Biblio "SEBO"
Sexo, drogas e rezas de sexta feira
Depois do fiasco com Hassan, refugiei-me num bloco de apartamentos onde vivia Goli, a melhor amiga que tinha no Irão; foi aí que conheci Nahid.
Com quinze anos, Nahid fora forçada a casar com o primo. Deixou-o quatro anos mais tarde, assim como aos gémeos de seis meses, para se tornar na mulher do marido de outra. Ia-se mudar para a parte alta da cidade e nenhum obstáculo poderia impedi-la de o fazer.
Hadji Abbas era o veículo escolhido que a transportaria de uma vida de pobreza para uma de abastança. Não era relevante que ele fosse trinta anos mais velho do que ela, para além de ser casado com outra mulher e ter oito filhos. Não interessa que a sua família a tivesse deserdado. Nahid estava firmemente determinada a vir a ser a mulher de um dos mais bem sucedidos negociantes em ferro no bazar de Teerão.
Alta, de pele clara e senhora de uns olhos verdes com uma expressão penetrante, tudo qualidades muito apreciadas pelos iranianos -, não se deparou com entraves de maior para atrair Hadji, um homem muito estimado que tinha pouco que o recomendasse para além do seu dinheiro. Feio, na perspectiva de qualquer pessoa, Hadji não era feito da matéria dos sonhos de qualquer jovem mulher. O antenome "Hadji" indica uma pessoa que fez a peregrinação a Meca - uma obrigação de todos os muçulmanos. Mas também é utilizado pelos comerciantes da classe média como sinal de respeito para com aqueles que são particularmente devotos ou excepcionalmente ricos. Hadji Abbas era ambas as coisas.
Nahid acreditara que, com o tempo, os seus encantos acabariam por afastar Hadji da sua primeira mulher já de idade. Hadji sentia-se enamorado, mas em simultâneo temia Deus, pelo que as duas relações eram postas em prática seguindo a lei islâmica ao pé da letra. As suas noites eram alternadas, uma com Nahid e a seguinte no leito da primeira mulher. Sempre que fazia amor com Nahid, ela sabia que ele acabara de fazer o mesmo "no outro lado", ou que faria o mesmo na noite seguinte. Para grande fúria da sua jovem mulher, Hadji tratava as suas duas mulheres exactamente da mesma maneira, de acordo com o que a lei islâmica ditava.
Quando conheci Nahid, a revolução começara há um ano, e o uso do véu por parte dela, um modelo de obediência às orações, de acordo com a tradição da mulher ideal muçulmana, ainda era uma novidade nos círculos da sociedade que eu frequentava. A geração da minha bisavó tinha sido a última da nossa família obrigada a usar o véu. Durante a minha meninice, as únicas mulheres que usavam o chador eram as serviçais. Nesses tempos, o chador não era uma peça de vestuário deste negro asa de corvo, mas sim um traje de grande beleza em cores garridas. A nossa cozinheira usava o seu como protecção contra a poeira e não como escudo que a protegesse da luxúria dos homens, deixando-o cair drapejado da região posterior da cabeça e enrolando-o à volta da sua ampla barriga; era um tipo de vestuário tradicional, sem quaisquer conotações de natureza sexual. No entanto, quando conheci Nahid, sentia-me desejosa de descobrir que espécie de mulher vivia por detrás daquelas dobras negras. Conhecemo- nos num almoço reservado apenas a mulheres organizado por Goli, que vivia ao lado de Nahid e dos seus dois filhos.
- A minha vida é muito interessante. Devia escrever acerca de mim - disse-me Nahid. Por conseguinte, na qualidade de sua futura biógrafa, tomei conhecimento dos pormenores mais íntimos do seu namoro, casamento e vida matrimonial.
O estilo de conversa de Nahid era bastante explícito e era raro afastar-se muito da região abaixo da cintura. Não foi preciso muito tempo para que massacrasse as mulheres com as dimensões precisas do pénis do marido, gabando-se da frequência com que tinham relações sexuais, assim como a dimensão da sua colecção de jóias. Também nos fazia rir perdidamente ao dizer-nos até que ponto se encontrava disposta a ir a fim de manter a atracção sexual que exercia sobre o marido.
- Os homens nunca deixam de ser crianças - afirmava ela. - Temos de os manter interessados com qualquer coisa nova todos os dias. - Por exemplo, ontem à noite servi o jantar a Hadji vestida como se fosse executar uma dança do ventre, e depois de ele ter comido subi para cima da mesa e comecei a dançar só para ele.
- Os homens novos enojam-me. O meu Hadji tem tudo o que qualquer mulher possa desejar. E, acreditem no que vos digo, tudo nele funciona melhor do que com o meu primeiro marido - proclamou Nahid exibindo um sorriso de cumplicidade.
Mostrava-se inteiramente alheada do sofrimento que infligira à outra família de Hadji, sendo frequente vangloriar-se do dia em que a outra mulher fora implorar-lhe que reconsiderasse o noivado com o marido.
- A velha carcaça ofereceu-se para me casar com o filho mais velho - disse Nahid. - Suplicou-me e prostrou-se no chão beijando-me os pés. Disse-me que Hadji acabaria por se cansar de mim, que quando eu fosse velha ele casaria com outra mulher que me faria o que eu agora lhe fazia. Gritei-lhe que estava apaixonada por ele, que não havia nada que me fizesse desistir do amor de Hadji. Foi então que a bruxa velha revelou a sua verdadeira maneira de ser. Começou a cuspir e tentou tirar-me do dedo o anel de noivado. Nessa noite Hadji deu-lhe uma sova de que não se esquecerá tão cedo - acrescentou Nahid desdenhosa.
- Eu só tinha quinze anos quando me casei pela primeira vez. Não tinha voto na matéria; limitaram-se a dizer-me num belo dia que me iria casar com o meu primo. Quando me recusei, o meu pai deu-me uma tareia até eu acabar por concordar. Não tinha ninguém que acorresse em minha defesa. Tínhamos pouco dinheiro. Graças a Deus que nunca foste tão pobre que tivesses de ir para a cama com fome - confiou- me ela enquanto fazíamos as honras ao banquete que Goli nos tinha preparado. - Durante a cerimónia do casamento, a minha mãe manteve-se ao meu lado, espetando-me com uma agulha até que eu disse "sim"
- explicou Nahid com lágrimas nos olhos durante essa primeira refeição entre mulheres. Nessa idade ainda brincamos com bonecas, não pensamos nem queremos ter relações sexuais. Eu odiava-o, assim como aos meus filhos.
Decorreram dez anos até que a vi de novo. Havia passado por uma autêntica metamorfose. Tinha um nariz novo, uma saia cuja bainha ficava um milímetro abaixo das cuecas, exibindo o rego entre os seios que pareciam querer sair da blusa de licra colada ao corpo. Foi esta nova mulher que me saudou quando cheguei a mais outra festa reservada apenas a
mulheres. Tinha reunido em seu redor toda uma variedade de mulheres das classes médias -baixas, que nesta altura haviam colonizado o bloco de apartamentos onde Goli vivia.
A vida destas mulheres, que na sua maioria foram obrigadas a casar durante os primeiros anos da sua adolescência, resumia-se a dormir, a alimentar os seus maridos, a trocar mexericos com as amigas e a criar os filhos. Mas, em contrapartida, todas tinham conseguido escapar a um passado tradicional, tendo-se adaptado muito bem a um estilo de vida ocidentalizado nesse outro Irão; mas em 1979 a revolução arrastou-as aos gritos e a espernearem, de regresso ao Médio Oriente. Haviam aspirado aos valores defendidos no tribunal do xá, e todavia deram consigo de volta a um harém da Idade Média. Nunca ninguém lhes dissera que podiam trabalhar, que tinham direito ao seu lugar na sociedade. Olhavam com sobranceria para as suas "irmãs" trabalhadoras mais pobres, embora tivessem sido deixadas para trás pelas suas concidadãs academicamente mais educadas e que portanto eram mais independentes, o que lhes permitia enveredar por carreiras profissionais que melhorassem o seu estatuto na sociedade.
Aquelas reuniões de mulheres eram o único escape que lhes restava. Riam-se e dançavam ao som de cassetes adquiridas no mercado negro, onde se ouvia a nova estirpe de cantores e bandas persas como Andy e Kouroush, a nossa réplica dos Wham. Actualmente, estes artistas faziam fortuna em Los Angeles com canções de saudade por um país a que um número muito escasso deles tinha qualquer intenção de regressar. Não havia nada por detrás dos sorrisos que haviam ficado na terra natal. Para lá daquelas paredes, elas deixavam de ter uma existência própria a que tinham direito. Sob tais pressões, e sem qualquer outra válvula de escape para além da vida doméstica, sem dúvida alguma que enlouqueceriam.
Eu estava alojada em casa de Goli, juntamente com os seus dois filhos hiperactivos e um marido que se recusara a voltar a trabalhar desde o dia em que os molás haviam chegado ao poder. Durante os últimos treze anos mantivera-se em casa embebedando-se placidamente, enquanto Goli se esforçava para ganhar o suficiente para acudir à subsistência da família que precisava de manter alimentada e vestida, certificando-se de que os filhos recebiam a educação escolar mais apropriada. A recompensa era uma crítica constante por parte dos amigos e familiares, que a acusavam de negligenciar as suas obrigações de mulher.
- Olha bem para ti - dir-lhe-ia a mãe. - Pareces exausta, nunca arranjas o cabelo e as tuas roupas têm um aspecto desmazelado, não são nada femininas. Não admira que Malaki te espanque.
Nunca presenciei nenhum espancamento, mas vi-a, isso sim, a correr para casa depois de sair do emprego às nove horas todas as noites a fim de preparar o jantar, ajudar os filhos a fazerem os trabalhos de casa e culminando os seus dias com as tarefas domésticas, enquanto ele se sentava todo refastelado a filosofar, dizendo-me como em tempos idos tivera muita, mas mesmo muita, influência.
Mais ou menos uma semana depois do meu segundo encontro com Nahid, fiquei sozinha em casa pela primeira vez no espaço de um mês e aproveitei ansiosamente aquela oportunidade para pôr algum do meu trabalho em dia. Entretanto, o telefone começou a tocar; senti-me bastante tentada a não atender. Mas pensei que talvez se tratasse de qualquer coisa urgente, ou a informação da realização de uma conferência de imprensa.
De facto era urgente. O telefonema era de Nahid.
- Por favor, vem imediatamente a minha casa - pediu-me ela.
Quando bati à sua porta, ocorreu-me que talvez tivesse tocado à campainha errada. Aquela mulher era a consorte louca do livro lane Eyre, que finalmente conseguira fugir da sua cela no sótão. Voltei a olhar para o número da porta. Não havia dúvida de que correspondia ao do apartamento de Nahid. Por conseguinte, quem seria a criatura possessa que me abriu a porta?
A mulher defronte de mim encontrava-se enrolada num lençol que em tempos fora branco mas que agora estava cheio de riscos negros, vermelhos e verdes. À largura da testa tinha escrito a palavra "Alá" com letras desenhadas com um bâton de um vermelho sanguíneo.
- Só existe um Deus e Maomé é o seu profeta - dizia ela numa ladainha cadenciada. Oscilava de um lado para o outro e acariciava o corpo com as mãos; os olhos pestanejavam, cerrando-se logo de seguida.
Com certeza que aquela cena corresponderia à antecâmara do inferno.
De súbito desapareceu no interior de casa. Que demónios e seres maléficos estariam emboscados para lá daquele vestíbulo? Qualquer leitor menos ávido de livros sobre o sobrenatural poderia ter entrado sem sentir nada mais além de alguma curiosidade, e contudo todos os meus sentidos me diziam que a retirada estratégica é a faceta mais sensata da coragem.
- Entra. Estou a precisar da tua ajuda. Despacha-te, senão fica tudo estragado - urgiu-me Nahid que apareceu momentaneamente no vestíbulo para logo dar meia-volta dirigindo-se para a casa de banho.
Os demónios muçulmanos retrair-se-iam perante o sinal da cruz? Deveria eu voltar rapidamente a casa e precaver-me com uma cabeça de alhos?
Entra - insistiu a demente.
Com algum receio, lá transpus a ombreira da porta. Dei com a minha vizinha desarranjada do juízo na casa de banho, onde rasgava às tiras o lençol em que se enrolara. Encontrava-se sentada em frente do bidé, uma imitação de madrepérola, com a cabeça descaída entre os seios desnudados; o bidé já estava cheio de tiras do lençol.
Readquirindo uma expressão de lucidez, Nahid virou-se para mim.
- Tenho de pegar fogo a isto - disse, apontando para os trapos no bidé. - Depois de estar em chamas, espera até o lençol ficar todo carbonizado, de forma a não conseguires dis tinguir o que está escrito; nesse momento, quero que agarres naquela bacia e deites a água sobre as labaredas - instruiu-me ela.
Em situações como aquela, é melhor não se contrariar as pessoas que estão perturbadas. E foi assim que as chamas foram devidamente extintas, com os restos de tecido carbonizado a destoarem do pretenso luxo da casa de banho de cores cuidadosamente coordenadas.
Depois, como se não se tivesse passado nada de anormal, Nahid levantou-se do chão, aplicou uma mão-cheia de creme facial sobre as letras escritas a bâton e limpou a palavra "Alá" com uma toalha turca com um padrão de malmequeres. Vestiu um quimono de seda e brindou-me com um sorriso.
- Chá? - perguntou.
O que é que uma pessoa pode dizer numa situação daquelas? "Quero que me dês uma explicação", teria sido uma réplica lógica.
Sim, se fizeres o favor - foi tudo o que consegui responder-lhe.
Instaladas à mesa da cozinha com uma caneca de chá bem adoçado que me acalmaria os nervos, aguardei que ela me oferecesse uma explicação.
- Podes emprestar-me duzentos e cinquenta mil tomans? - perguntou- me Nahid enquanto me oferecia uma fatia do seu bolo caseiro. Explicou-me que devia essa quantia a uma bruxa local que lhe dera vários amuletos de amor.
Fiquei a olhar para ela de boca aberta e embasbacada. Um pedido de empréstimo de aproximadamente mil libras esterlinas talvez não me tivesse parecido assim tão excessivo caso nos encontrássemos no Reino Unido, mas no Irão era mais do que um funcionário público médio ganha anualmente.
- O que é que se passa contigo? - consegui perguntar-lhe por fim.
- Estás recordada do rapaz que encontrámos a semana passada no elevador? Aquele que te disse que Goli era muito bonita? - perguntou-me por sua vez.
Acenei que sim. Goli tinha-me chamado a atenção para o rapaz, dizendo-me que era o amante de Nahid, mas optei por fingir que desconhecia as suas aventuras sexuais.
- Estou apaixonada por ele - acrescentou. Afivelei a expressão adequada de perplexidade. - Ele ama-me desesperadamente. Queremos estar sempre juntos - confessou Nahid proferindo as palavras em catadupa.
- Mas. mas. o teu marido? - gaguejei. - Os teus filhos. Não te esqueças de que vives no Irão. Como podes fazer uma coisa dessas?
- Nem imaginas - retorquiu Nahid atabalhoadamente por entre lágrimas. - Tens tanta sorte, tanta liberdade. Só me apetece morrer. Não tenho nada. Imagina-te na cama com um velho deitado ao teu lado. Não consegue fazer nada de jeito. Passa a noite toda a esfregar a coisa dele em mim, na esperança de conseguir uma erecção. Olha bem para mim. Sou jovem. Tenho todo o direito a viver.
Para poder concretizar aquele desejo, Nahid agarrara no telefone e ligara para um número ao acaso. À terceira tentativa respondeu-lhe um homem do outro lado da linha. Tinha vinte e quatro anos e jogava à bola, estando destinado a tornar-se no primeiro dos seus amantes. Combinaram encontrar-se no parque Mellat na tarde seguinte, acabando por consumar na parte de trás da carrinha dele a paixão que sentiam.
Ao longo dos primeiros meses a relação amorosa havia corrido pelo melhor. Encontravam-se todos os dias - inicialmente na parte de trás da carrinha e depois em casa de pessoas amigas. Por fim, Nahid começou a levá-lo para sua casa nas noites em que o marido se encontrava "no outro lado". Mas decorrido algum tempo o futebolista começara a faltar a alguns encontros. Receosa de não conseguir prender o interesse do homem, e na hipótese de vir a fartar-se dela, Nahid decidiu procurar a ajuda dos feitiços de uma bruxa.
- Fui a casa de Mariam Khanoum e ela indicou-me uma oração que tirou do Corão. Rezei-a durante toda a noite antes de me encontrar com ele outra vez. Depois de ele ter chegado, pus um bocadinho da minha urina na sua bebida. Mudou do dia para a noite. Agora vem ver-me duas ou três vezes por semana - disse ela com uma inocência infantil.
Aquele assunto não me cheirava nada bem. A exibição a que eu assistira naquele dia era, na opinião desta velhota, a garantia do bloqueamento de qualquer esforço por parte da família do futebolista de o casarem até fazer quarenta anos.
- Tive de esperar até ter o período, porque esta altura do mês torna as mulheres muito mais poderosas. Em seguida transcrevi algumas passagens do Corão para um lençol em que nos deitámos na última noite em que fizemos amor. Esta manhã o meu período parou e enchi uma bacia com a água do meu banho. Foi com essa água que as chamas foram apagadas, tal como se extinguirá qualquer desejo que ele possa sentir por outra mulher - explicou-me Nahid como se tudo aquilo fosse absolutamente racional.
- Se Massoud me abandonar, garanto-te que me mato - ameaçou. - Olha para esta casa - acrescentou apontando em redor, para o lar que Hadji Lhe proporcionara. Podia não ser nenhum palácio, mas o apartamento de quatro assoalhadas era respeitável. O mobiliário, embora não de muito bom gosto, era novo e mantido limpo. A alcatifa de um rosa carregado era cara e condizia na perfeição com o estofo de veludo do sofá.
- Nahid, a tua vida não é assim tão má. Olha bem para as pessoas que vivem em teu redor; nos dias que correm, ninguém tem nada. Continuas a ter muita sorte - disse-lhe eu, tentando confortá- la no meufarsi imperfeito.
- Nada me pertence - redarguiu numa voz guinchada. - Esta casa está em nome de Hadji. Por acaso vês carpetes persas por aqui? O meu filho não tem automóvel, nem dinheiro para comprar ténis Reebok. Olha para as minhas mãos - continuou, colocando-as à frente do meu rosto, com os olhos marejados de lágrimas. - Estão todas estragadas. Há vinte e três anos que trabalho que nem uma escrava para este homem. Em contrapartida, ele não me dá nada de nada. Não tenho anéis de ouro. O que tinha dos primeiros anos de casamento, fui forçada a vender para poder comprar roupas. Foi com o meu dinheiro que paguei a operação ao nariz, e ele nem sequer deu a Layla o dinheiro para pagar a operação dela. Tive de poupar do dinheiro que se destinava às despesas da casa para que a minha filha ficasse linda.
- Sem Massoud, será o mesmo que estar morta. Se vier a perdê-lo, mato-me. Fica com os meus anéis até te restituir o dinheiro - disse ela estendendo-me a aliança de casamento e o anel de noivado. Tinha-os feito aparecer de algures do interior do quimono, e desapareceram de imediato com a mesma rapidez. - Não posso pedir o dinheiro a Hadji. O velho sovina precisa de uma explicação por todos os tostões que eu gasto. É ele próprio quem vai às compras, em vez de me dar o dinheiro para comprar as coisas para a casa. Se alguma vez ele vier a descobrir, mata-me.
Pensei que, para bem de todos os envolvidos no assunto, quanto mais cedo isso acontecesse, melhor seria. Detestava o sentimento de impotência e ignorância que levavam algumas mulheres a recorrerem a bruxarias, feitiços e amuletos. Tratava-se de uma atitude própria da era medieval, e que na minha mente sempre associara com a ralé da sociedade. Subitamente ocorreu-me que aguardava um telefonema urgente do jornal de Londres. Prometi a Nahid que iria ver o que poderia fazer quanto ao empréstimo que me pedira e saí disparada dali para fora como se levasse fogo no rabo.
Desde o dia da incineração do lençol, a maior parte das notícias referentes às aventuras de Nahid chegavam-me por interposta pessoa, através de Goli que, sendo o produto de uma educação extremamente severa, se deliciava com as histórias das relações sexuais de Nahid. Ignorou as minhas advertências de tragédia iminente, o que eu lhe dizia muito a sério, e continuava a entrar e a sair do apartamento de Nahid em visitas que se destinavam a mantê-la constantemente a par dos acontecimentos. Ao fim e ao cabo, convinha não esquecer que vivíamos na República Islâmica, e a querida Nahid não era nenhum modelo de discrição. Caso os pasdars resolvessem fazer uma rusga a casa dela, certamente reuniriam todos os que pudessem estar de alguma forma associados à situação. Eu já imaginava os cabeçalhos: "Correspondente do Independent detida em rusga num antro de vício".
A conversa que travávamos sobre a sensatez de manter relações de amizade com Nahid foi interrompida quando o marido de Goli entrou na cozinha empunhando o livro de História do filho e mostrando uma expressão de fúria no rosto. O filho de Goli, um garoto de dez anos, levara o seu livro de História para casa com a intenção de pedir ao pai, licenciado por Harvard, ajuda naquela matéria escolar. O livro começava com as seguintes palavras: "A História do Irão é a história do islamismo e dos imãs". De uma penada, dois mil e quinhentos anos da História persa haviam sido eliminados e substituídos pela história de uma religião. As crianças estavam a ser ensinadas a pensarem em si próprias como muçulmanos e não como iranianos. Mehrdad arengou e bramiu, acabando por proibir o filho de ler aquele livro de História. Nessa noite fui dar com o garoto a chorar no seu quarto.
- Por que é que o meu pai não conhece estes factos? Por que é que ele não é inteligente? - queixava-se o petiz. Havia uma nova geração condenada a ser doutrinada em conhecimentos que não estava preparada para pôr em questão.
Foi mais ou menos nesta altura que comecei a sentir dores excruciantes na região dos ovários. Vários meses antes do meu regresso ao Irão, fui levada de urgência para o hospital onde me removeram um quisto de um ovário doente, o que fez com que me sentisse obcecada com a ideia de poder vir a perder esses órgãos antes que pudessem servir-me como meio de reprodução.
Goli sugeriu que me submetesse a um exame minucioso pelo seu ginecologista, que estava prestes a operar Nahid. Esta não sofria de nada em especial, mas depois de ter dado à luz quatro filhos encontrava-se à beira de se tornar numa "virgem renascida". Os cirurgiões iranianos são especialistas neste tipo de cirurgia, um autêntico milagre: não só suturam o hímen, devolvendo-lhe o seu estado original, como também estreitam a entrada vaginal, o que intensifica o prazer sexual do homem, sendo frequente que durante as relações sexuais estas sejam insuportavelmente desagradáveis para a mulher.
Cheguei ao consultório e fui imediatamente conduzida a uma sala sombria onde um homem que mais parecia ter vindo de outro mundo estava sentado a uma secretária enorme. Fui submetida a um exame clínico que preferia apagar inteiramente da minha memória. Em seguida disseram-me que me sentasse e ofereceram-me uma chávena de chá adoçado, após o que fui informada que tinha um tumor não-removível de grandes proporções que muito provavelmente seria maligno.
- Mas não se preocupe - disse-me o ser do outro mundo de cabelos encanecidos que me acompanhou até à porta rodeando-me os ombros com um braço paternal. - Só precisarei de cortar daqui até ali - continuou, fazendo um gesto largo com a mão à largura do meu baixo-ventre, junto da entrada vaginal. - Ninguém se aperceberá da cicatriz.
Senti-me devastada. Deixei-me ficar no lancil do passeio enquanto vários táxis abrandavam de velocidade e cujos motoristas se ofereciam para me levar, mas eu encontrava-me incapaz de me recordar do local onde estava a viver. Talvez devesse apressar-me a comprar uma passagem aérea para Londres e regressar a casa. Ouvia repetidamente uma voz nos meus pensamentos que me dizia: "É muito possível que tenhas cancro."
Ali estava eu com o coração a bater-me desenfreadamente na garganta quando um automóvel se aproximou e o condutor me perguntou se estava a sentir-me mal. Era Ahmad, um jovem agente dos Serviços de Segurança que eu conhecia apenas de vista. Deve ter sido destacado para me seguir nesse dia, e certamente não lhe passou despercebido que eu me sentia bastante mal, o que o levou a dar-me a conhecer a sua presença. Não fosse ele, e eu nunca teria conseguido chegar a casa.
Cheguei ao hospital ao romper do dia seguinte, tendo de aguardar a chegada do ser que parecia vindo de outro mundo. Por volta das nove ainda não tinha chegado; eu sentia a bexiga prestes a rebentar devido à água que uma mulher é obrigada a ingerir antes de se submeter a uma ecografia. A enfermeira de serviço na recepção estava farta de me tentar distrair sempre que eu exigia que me fizessem o exame antes de ele chegar. No entanto, a visão de quatrocentos tomans fê-la mudar de ideias. Detestava ser forçada a recorrer à linguagem dos subornos, mas não conseguira dormir durante toda a noite e sentia um enorme frenesim em conhecer o pior do meu estado de saúde.
Uma hora mais tarde o médico trouxe o resultado do exame e disse- me que não conseguira detectar nada que se assemelhasse a um tumor de grandes dimensões. Graças a Deus que estava tudo normal. Foi precisamente nesse momento que o ser de outro mundo chegou, insistindo em que o exame fosse repetido por outro médico.
- Aquele homem não tem competência. Eu utilizo sempre os serviços do doutor Bahonar. Por esse motivo é que cheguei atrasado. tive de o encontrar para lhe pedir que lhe fizesse o exame - explicou o ser alienígeno.
Continuava a tentar persuadir-me a internar-me no hospital, por minha própria iniciativa, onde seria submetida a mais exames clínicos, mas consegui escapar-me dali para fora.
Posteriormente, vim a descobrir que a criatura se especializava num tipo de operações cirúrgicas que mais nenhum médico realizava. Era dos poucos médicos que se arriscavam a efectuar abortos, não obstante o facto de poder vir a ser condenado à morte por essa prática. De regresso a casa, apressei-me a insistir com Nahid para que não se colocasse nas mãos do homem; todavia, ela estava firmemente determinada; não queria perder o seu brinquedo, o rapaz apaixonado. Explicou-me que o facto de vir a ter um acesso frontal mais estreito talvez o desencorajasse a exigir-lhe sexo anal, um processo muito doloroso que recentemente fora obrigada a consentir. Sorria-me enquanto me contava como ele a tinha possuído ali mesmo no lugar onde eu me sentava na sala de estar, ao mesmo tempo que via um filme pornográfico em vídeo. Eu continuava sem fazer a mais pequena ideia de que o jovem lhe pagava pelos seus prazeres sexuais. Ao reparar na minha expressão bastante chocada, Nahid alegou que se eu me encontrasse na sua situação possivelmente não hesitaria em recorrer a tais extremos.
- Esse homem velho e todo engelhado deita-se ao meu lado noite sim noite não para ter relações sexuais comigo; mas já não é capaz de ter erecções. Por conseguinte, durante horas a fio coloca a picha entre as minhas nádegas e esfrega-se, enquanto eu sou obrigada a dizer-lhe toda a espécie de obscenidades para que fique com tusa - confessou-me Nahid lavada em lágrimas.
Até certo ponto, a situação dela despertava a minha simpatia; contudo, nenhum conselho meu a faria reconhecer que uma vez mais era a vítima que cometia exactamente os mesmos velhos erros; tentei fazer com que ela visse que existia um caminho para a felicidade, para além de se ter um homem entre as nossas pernas.
Naquela altura, Nahid já conseguira recrutar as mulheres de dois dos seus vizinhos, que se lhe juntavam nas suas escapadelas indiscretas. As três mulheres costumavam encontrar-se em casa de Nahid nas noites que Hadji passava no seu outro lar, e aí entretinham os vários amantes que tinham. Entre elas contava-se Nasrin, a mulher sensual de um homem de negócios, a qual deu início à sua vida promíscua deitando-se com o homem com quem desejara casar antes de a família a ter obrigado a contrair matrimónio com um primo. Soraya era a mais velha e também a mais rica das três, admitindo despudoradamente perante Goli - que foi quem me contou - que tinha arranjado um amante para se divertir um pouco. Era uma mulher com quase cinquenta anos e tinha duas filhas, as quais a acompanhavam amiudadas vezes durante as sessões em casa de Nahid. As duas adolescentes faziam companhia a Layla, a filha de Nahid, enquanto as mães desfrutavam dos prazeres sensuais que os amantes lhes proporcionavam.
As três pegas, como Goli costumava chamar- lhes, tencionavam submeter-se, sem excepção, a operações cirúrgicas de estreitamento da vagina, operações que custavam cento e cinquenta mil tomans. Nahid foi a primeira a pôr a sua intenção em prática. No dia em que saiu do hospital vinha mergulhada num estado de êxtase, lamentando somente que teria de ficar fora de acção - ou devo dizer fora de actividade? - durante pelo menos um periodo de dois meses. Esta incapacidade de dar cumprimento à sua função sexual forçou-a a revelar a sua nova profissão, quando urgiu Goli a encontrar-se com alguns dos homens a cujas necessidades sexuais não podia acudir. Não expôs o assunto com tanta franqueza, mas eram esses os termos em que a questão se traduzia. Goli mostrou-se profundamente ultrajada perante aquela sugestão.
Por esta altura já eu tinha voltado a mudar- me para casa de Farah. Numa bela manhã fui visitar Goli; Nahid bateu à porta, mostrando-se num estado de grande aflição. Estava branca como o mármore, com o sangue a escorrer-lhe por uma perna abaixo. Enquanto a levávamos para o hospital no carro de Goli, começou a explicar-nos que o seu último amante não fora capaz de esperar até que os pontos da sutura fossem retirados, tendo experimentado a despeito dos gritos de agonia que lançava. Ficara dilacerada nas tentativas de penetração da passagem que o homem de outro mundo, todo inchado de orgulho, dissera a Nahid ter ficado agora mais estreita do que o dedo mindinho.
A caminho do hospital, Nahid recuperou-se o suficiente para nos falar de um novo homem na sua vida.
- Nasrin e eu estávamos no carro dela, estacionadas em frente de uma pastelaria, quando surgiu um belojaguar azul-marinho que parou atrás de nós e tocou a buzina. Nasrin não queria ir e por isso entrei sozinha no automóvel do homem. Eu usava uns óculos de sol com lentes muito grandes e ele suplicou-me que os tirasse para poder ver-me os olhos. Implorou-me tanto que acabei por tirar os óculos, afirmando-me ele que eram os olhos mais encantadores que alguma vez viu. Em seguida suplicou-me que puxasse o casaco para cima de forma a poder ver-me as pernas. Foi tão carinhoso que acedi e ele começou a apalpar-me a barriga da perna. Deviam ter visto a cara dele. ficou num verdadeiro estado de êxtase. Pediu-me que o acompanhasse a casa do irmão, próxima do palácio Niavaran. Tive de lhe dizer que fizera uma operação há pouco tempo, pelo que não podia ir com ele para essa casa - continuou, retraindo-se de vez em quando por causa das dores que sentia. - Fiquei de lhe telefonar às seis da tarde para um número que ele me disse para só utilizar às horas que me indicou. Importas-te de lhe ligar e combinares encontrar-te com ele em meu lugar? perguntou Nahid voltando-se para mim. - Tens tanta sorte por teres liberdade para fazeres o que te apetece. Nunca desistas dessa liberdade, estás a ouvir?
- Não - foi tudo o que consegui dar-lhe como resposta às duas perguntas. Quer Nahid estivesse delirante devido às dores e perda de sangue, quer tivesse ultrapassado um limite em que deixara de se interessar pelos sentimentos dos outros, era coisa que me sentia incapaz de discernir; ela prosseguiu, contando-nos um episódio que nos demons traria o "quanto estes molás são nojentos", nas suas palavras. Confiou-nos que fora engatada por um molá num dos santuários mais sagrados no Largo Tagrish, situado na zona norte de Teerão. Abordara-a depois de ela ter terminado as suas orações no dito santuário e perguntara-lhe se estaria disposta a ser a sua seegheh. Ela concordara, ocultando-lhe que já era casada.
- O homem era enorme - afirmava Nahid. - A energia que esse fulano tinha! Pôs-se nas minhas costas durante cinco horas, enquanto me fazia tudo o que bem lhe apetecia. Fomos para um quarto situado acima de uma loja no bazar. Lá dentro só havia uma cama, um lavatório e um frigorífico. Antes de começarmos, encheu uma bacia com água gelada. De cada vez que estava quase a vir-se, tirava o coiso para fora e mergulhava-o na água para o manter erecto. Quem me dera que Hadji tivesse tanta energia como ele. Veio-se por três vezes. uma vez na minha boca, outra num ouvido e a última dentro de mim - confidenciou-nos ela sem qualquer resquício de vergonha ou reservas.
- Ele é muito generoso, Nasrin e eu encontramo-nos com ele, e com alguns dos seus amigos, com bastante frequência. Gosta de observar duas mulheres juntas, e em algumas ocasiões há uma criança que se junta a nós. Todos estes homens são tão asquerosos, só querem é penetrar-nos pelo ânus - acrescentou Nahid.
Naquele ponto da conversa a minha curiosidade deu lugar a um sentimento de pudor que me levou a urgi-la a que se calasse, alegando que devia poupar as forças. Já no hospital, comportei-me de maneira bastante inadequada pois não desejava que se soubesse que mantinha qualquer relação com aquela mulher, sobretudo depois de tudo o que ouvira da sua boca durante o trajecto; assim, limitei-me a ajudá-la a caminhar até ao Serviço de Urgências, após o que deixei que Goli tratasse da situação enquanto eu esperava dentro do automóvel. Uma hora depois saíram as duas do hospital. Nahid estava pálida mas, aparentemente, menos histérica. Mas, a caminho de casa, esperavam-me mais revelações. O médico que a tratara já a conhecia de uma visita que ela fizera ao hospital no mês anterior, na sequência de uma tentativa de suicídio. Embora sentisse piedade por aquela mulher, simultaneamente nutria por ela um sentimento de desprezo; era uma sensação deveras estranha.
De retorno a casa, já com Nahid em segurança na sua própria cama - desta feita sozinha -, comecei a pregar a Goli por manter amizade com aquela sua vizinha tão dada a desejos sexuais desmesurados, tendo em conta a atmosfera de fervor islâmico em que vivíamos; o meu tio telefonou-me então para me informar que a minha tia Omol fora internada no hospital, temendo-se que falecesse a qualquer instante.
E de facto a tia Omol faleceu três dias depois de lutar pela vida. Causa da morte: fruta contaminada.
Voltámos a vestir-nos de luto, com os clãs reunidos em casa da minha falecida tia. Farah e o Inútil passaram por lá, e durante os cerca de quarenta minutos em que Farah lá permaneceu, não fez outra coisa senão queixar-se da qualidade da comida e das bebidas que foram servidas. O testamento que a minha tia deixou estipulava que o dinheiro seria doado aos deficientes, se bem que habitualmente fosse dispendido para alimentar os familiares de luto.
- Que grande disparate; é uma autêntica vergonha! - murmuravam os meus primos e primas, enquanto os pobres descendentes enlutados serviam chá e tâmaras aos que vinham apresentar os seus pêsames, e que passavam em grande número pela sua casa durante os primeiros dias após o falecimento.
Na manhã do funeral, despertei dando com Farah a falar ao telefone com a sua melhor amiga. Queixava-se por não conseguir encontrar ninguém que tomasse conta dos filhos, o que a impediria de assistir às cerimónias fúnebres. Cometi o erro de lhe chamar a atenção para o facto de ela não ver qualquer inconveniente em deixá-los sozinhos em casa sempre que se tratava de ir às compras, e pelo menos naquele dia a filha do porteiro do prédio encontrava-se por perto para a eventualidade de acontecer alguma coisa de anormal. Todavia, Farah continuava a insistir em que não podia deixar as crianças sozinhas.
Saí de casa depois de lhe ter pedido emprestado um elegante casaco preto, deixando-a com uma advertência.
- Tenta arranjar alguém, por favor. Sabes bem como são as pessoas. Não terão pejo nenhum em dizer que não te deste ao incómodo de ir ao funeral porque a tia Omol era apenas meia-irmã da tua mãe.
Por conseguinte, ali estava eu no centro do átrio do hospital, à espera que o corpo da minha tia fosse entregue à família; o meu tio aproximou-se de mim. Todo o clã Pessian se encontrava reunido a uma distância que lhes permitia ouvir o nosso diálogo; foi então que Dada Jan me horrorizou com as suas palavras.
- Farah esteve a falar comigo pelo telefone. Está lavada em lágrimas e diz que transformaste a vida dela num inferno.
Antes de conseguir apreender o significado do que acabava de me dizer, começou a invectivar-me de tudo e mais alguma coisa, após o que se afastou. O que diabo estaria a passar-se? Nessa manhã, quando saí de casa dela, continuávamos amigas. Quando Farah chegou, eu estava à beira de um ataque de lágrimas e de raiva; aproximou-se de mim num passo determinado, exigindo que eu lhe devolvesse o casaco. Sobre o braço trazia o meu casaco preto de plástico. Quando lhe devolvi o casaco, informei-a de que não tencionava voltar a sua casa. Sentia-me furibunda com ela: não tínhamos tido nenhuma discussão, mas ainda que tal se tivesse verificado, por amor de Deus, ambas éramos mulheres adultas e não crianças patéticas que fossem a correr para junto dos pais de cada vez que têm uma briga. Mais tarde, haveria de reflectir sobre aquele assunto; o dia devia ser inteiramente dedicado à memória da minha tia. Senti-me assolada por um sentimento de culpa por estar em lágrimas por outro motivo que não fosse a sua morte.
O corpo da tia Omol, envolto em lençóis, foi entregue às carpideiras que pranteavam enquanto aguardavam junto de uma porta lateral do hospital. No meio da confusão para me aproximar mais, fui derrubada para cima de um amontoado de detritos hospitalares lançados para a rua. Enquanto tentava levantar-me, voltei a escorregar e tombei em cima de uma pilha de agulhas hipodérmicas descartadas que se encontravam entre as ligaduras sujas.
O cadáver foi transportado numa ambulância do hospital para o cemitério Behesht-e-Zahra, enquanto nós seguimos em duas limusinas. Eu não sabia ao certo se as minhas lágrimas se deviam à minha fúria ou ao desgosto que sentia pela morte da minha tia. Do que tinha a certeza absoluta era de que me sentia extremamente só entre toda aquela gente tão peculiar. Os turistas da morte vagueavam por aquele mausoléu macabro pedindo pormenores à família enlutada sobre a morte e vida do familiar falecido.
No extenso edificio de cimento, as lavadeiras de corpos trabalhavam nos cadáveres por detrás de uma parede de vidro, enquanto as carpideiras pranteavam, uivavam e gritavam.
- Não a magoem - diziam Mina e Minu em uníssono enquanto uma mulher esfregava os calcanhares da mãe com uma pedra-pomes.
Próximo de nós outra mulher gritava:
- Vejam o seu pobre corpo! Oh, mãezinha, mãezinha, olha para o teu pobre corpo cheio de nódoas negras! - Em seguida começou a bater em si própria, na cabeça e nas faces.
Pouco depois o corpo da minha tia foi envolto numa mortalha e levado para uma sala de recepção, onde foi colocado em cima de uma maca. Em seguida foi transportada para fora por homens que eram familiares de sangue - nem sequer na hora da morte as mulheres podiam ser tocadas por homens com quem não tivessem tido laços consanguíneos. O corpo foi exibido num pequeno nicho antes de ter sido colocado sob um dossel onde um molá rezou as orações fúnebres. Depois regressámos todos aos automóveis que nos levaram para outro cemitério onde a tia Omol seria sepultada na mesma campa onde estava o corpo da sua mãe. Aí chegados, fomos empurrados para o lado à cotovelada enquanto os molás se apressavam a rezar orações junto do corpo, na esperança de virem a receber qualquer coisa.
Perto da sepultura, fui surpreendida pela presença da minha prima Shahnaz, que me brindou com um olhar cheio de frieza, não porque tivesse ouvido dizer que eu me comportara com "crueldade" para com Farah. O motivo dela era bastante diverso, tendo vindo a dar origem a um feudo familiar com proporções de romance de faca e alguidar. No Irão, todas as mortes são anunciadas nos jornais, juntamente com uma lista com os nomes dos familiares de luto, por ordem de importância. Como irmãs da minha tia Omol, a minha mãe e as minhas tias, assim como as respectivas famílias, eram nomeadas por ordem de idade. Isso caiu muito mal a Shahnaz, uma vez que o nome do meu pai era indicado antes do dela, o que me fazia merecedora do seu desprezo.
Nessa noite, antes de me mudar para um bocado de soalho em casa de Hamzeh, regressei ao apartamento de Mrs. Mo. O meu próximo local de residência tinha a vantagem de ficar a uma distância que podia ser percorrida a pé até ao Ministério da Orientação onde Mohammed dava a impressão de residir actualmente. Começámos a encontrar- nos aí todos os dias; a atmosfera que reinava em casa, com os enlutados e tudo o mais, não era de molde a permitir grandes manifestações de alegria, e eu precisava de sair, sentia necessidade de esquecer a tragédia e o desgosto.
Mohammed e o seu primo, o senhor Shirazi, iam regressar à sua cidade natal para assistirem ao tradicional casamento nómada da sobrinha de quinze anos deste último, mostrando-se ansiosos que eu os acompanhasse. Seria uma ocasião esplêndida que me propiciaria a oportunidade de ver de perto como é que os membros da tribo Qasqai viviam. Era da maior importância que eu não mencionasse aquela viagem fosse a quem fosse, explicou-me Mohammed, por causa da proibição imposta aos funcionários públicos de associação com espias debochadas.
Eu estreitava cada vez mais o meu relacionamento com Mohammed, e os nossos passeios às montanhas passaram a fazer-se mais amiúde, além de serem mais alongados. Mais ou menos uma semana depois da morte da minha tia, preparávamo-nos para outra escalada com partida de Darband marcada para as sete da manhã. O tempo estava fresco e límpido e, pela primeira vez em muito tempo, senti-me liberta na grandiosidade daquelas montanhas. Não havia necessidade de olharmos constantemente por cima do ombro à procura da Guarda Islâmica, nem tão-pouco havia a preocupação de uma madeixa de cabelo que pudesse escapar de debaixo do lenço. A magnificência da natureza dava a impressão de dissipar alguma da tensão constante da minha vida, para além de ter alguém que me prestava atenção, que ouvia o que eu tinha a dizer e, melhor do que tudo o mais, que concordava com tudo o que eu dissesse.
Nas ruas de pavimento plano da cidade, as dores que eu sentia nas costas significavam que mal era capaz de caminhar, obrigando-me a usar o aparelho para as costas durante pelo menos cinco horas por dia; nos dias verdadeiramente maus, tinha de arrastar a perna esquerda atrás de mim, tantas eram as dores. Mas, naquelas montanhas, a minha mente e corpo formavam um todo em liberdade; uma dose suplementar de analgésicos também ajudava a aliviar as dores.
O caminho de traçado sinuoso passava por um pequeno vale aberto pelas águas de um riacho que corria da montanha e cujo caudal era engrossado pela neve que começara a derreter nos cumes à medida que o Inverno dava lugar à Primavera. Deparámos com um pequeno fio de água que escorria pela encosta até ao caminho e Mohammed estendeu-me a mão para me ajudar a evitar a terra enlameada. Aquele primeiro contacto da nossa pele era carregado de tensão sensual. Ao fim e ao cabo, até então ele só tocara numa única mulher: a sua ex-mulher. E eu nem sequer namoriscara outro homem desde que chegara à República de Deus. Chegados ao cimo do caminho, a montanha resplandecia banhada pelos raios solares, qual cúpula dourada sobre um santuário consagrado. Ali, a Pérsia era o santuário e os raios de sol eram a promessa de libertação que Deus fazia.
Teerão dava a impressão de se encontrar à distância de uma galáxia. No cimo desse cume, quase se podia acreditar que nada tinha mudado, que os mártires e os tiranos continuavam a caminhar por aqueles caminhos em vez de estarem reduzidos a pó nas suas campas. Os irmãos de Mohammed, mártires, amanhariam as suas colheitas nas redondezas de Shiraz, enquanto Bahar continuaria a pintar os seus quadros.
- Houve alguém que me falou do senhor Shirazi - aventurei-me a dizer, tentando aclarar uma nova desconfiança que me roía bem no íntimo. - A sua vida parece ter muitas semelhanças com a tua, uma vez que casou com a irmã do irmão e teve um filho que também lhe morreu.
- É por essa razão que somos tão chegados. Ele é o único capaz de compreender o que eu próprio sinto - retorquiu Mohammed antes de se desfazer em lágrimas.
- Então? Por favor, não chores. conta-me o que te aflige - insisti, agarrando-lhe na mão.
Conduziu-me até a uma saliência montanhosa oculta e sobranceira ao rio. Sentados ao lado um do outro à sombra das árvores frondosas, disse-me que aquele dia era o aniversário da morte da filha. Para piorar ainda mais a situação trágica, a garota morrera numa estrada de montanha numa escalada semelhante à que acabáramos de fazer. Face ao sofrimento evidente por que aquele homem passava senti-me muito envergonhada pelas minhas desconfianças. Antes de me aperceber do que estava a acontecer, começámos a beijar-nos, com ele a dizer que eu era a sua última oportunidade de poder voltar a ser feliz. Até então, eu nunca tinha sido a última oportunidade de ninguém.
A chegada de um casal que entretanto surgira no caminho abaixo de nós pôs fim ao nosso abraço, e foi em silêncio que regressámos ao mundo real.
O que é que te levou afazer uma coisa dessas? perguntava-me uma voz dentro de mim. Eu tinha desejado a calidez e o conforto dos braços de um homem à volta do meu corpo; quis sentir que pertencia a alguém no meio de toda a estranheza daquele novo mundo. Lá em cima, mais próxima das nuvens, ouvi o tiquetaque do meu relógio biológico. Sentia uma necessidade desesperada de alguém que viesse em meu auxílio. Quando aquele momento terminou, só me apeteceu desatar a correr para me esconder algures, mas também desejava ser parte de um casal, formando consequentemente um todo de acordo com os padrões daquela sociedade.
Mais tarde, Mohammed disse-me que nessa mesma manhã tinha visto um triângulo de pele do meu pescoço por baixo do lenço que eu usava, uma visão que o excitara a um ponto tal que mal sabia o que dizia ou fazia. Senti-me comovida com aquelas palavras, embora me sentisse simultaneamente repugnada perante o pensamento de ele ter chorado pela morte da filha ao mesmo tempo que sentia "tusa".
Quando chegámos a minha casa, Mohammed sugeriu que nos encontrássemos de novo no dia seguinte. Eu estava a meio de lhe dar uma desculpa qualquer quando ele acrescentou:
- Quero mostrar-te o resultado da degeneração da tua sociedade.
- A minha sociedade?
- É claro que não me estou a referir pessoalmente a ti. Mas sim às pessoas como a tua família, que se consideravam tão poderosas e importantes - disse ele enquanto se afastava no automóvel antes de eu lhe poder dizer "não".
No dia seguinte fomos de carro até a uma "colónia de gente rica" recentemente erigida a cerca de quarenta minutos a oriente de Teerão. Naquele local, as vivendas erguiam-se no meio de zonas de vegetação luxuriante, no centro de nenhures. Estacionámos do lado de fora de uma das mais luxuosas dessas residências; o meu acompanhante tocou à campainha de um portão recortado entre altos muros de pedra que davam àquela casa a aparência de uma fortaleza. Os cães começaram a ladrar, mas quem olhava por eles gritou- lhes que se calassem. Mohammed disse qualquer coisa através do intercomunicador, ao que se seguiram mais ladridos até que finalmente se fez silêncio e o portão foi aberto.
À nossa frente encontrava-se um belo homem jovem. Tinha um aspecto de cortar a respiração, vestido de fazenda de flanela cinzenta e tweed por cima de uma camisa de seda, vestuário que complementava com um par de botas de cano alto. Aqueles eram os olhos mais verdes e mais rasgados que eu vira até então. Tinha umas pestanas pelas quais eu estaria disposta a matar para ter, pois emolduravam um par de olhos de expressão penetrante.
Mas o corpo dele foi então acometido por convulsões; tombou completamente para a esquerda, enquanto o braço direito era impelido para a frente como se estivesse a tentar endireitar-se de novo.
- Entrem, entrem. entrem. Cala-te, Rostram - ordenou ele. Indicou-nos um caminho por onde tínhamos de passar por seis lobos da Alsácia dentro de um canil construído de lama e arame. O acesso à casa estava coberto de gravilha, com um traçado sinuoso através de relvados verdejantes e árvores de fruto, até a uma vivenda ao estilo de fazenda espanhola. O som da água que corria através de estreitas valas de irrigação ao longo da correnteza de árvores era um contraste surpreendente com o solo estéril e ressequido que se via do lado de fora da propriedade, para lá dos muros.
Fomos saudados pela mãe do jovem reclinada numa cadeira na varanda encimada por um alpendre de roseiras. Ao lado dela havia um copo cheio de chá de onde o fumo se evolava. Quando nos aproximámos, ela levantou- se, apesar de o seu sorriso não ser de boas-vindas; de facto, era um sorriso sem vida nenhuma, sem nenhum traço de vivacidade. Devia ter cerca de cinquenta anos e a pele muito escura tinha uma compleição num tom de azeitona cheia de marcas. Submetera-se à operação obrigatória ao nariz, o qual era pequeno e arrebitado e parecia tristemente fora de lugar no seu rosto rotundo. Como é que ela poderia ter dado à luz um filho tão bem-parecido?
- Já conhece a minha mulher, não é verdade? - perguntou ele dirigindo-se a Mohammed, quando a mulher voltou a sentar-se sem proferir uma só palavra.
Ela esboçou um sorriso frio. e estéril ao ver a expressão de surpresa estampada nos meus olhos.
- Ele tem quarenta anos, mas acontece que se parece com um garotinho. O estilo arquitèctónico espanhol dava lugar a um interior de opulência ao estilo do Médio Oriente, com as paredes cobertas por tapeçarias finas no meio de pinturas que reproduziam batalhas e cenas de caça. Um par de degraus conduzia ao plano inferior da área de estar atulhada com tesouros do passado. Espalhados pelo chão viam-se vários almofadões de seda junto de requintadas peças de mobiliário antigo. O valor dos têxteis, somente naquela sala, teria sido o suficiente para a subsistência de uma pequena nação durante uns dois anos.
- O legado que o meu pai me deixou - disse o jovem, apontando para os seus pertences como se apontasse para um cancro.
A mulher dele seguiu-nos até dentro de casa e agachou-se em frente de uma lareira enorme na qual um manto de cinzas de um branco puro cobria um braseiro ainda em combustão. Meteu a mão por baixo de uma manta e retirou um tabuleiro onde se via um par de tenazes e uma espécie de cachimbo muito intrincado. Enquanto nos sentávamos nas almofadas, tirou algo do tabuleiro e encheu o cachimbo. Em seguida apanhou um bocado de carvão incandescente que ardia na lareira e, servindo-se das tenazes, levou-o até à extremidade do cachimbo inspirando profundamente. O cheiro do ópio começou a pairar na sala.
- Estão a ver este carvão? - perguntou o rapaz. - É o melhor carvão que existe para o ópio. Quando o carvão é de boa qualidade, fumar torna-se muito mais agradável. Gasto muito dinheiro para adquirir carvão deste tipo. - O seu corpo foi atravessado por outro espasmo. - O meu pai ensinou-me a querer só o melhor em tudo na vida.
Rashid, o nosso anfitrião, era o filho varão de um nobre que se casara secretamente com uma das princesas da corte do xá. O jovem não era filho dessa princesa, o que não o impedira de desfrutar das mordomias da vida na corte.
- O meu pai era um grande jogador. na realidade, um jogador inveterado, o melhor jogador de sempre. E deixou- me sem nada neste buraco, neste inferno - acrescentou ele enquanto o seu corpo era acometido por duas convulsões. - Deu-me três apartamentos em Londres, por detrás do Harrods, por ocasião do meu décimo oitavo aniversário. Eram apartamentos maravilhosos. lindíssimos. os meus andares. Ele era um grande jogador. perdeu um milhão de dólares numa só noite em Londres. "Filho", disse-me ele, "preciso dos teus apartamentos".
Um outro espasmo.
- Dei-lhos sem a mínima objecção. Os meus andares - continuou Rashid enquanto a mulher lhe passava o cachimbo para as mãos.
O cachimbo emprestava-lhe um aspecto de pessoa mais velha quando o levou à boca. Entretanto a mulher saiu da sala, regressando pouco depois com o chá encorpado e bem adoçado com que se costumava acompanhar o fumo de ópio. Vinha acompanhada de um homem mais velho que dava a impressão de ter acabado de se levantar da cama.
Quantos cachimbos já fumaste hoje? - perguntou o homem.
- Este é o sétimo - respondeu o rapaz. - Ela leva-me uma pequena dianteiraacrescentou, acenando com a cabeça na direcção da mulher que se retirava. O esforço provocou-lhe outro daqueles espasmos que lhe percorriam o corpo todo.
- Quando tens de te apresentar para a tua análise, Amoo? - inquiriu a mulher dirigindo-se ao homem mais velho depois de ter regressado com um termos e cinco copos pequenos.
Rashid começou a explicar-nos que o tio paterno (Amoo) fora apanhado a fumar ópio durante uma festa, o que lhe valera dois meses numa cadeia.
- Não tanto tempo como eu - disse-me ele. - Fiquei encarcerado durante cinco anos.
Deixou cair o cachimbo e levantou-se de um salto começando a despir o casaco e a camisa. Ninguém, e muito menos Mohammed, pareceu objectar àquela exibição de seminudez. As costas nuas mostravam claramente as marcas de muitos espancamentos.
Presentemente, o tio de Rashid era obrigado a apresentar-se para colheitas regulares de sangue, o que confirmava se voltara a utilizar ópio ou não. Há dois dias que não fumava a droga, situação que o tornava um pouco mais do que exasperado, tendo tomado uma grande quantidade de pílulas contraceptivas, que aparentemente eliminavam os traços de estupefacientes no sangue.
- Já estive preso em duas ocasiões, e durante os últimos catorze anos já levei mais de duzentas chicotadas. Vêm a minha casa pelo menos uma vez por semana, motivo por que tenho de fumar durante a noite ou logo pela manhã. Às nove e meia recebemos a visita de um homem que leva consigo todos estes acessórios, voltando a trazê-los depois da meia- noite - explicou Rashid.
Era horrível estar sentada naquela casa a observar o declínio de um homem novo, as sobras de uma aristocracia extinta, e contudo era impossível não chegar à conclusão de que todos os males que afligiam a nação se encontravam enraizados ali, naquela decadência.
Quando viemos embora, Mohammed começou a arengar-me sobre o estilo de vida de Rashid, dizendo que ele era um dos meus iguais. Parte de mim sentia-se furiosa com este homem que tinha a ousadia de me julgar com fundamento nas acções dos outros, e contudo havia esse sentimento de culpa enterrado bem no fundo da minha mente: culpa por fazer parte dessa extravagância, quando ele vinha de uma vida cheia de dificuldades. A nossa maneira de viver fora ignominiosa; eu sentira aversão em fazer parte de um estrato da sociedade que se recusava a vestir roupas de grandes estilistas depois de as terem usado uma única vez, gente que desbaratava uma fortuna todas as noites em clubes da moda, comprando tudo o que lhes apetecia, após o que ficavam de consciência tranquila ao custearem os estudos universitários de um dos seus serviçais.
Não obstante, não estava na disposição de permitir que Mohammed se saísse airosamente depois de ter estabelecido aquelas generalidades. Nessa outra vida, tinham existido uma ou duas casas onde eu sabia que havia uma sala reservada ao ópio. Mas na República de Deus esse estupefaciente encontrava-se por toda a parte. Mau-grado a execução de milhares de "traficantes de drogas" às mãos dos molás, conseguia-se arranjar sempre aquilo que se desejava, quando se quisesse. Quase todas as casas que eu visitava nos dias de hoje, à excepção das da minha família mais chegada, tinham o cachimbo e demais apetrechos que permitiam que se fumasse até se atingir o estado de olvido.
Finalmente, tinha arrendado o meu próprio apartamento, e nada menos do que um de luxo. Um dos meus amigos concordara em alugar-me essa casa sem que registássemos legalmente o aluguer, o que nos permitia circundar a proibição que me fora imposta de realizar qualquer transacção financeira, assim como a obrigação dele de pagar impostos sobre esse arrendamento. Agarrei a oportunidade sem sequer me conceder tempo para pensar se seria inteiramente sensato sofrer de vertigens e viver no décimo nono andar de um bloco de apartamentos situado no cume de uma colina escarpada, num andar que tinha janelas do chão ao tecto numa das faces laterais, com pouquíssimo espaço entre os residentes e um abismo a pique.
Era um lugar pequeno e simples. Tinha um quarto com duas camas de pessoa só; um vestíbulo aberto que ligava com uma sala de jantar e estar em "L"; à direita da porta havia uma cozinha ínfima junto da qual ficava a casa de banho. Tanto o quarto como a área de estar davam para uma grande varanda aberta onde se podia tomar banhos de sol clandestinos. O mobiliário era novo e em tons claros e o interior tinha muita luminosidade.
Goli chegou para me ajudar a arrumar as minhas coisas e a fazer uma pequena limpeza porque "eu sei que detestas ter de limpar". Tinha toda a razão, sou forçada a admitir que era coisa que não me agradava nada. Sempre que sou atacada pelo bloqueio mental que aflige a maioria dos que escrevem, dedico-me a umas limpezas a título recreativo, ou sempre que me sinto muito, muitíssimo, irritada, o que me leva a sentir que tenho de aplicar toda a minha energia em qualquer outra coisa, para além de destilar veneno.
- Nahid mudou-se na semana passada - informou-me ela enquanto limpámos tudo com um líquido desinfectante. - Decidiu ir viver com o homem que conheceu na pastelaria.
Não acredito! - repliquei, sentindo-me genuinamente chocada.
- Os filhos estão à beira do suicídio e Hadji participou o desaparecimento dela junto do Komiteh. Temospasdars a infestar todo o edificio.
- Mas porquê?
- Há cerca de uma semana ela telefonou-me para me pedir emprestado um malão de viagem. Quando lho levei, já tinha embalado todo o recheio da casa e preparava-se para partir. Quando lhe perguntei de que é que tencionava viver, apontou para a região entrepernas, dizendo-me que conseguiria ganhar mais dinheiro com a cona do que através de Hadji. O pobre do homem parece que tem cem anos.
Veio a saber-se que Nahid se tinha mudado para um apartamento numa torre acabada de construir, exactamente do lado oposto onde eu vivia! Para meu grande alívio, nunca me cruzei com ela, embora me mantivesse constantemente alerta para a sua presença.
Estava eu a viver no meu novo apartamento apenas há dois dias quando se espalhou o rumor de que havia uma mulher sozinha que residia num complexo de dois blocos de apartamentos de luxo junto da via rápida Jordan, a pouca distância da casa de Mo, o que levou a que eu começasse a receber a visita inesperada de vários "vizinhos", ou telefonemas para me perguntarem se precisava de alguma coisa.
- Muito obrigada, mas que espécie de ajuda é que lhe parece que eu precisaria às três da madrugada?
- É muito simpático da sua parte, mas a verdade é que me agrada viver sozinha. Vim para aqui com o desejo expresso de viver sozinha.
- Não, não costumo jantar, e também não como, e também não comeria consigo ainda que andasse esfaimada há um mês.
- Se não pára de me telefonar a esta hora da noite, ou melhor dizendo, da manhã, vou ter de ligar para o Komiteh.
Nazi, uma médica divorciada que vivia sozinha no terceiro andar, veio um dia até minha casa depois de eu ter ameaçado o porteiro e os seguranças com consequências terríveis caso voltassem a dar o meu número de telefone a quem quer que fosse. Ela tinha ouvido falar dos telefonemas que eu recebia e queria partilhar comigo a sua experiência nessa questão. Conhecia a maior parte dos indivíduos que agora me assediavam. Ao que tudo indicava eu tinha sorte por não me enquadrar no ângulo de visão de um homem que vivia na torre oposta e que a aterrorizara ao observar todos os seus movimentos através de um telescópio. Durante uma semana, deixei-me estar dentro de casa com os cortinados todos corridos, evitando assim ser vista por qualquer olhar mais indiscreto. Isto é, até que subitamente todos os telefonemas cessaram e alguém me endereçou uma pequena missiva apresentando as suas desculpas pela "grosseria" dos que me incomodaram.
Na noite anterior todos tiveram oportunidade de me ver, aquando da transmissão de um noticiário relativo a uma conferência de imprensa com o ministro dos Negócios Estrangeiros e Nelson Mandela, e o resultado foi que no dia seguinte começou a segredar-se a palavra "espia" pelos patamares, entre os "ainda ricos" que se podiam dar ao luxo de habitar em torres sobranceiras à miséria que grassava pela zona baixa da cidade.
Foi a minha melhor hora. Depois de ter andado durante dois dias de recepção em recepção atrás daquele herói da minha juventude, o grande homem acabara por me reconhecer. No seu último dia de estadia no Irão dirigira-se a mim no meio da multidão para me cumprimentar em frente de todas as câmaras. Senti-me de tal maneira feliz que poderia ter morrido naquele instante. De regresso a Oxford, levei um malão cheio de camisolas de algodão com a inscrição "Libertem Nelson Mandela", tendo aprendido a esquiar ao ritmo da melodia com o mesmo título.
Nelson Mandela, o homem que a imprensa apregoara ser portador de uma mensagem para Raffers endereçada pelo presidente dos Estados Unidos, George Bush, tinha-me cumprimentado; consequentemente, ambos éramos agentes dos países ocidentais.
A caminho da ruina
O facto de ter passado a morar no meu próprio apartamento era uma diferença do dia para a noite. Depois de mais de um ano a andar de uma casa para outra, a viver praticamente de uma mala de viagem, sentia-me empolgadíssima por poder viver num lugar em que andava de um lado para o outro usando apenas bâton e um sorriso nos lábios. Não que alguma vez o tenha feito, mas teria liberdade para isso caso me apetecesse.
Também me era permitido estar sozinha durante dias a fio, podendo passar três dias seguidos a vomitar por toda a casa de banho sem que ninguém me perguntasse "Como te sentes? ". O meu estômago sempre foi muito "nervoso", parafraseando o meu médico. Isso acontecia para que este tracto não se sentisse desenquadrado junto da minha "anca exacerbada" e dos meus "intestinos irritados", o que se coordenava bastante bem com as minhas "hemorróidas agravadas".
Celebrei a primeira noite que passei nesse apartamento preparando um jantar muito condimentado, tendo como convidados um casal indiano que me recebera prodigamente ao longo do ano anterior. Tanto ele como ela não se sentiram mal com o jantar, mas eu fiquei mergulhada numa sessão de vómitos incessantes que perduraram ao longo de dez dias. De vez em quando os amigos mais chegados e os meus familiares ligavam para saberem como me sentia; contudo, nenhum deles transpôs a ombreira da minha porta - ninguém, com a excepção de Mohammed, que me telefonava ou me visitava todos os dias. Perdi quase uma tonelada de peso antes de Mohammed me convencer a consultar um médico.
O médico a que me levou tinha guardas armados à entrada do edifício no qual se situava o seu consultório. Fui revistada por duas vezes enquanto subia, por mulheres que pareceram ter ficado impressionadas ao verem o passe de segurança que eu lhes mostrava e onde figurava o nome do médico em questão.
- Hoje vais ser examinada pelo melhor profissional em medicina - garantiu-me Mohammed. - É por isso que os nossos dirigentes nunca morrem.
Depois do que me pareceu ser um milhão de exames clínicos, radiografias e um número ilimitado de perguntas, o médico, que mais se assemelhava a um sapo vestido de branco, disse-me que eu tinha um "estômago nervoso", pelo que devia evitar comer alimentos condimentados, recomendando-me também que não podia irritar-me.
Não obstante a mala cheia de injecções e comprimidos que ele me deu, o certo é que continuei a vomitar tudo o que comia. À maleita do estômago acrescentou-se a Mãe de Todas as Enxaquecas. Mohammed visitava-me todos os dias e telefonava-me quase todas as noites para se inteirar do meu estado de saúde, perguntando-me sempre se queria que me trouxesse alguma coisa. Uma semana depois continuava a não me sentir muito melhor, mas em contrapartida estreitara muito a minha relação com Mohammed, que comecei a considerar como o meu único amigo. Quando voltei a poder comer, já discutíamos a possibilidade de nos virmos a casar.
Fazendo tábua rasa das terríveis consequências que sofreríamos caso fôssemos descobertos, Mohammed conseguiu persuadir-me a acompanhá-lo a Shiraz, viagem que faríamos de comboio durante a noite a fim de assistirmos ao casamento da prima de quinze anos. Mal dei conta da viagem de doze horas, enquanto Mohammed me falava dos planos que fizera para o nosso futuro. Exactamente quando é que me apaixonei por ele é coisa que não posso precisar, mas a verdade é que durante toda essa viagem senti-me no sétimo céu. Tudo o que ele dizia, fazia todo o sentido em minha opinião, tendo-me passado despercebido que fui eu quem pagou os bilhetes dos dois, assim como as refeições que fizemos durante o trajecto.
Chegados a Shiraz, a jóia do império persa, a cidade do vinho, das rosas e dos rouxinóis, alojei-me em casa da minha tia Homa enquanto Mohammed ficava com a sua família, prometendo não fazer a mínima alusão ao nosso "noivado" até que ambos estivéssemos cem por cento seguros. Quando a sós com Mohammed, a perspectiva do casamento parecia-me fantástica mas, perante a minha tia, não tive a coragem de me obrigar a dizer que ele era mais do que um simples colega de trabalho.
Parte da minha relutância dever-se-ia possivelmente ao facto de saber que a novidade chegaria aos ouvidos da minha mãe, que não hesitaria em meter-se no próximo avião que a transportasse até ao Irão para mover céus e terra para pôr fim àquela relação. A minha mãe não é grande entusiasta do casamento. Desde a minha infância que me ensinaram que se tratava de uma coisa que podia ou não vir a concretizar-se, enquanto as mulheres tratavam dos assuntos realmente importantes da sua vida - as suas carreiras. Houve filhos de muitos generais, ou príncipes depostos, que haviam sido rejeitados à nossa porta antes mesmo de eu saber que era procurada.
Como era seu hábito, o Gordo andava pela casa qual buldogue de monco caído, com o seu pijama e um cigarro suspenso ao canto da boca. Do mal o menos: deixara de pintar a carapinha de africano; os cabelos grisalhos aliviavam um pouco o seu semblante de feições carregadas. Enquanto Homa acudia a todos os seus desejos, ocorreu-me que era bastante lamentável que aquela mulher alta, uma beldade loura, elegante e espirituosa, para além de inteligente, estivesse acorrentada àquele homenzinho engelhado e vulgar, de pele escura e insidioso. A fim de manter a unidade do lar e preservar a vida familiar, ela conformara-se com toda uma vida em que ele se deitava com o rabo-de-saia disposta a abrir-lhe as pernas. O lar desmoronava-se em redor deles enquanto atravessavam a vida como sonâmbulos, situação em que a infelicidade era afogada num constante fluxo de vodca. Shiraz sempre exercera sobre mim um efeito soporífero que me fazia dormir durante todo o dia.
Na manhã seguinte, Mohammed chegou ao volante de um jipe de linhas bastante elegantes que pedira emprestado. Pouco tempo depois descobri a necessidade do jipe, quando ele entrou por terras de piso acidentado por um caminho de terra batida a partir dos limites da cidade, em direcção a uma das vilas em crescimento onde eram forçados a instalar-se os povos que em tempos passados tinham levado uma vida de nómadas. Ao fim de um percurso de uma hora através de terras desoladoras e semidesérticas, chegámos a um oásis de cor. Ao lado de duas construções de aspecto esquálido de tijolos vermelhos que passavam por casas, avistámos mais de dois mil Qashqai reunidos que envergavam as suas melhores roupas. O vestuário multicolorido das mulheres em tons de amarelo, laranja, dourado e verde garrido brilhava sob o sol do deserto. As suas faces tisnadas pelo sol faziam-me recordar os índios cherokee e os sioux.
Quando entrámos no acampamento, os homens - que se teriam enquadrado na perfeição no exército de Gengiskhan - dirigiram-se a nós num passo apressado, disparando uma rajada de tiros pelos canos de espingardas enormes.
Em criança, sempre me senti fascinada pelas histórias dos clãs tribais que o meu avô paterno me contava. O seu avô era oriundo de um desses povos do Oriente, em guerra durante muitos anos contra um clã vizinho. Ao cabo de muitos conflitos, o meu tetravô pediu que a paz fosse instaurada e convidou o seu inimigo e a família deste para uma reunião de paz. Enquanto os convidados dormiam depois de um lauto banquete, o meu tetravô ordenou aos seus guerreiros que os degolassem. Não faço a mais pequena ideia se este episódio corresponde à verdade, mas o que sei é que existem ocasiões em que sinto uma certa crueldade bem dentro da minha alma.
Apesar de tudo, sempre imaginei que esta espécie de episódios ocorre constantemente para lá da linha limítrofe da cidade. Por conseguinte, quando avistei aqueles homens tribais com aspecto de saqueadores, fiquei certa de que o meu fim estava próximo. Toda a minha vida desfilou em frente dos meus olhos quando Mohammed saltou para fora do jipe e abraçou calorosamente os nossos atacantes.
Estes receios dos ingénuos, muito semelhantes aos temores que se elevam no coração dos meus colegas, haviam-me enfurecido ao imaginarem que o Irão era povoado apenas por terroristas internacionais.
Fomos logo levados para o interior de uma daquelas casas improvisadas de tijolos, onde o cunhado de Mohammed me apresentou à sua mãe e à irmã surda-muda. Ao longo desse dia ficaria a conhecer um grande número de membros deficientes daquela tribo, o pro duto de várias gerações de procriação endogâmica. As boas-vindas que me dispensaram eram de um extremo calor humano e generosidade. Fui levada de imediato para o seio da família, cujos membros fizeram com que me sentisse como se estivesse em minha casa, embora me tratassem com a mesma deferência com que tratariam a visita de um alto dignitário. Fomos conduzidos a uma sala tosca em que os tijolos das paredes não haviam sido nivelados e estavam à vista, com um piso de cimento coberto pelos tapetes artesanais caracteristicos dos beduínos.
Depois de uma refeição de pão, queijo de cabra e verduras acompanhados por um chá escaldante, fomos levados para o exterior onde nos juntaríamos às festividades da boda.
- Onde está o senhor Shirazi? - perguntei.
- Aconteceu uma pequena tragédia - disse-me Mohammed. - O irmão mais novo da noiva foi atropelado por um carro e Shirazi está no hospital com o irmão. É possível que o garoto venha a perder uma perna.
Eu não queria acreditar no que ouvia; até mesmo naquelas celebrações eu era perseguida pela tragédia e pelo sofrimento. Seria eu alguma espécie de mau agouro? Mas também senti cólera quando tomei conhecimento de que permitiram que aquele garoto de nove anos brincasse junto da berma da estrada sem que ninguém o vigiasse, apesar de tanto Mohammed como Shirazi terem perdido os seus próprios filhos em circunstâncias similares.
Em redor de uma vasta clareira viam-se vários alpendres de lona por baixo dos quais as mulheres, usando túnicas de tecidos delicados e numerosas saias rodadas, trocavam mexericos entre si. As suas cabeças estavam cobertas por véus transparentes de cores muito vivas, com as faces emolduradas por duas tranças suspensas. Em frente delas, os homens agachavam-se ao sol enquanto fumavam e disparavam tiros para o ar numa manifestação de boas-vindas aos recém- chegados. Grandes bandejas cheias de uvas eram passadas entre os convidados, enquanto um grupo tocava música tradicional com instrumentos caracteristicos do Médio Oriente. A mãe de Mohammed, acompanhada de três das suas irmãs, chegou por fim; acto contínuo, ele levou-as até junto de mim. A mãe dele abraçou-me afirmando que já gostava de mim, enquanto as irmãs me apaparicavam, instruindo os inúmeros filhos para que me fossem buscar chá e uvas e procurando-me um lugar com sombra reservado aos convidados mais distintos.
Finalmente Shirazi chegou com a sua família e outra mulher, a mãe de Ahmad - muitas mulheres das aldeias são conhecidas pelo nome dos filhos mais velhos. A mãe de Ahmad também tinha sido a primeira mulher de Mohammed. Senti-me deveras aliviada ao constatar que ela se mostrava satisfeita e descontraída, manifestando-me tanta cordialidade como as outras. Mohammed era mais novo do que eu uns bons seis anos, mas aquela mulher, que tinha sido casada com o irmão mais velho dele, era pelo menos dez anos mais velha do que ele. Tinha uma pele profundamente bronzeada, a exemplo do que acontecia com toda aquela gente, o que se devia a toda uma vida passada ao ar livre. Era acompanhada de Ahmad, o filho mais velho do seu primeiro casamento, e Mishu, o filho de Mohammed. As outras crianças entretinham-se a brincar algures, muito provavelmente junto da berma da estrada.
Tanto as mulheres como os homens revezavam-se na execução de danças folclóricas, enquanto a mãe de Mohammed me tratava como se eu fosse a convidada de honra. O almoço foi servido aos membros mais velhos da família no chão da escola, tendo-me sido concedido o privilégio de poder comer com eles. Terminado o almoço, as irmãs de Mohammed e, tanto quanto me era dado calcular, mais ou menos vinte sobrinhas vestiram-me com as roupas tradicionais das Qashqai, ensinando-me a dançar como elas. A mãe de Ahmad, de nome próprio Sepideh, seguia-me para toda a parte, apresentando-me a todos os membros da família de Mohammed chegando ao ponto de insistir em lavar a casa de banho no exterior antes de eu a utilizar. Como diabo conseguiam elas ir à sanita com todas aquelas saias?
A noiva foi trazida de uma aldeia próxima ao cair do crepúsculo. Para minha grande desilusão, vinha vestida como uma "noiva da cidade", com as rendas e tules brancos que se poderiam encontrar nas lojas especializadas em vestidos de noiva de qualquer rua principal da Grã- Bretanha. Foi conduzida a uma sala especialmente preparada onde as paredes estavam cobertas de tapeçarias feitas à mão, e todas as janelas haviam sido tapadas com a finalidade de se criar um mundo à parte. Teria de permanecer ali durante a semana seguinte, enquanto os familiares e amigos iriam visitá-la e apresentar-lhe os seus cumprimentos. Era ali que o marido se empanturraria com os frutos que lhe haviam estado interditos fora do matrimónio.
Enquanto aguardávamos a nossa vez de apresentar os cumprimentos e oferecer os presentes de jóias de ouro, travei conversa com uma mulher chamada Touran, com uma figura miúda que teria trinta e poucos anos e que amamentava um par de gémeos recém-nascidos. Confiou-me que em tempos pertencera à Guarda Revolucionária, tendo passado dois anos na cadeia antes da revolução.
- Por vezes sinto-me muito irada. Combati ao lado da revolução e também na guerra contra o Iraque. Ensinaram-me a matar, dando-me esperanças de que faria parte da liderança da nação depois de termos obtido a vitória. Mas deixaram de precisar dos nossos serviços, de nós, as mulheres que desistiram da sua feminilidade para libertarmos o nosso povo do jugo que o oprimia. E agora dizem-nos para ficarmos em casa a cumprir a nossa missão de mulheres. O Imã Khomeini costuma aparecer-me em sonhos para me dizer que fiz parte da grande luta. Os meus filhos irão para o Céu por tudo o que eu fiz - disse-me ela mostrando-me o coto onde deveria estar o pé que perdeu na guerra.
Tanto esta mulher como a irmã mais nova de Mohammed, explicaram-me que os seus lugares no paraíso celestial estariam pendentes da aprovação que merecessem por parte dos respectivos maridos.
- Se eu for uma boa esposa e o meu marido aprovar as minhas acções, irei para o Céu. Mas caso ele se sinta desagradado e deteste a forma como eu o trate, o meu lugar será no in ferno - acrescentou Touran referindo-se ao marido que conhecera na Universidade de Shiraz onde ambos tinham estudado Química.
A irmã mais velha de Mohammed, Motaram, era mãe de seis crianças que não largavam as suas saias no meio da poeira levantada pelas festividades da boda.
- Como é que consegue? - perguntei-lhe.
- Cá tenho de me arranjar - replicou rindo- se.
- Mas por que motivo é que quis ter tantos filhos quando a vida está tão difícil? perguntei, observando a colecção de quatro filhas de catorze, doze, dez e oito anos de idade, e os dois filhos de seis e quatro anos.
- Por mim estava pronta a parar depois do nascimento da quarta menina, mas a minha sogra disse-me que teria de tentar ter rapazes ou dar o meu consentimento para que o meu marido arranjasse uma segunda mulher.
- E se tivesse optado por recusar? - inquiri.
- Nesse caso, ele teria o direito de se divorciar de mim, eu perderia os meus filhos e ficaria desgraçada para o resto da vida - respondeu ela com um sorriso nos lábios. - Não tem importância. Fico satisfeita por ter a oportunidade de fazer com que o meu marido seja feliz.
A sua irmã mais nova, Fatemeh, contou mais ou menos a mesma história, exceptuando que precisara de cinco tentativas antes de conseguir dar à luz um filho varão, além de que o marido não ficou satisfeito até ela ter dado à luz o seu terceiro filho.
Por seu turno, Soraya, a mais nova dos doze irmãos de Mohammed, fora bafejada pela sorte: dera à luz dois filhos na primeira tentativa. Ao contrário das irmãs, aprendera a ler e a escrever tendo adoptado a carreira de enfermeira. Agora trabalhava de dia e de noite para sustentar o marido desempregado.
- Não é uma situação invulgar - confiou-me Motaram. - Muitos homens das nossas tribos gostam de estar sentados a comer e a conversar com os amigos enquanto as mulheres se esfalfam a trabalhar.
Foi então que Mohammed me levou para me apresentar à avó, que também era a bisavó do noivo que se encontrava sentado a guardar a sala da noiva. Nessa noite a avó seria a primeira de entre a multidão reunida do lado de fora da porta da sala a receber o lençol ensanguentado que provaria que a rapariga era virgem.
- Existem algumas mulheres que não sangram apesar de serem virgens - disse eu a Mohammed.
- Isso é um grande disparate! Não passam de mentiras postas a circular pelas putas dos países ocidentais para tentarem esconder aquilo que realmente são - retorquiu ele.
A avó de Mohammed constituía uma visão verdadeiramente pavorosa. Não senti o mínimo remorso quando me retraí ao deparar com aquela velha aleijada, acocorada e toda encarquilhada. Deslocava-se arrastando o corpo pelo chão servindo-se de uns dedos enclavinhados e deformados que outrora haviam sido as mãos de uma noivajovem.
Se eu me decidisse a casar com aquele homem e depois viesse a morrer, os filhos que tivesse aássavam a viver junto daquela mulher no meio de toda aquela poeirada. Aprenderiam a sentar-se no chão e a comer com as mãos; seriam forçados a casar com os primos e primas, gerando filhos que muito provavelmente seriam fisica e mentalmente deficientes. As pressões que seriam feitas para se provar que estavam abençoados por Alá obrigá-los-ia a procriar que nem coelhos, e a noção ridícula de que poderiam comprar um lugar no Paraíso para os seus faria com que fossem para a guerra. Caso eu chegasse à conclusão de que não conseguia viver com aquele homem, acabando por vir a divorciar-me, ele já me dera a saber que jamais abdicaria dos filhos que eventualmente pudéssemos vir a ter, e que, ao abrigo da lei islâmica, me seriam retirados quando fizessem sete anos, uma lei que fora forjada por aquela gente boa mas primitiva.
- Se nos casarmos e eu vier a morrer, promete-me que entregarás os nossos filhos à minha família, que se encarregará de os criar - pedi a Mohammed nessa noite durante o trajecto até casa de Homa.
O que tu queres dizer é: quando nos casarmos - replicou ele. Fazes-me essa promessa?
- Sim, claro que prometo - prometeu-me ele.
A minha tia Homa deu-me a impressão de estar desgastada e extremamente cansada durante essa minha visita. A irmã mais nova da minha mãe tinha um aspecto envelhecido e extenuado. Embora continuasse a rir e a mostrar-se espirituosa, parecia que o alento vital a tinha abandonado.
Antes de ter saído de Teerão eu retomara relações com Farah, ainda que com alguma relutância; ela contou-me que Shirl, a filha de Homa que já tinha casado várias vezes, contraíra matrimónio pela quarta vez - com o poeta de Bahar. A família ficou abalada com a notícia e os mexericos contribuíram em muito para que Homa se sentisse como se a filha tivesse atraiçoado todas as normas da decência. Talvez fosse por isso que ela manifestava tamanha infelicidade - não pela felicidade da filha, mas sim por causa da resposta negativa da família a essa felicidade.
Homa também acusava a exaustão provocada por dez anos a cuidar da Maman Joon, a qual era esperada em Shiraz a qualquer altura. A minha avó passara toda a sua vida rodeada de serviçais que satisfaziam todas as suas necessidades, tendo adquirido padrões muito exigentes. Com as transformações que se verificavam na sociedade, cada vez eram menos as pessoas dispostas a servir, muito em especial depois da revolução, pelo que o fardo de fazer as coisas ao gosto da Maman Joon havia recaído em Homa e Bahar. Em Damavand, um dos muitos jardineiros falou comigo numa ocasião.
- A sua avó, Deus a abençoe, pensa que é um pecado permitir que uma pessoa descanse. Tenho a certeza de que se um dia qualquer ela não encontrasse nada que eu pudesse fazer, atiraria o meu chapéu para o jardim dizendo-me que o fosse buscar; havia de preferir fazer isso do que deixar que eu me sentasse por um minuto.
Com a morte de Bahar, e com Dada Jan muito relutante em levantar sequer um dedo, e com a minha mãe em Oxford, cabia a Homa a tarefa de olhar pela sua mãe, precisamente quando ela própria mais necessitava de descansar. Era por de mais evidente que Homa se tornava cada vez mais dependente de uma bebida rápida para aliviar o sofrimento que nunca lhe abandonava os olhos. O Gordo tinha entrado uma vez mais em rota de colisão com as autoridades, tendo-lhe sido retirado o passaporte, medida que pusera fim a um negócio lucrativo que ele gerira entre o Irão e os Estados árabes. A sua tipografia também se encontrava em dificuldades, dado que as autoridades o tinham advertido de que provavelmente não lhe renovariam a licença de actividade. A situação de Homa, sozinha naquela cidade sem as filhas e demais familiares, deve ter sido absolutamente insuportável.
Na terceira noite que passei em Shiraz, no dia a seguir ao casamento, a minha tia começou a mostrar-se como fora em tempos, preparando-se para a visita de uma velha amiga que se faria acompanhar do marido. Tudo correra pelo melhor até que a convidada começou a fazer o tipo de perguntas de carácter pessoal que, por qualquer razão, os iranianos se sentem à vontade para fazer, quando em situações semelhantes mais ninguém se atreveria a proceder dessa maneira.
- Diz-me, Homa, minha querida, por que razão continuas a viver nesta área da cidade? Não é muito respeitável, não concordas? Tendo em consideração todos esses refugiados de guerra que vivem mesmo ao teu lado - perguntou a velha megera, qual víbora.
- Esta zona é muito conveniente - atalhou rapidamente o Gordo.
- Como assim? - perguntou a velha megera.
- Bem. toda a gente nos conhece por aqui, além de que para Homa é muito mais seguro quando tenho de me ausentar em viagens de negócios - replicou ele.
- Oh, de verdade, e para onde costuma viajar?
- A maior parte das vezes para o Dubai - esclareceu ele.
- Mas não nos disse que constava da lista dos que estão proibidos de sair do país? perguntou o grotesco marido da mulher desbocada.
- Faço muitas viagens a Teerão - tartamudeou o marido de Homa.
- Mas ainda não há muito disse-nos que nunca vai a Teerão - continuou a bruxa com uma expressão de desdém.
- Sim, mas ele costumava ir com bastante frequência antes dessa complicação com o passaporte. Agora estamos a pensar em mudar de casa. Só que ainda não conseguimos encontrar o lócis adequado - acrescentou a minha tia enquanto eu fervia por dentro, morta por seguir o exemplo de Winston Churchil e dizer à velha megera que a minha tia teria possibilidades de se mudar amanhã mesmo, enquanto ela própria continuaria a ser tão feia como o pecado. Por que razão a minha tia não lhe ripostava na mesma moeda? Por que motivo não lhe dizia sem rodeios que se metesse na sua vida?
Permanecemos em Shiraz durante dez dias e, pela primeira vez, comecei a gostar dessa cidade e a vê-la sob uma nova perspectiva. Eu odiara aquele lugar, mas agora adorava os almoços nas tendas nómadas e os jantares com os molás. Estava a aprender tanta coisa nova, e tudo devido a Mohammed. Ele era o meu guru e eu sentava-me aos seus pés como se fosse uma aluna.
Ao fim de pouco tempo comecei a confundir o instrumento da aprendizagem com o conhecimento em si, pelo que não foi preciso muito tempo para o considerar sabedor de tudo, aquele a quem nada escapava. Ele dedicara tanto do seu tempo à minha pessoa, sempre a tentar fazer o que mais me agradasse e certificando-se de que eu desfrutava sempre da melhor panorâmica, que me serviam a melhor comida e me deixavam sentar no lugar mais confortável. Concordava sempre com qualquer ponto de vista que eu expressasse, fosse este sobre mulheres, religião, política ou a qualidade dos programas que a televisão islâmica transmitia. Alegava que a obsessão que as pessoas sentiam pelo sexo só poderia ser ultrapassada com mais liberdade, não vendo qualquer motivo para as mulheres terem de usar véus. Arranjou-me entrevistas com médicos que criticavam o regime; com molás ansiosos por permitirem uma ordem social mais branda; assim como com membros da Guarda Revolucionária que se opunham às chicotadas públicas; mostrou-me muitas facetas do Irão que nunca imaginei poderem existir.
Quando Mohammed chegou para me levar quando a nossa estadia terminou, eu olhava com mais tolerância para as peúgas brancas, para as calças baratas e rasgadas, para o casaco de imitação de pele. Todas as minhas reservas foram afastadas para o lugar mais recôndito da minha mente quando, ao longo das doze horas seguintes, Mohammed me dizia até que ponto necessitava de mim.
Decidimos que o primeiro filho nasceria no ano seguinte, o que me daria a oportunidade de ter mais um ou dois antes que se tornasse demasiado perigoso. Ele insistiu em que deveriam nascer por cesariana, afirmando que era menos prejudicial para a minha saúde. Tempos mais tarde, vim a descobrir que este método de dar à luz é muito preferido pelos homens do Irão pois acreditam que o parto natural deixa a vagina demasiado larga, o que posteriormente os impedirá de sentirem tanto prazer sexual.
Disse-me ainda que a coisa mais importante na sua vida era estudar e que o seu grande anseio era poder frequentar a universidade na Índia, onde tencionava fazer um mestrado. Nada o impediria de continuar a estudar, uma vez que isso era a sua maior paixão.
- Sinto-me mal se deixar passar um único dia em que não leia algo que me satisfaça intelectualmente - disse-me ele numa ocasião mostrando-me um livro qualquer. Leu uma página antes de retomar a nossa conversa que entretanto interrompera.
Pouco tempo depois ambos nos encontrávamos mergulhados num mundo de fantasia onde ele iria para Oxford para tentar obter o seu mestrado no campo das Artes, após o que prosseguiria com vista a um doutoramento.
- Não digas à tua família que quero ir para Inglaterra. Deixa que pensem que me sinto relutante e que tu é que conseguiste persuadir-me. É melhor desta maneira. Não desejo que pensem que me casei contigo com o único objectivo de ir para a Grã-Bretanha e ter alguém que custeie a minha educação académica - explicou-me.
O quê? O que é que era aquilo de lhe pagar os estudos? fez-se ouvir a minha vozinha secreta.
- Achas que conseguirei arranjar emprego? - perguntou-me ele.
- Claro que consegues, meu querido - respondi, bastante mais aliviada.
Se eu for capaz de ganhar duzentas libras por mês, terei dinheiro suficiente para enviar à minha mulher e filhos - acrescentou.
- De que mulher é que estás a falar?
- Não posso abandoná-los assim sem mais nem menos só porque arranjei uma nova mulher - replicou, resposta que aceitei como explicação suficiente. É claro que se referia à ex-mulher, e que espécie de homem seria ele se estivesse disposto a abandonar os filhos?
- Ela perguntou-me se tínhamos a intenção de nos casarmos - continuou ele.
- A mim perguntou-me se estava a pensar em casar. Mas não mencionou o teu nome, embora tenha sorrido de uma maneira cúmplice e olhasse para ti enquanto conversávamos - disse eu por minha vez.
- Sepideh diz que se casarmos e ficarmos a viver no Irão teremos de ficar com as crianças - adiantou ele de uma forma casual.
- O quê? Com certeza que ela não estaria disposta a desistir dos filhos, não achas?
- Trata-se de uma questão que não nos afectará em nada, uma vez que vamos para Inglaterra - redarguiu ele, voltando a concentrar-se na leitura do livro.
Dez minutos mais tarde voltou a abordar o assunto dos seus estudos.
- Não me parece que possa estudar e trabalhar ao mesmo tempo. É preferível ir para a Índia, onde terei meios para estudar, e de lá poderei enviar dinheiro para o sustento dos meus filhos.
- Mas toda a gente trabalha e estuda simultaneamente. É muito normal, tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra - argumentei.
- Sim, sim! Para as pessoas que só querem um curso universitário que lhes sirva para ganhar dinheiro. Mas quando se deseja estudar como eu, aprender de verdade e desenvolver todas as nossas capacidades intelectuais, não podemos desperdiçar tempo a trabalhar. Temos de ter um livro à nossa frente a todas as horas do dia - afirmou Mohammed.
Estúpida, estúpida e estúpida! Eu deveria ter mudado de lugar naquele mesmo momento, e logo que chegássemos a Teerão deveria ter-me afastado sem sequer olhar para trás. Mas a criatura patética em que me tinha transformado alegou que eu não seria a primeira mulher a pagar os estudos do marido para que este pudesse ir para a universidade. Durante toda a minha vida fui bafejada pela riqueza, e por isso certamente teria essa obrigação para com aquele homem que eu amava; proporcionar-lhe as vantagens que eu assumira como garantidas.
- Terei de regressar ao Irão pelo menos duas vezes por ano, para visitar as criançasprosseguiu Mohammed.
- Claro que sim, querido.
Esclarecido e estabelecido este ponto, a nossa imaginação começou a correr à nossa frente, aterrando numa cabana de madeira no Alasca onde ele escreveria a sua tese e eu escreveria os meus manuscritos. Escolhemos nomes para os nossos dois filhos e filha. Para ser exacta, foi ele que escolheu o nome dos filhos - Aristóteles e Sócrates. Não tinha importância, eu disporia de muito tempo para conseguir convencê-lo a optar por Pierre, Nikolai e Natasha. Eu continuava a viver a minha fantasia de Guerra e Paz.
- Gostaria que fizesses uma coisa que te vou pedir. Não és obrigada a concordar, mas tornar-me-ias muito feliz - acrescentou ele com astúcia.
Seja o que for!
- Quando forem homens ao teu apartamento, homens que vão tratar de assuntos profissionais ou que não sejam casados, achas que podias, por favor, usar o teu hejab?
- Nunca precisei de me tapar para repelir qualquer homem - respondi profundamente indignada.
- És tão pura como o leite, minha doçura, mas acontece que os homens do Irão vivem de acordo com outras regras; pensam que se uma mulher aparece à sua frente com os cabelos descobertos, está automaticamente a enviar-lhes um sinal de que se encontra disponível. Não quero que nenhum homem pense que pode possuir a minha mulher - rematou.
Vai embora daqui lai imediatamente, antes que seja tarde de mais, gritava a minha voz interior.
Por seu lado, os meus ovários replicavam: Talvez já seja demasiado tarde; não percas a tua última oportunidade. Uma vez mais, enviavam-me ferroadas excruciantes dirigidas certeiramente ao meu âmago.
Depois de alguma discussão, Mohammed explodiu, dizendo que pelo menos nenhum outro homem tinha visto uma só madeixa do cabelo da sua primeira mulher; ela dera-lhe essa dádiva extraordinária, mas eu era demasiado altaneira, decadente e mimada para dar o que quer que fosse a outra pessoa.
Foge! Foge enquanto podes!
Fui-me abaixo e cedi, prometendo que me cobriria em frente do homem que entregava os filmes em vídeo, convencida pelo argumento de que as suas visitas nocturnas lhe poderiam dar algumas ideias. Eu tinha entrado em areias movediças ao abrir uma excepção em que aceitava a noção de que era apropriado cobrir-me em determinadas circunstâncias, atitude que implicitamente me sujeitaria a outras cedências dessa natureza.
Encontrávamo-nos a duas horas de Teerão quando parámos para meter gasolina. Mohammed saiu do veículo para fumar um cigarro - mesmo em frente do posto de abastecimento! Teria enlouquecido?
Ao observá-lo a agachar-se sob o lusco-fusco do nascer do dia e a fumar um cigarro, com as suas roupas todas desalinhadas, tentei banir a aversão repentina que me assolou. Não seria capaz de suportar outra partida falsa; não queria fugir de mais um relacionamento amoroso. Acima de tudo, não desejava que as minhas amigas iranianas interrompessem subitamente a conversa que travavam quando eu entrasse em qualquer lugar, porque na altura discutiam os perigos de se ter filhos depois dos trinta anos. Não desejava que mulheres iranianas, que me conheciam desde a minha infância, me olhassem com comiseração de cada vez que falavam de alguém que estivesse prestes a casar-se ou a dar à luz.
Finalmente regressámos a minha casa e verificámos que todo o complexo habitacional fora transformado em casernas militares. Viam-se soldados por toda a parte, juntamente com vários veículos blindados que bloqueavam a rua íngreme até ao parque de estacionamento de vários andares semiconstruído através do qual tínhamos decidido atalhar. Mohammed olhou para toda aquela exibição das forças militares e decidiu que o táxi por que eu tinha pago os olhos da cara teria de o deixar em primeiro lugar, após o que regressaria levando-me a casa.
Mohammed disse ao motorista que parasse ao cimo da rua onde vivia - deve dizer-se que não poderia ser considerada uma rua, mas sim um caminho de terra batida no meio de nenhures onde alguém erigira uma correnteza de edifícios de tijolos. Nem sequer me deu um beijo de despedida - convinha não esquecer que, ao fim e ao cabo, estávamos na República do Islão - antes de sair apressadamente do táxi e começar a subir o caminho, com a lama a manchar-lhe as calças beges enquanto caminhava. Instruí o motorista para que saísse do ângulo de visão de Mohammed, mas que não se afastasse tanto que me impedisse de ver o amor da minha vida por mais alguns minutos. Ao invés de entrar no bloco de apartamentos onde tinha dito que era a sua casa continuou a descer a rua em direcção a outra torre, quase igual à que me indicara.
Disse a mim própria que devido ao lusco-fusco do crepúsculo provavelmente se enganara na casa, já para não mencionar que deveria estar cansado.
O homem de negócios alemão que construíra o complexo onde eu vivia foi detido pelas autoridades na noite anterior ao meu regresso de Shiraz. Agora, o Exército, a Guarda Revolucionária e o Tribunal Islâmico, com uma pequena ajuda da Fundação para os Oprimidos e dos Sacrificadores da Vida, tinham assumido a gestão do complexo habitacional. Os funcionários públicos e oficiais destes organismos de "liberdade" andavam muito atarefados a averiguar que andares poderiam confiscar para o Estado. Com a sua perícia habitual, a Fundação descobriu mais de vinte apartamentos que eram propriedade de pessoas que não viviam na República de Deus. Pediram formalmente aos inquilinos desses apartamentos que os evacuassem, após o que as habitações foram "entregues aos oprimidos" - na sua grande maioriajuízes oprimidos, magistrados e oficiais das forças armadas, tudo gente oprimida.
Voltei a ver Mohammed na manhã seguinte no Ministério da Obstrução. Uma mulher alta, usando o horrível chador negro, estava ocupada a namoriscar descaradamente com ele à vista de todo o departamento. Levando em linha de conta o clima de medo e desconfiança, isto era algo digno de nota. Deixei-me ficar no corredor sem ser vista, perguntando a mim mesma como é que ela tinha a temeridade de se comportar daquela maneira aos olhos de todos os presentes. Mohammed estava tão concentrado na mulher que nem deu pela minha presença; chamava-lhe mishmooshy e ela ria-se.
- Tenho de ir para escrever o meu artigo sobre o matrimónio temporário - disse ela com um piscar de olhos e uma risadinha antes de sair do gabinete.
Sentia-me furiosa e ao mesmo tempo devastada. Pensei que ele manteria sem dúvida alguma uma relação amorosa com ela; entrei no gabinete e saudei os meus compinchas do Ministério da Obstrução, embora tivesse ignorado a presença do homem que em princípio seria o pai dos meus filhos. Ele sorriu-me e lancei-lhe um olhar de reprovação, sentando- me ao lado de Matt, que começou a segredar-me ao ouvido acerca de uma entrevista que conseguiria arranjar-me e que não devia deixar que os meus colegas jornalistas viessem a saber que tinha sido ele. Mohammed mostrava uma expressão furiosa, o que me levou a imaginar que a minha desfeita o tinha atingido em cheio.
Nessa noite ele arriscou-se a atravessar o bloqueio e aparecer para jantar, mostrando uma disposição de meter nojo. Fizesse eu o que fizesse, recusava-se a falar comigo, sentado em silêncio com toda a sua atenção concentrada num vídeo.
- O que é que se passa? - perguntei, esquecendo-me da fúria que continuava a sentir por causa da mulher que vira no gabinete dele.
Nada - respondeu Mohammed numa voz rosnada.
- Só perdeste a voz, foi isso? - perguntei na brincadeira.
Foi um gracejo a mais e Mohammed pôs-se de pé de um salto, com olhos que chispavam de cólera.
Não, só sinto vergonha por conhecer uma mulher assim! - ripostou numa voz sibi lada.
O quê?
Hoje rebaixaste-te, deixando que um zé- ninguém te tratasse como se fosses uma puta! - ripostou furibundo.
- De que zé-ninguém estás para aí a falar? - perguntei genuinamente intrigada.
- Esse filho da puta que permitiste que te segredasse ao ouvido como se fosses uma galdéria - respondeu ele. - Toda a gente no escritório não fala de outra coisa, comentando
até que ponto és ordinária.
Foi um assunto de trabalho. De que diabo é que estás a falar? - vociferei.
- Isso quer dizer que trabalhas com a cona, é isso?
Fiquei absolutamente aparvalhada. O que é que dera origem a tudo aquilo? Que diabo tinha eu feito assim tão reprovável?
- Não permito que ninguém me chame galdéria, especialmente tu! - rugi. - Não sei por que razão estás tão encolerizado. - Aquilo que eu deveria ter feito naquele preciso momento era abrir a porta, dizendo-lhe que deixasse a minha casa e que não se atrevesse a voltar. Em vez disso, tentei defender-me a fim de provar que não era nenhuma prostituta.
- Neste país, nenhuma mulher decente permite que um homem lhe segrede ao ouvido. Se quiseres ser minha mulher, vais ter de aprender a portar-te como uma boa muçulmanaacrescentou. - Toda a gente fala de ti. Estou a dizer-te isto para o teu próprio bem. As pessoas comentam o teu hejab, dizem que mostras demasiado cabelo, que sorris e te ris em demasia com os homens.
- Eu sorrio e rio-me com toda a gente. Sou uma pessoa muito amigável; é esse o meu carácter - repliquei numa tentativa para me defender.
- Caso continues a proceder dessa maneira, eles retirar-te-ão a acreditação, e até te meterão na mesma cela que está vazia desde que Roger Cooper lá esteve. Estás a fornecer munições aos meus inimigos para me atacarem. Andar contigo é muito perigoso para mim. Poderão prender-te a qualquer altura sob a acusação de andares a espiar - alegou ele mudando o rumo da conversa.
- Que a maldição caia sobre mim se vou mudar a minha atitude para agradar a um bando de fanáticos incapazes de elevar os seus pensamentos acima da cintura! - disse-lhe, dirigindo-me bruscamente para a cozinha; naquela altura já não me sentia irritada com ele, mas sim com aqueles míticos "eles".
Dois minutos depois seguiu-me.
- Estes militares fazem com que seja muito perigoso visitar-te em tua casa. Estou em crer que temos de deixar de nos ver por uns tempos.
À minha frente abriu-se imediatamente um abismo de solidão.
- Não vejo bem por que motivo. Ao fim e ao cabo, nós até trabalhamos juntos. O que é que eles poderão apontar-nos?
- Podem dizer que ambos somos espiões. Podem meter-me na cadeia durante muitos anos, para além de terem poder para me fazer desaparecer. Não que isso me interesse muito. Bem que gostaria de ir para uma das prisões deles onde passaria o dia a ler. Isso beneficiaria em muito a minha reputação; portanto, não tenho receio se tal me acontecer. Mas com respeito a ti, a situação seria muito diferente - acrescentou.
- Eu não pertenço às classes que podem ser torturadas - respondi, recordando-me de uma passagem do meu livro preferido de Graham Greene.
- A tua classe mete-me nojo. Pensas que te encontras acima da vida do cidadão comum. Não aprendeste nada com a revolução? - perguntou-me de forma desabrida.
Não valia a pena tentar explicar-lhe que se tratava apenas de algo que alguém dissera num livro cujo tema era a espionagem. Sentia-me encolerizada, e contudo não queria ficar sozinha; assim, comecei a preparar-lhe o jantar.
Antes mesmo de ter levantado os pratos da mesa já ele tinha vestido o casaco e se dirigia para a porta.
A minha mulher e os meus filhos estão em Teerão por algumas semanas. Não virei
cá até que eles partam - informou-me, fechando a porta depois de ter saído. Eu só queria morrer. Apetecia-me bater-lhe na cabeça. Queria saber por que razão a ex-mulher e os filhos tinham aparecido de súbito em Teerão.
Decorridos dois dias agonizantes voltou a minha casa para se explicar. Disse-me que a sua ex-mulher queria que se reconciliassem, alegando que tinha perdido uma criança e que dependia dele dar-lhe outra.
- Sepideh fez com que eu me casasse com ela da primeira vez, e receio muito que volte a repetir a mesma coisa. - Acompanhou estas palavras de um ultimato: eu tinha duas semanas para me decidir se queria casar com ele ou não.
Tentei pôr os meus problemas para trás das costas e dedicar-me inteiramente ao trabalho. A maior parte dos dias passava cerca de dezoito horas a correr de um lado para o outro a entrevistar várias individualidades, escrevendo artigos ou assistindo a reuniões em mesquitas e salas traseiras.
Grande parte do meu tempo era ocupado com vários grupos de mulheres que tentavam obter um mínimo de direitos como pessoas individuais que eram, numa tentativa para alterarem o estatuto de meros pedaços de carne que tinham de estar cobertos até que chegasse a altura de serem utilizadas como objectos sexuais. Mas pouco depois descobri a existência de um sector da comunidade feminina iraniana que não se sentia nada incomodado com a imposição do uso do véu, por razões que não se prendiam em nada com os aspectos políticos ou religiosos. Eram as criminosas que haviam concluído que roubar era um acto consideravelmente mais fácil quando levado a cabo por baixo do chador. O governo obrigou as mulheres a velarem-se mas apercebera-se de imediato de que propiciara um meio ideal àquelas que não tinham qualquer pejo em infringir a lei. É possível esconder muita coisa debaixo desses amplos lençóis negros com que as devotas cobrem a cabeça em público. Consequentemente, a segurança teve de ser reforçada em todos os grandes armazéns a fim de se impedir que a clientela feminina não saísse dos estabelecimentos com produtos que não haviam pago.
Quando entrei nos grandes armazéns Ghods do governo, encontrava-me bem-aventuradamente alheada das medidas impostas para se impedir o furto em lojas. O meu humor não era dos melhores devido ao penso higiénico que era forçada a usar por causa do fluxo menstrual, ao que se acrescia o desconforto do aparelho que tinha de usar para as costas e que me fazia parecer uma morsa grávida. Devido a tanta coisa que contribuía para o meu mal-estar, decidi não usar soutien, pelo que vestia pouco mais do que o aparelho e as cuecas por baixo do casaco.
Tudo se passou num dos meus dias maus. Os membros da imprensa foram forçados a esperar durante mais de três horas pelo ayatollah Hakim, uma espécie de Khomeini iraquiano exilado no Irão que marcara uma conferência de imprensa. Acabámos por desistir e sair do edificio como forma de protesto, e tudo o que me apetecia realmente era ir para casa, mas as boas maneiras ordenavam-me que fizesse uma visita de boas-vindas a uma prima que regressara recentemente dos Estados Unidos. A tradição também diz que temos de levar um bolo, e aquele estabelecimento era o único que eu encontraria pelo caminho onde talvez encontrasse alguma coisa que pudesse comprar para oferecer.
- Leve os seus sacos para o balcão - ordenou-me uma velha carcaça quando entrei no estabelecimento.
- Como?
- Leve esses sacos para o balcão. Não são permitidos sacos - disse a mulher numa voz desabrida.
Com relutância, depositei a minha pasta - a transbordar de documentos confidenciais que Mohammed fotocopiara para mim - em cima do balcão próximo da entrada principal.
As prateleiras estavam pejadas de produtos e tanto os ricos como os pobres faziam fila para comprar luxos em promoção e produtos de primeira necessidade a preços acessíveis. Uma hora mais tarde, depois de ter pago por uma caixa de nan nokhochi - um pão doce de grão-de-bico -, tentei sair pela mesma porta por onde tinha entrado.
- Tem de sair pela porta das traseiras. A sua pasta estará à sua espera quando lá chegar - explicou-me a guarda dos portões.
À minha frente umas vinte mulheres aguardavam a sua vez de entrarem numa pequena divisão improvisada com cortinados naquilo que em tempos fora uma saída de emergência. Depois de ter entrado nessa espécie de cubículo, disseram-me que apresentasse o recibo das compras. Procurei na algibeira do meu casaco até que acabei por encontrar o bocado de pa pel entre os lenços de papel e notas amachucadas. Em seguida, uma outra mulher disse-me que avançasse e começou a revistar-me o corpo de uma maneira superficial. Ao sentir o aparelho e o penso higiénico, disse-me que despisse o casaco.
- Não vesti nada por baixo disto - segredei.
- Dispa-o! - ordenou a megera, gritando enquanto desabotoava os botões do meu casaco, após o que me ajudou a despi-lo e começou a apalpar-me entre pernas; fiquei imóvel, tentando cobrir os seios desnudados. A fúria que eu sentia era tanta que lhe disse o que tinha a dizer utilizando algumas palavras nada agradáveis e expressando o desprezo que ela e os seus dirigentes me mereciam. Logo depois arremessei com a compra para dentro do caixote do lixo antes de voltar a vestir-me e sair intempestivamente porta fora.
A meio caminho da rua dei-me conta de que chegaria a casa da minha prima de mãos a abanar. Engoli o meu orgulho e regressei ao estabelecimento para ir buscar os meus pães doces.
- Que pães doces? - perguntou-me a mulher enquanto eu procurava no fundo do caixote do lixo de onde a caixa de nan nokhochi estranhamente desaparecera.
Ser constantemente importunada era francamente de mais. Todas as conferências de imprensa a que eu assistia, cada ministério onde entrava, de todas as vezes que ia ao aeroporto ou a um terminal de camionagem, tinha de submeter o meu corpo às mãos de uma mulher qualquer que me revistava. Uma pessoa vivia sob o temor constante de ser convocada para se apresentar no Majlis, onde nos espoliavam do mais pequeno bem que nos fizesse sentir como um ser individual. Nada de canetas, relógios, anéis, fios de ouro, nem sequer os trocos, podem passar através desses portais. Já perdi a conta ao número de vezes em que mãos estranhas procuraram entre as minhas pernas por Kalashnikovs escondidas e que me apalparam os seios para se certificarem de que eram de carne e não de Semtex'.
Há muito que nos tinham ensinado que aquilo que os iranianos faziam aos seus concidadãos não era da conta de ninguém senão dos próprios iranianos. No entanto, apesar de todos os chavões em que se desejava a morte de todos e mais alguém, continuamos a ser uma nação ansiosa por receber bem os que nos visitam, com estilo e dignidade. Considera-se que é uma vergonha para qualquer anfitrião acontecer algum contratempo a um dos seus convidados - a não ser que estes sejam por acaso espiões a soldo dos Grandes e Pequenos Satãs, como é evidente.
A jovem jornalista checo-canadense que veio a Teerão a convite da República Islâmica com o objectivo de fazer a cobertura de mais outro aniversário, não era nenhuma espia, mas
Semtex: marca registada de um plástico explosivo, inodoro e muito maleável, muito usado por facções políticas terroristas. (N. do E.)
sim uma visitante respeitável, o que lhe conferia o direito de merecer todo o respeito e hospitalidade por parte do país.
Foi com grande dignidade e num conforto relativo que foi escoltada até ao santuário do imã por ocasião da cerimónia principal da sua visita ao país. A mulher que lhe devolveu os sapatos à saída do santuário fê-lo com cortesia e deferência. As mulheres que se juntaram à sua volta enquanto ela apoiava a cabeça sobre a sua mala de mão - que colocara em cima da mesa em frente da qual se ajoelhou enquanto voltava a calçar os sapatos - também mostraram consideração e cortesia. A mulher que passou por ela e a arremessou ao chão fê-lo com boa educação e deferência; a amiga desta, que agarrou na mala de mão da mulher e a escondeu por baixo do chador, também mostrou o maior decoro enquanto desaparecia no mar de véus e saias negras.
O jovem no Grande Hotel Azadi era a imagem das boas maneiras ao informá-la de que seria obrigada a pagar duzentos dólares antes de poder dar-lhe uma chave substituta que lhe permitisse abrir o cofre de onde queria tirar o dinheiro que lá guardara.
O Apático também se mostrou atento e cordial quando lhe disse que não havia nada que o Ministério da Obstrução pudesse fazer. Foi afável e obsequioso quando lhe garantiu que a autoridade máxima dos pasdars chamara a si a chefia da averiguação para encontrar a mala de mão dajornalista.
Duas semanas mais tarde, o jornal Keyhan relatou-nos que havia sido descoberto um outro bando de larápias que operava nos santuários da capital, informando-nos de que as mulheres que o compunham haviam sido enviadas para Evin.
As muçulmanas devotas aceitavam o uso do véu de muito bom grado como sinal da sua religiosidade, ao mesmo tempo que garantiam que apenas os maridos desfrutavam do grande prazer de ver os seus corpos. Mas para as mulheres como Nahid e o seu crescente bando de putas felizes, havia outra vantagem: permitia-lhes pôr em prática a sua nova actividade pelas ruas da vizinhança sem correrem o risco de virem a ser reconhecidas por qualquer vizinho ou familiar com quem se cruzassem.
Uma noite, muito depois de eu ter abandonado o seu pequeno mundo, Goli telefonou-me a dizer que Nahid se tinha excedido. Estava no passeio de uma rua quando um automóvel que lhe pareceu familiar lhe fez sinal de luzes - sinal de que o carro se encontrava no mercado do sexo à procura de um pouco de amor e companhia feminina. Só quando ela começava a abrir a porta, preparando-se para entrar, é que constatou que o homem por detrás do volante era o marido da sua melhor amiga, das que não pertenciam à sua nova profissão. Verificaram-se alguns momentos de extremo constrangimento quando os dois ficaram frente a frente e se reconhecéram mutuamente. Não sendo mulher de deixar escapar uma oportunidade, Nahid convenceu o homem a concretizar o que tivera em mente apesar das circunstâncias.
Mas rira-se enquanto narrava o episódio a Goli, dando graças pelo chador, que considerava a maior ajuda na sua profissão desde a invenção do preservativo. Presumi que, uma vez que continuava empenhada na mais antiga profissão do mundo, o homem com quem ela fora viver devia ser o seu chulo e não o seu amante.
Uma semana depois da nossa discussão, Mohammed ligou-me ao fim da tarde para me informar que iria jantar a minha casa nessa noite. Senti um tal deleite e excitação que raiava o patético. Pedi a uma cabeleireira que vivia no meu prédio que me arranjasse o cabelo; lavei-me e arranjei-me como se me preparasse para ir a um desses bailes na corte da realeza iraniana e não a um simples jantar com Mohammed. Sem saber o que vestir, mudei de roupa pelo menos umas seis vezes antes de me decidir por um vestuário casual, embora não deixasse de ser chique.
Quando a campainha da porta soou nessa noite, nem sequer me dei ao trabalho de espreitar através do ralo antes de a abrir toda para trás e exibi nos lábios um sorriso rasgado de boas-vindas. Mohammed encontrava-se à minha frente com a cabeça baixa, e atrás dele estava um gigante barbudo vestido com o que o elegante comandante da Guarda Islâmica usava nesse ano. Antes de compreender o que é que se passava, Mohammed empurrou-me para trás em direcção à cozinha e deu passagem ao homem, que entrou no meu apartamento e passou por mim de relance com uma expressão sombria, enquanto Mohammed começava a explicar-me que estávamos metidos num grande problema, acrescentando que existiam grandes hipóteses de termos de passar essa noite na cadeia.
Aquilo não podia estar a acontecer. Em várias ocasiões tínhamos abordado a possibili dade de virmos a ser detidos sob a acusação de espionagem, mas nunca acreditei realmente que esse género de situação pudesse vir a concretizar-se - pelo menos, não comigo. Mas o certo é que estava a acontecer: fôramos apanhados e só Deus sabia o destino que nos aguardava.
- Vai fazer um chá - instruiu-me Mohammed. - Em seguida, terás de responder às perguntas dele.
Enquanto preparava o chá na minha cozinha, Mohammed explicou-me que o senhor Javan, era esse o nome do homem, pertencia à Unidade de Investigação do Ministério da Segurança.
- Esta manhã ele foi ao meu gabinete. Interrogou-me durante todo o dia; agora pretende falar contigo. Limita-te a dizer-lhe a verdade. Quando ele se for embora, terei de o acompanhar pois querem fazer-me mais perguntas.
Mas tu não fizeste nada de mal! Nós queremos casar-nos - disse eu, continuando incapaz de absorver o facto de estar a suceder-nos uma coisa daquelas.
- Querer não tem qualquer significado para esta gente. Ele está convencido de que somos espiões e, caso não consigas persuadi-lo do contrário, é muito possível que passemos os próximos anos longe um do outro. Ele já está convencido de que somos espiões - rematou Mohammed.
- O que é que devemos fazer? O que é que eu devo dizer? Vou telefonar para o jornal e pedir-lhes que apresentem um protesto - disse eu, pois naquele momento sentia-me mais do que ligeiramente atemorizada. Um misto de pânico e descrença apoderou-se de mim enquanto os pensamentos me desfilavam velozmente pela cabeça. Tinha de haver qualquer coisa que eu pudesse fazer, algo que voltasse a pôr as coisas nos eixos.
- Não existe nada que possas fazer. Irei para a prisão, muito provavelmente hoje mesmo. É possível que eles te convidem a abandonar o país - acrescentou Mohammed.
Numa atitude de egoísmo, os meus primeiros pensamentos foram que voltaria a estar sozinha e sem emprego. A minha vozinha dizia-me: Isto é absolutamente tipico, finalmente encontro alguém que é suficientemente idiota para querer casar-se comigo e é sentenciado a uma pena de prisão perpétua. Mas o bater acelerado do meu coração dizia-me que eu estava verdadeiramente assustada.
Como é que as coisas podiam continuar a correr assim tão mal? Sentia-me encolerizada e com medo. Não me tinha nas pernas e o estômago não me dava descanso. Quando levei um tabuleiro com chá e bolos para o meu indesejado convidado, só me apetecia vomitar.
Aquele homem, que tinha o meu futuro nas suas mãos, encontrava-se de pé a observar Teerão através da minha janela. Se não começasse a conversar bem depressinha, nessa mesma noite eu corria o risco de desaparecer. Ele voltou-se para mim antes que eu tivesse oportunidade de abrir a boca. A sua expressão sinistra, aliada à filiação por de mais óbvia com os círculos internos do Hezbollah, transformaram os meus medos em terror. Ali estava eu perante um destino que sempre temera desde a minha meninice, uma sina que presenciei em milhares de filmes de guerra e de espionagem que tinha visto com tanta avidez em criança - a perda do homem que amava, a tortura numa cadeia e talvez mesmo a execução.
Abri a boca mas não saiu som algum.
Foi então que ouvi os risos à socapa de Mohammed que se colocara atrás de mim. Era evidente que o temor o levara à loucura. Eu teria de ser mais forte por nós os dois e tentar sair daquela situação fosse de que maneira fosse.
- Senhor Javan, é capaz de ainda não se ter apercebido, mas está prestes a prender-nos e levar-nos para a penitenciária - disse Mohammed rindo-se.
Javan esboçoú um arreganho risonho.
- Trata-se de uma brincadeira, minha querida - acrescentou Mohammed; girei sobre
mim mesma entornando o chá que ainda não pousara e vi-o perdido de riso.
- Uma brincadeira. o que é que pretendes dizer com isso? - perguntei desabrida.
Ele limitou-se a mimosear-me com um sorriso arreganhado.
- Meu grandessíssimo sacana! - invectivei recorrendo à língua inglesa enquanto a verdade penetrava na parede de horror que ele erguera.
- Oh, minha queridinha, ficaste muito assustada? - redarguiu Mohammed. - Não devias ser tão cobarde.
- Eu não tive medo, só queria encontrar uma maneira de resolver o nosso problema - respondi a medo e uma vez mais na defensiva, se bem que me assistia todo o direito de passar à ofensiva.
Mohammed encontrara todos os pontos certos para me pôr na linha. Eu tinha-lhe confiado que nada me inspirava mais receio do que o medo, e agora servia-se desse aspecto para deflectir a cólera que eu sentia devido à sua cruel brincadeira. Eu encontrava-me em território desconhecido e era extremamente fácil tirarem-me o tapete dos pés. Para estrangeira, até que me desenvencilhava bastante bem, e contudo não estava à altura de um homem treinado para persuadir soldados que sofriam de fadiga de guerra que deviam ir com júbilo ao encontro da morte.
Afinal, o senhor Javan era apenas um outro primo que Mohammed conseguira que fosse transferido de Shiraz, onde de facto havia tido o posto de comandante na Guarda Islâmica, passando a trabalhar em Teerão no campo da investigação. Eu começava a questionar as inúmeras ligações que Mohammed mantinha com pessoas do mundo do serviço secreto, mas a noção de que ele próprio pudesse estar de algum modo envolvido nesse tipo de actividade era demasiado horrível. As suspeitas nunca chegaram a abandonar-me e erguiam de novo a sua cabeça feia sempre que as acções dele não batiam certo, sendo inegável que as palavras que proferia eram eivadas de falsidade; todavia, eu continuava a banir essas desconfianças da mente, dizendo a mim mesma que esses pensamentos eram uma deslealdade mais grave do que o adultério, um crime que por sua vez era pior do que o furto. Mohammed passara horas a fio a falar da maneira como se opunha àquilo a que chamava de a "opressão" deste regime, trabalhando de dentro a fim de restaurar a "democracia". Por outro lado, eu não desejava voltar a enganar-me; não queria que Farah andasse a espalhar falsos rumores acerca de outro dos meus amigos masculinos.
No dia seguinte, ainda estava a recuperar-me dos efeitos da "brincadeira" quando finalmente recebi um telefonema do advogado com quem falara pela primeira vez há já um ano. Informou-me que a Fundação para os Oprimidos considerava a hipótese de me concederem um lugar onde pudesse viver, pelo que no sábado seguinte devia apresentar- me na repartição das "concessões excepcionais". Treze anos depois da revolução, em termos oficiais, deixei de ser uma tirana passando a ser considerada uma das oprimidas.
Esta espécie de posição avançada particular da Fundação para os Oprimidos encontrava-se instalada no recém-construído quartel-general da Guarda Revolucionária, às portas do qual me apresentei devidamente no dia que me fora indicado.
- Não pode entrar aqui sem chador - disseram-me os guardas barrando-me o acesso ao complexo militar.
No dia seguinte não passei da guarita onde as mulheres eram revistadas.
- É proibido entrar nas instalações com sapatos brancos. Todo o vestuário e calçado têm de ser pretos.
No terceiro dia a mulher levantou-me o chador.
- Não são permitidas meias de cor - informou-me ela numa voz rosnada.
- Olhe, há três dias seguidos que venho aqui e de todas as vezes impediram-me de entrar. Vesti calças e o chador, as minhas meias são peúgas grossas próprias para ginástica, e portanto ninguém consegue ver nada através delas. Diga-me, onde é que no Corão está escrito que é proibido usar roupa de cor? - perguntei irritada, tendo aprendido à minha custa que a cólera era a melhor forma de ataque.
- A culpa não é minha, irmã - replicou a mulher numa atitude bastante mais humilde. - Os homens que estão lá dentro disseram-me para não vos deixarmos entrar assim, e nós obedecemos. Mas temos umas peúgas de reserva que poderá calçar.
Efectivamente, junto da parede havia uma caixa cheia de meias do mais negro possível. Era óbvio que haviam sido usadas por muitas visitantes ao longo dos meses de Verão; estavam tesas devido à transpiração de centenas de pés.
- Não deixe que eles vejam esse verniz de cor com que pintou as unhas dos pés - advertiu-me a mulher num assomo de quase simpatia enquanto eu calçava um par de meias de nylon por cima das unhas pintadas de um vermelho vivo. O islamismo não permite que as mulheres pintem as unhas.
Uma vez no interior do complexo, a minha presença foi sumariamente dispensada ao cabo de escassos minutos, acompanhada de alguns conselhos paternais que me foram dados pelo oficial responsável pelo meu caso e que me disse que teria de aguardar mais três semanas. Deu-me conhecimento de que o Majlis se encontrava prestes a promulgar uma lei que me permitiria obter mais indemnizações. Prometeu que me telefonaria na altura mais adequada e abandonei o complexo confiante em que me encontrava no caminho que me levaria a uma grande riqueza.
Um mês mais tarde, continuava à espera de receber notícias; sentia-me tão frustrada que desabafei com Mohammed, panilhando com ele as muitas desilusões que encontrara ao longo do processo de recuperação da minha fortuna. Por uma feliz coincidência, ele conhecia um homem que por sua vez conhecia um advogado especializado em recuperar os bens das pessoas que foram confiscados pela Fundação para os Oprimidos. Dois dias depois, um desdentado estudante veterano chamado Said levava-me ao escritório desse advogado. Mohammed explicou-me que o estudante receberia uma comissão, a ser paga pelos advogados, por me ter apresentado a eles; mas como era um grande amigo de ambas as partes, tinha a possibilidade de negociar um acordo que me fosse muito vantajoso. Said conseguiu extorquir aos advogados uma quota- parte de trinta a vinte e dois por cento de quaisquer dinheiros ou demais bens que conseguissem recuperar.
Ao fim de tanto tempo, e ao que tudo indicava, as coisas começavam a correr pelo melhor. Tinha um marido em perspectiva, escrevia para alguns dos mais prestigiados jornais e revistas a nível mundial, para além de estar a fazer qualquer coisa de positivo no sentido de reaver os meus bens.
Nessa mesma semana, um dos meus amigos regressou ao Irão, vindo de Inglaterra para onde tinha ido há vinte anos à procura de tratamento para a hemofilia de que sofria. Voltou ao país na companhia da mulher inglesa e mais de sessenta mil dólares de indemnização, além de um diagnóstico de Sida. Vários dias depois da sua chegada, desvaneceu-se na noite eterna.
Alguns dias depois da morte, fui convocada para fazer a cobertura de uma conferência destinada a assinalar o Dia Mundial da Sida, onde o ministro da Saúde iraniano nessa altura disse aos médicos vindos do mundo muçulmano que a totalidade dos duzentos e quarenta casos de Sida registados no Irão se deviam a homens que viajavam para países ocidentais e outras nações onde a decadência moral dera origem à disseminação dessa doença. Disse a todo o mundo que no Irão não existiam casos de Sida que tivessem origem na prática de relações homossexuais, uma vez que na sua nação não existiam tais "desvios".
Esse ministro deveria ter feito uma visita, numa tarde de qualquer segunda-feira, aos Banhos Públicos da Revolução (não é este o nome verdadeiro) situados na zona norte de Teerão. No exterior das paredes deste edificio semidesmoronado viam-se imagens de jovens querubins que, do seu Olimpo reservado aos mártires, dirigiam sorrisos radiantes aos que por ali passam, enquanto no interior os seus irmãos proscritos procuravam um conforto clandestino no amor que não se atrevem a mencionar publicamente pelo nome. Deparei com este refúgio da comunidade homossexual por causa de um capricho que me levou a querer reviver uma tradição que há muito passou a ser obsoleta pelo advento das casas de banho dentro de casa. Tinha havido uma época em que aqueles que não tinham a sua própria casa de banho iam a locais públicos onde tomavam banho eram banhados e confraternizavam. Os pobres lavavam-se em banhos comuns, enquanto os que possuíam meios para isso tinham direito ao seu próprio cubículo onde um lacaio os esfregava até ficarem com o corpo impecavelmente limpo. Estes banhos públicos costumavam ser estruturas grandiosas, todas em mármore e com motivos decorativos feitos a folha de ouro. Mas a passagem do tempo e o progresso tinham o seu preço, e os poucos estabelecimentos desse género que haviam sobrevivido estavam semidesmoronados e num estado de imundície.
Enquanto eu e a minha prima Shahnaz esperávamos que nos indicassem os nossos cubículos, chegou um homem novo que coxeava horrivelmente; pagou os seus tomans e foi conduzido a um cubículo. Decorridos dez minutos juntou-se-lhe um homem mais velho. Em seguida começaram a chegar em grupos; na sua maior parte eram homens novos acompanhados de parceiros mais idosos, e começaram a fazer aos pares o que costumavam fazer ocultos dos olhos das forças revolucionárias. Uma semana depois regressei ao mesmo lugar, constatando que eles estavam de novo ali, os mesmos rapazes e homens, mas desta feita vi uns quantos pares mais novos que caminhavam de mãos dadas numa atitude de desafio aberto. Fiquei a conhecer um par destes homens. Tanto um como o outro eram casados e tinham filhos e ambos queriam refugiar-se em qualquer parte onde pudessem desfrutar da liberdade de serem gays. Hamid perguntou-me se era verdade que em Inglaterra os homossexuais podiam casar. Mostrou-se bastante decepcionado por tal não corresponder à verdade, querendo saber para onde é que poderia ir, um lugar que lhe permitisse viver aberta mente com o seu apaixonado.
- Se sou obrigado a viver esta existência com uma mulher e um amor que não posso revelar, então seria com toda a satisfação que morreria - disse-me ele enquanto o apaixonado lhe dava a mão corroborando as suas palavras com acenares de cabeça cheios de vigor.
A fazer fé no que estes homens dizem, na República Islâmica a homossexualidade continua a ser punida com a pena de morte; nunca consegui obter uma confirmação oficial deste facto - davam-me sempre a mesma resposta: esse tipo de problemas não existe no Irão, e por conseguinte não há necessidade de os punir. "Os homens muçulmanos não são homossexuais", insistira o ministro da Saúde.
- Eu costumava trabalhar no gabinete do presidente da câmara, mas alguém informou que eu era viciado em ópio, o que levou a que fosse despedido. Faço uns quantos "actos sujos" a fim de ganhar dinheiro para o sustento dos meus filhos, assim como para as minhas drogas - gritou o amigo de Hamid. - Eu devia morrer por fazer amor com um homem, mas existem livros escritos por ayatollahs que dizem aos homens o que fazer se tiverem relações sexuais com um camelo - acrescentou, rindo-se ao visionar a imagem a que aludira. - Diga-me como é que pode estar certo possuir-se um animal se estivermos no deserto, sendo-nos interdito que amemos um ser humano do mesmo sexo?
Aqueles homens já tinham descido às profundas do inferno e não lhes restava saída nenhuma.
Até que a morte nos separe
O embuste de que Mohammed se serviu para me ludibriar, em que participou o falso homem dos serviços secretos, abalou-me mais do que eu estava pronta a admitir. Era forçoso que, de uma maneira ou de outra, me decidisse sem mais demoras antes que o logro viesse a transformar-se em realidade.
Quando Mohammed apareceu, já tinham passado muitos homens maravilhosos pela minha vida, personagens que haviam marcado a diferença nos mundos em que viviam, homens que me amaram mais do que fui merecedora, indivíduos por quem qualquer mulher teria dado o seu braço direito pelo privilégio de casarem com eles. Mas não eu: eu descobrira sempre uma desculpa qualquer para fugir dessas relações - os olhos dele eram demasiado verdes; a sua tendência política era demasiado conservadora; o seu cabelo era oleoso de mais.
Mohammed não era o género de homem que se enquadraria com facilidade no seio da minha família estrita, ainda que progressiva. Quanto mais seguro ele se sentia de mim, mais exigente e irracional se mostrava. Tudo aquilo que eu assumia como garantido, eram sob o seu ponto de vista coisas estranhas e novas, sendo evidente que se ressentia por tudo o que pessoas como nós tinham conseguido alcançar. Pondo tudo isto de parte, era-me impossível imaginar a minha família a dar pulos de alegria por eu me ter decidido a casar com um homem que ainda por cima teria de sustentar, já para não mencionar o que me esperaria quando descobrissem que também seria forçada a sustentar os seus enteados, a ex-mulher e os filhos.
Se ao menos pudesse ter a certeza de que aquele era o homem que desejava para mim. Houve uma altura, no cimo da montanha onde estivemos e durante o percurso até Shiraz, em que me senti profundamente apaixonada. Esse sentimento atenuara-se; agora o meu único desejo era não ser posta à margem do amor. Todavia, dei comigo a morder a língua em todas as ocasiões em que Mohammed fazia uso da palavra, tal o receio que sentia de dizer algo que o apequenasse ou o fizesse parecer estúpido.
Dever-se-iam essas dúvidas à pobreza que constatei na sua gente? Não, impossível, nunca no que tocava a esta socialista filiada no Partido Trabalhista. Assim, decidi banir todas as minhas reservas bem para o fundo da minha consciência perturbada. Consenti que o meu receio de vir a discriminar alguém com fundamento nos aspectos de classe e riqueza obscurecessem as minhas dúvidas mais evidentes quanto às atitudes culturais de Mohammed; encontrava-me prestes a dizer sim à crueldade e à opressão apenas porque não queria merecer o rótulo de preconceituosa. Mas, acima de tudo o mais, desejava ter filhos antes que fosse tarde de mais. Tinham decorrido mais de dez anos desde a minha última relação amorosa a "sério", e seguramente desde a última vez em que um homem me propusera casamento. Nesse interim, claro que tinham existido outros namorados, embora eu só me tivesse apaixonado uma única vez, mas ele já pertencia a outra mulher. E, acima de tudo, não desejava viver sozinha no Irão.
Estas eram todas as razões erradas para dizer sim, e o resultado foi um casamento em que ia de olhos fechados.
Mohammed manifestou tal alegria quando concordei em casar com ele que desapareceu durante uma semana, fazendo-me chegar à conclusão de que era outra partida falsa ao longo do meu atribulado caminho até ao abençoado matrimónio. Estava proibida de lhe telefonar para o Ministério da Obstrução, devido ao receio de que "eles" começassem a desconfiar. Por conseguinte, fiquei sozinha a magicar e preocupada durante sete dias (período de tempo que consegui preencher com trabalho), assim como sete noites agonizantes. Se ao menos tivesse agarrado naquela última oportunidade para fugir! Mas já tinha contado às minhas vizinhas e, pior do que tudo o mais, partilhara o acontecimento com Farah, que por seu turno partilhara a notícia com a totalidade do mundo civilizado. Portanto, em vez de fugir, punha-me à janela todos os dias às dezassete horas, hora a que ele habitualmente chegava depois do trabalho, a observar o cruzamento mais abaixo onde a Jordan e a via rápida Modarres se encontravam. O meu coração sobressaltava-se de cada vez que avistava um automóvel vermelho que talvez fosse o dele, para voltar a entristecer-se se a viatura passava sem virar para a rua íngreme que dava acesso à minha casa.
Por fim, telefonou-me de Shiraz, onde tivera de ir devido a uns "assuntos muito urgentes" que diziam respeito à sua fábrica. Era a primeira vez que ouvia falar da existência de tal fábrica, mas, aparentemente, Mohammed era proprietário da quarta parte de umas instalações fabris ainda por construir que viriam a produzir pectina.
Onde é que tens estado até agora?
- Estive aqui, como é evidente - ripostou desabrido.
- Podias ter-me dito aonde ias. tenho andado tão preocupada - disse eu ao meu amor.
- És exactamente como todas as mulheres - retrucou numa voz furiosa do outro lado da linha. - Pensei que fosses diferente, mas és igualzinha. Sabes bem que preciso de ter a minha liberdade, não quero uma mulher rezingona que esteja sempre a dizer-me o que devo fazer. Se por acaso eu pretendesse isso, teria continuado casado com Sepideh.
- Tudo o que te peço é que tenhas a decência de me dizeres o que fazes, bem como quando é que devo esperar que chegues a minha casa - repliquei furibunda. Grande, grande erro. Agora tinha cometido um erro. Atirara-lhe à cara que aquela era a minha casa, o que lhe dava motivo para se sentir magoado e para me fazer sentir culpada.
- É isso mesmo, é o melhor que posso esperar de ti. Mas, minha querida, acontece que dentro em pouco vais ser uma esposa iraniana, e vais ter de aprender que é a minha palavra e as minhas ordens que passarão a contar. Aqui estou eu a tentar criar qualquer coisa que me permitirá sustentar-te, e tu continuas a ter a vida mimada a que estás acostumada, mas em vez de me ajudares, só me atazanas exigindo mais de mim. És tão egoísta que queres sempre mais, e só pensas Eu, Eu, Eu - continuou o meu herói a arengar.
Senti a consciência pesada; mas o sentimento de culpa não era assim tão grande que me impedisse de desligar o telefone na cara daquele maníaco. Mas lamentei a minha acção assim que o fiz. Não queria ficar sozinha. Desejava a presença daquele homem prestes a ser o meu marido, independentemente do quanto ele pudesse ser irracional. Não queria fracassar em mais uma relação amorosa, nem sequer em relação àquele partido tão inadequado.
Duas horas depois Mohammed voltou a ligar, falando-me como se nada tivesse acontecido. Todo o projecto da fábrica estava em riscos de não se concretizar pela falta de aproximadamente quinhentas libras, disse-me o meu cavaleiro.
- Não posso voltar até conseguir resolver este assunto - acrescentou ele numa voz lamuriada enquanto eu não dava descanso à minha cabeça para tentar encontrar uma maneira de arranjar aquele dinheiro. Eu já estava a pagar um empréstimo bastante avultado, tendo-me visto forçada a vender os meus bens pessoais para poder pagar os honorários dos advogados.
Regressou dois dias mais tarde para tentar arranjar aquele montante junto dos amigos no trabalho. Ainda não me tinha oferecido para saldar aquela dívida, limitando-me meramente a ouvir as suas preocupações com uma expressão de simpatia. Eu sabia que se reavesse o meu dinheiro, até agora de posse da Fundação para os Oprimidos, poderia participar no projecto; contudo, ainda não chegara ao ponto de ser suficientemente estúpida para me oferecer.
- É a minha única oportunidade de alguma vez ficar em condições de te sustentar, e é possível que venha a perdê-la por causa de uma falta temporária de dinheiro - alegava ele.
Eu tinha um sentimento de mal-estar que me dizia que ele esperava que eu me oferecesse para o tirar de apuros. De repente mostrava-se muito ansioso por dar o nó e voltava a jogar a cartada da espionagem, para além de confessar que já não era capaz de dominar as suas paixões. Tratar-se-ia de uma mera coincidência o facto de os meus advogados me terem recentemente dado a entender que a resolução do meu assunto estava para breve?
Apesar de não faltar muito tempo para o meu trigésimo sexto aniversário, continuava a necessitar do consentimento do meu pai para poder casar. Mas Mohammed tinha uma maneira de contornar todas as situações. Desta feita era um molá condescendente que estava disposto a celebrar um casamento seegheh entre nós os dois. Eu fora educada de molde a considerar que o seegheh pouco mais faria de mim do que uma amante ou uma rameira. As meninas de bem que vêm de boas famílias não consentiam em casamentos temporários. Não obstante, a realidade é que tinham as suas vantagens; enfim, e levando em consideração a maneira como Mohammed o explicava, tinha os seus benefcios. Para começar, era uma união "temporária" que se extinguiria no término do período acordado entre as partes, pelo que eu teria a oportunidade de desfazer facilmente o casamento caso este desse em desastre. Disse-me ainda que se bem que o casamento durasse vários anos, qualquer dos interessados poderia dissolvê-lo sem ter de recorrer ao divórcio. Também significava que eu poderia vir a conhecer Mohammed melhor sem correr o risco de vir a ser presa sob a acusação de espionagem ou de ser uma galdéria.
Seria uma situação perfeita.
Fomos ao encontro do nosso pequeno molá no exterior de uma mesquita em Teerão Pars, um enclave na cidade predominantemente da classe média- baixa. Todos os meus preconceitos estavam em estado de alerta nessa noite quando um Mohammed invulgarmente jovial me conduziu ao meu destino. O molá era da variedade imunda; as sedas e caxemiras tão da preferência dos seus irmãos em Alá, mais poderosos e prósperos, não eram para a sua boca. Teria pelo menos cerca de um metro e setenta, mas era tão magro e de aspecto tão frágil que pensei poder erguê-lo do chão apenas com uma mão - isto é, caso não me importasse do contacto fisico com o manto nojento que usava sobre os ombros escanzelados. Gostei dele imediatamente, afecto que se intensificou ainda mais quando ele entrou num objecto que outrora fora um UW Carocha. A única faixa remanescente de pintura comprovava que o veículo fora em tempos de um amarelo alegre e garrido. Seguimos atrás do seu calhambeque por um trajecto sinuoso em direcção às entranhas esquálidas do subúrbio.
O nosso molá deteve-se quando chegou em frente de uma casa que se encontrava em estado de desintegração mesmo em frente dos nossos olhos.
- Parece-te que consiga manter-se de pé o tempo suficiente para nos podermos casar? - segredei ao ouvido do meu noivo. Fomos conduzidos através de um lanço de escadas de madeira muito periclitantes que subiam em espiral pela estrutura do edificio. Chegados ao
cimo, indicaram-nos uma sala no terceiro andar que fora dividida em cozinha, quarto e sala de estar por divisórias improvisadas feitas de lençóis.
Quando franqueámos a entrada da casa do molá avistámos cinco pequenos querubins que saíram de trás de pilhas de livros espalhados pelo chão e que correram apressadamente para trás da barreira improvisada. Era óbvio que faziam os trabalhos de casa em cima do soalho despido. Entretanto, a voz de uma mulher perguntou se podia servir o chá, e um minuto depois uma adolescente tímida com um chador florido de cores garridas trouxe dois pequenos copos com chá e um açucareiro cheio de multicoloridos cubos de açúcar. Retirou-se depois e o pai começou a escrever o documento que faria de mim uma mulher honesta.
- Por que período de tempo querem estabelecer o matrimónio? - perguntou o molá.
- Cinquenta anos - respondeu Mohammed, franzindo-me o cenho quando fiz menção de protestar. - Tem um aspecto mais respeitável e não impede que possas dissolvê-lo a qualquer altura que o desejares -justificou ele.
Por conseguinte, quando o molá me perguntou se eu lhe passaria procuração para que me pudesse casar com Mohammed por um período de cinquenta anos, respondi-lhe que sim. Não obstante, perguntava a mim mesma por que motivo é que não teria pedido também a autorização de Mohammed. Como é que eu era a única que precisava de alguém que tratasse dos seus assuntos?
- Se tivéssemos casado por menos tempo, os serviços secretos nunca teriam acreditado na autenticidade do casamento - argumentou Mohammed quando já íamos a caminho de casa.
Foi o trajecto de automóvel mais feliz de toda a minha vida; ao cabo de tantos anos, tinha-me casado.
Não sou grande apologista em contar o que se passa na cama, mas foi a minha grande noite, aquela com que todas as raparigas sonham. Contudo, num desses sonhos eu imaginara que seria confrontada com uma galinha depenada naquela noite única.
Os homens muçulmanos, assegurou-me o meu novo amor, barbeiam os pêlos púbicos - é mais higiénico. Uma visão nada bonita, muito em especial quando os pequenos estupores esgaravatam o caminho para se libertarem.
Em que mais partes é que te barbeias? - perguntei afectuosamente troçando daquela prática.
- Debaixo dos braços - replicou com um sorriso arreganhado, como se fosse um garotinho que tivesse feito alguma esperteza.
Na manhã seguinte levantou-se logo de manhãzinha para ir trabalhar. Preparei uma omeleta - ovos mexidos para ti e para mim. Não houve "por favor" nem tão-pouco um "obrigado".
Enquanto lhe dava um beijo de despedida antes de ele sair para o trabalho, disse-me:
- Esta noite não posso vir. A minha mulher e filhos ainda estão na cidade. Senti-me devastada quando me explicou que não dissera aos seus familiares que se tinham divorciado "em atenção para com a sensibilidade dela". A prima da mulher encontrava-se em Teerão e por isso Mohammed tinha de fingir que ainda eram marido e mulher.
- Hei-de convencê-la a deixar-me contar-lhes tudo dentro em pouco, prometo-te - acrescentou antes de me deixar a acenar-lhe da varanda, lavada em lágrimas.
Estúpida, estúpida e estúpida. Eu tinha acabado de ignorar o facto de ela ter vindo à cidade, e quase me esqueci por completo do seu pedido para voltar a viver com o marido que era dela - peço desculpa, com o meu marido.
Seria possível que continuassem casados?
Não, era uma hipótese demasiado horrível para pensar sequer nela. Nunca me poderia
acontecer uma coisa assim tão má, ou não?
Nessa tarde já me tinha recomposto e começara a arquitectar um plano de acção. Poria cobro àquele casamento, sem me preocupar com a figura de parva que faria aos olhos de toda a gente. Com essa ideia em mente, pedi emprestado um chador preto a Bibi, a minha nova vizinha, chamei um táxi e dirigi-me à mesquita das redondezas, onde tencionava inteirar-me com exactidão de tudo o que teria de fazer para sair daquele sarilho em que me metera.
Na mesquita de ambiente cordial da minha vizinhança não me aguardavam boas notícias. Era verdade que um casamento temporário poderia ser dissolvido, informou-me o molá de aparência paternal, mas apenas por iniciativa do homem. A mulher era obrigada a cumprir todo o prazo acordado.
Poderia ele impedir-me de viajar?
O molá não era da opinião que pudesse, mas não estava cem por cento seguro. Aquilo não podia estar a acontecer-me. Como é que Deus tinha permitido que eu me metesse numa situação daquelas? É claro que aquilo não tinha nada a ver com Deus, as minhas hormonas e estupidez é que me haviam levado àquela situação tão aflitiva. Ainda meia- atordoada, passei pelo táxi que me aguardava quando saí da mesquita. Não era capaz de compreender por que razão aquele taxista me seguia pedindo-me dinheiro. Finalmente, dei-lhe o que me pedia só para me ver livre dele; tinha de pensar, mas na minha mente reinava um bloqueio total.
Vai já direitinha ao aeroporto e apanha um avião qualquer que te leve daqui para fora, dizia-me a minha voz interior.
Mas não tenho o visto de saida e só daqui a três dias é que haverá um voo com destino a Inglaterra, alegava o meu eu mais fraco.
Tens dinheiro no apartamento. Três meses de renda da casa chegarão para comprar um visto de saida rápido, assim como uma passagem aérea para qualquer parte. Não penses mais, põe-te a andar!
E com respeito ao meu trabalho e às minhas coisas, e o meu encantador apartamento? Se ele não me pode impedir de partir agora, também não o poderá fazer dentro de alguns meses. Só me irei embora quando tiver tratado de tudo o que tenho a tratar.
Quando dei comigo a subir as escadas do meu prédio, já tinha escurecido. A Fundação para os Oprimidos tinha dado ordem de despejo a todos os que haviam trabalhado para o homem de negócios alemão, mas antes de saírem tinham sabotado os elevadores, tal como o abastecimento de água e electricidade. Dezanove lanços de escada mais tarde, tudo o que me apetecia era um bom banho, mas ao longo da próxima quinzena só teríamos água durante uma hora por dia. Fosse como fosse, parecia que o bloco de apartamentos onde eu vivia não dispunha de instalação própria de electricidade, pelo que, em consequência disso, estivera ilegalmente a receber corrente eléctrica das torres circundantes, o que duplicava as contas de electricidade dos nossos vizinhos. Devido ao número crescente de inquilinos que se mudavam para o meu prédio, a sobrecarga de energia eléctrica era cada vez mais excessiva, provocando quebras constantes de energia.
- Devíamos ter o problema da electricidade resolvido no espaço de duas horas. Mas a partir de agora, por favor não usem mais de uma lâmpada até que tenhamos o nosso próprio abastecimento de energia eléctrica - dissera-me o presidente de gestão do comité.
- Não estou disposta a pagar sete vezes mais do que a média salarial mensal por este apartamento e ser obrigada a viver como uma pelintra só podendo ligar uma luz e sem água! - gritei-lhe.
Nessa noite discuti comigo mesma, numa tentativa para me obrigar a acreditar que o comportamento de Mohammed não era assim tão reprovável; de facto, era muito generoso da parte dele ter concordado em proteger a mulher de uma vida de dificuldades. A pobre mulher perdera os dois maridos e a filha. Como é que eu podia ser tão egoísta?
Comecei a sentir-me melhor quando o telefone começou a tocar. Era a minha família a ligar de Oxford. Não podia contar à minha mãe o que tinha feito e portanto optei por dar a notícia a Mahshid: Recordo-me de muito pouco do teor da nossa conversa, para além de me lembrar de que ela não se mostrou exactamente extasiada ao saber da novidade de eu ser uma seegheh; a minha mãe esteve quase a desfalecer quando compreendeu o que tinha sucedido.
Mahshid desligou para poder cuidar de uma mãe bastante perturbada. Fiquei a chorar durante umas duas horas, após o que fui para a cama depois de ter tomado dois comprimidos para dormir.
Casara e mesmo assim continuava a dormir sozinha.
A campainha da porta despertou-me vinte e quatro horas mais tarde, quando o meu recém-adquirido marido regressou ao lar conjugal. Eu estava com uma aparência desgraçada, com umas calças justas até ao joelho e uma camisola de algodão que usava antes de ter adormecido, para além de ter os olhos inchados de tanto chorar e dos tranquilizantes. Aquilo era o que eu tanto havia ansiado desde os dezasseis anos; portanto, por que motivo é que me sentia tão infeliz?
Enquanto fritava fígado para o jantar, ele foi à cozinha e começou a acariciar-me, dizendo-me que me amava e que não era capaz de se forçar a mudar para minha casa enquanto fosse eu a pagar a renda.
Magoa-me o orgulho - alegou ele.
Senti-me tão feliz.
Nessa noite ficámos a pé até ao amanhecer a falar do nosso passado e esperanças para o futuro. Mohammed disse que lhe era completamente indiferente tudo o que eu pudesse ter feito no passado, desde que lhe contasse tudo naquele momento, sem lhe ocultar nada.
- Se vier a descobrir mais tarde que existe qualquer coisa que não me disseste, isso matará o amor que sinto por ti. É preferível que me ponhas ao corrente de tudo agora, após o que nos esqueceremos do que me contaste, começando tudo de novo como se jamais houvesse acontecido.
E foi assim que lhe falei dos meus namorados, bem como dos noivados, das carícias às escuras e das relações condenadas logo de início.
Por seu turno, relatou-me um caso amoroso que teve com uma mulher nos seus tempos de faculdade enquanto continuava casado com a primeira mulher. Nunca dissera à rapariga que era casado.
- Não era importante - comentou. - Jamais magoarei ou atraiçoarei alguém que seja correcta para comigo, mas se alguém agir de maneira traiçoeira nunca mais me esquecerei. - Pouco depois acrescentou: - Sepideh traiu-me quando engravidou.
Pouco antes de nos conhecermos, Mohammed mantivera um relacionamento íntimo com a mulher de um ministro pouco importante que tomara uma segunda mulher mais nova do que a primeira. Mohammed invocou que desejava ver se um abalo daqueles faria com que uma muçulmana devota atraiçoasse os seus princípios e decidisse arranjar um amante. A mulher em questão levara-o a sua casa numa noite em que o marido se encontrava com a segunda mulher. Tinham-se beijado e ele acariciara-lhe os seios. Mas ela quis mais, implorara por mais. No entanto Mohammed perdera a coragem quando ela começou a despir-se; fora-se embora, apesar de ter provado a si mesmo que qualquer mulher poderia ser possuída, a despeito de toda a sua devoção religiosa.
Aquela história excitara o meu querido marido, que começou com demonstrações amorosas para comigo. Aquilo era de mais para a lamentável idiota em que eu me transformara, e foi o meu estômago nervoso que acorreu em minha salvação, dando largas aos ácidos que me fizeram correr para a casa de banho. Quando parei de vomitar, o meu encantador marido já ressonava a todo o vapor com a boca aberta, deixando ver as gengivas enegrecidas.
Eu preferia morrer a permitir que alguém viesse a saber que era somente uma esposa temporária, uma concubina, uma mulher de segunda classe que não era capaz de arranjar um marido como devia ser, sendo obrigada a conformar-se com aquilo que lhe calhou em sorte. Comecei a considerar-me como tal. Acordava quase todas as manhãs sozinha e em estado de pânico.
- Não sou uma mulher casada de verdade. Toda a gente acabará por descobrir. Nunca mais terei um marido a sério. Não sou uma esposa de verdade, não sou uma esposa de verdade. - Mas quando o meu amor chegava a casa, isto é, nos dias em que vinha, eu já tinha dado a volta às minhas queixas.
- Sou uma mulher moderna, tenho o melhor de dois mundos, posso deixá-lo sem grandes complicações, quando muito bem me apetecer.
Mas então a situação começou a agravar-se.
Aparentemente, os pais de Mohammed tinham necessidade de uma casa nova, uma vez que a antiga ruíra em redor das suas cabeças, pelo que foi decidido que deviam mudar-se para casa do filho que falecera, em Shiraz, enquanto a viúva deste e os filhos se mudariam para Teerão onde passariam a viver com Mohammed. A renda da casa de Teerão era custeada por um outro irmão, Akbar, que se refugiara na Suécia depois de o irmão mais velho de Mohammed (o falecido marido de Sepideh) ter participado às autoridades que ele e outros membros da sua família eram "inimigos da revolução". O irmão mais velho ficara com a região superior da cabeça desfeita por uma bala dos iraquianos.
Aos olhos da Shia islâmica, os casamentos seegheh devem ser supostamente esvaziados de quaisquer sentimentos, sendo unicamente um meio que permite aos homens satisfazerem os seus apetites sexuais sempre que se encontrem afastados das suas verdadeiras mulheres. Nesse tipo de casamentos temporários o homem não é obrigado a sustentar a mulher, só tem de lhe dar o preço do casamento acordado no início do contrato feito entre ambos - duas moedas de ouro no meu caso. As mulheres nesta situação não têm quaisquer direitos e os seus filhos, ao abrigo da interpretação estrita do acordo, não podem reivindicar qualquer quota-parte dos bens do pai, embora existam homens verdadeiramente religiosos que com frequência deixam qualquer coisa à sua numerosa prole.
Antes da revolução, o dirigente das orações de sexta-feira em Teerão gozava da reputação de ter aconselhado o xá a dispender dezasseis milhões de dólares distribuindo-os entre os molás, com a finalidade de os manter na linha.
- Os molás não conseguem resistir a duas coisas: dinheiro e mulheres - argumentava ele. Eu começava a acreditar que ele tinha toda a razão. A vida no Irão nos anos noventa girava em redor de duas coisas: dinheiro e sexo. Quanto mais se tinha do primeiro, mais se podia gastar no segundo. Os molás andavam de tal maneira preocupados com o assunto da sexualidade que faziam com que todos os nossos pensamentos se concentrassem nessa direcção. De acordo com o que eles dizem, se uma mulher pode sentir-se sexualmente excitada ao sentir num assento o calor deixado pelo traseiro de um homem, então a nossa sensualidade poderá ser despertada por qualquer coisa. Os meios de comunicação social davam resposta às perguntas de carácter sexual que nenhum dos seus congéneres ocidentais publicaria ou transmitiria. Houve uma mulher que perguntou a um dos muitos molás que falavam pela rádio quando é que era correcto um homem e uma mulher voltarem a manter relações sexuais depois das regras menstruais desta última. Responderam-lhe que o fluxo de sangue deveria ter parado completamente, mas caso tivesse quaisquer dúvidas, devia levar o penso higiénico à mesquita da sua localidade para que o molá ajuizasse a situação. Comecei a imaginar a imagem de várias mulheres em fila com os seus trapos ensanguentados. Aquele não era o Irão sofisticado de que todos fizéramos parte há apenas catorze anos.
Quanto mais fraqueza de carácter eu mostrava em casa, mais aguerrida era no trabalho, correndo riscos que nunca seria suficientemente idiota para correr em tempos passados. Uma vez mais, fui detida pelas autoridades, desta feita somente por uma hora, depois de uma escaramuça com um membro das forças de segurança particularmente antipático. Tudo começou durante uma conferência patrocinada pelas Nações Unidas no Grande Hotel Azadi, cujo tema era mais um assunto enfadonho que não levava a conclusão nenhuma; todavia, em Teerão nessa época, isso não me desobrigava de fazer a cobertura jornalística.
Cheguei com o meu keffiyeh enrolado à volta da cabeça, constatando que tinha o caminho bloqueado por um bajulador da SAVAMA, alto, muito peludo e de aspecto lúgubre. O chefe das relações públicas de qualquer agência responsável pela parte iraniana da conferência interveio para me explicar que estava inadequadamente vestida, pelo que não poderia sentar-me na fileira ocupada pelas "irmãs" de cabeças de ovo preto. Assim, numa atitude em que se adivinhava um pedido de desculpas, indicou-me um lugar ao lado dos homens, fora do ângulo de enquadramento das câmaras de televisão. Mas, por um mero factor de sorte, houve alguém, aparentemente do Exército de Libertação dos Cabelos, que se encontrava de serviço à câmara e a nação pôde ver de fugida a vossa do fundo do coração, tagarelando toda satisfeita com os rapazes, enquanto as minhas "irmãs" de semblantes sombrios se sentavam em fileiras de negro.
No dia seguinte decidi condescender e apareci vestida numa total negritude de luto com o maghneh, uma espécie de touca de freira que usava quando não estava a trabalhar. Desta vez o homem escanzelado das SAVAMA bloqueou-me o acesso quando entrei no hotel, tendo eu sido praticamente arrastada para fora da vista dos ministros visitantes dos vários países amigalhaços do Terceiro Mundo.
- Não sabe que não me pode tocar? - perguntei aos gritos. - Chamem já um pasdar. Quero que este homem seja preso! - bradei aos vários membros das Forças de Segurança reunidas em redor para observarem o espectáculo.
- Não pode entrar vestida dessa maneira. já lhe tinha dito isso ontem - gritou-me o magricelas.
- Em primeiro lugar, tire as mãos de cima de mim. Em segundo lugar, disse-me que o meu lenço não era adequado, mas hoje uso um belo maghneh negro. Portanto, qual é o seu problema?
- O problema é que o seu casaco tem cinto, o que deixa ver as suas formas, para além de só lhe dar por cima dos joelhos. As suas calças são apertadas e ainda por cima usa maquilhagem - explicou ele com uma expressão desdenhosa.
- Não tenho vontade nenhuma de assistir à vossa estúpida conferência; são vocês que precisam de mim, pelo que lhe sugiro que não tome nenhuma atitude que possa dar ao seu país uma cobertura jornalística negativa. Não tenho qualquer tipo de maquilhagem. acon tece apenas que sou mais abençoada por Deus. Usei estas calças aquando de uma entrevista que fiz ao presidente Rafsanjani, pelo que devem ser suficientemente boas para merecerem a aprovação dos seus elevados padrões de moral - concluí antes de respirar depois desta tirada em que tinha pisado o risco, o que não me traria qualquer vantagem. Dentro de mim havia tanta indignação e frustrações que não fui capaz de me conter.
- É possível que você seja jornalista, mas também é iraniana, o que me dá o direito de fazer consigo o que me aprouver. Caso alguém se dê ao incómodo de reclamar, já será demasiado tarde. Eles não conseguiram salvar Bazoft, pois não? - retorquiu o homem, fazendo-me sentir a espinha percorrida por um calafrio.
Não te amedrontes. Não cedas! Cospe- lhe na cara, diziam-me as vozes à desfilada pela minha cabeça.
- Vou ficar sentada aqui e podemos telefonar ao senhor Nategh Nouri (o porta-voz do parlamento) a pedir-lhe que venha e se pronuncie depois de terminar o seu discurso – disse eu sentando-me na beira da mesa decorada com um centro de flores de que Raffers tanto gostava.
- Você vai falar com quem eu disser que pode falar - replicou o magricelas.
- O povo não se sacrificou para que você pudesse andar para aí a dar-nos ordens retorqui.
- Morreram para terem a certeza de que gente como você não voltasse a poder sair à rua vestida dessa maneira indecente - contrapôs o homem.
Nesta altura já havia sido pedida a presença de funcionários do Ministério da Obstrução, dos Serviços Secretos, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Departamento de Relações Públicas do Majlis e de outros zelosos servidores de ombros largos e fatos escuros ao serviço da república.
- Telefonem ao senhor Mousavi, ele dir-vos-á tudo o que posso ou não posso fazer - sugeri a semblantes desprovidos de qualquer emoção. Em seguida dei-lhes o número de telefone. Ninguém poderá imaginar a satisfação que senti ao ver a expressão de reconhecimento que lentamente se desenhou nos seus rostos, seguida do pânico que lhes atravessou a face quando a mente começou a assimilar a importância daquele número. Não me restou dúvida de que sabiam bastante mais sobre o seu gabinete do que eu própria, mas não tencionava ficar por perto para descobrir o motivo por que todos eles começaram subitamente a dispersar, ordenando ao Magricelas, o único que obstinadamente continuava irredutível, que me deixasse ir em paz.
- Ela pode ir, mas não a deixo entrar no recinto da conferência - afirmou ele.
- Eu não faria a cobertura ainda que você me implorasse - respondi- lhe, traduzindo as palavras directamente do inglês, pelo que não faziam qualquer sentido.
Com o objectivo de marcar a minha posição, nessa mesma tarde assisti a uma conferência de imprensa dada pelo ministro do Interior, vestida exactamente da mesma maneira. Os seguranças e funcionários que zelavam pela moralidade nem sequer deram pela minha presença, quanto mais tentarem expulsar-me do edifício. No entanto, recebi uma repreensão leve por parte de Mousavi, que me telefonou no dia seguinte advertindo- me para que nunca mais utilizasse o seu nome em público. Também me disse que tinha intenção de passar pelo meu novo apartamento que ainda não vira.
Uma visita a minha casa? Era um dado novo. O que é que o velho Olhos Cintilantes andaria a maquinar?
Mohammed entrou em pânico ao saber da notícia que Mousavi iria visitar-me.
- Temos de nos casar como deve ser antes que sejamos descobertos - disse-me ele.
Mas foi precisamente por esse motivo que nos casámos - argumentei.
- Não, minha querida. Esse tipo de casamento só nos protege se nos detiverem na rua, ou se fizerem uma rusga ao apartamento, ou qualquer coisa desse género. Os Serviços Secretos nunca o aceitarão como um casamento a sério. Temos de nos casar como deve ser.
Vou ver se descubro um molá - rematou ele.
Mousavi chegou no dia seguinte com mais de uma hora de atraso, acompanhado de um novo compincha: um sujeito verdadeiramente islâmico, com a indispensável barba de três dias e uma espécie de rosário de contas. Foi-me apresentado apenas como "o meu novo colega que passará a ser responsável pelos seus assuntos". Era o novo reforço que vinha pela mão de um novo ministro, tendo ido a minha casa para me conhecer e para me "oferecer um acordo muito vantajoso", explicou Mousavi.
Fui preparar o chá, dando-lhes assim a oportunidade de instalarem os seus dispositivos de escuta - não me passou despercebido que a pasta do novo homem mudou de lugar durante a minha ausência.
- Recebemos um pedido do Financial Times, que deseja abrir um novo escritório onde trabalhará um novo correspondente - informou-me o novo homem. (Nesta altura eu já deixara de trabalhar para o Independent e escrevia para o Financial Times, jornal onde já tinha trabalhado durante um ano em Londres.)
- Não, isso não é bem assim, você deve ter compreendido mal. Estamos a fazer um trabalho de fundo sobre o Irão, e o meu editor e mais uns dois repórteres vêm até cá para ajudar - assegurei-lhe.
- Receio que andem a enganá-la. A nossa embaixada em Londres recebeu um pedido apresentado por outra mulher iraniana com vista a vir para cá na posição de correspondente acreditada desse jornal no Irão - replicou ele.
- Não pode ser. Eu é que sou a correspondente deles. Nunca apresentariam um pedido relativo a outra pessoa sem que antes me informassem. É verdade que Sharri vem cá por causa do trabalho de pesquisa, mas ela trabalha nos escritórios em Londres.
- Ela pretende ficar depois de esse trabalho de pesquisa estar concluído. Temos aqui o pedido que ela nos dirigiu - contrapôs o homem.
- Mas eu disse aos nossos superiores que você é uma correspondente excelente, e por tanto não vimos qualquer razão para permitirmos que seja substituída por outra pessoa. Sabe muito bem que existe um determinado número de pessoas que se sentiriam bastante satisfeitas se você partisse - interveio Mousavi.
- Caso você trabalhasse mais de perto connosco, estaríamos dispostos a recusar o pedido dessa mulher - atalhou o novo homem.
- Há já bastante tempo que eu lhe disse que teria de cooperar mais para poder continuar de posse da acreditação de jornalista. Não vamos pedir-lhe que diga seja o que for que não corresponda à verdade, mas para nós é importante ter uma forma de expor ao mundo os nossos pontos de vista - acrescentou Mousavi.
Foi este último quem sugeriu que nos reuníssemos dentro de uma semana, altura em que poderíamos discutir um artigo que eu andava a escrever sobre uma série de ataques bombistas em Teerão e outras cidades principais e que tiveram lugar ao longo do mês anterior.
Quando chegou a casa nessa noite, Mohammed estava à beira de um ataque de histeria. Fizesse eu o que fizesse para tentar acalmá-lo, insistia em que ambos corríamos grandes perigos a menos que nos casássemos de acordo com os preceitos logo que possível. Eu tinha a esperança de podermos esperar até irmos para Inglaterra antes de nos casarmos como devia ser - pelo menos nessas circunstâncias não me seria difícil obter um divórcio. Mas Mohammed era insistente: não nos podíamos dar ao luxo de esperar, e agora afirmava que perdera a sua certidão de nascimento, e por conseguinte era forçoso que nos casássemos no Irão.
Porquê?
- Porque temos um documento relativo ao seegheh e num abrir de olhos qualquer molá nos casará em face desse documento, sem insistir na apresentação da certidão de nascimento. Entretanto vou pedir um novo, mas isso levará no mínimo dos mínimos uns seis meses - argumentou. Alegou que o documento em questão fora furtado da sua pasta pouco depois do casamento seegheh. Nessa altura eu não sabia que um homem que já tinha sido casado necessitava da autorização da primeira mulher para poder contrair matrimónio com uma segunda, o que não impedia que ele celebrasse tantos seeghehs quantos lhe apetecesse sem ter de dizer nada à primeira mulher.
Encontrar um molá que se prestasse a realizar o nosso casamento era tão fácil como abrir as Páginas Amarelas - isto é, se tivessem Páginas Amarelas, que não tinham, o que torna as coisas um tudo-nada mais dificeis. A parte realmente mais complicada era tentar fazer as análises ao sangue, o que era exigido a quem desejava contrair matrimónio.
Enviaram-nos a uma clínica situada na zona norte de Teerão, onde uma mulher que abordámos numa das muitas salas vazias nos disse que voltássemos na quarta-feira seguinte, dia da semana reservado a este tipo de análises. Nessa quarta-feira, uma suposta enfermeira disse-nos que não efectuavam análises ao sangue para fins matrimoniais há mais de dois anos. Contudo, conhecia um lugar onde poderiam ser feitas - exactamente no lado oposto da cidade, numa área muitíssimo distanciada da via rápida Resalat.
Seguimos directamente para lá, desejando ter esse certificado nas nossas mãos antes que "eles" nos pusessem algemas nos pulsos. Chegámos a um edifício de três andares de tijolos vermelhos, situado ao fundo de uma rua lateral ladeada por prédios novos, logo à saída da auto-estrada.
- Para hoje já é tarde de mais - disse-nos uma mulher de idade numa vozinha guinchada por detrás de um balcão de recepção que cintilava de novo.
- Mas só são dez da manhã. Na porta está indicado que a clínica funciona até ao meio-dia - alegou Mohammed.
- Têm de estar aqui amanhã às sete horas se quiserem fazer essas análises - retorquiu ela terminantemente, não admitindo réplica.
Na manhã seguinte excedemos em quinze minutos a hora que a mulher nos estabelecera, tendo-nos sido dito que voltássemos na manhã seguinte.
- Vou falar com os médicos - disse Mohammed saindo da recepção e desaparecendo no interior do edificio à procura de alguém que pudesse subornar. Deixei-me ficar a observar os futuros casais enquanto punham em prática o processo das análises ao sangue. Todos os homens usavam o mesmo tipo de peúgas brancas, enquanto as mulheres que os acompanhavam exibiam várias malas de mão com a insígnia falsificada da Chanel estampada por toda a superfície. Nenhuma delas se aproximava sequer do estilo que os estilistas da Chanel produziam, mas elas não tinham conhecimento disso. Todas exibiam o tipo de nariz arrebitado em que os cirurgiões plásticos iranianos eram especialistas. Era estranho ver todas aquelas mulheres cujas roupas mostravam que pertenciam ao estrato mais inferior de uma classe oprimida da sociedade e que tinham dispendido bom dinheiro em cirurgia plástica.
Meu Deus, como eu era pretensiosa.
Mohammed reapareceu dez minutos mais tarde; indicou-me com um gesto que o seguisse e começou a descer por uma escada em caracol que nos levou à cave daquela clínica novinha em folha e de uma limpeza anti-séptica. Os homens alinhavam-se à largura de uma parede dentro de uma ampla sala de recepção, enquanto as suas mulheres faziam o mesmo na parede oposta. Enquanto ocupava o meu lugar entre as mulheres, vi a coluna de jovens de meias brancas que me olhavam com fixidez. Até as mulheres viraram a cabeça para poderem ver-me melhor, após o que fixaram as suas atenções em Mohammed. Estávamos a ser analisados de cima a baixo, e a conclusão óbvia era que a maior parte daquelas pessoas pareciam desaprovar. Devo ter dado a impressão de não pertencer ali. No Irão, mais do que em qualquer outro país, apercebi-me de que as diversas classes sociais se distinguem pela variedade de vestuário e estilos que usam. Enquanto eu agarrava bem a minha genuína mala de mão Louis Vuitton, as mulheres à minha frente tinham malas de plástico, imitações Chanel que estavam muito em moda nesse ano. Os sapatos, botões, malas de mão e sacos de compras tinham todas a marca bem visível dos "C" em elo gravados num sítio qualquer. Enquanto eu baixava o olhar para os sapatos de pele Bruno Magli, as minhas irmãs avançavam lentamente com sapatos de verniz branco rachado ou ténis Reebok de imitação.
O tema da sexualidade preenchia os seus pensamentos, um tópico que era objecto de risos recatados à socapa e enrubescimentos pudicos. Ali de pé, senti que toda aquela gente que me fitava pensava: "Ela vai ter relações sexuais". Sentia-me constrangida, ao mesmo tempo que me sentia ligeiramente conspurcada.
Há minha frente estavam três mulheres até que chegasse a minha vez, mas o homem que recebia as colheitas de urina das mulheres saiu para anunciar que se tinham esgotado os químicos necessários ao processo, pelo que todos seríamos forçadas a voltar no dia seguinte. Os homens são submetidos a uma análise ao sangue, enquanto as mulheres só têm de entregar a urina caso seja o seu primeiro casamento. Tecnicamente, a maior parte daquelas mulheres eram virgens, pelo que não poderiam ter doenças sexualmente transmissíveis por enquanto.
No dia seguinte, a sexta das nossas tentativas com vista a podermos casar, cheguei à fase de entrega da urina, até que a enfermeira me anunciou que não podia fazer as análises porque não tinha assistido às "aulas de casamento" que tinham lugar às sete horas em ponto.
Assim, no dia seguinte voltámos à clínica ao raiar da aurora. Mohammed foi levado para a cave onde fariam uma colheita do seu sangue para análise, enquanto me indicavam que me dirigisse a uma sala no primeiro andar onde uma jovem médica começou a esclarecer-nos sobre os factos da vida. As mulheres que se encontravam comigo naquela aula inseriam-se todas na faixa etária dos quinze aos vinte anos. O facto de eu ser substancialmente mais velha tornava-me no centro de todas as atenções, principalmente por ter ficado vermelha que nem um tomate quando a médica começou a explicar com toda a minúcia aquilo que entrava e por onde, assim como o que as raparigas teriam de fazer para se limparem depois de terem perdido a virgindade.
Pouco depois a médica mostrou-nos vários métodos de contracepção, aconselhando-nos a utilizá-los "até terem a certeza de que o homem com quem casarem será aquele com
quem desejam continuar a viver". Poucas destas raparigas tiveram a oportunidade de trocar mais de meia dúzia de palavras com os homens que se encontravam no piso inferior, preparando-se para as transformarem em mulheres casadas. Grande parte das noivas disse-me que os respectivos noivos haviam sido escolhidos pelos progenitores, ou então eram primos.
- Eu tive a opção de dizer não quando os meus pais me sugeriram alguém, mas nunca teria possibilidade de encontrar um noivo pelos meus próprios meios - confidenciou-me Marsieh, uma virgem de dezassete anos.
Depois dessa aula de aconselhamento matrimonial, fomos levadas para outra sala onde
nos deram uma injecção contra o tétano - destinava-se a proteger- nos, as virgens, na nossa noite de núpcias!
Finalmente, fui conduzida a uma casa de banho onde uma assistente me entregou um boião de compota, instruindo-me para que deixasse a porta aberta de forma a que pudesse ver que eu não o encheria com qualquer substância além da minha própria urina.
Dois dias mais tarde anunciaram-nos que nos encontrávamos em condições de podermos casar.
Eu odiava-o. Era inquestionável e verdadeiro: odiava-o.
Sentado ao volante a cuspir pela janela do automóvel. Existem momentos em que sou incapaz de não pensar naqueles escarros projectados no pavimento, um trilho que deixávamos atrás de nós a partir da "zona exclusiva a norte de Teerão" até Teerão Pars, do outro lado da cidade.
A via rápida Resalat estava engarrafada, com as viaturas a fumegarem sob uma forte queda de chuva que há três dias assolava a região. Sentia-me encurralada. Nesse dia de Novembro de 1992, tudo me enojava no que dizia respeito ao homem que estava prestes a tornar-se meu marido: os seus sapatos todos enlameados e as meias brancas que usava dia após dia, as calças amarrotadas - e, acima de tudo o mais, aquele cuspir incessante.
Durante seis meses, esforcei-me por mudar a maneira como ele se vestia, e hoje, no dia do nosso casamento, ele usava meias brancas! E, para cúmulo, teve o descaramento de dizer que as minhas roupas eram "repugnantes".
- Ouve uma coisa! - gritei-lhe. - Acontece que o casaco é muito elegante. Sabes bem que não tens o mínimo gosto. Não é culpa minha que não saibas distinguir o que é chique e de bom gosto. Só uma pessoa muito depravada é que consideraria esta racha repug nante. Por amor de Deus, só se abre até à barriga das pernas - alegara eu num esforço paté tico para não ceder.
- Vocês, as mulheres, pensam realmente que só têm de cobrir o buraco que têm entre as pernas - replicou ele no seu timbre de voz de único detentor da verdade. - Vais passar a ser a minha mulher, e eu quero ser o único homem que te possa ver. Não estou a ser irracional. Nenhum homem adoptaria uma atitude diferente - argumentou. - Vai buscar um alfinete e fecha essa racha, ou então ver-me-ei forçado a fazê- lo por ti - ordenou-me ele enquanto entrava no carro.
Se a minha fluência na línguafarsi tivesse sido melhor, teria rebatido o assunto. Recordar-lhe-ia que só tinha aquiescido em velar o rosto porque ele me assegurou que, caso o não fizesse, a maioria dos iranianos acreditaria que estava a convidá-los para se deitarem comigo. Deixei-o persuadir-me que até mesmo aqueles homens que eu conhecia desde a minha infância sentiriam luxúria por mim se vissem as minhas pernas.
- Em Inglaterra podes passear-te toda despida - acrescentou ele. - Mas no Irão tens de ter uma conduta que não encoraje os homens.
Procurei um alfinete dentro da minha mala de mão.
Mais tarde, nessa mesma noite, ocorreu-me que ele conseguira evitar de uma maneira muito hábil, ter de me explicar por que motivo chegou com mais de duas horas de atraso. Eu nem sequer tinha tido oportunidade de lhe perguntar aonde arranjara ele as mordidelas de amor que tinha no pescoço.
Por conseguinte, limitei-me a ferver em silêncio enquanto seguíamos por entre o tráfego a passo de caracol. Tínhamos percorrido aquela estrada pelo menos em dez ocasiões no mês passado com a finalidade de tentar convencer o molá a casar-nos. Era legítimo que dois adultos saudáveis, e com consentimento mútuo, não tivessem qualquer dificuldade em contrair matrimónio. Mas as coisas eram muito diferentes no Irão. Mesmo antes do advento dos molás nenhuma mulher podia casar pela primeira vez sem a autorização do pai - quer tivesse dezanove ou noventa anos.
Nem sequer por um segundo me passou pelo pensamento que o meu pai, a viver em exílio algures num país ocidental, alguma vez viesse a dar a sua bênção àquela união. As hipóteses de Mohammed alguma vez vir a ser aceite no seio da minha família eram extremamente reduzidas. Eu só esperava que não o expulsassem logo que chegasse à ombreira da porta da frente. Portanto, o único caminho legal que me conduziria ao casamento era obter o consentimento através de um tribunal marital, o qual designaria um outro homem que desempenhasse o papel de meu guardião.
A primeira indignidade no processo matrimonial aconteceu logo no dia em que nos apresentámos no dito tribunal marital. Era como se estivéssemos a ter um desses sonhos surrealistas em que se grita a plenos pulmões e ninguém nos ouve.
- Voltem cá dentro de quatro anos para se informarem da resposta - dissera o magistrado a Mohammed. As minhas tentativas de intervenção foram inteiramente ignoradas, ao ponto de até eu começar a duvidar se me encontraria fisicamente de verdade ali.
Assim, lá nos pusemos a caminho da casa de Hadji Tabrizi, o nosso molá condescendente, no extremo pobre da Resalat. Após demoradas negociações, acabou por concordar em celebrar a cerimónia. Em contrapartida, anuímos em fazer um donativo avultado para a sua obra de beneficência preferida - a Fundação para as Crianças de Tabrizi.
No automóvel, já a caminho da cerimónia, Mohammed tinha começado a resmungar. Queixava-se de exaustão e do grande aborrecimento que era ter de percorrer aquela estrada de um lado para o outro. Se Tabrizi não nos casasse nesse dia, anunciou, não voltaria a fazer a mesma viagem. Esqueceu-se de mencionar que nas ocasiões anteriores aparecera de tal maneira atrasado que o casamento teve de ser adiado.
O ódio era uma palavra demasiado delicada para descrever o que ia no meu íntimo. Sentia por ele uma aversão levada ao extremo. Mesmo assim, estava decidida a desposá-lo, ainda que isso fosse a minha morte. Tinha dado início a todo aquele processo e nada me impediria de o concluir. Nunca mais alguém me olharia com comiseração enquanto falavam de mulheres mais velhas que invariavelmente davam à luz mutantes. Durante essa viagem, ocorreu- me que o mutante era o homem que dentro de muito pouco tempo seria o meu marido. Como é que eu nunca reparara antes nos dentes enegrecidos, ou aqueles lábios encarniçados e protuberantes? Sem dúvida alguma que aquelas orelhas eram as mais feias que existiam em todo o mundo.
Tinha sentido amor por ele, e voltaria a convencer-me de que continuava a amá-lo. Mas naquela estrada encarei a verdade bem de frente: detestava verdadeiramente aquele homem.
Por fim, lá conseguimos chegar ao escritório onde o nosso pequeno molá exercia a sua actividade. Aquilo não se aproximava, nem de longe nem de perto, do Hotel Dorchester, em Londres onde a minha irmã Pari se tinha casado. Em lugar dos três salões de baile que o meu pai alugara nesse hotel, encontrava-me numa sala na cave dividida em cinco secções por paredes que davam a impressão de se manterem de pé devido à sujidade. Depois de ter descido quinze degraus que davam para a rua, entrei num outro mundo e senti-me perdida para todo o sempre. A mulher condenada estava prestes a encontrar-se com o seu carrasco. No outro extremo da cidade estariam mulheres a casarem no Hilton. Só o que havia sido gasto nessas flores seria o suficiente para manter aquela zona da cidade à tona durante uma semana. Mas era aqui, naquele canto recôndito de Teerão, esquecido de todos, entre a miséria abjecta, que eu ia iniciar uma vida nova.
- Estás a chorar? - perguntou-me Mohammed com uma atitude subitamente mais branda.
- Não, é por causa do fumo do aquecedor - disse eu mentindo-lhe.
Poderia eu sair dali? Conseguiria encontrar o caminho de regresso a uma área da cidade que me fosse familiar? Os casais encharcados pela água da chuva alinhavam-se junto das paredes da sala de espera. À esquerda, aqueles prestes a casar. No lado oposto, os que estavam prestes a separar-se.
As famílias agrupavam-se em redor dos vários casais a caminho do divórcio, envolvidos em ponderações de última hora. Naquela espécie de masmorra obscurecida surgiu uma rapariguinha de figura miúda, com a sua pequena mão na de um homem de idade que presumi ser o avô da garota. Ao ver a filha, a mãe foi-se abaixo e começou a gemer de desgosto. A criança foi conduzida à presença do pai.
- Pelo bem dela, reconsidera a tua decisão - implorou o avô. O pai saiu de rompante para uma cozinha improvisada à direita da sala. O chefe da família foi atrás dele, enquanto as mulheres do agregado familiar tentavam consolar a mulher do pai. A garota ficou sozinha no centro daquela sala onde o ar era sufocante - atemorizada e abandonada. Apeteceu-me tomá-la nos meus braços e dizer-lhe: "Não te preocupes, eu também me sinto perdida".
Finalmente, Hadji Tabrizi estava preparado para nos receber. Num passo arrastado, entrámos no seu gabinete esquálido onde tive nojo de me sentar num sofá todo manchado. A relutância que me invadia fazia-me sentir uma cabra rica que torcia o nariz em face das pessoas comuns. Bastante envergonhada por aquela propensão em mim tão natural, sentei-me com os dentes cerrados, esperando que o que quer que tinha manchado o sofá não estivesse húmido. Estava.
Tanto a minha avó materna como a paterna tinham-se casado vestidas de noiva; os seus vestidos eram de seda, cobertos por uma renda de fio de ouro de vinte e dois quilates. Todos os jornais tinham noticiado o casamento de Mahshid com Donald em Oxford. E agora, ali estava eu sentada em cima de uma nódoa, a tossir devido ao fumo, à espera que um homem com as mãos manchadas de nicotina me unisse ao meu "amo e senhor", longe de todos os que me eram queridos. Era tanta a solidão que sentia que só me apetecia gritar.
Enquanto o molá nos unia pelo sagrado laço do matrimónio, Mohammed colocou na minha mão uma pequena caixa.
Oh, que alegria! Ele tinha pensado em comprar-me uma aliança de casamento. Abri a caixa cheia de expectativa. No interior havia um coração extremamente fino, do tamanho da unha do meu polegar, com uma inscrição gravada que dizia: "Felicitações pela nossa união".
Quando as minhas primas se casaram no Irão, foram literalmente inundadas com anéis Cartier, colares Bulgari e relógios de ouro Rolex. Quanto a mim, ofereceram-me um coração que era uma fracção ínfima do tamanho e valor daquele que já tinha no fio à volta do pescoço. Esse coração volumoso de ouro maciço fora deixado em cima da minha secretária no Hongkong Standard num dia de São Valentim, no que me parecia ter sido toda uma vida atrás.
- Vou levar-te ao melhor restaurante da cidade para celebrarmos - informou-me o meu marido.
Quando chegámos ao Restaurante Duck, dois dos melhores amigos de Mohammed, Reza e Said, aguardavam a nossa chegada. Se aquilo era o melhor restaurante em toda a cidade, então eu era a Rainha do Sabá. Era um Greasy Spoon, com uma única diferença: a especialidade era pato assado no forno. Nada de molho, apenas um pato inteiro assado e acompanhado com salada.
Literalmente, em inglês, "Colher Engordurada". N. da T.)
Pouco tempo depois, os rapazes estavam profundamente embrenhados numa conversa cujo tema era se os homens e as mulheres alguma vez conseguiriam ser unicamente amigos
sem qualquer relacionamento de natureza sexual. Reza achava que sim, mas Mohammed e Said fizeram troça da sua opinião. Enquanto me debatia com o meu pato demasiado assado, perguntava a mim mesma o que é que me levara a dar aquele passo. Depois de o empregado ter levantado a mesa, o meu adorado marido segredou-me amorosamente ao ouvido.
- Querida, tive que dar de gorjeta aos funcionários do escritório do molá o último dinheiro que tinha comigo. Passa-me algum dinheiro por baixo da mesa para poder pagar a conta.
Eu já tinha pago trinta mil tomans ao molá para que este concordasse em casar-nos.
Agora Mohammed levava mais dez mil para pagar a conta que não chegava aos dois mil tomans. Ao fim e ao cabo, foi um casamento substancialmente mais barato do que o da minha
irmã, muito em especial no que se referia às despesas do noivo.
- Devemos ir para Inglaterra o mais depressa possível - disse Mohammed numa noite a meio da semana seguinte à do nosso último casamento enquanto eu estava nos seus braços.
Como resposta, aninhei-me mais junto dele, tentando ignorar o pensamento que me dizia ter sido utilizada como meio de fuga da República de Deus.
- Não te parece que será melhor? - continuou ele.
- Fizemos planos para em Março assistirmos à passagem de ano persa, caso tu possas
ausentar-te do emprego - repliquei. Assim que disse estas palavras, senti logo a tensão no corpo dele e afastou-me de si.
- Quanto mais tempo ficarmos em Teerão, maior é o perigo de Sepideh engravidar - disse-me o meu marido, fitando-me com um olhar penetrante e cheio de frieza.
Senti que o meu corpo gelava.
- Lamento muito, não queria dizer-te desta maneira, mas estou a passar por uma grande aflição.
- De que é que estás para aí a falar? - perguntei com alguma dificuldade.
- Ela veio para Teerão depois de ter conhecimento do casamento, o que eu já te tinha
dito. Suplicou-me que não me divorciasse dela. Jurou-me que te aceitaria e que estava pronta a conformar-se com o facto de ter de partilhar o meu afecto - acrescentou ele.
Era impossível que aquilo me estivesse a acontecer. Nunca me poderia suceder uma coisa tão má. Por favor, meu Deus, apaga essas palavras; não permitas que tenha acontecido.
- Grande filho da puta! - gritei-lhe, enquanto me debatia para me desprender dos braços dele, tentando levantar-me da cama.
Mas ele não me soltou; a expressão no seu rosto mostrava remorsos e tristeza, o que era contrariado pelos dedos que se enclavinhavam no meu corpo com tanta força que me magoavam.
- Tira essas patas nojentas de cima de mim, meu filho da puta! - vociferei, conseguindo desprender-me dos seus dedos; tropecei nos meus próprios pés e caí de costas no soalho do meu quarto, erguendo o olhar para aquele verdadeiro monstro.
- És tão egoísta! - disse-me ele aos gritos. - Sepideh não passa de uma rapariga analfabeta vinda de uma aldeia, mas ela vale mais de cem como tu. Tu roubaste-lhe o marido e a vida, mas mesmo assim ela aceitou a situação. Ela não se queixa nem exige que eu não durma contigo - ripostou ele numa voz desabrida.
- Tu disseste-me que eras divorciado. Mentiste-me. Enganaste-me para poderes casar comigo - repliquei numa voz gemida.
- Eu nunca te disse nada disso. Tu querias-me e por isso acreditaste naquilo que mais te convinha. Eu estava a divorciar-me dela, tinha toda a intenção de me divorciar, mas agora que já te tenho, não seria justo para ela - alegou ele tentando abraçar-me de novo.
Continuei no chão como um animal desesperado a tentar evitar as garras de um predador e afastei-me dele.
O que aconteceu a seguir é coisa que me sinto incapaz de descrever. Recordo-me vagamente de ele se ter vestido e de eu me ter arrastado até à cozinha. Não me saía da cabeça o pensamento de que fora contaminada, e sentia-me conspurcada por todas as vezes que ele me penetrou; esta ideia fixa provocava-me vómitos.
Fui despertada pelo som do chamamento para a oração do amanhecer. Continuava deitada no chão da minha cozinha, encolhida a um canto atrás da porta. O apartamento estava vazio da presença dele, com a excepção de um par de meias sujas deixadas no meio do chão onde ele as descalçara na noite anterior.
Aquilo não se tinha passado. Não existia nenhum marido nem outra mulher. No quarto, juntei a roupa de cama, as almofadas e a minha camisa de noite e meti tudo dentro de um saco de plástico preto para o lixo. Vesti o casaco e cobri a cabeça com o lenço; saí para o corredor, abri a portinhola da conduta do lixo e deitei fora todas as recordações da noite anterior.
Nesse dia, quando ele regressou ao nosso apartamento, eu estava fora. Estive ausente de casa durante a maior parte dos dois dias seguintes. Saí para fazer compras. Desde as primeiras horas da manhã até ao cair da noite, ocupei o meu tempo nas compras. Passava os serões em casa de Mrs. Mo ou com a minha nova vizinha Bibi e a família desta.
No quarto dia, acordei e deparei com uma mensagem enfiada por baixo da porta. O meu marido estava convencido de que sabia falar inglês, mas era inegável que não sabia escrever nessa língua - pelo menos nada que tivesse algum sentido: Deitei a missiva no caixote do lixo.
Nessa noite ele veio a casa.
- Estás bem? - perguntou-me muito mansinho.
- E por que é que não haveria de estar?
- Estavas perturbada.
- Não. O que tive foi um ataque de estupidez. Mas agora já me sinto melhor. Ele soltou um suspiro de alívio.
- Tenciono pedir o divórcio e depois esquecer- me-ei de que alguma vez exististe disse-lhe eu.
Em vez de ficar com uma expressão preocupada, começou a rir-se.
- Fico muito satisfeita por estares de acordo - acrescentei.
Em seguida, pediu-me que me sentasse e começou a explicar-me que nunca me daria o divórcio. Esclareceu-me, dizendo que fôramos cúmplices num crime devido ao facto de nos termos casado sem o consentimento do meu pai. Recordou-me ainda que o casamento não foi registado na minha certidão de nascimento, o que daria origem a perguntas caso eu decidisse pedir o divórcio.
- Um dia dar-te-ão o divórcio, mas só depois de termos passado muitos anos numa prisão.
- Odeio-te! - Foi tudo o que consegui dizer- lhe.
- Não me deixaste explicar-te. Tudo acabará por correr bem. Eu amo-te e és a única mulher com quem desejo viver. Mas a verdade é que Sepideh está a atravessar uma fase muito dificil; ela tem de aprender a depender apenas de si própria e não de mim. Tu és uma mulher forte, sabes olhar por ti própria com facilidade. Mas ela nunca aprendeu a viver sem alguém que olhasse por ela. Não posso descartar-me dela assim sem mais nem menos. Tens de lhe dar tempo para se habituar à ideia de que deixou de ser minha mulher, e quando ela compreender isso, voltarei a falar do assunto do divórcio. - Impávido, continuou: - Com lentidão, tudo se poderá resolver, mas a seu tempo. Depois de termos ido para Inglaterra, ela será forçada a aguentar-se sozinha. Não me pode proibir de partir porque sabe bem que os estudos são para mim a coisa mais importante. Está bem ciente de que se tentar impedir-me de estudar, não hesitarei em abandoná-la. Haveremos de viver em Inglaterra por muitos anos, e enquanto lá estivermos tratarei de me divorciar dela.
- Por que motivo é que disseste que ela pode vir a engravidar? - perguntei num tom que exigia resposta. - Continuas a ter relações sexuais com ela?
- Não sejas estúpida. Pensas realmente que eu sou um animal? Desde que me casei contigo que não me deito com Sepideh. Mas se estiver com ela. bem vês, tudo pode acontecer.
Não estou a planear nada. Só estou a dizer que é possível que venha a acontecer algo. Ao fim é ao cabo, sou homem - explicou-me aquele indivíduo asqueroso.
Deixou-me para que eu reflectisse nas suas palavras, dizendo que respeitaria qualquer decisão que eu tomasse. Tinha a opção de viver separada dele.
- Mas não te esqueças de que me casei contigo para o resto da vida, e serei sempre o teu marido até que um de nós morra - recordou-me antes de se ir embora.
Exactamente os meus sentimentos.
Nessa mesma noite telefonou para se inteirar do meu estado de espírito.
- Quero o divórcio - ripostei asperamente. - Ou me dás o divórcio, ou juro-te que passaremos o resto da nossa vida numa prisão islâmica.
- Está bem, está bem, se é isso que queres. Nunca obrigarei ninguém a viver comigo. Vou-te buscar amanhã às dez horas - disse ele.
Senti-me tão aliviada. Poderia sair daquela situação; ele dar-me- ia um divórcio rápido e seria como se nunca me tivesse casado com o marido de outra mulher.
Mas o que é que eu diria às pessoas que conhecia em Teerão? O que é que Mrs. Mo e as minhas outras vizinhas pensariam de um divórcio assim tão rápido, logo depois do casamento? Desejava eu efectivamente voltar a viver sozinha? Estávamos no Irão e somos muçulmanos. Se era errado casar com um homem que já fosse casado, então nunca teria sido permitido que acontecesse, argumentava eu comigo mesma. Sepideh é muçulmana e uma fundamentalista devota, e consequentemente tem o dever de aceitar que um homem possa ter quatro mulheres. "Não fiz nada de errado", disse a mim própria.
Ele chegou na manhã seguinte com toda a pontualidade. Antes de nos casarmos, ele tinha o hábito de não aparecer ou de chegar tão atrasado nos vários dias marcados para o casamento que tivemos de adiar o grande dia umas quatro ou cinco vezes. Mas agora eu queria um divórcio e sua "alteza" finalmente conseguia chegar a horas. Eu devia ter ficado furiosa então e cheia de júbilo agora. Contudo, fui invadida por um sentimento de tanto ressentimento que não se parecia nada com o que alguma vez tivesse sentido, começando a apoderar-se de mim e empurrando- me o coração contra o peito, como se me impelisse com uma aversão tão violenta que fazia com que só desejasse atirar-me abaixo do gradeamento da varanda.
Isso ensinaria uma lição ao grande sacana! Ficaria cheio de remorsos quando visse as minhas entranhas espalhadas pelo pavimento, onde todo o mundo as poderia ver. Então lamentaria o seu procedimento, então sofreria tal como me fizera sofrer. E eram estes os pensamentos da tresloucada do norte de Teerão enquanto olhava para o seu amor que saía do automóvel a acender um cigarro e se encostava ao veículo com poeira encrostada. Ostentava uma postura tão presunçosa que era visível de uma altura de dezanove andares. Sentia-me febril, fruto do sofrimento que ele me impusera. Sentia o ódio a desenvolver-se dentro de mim, a devorar-me as células, a disseminar a sua doença de humilhação e aversão.
Não trocámos uma única palavra enquanto percorríamos uma vez mais o caminho ao longo da auto-estrada da perdição. Mas o molá estava ausente; o seu ajudante aconselhou-nos a voltar dentro de duas horas.
- Vamos dar um passeio até às colinas - sugeriu Mohammed. - Tu gostas de ver a neve e pode ser que te acalme.
- Qualquer sítio me serve - repliquei. - Só quero que não fales comigo, de acordo? Quando cheguei a um trilho montanhoso numa encosta íngreme, com a neve a dar-me pela altura dos joelhos, olhei para o céu num mudo pedido de ajuda. Não queria viver nem mais um segundo com aquela agonia devastadora dentro de mim.
- Por favor, meu Deus, permite que eu morra - rezei, repetindo as mesmas palavras vezes sem conta, até que eu mesma me senti farta da figura desalentada que devia ostentar no cume daquela montanha. - Mata-me, meu Deus, por favor, por favor, mata-me!
- Devíamos conversar - disse Mohammed tentando abraçar-me.
- Eu já te disse que não quero falar contigo - retorqui, mas quando tentava afastar-me dele tropecei e caí. As lágrimas corriam-me pelas faces abaixo ali caída na neve, sentindo-me infeliz, patética e com frio.
Sem saber como, dei por mim nos braços dele, e ele jurava-me que iria imediatamente falar com Sepideh para lhe dizer que estava tudo terminado entre os dois, sendo imperativo que se divorciassem. Continuou a arengar repetindo que eu era a sua última oportunidade, dizendo-me como nunca seria feliz sem mim ao seu lado. Perguntou-me se eu podia recriminá-lo por não querer destruir Sepideh e ter como único objectivo a sua própria felicidade.
Não, eu não podia recriminá-lo. Nunca poderia exigir que outra pessoa ficasse desgraçada só para que eu pudesse ter algo em que deixara de acreditar e que bem no fundo do meu coração nem sequer continuava a desejar.
- Vamos para casa - limitei-me a dizer. Era a atitude mais fácil; as forças abandonaram-me ao ponto de ter perdido qualquer interesse.
Mr Bean chega a Teerão
A vida de uma jovem mulher foi ceifada num hospital a uma distância de meio mundo da sua terra natal no sul de Teerão, uma zona onde a miséria grassava. Três dias antes, as chamas de um aquecedor a parafina haviam envolvido o seu corpo. A morte dessa mulher era em parte consequência do estilo de vida que o marido, um homem que triunfara, se recusava a abandonar.
Mohammed regressou abalado do funeral da mulher de Mohsen Mahkmalbaf um dos mais bem sucedidos, ainda que controverso, realizadores cinematográficos do Irão, afirmando que odiava o conforto em que vivia e alegando que tínhamos de nos mudar da zona norte de Teerão.
Durante o funeral, Mahkmalbaf falara da viagem aérea até um hospital inglês numa última tentativa desesperada para salvar a vida da sua jovem mulher. Explicara-lhe que muito provavelmente não poderia estar junto dela durante todo o tempo em que permanecessem em Inglaterra e tentara ensinar-lhe em inglês o que precisava de dizer se lhe apetecesse um copo de água. Ela replicou-lhe dizendo que tudo o que era capaz de dizer resumia-se a uma simples frase: "Ajuda-me, ó meu Deus".
Uma fé como aquela, a par de uma grande lealdade para com os pobres, fizera com que Mohammed se sentisse envergonhado consigo próprio e por mim, de acordo com o que me disse.
- Este homem continuou a viver na casa onde nasceu apesar do êxito e de todo o dinheiro que ganhou com os seus filmes. Ela nunca o recriminou pelas condições em que viviam e morreu com o pensamento em Deus - acrescentou ele à beira das lágrimas.
- Por acaso os homens pobres podem dar-se ao luxo de levar as suas mulheres para Inglaterra? - perguntei.
O quê?
- A mim, parece-me ser um pouco de encenação isso de viver na miséria quando tem meios para a levar de urgência para Inglaterra. Teria sido preferível que tivesse proporcionado um lar seguro à mulher com quem casou de molde a que ela não fosse forçada a manter-se aquecida com aquecedores a parafina - respondi com bastante frieza. Eu detestava a hipocrisia da devoção falsa à qual se davam os que queriam cair nas boas graças do regime.
Mahkmalbaf era um revolucionário que fora o menino querido na época de Khomeini. Mas quando começou a desviar-se dos temas estritamente religiosos ou revolucionários a fim de explorar o relacionamento do homem com Deus, entrando também pelo campo da política, começou a desagradar aos homens da censura. Talvez fosse a simpatia em massa gerada pela morte da sua mulher que suavizou o coração desses protectores dos códigos de moralidade, permitindo a exibição do último dos seus filmes que até então estivera fechado a sete chaves. Depois de ter estado um ano na lista dos proibidos, Nasseradin Shah, Actor de Cinema começou a ser exibido em todos os cinemas do Irão. Mas a sua obra-prima, Um Tempo para Amar, no qual abordava as necessidades de uma mulher relativas ao amor que não conseguia obter do marido, não tinha a mínima hipótese de alguma vez vir a ser exibido.
Mahkmalbaf fora um estudante idealista nos últimos dias turbulentos do regime do xá, e ele e um amigo haviam atacado um agente de polícia com um canivete. Ao invés de aplaudirem aquela acção em prol da liberdade, as massas viraram- se contra os dois jovens, espancaram-nos até os deixarem às portas da morte, após o que os entregaram à polícia. Mahkmalbaf foi parar à prisão ao mesmo tempo que no sul de Teerão começavam a insurgir-se as forças que anos mais tarde haveriam de acabar por derrubar o xá. Foi libertado depois de os molás se terem apoderado do poder e pouco depois deu início à sua carreira de escritor de argumentos cinematográficos e realizador, profissão que o viu encetar a jornada que no espaço de catorze anos o levaria de filho predilecto a dissidente banido.
Agora Mohammed dizia que pretendia mudar-se para esse mesmo subúrbio onde a senhora Mahkmalbafperdera a vida. Essa era a última coisa que eu desejava fazer: todo o meu passado bradava contra essa mudança e, simultaneamente, o meu sentimento de culpa dizia-me que tinha de aceitar.
Quando ele me deixou nessa noite com a promessa de que no dia seguinte procuraria uma nova casa onde passaríamos a viver, só desejei morrer. Detestava a ideia de me mudar para um distrito onde até os serviçais da minha família teriam recusado viver. Todo o nosso pessoal fora alojado a expensas do meu pai em áreas recentemente urbanizadas para a classe média em redor de Teerão. E agora, eu, a neta do general Pessian, uma milionária, uma menina que foi apresentada à sociedade, a correspondente em Teerão de tantas publicações
de prestígio, seria forçada a mudar-me para os mesmos pardieiros que me haviam inspirado tanto desprezo pelo xá por este permitir a sua existência. Teria de me mudar para ir viver numa casa apenas com uma sala, sem electricidade nem gás.
Eis dois seres forjados num só naquele apartamento de luxo. O primeiro argumentava que era vergonhoso viver numa casa cuja renda excedia sete vezes o salário médio mensal. A segunda, eu, argumentava que jamais seria capaz de voltar a olhar de frente para a minha família caso descesse tão baixo.
Esse é um problema deles, dizia a primeira pessoa.
Mas eu não fui educada de maneira a poder viver assim. morreria, replicava a segunda.
Não sejas patética. Não morrerás mais do que esses pobres desgraçados que lá vivem agora, argumentava a outra.
Não seria capaz de suportar uma vida assim. toda essa sujidade e miséria. Não conheceria ninguém e a minha familia jamais poria um pé numa casa dessas, lamuriava a rapariga rica. Vou ser obrigada a usar o chador para me enquadrar entre os outros. Não sou capaz de fazer uma coisa dessas.
Não são as roupas que fazem a mulher. Se o teu marido não gosta que andes para ai a exibir o teu corpo, tens de te cobrir. Foste tu que o escolheste, não podes mudá-lo.
Quando Mohammed chegou ao fim do dia seguinte, já eu me tinha convertido à nobreza da pobreza. Era o princípio do processo através do qual eu ia morrendo aos poucos. O eu que crescera e se desenvolvera ao longo dos últimos trinta e seis anos estava a desaparecer, dissolvia-se - mas eu não tinha nada para colocar no seu lugar. Não existia uma única parte de mim que partilhasse um só gene com a mulher que deveria ter sido a do meu marido.
Os amigos e os meus familiares começaram a dizer-me o quanto se sentiam preocupados por minha causa, frisando o quanto eu tinha repentinamente mudado nos últimos tempos.
- Estás a transformar-te num robô - disse-me Minu numa ocasião em que almoçámos juntas uma refeição em que me senti como que paralisada. Eu sempre dominara todas as conversas; as ideias e os pontos de vista costumavam atropelar-se uns aos outros na ânsia de saírem da minha boca. Mas agora não tinha nada a dizer, não sabia nada. Só queria esconder-me de toda a gente e gritar: "Deixem-me sozinha! ".
Deixei de visitar a minha família e os meus amigos, excepção feita a uma mão-cheia de vizinhos que faziam parte dos novos-ricos, pessoas boas e devotas que se encontravam encurraladas entre o antigo e o moderno. Eu estava a sujeitar-me por minha vontade a uma forma de privação sensorial e intelectual, para o que não contribuía em nada, pela positiva, a total falta de qualquer tipo de recreação a sério. Cheguei ao ponto de perguntar a mim mesma o que é que estaria a suceder em EastEnders'.
Todas as formas de entretenimento eram até certo ponto bastante limitadas no Irão, para dizer o mínimo. Havia o teatro, mas somente as peças mais inócuas e ortodoxas é que conseguiam ser encenadas em palco. O cinema prosperava e muitos filmes iranianos eram realizados de uma maneira maravilhosa. Mas ninguém teria estômago para ver uma tal abundância de filmes em que o casamento era dissecado, e depois de se ter visto um grupo de jovens cheios de acne a serem chacinados pelo demoníaco Saddam do Iraque, era o mesmo que termos visto todos. A promessa de Raffers de permitir mais formas de diversão para a juventude inspirara o seu irmão na televisão: comprara ainda mais sagas de origem japonesa sobre a vida familiar, a par de um punhado de séries televisivas britânicas como Secret Army e Mrs. Marple - tudo séries que eu já tinha visto.
Ao fim de certo tempo começava a ser enfadonho jantar fora ou ir a festas. Quem é que podia querer estar com um ouvido atento às conversas e o outro na campainha da porta, não fosse haver uma rusga?
O que nos limitava aos filmes ilegais em vídeo que eram levados à nossa porta pela calada da noite pelo homem que os alugava - o qual se arriscava a perder a sua liberdade. Quando tínhamos esses filmes nas nossas mãos, era um verdadeiro pesadelo tentar ouvir o som ou ver as imagens. Durante uma entrevista que fiz a um destes rebeldes, fui levada a sua casa para ver Dança com Lobos, mas quem era Kevin Kostner e quem era o lobo? Vi JFK cinco vezes, mas só quando voltei a ver esse filme em Inglaterra é que finalmente ouvi os diálogos com clareza. Os filmes em vídeo que chegavam a Teerão, apareciam muito frequentemente logo dois dias depois de começarem a ser exibidos nos Estados Unidos, mas a qualidade era tão má que por vezes me perguntava se valia a pena darmo-nos ao incómodo de os ver. O homem que os alugava alegava que era tão grande o número de pessoas que alugavam um determinado vídeo que a qualidade se deteriorava. Mais tarde, vim a descobrir que eram gravados ilegalmente nos Estados Unidos por um homem que os filmava com uma câmara de filmar portátil escondida dentro do casaco. Dado que as edições piratas em vídeo não eram dobradas em farsi, eu era muito requisitada para fazer a tradução. O meu farsi pouco fluente andava a dar comigo em doida; por conseguinte, como é que aquelas pessoas poderiam desfrutar dos filmes que eu lhes traduzia?
- É melhor do que não fazer a mais pequena ideia sobre o que se está a passar esclareceu-me a minha vizinha Bibi
Série televisiva inglesa de grande popularidade, cuja acção se desenrola entre os residentes da zona oriental de Londres, em oposição ao West End (zona ocidental) onde vive a classe mais abastada. (N. da T.)
O meu homenzinho das cassetes de vídeo começou a chegar cada vez mais tarde à medida que os soldados postados à porta do nosso prédio lhe tornavam a vida cada vez mais dificil. O homem não manifestou surpresa nenhuma ao ver-me com um casaco e de lenço na cabeça quando lhe abri a porta às três horas da madrugada. Não me perguntou por que razão depois de um ano a escolher os seus filmes não sentira qualquer necessidade de me cobrir; de repente imaginei que ele poderia ter o ímpeto de me violar.
- Tem de ver este. é o vídeo mais popular que tenho há vários anos. Muitos dos meus clientes já compraram a sua própria cópia. Na próxima semana posso arranjar-lhe uma se o desejar - ofereceu-se ele todo entusiasmado enquanto eu lia o nome: Agá Nokhod, ou Mr. Pea.
- É persa?
- Não, não. É um comediante norte-americano muito popular.
Eu estava a precisar de dar umas boas gargalhadas, por isso fiquei com o filme e sentei-me imediatamente cheia de avidez para o ver. Aquela comédia norte-americana tão popular era nada mais nada menos do que Mr. Bean. E, como seria de esperar, aonde quer que eu fosse as pessoas mostravam-se todas empolgadas com Mr. Nokhod. Muitos estados de espírito acabrunhados foram aligeirados pelo muito nosso Rowan Atkinson.
Um outro ano, o de 1992, estava prestes a chegar ao fim; apercebia- me de que a minha vida se escoava por entre os dedos. Dentro em pouco seria salva de um profundo tédio em que me estava a afundar, por dois representantes do Financial Times. Durante um mêsantes da chegada de Roger Matthews, o editor-chefe do Financial Times do Médio Oriente, e Raymond O'Donnell, o supra-sumo dos trabalhos de fundo - andei num corrupio de um lado para o outro qual barata tonta, tentando obter vistos de entrada, entrevistas e alojamento.
Entretanto, Mohammed pareceu ter perdido o uso das suas mãos, bem como o desejo de se mudar para a zona sul. À noite chegava e refastelava-se em cima do meu sofá. Eu era instruída no sentido de lhe descalçar as meias e adoçar o chá que entretanto lhe preparara, e também tinha de o mexer. Enquanto ele se refastelava, liguei-lhe o aparelho de vídeo, levei-lhe as roupas que costumava usar em casa e arrumei-lhe aquelas que vestia para ir trabalhar. Depois tinha de me sentar na extremidade do sofá junto dos pés dele, para lhe traduzir
o filme.
- Vai buscar um bloco de apontamentos e toma nota do nome do realizador e dos
actores do filme que vamos ver - instruiu-me.
Nome do actor britânico que representa a personagem de Mr. Bean. (N. da T.)
- Porquê?
- Os intelectuais sabem tudo sobre os filmes e não queremos dar a impressão de ser mos ignorantes - justificou ele.
Fala por ti próprio, disse a minha voz da sensatez. Eujá sei mais sobrefilmes e reali zadores do que tu e os teus pretensos amigos intelectuais alguma vez virão a saber!
Os meus sentimentos eram um misto de amor e ódio.
- É possível que esta noite fique contigo - dir-me-ia ele de manhã antes de sair para o trabalho. Tínhamos estabelecido que passaria duas noites por semana comigo e cinco com Sepideh; mas à medida que eu andava cada vez mais atarefada, fui colocada em estado de alerta de vinte e quatro horas, para qualquer visita inesperada que o meu querido marido e seu bando de amigos pudessem fazer a minha casa.
No entanto, se não tivesse sido Shirazi, possivelmente nunca teríamos conseguido obter os vistos de entrada para os meus colegas que visitariam o Irão, razão por que fiquei a dever uma obrigação a Mohammed. E ele servia- se disso como arma para me silenciar sempre que eu me queixava alegando que não tinha tempo para lhe fazer o comer e manter o apartamento impecavelmente limpo no caso de lhe apetecer trazer os seus amigos, ao mesmo tempo que organizava o trabalho de pesquisa sobre o Irão planeado pelo Financial Times. No Irão não havia refeições Marks c E Sparlrs já preparadas. A fruta e as verduras tinham de ser desinfectadas durante pelo menos vinte minutos, as galinhas tinham de ser mortas, de penadas e esventradas, enquanto o arroz tinha de ser escolhido para se retirarem as várias impurezas com que vinha misturado.
- Como é que tu agora, de repente, consegues vir almoçar a casa tantas vezes? - perguntei a Mohammed quando chegou ao bater do meio-dia pelo terceiro dia consecutivo, precisamente no momento em que eu me aprontava para sair.
- Agora estou a trabalhar mesmo ao cimo da rua - replicou ele.
- O Ministério da Orientação abriu um novo escritório?
- Não, deixei o Ministério da Orientação. Aceitei o emprego que me ofereceram num jornal - informou-me num tom casual. Eu sabia que tanto ele como os amigos estavam envolvidos num jornal de tendências radicais, mas não me recordava de nada a respeito de um emprego.
- Quando? Porquê? - perguntei atabalhoadamente.
- Há mais ou menos um mês - respondeu ele.
- Chegaste a falar-me desse assunto? - perguntei. O meu marido conseguira fazer com que eu chegasse a duvidar de mim própria, estando pronta a acreditar ser possível que me tivesse esquecido.
- O que é que este assunto tem a ver contigo?
- Sou tua mulher.
- E nem sequer és capaz de ter uma refeição na mesa a horas para o teu marido. Sepideh sempre me pôs em primeiro lugar. Nunca se opôs às minhas ordens e jamais interferiu nos meus assuntos.
- Eu também te coloco sempre em primeiro lugar. Faço mais por ti do que qualquer mulher da minha família tenha feito pelo seu homem. Sou eu quem escolhe a roupa que vestes, calço-te as meias e lavo as tuas roupas com as minhas próprias mãos. Que mais pretendes de mim?
- Hoje vais ter de ficar em casa. Não ponhas um pé na rua até eu chegar e te disser que podes sair - ordenou-me ele voltando a vestir o casaco. - É melhor que estejas em casa quando eu regressar, caso contrário estará tudo acabado entre nós os dois - advertiu-me antes de sair.
Durante duas horas chorei desabaladamente; mas depois comecei a gritar às paredesuma tentativa fútil de agredir verbalmente alguém que se encontrava a caminho de casa da sua outra mulher. Depois comecei a bater em mim mesma com os punhos cerrados, na minha própria cabeça. Bati violentamente nessa outra mulher que se assenhoreara do meu corpo e da minha vida - essa outra mulher que desperdiçara a minha liberdade e que nem sequer era capaz de engravidar e fazer com que as suas agruras tivessem valido a pena.
Não que eu tentasse desde o dia em que tomei conhecimento de que não era a única mulher que ele tinha. Nos tempos de escola, nessa outra vida, a minha turma ganhou a Taça da Retórica devido à peça Under Milk Wood, na qual interpretei o papel da Segunda Mrs. Dai Bread, a mulher número dois de um padeiro de aldeia. Agora a vida imitava a arte.
Naquele momento eu não estava verdadeiramente casada, não da maneira como eu pensava que um casamento devia ser; nunca haveria de gerar um filho daquele homem que teria o poder de mo tirar e o entregar à outra mulher quando bem lhe apetecesse. Duas semanas depois de eu ter descoberto a existência de Mrs. Dai Bread Número Um, ele negou que alguma vez me tivesse prometido permitir que a minha família criasse quaisquer filhos que eventualmente viéssemos a ter e caso eu morresse. Sentia-me convicta de que morreria; já me sentia um pouco morta, levando uma existência que era falsa e mantendo uma relação que me obrigava a mentir e a esconder-me.
Mas então, poucos dias depois pensava: "Em qualquer dos casos, devias ter um filho.
Dá a ti mesma qualquer coisa por que valha a pena viver".
O que é que eu haveria de fazer?
Sair. Ia sair, quanto mais não fosse para provar a mim mesma que ainda restava algo da pessoa que eu fora.
Mas, e se ele voltasse a casa e descobrisse que eu tinha saído? Abandonar-me-ia e, con sequentemente, acabaríamos por nos divorciar, altura em que toda a gente ficaria a saber que ele tinha outra mulher.
Meu Deus! Ó meu Deus! O meu marido tinha outra mulher! Nem sequer fui capaz de arranjar um homem como ele só para mim - um rapaz de aldeia pouco atraente e que vivia na maior das pobrezas.
Tinha de lhe pagar para que ficasse comigo e mesmo assim ele não largava a primeira mulher. Toda a minha cólera era dirigida àquela mulher - mas a realidade é que tinha vergonha de mim própria. Ele era marido dela; portanto, quem era eu?
Acabei por sair. Fui até ao quarteirão seguinte. Mrs. Mo não estava em casa e por isso fui visitar Bibi, que vivia no andar acima do meu; já em sua casa, senti que me assemelhava a um limão com aquele hejab que me escondia o corpo dos olhares do marido e do filhohomens que me tinham visto um milhar de vezes quando eu era outra pessoa.
- És uma esposa ímpar - disse-me Bibi.
- Sim, de facto é - concordou o marido.
- Uma rapariga que foi educada no meio da corrupção do Ocidente e que se decide a regressar à sua terra natal onde se torna numa esposa devota. És uma mulher que faz o que o marido lhe diz sem levantar objecções nenhumas. És de uma pureza e lealdade a toda a prova. Deviam homenagear-te com uma estátua de ouro - disse a filha mais velha de Bibi, Mona, cheia de entusiasmo enquanto fenecia à espera de alguém que a levasse da casa paterna para a sua própria cozinha.
Tinham razão; eu era uma esposa ímpar. Era nobre e altruísta. Era a última oportunidade que ele tinha de ser feliz. Eu já o levara tão longe, perturbando a sua outra vida. Nenhum de nós poderia voltar atrás.
Era preferível que fosse para casa, onde aguardaria a chegada do meu marido. Apareceu na manhã seguinte, tendo ficado apenas o tempo suficiente para me pedir desculpa por ter ficado "tão zangado" comigo. Aparentemente, deixara o antigo emprego por causa de mim, porque viria a ter problemas se continuasse a trabalhar para o governo.
- Mas foi precisamente por essa razão que nos casámos - protestei uma vez mais dada a incoerência do que ele dizia.
- Tu não compreendes como é que as coisas funcionam nesta terra - redarguiu ele começando a beijar-me enquanto me acariciava.
Toda a solidão que senti durante a noite desapareceu como por milagre. Pôs a mão entre as minhas pernas - eu ainda usava a camisola larga de algodão com que dormi. Senti uma dor aguda: beliscava-me a região tenra do interior da coxa, fazendo com que o meu corpo fosse percorrido por uma guinada dolorosa. Comecei a empurrá-lo, numa tentativa para me libertar dos seus braços.
Soltou um riso casquinado.
- O que é que se passa, meu amor? É só uma manifestação de afecto. Eu odiava-o de verdade, odiava-o com todas as veras da minha alma.
- Não aceitarei que me batas! - protestei numa voz guinchada.
- Ninguém te bateu. Limitei-me a beliscar a minha mulherzinha que está tão zangada - disse ele tentando voltar a abraçar-me.
- Podes dar-me algum dinheiro? - pediu quando saí da cama e me afastei das suas carícias.
- De quanto precisas?
- Dez mil tomans.
- O quê?
- Há três meses que não pago as prestações da outra casa - justificou ele. - Akbar prometeu-me enviar dinheiro da Suécia, mas ainda não recebi nada.
- Eu não posso sustentar a tua outra vida - protestei.
- O teu guarda-roupa está cheio de dinheiro. Dinheiro que a tua "mãezinha" te enviou para poderes comprar todas as coisas sem as quais aparentemente não consegues viver. Dinheiro esse que foi roubado pelos da tua laia às pessoas como Sepideh. Tu tens a vida dela, o marido dela. Agora também queres que ela venha a perder a sua casa?
Colocada a situação à luz daquele prisma, não poderia recusar-me. Disse-me que eu era um anjo e saiu imediatamente para o seu novo emprego no jornal, embora as funções que lá desempenhava ainda não tivessem sido determinadas com exactidão.
- Foram os meus amigos que me meteram lá dentro. hão-de encontrar-me uma posição que seja a mais adequada à minha pessoa. Nessa altura passarei a dispor de mais dinheiro. Poderei devolver-te o que me emprestaste, e a partir daí estarei em condições de te sustentar, assim como a ela e às crianças - disse-me Mohammed.
Saí para o aeroporto onde daria as boas-vindas a Roger Matthews, o meu superior hierárquico no Financial Times, um homem bonacheirão que tinha um olhar com um brilho brincalhão e um sentido de humor extremamente refinado. Tínhamos planeado fazer um trabalho de fundo sobre o Irão que seria publicado num caderno de doze páginas, apenas o segundo desde a revolução. O último trabalho com aquelas características fora organizado por um tal Roger Cooper, o que lhe valeu ser convidado a passar cinco anos em Evin pelos seus esforços.
Eu só esperava que isso não fosse outro Mau Agouro.
Ao cabo de dez dias sentada no átrio do Hotel Laleh, à espera da concretização das entrevistas que me haviam sido prometidas, iniciámos o nosso trabalho. O cabeça das novas Zonas Francas de Comércio, estabelecidas como ponta de lança dos esforços de Raffers no mundo do capitalismo, concedeu-nos uma audiência. Chegámos a um escritório ultramoderno e de espaços abertos instalado no décimo primeiro andar de um dos ministérios. A um canto, por detrás de uma pequena divisória, avistámos um homem com um boné de pano tipo Andy Capp e que estava a analisar alguns documentos. Por detrás dele viam-se algumas janelas estilo escotilha de onde se podia admirar Teerão.
Quando Roger, aquele corpulento mas lesto profissional, editor-chefe de um jornal dos mais influentes em todo o mundo, avançou para apertar a mão daquele Andy, o funcionário-directivo iraniano olhou através de uma das janelas para a panorâmica de um dia frio de Dezembro.
- Como é que se estão a dar com a inversão? - perguntou o homem. O semblante de Roger foi atravessado por uma expressão intrigada que desapareceu numa fracção de segundos. Baixou a cabeça e começou a olhar pela janela na direcção que Andy lhe indicara.
- E então? - perguntou Andy.
Roger não conseguia encontrar palavras. Deveria supostamente mostrar-se agradado ou o inverso? Deveria dizer que era magnífico ou lamentar aquela inovação económica?
Enquanto estes pensamentos passavam velozmente pela fisionomia de Roger, Andy retomou a palavra.
- Você não sabe o que é uma inversão, pois não?
Roger confessou a sua ignorância, após o que nos sentámos à volta de uma mesa de pinho redonda, em cadeiras também de pinho, atrás de divisórias de pinho, e Andy começou a explicar-nos que ocorria uma inversão quando o ar frio se elevava, indo ao encontro de ar quente - ou seria ao contrário? -, dando origem a uma bolsa de nevoeiro misturado com emissões poluentes. Tenho de admitir que estava demasiado ocupada a tentar conter uns risinhos à socapa, o que me impediu de absorver na íntegra todos os pormenores da criação da inversão. O mais cómico de tudo eram os esforços que Roger fazia para manter uma expressão séria, agindo como se aquele conhecimento fosse precioso e fosse precisamente o tópico que o levara a fazer uma viagem tão grande. Convém não esquecer que esperávamos muito daquela entrevista, uma vez que até à data só tínhamos doze páginas em branco, sem quaisquer entrevistas que nos permitissem preenchê-las.
Vinte minutos depois, Roger lá conseguiu mudar o rumo à conversa e focar o tema da nossa entrevista, perguntando quais eram as condições climatéricas em Qeshm, a ilha onde fora criada uma dessas zonas francas.
Dez minutos de boletim meteorológico mais tarde, Roger começou a mostrar-se um tudo-nada agitado de mais.
- E na ilha também se verificam inversões? - perguntou. Erro crasso. Grande, grandessíssimo erro!
Estávamos de volta à explicação da dita inversão que, obviamente, não havíamos compreendido, dado que se tivéssemos ficado esclarecidos teríamos percebido que aqueles fenómenos não podiam ocorrer em regiões quentes como, por exemplo, o Golfo Persa. Decorreu uma hora antes de podermos abordar o assunto da política respeitante às Zonas Francas. A meio de uma frase, Andy mencionou inopinadamente o nome de dois economistas de renome. Na tentativa vã de impedir que fôssemos levados para outra tangente, Roger ignorou a alusão.
- Você sabe quem são, não é verdade? - perguntou Andy.
- Acha que podemos continuar a debater. - prosseguiu Roger
- Não conhece, pois não? Não sabe quem são. Como é que você pode ser o editor-chefe do Financial Times se nem sequer conhece o nome destes economistas tão famosos? O resto da entrevista foi preenchido com as histórias da vida de John Maynard Keynes e seus pares. Consegui conter as gargalhadas histéricas até termos chegado à rua. Depois perdi o controlo; não me interessava quantos pasdars pudessem estar a ver-me, era-me indiferente que os funcionários do ministério de onde tínhamos acabado de sair, se tivessem reunido junto das portas de vidro para observarem melhor aquele comportamento estranho. E também não me importava rigorosamente nada com facto de na República de Deus as mulheres deverem supostamente coibir-se de rir em público.
A verdade pura e simples era que, a despeito das centenas de milhares de petro-dólares ganhos com tanto esforço e que foram enterrados naquelas zonas de comércio, não existiam nenhuns exemplos sólidos do que tinha sido feito com todo esse dinheiro.
No que me diz respeito, não tenho qualquer objecção a fazer quanto à imposição da lei e costumes islâmicos, se é exactamente isso que está em questão. Mas no Irão a hipocrisia era de endoidecer. Por pressuposto, a revolução deveria ter eliminado todas as práticas de corrupção, colocando a moralidade em lugar do dinheiro e fomentando um clima onde as fraudes não seriam toleradas. Ao invés, não se conseguia fazer nada a menos que se oferecesse um suborno; o dinheiro falava mais alto do que as moralidades. Os subsídios governamentais só muito raramente chegavam às pessoas a quem se destinavam, enquanto a lei se subordinava às pessoas de influência que conhecêssemos, ou ao quanto se pudesse pagar para contornar essa moralidade.
O exemplo mais evidente, e menos sinistro, de toda esta hipocrisia era o destacamento de homens nos vestíbulos de hotéis com a finalidade de se assegurarem de que as mulheres obedeciam aos códigos que lhes eram impostos em matéria de vestuário. A filosofia vigente dizia que os homens com autorização para verem as mulheres são unicamente os respectivos maridos e os familiares consanguíneos do sexo masculino e em linha directa, tal como os pais, irmãos e filhos. Alguns dizem que os genros e cunhados também se incluem nesta categoria, ou os mahram. As mulheres, a fazer fé no que nos dizem, têm de ocultar o corpo sob o hejab, o que as protege dos olhares cúpidos dos desconhecidos, que evidentemente se sentiriam tão excitados ao verem o corpo feminino que não hesitariam em possuir qualquer mulher no preciso instante em que a vissem. Nesse caso, por que motivo é que os poderes constituídos no Irão colocam um homem no átrio de todos os hotéis com o único objectivo de examinarem minuciosamente todas as mulheres que passavam, assegurando-se de que se encontram adequadamente vestidas de acordo com a lei islâmica?
Um desses homens trabalhava no Hotel Laleh, sendo eu a única mulher em todo o Irão cuja aparência, ao que tudo indicava, era motivo de preocupação para esse indivíduo. Eu não podia entrar naquele vestíbulo sem que esse homem encontrasse em mim qualquer coisa merecedora da sua crítica, e como se isso não fosse suficientemente mau, seguia-me por todo o hotel enquanto eu me esforçava por arranjar mais entrevistas para Roger e para mim própria, ao mesmo tempo que contactava potenciais anunciantes para Raymond O'Donnell no qual sempre pensei como Raymondo.
Durante todo o mês passado, a minha existência passou a ser vivida no Laleh, onde era atormentada por aquela peste da polícia de costumes. Havia outras mulheres que entravam e saíam do hotel com os cabelos penteados ao alto por baixo de lenços quase transparentes, os rostos empastelados com maquilhagem e tresandando a perfume. Mas ergueria ele um dedo para as desencorajar? Uma ova é que o faria! Mas se a mais ínfima ponta da mais pequena madeixa dos meus cabelos se escapasse de repente do meu toucado de fieira, materializava-se imediatamente ao meu lado a ordenar-me que os cobrisse. Aquela atitude andava a pôr-me louca, essa preocupação constante quanto ao que pudesse escapar-se para um raio de luz saindo do trapo que me cobria a cabeça.
Ao segundo dia da visita dos meus dois colegas, estava eu sentada com eles à espera de Ali, o motorista suicida de Raymondo que tinha ficado de nos ir buscar, quando vi que a maldição que me assolara ao longo de todo o mês investia na minha direcção. Note-se que não estou a acusar ninguém de qualquer acção menos própria, mas chegou-me às narinas um ligeiro aroma a vodca que emanava do nosso pequeno canto e que pairava suavemente acima da multidão que tomava o seu café da manhã no Laleh, disseminando-se na direcção daquele pequeníssimo espaço ao longo do caminho que o homem teria de percorrer até chegar a mim. De imediato, pus-me em acção e conduzi-o de volta para o lugar de onde viera, fingindo que me mantinha atenta à chegada do motorista arredio. Como seria de esperar, ele seguiu-me até à porta, após o que me acompanhou até junto do telefone enquanto eu fingia que fazia um telefonema urgente.
De início, a persistência daquele homem teve a sua piada, mas à medida que eu me sentia cada vez mais exausta por passar as noites a pé, quer por causa de Mohammed, quer devido às preocupações que a nossa vida em conjunto me acarretava - para além de ter de andar a correr de um lado para o outro durante todo o dia com o objectivo de conseguir coadunar o trabalho de pesquisa com a preparação das refeições e a limpeza da casa -, tudo isto se combinou e fez-me começar a sentir aviltada e pouco satisfeita comigo própria. Exactamente quando eu necessitava de ter mais paz de espírito e tranquilidade, Mohammed decidiu convidar todos e mais alguns para comer, beber e fazerem a revolução na nossa sala de estar. Em homenagem ao meu trabalho de pesquisa, ele aumentara o quinhão que me cabia da sua pessoa, passando a ser de três noites por semana, o que era acrescido do almoço às quintas-feiras - o início do fim-de-semana.
Há um mês atrás, nunca teria acreditado que me sentiria satisfeita ao ouvir dizer que o meu precioso marido estaria ausente durante dez dias. Um grupo de jornalistas franceses de visita ao Irão pretendiam um guia, e por conseguinte aqueles amigos de Mohammed, que pareciam existir apenas para lhe arranjarem trabalho, tinham conseguido que fosse ele a acompanhar os jornalistas.
Antes de partir, Mohammed entregou-me um sobrescrito cheio de notas de cem dólares, pedindo-me que lhe guardasse aquele dinheiro. Afirmou que era uma gorjeta que os franceses lhe deram porque ele insistira em que lhe pagassem antecipadamente antes de os acompanhar ao longo da visita.
Tudo aquilo me dava a impressão de ser tão nojento; eu nunca tinha estado na situação de receber "gorjetas" e por isso disse-lhe que guardasse aquele dinheiro onde bem entendesse e que não me falasse mais sobre esse assunto. Existem ocasiões na carreira de qualquer jornalista em que se vê forçado a olear o mecanismo do funcionalismo público, e tenho de admitir que durante o longo Outono de 1992 facilitei a minha quota-parte de "gorjetas" que mudaram de mãos a fim de conseguir uma reportagem. Mas sempre senti um profundo desprezo por aqueles que as aceitavam, e agora o meu marido era um dos que recebiam esse tipo de dinheiro.
- Não tenciono ficar com ele para mim próprio - alegou ele. - É para os rapazes do Ministério da Orientação. Quando regressar, tenho a intenção de lhes entregar esse dinheiro.
Mais tarde, nessa mesma noite, sentámo-nos em frente do aparelho de vídeo. Ao contrário do habitual, fui autorizada a aninhar-me ao lado do meu marido enquanto ele me falava de todos os lugares que visitaria. Queixou-se por os franceses desejarem viajar de carro, e dado que havia caído muita neve ao longo de grande parte do percurso que seria feito através da região setentrional, eles haviam concordado em pagar um suplemento de "dinheiro de risco". Senti-me aterrorizada e supliquei-lhe que não fosse, alegando que não precisava desse montante e prometendo-lhe que eu própria lhe daria esse dinheiro, o que preferia fazer a deixá-lo partir. Ao cabo de uma agonizante noite de súplicas, Mohammed telefonou a Reza pedindo-lhe que fosse em seu lugar. Não partiu, pois, mas o mesmo não aconteceu aos dólares escondidos debaixo da minha roupa interior.
Mas, aparentemente, Shirazi ficou muito irado por aquela grande oportunidade de ganhar dinheiro ter sido proporcionada a Reza, de modo que fui instruída no sentido de dar algum do nosso trabalho de pesquisa a Shirazi. Mas as minhas desconfianças diziam-me que o verdadeiro motivo era Mohammed querer alguém que ficasse sempre de olho em mim.
Shirazi levou-nos ao bazar, dado que Roger mostrara interesse em comprar uma carpete. Shirazi fez-me uma pergunta enquanto o meu editor examinava os artigos expostos na secção reservada às carpetes no meio do labirinto de ruas cobertas por toldos que abrangiam o maior bazar de Teerão.
- Estão à espera que te deites com eles?
- De que é que estás para aí a falar?
- Eu e os rapazes no Ministério da Orientação perguntamo-nos com frequência se estes jornalistas vindos de Inglaterra ou dos Estados Unidos estão à espera que as mulheres ou os homens com quem trabalham aqui lhes proporcionem favores de natureza sexual.
- Estás doido? - perguntei-lhe ultrajada, afastando-me para procurar um tubo de metal com que pudesse bater-lhe na cabeça, até que os poucos miolos que possuía lhe saíssem pelo crânio. Este frenesim, este sentimento de que não me restava outro recurso, para além de dar largas à cólera que me invadia, era bastante comum entre muitas das mulheres com quem tive oportunidade de falar no Irão.
Quando me queixava a Mohammed, este limitava-se a rir.
- Ele disse-me que te faria essa pergunta. Mas nunca pensei que tivesse coragem suficiente. Eu sei que não és uma rapariga mal comportada, mas as outras mulheres certamente dormem com os seus chefes. Tenho a certeza de que até os homens vão para a cama com as estrangeiras que nos visitam. No ano passado uma jornalista japonesa veio a Teerão, e era óbvio que ela morria por isso. Todas as vezes que ia ao meu gabinete sorria-me, olhava-me bem de frente, olhos nos olhos, dizendo-me como eu era simpático. Ela estava-me a pedir que a fodesse - vangloriou-se ele enquanto eu tentava sufocar a raiva que se acumulava no meu íntimo:
Estava cansada de discutir, de tentar explicar que as pessoas que viviam fora do Irão não pensavam durante todo o dia e noite em sexo. Expliquei-lhe que a maior parte das minhas amigas em Inglaterra podiam manter relações sexuais sempre que lhes apetecesse, o que fazia com que em alguns casos se sentissem fartas.
- Ninguém consegue chegar ao ponto de ficar saciado sexualmente - diria ele. Se por acaso se tivesse dado ao cuidado de prestar atenção às minhas palavras, ter-me-ia ouvido dizer-lhe em diversas ocasiões que estava farta da sua pessoa. Mas ele não me ouvia, nem sequer considerava que eu fosse parte integrante no processo sexual; a minha única finali dade era propiciar-lhe o instrumento com que podia satisfazer a sua luxúria.
As nossas práticas sexuais eram cenas extraídas directamente de uma anedota sobre qualquer homem das cavernas. Eu estaria, digamos, no quarto a passar a ferro uma camisa ou a enrolar as suas peúgas, quando de repente dava comigo a ser puxada da tábua de engomar. Um ligeiro erguer do chão e um empurrão vigoroso e daria comigo estatelada de costas em cima da cama. Não interessava que a minha cabeça tivesse ficado de fora e batesse contra a mesa-de-cabeceira quando ele me deixava cair. O Homem estava firmemente determinado a fazer o que quer que fosse que os Homens casados faziam, limitando-me eu a esperar que terminasse antes de poder tratar do ferimento na minha perna ou do alto que tinha na cabeça.
Retribuía eu da mesma maneira? Rebelava-me contra os modos dele? Trancaria eu a porta, impedindo-o de entrar em casa?
Não. Ao invés, cada vez me acobardava mais, tendo optado por começar a arranjar desculpas - dores de cabeça, períodos menstruais, qualquer coisa me servia. Mas nada o impedia; ele nem sequer era capaz de entender que "não" significava realmente "não". Eu não passava de um voto que ele poderia anular.
Jamais, até nos meus piores sonhos, imaginei que poderia um dia ver-me numa situação daquelas. Eu era a mesma mulher que aos dezoito anos de idade deixara o homem mais bem-parecido de Oxford porque ele se tinha afastado no seu automóvel sem ter esperado que eu entrasse em casa depois de termos saído nessa noite.
Agora saltava de todas as vezes que ouvia os passos do meu marido. Retraía-me e escondia-me num canto a chorar convulsivamente de cada vez que ele me ordenava que lhe levasse fruta para poder recuperar as suas forças. Sentia-me ainda mais conspurcada por ocultarmos o nosso casamento de toda a gente, com a excepção dos nossos amigos mais íntimos e respectivas famílias. Oficialmente, eu continuava solteira. Sentia-me uma espécie de criminosa; escondia-me no meu apartamento durante todos os fins-de-semana para que Bibi não me visse sozinha, sabendo perfeitamente que ele passaria os seus fins-de-semana algures. À noite ficava sozinha e infeliz na minha varanda, perguntando a mim mesma se teria coragem para dar o salto; sentia-me um animal enjaulado, uma criatura nojenta, suja e patética, absolutamente nojenta.
"Amo-te, querido, és a minha vida, a minha respiração, a minha alma", diria eu àquele homem, tentando convencer-me de que não cometera aquele erro tão trágico.
A minha mãe, Mahshid e Said tinham-me advertido que não devia casar, que esperasse até regressar a Inglaterra onde poderia pensar melhor sobre o assunto. Mas eu optara por seguir em frente a todo o vapor; respondi-lhes que eu é que sabia o que é que estava certo para mim, e que adorava aquele homem, pelo que nada poderia manter-me afastada dele. Tínhamos corrido o risco de vir a ser presos, eu poderia ter sido a causa de ele vir a ser encarcerado para o resto da sua vida; portanto, decidi arrostar com as consequências, mau-grado todos os conselhos que me deram. Caso admitisse o meu erro, perderia a face e provaria à minha família que era incapaz de gerir a minha própria vida. Fui eu própria quem fez a cama em que me deitava enquanto pensava no islamismo.
De facto, o pensamento que preenchia a minha mente traduzia-se numa faca enorme. Mas eu também dependia do apoio que ele me dava, por isso, enterrava bem fundo todos esses pensamentos; era como se desligasse a minha vida, a minha mente, relegando para segundo plano tudo aquilo em que acreditava e o modo como fora educada. Eu existia como se vivesse ligada a um piloto automático.
A esquizofrenia dominava a minha existência. Pela manhã sentia-me apaixonada e era com todo o contentamento que preparava o pequeno-almoço do meu marido sempre que ele passava a noite comigo, ou então sentia saudades dele e ansiava que regressasse da outra casa. Mas ao cair do dia só me apetecia matá-lo, quer por ter estado com a outra mulher, quer por me tratar como se eu fosse sua escrava.
Vestir-me todos os dias estava a transformar- se num pesadelo - seriam as minhas roupas suficientemente islâmicas? Qual seria o meu aspecto se ele aparecesse com os seus convidados? Todas as minhas roupas de antigamente, saias curtas, vestidos sem alças e outras peças semelhantes, iam para uma mala de viagem para "coisas a serem descartadas", o mesmo destino que teve o meu verniz e bâton vermelhos, uma vez que só as putas é que usavam isso.
Foi numa dessas noites boas que Mohammed voltou a puxar o assunto de irmos para Inglaterra. Começou por me dar as boas notícias: depois de o senhor Shirazi ter recebido um convite para ir à Grã-Bretanha, que lhe fora dirigido por um jornalista de visita ao Irão, ele e Reza tinham tentado conseguir o mesmo - no que foram bem sucedidos. Senti-me positivamente radiante; ele teria meios que lhe permitiriam ir para Oxford comigo quando eu regressasse em Março para o Ano Novo persa.
Falei-lhe de todas as coisas que desejava mostrar-lhe e ensinar-lhe. Mohammed passara grande parte dos primeiros anos da sua vida numa aldeia remota e depois passara a viver no coração de um Irão revolucionário. Não tinha a mínima noção de quem eram os Rolling Stones, nunca ouvira falar de Elvis Presley, não sabia o que aconteceu a Jackie depois daquele dia fatídico em Dallas quando uma bala pôs fim à sua vida de Primeira Dama. Nunca tivera oportunidade de ver um filme de James Bond, nem tão-pouco ouvira falar do Woodstock. Havia tanta coisa da cultura moderna que ele desconhecia por completo.
Sim, ele podia mencionar o nome dos maiores filósofos de todo o mundo, era capaz de citar das obras de Marx e Freud, a exemplo do que fazia com Khomeini, mas eu queria levá-lo a um McDonalds ou a um San Lorenzos. Seria magnífico, finalmente teria alguém que era só meu e que me acompanharia aos pubs, junto de quem me poderia aninhar para ver A Balada de Hill Street, com quem poderia desfrutar de idas ao teatro, bailado clássico e ópera. Ele iria adorar todas essas actividades.
Mohammed tinha de regressar a Shiraz, onde pediria o divórcio que agora eu estava bem ciente de nunca ter concretizado; e uma vez que a data do aniversário da minha tia Homa estava próxima, decidi acompanhá- lo na véspera da passagem de ano. Desta feita foi-me ordenado que saísse para comprar as passagens aéreas enquanto sua excelência ficava de rabo sentado no Ministério da Orientação para se certificar de que os rapazes davam o seu melhor" no sentido de arranjarem as últimas entrevistas de que necessitávamos para terminar o nosso trabalho de pesquisa.
Na República de Deus, os voos domésticos valem o seu peso em ouro. Muita gente reserva as suas passagens com seis meses de antecedência a fim de evitarem os "pequenos extras" que os agentes de viagens cobram para lhes arranjarem lugar a bordo de um avião sempre que se precise urgentemente de uma passagem. Conhecer alguém que trabalhe para a Iran Air constitui uma grande vantagem, porque caso os próprios funcionários da companhia aérea não tenham reservado os lugares, conhecem um colega que investiu antecipadamente num par de passagens aéreas que estarão dispostos a ceder por um valor duzentos por cento acima do nominal. À semelhança do que se passa com tanta coisa no Irão, foi necessário esperar durante dois dias pelas agências de viagem e pedir aos amigos que ligassem a um amigo que por sua vez tinha outro amigo que conhecia um agente de viagens. Mohammed acrescentou o custo dos bilhetes ao resto do dinheiro que já me devia, e eu informei a minha tia que chegaríamos a sua casa na semana seguinte.
Despedi-me de Roger e Raymondo em Mehrabad com um sentimento de muita tristeza. Tinha-me sentido em segurança na companhia dos dois. Agora encontrava-me de novo sozinha entre estranhos.
Quando chegámos, soubemos que a Maman Jan se encontrava em Shiraz. Desde o primeiro momento em que a minha avó viu Mohammed, não me passou despercebida a perplexidade que sentia. Nunca tendo sido pessoa para estar com meias-palavras, passou o primeiro serão a certificar-se de que o novo acréscimo à família ficava bem ciente da sorte que tinha por se encontrar ali. Ao fim de pouco tempo, já contava a Mohammed como é que um dos seus muitos irmãos generais esmagara uma rebelião entre o clã dos lashqai a que ele pertencia, atitude que o pôs no seu lugar. Só não lhe disse que um outro dos seus irmãos levara as filhas mais velhas como reféns como garantia de que nunca mais voltariam a pisar o risco. Não se pode dizer que esta atitude tenha contribuído para criar um género de atmosfera onde se pudesse relaxar; não podia censurar o meu marido por ter passado a semana seguinte tão longe daquela casa quanto lhe foi possível. "Autorizou-me" a passar as duas primeiras noites com a minha família, mas durante o resto da semana teria de ficar alojada no soalho de uma das irmãs.
No segundo dia da nossa estadia em Shiraz, foi-me buscar duas horas depois da hora combinada e levou-me para casa de Motaram. Ficou apenas durante o tempo necessário para tomar chá connosco, após o que me deixou para que eu ficasse a conhecer melhor a irmã e os seus seis encantadores filhos. A minha cunhada era analfabeta e casara com a tenra idade de treze anos. As suas perguntas e comentários sobre a vida das mulheres nos países ocidentais deixavam-me desconcertada. Quando casou não passava de uma criança, tendo desposado um homem que nunca tinha visto antes da noite de núpcias, e contudo sentia-se estupefacta por existirem casais que não eram casados mas que dormiam juntos, ainda que se conhecessem há vários meses.
Perguntou-me por que razão é que as mulheres do Ocidente tinham tanta falta de vergonha, como é que podiam permitir que outros homens além dos próprios maridos vissem os seus corpos e cabelos.
Não encontrei nenhuma resposta que lhe pudesse dar. Compreendia como é que na sala de estar em forma de "L" daquela mulher esse tipo de comportamento lhe possa ter parecido imoral e repugnante. Não havia maneira de lhe poder dizer que era o próprio irmão dela que se sentia excitado perante a visão de um pequeno pedaço de pele do meu pescoço, que era a mente dele e dos homens da sua igualha que davam origem a pensamentos imundos. Não lhe podia dizer que tinha amigos com quem havia partilhado a cama sem que tivesse de partilhar o meu corpo, era-me impossível fazer-lhe ver que podia existir algo mais entre um homem e uma mulher para além da sexualidade. Ela seria incapaz de compreender que os véus que lhe cobriam o corpo eram o maior dos afrodisíacos.
É possível que ela não desempenhasse papel algum fora daquela casa, mas o certo é que se podia comer do chão de pedra. A casa encontrava-se impecavelmente limpa, e embora as roupas das crianças fossem velhas e puídas, tinham acabado de as vestir e estavam limpas, tal como os garotos que as usavam. Era uma particularidade em que eu já tinha reparado; nos lares em que o nível de religiosidade era maior - suplantando os lares "modernos" -, mais escrupulosa era a limpeza. No seu todo, o país encontrava-se muito mais limpo, isto é, se fosse possível evitar os hospitais particulares e os restaurantes de luxo.
As três crianças mais novas - uma garota deliciosa de nome Mali e que eu teria levado para minha casa com grande satisfação, e dois rapazes cujo nome nunca consegui memorizar - acocoravam-se por cima de livros colocados no chão no pequeno canto que lhes fora reservado, enquanto as três irmãs mais velhas ajudavam a mãe a limpar e a cozinhar, além de entreterem a nova familiar por afinidade. De todas as pessoas que conheci no Irão, de quem sinto mais saudades é destas crianças; eram tão inocentes, continuavam a ser tão puras e tinham tão pouco a esperar da vida.
Um mês depois dessa nossa visita, a garota mais velha fez catorze anos e sem mais delongas ficou noiva de um primo mau-grado a oposição de Mohammed, que assumira o papel de chefe da família apesar de o seu pai continuar vivo.
Nessa noite Mohammed chegou a casa a horas para o jantar acompanhado de vários homens peludos e todos empoeirados. Fui informada que eram os primos e irmão de Sepideh. Não tinham conhecimento do casamento de Mohammed, e por isso fui obrigada a sentar-me à parte, tendo sido apresentada como uma amiga da família.
Como é que esta gente se atreve a tratar-te desta maneira, dizia- me a minha voz arrogante. Esta gentalha nunca teria autorização para entrar em casa do teu pai, a menos que fosse para lavarem o chão; por conseguinte, como é que tinham a ousadia de me esconder como se eu fosse o segredo vergonhoso?
A voz da bondade não tardou a fazer-me compreender o quanto eu estava a ser injusta. Estas são pessoas de Deus com tanto direito ao seu orgulho e a serem respeitadas como tu. Quem és tu para lhes torceres o nariz?
Aquela foi a noite mais estranha da minha vida, tendo sido relegada para aquela subclasse, a segredar a um canto a fim de não perturbar os homens que discutiam os assuntos importantes da vida. Mordi os lábios e tentei concentrar-me na conversa das raparigas. Não sabiam nada de moda nem da música popular do Ocidente, assuntos que despertavam o interesse das jovens da sua idade nos países ocidentais. As garotas discutiam sobre a identidade do homem que se casaria com a suajovem prima e soltaram risadinhas em voz baixa quando a petiza de seis anos torceu o nariz num gesto de desdém ao ouvir o nome do candidato mais provável.
- Ele parece um burro - sussurrou ela ao meu ouvido, sabendo que seria repreendida
por tal grosseria dita a respeito de um adulto caso a mãe a ouvisse.
Ele há-de herdar todas as terras do pai agora que os irmãos se foram embora para viverem em Teerão - explicou a irmã mais velha.
- Eu não me quero casar - confiou-me a garota. - Antes quero ir para a faculdade e aparecer na televisão.
- O tio Mohammed quer que todas nós estudemos e trabalhemos - interveio a mais velha para minha grande satisfação. Mas logo acrescentou: - Ele diz que devíamos trabalhar para podermos ajudar os nossos maridos e para nos tornarmos mais interessantes aos olhos deles.
Terminada a refeição, e depois de os convidados terem partido, as raparigas estenderam os colchões pelo chão enquanto eu fui à retrete no exterior, situada ao fundo do pequeno quintal nas traseiras. Chovia e o meu casaco comprido já estava todo enlameado quando tentei levantá-lo até à cintura enquanto me agachava por cima do buraco que servia de sanita. Aquele tipo de sentinas provocava-me pesadelos, com a água correr por baixo dos nossos pés enquanto tentávamos manter o equilíbrio ao mesmo tempo que evitávamos ser salpicadas com urina. Quando espreitei para baixo, certificando-me de que não falhava o alvo, senti qualquer coisa húmida que me caiu nos lábios quando a bacia de louça se encheu. Lavei e tornei a lavar o rosto até sentir a pele a arder de tanto esfregar.
Se pudesse, apagaria essa noite das minhas recordações para sempre. Enquanto seis crianças, a minha cunhada e o marido se instalavam para dormir, Mohammed começou a acariciar-me os seios. Fiquei como que paralisada no silêncio daquela noite terrível, tentando ouvir os sons dos que dormiam - mas não escutei nenhum. Aquelas pessoas estavam completamente despertas, deitadas a mais ou menos três ou quatro metros do lugar onde Mohammed se punha em cima de mim.
Empurrei-o para o lado, mas ele limitou-se a murmurar-me que ninguém daria por nada.
Mas eu sei - repliquei. - Não podemos fazer uma coisa destas, é absolutamente nojento!
- Não sejas estúpida, é muito natural.
Enterrei as unhas nas suas costas, mas ele continuou às voltas com a minha roupa interior. Debati-me tanto quanto me foi possível, tentando não fazer muito barulho naquele silêncio aparente. Quanto mais eu lhe resistia, mais excitado se sentia e era com maior violência que os seus dedos me apertavam. Arranhei-lhe as costas mas, para minha grande aversão, ele gemeu de prazer. A única coisa pior do que aquilo que ele me fazia seria o resto da família aperceber-se do que se estava a passar, e por isso cerrei os dentes e contive o choro que me assomava à garganta.
Na manhã seguinte não fui capaz de olhar de frente para ninguém. Desta vez reservei-lhe o tratamento do silêncio e pedi para regressar a casa da minha tia. Ele recusou-se a deixar-me ir. Nessa semana, Mohammed começou a passar cada vez mais tempo junto da família e amigos enquanto eu ficava a ajudar a irmã.
Quando nos preparávamos para partirmos depois de uma semana de autêntico martírio, as crianças abraçaram-me e beijaram-me, implorando- me que voltasse dentro em pouco. Eram uma gente tão encantadora, simpática e generosa, e contudo eu mal conseguia esperar para me ver longe deles.
O aniversário de Homa teve lugar na última noite da nossa estadia; estava combinado que a passaríamos na sua companhia. Mas em vez de se mostrar feliz e despreocupada, a minha tia, uma mulher cheia de graciosidade e elegância, parecia ter cem anos de idade. Sofria da doença óssea da família e de fraqueza nas costas, sendo obrigada a manter-se deitada de costas; usava um fato de treino de um verde vivo e estava em cima de um cobertor axadrezado de lã angorã verde e azul- marinha estendida no soalho da sala de estar, enquanto confirmava que a filha Shirl, Que vivera em Los Angeles durante a última década, tinha efectivamente casado pela quarta vez. E sim, era verdade que o novo marido era o mesmo poeta que destroçara o coração de Bahar e que despoletara a sucessão de eventos que desfizera a felicidade da nossa família. A minha tia pedira-lhe que não concretizasse aquele casamento, e todavia chegaram-nos notícias de que efectivamente tinham casado.
Há algum tempo que Homa tomara conhecimento do sucedido, mas, por motivos óbvios, sentiu relutância em admitir a realidade. Subitamente, o sofrimento e horror da morte de Bahar foram revividos. Depois de tudo levado em conta, foi um aniversário muito tristonho para a minha tia, e uma passagem de ano ainda pior.
Desagradando a Rafsanjani
O meu apartamento - continuo a considerá-lo como meu e não nosso - estava a trans formar-se numa dessas casas que alugam quartos com direito a pequeno-almoço, para toda uma variedade de membros iranianos do funcionalismo público, estudantes e membros da família de Mohammed. Era muito raro ter um serão a sós com o meu marido e sem a presença de pelo menos um outro homem que aparecesse para comer e conversar, para comer e conversar, para comer e conversar.
Poucas destas conversas incluíam a minha pessoa, o que para mim era bastante conveniente porque estava com algumas dificuldades de audição - o que não era de admirar uma vez que era obrigada a usar sempre o lenço para esconder os cabelos, o que se agravava com o facto de ter de ficar na cozinha durante a maior parte do serão rodeada pelos barulhos próprios da preparação das refeições, as chaleiras a ferver e a água a correr, sempre numa correria de um lado para o outro a servir os convidados do meu marido e a lavar os pratos para a rodada seguinte. Aquela era a vingança de Deus por todos aqueles anos em que evitara levantar um dedo para fazer qualquer tarefa doméstica.
O primeiro convidado a ir a minha casa foi Reza, que veio com a finalidade de inspeccionar o nosso "ninho de amor". Recordo-me de ele ter ficado de pé junto da janela da minha sala de estar a olhar fixamente para a neve daquele Janeiro que cobria toda a distância até ao pico mais a sul de Teerão, abarcando a área mais distanciada onde se situava o santuário do Imã Khomeini.
- Em face desta vista, é fácil imaginar-se que se está apaixonado. Gostaria de ver se o vosso amor sobreviveria no meu quarto e meio onde moro mais adiante - disse-me ele fazendo um gesto na direcção de Shoush.
- Claro que sim - retorqui. - Eu estaria disposta a viver com Mohammed em qualquer lugar.
- E ele viveria contigo em qualquer sítio? - perguntou-me Reza à guisa de resposta.
- Sim, evidentemente que viveria. De facto, Mohammed até anda à procura de outra casa mais barata num sítio qualquer perto das pessoas comuns - disse eu saindo em defesa do meu amor.
- De verdade? E onde é que já procuraste? - perguntou Reza voltando-se e fitando Mohammed.
- Vi umas quantas casas, mas em toda a parte é mais ou menos tão caro como a renda deste apartamento. Não faz sentido mudarmo-nos agora, pelo menos até eu decidir se vamos viver para Inglaterra ou não - explicou-lhe Mohammed.
Reza começou a entusiasmar-se com o assunto da ida para Inglaterra e dos estudos, tendo passado a hora seguinte a tentar persuadir o meu marido de que este devia a si próprio fazer o grande sacrifício, sendo pois necessário que fosse para esse país. Afirmou que era minha obrigação sustentá-lo enquanto ele não completasse os seus estudos. Mohammed continha-se, mas Reza argumentava insistentemente a favor da mudança.
Enquanto eu preparava o jantar, comecei a perguntar-me se teria assistido a uma cena previamente encenada. Estariam eles a armar-me uma cilada? E que cheiro a queimado era aquele?
A minha mente abstraíra-se por completo e o resultado foi a ponta do meu lenço aproximar-se das chamas de um dos bicos do fogão, provocando um pequeno incêndio. Gritei e puxei o lenço tirando-o da cabèça quando Mohammed veio a correr até à cozinha.
- Não entres aqui, Reza - gritou ele ao amigo, quedando-se enquanto soltava risadas casquinadas ao ver o lenço em labaredas no lava-louças. - Eu vou buscar-te outro lençoofereceu-se depois de ter dado largas ao ataque de riso.
Tenho de admitir que a situação era engraçada, de facto chegava a ser hilariante, isto é, se eu não estivesse prestes a ficar envolvida pelas chamas. Com o risco de arder até ficar estorricada, e tudo em que o meu amor pensava era na possibilidade de Reza poder olhar de relance para a minha cabeça incinerada, o que poderia levá-lo a excitar-se sexualmente.
O que não teve graça nenhuma foi a chegada dos seus dois irmãos mais novos, Pirouz e Firouz - nomes que não eram os seus, mas que ambos haviam adoptado em substituição dos nomes originais que eram excessivamente religiosos e fora de moda. Aquilo significava que a partir de agora eu era prisioneira do meu hejab quase vinte e quatro horas por dia. Os dois rapazes vieram para Teerão a fim de ocuparem os lugares na universidade que eram reservados às famílias dos mártires; acamparam no nosso pequeno apartamento. Eram jovens muito inocentes e cheios de doçura, extremamente corteses, e eu era capaz de perdoar quase tudo a alguém que tivesse boas maneiras. Era o irmão dos dois, Mohammed, que dava origem a problemas. Trouxera os rapazes sem sequer me avisar e exigira que eu comprasse colchões e roupa de cama, enquanto os irmãos me asseguravam que ficariam muito bem no soalho sem lençóis.
O que era bastante vulgar no Irão. As famílias muito numerosas abundam na República de Deus, sendo de esperar que os familiares apareçam sem avisar e prolonguem a visita durante meses a fio em casa de cada um. É considerado um favor e não uma imposição, e eu sentia-me feliz por poder acolher os dois jovens. Mas a sua chegada coincidiu com as celebrações do décimo quarto aniversário da revolução, evento a que a imprensa mundial seria bem-vinda. Habitualmente, é o período do ano mais movimentado para todos os correspondentes acreditados em Teerão, dado que os poderes instituídos procuram ver os seus nomes publicados nos meios da comunicação social do Ocidente.
Para mim foi o fim da ilusão em que me mantivera até então, o sofisma de ter casado com um homem que compreendesse que eu era alguém por direito próprio, que tinha uma carreira profissional que para mim era tão importante quanto tudo o mais. Talvez eu tivesse aceitado as atitudes de Mohammed caso ele tivesse personificado o marido tradicional. Se ele esperava que eu tratasse das tarefas domésticas enquanto ele trabalharia para pagar as despesas, é possível que eu tivesse mostrado compreensão e respeito por ele - continuaria a não aceitar de bom grado, mas teria compreendido a sua postura. Talvez tivesse respeitado as suas crenças religiosas se ele não tivesse parado de dizer as suas namaz diárias no mesmo momento em que me desposou. Possivelmente ter-lhe-ia perdoado muita coisa caso ele não tivesse permitido que eu pagasse todas as despesas da casa, incluindo a aliança de casamento que finalmente consegui convencê-lo de que necessitava.
Ele esperava que eu cozinhasse, limpasse e fosse uma boa anfitriã, contava com que eu me despojasse de todas as minhas tradições e passasse a adoptar as suas, e nos tempos livres contava com que eu ganhasse dinheiro suficiente para o sustentar, assim como à outra mulher e filhos, para além de dar alojamento e alimentação aos seus amigos e familiares.
- Sepideh fá-lo sempre que é a noite dela - dir-me-ia ele.
Pensei que seria demasiado mas consegui puxar o assunto do dinheiro e recordar-lhe que Sepideh não tinha de ganhar dinheiro para o sustentar. Assim, engoli as palavras, e o resul tado era as refeições caírem-me mal no estômago. Sentia- me a arder por dentro, os pensamentos desfilavam-me pela cabeça a toda a velocidade cheios de medo e raiva, até que o meu corpo enfraquecia cada vez mais, ao ponto de haver noites em que ficava completamente prostrada sem sequer conseguir levantar os braços.
Nessas noites Mohammed mostrava-se encantador: apanhava-me de onde eu tinha caído e levava-me para a cama. Alterava as noites que passava comigo, de forma a poder ficar por perto para tratar de mim. Preparava-me bebidas doces que se destinavam a fazer subir o nível de açúcar no meu sangue e massajava-me os pés para que a circulação sanguínea voltasse ao normal. E nas manhãs seguintes abanava- me para me acordar e beijava-me.
- Despacha-te, está na hora de levantar da cama. Já estou atrasado. vai preparar depressa o meu pequeno-almoço enquanto tomo o duche - diria ele. - A minha camisa precisa de ser engomada. - O facto de ter andado sempre com as camisas amarrotadas antes de nos casarmos parecia nunca o ter incomodado.
Tinha-me despedido dos dois irmãos depois de lhes ter dado um pequeno-almoço abundante em que ficaram a conhecer as alegrias dos flocos de cereais com leite. Existem determinados aspectos que separam o homem do homem e que são de tal maneira triviais que nunca se imaginaria que pudessem fazer a mais pequena diferença; mas quando as coisas começam a dar para o torto, são os pequenos pormenores que saltam à vista em primeiro lugar. A minha nova família nunca havia provado cereais ao pequeno-almoço. Não tinham a mais pequena noção do que fazer com aquele alimento. Também nunca tinham tomado café, e quando coloquei os ovos sobre a mesa, constatei que os cereais nadavam dentro do leite quente, enquanto o café fora adicionado ao frio.
- Não achas que devíamos acrescentar um pouco de água ao café? - perguntou-me Mohammed.
- Vou já buscá-la, meu querido - disse-lhe eu, demasiado embaraçada para lhes dizer que tinham feito tudo ao contrário, e envergonhada comigo mesma por aquele deslize me incomodar tanto.
Quando finalmente se foram embora, senti-me absolutamente exaurida; só me apetecia dormir. Na noite anterior fiquei a pé durante duas horas a lavar e a arrumar a louça do jantar depois de os homens terem ido para a cama. No entanto, levantei-me uma hora antes deles para lavar e passar a ferro as roupas de Mohammed, antes de começar a preparar o pequeno-almoço. Quando me deitei, liguei o meu rádio para ouvir as notícias transmitidas pela BBC. Ouvi a voz de Lyse Doucet que emitia o noticiário a partir de Teerão - qualquer coisa sobre o despenhamento de um avião.
Despertei para a vida. Comecei logo a telefonar para o Ministério da Obstrução e falei com Mousavi, após o que liguei para o aeroporto e para a Força Aérea. Uma hora mais tarde já tinha concluído o artigo que enviaria para o Financial Times, em que relatava como um avião da Força Aérea Iraniana tinha colidido com um avião de passageiros que transportava peregrinos rumo a Mahshad. Não houve sobreviventes e receava-se que os aparelhos se tivessem despenhado sobre a área densamente povoada de Karaj, nos arredores da cidade. Preparava-me para seguir imediatamente para o Hilton, onde utilizaria o fax do hotel para enviar a minha reportagem, quando me telefonaram da Sky TV pedindo-me que enviasse um artigo. Por volta das quinze horas dessa mesma tarde já tinha terminado a reportagem para o Financial Times para duas publicações dos Estados Unidos, para o canal televisivo Sky e também para uma estação de rádio sueca. Mas a Sky queria mais: queriam que eu fosse ver com os meus próprios olhos o local onde os dois aparelhos se tinham despenhado.
Mohammed e o clã deveriam voltar dentro de meia hora e por isso esperei que chegassem antes de sair de casa. Duas horas mais tarde continuava à espera, mas já tinha começado a escurecer. O meu estômago nervoso estava num estado de histerismo. Eu sabia que Mohammed faria um grande alarido quando voltasse para casa e verificasse que não havia mulher para o saudar, tal como não haveria jantar. Apesar de tudo, eu tinha de ir; a Sky continuava a fazer pressão sobre mim para que lhes enviasse mais notícias, além de que eu não estava disposta a perder aquela reportagem. Assim, entreguei ao porteiro do prédio uma mensagem para o meu maridinho, após o que chamei um táxi que me levasse ao local do acidente.
A estrada que sai de Teerão e liga a cidade a Karaj é uma auto-estrada ultra-moderna com quatro faixas de rodagem onde se paga portagem e que atravessa a zona industrial no interior da capital. Para se sair desta auto-estrada, que ficara bastante cara ao país, era necessário prosseguir por vias de terra batida. Para as percorrer, era forçoso conduzir através de viadutos estreitos toscamente construídos por baixo desta super- auto-estrada. Finalmente conseguimos encontrar o local da queda dos dois aparelhos - no meio de uma base militar perto do aeroporto. Nesta altura, a versão oficial dos acontecimentos já era pública. O avião de passageiros descolara de Mehrabad ao mesmo tempo que um aparelho militar deixava a base, a qual também servia de depósito de armas. Os dois aviões colidiram um contra o outro, ceifando a vida de centenas de peregrinos, muitos dos quais haviam sido convidados a expensas do Estado para assistirem às celebrações religiosas.
Os guardas no exterior da base deram-me, assim como ao meu taxista excessivamente entusiasmado, os pormenores mais macabros. Durante todo o dia tinham andado a retirar membros humanos das fuselagens dos dois aparelhos.
- Ainda há cadáveres espalhados por toda a parte - informou-nos um recruta bem barbeado.
- Pode deixar-nos entrar para vermos? - perguntou o meu motorista. Senti o estômago às voltas.
- Com certeza. Esperem aqui - respondeu o rapaz indo chamar o seu superior. Mas o oficial de serviço recusou-se a deixar-nos entrar - para meu grande alívio. Mas esse obstáculo não seria entrave para o meu taxista, que naquele momento travava uma ani mada conversa com um outro oficial. Era impossível não reparar no rolo de notas que o homem meteu furtivamente na algibeira do militar.
- Oh, não, por favor, meu Deus, não! - rezei enquanto éramos introduzidos dentro da base. - Por favor, querido Deus, não estou em estado de poder ver corpos desmembrados! - Era uma visão que não desejava ver, mas não ia permitir que aqueles homens se apercebessem de que eu já sentia vontade de vomitar só de pensar no que estava prestes a ver.
Mas nesse momento um outro oficial, mais graduado, saiu apressadamente de uma caserna mais no interior da base e bloqueou-nos a passagem. Enquanto o meu taxista punha um braço por cima dos ombros deste oficial, começando a negociar com ele, girei sobre os calcanhares e dirigi-me para a saída daquele lugar, bramando a plenos pulmões contra a corrupção, uma das grandes vergonhas daquele país.
Quando cheguei a casa já passava bastante das vinte horas e os dois irmãos esperavam por mim. Não vi Mohammed em parte nenhuma. Os irmãos disseram-me que ele tinha ido jantar fora com os amigos e que depois iriam ao cinema. Os dois jovens ofereceram-se para cozinhar mas, apesar da oferta, preferi ser eu a prepará-lo - três variedades do prato principal e para sobremesa sorvete e fruta. Para variar, não poderiam eles ter comido uma pizza ou um hamburger? perguntou-me a minha voz muito cansada e pouco caridosa.
Em seguida vimos um filme de cowboys em vídeo enquanto esperávamos que Mohammed chegasse. Comecei a sentir-me preocupada quando deram as vinte e três horas e ele ainda não tinha voltado para cása. O filme que ele foi ver devia ter começado às vinte e uma o mais tardar, e há muito que devia ter terminado. À uma da madrugada já eu estava de sentinela à janela a olhar para a rua abaixo de mim, esperançada em que os faróis que se aproximavam pela rua acima fossem os do seu carro. Noventa minutos mais tarde, Mohammed chegou com Reza.
Temos fome - anunciou ele refastelando-se no sofá.
Apetecia-me dizer-lhe que fosse para o inferno, e que levasse os irmãos e amigos com ele. Mas, apesar de tudo, eles eram convidados em minha casa, e embora me sentisse irritada com o meu maridinho, teria sido o cúmulo das más maneiras mostrar que não estava cem por cento feliz por esta gente estar a invadir o meu mundo. Sentia-me tão fatigada que não sabia o que fazia, mas, com alguma dificuldade, lá consegui preparar outra refeição. Os homens ficaram sentados a conversar até às quatro da madrugada enquanto fumavam e devoravam fruta. Quando se prepararam para se deitar, o meu apartamento tinha pratos com cascas de laranjas por toda a parte, misturadas com pontas de cigarros. Comecei a arrumar, a lavar e a esfregar, andando entre eles em bicos de pés. Acordaram numa casa impecavelmente limpa cuja anfitriã estava semiparalisada, mas que mau-grado a exaustão recomeçou o processo de cozinhar e limpar.
Na noite que precedeu o dia em que Raffers deveria dar a sua primeira conferência de imprensa em doze meses, o meu maridinho voltou a ser todo meu. Era a primeira vez que passávamos um serão a sós em mais de um mês; contudo, no que me dizia respeito, aquela era a altura menos adequada do mês.
Enquanto permanecia debaixo do meu marido, sentindo-o a esfregar-se entre as minhas pernas e fazendo pressão sobre o meu estômago dorido e inchado, apercebi-me do quão pouco compreendera a agonia por que Nahid deve ter passado. Transformar-me-ia eu na amante de estranhos depois de vinte anos de casamento com aquele réptil? Seria plausível que um dia aceitasse dinheiro e prendas de desconhecidos que engataria em pastelarias, iludindo-me ao extremo de pensar que aquilo era amor? Será que um dia me esquecerei do que é realmente o amor?
Ele nem sequer ouvia os meus protestos; era-lhe absolutamente indiferente que eu me tivesse negado alegando que me sentia cansada e que só desejava ser deixada em paz e sossego. Ao fim e ao cabo, não se esperava de mim que tomasse alguma iniciativa - só tinha de me deixar ficar deitada, como qualquer dispositivo erótico adquirido numa loja especializada em objectos sexuais. Pouco depois ele soergueu o corpo com lentidão, fez pontaria e esguichou um espesso jacto de langonha lubrificante que começou a escorrer por entre as minhas pernas.
Deixei-me ficar deitada toda a noite enquanto ele ressonava cheio de contentamento ao meu lado. Eu estava capaz de o matar e de o cortar aos bocadinhos. Por volta das sete horas comecei a dormitar, para ser abanada e despertada duas horas mais tarde pelo meu marido.
- Perdeste a conferência de imprensa de Rafsanjani - dizia-me ele. Levantei-me e saí antes de ele ter tempo para dizer "pequeno- almoço". Chegada ao gabinete presidencial, permitiram-me entrar depois de uma tentativa superficial de revista aos meus pertences. O que, para dizer o mínimo, era deveras estranho; no passado, até as jóias tinham de ser tiradas antes de nos permitirem chegar perto do todo- poderoso.
Quando entrei no recinto onde a conferência de imprensa tinha lugar, esta já começara; para meu grande horror, constatei que os auscultadores, através dos quais as palavras do grande homem eram traduzidas para inglês, estavam todos de posse dos correspondentes estrangeiros. Também não podia aproximar-me o suficiente para colocar o meu gravador em cima da mesa a que o presidente se encontrava sentado. Era essencial que me mantivesse atenta e absorvesse todas as suas palavras. Todavia, os meus pensamentos regressavam constantemente àquele jacto de langonha entre as minhas pernas, ao divórcio que não estava nas minhas mãos exigir.
Então, pondo de parte as circunstâncias em que me encontrava, vi as mulheres sentadas naquela sala com os lenços firmemente apertados em redor das cabeças, enquanto as suas colegas estrangeiras se sentavam ao seu lado naquela prisão temporária. Os meus pensamentos levaram-me ao destino de milhões fora daquele lugar que haviam sido arrastados de retorno ao século XIV, debatendo-se e gritando para que alguém os salvasse.
Coloquei-me no fim da longa fila de jornalistas que pretendiam fazer perguntas ao homem. Enquanto aguardava a minha vez, comecei a formular uma pergunta bastante complicada sobre a crise relativa à dívida iraniana a médio e longo prazo. Mas era-me difícil concentrar-me em questões políticas, nas respostas pré-estabelecidas que saíam dos lábios do nosso dirigente. A minha vontade era dar eco às palavras de Peter Finch no filme Escândalo na TV: "Estou fulo até mais não, e não tenciono aceitar isto por mais tempo! ".
Viam-se câmaras de filmar das televisões de todo o mundo. Estavam presentes jornalistas do New York Times, do Der Spiegel, do Figaro e de muitos outros jornais. Também havia um número quase incomensurável de máquinas fotográficas, tanto de fotógrafos locais como estrangeiros. Desejava poder subir àquele estrado e colocar-me ao lado de Hojat-ol- Islão Ali Akbar Hashemi-Rafsanjani, arrancar o lenço que me cobria a cabeça e rasgar o casaco que me tapava o corpo. Queria gritar: "Deixem- me ser livre! Deixem que o meu povo seja livre! ".
Claro que essa atitude teria sido inútil: os fotógrafos veriam as suas películas confiscadas, as câmaras de filmar seriam imediatamente apreendidas e eu estaria perdida em Evin antes mesmo de a notícia chegar ao resto do mundo. Alguém fez uma pergunta sobre os prisioneiros políticos, ao que Raffers respondeu convidando todos os jornalistas presentes a visitarem as prisões, onde poderiam ver por si próprios o quanto aqueles lugares eram instituições maravilhosamente humanas.
Entretanto, chegou a minha vez.
- Mrs. Mosteshar do Financial Times - anunciou o mestre-de- cerimónias. Aproximei-me do microfone e abri a boca, mas só saiu um guincho.
Fale! - gritou alguém em inglês de entre a multidão.
Quando puxei o microfone para mais perto de mim, sentia a mão a tremer. Os olhos de Rafsanjani davam a impressão de me trespassarem e olharem para dentro de mim, lendo os pensamentos de raiva que preenchiam a minha cabeça. O lenço que me sufocava dizia-me que eu não passava de uma massa de cabelos, seios e vagina, sendo forçoso que eu estivesse sempre envolta num manto que ocultaria os traços asquerosos da minha feminilidade.
- Senhor Rafsanjani, são muitas as vezes em que tem encorajado as mulheres a assumirem um papel mais relevante na vida pública - comecei a dizer numa voz de cana rachada expressando-me em inglês -, mas como é que qualquer mulher poderá, digamos, aspirar a vir a ser ministra dos Negócios Estrangeiros do seu governo se, por dever do ofício, teria de obter o consentimento do marido sempre que tivesse de viajar? Continuam a existir muitas coisas que as mulheres consideram intoleráveis, e não estou a referir-me ao hejab, mas sim a muitos outros aspectos como, por exemplo, serem consideradas meio-homem quando testemunham em tribunal. O Islão diz que devemos acompanhar as mudanças dos nossos tempos e lugares. É esta a altura e o lugar para que finalmente as nossas mulheres passem a gozar de todos os direitos humanos?
Sorriu-me afectadamente, mas os seus olhos pareciam dizer-me: "Hei-de ver-te atrás das grades, minha doçura".
A resposta foi patética. Rafsanjani afirmou que as mulheres eram respeitadas e encorajadas a estudar. Nunca houvera tantas estudantes na universidade como agora. Continuavam a existir algumas áreas que teriam de ser alteradas; no entanto, essas reformas seriam implementadas em seu devido tempo.
Enquanto regressava ao meu lugar, vários jornalistas, e até mesmo um ou outro funcionário público, congratularam- me pela minha pergunta. Na brincadeira, perguntei a um dos meus colegas, repórter de um dos jornais de Murdoch, se tencionava aceitar o convite para visitar as nossas prisões.
- Sim - foi a resposta que me deu. - Que tipo de fruta é que gostarias que eu te levasse? - Toda a gente era da opinião que eu mostrei muita coragem, ainda que tenha sido um pouco irresponsável. Mas acontece que eu me tinha sentido fula e muito encolerizada.
Encontrava-me no ponto de ruptura e ansiava por ir para longe. Só desejava regressar a Oxford para poder percorrer a Rua Banbury sem ter necessidade de olhar constantemente por cima do ombro com receio da polícia de costumes. Tinha saudades de poder entrar no vestíbulo do Hotel Old Parsonage e trocar piadas com os empregados de mesa sem me ordenarem que saísse. Apetecia-me comer costeletas no Browns. Queria trocar dois dedos de conversa com os meus colegas do sexo oposto sem que um membro das Forças de Segurança surgisse cobarde e furtivamente por detrás de mim para tentar ouvir o que dizíamos.
Nunca tinha pensado duas vezes sempre que me encontrava com pessoas no átrio do Hilton de Teerão, até ao dia em que uma mulher que trabalhava no serviço de telecomunicações desapareceu no Verão passado, o que deu origem a que vários membros do pessoal do hotel cumprissem as suas tarefas de cenho carregado sempre que se aproximavam do homenzinho rechonchudo sentado a uma secretária junto da entrada, cujas funções eu nunca compreendera muito bem até então. Ao que parecia, a pobre mulher, uma viúva com três filhos que auferia um salário de miséria, estava desesperada por conseguir um emprego onde ganhasse mais. O embaixador cubano tinha ficado a conversar com ela enquanto esta enviava um fax que ele lhe levara, tendo mencionado que dentro de pouco tempo tencionava expandir a sua missão diplomática, pelo que iria necessitar de mais pessoal iraniano. Ela deu-lhe o seu número de telefone - para o caso de ele vir a ter um emprego que lhe pudesse dar. No dia seguinte foi levada pelas forças de segurança e os seus colegas de trabalho disseram que ela foi despedida sob a alegação de conduta imoral.
Conhecedora deste episódio compreensivelmente senti-me bastante preocupada ao avistar o homem da segurança rondar atrás de mim na altura em que eu trocava números de telefone com um jovem jornalista da BBC, por sinal um belo homem cuja missão era fazer a cobertura da visita de Eduard Shevamadze, o presidente da Geórgia, que vinha solicitar auxílio ao governo iraniano. Ultimamente eu andava um tudo-nada envergonhada porque desde a conferência de imprensa de Raffers tinha redescoberto um mundo cheio de homens bem-parecidos, o que me levava a questionar o motivo por que quisera casar tão desesperadamente. Fui educada com base nos princípios que me levaram a acreditar que depois de nos casarmos devíamos uma lealdade incondicional ao nosso marido, e que achar outro homem atractivo era uma forma de traição. Quando o homem da BBC foi à sua vida, senti uma grande ansiedade por poder voltar a ser livre e acordar todas as manhãs na expectativa de aquele ser o dia em que encontraria o meu "Príncipe Encantado". Encontrava-me embrenhada nestes pensamentos quando fui abordada pelo homem das Forças de Segurança que me brindou com um sorriso.
- Não há dúvida de que você fez com que o presidente Rafsanjani suasse as estopinhas - disse-me ele.
A grande conferência de imprensa foi transmitida pela televisão na noite anterior, uma semana depois de se ter realizado, e de um dia para o outro transformei-me numa super-estrela.
Mohammed mostrou-se verdadeiramente solidário e encorajador quanto à minha atitude para com Raffers; isto é, até as pessoas começarem a dizer-lhe na brincadeira que teria de ter muito cuidado, caso contrário Raffers roubar-lhe-ia a mulher.
- Casaste-te prematuramente - dizia-me Mrs. Mo. - Viste bem a maneira como Rafsanjani olhou para ti? Não há dúvida de que lhe ficaste entalada na garganta. - Pela minha parte, só tinha observado algo mais perverso naqueles olhos esbugalhados.
Mas agora era obrigada a ter de aturar as instruções repetidas do meu marido, que me dizia que postura devia adoptar, como sentar-me e falar a fim de evitar dar a impressão de ser uma mulher disponível. Deixara de ter autorização de cumprimentar o porteiro ou o recepcionista do prédio onde vivia. Também me foi interdito sentar-me na mesma sala do Ministério da Orientação em que houvesse homens - opinião que era partilhada pelo novo chefe do departamento, o qual segregou os dois sexos, reservando a cada um uma sala diferente; isso tornava bastante complicado dizer aos rapazes, através de uma parede de tijolos, quem é que se queria entrevistar.
Os iranianos têm o costume de comemorar todos os anos a morte de um ente querido na data do aniversário do falecimento, mas o primeiro ano é o mais importante. Uma vez mais, os familiares em linha directa têm de abrir as portas de suas casas a todo o bicho- careta. Conheço pessoas que nunca faltam a uma cerimónia fúnebre, seja de que tipo for, dando muita importância à qualidade da hospitalidade com que são recebidos. Foi durante uma cerimónia de luto em memória de um dos muitos grandes homens que morreram no período pós-revolução que um dos meus colegas jornalistas me segredou ao ouvido a melhor anedota sobre cerimónias fúnebres que alguma vez ouvi.
- Uma mulher e a nora iam apresentar as suas condolências à família de um serviçal que tinha falecido. O homem que morreu vivia na zona mais pobre e degradada de Teerão, e pouco tempo depois as duas mulheres perderam-se pelos becos que percorriam. Quando já tinham poucas esperanças de conseguirem encontrar a casa do falecido, finalmente repararam numa casa onde havia um corrupio de homens, vários deles molás, que entravam e saíam. Pensando que aquela devia ser a casa que procuravam, decidiram entrar. Mas aquilo em que entraram era, de facto, o melhor pequeno bordel de Teerão. Já no interior, os homens atiraram-se às duas, saciando os seus apetites durante seis horas ininterruptas. Quando por fim as duas mulheres conseguiram sair, a mais nova voltou-se para a sogra e implorou-lhe: "Por favor, não conte ao meu marido nada do que aconteceu naquela casa". A outra replicou: "Quanto a ti não sei, minha querida, mas podes crer que estarei de volta para as cerimónias do funeral dele, para a sua semana e por ocasião do chehele (quarenta dias), tal como não tenciono faltar a um único aniversário".
Foi esta a anedota que o meu colega brincalhão me contou, rindo-se à socapa enquanto Ahmad Khomeini, o filho do falecido ayatollah, homenageava os mártires da revolução.
Era a décima vez que eu lia a carta que ele me escreveu. À terceira leitura comecei a chorar desconsoladamente, mas aquando da sexta leitura estava determinada a voltar um dia a desfrutar da minha liberdade. Um segundo mais tarde, senti-me enojada de mim mesma. Não podes continuar afugir, rapariga. Escolheste Mohammed, agora só te restafazer das tripas coração, disse a mim mesma.
Nem sequer pensei em esconder a carta. Gervase era um dos meus melhores amigos, e não um amante. Tínhamos trabalhado juntos no Independent, para além de termos partilhado uma opinião não muito abonatória acerca de muitas pessoas. Ele era um dos poucos da meia dúzia de amigos com quem me correspondia. Nessa altura havia no jornal um homem especial por quem eu tinha ficado doida, mas a relação era impossível, pelo que decidimos ser apenas bons amigos. Estes amigos eram-me muito queridos porque os escolhia com todo o cuidado, dedicando-lhes toda a minha lealdade. No meu coração, sabia que estaria sempre pronta a escalar qualquer montanha, atravessar qualquer deserto e lutar contra qualquer demónio pelos meus amigos. Contudo, havia dias em que não tinha a certeza se me daria ao incómodo de atravessar uma sala para ir em auxílio de Mohammed; enquanto noutros dias pensava que seria capaz de morrer por ele.
A carta de Gervase encontrava-se em cima da mesa das refeições quando Mohammed chegou nessa noite - uma visita de fugida antes de ir para "o outro lado".
- O que é isto? - perguntou agarrando na carta.
- É de um amigo que acabou de fazer uma viagem por África. Queres lê-la? - ofereci, sabendo de antemão que ele não conseguiria entender a escrita em inglês.
Durante mais ou menos um minuto fingiu que lia a missiva, após o que a atirou para cima da mesa e se acercou de mim.
- É de um homem?
- Sim, foi escrita por um amigo.
- Dormiste com ele?
Houve qualquer coisa que cedeu. Sentia-me enraivecida por ele ter o desplante de me fazer uma pergunta daquelas. Eu sabia muito bem que ele pensava que, sendo ele homem, era certo e sabido que o sexo teria feito parte da relação.
- Sim, dormi com ele, centenas e centenas de vezes. No meio da redacção do jornal, em cima das mesas do refeitório, debaixo da mesa durante as reuniões de trabalho - respondi fazendo troça dele.
Ocorreu-me que apenas há um ano eu nunca teria sido capaz de dizer tudo aquilo em farsi; Mohammed aproximou-se bruscamente de mim agarrando-me pelos braços.
- O que é que estás a fazer? - perguntei, rindo-me. Tenho o costume de me rir sempre que me sinto verdadeira e profundamente assustada ou infeliz.
Ele empurrou-me e caí ao chão. Dei uma queda estrondosa. Sentia a espinha a latejar cheia de dores. Como é que eu pude cair tão baixo?
Mohammed recuava a mão e compreendi que se preparava para me dar uma violenta bofetada a qualquer momento; desloquei-me em movimentos atabalhoados, afastando-me do seu alcance. Arrastei-me de costas, o que fez com que ficasse com mais dores.
- Se me bateres, para mim acabaste! - gritei-lhe em inglês. - Caso te atrevas a bater-me, desfaço-te em polpa!
É muito possível que ele não tenha compreendido o significado das minhas palavras, mas interpretou bem a expressão que leu no meu rosto, pois de súbito começou a comportar-se que nem um cachorrinho dócil, aninhando-se junto de mim, só lhe faltando começar a lamber-me as mãos.
- Peço desculpa, mas tu conheces bem o que penso -justificou o meu liberal marido.
- É absolutamente impossível que um homem e uma mulher sejam só amigos, o sexo tem de estar sempre presente nos seus pensamentos. Mais cedo ou mais tarde, a amizade levá-los-á à cama.
- Eu já tive muitos amigos. Há vários anos que conheço Gervase, assim como outros, como por exemplo John, Daniel e David, homens que conheço há mais de dez anos, e nunca passou pela cabeça de qualquer um de nós a hipótese de irmos juntos para a cama - disse-lhe eu.
Depois fui obrigada a explicar-lhe que John era um amigo desde os tempos em que trabalhei no Hongkong Standard, dizendo-lhe que tínhamos mantido essa amizade desde essa altura, além de termos trabalhado no Tehran Journal quando o xá ainda se sentava no Trono do Pavão. Ambos tínhamos acabado por ir trabalhar juntos no Independent. John conhecia todos os meus segredos, mas não disse isto ao meu marido.
- Gosto de muitos homens como amigos, e mais nada - tentei explicar-lhe.
- É impossível - refutou o meu marido, peremptório.
Não valia a pena estar a contrariá-lo. Ele tinha uma ideia fixa na cabeça que lhe fora inculcada por gerações de doutrinação, aliada à segregação dos sexos. Eventualmente, acabaria por ver o erro da sua maneira de pensar, tendo forçosamente de se habituar à associação inocente de pessoas de sexos opostos.
- Não quero que voltes a escrever a esses homens - acrescentou.
No dia seguinte recebi outra carta enviada por um outro amigo, Fergus, um colega do Financial Times. Ia fazer uma viagem através da Ásia Central e queria saber se poderia visitar- me em Teerão. Não havia nada que me pudesse ter dado mais prazer do que a visita de uma das pessoas que começara a pensar serem "a gente real"; contudo, não existia nada que fosse mais impossível.
Finalmente as coisas encaminhavam-se no sentido de podermos reclamar os nossos bens. Os da Fundação para os Oprimidos haviam decidido devolver uma parte ínfima dos bens de que se haviam apropriado; apenas o suficiente para nos permitir comprar uma casa onde pudéssemos viver. Mas para receber a totalidade do dinheiro era necessário que a minha mãe assinasse alguns documentos, tendo de se apresentar em dois ministérios.
Consequentemente, a minha mãe estaria de regresso ao Irão. Sentia-me aterrorizada porque sabia que ela ficaria absolutamente horrorizada com o seu novo genro, o que me levava a recear que a sua conduta não fosse das melhores. A nossa família vivia segundo um código de etiqueta muito básico, e muitos dos meus antigos apaixonados não conseguiram mostrar-se à altura disso. Eu podia fechar os olhos à maneira como Mohammed comia, não interessava se as pessoas podiam ouvi-lo a mastigar a uma distância de dois quarteirões. Chegara ao ponto de fazer vista grossa aos lapsos ocasionais em que ele se esquecia de usar um lenço de papel quando metia o dedo no nariz. Os macacos continuavam a revoltar-me o estômago, mas pelo menos deixara de escarrar nos corredores. Mas a minha mãe não seria tão complacente como eu.
Mohammed andava empolgadíssimo perante a perspectiva da chegada da sua nova sogra. Era como uma criança que sabia estar prestes a receber um presente. Não se cansava de dizer como sempre detestara a família de Sepideh - apesar de o pai dela ser um dos seus tios -, mostrando-se extremamente entusiasmado com a possibilidade de vir a ter uma família por afinidade de quem gostasse realmente.
- Dá-me algum dinheiro antes da chegada da tua mãe. Quero poder levá- la aos melhores restaurantes e mostrar-lhe Teerão. Vou sentir-me amesquinhado se fores tu a pagar quando formos comer fora - explicou-me ele.
Que ternura, pensei: ele quer desempenhar o papel do genro perfeito. Assim, passei-lhe para as mãos dez mil tomans. "Mas, e com respeito ao automóvel? ", perguntou-me ele. Tinha de mandar arranjar o carro antes que caísse aos bocados em frente da minha mãe. Aproximadamente trinta mil romans depois, tínhamos abrangido todas as eventualidades. Em menos de trinta minutos ganhara três vezes o seu salário mensal - mas não era sob essa perspectiva que eu encarava as coisas. Nem sequer aludi ao facto de ele ainda não me ter devolvido os cinquenta mil tomans que gastei na reparação do seu carro antes mesmo de começarmos a namorar.
No entanto, antes da chegada da minha mãe realizou-se uma outra conferência de imprensa que eu tinha necessariamente de cobrir. O único ministro bem-parecido e elegante do governo de Raffers, o afável Ali Akbar Velayati, ministro dos Negócios Estrangeiros, convocou ao seu ministério os correspondentes da imprensa internacional. Na realidade, e até certo ponto, aquilo era uma maçada, dado que eu não tinha tempo para conferências de imprensa com a minha mãe prestes a chegar a Teerão e a saúde de Mohammed que se deteriorava - por esta altura não podia usar as mãos, tendo eu de fazer tudo por ele, ao ponto de haver algumas noites em que tinha de lhe dar o jantar à boca.
Dada toda esta situação, sentia-me extremamente infeliz quando cheguei à presença do homem que em tempos proclamei ser a única pessoa decente que restava no governo. O meu coração parou de bater por uma fracção de segundos há mais de um ano quando entrevistei Boutros-Ghali, o Secretário-Geral das Nações Unidas, e percebi que o ombro que se
roçava pelo meu era o daquele ministro arrebatador cujo lugar eu almejava. Depois do exército, o Ministério dos Negócios Estrangeiros foi da maior importância no passado da minha família, e sempre pensei que um dia talvez pudesse vir a ocupar uma posição oficial nesse ministério - quem sabe senão mesmo o posto principal. Agora, essa perspectiva parecia-me quase impossível e sentia-me melindrada na presença do homem que observara impávido enquanto o Irão perdia o seu estatuto mundial. Actualmente, só sentia desprezo por Velayati; o seu principal pecado era ser um "deles", gente cuja existência tanto afectara a minha vida. Também era óbvio, na minha opinião, que ele não passava de uma mera marioneta nas mãos das facções de direita, forças políticas determinadas em manter o Irão na idade das trevas, uma atitude inaceitável num homem formado em pediatria e possuidor da visão e inteligência que lhe permitiam ver mais longe. A revolução levara o medo de Alá ao coração dos governantes mundiais, e todavia Velayati revelara ser um tigre de papel.
Uma vez mais, tive de esperar, com parte dos meus pensamentos concentrados no trabalho enquanto a outra parte planeava o que cozinhar para o jantar, ao que se juntava a preocupação de como resolver o problema das duas esposas logo que a minha mãe chegasse. Preferia morrer a deixá-la tomar conhecimento do pesadelo em que eu transformara a minha vida.
Alguém chamou o repórter que faria a última pergunta e dei comigo de pé a falar ao microfone.
- Senhor Velayati, durante a revolução o Irão prometeu libertar os muçulmanos oprimidos espalhados por todo o mundo. Decorridos catorze anos, nenhum dos assuntos respeitantes ao mundo muçulmano foi resolvido; os palestinianos continuam a ser um povo oprimido; na Bósnia, os muçulmanos continuam a ser chacinados. Não concordaria, à luz destes factos, que a sua política externa é um pouco branda?
Silêncio. Toda a gente se agitou denotando mal-estar. O doutor Velayati falava inglês, pelo que não havia nenhuma justificação para a demora na resposta, uma vez que não carecia de tradução. Limitou-se a ficar sentado, com o semblante de quem não acreditava que eu lhe tivesse feito aquela pergunta.
- As minhas desculpas, mas não compreendi a pergunta. Peço-lhe o favor de a repetir - disse ele depois de uma longa pausa.
Repeti a pergunta, perante as exclamações de perplexidade dos meus colegas iranianos, acompanhadas de um "Assim é que é" da boca de um jornalista alemão de visita ao país.
Velayati franziu o sobrolho enquanto olhava para o seu chefe de relações públicas, o qual me fitava com uma expressão de fúria espelhada nos olhos.
- Nós nunca prometemos liberdade a todos os muçulmanos - foi a resposta lacónica e muito pouco convincente. Mas enquanto os outros abandonavam o edifício, fui detida pelo supremo das relações públicas que me deixou com um aviso.
- De futuro, limite-se a fazer perguntas; não faça declarações de natureza política.
Um dos seus lacaios deixou-se ficar perto de mim enquanto o seu chefe se afastava, interpelando-me quando este já não podia ouvi-lo.
- Talvez você não pense nos problemas que poderá arranjar para si própria, mas está a arriscar a nossa posição ao comportar-se dessa maneira. Esta sociedade não é como o seu mundo em Inglaterra. Os ministros são muito sensíveis por aqui. Tenha cuidado. dou-lhe este conselho como amigo - advertiu-me o homem.
Tudo o que eu mais desejava era pôr o trabalho e a política para trás das costas. Sentia-me como se alguém me estivesse a bater e me enterrasse no solo, afundando-me cada vez mais em sólidas camadas de granito.
Ao fim e ao cabo, quem era eu para me arrogar o direito de falar daquela maneira?
Aquando do nosso casamento, tinha havido uma confusão qualquer com a certidão. O nosso pequeno molá afirmara que precisava do documento que viera expressamente de avião para esse efeito, de Rashte, uma província setentrional onde os inspectores eram um pouco menos vigilantes. Agora, com a chegada iminente da minha mãe, Mohammed exercia pressão sobre ele para que lhe entregasse o dito documento.
Na manhã que precedeu o dia em que a minha mãe deveria chegar, voltámos a fazer o percurso de automóvel através da via rápida Resalat a fim de reavermos esse documento.
Enquanto Mohammed o lia em voz alta, eu assinei-o, sem saber se ele estaria a ler o que efectivamente dizia ou se estaria a omitir as partes que eu não gostaria de ouvir. Aquilo que lia já era por si só bastante mau. Ser-me-ia concedido o divórcio sob catorze circunstâncias, mas primeiro era necessário que Mohammed assinasse a petição, dando-me consentimento para me divorciar caso viesse a tornar-se um toxicodependente; se fosse condenado à prisão por mais de seis meses; se não providenciasse o meu sustento; caso casasse com outra mulher sem minha autorização; na hipótese de incapacidade de cumprimento das suas obrigações sexuais; se não me pudesse dar filhos; e toda uma série de outros incumprimentos de somenos importância. Era Mohammed quem teria de me dar autorização para accionar estas medidas; éra imprescindível que ele assinasse todos os artigos das condições antes que estas fossem validadas. Aquela situação começava a ser exasperante.
Mas naquele momento não havia tempo para pensar naquilo. Mohammed tinha de tentar encontrar algumas testemunhas e, feito isso, ainda me faltava fazer muitas compras antes da arrumação final da casa, limpar o pó e aspirar, preparando-me para a chegada da minha mãe às primeiras horas da manhã.
Quando chegámos ao aeroporto às três da madrugada, sentia-me exausta. A minha mãe certamente teria um ataque: eu tinha a aparência de uma mulher de idade; engordara e o meu cabelo estava todo frisado; depois de vários meses de negligência, adquirira uma cor bastante estranha. Mas, pior do que tudo o mais, era a minha mão direita que estava deformada, com a pele seca suspensa dos dedos como se fosse carne apodrecida de uma carcaça qualquer que tivesse sido deitada no lixo. Poderia ter servido de lixa devido à aspereza da pele provocada pelo trabalho doméstico a que eu não estava acostumada.
No mesmo instante em que avistei a figura elegante da minha mãe a passar pela alfândega, perdi toda a esperança de ela alguma vez vir a aceitar o homem que se encontrava ao meu lado e que mais parecia um macaco. Em comparação com a minha mãe, ele tinha um aspecto ordinário, estúpido e sinistro. Desde o momento em que se entreolharam, aquelas duas pessoas que eu tanto amava declararam guerra uma à outra. Vinham de mundos inteiramente diversos e tanto um como o outro compreendeu naquele primeiro encontro que nenhum deles poderia alguma vez vir a viver no mundo do outro.
Mohammed estava convencido de que eu me tornara como ele, enquanto a minha mãe se encontrava bem ciente de que após trinta e seis anos a viver de uma determinada maneira eu jamais seria capaz de ser a mulher de um homem que um dia se dirigiria a mim pelo nome do nosso filho primogénito, tal como Sepideh era conhecida pelo nome de "mãe de Ahmad".
Ao olhar para a minha mãe, comecei a aperceber-me - na verdade, a sentir mais do que a compreender - o quão distanciados se encontravam o meu mundo e os meus valores dos do meu marido. Sempre que estávamos a sós, eu obedecia às suas instruções, às suas ordens; e agia dessa maneira a fim de não perturbar um casamento já de si tão precário. Mas senti-me tão constrangida em presença da minha mãe.
Durante três semanas mantive-me entre os dois, tentando manter a paz e agradar simultaneamente às duas partes. Mohammed passou a maior parte desse tempo refastelado, estendido de costas no sofá em frente do televisor. Saía ocasionalmente fingindo que ia trabalhar, o que lhe permitiria chegar a casa inesperadamente à hora do almoço, colocando-se no meio da sala a olhar através da janela panorâmica e perguntando: "Mulher, onde é que está o meu almoço? ". Se a minha mãe não estivesse presente, ele teria saído directamente pela janela fora; mas, fazendo das tripas coração, eu atarefava-me na cozinha a preparar o almoço e tentava manter a paz enquanto ele debatia o papel das mulheres e dos homens com a minha mãe.
- O homem tem determinadas funções na casa enquanto a mulher tem outras - diria
ele. - Por exemplo, os homens levantam objectos pesados, enquanto as mulheres cozinham, limpam e tratam do lar.
- Não no mundo em que vivemos. Quando uma mulher trabalha fora de casa, tanto
um como o outro têm de fazer a sua quota-parte das tarefas domésticas. Chehreh não foi
educada para fazer trabalho doméstico. Foi educada ao longo de trinta e seis anos para ser
uma mulher independente, em pleno gozo da sua liberdade. É impossível que ela venha a
mudar - tentava a minha mãe explicar-lhe sem perder a calma.
- Ela é boa rapariga... acabará por aprender - replicava ele confiante.
"Nunca na minha vida", pensava eu enquanto lavava a louça.
Durante vários meses tinha ansiado por ter o meu marido só para mim, pela oportunidade de me poder despedir dele todas as manhãs antes de ir trabalhar e recebendo-o à noite
com um banho aos pés quando voltasse a casa. Agora só desejava que ele se mantivesse
longe de casa, rezava para que regressasse a casa tarde e sentia que o coração me caía aos
pés ao ouvir a chave girar na fechadura e ao ver os seus lábios púrpura a transporem a porta.
Mas, do mal o menos: saía do apartamento de manhã cedo. Ou melhor dizendo, fingia que ia trabalhar.
A minha mãe tinha chegado a Teerão apenas há um dia. Era a nossa segunda manhã e eu dormia profundamente no quarto, enquanto o meu marido dormia no chão da sala de estar. Num dia bom, Mohammed dormiria até às dez e meia, saindo por volta do meio-dia para o que continuava a alegar ser o seu trabalho. Mas nessa manhã levantou-se ao raiar do dia. Só me apercebi de que ele estava a pé quando ouvi a porta bater, após o que voltou a abrir-se fazendo ele um grande alarde alegando que se tinha esquecido de levar um livro, e saiu intempestivamente de novo. Enquanto eu me encontrava no corredor, com o lenço a cobrir uns cabelos desgrenhados e o casaco por cima de uma camisola de algodão largueirona, começou a queixar-se de que eu o negligenciava, alegando que não me tinha dado ao incómodo de me levantar da cama para lhe preparar o pequeno- almoço. Acrescentou que se eu não me portasse melhor, seria obrigado a ficar com Sepideh, em cujo lar era pelo menos a pessoa mais importante da casa.
- É tua obrigação manteres-te atenta e acordares antes de mim, preparada para me encheres o estômago antes de ir trabalhar - disse ele.
Pedi-lhe desculpa e implorei-lhe que não saísse até eu lhe preparar o pequeno- almoço.
- Está bem, está bem. Por favor, não te vás embora - supliquei, temerosa por a minha mãe poder ouvir a nossa troca de palavras, e com receio de que aquela conversa pudesse dar origem a uma discussão.
Mohammed recusou-se a participar na maioria das festas de família que se realizaram em honra da minha mãe. Aquelas a que assistiu, fê-lo com uma tal falta de boas maneiras que só desejei poder morrer. Certa noite fomos convidados para jantar em casa de Hamzeh, mas quando constatámos que Mohammed não chegaria a tempo de nos acompanhar, chamámos um táxi e deixámos-lhe um bilhete. A minha mãe pensou que talvez ele tivesse tido um acidente, mas naquela altura eujá o conhecia bem de mais.
Como seria de esperar, quando nos sentávamos à mesa para jantar ele telefonou dizendo que não podia estar presente. Hamzeh insistiu com ele até que acabou por concordar, ainda que relutantemente - de uma maneira bastante indelicada segundo as normas de etiqueta iraniana. Uma outra noite apareceu em casa de um dos meus tios com um atraso de mais de uma hora, embriagou-se e discordou de tudo o que a minha mãe dizia - uma vez mais, numa atitude deveras repreensível num genro iraniano. Só desejei a sua morte, mas a minha mãe não hesitou em pô-lo na ordem, com a graciosidade e subtileza que lhe haviam sido ensinadas ao longo de toda a sua educação. Isso pô-lo quase a espumar da boca e, consequentemente, fui arrastada para uma guerra de vontades. Esforçava-me por me convencer de que continuava apaixonada por aquele homem, e contudo não podia culpar a minha mãe pela sua conduta e objecções.
Como é que eu poderia defender o comportamento dele? Talvez eu estivesse pronta a respeitar os seus desejos se ele tivesse mostrado devoção e piedade. No entanto, embora durante o nosso namoro ele parasse de fazer o que quer que estivesse a fazer para as orações rituais, assim que nos casámos essa atitude não voltou a repetir-se. Bebia, recusava-se a jejuar durante o mês do Ramadão e, como eu começava a compreender, vivia de subornos e corrupção. Para ele, todas as restrições do islamismo eram letra morta. Por outro lado, a sociedade esperava que eu não bebesse, que não fumasse em público, que pusesse termo às amizades que mantinha com membros do sexo oposto, que cobrisse o meu cabelo e que executasse todas as outras obrigações de uma boa esposa muçulmana. Mas, mais grave do que todas essas imposições, esperava-se que eu rilhasse os dentes e permitisse que ele me possuísse onde e quando muito bem lhe apetecesse. Em seguida, esperava-se ainda que eu saísse da cama para lhe ir buscar fruta e doces para que recuperasse as forças dispendidas.
Houve uma noite em que ainda penso horrorizada; foi logo a seguir ao nosso regresso de Shiraz, quando me debrucei sobre ele com uma bandeja de fruta e uma faca de trinchar, que ele gostava de usar para cortar as laranjas aos quartos; senti-me muito tentada, o que me causou muita preocupação, visto que a minha vontade era agarrar na faca e cortar os órgãos que faziam dele um homem. Não se tratou de um momento de loucura; eu não era nenhuma Loretta Bobbitt'. Era, isso sim, uma aversão e ódios frios, fruto da fúria que nutria por ele.
Cidadã norte-americana que há alguns anos decepou parte do pénis do marido quando este dormia. (N. da T.)
O despertar
Onde é que ficava a minha casa?
Eu tinha a noção de que existia um lugar onde efectivamente pertencia, mas onde é que seria? Como é que fui lá parar? E aceitar-me-iam de novo quando chegasse?
O nosso lar é onde a mãe de cada um de nós vive.
E a minha casa era onde a minha mãe estava noite após noite, salvo se íamos a uma festa de família. O seu novo genro dava a impressão de ter perdido todo e qualquer interesse em proporcionar uma boa estadia à sua familiar por afinidade, apesar do dinheiro que me tinha pedido "emprestado" precisamente para esse fim. A minha mãe chegara a Teerão há menos de uma semana e as constantes tentativas de Mohammed, dando-me ordens a torto e a direito, foram o garante para que ela formasse uma opinião muito fraca acerca dele.
Havia momentos em que eu o odiava e outros em que me apiedava dele, chegando quase a amá-lo de novo sempre que ele agia como um peixe fora das suas águas sociais. É possível que a relutância que ele mostrava em se juntar a nós quando a família se reunia se devesse a este acasalamento desigual de culturas e meios económicos. Junto das minhas primas e primos, tias e tios, respectivas mulheres e maridos, ele tinha o aspecto de ser o cozinheiro ou o criado. O seu fato fora de moda, de há vinte anos atrás, destacava-se entre as modas de Paris e o vestuário casual de Los Angeles.
Sim, sentia pena dele - até a essa tarde em que chegou a casa com um rolo de notas na mão.
- Toma, isto é para ti - disse-me o meu maridinho entregando-me as notas de cinquenta tomans. No Irão era virtualmente impossível obterem- se notas de valor nominal elevado, a menos que se tivesse um amigo num banco.
Para que é este dinheiro? - perguntei.
São dez mil tomans, a parte que nos coube da comissão dos advogados - respondeu ele.
- Que advogados? - perguntei genuinamente intrigada.
- Os teus advogados. Esta é a nossa comissão que eles pagaram a Reza e a Said por
estes te terem apresentado a eles.
Na verdade, eu não estava a compreender nada.
Os advogados deram-nos dez por cento - explicou Mohammed.
- Quem somos "nós"?
- Reza, Said, eu e tu.
- Ah, estou a ver - disse eu, sentindo a fúria a acumular-se dentro de mim à medida
que se fazia compreensão na minha mente.
- Recebo uma comissão de dez por cento sobre o dinheiro que lhes entreguei inicialmente?
- Sim - anuiu ele um tanto encabulado.
A minha vontade era gritar-lhe, bater-lhe, apunhalá-lo, morder-lhe e arranhá-lo. Mas a minha mãe estava a descansar no quarto e eu não queria que ela assistisse a uma discussão entre nós os dois. Ela já tinha sérias dificuldades em reconhecer em mim a filha que fui.
- Por que motivo não haveríamos de receber um pouco de volta? É o nosso próprio dinheiro - argumentou Mohammed. - Reza disse que desta vez eu não devia receber a minha parte uma vez que somos casados.
- Esta não é a primeira vez?
- Bem. não. Eles deram-me um pouco de dinheiro de todas as vezes, mas nessa altura ainda não estávamos casados. Realmente não me parece que tenha agido mal ao aceitar. E por que não? Por que é que eles haveriam de ficar com tudo?
- Tu viste-me a chorar com o desespero de não saber se lhes poderia pagar, viste-me sair para vender os meus anéis para poder pagar os honorários dos advogados, e durante todo esse tempo tu recebias uma percentagem da comissão? És um filho da puta sem vergonha! - A morte seria demasiado boa para ele.
- Gastei esse dinheiro em nós dois. Não o aceitei só para mim. Agora que estamos casados, deixo-te ficar com esse dinheiro. Qual é o problema?
- Oh, muito obrigada, meu generoso marido, meu amor querido. Fico-te eternamente grata por me devolveres o meu próprio dinheiro.
- Suponho que não sou merecedor de nada por te ter apresentado aos advogados, por te ter ajudado a recuperar o teu dinheiro quando já tinhas perdido a esperança de o reaveres?
- Tu és asqueroso, e o pior é que não és capaz de distinguir a diferença entre o bem e o mal. A moralidade é muito mais do que irmos para a cama com um estranho.
Naquela altura a minha mãe saiu do quarto, o que me obrigou a ter tento na língua. Só cinco dias depois é que voltei a falar com ele.
Dormir. Eu? Precisava de dormir muito, muitíssimo mesmo. Necessitava de ir para a cama onde me sentiria em segurança. Na noite anterior Mohammed insistira comigo para que dormisse ao seu lado na sala de estar. As mãos dele começaram a percorrer-me os seios, estendendo-se às minhas pernas.
- Pára com isso! - implorei-lhe, sentindo-me como uma prostituta prestes a ser possuída por um cliente. Eu era um mero corpo sem alma, tinha estrutura, mas esta encontrava-se esvaziada de essência. Queria gritar: "Mãezinha, ajuda-me, salva-me, faz com que ele pare! Por favor, meu Deus, fá-lo parar, mas não podia. Senti vergonha por estar ali debaixo daquele homem que agora era um estranho para mim, aquele homem que me mentira, que me atemorizara até eu aceitar casar com ele e a quem eu dei poderes sobre a minha fortuna.
- Tu és minha mulher, minha mulher, minha mulher - murmurou ele. "É impossível que ele tenha feito isto", pensei enquanto ele me apalpava, mexia e remexia. "Tudo o que está a acontecer é por minha culpa, tudo por causa da minha estupidez". Em que é que eu tinha pensado? Como é que me havia deixado arrastar para uma situação daquelas? Estaria melhor em Inglaterra, onde teria direitos, e onde ele aprenderia a respeitá-los.
Dois anos antes empenhara-me numa jornada de descoberta; investiguei o passado da minha família, procurei as minhas raízes. Pensei que se poderia encontrar a palavra "Irão" entalhada à largura do meu coração, e fui reivindicar a minha herança, descobrindo o meu Eu. Agora, junto da minha mãe no aeroporto de Mehrabad, não só fracassara em encontrar o meu lugar no mundo, como também, de uma maneira incompreensível, me perdera algures ao longo do caminho.
Mohammed estava no aeroporto a acenar-nos num gesto de despedida, quando subitamente compreendi o quanto me sentia aliviada por não ter de o ver de novo, não ser obrigada a falar com ele e ouvir o que agora me pareciam ser autênticos disparates. Houve uma altura em que me senti fascinada por aquilo que ele me ensinou sobre a maneira como os iranianos consideravam o islamismo. Ele fora o meu professor, convencera-me de que era o único detentor da verdade. Mas agora, bem no meu íntimo, não desejava voltar a pôr-lhe a vista em cima.
Ele tinha-me enganado, roubou o meu dinheiro de todas as vezes que lhe entregava libras esterlinas para trocar pela moeda nacional, tinha- me atraiçoado ao aceitar subornos retirados do meu próprio dinheiro e, mais grave do que tudo o mais, mentira-me descaradamente. Mentira-me sobre a primeira mulher, para além de ter faltado à verdade quanto às suas crenças religiosas. Eu encontrava-me casada com um desconhecido, e o que mais desejava era afastar-me dele.
Houve um momento de pânico durante a semana que antecedeu a nossa partida, quando ele se ofereceu para ir reservar as nossas passagens aéreas. Regressou com a reserva da minha mãe, mas não para ele próprio nem para mim.
- Não me parece que consiga vir a dar-me bem com a tua família. A tua mãe é uma pessoa muito irracional - queixou-se ele. - Por isso, decidi que não irei já para Inglaterra, e tu ficarás aqui até eu estar preparado para entrar na universidade.
Toda eu tremia e comecei a chorar; só me apetecia morrer, libertar-me da vida que criara devido à minha própria estupidez. A minha mãe matar-me-ia e em seguida matá-lo-ia.
O meu pesadelo estava prestes a tornar-se realidade: teria de fugir clandestinamente através das montanhas; mas, mesmo que conseguisse chegar a Inglaterra, seria apanhada nas malhas daquela cilada islâmica.
Desde que a minha mãe chegou eu chorava todos os dias por causa da exaustão fisica e mental e devido à incapacidade absoluta de assumir o domínio da minha própria vida. Eu era uma mulher desfeita, por vezes encolerizada e determinada, para no segundo seguinte ser uma criatura patética e digna de dó. Era de facto patética quando comecei a chorar nos braços da minha mãe, enquanto me queixava numa voz balbuciante e lhe dizia que ele não me autorizava a partir com ela.
Foram precisos pouco mais de dois minutos. A minha mãe disse-me que me deixasse ficar no quarto; quando Mohammed chegou a casa nessa tarde; depois de uma troca de palavras muito abreviada, ele saiu de casa para ir marcar o meu bilhete aéreo.
O que é que aconteceu? - perguntei embasbacada.
- Nada - respondeu a minha mãe.
Nunca cheguei a descobrir o que ela lhe disse, e muito provavelmente nunca virei a saber, mas a partir desse dia ele começou a mostrar-se assustado, ainda que quase imperceptivelmente, sempre que se encontrava perto da minha mãe.
Uma das vantagens do nosso casamento nunca ter sido registado na minha certidão de nascimento, era eu não ser obrigada a apresentar uma autorização por escrito do meu marido para obter o visto de saída. Mas ele podia muito bem impedir-me de partir escrevendo para o serviço de passaportes, o que me interditaria qualquer viagem; assistia-lhe o direito de tomar medidas que me privariam do passaporte se retirasse o consentimento para eu poder ter esse documento. Mas, justiça lhe seja feita, por fim começou a compreender o que mais lhe convinha. Ele também desejava sair do Irão, e eu era o seu passaporte.
Estávamos no Ramadão, o mês em que todos os muçulmanos de boa saúde fisica e mental são obrigados a jejuar do nascer do dia ao pôr-do- sol, caso contrário arriscam-se a perder o bilhete que lhes dará acesso ao Paraíso. Este é o período do ano em que os maus humores se manifestam e o cheiro a fome sai das bocas. Não é uma boa altura para se andar pelas ruas da cidade, especialmente se pessoas como eu têm uma ligeira tendência para a hipoglicemia e são forçadas a comer com regularidade. Estávamos no início de Março, quando os dias começam a ser mais compridos, mas pelo menos o tempo estava mais ameno. Sempre que o Ramadão calha num dos meses de Verão, a situação pode ser muito desagradável; a disposição das pessoas azeda-se e a fome e sede instalam-se, enquanto os fumadores trepam pelas paredes acima.
Nós, a noiva e o noivo, tínhamos passado todo o dia a tratar daquelas pequenas coisas indispensáveis para que se possa viajar para fora da República de Deus. Só faltava pagar no banco os cinco mil tomans da taxa de partida. Chegámos lá à hora que normalmente seria a hora do almoço, e as massas haviam invadido de maneira invulgar aquele balcão do Banco Meli, o banco nacional, tentando levantar o que escasseava nesse ano - dinheiro.
Transpus as portas de vidro do banco na esquina da Vali-e-Asr e o que costumava ser a Avenida Tajhte Tavours nos velhos tempos, onde deparei com umas duzentas pessoas no interior que se empurravam umas às outras acenando no ar com pedaços de papel para tentarem chamar a atenção de um dos bancários singularmente desinteressados, na esperança de que este os atendesse. Aguardei durante duas horas na fila como mandava a boa educação, à espera que alguém me atendesse na secção destinada aos pagamentos estrangeiros e taxas de saída do país, enquanto um caixa ensonado atendia de má vontade as cerca de cinquenta pessoas que reclamavam a sua atenção.
À minha frente estava uma mulher privilegiada que pagou, qualquer que fosse a taxa ou multa em que incorrera, com notas de mil tomans novinhas em folha e muito vermelhas e que pareciam estalar - uma coisa nunca vista na história recente daquele banco. Em vez de colocar as cerca de cinquenta notas nas máquinas de contagem que se tinham tornado essenciais num país onde escasseavam as notas de valor nominal elevado, o que na prática se traduzia na obrigatoriedade de comprarmos a nossa casa com notas de cinquenta tomans, o caixa examinou cada uma laboriosa e minuciosamente.
Quando chegou a minha vez de pagar a taxa de partida, um dos outros caixas registou-a nos seus livros e depois o pagamento no meu passaporte; os meus nervos já estavam à flor da pele. Assim que voltámos ao automóvel - que, como era norma no Irão, ficou estacionado ilegalmente num sítio muito conveniente em cima do passeio -, acendi um Silk Cut um pouco cediço para acalmar os nervos em franja. Íamos a meio caminho da Vali-e-Asr quando o jipe de uma patrulha nos indicou que parássemos; da viatura saiu um defensor da fé vestido de verde que me ordenou que entrasse no seu veículo.
- O que é que se passa agora?
- Você estava a fumar. Não sabe que estamos no Ramadão, Hadji Khanoum?
- Eu não sou Hadji Khanoum e estou doente, e por isso não sou obrigada a jejuar - ripostei com alguma rispidez.
- Pois bem, vamos consigo até ao consultório do seu médico para descobrirmos o que é que você tem - replicou a raposa manhosa.
Antes que eu pudesse aceitar o desafio do homem, o meu marido começou a rebaixar-se, pedindo ao indivíduo que me "perdoasse".
- Ela não se apercebeu do que estava a fazer - tentou ele justificar.
- Veja se controla a sua mulher. É responsabilidade sua certifcar-se de que ela obedece à lei - disse-lhe o homem. Fui ignorada e posta de lado enquanto os dois homens falavam, iguais no poder que detinham sobre mim. Mohammed prometeu que não voltaria a autorizar-me a fumar, e lá continuámos o nosso caminho.
Chamem-me estúpida, mas eu era constantemente apanhada a comer, a fumar ou a mastigar na rua durante o Ramadão. Não era capaz de me conter; havia qualquer coisa dentro de mim que me levava a pecar. De cada vez que eu punha um pé na rua, sentia o impulso de petiscar qualquer coisa, pelo que andava sempre com as algibeiras cheias de biscoitos, doces e batatas fritas.
- És feliz? - perguntou-me a minha mãe quando nos encontrámos em segurança já no ar.
- Claro que sou - menti, obstinada e envergonhada de mais para admitir que agi como uma idiota rematada. Era uma sensação maravilhosa ir para casa, para a liberdade, mas até nessa altura compreendi que nunca seria livre enquanto continuasse casada. Recusava-me a admitir que tinha sido advertida de todos os riscos que correria, e contudo fora em frente e casara com aquele homem, uma atitude que destroçou o coração da minha mãe. Se não fosse por outra razão, ela fora privada de estar presente no casamento da filha; ao invés, era obrigada a ocultar a dor que sentia ao pensar numa cerimónia celebrada apressadamente num casebre qualquer. Tinha de aceitar o facto de a filha se ter casado como uma enjeitada, como uma órfã, sem ninguém que dissesse: "Esta é a filha de uma grande senhora e de uma família distinta".
Sentada no avião, com os cabelos finalmente libertos que podiam ser vistos por todos os outros passageiros da British Air-ways, a beberricar um refresco enquanto observava as sementes da decadência ocidental no ecrã; inexplicavelmente, fui assolada por um sentimento de culpa. Estava de partida para uma vida agradável e confortável, tendo deixado de sentir a mínima necessidade de Mohammed. O amor que me fora negado entre aqueles estranhos, era-me agora dado em abundância pela minha mãe dedicada e protectora, estando prestes a rever todos os meus amigos. Estaria em segurança num mundo que compreendia, sem precisar do meu guia que me ajudara a percorrer o labirinto do islamismo e da República de Deus. Mas sabia que procedera mal e estava firmemente determinada a proporcionar uma vida de conforto fácil ao meu marido.
Eu amei-o. Tenho de reconhecer que o amei. Todos os casais têm os seus problemas,
os nossos são pequenos e havemos de conseguir ultrapassá-los logo que ele saia do ambiente que se vive no Irão, dizia-me o meu porta-voz da ingenuidade.
Estava tão cansada de andar sempre sisuda, de ouvir citações de Marx e Engels de dez em dez segundos. Depois do casamento, foi um choque descobrir que Mohammed nunca tinha lido as obras daqueles grandes homens; muito simplesmente, limitara-se a memorizar excertos de O Guia Reza para se Transformar num Intelectual, livro pelo qual o seu melhor amigo lhe cobrou mil tomans.
O aeroporto de Heathrow estava um verdadeiro pesadelo. Eu podia muito bem ser um alienígena qualquer que acabasse de aterrar vindo de Mane, e não a mulher que deixara aquele mesmo aeroporto há dois anos. Embora tivesse começado a odiar o uso do véu, estando disposta a arriscar a própria vida para me opor a ele, ver-me de súbito no meio de tantas mulheres desveladas provocava-me grande nervosismo e fazia-me sentir fisicamente doente. Foi um verdadeiro milagre ter sido capaz de aguentar sem vomitar. Até as minhas irmãs me pareceram estranhas com as suas roupas reveladores aos olhos de alguém acostumada a usar o hejab durante um ano inteiro; usara-o mesmo dentro de casa. Sentia-me despida, ordinária e cheia de sentimentos de culpa.
Por conseguinte, como é que ao mesmo tempo também me sentia livre, desagrilhoada, como se acabasse de sair de uma prisão? As correias que me haviam prendido tinham rebentado enquanto o voo de cinco horas me levava para um outro mundo, um mundo que pelo menos era capaz de compreender. O regresso a Inglaterra era simultaneamente empolgante e aterrador.
Depois de me encontrar em segurança já em Oxford, sentei-me defronte do aparelho de vídeo a ver todo um ano de episódios de Knot's Landing, LA Law e, a melhor de todas as séries, MA. S. H.
Mohammed telefonou nessa primeira noite, tendo-me eu dado conta de que não sentia nenhumas saudades dele. O meu coração pulou de alegria quando me disse que afinal não poderia vir para Inglaterra, para logo me cair aos pés quando me disse que estava a brincar, confessando que era só uma das suas brincadeiras. Prometeu-me que voltaria a estar de novo nos meus braços dentro de duas semanas. Entretanto, eu tinha de ir buscar Shirazi ao aeroporto e levá-lo para a casa de familiares dele que viviam em Manchester.
- Dá-lhe algum dinheiro - disse-me Mohammed. - Ele tem sido muito prestável para ti e sem dúvida que terá oportunidade de voltar a sê-lo.
Eu já assumira o papel de intermediária do jornal que custeava a viagem de Shirazi, e eles ainda não me haviam reembolsado; assim, não tinha planeado dar-lhe mais dinheiro. Mas, verdade fosse dita, Shirazi era realmente muito prestável e relativamente honestoocasionalmente fazia favores sem o incentivo de qualquer encorajamento monetário. Tínhamos sido amigos e, devido à vida normal que eu levava em Inglaterra, teria ido ao aeroporto sem o véu. Contudo, não desejava dar a Mohammed motivos para se sentir envergonhado perante os seus amigos, e por isso usei o hejab uma vez mais, que só vesti no parque de estacionamento de Heathrow, e que voltei a tirar assim que o comboio onde Shirazi seguiu começou a afastar-se.
Estava a tornar-me numa maníaca. Odiara e desprezara aquele tipo de vestuário com que era obrigada a enfaixar o corpo, mas a realidade era que sem essas roupas havia algo dentro de mim que me fazia sentir como se caminhasse pela rua servindo-me da cabeça de outra pessoa, acontecendo o mesmo em relação ao corpo.
Finalmente consegui ir tomar chá ao Hotel Old Parsonage, mas sentia os nervos à flor da pele. Os meus pensamentos atravessavam-me a mente a grande velocidade, procurando sinais da presença de alguém que surgiria a qualquer momento e me apanharia a fazer alguma coisa ilegal. As paredes estavam cobertas de pinturas e gravuras, decoração que era complementada com um belíssimo arranjo floral no átrio; as pessoas tinham expressões vivazes e felizes. As mulheres mostravam os cabelos - sim, cabelo verdadeiro. Tinha decorrido todo um ano desde a última vez em que vi a cabeleira de uma mulher, para além daquelas com quem socializara na privacidade das suas casas. Agora toda a gente os exibia em público, montes de cabelos penteados de todas as maneiras, feitios e cores: cabelos compridos, cabelos curtos, cabelos com permanente e cabelos pintados. Era-me quase impossível absorver toda aquela diversidade nas pessoas e no interior dos edificios, e acima de tudo os trajes que me rodeavam. Quando se usa sempre casaco e lenço na cabeça, fica-se bastante limitado quanto a mudar de aspecto. Estivera habituada a que toda a gente tivesse mais ou menos a mesma aparência. Agora todas as pessoas eram diferentes entre si. Sentia-me quase a endoidecer.
Até mesmo hoje em dia, por vezes tenho este sonho horroroso em que regressei às ruas de Teerão. Enquanto os fantasmas dos mártires marcham na minha direcção, subitamente dou comigo com as pernas desnudadas, ou por vezes é do lenço que me esqueci, enquanto noutras ocasiões não uso casaco. Acordo coberta de suores frios.
Sentia-me como um animal acossado, tão acostumada a olhar constantemente por cima do ombro, ao ponto de me sentir incapaz de aceitar que "eles" já não tinham poder para me fazerem mal.
Toda a gente me dizia que tinha mudado. Esperava ouvir isso da minha família; ao fim e ao cabo, era do interesse dos meus familiares demonstrarem a Mohammed os efeitos negativos que eu sofrera. Mas quando Coral, uma amiga de longa data, comentou que eu não era a mulher que ela conhecera, senti-me chocada e profundamente deprimida.
- Em que aspecto é que mudei? - perguntei-lhe num tom de desafio.
- Bem, dás a impressão de alguém que foi subjugada - respondeu-me ela. Teria ela razão? Não, nunca comigo - eu era conhecida pela minha força de carácter; nunca poderia ter estado sob o jugo de alguém.
Ou poderia?
Com alguma relutância, não fosse eu poder vir a acusá-las de não me permitirem viver a minha própria vida, a minha mãe e Mahshid não deram quaisquer opiniões sobre o meu casamento. No entanto, Said não foi assim tão delicado. O meu irmão não estava de maneira nenhuma convencido de que eu tivesse dado o passo acertado.
- Nem pareces tu - disse-me ele mais ou menos uma semana depois do meu regresso. - Nunca te vi sentada sem dares a tua opinião sobre seja o que for. Nunca foste capaz de refrear a língua. A irmã que eu conhecia não ficava satisfeita a menos que dominasse todas as conversas. Não se deixava ficar sentada a um canto como se estivesse atordoada.
Ele tinha razão: mantinha-me calada, com receio de me expressar.
- Realmente, minha querida, eu só quero que sejas feliz; quem me dera que fosses, mas é evidente que não és - insistia ele. - Pensas que agora podes viver dessa maneira, mas acontece que te limitaste a pôr em suspenso tudo aquilo em que acreditavas. Um dia verás que continuas a ser a pessoa que partiu daqui.
De forma pouco convicta, neguei ter feito um casamento desastroso.
- Por amor de Deus, faças tu o que fizeres, não tenhas filhos de imediato, minha querida - urgia Said. Não levou em consideração as minhas objecções e alegações de que poderia olhár por uma criança e trabalhar enquanto o meu marido se dedicava aos estudos.
- Ter filhos não é nenhuma brincadeira; é um assunto muito sério e dificil. Pensas que conseguirás trabalhar e criá-los enquanto ele estuda, mas não serás capaz - argumentava o meu irmão.
Duas semanas depois da minha libertação em Março de 1993, ia eu num estado de grande confusão ao volante do automóvel a caminho de Heathrow, onde aguardaria a chegada do meu marido. Para ser franca, tenho de dizer que só me apetecia não parar no aeroporto, prosseguindo a caminho de uma nova vida sem maridos. Fora um grande esforço convencer-me a mim mesma e aos que me rodeavam de que sentia saudades daquele homem. Pareceria estranho se passássemos a dormir em quartos separados?
Durante esse trajecto comecei a compreender o meu dilema - o motivo por que não era capaz de rejeitar aquele homem, e contudo era incapaz de fazer parte de um todo junto dele.
Quando se cresce num outro país que não o nosso, com uma cultura diferente, manter a individualidade de uma Pessian transforma-se numa questão de orgulho e lealdade. Mas também se vai crescendo com a nossa nova sociedade, absorvem-se partes da nossa nova cultura. Não está nas nossas mãos transformarmo-nos num ser híbrido. E então surge um dia em que somos confrontados com uma forma pura da nossa primeira cultura - no meu caso foi Mohammed - e passamos a ver elementos na nossa terra natal adoptiva que entram em conflito, de formas extremamente fundamentais, com esse aspecto. No entanto, aceitar esta última é trair a primeira. Antes de darmos conta disso, destruímo- nos a nós mesmos tentando ser tudo para toda a gente e, mais dificil do que tudo o mais, perante nós próprios.
Algures a meio existe um mundo de que nos devíamos sentir orgulhosos de fazer parte, não é o Oriente nem tão-pouco o Ocidente. Quem vive entre dois mundos são pessoas únicas que têm uma nova cultura, e um dia vemo-nos obrigados a forjar uma nova identidade para nós mesmos em vez de nos agarrarmos a uma cultura, sempre com o receio de a atraiçoar em favorecimento da outra.
Eu agarrava-me a Mohammed com medo de vir a perder a minha identidade de iraniana, com receio de atraiçoar a minha identidade de muçulmana. Ao proceder desta forma, aniquilava a mescla de mundos que eram realmente a minha pessoa.
Ele era uma visão de vilania ali especado - baixo, estúpido, feio e mal vestido. Avistei-o antes que ele me visse e só me apeteceu desatar a correr, dar meia-volta e fugir pela minha vida. Não me restava a mínima dúvida de que deixara de ser a pobre idiota que fui.
Elas que lhe digam que enlouqueci. Digam-lhe qualquer coisa, mas não me obriguem a ter de estar outra vez com este estranho. As minhas vozes voltavam a fazer-se ouvir.
Mas tu ama-lo, ele é o teu marido e é o homem mais bem parecido em todo o mundo, tentava convencer-me uma das minhas vozes enquanto eu me esforçava por suprimir uma demonstração de aversão quando ele correu para mim abraçando-me e apertando-me contra o seu peito.
Enquanto ele permanecia ali com um sorriso arreganhado de expressão apalermada a ver-me pagar pelo estacionamento do automóvel, só queria poder deixá-lo com a sua mala de viagem e mala de cartão e desaparecer dali que nem um relâmpago. Não tínhamos nada de que pudéssemos falar enquanto eu colocava no porta-bagagens do Volvo de Mahshid a caixa de cartão que servia de mala de viagem suplementar, dirigindo-me para o engarrafamento de trânsito que congestionada a auto- estrada 25.
- Não é nada de especial, não te parece? - disse aquele idiota quando começámos a percorrer a região.
- Olha para aquelas árvores tão bonitas, e os campos. todo este verde luxuriante, não achas que é uma maravilha? - perguntei, qual vendedor bastante mau que tentasse desesperadamente despertar o interesse de um cliente duvidoso.
- Por esta altura já devias saber que eu não me interesso por esse tipo de prazeres. Quem é que se importa que haja coisas bonitas ou não? De qualquer maneira, sou incapaz de ver essa beleza. No que me diz respeito, os livros são tudo o que é importante: adquirir conhecimentos e o desenvolvimento intelectual - pontificou ele.
"Fica-te com esta, meu idiota! Isto é conhecimento. Isto é o mundo, portanto, olha atentamente", pensei enquanto punha uma cassete de Springsteen. Só Deus é que sabe em que é que ele estaria a pensar quando desligou a música. Aquele era realmente o homem que me conduzira de automóvel pelas ruas de Teerão com Ian Dury a ouvir-se com o volume no máximo? Ironicamente, quem ofereceu essa cassete a Shirazi foi o mesmo mestre em espionagem tão amado pelos lacaios do Ministério da Obstrução. Ao fim e ao cabo, o homem era da BBC, fora director do British Council nos velhos tempos do xá, sendo pois considerado um intelectual genuíno e, portanto, aquilo de que ele gostava também era do agrado dos rapazes. Quanto a mim, eu não passava de uma mulher que obviamente ouvia música com o único objectivo de satisfazer os seus prazeres carnais.
Aquele não era um bom começo para o resto das nossas vidas em comum.
Chegados a Oxford, ficou sobejamente provado que Mohammed jamais se enquadraria na nossa maneira de viver ao fazer com que toda a gente andasse em pezinhos de lã com receio de qualquer palavra ou gesto que pudesse desmoronar aquele mundo de papel que eu criara, e que tentava manter inteiro com uma cóla muito pouco resistente.
- Não precisas de descalçar os sapatos - disse eu ao meu marido quando ele transpôs a ombreira da porta da minha mãe pela primeira vez.
Mas, apesar do que eu lhe disse, descalçou-os, para grande desagrado da minha mãe. Ao fim e ao cabo, ela foi educada junto de militares que tinham muito orgulho em manterem-se impecavelmente limpos a qualquer altura. Era frequente a minha mãe dizer-me que quando se casou imaginava que o meu pai iria para a cama com o seu impecavelmente limpo fato azul-marinho e camisa branca passada a ferro com goma. Precisou de alguns anos para se habituar à visão de um homem de pijama.
O primeiro serão passou-se relativamente bem. Mahshid estava ausente, fora a uma festa de aniversário numa quinta para curas de emagrecimento, o que intrigou Mohammed.
- Uma mulher casada não devia sair de casa sozinha. O que é que ela vai fazer a esse lugar? - perguntou ele. Era impossível começar sequer a explicar-lhe o quão ridícula a sua atitude me parecia.
Felizmente que tudo o que Mohammed desejava nessa primeira noite era dormir e descansar da viagem aérea. Tinha-nos sido destinado o quarto suplementar no segundo andar, tão distanciado quanto possível do quarto da minha mãe. Mas aos primeiros alvores da manhã já ele estava a pé, tentando arrancar-me da minha bela cama aquecida. Mostrou uma rara expressão de entusiasmo, ainda que fugaz, quando vestiu o fato de treino de um azul-celeste revoltante que só um mentecapto usaria. As faixas de azul-marinho oscilavam para cima e para baixo enquanto me incitava a fazer-lhe companhia para uma corrida matinal.
No mesmo momento em que saímos porta fora, começou a incomodar-me. Aquele homem nunca saíra de casa para ir trabalhar antes das onze horas, e agora expressava surpresa por se verem tão poucos automóveis às sete da manhã.
- No Irão, a esta hora as pessoas já estariam a trabalhar. É verdade que os povos dos países ocidentais são preguiçosos e decadentes. Provavelmente não são capazes de se levantar da cama depois das noites de bebedeira e de relações sexuais desenfreadas com qualquer mulher em que possam pôr as mãos - declarou ele quando nos juntámos aos que já corriam através dos parques gloriosos daquela universidade.
Eu sentia-me em casa naquela terra verdejante e maravilhosa. Finalmente tinha compreendido aquilo que era e o que jamais poderia vir a ser. Aqueles campos, as árvores a que trepara em criança, o rio onde mergulhara vezes sem conta - aquilo tudo era eu, aquele era o meu mundo e não desejava voltar a deixá-lo.
Só depois do almoço é que as coisas começaram realmente a correr mal. A minha mãe tinha preparado uma deliciosa refeição da cozinha tradicional iraniana. Mas quando entrei na sala de jantar com os pratos, enquanto o meu marido me seguia de mãos vazias, a minha mãe perguntou:
- Existe alguma coisa de errado com as mãos de Mohammed?
O diabo ficou repentinamente à solta, com a minha mãe a dizer-lhe que não me tinha educado para ser criada de ninguém, preferindo não me observar a agir como tal, o que fez com que o meu marido subisse a correr as escadas para o andar de cima para ir buscar a passagem aérea, querendo reservar imediatamente lugar no próximo avião que seguisse para o Irão.
O que é que eu fiz? Dirigi-me ao meu quarto, encostei-me a um canto e comecei a chorar desabaladamente. Desde que me tinha tornado na mulher daquele homem, chorava constantemente por uma razão ou outra. Os dias não estariam completos sem uma pequena crise de choro. Não podia fazer mais nada. Fosse de que maneira fosse, a minha vida adquirira um impulso muito próprio e sentia-me impotente para o dominar.
Mais tarde, ao princípio dessa mesma noite, o meu marido decidiu por fim ver aquilo em que eu me transformara. Como se me fizesse um grande favor, porque me amava tão profundamente, e porque não desejava ver-me afligida, concordou em dar outra oportunidade à nossa vida em comum. A infelicidade que eu sentia deu lugar a um sentimento de raiva.
No segundo dia, fomos correr outra vez, mas nesta ocasião fui merecedora da sabedoria acumulada sobre o Ocidente, à luz da perspectiva de Mohammed, depois de uma demanda intelectual ao longo de um dia e meio. Os britânicos eram preguiçosos porque não começavam a trabalhar às sete da manhã, ao contrário do que se fazia no Irão - declarou ele quan do passámos pelas glórias da Faculdade Balliol, que não lhe mereceram nem um único olhar.
Deveria eu avivar-lhe a memória, recordando-lhe que os seus compinchas do Ministério da Obstrução nunca estavam nos seus postos de trabalho antes das dez horas, e mesmo assim somente metade deles é que se dava ao incómodo de ir trabalhar? Deveria eu recordar-lhe que em Inglaterra se trabalhava até às dezoito ou dezanove horas, enquanto era muito raro encontrá-lo no trabalho depois das quinze horas? Talvez fosse preferível não dizer nada; ao fim e ao cabo, ele era meu convidado e eu não pretendia estragar a primeira visita que ele fazia ao Ocidente. Desejava que ele desfrutasse deste paraíso para que havíamos escapado.
- Não é uma casa grandiosa como eu tinha imaginado. Vamos ter de encontrar qualquer lugar recentemente construído onde possamos viver - disse-me este homem que fora criado em metade de uma sala juntamente com mais quinze pessoas, enquanto corríamos pelos jardins com cerca de meio hectare que rodeavam a casa de minha mãe, uma vivenda com seis quartos apenas a cinco minutos do centro de Oxford.
Não desejando mostrar falta de caridade, o meu novo eu pensou que devia começar a procurar uma casa só para nós dois logo que estivéssemos instalados.
Que coisa estranha: eu era duas pessoas numa só. Uma acreditava que tinha de dar continuidade àquela charada até ao fim, por muito amargo que isso fosse. Tinha quase desistido da esperança de algum dia vir a encontrar o meu cavaleiro montado no seu cavalo branco, pelo que aquele homem, no meu cérebro perturbado, também era a minha última oportunidade. Caso o rejeitasse, teria de me contentar com essa outra vida em que a minha carreira profissional era o meu parceiro, e os artigos que escrevia os meus filhos. Mas os artigos não se levantam nem nos abraçam quando sentimos solidão, os artigos não nos fazem companhia quando envelhecemos, quando os da nossa idade já desapareceram.
Estava farta de todos os serões à espera que o mais recente objecto dos meus desejos me telefonasse. Todos aqueles começos falsos - principalmente por minha culpatinham-me deixado exaurida e cínica. Só queria alguém que estivesse presente, com quem pudesse partilhar todas as coisas que me davam prazer, com quem partilhar os meus medos e os meus demónios de dúvidas pessoais. Alguém perante quem não fosse forçada a mostrar-me forte. Também existia um outro eu que não partilhava um único sentimento ou opinião com o homem que suava ao meu lado ao longo da noite. Havia um eu que desejava colocar uma almofada sobre a sua cabeça, só para não ter de acordar a ouvi-lo a exigir uma vez mais o seu pequeno-almoço, "e vê se te despachas a prepará-lo". Em vez de concretizar as minhas aspirações, acabei com um homem que fora educado de forma a acreditar que o sexo era única e exclusivamente para os rapazes, e que acompatibilidade entre homem e mulher é aferida apenas pelo tamanho dos respectivos órgãos genitais.
Não cessava de dizer a mim mesma que a culpa não era dele, havia que levar em conta que ele era tão-somente o produto da nossa cultura. Mas isto causava-me uma dor muito específica e arrepiava-me ao ouvir as palavras "a nossa cultura". Eu agarrava-me a um mundo que os meus pais nem sequer reconheciam, tal o medo de perder essa diferença que me tornava especial. A Pérsia morrera, e eu era confrontada com facto de ser parte do Irão ou, em alternativa, ser nada.
- Querido, hoje é sábado à noite. Talvez pudéssemos sair para eu te mostrar os clubes
nocturnos e as discotecas - aventurei-me a sugerir numa noite.
Para quê?
Para vermos as pessoas que se divertem, para tomar uns copos, dançar um pouco.
- Tu queres ir dançar? Endoideceste?
- Que mal é que tem ir dançar? - perguntei.
Ele olhou-me com aquela expressão de incredulidade que lhe era peculiar, um semblante que me dizia que eu era inconcebivelmente estúpida.
- É um pecado. As pessoas só dançam para se poderem tocar. É errado e nojento.
- Mas nós somos casados - aleguei.
- Isso quer dizer que é correcto fazer amor em frente de centenas de pessoas embriagadas e drogadas? Eu não quero que os outros homens te vejam a abanar o rabo.
O que é que o meu marido fazia na sua primeira viagem ao estrangeiro? O que é que este intelectual desejava ver em primeiro lugar? Nada. Mohammed não queria fazer nada de nada, só desejava ficar em casa a ler as revistas que trouxera consigo do Irão, para além de também querer o seu pequeno-almoço, almoço e jantar, refeições que tinham de lhe ser servidas no sítio onde na altura estivesse sentado. Com a passagem dos dias, as comdas matinais começaram a fazer-se cada vez mais tarde, continuando a ser acompanhadas com mais alguma da sabedoria que o meu marido acumulara sobre as morais do mundo ocidental, as quais me garantiu serem inexistentes.
- Olha para aquela, olha bem, consigo ver-lhe a rata através das calças - comentou ele quando uma mulher de aspecto anoréxico passou por nós; usava umas calças justas de licra e uma camisola com a insígnia da Faculdade Pembroke.
Deveria eu dizer-lhe que em Oxford a mente das pessoas concentrava-se um pouco mais acima do que se encontrava entre as pernas? Não, sem dúvida que não devia dizer-lhe isso - mas fi-lo. Durante o resto do dia vivi com um surdo-mudo. Ignorou-me por completo; recusava- se mesmo a reconhecer a minha existência.
Por um lado, sentia-me acorrentada a alguém cujos braços não haviam recuperado a sua capacidade de movimento, e por outro era forçada a esconder da minha família a situação terminal do meu erro crasso. Ninguém reparou na velocidade com que o xerez desaparecia da garrafa.
- Vamos fazer as pazes - disse-me ele nessa noite quando já estávamos na cama, começando a pôr-se em cima de mim.
Durante as duas primeiras semanas da sua estadia consegui evitar os contactos sexuais. A uma semana "daquele período do mês" seguiu-se outra em que aleguei ter-me queimado. Quando os iranianos vão à casa de banho não se limitam a limpar-se com papel; essé é um hábito asqueroso e abominável dos ocidentais. Os iranianos, e imagino que todos os muçul manos, têm de lavar-se com água de cada vez que utilizam a sanita. Assim, as esposas mais relutantes podem de quando em vez dizer que misturaram mal a água quente com a fria, evitando assim serem molestadas. Mas agora eu tinha esgotado todas as desculpas.
Nunca, nem nos meus sonhos mais extravagantes, imaginei que alguma vez viria a rezar para não ser obrigada a ter relações sexuais. As meninas de bem muçulmanas não deviam supostamente permitir-se essas actividades até depois do casamento; desde os meus seis anos de idade que ansiara pelo dia em que me casaria, de modo a poder iniciar uma actividade sexual legítima com regularidade. Agora só desejava poder ser selada de forma a que aquele homem não pudesse voltar a penetrar-me.
- Cheguei a dizer-te que libertaram uma mulher depois de ela ter assassinado o marido? - perguntei numa vozinha de cana rachada na escuridão do quarto.
- Estás a brincar! - replicou o meu marido começando a fazer coisas inqualificáveis no meu ouvido.
- É verdade. Há vários anos que ele a violava e maltratava, até que chegou o dia em que ela o matou em legítima defesa - expliquei enquanto me levantava da cama.
- É impossível que um homem viole a própria mulher. Onde vais?
- Neste país é possível. Se um marido fizer amor com a sua mulher sem o consentimento desta, ela pode participar à polícia, que o prende e o leva para a cadeia. Vou só à casa de banho.
Regressei ao quarto meia hora mais tarde, constatando que o cheiro de cigarros era mais intenso e ouvi o ressonar suave do meu marido. Não sei se foi o fumo dos cigarros ou o homem que me fez correr de volta à casa de banho, onde vomitei tudo o que tinha no estômago. Desde então que não consigo fumar um só cigarro sem que me ocorra o horror dessa noite. Ao longo da noite, Mohammed conseguira curar um hábito que durara quinze anos, em que fumara quarenta cigarros diariamente. Calculo que as coisas não eram assim tão más.
O dinheiro levanta a suafeia cabeça
Uma feira de divertimentos instalou-se na cidade, o que despertou em mim uma grande ansiedade de me misturar com as pessoas comuns, gente com sorrisos wlgares, e divertir-me à semelhança de todos os outros.
- Vais adorar. Há uma grande variedade de coisas em que podemos andar e belos petiscos para comer. Quanto a mim, quero comer, no mínimo dos mínimos, dez cachorros-quentes, vinte pauzinhos de algodão-doce e tantas maçãs caramelizadas com manteiga e açúcar quantas puder comer - disse toda entusiasmada.
Estávamos em finais de Abril; finalmente chegara a Primavera, mau- grado as chuvas às primeiras horas da manhã. O nosso quarto estava a tornar-se numa jaula, ainda pior do que a jaula maior que Teerão tinha representado. Eu queria sair, sentir o vento nos cabelos e o sol nas faces.
Depois de muitas súplicas, Mohammed acedeu a ir, se bem que com relutância. Não manifestou o mais pequeno vestígio de entusiasmo, mas lá se vestiu, arrastando-se num passo pesado pelas escadas abaixo e encaminhando-se para o meu automóvel. E aí permaneceu, até mesmo quando torci algo vital no meu pescoço ao tentar estacionar num espaço exíguo.
- Não vejo razão nenhuma para termos vindo - declarou. - Olha bem para esta gente, são patéticos, pessoas desmioladas que saem de casa com a única finalidade de se divertirem. Olha-me para aquelas mulheres com o rabo à mostra para qualquer homem poder ver, com os braços e seios em exibição para qualquer homem que as queira. Isto é um lugar cheio de putas e não estou disposto a permitir que saias do carro.
Pensei que ele estivesse talvez a atravessar essa fase de temor da liberdade que eu experimentei nos primeiros dias do meu regresso.
"Não te irrites; não percas a calma; tenta compreendê-lo"
Percorremos Oxford de automóvel, com o meu marido de olhos firmemente presos no painel de instrumentos, não fosse ele ver qualquer coisa de belo ou que enchesse o seu cérebro retrógrado, infimo e estúpido, com quaisquer pensamentos para além daquilo oculto entre as suas pernas.
Não me restava a mais pequena dúvida: eu odiava realmente aquele homem. Foi então que aconteceu, no parque de estacionamento da Estalagem Trout na periferia de Oxford. Estávamos estacionados a admirar o rio, com ele a recusar insistentemente a sair para tomar uma bebida rápida. Eu estava lavada em lágrimas quando ele rolou repentinamente o vidro dajanela para baixo, lançando um escarro enorme para cima daquele solo que tão precioso era para mim.
Fiquei lívida; senti-me pessoalmente insultada por aquele indivíduo se atrever a poluir o solo que tão importante fora para mim nos meus tempos de juventude. Não lhe podia dizer que tinha ido àquela estalagem com o meu primeiro amor, Peter, e que me fazia recordar sempre desses tempos tão felizes. Admito que me senti um pouco culpada por a minha relação com Peter ter ido além de uma simples amizade, que era tudo o que os meus pais acreditavam existir entre nós os dois.
Eu adorara esses dias em que nos livrávamos do pau-de-cabeleira que nos acompanhava por insistência da minha mãe sempre que eu saía de casa para nos refugiarmos na Trout. Peter era o mais bem-parecido de todos os homens de Oxford - as opiniões eram unânimes -, tendo-me feito perder mais do que uma amiga das que tentavam arrebatar-mo. Mas Peter fora exclusivamente meu; era um erudito em Wadham, um homem inteligente com grandes capacidades, sendo tudo o que qualquer mulher pudesse desejar num homem. Para mim ele tinha representado um conto de fadas, até que os meus pais se aperceberam de que havia entre nós algo mais do que uma mera amizade, o que, da noite para o dia, os levou a congeminar um curso de Francês na Sorbonne, para onde me enviaram sem eu poder dar uma única palavra de aviso ao homem por quem me sentia tão loucamente apaixonada.
Tinham decorrido precisamente vinte anos desde esse episódio, e ali me encontrava eu com aquele homem que escarrava, um idiota obcecado pelo sexo e cujas afirmações de ter frequentado a universidade eu começava a pôr em dúvida ao dar-me conta das limitações do seu intelecto.
A mão-cheia de pessoas que se encontravam na estalagem nesse dia à hora de almoço ficaram chocadas perante a visão de uma mulher num estado de grande frenesim e que já não era assim tão jovem, a descer intempestivamente os degraus do jardim lavada em lágri mas de desespero, com um homem que usava peúgas brancas e corria acaloradamente atrás dela. Ele mostrava-se preocupado e de súbito começou a dar mostras de preocupação e ternura. E, infelizmente, continuando bem vivo. Despejei no rio a bebida que ele me tinha comprado e regressei ao carro. Até me ocorreu deixá-lo ali, mas ainda não tinha chegado a esse ponto; sentou-se ao meu lado antes de eu arrancar.
Pouco depois senti-me invadida de novo por um sentimento de culpa. Estava a comportar-me de maneira cruel e desagradável, a arruinar a última oportunidade de ele viver em felicidade. Ele disse que queria conversar e concordei, estacionando numa área reservada a piqueniques junto ao rio, poucos metros abaixo da estrada. Caminhávamos de mãos dadas, tendo eu conseguido reunir a coragem para abordar a questão do divertimento.
- Por favor, meu querido, não sejas tão teimoso. Estamos na nossa lua-de-mel, finalmente estamos livres de todas as restrições que existiam no Irão, por que é que não havemos de nos divertir um pouco? - argumentei.
- Divertir! Só te interessas por isso, não é verdade? Só pensas em te divertir, enquanto os pobres de todo o mundo sofrem. Como é que eu posso divertir-me enquanto existir sofrimento, enquanto continuar a haver gente que vive na miséria? Sinto que é minha obrigação não me divertir, mas sim pensar constantemente na situação aflitiva em que vivem os que são oprimidos e que se sentem desesperados - pontuou ele.
Nessa altura passou uma família a bordo de um barco em que percorriam o rio.
- O que é que vês quando olhas para aquelas pessoas? - perguntou o meu marido.
- Uma família feliz que se diverte - repliquei.
- Não estás a ver a pobre garotinha, pois não? Vocês, os ricos, são tão egoístas que fecham os olhos a todo o sofrimento - rematou ele.
- Que sofrimento é esse?
- Olha! Serve-te dos teus olhos! - disse-me ele quase aos gritos.
- Tudo o que vejo é uma mãe, um pai e quatro crianças felizes - retorqui, sabendo muito bem aquilo que ele via, e que pensou ter-me passado despercebido.
- A garotinha não tem o braço direito - replicou ele numa voz rosnada.
- E então? Ela parece sentir-se bastante feliz - retorqui.
- Como é que ela poderá alguma vez vir a ser feliz? É uma mutante. a sua vida nunca terá qualquer utilidade. Só terá sofrimento - alegou o meu marido.
- O que estás a dizer é um disparate. Pois bem, ela perdeu um braço, mas isso não significa que a vida dela tenha chegado ao fim. As pessoas aqui não desprezam, nem consideram inúteis os que sofrem de uma deficiência. Ela terá tantas oportunidades de ter uma vida cheia e feliz como tu e eu - contrapus.
Apesar do número crescente de deficientes físicos como resultado da guerra entre o Irão e o Iraque, e os esforços do regime para integrar essas pessoas na sociedade, os "Sacrificadores da Vida" continuavam a ser considerados dignos de comiseração.
- Isso é muito fácil, não é? Justificas a indiferença que sentes pondo de lado a dor que ela sente - acrescentou ele, começando a bulir-me com os nervos.
- Ao contrário de ti, não me limitei a ser uma mera espectadora a lamentar a má sorte dessas pessoas. Tenho passado a minha vida a tentar fazer qualquer coisa que torne o mundo melhor. Foi por esse motivo que optei pela carreira de jornalista, para tentar mudar a atitude condescendente de pessoas como tu, gente que se mostra muito empolgada, patenteia uma grande virtude, quando na verdade se limitam a sentir piedade pelos que sofrem - disse eu com uma calma que desvirtuava a fúria que sentia dentro de mim.
- Especificamente, o que é que fizeste até agora?
- Muitas coisas, portanto não grites comigo!
- Nunca te vi a fazer fosse o que fosse. Nem sequer te dás ao trabalho de ler os jornais. És tal e qual como as aldeãs ignorantes que não sabem nada do que se passa pelo mundo e que são incapazes de abrir a boca sem envergonharem os maridos - acrescentou Mohammed.
Seria possível que aquele labrego me estivesse a dizer aquelas coisas? Mohammed teve uma sorte extraordinária por ter sido capaz de sobreviver àquele dia. A minha fúria não conhecia limites. Sentia-me encolerizada, mas demasiado cansada para tentar defender-me. Como é que eu poderia ter casado com um homem que pensava tão pouco de mim?
Nessa mesma noite ele teve o atrevimento de sugerir que devíamos começar a fazer um bebé. A minha justificação, de que Said era da opinião que seria prematuro pensarmos em ter filhos para já, não foi bem aceite por ele, pelo que a lua-de-mel entrou num período de dois dias de silêncio total.
- Vou regressar ao Irão - anunciou Mohammed na manhã seguinte. Graças a Deus! foi a minha primeira reacção. Mas assim que me deu o bilhete aéreo para eu tratar da reserva do voo, senti-me assolada por uma horrível sensação de fracasso, assacando a culpa dessa situação a mim mesma. Ele tinha vindo para Inglaterra tão cheio de esperanças, havia tanta coisa para ver e tanto que ele ainda não experimentàra, e tudo o que eu fizera até então era ser brusca com ele, tratando-o como se fosse um idiota - o que inegavelmente era; esta percepção fez-me sentir ainda mais responsável por ele. Assim, implorei-lhe que me perdoasse; prometi-lhe que passaria a portar-me melhor, que nunca mais seria brusca com ele, que passaria a ouvir o que tivesse a dizer, agindo como a esposa que ele desejava que eu fosse.
Por fim lá concordou em sair para nos divertirmos um pouco. De início com relutância, mas deixou que eu o persuadisse a irmos almoçar fora, após o que daríamos uma volta pelas faculdades de Oxford. Eu sentia-me como uma criança, a coisa mais insignificante proporcionava-me uma grande felicidade, em contraste com alguns momentos antes em que me sentira mergulhada num grande desespero. Por muito patético que possa parecer, a realidade é que eu temia o fim deste pesadelo. Esta mulher inteligente, que muitos consideravam uma pessoa determinada e sensata, junto de quem outros vinham com os seus problemas, tinha desistido da esperança de vir a ter algo melhor. Ela sentia-se derrotada, incapaz de descortinar qualquer outra coisa no seu futuro que não fosse levar a cabo aquela relação até que um de nós acabasse com a vida do outro.
Oh, maravilha das maravilhas! Íamos almoçar fora. Poderia ostentar o meu novo estatuto de mulher casada.
- Não estás a pensar sair nessa figura, pois não? - perguntou-me ele. Na altura eu usava umas calças justas azuis e uma camisa largueirona Laura Ashley de mangas compridas que me dava pelas coxas.
- Toda a gente pode ver o que tens por baixo dessas roupas - disse- me ele rindo-se.
- Mas estamos em Inglaterra, isso não tem a mínima importância - retorqui num tom de súplica.
- Continuas sem compreender, não é verdade? És a minha mulher e eu sou muçulmano, e sou eu quem diz o que podes ou não podes usar. Agora, sobe ao quarto e muda de roupa - ordenou ele.
Senti-me pasmada. O que é que tinha sucedido ao homem que me pediu que usasse o véu porque "estes iranianos não são civilizados", alegando que era o costume no país e que isso poderia afectar as suas perspèctivas de promoção caso a mulher fosse vista sem o hejab apropriado? Nunca houvera nenhuma conversa acerca de qualquer compromisso de toda uma vida em relação ao uso do véu.
- Eu não te disse que eras obrigada a usar o casaco e o lenço - acrescentou ele à laia de justificação. - Mas isso não quer dizer que não haja um limite de decência que tu excedeste.
- Por que é que vocês os dois ainda estão aqui? - perguntou a minha mãe que entretanto se aproximara.
- Vamos sair já, mas primeiro tenho de fazer uma coisa - respondi. Fui ao andar de cima e vesti uma saia que me dava pelo tornozelo e uma blusa de um tecido grosso, abotoada até cima e de mangas compridas.
- Abotoa os botões todos - ordenou o monstro quando saímos de casa. Eu só tinha deixado o botão de cima por abotoar; a raiva que senti enviava espasmos de dor ao meu estômago cada vez mais nervoso.
Não consegui comer muito depois de nos sentarmos a uma mesa no Browns, limitando-me a observar Mohammed a comer que nem um alarve enquanto lançava olhares pelo canto do olho à bonita loura que nos servia.
- Estás a ver, não existe nada de sexual aqui. A nossa empregada de mesa usa umas calças justas, mas não está a convidar-te implicitamente que vás para a cama com ela - aleguei.
Ele lançou-me um olhar de esguelha que dizia: "Ah isso é que está! ". Eu devia ter-lhe dito que não se lisonjeasse a si próprio; ao invés, limitei-me a pegar na minha sanduíche de atum.
Ficou mais do que comprovado que ele não tinha o mais pequeno interesse pelo que lhe mostrei nesse dia, e só quando comecei a tirar fotografias, que poderia mostrar às pessoas quando regressasse ao Irão, é que se mostrou mais animado.
- Desabotoa alguns desses botões - pediu-me quando posei para uma fotografia junto do lago na Faculdade Worchester. - Não me posso esquecer de separar esta quando as mostrar à minha mãe.
- Com que então agora tencionas voltar, é isso?
- Temos de regressar para ir buscar o teu dinheiro e para resolvermos o assunto de Sepideh e dos rapazes - explicou ele. - Quero assegurar-me de que eles ficarão com o suficiente para se sustentarem durante pelo menos três anos enquanto eu estiver ausente a estudar para a minha licenciatura.
- Por acaso não acabámos de decidir que permaneceríamos aqui? - perguntei num protesto.
- Só enquanto eu prosseguir com os meus estudos, querida. - Eu disse-te sempre que queria vir a ser ministro. O que significa que seremos obrigados a regressar, e tu tens de começar a aprender a comportar-te com a esposa de um ministro da República Islâmica do
Irão.
Não fiz qualquer comentário, mas dentro de mim algo morreu quando reflecti em toda uma vida sob o véu. Esforcei-me intensamente para aceitar essa ideia mas, por muito que tentasse, era-me impossível. Não acreditava nessa maneira de viver e sentia-me insultada perante essa perspectiva. Os últimos anos haviam sido preenchidos com muito trabalho a que me dediquei afincadamente, trabalho e mais trabalho sem qualquer tipo de vida privada, acompanhada apenas da morte e dos desgostos. Para mim, não poderia haver nenhuma espécie de vida sem nada que me desse prazer, sem beleza ou liberdade pessoal.
- Os homens que comecem a usar o véu e então aceitá-lo-ei com toda a satisfaçãodissera eu a Goli já há uma vida, quando eu ainda era aquela outra mulher. A despeito de todos os argumentos de que os homens também têm de se vestir decentemente nos países islâmicos, eles continuavam a andar como sempre tinham feito. O Imã Khomeini chegara mesmo a promulgar um dos seus famosos fatwas em que autorizava os jogadores de futebol a usarem calções; todavia, essesfatwas não se dirigiam às atletas. As mulheres continuavam a jogar ténis no antigo Imperial Country Club usando lenços e casacos compridos, nadando no Cáspio completamente vestidas com o chador e calças obrigatórios. Nós, as mulheres, transformámo-nos num motivo de chacota. A pureza encontra-se dentro do nosso coração e mente, não tendo nada a ver com a forma como nos vestimos. Que sejam os homens a desviar o olhar se não forem capazes de olhar para uma mulher sem sentirem uma erecção.
Dei a conhecer ao meu marido os pensamentos que me iam na cabeça enquanto passeávamos pelas margens do lago. Disse-lhe que essas restrições se deviam à pequenez das mentes dos que as impunham.
- Suponho que estarias pronta a dizer isso ao doutor Shariati - redarguiu ele. O doutor Shariati era o guru do ressurgimento do fundamentalismo islâmico.
- Sim, caso ele tivesse enveredado por disparates como esse - repliquei. Mohammed ficou atordoado. Olhou-me fixamente abanando a cabeça.
- O que é que foi?
- O doutor Shariati foi um grande erudito. O que ele disse não pode ser posto em
questão - contrapôs o meu marido intelectual.
- Asneiras e mais asneiras, saiam elas da boca de quem quer que seja - repliquei.
- Não tens estatura para pôr em questão esse grande homem da filosofia - esclareceu-me o meu douto marido.
Não valia a pena; nem sequer parecia que nos encontrávamos no mesmo planeta, quanto mais na mesma sintonia. Sempre que não existiam parâmetros comuns, não existe estrutura nenhuma para que se possa argumentar o nosso caso. Não há nada de mais limitativo para o intelecto do que a aceitação de normas, mas não havia maneira nenhuma que me permitisse persuadir Mohammed desta realidade. Ele fora criado num sistema educacional onde os alunos eram ensinados a memorizar e a regurgitar, e não a ler e a analisar por si próprios.
Caminhávamos há menos de uma hora quando Mohammed começou a gemer e a resmungar, queixando-se de que estava exausto e que queria voltar para casa. No caminho de regresso carreguei todo o seu peso sobre os meus ombros, com o braço dele a apertar-me a garganta, tendo desistido de todo e qualquer esforço no sentido de andar pelo seu próprio pé, sem se incomodar por ter de ser eu a arrastá-lo ao longo dos cerca de três Quilómetros do percurso de regresso.
Agora, quando vejo casais de enamorados com o braço em redor um do outro, o meu coração cai-me aos pés lamentando a pobre mulher que é obrigada a tolerar o jugo do amor.
Curei-me do hábito de fumar, do desejo sexual e do romance.
Cada vez me sentia mais exausta devido à tensão provocada pela vivência com Mohammed ao longo das vinte e quarto horas do dia. Ele agarrava-se a mim qual criança aterrorizada ao ver-se apartada da sua mãe. Quando eu cozinhava, ele não arredava pé - ombro a ombro -, até eu só querer gritar para que se afastasse de mim. Houve um dia em que falou comigo durante todo o dia. Nunca me tinha sentido tão extenuada psicologicamente, mas as camisas dele precisavam de ser engomadas, motivo por que era obrigada a permanecer no meu posto de trabalho.
Como é que ele reagiria a um pedido meu para que regressasse ao local de onde viera? Não passava ele os dias e noites a dizer-me que desejava voltar ao Irão, alegando que o projecto da fábrica estava a ir por água abaixo e que a sua presença era essencial em Shiraz onde tentaria angariar algum dinheiro?
Cometi dois erros durante os primeiros dias da nossa "lua-de-mel". Primeiro tinha permitido que ele me convencesse a enviar o seu passaporte aos serviços de imigração a fim de prorrogar o visto de três semanas. Continuo com curiosidade de saber por que razão é que, de todos os iranianos que nos visitaram desde a revolução, o meu marido foi o único a não obter um visto de seis meses. Teriam as autoridades conhecimento de algo sobre ele que eu desconhecia? Então, exausto por uma noite a dar voltas na cama sem conseguir conciliar o sono, preocupado pela perspectiva de a sua fábrica ir por água abaixo, prometi dar-lhe o dinheiro - logo que um determinado jornal me devolvesse o dinheiro que eu adiantara para a viagem de Shirazi, mais o que eu lhe dei para despesas. A troco disso, Mohammed prometeu-me que eu passaria a ser a sua única mulher, tendo concordado em pôr finalmente cobro à farsa que tínhamos vivido durante os últimos seis meses. Não lhe pedi que tomasse essa atitude, mas era a minha única oportunidade de vir a desfrutar por fim de alguma felicidade. Ou, no mínimo dos mínimos, de um menor grau de infelicidade que caso contrário me estaria reservada.
Agora, enquanto trabalhava que nem uma escrava com o ferro de engomar, sentia-me preocupada com o dinheiro que ele conseguiu extorquir-me ao longo da nossa relação. Uma vez que era eu quem pagava tudo, pelo menos não devia ser obrigada a fazer todo o trabalho. Quando fui esperá-lo a Heathrow, no caminho de regresso a casa tínhamos parado num multibanco para levantar duzentas libras - para que a minha mãe não pensasse que ele vivia à minha custa. Foi a última vez que pus a vista em cima desse dinheiro, dado que era eu quem pagava tudo aonde quer que fôssemos; todas as refeições, as camisas novas e fatos Marks & Sparks, bem como os sapatos, os bilhetes de comboio que ele tinha de comprar para visitar amigos em Londres e em Manchester, assim como os presentes que ofereceu à minha mãe e ao resto da família. Teria sido uma grosseria da minha parte perguntar-lhe o que fizera com esse dinheiro que supostamente deveria ter sido gasto com a minha mãe quando da sua última estadia no Irão. Eu teria ido contra todos os princípios iranianos se lhe sugerisse que pagasse a conta sempre que almoçávamos, jantávamos ou tomássemos chá fora. Teria sido dispendioso - para mim - sugerir-lhe que retribuísse a hospitalidade que as minhas irmãs e irmão lhe dispensavam, se ele os convidasse para comer fora.
Mesmo assim, apesar de fervilhar sempre que pensava no quanto ele abusara de mim, e até que ponto eu tinha sido estúpida por permitir que isso acontecesse, ele não me deixava em paz. Andava sempre atrás de mim, tentando incansavelmente fazer-me ver a corrupção que grassava nos países ocidentais.
- Nunca poderemos criar os nossos filhos aqui - declarou Mohammed finalmente.
- Eu fui criada aqui e não me saí assim tão mal - contrapunha eu.
- Vias essa porcaria que a televisão transmite, sem sequer te aperceberes de que isso não vale nada, e depois dizes que te saíste muito bem. Pensar que estive quase a desistir de Sepideh por causa de ti!
- Quase?
- Podes ter a certeza de que não vou fazer dela, uma mulher que nunca mostrou uma madeixa de cabelo a outro homem, uma pessoa infeliz só porque tu és irracional ao ponto de não saberes pôr-te no teu lugar.
- Mas. tu prometeste-me - retorqui com a respiração entrecortada.
- Isso foi quando eu ainda pensava que valias alguma coisa. Mas, até à data, a tua conduta tem provado que eu estava enganado. Agora sei que não vales o meu sacrifício - acrescentou ele sem qualquer traço de emoção. - Se chorares, só farás com que te odeie ainda mais - acrescentou desabrido quando comecei a chorar.
Aquele homem parecia feito de gelo: na fisionomia que me olhava fixamente não havia um grama de calor humano ou de amor enquanto eu caía à sua frente dobrada numa bola e a chorar convulsivamente. Aquela situação jamais teria fim. Ele falava a sério ao afirmar que viver em Inglaterra estava absolutamente fora de questão, acrescentando que tencionava levar as suas duas mulheres e filhos para a Índia, onde continuaria os seus estudos; Sepideh trataria das tarefas domésticas e olharia pelas crianças, enquanto eu ensinaria inglês para ganhar dinheiro.
- Não chores - disse ele num timbre de voz subitamente suave e de arrependimento. Corri logo para os seus braços, dando largas a uma torrente de lágrimas até que a camisa dele ficou toda manchada de rímel e ensopada.
Vais ter de lavar esta camisa ainda esta noite - disse-me ele olhando para as manchas.
Claro, meu querido!
Depois desta cena, tivemos uma semana relativamente boa. Mostrei-me humilde e respeitosa enquanto ele falava pomposamente sobre o tema dos seus estudos, acentuando a ânsia avassaladora com que desejava prossegui-los. Telefonei para as universidades de todo o país e enviaram-me todo o tipo de brochuras. Contudo, Mohammed não lhes prestou nenhuma atenção; nem sequer abriu um único sobrescrito - atitude que não seria de esperar por parte de um académico fanático.
E foi assim que tivemos outra discussão quando o ser cobarde em que eu me transformara deu lugar à mulher que disse "Tolice" quando o ouviu.
Por que razão é que ele não mostrou nenhum interesse? A resposta era realmente simples: a escolha de um curso não é nenhum quebra-cabeças; optaria por um deles quando chegasse a época de se candidatar.
- Mas tens de te inteirar das especificidades de cada curso, ver o que queres fazer, descobrir que curso se adapta melhor às tuas aspirações - titubeei.
- Não é assim que os académicos agem. Só queremos estudar, independentemente das matérias que estudemos; todos os conhecimentos são válidos - proclamou o meu marido cheio de sabedoria.
- Há muito que vivo numa cidade por onde passaram os maiores académicos de todo o mundo, e eu própria não sou exactamente uma iletrada. A realidade é que tens de levar este assunto bastante mais a sério, isto é, se pretenderes chegar a algum lado - insisti.
- Mas quem é que se interessa com a natureza do curso? Estou disposto a fazer tudo em qualquer universidade para onde vá. Relações Internacionais, Política ou qualquer outra actividade do género. De qualquer maneira, primeiro temos de regressar ao Irão; por isso, de que é que me serve tratar desse assunto neste momento? Quando chegar a altura certa, hei-de ler todos esses prospectos.
De que é que me servia estar a cansar-me? Estávamos a milhas de distância um do outro!
Durante os últimos meses da minha estada em Teerão eu tinha começado a fazer algum trabalho de consultadoria para um dos distribuidores de caviar mais importantes a nível mundial. Noutros tempos, todos os fornecimentos de caviar iraniano eram da responsabili dade de uma das minhas primas em segundo grau. Era uma senhora de uma excentricidade maravilhosa que vivia numa bela vivenda na zona norte de Teerão na companhia de cerca de cem gatos que eram alimentados basicamente com caviar.
Agora, depois de eu ter regressado a Inglaterra, os directores de gestão de uma firma de importação de caviar e a casa-mãe combinaram uma reunião para me encontrar com eles em Paris a fim de discutirmos estratégias futuras. Não era bem o tipo de trabalho que me agradasse fazer, mas com um marido e vários dos seus familiares a meu cargo, as opções que me restavam não eram muitas. À nova pessoa que eu era nem sequer ocorreu aconselhar-me com alguém antes de ter concordado com a reunião em Paris. Por que haveria eu de me recusar quando estava a ser paga à hora, para além da perspectiva de umas duas refeições de cozinha francesa, ideia que me agradava bastante? Contudo, Mohammed não encarava as coisas sob essa perspectiva; ficou furioso ao saber que eu concordara em ir sem o ter consultado.
- Não podes ir, e não há mais nada a dizer sobre o assunto - afirmou ele peremptório. - Vai dizer-lhes que não podes ir.
- Mas por que não? Não estou a compreender. Nós precisamos desse dinheiro - protestei no nosso quarto nas águas-furtadas quando ele começou a fitar-me como se eu tivesse cometido um pecado abominável.
- A minha mulher não vai a Paris sozinha encontrar-se com homens desconhecidos. Não tens a mínima noção do que é decente e próprio? Estás disposta a fazer qualquer coisa por dinheiro, não é verdade? - perguntou-me.
- Tenho uma ideia bastante definida do que é certo e errado, e continuo sem ver nada de mal no que tenciono fazer - continuei a protestar.
Levantou-se da cama onde estivera a estudar alguns livros de língua inglesa editados pela Oxford University Press que o marido de Mahshid, o Donald, lhe trouxera. O meu marido, no seu fato de treino "mais velocidade de corrida", contornou a cama e aproximou-se da porta do quarto onde eu me encontrava.
- Quantas vezes é que tenho de te dizer para aprenderes, múlher estúpida? - perguntou-me ele olhando-me de esguelha e com uma expressão maldosa no olhar penetrante. Quando os homens e as mulheres se juntam só têm em mente o sexo, e nada mais do que sexo. Se fores a Paris sozinha, será o mesmo que estares a pedir-lhes que te fodam.
- Endoideceste por completo? - perguntei-lhe boquiaberta.
- Eu, doido? Tu, a tua família rica e os vossos desprezíveis amigos corruptos ingleses é que são os doidos - gritou ele a plenos pulmões.
- Não te atrevas a chamar a minha família de doidos - gritei. - Eu disse-te logo no dia em que te conheci que desculparia tudo, mas que não permitiria que ninguém insultasse
a minha família.
Agarrou-me por um braço e puxou-me bruscamente para si. Antes que eu pudesse reagir, empurrou-me na direcção da cama. Pôs-se em cima de mim e rasgou-me a roupa.
Comecei a debater-me sem grandes resultados. Via a sua garganta ao alcance dos meus dentes e ansiava por lhe abocanhar a carne, rasgá-la e desfazê-la até que se soltasse e o sangue começasse a jorrar-lhe das veias. Imaginei-o estendido debaixo de mim nos estertores da morte, sentindo a vida a esvair-se-lhe do corpo enquanto o sangue continuava a esguichar. Curiosamente, comecei a gostar desta fantasia a tal ponto que quase me esqueci do que me estava a suceder.
Ele fumava outra vez, e eu perguntava-me se a polícia me levaria para a prisão por ter desfeito aquele mentecapto numa massa polpuda. Era uma sensação agradável colocarmo-nos no lugar do agressor e não do da vítima, tendo eu acreditado que aquele era um ponto de viragem no meu caminho da fuga.
Subitamente ouvi a minha mãe à porta do quarto. Ambos entrámos em pânico quando ela me chamou repetidamente pelo nome. Teria ela ouvido a nossa altercação? Uma vez mais, senti-me envergonhada e conspurcada.
Chehreh! - chamava a minha mãe do lado de fora da porta. Sim? - respondi.
Tens um telefonema. Não me ouviste a chamar-te?
- Não, desculpe. Quem é?
A última coisa que eu queria fazer naquele momento era falar com alguém.
- É o teu pai - respondeu a minha mãe começando a descer as escadas. O MEU PAI!
Há quase dez anos que não sabia nada do meu pai. Continuava a viver em Oxford, mas tínhamo-nos zangado depois do divórcio entre ele e a minha mãe. Suponho que ele considerasse os filhos culpados por não terem impedido que a minha mãe pedisse o divórcio, mas ele, melhor do que ninguém, sabia que não havia nada que a impedisse de fazer aquilo que considerava acertado.
O que é que eu lhe iria dizer? "Olá, papá, o meu marido acabou de me forçar a ter relações sexuais com ele. Importas-te de vir até cá para resolveres a minha vida? ". Como é que eu lhe poderia dizer fosse o que fosse; como é que poderia pedir-lhe que me salvasse das mãos daquele homem, depois de dez anos de silêncio?
Salva-me, paizinho, vem e leva-me desta situação desgraçada, como costumavas fazer antigamente, dizia-me a minha voz secreta.
- Olá, papá - foi tudo o que fui capaz de dizer sem desatar a chorar.
- Como é que estás? - perguntou o meu pai.
- Não sei - respondi numa voz sumida.
- Acho melhor vires visitar o paizinho, não te parece?
Sim - anuí.
- Amanhã às duas da tarde, e vem sozinha, Cherry, minha querida, por favor.
- De acordo, paizinho.
A visita no dia seguinte foi o encontro mais traumático da minha vida. Todas as emoções da garotinha que perdera o seu pai vieram à superficie quando o meu pai me abriu a porta de sua casa e me acompanhou ao interior onde se ouvia a canção persa "Beija o papá, porque tu és a minha vida" através da aparelhagem estereofónica. Era a nossa melodia, e de repente só desejei poder estar liberta do marido com quem nunca poderia vir a ter uma vida em comum, como me apercebi naquele momento.
Quando a mulher de um homem se recusa a cooperar, a única alternativa é mostrar-lhe quem é que manda. Uma vez mais, Mohammed exigiu os seus direitos maritais.
- Estamos a meio do dia. Toda a gente está a pé - aleguei.
- Isso não interessa. Seja como for, o que é que pensas que eles imaginam que estamos a fazer aqui em cima? - perguntou.
- Tive um dia muito difícil - aleguei, sentindo-me enojada com a perspectiva. Deixa-me descansar um pouco - implorei em vão.
Mau-grado as inúmeras ocasiões em que ele me possuíra contra a minha vontade, nunca senti tanta repulsa, nunca me senti tão despida. Tinha acabado de ver o meu pai pela primeira vez em dez anos, por amor de Deus! Eu era como uma garotinha que encontrou o pai que perdera.
Do mais profundo da minha alma, só desejei que Mohammed morresse naquele instante.
Uma semana depois do nosso reencontro, o meu pai pediu-me que o levasse a sua casa. Desde o primeiro momento em que nos conhecemos, Mohammed expressou sempre o desejo de vir a conhecer o meu pai, pedindo- me constantemente o seu endereço de forma a poder escrever-lhe ou visitá-lo, ainda que eu não quisesse acompanhá-lo.
Tal como Salman Rushdie aprendeu posteriormente, existem algumas pessoas cujo endereço nunca se dá, independentemente da pessoa que o quer obter. Ao longo de catorze anos, muitos membros da minha família tinham vivido com o medo que os esquadrões da morte lhes inspiravam. O mundo ficou pasmado e horrorizado por tudo o que Rushdie foi forçado a suportar, mas por essa altura muitos iranianos já estavam bastante habituados a viajarem de avião por meio continente europeu, fazendo o respectivo trajecto de retorno, mudando de aviões, comboios e eléctricos antes de visitarem um familiar que vivia escondido, com receio de levarem os molás até aos alvos destes.
Mohammed pretendia conhecer toda a minha família, a fazer fé no que me dissera. Os filhos no exílio de um antigo ministro da guerra e seu primo, assim como o seu sucessor, figuravam à cabeça da lista. É possível que eu tenha sido estúpida, mas nunca a tais extremos. Era-me bastante doloroso compreender que embora eu tivesse amado aquele homem, os meus concidadãos iranianos inspiravam-me um tal grau de desconfiança que a minha obrigação era ocultar-lhe a existência destas pessoas.
Durante os três dias anteriores à reunião marcada para que genro e sogro se conhecessem, Mohammed pediu-me que lhe marcasse uma hora para ir ao barbeiro cortar o cabelo. O que me apetecia era que lhe cortassem a cabeça, e por isso ignorei os seus pedidos. Ao fim e ao cabo, era um homem adulto e certamente teria capacidade para encontrar um barbeiro. Finalmente chegou a manhã combinada para o encontro, tendo eu perguntado a Mohammed, que lavava os dentes no lavatório do nosso quarto, o que é que queria que tirasse do guarda-roupa para vestir.
- Não vou - ripostou com brusquidão com a boca cheia de espuma.
- O quê?
- Não vou. Pedi-te que me marcasses hora no barbeiro para cortar o cabelo, o que não fizeste; por conseguinte, agora tens de ser castigada - retrucou ele.
- Isso é outra brincadeira tua, não é verdade?
- Não é brincadeira nenhuma. Agora cala a boca e deixa-me em paz.
- Mas o meu pai está à tua espera. vai ficar furioso. Será um insulto imperdoável, uma acção que significará que jamais possamos viver como marido e mulher no seio da minha família. Por favor, não sejas disparatado. Veste-te para nos irmos embora, querido supliquei.
- Já te disse que tens de ser punida - foi a resposta obstinada.
- Vai para o raio que te parta! - vociferei, tendo perdido toda a paciência. - Eu não sou tua criada. Marca tu os teus cortes de cabelo! - repliquei irritada.
- Eu levo os dias e as noites a dizer-te que quero ser teu escravo, que só desejo servir-te. Embora não seja meu dever, não é a mim que cabe ser teu escravo. Por que é que não és capaz de fazer o que te compete? - ripostou ele enfurecido. Quem é que poderia ter imaginado que ele viesse a mostrar-se tão violento e maléfico?
- Não tenho tempo para a tua ignorância - respondi-lhe saindo do quarto. Chegada ao piso térreo, contei à minha mãe e a Mahshid o sucedido.
- Deixa-o, mãezinha, ele não está à altura de se encontrar na mesma sala em que o meu pai esteja - aleguei, receando uma discussão acalorada caso a minha mãe lhe dissesse para nos acompanhar e ele continuasse a recusar-se.
Mas, para minha grande surpresa, assim que a minha mãe o chamou, dizendo-lhe que não fosse idiota e que se despachasse, ele desceu as escadas com o rabo entre as pernas.
- Estou pronto - disse Mohammed. Usava um par de velhas calças de bombazina que em tempos haviam sido beges mas que agora estavam esfiapadas, tendo adquirido um tom de um amarelo-acinzentado e que tinham sido massacradas pela primeira mulher que as lavara na máquina da roupa. A camisa estava suja e amarrotada e calçava uns sapatos verdes todos enlameados - já os devia trazer naquele estado em Teerão, uma vez que eu nunca lhes tinha posto a vista em cima. Por cima daquele cúmulo de elegância vestira um casaco de cabedal preto - um presente que a minha mãe lhe tinha oferecido.
A pintura do Rolls cintilava quando chegámos ao caminho particular que dava acesso à casa do meu pai, que nos recebeu à porta depois de ter sido alertado para a nossa presença pelo sistema electrónico de segurança, antes mesmo de o automóvel ter parado. Estava impecavelmente vestido: o seu fato, camisa e gravata gritavam qualidade. Eu só queria que a terra se abrisse e me engolisse. Como é que eu me atrevi a trazer aquele rufião para o seio da minha família, como genro do meu pai?
Mohammed - graças a Deus - perdera o uso da palavra, limitando-se a acenar com a cabeça e a gnhir em resposta à conversa do meu pai. Durante grande parte da visita fixou o olhar num ponto da carpete persa.
Uma hora mais tarde, quando o meu pai nos acompanhou até à porta, olhou-me com um olhar que me dizia: "Livra-te dele".
De volta a casa, fui brindada com outro tratamento de silêncio, o que para mim foi um alívio. Nessa noite, subi ao meu quarto e preparava- me para me deitar quando senti que qualquer coisa se agarrava à sola do pé. Era um escarro enorme; o estupor tinha cuspido no soalho do quarto. Durante os dois dias seguintes senti-me demasiado repugnada para conseguir comer fosse o que fosse.
Não é o tipo de coisa que qualquer mulher goste de apregoar aos quatro ventos, mas já há alguns anos que me debatia com um problema bastante embaraçoso. No decurso de uma situação normal, teria preferido morrer do que aludir à batalha que travava há vinte anos com as hemorróidas. Mas aconteceu que se tornaram na região da minha anatomia que eventualmente me proporcionou espaço para respirar, que eu aproveitava para tomar as decisões mais difíceis da minha vida: para engolir o meu orgulho, admitindo perante mim própria que foi com todo o afinco que estraguei a minha existência, pelo que necessitava do auxílio daqueles que me haviam aconselhado a não dar aquele passo.
Tinha ido consultar o doutor Finnigan, o meu médico de clínica geral desde a minha meninice, apresentando-lhe uma lista de maleitas desde dores arrepiantes na região dos ovários, passando pela falta de energia e terminando num estado de apatia crónica. Ele enviou-me para o doutor Gilmere, um ginecologista que se inseria numa categoria que não tinha nada a ver com o ser sobrenatural que me examinou em Teerão. Simpático, asseado, cortês, encantador e profissional, o doutor Gilmere mostrou-se satisfeito ao informar-me que não existia nenhuma formação tumorosa em desenvolvimento, mas sim que eu tinha uma infecção que adquirira quer por ter dormido com outro homem além do meu marido, quer com uma mulher. Em nenhum momento durante a consulta colocou o braço em redor dos meus ombros, nem tão-poucò fez qualquer gesto de incisão junto da região do meu baixo-ventre para ilustrar um ponto. Eu escapara-me do mundo daquele outro médico que parecia ter vindo do outro mundo.
Ter-me-ia Mohammed mentido? Teria ele continuado a deitar-se com Sepideh? Claro que sim; não podia haver mais nenhuma explicação. Mas, na realidade, isso não me interessava por aí além. Ele era algo que viera desse mundo alienígeno de onde eu havia escapado. Conseguira a minha liberdade e nada voltaria a ser assim tão mau. Não obstante, confrontei-o com aquela revelação. Mas ele jurou pela vida dos filhos que nunca mais mantivera contactos sexuais com a sua outra mulher. No meu íntimo, comecei a interrogar-me se Reza teria falado verdade quando me afirmou que o meu marido também tinha uma outra seegheh.
As análises ao sangue não só mostraram a infecção como também revelaram a existência de anemia, que se devia, tal como se deduziu, ao facto de eu sangrar constantemente por causa das hemorróidas. Era preciso que me submetesse a uma intervenção cirúrgica, do que fui informada por outro especialista encantador, um certo doutor Mortensen, depois de este concluir a necessidade de eu vir a ser ligada, mas nada de mais.
No dia marcado para este tratamento excruciantemente doloroso, o meu marido apiedou-se de mim e recomeçou a dirigir-me a palavra, como se durante a última semana não nos tivéssemos mantido de adagas desembainhadas. Mohammed opusera-se a que eu fosse tratada por um homem, mas naquela fase da situação eu ligava muito pouco ao que ele dizia, passando a maior parte dos dias a mostrar-me desabrida com ele. Finalmente, foi forçado a ter de aceitar que o doutor Mortensen viesse a ter contacto físico profano com o meu traseiro.
O que quer que vos digam, não acreditem quando vos dizem que esta pequena intervenção cirúrgica não dói. Eu nunca, mas nunca, senti dores de tal maneira excruciantes. Tratou-se de um processo rápido, após o qual fui imediatamente enviada para casa. Não sendo pessoa para suportar bem as dores, ainda que na melhor das circunstâncias, fiquei de cama com um saco de gelo aplicado estrategícamente para aliviar o sofrimento.
Mohammed levou a sua pessoa para o nosso novo quarto para "aprender inglês", enquanto a minha mãe e Mahshid não paravam de um lado para o outro a cuidar de mim. Nessa noite dormi no piso térreo perto da minha mãe para o caso de precisar de chamar por ela, mas ao segundo dia Mohammed espreitou pela porta entreaberta do meu antigo quarto e informou-me que esperava a minha presença na sua cama nessa mesma noite.
Dois dias a ingerir analgésicos de grande potência haviam-me deixado ligeiramente azonzada, e mais gagá do que o normal. Enquanto Mohammed e a minha mãe viam televisão nessa segunda noite, eu dormitava no sofá. Nessa noite, o meu marido despertou-me para me dizer que estava na hora de irmos para a cama. Mostrou-se amável e deveras gentil, segurando-me pelo braço para me ajudar a subir as escadas; eu mal conseguia manter os olhos abertos. Chegados ao andar de cima, o meu compreensivo consorte pôs as patas em cima de mim enquanto falava que se desunhava.
- Por favor, deixa-me dormir - foi tudo o que consegui dizer enquanto ele continuava a apalpar-me sem parar de falar.
Por fim, o sono acabou por sair vencedor e perdi a consciência, mau- grado os resmungos que continuavam ao meu lado. Na manhã seguinte dei comigo casada de novo com um monge trapista. Mohammed recusava-se a deixar o quarto, dizendo-me que não queria comer nada - apesar de ter ingerido os ovos e toucinho fumado frito (proibido aos de fé muçulmana), acompanhados de torradas para o pequeno-almoço, assim como o almoço, um prato com arroz que lhe levei ao quarto.
Fizesse eu o que fizesse, recusava-se a falar comigo ou a dar-me a mínima indicação sobre o que eu teria feito de mal. A minha mãe queria saber se ele estava doente. Menti-lhe, dizendo que sim, sentindo-me demasiado envergonhada para lhe dizer que aquele lorpa desempenhava o papel do paxá magoado. Sentia-me absolutamente impotente para descorti nar o que havia provocado aquele amuo. Pensei e reflecti sem ser capaz de descobrir uma única razão. Na noite anterior tínhamos estado bem, quando adormeci ele continuara a falar comigo; assim, o que é que agora o levaria a encenar aquele acto de surdo-mudo? Nessa noite, depois de nos termos deitado ele voltou a recuperar o poder da fala durante o tempo suficiente para me dar a conhecer que na noite anterior esperara que eu tivesse tido relações sexuais com ele, incriminando-me por ter adormecido assim sem mais nem menos.
- Sexo! - exclamei numa voz entrecortada e sentindo-me genuinamente surpreendida. - Como é que pudeste esperar que eu acedesse a uma coisa dessas? Durante todo o dia estive meia-adormecida a morrer de dores.
- Tiveste o dia todo para recuperares. Devias ter pensado nas minhas necessidades - informou-me ele.
- Nem sequer me ocorreu que pudesses ser insensível ao ponto de esperares que eu fizesse alguma coisa neste estado, quanto mais isso. Não posso sentar-me, nem consigo ir à sanita; nem sequer posso tossir sem sentir dores. Como é que imaginas que pudéssemos ter relações sexuais?
- Assim - respondeu-me laconicamente.
Fui acometida de umas dores como nunca tinha sentido, e depois de ele ter acabado as
dores que senti ficaram comigo durante muitos meses.
Quando penso nessa situação tão angustiante, comparo-a às dores do renascimento. Nessa noite ele matou qualquer amor que ainda restasse entre nós, tal como aniquilou qualquer simulacro de paixão. Desde essa noite, só muito raramente é que ele se aproximava o bastante para me poder tocar. Nessa mesma noite, não só comecei a planear a maneira de me separar daquele monstro, como também enveredei pelo caminho que me levaria a tornar-me numa "Virgem Renascida".
Permite que eu me liberte deste homem ejamais deixarei que qualquer outro homem me toque, negociei com Deus.
Não se tratou de um casamento arranjado pelos meus pais. Pelo contrário, fui eu que escolhi este homem, e contudo, deitada na cama ao seu lado noite após noite, eu sabia que só com um milagre seria capaz de manter uma vez mais um relacionamento físico normal. Comecei a pensar no que se passaria com muitas das minhas "irmãs" no islamismo, tanto no Irão como em outros países da mesma religião, onde milhões de mulheres são casadas com homens que mal conhecem. Como é que elas se sentiriam quando acordavam a meio da noite dando com os seus corpos cobertos com o suor de um marido que haviam aceitado em deferência para com a sua cultura, e pelo respeito que tinham pelos progenitores, homens por quem sentiam uma profunda aversão?
Adeus, meu querido
Para mim, andar transformou-se num problema de maior, pelo que as duas semanas seguintes foram passadas em casa em frente do televisor. Mohammed gostava de poucos dos filmes que eu tentava incentivá-lo a ver, mostrando desinteresse por clássicos populares como Breve Encontro, O Último dos Duros, Quanto Mais Quente Melhor e o Falcão de Malra, considerando-os inferiores aos que eram realizados pela indústria cinematográfica iraniana. Amor Sem Barreiras era uma pura perda de tempo na opinião dele, e Elvis não sabia cantar. O Padrinho e Goldfinger foram vistos com um pouco mais de agrado, enquanto os filmes de cowboys eram apreciados.
Houve um domingo em que toda a família se reuniu em finais de Abril quando eu, numa atitude disparatada, decidi familiarizar Mohammed com o filme The Rocky Horror Picture Show, um filme que conheço da frente para trás e ao qual recorro sempre nos momentos de maior depressão para me elevar um pouco o moral. Até o meu ultraconservador cunhado, o Donald, fora a nossa casa para admirar aquele esplêndido filme de culto. Contudo, Mohammed mostrou-se estarrecido; retraía-se e contorcia-se no seu lugar, até que finalmente se levantou e saiu da sala num passo brusco, dizendo que não era capaz de aguentar mais imundícies como aquela.
Por muito que tentássemos explicar-lhe a importância de se explorar a sexualidade, nada conseguia convencê-lo de que o filme não passava de uma mera desculpa para se promover a sexualidade. Afirmava que se os homens ficassem expostos a actos de bissexualidade, era muito possível que decidissem experimentar, concluindo então que lhes dava prazer, o que os levaria a transformarem-se em homossexuais. Na ocasião, teceu alguns comentários, impossíveis de repetir, sobre a espécie de gente como a minha família que se reunia para ver aquele tipo de cenas repulsivas.
A ira que as suas palavras me inspiraram levaram-me a preocupar-me comigo mesma, pensando que me encontrava capaz de o magoar fisicamente. Falar não servia de nada. Talvez um trapo enrolado à volta da sua cabeça o fizesse ver as coisas com algum bom senso. Mas bom senso era algo que ele era incapaz de vislumbrar, e todavia isso não o impedia de ver sexo em tudo - em situações onde o macho médio, de sangue ardente, teria grandes dificuldades em encontrar um mínimo de sexualidade.
Certa ocasião em que víamos uma bela encenação de O Lago dos Cisnes, a minha mãe perguntou-lhe se ele continuava a afirmar que não via qualquer beleza na arte.
- É muito bonito. isto é, se eles não tivessem estragado o espectáculo com o sexo.
- Sexo? Onde é que estás a ver sexualidade? - perguntei perplexa.
- Olha bem para a maneira como os homens estão vestidos. consegue-se ver os contornos do pénis e dos testículos protuberantes. Não me digas que isso não se deve ao facto de quererem que vejamos os seus órgãos genitais - disse ele.
- Os órgãos genitais?
- Esta representação não passa de uma desculpa para se verem partes do corpo que não deviam ser vistas em público. Para além de estarem semidespidos e de terem as mãos por todo o corpo daquelas mulheres, sentindo os seus seios e apalpando os traseiros delas. Os homens e as mulheres não devem tocar-se a menos que sejam casados, tu sabes isso muito bem.
- Suponho que a seguir vais dizer que pessoas de sexos opostos não deviam poder dançar juntas - atalhei, tendo- me esquecido por completo de que ele proibira as saídas para irmos a discotecas de deboche.
Tu nunca dançaste com um homem desconhecido, pois não? Muitas vezes - respondi, rindo-me à socapa.
- Pois bem, é coisa que nunca mais terás ocasião de repetir. Não consentirei que a minha mulher se comporte como uma rameira - acrescentou, com a cor a subir-lhe às bochechas.
Ele só podia ter estado na brincadeira; ninguém poderia levantar objecções a dançar-se. Mas não estava. Fiquei ciente disso numa altura em que ele folheava um álbum de fotografias e deparara com uma onde eu dançava no jardim com Charlie, um rapaz que conhecia desde os meus vinte anos, desde que ele tinha sete anos e frequentava a Academia dos Dragões com o meu sobrinho mais velho, Nader. Era por de mais evidente que eu tinha mantido uma relação com Charlie, disse-me Mohammed. Não havia maneira de lhe fazer ver as coisas de forma sensata.
A situação não melhorou em nada quando Charlie apareceu durante o nosso primeiro jantar em família. A minha mãe e Mahshid não conseguiam compreender o porquê do mauhumor de Mohammed durante esse jantar festivo. Tal como não entendiam o mal-estar que eu mostrava perto de Charlie, o qual, tendo passado grande parte da sua infância com a nossa família, agia de forma tão afectuosa como sempre fizera. Sentia-me num tal estado de confusão que nem sequer me ocorreu que o meu marido não era capaz de compreender uma única palavra do que Charlie dizia enquanto recordava os dias folgazões de brincadeiras de Verão no meu MG Midget. Nesses tempos constituíamos uma equipa, Nader, Charlie, Nick, Mike, Fergus, Dom, Sally, Sarah e eu própria juntamente com uma mão-cheia de outros rapazes que frequentavam o St. Edward's. Eu gostava de todos eles sem excepção, mas eram apenas jovens treze anos mais novos do que eu.
Mohammed era incapaz de ver isso; actualmente, eram homens e eu tinha tido a oportunidade; consequentemente, devia ter acontecido alguma coisa. Por que motivo é que tínhamos feito tanto alarido por causa do livro que Charlie escrevera, que ainda não fora publicado e cujo tema eram os anos que ele passou no Japão, se ele nunca tinha sido meu amante? queria saber Mohammed.
- Ninguém mencionou nenhum dos seis livros que Said escreveu, mas vocês todos não se fartaram de falar do que este rapaz escreveu.
- Exactamente! - guinchei-lhe mais tarde no quarto. - Este rapaz! Estejovem rapaz no limiar da sua carreira! Foi precisamente por isso que fizemos tanto alarido. para o encorajarmos e para lhe mostrarmos o nosso apoio.
- Por que razão é que haveriam de querer mostrar apoio a um homem que não vos é nada?
- Não vale a pena continuar com este assunto - pus fim à conversa, conformada com o facto de nunca vir a ser capaz de lhe explicar que pode existir uma amizade sã sem a presença de actos sexuais.
Voltámos a encontrar Charlie em casa de Mahshid. Desta vez Mohammed procurava indícios enquanto eu evitava qualquer possível contacto com o meu amigo, o que não era nada fácil dado que o seu estado de espírito era de nostalgia, tendo passado o serão a relembrar histórias de como tínhamos pintado a manta por toda a cidade. Cheguei ao extremo de me sentir pouco à vontade ao beijar Nader e o meu outro sobrinho, Cyrus. Charlie, um rapaz doce e muito querido, continuou a dar largas às suas recordações, falando das deslumbrantes calças de licra dourada Lurex e dos tops colados à pele que eu costumava usar. Eu relembrava o quanto nos tínhamos divertido em comparação com o pesadelo por que estava a passar com Mohammed, que entretanto observava todos os nossos movimentos. Nader e Cy exibiam uma expressão divertida à medida que a história ia sendo cada vez mais exagerada.
Uns quantos conhaques puros, uma nova descoberta para Mohammed, e começou a amansar entrando na atmosfera de folgança própria da festa, deixando-me em paz para me poder sentar a ouvir as filhas adolescentes de Corol, que contavam histórias rindo-se a bandeiras despregadas. Estavam todas um tudo-nada tocadas. O perigo pareceu ter passado, Mohammed não tinha virado a mobília de pernas para o ar por eu falar com Charlie, e quando chegámos a casa ele cambaleava todo contente.
- Nunca mais iremos a nenhuma festa - anunciou ele abeirando-se da cama num passo pouco firme.
Porquê, minha doçura? Dói-te a cabeça? - perguntei trocista.
- Sinto-me agoniado - respondeu-me.
- Queres que te vá buscar alguma coisa? Um balde onde possas vomitar ou qualquer
coisa que te acalme o estômago?
- Estou enjoado com o comportamento das pessoas que estiveram na festa, e sinto vergonha por ter participado - explicou ele.
- Que comportamento? - perguntei cada vez mais intrigada.
- É aberrante. homens e mulheres juntos a embebedarem-se e a falarem de baboseiras uns aos outros. Nunca mais podemos ir a lugar algum onde sirvam bebidas alcoólicas. A partir de agora só beberemos quando estivermos a sós.
- Devemos ter estado em festas diferentes. Eu não me dei conta de nenhuma conduta
reprovável - ripostei com brusquidão.
- Eu fui obrigado a dar um beijo de despedida às raparigas que lá estiveram; não é apropriado. Antes de te conhecer, nunca tinha tocado numa desconhecida. Agora sou forçado a apertar-lhes a mão e a beijá-las.
- Mas quem é que te forçou? - perguntei, mas ele já tinha partido para a terra dos sonhos.
Na manhã seguinte eu disse uma piada acerca dos comentários dele, justificando-os por ele se ter embriagado.
- Mas eu estava a falar a sério. Essa, minha querida, foi a última festa em que esti veste presente.
Até então, eu agarrara-me àquela relação como a uma morte sombria, receando perder a minha última oportunidade de ser parte integrante de um casal, mas até isso perdera todo o seu atractivo. Tinha deixado de gostar de ser parte do que quer que fosse; desejava ser livre de ir e vir como muito bem me apetecesse. Fazíamos uma corrida em passo moderado quando Mohammed voltou a dizer-me que decidira que tínhamos de ir viver para o Irão. Afirmava que não era capaz de suportar viver tão longe dos filhos, para além de não ver qualquer maneira de poder suportar a família que tinha no Irão se viesse viver connosco em Inglaterra. Em seguida explicou-me que não se conformava com o facto de ter de viver em minha casa; queria viver numa casa onde a sua palavra fosse lei.
- Quero ir imediatamente. O que é que eu vou fazer quanto ao dinheiro de que preciso para a minha fábrica? Não é aqui que vou conseguir arranjá-lo. Já estive muito tempo ausente do meu emprego. Eles só me deram duas semanas de férias. Se eu perder o meu emprego, isso quer dizer que nunca conseguirei arranjar o dinheiro de que necessito - mentiu ele.
Eu desconfiava que ele tinha faltado ao emprego durante mais de dois meses antes de termos partido do Irão. Ou tinha sido despedido ou deixara o emprego para viver à minha custa; ou então o seu trabalho era estar comigo.
A desconfiança é uma coisa terrível: ser impossível confiar, depender ou acreditar naqueles que nos são mais chegados e queridos. Talvez aquilo fosse um legado da vida de duplicidade que os iranianos haviam levado até serem conquistados pelo islamismo - zoroastrianos em privado e muçulmanos em público. Fomos evoluindo numa raça que oculta os seus sentimentos mais íntimos. O xá encorajara esta vida dupla ao transformar toda a nação nos que espiavam e nos que eram espiados.
Aqui estava eu, sem saber se aquele homem que partilhava a minha cama era o meu marido e amante ou um informador que um dia não hesitaria em me atraiçoar a mim ou à minha família. Estaria ele ali com o intuito de ter uma vida em comum comigo, ou com o objectivo de descobrir o paradeiro do ministro, do general e muitos outros que se mantinham ocultos e junto dos quais eu poderia levá-lo? O amor, da forma que eu o entendia, era inexistente, do que me apercebia agora. Não existia qualquer desejo de partilhar, e eu não era respeitada como pessoa que era. A única coisa que ambas partilhávamos era a minha conta bancária.
- Estás disposto a ficar se eu te prometer pagar todas as contas, se te comprar uma boa casa onde vivamos só nós dois, e se comprar os produtos alimentícios e cozinhar todas as refeições? Sentir-te-ás satisfeito se eu enviar dinheiro a Sepideh todos os dias? De quanto é que ela precisa? Diz-me. Achas que cem libras por semana será o suficiente? E que tal trezentas para nos certifcarmos de que não lhe falta nada? - gritei-lhe enquanto ele contornava o lago onde os patos nadavam nos jardins da universidade.
- Eu nunca aceitei um sópence de ti! - vociferou quando uma senhora que passeava com o seu cão passou apressadamente por aqueles dois lunáticos estrangeiros que em pleno parque gritavam um ao outro a plenos pulmões.
- Quando é que alguma vez pagaste o que quer que fosse para contribuir para todas as refeições que cozinhei para ti e para os teus amigos? Quando é que me reembolsaste pelo dinheiro que te emprestei para arranjares o teu carro? Aonde é que foste buscar essas roupas que usas todos os dias, sem esquecer o dinheiro para a viagem para Inglaterra? Qual foi a última ocasião em que pagaste alguma coisa? - Naquele momento, desci tão baixo quanto me era possível.
- Metes-me nojo. Só pensas no teu dinheiro - retorquiu ele desabrido, girando sobre os calcanhares e começando a dirigir-se para casa.
Ele tinha razão: o meu comportamento era reprovável. A minha mãe ter-se-ia sentido chocada se me ouvisse mencionar o assunto do dinheiro; não era próprio de uma senhora, para além de ter sido uma atitude ordinária da minha parte.
Nessa noite dormimos separados e na manhã seguinte, quando despertei, constatei que sua alteza saíra para assistir sozinho às celebrações do Primeiro de Maio. Senti-me amargamente desiludida e ofendida. Aquela era a minha terra, as minhas festividades, algo que eu compreendia e por que esperara com grande expectativa. E ali me encontrava eu abandonada em casa enquanto ele saía para se divertir sozinho.
Seria possível que ele passasse uns bons momentos?
Foi uma esposa muito furiosa com que ele se deparou ao fim dessa manhã enquanto bebia o meu café em pequenos goles entre os foliões que terminavam as festividades no restaurante Browns. Ir ao Browns no Primeiro de Maio tornara-se numa tradição de família, mas haviam passado dois anos desde que tive a possibilidade de participar, tendo pensado nessas manhãs com grande saudade nas noites de solidão que passei em Teerão quando o meu marido estava a fazer Deus sabia o quê com a sua outra mulher.
No caminho de volta a casa, acertámos o passo ficando um ao lado do outro. Mohammed virou-se para mim e brindou-me com aquele seu sorriso de "estás perdoada".
Tudo o que pretendo de ti é um divórcio - disse-lhe eú com aspereza.
Até à hora de nos deitarmos não trocámos palavra, até que me murmurou ao ouvido que se eu voltasse a dormir sozinha nunca me permitiria que o deixasse, mas se eu fingisse em frente da minha família, conceder-me-ia o divórcio que lhe pedi.
Os dias seguintes foram passados numa série de reconciliações e novas discussões. Primeiro dizia-me que não podia viver sem mim, para logo a seguir não lhe agradar a maneira como eu lhe falava. Num minuto eu era a sua única esperança, a sua última oportunidade de vir a ser feliz, para no seguinte dizer que eu era uma mulher ignorante que não hesitaria em envergonhá-lo em frente da sua família. Na realidade, eu não era nada - num turbilhão entre a esperança e o desespero -, era uma marioneta que dançava ao som de qualquer música do momento. Já não tinha tempo nem paciência para desempenhar o papel da boa esposa, mas tão-pouco tinha a força de vontade suficiente para fazer valer os meus direitos e resistir ao estilo manipulador de Mohammed.
Eu precisava de um lugar seguro onde pudesse dormir e reflectir, tentando encontrar a pessoa que desejava vir a ser.
A maioria das nossas discussões focavam-se na versão dele do islamismo, e o papel desta religião num mundo moderno. Houve uma manhã em que passámos as três primeiras
horas do dia a discutir os méritos das pessoas se cobrirem durante as namaz. Não faço a mais pequena ideia sobre o que nos levou a abordar este assunto; todavia, recordo-me claramente de ter ficado furiosa quando Mohammed disse que nenhuma mulher poderia ser salva caso não dissesse as suas namaz coberta de forma apropriada, de maneira a que nenhuma parte do seu corpo fosse visível além do rosto.
- Mas por que razão é que qualquer mulher terá de se cobrir se estiver sozinha em sua casa? Não podes servir-te do argumento de que tem de estar protegida do perigo de possíveis violações sempre que estiver a rezar na privacidade do seu próprio quarto - contrapus.
- Quando está a rezar, qualquer mulher é vulnerável. é possível que um homem entre furtivamente no seu quarto, dê com ela e a possua enquanto estiver a orar - argumentou ele.
- Não há dúvida de que tens uma mente muito porca - retorqui. - Será que tudo tem de se concentrar na possibilidade de qualquer acto sexual?
- O teu mundo é que é asqueroso. As mulheres são todas putas à disposição de qualquer um que as queira - ripostou.
Realmente, eu não tinha energia para voltar a abordar aquele assunto mais que estafado, e por isso voltei à questão das orações.
Digamos que é impossível alguém entrar no quarto; sendo assim, por que motivo é que a nossa hipotética mulher tem de se cobrir?
- Porque se encontrará sob o olhar de Deus. O seu sexo deve ser coberto.
- Foi Deus quem a criou. Ele não se sentirá excitado por ter visto o seu corpo, não te parece? Por amor de Cristo, faz qualquer coisa para alargar essa mente pequena que tens. Tenta olhar para lá do teu mundo estúpido e limitado. Usa o cérebro. Estás sempre a dizer que queres aprender e melhorar. Pois bem, começa por aí, começa por pensar por ti próprio - acrescenteiexasperada.
- Não sou eu que defendo esta maneira de pensar. O doutor Shariati escreveu que.
- Isso significa que ele era um idiota tão grande como tu - atalhei, virando-lhe as costas com a intenção de o deixar a dormir sozinho.
Existia um abismo enorme entre mim e este homem que presentemente representava a cultura a que eu quisera regressar. No entanto, ele não tinha nada a ver com a Pérsia que eu amei e respeitei, da mesma forma que não tinha a mínima afinidade com o mundo onde vivíamos e no qual os nossos filhos, caso os viéssemos a ter, teriam de viver. Tinha de existir uma maneira que permitisse aos povos do Oriente terem a sua própria individualidade, honrando a sua cultura ao mesmo tempo que continuariam a fazer parte da humanidade universal, desenvolvendo-se e prosperando no seio de uma sociedade contemporânea. Eu era absolutamente incapaz de começar sequer a compreender um mundo onde seria forçada a esconder a minha nudez dos olhos de Deus. Nada daquilo fazia o mínimo sentido: aqueles eram preconceitos dos homens e não as palavras do verdadeiro Deus, qualquer que fosse a forma por que optássemos para o venerar.
Num dos raros dias em que nos falávamos, Mohammed expressou o seu desejo de visitar Londres - bem... o que ele queria ver eram os grupos da oposição iraniana a discursarem no Speaker's Corner', além de também querer ver a embaixada iraniana. Era sábado, mas mesmo assim insistiu em que fôssemos, apesar de Mahshid o ter advertido de que não haveria nada digno de ser visto no parque até domingo.
Mohammed portava-se como uma criança que tivesse ido a um parque de diversões.
No comboio, quis sentar-se junto dajanela. Inspirava ternura.
Caminhávamos nós pela Kensington High Street abaixo - ou Pequena Teerão como nós, os persas, lhe chamávamos - quando o homem que seguia à nossa frente foi chamado por um gesto de um casal que se encontrava do lado de fora do Bakers.
- Abbas Agá - chamou a mulher emfarsi. - Abbas Agá, que maravilha ver- te de novo. - Pouco depois os três trocavam saudações e travavam uma conversa amena. Mohammed parou para ler a faixa que o casal pousara sobre o chão.
- Pertencem à oposição. Vamos falar com eles - sugeriu.
Enquanto esperávamos, a conversa amena deu lugar aos insultos e a mulher de figura miúda que usava um casaco branco muito encardido, e que tinha o pior trabalho dentário de estética que me fora dado ver, começou a gritar com o mesmo Abbas Agá que saudara com tamanho respeito apenas alguns momentos antes.
- Vocês traíram-nos, não passam de servos dos ingleses! - gritava ela.
- Ao contrário de si, minha senhora, nós fizemos efectivamente alguma coisa pela nossa nação! Vocês são apenas um motivo de embaraço, replicou Abbas Agá aos gritos.
O companheiro da mulher, que mais parecia um pau com um metro e oitenta de altura, e um bigode com noventa centímetros de largura, e que tinha uma tonelada de sebo espalhado pelos compridos dedos parecidos com uma aranha e por baixo das unhas, naquele momento juntou a sua voz à competição de gritos, acusando Abbas Agá de ser um lacaio dos ingleses.
- Nós combatemos os britânicos desde sempre. Fomos nós que derrubámos o governo de Thatcher, e também fizemos com que a Inglaterra mergulhasse nesta recessão - afirmava a mulher. - Nós destruímos a Grã-Bretanha enquanto vocês lhes comiam do rabo!
Um recanto em Hyde Park, Londres, onde qualquer pessoa pode fazer uso da palavra, dizendo de sua justiça. (N. da T.)
- Deixe-me em paz, você é maluca. Não estou para me desgastar com imbecis como vós os dois! - vociferou Abbas Agá. Enquanto ele entrava nos armazéns, a mulher continuava a arengar e invectivá-lo.
- Quem é que você apoia? - perguntou Mohammed à mulher.
- Nós não temos dirigentes. Apoiamos unicamente uma Pérsia ariana livre - respondeu o homem.
Entretanto, a mulher apresentou-se como Gity, enquanto o homem disse chamar-se Hamid. Ambos eram zoroastrianos e empenhavam os seus esforços com o objectivo de remover o "estigma do islamismo do sagrado solo ariano do Irão". Por outras palavras, eram doidos varridos. De acordo com o que Gity dizia, os britânicos encontravam-se por detrás de todos os males que afectavam o mundo e ela, sozinha, conseguira destruir o poder da Grã-Bretanha. No entanto, a Inglaterra ainda tinha uma carta escondida.
- Eles trouxeram esse Rafsanjani para nos enganar, pretendem que pensemos que as coisas estão melhores, manobras que se destinam a que queiramos regressar ao Irão - continuou ela mostrando os seus dentes cujo trabalho de estética tão atamancado era, gesticulando com as suas mãos sapudas. - Depois de termos voltado todos para o Irão, eles largam uma bomba atómica é eliminam-nos da face da Terra. Por que outro motivo é que pensam que eles mantiveram Saddam no poder? Estão a fazer tudo isto só para nos destruíremacrescentou num discurso bombástico; os seus olhos de um cinzento-amarelado estavam esbugalhados.
- Sendo assim, por que é que está aqui? - perguntei, recordando- me do comentário de Abbas antes de lhe ter voltado costas, tendo-lhe dito que o orgulho dela não era assim tanto que a impedisse de procurar santuário em Inglaterra.
- Há vinte anos, o xá deu ao Reino Unido vinte mil milhões de dólares por este país ter acolhido os refugiados iranianos. Só nos estamos a aproveitar do dinheiro que legitimamente nos pertence - explicou-me ela.
- Quem é que você apoia? - voltou Mohammed a perguntar, o que já fizera por diversas vezes. - Onde é o vosso quartel-general? Quantos filiados é que têm? - continuou ele.
Comecei a ficar irritada. O que é que aquilo interessava? Ele devia falar com eles sobre aquilo que tinham dito e não tentar obter pormenores que acrescentaria ao Dossier de Factos e Números dos Intelectuais. Ou talvez quisesse passar a outrem aquelas informações - mas era inegável que já existiam espiões em número suficiente na embaixada; não tinham necessidade de enviar alguém de Teerão que nem sequer sabia falar inglês.
Ao fim de pouco tempo Mohammed cansou-se de procurar iranianos; dirigimo-nos para Leicester Square onde almoçámos num restaurante mexicano, após o que fomos ao Museu Madame Tussaud. Ele adorou os trabalhos em cera, tendo tirado uma fotografia ao lado do presidente Clinton, e outra com Yasser Arafat.
Em seguida fomos a Covent Garden, um local que, segundo ele, não tinha nenhum interesse. Um dos animadores de rua, um misto de malabarista e músico, aprontava-se para iniciar a sua actuação; juntámo-nos à pequena multidão que começara a rodeá-lo. Fiquei convencida de que Mohammed tinha começado a aprender a divertir-se. Sorria ao olhar para as momices do homem, com a respiração suspensa ao ver as suas habilidades. Foi então que o desafortunado artista de rua pediu um voluntário de entre a assistência, agarrando no braço de uma mulher jovem bastante atraente que usava uma mini-saia. Quando ela já se encontrava na clareira formada pela multidão, ele beijou-a na face e de um momento para o outro passei a estar ao lado de um defensor da moral.
- Vamo-nos embora daqui para fora. isto é um autêntico viveiro de putas - disse o meu esposo indignado enquanto eu o persuadia de que iria parar à cadeia se acorresse em defesa da virtude da donzela.
Pouco depois o meu devoto marido muçulmano descobriu um bar onde passou o resto do dia a emborcar cerveja mexicana para acalmar a irritação que sentia. Foi um islamita muito alegre que eu conduzi de regresso a Oxford ao fim desse dia.
Nessa noite adverti-o de que se se atrevesse a tocar-me com um só dedo, eu não hesitaria em chamar a polícia. No dia seguinte informou-me uma vez mais que ia voltar ao Irão. Repeli as suas tentativas de me beijar e tentei fazer as pazes nessa noite, e no dia seguinte fomos ao Serviço de Estrangeiros na Croydon, para reaver o seu passaporte.
Já no comboio que nos levaria de regresso a Oxford, Mohammed disse-me que eu o ajudara muito no assunto do passaporte, pelo que se sentia muito agradecido. Como recompensa, tencionava continuar a olhar pelos meus assuntos no Irão, tratando com os advogados que tentavam reaver o meu dinheiro.
- Muito obrigada, mas eu posso muito bem tratar dos meus assuntos financeiros a partir de agora. - É possível que eu seja estúpida, mas não a tais extremos.
O nosso casamento chegara ao fim, o que eu sabia. O que mais desejava era que ele se fosse embora e, quanto a mim, queria um pouco de tempo para me recuperar antes de começar a pensar no que faria a seguir. No entanto, e para já, ele continuava aqui, continuava a respirar e a resmungar junto de mim.
No dia seguinte, Mohammed só me dirigiu a palavra uma vez, para me pedir que fosse às compras com ele, uma vez que pretendia levar presentes quando regressasse ao Irão. Fizemos as compras em silêncio enquanto ele comprava prendas num valor que excedeu em muito cento e cinquenta libras - em grande parte vestuário feminino - que foram pagas com o meu cartão de crédito.
Ele podia comprar o que bem lhe apetecesse, desde que se pusesse a andar a toda a velocidade. Quando deu as compras por terminadas, eu sentia-me de tal maneira encolerizada que o deixei ir de táxi sem o acompanhar; depois de ter passado mais de dois meses em Oxford, ele continuava a não conhecer o trajecto de cinco minutos desde o centro da cidade até à casa da minha mãe. Depois de ele se ter ido embora, a irritação deu-me para fazer compras só para mim. Como resultado, sou a orgulhosa proprietária de um pijama cor-de-rosa - um tamanho abaixo do meu - três pares de sapatos MS, vinte pares de cuecas da mesma origem, e mais soutiens do que dias da semana.
Mohammed tinha passagem reservada num voo que partiria uma semana depois. Mas à medida que a data da partida se ia aproximando, ele começou com investidas afectuosas e eu voltei a entrar em estado de pânico, perante a perspectiva do dia em que teria de regressar ao Irão, onde uma vez mais estaria sozinha.
- Vem comigo - disse-me com lágrimas nos olhos. - Eu não partirei sem ti, estás bem ciente disso, não é verdade? Diz à tua mãe que regressarás ao Irão comigo - suplicou-me; senti que o sangue me gelava nas veias. Pela primeira vez na minha vida, tive medo do futuro.
- Sabes muito bem que não posso ir. Ainda tenho de ir à última consulta por causa das hemorróidas - argumentei. - Já pagámos a operação e ainda não estou completamente curada.
Com relutância, ele concordou em partir sem mim.
Quando chegares ao Irão já os advogados me terão entregue o teu dinheiro - assegurou-me ele.
No dia em que ele partiu, chorei durante todo o percurso de Heathrow a Oxford. Mas eram lágrimas de alívio que eu chorava.
Sabia que jamais voltaria à cama de Mohammed, mas, por outro lado, sentia-me incapaz de enfrentar o burburinho e o escândalo que um divórcio provocaria. Mas para minha grande surpresa, foi ainda com mais alívio do que o meu que a minha família tomou conhecimento da minha decisão em abandonar o meu marido. Said não esteve com meias-palavras ao dar a sua opinião com respeito ao casamento que eu fizera, enquanto a minha mãe me disse para não pensar, nem por um momento, no que as pessoas pudessem vir a dizer. Apesar desse apoio, aquela separação não foi fácil. Havia dias em que eu me mostrava resoluta, ousada e sanguinária, para logo a seguir me sentir insegura e vacilante.
Dia sim dia não, Mohammed telefonava-me para me perguntar quando é que estava a pensar regressar ao Irão; eu continuava a iludi-lo com a desculpa das minhas hemorróidas que me doíam, situação que, recordei- lhe, não teria acontecido se não fosse ele.
- Detesto ter de te pedir, mas achas que me podes enviar algum dinheiro? - perguntou-me Mohammed. - Há dez meses que não pago as prestações da casa de Teerão, e se não pagar perderei a casa. Caso isso venha a suceder, Sepideh será obrigada a viver comigo.
- Se isso acontecer não faz mal, foste tu quem disse que iríamos para a Índia onde viveríamos todos juntos - repliquei uma vez que o número de mulheres com quem ele pudesse dormir era assunto que deixara de me interessar.
O telefonema seguinte trouxe outra abordagem. Desta feita, ele precisava de quinhentas libras para salvar a fábrica, alegando que sem isso nunca viria a estar em condições de me sustentar.
- Vais ter de passar o resto da tua vida a sustentar-me - redarguiu cinicamente.
- O prazer será todo meu, sem esquecer que é a minha obrigação, querido - retorqui. Naquela altura, eu devia ter-lhe dito que queria pôr fim ao nosso casamento, mas as coisas não são assim tão fáceis, até mesmo quando se deseja ao nosso marido apenas mal e sofrimento. Tinha-me transformado numa pessoa má, contemplando com prazer a possibilidade de Mohammed vir a ser apanhado, oh, bênção, numa máquina de processamento de salsichas. Qualquer coisa que lhe causasse tantos danos ao corpo quantos ele causara à minha mente.
Somente agora é que eu tinha a percepção do quão maravilhoso era uma pessoa não ter de se couraçar de cada vez que alguém pousa uma mão em nós, não fosse dar-se o caso de ele estar com apetites de beliscar. Que magnífico era não recear que o marido se aproximasse por detrás de nós, empurrando-nos para o chão - uma mera brincadeira afectuosa.
- Ainda não fui à consulta do especialista - menti a Mohammed.
- Os advogados disseram-me que não me podiam dizer nada sobre o teu dinheirocomeçou ele a dizer. - Tens de telefonar para lhes dizer que eu estou a olhar pelos teus assuntos. Disseram que tinham instruções para só falarem contigo ou com a tua mãe. Dás-te conta do quanto isso é insultuoso e degradante para mim, perante os meus amigos e família?
Finalmente, os da Fundação para os Oprimidos haviam encontrado um pouco de dinheiro, estando dispostos a largar uma fracção do que espoliaram. Depois de o dinheiro se encontrar em segurança, longe do alcance de Mohammed, informei-o de que já tinha sido pago.
No dia seguinte recebi um telefonema de Reza.
- Mohammed prometeu pagar uma comissão de dez por cento ao nosso amigo que te apresentou aos advogados - disse-me ele.
- É a primeira vez que ouço falar desse assunto - repliquei extremamente irritada embora já nada me surpreendesse.
- Ele não te disse nada? Eu disse-lhe que pusesse isso por escrito, mas ele garantiu-me que pagaria, alegando que era nosso amigo e que tu eras mulher dele, por isso, não precisávamos de nada por escrito - acrescentou Reza.
- Lamento muito, Reza, mas ele não me disse nada. Seja como for, quando fomos ao escritório dos advogados ele era só um amigo lá do trabalho, não tinha o direito de vos fazer qualquer promessa - aleguei servindo-me da desculpa que ele utilizara por ter aceitado a sua quota- parte da comissão dos honorários que paguei aos advogados. - Se o teu amigo queria uma fatia, ele devia ter falado comigo directamente. Deveria ter mencionado esse aspecto quando me levou para negociarmos a percentagem que caberia aos advogados - insisti.
- Mas ele confiou em Mohammed - argumentou Reza.
- Pois bem, da próxima vez certamente que serás mais previdente - disse eu com serenidade, apesar da raiva que ia dentro de mim. - Mais ainda, quem é que no seu perfeito juízo acederia a pagar dez por cento a troco de negociações que tiveram por finalidade reduzir os honorários em oito por cento? Teria sido preferível que eu tivesse pago integralmente a conta dos advogados. - Não me restavam quaisquer dúvidas de que eles pensavam que eu era estúpida.
No dia seguinte, foi a vez de Mohammed que, uma vez mais telefonou-me do meu apartamento, uma conta de telefone que eu teria de pagar.
- Prometi dar-lhes dez por cento - insistiu.
- É uma pena, devias ter tido o cuidado de me perguntar se eu estava de acordo - repliquei.
- Tu eras a minha mulher; eu tinha o direito de falar por ti - alegou ele.
- Sendo assim, muito bem, paga-lhes tu os dez por cento - contrapus. - Vê uma coisa, eu posso ter sido estúpida, mas não sou assim tão idiota. Todos vós receberam a vossa fatia do dinheiro que paguei aos advogados. Se eu tivesse sabido que tu e os teus amigos recebiam uma percentagem sobre esses honorários, nunca teria permitido que tu negociasses o assunto por mim.
O meu querido marido e os meus pretensos novos amigos islâmicos estavam a tentar ludibriar-me; todo o seu apoio e ajuda tinham como finalidade extorquir-me algum dinheiro. Sentia-me francamente decepcionada. Não admirava pois que tão poucos iranianos confiassem nos seus concidadãos.
No que me dizia respeito, pensarei duas vezes da próxima vez que tiver algo a tratar com os meus conterrâneos, embora conheça muitos iranianos que são pessoas boas e honestas, e mais do que uns quantos vigaristas de outras nacionalidades. Era esta traição por parte de gente em quem eu depositava confiança que me magoava profundamente. Mas poderia eu recriminá-los? Como é que eu conseguiria imaginar o que é que uma pessoa faria se fosse pobre, sem quaisquer perspectivas de vir a ter uma vida melhor?
Senti-me tentada a enviar-lhes alguma coisa, mas em primeiro lugar queria o meu divórcio, assim, da próxima vez que Mohammed me ligasse, teria de me encher de coragem para lhe pedir a minha liberdade.
- Nunca! - foi tudo o que ele teve a dizer sobre o assunto. Todavia, tinha muito a dizer quanto à forma como se tinha arruinado financeiramente, a fim de poder estar comigo em Inglaterra, explicando-me que agora tinha a obrigação de lhe dar dinheiro para a sua subsistência.
- Deixa-me ver se consigo arranjar algum dinheiro - disse-lhe continuando a sentir- me culpada por razão nenhuma.
Os meus sentimentos de culpa depressa deram lugar à raiva quando Mrs. Mo me telefonou, para me dizer que o condomínio do prédio onde eu vivi lhe entregara a minha conta de telefone. Antes de deixar o Irão, paguei a conta telefónica, a qual totalizara vinte mil tomans por um período de seis meses - a maior parte das chamavas relacionavam-se com o meu trabalho. Desde que Mohammed havia regressado ao país a minha conta ascendera a quarenta e oito mil tomans, em telefonemas não só para mim em Inglaterra, mas também para o irmão na Suécia, assim como telefonemas para, só Deus sabia quem, nos Estados Unidos e França. Mrs. Mo também me fez saber que o meu aparelho de vídeo tinha desaparecido do apartamento.
De facto, Mohammed perguntara-me se podia emprestar o aparelho de vídeo a Shirazi durante o feriado do Ano Novo Muçulmano, no entanto, ele disse-me que Shirazi tinha devolvido o vídeo, assim como os vinte filmes que ele alugou ao longo de dez semanas, os quais foram debitados na minha conta. A conta do aluguer das cassetes de vídeo também tinha ido parar às mãos de Mrs. Mo - duzentos e cinquenta tomans por semana, por cada um dos filmes, o que perfazia o montante inacreditável de cinquenta mil tomans, o correspondente ao salário de Shirazi durante cinco meses. E, à taxa de câmbio dessa altura, uma conta igualmente excessiva no valor de duzentas libras que eu teria de saldar, para já não mencionar o constrangimento que senti perante Mrs. Mo. Se adicionarmos o custo do aparelho de vídeo que levou sumiço (um produto ilegal mas que não obstante se podia comprár no Irão), teremos o equivalente a quatrocentas libras.
Ensinaram-me a ser generosa, para além de me incutirem que era de muito mau gosto mencionar o que se dispendesse em alguém, mas sentia-me tão encolerizada e magoada pelas exigências de Mohammed que pensava constantemente, dia e noite, no dinheiro que ele me extorquiu, tendo o descaramento de ainda me pedir mais.
Uma coisa de que eu estava absolutamente segura, era que não me podia arriscar a voltar ao Irão até ter obtido a minha liberdade. Havia noites em que me encontrava deitada em segurança na minha cama acolhedora em Oxford, sentindo saudades do empolgamento, que era enfrentar a possibilidade da morte de cada vez que apanhava um táxi nas ruas de Teerão.
Estava mesmo disposta a voltar a cobrir o corpo com o hejab apenas para poder percorrer as avenidas ladeadas de árvores da zona Norte de Teerão, ainda que só uma vez mais, cheirando os aromas que pairavam no ar, admirando as vistas do Médio Oriente. Mais do que nunca, desejava poder ajudar aquele país a encontrar o seu lugar entre a nova comunidade internacional, de molde a que os valores do passado se equilibrassem com os progressos do século xx.
Mas eu jamais poderia voltar a abdicar do controlo sobre a minha vida e acções privadas, colocando-as nas mãos de outra pessoa. Nenhum marido nem estado ditariam como é que eu me vestiria, como falar e, muito especialmente, como fazer amor. Nunca mais poderia tentar aceitar uma moralidade em que seria recompensada caso matasse Salman Rushdie, mas que me puniria com setenta chicotadas por lhe apertar a mão.
Era evidente que Mohammed não estava disposto a conceder-me o divórcio, assim, recorri à embaixada iraniana em Londres. Sim, concordaram em que eu tinha sido enganada. Sim, tratava-se de um casamento ilegal, uma vez que se realizara sem o consentimento do meu pai, e Mohammed não me dissera, nem tão-pouco ao molá, que já contraíra um primeiro casamento. Sim, era ilegal o dito molá não ter registado o casamento na minha certidão de nascimento. Sim, mas apesar de todas estas irregularidades, eu continuava casada aos olhos da lei e, sim, ele tinha fundamento para se recusar a dar-me o divórcio. Sim, se eu obtivesse um divórcio ao abrigo da lei britânica, eles registá-lo-iam. Mas não, eles não registariam o meu casamento - o que era indispensável antes de dar entrada de um pedido de divórcio em Inglaterra.
E por que não?
Porque não constava da minha certidão de nascimento, ao que se acrescia a falta da autorização do meu pai concordando com o matrimónio. Sendo assim, legalmente, estaria eu casada?
Oh, sim, sem dúvida alguma que era uma mulher casada. Nesse caso, como é que eu poderia obter um divórcio?
Faça com que o seu marido se divorcie de si. Todavia, aconselho-a a regressar para junto do seu marido - disse-me o homem pelo telefone.
Na hipótese de eu conseguir um divórcio britânico e este fosse registado na embaixada, isso significava que passaria a ser livre?
Sim e não. Ao abrigo da lei internacional eu ficaria divorciada, tendo a liberdade de poder voltar a casar em qualquer parte do mundo, à excepção do Irão, país onde o divórcio não teria validade de acordo com as leis islâmicas do divórcio, e portanto, embora ficasse fora do controlo de Mohammed, não teria liberdade para contrair matrimónio outra vez.
Talvez um pouco de coerção no Irão surtisse efeito. Enviei o meu certificado de casamento a Minu, pedindo-lhe o favor de ir falar com o molá, convencendo-o a anular o casamento. Claro que eu queria que aquele assunto ficasse só entre nós duas.
Antes que alguém pudesse ter proferido a palavra D. I. V. Ó. R. C. I. O. já metade da população de Teerão estava a par de todos os pormenores do meu desastroso casamento, se bem que nada estivesse a acontecer para lhe pôr fim.
Durante as conversas frequentes que tínhamos ao telefone, Homa dava-me a impressão de estar a sentir-se cada vez mais deprimida, enquanto tentava fazer tudo por toda a gente. Os seus próprios males agravavam-se ao tentar acudir a Maman Joon, a qual se encontrava em Damavand, embora lhe ligasse constantemente para se queixar da mulher do jardineiro, a qual, dizia a Maman Joon, tentara envenená-la. A minha tia tencionava ir a Teerão para deslindar aquela situação, tendo-me prometido que retiraria tudo do meu apartamento.
- Sinto-me aterrorizada com a perspectiva de ir a Teerão - confiara ela à minha mãe.
- De todas as vezes que telefono, rezo para que a mãe não esteja com prisão de ventre, e que não tenha assustado outra criada, ao ponto de ela se ter despedido. Também rezo para que Nastaran não tenha sido grosseira para com ninguém, dando origem ao início de outro feudo familiar.
Estávamos no princípio de Outubro de 1993 quando o telefone começou a tocar na nossa casa em Oxford, às sete horas da manhã.
O que é que aconteceu à minha mãe? - perguntou Shirl do outro lado da linha, num estado de histerismo evidente, enquanto a minha mãe pestanejava sonolenta.
O quê? - perguntou esta.
- Sucedeu alguma coisa à minha mãe, mas ninguém me diz o que é que foi - gritou ela.
- Não, é impossível que seja Homa. Talvez seja a minha mãe. A minha mãe morreu?
perguntou a minha mãe por sua vez.
Não, foi a minha mãe - gemeu a mulher numa grande aflição.
Talvez se trate de Ghodsi; é possível que ela tenha tentado matar-se outra vez. Não tem nada a ver com Ghodsi. O meu marido disse-me que aconteceu qualquer coisa terrivel à minha mãe, mas não teve coragem para me dizer o quê. Tiazinha, eu sei que a senhora sabe. Por favor, conte-me o que sucedeu - pedia ela aos gritos.
- Juro-te que não recebi notícias nenhumas. Se tivesse acontecido alguma coisa a Homa, eu já teria sido informada. Não te preocupes, não há motivos para aflição; talvez ela tenha ido ao hospital para fazer exames por causa do sopro no coração - alvitrou a minha mãe que começava a desesperar.
Naquela altura, já Minu (a qual entretanto saíra do Irão estando a viver connosco) e eu estávamos no quarto da minha mãe. Quando esta desligou, foi-se abaixo. Ficou sem acção tremendo que nem varas verdes. Chamei Mahshid, após o que comecei a fazer telefonemas para Teerão, tentando descobrir o que tinha sucedido, enquanto Minu envidava esforços para tentar tranquilizar a minha mãe.
- Não ligues - pediu-me a minha mãe. - Não sou capaz de aguentar mais nada. Não quero saber nada.
Uma hora mais tarde, Shirl ligou confirmando que a sua mãe tinha efectivamente falecido. Acabara com a sua própria vida. Nessa mesma noite, enquanto a minha tia morria em Shiraz, houve uma explosão de grandes proporções que arrasou a casa onde o meu avô passou os seus últimos anos de vida.
Foram necessárias várias semanas para se descobrir tudo sobre as últimas horas de Homa - enfim, para se tentar encontrar algo que fizesse algum sentido.
Não sei bem como, eu imaginava que se conseguíssemos descobrir o que realmente aconteceu e o porquê, poderíamos alterar o rumo do sucedido ou impedi-lo. A morte de Homa era algo que eu não era capaz de compreender; só podia ser uma mentira ou um engano que se poderia aclarar.
Nessa manhã catastrófica de Outubro, Homa regressara à sua casa no Sul, enquanto Dada Jan tinha ido buscar Maman Jon a Damavand, a qual tencionava ir para Shiraz um pouco mais tarde nesse mesmo ano. Supostamente, Homa deveria juntar-se-lhe em Teerão onde tinham hora marcada na Embaixada Britânica a fim de obterem um visto. Mas quando Dada Jan e a Maman Joon chegaram a Teerão, homem e a casa dele tinham levado sumiço.
O meu tio herdara a casa de família aquando do falecimento do meu avô, o que ocorrera havia mais de quarenta anos. Não se tratava da residência que fora conhecida pelo nome de Palácio Pessian, uma propriedade que o xá Reza exigira que lhe fosse oferecida.
A família Pessian mudou-se para a sua nova residência, alguns anos antes da morte do meu avô. Não se haviam deslocado para longe, somente alguns metros mais abaixo na Avenida Palevi. Quando Dada Jan se aposentou bastante prematuramente - aos trinta e dois anos - começou a construir nos terrenos valiosíssimos ao longo dessa avenida. Depois de concluídos, alugou aqueles edificios por umas rendas insignificantes, a qualquer pessoa que lhe aparecesse com uma história triste. Por ocasião do incêndio, o estabelecimento ao lado da casa foi ocupado por um restaurante especializado em espetadas e comida pronta a levar. Não existia rede de abastecimento de gás, pelo que o arrendatário, o qual pagava de renda uns meros três mil tomans mensais por um estabelecimento que valia vinte vezes esse montante, insistiu com o meu tio para que o deixasse instalar o depósito de gás, que usava no restaurante, no seu jardim.
No dia em que Homa morreu, a rede de gás canalizado chegou ao troço de via que actualmente é conhecida pelo nome de Avenida Vali-e-Asr, pelo que o arrendatário do restaurante quis retirar o depósito de gás do jardim do seu senhorio. Tentou levar essa intenção a cabo colocando uma corda em redor do depósito, após o que fez passar a corda por cima do ramo resistente de uma árvore gigantesca, que se encontrava ao cimo de oito degraus de pedra que iam do jardim num plano mais inferior, e onde se situavam os alojamentos do pessoal doméstico, até ao caminho particular da fachada da casa. Em seguida, começou a puxar o depósito através dos degraus, um de cada vez. O atrito entre o metal e a pedra abriu um orifício no depósito, ao que se juntou uma faísca que provocou a combustão do gás que continuava no interior do enorme depósito.
As chamas começaram a lavrar por toda a vivenda, destruindo tudo o que encontravam pelo caminho.
Três dias depois, em Shiraz, Homa tinha passado o dia nos preparativos para a sua viagem a Teerão, viagem essa que a atemorizava. Tomou banho, após o que arranjou as unhas das mãos e dos pés. Em seguida, telefonou à neta mais nova, que vivia nos Estados Unidos, desejando-lhe um feliz aniversário. Mas a criança ainda não havia chegado da escola, e Homa prometeu que ligaria mais tarde. Em seguida, foi buscar um vestido que mandara fazer especialmente para essa viagem, ao que se seguiu uma ida ao cabeleireiro.
Nessa noite, o casal tinha ido a uma festa que estava a correr muito bem, até que o Gordo começou a troçar da viagem que Homa tencionava fazer a Inglaterra.
- Aqui limpas o rabo à tua mãe e farás exactamente a mesma coisa na Europaacrescentara ele com o intuito de a atormentar.
Nessa noite, quando Homa e o marido chegaram a casa começaram a discutir, de acordo com o que disse uma amiga que passava a semana em casa do casal. No entanto, existe um ponto por aclarar: alguns dizem que Homa desejava mudar-se para uma área melhor da cidade, culpando o marido por ter desbaratado a sua fortuna; outros dizem que ela pediu o divórcio ao que ele se rira, afirmando-lhe que jamais lhe concederia o divórcio, e que a impediria de viajar para os Estados Unidos onde iria visitar as filhas; enquanto outros afirmam que ela descobriu que ele era pai de uma criança que nascera de uma jovem mulher casada, a qual fora criada em casa do casal.
Antes de se ter ido deitar, Homa recebeu um telefonema da Maman Joon, que se mostrou preocupada ao ouvir a voz pouco firme da filha. Homa alegara que estava constipada, acrescentando que se iria deitar depois de tomar dois comprimidos. Entretanto, o marido saíra porta fora esbaforido quando ela tentou retomar a discussão, tendo a minha tia optado por ir para a cama.
Quando o Gordo regressou a casa, foi dormir para o sofá na sala de estar, a fazer fé nas palavras de Badri, a dama de companhia da minha tia e, de uma maneira geral, uma autêntica cabra. Na manhã seguinte, Homa não se levantou às seis horas como era seu hábito, contudo, ninguém se deu ao incómodo de ir ver se ela estava bem. Por volta das dez da manhã, a criada ficou preocupada decidindo acordar a sua senhora. Deparou com a minha tia, uma mulher magnificente, em estado de coma, rodeada por frascos vazios de comprimidos, juntamente com uma garrafa meia-vazia de vodca. Todavia, continuava com vida.
Em vez de a levar de urgência para o hospital, o Gordo chamou um médico, que era amigo da família, especializado em otorrinolaringologia, pedindo-lhe que a tratasse em casa. Quisera "salvar a face" evitando a vergonha de um suicídio. O que era um pouco forte de mais vindo de um homem que já estivera detido numa prisão islâmica sob a acusação de deboche; um homem cuja jovem mulher dera com ele na cama com uma criada conhecida pela sua aparência repulsiva: um marido que aproveitava todas as oportunidades para, dissimuladamente, meter a mão por baixo das saias das convidadas de sua casa, o qual era de tal maneira libertino que os familiares e amigos de Homa receavam ficar a sós com ele, não fosse o homem tentar alguma coisa.
Três dias mais tarde, Homa faleceu. A última entrada no seu diário, dizia: "Tomei alguns comprimidos. Ninguém deve ser culpado pelas minhas acções. Muito simplesmente, estou cansada de ser boa".
O desgosto que senti ao receber a notícia da morte de Homa cedo se transformou em cólera. A vida tinha-se tornado quase insuportável desde que perdemos Bahar. Como é que a minha tia pôde fazer uma coisa tão horrível e maléfica? Como é que ela foi capaz de acrescentar outra tragédia ao já longo catálogo de tragédias que se haviam abatido sobre nós? Eu sentia-me tão irada com ela, tão inacreditavelmente encolerizada. É estranho sentirmos cólera contra uma pessoa morta, alguém que tenhamos amado. Mas numa situação de suicídio, por vezes a ira é a única maneira de se ultrapassar a perda. Houve alguém, a quem eu muito quisera, que foi assassinada, mas o assassino foi precisamente a mesma pessoa que eu tanto tinha amado.
A morte de Homa fez-me compreender o destino que me tinha aguardado ao fim de uma vida em comum com Mohammed. Sabia que agi da maneira mais acertada tendo conseguido salvar-me no último instante. Tinha sido capaz de escapar antes de me ter sentido tão desgastada e exausta, que teria procurado refúgio nos estupefacientes, no álcool e, provavelmente, no último refúgio para fugir a uma vida plena de infelicidade - o suicídio. Dei o passo que me proporcionaria liberdade, antes de me ter afundado ao ponto de ter sido incapaz de vir à superfície, antes que todas as portas se me fechassem na cara, com todas as esperanças desaparecidas.
Para além da República
A pergunta continua no ar.
- Porquê?
Por que motivo é que uma mulher inteligente, e de rara beleza, a qual poderia ter-se libertado do marido indo viver com as filhas nos Estados Unidos, decidiu optar pelo suicídio?
Por que razão é que uma outra mulher inteligente e que triunfara na sua carreira, Homa Darabi, uma psiquiatra e membro da direcção do Partido da Nação Iraniana, se imolou pelo fogo numa rua movimentada no norte de Teerão, numa tentativa desesperada de chamar a atenção para a situação aflitiva em que as suas concidadãs viviam?
O que é que havia levado seis jovens mulheres a pegarem fogo aos seus corpos, tendo vindo a morrer, no espaço de uma só semana na pequeníssima vila da montanha de Damavand?
Por que razão é que tantas outras mulheres optaram pela morte às suas próprias mãos? Por que motivo é que decidiram infligir tal sofrimento às suas famílias, destroçar o coração das respectivas mães, deixando os filhos sozinhos para enfrentarem o que o destino lhes reservava?
Algumas de nós recorremos aos comprimidos para pormos fim à agonia, enquanto a umas escassas cinco horas de voo algumas de nós podem ter o que lhes é devido, algumas de nós podemos partir com mais do que as roupas que trazemos no corpo.
Raffers tentou fazer passar uma lei que dava às mulheres o direito a metade dos bens dos maridos depois do divórcio, mas essa lei continua à espera de poder ver a luz do dia.
Quando o Majlis debateu em plenário a questão de conceder às mulheres mais direitos em caso de divórcio, os parlamentares concentraram-se em alargar a lista de circunstâncias em que a mulher pode obter um divórcio. Um dos pontos principais focados nestes debates prendeu-se com a questão de quando é que um homem poderá ser considerado como incapaz de proporcionar uma actividade sexual adequada à sua mulher. O que foi um grande passo em frente, em que finalmente se reconhecia que as mulheres têm algo a dizer quanto à satisfação sexual. A lei chega ao extremo de estabelecer o tamanho do pénis, indicando o tamanho mínimo que consideram inadequado.
Temos de lamentar os homens; porque, ao fim e ao cabo, eles não são mais do que o tamanho do respectivo pénis. Eles são as "Pichas de Ouro" das suas mães, e caso falhem nessa frente, também são nada: "Ainda são menos do que uma mulher", explicou-me a minha sogra numa ocasião qualquer.
Nós vamos ficando, e sofremos, porque não nos resta outra alternativa, porque nos encontramos encurraladas pelas leis e cultura que esperam de nós que sejamos mulheres, esposas e mães. E também porque as de entre nós, como por exemplo a Maman Joon, conti nuam a acreditar que se um homem bate na sua mulher, esta deve ter feito alguma coisa que o provocou. Por que as jovens que fizeram os seus estudos nos países ocidentais, continuam a dizer-me que caso uma mulher desobedeça ao marido, não é mulher não é nada.
Os homens iranianos não são os únicos a pensar que lhes assiste o direito de agredirem fisicamente as suas mulheres; não são os únicos homens que são infiéis às suas mulheres ou a mentir-lhes. Não é só no Irão que as mulheres vão parar ao hospital por causa dos punhos dos seus parceiros.
Há vários anos, trabalhei com uma jovem mulher encantadora num centro de aconselhamento patrocinado pelas autoridades municipais, em Rose Hill, Oxford. Ela só conseguia andar com a ajuda de muletas, o que teria de fazer para o resto da sua vida. Continuava sem conseguir compreender a razão que levara o marido a espancá-la, numa noite em que chegou a casa vindo de um pub. Ela recordava-se apenas de ter acordado depois de ter sido operada, altura em que lhe disseram que ele lhe tinha trucidado a anca e as duas pernas, além de lhe ter fracturado o queixo. Ele fora parar à penitenciária e ela chamava-se a si própria "a espantosa mulher de plástico".
- Aha! - diriam os Muçulmanos - Estão a ver os malefícios do álcool? Sim, existem muitos malefícios; tudo pode ser maléfico nas mãos erradas, quando não nos ensinam a distinguir o Bem do Mal. Nem todos os ébrios espancam as suas mulheres, tal como nem todos os homens sóbrios são santos.
Quando alguns homens lêem no Corão que podem bater nas suas mulheres, não continuam a ler até à parte em que está escrito que não devem deixá-las marcadas, nem bater-lhes no rosto, e tão-pouco em qualquer região da cabeça. Lêem apenas que lhes é permitido ter quatro mulheres, esquecendo-se de que devem tratá-las de igual modo.
Existe um idoso que é uma verdadeira lenda em Shiraz. Tem quatro mulheres que vivem em quatro casas separadas numa vasta propriedade de que é proprietário. Todos os dias, estas reúnem-se para ajudarem a arrumar a casa da mulher a quem cabe a vez de se deitar com o marido nessa noite. Entreajudam- se nos cuidados aos filhos, assim como a costurarem as roupas, a cozinhar e a executarem todas as tarefas domésticas que cabem a uma esposa muçulmana. Um dos meus amigos ficou de tal modo impressionado que foi visitar o idoso, perguntando-lhe qual era o seu segredo. Como é que ele conseguia manter tanta harmonia entre as quatro mulheres?
- Não é muito dificil - respondeu o homem. - Se uma delas me desagradar, dou uma tareia a todas.
E então, o que dizer dos pobres e dos oprimidos, uma vez que isto tinha tudo a ver com esses - não será?
Actualmente, os molás fazem-se transportar na frota de automóveis que em tempos fizeram parte dos "brinquedos" do meu pai. Ouvi com os meus próprios ouvidos, o dirigente da revolução, a Fragrância de Khomeini, afirmar que não gostava de andar pela cidade nos modelos mais recentes de Mercedes e BMW. Explicou que tinham de proceder assim porque existiam muitos inimigos do islão prontos a aniquilarem os seus dirigentes. Consequentemente, estes dirigentes tinham de se proteger em veículos à prova de bala, e estes só eram comercializados em modelos de luxo.
Eu não conseguia deixar de pensar que, fosse de que maneira fosse, havia contribuído para a morte da minha tia. Ela preocupara-se muito que o fracasso do meu casamento me fizesse mergulhar de novo no mundo sombrio dos estados depressivos. Todas as vezes que telefonava, recordava-se sempre que devia ter cuidado para não desistir da vida. Nessas ocasiões, estaria ela a dizer-me que desistira de viver?
Por vezes, tudo se transforma num sonho, e quase imagino a minha tia Homa a assobiar como um canário enquanto trata dos arranjos florais, ou ajuda a cozinheira a preparar o almoço. Mas logo depois ocorre-me o quanto a odeio, porque essa é a única maneira de me poder conformar com o facto de ela ter deixado de viver.
Num dia bom, Bahar encontra-se no seu atelier no Cáspio a pintar até se saciar. O caos instalou-se no Irão. Aquele povo, os que me são mais chegados e queridos, dão a impressão. de terem sido levados à loucura pela insanidade mental que prevalece na nação que os rodeia. Nenhumas leis de comportamento ou de decência parecem ter qualquer valor, e as famílias, em tempos sólidas no apoio de entreajuda, agora os seus membros viram-se uns contra os outros.
No meio desta confusão, a segunda mulher de Dada Jan foi acometida de outra trombose que lhe distorceu o lado esquerdo da face. Quatro anos antes, ela sofrera uma hemorragia cerebral fulminante que quase a matou. Poderia ter evitado dois meses de cuidados intensivos, e uma paralisia parcial, se alguém a tivesse acreditado quando se queixou de uma dor de cabeça que estava a "matá-la". Se não houvessem ignorado as suas queixas, atribuindo-as ao histerismo, é muito possível que não tivesse sofrido uma perda parcial da capacidade de falar.
Se a sua mãe não lhe houvesse encontrado "uma mulher adequada de uma família nobre", provavelmente, o meu tio teria casado com a mulher que amava e nunca teria tido uma vida de infelicidade, que culminou com a morte de Soraya, a sua primeira mulher, que ao dar-lhe apenas uma filha foi considerada uma "fracassada". Talvez o ambiente que reinava na sua casa não houvesse sido sombrio e sem vida ao longo de mais de trinta anos. Quando era criança, nunca consegui compreender o profundo desgosto que se reflectia sempre nos olhos cor de avelã de Soraya. Ela pertencia a essa espécie de mulher que suporta o sofrimento em silêncio. O seu corpo frágil revoltou-se contra si próprio, à medida que ela se ia tornando na vítima de uma doença rara. Levou dez anos a morrer. Faleceu na República de Deus, tendo visto recusado o pedido de um visto de saída porque o estado não reconhecia o mal de que sofria. Agora, a segunda mulher do meu tio está a caminho de levar o mesmo destino, contudo, a trombose deixara-a um pouco de cara à banda e, abençoadamente, ela não tem a percepção do seu sofrimento.
Em Shiraz, existe uma estrada de montanha onde os viajantes fatigados desfrutam de um primeiro olhar sobre a cidade. Sobranceiro a essa estrada, existe um monumento que contém o Corão abaixo do qual os visitantes passam, antes de começarem a descer em direcção ao que outrora foi a cidade mais próspera e magnífica da região oriental, a cidade que foi o coração do grandioso império persa, o qual se estendera pelo universo conhecido. Hoje em dia, os que entram no que restou desse império deviam ver-se perante um aviso que dissesse: "Todos os que entram aqui, abandonem a esperança. "
Houve um dia em que acreditei nas palavras entoadas por Janis Joplin: "A liberdade é apenas outra palavra para nada que reste perder". Mas a vida ensinou-me que a vida tem muito mais do que isso.
A liberdade é algo que reencontrei no dia em que Mohammed entrou a bordo daquele avião que o levou de regresso ao Irão. Todos temos o direito de falar com outro ser humano sem quaisquer medos, caminhar pelas ruas sem recear amar aqueles de quem gostamos, sempre que nos apetecer, sem nos sentirmos aterrorizados.
A liberdade é levantarmo-nos pela manhã sem desejarmos estar mortos. É olhar o homem que se encontra ao nosso lado sem nos apetecer gritar. A liberdade é o dia em que abrirem as urnas dos votos, e os papéis que são retirados corresponderem aos que nelas foram inseridos.
Sou livre. Posso pintar as unhas da cor que muito bem me apetecer, sem que haja alguém que me chame de puta. Posso ver as fotografias da minha fase punk sem receio de ser alvo de um juízo de valores. A liberdade é estar-se com alguém que possa compreender que rapámos o cabelo, ou que pintámos os cabelos de um vermelho-vivo só porque era divertido. Estarmos na companhia de alguém que tem a percepção de que a bondade é o que se encontra dentro de nós, bem como aquilo que fazemos aos outros, e não aquilo que vestimos e a forma como falamos.
Existem dias em que não consigo esquecer-me; nessas ocasiões só me apetece explodir. Penso no homem que me mentiu, e na sua primeira mulher, o qual então nos disse que gostássemos ou engolíssemos. Sei que ele continua convencido de que é bom, encontrando-se a caminho do paraíso, enquanto uma mulher qualquer arderá no fogo do inferno, só porque saiu de casa sem autorização prévia do marido.
Contudo, a minha liberdade tem um preço: vivo exilada da minha tão amada terra natal; estou encurralada como mulher de um homem que diz não considerar a hipótese de um divórcio, e que insiste comigo para que regresse ao Irão para falarmos. Ou em alternativa, caso eu tenha "medo" de me encontrar com ele em solo iraniano, podíamos encontrarmo- nos num país neutral onde poderíamos debater os nossos problemas.
Sou livre, mas simultaneamente sou uma prisioneira: uma prisioneira do medo. O medo que imagina uma situação em que me batem com um bastão na cabeça num hotel qualquer em Deli, sendo levada clandestinamente de regresso ao Irão, onde passaria o resto dos meus dias em cativeiro, numa qualquer tenda dos nómadas junto de qualquer homem que presentemente detesto, satisfazendo os seus desejos sexuais sempre que tal lhe apetecesse.
Consigo visualizar a sua família, presente nessa tenda, mostrando-se ultrajada perante a sugestão de que estariam a obrigar-me a fazer qualquer coisa contra a minha vontade. Toda uma vida atrás, eu teria erguido a minha voz em defesa deles. Mas poderei eu arriscar-me, confiando na sua palavra?
Sempre que o sistema é de molde a considerar a mulher como propriedade do homem, sendo aconselhada a cingir-se à sua cozinha e a obedecer ao marido, quem é que me iria salvar, caso eu confiasse neles, verificando posteriormente que me enganara?
- As mulheres podem ver os homens sem se sentirem excitadas sexualmente, mas os homens não são capazes de ver as mulheres sem desejarem ter relações sexuais com elas. Explicaria Mohammed à sua mulher apalermada que fora "ocidentalizada", quando ela lhe disse estar disposta a usar o hejab desde que os homens lhe seguissem o exemplo. Para os homens como Mohammed, a palavra "ocidentalizada" era sinónimo de "prostituição", não só cultural mas também moralmente. Eu poderia ter-lhe dito que as mulheres sentem-se tão excitadas perante a visão de um traseiro com um contorno atraente, como em face de um sorriso que as conquiste, e que até mesmo um bom corte de cabelo é capaz de atrair um coração feminino. Também lhe poderia ter dito que existe uma coisa a que se chama disciplina e autodomínio, que moralidade não é evitar a tentação, mas sim ter poder para lhe resistir.
Antes de ter partido de Oxford em 1991, senti um sentimento de camaradagem ao ver o número crescente de mulheres que usavam o hejab islâmico pelas ruas de Inglaterra. Agora, essa visão faz com que a minha tensão arterial se eleve; só me apetece arrancar-lhes os lenços da cabeça e sacudi-las até que vejam o mau serviço que a sua escolha presta, não só em relação às suas concidadãs, mas em última análise, à sua própria fé religiosa.
É precisamente a religião que pretendem glorificar que está a morrer aos poucos sob o peso da hipocrisia e da ignorância. Está a fenecer no século xx e se não ajudarmos a puxá-la para o século xxi, possivelmente, virá a morrer. Se não começarmos a amar em vez de odiar, se não começarmos a mostrar um Deus misericordioso que sente compaixão, ao invés do Deus vingativo, poderemos prejudicar a nossa religião a um ponto que a impedirá de ressurgir.
Logo no início da minha estadia em Teerão, o presidente Rafsanjani fez um discurso que incutiu em todos nós esperança, ainda que ténue. Dirigindo-se aos dirigentes das orações das sextas-feiras oriundos de todas as regiões do Irão, urgiu-os a olharem para o mundo moderno, mencionando-o nos seus sermões. Alegou que a juventude da nação necessitava de mais alguma coisa além de rezas e ameaças, acrescentando que os jovens precisavam de se divertir e de ter esperança e, acima de tudo o mais, necessitavam de abraçar a ciência e o mundo moderno. Alegou ainda que se o regime não abandonasse a senda por que enveredara "a nossa juventude rebelar-se-á contra nós, tal como aconteceu no regime que nos precedeu, e seremos deixados sem nada de nada. "
No dia seguinte, Ali Khamenei, o Uali-e- Faghih, o omnipotente jurista do islão, intro duziu o caduco Dever Muçulmano de Ambre-be Maroufva Nahyeh az Monkar. Estritamente falando, isto significa apenas que todos os muçulmanos têm a obrigação de apontar os pecados e erros dos seus semelhantes, mostrando-lhes o caminho da rectidão; contudo, na Repú blica Islâmica tudo é maior e melhor, pelo que estas instruções foram interpretadas pelos comentadores muçulmanos como sendo o sinal para que todos se transformassem em delatores. Os rapazes do Obstrução foram instruídos no sentido de denunciarem os seus colegas, caso estes não rezassem as orações rituais ao longo do dia, ou se não cumprissem o jejum durante o Ramadão e assim por diante. A exemplo de épocas anteriores, as mulheres voltaram a ser abordadas nas ruas, com a diferença que desta feita isso devia-se ao zelo das suas concidadãs, em vez da polícia de costumes.
Com certeza que ninguém poderia pôr em questão os princípios por detrás desta polícia da moralidade, pois se isso tivesse acontecido, desde o primeiro dia que teriam sido banidos. Recordo-me que, aquando dessa minha primeira visita pós-revolução ao país, o filho de uma antiga cozinheira juntou-se aos pasdars, tendo sido destacado para o que ele designava por "patrulha às ratas". Nos tempos do xá, esse rapaz sentira grande orgulho por ter parecenças com Alain Delon, fanfarronando sobre a quantidade de mulheres que se atiravam a ele, o que me levara a perguntar-lhe por que diabo é que se teria voltado para o islamismo?
- É capaz de imaginar um trabalho melhor para um homem de sangue ardente? replicou ele em resposta a essa pergunta. - Tenho oportunidade de usar este uniforme muito giro, podendo empunhar qualquer arma que me dê na real gana. Durante todo o dia, posso andar num potente jipe todo- o-terreno com um grupo de amigos, e quando vimos uma mulher que pareça ser especialmente atraente, poderemos engatá-la com a bênção do estado. As tolas vão sempre parar à esquadra, mas as sabidas conhecem maneiras de evitar ficar de cana durante a noite - dizia ele com um piscar de olho e uma cotovelada cúmplices.
Mas ainda que estas patrulhas, inteiramente masculinas, fossem acompanhadas por um carro cheio de Irmãs de Zahara, isso não impediria os rapazes de se divertirem um pouco.
- Mandamos as múmias de preto deterem as mulheres que depois levam para o nosso jipe, onde lhes damos orientação. Se estiverem dispostas a aceitar a nossa orientação, a par da oferta de um pequeno incentivo, são postas em liberdade e nós dizemos às múmias de preto que elas reconheceram os erros do seu procedimento - gabava-se o rapaz.
Posteriormente, quando foi transferido para uma das patrulhas "Michael Jackson", ele mostrou-se deveras contrariado. Estas patrulhas detinham os mancebos que imitavam o estilo do seu herói norte-americano - portanto, calculo que nem tudo fosse assim tão mau. De quando em vez, estas mesmas patrulhas detinham homens que usavam camisas de manga curta, uma vez que a exposição de braços nus, por pressuposto, incitava as mulheres a um frenesim sexual, mas de uma maneira geral, os homens encontram-se a salvo dos rigores da religião.
Mohammed já se apercebeu de que não chegará a parte alguma falando comigo, por conseguinte, optou pela táctica de escrever e telefonar à minha mãe. A intervalos periódicos de algumas semanas liga ou escreve para "dizer olá", agradecendo-lhe toda a simpatia que lhe mostrou.
Dez meses depois da nossa separação, a irmã mais nova e o irmão telefonaram-me. Eu não estava capaz de continuar a prolongar a minha ligação com aquela família, pelo que foi Mahshid quem lhes impingiu uma patranha qualquer. O objectivo do telefonema era pedirem-me que regressasse ao Irão, que voltasse para junto do meu marido - que é o lugar onde todas as boas esposas devem estar independentemente do quanto ele a possa ter traído.
O que mais desejo agora é deixar para trás as recordações da minha vida em comum com Mohammed, dando continuidade a uma existência em que tento pôr para trás das costas todo o sofrimento e desespero que senti às suas mãos.
Por todo o mundo existem homens que não prestam para nada e, até certa medida, eu sou a única culpada por ter entrado no mundo dele, para vir a descobrir que não poderia fazer parte desse universo. Durante o processo magoei muita gente; provavelmente Sepideh foi a que sofreu mais, e, ao fazê-lo, contribuí para o sofrimento dos seus filhos, os quais só desejavam viver no seio de uma família feliz. A minha única justificação é não me ter dado conta do que fazia até ser tarde de mais, altura em que justifiquei as minhas acções alegando perante mim mesma que agia moralmente, de acordo com as leis religiosas que Sepideh seguia com tanta convicção.
Não pode existir uma dualidade de comportamentos: se aceitarmos um islamismo intransigente sempre que nos convém, então, somos forçados a aceitá-lo em todas as circunstâncias. A religião islâmica diz que um homem pode ter quatro mulheres, disse eu a mim própria, portanto, se elas aceitam o resto, também têm de aceitar esse facto. Mas eu estava enganada: não existe nenhuma justificação para magoar os outros, existindo práticas que fizeram muito sentido há vários séculos, mas que hoje em dia não têm cabimento no mundo em que vivemos.
Nos dias em que eu defendia cegamente as práticas dos meus irmãos muçulmanos, tive a oportunidade de explicar a um médico amigo que todas as leis do islamismo tinham a sua razão de ser sob o ponto de vista da saúde. Na época em que o álcool era destilado em destilarias isoladas, sem qualquer espécie de supervisão, quando as pessoas cegavam ou morriam por ingerirem essas zurrapas, fazia muito sentido banir o seu consumo. Mas hoje em dia está nas nossas mãos educar e controlar, pelo que essa lei não tem grande relevância. Também lhe disse que até mesmo com a refrigeração moderna, ouve-se falar de gente que continua a morrer por ter comido carne de porco estragada, por conseguinte, alguém que legislasse nas areias do deserto teria de proibir o seu consumo.
Ele voltou-se para mim verdadeiramente irritado, apontando que a maior parte das infecções, que diagnosticava nas suas doentes, eram provocadas por maridos que se metiam na cama com qualquer rabo-de-saia. Explicou que quando um homem tinha quatro mulheres era impossível evitar que todas ficassem infectadas; afirmava que as bactérias saudáveis existentes num ventre podiam causar doenças a outra pessoa. Não aceitou o meu argumento de que os homens eram obrigados, de acordo com as leis islâmicas, a lavarem-se depois do acto sexual, evitando assim o perigo de infecções.
- Pensará você, uma mulher instruída, realmente que um pouco de sabonete e água possam matar as bactérias? - Calculo que não porque vários anos mais tarde eu própria vivi numa grande angústia devido a uma dessas infecções.
O Gordo foi encarcerado só Deus sabe por que motivo.
Nastaran continua em casa a cuidar do pai; ainda tentou continuar a trabalhar, mas em vez de a encorajarem, disseram-lhe que uma rapariga com a sua posição, a qual não necessitava de dinheiro, não devia trabalhar fora de casa. A irmã, Nasrin, está bem encaminhada para obter uma licenciatura universitária, tendo deixado de ser uma criança, malgrado os seus vinte e quatro anos, para se tornar numa mulher aos vinte e seis anos.
Homa repousa finalmente em paz na sua sepultura, todavia, as suas filhas trazem consigo as cicatrizes da vida da mãe. As lágrimas não lhes abandonam os olhos. É demasiado tarde para auxiliar os que já partiram, mas ainda temos a possibilidade de nos salvarmos, assim como as mulheres que virão depois de nós, alterando o sistema ao mostrarmos firmeza, sendo independentes, trabalhando em plano de igualdade junto dos homens, em vez de sermos subjugadas.
Quando tivermos filhos varões é imprescindível que não continuemos a dizer que possuem "pénis de ouro". Devemos tratar os nossos filhos e filhas de igual modo; também temos a opção de nos recusarmos a continuar a procriar na tentativa de dar à luz um filho varão.
Quanto a mim, duvido muito que volte a casar, e receio bem nunca mais venha a arriscar-me a amar outro homem. Mas não perdi a esperança de um dia poder andar na rua de cabeça descoberta, sem sentir bem no fundo dos meus pensamentos que sou pérfida.
Espero que um dia deixarei de ter sonhos em que estou a ser comprimida até à morte pelo corpo de um marido que se encontra cosido a mim, ou que estou com os braços ou pernas desnudadas, e os mártires estão prestes a aproximarem-se de mim para me apedrejarem até à morte.
Tenho saudades de me sentar por baixo de uma árvore iraniana, sentindo e cheirando os aromas do Irão. Ainda que só uma vez mais, anseio ser despertada pelo pregão de um vendedor de rua que tenta espevitar o negócio.
Mais do que tudo, desejo poder voltar um dia à Vali-e-Asr e respirar profundamente o ar iraniano. Tenho esperança de que um dia os sonhos do passado acabarão por desaparecer, e que os sonhos e esperanças do futuro se tornem realidade.
Rezo para que um dia possa estar ao lado das minhas irmãs e irmãos na fé islâmica, num país que não se esqueça de que o Corão foi escrito em Nome de Deus, o Misericordioso, o Piedoso. O Profeta Maomé (AS) levava um avanço de séculos em relação à sua época; o Corão é um milagre de esclarecimento. Se nós, os muçulmanos dos nossos tempos, insistirmos em viver séculos anteriores à nossa época, então estaremos a trair a nossa fé e alma.
Cherry Mosteshar
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