- Lamento muito a discussão entre ambos - disse Helen. – Tommy é... Bom,Tommy é como é.
- É uma forma de ver as coisas,sim - admitiu Barbara.
- Temos uma coisa que gostávamos que ouvisse - continuou Helen.
- A Helen e o inspector?
- Tommy? Não, ele não sabe de nada - Helen pareceu ler algo no rosto de Barbara, porque apressou-se a acrescentar de forma algo ambígua.
- É só porque não tínhamos a certeza sobre que interpretação dar ao que descobrimos. Foi então que eu disse, Vamos telefonar a Barbara.
- Nós? - inquiriu Barbara.
- Charlie e eu. Ah, aqui está ele. Põe o disco a tocar para Barbara ouvir, por favor, Charlie.
Denton cumprimentou Barbara e entregou- lhe o que trouxera com ele: um tabuleiro com um prato onde se encontrava um suculento peito de frango disposto sobre um ninho feito de uma pasta tricolor. Um copo de vinho branco e um crepe completavam a refeição. Os talheres estavam envolvidos num guardanapo de linho dobrado de forma artística.
- Achei que lhe cairia bem comer qualquer coisa - disse ele. - Espero que goste de manjericão.
- Considero-o como a resposta às preces de uma jovem. Denton sorriu. Barbara começou a comer enquanto ele se dirigia para junto do armário. Helen sentou-se no sofá ao lado de Barbara enquanto Denton mexia nos botões e nas teclas, dizendo:
- Oiça isto.
Barbara assim fez, mastigando o delicioso frango que Denton lhe preparara. Quando começou a escutar os sons de uma orquestra onde sobressaíam os instrumentos de sopro, pensou que haveria certamente formas muito piores de passar uma tarde.
Uma voz de barítono começou a cantar. Barbara conseguiu perceber algumas das palavras:
viver, viver, continuar a viver ou morrer a questão permanece na mente até a humanidade perguntar porquê. morrer, morrer, parar o coração atormentado não mais sentir o choque e a ferida quando a carne aceita o seu papel no que é ser homem, votos trocados à pressa, receosos porque não acolher a morte no meu peito, o sono eterno na minha sepultura dormir, esse sono, os terrores que me esperam quais serão os sonhos de homens adormecidos que pensam sem cuidados que escaparam ao chicote, o desdém a que o tempo obriga os que vivem Esse sono traz uma paz a um homem que não consegue perdoar...
- Bonito - comentou Barbara para Denton e Helen. - de facto. Nunca tinha ouvido isto antes.
- E a razão é esta.
Helen entregou a Barbara o mesmo sobrescrito que ela própria deixara em Eaton Terrace.
Quando tirou o maço de papéis que estavam no interior, Barbara viu que se tratava da partitura musical que Mrs. Baden lhe dera.
- Não estou a perceber - disse.
- Veja - Helen dirigiu a atenção de Barbara para a primeira folha. Em pouco tempo, Barbara deu consigo acompanhando o que o barítono estava a cantar. Leu o título da canção no cimo da página, O Desfecho dos sonhos e absorveu o facto de a canção ter sido escrita pela própria mão do seu autor, cuja assinatura surgia também no topo da folha a toda a largura da página: Michael Chandler.
A sua primeira reacção foi de profundo desânimo. Raios partam, dei xou escapar quando percebeu que a sua teoria sobre o motivo subjacente aos crimes ocorridos em Derbyshire iam por água abaixo.
- Então, a música já foi utilizada. Isso deita por terra todo o meu raciocínio.
Com efeito, não havia razão nenhuma para que Matthew King-Ryder quisesse ver-se livre de Terry Cole e de Nicola Maiden - já para não falar em espancar Vi Nevin - se a partitura a que ele supostamente queria deitar as mãos já tivesse sido tocada. Não podia montar um novo espectáculo com uma música antiga. Apenas conseguiria montar uma reposição. E isso não era razão suficientemente forte para matar fosse quem fosse, uma vez que os lucros gerados pela reposição de qualquer espectáculo Chandler/King-Ryder seguiriam o destino traçado no testamento do pai.
Folheou a partitura pousada sobre a mesa de centro, mas Helen deteve-a com um braço.
- Espere - disse. - Acho que ainda não compreendeu. Charlie? Mostra- lhe.
Denton entregou-lhe dois objectos: um era a capa do CD que estavam a ouvir; o outro, um programa de teatro do tipo de espectáculo que geral mente provocava um valente rombo no orçamento de uma pessoa. Tanto no CD como no programa aparecia a palavra Hamlet em relevo. E no CD, aparecia ainda a indicação: Letra e Música de David King-Ryder. Barbara olhou fixamente para estas palavras durante alguns segundos, o tempo suficiente para perceber tudo o que elas significavam. E o seu significado apontava para um único facto maravilhoso: descobrira, finalmente, o verdadeiro motivo que levara Matthew King-Ryder a cometer um crime.
Hanken mostrava-se inflexível. Queria os registos do Black Angel Hotel e não iria ser uma companhia agradável enquanto não os conseguisse. Lynley podia acompanhá-lo, se quisesse, ou podia ir a Broughton Manor sozinho, algo que Hanken não aconselhava, dado que não fizera nenhuma diligência para conseguir um mandado de busca e, na sua opinião, os Britton não iriam acolher de braços abertos alguém que quisesse meter o nariz nalgumas centenas de anos de história familiar.
- Vai ser necessário reunir uma equipa de vinte elementos para passar aquele lugar a pente fino - disse Hanken. - Se tiver de ser,será. Mas aposto o que quiser em como não vamos precisar de o fazer.
Não precisaram de muito tempo para obter os registos do hotel. Enquanto Lynley telefonava para Londres à procura de Nkata para pedir-lhe que enviasse por faxe o resultado das investigações de Barbara sobre o 5010, Hanken pegou nos registos e levou-os para o bar,onde o almoço daquele dia era porco assado com maçãs cozidas. Quando Lynley foi ter com ele, levando o relatório de Havers,o outro inspector tinha uma das mãos ocupada com o prato do dia e a outra percorrendo os registos do hotel.
À sua frente havia outro prato - fumegante e com uma refeição semelhante - e ao lado uma caneca de cerveja.
- Obrigado - agradeceu Lynley,estendendo-lhe o relatório.
- Escolha sempre o prato do dia - aconselhou Hanken,com uma inclinação de cabeça na direcção da papelada que Lynley segurava. – Que temos aí?
Nada,na opinião de Lynley,embora se tivesse lembrado de três nomes que mereciam uma olhadela,ainda que lhe custasse admiti-lo. Um deles era um antigo informador de Maiden,os restantes dois eram personagens secundárias que tinham operado nas margens das investigações de Maiden,mas nunca tinham cumprido pena num dos estabelecimentos de Sua Majestade.
No caminho de regresso ao Black Angel,Hanken aperfeiçoara uma nova teoria. Maiden,segundo dizia,era demasiado esperto para matar a filha pessoalmente,por mais que quisesse vê-la morta. Teria,por isso,encomendado a tarefa a um dos patifes que conhecera no passado,tendo depois enganado a polícia dizendo-lhes que se tratava de uma vingança,para manter a atenção deles centrada nos vagabundos que ainda estavam presos ou em liberdade condicional. Enquanto isso,todos os outros que se tinham cruzado com Maiden,mas não tinham qualquer razão para se vingar dele, passariam despercebidos à polícia. Uma estratégia inteligente. Por isso, Hanken queria consultar o relatório sobre o 5010,a fim de verificar se alguns dos nomes que lá apareciam coincidiam com alguém que tivesse assinado a ficha de identificação do hotel.
- Está a ver como tudo pode ter acontecido,não está? – Hanken perguntou a Lynley. - Depois de contratar o tipo,Maiden só precisaria de o informar sobre o sítio onde a rapariga ia acampar. E ele sabia onde era, Thomas. Sabemo-lo desde o início.
Lynley queria contra-argumentar, mas não o fez. Se havia pessoa capaz de entender os riscos envolvidos num contrato de morte, essa pessoa era Andy Maiden. Que ele o tivesse feito para se livrar de uma filha, cujo estilo de vida era para ele intolerável, era uma hipótese impensável. Se o homem tivesse desejado eliminar Nicola por não conseguir forçá-la a mudar os seus hábitos de vida, não teria procurado ninguém a quem entregar a missão, sobretudo alguém que pudesse rapidamente dar com a língua nos dentes e identificá-lo. Não. Lynley sabia que se Andy Maiden tivesse desejado eliminar a filha, tê-lo-ia feito pessoalmente. E eles não tinham a mais pequena prova de que o tivesse feito.
Lynley brincava com a comida enquanto Hanken lia o relatório e engolia a sua refeição. Terminou as duas em simultâneo e disse:
- Venables, Thompson e Brick - chegando, o que era extraordinário, à mesma conclusão a que o próprio Lynley chegara. - Mas penso que devemos verificar se aparecem ou não nas fichas do hotel.
E assim fizeram. Pegaram nas fichas da semana anterior e verificaram os nomes de todos os hóspedes do hotel durante esse período, confrontando-os com os nomes que constavam do relatório de Havers. Dado que este cobria um período de mais de vinte anos de actividade policial de Andy Maiden levaram algum tempo a completar a tarefa. No final, porém, todo aquele esforço serviu apenas para os levar de volta ao ponto de partida. Os nomes não coincidiam.
Foi Lynley quem chamou a atenção para o facto de que alguém que viesse até ali com a missão de matar Nicola Maiden não se teria, quase de certeza, registado num hotel da região usando o seu nome verdadeiro. Fazia sentido, admitiu Hanken. No entanto, em vez de eliminar definitivamente a hipótese de um assassino contratado que se hospedara no hotel e aí abandonara o blusão e o impermeável, disse, enigmático:
- Claro que não. Vamos até Buxton.
E Broughton Manor? quis saber Lynley. Iriam passar por cima dessa possibilidade em favor de... do quê? Para se lançarem no encalço de alguém que podia não existir?
- O assassino existe, Thomas - replicou Hanken enquanto se punha de pé. - E quer-me parecer que vamos descobri-lo através de Buxton.
- Mas porque me telefonou a mim? - Barbara olhou para Helen e perguntou. - Porque não ligou antes para o inspector?
- Obrigada, Charlie - disse Helen. - Mandas entregar os catálogos de papel de parede na Peter Jones, por favor? Já fiz a minha escolha e está assinalada.
Mando, sim, respondeu Denton com um aceno de cabeça e saiu da sala depois de desligar a aparelhagem e de guardar o seu CD.
- Ainda bem que Charlie gosta destes espectáculos feéricos do West End - comentou Helen quando ela e Barbara ficaram sozinhas. - Quanto mais o conheço, mais precioso ele se vai tornando. E quem diria? Quando eu e Tommy nos casámos, perguntei a mim própria o que sentiria em relação ao facto de ter o criado do meu marido - ou seja lá o que Charlie Denton é, de facto - passeando pela casa como se fosse um daqueles servidores do século xix. Mas ele é indispensável, como a Barbara acabou de ver.
- Porquê, Helen? - insistiu Barbara, sem se deixar desencorajar pelos comentários casuais da outra mulher.
Os traços do rosto de Helen suavizaram- se.
- Eu amo-o - disse. - Mas ele nem sempre tem razão. Ninguém tem, aliás.
- Ele não vai gostar quando souber que conversámos sobre isto.
- Pois não. Bom, mas na altura eu hei-de arranjar maneira de lidar com esse problema - Helen indicou a partitura musical com um gesto. Qual é a sua opinião?
- À luz do crime?
E quando Helen disse que sim com um movimento de cabeça, Barbara
considerou todas as respostas possíveis. David King-Ryder, lembrou, suicidara-se na noite de estreia de Hamlet. A acreditar nas palavras do seu próprio filho, ela sabia que não era possível que King-Ryder não tivesse percebido, nessa mesma noite, que o espectáculo era um sucesso estrondoso. Mesmo assim, suicidara-se, e quando Barbara relacionava este facto, não só com a verdadeira autoria da música e da letra, mas também com a história que Vi Nevin lhe contara sobre a forma como a partitura fora parar às mãos de Terry Cole, podia apenas tirar uma conclusão: alguém sabia que não fora David King-Ryder quem compusera nem a música nem a letra do espectáculo que estava a montar com o seu próprio nome. Essa pessoa sabia-o, porque conseguira de alguma maneira apoderar-se da partitura original. E tendo em atenção que o telefonema interceptado por Terry Cole em Elvaston Place fora feito em Junho, na época em que Hamlet estreara, parecia lógico concluir que o telefonema era dirigido, não a Matthew King-Ryder - ansioso por produzir um espectáculo que estivesse fora do âmbito dos termos do testamento do pai -, mas sim a David King- Ryder, desesperado por reaver a partitura e por ocultar do mundo o pormenor muito simples de que não se tratava de uma obra da sua autoria.
Que outra razão levaria King-Ryder a cometer suicídio, a não ser o facto de ter chegado junto da cabina telefónica cinco minutos depois da hora marcada? Por que razão se mataria ele, se não acreditasse que - apesar de ter pago a um chantagista que ficara de telefonar para lhe indicar o local onde deveria levantar a encomenda - iria ser chantageado ad infinitum? Pior ainda, iria ficar à mercê dos mesmos tablóides que o tinham massacrado durante anos. Claro que não podia fazer outra coisa a não ser matar-se, pensou Barbara. Jamais poderia vir a saber que fora Terry Cole quem atendera o telefonema que lhe era dirigido. jamais saberia como entrar em contacto com o chantagista e perceber o que tinha corrido mal. Assim, quando não ouviu o telefone tocar naquela cabina telefónica de Elvaston Place, ao chegar ao local de encontro, deve ter percebido que estava frito.
A única questão a que importava responder era: quem fizera chantagem com David King-Ryder? E havia apenas uma resposta que parecia remotamente razoável: o seu próprio filho. Havia provas que o sugeriam, ainda que fossem apenas circunstanciais. Era quase certo que Matthew King-Ryder sabia, ainda antes que o pai tivesse cometido suicídio, que não iria herdar nada após a morte dele. Se era verdade que seria ele o presidente do King-Ryder Fund - e ele assim o dissera quando falara com Barbara, era impossível que não tivesse sido informado dos termos em que estava redigido o testamento do pai. Deste modo, a única forma de pôr as mãos numa parte do dinheiro do pai, seria recorrendo à extorsão.
Barbara explicou tudo isto a Helen, e quando terminou de falar, a mulher de Lynley disse:
- Mas tem alguma prova disso? Porque sem provas... A expressão do rosto dela dizia o resto: Está feita, minha amiga. Barbara analisou a questão uma e outra vez enquanto acabava de almoçar. E encontrou a resposta ao rever brevemente a visita que fizera a King-Ryder, no seu apartamento de Baker Street.
- A casa - disse para a mulher de Lynley. - Ele estava em vésperas de mudar de casa, Helen. Disse-me que finalmente conseguira juntar dinheiro para comprar uma propriedade a sul do rio.
- Mas sul do rio... Isso não é exactamente... - Helen parecia obviamente incomodada, e Barbara sentiu ainda mais amizade por ela ao ver a sua relutância em chamar a atenção para a riqueza considerável de Lynley. Quem quisesse comprar nem que fosse um armário em Belgravia precisava de sacos de cacau. Por outro lado, se fosse a sul do rio - onde os mais modestos mortais adquiriam as suas casas - o problema seria menor. King-Ryder poderia ter poupado o dinheiro suficiente para adquirir uma casa nessa zona. Barbara admitia essa possibilidade.
Todavia, afirmou:
- Não há outra explicação para o comportamento de King-Ryder: o facto de ter mentido sobre o que se tinha passado quando Terry Cole esteve no escritório dele, a busca que fez ao apartamento de Terry em Battersea, o ter comprado uma das monstruosidades de Cilla Thompson, a destruição da casa de Vi Nevin. Ele tem de deitar a mão àquela partitura e está disposto a tudo para a ter. O pai morreu, e é ele o principal culpado. Mas também não quer destruir a memória do pobre homem. Queria algum dinheiro, claro, mas não queria vê-lo destruído.
Helen reflectiu sobre o que Barbara acabara de dizer, alisando uma ruga das calças com a ponta dos dedos.
- Estou a perceber o seu raciocínio - admitiu. - Mas e a prova de que ele é um chantagista, já para não falar em assassino... - ergueu os olhos e estendeu as mãos, como se dissesse, Onde está ela?
Barbara pensou sobre o que sabia sobre King-Ryder, além dos dados de que dispunha relativamente aos termos do testamento do pai: Terry encontrara-se com ele; ele fizera uma busca ao apartamento de Terry; fora ao estúdio em Portslade Road...
- O cheque - disse ela. - Ele passou um cheque a Cilla Thompson quando comprou um daqueles quadros horríveis que ela pinta.
- Muito bem - argumentou Helen, cautelosa. - Mas onde é que isso a leva?
- A Jersey - retorquiu Barbara com um sorriso. - Cilla fotocopiou o cheque, provavelmente porque nunca tinha vendido nada na vida e pode acreditar que nunca se vai esquecer deste episódio, já que o mais provável é que ele nunca mais se torne a repetir. O cheque foi passado sobre um banco de St. Helier. Ora, por que razão é que o nosso homem abriria uma conta bancária nas ilhas do Canal, se não fizesse tenções de esconder o dinheiro, não me diz, Helen? Um depósito de uma quantia avultada de alguns milhares de libras... algumas centenas de milhares, talvez, que tivesse conseguido sacar ao pai para alimentar o interesse de um chantagista qualquer... sobre os quais não queria levantar suspeitas? É essa a prova de que precisamos.
- Todavia, tudo não passa de uma conjectura, não é verdade? De que maneira pode provar alguma coisa? Não pode ter acesso às contas bancárias, pois não? Nesse caso, que pode você fazer?
Estava realmente a braços com um problema, pensou Barbara. Não conseguia provar nada. Não havia maneira de a polícia ter acesso à conta bancária de King-Ryder, e ainda que ela o conseguisse a título pessoal, que provaria um depósito chorudo feito antes do telefonema realizado no mês de Junho a não ser que se tratava de uma tentativa de alguém para escapar ao controlo das finanças?
Havia a pegada encontrada no apartamento de Vi Nevin, claro, a sola de sapato com um padrão hexagonal. Todavia, se ficasse provado que aquela sola de sapato era tão comum como o hábito de comer torradas ao pequeno-almoço, que teria a investigação a ganhar com esse facto? Era de esperar que King-Ryder tivesse deixado uma série de vestígios espalhados pelo apartamento de Vi Nevin. O que era improvável, no entanto, era que se mostrasse disposto a colaborar, se por acaso a polícia lhe pedisse algumas madeixas de cabelo ou uma amostra de sangue para uma análise de ADN. E mesmo que lhes fornecesse todos os elementos de que precisavam, desde o creme para os pés ao fio dentário, jamais conseguiriam relacioná-lo com os crimes ocorridos em Derbyshire, a não ser que a polícia possuísse um conjunto numeroso de provas deixadas na cena do crime.
Barbara sabia que se telefonasse ao inspector Lynley para uma breve troca de impressões sobre as provas do crime recolhidas em Derbyshire, a sua situação não se ficaria pela despromoção e pela expulsão do caso. Desobedecera às ordens dele e decidira agir por conta própria. Em con sequência, ele colocara-a fora do caso. Nem se atrevia a pensar no que ele faria se descobrisse que ela tornara a envolver-se na investigação do caso. Assim, se quisesse desmascarar King-Ryder, teria de agir mais ou menos sozinha. Havia apenas uma pequena questão, que era a de saber como haveria de o fazer.
- Ele foi esperto que nem um alho - disse Barbara a Helen. - Este tipo não brinca em serviço, no que toca a pôr a cabeça a funcionar. Mas se eu conseguir descobrir uma maneira de lhe ganhar vantagem... se puder usar algo que eu saiba entre todos os elementos que consegui reunir...
- Tem a partitura - assinalou Helen. - Aquilo que ele sempre quis, não é verdade?
- Ele tem corrido seca e meca à procura dela, quanto a isso não há dúvidas. Virou o acampamento do avesso. Fez uma busca ao apartamento de Battersea. Destruiu a casa de Vi Nevin. Passou tempo suficiente no estú dio de Cilla tentando descobrir se havia algum esconderijo. Eu diria que podemos afirmar com certeza que ele anda à procura desta partitura. E sabe que nem Terry, nem Cilla, nem Vi a tinham.
- Mas sabe também que ela está algures.
Exacto, pensou Barbara. Mas onde e com quem? Quem, que King-Ryder não conhecesse, podia convencê-lo de que a partitura andara de mão em mão e que se a quisesse, ele - King-Ryder - teria de sair da sombra e vir buscá-la pessoalmente? E de que forma é que o acto de sair da sombra para se apoderar da partitura - cujo conhecimento ele podia perfeitamente negar, quando a visse - podia constituir-se no acto que o trairia como o assassino?
Com mil diabos, protestou Barbara em pensamento. Tinha a impressão de que o seu cérebro estava a derreter-se, vítima de combustão nuclear. Precisava de conversar com outro profissional. Precisava de uma boa e esclarecedora conversa com alguém que não só fosse capaz de visualizar todas as ramificações daquele crime, mas que também pudesse dar um passo em frente, propor a solução, fazer parte dela e defender-se de King- Ryder, se a situação desse para o torto no espaço de segundos.
O inspector Lynley era a escolha óbvia. Mas estava fora de questão. Precisava, por isso, de alguém como ele. Precisava de um clone. Precisava...
Barbara pôs-se de pé e sorriu.
- Claro - exclamou.
Helen ergueu uma sobrancelha.
- Teve uma ideia?
- Tive uma inspiração dos diabos!
Era já uma hora quando Nan Maiden deu por falta do marido. Estivera atarefada com a arrumação do andar térreo de Maiden Hall e fizera um esforço tal para agir como se as buscas policiais inesperadas fizessem parte do quotidiano de todos eles, que não dera pela falta de Andy.
Quando não o encontrou dentro do edifício, deduziu que devia estar algures nos jardins. Todavia, quando pediu a um dos moços da cozinha que fosse perguntar a Mr. Maiden se queria almoçar, ficou a saber pelo rapaz que Andy saíra no Land-Rover cerca de meia hora antes.
- Ah, claro - fora a reacção de Nan, tentando aparentar que se tratava de um comportamento perfeitamente normal dadas as circunstâncias. Tentou até convencer-se disso. Porque era inconcebível que Andy tivesse saído sem lhe dizer uma palavra que fosse, depois de tudo aquilo por que ambos tinham passado.
- Uma busca? - perguntara ao inspector Hanken que a olhara com uma expressão imperturbável. - Mas uma busca de quê? Não temos nada... não estamos a esconder nada... não vão encontrar nada...
- Minha querida - interviera Andy.
Pedira que lhe mostrassem o mandado de busca e devolvera-o depois de o ter examinado.
- Podem prosseguir - dissera a Hanken.
Nan recusara-se a pensar no que eles procuravam. Recusara-se a pensar no significado da presença deles, ali em casa deles. Quando se tinham ido embora de mãos vazias, sentira um alívio tão grande que as pernas tinham fraquejado e tivera de se sentar rapidamente para não cair no chão.
Todavia, o alívio da tensão nervosa que sentira ao ver a polícia partir sem ter encontrado o que procurava rapidamente dera lugar à ansiedade, no momento em que se apercebera que Andy não estava em casa. Suspenso sobre as suas cabeças permanecia o desejo que o marido expressara em encontrar alguém que o submetesse a um detector de mentiras.
Foi isso que ele foi fazer, decidiu Nan. Encontrou alguém para lhe fazer o malfadado teste. A busca ao hotel foi a gota de água. Está decidido a fazer o teste e a provar a sua inocência a toda a gente, pedindo a alguns dos agentes envolvidos na investigação que estejam presentes durante a realização do teste.
Tinha de impedir que o fizesse. Tinha de fazer com que ele compreendesse que estava a ser um joguete nas mãos deles. Tinham chegado munidos de um mandado de busca, prontos para revistar a casa e o hotel, sabendo que isso o deixaria enervado. E assim acontecera. Deixara-os enervados a ambos.
Nan roeu as unhas. Se não se tivesse sentido momentaneamente fraca, teria ido ter com ele, disse para si mesma. Podiam ter conversado. Ela tê-lo-ia abraçado e teria tranquilizado a sua consciência ferida e - não. Não queria pensar naquilo naquele momento. Não queria pensar na consciência. Na consciência, nunca. Pensaria apenas no que poderia fazer para fazer com que o marido mudasse de ideias.
Percebeu que havia uma única possibilidade.
Não podia correr o risco de usar o telefone da Recepção, por isso subiu aos aposentos privados e usou o telefone que estava no quarto deles, junto à cama. Tinha pegado no auscultador e preparava-se para marcar o número quando viu a folha de papel dobrada sobre a almofada.
A mensagem que o marido lhe deixara consistia numa frase apenas. Nan Maiden leu-a e largou o telefone.
Não sabia para onde devia ir. Não sabia o que fazer. Saiu do quarto a correr, lançou-se escada abaixo agarrando com força o bilhete de Andy. Uma infinidade de vozes ecoava dentro da sua cabeça, gritando-lhe que agisse, mas não era capaz de discernir uma única palavra que Lhe indicasse o primeiro passo a dar naquele momento.
Queria agarrar cada uma das pessoas que ia encontrando. No andar reservado aos hóspedes, no salão, na cozinha, nos jardins. Queria abaná- los a todos. Queria gritar, Onde está ele? ajudem-me! que foi ele fazer? onde foi e o que quer dizer? quando... oh, meu Deus, não me digam nada porque eu sei eu sei eu sei o que ele quis dizer sempre soube e não quero ouvir não quero enfrentá-lo! não quero sentir não quero aceitar o que ele... não não não... ajudem-me a encontrá-lo! ajudem-me.
Deu consigo atravessando o parque de estacionamento a correr antes de perceber que era para lá que se dirigia. E foi então que compreendeu que o seu corpo assumira o controlo de uma mente que deixara de funcionar. Ainda que tivesse consciência do que devia fazer, viu aquilo que alguém já lhe tinha dito: o Land-Rover não estava lá. Andy levara-o, porque tencionara deixá-la impotente.
Não aceitaria tal coisa. Virou-se e correu de volta ao hotel, onde a primeira pessoa que encontrou foi uma das duas mulheres de Grindleford e porque diabo sempre pensara nelas como as mulheres de Grindleford, como se cada uma delas não tivesse um nome próprio? - e deteve-a.
Nan sabia que parecia desvairada. Sentia-se desvairada, disso não duvidava. Mas não interessava.
- O seu carro, por favor - pediu, e foi o máximo de palavras que conseguiu proferir, descobrindo que a sua respiração soava irregular.
A mulher pestanejou.
- Mrs. Maiden? Está doente?
- A chave. Do seu carro. É Andy.
Foi o suficiente, felizmente. Momentos depois, Nan encontrava-se atrás do volante de um Morris, tão velho que o assento do condutor consistia numa fina camada de estofo assente sobre as molas.
Pôs o motor a trabalhar e arrancou declive abaixo. Só pensava em encontrá-lo. O sítio para onde fora e as razões que o tinham levado a partir eram algo que não queria considerar.
Barbara descobriu que não era tarefa fácil convencer Winston Nkata a participar no plano de acção. Uma coisa fora ele convidá-la a participar na investigação numa altura em que ela não passava de mais um detective aguardando que lhe fosse atribuída uma missão, enquanto ele próprio acompanhava Lynley a Derbyshire. Outra, completamente diferente, era ela pedir-lhe a ele que tomasse parte numa fase dessa mesma investigação, quando ela própria fora excluída do caso. A pequena cena de caça à raposa que ela propunha não teria a autorização do superior hierárquico de ambos. Por isso, sentira-se um pouco como se fosse Mr. Christian, embora o seu colega detective não parecesse ser o tipo de homem que quisesse dar um passeio na Bounty.
- Nem pensar, Barb - disse ele. - Isto é arriscado como o inferno.
- Winnie - contrapôs ela -, é um simples telefonema. Nada mais. E além disso estás na tua hora de almoço, não estás? Ou podias passar a estar, não podias? Também tens de comer. Vai lá ter comigo, comemos qualquer coisa ali perto. Podes escolher o que quiseres. Pago eu, está prometido.
- Mas o chefe...
-... nem sequer terá de ficar a saber, se não der em nada - concluiu Barbara, acrescentando: - Winnie, eu preciso da tua ajuda.
Ele hesitou. Barbara susteve a respiração. Winston Nkata não era homem para embarcar em aventuras, por isso deu-lhe tempo para que analisasse o que ela lhe pedia de todos os pontos de vista possíveis. E enquanto ele pensava, ela rezava. Se Nkata não aceitasse fazer parte do plano dela, não tinha ideia de quem poderia estar disposto a colaborar.
- O chefe pediu que lhe enviasse por faxe o relatório que fizeste sobre o CRIS, Barb - disse, por fim.
- Estás a ver? - replicou ela. - Continua a insistir no mesmo beco sem saída. Não vai dar a lado nenhum, Winnie. Anda lá. Por favor. És a minha única esperança. Estamos no caminho certo. Eu sei que estamos. Só preciso que me faças um pequeno telefonema.
Ouviu-o murmurar uma imprecação e depois dizer:
- Dá-me meia hora.
- Fantástico - disse ela, preparando-se para sair.
- Barb - chamou ele -, não me faças arrepender disto. Saiu na direcção de South Kensington. Depois de calcorrear todas as ruas desde Exhibition Road a Palace Gate, encontrou finalmente um lugar para estacionar em Queen's Gate Gardens. Dirigiu-se depois a pé até à esquina de Elvaston Place com Petersham Mews, onde estavam localizadas as únicas cabinas telefónicas de Elvaston Place. Eram duas, cheias de pelo menos três dezenas de postais do género dos que Barbara encontrara debaixo da cama de Terry Cole.
Nkata, vindo de Westminster e tendo, por isso, de percorrer uma distância maior, não chegara ainda, pelo que Barbara atravessou Gloucester Road e dirigiu-se a uma padaria francesa que avistara durante uma das suas deambulações pelo bairro quando procurava um local para deixar o carro. Mesmo vista da rua e do interior do carro, Barbara sentira o cheiro tentador a croissants de chocolate.
Dispondo de algum tempo livre enquanto Winston não chegava, decidiu que não havia motivo para ignorar os apelos desesperados do seu corpo por dois grupos de alimentos básicos a que se esquivara durante todo o dia: manteiga e açúcar.
Vinte minutos depois de ter chegado a South Kensington, Barbara avis tou a silhueta delgada de Winston Nkata vindo de Cromwell Road. Enfiou o resto do croissant na boca, limpou os dedos à T-shirt, engoliu o que sobrava de uma Coca-Cola e saiu apressadamente da padaria no momento em que ele alcançava a esquina.
- Obrigada por teres vindo - agradeceu.
- Se o teu palpite sobre este tipo é tão forte, porque não o prendemos e pronto? - perguntou Nkata, acrescentando com a displicência de um homem há muito familiarizado com o pior dos seus vícios: - Tens o queixo sujo de chocolate, Barb.
Resolveu o problema com uma das pontas da T-shirt.
- Conheces o esquema. Que provas temos?
- O chefe encontrou o blusão de cabedal, para começar - Nkata pô-la a par dos pormenores relacionados com a descoberta que Lynley fizera no Black Angel Hotel.
Barbara ficou feliz ao ouvir as novidades,uma vez que conferiam fundamento à sua conjectura segundo a qual uma das armas utilizadas pelo assassino era uma flecha. Fora Nkata, no entanto, quem transmitira a Lynley as informações sobre a flecha,e Barbara sabia que se ele voltasse a telefonar inspector e dissesse,A propósito,chefe,porque é que não engavetamos King-Ryder e lhe tiramos as impressões digitais enquanto tentamos sacar-lhe tudo o que ele sabe sobre blusões de cabedal e deslocações a Derbyshire, Lynley veria imediatamente o dedo de Havers em toda aquela história e ordenaria a Nkata que recuasse sem mais demoras.
Nkata não era tipo para desafiar as ordens de ninguém,nem por amor nem por dinheiro. E certamente não sofreria nenhuma mudança súbita de personalidade só para fazer a vontade a Barbara. Deste modo,tinham de manter Lynley fora de tudo aquilo a todo o custo,até que a gaiola ficasse pronta e King-Ryder estivesse preso lá dentro.
Barbara explicou tudo isto a Nkata. O detective ouviu-a sem fazer qualquer comentário. Quando ela se calou,concordou com um aceno de cabeça, sem no entanto deixar de referir:
- Continuo a detestar o facto de estar a fazer tudo isto sem ele saber.
- Eu sei,Winnie. Mas ele não nos deixou outra alternativa,não achas?
Nkata sentiu-se obrigado a concordar com ela. Com uma inclinação de cabeça na direcção das cabinas telefónicas,perguntou:
- Qual delas queres que eu use?
- Por agora,não interessa - explicou Barbara -,desde que as mantenhamos vagas depois de fazeres o telefonema. Mas eu escolheria a da esquerda. Tem um cartão fantástico sobre Sedutores Travestis,caso andes à procura de divertimento para esta noite.
Nkata revirou os olhos. Entrou na cabina,tirou algumas moedas do bolso e fez a ligação. Por cima do ombro dele,Barbara ouvia-o falar ao telefone,imitando a maneira de falar dos rufias antilhanos que viviam na margem sul do rio. Tendo em conta que aquele fora o seu linguajar durante os primeiros vinte anos da sua vida,o desempenho foi perfeito.
O guião foi cumprido com a maior das simplicidades a partir do momento em que King-Ryder atendeu o telefone: Acho que tenho um pacote que é do seu interesse,Mr. King-Ryder, disse Nkata mantendo-se depois à escuta durante alguns segundos,antes de continuar com,Oh,acho que sabe a que pacote me estou a referir... o nome Albert Hall diz-lhe alguma coisa? Ei,nada feito,meu. Quer uma prova? já sabe qual é a cabina telefónica e sabe qual é o número. Quer a música? Telefone.
Desligou e olhou para Barbara.
- O isco está na água.
- Vamos esperar que ele morda.
Barbara acendeu um cigarro e percorreu os escassos metros até Petersham Mews, onde se encostou a um Volvo coberto de poeira contando até quinze antes de regressar para junto da cabina telefónica e depois novamente para junto do carro. King-Ryder tinha de pensar antes de agir. Teria de medir os riscos e as vantagens de pegar num telefone em Soho e trair-se a si próprio. Isso levaria alguns minutos. Estava ansioso, desesperado, era capaz de cometer um crime. Mas não era parvo.
Os segundos continuaram a passar. Transformaram-se em minutos.
- Ele não vai alinhar - disse Nkata.
Barbara fez-lhe sinal para que se calasse. Desviou os olhos das cabinas telefónicas, e olhou para Elvaston Place, na direcção de Queezí Gate. Apesar da inquietação que a dominava, conseguia imaginar como tudo acontecera naquela noite, há três meses atrás: Terry Cole sobe a rua na moto, apeia-se para colar uma série nova de postais nas duas cabinas, integradas certamente no seu itinerário habitual. Leva alguns minutos a completar a tarefa, pois ainda é um número considerável de cartões. Enquanto está ocupado a colá-los, o telefone toca e, obedecendo a um impulso do momento, levanta o auscultador e ouve a mensagem destinada a David King-Ryder. Pensa, E se fosse descobrir do que se trata? Menos de um quilómetro e está em frente ao Albert Hall. Entretanto, chega David King-Ryder, cinco minutos atrasado, talvez menos. Estaciona o carro junto às casas, caminha a passos largos para as cabinas telefónicas e inicia a sua espera. Passa um quarto de hora, mais talvez. Nada acontece, porém, e ele não consegue perceber porquê. Não sabe do episódio Terry Cole. Ao fim de algum tempo, começa a pensar que foi enganado. Acredita que está perdido. A sua carreira - e a sua vida - são carne para canhão, nas mãos de um chantagista que quer destruí-lo. Ambas estão, numa palavra, arruinadas.
Bastaria um minuto. E como era fácil uma pessoa atrasar-se em Lon dres, onde tanta coisa dependia do trânsito. Não havia forma de saber se uma viagem do Ponto A ao Ponto demoraria quinze ou quarenta e cinco minutos. Talvez King-Ryder não tivesse sequer tentado chegar do Ponto A ao Ponto B, circulando dentro da cidade. Talvez tivesse vindo do campo pela auto-estrada, onde qualquer coisa podia acontecer e deitar a perder os planos de uma pessoa. Talvez tivesse tido um problema com o carro, uma falha de bateria, um pneu furado. Que interesse tinha saber o que acontecera realmente? O único facto que importava era que não conseguira atender o telefonema. O telefonema feito pelo seu filho. Um telefonema não muito diferente daquele por que esperavam agora Barbara e Nkata.
- Não resulta - disse Nkata.
- Merda - desabafou Barbara.
E foi então que o telefone tocou.
Barbara atirou o cigarro para o chão e desatou a correr na direcção da cabina telefónica. Não era a mesma de onde Nkata fizera a chamada, mas sim a que estava ao lado. O que podia não significar nada e significar tudo", pensou Barbara, uma vez que não sabiam em qual das duas Terry Cole interceptara o telefonema.
Nkata levantou o auscultador ao terceiro toque. Mr. King-Ryder? perguntou, enquanto Barbara retinha a respiração.
Sim, sim, sim, disse para si mesma quando Nkata ergueu o polegar para lhe confirmar a identidade de quem estava do outro lado da linha. Estavam em acção, finalmente.
- Malditos computadores! De que nos servem, se todos os dias se avariam? Alguém me sabe dizer?
Ao que parecia, a agente Peggy Hammer estava habituada a ouvir esta interrogação por parte do seu oficial superior.
- Não é exactamente uma avaria, inspector - esclareceu dando mostras de uma paciência admirável. - É o mesmo que aconteceu no outro dia. Estamos sem rede por alguma razão. Suponho que deve ser um problema qualquer em Swansea. Ou em Londres, talvez. E depois há sempre o nosso...
- Não estou a pedir que me faça uma análise do problema, Hamme - rripostou Hanken - Estou a pedir que aja.
Tinham trazido para a sala de operações da esquadra de Buxton o monte de fichas de registo do Black Angel Hotel, juntamente com o que parecia ser um conjunto de instruções simples que lhes permitiria recolher informações numa questão de minutos: estabelecer uma ligação com o Registo de Veículos de Swansea. Introduzir os números das matrículas de cada carro cujo condutor ficara hospedado no Black Angel Hotel durante as duas últimas semanas. Descobrir o nome do proprietário legal do veículo. Comparar esse nome com a identificação indicada na ficha do hotel. Objectivo: verificar se alguém tinha dado entrada no hotel usando um nome falso. Corroborar essa possibilidade: um nome na ficha do hotel, um nome diferente no sistema de identificação do Registo de Veículos, indicando o proprietário do veículo. Era uma tarefa simples. Demoraria alguns minutos a realizar-se, porque os computadores eram rápidos e as fichas de registo - tendo em conta as dimensões do hotel e o número de quartos de que dispunha - eram muito numerosas. Quinze minutos de trabalho, no máximo. Se o malfadado sistema tivesse funcionado, por uma vez.
Lynley conseguia visualizar todo este raciocínio dentro da cabeça do inspector Hanken. E sentia-se igualmente frustrado. A origem da sua agitação no entanto,era outra. Não conseguia fazer com que Hanken deixasse de ver Andy Maiden como o principal suspeito.
Lynley compreendia o raciocínio de Hanken. Andy tinha motivo e oportunidade. Se por acaso fazia ideia de como se usava um arco era um aspecto de somenos importância,desde que alguma das pessoas que tivessem assinado o registo do Black Angel Hotel sob um nome falso possuíssem essa habilidade. E enquanto não descobrissem se,de facto,tinha sido utilizada por alguma identidade falsa em Tideswell,Lynley sabia que Hanken não se mostraria disposto a alterar o curso da investigação.
A alternativa lógica era Julian Britton. Sempre fora Britton. Ao contrário de Andy Maiden,Britton tinha todas as características que eles procuravam no assassino. Amara Nicola o suficiente para querer casar com ela, e, segundo ele próprio confessara,visitara-a em Londres. Qual seria,por isso, a probabilidade de nunca ter tropeçado em nenhum vestígio que remetesse para a vida que ela realmente levava na cidade? Além disso,quais seriam as probabilidades de nunca ter sequer suspeitado de que não era o único amante que ela tinha em Derbyshire?
Julian Britton tinha inúmeros motivos. Também não tinha um álibi consistente para a noite do crime. E quanto à sua habilidade para manejar um arco e flecha,certamente que já teria visto arcos e flechas em número suficiente em Broughton Manor durante torneios, reconstituições e eventos do género. Não seria,por isso,difícil concluir que Julian sabia manejar um desses instrumentos.
Uma busca a Broughton Manor comprovaria tudo isto. As impressões digitais de Julian - confrontadas depois com todas as impressões que a equipa forense conseguisse encontrar no blusão de cabedal - seria a prova final e definitiva. Hanken,no entanto,não se mostrava disposto a mexer um dedo nessa direcção,a não ser que ficasse provado que os registos do Black Angel eram um beco sem saída. Não interessava pensar que Julian poderia perfeitamente ter deixado o blusão no Black Angel. Não interessava pensar que poderia ter atirado o impermeável para dentro da vagoneta. Não interessava concluir que isso o teria obrigado a desviar-se da estrada que o levava directamente de Calder Moor até sua casa durante cinco escassos minutos. Hanken exploraria a hipótese de Andy Maiden até à exaustão e enquanto não tivesse esgotado as suas possibilidades,era como se Julian Britton não existisse.
Quando foi confrontado com o problema informático,Hanken blasfemou violentamente contra a tecnologia moderna. Entregou as fichas à agente Hammer e ordenou-lhe que recorresse a um antigo meio de comunicação: o telefone.
- Ligue para Swansea e diga-lhes que trabalhem à mão,se necessário for - determinou em voz ríspida.
- Sim, senhor - foi a resposta submissa de Peggy Hammer. Saíram da sala de operações. Hanken barafustava, enfurecido, que tudo o que podiam fazer, era esperar que a agente Hammer e o Registo de Veículos conseguissem os elementos de que precisavam. Lynley, por seu turno, tentava descobrir a melhor forma de virar as atenções para Julian Britton, quando uma secretária do departamento veio avisá-los de que Lynley era chamado à recepção.
- É Mrs. Maiden - informou ela. - E desde já o aviso que ela está num estado terrível.
E assim era. Conduzida ao gabinete de Hanken minutos mais tarde, era a encarnação do pânico. Agarrava com toda a força um pedaço de papel amarfanhado e quando viu Lynley, desatou a gritar:
- Ajude-me!
Depois, virando-se para Hanken:
- O senhor obrigou-o! Não quis deixá- lo em paz. Não podia deixá-lo em paz. Não quis entender que ele acabaria por fazer alguma coisa... Ele... alguma coisa...
Nesse momento, ergueu o punho cerrado que agarrava o pedaço de papel amarfanhado e encostou-o à testa.
- Mrs. Maiden - começou Lynley.
- Trabalhou com ele. Era amigo dele. Conhece-o. Conhecia-o. Tem de fazer alguma coisa, porque se não fizer... se não pode... por favor, por favor.
- Que diabo se está a passar? - perguntou Hanken. Não sentia, obviamente, muita simpatia pela mulher daquele que considerava como o seu principal suspeito.
Lynley aproximou-se de Nan Maiden e segurou-lhe na mão. Obrigou-a a baixar o braço e, com gestos delicados, retirou o bilhete que ela apertava entre os dedos.
- Procurei... Saí à procura... Mas não sei onde e tenho tanto medo. Lynley leu as palavras e sentiu um arrepio de preocupação. Vou resolver isto sozinho! escrevera Andy Maiden.
Julian acabara de pesar os cachorros de Cass quando a prima entrou. Andava, obviamente, à sua procura, pois exclamou alegremente:
- Julie! Claro, que parvoíce a minha. Devia ter-me lembrado logo dos cães.
Ele estava a massajar as tetas de Cass com óleo de semente de anis, como parte da preparação dos cachorros para o treino do olfacto que duraria 24 horas. Enquanto lebreiros, o seu faro tinha de ser apuradíssimo.
Cass ganiu, incomodada, quando Samantha entrou, mas acalmou de imediato quando a prima de Julian começou a falar no tom de voz doce a que os cães estavam mais habituados.
- Julie - disse Sam -, tive uma conversa absolutamente extraordi nária com o teu pai, esta manhã. Pensei que ia ter tempo para falar contigo sobre o assunto à hora de almoço, mas como não te vi... Já comeste alguma coisa hoje, Julie?
Julian sentira-se incapaz de enfrentar a mesa do pequeno-almoço, e o seu estado de espírito não se alterara muito à hora de almoço. Optara, por isso, por se entregar ao trabalho, dividindo-se entre várias inspecções às terras de alguns caseiros, uma deslocação a Bakewell para uma investigação sobre os obstáculos que se levantavam a quem desejasse fazer alterações em edifícios considerados património arquitectónico nacional e uma imensidade de actividades que era necessário realizar nos canis. Conseguira, assim, ignorar tudo o que não estava directamente relacionado com o que designava por a tarefa que tinha entre mãos.
A entrada de Sam nos canis tornava inúteis todos os esforços que em preendesse para desviar a atenção de temas inoportunos. Todavia, tentando a todo o custo evitar a conversa que prometera a si mesmo que teria com ela, disse:
- Desculpa, Sam. Fiquei preso aqui.
Esforçou-se por soar apologético. E, de facto, pensando bem era assim que se sentia, porque a verdade é que Sam se entregara de corpo e alma ao trabalho desde que chegara a Broughton Manor. O mínimo que se lhe pedia era que demonstrasse a sua gratidão e estivesse presente à hora das refeições, numa atitude de reconhecimento pelos esforços dela.
- És tu que estás a manter-nos unidos, e eu não me esqueço disso - disse. - Obrigado, Sam. Estou-te muito grato. Sinceramente.
- Sinto-me feliz por poder fazê-lo - respondeu Sam, docemente. Estou a ser sincera, Julie. Sempre achei que era uma pena que nunca tivéssemos tido muitas oportunidades para... - hesitou, parecendo sentir necessidade de alterar o rumo da conversa. - É incrível pensar que se os nossos pais tivessem passado por cima das suas diferenças, tu e eu podíamos... nova mudança de rumo. - Ou seja, fazemos parte da mesma familia, não é? E é triste não conhecer os membros da nossa própria família. Sobretudo quando um dia finalmente os conhecemos e descobrimos que eles são... bem, que são pessoas simpáticas.
Passou os dedos pela longa e espessa trança que lhe caía sobre o ombro. Julian reparou, pela primeira vez, como o cabelo dela estava bem entrançado, quase absorvendo a luz que iluminava o interior do canil.
- Bem, nem sempre me comporto da maneira certa quando se trata de agradecer.
- Eu acho que és óptimo.
Sentiu-se corar,uma maldição imposta pelo seu tom de pele. Virou-se de costas para ela e tornou a centrar a sua atenção na cadela. Ela quis saber
O que ele estava a fazer e porquê,e ele sentiu-se aliviado por poder ultrapassar aquele momento de embaraço recorrendo a uma explicação sobre
óleo de semente de anis e mechas de algodão. No entanto,quando ficou sem mais nada para dizer sobre Pavlov,reflexos condicionados e sobre a forma como a associação de um cheiro desagradável com o leite da progenitora podia ser utilizado para testar o desenvolvimento do olfacto do animal,ficaram ambos novamente presos num outro momento embaraçoso. E,mais
uma vez,foi Samantha quem os salvou.
- Oh,meu Deus,já estava a esquecer-me do que queria falar contigo.
É o teu pai,Julie. É extraordinário o que aconteceu - disse.
Julian massajou a última teta dilatada de Cass com óleo e soltou a cadela,deixando-a reunir-se às crias. Tapou o frasco do óleo,enquanto a prima lhe contava o que se tinha passado entre ela e Jeremy.
- Todas as garrafas,uma por uma,Julian - concluiu ela. – Todas as garrafas que havia em casa. E eu vi-o chorar.
- Ele já me tinha dito que queria deixar de beber - revelou Julian.
E,movido por um sentido da mais elementar justiça e honestidade,acrescentou: - Mas ele já disse o mesmo noutras ocasiões.
- Isso quer dizer que não acreditas nele? Porque ele estava... a sério Julie,devias tê-lo visto. Era como se tivesse sido invadido pelo desespero.
E,bem,para ser franca,era tudo por tua causa.
- Por minha causa - Julian guardou o óleo de semente de anis no armário.
- Disse que tinha arruinado a tua vida,que afastara o teu irmão e a tua irmã...
Ora ali estava uma verdade,pensou Julian.
e que,finalmente,compreendia que,se não se emendasse,acabaria por te afastar a ti também. É claro que eu lhe disse que tu nunca o abandonarias. Afinal,toda a gente consegue ver como tu és uma pessoa dedicada. Mas a questão é que ele quer mudar. Está preparado para mudar. E eu andei à tua procura,porque... bem,tinha de te contar. Não estás contente?
E eu não estou a acrescentar nada ao que se passou. Uma garrafa atrás da outra. Deitava o gin pelo ralo abaixo e depois partia a garrafa dentro do lava-loiças.
julian sabia no fundo de si mesmo que havia mais de uma maneira de interpretar aquele gesto do pai. Por mais sincero que fosse quando dizia que queria deixar de beber, não era menos certo que como todo o bom alcoólico podia estar apenas a posicionar os seus actores exactamente onde queria que eles estivessem. A única questão que se punha era a de saber por que razão estaria a fazê-lo naquele preciso momento. Que desejava ele e qual era o significado desse desejo?
Por outro lado, e se desta vez o pai estivesse realmente a falar a sério? interrogou-se Julian. E se uma clínica e tudo o que viesse depois dela fossem suficientes para o curar? Como poderia ele - o único filho de Jeremy capaz de se preocupar o bastante para se decidir a tomar uma atitude - negar-lhe essa oportunidade? Sobretudo, quando lhe custaria tão pouco proporcionar-lhe essa oportunidade.
- Acabei. Podemos voltar para casa - disse Julian, numa tentativa de ganhar algum tempo para pôr ordem nos seus pensamentos.
Saíram dos canis e caminharam ao longo do caminho coberto de vegetação.
- O pai já falou em deixar de beber noutras ocasiões - disse ele. Já chegou até a parar. Só que não consegue aguentar mais do que algumas semanas. Bom... uma vez deve ter estado sem beber cerca de três meses e meio. Mas agora, parece acreditar...
- Que é capaz - Samantha concluiu, enfiando o seu braço no dele e apertando-o ao de leve. - Só queria que o tivesses visto, Julie. Se o tivesses visto, saberias. Eu acho que desta vez a chave do sucesso está em arranjar um plano que o ajude. É óbvio que até agora o gesto de esvaziar garrafas de gin não deu nenhum resultado.
Olhou-o com uma expressão séria, tentando perceber, talvez, se o ofendera de alguma maneira ao mencionar uma estratégia que ele próprio tivesse seguido para afastar o pai do álcool.
- E a verdade é que não podemos propriamente impedi-lo de entrar numa loja e comprar bebidas alcoólicas, pois não?
- Já para não falar em impedi-lo de frequentar todos os hotéis e bares daqui até Manchester.
- Exactamente. Por isso, se houver uma forma... Estou convencida de que se pensarmos nisto seriamente, podemos encontrar uma solução, julie.
Julian percebeu que a prima acabava de lhe dar a oportunidade ideal para que ele lhe falasse do dinheiro necessário para pagar a clínica. Todavia, as palavras que deveriam acompanhar esta oportunidade eram grandes e desagradáveis, e ficaram presas na sua garganta como um bocado de carne podre. Como podia ele pedir-lhe dinheiro? Tanto dinheiro? como podia ele dizer algo do género, Podes dar-nos dez mil libras, Sam. Não te estou a pedir que emprestes, Sam - porque não havia uma única hipótese em mil de ele conseguir devolver-lhe o dinheiro tão cedo - mas que nos dês o dinheiro. Um monte dele. E depressa, antes que Jeremy mude de ideias. Faz-nos o favor de investir num bêbedo chato e tagarela que nunca foi capaz de manter a sua palavra uma só vez na vida.
Não era capaz. Apesar das promessas que fizera ao pai, descobriu que na presença da prima não conseguia sequer articular uma palavra que fosse.
Quando chegavam ao fim do caminho e atravessavam a estrada antiga na direcção da casa, viram um Bentley cinzento contornar a esquina do edifício. Atrás dele, vinha um carro de polícia descaracterizado. Os primeiros a sair foram dois agentes uniformizados, que olharam em volta desconfiados, como se esperassem ver um bando de guerreiros ninja espreitando por entre os arbustos. Do Bentley saiu o detective alto e louro que acompanhara o inspector Hanken da primeira vez que este se deslocara a Broughton Manor.
A prima de Julian pôs-lhe uma mão no braço, e ele pôde sentir a tensão que se apoderara dela.
- Certifiquem-se de que a casa está em segurança - Lynley ordenou aos agentes, que apresentou como sendo os agentes Emmes e Benson. Em seguida, verifiquem os arredores. Será talvez melhor começar pelos jardins e passar depois para os canis e a mata.
Emmes e Benson entraram no pátio. Julian observava-os, atónito. Foi Samantha quem falou, num tom zangado.
- Ei, esperem aí. Que diabo estão os senhores a fazer, inspector? Tem um mandado? Que direito tem o senhor de invadir as nossas vidas...
- Preciso que entrem em casa - disse- lhes Lynley. - Já e depressa.
- O quê? - A voz de Samantha traduzia a incredulidade que sentia. - Se pensa que vamos desatar a saltar só porque o senhor nos manda saltar, é melhor pensar duas vezes.
Julian recuperou a fala.
- Que se passa?
- Qualquer um consegue perceber o que se passa - disse Samantha.
- Este idiota decidiu fazer uma busca a Broughton Manor. Não tem uma única razão para virar tudo do avesso, a não ser o facto de tu e Nicola terem andado juntos. O que, ao que parece, é uma espécie de crime. Quero ver o seu mandado, inspector.
Lynley deu um passo em frente e agarrou- a pelo braço.
- Tire as mãos de cima de mim - reagiu ela, tentando soltar-se.
- Mr. Britton corre perigo - disse ele. - E eu quero que ele desapareça.
- Julian? Em perigo? - repetiu Samantha. Julian empalideceu.
- Corro perigo porquê? Que se está a passar?
Lynley disse-Lhe que explicaria tudo mal os agentes se tivessem certificado de que a casa estava em segurança. No interior, os três encaminharam-se para a Galeria, um local que, segundo disse Lynley quando a viu, podia ser bem controlado.
- Controlado? - perguntou Julian. - Contra quê? E porquê?
Foi então que Lynley explicou o que se passava. As informações que forneceu eram restritas e directas, mas Julian não conseguiu entendê- las. A polícia tinha razões para acreditar que Andy Maiden decidira tomar o caso em mãos, disse Lynley, o que constituía sempre um risco quando um membro da família de um agente da polícia era vítima de um crime violento.
- Não estou a compreender - disse Julian. - Porque, se Andy vem para cá... para Broughton Manor... - tentou aceitar as implicações subjacentes à história que o inspector lhe contara. - Está a querer dizer que Andy vem atrás de mim?
- Não temos a certeza sobre quem ele persegue - replicou Lynley. - O inspector Hanken está neste momento a garantir a segurança do outro cavalheiro.
- Do outro...
- Oh, meu Deus - Samantha estava ao lado de Julian, e imediatamente tratou de o afastar das janelas com vidraças em forma de losango que se sucediam ao longo da Galeria.
- Vamos sentar-nos. Aqui, junto à lareira. Ninguém consegue ver- nos do exterior e mesmo que alguém entre pela sala dentro, estamos demasiado distantes das portas... Julie... Julie. Por favor.
Julian deixou-se guiar, mas sentia-se confuso.
- Que quer dizer o senhor, exactamente? - perguntou a Lynley. Que Andy pensa que eu posso ter... Andy?
Sentia um desejo absurdo, infantil, de chorar. Subitamente, aqueles últimos seis dias horríveis desde que - o coração transbordando de amor - pedira Nicola em casamento abatiam-se sobre ele com violência, tornando-o incapaz de suportar fosse o que fosse. Sentia-se totalmente derrotado ao saber que o pai da mulher que amara era, de facto, capaz de acreditar que ele a tinha morto. Como era estranho: não se sentira derrotado quando ela recusara casar-se com ele; não se sentira derrotado pelas revelações que ela lhe fizera naquela noite; não se sentira derrotado pelo seu desaparecimento, pela participação que tivera nas buscas para a encontrar, ou pela sua morte propriamente dita. No entanto, aquele simples facto - a suspeita do pai dela - era, por alguma razão, a gota de água. Sentiu as lágrimas crescerem dentro de si e a ideia de desatar a chorar na frente de um estranho, na frente da prima, na frente de quem quer que fosse, apertava-Lhe a garganta.
Samantha passou o braço em volta dos ombros dele. Sentiu os lábios dela beijarem-lhe uma das têmporas.
- Estás bem - disse-lhe ela. - Estás em segurança. E que diabo de importância tem o que os outros pensam. Eu conheço a verdade e é isso que interessa.
- Que verdade é essa? - perguntou o inspector Lynley junto à janela, onde parecia esperar por um sinal que lhe indicasse que os agentes tinham concluído a sua missão. - Miss McCallin? - insistiu quando Samantha não respondeu.
- Oh, por favor - ripostou ela, irritada. - Julian não matou Nicola. E eu também não. Nem ninguém desta casa, aliás, se é isso que está a pensar.
- E que verdade é essa de que fala, então?
- A verdade sobre Julie. Que ele é uma boa pessoa e que as boas pessoas não andam por aí assassinando-se umas às outras, inspector Lynley.
- Mesmo que - disse o inspector Lynley - uma delas não seja assim tão boa pessoa?
- Não sei do que está a falar.
- Suponho que Mr. Britton sabe.
Ela deixou cair o braço que colocara à volta dos ombros dele. Julian conseguia sentir os olhos dela, perscrutando-lhe o rosto. Pronunciou o nome dele num tom que nunca lhe soara tão hesitante e ficou à espera que ele esclarecesse os comentários do inspector.
E mesmo naquele momento, era incapaz de o fazer. Conseguia vê-la - mais viva do que ele próprio alguma vez estivera, agarrando a vida. Era incapaz de proferir uma só palavra contra ela, por mais razões que tivesse para o fazer. À luz das regras e dos juízos de valor do mundo quotidiano, Nicola atraiçoara-o, e Julian sabia que se contasse o que sabia sobre a vida que ela levava em Londres, tal como ela lha revelara, podia perfeitamente assumir o papel da parte enganada. Seria assim que passaria a ser visto por todos o que ele e Nicola conheciam. Podia, de facto, sentir alguma satisfação nisso. A verdade, porém, sempre seria que apenas aos olhos daqueles que estavam na posse de meros factos, ele podia ser olhado como um homem com uma mágoa. Todos os que conheciam Nicola como ela realmente era, como sempre tinha sido, saberiam que fora ele o principal responsável por essa mágoa que sentia. Nicola jamais lhe mentira. Ele apenas optara por fechar os olhos a tudo o que não queria ver nela.
Ela não se teria importado nem um pouco se ele decidisse contar a verdade sobre ela naquele momento. Não o faria, porém. Não tanto para salvaguardar a memória dela, mas para proteger as pessoas que a tinham amado sem verdadeiramente a conhecerem.
- Não sei a que está a referir-se - disse Julian ao detective londrino - e não percebo por que motivo não nos deixa em paz para que possamos continuar com as nossas vidas.
- Não o farei enquanto não encontrar o assassino de Nicola.
- Nesse caso, sugiro que procure noutro lugar - retorquiu Julian. -, Não o encontrará aqui.
No extremo mais recuado da sala, a porta abriu-se e um agente entrou acompanhado do pai de Julian.
- Encontrei-o na saleta, inspector - informou Lynley. - Emmes foi para os jardins.
Jeremy Britton libertou o braço preso pela mão do agente Benson. Parecia confuso com o que estava a acontecer. Assustado. Mas não aparentava estar embriagado. Aproximou-se de Julian e ajoelhou-se diante dele.
- Estás bem, meu filho? - perguntou.
E embora as suas palavras soassem ligeiramente entarameladas, Julian apercebeu-se de que isso se devia à preocupação que Jeremy sentia em relação ao seu bem-estar e não aos efeitos do álcool.
A consciência deste facto fez com que o seu coração se enchesse subitamente de ternura. Ternura para com o pai, a prima e os laços implicados na palavra familia.
- Estou bem, pai - respondeu, afastando-se para que Jeremy se sentasse no chão ao seu lado, junto à lareira. Ao fazê-lo, aconchegou-se mais a Sam.
Em resposta, ela tornou a pôr o braço à volta dos ombros dele.
- Fico tão contente por ouvir isso - disse ela.
Barbara escolheu um local que Matthew King-Ryder devia conhecer intimamente: o Agincourt Theatre, onde estava em cena Hamlet,
o musical composto pelo pai. Todavia, depois de ter transmitido a mensagem a King-Ryder, através do telefone público de South Kensington, Nkata deixou bem claro que não iria permitir que a sua colega fosse ao encontro de um assassino sozinha.
- Isso quer dizer que te converteste à hipótese de King-Ryder como assassino? - perguntou-Lhe Barbara.
- Parece-me ser a única explicação plausível para o facto de ele saber o número do telefone desta cabina.
Quando tornou a falar, no entanto, fê- lo num tom pesaroso e ao ouvi-lo Barbara percebeu porquê.
- Não consigo imaginar as razões que o terão levado a enganar o próprio pai. É algo que me deixa intrigado, sabes?
- Queria mais pilim do que o pai ia deixar-lhe e, segundo ele, havia apenas uma maneira de o conseguir.
- Mas como teria ele tido acesso àquela partitura? Não é muito provável que o pai lhe tenha dito alguma coisa, não achas?
- Dizer ao próprio filho... dizer fosse a quem fosse, aliás... que estava a plagiar o trabalho de um velho amigo desaparecido? Penso que não. Mas ele era o director da companhia do pai, Winnie, por isso deve ter encontrado a partitura em algum sítio.
Caminharam até ao local onde Barbara deixara o carro, em Queen's Gate Gardens. Nkata combinara encontrar-se com King- Ryder no Agincourt trinta minutos depois da hora a que desligara o telefone.
- Se chegar demasiado cedo não verá sequer a minha cara - advertira Nkata. - Só tem é que agradecer ao seu anjo da guarda que eu esteja disposto a negociar no seu campo.
King-Ryder devia certificar-se de que a entrada dos artistas estaria destrancada e de que não haveria ninguém no interior do edifício.
A viagem de carro até ao West End demorou menos de vinte minutos. O Agincourt Theatre ficava situado ao lado do Museum of Theatrical History, numa transversal estreita da Shaftesbury Avenue. A entrada dos artistas ficava do lado oposto a uma fileira de vagonetas pertencentes ao Royal Standard Hotel. Nenhuma das janelas do hotel dava para a rua, pelo que Barbara e Nkata entraram sem ser observados.
Nkata instalou-se na última fila da plateia, enquanto Barbara se posicionou na parte de trás do palco, imersa na escuridão impenetrável proporcionada por um imenso cenário. Apesar do barulho que se fizera sentir fora do teatro, produzido pelo trânsito e pelos transeuntes que circulavam ao longo da Shaftesbury Avenue, no interior do edifício reinava um silêncio sepulcral. Assim, quando a sua presa entrou pela entrada dos artistas, cerca de sete minutos mais tarde, Barbara conseguiu ouvi-lo sem dificuldade.
Cumpriu escrupulosamente as instruções que lhe tinham sido dadas por Nkata. Trancou a porta, dirigiu-se aos bastidores, ligou as luzes de cena e avançou até ao centro do palco. Deteve-se no local onde, muito provavelmente, Hamlet jazeria moribundo nos braços de Horácio, deduziu Barbara. Inteligente.
Olhou para a plateia imersa na obscuridade e disse:
- Muito bem. Aqui estou.
A voz de Nkata soou vinda do fundo da sala, onde ele se encontrava, oculto pelas sombras.
- Estou a ver.
King-Ryder deu um passo em frente e acusou, inesperadamente, num tom de voz agudo e magoado.
- Você matou-o, sacana desgraçado. Matou-o. Os dois. Todos vocês. E juro por Deus que hão-de pagar por isso.
- Eu não matei ninguém. Não fiz nenhuma viagem a Derbyshire nos últimos tempos.
- Você sabe do que estou a falar. Matou o meu pai.
Barbara franziu a testa ao ouvir estas palavras. Que diabo estava ele a dizer?
- Pelo que ouvi dizer, esse tipo matou-se a ele próprio - disse Nkata.
- E porquê? Porque diabo acha que ele se matou? Ele precisava da quela partitura, e tê-la-ia conseguido, da primeira à última página, se você e os seus amiguinhos de merda... Ele matou-se, porque pensou... acreditou... O meu pai acreditou... - a voz de King-Ryder soou entrecortada. - Você matou-o. Passe para cá a partitura. Foi você que o matou.
- Primeiro temos de chegar a um acordo.
- Aproxime-se da luz, para que eu o possa ver.
- Não me parece que vá fazer isso. É que, bem vê, a minha opinião é esta: ninguém pode fazer mal a uma coisa que não vê.
- Está louco se pensa que vou entregar uma data de dinheiro a uma pessoa que nem sequer posso ver de perto.
- Mas era isso que esperava que o seu pai fizesse.
- Não me fale nele. Você não tem categoria para proferir o seu nome.
- Sentimentos de culpa?
- Entregue-me a maldita música e pronto. Venha até aqui. Comporte-se como um homem. Entregue-me isso.
- Vai custar-Lhe algum dinheiro.
- Seja. Quanto?
- O mesmo que o seu pai teve de pagar.
- Você está louco.
- Belo pacote de massa, aquele - disse Nkata. - Fico contente por poder tirar esse peso de cima de si. E nada de truques, meu, porque eu sei de que quantia estamos a falar. Dou- lhe vinte e quatro horas para a arranjar. Dinheiro vivo. Imagino que leve um pouco mais de tempo por causa de St. Helier, mas a verdade é que sou um tipo compreensivo.
A referência a St. Helier traiu-os. Barbara percebeu que assim era ao ver as costas de King-Ryder ficarem subitamente tensas no momento em que cada uma das terminações nervosas que Lhe percorriam o corpo entraram em estado de alerta. Nenhum ladrão vulgar envolvido num esquema vulgar saberia da existência do banco em St. Helier.
King-Ryder afastou-se do centro do palco, perscrutando a escuridão que envolvia a plateia.
- Quem é você, afinal? - perguntou, desconfiado. Barbara aproveitou a deixa.
- Acho que já sabe a resposta a essa pergunta, Mr. King-Ryder - disse, saindo da escuridão. - A partitura não está aqui, aproveito para lhe dizer. E para ser franca, o mais provável era que nunca chegasse a aparecer se o senhor não tivesse morto Terry Cole para se apoderar dela. Terry tinha-a oferecido à vizinha, a velhota chamada Mrs. Baden. E ela não fazia a mais pequena ideia do que se tratava.
- A senhora - disse King-Ryder.
- Exactamente. Prefere entregar-se sem opor resistência, ou vamos ter uma cena?
- Não tem nada contra mim - disse King-Ryder. - Nada do que eu disse pode ser usado para provar que eu toquei com um dedo em quem quer que seja.
- Em parte é verdade - Nkata avançou ao longo do corredor central. - Mas nós temos em nosso poder um lindo blusão de cabedal preto abandonado em Derbyshire. E se as suas impressões digitais coincidirem com as que lá encontrarmos, vai ter muita dificuldade em safar-se desta.
Barbara adivinhava o febril corrupio de ideias dentro da cabeça de King- Ryder, enquanto ele revia rapidamente as alternativas que lhe restavam: lutar, fugir ou render-se. Estava em desvantagem numérica – ainda que um dos inimigos fosse uma mulher - e embora no interior do teatro e em toda a área circundante abundassem lugares para onde podia fugir e esconder-se, acabaria sempre por ser apanhado caso tentasse uma fuga. Seria apenas uma questão de tempo.
A sua postura alterou-se novamente.
- Eles mataram o meu pai - disse, enigmaticamente. - Mataram o meu pai.
Quando, ao fim de duas horas, Andy Maiden continuava sem aparecer em Broughton Manor, Lynley começou a pôr em dúvida as conclusões que tirara ao ler o bilhete deixado em Maiden Hall. Um telefonema de Hanken - informando-o de que Will Upman estava em segurança - contribuiu para adensar ainda mais as dúvidas de Lynley.
- Não há sinal dele por aqui também - Lynley informou o colega. Pete, tenho um mau pressentimento acerca disto.
O seu mau pressentimento tornou-se um mau agoiro quando Winston Nkata telefonou de Londres: Tinha Matthew King-Ryder na Yard, disse-lhe, relatando a história com tal rapidez que interrompê-lo era uma tarefa impossível. Barbara Havers delineara um plano para o apanhar, que resul tara na perfeição. O tipo estava pronto para confessar os crimes. Nkata e Havers podiam prendê-lo e esperar pelo inspector ou podiam interrogá- lo eles próprios. Quais eram as ordens de Lynley?
- Foi tudo por causa da partitura que Barbara encontrou em Battersea. Terry Cole meteu-se entre a música e o que era suposto acontecer à música, e o pai de King-Ryder deu um tiro nos miolos por causa disso. Matthew afirma que quis vingar-se da morte do pai. É claro que também queria pôr as mãos na partitura.
Lynely ouvia, imperturbável, à medida que Nkata ia falando do West End, do novo espectáculo intitulado Hamlet, de cabinas telefónicas em South Kensington e de Terry Cole. Quando terminou e repetiu a pergunta - o inspector queria que eles esperassem até ele regressar para registar o depoimento de Matthew King-Ryder? - Lynley perguntou, inexpressivo:
- E a rapariga? E Nicola?
- Estava no sítio errado na hora errada - replicou Nkata. - King- Ryder matou-a, porque ela estava no local. Quando a flecha atingiu Terry, ela viu-o armado com o arco. Por falar nele, Barb diz que viu uma fotografia no apartamento dele em que Matthew aparece com o pai, quando andava na escola, no dia dedicado às actividades desportivas. Segundo ela diz, aparece equipado com uma aljava. Ela diz que viu o tirante em volta do peito. Se conseguirmos um mandado, é quase certo que vamos encontrar o arco em casa dele. Quer que eu trate disso também?
- Qual foi o envolvimento de Havers nisso tudo?
- Ela falou com Vi Nevin quando a miúda recuperou a consciência ontem à noite e conseguiu obter a maior parte dos pormenores através dela
- Lynley ouviu Nkata respirar fundo rapidamente, antes de continuar. Uma vez que Nevin não parecia estar relacionada com este caso, inspector... por causa daquela questão de Islington... da ameaça... o reboque, Andy Maiden e tudo mais... eu pedi-lhe que fosse falar com ela. Disse a Barb que fosse falar com ela. Se houver alguma repreensão, assumo eu a responsa bilidade pelo sucedido.
Lynley sentiu-se atordoado pela quantidade de informação que Nkata lhe transmitira, mas mesmo assim conseguiu dizer:
- Bom trabalho. Parabéns, Winston.
- Eu limitei-me a seguir as instruções de Barb.
- Nesse caso, parabéns também para a detective Havers. Lynley desligou. Descobriu que os seus movimentos estavam mais lentos do que era habitual. A causa: a surpresa, o choque. Todavia, quando finalmente conseguiu tomar consciência da verdadeira extensão de tudo o que acontecera em Londres durante a sua ausência, sentiu a apreensão descer sobre a sua cabeça como uma nuvem.
Depois de ter aparecido na esquadra da polícia de Buxton, Nancy Maiden fora para casa onde ficara a aguardar notícias sobre o paradeiro do marido. Recusando-se teimosamente a aceitar a companhia de uma agente enquanto Andy não aparecesse, pedira a Lynley antes de deixar a esquadra:
- Encontre-o. Por favor.
E os seus olhos tinham tentado comunicar algo que não conseguia tra duzir por palavras.
Compreendeu o desafio implicado numa operação de busca a Andy Maiden. Se aprendera alguma coisa nos últimos dias, fora que o Peak Dis trict era uma região imensa: cruzada por trilhos, caracterizada por fenó menos topográficos totalmente diferentes e marcada por quinhentos mil anos de ocupação humana. No entanto, recordando o estado de desespero em que Andy se encontrava quando o vira pela última vez, e combinando esse estado com as palavras Eu próprio vou resolver isto, tinha quase a certeza do sítio por onde devia começar a sua busca.
Lynley pediu aos Britton e a Samantha McCallin que permanecessem na Galeria acompanhados pelos agentes de polícia até receberem instruções em contrário e deixou-os.
Dirigiu-se a toda a velocidade para Bakewell, impelido por uma urgência gerada pelo medo. Andy acreditava que a investigação se encaminhava inevitavelmente na direcção do amigo, e tudo o que Lynley e Hanken tinham feito e dito durante os últimos dois encontros com ele traduzira esse facto brutal. Se viesse a ser detido, acusado de ter assassinado a filha - se viesse
sequer a ser interrogado mais profundamente acerca do assassínio da fi lha -, a verdade sobre a vida que Nicola levava em Londres passaria a ser do domínio público. E ele tivera já oportunidade de demonstrar os extremos a que estaria disposto a chegar para que a verdade sobre essa vida permanecesse para sempre escondida.
Lynley atravessou a região a caminho de Sparrowpit e percorreu velozmente a estrada rural que continuava depois da povoação até alcançar o portão de ferro pintado de branco, atrás do qual se estendia a imensidão de Calder Moor. No extremo mais afastado do caminho que levava à charneca encontrava-se estacionado um Land-Rover. Logo atrás estava um Morris ferrugento.
Lynley meteu pelo trilho coberto de lama e raízes. Não desejando pensar no gesto radical a que Andy podia ter recorrido para manter os segredos de Nicola escondidos da mãe, concentrou-se numa recordação que o mantinha ligado ao outro homem havia mais de dez anos.
Usar um aparelho de escuta é a parte mais fácil, rapaz, dissera- lhe Dennis Hextell. Abrir a boca e falar sem dar a sensação de que alguém nos está a espremer o coiso dentro das cuecas, isso já é outra conversa. Hextell sempre sentira desprezo por ele, e aguardara pacientemente o momento em que ele havia de fracassar como infiltrado e mostrar aquilo que era na realidade: o filho privilegiado de um filho privilegiado. Andy Maiden, por seu turno, dissera, Dá-lhe uma oportunidade, Den. E quando essa oportunidade resultara no desvio de um camião cheio de semtex - destinado a servir de chamariz - precisamente pelas pessoas que devia ajudar a aprisionar, a mensagem Os Americanos não usam a palavra torcer, meu, chegara à Met no espaço de uma hora, servindo para ilustrar a forma como uma simples palavra pode custar vidas e destruir carreiras. O facto de não ter destruído a de Lynley, era algo que ele ficara a dever a Andy Maiden. Afastara-se para um lugar recatado na companhia do jovem e consternado agente, depois do subsequente bombardeamento à cidade de Belfast, e dissera, Chega aqui, Tommy. Fala comigo. Fala.
E Lynley acabara por falar. Desabafara a sua culpa, a sua confusão e a sua dor com tal intensidade que percebera o quão desesperadamente precisava de alguém que desempenhasse na sua vida o papel de um pai.
Andy Maiden assumira esse papel sem sequer se questionar sobre as razões por que Lynley precisara tão desesperadamente que ele o fizesse. Dissera-lhe, Escuta o que te vou dizer, filho, e Lynley escutara-o, em parte porque o outro era seu superior hierárquico, mas sobretudo porque nunca ninguém até àquele dia usara a palavra filho ao falar com ele. Lynley vinha de um mundo onde as pessoas reconheciam os lugares que ocupavam indi vidualmente na hierarquia social e primavam, em geral, pela reserva e pela discrição, caso contrário sofriam as consequências. Andy Maiden, no entanto, não era esse tipo de homem. Tu não tens perfil para o 5010, dissera-Lhe Andy. O que te aconteceu é a prova disso, Tommy. Mas tinhas de passar pela experiência para saberes, entendes? E aprender não é pecado nenhum, filho. Recusarmo-nos a aceitar o que aprendemos e a fazer algo com isso, isso sim é pecado.
Este princípio orientador da vida de Andy Maiden ecoava agora ininterruptamente na cabeça de Lynley. O agente do 5010 servira-se dele para construir toda a sua carreira, e durante os últimos dias desde que se tinham reencontrado, Lynley vira muito poucos sinais que indicassem que Andy Maiden deixara de se reger por esse mesmo princípio.
O medo que Lynley sentia guiou-o na direcção de Nine Sisters Henge. Quando lá chegou, o lugar estava silencioso, à excepção do vento, que soprava em violentas rajadas intermitentes como se fossem fortes correntes de ar brotando de um fole. Vinha de leste, do Mar da Irlanda e trazia a promessa de mais chuva para as próximas horas.
Lynley aproximou-se da mata e avançou por entre as árvores. O solo ainda estava húmido da chuva matinal, e as folhas dos vidoeiros formavam um tapete fofo debaixo dos seus pés. Seguiu o caminho que ligava a pedra-sentinela ao centro da mata. Além do vento e da sua respiração ofegante devido ao esforço da caminhada, o único som era o sussurrar das folhas das árvores.
No último momento, descobriu que não queria avançar mais. Não queria ver, e mais do que tudo, não queria saber. No entanto, obrigou-se a seguir em frente e a penetrar no círculo. E foi aí que os encontrou.
Nan Maiden estava meio sentada, meio ajoelhada, tinha as pernas flectidas sob o corpo e as costas viradas para Lynley. Andy Maiden estava deitado, com uma perna flectida e a outra esticada, a cabeça e os ombros aninhados no colo da mulher.
O lado racional de Lynley dizia, Deve ser daí que vem todo aquele sangue, da cabeça e dos ombros dele. O seu coração, porém, gritava, Não, meu Deus, não, desejando que o que viu quando contornou as duas figuras fosse apenas um sonho: um pesadelo proveniente, como todos os sonhos, do que existe no nosso subconsciente e reclama atenção quando temos mais medo.
- Mrs. Maiden. Nancy - disse.
Nan ergueu a cabeça. Estivera inclinada sobre Andy e, por isso, tinha as faces e a testa manchadas com o sangue dele. Não chorava, nem chorara, tendo já esgotado todas as lágrimas, talvez.
- Pensava que tinha falhado - disse ela. - E quando percebeu que não podia consertar as coisas...
As mãos dela apertaram ainda mais o corpo do marido, tentando unir tanto quanto possível o corte que lhe abria o pescoço, por onde jorrara o seu sangue, ensopando-Lhe a roupa e formando coágulos por baixo do corpo.
- Tinha de fazer... alguma coisa.
No chão, ao lado dela, Lynley reparou num papel amarrotado manchado de sangue. Nele, viu o que esperava ver: Fui eu, Nancy. Desculpa. A breve e apócrifa confissão de Andy Maiden da morte da filha que ele tanto amava.
- Eu não queria acreditar, percebe - disse Nan Maiden, olhando para o rosto lívido do marido e alisando-lhe os cabelos. - Não conseguia acreditar e ser capaz de viver comigo mesma. E continuar a viver com ele. Percebi que algo estava terrivelmente errado quando os nervos dele começaram a piorar, mas nunca imaginei que ele fosse capaz de lhe fazer mal. Como podia eu imaginar uma coisa dessas? Mesmo agora. Como?
- Mrs. Maiden... - Lynley não sabia o que dizer.
Ela estava demasiado chocada para compreender o que estava por detrás dos actos do marido. Naquele preciso momento, o horror que sentia - originado pelo suposto assassínio da filha pelo marido - era tudo o que conseguia assimilar.
Lynley baixou-se ao lado de Nan Maiden e pousou a sua mão no ombro dela.
- Mrs. Maiden - disse. - Vamos embora. Deixei o meu telemóvel no carro e vamos ter de telefonar à polícia.
- Ele é a polícia - respondeu ela. - Adorava aquele trabalho. Não conseguiu continuar, porque os nervos dele não aguentavam.
- Sim, eu sei - disse Lynley. - Foi o que me disseram.
- E era por isso que eu sabia, entende E, no entanto, não conseguia ter a certeza. Nunca consegui ter a certeza, por isso não queria dizer nada. Não podia correr o risco.
- Claro que não - Lynley tentou persuadi-la a pôr-se de pé. Mrs. Maiden, se quiser vir...
- Eu pensei que se ao menos conseguisse protegê-lo e fazer com que ele nunca soubesse... Era o que eu queria. Acontece que ele sabia de tudo, não é verdade? por isso sempre podíamos ter conversado sobre o assunto. E se tivéssemos conversado sobre o caso... Está a ver o que isso significa? Se tivéssemos conversado, eu teria podido impedi-lo. Sei que podia. Odiava o que ela fazia - primeiro julguei que ia morrer quando soube, bem - Nan tornou a inclinar-se sobre Andy. - Ter-nos-íamos um ao outro. Ao menos isso. Podíamos ter conversado e eu teria dito as palavras certas para o impedir.
Lynley deixou descair a mão que pousara no ombro dela. Estivera a ouvi-la enquanto ela falava, mas subitamente percebera que não estava a escutar o que ela dizia. A visão de Andy - garganta cortada pelas suas próprias mãos - anestesiara todos os seus sentidos à excepção da visão. Finalmente, porém, escutou o que Nan Maiden estava a dizer e, ao fazê- lo, compreendeu tudo, finalmente.
- A senhora sabia o que se passava com ela, Nan - disse. - A senhora sabia.
E um abismo formado pelo seu sentido de responsabilidade abriu-se debaixo dos seus pés, quando percebeu o papel que ele próprio desempenhara no drama da morte inútil de Andy Maiden.
- Segui-o - disse Matthew King- Ryder.
Tinham-no levado para uma das salas de interrogatório, onde ele se sentara num dos lados da mesa com tampo de fórmica, enquanto Barbara Havers e Winston Nkata se instalaram no lado oposto. Entre eles, colocado num dos extremos da mesa, um gravador ia registando as suas respostas.
King-Ryder parecia derrotado por mais de um aspecto relativo à situação em que se encontrava presentemente. Perante um futuro comprometido pela existência de um blusão de cabedal e a presença de uma lasca de madeira de cedro Port Orford encontrada na ferida de uma das suas vítimas, parecia ter optado por uma retrospectiva de algumas das desagradáveis realidades que o tinham conduzido à encruzilhada em que se encontrava. Essas realidades passadas combinadas com as suas perspectivas futuras tinham provocado nele uma notável alteração de comportamento. Quando entrara na sala de interrogatórios, a raiva estimulada por um sentimento de vingança, que caracterizara a sua chegada ao Agincourt Theatre transformara-se em submissão destroçada, típica do lutador que enfrenta a rendição.
Contou a primeira parte da sua história num tom de voz monocórdico. Esta consistia no enquadramento onde florescera a mágoa que o encorajara a fazer chantagem com o seu próprio pai. David King-Ryder, que valia tantos milhões que eram necessários os serviços de uma equipa de contabilistas para manter o rasto de todo o seu dinheiro, decidira canalizar toda a sua fortuna para um fundo destinado a auxiliar financeiramente artistas depois da sua morte, não deixando um único tostão a nenhum dos filhos. Um deles acei tara os termos do testamento de King-Ryder com a resignação de uma filha que sabia que qualquer discussão para o fazer mudar de ideias seria inútil. O outro - Matthew - procurara uma maneira de contornar a situação.
- Há anos que eu sabia da partitura de Hamlet, mas o meu pai desconhecia esse facto - contou Matthew. - Era impossível que soubesse, já que ele e a minha mãe já estavam divorciados há muito tempo quando Michael a escreveu, e ele nunca se apercebera de que Michael se mantivera em contacto connosco. Michael Chandler, aliás, foi mais pai para mim do que o meu próprio pai. Costumava tocar a música para eu ouvir... partes dela, claro... quando eu o visitava durante as férias e nos feriados. Não era casado nessa altura, mas queria ter um filho, e eu ficava contente com o facto de ele se comportar como um pai comigo.
David King-Ryder achava que a partitura de Hamlet não tinha muitas potencialidades, por isso depois de Michael Chandler a ter concluído, os dois sócios tinham-na arquivado havia já vinte e dois anos. E assim permanecera - perdida entre o espólio King-Ryder/Chandler, nos escritórios das Produções King-Ryder no Soho. Assim, quando King-Ryder a apresentara como resultado do seu último esforço artístico, Matthew reconhecera imediatamente, não só a música e a letra mas também o que ambas representavam para o pai: uma derradeira tentativa de salvar uma reputação que, após a morte do seu companheiro de longa data, vítima de afogamento, fora destruída por dois sucessivos e onerosos fracassos a solo.
Sem muito esforço, Matthew conseguira descobrir a partitura original. E logo que se vira com ela nas mãos, percebera de que forma poderia ganhar algum dinheiro com ela. O pai nunca imaginaria quem tinha a partitura - qualquer um dos funcionários da companhia podia tê-la surripiado dos arquivos, desde que soubesse onde procurar - e porque a sua reputação era crucial para ele, estaria disposto a pagar o que Lhe pedissem para reaver a partitura. Entretanto, Matthew conseguiria reunir o correspondente à herança que o testamento do pai Lhe negava.
O plano era muito simples. Quatro semanas antes do dia da estreia de Hamlet, Matthew enviara uma página da partitura para casa do pai acompanhada de um bilhete anónimo. Se ele não depositasse um milhão de libras numa conta de um banco de St. Helier, a partitura seria enviada para o principal tablóide nacional, mesmo a tempo de coincidir com a noite de estreia do espectáculo. Logo que o dinheiro estivesse no banco, David King-Ryder seria informado do local onde poderia ir buscar o resto da partitura.
- Depois de receber o dinheiro, esperei até à semana anterior à data da estreia - disse Matthew. - Queria que ele suasse.
Nessa altura, enviara uma mensagem ao pai, dizendo-Lhe que se dirigisse às cabinas telefónicas de South Kensington e aí aguardasse novas instruções. Às dez horas, dissera-lhe ele, David King-Ryder seria informado do sítio onde se encontrava a partitura.
- Mas foi Terry Cole quem atendeu o telefone naquela noite e não o seu pai - disse Barbara. - Como é que não deu pela diferença de vozes?
- Ele disse Está lá, nada mais - explicou Matthew. - Julguei que estivesse nervoso, que estivesse com pressa. E parecia mesmo que estava à espera de um telefonema.
Nos dias seguintes, percebera que algo estava a deixar o pai agitado, mas atribuíra o facto a um estado de irritação pelo facto de ele ter sido obrigado a pagar um milhão de libras. Não tinha forma de saber que o pai se sentia cada vez mais desesperado à medida que o telefonema de que estava à espera - do chantagista que, segundo ele acreditava, não o contactara para a cabina telefónica de Elvaston Place - não se concretizava. À medida que a estreia de Hamlet se aproximava, David King-Ryder começara a ver-se à mercê de alguém que ou ia sugar-lhe todo o dinheiro que tinha até ao último tostão ou arruiná-lo-ia para sempre fazendo chegar a partitura de Michael Chandler aos tablóides.
- Quando na noite de estreia continuou sem ter notícias e o espectáculo foi um sucesso estrondoso... sabem o que aconteceu.
- Deu um tiro nos miolos - completou Barbara. - E isso graças a si.
- Eu não queria que ele morresse - gritou King-Ryder. - Ele era meu pai. Apenas julguei que não era justo que todo aquele dinheiro... cada tostão daquele dinheiro, à excepção daquela miserável doação que ele fez a Ginny... - baixou os olhos e falou agressivamente para as mãos, mais do que para Barbara e Winston. - Ele devia-me alguma coisa. Nunca tinha sido um grande pai para mim. Devia-me ao menos aquilo.
- E porque não Lhe pediu, muito simplesmente? - perguntou Nkata. Matthew soltou uma gargalhada amarga.
- O meu pai trabalhou para ser quem era e esperava que eu fizesse o mesmo. E eu sempre fiz... fartei-me de trabalhar... e teria continuado a fazê-lo. Mas depois percebi que ele arranjara uma maneira mais rápida para alcançar o seu próprio sucesso através da música de Michael. E decidi que se ele podia fazê-lo, eu também podia. E no final tudo teria acabado bem, se aquele sacana maldito não tivesse aparecido. E depois quando percebi que ele tencionava usar a partitura para tentar o mesmo jogo comigo, tive de fazer algo. Não podia ficar ali sentado e deixar que as coisas acontecessem.
Barbara franziu a testa. Até àquele momento, todas as peças tinham encaixado na perfeição.
- Tentar o jogo? - perguntou. - Que quer dizer com isso?
- Chantagem - revelou Matthew King-Ryder. - Cole entrou no meu escritório com aquele sorrisinho na cara e disse, Preciso da sua ajuda para resolver uma coisa que trago aqui, Mr. King- Ryder", e logo que vi o que era... uma página exactamente igual à que eu enviara ao meu pai... percebi exactamente o que aquele patife tinha em mente. Perguntei-Lhe onde é que ele tinha descoberto aquele papel, mas ele não quis dizer-me. Por isso, pu-lo na rua. Mas resolvi segui-lo. Sabia que ele não estava sozinho.
No rasto da partitura, seguira Terry Cole até aos arcos do caminho-de- ferro em Battersea e depois desde aí até ao apartamento dele, em Anhalt Road. Durante o tempo em que o rapaz permanecera no estúdio, Matthew aproveitara para fazer uma busca rápida pelo porta-bagagens da moto. Não tendo encontrado nada, percebeu que tinha de continuar a segui-lo até que ele o conduzisse ao local onde se encontrava a partitura ou à pessoa que a tinha.
Fora só quando o seguira até Rostrevor Road que começara a pensar que estava na pista certa, já que vira Terry sair do edifício acompanhado por Vi Nevin, acompanhado de um grande sobrescrito que guardara no porta-bagagens da moto. E Matthew King-Ryder tivera a certeza de que lá dentro só podia estar a partitura.
- Quando entrámos na auto-estrada, não fazia ideia do sítio para onde nos dirigíamos. No entanto, como estava determinado a pôr fim a toda aquela história, resolvi segui-lo.
E ao testemunhar o encontro entre Terry e Nicola Maiden num local tão ermo, ficara convencido de que eram eles os responsáveis pela morte do pai e pelos seus próprios infortúnios. A única arma que possuía era o arco que trazia na mala do carro. Voltou atrás para ir buscá-lo, esperou até ao anoitecer e depois matou-os a ambos.
- Só que a partitura não estava no acampamento - disse Matthew. Dentro do sobrescrito havia apenas um conjunto de cartas, daquelas feitas com letras recortadas de revistas e jornais.
Fora, por isso, obrigado a prosseguir a sua busca. Tinha de encontrar a partitura de Hamlet e ao regressar a Londres percorrera os lugares onde Terry o tinha levado anteriormente.
- Nunca me lembrei da velhota - admitiu, por fim.
- Devia ter aceite a fatia de bolo que ela lhe ofereceu - disse Barbara. Os olhos de Matthew tornaram a fitar as mãos. Os seus ombros estremeceram e ele começou a chorar.
- Eu não queria que lhe acontecesse nada de mal. Juro por Deus. Se ao menos ele tivesse dito que me deixava alguma coisa. Mas não o fez. Eu era filho dele, o seu único filho, mas não iria receber absolutamente nada. Oh, claro, disse que eu podia ficar com os retratos da família. Com o maldito piano e a guitarra. Mas no que dizia respeito a dinheiro... a uma parte do dinheiro, sequer... a uns míseros tostões do seu maldito dinheiro... Será que ele não era capaz de perceber que ao ignorar-me daquela maneira me fazia sentir como se eu não valesse nada? Eu devia sentir-me agradecido só pelo facto de ser seu filho, por lhe dever a vida. Dava-me um emprego, mas quanto ao resto... Não, eu teria de conseguir tudo às minhas custas. E não era justo. Porque eu amava-o. Apesar de todos aqueles anos em que ele me faltara, eu ainda o amava. E se tivesse continuado a faltar-me, não teria tido qualquer importância. Pelo menos para mim.
O seu desgosto parecia genuíno e Barbara queria sentir pena dele. Contudo, descobriu-se incapaz de um tal sentimento quando percebeu o quanto ele desejava que ela se apiedasse dele. Queria que ela o visse como uma vítima da indiferença do pai. O facto de ter destruído o pai em troca de um milhão de libras e de ter cometido dois assassínios brutais, não tinha qualquer importância para ele. Eles deviam sentir pena dele, porque fora forçado a agir na sequência de circunstâncias que estavam para além do seu controlo, porque David King-Ryder não julgara adequado deixar-lhe dinheiro em testamento, o que teria evitado que os crimes tivessem sido cometidos.
Meu Deus, pensou Barbara, era aquele o mal-estar dos tempos, a vingança. Magoar o próximo, atribuir culpas ao próximo, mas não ao próprio.
Não se deixaria levar por aquela linha de raciocínio. Toda a piedade que Barbara poderia ter sentido pelo homem que tinha na sua frente foi apagada pela realidade dos dois crimes cometidos em Derbyshire e pela recordação do que ele fizera a Vi Nevin. Seria castigado por esses crimes. Uma pena de prisão, no entanto - por mais longa que fosse - não parecia castigo suficiente para os crimes de chantagem, suicídio, assassínio e agressão, e pelas consequências que todos eles tinham provocado.
- Talvez esteja interessado em saber a verdade nua e crua sobre as intenções de Terry Cole, Mr. King-Ryder. Aliás, acho que é importante que a conheça.
Revelou-lhe, então, que tudo o que Terry Cole desejara fora saber um simples endereço e número de telefone. Na verdade, se Matthew King-Ryder se tivesse oferecido para ficar com a partitura, recompensando-o generosamente pelo facto de ele a ter trazido aos escritórios das Produções King-Ryder, o mais provável é que o rapaz tivesse ficado felicíssimo.
- Ele nem tinha ideia do que se tratava - explicou Barbara. - Não fazia a mais pequena ideia de que tinha posto as mãos na partitura de Hamlet.
Matthew King-Ryder assimilou esta informação. Todavia, se Barbara julgava que estava a desferir-lhe um golpe mortal que iria piorar ainda mais a sua futura vida na prisão, depressa percebeu que estava enganada, quando ouviu a reacção dele.
- O culpado de tudo é ele. Se ele não tivesse interferido, o meu pai ainda estaria vivo.
Lynley chegou a Eaton Terrace às dez da noite. Encontrou a mulher na casa de banho, imersa num perfumado banho de espuma. Estava de olhos fechados, cabeça apoiada numa toalha enrolada para servir de almofada, e mãos - estranhamente enfiadas numas luvas de seda branca - pousadas sobre o imaculado suporte de aço inoxidável que ocupava toda a largura da banheira e onde se encontravam os seus sabonetes e esponjas. Sobre o toucador, escondido no meio de uma constelação de unguentos, poções e cremes, estava um leitor de CD, ligado. Uma voz de soprano cantava:
Deitaram-no - delicada e suavemente - no chão gelado, Deitaram-no - delicada e suavemente - no chão gelado. E aqui estou eu, uma criança sem luz que me ajude a atravessar a Tempestade que se avizinha,
Sem ninguém ao meu lado que me diga
Que não estou só
Lynley premiu um botão para desligar a música.
- Ofélia, suponho eu, depois de Hamlet ter morto Polónio. Atrás dele, Helen deu um salto dentro da banheira.
- Tommy! Pregaste-me um susto de morte.
- Desculpa.
- Acabaste de chegar?
- Sim. Para que são as luvas, Helen?
- As luvas? - Helen olhou para as mãos. - Oh, as luvas. É por causa das minhas cutículas. Estou a fazer um tratamento, uma mistura de calor e óleos.
- Que alívio - disse ele.
Porquê? Já tinhas reparado nas minhas cutículas?
- Não, mas julguei que estivesses a antecipar o teu futuro como rainha, o que significaria o fim da nossa relação. Alguma vez viste a rainha sem luvas?
- Hum. Acho que não. Mas não achas que ela toma banho com elas, pois não?
- É uma possibilidade. Odeia tanto o contacto humano que pode chegar ao ponto de detestar tocar-se a ela própria.
Helen riu-se.
- Estou tão feliz por estares em casa.
Descalçou as luvas e mergulhou as mãos na água. Tornou a apoiar o corpo na almofada improvisada e fitou-o.
- Conta-me - pediu com ternura. - Por favor.
Era a sua forma de agir, e Lynley esperava que ela nunca mudasse, que fosse sempre capaz de ver através dele com tanta facilidade e que se abrisse para ele com aquelas três palavras simples.
Puxou um banco e colocou-o ao lado da banheira. Despiu o casaco, deixando-o cair no chão, arregaçou as mangas da camisa e agarrou numa das esponjas e num sabonete. Segurou-lhe primeiro no braço e percorreu-o suavemente com a esponja. E enquanto lhe dava banho, contou-lhe tudo. Ela ouviu-o em silêncio, sem desviar os olhos dele.
- O pior de tudo é que Andy Maiden ainda estaria vivo, se eu tivesse cumprido os procedimentos normais quando estive com ele ontem à tarde - disse, concluindo o relato dos acontecimentos. - Mas a dado momento a mulher entrou na sala e, em vez de lhe fazer perguntas sobre a vida de Nicola em Londres... o que teria revelado que ela sabia de tudo ainda há mais tempo do que Andy, que Nicola lhe contara tudo meses antes de ter falado com o pai... decidi calar-me. Porque queria ajudá-lo a protegê-la.
- Quando ela, de facto, não precisa da protecção dele - disse Helen. Sim, estou a perceber como tudo aconteceu. É terrível. Mas tu fizeste o que te pareceu melhor na altura, Tommy.
Antes de tornar a colocar a esponja no sítio, Lynley espremeu-a e deixou que a água ensaboada escorresse pelos ombros da mulher.
- O melhor que eu podia ter feito na altura era ter cumprido os procedimentos. Ele era suspeito. Tal como ela. E eu não tratei nenhum deles como se fossem. Se o tivesse feito, ele não estaria morto.
Lynley não conseguia decidir o que fora pior: se a visão do canivete suíço ainda preso na mão rígida de Andy, as tentativas para afastar Nancy Maiden do corpo do marido, o regresso até ao Bentley caminhando ao lado dela e temendo a todo o momento que o estado de choque em que ela se encontrava se transformaria num acesso incontrolado de dor que ele seria incapaz de conter, se a espera - interminável, conforme lhe parecera - pela chegada da polícia, se o ter de enfrentar o cadáver novamente, desta vez sem poder contar com a presença da mulher de Andy como pretexto para desviar as suas atenções da forma.
- Parece o canivete que ele me mostrou - dissera Hanken, ao vê-lo caído no chão.
- É o que seria de esperar - limitara-se a responder Lynley, antes de continuar, desta vez num tom apaixonado. - Bolas. Diabos me levem, Peter. A culpa é minha e só minha. Se eu tivesse posto todas as cartas na mesa quando estive com os dois... mas não o fiz. Não ofiz.
Nesse momento, Hanken fizera sinal à sua equipa para que removesse o corpo. Puxara um cigarro de dentro do maço e oferecera outro a Lynley.
- Fume um, que raio. Você bem precisa, Thomas - dissera, e Lynley aceitara a oferta dele.
Tinham-se afastado do antigo círculo de pedras, mas permaneciam junto à pedra-sentinela, fumando cada um o seu Marlboro.
- Ninguém trabalha como se fosse um autómato - comentara Hanken. - Metade deste trabalho depende da intuição, e essa vem do coração. Você seguiu o seu coração. No seu lugar, não posso afirmar que teria agido de forma diferente.
- Não pode?
- Não.
Lynley, no entanto, percebera que o colega estava a mentir. Porque a componente mais importante daquele trabalho era saber distinguir as ocasiões em que se devia ouvir o coração e aquelas em que essa linha de acção conduziria a um desfecho desastroso.
- Barbara estava certa desde o início - disse Lynley a Helen, quando se pôs de pé dentro da banheira e agarrou a toalha que ele lhe estendia. Se ao menos eu me tivesse apercebido desse facto, nada disto teria acontecido, porque eu teria ficado em Londres, controlando os desenvolvimentos do caso em Derbyshire enquanto íamos no encalço de King-Ryder.
- Se assim é - disse Helen calmamente enquanto enrolava a toalha em volta do corpo -, eu também tenho alguma culpa pelo que aconteceu, Tommy - e revelou-lhe a forma como Barbara acabara por ir atrás de King- Ryder depois de ter sido excluída do caso. - Podia ter-te telefonado quando Denton me falou na música, mas optei por não o fazer.
- Duvido seriamente que te tivesse sequer dado ouvidos, se soubesse que o que me contavas iria comprovar que Barbara tinha razão.
- Quanto a isso, querido... - Helen dirigiu-se ao toucador e pegou num pequeno frasco contendo uma loção hidratante com a qual começou a massajar o rosto. - O que foi, exactamente, que te aborreceu tanto em relação ao caso de Barbara? Acerca do episódio do mar do Norte e ao facto de ela ter disparado aquela arma. Porque eu sei que tu sabes que ela é uma óptima detective. Pode resolver fazer as coisas à maneira dela de vez em quando, mas o coração dela está sempre onde deve estar, não é verdade?
E lá estava a palavra novamente, coração, e tudo o que ela implicava acerca das razões que estavam subjacentes às acções de um indivíduo. Ao ouvir a mulher proferi-la, Lynley lembrou-se de uma situação, ocorrida muitos anos antes, em que uma mulher lhe perguntara, chorando, Meu Deus, Tommy, que aconteceu ao teu coração? quando ele se recusara a vê-la, a falar com ela sequer, depois de ter descoberto o seu adultério.
Foi então que finalmente percebeu. Compreendeu pela primeira vez, e esse entendimento obrigou-o a virar o rosto ao que fora e ao que fizera durante os últimos vinte anos.
- Não conseguia controlá-la - admitiu em voz baixa, falando mais para si mesmo do que para a mulher. - Não conseguia moldá-la e fazê-la coincidir com a imagem que tinha dela. Ela agia como queria e eu não conseguia suportá-lo. Ele está a morrer, pensava eu, e ela devia era comportar-se como uma mulher, cujo marido está a morrer.
Helen percebeu aquilo a que o marido se referia.
- Ah, a tua mãe.
- Pensava que a tinha perdoado há muito tempo, mas talvez não a tenha perdoado de todo. Talvez ela esteja sempre presente, em todas as mulheres com que me cruzo, e talvez eu tente continuamente transformá-la em alguém que ela não quer ser.
- Ou talvez, muito simplesmente, nunca tenhas perdoado a ti mesmo o facto de não teres sido capaz de a impedir - Helen pousou o frasco da loção e aproximou-se dele. - Carregamos tanta bagagem connosco, não é verdade, meu amor? E é precisamente quando pensamos que finalmente conseguimos desfazer as malas que tudo volta novamente, esperando-nos em frente à porta do quarto, pronto para nos pregar uma rasteira quando nos levantamos de manhã.
Removeu a toalha com que envolvera a cabeça e soltou os cabelos. Não estava ainda completamente seca, pelo que algumas gotas de água brilhavam ainda sobre os seus ombros, reunindo-se na concavidade da base do pescoço.
- A tua mãe, o meu pai - continuou, pegando na mão dele e encostando-a à sua face. - Há sempre alguém. Eu estava numa confusão terrível, por causa daquele ridículo papel de parede. Estava certa de que se não me tivesse tornado a mulher que o meu pai queria que eu fosse... a mulher de um homem com título de nobreza... já teria tomado uma decisão sobre o papel. E porque não conseguia decidir-me, culpei-o. Ao meu pai. Mas a verdade nua e crua é que eu podia ter optado por seguir o meu próprio caminho, como fizeram Pen e Iris. Podia ter dito não. E não o fiz, porque o caminho que se me apresentava era muito mais fácil e muito menos assustador do que teria sido, se eu tivesse decidido abri-lo sozinha.
Lynley acariciou-lhe a face carinhosamente. Seguiu o contorno do seu maxilar e as linhas esguias e encantadoras do seu pescoço.
- Às vezes detesto ser adulta - confessou-lhe Helen. - As crianças são infinitamente mais livres.
- São, não são? - concordou ele, enfiando os dedos na toalha que lhe envolvia o corpo. Beijou-lhe o pescoço, os ombros e a boca. - Mas a idade adulta tem muito mais vantagens, penso eu.
Soltou a toalha e puxou-a para si.
CAPÍTULO 31
Quando o despertador soou na manhã seguinte, Barbara Havers saiu da cama com uma tremenda dor de cabeça. Dirigiu-se em passo hesitante até à casa de banho, onde tentou descobrir uma aspirina e abrir as torneiras do chuveiro. Bolas, pensou. Era óbvio que nos últimos anos levara uma vida demasiado exemplar. Em resultado, ficara altamente desactualizada no que dizia respeito a paródias e divertimentos.
A comemoração não fora assim tão grande. Depois de terem registado o depoimento de Matthew King-Ryder, ela e Nkata tinham saído para uma ligeira diversão. Tinham estado apenas em quatro pubs, e não se podia dizer que algum dos dois tivesse exagerado no álcool. O que tinham bebido, no entanto, fora o suficiente para fazer estragos. Barbara tinha a sensação de ter sido abalroada por um camião.
Entrou na banheira e deixou que a água escorresse pelo seu corpo até a aspirina começar a fazer efeito. Ensaboou-se e lavou o cabelo, jurando a si mesma que, dali para a frente, não se aproximaria de nada que estivesse remotamente relacionado com álcool nas noites de semana. Pensou em telefonar a Nkata, para tentar saber se ele também fora atacado pelos sintomas da manhã seguinte, mas mudou de ideias quando se lembrou do que a mãe do rapaz podia pensar ao ver o seu filho predilecto ao telefone com uma desconhecida antes das sete da manhã. Não havia necessidade de deixar Mrs. Nkata em cuidados acerca da pureza do seu rico Winnie, tanto de corpo como de espírito. Daí a pouco tornariam a encontrar-se na Yard.
Concluída a higiene matinal, Barbara abriu o guarda-roupa e tentou avaliar o tipo de impressão que lhe interessava causar naquele dia em termos de indumentária: Optou por algo discreto e tirou de dentro do armário um fato de casaco e calça que não usava havia pelo menos dois anos.
Atirou-o para cima da cama ainda desfeita e foi até à cozinha. Depois de ter ligado a chaleira e de ter colocado uma torta de melancia na torradeira, secou o cabelo com uma toalha e vestiu-se. Ligou a televisão para assistir ao serviço noticioso matinal da BBC e ficou a saber que o trânsito para a City estava demorado devido a trabalhos de reparação numa via de circulação, que havia um engarrafamento na M1, a sul do entroncamento quatro e que o rebentamento de uma conduta de água na A23 formara uma autêntico lago a norte de Streatham. Mais um dia infernal para quem vivia nos subúrbios.
A chaleira deu sinal e Barbara foi até à cozinha,onde colocou uma colher de café numa caneca decorada com uma caricatura do Príncipe de Gales: rosto sem queixo,nariz bulbiforme e orelhas gigantescas sobre um corpo diminuto vestido à escocesa. Agarrou na torta de fruta,colocou- a sobre uma toalha de cozinha e transportou esta obra-prima da alimentação equilibrada e nutritiva até à mesa de jantar.
No centro da mesa estava o coração de veludo,no mesmo sítio onde Barbara o colocara quando Hadiyyah lho entregara no domingo à noite.
Aguardava o momento de escutar as suas reflexões,uma espécie de prenda de S. Valentim em tamanho reduzido,com rebordos de renda e cheio de significado. Barbara evitara pensar nele durante mais de trinta e seis horas, e uma vez que não vira nem Hadiyyah nem o pai durante esse período conseguira também evitar falar nele. No entanto,não podia continuar assim para sempre. A boa educação,no mínimo,exigia que fizesse alguma referência ao boneco da próxima vez que visse Azhar.
Mas que tipo de referência? Afinal,ele era um homem casado. Não vivia com a mulher,era certo. A mulher com quem vivia desde que vivia com a mulher não era mulher dele,não era menos certo. Essa mulher saíra de casa definitivamente,era verdade,abandonando uma filha encantadora com oito anos de idade e um homem taciturno - ainda que atencioso e bondoso de trinta e cinco que necessitava de uma companhia feminina adulta. Todavia,nada disso contribuía para tornar a situação fácil de abordar de acordo com as regras da etiqueta. Não que Barbara alguma vez se tivesse dado ao trabalho de se preocupar com regras de etiqueta. Isso,porém,devia- se ao facto de nunca ter estado numa situação em que essas regras se aplicassem.
Regras homem-mulher,queria ela dizer. Ou regras homem-mulher-criança.
E nunca, certamente, regras homem-mulher-ex-mulher-criança-outra mulher.
Fosse como fosse,da próxima vez que estivesse com Azhar,precisava de estar preparada. Precisava de fazer um comentário rápido,útil,directo, cheio de significado,casual e sensato. E tinha de ser algo que lhe ocorresse espontaneamente,como se tivesse surgido naquele preciso instante.
Nesse caso... que poderia ser? Muito obrigada, meu querido... Quais são, exactamente,as suas intenções?... Que simpático da sua parte ter-se lembrado de mim.
Prò diabo com isto tudo,pensou Barbara,enfiando o resto da torta na boca. As relações humanas eram letais.
Alguém bateu à porta,uma batida única mas sonora. Barbara assustou-se e olhou para o relógio. Era demasiado cedo para que os fanáticos religiosos andassem na rua,e o funcionário da companhia do gás que vinha fazer as leituras mensais protagonizara o ponto alto da sua vida social na semana anterior. Quem seria, então...
Levantou-se, enquanto acabava de mastigar a torta. Abriu a porta e viu Azhar na sua frente.
Pestanejou e desejou ter levado mais a sério o ensaio dos agradecimentos.
- Olá. Eh... bom-dia.
- Chegou a casa bastante tarde, a noite passada, Barbara - disse ele.
- Bem... pois cheguei. O caso estava complicado. Isto é, estava complicado como sempre acontece quando fazemos uma detenção. O material tem de ser recolhido e organizado antes de ser entregue aos Procuradores da Coroa. Quanto à investigação propriamente dita... - fez um esforço para se calar. - Pois é, prendemos um suspeito.
Ele abanou a cabeça, muito sério.
- Isso são boas notícias.
- São boas notícias, pois são.
Ele olhou para trás dela. Barbara interrogou-se sobre se ele estaria a tentar perceber se ela comemorara o fim da investigação com um corpo de baile formado por bailarinos gregos que ainda podiam estar escondidos ali em casa. Logo em seguida, porém, caiu em si e convidou-o a entrar.
- Oh. Entre, por favor. Posso oferecer-lhe um café? Só tenho instantâneo, peço desculpa - disse, acrescentando, esta manhã, como se passasse o resto dos dias na cozinha a moer café furiosamente.
Ele recusou a oferta dela, não podia demorar-se. Viera só por um instante, na verdade, enquanto a filha se vestia, e teria de sair dentro de minutos para lhe entrançar o cabelo.
- Claro - disse Barbara. - Não se importa que eu... - e fez sinal para a chaleira com a caneca Príncipe de Gales.
- Não, claro. Vim interromper o seu pequeno-almoço.
- Para ser franca, sim - admitiu Barbara.
- Eu teria esperado para falar consigo numa altura mais conveniente, mas esta manhã percebi que não seria capaz de adiar a conversa por mais tempo.
- Ah.
Barbara aproximou-se da chaleira e ligou-a, intrigada com a gravidade dele e com o que a mesma prenunciava. Embora fosse verdade que ele nunca abandonara o ar sério e grave desde o início do Verão, havia algo na forma como ele a olhava naquela manhã, que a levou a pensar se teria o rosto sujo com manteiga ou algo do género.
- Podemos sentar-nos, se preferir. E há cigarros em cima da mesa. Tem a certeza de que não quer um café?
Absoluta.
Todavia, aceitou um dos cigarros dela e ficou a observá-la em silêncio enquanto ela preparava uma segunda chávena de café. Foi só quando Barbara veio ter com ele à mesa de jantar - o coração de veludo parecia uma confissão não verbalizada entre ambos - que ele tornou a falar.
- Barbara, é difícil para mim falar neste assunto e não tenho bem a certeza de como hei-de começar.
Ela beberricou o café e tentou pôr uma expressão que o encorajasse a falar.
Inquieto, Azhar agarrou no coração de veludo.
- Essex.
- Essex - repetiu Barbara, solícita.
- Hadiyyah e eu fomos à praia no domingo. Fomos a Essex, como sabe - recordou ele.
- Sim - era o momento de lhe dizer Obrigada pelo coração, mas a frase não saiu. - Hadiyyah contou-me que se tinham divertido muito. Disse também que tinham passado pelo Burnt House Hotel.
- Ela passou por lá - esclareceu ele. - Ou seja, eu deixei-a lá por algum tempo na companhia da simpática Mrs. Porter. Lembra-se dela, suponho?
Barbara confirmou com um movimento de cabeça. Sentada atrás do seu andarilho, Mrs. Porter tomara conta de Hadiyyah enquanto o pai colaborara como intermediário entre a polícia e uma pequena mas agitada comunidade de paquistaneses durante a investigação de um crime.
- Claro - disse. - Claro que me lembro de Mrs. Porter. Simpático da sua parte tê-la visitado.
- Como lhe disse, foi Hadiyyah quem foi visitar Mrs. Porter. Eu fui falar com a polícia local.
Ao ouvir estas palavras, Barbara começou imediatamente a erguer as suas defesas. Queria lembrar-se de um comentário que os desviasse da conversa que estavam prestes a ter, mas não conseguiu lembrar-se de nada rapidamente, e Azhar continuou.
- Falei com o agente Fogarty - revelou ele. - Com o Agente Michael Fogarty, Barbara.
- Sim, claro. Com o Mike.
- Ele é o armeiro da polícia de Essex.
- Exacto. Mike. Armas. É isso mesmo.
- Ele contou-me o que aconteceu no barco, Barbara. O que a inspectora Barlow disse acerca de Hadiyyah, quais eram as suas intenções e o que a Barbara fez.
- Azhar...
Ele pôs-se de pé e deu uns passos na direcção da cama desmontável. Barbara fez uma careta quando se apercebeu de que ainda não a fizera e
ao ver a odiosa T-shirt que usava para dormir ainda enrodilhada nos lençóis. Por momentos, pensou que ele queria fazer-lhe a cama - nunca conhecera ninguém que tivesse uma obsessão pela arrumação como ele -, mas virou-se para olhar para ela. O estado de agitação em que se encontrava era visível.
- Como posso agradecer-lhe? Que posso eu dizer para lhe agradecer o sacrifício que fez pela minha filha?
- Não é preciso agradecer-me.
- Não é verdade. A inspectora Barlow...
- Barlow nasceu com demasiada ambição, Azhar. Isso destruiu o discernimento dela, mas não o meu.
- Mas em resultado disso, a Barbara foi despromovida. Caiu em desgraça. A equipa que formava com o inspector Lynley... por quem eu sei que a Barbara tem grande estima... desfez-se, não é verdade?
- Bem, a situação não está propriamente um mar de rosas - concordou Barbara. - Mas o inspector tem as regras e os regulamentos do lado dele, por isso está no seu pleno direito de se sentir irritado comigo.
- Mas isto... tudo isso se deve ao que fez... ao facto de ter protegido Hadiyyah quando a inspectora Barlow queria abandoná-la, quando a chamou fedelha paquistanesa", indiferente à possibilidade de ela poder morrer afogada.
Estava tão aflito que Barbara desejou ardentemente que o agente Michael Fogarty tivesse estado doente naquele domingo, que tivesse estado ausente da esquadra de polícia, que tivesse deixado a inspectora Barlow sozinha, fazendo dela a única pessoa capaz de fazer um relato sério e asséptico da perseguição no mar do Norte, que terminaria certamente com Barbara disparando contra ela. Uma única coisa, no entanto, agradecia a Fogarty: o facto de não ter incluído no seu relato o adjectivo maldita, com que Emily Barlow antecedera a designaçãofedelha paquistanesa.
- Não pensei nas consequências - confessou Barbara a Azhar. O que era importante era Hadiyyah. E continua a ser importante. Ponto final.
- Tenho de encontrar uma maneira de lhe mostrar o que sinto - disse ele, apesar das palavras tranquilizadoras de Barbara. - Não posso permitir que pense que o seu sacrifício...
- Não foi um sacrifício, acredite. E quanto aos agradecimentos... Bem, já me deu um coração, não deu? Basta isso.
- Um coração?
Parecia confuso. Em seguida, os seus olhos seguiram o braço estendido de Barbara e ele viu o coração que ganhara na máquina dos bonecos.
- O coração. Mas isso não é nada. Pensei apenas nas palavras que estão escritas num dos lados, Barbara, e no seu sorriso ao vê-las.
- Nas palavras?
- Sim. Não viu...
E, aproximando-se da mesa, virou o coração ao contrário. No reverso - que teria visto, se tivesse tido coragem para olhar bem para ele quando Hadiyyah lho dera - estava bordada a frase Eu amoo o Essex.
- Era uma brincadeira, percebe? Porque depois de tudo por que passou em Essex, dificilmente gostará do sítio. Não tinha reparado nas palavras?
- Ah, nessas palavras - disse Barbara apressadamente com uma gargalhada sonora destinada a ilustrar o seu grau de cumplicidade na brincadeira. - Sim, a velha máxima Eu Amo isto ou aquilo. É precisamente o último lugar da terra onde eu quero voltar. Obrigada, Azhar. É muito mais engraçado do que o elefante, não acha?
- Mas isso não basta. E não há nada que eu possa dar-lhe para lhe agradecer. Nada que seja igual ao que me deu.
Barbara lembrou-se do que aprendera sobre o povo dele: lenadena. A oferta de um presente que fosse igual ou melhor daquele que se recebera. Era assim que expressavam a sua vontade de cultivar um relacionamento, uma forma clara de afirmarem as suas intenções sem a indelicadeza de as mencionar abertamente. Como eram sensíveis, os Asiáticos. Nada era deixado ao acaso na cultura deles.
- O seu desejo de encontrar algo que tenha um valor igual é o que conta, não é? - perguntou Barbara. - O que quero dizer é que podemos fazer com que o desejo para encontrar algo conte, não podemos, Azhar?
- Suponho que sim - respondeu ele, hesitante.
- Nesse caso, considere que a prenda de igual valor está entregue. E agora vá entrançar o cabelo de Hadiyyah. Ela deve estar à sua espera.
Ele deu mostras de querer continuar a falar. Em vez disso, porém, aproximou-se da mesa e apagou o cigarro.
- Obrigado, Barbara Havers - agradeceu, em voz baixa.
- Até logo - replicou ela.
E sentiu o fantasma de um toque no ombro quando ele passou por ela dirigindo-se para a porta.
Depois de a ter fechado, Barbara desatou a rir dos pensamentos ridículos e desmesurados que alimentara. Pegou no coração e balançou-o, suspenso entre os polegares e os indicadores. Eu amo Essex, pensou. Bom, podia ter escolhido maneiras bem piores para brincar com ela.
Esvaziou a caneca de café dentro do lava-loiças e executou as poucas tarefas matinais com gestos rápidos. Depois de escovar os dentes, de pentear o cabelo e de aplicar um pouco de blush em cada face, num arremedo de feminilidade, pegou no saco, trancou a porta de casa e percorreu alegremente o caminho de acesso que conduzia à rua.
Transpôs o portão principal, mas estacou quando o viu. O Bentley cinzento de Lynley estava estacionado na entrada do edifício.
- Está muito longe do seu quintal, não está, inspector? - perguntou quando ele saiu do carro.
- Winston telefonou-me e disse que você tinha deixado o seu carro na Yard a noite passada e que tinha vindo para casa de táxi.
- Bebemos um bocado e pareceu-me ser a melhor solução.
- Foi o que ele disse. Foi sensato da sua parte não ter conduzido. Calculei que pudesse querer uma boleia até Westminster. Há problemas com os comboios suburbanos, esta manhã.
- E quando é que não há problemas com os comboios suburbanos? Ele sorriu.
- E então...
- Obrigada.
Atirou o saco para cima do assento do passageiro e entrou no carro. Lynley sentou-se ao seu lado, mas não ligou o motor. Em vez disso, tirou algo de dentro do bolso do casaco e entregou-lhe.
Barbara olhou, intrigada, para o que ele acabara de lhe dar: uma ficha de registo do Black Angel Hotel. Não estava vazia, no entanto, o que podia tê-la levado a pensar que ele estava a oferecer-lhe umas férias em Derbyshire. Estava, sim, preenchida com um nome, morada e outras informações úteis sobre tipo de carro, número de matrícula, passaporte e nacionalidade. Fora preenchida por um M. R. Davidson, que indicara uma morada em West Sussex e um Audi como sendo o veículo em que se deslocara até ao Norte.
- Muito bem - disse Barbara. - Desisto. O que é?
- Uma recordação para si.
- Ah.
Barbara ficou à espera que ele pusesse o motor do Bentley a trabalhar. Não o fez. Limitava-se a esperar. Foi então que Barbara perguntou:
- Uma recordação de quê?
- O inspector Hanken - disse ele -, estava convencido de que o assassino tinha ficado hospedado no Black Angel Hotel na noite dos crimes. Verificou as fichas de todos os hóspedes e confrontou-as com a base de dados do Registo de Veículos, a fim de descobrir se algum deles tinha conduzido um carro que estivesse registado sob um nome diferente do indicado na ficha. Esse foi o único que coincidiu.
- Davidson - disse Barbara, examinando o cartão. - Claro, já percebi. Filho de David. Quer dizer, então, que Martin King-Ryder ficou hospedado no Black Angel.
- Que fica perto da charneca e de Peak Forest, onde foi encontrado o canivete. Muito perto de tudo, aliás.
- E os arquivos do Registo de Veículos indicaram que este Airdi estava registado em nome dele - concluiu Barbara. - E não em nome de um M. R. Davidson.
- As coisas aconteceram tão depressa ontem que só conseguimos ter acesso ao relatório do Registo de Veículos ao fim da tarde. Os computadores da esquadra de Buxton não estavam a funcionar, e por isso a informação teve de ser recolhida por telefone. Se tivessem funcionado... - Lynley olhou através do pára-brisas do carro e falou em tom de reflexão. - Eu quero acreditar que a culpa é da tecnologia, que se ao menos tivéssemos tido acesso aos dados do Registo de Veículos rapidamente, Andy Maiden ainda estaria vivo.
- O quê? - murmurou Barbara, atónita. - Ainda estaria vivo? Que lhe aconteceu?
Lynley contou-lhe o sucedido. Não se poupou nem um pouco, conforme Barbara pôde confirmar. Era assim que ele era, afinal.
- Foi uma decisão minha não falar directamente sobre as actividades de Nicola como prostituta na presença da mãe - concluiu. - Era o que Andy Maiden desejava e eu fiz-Lhe a vontade. Se simplesmente tivesse feito o que devia... - fez um gesto vago. - Deixei que os meus sentimentos em relação a ele interferissem. Tomei a decisão errada, e em consequência disso ele morreu. Tenho as minhas mãos manchadas com o sangue dele, é como se tivesse sido eu próprio a empunhar o canivete.
- Acho que está a ser um pouco duro consigo mesmo - disse Barbara. - Não dispôs exactamente de muito tempo para reflectir sobre a melhor maneira de agir quando Nan Maiden interrompeu a vossa conversa.
- Não. Eu percebi que ela sabia alguma coisa. Mas o que pensei que ela soubesse, ou acreditava, era que Andy Maiden tinha assassinado a filha deles. E mesmo nesse momento, não contei a verdade, porque não conseguia acreditar que ele tivesse assassinado a filha deles.
- E não tinha - disse Barbara. - Por isso, tomou a decisão certa.
- Não acho que seja possível separar a decisão do desfecho - comentou Lynley. - Antes pensava que sim, mas agora julgo que não. O desfecho existe por causa da decisão. E se o desfecho é uma morte desnecessária, é porque a decisão não foi acertada. Não podemos distorcer os factos e obrigá-los a formar um quadro diferente, por mais que queiramos.
Barbara julgou que ele tivesse concluído e agiu como se assim fosse. Puxou o cinto de segurança e cingiu-o ao corpo. Preparava-se para o apertar, quando Lynley tornou a falar.
- Você tomou a decisão certa, Barbara.
- Pois, mas eu estava em vantagem em relação a si - disse Barbara. - Eu tinha falado com Cilla Thompson pessoalmente. O senhor, não. Tinha falado com King-Ryder também pessoalmente. E quando descobri que ele comprara um daqueles quadros hediondos, foi fácil concluir que se tratava do nosso homem.
- Não estou a falar deste caso - precisou Linley. - Estou a falar sobre Essex.
- Oh - Barbara sentiu-se incrivelmente pequena -, isso. Essex.
- Sim, Essex. Tentei separar a decisão que tomou naquele dia do seu desfecho. Continuei a insistir que a criança podia ter sobrevivido mesmo que você não tivesse interferido. Só que você não dispunha de tempo para fazer cálculos sobre a distância a que o barco se encontrava da criança e sobre a habilidade de outra pessoa qualquer para lhe atirar um colete salva-vidas, pois não, Barbara? Você dispôs de um instante para decidir o que fazer. E por causa da sua decisão, a garota sobreviveu. Eu, pelo contrário, mesmo dispondo de horas para pensar sobre Andy Maiden e a mulher, tomei a decisão errada. A morte dele pesa sobre os meus ombros. A vida da criança pesa sobre os seus. Pode olhar para as duas situações da forma que quiser, mas eu sei por qual dos desfechos preferia ser responsável.
Barbara desviou os olhos na direcção da casa. Não sabia muito bem o que dizer. Queria dizer-Lhe que passara noites acordada e dias inteiros deambulando sem destino, à espera do momento em que ele lhe dissesse que compreendia e aprovava o comportamento dela naquele dia em Essex. Agora, porém, que isso finalmente acontecera, descobria que não conseguia articular as palavras. Em vez disso, murmurou:
- Obrigada. Inspector. Obrigada - e engoliu em seco.
- Barbara! Barbara!
O grito vinha do terraço em frente ao apartamento do rés-do-chão. Lá estava Hadiyyah, não com os pés assentes no chão lajeado mas empoleirada em cima do banco de madeira colocado diante das janelas francesas do apartamento que partilhava com o pai.
- Barbara, vê! - chamou e começou a dançar uma jiga. - Tenho uns sapatos novos! O pai disse que eu não tinha de esperar até ao dia do feriado. Olha! Tenho uns sapatos novos!
Barbara baixou o vidro da janela do carro.
- Fantástico - gritou ela em resposta. - Estás linda, miúda. A miúda rodopiou e desatou a rir.
- Quem é? - perguntou Lynley ao seu lado.
- A criança em questão - replicou Barbara. - Vamos embora, inspector Lynley. Suponho que não queira chegar atrasado.
Elizabeth George
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