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PERSUASÃO
O enredo gira em torno dos amores de Anne Elliot que se apaixona pelo pobre, porém ambicioso jovem oficial da marinha, capitão Frederick Wentworth. A família de Anne não concorda com essa relação e a persuade a romper o relacionamento amoroso. Anos após, Anne reencontra Frederick, agora cortejando sua amiga e vizinha, Louise Musgrove. PERSUASÃO é amplamente apreciado como uma simpática história de amor, de trama simples e bem elaborada, e exemplifica o estilo de narrativa irônica de Jane Austen, sendo original por diversos motivos, entre eles, pelo fato de ser uma das poucas histórias da escritora que não apresenta a heroína em plena juventude. O romance também é um apanágio ao homem de iniciativa, através do personagem do capitão Frederick Wentworth que parte de uma origem humilde e que alcança influência e status pela força de seus méritos e não através de herança.
Sir Walter Elliot, do Solar de Kellynch, em Somersetshire, era um homem que, para se distrair, nunca pegava num livro, com excepção dos Anais dos Baronetes; aí encontrava ele ocupação para as horas de ócio e consolação para as horas tristes; aí sentia ele estimulados o respeito e a admiração, ao contemplar o pouco que restava dos primeiros títulos nobiliárquicos; aí, quaisquer sensações desagradáveis provocadas por assuntos de natureza doméstica transformavam-se naturalmente em pena e desdém. Quando acabava de folhear a quase interminável lista de pares criados no último século - e aí, se todas as outras páginas não surtissem efeito, ele lia a sua própria história com um interesse que nunca esmorecia-chegava à página em que o seu volume favorito era sempre aberto: ELLIOT DO SOLAR DE KELLYNCh.
Walter Elliot, nascido em 1 de Março de 1760, casado em 15 de Julho de 1784, com Elizabeth, filha de James Stevenson, de South Park, condado de Gloucester; desta senhora (falecida em 1800) nasceram Elizabeth, nascida a 1 de Junho de 1785; Anne, nascida a 9 de Agosto de 1787; um filho nado-morto a 5 de Novembro de 1789; Mary, nascida a 2 de Novembro de 1791.
Fora exatamente assim que o parágrafo saíra originalmente da impressão; mas Sir Walter tinha-o beneficiado, acrescentando estas palavras, na informação sobre si próprio e a sua família: depois da data de nascimento de Mary - casada, em 16 de Dezembro de 1810, com Charles, filho e herdeiro de Charles Musgrove, Esq. de Uppercross, condado de Somerset - e introduzindo, com maior exactidão, o dia do mês em que perdera a mulher.
Depois, seguia-se a história da ascensão da antiga e respeitável família, nos termos habituais; como viera para Cheshire, como era mencionada em Dugdale - ocupando o cargo de xerife, representando a vila em três sessões parlamentares sucessivas; manifestações de lealdade, o título de baronete, no primeiro ano do reinado de Charles II, e todas as Marys e Elizabeths com quem se tinham casado; formando, ao todo, duas belas páginas duodecimal e concluindo com as armas e a divisa: ®Residência principal, Kellynch Hall, no condado de Somerset¯, e de novo a letra de Sir Walter no fim:
Presumível herdeiro, William Walter Elliot, Esq., bisneto do segundo Sir Walter. A vaidade era o princípio e o fim do carácter de Sir Walter: vaidade pela sua pessoa e posição. Ele tinha sido extraordinariamente belo na sua juventude; e, aos 55 anos, ainda era um homem muito atraente. Poucas mulheres se preocupavam mais com o seu aspecto do que ele; nem o criado pessoal de um lorde que tivesse acabado de receber este título se sentiria tão satisfeito com o seu lugar na sociedade. Ele considerava a bênção da beleza inferior apenas à bênção de ser baronete; e Sir Walter Elliot, que possuía ambos os dons, era o objecto constante do seu mais caloroso respeito e admiração.
Ele sentia gratidão pela sua elegância e posição social, pois certamente lhes devia o fato de ter arranjado uma mulher de carácter muito superior ao que o seu próprio carácter merecia.
Lady Elliot tinha sido uma excelente mulher, sensata e dócil, cujo discernimento e conduta, se lhe for perdoada a paixoneta juvenil que fez dela Lady Elliot, nunca, depois disso, mereceram a menor censura. Durante dezassete anos, ela minimizara, escondera ou desculpara os defeitos dele e promovera a sua verdadeira respeitabilidade; e, embora ela própria não fosse a pessoa mais feliz do mundo, acabou por encontrar, nas suas obrigações, nos seus amigos e nas filhas, satisfação suficiente para que tivesse apego à vida e não se sentisse indiferente quando chegou a hora de os deixar. Três meninas, as duas mais velhas com 16 e 14 anos, constituíam uma herança terrível para qualquer mãe deixar; ou, por outra, para confiar à autoridade e orientação de um pai presunçoso e tolo. Ela tinha, porém, uma amiga muito íntima, uma mulher sensata e digna que ela tinha convencido, com a sua grande amizade, a vir viver perto dela, na aldeia de Kellynch; e Lady Elliot confiava sobretudo na sua generosidade e nos seus bons conselhos para ajudar a manter os bons princípios e ensinamentos que ela transmitira empenhadamente às filhas.
Esta amiga e Sir Walter não se casaram, ao contrário do que as suas relações poderiam levar a supor. Passados treze anos sobre a morte de Lady Elliot, ainda eram vizinhos e amigos íntimos; e ele continuava viúvo, e ela, viúva.
O fato de Lady Russell, uma mulher com maturidade de idade e de carácter e com uma situação económica extremamente boa, não pensar num segundo casamento, não necessita de qualquer justificação perante o público, o qual tende a ficar, absurdamente, mais descontente quando uma mulher volta a casar-se do que quando ela não se casa; mas o fato de Sir Walter continuar viúvo exige uma explicação. Faça-se saber, pois, que Sir Walter, como um bom pai (tendo sofrido uma ou duas desilusões com pretendentes muito pouco razoáveis), orgulhava-se de continuar solteiro por causa da sua querida filha. Por uma filha, a mais velha, ele teria desistido de qualquer coisa, o que não se sentira muito tentado a fazer. Elizabeth tinha, aos 16 anos, sucedido À mãe em direitos e importância, em tudo que era possível, e, sendo muito bonita e muito parecida com o pai, exercera sempre grande influência sobre ele; davam-se muito bem.
As outras duas filhas tinham menor importância. Mary adquirira alguma notoriedade artificial ao tornar-se Sr.a Charles Musgrove; mas Anne, com uma elegância de espírito e doçura de carácter que lhe teriam granjeado a admiração de pessoas de discernimento, não era ninguém aos olhos do pai, nem dos da irmã; a sua palavra não tinha qualquer peso; era sempre obrigada a ceder - era apenas Anne.
Para Lady Russell, contudo, ela era uma afilhada predileta e uma amiga muito querida e estimada. Lady Russell gostava delas todas; mas era apenas em Anne que ela imaginava que a mãe pudesse reviver.
Alguns anos antes, Anne Elliot tinha sido uma menina muito bonita, mas cedo perdera a sua frescura; e, como mesmo no seu auge da sua beleza, o pai tinha visto muito pouco nela que fosse digno de admiração (tão diferentes dos dele eram os seus traços delicados e os suaves olhos escuros), agora, que ela estava murcha e magra, não podia haver nada neles que pudesse provocar o seu apreço. Ele nunca tivera muita esperança, e agora não tinha nenhuma, de ler o nome dela em qualquer outra página da sua obra preferida. Toda a esperança de uma aliança de termos de igualdade residia em Elizabeth; pois Mary tinha-se apenas ligado a uma respeitável família rural antiga com uma grande fortuna e tinha, portanto, concedido toda a honra sem ter recebido nenhuma; Elizabeth faria, mais cedo ou mais tarde, um casamento vantajoso.
Acontece, por vezes, que uma mulher é mais bonita aos 29 anos do que dez anos antes; e, de um modo geral, se não se sofreu de doença ou ansiedade, é uma idade em que pouco encanto se perdeu. Era o que se passava com Elizabeth; ainda era a bela Menina Elliot que começara a tornar-se assim treze anos antes; poder-se-á , pois, desculpar Sir Walter por ele se esquecer da idade dela ou, pelo menos, considerá-lo apenas meio tolo, por julgar que ele próprio e Elizabeth conservavam a mesma frescura de sempre, no meio da ruína da beleza de todos os outros, pois ele via claramente como o resto da sua família e os seus conhecidos estavam a envelhecer. Anne, magra, Mary, grosseira, todos os rostos da vizinhança pioravam; e há muito que o rápido aumento dos pés de galinha nas têmporas de Lady Russell o entristecia.
Elizabeth não sentia exatamente a mesma satisfação pessoal que o pai. há treze anos que era senhora de Kellynch Hall, supervisionando e dando ordens com uma autoconfiança e decisão que nunca poderiam ter dado a ideia de ela ser mais nova do que realmente era. Durante treze anos, tinha feito as honras da casa, repreendendo, tomando a dianteira ao dirigir-se para o coche e seguindo imediatamente atrás de Lady Russell ao sair de todas as salas de visitas e de jantar do país. As geadas de treze Invernos tinham-na visto abrir todos os bailes dignos de registo que uma pequena localidade conseguia dar; e, durante treze Primaveras, as plantas tinham mostrado as suas flores quando ela viajava para Londres com o pai, para disfrutar, uma vez por ano, das diversões do grande mundo. Ela lembrava-se de tudo isto, tinha consciência de ter 29 anos, o que lhe provocava alguma pena e apreensão. Sabia que ainda era muito bonita; mas sentia os anos perigosos aproximarem-se, e gostaria de ter a certeza de que um verdadeiro baronete iria pedir a sua mão dentro de um ano ou dois. Nessa altura, talvez voltasse a pegar no livro dos livros com tanto prazer como nos anos da sua juventude; mas, naquele momento, ela não gostava dele. Deparar-se constantemente com a data do seu nascimento e não ver nenhum casamento à frente desta excepto o de uma irmã mais nova tornavam o livro um mal; e, mais de uma vez, depois de o pai o ter deixado aberto em cima da mesa a seu lado, ela tinha-o fechado e empurrado para longe, desviando os olhos.
Além disso, ela sofrera uma desilusão que aquele livro, especialmente a história da sua família, lhe fazia sempre recordar.
O presumível herdeiro, o mesmo William Walter Elliot, Esq., cujos direitos tinham sido tão generosamente apoiados pelo pai, tinha-a desiludido.
Desde menina, desde que soubera que, se não tivesse irmãos, ele seria o futuro baronete, que ela tencionava casar-se com ele; e o pai sempre quisera que ela o fizesse. Eles não o tinham conhecido em pequeno, mas, pouco depois da morte de Lady Elliot, Sir Walter esforçara-se por se aproximar dele e, embora os seus esforços não tivessem sido recebidos com calor, ele insistira em fazê-los, atribuindo a falta de entusiasmo à timidez da juventude; e, numa das viagens de Primavera a Londres, quando Elizabeth acabara de desabrochar, o Sr. Elliot fora-lhe forçosamente apresentado.
Ele era, nessa altura, muito jovem e iniciara recentemente os seus estudos de Direito. Elizabeth achara-o extremamente simpático, e todos os planos a favor dele tinham sido reforçados. Ele fora convidado a ir ao Solar de Kellynch; falaram nele e esperaram-no o resto do ano, mas ele nunca apareceu. Na Primavera seguinte, encontraram-no de novo na cidade, acharam-no igualmente simpático, e foi mais uma vez encorajado, convidado e esperado e, novamente não apareceu; as notícias seguintes foram que ele se tinha casado. Em vez de agir de acordo com a linha traçada para o herdeiro da casa de Elliot, ele comprara a independência unindo-se a uma mulherárica, de nascimento inferior.
Sir Walter ficara ofendido. Como chefe da família, ele achava que deveria ter sido consultado, especialmente depois de o ter acompanhado em público:
- Porque nós devemos ter sido vistos juntos – comentou ele -, uma vez no Tattersal e duas vezes no trio da Casa dos Comuns - O seu desagrado foi manifestado, mas, aparentemente, pouca importância lhe foi atribuída. O Sr. Elliot não tentou apresentar quaisquer desculpas nem mostrou qualquer interesse em ser notado pela família; do mesmo modo, Sir Walter considerou que ele não merecia fazer parte dela; todas as relações entre eles tinham cessado.
Ao fim de vários anos, esta embaraçosa história do Sr. Elliot ainda provocava raiva em Elizabeth, que tinha gostado do homem por ele próprio e ainda mais por ser o herdeiro do pai, cujo forte orgulho familiar via somente nele um partido adequado para a filha mais velha de Sir Walter Elliot. Não havia, de A a X, um baronete que os seus sentimentos reconhecessem tão facilmente como seu igual. No entanto, ele tinha agido tão miseravelmente que, embora usasse actualmente (no Verão de 1814) uma fita de luto pela mulher, ela não punha a hipótese de ele merecer que voltasse a pensar nele. A vergonha do seu primeiro casamento talvez pudesse ser ultrapassada, pois não havia motivo para supor que o mesmo tivesse sido perpetuado através de quaisquer filhos, se ele não tivesse feito pior; mas ele fizera pior, conforme tinham sido informados pela habitual intromissão de amigos amáveis, e falara muito desrespeitosamente de todos eles, e com muito desdém do próprio sangue que lhe corria nas veias e do título que futuramente seria seu. Isto não podia ser perdoado.
Estes eram os sentimentos e as sensações de Elizabeth Elliot; estas eram as preocupações que a incomodavam, a agitação que perturbava a monotonia, a elegância, a prosperidade e o vazio da cena da sua vida - estes eram os sentimentos que conferiam interesse a uma longa e rotineira residência numa pequena localidade, preenchendo o vazio que não podia ser ocupado comhábitos de serviço no estrangeiro nem com talentos ou feitos levados a cabo no país.
Mas, agora, outra ocupação ou preocupação da mente começava a ser adicionada a estas. O pai estava a ficar aflito com falta de dinheiro. Ela sabia que, quando ele agora pegava no registo de baronetes, era para afastar do pensamento as pesadas contas dos comerciantes e as desagradáveis insinuações do Dr. Shepherd, seu procurador. O património Kellynch era bom, mas não igualava a concepção que Sir Walter fazia da magnificência exigida ao seu dono. Enquanto Lady Elliot fora viva, tinha havido método, moderação e economia, o que mantivera os gastos dentro dos seus rendimentos, mas, juntamente com ela, tinham morrido também todos esses bons princípios e, desde então, ele excedia-os constantemente. Não lhe tinha sido possível gastar menos; ele não tinha feito nada a não ser o que Sir Walter Elliot era obrigado a fazer; mas, embora não tivesse qualquer culpa, ele não só estava a endividar-se terrivelmente como ouvia esse fato referido com tanta frequência que se tornara inútil escondê-lo,
mesmo parcialmente, da filha. Chegara a fazer algumas alusões a esse fato na Primavera anterior, na cidade; até tinha dito:
- Será possível economizar? Ocorre-te algum artigo em que possamos poupar?
E Elizabeth, justiça lhe seja feita, tinha, no primeiro ardor de alarme feminino, começado a pensar seriamente no que poderia ser feito e propusera duas linhas de economia: cortar pois algumas acções de caridade desnecessárias e não remodelar a sala de visitas; a essas medidas ela acrescentou mais tarde a feliz idéia de não levar nenhum presente a Anne, como era costume fazerem todos os anos. Mas estas medidas, por muito boas que fossem, mostraram-se insuficientes para a extensão do mal, cuja magnitude Sir Walter se viu obrigado a confessar-lhe pouco depois. Elizabeth não tinha nada de maior eficácia a propor; sentiu-se, tal como o pai, maltratada e infeliz; e nenhum deles conseguiu imaginar meios de diminuir as despesas sem comprometer a sua dignidade nem sem se verem privados do conforto mínimo.
Sir Walter podia vender apenas uma pequena parte dos seus bens; mas, ainda que ele pudesse vender todas as suas terras, isso não teria feito qualquer diferença. Ele tinha concordado em hipotecar tanto quanto lhe fora possível, mas nunca concordaria em vender. Nunca faria recair tamanha vergonha sobre o se nome. O património Kellynch seria transmitido completo e integral, tal como o recebera.
Foi pedido aos seus dois amigos íntimos, o Dr. Shepherd, que vivia na cidade vizinha onde o mercado se realizava, e Lady Russell, que viessem aconselhá-los; e, tanto o pai como a filha, pareciam esperar que um ou outro tivesse uma ideia que fizesse desaparecer os seus problemas e reduzisse as despesas sem que isso acarretasse o sacrifício da satisfação dos seus prazeres ou do orgulho.
O Dr. Shepherd, um advogado educado e cauteloso que, independentemente da sua opinião sobre Sir Walter, preferia que a palavra fosse dita por qualquer outra pessoa, pediu desculpa e recusou-se a dar quaisquer conselhos, limitando-se a pedir autorização para fazer uma referência implícita à excelente opinião de Lady Russell, cujo bom senso, ele sabia, iria aconselhar as medidas firmes que ele esperava ver finalmente adoptadas.
Lady Russell foi apreensivamente solícita em relação ao assunto e pensou seriamente nele. Ela era uma mulher de capacidades mais sólidas do que rápidas, com grandes dificuldades em chegar a uma decisão sobre este caso, devido à contradição entre dois princípios fundamentais. Ela própria era de uma Integridade rígida, com um delicado sentido de honra, mas estava igualmente desejosa de poupar os sentimentos de Sir Walter, preocupada com a boa reputação da família, tão aristocrática nas suas ideias sobre o que eles mereciam como qualquer pessoa sensata e honesta podia estar. Era uma mulher bondosa, caridosa, amável, capaz de amizades fortes, com uma conduta extremamente correcta, severa nas suas noções de decoro e com maneiras que eram consideradas um padrão da boa educação.
Ela possuía uma mente cultivada e era, de um modo geral, racional e coerente - tinha, porém, preconceitos no que dizia respeito à linhagem; atribuía grande valor à posição social e à importância, o que a tornava um pouco cega em relação aos defeitos dos que as possuíam. Ela própria, viúva de um simples cavaleiro, atribuía à dignidade de baronete tudo o que ela merecia, e Sir Walter, além dos seus direitos como velho conhecido, como vizinho atencioso, senhorio amável, marido da sua querida amiga, o pai de Anne e das suas irmãs, era, no seu entendimento e devido às suas dificuldades actuais, merecedor de bastante simpatia e consideração, simplesmente devido ao fato de ser Sir Walter.
Tinham de economizar; disso não havia qualquer dúvida.
Mas ela queria muito que isso acontecesse com o mínimo de sofrimento para ele e para Elizabeth. Fez planos de economia, fez cálculos exatos e fez o que ninguém mais pensara fazer: consultou Anne, que nunca era considerada pelos outros como tendo um interesse no caso. Consultou-a e foi, até certo ponto, influenciada por ela ao traçar o esquema de poupança que foi, por fim, submetido a Sir Walter. Todas as correcções de Anne se situavam do lado da honestidade, em oposição À importância. Ela queria medidas mais vigorosas, uma reforma mais completa, um pagamento da dívida mais rápido, um maior tom de indiferença por tudo o que não fosse justiça e igualdade.
- Se conseguirmos convencer o teu pai a fazer tudo isto - disse Lady Russell, passando os olhos pela folha de papel -, muito poderá ser feito. Se adoptar estas normas, dentro de sete anos estará livre de dívidas; e espero que possamos convencê-lo, a ele e a Elizabeth, de que Kellynch possui uma respeitabilidade própria que não será afectada por estas reduções; e que, por ele agir como um homem de princípios, a verdadeira dignidade de Sir Walter Elliot não ficará absolutamente nada diminuída aos olhos das pessoas sensatas. O que ele estará a fazer, de fato, se não o que muitas das nossas famílias jáfizeram... ou deveriam ter feito? O seu caso não é único; e é a singularidade que constitui a pior parte do nosso sofrimento, tal como sucede com a nossa conduta. Tenho grande esperança de que consigamos fazê-lo.
Temos de ser severas e firmes... pois, afinal de contas, quem contrai dívidas tem de as pagar; e, embora os sentimentos de um cavalheiro e chefe de família como o teu pai mereçam o maior respeito, mais respeito merece ainda o bom nome de um homem honesto.
Este era o princípio que Anne queria que o pai seguisse e que os amigos lhe aconselhassem. Ela considerava uma obrigação essencial pagar as dívidas aos credores com a maior rapidez que as economias globais conseguissem levar a cabo, e achava que nenhum outro comportamento seria digno. Ela queria que isso fosse recomendado e considerado um dever. Ela atribuía grande valor à influência de Lady Russell e, quanto ao elevado grau de sacrifício que a sua própria consciência exigia, sabia que talvez fosse tão difícil convencê-los a efectuar uma reforma completa como meia reforma. O que ela conhecia do pai e de Elizabeth levavam-na a pensar que o sacrifício de um par de cavalos seria tão doloroso como o de dois, e assim por diante, ao longo de toda a lista das suaves reduções de Lady Russell.
Pouco importa qual teria sido a reacção às exigências mais rígidas de Anne. As de Lady Russell não tiveram qualquer êxito - eram impossíveis, insuportáveis.
Quê? Retirar todos os confortos da vida? Viagens, Londres, criados, cavalos, mesa... reduções e restrições em tudo. Deixar de viver sem sequer o decoro de um criado pessoal! Não, ele preferia abandonar imediatamente o Solar de Kellynch a permanecer em condições tão vergonhosas."
- Abandonar Kellynch Hall.
O Dr. Shepherd pegou-lhe imediatamente na palavra. Ele tinha um grande interesse na realidade das economias de Sir Walter e estava perfeitamente convencido de que estas não poderiam ser feitas sem uma mudança de residÊncia. Uma vez que a ideia tivera início exatamente no local que devia ditar o comportamento, ele não sentia qualquer escrúpulo, disse, em confessar que a sua opinião era exatamente essa. Não lhe parecia que Sir Walter pudesse alterar materialmente o seu estilo de vida numa casa em que tinha de manter um tal carácter de hospitalidade e dignidade tradicionais. Em qualquer outro local, Sir Walter poderia pensar e proceder como quisesse; e, qualquer que fosse o modo como ele dirigisse a sua casa, seria considerado um padrão de estilo de vida.
Sir Walter iria abandonar Kellynch Hall; e, depois de mais alguns dias de dúvida e indecisão, a questão do local para onde ele iria ficou decidida, e o primeiro esboço desta importante alteração foi traçado.
Havia três alternativas, Londres, Bath, ou outra casa no campo. Todos os desejos de Anne eram em favor desta última. A sua ambição era uma casa pequena na mesma região, onde ainda pudessem contar com a companhia de Lady Russell, estar perto de Mary e ter, por vezes, o prazer de ver o relvado e os bosques de Kellynch. Mas a sorte habitual de Anne estava atenta e destinara-lhe algo muito diferente dos seus desejos. Ela não gostava de Bath e achava que Bath não lhe fazia bemá- e iria viver em Bath.
A princípio, Sir Walter pensara mais em Londres, mas o Dr. Shepherd pensava que não era possível confiar nele em Londres, e fora suficientemente hábil para o dissuadir e fazer optar por Bath. Era um local muito mais seguro para um cavalheiro com os seus problemas; ali, poderia ser importante com relativamente pouca despesa. Duas vantagens concretas de Bath sobre Londres tinham, obviamente, sido acentuadas; a sua distância de apenas cinquenta milhas de Kellynch, o que era mais conveniente, e o fato de Lady Russell passar sempre lá parte do Inverno; e, para grande satisfação de Lady Russell, cuja opinião sobre a projectada mudança fora, desde o início, a favor de Bath, Sir Walter e Elizabeth foram levados a acreditar que, com a mudança, não iriam perder importância nem deixariam de se divertir.
Lady Russell sentiu-se obrigada a opor-se aos desejos da sua querida Anne. Seria esperar demasiado que Sir Walter passasse a viver numa casa pequena na sua própria região. A própria Anne teria sentido uma humilhação maior do que antecipara, e a mesma teria sido terrível para os sentimentos de Sir Walter.
E, com respeito ao fato de Anne não gostar de Bath, ela considerava-o um preconceito e um erro, resultante, em primeiro lugar, da circunstância de ter andado lá na escola durante três anos, depois da morte da mãe, e, em segundo lugar, de ela não se ter sentido muito bem-disposta no único Inverno que lá passara com ela.
Lady Russell gostava de Bath e achava que era um bom lugar para todos eles; e, quanto à saúde da sua jovem amiga, todo o perigo seria evitado se ela passasse todos os meses quentes em sua companhia em Kellynch Lodge; e era, de fato, uma mudança que seria benéfica tanto para a saúde como para o espírito.
Anne tinha estado demasiado pouco tempo longe de casa, tinha vistodemasiado pouco. Ela não era uma pessoa muito alegre. Um pouco mais de convívio far-lhe-ia bem. Ela queria que Anne fosse mais conhecida.
O fato de não ser aconselhável que Sir Walter se instalasse em qualquer outra casa na mesma região foi certamente acentuado por uma parte, uma parte muito objectiva do esquema, que, felizmente, fora realçada no início. Ele não só teria de abandonar a casa mas também iria vê-la nas mãos de outras pessoas; uma prova de coragem que tinha sido excessivamente dura para espíritos mais fortes do que o de Sir Walterá- Kellynch iria ser alugada. Isto era, porém, um segredo bem guardado que não era referido fora do seu próprio círculo.
Sir Walter não suportaria a humilhação de ser tornada pública a sua intenção de alugar a casa. O Dr. Shepherd mencionara uma vez a palavra ®anúncio¯, mas nunca mais ousou referir-se ao assunto; Sir Walter rejeitou a ideia de ela ser oferecida sob qualquer forma; proibiu a mais pequena alusão ao fato de ele ter essa intenção; e ele só a alugaria se tal lhe fosse espontaneamente solicitado por um candidato excepcional, estipulando ele as condições, e como grande favor.
Como surgem depressa razões para concordarmos com aquilo que nos agrada! Lady Russell tinha outra excelente razão para se sentir extremamente satisfeita por Sir Walter e a sua família irem sair da região. Elizabeth iniciara recentemente uma grandeamizade que ela desejava ver interrompida. Era com uma filha do Dr. Shepherd que tinha regressado para casa do pai após um casamento infeliz, sobrecarregada com dois filhos. Era uma mulher jovem e inteligente, que compreendia a arte de agradar; a arte de agradar, pelo menos, no Solar de Kellynch; e que se insinuara tão bem junto da Menina Elliot, que jálá estivera hospedada mais de uma vez, apesar de todos os conselhos de Lady Russell, que considerava aquela amizade bastante despropositada.
Na realidade, Lady Russell tinha muito pouca influência junto de Elizabeth, e parecia gostar dela, mais por querer do que por ela o merecer. Nunca recebera dela mais do que uma atenção superficial, nada para além de formalidades condescendentes, nunca tinha conseguido convencê-la a mudar de ideias. Sensível à injustiça e ao egoísmo dos preparativos que deixavam Anne de fora, ela tinha tentado, repetidas vezes, que Anne fosse incluída na visita a Londres, e, em muitas outras ocasiões, tentara dar a Elizabeth o benefício do seu melhor discernimento e experiência - mas sempre em vão. Elizabeth fazia como queria - e nunca se opusera tão decididamente a Lady Russell como na escolha da Sra. Clay, afastando-se da companhia de uma irmã tão boa e manifestando afecto e confiança por uma mulher que deveria ser apenas objecto de delicadeza distante.
Sob o ponto de vista da posição social, a Sr.a Clay era, na opinião de Lady Russell, muito inferior, e, quanto ao carácter, ela considerava-a uma companhia muito perigosa; e uma mudança que deixasse a Sr.a Clay para trás e colocasse ao alcance da Menina Elliot uma variedade de companhias mais adequadas constituía, portanto, um objectivo primordial.
- Peço autorização para observar, Sir Walter- disse o Dr. Shepherd uma manhã no Solar de Kellynch, pousando o jornal -, que a conjuntura atual nos é muito favorável. A paz fará desembarcar os nossos oficiais da Marinha, ricos. Vão todos querer casa. Não podia haver melhor altura, Sir Walter, para escolher inquilinos, inquilinos muito responsáveis. Fizeram-se muitas fortunas respeitáveis durante a guerra. Se um almirante rico nos aparecesse, Sir Walter...
- Ele seria um homem de sorte, Shepherd- respondeu Sir Walter-, É tudo o que eu tenho a dizer. Para ele, o Solar de Kellynch seria um premio, o maior premio de todos, por mais premios que ele tivesse recebido antes, hem, Shepherd.
O Dr. Shepherdá riu-se do dito espirituoso, como sabia que devia fazer, depois acrescentou:
-Atrevo-me a afirmar, Sir Walter, que, em questões de negócios, é bom lidar com os cavalheiros da Marinha. Sei alguma coisa sobre os seus métodos de tratar de negócios, e devo dizer que eles têm idéias muito liberais e são uns ótimos inquilinos.
-Assim, Sir Walter, o que eu gostaria de sugerir é que, em consequência da propagação de quaisquer rumores sobre as suas intenções... e devemos considerar isso uma possibilidade, pois sabemos como é difícil manter as ações e os desígnios de uma parte do mundo secretos da observação e da curiosidade da outra... a nobreza tem os seus inconvenientes; eu, John Shepherd, posso esconder todas questões de família porque ninguém vai achar que vale a pena perder tempo a observar-me. Mas há olhares fixos em Sir Walter Elliot a que talvez seja muito difícil escapar; e, assim, atrevo-me a dizer que não ficaria muito surpreendido se, mesmo com toda a nossa cautela, qualquer rumor sobre a verdade viesse a transpirar. Nesta suposição, como eu ia dizer, uma vez que haver , sem dúvida, pretendentes, eu penso que qualquer dos comandantes da Marinha abastados merecerá ser considerado; e peço autorização para acrescentar que, em qualquer altura, eu estaria aqui dentro de duas horas, para lhe poupar o trabalho de responder.
Sir Walter limitou-se a acenar com a cabeça em sinal de concordância. Mas, pouco depois, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro da sala, comentou, num tom sarcástico:
- Suponho que muito poucos cavalheiros da Marinha não se sentiriam surpreendidos ao encontrarem-se numa casa desta natureza.
- Sem dúvida, olhariam em volta e dariam graças à sua sorte - disse a Sra. Clay; pois a Sra. Clay estava presente; o pai tinha-a trazido consigo, uma vez que nada fazia tão bem à saúde da Sra. Clay como um passeio até Kellynchá-, mas concordo absolutamente com o meu pai e também acho que um oficial de Marinha seria um ótimo inquilino. Eu já conheci muitos; e, além da sua liberalidade, eles são muito arrumados e cuidadosos!
-Estes seus valiosos quadros, Sir Walter, se decidisse deixá-los cá, estariam perfeitamente seguros. Tudo o que está dentro e à volta da casa seria extremamente bem cuidado! Os jardins e os bosques seriam tão bem tratados como são agora. Não tenha receio, Menina Elliot, de que o seu belo jardim seja negligenciado.
- Quanto a isso - retorquiu friamente Sir Walter-, supondo que me deixo convencer a alugar a minha casa, certamente ainda não tomei uma decisão sobre os privilégios que o aluguer acarretará. Não estou particularmente interessado em beneficiar um inquilino. O parque estaria à sua disposição, claro, e poucos oficiais da Marinha, ou quaisquer outros homens, terão usufruído de tamanha extensão; mas as restrições que poderei impor quanto à utilização dos terrenos de recreio são outra coisa; não gosto da idéia de poderem andar sempre nos meus bosques, e aconselharia a Menina Elliot a tomar precauções a respeito do seu jardim. Garanto-vos que me sinto muito pouco disposto a conceder um favor especial a um inquilino do Solar de Kellynch, seja ele da Marinha ou da Infantaria.
Após uma breve pausa, o Dr. Shepherd atreveu-se a dizer:
- Em todos estes casos, existem costumes estabelecidos que tornam tudo mais claro e simples entre o senhorio e o inquilino.
- Os seus interesses, Sir Walter, estão em boas mãos. Pode contar comigo para garantir que nenhum inquilino terá mais do que aquilo a que tem direito. Atrevo-me a dizer que John Shepherd será muito mais zeloso dos bens de Sir Walter Elliot do que ele próprio poderia ter.
Nesta altura, Anne falou:
- Julgo que a Marinha, que tanto tem feito por nós, possui, pelo menos, os mesmos direitos a todos os confortos e privilégios que uma casa pode dar do que qualquer outra categoria de homens. Temos todos de concordar em que os marinheiros trabalham muito para conseguir obter o seu conforto.
- Lá isso é verdade. O bem da verdade o que a Menina Anne diz - foi a resposta do Dr. Shepherd.
E:
- Oh, com certeza - foi a da filha.
Mas o comentário que Sir Walter fez, pouco depois, foi:
- Esta profissão tem a sua utilidade, mas eu lamentaria ver um amigo meu ingressar nela.
- Quê?! - foi a resposta, com um olhar de surpresa.
- Sim, há dois pontos em que ela me desagrada; tenho duas fortes objeções em relação a ela. Em primeiro lugar, por ser um meio de elevar pessoas de nascimento obscuro a lugares de imerecida distinção e de lhes conceder honras com que os seus pais ou avós nunca sonharam; e, em segundo lugar, porque destrói a juventude e a força de um homem; tenho reparado nisso toda a minha vida. Na Marinha, mais do que em qualquer outra carreira, um homem corre um maior risco de ser insultado pela promoção de alguém com cujo pai o seu não se teria dignado a falar, ou de se tornar, ele próprio e prematuramente, objeto de repulsa.
- Um dia, na Primavera passada, em Londres, vi-me na companhia de dois homens, exemplos flagrantes do que estou a dizer, Lorde St. Ives, cujo pai, como todos sabemos, foi pároco de aldeia, sem ter sequer pão para comer; tive de ceder o meu lugar a Lorde St. Ives, e a um certo almirante Baldwin, um personagem com o aspecto mais deplorável que se pode imaginar, com o rosto da cor do mogno, extremamente áspero e encarquilhado, todo ele cheio de sulcos e rugas, nove cabelos grisalhos num lado e apenas um pouco de pó no topo. Por amor de Deus, quem é aquele velho?, perguntei eu a um amigo que estava próximo... Sir Basil Morele... Velho!", exclamou Sir Basil, É o almirante Baldwin. Que idade pensas que ele tem?" Sessenta, disse eu, ou talvez sessenta e dois.
- Quarenta-, respondeu Sir Basil, quarenta, não mais. - Imaginem o meu espanto; não esquecerei facilmente o almirante Baldwin. Nunca vi um exemplo tão terrível do que uma vida passada no mar pode provocar; e, até certo ponto, passa-se o mesmo com todos eles; andam de um lado para o outro, expostos a todos os climas, a todas as intempéries, até se tornarem desagradáveis à vista. Uma pena que não apanhem uma pancada na cabeça antes de atingirem a idade do almirante Baldwin.
- Sir Walter- exclamou a Sra. Clay -, isso é ser muito severo. Tenha um pouco de misericórdia pelos pobres homens. Não nascemos todos para ser belos. O certo que o mar não contribui para a beleza; os marinheiros envelhecem prematuramente. Tenho-o observado; eles perdem muito cedo o ar de juventude. Mas não acontece o mesmo em muitas outras profissões, talvez com a maior parte delas? Os soldados no serviço ativo não têm melhor sorte; e mesmo nas profissões mais calmas há um esforço mental, se não físico, que raramente deixa o aspecto do homem sujeito apenas ao efeito natural do tempo. O advogado trabalha arduamente e preocupa-se; o médico tem de estar a pé a qualquer hora e tem de andar debaixo de todas as intempéries; e até o sacerdote - ela fez uma pausa por um momento para refletir sobre o que poderia afetar o sacerdote -, e até o sacerdote, sabe, tem de entrar em quartos infectados e expor a sua saúde e o seu aspecto a todos os danos de um ambiente contaminado.
- De fato, há muito que estou convencida de que, embora todas as profissões sejam necessárias e honrosas, só os que não são obrigados a exercer nenhuma profissão, os que podem ter uma vida regular, no campo, escolhendo os seus próprios horários, fazendo o que querem e vivendo dos seus rendimentos, sem o tormento de tentarem conseguir mais, só eles conservam a bênção da saúde e do bom aspecto durante o máximo de tempo possível; não conheço nenhuma outra categoria de homens que não perca qualquer coisa da sua beleza quando deixam de ser jovens.
Parecia que o Dr. Shepherd, na sua ansiedade de assegurar que Sir Walter aceitasse um oficial da Marinha como inquilino, tinha tido o dom da previsão; pois o primeiro pretendente à casa foi o almirante Croft, que ele conheceu pouco depois, ao assistir a uma sessão do Tribunal em Taunton; na realidade, ele recebera uma informação sobre o almirante Croft de um correspondente de Londres. Segundo o relatório que se apressou a ir fazer a Kellynch, o almirante Croft era oriundo de Somersetshire e, tendo adquirido uma bela fortuna, desejava instalar-se na sua região: ele tinha vindo a Taunton ver alguns dos locais anunciados nos arredores, os quais, contudo, não lhe tinham agradado; ao ouvir acidentalmente - (era tal como ele dissera, comentou o Dr. Shepherd, os negócios de Sir Walter não podiam ser mantidos secretos)-, ao ouvir acidentalmente falar na possibilidade de o Solar de Kellynch vir a ser alugado e ao saber da sua (do Dr. Shepherd) ligação com o proprietário, apresentara-se a ele para fazer algumas perguntas práticas e tinha, durante uma longa conversa, expressado uma inclinação pelo local, tanto quanto pode sentir um homem que o conhecesse apenas pela descrição; e dera, na descrição pormenorizada de si próprio, todas as provas de vir a ser um bom inquilino, muito responsável.
- E quem é o almirante Croft? - foi a pergunta fria e desconfiada de Sir Walter.
O Dr. Shepherd respondeu que era de uma família nobre e mencionou uma localidade; e Anne, após a pequena pausa que se seguiu, acrescentou:
- Ele é contra-almirante. Esteve na batalha de Trafalgar e, desde então, tem estado nas Índias Ocidentais; foi destacado para lá, creio, há vários anos.
- Então, suponho - comentou Sir Walter- que o rosto dele é tão avermelhado como os canhões e as capas das librés dos meus criados.
O Dr. Shepherd apressou-se a assegurar-lhe que o almirante Croft era um homem bem-parecido, robusto e alegre, um pouco estragado pelo tempo, é certo, mas não muito; e um perfeito cavalheiro em todas as suas ideias e comportamentos – não deveria levantar o menor problema quanto às condições -, só queria uma casa confortável, e o mais depressa possível sabia que teria de pagar pelo conforto -, sabia a quanto podia ascender a renda de uma casa mobilada - não teria ficado surpreendido se Sr. Walter tivesse pedido mais -, tinha feito perguntas sobre os terrenos - certamente gostaria de caçar neles, mas não fazia grande questão -, disse que por vezes pegava numa espingarda, mas nunca matava - um verdadeiro cavalheiro.
O Dr. Shepherd foi muito eloquente sobre o assunto, referindo toda a situação da família do almirante, o que o tornava particularmente atraente como inquilino. Era um homem casado e sem filhos; exatamente como seria desejável. Uma casa nunca era bem cuidada, observou o Dr. Shepherd, sem uma senhora; ele não sabia se a mobília não correria o mesmo perigo quando não existia uma senhora, como quando havia muitas crianças. Uma senhora, sem filhos, era a melhor forma de conservar o mobiliário em bom estado. Também tinha visto a Sra. Croft, estava ela em Taunton com o almirante e mantivera-se presente durante quase todo o tempo em que tinham discutido o assunto.
- E pareceu ser uma senhora muito bem-falante, educada e inteligente - prosseguiu ele. - Fez mais perguntas sobre a casa, sobre as condições e sobre os impostos do que o próprio almirante.
E, além disso, Sir Walter, descobri que ela tem algumas ligações familiares com esta região, tal como o marido; quero dizer que ela é irmã de um cavalheiro que viveu há alguns anos em Monkford. Meu Deus! Como é que ele se chamava? Neste momento, não me consigo recordar do nome, embora o tenha ouvido ultimamente. Penélope, minha querida, podes ajudar-me a recordar o nome do cavalheiro que vivia em Monkford... o irmão da Sra. Croft?
Mas a Sra. Clay estava tão entretida a conversar com a Menina Elliot que não pareceu ouvir.
- Não faço a mínima idéia a quem se poderá estar a referir, Shepherd; não me lembro de nenhum cavalheiro a viver em Monkford desde o tempo do velho governador Trent.
- Meu Deus! Que estranho! Um dia destes até me vou esquecer do meu próprio nome. Um nome que me é tão familiar; eu conhecia o homem tão bem de vista! Vi-o umas cem vezes; ele foi consultar-me uma vez, recordo-me, sobre a violação da sua propriedade por um dos vizinhos; um rendeiro assaltou-lhe o pomar... parede deitada abaixo... maçãs roubadas... apanhado em flagrante; e depois, contrariamente à minha opinião, fizeram um acordo amigável. E, realmente muito estranho!
Depois de esperar mais um momento, Anne disse:
- Está a referir-se ao Sr. Wentworth, suponho.
O Dr. Shepherd era todo gratidão.
- O esse mesmo o nome! O Sr. Wentworth, era esse o homem. Foi cura de Monkford, sabe, Sir Walter, há algum tempo, durante dois ou três anos. Chegou lá por volta de 1805, suponho. Certamente que se recorda dele.
- Wentworth? Oh! sim... o Sr. Wentworth, o cura de Monkford. Iludiu-me com o termo cavalheiro. Eu pensei que estivesse a falar de um homem de bens. Lembro-me de que o Sr. Wentworth não era ninguém; sem relações, não tinha nada a ver com a família Strafford. Pergunto a mim próprio como é que os nomes de muitos dos membros da nossa nobreza se tornam tão vulgares.
Ao compreender que esta ligação com os Croft não os beneficiava aos olhos de Sir Walter, o Dr. Shepherd não voltou a referi-la e insistiu, com todo o empenho, nas circunstâncias mais inquestionavelmente a seu favor; a idade, número e fortuna; a idéia que eles faziam do Solar de Kellynch, e o enorme desejo de terem o privilégio de o alugar; fazendo parecer que, para eles, a felicidade consistia em serem inquilinos de Sir Walter Elliot; um bom gosto extraordinário, seguramente, se soubessem o que Sir Walter pensava a respeito das obrigações dos inquilinos.
Ele teve êxito, porém. E, embora Sir Walter visse sempre com maus olhos qualquer pessoa que tencionasse habitar a casa, e os considerasse extremamente afortunados por terem sido autorizados a alugá-la por uma renda elevadíssima, deixou-se convencer e permitiu que o Dr. Shepherd avançasse com o acordo, tendo-o autorizado a encontrar-se com o almirante Croft, que ainda estava em Taunton, e a marcar um dia para ele ver a casa.
Sir Walter não era muito sensato, mas tinha a experiência do mundo suficiente para saber que não seria fácil encontrar um inquilino menos exigente, em todos os aspectos essenciais, do que o almirante Croft prometia ser. Até aí ele compreendia; e a posição do almirante, que era suficientemente elevada, mas não demasiado, servia de um pouco mais de consolação para a sua vaidade.
- Aluguei a minha casa ao almirante Croft – soaria extremamente bem; muito melhor do que um simples Sr.; um Sr . (exceto, talvez, uma meia dúzia no país) precisa sempre de uma explicação. Um almirante falava da sua própria importância e, ao mesmo tempo, não poderia fazer que um baronete parecesse insignificante a seu lado. Em todas as negociações e conversas, Sir Walter Elliot tinha de ter sempre a primazia.
Nada podia ser feito sem a opinião de Elizabeth; mas ela estava com cada vez mais vontade de mudar de casa e ficou satisfeita por o assunto se poder resolver rapidamente graças a um inquilino que aparecera de repente; não pronunciou uma só palavra que suspendesse a decisão.
O Dr. Shepherd recebeu plenos poderes para agir; e, assim que o assunto chegou ao fim, Anne, que fora a ouvinte mais atenta, saiu da sala para procurar o alívio do ar fresco para as suas faces coradas; e, enquanto passeava ao longo do seu bosque predileto, disse, com um suave suspiro:
- Daqui a alguns meses, ele talvez ande a passear por aqui.
Não era o Sr. Wentworth, o antigo cura de Monkford como as aparências poderiam levar a supor, mas sim um capitão Frederick Wentworth, seu irmão, que, tendo sido promovido a comandante em sequência de uma batalha ao largo de São Domingos e não tendo sido imediatamente destacado, viera para Somersetshire no Verão de 1806; e, como já não tinha os pais vivos hospedara-se, durante meio ano, em Monkford. Ele era, nessa altura, um jovem esplêndido, muito inteligente, ativo e brilhante; e Anne era uma menina extremamente bonita, meiga, modesta e com bom gosto e bons sentimentos. Metade da atração sentida por cada uma das partes teria bastado, pois ele não tinha nada que fazer e ela não tinha praticamente ninguém para amar, mas a confluência de tão abundantes qualidades não podia falhar. Foram-se conhecendo gradualmente e, depois de se conhecerem, apaixonaram-se rápida e profundamente. Seria difícil dizer quem vira a maior perfeição no outro, ou qual deles e sentira mais feliz, se ela a receber as suas declarações e respostas, se ele ao vê-las serem aceites.
Seguiu-se um curto período de extasiante felicidade, um período mesmo muito curto. Os problemas não tardaram em surgir.
Sir Walter, ao ser-lhe feito o pedido, sem, na realidade negar a sua autorização nem dizer que nunca seria possível dá-la, manifestou o seu desacordo através de um enorme espanto, uma enorme frieza, um enorme silêncio e uma resolução declarada de não fazer nada pela filha. Ele achava que era uma união muito degradante; e Lady Russell, embora com um orgulho mais comedido e desculpável, considerava-a extremamente infeliz.
Anne Elliot, com todas as vantagens que a classe, a beleza e a inteligência lhe conferiam, desperdiçar a vida aos 19 anos; envolver-se aos 19 anos num noivado com um jovem que não tinha algo a recomendá-lo a não ser ele próprio, e sem esperança de alguma vez ser rico; pelo contrário, correndo o risco de uma profissão incerta, e sem ligações que garantissem a sua promoção naquela profissão, seria, de fato, um desperdício em que lhe era doloroso pensar! Anne Elliot, tão jovem, conhecida de tão pouca gente, arrebatada por um desconhecido sem ligações nem fortuna; ou, melhor, mergulhada num estado da mais penosa e preocupante dependência que lhe destruiria a juventude! Isso não iria acontecer, se ela conseguisse evitá-lo, através de uma interferência sincera de amizade e dos conselhos de alguém que tinha quase um amor e direitos de mãe.
O capitão Wentworth não possuía fortuna. Tinha tido sorte na sua profissão, mas gastara com prodigalidade o que ganhara facilmente, não guardara nada. Mas estava confiante de que em breve seria rico - cheio de vida e de entusiasmo, ele sabia que em breve teria um barco e que em breve seria colocado num posto que o conduziria a tudo o que desejava. Sempre tivera sorte e sabia que continuaria a ter. Tal confiança, poderosa no seu entusiasmo e encantadora pelo modo como era expressa, deveria ter sido suficiente para Anne; mas Lady Russell via a situação de um modo diferente. O temperamento otimista dele e a sua ousadia de espírito funcionavam de um modo muito diferente nela. Ela via-os como uma intensificação do mal. Só tornavam o carácter dele ainda mais perigoso. Ele era brilhante, obstinado.
Lady Russell gostava pouco de ditos espirituosos e, para ela, tudo o que se aproximasse da imprudência era um horror.
Ela censurava a união sob todos os pontos de vista.
Estes sentimentos produziram uma oposição que Anne não conseguiu combater. Jovem e meiga como era, talvez lhe fosse possível suportar a má vontade do pai, talvez conseguisse mesmo passar sem uma palavra ou olhar amável por parte da irmã - mas Lady Russell, que ela sempre tinha amado e em quem sempre confiara, não podia, com opiniões tão firmes e modos tão suaves, aconselhá-la repetidamente em vão. Ela foi levada a acreditar que o noivado era um erro - imprudente, inadequado, com poucas probabilidades de ser bem sucedido, e ela não merecia que isso acontecesse. Mas não foi por mera precaução egoísta que ela agiu, pondo-lhe termo. Se não pensasse que agia para bem dele, mais do que para seu próprio bem, ela não teria conseguido renunciar a ele. A idéia de estar a ser prudente e altruísta e de ter em mente, principalmente, o bem dele, foi a sua principal consolação no desgosto da separação – uma separação definitiva; e foi necessária toda a consolação, pois teve de enfrentar a dor adicional de o ver completamente inconformado e intransigente, magoado com uma renúncia forçada. Em consequência, ele acabara por sair do país.
Tinham mediado alguns meses entre o início e o fim da sua ligação, mas o sofrimento de Anne durou mais de alguns meses.
O seu afeto e o seu desgosto tinham, durante muito tempo, ensombrado todo o prazer da juventude; e os seus efeitos duradouros tinham sido uma perda prematura da frescura e da alegria.
Tinham-se passado mais de sete anos desde que essa pequena e triste história chegara ao fim; o tempo esmorecera muito, talvez quase todo o seu afeto por ele - mas ela tinha dependido demasiado só do tempo; não lhe fora dada qualquer ajuda sob a forma de mudança de lugar (exceto uma visita a Bath pouco depois do rompimento) nem qualquer novidade ou alargamento do círculo social. Não chegara ninguém ao círculo de Kellynch que se pudesse comparar a Frederick Wentworth, tal como ela o retinha na memória. Nos limites estreitos da sociedade que os rodeava, o seu espírito delicado e o seu gosto refinado não tinham conseguido encontrar um segundo afeto, a única cura completamente natural, feliz e suficiente na sua idade.
Quando tinha cerca de 22 anos, fora pedida em casamento pelo jovem que, pouco depois, encontrou uma mente mais dócil na sua irmã mais nova; Lady Russell lamentou a sua recusa, pois Charles Musgrove era o filho mais velho de um homem cujas propriedades e importância só ficavam atrás das de Sir Walter, e tinha um bom caráter e uma bela figura; e, embora Lady Russell tivesse desejado algo mais quando Anne tinha 19 anos, ter-se-ia regozijado ao vê-la, aos 22 tão respeitavelmente afastada do ambiente de parcialidade e injustiça da casa do pai e instalada permanentemente perto de si. Mas, neste caso, Anne não se deixou levar pelos seus conselhos; e, embora Lady Russell, segura como sempre da sua própria opinião, nunca se tivesse arrependido do passado, começou a sentir uma ansiedade que tocava as raias do desespero, de que Anne fosse tentada, por um homem de talento e meios, a entrar num estado civil para que ela a considerava particularmente dotada, com a sua afetividade e hábitos domésticos.
Elas não conheciam a opinião uma da outra, quer a sua constância ou a sua transformação, sobre a única causa do comportamento de Anne, pois o assunto nunca era referido – mas Anne, aos 27 anos, pensava de um modo muito diferente de como fora levada pensar aos 19.
Não culpava Lady Russell, não se culpava a si própria por ter seguido os seus conselhos; mas achava que, se uma jovem, em circunstâncias semelhantes, lhe viesse pedir conselhos, estes não lhe provocariam tamanho sofrimento imediato, com vista a um futuro feliz incerto. Estava convencida de que, embora tivesse sofrido todos os inconvenientes da censura em casa e toda a ansiedade própria da carreira dele, todos os prováveis receios, demoras e desilusões, teria sido mais feliz se tivesse mantido o noivado do que fora, sacrificando-o; e isto, acreditava ela, mesmo que eles tivessem sofrido a quantidade habitual, mais do que a quantidade habitual de preocupações e ansiedades, e sem ter em conta o resultado real do caso dele, o qual, afinal, acabara em prosperidade, mais cedo do que seria razoável esperar. As suas entusiásticas expectativas, toda a sua confiança tinham sido justificadas. O seu talento e entusiasmo pareceram prever e abrir o caminho da prosperidade.
Ele tinha, pouco depois do fim do noivado, sido colocado; e tudo o que ele lhe dissera que iria suceder aconteceu. Ele tinha-se distinguido e fora promovido - e agora, devido a aprisionamentos sucessivos, já devia ter uma bela fortuna. Ela só podia basear-se em registros da Marinha e nos jornais, mas não duvidava de que ele fosse rico - e, quanto à sua constância, ela não tinha motivos para supor que ele se tivesse casado.
Como Anne Elliot podia ter sido eloqüente - como, pelo menos, os seus desejos eram eloqüentes a favor de uma ligação afetuosa precoce e uma alegre confiança no futuro, em oposição àquela cautela demasiado ansiosa que parece insultar o esforço e não confiar na Providência! Ela fora forçada a ser prudente na juventude e, à medida que envelhecia, ia aprendendo o que era o romance - a seqüência natural de um início nada natural.
Com todas estas circunstâncias, recordações e sentimentos, ela não conseguia ouvir dizer que era provável que a irmã do comandante Wentworth viesse viver em Kellynch sem que a dor antiga se reavivasse; e foram necessários muitos passeios e muitos suspiros para acalmar a agitação provocada pela idéia.
Ela disse muitas vezes a si própria que era uma loucura, antes de ter conseguido dominar os nervos o suficiente para conseguir ouvir calmamente a contínua discussão sobre os Croft e os seus negócios. Foi auxiliada, porém, pela completa indiferença e aparente desinteresse das únicas três pessoas do seu círculo de amigos que conheciam o segredo do passado, que quase pareciam negar qualquer recordação do episódio. Ela reconhecia a superioridade dos motivos de Lady Russell em relação aos do pai e de Elizabeth; respeitava os seus sentimentos e a sua serenidade - mas, qualquer que fosse a sua origem, o ambiente geral de esquecimento era muito importante; e, no caso de o almirante Croft alugar realmente o Solar de Kellynch, ela regozijava-se com a convicção, por que sempre se sentira grata, de que o passado só era conhecido dessas três pessoas das suas relações, que ela sabia que nunca diriam uma palavra, e com a suposição de que, entre as dele, só o irmão com quem ele morava soubera alguma coisa sobre o seu curto noivado. Aquele irmão há muito tinha saído da região - e, sendo um homem sensato e, além disso, solteiro na altura, ela estava segura de que ele não tinha contado a ninguém.
A irmã, a Sra. Croft, estivera fora de Inglaterra, a acompanhar o marido num posto no estrangeiro, e sua própria irmã Mary, estava no colégio quando tudo acontecera, e o orgulho de uns e a delicadeza de outros nunca tinham permitido que ela viesse a saber alguma coisa depois.
Com estes apoios, ela esperava que as relações entre ela e os Croft, que certamente iriam ter lugar, uma vez que Lady Russell ainda vivia em Kellynch e Mary estava apenas a três milhas de distância, não acarretassem quaisquer embaraços.
Na manhã marcada para a visita do almirante e da Sra. Croft ao Solar de Kellynch, Anne achou muito natural dar o seu passeio diário até à casa de Lady Russell e manter-se longe até a visita ser dada por terminada; depois, achou muito natural ter pena de ter perdido a oportunidade de os conhecer.
O encontro das duas partes interessadas foi altamente satisfatório, e o assunto ficou imediatamente decidido. Ambas as senhoras estavam, à partida, interessadas num acordo, e só viram boas maneiras uma na outra; e, quanto aos cavalheiros houve uma tão grande cordialidade, uma generosidade tão confiante por parte do almirante, que Sir Walter não pôde deixar de se sentir influenciado; além disso, a garantia do Dr. Shepherd de que fora informado por terceiros de que o almirante era um modelo da boa educação tinha-o lisonjeado e suscitado nele o seu melhor e mais bem educado comportamento.
A casa, os terrenos e a mobília foram aprovados, os Croft foram aprovados, condições, prazos, tudo e toda a gente, estavam corretos; e os empregados do Dr. Shepherd começaram a trabalhar, sem lhes ter sido dada a indicação preliminar de que era possível que tivessem de alterar qualquer cláusula da escritura. Sir Walter, sem hesitação, disse que o almirante era o marinheiro mais bem-parecido que já conhecera e chegou mesmo a afirmar que, se ele tivesse sido penteado pelo seu próprio criado, não teria vergonha de ser visto com ele em qualquer lugar; e o almirante, com amável cordialidade, comentou para a mulher, ao regressarem pelo parque:
- Sempre achei que iríamos chegar a acordo, minha querida, apesar do que nos disseram em Taunton. O baronete nunca irá descobrir a pólvora, mas não parece ser má pessoa. – Elogios recíprocos, que poderiam ser considerados equivalentes.
Os Croft deveriam tomar posse do Solar de Kellynch no dia de São Miguel, e, uma vez que Sir Walter pretendia mudar-se para Bath durante o mês anterior, não havia tempo a perder para fazer os preparativos.
Lady Russell, convencida de que não seria atribuída a Anne qualquer utilidade ou importância na escolha da casa que iriam ocupar, não tinha vontade de a ver partir tão cedo e queria que ela ficasse até ela própria a levar a Bath depois do Natal; mas ela tinha já compromissos que a afastariam de Kellynch durante algumas semanas e não lhe foi possível fazer o convite que gostaria de lhe dirigir; e Anne, embora receasse o possível calor de Setembro na luminosidade de Bath e lamentasse perder a doçura e a melancolia dos meses de Outono no campo, não pensou que, afinal, queria ficar. Seria mais correto e mais sensato e, por conseguinte, menos penoso, ir com os outros.
Algo ocorreu, porém, que a fez agir de modo diferente. Mary, que andava com frequência adoentada e pensava constantemente nos seus próprios achaques, tinha o hábito de chamar Anne sempre que tinha algum problema; na altura, ela sentia-se indisposta e, prevendo que não teria um dia de saúde em todo o Outono, pediu-lhe, ou melhor, exigiu-lhe, pois não foi exatamente um pedido, que, em vez de ir para Bath, viesse para o chalé de Uppercross e lhe fizesse companhia enquanto precisasse dela.
- Eu não posso passar sem Anne - foi o argumento de Mary.
Ao que Elizabeth respondeu:
- Então é melhor Anne ficar, pois ninguém a vai querer em Bath.
Ser considerada um bem, embora num estilo pouco apropriado, é melhor do que ser rejeitada como não servindo para nada; e Anne, satisfeita por poder ser útil, satisfeita por ter algo para fazer e seguramente nada triste por continuar no campo, no seu querido campo, concordou prontamente em ficar.
Este convite de Mary pôs termo aos problemas de Lady Russell, e, pouco depois, ficou decidido que Anne só iria para Bath quando Lady Russell a levasse e, entretanto, ela ficaria dividida entre o chalé de Uppercross Cottage e a sua casa em Kellynch.
Até agora, tudo corria perfeitamente bem; mas Lady Russell ficou indignada com uma parte do plano do Solar de Kellynch quando lhe foi comunicado, e este consistia no fato de a Sra. Clay ter sido convidada para ir para Bath com Sir Walter e Elizabeth a fim de ajudar esta última nas suas tarefas. Lady Russell ficou extremamente aborrecida com este procedimento aborrecida, admirada e receosa - e a afronta que ele significava para Anne; o fato de a Sra. Clay ser considerada tão útil, enquanto Anne era posta de lado, constituía um insulto. A própria Anne já estava habituada a estas desconsiderações, mas ela sentiu a imprudência da situação tanto como Lady Russell.
Com o seu poder de observação e conhecendo bem o caráter do pai - que ela frequentemente desejava não conhecer tão bem-, tinha a percepção de que a convivência iria produzir efeitos gravíssimos para a sua família. Ela não acredita que uma idéia dessas passasse atualmente pela cabeça do pai.
A Sra.Clay tinha sardas, um dente saliente e pulsos grossos sobre os quais ele fazia constantemente comentários desagradáveis na sua ausência; mas era jovem e certamente bonita, e a sua agudeza de espírito e os seus modos agradáveis constituíam atrativos infinitamente mais perigosos do que quaisquer dotes meramente físicos.
Anne sentiu tanto a gravidade do perigo que não conseguiu deixar de chamar a atenção da irmã para ele. Ela tinha pouca esperança de êxito, mas não quis que Elizabeth, que, no caso de tal revés, seria mais digna de pena do que ela própria, tivesse motivo para a censurar por não a ter avisado. Ela falou, e pareceu apenas ofender.
Elizabeth não conseguia imaginar como é que lhe podia ocorrer uma desconfiança tão absurda; e respondeu, indignada, que ambos estavam perfeitamente conscientes da posição que cada um deles ocupava.
- A Sra. Clay - respondeu ela acaloradamente - nunca se esquece de quem é; e, como eu conheço melhor os sentimentos dela do que tu, posso garantir-te que, a respeito do casamento, eles são particularmente respeitáveis; e que ela reprova toda a desigualdade de posição social e estatuto mais energicamente do que a maior parte das pessoas. Quanto ao pai, não me parece que, ao fim de ele se ter mantido viúvo por nossa causa durante tantos anos, haja motivo para desconfiar dele agora. Se a Sra. Clay fosse uma mulher muito bela, concordo que talvez fosse um erro tê-la tanto tempo comigo; não que haja alguma coisa no mundo, tenho a certeza, que possa levar o pai a fazer um casamento abaixo da sua condição social; mas ele talvez se sentisse infeliz. Mas a pobre Sra. Clay, apesar de todas as suas qualidades, nunca poderá ser considerada toleravelmente bonita! Eu acho realmente que a estada da Sra. Clay entre nós não irá causar quaisquer problemas. Quem te ouvisse havia de pensar que nunca escutaste o pai a falar dos seus defeitos físicos, mas eu sei que já ouviste dezenas de vezes. Aqueles dentes dela!- e -Aquelas sardas!-. As sardas não me desagradam tanto como a ele; já vi rostos que não ficam desfigurados só com algumas, mas ele detesta-as. Tu já o deves ter ouvido comentar as sardas da Sra. Clay.
- Não existe praticamente defeito físico nenhum- respondeu Anne - que uns modos agradáveis não possam, a pouco e pouco, fazer esquecer.
- Eu penso de maneira muito diferente - respondeu Elizabeth, secamente -, uns modos agradáveis podem realçar uns traços bonitos, mas nunca podem alterar um rosto feio. De qualquer modo, eu tenho, neste ponto, muito mais em jogo do que qualquer outra pessoa, por isso penso que é desnecessário dares-me conselhos.
Anne fizera-o; e sentia-se satisfeita por o assunto estar encerrado, e convencida de não ter sido absolutamente em vão.
Elizabeth, embora não tivesse gostado da suspeita, talvez ficasse mais atenta. A última viagem da carruagem e dos quatro cavalos foi para levar Sir Walter, a Menina Elliot e a Sra. Clay para Bath. O grupo partiu muito bem-disposto. Sir Walter ensaiou vênias condescendentes a todos os rendeiros e camponeses que tinham recebido discretamente instruções para se mostrarem, e Anne dirigiu-se a pé, numa espécie de tranquilidade desolada, para a casa de Lady Russell, onde iria passar a primeira semana. A sua amiga não estava mais alegre do que ela. Lady Russell sentia-se muito triste com a separação da família. A respeitabilidade deles era-lhe tão cara como a sua própria, e o hábito tornara preciosa a comunicação diária com eles. Era penoso olhar para os jardins desertos, e pior ainda imaginar as novas mãos para que eles iriam passar; para fugir à solidão e à tristeza de uma aldeia tão modificada e para estar longe quando o almirante e a Sra. Croft chegassem, ela decidira fazer a sua ausência de casa coincidir com a altura em que teria de se separar de Anne.
Assim, partiram juntas, e Anne ficou no chalé de Uppercross, a primeira etapa da viagem de Lady Russell. Uppercross era uma aldeia de tamanho médio que, alguns anos antes, possuíra, integralmente, o velho estilo inglês, contendo apenas duas casas de aspecto superior ao das casas dos pequenos proprietários e camponeses - a mansão sólida e antiquada do grande proprietário com os seus muros altos, portões enormes e árvores antigas, e a casa compacta da paróquia circundada pelo seu jardim bem cuidado, com uma trepadeira e uma pereira à volta das janelas; mas, quando o filho do proprietário se casou, uma das casas de lavoura sofrera melhoramentos e transformara-se num chalé para os noivos; e o chalé de Uppercross, com a sua varanda, as portas de vidro e outros adornos, tinha tantas probabilidades de atrair o olhar do viajante como o aspecto mais sólido e majestoso da Casa Grande, a cerca de meio quilometro de distância.
Anne hospedara-se frequentemente ali. Ela conhecia os hábitos de Uppercross tão bem como os de Kellynch. As duas famílias encontravam-se tão frequentemente, tinham tanto o hábito de entrar e sair das casas uns dos outros a qualquer hora, que ela ficou um tanto surpreendida ao encontrar Mary sozinha, mas, se encontrava só, era certo estar adoentada e deprimida. Embora fosse mais prendada do que a irmã mais velha, Mary não tinha a inteligência e o temperamento de Anne. Quando se sentia bem, feliz e rodeada de atenções, ela tinha um ótimo humor e uma excelente disposição; mas a mais leve indisposição deixava-a completamente abatida; não possuía quaisquer recursos para suportar a solidão e, tendo herdado um quinhão considerável do orgulho dos Elliot, tinha muita tendência para acrescentar a todos os outros sofrimentos a angústia de se sentir abandonada e desprezada. Fisicamente, era inferior às duas irmãs e, mesmo no auge da frescura, alcançara apenas a distinção de ser uma menina engraçada. Estava agora deitada no sofá desbotado da bonita salinha de visitas, cuja mobília, outrora elegante, se estragara gradualmente sob a influência de dois verões e duas crianças; ao ver Anne, saudou-a com:
- Até que enfim que chegaste! Já estava a pensar que nunca mais te via. Estou tão doente que mal consigo falar. Não vi ninguém a manhã inteira.
- Lamento vir encontrar-te doente - respondeu Anne. Na quinta-feira mandaste dizer-me que estavas bem!
- Sim eu disse que estava bem; digo sempre isso; mas, na altura, estava longe de me sentir bem; e acho que nunca me senti tão doente em toda a minha vida como esta manhã... tenho a certeza de que não estou em condições de ficar sozinha.
Imagina que, de repente, tinha um ataque tão terrível que não conseguia tocar a campainha! Então Lady Russell não quis descer. Eu penso que ela, durante todo este verão, não veio cá a casa três vezes.
Anne deu a resposta apropriada e perguntou-lhe pelo marido.
- Oh! Charles foi caçar. Não o vejo desde as sete horas.
Insistiu em ir, mesmo sabendo como eu estava doente. Disse que não se demoraria muito; mas ainda não voltou, e é quase uma hora. Garanto-te que não vi ninguém durante toda a manhã.
- Os teus garotos não vieram fazer-te companhia?
- Sim, enquanto consegui suportar o barulho deles; mas são tão irrequietos que me fazem mais mal do que bem. O pequeno Charles não me obedece em nada, e Walter está a ficar na mesma.
- Bem, agora vais ficar boa depressa - respondeu Anne, num tom alegre. - Tu sabes que, quando chego, ficas sempre curada. Como vão os teus vizinhos da Casa Grande?
- Não te posso dar notícias deles. Não vi nenhum deles hoje, exceto o Sr. Musgrove, que parou e falou através da janela, mas sem descer do cavalo; e, embora eu lhe tivesse dito que estava muito doente, nenhum dos outros veio visitar-me. Suponho que essa visita não fazia parte dos planos das Meninas Musgrove, e elas nunca os alteram.
- Talvez ainda as vejas, antes do fim da manhã. Ainda é cedo.
- Não estou interessada em vê-las, garanto-te. Elas conversam e riem-se demasiado para o meu gosto. Oh! Anne, eu estou tão doente! Foi muito pouco amável da tua parte não teres vindo na quinta-feira.
- Minha querida Mary, lembra-te de que me mandaste dizer que te sentias muito bem! Escreveste uma carta muito alegre, dizendo que estavas de perfeita saúde e que não tinhas pressa em que eu viesse; e, sendo assim, deves saber que eu queria ficar junto de Lady Russell até ao último momento; além disso, para além dos meus sentimentos em relação a ela, tenho andado realmente muito ocupada, tenho tido tanto que fazer que não teria sido possível deixar Kellynch mais cedo.
- Deus do céu! Que é que tu podias ter para fazer?
- Muita coisa, garanto-te. Mais do que me lembro de momento, mas digo-te algumas. Tenho estado a fazer um duplicado do catálogo dos livros e dos quadros do pai. Estive várias vezes no jardim com Mackenzie, a tentar saber e a fazê-lo entender quais as plantas de Elizabeth que são para Lady Russell. Tive as minhas coisas para organizar... livros e música para separar, todas as minhas malas para desfazer e voltar a fazer, por não ter compreendido na altura o que deveria ir nas carroças. E tive de fazer uma coisa, bem mais triste, Mary: ir a quase todas as casas da paróquia, como uma espécie de despedida. Disseram-me que eles queriam que o fizesse. E todas essas coisas tomam muito tempo.
- Oh, bem! - E após uma pequena pausa: - Mas tu ainda não me perguntaste nada sobre o nosso jantar em casa dos Poole ontem.
- Então foste. Não te perguntei porque supus que te tinhas visto obrigada a desistir de ir.
- Fui, sim. Ontem senti-me muito bem; até esta manhã estava perfeitamente bem. Teria parecido estranho não ir.
- Fico muito satisfeita por saber que te sentias bem, e espero que tenha sido uma festa agradável.
- Nada de especial. Já se sabe de antemão o que será o jantar e quem lá vai estar. E é tão pouco confortável não ter a nossa própria carruagem. O Sr. e a Sra. Musgrove levaram-nos, e íamos apertadíssimos! Eles são os dois enormes e ocupam tanto espaço. E o Sr. Musgrove senta-se sempre à frente. E eu ia muito apertada no banco de trás com Henrietta e Louisa. É possível que a minha doença de hoje seja devida a isso.
Um pouco mais de perseverança, de paciência e de alegria forçada por parte de Anne produziram quase uma cura em Mary.
Ao fim de pouco tempo, ela conseguiu sentar-se direita no sofá e começou a acalentar a esperança de se poder levantar à hora do almoço. Depois, tendo-se esquecido de pensar na doença, dirigiu-se ao outro extremo da sala para arranjar um ramo de flores; seguidamente comeu as suas carnes frias; e, por fim, sentiu-se suficientemente bem para propor um pequeno passeio.
- Onde havemos de ir? - perguntou quando estavam prontas. Suponho que não queres ir à Casa Grande antes de elas te virem visitar, pois não?
- Não tenho a mínima objeção a esse respeito – respondeu Anne. -Eu nunca pensaria em fazer cerimônia com pessoas que conheço tão bem como a Sra. e as Meninas Musgrove.
- Oh!, mas elas tinham obrigação de te vir visitar o mais cedo possível. Elas deviam saber a atenção que te devem como minha irmã. No entanto, agora, vamos conversar um pouco com elas e depois podemos dar o nosso passeio à vontade.
Anne sempre considerara aquele estilo de relações altamente imprudente; mas tinha deixado de se lhe opor, pois acreditava que, embora houvesse de ambos os lados motivos permanentes de ofensa, nenhuma das famílias poderia passar sem a outra.
Assim, dirigiram-se à Casa Grande, onde se sentaram durante meia hora na antiquada sala quadrada com uma carpete pequena e o chão brilhante, a que as filhas da casa estavam, a pouco e pouco, a dar um ar de confusão com um piano, uma harpa, floreiras e mesinhas colocadas por todo o lado. Oh!, se os originais dos retratos que ornamentavam as paredes revestidas de madeira, se os cavalheiros trajados de veludo castanho e as senhoras de cetim azul pudessem ver o que se passava, se tivessem consciência de uma tal derrocada da ordem e da arrumação! Os próprios retratos pareciam ter os olhos muito abertos de espanto.
Os Musgrove, tal como as suas casas, encontravam-se num estado de mudança, talvez de aperfeiçoamento. O pai e mãe eram do velho estilo inglês, e os jovens, do novo. O Sr. e Sr.a Musgrove eram pessoas muito boas, amáveis e hospitaleiras, não muito instruídas e nada elegantes. Os filhos tinham mentes e modos mais modernos. A família era numerosa; mas os únicos filhos crescidos, com exceção de Charles, eram Henrietta e Louisa, jovens de 19 e 20 anos que tinham trazido de um colégio de Exeter os dotes habituais e agora, tal como milhares de outras jovens, viviam uma vida elegante, feliz e alegre. As suas roupas eram requintadas, os seus rostos bastante bonitos, a sua disposição alegre, os seus modos desembaraçados e agradáveis; eram apreciadas em casa e estimadas fora dela.
Anne sempre as considerara entre as pessoas mais alegres que conhecia; mesmo assim, salva, como todos nós, por uma confortável sensação de superioridade que nos leva a não desejarmos trocar a nossa vida pela de outros, ela não teria trocado a sua mente mais elegante e culta por todas as diversões delas; e não lhes invejava nada, a não ser aquela aparente compreensão, aquele afeto mútuo bem-humorado que ela conhecera tão pouco com qualquer das suas irmãs.
Foram recebidas com grande cordialidade. Parecia correr tudo bem na família da Casa Grande, que era geralmente, como Anne bem sabia, quem menos censuras merecia. A meia hora de conversa decorreu de um modo bastante agradável; e, no final, ela não ficou surpreendida com o fato de as duas Meninas Musgrove as acompanharem no passeio, a convite de Mary.
Anne não precisara desta visita a Uppercross para saber que uma mudança de um grupo de pessoas para outro, embora a uma distância de apenas três milhas, inclui muitas vezes uma mudança total nas conversas, opiniões e idéias.
Ela nunca estivera lá hospedada sem que isso lhe viesse à mente, nem sem desejar que outros Elliot tivessem a mesma oportunidade de ver como eram ali desconhecidos e irrelevantes os assuntos que no Solar de Kellynch eram considerados de tão grande interesse; no entanto, com toda esta experiência, ela achava que lhe era necessário aprender mais outra lição sobre a arte de conhecer a nossa própria insignificância fora do nosso círculo - pois, certamente vindo como ela viera, extremamente preocupada com o assunto que tinha ocupado completamente as duas casas de Kellynch durante tantas semanas, ela esperara mais curiosidade e simpatia do que a que encontrou nos comentários do Sr. e da Sra. Musgrove, feitos em ocasiões diferentes, mas de conteúdo muito semelhante:
- Então, menina Anne, Sir Walter e a sua irmã foram-se embora; em que parte de Bath pensa que eles se irão instalar? - E isto dito sem que esperasse resposta, ou nas palavras adicionais das jovens.- Eu espero que nós passemos o Inverno em Bath; mas lembre-se, papá, se formos, queremos ficar num local bem situado... nada de Queen Squares! Ou ainda no ansioso remate de Mary.
- Não há dúvida de que ficarei muito bem aqui, quando todos vós estiverdes felizes em Bath! A única coisa que ela podia fazer era, de futuro, evitar tais desilusões e pensar, com maior gratidão, na extraordinária bênção de ter uma amiga verdadeira e compreensiva como Lady Russell. Os Musgrove tinham a sua própria caça para proteger e destruir; os seus próprios cavalos, cães e jornais para se entreterem, e as mulheres ocupavam-se todo o dia com todos os outros assuntos comuns do governo da casa, vizinhos, roupas, danças e música.
Ela achava muito apropriado que todas as comunidades sociais ditassem os seus temas de conversa; e esperava, dentro em breve, ser um membro válido daquela para que fora transplantada. Com a perspectiva de passar pelo menos dois meses em Uppercross, era necessário que a sua imaginação, a sua memória e todas as suas idéias se revestissem o mais possível deste ambiente. Ela não receava esses dois meses.
Mary era mais simpática e fraternal do que Elizabeth, e mais permeável à sua influência; e não havia nada no chalé que lhe provocasse desconforto. Ela dava-se bem com o cunhado e encontrava nas crianças, que gostavam quase tanto dela como da mãe e a respeitavam muito mais, um objeto de interesse, divertimento e saudável exercício físico.
Charles Musgrove era educado e amável; em bom senso e temperamento, ele era indubitavelmente superior à mulher; mas não possuía quaisquer atrativos, poder de conversação ou graça que tornassem perigosa a recordação do passado em que tinham estado envolvidos; ao mesmo tempo, porém, Anne pensava, tal como Lady Russell, que um casamento menos desigual talvez lhe tivesse sido muito benéfico; e que uma mulher verdadeiramente compreensiva talvez tivesse conferido mais energia à sua personalidade e mais utilidade, racionalidade e elegância aos seus hábitos e ocupações.
Assim, ele não fazia nada com muito zelo, a não ser praticar desporto; desperdiçava o tempo, sem o benefício da leitura ou de qualquer outra coisa. Era uma pessoa muito bem-disposta, que não parecia afetada pelas depressões ocasionais da mulher; aturava-a com uma paciência que surpreendia Anne; e, de um modo geral, embora houvesse por vezes uma discordância (em que tomava mais parte do que desejaria, pois ambos apelavam para ela), eles poderiam ser considerados um casal feliz. Estavam sempre em total concordância no desejo de terem mais dinheiro e na esperança de o receber como oferta do pai dele; mas aqui, como na maior parte das questões, ele tinha a superioridade, pois, enquanto Mary achava que era lamentável que o pai não lhes desse o dinheiro, ele respondia sempre que o pai tinha muitas outras coisas em que gastar o dinheiro, e o direito de o gastar como quisesse.
Quanto à educação dos filhos, a teoria dele era muito melhor do que a da mulher, e a prática não era tão má.
- Eu podia educá-los muito bem, se não fosse a interferência de Mary. - Era o que Anne o ouvia muitas vezes dizer, e achava que, em grande parte, ele tinha razão.
Mas quando, por sua vez, ouvia a crítica de Mary: - Charles estraga as crianças e eu não consigo metê-los na ordem. Ela não se sentia tentada a dizer:
-É verdade. Uma das menos agradáveis circunstâncias da sua estada ali era ser alvo da confiança de todas as partes e conhecer demasiado os segredos dos queixosos em ambas as casas. Sabendo que ela tinha influência sobre a irmã, era-lhe continuamente pedido que a exercesse, ou, pelo menos, eram-lhe feitas alusões nesse sentido, para além do que era realista.
- Gostava que convencesses Mary a não se imaginar sempre doente - era o pedido de Charles. E, num tom de infelicidade, Mary dizia:
- Acho que Charles, mesmo que me visse a morrer, pensaria que eu não tenho nada. Tenho a certeza, Anne, de que, se quisesses, podias convencê-lo de que estou realmente doente... muito pior do que eu própria estou disposta a admitir.
Mary dizia:
- Detesto mandar as crianças para a Casa Grande, embora a avó esteja sempre ansiosa por vê-los; ela mima-os tanto e faz-lhes todas as vontades, dá-lhes tanta porcaria e guloseimas que eles, quando voltam, ficam doentes e insuportávei o resto do dia. - E a Sr.a Musgrove aproveitou a primeira oportunidade de se encontrar a sós com Anne para dizer:
- Oh! Menina Anne, quem me dera que a Sra. Charles tratasse um pouco as crianças como a menina faz. Consigo, eles ficam muito diferentes! Mas a verdade é que, de um modo geral, são tão mimados! É uma pena que não consiga fazer que a sua irmã os eduque melhor. São crianças bonitas e saudáveis,pobrezinhas, sem qualquer favor; mas a Sra. Charles não sabe educá-los! Meu Deus, como eles são irrequietos às vezes! Posso garantir-lhe, Menina Anne, isso faz que eu não queira que eles venham a nossa casa com tanta frequência como, de outro modo, gostaria. Creio que a Sra. Charles não está muito satisfeita comigo por não os convidar mais vezes; mas a Menina sabe como é desagradável estar com crianças que somos obrigados a repreender constantemente... não faças isto, não faças aquilo... e que só dando-lhes mais bolos do que eles devem comer é que conseguimos que se comportem toleravelmente.
Além disso, Mary disse-lhe ainda:
- A Sra. Musgrove pensa que todos os seus criados são tão bons que seria alta traição pôr isso em causa; mas eu tenho a certeza, sem qualquer exagero, de que a criada de cima e a lavadeira, em vez de fazerem o seu trabalho, passam o dia a passear pela aldeia. Eu encontro-as em todo o lado; e é raro ir ao quarto das crianças sem dar com alguma delas. Se Jemina não fosse a pessoa mais fiel e disciplinada do mundo, elas estragá-la-iam, pois ela disse-me que estão sempre a convidá-la para ir passear com elas.
E, por parte da Sra. Musgrove, a conversa foi:
- Eu tenho como norma nunca interferir na vida da minha nora, pois sei que isso não é correto; mas digo-lhe a si, Menina Anne, porque talvez possa endireitar as coisas, que não tenho muita boa opinião da ama das crianças da Sar. Charles; ouço histórias estranhas sobre ela; anda sempre a passear; e, pelo que eu própria vi, ela é uma senhora tão bem vestida que consegue estragar qualquer criada que esteja perto dela. A Sra. Charles gosta muito dela, eu sei, mas estou a dizer-lhe isto para que se mantenha atenta; assim, se vir alguma coisa que não esteja bem, não deve coibir-se de o dizer.
Noutra altura, foi a queixa de Mary de que a Sra. Musgrove se recusava a dar-lhe a precedência que lhe era devida quando jantavam na Casa Grande com outras famílias; e ela não via qualquer motivo para ser tão desconsiderada, ao ponto de perder o seu lugar. E um dia, quando Anne passeava só com as Meninas Musgrove, uma delas, depois de falar de posição social, pessoas de posição social e inveja de posição social, disse:
- Não tenho qualquer escrúpulo em comentar consigo o fato de algumas pessoas serem tolas a respeito do lugar que devem ocupar, porque toda a gente sabe como Anne dá pouca importância a essas coisas; mas eu gostava que alguém dissesse a Mary que seria muito melhor que ela não fosse tão obstinada, especialmente que não quisesse ir sempre à frente da mamãe. Ninguém põe em dúvida que ela tenha o direito de precedência em relação à mamãe, mas seria mais simpático da sua parte não estar sempre a insistir nesse fato. Não que a mamãe se preocupe com isso, mas eu sei que muitas pessoas estão a reparar.
Como é que Anne iria resolver todos estes assuntos? Ela pouco podia fazer, para além de escutar pacientemente, amenizar as queixas e desculpar uns frente aos outros; dar-lhes conselhos sobre a paciência necessária para conviverem com vizinhos tão próximos, realçando os conselhos que eram para bem da sua irmã.
Em todos os outros aspectos, a visita começou e prosseguiu muito bem. A sua própria disposição melhorou com a mudança de local e de assunto, só por se ter afastado três milhas de Kellynch.
Os achaques de Mary diminuíram devido ao fato de ter uma companheira constante; e os contatos diários com a outra família constituía até uma vantagem, desde que não houvesse neles superioridade afetada nem confidências, nem interrompessem o trabalho no chalé. Eram levados a cabo até ao limite, pois elas encontravam-se todas as manhãs e raramente passavam um serão longe umas das outras; mas ela achava que as coisas não correriam tão bem sem as respeitáveis figuras do Sr. e da Sra. Musgrove nos locais habituais, nem sem a conversa, o riso e as canções das duas filhas. Ela tocava bastante melhor do que qualquer das Meninas Musgrove; mas, não tendo voz, não sabendo tocar harpa e não possuindo uns pais babados que a escutassem, deliciados, raramente lhe pediam que tocasse e, quando o faziam, ela sabia que era só por delicadeza ou para permitir que as outras descansassem. Ela sabia que, quando tocava, dava prazer apenas a si própria; mas esta não era uma sensação nova: com exceção de um breve período da sua vida, desde os 14 anos, desde que perdera a sua querida mãe, ela não conhecia a felicidade de ser escutada ou encorajada por uma apreciação justa ou um verdadeiro bom gosto. Na música, habituara-se a sentir-se só no mundo; e a afetuosa parcialidade do Sr. e da Sra. Musgrove em relação à execução das filhas e a sua total indiferença pela de qualquer outra pessoa causavam-lhe muito mais satisfação por causa delas do que tristeza por si própria.
Por vezes, vinham juntar-se outras pessoas ao grupo reunido na Casa Grande. A vizinhança não era numerosa, mas os Musgrove eram visitados por toda a gente e davam mais jantares e tinham mais visitas, convidadas ou ocasionais, do que qualquer outra família. Eles eram muito mais conhecidos e estimados. As meninas adoravam dançar, e os serões terminavam, ocasionalmente, com um pequeno baile improvisado. Havia uma família de primos a pouca distância de Uppercross, em circunstâncias menos abastadas, que estavam dependentes dos Musgrove para todas as suas diversões; eles podiam aparecer em qualquer altura, ajudar a tocar qualquer coisa ou dançar em qualquer lado; e Anne, que preferia o trabalho de músico a uma ocupação mais ativa, tocava músicas populares durante horas seguidas; uma amabilidade que, mais do que qualquer outra coisa, chamou a atenção do Sr. e da Sra. Musgrove para o seu talento musical e provocava frequentemente um elogio:
- Muito bem, Anne! Muito bem! Meu Deus! Como esses seus dedinhos voam!
Assim se passaram as primeiras três semanas. Chegou o dia de São Miguel, e o coração de Anne estava de novo em Kellynch.
Uma casa amada entregue a outrem; todos os preciosos aposentos e móveis, bosques e paisagens começavam a conhecer outros olhos, outros pés e outras mãos!
No dia 29 de Setembro, ela não conseguiu pensar praticamente em mais nada; à noite, Mary, quando estava a anotar o dia do mês, exclamou:
- Deus do Céu! Não é hoje que os Croft devem ter chegado a Kellynch? Ainda bem que não pensei nisso antes. Como este pensamento me deprime!
Os Croft instalaram-se com a eficiência típica da Marinha, e era necessário visitá-los. Mary lamentou essa obrigação. Ninguém fazia idéia de como ela iria sofrer. Adiaria a visita o mais possível; mas não descansou até ter convencido Charles a levá-la lá pouco depois; e, quando voltou, estava muito bem-disposta e animada. Anne tinha ficado sinceramente satisfeita por não ter podido ir. Ela desejava, porém, conhecer os Croft, e ficou contente por estar em casa quando a visita foi retribuída.
Eles vieram; o dono da casa não estava, mas sim as duas irmãs; e, como a Sra. Croft ficou ao lado de Anne, enquanto o almirante se sentava junto de Mary e lhe conquistava a simpatia conversando bem-humoradamente sobre os seus filhos, ela tentou encontrar uma parecença com o irmão, se não no rosto, pelo menos na voz, na maneira de ser ou na expressão. A Sra. Croft, embora não fosse alta nem gorda, tinha uma figura proporcionada e vigorosa que a tornava majestosa. Tinha uns olhos escuros brilhantes, bons dentes e um rosto simpático, embora a sua pele avermelhada e estragada pelos elementos, a consequência de ter estado no mar quase tanto como o marido, a fizessem parecer alguns anos mais velha do que os seus 38 anos. Os seus modos eram francos, simples e decididos, como uma pessoa que tem confiança em si própria e sabe o que há de fazer, sem qualquer vislumbre de grosseria ou de falta de bom humor.
Anne reconheceu nela, de fato, sentimentos de grande consideração para consigo em tudo o que se relacionava com Kellynch; agradou-lhe particularmente, como verificara logo no primeiro meio minuto, no preciso momento em que lhe fora apresentada, o fato de não existir o mínimo indício de a Sra. Croft saber ou desconfiar de algo que a influenciasse de qualquer modo.
Quanto a isso, ela sentia-se bastante à vontade e, consequentemente, cheia de força e coragem, quando, de repente, as palavras da Sra. Croft a eletrizaram.
- Creio que foi a menina, e não a sua irmã, que o meu irmão teve o prazer de conhecer quando esteve nesta região.
Anne esperava ter ultrapassado a idade de corar; mas, certamente, não tinha ultrapassado a idade da emoção.
- Talvez não saiba que ele se casou - acrescentou a Sr. Croft.
Ela estava prestes a responder como devia e, quando as palavras seguintes da Sra. Croft explicaram quem era o Sr. Wentworth a quem ela se referia, sentiu-se satisfeita por não ter dito nada que não se pudesse aplicar a qualquer dos irmãos. Reconheceu imediatamente que era lógico que a Sra. Croft estivesse a pensar e a falar de Edward e não de Frederick; e, envergonhada de seu esquecimento, concentrou-se em inquirir, com o devido interesse, sobre a situação atual do seu antigo vizinho.
O resto da visita decorreu com toda a tranquilidade; até que, quando estavam prestes a ir-se embora, ela ouviu o almirante dizer a Mary:
- Estamos à espera, para breve, da visita de um irmão da Sra. Croft; suponho que o conhece de nome.
Foi interrompido pelas investidas entusiásticas dos rapazinhos, que se agarraram a ele como a um velho amigo, pedindo-lhe que não se fosse embora; e, estando demasiado ocupado a sugerir que os iria levar no bolso do casaco, etc., para ter um momento para terminar a frase ou para se lembrar do que tinha começado a dizer, Anne tentou persuadir-se, o melhor que pôde, de que se devia tratar do mesmo irmão. Ela não conseguiu, porém, ter tanta certeza que lhe permitisse não ficar ansiosa por saber se alguma coisa tinha sido dita sobre o assunto na outra casa que os Croft tinham visitado anteriormente.
Os habitantes da Casa Grande deveriam passar o serão desse dia no chalé; e, uma vez que o ano já ia demasiado adiantado para essas visitas serem feitas a pé, já estavam à espera de ouvir a carruagem quando a Menina Musgrove mais nova entrou. A primeira coisa que lhes veio à mente foi que ela vinha pedir desculpas, vinha dizer que teriam de passar o serão sozinho; e Mary estava pronta para se sentir ofendida quando Louisa esclareceu as coisas dizendo que só tinha vindo a pé para deixar mais espaço para a harpa, que vinha na carruagem.
- Eu já vos conto a razão - acrescentou ela. – Vim avisar-vos de que o papá e a mamãe estão muito abatidos esta noite, especialmente a mamãe; ela não deixa de pensar no pobre Richard! E concordamos que seria melhor ter a harpa, pois parece distraí-la mais do que o piano. Vou dizer-vos por que é que ela está abatida. Quando os Croft nos visitaram esta manhã... eles vieram cá mais tarde, não vieram?... eles comentaram que o irmão dela, o comandante Wentworth, acabou de regressar a Inglaterra, ou veio de licença, ou qualquer coisa, e vem visitá-los muito em breve; infelizmente, quando se foram embora, a mamãe lembrou-se de que Wentworth, ou qualquer coisa semelhante, era o nome do comandante do pobre Richard, a certa altura, não sei quando nem onde, mas muito antes de ele morrer, pobre rapaz! E, depois de olhar para as cartas e para as coisas dele, ela viu que realmente assim era; e ela tem a certeza absoluta de que é o mesmo homem e não consegue tirar isso da cabeça, não consegue deixar de pensar no pobre Richard. Assim, temos de parecer o mais alegres possível, para ela não pensar nessas coisas tristes.
As circunstâncias deste infeliz pedaço de história familiar eram que os Musgrove tinham tido a pouca sorte de ter um filho muito irresponsável, e a sorte de o perder antes de ele fazer 20 anos; ele fora enviado para o mar porque era estúpido e indisciplinado em terra; a família não gostava muito dele, embora gostasse tanto quanto ele merecia; raramente tinham notícias dele e raramente tinham saudades; a notícia da sua morte chegara a Uppercross dois anos antes. Embora as irmãs estivessem a fazer tudo o que podiam por ele chamando-lhe pobre Richard, ele tinha sido, de fato, o Dick Musgrove teimoso, insensível e inútil que nunca tinha feito nada para, vivo ou morto, merecer mais do que o diminutivo do seu nome.
Passara vários anos no mar e tinha, durante as transferências a que todos os aspirantes da Marinha estão sujeitos, principalmente os aspirantes de que os comandantes se desejam ver livres, passado seis meses a bordo da fragata do comandante Frederick Wentworth, o Lacônia; e fora do Lacônia que ele, sob influência do seu comandante, tinha escrito as únicas duas cartas que os pais tinham recebido durante toda a sua ausência; isto é, as únicas duas cartas desinteressadas; todas as outras continham pedidos de dinheiro. Ele elogiara o comandante em ambas as cartas; mas eles estavam tão pouco habituados a prestar atenção a esses assuntos, eram tão pouco observadores e interessavam-se tão pouco pelos nomes de homens ou de barcos que, na altura, isso não os impressionara; e o fato de a Sra. Musgrove, nesse dia, se ter lembrado subitamente do nome Wentworth como estando relacionado com o filho parecia uma daquelas extraordinárias explosões da mente que por vezes ocorrem. Ela relera as cartas e vira que era o que supunha; e a leitura destas cartas, após um intervalo tão longo, com o filho desaparecido para sempre e a gravidade dos seus defeitos esquecida, afetara-a bastante e fizera que sentisse uma dor maior do que a que sentira quando recebera a notícia da sua morte.
O Sr. Musgrove ficara igualmente afetado, embora em menor grau; quando chegaram ao chalé, era evidente que precisavam, primeiro, de falar novamente sobre o assunto, e, depois, de toda a consolação que companheiros alegres pudessem proporcionar. Ouvi-los falar tanto no comandante Wentworth, repetindo tão frequentemente o seu nome, recordando os anos passados e, por fim, chegando à conclusão de que talvez fosse, provavelmente era, o mesmo comandante Wentworth que se lembravam de terem encontrado uma ou duas vezes, depois de regressarem de Clifton- um jovem muito bem-parecido, mas não podiam dizer se fora há sete ou há oito anos - constituía uma nova provação para os nervos de Anne. Ela sabia, porém, que tinha de se imunizar contra ela.
Uma vez que ele era esperado a região, ela tinha de aprender a ser insensível nessas questões. E não só parecia que ele era esperado muito em breve como os Musgrove, gratos pela gentileza que ele manifestara para com o pobre Dick e com um enorme respeito pelo seu caráter, demonstrado pelo fato de o pobre Dick ter estado sob a sua tutela durante seis meses e se referir a ele com os maiores, se bem que mal escritos, elogios, como um sujeito estupendo, mas demasiado exigente, quanto à instrução, estavam ansiosos por o conhecerem assim que ele chegasse. Esta decisão contribuiu para se sentirem mais reconfortados nessa noite.
Alguns dias depois, souberam que o comandante Wentworth se encontrava em Kellynch, e o Sr. Musgrove foi visitá-lo, tendo regressado cheio de calorosos elogios; ele convidara os Croft para jantarem em Uppercross no final da semana seguinte.
O Sr. Musgrove ficara muito decepcionado por não poder marcar uma data anterior. Estava ansioso por manifestar a sua gratidão e por ter o comandante Wentworth debaixo do seu próprio teto, recebendo-o com o que de melhor e mais forte tinha na adega. Mas era preciso esperar uma semana, só uma semana, na opinião de Anne, e depois, pensava ela, tinham de se encontrar; em breve ela começou a desejar sentir-se segura, mesmo que fosse só por uma semana.
O comandante Wentworth retribuiu logo a amabilidade do Sr. Musgrove, e ela esteve para lá ir a essa mesma hora! Ela e Mary estavam, de fato, de saída para a Casa Grande, onde, ela soube mais tarde, ter-se-ia inevitavelmente encontrado com ele, quando foram retidas pela chegada, em braços, do garoto mais velho, que estava a ser transportado para casa em consequência de uma queda. O estado da criança colocou a visita completamente fora de causa, mas, quando soube do que escapara, não conseguiu sentir-se indiferente, mesmo no meio da grande ansiedade que sentiu por causa do garoto. Ele tinha deslocado a clavícula e magoara as costas, o que provocara suposições alarmantes. Foi uma tarde cheia de problemas, e Anne teve de fazer tudo ao mesmo tempo: mandar chamar o farmacêutico, procurar e informar o pai, apoiar a mãe, fazer o possível para que esta não ficasse histérica, controlar os criados, afastar o garoto mais novo, tratar do doente e acalmá-lo, além de enviar notícias, assim que se lembrou de o fazer, à outra casa, o que provocou uma grande afluência de visitantes curiosos e assustados, mais do que ajudantes verdadeiramente úteis.
O regresso do cunhado foi a primeira consolação - ele podia tomar melhor conta da mulher-, e a segunda foi a chegada do farmacêutico. Até ele chegar e examinar o garoto, as preocupações eram vagas e, por isso, mais difíceis de suportar; eles desconfiavam de uma lesão grave, mas não sabiam onde; mas, pouco depois, a clavícula foi colocada no local e, embora o Dr. Robinson apalpasse e voltasse a apalpar, esfregasse, assumisse um ar sério e falasse em voz baixa com o pai e com a tia, eles sentiram-se otimistas e capazes de se afastarem para ir jantar num estado de calma relativa; e foi então, imediatamente antes de se irem embora, que as duas jovens tias conseguiram esquecer o estado do sobrinho para dar informações sobre a visita do comandante Wentworth – ficaram mais cinco minutos depois de o pai e a mãe terem partido, para tentarem transmitir como estavam absolutamente encantadas com ele, como achavam que era mais belo e infinitamente mais simpático do que qualquer indivíduo das suas relações.
Como tinham ficado satisfeitas ao ouvir o papá convidá-lo a ficar para jantar, como ele lamentou não poder aceitar, e como elas ficaram de novo radiantes quando ele prometeu aceitar o convite insistente do papá e da mamã para vir jantar no dia seguinte - logo no dia seguinte! E ele prometera de um modo tão simpático, como se apreciasse devidamente o motivo do convite!
Em resumo, o seu aspecto e os seus modos eram tão distintos que elas tinham ficado com a cabeça à roda por causa dele. E afastaram-se a correr, cheias de alegria e amor, e aparentemente a pensar mais no comandante Wentworth do que no pequeno Charles.
A mesma história e o mesmo arrebatamento repetiram-se quando as duas meninas voltaram com o pai, no lusco-fusco do entardecer, para saber notícias; e o Sr. Musgrove, já menos preocupado com a saúde do seu herdeiro, acrescentou a sua confirmação e os seus elogios; ele esperava que não fosse necessário adiar o jantar oferecido ao comandante Wentworth e manifestou o seu pesar pelo fato de a família do chalé não querer, provavelmente, sair de junto do filho para poder estar presente. Oh, não! Deixar o pequeno, não!.
Tanto o pai como a mãe estavam demasiado abalados para pensar nisso; e Anne, feliz por se conseguir esquivar, não pôde deixar de acrescentar os seus calorosos protestos. Na verdade, Charles Musgrove manifestou posteriormente mais interesse: O filho estava a recuperar tão bem, e ele queria tanto ser apresentado ao comandante Wentworth que talvez pudesse ir ter com eles ao serão; ele não iria jantar fora de casa, mas talvez fosse até lá a pé por meia hora. Mas a mulher opôs-se vigorosamente a esta idéia, dizendo:
- Oh, não! Charles, eu não consigo suportar que te ausentes. Imagina que acontece alguma coisa?
O garoto passou bem a noite e continuou a melhorar no dia seguinte. Só o tempo diria se a coluna não tinha ficado afetada, mas o Dr. Robinson não encontrou nada que justificasse uma maior preocupação e, em consequência, Charles Musgrove começou a achar que não havia necessidade de ficar em casa. O pequeno devia ficar deitado e entretido o mais calmamente possível; que é que um pai estava ali a fazer?
Aquilo era um caso para mulheres; seria absurdo que ele, que não tinha nada que fazer em casa, ficasse ali fechado. O pai queria muito que ele conhecesse o comandante Wentworth e, não havendo motivo suficiente para não o fazer, ele devia ir; por fim, quando voltou da caça, declarou abertamente a sua intenção de se vestir imediatamente e de ir jantar à outra casa.
- O garoto está ótimo - disse ele -, por isso eu disse ao meu pai que ia, e ele achou que eu fazia muito bem. Com a tua irmã aqui contigo, não sinto quaisquer escrúpulos. Sei que tu não havias de querer deixá-lo, mas deves compreender que eu não estou a fazer nada. Se acontecer alguma coisa, Anne manda-me chamar.
Os maridos e as mulheres sabem geralmente quando é inútil qualquer tentativa de oposição. Mary compreendeu, pelo modo como Charles falou, que ele estava decidido a ir e que não valeria a pena insistir. Assim, ela não disse nada até ele sair da sala, mas, logo que ele o fez, comentou:
- Já viste isto? Ele deixa-nos entregues aos nossos próprios meios, com esta pobre criança doente... e sem que ninguém venha até cá durante todo o serão! Eu sabia que isto iria acontecer. A minha sorte é assim! Quando acontece uma coisa desagradável, os homens desaparecem sempre, e Charles é tal e qual os outros. Que falta de sensibilidade! Devo dizer que acho que é muita falta de sensibilidade da parte dele ir para longe do filho! Como é que ele sabe que o miúdo continuará bem e não vai ter uma recaída daqui a meia hora? Eu acho que Charles não devia ser tão insensível. Com que então ele vai divertir-se, e eu, só porque sou a mãe, não posso sair daqui; no entanto, eu sou a pessoa menos indicada para tomar conta da criança. O fato de eu ser a mãe é razão suficiente para que os meus sentimentos não sejam postos à prova. Não consigo aguentar. Tu viste como fiquei histérica ontem.
- Mas isso foi apenas o efeito do susto, do choque. Não vais voltar a ficar histérica. Eu acho que não temos nada com que nos afligir. Compreendi perfeitamente as instruções do Sr. Robinson, e não tenho qualquer receio; e, na verdade, Mary, o comportamento do teu marido não me surpreende. Os homens não sabem tomar conta de doentes, isso não é trabalho para eles. Quem cuida duma criança doente é sempre a mãe; são os seus próprios sentimentos que o exigem.
- Eu acho que gosto tanto do meu filho como qualquer outra mãe, mas não sei se tenho mais utilidade no quarto do doente do que Charles, pois não posso estar continuamente a ralhar com a pobre criança quando ela está doente; e tu viste, esta manhã, quando eu lhe dizia que ficasse quieto, ele começava logo aos pontapés. Os meus nervos não suportam esse tipo de coisas.
- Mas tu não te importarias de passar a noite longe do pobre rapaz?
- Não. Tu vês que o pai dele não se importa, por que é que havia de me importar? Jemina é tão cuidadosa! E, de hora a hora, ela poderia mandar-nos notícias sobre o estado dele. Eu acho realmente que Charles devia ter dito ao pai que iríamos todos. Não estou mais apreensiva a respeito do pequeno do que ele. Ontem fiquei muito alarmada, mas hoje o caso mudou de figura.
- Bem, se achas que não é demasiado tarde para avisares, suponho que deves ir, assim como o teu marido. Eu fico a tomar conta do pequeno Charles. O Sr. e a Sra. Musgrove certamente não se sentirão ofendidos por eu ficar com ele.
- Estás a falar a sério? - exclamou Mary, com os olhos a brilharem de alegria. - Meu Deus! Isso é uma boa idéia, muito boa mesmo. Já agora, vou, pois não estou a fazer nada em casa, não é verdade? Só me sinto perturbada. Tu, que não tens sentimentos de mãe, és sem dúvida a pessoa mais adequada para ficar com ele. Tu consegues obrigar o pequeno Charles a fazer qualquer coisa; ele obedece-te sempre. Será bastante melhor do que deixá-lo só com Jemina. Oh! Vou, com certeza; estou certa de que tenho tanta obrigação de o fazer como Charles, pois eles querem muito que eu conheça o comandante Wentworth, e sei que não te importas de ficar sozinha. Uma idéia excelente a tua, Anne! Vou dizer a Charles e preparar-me imediatamente. Podes mandar-nos chamar, sabes?, a todo o momento, se for preciso; mas acho que não vai acontecer nada que te provoque qualquer alarme. Podes ter a certeza de que eu não iria se não estivesse tão descansada a respeito do meu querido filho.
Um momento depois, ela batia à porta do quarto de vestir do marido. Anne subiu as escadas atrás dela e ainda ouviu toda a conversa, que começou com Mary a dizer, num tom de grande contentamento:
- Eu vou contigo, Charles, pois, tal como tu, não estou a fazer nada em casa. Se me trancasse aqui para sempre com o garoto, não conseguiria convencê-lo a fazer nada de que ele não gostasse. Anne vai ficar. Ela propôs-se ficar em casa a tomar conta dele. Foi a própria Anne que o sugeriu, por isso vou contigo, o que será muito melhor, pois desde terça-feira que não janto na outra casa.
- Isso é muito amável da parte de Anne - foi a resposta do marido -, e fico muito contente por vires comigo, mas parece-me um pouco cruel deixá-la sozinha em casa, a tomar conta do nosso filho doente.
Anne apareceu então para defender a sua própria causa e, uma vez que a sinceridade dos seus modos foi suficiente para o convencer, pelo menos naquilo em que lhe era agradável ser convencido, ele perdeu a relutância em deixá-la jantar sozinha, embora ainda pretendesse que ela fosse ter com eles mais tarde, quando o garoto estivesse a dormir, e insistiu com ela para que o deixasse mandar buscá-la; mas ela não se deixou persuadir; e, assim, Anne teve o prazer de os ver sair juntos muito bem-dispostos. Ela esperava que eles se divertissem, por mais estranho que fosse esse divertimento; quanto a si própria, ficou com a maior sensação de conforto que lhe era possível sentir. Sabia que era muito necessária à criança; e que importância tinha se Frederick Wentworth estava apenas a meia milha de distância, sendo simpático para com os outros?
Ela gostaria de saber o que ele sentia a respeito de voltar a encontrá-la. Talvez indiferente, se era possível existir indiferença em tais circunstâncias. Ele devia sentir-se indiferente ou, então, não queria encontrar-se com ela. Se ele tivesse querido voltar a vê-la, não teria precisado de esperar até àquele momento; teria feito o que ela acreditava que há muito teria feito no seu lugar, quando os acontecimentos cedo lhe concederam a independência que era a única coisa que lhes faltara.
O cunhado e a irmã regressaram encantados com o seu novo conhecimento e a visita em geral. Tinha havido música, canções, conversa, riso, tudo extremamente agradável; o comandante Wentworth tinha modos encantadores, sem qualquer timidez nem reservas; pareciam ser todos velhos conhecidos, e ele viria caçar com Charles na manhã seguinte. Viria tomar o pequeno-almoço, mas não no chalé, embora, a princípio, isso tivesse sido sugerido; mas, depois, tinham insistido com ele para que fosse antes à Casa Grande, e ele tivera receio de incomodar a Sra. Charles Musgrove, por causa do garoto; e, assim, sem eles saberem bem porquê, acabou por ser Charles a ir ter com ele para tomar o pequeno-almoço em casa do pai. Anne compreendeu. Ele queria evitar encontrar-se com ela.
Ela soube que ele tinha perguntado por ela, de um modo vago, como se fosse um conhecimento casual, parecendo ter dito o mesmo que ela dissera, agindo, talvez, com o mesmo intuito de escapar à apresentação quando se encontrassem.
A azáfama matinal do chalé começava mais tarde do que na outra casa; e, nessa manhã, a diferença foi tão grande que Mary e Anne ainda estavam a começar a tomar o pequeno-almoço quando Charles entrou e disse que iam partir, que viera buscar os cães, que as suas irmãs vinham aí com o comandante Wentworth.
As irmãs vinham visitar Mary e o garoto, e o comandante pretendia também visitá-la durante alguns minutos, se não fosse inconveniente; e, embora Charles tivesse respondido que a criança não estava tão doente que a visita causasse algum inconveniente, o comandante Wentworth insistiu para que ele fosse à frente anunciar a visita.
Mary, muito satisfeita com a gentileza, ficou encantada por o receber, enquanto Anne se sentiu inundada por mil emoções, das quais a mais reconfortante foi que a visita estaria terminada dentro em pouco. E assim foi. Dois minutos depois do aviso de Charles, os outros apareceram; elas estavam na sala de visitas.
Os seus olhos encontraram-se com os do comandante Wentworth; uma vénia, uma cortesia. Ela ouviu-lhe a voz - ele falava com Mary; disse as palavras corretas; disse algo às Meninas Musgrove, o suficiente para indicar que estavam de boas relações; a sala parecia cheia - cheia de pessoas e vozes mas tudo terminou passados poucos minutos.
Charles apareceu à janela, estava tudo pronto, o visitante tinha feito uma vénia e saído; as Meninas Musgrove também se foram embora, tendo decidido subitamente ir com os caçadores até ao extremo da aldeia, a sala ficou vazia, e Anne tentou terminar o pequeno-almoço o melhor que pôde.
- JÁ passou! JÁ passou! - repetiu para si própria, numa gratidão nervosa. - O pior já passou. Mary estava a falar, mas ela não conseguia prestar atenção. Ela vira-o. Tinham-se encontrado. Tinham voltado a estar na mesma sala!
Em breve, porém, começou a raciocinar para si própria e a tentar sentir menos oito anos, tinham-se passado quase oito anos desde que tinham desistido de tudo. Como era absurdo voltar a sentir a agitação que aquele espaço de tempo tinha banido para a distância e para o esquecimento! O que não teria acontecido em oito anos! Acontecimentos de todo o gênero, alterações, separações, mudanças - tudo, deve ter acontecido de tudo; e o esquecimento do passado - como isso era natural, como era certo também! Era quase um terço da sua vida.
Infelizmente, apesar de todo o seu raciocínio, ela descobriu que, para sentimentos fortes, oito anos podem não ser praticamente nada. Agora, como é que ela poderia interpretar os sentimentos dele? Estaria a querer evitá-la? No momento seguinte, ela detestava-se a si própria pela loucura que a levara a fazer a pergunta. Quanto a outra pergunta, a qual talvez a sua sabedoria não conseguisse ter evitado, foi-lhe, pouco depois, poupada toda a incerteza.
Depois de as Meninas Musgrove terem voltado e terminado a visita ao chalé, recebeu espontaneamente a seguinte informação:
- O comandante Wentworth não foi muito lisonjeiro a teu respeito, Anne, embora tenha sido muito gentil para comigo. Quando se afastaram, Henrietta perguntou-lhe o que pensava de ti, e ele respondeu que estavas tão diferente que não te teria reconhecido. Normalmente, Mary não possuía uma sensibilidade que a fizesse respeitar os sentimentos das irmãs; mas, desta vez, não fazia a mínima idéia de que estivesse a magoá-la. – Tão diferente que não a reconheceria! - Anne ouviu, em silêncio, profundamente magoada. Não havia dúvida de que era verdade; e ela não se podia vingar porque ele não tinha mudado, e não para pior.
Ela já o reconhecera para si própria e não podia mudar de opinião, ele que pensasse dela o que quisesse. Não; os anos que lhe tinham destruído a juventude e frescura, tinham-lhe dado a ele um ar mais alegre, viril e franco, sem diminuir as qualidades físicas. Ela tinha visto o mesmo Frederick Wentworth.
Frederick utilizara aquelas palavras, ou umas semelhantes, sem fazer idéia de que elas lhe seriam transmitidas. Ele achara-a muito mudada e, quando lhe perguntaram, dissera o que sentia. Não perdoara a Anne Elliot; ela fora injusta para com ele, abandonara-o e desiludira-o; e, o que era pior, ao fazê-lo, tinha manifestado uma fraqueza de caráter que o seu temperamento decidido e confiante não conseguia tolerar.
Ela renunciara a ele para fazer a vontade aos outros. Tinha-se deixado influenciar demasiado. Fora fraca e tímida. Ele gostara muito dela e nunca, desde então, encontrara uma mulher que se lhe pudesse comparar; mas, com exceção de uma natural sensação de curiosidade, não desejava voltar a encontrá-la. O poder que ela exercera sobre ele tinha desaparecido para sempre. O seu objetivo agora era casar. Era rico e, tendo regressado à terra, tencionava assentar assim que se sentisse devidamente tentado a fazê-lo; estava, na realidade, à procura, pronto para se apaixonar com toda a celeridade que a sua cabeça lúcida e o seu bom gosto permitissem. O seu coração estava à disposição de qualquer das Meninas Musgrove, se elas soubessem conquistá-lo. Um coração à disposição de qualquer jovem agradável que lhe aparecesse, exceto Anne Elliot. Esta era a sua única exceção secreta quando disse à irmã, em resposta às suas conjecturas:
- Sim, aqui estou eu, Sophia, pronto para fazer um casamento idiota. Qualquer mulher entre os quinze e os trinta anos que me queira pode ficar comigo. Um pouco de beleza, meia dúzia de sorrisos e alguns elogios à Marinha, e sou um homem perdido. Não será isto suficiente para um marinheiro que não tem tido qualquer convivência com mulheres e não sabe, por isso, se simpático?
Ele disse-o, ela sabia, para que ela o contradissesse. Os seus olhos alegres e altivos refletiam a feliz convicção de que era, de fato, simpático, e Anne Elliot não estava longe dos seus pensamentos quando descreveu, mais seriamente, a mulher que gostaria de encontrar. Um espírito forte e modos ternos, foi a lacônica descrição.
- Esta é a mulher que eu quero - disse ele. - Claro que toleraria algo um pouco inferior, mas não muito. Se for tolo, serei verdadeiramente tolo, pois tenho pensado no assunto mais do que a maior parte dos homens.
A partir desta altura, o comandante Wentworth e Anne Elliot começaram a fazer parte do mesmo círculo. Pouco depois, jantavam os dois em casa do Sr. Musgrove, pois a tia já não podia utilizar o estado do garoto como desculpa para não estar presente, e isto foi apenas o princípio de outros jantares e de outros encontros. Estes encontros iriam pôr à prova a possibilidade de recuperação de sentimentos antigos, tempos antigos viriam necessariamente à lembrança de ambos; era impossível não haver referência a eles, ele não conseguia evitar mencionar o ano do noivado nos pequenos relatos ou descrições decorrentes das conversas. A sua profissão predispunha-o, o seu temperamento induzia-o a falar; e isso foi em 1806"; Isso aconteceu antes de eu ir para o mar em 1806, ocorreu no decurso do primeiro serão que passaram juntos; e, embora a sua voz não tivesse vacilado e ela não tivesse qualquer motivo para supor que ele, ao falar, tivesse olhado para ela, Anne sentiu que era completamente impossível, pelo que conhecia dele, que ele não se recordasse tão bem como ela. Tinha de haver uma associação de idéias imediata, embora ela estivesse longe de imaginar que fosse igualmente dolorosa. Eles não conversavam um com o outro, não tinham qualquer contato exceto o que era ditado pelas normas da boa educação.
Outrora, tinham significado tanto um para o outro! Agora, nada! Houvera uma altura em que, de todo o enorme grupo que enchia a sala de visitas de Uppercross, eles teriam sido os que mais dificuldades teriama em parar de conversar um com o outro. Com exceção, talvez, do almirante e da Sra. Croft, que pareciam particularmente afeiçoados e felizes.
Anne não via qualquer outra exceção, nem mesmo entre os pares casados. Não podia ter havido dois corações tão sinceros, nem gostos tão semelhantes , nem sentimentos tão em uníssono, nenhuns rostos tão amados. Agora era como se fossem estranhos, não, pior do que estranhos, porque nunca se conheceriam. Eram estranhos para sempre. Quando ele falava, ela ouvia a sua voz e reconhecia a mesma maneira de pensar.
No grupo, havia uma ignorância geral sobre todos os assuntos relacionados com a Marinha; e fizeram-lhe muitas perguntas, especialmente as duas Meninas Musgrove, que pareciam não ter olhos se não para ele: sobre a vida a bordo, os regulamentos diários, a comida, os horários, etc. E a surpresa delas perante os seus relatos, ao conhecerem a quantidade de acomodações e de comodidades que era possível existir, provocava nele uma troça amigável, que fez recordar a Anne o tempo em que ela também não sabia nada e em que também fora acusada de supor que os marinheiros a bordo não tinham alimentos ou, se tivessem, não tinham um cozinheiro para os preparar, nem criados para os servir, nem talheres com que comer.
Foi despertada dos seus pensamentos por um murmúrio da Sra. Musgrove, que, abalada por tristes recordações, não conseguiu conter-se:
- Ah! Menina Anne, se aprouvesse aos Céus ter poupado o meu filho, nesta altura ele seria igual a si mesmo.
Anne dominou um sorriso e escutou atentamente, enquanto a Sra. Musgrove desabafava um pouco, pelo que, durante alguns minutos, não conseguiu acompanhar a conversa. Quando a sua atenção seguiu o curso normal, ela viu que as Meninas Musgrove tinham ido buscar a lista da Marinha (a sua própria lista da Marinha, a primeira que houvera em Uppercross), e estavam sentadas e debruçadas sobre ela, com o objetivo de encontrarem os navios que o comandante Wentworth tinha comandado.
- O seu primeiro navio foi o Asp, recordo-me; vamos procurar o Asp.
- Não o vai encontrar aí. Estava muito velho e a desfazer-se.
Eu fui o último homem a comandá-lo. Não se encontrava exatamente em condições de prestar serviço. Foi declarado apto por um ou dois anos... e assim fui enviado para as Índias Ocidentais.
As meninas ficaram a olhar, espantadas.
- O almirantado - prosseguiu ele - entretém-se de vez em quando a enviar algumas centenas de homens para o mar num navio que não tem condições de navegabilidade. Mas eles têm muita gente para sustentar; e, entre os milhares que tanto lhes faz que vão ao fundo como não, é-lhes impossível distinguir os que menos falta fazem.
- Oh! Oh! - exclamou o almirante -, que disparates estes jovens dizem! No seu tempo, não havia corveta melhor que o Asp. Para uma corveta de fabricação antiga, não havia outra igual. Teve muita sorte em consegui-la! Ele sabe que devia haver uns vinte homens mais bem qualificados do que ele a candidatarem-se a ela ao mesmo tempo. Com os poucos direitos que tinha, teve sorte em conseguir qualquer coisa tão depressa.
- Garanto-lhe que eu soube que tinha sorte, almirante respondeu o comandante Wentworth num tom sério. - Eu não podia estar mais satisfeito com a minha nomeação. Para mim, nessa altura, ir para o mar era um objetivo muito importante... muitíssimo importante. Eu queria estar ocupado com alguma coisa.
- Claro que querias. Que é que um jovem como tu esteve a fazer em terra durante meio ano seguido? Quando um homem não é casado, o que mais deseja é fazer-se ao mar quanto antes.
- Mas, comandante Wentworth - exclamou Louisa-, deve ter ficado muito aborrecido quando chegou ao Asp e viu o traste velho que lhe tinham dado.
- Eu já sabia muito bem antes o que ele era - disse ele com um sorriso. - Não tinha para descobrir mais do que a menina teria a respeito do aspecto e da resistência de uma velha peliça, a qual, desde que se lembrava, tinha visto a ser emprestada a metade das pessoas suas conhecidas e que, finalmente, num dia de muita chuva, lhe é emprestada a si. Ah!, para mim, foi um barco estupendo. Fez tudo o que eu queria. Eu sabia que ele o faria... sabia que ou iríamos juntos ao fundo ou ele me traria sorte; e nunca tive dois dias de tempestade durante todo o tempo em que naveguei nele; depois de ter capturado corsários suficientes para nos divertirmos, tive a sorte, na minha passagem por terra no Outono seguinte, de obter a fragata francesa que eu queria.
Trouxe-a para Plymouth; e aqui voltei a ter sorte. Ainda não estávamos há seis horas no Sound quando se levantou uma tempestade que durou quatro dias e quatro noites, e que teria desfeito o pobre Asp em metade desse tempo; claro que o contato com a Grande Nação não melhorou muito o nosso estado.
Em vinte e quatro horas, eu teria sido apenas o corajoso comandante Wentworth, num pequeno parágrafo a um canto dos jornais; e, tendo morrido numa insignificante corveta, ninguém voltaria a pensar em mim.
Anne estremeceu interiormente, mas as Meninas Musgrove puderam dar largas às suas exclamações sinceras de pena e de horror.
- E então, suponho - disse a Sra. Musgrove num tom de voz mais baixo, como se estivesse a pensar em voz alta -, então foi para o Lavônia e aí conheceu o nosso pobre rapaz. Charles, meu querido - (fazendo-lhe sinal para que se aproximasse) - pergunta ao comandante onde é que ele conheceu o teu pobre irmão. Eu esqueço-me sempre.
- Foi em Gibraltar, mãe. Dick ficou em terra em Gibraltar, doente, com uma recomendação do seu comandante anterior para o comandante Wentworth.
- Oh!, mas, Charles, diz ao comandante Wentworth que não deve ter receio de mencionar o pobre Dick à minha frente, pois seria um prazer ouvir alguém tão seu amigo falar dele.
Charles, um tanto céptico quanto às probabilidades de ser esse o caso, limitou-se a responder com um aceno de cabeça e afastou-se. As meninas estavam agora à procura do Lavônia; e o comandante Wentworth não resistiu ao prazer de pegar no precioso livro, poupando-lhes esse trabalho, e de ler, em voz alta, a pequena referência ao nome e às características do navio, a sua situação atual na reserva, comentando que também ele fora um dos seus melhores amigos.
- Ah! Os dias em que comandei o Lavônia foram bem agradáveis! Como fiz dinheiro rapidamente com ele. Eu e um amigo fizemos uma viagem maravilhosa ao largo das Índias Ocidentais. Pobre Harville, irmã! Tu sabes como ele queria ganhar dinheiro... mais ainda do que eu. Ele era casado. Um sujeito excelente! Nunca me esquecerei de como se sentia feliz. E sentia-se feliz, em grande parte, por causa dela. Desejei tê-lo comigo no Verão seguinte, quando tive a mesma sorte no Mediterrâneo.
- E eu tenho a certeza, será- disse a Sra. Musgrove -, de que foi uma sorte para nós ter sido feito comandante do navio. Nós nunca nos esqueceremos do que fez. A comoção fê-la falar em voz baixa, e o comandante Wentworth, tendo ouvido apenas uma parte da frase e não estando provavelmente a pensar em Dick Musgrove, ficou na expectativa, à espera de mais.
- O meu irmão - murmurou uma das meninas -, a mamã está a pensar no pobre Richard.
- Pobre rapaz - prosseguiu a Sra. Musgrove. - Tinha-se tornado tão bem comportado e um correspondente tão bom desde que estava sob sua tutela! Ah!, teria sido ótimo se ele nunca o tivesse deixado. Garanto-lhe, comandante Wentworth, tivemos imensa pena de que ele o tivesse deixado.
Ao ouvir este discurso, houve, momentaneamente, uma expressão no rosto do comandante Wentworth, um certo lampejo nos seus olhos brilhantes e um franzir da sua boca atraente que convenceu Anne de que, em vez de partilhar os amáveis desejos da Sra. Musgrove no que dizia respeito ao filho, ele tinha, provavelmente, ansiado por se ver livre dele; mas foi uma expressão de ironia tão fugaz que dificilmente seria detectada por quem não o conhecesse tão bem como ela; no momento seguinte, ele tinha-se controlado perfeitamente, e a sua expressão era séria e, quase de imediato, ele dirigiu-se ao sofá em que ela e a Sra. Musgrove estavam sentadas, sentou-se ao lado desta e começou a conversar com ela, em voz baixa, sobre o filho, e a comiseração e naturalidade com que o fez, demonstraram a maior consideração por tudo o que era real e natural nos sentimentos maternais.
Eles estavam sentados no mesmo sofá, pois a Sra. Musgrove tinha-se chegado um pouco para o lado para ele se poder sentar - estavam separados apenas pela Sra. Musgrove. Não era uma barreira nada insignificante. A Sra. Musgrove tinha uma corpulência substancial, infinitamente mais própria, por natureza, para expressar boa disposição e bom humor do que ternura e sensibilidade, e, embora a agitação do corpo esguio e do rosto pensativo de Anne pudessem ser considerados como estando completamente encobertos, o comandante Wentworth é digno de admiração pelo autodomínio com que escutou os enormes e profundos suspiros por causa de um filho com quem ninguém se preocupara enquanto fora vivo. O tamanho da sua pessoa e o sofrimento não têm necessariamente uma proporção direta. Uma figura corpulenta tem tanto direito a sofrer profundamente como a figura mais graciosa do mundo. Mas, quer seja justo ou não, há efeitos pouco lisonjeiros que a razão tenta, em vão, admitir, que o bom gosto não consegue tolerar e de que o ridículo se apodera.
O almirante, depois de ter dado duas ou três voltas à sala com as mãos atrás das costas, para desentorpecer as pernas, e de ter sido chamado à ordem pela mulher, dirigiu-se ao comandante Wentworth e, sem reparar que estava a interromper, embrenhado apenas nos seus próprios pensamentos, disse:
- Se tivesses passado por Lisboa uma semana depois na primavera passada, Frederick, ter-te-ia sido pedido que trouxesses Lady Mary Grierson e as filhas.
- A sério? Ainda bem que não estava lá uma semana depois. O almirante censurou-o pela sua falta de cavalheirismo. Ele defendeu-se, embora declarando que nunca admitiria, de bom grado, senhoras a bordo de um navio seu, exceto para um baile ou uma visita de algumas horas. - Mas, tanto quanto me conheço- disse ele -, isto não é por falta de cavalheirismo para com elas. Resulta, sim, de saber que é impossível, apesar de todos os esforços e de todos os sacrifícios, proporcionar o conforto que as mulheres merecem.
Não é falta de cavalheirismo, almirante, achar que as mulheres merecem um nível de conforto elevado... É o que acontece comigo. Detesto ouvir falar de mulheres a bordo, ou de vê-las a bordo; e navio algum, sob o meu comando, transportará alguma vez um grupo de senhoras, se eu o puder evitar.
Estas palavras levaram a irmã a intervir:
- Oh! Frederick. Não consigo acreditar nisso vindo de ti. Que exagero de cortesia! As mulheres podem sentir-se tão confortáveis a bordo como na melhor casa inglesa. Acho que tenho vivido mais tempo a bordo do que a maior parte das mulheres, e não conheço nada mais confortável do que as acomodações de um navio de guerra. Posso dizer-te que não tenho nenhum conforto nem prazer em terra, nem mesmo no Solar de Kellynchá- (com uma amável vénia a Anne) -, que não tenha tido sempre no maior dos navios em que tenho vivido, e já foram cinco.
- Isso não quer dizer nada-respondeu o irmão. -Tu vivias com o teu marido e eras a única mulher a bordo.
- Mas tu próprio trouxeste a Sr.a Harville, a irmã, a prima e os três filhos de Portsmouth para Plymouth. Onde estava esse teu requintado e extraordinário cavalheirismo?
- Misturado com a amizade, Sophia. Eu queria ajudar a mulher do meu camarada tanto quanto possível, e, se Harville quisesse, trar-lhe-ia qualquer coisa até do fim do mundo. Mas não penses que achei que fosse uma boa idéia.
- Podes ter a certeza de que elas se sentiram perfeitamente confortáveis.
- Isso não quer dizer que goste mais delas por isso. Tantas mulheres e crianças a bordo não têm o direito de se sentir confortáveis.
- Meu querido Frederick, tu estás a dizer disparates. Que seria de nós, pobres mulheres de marinheiros, que muitas vezes queremos ser levadas para um porto ou outro, atrás dos nossos maridos, se todos pensassem o mesmo que tu?
- Os meus sentimentos, como vês, não impediram que eu levasse a Sra. Harville e toda a sua família para Plymouth.
- Mas eu detesto ouvir-te falar assim, como um cavalheiro requintado, e como se as mulheres fossem todas damas delicadas, em vez de seres racionais. Nenhuma de nós espera ter mar calmo todos os dias.
- Ah!, minha querida - disse o almirante -, quando ele se casar, a conversa será outra. Quando se casar, e se tivermos a sorte de viver outra guerra, vê-lo-emos fazer o que tu e eu e muitos outros têm feito. Vê-lo-emos ficar muito grato a quem quer que lhe traga a mulher. - Sim, certamente que veremos.
- Agora tenho dito! - exclamou o comandante Wentworth. Quando as pessoas casadas começam a atacar-me com: Oh, quando casares vais mudar de idéias, a única coisa que eu posso dizer é: Não vou, não; e depois eles repetem: Vais, sim, e não há nada a fazer. Ele pôs-se de pé e afastou-se.
- A senhora, certamente, tem viajado muito - disse a Sra. Musgrove à Sra. Croft.
- Bastante, nos quinze anos que estou casada, embora muitas mulheres tenham viajado mais. Atravessei o Atlântico quatro vezes e fui e vim uma vez às Índias Orientais; e apenas uma vez, além de ter estado em vários portos próximos da Inglaterra... Cork, Lisboa e Gibraltar. Mas nunca fui para além dos estreitos... e nunca estive nas Índias Ocidentais. Nós não chamamos Bermudas nem Bahamas às Índias Ocidentais, sabe?
A Sra. Musgrove não tinha uma só palavra de discordância a dizer, não podia acusar-se a si própria de alguma vez lhes ter chamado o que quer que fosse.
- E posso garantir-lhe, minha senhora, que não há acomodações melhores que as dum navio de guerra; estou a referir-me aos maiores, claro. Numa fragata, é óbvio que estamos mais confinados... embora qualquer mulher razoável possa sentir-se perfeitamente feliz numa; e devo dizer que as horas mais felizes da minha vida foram passadas a bordo de um navio. Quando estávamos juntos, sabe?, não temíamos nada. Felizmente, eu sempre gozei de excelente saúde e nunca me senti afetada pelos diferentes climas. Talvez me sentisse um pouco abalada durante as primeiras vinte e quatro horas no mar, mas, depois disso, nunca soube o que era enjoar. A única vez em que realmente sofri, de corpo e alma, a única vez em que me imaginei doente ou pensei no perigo foi durante o Inverno que passei sozinha em Deal, quando o almirante... o comandante Croft... estava no mar do Norte. Eu vivia continuamente cheia de medo e sofria de todos os males imaginários devido ao fato de não ter nada que fazer e de não saber quando voltaria a ter notícias dele; mas, desde que pudéssemos estar juntos, eu não sofria de nada, nem nunca sentia o mínimo desconforto.
- Sim, com certeza. Sim, de fato, oh, sim, estou absolutamente de acordo consigo, Sra. Croft- foi a resposta entusiástica da Sra. Musgrove. - Não há nada tão mau como uma separação. Estou absolutamente de acordo. Eu sei o que isso é, pois o Sr. Musgrove assiste sempre às sessões do Tribunal, e eu fico tão satisfeita quando estas chegam ao fim e ele regressa são e salvo.
O serão terminou com um baile. Quando lhe foi proposto, Anne ofereceu os seus préstimos, como de costume, e, embora os seus olhos se enchessem por vezes de lágrimas enquanto estava ao piano, ficou muito satisfeita por estar ocupada e não desejou mais nada em troca a não ser passar despercebida.
Foi uma festa alegre, e ninguém pareceu estar mais bem-disposto que o comandante Wentworth. Ela achou que ele tinha todos os motivos para se sentir satisfeito, nomeadamente a atenção e a deferência gerais e, principalmente, a atenção de todas as jovens. Tinha sido, aparentemente, concedido às Meninas Hayter, as meninas da família de primos já referida, a honra de se apaixonarem por ele; e, quanto a Henrietta e Louisa, estas pareciam estar tão completamente absorvidas por ele que só a permanente aparência de uma perfeita amizade entre elas conseguia fazer crer que não eram rivais declaradas. Quem se admiraria de ele ficar envaidecido com uma tão universal e ansiosa atenção?
Estes eram alguns dos pensamentos que perpassavam pela mente de Anne, enquanto os seus dedos trabalhavam mecânica, inconscientemente, durante meia hora seguida, sem se enganar.
Uma vez ela sentiu que ele estava a olhar para ela observando o seu rosto transformado, tentando, talvez, ver nele os vestígios do rosto que outrora o encantara; e uma vez ela soube que ele devia ter falado nela - mal tivera consciência disso até ter ouvido a resposta, mas, nessa altura, teve a certeza de que ele perguntara ao seu par se a Menina Elliot nunca dançava. A resposta foi: Oh!, não, nunca, há muito que ela deixou de dançar. Ela prefere tocar. Nunca se cansa de tocar.
-Uma vez, ele falou-lhe. Ela tinha deixado o piano quando o baile terminou, e ele sentara-se a trautear uma ária de que desejava dar uma idéia à Sra. Musgrove. Sem pensar, ela voltou a essa parte da sala; ele viu-a e, levantando-se imediatamente, disse com uma delicadeza estudada:
- Perdão, minha senhora, este é o seu lugar. E, embora ela se tivesse afastado logo com uma negativa firme, ele não voltou a sentar-se. Anne não queria que ele voltasse a olhá-la ou a falar-lhe assim. A sua delicadeza fria e a sua atitude cerimoniosa eram piores que a indiferença total.
O comandante Wentworth viera instalar-se em Kellynch como se a casa fosse sua, para ficar o tempo que quisesse, pois o almirante dedicava-lhe tanta amizade fraternal como a mulher.
À chegada, ele tencionara seguir muito em breve para Shropshire, para visitar o irmão instalado naquela região, mas os atrativos de Uppercross levaram-no a adiar esta visita.
Havia tanta simpatia, lisonja e encanto no modo como era ali recebido; os velhos eram tão hospitaleiros e os jovens tão agradáveis que ele decidira ficar e esperar um pouco mais antes de ir conhecer todos os encantos e perfeições da mulher de Edward.
Ao fim de algum tempo, ele passou a ir a Uppercross quase todos os dias. Os Musgrove dificilmente estariam mais prontos a convidá-lo do que ele a aceitar, particularmente de manhã, quando não tinha companhia em casa, pois o almirante e a Sra. Croft iam geralmente passear juntos, visitando os seus novos domínios, os relvados e os carneiros, e fazendo-o com uma lentidão insuportável para uma terceira pessoa; outras vezes saíam num cabriolé recentemente adquirido.
Até então, tinha havido entre os Musgrove e os seus familiares uma única opinião sobre o comandante Wentworth. Esta era sempre a mesma, uma calorosa admiração em todos os aspectos. Mas, assim que esta intimidade se estabeleceu, surgiu entre eles um certo Charles Hayter que ficou muito perturbado com esta amizade e considerou o comandante Wentworth um intruso.
Charles Hayter era o primo mais velho e era um jovem simpático e agradável; antes do aparecimento do comandante Wentworth, tinha havido uma afeição bastante nítida entre ele e Henrietta. Ele tinha tomado ordens e, uma vez que o seu curato era próximo e não exigia que residisse nele, vivia em casa do pai, apenas a duas milhas de Uppercross. Uma breve ausência tinha deixado a sua amada sem o privilégio das suas atenções neste período crítico e, quando regressou, teve o desgosto de ver que a atitude dela se tinha alterado e de encontrar o comandante Wentworth.
A Sra. Musgrove e a Sra. Hayter eram irmãs. Tinham ambas dinheiro, mas os seus casamentos tinham ocasionado uma diferença significativa no lugar que passaram a ocupar na sociedade. O Sr. Hayter possuía alguns bens, mas estes eram insignificantes quando comparados com os do Sr. Musgrove e, enquanto os Musgrove estavam na primeira classe da sociedade, os jovens Hayter, devido ao estilo de vida inferior, reservado e pouco requintado dos pais e à sua própria instrução deficiente, não teriam pertencido a classe nenhuma se não fosse a sua ligação com Uppercross. O filho mais velho, que decidira tornar-se um estudioso e um cavalheiro, constituía uma exceção, e era muito superior a todos os outros em cultura e educação. As duas famílias sempre se tinham dado muito bem, não existindo, por parte de uns, qualquer orgulho nem, por parte dos outros, qualquer inveja; e as Meninas Musgrove sentiam alguma superioridade apenas na medida em que esta lhes conferia o prazer de educar os primos.
As atenções de Charles para com Henrietta tinham sido observadas pelos pais desta sem qualquer reprovação. Não seria um ótimo casamento; mas se Henrietta gostasse dele, e Henrietta parecia, de fato, gostar dele. A própria Henrietta pensava que gostava, antes de o comandante Wentworth aparecer; mas, a partir dessa altura, o primo Charles fora esquecido.
Tanto quanto Anne podia observar, ainda estava em dúvida qual das duas irmãs o comandante Wentworth preferia. Henrietta era talvez a mais bonita, Louisa a mais alegre, e agora ela não sabia se ele se sentiria mais atraído pela personalidade mais meiga, se pela mais alegre.
O Sr. e a Sra. Musgrove, quer por serem pouco observadores, quer por terem uma confiança total no discernimento das duas filhas e no de todos os jovens que se aproximavam delas, pareciam deixar tudo entregue ao acaso. Na Casa Grande não havia o menor indício de ansiedade ou preocupação da sua parte; mas, no chalé, as coisas eram diferentes; o jovem casal estava mais inclinado a especular e a admirar-se com a situação; e ainda o comandante Wentworth não tinha visitado os Musgrove quatro ou cinco vezes e Charles Hayter tinha acabado de regressar, já Anne se via obrigada a escutar as opiniões do cunhado e da irmã sobre qual das meninas ele gostava mais. Charles era a favor de Louisa, e Mary de Henrietta, mas concordavam os dois que seria maravilhoso se ele casasse com uma delas. Charles nunca tinha conhecido um homem mais agradável em toda a sua vida e, pelo que ouvira o próprio comandante Wentworth dizer, tinha a certeza de que ganhara mais de vinte mil libras com a guerra. Isto já constituía uma boa fortuna; além disso, havia a possibilidade de ganhar mais numa guerra futura, e ele estava seguro de que o comandante Wentworth era um homem que provavelmente se distinguiria entre os oficiais da Marinha. Oh! Seria um magnífico casamento para qualquer das duas irmãs.
- Não há dúvida de que seria - respondeu Mary. - Meu Deus! Se ele alcançasse grandes honras! Se fosse feito baronete! Lady Wentworth soa muito bem. Seria uma ótima coisa para Henrietta! Ela preceder-me-ia e Henrietta não desgostaria nada disso. Sir Frederick e Lady Wentworth! Mas seria um título novo, e eu nunca gostei muito de títulos novos.
Mary gostava de pensar que Henrietta era a preferida, por causa de Charles Hayter, a cujas pretensões ela desejava que fosse posto Fim. Ela sentia-se superior em relação aos Hayter, e achava que seria uma infelicidade que a ligação existente entre as famílias fosse reatada; seria muito triste para ela e para os filhos.
- Sabes? - disse ela -, não consigo pensar nele como um bom partido para Henrietta; e, considerando as alianças que os Musgrove têm feito, ela não tem o direito de desperdiçar a sua vida. Acho que nenhuma menina tem o direito de fazer uma escolha que possa ser desagradável e inconveniente para a parte principal da sua família, proporcionando relações indesejáveis aos que não estão habituados a elas. E, afinal, quem é Charles Hayter? Não passa de um cura de aldeia. Um partido muito pouco adequado para a Menina Musgrove de Uppercross.
O marido, porém, não concordava com ela neste ponto; pois, além de ter grande consideração pelo primo, Charles Hayter era o filho mais velho e via as coisas sob o ponto de vista de filho mais velho.
- Agora estás a dizer disparates, Mary - foi a sua resposta. -Pode não ser um grande partido para Henrietta, mas Charles tem uma boa possibilidade, através dos Spicer, de obter alguma coisa do bispo daqui a um ano ou dois; e deves lembrar-te de que ele é o filho mais velho; quando o meu tio morrer, ele vai receber uma boa herança. A propriedade de Winthrop tem mais de duzentos e cinquenta acres, além da quinta perto de Taunton, que possui alguma da melhor terra da região. Devo dizer que, com exceção de Charles, qualquer deles seria um partido muito desigual para Henrietta e, de fato, não poderia haver casamento; ele é o único possível; é um sujeito bom, com um bom feitio e, quando Winthrop lhe for parar às mãos, ele fará dela um local diferente e viverá de um modo muito diferente; e, com aquela propriedade, ele nunca será um homem de desprezar; é uma boa propriedade livre. Não, não; Henrietta podia arranjar um marido pior que Charles Hayter; e, se ela ficar com ele, e Louisa se casar com o comandante Wentworth, ficarei muito satisfeito.
- Charles pode dizer o que quiser- exclamou Mary para Anne, assim que ele saiu da sala -, mas seria chocante se Henrietta casasse com Charles Hayter; uma coisa muito má para ela, e ainda pior para mim; assim, seria muito desejá vel que o comandante Wentworth a fizesse esquecê-lo completamente, e tenho poucas dúvidas de que não o tenha feito. Ela mal reparou em Charles Hayter ontem. Gostaria que tivesses lá estado para ver o comportamento dela. E quanto à questão de o comandante Wentworth gostar tanto de Louisa como de Henrietta, é um disparate dizê-lo; porque ele gosta realmente mais de Henrietta. Mas Charles é tão teimoso! Gostaria que tivesses estado conosco ontem, pois poderias ter decidido quem tem razão, e tenho a certeza de que pensarias que sou eu, a não ser que estivesses resolvida a estar contra mim.
Um jantar em casa do Sr. Musgrove tinha sido a ocasião em que Anne deveria ter visto todas essas coisas; mas ela ficara em casa, com a dupla desculpa de uma dor de cabeça e de uma ligeira recaída do pequeno Charles. Ela só pensara em evitar o comandante Wentworth; mas o fato de ter escapado a ter servido de árbitro era uma vantagem adicional de uma noite sossegada. Quanto à opinião do comandante Wentworth, ela achava mais importante que ele tivesse a certeza dos seus sentimentos suficientemente cedo para não colocar em perigo a felicidade de qualquer das irmãs nem manchar a sua própria honra. Que decidisse se preferia Henrietta a Louisa ou Louisa a Henrietta. Qualquer delas seria, com toda a probabilidade, uma mulher afetuosa e de bom temperamento. A respeito de Charles Hayter, ela tinha a delicadeza de sentimentos que se sente magoada com a conduta leviana de uma jovem bem intencionada, e um coração que simpatizava com todo o sofrimento provocado por ela; mas se Henrietta tivesse chegado à conclusão de que se enganara quanto à natureza dos seus sentimentos, deveria comunicar essa alteração o mais depressa possível.
Charles Hayter tinha reparado em muita coisa no comportamento da prima que o perturbara e entristecera. Ela estimava-o demasiado para se mostrar tão distante que pudesse, em dois encontros, extinguir toda a esperança passada e fazê-lo sentir que só lhe restava manter-se afastado de Uppercross; mas houve uma alteração que se tornou alarmante quando ele concluiu que a causa provável era um homem como o comandante Wentworth. Ele estivera ausente apenas dois domingos e, quando se tinham separado, ele tinha-a deixado interessada, até mesmo tanto quanto ele, na perspectiva de deixar, em breve, o curato atual e obter, em vez desse, o de Uppercross. Parecera-lhe, na altura, que o que mais agradara a Henrietta era que o Dr. Shirley, o reitor que, durante mais de quarenta anos, tinha cumprido zelosamente todos os deveres do seu ministério, mas que já estava demasiado debilitado para muitos deles, estava decidido a nomear um coadjutor; ele iria tornar o curato o melhor possível, e prometera dá-lo a Charles Hayter. A vantagem de ter de vir apenas para Uppercross, em vez de ser obrigado a percorrer seis milhas para o lado oposto; de ter, em todos os aspectos, um curato melhor; de ficar ao serviço do prezado Dr. Shirley e de o prezado Dr. Shirley ser substituído nas tarefas que já não podia levar a cabo sem se fatigar imenso, era muito importante, até mesmo para Louisa, mas tinha sido quase tudo para Henrietta.
Quando ele voltou, o interesse pelo assunto tinha desaparecido. Louisa não pôde ouvir o seu relato de uma conversa que acabara de ter com o Dr. Shirley; ela estava à janela a ver se via o comandante Wentworth; e até mesmo Henrietta, quanto muito, só estava meio atenta e parecia ter esquecido todas as anteriores dúvidas e preocupações sobre o assunto.
- Bem, estou muito satisfeita, mas também sempre achei que ias conseguir; sempre pensei que o lugar seria teu. Nunca pensei que... sabes?, o Dr. Shirley teria de ter um coadjutor, e ele tinha-te prometido. Ele vem aí, Louisa?
Uma manhã, pouco depois do jantar em casa dos Musgrove em que Anne não estivera presente, o comandante Wentworth entrou na sala de visitas do chalé, em que ela se encontrava sozinha com o pequeno Charles, deitado no sofá. A surpresa de se encontrar quase a sós com Anne Elliot retirou a compostura habitual aos seus modos. Estremeceu e apenas conseguiu dizer:
-Pensei que as Meninas Musgrove estivessem aqui... a Sra. Musgrove disse-me que as encontraria aqui, antes de se dirigir à janela para se controlar e decidir como devia proceder.
- Elas estão lá em cima com a minha irmã; descerão dentro de momentos, creio - tinha sido a resposta de Anne, em toda a sua natural confusão, e, se o garoto não a tivesse chamado a pedir-lhe qualquer coisa, ela teria saído da sala no momento seguinte e libertado o comandante Wentworth e a si própria da embaraçosa situação.
Ele continuou à janela e, depois de dizer calma e educadamente -Espero que o pequeno esteja melhor-, ficou calado. Ela foi obrigada a ajoelhar-se ao pé do sofá e ficar ali para fazer a vontade ao doente; e assim continuaram durante alguns minutos até que, para sua grande satisfação, ouviu uma pessoa atravessar o pequeno vestíbulo.
Quando virou a cabeça, teve esperança de ver o dono da casa; mas era alguém que dificilmente tornaria a situação mais fácil - Charles Hayter, provavelmente não mais satisfeito de encontrar o comandante Wentworth do que o comandante ficara ao ver Anne.
Ela só tentou dizer:
- Como está? Não se querem sentar? As outras estarão cá dentro em pouco.
O comandante Wentworth afastou-se da janela, aparentemente disposto a conversar; mas Charles Hayter pôs rapidamente termo às suas tentativas, sentando-se perto da mesa e pegando no jornal; o comandante Wentworth voltou para junto da janela. No minuto seguinte, chegou mais uma personagem. O rapaz mais novo, uma criança espantosamente forte e irrequieta, com 2 anos, tinha conseguido que alguém lhe abrisse a porta e surgiu entre eles, dirigindo-se ao sofá para ver o que se estava a passar e reclamar os seus direitos sobre qualquer guloseima que estivesse a ser distribuída. Como não havia nada para comer, só lhe restava brincar; e, como a tia não o deixava arreliar o irmão doente, ele começou a agarrar-se a ela enquanto esta estava ajoelhada, de tal modo que, ocupada como estava com o pequeno Charles, ela não podia sacudi-lo.
Falou-lhe, ordenou, pediu e insistiu, mas em vão.
Por alguns momentos, conseguiu que ele se afastasse um pouco, mas o pequeno ainda se divertiu mais a trepar outra vez para cima das suas costas.
- Walter- disse ela -, desce imediatamente. Estás a ser impertinente. Estou muito zangada contigo.
- Walter- exclamou Charles Hayter-, por que não fazes o que te mandam? Não ouviste a tua tia? Vem cá, Walter, vem ao primo Charles. Mas Walter não se mexeu nem um pouco. No momento seguinte, porém, ela sentiu-se livre dele; alguém estava a tirá-lo de cima dela, embora ele se tivesse inclinado tanto sobre a sua cabeça que as mãozinhas gorduchas lhe davam a volta ao pescoço, e ele foi resolutamente afastado, antes de ela chegar a saber que fora o comandante Wentworth quem o fizera.
A emoção que sentiu ao descobri-lo deixou-a completamente sem fala. Ela nem sequer conseguiu agradecer-lhe. Só conseguiu ficar junto do pequeno Charles, sentindo-se muito perturbada. A amabilidade dele ao vir socorrê-la, a sua atitude, o silêncio em que tudo se passou, os pequenos pormenores, juntamente com a convicção que logo lhe ocorreu, pelo barulho que ele estava a fazer propositadamente com a criança, de que ele tencionava evitar ouvir os seus agradecimentos e procurava mostrar que o que menos queria era conversar com ela, produziram um turbilhão de sensações confusas e dolorosas de que só conseguiu recompor-se quando Mary e as Meninas Musgrove entraram, e ela pôde entregar a criança aos seus cuidados e sair da sala. Ela não podia ficar. Talvez fosse uma oportunidade para observar os amores e os ciúmes dos quatro; eles estavam agora todos juntos, mas ela não podia mesmo ficar.
Era evidente que Charles Hayter não gostava nada do comandante Wentworth. Ela teve a impressão de o ter ouvido dizer, num tom de voz irritado, depois da interferência do comandante Wentworth -Tu devias ter-me obedecido, Walter; eu disse-te que não arreliasses a tua tia-, e compreendeu que ele lamentava que o comandante Wentworth tivesse feito o que ele próprio deveria ter feito. Mas ela não estava interessada nos sentimentos de Charles Hayter nem nos de mais ninguém até conseguir ordenar os seus.
Sentiu-se envergonhada, envergonhada por estar tão nervosa, de ter ficado tão perturbada com uma ninharia; mas esta era a realidade, e ela precisava de algum tempo de solidão e reflexão para se recompor.
Não poderia deixar de haver outras oportunidades para fazer as suas observações. Pouco depois, Anne encontrou-se vezes suficientes na companhia dos quatro para conseguir formar uma opinião: teve, contudo, a sensatez de não a manifestar em casa, pois sabia que não iria agradar nem ao marido nem à mulher, uma vez que, embora achasse que Louisa era a preferida, tanto quanto ela podia julgar pela recordação e pela sua experiência, o comandante Wentworth não estava apaixonado por nenhuma delas. Elas estavam mais apaixonadas por ele; no entanto, isso não era amor. Era uma ligeira febre de admiração que, nalguns casos, talvez pudesse, talvez fosse mesmo, acabar em amor.
Charles Hayter parecia ter-se apercebido de ter sido relegado para segundo plano e, no entanto, Henrietta dava, por vezes, a impressão de se sentir dividida entre os dois. Anne desejava poder dizer-lhes o que se passava e de lhes fazer notar os perigos a que se expunham. Ela não atribuía qualquer malícia a nenhum deles. E constituía para ela motivo de satisfação acreditar que o comandante Wentworth não tinha a mínima noção do sofrimento que estava a provocar. Não havia nos seus modos qualquer ar de triunfo, nem de triunfo associado à pena. Ele, provavelmente, nunca tinha ouvido falar nas pretensões de Charles Hayter, nem nunca imaginara que elas existissem. Ele só procedera mal em aceitar as atenções (pois a palavra correta era aceitar) das duas jovens ao mesmo tempo.
Depois de uma breve luta, porém, Charles Hayter pareceu abandonar o campo. Passaram-se três dias sem que viesse a Uppercross, o que constituiu uma notável transformação. Ele tinha até recusado um convite para jantar; e, quando o Sr. Musgrove o encontrou com uma pilha enorme de livros à sua frente, o Sr. e a Sra. Musgrove acharam que algo errado se passava e comentaram, com rostos graves, que ele se matava a estudar. Mary tinha esperança e fé em que ele tivesse recebido uma recusa definitiva por parte de Henrietta, e o marido vivia na esperança permanente de o ver no dia seguinte. Anne limitava-se a pensar que Charles Hayter era sensato.
Uma manhã, por volta desta altura, Charles Musgrove e o comandante Wentworth tinham ido caçar juntos, e as duas irmãs estavam sentadas a trabalhar tranquilamente, quando as irmãs da Casa Grande surgiram à janela. Era um belo dia de Novembro, e as Meninas Musgrove atravessaram o jardim e pararam só para dizer que iam dar um Longo passeio e achavam, portanto, que Mary não gostaria de ir com elas; e, quando Mary respondeu imediatamente, com algum despeito por acharem que ela não gostava de dar passeios longos: -Oh, sim, gostaria muito de ir convosco, gosto muito de dar passeios longos-, Anne ficou convencida, pelos olhares das duas meninas, de que era isso precisamente o que não desejavam; ela sentiu-se de novo admirada com o tipo de necessidade que os hábitos familiares pareciam produzir, de tudo ser comunicado, de tudo ser feito em conjunto, por mais indesejado e inconveniente que isso fosse.
Ela tentou dissuadir Mary de ir, mas em vão; e, assim, achou melhor aceitar o convite muito mais cordial que as Meninas Musgrove lhe fizeram para que também fosse, pois poderia ser útil para voltar para trás com a irmã ou diminuir a sua influência em qualquer plano que elas tivessem em mente.
- Não consigo imaginar por que é que elas haviam de pensar que eu não gostaria de dar um passeio longo! - disse Mary, ao subir as escadas. - Toda a gente acha que eu não gosto de andar muito! E, no entanto, elas não teriam ficado satisfeitas se eu me tivesse recusado a acompanhá-las. Quando nos vêm convidar assim, de propósito, como podemos recusar? No momento em que elas iam sair, os cavalheiros regressaram.
Tinham levado um cão novo que lhes estragara o desporto e os tinha feito voltar cedo. Por isso, tinham o tempo, a energia e a disposição exatas para um passeio, e juntaram-se a elas com prazer. Se tivesse previsto aquela companhia, Anne teria ficado em casa; mas, sentindo algum interesse e curiosidade, ela achou que era demasiado tarde para voltar atrás, e os seis seguiram na direção escolhida pelas Meninas Musgrove, que, evidentemente, consideravam que o passeio estava sob sua orientação. A intenção de Anne era não se atravessar no caminho de ninguém e, sempre que os trilhos estreitos através dos campos tornassem necessária a separação, manter-se junto do cunhado e da irmã. O prazer do passeio deveria provir do exercício e do dia, da visão dos últimos sorrisos do ano sobre as folhas acastanhadas e as sebes encarquilhadas e de repetir para si própria algumas das mil descrições poéticas do Outono, aquela estação que exercia uma tão singular e inexauável influência sobre os espíritos requintados e sensíveis, a estação que inspirava em todos os poetas que merecem ser lidos uma tentativa de descrição ou uns versos cheios de sentimento.
Ela ocupou a mente o mais possível com estas reflexões ou citações, mas, quando estava ao alcance da conversa do comandante Wentworth com qualquer das Meninas Musgrove, era impossível não a ouvir, no entanto, ouviu muito pouco que tivesse interesse. Era apenas uma conversa animada como a de quaisquer jovens amigos. Ele conversava mais com Louisa do que com Henrietta. Louisa certamente se esforçava mais por atrair a sua atenção do que a irmã. Esta diferença pareceu aumentar, e houve uma frase de Louisa que a impressionou.
Depois de um dos muitos louvores ao dia que eram constantemente proferidos, o comandante Wentworth exclamou:
- Que tempo maravilhoso para o almirante e para a minha irmã! Eles tencionavam ir dar um longo passeio de carruagem esta manhã; talvez os consigamos avistar de algumas destas colinas. Falaram em vir para esta zona. Onde será que eles vão virar hoje? Oh, isso acontece com muita frequência, garanto-lhe, mas a minha irmã não se importa... tanto lhe faz ser cuspida como não.
- Ah! Está a exagerar, eu sei - exclamou Louisa -, mas, se isso fosse realmente verdade, no seu lugar eu faria o mesmo. Se eu amasse um homem, como ela ama o almirante, estaria sempre junto dele, nada nos separaria, e eu preferia que a carruagem se voltasse com ele do que ser conduzida em segurança por qualquer outra pessoa. Estas palavras foram ditas com entusiasmo.
- Preferia? - exclamou ele, no mesmo tom. - Presto-lhe as minhas homenagens! - E, durante algum tempo, fez-se silêncio entre eles.
Anne não conseguiu, de imediato, lembrar-se de uma nova citação. As doces cenas outonais teriam de ser postas de lado durante algum tempo - a não ser que lhe viesse à mente algum soneto cheio de analogias com o ano em declínio, com a felicidade em declínio e com imagens de juventude, esperança e Primavera, tudo junto. Quando enveredaram, em fila, por outro caminho, ela conseguiu dizer:
- Este não é um dos caminhos para Winthrop? - Mas ninguém ouviu ou, pelo menos, pareceu ouvir. Winthrop, porém, ou os seus arredores - pois os primos andavam, por vezes, a passear perto de casa-, era realmente o seu destino, e, após outra meia milha de subida gradual por entre enormes cercados, em que as charruas em atividade e os sulcos recentemente abertos indicavam que o lavrador reagia contra o doce destimo poético e tinha em vista o renascer da Primavera, chegaram ao topo da enorme colina que separava Uppercross de Winthrop e avistaram esta última, no sopé da colina em frente.
Winthrop, sem beleza e sem dignidade, estendia-se à sua frente; uma casa baixa, sem qualquer característica especial e rodeada por celeiros e construções agrícolas. Mary exclamou:
- Deus do Céu! Aqui está Winthrop... não fazia a mínima idéia!... bem, acho que é melhor voltarmos para trás, estou extremamente cansada. Henrietta, tímida e envergonhada, e não vendo o primo Charles Hayter a passear por nenhum atalho ou encostado a um portão, estava disposta a fazer o que Mary queria; mas Não", disse Charles Musgrove. “Não, não!", exclamou Louisa num tom ainda mais ansioso; e, chamando a irmã de parte, pareceram discutir acaloradamente o assunto.
Charles, entretanto, estava a manifestar a sua intenção de visitar a tia, já que se encontrava tão perto; e, muito evidentemente, embora um tanto receoso, a tentar convencer a mulher a ir também. Mas este foi um dos pontos em que a dama mostrou a sua resistência e, quando ele lhe fez ver a vantagem de descansar cerca de um quarto de hora em Winthrop, uma vez que se sentia tão cansada, ela respondeu resolutamente: Oh, não, absolutamente não! Subir outra vez a colina far-lhe-ia mais mal do que o bem que lhe faria sentar-se¯, e, pelo seu ar e atitude, era óbvio que não iria. Após uma breve sucessão de debates e consultas deste gênero, ficou acordado entre Charles e as irmãs que ele e Henrietta desceriam rapidamente até lá para fazerem uma curta visita de alguns minutos à tia e aos primos, enquanto o resto do grupo os aguardaria no topo da colina.
Louisa pareceu ser a principal organizadora do plano; e, enquanto ela os acompanhava um pouco na descida da colina, ainda a conversar com Henrietta, Mary aproveitou a oportunidade para olhar desdenhosamente em volta e dizer ao comandante Wentworth:
- É muito desagradável termos parentes destes! Mas garanto-lhe que, em toda a minha vida, não estive em casa deles mais de duas vezes.
A única resposta que recebeu foi um sorriso forçado de condescendência, seguido de um olhar desdenhoso que ele lhe lançou ao afastar-se e cujo significado Anne conhecia perfeitamente.
O cimo da colina em que ficaram era um local agradável; Louisa voltou, e Mary, tendo encontrado um lugar confortável para se sentar, no degrau de um valado, sentiu-se satisfeita enquanto teve toda a gente à sua volta; mas quando Louisa levou consigo o comandante Wentworth para ir procurar avelãs que tivessem Ficado esquecidas numa sebe próxima, e elas deixaram, a pouco e pouco, de os ver e ouvir, Mary deixou de estar contente; aborreceu-se com o local em que estava sentada - tinha a certeza de que Louisa encontrara um melhor algures e nada pôde impedi-la de ir também procurar outro. Ela passou o mesmo portão - mas não conseguia vê-los. Anne encontrou um local agradável para ela, num talude seco e soalheiro, debaixo da sebe, onde ela sabia que eles se encontrariam- algures.
Mary sentou-se durante algum tempo, mas não estava bem; tinha a certeza de que Louisa encontrara um lugar melhor em qualquer outro local, e continuaria a procurá-la até a encontrar.
Anne, realmente muito cansada, ficou contente por se poder sentar; e, pouco depois, ouviu o comandante Wentworth e Louisa na sebe atrás de si, a fazerem o caminho de regresso ao longo da espécie de túnel bravio que se formara no meio. Eles conversavam enquanto se aproximavam. Distinguiu primeiro a voz de Louisa. Ela parecia estar no meio de um animado discurso. O que Anne ouviu primeiro foi:
- E, assim, eu fi-la ir. Não podia suportar que ela não fizesse a visita por causa de um disparate daqueles. Eu alguma vez desistiria de fazer uma coisa que decidira fazer e que sabia estar certa por causa da atitude e da interferência de uma pessoa assim, ou de qualquer pessoa? Não, eu não me deixo ser tão facilmente persuadida. Quando me decido, está decidido. E Henrietta parecia ter decidido ir a Winthrop... e, no entanto, quase desistiu por causa de uma complacência sem sentido.
- Se não fosse Louisa, ela teria voltado para trás?
- Teria, sim, quase me sinto embaraçada por ter de o dizer.
- Que sorte a dela, ter um espírito decidido como o seu por perto. Depois do que acabou de me dizer e que apenas confirmou o que eu próprio já observara na última vez que estive ao pé dele, não preciso de fingir que não compreendo o que se está a passar. Vejo que o que estava em causa era mais do que uma visita matinal de cortesia à vossa tia; e, se ela não tiver a determinação suficiente para resistir a interferências sem sentido em ninharias como esta, coitado dele, e dela também, quando se tratar de coisas realmente importantes, quando se virem perante circunstâncias que exijam coragem e força de espírito. A sua irmã é uma pessoa simpática, as estou a ver que não tem a sua firmeza e determinação de caráter. Se dá valor à conduta e felicidade dela, infunda-lhe a maior firmeza de espírito que puder. Mas isto é, sem dúvida, o que sempre fez. O pior defeito de um caráter fraco e indeciso é que não se pode confiar na influência que exercemos sobre ele. Nunca se pode ter a certeza de que uma boa impressão seja duradoura.
Toda a gente a pode alterar; quem quiser ser feliz tem de ser firme. Aqui está uma avelã- disse ele, apanhando uma de um ramo alto. - Tomemo-la como exemplo... uma bela avelã brilhante, que, com o dom da sua força original, sobreviveu a todas as tempestades do Outono. Nem um buraquinho, nem um ponto fraco em toda ela. Enquanto muitas das suas irmãs caíram e foram pisadas - prosseguiu ele num tom de divertida solenidade -, esta avelã ainda possui toda a felicidade que se supõe que uma avelã seja capaz de sentir. - Depois, voltando ao seu tom sério: - O meu primeiro desejo para todas as pessoas por quem me interesso é que sejam firmes. Para que Louisa Musgrove seja bela e feliz no Outono da sua vida, é necessário que alimente com carinho todas as suas qualidades atuais.
Ele terminou e não recebeu qualquer resposta. Anne teria ficado surpreendida se Louisa tivesse conseguido responder com prontidão a um tal discurso - palavras com tanto interesse, ditas com tanta seriedade e calor. Conseguia imaginar o que Louisa estava a sentir. Quanto a ela própria – receou mexer-se, com medo de que a vissem. Enquanto permanecesse onde estava, um arbusto de azevinho rasteiro protegia-a, e eles estavam a afastar-se. Antes de deixar de os poder ouvir, porém, Louisa voltou a falar:
- Mary é uma pessoa bastante boa em muitos aspectos – disse ela -, mas por vezes irrita-me imenso, com toda a sua tolice e orgulho, o orgulho dos Elliot. Ela tem muito do orgulho dos Elliot. Nós preferíamos que Charles se tivesse casado com Anne. Suponho que sabe que ele queria casar com Anne!?
Após uma breve pausa, o comandante Wentworth disse:
- Quer dizer que ela não aceitou?
- Oh!, sim, certamente que sim.
- Quando é que isso sucedeu?
- Não sei exatamente, porque eu e Henrietta andávamos no colégio nessa altura, mas creio que foi cerca de um ano antes de ele se ter casado com Mary. Quem me dera que ela o tivesse aceitado. Pelo menos, teríamos gostado mais dela; e o papá e a mamã sempre acharam que foi por culpa da grande amiga dela, Lady Russell, que ela não aceitou. Eles pensam que Charles talvez não fosse suficientemente instruído e letrado para agradar a Lady Russell e que, por isso, ela convenceu Anne a não aceitar.
Os sons estavam a afastar-se, e Anne deixou de os ouvir. As suas próprias emoções mantiveram-na pregada ao chão. Levou bastante tempo a recompor-se e a conseguir mover-se. Não tivera a proverbial sorte de quem escuta o que não deve; não ouvira falar mal de si - mas ouvira muita coisa que lhe causava uma profunda dor. Ficou a saber o que o comandante Wentworth pensava do seu caráter; e tinham transparecido nele alguns sentimentos e uma certa curiosidade a respeito dela que lhe provocavam uma enorme agitação. Assim que pôde, foi à procura de Mary, e, quando a encontrou, voltou com ela para o primeiro lugar em que tinham estado sentadas, junto do degrau; sentiu um certo alívio pelo fato de todo o grupo se ter novamente reunido pouco depois e de terem todos retomado o passeio. O seu espírito precisava da solidão e do silêncio que só se pode encontrar no meio de muita gente.
Charles e Henrietta voltaram, trazendo com eles Charles Hayter, como se poderia calcular. Anne não tentou compreender os pormenores do que se passara, e pareceu que estes não foram relatados nem mesmo ao comandante Wentworth; mas tinha havido um recuo por parte do cavalheiro e alguma concessão por parte da dama, e não restava qualquer dúvida de que eles se sentiam contentes por se encontrarem juntos de novo. Henrietta parecia um pouco envergonhada, mas muito satisfeita, e Charles Hayter extremamente feliz, e, quase a partir do momento em que iniciaram o regresso a Uppercross, dedicaram-se exclusivamente um ao outro. Tudo indicava agora que o comandante Wentworth escolhera Louisa; nada era mais evidente; e, quando era necessário o grupo dividir-se, e mesmo quando não era, eles seguiam lado a lado, quase com tanta frequência como os outros dois.
Num extenso prado em que havia muito espaço para todos eles, seguiram assim divididos - formando três grupos distintos; e Anne estava necessariamente incluída no grupo dos três que manifestavam menos alegria e menos amabilidades. Ela juntou-se a Charles e a Mary e, como se sentia bastante cansada, aceitou de bom grado o outro braço de Charles - mas Charles, embora muito bem-disposto quando se dirigia a ela, estava irritado com a mulher. Mary tinha-se mostrado pouco prestimosa e ia agora sofrer as consequências, as quais consistiam em ele deixar cair constantemente o braço para cortar os topos das urtigas da sebe com uma vara; e, quando Mary começou a queixar-se e a lamentar-se de ser maltratada, como de costume, por ir do lado da sebe, enquanto Anne nunca era incomodada no outro lado, ele deixou cair os braços de ambas, foi atrás de uma doninha que tinha visto de relance e não voltou a fazer-lhes companhia.
Este longo prado era contornado por uma estrada que o carreiro por onde seguiam ia cruzar; e, quando o grupo chegou à cancela de saída, viram aproximar-se a carruagem que seguia na mesma direção e que ouviam há já algum tempo; era o cabriolé do almirante Croft. Ele e a mulher tinham dado o passeio planejado e estavam de regresso a casa. Quando tiveram conhecimento da longa caminhada que os jovens tinham feito, ofereceram amavelmente um lugar à senhora que estivesse particularmente cansada; isso poupar-lhe-ia uma milha inteira, e eles iam passar por Uppercross. O convite foi dirigido a todas, e por todas recusado. As Meninas Musgrove não estavam absolutamente nada cansadas, e Mary, ou se sentia ofendida por não ter sido convidada antes de qualquer das outras, ou aquilo a que Louisa chamava o orgulho dos Elliot não podia suportar ser o terceiro ocupante de um cabriolé de um só cavalo.
O grupo a pé já tinha atravessado a estrada e subia o talude em frente; o almirante estava a pôr o cavalo em movimento quando o comandante Wentworth atravessou rapidamente a sebe e disse qualquer coisa à irmã. As palavras poderão ser adivinhadas pelo efeito causado.
- Menina Elliot, tenho a certeza de que a menina está cansada - exclamou a Sra. Croft. - Dê-nos o prazer de a levarmos a casa. há bastante espaço para três pessoas, garanto-lhe. Se fôssemos todos iguais a si, acho que nos podíamos sentar quatro. Venha, por favor.
Anne ainda estava na estrada e, embora tivesse instintivamente começado a recusar, não a deixaram prosseguir. A amável insistência do almirante veio juntar-se à da mulher; eles não aceitariam uma recusa; apertaram-se o mais possível para arranjar espaço para ela a um canto, e o comandante Wentworth, sem dizer uma palavra, virou-se para ela e, em silêncio, obrigou-a a aceitar a sua ajuda para subir para a carruagem. Sim, ele fizera-o. Ela estava dentro da carruagem e sentia que ele a colocara lá, que a vontade e as mãos dele o tinham feito, que estava ali devido ao fato de ele ter compreendido o seu cansaço e de ter decidido fazê-la descansar. Sentiu-se emocionada com os sentimentos dele a seu respeito que todas estas coisas tornavam evidentes.
Esta pequena circunstância parecia o remate de tudo o que acontecera antes. Ela compreendia-o. Ele não conseguia perdoar-lhe - mas não podia ficar insensível. Embora condenando-a pelo passado, e recordando este com um ressentimento exacerbado e injusto, embora ela lhe fosse indiferente, embora ele estivesse a afeiçoar-se a outra, mesmo assim, ele não conseguia vê-la sofrer sem desejar aliviar-lhe o sofrimento. Era uma réstia dos antigos sentimentos; era, embora inconsciente, um impulso de amizade pura; era uma prova do seu coração generoso em que ela não conseguia pensar sem emoções, em que o prazer e a dor se misturavam de tal forma que ela não sabia qual era dominante.
As suas respostas à gentileza e aos comentários dos companheiros foram, a princípio, dadas sem pensar. Tinham j percorrido metade do caminho ao longo da estrada rural quando começou a escutar com atenção o que eles diziam. Viu que conversavam sobre Frederick.
- Ele certamente tenciona casar com uma daquelas duas meninas, Sophy - dizia o almirante -, mas não sei qual. Acho que ele já anda atrás delas há tempo suficiente para se decidir. Ah, isto é resultado da paz. Se estivéssemos agora em guerra, há muito que ele teria tomado uma decisão. Nós, marinheiros, Menina Elliot, não nos podemos dar ao luxo de ter namoros longos em tempo de guerra. Quantos dias decorreram, querida, entre o primeiro dia em que te vi e aquele em que nos encontrámos nos nossos aposentos em North Yarmouth?
- O melhor não falarmos nisso, querido - respondeu a Sra. Croft num tom alegre-, porque, se a Menina Elliot soubesse com que rapidez nos entendemos, ela nunca acreditaria que pudéssemos ter sido felizes juntos. Mas eu já conhecia a tua reputação há muito tempo.
- Bem, e eu tinha ouvido dizer que eras uma menina muito bonita; de que é que havíamos de ficar à espera? Não gosto de andar muito tempo com estas coisas pendentes. Quem me dera que Frederick se decidisse e trouxesse uma dessas jovens para Kellynch. Assim, elas teriam sempre companhia. E são ambas jovens muito simpáticas; mal distingo uma da outra.
- São, de fato, meninas alegres e simples - disse a Sra. Croft num tom de elogio mais comedido, o qual levou Anne a desconfiar de que ela, mais observadora, talvez não considerasse nenhuma das meninas dignas do seu irmão -, e é uma família muito respeitável, Frederick não se poderia ligar a gente melhor. Meu querido almirante, o poste! Vamos de certeza bater nele.
Mas dando, ela própria, calmamente, uma melhor direção às rédeas, evitaram o perigo; e, depois disso, uma vez, estendendo criteriosamente a mão, evitou que caíssem numa valeta e não chocassem com uma carroça de estrume; e Anne, divertida com o estilo de condução de ambos, que ela imaginou retratar o modo como os seus negócios eram conduzidos, viu-se depositada por eles, em segurança, no chalé.
Aproximava-se a altura do regresso de Lady Russell; o dia estava já marcado e Anne, decidida a ir reunir-se a ela assim que ela estivesse instalada, sentia-se ansiosa por ir para Kellynch, e começava a pensar em como a mudança iria afetar a sua tranquilidade. Ela iria viver na mesma aldeia que o Comandante Wentworth, a menos de meia milha dele; eles teriam de frequentar a mesma igreja, e teria de haver relações sociais entre as duas famílias. Isto era um contra; mas, por outro lado, ele passava tanto tempo em Uppercross que quase se poderia considerar que, ao sair de lá, ela estava a afastar-se e não a aproximar-se dele. E, feitas as contas, ela achava que, no que dizia respeito a esta interessante questão, ficava a ganhar, o mesmo sucedendo quanto à mudança de companhia, ao trocar a pobre Mary por Lady Russell. Ela desejava que fosse possível evitar ver o comandante Wentworth no Solar.
Aquelas salas tinham presenciado encontros anteriores cuja recordação seria demasiado dolorosa para ela; mas causava-lhe ainda maior ansiedade a possibilidade de Lady Russell e o comandante Wentworth se encontrarem. Eles não gostavam um do outro, e nada de proveitoso resultaria da renovação do seu conhecimento; e Lady Russell, se os visse juntos, talvez pensasse que ele estava demasiado seguro de si, e ela demasiado pouco.
Estas questões constituíam a sua principal preocupação quando pensava que ia deixar Uppercross, onde achava que estivera já tempo suficiente. O fato de ter sido útil ao pequeno Charles conferiria sempre alguma doçura à recordação
da visita de dois meses, mas ele estava a restabelecer-se rapidamente, e não havia qualquer outro motivo que a prendesse ali. A estada, porém, teve um final diferente, como ela nunca imaginara.
O comandante Wentworth, depois de não ter sido visto em Uppercross nem dado notícias durante dois dias, voltou a aparecer e justificou-se, relatando o que o mantivera ausente. Uma carta do seu amigo, o comandante Harville, que lhe chegara finalmente às mãos, dera-lhe conta de que o comandante se instalara com a família em Lyme, para aí passar o Natal; e eles estavam, por conseguinte, sem o saberem, a menos de vinte milhas um do outro. O comandante Harville nunca mais gozara de boa saúde desde que fora gravemente ferido dois anos antes, e o comandante Wentworth estava tão ansioso por voltar a vê-lo que decidira ir imediatamente a Lyme. Estivera lá vinte e quatro horas.
A absolvição foi completa, a sua amizade foi calorosamente homenageada, e foi despertada uma enorme curiosidade a respeito do amigo; e a sua descrição das belas paisagens em redor de Lyme foi escutada com tanto interesse que o resultado foi um enorme desejo de eles conhecerem Lyme e um projeto de um passeio até lá. Os jovens estavam ansiosos por conhecer Lyme.
O comandante Wentworth falou em voltar lá outra vez; ficava apenas a dezassete milhas de Uppercross; embora estivessem em Novembro, o tempo não estava mau; e, em resumo, Louisa, que era a mais ansiosa dos ansiosos, tinha decidido ir; além do prazer de fazer o que queria, ela estava agora fortalecida com a idéia de que era meritório não ceder e, assim, rebateu todas as razões do pai e da mãe para adiarem o passeio até ao Verão; deste modo, decidiram ir a Lyme - Charles, Mary, Anne, Henrietta, Louisa e o comandante Wentworth. O primeiro plano, bastante insensato, era irem de manhã e voltarem à noite, mas o Sr. Musgrove não concordou com ele, por causa dos cavalos; e, pensando racionalmente, um dia de meados de Novembro não deixaria muito tempo para ver um novo local, depois de deduzidas sete horas para ir e vir, como a natureza do terreno exigia. Por conseguinte, eles passariam lá a noite e só deveriam voltar no dia seguinte, à hora do jantar.
Isto foi considerado uma alteração considerável; e, embora se tivessem reunido todos na Casa Grande a uma hora muito matutina e tivessem partido pontualmente, passava muito do meio-dia quando as duas carruagens, a do Sr. Musgrove com as quatro senhoras e o cabriolé de Charles em que este levava o comandante Wentworth, desciam a longa colina para Lyme e entravam na rua, ainda mais íngreme, da cidade em si; era evidente que só teriam tempo de dar uma vista de olhos em redor antes de a luz e o calor do Sol desaparecerem.
Depois de terem encontrado alojamento e encomendado jantar numa das hospedarias, o passo seguinte era, inquestionavelmente, dirigirem-se imediatamente ao mar. Era demasiado tarde no ano para quaisquer diversões ou espetáculos que Lyme, como local público, pudesse oferecer: as casas para alugar estavam fechadas, os hóspedes tinham-se ido quase todos embora, já poucas famílias restavam para além das ali residentes. E, como nÆo havia nada para admirar nos edifícios em si, os olhos dos viajantes espraiaram-se pela magnífica localização da cidade, pela rua principal, que parecia correr apressadamente para a água, pelo caminho até ao Cobb, que rodeava a pequena e agradável baía que na época alta se animava com barracas e banhistas, pelo Cobb em si, as suas maravilhas e novos melhoramentos, com a bela linha de rochedos a alongar-se para o leste da cidade; e só um estranho muito estranho não veria os encantos dos arredores próximos de Lyme e teria vontade de os conhecer melhor. As paisagens de Charmouth, corxi os seus belos parques e longas extensões de terreno e, ainda mais, a encantadora e tranquila baía rodeada de rochedos escuros, onde os fragmentos de rochas no meio da areia fazem dela o melhor local para ver a maré encher, para ficará sentado em contemplação; os bosques da alegre aldeia de Up Lyme, com inúmeras variedades de árvores, e, sobretudo, Pinny, com os seus abismos verdejantes no meio de rochas românticas, em que as árvores da floresta e os pomares de luxuriante exuberância afirmam que muitas gerações se devem ter sucedido desde que a primeira queda parcial do rochedo preparou a terra para esta maravilhosa e encantadora paisagem, que se compara favoravelmente com paisagens semelhantes da famosa ilha de Wight; estes locais têm de ser visitados e revisitados, para se poder compreender o valor de Lyme.
O grupo de Uppercross desceu a rua, passando pelas casas agora desertas e de aspecto melancólico, e, continuando a descer, encontrou-se pouco depois à beira-mar; ali, demorou-se um pouco, como todos os que são dignos de contemplar o mar se devem demorar a contemplá-lo quando o voltam a ver; seguiram depois em direção ao Cobb, igualmente um objetivo em si, devido ao relato do comandante Wentworth; pois os Harville tinham-se instalado numa pequena casa próxima da base do velho molhe, de data desconhecida.
O comandante Wentworth foi visitar o amigo, tendo os outros prosseguido o passeio e ele ficado de ir ter com eles ao Cobb. Não se tinham ainda cansado de se maravilhar e de admirar, e nem sequer Louisa parecera achar que se tinham separado do comandante Wentworth há muito tempo, quando o viram vir ter com eles, acompanhado por três pessoas que já conheciam bem de nome: o comandante e a Sra. Harville e um comandante Benwick, que estava hospedado em casa deles. O comandante Benwick tinha, há algum tempo, sido primeiro-tenente do Lavônia, e a descrição que o comandante Wentworth fizera dele quando regressara de Lyme, os calorosos elogios que lhe fizera como um excelente jovem e oficial que ele sempre prezara, tinham granjeado a estima de todos os ouvintes; aquela descrição fora seguida de um breve historia da sua vida privada, o que o tornou muitíssimo interessante aos olhos das senhoras. Ele tinha estado noivo da irmã do comandante Harville e agora chorava a sua morte.
Eles tinham ficado um ano ou dois à espera de fortuna e promoção. A fortuna chegou, uma vez que, como tenente, a sua percentagem do dinheiro resultante da venda das presas marítimas era elevada; a promoção veio também, finalmente; mas Fanny Harville não chegou a sabê-lo. Morrera no ano anterior, enquanto ele estava no mar. O comandante Wentworth achava que era impossível um homem gostar mais de uma mulher do que o pobre Benwick gostara de Fanny Harville, ou sofrer mais com a terrível situação. Ele considerava que a sua maneira de ser era das que mais sofrem, aliando sentimentos muito fortes a modos calmos, sérios e retraídos, um gosto pela leitura e ocupações sedentárias. Para completar o interesse da história, a amizade entre ele e os Harville parecia, se é que isso era possível, ter aumentado com o acontecimento que pôs termo a todas as perspectivas de parentesco, e o comandante Benwick vivia agora com eles.
O comandante Harville alugara a casa por meio ano. Os seus gostos, saúde e rendimentos levaram-no a escolher uma casa barata junto do mar; e a magnificência da região e o sossego de Lyme no Inverno pareciam adaptar-se exatamente ao estado de espírito do comandante Benwick. A simpatia e a estima que sentiam pelo comandante Benwick era enorme. -E, no entanto-, disse Anne para si própria enquanto avançavam para cumprimentar o grupo, talvez o seu coração não esteja mais pesaroso que o meu. Não acredito que tenha perdido a esperança para sempre. Ele é mais novo que eu; mais novo em sentimentos se não, de fato, mais novo na idade. Há de ganhar ânimo e ser feliz com outra.- Eles encontraram-se todos e foram apresentados. O comandante Harville era um homem alto e moreno, com um aspecto sensato e bondoso; coxeava um pouco. E, devido às feições vincadas e à falta de saúde, parecia muito mais velho que o comandante Wentworh.
O comandante Benwick parecia ser, e era, o mais novo dos três, e era também, em comparação com qualquer dos outros, um homem pequeno. Tinha um rosto agradável e um ar melancólico, como se esperava que tivesse, e não participou na conversa.
O comandante Harville, embora não tivesse os modos elegantes do comandante, era um perfeito cavalheiro, sem afetação, sincero e obsequioso. A Sra. Harville, um pouco menos polida que o marido, parecia, porém, ter os mesmos bons sentimentos, e nada podia ser mais agradável que o desejo de ambos de considerarem todo o grupo como seus amigos, por serem amigos do comandante Wentworth, nem mais hospitaleiro do que a sua insistência para que prometessem jantar com eles. O jantar já encomendado na hospedaria foi, porém, finalmente, embora a contra-gosto, aceite como desculpa; mas eles pareceram quase magoados por o comandante Wentworth ter trazido o grupo a Lyme sem pensar que o mais natural era que jantassem em casa deles.
Havia, em tudo isto, uma tão grande amizade pelo comandante Wentworth e um encanto tão fascinante nesta hospitalidade tão invulgar, tão diferente do estilo habitual de troca de convites e dos jantares de formalidades e exibicionismo, que Anne sentiu que o seu estado de espírito não iria beneficiar se conhecesse mais dos seus amigos oficiais. -Estes podiam ter sido todos meus amigos-, foi o seu pensamento; e teve de lutar contra uma enorme tendência para se sentir deprimida.
Depois de deixarem o Cobb, foram todos a casa dos seus novos amigos e encontraram uns aposentos tão pequenos que só os que convidam do fundo do coração consideram capazes de acomodar tanta gente. Por um momento, Anne ficou admirada; mas foi só um momento, e esse espanto em breve se dissipou no meio de sensações mais agradáveis quando reparou nos esforços engenhosos do comandante Harville e no belo trabalho que ele fizera para tirar o maior partido possível do pouco espaço existente, para suprir as deficiências do mobiliário da casa
alugada e para proteger as portas e as janelas contra as prováveis tempestades de Inverno. Anne sorriu perante a diversidade da decoração dos aposentos, em que as peças de mobiliário essenciais colocadas com indiferença pelo proprietário contrastavam com algumas peças de madeiras raras, magnificamente trabalhadas, e com interessantes e valiosos objetos de todos os países distantes que o comandante Harville visitara; estava tudo relacionado com a sua profissão, com os frutos do seu trabalho e com a influência deste nos seus hábitos, e a imagem de tranqüilidade e felicidade familiar que refletia provocou em Anne uma sensação semelhante à de prazer.
O comandante Harville não lia muito; mas ele arranjara um excelente local e fizera umas prateleiras muito bonitas para uma razoável coleção de livros bem encadernados pertencentes ao comandante Benwick. O fato de coxear impedia-o de fazer muito exercício físico, mas um espírito engenhoso e prático parecia mantê-lo constantemente ocupado dentro de casa. Ele desenhava, envernizava, fazia trabalhos de carpintaria, colava; fazia brinquedos para as crianças, inventava lançadeiras e cavilhas aperfeiçoadas; e, quando tudo o mais estava feito, sentava-se a um canto a fazer uma enorme rede de pesca.
Quando saíram da casa, Anne pensou que deixara uma grande felicidade atrás de si; e Louisa, que caminhava a seu lado, desatou a tecer elogios exaltados à Marinha - à sua amabilidade, à sua fraternidade, à sua franqueza, à sua retidão -, afirmando que estava convencida de que os homens da Marinha tinham mais valor e entusiasmo do que quaisquer homens de Inglaterra; só eles sabiam viver, e só eles mereciam ser respeitados e amados.
Regressaram à hospedaria para se vestirem e jantarem; e os preparativos tinham sido tão bem feitos que não faltava nada; apesar de estarem completamente fora da estação- e de não haver qualquer movimento em Lyme- e de não esperarem companhia; coisas pelas quais os donos da hospedaria pediram muitas e profusas desculpas. Por esta altura, Anne já se sentia mais à vontade na companhia do comandante Wentworth do que a princípio imaginara ser possível, e estar sentada à mesma mesa que ele, trocando as amabilidades habituais (nunca passavam disso) já não a perturbava.
As noites estavam demasiado escuras para as senhoras se voltarem a encontrar antes do dia seguinte, mas o comandante Harville tinha prometido vir visitá-los ao serão; e ele veio e trouxe o amigo, com o que eles não contavam, pois tinham concordado que o comandante Benwick tinha todo o ar de se entir oprimido com a presença de tantos desconhecidos. No ntanto, ele aventurara-se a estar no meio deles, embora o seu stado de espírito não parecesse enquadrar-se na alegria geral do grupo. Enquanto os comandantes Wentworth e Harville conduziam a conversa num lado da sala e recordavam os tempos antigos, contando histórias suficientes para ocupar e divertir os outros, Anne ficou um pouco à parte com o comandante Benwick; um generoso impulso levou-a a entabular conversa com ele. Ele era tímido e dado ao isolamento; mas a atraente suavidade do rosto de Anne e os seus modos meigos em breve começaram a fazer efeito; e Anne foi bem recompensada pelo seu esforço. Ele era obviamente um jovem com gosto pela leitura, principalmente poesia; além de ficar convencida de lhe ter proporcionado, pelo menos durante um serão, o prazer de discutir assuntos pelos quais os seus companheiros habituais não tinham o mínimo interesse, ela tinha esperança de lhe ser verdadeiramente útil, dando-lhe sugestões, surgidas naturalmente no decorrer da conversa, sobre a obrigação e o benefício de lutarmos contra o sofrimento. Pois, embora fosse tímido, ele não parecia ser reservado; parecia, pelo contrário, sentir-se satisfeito por poder libertar os seus sentimentos do retraimento habitual; eles conversaram sobre poesia, sobre a riqueza da época contemporânea, comparavam sucintamente opiniões sobre os melhores poetas, tentando decidir qual era preferível, se Marmion (1), se The Lady of the Lake (2), a que gênero literário pertenciam Giaour (3) e The Bride of Abydos (4) e, além disso, como se pronunciava Giaour; ele mostrou conhecer intimamente as mais belas canções de um poeta e todas as apaixonantes descrições de agonia desesperada do outro; repetiu, com enorme sentimento, os versos que descreviam um coração despedaçado e uma mente destruída pelo sofrimento, e ele parecia tanto desejar ser compreendido que ela se atreveu a recomendar-lhe que não lesse só poesia, e a dizer que pensava que a poesia tinha o infortúnio de raramente ser apreciada com segurança por aqueles que mais gostavam dela; e que os seres dotados de sentimentos fortes, que eram os únicos que a apreciavam verdadeiramente, eram precisamente os que deviam saboreá-la com cuidado.
Uma vez que esta alusão ao seu caso não pareceu fazê-lo sofrer e ele deu a idéia de, pelo contrário, ter ficado satisfeito, ela atreveu-se a prosseguir com a conversa; e, sentindo que o seu espírito mais amadurecido no sucedido lhe concedia esse direito, atreveu-se a recomendar a inclusão de mais prosa nas suas leituras quotidianas; quando lhe foi pedido que exemplificasse, ela referiu as obras dos nossos *1 Poema em 6 cantos de Walter Scott. (N. da T.) 2 Poema de Walter Scott. (N. da T.) 3 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) 4 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) melhores moralistas, as coleções das mais belas cartas, as memórias de personalidades experimentadas e de valor que lhe ocorreram no momento como sendo obras destinadas a elevar e fortalecer a mente de acordo com os mais elevados princípios e os melhores exemplos de resistência moral e religiosa.
O comandante Benwick escutou atentamente e pareceu grato pelo interesse que estava implícito; e, embora tivesse abanado a cabeça e suspirado, manifestando a sua dúvida quanto à eficácia de qualquer livro no alívio de uma dor como a sua, anotou os nomes dos livros recomendados por ela e prometeu procurá-los e lê-los. Quando o serão terminou, Anne não pôde deixar de achar divertida a idéia de ter vindo a Lyme para pregar paciência e resignação a um jovem que nunca tinha visto antes: mas, refletindo mais seriamente, também não conseguiu deixar de temer que, tal como muitos outros grandes moralistas e pregadores, ela tivesse sido eloqüente a um ponto em que a sua conduta dificilmente suportaria um exame minucioso.
Anne e Henrietta foram as primeiras do grupo a levantar-se na manhã seguinte e resolveram ir passear até ao mar antes do pequeno-almoço. Foram até à areia e ficaram a ver a maré a encher, trazida por uma brisa de sudeste, com toda a imponência que uma praia tão plana permitia. Elas elogiaram a manhã; louvaram o mar; compartilharam o mesmo deleite com a brisa fresca e ficaram em silêncio, até que Henrietta começou subitamente a conversar:
- Oh! sim... estou absolutamente convencida de que, com muito poucas exceções, o ar do mar é sempre saudável. Não há dúvida nenhuma de que fez muito bem ao Dr. Shirley depois da sua doença, fez na Primavera passada um ano. Ele próprio diz que a estada de um mês em Lyme lhe fez melhor do que todos os medicamentos que tomou; e que estar perto do mar o faz sentir jovem outra vez. Assim, não posso deixar de pensar que é uma pena que ele não viva sempre à beira-mar. Eu acho que ele devia deixar Uppercross de vez e fixar-se em Lyme. Tu não achas, Anne? Não concordas comigo que é o melhor que ele poderia fazer, tanto para ele como para a Sra. Shirley? Ela tem primos aqui, sabes?, e muitas pessoas conhecidas, o que seria uma distração para ela, e tenho a certeza de que ela gostaria de viver num local em que pudesse obter rapidamente assistência médica, no caso de ele sofrer outro ataque. Na verdade, eu penso que é muito triste que excelentes pessoas como o Dr. e a Sra. Shirley, que praticaram o bem durante toda a sua vida, desperdicem os seus últimos dias num lugar como Uppercross, em que, com exceção da nossa família, parecem estar isolados de todo o mundo. Eu gostaria muito que os seus amigos lhe sugerissem isso. Acho que eles deviam fazê-lo.
Quanto à obtenção de uma dispensa eclesiástica, com a sua idade e caráter, isso não seria difícil. A minha única dúvida é se alguma coisa o convenceria a deixar a sua paróquia. Ele é tão severo e escrupuloso no cumprimento das suas obrigações! Não achas, Anne, que ele está a ser excessivamente escrupuloso? Não achas que é um erro um clérigo sacrificar a sua saúde por causa das suas obrigações, quando estas podem perfeitamente ser desempenhadas por outra pessoa? E Lyme fica apenas a dezassete milhas de distância... ele estaria suficientemente perto para poder ouvir quaisquer queixas, se as houvesse.
Durante este discurso, Anne sorriu várias vezes para si própria e falou sobre o assunto, tão disposta a interessar-se pelos sentimentos de uma jovem como estivera em relação aos de um jovem, embora, neste caso, o mérito fosse menor, mas que podia ela fazer além de concordar, de um modo geral?
Ela disse tudo o que era razoável e apropriado sobre o assunto; concordou, como devia, que o Dr. Shirley tinha direito a descansar; compreendia como era boa idéia ele ter um jovem ativo e respeitável como coadjutor residente, e teve ainda a delicadeza de aludir às vantagens de um tal coadjutor residente ser casado.
- Gostava muito - disse Henrietta, muito satisfeita com a sua companheira-, gostava muito que Lady Russell vivesse em Uppercross e fosse amiga do Dr. Shirley. Sempre ouvi dizer que Lady Russell é uma mulher que exerce grande influência sobre toda a gente! Eu sempre a considerei capaz de convencer uma pessoa a fazer qualquer coisa! Eu tenho medo dela, como já te disse antes, tenho mesmo medo dela porque ela é tão inteligente; mas eu respeito-a muito e gostaria de a ter como vizinha em Uppercross.
Anne achou graça à maneira de Henrietta se mostrar grata, bem como ao desenrolar dos acontecimentos e ao fato de os novos interesses dos objetivos de Henrietta terem colocado a sua amiga nas boas graças de um membro da família Musgrove; ela só teve tempo, porém, para uma resposta vaga e para exprimir o desejo de que houvesse uma mulher assim a viver em Uppercross, quando todos os temas de conversa pararam subitamente ao verem Louisa e o comandante Wentworth aproximarem-se deles. Eles tinham ido dar um passeio antes de o pequeno-almoço estar pronto; mas Louisa recordou-se logo a seguir de que tinha de ir procurar algo numa loja e convidou-os a irem com ela à cidade. Todos eles se colocaram à sua disposição.
Quando chegaram aos degraus que subiam da praia, um cavalheiro que nesse mesmo momento se preparava para descer deu delicadamente um passo atrás e parou para os deixar passar. Eles subiram e passaram por ele; ao passarem, o rosto de Anne atraiu-lhe a atenção e ele fitou-a com um olhar de interesse e admiração a que ela não pôde ficar insensível. Ela estava com um ótimo aspecto; o vento fresco, batendo-lhe no rosto, tinha restituído a frescura da juventude às suas feições regulares e muito atraentes e despertara a vivacidade do seu olhar. Era evidente que o cavalheiro (um verdadeiro cavalheiro nos seus modos) a admirou imenso. O comandante Wentworth olhou imediatamente para ela de um modo que demonstrava que reparara. Ele lançou-lhe um olhar momentâneo um olhar perspicaz que parecia dizer: -Este homem ficou impressionado contigo e, até mesmo eu, neste momento, vejo algo de novo em Anne Elliot.- Depois de terem acompanhado Louisa nas suas compras e de terem passeado mais um pouco, regressaram à hospedaria; e Anne, quando mais tarde se dirigia apressadamente do quarto para a sala de jantar, quase chocou com o mesmo cavalheiro, quando este saía de um apartamento ao lado. Ela já calculara que ele fosse um forasteiro como eles, e decidira que um empregado bem-parecido que, no regresso, tinham visto a passear perto das duas hospedarias, devia ser o seu criado. O fato de tanto este homem como o seu amo estarem de luto reforçara essa idéia. Estava agora confirmado que ele estava hospedado na mesma hospedaria que eles, e este segundo encontro, embora muito breve, demonstrou de novo, pelo olhar do cavalheiro, que ele a considerava muito bela e, pela prontidão e correção das suas desculpas, que era um homem de muito boas-maneiras. Parecia ter cerca de 30 anos e, embora não fosse belo, tinha uma figura simpática. Anne pensou que gostaria de saber quem ele era.
Tinham quase terminado o pequeno-almoço quando o som de uma carruagem (praticamente a primeira que ouviam desde que tinham chegado a Lyme) fez metade do grupo ir à janela. Era uma carruagem de cavalheiro - um cabriolé -, mas que só veio dos estábulos até à porta da frente. Deve ser alguém a partir.- Era conduzida por um criado de luto. A palavra cabriolé fez Charles pôr-se de pé num salto para o comparar com o seu; o criado de luto despertou a curiosidade de Anne, e os seis estavam já todos reunidos à janela quando o dono do cabriolé saiu da hospedaria no meio das vénias e cortesias do pessoal, tomou o seu lugar e partiu.
-Ah - exclamou imediatamente o comandante Wentworth olhando de soslaio para Anne -, é o homem por que passámos. As Meninas Musgrove concordaram; e, depois de terem ficado todos, com simpatia, a vê-lo subir a colina até o perderem de vista, voltaram para a mesa do pequeno-almoço.
O empregado de mesa entrou na sala pouco depois.
- Por favor - disse imediatamente o comandante Wentworth -, sabe dizer-nos quem é o cavalheiro que acabou de partir?
- Sei, sim, é o Sr. Elliot; um cavalheiro de grande fortuna; chegou ontem à noite, vindo de Sidmouth... suponho que devem ter ouvido a carruagem, sir, quando estavam a jantar... e seguiu agora na direção de Crewkherne, com destino a Bath e Londres.
- Elliot! - Antes de a frase acabar, apesar da rapidez com que o empregado a disse, muitos tinham-se entreolhado e muitos tinham repetido o nome.
- Deus do Céu! - exclamou Mary. - Deve ser o nosso primo... deve ser mesmo o nosso Sr. Elliot, deve ser ele! Charles, Anne, não acham? Está de luto, tal como o nosso Sr. Elliot deve estar. Que extraordinário! Na mesma hospedaria que nós! Anne, não achas que deve ser o nosso Sr. Elliot, o herdeiro do nosso pai? Por favor - voltando-se para o empregado -, não ouviu, não ouviu o criado dele dizer que ele pertencia à família de Kellynch?
- Não, minha senhora, ele não se referiu a nenhuma família em particular, mas disse que o amo era um cavalheiro muito rico e que um dia seria baronete.
- Estão a ver! - exclamou Mary, em êxtase. - é exatamente o que eu disse! Herdeiro de Sir Walter Elliot. Eu tinha a certeza de que, se fosse realmente ele, viria a saber-se.
Podem estar certos de que esta é uma circunstância que os seus criados fazem questão de proclamar onde quer que ele vá. Mas, Anne, imagina só como é extraordinário! Quem me dera ter olhado melhor para ele. Quem me dera que tivéssemos sabido a tempo quem ele era, para nos poder ser apresentado. Que pena não termos sido apresentados! Achas que ele tinha o ar dos Elliot? Eu mal olhei para ele. Estava a olhar para os cavalos; mas penso que tinha um pouco o ar dos Elliot. Por que não reparei no brasão? Oh!, o capote do criado caía por cima do painel e tapava o brasão; foi isso; caso contrário, tenho a certeza de que teria reparado nele, assim como na libré; se o criado não estivesse de luto, eu tê-lo-ia conhecido pela libré.
- Considerando todas essas extraordinárias circunstâncias disse o comandante Wentworth -, devemos considerar que foi intenção do destino não ser apresentada ao seu primo. Quando conseguiu atrair a atenção de Mary, Anne tentou calmamente convencê-la de que as relações entre o pai e o Sr. Elliot não eram, há anos, tão boas que fosse desejável tentarem ser-lhe apresentadas. Ao mesmo tempo, porém, ela sentiu uma satisfação íntima por ter visto o primo e por saber que o futuro dono de Kellynch era indubitavelmente um cavalheiro com ar sensato. Ela não tinha qualquer intenção de mencionar que se tinha encontrado com ele uma segunda vez; felizmente, Mary não prestara muita atenção quando passara por ele durante o seu passeio matinal, mas ela teria ficado muito aborrecida ao saber que Anne se tinha esbarrado contra ele no corredor e recebido as suas delicadas desculpas, enquanto ela nunca estivera perto dele; não, aquele breve encontro entre primos permaneceria um segredo absoluto.
- Claro - disse Mary - que vais dizer que vimos o Sr. Elliot na próxima vez que escreveres para Bath. Penso que o pai devia sabê-lo; por favor, conta tudo a seu respeito.
Anne evitou uma resposta direta, mas esta era exatamente uma circunstância que ela achava que não só era desnecessário comunicar como nem devia ser referida. A ofensa que há muitos anos fora feita ao pai, ela sabia; do quinhão que coubera a Elizabeth, só desconfiava, e não havia dúvida de que ambos se irritavam com a mera referência ao Sr. Elliot.
Mary nunca escrevia para Bath; o penoso trabalho de manter uma correspondência irregular e pouco satisfatória com Elizabeth recaía sobre Anne. Tinham terminado o pequeno-almoço há pouco tempo quando o comandante e a Sra. Harville apareceram, acompanhados pelo comandante Benwick, com quem tinham combinado dar um último passeio em Lyme. Eles tencionavam partir para Uppercross antes da uma hora e, entretanto, estariam juntos e ao ar livre o máximo de tempo possível. Anne viu que o comandante Benwick se aproximou dela assim que se encontraram todos na rua. A conversa da noite anterior não o dissuadira de voltar a procurar a sua companhia; e eles caminharam juntos durante algum tempo, a conversar, como antes, de Walter Scott e de Lorde Byron, continuando incapazes, tão incapazes como quaisquer outros dois leitores, de ter a mesma opinião sobre os méritos de qualquer deles, até que algo provocou uma alteração quase geral no grupo e, em vez do comandante Benwick, ela teve o comandante Harville a seu lado.
-A Menina Elliot- disse ele, falando em voz baixa – cometeu uma bela ação fazendo aquele pobre homem falar tanto. Quem me dera que ele tivesse a sua companhia mais vezes. É muito mau para ele, eu sei, ser fechado como é; mas que havemos de fazer? Não nos podemos separar.
- Não - disse Anne -, acredito que seja impossível, mas, com o decorrer do tempo, talvez; nós sabemos como o tempo atua em todos os casos de sofrimento, e deve ter em mente, comandante Harville, que o desgosto do seu amigo pode ser considerado relativamente recente. Foi só no Verão passado, segundo creio.
- Sim, é verdade - disse ele com um profundo suspiro -, foi só em Junho. - E ele talvez não tenha tido logo conhecimento.
- Só o soube na primeira semana de Agosto, quando chegou a casa vindo do Cabo. Acabava de tomar conta do Grappler. Eu estava em Plymouth, ansioso por ter notícias dele, mas o GrappLer tinha ordens para ir para Portsmouth. As notícias deviam segui-lo até lá, mas quem iria dar-lhas? Eu não, não tinha coragem. Ninguém conseguia fazê-lo a não ser aquele bom companheiro - (e apontou para o comandante Wentworth). – O Lavônia tinha chegado a Plymouth na semana anterior, não havia perigo de ser enviado de novo para o mar. Quanto ao resto, ele resolvera arriscar-se... pediu uma licença e, sem aguardar pela resposta, viajou noite e dia até chegar a Portsmouth e, assim que lá chegou, dirigiu-se para o Grappler a remo e não saiu de junto do pobre rapaz durante uma semana; foi o que fez; ninguém mais conseguiria salvar o pobre James. Pode imaginar, Menina Elliot, como ele nos é querido!
Anne conseguia, na realidade, imaginá-lo perfeitamente, e disse-o, em tantas palavras quantas as suas emoções lhe permitiram ou as dele eram capazes de escutar, pois ele pareceu demasiado comovido para continuar a conversar sobre o assunto; quando falou de novo, foi sobre uma coisa totalmente diferente.
O fato de a Sra. Harville ter manifestado a opinião de que, quando chegassem a casa, o marido já teria andado bastante, determinou a direção do grupo no que iria ser o seu último passeio; acompanhá-los-iam até à porta, depois voltariam para trás e partiriam; segundo os seus cálculos, tinham exatamente tempo para isso; mas, quando se aproximaram do Cobb, sentiram todos desejo de passear mais uma vez ao longo deste, estavam todos tão interessados e Louisa tornou-se tão obstinada que chegaram à conclusão de que um atraso de um quarto de hora não faria qualquer diferença. Assim, depois de todas as amáveis despedidas e de toda a amável troca de convites e promessas que se podem imaginar, separaram-se do comandante e da Sra. Harville à porta destes e, ainda acompanhados pelo comandante Benwick, que parecia querer ficar junto deles até ao fim, foram despedir-se devidamente do Cobb.
Anne viu que o comandante Benwick se aproximou novamente dela. A paisagem não pôde deixar de lhe recordar os mares azul-escuros de Lorde Byron, e ela prestou-lhe, de boa vontade, toda a sua atenção enquanto foi possível prestar-lha. Em breve, porém, esta iria ser atraída noutra direção. Estava demasiado vento para que a parte do novo Cobb fosse agradável para as senhoras, e eles concordaram em descer os degraus para a parte inferior; prepararam-se todos para descer os degraus íngremes, lenta e cuidadosamente, à exceção de Louisa, que queria saltar, ajudada pelo comandante Wentworth. Em todos os seus passeios, ele tinha de a ajudar a saltar dos taludes; achava a sensação deliciosa. Desta vez, dada a dureza do solo, ele mostrou-se mais relutante, mas acabou por fazê-lo; ela desceu sã e salva e, imediatamente, para mostrar como gostara, subiu os degraus a correr para voltar a saltar.
Ele aconselhou-a a não o fazer, pois o embate era demasiado grande; mas foi em vão que ele falou e argumentou; ela sorriu e disse: Estou decidida, vou saltar¯; ele ergueu as mãos; ela precipitou-se um segundo antes do tempo, caiu no chão do Cobb inferior, de onde a levantaram inanimada. Não havia qualquer ferimento, sangue ou lesão visível; mas tinha os olhos fechados, não respirava, e o rosto tinha a palidez da morte.
Foi um momento de horror para todos os que a rodeavam! O comandante Wentworth, que a tinha levantado, estava de joelhos com ela nos braços, olhando-a com um rosto tão pálido como o dela, num silêncio de agonia.
- Ela está morta!, está morta! - gritou Mary, agarrando-se ao marido e contribuindo, juntamente com o seu próprio horror, para que ele se mantivesse imóvel; e, um minuto depois, Henrietta, vencida pela mesma convicção, perdeu também os sentidos, e teria caído se o comandante Benwick e Anne não a tivessem segurado.
- Não há ninguém que me ajude? - foram as primeiras palavras soltadas pelo comandante Wentworth, num tom de desespero, como se a sua força se tivesse esgotado.
- VÁ ter com ele - exclamou Anne -, por amor de Deus, vá ter com ele. Eu consigo segurá-la sozinha. Deixe-me, vá ter com ele. Esfregue as mãos dela, friccione-lhe as têmporas; aqui estão os meus sais... tome-os, tome-os. O comandante Benwick obedeceu, enquanto Charles, ao mesmo tempo, se desenvencilhava da mulher. Aproximaram-se ambos dele; Louisa foi levantada e apoiada com mais firmeza; fizeram tudo o que Anne dissera, mas em vão; o comandante Wentworth encostou-se, cambaleante, à parede, para se apoiar, exclamando em tom de agonia:
- Oh, meu Deus! O pai e a mãe dela!
- Um médico! - disse Anne.
Esta palavra pareceu despertá-lo de imediato, e disse:
- É verdade, é verdade, um médico imediatamente. - E estava a afastar-se rapidamente quando Anne sugeriu ansiosamente:
- O comandante Benwick, não seria melhor ir o comandante Benwick? Ele sabe onde encontrar um médico. Todos os que estavam em condições de pensar acharam que era melhor idéia e, um minuto depois (foi tudo feito em movimentos rápidos), o comandante Benwick tinha confiado a pobre figura, que parecia um cadáver, aos cuidados do irmão, partindo rapidamente para a cidade. Quanto ao infeliz grupo que ficara, não era possível dizer qual dos três que se encontravam na posse de todas as suas faculdades sofria mais: o comandante Wentworth, Anne ou Charles, que, na realidade, era um irmão muito afetuoso e estava inclinado por cima de Louisa soluçando amargamente, só conseguindo tirar os olhos de uma irmã para ver outra sem sentidos, ou presenciar a agitação histérica da mulher, pedindo-lhe uma ajuda que ele não podia dar. Anne, tratando Henrietta com toda a firmeza, zelo e preocupação que o instinto lhe aconselhava, tentava ainda, regularmente, confortar os outros, acalmar Mary, animar Charles e acalmar os sentimentos do comandante Wentworth.
Ambos pareciam aguardar as suas instruções. - Anne, Anne - exclamou Charles -, que vamos fazer a seguir? Por amor de Deus, que vamos fazer? Os olhos do comandante Wentworth também se voltaram para ela.
- Não seria melhor levá-la para a hospedaria? Sim, tenho a certeza, levem-na com cuidado para a hospedaria.
- Sim, sim, para a hospedaria - repetiu o comandante Wentworth, relativamente controlado e ansioso por fazer qualquer coisa. - Eu levo-a. Musgrove, tome conta dos outros.
Nesta altura, jáo relato do acidente se tinha espalhado entre os trabalhadores e barqueiros à volta do Cobb, e tinham-se juntado muitos à sua volta, para serem úteis, se necessário; de qualquer modo, para gozarem o espectáculo de uma jovem morta; não, duas jovens mortas, pois a realidade era duas vezes melhor do que o primeiro relato. Henrietta foi confiada a algumas das pessoas com melhor aspecto, pois, embora tivesse recuperado parcialmente os sentidos, ela não se conseguia mover; e, assim, com Anne a seu lado e Charles a tomar conta da mulher, puseram-se a caminho, pisando de novo o chão por que pouco tempo antes, muito pouco tempo antes, tinham passado tão cheios de alegria.
Ainda não tinham saído do Cobb quando os Harville vieram ao seu encontro. Tinham visto o comandante Benwick passar a correr pela sua casa, com uma expressão que mostrava que algo errado se passava; e eles tinham saído imediatamente, informando-se e orientando-se à medida que se dirigiam ao local.
Embora impressionado, o comandante Harville trazia consigo sensatez e calma que puderam ser imediatamente úteis; e um olhar entre ele e a mulher decidiu o que iria ser feito. Ela devia ser levada para casa deles - deviam ir todos para casa deles - e esperar pela chegada do médico ali. Ele não prestou atenção a quaisquer escrúpulos: foi obedecido; ficavam todos debaixo do seu teto; Louisa, de acordo com instruções da Sra. Harville, foi levada para cima e colocada na sua própria cama; e a todos que deles precisavam, o marido prestou apoio, serviu refrescos e deu sedativos. Louisa tinha aberto os olhos uma vez, mas voltou a fechá-los pouco depois, sem ter recuperado a consciência. Isto já fora, contudo, uma prova de vida útil para a irmã; e a agitação da esperança e do medo evitou que Henrietta voltasse a perder os sentidos, embora se sentisse totalmente incapaz de estar no mesmo quarto que Louisa. Também Mary estava a ficar mais calma.
O médico chegou mais cedo do que parecia possível. Enquanto ele a examinava, sentiram-se dominados pelo terror; mas ele não se mostrou desanimado; a cabeça tinha sofrido uma pancada grande, mas ele já vira recuperações de pancadas mais graves; não estava absolutamente nada desanimado; ele falava num tom satisfeito. O fato de ele não considerar o caso desesperado de ele não ter dito que tudo terminaria dentro de poucas horas - excedeu, a princípio, a esperança da maior parte deles; pode, pois, imaginar-se a felicidade que sentiram, a sua alegria, silenciosa e profunda, depois de dirigirem a Deus algumas fervorosas exclamações de gratidão.
Anne teve a certeza de que nunca se esqueceria do tom, da expressão com que o comandante Wentworth disse -Graças a Deus-, nem como, mais tarde, ele ficou sentado, debruçado sobre a mesa, com os braços cruzados e a cabeça escondida, como se sentisse dominado pelas várias sensações da alma e tentando acalmá-las através da oração e pela meditação.
Os membros de Louisa estavam intatos. Só a cabeça ficara magoada. Era agora necessário que o grupo decidisse o que devia fazer quanto à situação. Já conseguiam falar uns com os outros e trocar opiniões. Não havia dúvida de que Louisa tinha de permanecer onde estava, por mais que custasse aos seus amigos envolver os Harville no problema. Era impossível transportá-la para outro local.
Os Harville silenciaram todos os escrúpulos e, tanto quanto lhes foi possível, toda a gratidão. Eles tinham previsto tudo e feito todos os preparativos antes de os outros terem começado a pensar. O comandante Benwick teria de ceder o quarto e dormir noutro local - e ficou tudo decidido. Eles só estavam preocupados com o fato de a casa não poder alojar mais pessoas; e, no entanto, se pusessem as crianças no quarto da criada ou armassem um burro em qualquer lado¯, conseguiriam arranjar lugar para mais dois ou três, supondo que eles quisessem ficar; embora, com respeito a tratar da Menina Musgrove, podiam deixá-la, sem a mínima preocupação, entregue aos cuidados da Sra. Harville.
A Sra. Harville era uma enfermeira com muita experiência; e a sua ama, que há muito vivia com ela e viajara com ela para todo o lado, também o era. As duas eram suficientes para tomar conta dela, de dia e de noite. Tudo isto foi dito com uma franqueza e sinceridade irresistíveis. Charles, Henrietta e o comandante Wentworth trocavam opiniões e, durante algum tempo, foi apenas uma troca de palavras de perplexidade e terror:
- Uppercross – a necessidade de alguém ir a Uppercross - a notícia que tinha de ser transmitida - como deveria ser dada ao Sr. e à Sra. Musgrove - a manhã já ia avançada -há uma hora que eles deveriam ter partido - a impossibilidade de chegarem a uma hora razoável.
A princípio, a única coisa que conseguiam fazer era soltar exclamações deste gênero; mas, após algum tempo, o comandante Wentworth, fazendo um esforço, disse: - Temos de decidir, e sem perder um minuto. Todos os minutos são preciosos. Alguém deve partir para Uppercross imediatamente. Musgrove, ou tu ou eu, um de nós tem de ir. Charles concordou; mas declarou a sua resolução em não sair dali. Ele tentaria incomodar o comandante e a Sra. Harville o menos possível, mas, quanto a deixar a irmã naquele estado, isso ele não devia, nem queria, fazer. Isso ficou decidido; e Henrietta, a princípio, afirmou o mesmo. Em breve, porém, ela foi persuadida a mudar de idéias. De que servia ela ficar? Ela, que não conseguia entrar no quarto de Louisa, nem olhar para ela sem sofrer tanto que ela própria precisava de que a socorressem! Ela foi forçada a admitir que não ficaria a fazer nada; no entanto, continuou a mostrar-se relutante em partir, até que, ao lembrar-se, comovida, do pai e da mãe, desistiu, concordou, ficou ansiosa por chegar a casa.
O plano tinha chegado a este ponto quando Anne, saindo do quarto de Louisa, não pôde deixar de ouvir o que se seguiu, pois a porta da sala estava aberta.
- Então está decidido, Musgrove - exclamou o comandante Wentworth -, você fica, e eu acompanho a sua irmã a casa. Mas quanto ao resto... quanto aos outros. Se ficar alguém para ajudar a Sra. Harville, penso que só pode ser uma pessoa. A Sra. Charles Musgrove vai querer, sem dúvida, voltar para junto dos filhos; mas, se Anne quiser ficar, não há pessoa mais indicada nem mais capaz que Anne.
Ela parou por um momento para se recuperar da emoção de ouvir falar assim a seu respeito. Os outros dois concordaram calorosamente com o que ele dissera, e depois ela entrou na sala.
- Anne fica, tenho a certeza de que não se importa de ficar a tomar conta dela - exclamou ele voltando-se para ela e falando com um ardor e, ao mesmo tempo, uma ternura que quase pareceu fazer reviver o passado. Ela corou intensamente; e ele caiu em si e afastou-se. Ela disse que estava disposta a ficar, fá-lo-ia com todo o prazer. Era nisso que estivera a pensar, desejando que lhe permitissem fazê-lo. Uma cama no chão do quarto de Louisa seria suficiente para ela, se a Sra. Harville estivesse de acordo.
Mais uma coisa, e tudo parecia resolvido. Embora fosse desejável que o Sr. e a Sra. Musgrove se sentissem, de antemão, um tanto alarmados com a demora, o tempo que os cavalos de Uppercross levariam a fazer a viagem de regresso seria um terrível prolongamento da expectativa; e o comandante Wentworth propôs, e Charles Musgrove concordou, que seria muito melhor que ele alugasse uma caleche na hospedaria e deixasse a carruagem e os cavalos do Sr. Musgrove, os quais seguiriam para casa bem cedo na manhã seguinte, o que teria a vantagem de levar noticias sobre como Louisa passara a noite.
O comandante Wentworth apressou-se a fazer todos os preparativos que lhe diziam respeito, devendo ser seguido, pouco depois, pelas duas senhoras. Quando Mary teve conhecimento do plano, porém, foi o fim de toda a tranquilidade que este trouxera. Ela mostrou-se tão infeliz e foi tão veemente, queixou-se tanto da injustiça de ter de partir, enquanto Anne ficava - Anne, que não era nada a Louisa, enquanto ela era sua cunhada e tinha mais direito de ficar no lugar de Henrietta! Por que não haveria ela de ser tão útil como Anne? E ir para casa sem Charles, sem o marido! Não, era demasiada crueldade!
Em resumo, ela disse mais do que o marido conseguiu suportar e, quando ele cedeu, nenhum dos outros se pôde opor. Não havia nada a fazer: a troca de Mary por Anne era inevitável. Anne nunca se sentira tão relutante em ceder às exigências ciumentas e injustas de Mary; mas teve de ser, e eles partiram para a cidade, Charles tomando conta da irmã, e o comandante Benwick acompanhando-a a ela. Enquanto caminhavam apressadamente, ela recordou, por um momento, as pequenas circunstâncias que os mesmos locais tinham presenciado nessa manhã. Ali tinha ela escutado os planos de Henrietta para a partida do Dr. Shirley de Uppercross; mais à frente, vira o Sr. Elliot pela primeira vez; parecia-lhe que a única coisa a que conseguia dedicar mais de um momento era a Louisa e aos que estavam envolvidos no seu bem-estar. O comandante Benwick mostrava-se bastante atencioso para com ela; e, unidos como todos pareciam estar, pela angústia do dia, ela sentiu uma simpatia crescente em relação a ele, bem como prazer em pensar que a mesma talvez resultasse na continuação das suas relações.
O comandante Wentworth aguardava-as, com uma caleche tirada por duas parelhas que, para maior conveniência, estava parada na parte mais baixa da rua; mas a surpresa e o aborrecimento que ele evidenciou com a substituição de uma irmã pela outra a mudança operada no seu rosto - o espanto - as expressões que surgiam e eram dominadas enquanto escutava o relato de Charles provocaram em Anne uma reação dolorosa; ou, pelo menos, convenceram-na de que ela era apreciada apenas na medida em que podia ser útil a Louisa. Tentou mostrar-se calma e ser justa. Sem querer imitar os sentimentos de Emma para com o seu Henry (1), ela teria, por causa dele, tratado de Louisa com um zelo acima do exigido pela simples amizade, e esperava que ele não seria, por muito tempo, tão injusto que supusesse que ela se recusaria, desnecessariamente, a ajudar uma amiga.
Entretanto, ela sentou-se na carruagem. Ele tinha ajudado as duas a subir e colocara-se no meio delas; e, deste modo, nestas circunstâncias cheias de espanto e emoções para Anne, ela deixou Lyme. Como decorreria a longa viagem; como esta iria afetar os modos de ambos; como iria ser a conversa entre eles, eram coisas que ela não podia prever. Foi tudo muito natural, porém. Ele ocupou-se de Henrietta, voltando-se sempre para ela; e quando falou, fê-lo sempre com o objetivo de acalentar as suas esperanças e de a animar. De um modo geral, a sua voz e os seus modos eram estudadamente calmos. O seu objetivo principal parecia ser poupar qualquer agitação a Henrietta. Apenas uma vez, quando ela se queixava do infeliz e malfadado último passeio ao Cobb, lamentando que se tivessem lembrado de o dar, ele desabafou, como se sentisse completamente dominado pela emoção:
- Não fale nisso, não fale nisso - exclamou ele. - Oh, meu Deus! Se eu não tivesse cedido no momento fatal! Se eu tivesse agido como devia! Mas ela é tão impaciente e obstinada! Querida, doce Louisa! Anne perguntou a si própria se nalgum momento lhe viera à idéia pôr em causa a legitimidade da sua opinião anterior a respeito da felicidade e da vantagem da firmeza de caráter; e se não lhe ocorrera que, tal como todas as outras qualidades morais, esta devia ter as suas proporções e limites. Ela pensou que ele não poderia deixar de pensar que, por vezes, um temperamento maleável concorria tanto para a felicidade como uma personalidade obstinada.
Avançaram rapidamente. Anne ficou surpreendida ao reconhecer tão cedo as colinas e os objetos que lhe eram familiares. A velocidade a que seguiam, aumentada pelo receio do que iria acontecer à chegada, fazia a estrada parecer metade do caminho do dia anterior. Estava já anoitecer, porém, quando chegaram aos arredores de Uppercross; há algum tempo que se fizera um silêncio total entre eles; Henrietta recostara-se a um canto, com o rosto coberto por um xale, dando aos outros a esperança de ter chorado até adormecer. Quando subiam a última colina, o comandante Wentworth dirigiu-se subitamente a Anne. Numa voz baixa e cautelosa, disse:
- Tenho estado a pensar na melhor maneira de agirmos. Ela não deve aparecer primeiro. Não o suportaria. Tenho estado a pensar se não seria melhor Anne ficar com ela na carruagem enquanto eu vou dar a notícia ao Sr. e à Sra. Musgrove. Acha que é um bom plano?
Ela concordou; ele ficou satisfeito e não disse mais nada. Mas a recordação daquele apelo causou-lhe prazer - era uma prova de amizade, de deferência perante a opinião dela, um grande prazer; e, ainda que tenha sido uma espécie de prova de despedida, isso não diminuiu o seu valor. Depois de a infeliz notícia ter sido comunicada em Uppercross e de se ter certificado de que o pai e a mãe estavam tão refeitos do choque como era possível esperar, e de que a filha se sentia melhor por estar junto deles, ele anunciou a sua intenção de regressar a Lyme na mesma carruagem; e, depois de os cavalos terem comido a sua ração, ele partiu.
O resto da estada de Anne em Uppercross, que consistiu apenas em dois dias, foi passado inteiramente na Casa Grande, e ela teve a satisfação de se saber extremamente útil ali, tanto como companhia como no apoio a todos os preparativos para o futuro, os quais, no perturbado estado de espírito do Sr. e da Sra. Musgrove, teriam constituído para estes grandes dificuldades.
Tiveram notícias de Lyme na manhã seguinte. Louisa estava mais ou menos na mesma. Não tinham surgido quaisquer sintomas mais graves. Charles chegou algumas horas depois com notícias mais recentes e mais pormenorizadas. Estava razoavelmente animado. Não se podia esperar uma cura rápida, mas estava tudo a correr tão bem como a natureza do caso permitia. Falando dos Harville, ele não conseguia encontrar palavras para traduzir a sua bondade, principalmente os cuidados da Sra. Harville como enfermeira. Ela não deixava Mary fazer nada.
Na noite anterior, ela tinha-os convencido, a ele e a Mary, a irem cedo para a hospedaria. Mary ficara outra vez histérica nessa manhã. Quando ele se viera embora, ela ia dar um passeio com o comandante Benwick, e ele esperava que o passeio lhe fizesse bem. Ele quase desejava que tivessem conseguido convencê-la a voltar para casa na noite anterior; mas a verdade era que a Sra. Harville não deixava nada para mais ninguém fazer. Charles deveria voltar a Lyme nessa mesma tarde, e o pai, a princípio, pretendia ir com ele, mas as senhoras não consentiram. Só iria multiplicar os problemas dos outros e aumentar a sua própria angústia; foi feito um plano muito melhor e agiram de acordo com ele. Mandaram vir uma carruagem de Crewkherne, e Charles levou consigo uma pessoa muito mais útil, a velha ama da família, que, depois de ter criado todas as crianças e visto a mais nova, o mimado Harry, ser enviado para o colégio a seguir aos irmãos, vivia agora no quarto vazio das crianças a remendar peúgas e a fazer curativos a todas as feridas e lesões que chegavam perto dela; ela ficou, por conseguinte, extremamente satisfeita por poder ir ajudar a tratar da querida Menina Louisa. A Sra. Musgrove já tinha tido a vaga idéia de mandar Sarah para lá; mas, sem Anne, o assunto não teria sido decidido nem considerado praticável tão cedo.
No dia seguinte, ficaram a dever a Charles Hayter notícias pormenorizadas de Louisa, que era essencial terem todos os dias. Ele resolvera ir a Lyme, e o seu relato era animador. Os períodos de lucidez e consciência pareciam cada vez mais freqüentes. Todos os relatos concordavam em que o comandante Wentworth parecia ter-se instalado em Lyme. Anne devia deixá-los na manhã seguinte, um acontecimento que todos temiam. Que iriam eles fazer sem ela? Nem sequer conseguiam confortar-se uns aos outros! E disseram tantas coisas deste gênero que Anne achou que o melhor que tinha a fazer era comunicar-lhes a sua opinião pessoal e convencê-los a todos a irem imediatamente para Lyme. Teve pouca dificuldade em fazê-lo; em breve ficou decidido que iriam, iriam no dia seguinte, instalar-se-iam na hospedaria ou alugariam uma casa, conforme fosse mais conveniente, e ficariam lá até Louisa poder viajar. Eles iriam aliviar os incômodos causados às boas pessoas com quem ela estava; pelo menos, ajudariam a Sra. Harville a tomar conta dos filhos; e, em suma, mostraram-se tão satisfeitos com a decisão que Anne ficou radiante com o que fizera e achou que a melhor maneira de passar a última manhã em Uppercross era ajudá-los a fazer os preparativos e vê-los partir de manhã cedo, embora, em consequência disso, ficasse sozinha na casa deserta.
Ela foi a última e, com exceção dos rapazinhos do chalé, foi mesmo a última, a única que ficou de tudo o que enchera e animara ambas as casas, de tudo o que fizera de Uppercross uma casa alegre. Que diferença alguns dias tinham realmente feito! Se Louisa se restabelecesse, tudo voltaria a correr bem. Recuperar-se-ia mais do que a felicidade anterior. Não podia haver qualquer dúvida, na sua mente não havia nenhuma, daquilo que se seguiria ao restabelecimento. Daí a alguns meses, a sala agora deserta, ocupada por ela, silenciosa e pensativa, poderia estar de novo cheia de tudo o que era feliz e alegre, tudo o que era vivo e luminoso no amor correspondido, tudo o que era diferente de Anne Elliot!
Uma hora de completa inatividade para pensamentos como estes, num dia sombrio de Novembro, com uma chuva miudinha espessa que mal deixava distinguir os poucos objetos que se viam da janela foi o suficiente para que lhe fosse extremamente grato ouvir o som da carruagem de Lady Russell; no entanto, apesar de desejar partir, ela não conseguia deixar a Casa Grande, nem despedir-se, com um olhar, do chalé, com a sua varanda negra, a escorrer, desconfortável, nem olhar, através dos vidros embaciados, para as últimas casas humildes da aldeia, sem sentir uma enorme tristeza. Tinham ocorrido em Uppercross cenas que tornavam esta terra preciosa. Ela representava muitas sensações de dor, outrora intensa, agora suavizada; e alguns momentos de sentimentos ternos, alguns vislumbres de amizade e reconciliação que ela nunca voltaria a encontrar e que nunca deixariam de lhe ser caros. Ela deixou tudo para trás; tudo exceto a recordação de que tais coisas tinham acontecido.
Anne não ia a Kellynch desde que deixara a casa de Lady Russell em Setembro. Não fora necessário, e, nas poucas ocasiões em que lhe teria sido possível ir ao Solar, ela arranjara meios de se esquivar. O primeiro regresso foi para voltar a ocupar o seu lugar no moderno e elegante apartamento do Lodge e para alegrar os olhos da sua dona. A alegria de Lady Russell ao voltar a encontrá-la continha alguma ansiedade. Ela sabia quem frequentara Uppercross. Mas, felizmente, Anne, ou estava mais bonita e um pouco mais cheia, ou Lady Russell imaginava que estava; e Anne, ao receber os seus elogios, divertiu-se a relacioná-los com a admiração silenciosa do primo e a fazer votos para que lhe tivesse sido concedida uma segunda primavera de juventude e beleza.
Pouco depois de terem começado a conversar, ela apercebeu-se de uma alteração nos seus pensamentos. Os assuntos que mais lhe tinham ocupado o coração quando saíra de Kellynch e que achara que tinham sido menosprezados e que fora obrigada a abafar quando estava com os Musgrove tinham agora um interesse secundário. Ultimamente, ela até se esquecera do pai, da irmã e de Bath. Estas preocupações tinham desaparecido, suplantadas pelas de Uppercross, e, quando Lady Russell referiu os seus antigos desejos e temores, falou da satisfação com a casa em Camden Place que tinham alugado e de como lamentava que a Sra. Clay ainda estivesse com eles, Anne ter-se-ia sentido envergonhada se tivesse de admitir que estava a pensar mais em Lyme, em Louisa Musgrove e em todos os seus conhecimentos que lá se encontravam; e como estava muito mais interessada na casa e na amizade dos Harville e do comandante Benwick do que na casa do seu próprio pai em Camden Place, ou na amizade da irmã com a Sra. Clay. Ela teve mesmo de fazer um esforço para responder a Lady Russell com algo semelhante a interesse por estes assuntos, os quais, por natureza, deveriam estar em primeiro lugar.
Surgiu um ligeiro embaraço, de início, quando conversaram sobre outro assunto. Elas não podiam deixar de falar do acidente em Lyme. Ainda não tinham decorrido cinco minutos após a chegada de Lady Russell no dia anterior e já lhe fora feito um relato completo do sucedido, mas era impossível não voltar a falar nele; ela teve de fazer perguntas, lastimar a imprudência, lamentar o resultado, e o nome do comandante Wentworth foi referido por ambas. Anne teve consciência de não o fazer tão bem como Lady Russell. Só conseguiu dizer o nome e olhar Lady Russell nos olhos quando adotou o expediente de lhe contar resumidamente o que pensava da relação de afeto entre ele e Louisa. Depois de ter contado isto, deixou de se sentir perturbada com o nome dele. Lady Russell limitou-se a escutar calmamente e a desejar-lhes felicidades; mas, no seu íntimo, ela sentiu um prazer indignado, um desdém grato em relação ao homem que, aos 23 anos, parecera compreender o valor de Anne Elliot e, oito anos depois, se deixara encantar por alguém como Louisa Musgrove.
Os primeiros três ou quatro dias passaram-se muito tranquilamente, sem quaisquer circunstâncias dignas de referência a não ser a recepção de um ou dois bilhetes provenientes de Lyme que chegaram até Anne, sem ela saber como, e que traziam notícias das melhoras de Louisa. No fim desse período, a delicadeza de Lady Russell não lhe permitiu descansar mais, e as ameaças, embora mais esbatidas, de reviver o passado, surgiram num tom decidido:
- Tenho de ir visitar a Sra. Croft, tenho mesmo de a visitar muito em breve. Anne, sentes-te com coragem para ir comigo fazer uma visita àquela casa? Anne não se esquivou, pelo contrário, ela estava a ser sincera quando respondeu:
- Eu penso que, de nós duas, é provável que seja a senhora quem vai sofrer mais; os seus sentimentos estão menos reconciliados com a mudança do que os meus. Como fiquei perto, habituei-me à idéia. Ela podia ter falado mais sobre o assunto; na realidade, tinha uma ótima opinião sobre os Croft e pensava que o pai tivera muita sorte em os ter como inquilinos; além disso, eles não só constituíam um bom exemplo para a paróquia como prestariam mais atenção e auxílio aos pobres. Por tudo isso, por mais que lamentasse e tivesse vergonha de ter sido necessário mudarem-se, ela não conseguia, com toda a honestidade, deixar de pensar que os que tinham partido não mereciam ficar e que o Solar de Kellynch estava em melhores mãos do que quando estivera entregue aos dos seus proprietários. Estas convicções causavam-lhe, sem dúvida, um enorme sofrimento, mas impediam-na de sentir a mágoa que Lady Russell iria sofrer quando voltasse a entrar na casa e atravessasse os bem conhecidos aposentos. Nesses momentos, Anne não conseguia dizer para si própria: -Estas salas deviam pertencer-nos só a nós. Oh, como o seu destino é degradante! Como estão ocupados por quem não é digno deles! Uma família antiga ser assim afastada! Desconhecidos a ocuparem o seu lugar!¯ Isso não acontecia, exceto quando pensava na mãe e se lembrava de quando ela presidia a tudo; só então soltava um suspiro. A Sra. Croft tratava-a sempre com uma amabilidade que lhe dava o prazer de imaginar que ela lhe tinha amizade, e, nesta ocasião, ao recebê-la naquela casa, houve uma atenção especial. O triste acidente de Lyme logo se tornou o tópico dominante; e, ao comparar as últimas notícias sobre a doente, notaram que tinham sido escritas à mesma hora do dia anterior e que o comandante Wentworth estivera em Kellynch na véspera (a primeira vez desde o acidente), tinha trazido a Anne a carta cuja procedência ela não conseguira descobrir, ficara algumas horas e regressara de novo a Lyme - e sem a intenção de tornar a sair de lá. Ela ficou a saber que ele tinha perguntado particularmente por ela, tinha expressado a esperança de que a Menina Elliot estivesse a recuperar dos seus esforços, tinha-se referido aos seus esforços como enormes. Isto foi muito agradável e proporcionou-lhe mais prazer do que qualquer outra coisa poderia ter feito. Quanto à triste catástrofe em si, duas mulheres equilibradas e sensatas, cuja opinião se baseava em fatos conhecidos, só podiam encará-la de uma forma, e foi decidido que tinha sido a consequência de muita leviandade e muita imprudência, que os seus efeitos eram muito alarmantes e que era assustador pensar que, durante muito tempo, ainda haveria dúvidas sobre o restabelecimento da Menina Musgrove e que provavelmente ela iria sofrer, no futuro, os efeitos do traumatismo.
O almirante rematou o assunto, exclamando: - Sim, um caso muito triste. É uma moda nova, esta de um jovem cortejar uma menina, partir a cabeça da amada, não é verdade, Menina Elliot? Isto é realmente de fazer andar a cabeça à roda!
Os modos do almirante Croft não eram exatamente de molde a agradar a Lady Russell, mas encantavam Anne. A bondade do seu coração e a simplicidade do seu caráter eram irresistíveis.
- Agora, isto pode ser muito desagradável para si – disse ele, despertando subitamente de um breve devaneio - ... encontrar-nos aqui. Devo dizer que não tinha pensado nisso antes, mas deve ser muito desagradável. Mas, agora, não faça cerimônia. Se quiser, percorra todos os aposentos da casa.
- Noutra altura, sir, obrigada, agora não.
- Bem, sempre que quiser. Pode entrar pelo bosque em qualquer altura. E é ali que guardamos os nossos guarda-chuvas, pendurados atrás da porta. Um bom lugar, não acha? Mas - (caindo em si) - talvez não ache que seja um bom lugar, pois os vossos eram sempre guardados dentro do armário.
Era sempre assim, acho eu. Os hábitos de uma pessoa podem ser tão bons como os de outra, mas todos nós gostamos mais dos nossos. Por isso, decida por si própria se é melhor dar uma volta pela casa ou não.
Anne, vendo que não parecia mal recusar, fê-lo com gratidão.
- Para além disso, fizemos muito poucas alterações! prosseguiu o almirante, depois de pensar um momento. – Muito poucas. Em Uppercross, falámos-lhe sobre a porta da lavandaria. Isso foi um grande melhoramento. O que muito me espanta é que possa haver uma família no mundo que consiga suportar, durante tanto tempo, o incômodo de ela abrir como fazia! Diga, por favor, ao seu pai o que fizemos, e que o Dr. Shepherd pensa que é o melhor melhoramento que esta casa alguma vez sofreu. Na realidade, é justo dizer que as poucas alterações que fizemos foram para muito melhor. E a minha mulher quem merece os louros, porém. Eu fiz pouco mais do que mandar tirar os espelhos grandes do meu quarto de vestir, que era do seu pai. Um homem muito bom e um verdadeiro cavalheiro, tenho a certeza, mas eu penso, Menina Elliot - (com um ar pensativo) -, que ele deve ser um homem um tanto vaidoso para a sua idade. Tantos espelhos! Oh, meu Deus! Não era possível fugir da minha própria imagem. Por isso, pedi a Sophy que me desse uma ajuda e mudamo-los para outro quarto; agora sinto-me bastante confortável, com o meu pequeno espelho de barbear a um canto e outra coisa enorme de que nunca me aproximo.
Anne achou graça, mesmo contra a sua vontade, e não conseguiu encontrar resposta; o almirante, receando não ter sido suficientemente delicado, retomou o assunto, dizendo:
- Na próxima vez que escrever ao seu pai, Menina Elliot, dˆ-lhe, por favor, cumprimentos meus e da Sra. Croft, e diga-lhe que estamos muito confortavelmente instalados e que não encontramos defeito nenhum na casa. A verdade que a chaminé da saleta do pequeno-almoço deita um pouco de fumo, mas isso é só quando o vento sopra de norte, o que, quanto muito, só acontece três vezes em cada Inverno. E, de um modo geral,já entramos na maior parte das casas dos arredores e podemos afirmar que não existe nenhuma melhor do que esta. Por favor diga-lhe isto, com os meus cumprimentos. Ele vai gostar de o ouvir.
Lady Russell e a Sra. Croft gostaram muito uma da outra, mas as relações que esta visita iniciou estavam destinadas a não ter seguimento imediato, pois, quando a visita foi retribuída, os Croft participaram que iriam ausentar-se por algumas semanas, para irem visitar os seus familiares no norte da região, e provavelmente não regressariam antes de Lady Russell seguir para Bath. Assim terminou todo o perigo de Anne se encontrar com o comandante Wentworth no Solar de Kellynch, ou de o ver na companhia da sua amiga. Estava a correr tudo bem, e ela sorriu ao pensar na ansiedade que desperdiçara com o assunto.
Embora Charles e Mary tivessem ficado em Lyme, após a ida do Sr. e da Sra. Musgrove para lá; muito mais tempo do que Anne imaginava que a sua presença fosse desejada, eles foram os primeiros da família a voltar para casa, e, assim que lhes foi possível, dirigiram-se a casa de Lady Russell.
Quando vieram embora, Louisa já se sentava, mas a sua cabeça, embora lúcida, estava extremamente fraca, e os seus nervos demasiado sensíveis; e, embora se pudesse dizer que, de um modo geral, a recuperação decorria muito bem, ainda era impossível dizer quando estaria em condições de suportar a viagem de regresso a casa; e o pai e mãe, que tinham de voltar a tempo de receber os filhos mais novos para as férias de Natal, acalentavam poucas esperanças de a trazerem com eles.
Tinham alugado uma casa para todos. A Sra. Musgrove saía com os filhos da Sra. Harville o mais que podia, e eram enviadas de Uppercross todas as provisões possíveis para aliviar o incômodo causado aos Harville, ao mesmo tempo que os Harville queriam que fossem jantar com eles todos os dias; enfim, parecia haver um esforço de parte a parte para demonstrar quem era mais generoso e hospitaleiro. Mary tivera os seus achaques, mas o fato de ter ficado tanto tempo tornava evidente que ela encontrara mais motivos de diversão do que de sofrimento.
Charles Hayter tinha ido a Lyme com mais frequência do que lhe agradava, quando jantavam em casa dos Harville só havia uma criada a servir à mesa e, a princípio, a Sra. Harville dera sempre a precedência à Sra. Musgrove; mas, ao saber de quem ela era filha, a Sra. Harville apresentara umas desculpas tão amáveis, e tinha havido tanto para fazer todos os dias, tinha havido tantos passeios da sua casa até à dos Harville, ela fora buscar tantos livros à biblioteca e trocara-os tantas vezes, que o prato da balança certamente pendera muito a favor de Lyme.
Tinham-na também levado a Charmouth, tomara banho, fora à igreja, e havia muito mais gente para observar na igreja de Lyme do que na de Uppercross - e tudo isto, aliado à sensação de se saber muito útil, tinha contribuído para que aquela quinzena fosse realmente agradável.
Anne perguntou pelo comandante Benwick. Uma sombra perpassou de imediato pelo rosto de Mary. Charles riu-se.
- Oh! O comandante Benwick está muito bem, creio eu, mas ele é um jovem muito estranho. Não sei o que se passou com ele. Convidámo-lo a vir passar um dia ou dois conosco; Charles comprometeu-se a levá-lo a caçar, e ele pareceu encantado; pela minha parte, pensei que estava tudo decidido; quando, de repente, na terça-feira à noite, ele deu umas desculpas meio esquisitas, -que nunca caçava-, que não o tínhamos compreendido bem-, que tinha prometido isto, tinha prometido aquilo, e a conclusão, fiquei a saber, era que não tencionava vir. Suponho que ele teve medo de se aborrecer aqui; mas juro que eu achava que uma vinda ao chalé era suficientemente animada para um homem com o coração despedaçado como o comandante Benwick.
Charles voltou a rir-se e disse:
- Então, Mary, tu sabes muito bem o que realmente se passou. Foi tudo culpa tua - (voltando-se para Anne). - Ele pensava que, se viesse conosco, te encontraria por perto; ele imaginava que vivíamos todos em Uppercross; e, quando descobriu que Lady Russell vivia a três milhas de distância, faltou-lhe o ânimo e não teve coragem para vir. Foram esses os fatos, dou a minha palavra de honra, Mary sabe que são.
Mas Mary não cedeu de bom grado, quer por considerar que o comandante Benwick tinha direito, por nascimento ou posição, a estar apaixonado por uma Elliot, quer por não querer acreditar que Anne fosse uma atração maior em Uppercross do que ela própria. A boa vontade de Anne, porém, não fora diminuída pelo que ouvira. Reconheceu que se sentia lisonjeada e continuou a fazer perguntas.
- Oh!, ele fala de ti - exclamou Charles - em tais termos...
Mary interrompeu-o:
- Pois deixa-me que te diga, Charles, que não o ouvi falar em Anne mais de uma vez durante todo o tempo em que lá estive. Digo-te, Anne, que ele nunca fala em ti.
- Não - admitiu Charles. - Não sei se ele alguma vez o fez, de um modo geral; mas, no entanto, é muito óbvio que ele te admira imenso. Ele tem a cabeça cheia de livros que está a ler e que foram recomendados por ti, e quer conversar contigo sobre eles; ele descobriu qualquer coisa num deles que ele pensa; oh!, não me consigo lembrar, mas era algo muito bonito, ouvi-o falar com Henrietta sobre isso; e depois teceu os maiores elogios à Menina Elliot¯! Agora, Mary, digo-te que fui eu próprio que o ouvi, tu estavas na outra sala:
-Elegância, doçura, beleza. Oh, os encantos da Menina Elliot não têm fim.
- Pois eu tenho a certeza - exclamou Mary acaloradamente de que, se o fez, isso não abona muito a seu favor. A Menina Harville só morreu em Junho. Não merece muito a pena conquistar um coração assim, não é verdade, Lady Russell? Tenho a certeza de que concorda comigo.
- Antes de decidir, preciso de conhecer o comandante Benwick - disse Lady Russell, sorrindo.
- E é provável que isso aconteça muito em breve, posso garantir-lhe, minha senhora - disse Charles. - Embora ele não tenha tido coragem para vir conosco e partir logo de seguida para vos fazer uma visita formal, um dia destes ele virá sozinho a Kellynch, pode contar com isso. Eu disse-lhe a que distância ficava e qual era a estrada, e disse-lhe que merecia bem a pena visitar a igreja, pois ele gosta desse tipo de coisas. Eu pensei que isso seria uma boa desculpa, e ele escutou com toda a atenção; e, pela sua reação, estou certo de que ele virá visitá-la em breve. Por isso, desde já a aviso, Lady Russell.
- Qualquer conhecido de Anne será sempre bem-vindo em minha casa - foi a resposta amável de Lady Russell.
- Oh!, quanto a ser conhecido de Anne - disse Mary -, eu acho que ele é mais meu conhecido, uma vez que o vi todos os dias durante uma quinzena.
- Bem, então, como conhecido de ambas, terei muito prazer em conhecer o comandante Benwick.
- Não o vai achar nada simpático, garanto-lhe, minha senhora. Ele é um dos jovens mais sensaborões que jamais existiram. Passeou comigo algumas vezes de uma ponta a outra do areal, sem dizer uma palavra. Não é um jovem nada bem educado. Tenho a certeza de que não vai gostar dele.
- Nisso, as nossas opiniões diferem, Mary - disse Anne. Penso que Lady Russell vai gostar dele. Eu acho que Lady Russell gostará tanto do seu espírito que muito em breve deixará de notar quaisquer deficiências nos seus modos.
- Também acho, Anne - disse Charles. - Estou certo de que Lady Russell irá gostar dele. É exatamente o tipo de pessoa que agrada a Lady Russell. Dêem-lhe um livro, que ele passará o dia a ler.
- Sim, isso é verdade - disse Mary com ar de troça. – Ele fica sentado a ler o livro e nem dá por uma pessoa falar com ele, nem quando se deixa cair uma tesoura, nem quando acontece qualquer outra coisa. Achas que Lady Russell gostaria disso?
Lady Russell não pôde conter o riso.
- Palavra de honra - disse ela - que, considerando-me eu uma pessoa decidida e prática, nunca me passaria pela cabeça que a minha opinião sobre alguém pudesse ocasionar tamanha diferença de conjecturas. Sinto realmente curiosidade em ver a pessoa que provoca opiniões tão contrárias. Espero que o convençam a visitar-nos. E, Mary, quando o fizer, podes ter a certeza de que ouvirás a minha opinião; mas estou decidida a não o julgar de antemão.
- Não vai gostar dele, posso assegurar-lhe.
Lady Russell começou a falar noutra coisa. Mary conversou animadamente sobre o seu encontro, ou melhor, sobre como, espantosamente, não se tinha encontrado com o Sr. Elliot.
- Esse é um homem - disse Lady Russell - que não tenho qualquer desejo de conhecer. A sua recusa em ficar em termos cordiais como o chefe da sua família provocou-me uma opinião muito desfavorável a seu respeito.
Esta declaração refreou o entusiasmo de Mary e fê-la interromper a sua descrição do aspecto de Elliot. Quanto ao comandante Wentworth, embora Anne não tivesse feito quaisquer perguntas, foram dadas voluntariamente informações suficientes. A sua disposição tinha melhorado muito ultimamente; e ele era agora uma pessoa muito diferente do que fora na primeira semana. Ele não visitara Louisa; estava tão receoso de que um encontro tivesse consequências graves para ela que não insistira em vê-la; pelo contrário, parecia ter um plano para se ausentar entre uma semana e dez dias, até a cabeça dela ficar mais forte. Ele falara em ir a Plymouth por uma semana e queria convencer o comandante Benwick a ir com ele; mas, conforme Charles afirmara, o comandante Benwick parecia muito mais disposto a vir a Kellynch. Não se pode duvidar de que, a partir desta altura, tanto Lady Russell como Anne pensavam ocasionalmente no comandante Benwick.
Lady Russell não conseguia ouvir a campainha da porta sem pensar que seria ele; e Anne também não conseguia voltar de um passeio solitário na propriedade do pai, de qualquer visita de caridade na aldeia, sem perguntar a si própria se iria vê-lo ou ter notícias dele. Mas o comandante Benwick não veio. Talvez se sentisse menos inclinado a fazê-lo do que Charles imaginara, ou então era demasiado tímido; e, depois de lhe conceder uma semana de tolerância, Lady Russell decidiu que ele não era merecedor do interesse que estava a começar a suscitar.
Os Musgrove regressaram a tempo de receber os seus felizes rapazes e meninas, vindos do colégio, e trouxeram consigo os filhos pequenos da Sraa Harville, o que fez aumentar o barulho em Uppercross e diminuir o de Lyme. Henrietta continuou junto de Louisa; mas o resto da família encontrava-se já novamente na sua residência habitual.
Lady Russell e Anne foram cumprimentá-los uma vez, e Anne não conseguiu deixar de sentir que Uppercross estava de novo cheia de vida. Embora nem Henrietta, nem Louisa, nem Charles Hayter, nem o comandante Wentworth lá estivessem, a sala apresentava um forte contraste com o estado em que a vira pela última vez. A Sra. Musgrove encontrava-se rodeada pelos pequeninos Harville, a quem ela protegia cuidadosamente da tirania das duas crianças do chalé, que tinham vindo expressamente para brincar com eles. A um lado, havia uma mesa, ocupada por algumas meninas que tagarelavam e cortavam papel de seda e papel dourado; noutro, havia tripeças com tabuleiros cheios de empadas, perto das quais rapazes turbulentos se divertiam ruidosamente; o conjunto era completado por uma lareira crepitante que parecia decidida a fazer-se ouvir, apesar de todo o barulho dos outros.
Charles e Mary também chegaram, claro, durante a sua visita; e o Sr. Musgrove fez questão de cumprimentar Lady Russell e sentou-se junto dela durante dez minutos, falando em voz muito alta, mas, devido ao barulho das crianças ao seu colo, geralmente em vão. Era um belo quadro de família.
Anne, julgando pelo seu próprio temperamento, teria considerado aquele furacão doméstico um péssimo restaurador dos nervos, que deviam estar tão abalados com a doença de Louisa; mas a Sra. Musgrove, que chamou Anne para junto de si para lhe agradecer repetidamente, com extrema cordialidade, as suas atenções para com eles, concluiu uma breve recapitulação do que ela própria sofrera, comentando, ao mesmo tempo que lançava um olhar feliz em redor, que, depois de tudo por que passara, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila em casa.
Louisa restabelecia-se rapidamente. A mãe pensava até que ela talvez pudesse vir para casa antes de os irmãos regressarem do colégio. Os Harville tinham prometido vir com ela e passar algum tempo em Uppercross, quando ela voltasse. O comandante Wentworth ausentara-se, de momento, para visitar o seu irmão em Shropshire.
- Espero lembrar-me, de futuro- disse Lady Russell assim que se sentaram na carruagem -, de não visitar Uppercross nas férias de Natal. Toda a gente tem os seus gostos no que diz respeito aos ruídos, assim como em relação a outras coisas; e os sons são inofensivos ou extremamente perturbadores devido mais à sua natureza do que à sua intensidade.
Quando Lady Russell, não muito tempo depois, chegou a Bath numa tarde de chuva e percorreu as ruas desde Old Bridge a Camden Place, no meio do barulho das outras carruagens, do rolar surdo das carroças e carretas, dos gritos dos pregões dos ardinas, dos padeiros e dos leiteiros, e do incessante martelar das galochas, não se queixou. Não, estes eram barulhos que pertenciam aos prazeres do Inverno; o seu estado de espírito melhorava sob tal influência; e, tal como a Sra. Musgrove, ela sentia, embora não o dissesse, que, depois de uma longa permanência no campo, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila.
Anne não partilhava destes sentimentos. Ela persistia na sua firme, embora muito silenciosa, aversão a Bath; avistou vagamente as fileiras de edifícios, esfumando-se na chuva, sem qualquer vontade de as ver melhor; achou o avanço ao longo das ruas não só desagradável como demasiado rápido; pois quem ficaria contente de a ver quando chegasse? E recordou, com saudade, o bulício de Uppercross e a solidão de Kellynch. A última carta de Elizabeth tinha-lhe dado uma notícia de algum interesse. O Sr. Elliot encontrava-se em Bath. Fizera uma visita a Camden Place; fizera uma segunda, uma terceira visita; fora particularmente atencioso; se Elizabeth e o pai não se enganavam, ele esforçava-se tanto por estabelecer uma ligação e por proclamar o valor do parentesco como anteriormente se empenhara em manifestar indiferença. Se isso fosse verdade, era maravilhoso; e Lady Russell sentia uma agradável curiosidade e perplexidade em relação ao Sr. Elliot, retratando-se da opinião que há tão pouco tempo expressara a Mary, de que ele era um homem que não tinha qualquer desejo de conhecer. Ela tinha um grande desejo de o conhecer. Se ele queria realmente reconciliar-se, como um ramo submisso, então deviam perdoar-lhe por se ter separado da árvore paterna. Anne não se sentia tão entusiasmada com essa circunstância; mas sentia que gostaria de voltar a ver o Sr. Elliot, o que não acontecia com muitas outras pessoas de Bath.
Lady Russell deixou-a em Camden Place e seguiu depois para a sua residência emrivers Street.
Sir Walter tinha alugado uma casa muito boa em Camden Place, um local elegante e digno, como convinha a um homem importante, e tanto ele como Elizabeth se sentiam muito satisfeitos ali. Anne entrou nela com grande desânimo, antecipando um cativeiro de muitos meses e dizendo ansiosamente para si própria: Oh, quando vou voltar a sair daqui?- Uma certa cordialidade inesperada no modo como foi recebida fê-la sentir-se melhor. O pai e a irmã ficaram satisfeitos por a verem, para lhe mostrarem a casa e as mobílias, e trataram-na com amabilidade. O fato de passarem a ser quatro à mesa de jantar foi considerado uma vantagem. A Sra. Clay foi simpática e mostrou-se muito sorridente; mas a simpatia e os sorrisos eram habituais nela. Anne sempre achara que, à sua chegada, ela fingiria o que era apropriado; mas a amabilidade dos outros foi inesperada. Eles estavam obviamente muito bem-dispostos, e, pouco depois, ela ficou a saber porquê. Eles não estavam interessados em ouvi-la. Depois de estarem à espera de ouvir que a sua falta era muito sentida na região em que tinham vivido, o que Anne não lhes pôde dizer, limitaram-se a fazer apenas algumas perguntas antes de dominarem a conversa. Uppercross não tinha interesse nenhum, e Kellynch muito pouco; Bath era tudo.
Tiveram o prazer de lhe garantir que Bath satisfazia as suas expectativas em todos os aspectos. A casa era indubitavelmente a melhor de Camden Place; as suas salas de visitas eram superiores a todas as outras que tinham visto ou de que tinham ouvido falar; e essa superioridade residia também no estilo da decoração e no bom gosto da mobília. Toda a gente queria ser-lhes apresentada. Todos queriam visitá-los. Eles tinham-se esquivado a muitas apresentações e, mesmo assim, estavam sempre a receber cartões de visita de pessoas de quem nunca tinham ouvido falar. Eram esses os motivos do regozijo!
Deveria Anne sentir-se admirada por o pai e a irmã se sentirem tão felizes? Ela podia não se admirar, mas devia suspirar por o pai não se aperceber de quanto descera com a mudança, por ele não lamentar ter-se afastado das obrigações e perdido a dignidade de um proprietário residente nas suas terras; por encontrar tantos motivos de vaidade na mesquinhez de uma cidade; não conseguiu deixar de suspirar, sorrir, e, enquanto Elizabeth abria as portas e passava, radiante, de um salão para o outro, gabando o seu tamanho, de se admirar com o fato de esta mulher, que tinha sido senhora do Solar de Kellynch, conseguir sentir orgulho daquele espaço entre quatro paredes que distavam uns dez metros umas das outras.
Mas não era só isto que os fazia felizes. Tinham também o Sr. Elliot. Anne teve de ouvir falar muito do Sr. Elliot. Não só fora perdoado como estavam encantados com ele. Ele encontrava-se em Bath há duas semanas (passara por Bath em) Novembro, no caminho para Londres; nessa altura, soubera que Sir Walter estava ali instalado, mas, como só lá passara vinte e quatro horas, não tivera tempo para os cumprimentar); mas agora estava há duas semanas em Bath, e o seu primeiro cuidado, ao chegar, fora deixar o seu cartão em Camden Place, tendo, logo a seguir, feito frequentes tentativas para se encontrarem; quando se encontraram, tivera uma conduta tão franca e apresentara tão prontamente desculpas pelo passado, tanto empenho em voltar a ser recebido como parente, que o bom entendimento anterior fora completamente restabelecido. Não tinham encontrado um único defeito nele. Ele tinha explicado o que parecera ser desinteresse da sua parte.
Fora provocado por um mal-entendido; ele nunca tencionara ignorá-los; receara, sim, estar a ser ignorado, mas desconhecia o motivo; e a delicadeza obrigara-o a manter-se silencioso. Mostrara-se vivamente indignado quando foi sugerido que ele se tinha referido à família ou aos seus pergaminhos de um modo pouco respeitoso ou indiferente. Ele, que sempre se gabara de ser um Elliot e cujos sentimentos em relação a este parentesco eram demasiado rígidos para agradar ao tom antifeudal de hoje em dia! Estava, na realidade, espantado!
Mas o seu carácter e o seu comportamento em geral desmentiam-no. Sir Walter podia falar com todos os que o conheciam; e certamente que os esforços que fizera, nessa primeira oportunidade de reconciliação para recuperar o estatuto de parente e presumível herdeiro, eram uma prova evidente da sua opinião sobre o assunto. As circunstâncias do seu casamento também eram de molde a admitir muitas atenuantes. Este era um assunto sobre o qual ele não quisera falar; mas um amigo íntimo seu, um tal Coronel Wallis, um homem eminentemente respeitável, um perfeito cavalheiro (e de boa aparência, acrescentou Sir Walter) que vivia com bastante luxo em Malborough Buildings e que, a seu próprio pedido, lhes tinha sido apresentado pelo Sr. Elliot, mencionara uma ou duas coisas sobre o casamento que provocara uma grande diferença em relação à má impressão que tinham sobre o mesmo. O coronel Wallis conhecia o Sr. Elliot há muito tempo, conhecera bem amulher dele e compreendera perfeitamente toda a história. Ela certamente não era uma mulher de boas famílias, mas era instruída, prendada, rica e completamente apaixonada pelo seu amigo. Tinha sido esse o encanto. Ela aproximara-se dele. Sem essa atração, todo o seu dinheiro não teria sido suficiente para tentar Elliot. Além disso, assegurou ele a Sir Elliot, ela era uma mulher muito bonita.
Tudo isso amenizava a situação. Uma mulher muito bonita, com uma grande fortuna e apaixonada por ele! Sir Walter pareceu admitir que tudo isso constituía uma desculpa perfeita, e Elizabeth, embora não visse as circunstâncias sob uma luz tão favorável, concordou que era uma grande atenuante. O Sr. Elliot visitara-os repetidas vezes,jantara com eles uma vez, obviamente encantado com a honra de ter sido convidado, pois eles, de um modo geral, não ofereciam jantares; encantado, em suma, com todas as provas de atenção por parte dos primos e sentindo-se extremamente feliz por estar em relações íntimas com Camden Place.
Anne ouviu, mas sem conseguir compreender bem. Sabia que tinha de fazer concessões, enormes concessões, às opiniões dos que falavam. Sem dúvida que havia exagero naquilo que ouvia. Tudo o que soava a extravagante e irracional na reconciliação podia ter origem apenas na linguagem dos relatores. Mesmo assim, porém, ela tinha a sensação de existir algo mais do que era imediatamente aparente no desejo do Sr. Elliot de, ao fim de tantos anos, querer ser bem recebido por eles. Sob um ponto de vista mundano, ele não tinha nada a ganhar com o fato de estar de boas relações com Sir Walter, nem arriscava nada se continuasse em desacordo com ele. Com toda a probabilidade, ele era o mais rico dos dois, e a propriedade de Kellynch certamente seria sua no futuro, assim como o título. Um homem sensato! E ele parecera ser um homem muito sensato. Qual seria o seu objetivo? Ela só conseguia imaginar uma solução; era, talvez, por causa de Elizabeth. Talvez no passado ele tivesse gostado realmente dela, embora as conveniências e o acaso o tivessem arrastado para um caminho diferente, e, agora que ele podia dar-se ao luxo de fazer o que lhe agradava, talvez tencionasse fazer-lhe a corte. Elizabeth era certamente muito bonita, com modos elegantes e bem educados, e o Sr. Elliot talvez nunca se tivesse apercebido do seu caráter, uma vez que só a vira em público e ele próprio era, nessa altura, muito jovem. Como ele, agora mais velho e mais perspicaz, ver o temperamento e a inteligência dela era outra questão, bastante mais preocupante. Muito sinceramente, se o seu objetivo era, na verdade, Elizabeth, ela desejava que ele não fosse demasiado amável nem demasiado observador; e, pelos olhares que as duas trocavam quando se falava das visitas frequentes do Sr. Elliot, parecia óbvio que Elizabeth julgava que era e que a sua amiga, a Sra. Clay, encorajava a idéia.
Anne referiu tê-lo visto de relance em Lyme, mas não lhe prestaram muita atenção. Oh!, sim, talvez fosse o Sr. Elliot. Eles não sabiam. Talvez fosse ele.¯ Recusavam-se a ouvi-la descrevê-lo. Eles próprios, principalmente Sir Walter, o descreviam. Ele fez jus ao seu ar de cavalheiro, ao aspecto elegante e moderno, ao rosto bem delineado, aos seus olhos sensatos, mas, ao mesmo tempo, lamentava que tivesse o queixo tão saliente, um defeito que o tempo parecia ter acentuado; também não podia afirmar que, em dez anos, todos os seus traços não se tivessem alterado para pior. O Sr. Elliot parecia pensar que ele (Sir Walter) estava exatamente como quando se tinham separado pela última vez; mas Sir Walter não pudera retribuir-lhe cabalmente o elogio, o que o embaraçara.
Ele não tinha, porém, motivo de queixa. O Sr. Elliot era mais bem-parecido que a maior parte dos homens, e ele não tinha qualquer objeção a ser visto em qualquer lado na sua companhia.
Falaram sobre o Sr. Elliot e os seus amigos de Malborough Buildings durante toda a noite. O coronel Wallis mostrara-se tão impaciente em lhes ser apresentado! E o Sr. Elliot tão ansioso por que o fosse. E havia uma Sra. Wallis, de quem, de momento, apenas tinham ouvido falar, pois ela esperava o nascimento de um filho; mas o Sr. Elliot referia-se a ela como uma mulher encantadora, bem digna de Camden Place", e, assim que se restabelecesse, conhecê-la-iam.
Sir Walter tinha a Sra. Wallis em grande consideração, dizia-se que ela era uma mulher extremamente bonita. Ele ansiava por conhecê-la. Tinha esperança de que ela o compensasse das muitas caras feias com que se cruzava continuamente na rua. O pior de Bath era a quantidade de mulheres feias que lá havia. Ele não queria dizer que não houvesse mulheres bonitas, mas o número das menos atraentes era desproporcionadamente maior. Ele tinha reparado com frequência, quando passeava, que a um rosto bonito se seguiam trinta ou trinta e cinco rostos medonhos; e uma vez, quando entrara numa loja em Bond Street, contara oitenta e sete mulheres a passar, uma atrás de outra, sem que houvesse um rosto tolerável entre elas. Tinha sido uma manhã fria, com uma geada glacial, que dificilmente uma mulher em mil conseguiria enfrentar.
Mas, mesmo assim, havia certamente uma grande quantidade de mulheres feias em Bath; e, quanto aos homens, esses eram infinitamente piores. As ruas estavam cheias de espantalhos! Pelo efeito que um homem de aspecto decente produzia, era óbvio que as mulheres não estavam muito habituadas a ver homens de aspecto tolerável. Ele nunca fora a lado nenhum de braço dado com o coronel Wallis (que tinha uma bela figura militar, embora fosse ruivo), sem notar que os olhos de todas as mulheres convergiam para ele, que os olhos de todas elas se fixavam no coronel Wallis. Que modesto, Sir Walter!
Ele não conseguiu fugir, porém. A filha e a Sr.a Clay aliaram-se a sugerir que o companheiro do coronel Wallis talvez tivesse uma figura tão atraente como o coronel Wallis, e certamente não era ruivo.
- Como está Mary? - perguntou Sir Walter, muito bem-disposto.
- A última vez que a vi, ela tinha o nariz vermelho, mas espero que isso não aconteça todos os dias.
- Oh! Não, isso deve ter sido acidental. De um modo geral, ela tem estado de boa saúde e com muito bom aspecto desde o dia de São Miguel.
- Se eu achasse que isso não iria tentá-la a sair com ventos cortantes que lhe estragariam a pele, enviar-lhe-ia uma peliça e um chapéu novos.
Anne estava a pensar se se atreveria a sugerir que um vestido ou uma touca não teriam provavelmente a mesma má utilização, quando uma pancada na porta suspendeu tudo.
Bateram à porta, e tão tarde! Eram dez horas. Seria o Sr. Elliot? Eles sabiam que ele deveria jantar em Lansdown Crescent. Era possível que ele passasse por ali no caminho para casa, para saber como estavam.
Eles não conseguiam pensar em mais ninguém. A Sra. Clay pensou decididamente que era o toque do Sr. Elliot. A Sra. Clay teve razão.
Com todo o cerimonial que um único mordomo e um único lacaio permitiam, o Sr. Elliot foi introduzido na sala. Era o mesmo, exatamente o mesmo homem, diferente apenas no vestuário. Anne recuou um pouco, enquanto os outros recebiam os seus cumprimentos, e a irmã as suas desculpas por ter aparecido a uma hora tão invulgar, mas ele não conseguia estar tão perto sem desejar certificar-se de que nem ela nem a sua amiga se tinham constipado no dia anterior", etc., etc., o que foi feito muito educadamente e recebido o mais delicadamente possível; mas seguiu-se a vez dela. Sir Walter falou na filha mais nova; Sr. Elliot, permita-me que lhe apresente a minha filha mais nova¯ (não era ocasião para se recordar de Mary), e Anne, sorridente e corada, deixou o Sr. Elliot ver as suas bonitas feições, as quais ele de modo algum esquecera, e viu imediatamente, achando graça ao seu ligeiro sobressalto de surpresa, que, na altura, ele não soubera quem ela era. Ele parecia completamente espantado, mas mais satisfeito do que espantado; os seus olhos brilharam de alegria e, com grande regozijo, congratulou-se pelo parentesco, aludiu ao passado e pediu que o considerasse já como conhecido.
Ele era tão bem-parecido como lhe parecera em Lyme, o seu rosto melhorava quando falava, e os seus modos eram exatamente o que deveriam ser, tão educados, tão naturais e tão particularmente agradáveis, que ela só os podia comparar, em excelência, aos de uma outra pessoa. Não eram os mesmos, mas eram, talvez, igualmente primorosos. Ele sentou-se junto deles, e a conversa melhorou com a sua participação. Não havia qualquer dúvida de que era um homem sensato. Bastaram dez minutos para provar isso. O seu tom, as suas expressões, a sua escolha de assunto, o fato de ele saber quando parar - tudo era função de uma mente sensata e perspicaz. Assim que pôde, ele começou a conversar sobre Lyme, desejando comparar opiniões a respeito daquele local, mas querendo particularmente falar sobre a circunstância de terem estado alojados ao mesmo tempo na mesma hospedaria, relatar a sua própria viagem, conhecer algo sobre ela e lamentar ter perdido uma tal oportunidade de a cumprimentar.
Ela fez-lhe um breve relato do seu grupo e do que a levara a Lyme. À medida que escutava, ele sentia cada vez mais pena. Passara a noite sozinho na sala ao lado da deles; ouvira continuamente vozes e risos; pensara que devia ser um grupo de pessoas agradabilíssimo; desejou poder juntar-se a eles; mas, certamente, nunca desconfiara de que tinha o mínimo direito de se apresentar. Se ao menos tivesse perguntado quem eles eram, o nome Musgrove ter-lhe-ia dito o suficiente. Bem, isto ia servir-lhe de emenda e curá-lo do hábito absurdo de nunca fazer perguntas numa hospedaria, hábito que adotara ainda muito jovem, baseado no princípio de que era muito indelicado ser curioso.
- As idéias de um jovem de vinte e um anos - disse ele sobre as maneiras que deve ter para se tornar um modelo de distinção são mais absurdas, creio eu, que as de qualquer outro grupo do mundo. A loucura dos meios que ele muitas vezes utiliza só é igualada pela loucura do seu objetivo. Mas ele sabia que não devia estar a falar só com Anne; e, passado pouco tempo, ele estava a conversar com os outros, só voltando a referir-se a Lyme de vez em quando. As suas perguntas, porém, acabaram por conduzir a uma descrição do acontecimento em que ela estivera envolvida pouco depois de ele ter partido.
Quando ela se referiu a um acidente, ele quis saber pormenores. Quando ele fez perguntas, Sir Walter e Elizabeth começaram também a fazer perguntas; mas era impossível não sentir a diferença na maneira como eles o fizeram. No desejo de compreender realmente o que se passara e no grau de interesse pelo que ela sofrera ao presenciá-lo, ela só podia comparar o Sr. Elliot a Lady Russell.
Ele ficou uma hora com eles. Só quando o elegante relógio em cima da lareira bateu às onze horas com o seu tinir de prata e se começou a ouvir ao longe o guarda noturno a dizer o mesmo é que o Sr. Elliot, ou qualquer deles, pareceu ter a noção de que ele estivera lá tanto tempo. Anne não imaginara possível que a sua primeira noite em Camden Place corresse tão bem!
Havia uma questão de que Anne, ao regressar para junto da família, gostaria muito de se certificar, ainda mais do que se o Sr. Elliot estava apaixonado por Elizabeth, e essa era de que o pai não estava apaixonado pela Sra. Clay; e ela estava em casa há apenas algumas horas, quando se começou a sentir inquieta a esse respeito.
Quando desceu para o pequeno-almoço na manhã seguinte, soube que aquela senhora, fingindo decorosamente, manifestara a intenção de os deixar. Ela podia imaginar a Sra. Clay a dizer que agora que a Menina Anne chegou, imaginava que já não precisavam da sua companhia¯, pois Elizabeth respondia, numa espécie de murmúrio:
- Isso não constitui motivo nenhum, garanto-lhe que, para mim, isso não é razão. Ela não significa nada para mim, comparada consigo.
E chegou a tempo de ouvir o pai dize:
- Minha querida senhora, isso não pode ser. A senhora ainda não viu nada de Bath. Tem estado aqui apenas para nos ajudar. Não deve fugir de nós agora. Tem de ficar para conhecer a Sra. Wallis, a bela Sra. Wallis. Eu sei que, para o seu espírito delicado, a contemplação da beleza é um verdadeiro prazer. Falou num tom e com um ar tão sério que Anne não ficou surpreendida ao ver a Sra. Clay lançar-lhe um olhar furtivo, bem como a Elizabeth. O seu rosto talvez exprimisse alguma cautela, mas o elogio a um espírito delicado não pareceu despertar qualquer preocupação na irmã. A senhora não pôde resistir às súplicas dos dois e prometeu ficar.
No decorrer dessa mesma manhã, Anne e o pai encontraram-se, por acaso, a sós, e ele começou a elogiá-la pela sua aparência melhorada; achava-a menos magra de corpo e de cara; a pele, a cútis, estava muito melhor-mais clara, mais fresca. Andava a usar alguma coisa especial?
- Não, nada.
- Só Gowland- supôs ele.
- Não, absolutamente nada.
- Ah! - ele mostrou-se surpreendido e acrescentou: Certamente, o melhor que tens a fazer é continuar como estás; não podes aperfeiçoar o que já está bem; se não, eu recomendava-te o Gowland, a utilização constante de Gowland nos meses de Primavera. A Sra. Clay tem-no usado, recomendada por mim, e vê como lhe tem feito bem. Vê como lhe fez desaparecer as sardas.
Se Elizabeth tivesse ouvido isto! Este elogio pessoal talvez a tivesse perturbado, principalmente porque não parecia a Anne que as sardas tivessem diminuído absolutamente nada. Mas tudo tem a sua oportunidade. Os malefícios do casamento seriam muito menores se Elizabeth também se casasse. Quanto a si própria, ela teria sempre a casa de Lady Russell à sua disposição.
A mente calma e os modos educados de Lady Russell foram postos à prova nesta altura, nas suas relações com Camden Place. Ver a Sra. Clay em tão boas graças e Anne tão ignorada constituía para ela uma provocação permanente; e, quando estava longe, isso aborrecia-a tanto quanto uma pessoa que está em Bath e que toma as águas, recebe todas as publicações novas e tem um vasto círculo de conhecimentos, tem tempo para se aborrecer.
Quando conheceu o Sr. Elliot, tornou-se mais tolerante, ou mais indiferente, em relação aos outros. Os modos dele constituíram uma recomendação imediata e, ao conversar com ele, viu que o interior estava tão de acordo com a superfície que, a princípio, como contou a Anne, esteve quase prestes a exclamar:
- Será este o Sr. Elliot?
Ela não conseguia imaginar um homem mais simpático ou digno de apreço. Ele reunia todas as qualidades: compreensão, opiniões corretas, conhecimento do mundo e um coração afetuoso. Possuía fortes sentimentos em relação a laços familiares e à honra da família, sem orgulho nem fraqueza; vivia com a prodigalidade de um homem de fortuna, sem ostentação; julgava por si próprio a respeito de tudo o que era essencial, sem desafiar a opinião pública em qualquer questão de decoro mundano. Era firme, observador, moderado, sincero; nunca, imaginando-se forte, se deixava dominar pelo entusiasmo ou pelo egoísmo; tinha, no entanto, uma sensibilidade delicada para tudo o que era agradável e delicado, e dava valor a todas as alegrias da vida doméstica, coisas que personalidades dadas a entusiasmos fictícios e agitações violentas raramente possuem.
Ela tinha a certeza de que ele não fora feliz no casamento.
O coronel Wallis dissera-o, e Lady Russell viu-o; mas não tinha sido um infortúnio que lhe tivesse azedado o espírito, nem (começou ela pouco depois a desconfiar) que o impedisse de pensar numa segunda escolha. A sua satisfação em relação ao Sr. Elliot excedia a aversão que sentia pela Sra. Clay. HÁ já alguns anos que Anne se apercebera de que ela e a sua excelente amiga podiam, por vezes, ter opiniões diferentes; e, assim, não ficou surpreendida por Lady Russell não ver, no enorme desejo de reconciliação do Sr. Elliot, nada de suspeito ou incoerente, nada que tivesse outros motivos para além dos que eram óbvios.
No ponto de vista de Lady Russell, era perfeitamente natural que o Sr. Elliot, numa fase mais amadurecida da sua vida, achasse desejável estar em boas relações com o chefe da sua família, fato esse que merecia toda a aprovação das pessoas sensatas; era o processo mais simples do mundo de uma mente naturalmente lúcida, que só errara no auge da juventude.
Anne, porém, limitou-se a esboçar um sorriso; e por fim, referiu-se a Elizabeth. Lady Russell ouviu, olhou e deu apenas uma resposta cautelosa:
- Elizabeth! Muito bem. O tempo dirá. Era uma referência ao futuro, ao qual Anne, depois de pensar um pouco, sentiu que tinha de se submeter. De momento, não podia ter a certeza de nada. Naquela casa, Elizabeth estava em primeiro lugar; e ela estava tão habituada a atrair as atenções gerais como Menina Elliot¯ que quaisquer atenções para com outras pessoas pareciam quase impossíveis. Era preciso lembrar também que o Sr. Elliot só tinha enviuvado há sete meses. Uma ligeira demora da sua parte era perfeitamente desculpável.
Na realidade, Anne nunca conseguia ver o fumo à volta do chapéu dele sem recear que talvez fosse ela quem não merecia desculpa, ao atribuir-lhe tais fantasias; pois, embora o casamento dele não tivesse sido muito feliz, o mesmo durara tantos anos que ela não conseguia compreender um restabelecimento tão rápido do desgosto provocado pela sua dissolução. Qualquer que fosse o desfecho, o Sr. Elliot era, sem dúvida, a pessoa mais agradável que conheciam em Bath; ela não via ninguém que se lhe comparasse; e dava-lhe um enorme prazer conversar com ele de vez em quando sobre Lyme, que ele desejava, tanto como ela, voltar a ver e conhecer melhor.
Recordaram muitas vezes os pormenores do seu primeiro encontro. Ele deu-lhe a entender que a tinha olhado com muito interesse. Ela sabia-o bem; e ela recordava também o olhar de outra pessoa. As suas maneiras de pensar nem sempre coincidiam. Ela viu que ele atribuía mais valor do que ela à posição e relações sociais. Não foi apenas por tolerância, devia ser por gosto próprio que ele se associou empenhadamente ao interesse do pai e da irmã sobre um assunto que ela considerava indigno da atenção deles.
Uma manhã, o jornal de Bath anunciou a chegada da viúva viscondessa de Dalrymple e da filha, a Menina Carteret; e, durante muitos dias, toda a tranquilidade do apartamento de Camden Place desapareceu; pois os Dalrymple (infelizmente, na opinião de Anne) eram primos dos Elliot; e a preocupação era com o modo como lhes seriam condignamente apresentados.
Anne nunca tinha visto o pai e a irmã em contato com a nobreza e teve de reconhecer que se sentiu desiludida. Esperara mais da noção elevada que eles tinham da sua posição social, e viu-se reduzida a formular um desejo que nunca previra - um desejo de que eles tivessem mais orgulho; as palavras -as nossas primas Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯ e as nossas primas, as Dalrymple¯ soavam nos seus ouvidos durante todo o dia.
Sir Walter tinha-se encontrado uma vez na companhia do falecido visconde, mas nunca vira o resto da família, e as dificuldades da situação deviam-se ao fato de ter havido uma suspensão de cartas cerimoniosas, desde a morte do visconde, quando, em consequência de uma grave doença de Sir Walter ao mesmo tempo, se verificara uma infeliz omissão em Kellynch.
Não fora enviada para a Irlanda nenhuma carta de condolências. A negligência voltara-se contra o prevaricador, pois, quando a pobre Lady Elliot morreu, nenhuma carta foi recebida em Kellynch e, consequentemente, havia motivo suficiente para supor que as Dalrymple consideravam as relações cortadas. A questão agora era corrigir este preocupante contratempo e serem admitidos de novo como primos; essa era uma questão que, embora com uma atitude mais racional, nem Lady Russell nem o Sr. Elliot consideravam insignificante. - As relações familiares devem ser sempre preservadas, tal como se deve sempre procurar boas companhias - diziam eles.
Lady Dalrymple tinha alugado uma casa por três meses em Laura Place e iria viver em grande estilo. Estivera em Bath no ano anterior, e Lady Russell ouvira falar dela como sendo uma mulher encantadora. Seria muito desejável que reatassem relações, se tal pudesse ser feito sem qualquer perda de compostura por parte dos Elliot.
Sir Walter, porém, decidiu escolher os seus próprios meios e, por fim, escreveu uma bela carta dirigida à sua ilustre prima, cheia de explicações, lamentações e súplicas. Nem Lady Russell nem o Sr. Elliot aprovaram a carta; mas ela teve o efeito pretendido, que foi três linhas rabiscadas pela viscondessa. Ela sentia-se muito honrada e gostaria muito de os conhecer. Terminada a aflição, começava a doçura.
Eles visitaram Laura Place, receberam os cartões de visita da viscondessa de Dalrymple e da ilustre Menina Carteret, os quais foram colocados em locais bem visíveis, e falavam a toda a gente das primas de Laura Place¯ e das nossas primas, Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯. Anne sentia-se envergonhada.
Se, ao menos, Lady Dalrymple e a filha fossem muito simpáticas, mesmo assim ela teria sentido vergonha da agitação que elas tinham provocado; mas elas não passavam de duas nulidades. Não possuíam qualquer superioridade de maneiras, talentos ou inteligência. Lady Dalrymple adquirira o epíteto de uma mulher encantadora¯ porque tinha um sorriso e uma resposta educada para toda a gente. A Menina Carteret, com ainda menos para dizer, era tão feia e tão desajeitada que, se não fosse quem era, nunca seria tolerada em Camden Place.
Lady Russell confessou que tinha esperado algo melhor; mas, mesmo assim, era um conhecimento valioso¯, e, quando Anne se atreveu a emitir a sua opinião sobre elas ao Sr. Elliot, ele concordou que elas, em si, eram nulidades, mas continuava a pensar que tinham o seu valor como ligação familiar, como boa companhia e ainda como pessoas que reuniam uma boa companhia à sua volta.
Anne sorriu e disse:
- A minha idéia de boa companhia, Sr. Elliot, é a companhia de pessoas inteligentes, bem informadas, que têm muito sobre que conversar; é a isso que eu chamo boa companhia.
- Está enganada - disse ele suavemente -, isso não é boa companhia, é ótima. Boa companhia exige apenas nascimento, educação e boas-maneiras, e nem sequer é muito exigente quanto à educação. Linhagem e boas-maneiras é o essencial; mas uma certa instrução não é, de modo algum, uma coisa perigosa em companhia; pelo contrário, até é uma vantagem. A minha prima Anne abana a cabeça. Ela não está satisfeita. É difícil de contentar. A minha cara prima - (sentando-se a seu lado) – tem mais direito de ser exigente do que qualquer mulher que eu conheço; mas será isso aconselhável? Será que isso a fará feliz? Não será mais sensato aceitar a companhia destas boas senhoras de Laura Place e usufruir o mais possível de todas as vantagens do parentesco? Pode ter a certeza de que elas frequentarão a melhor sociedade de Bath e, como nobreza é nobreza, o fato de se saber que são parentes delas será útil para colocar a sua família... a nossa família, devo dizer... naquele nível de consideração que todos desejamos.
- Sim - suspirou Anne -, na realidade, vai saber-se que somos parentes delas! - Depois, dominando-se e não querendo que ele respondesse, acrescentou: - Eu realmente penso que houve demasiada preocupação em estabelecer relações. Suponho (sorrindo) - que tenho mais orgulho do que qualquer um de vós; mas confesso que me aborrece que nos tenhamos mostrado tão ansiosos em ver reconhecido o parentesco, o qual lhes é, sem dúvida, perfeitamente indiferente.
- Perdoe-me, minha querida prima, mas está a ser injusta para com os vossos direitos. Em Londres, talvez, com o vosso atual estilo de vida tranquilo, talvez fosse como diz; mas em Bath, Sir Walter Elliot e a sua família serão sempre dignos de ser conhecidos, serão sempre aceites como conhecimentos importantes.
- Bem - disse Anne -, certamente que me sinto orgulhosa, demasiado orgulhosa para apreciar um acolhimento que depende exclusivamente de posição social.
- Adoro a sua indignação - disse ele -, ela é muito natural. Mas, já que estão aqui em Bath, o objetivo deverá ser instalarem-se com toda a honra e dignidade a que Sir Walter Elliot tem direito. Diz que é orgulhosa; eu sei que me chamam orgulhoso, e não gostaria de ser de outro modo, pois o nosso orgulho, se analisarmos bem as coisas, tem o mesmo objetivo, não tenho qualquer dúvida, embora possam ser de um tipo um pouco diferente. Num ponto, tenho a certeza, minha querida prima - prosseguiu ele, num tom de voz mais baixo, embora não estivesse mais ninguém na sala -, num ponto, tenho a certeza de que estamos de acordo. Ambos sentimos que, se o seu pai aumentar o seu círculo de conhecimentos entre os seus iguais ou superiores, isso poderá servir para desviar os seus pensamentos dos que lhe são inferiores.
Enquanto falava, ele olhava para o lugar em que a Sra. Clay se sentara havia pouco tempo, uma indicação suficiente do que ele queria dizer; e, embora Anne não acreditasse que tivessem o mesmo tipo de orgulho, ficou satisfeita por ele não gostar da Sra. Clay; e a sua consciência admitiu que o desejo dele de aumentar o círculo social do seu pai era mais do que desculpável se visasse derrotá-la.
Enquanto Sir Walter e Elizabeth tentavam assiduamente cair nas boas graças de Laura Place, Anne reatava um conhecimento de natureza muito diferente. Ela tinha visitado a sua antiga preceptora, e soubera por ela que se encontrava em Bath uma antiga colega que tinha dois fortes motivos para que a recordasse: a sua bondade passada e o seu sofrimento atual.
A Menina Hamilton, agora Sra. Smith, tinha sido bondosa para com ela num dos períodos da sua vida em que mais precisara. Anne fora para o colégio sentindo-se muito infeliz, chorando a morte da mãe muito amada, ressentindo-se do afastamento de casa e sofrendo como uma menina de 14 anos, sensível e pouco alegre, sofre em circunstâncias destas; e a Menina Hamilton, três anos mais velha do que ela, mas que, por não ter familiares próximos nem um lar definitivo, tinha ficado mais um ano no colégio, tinha sido útil e bondosa para ela, de um modo que minorara consideravelmente a sua infelicidade e, por esse motivo, ela nunca a poderia recordar com indiferença.
A Menina Hamilton deixara o colégio e casara pouco depois, ao que se dizia, com um homem de fortuna; e isto era tudo o que Anne soubera dela, até que, agora, a preceptora lhe revelou a sua situação de uma forma mais segura mas muito diferente. Ela estava viúva e pobre. O marido tinha sido extravagante; quando morrera, dois anos antes, ele tinha deixado os seus negócios terrivelmente emaranhados. Ela tivera de lutar contra todo o tipo de dificuldades e, para além destes desgostos, sofria de uma grave febre reumática que acabara por atacar-lhe as pernas e a deixara aleijada. Ela viera para Bath por causa disso e estava agora instalada numa casa alugada perto das termas quentes, a viver de um modo muito humilde, sem poder sequer ter o conforto de uma criada e, obviamente, quase excluída da sociedade.
A amiga comum garantiu que a Sra. Smith ficaria muito satisfeita com a visita da Menina Elliot e, assim, Anne não perdeu tempo em ir vê-la. Não disse nada em casa sobre o que ouvira nem o que tencionava fazer. Isso não suscitaria grande interesse. Limitou-se a consultar Lady Russell, e esta compreendeu-a perfeitamente e teve o maior prazer em levá-la tão perto da morada da Sra. Smith nos Westgate Buildings quanto Anne quis.
A visita foi feita, o conhecimento reatado e a amizade de uma pela outra mais do que reacendida. Os primeiros dez minutos tiveram o seu quê de embaraço e emoção. Tinham-se passado doze anos desde que se tinham separado, e cada uma delas era um tanto diferente do que a outra imaginara. Doze anos tinham transformado Anne de uma menina sem formas, calada e a desabrochar, numa elegante mulher de 27 anos, de baixa estatura, com toda a beleza exceto o viço da juventude e com modos conscientemente corretos e invariavelmente meigos; e doze anos tinham transformado a bonita e crescida Menina Hamilton, com todo o fulgor da saúde e confiança na sua superioridade, numa viúva pobre, enferma e indefesa, recebendo a visita da sua antiga protegida como um favor; mas tudo o que era penoso no encontro depressa se desvaneceu, deixando apenas o interesse e o encanto de recordar amizades antigas e de falar sobre os velhos tempos.
Anne encontrou na Sra. Smith o bom senso e os modos agradáveis com os quais ela quase se atrevera a contar, e uma vontade de conversar e ser alegre para além da sua expectativa. Nem a dissipação do passado - e ela tinha tido uma vida muito mundana - nem as restrições do presente; nem a doença nem a dor pareciam ter-lhe endurecido o coração e feito perder a jovialidade.
Durante a segunda visita, ela falou com muita franqueza, e o espanto de Anne aumentou. Não conseguia imaginar uma situação mais triste do que a da Sra. Smith. Ela gostara muito do marido - e enterrara-o. Habituara-se à afluência - e esta terminara. Não tinha filhos que a voltassem a prender à vida e à felicidade, nem familiares que a auxiliassem a pôr em ordem os seus negócios confusos, não tinha saúde que tornasse tudo o resto suportável. Os seus aposentos estavam limitados a uma sala barulhenta e um quarto escuro atrás, e ela não conseguia mover-se de um aposento para o outro sem ajuda; havia só uma criada na casa para lhe dar essa ajuda, e ela só saía para ir para as termas. No entanto, apesar de tudo isso, Anne tinha motivo para acreditar que ela tinha apenas momentos de desânimo e depressão, e horas de ocupação e alegria. Como podia isso ser?
Ela prestou atenção - observou – refletiu - e decidiu finalmente que não se tratava simplesmente de um caso de coragem e resignação. Um espírito submisso talvez fosse paciente, uma inteligência sólida poderia encontrar soluções, mas ali havia qualquer coisa mais; havia aquela elasticidade de espírito, aquela disposição para se deixar confortar, o poder de transformar rapidamente o mal em bem, de encontrar ocupações que a distraíssem, que só podia provir da natureza. Era o mais precioso dom do Céu, e Anne via a sua amiga como um daqueles casos que, devido a um desígnio misericordioso, parece destinado a contrabalançar quase todas as outras deficiências.
"Houvera uma altura", disse-lhe a Sra. Smith, em que quase desanimara. Agora já não se podia considerar uma inválida, comparada com o seu estado quando chegara a Bath. Nessa altura, ela tinha sido realmente digna de dó, pois apanhara uma constipação durante a viagem e, mal se instalara nos seus aposentos, ficara de cama, sofrendo constantemente de dores violentas; e tudo isso no meio de desconhecidos – com necessidade absoluta de uma enfermeira permanente, e sem dinheiro, de momento, para quaisquer despesas imprevistas. Ela tinha resistido, porém, e podia dizer com toda a sinceridade que a provação lhe tinha feito bem. Saber que estava em boas mãos fizera-a sentir-se melhor. Tinha visto demasiado do mundo para esperar uma amizade súbita e desinteressada em qualquer lado, mas a doença provara-lhe que a sua senhoria tinha um bom caráter não a iria tratar mal; e ela tivera sorte, sobretudo, com a enfermeira, irmã da senhoria, enfermeira de profissão, que, quando desempregada, tinha sempre um lar naquela casa, e, por acaso, se encontrava, nessa altura, livre para tratar dela.
- E ela- disse a Sra. Smith-, além de me tratar muito bem, tem sido um conhecimento precioso. Assim que consegui usar as mãos, ela ensinou-me a tricotar, o que tem constituído para mim uma grande distração; ensinou-me a fazer estas caixinhas, alfineteiras e estojos para cartões de visita que me vê sempre a fazer e que me proporcionam um meio de fazer um pouco de bem a uma ou duas famílias pobres desta região. Devido à sua profissão, claro, ela conhece muita gente que pode comprar, e ela vende as minhas coisas. Dirige-se sempre às pessoas na altura certa. Toda a gente é generosa, sabe, quando acabou de se libertar de dores violentas ou está a recuperar a bênção da saúde, e a enfermeira Rooke sabe perfeitamente quando deve falar. Ela é uma mulher perspicaz, inteligente e sensata. Gosta de observar a natureza humana e possui um fundo de bom senso e sentido crítico que a tornam infinitamente superior, como companhia, a milhares que, tendo recebido a melhor educação do mundo¯, não sabem nada que valha a pena escutar.
Pode chamar-lhe má língua, se quiser; mas quando a enfermeira Rooke tem meia hora livre para passar comigo, é certo que tem algo interessante e útil para contar, algo que nos faz conhecer melhor os outros seres humanos. Todos gostam de ouvir o que se passa, de estar atualizados quanto às últimas modas fúteis e tolas. Para mim, que vivo sozinha, garanto-te que a conversa dela é um verdadeiro prazer.
Anne, longe de querer pôr em causa esse prazer, respondeu:
- Posso bem acreditar. As mulheres da classe dela têm ótimas oportunidades e, se forem inteligentes, vale a pena escutá-las. Elas estão habituadas a presenciar tantas variações da natureza humana! E não conhecem bem apenas as suas loucuras; pois, ocasionalmente, elas conseguem vê-la sob os seus aspectos mais interessantes e comoventes. Quantos casos de amor ardente, desinteressado, altruísta, de heroísmo, coragem, paciência, resignação não desfilarão perante elas... de todos os conflitos e todos os sacrifícios que mais nos enobrecem? Um quarto de um doente pode, muitas vezes, ensinar mais do que muitos livros.
- Sim - disse a Sr.a Smith num tom de dúvida -, às vezes pode ser que assim seja, mas eu receio que as suas lições não tenham frequentemente o estilo eloquente que descreve. De vez em quando, a natureza humana pode ser grandiosa em alturas difíceis, mas, de um modo geral, num quarto de um doente, são as suas fraquezas e não as suas forças que emergem; é do egoísmo e da impaciência que se ouve falar, e não de generosidade e de coragem. HÁ tão pouca amizade no mundo!, e, infelizmente - concluiu ela numa voz baixa e trémula -, há tantos que se esquecem de pensar a sério até ser demasiado tarde.
Anne viu como ela se sentia infeliz. O marido não tinha sido o que devia, e a mulher fora levada para o meio daquele setor da humanidade que a tinha feito pensar pior do mundo do que esperava que este merecesse. Foi, porém, apenas uma emoção passageira da Sra. Smith; ela sacudiu-a e, pouco depois, acrescentou num tom diferente:
- Eu não penso que o emprego que a minha amiga, a Sra. Rooke, tem neste momento me vá fornecer exemplos interessantes e edificantes. Ela está apenas a tratar da Sra. Wallis de Malborough Buildings; creio que esta não passa de uma mulher moderna, bonita, tola e cara, e claro que não vai ter nada para contar a não ser sobre rendas e roupas elegantes. Mas tenciono fazer lucro com a Sra. Wallis. Ela tem muito dinheiro, e eu tenciono fazê-la comprar as coisas caras que tenho entre mãos. Anne visitou várias vezes a sua amiga antes de a existência desta ser conhecida em Camden Place. Por fim, tornou-se necessário falar dela.
Sir Walter, Elizabeth e a Sra. Clay regressaram uma manhã de Laura Place com um convite repentino de Lady Dalrymple para esse serão, e Anne já se tinha comprometido a passá-lo em Westgate Buildings. Não lamentou ter uma desculpa. Ela tinha a certeza de que eles só tinham sido convidados porque Lady Dalrymple, retida em casa com uma constipação, ficara satisfeita por poder utilizar o parentesco que lhe tinha sido imposto, e ela recusou o convite com grande satisfação. Disse que se tinha comprometido a passar o serão com uma antiga colega do colégio. Eles não se interessavam muito pelo que tinha a ver com Anne, mas, mesmo assim, houve perguntas suficientes para ter de explicar quem era essa antiga colega; Elizabeth mostrou-se desdenhosa, e Sir Walter, severo.
- Westgate Buildings - disse ele -, e quem é que a Menina Anne Elliot vai visitar em Westgate Buildings? Uma Sra. Smith viúva. E quem era o marido dela? Um dos cinco mil Srs. Smiths cujos nomes se encontram por todo o lado? E que atrativo tem ela? É velha e enferma. Palavra de honra, Menina Anne Elliot, que a menina tem um gosto extraordinário! Tudo o que enoja as outras pessoas, companhias de baixo nível, aposentos miseráveis, ar viciado e relações desagradáveis é convidativo para si. Mas certamente que essa velha senhora pode esperar até amanhã. Ela não se encontra tão perto do fim que pense não chegar até amanhã. Que idade tem ela? Quarenta anos?
- Não, senhor, ela tem trinta e um anos; mas acho que não posso adiar o meu compromisso; porque é a única noite, nos dias mais próximos, que convém tanto a mim como a ela. Ela vai para as termas quentes amanhã e, durante o resto da semana, o senhor sabe que estamos ocupados.
- Mas que pensa Lady Russell desse conhecimento? – perguntou Elizabeth.
- Ela não vê nada de mal nele - respondeu Anne -, pelo contrário, aprova-o; e, geralmente, leva-me lá, quando vou visitar a Sr.a Smith.
- Os habitantes de Westgate Buildings devem ter ficado muito surpreendidos ao verem uma carruagem parar junto do passeio! comentou Sir Walter. - A viúva de Sir Henry Russell, é verdade, não tem títulos que distingam o seu brasão; mas, mesmo assim, é uma bela equipagem, e, sem dúvida, bem digna de transportar a Menina Elliot. Uma Sra. Smith viúva, alojada em Westgate Buildings! Uma pobre viúva, que mal consegue sobreviver, entre trinta e quarenta anos... uma simples Sra. Smith, uma Sra. Smith vulgar, escolhida entre toda a gente e todos os nomes do mundo, para amiga da Menina Anne Elliot, e ser por ela preferida aos seus próprios familiares pertencentes à nobreza de Inglaterra e da Irlanda! Sra. Smith, que nome! A Sra. Clay, que estivera presente enquanto tudo isto se passava, achou agora aconselhável sair da sala, e Anne podia ter dito muita coisa e desejou dizer alguma coisa, em defesa dos direitos da sua amiga, não muito diferentes dos deles, mas o respeito que tinha pelo pai impediu-a de o fazer. Não deu resposta. Ela deixou que ele se recordasse, por si próprio, de que a Sra. Smith não era a única viúva em Bath, entre 30 e 40 anos, com pouco dinheiro e sem qualquer apelido nobre. Anne manteve o seu compromisso; os outros mantiveram os deles, e claro que, na manhã seguinte, ela ficou a saber que tinham passado um serão delicioso. Ela fora a única do grupo que estivera ausente; pois Sir Walter e Elizabeth tinham estado às ordens de Sua Senhoria e tinham ficado encarregados por ela de trazer outras pessoas, e eles tinham-se dado ao incômodo de convidar Lady Russell e o Sr. Elliot; o Sr. Elliot tinha feito questão de deixar o coronel Wallis cedo, e Lady Russell tinha alterado todos os seus compromissos dessa noite para fazer companhia a Lady Dalrymple.
Anne ouviu de Lady Russell toda a história do que se passara nesse serão. Para ela, o mais interessante foi a sua amiga e o Sr. Elliot terem falado muito dela, terem desejado que ela estivesse presente, lamentado que não estivesse e, ao mesmo tempo, elogiado o motivo da sua ausência. As suas bondosas visitas a uma antiga colega, doente e diminuída, pareciam ter encantado o Sr. Elliot. Ele achava que ela era uma jovem extraordinária; pelo seu temperamento, modos, inteligência, era um modelo de perfeição feminina. Ele conseguia até mesmo ultrapassar Lady Russell na afirmação dos seus méritos; e Anne não conseguia escutar o que a amiga lhe dizia, não lhe era possível saber-se tida em tão elevada consideração por um homem sensato, sem experimentar as agradáveis sensações que a sua amiga pretendia provocar.
Lady Russell estava já perfeitamente segura da sua opinião em relação ao Sr. Elliot. Ela estava tão convencida de que ele pretendia conquistar Anne como de a merecer; e começava a calcular o número de semanas que lhe faltavam para se libertar das últimas restrições da viuvez, quando ficaria livre para exercer os seus poderes de sedução. Ela não queria comunicar a Anne metade da certeza que tinha sobre o assunto e arriscava-se apenas a fazer algumas insinuações sobre o que aconteceria no futuro, sobre um possível afeto por parte dele, sobre como essa aliança seria desejável, se esse afeto fosse real e correspondido.
Anne escutou-a e não emitiu qualquer exclamação peremptória. Limitou-se a sorrir, a corar e a abanar ligeiramente a cabeça.
- Eu não sou casamenteira, como bem sabes - disse Lady Russell -, pois conheço muito bem a incerteza de todos os acontecimentos e projetos humanos. Só quero dizer que, se daqui a algum tempo o Sr. Elliot te fizesse a corte e tu estivesses disposta a aceitá-lo, penso que haveria todas as possibilidades de serem felizes juntos. Uma união que todos considerariam extremamente apropriada... mas que eu penso que seria uma união muito feliz.
- O Sr. Elliot é um homem extremamente simpático e, em muitos aspectos, tenho muita consideração por ele - disse Anne -, mas não estaríamos bem um para o outro. Lady Russell não comentou estas palavras, limitando-se a dizer:
- Confesso que gostaria de poder considerar-te a futura senhora de Kellynch, a futura Lady Elliot... que me seria extremamente grato ver-te, no futuro, ocupar o lugar da tua querida mãe, sucedendo-lhe em todos os seus direitos, em toda a sua popularidade, bem como em todas as suas virtudes. Tu és tal e qual a tua mãe no aspecto e no temperamento e, se me é permitido imaginar-te como ela era, em posição, em nome, no lar, presidindo e abençoando o mesmo local, e só superior a ela pelo fato de seres mais estimada! Minha querida Anne, isso dar-me-ia mais alegria do que geralmente se sente na minha idade.
Anne viu-se obrigada a voltar-se, levantar-se e dirigir-se a uma mesa distante, e, inclinando-se para fingir que estava ocupada, tentou dominar as sensações que esta imagem provocava. Durante alguns momentos, a sua imaginação e o seu coração sentiram-se seduzidos. A idéia de se tornar o que a mãe fora; de voltar a Kellynch, de lhe chamar novamente o seu lar, o seu lar para sempre, possuía um encanto a que ela não conseguia, de imediato, resistir.
Lady Russell não disse mais nada, disposta a deixar que o assunto seguisse o seu curso normal; ela acreditava que, se o Sr. Elliot pudesse, nesse momento, pleitearia a sua causa... Em suma, ela acreditava no que Anne não acreditava. Essa mesma imagem do Sr. Elliot a defender a sua causa devolveu a compostura a Anne. O encanto de Kellynch e de Lady Elliot desvaneceu-se completamente. Ela nunca poderia aceitá-lo. E não era só porque os seus sentimentos se opunham a que ela se casasse com qualquer homem a não ser um; o seu raciocínio, após uma séria ponderação das possibilidades de tal acontecimento, também era contra o Sr. Elliot. Embora se conhecessem apenas há um mês, ela achava que já o conhecia bem. Que ele era um homem sensato, simpático, bem-falante, que emitia opiniões sólidas e parecia julgar com correção e como homem de princípios - isso era bastante óbvio. Ele, certamente, sabia o que estava certo, e ela não conseguia identificar um só princípio moral que ele transgredisse claramente; mas, mesmo assim, ela hesitaria em colocar as mãos no fogo pela sua conduta. Ela desconfiava do passado, se não do presente. Os nomes de antigos companheiros que eram ocasionalmente mencionados, as alusões a ocupações e hábitos passados sugeriam suspeitas que não abonavam a favor do que ele fora. Ela via que houvera maus hábitos; que viajar ao domingo tinha sido uma coisa habitual; que houvera um período na sua vida (e, provavelmente, não fora um período curto) em que ele fora, pelo menos, indiferente a todos os assuntos sérios; e, embora a sua maneira de pensar pudesse agora ser diferente, quem poderia garantir a veracidade dos verdadeiros sentimentos de um homem esperto e cauteloso que amadurecera o suficiente para apreciar um caráter leal?
Como se poderia ter a certeza de que a sua alma estava verdadeiramente purificada? O Sr. Elliot era racional, discreto, educado - mas não era franco. Nunca havia uma explosão de sentimentos, nenhuma indignação ou deleite acalorados perante o mal ou o bem dos outros. Para ela, isto era decididamente um defeito. As suas primeiras impressões eram imutáveis. Ela gostava, acima de tudo, de pessoas francas, sinceras e impulsivas. O ardor e o entusiasmo ainda a cativavam. Ela achava que podia confiar mais na sinceridade dos que por vezes diziam uma coisa imprudente e precipitada do que na daqueles que nunca perdiam a presença de espírito ou cuja língua nunca tinha um deslize. O Sr. Elliot era demasiado simpático em relação a todos. Eram várias as maneiras de ser em casa do pai dela, e ele agradava a todas elas. Ele suportava tudo com a maior complacência, dava-se demasiado bem com toda a gente. Ele falara-lhe da Sra. Clay com alguma franqueza; parecera que vira claramente o que a Sra. Clay pretendia, que a desprezava; no entanto, a Sra. Clay achava-o tão simpático como toda a gente. Lady Russell via menos ou mais do que a sua jovem amiga, pois não via nada que provocasse desconfiança. Ela não conseguia imaginar um homem mais ideal do que o Sr. Elliot; nem sensação alguma lhe era mais agradável do que a esperança de o ver receber a mão da sua querida Anne na igreja de Kellynch, no Outono seguinte.
Era o início de Fevereiro; e Anne, encontrando-se já há um mês em Bath, estava ansiosa por ter notícias de Uppercross e de Lyme. Ela queria saber muito mais do que Mary lhe comunicava. HÁ três semanas que não tinha notícias. A única coisa que sabia era que Henrietta estava de novo em casa; e que Louisa, embora considerada em rápida convalescença, ainda se encontrava em Lyme; e, um serão, ela estava a pensar muito neles quando uma carta de Mary, muito mais espessa do que de costume, lhe foi entregue, com os cumprimentos do almirante e da Sra. Croft, o que lhe causou grande surpresa e prazer. Os Croft deviam estar em Bath! Uma circunstância que lhe interessava. Eles eram pessoas de quem ela muito naturalmente gostava.
- Que se passa? - exclamou Sir Walter.
- Os Croft chegaram a Bath? Os Croft que alugaram Kellynch? Que foi que eles te trouxeram?
- Uma carta do chalé de Uppercross.
- Oh! Essas cartas são passaportes muito convenientes. Asseguram uma apresentação. De qualquer modo, eu iria visitar o almirante Croft. Eu conheço as minhas obrigações para com o meu inquilino. Anne não conseguiu prestar mais atenção; nem sequer poderia dizer se o rosto do pobre almirante escapara aos comentários do pai; a carta absorveu-a. Tinha sido começada alguns dias antes.
1 de Fevereiro
Minha querida Anne, Não te peço desculpa pelo meu silêncio porque sei como as pessoas se interessam pouco por cartas quando se encontram num Lugar como Bath. Deves sentir-te demasiado feliz para te importares com Uppercross, que, como tu bem sabes, tem muito pouco sobre o qual se possa escrever. Tivemos um Natal muito aborrecido; o Sr. e a Sra. Musgrove não deram um único jantar durante as férias. Eu não considero os Hayter como gente importante. As férias, porém, chegaram finalmente ao fim: acho que as crianças nunca tiveram umas férias tão compridas. Eu, certamente, não tive. Foram-se todos embora ontem, com exceção dos pequenos Harville; ficarás surpreendida quando souberes que eles ainda não foram para casa. A Sra. HarvilLe deve ser uma mãe estranha, para estar tanto tempo separada deles. Eu não compreendo. Na minha opinião, não são crianças nada simpáticas; mas a Sar. Musgrove parece gostar tanto deles, se não mais, do que dos netos. Que tempo terrível temos tido! O mau tempo talvez não se faça sentir em Bath, com as vossas ruas bem pavimentadas; mas no campo traz conseqüências desagradáveis.
Não recebi uma única visita desde a segunda semana de Janeiro, a não ser a de Charles Hayter, que tem aparecido muito mais vezes do que é desejado. Aqui para nós, acho que foi pena Henrietta não ter ficado em Lyme tanto tempo como Louisa; isso tê-la-ia mantido um pouco afastada dele. A carruagem partiu hoje, para trazer Louisa e os Harville amanha. Musgrove receia que ela se sinta fatigada da viagem, o que não é muito provável, tendo em conta os cuidados que terão com ela; ser-me-ia muito mais conveniente jantar lá amanhã. Ainda bem que achas o Sr. Elliot tão simpático; também gostaria de o conhecer; mas eu tenho o meu azar habitual, encontro-me sempre longe quando qualquer coisa boa acontece; sou sempre a última da família a ser convidada.
Há que tempos que a Sra. Clay está junto de Elizabeth! Ela não tenciona ir-se embora? Mas, mesmo que o quarto ficasse livre, nós talvez não fôssemos convidados. Diz-me o que pensas disto. Não estou a contar que os meus filhos sejam convidados. Posso muito bem deixá-los na Casa Grande durante um mês ou seis semanas. Ouvi dizer agora mesmo que os Croft vão para Bath dentro de pouco tempo; eles acham que o almirante sofre um pouco de gota. Charles ouviu dizê-lo por acaso; eles não tiveram a delicadeza de nos comunicar nem de se oferecerem para levar qualquer coisa. Acho que, como vizinhos, eles não têm melhorado absolutamente nada. Nunca os vemos, e isto é realmente um caso de flagrante falta de atenção. Charles associa-se aos meus cumprimentos.
Tua afeiçoada Mary M.
Lamento comunicar-te que me encontro longe de estar bem; Jemina acabou de me informar que o carniceiro lhe disse que andam muitas anginas por aí. Claro que também as vou apanhar; e as minhas anginas, tu sabes, são piores do que as de qualquer outra pessoa. Assim terminava a primeira parte, que fora posteriormente colocada num sobrescrito contendo outra de tamanho quase idêntico.
Mantive a minha carta aberta para te poder dizer como Louisa suportou a viagem, e agora sinto-me extremamente satisfeita por o ter feito, pois tenho muito a acrescentar. Em primeiro Lugar, recebi ontem um bilhete da Sra. Croft, oferecendo-se para te levar qualquer coisa; um bilhete muito simpático e amável, dirigido a mim, como deve ser; poderei, assim, alongar a minha carta tanto quanto quiser. O almirante não parece muito doente, e espero sinceramente que Bath lhe seja tão benéfica quanto ele pretende. Ficarei muito satisfeita em os ver de volta. A nossa vizinhança não pode dispensar uma família tão agradável.
Mas agora a respeito de Louisa. Tenho algo a comunicar-te que certamente te vai causar admiração. Ela e os Harville chegaram na terça-feira, após uma boa viagem, e à noite fomos saber como ela estava, e ficámos surpreendidos por não vermos o comandante Benwick, pois ele também tinha sido convidado, juntamente com os Harville, e qual achas que foi o motivo? Nem mais nem menos do que o fato de ele estar apaixonado por Louisa e preferir não vir a Uppercross antes de ter uma resposta do Sr. Musgrove; pois ficou tudo assente entre os dois antes de ela se ir embora, e ele escrevera ao pai dela por intermédio do comandante Harville. É verdade, dou-te a minha palavra de honra. Não estás espantada? Eu, pelo menos, ficarei surpreendida se me disseres que alguma vez imaginaste uma coisa dessas, pois eu nunca o fiz.
A Sra. Musgrove afirma solenemente que não sabia nada do assunto. Estamos todos muito satisfeitos, porém; pois, embora não seja a mesma coisa que ela casar com o comandante Wentworth, é infinitamente melhor do que CharLes Hayter; e o Sr. Musgrove já respondeu a dar o seu consentimento, e o comandante Benwick é esperado hoje. A Sra. Harville diz que o marido sofre muito por causa da irmã, mas, no entanto, gostam ambos muito de Louisa. Na verdade, eu e a Sra. HarviLLe concordamos que gostamos mais dela por termos tomado conta dela.
Charles pergunta o que dirá o comandante Wentworth; mas, se bem te Lembras, eu nunca o achei afeiçoado a Louisa; nunca vi nada disso. E isto é o fim, como vês, da suposição de que o comandante Benwick era teu admirador. É incompreensível como CharLes pode ter imaginado uma coisa dessas. Espero que agora ele seja mais simpático.
Certamente não é um grande partido para Louisa Musgrove; mas é um milhão de vezes melhor do que casar com um dos Hayter. Mary não precisava de recear que a irmã estivesse de qualquer modo preparada para a notícia. Ela nunca ficara mais espantada na vida. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! Era demasiado espantoso para poder acreditar; e foi com grande esforço que ela conseguiu continuar na sala, mantendo um ar calmo, e responder às perguntas do momento. Felizmente para ela, não houve muitas.
Sir Walter queria saber se os Croft viajavam numa carruagem de quatro cavalos e se era provável que estivessem instalados numa parte de Bath em que pudessem ser visitados por ele e pela Menina Elliot. Para além disso, sentia pouca curiosidade.
- Como está Mary? - disse Elizabeth; e, sem esperar por uma resposta, acrescentou: - E que trouxe os Croft a Bath? - Vieram por causa do almirante. Pensam que ele tem gota.
- Com gota e decrépito? - disse Sir Walter. - Pobre velho.
- Eles conhecem alguém aqui? - perguntou Elizabeth.
- Não sei; mas não me parece que, com a idade do almirante Croft, e com a sua profissão, ele não conheça muita gente num local destes.
- Desconfio - disse Sir Walter friamente - de que o almirante Croft é mais conhecido em Bath como inquilino do Solar de Kellynch. Elizabeth, achas que poderemos apresentá-lo e à mulher em Laura Place?
- Oh!, não, penso que não. Relacionados, como nós estamos, com Lady Dalrymple, devemos ter muito cuidado em não a embaraçar com conhecimentos que ela possa não aprovar. Se não tivéssemos relações de parentesco, isso não seria importante; mas, como primos, ela teria escrúpulos em recusar qualquer proposta nossa. É melhor deixarmos que os Croft encontrem o seu próprio nível. Há vários homens de aspecto estranho por aí, que, segundo me dizem, são marinheiros. Os Croft relacionar-se-ão com eles.
Este foi o interesse que Sir Walter e Elizabeth manifestaram quanto à carta; depois de a Sra. Clay ter pago o seu tributo de um pouco mais de atenção, com uma pergunta sobre a Sra. Charles Musgrove e os seus belos rapazinhos, Anne ficou livre. Já no seu quarto, tentou compreender a situação. Charles bem podia interrogar-se sobre o que o comandante Wentworth sentiria! Talvez ele tivesse abandonado o campo, tivesse desistido de Louisa, tivesse deixado de a amar, tivesse descoberto que não a amava. Ela não conseguia suportar a idéia de traição ou leviandade, ou de algo semelhante a má vontade entre ele e o amigo. Não podia suportar a idéia de que uma amizade como a deles pudesse ser destruída injustamente. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! A alegre e faladora Louisa Musgrove e o comandante Benwick, triste, pensativo, sensível e amante da leitura, pareciam, cada um deles, ser tudo o que não se adequava ao outro. As suas mentalidades eram tão diferentes! Onde teria estado a atração?
A resposta surgiu-lhe pouco depois. Fora a situação. Tinham estado juntos durante várias semanas; tinham vivido no mesmo grupo familiar; desde que Henrietta partira, eles passaram a contar quase exclusivamente um com o outro, e Louisa, convalescente, estava bastante atraente, e o comandante Benwick não era inconsolável. Esse era um ponto de que Anne não conseguira deixar de duvidar antes e, em vez de chegar à mesma conclusão que Mary a respeito do atual curso de acontecimentos, estes serviram apenas para confirmar a idéia de que ele tinha sentido algum assomo de ternura para com ela. Ela não tencionava, porém, lisonjear a sua vaidade mais do que Mary teria permitido.
Estava convencida de que qualquer mulher toleravelmente agradável que o tivesse escutado e parecesse sentir algo por ele teria recebido a mesma atenção. Ele tinha um coração afetuoso. Ele precisava de amar alguém. Ela não via qualquer motivo para que não fossem felizes: para começar, Louisa possuía um grande entusiasmo pela Marinha, e em breve ficariam muito parecidos. Ele tornar-se-ia mais alegre, e ela aprenderia a gostar de Scott e de Lorde Byron; não, isso provavelmente já tinha acontecido; claro que se tinham apaixonado através da poesia.
A idéia de Louisa Musgrove transformada numa pessoa de gostos literários e meditações sentimentais era divertida, mas ela não duvidava de que assim fosse. Era possível que o dia em Lyme, a queda do Cobb, tivesse afetado a sua saúde, os seus nervos, a sua coragem, a sua personalidade, até ao fim da sua vida, tanto como parecia ter afetado o seu destino. A conclusão final era que, se a mulher que tinha sido sensível aos méritos do comandante Wentworth podia preferir outro homem, não havia nada no noivado que pudesse provocar um espanto duradouro; e, se o comandante Wentworth não perdera um amigo, não havia nada a lamentar.
Não, não era o pesar que fazia o coração de Anne bater contra a sua vontade e lhe fazia corar o rosto quando pensava que o comandante Wentworth estava livre. Ela sentia vergonha de investigar alguns dos seus sentimentos. Estes pareciam-se demasiado com a alegria, uma alegria louca! Ela ansiava por ver os Croft, mas, quando o encontro se realizou, era evidente que eles ainda não tinham ouvido quaisquer rumores sobre o assunto. A visita de cerimônia foi feita e retribuída, e Louisa Musgrove foi referida, bem como o comandante Benwick, sem sequer um esboço de sorriso.
Os Croft tinham alugado uma casa em Gay Street, inteiramente do agrado de Sir Walter. Ele não se sentiu absolutamente nada envergonhado por os conhecer e, na realidade, falava muito mais do almirante do que o almirante pensava ou falava dele.
Os Croft conheciam tantas pessoas em Bath quanto desejavam, e consideravam as suas relações com os Elliot uma mera formalidade que não lhes iria provocar qualquer prazer. Tinham trazido do campo o hábito de andarem sempre juntos. Ele recebera ordens para andar a pé, a fim de evitar a gota, e a Sra. Croft parecia partilhar tudo com ele, fartando-se de andar, para que ele melhorasse. Anne via-os em todo o lado para onde ia. Lady Russell levava-a a passear na carruagem quase todas as manhãs, e ela pensava sempre neles e via-os sempre.
Conhecendo os sentimentos deles como ela conhecia, eles formavam, a seus olhos, um atraente quadro de felicidade. Ela ficava sempre a olhar para eles o mais demoradamente que conseguia; ficava encantada a imaginar que sabia do que eles conversavam enquanto caminhavam sozinhos e felizes; ou igualmente encantada ao ver o almirante apertar vigorosamente a mão quando encontrava um velho amigo, e observar a vivacidade da conversa quando encontrava ocasionalmente um pequeno grupo da Marinha. A Sra. Croft parecia tão inteligente e atenta como qualquer dos oficiais à sua volta.
Anne estava demasiado ocupada com Lady Russell para andar muito a pé; mas uma manhã, cerca de uma semana ou dez dias depois da chegada dos Croft, deixou a amiga, ou melhor, a carruagem da amiga, na parte inferior da cidade e voltou sozinha para Camden Place; ao subir Milsom Street, teve a boa sorte de encontrar o almirante. Ele estava sozinho, junto da montra de uma loja de estampas, com as mãos atrás das costas, a olhar atentamente para um quadro, e ela não só podia ter passado por ele sem que ele a visse mas viu-se inclusivamente obrigada a tocar-lhe e a dirigir-lhe a palavra para atrair a sua atenção. Quando, porém, ele finalmente reparou nela e a cumprimentou, isto foi feito com a sua franqueza e bom humor habituais.
- Ah! É a menina? Obrigado, obrigado. Isto é tratar-me como amigo. Aqui estou eu, como vê, a olhar para um quadro. Nunca consigo passar por esta loja sem parar. Que coisa esta, a fingir que é um barco. Olhe bem. Já alguma vez viu algo parecido? Que pessoas estranhas os pintores devem ser, para pensar que alguém arriscaria a vida numa casca de noz daquelas. E, no entanto, aqui estão dois cavalheiros dentro dele, perfeitamente à vontade e a olhar em redor para os rochedos e montanhas, como se não fossem afundar-se no momento seguinte, que é sem dúvida o que vai acontecer. Gostaria de saber onde aquele barco foi construído. - Ele riu-se com vontade. - Agora, aonde vai? Posso acompanhá-la ou ir por si a algum lado? Posso ser-lhe útil nalguma coisa?
- Não, obrigada, a não ser que me queira dar o prazer da sua companhia durante o pequeno percurso em que seguimos pela mesma rua. Eu vou para casa.
- Irei sim, com todo o gosto, e até mais longe. Sim, sim, vamos dar um agradável passeio juntos; e tenho uma coisa para lhe contar enquanto formos andando. Tome o meu braço; assim mesmo; não me sinto bem se não tiver uma senhora apoiada em mim. Meu Deus! Que barco! - disse ele, lançando um último olhar ao quadro, antes de começarem a andar.
- Disse que tinha algo para me contar, sir?
- Tenho, sim. Daqui a pouco. Mas vem ali um amigo meu, o comandante Brigden; mas vou só dizer-lhe -Como está?- quando passarmos por ele. Não vou parar.
-Como está?- Brigden ficou de olhos arregalados por me ver acompanhado por alguém que não é a minha mulher. Ela, coitada, ficou presa por causa de uma perna. Tem uma bolha do tamanho de uma moeda de três xelins num dos calcanhares. Se olhar para o outro lado da rua, verá o almirante Brand, que vem aí com o irmão. Uns sujeitos miseráveis, os dois. Ainda bem que eles não vêm deste lado do caminho. Sophy não os suporta. Eles pregaram-me uma vez uma partida miserável... levaram-me alguns dos meus melhores homens. Eu hei-de contar-lhe a história noutra altura. Ali vem o velho Sir Archibald com o neto. Repare, ele viu-nos; fez o gesto de lhe beijar a mão; pensa que é a minha mulher. Ah! A paz chegou demasiado cedo para aquele aspirante. Pobre Sir Archibald!
-Gosta de Bath, Menina Elliot? Nós gostamos muito. Estamos sempre a encontrar amigos ; as ruas estão cheias deles todas as manhãs; temos sempre muito que conversar; depois afastamo-nos deles, fechamo-nos em casa, puxamos as cadeiras e sentimo-nos tão bem como em Kellynch, ou como nos sentíamos antigamente em North Yarmouth e Deal. Não gostamos menos da casa aqui, garanto-lhe, por ela nos lembrar a primeira que tivemos em North Yarmouth. O vento sopra através de um dos armários da mesma maneira.
Depois de andarem mais um pouco, Anne atreveu-se a insistir de novo no que ele tinha a comunicar-lhe. Ela tivera esperança de que a curiosidade seria satisfeita logo que saíssem de Milsom Street, mas o almirante tinha decidido não começar antes de chegarem à zona mais ampla e tranquila de Belmont e, como ela não era, de fato, a Sra. Croft, tinha de lhe fazer a vontade. Assim que começaram a subir Belmont, ele começou:
- Bem, agora vai ouvir uma coisa que a vai surpreender. Mas primeiro diga-me o nome da jovem de que lhe vou falar. a jovem que conhece, com a qual nos temos preocupado tanto. A Menina Musgrove, a quem tudo isto aconteceu. O nome dela... esqueço-me sempre do nome dela.
Anne tivera vergonha de mostrar que compreendera tão depressa como realmente compreendeu; mas agora podia sugerir, com segurança, o nome Louisa.
- Sim, sim, Menina Louisa Musgrove, é esse o nome. Quem me dera que as jovens não tivessem tantos nomes bonitos. Se fossem todas Sophy, ou algo semelhante, eu nunca me esqueceria. Bem, esta Menina Louisa, pensávamos nós, ia casar-se com Frederick. Ele cortejou-a durante semanas seguidas. A única coisa que perguntávamos a nós próprios era de que é que eles estavam à espera, até o acidente de Lyme acontecer; nessa altura, era óbvio que tinham de esperar até o cérebro dela se restabelecer. Mas, mesmo assim, passava-se qualquer coisa estranha. Em vez de ficar em Lyme, ele partiu para Plymouth, depois foi visitar Edward. Quando voltámos de Minehead, ele tinha ido para casa de Edward e lá está desde essa altura. Não o vemos desde Novembro. Nem mesmo Sophy consegue compreender. Mas, agora, o assunto deu uma reviravolta muito estranha; pois esta jovem, a mesma Menina Musgrove, em vez de se ir casar com Frederick, vai casar-se com James Benwick. A menina conhece James Benwick.
- Sim, conheço o comandante Benwick, embora não muito bem.
- Bem, ela vai casar-se com ele. Provavelmente, já se casaram, pois não sei de que hão-de estar à espera.
- Eu achei o comandante Benwick um jovem muito simpático disse Anne -, e creio que possui um excelente caráter.
- Oh, sim, sim, não há nada a dizer contra James Benwick. Ele é apenas comandante, é verdade, promovido no Verão passado, e esta é uma má altura para progredir, mas, que eu saiba, não tem nenhum outro defeito. Um sujeito excelente, de bom coração, garanto-lhe; um oficial muito ativo e zeloso, mais do que se poderia pensar, pois os seus modos suaves são muito enganadores.
- Na realidade, engana-se, sir. Os modos do comandante Benwick nunca me levariam a pensar que lhe faltava energia. Eu achei-os particularmente amáveis, e posso garantir que, de um modo geral, eles agradarão a toda a gente.
- Bem, bem, as senhoras são os melhores juízes, mas, para mim, James Benwick é um pouco demasiado tímido; e, embora muito provavelmente estejamos a ser parciais, não consigo deixar de pensar que Frederick tem modos mais agradáveis do que ele. Há algo em Frederick de que gostamos mais. Anne ficou atrapalhada. Ela tencionara apenas contrariar a idéia de que a energia e a gentileza eram incompatíveis e não retratar os modos do comandante Benwick como se fossem os melhores possíveis, e, após uma ligeira hesitação, começou a dizer: -Eu não estava a comparar os dois amigos- , mas o almirante interrompeu-a:
- E isso é realmente verdade. Não é apenas um mexerico. Foi o próprio Frederick que nos contou. A irmã recebeu ontem uma carta dele em que nos fala do assunto; ele acabara de saber através de uma carta de Harville, escrita no mesmo local, em Uppercross. Imagino que estejam todos em Uppercross.
Esta foi uma oportunidade a que Anne não conseguiu resistir, pelo que disse:
- Eu espero, senhor almirante, que não haja nada no estilo da carta que vos preocupe, a si e à Sra. Croft. No Outono passado, parecia, realmente, existir uma relação amorosa entre ele e Louisa Musgrove; mas faço votos para que a mesma tenha morrido para ambas as partes, e sem violência. Espero que essa carta não reflita o humor de um homem atraiçoado.
-Absolutamente nada, absolutamente nada; do princípio ao fim, não existe uma única praga ou lamento. Anne baixou a cabeça para esconder um sorriso.
- Não, não; Frederick não é homem de queixas nem de lamúrias; é demasiado corajoso para isso. Se a menina gosta mais de outro homem, é justo que fique com ele.
- Sem dúvida. Mas o que eu quero dizer é que espero que não haja nada no estilo da carta do comandante Wentworth que vos leve a supor que ele se considere traído pelo amigo, que se possa deduzir isso, compreende, sem ser afirmado explicitamente. Eu teria muita pena se uma amizade como a que existia entre ele e o comandante Benwick fosse destruída, ou, até mesmo, apenas prejudicada, por uma circunstância desta natureza.
- Sim, sim, eu compreendo-a. Mas na carta não existe absolutamente nada dessa natureza. Ele não faz a mínima acusação a Benwick; nem sequer diz -Estou admirado, tenho motivo para estar admirado-. Não, pelo seu modo de escrever, não se imaginaria que ele alguma vez tivesse querido essa Menina... como é que ela se chama?... para si próprio. Ele fez, muito generosamente, votos para que sejam felizes, e creio que não existe o mínimo rancor nisso.
Anne não ficou plenamente convencida do que o almirante pretendia dizer, mas não valia a pena insistir mais. Limitou-se, assim, aos comentários normais ou a escutar em silêncio, e o almirante levou a sua avante.
- Pobre Frederick! - disse ele, por fim. - Agora tem de começar tudo de novo com outra pessoa. Eu acho que temos de o trazer para Bath. Sophy tem de lhe escrever a pedir-lhe que venha. Aqui há bastantes meninas bonitas, tenho a certeza. Não valeria a pena voltar para Uppercross, pois aquela outra Menina Musgrove, segundo soube, está prometida ao primo, o jovem cura. Não acha, Menina Elliot, que é melhor tentar trazê-lo para Bath?
Enquanto o almirante Croft passeava com Anne e manifestava o seu desejo de trazer o comandante Wentworth para Bath, o comandante Wentworth já se encontrava a caminho. Chegou antes de a Sra. Croft ter escrito; na vez seguinte em que Anne saiu, ela viu-o. O Sr. Elliot acompanhava as suas duas primas e a Sra. Clay. Estavam na Milsom Street.
Começou a chover, não muito, mas o suficiente para que as senhoras desejassem abrigar-se e o bastante para que a Menina Elliot desejasse ser levada a casa na carruagem de Lady Dalrymple, que se via a uma curta distância; assim, ela, Anne e a Sra. Clay viraram para a Molland, enquanto o Sr. Elliot entrou na casa de Lady Dalrymple, para pedir auxílio. Ele reuniu-se-lhes pouco depois, com êxito, claro; Lady Dalrymple teria muito gosto em levá-los a casa, e chamá-los-ia dentro de alguns minutos.
A carruagem de Sua Senhoria era uma caleche e não levava mais de quatro pessoas confortavelmente. A Menina Carteret estava com a mãe; como consequência, não era razoável esperar acomodação para as três senhoras de Camden Place. Não havia qualquer dúvida quanto à Menina Elliot. Fosse quem fosse que devesse sofrer desconforto, ela não deveria sofrer nenhum, mas a questão de cortesia entre as outras duas levou algum tempo a decidir.
Chovia muito pouco, e Anne era sincera ao dizer que preferia ir a pé com o Sr. Elliot. Mas a chuva também era pouca para a Sra. Clay; ela nem a sentiria, e as suas botas eram tão grossas, muito mais grossas que as de Anne - e, em suma, a sua amabilidade tornava-a tão ansiosa por ir a pé com o Sr. Elliot como Anne, e a questão foi discutida entre elas com uma generosidade tão delicada e tão firme que os outros se viram obrigados a decidir por elas. A Menina Elliot insistiu que a Sra. Clay já estava um pouco constipada, e o Sr. Elliot decidiu, quando lhe foi perguntada a opinião, que as botas da sua prima Anne eram as mais resistentes. Foi, assim, decidido que a Sra. Clay faria parte do grupo que iria na carruagem; e tinham chegado a este ponto quando Anne, que estava sentada junto da janela, viu, decidida e distintamente, o comandante Wentworth descer a rua.
O seu sobressalto foi perceptível apenas para si própria; mas sentiu de imediato que era a maior, a mais irresponsável e mais absurda tola do mundo! Durante alguns minutos, não viu nada à sua frente. Estava tudo confuso. Sentia-se perdida; e, quando conseguiu dominar-se, viu que os outros ainda estavam à espera da carruagem e que o Sr. Elliot (sempre atencioso) tinha partido para a Union Street para fazer um recado à Sra. Clay. Sentiu um grande desejo de ir até à porta da rua; queria ver se estava a chover. Por que desconfiava de ter outro motivo? O comandante Wentworth já devia ter passado.
Levantou-se, decidida a ir; metade dela não iria ser sempre mais sensata que a outra, nem iria sempre desconfiar que a outra era pior do que realmente era. Iria ver se chovia.
Voltou para trás, porém, no momento seguinte, quando o próprio comandante Wentworth entrou, no meio de um grupo de senhoras e cavalheiros, evidentemente seus conhecidos, a quem ele se devia ter juntado um pouco abaixo da Milsom Street. Ao vê-la, ele ficou mais obviamente enleado e confuso do que ela alguma vez reparara; ficou muito corado. Pela primeira vez desde que se tinham voltado a encontrar, ela sentiu que era ela quem evidenciava menos emoção. Tivera a vantagem de ter tido alguns momentos para se preparar. Todos os poderosos, ofuscantes e desconcertantes efeitos da enorme surpresa já se tinham desvanecido. Mesmo assim, porém, sentiu-se dominada pela emoção! Era um misto de agitação, dor, prazer, algo entre a alegria e a tristeza.
Ele falou-lhe, depois afastou-se. Os seus modos denotavam embaraço. Ela não podia chamar-lhe frieza ou afeto, nem qualquer outra coisa a não ser embaraço. Depois de um pequeno intervalo, porém, ele dirigiu-se a ela e voltou a falar-lhe. Trocaram perguntas sobre assuntos habituais; nenhum deles, provavelmente, prestou muita atenção ao que ouviu, e Anne continuou a ter a sensação de que ele se sentia muito menos à vontade do que anteriormente. Devido ao fato de estarem juntos tantas vezes, eles tinham aprendido a falar um com o outro com indiferença e calma aparentes; mas agora ele não conseguia fazê-lo. O tempo tinha-o modificado, ou Louisa tinha-o modificado. Parecia ter consciência de que algo se passava.
Ele estava com muito bom aspecto, não parecendo sofrer de qualquer mal físico ou moral; falou de Uppercross e até mesmo de Louisa, e teve mesmo um ar momentâneo de malícia ao falar dela; mas o comandante Wentworth estava embaraçado, pouco à vontade e incapaz de fingir o contrário.
Anne não ficou surpreendida, mas sentiu-se magoada ao ver que Elizabeth o ignorava. Ela reparou que ele vira Elizabeth e que Elizabeth o vira a ele e que, no íntimo, ambos se tinham reconhecido. Estava convencida de que ele desejava e esperava ser reconhecido como um conhecimento antigo, e sentiu-se magoada ao ver a irmã voltar-lhe as costas com frieza.
A carruagem de Lady Dalrymple, cuja demora impacientava Elizabeth, aproximou-se; o criado veio anunciá-la. Estava a começar a chover de novo, e houve uma demora, um alvoroço e uma troca de palavras para que todos os que estavam na loja soubessem que Lady Dalrymple vinha buscar a Menina Elliot. Por fim, a Menina Elliot e a sua amiga, acompanhada apenas pelos criados (pois o primo ainda não voltara), afastaram-se; o comandante Wentworth ficou a observá-las, depois virou-se outra vez para Anne e, pela sua atitude, mais do que por palavras, ofereceu-lhe os seus préstimos.
- Muito obrigada - foi a resposta dela -, mas eu não vou com elas. A carruagem não pode levar tanta gente. Vou a pé. Prefiro andar.
- Mas está a chover.
- Oh! Muito pouco. Nada que me incomode. Após uma breve pausa, ele disse: - Embora só tenha chegado ontem, já me equipei devidamente para Bath, como vê - (apontando para um guarda-chuva novo). Gostaria que fizesse uso dele, se está decidida a ir a pé, embora eu pense que seria mais prudente deixar-me arranjar-lhe uma carruagem.
Ela agradeceu-lhe muito, mas recusou tudo, reafirmando a sua convicção de que a chuva passaria dentro em pouco, e acrescentou:
- Só estou à espera do Sr. Elliot. Estou certa de que ele deverá estar a chegar. Mal acabara de dizer estas palavras quando o Sr. Elliot entrou. O comandante Wentworth lembrava-se perfeitamente dele. Não havia qualquer diferença entre ele e o homem que parara no cimo dos degraus em Lyme, admirando Anne quando ela passou por ele, exceto no ar e nos modos de parente e amigo privilegiado.
Ele entrou com um ar ansioso, parecendo não ver e não pensar em nada a não ser nela, pediu desculpa pela demora, lamentou tê-la feito esperar sozinha e mostrou-se impaciente por acompanhá-la, antes que a chuva aumentasse; e, no minuto seguinte, saíram juntos, de braço dado, e, ao afastar-se, ela apenas teve tempo de lançar um olhar meigo e embaraçado e de dizer:
- Um muito bom dia!
Assim que eles se afastaram, as senhoras do grupo do comandante Wentworth começaram a falar deles.
- O Sr. Elliot não desgosta da prima, segundo me parece.
- Oh!, não, isso é bastante óbvio. É possível adivinhar o que vai acontecer ali. Ele está sempre ao pé deles; vive praticamente com a família, creio. Que homem tão atraente!
- Sim, e a Menina Atkinson, que jantou com ele uma vez em casa dos Wallisse, diz que ele é o homem mais simpático que ela já conheceu.
- Penso que Anne Elliot é bonita; muito bonita mesmo, quando se olha bem para ela. Bem sei que essa não é a opinião geral, mas confesso que a admiro mais do que à irmã.
- Oh! Eu também.
- E eu também. Não há qualquer comparação. Mas os homens são todos loucos pela Menina Elliot. Anne é demasiado delicada para eles.
Anne ter-se-ia sentido particularmente grata ao primo se este a tivesse acompanhado até Camden Place sem dizer uma palavra. Ela nunca sentira tanta dificuldade em escutá-lo, embora a sua solicitude e atenção fossem inexcedíveis, e embora os assuntos fossem os que lhe eram mais interessantes elogios calorosos e justos a Lady Russell e insinuações muito bem observadas em relação à Sra. Clay. Mas agora ela só conseguia pensar no comandante Wentworth. Não conseguia compreender os seus sentimentos atuais, se ele estava a sofrer muito com a desilusão ou não; e, até chegar a uma conclusão, não conseguiria ter sossego. Esperava, com o tempo, recuperar o bom senso e o juízo; mas, infelizmente, tinha de confessar a si própria que ainda não possuía qualquer bom senso.
Outra questão muito importante para ela era saber quanto tempo ele tencionava ficar em Bath; ele não o mencionara, ou ela não se conseguia recordar. Ele podia estar apenas de passagem. Mas era mais provável que tivesse vindo para ficar. Nesse caso, uma vez que toda a gente em Bath se encontrava, Lady Russell, com toda a probabilidade, vê-lo-ia algures. Ela lembrar-se-ia dele? Como se passariam as coisas? Ela já se vira na obrigação de dizer a Lady Russell que Louisa Musgrove iria casar com o comandante Benwick. Fora-lhe penoso ver a surpresa de Lady Russell; e agora, se por acaso ela se encontrasse na companhia do comandante Wentworth, o seu conhecimento imperfeito do assunto poderia funcionar como mais um preconceito contra ele.
Na manhã seguinte, Anne saiu com a amiga e, durante a primeira hora, tentou incessantemente, de um modo receoso, ver se o via, mas em vão; finalmente, ao voltarem na Pulteney Street, ela avistou-o no passeio do lado direito, a uma distância que lhe permitia ver a maior parte da rua. Havia muitos outros homens à volta dele, muitos grupos que caminhavam na mesma direção, mas não havia dúvida de que era ele. Ela olhou instintivamente para Lady Russell; mas não devido à idéia louca de que esta o fosse reconhecer tão depressa quanto ela. Não, não era de supor que Lady Russell o visse até estarem quase em frente dele. De vez em quando, porém, ela fitava-a com ansiedade; e, quando se aproximou o momento em que devia referir-se a ele, embora sem se atrever a voltar a olhar (pois o seu rosto estava demasiado perturbado), teve plena consciência de que os olhos de Lady Russell se voltaram exatamente na direção dele, de que ela estava a observá-lo atentamente. Ela compreendia perfeitamente o tipo de atração que ele devia constituir para Lady Russell, a dificuldade que ela teria em desviar a vista, o espanto que devia sentir por terem passado por ele oito ou nove anos em climas distantes e no serviço ativo, sem que ele tivesse perdido a elegância. Por fim, Lady Russell inclinou a cabeça para trás. Agora, que iria ela dizer dele?
- Deves estar a perguntar a ti própria - disse ela – para que estive tanto tempo a olhar; mas estava à procura de umas cortinas de que Lady Alicia e a Sra. Frankland me falaram ontem à noite. Elas descreveram as cortinas da janela de uma das casas deste lado, desta zona da rua, como sendo as mais bonitas de Bath, mas não conseguiam recordar-se do número exato, e eu tenho estado a tentar descobrir qual delas seria; mas confesso que não consigo ver quaisquer cortinas que correspondam à descrição feita por elas.
Anne suspirou, corou e sorriu de pena e desdém, tanto por si própria como pela amiga. O que mais a aborrecia era que, com toda aquela preocupação e cautela, perdera o momento exato de reparar se ele as vira.
Passaram um dia ou dois, sem que nada acontecesse. O teatro e os salões que ele provavelmente frequentava não eram suficientemente distintos para os Elliot, cujas distrações se limitavam à elegante estupidez de festas privadas, com as quais se encontravam cada vez mais ocupados; e Anne, cansada de uma tal estagnação, aborrecida por não saber de nada e imaginando-se forte porque a sua força não fora posta à prova, aguardava com impaciência a noite do concerto. Era um concerto a favor de uma pessoa protegida de Lady Dalrymple. Claro que eles tinham de ir. Esperava-se que fosse um bom concerto, e o comandante Wentworth gostava muito de música. E imaginava que ficaria satisfeita se conseguisse conversar durante alguns minutos com ele; sentia-se com coragem para lhe dirigir a palavra, se a oportunidade surgisse.
Elizabeth tinha-lhe voltado às costas, Lady Russell não o vira; sentiu os nervos mais fortes devido a estas circunstâncias; ela achava que lhe devia atenção. Tinha prometido à Sra. Smith passar o serão com ela; mas, numa rápida e curta visita, desculpara-se e adiara o serão, com uma promessa mais firme de uma visita mais demorada no dia seguinte. A Sra. Smith concordou, bem-humorada.
- Com certeza - disse ela -, mas, quando vier, vai contar-me tudo. Quem faz parte do seu grupo? Anne nomeou-os a todos. A Sra. Smith não respondeu; mas, quando ela ia a sair, disse com uma expressão meio a sério, meio a brincar:
- Bem, desejo de todo o coração que o concerto corresponda aos seus desejos; e, se puder vir amanhã, não falte, pois começo a ter o pressentimento de que não vou receber muito mais visitas suas.
Anne ficou surpreendida e atrapalhada, mas, depois de permanecer um momento na expectativa, viu-se obrigada, se bem que isso a contrariasse, a afastar-se rapidamente.
Sir Walter, as suas duas filhas e a Sra. Clay foram os primeiros do seu grupo a chegar aos salões nessa noite; e, como tinham de esperar por Lady Dalrymple, ocuparam os seus lugares junto de uma das lareiras da sala octogonal. Mas, mal tinham acabado de se instalar, a porta abriu-se e o comandante Wentworth entrou sozinho.
Anne era quem estava mais próxima dele e, dando alguns passos em frente, falou-lhe de imediato. Ele estava preparado para se limitar a fazer uma vénia e seguir em frente, mas o meigo -Como está?- dela levou-o a desviar-se da sua linha reta e a aproximar-se e retribuir-lhe o cumprimento, apesar da presença intimidatória do pai e irmã atrás dela. O fato de eles se encontrarem atrás dela era um auxílio para Anne; ela não via os seus olhares e sentia-se disposta a fazer tudo o que considerava correto.
Enquanto conversavam, chegou-lhe aos ouvidos o som de murmúrios entre o pai e a irmã. Não conseguia distinguir as palavras, mas adivinhou o assunto; e, quando o comandante Wentworth fez uma vénia cerimoniosa, ela compreendeu que o pai se tinha dignado a fazer-lhe um sinal de reconhecimento; e, ao olhar de soslaio, foi mesmo a tempo de ver a própria Elizabeth fazer uma pequena cortesia. Esta, embora tardia, relutante e indelicada, foi, porém, melhor do que nada; a sua disposição melhorou.
Depois de falarem sobre o tempo, Bath e o concerto, a conversa começou a esmorecer e, por fim, ela ficou à espera de que ele se afastasse a qualquer momento; mas ele não o fez; não parecia ter pressa de se afastar dela; e, de repente, com renovada vivacidade, com um pequeno sorriso e alguma animação, ele disse:
- Mal a tenho visto desde aquele dia em Lyme. Receio que tenha sofrido com o choque, sobretudo por ter dominado os nervos nessa altura.
Ela garantiu-lhe que não tinha.
- Foi uma ocasião assustadora - disse ele -, um dia assustador! - E ele passou a mão pelos olhos, como se a recordação fosse demasiado penosa; mas, no instante seguinte, ele sorria de novo e dizia: - Aquele dia produziu alguns efeitos, porém.Teve algumas consequências que devem ser consideradas o oposto de assustadoras. Quando teve a presença de espírito de sugerir que Benwick era a pessoa mais apropriada para ir chamar um médico, com certeza a menina não fazia a mais pequena idéia de que ele seria uma das pessoas mais empenhadas no restabelecimento dela.
- Certamente que não fazia idéia. Mas parece... espero que seja um casamento feliz. Ambos possuem bons princípios e bom feitio.
- Sim -disse ele, sem a olhar bem de frente-, mas acho que as semelhanças terminam aí. Desejo de todo o coração que sejam felizes, e alegro-me por terem as circunstâncias a seu favor. Não têm de enfrentar quaisquer dificuldades em casa, não existe qualquer oposição, capricho ou demora. Os Musgrove estão a ter um comportamento igual a si próprios, muito decente e generosamente, unicamente ansiosos, com verdadeiros corações de pais, por promover o conforto da filha. Tudo isto irá concorrer muito, muitíssimo para a sua felicidade; talvez mais do que... Fez uma pausa. Pareceu ocorrer-lhe uma recordação súbita, a qual lhe transmitiu alguma da emoção que estava a enrubescer o rosto de Anne e a fazê-la olhar para o chão. Depois de pigarrear, porém, ele prosseguiu: - Confesso que penso que existe uma disparidade, uma enorme disparidade, e numa questão tão essencial como a mentalidade. Considero Louisa Musgrove uma menina muito meiga e simpática, e nada estúpida; mas Benwick é mais do que isso. Ele é um homem inteligente e culto... e confesso que fiquei algo surpreendido ao tomar conhecimento de que se apaixonara. Se tivesse sido o efeito da gratidão, se ele tivesse aprendido a amá-la porque acreditava que ela o preferia a ele, teria sido outra coisa. Mas não tenho motivo para supor que tenha sido esse o caso. Parece, pelo contrário, ter sido um sentimento perfeitamente espontâneo da parte dele, e isso surpreende-me. Um homem como ele, na sua situação! Com o coração ferido, quase destroçado! Fanny Harville era uma criatura superior; e o seu amor por ela era verdadeiramente amor. Um homem não se refaz facilmente de uma tal dedicação por uma mulher assim! Ele não deve, não pode, fazê-lo.
Quer por ter consciência de que o seu amigo se recompusera, quer por qualquer outra razão, ele não disse mais nada; e Anne, que, apesar da voz emocionada com que a última parte tinha sido proferida, apesar de todos os ruídos da sala, do som de alguém a bater descuidadamente com a porta, do sussurro incessante das pessoas a andarem de um lado para o outro, tinha ouvido distintamente todas as palavras, ficara impressionada, satisfeita, confusa, e começava a respirar aceleradamente e a sentir centenas de emoções ao mesmo tempo. Era-lhe impossível falar em tal assunto; e, no entanto, após uma pausa, sentindo necessidade de falar e não tendo o menor desejo de mudar completamente de assunto, limitou-se a fazer um pequeno desvio, dizendo:
- Esteve bastante tempo em Lyme, creio?
- Cerca de uma quinzena. Não podia partir antes de ter a certeza de que Louisa se encontrava bem. Estava demasiado preocupado com o acidente para poder ficar descansado. A culpa fora minha... unicamente minha. Se eu não fosse fraco, ela não teria sido tão obstinada. A região à volta de Lyme é muito bonita. Passeei bastante a pé e a cavalo, e quanto mais vi, mais coisas encontrei dignas de serem admiradas.
- Eu gostaria muito de voltar a ver Lyme - disse Anne.
- A sério! Eu julgaria que nada em Lyme poderia inspirar tal sentimento. O horror e o sofrimento em que se viu envolvida... a tensão do espírito, o desgaste... eu iria imaginar que as suas últimas impressões de Lyme lhe provocariam uma aversão profunda.
- As últimas horas foram certamente muito dolorosas respondeu Anne. - Mas, quando a dor desaparece, a recordação torna-se um prazer. Não se gosta menos de um local por se ter sofrido nele, a não ser que tenha sido tudo sofrimento, nada a não ser sofrimento... o que não foi o caso em Lyme. A ansiedade e o sofrimento foram só nas últimas duas horas; antes disso, foi muito agradável. Tanta coisa nova e tanta beleza! Eu tenho viajado tão pouco que acho qualquer local novo interessante... mas em Lyme há uma verdadeira beleza; e, no seu conjunto - (corando ligeiramente com algumas recordações) -, as minhas impressões sobre a terra são muito agradáveis.
Mal ela tinha acabado de falar, a porta da entrada abriu-se e o grupo por que esperavam apareceu.
Lady Dalrymple, Lady Dalrymple -foi a jubilosa exclamação, e, com todo o entusiasmo compatível com uma ansiosa elegância, Sir Walter e as suas duas senhoras avançaram para a cumprimentar. Lady Dalrymple e a Menina Carteret, acompanhadas pelo Sr. Elliot e pelo coronel Wallis, que chegara quase nesse mesmo instante, entraram na sala. Os outros juntaram-se a eles, num grupo em que Anne se viu necessariamente incluída.
Ela foi separada do comandante Wentworth. A sua conversa tão interessante, quase demasiado interessante, ficou interrompida por algum tempo; mas isto constituiu apenas uma pequena penitência, em comparação com a felicidade que provocara! Nos últimos dez minutos, ficara a saber mais sobre os sentimentos dele a respeito de Louisa, mais sobre todos os seus sentimentos, do que se atrevia a pensar! E, com uma tumultuosa sensação de felicidade, dedicou-se às exigências da festa, às amabilidades necessárias de momento. Sentia-se bem-disposta com todos. Ela pensara em coisas que a levavam a ser cortês e amável para com toda a gente, e a ter pena de todos, por serem menos felizes do que ela.
Estas deliciosas emoções diminuíram um pouco quando, ao afastar-se do grupo para se juntar novamente ao comandante Wentworth, viu que ele se retirara. Ainda foi a tempo de o ver entrar na sala do concerto. Ele fora-se embora - simplesmente desaparecera; por um momento, sentiu-se triste. Mas voltariam a encontrar-se. Ele procurá-la-ia, encontrá-la-ia muito antes de o serão terminar- e, de momento, talvez fosse bom estarem separados. Ela precisava de um pouco de tempo para se recompor.
Com a chegada de Lady Russell, pouco depois, o grupo ficou completo, e tudo o que faltava era reunirem-se e entrarem na sala do concerto, assumindo o ar mais importante que conseguissem, provocando o maior número de murmúrios e perturbando o maior número de pessoas possível. Tanto Elizabeth como Anne Elliot se sentiam muito, muito felizes quando entraram na sala.
Elizabeth, de braço dado com a Menina Carteret e a olhar para as costas largas da viúva viscondessa de Dalrymple à sua frente, não tinha mais nada a desejar que não parecesse estar ao seu alcance; e Anne - mas seria um insulto à natureza da felicidade de Anne compará-la com a da irmã; enquanto a de uma era tudo vaidade egoísta, a da outra era afeto generoso. Anne não viu, não reparou na magnificência da sala. A sua felicidade era interior. Os seus olhos brilhavam, as faces estavam luminosas - mas ela não o sabia. Pensava apenas na última meia hora e, enquanto se dirigiam aos seus lugares, veio-lhe tudo rapidamente à memória. A sua escolha de assuntos, as suas expressões e, ainda mais, os seus modos e aparência tinham sido de molde a ela lhes poder dar uma só interpretação. A sua opinião sobre a inferioridade de Louisa Musgrove, uma opinião que parecera desejoso de expressar, o seu espanto com o comandante Benwick, os seus sentimentos a respeito de um primeiro e forte afeto - frases que começara e não conseguira terminar- o desviar dos seus olhos, o seu olhar expressivo - tudo isso indicava que o seu coração se voltava de novo para ela; que a raiva, o ressentimento e o desejo de a evitar tinham desaparecido e tinham sido substituídos, não apenas pela amizade e consideração, mas pela ternura do passado; sim, alguma da ternura do passado. Ela não podia imaginar que a sua mudança significasse menos do que isso. Ele certamente a amava.
Estes eram os pensamentos, com as visões inerentes, que a ocupavam e entusiasmavam demasiado para lhe deixarem qualquer poder de observação; e ela atravessou a sala sem o ver sequer de relance, sem sequer tentar avistá-lo. Depois de os lugares terem sido distribuídos e de estarem todos sentados, ela olhou em volta para ver se ele estava na mesma parte da sala; mas não estava, o seu olhar não conseguia alcançá-lo; o concerto estava a começar, e, durante algum tempo, ela teve de se contentar com uma felicidade mais modesta.
O grupo foi dividido e colocado em dois bancos contíguos; Anne estava entre os que se sentaram no da frente; e o Sr. Elliot tinha manobrado tão bem, com a ajuda do seu amigo, o coronel Wallis que conseguira sentar-se ao lado dela. A Menina Elliot, rodeada pelos primos, e o principal objeto da galantaria do coronel Wallis, estava bastante satisfeita. O espírito de Anne sentia-se extremamente receptivo ao entretenimento da noite; havia bastante com que se ocupar: compartilhava os sentimentos dos meigos, a alegria dos joviais, prestava atenção aos eruditos, tinha paciência para com os enfadonhos; e nunca gostara tanto de um concerto, pelo menos durante a primeira parte.
Perto do fim, no intervalo que se seguiu a uma canção italiana, ela explicou as palavras da canção ao Sr. Elliot.
Tinham só um programa para os dois.
- Este - disse ela - é mais ou menos o sentido, ou, por outra, o significado das palavras, pois certamente não se pode falar de sentido de uma canção italiana... mas é mais ou menos o significado, tal como eu o entendo, pois não conheço a língua. Eu não sei italiano.
- Sim, sim, estou mesmo a ver que não sabe. Vejo que não sabe nada sobre o assunto. Só sabe o suficiente para traduzir estas linhas de italiano invertidas, transpostas e resumidas para um inglês claro, compreensível e elegante. Não precisa de dizer mais nada sobre a sua ignorância.
- Aqui está a prova. Não vou contrariar uma tão grande delicadeza, mas não gostaria de ser examinada por um verdadeiro entendido?
- Eu não tive o prazer de visitar Camden Place durante tanto tempo - respondeu ele - sem aprender algo sobre a Menina Anne Elliot; e considero-a demasiado modesta para que o mundo se aperceba de metade dos seus talentos, e demasiado talentosa para que a sua modéstia seja natural em qualquer outra mulher.
- Que vergonha!, que vergonha! - Isso é demasiado lisonjeiro. Esqueci-me do que vamos ter a seguir - disse ela, voltando a olhar para o programa.
- Talvez - disse o Sr. Elliot em voz baixa - eu conheça o seu caráter há mais tempo do que imagina.
- A sério? Como? Só o pode ter conhecido depois de eu ter vindo para Bath, a não ser que antes tenha ouvido a minha família falar de mim.
- Eu ouvi falar de si muito antes de ter chegado a Bath. Pessoas que a conheceram intimamente descreveram-na. Há muito anos que conheço o seu caráter. A sua pessoa, a sua índole, os seus talentos, os seus modos... foi-me tudo descrito, e mantive tudo presente na memória.
O Sr. Elliot não ficou decepcionado com o interesse que esperava despertar. Ninguém consegue resistir ao encanto de tal mistério. Ter sido descrita há tanto tempo, por pessoas anônimas, a alguém que se conheceu recentemente é irresistível; e Anne ficou cheia de curiosidade. Interrogou-se a si própria, perguntou-lhe ansiosamente - mas em vão. Ele ficou encantado por ela lhe perguntar, mas não revelou nada.
- Não, não; noutra altura, talvez, mas agora não. – Nesse momento, ele não ia referir nomes: mas isso acontecera realmente. Tinha-lhe sido feita, há muitos anos, uma descrição da Menina Anne Elliot que inspirara nele a noção do seu elevado mérito e despertara a maior curiosidade em conhecê-la.
- O nome de Anne Elliot - disse ele - há muito que me desperta grande interesse. Há muito que ele fascina a minha imaginação; e, se me atrevesse a tal, exprimiria o desejo de que o nome nunca mudasse.
Pareceu-lhe que estas foram as palavras dele; mas, mal acabara de as ouvir, a sua atenção foi atraída por outros sons imediatamente atrás de si, que fizeram que tudo o mais parecesse trivial. O pai e Lady Dalrymple estavam a conversar.
- Um homem atraente - dizia Sir Walter -, um homem muito atraente.
- Um jovem esplêndido, de fato! - disse Lady Dalrymple. Com melhor aspecto do que é habitual ver-se em Bath. Irlandês, suponho.
- Não, por acaso até sei o nome dele. Conheço-o de vista. Wentworth... o comandante Wentworth, da Marinha. A irmã é casada com o meu inquilino de Somersetshire... os Croft, que alugaram Kellynch.
Antes de Sir Walter ter chegado a este ponto, os olhos de Anne tinham seguido a direção certa e avistaram o comandante Wentworth a uma pequena distância, no meio de um grupo de homens. Quando os seus olhos o viram, os dele pareceram desviar-se dela. Foi essa a impressão que teve. Pareceu-lhe que olhara um pouco tarde de mais e, enquanto se atreveu a fitá-lo, ele não voltou a olhar. Mas o espetáculo ia recomeçar, e ela foi forçada a fingir que prestava atenção à orquestra, e a olhar em frente.
Quando conseguiu voltar a olhar, ele tinha-se afastado. Mesmo que quisesse fazê-lo, ele não poderia aproximar-se mais dela, pois ela estava cercada de gente e inacessível; mas ela gostaria de ter encontrado o seu olhar. As palavras do Sr. Elliot tinham-na incomodado. Já não lhe apetecia falar com ele. Desejava que ele não se encontrasse tão perto dela.
A primeira parte terminara. Agora ela tinha esperança de que alguma alteração benéfica ocorresse; após um período de silêncio, alguns membros do grupo decidiram ir à procura de chá. Anne foi uma das poucas pessoas que preferiu não se mover dali. Continuou sentada, tal como Lady Russell, mas teve o prazer de se ver livre do Sr. Elliot; não tinha intenção, quaisquer que fossem os seus sentimentos em relação a Lady Russell, de evitar conversar com o comandante Wentworth, se este lhe desse essa oportunidade. Pela expressão do rosto de Lady Russell, estava convencida de que ela também o vira. Mas ele não veio. Por várias vezes, Anne imaginou vê-lo ao longe, mas ele nunca se aproximou. O desejado intervalo chegou ao fim sem qualquer resultado.
Os outros regressaram, a sala voltou a encher-se, os lugares foram reclamados e ocupados, e ia seguir-se outra hora de prazer ou de castigo, outra hora de música para deliciar ou provocar bocejos, conforme prevalecesse o gosto real ou afetado de cada um. Para Anne, ela continha principalmente a perspectiva de uma hora de agitação. Não podia sair tranquilamente da sala sem voltar a ver o comandante Wentworth, sem trocar com ele um olhar amigável.
Quando o grupo se sentou de novo, houve muitas alterações, cujo resultado lhe foi favorável. O coronel Wallis não quis sentar-se, e o Sr. Elliot foi convidado por Elizabeth e pela Menina Carteret, de uma forma que não podia ser recusada, a sentar-se no meio delas; e, com mais algumas mudanças e uma pequena maquinação da sua parte, Anne conseguiu colocar-se muito mais perto do extremo do banco do que estivera antes, muito mais ao alcance de quem passasse. Não conseguiu fazê-lo sem se comparar à Menina Larolles, a inimitável Menina Larolles - mas fê-lo, mesmo assim, e sem conseguir um resultado muito mais feliz; embora, devido à retirada prematura dos seus vizinhos mais próximos, o que pareceu uma boa sorte, ela se encontrasse no extremo do banco antes do fim do concerto.
Esta era a sua situação, com um lugar vago a seu lado, quando voltou a ver o comandante Wentworth. Viu-o não muito longe. Ele também a viu; no entanto, ele tinha um ar grave e parecia indeciso, e só muito lentamente se aproximou dela o suficiente para poder falar com ela. Ela achou que se devia passar algo. A mudança era indubitável. A diferença entre o seu ar de agora e o que tivera na sala octogonal era enorme. Que seria? Pensou no pai, em Lady Russell. Teria havido olhares desagradáveis? Ele começou por falar sobre o concerto num tom reservado; parecia mais o comandante Wentworth de Uppercross; declarou-se desiludido, esperara ouvir cantar melhor; e, em suma, tinha de confessar que não teria pena quando acabasse.
Anne respondeu e tomou tão bem a defesa do espetáculo, manifestando, ao mesmo tempo e de um modo tão agradável, consideração pelos sentimentos dele, que o rosto do comandante Wentworth se desanuviou, e ele respondeu quase com um sorriso. Conversaram durante mais alguns minutos; ele continuava bem-disposto; até olhou para o banco, como se procurasse um lugar para se sentar; nesse preciso momento, um toque no ombro de Anne obrigou-a a voltar-se. Era o Sr. Elliot. Este pediu desculpa, mas queria pedir-lhe que explicasse o texto italiano. A Menina Carteret estava ansiosa por ter uma idéia do que se ia cantar a seguir. Anne não podia recusar; mas nunca se sacrificara à delicadeza com um espírito tão atormentado. Demorou, inevitavelmente, alguns minutos, embora o menos possível; e, quando ficou de novo senhora de si, quando pôde voltar-se e olhar como fizera antes, viu-se abordada pelo comandante Wentworth, que, com uma atitude reservada, se despedia apressadamente. Ele queria dar-lhe as boas-noites. Ia-se embora - tinha de ir para casa o mais depressa possível.
- Acha que não vale a pena esperar para ouvir esta canção? perguntou Anne, subitamente assaltada por uma idéia que a tornou ainda mais desejosa de o encorajar.
- Não! - respondeu ele num tom enfático -, não há nada por aqui que faça que valha a pena eu ficar. E ele afastou-se imediatamente. Ciúmes do Sr. Elliot? Era o único motivo compreensível. O comandante Wentworth ciumento do seu afeto! Ter-lhe-ia sido possível acreditar nisso uma semana antes... três horas antes? Por um momento, sentiu uma enorme felicidade. Mas, infelizmente, os pensamentos que se lhe seguiram foram muito diferentes. Como iria aplacar aqueles ciúmes? Como conseguiria fazer-lhe ver a verdade? Como, com todas as desvantagens próprias das suas respectivas situações, iria ele alguma vez saber quais eram os verdadeiros sentimentos dela? Sentia-se infeliz ao pensar nas atenções do Sr. Elliot. O mal provocado por elas era incalculável.
Na manhã seguinte, Anne recordou-se com satisfação da sua promessa de ir visitar a Sra. Smith; isso significaria que estaria ausente de casa à hora em que era mais provável que o Sr. Elliot aparecesse; o seu principal objetivo era evitá-lo.
Ela sentia bastante boa vontade para com ele. Apesar do dano que as suas atenções tinham causado, devia-lhe gratidão e estima, talvez mesmo compaixão. Ela não conseguia deixar de pensar nas extraordinárias circunstâncias em que se tinham conhecido; no direito que ele parecia ter de a interessar, tanto pela situação de ambos como pelos próprios sentimentos dele e pela boa impressão que ela logo de início despertara nele.
Era tudo muito extraordinário. Lisonjeiro mas doloroso. Havia muito a lamentar. Nem valia a pena pensar no que ela poderia sentir se não existisse um comandante Wentworth. E quer a conclusão da atual incerteza fosse favorável ou desfavorável, o seu amor seria dele para sempre. Ela acreditava que a sua união não a afastaria mais dos outros homens do que uma separação definitiva.
Nunca devem ter atravessado as ruas de Bath reflexões mais belas sobre o amor agitado e a fidelidade eterna do que aquelas a que Anne se entregou ao ir de Camden Place para Westgate Buildings. Eram quase suficientes para purificarem e perfumarem o ar ao longo de todo o trajeto. Estava certa de ser bem recebida; e a amiga pareceu-lhe particularmente grata por ter vindo. Parecia que não a esperava, embora o encontro estivesse marcado.
Ela pediu imediatamente um relato do concerto; e as recordações que Anne tinha deste eram suficientemente felizes para lhe animarem o rosto e para que ela tivesse prazer em falar nele. Tudo o que ela podia contar, fê-lo com prazer; mas o tudo era pouco para quem lá estivera, e insuficiente para uma inquiridora como a Sra. Smith, que, através da curta narração de uma lavadeira e de um empregado, já tinha ouvido muito mais sobre o êxito geral e sobre o que acontecera ao serão do que Anne conseguia relatar. A Sra. Smith conhecia de nome toda a gente importante ou notória em Bath.
- Os pequenos Durand estiveram lá, suponho- disse ela. – Com as bocas abertas para apanharem a música, como pardais que ainda não deixaram o ninho, a serem alimentados. Eles nunca perdem um concerto.
- Sim. Não os vi pessoalmente, mas ouvi o Sr. Elliot dizer que estavam na sala.
- Os Ibbotson estavam lá? E as duas novas beldades, com o oficial irlandês alto que se diz que vai casar uma delas?
- Não sei... acho que não estavam.
- A velha Lady Mary Maclean? Não preciso de perguntar por ela. Ela nunca falta, eu sei; deve tê-la visto. Ela devia encontrar-se no seu círculo, pois, se estava ao pé de Lady Dalrymple, estava nos lugares de honra; em redor da orquestra, claro.
- Não, isso era o que eu receava. Ter-me-ia sido muito desagradável sob todos os aspectos. Mas, felizmente, Lady Dalrymple prefere sempre ficar longe; e nós estávamos num lugar excelente... pelo menos para ouvir. Não devo dizer para ver, porque parece que vi muito pouco.
- Oh!, viu o suficiente para se divertir... compreendo isso perfeitamente bem. Existe uma espécie de prazer privado até mesmo numa multidão, e esse a menina teve. Vocês já eram um grupo grande, não precisavam de mais nada.
- Mas eu devia ter olhado mais em redor - disse Anne, consciente, enquanto falava, de que não deixara de olhar em redor; o objetivo é que fora limitado.
- Não, não, a menina tinha uma ocupação melhor. Não precisa de me dizer que passou um agradável serão. Vejo-o nos seus olhos. Vejo perfeitamente como é que as horas passaram... que teve sempre algo agradável para ouvir. Nos intervalos do concerto, foi conversa.
Anne sorriu e perguntou:
- Vê isso nos meus olhos?
- Vejo, sim. O seu rosto diz-me claramente que na noite passada esteve junto da pessoa que considera a mais simpática do mundo, a pessoa que atualmente lhe interessa mais do que todo o mundo junto.
O rubor espalhou-se pelo rosto de Anne. Não conseguiu dizer nada.
- E, sendo assim - prosseguiu a Sra. Smith, após uma pequena pausa-, espero que acredite que aprecio muito a sua gentileza em vir visitar-me esta manhã. É realmente muito amável da sua parte vir visitar-me quando tem coisas mais agradáveis para fazer.
Anne não ouviu nada disto. Ainda se sentia espantada e confusa com a perspicácia da amiga, e não conseguia imaginar como qualquer notícia sobre o comandante Wentworth poderia ter chegado até ela. Após um breve silêncio, disse:
- Diga-me, por favor - disse a Sra. Smith -, o Sr. Elliot sabe que nos conhecemos? Ele sabe que estou em Bath?
- O Sr. Elliot? - repetiu Anne, erguendo os olhos, surpreendida. Uma reflexão momentânea fê-la ver o erro em que incorrera. Percebeu-o imediatamente e, recuperando a coragem com uma sensação de segurança, acrescentou pouco depois, mais calmamente: - Conhece o Sr. Elliot?
- Conheci-o bastante bem - respondeu a Sra. Smith, num tom grave -, mas há muito tempo. Há muito tempo que não nos vemos.
- Eu não sabia nada disso. Nunca me falou sobre isso antes. Se eu soubesse, teria tido o prazer de lhe falar em si.
- Para confessar a verdade - disse a Sra. Smith, assumindo o eu ar habitualmente alegre -, esse é exatamente um prazer que quero que tenha. Quero que fale sobre mim ao Sr. Elliot. Quero que se interesse por mim junto dele. Ele pode prestar-me um serviço essencial; e, se tiver a bondade, minha querida Menina Elliot, de tomar isso a seu cargo, certamente que ele o fará.
- Terei muito prazer; espero que não duvide de que estou disposta a ser-lhe útil no que for preciso - respondeu Anne-, mas desconfio de que me considera como tendo mais direitos sobre o Sr. Elliot... um maior direito de o influenciar do que é, realmente, o caso. Tenho a certeza de que, de algum modo, adquiriu essa noção. Deve considerar-me apenas como uma familiar do Sr. Elliot. Se, à luz desta situação, houver alguma coisa que julgue que, como prima, eu lhe possa pedir, suplico-lhe que não hesite em fazer uso dos meus préstimos.
A Sra. Smith lançou-lhe um olhar penetrante e depois disse, com um sorriso:
- Estou a ver que fui um pouco prematura, peço-lhe desculpa. Eu devia ter aguardado a comunicação oficial. Mas agora, minha querida Menina Elliot, como velha amiga, dê-me alguma indicação de quando poderei falar. Na próxima semana? Certamente que na próxima semana ser-me-á permitido pensar que está tudo resolvido e poderei fazer os meus planos egoístas sob a proteção da boa sorte do Sr. Elliot.
- Não - respondeu Anne -, não na próxima semana, nem na seguinte ou na outra. Garanto-lhe que nada do que está a pensar vai ficar resolvido em qualquer semana. Eu não me vou casar com o Sr. Elliot. Gostaria de saber por que é que pensa que vou?
A Sra. Smith voltou a olhá-la, fitou-a atentamente, abanou a cabeça e exclamou:
- Quem me dera compreendê-la! Quem me dera saber onde quer chegar! Calculo que não tenha intenção de ser cruel, quando chegar o momento certo. Até essa altura, sabe bem, nós, mulheres, nunca tencionamos aceitar ninguém. É uma coisa habitual entre nós rejeitar todos os homens... até eles se declararem. Por que é que a menina havia de ser cruel? Deixe-me argumentar a favor do meu... não lhe posso chamar amigo atual... mas do meu antigo amigo. Onde irá encontrar melhor partido? Onde espera conhecer um homem mais cavalheiro, mais amável? Deixe-me recomendar o Sr. Elliot. Tenho a certeza de que só ouve o coronel Wallis falar bem dele; e quem poderá conhecê-lo melhor do que o coronel Wallis?
- Minha querida Sra. Smith, a mulher do Sr. Elliot morreu há pouco mais de seis meses. Ele não deveria andar a cortejar ninguém.
- Oh!, se essas forem as suas únicas objeções - exclamou a Sra. Smith, gracejando-, o Sr. Elliot está salvo, e não me preocuparei mais com ele. Não se esqueça de mim quando se casar, é tudo. Faça-lhe saber que sou sua amiga, e então ele considerará pequeno o incômodo necessário para me ajudar, como é muito natural que aconteça agora, com tantos negócios e compromissos... muito natural, talvez. Noventa e nove por cento das pessoas fariam o mesmo. Claro que ele não pode ter noção de como o assunto é importante para mim. Bem, minha querida Menina Elliot, desejo-lhe muitas felicidades. O Sr. Elliot é bastante inteligente para compreender o seu valor. A sua paz não irá naufragar como a minha. Está em segurança, tanto em assuntos mundanos com relação ao seu caráter. Ele não se deixará desencaminhar, não será levado à ruína pelos outros.
- Não - disse Anne -, posso bem acreditar tudo isso do meu primo. Ele parece ter um temperamento calmo e firme, nada influenciável por impressões perigosas. Respeito-o muito. Pelo que tenho observado, não tenho motivo para pensar de outro modo. Mas não o conheço há muito tempo; e ele não é homem que se conheça intimamente em tão pouco tempo. Será que esta maneira de falar dele, Sra. Smith, a convence de que ele não significa nada para mim? Certamente que o faço com muita calma. E dou-lha a minha palavra de que ele não representa nada para mim. Se alguma vez me pedir em casamento... o que duvido que ele tenha pensado fazer... eu não aceitarei, garanto-lhe que não aceitarei. Garanto-lhe que o Sr. Elliot não tem qualquer responsabilidade no prazer que o concerto me proporcionou ontem à noite... não o Sr. Elliot; não é o Sr. Elliot que... Ela fez uma pausa e corou, arrependida de ter dito tanto; mas dizer menos teria sido insuficiente.
A Sra. Smith não acreditaria tão facilmente na falta de êxito do Sr. Elliot se não existisse outra pessoa. Deste modo, ficou imediatamente convencida e fingiu não se aperceber de mais nada; e Anne, ansiosa por desviar a atenção, quis saber por que é que a Sra. Smith imaginara que ela se ia casar com o Sr. Elliot, onde é que ela fora buscar essa idéia, a quem a podia ter ouvido.
- Por favor, diga-me como é que isso lhe veio à cabeça.
- A primeira vez que me veio à idéia - respondeu a Sra. Smith - foi quando soube que passavam tanto tempo juntos, e achei que era a coisa mais natural do mundo que os seus parentes e amigos o desejassem; e pode estar certa de que todos os seus conhecidos são da mesma opinião. Mas só ouvi falar nisso há dois dias.
- E o assunto foi mesmo falado?
- Reparou na mulher que lhe abriu a porta quando me veio visitar ontem?
- Não. Não era a Sra. Speed, como de costume, ou a criada? Não reparei bem.
- Era a minha amiga, a Sra. Rooke... a enfermeira Rooke, que, a propósito, tinha grande curiosidade em vê-la e ficou encantada por poder abrir-lhe a porta. Ela chegou de Malborough Buildings no domingo, e foi ela quem me disse que a menina se ia casar com o Sr. Elliot. Ela ouvira dizê-lo à própria Sra. Wallis, que não parecia ser uma má fonte de informação. Fez-me companhia durante uma hora na segunda-feira à noite e contou-me a história toda.
- A história toda - repetiu Anne, rindo-se. - Ela não pode ter contado uma história muito longa, penso eu, sobre um pequeno parágrafo de uma notícia sem qualquer fundamento.
A Sra. Smith ficou calada.
- Mas - prosseguiu Anne -, embora não seja verdade que eu exerça qualquer poder sobre o Sr. Elliot, sentir-me-ei extremamente feliz em lhe poder ser útil de qualquer maneira ao meu alcance. Quer que lhe diga que está em Bath? Quer que lhe leve alguma mensagem?
- Não, não, obrigada. Não, de modo algum. No entusiasmo do momento e sob uma impressão falsa, eu podia, talvez, tentar interessá-la por certas circunstâncias. Mas agora não, obrigada, não quero incomodá-la com nada.
- Creio que disse ter conhecido o Sr. Elliot há muitos anos!?
- Conheci.
- Não antes de ele se casar, suponho?
- Sim; ele não era casado quando o conheci.
- E conheciam-se muito bem?
- Intimamente.
- Sim? Então, por favor, conte-me como ele era nessa altura. Tenho grande curiosidade em saber como era o Sr. Elliot quando novo. Era como está agora?
- Eu não vejo o Sr. Elliot há três anos - foi a resposta da Sra. Smith, pronunciada num tom tão grave que foi impossível continuar a falar no assunto; e Anne sentiu que não tinha conseguido nada a não ser uma maior curiosidade. Ficaram ambas em silêncio; a Sra. Smith ficou pensativa. Por fim, disse:
- Desculpe, minha querida Menina Elliot - exclamou, no seu habitual tom de cordialidade -, peço-lhe desculpa pelas respostas lacónicas que lhe tenho dado, mas não sei bem o que devo fazer. Tenho estado a hesitar e a refletir sobre isso. HÁ muitas coisas a tomar em consideração. Detesto ser importuna, provocar más impressões, causar problemas. Até mesmo a superfície macia de um laço familiar deve ser preservada, ainda que não exista nada de duradouro por debaixo. No entanto,já decidi; penso que tenho razão. Acho que devo informá-la sobre o verdadeiro caráter do Sr. Elliot.
Embora acredite plenamente que, atualmente, não tenha a menor intenção de o aceitar, nunca se sabe o que poderá acontecer. Os seus sentimentos em relação a ele podem, em qualquer altura, alterar-se. Assim, ouça a verdade agora, enquanto não tem preconceitos.
O Sr. Elliot é um homem sem coração nem consciência, um ser calculista e frio que só pensa em si próprio e que, para seu interesse e comodidade, seria capaz de qualquer crueldade ou traição que possam ser levadas a cabo sem arriscar o seu bom nome. Ele não tem qualquer consideração pelos outros. É capaz de negligenciar e abandonar, sem a menor hesitação, aqueles de cuja ruína foi a causa principal. É incapaz do mínimo sentimento de justiça e compaixão. Oh!, possui um coração de pedra, oco e negro.
O ar admirado de Anne, a sua exclamação de espanto fê-la fazer uma pausa e, num tom mais calmo, acrescentou:
- As minhas expressões espantam-na. Tem de desculpar uma mulher ofendida e zangada. Mas vou tentar conter-me. Não o vou insultar. Vou só tentar dizer-lhe o que descobri sobre ele. Os fatos falarão por si. Ele foi amigo íntimo do meu querido marido, que confiava e gostava dele; a amizade existia desde antes do nosso casamento. Eu vi que eles eram amigos muito íntimos; eu também gostava muito do Sr. Elliot e tinha uma ótima opinião sobre ele. Aos dezenove anos, sabe?, não se pensa muito a sério, mas o Sr. Elliot pareceu-me ser tão bom como os outros, e muito mais simpático do que a maior parte dos outros, e nós estávamos quase sempre juntos. Vivíamos principalmente na cidade, com muito luxo. Nessa altura, era ele quem se achava em circunstâncias inferiores, era ele o pobre; tinha uns aposentos em Temple, e isso era o máximo que podia fazer para manter a sua aparência de cavalheiro. Ele podia instalar-se em nossa casa sempre que quisesse, era sempre bem-vindo, era como um irmão. O meu pobre Charles, o melhor e mais generoso homem do mundo, era capaz de dividir com ele o seu último vintém; e eu sei que tinha sempre a bolsa aberta para ele e que o ajudou muitas vezes.
- Essa deve ter sido a época da vida do Sr. Elliot – disse Anne - que sempre suscitou a minha curiosidade. Deve ter sido a mesma altura em que o meu pai e a minha irmã o conheceram. Eu própria nunca o conheci, só ouvi falar dele, mas houve algo na sua conduta para com o meu pai e a minha irmã, e depois nas circunstâncias do seu casamento, que eu não consigo conciliar com o presente. Tudo parecia anunciar um homem diferente.
- Eu sei tudo isso, eu sei tudo isso - exclamou a Sra. Smith. - Ele tinha sido apresentado a Sir Walter e a sua irmã antes de eu o conhecer, mas ouvia-o falar constantemente deles. Sei que ele foi convidado e encorajado, e sei também que preferiu não ir. Posso informá-la, talvez, sobre fatos com que nem sequer sonha; e, quanto ao casamento dele, eu soube tudo a esse respeito, na altura. Sabia todos os prós e contras, era a amiga a quem ele confiava as suas esperanças e os seus planos, e, embora não conhecesse a sua mulher antes, pois a sua situação social inferior tornava impossível tal fato, soube tudo sobre a sua vida depois, ou, pelo menos até aos últimos dois anos da sua vida, e posso responder a todas as perguntas que desejar fazer sobre ela.
- Não - disse Anne -, não tenho nenhuma pergunta em particular a fazer sobre ela. Sempre soube que não eram um casal feliz. Mas eu gostaria de conhecer o motivo por que, nessa altura, desprezou as relações com o meu pai. O meu pai estava disposto a recebê-lo muito generosamente no seio da família. Por que é que o Sr. Elliot se esquivou?
- O Sr. Elliot, nessa época, tinha apenas um objetivo em vista: fazer fortuna, e através de um processo mais rápido do que o exercício da advocacia. Estava decidido a fazê-lo por meio de um casamento. Estava, pelo menos, decidido a não estragar as suas perspectivas com um casamento imprudente; e eu sei que ele acreditava, claro que não sei se acertadamente ou não, que o seu pai e irmã, como todas as suas amabilidades e convites, tinham em mente um casamento do herdeiro com a jovem; e um casamento destes não correspondia de todo às suas idéias de riqueza e independência. Foi por esse motivo que ele se esquivou, garanto-lhe. Ele contou-me a história toda. Não escondia nada de mim. Foi curioso que, tendo acabado de me separar de si em Bath, a primeira pessoa que conheci quando casei tenha sido o seu primo; e que eu tenha continuado a ouvir falar constantemente de seu pai e de sua irmã. Ele descrevia uma Menina Elliot, e eu pensava muito afetuosamente noutra.
- Talvez - exclamou Anne, assaltada por uma idéia súbita- tenha falado algumas vezes de mim ao Sr. Elliot.
– Certamente que o fiz, muito frequentemente. Eu costumava gabar a minha Anne Elliot e garantir que ela era muito diferente da... Conteve-se a tempo.
- Isso explica algo que o Sr. Elliot disse ontem à noite, exclamou Anne. - Isso explica tudo. Fiquei a saber que ele já ouvira falar de mim. Eu não conseguia compreender como. Que imaginação desenfreada possuímos quando se trata de nós próprios! Como facilmente nos enganamos! Mas, desculpe; interrompi-a. O Sr. Elliot casou-se, então, apenas por dinheiro? Foi essa circunstância, provavelmente, que lhe abriu os olhos a respeito do seu caráter? Aqui, a Sra. Smith hesitou um pouco.
- Oh! Essas coisas são demasiado vulgares. Quando se vive no mundo, é tão vulgar um homem ou uma mulher casarem-se por dinheiro que isso não nos choca como deveria. Eu era muito nova, associava-me apenas a jovens, e formávamos um grupo alegre, irresponsável, sem quaisquer regras rígidas de conduta. Só pensávamos em nos divertir. Agora penso de um modo diferente; o tempo, a doença e a dor modificaram a minha maneira de pensar, mas, nessa época, confesso que não via nada de repreensível no que o Sr. Elliot estava a fazer. A obrigação de cada um de nós era fazer o melhor que pudesse para si próprio. - Mas ela não era uma mulher muito inferior?
- Era, e eu levantei objeções, mas ele não me prestou atenção. Tudo o que ele queria era dinheiro, dinheiro. O pai dela era negociante de gado, o avô tinha sido carniceiro, mas isso não tinha importância. Ela era uma mulher agradável, tivera uma educação decente, uns primos tinham-na aperfeiçoado. Conhecera o Sr. Elliot por acaso e apaixonara-se por ele. Da parte do Sr. Elliot não houve quaisquer dificuldades ou escrúpulos a respeito do nascimento dela. A sua única preocupação antes de se comprometer foi certificar-se do montante real da sua fortuna. Pode acreditar que, seja qual for a estima que o Sr. Elliot tenha agora pela sua posição social, quando ele era jovem, esta não tinha qualquer valor para ele. A oportunidade de herdar o Solar de Kellynch era alguma coisa, mas a honra da família não tinha a menor importância para ele. Ouvi-o muitas vezes dizer que, se os títulos de baronete fossem vendáveis, qualquer pessoa poderia ter o seu por cinquenta libras, incluindo o brasão, as armas, o nome e a libré; mas não vou repetir sequer metade do que costumava ouvi-lo dizer sobre o assunto. Não seria justo. No entanto, precisa de ter uma prova, por que o que é tudo isto a não ser afirmações? Mas terá uma prova.
- Mas, minha querida Sra. Smith, eu não quero nada, exclamou Anne. - Até agora, não disse nada que contradissesse o que o Sr. Elliot parecia ser há alguns anos. Tudo isto, de fato, confirma o que costumávamos ouvir dizer. Tenho mais curiosidade em saber a razão por que ele está tão diferente agora.
- Mas faça-me a vontade; tenha a bondade de chamar Mary; não, tenho a certeza de que terá a bondade ainda maior de ir pessoalmente ao meu quarto buscar a caixa com embutidos que está na prateleira superior do armário.
Anne, vendo que a amiga estava decidida, fez o que lhe foi pedido. Depois de ela trazer a caixa e de a colocar à sua frente, a Sra. Smith abriu-a, suspirando, e disse:
- Está cheia de papéis pertencentes a ele e ao meu marido, uma pequena parte dos que tive de examinar quando o perdi. A carta de que estou à procura foi escrita pelo Sr. Elliot a ele antes do nosso casamento e ficou guardada, sabe-se lá porquê.
Mas ele era descuidado e pouco metódico com as suas coisas, como muitos outros homens; e, quando tive de examinar os seus papéis, encontrei-a no meio de outras ainda mais triviais, escritas por diferentes pessoas espalhadas por aqui e ali, enquanto muitas cartas e memorandos importantes tinham sido destruídos. Aqui está. Não a quis queimar porque, estando já muito pouco satisfeita com o Sr. Elliot, decidi guardar todos os documentos sobre a nossa intimidade anterior. Tenho agora outro motivo de satisfação, pois posso mostrar-lha. Esta era a carta, endereçada a Charles Smith, Esq., Tunbridge Wells, e datada de Londres, Julho de 1803.
Caro Smith,
Recebi a sua carta. A sua bondade quase me oprime. Gostaria que a natureza tivesse feito corações como o seu em maior número, mas já vivi vinte e três anos no mundo e não encontrei outro igual. De momento, creia, não preciso dos seus préstimos, pois estou de novo abonado. Dê-me os parabéns: livrei-me de Sir Walter e da menina. Eles voltaram para Kellynch e quase me fizeram prometer visitá-los este Verão, mas a minha primeira visita a Kellynch será com um perito que me dirá como o hei-de leiloar mais lucrativamente. O baronete, porém, poderá voltar a casar; é suficientemente tolo para isso. Se o fizer, então deixar-me-ão em paz, o que será uma boa compensação para aquilo que perco. Ele está pior do que no ano passado. Quem me dera ter um nome que não fosse Elliot. Estou farto dele. O nome Walter posso não usar, graças a Deus!
E desejo que nunca mais volte a insultar-me com o meu W. do meio, pois tenciono, até ao fim da vida, ser apenas o seu William Elliot
Anne não conseguiu ler a carta sem corar, e a Sra. Smith, ao ver a vermelhidão do seu rosto, disse:
- Eu sei que a linguagem é extremamente desrespeitosa. Embora me tenha esquecido dos termos exatos, retenho uma impressão nítida do significado geral. Mas mostra-lhe o homem. Repare nas declarações que faz ao meu pobre marido. Poderiam ser mais explícitas?
Anne não conseguiu refazer-se imediatamente do choque e do desgosto de ver tais palavras aplicadas ao seu pai. Foi obrigada a recordar-se de que a leitura da carta constituía uma violação das leis da honra, que ninguém deveria ser julgado ou conhecido por tais testemunhos, que nenhuma correspondência privada deveria ser lida por outros olhos, antes de recuperar a calma suficiente para restituir a carta sobre a qual estivera a refletir, e dizer:
- Obrigada. Isto constitui, sem dúvida, prova suficiente, prova de tudo o que me disse. Mas por que é que ele se aproximou de nós agora?
- Também posso explicar isso - exclamou a Sra. Smith, sorrindo.
- Pode, realmente?
- Posso. Mostrei-lhe o Sr. Elliot, tal como ele era há doze anos, e vou mostrar-lho como ele é agora. Não posso apresentar uma prova escrita, mas posso oferecer-lhe um testemunho oral tão autêntico como desejaria do que ele pretende agora e do que anda a fazer. Ele agora não está a ser hipócrita. Quer, realmente, casar-se consigo. As suas atuais atenções para com a sua família são muito sinceras. Digo-lhe qual é a minha fonte segura: o amigo dele, o coronel Wallis.
- O coronel Wallis! Conhece-o?
- Não. A informação não chegou até mim por uma via tão direta. Fez um desvio ou dois, mas nada de importância. O riacho está tão puro como na sua origem; o pouco lixo que vai recolhendo nas curvas desaparece facilmente. O Sr. Elliot fala sem reservas com o coronel Wallis sobre a opinião que faz de si. Eu imagino o coronel Wallis como sendo uma pessoa sensata, cautelosa e perspicaz, mas ele tem uma mulher bonita e muito tola, a quem conta coisas que não devia, e repete-lhe tudo o que ouve. Ela, na alegria transbordante da convalescença, repete tudo à enfermeira; e a enfermeira, que sabe que a conheço, conta-me tudo, naturalmente. Na segunda-feira à noite, a minha boa amiga, a Sra. Rooke, confidenciou-me assim os segredos dos Malborough Buildings. Por isso, quando me referia a toda essa história, eu não estava a romancear tanto quanto supôs.
- Minha querida Sra. Smith, a sua fonte de informação não está completa. Isso não pode ser. O fato de o Sr. Elliot ter pretensões a meu respeito não explica os esforços que ele fez com vista a uma reconciliação com o meu pai. Tudo isso se passou antes de eu vir para Bath. Quando cheguei, encontrei-os em termos extremamente amigáveis.
- Eu sei que assim foi; sei isso perfeitamente, mas...
- Na realidade, Sra. Smith, não devemos estar à espera de obter informações fidedignas por essa via. Não pode restar muita verdade em fatos ou opiniões que passam de boca em boca, sendo mal interpretados pela tolice de alguns e pela ignorância de outros.
- Mas escute o que tenho para lhe dizer. Em breve poderá julgar o crédito que estas informações merecem, ouvindo alguns pormenores que poderá confirmar ou contradizer imediatamente. Ninguém supunha que a menina fosse o seu primeiro objetivo. Ele tinha-a, de fato, visto antes de chegar a Bath e tinha-a admirado, mas sem saber quem era. Pelo menos, é o que diz a minha informadora. Isto é verdade? Ele viu-a no Verão ou no Outono passado, algures na costa ocidental, para usar as suas próprias palavras, sem saber quem era?
- Sem dúvida. Até aí, é verdade. Em Lyme, eu estava por acaso em Lyme.
- Bem - prosseguiu a Sra. Smith num tom triunfante -, reconheça à minha amiga o crédito devido pela confirmação do primeiro ponto. Então ele viu-a em Lyme e gostou tanto de si que ficou extremamente satisfeito quando voltou a vê-la em Camden Place, como Menina Anne Elliot, e, a partir desse momento, não tenho qualquer dúvida, ele teve um motivo duplo para as suas visitas. Mas havia outro, anterior, que passarei a explicar. Se houver alguma coisa na minha história que saiba ser falsa ou improvável, por favor interrompa-me. O meu relatório diz que a amiga da sua irmã, a senhora que está em vossa casa e sobre a qual já a ouvi falar, veio para Bath com a Menina Elliot e Sir Walter há muito tempo, em Setembro, ou seja, quando eles vieram, e tem permanecido cá desde então; que ela é uma mulher bonita, insinuante e esperta, pobre e astuta e que, pela sua condição e modos, dá a impressão geral, entre os conhecidos de Sir Walter, de que tenciona ser Lady Elliot, constituindo grande surpresa o fato de a Menina Elliot estar aparentemente cega perante esse perigo.
Aqui, a Sra. Smith fez uma pequena pausa; mas Anne não tinha nada a dizer, e ela prosseguiu:
- Era assim que aqueles que conheciam a família viam o assunto, muito antes do seu regresso para junto dela; e o coronel Wallis observava o seu pai o suficiente para se aperceber disso, embora nessa altura ele não fosse visita de Camden Place; a sua estima pelo Sr. Elliot levava-o a observar com interesse tudo o que ali se passava; e, quando o Sr. Elliot veio passar alguns dias a Bath, como fez pouco antes do Natal, o coronel Wallis comunicou-lhe o aparente estado das coisas e os rumores que começavam a surgir. Agora, deve compreender que o tempo operara uma mudança muito sensível, na opinião do Sr. Elliot, quanto ao valor do título de baronete. Ele era um homem completamente diferente em todas as questões de linhagem e parentesco. Uma vez que há muito possuía mais dinheiro do que poderia gastar, e não sendo avarento nem esbanjador, ele começara gradualmente a identificar a sua felicidade com o título de que é herdeiro. Eu pensava que isso estava a começar a acontecer antes de as nossas relações terem cessado, mas agora tenho a certeza. Ele não suporta a idéia de não vir a ser Sir William. Pode imaginar que as notícias que o seu amigo lhe deu não fossem muito agradáveis, e pode imaginar o efeito que elas produziram; a decisão de voltar para Bath o mais depressa possível, de se instalar aqui por algum tempo, com vista a renovar o antigo conhecimento e readquirir uma situação no seio da família que lhe proporcionasse os meios de avaliar o grau do perigo e de enredar a dama, se necessário.
Os dois amigos concordaram que era a única coisa a fazer, e o coronel Wallis propôs-se auxiliá-lo em tudo o que pudesse. Ele ia ser-lhes apresentado, a Sra. Wallis iria ser-lhes apresentada, e iriam todos ser apresentados. O Sr. Elliot regressou, pediu desculpas e foi desculpado, como sabe, e readmitido no seio da família; e, aí, o seu objetivo constante, o seu único objetivo, (até a sua chegada acrescentar outro motivo), era observar Sir Elliot e a Sra. Clay. Ele não perdeu uma única oportunidade de estar com eles, atravessava-se-lhes no caminho e visitava-os constantemente... mas não preciso de entrar em pormenores sobre o assunto. Pode imaginar o que um homem astucioso faria; e, com esta orientação, talvez se recorde do que o tem visto fazer.
- Sim - disse Anne -, não está a contar-me nada que não esteja de acordo com o que eu sei ou possa imaginar. Há sempre qualquer coisa de ofensivo nos pormenores da astúcia. As manobras do egoísmo e da duplicidade são sempre revoltantes, mas não ouvi nada que realmente me surpreenda. Sei que aqueles que ficariam chocados com esta descrição do Sr. Elliot teriam dificuldade em acreditar; mas eu nunca me senti satisfeita. Sempre julguei que devia existir outro motivo para a sua conduta, para além do que ele aparentava. Gostaria de conhecer a sua opinião atual sobre as probabilidades de o acontecimento que ele teme ocorrer, se considera que o perigo está a diminuir ou não.
- Está a diminuir, segundo creio - respondeu a Sra. Smith. Ele pensa que a Sra. Clay tem medo dele, que ela se apercebeu de que ele conhece as suas intenções e não se atreve a agir conforme faria na sua ausência. Mas, uma vez que ele terá de se ausentar uma vez por outra, não sei como é que alguma vez se sentirá seguro enquanto ela mantiver a sua atual influência. A Sra. Wallis teve uma idéia divertida, segundo me disse a enfermeira, que é incluir no contrato nupcial, quando a menina e o Sr. Elliot se casarem, uma cláusula segundo a qual o seu pai não se poderá casar com a Sra. Clay. Um plano digno da inteligência da Sra. Wallis, mas a minha sensata enfermeira Rooke viu logo como era absurdo.
-Mas certamente, minha senhora- , disse ela, isso não o impediria de se casar com qualquer outra pessoa.
- E, na verdade, eu não penso que a enfermeira, no seu íntimo, seja muito contra um segundo casamento de Sir Walter. Sabe?, consta que ela gosta de favorecer casamentos, e quem poderá dizer se ela não se imagina a tratar da futura Lady Elliot, através da recomendação da Sra. Wallis?
- Fico muito satisfeita em saber tudo isto - disse Anne, após um momento de reflexão. - Nalguns aspectos, ser-me-á mais penoso estar perto dele, mas saberei melhor como agir. A minha linha de conduta será mais direta. O Sr. Elliot é obviamente um homem mundano, calculista e artificial que nunca teve outros princípios a guiá-lo a não ser o egoísmo.
Mas a conversa sobre o Sr. Elliot ainda não tinha chegado ao fim. A Sra. Smith desviara-se da sua primeira diretriz, e Anne tinha-se esquecido, no interesse das suas preocupações familiares, do que fora, a princípio, insinuado contra ele; mas a sua atenção foi agora chamada para a explicação dessas primeiras insinuações, e ela escutou uma narração, a qual, se não justificava plenamente o extraordinário azedume da Sra. Smith, demonstrava como ele se mostrara insensível no seu comportamento para com ela, manifestando muita falta de justiça e compaixão.
Ela ficou a saber que a intimidade entre eles tinha prosseguido após o casamento do Sr. Elliot, tinham continuado a andar juntos como antes, e o Sr. Elliot tinha induzido o amigo a efetuar despesas muito para além das suas posses. A Sra. Smith não queria atribuir quaisquer culpas a si própria e teve o cuidado de não responsabilizar o marido, mas Anne percebeu que os seus rendimentos nunca tinham estado de acordo com o seu estilo de vida e que, desde o início, houvera muita extravagância geral e conjunta.
Pela descrição da mulher, Anne concluiu que o Sr. Smith tinha sido um homem afetuoso, de temperamento dócil, hábitos descuidados e fraca inteligência, muito mais simpático do que o seu amigo e muito diferente dele, deixando-se levar por ele e sendo, provavelmente, desprezado por ele. O Sr. Elliot. Que o casamento elevara a grande riqueza, pretendia satisfazer todos os prazeres e vaidades possíveis que não o comprometessem, pois, apesar da vida que levava, tornara-se um homem prudente. Começando a ver-se rico, tal como o seu amigo deveria descobrir que estava pobre, não pareceu sentir a mínima preocupação pela situação financeira do amigo, mas, pelo contrário, sugerira e encorajara despesas que só poderiam terminar em ruína. E assim, os Smith ficaram realmente arruinados.
O marido morrera mesmo a tempo de lhe ser poupado o conhecimento total da situação. Eles já tinham experimentado embaraços suficientes para porém à prova a amizade dos seus amigos e para demonstrar que era preferível não testar a do Sr. Elliot; mas foi só depois da sua morte que o estado deplorável dos seus negócios foi totalmente conhecido. Com uma confiança na estima do Sr. Elliot mais honrosa para os seus sentimentos do que para a sua inteligência, o Sr. Smith nomeara-o seu executor testamentário; mas o Sr. Elliot não aceitou, e as dificuldades e problemas que esta recusa lançou sobre ela, para além do inevitável sofrimento causado pela viuvez, tinham sido de tal ordem que não podiam ser relatados sem uma enorme angústia, nem escutados sem a correspondente indignação.
Anne leu algumas cartas dele desta época, respostas a um pedido urgente da Sra. Smith, e todas elas transmitiam a mesma resolução firme de não se envolver em problemas infrutíferos, e, sob uma delicadeza fria, transparecia a mesma dura indiferença a todos os males que a mesma pudesse fazer recair sobre ela. Era um caso terrível de ingratidão e desumanidade, e Anne sentiu que, nalguns momentos, nenhum crime flagrante poderia ter sido pior.
Teve muito para escutar; todos os pormenores de cenas tristes do passado, todas as minúcias de desgraças sucessivas a que conversas anteriores tinham meramente aludido foram agora contadas com uma complacência natural. Anne compreendia perfeitamente o intenso alívio da amiga e sentiu ainda mais admiração pela compostura do estado de espírito habitual da amiga.
Havia uma circunstância na história dos seus agravos que era particularmente irritante. Ela tinha razão para acreditar que uma propriedade que o marido possuía nas Indias Ocidentais, que há muitos anos estava sob uma espécie de hipoteca como pagamento dos seus próprios encargos, poderia ser resgatada se fossem tomadas as medidas apropriadas; e esta propriedade, embora não fosse grande, seria suficiente para a tornar relativamente rica. Mas não havia ninguém para tratar do assunto. O Sr. Elliot recusara-se a fazer qualquer coisa, e ela própria não podia fazer nada, por causa da incapacidade, quer de se mover devido ao seu estado de fraqueza física quer de contratar outra pessoa devido à falta de dinheiro. Ela não possuía familiares que a ajudassem sequer com os seus conselhos, e não tinha dinheiro para pagar assistência jurídica.
Isto veio agravar cruelmente a sua situação financeira.
Saber que podia estar em melhores circunstâncias, recear que a demora pudesse enfraquecer os seus direitos quando bastava um pequeno esforço, feito como devia ser, tudo isso era difícil de suportar!
Fora neste ponto que ela tivera a esperança de conseguir os bons ofícios de Anne junto do Sr. Elliot. Anteriormente, perante a perspectiva do seu casamento, ela receara perder a amiga; mas quando lhe asseguraram que ele não fizera qualquer tentativa nesse sentido, uma vez que nem sequer sabia que ela estava em Bath, veio-lhe imediatamente à idéia que algo poderia ser feito a seu favor graças à influência da mulher que ele amava; ela preparara-se imediatamente para interessar os sentimentos de Anne pelo assunto, tanto quanto lhe permitia o cuidado necessário para não afetar o caráter do Sr. Elliot; o desmentido de Anne do suposto noivado alterara tudo; e, embora isso tenha afastado dela a nova esperança de conseguir alcançar o objetivo que maior ansiedade lhe causava, deixava-lhe, pelo menos, a consolação de conseguir contar a história à sua maneira.
Depois de ter escutado a descrição minuciosa do caráter do Sr. Elliot, Anne não conseguiu deixar de expressar alguma surpresa pelo fato de a Sra. Smith ter falado tão favoravelmente dele no início da sua conversa. Ela parecera recomendá-lo e elogiá-lo.
- Minha querida - foi a resposta da Sra. Smith -, não havia nada a fazer. Eu considerei o vosso casamento como certo, embora ele não tivesse ainda feito o pedido oficial e, se ele fosse o seu marido, eu não podia ter dito a verdade sobre ele. O meu coração sangrava por si enquanto eu falava de felicidade.
Mas, no entanto, ele é sensato, é amável, e, com uma mulher como Anne, não era uma situação absolutamente desesperada. Ele foi muito cruel para a primeira mulher. Foram muito infelizes. Mas ela era demasiado ignorante e irrefletida para lhe merecer respeito, e ele nunca a tinha amado. Eu tinha esperança de que, com Anne, as coisas fossem diferentes.
Anne reconheceu, no seu íntimo, que houvera a possibilidade de a convencerem a casar com ele, e estremeceu ao pensar na infelicidade que se seguiria. Era possível que Lady Russell a tivesse convencido! E, partindo dessa suposição, qual das duas seria mais infeliz quando, tarde de mais, o tempo tudo revelasse? Era muito desejável que Lady Russell não continuasse enganada; e uma das últimas resoluções deste importante encontro, que durou a maior parte da manhã, foi que Anne tinha toda a liberdade de comunicar à amiga tudo o que estava relacionado com a Sra. Smith e que envolvesse a conduta dele.
Anne foi para casa meditar em tudo o que ouvira. Numa questão, sentiu-se aliviada por ter ficado a conhecer melhor o Sr. Elliot. Já não lhe devia qualquer espécie de ternura. Ele era, ao contrário do comandante Wentworth, um intruso pouco desejado; ela refletia, com sensações categóricas, resolutas, sobre os malefícios das duas atenções na noite anterior, o dano irreparável que ele podia ter provocado. A pena que sentira dele desaparecera por completo. Mas este era o único motivo de alívio. Em todos os outros aspectos, olhando em volta ou perscrutando o futuro, ela viu mais causas para receio e apreensão.
Estava preocupada com a desilusão e a dor que Lady Russell iria sentir, as mortificações suspensas sobre as cabeças do pai e da irmã, e sentiu a angústia de prever muitos malefícios, sem saber como evitá-los. Sentiu-se muito grata por o conhecer bem. Nunca achara que tinha direito a uma recompensa por não ter desprezado uma velha amiga como a Sra. Smith, mas aqui estava uma verdadeira recompensa! A Sra. Smith conseguira contar-lhe o que ninguém mais poderia saber. Se as revelações pudessem ser divulgadas por toda a família! Mas esta era uma idéia louca. Ela precisava de falar com Lady Russell, contar-lhe, pedir-lhe conselhos; e, tendo feito o mais que podia, esperar os acontecimentos com a maior calma possível; e, afinal de contas, onde lhe faltava maior tranquilidade era naquele recanto da mente que não podia abrir a Lady Russell, naquele fluxo de ansiedades e receios que tinha de guardar só para si.
Quando chegou a casa, soube que, conforme tencionara, tinha evitado encontrar-se com o Sr. Elliot; ele viera fazer-lhe uma visita matinal; mas, mal acabara de se congratular, sentindo-se segura até ao dia seguinte, ouviu dizer que ele voltaria ao serão.
- Não fazia a menor intenção de o convidar - disse Elizabeth com uma indiferença afetada -, mas ele deu tanto a entender que queria ser convidado; pelo menos, é o que a Sra. Clay diz.
- É verdade. Nunca vi ninguém mostrar tanto empenho em ser convidado. Pobre homem! Tive realmente pena dele, pois a sua irmã, Menina Anne, tem o coração empedernido e parece apostada em ser cruel.
- Oh! - exclamou Elizabeth. - Já estou demasiado habituada ao jogo deles para me deixar logo vencer pelas alusões de um cavalheiro. No entanto, quando vi como ele lamentava profundamente não ter encontrado o meu pai esta manhã, cedi imediatamente, pois não iria perder uma oportunidade de o aproximar de Sir Walter. Eles lucram tanto com a companhia um do outro! Comportam-se ambos de um modo tão amável! O Sr. Elliot demonstra tanto respeito!
- É encantador - exclamou a Sra. Clay, não se atrevendo, contudo, a volver o olhar para Anne. - Exatamente como pai e filho! Minha querida Menina Elliot, não posso dizer pai e filho?
- Oh! Eu não levanto obstáculos às palavras de ninguém. Se é essa a sua opinião...! Mas juro que ainda não reparei que as suas atenções fossem para além das dos outros homens.
- Minha querida Menina Elliot! - exclamou a Sra. Clay erguendo as mãos e os olhos e afundando o resto do seu espanto num silêncio conveniente.
- Bem, minha querida Penélope, não precisa de ficar tão alarmada por causa dele. Eu convidei-o, como sabe, despedi-me dele com um sorriso. Quando soube que, na realidade, ele vai passar todo o dia de amanhã com os seus amigos de Thornberry Park, tive pena dele.
Anne admirou a boa representação da amiga, que era capaz de manifestar tanto prazer na antecipação e na própria chegada da pessoa cuja presença devia, de fato, estar a interferir com o seu principal objetivo. Era impossível que a Sra. Clay não sentisse se não ódio pelo Sr. Elliot; e, no entanto, ela conseguia assumir o ar mais obsequioso e plácido do mundo e parecia contentar-se com o reduzido privilégio de se dedicar a Sir Walter apenas metade do que, de outro modo, faria.
Para Anne, foi muito penoso ver o Sr. Elliot entrar na sala; custou-lhe ainda mais quando ele se aproximou dela e lhe falou. Já antes ela costumava sentir que ele não era completamente sincero, mas agora ela via insinceridade em tudo. A sua deferência atenciosa para com o pai, contrastada com a linguagem anterior, era odiosa; e quando pensava na maneira cruel como ele se comportara para com a Sra. Smith, tornava-se difícil suportar os seus sorrisos e amabilidades atuais, ou a expressão dos seus bons sentimentos artificiais.
Ela tencionava evitar qualquer alteração no seu comportamento que provocasse um protesto por parte dele. Ela queria muito evitar quaisquer perguntas ou causar escândalo; mas decidira mostrar-se tão fria quanto a sua relação de parentesco permitia, e recuar, o mais suavemente possível, os poucos passos de intimidade desnecessária que lhe fora gradualmente concedendo. Assim, ela mostrou-se mais reservada e mais distante do que fora na noite anterior. Ele quis voltar a espicaçar a sua curiosidade acerca de como e quando ele poderia ter ouvido elogiá-la anteriormente; e desejava muito que ela lhe perguntasse; mas o encanto tinha-se quebrado; ele descobriu que, para estimular a vaidade da sua modesta prima, eram necessários o calor e a animação de uma sala pública; percebeu, pelo menos, com as tentativas a que se aventurou no meio das solicitações demasiado imperiosas dos outros, que não era possível fazê-lo nesse momento.
Ele mal sabia que era um assunto que agia, agora, exatamente contra os seus interesses, pois dirigia os pensamentos dela para as partes menos desculpáveis da sua conduta.
Ela sentiu alguma satisfação em saber que ele iria realmente ausentar-se de Bath na manhã seguinte, saindo cedo, e que estaria fora durante quase dois dias. Ele foi convidado de novo para vir a Camden Place na noite do seu regresso; mas, desde quinta-feira até sábado, a sua ausência era certa. Já era bastante desagradável ter uma Sra. Clay constantemente à sua frente; mas ter um hipócrita ainda maior no grupo parecia ser a destruição de tudo o que se assemelhava à tranqüilidade e ao conforto. Era muito humilhante pensar no engano constante em que o pai e Elizabeth viviam; considerar as várias fontes de mortificação que lhes estavam preparadas! O egoísmo da Sra. Clay não era tão complicado nem revoltante como o dele; e Anne teria transigido imediatamente com respeito ao casamento, com todos os seus inconvenientes, para se libertar das subtilezas do Sr. Elliot, ao tentar impedi-lo.
Na sexta-feira de manhã, ela tencionava ir visitar Lady Russell cedo, a fim de proceder à necessária comunicação; e teria saído imediatamente a seguir ao pequeno-almoço se a Sra. Clay não fosse também sair com o obsequioso objetivo de poupar incômodos à irmã, pelo que decidiu esperar até já não correr o perigo de se encontrar em tal companhia. Assim, despediu-se da Sra. Clay e aguardou um pouco antes de começar a falar em passar a manhã em rivers Street.
- Muito bem - disse Elizabeth -, não tenho nada a enviar-lhe se não saudades. Oh! Já agora, leva aquele livro enfadonho que ela insistiu em me emprestar, para fingir que já o li. Eu não posso passar a vida a perder tempo com todos os novos poemas e documentos da nação que aparecem. Lady Russell aborrece-me com todas as suas novas publicações. Não precisas de lhe dizer, mas achei que o vestido dela na outra noite era horroroso. Eu costumava pensar que ela tinha algum gosto para se vestir, mas tive vergonha dela no concerto. Tinha um ar tão formal e artificial! E senta-se tão direita na cadeira! As minhas saudades, claro.
- E as minhas - acrescentou Sir Walter. - Os meus melhores cumprimentos. E podes dizer-lhe que tenciono ir visitá-la em breve. Transmite-lhe uma mensagem delicada. Mas só vou deixar o cartão de visita. As visitas matinais nunca são oportunas para uma mulher da sua idade que se arranja tão pouco. Se ela usasse rouge, não precisaria de recear que a vissem; mas, na última vez que a visitei, vi que mandou baixar as persianas imediatamente.
Enquanto o pai falava, bateram à porta. Quem seria? Anne, recordando-se das anteriores visitas inesperadas do Sr. Elliot, julgaria que seria ele, se não soubesse que ele se encontrava a sete milhas de distância.
Após o período de expectativa habitual, ouviram-se os sons de passos habituais, e o Sr. e a Sra. Musgrove – foram introduzidos na sala. A emoção mais forte provocada pelo seu aparecimento foi a surpresa; mas Anne ficou verdadeiramente satisfeita de os ver, e os outros não ficaram tão aborrecidos que não conseguissem pôr um ar decente de boas-vindas. Mas assim que ficou claro que estes, os seus familiares mais próximos, não tinham vindo com a intenção de se instalarem naquela casa, Sir Walter e Elizabeth conseguiram ser mais cordiais e fazer muito bem as honras da casa.
Tinham vindo passar uns dias a Bath com a Sra. Musgrove, estavam hospedados no Veado Branco. Isto foi comunicado imediatamente; mas só depois de Sir Walter e Elizabeth conduzirem Mary para a outra sala de visitas, para se deliciarem com a sua admiração, é que Anne conseguiu extrair de Charles a razão exata da sua vinda, ou uma explicação para alguns sorrisos de Mary que pareciam sugerir um objetivo especial, bem como para o aparente mistério acerca de quem fazia parte do seu grupo. Ficou então a saber que o mesmo era formado pela Sra. Musgrove, Henrietta e o comandante Harville, além de eles os dois. Ele fez-lhe uma descrição simples e inteligível do que acontecera; uma narrativa em que ela viu muito do procedimento característico dos Musgrove. O plano recebera o seu primeiro impulso com o fato de o comandante Harville precisar de vir a Bath numa viagem de negócios. Ele começara a falar nisso há uma semana; e, como não tinha nada que fazer, uma vez que a época da caça tinha terminado, Charles propusera-se vir com ele; a Sra. Harville parecera gostar muito da idéia, que era vantajosa para o marido; mas Mary não podia suportar a idéia de ficar sozinha e mostrou-se tão infeliz por causa disso que, durante um dia ou dois, a viagem pareceu ficar suspensa, ou posta de lado.
Mas, nessa altura, o plano foi adotado pelo pai e pela mãe. A mãe tinha alguns velhos amigos em Bath que desejava visitar; pensou-se que seria uma boa oportunidade para Henrietta comprar o enxoval para si e para a irmã; e, em resumo, acabara por se formar um grupo dirigido pela mãe, pelo que tudo se tornara simples e confortável para o comandante Harville; e ele e Mary foram incluídos, com vantagens para todos.
Tinham chegado já tarde na noite anterior. A Sra. Harville, os filhos e o comandante Benwick tinham ficado em Uppercross com o Sr. Musgrove e Louisa. A única surpresa de Anne foi que o assunto já estivesse suficientemente adiantado para se falar no enxoval de Henrietta: ela imaginara que existiam dificuldades materiais que impediriam que o casamento se realizasse em breve; mas soube por Charles que, muito recentemente (desde a última carta que Mary lhe escrevera), um amigo pedira a Charles Hayter que tomasse conta de um lugar destinado a um jovem que só poderia ocupá-lo daí a muitos anos; e que, em vista deste rendimento atual e quase com a certeza de algo mais sólido muito antes do fim do prazo em questão, as duas famílias tinham consentido em satisfazer os desejos dos jovens, e o seu casamento deveria realizar-se dentro de alguns meses, tão brevemente quanto o de Louisa.
- E é realmente um bom cargo - acrescentou Charles -, apenas a vinte cinco milhas de Uppercross e numa linda região, uma belíssima parte de Dorsetshire. No centro de algumas das mais belas contadas do reino, rodeado por três grandes proprietários, qual deles o mais cuidadoso e zeloso; e para dois deles, pelo menos, Charles Hayter pode obter uma recomendação especial. Não que ele lhes dê o merecido valor comentou ele -, Charles não gosta muito da caça. É o seu pior defeito.
- Fico muito contente - exclamou Anne -, particularmente contente, por isto ter acontecido; e que duas irmãs, ambas merecedoras e que foram sempre tão amigas, não vejam as agradáveis perspectivas de uma diminuir as da outra; e que gozem de igual prosperidade e conforto. Espero que os teus pais se sintam muito felizes em relação a ambas.
- Oh!, sim. O meu pai não se importaria que os cavalheiros fossem mais ricos, mas não encontra nenhum outro defeito neles. Compreendes que gastar assim dinheiro, casar duas filhas ao mesmo tempo não pode ser muito agradável, e ele vai ter de poupar em muitas coisas. No entanto, não quero dizer que elas não tenham esse direito. É justo que recebam os seus dotes como filhas; e certamente que, para mim, ele sempre tem sido um pai muito generoso e liberal. Mary não aprova muito o casamento de Henrietta. Nunca o fez, sabes. Mas ela não está a ser justa para com ele, nem considera Winthrop como esta merece. Eu não consigo fazê-la compreender o valor da propriedade. É um casamento bastante bom, nos tempos que correm; e eu sempre gostei de Charles Hayter, não vou mudar de opinião agora.
- Uns pais excelentes como o Sr. e a Sra. Musgrove, exclamou Anne - devem sentir-se felizes com o casamento das filhas. Tenho a certeza de que tudo farão para que elas sejam felizes. Que sorte para as jovens encontrarem-se em tais mãos! Os teus pais parecem totalmente isentos daqueles sentimentos ambiciosos que têm conduzido a tantos desvarios e infortúnios, tanto de jovens como de velhos! Espero que Louisa já se encontre completamente restabelecida.
Ele respondeu num modo um tanto hesitante:
- Sim, creio que sim... bastante restabelecida; mas ela está mudada: já não corre nem salta de um lado para o outro; não ri nem dança; está muito diferente. Se, por acaso, fechamos a porta com um pouco mais de força, ela estremece e torce-se como uma salamandra na água; e Benwick senta-se a seu lado, a ler versos ou a falar-lhe em voz baixa todo o dia.
Anne não conseguiu deixar de rir.
- Isso não é muito ao teu gosto, eu sei - disse ela. – Mas eu penso que ele é um jovem excelente.
- Certamente que é.. Ninguém duvida; e espero que não penses que eu sou tão mesquinho que queira que todos os homens possuam os mesmos objetivos e prazeres que eu. Eu gosto muito de Benwick; e, quando se consegue que ele fale, ele tem muito para dizer. A leitura não lhe fez mal nenhum, pois, além de ler, ele também lutou. É um sujeito corajoso. Fiquei a conhecê-lo melhor na segunda-feira passada do que em todo o tempo até então. Fizemos uma famosa investida de caça às ratazanas toda a manhã, no celeiro grande do meu pai, e ele fez a sua parte tão bem que passei a gostar mais dele.
Nesta altura, foram interrompidos pela necessidade absoluta de Charles se juntar aos outros para admirar os espelhos e as porcelanas; mas Anne tinha ouvido o suficiente para conhecer a atual situação em Uppercross e para se alegrar com a sua felicidade; e, embora suspirasse, este suspiro não continha qualquer má vontade ou inveja. Certamente que gostaria de partilhar a sua ventura, se pudesse, mas não desejava diminuir a deles.
A visita decorreu muito bem. Mary encontrava-se muito bem-disposta, encantada com a alegria e a mudança; e estava tão satisfeita com a viagem na carruagem da sogra com quatro cavalos e com o fato de estar completamente independente de Camden Place, que se encontrava exatamente com a disposição certa para admirar tudo como devia e para se aperceber imediatamente de todas as vantagens da casa quando estas lhe foram descritas em pormenor. Não tinha nada a pedir ao pai nem à irmã, e considerou-se mais importante perante os seus belos salões.
Elizabeth esteve, por um breve espaço de tempo, bastante preocupada. Ela achava que devia convidar a Sra. Musgrove e todo o seu grupo para jantar com eles, mas não conseguia suportar que aqueles que tinham sido sempre tão inferiores aos Elliot de Kellynch presenciassem a diferença no estilo de vida e a redução de criados que um jantar denunciaria. Era uma luta entre a cortesia e a vaidade; mas a vaidade levou a melhor, e Elizabeth voltou a sentir-se feliz. Estas foram as suas reflexões interiores: Noções antiquadas... hospitalidade provinciana... "nós não oferecemos jantares... poucas pessoas em Bath o fazem... Lady Alicia nunca o faz; nem sequer convidou a família da irmã, embora estivessem aqui um mês; acho que seria muito inconveniente para a Sra. Musgrove... ficaria muito longe do seu caminho. Tenho a certeza de que ela prefere não vir... não se pode sentir à vontade conosco. Convidá-los-ei a todos para um serão; isso será muito melhor... será uma novidade e um prazer. Eles nunca viram dois salões assim. Ficarão encantados por virem amanhã à noite. Será uma reunião normal... pequena, mas muito elegante." E isto satisfez Elizabeth; e, quando o convite foi feito aos dois presentes e estendido aos ausentes, Mary também ficou completamente satisfeita. Foi manifestado particular interesse em que conhecesse o Sr. Elliot e que fosse apresentada a Lady Dalrymple e à Menina Carteret, que, felizmente,já tinham sido convidadas; e não lhe podia ter sido concedida uma atenção mais gratificante.
A Menina Elliot teria a honra de visitar a Sra. Musgrove no decurso da manhã, e Anne saiu com Charles e Mary para ir visitar Henrietta imediatamente. O seu plano de ir conversar com Lady Russell teve de ser adiado.
Passaram os três em rivers Street por alguns minutos; mas Anne convenceu-se de que o adiamento por um dia da comunicação desejada não teria consequências de maior, e apressou-se a dirigir-se ao Veado Branco, para voltar a ver as amigas e companheiras do Outono anterior, com uma ansiedade e ternura que inúmeras recordações ajudavam a fomentar. Encontrou a Sra. Musgrove e a filha em casa, sozinhas, e Anne foi recebida calorosamente por ambas. Henrietta, com as perspectivas do seu futuro recentemente melhorados e a sua felicidade recente, estava cheia de atenções e cuidados para com todos aqueles de quem nunca gostara antes; e a afeição por Mrs. Musgrove tinha sido ganha pela sua utilidade quando se encontravam em dificuldades. Anne foi convidada para vir todos os dias e a qualquer hora ou, por outra, reclamaram-na como fazendo parte da família; e, em troca, começou, como era seu hábito, a prestar-lhes pequenos serviços e a ajudá-las; quando Charles as deixou, ficou a ouvir a Sra. Musgrove a contar a história de Louisa, e Henrietta a contar a sua própria história, a dar a sua opinião e a recomendar lojas; nos intervalos, ajudava Mary em tudo o que esta lhe pedia, desde mudar uma fita até acertar-lhe as contas, desde procurar-lhe as chaves e pôr as bugigangas em ordem, até tentar convencê-la de que ninguém a queria ofender; o que Mary não conseguia deixar de imaginar durante alguns momentos, embora estivesse distraída à janela a observar a entrada da sala das termas. Era de esperar uma manhã de enorme confusão. Um grupo grande num hotel provoca sempre uma cena de burburinho e agitação.
De cinco em cinco minutos, aparecia um bilhete, um embrulho. Anne ainda não estava lá há meia hora quando a sala de jantar, espaçosa como era, parecia já quase repleta. Um grupo de velhos amigos estava sentado em redor da Sra. Musgrove, e Charles voltou com os comandantes Harville e Wentworth. O aparecimento deste último não podia deixar de constituir a surpresa do momento. Ela nem se lembrara de que a chegada dos amigos comuns os voltaria a aproximar. O seu último encontro tinha sido extremamente importante, na medida em que ficara a conhecer os sentimentos dele; ela adquirira uma deliciosa convicção, mas receou, pela sua aparência, que ele mantivesse a mesma idéia infeliz que o levara a sair apressadamente da sala do concerto.
Ele não parecia querer aproximar-se dela o suficiente para conversarem. Tentou manter-se calma e deixar que as coisas seguissem o seu rumo; esforçou-se por não se esquecer deste argumento, cheio de confiança racional: Certamente, se existir um afeto constante de ambos os lados, os nossos corações acabarão por se entender dentro de pouco tempo. Não somos crianças para nos irritarmos caprichosamente, deixando-nos enganar por inadvertências sucessivas e brincando levianamente com a nossa própria felicidade. - Alguns minutos depois, porém, ela sentiu que estarem juntos nas presentes circunstâncias apenas os poderia expor a inadvertências e mal-entendidos do tipo mais prejudicial.
- Anne - exclamou Mary, ainda à janela -, está ali a Sra. Clay, tenho a certeza, debaixo das colunas, acompanhada por um cavalheiro. Vi-os virar a esquina, vindos de Bath Street. Pareciam estar embrenhados na conversa. Quem é ele? Anda cá, diz-me. Deus do Céu! Eu lembro-me. É o Sr. Elliot em pessoa.
- Não - exclamou Anne rapidamente -, não pode ser o Sr. Elliot. Ele deveria sair de Bath esta manhã e só regressa amanhã.
Enquanto falava, sentiu o comandante Wentworth a fitá-la, e a consciência desse fato aborreceu-a e embaraçou-a, e ela arrependeu-se de ter falado tanto, embora de uma forma tão simples. Mary, magoada por poderem pensar que ela não conhecia o seu próprio primo, começou a falar calorosamente sobre os traços de família e a protestar ainda mais vigorosamente que era o Sr. Elliot, voltando a chamar Anne para que fosse ver com os seus próprios olhos; mas Anne não tencionava mover-se, e tentou mostrar-se indiferente e desinteressada. Voltou a sentir-se aborrecida, porém, ao aperceber-se dos sorrisos e olhares maliciosos trocados entre duas ou três senhoras visitantes, como se julgassem na posse de um segredo. Era evidente que o boato a seu respeito se tinha espalhado; e sucedeu-se uma breve pausa, que pareceu garantir que o mesmo se iria espalhar ainda mais.
- Anda cá, Anne - exclamou Mary -, anda ver. Se não vieres depressa, já não vens a tempo. Eles estão a despedir-se, estão a apertar as mãos. Ele está a afastar-se. Não conhecer o Sr. Elliot, com franqueza! Tu pareces ter-te esquecido completamente de Lyme.
Para tranquilizar Mary e talvez para disfarçar o seu próprio embaraço, Anne dirigiu-se lentamente à janela. Chegou mesmo a tempo de se certificar de que era realmente o Sr. Elliot (algo em que não acreditara), antes de ele desaparecer por um lado, ao mesmo tempo que a Sra. Clay se afastava rapidamente por outro; e, dominando a surpresa que não podia deixar de sentir ao ver duas pessoas de interesses tão totalmente opostos parecerem conversar tão amigavelmente, ela disse calmamente:
- Sim, sem dúvida que é o Sr. Elliot. Suponho que ele deve ter alterado a hora da partida... ou eu posso ter-me enganado, não sei.
E ela voltou para a sua cadeira, recomposta, com a confortável esperança de se ter saído bem. Os visitantes despediram-se, e Charles, depois de os acompanhar delicadamente à porta, fez-lhes uma careta, insultando-os por terem vindo, e começou a falar:
- Bem, mãe, fiz uma coisa por si de que vai gostar. Fui ao teatro e comprei um camarote para amanhã à noite. Não sou um bom rapaz? Eu sei como gosta de teatro; e existe espaço para todos nós. Comporta nove pessoas. E convidei o comandante Wentworth. Tenho a certeza de que Anne não se importará de nos acompanhar. Todos nós gostamos de teatro. Não fiz bem, mãe?
A Sra. Musgrove ia começar a exprimir, bem-humoradamente, a sua perfeita concordância com a ida ao teatro, se Henrietta e todos os outros quisessem ir, quando Mary a interrompeu, exclamando ansiosamente:
- Deus do Céu, Charles! Como podes pensar numa coisa dessas? Comprar um camarote para amanhã à noite! Esqueceste-te de que fomos convidados para Camden Place amanhã à noite? E que fomos convidados muito especialmente para conhecermos Lady Dalrymple e a filha, e o Sr. Elliot, os nossos parentes mais importantes, de propósito para lhes sermos apresentados? Como te pudeste esquecer?
- Ah! Ah! - respondeu Charles -, que é uma reunião ao serão? Não merece que nos lembremos dela. Eu acho que o teu pai, se quisesse ver-nos, podia convidar-nos para jantar. Tu podes fazer o que quiseres, mas eu vou ao teatro.
- Oh! Charles, será horrível se o fizeres! Prometeste ir!
- Não, não prometi. Só esbocei um sorriso, curvei-me e disse a palavra – feliz- . Não fiz qualquer promessa.
- Mas tens de ir, Charles. Seria imperdoável faltar. Fomos convidados de propósito para sermos apresentados. Houve sempre uma grande ligação entre os Dalrymples e nós. Nunca aconteceu nada de parte a parte que não fosse comunicado imediatamente. Somos familiares muito próximos, sabes?, e o Sr. Elliot também... que devias particularmente conhecer! O Sr. Elliot merece toda a atenção. Pensa bem, o herdeiro, o futuro representante da família.
- Não me fales em herdeiros e representantes – exclamou Charles. - Eu não sou daqueles que desprezam o poder reinante para se curvarem perante o sol-nascente. Se eu não vou por atenção ao teu pai, acho escandaloso ir por causa do seu herdeiro. Esta expressão desrespeitosa deu vida a Anne, que viu que o comandante Wentworth estava muito atento, olhando e escutando com toda a concentração, e que as últimas palavras desviaram os seus olhos perscrutadores de Charles para si própria.
Charles e Mary continuavam a falar no mesmo estilo; ele, meio sério, meio a brincar, mantendo o plano de ir ao teatro; e ela, invariavelmente séria, opondo-se-lhe calorosamente, não se esquecendo de dar a conhecer que, embora estivesse decidida a ir a Camden Place, se consideraria muito desconsiderada se fossem ao teatro sem ela. A Sra. Musgrove interrompeu:
- É melhor adiares, Charles. Charles, é melhor voltares lá e alterares o camarote para terça-feira. Seria uma pena ficarmos divididos, e perderíamos também a companhia da Menina Anne, se há uma reunião em casa do pai; e eu tenho a certeza de que nem eu nem Henrietta apreciaríamos a peça se a Menina Anne não fosse conosco. Anne sentiu-se verdadeiramente grata por tanta gentileza; e ainda mais pela oportunidade que lhe proporcionou de dizer com firmeza:
- Se dependesse apenas da minha vontade, minha senhora, a reunião em minha casa não constituiria o menor impedimento, a não ser por causa de Mary. Esse tipo de reunião não me dá qualquer prazer, e sentir-me-ia muito feliz por poder trocá-la por uma peça, sobretudo na sua companhia. Mas talvez seja melhor não o fazer.
Ela tinha falado; mas, quando acabou, tremia, consciente de que as suas palavras eram escutadas e não se atrevendo a observar o seu efeito. Pouco depois, todos concordaram que terça-feira seria o dia indicado. Apenas Charles se aproveitou da ocasião para arreliar a mulher, insistindo em que iria ao teatro no dia seguinte, mesmo que mais ninguém fosse.
O comandante Wentworth levantou-se do seu lugar e foi até à lareira; provavelmente para se afastar pouco depois e se aproximar, de um modo menos óbvio, de Anne.
- Ainda não se encontra em Bath há tempo suficiente – disse ele - para apreciar os seus serões locais.
- Oh, não! O seu caráter habitual não me interessa. Eu não gosto de jogar às cartas.
- Antigamente não gostava, eu sei. Não gostava de cartas; mas o tempo muda tanta coisa...
- Eu não mudei muito - exclamou Anne, calando-se imediatamente, com receio de ser mal interpretada.
Depois de esperar alguns momentos, ele disse, como se as palavras resultassem dos seus sentimentos:
- É realmente muito tempo! Oito anos e meio é muito tempo! Se ele teria dito mais alguma coisa era uma questão que ficaria entregue à imaginação de Anne para ela refletir numa hora mais tranqüila; pois, enquanto ainda escutava o som das suas palavras, foi despertada para outros assuntos por Henrietta, ansiosa por aproveitar aquele intervalo para saírem e incitando os companheiros à não perderem tempo, antes que aparecesse mais alguém. Viram-se - obrigados a mover-se. Anne disse que estava pronta e tentou parecê-lo; mas sentia que, se Henrietta soubesse com que pena e relutância ela se levantou da cadeira e saiu da sala, ela teria encontrado, nos seus próprios sentimentos pelo primo e na certeza do seu afeto, razão para ter pena dela.
Os seus preparativos, porém, tiveram de ser suspensos. Ouviu-se um barulho alarmante; apareceram outras visitas, e a porta foi aberta de par em par para Sir Walter e a Menina Elliot, cuja entrada pareceu gelar toda a gente.
Anne sentiu uma opressão imediata e, para onde quer que olhasse, via sintomas idênticos. O bem-estar, a liberdade, a alegria da sala desapareceram, substituídos por uma compostura fria, um silêncio voluntário ou conversas insípidas, condizentes com a elegância gélida do pai e da irmã. Que mortificação sentir que assim era!
O seu olhar ansioso ficou satisfeito num ponto. Ambos dera sinal de reconhecer o comandante Wentworth, Elizabeth mais graciosamente do que antes. Ela até se dirigiu uma vez a ele, olhou para ele mais de uma vez. Elizabeth estava, de fato, a refletir sobre um ponto importante. O que se seguiu explicou-o. Depois de perder alguns minutos a dizer as futilidades necessárias, ela começou a fazer o convite que iria incluir os restantes Musgrove.
- Amanhã à noite, para conhecer alguns amigos. Nada de muito formal.
Foi tudo dito com muita gentileza, e os cartões - A Menina Elliot recebe em casa - que mandara fazer para si própria foram colocados em cima da mesa com um sorriso cortês que os abrangeu a todos, e um sorriso e um cartão dirigidos especialmente ao comandante Wentworth. A verdade era que Elizabeth estava já há tempo suficiente em Bath para compreender a importância de um homem com um ar e um aspecto como os dele. O passado já não contava. O presente era que o comandante Wentworth ficaria muito bem na sua sala de visitas.
Depois de o cartão ter sido entregue, Sir Walter e Elizabeth levantaram-se e desapareceram. A interrupção fora curta, mas de efeito grave; e, quando a porta se fechou atrás deles, o à-vontade e a animação voltaram à maior parte dos que ficaram, mas não a Anne. Ela só conseguia pensar no convite que tinha presenciado com tamanho espanto; e no modo como ele fora recebido, um ar de significado dúbio, mais de surpresa do que de prazer, mais de delicado agradecimento do que de aceitação.
Ela conhecia-o; viu o desdém nos seus olhos, e não se atrevia a acreditar que ele decidira aceitar esta oferta como expiação pela insolência do passado. A sua animação desapareceu. Depois de eles saírem, ele ficou com o cartão na mão como se estivesse a refletir sobre ele.
- Imaginem, Elizabeth a incluir toda a gente! – murmurou Mary de um modo bem audível. - Não admira que o comandante Wentworth esteja encantado! Repara como ele não larga o cartão.
Anne encontrou-lhe o olhar, viu o seu rosto corar e a boca formar, momentaneamente, uma expressão de desprezo, e voltou-se para não ver nem ouvir mais nada que a atormentasse. O grupo separou-se. Os cavalheiros tinham as suas próprias ocupações, as senhoras foram tratar dos seus assuntos e não voltaram a encontrar-se enquanto Anne esteve na sua companhia.
Foi-lhe pedido insistentemente que voltasse para almoçar e passasse com eles o resto do dia; mas a sua disposição tinha sido posta tanto à prova que, de momento, ela se sentia incapaz de se mover e só tinha vontade de ficar em casa, onde sabia poder guardar o silêncio que quisesse. Prometendo passar com eles toda a manhã do dia seguinte, encerrou as fadigas da presente com um passeio fatigante até Camden Place, onde passou quase todo o serão a escutar os afadigados preparativos de Elizabeth e da Sra. Clay para a reunião do dia seguinte, a freqüente enumeração das pessoas convidadas, os pormenores, constantemente relatados, de todos os embelezamentos que a tornariam a mais elegante do seu gênero em Bath, ao mesmo tempo que se atormentava em segredo com a incessante dúvida sobre se o comandante Wentworth viria ou não. Elas estavam seguras de que ele viria, mas, para ela, era uma interrogação insistente que não conseguia acalmar por mais de cinco minutos. De um modo geral, pensava que ele não viria, porque, de um modo geral, pensava que ele devia vir; mas era um caso que ela não conseguia conceber como um mero ato de dever ou cortesia, com tanta segurança que pudesse inevitavelmente desafiar as sugestões de sentimentos bem opostos.
Apenas despertou das meditações sombrias desta agitação inquieta para dizer à Sra. Clay que ela fora vista com o Sr. Elliot três horas depois das que se supunham ter ele saído de Bath; como esperara em vão que ela própria se referisse ao encontro, decidiu mencioná-lo e, enquanto falava, pareceu-lhe ver uma expressão de culpa no rosto da Sra. Clay. Foi uma sombra passageira, desapareceu num instante, mas Anne julgou perceber que ela, devido querer dá uma complicação dos estratagemas mútuos quer à autoridade dominadora dele, fora obrigada a escutar, possivelmente durante meia hora, os seus sermões e restrições a respeito dos seus desígnios sobre Sir Walter.
Ela exclamou, porém, com uma imitação tolerável de naturalidade:
- Oh! Sim, é verdade. Imagine, Menina Elliot, para grande surpresa minha, encontrei o Sr. Elliot em Bath Street! Nunca me senti mais admirada. Ele voltou atrás e foi comigo até à Pump Yard. Houve qualquer coisa que o impediu de partir para Thornberry, mas não me lembro o quê, pois eu estava com pressa e não podia prestar-lhe muita atenção, e só posso afirmar que ele estava decidido a não atrasar o regresso. Ele queria saber a que horas poderia vir amanhã. Só falava em amanhã. É evidente que eu também só penso nisso desde que cheguei a casa e tive conhecimento de todo o seu plano e tudo o que aconteceu, se não me teria esquecido tão completamente de que o tinha visto.
Tinha-se passado apenas um dia desde a conversa de Anne com a Sra. Smith; mas um assunto de maior interesse tinha surgido, e a conduta do Sr. Elliot afetava-a tão pouco agora, exceto pelos seus efeitos num determinado sentido, que lhe pareceu normal, na manhã seguinte, adiar a visita explanatória a Rivers Street. Ela prometera estar com os Musgrove desde o pequeno-almoço até ao almoço. Empenhara a sua palavra, e o caráter do Sr. Elliot, tal como a cabeça da sultana Scheherezade, viveria mais um dia.
Mas ela não conseguiu chegar pontualmente ao seu encontro; o tempo estava desagradável, e Anne ficara aborrecida com a chuva por causa da amiga e aborreceu-se ainda por causa de si própria, antes de conseguir pôr-se a caminho. Quando chegou ao Veado Branco e se dirigiu ao apartamento certo, descobriu que nem chegara a tempo nem fora a primeira a chegar.
O grupo que chegara antes de si era composto pela Sra. Musgrove, que conversava com a Sra. Croft, pelo comandante Harville com o comandante Wentworth, e ouviu imediatamente que Mary e Henrietta, demasiado impacientes para conseguirem esperar, tinham saído assim que parara de chover mas voltariam dentro em breve, e a Sra. Musgrove tinha recebido instruções categóricas para a manterem ali até elas regressarem.
Restou-lhe obedecer, sentar-se, exteriormente tranquüila, e sentiu-se mergulhar imediatamente em toda a agitação com que não contara antes do fim da manhã. Não houve qualquer demora ou perda de tempo. Sentiu-se de imediato profundamente feliz em tal infelicidade, ou na infelicidade de tal felicidade. Dois minutos depois de ela entrar na sala, o comandante Wentworth disse:
- Podíamos escrever a carta de que estávamos a falar, Harville, se me dessem os apetrechos. Os apetrechos estavam à mão, numa escrivaninha separada; ele dirigiu-se a ela e, quase voltando as costas a todos eles, ficou absorto na escrita. A Sra. Musgrove estava a contar à Sra. Croft a história do noivado da filha mais velha, e fazia-o naquele inconveniente tom de voz que, embora fingisse ser um murmúrio, se ouvia perfeitamente.
Anne sentiu que não tomava parte na conversa e, no entanto, como o comandante Harville parecia pensativo e com pouca vontade de conversar, ela não conseguiu deixar de ouvir alguns pormenores desagradáveis, tais como - o Sr. Musgrove e o meu irmão Hayter encontraram-se muitas vezes para conversar sobre o assunto; o que o meu irmão Hayter tinha dito um dia, o que o Sr. Musgrove propusera no seguinte, e o que ocorrera à minha irmã Hayter, e o que os jovens tinham querido, e aquilo com que eu, a princípio, disse que nunca concordaria, mas mais tarde fui persuadida a concordar - , e muito mais coisas no mesmo estilo de comunicação aberta, minúcias que, mesmo com gosto e delicadeza, a Sra. Musgrove nunca poderia dar, poderia ser altamente interessante para as partes mais interessadas. A Sra. Croft participava com muito humor, e, quando falava, fazia-o com grande sensatez.
Anne tinha esperança de que todos os cavalheiros estivessem demasiado entretidos para ouvir a conversa.
- E assim, minha senhora, considerando todas estas coisas ' - disse a Sra. Musgrove no seu potente murmúrio -, e embora pudéssemos desejar que as coisas se passassem de modo diferente, não achamos que fosse justo manter-nos de parte por mais tempo. Charles Hayter estava entusiasmadíssimo, e Henrietta estava quase na mesma; e, por isso, pensamos que era melhor que se casassem imediatamente e se arranjassem o melhor que pudessem, como tantos outros fizeram antes deles. De qualquer modo, disse eu, será melhor do que um noivado longo.
- Era isso precisamente o que eu ia dizer - exclamou a Sra. Croft. - Acho preferível os jovens casarem-se imediatamente com um rendimento pequeno e terem de lutar juntos contra algumas dificuldades a verem-se envolvidos num noivado longo. Eu sempre achei que um mútuo...
- Oh!, minha querida Sra. Croft- exclamou a Sra. Musgrove, incapaz de a deixar terminar a frase -, não existe nada tão abominável para os jovens como um noivado comprido. Sempre detestei isso para os meus filhos. Está tudo muito bem, costumo eu dizer, que os jovens se tornem noivos, desde que tenham a certeza de que poderão casar passados seis meses, ou mesmo doze, mas agora um noivado longo!
- Claro, querida senhora - disse a Sra. Croft-, ou um noivado incerto, um noivado que pode ser longo. Para já, sem se saber se na altura haverá condições para o casamento, parece-me muito desaconselhável e insensato e acho que todos os pais devem evitá-lo o mais que puderem.
Anne encontrou nestas palavras um interesse inesperado. Sentiu que se aplicavam a si própria, sentiu-se percorrida por um estremecimento nervoso, e, ao mesmo tempo que os seus olhos se voltavam instintivamente para a escrivaninha distante, a pena do comandante Wentworth deixou de se mover; ele ergueu a cabeça, fez uma pausa, escutou e olhou em volta no instante seguinte para lhe lançar um olhar fugaz e consciente. As duas senhoras continuaram a conversar, a reiterar as mesmas verdades conhecidas e a reforçá-las com exemplos dos efeitos adversos de procedimentos contrários que tinham observado, mas Anne não ouviu nada distintamente, era apenas um zumbido aos seus ouvidos, a sua mente era um turbilhão.
O comandante Harville, que, na verdade, não tinha ouvido nada, levantou-se e dirigiu-se a uma janela; ao ver que Anne parecia estar a olhar para ele, embora o fitasse apenas por distração, percebeu pouco a pouco que ele a convidava para se juntar a ele. Ele olhava-a com um sorriso e um pequeno movimento de cabeça que pareciam querer dizer: - Venha ter comigo, tenho algo para lhe dizer - ; e a amabilidade simples dos seus modos, que denotava os sentimentos de um conhecimento mais antigo do que de fato era, reforçou o convite. Ela levantou-se e dirigiu-se a ele. A janela junto da qual ele se encontrava estava situada no extremo da sala oposto ao local em que as senhoras estavam sentadas e, embora estivesse mais próxima da escrivaninha do comandante Wentworth, não estava muito perto desta. O rosto do comandante Harville readquiriu a expressão séria e pensativa que lhe era habitual.
- Olhe aqui - disse ele, desembrulhando um pacote que tinha na mão e mostrando uma pequena miniatura pintada -, sabe quem é?
- Com certeza, é o comandante Benwick.
- Sim, e também pode adivinhar a quem se destina. Mas acrescentou numa voz grave - não foi feita para ela. Menina Elliot, recorda-se de passearmos em Lyme e de nos afligirmos por causa dele? Mal pensava eu então... mas não importa. Esta miniatura foi feita no Cabo. Ele conheceu um jovem e inteligente artista alemão e, para cumprir uma promessa feita à minha pobre irmã, pousou para ele, e trazia o retrato para ela. E agora fui encarregado de o mandar emoldurar para outra! Pediu-me a mim! Mas a quem mais havia ele de se dirigir? Espero poder fazê-lo bem. Na verdade, estou satisfeito por passá-lo a outra pessoa. Ele vai encarregar-se do assunto, olhou na direção do comandante Wentworth -, ele está a escrever sobre isso neste momento. - E, com lábios trêmulos, resumiu o seu pensamento, acrescentou: - Pobre Fanny! Ela não o teria esquecido tão depressa!
- Não - respondeu Anne, numa voz baixa e sentida. - Isso eu acredito.
- Não estava na sua natureza. Ela adorava-o.
- Isso não estaria na natureza de qualquer mulher que amasse verdadeiramente.
O comandante Harville sorriu, como se quisesse dizer:
- Diz isso do seu sexo?
E ela respondeu, sorrindo também:
- Digo. Nós certamente que não vos esquecemos tão depressa como vocês nos esquecem. Isso é talvez o nosso destino, e não o nosso mérito. Não conseguimos evitá-lo. Nós vivemos em casa, sossegadas, confinadas e os nossos sentimentos perseguem-nos. Os homens são obrigados a ter uma atividade. Têm sempre uma profissão, interesses, negócios de um tipo ou de outro, para os levar imediatamente de volta para o mundo e a ocupação e a alteração constantes depressa diminuem qualquer depressão.
- Mesmo admitindo que a sua afirmação de que as ocupações mundanas dos homens conseguem tudo seja verdadeira, o que eu, porém, acho que não admito, isso não se aplica a Benwick. Ele não teve de exercer nenhuma atividade. A paz colocou-o em terra nesse preciso momento, e ele tem vivido conosco, no nosso pequeno círculo familiar, desde então.
- É verdade - disse Anne -, muito verdade, não me lembrava; mas que poderemos dizer agora, comandante Harville? Se a mudança não foi provocada por circunstâncias exteriores, então deve ter-lhe vindo do íntimo, deve ter sido a natureza, a natureza do homem, que agiu no caso do comandante Benwick.
- Não, não, não é a natureza do homem. Eu não vou concordar que esteja mais na natureza do homem do que no da mulher ser inconstante e esquecer os que amam ou amaram. Acredito no contrário. Eu acredito numa verdadeira analogia entre a nossa estrutura física e mental; e, como o nosso corpo é mais forte, os nossos sentimentos também o são, capazes de suportar as mais rudes privações e de sobreviver a terríveis tempestades.
- Os vossos sentimentos podem ser mais fortes – respondeu Anne -, mas o mesmo espírito de analogia permite-me assegurar que os nossos são mais delicados. O homem é mais robusto que a mulher, mas não vive mais tempo; o que explica exatamente o meu ponto de vista em relação aos afetos. Não, seria demasiado duro para vós se fosse de outra maneira. Vós tendes de lutar contra dificuldades, privações e perigos suficientes. Estais sempre a trabalhar e a labutar, expostos a todos os riscos e privações. Abandonais tudo: lar, país e amigos. Não podeis chamar vosso: ao tempo, à saúde ou à vida. Seria realmente demasiado duro- concluiu ela com voz tremula - se a tudo isso fossem adicionados sentimentos femininos.
- Nós nunca havemos de chegar a um acordo neste ponto, começou o comandante Harville a dizer quando um ligeiro ruído atraiu a atenção dos dois para a parte da sala em que o comandante Wentworth se encontrava e que estivera, até então, perfeitamente silenciosa. Fora simplesmente a pena que caíra, mas Anne estremeceu ao ver que ele estava mais próximo do que supusera e sentiu-se meio inclinada a desconfiar de que a pena caíra porque ele se distraíra com eles, tentando ouvir o que diziam; ela achava, porém, que ele não poderia ter ouvido.
- Acabaste a carta? - perguntou o comandante Harville.
- Ainda não, faltam algumas linhas. Acabarei dentro de cinco minutos.
- Pela minha parte, não há pressa. Estarei pronto quando quiseres. Estou muito bem aqui - (sorrindo para Anne) -, bem provido e com tudo o que desejo. Não tenho pressa de qualquer sinal. Bem, Menina Elliot - prosseguiu ele baixando a voz -, como eu estava a dizer, suponho que nunca vamos estar de acordo a este respeito. Provavelmente, nenhum homem ou mulher estaria. Mas deixe-me fazer-lhe notar que todas as histórias estão contra si, todas as histórias, em prosa e em verso. Se eu tivesse uma memória como Benwick, conseguiria, neste momento, apresentar-lhe cinqüenta citações a favor do meu argumento, e acho que nunca abri um livro na minha vida que não tivesse algo a dizer sobre a inconstância das mulheres. Todas as canções e provérbios falam da volubilidade da mulher. Mas talvez me diga que foram todos escritos por homens.
- Talvez diga. Sim, sim, por favor, nada de referências a exemplos em livros. Os homens têm todas as vantagens sobre nós, ao contarem as suas histórias. Eles têm usufruído de muito mais instrução; a pena tem estado nas suas mãos. Eu não vou permitir que os livros provem nada.
- Mas como vamos provar alguma coisa?
- Nunca o faremos. Jamais poderemos provar alguma coisa sobre esse ponto. É uma diferença de opinião que não admite prova. Ambos começamos provavelmente com uma ligeira parcialidade a favor do nosso sexo e, com base nessa parcialidade, construímos todas as circunstâncias a seu favor que ocorreram dentro do nosso círculo; muitas dessas circunstâncias, talvez os casos que mais nos impressionam, podem ser exatamente os que não conseguem ser apresentados sem trairmos uma confidência ou, nalgum aspecto, dizermos o que não deveria ser dito.
- Ah! - exclamou o comandante Harville num tom de forte emoção -, se eu pudesse, ao menos, fazê-la compreender o que um homem sofre quando vê, pela última vez, a mulher e os filhos e fica a olhar para o barco em que os mandou embora até o perder de vista e depois se vira e diz: Só Deus sabe se nos voltaremos a encontrar. - E, depois, se eu pudesse transmitir-lhe a felicidade da sua alma quando volta a vê-los; quando, ao regressar de uma ausência de talvez doze meses, é obrigado a parar noutro porto, ele calcula a rapidez com que será possível trazê-los até ali, finge enganar-se, dizendo:
- Eles só cá podem chegar em tal dia - , mas sempre com a esperança de que cheguem doze horas mais cedo; e, ao vê-los chegar, finalmente, como se o céu lhes tivesse dado asas, muitas horas antes... Se eu lhe pudesse explicar tudo isto e tudo o que um homem pode suportar ou fazer, e se orgulha de fazer, por aqueles tesouros da sua existência! Refiro-me apenas aos homens que têm coração! - E, emocionado, ele apertava o seu.
- Oh! - exclamou Anne entusiasticamente -, eu espero ser justa para com tudo o que sente e para com aqueles que se parecem consigo. Deus me defenda de menosprezar os sentimentos afetuosos e fiéis de quaisquer dos meus semelhantes. Seria merecedora do mais completo desprezo se me atrevesse a supor que o verdadeiro afeto e a constância são apanágio apenas das mulheres. Não, eu acredito que sois capazes de tudo o que ‚ grandioso e bom na vossa vida matrimonial. Acredito que sois capazes de fazer qualquer esforço importante e qualquer sacrifício pessoal desde que... se me permitis a expressão, desde que tenhais um objetivo. Quero dizer, enquanto a mulher que amais é viva e viva para vós. O privilégio que reclamo para o meu sexo... não é muito invejável, não precisais de o cobiçar... É o de amar mais tempo, quando a existência ou a esperança já desapareceram. Ela não conseguiria dizer, de imediato, outra frase; sentia-se demasiado emocionada e a sua respiração estava demasiado ofegante.
- A menina é uma boa alma - exclamou o comandante Harville colocando-lhe a mão afetuosamente no braço. - Não é possível discutir consigo. E, quando penso em Benwick, fico sem palavras.
Os outros reclamaram a sua atenção. A Sra. Croft estava a despedir-se.
- Agora, Frederick, creio que nos vamos embora - disse ela. Eu vou para casa, e tu tens um encontro com o teu amigo. Esta noite teremos o prazer de nos encontrar todos em sua casa (voltando-se para Anne).
- Recebemos o cartão da sua irmã ontem, e creio que Frederick também recebeu um, embora eu não o tenha visto... e tu não tens nenhum compromisso, Frederick, pois não, tal como nós?
O comandante Wentworth estava a dobrar apressadamente uma carta, e não podia ou não queria dar uma resposta decisiva.
- Sim - disse ele -, é verdade; separamo-nos aqui; mas eu e Harville depressa iremos ter contigo, isto é, Harville, se estiveres pronto, eu estarei daqui a meio minuto. Eu sei que não te importas de te ir embora. Estarei ao teu dispor daqui a meio minuto.
A Sra. Croft despediu-se, e o comandante Wentworth, depois de ter selado a carta com grande rapidez, estava realmente pronto e tinha até um ar apressado, agitado, que denotava impaciência em ir-se embora. Anne não sabia o que pensar.
O comandante Harville despediu-se muito amavelmente: - Bom dia, bem haja! - mas ele não disse nada, nem sequer olhou para ela. Saiu da sala sem a olhar! Ela só teve tempo, contudo, de se aproximar da escrivaninha onde ele estivera a escrever, quando se ouviram passos; a porta abriu-se; era ele.
Ele pediu desculpa, mas tinha-se esquecido das luvas, e atravessou imediatamente a sala até à escrivaninha e, colocando-se de costas para a Sra. Musgrove, tirou uma carta de debaixo do papel espalhado, colocou-a em frente de Anne, fitando-a por um momento com um olhar brilhante de súplica, pegou rapidamente nas luvas e voltou a sair da sala, quase antes de a Sra. Musgrove ter reparado que ele ali estava, tudo se passou num instante.
A agitação que apenas um instante provocou em Anne foi quase inexprimível. A carta, endereçada, numa letra quase ilegível, a “Menina A. E." era obviamente a que ele dobrara com tanta pressa. Enquanto estava, supostamente, a escrever ao comandante Benwick, ele escrevera-lhe também a ela. Tudo o que o mundo podia fazer por ela, dependia do conteúdo daquela carta! Tudo era possível, e era preferível desafiar tudo a continuar na expectativa.
A Sra. Musgrove tinha algumas coisas a preparar na sua mesa; ela devia confiar na sua proteção e, deixando-se cair na cadeira que ele ocupara, sucedeu-lhe no mesmo lugar onde se debruçara a escrever, e os seus olhos devoraram as seguintes palavras:
"Já não consigo escutar em silêncio. Tenho de lhe falar pelos meios ao meu alcance. Anne transpassa-me a alma. Sinto-me entre a agonia e a esperança. Não me diga que é demasiado tarde, que sentimentos tão preciosos morreram para sempre.
Declaro-me novamente a si com um coração que é ainda mais seu do que quando o despedaçou há oito anos e meio.
Não diga que o homem esquece mais depressa que a mulher, que o amor dele morre mais cedo. Eu não amei ninguém, se não a ti. Posso ter sido injusto, posso ter sido fraco e rancoroso, mas nunca inconstante. Vim a Bath unicamente por sua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para si.
Não reparou nisso? Não percebeu dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os seus sentimentos, como creio que deve ter decifrado os meus, não teria esperado estes dez dias. Mal consigo escrever. A todo o momento estou a ouvir uma coisa que me emociona. Anne baixa a voz, mas eu consigo ouvir os tons dessa voz, mesmo quando os outros não conseguem.
Criatura demasiada boa, demasiada pura! Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens são capazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância. Creia que esta é fervorosa e firme no F. W. Tenho de ir, inseguro quanto ao meu futuro; mas voltarei, ou seguirei o seu grupo, logo que possível. Uma palavra, um olhar será o suficiente para decidir se irei à casa do seu pai esta noite, ou nunca.
Depois da leitura desta carta, era impossível recompor-se rapidamente. Ao fim de meia hora de solidão e meditação, talvez se tivesse sentido mais calma; mas os dez minutos que decorreram até ser interrompida, juntamente com a necessidade de se conter, não podiam ser suficientes para a acalmar. Pelo contrário, cada momento trazia uma nova onda de agitação. Era uma felicidade esmagadora. E, antes de ter ultrapassado a primeira fase de intensa emoção, chegaram Charles, Mary e Henrietta.
A necessidade absoluta de não parecer diferente do habitual produziu uma luta interior imediata; mas, ao fim de algum tempo, já não conseguia fazê-lo. Começou a não compreender uma única palavra do que eles diziam e foi obrigada a alegar que estava indisposta e a pedir desculpa.
Eles viram então que ela parecia muito doente – ficaram chocados e preocupados e recusaram-se a sair dali sem ela. Isto foi terrível! Se ao menos eles se fossem embora e a deixassem sossegada, sozinha naquela sala, isso teria constituído a sua cura; mas tê-los todos de pé à sua volta incomodava-a, e, por fim, desesperada, disse que ia para casa.
- Com certeza, minha querida - exclamou a Sra. Musgrove -, vá já para casa e trate-se, para estar bem logo à noite. Quem me dera que Sarah estivesse aqui para a tratar, mas eu não sou boa enfermeira. Charles vai mandar vir uma carruagem. Ela não deve ir a pé.
Mas ela não queria uma carruagem. Seria pior que tudo! A idéia de perder a possibilidade de dizer duas palavras ao comandante Wentworth no decurso do seu passeio calmo e solitário pela cidade - tinha quase a certeza de que iria encontrar-se com ele - era insuportável. Assim, protestou energicamente contra a carruagem; e a Sra. Musgrove, que pensava apenas num tipo de doença, tendo-se certificado, com alguma ansiedade, de que neste caso não houvera queda; de que Anne não tinha, recentemente, escorregado e batido com a cabeça; convencendo-se, finalmente, de que não houvera qualquer queda, despediu-se dela bem-disposta e disse que esperava encontrá-la melhor à noite. Ansiosa por não descurar qualquer possível precaução, Anne fez um esforço e disse:
- Receio, minha senhora, que não esteja tudo bem esclarecido. Peço-lhe que tenha a bondade de dizer aos outros cavalheiros que esperamos ver todo o grupo esta noite. Receio que tenha havido algum engano e gostaria que garantisse particularmente ao comandante Harville e ao comandante Wentworth que esperamos vê-los, a ambos, esta noite.
- Oh, minha querida, está tudo bem claro, dou-lhe a minha palavra. O comandante Harville não pensa, se não em ir.
- Acha que sim? Mas eu tenho medo, e teria tanta pena! Promete que lhes fala nisso quando os voltar a ver? Certamente que os vai ver outra vez esta manhã. Promete?
- Com certeza, se quiser que o faça. Charles, se vires o comandante Harville em qualquer lado, lembra-te de lhe transmitir a mensagem de Anne. Mas, na verdade, minha querida, não precisa de se preocupar. O comandante Harville considera a noite comprometida, garanto-o e o mesmo se passa com o comandante Wentworth, creio.
Anne não podia fazer mais nada; mas o seu coração profetizava-lhe qualquer mal-entendido que iria estragar a perfeição da sua felicidade. Mas isso não duraria muito, porém. Mesmo que ele próprio não fosse a Camden Place, ela poderia enviar-lhe, pelo comandante Harville, uma frase inteligível.
Ocorreu ainda outro contratempo. Charles, na sua bondade e verdadeiramente preocupado com ela, quis acompanhá-la até casa; não era possível evitá-lo. Isto era quase cruel! Mas ela não podia mostrar-se ingrata por muito tempo; ele estava a sacrificar um compromisso num armeiro para lhe ser prestável e, assim, ela partiu com ele, sem outro sentimento aparente além da gratidão.
Estavam na Union Street quando um passo mais apressado atrás deles, um som familiar, lhe deu dois momentos de preparação para o aparecimento do comandante Wentworth. Este se aproximou deles; mas, indeciso se deveria seguir com eles ou prosseguir sozinho, não disse nada, limitou-se a olhar. Anne conseguiu dominar-se o suficiente para receber aquele olhar sem constrangimento. As faces que tinham estado pálidas coraram, e os movimentos que tinham sido hesitantes tornaram-se decididos. Ele caminhou ao lado dela. Subitamente, tomado por um pensamento, Charles disse:
- Capitão Wentworth, em que direção vai? Só até Gay Street ou mais para cima?
- Nem sei bem - foi a resposta do capitão Wentworth, surpreendido.
- Vai até Belmont? Perto de Camden Place? Porque, se vai, não terei escrúpulos em lhe pedir que tome o meu lugar e acompanhe Anne até casa. Ela está cansada esta manhã e não deve ir tão longe sem companhia. E eu devia estar na loja daquele sujeito no mercado. Ele prometeu mostrar-me uma arma estupenda que vai enviar para fora; disse que a manteria desempacotada até ao último momento, só para eu a ver; e, se eu não voltar para trás agora, não tenho a mínima possibilidade. Pela descrição dele, é muito semelhante à minha arma de dois canos que levei um dia à caça nos arredores de Winthrop.
Não podia haver objeção. Em público, só podia haver uma alegria comedida, uma amável aquiescência; e sorrisos contidos e uma excelente disposição que disfarçavam a enorme felicidade interior.
Meio minuto depois, Charles encontrava-se de novo ao fundo da Union Street, e os outros dois prosseguiram no caminho juntos; e, pouco depois, tinham trocado palavras suficientes para decidirem dirigir-se para a calçada relativamente mais calma e retirada, onde a possibilidade de conversarem tornaria esta hora uma verdadeira dádiva celestial, preparando-a para a imortalidade que as mais felizes recordações das suas vidas futuras lhe pudessem conceder.
Ali, trocaram eles de novo aquelas juras e promessas que outrora pareceram assegurar-lhes tudo, mas que tinham sido seguidas de tantos, tantos anos de separação e indiferença. Ali regressaram eles ao passado, mais intensamente felizes, talvez, na sua nova união, do que quando esta fora projetada pela primeira vez; mais meigos, mais experimentados, mais seguros do conhecimento do caráter, da sinceridade e do afeto um do outro; mais capazes de agir, com mais motivo para agir. E ali, enquanto subiam lentamente a colina, alheios aos grupos que os rodeavam, não vendo nem os políticos que por ali vagueavam, nem as governantas azafamadas, nem as meninas que namoravam, nem amas nem crianças, puderam entregar-se às recordações e principalmente às explicações do que precedera imediatamente o momento presente, as quais tinham um interesse tão intenso e tão infindável. Relembraram todas as pequenas ocorrências da última semana; e as do dia anterior e desse dia pareciam não ter fim.
Ela não se tinha enganado a respeito dele. Os ciúmes do Sr. Elliot tinham funcionado como o peso retardador, a dúvida, o tormento. Estes tinham começado assim que se encontraram pela primeira vez em Bath; tinham voltado, após uma breve interrupção, para estragar o concerto; e tinham-no influenciado em tudo o que ele dissera e fizera, ou deixara de dizer ou fazer durante as últimas vinte e quatro horas. Eles tinham cedido, a pouco e pouco, perante a esperança que os olhares dela, as suas palavras ou ações ocasionalmente encorajavam; tinham sido finalmente vencidos pelos sentimentos e palavras que tinham chegado até ele enquanto ela falava com o comandante Harville e, num impulso irresistível, ele resolvera agarrar numa folha de papel e declarar os seus sentimentos. Aquilo que tinha escrito, não havia nada a alterar ou desdizer. Ele insistia que não amara ninguém a não ser ela. Ela nunca fora suplantada. Ele achava que nunca vira ninguém igual a ela. Isso era obrigado a admitir - que fora constante inconscientemente, ou, por outra, sem tencionar sê-lo; fizera por esquecê-la e achava que o fizera.
Imaginara-se indiferente, quando só estava zangado; e tinha sido injusto para com as suas qualidades porque sofrera por causa delas. Agora, considerava o caráter dela como a própria perfeição, mantendo o mais encantador equilíbrio entre a coragem e a ternura; mas era obrigado a reconhecer que só em Uppercross é que aprendera a fazer-lhe justiça, e só em Lyme começara a conhecer-se a si próprio. Em Lyme, recebera lições de vários tipos. A admiração momentânea do Sr. Elliot tinha-o, pelo menos, despertado, e as cenas no Cobb e em casa do comandante Harville tinham demonstrado bem a sua superioridade.
Sobre as tentativas anteriores de se afeiçoar a Louisa Musgrove, tentativas provocadas pelo orgulho ferido, ele afirmou que sentira que tal era impossível; não amara, não podia amar Louisa; embora, antes daquele dia, antes do tempo livre para reflexão que se lhe seguiu, ele não tivesse compreendido a excelente perfeição do seu espírito, com o qual o de Louisa não se podia comparar; ou a enorme e inigualável influência que ele exercia sobre o seu. Ali, ele aprendera a distinguir entre a firmeza de princípios e a teimosia obstinada, entre a ousadia da imprudência e a resolução de uma alma serena. Ali, ele vira tudo para exaltar, na sua estima, a mulher que perdera, e ali começara a lamentar o seu orgulho, a tolice, a loucura do ressentimento que o impedira de tentar recuperá-la quando ela surgira no seu caminho.
A partir dessa altura, o seu castigo tornara-se severo. Assim que se libertara do horror e do remorso que acompanharam os primeiros dias após o acidente de Louisa, assim que começou a sentir-se vivo de novo, começou a sentir que, embora estivesse vivo, não era livre.
- Descobri - disse ele - que Harville me considerava um homem comprometido! Nem Harville nem a mulher tinham a menor dúvida sobre o nosso afeto mútuo. Fiquei admirado e chocado. Até certo ponto, eu podia negá-lo imediatamente, mas, quando comecei a refletir que outros pudessem pensar o mesmo – a família dela, talvez ela própria, deixei de me sentir à vontade. Eu era dela; pela honra, se ela quisesse. Eu fora leviano. Não tinha pensado a sério no assunto antes. Não tinha pensado que a excessiva intimidade da minha parte teria forçosamente conseqüências nocivas em muitos aspectos; e que eu não tinha o direito de estar a tentar ver a qual das meninas me poderia afeiçoar, com o risco de provocar rumores desagradáveis, mesmo que não houvesse outros efeitos prejudiciais. Tinha agido muito mal, e havia que sofrer às conseqüências.
Em resumo, ele soubera demasiado tarde que se metera em problemas; e que, precisamente quando se compenetrara de que não gostava de Louisa, devia considerar-se comprometido com ela, se os sentimentos dela por ele fossem o que os Harville supunham. Isso decidiu-o a sair de Lyme e aguardar o restabelecimento total dela noutro local. Ele faria, de boa vontade, enfraquecer, por quaisquer meios leais, os sentimentos ou especulações a seu respeito que pudessem existir; e, assim, foi para casa do irmão, tencionando, após algum tempo, regressar a Kellynch e agir conforme as circunstâncias o exigissem.
- Passei seis semanas com Edward - disse ele - e vi-o feliz. Foi o único prazer que encontrei. Eu não merecia nada. Ele, perguntou muito particularmente por ti; até perguntou se estavas mudada, não desconfiando de que, aos meus olhos, tu nunca mudarias.
Anne sorriu e não disse nada. Era um erro demasiado agradável para o poder censurar. Significa alguma coisa para uma mulher assegurarem-lhe que, aos 28 anos, não perdeu o encanto da juventude; mas o valor desse elogio aumentou imenso para Anne ao compará-lo com palavras anteriores e sentindo que este era o resultado e não a causa do renascimento do seu caloroso afeto.
Ele tinha ficado em Shropshire, lamentando a cegueira do seu orgulho e os erros dos seus cálculos, até se ter visto, de repente, livre de Louisa, pela espantosa e feliz notícia do seu noivado com Benwick.
- Com isso - disse ele - terminou o pior período da minha situação; pois agora eu podia colocar-me no caminho da felicidade, podia esforçar-me, podia fazer qualquer coisa. Mas esperar tanto tempo inativo, e esperar apenas o pior, tinha sido terrível.
Passados cinco minutos, disse: - Estarei em Bath na quarta-feira. - E estive. Seria imperdoável pensar que valia a pena vir? E chegar com alguma esperança? Seria possível que mantivesses os sentimentos do passado, como eu fizera? Havia uma coisa que me dava coragem. Eu nunca poderia duvidar de que tivesses sido amada e pretendida por outros, mas eu sabia com certeza que tinhas recusado pelo menos um homem com perspectivas melhores do que as minhas; e não conseguia deixar de pensar com frequência: - Foi por minha causa? - Haveria muito a dizer sobre o seu primeiro encontro em Milsom Street, sobre o concerto ainda mais. Essa noite pareceu ser feita de momentos extraordinários. O momento em que ela entrou na sala octogonal e falou com ele, o momento em que o Sr. Elliot apareceu e a levou consigo, e um ou dois momentos subseqüentes, marcados pelo regresso da esperança ou pelo desânimo crescente, foram discutidos energicamente.
- Ver-te - exclamou ele - no meio daqueles que não podiam desejar-me felicidades, ver o teu primo próximo de ti, a conversar e sorrir, e sentir todas as horríveis vantagens e conveniências desse casamento! Considerá-lo como desejo certo de todas as pessoas com possibilidades de te influenciar! Pensar que poderosos apoiantes ele tinha, mesmo que os teus sentimentos fossem de relutância ou indiferença! Não seria tudo isto suficiente para fazer de mim o tolo que eu aparentava ser? Como podia olhar em redor sem angústia? A amiga sentada atrás de ti, à recordação do que acontecera, o conhecimento da sua influência, o efeito indelével e permanente do que a persuasão provocara - não estava tudo isso contra mim?
- Tu devias ter notado a diferença - respondeu Anne. – Não devias ter duvidado de mim agora; a situação era tão diferente; a minha idade era tão diferente. Se eu errei ao ceder uma vez à persuasão, lembra-te de que foi uma persuasão exercida a pensar na segurança, não no risco. Quando cedi, pensei que cumpria o meu dever; mas agora não estava nenhum dever em causa. Se casasse com um homem que me era indiferente, teria corrido todos os riscos e violado todos os deveres.
- Eu talvez devesse ter raciocinado assim - respondeu ele -, mas não consegui. Não consegui beneficiar com o conhecimento sobre o teu caráter que adquirira recentemente. Não podia fazê-lo entrar em cena; eu estava submerso, soterrado, perdido nos sentimentos que me tinham atormentado ano após ano. Só podia pensar em ti como a mulher que tinha cedido, que tinha desistido de mim, que tinha sido influenciada por alguém que não fora eu. Vi-te com a pessoa que te tinha aconselhado naquele ano de infelicidade. Eu não tinha motivos para pensar que ela agora gozasse de menos autoridade. Além disso, havia a força do hábito.
- Julgava - disse Anne - que a minha atitude para contigo te poderia ter poupado muitos desses pensamentos.
- Não! Não! A tua atitude poderia ser apenas o à-vontade que o teu noivado com outro homem te conferiria. Deixei-te com esta convicção; e, no entanto, eu estava decidido a voltar a ver-te. A minha disposição melhorou de manhã, e senti que ainda tinha um motivo para continuar cá. Anne chegou, finalmente, a casa, mais feliz do que alguém naquela casa conseguiria imaginar. Toda a surpresa e expectativa, todas as impressões dolorosas da manhã se tinham dissipado com esta conversa, e voltou a entrar em casa tão feliz que foi obrigada a procurar controlar-se imaginando preocupações súbitas com a impossibilidade de aquilo durar para sempre.
Um intervalo de meditação, séria e agradecida, era o melhor remédio para todos os perigos de tão grande felicidade; e ela foi para o seu quarto e sentiu-se mais firme e intrépida ao dar graças à sua ventura.
Chegou a noite, os salões foram iluminados, os convidados reuniram-se. Não passava de uma reunião para jogar às cartas, não passava de uma mistura dos que nunca se tinham encontrado com os que se encontravam com demasiada freqüência - um serão vulgar, demasiado numeroso para ser íntimo, demasiado pequeno para haver variedade; mas, para Anne, nunca um serão tinha sido tão curto. Resplandecente de felicidade e encantadora, e mais admirada por todos do que imaginava ou se preocupava, sentia-se bem-disposta e tolerante para com toda a gente à sua volta.
O Sr. Elliot estava lá; ela evitou-o, mas teve pena dele. Quanto aos Wallis; divertia-a compreender as suas manobras. Lady Dalrymple e a Menina Carteret em breve seriam primas distantes dela. Não se aborreceu com a Sra. Clay, e teve de corar com os modos do pai e da irmã em público. Com os Musgrove, foi uma conversa alegre perfeitamente à vontade; com o comandante Harville, trocou palavras afetuosas, como entre irmãos; com Lady Russell, tentou entabular uma conversa que um delicioso pensamento interrompeu; com o almirante e a Sra. Croft manteve uma cordialidade especial e um interesse fervoroso, que o mesmo pensamento tentou disfarçar - e com o comandante Wentworth havia constantemente alguns momentos de conversa, sempre a esperança de mais, e sempre o conhecimento de que ele estava ali.
Foi num desses breves encontros, em que ambos fingiam admirar umas magníficas plantas de estufa, que ela disse:
- Tenho estado a pensar no passado e a tentar julgar imparcialmente o que esteve certo e o que esteve errado, quero dizer, a respeito de mim própria; sou obrigada a acreditar que tive razão, por muito que tenha sofrido por causa disso, que tive razão em me deixar guiar por uma amiga de quem vais gostar mais do que agora gostas. Para mim, ela era como minha mãe. Não me interpretes mal, porém. Não estou a dizer que não errei ao seguir os seus conselhos. Foi, talvez, um daqueles casos em que o conselho é bom ou mau segundo o desenrolar dos acontecimentos; quanto a mim, certamente que, mesmo numa circunstância vagamente semelhante, nunca daria tais conselhos. Mas quero dizer que tive razão em seguir os dela, e que, se tivesse procedido de outro modo, eu teria sofrido mais com a continuação do noivado do que sofri renunciando a ele, porque teria sofrido na minha consciência. Tanto quanto tal sentimento é permitido na natureza humana, eu não tenho agora nada a censurar a mim própria; e, se não estou enganada, um forte sentido de dever não é um mau quinhão do dote de uma mulher.
Ele olhou para ela, olhou para Lady Russell e, voltando a olhar para ela, respondeu, com fria deliberação:
- Ainda não. Mas existe esperança de, à seu tempo, ela ser perdoada. Espero dar-me bem com ela em breve. Mas também tenho estado a pensar no passado, e veio-me à mente uma pergunta... se não teria havido uma pessoa que foi mais minha inimiga do que aquela senhora. Eu mesmo. Diz-me se, quando regressei a Inglaterra em 1808, com alguns milhares de libras, e fui colocado no Lavonia, se nessa altura te tivesse escrito, terias respondido à minha carta? Em suma, terias reatado o noivado nessa altura?
- Se teria! - foi resposta dela; mas a entoação foi bem expressiva.
- Meu Deus! - exclamou ele -, tê-lo-ias feito! Não foi que eu não tivesse pensado nisso, nem o desejasse como a única coisa que pudesse coroar todos os meus outros êxitos. Mas fui orgulhoso, demasiado orgulhoso para voltar a declarar-me. Não te compreendi. Fechei os olhos e não quis compreender-te nem fazer-te justiça. Esta é uma recordação que deveria levar-me a perdoar a toda a gente mais depressa do que a mim próprio. Teria evitado seis anos de separação e sofrimento. É também uma espécie de dor a que não estou acostumado. Estou habituado ao prazer de me julgar merecedor de todos os bens de que usufruía. Avaliava-me pelos trabalhos honrosos e recompensas merecidas. Como outros grandes homens que sofreram revezes acrescentou, sorrindo -, terei de habituar-me a sujeitar o meu espírito à minha sorte. Tenho de me habituar à idéia de ser mais feliz do que mereço.
Quem poderá duvidar do que se seguiu? Quando dois jovens decidem casar-se, têm a certeza de que, pela perseverança, conseguirão seu objetivo, quer sejam pobres ou imprudentes, ou mesmo, em última análise, pouco adequados ao bem-estar futuro um do outro; e, se esses casais têm êxito, como poderiam um comandante Wentworth e uma Anne Elliot, com a vantagem de possuírem maturidade de espírito, consciência dos seus direitos e uma fortuna que lhes conferiria a independência deixar de derrubar toda a oposição?
Eles poderiam, de fato, ter aniquilado uma oposição muito maior do que a que enfrentaram, pois pouco havia para os aborrecer, para além da falta de amabilidade e de carinho. Sir Walter não levantou qualquer objeção, e Elizabeth limitou-se a mostrar-se fria e indiferente. O comandante Wentworth, com vinte cinco mil libras e com um posto tão elevado que o mérito e a atividade lhe tinham granjeado, era já alguém. Era agora considerado digno de cortejar a filha de um baronete tolo e perdulário que não tivera bom senso nem princípios suficientes para se manter na situação em que a Providência o colocara e que atualmente só podia dar à filha uma pequena parte das dez mil libras que lhe pertenceriam no futuro.
Sir Walter, de fato, embora não sentisse afeto por Anne, nem a sua vaidade se sentisse lisonjeada de modo a estar realmente feliz com o acontecimento, encontrava-se muito longe de pensar que ela fazia um mau casamento. Pelo contrário, quando conheceu melhor o comandante Wentworth, quando o viu muitas vezes à luz do dia e o observou bem, ficou muito bem impressionado com os seus dotes físicos e achou que a superioridade da sua aparência podia bem contrabalançar a superioridade da posição social dela; e tudo isto, apoiado pelo seu nome bem sonante, permitiu finalmente a Sir Walter preparar a pena para, muito graciosamente, inserir o casamento no livro de honra.
A única pessoa entre eles cuja oposição poderia provocar grande ansiedade era Lady Russell. Anne sabia que Lady Russell iria sofrer algum desgosto ao compreender a situação e renunciar ao Sr. Elliot, e teria de fazer um esforço para conhecer bem o comandante Wentworth e fazer-lhe justiça. Isto, porém, era o que Lady Russell agora tinha de fazer. Ela devia aprender a sentir que se enganara a respeito dos dois; que se deixara influenciar injustamente pela aparência de ambos; que, só porque os modos do comandante Wentworth não lhe agradavam, fora demasiado precipitada em julgar que eles denotavam um caráter de perigosa impetuosidade e que, porque a sobriedade, a correção, a delicadeza e a suavidade dos modos do Sr. Elliot lhe tinham agradado, ela tivera demasiada pressa em os considerar como sinal evidente de uma mente bem formada.
A Lady Russel não restava outra hipótese se não considerar que estivera completamente errada e preparar-se para alterar as suas opiniões. Existe nalgumas pessoas uma enorme rapidez de percepção, um discernimento que nenhuma experiência pode igualar, e Lady Russel fora menos dotada nesta área do que a sua jovem amiga. Mas ela era uma mulher boa e, se o seu segundo objetivo era ser sensata e um bom juiz, o primeiro era ver Anne feliz. Ela amava mais Anne do que as suas próprias capacidades, e, quando o constrangimento inicial se dissipou, teve pouca dificuldade em se afeiçoar, como uma mãe, ao homem que garantia a felicidade da sua filha.
De toda a família, Mary foi provavelmente quem mais se regozijou com o acontecimento. Era honroso para ela ter uma irmã casada, e ela podia sentir-se lisonjeada por ter contribuído para a união, ao ter tido Anne consigo no Outono; e, como a sua irmã tinha de ser melhor do que as irmãs do marido, era muito agradável que o comandante Wentworth fosse mais rico que o comandante Benwick ou Charles Hayter.
Talvez tivesse ainda de sofrer um pouco quando voltassem a encontrar-se, ao ver Anne readquirir os seus direitos de mais velha e ser dona de uma bonita carruagem; mas ela tinha à sua frente um futuro que constituía uma boa consolação. Anne não tinha a perspectiva de vir a possuir o Solar de Kellynch, nem propriedades rurais, nem a chefia de uma família; e, se conseguissem evitar que o comandante Wentworth fosse feito baronete, ela não trocaria a sua situação pela de Anne. Seria também bom para a irmã mais velha que esta estivesse satisfeita com a sua situação, pois não era muito provável que a mesma se alterasse.
Ela em breve sofreu a mortificação de ver o Sr. Elliot retirar-se; e ninguém, com as necessárias condições, se apresentou para fazer renascer as esperanças infundadas que tinham morrido com ele. A notícia do noivado da prima Anne atingira inesperadamente o Sr. Elliot. Ela estragou o seu melhor plano de felicidade doméstica, a sua maior esperança de manter Sir Walter viúvo com a vigilância que os direitos de genro lhe teriam concedido. Mas, embora vencido e desiludido, ele podia ainda fazer alguma coisa pelo seu próprio interesse e prazer.
Deixou Bath pouco depois; e, quando a Sra. Clay também partiu de Bath passado pouco tempo e se soube que ela se instalara em Londres sob a sua proteção, tornou-se evidente como ele estivera a fazer um jogo duplo e como estava decidido a evitar ser deserdado por uma mulher astuciosa, pelo menos.
Os sentimentos da Sra. Clay tinham-se sobreposto ao seu interesse e ela sacrificara, por um jovem, a possibilidade de prosseguir com os estratagemas para conseguir Sir Walter. Mas, além de sentimentos, ela tem capacidades, e mantém-se agora a dúvida se será a astúcia dele, se a dela, que levará a melhor; se, depois de impedir que ela se torne mulher de Sir Walter, ele não se deixará lisonjear e adular até acabar por fazer dela a mulher de Sir William.
Sem dúvida que Sir Walter e Elizabeth ficaram chocados e magoados com a perda da companheira, ao descobrirem como ela os tinha enganado. Naturalmente, tinham as suas imponentes primas a quem recorrer para conforto; mas há muito que sentiam que lisonjear e seguir os outros sem, em troca, ser lisonjeado e seguido não é mais do que meio prazer.
Anne, satisfeita, desde muito cedo, com a intenção de Lady Russell de gostar, como devia, do comandante Wentworth, não conhecia nenhuma outra sombra na felicidade das suas expectativas para além do que provinha da consciência de não ter parentes que um homem de bom senso pudesse apreciar. Neste ponto, ela sentia vivamente a sua inferioridade. A desproporção das suas fortunas não tinha importância, não lhe causava o menor desgosto; mas o fato de não ter uma família que o recebesse e estimasse devidamente, nada de respeitabilidade, harmonia e boa vontade para oferecer em troca das calorosas e sinceras boas-vindas com que foi recebida pelos irmãos dele era motivo para uma dor tão aguda quanto Anne podia sentir, em circunstâncias que eram, em tudo o mais, muito felizes. Ela só tinha duas amigas no mundo para acrescentar à lista dele, Lady Russell e a Sra. Smith. Ele estava, porém, na melhor disposição de se afeiçoar a elas.
Apesar de todas as suas ofensas, ele agora estimava Lady Russell do fundo do seu coração. Embora não se sentisse na obrigação de dizer que achava que ela estivera certa em separá-los, ele estava disposto a fazer-lhe, em quase tudo, os maiores elogios; e, quanto à Sra. Smith, ela tinha direitos de vária ordem a recomendá-la rápida e permanentemente. Os bons serviços que prestara recentemente a Anne teriam, em si, sido suficientes; e o seu casamento, em vez de a fazer perder uma amizade, assegurou-lhe duas.
Ela foi a primeira visita da sua vida de casados, e o comandante Wentworth colocou-a no bom caminho para recuperar a propriedade do marido nas Índias Ocidentais, escrevendo e agindo por ela e ajudando-a a ultrapassar as pequenas dificuldades do caso, com a atividade e diligência de um homem intrépido e um amigo decidido, recompensando-a plenamente pelos serviços que ela prestara, ou tencionava prestar, à sua mulher. O prazer de viver da Sra. Smith não foi prejudicado com a melhoria de rendimentos, com alguma melhoria de saúde, com a companhia freqüente de amigos assim, pois a sua boa disposição e alegria nunca a abandonaram; e, enquanto conservasse esses bens fundamentais, ela podia até desafiar um maior quinhão de riquezas deste mundo. Ela poderia ser extraordinariamente rica e perfeitamente saudável e, mesmo assim, ser feliz. A sua fonte de felicidade residia na alegria do seu espírito, tal como a da sua amiga Anne residia no calor do seu coração.
Anne era a encarnação da ternura, e encontrara a sua justa compensação no afeto do comandante Wentworth. Só a profissão dele poderia fazer que os amigos dela desejassem que esse amor fosse menor, só o receio de uma guerra poderia ensombrar o seu brilho. Anne orgulhava-se de ser mulher de um marinheiro, mas tinha de pagar o tributo de uma preocupação contínua por ele pertencer à profissão que, se é possível, se distingue mais pelas suas virtudes domésticas do que pelo prestígio nacional.
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