Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PÉTALAS AO VENTO
Segunda Parte
Primeiro de abril: Dia dos Tolos
Esforço. Dedicação. Desejo. Determinação. Os quatro mandamentos do mundo do balé, que tínhamos que seguir à risca. Se Madame Zolta fora dura conosco antes do Natal, agora submeteu-nos a um esquema tão pesado de treinamento que só fazíamos trabalhar. Ela fazia palestras sobre a perfeição do The Royal Ballet, estritamente clássico, mas nós deveríamos fazer tudo ao nosso jeito americano ímpar: clássico, mas inovativo e mais bonito.
Julian foi absolutamente impiedoso, demoníaco. Comecei realmente a desprezá-lo! Estávamos ambos encharcados de suor, com os cabelos escorridos. Minha malha grudava-se à pele. Julian usava apenas uma sunga. Berrou como se eu fosse surda:
— Desta vez, faça direito, diabo! Quer passar a noite inteira ensaiando?
— Pare de gritar comigo, Julian! Posso escutá-lo perfeitamente!
— Então, faça direito! Primeiro dê três passos e depois jogue o pé para o alto; então, pule para eu segurá-la e, pelo amor de Deus, desta vez deite-se imediatamente para trás! Não fique empertigada e rija, no instante em que eu a segurar, caia para trás e amoleça o corpo... se é capaz de fazer algo certo ou gracioso hoje!
Esse era o meu problema. Eu já não confiava em Julian. Temia que ele procurasse machucar-me intencionalmente.
— Julian, grita comigo como se eu fizesse tudo errado deliberadamente!
— É essa a impressão que tenho! Se você quisesse mesmo fazer tudo certo, conseguiria. Só precisa dar três passos, erguer o pé e saltar; quando eu a segurar, você se deixa cair para trás. Agora, vejamos se é capaz de acertar ao menos uma vez, após cinqüenta tentativas!
— Acha que isto me agrada? Veja minhas axilas! — exclamei, erguendo os braços para exibi-las. — Está vendo como ficaram arranhadas onde você me esfolou a pele? E amanhã estarei cheia de manchas roxas onde você me agarrou com força!
— Então, faça certo!
Julian esbravejava não só com a voz, mas também com os olhos negros. Tive um medo terrível de que ele estivesse apenas aguardando uma boa oportunidade para deixar-me cair de propósito para vingar-se. Contudo, levantei-me e tentamos mais uma vez. E novamente fracassei, não me deixando cair para trás por não confiar nele. Desta feita ele me atirou ao chão, onde fiquei ofegante, sem fôlego, imaginando por que diabo teimava em repetir a seqüência.
— Está sem fôlego? — indagou em tom sarcástico, erguendo-se como uma torre acima de mim, os pés descalços bem afastados, as pernas formando um triângulo isósceles sobre as minhas. O peito nu brilhava de transpiração que gotejava em cima de mim.
— Eu faço todo o trabalho duro e você fica aí, deitada, parecendo exausta. O que lhe aconteceu na roça? Gastou todas as energias trepando com o médico?
— Cale-se! Estou cansada de doze horas a fio de ensaios! Só isso!
— Se está cansada, eu estou dez vezes mais. Portanto, levante-se e vamos repetir. E, desta vez, faça direito, diabo!
— Não fale assim comigo! Arranje outro par! Fez-me tomar um tombo proposital e meu joelho passou três dias doendo; portanto, como posso correr para me atirar em seus braços? Você é bastante mesquinho para aleijar-me pelo resto da vida!
— Mesmo que a odiasse, não a deixaria cair. E não a odeio, Cathy. Pelo menos, ainda não.
Após ensaiar interminavelmente ao som do piano, contando, marcando o ritmo, repetindo a mesma série de passos, finalmente acertei e até mesmo Julian foi capaz de sorrir e dar-me parabéns. Então, chegou o ensaio geral e a apresentação de Romeu e Julieta. Os cenários espetaculares e as roupas sensacionais extraíram de nós o máximo quando combinados com uma orquestra completa. Agora, eu podia dar ao papel de Julieta todas as nuances que a tornariam uma pessoa real e não um cabo de vassoura, como parecia Yolanda naquela noite, ao fazer seus pliés com olhos vidrados e fora de foco. Madame Zolta aproximou-se para estudar-lhe atentamente o rosto e cheirar-lhe o hálito.
— Por Deus!... você andou fumando maconha! Nenhuma bailarina minha pisa o palco dopada e logra o público; volte para casa e vá para a cama! Catherine, prepare-se para dançar como Julieta!
Yolanda passou por mim cambaleando e tentou desferir-me um violento pontapé ao sibilar:
— Por que você tinha que voltar? Por que não ficou na roça, que é o seu lugar?
Não pensei em Yolanda e suas ameaças ao postar-me na pequena sacada e fitar sonhadoramente o rosto pálido de Julian que se erguia para mim. Parecia tão lindo à luz azulada, usando malhas brancas, os cabelos escuros brilhando, os olhos negros faiscando como as jóias de imitação de seu traje medieval. Parecia o meu amante do sótão, que sempre me escapava e nunca me permitia chegar bastante perto para distinguir-lhe as feições.
Aplausos estrondosos quando o pano baixou. E, por detrás da cortina, arquejando sem fôlego, Julian pulou para abraçar-me.
— Fomos sensacionais esta noite! Como consegue frustrar-se tanto até o início do espetáculo?
A cortina se ergueu para nossos agradecimentos e Julian beijou-me os lábios.
— Bravo! — gritava o público, pois aquele era o tipo de drama e paixão que todos os amantes do balé adoram. Era a nossa noite, a melhor que já tivéramos. Embriagada pelo sucesso, passei rapidamente por entre fotógrafos e caçadores de autógrafos, correndo para meu camarim, pois haveria uma grande festa logo em seguida; uma comemoração antes da partida de nossa companhia para Londres. Apliquei depressa o creme de limpeza para retirar a maquilagem e depois troquei o traje do último ato por um vestido curto e formal de cor azul. Madame Zolta bateu à minha porta e anunciou:
— Catherine, uma senhora aqui diz que veio de sua terra apenas para ver você dançar. Vamos, abra a porta e adiaremos o início da festa até você chegar.
Uma mulher alta e atraente entrou no camarim. Olhos e cabelos escuros, roupas caras que lhe realçavam a silhueta. Por algum estranho motivo, tive a impressão de já conhecê-la, ou de que ela me lembrava alguém. Examinou-me da cabeça aos pés e só então correu os olhos pelo minúsculo camarim abarrotado de sacolas plásticas contendo todas as roupas de balé que eu levaria comigo para Londres, cada sacola etiquetada com meu nome e o nome do balé para o qual fora desenhada a roupa. Esperei impaciente que ela dissesse logo ao que vinha e fosse embora, a fim de vestir meu casaco.
— Creio que não a conheço — comecei, no intuito de apressá-la.
Ela exibiu um sorriso retorcido e, sem ser convidada, sentou-se e cruzou as pernas bem torneadas, sacudindo ritmadamente um pé calçado numa sandália preta de salto alto.
— Claro que não me conhece, minha cara criança... mas eu conheço muito a seu respeito.
Algo em seu tom suave e adocicado demais serviu-me de advertência e coloquei-me em guarda, preparando-me para o que ela viera dizer, que só podia ser ruim, pois percebi o olhar maldoso que se escondia sob a falsa expressão suave.
— Você é muito bonita. Talvez até mesmo bela.
— Obrigada.
— Dança excepcionalmente bem; foi uma surpresa para mim, embora, é claro, que precise dançar muito bem para fazer parte desta companhia que, segundo fui informada, vem-se tornando importante.
— Obrigada, mais uma vez — disse eu, refletindo que ela jamais chegaria ao assunto.
Demorou-se a retomar a palavra, mantendo-me nervosa, em suspenso. Peguei meu casaco, procurando indicar-lhe que pretendia sair logo.
— Belo casaco de pele — comentou ela. — Suponho que seja presente de meu irmão. Ouvi dizer que ele anda jogando dinheiro fora como um marinheiro embriagado, dando tudo o que possui a três “joãos-ninguém” que chegaram num ônibus e tomaram-lhe conta da vida.
Riu em tom baixo e sarcástico, como sabem rir as mulheres cultas.
— Agora, vendo você, compreendo o motivo, embora já tivesse ouvido outras pessoas dizerem que você era bastante bonita para fazer qualquer homem de tolo. Ainda assim, nunca imaginei que uma criança como você pudesse parecer tão voluptuosa, sensual e magra ao mesmo tempo. É realmente uma mescla peculiar, Srta. Dahl. Toda cheia de inocência e sofisticação, também. Tal mistura deve ser fortemente intoxicante para um homem do tipo de meu irmão — disse ela, com uma risadinha divertida. — Não existe coisa alguma como a combinação de juventude, cabelos louros compridos, rosto bonito e seios bem formados para trazer à tona o animal que vive no íntimo dos melhores homens — suspirou, como se tivesse pena de mim. — Sim, eis o problema de ser jovem e bonita: os homens revelam o seu lado pior. Paul já se comportou antes como um asno, você sabe. Não é a primeira companheira de brincadeiras que ele arranja, embora ele jamais tenha dado a alguma delas um casaco de peles ou um anel de brilhante, como se realmente pudesse casar-se com você.
Então, aquela era a irmã de Paul, Amanda; a esquisita irmã que lhe tricotava suéteres e as enviava pelo correio, mas recusava-se a falar com ele na rua. Amanda se pôs de pé e começou a andar em volta de mim: uma gata caçando, prestes a saltar sobre a presa. Usava um perfume oriental, almiscarado, forte, e devia julgar-me uma presa tímida ao avançar contra mim.
— Uma pele tão imaculada, tão firme, parece porcelana — comentou, estendendo a mão pronta para tocar-me o rosto. — Não terá pele tão bonita ou tanto cabelo quando tiver cerca de trinta e cinco anos e a essa altura ele já se terá cansado de você há muito tempo. Paul gosta de mulheres jovens, muito jovens. E também bonitas, inteligentes, talentosas. Sou forçada a admitir que tem bom gosto, embora não tenha bom senso. Compreenda — exibiu mais uma vez aquele detestável sorriso — realmente pouco me importa o que ele faça, desde que se mantenha nos limites da decência e não reflita na minha vida.
— Saia daqui — consegui dizer. — Não conhece seu irmão. É honrado, generoso; de forma alguma prejudicaria a sua vida.
Ela sorriu com pena de mim.
— Minha cara criança, não entende que você está arruinando a carreira dele? Será bastante tola para pensar que o caso passou despercebido? Numa cidade do tamanho de Clairmont todo o mundo sabe de tudo. Embora a Henny não possa falar, os vizinhos têm olhos e ouvidos. Mexericos é tudo o que ouço, mexericos: Paul jogando todo seu dinheiro fora com delinqüentes juvenis que se aproveitam de sua generosidade e logo estará falido, sem clientes!
Ela esquentava os motores e eu temia que, a qualquer momento, golpeasse meu rosto com as longas unhas vermelhas.
— Saia daqui! — ordenei furiosa. — Sei tudo a seu respeito, Amanda, pois os mexericos também me chegaram aos ouvidos! Seu problema é que Paul lhe deve o resto da vida dele porque você trabalhou para ajudá-lo a custear os estudos de Medicina. Mas eu fiz a escrituração das contas dele e sei que lhe pagou tudo de volta, com mais dez por cento de juros, portanto, nada deve a você! Não passa de uma mentirosa que tenta diminuí-lo aos meus olhos pois não conseguirá! Eu o amo, ele me ama, e nada que você possa dizer impedirá nosso casamento!
Ela tornou a rir, um som duro e impiedoso. Então, seu rosto assumiu uma expressão implacável, decidida.
— Não se atreva a me mandar fazer alguma coisa! Irei embora quando quiser, depois de lhe dizer o que preciso! Vim de avião a Nova York para ver o mais recente amor de meu irmão, sua boneca bailarina... e pode crer que não será a última mulher dele. Ora, Júlia costumava dizer-me que ele...
Interrompi acaloradamente:
— Saia! Não ouse dizer mais uma só palavra a respeito dele! Sei tudo sobre Júlia. Paul me contou. Se ela o empurrou para outras mulheres, eu não o censuro. Ela nunca foi uma esposa de verdade; era uma governanta, uma cozinheira não uma esposa!
Ela riu alegremente. Meu Deus, como gostava de rir! Gostava da situação, de encontrar alguém bastante competitiva para reagir, de modo que ela pudesse usar as garras.
— Menina boba! É a mesma coisa que dizem todos os homens casados à sua mais recente conquista. Júlia foi uma das mulheres mais queridas, delicadas, bondosas e maravilhosas que já existiram. Fazia tudo para agradá-lo. Sua única falha foi não lhe conseguir dar todo o sexo que ele desejava, ou o tipo de sexo que ele queria e exigia; aí sim, de certo modo, ele foi obrigado a procurar outras como você. Admito que a maioria dos homens casados tem casos extraconjugais, mas não fazem o que ele fez!
Agora, eu detestava a bruxa vingativa, realmente a odiava.
— O que fez ele de tão terrível? Júlia afogou-lhe o filho de três anos; nada neste mundo me levaria a matar uma criança! Não necessito tanto de vingança!
— Concordo — disse ela, reassumindo o tom suave. — O que Júlia fez foi uma loucura. Scotty era um menino tão belo e inteligente, mas Paul impeliu-a a fazer aquilo. Compreendo o raciocínio de Júlia. Scotty era a coisa que Paul mais amava. Quando se procura destruir emocionalmente uma pessoa, elimina-se aquilo que ela mais ama.
Oh! Que horror!
— Ele sofre, não é mesmo? — indagou ela, saboreando a ocasião, os olhos negros e bonitos brilhando de satisfação. — Ele se tortura, se culpa, deseja ter o filho de volta; então, você aparece e ele lhe põe um filho no ventre. Não pense que a cidade inteira não tem conhecimento de seu aborto! Nós sabemos! Sabemos tudo!
— É mentira! — berrei. — Não foi um aborto! Tive um D&C porque minhas menstruações não eram regulares!
— Consta dos registros do hospital — replicou ela, segura de si. — Você abortou um embrião com duas cabeças e três pernas: gêmeos que não se separaram adequadamente. Pobrezinha! Não sabe que um D&C é um processo de aborto?
Submergi em turbilhões de água escura, afogando-me, afogando-me... Com duas cabeças? Três pernas? Oh! Deus!... o bebê-monstro que eu tanto temia! Mas Paul ainda nem me tocara na época; não fora Paul.
— Não chore — consolou ela.
Dei um arranco, afastando-me da mão grande que faiscava de brilhantes.
— Todos os homens são animais e creio que ele nem lhe contou a verdade. Contudo, não entende que não pode casar com ele? Estou fazendo isto para o seu próprio bem. Você é bonita, jovem, talentosa, e viver em pecado com um homem casado é puro desperdício. Salve-se enquanto é possível.
As lágrimas toldavam-me a visão. Esfreguei os olhos como uma criança, sentindo-me uma criança num mundo adulto e louco ao fitar aquele rosto liso e tranqüilo.
— Paul não é casado. É viúvo. Júlia está morta. Suicidou-se no dia em que matou Scotty.
Ela acariciou-me o ombro com ar maternal.
— Não, minha criança. Júlia não está morta. Vive numa instituição para doentes mentais onde Paul a internou depois que ela afogou Scotty. Louca ou não, continua a ser esposa legal de meu irmão.
Enfiou-me na mão inerte vários instantâneos: fotos de uma mulher magra, de aspecto digno de piedade, deitada numa cama de hospital, cujo rosto aparecia sempre de perfil. Uma mulher arrasada pelo sofrimento. Os olhos muito abertos fixavam o espaço, inexpressivos, e os cabelos escuros espalhavam-se como cordas sobre o travesseiro. Não obstante, eu vira muitas fotografias de Júlia para não reconhecê-la, por mais mudada que estivesse.
— A propósito — disse a irmã de Paul, deixando-me as fotografias. — Gostei do espetáculo. Você é uma bailarina maravilhosa. E aquele rapaz, é sensacional. Pegue-o. Está evidentemente apaixonado por você.
Então saiu do camarim, deixando-me perdida num mar de sonhos desfeitos e afogando-me no desespero. Como conseguiria eu aprender a nadar num oceano de falsidade?
Julian acompanhou-me à grande festa oferecida em nossa homenagem. Hordas de pessoas nos rodeavam, felicitando-nos, tecendo-nos elogios rasgados. Nada significavam para mim. Eu só conseguia pensar que Paul me mentira, me enganara, tomara-me sabendo que era casado; mentiras odiosas, mentiras!
Nunca Julian se mostrara tão atencioso e delicado comigo. Colou-se a mim para dançar uma daquelas melodias lentas e antigas; apertou-me tanto que pude sentir cada músculo rijo dele, seu corpo e sua masculinidade se comprimia com força contra mim.
— Eu a amo, Cathy — sussurrou-me ao ouvido. — Desejo-a tanto que não consigo dormir de noite. Se você não aceitar depressa, ficarei louco.
Enterrou o rosto em meu cabelo penteado para cima.
— Nunca tive uma garota novinha em folha como você. Por favor, Cathy, por favor, me ame, me ame...
Seu rosto dançou à minha frente. Parecia um sonho, perfeito como um Deus, mas, ainda assim... ainda assim...
— Julian, e se eu lhe disser que não sou novinha em folha?
— Mas é! Sei que é!
— Como pode saber? — disse eu, rindo como se embriagada. — Há algo escrito em meu rosto que afirme que ainda sou virgem?
— Sim — disse ele, convicto. — Seus olhos. Eles me dizem que você ainda não sabe o que é ser amada.
— Julian, temo que você não saiba muita coisa.
— Você me subestima, Cathy. Trata-me como um menino pequeno num minuto e, no outro, como um lobo faminto que pretende devorá-la. Permita-me fazer-lhe amor e então compreenderá que jamais foi tocada antes por um homem.
Eu ri.
— Está bem, mas apenas por uma noite.
— Se você me tiver por uma noite, nunca mais me deixará sair de perto — advertiu ele, os olhos negros brilhando e soltando centelhas.
— Julian... eu não o amo.
— Amará, depois desta noite.
— Oh! Julian — repliquei com um prolongado bocejo. — Estou cansada e meio embriagada... Vá embora. Deixe-me em paz.
— De jeito nenhum, menina. Você disse sim e exigirei o cumprimento da promessa. Esta noite serei eu. Esta noite e todas as noites pelo resto da sua vida... ou da minha.
Numa chuvosa manhã de sábado, com todas as nossas bagagens já empilhadas nos táxis que levariam a companhia até o aeroporto, Julian e eu estivemos na pretoria com nossos melhores amigos dando apoio moral, e o juiz de paz pronunciou as palavras que nos tornaram marido e mulher “até que a morte os separe”. Ao chegar minha vez de fazer os votos conjugais, hesitei, com vontade de fugir dali e voltar correndo para Paul. Este ficaria arrasado ao tomar conhecimento. E havia também Chris. Mas meu irmão preferiria ver-me casada com Julian e não com Paul; fora o que ele me dissera.
Julian abraçou-me com força, os olhos negros suaves e brilhantes de amor e orgulho. Eu não podia fugir. Podia apenas dizer o que esperavam de mim e então vi-me casada com o único homem que eu jurara jamais permitir tocar-me intimamente. Não apenas Julian se mostrava feliz e orgulhoso; o mesmo fazia Madame Zolta, que sorria abertamente, dando-nos sua bênção, beijando-nos e derramando lágrimas maternais.
— Agiu certo, Catherine. Serão tão felizes juntos, um casal tão lindo... mas lembrem-se de não fazerem bebês!
— Meu bem, querida, amor da minha vida, não fique tão triste — segredou-me Julian quando o avião sobrevoava o Atlântico — É o nosso dia de alegria! Juro que jamais se arrependerá. Serei um marido fantástico. Nunca amarei outra pessoa senão você.
Encostei a cabeça no seu ombro e chorei como uma criança! Chorei por tudo que deveria ter tido no dia de meu casamento. Onde estava o canto dos pássaros e o repicar dos sinos? Onde estava a grama verdejante e o amor que eu deveria sentir? Onde estava minha mãe, a causa de tudo o que acontecera de errado? Onde? Ela chorava ao pensar em nós ou, mais provavelmente, limitava-se a rasgar meus bilhetes com os recortes de jornal? Sim, seria bem ao seu tipo: nunca assumir as patifarias que fizera. Com que facilidade partira para uma viagem de segunda lua-de-mel, deixando-nos aos cuidados de uma avó impiedosa, e voltara toda sorridente e feliz, contando-nos o quanto se divertira! Enquanto nós, trancados num quarto, fôramos brutalizados e mal nutridos, ela nem mesmo olhava para Carrie e Cory, que não cresciam por falta de cuidados. Nunca notou as olheiras que encovavam os olhos dos gêmeos, nunca reparou como eram magros e raquíticos os seus membros. Nunca notava nada que não queria ver.
A chuva continuava a cair incessantemente, prognosticando o que encontraríamos pela frente. A fria e violenta torrente de água gelada provocou a formação de gelo nas asas do avião que me levava cada vez mais longe de todas as pessoas que eu amava. Aquele gelo começou a formar-se também em meu coração. E naquela noite eu teria que dormir com um homem de quem nem gostava quando ele não estava no palco, vestindo uma fantasia e representando o papel de príncipe.
Entretanto, para fazer justiça a Julian, na cama ele era tudo o que se gabava de ser. Esqueci-me de quem ele era e fingi que fosse outra pessoa quando seus beijos me percorriam o corpo, sem deixar um centímetro quadrado inexplorado, não beijado ou não acariciado. Antes que ele terminasse, eu o desejava. Sentia-me mais que disposta a permitir que me possuísse... e tentei apagar a idéia persistente de que acabava de cometer o maior erro da minha vida. E já cometera muitos erros...
Labirinto de mentiras
Antes que nossos organismos se adaptassem à diferença de fusos horários, começamos a ensaiar sob as vistas do The Royal Ballet, que comparava nosso estilo com o deles. Madame Zolta já nos dissera que o estilo deles era estritamente clássico, mas que nós deveríamos fazer tudo à nossa maneira, não nos deixando intimidar.
— Façam como sempre, mantenham a pureza da dança, mas dêem a ela sua própria interpretação. Julian, Catherine, como recém-casados, todas as atenções estarão voltadas para vocês, portanto, tornem cada cena a mais romântica possível. Vocês dois juntos tocam-me o coração e fazem-me chorar... se continuarem dessa forma, entrarão para a história do Balé.
Sorriu e as lágrimas inundaram as profundas rugas em torno de seus olhos miúdos.
— Vamos todos provar que os Estados Unidos também são capazes de produzir o melhor!
Interrompeu-se, dando-nos as costas para impedir que lhe víssemos o rosto.
— Amo tanto vocês todos... — soluçou. — Agora, vão embora... deixem-me sozinha... e façam-me orgulhosa de vocês!
Estávamos decididos a dar o melhor de nós, a fim de tornar Madame Zolta famosa outra vez, não como bailarina, mas como professora. Ensaiávamos até cairmos exauridos na cama.
O The Royal Opera House, em Covent Gardens, compartilhava o espaço com a companhia do Royal Ballet e, quando vimos o teatro pela primeira vez, prendi a respiração e apertei com força a mão de Julian. O auditório em vermelho e dourado acomodava mais de duas mil pessoas. Sua faiscante série de balcões que se elevava até uma alta cúpula tendo no centro o desenho de um sol atordoou-me com seu esplendor de estilo antigo. Logo verificamos que as coxias e os bastidores eram muito menos opulentos, sem quaisquer encantos em seus camarins apertados e um labirinto de minúsculos escritórios e oficinas. O pior: não havia um estúdio para ensaios! Por mais que me esforçasse para ver algo admirável nos encanamentos e instalações de calefação da Inglaterra, fracassei totalmente. O frio era perene, exceto durante o esforço da dança. Eu detestava o parco suprimento de água quente nos banheiros, que me obrigava a tomar banho o mais depressa possível para não morrer enregelada.
E durante todo o tempo Julian mantinha-se grudado a mim. Privacidade era algo de que ele jamais ouvira falar e pelo que não tinha o menor respeito. Mesmo quando eu estava no banheiro ele tinha que se fazer presente, de modo que eu corria para trancar a porta e deixava-o batendo pelo lado de fora.
— Deixe-me entrar! Sei o que está fazendo! Por que tanto segredo?
Não apenas isso, mas ele queria infiltrar-se em minha mente e conhecer todo o meu passado, meus pensamentos, tudo o que eu fizera.
— Então, seus pais morreram num desastre de automóvel. O que aconteceu depois? — indagava, apertando-me num abraço de ferro.
Por que desejava escutar tudo outra vez? Engoli em seco. A essa altura, eu já inventara uma estória plausível a respeito da lei exigir que fôssemos internados num orfanato, de modo que Chris, Carrie e eu fomos forçados a fugir.
— Sabe, tínhamos economizado algum dinheiro dos aniversários, Natais, etc. Tomamos um ônibus que deveria levar-nos à Flórida, mas Carrie adoeceu e começou a vomitar. Então, uma enorme preta gorducha apareceu para conduzir-nos até seu filho médico. Creio que ele teve pena de nós. Acolheu-nos... e acho que isto foi tudo.
— Isto foi tudo — repetiu ele lentamente. — Há muito mais coisa que você não me conta! Embora eu já possa adivinhar o resto. Ele viu uma fruta apetitosa numa garota jovem e bonita, por isso mostrou-se tão malditamente generoso. Cathy, até que ponto vocês tiveram intimidades?
— Eu o amava e pretendia casar-me com ele.
— Mas não se casou, hem? — insistiu Julian. — Por que, afinal, me disse “sim”?
Tato e sutileza nunca estiveram entre as minhas virtudes. Enraiveci-me porque ele me obrigava a dar explicações quando eu não queria tocar no assunto.
— Você me perseguia o tempo todo! — respondi furiosa. — Fez-me acreditar que eu poderia aprender a amá-lo, mas não creio que possa! Cometemos um erro, Julian! Um erro horrível!
— Jamais repita uma coisa dessas, ouviu?
Julian soluçou como se eu lhe tivesse causado um ferimento horrível; lembrei-me de Chris. Eu não poderia passar o resto da vida magoando todas as pessoas que me conhecessem. Assim, minha raiva sumiu e permiti que Julian me tomasse nos braços. Baixou a cabeça para beijar-me o pescoço.
— Eu a amo tanto, Cathy. Mais do que já desejei amar qualquer mulher. Nunca ninguém me amou pelo que sou. Agradeço-lhe por tentar amar-me, embora diga que não me ama.
Doeu-me escutar o temor em sua voz. Parecia um menino pequeno implorando que o impossível acontecesse. E talvez eu lhe estivesse fazendo uma injustiça. Virei-me e abracei-o pelo pescoço.
— Eu quero amar você, Jule. Casei-me com você, estou comprometida e tentarei ser a melhor esposa que me for possível. Mas não me pressione! Não me faça exigências; deixe simplesmente que o amor venha chegando à medida que eu for conhecendo melhor você. É praticamente um desconhecido para mim, embora já nos conheçamos há três anos.
Ele fez uma careta de dor, como se o amor fosse, na verdade, impossível caso eu chegasse a conhecê-lo bem. Duvidava tanto de si mesmo! Oh! Deus! O que fizera eu? Que tipo de pessoa era eu, capaz de abandonar um homem sincero, honrado e honesto, e correr para jogar-me nos braços de alguém que eu suspeitava ser um brutamontes?
Mamãe tinha uma propensão para agir impulsivamente e arrepender-se quando já era tarde demais. No fundo, eu não era como ela, não podia ser! Eu possuía talentos demais para ser como alguém que não possuía nenhum... nenhum talento exceto fazer com que cada homem se apaixonasse por ela; e isso não era talento ou inteligência! Não, eu queria ser como Chris... e senti-me perdida mais uma vez, presa como sempre à areia movediça preparada por ela! Tudo era culpa dela, até mesmo meu casamento com Julian!
— Cathy, você terá que aprender a ignorar muitas falhas — disse Julian. – Não me coloque num pedestal; não espere perfeição. Tenho pé de barro, como você já sabe; se tentar transformar-me no Príncipe Encantado que você deseja... fracassará. Você também colocou aquele seu médico num pedestal; acho que você talvez seja o tipo de mulher que coloca todos os homens que ama numa posição tão elevada que eles acabam desmoronando lá de cima. Procure apenas amar-me e não dê importância às minhas características que não lhe agradam.
Eu não possuía o dom de ignorar as falhas alheias. Ao contrário de Chris, sempre percebera as falhas de Mamãe. Sempre virara as moedas mais brilhantes, procurando a face azinhavrada. Gozado. A falha de Paul sempre me parecera culpa de Júlia, até Amanda vir me contar aquela estória pavorosa. Mais uma razão para odiar Mamãe: fazer-me duvidar de meu instinto!
Muito depois que Julian voltou à calma, permaneci sentada em frente às janelas, observando minha imagem nos compridos rastros de gelo que marcavam as vidraças. O clima apenas me indicava o que viria pela frente. A primavera ficara para trás, nos jardins de Paul... E eu era culpada de tudo. Não precisava ter acreditado em Amanda. Deus me livre se, no final, eu fosse igual à Mamãe, tanto por dentro quanto por fora!
Nossas semanas em Londres foram movimentadas, excitantes, cansativas, mas eu temia a hora de regressarmos a Nova York. Durante quanto tempo eu poderia adiar o momento de dar a notícia a Paul? Não indefinidamente. Mais cedo ou mais tarde, ele teria que saber.
Pouco depois do primeiro dia da primavera, viajamos de avião até Clairmont e pegamos um táxi até a casa de Paul. Era o local de nossa libertação e, aparentemente, nada mudara. Só eu, pois vinha a fim de devastar a vida de um homem que não merecia ser magoado outra vez.
Olhei para os arbustos meticulosamente aparados em cones e esferas, as glicínias que floriam, as azaléias que se espalhavam por toda parte num festival de cores vivas, as grandes magnólias prestes a florir e sobre todas as folhagens, pendia o musgo espanhol cinzento, criando nesgas de renda viva que davam ao ambiente um ar de névoa e cerração. Suspirei. Ainda não vira algo mais belo, romântico e tristonhamente místico que um velho carvalho coberto por musgo espanhol, o parasita que terminaria matando o hospedeiro, como um amor que se apagasse até sufocar.
Eu pretendia levar Julian ao interior da casa para, juntos, darmos a notícia a Paul, mas não pude.
— Importa-se de esperar na varanda enquanto converso com Paul? — indaguei.
Por algum motivo, Julian simplesmente anuiu com a cabeça. Julguei que ele fosse discutir. Concordando, para variar, acomodou-se na cadeira de balanço de vime pintada de branco na qual encontráramos Paul cochilando naquela tarde de domingo, após saltarmos do ônibus. Naquela época, Paul tinha quarenta anos; agora, estava com quarenta e três.
Um tanto trêmula, avancei para abrir a porta principal com minha chave. Poderia ter telefonado antes, ou enviado um telegrama. Contudo, tinha necessidade de ver-lhe o rosto, observar-lhe os olhos, tentar ler-lhe os pensamentos. Precisava saber se realmente lhe ferira o coração ou apenas magoara-lhe o ego e o orgulho.
Ninguém me escutou abrir a porta. Ninguém ouviu-me os passos no assoalho do vestíbulo. Paul estava esparramado em sua poltrona predileta, diante do aparelho de TV em cores e da lareira. Cochilava. Suas pernas compridas apoiavam-se no banquinho, os pés descalços, os tornozelos cruzados. Carrie sentara-se de pernas cruzadas no chão, ao lado da poltrona, sempre necessitada de estar perto de alguém que a amasse. Estava profundamente absorta em brincar com suas bonequinhas de porcelana. Usava um suéter branco com punhos e gola vermelhos e, sobre ele, seu blusão vermelho de veludo piquê. Parecia uma linda bonequinha.
Meus olhos voltaram mais uma vez a Paul. Dormitando levemente, ele trazia no rosto a expressão de quem aguardava ansiosamente. Até mesmo seus pés cruzavam-se e descruzavam-se repetidamente, enquanto os dedos das mãos se distendiam e tornavam a contrair-se em punhos cerrados. A cabeça, jogada para trás a fim de descansar no espaldar alto da poltrona, também se movimentava de um lado para outro... sonhando, presumi, talvez comigo. Então virou o rosto na minha direção. Mesmo dormindo, pressentira minha presença?
As pálpebras se abriram com extrema lentidão. Ele bocejou, erguendo a mão para tapar os lábios... então, fitou-me estonteado. Como se eu não passasse de uma aparição.
— Catherine? — murmurou. — É você?
Carrie escutou a pergunta, levantou-se de um salto e correu para mim. Não parava de repetir meu nome quando a tomei nos braços, erguendo-a bem no alto. Cobri-lhe o rostinho de beijos e abracei-a com tanta força que ela protestou:
— Ai! Assim, me machuca!
Parecia tão bonita, fresca e bem alimentada.
— Oh! Cathy, por que ficou tanto tempo longe de casa? Esperávamos todos os dias e você nunca chegava! Começamos a fazer planos para o casamento, mas quando você não escreveu o Dr. Paul achou melhor esperarmos. Por que só nos enviou cartões postais? Não teve tempo para escrever cartas compridas? Chris disse que você deveria estar muito ocupada.
Livrou-se de meus braços e voltou a sentar-se junto à poltrona de Paul, fitando-me com ar de censura.
— Cathy... esqueceu-se de nós, não foi? Só quer saber de dançar. E não precisa da família quando está dançando.
— Sim, preciso de minha família, Carrie — respondi distraidamente, com o olhar fixo em Paul, tentando adivinhar o que ele pensava.
Paul ergueu-se e caminhou para mim, o olhar preso ao meu. Abraçamo-nos e beijamo-nos, enquanto Carrie permanecia calada no chão, como se estudasse a maneira pela qual uma mulher deve agir com o homem que ama. Os lábios de Paul apenas roçaram os meus. Não obstante, seu toque provocou-me arrepios que Julian era incapaz de causar.
— Você parece diferente — disse-me ele naquele seu jeito vagaroso e suave. — Perdeu peso. E parece cansada. Por que não telefonou ou telegrafou para avisar que estava a caminho de casa? Eu iria buscá-la no aeroporto.
— Você também parece mais magro — repliquei num sussurro rouco.
A perda de peso caía-lhe melhor que em mim. O bigode parecia mais escuro e espesso. Toquei-o de modo hesitante, carinhoso, sabendo que já não me pertencia o bigode que ele deixara crescer só para me agradar.
— Sofri quando parou de me escrever todos os dias. O que houve? O horário ficou apertado demais?
— Mais ou menos isso. É cansativo ter que dançar todos os dias e, ao mesmo tempo, procurar conhecer o máximo de lugares possível... Fiquei tão ocupada que nunca me sobrava tempo suficiente.
— Fiz uma assinatura da Variety.
— Oh!... — foi tudo o que consegui dizer, rezando para que a revista não tivesse mencionado meu casamento com Julian.
— Arvorei-me em seu serviço particular de recortar notícias, embora Chris também esteja compilando um álbum de recortes a seu respeito. Sempre que ele está em casa, comparamos nossos recortes; se um de nós dois tem algo que o outro ainda não possui, mandamos tirar fotocópias.
Interrompeu-se, como se intrigado por minha fisionomia, expressão, ou algo semelhante.
— As críticas são sensacionais, Catherine. Por que parece tão... tão... indiferente?
— Estou cansada, como você mesmo disse — baixei a cabeça, sem saber o que dizer ou como enfrentar-lhe o olhar. — E como estão vocês?
— Catherine, o que há? Parece tão esquisita.
Carrie me olhava com atenção... como se Paul lhe houvesse expressado os pensamentos. Corri os olhos pela espaçosa sala cheia dos belos objetos colecionados por Paul. O sol atravessava as persianas de marfim e incidia sobre as miniaturas no alto étagère com prateleiras de vidro, tendo ao fundo um espelho negro com veios de ouro, iluminado de cima a baixo. Como era fácil esconder-me olhando em volta, fazendo de conta que tudo estava bem, quando, na verdade, tudo estava errado.
— Catherine, fale comigo! — exclamou Paul. — Há algo errado!
Sentei-me, os joelhos fracos, um nó na garganta. Por que eu jamais conseguia fazer algo certo? Como fora ele capaz de mentir, iludindo-me, quando sabia que eu estava farta de mentiras e falsidades? E, não obstante, como podia parecer ainda tão digno de confiança?
— Quando Chris estará em casa?
— Na sexta-feira, para os festejos da Páscoa.
Paul lançou-me um olhar prolongado e pensativo, julgando o fato estranho, pois geralmente Chris e eu mantínhamos constante contato. Naquele momento, Henny entrou para cumprimentar-me com um grande abraço e um beijo... e não pude mais adiar... embora encontrasse um meio de fazê-lo.
— Paul, eu trouxe Julian para casa comigo... Está na varanda, esperando. Você se importa?
Ele me olhou de forma muito esquisita e depois meneou a cabeça.
— Claro que não. Mande-o entrar.
Então voltou-se para Henny:
— Ponha mais dois lugares à mesa.
Julian entrou e, segundo minhas instruções, não disse uma só palavra que revelasse nosso casamento. Havíamos ambos retirado as alianças, guardando-as nos bolsos. Foi a mais estranha e silenciosa das refeições; até mesmo quando Julian e eu distribuímos os presentes, a atmosfera se tornou mais tensa. Carrie limitou-se a fitar a pulseira de rubis e ametistas, embora Henny sorrisse largamente ao colocar no braço a pulseira de ouro maciço.
— Muito obrigado pela bela miniatura de bailarina, Cathy — disse Paul, depositando cuidadosamente meu presente sobre a mesa mais próxima. — Julian, poderia dar-nos, a Catherine e a mim, um minuto de licença? Gostaria de conversar com ela em particular.
Pronunciou essas palavras no tom de um médico que requisita uma conversa em particular com o membro da família responsável por um paciente em estado crítico. Julian anuiu com a cabeça e sorriu para Carrie, que lhe devolveu um olhar raivoso.
— Vou recolher-me — declarou ela com ar de desafio. — Boa-noite, Sr. Marquet. Não sei por que razão precisou ajudar Cathy a comprar-me esta pulseira, mas, de todo modo, muito obrigada.
Julian foi deixado na sala, assistindo à televisão, enquanto Paul e eu saíamos para passear nos magníficos jardins. As árvores frutíferas já floresciam e as rosas de várias cores que subiam pelas treliças brancas apresentavam um belo espetáculo.
— O que há de errado, Catherine? — indagou Paul. — Você volta para minha casa em companhia de outro homem, de modo que talvez nem seja necessário explicar. Sou capaz de adivinhar.
Baixei depressa a mão para pegar a dele.
— Pare! Não diga nada!
Com voz entrecortada, muito vagarosa, comecei a relatar a visita de sua irmã. Declarei que, agora, tinha conhecimento de que Júlia continuava viva e, embora eu pudesse compreender as motivações de Paul, ele deveria ter-me contado a verdade.
— Por que me induziu a acreditar que ela estivesse morta, Paul? Julgou-me tão infantil a ponto de não conseguir suportar a notícia? Se me tivesse contado, eu compreenderia. Eu o amava, jamais tenha a menor dúvida quanto a isso! Não me entreguei a você por achar que lhe devia alguma coisa. Entreguei-me porque desejei dar-me, porque necessitava desesperadamente de você. Jamais pensei em casamento e estava muito feliz com o relacionamento que tínhamos. Seria sua amante pelo resto da vida, mas você devia ter-me contado a respeito de Júlia! Deveria conhecer-me o bastante para saber que sou impulsiva, que ajo sem pensar quando sou magoada... e fiquei terrivelmente magoada naquela noite em que Amanda veio contar-me que sua esposa ainda estava viva!
— Mentiras! — bradei. — Oh! Como detesto os mentirosos! Você, dentre todas as pessoas no mundo, mentiu para mim! Excetuando Chris, não havia ninguém em quem eu confiasse mais que em você!
Ele estacou, como eu. As estátuas nuas de mármore nos cercavam, parecendo zombar de nós. Riam do amor que fracassara. Agora estávamos como elas: imóveis e frios.
— Amanda — disse Paul, pronunciando o nome como se tivesse na boca algo amargo, que merecia ser cuspido longe. — Amanda e suas meias-verdades. Você me pergunta por que... Então, por que não perguntou isso antes de... partir para Londres? Por que não me deu uma oportunidade de defender-me?
— Como é possível defender a mentira? — repliquei maldosamente, desejando magoá-lo tanto quanto fora magoada naquela noite, no momento em que Amanda se retirara do teatro.
Paul se afastou, encostou-se ao tronco de um velho carvalho e tirou do bolso um maço de cigarros. Tragou fundo, exalando lentamente a fumaça. Esta veio na minha direção, envolvendo-me a cabeça, o pescoço, o corpo e afugentando o aroma das rosas.
— Lembre-se de quando chegou aqui — começou Paul, sem apressar-se. — Sentia-se muito amargurada pela perda de Cory, sem falarmos no que sentia a respeito de sua mãe. Como poderia eu relatar-lhe minha sórdida história, quando você já passara por tanto sofrimento? Como poderia eu prever que nos tornaríamos amantes? A mim, você parecia apenas uma bela criança assustada, embora me tenha tocado profundamente. Sempre me tocou de modo muito profundo. Como me toca agora, aí parada com esse olhar acusador. Não obstante, tem razão: eu devia ter-lhe contado.
Exalou um pesado suspiro.
— Eu lhe contei a respeito do dia em que Scotty completou três anos e Júlia o levou até o rio, segurando-o sob a água até matá-lo por afogamento. Mas não lhe contei que ela continuou viva... Toda uma equipe médica trabalhou nela durante horas a fio, procurando tirá-la da coma, mas não foi possível.
— Coma? — murmurei. — Ela continua viva... e ainda em coma?
Ele sorriu com grande amargura e, depois, ergueu os olhos para a lua, que também parecia sorrir sarcasticamente. Então, voltou a cabeça e encarou-me.
— Sim, Júlia permaneceu viva, o coração batendo. Antes de você e seus irmãos chegarem à minha casa, eu ia visitá-la diariamente numa instituição particular. Sentava-me ao lado de sua cama, segurando-lhe a mão, forçando-me a olhar para o rosto abatido e o corpo esquelético... Era o melhor meio de atormentar-me e tentar lavar-me do remorso que sentia. A cada dia, vi-lhe os cabelos ficarem mais ralos, as fronhas, cobertas, tudo enfim, cheio de cabelos, enquanto Júlia definhava diante de meus olhos. Estava ligada a tubos que lhe auxiliavam a respiração, além de um tubo que a alimentava intravenosamente pelo braço. Suas ondas cerebrais eram nulas, mas o coração continuava a pulsar. Mentalmente estava morta; fisicamente, vivia. Se algum dia saísse da coma, nunca mais conseguiria falar, movimentar-se ou mesmo pensar. Tornara-se uma morta-viva aos vinte e seis anos de idade, a partir do dia em que levara meu filho ao rio para afogá-lo em água rasa. Era-me difícil acreditar que uma mulher que amasse tanto o filho fosse capaz de afogá-lo sentindo-o debater-se para sobreviver... e, não obstante, ela o fez apenas para vingar-se de mim.
Parou de falar, bateu a cinza do cigarro e tornou a olhar para mim.
— Júlia me lembra sua mãe: ambas são capazes de tudo, desde que se sintam justificadas.
Suspirei, Paul suspirou, as flores também suspiraram. Creio que as estátuas de mármore nos imitaram igualmente os suspiros, apesar de serem incapazes de compreender a condição humana.
— Quando viu Júlia pela última vez, Paul? Ela não tem a mínima possibilidade de recobrar-se totalmente?
Comecei a chorar. Paul tomou-me nos braços, beijando-me o alto da cabeça.
— Não chore por ela, minha bela Catherine. Tudo acabou para Júlia, agora, afinal, ela descansou. Morreu menos de um mês depois que nos tornamos amantes. Simplesmente partiu, tranqüila. Lembro-me de que, na ocasião, você me olhava como se pressentisse algo errado comigo. Não foi por amá-la menos que me senti obrigado a retrair-me e analisar-me. Foi uma mescla dolorosa de remorso e tristeza por alguém tão doce e linda como Júlia, a minha namorada de infância, ter que abandonar esta vida sem experimentar ao menos uma vez todas as coisas belas e maravilhosas que ela nos tem a oferecer.
Tomou-me o rosto entre as mãos e enxugou-me as lágrimas com beijos cheios de ternura.
— Agora, sorria e diga-me as palavras que lhe vejo nos olhos: diga-me que me ama. Quando trouxe Julian consigo para casa, julguei que tudo acabara entre nós, mas agora posso perceber que jamais acabará. Você me deu o que tem de melhor dentro de si e sei que mesmo quando estiver a milhares de quilômetros, dançando com homens mais bonitos e mais jovens que eu... será fiel a mim como eu serei a você. Faremos tudo dar certo porque duas pessoas que se amam sinceramente sempre podem superar todos os obstáculos, quaisquer que estes sejam
Oh!... como poderia eu contar-lhe agora?
— Júlia morreu? — indaguei com voz trêmula, profundamente chocada, odiando Amanda e a mim mesma. — Amanda mentiu... Ela sabia que Júlia morrera e, ainda assim, foi a Nova York contar-me uma mentira? Oh! Paul, que tipo de mulher ela é?
Ele me abraçou com tanta força que as costelas me doeram, mas, a despeito da dor, mantive-me agarrada a ele, pois sabia que aquela era a última vez que poderia fazê-lo. Beijei-o com violência e paixão, sabendo que jamais tornaria a sentir-lhe os lábios nos meus. Ele riu, cheio de júbilo, sentindo todo o amor e paixão que eu nutria por ele. Então, numa voz mais despreocupada e feliz, explicou:
— Minha irmã sabia quando Júlia morreu, pois compareceu ao enterro, embora se recusasse a falar comigo na ocasião. Agora, por favor, pare de chorar. Deixe-me enxugar-lhe as lágrimas.
Usou o lenço para secar meu rosto e os cantos dos olhos. Depois, entregou-o a mim para assoar o nariz. Agi como criança, a criança impulsiva e impaciente que Chris me advertira que não fosse, e traí Paul, que confiava em mim.
— Ainda não consigo compreender Amanda — lamuriei-me dolorosamente, continuando a adiar o momento da verdade que me sentia incapaz de enfrentar.
Paul abraçou-me, acariciando-me as costas e os cabelos, enquanto eu o enlaçava pela cintura, fitando-lhe o rosto.
— Querida Catherine, por que está com aparência tão esquisita e age de modo tão estranho? — indagou ele com a voz de volta ao normal. — Nada que minha irmã diga pode impedir-nos de gozar os prazeres que a vida nos oferece. Amanda deseja expulsar-me de Clairmont. Quer apoderar-se desta casa, a fim de dá-la ao filho. Portanto, faz o possível para arruinar-me a reputação. Desenvolve grande atividade social e enche os ouvidos das amigas com calúnias a meu respeito. E se existiram mulheres antes de Júlia afogar meu filho, isto foi lição suficiente para me fazer mudar de procedimento. Não existiu mulher nenhuma até você! Até mesmo ouvi boatos a respeito de Amanda ter espalhado pela cidade que engravidei você e que a D&C foi, na verdade um aborto. Como está vendo, aquela mulher vingativa é capaz de tudo!
Agora, era tarde, tarde demais. Paul tornou a me pedir que parasse de chorar.
— Amanda — disse eu, com esforço, prestes a perder o controle. — Ela afirmou que uma D&C era o mesmo que um aborto. Declarou que você guardara o embrião e que este possuía duas cabeças. Vi aquilo num vidro, em seu consultório. Como pôde guardar tal coisa, Paul? Por que não a enterrou? Um bebê monstruoso! Não é justo... não é... por quê?
Paul gemeu, passando a mão nos olhos para negar depressa tudo aquilo.
— Eu seria capaz de matá-la por lhe dizer isso! É mentira, Catherine! É mentira!
— É mesmo mentira? Bem sabe que o feto poderia ser meu. Em nome de Deus! Chris não sabe... ele não mentiu para mim, não é?
Paul pareceu frenético ao negar tudo e tentou abraçar-me outra vez, mas recuei de um salto e estendi os braços para mantê-lo à distância.
— Existe em seu consultório um vidro contendo um feto desse tipo! Eu vi! Oh! Paul, como foi capaz? Você, dentre todas as pessoas, guardar uma coisa como aquela!
— Não! — protestou ele, de imediato. — Deram-me aquilo há muitos anos, quando eu cursava a faculdade de medicina... uma espécie de pilhéria... Os acadêmicos de medicina estão sempre fazendo brincadeiras que as pessoas normais considerariam macabras. Digo-lhe a verdade, Catherine: você não abortou!
Então, calou-se bruscamente. Meus pensamentos rodavam num tumulto. Eu me traíra! Comecei a chorar. “Chris, Chris, era um bebê, um monstro, como temíamos!”
— Não! — repetiu Paul várias vezes. — Não era seu e, mesmo que fosse, não faria a menor diferença para mim. Sei que você e Chris se amam de um modo muito especial. Sempre soube, e compreendo.
— Uma vez — murmurei por entre soluços. — Apenas uma vez, numa noite terrível.
— Sinto muito que tenha sido terrível.
Então olhei para o rosto de Paul, maravilhando-me de que ele pudesse encarar-me com tanta ternura e respeito, mesmo conhecendo a verdade toda.
— Paul — murmurei, trêmula e tímida. — Foi um pecado imperdoável?
— Não... eu diria que foi um compreensível ato de amor.
Abraçou-me, beijou-me, acariciou-me as costas e começou a falar dos planos para nosso casamento.
—... Chris levará você ao altar e Carrie será a dama de honra. Chris se mostrou muito hesitante, recusando-se a encarar-me quando discuti o assunto com ele. Declarou que não a julgava bastante amadurecida para enfrentar um casamento complicado como será o nosso. Sei que não será fácil para você, nem para mim. Você viajará pelo mundo, dançando com homens jovens e bonitos; contudo, espero ansiosamente por uma oportunidade para acompanhá-la numa dessas viagens. Será inspirador e excitante ver-me como marido de uma prima ballerina. Por falar nisso, eu poderia até mesmo ser o médico da companhia de balé. Sem dúvida, os bailarinos necessitam ocasionalmente dos serviços profissionais de um médico, não é mesmo?
Senti-me morta por dentro.
— Paul — comecei, atordoada. — Não posso me casar com você.
Então, bastante fora do contexto, prossegui:
— Sabe, não foi estupidez de mamãe esconder nossas certidões de nascimento no forro daquelas maletas? Ela não fez o serviço direito e os forros se rasgaram permitindo que eu encontrasse os documentos. Sem a certidão de nascimento eu não poderia requisitar um passaporte; sem ela também não conseguiria provar que tinha idade suficiente para solicitar uma licença de casamento. Compreenda: poucos dias antes de partirmos para Londres, fizemos os exames de sangue exigidos por lei, Julian e eu; a cerimônia do casamento foi muito simples, com a presença de Madame Zolta e outros membros da companhia. Até mesmo quando pronunciei os votos conjugais, jurando fidelidade a Julian, eu estava pensando em você... em você e em Chris... detestando-me e sabendo que estava agindo errado.
Paul não disse uma palavra. Recuou como se tivesse levado um golpe na cabeça e depois cambaleou até deixar-se cair num banco de mármore. Por algum tempo, limitou-se a ficar sentado imóvel. Então, apoiou a cabeça nas mãos, escondendo o rosto.
Fiquei em pé enquanto ele permanecia sentado. Paul perdeu-se em algum lugar de sua própria mente, enquanto eu aguardava que ele voltasse a si e começasse a brigar comigo. Todavia, quando falou, sua voz foi macia como um sussurro:
— Venha sentar-se perto de mim por algum tempo. Segure minha mão. Dê-me tempo para entender que está tudo acabado entre nós.
Fiz-lhe a vontade. Segurei-lhe a mão e ambos fitamos o céu estrelado, onde também havia nesgas de nuvens negras.
— Nunca mais ouvirei seu tipo de música sem me lembrar de você...
— Perdoe-me, Paul! Quem me dera ter dado ouvidos ao meu instinto, que me dizia que Amanda mentia. Mas a música também tocava no lugar onde eu me encontrava; você estava tão distante e Julian tão perto de mim, implorando, dizendo-me que me amava e que precisava de mim. Então, convenci-me de que você não gostava realmente de mim. Não suporto viver sem alguém que me ame.
— Sinto-me muito feliz por saber que Julian a ama — disse Paul.
Então levantou-se depressa e partiu em direção à casa, em passos tão longos e rápidos que eu jamais conseguiria acompanhá-lo, mesmo que corresse atrás dele.
— Não diga mais uma só palavra! Deixe-me em paz, Catherine! Não me acompanhe! Você agiu corretamente; nunca tenha a menor dúvida a respeito! Fui um velho tolo, metendo-me a brincar com uma jovem e não precisa dizer-me que eu deveria ter mais juízo: já sei disso, muito bem!
Amores demais para perder
Surda e petrificada como uma das estátuas de mármore de Paul, sentei-me na varanda e fitei o céu noturno que se tornava tempestuoso com nuvens negras. Julian saiu da casa para sentar-se a meu lado. Em seus braços, comecei a chorar baixinho.
— Por quê? — indagou ele. — Você me ama um pouquinho, não ama? O seu doutor não pode estar realmente magoado; tratou-me de modo muito bondoso e disse-me que viesse aqui para reconfortá-la.
Naquele momento, Henny apareceu na varanda e, com sua mímica rápida como o raio, revelou que seu filho-doutor estava arrumando as malas para uma viagem e eu deveria ficar na casa.
— O que lhe diz ela? — quis saber Julian, aborrecido. — Diabo! É como ouvir alguém falar um idioma desconhecido. Sinto-me tão ignorado!
— Fique aqui e espere! — ordenei.
Então, levantei-me de um pulo e corri para dentro de casa, galgando a escada como se voasse. Entrei no quarto de Paul, onde este jogava roupas numa mala aberta em cima da cama.
— Escute! — gritei, angustiada. — Não tem motivo para partir! Esta casa é sua! Eu irei embora. Levarei Carrie comigo, de modo que você nunca mais precisará ver minha cara!
Paul virou-se para lançar-me um olhar prolongado e cheio de amargura, enquanto continuava a enfiar as camisas na mala.
— Cathy, você me tirou a esposa que eu sonhava ter um dia e agora está querendo levar minha filha. Carrie é como se fosse do meu próprio sangue. Além disso, nunca se adaptará a seu tipo de vida. Deixe-a ficar comigo e Henny. Voltarei antes de vocês partirem... E acho melhor saberem que o pai de Julian está muito, muito doente.
— Georges está doente?
— Sim. Talvez vocês não saibam que ele sofre a muitos anos de uma moléstia renal e se encontra num aparelho de diálise há vários meses. Não creio que tenha muito tempo de vida. Não é meu cliente, mas procuro visitá-lo sempre que possível, mais ou menos para saber notícias de Julian e você. Agora, Cathy, faça o favor de retirar-se e não me obrigue a dizer coisas das quais talvez eu me arrependa.
Deitei-me de bruços em minha cama e chorei com o rosto no travesseiro até que Henny entrou no quarto. Mãos escuras, fortes e maternais deram-me palmadinhas nas costas. Os úmidos olhos castanhos de Henny diziam o que sua língua não conseguia falar. Falou-me por meio de gestos e, afinal, tirou do bolso do avental um recorte do jornal local. A notícia de meu casamento com Julian!
— Henny! — lamuriei-me. — O que vou fazer? Estou casada com Julian e não posso pedir o divórcio; ele depende de mim, creia-me!
Henny sacudiu os ombros largos, indicando que as pessoas eram tão complexas para ela quanto para mim. Então, movimentou rapidamente as mãos:
— Irmã mais velha sempre criou dificuldades. Um homem já sofre; não adianta fazer dois sofrerem. Doutor homem bom, forte, sobreviverá à decepção. Mas jovem dançarino talvez não sobreviva. Enxugue as lágrimas, não chore mais. Mostre belo sorriso e desça para pegar a mão do novo marido. Tudo correrá bem. Você verá.
Segui as instruções de Henny e juntei-me a Julian na sala de estar, onde lhe disse que seu pai estava doente e prestes a morrer. Seu rosto pálido ficou ainda mais branco. Mordeu nervosamente o lábio inferior.
— É mesmo tão grave assim?
Eu sempre tivera a impressão de que Julian não ligava muito para o pai, de modo que me surpreendi com sua reação. Naquele momento, Paul entrou na sala com as malas e se ofereceu para levar-nos ao hospital.
— E não se esqueçam: minha casa tem muitos quartos e não há o menor motivo para que vocês dois cheguem a pensar em ir para um hotel. Fiquem pelo tempo que quiserem. Voltarei dentro de alguns dias.
Tirou o carro da garagem a fim de que Julian e eu pudéssemos embarcar no banco dianteiro. Quase não falamos até que Paul nos deixou à porta do hospital. Tristonha, hesitei nos degraus, observando o carro de Paul afastar-se.
Haviam instalado Georges num quarto particular e Madame Marisha lhe fazia companhia. Quando vi Georges na cama, prendi a respiração! Oh! Ficar assim! Estava tão magro que já parecia morto. O rosto tinha uma palidez acinzentada e todos os ossos se mostravam salientes, parecendo picos escarpados sob a pele fina. Madame Marisha estava encolhida ao lado do marido, fitando-lhe o rosto descarnado, implorando com os olhos, ordenando-lhe que continuasse vivo!
— Meu amor, meu amor, meu amor — repetia, como se acalentasse um bebê. — Não vá, não me deixe sozinha. Ainda temos tanto para fazer, para experimentar... Nosso filho tem que ser famoso antes de você morrer... Agüente firme, meu amor, agüente firme...
Só então Madame Marisha ergueu os olhos e nos avistou. Com a mesma autoridade de sempre, repreendeu:
— Muito bem, Julian, até que enfim você veio! Depois de todos os telegramas que lhe mandei! O que fez deles? Rasgou-os e continuou a dançar, como que nada além disso tenha importância?
Empalideci, muito espantada, e olhei de Julian para Madame.
— Minha querida mãe — replicou Julian friamente. — Estávamos cumprindo um contrato de temporada, como você bem sabe. Tínhamos assumido compromissos e, portanto, minha esposa e eu tratamos de honrá-los.
— Seu bruto desalmado! — rosnou ela, fazendo um gesto para que Julian se aproximasse. — Agora, diga algo bom e carinhoso para aquele homem na cama — sibilou ela num sussurro. — Senão, juro por Deus, farei com que deseje nunca ter nascido!
Julian encontrou grande dificuldade para fazer o esforço de aproximar-se da cama; tanto, na verdade, que fui obrigada a empurrá-lo enquanto Madame Marisha soluçava num punhado de lenços de papel cor-de-rosa.
— Olá, Papai — foi tudo que Julian conseguiu dizer, acrescentando: — Sinto muito que esteja tão doente.
Voltou depressa para junto de mim, abraçando-me com força; senti-o tremer da cabeça aos pés.
— Veja, meu amor, meu querido, minha vida — tornou a acalentar Madame Marisha, debruçando-se outra vez sobre o marido e alisando-lhe os cabelos negros lisos e úmidos. — Abra seus queridos olhos e veja quem viajou de avião milhares de quilômetros para estar a seu lado. O seu Julian e a esposa. Viajaram imediatamente de Londres quando foram informados de que você estava doente. Abra os olhos, meu coração, para vê-lo outra vez, para vê-los juntos, um belo casal de noivos... por favor, meu amor, abra os olhos, veja-os...
Sobre a cama, a caricatura pálida e esquelética de um homem entreabriu os olhos escuros, que se movimentaram devagar, procurando focalizar-se em nós. Estávamos junto aos pés da cama, mas ele pareceu não nos enxergar. Madame Marisha levantou-se a fim de empurrar-nos para mais perto do marido e depois segurou Julian, impedindo-o de recuar. Georges abriu um pouco mais os olhos e mostrou um leve sorriso.
— Ah! Julian — suspirou. — Obrigado por vir. Tenho tanto a lhe dizer... coisas que deveria ter dito antes...
Perdeu o fôlego momentaneamente e gaguejou:
— Eu deveria...
Então, interrompeu-se. Aguardei que continuasse... e fiquei aguardando. Vi seus olhos se abrirem totalmente, esgazeando-se e tornando-se vidrados. Sua cabeça ficou totalmente imóvel. Madame Marisha gritou. Um médico e uma enfermeira chegaram correndo e nos forçaram a sair do quarto. Então cuidaram de Georges.
Formamos um pequeno grupo digno de pena no corredor em frente ao quarto de Georges. Pouco tempo depois, o médico grisalho saiu para dizer que sentia muito, mas haviam feito todo o possível. Tudo terminara.
— É melhor assim — acrescentou. — A morte pode ser uma boa amiga para os que sofrem muito. Espanto-me de que ele tenha suportado tanto tempo...
Olhei fixamente para Julian. Podíamos ter regressado antes. Mas Julian assumiu um ar inexpressivo e se recusou a falar.
— Ele era seu pai! — berrou Madame Marisha, com as lágrimas correndo pelo rosto. — Sofreu durante duas semanas, esperando ver você antes de se deixar morrer e escapar do inferno da vida!
Julian girou nos calcanhares, o rosto pálido avermelhado de fúria, e replicou:
— Madame Mãe, diga apenas o que meu pai me deu! Para ele, eu era simplesmente a sua continuação! Tudo o que ele foi para mim não passou de um professor de balé! Ensaie, dance, era tudo o que ele me dizia! Jamais conversou sobre o que eu desejava além do balé; pouco ligava ao que eu desejasse ou necessitasse fora do balé! Eu queria que ele me amasse pelo que eu era; desejava que visse em mim um filho, não um bailarino! Eu o amava; queria que ele percebesse e que dissesse que retribuía meu amor... mas ele nunca o fez! Por mais que eu tentasse dançar com perfeição, ele jamais me elogiou, pois nunca fui capaz de apresentar-me como ele o fazia quando tinha minha idade! Eis o que eu era para ele: alguém que calçasse suas sapatilhas e desse continuação à sua fama! Mas, a despeito de vocês dois, tenho meu próprio nome, devidamente legalizado: Julian Marquet e não Georges Rosencoff! Portanto, o nome dele não sobreviverá para roubar-me a fama que conseguirei sozinho!
Naquela noite tomei Julian nos braços, compreendendo-o como nunca o entendera antes. Quando ele deixou de resistir e começou a chorar, chorei com ele por um pai que ele declarava desprezar, mas no fundo amava. E lembrando-me de Georges, refleti o quanto era triste que tivesse tentado, tarde demais, dizer ao filho o que já lhe devia ter dito havia muitos anos.
Assim, regressamos de uma lua-de-mel durante a qual conseguíramos uma certa dose de fama e publicidade, além de muitas e muitas horas de trabalho árduo, para comparecermos ao funeral de um pai que jamais tomaria conhecimento das realizações do filho. Toda a glória de Londres parecia-lhe agora envolta numa névoa fúnebre. Madame Marisha estendeu os braços para mim quando a cerimônia se encerrou à beira do túmulo. Tomou-me nos braços magros como outrora devia ter abraçado Julian. Ficamos enlaçadas numa espécie de transe hipnótico, ambas chorando.
— Seja boa para meu filho, Catherine — pediu-me ela, soluçando e fungando. — Tenha paciência com ele quando se portar como um selvagem. Julian não teve uma vida fácil, pois grande parte do que diz é verdade. Sempre se sentiu colocado em competição com o pai e nunca conseguiu sobrepujar a capacidade deste. Agora, vou dizer-lhe uma coisa: o meu Julian nutre por você um amor quase sagrado. Julga que você foi a melhor coisa que lhe aconteceu na vida e, para ele, você não tem defeitos. Se tiver, esconda-os. Num espaço de apenas poucos meses, apaixonou-se e desapaixonou-se uma centena de vezes. Você o frustrou durante anos. Portanto, agora que ele é seu marido, dê-lhe generosamente todo o amor que lhe foi negado, pois não sou uma mulher expansiva. Sempre desejei ser, mas de algum modo nunca consegui humilhar-me e ser a primeira a tocá-lo. Toque-o com freqüência, Catherine. Segure-lhe a mão quando ele fizer menção de afastar-se e emburrar-se. Compreenda por que motivo ele é instável e ame-o três vezes mais por causa disso. Dessa forma, extrairá dele o que possui de melhor, pois Julian tem qualidades admiráveis. Tem que ter, pois é filho de Georges.
Beijou-me, despediu-se e fez-me prometer visitá-la muitas vezes em companhia de Julian.
— Arranjem um cantinho para mim em suas vidas — pediu-me com um ar tristonho que lhe alongava o rosto e ensombrecia os olhos.
Entretanto, quando prometi e virei o rosto, Julian nos observava com um olhar duro.
Chris voltou para casa nos feriados da Páscoa e cumprimentou Julian sem entusiasmo. Percebi que Julian o observava com olhos semicerrados, cheios de suspeita. Tão logo Chris e eu ficamos a sós, meu irmão berrou:
— Você se casou com ele? Por que não pôde esperar? Como pôde ter tanta intuição quando estávamos presos e ser tão idiota agora, que estamos em liberdade? Eu estava errado em não querer que se casasse com Paul apenas porque ele é muito mais velho que você! E confesso que sentia ciúmes, não querendo que você se casasse com ninguém. Sonhava que você e eu... Bem, você sabe o que eu sonhava. Mas se tinha que haver uma escolha entre Paul e Julian, que fosse Paul! Foi ele quem nos acolheu, deu-nos alimentos e roupas; é ele quem nos dá tudo o que podemos desejar neste mundo. Não gosto de Julian. Ele a destruirá.
Hesitou, virando-se de costas para esconder o rosto. Tinha vinte e um anos e começava a assumir a força viril de um homem adulto. Nele eu via muito de nosso pai e também de nossa mãe. E, quando queria, eu era capaz de torcer as coisas em meu proveito, de modo que pensei que, sob certos aspectos, Chris era mais semelhante a Mamãe que a Papai. Comecei a dizer isto, mas também perdi o rumo e me calei, pois não poderia dizer tal coisa a meu irmão. Este nada tinha de semelhante à nossa mãe! Chris era forte... ela era fraca. Chris era nobre; ela não possuía o mínimo senso de honradez.
— Chris... não dificulte as coisas para mim. Sejamos amigos novamente. Julian é esquentado e arrogante, e mais uma porção de coisas que irritam a gente à primeira vista. No fundo, porém, não passa de um menino.
— Mas você não o ama — replicou Chris, sem me encarar.
Julian e eu partiríamos dentro de poucas horas. Convidei Carrie a vir morar conosco em Nova York, mas ela perdera a confiança em mim. Eu a traíra muitas vezes e ela deixou isto bem claro:
— Cathy, volte para Nova York, onde neva o tempo todo, os assaltantes atacam as pessoas no parque e os assassinos pegam suas vítimas no metrô, mas deixe-me aqui! Antes, eu queria ficar sempre perto de você; agora pouco me importo com isso! Você partiu e se casou com aquele tal Julian de olhos negros, quando poderia tornar-se esposa do Dr. Paul e ser minha mãe de verdade! Eu me casarei com ele! Se julga que ele não me aceitará porque sou muito pequena, está muito enganada. Você acha que ele é velho demais para mim, mas eu nunca conseguirei arranjar alguém para casar-se comigo, de modo que ele ficará com pena e me aceitará como esposa. Teremos seis filhos. Espere e verá!
— Carrie...
— Cale a boca! Não gosto de você, agora! Vá embora! Fique longe daqui! Dance até morrer! Chris e eu não queremos você! Ninguém aqui quer você!
Aquelas palavras, pronunciadas aos berros, me feriram! A minha Carrie, gritando-me que fosse embora, quando eu fora como uma mãe para ela durante a maior parte de sua vida. Então virei-me para olhar Chris, que se postara junto às roseiras, os ombros caídos, tendo nos olhos (Oh! aqueles olhos tão azuis...) a expressão que sempre me acompanharia. Nunca, jamais seu amor me libertaria para amar sem reservas outro homem, pelo menos, enquanto ele continuasse a amar-me.
Uma hora antes de termos que partir para o aeroporto, o carro de Paul entrou pela alameda de acesso à casa. Ele sorriu para mim como sempre costumava fazer, como se nada houvesse mudado entre nós. Contou a Julian algo a respeito de um congresso médico que o mantivera afastado de casa, acrescentando que se sentia profundamente entristecido com a notícia da morte de Georges. Apertou a mão de Chris e deu-lhe calorosas palmadas nas costas, da maneira como os homens costumam demonstrar afeição mútua. Cumprimentou Henny, beijou Carrie, dando-lhe uma caixa de balas, e só então olhou para mim.
— Olá, Cathy.
Aquilo me disse muita coisa. Eu já não era Catherine, uma mulher a quem ele era capaz de amar de igual para igual; retroagira à posição de uma filha.
— Cathy, vocês não podem levar Carrie para Nova York. O lugar dela é aqui, comigo e Henny, de modo que possa rever periodicamente o irmão. Além disso, eu não gostaria que ela trocasse de escola.
— Eu não abandonaria vocês por nada deste mundo — declarou Carrie fielmente.
Julian subiu para terminar de arrumar suas bagagens e atrevi-me a seguir Paul até o jardim, a despeito do olhar proibitivo de Chris. Paul, ainda usando o terno elegante, apoiara um joelho na terra para arrancar algumas ervas daninhas que alguém esquecera de limpar. Levantou-se depressa ao escutar meus passos e limpou as calças. Então, fitou o espaço, como se a última coisa que desejasse neste mundo fosse olhar para mim.
— Paul... hoje seria o dia de nosso casamento.
— É mesmo! Esqueci-me.
— Não se esqueceu — repliquei, aproximando-me dele. — O primeiro dia da primavera, um novo início, foi o que você disse. Sinto muito ter estragado tudo. Fui uma idiota por acreditar em Amanda. Fui duas vezes idiota por não haver esperado para conversar com você antes de me casar com Julian.
— Não falemos mais no assunto. Tudo acabou, em definitivo — disse ele com um pesado suspiro, avançando voluntariamente para tomar-me nos braços. — Cathy, parti para ficar sozinho. Quando você perdeu a fé em mim, voltou-se impulsivamente, mas com sinceridade, para o homem que a ama há alguns anos. Qualquer pateta que não seja cego seria capaz de perceber o fato. E, se é capaz de ser franca consigo mesma, admita que está apaixonada por Julian durante quase o mesmo tempo que ele a ama. Acredito que você tenha guardado seu amor por ele numa prateleira por pensar que me devia...
— Pare com isso! Amo você e não ele. Sempre amarei você!
— Está totalmente confusa, Cathy... Você me quer, mas quer Julian; deseja segurança, mas também deseja aventura. Julga que pode ter tudo, mas está enganada. Há muito tempo eu lhe disse que a primavera não combina com o outono. Fizemos e dissemos um bocado de coisas para convencer-nos de que a diferença de idade entre nós nada significa; mas ela é importante. E não se trata apenas da diferença de idade, mas também do espaço que nos separaria. Você estaria dançando em alguma parte do mundo enquanto eu permaneceria aqui, enraizado e ocupado. Ficaríamos juntos apenas algumas semanas por ano. Em primeiro lugar sou médico, depois marido. Mais cedo ou mais tarde você descobriria o fato e, eventualmente, voltar-se-ia para Julian.
Sorriu e beijou com ternura as lágrimas que eu já derramara. Em seguida, disse-me que o destino sempre distribui as cartas certas.
— E ainda nos veremos. Não nos perdemos um do outro para sempre. Além disso, ainda tenho a lembrança de como tudo foi maravilhosamente doce e excitante entre nós.
— Você não me ama! — gritei acusadoramente. — Nunca me amou, ou não estaria aceitando a situação com tanta calma!
Ele riu baixinho e acalentou-me nos braços, como um pai.
— Querida Catherine, minha bailarina de sangue quente, que homem não a amaria? Como pôde aprender tanto a respeito do amor trancada num sótão úmido e escuro?
— Nos livros — respondi.
Mas as lições que aprendera não vinham dos livros. Paul enfiou os dedos em meus cabelos, mantendo os lábios próximos aos meus.
— Jamais me esquecerei do melhor presente de aniversário, que já recebi — disse ele, com o hálito quente em meu rosto.
Fez uma pausa.
— Agora, eis como será daqui por diante — declarou em tom firme. — Você e Julian regressarão a Nova York, onde você será para ele a melhor esposa possível. Ambos farão das tripas coração para incendiarem o mundo com sua dança. E você tem que decidir nunca mais olhar para trás com arrependimento. Esqueça-se de mim.
— E você? ... O que será de você?
Ele ergueu a mão e alisou o bigode.
— Ficaria espantada se soubesse o que este bigode fez em favor do meu sex appeal. Nunca mais o rasparei.
Rimos. Um riso verdadeiro, sem fingimento. Então tirei do dedo o anel de brilhante de dois quilates e tentei devolvê-lo a Paul.
— Não! Absolutamente. Quero que fique com o anel. Guarde-o para empenhá-lo quando ou se vier a precisar de um pouco de dinheiro extra.
Julian e eu voltamos a Nova York e procuramos durante semanas até encontrarmos o apartamento adequado e acolhedor. Julian queria algo muito mais elegante, mas somando o que ganhávamos, não nos atrevemos a morar no apartamento de cobertura que Julian julgava apropriado para nós.
— Mesmo assim, mais cedo ou mais tarde ainda havemos de morar numa cobertura perto do Central Park, com um terraço cheio de plantas verdadeiras.
— Não temos tempo de sobra para cuidar de plantas e flores verdadeiras — repliquei, já tendo gasto muito tempo e esforço para manter flores e plantas vivas e saudáveis. — E quando formos visitar Carrie, sempre poderemos aproveitar os jardins de Paul.
— Não gosto daquele seu médico.
— Ele não é meu médico! — protestei, com uma sensação esquisita, atemorizando-me sem motivo. — Por que não gosta de Paul? Todo mundo gosta muito dele.
— Sim, eu sei — respondeu ele secamente, parando com o garfo entre o prato e os lábios e fixando-me um olhar solene. — É exatamente esse o problema, minha querida esposa: acho que você gosta demais dele, até mesmo agora. E tem mais: também não morro de amores por seu irmão. Sua irmã é legal. Pode convidá-la para visitar-nos de vez em quando. Mas não se esqueça, nem por um segundo, que agora eu ocupo o primeiro lugar em sua vida. Nem Chris, nem Carrie, nem muito menos aquele médico de quem você foi noiva. Não sou cego ou estúpido, Cathy. Eu já o vi olhar para você e, embora não saiba até que ponto de intimidade chegaram, acho melhor você esquecer o passado!
Invadida pelo pânico, baixei a cabeça. Meus irmãos eram como prolongamentos de mim mesma! Eu necessitava deles como parte ativa de minha vida e não apenas na periferia. O que fizera eu? Tive a espantosa premonição de que Julian seria meu amantíssimo guardião, meu carcereiro, com o qual eu ficaria aprisionada como estivera naquele quarto trancado de Foxworth Hall! Só que desta feita eu teria liberdade para locomover-me até onde sua corrente invisível permitisse.
— Eu a amo como um louco — declarou Julian, terminando a refeição. — Você é a melhor coisa que já me aconteceu. Quero tê-la a meu lado o tempo todo, nunca fora de meu campo de visão. Preciso de você para me manter na linha. Às vezes bebo demais e então fico malvado, muito malvado, Cathy. Quero você para tornar-me o que julga que sou no palco; não desejo magoá-la.
Naquele momento ele me tocou, pois compreendi que fora terrivelmente ferido como eu também fora e se desapontara tanto com o pai, da mesma forma que minha mãe me decepcionara. E Julian precisava de mim. Talvez Paul tivesse razão. O destino se utilizara de Amanda para distribuir as cartas certas, de modo que Julian e eu fôssemos ganhadores e não perdedores. Juventude clama por juventude e Julian era jovem, bonito, um bailarino talentoso e encantador, quando resolvia sê-lo. Eu sabia que ele possuía uma faceta cruel, obscura. Já tivera oportunidade de experimentar parte dela... mas era capaz de domá-lo. Não permitiria que ele fosse meu soberano e juiz, meu superior ou amo. Dividiríamos tudo pela metade, compartilhando em termos de igualdade. E, eventualmente, numa radiante manhã ensolarada, eu acordaria para deparar com seu rosto mal barbeado e descobriria que o amava. Compreenderia que o amava mais do que já amara antes qualquer outra pessoa.
Sonhos realizados
Enquanto Julian e eu trabalhávamos como escravos para chegar ao topo do mundo do balé, Chris brilhava na escola preparatória e, no quarto ano, ingressou num programa acelerado para estudantes de medicina, completando o quarto ano da escola preparatória e, simultaneamente, cursando o primeiro ano da faculdade de Medicina.
Veio de avião a Nova York, explicar-me tudo enquanto passeávamos de mãos dadas pelo Central Park. Era primavera e as aves gorjeavam, coletando alegremente os gravetos de que necessitavam para a construção de seus ninhos.
— Chris, Julian desconhece sua presença na cidade e prefiro que continue a ignorá-la. Tem um ciúme terrível de Paul e de você também. Ficaria insultado se eu não o convidasse para jantar?
— Claro que ficaria — replicou Chris, teimoso. — Vim de longe visitar minha irmã e é o que pretendo fazer. E não furtivamente, às escondidas. Você pode dizer a Julian que vim visitar Yolanda. Além disso, tenciono ficar na cidade apenas o fim-de-semana.
Julian tinha uma obsessão possessiva em relação a mim, como um filho único que necessitasse de mimos constantes; eu não me importava, exceto quando ele tentava manter-me afastada de minha família.
— Está certo. No momento Julian está ensaiando e pensa que estou em casa, cuidando das coisas antes de juntar-me a ele esta tarde. Mas trate de manter-se distante de Yolanda, Chris, pois ela só lhe poderá causar encrencas. Tudo o que ela faz com um homem é novidade para a companhia no dia seguinte.
Meu irmão fitou-me de modo estranho.
— Cathy, estou pouco ligando para Yolanda. Ela é apenas minha desculpa para ver você; sei que seu marido me detesta.
— Eu não chamaria exatamente de “detestar”...
— Está bem. Chame de ciúmes. Mas seja lá como for, ele não vai me afastar de você — replicou Chris, assumindo um tom muito sério. — Cathy, sempre que você e Julian parecem estar prestes a conquistar fama e sucesso, acontece alguma coisa que os impede de serem os astros que merecem. O que é?
Sacudi os ombros. Não sabia o que era. Na minha opinião, Julian e eu éramos tão dedicados à dança quanto quaisquer outros bailarinos, talvez ainda mais que estes. Não obstante, Chris tinha razão: apresentávamos um desempenho sensacional, colocando os críticos em polvorosa e depois decaíamos. Talvez Madame Zolta quisesse transformar-nos em super astros, a fim de não abandonarmos seu grupo e nos juntarmos a outra companhia de balé.
— Como vai Paul? — indaguei ao nos sentarmos num banco manchado de sol e sombra.
Chris pegara a minha mão, apertando-a com força.
— Paul é Paul... nunca muda. Carrie o adora e é adorada por ele. Paul me trata como um irmão mais moço de quem se orgulhasse muito. E na verdade, Cathy, não acredito que conseguisse prosseguir tão depressa sem o auxílio e orientação que ele me deu.
— Ele ainda não encontrou outra pessoa para amar? — indaguei em voz tensa, pois não acreditava totalmente nas cartas que Paul me escrevia para dizer que não gostava de mulher nenhuma.
— Cathy — disse Chris, pegando-me o queixo com ternura e obrigando-me a encará-lo. — Como poderia Paul encontrar alguém igual a você?
A expressão de seu olhar quase me fez chorar. O passado jamais me libertaria?
Mal Julian avistou Chris e os dois começaram a discutir.
— Não quero você dormindo sob meu teto! — esbravejou Julian. — Não gosto de você; jamais gostei e jamais gostarei! Portanto, trate de cair fora daqui e esquecer que tem uma irmã!
Chris saiu para hospedar-se num hotel e encontramo-nos às escondidas uma ou duas vezes antes que ele regressasse à faculdade. Desanimada voltei para assistir à aula com Julian e depois ensaiar à tarde e apresentar o espetáculo à noite.
Às vezes, tínhamos os papéis principais, outras vezes dançávamos papéis secundários e, em certas ocasiões, como punição por algum comentário sarcástico de Julian sobre Madame Zolta, dançávamos como parte do corps de ballet. Chris passou três anos sem voltar a Nova York.
Quando Carrie completou quinze anos, veio passar conosco seu primeiro verão em Nova York. Hesitante e parecendo amedrontada pela longa viagem de avião que fizera sozinha, caminhou devagar por entre a multidão buliçosa e barulhenta que lotava o terminal do aeroporto. Julian foi o primeiro a avistá-la. Soltando um grito, correu para tomá-la nos braços.
— Olá, minha linda cunhada! — cumprimentou, fazendo questão de beijar-lhe o rosto. — Ora, como cresceu e ficou parecida com Cathy! Daqui a pouco, será impossível notar a diferença, portanto, tome cuidado! Tem certeza de que não quer ser bailarina?
Carrie sentiu-se feliz e segura pelo prazer que Julian mostrava em revê-la e reagiu depressa, abraçando-o pelo pescoço. Durante os três anos que Julian e eu estávamos casados, Carrie aprendera a gostar de meu marido pelo que este aparentava ser.
— Não se atreva a me chamar de Fadinha! — replicou ela, rindo.
Era uma piada que costumávamos repetir, pois Julian afirmava que Carrie tinha o tamanho exato para fazer no palco o papel de uma fada e não se cansava de repetir que ainda não era tarde demais para ela tornar-se uma grande bailarina. Se qualquer outra pessoa chegasse a fazer tal insinuação, Carrie ficaria profundamente ofendida; partindo de Julian, porém, era um elogio de alguém que ela tanto admirava, dando-lhe a capacidade de transformar-se numa fada através de simples movimentos com os membros. Carrie entendia que Julian aplicava o termo “fadinha” como lisonja e não como alusão a seu tamanho diminutivo.
Então chegou minha vez de abraçar Carrie. Eu a amava tanto que fiquei sufocada pela sensação como se estreitasse nos braços uma criança saída de minhas próprias entranhas. Entretanto, jamais houve uma ocasião em que eu fitasse Carrie sem sentir saudades de Cory, que deveria estar ao lado dela. Se Cory ainda estivesse vivo, teria crescido apenas o suficiente para chegar a um metro e trinta e cinco de estatura? Carrie e eu rimos, choramos, trocamos novidades, até que ela me segredou, fora do alcance dos ouvidos de Julian:
— Já não uso soutien de treinamento; ganhei um de verdade!
— Eu sei — sussurrei em resposta. — A primeira coisa que notei foi seu busto.
— É mesmo? — perguntou Carrie, parecendo deleitada. — Conseguiu ver meus seios? Não pensei que aparecessem tanto.
— Ora, claro que aparecem — afirmou Julian, que não deveria ter chegado tão sorrateiramente para escutar aquela troca de confidências entre duas irmãs. — É a primeira coisa que meus olhos procuram depois de fitarem um rosto fabuloso. Você sabe que possui um rosto fabuloso, Carrie? Acho até que sou capaz de largar minha mulher para me casar com você.
Aquele comentário não me bateu bem nos ouvidos. Havíamos discutido muitas vezes porque Julian gostava demais de meninas pequenas. Contudo eu estava decidida a não permitir que coisa alguma estragasse as férias de Carrie em Nova York, na primeira vez que ela viera sozinha. Julian e eu tínhamos elaborado uma espécie de escala de modo a podermos mostrar tudo a Carrie. Pelo menos havia um membro de minha família que Julian aceitava.
Os meses pareceram voar e, afinal, a primavera pela qual tanto esperávamos chegou. Julian e eu estávamos em Barcelona, gozando as primeiras férias de verdade que tínhamos desde nosso casamento. Cinco anos e três meses de vida conjugal e ainda existiam ocasiões em que Julian me parecia um desconhecido. Madame Zolta sugerira as férias, julgando uma boa idéia visitarmos a Espanha a fim de estudar o estilo de dança chamado flamenco. Usando um carro alugado, viajamos de cidade em cidade, adorando o lindo panorama. Gostávamos de cear bem tarde e passar sestas sonolentas deitados no litoral rochoso da Côte d'Azur, mas, sobretudo, adoramos a música e a dança espanholas.
Madame Zolta elaborara um roteiro de nossa viagem pela Espanha, relacionando todas as aldeias que cobravam preços irrisórios. Era avarenta e fazia questão de ensinar todos os seus truques aos membros da companhia de balé. Se ocupássemos um dos pequenos bangalôs próximos ao prédio principal do hotel e cozinhássemos em casa, o preço seria ainda menor. Portanto era lá que Julian e eu nos encontrávamos no dia em que chegou o convite para a formatura de Chris. O envelope atravessara a Espanha atrás de nós, alcançando-nos em Barcelona.
Meu coração deu um salto quando avistei o grosso envelope cor de creme, sabendo o que ele continha (afinal!) a participação do sucesso de Chris: sua formatura em Medicina. Era como se eu, pessoalmente, tivesse conseguido a proeza de completar a escola preparatória e a faculdade de medicina em apenas sete anos!
Utilizei cuidadosamente um abridor de cartas, a fim de poder guardar aquilo em meu álbum de lembranças e sonhos, alguns dos quais já se tornavam realidade. Dentro do envelope estavam não só a participação formal do evento, como também um bilhete escrito por Chris com evidente modéstia:
“Sinto-me embaraçado por informar que fui o primeiro classificado numa turma de duzentos acadêmicos de medicina. Não se atreva a arranjar desculpas para não comparecer. Tem que estar presente para aquecer-me com seu entusiasmo, assim como eu me aquecerei com as radiações de sua admiração. Simplesmente não posso receber meu diploma de médico se você não estiver aqui para assistir. E pode dizer isto a Julian quando ele tentar impedi-la de vir.”
O mais aborrecido em tudo aquilo era que Julian e eu tínhamos assinado, algum tempo antes, um contrato para gravar em tape uma produção de Gisele para a TV. Estava marcado para junho, mas queriam nossa presença agora, em maio. Tínhamos absoluta certeza de que a divulgação pela televisão faria de nós os astros que tanto ansiávamos por tornar-nos.
Pareceu-me a ocasião ideal para dar a notícia a Julian. Voltáramos ao nosso bangalô após visitarmos velhos castelos. Após a refeição noturna, sentamo-nos na varanda bebericando um vinho tinto que Julian adorava, mas que me causava dores de cabeça. Só então me atrevi a abordar timidamente o assunto de voltarmos aos Estados Unidos a tempo para a formatura de Chris, em maio.
— Na verdade, teremos tempo para comparecer à cerimônia e voltarmos com bastante sobra para iniciarmos os ensaios de Gisele.
— Ora, deixe disso, Cathy! — replicou Julian, impaciente. — É um papel difícil para você. Estará cansada e precisará de tempo para repousar.
Protestei. Duas semanas era tempo suficiente... e um tape de TV não levava muito tempo.
— Por favor, querido, vamos. Eu ficaria doente se não visse meu irmão receber o diploma de médico. Você também ficaria, se seu irmão estivesse atingindo uma meta após esforçar-se por tantos anos.
— Que diabo! Não! — explodiu ele, semicerrando os olhos negros que me lançavam centelhas. — Já estou farto de tanto escutar Chris isto, Chris aquilo! E se não é o nome de Chris que me martela aos ouvidos, é Paul isto, Paul aquilo! Você não vai!
Implorei-lhe que fosse razoável:
— Chris é meu único irmão; a formatura é tão importante para mim quanto para ele! Você é incapaz de entender o quanto isso significa não só para ele, mas para mim também! Talvez pense que ele e eu levamos uma vida de luxo comparada com a sua, mas pode ter certeza de que não foi um piquenique para nós!
— Você nunca me fala do passado! — foi a resposta brusca. — Parece exatamente que nasceu no dia em que encontrou o seu precioso Dr. Paul! Agora, Cathy, você é minha esposa e seu lugar é ao meu lado! O seu Paul tem Carrie e ambos estarão lá de modo que seu irmão será aplaudido quando receber aquele maldito diploma!
— Você não pode me dizer o que devo ou não fazer! Sou sua esposa, não sua escrava!
— Não quero mais falar no assunto — disse Julian, levantando-se e pegando-me pelo braço. — Venha, vamos dormir. Estou cansado.
Sem dizer uma palavra, permiti que ele me puxasse até o quarto, onde comecei a despir-me. Todavia, Julian se aproximou para ajudar-me e, desta maneira, fui informada de que seria uma noite de amor, ou melhor, de sexo. Empurrei-lhe as mãos para longe de mim. Franzindo a testa, ele tornou a colocá-las em meus ombros e se debruçou para mordiscar-me o pescoço; acariciou-me os seios e fez menção de abrir-me o soutien. Dei-lhe tapas nas mãos e gritei:
— Não!
Mas Julian insistiu em tirar-me o soutien. Depois, com a mesma facilidade com que trocaria de máscaras, desfez-se da raiva e assumiu um ar romântico e sonhador.
Houve uma época em que Julian parecera ser o epítome de tudo quanto era sofisticado, mundano, elegante, mas em comparação com o que se tornara após a morte do pai não passava de um matuto desajeitado. Havia ocasiões em que eu realmente o detestava. E esta era uma delas.
— Eu vou, Julian! Pode vir comigo ou ir encontrar-me em Nova York quando eu voltar da cerimônia de formatura. Ou pode ficar aqui, emburrado e sozinho. De qualquer maneira eu vou! Prefiro que venha comigo e participe do regozijo da família, pois nunca participou de nada e me mantém afastada para que eu também não participe. Mas, desta vez, não me pode impedir! É importante demais!
Julian escutou calado, com um sorriso que me provocou arrepios na espinha. Oh! O quanto ele era capaz de parecer maldoso!
— Escute bem uma coisa, minha amada esposa: quando se casou comigo, tornei-me seu senhor e soberano, portanto, ficará ao meu lado até que eu a mande embora. E ainda não estou disposto a fazê-lo. Não me deixará sozinho na Espanha quando não sei falar espanhol. Talvez você consiga aprender idiomas através de discos, mas sou incapaz disso.
— Não me ameace, Julian — repliquei friamente, embora recuasse e me sentisse invadir por um pânico latejante. — Excetuando eu, não tem quem ligue para você a não ser, talvez, sua mãe. E como não quer saber dela, quem lhe resta?
Ele estendeu a mão para esbofetear-me ambos os lados do rosto. Fechei os olhos, resignada a aceitar tudo o que ele me fizesse, desde que pudesse ir à formatura de Chris. Permiti que Julian me despisse e fizesse tudo o que desejava, embora ele me agarrasse as nádegas com tanta força a ponto de machucá-las. Quando me decidia a isso, eu era capaz de sair de mim mesma e transformar-me em mera espectadora. O que ele me fez foi espantoso, mas não importou realmente, pois não tomei parte no ato, o que só acontecia quando a dor era muito forte, como ocorria ocasionalmente.
— Não tente escapulir às escondidas — advertiu Julian com voz abafada, pois beijava-me o corpo todo, brincando comigo como um gato faz com o rato quando não sente fome. — Dê-me sua palavra de honra de que ficará comigo e não comparecerá à formatura de seu querido e amado irmão. Fique com o marido que precisa de você, que a adora, que não consegue viver sem a sua presença.
Zombava de mim, pois sua necessidade era a de uma criança que precisa da mãe. Eis o que eu me tornara para ele: sua mãe em tudo, exceto no sexo. Tinha que escolher seus ternos, camisas, meias e gravatas; opinar sobre as roupas que usava no palco, suas malhas de ensaio. Não obstante, recusava-se terminantemente a permitir que eu cuidasse da economia doméstica.
— Não farei um juramento tão injusto. Chris veio ver você dançar e não há dúvida de que você adorou exibir-se para ele. Agora, dê-lhe uma oportunidade; ele merece, pois trabalhou duro para conseguir o diploma.
Então libertei-me dos braços de Julian e fui vestir uma camisola de renda preta que ele gostava que eu usasse. Eu detestava roupas intimas e camisolas negras; lembravam-me prostitutas... e minha própria mãe, que tinha mania de lingerie preta.
— Pare de ficar ajoelhado, Julian. Parece ridículo. Nada pode fazer contra mim se eu resolver ir. Equimoses apareceriam e, além disso, está tão acostumado a meu peso e equilíbrio que nem mesmo seria capaz de levantar adequadamente outra bailarina.
Ele avançou raivosamente para mim.
— Está zangada porque não atingimos o topo da profissão, não é mesmo? Culpa-me porque nossos compromissos foram cancelados. E agora Madame Zolta concedeu-nos férias para que eu possa me acalmar e voltar refrescado, completamente refeito por passar algum tempo brincando à vontade com minha esposa. Cathy, não sei como me divertir exceto dançando; não me interesso por livros ou museus, como você. Além disso, existem maneiras de ferir e humilhar sem deixar equimoses, exceto no ego. Você já devia saber muito bem a esta altura.
Cometi a tolice de sorrir, quando devia ter juízo bastante para não desafiá-lo num momento em que não se sentia confiante em si mesmo.
— Qual é o problema, Jule? A pausa para atividade sexual não bastou para saciar sua ânsia de perversões? Por que não sai para procurar uma colegial? Pois recuso-me a cooperar com você.
Nunca antes eu lhe jogara no rosto ter conhecimento de suas farras com menininhas; A princípio, logo que descobrira a verdade, eu ficara magoada, mas agora compreendia que ele usava aquelas meninas como guardanapos de papel, para serem jogados fora quando sujos; então Julian voltava para mim, dizendo-me que me amava, que necessitava de mim, que eu era a única.
Ele avançou devagar, com os movimentos felinos que indicavam que se comportaria impiedosamente. Contudo, mantive-me de cabeça erguida, sabendo que poderia fugir por meio de desligar-me mentalmente e que ele não se podia dar ao luxo de espancar-me e deixar marcas. Julian parou a um passo de distância. Escutei o bater do despertador da mesinha de cabeceira.
— Cathy, se sabe o que é melhor para você, fará exatamente o que eu mandar.
Naquela noite, Julian foi cruel, malvado e vingativo; forçou-me a coisas que só devem ser feitas com amor. Desafiou-me a morder a isca. E desta vez eu não teria apenas um olho inchado, mas talvez os dois, ou ainda pior.
— Direi a todo mundo que você está doente. Seu período menstrual provoca-lhe cólicas tão fortes que você nem consegue dançar. E não poderá fugir às escondidas de mim, ou mesmo dar um telefonema, porque eu a amarrarei à cama e esconderei seu passaporte.
Sorriu e esbofeteou-me de leve.
— Agora, queridinha, o que fará desta vez?
Sorridente, tendo voltado ao normal, Julian caminhou inteiramente despido até a mesa do café da manhã, deixou-se cair numa cadeira e esticou as belas pernas bem torneadas, indagando com naturalidade:
— Que temos para o café?
Estendeu os braços para que eu pudesse aproximar-me e beijar-lhe os lábios, o que fiz obedientemente. Sorri, afastei a mecha de cabelos negros que lhe caía sobre a testa, servi-lhe café e respondi:
— Bom dia querido. Para você, o mesmo café de sempre: presunto com ovos fritos. Para mim, uma omelete de queijo.
— Desculpe-me, Cathy — murmurou ele. — Por que sempre tenta ressaltar o meu lado ruim? Só uso aquelas garotas a fim de poupar você.
— Se elas não se importam, eu também não me incomodo... mas nunca mais me obrigue a fazer o que fez ontem à noite. Sou perita em odiar, Julian. Tanto quanto você é perito em obrigar. E sou uma expert em alimentar sonhos de vingança!
Coloquei-lhe no prato dois ovos e duas fatias de presunto frito. Nem torradas, nem manteiga. Comemos em silêncio. Sentado no lado oposto da mesa forrada com uma toalha quadriculada de vermelho e branco, recém-barbeado, limpo, cheirando a sabonete e loção de barba, Julian, à sua maneira exótica, moreno e despreocupado, era o homem mais bonito que eu já vira.
— Cathy, hoje você ainda não disse que me ama.
— Eu o amo, Julian.
Uma hora após o café da manhã, eu procurava loucamente por todas as partes do quarto o meu passaporte, enquanto Julian dormia na cama, para onde eu o arrastara da cozinha depois que ele adormecera sob o efeito de todos os sedativos que eu lhe colocara no café.
Ele não era tão bom em questão de esconder quanto eu era em achar. Encontrei o passaporte sob o tapete azul embaixo da cama. Enfiei rapidamente roupas nas malas. Depois de arrumar as bagagens e vestir-me para sair, debrucei-me sobre Julian e dei-lhe um beijo de despedida. Ele respirava de maneira profunda e regular, com um leve sorriso; talvez as drogas lhe proporcionassem sonhos agradáveis. Embora eu o tivesse drogado, hesitei, imaginando se teria agido corretamente. Então, sacudindo os ombros para livrar-me da indecisão, encaminhei-me à garagem. Sim, eu fizera o que precisava. Se Julian estivesse acordado naquele momento, passaria o dia inteiro colado a mim, com meu passaporte no bolso. Eu lhe deixara um bilhete explicando aonde ia.
Paul e Carrie receberam-me no aeroporto, na Carolina do Norte. Eu não via Paul há três anos. Desci a rampa com os olhos pregados nos dele. Com o rosto erguido para mim, era obrigado a franzir a testa contra o sol às minhas costas.
— Alegro-me por você ter vindo — declarou. — É uma pena Julian não poder acompanhá-la.
— Ele também teve muita pena disso — repliquei, encarando-o.
Paul era o tipo de homem que melhora com a idade. O bigode que eu o convencera a deixar crescer continuava firme e duas covinhas apareciam quando ele sorria.
— Está procurando cabelos brancos? — brincou ele quando o fitei prolongadamente demais e, talvez, com demasiada admiração. — Se encontrar algum, mostre-me e mandarei o barbeiro retocá-los. Ainda não me considero pronto para ficar grisalho. Gosto de seu penteado; torna-a ainda mais bela. Todavia, está magra demais. O remédio de que precisa é bastante comida preparada por Henny. Sabe, ela está na cidade, na cozinha de um pequeno motel preparando aqueles pãezinhos caseiros que seu irmão tanto adora. É o presente de Henny por ele se tornar mais um “filho-doutor”.
— Chris recebeu meu telegrama? Sabe que estou chegando?
— Ora, claro que sim! Estava louco de nervosismo, temendo a cada instante que Julian a impedisse de afastar-se dele e sabendo que Julian não viria. Francamente, Cathy, se você não viesse, creio que Chris se recusaria a receber o diploma.
Sentar-me junto a Paul, com Henny ao lado dele e Carrie perto de mim, para ver o meu Chris percorrer o corredor central e galgar os degraus da plataforma a fim de receber o diploma e, em seguida, fazer o discurso como orador da turma, trouxe-me lágrimas aos olhos e encheu-me o coração de felicidade. Meu irmão comportou-se de forma tão linda que cheguei a chorar. Paul, Henny e Carrie também derramaram lágrimas. Nem mesmo meu sucesso no palco poderia comparar-se ao orgulho que me invadia naquele momento. E Julian também deveria estar presente, fazendo parte de minha família e não teimando em apresentar uma resistência perene.
Lembrei-me também de nossa mãe, que deveria ali estar para ver tudo aquilo. Eu sabia que ela se encontrava em Londres, pois continuava a acompanhar-lhe a movimentação pelo mundo. Esperando; sempre esperando revê-la. O que faria eu quando isso acontecesse? Tremeria de medo e permitiria mais uma vez, que ela escapasse? De uma coisa eu tinha certeza: ela seria informada de que seu filho mais velho estava formado em Medicina, pois eu tomaria a providência de comunicar-lhe, da mesma forma que a mantinha ao corrente do que Julian e eu fazíamos.
Naturalmente, a essa altura eu já conhecia o motivo pelo qual minha mãe estava sempre viajando de um lugar para outro: tinha medo de que eu a alcançasse! Ela estava na Espanha quando Julian e eu lá chegamos. A notícia de nossa chegada fora publicada em vários jornais e, pouco depois, peguei um jornal espanhol e vi o belo rosto da Sra. Bartholomew Winslow, partindo para Londres o mais depressa que lhe era possível.
Obrigando-me a afastar o pensamento dela, olhei em volta para os milhares de parentes de alunos que lotavam o imenso auditório. Quando tornei a fitar o palco, avistei Chris lá em cima, pronto para subir à tribuna. Não sei como conseguiu localizar-me na platéia, mas o fato é que o fez. Nossos olhares se encontraram e fixaram. Por sobre todas as cabeças que nos separavam, unimo-nos numa comunhão silenciosa, compartilhando de um júbilo indescritível! Havíamos conseguido! Ambos! Alcançáramos nossos objetivos, tornando-nos o que tínhamos decidido ser desde crianças. Todos aqueles anos e meses perdidos nenhuma importância teriam se Cory não morresse, se nossa mãe não nos atraiçoasse, se Carrie atingisse uma estatura normal. E assim teria ocorrido se Mamãe tivesse encontrado uma outra solução... Talvez eu ainda não fosse uma prima ballerina, mas algum dia ainda seria, da mesma forma que Chris seria o melhor médico do mundo.
Observando Chris, acreditei que partilhávamos os mesmos pensamentos. Vi-o manejar um bastão de beisebol, aos dez anos de idade, para rebater a bola por cima da cerca e, em seguida, correr como um louco para tocar todas as bases no menor tempo possível, embora a rebatida lhe permitisse completar o ponto caminhando despreocupadamente. Mas não era de seu feitio fazer as coisas parecerem fáceis. Vi-o pedalando a bicicleta metros à minha frente e depois diminuir propositalmente para que eu pudesse alcançá-lo, a fim de chegarmos juntos em casa. Vi-o no quarto trancado, sua cama a um metro da minha, lançando-me um sorriso encorajador. Vi-o novamente nas sombras do sótão, quase escondido naquele espaço imenso, parecendo tão confuso e perdido ao virar as costas à mãe que amava... e voltara-se para mim. Havíamos participado indiretamente de tantos romances, deitados nos velhos colchões manchados no sótão, enquanto a chuva fustigava as vidraças e nos separava do resto da humanidade. Seria essa a causa? Era esse o motivo pelo qual Chris não conseguia ver nenhuma garota senão eu? Como era triste para ele e para mim!
A Universidade ofereceu um lauto banquete de comemoração e, em nossa mesa, Carrie tagarelava sem parar, mas Chris e eu só conseguíamos fitar-nos em silêncio, cada qual procurando as palavras adequadas.
— O Dr. Paul mudou-se para um novo edifício de consultórios, Cathy — informou Carrie, quase sem fôlego. — Eu detestaria tê-lo tão longe de casa, mas serei sua secretária! Terei uma máquina de escrever elétrica, novinha em folha, toda pintada de vermelho! O Dr. Paul julgava que uma máquina de escrever roxa, pintada por encomenda, poderia parecer extravagante no consultório, embora eu fosse de opinião contrária. De todo modo contentei-me com a segunda opção: vermelho. E ninguém jamais será uma secretária tão eficiente quanto eu! Atenderei o telefone, marcarei as consultas, manterei os arquivos em dia, cuidarei da contabilidade e ele almoçará comigo todos os dias!
Lançou a Paul um radiante sorriso de satisfação. Aparentemente Paul dera-lhe a segurança necessária para recuperar a exuberante autoconfiança que ela perdera. Infelizmente, porém, só mais tarde descobri que se tratava de uma fachada falsa que Carrie apresentava ao Dr. Paul, Chris e a mim; quando ficava sozinha, a coisa era muito diferente.
Então Chris franziu a testa e indagou por que razão Julian não viera comigo.
— Ele queria vir, Chris, realmente — menti. — Mas tem compromissos que o tornam tão ocupado a ponto de não dispor de tempo. Pediu-me que apresentasse a você suas congratulações. Trabalhamos num esquema de tempo muito rígido. Na verdade, só poderei ficar aqui dois dias. Vamos fazer um especial de Giselle para a TV no próximo mês.
Mais tarde, tornamos a comemorar num excelente restaurante de hotel. Foi nossa oportunidade de dar a Chris os presentes que tínhamos para ele. Desde pequenos, tínhamos o costume de sacudir os presentes antes de abri-los. Mas a grande caixa que Paul deu a Chris era pesada demais para ser sacudida.
— Livros! — adivinhou Chris, acertadamente.
Seis enormes e grossos livros de referência para médicos, representando uma coleção completa que devia ter custado a Paul uma fortuna.
— Não consegui carregar mais que seis — explicou Paul. — O resto da coleção será enviado para você a domicílio.
Olhei para Paul, compreendendo que seu domicílio era o único lar verdadeiro que possuíramos.
Chris reservou propositalmente meu presente para último lugar, na expectativa de que fosse o melhor e dessa forma, como fazíamos desde crianças, prolongava o prazer de recebê-lo. Era um presente muito grande e pesado para ser sacudido. Além disso, como tive o cuidado de advertir, também era frágil. Entretanto, Chris limitou-se a rir, pois sempre tentávamos enganar um ao outro.
— Não... São mais livros — disse ele. — Nenhuma outra coisa poderia pesar tanto.
Deu-me um sorriso engraçado, sonhador, que o fez parecer novamente um menino.
— Concedo-lhe apenas um palpite, Christopher Doll, e darei uma deixa. Dentro dessa caixa está a coisa que você declarou mais desejar neste mundo e que nosso pai prometeu dar-lhe no dia em que você tivesse sua maletinha preta de médico.
Por que usara aquele tom suave, que fez Paul olhar para mim com os olhos apertados e depois virar-se para ver o sangue que subiu para ruborizar o rosto de meu irmão? Jamais mudaríamos e esqueceríamos? Sempre haveríamos de sentir tão profundamente? Chris manipulou as fitas do embrulho, tomando cuidado para não rasgar o papel bonito. Suas mãos tremiam ao retirar da caixa acolchoada um estojo de mogno francês com fecho, chave e alça de bronze polido.
Chris lançou-me um olhar torturado e seus lábios tremeram: parecia não acreditar que eu me lembrara, após todos aqueles anos.
— Oh! diabo, Cathy... — murmurou, sufocado de emoção. — Nunca esperei possuir um destes. Você não devia ter gastado tanto... certamente, foi uma fortuna... e não devia!
— Mas fiz questão, Chris. E não é original, mas apenas uma cópia de um Microscópio de Coluna Lateral John Cuff. Entretanto, o homem da loja disse que é uma duplicata exata do original e uma peça de colecionador, apesar de tudo. E funciona, também.
Chris estremeceu ao manipular os sólidos acessórios de bronze e marfim, as lentes e o livro encadernado em couro intitulado "Microscópios Antigos - 1675-1840".
Declarei com voz sumida:
— Caso decida divertir-se nas horas vagas, poderá fazer suas próprias pesquisas sobre germes e vírus.
— Que belo brinquedo você me deu — disse Chris com voz áspera.
Só agora as duas lágrimas nos cantos de seus olhos começaram a escorrer pelo rosto.
— Lembrou-se do dia em que Papai prometeu dar-me um microscópio igual a este quando eu me formasse em medicina — acrescentou.
— Como poderia esquecer? Aquele pequeno catálogo foi a única coisa que você levou, além das roupas, quando fomos para Foxworth Hall. E, Paul, toda vez que Chris matava uma mosca, ou aranha, suspirava por um microscópio John Cuff. Certa vez, declarou que desejava ser o encarregado dos camundongos do sótão e descobrir sozinho por que razão os camundongos morrem cedo.
— Os camundongos morrem cedo? — indagou Paul, falando sério: — Como sabe que morrem quando jovens? Capturava os recém-nascidos para matá-los?
Chris e eu trocamos um olhar. Sim, vivêramos num mundo diferente quando crianças, mantidos numa prisão, de modo que podíamos observar os camundongos que vinham roubar e roer nossos alimentos, em especial, um camundongo chamado Mickey.
Agora eu tinha que regressar a Nova York e enfrentar a fúria de Julian. Antes, porém, precisava de um pouco de tempo a sós com meu irmão. Paul levou Henny e Carrie a um cinema enquanto Chris e eu passeamos pelo Campus da Universidade.
— Está vendo aquela janela no segundo andar, a quinta contando da esquina do prédio? Era o quarto que eu dividia com Hank. Tínhamos um grupo de estudo formado por oito alunos e nos mantivemos juntos durante todo o curso da escola preparatória e da faculdade. Estudávamos juntos e, quando saíamos com garotas, íamos juntos também.
— Oh! — suspirei. — Você saía muito?
— Só nos fins-de-semana. O programa de estudos era pesado demais para mantermos atividades sociais durante a semana. Nada foi fácil, Cathy. Tanta coisa para aprender: física, biologia, anatomia, química, e mais uma lista interminável de matérias.
— Não está respondendo à minha pergunta. Com quem você saía? Existia, ou existe, alguém especial?
Chris pegou minha mão e puxou-me para mais perto de si.
Bem, devo começar a enumerar uma por uma, pelo nome? Assim, levaria várias horas. Se houvesse alguém especial bastaria dizer o nome dela e não posso fazer isso. Eu gostava delas todas... mas não gostava de nenhuma a ponto de amá-la, se é isso que deseja saber.
Sim, era exatamente aquilo que eu desejava saber.
— Tenho certeza de que não levou uma vida de celibato, embora não se tenha apaixonado...
— Isso não é da sua conta — replicou ele em tom despreocupado.
— Creio que é. Eu teria paz se soubesse que você ama uma garota.
— Eu amo uma garota — respondeu Chris. — Conheci-a durante a vida inteira. Quando vou dormir, à noite, sonho com ela dançando acima de minha cama, chamando-me o nome, beijando-me o rosto, gritando quando tem pesadelos. Então, acordo para tirar-lhe piche dos cabelos. Às vezes, acordo sentindo o corpo inteiro doer, como o dela também dói... e sonho que beijo as marcas deixadas pelo açoite. Sonho também com uma certa noite em que saímos para o frio telhado de ardósia e fitamos o céu; então, ela disse que a lua era o olho de Deus, observando-nos e condenando-nos pelo que éramos. Portanto, Cathy, eis a garota que me persegue e governa, que me enche de frustrações e obscurece as horas que passo com outras pequenas que são incapazes de se igualar aos padrões que ela estabeleceu. E, por Deus, espero que agora você esteja satisfeita.
Virei-me, movimentando-me como num sonho. E, naquele sonho, abracei-o e fitei-lhe o rosto, aquele rosto que também me perseguia.
— Não me ame, Chris. Esqueça-se de mim. Faça como eu fiz: acolha a primeira pessoa que bater à sua porta e deixe-a entrar.
Ele sorriu com ironia, afastando-me rapidamente de si.
— Eu fiz exatamente como você, Catherine Doll: deixei entrar a primeira que me bateu à porta e agora não consigo fazer que saia. Entretanto, é problema meu, não seu.
— Não mereço estar lá dentro. Não sou santa, nem um anjo... você bem deveria saber.
— Santa, anjo, filha do Demônio, boa ou má, você me pregou à parede e me etiquetou como seu até o dia de minha morte. E se você morrer antes de mim, não demorarei muito a acompanhá-la.
Sombras se acumulam
Tanto Paul como Chris, sem mencionar Carrie, convenceram-me a ir com eles a Clairmont e passar alguns dias com a família. Lá chegando, cercada de todo acolhimento e conforto, encantei-me novamente com a casa e os jardins. Disse com meus botões que assim teria sido minha vida se eu me casasse com Paul. Uma vida doce e fácil. Sem problemas. Então, quando me permitia imaginar como estaria passando Julian, lembrava-me de todas as maneiras mesquinhas e irritantes que ele usava para aborrecer-me, abrindo as cartas enviadas por Paul ou Chris, como se procurasse provas que me incriminassem. Sem a menor dúvida, ao regressar da Espanha deixara propositalmente minhas plantas morrerem, como meio de castigar-me.
Deve haver algo esquisito em mim, refletia eu na varanda que se abria para os magníficos jardins de Paul. Não era tão bela, tão inesquecível ou tão indispensável para qualquer homem. Permaneci onde estava, permitindo que Chris se aproximasse e passasse os braços por meus ombros. Recostei a cabeça em meu irmão e suspirei, olhando a lua. A mesma e velha lua que antes testemunhara nossa vergonha ali estava para presenciar ainda mais. Não fiz nada; juro que não fiz. Simplesmente deixei que ele ficasse com o braço passado pelos meus ombros. Talvez tenha feito movimento para ajustar meus contornos aos dele quando me abraçou com força.
— Cathy, Cathy... — gemeu Chris, com os lábios em meus cabelos. — Às vezes a vida simplesmente não tem qualquer significado sem você. Eu rasgaria o diploma e iria para uma ilha no Pacífico, se você me acompanhasse...
— E deixaria Carrie?
— Poderíamos levá-la conosco.
Julguei que ele estivesse brincando de desejar, como fazíamos quando crianças. Prosseguiu:
— Eu compraria um veleiro para fretar aos turistas e, caso se cortassem, eu teria a prática necessária para pensar-lhes os ferimentos.
Em seguida, beijou-me com o ardor de um homem enlouquecido pela recusa. Eu não queria corresponder, mas não consegui evitar. Chris prendeu a respiração, tentando conduzir-me a seu quarto.
— Pare! — gritei. — Só o quero como irmão! Deixe-me em paz! Vá procurar outra pequena!
Aturdido, parecendo magoado, ele recuou.
— Cathy, que tipo de mulher é você, afinal? Correspondeu aos meus beijos... excitou-se de todos os modos possíveis... e agora tira o corpo fora, bancando a virtuosa!
— Odeie-me, então!
— Cathy, eu jamais conseguiria odiá-la — replicou Chris com um sorriso amargo. — Às vezes, quero odiá-la; às vezes, chego a pensar que você é igual à nossa mãe, mas tente matar meu amor depois que ele começou!
Entrou em seu quarto e bateu a porta com força, deixando-me muda a olhar para a porta fechada. Não! Eu não era igual a Mamãe; não era! Só correspondera aos seus carinhos porque ainda procurava minha identidade perdida. Julian queria roubar-me o reflexo e torná-lo seu. Julian desejava tirar-me a força e aproveitar-se dela; queria que eu tomasse todas as decisões, a fim de não ser culpado quando cometíamos algum erro. Eu continuava tentando provar meu próprio valor, para que, no final, conseguisse negar a acusação feita pela avó. Veja, Avó, não sou má ou filha do Demônio! Do contrário, ele não me amaria tanto! Eu ainda era a camundonga de sótão, egoísta, faminta, exigente, que precisava estar sempre provando ter valor suficiente para viver ao sol.
Certo dia pensei no assunto quando me encontrava na varanda dos fundos e Carrie plantava mudinhas que criara desde as sementes, tendo a seu lado os minúsculos potes com os brotos de petúnia. Chris veio do interior da casa e me jogou o jornal vespertino.
— Traz um artigo que talvez lhe interesse — disse com ar indiferente. – Cheguei a pensar em não mostrá-lo a você, mas mudei de idéia.
“O casal de bailarinos Julian Marquet e Catherine Dahl, nossas celebridades locais, aparentemente separou-se. Pela primeira vez, Julian Marquet se apresentará com outra bailarina que não sua esposa, dançando Giselle num grande especial de TV. Correm rumores de que a Srta. Dahl está doente e há quem diga que a famosa dupla do balé está prestes a desfazer-se.”
O artigo ia mais além, informando que Yolanda Lange deveria substituir-me! Aquela era a nossa grande oportunidade, dentre muitas outras, de atingirmos o estrelato com que sonhávamos e Julian colocava Yolanda em meu lugar! Maldito! Jamais cresceria? Estragava todas as oportunidades que nos apareciam. Não poderia erguer Yolanda com facilidade; não com sua espinha machucada.
Chris lançou-me um prolongado olhar esquisito antes de indagar:
— O que pretende fazer a respeito?
Berrei em resposta:
— Nada!
Meu irmão ficou calado por um momento. Então:
— Cathy, ele não queria que você comparecesse à minha formatura, não é mesmo? E foi por isso que colocou Yolanda no seu lugar. Eu a preveni no sentido de não permitir que ele fosse seu empresário. Madame Zolta a trataria com mais justiça.
Levantei-me para caminhar de um lado para outro na varanda. Nosso contrato original com Madame Zolta expirara dois anos antes e tudo que lhe devíamos atualmente eram doze apresentações por ano. No resto do tempo, Julian e eu éramos free lancers e podíamos dançar com a companhia de balé que bem entendêssemos.
Que Julian ficasse com Yolanda. Que fizesse papel de tolo. Do fundo do coração eu esperava que ele a deixasse cair no palco! Que continuasse a usar garotinhas colegiais em suas orgias sexuais... Não me importava. Então corri para dentro de casa, subi ao meu quarto, enterrei o rosto no travesseiro e chorei como uma criança.
Tudo se tornava ainda pior pelo fato de eu ter feito uma consulta secreta ao ginecologista na tarde anterior. A ausência de dois períodos menstruais nada significavam para uma mulher do meu tipo, cujas regras eram tão irregulares. Talvez não estivesse grávida; poderia ser apenas mais um alarme falso... e caso não fosse, eu rezava para ter forças que me permitissem fazer um aborto! Não precisava de um filho em minha vida. Sabia que se tivesse um bebê este se tornaria o centro do mundo e, mais uma vez, o amor estragaria uma bailarina que poderia ter sido a melhor dentre todas.
Com música de balé na cabeça, dirigi o carro de Chris para visitar Madame Marisha num dia quente de primavera, em que o mundo inteiro parecia sonolento e preguiçoso, com exceção das crianças idiotas que recebiam instruções de uma mulherzinha de voz esganiçada, vestida de preto, como sempre. Sentei-me nas sombras junto à parede dos fundos de um amplo auditório e observei a grande turma de alunos dançando. Dava medo pensar que dentro em breve aquelas meninas cresceriam para substituir as estrelas do presente. Então, eu também me transformaria em mais uma Madame Marisha e os anos passariam a correr como segundos, até que eu me tornasse uma Madame Zolta e toda a minha beleza ficasse preservada apenas em velhas fotos desbotadas.
— Catherine! — exclamou alegremente Madame Marisha ao avistar-me.
Encaminhou-se para mim, rápida e graciosa.
— Por que se esconde nas sombras? — indagou. — Como é bom rever seu lindo rosto. E não pense que eu não sei por que motivo parece tão triste! É uma grande idiota por deixar Julian! Ele é um menino grande; você bem sabe que não pode ser deixado sozinho, pois faz coisas que o magoam e quando isso acontece, ele magoa você também! Por que permitiu que ele tomasse as rédeas dos negócios? Por que deixa que ele queime todo o dinheiro de vocês antes mesmo de recebê-lo? Vou-lhe dizer uma coisa: em seu lugar, eu nunca, nunca, deixaria que ele colocasse outra bailarina no meu papel de Giselle!
Oh! Deus, como Julian era boquirroto!
— Não se preocupe comigo, Madame — repliquei com muita calma. — Se meu marido já não me quer como par, tenho certeza de que outros me desejarão.
Ela fez uma carranca, avançando para mim. Agarrou-me com as mãos ossudas e sacudiu-me como se quisesse despertar-me. De perto, percebi que envelhecera terrivelmente após a morte de Georges. Os cabelos negros estavam agora quase brancos, com algumas mechas escuras. Então, ela rosnou, mostrando dentes mais alvos que antes, perfeitos como nunca tinham sido.
— Vai permitir que meu filho a faça de tola? Vai deixá-lo colocar outra bailarina em seu lugar? Eu julgava que você tivesse mais fibra! Agora trate de voltar depressa para Nova York e expulse essa tal Yolanda da vida dele! O casamento é sagrado e os votos conjugais são feitos para serem cumpridos!
Em seguida suavizou-se e acrescentou:
— Agora, venha, Catherine.
Conduziu-me a seu pequeno e abarrotado escritório.
— Agora, conte-me a respeito dessa tolice que está acontecendo entre você e seu marido!
— Na verdade, não é da sua conta!
Madame Marisha puxou uma cadeira de espaldar reto, colocando-a de modo a poder cavalgá-la. Apoiando os braços no espaldar, golpeou-me com seu olhar penetrante.
— Toda e qualquer coisa relacionada com meu filho é da minha conta! — replicou com rispidez. — Agora, trate de ficar caladinha aí na cadeira, enquanto lhe contarei algo que não sabe a respeito de meu marido.
Sua voz assumiu um tom mais bondoso:
— Eu era mais velha que Georges quando nos casamos, mas mesmo assim atrevi-me a adiar o nascimento de um filho até acreditar que o melhor de minha carreira já ficara para trás. Então fiquei grávida. Georges jamais quis um filho que o prendesse a algum lugar e impedisse seu progresso. Portanto, desde o início, Julian significou dois golpes contra Georges. Digo a mim mesma que não obrigamos nosso filho a ser bailarino, mas sempre o mantivemos conosco, de modo que o balé se tornou parte do seu mundo: a parte mais importante — disse ela suspirando fundamente e passando a mão magra pela testa franzida de preocupação. — Fomos rígidos com ele, isto eu admito. Esforçamo-nos ao máximo para fazer dele o que era perfeito sob nosso ponto de vista; todavia, quanto mais tentávamos, mais ele procurava ser tudo o que não desejávamos que fosse. Tentamos ensinar-lhe dicção perfeita e ele reagiu, zombando de nós com a pior espécie de linguagem baixa, que Georges costumava chamar de “linguagem de sarjeta”.
— Sabe, — continuou, com expressão tristonha e sonhadora — só depois que meu marido estava morto e enterrado dei-me conta de que nunca dirigi a palavra a nosso filho exceto para proibi-lo de fazer alguma coisa ou para melhorar sua técnica de dança. Nunca me passou pela cabeça que Georges pudesse sentir ciúmes do filho, percebendo que este era melhor bailarino que ele e alcançaria maior fama. Não foi fácil para mim transformar-me numa simples professora de balé e para Georges ser apenas um instrutor. Passamos muitas noites abraçados na cama, ansiosos pelos aplausos, pela adulação... Uma ânsia que só poderia ser saciada ao escutarmos os aplausos para nosso filho.
Fez outra pausa e virou a cabeça, como um passarinho, para observar-me melhor e verificar se eu lhe prestava toda a atenção. Oh! Sim, eu lhe dava toda a minha atenção, pois ela me contava tanta coisa que eu precisava saber.
— Julian tentava magoar Georges e este se magoava porque Julian não dava importância à reputação do pai. Um dia chegou até mesmo a chamá-lo de bailarino de segunda classe. Georges passou mais de um mês sem falar com o filho! Depois disso nunca mais voltaram às boas. Pai e filho afastaram-se cada vez mais um do outro... até um belo dia de Natal, quando outro prodígio apareceu em nossas vidas, oferecendo-se. Você! Julian viera de Nova York visitar-nos, só porque eu lhe implorara que tentasse fazer as pazes com o pai... Então, Julian viu você!
— Temos a responsabilidade de transmitir às gerações mais jovens nossas habilidades técnicas, de modo que ainda me senti um pouco apreensiva ao aceitar você, principalmente por pensar que magoaria meu filho. Não sei por que motivo tive essa impressão, mas pareceu-me óbvio desde o início que você amava aquele médico mais idoso. Então percebi que você possuía algo muito raro: uma paixão pela dança como dificilmente encontramos. A seu próprio modo, você era igual a Julian; juntos foram tão sensacionais que mal pude acreditar em meus próprios olhos. Meu filho também sentiu a existência desse elo entre vocês dois. Depois que você fixou nele esses grandes olhos azuis, cheios de suavidade e admiração, Julian veio dizer-me que era uma gatinha sensual, que se deixaria dominar facilmente por seus encantos e logo cairia nos braços dele. Julian e eu sempre mantivemos um relacionamento estreito e ele me confessava coisas que outros rapazes manteriam em segredo.
Parou mais uma vez, fitou-me dos pés à cabeça e prosseguiu, quase sem fôlego:
— Você chegou, admirou-o, amou-o quando dançava com ele; entretanto, quando não estavam dançando, você era indiferente. Quanto mais decidida você estava a vencer, mais determinado ele estava a possuí-la. Considerei-a inteligente, fazendo um jogo de mulher astuciosa, quando, na verdade, não passava de uma criança! E agora, você... você o abandonou num país estrangeiro, cujo idioma ele não sabe falar, quando já deveria saber que ele tem fraquezas, muitas delas, e que não suporta ficar sozinho!
Levantou-se de um salto, como um gato de rua arrepiado, postando-se diante de mim:
— Sem Julian para dar-lhe inspiração e realçar-lhe o talento, onde estaria você? Sem ele, por acaso você estaria em Nova York, dançando numa companhia de balé que depressa se vem transformando numa das principais do país? Não! Você estaria aqui, criando os filhos daquele médico. Só Deus sabe que motivo a levou a aceitar o casamento com Julian e como consegue não o amar! A mim, ele diz que você não o ama, que nunca o amou! Portanto, ministra-lhe drogas e foge. Abandona-o. Vai assistir ao irmão receber o diploma de médico quando sabe muito bem que seu lugar é ao lado do marido, fazendo-o feliz e cuidando de suas necessidades!
— Sim! Sim! — berrou com voz esganiçada. — Ele me telefonou da Espanha e me contou tudo! Agora, julga que odeia você! Agora, quer esquecê-la! E quando o conseguir, não lhe restará o coração para mantê-lo vivo! Pois há anos ele deu seu coração a você!
Ergui-me vagarosamente, com as pernas fracas e trêmulas. Passei a mão pela testa dolorida e contive as lágrimas cansadas. De repente a verdade me atingiu como um raio: eu amava Julian! Agora percebia o quanto éramos semelhantes: ele com seu ódio pelo pai que o renegara como filho; eu com meu ódio por minha mãe, que me obrigava a cometer loucuras, tais como enviar-lhe cartas odientas e cartões de Natal destinados a entristecer-lhe a vida e a não permitir que tivesse um só minuto de paz e tranqüilidade. Julian competindo com o pai, sem entender que vencera e era o melhor... e eu competindo com minha mãe, mas ainda precisando comprovar meu valor.
— Madame, vou dizer-lhe algo que Julian talvez não saiba e que eu realmente não sabia até hoje: amo seu filho. Talvez sempre o tenha amado; apenas não conseguia aceitar o fato.
Ela sacudiu a cabeça e depois disparou as palavras como se as sílabas fossem balas de revólver:
— Se o ama, por que o abandonou? Responda-me isso! Abandonou-o porque descobriu que ele tem um fraco por garotinhas? Idiota! Todos os homens têm um fraco por mulheres jovens, mas, ainda assim, continuam a amar as esposas! Se você permitir que o desejo de Julian por carne jovem a afaste dele, está louca! Bata-lhe na cara, chute-lhe o traseiro, diga-lhe para afastar-se das garotinhas ou você pedirá o divórcio! Diga tudo isso e ele será como você quer. Todavia, se ficar calada, agindo como se não ligasse, estará dizendo claramente que não o ama, não o quer, não precisa dele!
— Não sou mãe dele, nem padre, nem Deus — repliquei fatigada, farta da paixão e veemência de Madame Marisha. Recuei em direção à porta, procurando ir embora. — Não sei se conseguirei manter Julian afastado das garotinhas, mas estou disposta a voltar e tentar. Prometo agir melhor. Prometo ser mais compreensiva e demonstrar que o amo tanto, mas não me conformo com a idéia de que ele faça amor com outra pessoa senão comigo.
Madame Marisha aproximou-se para abraçar-me. Disse em tom consolador:
— Pobre criança, se fui dura com você, é para seu próprio bem. Você precisa evitar que meu filho se destrua. Quando conseguir salvá-lo, salvar-se-á também, pois menti ao dizer que sem Julian você nada seria. Ele não seria nada sem você! Julian tem uma tendência à autodestruição; eu sempre soube. Acha que não é suficientemente bom para continuar vivendo porque seu pai jamais conseguiu convencê-lo do contrário. E eu também tive culpa, como Georges, Julian esperou anos a fio que o pai o encarasse como filho, digno de ser amado pelo que era como pessoa. Aguardou por tempo igualmente longo que Georges lhe dissesse: “Sim, você será melhor bailarino que eu; orgulho-me do que você é como artista e como pessoa”. Mas Georges se manteve em silêncio. Agora, volte e diga a Julian que Georges o amava. A mim, ele o disse muitas vezes. Diga também a Julian que o pai se orgulhava dele. Diga-lhe, Catherine. Volte e convença-o do quanto você o ama e necessita dele. Diga-lhe que se arrepende de tê-lo deixado sozinho. Vá depressa, antes que ele cometa algo terrível contra si mesmo!
Chegou a hora de despedir-me mais uma vez de Carrie, Paul e Henny. Só que desta vez não precisei dizer adeus a Chris, pois este fincou pé:
— Nada disso! Irei com você! Não permitirei que volte para aquele louco. Só sairei de lá quando você tiver feito as pazes com ele e eu tiver certeza de que tudo está bem.
Carrie chorou, como sempre. Paul se manteve afastado, deixando apenas que seus olhos me dissessem que eu poderia voltar a ocupar um lugar em seu coração. Olhei para baixo quando o avião começou a subir e avistei Paul segurando a minúscula mão de Carrie; esta ergueu a cabeça para olhar o avião e continuou a acenar até não conseguirmos mais enxergá-la. Ajeitei-me numa posição confortável, apoiei a cabeça no ombro de Chris e disse-lhe que me acordasse quando chegássemos a Nova York.
— Você é mesmo uma ótima companheira de viagem — resmungou ele. Mas logo encostou o rosto em meu cabelo e começou a cochilar.
— Chris — indaguei sonolenta. — Lembra-se daquele livro a respeito de Raymond e Lily, em que estavam sempre à procura do lugar mágico onde havia grama roxa, no qual poderiam satisfazer todos os seus desejos? Não seria maravilhoso olharmos para baixo e avistarmos grama roxa?
— Sim — respondeu ele, tão sonolento quanto eu. — Também estou procurando.
O avião pousou no aeroporto de La Guardia por volta de três horas de um dia quente e abafado. O sol brincava de esconder entre as nuvens carregadas de chuva que se acumulavam no céu. Estávamos ambos cansados.
— A esta hora, Julian deve estar ensaiando no teatro. Aproveitarão os ensaios para um filme promocional de espetáculo. Teremos que ensaiar muitas vezes; nunca dançamos antes neste teatro e é importante termos a noção exata do espaço disponível.
Chris carregava minhas duas malas pesadas, enquanto eu levava a sua, muito mais leve. Ri, achando graça no seu jeito, satisfeita de tê-lo perto de mim, embora soubesse que Julian ficaria furioso.
— Agora mantenha-se à distância... e nem mesmo permita que ele o veja, caso as coisas corram bem. Na verdade, Chris, tenho certeza de que ele ficará feliz por rever-me. Não é perigoso.
— Claro — replicou Chris num tom sombrio.
Entramos na platéia escura. O palco estava brilhantemente iluminado, as câmeras de TV em posição, prontas para focalizar o aquecimento dos bailarinos. O diretor, o produtor e alguns outros homens ocupavam poltronas na primeira fila. O calor do dia era contrabalançado pela frieza do imenso espaço. Chris abriu uma de minhas malas e colocou-me um suéter sobre os ombros depois que nos sentamos perto do corredor, na metade posterior da platéia. Num gesto automático, ergui ambas as pernas e estiquei-as sobre as costas da poltrona logo à minha frente. Embora eu tremesse de frio, os componentes do corps de ballet transpiravam sob o forte calor dos refletores, apesar de ainda não haverem ligado a iluminação total. Procurei por Julian, mas não o avistei.
Bastou-me pensar em Julian para que este surgisse das coxias, atravessando o palco numa série de jetés rodopiantes. Oh! Estava maravilhoso na justa malha branca, com agasalhos de lã vermelha nas pernas.
— Puxa! — exclamou-me Chris ao ouvido. — Às vezes me esqueço do quanto ele é sensacional no palco. Não é de espantar que todos os críticos de balé julguem que ele será o astro desta década quando aprender um pouco de disciplina. Que seja muito em breve... e refiro-me a você também, Cathy.
Sorri, pois eu também precisava de disciplina.
— Sim — concordei. — Eu também, é claro.
Mal Julian terminou sua apresentação em solo e Yolanda Lange veio piruetando das coxias, usando uma malha vermelha. Estava mais linda que nunca! Dançava extraordinariamente bem para uma moça tão alta. Ou melhor, dançava bem até que Julian se apresentava para dançar com ela. Então tudo dava errado. Julian estendia as mãos para pegar-lhe a cintura e segurava-lhe as nádegas; aí precisava mudar rapidamente a posição das mãos. Yolanda escorregava e quase caía; Julian tinha que ajustar novamente a pegada para salvá-la do tombo. Um bailarino que deixasse uma bailarina cair, em breve ficaria sem par. Tornaram a repetir a mesma seqüência: um salto, Julian erguia Yolanda e esta se deixava tombar no alto. Desta vez, o resultado foi igualmente desajeitado, fazendo Yolanda parecer desgraciosa e Julian inábil.
Mesmo eu, sentada quase no fundo da platéia, pude escutar as imprecações de Yolanda.
— Maldito! — berrou ela. — Faz-me parecer desajeitada... se me deixar cair, providenciarei para que nunca mais torne a pisar num palco!
— Corta! — berrou o diretor, pondo-se de pé e olhando, impaciente, de um para o outro.
O corps de ballet movimentava-se encabuladamente, resmungando e lançando olhares irritados ao par no centro do palco, que fazia todo mundo perder tanto tempo. Obviamente, pelo aspecto suado e olhares raivosos de todos eles, aquilo já vinha ocorrendo há algum tempo, sempre com maus resultados.
— Marquet! — chamou o diretor, famoso por sua impaciência com artistas que exibiam duas ou mais fornadas de uma mesma cena. — Que diabo há de errado com o seu ritmo? Pensei que você tinha afirmado já conhecer este balé. Não me lembro de uma só coisa que você tenha feito corretamente nos últimos três dias!
— Eu! — esbravejou Julian. — Não sou eu... é ela! Sempre salta antes da hora!
— Está bem — disse o diretor, sarcástico. — é sempre culpa dela, nunca sua!
Tentou controlar a impaciência, sabendo que Julian sairia logo do palco se sofresse muitas críticas.
— Quando sua esposa ficará em estado de voltar ao palco?
Foi a vez de Yolanda berrar:
— Ei, esperem um minuto! Fizeram-me vir de Los Angeles e agora parece que me pretendem substituir por Catherine! Não admitirei tal coisa! Agora faço parte daquele contrato! Moverei uma ação judicial!
— Srta. Lange — disse o diretor, procurando acalmá-la. — É apenas a cobertura da Srta. Dahl. Enquanto isso, vamos tentar mais uma vez. Marquet, preste atenção a sua deixa. Lange, apronte-se... Deus permita que desta vez saia algo digno de exibir a um público que tem o direito de esperar um desempenho melhor por parte de profissionais!
Sorri ao saber que Yolanda era apenas minha cobertura; até então, julgara que fora definitivamente excluída do elenco. Perversamente, diverti-me observando Julian fazer papel de palhaço e arrastar consigo Yolanda. Não obstante, quando os bailarinos gemeram no palco eu também gemi, sentindo-me tão exausta quanto eles. A despeito de mim mesma, comecei a ter pena de Julian, que se esforçava diligentemente para equilibrar Yolanda. A qualquer momento o diretor suspenderia o ensaio para dez minutos de descanso e, então, eu entraria em ação.
Lá na frente, na primeira fila, Madame Zolta virou repentinamente o pescoço sulcado de rugas para olhar na minha direção. Os olhos negros me viram sentada, tensa, observando a cena como uma águia.
— Ei, você, Catherine! — chamou ela com grande entusiasmo.
Gesticulando, indicou: “Venha! Sente-se perto de mim!”
— Com licença, um minuto, Chris — sussurrei — Preciso ir até lá e salvar Julian antes que ele estrague ambas as nossas carreiras. Tudo estará bem. Ele nada poderá fazer diante de uma platéia, não é mesmo?
Quando me sentei ao lado de Madame Zolta, ela sibilou:
— Então, você não estava tão doente, afinal! Graças a Deus por este pequeno favor! Lá está seu marido, arruinando-me a reputação junto com a sua e com a dele. Eu deveria ter suficiente juízo para não permitir que ele dançasse apenas com você. Agora, é incapaz de dançar com qualquer outra bailarina!
— Madame — indaguei — quem providenciou para que Yolanda fosse minha substituta?
— Seu marido, meu amor — replicou ela cruelmente. — Você foi uma idiota quando permitiu que ele assumisse o controle. Julian é impossível! É um furacão, um demônio, não sabe ser razoável! Logo ficará louco, se não tornar a ver seu rosto. Ou melhor: logo nós ficaremos loucos. Agora vá correndo vestir uma malha de dança e salve-me da extinção total!
Foi apenas questão de segundos vestir uma malha de ensaio e, tão logo terminei de enrolar e prender bem os cabelos, calcei as sapatilhas. Aqueci-me rapidamente na barra existente no camarim, fazendo pliés e ronds de jambes para bombear o sangue nos membros. Em breve estava pronta, pois não se passara um só dia sem que eu fizesse várias horas de exercícios. Hesitei nas coxias escuras. Refleti que estava preparada para quase tudo quando Julian me avistasse... Que faria ele? Enquanto eu observava Julian fazer um solo no palco, senti-me repentinamente empurrada com força por detrás!
— Você foi substituída — sibilou-me ao ouvido Yolanda Lange. — Portanto, caia fora e fique por lá! Teve sua oportunidade e a jogou fora: agora, Julian é meu! Ouviu bem? Meu! Já dormi em sua cama, utilizei-me de seus cosméticos e usei suas jóias; tomei seu lugar em tudo!
Eu desejava ignorá-la e não acreditar em nada do que ela dizia. Quando veio a deixa para a entrada em cena de Giselle, Yolanda tentou deter-me. Foi quando me voltei sobre ela como uma selvagem, empurrando-a com tanta força que ela caiu. Empalideceu de dor, enquanto eu me coloquei en pointe e deslizei para o palco, fazendo um perfeito “colar de pérolas”... Cada passo minúsculo podia ser medido e teria a mesma distância. Eu era a tímida jovem aldeã que se apaixonava doce e verdadeiramente por Loys. Os outros no palco prenderam a respiração ao me reconhecerem. O alívio brilhou nos olhos negros de Julian, mas apenas por breve instante.
— Olá — disse ele com grande frieza, quando me aproximei batendo as pálpebras para encantá-lo ainda mais. — Por que voltou? Seus médicos a expulsaram de lá? Já enjoaram de você?
— Você é um bruto maldoso e sem consideração, Julian! Substituir-me por Yolanda quando sabe que eu a detesto!
De costas para os espectadores, ele exibiu um sorriso malévolo, sem parar de acompanhar o ritmo da música.
— Sim, sei que você a detesta; por isso a escolhi.
Franziu os belos lábios vermelhos até ficarem feios.
— Escute bem uma coisa, boneca bailarina: ninguém me abandona, especialmente minha esposa, e volta pensando que ainda pode ocupar um lugar em minha vida. Meu amor, meu coração querido, agora eu não a quero mais! Não preciso mais de você. E você pode ir bancar a puta para o homem que quiser! Cai fora da minha vida!
— Não está dizendo a verdade — repliquei, enquanto ambos fazíamos uma seqüência perfeita e ninguém mandou cortar a tomada. Como poderiam cortar a cena, se fizemos tudo com tanta perfeição?
— Você não me ama — disse Julian com amargura. — Nunca me amou. Por mais que eu fizesse ou dissesse, nunca me amou. Agora já não faz diferença para mim! Dei-lhe o melhor de que fui capaz, mas não bastou. Portanto, minha amada Catherine... dou-lhe isto!
Com aquelas repentinas palavras, Julian interrompeu a seqüência do balé, pulou muito alto e desceu com toda força, diretamente sobre meus pés. Todo o seu peso se abateu como um bate-estaca sobre meus artelhos!
Soltei uma exclamação de dor. Então, Julian girou nos calcanhares e debruçou-se para acariciar-me o queixo.
— Agora, amor, você verá quem dançará Giselle comigo. Certamente não será você, heim?
— Intervalo! — berrou o diretor, tarde demais para salvar-me.
Julian agarrou-me os ombros e sacudiu-me como uma boneca de trapos. Estonteada, tentei focalizá-lo, esperando tudo dele. Então, de repente, ele fez um rodopio e me abandonou no centro do palco, sozinha, apoiando-me nos pés que doíam tanto a ponto de eu ter vontade de berrar. Ao invés disso, deixei-me cair no palco, olhando para os pés que inchavam rapidamente.
Chris correu do auditório escuro para socorrer-me.
— Maldito seja ele por fazer isto! — vociferou meu irmão, ajoelhando-se para descalçar-me as sapatilhas e examinar os pés.
Com extremo cuidado, tentou mover-me os dedos, mas gritei ao sentir a dor terrível. Então Chris me pegou no colo com facilidade e estreitou-me contra o peito.
— Ficará boa, Cathy. Cuidarei para que seus dedos soldem corretamente. Temo que alguns artelhos de cada pé estejam fraturados. Você vai precisar de um ortopedista.
— Leve Catherine para o nosso ortopedista — ordenou Madame Zolta, que avançara para observar meus pés inchados e roxos.
Olhou de perto para Chris, pois vira-o apenas algumas vezes anteriormente.
— Você é o irmão de Catherine, causador de toda essa encrenca? — quis saber ela. — Leve-a depressa para o médico. Temos seguro contra acidentes. Mas aquele marido imbecil... basta! Está despedido!
O décimo-terceiro bailarino
Ambos os meus pés foram radiografados, revelando três artelhos fraturados no pé esquerdo e o dedo mínimo fraturado no direito. Graças a Deus, os dedos maiores foram poupados, do contrário talvez eu nunca mais voltasse a dançar! Uma hora mais tarde, Chris carregou-me para fora da sala do ortopedista, com um aparelho de gesso ainda fresco no pé, chegando-me até o joelho, enquanto o dedinho quebrado estava apenas protegido com esparadrapo e deixado para soldar-se sem o gesso. Cada um dos artelhos no aparelho de gesso se encontrava seguramente aninhado em seu próprio compartimento acolchoado e devidamente imobilizado, deixado à mostra para que todos pudessem admirar as belas variações de preto, azul e roxo que ostentavam. Em meus pensamentos, as últimas palavras agridoce do médico eram insuficientes para animar as perspectivas futuras:
— Você poderá ou não voltar a dançar; tudo depende.
Mas não disse do que dependia. Portanto, perguntei a Chris.
— Claro que voltará a dançar — replicou ele, confiante. — Às vezes, os médicos preferem ser exageradamente pessimistas, para que o cliente o julgue o maior quando tudo dá certo graças à sua perícia incomum.
Desajeitadamente tentou amparar-me enquanto usava a chave para abrir a porta do apartamento onde eu morava com Julian. Depois tornou a pegar-me cuidadosamente no colo, entrou no apartamento e fechou a porta com um empurrão do calcanhar. Tentou ajeitar-me da maneira mais confortável possível num dos macios sofás. Mantive os olhos fechados com força, procurando suprimir a dor que sentia a cada movimento. Chris ergueu-me ternamente ambas as pernas, a fim de colocar sobre elas almofadas que as manteriam elevadas e reduziriam a inchação. Outra grande e macia almofada foi-me colocada sob os ombros e a cabeça... E Chris não pronunciou uma palavra... nem uma só palavra... Já que ele se mostrava tão calado, abri os olhos para examinar-lhe a expressão do rosto. Meu irmão tentava mostrar-se profissional, distante, mas não conseguia. Revelava-se chocado cada vez que seus olhos passavam de um objeto para outro. Atemorizada, olhei em volta. Esbugalhei os olhos, boquiaberta. Nossa sala! Que desastre! Oh! Deus, que coisa horrível!
Nosso apartamento estava destruído! Cada quadro que Julian e eu tínhamos escolhido com tanto esmero fora arrancado da parede, rasgado da moldura, atirado no chão. Até mesmo as duas aquarelas que Chris pintara especialmente para mim: retratos meus em trajes de balé. Todos os valiosos adornos de louça e cristal estavam quebrados na lareira. Os abajures espalhados pelo chão, as cúpulas rasgadas em tiras, as armações de arame retorcidas. Almofadas bordadas por mim durante as maçantes viagens de um lugar para outro em nossas excursões estavam cortadas, destruídas! As plantas caseiras tinham sido arrancadas dos vasos e deixadas à morte com as raízes expostas. Um par de jarras que Paul nos dera como presente de casamento também tivera o mesmo fim. Tudo que era bom e caro, muito querido, objetos que Julian e eu planejávamos guardar pelo resto da vida e deixar para nossos filhos, tudo destruído além de qualquer possibilidade de restauração!
— Vândalos — disse Chris em voz baixa. — Simplesmente vândalos.
Sorriu, beijou-me a testa e apertou-me a mão quando as lágrimas me saltaram aos olhos.
— Tenha calma — aconselhou, afastando-se para examinar os outros cômodos, enquanto eu me derreei sobre as almofadas, soluçando e fungando.
Oh! Como Julian devia odiar-me, para fazer tal coisa! Chris voltou pouco depois, com o rosto muito composto, usando aquela mesma expressão de “olho de furacão” que eu lhe vira poucas vezes na fisionomia.
— Cathy — começou ele, sentando-se cautelosamente na beirada do sofá e estendendo a mão para pegar a minha. — Não sei o que pensar. Todas as suas roupas e sapatos foram estragados. Suas jóias estão espalhadas pelo chão do quarto, os colares arrebentados, os anéis esmagados, as pulseiras deformadas. Parece que alguém resolveu destruir deliberadamente tudo que era seu, deixando intactas as coisas de Julian.
Lançou-me um olhar confuso e preocupado; tive a impressão de que as lágrimas que eu procurava conter passaram para seus olhos. E foi com os olhos azuis marejados de lágrimas que ele estendeu a mão espalmada para mostrar-me o aro de um anel de noivado outrora exótico: o presente de Paul. O aro de platina estava transformado num oval disforme. O engaste fora quebrado para soltar o límpido e perfeito brilhante de dois quilates. Haviam-me injetado sedativos, de modo a diminuir a dor nos artelhos fraturados. Sentia-me zonza, desorientada e um tanto indiferente. Alguém dentro de mim gritava incessantemente, o ódio estava próximo, mais uma vez, o vento uivava. Fechando os olhos, vi-me cercada de montanhas encobertas de névoa azul que tapavam o sol como no sótão.
— Julian — murmurei com voz sumida. — Deve ter sido ele. Voltou para cá e desabafou a raiva em meus pertences. Veja os objetos que ficaram inteiros: são coisas que ele escolheu sozinho.
— Maldito seja ele!— exclamou Chris. — Quantas vezes desabafou a raiva sobre você? Quantos olhos inchados? Eu vi um... mas quantos foram?
— Não fique assim, por favor — pedi em voz sonolenta e preguiçosa. — Ele nunca me bateu sem chorar depois, declarando-se arrependido. Sim... “Sinto muito, minha querida, meu único amor... não sei o que me leva agir assim quando a amo tanto!”
— Cathy — disse Chris, hesitante, guardando no bolso o aro de platina. — Você está bem? Parece prestes a desmaiar. Vou arrumar a cama e você poderá descansar no quarto. Logo adormecerá e esquecerá tudo isto; quando acordar, eu a levarei embora daqui. Não se lamente pelas roupas e coisas que ele lhe deu, pois eu lhe darei mais e melhores. Quanto ao anel que foi presente de Paul, passarei uma revista no quarto até encontrar o brilhante.
Chris procurou, mas não encontrou o brilhante. E quando adormeci, ele deve ter-me carregado para a cama, na qual colocara lençóis limpos. Quando acordei, estava coberta por um lençol e uma manta fina. Chris, sentado na beira da cama, estudava-me o rosto. Olhei para as janelas e percebi que já anoitecia. A qualquer momento, Julian voltaria para casa e encontraria Chris comigo; ia ser o diabo!
— Chris, você me tirou as roupas e vestiu esta camisola? — perguntei, quase indiferente, ao ver a manga azul de uma das minhas camisolas prediletas.
— Sim. Julguei que seria mais confortável que aquele terninho com a calça descosturada até acima do joelho. E sou médico, lembra-se? Estou acostumado a ver de tudo. Além disso, fiz questão de não olhar.
A escuridão do crepúsculo invadia o quarto, tornando as sombras suaves e arroxeadas. Ainda zonza, vi Chris como outrora, quando o ambiente no sótão assumia aquele aspecto sombrio, amedrontador, e ficávamos sozinhos à espera de algum horror que estivesse por acontecer. Chris sempre fora capaz de reconfortar-me quando nada mais poderia fazê-lo. Estava sempre presente quando eu necessitava dele, dizendo e fazendo o que era mais adequado.
— Lembra-se do dia em que Mamãe recebeu aquela carta da avó, dizendo que poderíamos ficar em sua casa? Na ocasião, julgamos que um futuro maravilhoso nos esperava; mais tarde, pensávamos que toda a alegria ficara no passado. Nunca, jamais, no presente.
— Sim — disse ele, baixinho. — Lembro-me. Acreditamos que seríamos ricos como Midas e que tudo em que tocássemos se transformaria em ouro. Apenas seríamos mais controlados e teríamos o cuidado de manter em carne e osso as pessoas que amávamos. Naquela época, éramos pequenos, tolos e confiantes demais.
— Tolos? Não acho que fôssemos tolos, mas apenas normais. Você atingiu sua meta e é médico. Eu, porém, ainda não sou uma prima ballerina — acrescentei com amargura.
— Cathy, não se menospreze. Ainda será uma prima ballerina! — afirmou Chris calorosamente. — Já seria, há muito tempo, se Julian controlasse os ataques de nervos que atemorizam todos os gerentes de companhia de balé e evitam que vocês tenham melhores contratos. Na verdade, você está presa a uma companhia de balé sem importância porque se recusa a abandonar Julian.
Suspirei, desejando que meu irmão não tivesse dito aquelas palavras. Era bem verdade que os ferozes ataques de nervos de Julian afastaram de nós mais de uma oferta para fazermos parte de companhias de balé muito famosas.
— Você precisa ir embora, Chris. Não quero que Julian chegue e o encontre aqui. Ele não me quer perto de você. E não posso abandoná-lo. À sua maneira, Julian me ama e necessita de mim. Sem minha presença para controlá-lo, seria dez vezes mais violento. Além disso, eu o amo. Se ele me bateu algumas vezes, foi apenas para fazer-me entender isso. E agora eu entendo.
— Entende? — exclamou Chris. — Você não está entendendo! Está permitindo que a pena que sente de Julian lhe roube todo o bom senso! Olhe em volta, Cathy! Só um louco seria capaz de fazer isso! Não vou deixá-la enfrentar sozinha um louco! Ficarei aqui para protegê-la. Diga-me o que poderá fazer sozinha se ele resolver castigá-la novamente por tê-lo abandonado na Espanha! Pode levantar-se e correr? Não! E não vou deixá-la aqui desprotegida, quando ele pode chegar em casa bêbado, ou drogado...
— Ele não toma tóxicos! — protestei, defendendo o que havia de bom em Julian e, não sei por que motivo desejando esquecer tudo o que ele tinha de ruim.
— Ele pulou em seus pés quando sabe que você precisa deles para dançar. Portanto, não me venha dizer que está lidando com um homem mentalmente são. Quando você foi trocar de roupa no camarim, escutei alguém comentar que Julian ficou muito diferente desde que começou a andar com Yolanda. Todos desconfiam que ele está usando tóxicos e só por isso mencionei o assunto.
Fez uma pausa antes de acrescentar:
— Além disso, sei por experiência própria que Yolanda toma tudo que estiver ao seu alcance.
Eu estava sonolenta, dolorida e preocupada com Julian, que àquela hora já deveria estar em casa. Além disso, havia um bebê cujo destino eu precisava decidir.
— Então fique, Chris. Mas, quando Julian chegar, fique à distância e deixe as palavras por minha conta, está bem?
Ele assentiu com a cabeça e comecei a adormecer outra vez, como se a única realidade fosse a cama e o sono de que eu tanto necessitava. Preguiçosamente, sem prestar atenção, tentei virar-me de lado e as pernas escorregaram das almofadas, fazendo-me soltar um grito de dor.
— Cathy... não se mova — disse Chris, apressando-se a endireitar as almofadas e ajeitar-me as pernas sobre elas. — Deixe-me deitar a seu lado e abraçá-la, enquanto ele não chega. Prometo não dormir e, tão logo ele abrir a porta, levantarei e não me meterei na conversa.
Sorriu para animar-me. Meneei a cabeça em afirmativa e aninhei-me nos braços cálidos e fortes que me envolveram. Tentei mais uma vez encontrar alívio no sono. Como num sonho, senti lábios suaves se moverem sobre meu rosto, beijando-me os cabelos, as pálpebras, a face e, finalmente, a boca.
— Eu a amo muito. Oh! meu Deus, eu a amo tanto! — escutei-o dizer.
Desorientada, julguei por um instante que se tratasse de Julian, de volta à nossa casa, pedindo desculpas por humilhar-me e machucar-me... pois costumava agir assim, causando-me dor e depois desculpando-se, fazendo-me amor com um abandono selvagem. Portanto, virei-me um pouco para o lado e correspondi-lhe os beijos, abraçando-o e enfiando os dedos entre seus cabelos fortes e escuros... Só então percebi. Os cabelos não eram fortes e crespos, mas sedosos e finos, como os meus.
— Chris! — exclamei. — Pare!
Mas ele perdera o controle, cobrindo de beijos ardentes meu rosto, pescoço e o busto que desnudara-se.
— Não me mande parar — murmurou ele, acariciando-me. — A vida inteira só tive frustrações. Tento amar outras, mas é sempre você... você, que nunca poderei possuir! Cathy... largue Julian! Venha embora comigo! Iremos para algum lugar distante, onde ninguém nos conheça, e viveremos juntos como marido e mulher. Não teremos filhos... cuidarei disso. Podemos adotar crianças. Você sabe que seremos bons pais... sabe que nos amamos, que nos amaremos para sempre! Nada poderá alterar isso! Fuja de mim e case-se com uma dúzia de outros homens, mas terá sempre o coração nos olhos quando me fitar... é a mim que você quer, como eu a quero!
Deixando-se levar pelos próprios argumentos, recusava-se a escutar meus débeis protestos.
— Cathy... só abraçá-la, tê-la outra vez! Agora saberei dar-lhe o prazer que não consegui proporcionar antes... por favor, se algum dia me amou... abandone Julian antes que ele nos destrua!
Sacudi a cabeça, tentando focalizar a atenção no que ele dizia e fazia. Seus cabelos louros estavam-me abaixo do queixo e ele passava o nariz nos bicos de meus seios; embora não visse minha expressão de recusa, escutou-me a voz.
— Christopher, estou esperando um filho de Julian. Consultei um ginecologista quando estive em Clairmont; por esse motivo, demorei-me lá mais do que pretendia. Julian e eu vamos ter um filho.
Pela maneira como ele recuou, parecia que eu o esbofeteara. Interrompeu o doce êxtase de beijar partes secretas que me excitavam. Sentou-se na beira da cama, curvando-se e escondendo o rosto nas mãos. Então, começou a chorar.
— Você sempre me derrota, Cathy! Primeiro Paul, depois Julian... agora um bebê.
De repente, ergueu o rosto para encarar-me.
— Venha comigo e deixe-me ser o pai da criança! Julian não merece! Mesmo que jamais me permita tocá-la, deixe-me viver o bastante perto de você para vê-la e escutar-lhe a voz todos os dias. Às vezes, desejo que tudo voltasse a ser como antes... apenas você e eu, e nossos gêmeos.
O silêncio, que ambos conhecíamos bem, envolveu-nos, encerrando-nos em nosso mundo secreto particular, onde havia o pecado e moravam os maus pensamentos. E nós pagaríamos se algum dia... Mas não! Não haveria “se algum dia”...
— Chris, vou ter um filho com Julian — declarei com uma firme decisão que me surpreendeu. — Quero o filho de Julian porque o amo, Chris e fracassei com ele sob muitos aspectos. Falhei porque você e Paul encheram-me os olhos e o pensamento, não permitindo que eu apreciasse o que poderia encontrar em Julian. Deveria ter sido melhor esposa; então, ele não teria necessidade daquelas garotinhas. Eu sempre amarei você, mas é um amor sem perspectivas e, portanto, desisto dele. Desista também! Esqueça o passado de uma Catherine Doll que já não existe.
— Você perdoa Julian ter-lhe fraturado os artelhos? — indagou Chris, espantado.
— Julian sempre me implorava para dizer que o amava e eu nunca disse. Mantive-me sob um guarda-sol enganador, a fim de afastar as dúvidas sombrias de minha mente, recusando-me a ver tudo o que Julian tinha de bom e belo fora do balé. Portanto, Chris, liberte-me. Mesmo que eu nunca mais volte a dançar, terei o filho de Julian... e este seguirá sozinho o caminho da fama.
Chris saiu batendo a porta e me deixou sozinha. Logo adormeci e comecei a sonhar com Bart Winslow, o segundo marido de minha mãe. Dançávamos uma valsa no imenso salão de bailes de Foxworth Hall e, lá em cima, perto da balaustrada do balcão, duas crianças se escondiam no interior da maciça cômoda com o fundo de tela de arame. A árvore de Natal no canto do salão parecia atingir o céu e centenas de pessoas dançavam conosco, mas eram pessoas de celofane transparente, sem a beleza saudável de carne e osso que Bart e eu possuíamos. De repente, Bart parou de dançar, pegou-me no colo para subir a larga escadaria e depositou-me na suntuosa cama com formato de cisne. Meu lindo vestido de veludo verde com adornos de gaze verde-claro dissolveu-se ao toque de suas mãos ardentes e o poderoso membro masculino que me penetrou e se movimentou em minhas entranhas fez-me gritar e berrar. Cada grito agudo soava exatamente como um toque do telefone.
Acordei sobressaltada... Por que um telefone que toca na calada da noite tem sempre um som tão ameaçador? Sonolenta, estendi a mão para atender.
— Alô?
— Sra. Julian Marquet?
Despertei um pouco mais, esfregando os olhos.
— Sim. Sou eu.
A mulher disse o nome de um hospital no outro lado da cidade.
— Poderia vir o mais rápido possível, Sra. Marquet? Veja se consegue alguém que lhe dê uma carona. Seu marido sofreu um acidente de automóvel e ainda está na sala de cirurgia. Traga consigo seus documentos de seguro, carteira de identidade e quaisquer dados médicos disponíveis... Sra. Marquet?... Ainda está no aparelho?
Não. Eu não estava no aparelho. Encontrava-me de volta a Gladstone, na Pensilvânia, e tinha onze anos de idade. Dois patrulheiros rodoviários estavam com o carro da polícia estacionado à nossa porta... e interromperam rapidamente uma festa de aniversário para informar-nos de que Papai estava morto. Sofrera um acidente na Rodovia Greenfield.
— Chris! Chris! — berrei, aterrorizada pela possibilidade de meu irmão ter-se ido.
— Estou aqui. Sabia que você precisaria de mim.
Naquela hora obscura e solitária que precede o amanhecer, Chris e eu chegamos ao hospital. Sentamo-nos em uma das estéreis salas de espera para aguardar noticias e sabermos se Julian sobreviveria ao acidente e à cirurgia. Afinal, por volta de meio-dia, após horas a fio na sala de recuperação, Julian foi trazido para baixo.
Tinham-no colocado no que chamavam de “cama de fraturas”, um aparelho que parecia um instrumento de tortura, que erguia sua perna direita engessada da ponta do pé até o quadril. O braço esquerdo fraturado, também engessado, estava colocado numa posição peculiar. O rosto pálido apresentava cortes e equimoses. Os lábios, normalmente tão cheios e vermelhos, pareciam tão pálidos quanto o rosto. Mas tudo isto era nada em comparação com a cabeça de Julian! Estremeci ao vê-la! Fora raspada em vários lugares e trazia as marcas dos furos feitos para a introdução de instrumentos metálicos destinados à manipulação do crânio! Uma coleira de couro forrada com lã envolvia-lhe o pescoço. Fratura de vértebras do pescoço! Além de uma fratura na perna e uma fratura exposta no antebraço, sem falar nos ferimentos internos que o haviam mantido na mesa de operações durante três horas!
Exclamei:
— Ele vai viver?
— Seu estado é crítico, Sra. Marquet — responderam com a maior calma. — Se ele tem outros parentes, sugerimos que sejam avisados.
Chris telefonou para Madame Marisha, pois eu temia que Julian morresse a qualquer momento e não queria perder a única oportunidade de dizer que o amava. E se isso acontecesse, eu me sentiria amaldiçoada e perseguida pelo remorso pelo resto da vida.
Os dias se passaram. Julian recobrava a consciência e tornava a perdê-la. Olhava-me com olhos sem brilho, fora de foco. Falava, mas sua voz era tão pastosa, arrastada e ininteligível que eu não conseguia entendê-lo. Desculpei-lhe todos os pequenos pecados e os grandes também, como costuma acontecer quando a morte está tão perto. Aluguei um quarto ao lado do dele, no hospital, onde podia cochilar a intervalos. Todavia, não tive uma só noite completa de descanso. Precisava estar ao lado de Julian quando ele voltasse a si, onde poderia ver-me e reconhecer-me, a fim de implorar-lhe que lutasse para viver e, sobretudo, dizer-lhe todas as palavras que lhe negara de modo tão avarento.
— Julian — sussurrava-lhe, rouca de tanto repetir a frase. — Não morra, por favor!
Nossos colegas de balé e músicos vinham em grupos ao hospital, oferecerem o consolo possível. O quarto de Julian estava cheio de flores enviadas por centenas de admiradores. Madame Marisha veio da Carolina do Sul e rondava o quarto usando um horrível vestido negro. Fitava sem a menor expressão de tristeza o rosto inconsciente de seu único filho.
— É melhor ele morrer agora — declarava, aparentemente insensível — É melhor do que voltar a si e verificar que ficou aleijado para o resto da vida.
Então, seu olhar assumia uma expressão de pena e incredulidade e ela chorava. Ela, que se gabava de nunca chorar ou demonstrar tristeza, chorava em meus braços.
— Diga-me outra vez que ele voltará a dançar... Oh! não minta, ele tem que voltar a dançar!
Passaram-se cinco dias tenebrosos antes que Julian conseguisse focalizar suficientemente os olhos para enxergar. Incapaz de virar a cabeça, voltou para mim os olhos negros.
— Olá.
— Olá, sonhador. Pensei que nunca mais acordaria — respondi.
Ele exibiu um leve sorriso irônico.
— Você não teria tamanha sorte, Cathy querida — disse ele, baixando os olhos para a perna sob tração. — Preferia morrer a estar assim.
Levantei-me e fui até a cama ortopédica feita com duas largas faixas de lona presas a duas fortes barras, tendo por baixo um colchão que podia ser baixado e erguido para permitir a colocação de uma comadre sob Julian sem lhe alterar a posição do corpo. A cama era dura e não permitia movimento do doente. Não obstante, estendi-me cautelosamente ao lado de Julian e enfiei-lhe os dedos nos cabelos em desalinho, ou melhor, no que restava deles. Com a mão livre, acariciei-lhe o peito.
— Jule, você não está paralisado. A medula não foi rompida, esmagada ou mesmo afetada. Encontra-se apenas em estado de choque, por assim dizer.
Julian tinha um braço são, que poderia estender para abraçar-me. Todavia, permaneceu estendido ao longo do corpo.
— Está mentindo — disse com amargura. — Não sinto absolutamente nada da cintura para baixo. Nem sua mão em meu peito. Portanto, caia fora daqui! Você não me ama! Esperou até pensar que estou morrendo para vir com essas frases melosas! Não quero nem preciso de sua piedade... portanto caia fora daqui e não volte!
Saí da cama e peguei minha bolsa. Chorei, da mesma forma como ele estava chorando com o olhar fixo no teto.
— Maldito seja por destruir nosso apartamento! — vociferei quando consegui falar. — Rasgou minhas roupas!
Andei de um lado para outro, furiosa, sentindo ímpetos de esbofetear aquele rosto já ferido e inchado.
— Maldito seja por quebrar todas as nossas lindas coisas! Sabia com que esmero escolhemos todos os objetos, que nos custaram uma fortuna! Sabe que desejamos deixá-los como herança para nossos filhos! Agora, nada nos resta para deixarmos para ninguém!
Ele sorriu, satisfeito.
— Sim, não resta nada para ninguém.
Bocejou, dispensando-me, mas eu não estava disposta a ser dispensada.
— Graças a Deus, não temos filhos! — disse Julian. — Nem teremos. Você pode requerer o divórcio. Case-se com algum filho da puta e faça-o infeliz também.
— Julian — disse eu, sentindo todo o peso da tristeza. — Eu o fiz infeliz?
Ele piscou, como se não quisesse responder, mas insisti até forçá-lo a dizer:
— Não totalmente infeliz... Tivemos alguns bons momentos.
— Só alguns?
— Bem... talvez mais que apenas alguns. Mas não precisa continuar ao meu lado só para cuidar de um inválido. Caia fora enquanto pode. Eu não presto, você sabe. Tenho sido infiel repetidas vezes.
— Se tornar a sê-lo, arranco-lhe o coração!
— Vá embora, Cathy. Estou cansado — disse com voz aparentemente sonolenta por causa de todos os sedativos que lhe ministravam. — De todo modo, filhos não servem para gente como nós.
— Gente como nós?
— Sim, gente como nós.
— Em que somos diferentes dos outros?
O riso de Julian foi a um só tempo zombeteiro, sonolento e amargo.
— Não somos reais. Não pertencemos à raça humana.
— O que somos, então?
— Bonecos que dançam, nada mais. Idiotas que dançam, têm medo de serem gente de verdade e viverem no mundo real. Por isso, preferimos a fantasia. Você não sabia?
— Não, eu não sabia. Sempre pensei que fossemos pessoas de verdade.
— Não fui eu quem estragou suas coisas; foi Yolanda. Mas eu assisti.
Senti-me doente, temendo que ele falasse a verdade. Seria eu apenas uma boneca que dançava? Incapaz de viver no mundo real fora do teatro? Era possível que fosse tão inepta quanto mamãe para enfrentar a realidade?
— Julian... eu o amo, palavra de honra. Pensava amar outra pessoa, pois me parecia pouco natural pular de repente de um amor para outro. Quando eu era criança, acreditava que o amor só acontece uma vez na vida de cada pessoa e depois de se amar alguém era impossível amar-se outra pessoa. Mas estava enganada.
— Saia e deixe-me em paz. Não quero ouvir o que você tem a dizer, não agora. Na verdade, agora pouco me importa.
As lágrimas me corriam pelo rosto, pingando em Julian. Este fechou os olhos, recusando-se a ver ou escutar. Debrucei-me para beijar-lhe os lábios, que se mantiveram duros, contraídos, sem reação. Em seguida, ele praticamente cuspiu as palavras:
— Pare! Você me enoja!
— Eu o amo, Julian — solucei. — E sinto muito só ter compreendido e dito isto tarde demais. Por favor, não permita que seja tarde demais. Estou esperando um filho seu, o décimo-quarto de uma longa linhagem de bailarinos... e vale muito a pena viver por esse filho, mesmo que você não me ame mais. Não feche os olhos, fingindo não escutar, porque vai ser pai, queira ou não queira!
Rolou os olhos negros e brilhantes para mim e percebi por que motivo brilhavam: estavam cheios de lágrimas. Se eram lágrimas de autocomiseração ou frustração, eu não sabia. Mas a voz de Julian se tornou mais branda e assumiu um leve tom amoroso.
— Aconselho-a a livrar-se desse bebê, Cathy. O número quatorze não dá mais sorte que o treze.
No quarto ao lado, Chris passou a noite inteira abraçado a mim. Acordei bem cedo na manhã seguinte. Yolanda fora atirada para fora do carro no acidente e seria enterrada naquela manhã. Libertei-me cuidadosamente dos braços de Chris e ajeitei-lhe a cabeça adormecida numa posição mais confortável antes de esgueirar-me para dar uma espiadela no quarto de Julian. Uma enfermeira ficava de plantão a seu lado a noite inteira. Estava profundamente adormecida ao lado da cama ortopédica. Parei junto à porta e observei Julian à difusa luz esverdeada do abajur coberto com uma toalha verde. Dormia profundamente. O tubo intravenoso em seu braço passava por baixo do lençol até chegar à veia. Não sei por que razão, olhei para o frasco pendente, contendo um líquido levemente amarelado que mais parecia água que qualquer outra substância. O nível do líquido baixava depressa. Voltei para sacudir Chris e acordá-lo.
— Chris — disse-lhe eu, enquanto ele tentava orientar-se. — O soro não deve pingar devagar na veia de Julian? Está passando muito depressa... Rápido demais, em minha opinião.
Mal terminei de falar e Chris já pulara da cama e corria para o quarto de Julian. Ao entrar, acendeu a luz do teto e depois acordou a enfermeira.
— Maldita! Como pôde adormecer? Está aqui para cuidar do doente!
Enquanto falava Chris puxou os lençóis e lá estava o aparelho de gesso no braço de Julian, com uma abertura para a agulha chegar à veia. A agulha ainda estava inserida na veia e presa com esparadrapo na posição adequada... mas o tubo fora cortado!
— Oh! Deus! — suspirou Chris. — Uma bolha de ar deve ter chegado ao coração...
Aturdida, fitei a tesoura frouxamente segura pela relaxada mão direita de Julian.
— Ele próprio cortou o tubo — murmurei. — Ele próprio... e agora está morto, morto...
— Onde ele conseguiu a tesoura? — perguntou rispidamente Chris à enfermeira, que começava a tremer.
Era a tesourinha que ela usava para cortar a linha do bordado.
— Deve ter caído do meu bolso — disse ela com voz sumida. — Juro que não me lembro de a ter perdido... Ou talvez ele a tenha apanhado quando me debrucei sobre a cama...
— Está certo — atalhei, indiferente. — Se não fosse dessa maneira, ele arranjaria outra. Eu devia ter previsto e prevenido. A vida nada valia para ele se não pudesse voltar a dançar. Nada.
Julian foi sepultado ao lado do pai. Após certificar-me junto a Madame Marisha de que ela aprovaria o nome, mandei gravar na lápide: “Julian Marquet Rosencoff, amado esposo de Catherine e décimo-terceiro de uma longa linhagem de astros russos do balé”. Talvez fosse um epitáfio ostensivo e revelasse meu fracasso em amá-lo o suficiente enquanto viveu, mas senti-me obrigada a fazer o que ele queria, ou o que eu julgava que ele queria.
Chris, Paul, Carrie e eu paramos também diante do túmulo de Georges e curvei a cabeça para demonstrar meu respeito para com o pai de Julian. O mesmo respeito que eu também deveria ter dado a Julian.
Cemitérios, com suas estátuas de santos e anjos de mármore, todos sorrindo docemente, tão piedosos e tão sóbrios; como eu os odiava! Condescendiam conosco, que vivíamos; nós, de frágil carne e osso, que nos podíamos enlutar e chorar, enquanto eles ali permaneceriam durante séculos, sorrindo piedosamente para todos. E lá estava eu, de volta exatamente ao ponto inicial.
— Catherine — disse Paul, quando estávamos todos sentados na comprida limusine preta. — Seu quarto está exatamente como antes, todo seu. Venha para casa e more comigo e Carrie até seu bebê nascer. Chris também estará lá, como interno no Hospital Clairmont.
Olhei para Chris, sentado no banquinho escamoteável, sabendo que ele tivera uma oferta para ocupar uma posição muito melhor num hospital deveras importante e preferira trabalhar como interno num pequeno e insignificante hospital do interior.
— Duke fica tão longe, Cathy — disse ele, evitando-me o olhar. — Já era ruim viajar tanto quando estava cursando a escola preparatória e a universidade... portanto, caso não se importe, permita-me ficar num lugar mais próximo, de modo a poder estar presente no dia em que meu sobrinho, ou sobrinha, vier ao mundo.
Madame Marisha mexeu-se tão bruscamente que quase bateu com a cabeça no teto do carro.
— Está esperando um filho de Julian? — exclamou. — Por que não me contou antes? Que maravilha!
Ficou radiante; a tristeza desapareceu como se Madame tivesse despido um manto escuro.
— Agora, Julian não está morto, pois terá um filho que será exatamente como ele!
— Talvez seja uma menina, Madame — disse Paul suavemente, estendendo a mão para pegar a minha. — Sei que a senhora está louca por um menino como seu filho, mas eu gostaria de uma garotinha como Cathy e Carrie... Todavia, se for um menino não farei objeções.
— Objeções? — exclamou Madame Marisha. — Deus, em sua infinita sabedoria e bondade, mandará para Catherine uma cópia exata de Julian! Será bailarino e alcançará a fama que esperava em breve pelo filho do meu Georges!
À meia-noite, eu estava sozinha na varanda dos fundos, balançando-me na cadeira predileta de Paul. Minha cabeça pululava de pensamentos para o futuro. Lembranças do passado causavam conflitos e quase me afogavam. As tábuas do assoalho rangiam de leve; eram velhas e tinham conhecido sofrimentos como os meus. Compreendiam-me. A lua e as estrelas brilhavam no céu e até mesmo alguns vaga-lumes piscavam na escuridão do jardim.
A porta às minhas costas se abriu e fechou quase silenciosamente. Não olhei para verificar quem era, pois já sabia. Ele se sentou na cadeira ao lado da minha e passou a balançar-se no mesmo ritmo que eu.
— Cathy — disse baixinho — detesto vê-la aí sentada, com essa expressão tão perdida e desanimada. Não pense que todas as boas coisas de sua vida já passaram e nada lhe resta agora. Ainda é muito jovem, muito bela; depois que seu bebê nascer, poderá recuperar depressa a forma e dançar até sentir que chegou a hora de abandonar o palco e ser professora de balé.
Não virei a cabeça. Voltar a dançar? Como poderia eu dançar, quando Julian estava enterrado? Tudo que eu tinha era o bebê. Transformaria aquela criança no centro de minha vida, ensinando-o a dançar. Menino ou menina, alcançaria a fama que deveria ser de Julian e minha. Tudo que Mamãe não nos dera eu derramaria sobre meu filho, que jamais seria negligenciado. Quando precisasse de mim, eu estaria a seu lado. Quando chamasse por sua mãe, não seria obrigado a contentar-se com uma irmã mais velha. Não... Eu seria como Mamãe fora quando Papai estava vivo. Era isso que mais magoava: o fato de Mamãe ter-se transformado de uma mulher amorosa e boa no que era atualmente: um monstro. Nunca, jamais eu trataria meu filho como ela nos tratara!
— Boa noite, Paul — respondi, levantando-me para entrar em casa. — Não se demore muito aqui fora. Precisa levantar-se cedo e parecia cansado na hora do jantar.
— Catherine...?
— Agora não. Mais tarde. Preciso de tempo.
Subi lentamente a escada, pensando na criança em meu útero. Precisava cuidar-me e não comer certas coisas; tinha que tomar muito leite e vitaminas. E ter pensamentos positivos... não vingativos. A partir de agora, eu ouviria música de balé todos os dias. Dentro de mim, meu filho escutaria e mesmo antes de nascer sua alma seria doutrinada no sentido da dança. Sorri, pensando nos belos trajes de bailarina que compraria para minha filhinha. Sorri ainda mais ao pensar num menino como o pai, com rebeldes cabelos negros. Chamar-se-ia Julian Janus Marquet. Janus para significar que conseguia ver em ambos os sentidos, à frente e atrás.
Passei por Chris, que se preparava para descer a escada. Ele me tocou. Estremeci, sabendo o que meu irmão desejava. Ele não precisava pronunciar as palavras: eu já as conhecia pela frente e por detrás, por dentro e por fora, de cabeça para baixo e na posição normal. Eu as conhecia... tão bem quanto conhecia Chris.
Embora eu procurasse com a maior diligência pensar apenas na criança inocente que crescia dentro de mim, meus pensamentos insistiam em dirigir-se a Mamãe, enchendo-me de ódio e de planos involuntários de vingança. Pois, de algum modo, ela também causara a morte de Julian. Se nunca tivéssemos sido prisioneiros e precisado fugir, eu jamais teria amado Chris ou Paul talvez Julian e eu nos tivéssemos conhecido inevitavelmente em Nova York. Então, eu poderia amá-lo como precisava e queria ser amado. Eu poderia ter chegado às suas mãos “virgem e pura, novinha em folha”. E perguntava-me repetidamente se isto teria feito alguma diferença... Sim! Sim! Convenci-me de que teria feito toda a diferença.
Interlúdio pra três
À medida que a criança se desenvolvia dentro de mim, comecei a reencontrar a identidade que perdera, pois o balé sempre mantivera minha verdadeira personalidade num estado embrionário envolvido pelo desejo de dançar e alcançar o sucesso. Agora, eu estava com os pés firmes no chão, a fantasia da vida encantadora do palco relegada a segundo plano. Não que eu ocasionalmente deixasse de ansiar pelo palco e pelos aplausos. Oh! Tive meus momentos de nostalgia, mas possuía um meio infalível para eliminá-los: pensava em Mamãe e no mal que ela nos causara. Mais outra morte em sua ficha, Mamãe!
Cara Sra. Winslow,
Continua a fugir de mim? Ainda não sabe que jamais conseguirá ir bastante depressa ou suficientemente longe para escapar? Algum dia eu a alcançarei e voltaremos a encontrar-nos. Talvez desta feita a senhora sofra como me fez sofrer e, espero, três vezes mais que isso.
Meu marido acaba de morrer num acidente de automóvel, exatamente como morreu seu marido há tantos anos. Estou esperando um filho dele, mas não tomarei medidas tão desesperadas como a senhora fez. Darei um jeito de sustentá-lo, mesmo que sejam trigêmeos... ou quádruplos!
Enderecei a carta à casa dela em Greenglenna, mas pouco depois os jornais informaram que se encontrava no Japão. Japão! Puxa, como ela viajava!
Aos poucos transformava-me numa mulher que não conhecera antes. Os espelhos mostravam que já não era esbelta e ágil, o que me aterrorizava. Vi os seios ficarem mais cheios e arredondados, enquanto a barriga crescia. Detestava movimentar-me desgraciosamente, mas minhas mãos adoravam acariciar o volume feito pelo bebê.
Um dia, dei-me conta de que tinha mais sorte que a maioria das viúvas, pois havia dois homens que necessitavam de mim. Homens que, por meios sutis, deixavam bem claro estarem prontos a ocupar o lugar de Julian. E tinha Carrie, a pequenina Carrie que me considerava um modelo pelo qual poderia pautar sua própria vida. Querida, pequena e doce Carrie, agora com dezesseis anos, nunca saíra com rapazes, tivera namorado ou fora a um baile. E bem poderia fazê-lo, se decidisse esquecer sua pequenez física. Chris convencia os amigos a saírem com sua irmã mais moça, que definhava por falta de romance. Carrie queixou-se comigo:
— Chris não precisa arranjar encontros para você! Aquele rapaz da escola preparatória não quer sair comigo; vem apenas para poder ficar perto de você.
Ri, declarando que aquilo era ridículo. Ninguém me desejaria naquelas condições: grávida, viúva e velha demais para um estudante. Carrie escutou-me, mas permaneceu emburrada perto da janela.
— Desde que você voltou, o Dr. Paul já não sai comigo para o cinema ou para jantar, como antigamente. Eu fazia de conta que ele não era meu tutor, mas meu namorado e isso me alegrava, porque todas as mulheres olham para ele, Cathy. O Dr. Paul é bonito, apesar de velho.
Suspirei, pois para mim Paul jamais seria velho. Parecia maravilhosamente jovem para sua idade: quarenta e oito anos. Tomei Carrie nos braços e consolei-a, dizendo que o amor estava à sua espera logo ao dobrar a esquina.
— Será jovem também, Carrie, quase da sua idade. Depois que a vir e souber como você realmente é, não precisará ser coagido, pois estará mais que disposto a amá-la.
Calada, ela se ergueu e foi para seu quarto, sem se deixar convencer por meus argumentos.
Madame Marisha vinha freqüentemente verificar minhas condições e enchia-me de conselhos autoritários:
— Trate de continuar seus exercícios; toque música de balé para ensinar o filho de Julian a amar o que é belo antes mesmo de nascer; dentro de você ele saberá que a dança o espera aqui fora.
Olhou para meus pés, que finalmente estavam curados.
— Como sente os dedos, agora?
— Muito bem — respondi indiferente, embora me doessem quando chovia.
Henny estava sempre atenta para cuidar de mim como uma mucama quando Carrie se ausentava. Envelhecia com uma rapidez espantosa. Preocupava-me com ela. Embora Henny se esforçasse para fazer a rígida dieta recomendada por ambos os seus “filhos-doutores”, comia o que tinha vontade, sem dar importância a calorias ou colesterol.
Os longos dias de luto passaram mais depressa porque eu esperava o filho de Julian, uma parte dele que eu poderia guardar comigo. Logo chegou o Natal e eu estava tão grande com a gravidez que achei melhor não aparecer em público. Contudo, Chris, apoiado por Paul, insistiu que seria boa terapia sair para as compras natalinas. Comprei um medalhão antigo de ouro para enviar à Madame Zolta e anexei ao presente duas pequenas fotos de Julian e eu em nossos trajes de Romeu e Julieta. Pouco depois do Natal, recebi seu bilhete de agradecimento:
Querida Catherine, meu amor,
O seu presente foi o melhor de todos. Choro seu belo marido. Choro principalmente por você, caso decida não mais dançar só porque espera um filho! Há muito tempo já seria uma prima ballerina se seu marido demonstrasse menos arrogância e mais respeito pelas pessoas investidas de autoridade. Mantenha-se em forma, exercite-se, traga seu bebê consigo e todos nós moraremos juntos em minha casa até você encontrar outro danseur para amar. A vida nos oferece muitas oportunidades, não apenas uma. Volte.
O bilhete de Madame Zolta colocou-me no rosto um sorriso tristonho e sonhador. Ela ainda falava em amor...
— Por que sorri assim? — quis saber Paul, deixando de lado a revista médica à qual devia estar dedicando apenas parte de seu interesse.
Desajeitadamente, debrucei-me para entregar-lhe o bilhete. Ele leu e depois estendeu os braços para mim, convidando-me a aninhar-me em seu colo e proteger-me em seu abraço. Aceitei pressurosamente o convite, pois estava sedenta de afeição, A vida sem um homem parecia nada significar para mim.
— Poderia prosseguir em sua carreira — disse mansamente. — Muito embora eu peça a Deus que você não volte a Nova York e me abandone outra vez.
Comecei:
— Era uma vez um casal de lindos pais louros que tiveram quatro filhos que jamais deveriam ter nascido. E os adoravam de modo quase irracional. Então, certo dia o pai morreu e a mãe se transformou, esquecendo-se por completo do amor, afeto e atenção que as quatro crianças necessitavam tão desesperadamente. Portanto, agora que outro belo marido morreu, não permitirei que meu filho se sinta negligenciado, órfão, desnecessário ou indesejável. Quando meu filho chorar, estarei a seu lado. Lá estarei sempre, a fim de fazê-lo sentir-se seguro e muito querido. Lerei e cantarei para ele, que nunca se sentirá abandonado ou traído, como Chris se sentiu traído pela pessoa que mais amava neste mundo.
— Ele? Parece que você conhece também esse tipo de sofrimento — disse Paul, cujos olhos brilhantes mostravam tristeza. — Vai ser mãe e pai para essa criança? Pretende fechar a porta a qualquer homem que porventura desejar compartilhar de sua vida? Catherine, espero que não seja uma dessas mulheres que se deixam azedar porque a vida nem sempre lhe faz todas as vontades.
Movi a cabeça para encará-lo nos olhos.
— Você ainda me ama, não é mesmo?
— Não é mesmo?
— Isso não é resposta.
— Não creio que seja necessário responder. Pensei que você soubesse. Pensei também, pelo jeito como você me olha, que um dia voltaria para mim. Eu a amo, Catherine... Amei-a desde o primeiro dia em que subiu os degraus de minha varanda. Amo seu jeito de sorrir, de falar, de nadar... isto é, até de ficar grávida e passar a curvar-se para trás, com as mãos nas costas. Dói tanto?
— Oh! — respondi, desgostosa. — Por que parou de dizer todas aquelas coisas lindas para perguntar se minhas costas me incomodam? Naturalmente que incomodam. Não estou acostumada a carregar nove quilos extras na barriga... Prossiga o que estava dizendo antes de lembrar-se de que é médico.
Ele baixou vagarosamente a cabeça para roçar os lábios nos meus, bem de leve, antes de deixar-se dominar pela paixão e beijar-me com ardor. Meus braços lhe envolveram o pescoço e retribuí apaixonadamente o beijo. A porta da frente se abriu e logo se fechou com estrondo. Afastei-me depressa de Paul e tentei levantar-me antes que Chris chegasse à sala, mas não fui bastante rápida. Meu irmão entrou, usando um sobretudo por cima do uniforme branco de interno. Trazia um saco com um litro de sorvete que eu declarara ter vontade de comer quando estávamos jantando.
— Pensei que você estivesse de plantão esta noite — comentei depressa demais, para ocultar o embaraço e surpresa que me dominavam.
Chris praticamente jogou-me o sorvete nos braços, encarando-me com frieza.
— Estou de plantão, mas é uma noite tranqüila no hospital, de modo que pensei em tirar alguns minutos de folga para trazer o sorvete que você tanto desejava.
Lançou um rápido olhar de esguelha a Paul.
— Sinto muito haver chegado numa hora imprópria. Prossigam o que estavam fazendo.
Girou nos calcanhares e saiu da sala. A porta da frente bateu com estrondo pela segunda vez.
— Cathy — disse Paul, que se levantara para pegar o sorvete de minhas mãos. — Precisamos fazer algo quanto a Chris. O que ele deseja é impossível. Já tentei discutir o assunto, mas recusa-se a escutar. Tapa os ouvidos e se afasta. Você tem que fazê-lo compreender que está arruinando a própria vida ao não permitir que outra mulher o conquiste.
Foi à cozinha e voltou poucos minutos depois com duas taças de sorvete que eu já não queria mais. Paul tinha razão. Era preciso tomar uma providência quanto a Chris. Mas que providência? Eu não podia magoá-lo; também não podia magoar Paul. Era como se eu assistisse a uma batalha, desejando que ambos os lados vencessem.
— Catherine — disse Paul em voz baixa, como se observasse minha reação. — Você nada me deve. Lembre-se disso, se não me ama. Dê um basta em Chris; faça-o entender que precisa esquecê-la e tratar de procurar outra pessoa. Qualquer pessoa, menos você...
— Para mim, é muito difícil dizer isso a ele — declarei com voz sumida, envergonhada de admitir que não desejava que Chris encontrasse outra pessoa.
Queria-o sempre comigo, só a confiança que sua presença me dava, nada mais. Tentava equilibrar meu tempo entre Chris e Paul, dando o bastante a cada um deles, mas não demais. Vi o ciúme crescer entre os dois e senti que a culpa não era minha, só de Mamãe! Como tudo de errado em minha vida era culpa dela.
Senti a primeira contração numa noite fria de fevereiro. Prendi a respiração por causa da dor aguda. Tinha conhecimento de que doeria, mas nunca imaginei que doesse tanto! Olhei para o relógio: duas da manhã do dia de S. Valentino, o Dia dos Namorados. Oh! Que maravilha! Meu bebê nasceria no que teria sido o dia de nosso sexto aniversário de casamento! Exclamei, como se ele pudesse escutar-me:
— Julian, você está prestes a ser pai!
Levantei-me, vestindo-me o mais depressa possível antes de atravessar o corredor e bater à porta do quarto de Paul. Ele resmungou algo à guisa de pergunta. E eu repliquei:
— Paul, acabo de sentir a primeira contração.
— Graças a Deus! — exclamou ele, no outro lado da porta fechada, despertando imediatamente. — Já está pronta para irmos?
— Naturalmente. Faz um mês que estou pronta.
— Vou telefonar para seu médico e depois alertar Chris. Sente-se e tenha calma!
— Posso entrar?
Ele abriu a porta, despido da cintura para cima.
— Você é a parturiente mais calma que já vi — comentou, ajudando-me a sentar.
Em seguida, apressou-se a usar o barbeador elétrico sem se mirar no espelho e correu para vestir uma camisa e pegar uma gravata.
— Teve outras contrações?
Comecei a dizer que não, quando senti a segunda dor. Dobrei-me para a frente.
— Quinze minutos depois da outra — murmurei, engasgada de dor.
Paul parecia pálido ao vestir o paletó e depois vir ajudar-me.
— Muito bem. Primeiro vou colocá-la no carro; depois, pegarei a mala. Fique calma, não se preocupe. Essa criança terá três médicos dedicando o máximo de atenção...
— Para se atrapalharem — concluí.
— Para que você conte com a melhor assistência profissional possível — corrigiu ele, gritando em seguida na direção da cozinha: — Henny, vou levar Catherine para o hospital! Avise Carrie quando ela acordar. Depois telefone para Madame Marisha e coloque no telefone aquela gravação que preparamos para ela.
Pensáramos em tudo. Quando Paul tornou a abrir a porta da frente, depois de me deixar no carro, escutei a gravação tocando para Madame Marisha. Minha própria voz, gravada duas semanas antes, dizia: “Madame, seu neto está chegando”.
Pareceu-me uma eternidade até avistar o hospital. Sob o toldo que protegia a entrada de emergência, um interno solitário andava nervosamente de um lado para outro: Chris.
— Graças a Deus vocês chegaram! — exclamou. — Eu já estava imaginando todo tipo de calamidades.
Ajudou-me a sair do carro enquanto alguém chegava correndo com uma cadeira de rodas e, sem quaisquer das preliminares a que tinham de sujeitar-se as outras pacientes, logo me vi acomodada na cama sentindo mais uma contração.
Meu filho nasceu três horas depois. Chris e Paul lá estavam, ambos com lágrimas nos olhos, mas foi Chris quem pegou meu menino, sujo e ensangüentado, ainda com o cordão umbilical. Colocou-o sobre minha barriga e segurou-o ali enquanto outro médico lhe prestava os devidos cuidados.
— Cathy... consegue vê-lo?
— É lindo!— sussurrei encantada, vendo o cabelo escuro e ondulado, o perfeito corpinho vermelho.
Com uma raiva feroz tão semelhante à do pai, o menino sacudia os minúsculos punhos e as pernas finas, berrando contra todas as indignidades a que o sujeitavam e toda a luz pareceu brilhar-lhe subitamente nos olhos, colocando-o no centro do palco, por assim dizer.
— Seu nome é Julian Janus Marquet, mas eu o chamarei de Jory.
Tanto Chris como Paul escutaram meu sussurro. Eu me sentia tão fatigada e sonolenta...
— Por que vai chamá-lo de Jory? — quis saber Paul.
Não tive forças para responder, mas Chris, que entendeu meu raciocínio, explicou:
— Se ele fosse louro, teria o nome de Cory. Sendo moreno, o "J" será por Julian e o resto por Cory.
Nossos olhares se encontraram e eu sorri. Como era maravilhoso ser compreendida e nunca precisar explicar!
Meu doce Pequeno Príncipe
Se algum dia uma criança nasceu num palácio cheio de pessoas que a idolatravam, certamente foi o meu Jory, com seus anelados cabelos negros, pele clara e macia, olhos azuis escuros. Era uma cópia perfeita de Julian e pude dedicar lhe todo o afeto que fui incapaz de dar a seu pai. Desde o início, Jory deu a impressão de saber que eu era sua mãe. Parecia conhecer-me a voz, o toque e até mesmo o som dos passos. Não obstante, demonstrava um amor quase tão grande à Carrie, que todas as noites voltava às pressas do consultório de Paul para tomá-lo nos braços e brincar com ele durante horas a fio.
— Devemos procurar nossa própria casa — disse Chris, que desejava estabelecer-se firmemente como pai de Jory, o que não era possível em casa de Paul.
Eu não sabia o que responder a isso. Gostava da grande casa de Paul, de estar com ele e Henny. Queria que Jory tivesse as alamedas dos jardins, pelas quais eu podia empurrar-lhe o carrinho e onde ele estaria rodeado de beleza. E de forma nenhuma Chris poderia dar-lhe tanto. Meu irmão não tinha conhecimento de meus débitos astronômicos.
Paul instalara no andar superior um quarto de criança, completamente remodelado e equipado com um berço, um cercado para Jory brincar, um carrinho de criança e dúzias de bichinhos macios com os quais meu filho podia brincar à vontade sem risco de machucar-se. Havia ocasiões em que tanto Chris como Paul chegavam em casa trazendo brinquedos iguais. Entreolhavam-se e ambos exibiam um sorriso forçado, a fim de esconder o embaraço. Então eu era obrigada a intervir, exclamando:
— Dois homens com a mesma idéia!
E um dos brinquedos tinha que ser devolvido. Todavia, tive o cuidado de jamais permitir que um deles soubesse qual presente eu devolvera.
Carrie completou o ginásio em junho do ano em que completou dezessete anos. Não quis continuar os estudos; estava perfeitamente satisfeita com o trabalho de secretária particular de Paul. Seus pequenos dedos pareciam voar sobre o teclado da máquina de escrever; ela tomava ditados com notável rapidez e precisão, mas continuava desejando que alguém a amasse a despeito de seu tamanho franzino. Vê-la infeliz deixava-me mais uma vez furiosa com minha mãe! Comecei a refletir sobre o que faria tão logo surgisse a oportunidade. Agora eu estava livre, sem um marido para tolher-me. Livre para fazê-la pagar, como Carrie estava pagando!
Diariamente, minha irmã via Paul e Chris batalharem por minha atenção, ambos desejando-me, cada um começando a encarar o outro com inimizade. Eu precisava resolver definitivamente um problema que deveria estar solucionado há muito tempo. Se ao menos Julian não se tivesse interposto, eu seria agora esposa de Paul e Jory seu filho. Ainda assim... eu amava Jory por ele mesmo e, pensando melhor, sentia-me satisfeita por ter possuído Julian durante algum tempo. Já não era uma doce virgem inocente; dois homens haviam-me ensinado bem. Eu já tinha o conhecimento necessário para cuidar de mim mesma quando chegasse o momento de roubar de minha mãe seu segundo marido. Portar-me-ia como ela se portava com Papai. Lançaria a Bart Winslow rápidos olhares tímidos e, alternadamente, prolongados olhares significativos. Estenderia a mão para acariciar-lhe o rosto... E meu maior trunfo era parecer-me tanto com ela e, todavia, ser muito mais jovem! Como poderia ele resistir? Eu engordaria alguns quilos, para tomar formas mais arredondadas como ela.
Chegou o Natal e Jory, com menos de um ano de idade, ficou sentado entre seus presentes, confuso e de olhos arregalados, sem saber o que fazer ou que brinquedo pegar em primeiro lugar. Três máquinas fotográficas disparavam simultaneamente, mas a máquina de filmar estava com Paul e não com Chris, Carrie ou comigo. Carrie tomou meu filho nos braços, embalando-o para dormir na noite de Natal, cantando baixinho uma cantiga de ninar. Não contive as lágrimas ao vê-la, tão parecida com uma criança e, contudo, ansiosa por ter um filho só para si. Chris aproximou-se por detrás e abraçou-me pela cintura. Recostei-me nele.
— Eu devia correr para pegar a máquina — sussurrou ele. — Os dois ficam tão lindos juntos, mas não quero quebrar o encanto. Carrie é muito parecida com você, Cathy, exceto no tamanho.
Uma palavrinha: “exceto”. Apenas uma palavrinha impedia que Carrie se sentisse realmente feliz. Soaram passos na escada. Rapidamente, livrei-me dos braços de Chris e fui arrumar meu filho no berço. Senti a presença de Paul junto à porta, agora que Chris se retirara para seu quarto.
— Cathy — disse Carrie num sussurro, a fim de não acordar Jory. — Acha que algum dia terei um filho?
— Sim, claro que terá.
— Eu não acredito — disse ela.
Então, retirou-se devagar, deixando-me a observar sua saída.
Paul entrou no quarto, deu um beijo de boa noite em Jory e depois virou-se como se pretendesse abraçar-me.
— Não — protestei em voz sumida. — Não enquanto Chris estiver em casa.
Paul meneou rigidamente a cabeça e deu-me boa noite. Fui para a cama e fiquei acordada até quase amanhecer, tentando encontrar um meio para solucionar o dilema em que me encontrava.
Jory parecia muito satisfeito com sua situação; não era mimado, não fazia manha; não chorava ou fazia exigências desnecessárias. Simplesmente aceitava. Era capaz de levar minutos seguidos olhando de um de nós para o outro, como se nos avaliasse e examinasse nosso relacionamento com ele. Tinha a paciência de Chris, a tranqüilidade e introspecção de Cory, e só ocasionalmente revelava a impetuosidade e petulância do pai e da mãe. Contudo, nada em Jory me fazia lembrar Carrie; ele sorria muito mais que ela. Não obstante, quando Carrie passeava pelos jardins de Paul com Jory no colo, apontava as diferenças entre esta e aquela planta, dando explicações incessantes e obrigando Jory a imitar a fala muito antes do que ele teria feito normalmente.
— Veja esta folha de carvalho — disse Carrie certo dia, quando Jory já aprendera a andar e as brisas primaveris movimentavam o ar. — A folha de cada árvore tem sua própria forma, textura e odor. Todas as flores se abrem facilmente para permitir a entrada das abelhas, exceto a rosa. Entretanto, as margaridas não possuem o aroma gostoso das rosas, de modo que as abelhas passam direto por elas e procuram as rosas, que são tão avarentas com seu néctar e mantêm-se orgulhosamente eretas em longos talos.
Apontou para uma rosa e lançou-me um rápido olhar de esguelha. Em seguida, mostrou a Jory as margaridas e os amores perfeitos.
— Ora, se eu fosse uma abelha, pode apostar que eu iria direto às violetas e aos amores-perfeitos também, embora não sejam tão altos.
Ergueu a cabeça para encarar-me e disse numa voz estranha, tensa e sumida:
— Você é como uma rosa, Cathy. Todas as abelhas vão direto a você e nem me enxergam aqui embaixo. Por favor, não se case novamente antes de eu ter uma oportunidade. Por favor, não esteja por perto se algum dia um homem olhar para mim... Não sorria para ele, por favor...
Oh! Como o tempo voa quando se tem um bebê para encher todas as horas! Todos nós fotografávamos como loucos: o primeiro sorriso de Jory, seu primeiro dente, seu primeiro engatinhar de mim até Chris e, depois, até Paul e Carrie. Paul iniciou sua corte a mim, que duraria dois anos, os mesmos dois anos que Chris trabalhou como interno no Hospital Clairmont. Não podiam magoar-se mutuamente quando cada um gostava do outro e o respeitava. Nem mesmo conseguiam falar na barreira que os separava, exceto por meu intermédio.
— É esta cidade — disse Chris. — Creio que Carrie dar-se ia muito melhor em outro lugar. Nós todos, juntos.
A obscuridade do crepúsculo começava a invadir os jardins; era nossa hora preferida de percorrê-los. Paul saíra para fazer a ronda dos doentes em três hospitais e Carrie brincava com Jory antes de levá-lo para a cama. Henny batia as panelas na cozinha, para mostrar-nos que ainda estava acordada e ocupada. Chris completara o período obrigatório de dois anos como interno e passara a ser médico-residente, o que lhe tomaria mais três anos. Quando me revelou que estava pensando em ir para outro hospital, muito mais famoso, para completar o período de treinamento, fiquei chocada. Chris ia abandonar-me!
— Sinto muito, Cathy, mas a Clínica Mayo me aceitou como residente, o que é uma grande honra. Ficarei lá por nove meses e depois voltarei para completar o período de residência aqui em Clairmont. Por que você e Jory não me acompanham? — seus olhos brilhavam intensamente ao fazer a sugestão. — Carrie poderá ficar para fazer companhia a Paul.
— Chris! Você não pode fazer isso!
— Pretende permanecer aqui depois que eu partir? — indagou ele, amargurado.
— Se a companhia de seguros de Julian me pagasse, eu teria o suficiente para comprar minha própria casa e instalar uma escola de balé. Contudo continuam a insistir que a morte dele foi suicídio. Sei que a apólice tem uma cláusula de suicídio com carência de dois anos. Pagamos os prêmios desde o dia de nosso casamento; portanto, a cláusula já caducara quando ele morreu. Apesar disso, recusam-se a pagar.
— O que você precisa é de um bom advogado.
Meu coração deu um salto.
— Sim. É o que preciso, Chris. Vá sem mim para a Clínica Mayo. Eu ficarei bem e prometo-lhe não me casar até que você volte e me dê sua aprovação. Trate de arranjar uma namorada. Afinal, não sou a única mulher que se parece com nossa mãe.
Chris ficou furioso.
— Por que diabo coloca as coisas nesses termos? É você, não ela! É tudo o que você tem de diferente dela que me faz necessitar de você e amá-la!
— Chris, quero um homem com quem eu possa ir para a cama, que me abrace quando eu sentir medo, que me beije e faça-me sentir que não sou má ou indigna — declarei, interrompendo-me um momento quando as lágrimas começaram a correr. — Eu desejava mostrar a Mamãe o que sou capaz de realizar e ser a melhor prima ballerina do mundo, mas agora que Julian se foi, só tenho vontade de chorar quando ouço música de balé. Sinto tanta falta dele, Chris!
Apoiei a cabeça no peito de meu irmão e solucei.
— Eu poderia tê-lo tratado melhor... então, ele não agrediria por raiva. Julian precisava de mim e eu fracassei. Você não precisa de mim, pois é mais forte que ele. Paul também não precisa de mim, do contrário insistiria em casar-se comigo imediatamente...
— Poderíamos morar juntos e... e...
As palavras lhe faltaram e ele ficou muito vermelho. Eu concluí seu argumento:
— Não! Será que não entende que não dará certo?
— Não, creio que não daria certo para você — replicou ele, empertigando-se. — Mas sou um idiota; sempre fui um idiota, desejando o impossível. Sou até mesmo bastante idiota para desejar ver-nos trancados novamente, como antes, quando eu era o único homem disponível para você!
— Não está falando sério!
Chris me abraçou com força.
— Não estou? Deus me perdoe, mas falo sério! Naquela época, você me pertencia e, a seu modo peculiar, nossa vida juntos tornou-me melhor do que eu realmente era... E você me fez desejá-la, Cathy. Poderia ter-me feito odiá-la, mas ao contrário, fez-me amá-la.
Sacudi a cabeça, negando; eu fizera apenas o que me vinha naturalmente em resultado de observar o procedimento de minha mãe com os homens. Fitei Chris, tremendo quando ele me largou. Tropecei ao virar-me para correr de volta à casa. E deparei com Paul! Espantada, invadida por um sentimento de culpa, cambaleei ao vê-lo dar uma brusca meia-volta e caminhar na direção oposta. Oh! Paul estivera observando e escutando tudo! Girei nos calcanhares e corri de volta até onde Chris apoiava a cabeça no tronco do mais velho carvalho do parque.
— Veja o que fez! — exclamei. — Esqueça-me, Chris! Não sou a única mulher neste mundo!
Ele parecia um cego ao virar a cabeça e replicar:
— Para mim, você é a única mulher no mundo.
Outubro chegou e, com ele, a época de Chris partir. Vê-lo arrumar as malas, saber que se ia, despedir-me como se não me importasse quanto tempo ele levaria para voltar, tudo aquilo me deixou doente. Mas obriguei-me a sorrir. Chorei no roseiral. Agora seria mais fácil. Eu não mais teria que manter Paul à distância a fim de não magoar Chris. Já não precisava pesar cuidadosamente cada um de meus sorrisos e equilibrá-lo com o que exibira ao outro. Agora meu caminho estava limpo, aberto e reto até Paul, mas algo se interpôs em meu campo visual: minha mãe, desembarcando do avião, acompanhada pelo marido. Estava de volta a Greenglenna! Recortei a fotografia e a notícia do jornal, colocando-as em meu álbum. Talvez, se Mamãe permanecesse longe, eu tivesse casado com Paul imediatamente. Na realidade, porém, fiz algo completamente fora de meus planos.
Madame Marisha “ia levando” e precisava de uma assistente. Assim, tratei de convencê-la de que eu era a pessoa indicada para cuidar da escola de balé; até quando... bem, nunca se podia dizer com certeza.
— Não pretendo morrer — replicou ela com rispidez. Então, meneou a cabeça com evidente relutância, os olhos negros cheios de desconfiança. — Sim, suponho que você me considera velha, embora eu nunca pense nisso. Todavia, não procure assumir o controle e mandar em mim. Ainda sou a patroa e assim continuarei a ser até ir para a cova!
Em meados de novembro, compreendi que era impossível trabalhar para Madame Marisha, que tinha idéias fixas a respeito de tudo, enquanto eu possuía algumas idéias próprias. Contudo, precisava de dinheiro, de uma casa só para mim. Ainda não estava pronta para casar-me com Paul e isto certamente aconteceria se eu continuasse lá. Eu já passara muitos anos imaginando esquemas e fazendo planos. Era tempo de entrar em ação. O primeiro peão a mover seria o Dr. Advogado. Não daria certo se eu permanecesse na casa de Paul e, embora este protestasse e alegasse que se tratava de uma despesa desnecessária, expliquei-lhe que eu precisava de uma oportunidade para ser independente e ter uma casa própria onde pudesse descobrir o que realmente desejava. Paul olhou-me intrigado e, depois, assumiu uma expressão mais perspicaz.
— Muito bem, Catherine; faça como quiser. Acabará fazendo, de qualquer maneira.
— É apenas porque Chris insistiu para que eu não me casasse novamente antes de Carrie ter uma oportunidade. E Chris tem objeções a que eu more aqui com você... quando ele está noutra cidade...
Interrompi-me, embaraçada. Oh, que mentira!
— Compreendo — replicou Paul com um sorriso irônico. — Desde o dia em que Julian morreu, ficou bem claro que estou competindo com seu irmão pela sua afeição. Tentei conversar com Chris a respeito, mas ele se recusa a escutar. Tento conversar com você a respeito, mas também se recusa a escutar. Portanto, vá morar em sua própria casa, seja independente, encontre-se a si mesma. E quando se sentir bastante adulta para agir como um adulto, volte para mim.
Jogada de abertura
Tão logo me instalei num pequeno chalé alugado a meia distância entre Clairmont e Greenglenna, sentei-me para minutar uma carta de chantagem à Mamãe. Eu estava muito endividada, tinha um filho e, além disso, também precisava cuidar de Carrie. As enormes contas feitas por Julian nas lojas de Nova York ainda estavam por pagar; havia também suas contas de hospital e as despesas do funeral, sem falar nas minhas contas de hospital referentes ao parto de Jory. Os cartões de crédito não resolviam o problema. Nem por um segundo passou-me pela cabeça aceitar mais dinheiro de Paul. Este já fizera mais que o suficiente. Eu precisava provar que era melhor que Mamãe, mais capaz, mais inteligente e esperta... Contudo, o que fiz senão escrever-lhe uma carta, exatamente como ela fizera à sua mãe quando Papai morreu? Por que não lhe pedir um mísero milhão de dólares? Por que não? Ela nos devia! O dinheiro também era nosso! Com ele, eu poderia saldar todas as minhas dívidas, liquidar nosso débito para com Paul e fazer algo para tornar Carrie mais feliz. E se, de certo modo, eu me sentia envergonhada de fazer o mesmo que ela fizera, raciocinei que a culpa era dela! Mamãe merecia! Jory não passaria necessidades quando ela possuía tanta coisa!
Afinal, após muitas tentativas fracassadas, redigi o que me pareceu uma carta perfeita de extorsão:
Cara Sra. Winslow:
Era uma vez, em Gladstone, na Pensilvânia, um homem e uma mulher que tinham quatro filhos a quem todos chamavam de “Bonecas de Dresden”. Agora, uma das bonecas jaz num túmulo solitário e outra delas não atingiu o tamanho normal que teria caso lhe tivessem proporcionado sol, ar livre e o amor que a mãe lhe devia demonstrar quando ela mais necessitava.
Agora, a boneca bailarina tem um filho pequeno e está sem dinheiro. Sei, Sra. Winslow, que não tem muita compaixão por filhos que poderiam causar uma sombra em seus dias ensolarados, de modo que irei diretamente ao assunto. A boneca bailarina exige o pagamento de um milhão de dólares, se a senhora pretende continuar a possuir algo dos seus milhões... ou bilhões. Poderá enviar a mencionada quantia à caixa postal discriminada em anexo. E esteja certa, Sra. Winslow, de que se o dinheiro não for devidamente remetido, os ouvidos do Sr. Bartholomew Winslow, Bacharel em Direito, escutarão fatos horríveis que a senhora, tenho certeza, prefere que ele jamais venha a conhecer.
Cordialmente, a boneca bailarina,
Catherine Dollanganger Marquet”.
Todos os dias, eu aguardava que o cheque chegasse pelo correio. Todos os dias, ficava desapontada. Escrevi outra carta, depois outra, e ainda outra. A cada sete dias, com a raiva aumentando no peito, eu enviava uma nova carta. O que significava um mísero milhão para quem possuía tantos? Eu não estava pedindo muito. De toda forma, parte daquele dinheiro nos pertencia.
Então, depois de passarem meses infrutíferos, deixando para trás o Natal e o Ano Novo, decidi que já aguardara o suficiente. Minha mãe pretendia ignorar-me. Portanto, procurei um número na lista telefônica de Greenglenna e, num piscar de olhos, marquei hora para uma entrevista com Bartholomew Winslow, advogado.
Estávamos em fevereiro e Jory tinha três anos. Passaria a tarde com Henny e Carrie enquanto eu, em minhas melhores roupas e com o cabelo penteado de modo deveras atraente, entrava no luxuoso escritório para falar com o segundo marido de minha mãe. Afinal, vi-o de perto e, desta feita, ele tinha os olhos bem abertos. Levantou-se devagar, exibindo uma expressão bestificada, como se já me tivesse visto antes e não conseguisse recordar onde. Meus pensamentos recuaram até a noite em que eu penetrara às escondidas nos luxuosos aposentos de Mamãe em Foxworth Hall e deparara com Bart Winslow adormecido na poltrona. Na época, ele usava um grande bigode escuro e eu me atrevera a beijá-lo enquanto ele dormia. Acreditando que estava profundamente adormecido... quando isto não era verdade! Bart me vira e julgara-me parte de um sonho. Por causa de um beijo roubado, do qual Chris tomara conhecimento posteriormente, as repercussões tinham-nos empurrado, meu irmão e eu, por um caminho que decidíramos jamais tomar. Agora, pagávamos o preço disso e por culpa dela Chris e eu estávamos separados, tentando renegar o que ela começara. Eu não podia aceitar Paul como marido até obrigá-la a pagar e não apenas em dinheiro.
Então, o másculo e belo marido de minha mãe sorriu para mim e, pela primeira vez, senti a força de seu carisma. Um brilho de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos castanhos escuros.
— Quero morrer cego se não for a Srta. Catherine Dahl, a linda bailarina que sempre me tira o fôlego, antes mesmo de começar a dançar! Sinto-me encantado porque precisa de um advogado e me escolheu, embora seja incapaz de imaginar o motivo de sua presença.
— Viu-me dançar? — indaguei, aturdida ao ouvir aquilo.
Se ele me vira dançar, Mamãe também vira! Oh, e eu nunca soube! Nunca soube! Fiquei eufórica, fui murchando, entristecendo-me, até sentir-me confusa. Em algum lugar bem no fundo de mim, a despeito de toda a camada externa de ódio, eu ainda sentia um pouco do amor que sentira por ela quando era jovem e confiante.
— Minha esposa é fanática por balé — acrescentou ele. — Na verdade, eu não gostava muito quando ela começou a me levar quase à força a cada uma de suas apresentações. Mas logo aprendi a apreciar, em especial quando você e seu marido dançavam os papéis principais. Com efeito, minha esposa parecia não dar a mínima importância ao balé senão quando você e seu marido se apresentavam. Cheguei a temer que ela estivesse apaixonada por seu marido, que se parece um pouco comigo.
Tomou-me a mão e levou-a aos lábios, lançando-me um olhar e sorrindo com o encanto natural de um homem que sabe o que é: um conquistador acostumado a fazer marcas na coronha do revólver.
— É ainda mais bela fora do palco. Contudo, o que faz nesta região?
— Moro aqui.
Ele puxou uma cadeira para mim, colocando-a tão perto que pôde ver minhas pernas quando as cruzei. Sentou-se na beirada da mesa de trabalho e ofereceu-me um cigarro, que recusei. Ele acendeu um para si e indagou:
— Está de férias? Ou visitando sua sogra?
Percebi que nada sabia a respeito da morte de Julian.
— Sr. Winslow, meu marido morreu em conseqüência de ferimentos sofridos num acidente de automóvel há mais de três anos. O senhor não sabia?
Ele pareceu chocado e um pouco embaraçado.
— Não, eu não sabia. Sinto muito. Por favor, aceite minhas tardias condolências.
Suspirou e apagou o cigarro quase inteiro.
— Vocês dois eram sensacionais no palco. É uma pena. Vi minha esposa chorar de emoção ao vê-los dançar juntos. Ficava realmente impressionada.
Sim! Sou capaz de apostar que ficava impressionada. Esquivei-me de outras perguntas e fui direto ao objetivo de minha visita, entregando-lhe a apólice de seguros de Julian.
— Julian fez o seguro logo que nos casamos e agora a companhia se recusa a pagar porque julga que ele cortou o tubo do soro através do qual recebia alimentação intravenosa. Todavia, como o senhor pode ver, a cláusula de suicídio perde o efeito após dois anos.
Ele se sentou para ler meticulosamente a apólice e depois encarou-me outra vez.
— Verei o que é possível fazer. Tem necessidade imediata do dinheiro?
— Quem não tem necessidade de dinheiro, Sr. Winslow, a menos que seja milionário? — repliquei sorrindo, tombando a cabeça de lado à moda de minha mãe. — Tenho centenas de contas a pagar e um filho pequeno para sustentar.
Ele indagou a idade de meu filho e eu respondi. Bart Winslow parecia intrigado e confuso por vários motivos enquanto eu o observava com olhos sonolentos e semicerrados, a cabeça jogada ligeiramente para trás e para um lado, uma atitude que minha mãe adotava ao olhar para um homem. Agora, Bart era muito mais bonito. O rosto maduro era comprido e magro, os ossos muito salientes, mas de uma notável beleza viril, masculina. Algo nele sugeria uma sensualidade exagerada. E não era de espantar que minha mãe não me tivesse enviado um cheque. Provavelmente, todas as minhas cartas de chantagem ainda a seguiam de um lugar para outro, sem alcançá-la.
Bart Winslow fez mais uma dúzia de perguntas e declarou que veria o que era possível fazer por mim.
— Sou um bom advogado quando minha esposa me permite ficar na cidade e trabalhar.
— Sua esposa é muito rica, não é?
A indagação pareceu aborrecê-lo.
— Suponho que se pode dizer que sim — respondeu com ar abespinhado, deixando bem claro que não gostava de falar no assunto.
Levantei-me para sair.
— Aposto que sua esposa o leva como um poodle de estimação com uma coleira incrustada de pedras preciosas, Sr. Winslow. As mulheres ricas são assim: nada sabem a respeito de ter que trabalhar para ganhar a vida. E duvido que o senhor saiba.
— Ora, por Deus! — exclamou ele, erguendo-se da mesa num salto e postando-se com os pés afastados um do outro. — Por que veio aqui se acha isso? Procure outro advogado, Srta. Dahl. Não quero uma cliente que me insulta e não tem o menor respeito pela minha capacidade profissional.
— Não, Sr. Winslow: quero o senhor. Desejo que o senhor prove conhecer a profissão tanto quanto alega. Talvez, sob certo aspecto, consiga também provar algo a si mesmo: o fato de que, afinal, não é apenas um brinquedo dispendioso comprado por uma mulher rica.
— Srta. Dahl, possui o rosto de um anjo e a língua de uma prostituta! Farei com que a companhia pague o seguro de vida de seu marido. Intimá-los-ei a comparecer ao tribunal e ameaçarei processá-los. Aposto dez contra um como pagarão num prazo de dez dias.
— Ótimo! — repliquei. — Faça o favor de avisar-me, pois pretendo mudar-me tão logo receba o dinheiro.
— Para onde? — indagou ele, dando um passo à frente para pegar-me o braço.
Ri, encarando-o e usando os artifícios que uma mulher possui para provocar o interesse dos homens.
— Dar-lhe-ei o endereço quando escolher o lugar, para a eventualidade de que deseje entrar em contato comigo.
Dez dias mais tarde, fiel à sua palavra, Bartholomew Winslow compareceu à escola de balé para entregar-me um cheque de cem mil dólares.
— E seus honorários? — perguntei, dispensando com um aceno de mão os rapazes e moças que corriam para rodear-me.
Eu usava uma malha justa de ensaiar e Bart Winslow não conseguia tirar os olhos de mim.
— Jantar às oito, na próxima terça-feira. Use um vestido azul para combinar com seus olhos e, então, discutiremos meus honorários — respondeu, dando meia volta para sair sem esperar minha resposta.
Depois que ele se foi, virei-me e fitei os alunos que faziam exercícios de aquecimento e, de algum modo, senti-me observando a cena do alto, menosprezando-me e apiedando-me daqueles inocentes que tanto me admiravam. Senti-me triste por mim e por eles.
— Quem é aquele homem que lhe trouxe um cheque? — quis saber Madame Marisha quando a aula terminou.
— Um advogado que contratei para obrigar a companhia a pagar o seguro de vida de Julian. E ela pagou.
— Ah!... — disse ela, deixando-se cair na velha poltrona giratória. — Agora, que tem dinheiro e pode pagar as dívidas... creio que deixará de trabalhar para mim e irá para algum outro lugar, não é mesmo?
— Ainda não tenho certeza do que farei, mas sou forçada a admitir que a senhora e eu não nos damos muito bem no trabalho, não é, Madame?
— Você tem muitas idéias que não me agradam. Julga que sabe mais que eu! Acha que agora, que trabalhou aqui alguns meses, pode ir embora e fundar sua própria escola! — sorriu maldosamente quando me sobressaltei de surpresa e confirmei a verdade da qual ela apenas desconfiava. — Então... julga que também sou estúpida! Pode procurar a vida inteira, mas não encontrará alguém mais esperta que eu. Leio seus pensamentos, Catherine. Não gosta de mim, jamais gostou, nem gostará... não obstante, veio trabalhar para mim a fim de aprender sobre o negócio. Não estou certa mais uma vez? Pois não me importa. Escolas de balé surgem e desaparecem, mas a Escola de Balé Rosencoff continuará a existir para sempre! Antes, eu pensava que a deixaria para Julian ao morrer, mas quem morreu foi ele; depois, resolvi que a deixaria para você, mas não o farei se levar seu filho embora e não permitir que eu o ensine a dançar!
— Madame, a escolha é sua, mas levarei Jory comigo.
— Por quê? Julga-se capaz de ensiná-lo tão bem quanto eu?
— Não sei ao certo, mas acho que posso. Meu filho talvez prefira não ser bailarino — prossegui, ignorando-lhe o olhar duro e penetrante. — Se algum dia ele se decidir a dançar, creio que serei uma professora capacitada, tanto quanto qualquer outra.
— Se ele se decidir a dançar! — trovejou ela, como um canhão. — Que outra escolha pode ter o filho de Julian senão dançar? Está em seu sangue, em seu cérebro e, acima de tudo, em seu coração! Se ele não dançar, morrerá!
Levantei-me para sair. Minha intenção era ser bondosa com ela, permitindo que tomasse parte na vida de Jory... mas a maldade em seus olhos duros me fez mudar de idéia. Madame Marisha tomaria meu filho e faria dele o que fizera de Julian: alguém que jamais poderia ser feliz e realizar-se, pois a vida que lhe ofereciam só permitia uma única escolha.
— Eu não poderia dizer isto hoje, Madame, mas a senhora me obriga. Fez com que Julian acreditasse que, caso não pudesse dançar, a vida nada significava e não oferecia alternativa. Ele ficaria curado da fratura no pescoço e dos ferimentos internos, mas a senhora declarou que ele jamais voltaria a dançar e Julian escutou, pois não estava dormindo. Portanto, preferiu a morte! O próprio fato de conseguir movimentar o braço o suficiente para roubar a tesoura da bolsa da enfermeira é prova de que ele estava em recuperação; contudo, só conseguia ver diante de si um deserto desolado, onde o balé não existia! Bem, Madame... a senhora não fará isso ao meu filho! Jory terá oportunidade de escolher sozinho o tipo de vida que desejar e peço a Deus que não seja o balé!
— Idiota! — exclamou ela, cuspindo as sílabas. Levantou-se bruscamente para andar de um lado a outro diante da velha escrivaninha. — Não existe nada melhor que a adulação dos fãs, o barulho ensurdecedor dos aplausos, a sensação das rosas nos braços! E você logo descobrirá isto por si mesma! Pretende levar o neto de meu marido para longe e escondê-lo do palco? Jory será bailarino e antes de morrer hei de vê-lo no palco, fazendo o que tem que fazer... ou, então, ele também morrerá!
Tomou fôlego e prosseguiu desdenhosamente, franzindo os lábios numa expressão de zombaria:
— Quer bancar a “mamãezinha”, ou talvez a “esposa ideal” para aquele médico bonitão, hem? E dar-lhe outro filho, hem? Bem, se isso é tudo que deseja da vida... vá para o inferno, Catherine!
Interrompeu-se e começou a chorar. Os soluços pareciam vir-lhe do âmago da alma. Quando tornou a falar, tinha a voz áspera e rouca, em vez de alta e aguda como antes:
— Sim... vá em frente... case-se com aquele médico pelo qual sempre teve uma queda, desde quando me foi trazida como uma menina sonhadora e de fisionomia infantil, e arruíne a vida dele, também!
— Arruinar a vida dele, também? — repeti, aturdida.
Ela deu meia-volta.
— Existe algo que a rói por dentro, Catherine! Algo que lhe devora as entranhas. Algo tão amargo que lhe ferve no olhar e a obriga a trincar os dentes! Conheço bem o seu tipo. Arruína todos os que entram em sua vida e Deus tenha piedade do próximo homem que a amar tanto quanto meu filho a amou!
Inesperadamente, um manto invisível e enigmático desceu sobre mim, envolvendo-me na pose fria e distante de minha mãe. Nunca antes eu me sentira tão intocável.
— Muito obrigada por esclarecer-me, Madame. Adeus e felicidades. Nunca mais me verá ou a Jory.
Virei-me e saí. Para sempre.
Na noite de terça-feira, Bart Winslow bateu à porta de meu chalé. Estava trajado com apuro e eu usava um vestido azul. Ele sorriu, satisfeito por eu ter atendido a sua sugestão. Levou-me a um restaurante chinês, onde comemos com pauzinhos e toda a decoração era em preto e vermelho.
— Você é a mulher mais linda que já vi, com exceção de minha esposa — disse ele, enquanto eu lia meu bilhetinho da sorte: “Precavenha-se contra atitudes impulsivas”.
— A maioria dos homens não mencionam as esposas quando saem com outra mulher...
Ele interrompeu:
— Não sou um homem comum. Estou apenas fazendo-a saber que não é a mulher mais linda que conheci.
Sorri docemente, observando-lhe atentamente os olhos. Percebi que o irritava, encantava e, sobretudo, intrigava. Quando dançamos, descobri também que o excitava.
— De que vale a beleza sem inteligência? — indaguei, dançando nas pontas dos pés para roçar os lábios em sua orelha. — De que vale a beleza quando se está envelhecendo, engordando e já não se constitui um desafio?
— Você é a mulher mais estranha que já encontrei!— exclamou ele, com os olhos escuros faiscando. — Como ousa insinuar que minha esposa é burra, velha e gorda? Pois fique sabendo que parece muito jovem para a idade que tem!
— Você também — repliquei com um risinho de mofa. Ele ficou rubro. — Não se preocupe, porém, Sr. Advogado... não pretendo competir com ela; não quero um poodle de estimação.
— Não o terá, minha senhora — retrucou ele friamente. — Pelo menos, não em mim. Mudar-me-ei daqui em breve, para abrir um escritório na Virgínia. A mãe de minha mulher não está bem de saúde e necessita de companhia e assistência. Tão logo acertar as contas comigo, a senhora poderá despedir-se de um homem que, obviamente, traz à tona o que a senhora tem de pior.
— Ainda não mencionou seus honorários.
— Ainda não decidi a respeito.
Agora eu já sabia para onde me mudaria: de volta à Virgínia, a fim de morar em algum lugar próximo a Foxworth Hall. Então, eu poderia iniciar minha verdadeira vingança.
— Cathy! — lamentou-se Carrie, chorosa, muito perturbada porque deixaríamos Paul e Henny. — Não quero ir embora! Amo o Dr. Paul e Henny! Vá para onde quiser, mas deixe-me aqui! Não percebe que o Dr. Paul não deseja que nos mudemos daqui? Não se importa de magoá-lo? Você o magoa sempre! Eu não pretendo fazer o mesmo!
— Gosto muito do Dr. Paul, Carrie, e não quero magoá-lo. Entretanto, existem certas coisas que devo fazer, e imediatamente. Além disso, Carrie, seu lugar é comigo e Jory. Paul precisa de uma oportunidade para arranjar uma esposa sem tantos dependentes. Não entende que o estamos atrapalhando?
Ela recuou, fitando-me raivosamente.
— Cathy, ele quer você como esposa!
— Há muito, muito tempo não me diz isso.
— Porque você está tão decidida a mudar-se e fazer outras coisas. Ele me disse que deseja que você faça o que quiser. Ele a ama muito. Se eu fosse ele, obrigaria você a ficar, pouco me importando se quisesse ou não!
Então, começou a soluçar, correu para longe de mim e fechou a porta de seu quarto com violência.
Procurei Paul e lhe disse para onde ia e por que razão. Sua expressão alegre se tornou triste e o olhar brilhante ficou vago.
— Sim, durante todo o tempo tive o pressentimento de que você julgaria necessário voltar para lá e defrontar-se pessoalmente com sua mãe. Vi-a elaborar planos e esperei que me convidasse a acompanhá-la.
— É uma coisa que preciso resolver sozinha — repliquei, tomando-lhe ambas as mãos nas minhas. — Compreenda, por favor, que eu ainda o amo e sempre o amarei.
— Compreendo — afirmou ele. — Desejo-lhe boa sorte, Catherine, e muita felicidade. Que todos os seus dias sejam lindos e alegres; que você consiga tudo que almeja, quer eu esteja ou não incluído em seus planos para o futuro. Quando e se precisar de mim, estarei pronto, esperando para fazer o que me for possível. A cada minuto, eu a amarei e sentirei sua falta... Lembre-se apenas disso: quando me quiser, estarei à disposição.
Eu não o merecia. Era bom demais para gente da minha laia.
Não quis que Carrie ou Chris soubessem para que região da Virgínia eu pretendia ir. Chris escrevia-me uma ou duas vezes por semana e eu respondia todas as suas cartas, mas não mencionei o assunto... Ele tomaria conhecimento quando visse o novo endereço.
Foi no mês de maio, no dia seguinte ao aniversário de Carrie, festejado sem a presença de Chris. Partimos em meu carro, Carrie, Jory e eu, após passarmos pela casa de Paul a fim de nos despedirmos. Paul fez um último aceno e quando olhei pelo retrovisor vi-o tirar o lenço do bolso e enxugar os cantos dos olhos. Henny nos observava. Tive a impressão de ler em seus expressivos olhos castanhos: “Idiota! Vai embora, abandonando um homem bom!”
Nada constituiu prova mais cabal de minha idiotice que o dia ensolarado em que parti de volta às montanhas da Virgínia com minha irmã menor e meu filho a meu lado, no banco dianteiro do carro. Contudo, eu precisava agir assim, compelida por minha própria natureza a procurar vingança no local onde estivéramos encarcerados.
O canto de sereia das montanhas
No último instante, decidi que não podia arriscar-me a ver Bart Winslow por um só momento, de modo que deixei numa caixa do correio um envelope contendo um cheque de duzentos dólares, considerando a quantia suficiente, mesmo que não fosse.
Com Carrie sentada a meu lado e Jory em seu colo, segui diretamente para as Montanhas Blue Ridge. Agora que estávamos a caminho, Carrie ficou muito excitada, os grandes olhos azuis muito abertos, comentando tudo que víamos.
— Oh, adoro viajar! — declarou alegremente.
Quando Jory adormeceu, ela arrumou cuidadosamente uma cama para ele no banco traseiro e sentou-se ao lado, a fim de evitar que o menino rolasse e caísse do banco.
— Ele é tão lindo, Cathy. Terei ao menos seis filhos, talvez mais. Quero que alguns se pareçam com Jory, outros com você e Chris, e um ou dois com o Dr. Paul.
— Eu a amo, Carrie, e tenho pena de você: deseja ter uma dúzia de filhos, não apenas seis.
— Não se preocupe — replicou ela, ajeitando-se para tirar também um cochilo. — Ninguém vai querer casar comigo, de modo que não terei filhos para amar, com exceção dos seus.
— Não é verdade. Tenho o palpite que, após nos instalarmos em nossa nova residência, a Srta. Carrie Dollanganger Sheffield vai arranjar um namorado. Sou até capaz de apostar cinco dólares... topa?
Carrie sorriu e não aceitou a aposta.
À medida que avançávamos para noroeste, a noite começou a cair e Carrie ficou muito calada. Olhava pela janela e depois me fitava, os grandes olhos azuis cheios de temor.
— Cathy, estamos voltando para lá?
— Não; não exatamente.
Foi tudo o que eu disse antes de encontrarmos um hotel onde passarmos a noite.
Logo de manhã cedo, uma corretora com quem eu entrara em contato previamente, veio buscar-nos em seu carro para examinarmos as “propriedades à venda”. Era grandalhona e masculinizada, só falando em negócios.
— Vocês precisam de algo compacto, funcional e não muito dispendioso. Nesta zona, todas as casas custam muito caro. Contudo, existem alguns chalés menores, que os ricos costumavam usar como casas de hóspedes ou de empregados. Uma delas é deveras bonita, com um lindo jardim.
A primeira casa que nos mostrou foi um chalé de cinco cômodos e fiquei imediatamente encantada. Creio que Carrie também ficou, mas eu a prevenira para não se mostrar entusiasmada. Escolhi pequenos detalhes para despistar a corretora.
— A chaminé dá a impressão de não funcionar.
— É ótima, escoando bem a fumaça.
— A caldeira... é a óleo ou gás?
— Gás natural, instalada há cinco anos. O banheiro e a cozinha também foram reformados. Aqui morava um casal que trabalhava para os Foxworth, cuja mansão fica na montanha, mas resolveram vender a casa e morar na Flórida. Contudo, é fácil ver que adoravam a casa.
Claro que sim! Só uma casa muito amada pelos donos teria todos os pequenos e bem cuidados detalhes que a tornavam excepcional. Comprei-a e assinei todos os documentos sem o auxílio de advogado, embora tivesse lido sobre o assunto e mandado verificar a legalidade da escritura.
— Mandaremos instalar um forno embutido na parede, com porta de vidro — disse eu a Carrie, que adorava cozinhar, graças a Deus, pois não me sobrava tempo para isso! — E pintaremos nós mesmas todo o interior da casa, economizando a despesa de mão-de-obra.
Àquela altura, eu já começava a perceber que os cem mil dólares não durariam muito depois do pagamento de todos os meus débitos e do sinal de compra da casa. Entretanto, não me atirara àquela aventura de olhos vendados. Enquanto Carrie permaneceu com Jory num motel, fui procurar a professora de balé que colocara a escola à venda e ia aposentar-se. Era loura, muito miúda, e tinha cerca de noventa anos. Deu a impressão de ficar satisfeita ao ver-me. Trocamos um aperto de mãos e fechamos o negócio pela quantia que ela desejava.
— Vi-a dançar Com seu marido. Na verdade, Srta. Dahl, embora me sinta muito contente porque deseja comprar minha escola de balé, tenho pena de que abandone o palco ainda tão jovem. Eu jamais conseguiria parar de dançar aos vinte e sete anos! Nunca!
Ela não era eu; não tivera meu passado ou meu tipo de infância. Quando verificou que eu estava mesmo decidida a fechar o negócio, forneceu-me uma lista dos alunos.
— A maior parte dessas crianças pertence às famílias ricas que residem nas redondezas e não acredito que nenhuma delas tencione seriamente tornar-se profissional de balé. Freqüentam as aulas por vontade dos pais, que gostam de vê-las bonitinhas em traje de dança durante os recitais. Jamais consegui formar aqui uma bailarina verdadeiramente talentosa.
Todos os três dormitórios de nosso chalé eram muito pequenos, mas a sala era em forma de "L", de proporções razoáveis, com uma lareira ladeada por estantes. A perna mais curta do "L" podia ser utilizada como sala de jantar. Carrie e eu empunhamos as brochas e dentro de uma semana pintamos todos os cômodos de um verde bem suave. Com o madeirame pintado de branco, o resultado foi delicioso. O espaço aumentou e tudo parecia maior. Carrie, naturalmente, precisaria ter acessórios roxos e vermelhos no “seu” quarto.
Em três semanas tínhamos entrado numa nova rotina. Eu dava aulas na escola de balé, situada acima da farmácia local, enquanto Carrie cuidava da casa e da cozinha, ao mesmo tempo em que tomava conta de Jory. Sempre que possível, eu levava Jory comigo para a escola de balé, não só para aliviar a responsabilidade de Carrie, como também para tê-lo perto de mim. Lembrava-me das palavras de Madame Marisha a respeito de deixá-lo observar, ouvir e ter a sensação da dança.
Em certa manhã de sábado, no início de junho, eu olhava pelas janelas para as montanhas encobertas de névoa azulada, que jamais mudavam de aparência. A mansão dos Foxworth continuava como sempre. Eu poderia atrasar o relógio até 1957 e, naquela noite, tomar Carrie e Jory pela mão, seguindo as trilhas sinuosas que vinham da parada de trem. Seria exatamente como na noite em que Mamãe levara quatro filhos para a prisão da esperança e, depois, do desespero, deixando-os lá para serem torturados, espancados e mortos de fome. Relembrei repetidamente tudo o que acontecera: a chave de madeira que fizemos para fugir da prisão, o dinheiro que roubáramos do luxuoso quarto de nossa mãe, a noite em que encontramos o volumoso livro sobre prazeres sexuais na mesinha de cabeceira. Talvez, se nunca tivéssemos visto aquele livro... talvez, então as coisas transcorressem de modo diferente.
— Em que está pensando? — quis saber Carrie. — Acha que devemos voltar para visitar o Dr. Paul e Henny?... Espero que pense nisso.
— Na verdade, Carrie, sabe que não podemos fazê-lo. É época de recital e meus alunos precisam ensaiar diariamente. Os pais pagam as aulas para assistirem aos recitais. Contudo, podemos pedir a Paul e Henny que venham visitar-nos.
Carrie emburrou-se, mas de repente animou-se por algum motivo.
— Sabe, Cathy, no dia em que aquele homem veio instalar o fogão, um jovem bonito, viu-me com Jory e perguntou se era meu filho. Soltei uma risadinha e ele também sorriu. Chama-se Theodore Alexandre Rockingham, mas pediu-me que o tratasse por Alex.
Fez uma pausa, fitando-me temerosa e tremendo de esperança.
— Cathy, ele me convidou para um encontro.
— Você aceitou?
— Não.
— Por que não?
— Não o conheço o suficiente. Ele disse que está fazendo o curso preparatório para a universidade e trabalha parte do tempo como eletricista para custear os estudos. Declarou que pretende ser engenheiro eletrônico, ou talvez pastor protestante... Ainda não se decidiu.
Com um leve sorriso a um só tempo orgulhoso e encabulado, acrescentou:
— Cathy, ele nem notou que sou tão pequena.
O modo como ela pronunciou a frase fez-me sorrir também.
— Carrie... você ficou ruborizada! Começa por declarar que mal conhece o rapaz, mas logo em seguida dá todas as informações importantes a seu respeito. Vamos convidá-lo para jantar. Então, poderei verificar se ele serve para minha irmã.
— Mas... mas... — gaguejou ela, muito vermelha. — Alex convidou-me para passar um fim-de-semana em sua casa, em Maryland. Já falou com os pais a meu respeito... mas, Cathy, ainda não estou pronta para enfrentar seus pais!
Seus olhos azuis demonstravam pânico. Só então me dei conta de que Carrie devia ter-se encontrado muitas vezes com o rapaz enquanto eu dava aulas de balé.
— Ouça, querida: convide Alex para jantar aqui conosco e deixe-o ir para casa sozinho. Creio que devo conhecê-lo melhor antes de deixá-la viajar sozinha com ele.
Ela me fitou demoradamente, com uma expressão estranha. Depois, baixou os olhos.
— Você estará aqui se ele vier jantar?
— Ora, claro que estarei.
Só então entendi. Oh! Deus! Tomei-a nos braços.
— Escute, querida: convidarei Paul para vir este fim-de-semana, de modo que quando Alex perceber que gosto de homens mais velhos nem olhará para mim. Além disso, vocês se viram antes. Ele não vai querer uma mulher mais velha, viúva, com um filho.
Cheia de felicidade, Carrie enlaçou-me o pescoço com os braços.
— Oh! Cathy, eu a amo! E Alex sabe consertar torradeiras e ferros de engomar. Alex conserta tudo!
Uma semana mais tarde, Alex e Paul sentaram-se à nossa mesa de jantar. Alex era um rapaz bem apessoado, de vinte e três anos, que elogiou minha comida. Apressei-me em declarar que Carrie preparara a maior parte da refeição.
— Não — protestou ela, modesta. — Cathy preparou quase tudo. Eu só recheei a galinha, preparei o molho, amassei as batatas, fiz os pães quentes e os suspiros. Cathy cuidou do resto.
De repente, senti-me como se apenas tivesse arrumado a mesa. Paul piscou um olho para mim, mostrando que compreendia.
Quando Alex levou Carrie ao cinema e Jory estava acomodado na cama com seus brinquedos prediletos, Paul e eu sentamo-nos diante da lareira, como se fôssemos casados há muitos anos.
— Então, já viu sua mãe? — indagou ele.
— Estão aqui, ela e o marido — respondi em voz baixa. — Moram em Foxworth Hall. O jornal local noticia-lhes todos os movimentos. Parece que a minha querida avó dos olhos de pedra sofreu um leve ataque cardíaco, de modo que Bartholomew Winslow e Sra. residirão com ela... até que morra.
Paul ficou calado durante longo tempo, em frente à lareira, observando os carvões vermelhos se transformarem em cinzas escuras.
— Gosto do modo como arrumou a casa — comentou ele, afinal. — É muito acolhedora.
Levantou-se e veio sentar-se junto de mim, no sofá. Abraçou-me ternamente e assim ficamos, encarando-nos nos olhos.
— Onde me encaixo eu? — murmurou. — Ou não me encaixo em lugar nenhum agora?
Apertei-o em meus braços. Jamais deixara de amá-lo, mesmo quando era casada com Julian. Parecia que não existia um homem que me pudesse dar tudo o que eu queria.
— Quero fazer amor com você, Catherine, antes que Carrie volte para casa.
Despimo-nos rapidamente. Nossa paixão mútua em nada diminuíra durante todos os anos que se haviam passado desde que tivéramos pela primeira vez um contato tão íntimo. Não me parecia errado, pelo menos quando ele era capaz de sussurrar:
— Oh! Catherine, se há algo que desejo é possuí-la por toda a minha vida e, quando morrer, que seja após fazermos amor, tendo-a em meus braços, com você me abraçando e fitando como faz agora.
— Que belo e poético — repliquei. — Mas você completará cinqüenta e dois anos em novembro e sei que viverá até os oitenta, ou noventa. E quando tiver essa idade, espero que a paixão ainda nos governe, como agora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não quero chegar aos oitenta sem você a meu lado e ainda me amando. Prefiro morrer quando você deixar de me amar.
Fiquei sem saber o que responder, mas deixei que meus braços falassem por mim, estreitando-o ainda mais para que eu pudesse beijá-lo repetidamente. Então, o telefone começou a tocar. Estendi preguiçosamente o braço para atender... então sentei-me bruscamente na cama.
— Minha Lady Catherine! — era a voz de Chris. — Henny estava com uma amiga quando telefonei para Paul. A amiga deu-me o número de seu telefone. Cathy, que diabo está fazendo você na Virgínia? Sei que Paul está aí... e rezo para que ele consiga dissuadi-la de fazer o que diabo você tem em mente!
— Paul é muito mais compreensivo que você. E, Chris, você é a pessoa que melhor deveria saber o que estou fazendo aqui!
Meu irmão produziu um ruído de contrariedade.
— O pior de tudo é que compreendo. Mas tenho certeza de que se magoará, Cathy. Além disso, há o problema de Mamãe. Não quero que você a machuque mais do que ela já está machucada, como você sabe que está. Entretanto, acima de tudo, não quero que você se magoe outra vez e sei que isto acontecerá. Está sempre fugindo de mim, Cathy, mas nunca poderá ir bastante longe ou com suficiente pressa para escapar-me, porque estarei sempre em seus calcanhares, amando-a. Sempre que algo de bom me acontece, sinto-a ao meu lado, segurando-me a mão, amando-me como eu a amo, mas recusando-se a reconhecer o fato por pensar que é pecado. Se for pecado, então o céu deve ser perto de você.
Tive uma terrível sensação de pânico. Despedi-me rapidamente e desliguei. Em seguida, virei-me para aninhar-me nos braços de Paul, esperando que ele não desconfiasse do motivo que me fazia tremer.
Na calada da noite, com Paul profundamente adormecido no terceiro quartinho do chalé, acordei repentinamente. Tive a impressão de escutar as montanhas chamarem: “Filha do Diabo!” O vento uivava lá fora, acrescentando sua voz às que me chamavam de pecaminosa, má, diabólica e tudo mais que a avó dizia de nós. Levantei-me e fui à janela olhar para os picos sombrios á distância. Os mesmos picos que eu costumava observar das janelas do sótão. Sim, exatamente como Cory, eu podia escutar o vento soprando e uivando como um lobo à minha procura, querendo arrastar-me também, da mesma forma como arrastara Cory e o transformara apenas em pó.
Corri ao quarto de Carrie e agachei-me ao lado de sua cama, desejando protegê-la, pois tinha a impressão, no estado de pesadelo em que me encontrava, que era mais provável que o vento a arrastasse antes de mim.
O romance agridoce de Carrie
Carrie tinha vinte anos, eu vinte e sete, Chris completaria trinta em novembro. Parecia-me uma idade impossível para ele, mas quando olhava o meu Jory eu ficava abismada com a rapidez com que o tempo corre à medida que envelhecemos. O tempo que antes parecia arrastar-se ganhava impulso, acelerando-se, pois nossa Carrie estava apaixonada por Alex! O amor brilhava-lhe nos olhos azuis e dançava-lhe nos pés miúdos enquanto ela percorria a casa limpando os móveis, manipulando o aspirador, lavando a louça ou planejando o cardápio para o dia seguinte.
— Ele não é lindo, Cathy? — indagava ela.
E eu concordava, embora, na realidade, Alex fosse apenas um jovem comum, com cerca de um metro e sessenta e oito de estatura, boa aparência, cabelos castanhos claros que se despenteavam com facilidade e lhe davam um ar relativamente atraente de cãozinho arrepiado, pois era tão meticuloso e bem arrumado em todos os outros sentidos! Tinha olhos azuis esverdeados e a expressão de alguém por cuja mente jamais passara um pensamento feio ou maldoso.
Carrie eletrizava-se ao escutar o toque do telefone, pois freqüentemente o chamado era para ela. Chegava a borbulhar de excitação. Redigia para Alex, longos e apaixonados poemas de amor, obrigando-me a lê-los e depois guardando-os sem enviá-los a quem realmente deveria vê-los. Sentia-me feliz por ela e por mim também, pois a escola de balé ia de vento em popa e Chris viria para casa a qualquer momento!
— Você é capaz de acreditar, Carrie? O curso de especialização de Chris está quase terminando!
Ela riu e correu para mim, como costumava fazer quando criança. Estendi os braços e Carrie se atirou neles.
— Eu sei! — exclamou. — Em breve, voltaremos a ser uma família completa! Como éramos antes, Cathy. Se eu tiver um filhinho louro de olhos azuis, adivinhe que nome lhe darei.
Eu não precisava adivinhar, pois já sabia. O primogênito de Carrie, louro e de olhos azuis, teria o nome de Cory.
Era puro encantamento observar Carrie apaixonada. Parou de falar em seu raquitismo e até mesmo começou a sentir-se normal. Pela primeira vez na vida, passou a maquilar-se. Tinha o cabelo naturalmente ondulado, como o meu, mas cortou-o à altura dos ombros, onde as pontas se curvavam para cima num atraente abandono.
— Veja, Cathy! — exclamou ao voltar do salão de beleza com o novo corte de cabelo, mais elegante. — Agora, minha cabeça já não parece tão grande, hem? E notou como fiquei mais alta?
Ri. Carrie usava sapatos com salto sete e meio e solas tipo tamanco, com cinco centímetros de altura! Mas tinha razão: o cabelo mais curto dava a impressão de diminuir-lhe o tamanho da cabeça.
Sua juventude, beleza e alegria comoveram-me tanto que o coração me doeu de apreensão. Rezei para que não acontecesse alguma coisa que estragasse tudo para minha irmã.
— Oh! Cathy, se Alex não me amar eu prefiro morrer! — declarou Carrie. — Quero ser para ele a melhor esposa possível. Manterei a casa tão limpa que nem haverá poeira no ar. Todas as noites ele jantará comida de gourmet preparada por mim, nada dessas porcarias que já vêm prontas do supermercado. Farei minhas roupas, as dele e as das crianças. Economizarei muito dinheiro de todas as maneiras possíveis. Ele não fala muito; limita-se a ficar sentado, olhando-me daquele modo suave e especial. Portanto, contentar-me-ei com isso, sem precisar de palavras, pois ele raramente as pronuncia.
Ri, abraçando-a. Oh, como queria que Carrie fosse feliz!
— Os homens não falam tanto de amor quanto as mulheres, Carrie. Alguns gostam de provocar-nos e isso constitui uma boa indicação de que estão interessados e de que o interesse pode transformar-se em algo mais profundo. E o jeito de descobrirmos o quanto gostam de nós é fitá-los nos olhos: o olhar nunca aprende a mentir.
Era fácil perceber que Alex se encantava com Carrie. Ainda trabalhava parte do tempo como eletricista para uma loja local de aparelhos elétricos enquanto fazia cursos de férias na universidade, mas passava cada minuto de tempo livre em companhia de Carrie. Eu desconfiara que ele já propusera ou estava prestes a propor casamento a ela.
Uma semana mais tarde, acordei de repente para deparar com Carrie em frente à janela, olhando para as montanhas escuras. Carrie, que nunca tinha insônia freqüente, como eu. Carrie, que conseguia continuar dormindo durante trovoadas, com o telefone tocando a meio metro de seus ouvidos, ou com um incêndio no outro lado da rua. Portanto, como é natural, alarmei-me ao vê-la ali. Levantei-me e me aproximei dela.
— Está passando bem, querida? Por que não dorme?
— Queria ficar perto de você — sussurrou ela, com o olhar ainda pregado nas montanhas distantes, escuras e misteriosas dentro da noite. Cercava-nos por todos os lados, encurralando-nos como outrora. — Alex pediu-me em casamento esta noite — acrescentou num tom inexpressivo.
Exclamei:
— Que maravilha! Sinto-me feliz por você, Carrie! E por ele também.
— Ele me contou uma coisa, Cathy: resolveu ser pastor.
Sua voz tinha um tom de sofrimento e tristeza que não consegui entender.
— Não quer ser esposa de um ministro de Deus? — indaguei.
No fundo, sentia-me temerosa, pois Carrie se mostrava tão distante e desanimada!
— Os pastores esperam que as pessoas sejam perfeitas — disse ela, num tom que me causou um medo mortal. — Em especial, suas esposas. Lembro-me de tudo que a avó costumava dizer a respeito de nós. Éramos filhos do Demônio, cheios de maldade e pecado. Eu não entendia direito o que ela queria dizer, mas lembro-me bem das palavras. E ela dizia sempre que éramos crianças ruins e pecaminosas, que nunca deveriam ter nascido. Deveríamos ter nascido, Cathy?
Engasguei-me, horrivelmente amedrontada. Engoli em seco, a fim de livrar-me do nó que me apertava a garganta.
— Carrie, se Deus não quisesse que nascêssemos, nunca teria permitido que isso acontecesse.
— Mas, Cathy... Alex deseja uma mulher perfeita e eu não sou perfeita.
— Ninguém é, Carrie. Absolutamente ninguém é perfeito. Só os mortos.
— Alex é perfeito. Jamais fez alguma coisa ruim ou errada.
— Como pode ter certeza? Ele lhe contaria, se tivesse feito?
Seu lindo rosto jovem mostrava-se sombrio. Vacilante, explicou:
— Tenho a impressão de que Alex e eu nos conhecemos já há muito, muito tempo, mas até recentemente ele pouco me falou a respeito de si mesmo. E eu falei pelos cotovelos, mas nunca lhe contei a respeito de nosso passado, exceto que passamos à tutela do Dr. Paul quando nossos pais morreram num acidente de automóvel. E isto é mentira, Cathy. Não somos órfãos. Nossa mãe ainda está viva.
— Mentiras não são pecados mortais, Carrie. Todos contam uma mentirinha de vez em quando.
— Alex não mente. Sempre se sentiu atraído para Deus e a religião. Quando era mais jovem, queria converter-se ao catolicismo para poder ser padre. Ficou mais velho e descobriu que os padres são obrigados ao celibato, de modo que desistiu do catolicismo, pois deseja uma esposa e filhos. Disse-me que jamais teve uma experiência sexual porque passou toda a vida adulta à procura da garota certa com quem se casar: alguém perfeito, como eu.
Começou a chorar de dar pena.
— Cathy! Não sou perfeita! Sou pecadora! Como a avó sempre nos dizia, sou má e pecaminosa, também! Tenho maus pensamentos! Odiei aquelas meninas que me colocaram no telhado e disseram que eu era uma coruja! Desejei que todas elas morressem! E Sissy Towers, odiei-a mais que as outras! Cathy, sabe que Sissy Towers morreu afogada quando tinha doze anos? Nunca escrevi nem nunca lhe contei, mas senti que a culpa foi minha, por odiá-la tanto! Também odiei Julian, por roubar você de Paul e ele também morreu! Será que não compreende? Como posso contar tudo isto a Alex e, ainda por cima dizer-lhe que nossa mãe se casou com seu meio-tio? Alex me detestaria, Cathy. Não me quereria mais; tenho certeza, Cathy. Alex pensaria que eu lhe daria filhos deformados, como eu... E eu o amo tanto!
Ajoelhei-me ao lado da cadeira e abracei Carrie, como faria uma mãe. Não sabia o que dizer, ou como dizer. Ansiava pela presença e apoio de Chris. E também por Paul, que sempre sabia dizer as coisas certas no momento adequado. Lembrando-me disso, tomei por empréstimo as palavras que ele me dissera e repeti-as para Carrie, embora sentisse uma fúria terrível contra a avó que implantara todas aquelas noções malucas na mente de uma criança de cinco anos:
— Querida, não sei como dizer tudo da maneira correta, mas tentarei. Quero que você entenda que aquilo que é preto para uma pessoa pode ser branco para outra. E nada neste mundo é tão perfeito a ponto de ser branco ou tão ruim a ponto de ser preto. Tudo o que se refere aos seres humanos tem as mais variadas tonalidades de cinza, Carrie. Nenhum de nós é perfeito, sem nenhum defeito. Eu mesma já senti as mesmas dúvidas que você.
Seus olhos lacrimosos se arregalaram quando ela escutou isto, como se me considerasse, entre todas as pessoas neste mundo, perfeita.
— Foi o nosso Dr. Paul quem me esclareceu, Carrie. Há muito tempo, ele me explicou que se houve pecado quando nossos pais se casaram e conceberam filhos, esse pecado foi deles e não nosso. O Dr. Paul afirmou que Deus não pretende fazer com que nós paguemos pelo erro cometido por nossos pais. Além disto, eles não eram parentes próximos, Carrie. Sabe que no antigo Egito os faraós só permitiam que seus filhos e filhas se casassem com uma irmã ou irmão? Portanto, como você pode ver, a sociedade estabelece as regras. Além disso, nunca se esqueça de que nossos pais tiveram quatro filhos e nenhum de nós é excepcional. Portanto, Deus não os puniu, nem a nós.
Carrie grudou em meu rosto os grandes olhos azuis, querendo desesperadamente acreditar em mim. E eu nunca, jamais deveria ter usado o termo “excepcional”.
— Cathy, talvez Deus tenha punido a mim. Não cresço. Isto é um castigo.
Soltei um riso trêmulo e puxei-a ainda mais para mim.
— Olhe ao seu redor, Carrie. Existem muitas pessoas menores que você. Sabe que não é anã. Mesmo que fosse, e não é, ainda teria que aceitar o fato da melhor maneira possível, como faz tanta gente que se considera demasiadamente alta, gorda, magra, ou lá o que seja. Você possui um rosto lindo, um cabelo sensacional, uma pele maravilhosa, num corpo adorável e bem conformado. Tem uma voz bonita e sonora, uma inteligência brilhante. Veja como é capaz de datilografar e taquigrafar depressa e corretamente, manter em dia a escrituração de Paul, cozinhar duas vezes melhor que eu. Ademais, é muito melhor dona de casa e dá gosto ver os vestidos que faz. São muito mais bonitos e melhores que os das lojas. Somando tudo isto, Carrie, como é capaz de não se julgar suficientemente boa para casar-se com Alex ou qualquer outro homem?
Ela continuou a chorar, sem se tranqüilizar com minha argumentação.
— Mas, Cathy, você não o conhece como eu! Passamos por um cinema que exibe filmes imorais e Alex disse que qualquer pessoa que fizesse aquilo era pecadora e pervertida! Entretanto, você e o Dr. Paul me disseram que sexo e fazer bebês é uma parte natural da vida, cheia de amor. E sou pecadora, Cathy. Uma vez, fiz algo muito ruim.
Arregalei os olhos, apanhada de surpresa. Com quem? Foi como se Carrie me lesse os pensamentos, pois sacudiu a cabeça enquanto as lágrimas continuavam a escorrer-lhe pelo rosto.
— Não... eu nunca tive... tive... relações sexuais, com ninguém. Mas fiz outras coisas que são pecados. Alex pensaria assim. E eu devia saber que era errado...
— O que fez de tão terrível, querida?
Ela engoliu em seco e baixou a cabeça, envergonhada.
— Foi Julian. Um dia, quando eu estava de visita e você se ausentou de casa, ele quis fazer... alguma coisa comigo. Disse que seria gostoso e não se tratava realmente de sexo, do tipo que produz bebês. Portanto, fiz o que ele queria; Julian me beijou e disse que, depois de você, eu era a pessoa de quem ele mais gostava. Eu não sabia que era errado fazer apenas o que fiz.
Lutei para livrar-me do doloroso nó na garganta, beijei os cabelos de Carrie, afastei-os de sua testa febril e enxuguei-lhe as lágrimas.
— Não chore nem fique envergonhada, querida. Há muitos tipos de amor e modos de expressá-los. Você ama o Dr. Paul, Jory e Chris de três modos diferentes e a mim de outro. E se Julian convenceu-a a fazer algo que agora você acha pecaminoso, o pecado foi dele e não seu. E meu também, pois deveria tê-la prevenido quanto ao que ele poderia desejar de você. Julian prometeu-me jamais tocar num fio de seus cabelos ou alimentar desejos sexuais em relação a você e acreditei nele. Mas se você fez alguma coisa, não mais precisa envergonhar-se. E Alex não precisa tomar conhecimento. Ninguém contará a ele.
Carrie levantou a cabeça muito devagar e a lua que surgiu de repente de trás das nuvens escuras lhe brilhou nos olhos cheios de remorso.
— Mas eu saberei.
Começou a soluçar histericamente.
— Isso não é o pior, Cathy! — berrou. — Gostei de fazer aquilo! Gostei que ele me pedisse para fazer... tentei evitar que meu rosto demonstrasse prazer, pois Deus poderia estar observando!... Agora, não consegue perceber que Alex não entenderá? Ele me detestaria se soubesse! E mesmo que nunca venha a saber, eu ainda me detestarei por ter feito e gostado!
— Por favor, pare de chorar. Na verdade, o que fez não foi tão terrível. Esqueça-se da avó, que vivia falando em nosso sangue amaldiçoado. É uma hipócrita preconceituosa que não sabe distinguir o certo do errado e fez as coisas mais horríveis em nome de uma falsa santidade, mas nada em nome do amor. Você não é má, Carrie. Desejava apenas que Julian a amasse; se o que fizeram deu prazer a ambos, isso é muito normal. As pessoas são feitas para terem prazer sensual e gostarem de sexo. Julian errou, pois não deveria ter induzido você; mas o pecado foi dele, não seu.
— Lembro-me de muitas coisas que você não imagina que eu faça — sussurrou ela. — Lembro-me do modo esquisito pelo qual Cory e eu costumávamos conversar, a fim de que você e Chris não entendessem. Sabíamos que éramos filhos do Demônio. Escutávamos a avó falar. Sabíamos que estávamos trancados porque não merecíamos ser livres no mundo, entre gente melhor que nós.
— Pare! — gritei. — Não se lembre! Esqueça! Saímos de lá, não é mesmo? Éramos quatro crianças que não tinham responsabilidade pelos atos dos pais. Aquela velha detestável tentou destruir nossa confiança e orgulho; não permita que ela consiga! Olhe para Chris, não se orgulha dele? Não se orgulhava de mim, quando eu estava no palco dançando? E um dia, depois que você e Alex se casarem, ele mudará de idéia a respeito do que é ou não pervertido, pois isso aconteceu comigo. Alex amadurecerá e deixará de ser exageradamente santo, pois ainda não conhece o prazer que o amor pode proporcionar.
Carrie libertou-se de mim e foi à janela olhar para as distantes montanhas escuras e para a lua minguante que parecia singrar o céu como a vela de um barco viking.
— Alex não mudará — declarou com desânimo. — Pretende tornar-se pastor. As pessoas religiosas acham que tudo é errado, como a avó. Quando ele revelou que desistira da idéia de ser engenheiro eletrônico, compreendi que estava tudo acabado entre nós.
— Todo mundo muda! Veja o mundo que nos rodeia, Carrie. Veja as revistas, os filmes que gente decente vai assistir e gosta, as peças teatrais com todos os atores despidos, o tipo de livros que são publicados. Não sei se a mudança é para melhor, mas o fato é que as pessoas não são estáticas. Todos nós mudamos a cada dia. Talvez daqui a vinte anos nossos filhos olhem para a nossa época atual e se sintam chocados, sorriam e nos considerem ingênuos e inocentes. Ninguém sabe como o mundo mudará. Portanto, se o mundo é capas de mudar, o mesmo acontece com um homem chamado Alex!
— Alex não mudará. Revolta-se contra a falta de moral que existe hoje em dia, com os tipos de livros que estão sendo publicados, com os filmes sujos e as revistas que trazem fotografias de pessoas fazendo coisas pecaminosas. Creio que também não aprove o tipo de dança que você costumava fazer com Julian.
Tive ímpetos de gritar: “Ao diabo com Alex e seu puritanismo!” Entretanto, não podia ir contra o único homem que Carrie encontrara para amar.
— Carrie, querida, vá deitar-se. Durma bem e lembre-se, quando acordar, que o mundo está cheio de homens que se deliciariam por amar alguém tão linda, suave e boa dona de casa como você. E se não der certo com você e Alex, dará certo com você e outra pessoa.
Ela me lançou um rápido olhar do mais profundo desespero.
— Não foi melhor quando Deus fez Cory morrer?
Oh, meu Deus, como responder uma pergunta como aquela?
— Foi melhor quando Papai morreu na estrada?
— Você nem se lembra daquele dia.
— Lembro-me, sim. Tenho boa memória.
— Carrie, absolutamente ninguém é perfeito. Nem eu, nem você, nem Chris, nem Alex. Ninguém.
— Eu sei — replicou ela, deitando-se como uma boa menina que obedece à mãe. — As pessoas que procedem mal, Deus vê e, mais tarde, aplica-lhes o castigo. Às vezes, utiliza-se de uma avó com uma chibata, como aquela velha espancou Chris e você. Não sou imbecil, Cathy. Sei que Chris e você se olham como Alex e eu nos olhamos. Julgo também, que você e o Dr. Paul foram amantes e talvez tenha sido por isso que Julian morreu: para castigá-los. Contudo, você é o tipo de mulher de quem os homens gostam e eu não. Não sou bailarina, não sei como fazer que todos gostem de mim. Só minha família me ama... e Alex. E quando eu contar a verdade a Alex, ele deixará de me amar; não me quererá mais.
— Você não vai contar a ele! — ordenei rispidamente.
Carrie deitou-se com os olhos fixos no teto até que, afinal, adormeceu. Então, fui a única a permanecer acordada, doendo interiormente, ainda abismada pelo efeito que uma única mulher surtia na vida de tanta gente. Odiava Mamãe por nos ter levado para Foxworth Hall. Mesmo sabendo como era a sua mãe, levara-nos para lá. Conhecia seus pais melhor que ninguém e, não obstante, casara-se pela segunda vez e deixara-nos sozinhos, de modo que se divertia enquanto éramos torturados. E éramos nós que continuávamos a sofrer enquanto ela se divertia!
Sua diversão não duraria muito, pois eu estava ali e Bart também; mais cedo ou mais tarde, nós nos encontraríamos. Contudo, só mais tarde vim a saber como ela conseguira evitar-me até então. Consolei-me pensando que em breve mamãe também estaria sofrendo como nós. Sofrimento por sofrimento, ela ficaria sabendo o que havíamos sentido, quando ela fosse abandonada, sozinha e sem amor. Não conseguiria suportar... não outra vez! Mais um só golpe seria sua ruína. De algum modo, eu tinha certeza disso, talvez por ser tão semelhante a ela...
— Tem certeza de que está passando bem? — perguntei a Carrie alguns dias mais tarde. — Não tem comido direito. Que fim levou seu apetite?
Mantendo o rosto inexpressivo, ela replicou em voz baixa:
— Estou muito bem. Apenas não sinto muita vontade de comer. Não leve Jory hoje para a escola de balé. Deixe-me ficar com ele o dia inteiro. Sinto falta quando você o leva.
Fiquei temerosa de deixá-la o dia inteiro com Jory, que às vezes dava muito trabalho. Afinal, Carrie não estava com muito boa aparência.
— Carrie, seja franca comigo, por favor. Se não está passando bem, deixe-me levá-la ao médico.
— É o meu período mensal, nada mais — disse ela, com os olhos baixos. – Sinto muitas cólicas três ou quatro dias antes.
Apenas o incômodo mensal e, na idade dela, as cólicas eram mais fortes que na minha. Dei um beijo de despedida em meu filhinho, que abriu um berreiro ensurdecedor, querendo acompanhar-me para observar os bailarinos.
— Quero escutar a música, Mamãe! — protestou Jory, que sabia muito bem o que queria ou não. — Quero ver os dançarinos!
— Vamos passear no parque; empurrarei você no balanço e brincaremos na caixa de areia — disse Carrie apressadamente, pegando meu filho no colo e o abraçando com força. — Fique comigo, Jory. Gosto tanto de você e nunca o vejo bastante... Não gosta de sua Tia Carrie?
Ele sorriu, enlaçando-a pelo pescoço. Sim, Jory amava todo mundo.
Foi um dia terrivelmente longo. Telefonei várias vezes, a fim de verificar se Carrie estava bem.
— Estou ótima, Cathy. Jory e eu nos divertimos a valer no parque. Agora, vou deitar-me para um cochilo. Portanto, não telefone porque não quero acordar.
O relógio bateu quatro horas. Era a última aula do dia e os alunos de seis e sete anos postaram-se no centro do salão. Enquanto a música tocava, eu contava:
— Un, deux, pliés, un, deux, pliés, e agora, un, deux, tendu, fechem as pernas, un, deux, tendu, fechem as pernas, un, deux, tendu...
E a aula prosseguia, quando, de repente, senti um arrepio na nuca a indicar que alguém me olhava fixamente. Girei nos calcanhares e avistei um homem de pé bem no fundo do salão: Bart Winslow, o marido de minha mãe! Tão logo percebeu que eu o reconhecera, encaminhou-se para mim.
— Fica sensacional com essa malha roxa, Srta. Dahl. Pode ceder-me um minuto do seu tempo?
— Estou ocupada! — repliquei com rispidez, aborrecida por ele me interpelar quando eu tinha que cuidar de uma dúzia de pequenos bailarinos dos quais não podia afastar os olhos. — Minhas aulas terminam às cinco. Se quiser, pode sentar-se ali e esperar.
— Srta. Dahl, eu tive um trabalho dos diabos para encontrá-la e você estava aqui durante todo o tempo, bem diante do meu nariz.
— Sr. Winslow — repliquei friamente. — Se o cheque que lhe enviei pelo correio não foi suficiente, poderia escrever-me e o correio me faria chegar às mãos a sua carta.
Ele franziu as sobrancelhas escuras e grossas.
— Não estou aqui para tratar de honorários, embora não tenha recebido o preço que tinha em mente.
Sorridente e seguro de si, enfiou a mão no paletó e puxou uma carta do bolso interno. Prendi a respiração ao reconhecer no envelope minha própria caligrafia, além de todos os carimbos e marcas de cancelamento na carta que acompanhara o trajeto de minha mãe por toda a Europa!
— Percebo que reconhece esta carta — comentou, os penetrantes olhos castanhos observando minhas mínimas reações faciais.
— Escute, Sr. Winslow — respondi em estado de total confusão. — Minha irmã não está passando bem hoje e tem a seus cuidados meu filhinho, que ainda é quase um bebê. E, como o senhor mesmo pode ver, estou ocupadíssima aqui. Podemos tratar deste assunto em outra ocasião?
— Quando melhor lhe convier, Srta. Dahl — disse ele, fazendo uma breve reverência e entregando-me um cartão de visitas. — O mais breve possível, por favor. Tenho muitas perguntas a lhe fazer, e não tente esquivar-se. Desta vez, tratarei de vigiá-la de perto. Não julga que um encontro para jantar foi suficiente, não é?
Perturbou-me tanto o fato de vê-lo com aquela carta nas mãos que, tão logo ele se retirou, dispensei os alunos e fui para meu pequeno escritório. Sentei-me para examinar o livro de escrituração contábil, verificando que ainda estava em débito. Quando comprei a escola, fui informada de que teria pelo menos quarenta alunos, mas ninguém me revelou que a maior parte deles viajava no início do verão e só regressava no outono. Além disso, havia as mimadas crianças ricas no inverno e as das classes intermediárias no verão, que só vinham às aulas uma ou duas vezes por semana. Por mais que eu esticasse o dinheiro que ganhava, não conseguia cobrir as despesas que fizera com a nova decoração da escola e a instalação de espelhos novos atrás da comprida barra de exercícios.
Então, consultei o relógio e verifiquei que eram quase seis horas. Troquei de roupa e corri os dois quarteirões que separavam a escola de meu pequeno chalé. Carrie deveria estar na cozinha preparando o jantar enquanto Jory brincava no jardim cercado. Contudo, não vi Jory e Carrie não estava na cozinha!
— Carrie! — chamei. — Já cheguei. Onde se esconderam Jory e você?
— Estou aqui — respondeu ela num mero sussurro.
Corri até o quarto e a encontrei ainda deitada. Com voz fraca, explicou que Jory estava na casa ao lado, com os vizinhos.
— Cathy... realmente não me sinto bem... Vomitei quatro ou cinco vezes; não me lembro com certeza. — Sinto tantas cólicas... Estou esquisita, muito esquisita...
Levei-lhe a mão à testa, constatando-a estranhamente fria, embora fosse um dia bastante quente.
— Vou chamar um médico.
Mal as palavras me saíram dos lábios tive que rir amargamente de mim mesma. Naquela cidadezinha não havia um médico que atendesse a domicílio. Corri de volta a Carrie e enfiei-lhe um termômetro na boca. Então, perdi o fôlego ao ler o resultado.
— Carrie, vou buscar Jory e depois a levarei ao hospital mais próximo. Está com quarenta e um graus de febre!
Carrie meneou debilmente a cabeça e tornou a adormecer. Corri à casa vizinha para verificar como estava meu filho, que brincava alegremente com uma menininha um mês mais velha que ele.
— Ouça, Sra. Marquet — disse a Sra. Townsend, uma mulher bondosa e maternal com pouco mais de quarenta anos, que tomava conta da netinha. – Se Carrie está doente, deixe-me cuidar de Jory até a senhora voltar para casa. Espero que Carrie não tenha alguma coisa grave, pois é tão boazinha! Mesmo assim, notei que está muito pálida e abatida há cerca de dois dias.
Eu também notara a mesma coisa, mas atribuíra tudo ao fato de seu romance com Alex estar causando problemas. Como me enganei!
No dia seguinte, telefonei para Paul.
— Catherine, o que há de errado? — quis saber ele, percebendo o pânico em minha voz.
Desembuchei tudo de uma só vez: Carrie estava internada no hospital, onde já haviam realizado vários exames e ainda não sabiam o que havia com ela.
— Paul, ela está com uma aparência terrível! E perdendo peso depressa, incrivelmente depressa! Vomita, não consegue manter a comida no estômago e também sofre de diarréia! Não pára de chamar por você e por Chris.
— Arranjarei outro médico para substituir-me aqui e irei imediatamente, de avião — disse ele sem qualquer hesitação. — Mas espere antes de tentar entrar em contato com Chris. Os sintomas que você mencionou são comuns a uma série de distúrbios.
Tomei-lhe as palavras ao pé da letra e não tentei entrar em contato com Chris, que aproveitava uma folga para fazer uma viagem de duas semanas pela Costa Oeste antes de voltar para casa e prosseguir seu período de residência médica. Dentro de três horas Paul estava comigo no hospital, observando Carrie. Esta sorriu debilmente ao vê-lo no quarto e estendeu os braços magros.
— Olá — sussurrou com voz sumida. — Aposto que não imaginou encontrar-me num leito de hospital, não é mesmo?
Paul abraçou-a e começou de imediato a fazer perguntas. Quais foram os primeiros sinais de que havia algo errado?
— Há cerca de uma semana, comecei a sentir muito cansaço. Não mencionei a Cathy porque ela sempre se preocupa demais comigo, de qualquer maneira. Depois, passei a ter dores de cabeça e ficar sonolenta o tempo todo. Apareceram marcas, como equimoses, e não sei como foram causadas. Em seguida, o pente vinha cheio de cabelos sempre que me penteava e comecei a vomitar... Então outras coisas que os médicos já perguntaram e contei a eles.
Seu sussurro tornou-se cada vez mais sumido.
— Eu gostaria de ver Chris... — murmurou, antes de fechar os olhos e adormecer outra vez.
Paul já examinara a ficha médica de Carrie e confabulara com os médicos que cuidavam dela. Agora, virou-se para mim com aquele rosto inexpressivo que me enchia o coração de medo... pois me parecia tão significativo!
— Acho melhor você mandar chamar Chris.
— Paul! Quer dizer...?
— Não, não quero dizer isso. Mas se Carrie deseja vê-lo, o lugar dele é aqui, perto dela.
Eu estava no corredor, esperando que os médicos fizessem alguns exames em Carrie. Haviam-me retirado do quarto. Andando de um lado para outro em frente à porta fechada do quarto, senti-lhe a presença antes de avistá-lo. Dei meia-volta e prendi a respiração ao deparar com Chris aproximando-se pelo corredor, passando pelas enfermeiras que carregadas de bandejas com remédios, viravam-se para observá-lo em toda a sua esplêndida glória.
Recuei no tempo e vi Papai, do jeito como mais me lembrava dele, usando trajes de jogar tênis. Não consegui falar quando Chris me tomou nos braços e enfiou o rosto queimado de sol em meus cabelos. Ouvi-lhe as batidas fortes e regulares do coração. Solucei, à beira de um dilúvio de lágrimas.
— Não demorou a chegar.
Ele continuou com o rosto enfiado em meus cabelos e tinha a voz rouca de emoção.
— Cathy — perguntou, erguendo a cabeça para fitar-me nos olhos: — o que há de errado com Carrie?
A pergunta me aturdiu, pois ele deveria saber!
— Não consegue adivinhar? É aquele maldito arsênico, tenho certeza! Que mais poderia ser? Ela estava ótima há uma semana. De repente, adoeceu assim!
Interrompi-me e comecei a chorar.
— Ela quer ver você.
Entretanto, antes de levá-lo ao pequeno quarto de Carrie, coloquei na mão de meu irmão o bilhete que encontrara entre as páginas do diário que Carrie iniciara no dia em que conhecera Alex.
— Chris, há muito tempo Carrie sabe que algo estava errado, mas manteve segredo. Leia isto e diga-me o que acha.
Enquanto ele lia, mantive os olhos pregados em seu rosto.
Queridos Cathy e Chris,
Às vezes, chego a pensar que vocês são meus pais de verdade; então, lembro-me de Mamãe e Papai e tenho a impressão de que se trata de um sonho que jamais aconteceu. Sou incapaz de imaginar a fisionomia de Papai a menos que tenha nas mãos sua fotografia, embora me recorde de Cory exatamente como ele era.
Estive ocultando algo. Por isso, caso eu não escreva estas linhas, vocês se julgarão culpados. Há muito tempo venho sentindo que morrerei em breve e já não me importo com o fato. Não posso ser esposa de um pastor. Não teria sobrevivido até hoje se vocês dois, Jory, o Dr. Paul e Henny não me tivessem dedicado tanto amor. Sem todos vocês para segurar-me neste mundo, eu já teria ido ao encontro de Cory há muito tempo. Todo mundo tem alguém especial para amar, menos eu. Todo mundo tem algo especial para fazer, menos eu. Sempre tive certeza de que nunca me casaria. Sabia que enganava a mim mesma quanto a ter filhos, pois meus quadris são estreitos demais e também acho que sou raquítica demais para tornar-me uma boa esposa. Eu jamais seria alguém especial, como você, Cathy, que pode dançar, ter filhos e tudo o mais. Não posso ser médica, como Chris. Portanto, eu nunca seria muita coisa, mas apenas alguém para atrapalhar e preocupar todo mundo por ser infeliz.
Portanto, neste momento, antes que prossigam a leitura, prometam-me não permitir que os médicos façam alguma coisa para prolongar minha existência. Deixem-me apenas morrer e não chorem por mim. Não fiquem tristes nem tenham saudades de mim depois que eu for sepultada. Nada correu bem para mim desde que Cory se foi, deixando-me sozinha. O que mais lamento é não estar presente para ver Jory dançar no palco, como Julian fazia. Agora, preciso confessar uma coisa: eu amava Julian do mesmo modo que amo Alex. Julian nunca me julgou pequena demais e foi o único homem que me fez sentir como uma mulher normal, embora por curto espaço de tempo. Mesmo assim, foi pecado. Apesar de você dizer que não, Cathy, sei que foi pecado.
Na semana passada, comecei a pensar na avó e no que ela costumava dizer a respeito de sermos filhos do Demônio. Quanto mais eu pensava no assunto, mais certeza tinha de que ela estava com a razão: eu nunca deveria ter nascido! Não presto! Quando Cory morreu por causa do arsênico nas rosquinhas que a avó nos dava, eu também devia ter morrido! Nem imaginavam que eu sabia, não é mesmo? Pensavam que durante todo o tempo em que permaneci sentada no chão, no canto do quarto, eu não escutava nem prestava atenção, mas eu estava vendo e ouvindo, embora naquela época não acreditasse. Agora, acredito.
Obrigada, Cathy, por fazer o papel de minha mãe e ser a melhor irmã do mundo. E muito obrigada, Chris, por ser o substituto de Papai e o melhor irmão do mundo. Muito obrigada, também, Dr. Paul, por gostar tanto de mim apesar de eu não crescer. Obrigada a todos vocês por não se envergonharem de serem vistos em minha companhia e digam a Henny que eu a amo. Penso que Deus também não me vai querer até que eu cresça mais, mas nesses momentos lembro-me de Alex, que afirma que Deus ama todo mundo, mesmo que não sejam de estatura normal.
Carrie assinou a carta com caligrafia bem grande, a fim de compensar seu tamanho diminutivo.
— Oh, meu bom Deus! — exclamou Chris. — Cathy, o que significa isto?
Só então pude abrir a bolsa e dela retirar algo que encontrara escondido bem no fundo do armário de Carrie. Os olhos azuis de Chris se esbugalharam quando ele viu o vidro de veneno contra ratos e depois o pacote de rosquinhas açucaradas, das quais restavam apenas uma. Só uma. Trazia uma marca de dentada. As lágrimas começaram a correr pelo rosto de Chris e, de repente, ele começou a soluçar no meu ombro.
— Oh! Deus!... ela colocou arsênico nas rosquinhas para morrer da mesma maneira que Cory!
Libertei-me dos braços de Chris, que estava muito pálido, e recuei alguns passos, sentindo-me como se já não houvesse sangue em minhas veias.
— Chris! Leia novamente a carta! Não reparou que ela escreveu que antes não acreditava, mas que agora passara a acreditar? Por que não acreditava antes e agora acreditava? Algo aconteceu! Ocorreu alguma coisa que a fez acreditar que nossa mãe era capaz de envenenar-nos!
Ele sacudiu a cabeça, atônito, as lágrimas ainda brotando dos olhos.
— Mas se ela sempre soube, como poderia acontecer algo mais para convencê-la? Bastaria ter escutado nossas conversas naquela época e ter visto o camundongo envenenado!
— Como posso explicar-lhe? — exclamei, desesperada. — Mas as rosquinhas foram fartamente recobertas com arsênico! Paul mandou analisá-las. Carrie comeu-as, sabendo que elas a matariam. Não entende que se trata de outro assassinato cometido por nossa mãe?
— Carrie ainda não morreu! — bradou Chris. — Nós a salvaremos! Não permitiremos que morra. Falaremos com ela, diremos que precisa continuar viva!
Corri para segurá-la, temendo que fosse tarde demais e esperando desesperadamente que não fosse. Enquanto estávamos abraçados, transformados novamente em pais pelo sofrimento comum, Paul saiu do quarto de Carrie. A expressão solene em sua fisionomia abatida revelou-me tudo.
— Chris — disse ele em tom calmo. — muito bom revê-lo. Pena que as circunstâncias sejam tão tristes.
— Há esperança, não há? — exclamou Chris.
— Sempre há esperança. Estamos fazendo o possível. Você parece tão moreno e vibrante. Vá ao quarto de sua irmã e tente transferir para ela parte de sua vitalidade. Catherine e eu já dissemos tudo o que conseguimos imaginar para tentar fazer Carrie resistir e recuperar a vontade de viver, mas ela desistiu da vida. Alex está lá dentro, ajoelhado ao lado da cama, rezando para que Carrie sobreviva, mas ela mantém o rosto virado para a janela. Não acredito que compreenda o que está sendo dito ou feito. Carrie se colocou fora de nosso alcance.
Paul e eu seguimos devagar os passos de Chris, que correu para junto de Carrie. Esta jazia, magra como um palito, sob uma pesada camada de cobertores, apesar de ainda ser verão. Parecia impossível que minha irmã menor envelhecesse tão depressa. Todas as formas redondas, firmes e rosadas da juventude tinham desaparecido, deixando-lhe o rostinho magro e encovado. Os olhos afundados nas órbitas tornavam-lhe as maçãs do rosto muito salientes. Parecia até mesmo ter perdido mais peso. Chris não conteve uma exclamação ao vê-la. Debruçou-se para abraçá-la, chamando-lhe repetidamente o nome, acariciando-lhe os cabelos. Para horror de meu irmão, centenas de fios de cabelos louros vieram em seus dedos quando ele os retirou.
— Meu Deus do céu... que estão fazendo por ela?
Quando ele procurou soltar os cabelos dos dedos, apressei-me em ajudá-lo, colocando os fios louros numa caixinha plástica. A eletricidade estática do plástico mantinha-os na caixinha. Era uma noção idiota, mas eu não suportaria ver os lindos cabelos de Carrie caírem e serem jogados fora. Os fios louros brilhavam nos travesseiros, na colcha e na renda branca da camisola que ela usava. Como num transe de pesadelos infindáveis, juntei os fios dourados para guardá-los na caixinha, enquanto Alex continuava rezando sem parar. Até mesmo quando foi apresentado a Chris, interrompeu-se apenas o tempo suficiente para fazer um aceno de cabeça.
— Responda-me, Paul! O que está sendo feito por Carrie?
— Tudo o que sabemos fazer — respondeu Paul num tom baixo e suave, que as pessoas costumam usar quando a morte está por perto. — Uma equipe de ótimos médicos trabalha vinte e quatro horas por dia para salvá-la, mas os glóbulos vermelhos do sangue estão sendo destruídos mais depressa do que conseguimos substituí-los por meio de transfusões.
Durante três dias e três noites, todos nós permanecemos junto ao leito de Carrie, enquanto minha vizinha cuidava de Jory. Cada um de nós, que a amávamos, rezava para que ela vivesse. Telefonei para Henny e pedi-lhe que fosse à igreja, levando a família e todos os membros da irmandade para orarem por Carrie. Ela tamborilou no telefone seu sinal que significava: “Sim, sim!”
Todos os dias chegavam flores para encher o quarto. Eu não olhava os bilhetes para ver quem as enviava. Sentava-me ao lado de Chris ou Paul, ou entre ambos, segurando-lhes as mãos e rezando silenciosamente. Olhava com antipatia para Alex, que eu julgava responsável por grande parte do que havia de errado com Carrie. Afinal, não consegui mais conter-me; levantei-me, aproximei-me de Alex e encurralei-o num canto.
— Alex, por que motivo Carrie desejaria morrer na época mais feliz de sua vida?
Ele voltou para mim o rosto aturdido, mal barbeado, desfigurado pelo sofrimento.
— Que foi que disse? — replicou, os olhos avermelhados pela falta de sono.
Repeti a pergunta com um tom ainda mais ríspido. Alex sacudiu a cabeça, como se procurasse clarear as idéias. Parecia sonolento e magoado ao passar os dedos compridos pelos cabelos castanhos anelados e em desordem.
— Cathy, Deus é testemunha de que fiz todo o possível para convencer Carrie de que a amo! Mas ela se recusa a escutar-me. Vira o rosto para o outro lado e permanece calada. Pedi-lhe que se casasse comigo e ela respondeu que sim; abraçou-me pelo pescoço e repetiu que sim uma porção de vezes. Então, disse: “Oh! Alex, não sirvo para você!” Eu ri, replicando que ela era perfeita, exatamente o que eu desejava. O que fiz de errado, Cathy? O que fiz para voltá-la contra mim a ponto de agora nem se dignar a olhar em minha direção?
Alex possuía o tipo de fisionomia doce e piedosa que só esperamos encontrar em santos de mármore. Não obstante, ao vê-lo tão humilde, combalido de sofrimento e dilacerado pelo amor que se voltava contra ele, estendi a mão para consolá-lo, pois ele realmente amava Carrie. A seu próprio modo, ele a amava.
— Sinto muito se lhe pareci áspera, Alex. Perdoe-me. Mas Carrie lhe confessou alguma coisa?
Mais uma vez, seus olhos se anuviaram.
— Uma semana atrás, telefonei para Carrie e pedi que se encontrasse comigo. Sua voz parecia esquisita, como se algo horrível tivesse acontecido e ela não pudesse falar no assunto. Peguei o carro e fui para lá o mais depressa possível, a fim de estar junto dela. Mas Carrie não me deixou entrar! Eu a amo, Cathy! Ela afirmava que tinha o corpo pequeno demais e a cabeça enorme, mas para mim, suas proporções são perfeitas. Para mim, Carrie era uma bonequinha elegante que ignorava a própria beleza. E se Deus deixar que ela morra, nunca mais na vida recuperarei a fé!
Então escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar.
Era a quarta noite após a chegada de Chris. Eu cochilava ao lado da cama de Carrie. Os outros tentavam dormir um pouco a fim de não adoecerem também e Alex cochilava numa maca no corredor, quando escutei Carrie chamar meu nome. Ajoelhei-me ao lado do leito e peguei-lhe a mão minúscula por baixo das cobertas. Agora, não passava de uma mão esquelética, com a pele tão transparente que era possível verem-se as artérias e veias.
— Querida, eu estava esperando que você acordasse — declarei num sussurro rouco. — Alex está no corredor. Chris e Paul estão cochilando na sala dos médicos. Devo chamá-los?
— Não — murmurou Carrie. — Quero falar apenas com você. Vou morrer, Cathy.
Fez a declaração com a maior calma, como se não fizesse diferença; aceitava a morte e estava satisfeita.
— Não! — protestei energicamente. — Você não vai morrer! Não deixarei que morra! Eu a amo como minha própria filha. Muita gente a ama e precisa de você, Carrie! Alex a ama tanto, quer casar-se com você e desistiu de ser pastor, Carrie; conversei com ele, explicando que isto a preocupa. Alex não se importa realmente com a profissão que seguirá, desde que você continue viva e o ame. Não quer saber se você é franzina ou se pode ter filhos. Vou chamá-lo para que ele lhe diga pessoalmente...
— Não... — sussurrou ela com voz sumida. — Tenho um segredo para lhe contar.
Sua voz tão sumida parecia vir de muito longe, passando por centenas de colinas arredondadas.
— Vi uma mulher na rua — disse tão baixinho que precisei debruçar-me para ouvir. — Parecia tanto com Mamãe que não pude deixar de correr atrás dela. Segurei-lhe a mão. Ela se libertou num arranco e me encarou com olhar duro e frio, dizendo: "Não a conheço". Era nossa mãe, Cathy! Está quase como era antes, apenas um pouco mais velha. Até mesmo usava o colar de pérolas e o broche em forma de borboleta dos quais me recordo tão bem. E, Cathy, quando nossa própria mãe não nos quer, significa que nenhuma outra pessoa pode nos querer, não é mesmo? Ela olhou para mim e me reconheceu; percebi em sua expressão. Mesmo assim, não me quis porque sabe que não presto. Foi por isso que me disse aquilo: que não tinha filhos. Ela também não quer saber de você ou de Chris, Cathy. E todas as mães amam e querem seus filhos, a menos que sejam pecaminosos e não prestem... como nós.
— Oh! Carrie, não permita que ela lhe faça isto! Foi o apego ao dinheiro que a levou a renegar você... não o fato de sermos ruins, pecaminosos ou não prestarmos. Você nada fez de errado! O que interessa a ela é o dinheiro, Carrie, não nós. Mas não precisamos dela, pois você tem Alex e Chris, Paul e a mim... e também Jory... e Henny... Não nos parta o coração! Carrie, resista o bastante para permitir que os médicos a auxiliem. Não se entregue. Jory quer a tia de volta; todos os dias, pergunta onde você está. O que vou dizer a ele; que você não o ama o bastante para importar-se em viver?
— Jory não precisa de mim — replicou ela no mesmo tom que usava quando criança. — Jory tem muita gente, além de mim, para amá-lo e cuidar dele... Mas Cory está a minha espera, Cathy. Posso vê-lo neste momento. Olhe ali, atrás de seu ombro: Cory está junto de Papai e ambos me querem mais que qualquer outra pessoa neste mundo.
— Não, Carrie!
— O lugar para onde vou é ótimo, Cathy: flores por toda parte, pássaros lindos, e quase me posso sentir crescendo... Veja, estou quase tão alta quanto Mamãe, como sempre desejei. E quando eu chegar lá, ninguém me dirá que tenho olhos enormes e assustadores como uma coruja. Ninguém tornará a chamar-me de “anã” e me aconselhará a usar uma máquina de esticar... porque serei tão alta quanto desejo.
A voz fraca e trêmula foi diminuindo até sumir. Os olhos se voltaram para o céu e permaneceram abertos, sem piscar. Os lábios ficaram entreabertos, como se tivessem mais alguma coisa para dizer-me. Oh, meu Deus, ela morreu! Mamãe começara tudo aquilo. Mamãe, que escapara livre como um pássaro! Ilesa e sem cicatrizes! E rica, rica, rica! Tudo o que precisou fazer foi derramar algumas lágrimas de autocomiseração ao voltar para casa. Foi então que eu gritei! Sei que gritei. Chorei e tive ímpetos de arrancar os cabelos e a pele do rosto, pois parecia-me demais com a mulher que precisava pagar, pagar, pagar... e pagar ainda mais!
Num dia quente de agosto, sepultamos Carrie no cemitério da família Sheffield, poucos quilômetros fora do limite urbano de Clairmont. Desta vez, não choveu nem havia neve no solo. Agora a morte tomara para si todas as estações menos o inverno, deixando-me apenas aquela época fria e movimentada livre de lembranças amargas e dolorosas. Cobrimos Carrie com flores vermelhas e roxas de que ela tanto gostava. O sol tinha uma rica coloração de açafrão, quase alaranjada, antes de assumir um tom vermelho ao baixar no horizonte e tingir o céu de cor-de-rosa. Meus pensamentos eram como as folhas secas sopradas pelo forte vento do ódio quando permaneci sentada, embora o banco de mármore fosse duro e incômodo. Depois de juntar e torcer aquelas folhas secas, transformei-as numa vara de feiticeira cruel, num instrumento para remexer o esquecido caldeirão de vingança! Das quatro bonecas de porcelana de Dresden, restavam apenas duas. E uma nada faria. Jurara solenemente fazer o possível para preservar a saúde e a vida, mesmo de quem não merecia viver.
Detestei ter que deixar Carrie sozinha à noite, a primeira que ela passaria sob a terra. Sentia-me na obrigação de passar aquela noite com ela e reconfortá-la de algum modo que eu ignorava. Lancei um olhar aos túmulos onde descansavam também Júlia e Scotty, perto dos pais de Paul e de um irmão mais velho que morrera antes mesmo do nascimento de Amanda. Imaginei o que nós, Foxworth, fazíamos no cemitério da família Sheffield. Que significado haveria em tudo aquilo? Se Alex não tivesse surgido na vida de Carrie para lhe dar amor, ela estaria melhor? Se Carrie não tivesse avistado Mamãe na rua e corrido ao seu encontro, bastante feliz para tomar-lhe a mão e chamá-la de “Mamãe”, teria feito alguma diferença? Deveria ter feito toda a diferença! Tinha que fazer! Após ser renegada pela mãe, Carrie fora diretamente comprar o veneno para ratos porque não se achava digna de viver quando a própria mãe a renegara. E o veneno em suas rosquinhas não fora apenas uma pequena dose, mas uma grande quantidade de arsênico puro!
Alguém chamou meu nome em voz baixa. Alguém pegou-me suavemente os cotovelos para levantar-me. Com o braço passado em minha cintura, amparando-me, conduziu-me para fora do cemitério onde eu teria permanecido a noite inteira, até o amanhecer.
— Não, querida — disse Chris. — Carrie não precisa de você agora, mas outras pessoas precisam. Cathy, deve esquecer o passado e os planos de vingança. Vejo a expressão em seu rosto e leio-lhe os pensamentos. Compartilharei com você meu segredo para encontrar a paz. Já tentei revelá-lo muitas vezes, mas você se recusa a escutar. Desta vez escute e acredite! Faça como eu e obrigue-se a esquecer tudo o que lhe causa sofrimento; lembre-se apenas do que lhe dá satisfação. Eis aí todo o segredo para viver feliz, Cathy: esquecer e perdoar.
Fitei-o com amargura e desânimo, replicando desdenhosamente:
— Você é realmente perito em questão de perdoar, Christopher. Quanto a esquecer, o caso é bem diferente!
Meu irmão ficou tão vermelho quanto o sol poente.
— Por favor, Cathy! Perdoar não é a parte melhor? Só me recordo das coisas mais agradáveis.
— Não! Não!
Mas agarrei-me a ele como alguém que se aproxima do inferno agarra-se à salvação. Embora não tenha certeza, julguei ver uma mulher vestida de negro, com a cabeça e o rosto ocultos por um véu preto, esconder-se atrás de uma árvore quando nos aproximamos da rua onde o carro se encontrava estacionado. Escondeu-se para que não conseguíssemos vê-la. Mas vi-a de relance; o suficiente para perceber as lustrosas pérolas de seu colar. Pérolas que uma mão fina e branca ergueu nervosamente, por força de um velho hábito, para torcer e destorcer. Eu conhecia apenas uma mulher que costumava fazer aquilo e era a mulher perfeita para usar roupas negras e correr a esconder-se! Sempre esconder-se! Que todos os seus dias fossem negros! Cada um deles! Eu providenciaria para que todos os dias que lhe restavam na terra fossem negros. Mais negros que o piche derramado em meus cabelos. Mais negros que qualquer coisa naquele quarto trancado ou nas mais escuras sombras do sótão onde fôramos prisioneiros quando jovens, temerosos e tão necessitados de amor. Mais negros que a fenda mais profunda do inferno! Eu já esperara bastante para fazer o que devia. Mais que o suficiente. E mesmo que Chris estivesse presente para tentar deter-me, nem ele conseguiria evitar o que eu tinha que fazer!
A hora da vingança
A extemporânea morte de Carrie deixou uma lacuna nas vidas de todos nós que a amávamos. Agora, as bonequinhas de porcelana eram minhas para guardar como recordação. Chris partiu para um período de residência médica no hospital da Universidade da Virgínia, a fim de não ficar muito afastado de mim.
— Fique, Catherine — pediu-me Paul quando lhe revelei minha disposição de voltar à minha casa nas montanhas da Virgínia e reassumir minha atividade como professora de balé. — Não me abandone outra vez! Jory precisa de um pai; eu preciso de uma esposa; ele precisa de um homem que o oriente. Já estou cansado de poder amá-la apenas a longos intervalos.
— Mais tarde — repliquei com inabalável determinação, afastando-me de seus braços. — Um dia, voltarei para você e nos casaremos. Antes, porém, tenho alguns negócios a liquidar.
Logo retomei minha rotina de trabalho, não muito longe da residência dos Foxworth. Dediquei-me a elaborar planos. Jory passara a constituir-se num problema, agora que eu não tinha Carrie. Cansava-se da escola de balé e queria brincar com crianças de sua idade. Matriculei-o numa escola pré-primária especial e contratei uma empregada para ajudar nos trabalhos domésticos e ficar com Jory quando eu saía. À noite eu saía à caça, procurando, naturalmente, um determinado homem. Até então não conseguira localizá-lo. Mais cedo ou mais tarde, porém, o destino faria com que nossos caminhos se cruzassem; então, Deus tivesse piedade de Mamãe!
O jornal local dedicou grande espaço à notícia de que Bart Winslow abrira um segundo escritório de advocacia em Hillendale, enquanto seu sócio minoritário cuidaria do primeiro, em Greenglenna. “Dois escritórios”, pensei com meus botões; “o que o dinheiro não conseguia comprar?” Meu plano não incluía ser atrevida a ponto de procurá-lo diretamente; nosso encontro teria que ser “acidental”. Deixando Jory aos cuidados de Emma Lindstrom, brincando com dois amiguinhos de sua idade em nosso jardim cercado, peguei meu carro e fui aos bosques não muito afastados de Foxworth Hall.
Bart Winslow era uma espécie de celebridade, com todos os seus movimentos divulgados pela imprensa, de modo que eu soubera através dos jornais que ele costumava correr diariamente alguns quilômetros antes do café da manhã. Na verdade, precisaria de um coração forte para enfrentar o que o futuro próximo lhe reservava. Passei a correr diariamente, usando as sinuosas trilhas que atravessavam os bosques, o solo forrado de folhas mortas e secas, que estalavam sob meus pés. Era setembro e fazia um mês que Carrie morrera. Pensamentos tristes enchiam-me a cabeça quando eu sentia o aroma pungente das fogueiras e escutava o barulho dos machados rachando lenha, sons e odores que Carrie deveria estar aproveitando... “Eles pagarão caro, Carrie! Farei que paguem muito caro!” Não sei como, esquecia-me de que Bart Winslow não tinha culpa nenhuma no caso. Ele não, só ela!
O tempo passava depressa e eu não progredia em meu intento! Onde estaria Bart Winslow? Eu não podia freqüentar os bares onde homens entravam sozinhos, seria por demais vulgar e óbvio. Quando nos encontrássemos, como era forçoso acontecer algum dia, ele diria algum clichê, ou eu o faria. Aquilo seria o final ou o início do plano que eu arquitetara e tinha em mente desde a primeira vez em que vira Bartholomew Winslow dançar com minha mãe na noite de Natal.
Ao contrário do que esperava, não o encontrei correndo nos bosques. Num sábado ao meio-dia, encontrava-me num café elegante quando Bart Winslow entrou despreocupadamente! Olhou em volta, avistou-me sentada perto das janelas e se encaminhou para mim com seu terno e colete de advogado, que deveria ter custado uma fortuna. Trazendo na mão uma pasta de documentos, chegou mesmo a adotar um andar meio rebolado de galã de cinema! Exibia um largo sorriso e seu rosto magro, tisnado de sol, parecia ligeiramente sinistro ou talvez fosse apenas impressão minha.
— Bem — disse com arrastado sotaque sulino — se não é Catherine Dahl, a mulher que há muitos meses venho querendo encontrar!
Deixou a pasta numa cadeira, sentou-se à minha frente sem ser convidado e apoiou-se nos cotovelos para estudar-me o rosto com intenso interesse.
— Onde, diabo, se escondeu? — indagou, usando o pé para puxar a outra cadeira para mais perto de si, a fim de vigiar a pasta.
— Não me escondi — repliquei, sentindo-me nervosa e esperando não demonstrar.
Ele riu enquanto os olhos castanhos observavam-me a blusa e saia justas, e meu pé que se balançava com indisfarçável nervosismo. Então, sua fisionomia assumiu uma expressão solene.
— Li nos jornais a notícia da morte de sua irmã. Sinto muito. É sempre triste lermos a notícia da morte de alguém tão jovem. Se não a ofendo, permite-me indagar de que ela morreu? Foi doença ou acidente?
Esbugalhei os olhos. O que matara Carrie? Oh! Eu poderia escrever um livro a respeito!
— Por que não pergunta à sua esposa o que matou minha irmã? – redargüi rigidamente.
Bart pareceu espantado. Em seguida, perguntou bruscamente:
— Como pode minha esposa saber isso, se não conhece você ou sua irmã? Não obstante, vi-a com o recorte do obituário nas mãos e estava chorando quando lhe tomei o papel. Exigi uma explicação, mas ela correu para trancar-se no quarto. E continua a recusar-se a responder minhas perguntas sobre o assunto. Diga-me, afinal, quem diabo é você?
Mordi meu sanduíche de presunto, alface e tomate e mastiguei de modo vagaroso e irritante, só para observar-lhe o vexame.
— Por que não pergunta isso a ela? — retruquei afinal.
— Detesto pessoas que respondem perguntas com outras perguntas — declarou ele rispidamente.
Em seguida, fez sinal para uma garçonete ruiva que se encontrava nas proximidades e pediu-lhe que trouxesse um sanduíche igual ao meu.
— Agora — prosseguiu, puxando a cadeira para mais perto da mesa, — faz algum tempo que entrei na escola de balé e lhe mostrei uma daquelas cartas de extorsão que tem enviado à minha esposa.
Enfiou a mão no bolso e retirou três cartas que eu escrevera anos atrás. Pelo aspecto manuseado do papel, bem como o grande número de selos e carimbos nos envelopes, as cartas tinham acompanhado minha mãe ao redor do mundo e agora me voltavam às mãos, com Bartholomew Winslow quase gritando:
— Quem, diabo, é você?
Sorri para encantá-lo. O sorriso de Mamãe. Tombei a cabeça ligeiramente para o lado, como ela costumava fazer, e ergui a mão para brincar com um imaginário colar de pérolas.
— Precisa mesmo perguntar? Não é capaz de adivinhar?
— Não banque a sabidinha comigo! Quem é você, realmente? Que relação tem com minha esposa? Sei que se parece com ela: o mesmo cabelo, os mesmos olhos e até mesmo alguns cacoetes iguais. Deve ter algum parentesco...?
— Sim. Pode-se dizer.
— Então, por que não a conheci antes? É prima? Sobrinha, talvez?
Bart Winslow possuía um forte magnetismo animal que me amedrontava de fazer o tipo de jogo que eu tinha em mente. Não se tratava de um adolescente facilmente impressionável por uma ex-bailarina. Seu tipo moreno exercia uma forte atração que quase me dominava. Oh, deveria ser um amante sensacional! Eu seria capaz de afogar-me em seus olhos ao fazer amor com ele, ficando perdida para qualquer outro homem. Era por demais confiante, masculino, seguro de si. Tinha a capacidade de sorrir e manter-se calmo enquanto eu me sentia nervosa e tinha vontade de fugir antes que ele me arrastasse pela senda que, até aquele momento, eu julgara pretender seguir.
— Ora, vamos — disse ele, estendendo a mão para segurar-me com força, impedindo-me de partir quando me levantei para sair. — Deixe de parecer amedrontada e faça o jogo que tem em mente há algum tempo.
Pegou as cartas e exibiu-as ante meus olhos. Desviei o rosto, insatisfeita comigo mesma.
— Não desvie o olhar. Recebemos cinco ou seis cartas suas enquanto estávamos na Europa; minha esposa as lia e ficava muito pálida. Engolia em seco, nervosa, como você está fazendo agora. Levantava a mão para brincar com as pérolas, exatamente como você está brincando agora. Por duas vezes, vi-a escrever no envelope: “Destinatário desconhecido”. Então, certo dia abri a correspondência e encontrei estas três cartas que você escreveu para ela. Abri-as. Li-as.
Fez uma pausa, debruçando-se sobre a mesa de modo que seus lábios ficaram a poucos centímetros dos meus. Sua voz soou dura, fria, completamente controlada, sem demonstrar qualquer fúria que ele pudesse estar sentindo:
— Que direito tem você de tentar fazer chantagem com minha esposa?
Tenho certeza de que o sangue me fugiu do rosto. Sei que me senti doente, fraca, ansiosa para fugir do local e esconder-me de Bart. Imaginei a voz de Chris dizendo: “Deixe o passado descansar em paz. Esqueça-o, Cathy. Deus, à sua maneira, providenciará a vingança que você tanto deseja. A seu próprio modo e no devido tempo, Deus lhe tirará dos ombros essa responsabilidade”.
Ali estava minha oportunidade de revelar tudo! De deixar que Bart soubesse o tipo de mulher com quem se casara! Por que meus lábios não abriam para que minha língua dissesse a verdade?
— Por que não pergunta à sua esposa quem sou eu? Por que vem a mim, quando ela tem todas as respostas?
Bart recostou-se no berrante encosto da cadeira, forrado de plástico alaranjado brilhante, e tirou do bolso uma cigarreira de prata com o monograma em brilhantes. Tinha que ser presente de minha mãe, era o tipo que ela adorava. Ofereceu-me um cigarro. Recusei. Ele bateu a ponta de um cigarro para compactar o fumo solto e acendeu-o com um isqueiro de prata com monograma também de brilhantes. Durante todo o tempo, seus olhos escuros, semicerrados, observavam os meus e, como uma mosca presa numa teia de aranha, esperei ser devorada.
— Cada carta que você escreveu declara que precisa desesperadamente de um milhão de dólares — declarou Bart num tom monótono, inexpressivo.
Depois, soprou-me a fumaça no rosto. Tossi, abanando o ar. Em todas as paredes havia avisos “É PROIBIDO FUMAR”.
— Por que precisa de um milhão?
Observei a fumaça que fazia um círculo e vinha diretamente sobre mim, envolvendo-me num halo a cabeça e o pescoço.
— Ouça — respondi, lutando para recuperar o controle. — Sabe que meu marido morreu. Eu esperava um filho e estava afogada de dívidas que não poderia pagar; mesmo depois que recebi o dinheiro do seguro, graças à sua intervenção, continuei a afundar-me. Minha escola de balé dá prejuízo. Tenho um filho para criar, preciso de coisas para ele, de economias para custear-lhe os estudos e sua esposa possui tantos milhões... Pensei que pudesse dispensar apenas um deles.
Bart exibiu um leve sorriso cínico. Soprou anéis de fumaça para me obrigar a tossir e esquivar-me outra vez.
— Por que motivo uma mulher inteligente como você presumiria que minha esposa seria bastante generosa para dar um mísero centavo a uma parenta que ela alega nem conhecer?
— Pergunte a ela por que!
— Já perguntei. Peguei estas cartas e enfiei-as sob o nariz, exigindo que ela me explicasse tudo. Já indaguei uma dúzia de vezes quem é você e que ligação tem com ela. E todas as vezes ela respondeu que você não passa de uma bailarina que ela viu no palco. Desta vez, quero as respostas certas de você!
A fim de certificar-se de que eu não viraria o rosto para esconder o olhar, ele estendeu a mão, segurando-me o queixo com firmeza para imobilizar-me a cabeça.
— Quem, diabo, é você? Que ligação tem com minha esposa? Por que julga que ela lhe pagaria chantagem? Por que suas cartas fazem-na subir correndo para o quarto e abrir um álbum de fotografias que mantém trancado na gaveta da escrivaninha ou num cofre? Um álbum que ela se apressa a esconder e trancar sempre que entro no quarto?
— Ela ficou com o álbum? O álbum azul, com uma águia dourada na capa de couro? — murmurei, chocada por saber que ela o guardara.
— Aonde quer que vamos, o álbum a acompanha numa das malas trancadas — replicou ele, apertando ameaçadoramente os olhos. — Você descreveu com exatidão aquele álbum azul e dourado, embora já esteja gasto pelo manuseio. Enquanto minha mulher vê as fotos do álbum, minha sogra lê a Bíblia a ponto de gastá-la. Às vezes, surpreendo minha esposa chorando ao ver as fotografias contidas naquele álbum azul, que, presumo, tenha fotos do seu primeiro marido.
Suspirei pesadamente e fechei os olhos. Não queria saber que ela chorava!
— Responda-me, Cathy: quem é você?
Tive certeza de que ele me seguraria ali, pelo queixo, o resto da vida se eu não dissesse alguma coisa; por algum motivo estúpido, menti:
— Henrietta Beech era meia-irmã de seu marido. Entenda: Malcolm Foxworth teve um caso extraconjugal do qual resultaram três filhos. Sou um deles. Sua esposa é minha meia-tia.
— Ahhh! — suspirou ele, largando-me o queixo e recostando-se na cadeira, como se convencido de que eu dissera a verdade. — Malcolm teve um caso com Henrietta Beech, que lhe deu três filhos ilegítimos. Que informação extraordinária! — comentou com um risinho de mofa. — Nunca pensei que o velho demônio fosse desse tipo, especialmente após o ataque cardíaco que sofreu logo depois que minha mulher se casou pela primeira vez. É uma verdadeira inspiração tomar conhecimento do fato.
De repente, ficou muito sério, fitando-me de modo prolongado e penetrante.
— Onde se encontra sua mãe, agora? Eu gostaria de vê-la e conversar com ela.
— Morreu — respondi, ocultando as mãos sob a mesa e mantendo os dedos cruzados como uma criança tola e supersticiosa. — Faz muito tempo.
— Está certo. Já percebi tudo. Três jovens, filhos ilegítimos da família Foxworth, tentando conseguir dinheiro à custa do parentesco através da chantagem contra minha esposa. Certo?
— Errado! Apenas eu. Nem meu irmão, nem minha irmã. Eu só queria receber o que temos direito! Na ocasião em que escrevi aquelas cartas, encontrava-me numa situação desesperadora e hoje em dia não estou muito melhor. Os cem mil dólares do seguro não duraram muito. Meu marido tinha dívidas enormes e estávamos atrasados no pagamento do aluguel e das prestações do carro; além disso, eu devia as contas dele no hospital, as despesas com seu funeral e os custos do parto. Poderia passar a noite inteira relatando os problemas de minha escola de balé e como fui iludida, induzida a acreditar que se tratava de um negócio rentável.
— E não é?
— Não quando o grosso dos alunos consiste de meninas mimadas que viajam de férias duas ou três vezes por ano e, de qualquer maneira, não levam a sério o balé. Só querem parecer bonitas e se sentirem graciosas. Se eu tivesse ao menos uma boa aluna talentosa, todo o esforço valeria a pena. Mas não tenho, nem mesmo uma.
Ele tamborilou com dedos fortes na toalha, parecendo absorto em reflexões. Em seguida, acendeu outro cigarro, não como se gostasse realmente de fumar, mas a fim de ter algo com que ocupar os dedos inquietos. Inalou profundamente a fumaça e depois fitou-me nos olhos.
— Vou lhe falar com muita franqueza, Catherine Dahl. Em primeiro lugar, não sei se mente ou diz a verdade, mas parece pertencer ao clã dos Foxworth. Em segundo lugar, não me agrada que faça chantagem com minha esposa. Em terceiro, não gosto de ver minha mulher infeliz a ponto de chorar. Quarto: acontece que estou muito apaixonado por ela, embora confesse que em certas ocasiões tenho ímpetos de estrangulá-la e forçá-la a desabafar todo o passado. Ela jamais fala no assunto; é cheia de segredos que meus ouvidos jamais escutarão. E um grande segredo do qual nunca tomei conhecimento anteriormente é que Malcolm Neal Foxworth, o cavalheiro bondoso, piedoso e santo, teve um caso amoroso após sofrer um ataque cardíaco. Por acaso, sei que ele teve um caso de amor antes do infarto, mas apenas um.
Oh! Ele sabia mais que eu! Eu dera um tiro no escuro sem imaginar que acertaria na mosca!
Bart Winslow correu os olhos pelo café. Famílias chegavam para jantar cedo e suponho que Bart temia que alguém o reconhecesse e contasse à sua esposa minha mãe.
— Venha, Cathy. Vamos cair fora daqui — disse num tom urgente, levantando se e estendendo a mão para ajudar-me. — Você pode convidar-me a tomar um drinque em sua casa, aonde nos sentaremos e conversaremos melhor. Então poderá fornecer-me maiores detalhes.
O crepúsculo desceu sobre as montanhas como uma cortina fechada às pressas. Anoitecera de repente e fazia horas que estávamos no café. Estávamos na calçada quando Bart segurou meu suéter cardigan para que eu enfiasse os braços nas mangas, embora o ar estivesse tão frio que senti necessidade de um casaco ou capote.
— Onde fica sua casa?
Expliquei e ele pareceu desconcertado.
— Acho melhor não irmos lá... muita gente poderia ver-me entrar.
É claro que na ocasião ele ainda não sabia que eu escolhera o chalé principalmente porque ficava recuado numa área cheia de árvores, proporcionando bastante privacidade para que um homem entrasse e saísse sem ser avistado.
— Minha fisionomia aparece com tanta freqüência nos jornais que sou capaz de apostar que seus vizinhos me reconheceriam — prosseguiu ele. — Não pode telefonar para a babá do menino e pedir que permaneça com ele mais um pouco?
Foi o que fiz, falando primeiro com Emma Lindstrom e depois com Jory, recomendando-lhe que se portasse como um bom menino até Mamãe voltar para casa. O carro de Bart era preto e luxuoso: um Mercedes. Fazia pouco barulho, como os carros de luxo de Julian, tão pesado e bem acabado que não produzia ruídos que os outros automóveis costumam fazer, mantendo-se firme nas curvas da sinuosa estrada das montanhas.
— Aonde pretende levar-me, Sr. Winslow?
— A um local onde poderemos conversar sem sermos vistos ou ouvidos — replicou ele com um sorriso e lançando-me um rápido olhar. — Esteve estudando meu perfil. Que nota mereço?
Uma onda quente de sangue me subiu ao rosto. Saber que estava ruborizada fez-me ficar ainda mais vermelha, até sentir o rosto úmido. Minha vida fora cheia de homens bonitos, mas este era muito diferente de todos os outros que eu conhecera: folgazão, sensual, tipo bandido, que me provocava sinais de alarme: vá devagar com este! Era a advertência que me fazia o instinto, enquanto eu lhe estudava a fisionomia, reparando em cada detalhe. Suas roupas caras, magnificamente bem cortadas... Tudo nele proclamava ostensivamente que era tão decidido quanto eu a conseguir o que queria, quando queria.
— Bem — repliquei, imitando seu arrastado sotaque sulino. — Sua aparência me aconselha a fugir depressa para casa e trancar a porta do quarto!
Ele tornou a sorrir maliciosamente, parecendo satisfeito.
— Portanto, julga-me excitante e um tanto perigoso. Ótimo. Ser bonito e maçante seria pior que feio e encantador, não acha?
— Não sei. Quando um homem é bastante encantador e inteligente, costumo ignorar-lhe a aparência e achá-lo bonito, a despeito de tudo.
— Então deve satisfazer-se com facilidade.
Desviei o olhar e empertiguei-me com ar pudico.
— Na verdade, Sr. Winslow...
— Bart — corrigiu ele.
— Na verdade, Bart, sou muito difícil de contentar. Sinto-me inclinada a colocar os homens num pedestal e pensar que são perfeitos. Tão logo percebo neles o mínimo defeito, deixo de gostar deles e me torno indiferente.
— Poucas mulheres se conhecem tão bem — comentou ele. — A grande maioria anda por aí sem saber o que há por detrás de sua fachada. Pelo menos sei a quantas ando: sou um símbolo sexual, sem pedestal de santo.
Nãããooo! Eu jamais o colocaria num pedestal. Conhecia-o pelo que realmente era: um conquistador, sempre atrás de um rabo-de-saia, cheio de vento e fogo, o bastante para levar à loucura uma esposa ciumenta! Certamente, minha mãe não comprara aquele manual de práticas sexuais para ensinar-lhe como, quando e onde! Bart devia saber tudo a respeito.
Parou bruscamente o carro e voltou-se para encarar-me. O branco de seus olhos brilhava mesmo na escuridão. Era viril e vibrante demais para um homem que já deveria dar sinais de envelhecimento. Bart tinha oito anos menos que minha mãe, o que significava que estava com quarenta, a idade em que o homem é mais atraente, torna-se mais vulnerável e começa a pensar que sua juventude se aproxima do fim. Agora, teria que fazer suas novas conquistas antes que o doce e esquivo pássaro da juventude voasse para longe, levando consigo todas as jovens bonitas que ele gostaria de possuir. E devia estar cansado de uma esposa a quem já conhecia tão bem, embora alegasse amá-la. Por que, então, seus olhos brilhavam tanto, desafiando-me? Oh! Mamãe, onde quer que esteja, deveria ajoelhar-se e rezar! Pois não pretendo dar-lhe nenhuma piedade, não mais do que você nos deu! Não obstante, enquanto eu permanecia sentada no carro, avaliando Bart Winslow, compreendi que não era um homem tranqüilo e disposto a sacrificar-se, como Paul. Não seria necessário seduzi-lo. Ele mesmo o faria, em ritmo de staccato. Caçaria como uma pantera negra até conseguir apanhar a presa desejada; então, sumiria, abandonando-me, e tudo estaria terminado. Bart jamais abriria mão da oportunidade de herdar milhões de dólares e os prazeres que tais milhões lhe proporcionariam, trocando-os por uma amante que lhe surgira fortuitamente no caminho. Sinais vermelhos piscavam-me na mente... Proceda com calma... faça tudo certo, pois correrá perigo se cometer algum engano!
E, enquanto eu o aquilatava, ele me avaliava da mesma maneira. Eu lhe lembraria tanto a esposa, a ponto de não haver uma diferença real? Ou minha semelhança com ela constituía uma vantagem? Afinal os homens não se apaixonam sempre pelo mesmo tipo de mulher?
— Noite linda — comentou ele. — É a minha estação predileta. O outono é tão cheio de paixão — mais ainda que a primavera. Venha andar um pouco comigo, Cathy. Este local me proporciona uma estranha sensação de melancolia, como se eu precisasse correr para alcançar a melhor coisa de minha vida, que até hoje tem se esquivado de mim.
— Parece poético — repliquei.
Saltei do carro e Bart me tomou a mão. Começamos a caminhar, com ele me guiando habilmente ao longo, acreditem se quiserem, de uma linha férrea que atravessava os campos! Parecia-me familiar. Contudo, não poderia ser, não é mesmo? Não era a mesma linha férrea que nos trouxera, quando crianças, há quinze anos, para Foxworth Hall! Na época em que eu tinha apenas doze anos!
— Bart, não sei se o mesmo ocorre com você, mas tenho a sensação esquisita de que já trilhei este caminho antes, em sua companhia, numa outra noite.
— Déjà vu — replicou ele. — Sinto a mesma coisa, como se outrora estivéssemos muito apaixonados um pelo outro e atravessássemos aquele bosque. Sentamo-nos naquele banco verde ao lado desta linha de trem. Senti-me impelido a trazê-la aqui, embora nem soubesse em que direção guiava o automóvel.
Aquelas palavras obrigaram-me a erguer o rosto para fitá-lo e verificar se falava sério. Por sua expressão espantada e levemente embaraçada, creio que ele estava surpreso.
— Gosto de ponderar tudo o que é considerado impossível ou implausível — declarei. — Quero que tudo impossível se torne possível e tudo implausível se transforme em realidade. Então, quando tudo fica explicável, desejo confrontar-me com novos mistérios, de modo a ter sempre algo inexplicável em que pensar.
— Você é uma romântica.
— Você não é?
— Não sei. Costumava ser, quando rapaz.
— Por que mudou?
— É impossível continuar sendo um rapaz com idéias românticas quando se freqüenta uma faculdade de direito e se depara com as duras realidades do assassinato, roubo, estupro e corrupção. E professores que martelam na mente dos alunos idéias dogmáticas que expulsam o romantismo. Ingressamos na faculdade, jovens e idealistas; dela saímos céticos e empedernidos, sabendo que é preciso lutar para galgar cada degrau do caminho futuro e lutar muito, se quisermos prestar para alguma coisa. Logo aprendemos que não somos os melhores e que a concorrência é assustadora.
Virou-se para sorrir com um encanto jovial.
— Entretanto, Catherine Dahl, tenho a impressão de que você e eu possuímos muita coisa em comum. Eu também já senti essa necessidade de mistérios, de enfrentar coisas confusas, de ter alguém a quem idolatrar. É verdade que me apaixonei por uma herdeira de milhões de dólares, mas os milhões que ela desejava herdar interpunham-se em meu caminho. Afastavam-me dela e me amedrontavam. Eu sabia que todos julgavam que me casaria com ela só pelo dinheiro. Creio que ela também pensava assim, até que consegui convencê-la do contrário. Apaixonei-me realmente antes de saber quem ela era. Na realidade, julguei que fosse como você.
— Como pôde pensar assim? — indaguei, sentindo-me tensa ao escutar aquelas revelações.
— Porque ela era como você, Cathy; por algum tempo, pelo menos. Então herdou todos aqueles milhões e, em verdadeiras orgias de compras, adquiria tudo que lhe vinha à mente. Em breve, nada mais tínhamos para desejar, exceto um filho. E ela não podia ter filhos. Você nem pode imaginar quanto tempo passamos olhando as vitrines de lojas de roupas, brinquedos e móveis infantis. Quando me casei com ela, sabia que não poderíamos ter filhos e julguei que não me importaria. Em breve, comecei a importar-me demais. Aquelas lojas de artigos infantis me fascinavam também.
A estreita trilha que seguimos levava diretamente ao banco verde entre dois dos quatro velhos postes que sustentavam o enferrujado telhado de zinco da parada de trem. Sentamo-nos ali, respirando o ar frio das montanhas, a lua brilhando e as estrelas cintilando no céu. Os insetos zumbiam como o sangue que me corria nas veias.
— Isto aqui servia de parada de trem para deixar e pegar a mala postal, Cathy — explicou Bart, acendendo outro cigarro. — Os trens já não passam por esta linha. Finalmente, os ricaços que moram nas redondezas ganharam uma ação judicial contra a ferrovia e acabaram com os trens que, com tanta falta de consideração, apitavam durante a noite, perturbando-lhes o sono. Eu gostava muito de escutar os trens apitando à noite. Na época, porém, tinha apenas vinte e sete anos; era recém-casado e morava em Foxworth Hall. Deitava-me ao lado de minha mulher numa cama com um cisne acima de minha cabeça... consegue acreditar numa coisa dessas? Ela dormia com a cabeça no meu ombro ou passávamos a noite inteira de mãos dadas. Tomava pílulas para dormir, de modo que ressonava profundamente. Tanto que jamais escutou a linda música que vinha de cima. Aquela música me intrigava e, quando a mencionei, minha mulher replicou que era produto de minha imaginação. Então um dia a música cessou definitivamente e cheguei à conclusão de que ela estava certa e era apenas imaginação minha. Quando a música parou de tocar, senti falta. Ansiava por tornar a escutá-la. Era uma música que emprestava algum encanto à velha e insípida mansão. Eu costumava adormecer e sonhar com uma bela jovem que dançava lá em cima. Julguei que sonhasse com minha mulher quando ela era jovem. Ela me contou que, freqüentemente, à guisa de castigo, seus pais a mandavam para a sala de aulas existente no sótão e a obrigavam a permanecer lá o dia inteiro, até mesmo no verão, quando a temperatura devia passar de quarenta graus. E também a mandavam para lá no inverno; ela disse que fazia um frio de gelar e seus dedos chegavam a ficar azulados. Então passava o tempo todo agachada no chão, perto da janela, chorando porque perdia algo divertido que seus pais consideravam pecaminoso.
— Alguma vez você subiu para ver o sótão?
— Não. Tive vontade, mas as portas duplas no topo da escada estavam sempre trancadas. Além disso, todos os sótãos são iguais; basta ver um para conhecer todos — respondeu Bart, lançando-me um rápido sorriso malicioso. — E agora, que lhe revelei tanto a meu respeito, fale-me um pouco de você. Onde nasceu? Que escolas freqüentou? O que a levou a escolher o balé? E por que razão jamais compareceu a um daqueles bailes que os Foxworth costumam promover na noite de Natal?
Suei, embora sentisse frio.
— Por que eu lhe contaria tudo a meu respeito? Só porque ficou aí sentado, revelando-me um pouco de sua vida? Não me contou nada de importante. Onde você nasceu? Por que resolveu estudar direito? Como conheceu sua esposa? No verão ou no inverno, de que ano? Sabia que ela já fora casada, ou ela só lhe contou depois de casar-se com você?
— Você é bem abelhuda, hem? Que diferença faz onde nasci? Não tive uma vida excitante como a sua. Nasci numa insignificante cidadezinha do interior, chamada Greenglenna, na Carolina do Sul. A Guerra Civil pôs um ponto final nos dias de prosperidade de meus ancestrais e a família escorregou por uma rampa descendente, como todos os nossos amigos. Mas trata-se de uma velha estória, repetida milhares de vezes. Então casei-me com uma dama da família Foxworth e a prosperidade voltou a reinar no Sul. Minha esposa pegou a casa de meus antepassados e praticamente reconstruiu-a e redecorou-a, gastando muito mais do que se comprasse uma casa nova. E o que fiz durante todo esse tempo? Um dos primeiros alunos de sua turma na Universidade Harvard, percorrendo o mundo com a esposa. Aproveitei muito pouco minha formação profissional: tornei-me uma borboleta da alta sociedade. Defendi alguns casos no tribunal e ajudei você a cobrar o seguro de vida de seu marido. A propósito, você nunca me pagou os honorários que eu tinha em mente.
— Enviei-lhe pelo correio um cheque de duzentos dólares! — protestei acaloradamente. — Se não for suficiente, faça-me o favor de não dizer agora; não tenho mais duzentos para dar-lhe.
— Por acaso falei em dinheiro? Dinheiro pouco significa para mim, agora que tenho tanto à minha disposição. Em seu caso particular, eu tinha em mente outro tipo de honorários.
— Ora, pare com isso, Bart Winslow! Trouxe-me para o meio do mato. Pretende, agora, fazer amor comigo no capim? Será a grande ambição de sua vida fazer amor com uma ex-bailarina? Não distribuo sexo a esmo e não costumo pagar minhas dívidas dessa maneira. E o que tem você de tão atraente: um cãozinho de estimação de uma mulher mimada, bajulada e milionária que pode comprar tudo o que deseja, inclusive um marido muito mais moço que ela? Ora, é mesmo espantoso que ela não lhe tenha passado uma argola pelo nariz, para levá-lo aonde quiser e obrigá-lo a sentar-se para implorar tudo o que quer!
Então, Bart agarrou-me com força e brutalidade, espremendo os lábios contra os meus com uma violência que me doeu! Tentei resistir-lhe com os punhos, esmurrando-lhe os braços e tentando virar o rosto para o lado, mas, para onde quer que voltasse a cabeça, para a direita ou esquerda, para cima ou para baixo, ele prosseguiu o beijo, exigindo que meus lábios se entreabrissem para cederem à pressão de sua língua! Compreendendo que não poderia escapar aos braços de aço que me envolviam, moldando meu corpo ao seu, contra a minha vontade, abracei-lhe o pescoço. Meus dedos descontrolados traíram-me, enfiando-se em seus bastos cabelos escuros. O beijo durou, durou, durou muito, até ficarmos ambos acalorados e ofegantes e, então, Bart afastou-me de si com tanta violência que quase caí do banco.
— Bem, pequena Srta. Pedante... que tipo de cãozinho de estimação me julga agora? Ou Chapeuzinho Vermelho acaba de encontrar o Lobo Mau?
— Leve-me para casa.
— Vou levá-la para casa, mas só depois de aproveitar mais um pouco o que você acaba de me dar.
Avançou para abraçar-me outra vez, mas levantei-me e corri em direção ao carro, a fim de alcançar minha bolsa para que, quando ele lá chegasse, eu estivesse armada com minha tesourinha de unhas, pronta para cravá-la nele. Bart chegou, sorriu, estendeu a mão e tirou-me a tesoura.
— Isso pode causar um feio arranhão — zombou. — E não gosto de arranhões, exceto quando feitos por unhas femininas nas minhas costas. Quando você saltar do carro à porta de casa, devolver-lhe-ei a tesourinha.
Diante do meu chalé, ele me devolveu a tesoura.
— Agora, faça o pior que puder: fure-me os olhos, apunhale-me no coração... Será melhor assim. Aquele beijo já começou, mas ainda exigirei o pagamento total de meus honorários.
Segurar um tigre pelo rabo
Alguns dias depois, num domingo de manhã cedo, eu fazia exercícios de aquecimento na barra em meu quarto. Meu filhinho tentava entusiasticamente imitar tudo o que eu fazia. Era tão gostoso observá-lo pelo espelho que eu mudara da penteadeira para a barra!
— Estou dançando? — indagou Jory.
— Sim, Jory. Você está dançando!
— Sou bom bailarino?
— Sim, Jory. Você é maravilhoso!
Jory riu, abraçou-me as pernas e fitou-me com aquela expressão de entusiasmo e êxtase de que só as crianças pequenas são capazes: seus olhos exprimiam todo o encanto de estar vivo e aprender algo novo todos os dias.
— Eu amo você, mamãe! — disse, como costumávamos dizer um ao outro mais de uma dúzia de vezes por dia. — Mary tem um papai. Por que não tenho um papai?
Aquilo me doeu.
— Você tinha um papai, Jory, mas ele foi embora para o céu. E talvez algum dia Mamãe encontre um novo papai para você.
Ele sorriu, satisfeito. Os papais eram importantes no seu mundo, pois todas as crianças da escola maternal tinham um; todas menos Jory.
Naquele instante escutei a porta da frente fechar-se com estrondo e uma voz familiar chamou meu nome. Chris! Meu irmão andou através do pequeno chalé e me apressei a ir ao seu encontro em minhas malhas azuis e sapatilhas de balé. Nossos olhares se cruzaram demoradamente. Sem dizer uma palavra, Chris estendeu os braços e corri para ele sem a menor hesitação. Embora ele procurasse beijar-me os lábios, só conseguiu encontrar-me o rosto. Jory puxava-lhe as calças de flanela cinzenta, ansioso por ser acolhido nos braços fortes e másculos.
— Como está o meu Jory? — indagou Chris, após beijar-lhe ambas as bochechas rosadas.
Os olhos de meu filho se esbugalharam ao fitar Chris.
— Você é meu papai, Tio Chris?
— Não — replicou severamente Chris, recolocando Jory no chão. — Mas certamente gostaria de ter um filho como você.
Aquelas palavras provocaram em mim um movimento nervoso. Virei-me para o outro lado, a fim de evitar que Chris me visse os olhos. Então, perguntei-lhe o que estava fazendo em minha casa quando devia cuidar de seus pacientes.
— Tirei folga no fim-de-semana, a fim de passá-lo com você; isto é, se me permitir.
Meneei levemente a cabeça, pensando em outra pessoa que também deveria vir naquele fim-de-semana.
— Fui o melhor médico residente no hospital e, como recompensa, ganhei um fim de semana de folga — explicou ele, com o mais cativante dos sorrisos.
— Tem recebido notícias de Paul? — indaguei. — Ele não tem vindo com a antiga freqüência e também não escreve muito.
— Viajou para outro congresso médico. Julguei que sempre se mantivesse em contato com você.
Colocou uma ligeira ênfase na palavra “você”.
— Chris, estou preocupada com Paul. Antes ele fazia questão de responder cada uma de minhas cartas.
Meu irmão riu, deixando-se cair numa poltrona e pegando Jory no colo.
— Talvez, minha querida irmã, você tenha encontrado finalmente um homem capaz de deixar de amá-la.
Fiquei sem saber o que dizer ou o que fazer com as mãos. Sentei-me com o olhar fixo no chão, sentindo os penetrantes olhos de Chris procurarem ler-me os pensamentos.
— Cathy, o que faz você aqui nas montanhas? Que anda planejando? Tenciona roubar Bart Winslow de nossa mãe?
Levantei vivamente a cabeça, enfrentando-lhe os semicerrados olhos azuis e sentindo a onda de calor que me subia do coração.
— Não me interrogue como se eu fosse uma desmiolada criança de dez anos. Farei o que preciso fazer, exatamente como você.
— Claro que fará. Eu nem precisava perguntar, pois já sei. Não é preciso uma bola de cristal para ler suas intenções. Sei como você funciona e o que pensa, mas deixe Bart Winslow em paz! Ele nunca a deixará em troca de você! Ela possui milhões de dólares e você tem apenas juventude. Existem milhares de mulheres mais moças entre as quais ele pode escolher à vontade; por que haveria de escolher você?
Não respondi, limitando-me a enfrentar-lhe o rosto carrancudo com um sorriso confiante, obrigando-o a corar e desviar o rosto para o lado. Senti-me mesquinha, cruel e envergonhada.
— Não vamos brigar, Chris. Sejamos amigos e aliados. De quatro, restamos apenas nós dois.
Seus olhos azuis assumiram uma expressão mais suave ao me estudarem.
— Eu estava apenas tentando, como sempre — disse ele, olhando em volta e tornando a encarar-me. — No hospital, divido um quarto com outro residente. Seria ótimo poder morar aqui, com você e Jory. Só nós, como outrora.
Empertiguei-me ante a sugestão.
— Você teria que fazer uma longa viagem todas as manhãs e não estaria disponível no hospital em caso de urgência.
— Eu sei... e nos fins-de-semana? Tenho folga em fins-de-semana alternados. Isto a incomodaria muito?
— Sim, incomodar-me-ia demais. Tenho minha própria vida, Christopher.
Observei-o morder o lábio inferior antes de forçar um sorriso.
— Está certo. Seja como você prefere... ou acha que deve ser. Peço a Deus que não se arrependa.
— Quer fazer o favor de mudar de assunto? — repliquei sorrindo, aproximando-me para abraçá-lo. — Seja bonzinho e aceite-me como sou; obstinada como Carrie. Agora, o que gostaria de almoçar?
— Ainda não tomei o café da manhã.
— Então, faremos uma só refeição que valerá pelas duas.
Daí em diante, o dia passou depressa. Chris sentou-se à mesa pronto para comer o omelete de queijo de que tanto gostava. Jory, graças a Deus, comia de tudo. A despeito de mim mesma, imaginei Chris como um pai para Jory. Parecia-me tão bom tê-lo à mesa, como costumava acontecer antes... quando ele e eu fazíamos papel de pais. Fazendo o melhor possível, tudo o que estava ao nosso alcance quando éramos apenas crianças, também.
Após a refeição, passeamos pelos bosques, percorrendo as trilhas que eu utilizava em minhas corridas diárias. Jory foi montado nos ombros de Chris. Observamos o mundo nas redondezas de Foxworth Hall e todos os lugares que não conseguíamos avistar quando estávamos no telhado ou trancados no quarto. Paramos juntos, a fim de olharmos para a imensa mansão.
— Mamãe está lá? — indagou Chris, com voz embargada.
— Não. Ouvi dizer que se encontra no Texas, num daqueles balneários para tratamento de beleza freqüentados por mulheres muito ricas, tentando perder um excesso de sete ou oito quilos.
Alertado, ele virou vivamente a cabeça.
— Quem lhe contou?
— Quem você julga que foi?
Chris sacudiu violentamente a cabeça. Em seguida, ergueu Jory dos ombros, pousando-o no chão.
— Maldita seja, Cathy, por envolver-se com ele! Eu o conheço de vista. É perigoso, afaste-se dele. Volte para Paul e case-se com ele, se tem necessidade de um homem em sua vida. Deixe nossa mãe levar a vida dela em paz. Não me diga que não acredita que ela está sofrendo! Julga que ela pode ser feliz sabendo o que fez? Nem todo dinheiro deste mundo poderá devolver o que ela perdeu: nós! Que isto seja vingança suficiente, Cathy.
— Não é suficiente. Quero confrontá-la com a verdade, diante de Bart. E você pode ficar aqui cem anos, ajoelhar-se e implorar até que sua língua role pelo chão, mas irei em frente e farei o que preciso fazer!
Quando Chris ficou em meu chalé, dormiu no quarto que fora de Carrie. Conversávamos muito pouco, embora ele me observasse os mínimos movimentos. Parecia exausto, confuso... e, acima de tudo, magoado. Tive vontade de dizer-lhe que, ao terminar o que tinha que fazer, eu voltaria para Paul e levaria uma vida segura com ele, dando a Jory o pai que precisava. Mas permaneci calada.
As noites nas montanhas eram frias, mesmo em setembro, quando os dias ainda eram quentes. Naquele sótão, quase nos derretíamos com o calor abrasador e creio que ambos nos lembrávamos disto sentados diante da lareira na noite em que Chris tinha que partir. Meu filho já estava na cama havia horas quando me ergui da poltrona, bocejei, espreguicei-me e olhei para o relógio sobre o aparador da lareira, que marcava onze horas.
— Já é hora de dormir, Chris. Especialmente para você, que precisa acordar tão cedo amanhã.
Sem falar, ele me acompanhou ao quarto de Jory, onde olhamos para o menino adormecido, deitado de lado, os cachos escuros úmidos e o rosto corado. Abraçava um cavalinho macio e peludo semelhante ao que desejava ganhar, de verdade, quando completasse quatro anos.
— Quando está dormindo, ele se parece mais com você do que com Julian — sussurrou Chris.
Paul dissera o mesmo.
— Boa-noite, Christopher Doll — disse eu ao pararmos junto à porta do quarto de Carrie. — Durma bem e não seja mordido pelos percevejos.
Aquelas palavras lhe provocaram uma careta de dor. Dando-me as costas, abriu a porta do quarto. Em seguida, deu meia-volta para encarar-me.
— Era assim que costumávamos dizer boa-noite quando dormíamos no mesmo quarto — comentou.
Então tornou a virar-se e fechou a porta atrás de si.
Quando acordei, às sete horas, Chris já se fora. Chorei um pouco. Jory fitou-me com os olhos muito abertos de espanto.
— Mamãe... — indagou, amedrontado.
— Tudo bem, Jory. Mamãe sente saudades de seu tio Chris. E Mamãe não irá trabalhar hoje.
Por que iria? Apenas três alunas compareceriam e eu poderia ensinar tudo no dia seguinte, quando a turma inteira estivesse reunida. Meus planos caminhavam devagar demais. A fim de acelerá-los, pedi a Emma que viesse tomar conta de Jory enquanto eu corria pelos bosques.
— Não devo demorar mais que uma hora. Deixe-o brincar lá fora até a hora do almoço e, a essa altura, já deverei estar de volta.
Usando um agasalho de ginástica azul-brilhante com as costuras arrematadas com listras brancas, parti correndo pelas trilhas. Desta feita, tomei uma bifurcação à direita, que nunca usara antes, penetrando num pinheiral mais denso. A trilha mal era visível e muito sinuosa, obrigando-me a prestar atenção ao solo, a fim de evitar raízes que me fizessem tropeçar. As árvores de região montanhosa que cresciam entre os pinheiros tinham o brilhante colorido vermelho do outono, destacando-se como labaredas em contraste com o verde-esmeralda dos pinheiros, abetos e espruces. Como eu pensava desde criança, o último e apaixonado caso de amor do ano chegava ao fim antes que ele envelhecesse e morresse fatigado pelo frio do inverno...
Alguém corria atrás de mim. Não me voltei para olhar. O estalar das folhas mortas era um ruído agradável a meus ouvidos, de modo que aumentei a velocidade, deixando que o vento me soprasse os cabelos soltos enquanto a beleza do dia afastava de mim o sofrimento, o remorso e a vergonha, transformando-os em sombras transparentes que não resistiam à luz do sol.
— Espere, Cathy! — chamou uma forte voz masculina. — Corre depressa demais!
Era Bart Winslow, naturalmente. Como teria de ser, mais cedo ou mais tarde. O destino não me poderia iludir para sempre; minha mãe não podia vencer invariavelmente. Lancei um rápido olhar por cima do ombro e sorri ao vê-lo ofegante, usando um elegante traje de ginástica cor de caramelo, arrematado com listras amarelas e cor de laranja, e tendo punhos, cintura e gola sanfonados. Duas listras verticais, uma amarela e outra laranja, desciam ao longo das costuras laterais das calças. Exatamente o que um ginasta local usaria ao caçar uma mulher no mato.
— Olá, Sr. Winslow — respondi, apertando ainda mais o passo. — Um homem incapaz de alcançar uma mulher não é homem!
Ele aceitou o desafio e imprimiu maior velocidade às pernas compridas; fui obrigada a correr de verdade para manter a dianteira! Eu praticamente voava ao longo da trilha, com os cabelos longos esvoaçando atrás de mim. Os esquilos que catavam nozes pelo chão tinham que fugir às pressas de meu caminho. Ri com o poder que sentia possuir e abri os braços, fazendo uma pirueta, tendo a impressão que dançava meu melhor papel no palco. Então, como se brotasse do solo, uma raiz nodosa pegou-me por baixo da ponta do tênis sujo e caí de bruços. Felizmente, as folhas mortas amaciaram-me a queda. Levantei-me de imediato e continuei a correr, mas o tombo dera a Bart oportunidade de chegar mais perto. Ofegante, engasgando-se, indicando claramente que não tinha resistência para competir comigo a despeito da vantagem que lhe davam as pernas mais compridas, ele gritou:
— Pare de correr, Cathy! Tenha pena de mim! Estou quase morto! Há outros meios de provar a minha masculinidade!
Não tive pena! Pensei: agarre-me se puder, do contrário não chegará perto de mim. Gritei-lhe isso e prossegui a corrida, deleitando-me com minhas robustas pernas de bailarina, os músculos longos e ágeis, o treinamento de dança que me fazia sentir veloz como um raio. Mal tais pensamentos jactanciosos me passaram pela cabeça, torci o joelho, que cedeu sob o peso do corpo, e tornei a cair com o rosto nas folhas mortas. Só que desta vez estava machucada de verdade, sentindo muita dor. Teria sofrido uma fratura? Torcido o tornozelo, esgarçado um tendão outra vez? Dentro de poucos segundos Bart me alcançou, ajoelhando-se a meu lado, virando-me de modo a ver-me o rosto antes de indagar com evidente preocupação:
— Machucou-se? Parece tão pálida... Onde sente dor?
Eu quis responder que, naturalmente, estava bem, pois as bailarinas sabem cair, exceto quando se trata de um tombo inesperado. Entretanto, por que o joelho me doía tanto? Fitei o local dolorido, sentindo-me traída pelo mesmo joelho que sempre me causava problemas, magoando-me de muitas maneiras.
— Foi o maldito joelho. Se bato com o cotovelo na parede do chuveiro, meu joelho direito dói! Quando sinto dor de cabeça, ele também dói, em solidariedade. Uma vez fui obturar um dente e o dentista deixou a broca escapar, cortando-me a gengiva; pois meu joelho direito reagiu imediatamente, esticando-se e desferindo um pontapé na barriga do dentista!
— Está brincando!
— Estou falando sério. Você não tem algo de peculiar sob o ponto de vista físico?
— Nada que eu goste de mencionar.
Ele sorriu, com um brilho de malícia no olhar, depois ajudou-me a ficar em pé. Apalpou-me o joelho com ar de quem sabia o que estava fazendo.
— Tenho a impressão de que se trata de um bom joelho, perfeitamente funcional.
— Como pode saber?
— Meus joelhos também funcionam bem, de modo que posso distinguir só pelo tato. Contudo, se pudesse ver seu joelho, poderia julgar melhor.
— Vá para casa e olhe para os joelhos funcionais de sua esposa.
— Por que se porta de modo tão detestável comigo? — indagou ele, apertando as pálpebras. — Aqui estava eu, feliz por revê-la, e você demonstra tanto antagonismo.
— A dor sempre me causa antagonismo. Não lhe acontece o mesmo?
— Quando sofro, o que é muito raro, mostro-me delicado e humilde. Agindo assim, recebemos mais atenção. E lembre-se de que não fui eu quem lançou o desafio; foi você.
— E você não precisava aceitar. Poderia ter seguido tranqüilamente seu caminho, deixando-me seguir o meu.
— Agora, estamos discutindo — disse ele, desapontado. — Você quer brigar quando desejo ser amistoso. Seja boazinha comigo. Diga que se sente alegre por rever-me. Diga-me o quanto fiquei mais bonito desde a última vez em que me viu e como você me acha excitante. Embora não seja capaz de correr como o vento, também tenho minha pequena coleção de truques.
— Aposto que tem.
— Minha esposa continua naquele balneário e faz longos meses que estou sozinho em casa, morto de tédio por morar com uma velha senhora que não consegue falar ou andar, mas dá um jeito de ficar carrancuda sempre que olha para mim. Uma noite encontrava-me tranqüilamente sentado em frente à lareira, desejando que alguém das redondezas resolvesse cometer um assassinato, de modo que eu pudesse defender um caso interessante, para variar. É de causar uma frustração deveras desesperadora ser advogado e viver cercado de gente normal e feliz, desprovida de emoções reprimidas que entrem bruscamente em erupção.
— Parabéns, Bart! Tem diante de si uma pessoa cheia de ressentimento agressivo e ódio reprimido que entrará em erupção numa vingança implacável; pode contar com isso!
Bart julgou que eu estivesse pilheriando, brincando de gato-e-rato, num jogo entre homem e mulher, e se ergueu disposto a aceitar o desafio, sem a menor desconfiança quanto ao meu verdadeiro propósito. Olhou-me detidamente, como se despisse meu agasalho de ginástica com os olhos sensuais de um homem ávido de desejo por aquilo que eu lhe podia dar.
— Por que veio morar aqui, perto de mim?
Eu ri.
— Arrogante, hem? Vim tomar posse de uma escola de balé.
— Claro que sim... Tem Nova York e sua cidade natal, que eu não tenho a menor idéia de qual seja, mas veio para cá a fim de aproveitar também os esportes de inverno?
Seu olhar insinuava o tipo de “esporte caseiro” que ele tinha em mente, caso eu também quisesse.
— Sim, gosto de todas as espécies de esportes, dentro de casa e ao ar livre — respondi com ar inocente.
Ele soltou uma risadinha confiante, presumindo, como todos os homens cheios de convencimento, que já marcara um tento no único jogo íntimo que um homem realmente deseja fazer com uma mulher.
— A tal velha que não consegue falar pode movimentar-se pela casa? — indaguei.
— Um pouco. Minha sogra tenta falar, mas as sílabas saem misturadas e ininteligíveis para qualquer pessoa exceto minha mulher.
— E você a deixa sozinha... É seguro?
— Não fica sozinha. Tem uma enfermeira particular de plantão a seu lado o tempo todo, além de uma equipe de empregados — respondeu ele, franzindo a testa como se minhas perguntas não lhe agradassem; não obstante, insisti:
— Então por que permanece aqui e não trata de ir divertir-se longe de casa enquanto a gata não volta?
— Às vezes, você parece uma megera. Embora eu jamais tenha gostado de minha sogra, tenho pena de vê-la no estado atual. E, meramente por pertencer à natureza humana, não confio que os empregados lhe dispensem os cuidados necessários se não houver um membro da família para verificar o que eles fazem para proporcionar maior conforto à enferma. Minha sogra é inválida: não pode levantar-se da cadeira de rodas sem ser ajudada nem sair da cama sem que alguém a carregue. Portanto, até que minha mulher volte para casa, estou encarregado de verificar que a Sra. Malcolm Foxworth não seja maltratada, negligenciada ou roubada.
Uma curiosidade avassaladora me invadiu. Quis saber o nome da avó, pois nunca o escutara.
— Você a chama de Sra. Foxworth?
Bart não entendia meu interesse por uma velha inválida e tentou desviar o assunto, mas persisti.
— Chamo-a de Olívia! — replicou afinal, lacônico. — Logo que me casei, evitava dirigir-lhe a palavra e tentava esquecer-lhe a existência. Agora, trato-a pelo nome de batismo; creio que isto lhe dá satisfação, mas não posso ter certeza. Seu rosto parece feito de pedra, fixo numa expressão fria como gelo.
Pude imaginar a avó imóvel, a não ser pelos olhos duros e malvados, cinzentos como granito. Bart já me dissera tudo o que eu queria saber. Agora, eu podia estabelecer os planos definitivos, tão logo tivesse mais uma pequena informação:
— Quando voltará sua esposa?
— Por que quer saber?
— Fico muito solitária, Bart... Depois que Emma, a babá, vai para casa, tenho apenas a companhia de meu filhinho. Portanto... imaginei que talvez uma noite você poderia gostar de jantar comigo...
— Irei hoje — replicou ele de imediato, os olhos escuros faiscando.
— Nosso horário gira em torno do menino. No verão, jantamos por volta de cinco e meia, mas agora que os dias são mais curtos, nosso horário de jantar é às cinco.
— Ótimo. Dê o jantar a seu filho às cinco horas e ponha-o na cama. Chegarei às sete e meia para um drinque. Depois do jantar poderemos conhecer-nos melhor.
Fiquei pensativa e ele me encarou com solene intensidade, como cabia bem a um bom advogado. Então, porque o olhar que trocamos foi muito demorado, ambos rimos simultaneamente.
— A propósito, Sr. Winslow, se atravessar o bosque nos fundos de sua casa, poderá chegar ao meu chalé sem que alguém o veja. A menos, é claro, que faça questão de mostrar-se.
Bart ergueu a mão espalmada e meneou a cabeça, como se arquitetássemos uma conspiração.
— A senha é discrição, Srta. Dahl.
A aranha e a mosca
A campainha da porta soou exatamente às sete e meia, acionada por um dedo impaciente e obrigando-me a correr para evitar que Jory acordasse. Meu filho detestava ir para a cama tão cedo. Eu me esforçara para apresentar-me com a melhor aparência possível e Bart procedera da mesma forma. Entrou como se já fosse o dono da casa e de mim, deixando atrás de si um perfume de loção de barba com aroma de pinho silvestre. Tinha os cabelos meticulosamente penteados, cada fio no devido lugar, o que fez imaginar que talvez já apresentasse os primeiros sinais de calvície... o que eu descobriria por mim mesma, mais cedo ou mais tarde. Tomei-lhe o casaco e pendurei-o no armário embutido no vestíbulo. Em seguida, fui ao bar, onde me ocupei com a preparação das bebidas, enquanto Bart se sentava diante do fogo que ardia na lareira (nada fora esquecido; até o som de música suave enchia o ambiente). A essa altura, eu já conhecia o suficiente os homens e as maneiras de melhor agradá-los. Não existia homem no mundo que não se deixasse encantar com a proximidade física de uma mulher bonita ansiosa por servi-lo, mimá-lo, jantar e tomar vinho com ele.
— Qual é sua fraqueza, Bart?
— Uísque.
— Com gelo?
— Puro.
Bart observava-me cada movimento, que era deliberadamente gracioso e eficiente. Então, dando-lhe as costas, preparei para mim um leve coquetel de frutas, adicionando uma pequena dose de vodca. E, com os dois pequenos copos de pés curtos numa bandeja de prata, encaminhei-me sedutoramente para ele, debruçando-me a fim de exibir-lhe o atraente colo sem soutien. Sentei-me em frente a Bart, cruzando as pernas para permitir que a comprida abertura lateral de meu vestido cor-de-rosa se abrisse e deixasse à mostra minha perna, desde a sandália prateada até a metade da coxa. Bart não conseguiu despregar os olhos de minha carne.
— Desculpe-me quanto aos copos — disse eu num tom suave, satisfeita com a expressão de seu rosto. — Não tenho lugar neste chalé para desencaixotar todas as minhas coisas. A maior parte dos cristais continua guardada e só tenho aqui copos para vinho e água.
— Uísque é uísque, não importa como seja servido. O que está tomando?
A essa altura, seu olhar passara para o pronunciado decote em V do meu vestido.
— Bem, é feito com laranja recém-espremida, um pouco de suco de limão, uma dose de vodca e um pouco de leite de coco. Adiciona-se uma cereja para ter-se o prazer de pescá-la depois. Batizei-o de “Deleite de Donzela”.
Após conversarmos alguns minutos, encaminhamo-nos à mesa de jantar arrumada não muito longe da lareira, a fim de jantarmos à luz de velas. A intervalos, Bart deixava cair a colher ou o garfo; ambos nos curvávamos para pegar o talher e, rindo, verificávamos quem era o mais rápido. Ganhei dele todas as vezes. Bart estava por demais distraído para localizar uma colher ou um garfo no chão, quando tinha diante dos olhos um decote que se abria com tanta generosidade.
— A galinha está deliciosa — declarou, após demolir em dez minutos o resultado de um trabalho insano de cinco horas. — Em geral, não gosto de galinha... Onde aprendeu a preparar este prato?
Respondi a verdade:
— Uma bailarina russa me ensinou, quando veio fazer uma temporada nesta região e nos tornamos amigas. Ela e o marido se hospedaram com Julian e eu. Cozinhávamos juntas sempre que não estávamos dançando, passeando ou fazendo compras. Era preciso quatro galinhas para satisfazer o apetite de quatro pessoas. Agora, você já conhece a feia verdade sobre as bailarinas: em questão de comida, nada temos de delicadas ou elegantes. Isto é, após um espetáculo. Antes de nos apresentarmos no palco, temos que comer muito pouco.
Ele sorriu, debruçando-se sobre a pequena mesa console. A luz das velas refletia-se em seus olhos, fazendo-os brilhar diabolicamente.
— Cathy, diga-me francamente por que motivo veio morar nesta cidadezinha caipira e está tão decidida a ter-me como amante?
— Não comece a imaginar coisa, homem convencido — repliquei no meu tom mais altaneiro.
Imaginava-me muito bem sucedida em aparentar frieza exterior quando, interiormente, sentia um emaranhado de emoções conflitantes. Era como o nervosismo de uma bailarina esperando nas coxias o momento de enfrentar o público numa noite de estréia. E aquela seria a apresentação mais importante da minha vida. Então, como num passe de mágica, senti-me no palco. Não precisei pensar em como deveria agir ou no que precisava dizer para encantá-lo e conquistá-lo para sempre. O roteiro fora escrito há muitos anos, quando eu ainda era uma menina-moça de quinze anos, trancada num quarto. Sim, Mamãe, chegou a hora de iniciar o primeiro ato! Uma peça escrita com perícia por um autor que conhecia Bart muito bem, por causa das respostas que ele dera a tantas perguntas. Como poderia eu fracassar?
Após o jantar, desafiei Bart para uma partida de xadrez e ele aceitou. Apressei-me em trazer o tabuleiro tão logo terminei de tirar a mesa e empilhar a louça na pia. Começamos a arrumar os dois exércitos de guerreiros medievais.
— Exatamente o motivo pelo qual vim aqui: jogar xadrez! — exclamou Bart, lançando-me um olhar duro. — Tomei banho, fiz a barba, vesti meu melhor terno... para jogar xadrez!
Em seguida, exibiu um sorriso atraente, devastador.
— Se eu ganhar... qual a recompensa?
— Uma segunda partida.
— Quando eu ganhar a segunda partida... qual será a recompensa?
— Se você ganhar duas partidas, jogaremos a “negra”. E não fique aí, sorrindo com tanta confiança. Quem me ensinou a jogar foi um mestre.
Chris, é claro.
— Depois que eu ganhar a “negra”... qual a recompensa? — insistiu Bart.
— Poderá voltar para casa e dormir muito satisfeito consigo mesmo.
Com estudada deliberação, ele pegou o tabuleiro e o colocou em cima da geladeira, tendo o cuidado de equilibrar as peças esculpidas em marfim. Tomando-me pela mão, levou-me à sala de visitas.
— Ligue a música, bailarina — disse baixinho. — Vamos dançar. Nada de passos complicados. Alguma coisa fácil e romântica.
Eu só conseguia ouvir música popular no rádio do carro, para alegrar uma viagem longa e solitária; contudo, quando se tratava de gastar meu dinheiro com discos, só comprava música clássica ou de balé. Naquele dia, porém, comprara especialmente um disco intitulado “A Noite Foi Feita para os Namorados”. Enquanto dançávamos na obscuridade da sala de visitas iluminada apenas pelo fogo da lareira, lembrei-me do sótão empoeirado e de Chris.
— Por que está chorando, Cathy? — indagou Bart suavemente.
Então, fez-me virar a cabeça, de modo que ficou com o rosto molhado por minhas lágrimas.
— Não sei... — solucei.
E, realmente, não sabia...
— Claro que sabe — replicou Bart, roçando o rosto escanhoado no meu, enquanto continuávamos dançando. — Você constitui uma mescla que me deixa intrigado: um pouco de criança, um pouco de mulher sedutora, um pouco de anjo.
Soltei um riso curto e amargo.
— Isso é o que todos os homens gostam de pensar a respeito das mulheres. Garotinhas de quem eles precisam cuidar, quando sei que, na verdade, é o sexo masculino que é mais menino que adulto.
— Então, diga “alô” ao primeiro homem adulto em sua vida.
— Você não é o primeiro homem arrogante e convencido que encontrei.
— Mas serei o último e o mais importante; aquele que você jamais esquecerá.
Oh! Chris estava certo: com Bart, eu fora além de minhas possibilidades.
— Cathy, julga realmente que conseguiria chantagear minha mulher?
— Não, mas resolvi tentar. Sou idiota! Espero demais e, depois, fico furiosa porque nada acontece do modo que planejei. Quando eu era jovem, cheia de esperanças e aspirações, não imaginava que me magoaria com tanta freqüência. Creio que me tornarei empedernida e deixarei de magoar-me; então minha frágil proteção se esfacela e, mais uma vez, simbolicamente, meu sangue escorre com as lágrimas que derramo. Torno a recompor-me, prossigo, convenço-me de que existe uma razão para tudo, que me será revelada em algum ponto de minha vida. E quando consigo alguma coisa que desejo, espero em Deus que dure o bastante para me permitir saber que a possuo, que não sofra ao perdê-la, pois já não acredito que dure muito tempo, pelo menos atualmente. Sou como uma rosca, sempre sendo furada no centro; e vivo à procura do pedaço que ficou faltando. E tudo continua assim, nunca terminando, apenas começando...
— Não está sendo honesta consigo mesma — declarou suavemente Bart. — Sabe melhor que ninguém onde está o pedaço que ficou faltando. Do contrário, eu não estaria aqui, agora.
Sua voz foi tão suave e sedutora que apoiei a cabeça em seu ombro enquanto continuamos a dançar.
— Engana-se, Bart, pois não sei por que motivo você está aqui. Não sei como encher os meus dias. Vivo quando estou dando aulas de balé ou fico na companhia de meu filho. Entretanto, quando ele vai dormir e estou sozinha, não sei o que fazer de mim mesma. Sei que Jory precisa de um pai e quando me recordo do pai dele compreendo que sempre consegui fazer a coisa errada. Li as críticas que falam com tanto entusiasmo de meu potencial como grande bailarina... na minha vida pessoal, porém, só cometi erros que anulam tudo o que realizei profissionalmente.
Parei de mexer os pés e funguei, tentando ocultar o rosto, mas Bart obrigou-me a erguer a cabeça, enxugou-me as lágrimas e ofereceu-me o lenço para assoar o nariz.
Então veio o silêncio. Um prolongado, infindável silêncio. Nossos olhares se encontraram demoradamente e o coração começou a bater-me mais depressa.
— Todos os seus problemas são muito simples, Cathy — começou Bart. — Só precisa de alguém como eu, que necessita de alguém como você. Se Jory precisa de um pai, eu necessito de um filho. Está vendo como todas as coisas complicadas podem resolver-se com facilidade?
Com facilidade demais, refleti, quando ele era casado e eu possuía uma dose suficiente de cinismo e discernimento para saber que ele não poderia gostar o bastante de mim.
— Você tem uma esposa a quem ama — repliquei amargurada.
Afastei-o bruscamente de mim. Não desejava conquistá-lo com tanta facilidade, mas só depois de longas e difíceis batalhas contra minha mãe. E esta não estava presente para tomar conhecimento dos fatos.
— Os homens também mentem — declarou Bart incisivamente, perdendo parte do entusiasmo que lhe faiscara nos olhos. — Tenho uma esposa e, ocasionalmente, dormimos juntos, mas o fogo se apagou. Não a conheço. E não acredito que alguém realmente a conheça. Ela é uma trouxa de segredos, bem amarrada, e não me permite verificar o que há lá dentro. Isso já durou tanto tempo que nem desejo mais ter acesso, agora. Ela que fique com seus segredos e lágrimas, que se morda interiormente com as suas ansiedades, ou seja lá o que a faz acordar no meio da noite para olhar aquele maldito álbum de capa azul! Agora, está com excesso de peso e me escreveu que fez plástica no rosto; afirma que nem a conhecerei quando ela voltar, como se eu realmente a conhecesse!
Entrei em pânico! Ele precisava gostar dela! Como poderia eu desfazer um casamento que já se esfacelava? Tinha necessidade de sentir que conseguira meu intento contra probabilidades esmagadoras!
— Vá para casa! — bradei, empurrando Bart. — Saia de minha casa! Não o conheço bastante para escutar-lhe os problemas pessoais... e não acredito em você! Não confio em você!
Ele riu, zombando de mim, excitado por meus ridículos esforços para empurrá-lo. Sua libido inflamou-se... Chamejava-lhe nos olhos quando me agarrou os antebraços, puxando-me com força de encontro a si.
— Agora pare com isso! Veja de que modo está vestida. Convidou-me para jantar por um motivo. Portanto, aqui estou, disposto e pronto para ser seduzido. Seduziu-me na primeira vez em que a vi e, por Deus, tenho a impressão de conhecê-la a muito mais tempo do que na verdade a conheço. Ninguém joga comigo e interrompe a partida para declarar um empate. Um dos dois ganha o jogo. Entretanto, se formos juntos para a cama, talvez acordemos na manhã seguinte e verifiquemos que saímos ambos vencedores.
As luzes vermelhas de advertência começaram a piscar. Pare! Resista! Lute! Mas não fiz nada disto. Esmurrei-lhe o peito com pequenos punhos ineficazes enquanto ele ria, erguendo-me e carregando-me sobre o ombro. Usou uma das mãos para prender-me as pernas e evitar que esperneasse. Com a mão livre, apagou as luzes. No escuro, enquanto eu ainda lhe esmurrava as costas, carregou-me até meu quarto e jogou-me em cima da colcha que cobria a cama. Lutei para levantar-me, mas ele avançou rápido! Houve uma oportunidade para usar o joelho que eu mantinha preparado. Sentindo que minha agilidade de bailarina poderia derrotá-lo, Bart jogou-se para a frente, pegando-me pela cintura, de modo que rolamos ambos para o chão! Abri a boca para gritar, mas ele a tampou com uma das mãos. Em seguida, prendeu-me os braços com sua força de aço e sentou-se nas pernas que eu utilizava para tentar libertar-me.
— Cathy, minha linda sedutora, teve tanto trabalho! Seduziu-me há muito tempo, bailarina. Agora, será minha até uma semana antes do Natal. Então minha mulher voltará para casa e não precisarei mais de você.
Afastou a mão de minha boca e pensei em gritar. Todavia, limitei-me a vociferar:
— Pelo menos, eu não precisei comprá-lo com os milhões de meu pai!
Aquilo foi a gota que fez o vaso transbordar. Bart esmagou brutalmente os lábios contra os meus antes que me percebesse do que acontecia. Não era exatamente o que eu desejava! Queria tentá-lo, inflamá-lo, obrigá-lo a perseguir-me e, ceder apenas depois de uma longa e árdua caçada a que minha mãe pudesse assistir e sofrer, sabendo que nada poderia dizer em protesto, do contrário eu daria com a língua nos dentes! Não obstante, Bart possuía-me sem usar o coração, de forma tão brutal quanto Julian em seus piores momentos! Agia como um selvagem. Movimentava-se para penetrar-me, até mesmo enquanto suas mãos rasgavam em pedaços meu colante vestido cor-de-rosa. A essa altura, fiquei apenas com a meia-calça, que ele puxou por minhas pernas abaixo, de modo que as sandálias prateadas me saíram dos pés e ficaram presas dentro da peça de roupa.
Com os lábios ainda brutalmente espremidos contra os meus, Bart guiou-me a mão até o fecho de suas calças, apertando-me os dedos até estalarem. Ou eu lhe abria o fecho ou ele me quebrava os dedos! Jamais entenderei como ele conseguiu livrar-se de suas roupas ao mesmo tempo em que me prendia, nua, sob o peso de seu corpo. Quando ficou despido, usando apenas as meias, continuei a debater-me, retorcer-me, dar-lhe cabeçadas e tentando arranhar ou morder, mas ele me beijava, acariciava, explorava-me o corpo. Por várias vezes, tive oportunidade de gritar, mas também ofegava, forçando o corpo para cima a fim de livrar-me. Contudo, Bart interpretou o movimento como um arquear convidativo de minha espinha. Penetrou-me, satisfez-se com demasiada rapidez e afastou-se antes que eu tivesse algum prazer!
— Suma daqui!— berrei. — Vou chamar a polícia! Mandarei prendê-lo, sob acusação de agressão e estupro!
Bart riu desdenhosamente, deu-me um beliscão brincalhão no queixo e depois colocou-se de pé para vestir-se.
— Oh! — disse, zombeteiro, imitando minha voz. — Estou tremendo de medo!
Em seguida, assumiu uma atitude séria.
— Não se sente feliz, não é mesmo? A coisa não funcionou como você queria. Não faz mal, porém; estarei de volta amanhã à noite e então talvez você consiga agradar-me o suficiente para que eu resolva demorar o bastante para satisfazê-la.
— Tenho uma arma! — (era mentira). — Se você ousar apresentar-se outra vez nesta casa, é um homem morto! Aliás, nem mesmo é um homem; não passa de um brutamontes, mais animal que humano!
— Minha esposa diz freqüentemente o mesmo — respondeu ele, com ar indiferente, fechando desavergonhadamente a braguilha, sem ter a decência de ao menos virar-se de costas para mim. — Mas ela gosta, exatamente como você gostou. Amanhã, prepare o bife à Wellington com uma salada mista; e mousse de chocolate para sobremesa. Se me der muitas calorias, poderei queimá-las da maneira mais agradável possível e não me refiro a correr pelos bosques...
Sorriu, bateu-me uma continência, deu uma perfeita meia-volta ao estilo militar e depois parou junto à porta. Sentei-me no chão e procurei cobrir os seios com o que restava de meu vestido rasgado.
— Amanhã, à mesma hora. E passarei a noite aqui... isto é, se você me tratar bem.
Saiu, batendo a porta da frente com força. Ao diabo com ele! Comecei a chorar, mas não foi por pena de mim. Era uma frustração tão intensa que eu seria capaz de esquartejar Bart aos pouquinhos! Bife à Wellington! Eu temperaria a carne com arsênico!
Um som leve e tímido veio do lado de fora da porta do quarto.
— Mamãe... estou com medo... Você está chorando, Mamãe?
Vesti rapidamente um roupão e mandei Jory entrar, aninhando-o em meus braços.
— Querido... querido, Mamãe está bem. Você teve um pesadelo. Mamãe não está chorando... veja só!
Eu enxugara as lágrimas, pois iria à forra!
Três dúzias de rosas vermelhas chegaram quando Jory e eu tomávamos o café da manhã. Do tipo de talo comprido, vinham numa embalagem da loja de flores. Um cartãozinho dizia:
“Envio-lhe um grande buquê de rosas: Uma para cada noite em que será dona de meu coração”.
Sem assinatura. E que diabo faria eu com três dúzias de rosas numa casa tão pequena que parecia feita para bonecas? Não podia enviá-las a uma enfermaria infantil, pois o hospital mais próximo ficava a muitos quilômetros de distância. Jory tomou a decisão por mim:
— Oh! Mamãe, que beleza! Rosas do Tio Paul!
Por causa de Jory, fiquei com as rosas em vez de jogá-las fora. Arrumei-as em muitas jarras que espalhei pela casa inteira. Jory adorou; quando o levei comigo para a escola de balé, fez questão de dizer a todos os meus alunos que sua casa estava cheia de rosas até mesmo no banheiro.
Depois do almoço, levei Jory de carro à escola maternal que ele tanto adorava. Era um estabelecimento que usava o método Montessori, inspirando-o a querer aprender através de apelos aos seus sentidos. Já era capaz de escrever o próprio nome em letras de forma e tinha apenas três anos! Eu dizia com meus botões que Jory era como Chris: bonito, de uma inteligência brilhante, cheio de talento. Oh! O meu Jory tinha tudo, menos um pai. Seus brilhantes olhos castanhos irradiavam a inteligência e rapidez de raciocínio de alguém que teria toda uma vida de curiosidade a respeito de tudo.
— Jory, eu o amo.
— Eu sei, Mamãe — respondeu ele, acenando quando me afastei no carro.
Fui esperá-lo à saída da escola. Jory tinha o rostinho corado e uma expressão perturbada.
— Mamãe — disse ele, logo que se acomodou a meu lado no carro. — Johnny Stoneman contou que a mãe dele lhe bateu quando ele pegou nela... aí — apontou timidamente para meu seio. — Você não bate quando pego aí.
— Mas você não me pega aqui desde que era bebê e eu o amamentei durante algum tempo.
— Você me batia, naquela época? — indagou ele, parecendo deveras preocupado.
— Não, claro que não. Os bebês costumam mamar nos seios das mães... e eu jamais bateria em você por tocar-me aqui... Portanto, se quer tentar, fique à vontade: vá em frente e pegue.
Jory esticou a mãozinha, hesitante, estudando-me o rosto para verificar se eu ficaria chocada. Oh, como as crianças aprendem depressa os tabus! E quando me tocou o seio sem ser atingido por um raio lançado dos céus, Jory sorriu, muito aliviado.
— Oh, apenas um lugar macio!
Fizera uma descoberta agradável e abraçou-me o pescoço.
— Eu também a amo, Mamãe. Porque você me ama mesmo quando sou mau.
— Eu sempre o amarei, Jory. E se às vezes você for mau, tentarei compreender.
Sim, eu não seria como a avó ou minha mãe. Seria a mãe perfeita e, algum dia, Jory teria também um pai. Como se explicava que crianças, ainda tão pequenas, já falassem em pecado e apanhassem por tocar as próprias mães? Seria por estarem numa região muito elevada, mais perto de Deus que o resto do mundo? Então, todos viviam cheios de medo, sob a influência de Deus, bancando os santinhos do pau oco enquanto cometiam todos os tipos possíveis de pecados? Honra teu pai e tua mãe. Faze com os outros o que farias contigo. Olho por olho... Sim... olho por olho, eis o motivo pelo qual eu ali estava.
A caminho do chalé, parei no posto dos correios para comprar selos e deixei Jory cochilando no banco dianteiro do carro. Ele estava na agência postal, cujas dimensões não excediam as de minha sala de visitas, e também comprava selos. Exibiu-me um sorriso encantador, como se nada desagradável tivesse ocorrido entre nós na noite anterior. Atreveu-se até mesmo a acompanhar-me ao carro, a fim de indagar se eu gostara das rosas.
— Não gosto do seu tipo de rosas — repliquei rispidamente.
Em seguida, entrei pudicamente no carro e bati-lhe a porta na cara. Parti, deixando-o a observar-me, parecendo um tanto triste e desapontado.
Às cinco e meia, um mensageiro especial veio ao chalé entregar um pequeno pacote. A encomenda era registrada, de modo que precisei assinar um recibo. O pacote continha uma caixa, dentro da qual havia outra caixa menor. No interior desta, um estojo de jóias forrado por fora de veludo. Apressei-me a abri-lo sob a atenta observação de Jory, cujos olhos estavam esbugalhados. Sobre o fundo de veludo negro estava uma rosa feita de inúmeros brilhantes. O bilhete no cartão dizia: “Talvez este tipo de rosas lhe agrade mais”. Larguei a jóia de lado como uma quinquilharia adquirida com o dinheiro dela; portanto, não constituía um presente dele. Nem as rosas naturais.
Bart teve a ousadia de vir naquela noite, às sete e meia, como prometera. Não obstante, convidei-o a entrar e conduzi-o, calada, à mesa do jantar. Nada de coquetéis ou conversas amáveis. A mesa fora posta com esmero ainda maior que na véspera. Eu abrira alguns caixotes e desempacotara algumas de minhas coisas, de modo que sobre a mesa estavam minha melhor toalha e guardanapos de renda, bem como travessas de prata. Nenhum de nós dois dissera uma palavra. Eu reunira todas as rosas que recebera pela manhã; agora, estavam na caixa ao lado do prato dele. No prato vazio, o estojo de veludo contendo o broche de brilhantes em forma de uma rosa. Sentei-me para observar a expressão de Bart, que colocou de lado com a maior naturalidade o estojo da jóia e afastou de si a caixa com as rosas vermelhas. Em seguida, tirou do bolso do paletó um bilhete dobrado, entregando-o a mim. Escrevera com caligrafia grande e ousada: “Amo-a por motivos que não têm princípio ou fim. Amei-a antes mesmo de conhecê-la, portanto meu amor não tem motivos ou intenções. Mande-me embora e obedecerei. Saiba porém, antes de mandar-me embora, que relembrarei pelo resto da vida o amor que deveria existir entre nós. E quando estiver rígido e frio numa sepultura, amá-la-ei ainda mais depois de morto”.
Ergui a cabeça para fitá-lo nos olhos pela primeira vez desde que ele chegara.
— Sua poesia tem algo que me é familiar, mas com um toque um pouco estranho.
— Eu a compus há apenas alguns minutos... como é possível que lhe pareça familiar? — disse ele, estendendo a mão para pegar a tampa de prata que, ostensivamente, ocultava o filé à Wellington. — Preveni-a de que sou advogado e não poeta, o que explica o toque um tanto estranho. Poesia não foi minha matéria predileta na escola.
— Isso é evidente — repliquei, muito interessada em sua expressão facial. — Elizabeth Barrett Browning é ótima poetisa, mas certamente você não o é.
— Fiz o possível — admitiu ele com um sorriso travesso, fitando-me os olhos com ar desafiador, antes de voltar a atenção para a grande travessa de prata que continha apenas um cachorro-quente com um pouco de ervilhas em lata frias.
A descrença em seu olhar, sua expressão de ter sofrido um grande choque e ofensa, o ar de desapontamento, tudo isso me causou tanta satisfação que quase cheguei a gostar dele naquele instante.
— Agora você está vendo o cardápio predileto de Jory — declarei em tom de gozação. — É exatamente o mesmo que comemos no jantar desta noite e, desde que suficientemente bom para nós, guardei um pouco para você. E levando em consideração que já jantei, tudo é seu. Sirva-se à vontade.
Carrancudo, Bart lançou-me um olhar duro e faiscante; então deu uma violenta dentada no cachorro-quente, que eu tinha certeza de estar tão frio quanto as ervilhas. Contudo, Bart comeu tudo e tomou seu copo de leite. Como sobremesa, servi-lhe biscoitinhos com formato de animais. Primeiro ele olhou para a caixa com outra expressão de espanto e incredulidade; depois, abriu-a com um puxão, escolheu um biscoito com forma de leão e arrancou-lhe a cabeça numa única dentada. Só quando terminou de comer todos os biscoitos da caixa e catar cada farelo, incomodou-se em me olhar com tanta desaprovação que eu deveria encolher-me até ficar do tamanho de uma formiga.
— Presumo que seja uma dessas desprezíveis mulheres liberadas, que se recusam a fazer qualquer coisa capaz de agradar um homem!
— Engana-se. Sou liberada apenas em relação a alguns homens. Existem outros a quem sou capaz de adorar, idolatrar e servir como uma escrava.
— Você me obrigou a fazer o que fiz! — protestou ele, eloqüente. — Acha que planejei tudo daquela maneira? Queria que tivéssemos um relacionamento na base da igualdade. Por que usou aquele tipo de vestido?
— É o tipo preferido por todos os homens chauvinistas!
— Não sou chauvinista e detesto aquele tipo de vestido!
— Gosta mais do que estou usando agora?
Empertiguei-me na cadeira a fim de permitir-lhe ver melhor o velho suéter largo que eu usava com calças jeans desbotadas, tênis sujos, os cabelos puxados para trás e amarrados num coque à moda antiga. Eu soltara propositalmente algumas mechas compridas, deixando-as cair ao longo do rosto, desalinhadas, a fim de tornar-me mais atraente. A ausência de maquilagem embelezava-me o rosto. Bart estava trajado com extrema elegância.
— Ao menos, parece-me honesta e disposta a permitir-me tomar a iniciativa. Se existe algo que desprezo são mulheres que atacam os homens, como você fez ontem. Esperava tudo de você, menos aquela espécie de vestido colante que mostrava tudo, roubando-me a sensação de descobrir por mim mesmo.
Franzindo o cenho, murmurou:
— De um maldito vestido vermelho de prostituta a jeans desbotadas... Em vinte e quatro horas, ela se transformara numa colegial adolescente!
— Não era vermelho, mas cor-de-rosa! Além disso, Bart, homens fortes como você sempre adoram mulheres fracas, passivas e estúpidas, porque eles próprios são tímidos, medrosos e temem uma mulher agressiva!
— Não sou tímido, medroso, ou coisa nenhuma semelhante, mas um homem que gosta de sentir-se másculo e não se deixa usar pelas mulheres. Quanto às mulheres passivas, desprezo-as tanto quanto as agressivas. Simplesmente não me agrada a sensação de ser vítima de uma caçadora que me atrai para uma armadilha. Que diabo está procurando fazer comigo? Envio-lhe rosas, jóias, poemas imitados e você nem mesmo penteia os cabelos ou passa um pouco de pó-de-arroz no rosto!
— Você me está vendo como sou ao natural. E agora que já viu, pode ir embora — repliquei, erguendo-me da mesa, caminhando até a porta de entrada e abrindo-a para ele. — Não servimos um para o outro. Volte para sua mulher. Ela que fique com você, pois eu não o quero.
Bart veio depressa em direção à porta, como se pretendesse sair. Então, tomou-me nos braços e fechou a porta com o pé.
— Eu a amo. Deus é testemunha de que tenho a impressão de sempre a ter amado.
Fitei-lhe o rosto, não acreditando em suas palavras, mesmo quando ele retirou os grampos que me prendiam o cabelo, deixando-o cair naturalmente. Por força de um velho hábito, sacudi a cabeça, balançando-os para que se ajeitassem sozinhos. Com um leve sorriso, Bart fez-me erguer o rosto para o seu.
— Permite-me beijar-lhe os lábios naturais? São muito lindos.
Sem aguardar a permissão, roçou de leve os lábios nos meus. Oh!... que sensação me provocou aquele beijo leve como uma pluma! Por que todos os homens não entendiam que aquele era o modo certo de começar? Que mulher desejaria ser devorada viva, sufocada por uma língua insistente? Eu não; meu desejo era ser tocada como um violino, dedilhada em pianíssimo em andamento largo, depois em legato, passando a um crescendo. Desejava encaminhar-me deleitada às alturas do êxtase que só poderiam ser alcançadas por mim ao escutar as palavras certas e receber o tipo adequado de beijos antes que as mãos dele começassem a agir. Se Bart fizera muito pouco por mim na véspera, esta noite pôs em prática toda a sua perícia. Desta feita, levou-me às estrelas, onde ambos explodimos e continuamos muito agarrados um ao outro, tornando a explodir mais uma e, ainda, outra vez. Bart tinha o corpo inteiro cabeludo. Julian quase não tinha cabelos no corpo, excetuando uma linha fina que lhe subia até o umbigo. E Julian nunca me beijara os pés, que agora cheiravam a rosas por causa do prolongado banho de imersão perfumado que eu tomara antes de vestir as velhas roupas de trabalho. Bart beijou-me os artelhos, um por um, antes de começar a subir vagarosamente. Senti-me como se a avó nos observasse, as chamas em seus duros olhos cinzentos condenando-nos eternamente ao inferno. Desliguei a mente, esquecendo-me dela e entregando todos os meus sentidos àquele homem que, agora, me tratava como um verdadeiro amante.
Contudo, eu sabia que ele não me amava. Bart se utilizava de mim como substituta de sua esposa; quando ela regressasse, eu nunca mais o veria. Eu sabia, tinha certeza e, não obstante, recebi e dei até adormecermos abraçados. Quando dormi sonhei com Julian, que estava no interior da caixinha de música que meu pai me dera de presente quando eu tinha apenas seis anos. Girava sem parar, acusando-me com os olhos negros, Então deixou crescer o bigode e transformou-se em Paul, que apenas parecia muito triste. Corri para libertá-lo da morte numa caixinha de música que se tornava um túmulo, então vi Chris no interior da caixinha, os olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o peito... morto. Chris! Acordei e verifiquei que Bart se fora. O travesseiro estava molhado de lágrimas. Mamãe, por que você começou isto? Por quê?
Segurando com força a mão de meu filhinho, saí com ele para o ar frio da manhã, a caminho do trabalho. De leve, a grande distância, escutei alguém chamando por mim; com a voz, vinha o aroma de rosas naturais. Por que você não vem, Paul, e me salva de mim mesma? Por que só me chama no pensamento? O primeiro ato terminara. O segundo começaria quando minha mãe soubesse que eu esperava um filho de Bart. Além disso, havia a avó, que também tinha que pagar. E quando ergui os olhos, tive a impressão de que as montanhas se curvavam para cima num sorriso zombeteiro e satisfeito. Finalmente eu lhes atendera o chamado. Escutara-lhes o lamento vingativo e atormentado.
Revisitando a avó
Foxworth Hall situava-se no final de um cul-de-sac, a maior e mais impressionante dentre muitas residências enormes e bonitas, a única que ficava bem alto na encosta da montanha, dominando todas as demais como um castelo medieval. Dias a fio eu ia observá-la, arquitetando meus planos.
Bart e eu não tínhamos necessidade de esgueirar-nos furtivamente para nossos encontros. Nossas residências eram muito afastadas entre si e ninguém o avistaria se ele saísse de casa pela porta dos fundos, que se abria para um jardim cercado. Atrás do jardim, existia uma alameda ladeada por arbustos e ocultada por muitas árvores. Ocasionalmente, encontrávamo-nos numa cidade distante e nosso amor no quarto de um motel era doce, selvagem, terno, erótico e totalmente satisfatório. Não obstante, gelei quando ele anunciou um dia, na hora do almoço:
— Ela telefonou hoje de manhã, Cathy. Voltará antes do Natal.
— Ótimo! — respondi.
E continuei a comer minha salada, na expectativa do Bife à Wellington que logo seria trazido. Bart franziu a testa e o garfo cheio de salada hesitou um momento a caminho de sua boca.
— Significa que não poderemos estar juntos com tanta freqüência. Não se incomoda com isso?
— Daremos um jeito.
— Você é mesmo uma mulher incrível!
— Não faça tempestade num copo d’água. Todas as mulheres são monstros para os homens e, talvez, para elas mesmas. Somos nossas piores inimigas. Você não tem necessidade de divorciar-se dela e abrir mão da oportunidade de herdar-lhe a fortuna, embora ela talvez viva mais tempo que você e ainda tenha outra chance de comprar mais um marido jovem.
— Às vezes, você é tão megera quanto ela! Ela não me comprou! Eu a amava! E ela me amava! Eu era louco por ela; tão louco quanto sou agora por você. Todavia, ela mudou. Quando a conheci, era uma mulher delicada, encantadora, tudo que um homem pode desejar numa mulher e numa esposa, mas mudou.
Enfiou raivosamente na boca o garfo com a salada, mastigando com violência. Depois, acrescentou:
— Sempre foi um mistério para mim, como você.
— Bart, meu amor — respondi. — Em breve, todas as muralhas misteriosas ruirão.
Ele prosseguiu, sem dar atenção à minha interrupção:
— Aquele pai dela também era um mistério; ao vê-lo, tinha-se a impressão de um excelente cavalheiro idoso, mas sob a aparência havia um coração de pedra. Julguei que eu fosse seu único advogado, mas ele possuía outros seis, cada um de nós encarregado de uma função específica. A minha era redigir seus testamentos. Alterou-os dúzias de vezes, incluindo um membro da família, retirando outro, adicionando codicilos como um possesso, embora conservasse a sanidade mental até morrer. O último codicilo foi o pior de todos.
Claro: nada de filhos para Bartholomew Winslow. Nunca.
— Então você realmente trabalhava como advogado?
Ele sorriu com amargura antes de replicar:
— Naturalmente que era advogado praticante. E agora sou novamente. Um homem precisa fazer algo útil, que tenha um significado. Quantas vezes alguém consegue viajar pela Europa antes de enjoar disto? Faz-se sempre a mesma coisa, encontra-se sempre a mesma pessoa. Ri-se sempre das mesmas piadas. O jet set, a “gente charmosa”, que pilhéria! O dinheiro em grandes quantidades pode comprar tudo, menos saúde. Portanto, aquela gente não tem mais sonhos a comprar, perde as inspirações, termina simplesmente entediada.
— Por que não se divorcia e faz algo útil na vida?
— Ela me ama.
Foi esta a resposta clara, sucinta, delicada. Ele ficava porque ela o amava, obrigando-o a permanecer.
— Logo que me conheceu, você disse que a amava. Agora, afirma o contrário. Qual é a verdade?
Bart refletiu durante longo tempo.
— Falando francamente, bailarina, sou ambivalente e tenho ressentimentos. Eu a amo e a odeio. Portanto, faça o favor de ocultar sua faceta de megera, que me faz lembrar dela, e não tente fazer comigo o que ela fez. Você está erguendo um muro entre nós porque sabe algo que eu ignoro. Não me apaixono com facilidade e gostaria de não amar você.
De repente, Bart pareceu-me um menino tristonho, cujo cãozinho de estimação o tivesse traído e a vida nunca mais voltasse a ser agradável. Tocada, atrevi-me a dizer:
— Bart, juro-lhe que chegará o dia em que você conhecerá todos os meus segredos e os dela também; até lá, porém, diga que me ama, mesmo que não seja verdade, porque não conseguirei ter prazer de estar a seu lado se não sentir que você me ama pelo menos um pouquinho.
— Um pouquinho? Tenho a impressão de tê-la amado minha vida inteira. Mesmo quando a beijei pela primeira vez, pareceu-me que já a beijara antes. Por quê?
— Carma.
Sorri ante sua expressão de espanto.
Havia algo que eu precisava fazer antes que minha mãe voltasse para casa. Um dia, quando não tive que dar aulas de balé e Jory estava na escola maternal, esgueirei-me até Foxworth Hall, utilizando-me de todos os caminhos ocultos. Chegando à porta dos fundos, usei a velha chave de madeira que Chris modelara tantos anos atrás. Era quinta-feira. Todos os criados estariam na cidade, pois era o dia de folga. Já que Bart relatara-me detalhadamente sua rotina de vida, revelara-me simultaneamente muita coisa sobre a vida cotidiana da avó. Eu sabia que àquela hora a enfermeira estaria repousando, aproveitando-se do período em que a avó cochilava na parte da tarde, usando o pequeno quarto nos fundos da biblioteca; o mesmo quarto onde nosso avô ficara confinado em seus últimos dias de vida enquanto nós quatro, ainda crianças, aguardávamos que ele passasse deste mundo para o outro, o que significaria sermos libertados de nossa prisão no sótão.
Atravessei todos os grandiosos salões luxuosamente decorados, observando avidamente os belos móveis antigos, e vi as duas escadas curvas que subiam do vestíbulo cujas dimensões permitiam que fosse utilizado como salão de baile. Onde as duas escadas curvas se encontravam, havia um balcão no segundo pavimento, do qual partia outro lance de degraus que levava diretamente ao sótão. Avistei o maciço móvel em que Chris e eu nos escondêramos para assistirmos a uma festa de Natal no andar térreo. Fazia muitos anos, mas minha máquina do tempo recuou depressa: voltei a ter apenas doze anos, uma menina assustada, com medo que a gigantesca mansão me engolisse caso eu me atrevesse a movimentar-me ou a falar mais alto que um leve sussurro. Mais uma vez, maravilhei-me com os três enormes lustres de cristal pendentes do teto que ficava a quase quinze metros do piso. E já que este era uma pista de dança feita com mosaicos especiais, tive que ceder ao impulso automático de ensaiar alguns passos de dança, para verificar qual era a sensação.
Continuei a avançar sem pressa, admirando os quadros a óleo, os bustos de mármore, os enormes lampiões, as fabulosas tapeçarias e objetos de arte que só os super ricos, capazes de avareza em pequenas coisas, podiam adquirir. Imaginem só! Minha avó comprando peças de tafetá por preços de atacado, apenas para economizar alguns míseros dólares, quando podiam comprar tudo o que existia de melhor para decorar a casa e possuíam milhões de dólares! Foi fácil encontrar a biblioteca. Lições aprendidas em idade tenra e condições miseráveis não se esquecem com facilidade. Oh! Que biblioteca! A cidade de Clairmont não possuía uma biblioteca com tantos livros bons, raros e bem encadernados! Havia um retrato de Bart sobre a magnífica mesa de trabalho que pertencera a meu avô. Muitos detalhes indicavam que Bart usava freqüentemente a sala como escritório e, também, para fazer companhia à sogra. Seus macios chinelos de couro marrom estavam sob uma confortável poltrona perto da imensa lareira de pedra, cujo aparador tinha pelo menos seis metros de comprimento. Portas duplas envidraçadas se abriam para um terraço de frente para um jardim formal, com uma fonte jorrando água num bebedouro de pássaros formado por degraus de pedra, pelos quais a água escorria aos poucos até um pequeno lago. Um local gostoso e ensolarado onde um inválido poderia sentar-se abrigado contra o vento.
Afinal vi o bastante para satisfazer minha curiosidade alimentada durante anos. Encaminhei-me para a maciça porta na parede dos fundos da biblioteca. Além daquela porta fechada, estava a avó-bruxa. Rápidas lembranças dela passaram-me de relance pela mente. Vi-a mais uma vez como na primeira em que chegamos, erguendo-se sobre nós como uma torre, o corpo grosso, robusto, poderoso, os olhos duros e cruéis que nos estudaram sem o menor vestígio de simpatia ou compaixão para quatro órfãos de pai, que tanto haviam perdido; ela nem mesmo nos dirigiu um sorriso de boas vindas ou acariciou os rostos rechonchudos dos gêmeos, tão lindos aos cinco anos de idade. Vi também a segunda noite, quando a avó obrigou nossa mãe a exibir-nos as costas nuas, marcadas por vergões vermelhos e sangrentos. Antes mesmo de nos mostrar o horrível espetáculo, ela agarrara Carrie pelos cabelos e Cory se jogara contra ela, tentando infligir-lhe alguma dor com o pequeno sapato branco que desferia caneladas e com dentes que procuravam mordê-la. Mas a avó o jogara longe com um único e poderoso tapa. Tudo porque o menino tentara defender a sua querida irmã gêmea, que chorava e berrava.
Então, revi-me diante do espelho, totalmente despida, e o castigo aplicado pela avó fora o mais impiedoso e desalmado: tentar despojar-me daquilo que eu mais admirava, os meus cabelos. Chris passara um dia inteiro lutando para livrar-me do piche que ela derramara em meus cabelos e evitar que eu fosse obrigada a cortá-los. Em seguida, duas semanas inteiras sem alimentos ou leite! Sim! A avó merecia rever-me! Exatamente como eu jurara, no dia em que ela me surrara, que ainda surgiria uma ocasião, no futuro, em que ela fosse a indefesa e eu a que empunhava a chibata e estaria em condições de privá-la de alimentos! Oh, que doce ironia! Ela se deleitara ao ver o marido morto e agora jazia na mesma cama que ele, ainda mais indefesa e sozinha!
Despi meu pesado capote de inverno, sentei-me para descalçar as botas e, depois, calcei ás sapatilhas de cetim branco. Usava malha branca, o bastante transparente para mostrar minha pele rosada. Soltei os cabelos, que me caíram ao longo das costas numa luxuriante cascata de ondas douradas. Agora ela admiraria e invejaria os cabelos que o piche, afinal, não conseguira estragar. Apronte-se, Avó! Aqui vou eu!
Silenciosamente, com grande cautela, aproximei-me da porta. Então abri-a com todo o cuidado. A avó jazia, de olhos fechados, na alta cama de hospital. O sol que penetrava pela janela incidia-lhe no rosado e brilhante couro cabeludo, revelando que ela era quase totalmente calva. Oh, como parecia envelhecida! Magra, abatida, tão menor que antes! Onde estava a mulher gigantesca que eu conhecera? Por que não usava um vestido de tafetá cinzento e proferia ameaças? Por que tinha que me causar pena? Endureci o coração, expulsando dele a piedade, pois ela jamais tivera pena de nós. Aparentemente, estava à beira do sono; entretanto, quando a porta se abriu, seus olhos também se abriram lentamente. Então, esbugalharam-se. A avó me reconhecera. Seus lábios finos e enrugados estremeceram. Estava com medo! Glória, aleluia! Minha vez chegara! Não obstante, parei junto à porta, abismada. Viera exercer vingança, mas o tempo me pregara uma peça! Por que a avó não era o monstro de que eu lembrava? Eu a queria como fora antes, não o que era agora: uma velha doente e calva, com o couro cabeludo à mostra, os poucos cabelos que ainda lhe restavam puxados para cima e atados no topo da cabeça com um laço de cetim cor-de-rosa. O laço dava-lhe uma aparência simultânea de ogro e criança; mesmo reunidos como estavam, os fios de cabelo restantes formavam uma mecha mais fina que meu dedo mínimo; apenas um pequeno tufo, como os pelos de um gasto pincel para pintura em aquarela.
Outrora, a avó tinha um metro e oitenta de estatura, pesava mais de cem quilos e seus enormes seios pareciam montes de concreto. Agora aqueles mesmos seios pendiam como meias vazias e murchas, chegando-lhe ao abdômen inchado. Os braços pareciam secos como gravetos velhos, as mãos esqueléticas com os tendões aparecendo, os dedos ossudos e nodosos. Ainda assim, enquanto nos encarávamos em total silêncio e o pequeno despertador marcava com seu tique-taque o correr dos segundos, a velha e desprezível personalidade da avó inflamou-se para revelar-me sua fúria. Tentou falar para expulsar-me. Se pudesse, ela gritaria: “Saia de minha casa, filha do Demônio! Fora, fora! Fora, filha do Demônio!” Mas ela não conseguiu pronunciar uma só palavra. Eu, pelo contrário, pude cumprimentá-la com amabilidade:
— Boa-tarde, querida Avó. Que prazer tenho em revê-la! Lembra-se de mim? Sou Cathy, um dos netos que você ajudou a ocultar e todos os dias nos levava comida numa cesta de piquenique. Chegava lá todos os dias, às seis e meia da manhã, com uma enorme garrafa térmica de leite e outra menor com sopa morna, e sopa de lata, ainda por cima. Por que não nos levou ao menos uma vez um pouco de sopa quente? Era de propósito que só esquentava a sopa até ficar morna?
Entrei no quarto e fechei a porta. Só então ela viu a vara de salgueiro que eu tivera o cuidado de esconder às costas. Com a maior naturalidade, bati com a vara na palma da outra mão, dizendo baixinho:
— Avó, lembra-se do dia em que surrou nossa mãe? E de como a obrigou a despir-se diante do pai e deu-lhe uma surra de vara? E ela adulta, mãe de quatro filhos... Um ato vergonhoso, maldoso, pecaminoso, não concorda?
Os olhos aterrorizados da velha estavam grudados à vara. Travava-se em seu cérebro uma luta terrível... e eu me sentia satisfeita, muito satisfeita, por Bart haver-me informado de que ela não estava senil. Olhos cinzentos, desbotados e úmidos, avermelhados e cercados por pés-de-galinha, parecendo cortes que jamais cicatrizavam nem sangravam. Lábios finos e retorcidos, agora murchos e miúdos, semelhantes a uma pequena casa de botão da qual se irradiavam profundas rugas sob o nariz comprido e adunco, numa teia de linhas que se cruzavam. E, por incrível que pareça, a gola alta e severa da camisola amarela de algodão estava fechada com o mesmo broche de brilhantes! Eu jamais vira a avó sem o broche na gola de seus vestidos de tafetá cinzento, com golas debruadas de crochê branco.
Prossegui num tom de cântico religioso:
— Avó, lembra-se dos gêmeos? As queridas crianças de apenas cinco anos que você atraiu a esta casa e nunca lhes pronunciou os nomes enquanto aqui permaneceram? Nem os deles, nem os nossos. Cory morreu e você sabe; por acaso, porém, minha mãe não lhe contou a respeito de Carrie? Pois Carrie também morreu. Não cresceu até a altura normal porque foi privada de sol e ar livre durante os anos que deles mais necessitava para desenvolver-se de modo saudável. Chris e eu subíamos ao telhado, onde nos sentávamos para tomar sol, mas os gêmeos tinham pavor da altura. Você sabia que eu e Chris saíamos para lá e ficávamos horas seguidas ao sol?... Não; percebo que ainda não sabia disso.
Ela se mexeu um pouco, dando a impressão de querer afundar-se no colchão fino. Deliciei-me observando-lhe o medo; alegrei-me por notar que podia mover-se um pouco. Agora seus olhos eram como os meus tinham sido naquela época remota: vidraças que revelavam todas as emoções e terrores que lhe ferviam no íntimo e ela não podia gritar por socorro! Estava à minha mercê.
— Lembra-se da segunda noite, querida, amável e carinhosa Avó? Você levantou Carrie do chão pelos cabelos, sabendo que aquilo doía. Mesmo assim, foi o que fez. Depois, atirou Cory longe com um tapa, sabendo que aquilo também doía e que ele estava apenas querendo proteger a irmã gêmea. Pobre Carrie, como sofreu por causa de Cory! Jamais se recobrou da morte do irmão; nunca deixou de sentir-lhe a falta. Conheceu um bom rapaz chamado Alex. Apaixonaram-se e iam casar-se, quando ela descobriu que ele pretendia ser pastor protestante. Carrie ficou abalada. Compreenda: você incutiu em nós o medo de gente religiosa. Um medo profundo. No dia em que Alex anunciou a intenção de tornar-se pastor, Carrie mergulhou numa depressão desesperada, pois aprendeu a lição que você nos ensinou tão bem. Você nos convenceu de que ninguém jamais consegue ser bastante perfeito para satisfazer a Deus. Algo adormecido despertou no dia em que Carrie ficou enfraquecida pelo choque, depressão e falta de coragem para prosseguir. Agora, ouça bem o que ela fez por causa de você! Porque você incutiu no seu cérebro infantil a idéia de que ela nascera má e seria pecaminosa por mais que se esforçasse para ser boa! Carrie acreditava em você! Cory morrera. Carrie sabia que ele tinha morrido por causa do arsênico colocado nas roscas açucaradas... Portanto, quando Carrie se sentiu incapaz de enfrentar a vida e encarar todas as pessoas que exigem perfeição, comprou veneno para ratos! E comprou também um pacote de roscas açucaradas, enchendo-as de arsênico do veneno de ratos! Comeu todas as roscas, menos uma e até mesmo esta tinha uma marca de dentada. Agora... afunde-se nesse colchão e tente fugir da culpa que lhe cabe! Você e minha mãe mataram Carrie tanto quanto mataram Cory! Eu a odeio e desprezo, velha!
Não lhe disse que odiava ainda mais minha mãe. A avó jamais gostara de nós; portanto, qualquer coisa que ela nos fizesse já era de se esperar. Nossa mãe, porém, nos dera à luz, cuidara de nós, amara-nos enquanto nosso pai era vivo; era um caso muito diferente: uma verdadeira estória de horror! E sua vez também chegaria!
— Sim, Avó, Carrie também está morta, porque desejava morrer do mesmo modo que ele e encontrá-lo no céu!
Ela apertou as pálpebras e um leve tremor agitou as cobertas. Deleitei-me. Retirei de trás das costas minha caixinha preta contendo longos fios de cabelo de Carrie, que eu levara horas para arrumar e escovar até formarem uma comprida e brilhante mecha dourada. Amarrara uma das pontas com um laço de cetim vermelho e a outra com um laço roxo.
— Veja bem, velha: isto aqui é parte dos cabelos de Carrie. Tenho outra caixa cheia de fios soltos e embaraçados, pois não consigo suportar a idéia de perdê-los. Guardei-os não apenas para mim e Chris, como também para mostrá-los a você e nossa mãe... pois vocês duas mataram Carrie, com tanta certeza quanto mataram Cory!
Oh, eu estava quase louca de ódio! A vingança me brilhava nos olhos, na raiva, fazendo-me tremer as mãos. Revi Carrie em seu leito de morte, envelhecendo, murchando, com os ossos salientes até ficar reduzida a um pequeno esqueleto coberto por pele solta e pálida, tão transparente que permitia ver as veias, e os restos mortais que precisaram ser rapidamente lacrados num caixão metálico para evitar o cheiro de apodrecimento.
Aproximei-me mais da cama e exibi a mecha de cabelos dourados com as fitas de cores berrantes diante dos olhos muito abertos e amedrontados da velha.
— Não são lindos cabelos, velha? Alguma vez teve cabelos tão belos e fartos? Não! Eu sei que não! Nada em você poderia ser lindo algum dia! Nem mesmo em sua juventude! Eis o motivo pelo qual tinha tanto ciúme da madrasta de seu marido — declarei, rindo ao vê-la tentar esquivar-se. — Sim, querida Avó, hoje sei muito mais a seu respeito do que sabia outrora. Seu genro me revelou todos os segredos de família que a esposa lhe contou. A esposa dele: minha mãe. O seu marido, Malcolm, apaixonou-se pela esposa mais moça do pai, dez vezes mais bonita e bondosa do que você! Portanto, quando Alicia teve um filho, você desconfiou que o pai era seu próprio marido e por isso odiava a criança, que veio a ser nosso pai. Por isso mandou buscá-lo, induzindo-o a acreditar que aqui encontraria um bom lar. Educou-o, deu-lhe tudo do melhor, a fim de que ele tomasse o gosto de uma vida boa e rica, desapontando-se ainda mais quando você o enxotasse daqui e não lhe legasse um mísero centavo. Mas, em vez disso, meu pai lhe passou a perna, não foi? Roubou-lhe sua filha única, a quem você também detestava, porque o pai gostava mais dela do que de você. Assim, o meio-tio se casou com a meia-sobrinha. Não obstante, você estava enganada quanto a Malcolm e Alicia, pois a mãe de meu pai desprezava Malcolm! Afastou-o de si repetidas vezes; portanto, o bebê que ela teve não era filho de Malcolm, o seu marido! Embora tivesse sido, se Malcolm conseguisse fazer prevalecer sua vontade!
A avó fitou-me inexpressivamente, como se o passado já não importasse, agora. Só o presente interessava... e a vara em minha mão.
— Agora, velha, vou dizer-lhe uma coisa que você precisa saber: jamais nasceu um homem tão bom como meu pai ou existiu uma mulher tão honrada como a mãe dele. Contudo, não fique aí deitada pensando que herdei alguma das boas qualidades de Alicia ou de meu pai, pois sou igual a você! Desalmada! Nunca esqueço, nunca perdôo! Odeio-a por ter matado Cory e Carrie! Odeio-a por fazer de mim o que sou!
Gritei as últimas frases, descontrolada, esquecendo-me da enfermeira que cochilava no corredor. Tive vontade de obrigar a velha a engolir punhados de arsênico e sentar-me para vê-la morrer e apodrecer diante de meus olhos, como ocorrera com Carrie. Fiz piruetas pelo quarto para aliviar minha tensão e frustrações, erguendo bem as pernas, exibindo o corpo bem conformado e jovem. Depois parei diante da velha e vociferei:
— Durante todos aqueles anos em que nos manteve prisioneiros, você nunca pronunciou nossos nomes, nunca olhou para Chris porque este era a imagem viva de nosso pai e também do seu marido quando jovem, antes de você torná-lo tão mau quanto você mesma. Joga a culpa de tudo que está errado sobre os ombros de seres humanos com almas ruins e ignora a verdade. Dinheiro é o rei que impera nesta casa! É o dinheiro que faz as piores coisas acontecerem! Malcolm casou-se com você por dinheiro e você sabe! E foi a ambição que nos trouxe a esta casa, trancou-nos lá em cima e roubou-nos três anos e quatro meses de nossas vidas, colocando-nos à sua mercê. Contudo, você jamais teve piedade de nós, seus únicos netos. Nunca a emocionamos, não é mesmo? Embora tenhamos tentado, no começo. Lembra-se?
Pulei para cima da cama, batendo nela com a mecha de cabelos de Carrie. Um chicote macio, que não machucava e, mesmo assim, ela fez um esforço para encolher-se. Então, joguei os preciosos cabelos de Carrie na mesinha de cabeceira e brandi a vara diante de seus olhos. Dancei e rodopiei em cima da cama, sobre o corpo rígido da velha, exibindo-lhe minha grande agilidade, meu cabelo comprido e solto abrindo-se num círculo dourado.
— Lembra-se de como castigou nossa mãe antes de passarmos a detestá-la também? É um débito que precisamos liquidar — declarei, postando-me de pernas abertas sobre o corpo escondido pelas cobertas. — Devo-lhe isso, da nuca aos calcanhares, sem falar nas chibatadas que você aplicou em Chris e em mim. Também isso eu lhe devo. E todas as outras coisas, pois trago cada uma delas gravada na lembrança. Não lhe jurei que ainda chegaria o dia em que eu empunharia a vara e haveria na cozinha alimentos que você jamais provaria? Bem... esse dia chegou, Avó!
Os olhos cinzentos afundados no rosto abatido faiscavam de ódio, maliciosos e implacáveis, desafiando-me a agredi-la... desafiando-me.
— O que farei primeiro? — indaguei, como se falasse comigo mesma. — Será a vara ou piche derretido em seu cabelo? Que prefere, velha? Sempre tive a curiosidade de saber onde você conseguiu o piche. Planejou tudo com antecedência e aguardou a oportunidade de usá-lo? Confessarei agora algo que você ignora: Chris nunca me cortou o cabelo todo, mas apenas a franja, a fim de iludi-la e levá-la a pensar que eu tinha raspado completamente a cabeça. Por baixo daquela toalha, enrolada em minha cabeça, estava todo o cabelo comprido que ele salvou. Sim, velha, o amor evitou que meus cabelos fossem cortados. Chris me amava o bastante para passar muitas horas a fio salvando o máximo possível de meu cabelo. Isso é mais amor do que você já conheceu. E de um irmão!
Ela produziu um som estrangulado no fundo da garganta. O quanto desejei que conseguisse falar!
— Querida Avó — provoquei, com as mãos nos quadris, debruçando-me para observá-la melhor — por que não me conta onde arranjou o piche? Não consegui encontrar vestígios. Não havia por perto obras de construção ou reparos de estradas. Como não há no momento. Portanto, creio que serei obrigada a usar cera derretida. Você poderia ter usado cera quente, pois surtiria o mesmo resultado. Não pensou em derreter algumas de suas inúmeras velas? — indaguei com um sorriso que eu esperava parecer ameaçador. — Oh! Querida Avó, como você e eu nos divertiremos! E ninguém saberá, pois você não pode falar nem escrever. Só pode permanecer deitada e sofrer.
Não gostei de mim mesma, do que dizia nem do que fazia ou sentia. Minha consciência pairava perto do teto, observando envergonhada a explosão de fúria que eu constituía metida na justa malha branca de balé. Espantada, sentia piedade daquela velha que já sofrera dois derrames cerebrais; contudo, a mulher em pé sobre a cama era uma segunda versão de mim mesma: uma Foxworth má, violenta e vingativa, com olhos azuis tão frios e duros quanto os cinzentos olhos da velha, estendida a meus pés. De repente, abaixei-me cruelmente, arrancando o cobertor e o lençol que a protegiam, deixando-a descoberta. Ela usava um tipo de camisolão de hospital, aberto apenas nas costas. Um traje esquisito, com o incongruente broche de brilhantes no pescoço. Sem dúvida, o broche seria pregado à roupa com que ela iria para a sepultura.
Nua. Tinha que ficar nua, como obrigara Mamãe, Chris e eu também. Tinha que passar pela humilhação de ficar despida enquanto olhos cheios de desprezo obrigá-la-iam a encolher-se, a tornar-se ainda menor. Sem a menor piedade, agarrei a bainha do ordinário traje de algodão barato e, livre de qualquer escrúpulo, empurrei-o para cima, até as axilas. Tive o cuidado de afastar as dobras amarrotadas que lhe cobriam parcialmente o rosto, pois não queria perder a oportunidade de ver o mais leve sinal de expressão que ela pudesse mostrar. Em seguida, estudei-lhe o corpo com o mesmo ar de zombaria e repulsa que ela imprimira aos olhos maus e lábios finos quando eu tinha apenas quatorze anos e ela me apanhara de surpresa fitando-me no espelho, admirando a beleza de um corpo que eu nunca antes vira despido. O corpo jovem é uma coisa bela... agradável de olhar: os contornos suaves e firmes, a pele imaculada, os músculos ágeis e rijos. Oh, mas a velhice! O que antes foram dois cones de concreto eram agora dois úberes flácidos que caíam até a barriga, os bicos bem embaixo, grandes, escuros, manchados e encaroçados. As veias azuis dos seios destacavam-se como cordas finas sob uma capa transparente. A brancura pastosa da pele era enrugada, marcada pelas estrias da gravidez; uma longa cicatriz do umbigo até o monte de Vênus quase desprovido de pelos revelava que ela fora submetida a uma histerectomia ou a uma cesariana. Uma cicatriz antiga, pálida e mais brilhante que a pele branca, flácida e enrugada que a cercava. As pernas compridas e magras pareciam velhos galhos retorcidos de uma árvore cansada. Suspirei... Algum dia eu ficaria assim?
Impiedosa, sem preocupação com delicadeza, rolei-a de bruços e puxei-a para o meio da cama. Durante o tempo todo, eu tagarelava a respeito dos comentários que Chris e eu trocávamos quanto a ela pregar ou colar a roupa ao corpo e, naturalmente, jamais despir as roupas de baixo a menos que se trancasse num armário com a luz apagada. As costas da velha apresentavam menos desgaste que a frente, embora suas nádegas fossem chatas, flácidas e brancas demais.
— Agora, Avó, vou açoitá-la — declarei em tom inexpressivo, tendo perdido o gosto da vingança. — Há muitos anos prometi que o faria caso tivesse oportunidade e hoje cumprirei a promessa!
Fechando os olhos e rogando a Deus que me perdoasse o que estava prestes a fazer, levantei o braço e depois baixei a vara de salgueiro com toda a força nas nádegas nuas da velha! Ela estremeceu, deixando escapar um som da garganta. Então deu a impressão de mergulhar na inconsciência. Relaxou-se tanto que esvaziou a bexiga. Comecei a chorar, emitindo soluços terríveis ao correr para o banheiro anexo à procura de um pano e sabão. Voltei correndo, com papel higiênico para limpá-la. Em seguida, lavei-a e apliquei uma pomada no feio vergão deixado pela vara. Virei-a na cama, ajeitando o camisolão de modo a cobri-la decentemente. Só então preocupei-me em verificar se estava viva ou morta. Seus olhos cinzentos, abertos, fitavam-me sem expressão, enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto. Depois, lentamente, enquanto eu continuava a soluçar, os olhos dela começaram a brilhar numa muda expressão de triunfo! Sem emitir um som, ela dizia: “Covarde! Eu sabia que você não passava de uma moleirona fraquejante! Falta-lhe decisão, coragem! Mate-me. Vamos, mate-me! Eu a desafio: vamos logo, mate-me de uma vez!”
Pulei da cama e corri para a biblioteca, passando para a primeira sala de visitas que encontrei. Num frenesi de fúria, agarrei o primeiro castiçal ao meu alcance, mas não achei fósforos! Voltei à biblioteca, procurando na mesa de trabalho usada por Bart. Ele fumava; portanto, deveria ter fósforos ou isqueiro. Encontrei fósforos de propaganda distribuídos por uma discoteca local. As velas tinham cor de marfim, distintas e elegantes como a mansão. Agora, os olhos de aço da velha exprimiam terror. Ela queria aquele tufo de cabelos ralos atados com a fita cor-de-rosa. Acendi uma vela, deixei-a queimar um pouco e, depois, segurei-a obliquamente sobre a cabeça da avó, de modo que a cera quente e derretida escorreu, gota a gota, em seu cabelo e couro cabeludo. Deixei cair seis ou sete gotas, antes de não conseguir mais suportar aquilo. Ela estava certa: eu era covarde, não conseguia fazer com ela o que fora feito por ela conosco. Eu era uma Foxworth de pai e mãe; não obstante, Deus alterara o molde e eu não cabia nele.
Apaguei com um sopro a vela cor de marfim e recoloquei-a no castiçal. Só quando cheguei ao salão de bailes lembrei-me da mecha de cabelos de Carrie. Voltei correndo para apanhá-la. Encontrei a avó na mesma posição em que a deixara, só que ela virara a cabeça e duas grandes lágrimas brilhantes apareciam em seus olhos, que fitavam a mecha dos belos cabelos de Carrie. Ah! Agora eu estava realmente vingada!
Bart passava mais tempo em meu pequeno chalé que em sua imensa mansão. Cobria-me de presentes e fazia o mesmo com meu filho. Quando não passava o dia no escritório, que eu desconfiava tratar-se mais de uma fachada para aparentar utilidade do que realmente um escritório de advocacia, ele tomava café da manhã, almoçava e jantava conosco. Minha escola de balé sofria financeiramente o resultado de tais atenções, mas não fazia diferença. Agora eu era uma mulher sustentada, paga para ser amante de Bart.
Jory adorou as botinhas de couro que Bart lhe deu.
— Você é meu papai? — indagou meu filhinho, que completaria quatro anos em fevereiro.
— Não, mas bem gostaria de ser... ou poder ser.
Tão logo Jory saiu para o jardim, pisando com força e fitando os pés, que agora o fascinavam por causa das botas de cowboy, Bart virou-se para mim e se deixou cair fatigadamente numa poltrona.
— Você nem poderia imaginar o que aconteceu lá em casa. Algum sádico idiota derramou cera derretida no cabelo de minha sogra, além de lhe deixar nas nádegas um feio vergão que não cicatriza. A enfermeira não sabe explicar. Interroguei Olívia, a fim de saber se foi alguém que ela conhece, ou algum dos criados, mas ela piscou os olhos duas vezes, querendo dizer não. Piscar uma vez significa sim. Estou furioso! Deve ter sido um dos criados, embora eu não consiga entender por que motivo alguém seria tão cruel a ponto de torturar uma velha indefesa, incapaz de fazer o menor movimento para proteger-se; contudo, Olívia se recusa a confirmar o nome de qualquer pessoa que lhe mencionei. Prometi a Corrine cuidar bem de sua mãe e agora esta tem as nádegas em carne viva, de modo que é obrigada a permanecer deitada de bruços duas a quatro horas por dia e ser virada na cama durante a noite.
— Oh! — exclamei, sentindo-me um pouco doente. — Que horror! Por que a ferida não cicatriza?
— A circulação é deficiente. Teria que ser, não é mesmo, já que ela não pode movimentar-se normalmente?
De repente, Bart exibiu-me um sorriso brilhante, como o sol surgindo após uma tempestade.
— Não se preocupe, querida. O problema não é seu; é meu, e dela, naturalmente.
Estendeu os braços para mim e apressei-me a aninhar-me neles. Bart beijou-me ardentemente antes de carregar-me para o meu quarto. Depositou-me na cama e começou a despir-me.
— Eu seria capaz de torcer o pescoço do maldito que fez aquilo com Olívia! — exclamou.
Permanecemos abraçados após fazermos amor, escutando o vento mesclar-se ao riso agudo de Jory que corria atrás do poodle de brinquedo que Bart lhe dera. Os primeiros flocos de neve começavam a cair. Eu sabia que teria que levantar-me logo, para que Jory não entrasse de repente e nos surpreendesse na cama, só para informar-nos de que estava nevando. O menino não se recordava de ter visto neve anteriormente e mal o solo ficasse recoberto de branco, desejaria construir um boneco de neve. Primeiro suspirei, depois beijei Bart e, afinal, libertei-me com relutância de seu abraço. Dei-lhe as costas numa atitude recatada, a fim de vestir as calcinhas tipo biquíni, enquanto ele se apoiava num cotovelo a fim de observar-me.
— Você possui um lindo traseiro — comentou.
Agradeci o elogio, acrescentando:
— Que tal minha parte da frente?
Bart replicou que não era das piores. Atirei-lhe um sapato.
— Cathy, por que nunca diz que me ama?
Girei nos calcanhares, espantada.
— Você alguma vez me disse a mesma coisa a sério? — retruquei, abotoando um minúsculo soutien.
— Como pode saber se não falo sério? — indagou ele, zangado.
— Permita-me explicar como sei. Quando a gente ama, quer a pessoa amada ao nosso lado durante todo o tempo. Quando você evita o assunto de divórcio, isto constitui, por si, uma indicação do quanto você me ama e do que significo em sua vida.
— Já foi muito magoada, não é mesmo, Cathy? Não quero que sofra ainda mais. Você brinca comigo; sei disso. Que diferença faz tratar-se apenas de sexo e não de amor? E ensine-me a distinguir onde um acaba e o outro começa.
Suas palavras zombeteiras foram como uma faca em meu coração, pois, de algum modo, sem desejar que isto acontecesse, eu me apaixonara loucamente por ele, como uma idiota.
Segundo o entusiástico relato de Bart, sua esposa, ausente havia tanto tempo, regressara da longa viagem de rejuvenescimento parecendo devastadoramente jovem e bela.
— Perdeu dez quilos! Juro que aquela plástica no rosto surtiu resultados sensacionais, maravilhosos! Ela está linda e, que diabo!, incrivelmente parecida com você!
Era fácil ver o quanto ele se impressionara com a nova esposa, de aparência mais jovem; e se tencionava apenas tirar o vento de minhas velas por demais enfunadas, não dei a perceber que conseguia fazê-lo. Em seguida, afirmou que tinha tanta necessidade de mim como antes, num tom que desmentia o sentido das palavras.
— Cathy, ela mudou enquanto esteve no Texas. Voltou a ser como outrora: a mulher suave, carinhosa, com quem me casei.
Homens! Como eram crédulos! Era evidente que minha mãe seria mais delicada e carinhosa com Bart, agora que sabia que ele possuía uma amante facilmente acessível e que esta era a própria filha dela. Tinha que saber, pois os mexericos corriam pela cidade. Todo mundo sabia.
— Neste caso, por que você está aqui comigo, quando sua esposa regressou tão semelhante a mim? Por que não se veste, diz adeus e nunca mais volta à minha casa? Diga que foi bom enquanto durou, mas agora está terminado; então eu lhe agradecerei os maravilhosos momentos que me proporcionou, antes de lhe dar um último beijo de despedida.
— Bem — disse Bart, arrastando ainda mais o sotaque sulino, enquanto me puxava ainda mais de encontro ao seu corpo despido. — Eu não disse que ela está tão sensacional. Além disso, você possui algo de especial que não consigo definir nem compreender o que seja. Mas o fato é que não sei se poderei viver sem você de agora em diante.
Falou sério, com a verdade estampada nos olhos escuros. Eu vencera!Vencera!
Por mero acaso, certo dia minha mãe e eu nos encontramos na agência postal. Ela me avistou e estremeceu. Sua bela cabeça ergueu-se ainda mais quando ela se virou um pouco para o outro lado, fingindo não me conhecer. Renegar-me-ia como renegara Carrie, muito embora fosse tão óbvio sermos mãe e filha, não duas desconhecidas. Mas eu não era Carrie. Portanto, tratei-a como ela me tratou: com indiferença, como se ela nunca tivesse sido para mim uma pessoa especial e nunca mais pudesse voltar a sê-lo. Não obstante, enquanto eu esperava impaciente pela minha folha de selos, percebi que os olhos de minha mãe lançavam olhares para acompanhar os incessantes movimentos de meu filhinho, que sentia necessidade de olhar para tudo e para todos. Era um menino lindo, gracioso e encantador, que atraía a atenção de todas as pessoas; estas paravam para admirá-lo e acariciar-lhe os cabelos. Virando-se, ele notou o prolongado olhar de minha mãe e sorriu para ela.
— Olá — cumprimentou-a. — Você é bonita... como minha mamãe.
Oh, as coisas que as crianças diziam! Que conhecimento instintivo possuíam, percebendo prontamente o que as pessoas tentavam instintivamente não admitir. Jory aproximou-se hesitante de minha mãe e estendeu o braço para tocar-lhe o casaco de peles.
— Minha mamãe tem um casaco de peles. Ela é bailarina. Você também dança?
Ela suspirou; prendi a respiração. “Veja, Mamãe: eis aí o neto que seus braços jamais segurarão. Você nunca o ouvirá pronunciar seu nome... Nunca!”
— Não — sussurrou ela. — Não sou bailarina.
Tinha os olhos marejados de lágrimas.
— Minha mamãe pode ensinar você a dançar.
— Já sou velha demais para aprender — murmurou ela, recuando.
— Não é, não — insistiu Jory, tentando pegar-lhe a mão como se quisesse mostrar o caminho.
Mas ela recuou a mão, lançou-me um olhar, ficou muito vermelha e depois abriu a bolsa para pegar um lenço.
— Você tem um filho pequeno para brincar comigo? — quis saber Jory, preocupado ao ver-lhe as lágrimas, como se o fato de ter um filho compensasse não ser bailarina.
— Não — replicou ela num sussurro trêmulo. — Não tenho filhos.
Foi então que me interpus para declarar em tom áspero:
— Determinadas mulheres não merecem ter filhos.
Peguei meus selos e guardei-os na bolsa.
— Algumas mulheres como a senhora, Sra. Winslow, preferem ter dinheiro ao incômodo causado por filhos que podem atrapalhar muitos momentos de diversão. O próprio tempo lhe mostrará, mais cedo ou mais tarde, se a sua decisão foi correta.
Ela me voltou às costas e tornou a estremecer, como se todos aqueles agasalhos de pele fossem insuficientes para protegê-la do frio. Então saiu da agência postal e se encaminhou para uma grande limusine preta dirigida por um chofer. Partiu como uma rainha, de cabeça erguida. Jory perguntou:
— Mamãe, por que você não gosta daquela moça linda? Gosto muito dela. É parecida com você... mas não tão linda.
Preferi não fazer comentários, embora tivesse na ponta da língua algo tão feio que ele jamais esqueceria.
No crepúsculo daquela tarde, sentei-me perto das janelas, olhando para Foxworth Hall e imaginando o que Bart e minha mãe estariam fazendo. Cruzei as mãos sobre a barriga ainda chata, mas que logo começaria a dilatar-se com a criança que talvez tivéssemos gerado. A ausência de um período menstrual nada provava, exceto que eu desejava um filho de Bart e procurava ter certeza, através de pequenos detalhes, de que realmente estava grávida. Permiti que a depressão viesse apoderar-se de mim. Bart jamais abandonaria minha mãe e sua fortuna para casar-se comigo e eu teria outro filho sem pai. Que tola eu fora ao iniciar tudo aquilo... Mas, de todo modo, eu sempre fora uma tola. Então avistei um homem que se esgueirava através do bosque, vindo em minha direção, Sorri e recobrei a confiança em mim mesma, Ele me amava! De verdade!... E tão logo eu tivesse certeza absoluta de seu amor, contar-lhe-ia que estava por ser pai.
O vento entrou no chalé quando Bart abriu a porta, derrubando a jarra de flores de cima da mesa. Levantei-me e fiquei olhando para os cacos de cristal e pétalas soltas espalhados pelo chão. Por que o vento estava sempre querendo dizer-me alguma coisa? Algo que eu não desejava escutar!
Preparando o baralho
— Cathy, você disse que não precisávamos tomar precauções.
— E não havia necessidade. Quero ter um filho seu.
— Quer um filho meu? Que diabo pensa que poderei fazer, casar-me com você?
— Não. Fiz minhas próprias previsões. Presumi que você se divertiria à vontade comigo e, quando tudo terminasse, voltaria à sua esposa para ter outra parceira em suas brincadeiras. Nesse caso, eu teria exatamente o que sempre desejei desde o início: um filho seu. Agora posso cair fora. Dê-me um beijo de despedida, Bart, considerando-me apenas outra dentre suas muitas aventuras extraconjugais.
Ele pareceu furioso. Estávamos na minha sala de visitas e uma violenta tempestade uivava lá fora. A neve empilhava-se em montes que atingiam a altura dos peitoris das janelas e eu me acomodara diante da lareira, tricotando um agasalho de bebê. Estava prestes a terminar um ponto de tricô quando Bart arrancou-me tudo das mãos e jogou num canto da sala.
— Vai desfiar! — protestei, desanimada.
— Que diabo está querendo fazer comigo, Cathy? Sabe que não posso me casar com você! Nunca lhe menti e disse o contrário. Você está fazendo algum jogo comigo!
Engasgou-se, cobriu o rosto com as mãos, depois recompôs-se e implorou:
— Eu a amo. Deus me perdoe, mas é verdade. Quero você sempre perto de mim. E meu filho também. Que tipo de jogo você faz agora?
— Apenas o jogo de uma mulher: o único jogo que ela pode fazer e ter certeza de vencer.
— Ouça — ponderou Bart, procurando reassumir o controle da situação. — Explique exatamente o que quer dizer; não me venha com frases de duplo sentido. Nada precisa mudar porque minha mulher regressou. Você ocupará sempre um lugar em minha vida e...
— Em sua vida? Não se refere, mais corretamente, à periferia da sua vida?
Pela primeira vez, escutei um tom de humildade na voz de Bart:
— Seja razoável, Cathy. Eu a amo e também amo minha esposa. Às vezes, sinto-me incapaz de separar as duas. Como já lhe contei, ela voltou diferente e, atualmente, é como costumava ser quando a conheci. Talvez o corpo e rosto de aparência mais jovem lhe tenham restituído a confiança que ela perdera e, por isso, tornou-se capaz de ser mais delicada. Seja qual for o motivo, sinto-me grato. Mesmo quando eu tinha raiva dela, continuava a amá-la. Quando ela se mostrava detestável, eu tentava desforrar-me procurando outras mulheres, mas não deixava de amar a ela. O único motivo importante pelo qual brigamos é sua recusa em ter filhos ou mesmo adotar uma criança. Naturalmente, agora já passou da idade de ser mãe. Por favor, Cathy, fique! Não vá embora! Não leve meu filho para longe, de modo que nunca saberei o que acontece com ele... ou ela... e com você!
Fui peremptória:
— Muito bem. Ficarei, mas com uma condição: só divorciando-se dela e casando-se comigo você terá o filho que sempre desejou. Do contrário, irei embora para muito longe, o que significa que seu filho irá comigo. Talvez eu lhe escreva para informar se nasceu um menino ou menina, talvez não. De todo modo, depois que eu me for, você estará definitivamente excluído de minha vida.
Pensei com meus botões: “Veja como ele se comporta! Como se o testamento não incluísse aquele codicilo que proíbe sua esposa de ter filhos! Protege-a! Exatamente como Chris, quando, na realidade, tem que saber de tudo. Foi ele quem redigiu o testamento. Portanto, tem que saber!”
Bart postou-se junto à lareira, com o braço apoiado no aparador. Em seguida, descansou a testa no braço e ficou olhando para o fogo. Mantinha a mão livre às costas, com o punho cerrado. Seus pensamentos eram tão confusos e profundos que me deixaram emocionada de pena. Então, virou-se para mim, fitando-me nos olhos.
— Meu Deus! — exclamou, chocado pela descoberta. — Você planejou tudo isto desde o início, não foi? Veio para cá a fim de cumprir um objetivo, mas qual é ele? Por que escolheu a mim para magoar? O que lhe fiz de mal, Cathy, senão amá-la? É bem verdade que começou com sexo e eu não queria que passasse disso, mas cresceu e transformou-se em algo muito maior e profundo. Gosto de estar a seu lado, apenas sentado e conversando, ou caminhando pelos bosques. Sinto-me bem na sua companhia. Gosto do jeito como você me trata, tocando-me o rosto ao passar por mim, despenteando-me os cabelos ou beijando-me o pescoço. Gosto do modo suave e tímido como acorda e sorri ao ver-me a seu lado. Gosto dos jogos inteligentes que põe em prática, sempre me mantendo na expectativa, sempre divertido. Tenho a impressão de possuir dez mulheres reunidas numa só e, agora, sinto que não posso mais viver sem você. Mas não posso abandonar minha esposa e me casar com você. Ela precisa de mim!
— Você deveria ser ator, Bart. Suas palavras me provocam lágrimas.
— Maldita seja por levar-me na brincadeira! — explodiu ele. — Colocou-me num aparelho de tortura e está apertando os parafusos! Não me faça odiá-la, destruindo os melhores meses de minha vida!
Com isso, saiu do chalé num rompante de fúria. Fiquei sozinha, tristonha, lamentando o fato de sempre falar demais, pois permaneceria ali enquanto Bart necessitasse de mim.
Emma, Jory e eu achamos maravilhosa a idéia de fazermos uma excursão a Richmond para as compras de Natal. Jory não se lembrava de ter visto Papai Noel e se aproximou muito temerosamente do homem de barbas brancas e roupas vermelhas que estendia os braços para encorajá-lo. Hesitante, meu filho sentou-se no colo do Papai Noel da loja de Departamentos Thalhimers e fitou, incrédulo, os brilhantes olhos azuis do velho, enquanto eu batia fotografias de todos os ângulos, até mesmo engatinhando pelo chão para alcançar a posição desejada.
Em seguida visitamos uma loja de modas da qual eu ouvira falar, onde entreguei o desenho de um modelo criado por mim mesma. Escolhi o tom exato de veludo verde e depois o chiffon verde mais claro para a saia.
— E façam os cordões do corpete com brilhantes de imitação... Não se esqueçam: as partes esvoaçantes devem atingir a altura da bainha.
Enquanto Emma e Jory assistiam a um filme da Walt Disney, cortei o cabelo e mandei penteá-lo num estilo diferente. Não só o aparei, como de costume, mas pedi que cortassem mais curto do que eu jamais usara. O penteado caiu-me muito bem, da mesma forma que ficara muito bem em minha mãe quando ela o usara, havia quinze anos.
— Oh! Mamãe! — exclamou Jory, contristado. — Seu cabelo caiu.
Começou a chorar.
— Pegue outra vez seu cabelo comprido! — implorou. — Agora, você nem parece minha mamãe!
Não parecia; era exatamente esse meu objetivo. Não desejava parecer comigo mesma naquele Natal; não naquele Natal especial, em que eu precisava constituir uma duplicata exata de minha mãe quando eu a vira dançar pela primeira vez com Bart. Agora, finalmente, minha oportunidade se apresentava: num vestido igual, com penteado igual e rosto mais jovem, eu me defrontaria com minha mãe em sua própria casa e nos termos ditados por mim! Mulher a mulher, e que vencesse a melhor! Ela estaria com quarenta e oito e uma recente plástica no rosto. Eu sabia que ela ainda era muito bonita. Mas não poderia competir com a própria filha, vinte e um anos mais jovem! Ri quando me observei no espelho após vestir a nova roupa verde. Oh, sim!Transformara-me no que ela fora: o tipo de mulher a que homem nenhum conseguiria resistir. Tinha a mesma força e beleza que ela e dez vezes mais inteligência. Portanto, como poderia perder para ela?
Três dias antes do Natal, telefonei para Chris e lhe indaguei se gostaria de acompanhar-me até Richmond, pois eu esquecera algumas pequenas coisas que as lojas locais não tinham à venda.
— Cathy — respondeu ele num tom frio e carregado de hostilidade. — Quando você desistir de Bart Winslow, tornarei a vê-la. Antes disso, porém, nem quero passar por perto de você!
— Está bem! — explodi — Fique onde está! Pode perder a oportunidade de vingança, mas não deixarei escapar a minha! Adeus, Christopher Doll, e espero que os percevejos o devorem durante a noite!
Desliguei!
Eu já não dava aulas de balé com a mesma freqüência que antes, mas na época dos recitais sempre voltava ao trabalho. Meus pequenos bailarinos adoravam vestir as elegantes roupas de espetáculo e se exibir diante dos pais, avós e amigos. Ficavam adoráveis nas roupas apropriadas para o Quebra-Nozes. Até mesmo Jory tinha dois pequenos papéis para dançar: o de um floco de neve e o de um bombom. Na minha opinião, não existia maneira mais cheia de magia para passar ao menos uma véspera de Natal que reunir a família para assistir a uma apresentação do Quebra-Nozes. E a ocasião se tornava mil vezes mais maravilhosa quando uma daquelas talentosas crianças pequenas e graciosas era o nosso próprio filhinho, que completaria quatro anos dentro de um mês e meio. A doce infantilidade de Jory, dançando no palco com tanto entusiasmo, arrancou repetidos aplausos da platéia, que se ergueu para ovacioná-lo de pé ao final do solo que eu coreografara especialmente para ele. O melhor de tudo: eu forçara Bart a jurar que obrigaria minha mãe a assistir ao espetáculo e eles compareceram. Fiz questão de verificar, espiando por detrás da cortina: no centro da primeira fila, o Sr. e Sra. Bartholomew Winslow. Bart parecia feliz; minha mãe, carrancuda. Portanto, eu exercia algum controle sobre Bart. O que ficou provado pelo enorme buquê de rosas recebido pela professora de balé e a enorme caixa recebida pelo minúsculo bailarino que fizera o solo como floco de neve.
— O que será? — indagou Jory, muito corado, radiante de felicidade. — Posso abrir agora?
— Claro, logo que chegarmos em casa. E amanhã Papai Noel deixará uma centena de presentes para você.
— Por quê?
— Porque ama você.
— Por quê? — quis saber Jory.
— Porque não poderia deixar de amá-lo, eis aí o motivo.
— Oh!...
Antes das cinco da manhã, Jory já se levantara para brincar com o trem elétrico que Bart lhe enviara. Espalhados por toda a sala, os magníficos papéis que haviam embrulhado centenas de presentes mandados por Paul, Henny, Chris, Bart e Papai Noel. Emma deu a Jory uma caixa de doces feitos em casa, que ele devorou enquanto abria os outros pacotes.
— Puxa, Mamãe! — exclamou. — Pensei que ficaria solitário sem meus tios. Mas não fiquei. Estou me divertindo muito.
Ele não ficou solitário, mas eu fiquei. Queria Bart a meu lado, não com ela, na mansão. Desejava que ele inventasse alguma desculpa para ir à farmácia e escapulir-se a fim de vir à minha casa. Mas tudo o que vi de Bart naquela manhã de Natal foi a pulseira de brilhantes, com cinco centímetros de largura, que ele enviou junto a uma dúzia de rosas vermelhas e um bilhete: “Eu a amo, bailarina.”
Se já existiu alguma mulher que se vestiu com mais apuro que eu naquela noite, deve ter sido Maria Antonieta. Emma chegou a reclamar que eu estava demorando uma eternidade. Maquilei-me como se fosse tirar uma foto do rosto para a capa de uma revista importante. Emma penteou-me o cabelo exatamente como minha mãe se penteara tantos anos atrás.
— Ondule-os suavemente, afastando-os do rosto, Emma. Depois junte-os em cachos no alto da cabeça, certificando-se de que alguns caiam até roçar-me os ombros.
Quando ela terminou, quase perdi o fôlego ao verificar que eu me tornara uma duplicata quase exata do que fora minha mãe quando eu tinha apenas doze anos! As maçãs do rosto eram realçadas, como acontecera com as dela, pelo estilo do penteado. Como num sonho que eu nunca acreditara realmente tornar-se realidade, vesti o traje de gala com o corpete de veludo e a saia de chiffon. Tratava-se de um modelo que jamais sairia da moda. Girei diante do espelho, experimentando a sensação de ser minha mãe, com o poder que ela exercia sobre os homens, enquanto Emma observava de um canto, cobrindo-me de elogios. Até mesmo o perfume era o mesmo, almiscarado, com um aroma de jardim do Oriente. As sandálias eram finas correias prateadas, com saltos de dez centímetros, combinando com a bolsinha de prata. Só me faltavam agora as jóias de esmeraldas e brilhantes que ela usara. Em breve eu também as possuiria. Indubitavelmente, o destino não permitiria que ela se vestisse de verde naquela noite. Em algum ponto de minha vida o destino teria que estar do meu lado. Eu julgava que fosse naquela noite. Hoje eu faria as surpresas e desferiria os golpes. Ela sentiria a dor de perder! Era uma pena que Chris não viesse assistir ao final de uma longa peça, que se iniciara no dia em que nosso pai morrera na estrada.
Lancei ao espelho um derradeiro olhar cheio de admiração, peguei a estola de peles que Bart me dera, reuni toda a minha hesitante coragem, dei uma última espiada em Jory, que dormia encolhido de lado, como um anjo. Debrucei-me para beijar-lhe com ternura o rostinho corado e redondo.
— Eu o amo, Jory — sussurrei.
Ele despertou parcialmente de um sonho nebuloso, fitando-me como se eu fizesse parte do sonho.
— Oh! Mamãe... está tão linda!
Seus olhos castanhos escuros brilharam com admiração infantil e ele indagou com grande seriedade:
— Vai a uma festa para me arranjar um novo papai?
Sorri, tornei a beijá-lo e disse que sim, sob certo aspecto era o que eu faria.
— Obrigada, querido, por achar-me linda. Agora durma outra vez e sonhe com coisas boas. Amanhã faremos um boneco de neve.
— Traga um papai para ajudar-nos.
Na mesa perto da porta de entrada havia um bilhete de Paul: “Henny está muito doente. É uma pena que você não possa abrir mão de seus planos para visitá-la antes que seja tarde demais. Desejo-lhe felicidades, Catherine”.
Larguei com um suspiro o bilhete de Paul e peguei o de Henny, que viera no mesmo envelope. Fora escrito num festivo papel vermelho, com letras de forma entortadas pela dolorosa artrite que deformava as articulações de Henny.
Querida Filha-Fada,
Henny está velha; Henny está cansada; Henny está contente de ter por perto seu filho-doutor, mas infeliz porque outros filhos muito longe de casa.
Digo-lhe agora, antes de ir para um lugar melhor, o segredo simples para viver feliz. Tudo que tem a fazer é dizer adeus aos amores antigos e alô ao novo amor. Olhe em volta, veja quem precisa mais de você e não poderá errar. Esqueça quem precisou de você ontem. Você escreve para dizer que tem na barriga novo bebê feito pelo marido de sua mãe. Alegre-se com o bebê, mesmo que o marido de sua mãe continue casado com ela. Perdoe sua mãe, mesmo se um dia ela lhe fez mal. Ninguém é errado em tudo e muito do que os filhos têm de bom deve ter vindo dela. Quando você conseguir perdoar e esquecer o passado, a paz e o amor voltarão para você. Desta vez, ficarão. E se você não tornar a ver Henny neste mundo, lembre-se de que Henny lhe quis bem, como se fosse sua própria filha, da mesma maneira que amou sua irmã-anjo, a quem espero encontrar dentro de pouco tempo.
De quem logo estará no céu,
Henny.
Larguei a carta de Henny com uma pesada sensação de tristeza no peito. Então, sacudi os ombros. Tinha que fazer o que precisava ser feito. Enveredara por aquela senda havia muitos anos e haveria de segui-la até o final, não importava o que acontecesse.
Como era estranho o vento ter parado de soprar quando saí do chalé e me voltei para fazer um aceno a Emma, que passaria a noite com Jory. Com os pés calçados de sandálias protegidos por galochas, encaminhei-me para meu carro. Macia como plumas, a neve começou a cair. Olhei para o céu cinzento e ameaçador, tão semelhante aos olhos da avó. Sentindo-me novamente resoluta, girei a chave na ignição e parti para Foxworth Hall, embora não tivesse recebido convite para a festa. Brigara violentamente com Bart por causa disso.
— Por que não insistiu e a obrigou a convidar-me?
— Ora, Cathy, não acha que realmente seria pedir demais? Posso insultar minha esposa, pedindo-lhe que convide minha amante para sua festa? Talvez eu seja idiota, Cathy, mas não sou tão cruel.
Naquele primeiro Natal que passamos prisioneiros, quando eu tinha doze anos, eu me deitara com a cabeça apoiada no peito adolescente de Chris, triste e sonhadora, desejando ser adulta e ter curvas tão perfeitas quanto as de minha mãe, um rosto tão belo e roupas tão sensacionais. E, acima de tudo, desejei controlar minha própria vida. Alguns dos desejos daquele Natal se tornaram realidade.
Revelações
Pouco depois das dez horas, utilizei a chave de madeira confeccionada por Chris tantos anos antes para esgueirar-me, sem ser observada, por uma porta dos fundos de Foxworth Hall. Muitos dos convidados já estavam lá e outros mais chegavam. A orquestra tocava uma melodia de Natal, que me chegava de leve aos ouvidos. Uma música tão docemente cheia de recordações que me levou de volta aos tempos de infância; só que desta feita eu estava sozinha em território inimigo, sem ter quem me apoiasse, quando me esgueirei silenciosamente pela escada dos fundos, mantendo-me nas sombras, pronta para ocultar-me depressa em caso de necessidade. Segui meu caminho solitário até a grandiosa rotunda central, postando-me perto do armário no qual Chris e eu nos escondêramos para observar uma outra festa de Natal, quinze anos atrás. Olhei para o salão e avistei Bart Winslow de pé ao lado da esposa, que usava um vestido elegante de lamê vermelho. A voz forte de Bart ressoava com sinceridade ao cumprimentar calorosamente os convidados que chegavam, apertando mãos e beijando rostos, fazendo com perfeição o papel de anfitrião. Minha mãe dava a impressão de uma figura secundária ao lado do marido, quase desnecessária naquela imensa mansão que em breve lhe pertenceria.
Sorrindo amargamente com meus botões, encaminhei-me furtivamente aos grandiosos aposentos particulares de minha mãe. Recuei no tempo! Oh, meu Deus! Tive vontade de soltar uma exclamação infantil de deleite, surpresa, espanto ou frustração, embora dispusesse agora de um vocabulário bem mais vasto e adequado. Naquela noite não sentia frustração, mas uma leve sensação de justificativa: o que quer que acontecesse seria por culpa dela. “Veja bem”, disse comigo mesma. Lá estava a esplêndida cama em forma de cisne, com a caminha menor, também no mesmo formato, aos pés. Olhei em volta, verificando que tudo continuava como antes, exceto o tecido de brocado que forrava as paredes; fora trocado por outro, diferente. Agora, já não era rosa-morango, mas de um leve tom de ameixa. Havia também um cabide metálico destinado a manter um terno masculino arrumado e sem dobras até que o dono o vestisse; era novo. Corri ao quarto de vestir de minha mãe. Ajoelhando-me, abri o fundo especial de uma gaveta e tateei à procura do pequeno botão que precisava ser acionado numa determinada combinação de números até abrir o complicado trinco de segredo. E, por incrível que pudesse parecer, ela ainda usava a mesma combinação: os números do mês, dia e ano de seu nascimento! Oh! Deus! Era mesmo uma mulher confiante!
Em poucos segundos, coloquei no chão, diante de mim, a grande prateleira forrada de veludo verde, de modo a poder servir-me à vontade das jóias de esmeraldas e brilhantes que minha mãe usara naquela festa de Natal em que Chris e eu a víramos pela primeira vez com Bart Winslow. Naquela ocasião, nós a amávamos muito e ficamos ressentidos contra ele. Ainda lamentávamos a morte de papai e não queríamos que Mamãe se casasse outra vez, nunca mais. Como num sonho, coloquei em mim as jóias que tão bem combinavam com meu vestido de veludo e chiffon verde. Mirei-me no espelho, a fim de verificar se parecia tão jovem quanto ela naquela época. Eu dava a impressão de ser alguns anos mais moça, mas não havia dúvida de que me parecia muito com ela. Não exatamente igual, mas quase, assim como duas folhas da mesma árvore nunca são exatamente iguais. Recoloquei no lugar a bandeja de jóias e gaveta, deixando tudo como antes. Só que agora eu usava algumas centenas de milhares de dólares em jóias que não me pertenciam. Consultei novamente o relógio. Dez e meia. Cedo demais. Queria fazer minha grandiosa entrada no salão à meia-noite, justamente como uma Cinderela ao inverso.
Com a maior cautela, percorri sorrateiramente os compridos corredores que levavam à ala norte e encontrei aquele último quarto, com a porta trancada. A chave de madeira ainda servia na fechadura, mas meu coração parecia não me caber no peito. Batia depressa demais, com uma ferocidade exagerada, um barulho excessivo, pulsando com inusitada excitação. Precisava manter-me calma, controlada, fazer tudo corretamente e não me deixar intimidar por aquela espantosa mansão que fizera o possível para destruir-nos.
Ao entrar naquele quarto com duas camas de casal, penetrei de volta em minha infância. As colchas douradas com franjas de cetim continuavam sobre as camas, perfeitamente arrumadas, sem apresentarem a mínima dobra. O aparelho de TV de dez polegadas ainda estava no canto. A casa de bonecas, com seus habitantes de porcelana e móveis de estilo antigo feitos em escala, esperava que as mãos de Carrie viessem revivê-la. A velha cadeira de balanço que Chris trouxera do sótão ainda estava no mesmo lugar. Ora, era como se o tempo ali tivesse parado e nunca houvéssemos fugido do local! Até mesmo o inferno continuava nas paredes, representado pelas três reproduções de obras-primas de mestres renascentistas. Oh, meu Deus! Eu jamais imaginara que aquele quarto me deixasse tão despedaçada interiormente. Não podia me dar ao luxo de chorar, o que estragaria a maquilagem. Não obstante, minha vontade era chorar como uma criança. A meu redor volteavam os fantasmas de Carrie e Cory, então com apenas cinco anos, rindo, chorando, querendo sair dali, ansiando por sol e ar livre, mas podendo apenas empurrar pelo chão pequenos caminhões ao longo de uma estrada imaginária entre Nova York e São Francisco ou Los Angeles. E havia as antigas linhas de trem elétrico que percorriam o quarto inteiro, passando até por debaixo da mobília. Oh! Que fora feito da ferrovia, dos minúsculos vagões e locomotivas? Tirei da pequena bolsa de prata um lenço de papel e enxuguei cuidadosamente os cantos dos olhos. Debrucei-me para observar o interior da casa de bonecas. As criadas de porcelana ainda preparavam comida na cozinha; o mordomo estava postado junto à porta para receber os convidados que chegavam numa carruagem puxada por uma parelha de cavalos; e, no quarto da criança, o bercinho vazio! O bercinho que desaparecera! Passáramos semanas a procurá-lo, com medo que a avó desse por sua falta e castigasse Carrie e ali estava ele, no seu devido lugar! Mas faltava o bebê, assim como os pais que costumavam ficar na sala de visitas: o Sr. e Sra. Parkins, bem como Clara, o bebê, agora me pertenciam e jamais voltariam a morar naquela casa.
Seria possível que a própria avó tivesse escondido o berço, a fim de poder notar a sua falta e, quando não conseguíssemos apresentá-lo, ter um bom motivo para castigar Carrie? E Cory também, pois ele correria automaticamente para defender sua irmã gêmea, sem qualquer temor das conseqüências que tal gesto poderia causar-lhe. A avó era perfeitamente capaz de arquitetar algo tão mesquinho e cruel. Contudo, se agira assim, por que motivo não aplicara o castigo e não levara seu intento até o fim? Ri amargamente comigo mesma. Ela levara seu intento até o fim, não apenas uma surra com a vara de salgueiro, mas algo muito melhor... ou pior! Veneno. Arsênico em quatro rosquinhas açucaradas.
Sobressaltei-me. Tive a impressão de escutar um riso infantil. Minha imaginação, naturalmente. Então, quando deveria ter pensado melhor, encaminhei-me ao armário embutido, à porta estreita e alta situada no fundo do quarto, que se abria para a escada íngreme, estreita e escura. Eu galgara aquela escada um milhão de vezes. Um milhão de vezes, no escuro, sem vela ou lanterna para iluminar o caminho. Subi ao sótão gigantesco, escuro, fantasmagórico. Só quando cheguei lá em cima tateei em busca do local que Chris e eu usávamos para esconder nossas velas e fósforos. Ainda estavam lá. O tempo parara naquele local. Tínhamos vários castiçais, todos eles de estanho, com pequenas asas para a pessoa segurá-los. Foram encontrados por nós num velho baú, junto com inúmeras caixas de velas grossas, curtas e mal acabadas. Sempre presumimos que fossem velas de fabricação caseira, pois exalavam um cheiro desagradável, de coisa velha, quando queimavam. Prendi a respiração! Oh! Era o mesmo! As flores de papel continuavam penduradas, móbiles que se moviam nas correntes de ar; e as flores gigantescas nas paredes. Só que todas as cores se haviam desbotado num indistinto tom cinzento: flores fantasmas. Os centros brilhantes que havíamos colado nelas tinham-se soltado e agora só algumas margaridas ainda possuíam centros brilhantes. A gigantesca minhoca roxa de Carrie lá permanecia, embora também estivesse cinzenta e desbotada. A lesma epilética de Cory já não parecia uma brilhante e deformada bola de praia, mas uma laranja descorada e meio apodrecida. Os avisos de CUIDADO que Chris e eu havíamos pintado em vermelho nas paredes ainda lá estavam, como os balanços que pendiam das vigas do telhado. Perto do toca-discos, estava a barra que Chris fabricara e pregara à parede, para que eu pudesse ensaiar minhas posições de balé. Até mesmo meus velhos trajes de bailarina pendiam murchos dos pregos, dúzias deles, acompanhados por malhas das mesmas cores e gastas sapatilhas de dança, tudo desbotado, empoeirado, com cheiro de podre.
Como se me movesse num pesadelo ao qual fora condenada, andei até a distante sala de aulas à luz bruxuleante da vela. Os fantasmas despertaram; lembranças e espectros acompanhavam-me à medida que os objetos pareciam acordar, sonolentos e bocejantes. Não, refleti com meus botões, são apenas as sombras de minha esvoaçante roupa de chiffon... só isso. O cavalinho malhado de balanço surgiu diante de mim, espantoso e ameaçador. Levei a mão à garganta para sufocar uma exclamação de susto e medo. A enferrujada carroça vermelha parecia mover-se, empurrada por mãos invisíveis. Meu olhar fugiu em direção ao quadro-negro onde eu escrevera minha enigmática mensagem aos que ali viessem no futuro. Como poderia imaginar que eu seria a primeira?
Vivemos no sótão,
Christopher, Cory, Carrie e eu...
Agora, somos apenas três.
Sentei-me à pequena escrivaninha que pertencera a Cory, tentando enfiar as pernas sob ela. Desejava mergulhar num profundo devaneio para chamar o espírito de Cory, a fim de que ele me dissesse onde se encontrava. Enquanto eu aguardava sentada, o vento começou a soprar lá fora, aumentando até uivar e fazer a neve cair obliquamente. Desabava outra tempestade violenta. Com ela, vieram as correntes de ar que apagaram minha vela! A escuridão parecia gritar e tive que fugir correndo! Fugir depressa... fugir... fugir antes de transformar-me num deles!
A hora seguinte fora coreografada por mim nos mínimos detalhes. Quando o grande relógio de pêndulo começou a bater a meia-noite, postei-me no centro do balcão do segundo andar. Nada fiz de espetacular senão ficar ali parada, com a pele iluminada pelas jóias faiscantes. Em seu vestido de lamê vermelho, de frente tão alta que a gola chegava a tocar o grosso colar de brilhantes, minha mãe virou-se ligeiramente. Vi que o vestido que lhe deixava as costas nuas compensava a frente severa e não decotada, deixando à mostra o início da depressão que lhe separava as nádegas. Seus cabelos louros, curtos como eu jamais os vira antes, estavam penteados num estilo solto em volta do rosto, embelezando-a ainda mais. À distância, parecia muito jovem e linda, longe de demonstrar sua verdadeira idade.
Ahhh!... Soou a última badalada da meia-noite... Algum sexto sentido deve tê-la prevenido, pois voltou-se lentamente para olhar em minha direção. Comecei a descer a escadaria. Os olhos de minha mãe se esbugalharam e anuviaram; a mão que segurava um copo de bebida tremeu tanto que parte do líquido se derramou e escorreu para o chão. Como ela olhava fixamente para mim, Bart acompanhou-lhe a direção do olhar. Ficou boquiaberto como se eu fosse uma aparição. Agora, tanto o anfitrião como a anfitriã estavam mesmerizados e todos os convidados se sentiram obrigados a olhar também na direção onde, certamente, esperavam avistar Papai Noel, mas era apenas eu. Apenas eu, como fora minha mãe tantos anos antes, usando o mesmo vestido de gala e, tenho certeza, ante os olhares de muitos daqueles mesmos convidados, que haviam comparecido àquela festa de Natal. Até mesmo reconheci alguns deles, mais velhos, agora, mas eu os reconheci! Oh, quanto prazer tê-los ali!
Foi o meu momento de triunfo!
Movimentando-me como só uma bailarina é capaz de fazer, dispus-me a representar meu papel com o máximo de minha capacidade dramática. Enquanto os convidados olhavam para cima, nitidamente enfeitiçados pelo recuo no tempo, senti a imensa satisfação de ver minha mãe empalidecer. E tive ainda mais prazer em observar os olhos de Bart esbugalharem-se ainda mais ao saltarem de mim para ela e, depois, de volta a mim. Lentamente, num silêncio mortal, pois a música parara de tocar, desci o lado esquerdo da dupla escadaria curva, pensando que era a feiticeira má que lançara sobre Aurora a praga da morte; em seguida imaginei-me como a Fada Lilás, que roubou o Príncipe Encantado de Aurora enquanto esta dormia o seu sono de um século. (Foi muito inteligente de minha parte não me lembrar de que era a filha de minha mãe e que dentro em breve a destruiria. Muita esperteza fazer de tudo aquilo uma produção teatral, quando lidava com realidade e não com fantasia, e talvez houvesse derramamento de sangue).
Corri graciosamente os dedos faiscantes de jóias ao longo do corrimão de madeira-de-lei, sentindo minhas esvoaçantes saias de chiffon verde balançarem a cada passo. E a cada segundo eu mais me aproximava do local onde minha mãe e Bart permaneciam em pé, muito juntos. Ela tremia da cabeça aos pés, mas conseguia não perder a pose. Julguei divisar um relance de pânico em seus olhos azuis de boneca de porcelana. Mimoseei-a caridosamente com o mais gracioso de meus sorrisos, quando cheguei ao penúltimo degrau. Ali, estaquei. Desta maneira, aproveitava-me da vantagem de ficar mais alta que qualquer dos presentes à cena. Todos eles viam-se obrigados a erguer os olhos para ver-me, pois eu usava saltos de dez centímetros e solas tipo tamanco, semelhantes às de Carrie, com o propósito de ficar da mesma estatura que minha mãe quando nos enfrentássemos de perto. Assim, poderia observar melhor seu espanto, embaraço e colapso total!
— Feliz Natal! — disse eu para todos em voz alta e clara, que ecoou como a trombeta de um arauto, atraindo os que se encontravam em outros salões e que acorreram às dúzias, aparecendo mais atraídos pelo silêncio profundo que pelo som de minha voz.
— Sr. Winslow — convidei — venha dançar comigo, exatamente como dançou com minha mãe há quinze anos, quando eu tinha apenas doze de idade e estava escondida no balcão, lá em cima, e ela usava um vestido igual ao que uso no momento.
Bart ficou visivelmente abalado. O choque aturdiu-o, anuviando-lhe o olhar, mas ele se recusou a sair de perto de minha mãe! Assim, forçou-me a proceder como fiz em seguida. Enquanto todos aguardavam, imóveis e calados, com a respiração presa na expectativa de outras revelações explosivas, resolvi dar-lhes o que desejavam.
— Gostaria de apresentar-me — declarei num tom agudo, a fim de fazer-me escutar perfeitamente. — Sou Catherine Leigh Foxworth, filha mais velha da Sra. Bartholomew Winslow que, como a maioria de vocês se recorda, foi anteriormente casada com meu pai, Christopher Foxworth. Lembram-se também de que ele era meio-tio de minha mãe, irmão mais moço de Malcolm Neal Foxworth. Este deserdou a filha, a única herdeira que lhe restava, por cometer a pecaminosa temeridade de casar-se com o meio-irmão dele! Além disso, tenho também um irmão mais velho, igualmente chamado Christopher, que hoje é médico. Outrora, tive um irmão e uma irmã mais moços, gêmeos, que nasceram quando eu tinha sete anos. Entretanto, Cory e Carrie estão mortos, porque foram...
Não sei por que motivo, interrompi-me. Em seguida, continuei:
— Naquela festa de Natal, há quinze anos, Chris e eu nos escondemos na arca que ainda hoje está no balcão, enquanto os gêmeos dormiam no último quarto da ala norte. Nosso local de brincar era o sótão e nunca, nunca, nunca descíamos. Éramos ratos de sótão, indesejáveis e detestados desde que o dinheiro entrara em jogo.
E eu estava prestes a berrar todo o resto da estória, nos menores detalhes, mas Bart se encaminhou para mim.
— Bravos, Cathy! — exclamou. — Representou seu papel com perfeição! Parabéns!
Passou-me o braço pelos ombros, sorrindo encantadoramente e depois voltou-se para os convidados, que pareciam não saber o que pensar, em quem acreditar e, muito menos, como reagir.
— Minhas senhoras e cavalheiros — acrescentou Bart. — Permitam que lhes apresente Catherine Dahl, que muitos de vocês tiveram oportunidade de ver no palco quando ela dançava com o falecido marido, Julian Marquet. E, como acabam de verificar por si mesmos, é também uma atriz de enorme talento. Cathy é parenta distante de minha esposa e, caso consigam perceber a semelhança física entre as duas, está tudo explicado. Na verdade, a Sra. Marquet é atualmente uma de nossas vizinhas, como talvez vocês já saibam. Já que se parece de modo tão extraordinário com minha esposa, arquitetamos esta pequena farsa e fizemos o possível para que nossa pilhéria animasse a festa, tornando-a um pouco diferente.
Beliscou-me impiedosamente o antebraço antes de tomar-me pela mão, passar o outro braço por minha cintura e convidar-me para dançar.
— Venha, Cathy. Decerto deseja mostrar seus dotes de dançarina, após tão sensacional apresentação dramática.
Quando a música recomeçou, ele praticamente me obrigou a dançar! Virei a cabeça e vi minha mãe derreada sobre uma amiga, o rosto tão pálido que a maquilagem se realçava como manchas esquisitas. Mesmo assim, não conseguia despregar os olhos de mim nos braços de seu marido.
— Sua putinha atrevida! — sibilou Bart. — Como ousa entrar aqui e fazer tal escândalo? Julguei que a amava. Detesto mulheres que se portam como gatas de unhas afiadas. Não permitirei que arruíne minha esposa! Sua pequena idiota, por que inventou tantas mentiras?
— Idiota é você, Bart — respondi com a maior calma, embora estivesse em pânico interiormente: e se ele se recusasse a acreditar em mim? — Olhe bem para mim. Como poderia eu saber que ela usou um vestido igual ao meu se não a tivesse visto com ele? Como poderia eu saber que você a acompanhou para ver o quarto com a cama em forma de cisne, se meu irmão Chris não se tivesse escondido para ver e ouvir tudo que vocês dois fizeram na rotunda do segundo andar?
Bart olhou-me bem, parecendo tão estranho, distante e esquisito.
— Sim, querido Bart, sou filha de sua esposa e sei que se uma certa firma de advocacia, na qual você trabalha, descobrir que sua esposa teve quatro filhos resultantes da união de seu primeiro casamento, você e ela perderão tudo. Todo o dinheiro e investimentos. Serão obrigados a devolver tudo o que compraram. Ora, tenho tanta pena que me dá vontade de chorar!
Continuamos a dançar, o rosto dele bem perto do meu. Seus lábios exibiam um sorriso fixo.
— Esse vestido que você está usando... como diabo descobriu que ela usava um exatamente igual na primeira vez em que entrei nesta casa para uma festa?
Ri, simulando achar graça.
— Meu caro Bart, você é tão estúpido! Como julga que sei? Vi-a usando um vestido igual. Ela foi ao nosso quarto para nos mostrar o quanto estava linda; invejei-lhe as curvas do corpo e o jeito de Chris fitá-la com tanta admiração. Seus cabelos estavam penteados como os meus estão agora. E acabo de tirar estas jóias do cofre existente em sua gaveta na mesinha de cabeceira.
— É mentira! — disse ele, mas sua voz tinha um tom de dúvida.
— Conheço a combinação do segredo — prossegui suavemente. — Os números da data em que ela nasceu. Foi ela mesma quem me contou, quando eu tinha doze anos. Ela é minha mãe. Manteve-nos trancados à espera da morte do pai, a fim de herdar toda a fortuna. E você sabe por que motivo ela foi obrigada a fazer um grande segredo de nossa existência. Foi você quem redigiu o testamento, não é mesmo? Recue no tempo e lembre-se de uma certa noite, em que adormeceu nos grandiosos aposentos particulares que vocês dois usavam. Então sonhou que uma jovem usando uma curta camisola azul entrou sorrateiramente e o beijou. Você não estava sonhando, Bart. Quem o beijou fui eu. Na ocasião, tinha quinze anos e entrava em seu quarto para roubar dinheiro. Lembra-se como dava pela falta de trocados? Você e ela julgavam que os criados roubassem, mas era Chris. E, uma vez, fui eu... que nada encontrei porque você estava lá para me amedrontar.
— Nãooo... suspirou ele. — Não! Ela não seria capaz de fazer isso com os próprios filhos!
— Não seria capaz? Pois foi! Aquela grande arca perto da balaustrada do segundo andar tem o fundo de tela metálica, através do qual Chris e eu pudemos observar muito bem. Vimos os funcionários do bufê prepararem os crepes suzettes, os garçons trajados de preto e vermelho, uma fonte de onde jorrava champanha... e duas imensas poncheiras de prata. Chris e eu sentíamos o aroma das iguarias e chegamos a babar de vontade de provar o que serviam aqui nos salões. Nossas refeições eram enjoativas, sempre frias ou apenas mornas. Os gêmeos quase não se alimentavam. Você compareceu ao jantar do Dia de Ação de Graças, quando ela subiu e desceu tantas vezes? Quer saber o motivo? Preparava bandejas de comida para levar-nos sempre que John, o mordomo, não estava na copa.
Bart sacudiu a cabeça, os olhos esgazeados.
— Sim, Bart, a mulher com quem você se casou tinha quatro filhos que ela manteve escondidos e trancados durante três anos e quase cinco meses. Nosso playground era o sótão. Por acaso você brincou num sótão durante o verão? Ou no inverno? Imagina que seja agradável? Faz idéia de como nos sentíamos, ano após ano, esperando que um velho morresse para que nossas vidas pudessem ter início? Conhece o trauma que sofremos ao saber que ela dava mais importância ao dinheiro que a nós, seus próprios filhos? E os gêmeos não se desenvolveram fisicamente. Ficaram tão pequenos, raquíticos, com enormes olhos assustados, mas ela entrava no quarto e nunca olhava para eles! Ela fingia não ver o precário estado de saúde em que se encontravam!
— Cathy, por favor! Se está mentindo, pare! Não me faça odiar minha mulher!
— Por que não odiá-la? Ela merece — prossegui, enquanto minha mãe ia recostar-se numa parede, parecendo doente e prestes a vomitar. — Certa vez, deitei-me naquela imensa cama de cisne, com a caminha igual aos pés. Na gaveta da mesinha de cabeceira vocês tinham um livro sobre sexo, disfarçado por uma capa cujo título era “Como criar seus próprios pontos de bordar”, ou algo semelhante.
— “Como criar seus próprios bordados” — corrigiu ele, parecendo tão pálido e doente quanto minha mãe, embora continuasse a exibir aquele sorriso detestável. — Está inventando tudo isso — declarou, num tom esquisito e desprovido de sinceridade. — Detesta-a porque me deseja e trama para iludir-me e destruí-la.
Sorri e rocei de leve os lábios no rosto dele.
— Então permita-me convencê-lo melhor. Nossa avó sempre usava vestidos de tafetá cinzento com gola de crochê feitas à mão e nunca sem um broche de brilhantes com dezessete pedras preciosas prendendo a gola na altura da garganta. Todas as manhãs bem cedo, antes das seis e meia, levava comida e leite para nós numa cesta de piquenique feita de vime. A princípio, alimentava-nos razoavelmente bem; contudo, à medida que seu ressentimento contra nós aumentou, nossas refeições se tornaram cada vez piores, até que passamos a comer apenas sanduíches de creme de amendoim e geléia, recebendo ocasionalmente uma ração de galinha frita e salada de batatas. Ela estabeleceu uma longa série de normas segundo as quais nos devíamos comportar, sendo que uma delas nos proibia de abrir as cortinas para deixarmos entrar luz no quarto. Vivemos ano após ano num quarto escuro, sem receber luz solar. Se você ao menos soubesse o que é viver trancado, sem luz, sentindo-se negligenciado, indesejável e detestado...! E também havia uma outra regra, extremamente difícil de obedecermos: não devíamos olhar-nos mutuamente, em especial os sexos opostos.
— Oh! Deus! — exclamou ele, com um pesado suspiro. — Isso é bem do tipo dela. Você disse que ficaram trancados mais de três anos?
— Três anos e quase cinco meses. E se isso lhe parece muito tempo, o quanto julga que foi para duas criancinhas de cinco anos, uma de doze e outra de quatorze? Naquela época, cinco minutos levavam cinco horas para se escoarem, os dias eram como meses e os meses pareciam anos.
Tornou-se evidente que a dúvida invadia sua mente de advogado, que via todas as ramificações, se minhas palavras fossem verdadeiras.
— Cathy, seja franca, totalmente franca. Você tinha uma irmã e dois irmãos e durante todo aquele tempo, inclusive quando eu já morava aqui, viveram trancados lá em cima?
— No início, acreditamos em nossa mãe, em cada palavra que ela pronunciava, porque a amávamos e confiávamos nela: era a nossa única esperança de salvação. E queríamos que ela herdasse todo aquele dinheiro do pai. Concordamos em permanecer trancados até que nosso avô morresse, embora nossa mãe, ao dizer-nos que moraríamos em Foxworth Hall, deixasse de mencionar que ficaríamos trancados e escondidos. A princípio, pensamos que fosse apenas por um ou dois dias, mas aquilo continuou interminavelmente. Ocupávamos o tempo jogando... rezávamos muito, dormíamos um bocado. Fomos ficando magros, doentios, subnutridos e passamos fome durante duas semanas enquanto você e nossa mãe viajavam pela Europa em lua-de-mel. E, depois, quando vocês foram visitar sua irmã em Vermont, onde nossa mãe comprou um quilo de balas de açúcar de bordo. A essa altura, porém, já estávamos comendo rosquinhas com arsênico misturado ao açúcar.
Bart lançou-me um olhar ameaçador, carregado de uma raiva terrível.
— Sim, compramos um quilo daquelas balas em Vermont. Contudo, Cathy, não importa qualquer outra coisa que você me diga, jamais acreditarei que minha esposa decidiu deliberadamente envenenar seus próprios filhos!
Seu olhar cheio de desprezo percorreu-me de alto a baixo e voltou ao meu rosto.
— Sim, você se parece com ela! Talvez seja sua filha, admito! Mas dizer que Corrine seria capaz de matar os próprios filhos... não posso acreditar!
Empurrei-o com força para longe de mim e girei nos calcanhares.
— Ouçam todos! — berrei. — Sou filha de Corrine Foxworth Winslow! Ela realmente trancou os quatro filhos no último quarto da ala norte desta mansão! Nossa avó tomou parte no plano e cedeu-nos o sótão como playground. Decoramos o local com flores de papel, a fim de o alegrarmos para os gêmeos. E tudo isso porque nossa mãe precisava herdar a fortuna do pai. Ela nos dizia que tínhamos que permanecer escondidos, caso contrário nosso avô jamais a incluiria no testamento. Todos vocês sabem o quanto ele a desprezava por ter-se casado com o meio-irmão dele. Nossa mãe persuadiu-nos a virmos para cá e vivermos lá em cima, quietos como ratos de sótão; obedecemos, confiando nela e acreditando que manteria a promessa e nos libertaria no dia em que seu pai morresse. Mas ela não o fez! Nada disso! Deixou-nos sofrendo lá em cima durante nove meses depois que seu pai morreu e foi sepultado!
Eu tinha muito mais a dizer, mas minha mãe soltou um grito agudo:
— Pare!
Cambaleou alguns passos, com os braços estendidos para a frente, como se estivesse cega.
— É mentira! — berrou. — Nunca vi você antes! Saia de minha casa! Saia antes que eu chame a polícia para expulsá-la daqui! Agora, caia fora e nunca mais volte!
Agora todos olhavam para ela, não mais para mim. Ela, sempre cheia de pose e arrogância, se descontrolara, ficando trêmula, o rosto lívido, as unhas em riste tentando arrancar-me os olhos! Não acredito que um só dentre os presentes duvidasse de mim; parecia-me demais com ela e sabia de muitas verdades para estar mentindo!
Bart afastou-se de mim e foi até a esposa, murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido. Abraçou-a com ar consolador e beijou-lhe o rosto. Minha mãe se agarrou a ele, indefesa, as mãos pálidas e trêmulas de desespero, implorando-lhe auxílio com olhos grandes e lacrimosos de um azul cerúleo, iguais aos meus, aos de Chris, aos dos gêmeos.
— Mais uma vez, muito grato pela sensacional apresentação, Cathy. Acompanhe-me à biblioteca para receber seu cachê — disse Bart, correndo o olhar pelos convidados que nos cercavam e acrescentando com voz calma: — Sinto muito, mas minha esposa esteve doente e esta pequena brincadeira foi preparada por mim num momento pouco adequado. Eu jamais deveria ter planejado um espetáculo como este. Portanto, se fizerem o favor de perdoar-me, continuem a festa; comam, bebam e divirtam-se à vontade. Podem ficar até quando quiserem. A Srta. Catherine Dahl talvez lhes reserve outras surpresas.
Como o odiei naquele momento!
Enquanto os convidados se moviam por perto, trocando sussurros e olhando para nós, Bart pegou minha mãe, ergueu-a no colo e se encaminhou para a biblioteca. Ela estava mais pesada do que antes, mas parecia uma pluma nos braços dele. Bart me lançou um olhar por cima do ombro e fez-me um sinal com a cabeça para acompanhá-lo. Obedeci. Eu desejava que Chris estivesse ali a meu lado, como deveria. Não me cabia a total responsabilidade de confrontar nossa mãe com a verdade. Sentia-me estranhamente solitária, na defensiva, como se no final Bart fosse acreditar nela e não em mim, a despeito de tudo que eu afirmasse, sem se importar com todas as provas que eu apresentasse. E eu possuía muitas provas para confirmar minhas declarações. Poderia descrever as flores no sótão, a lesma deformada, a minhoca, a enigmática mensagem que eu escrevera no quadro-negro e, sobretudo, exibir a chave de madeira feita por Chris.
Bart chegou à biblioteca e depositou cuidadosamente minha mãe numa das poltronas de couro. Deu-me uma ordem ríspida:
— Cathy, quer fazer o favor de fechar a porta?
Só então percebi quem mais se encontrava na biblioteca! Minha avó, sentada na mesma cadeira de rodas que pertencera ao marido. Normalmente é quase impossível distinguir uma cadeira de rodas de outra, mas aquela fora fabricada sob encomenda e muito mais valiosa que as comuns. A velha usava um roupão azul sobre o camisolão de hospital e uma manta protegendo as pernas. A cadeira fora colocada perto da lareira, de modo que ela pudesse aproveitar o calor do fogo que ali crepitava. Sua calva brilhou quando ela virou a cabeça para me olhar. Seus duros olhos cinzentos faiscaram maliciosamente. Uma enfermeira lhe fazia companhia. Não me dei ao trabalho de notar-lhe o rosto.
— Sra. Mallory — disse Bart. — Faça o favor de deixar a sala e a Sra. Foxworth ficará conosco.
Não era um pedido, mas uma ordem.
— Sim, senhor — disse a enfermeira, erguendo-se depressa e tratando de retirar-se o mais rápido possível. — Basta tocar a campainha quando a Sra. Foxworth quiser deitar-se, senhor — disse ao chegar à porta, saindo em seguida.
Bart parecia prestes a explodir ao caminhar de um lado para outro. A fúria que sentia agora parecia dirigir-se não só contra mim, como também contra a esposa.
— Muito bem! — declarou, tão logo a enfermeira fechou a porta. – Vamos terminar isto de uma vez por todas, Corrine. Tudo isto. Sempre desconfiei de que você ocultava um segredo, um grande segredo. Ocorreu-me muitas vezes a idéia de que não me amava realmente, mas nunca me passou pela cabeça que pudesse ter quatro filhos, os quais manteve prisioneiros, escondidos no sótão. Por quê? Por que não me procurou para contar toda a verdade? — rugiu ele, totalmente descontrolado. — Como pôde ser tão egoísta, cruel, desalmada e brutal, a ponto de manter seus quatro filhos numa prisão e depois tentar envenená-los com arsênico?
Derreada, inerte numa poltrona de couro, minha mãe fechou os olhos. Parecia já não ter um pingo de sangue nas veias ao indagar com voz sumida e inexpressiva:
— Então, vai acreditar nela e não em mim? Bem sabe que eu seria incapaz de envenenar alguém, por mais que viesse a ganhar com isso. E também sabe que não tenho filhos!
Fiquei aturdida ao saber que Bart acreditava em mim e não nela. Mas logo raciocinei que ele não acreditava realmente em mim e usava um truque de advogado, atacando e esperando pegá-la com a guarda baixa para, talvez, descobrir a verdade. Contudo, ela treinara durante tempo demais para permitir que alguém a pegasse de surpresa. Avancei para fitá-la furiosamente e indagar com meu tom mais ríspido:
— Por que não conta a Bart o que aconteceu a Cory, Mamãe? Vamos, conte-lhe como você e sua mãe entraram em nosso quarto durante a noite e o embrulharam num cobertor verde, afirmando que o levariam para o hospital. Conte-lhe como voltaram no dia seguinte, dizendo que Cory morrera de pneumonia. Mentira! Tudo mentira! Chris desceu às escondidas e ouviu aquele mordomo, John Amos Jackson, contar a uma das criadas que a avó levava arsênico para o sótão, a fim de matar os camundongos. Nós éramos os camundongos que comiam as rosquinhas açucaradas contendo arsênico, Mãe! E conseguimos provar que as roscas estavam envenenadas. Lembra-se do camundongo de estimação de Cory, que você costumava ignorar? Demos-lhe apenas um pedacinho de rosca açucarada e ele morreu! Agora, você fica aí sentada, chorando e dizendo que nunca me viu, negando a existência de Chris e também de Cory e Carrie, que já morreram!
— Nunca vi você em minha vida — disse ela com voz forte, empertigando-se na poltrona e encarando-me nos olhos. — Exceto quando assisti ao balé, em Nova York.
Bart apertou as pálpebras, olhando primeiro para ela e depois para mim. Então, tornou a fitar a esposa, com os olhos ainda mais apertados e ladinos.
— Cathy — disse ele, ainda olhando para a esposa. — Você está fazendo graves acusações contra minha esposa. Alega que ela é culpada de homicídio, de assassinato premeditado. Se você conseguir provar tais afirmações, ela irá a julgamento por homicídio doloso; é isso que você deseja?
— Quero apenas justiça, nada mais. Não, não quero vê-la na cadeia ou condenada à morte na cadeira elétrica... se isso é o que ainda fazem neste Estado.
— Está mentindo — sussurrou minha mãe. — Mentindo, mentindo, mentindo...
Eu viera preparada para enfrentar acusações daquele tipo e, com a maior calma, tirei da bolsinha de prata as cópias autenticadas de quatro certidões de nascimento. Entreguei-as a Bart, que as levou para perto de uma lâmpada e se debruçou para examiná-las. Com crueldade e grande satisfação, sorri para minha mãe.
— Querida mãe, cometeu uma grande tolice ao costurar aquelas certidões de nascimento no forro de nossas maletas velhas. Sem aqueles documentos, eu não disporia da menor prova para mostrar a seu marido e, sem dúvida, ele continuaria a acreditar em você, pois sou atriz e, portanto, acostumada a representar diversos papéis.
Após breve pausa, acrescentei:
— É uma pena ele não saber que você é ainda melhor atriz que eu. Pode encolher-se, Mamãe, mas eu tenho as provas!
Ri desvairadamente, quase chorando ao ver as lágrimas que lhe começaram a brilhar nos olhos, pois outrora eu a amara e sob todo o ódio e animosidade que sentia por ela ainda existia uma pontinha daquele amor. Magoava-me realmente vê-la chorar. Não obstante, ela merecia. E eu repetia comigo mesmo que ela merecia!
— Sabe mais uma coisa, Mamãe? Carrie me contou que você a encontrou na rua e a renegou. Pouco depois, ficou tão doente que morreu; portanto, você também contribuiu para matá-la! E sem as certidões de nascimento, você teria escapado de todo e qualquer castigo, pois aquele cartório em Gladstone, na Pensilvânia, foi destruído num incêndio, há dez anos. Está vendo como o destino foi bondoso para com você? Contudo, Mamãe, você nunca soube fazer nada direito. Por que não queimou os documentos? Por que os conservou?... Foi muito descuido de sua parte, querida e amantíssima Mãe, preservar aquelas provas. Entretanto, você sempre foi estouvada, descuidada, extravagante em relação a tudo. Julgou que se matasse seus quatro filhos poderia ter outros, mas seu pai lhe passou a perna, não é mesmo?
— Cathy! Sente-se e deixe-me cuidar disto! — ordenou Bart. — Minha esposa sofreu recentemente uma cirurgia e não permitirei que sua saúde seja colocada em risco por você. Agora, sente-se antes que eu a empurre!
Obedeci. Bart olhou para a esposa e depois para a mãe dela.
— Corrine, se algum dia você me amou, se gostou um pouquinho de mim, responda-me: alguma coisa do que afirma essa mulher é verdade? Ela é sua filha?
Com voz muito sumida, minha mãe sussurrou:
—... Sim.
Suspirei. Tive a impressão de ouvir a casa inteira suspirar. E Bart também. Ergui os olhos e notei que minha avó me fitava com a mais estranha das expressões.
— Sim — prosseguiu minha mãe num tom inexpressivo, os olhos fixos em Bart. — Eu não lhe podia contar, Bart. Queria fazê-lo, mas tinha medo de você não me aceitar com quatro filhos e sem vintém, e eu o amava tanto. Torturei-me à procura de uma solução que me permitisse ficar com você, com meus filhos e, também, com o dinheiro.
Empertigou-se de tal maneira que a espinha ficou ereta, com a cabeça majestosamente erguida.
— E encontrei a solução! Encontrei! Levei muitas semanas pensando, planejando, arquitetando, mas achei uma solução!
— Corrine — disse Bart num tom gelado, postando-se diante dela como uma torre sólida e inexpugnável. — Homicídio nunca é solução para nada! Você só precisava contar-me a verdade e, juntos, imaginaríamos um meio de salvar seus filhos e, ao mesmo tempo, a herança.
— Será que não compreende? — exclamou ela, excitada. — Eu encontrei sozinha uma solução! Queria você, meus filhos e o dinheiro também. Julgava que meu pai me devia aquele dinheiro!
Riu histericamente, recomeçando a descontrolar-se, como se tivesse o inferno em seu encalço e precisasse falar depressa a fim de escapar às queimaduras.
— Todos me achavam estúpida, uma linda loura desprovida de cérebro. Pois eu a enganei, Mamãe — disse ela à velha na cadeira de rodas. Depois, virou-se para o retrato a óleo acima da lareira: — Enganei-o também, Malcolm Foxworth!
Em seguida voltou-se furiosamente contra mim:
— E você também, Catherine! Achou que sofreu muito trancada lá em cima, privada de sua vida escolar normal e de seus colegas e amigos, mas não imagina como isso foi bom em comparação com o que meu pai me fez! Você... e suas constantes acusações contra mim, quando eu não podia libertá-los! Quando, aqui embaixo, meu pai me ordenava que fizesse isto ou aquilo, caso contrário não herdaria um vintém e meu namorado, depois marido, seria informado da existência de meus quatro filhos!
Prendi a respiração. Então, ergui-me de um salto.
— Ele sabia a respeito de nós? O avô sabia?
Ela tornou a rir, um som duro como diamante cortando vidro.
— Sim, claro que ele sabia, mas quem contou não fui eu! No dia em que Chris e eu fugimos desta casa horrível, meu pai contratou detetives para seguir-nos e mantê-lo informado a nosso respeito. Então, quando meu marido morreu naquele acidente, meu advogado aconselhou-me a pedir a ajuda de minha família. Como meu pai se alegrou com isso! Será que não entende, Cathy? — prosseguiu ela, tão depressa que as palavras pareciam querer atropelar-se. — Ele queria que eu e meus filhos ficássemos nesta casa, sob seu controle, à sua mercê! Planejou, junto com minha mãe, iludir-me e levar-me a pensar que ele não tinha conhecimento de que vocês estavam escondidos lá em cima. Mas sabia durante todo o tempo! Tencionava mantê-los prisioneiros pelo resto de suas vidas!
Fiquei sem respirar, encarando-a. Duvidava de suas palavras; como poderia acreditar numa só de suas afirmações, após tudo o que ela já fizera?
— A avó aceitou o plano? — indaguei, invadida por uma sensação de dormência que me subia das pontas dos pés.
— Ela? — replicou Mamãe, lançando um olhar furioso à avó. — Ela fazia tudo que ele mandasse, porque me odiava. Sempre me odiou! Ele me amou demais quando fui criança, não gostando dos filhos, a quem ela favorecia mais que a mim. E depois que aqui chegamos, atraídos à armadilha, ele adorou manter os filhos de seu meio-irmão capturados como animais numa jaula, a fim de mantê-los no cativeiro até morrerem. Portanto, enquanto vocês ficavam lá em cima, jogando, brincando e decorando o sótão, meu pai não me deixava em paz aqui embaixo, nem por um segundo, dia após dia. “Eles nunca deviam ter nascido, não é mesmo?”, indagava maliciosamente. Então, com ar muito astucioso, insinuava que seria muito melhor vocês morrerem logo que serem prisioneiros até envelhecerem ou adoecerem e morrerem. No início, não acreditei que ele falasse sério, julgando que se tratasse de mais um de seus estratagemas para torturar-me. A cada dia, ele me dizia que vocês eram crianças malévolas, taradas, filhas do Demônio, que mereciam ser destruídas. Eu chorava, implorava, ajoelhava-me para suplicar... e ele ria. Certa noite, disse-me raivosamente: “Idiota! Foi bastante estúpida para acreditar que algum dia eu a perdoasse por haver dormido com seu meio-tio, o mais ultrajante pecado contra Deus? E ter filhos com ele?” E continuou a vociferar, chegando às vezes a gritar comigo. Então, desferia bengaladas, atingindo o que lhe estivesse ao alcance. Minha mãe ficava sentada por perto, assistindo a tudo aquilo com uma careta de zombaria, de prazer. Mesmo assim, ele passou várias semanas sem permitir que eu percebesse que ele sabia que vocês estavam presos lá em cima... e, a essa altura, eu já estava irremediavelmente capturada na armadilha.
Passou a implorar-me piedade:
— Será que consegue entender como foi? Eu não sabia para onde me voltar! Não tinha dinheiro e julgava que meu pai morreria durante um daqueles terríveis ataques de fúria. Portanto, passei a provocá-los, a fim de lhe causar a morte. Entretanto, ele continuou vivo, vociferando contra mim e meus filhos. E cada vez que eu ia a seu quarto, vocês me imploravam liberdade. Especialmente você, Cathy, especialmente você!
— E que mais ele fez para manter-nos prisioneiros? — indaguei, sarcástica. — Além de gritar e lhe bater com a bengala? Não poderiam ser pancadas dolorosas, porque ele estava muito debilitado e, ademais, nunca vimos marcas de pancadas em você após aquela primeira surra com a vara de salgueiro. Você tinha liberdade de sair e entrar quando entendesse. Poderia ter arquitetado algum plano para tirar-nos daqui sem o conhecimento de seu pai. Queria a herança e pouco se importava com o que tivesse que fazer para consegui-la! Desejava aquele dinheiro mais do que queria seus quatro filhos!
Ante meus próprios olhos incrédulos, seu rosto delicado e lindo, recém restaurado, assumiu a aparência envelhecida da sua mãe. Deu a impressão de murchar e abater-se ante a perspectiva dos incontáveis anos que ainda seria obrigada a viver cheia de remorsos. Desviou desesperadamente o olhar, procurando refugiar-se num local seguro onde pudesse ficar oculta para sempre, não só de mim como também da fúria que ardia no olhar de seu marido.
— Cathy — implorou ela. — Sei que me odeia, mas...
— Sim, Mãe, eu a odeio.
— Não odiaria se compreendesse...
Emiti um riso duro e cheio de amargura.
— Querida Mãe, não existe nada que você possa dizer para me fazer compreender.
— Corrine — interpôs Bart num tom estéril, como se lhe tivessem removido o coração. — Sua filha tem razão. Pode ficar aí sentada, chorando e relatando como seu pai a obrigou a envenenar seus próprios filhos, mas como poderei acreditar se jamais o vi lançar um olhar mais severo em sua direção? Ele a fitava com amor e orgulho. Você gozava de total liberdade para fazer o que bem entendesse. Seu pai lhe dava todo o dinheiro para comprar roupas novas e tudo mais que pudesse desejar. Agora você vem com essa ridícula estória de ter sido torturada por ele e obrigada a matar os filhos que mantinha escondidos. Oh! Deus! Você me enoja!
Os olhos de minha mãe ficaram vidrados, fixos. Suas mãos pálidas e elegantes tremiam ao passar do colo para o pescoço, onde apalparam o colar de brilhantes que certamente segurava no lugar, a frente alta do vestido de gala.
— Bart, por favor... não estou mentindo... Confesso que lhe menti no passado, enganando-o quanto a meus filhos, mas não estou mentindo agora. Por que não acredita em mim?
Bart estava de pé com os pés afastados, como um marinheiro que procura equilibrar-se num barco agitado pelas ondas. Mantinha as mãos às costas, os punhos cerrados.
— Que tipo de homem julga que sou... ou era? — indagou com amargura. — Poderia ter-me contado tudo na ocasião e eu entenderia. Eu a amava, Corrine. Faria tudo que fosse legalmente possível para impedir as maldades de seu pai e ajudá-la a receber a herança, ao mesmo tempo em que manteríamos seus filhos vivos, livres para levarem uma vida normal. Não sou um monstro, Corrine, e não me casei com você por dinheiro. Ter-me-ia casado mesmo que você não tivesse um vintém!
— Não conseguiria ser mais esperto que meu pai! — bradou ela, erguendo-se de um pulo e começando a andar de um lado para outro.
Naquele brilhante vestido vermelho, minha mãe parecia uma labareda viva e a cor do tecido tornava-lhe os olhos roxos. Olhou alternadamente para cada um de nós. Então, afinal, quando eu já não podia mais suportar vê-la naquele estado, derrotada e alquebrada, despida de toda a antiga pose majestosa, virou-se para sua mãe, a velha derreada na cadeira de rodas, como se não possuísse mais o esqueleto. Os dedos ossudos e retorcidos alisavam de leve a manta que lhe protegia as pernas, mas os fanáticos olhos cinzentos faiscavam com um fogo forte e malévolo. Observei os olhares de mãe e filha se enfrentarem. Aqueles imutáveis olhos cinzentos, que não se atenuavam com a idade ou o temor do inferno que devia estar à sua espera. E, para meu espanto e surpresa, minha mãe saiu do confronto empertigada e altaneira, a vencedora daquela batalha entre duas vontades de aço. Começou a falar num tom desapaixonado, como se discutisse uma terceira pessoa. Era como ouvir as palavras de uma mulher que sabia estar-se matando com cada sílaba e, apesar disso, já não se importava com isso, pois a verdadeira vencedora era eu. E foi para mim, sua mais severa juíza, que minha mãe dirigiu o apelo final.
— Muito bem, Cathy. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde seria forçada a enfrentá-la. Tinha certeza de que seria você quem me arrancaria a verdade. Sempre teve o dom de ver através de mim, de adivinhar que não fui sempre o que desejava que vocês acreditassem que eu era. Christopher me amava, confiava em mim. Você, porém, nunca. Não obstante, no início, logo que seu pai morreu, tentei fazer o melhor possível por vocês. Disse-lhes o que acreditava ser verdade, quando lhes pedi que viessem viver escondidos aqui até que eu recuperasse as boas graças de meu pai. Na verdade, não acreditava que pudesse demorar mais que um ou dois dias.
Fiquei petrificada, olhando para ela, cujos olhos imploravam mudamente: “Tenha piedade, Cathy, acredite em mim! Falo a verdade!”
Desviou-se de mim e, muito combalida, apelou para Bart, falando do primeiro encontro que tiveram, em casa de um amigo comum.
— Bart, eu não queria amá-lo e envolvê-lo na encrenca em que me encontrava. Desejava falar-lhe a respeito de meus filhos e da ameaça que meu pai representava contra eles. Contudo, sempre que me resolvia a fazê-lo, ele piorava e dava a impressão de estar às portas da morte, de modo que eu adiava a decisão e mantinha segredo. Rezava para que, quando eu finalmente lhe revelasse tudo, você me compreendesse e aceitasse. Fui estúpida, pois um segredo guardado durante tempo demasiado torna-se impossível de explicar. Você queria casar-se comigo. Meu pai insistia em negar seu consentimento. Meus filhos suplicavam-me diariamente serem postos em liberdade. Embora eu soubesse que tinham todo o direito de reclamar, comecei a ressentir-me contra eles, contra o modo pelo qual instavam comigo, causando-me remorso e vergonha quando, na verdade, eu tentava fazer por eles o melhor possível. E era Cathy, sempre Cathy, quem mais insistia comigo, não importava quantos presentes eu lhe desse.
Lançou-me outro de seus olhares demorados e angustiados, como se eu a houvesse torturado além de qualquer resistência humana.
— Cathy — murmurou ela em seguida, o olhar úmido e angustiado animando-se um pouco ao pousar novamente em mim. — Fiz o melhor possível! Disse a meus pais que todos vocês estavam doentes, especialmente Cory. Como eles queriam pensar que Deus punira meus filhos, acreditaram facilmente. E Cory tinha resfriados sucessivos, além da alergia. Será que não entende o que tentei fazer? Procurei torná-los um pouco doentes, a fim de poder levá-los, um a um, para o hospital e depois dizer a meus pais que haviam morrido lá. Utilizei um pouco de arsênico, mas não o bastante para causar a morte! Tudo o que desejava era fazê-los ficar um pouco doentes, apenas o suficiente para tirá-los desta casa!
Fiquei abismada por sua estupidez em arquitetar um plano tão perigoso. Então calculei que tudo era mentira, não passando de uma desculpa para apaziguar Bart, que a encarava de modo muito esquisito. Embora me sentisse magoada por dentro a ponto de quase chorar, consegui sorrir para ela.
— Mamãe — interrompi suavemente suas súplicas. — Já se esqueceu de que seu pai morreu antes de começarmos a receber as rosquinhas açucaradas?
Ela voltou o olhar atormentado para a avó, que a fitava de forma severa implacável.
— Sim! — exclamou minha mãe. — Eu sabia! Se não fosse aquele codicilo no testamento, eu jamais teria necessidade de usar o arsênico! Todavia, meu pai revelou nosso segredo a John, o mordomo, que continuou vivo para verificar se eu obedecia as instruções e mantinha vocês presos lá em cima até morrerem todos! E se John não o fizesse, minha mãe estava encarregada de tomar providências para que ele não herdasse os cinqüenta mil dólares que papai lhe prometera. Portanto, havia também minha mãe, que desejava que John recebesse toda a herança!
Um terrível silêncio pairou no ambiente enquanto eu tentava digerir tais afirmações. O avô soubera de tudo desde o início e queria manter-nos prisioneiros até morrermos? E, como se isto não fosse castigo suficiente, até mesmo tentara obrigá-la a matar-nos? Oh! Ele deveria ser muito pior do que eu imaginara! Não era um ser humano! Então, observando minha mãe, notando-lhe os olhos azuis que aguardavam ansiosamente uma resposta, vendo as mãos que tentavam torcer um imaginário colar de pérolas, compreendi que ela mentia. Olhei para a avó e percebi que franzia a testa, esforçando-se por falar. Seus olhos expressavam feroz indignação, como se negassem todas as alegações de minha mãe. Por outro lado, ela odiava Mamãe. Desejaria que eu acreditasse no pior... Oh! Deus! Como poderia eu descobrir a verdade?
Olhei para Bart, que estava em pé diante do fogo, os olhos escuros fitando a esposa como se nunca a tivesse visto antes e estivesse assustado com o que via agora.
— Mamãe — indaguei em voz baixa. — O que você fez realmente com o corpo de Cory? Procuramos em todos os cemitérios da região, examinamos os registros, e nenhum menino de oito anos morreu naquela última semana de outubro de 1960.
Primeiro ela engoliu em seco. Depois torceu as mãos uma na outra, fazendo faiscar todos os brilhantes e outras jóias.
— Eu não sabia o que fazer com ele — sussurrou. — Morreu antes de chegarmos ao hospital. De repente parou de respirar. Quando olhei para o banco traseiro, percebi que estava morto.
Soluçou com a lembrança, acrescentando:
— Odiei a mim mesma, então. Sabia que poderia ser acusada de homicídio e não desejara matá-lo! Apenas deixá-lo um pouco doente! Portanto, joguei o corpo numa profunda ravina e o cobri com folhas mortas, galhos e pedras...
Seus olhos enormes imploravam-me que acreditasse.
Fui também obrigada a engolir em seco ao pensar em Cory, jogado no fundo de uma ravina escura, abandonado lá para apodrecer.
— Não, Mamãe, você não fez isso — minha voz baixa deu a impressão de cortar a atmosfera gelada da imensa biblioteca. — Antes de descer ao salão, visitei o último quarto da ala norte.
Fiz uma pausa a fim de conseguir maior efeito e dei um tom dramático ao declarar em seguida:
— Antes de descer a escadaria principal para me confrontar com você, usei a escada que leva diretamente ao último andar e, depois, a escadinha do sótão, no armário embutido do quarto que nos serviu de prisão. Chris e eu sempre desconfiamos que devia existir outro acesso ao sótão e presumimos corretamente, que tinha de haver uma porta escondida atrás dos gigantescos e pesados armários que nunca conseguimos afastar, por mais força que empregássemos ao empurrá-los. Mamãe... encontrei um quartinho que nunca tínhamos visto antes. E ele exalava um odor muito peculiar, um cheiro de algo morto e apodrecido.
Por um instante, ela foi incapaz de mover-se. O rosto ficou totalmente inexpressivo. Fitou-me com olhar vago e movimentou os lábios, mas não emitiu o menor som. Tentou mas não conseguiu falar. Bart fez menção de dizer algo, mas ela tapou os ouvidos com as mãos espalmadas, para evitar escutar qualquer coisa que alguém dissesse.
A porta da biblioteca se abriu repentinamente. Girei nos calcanhares, furiosa. Como num pesadelo, minha mãe virou a cabeça para verificar por que motivo eu me mantinha imóvel, com o olhar fixo na direção da porta. Chris estacou bruscamente e olhou para ela. Mamãe teve um sobressalto, como se terrivelmente assustada. Então, ergueu as mãos num gesto que parecia querer afastar Chris. Estaria vendo o fantasma de nosso pai?
— Chris...? — perguntou ela. — Chris, eu não queria, juro que não queria! Não me olhe assim, Chris! Eu os amava! Não queria usar o arsênico, mas meu pai me obrigou! Disse-me que eles nunca deviam ter nascido! Tentou convencer-me de que eram tão pecaminosos que mereciam morrer e este seria o único modo de eu ser perdoada do pecado que cometi ao me casar com você!
As lágrimas lhe escorreram pelo rosto e ela continuou a falar, embora Chris insistisse em menear negativamente a cabeça.
— Eu amava meus filhos! Nossos filhos! Mas o que poderia fazer? Eu só queria que ficassem um pouco doentes, apenas o suficiente para salvá-los... nada mais... Não me olhe assim, Chris! Sabe que eu jamais mataria nossos filhos!
Os olhos azuis de Chris se tornaram gelados ao fitá-la.
— Então, você nos ministrou deliberadamente o arsênico? — indagou ele. — Nunca consegui acreditar realmente nisso depois que escapamos daqui e tive tempo para refletir melhor. Mas você o fez!
Então ela gritou. Nunca em minha vida eu escutei um grito como aquele, que aumentava e diminuía histericamente. Gritos que pareciam uivos de um demente! Ainda gritando, ela girou nos calcanhares e correu para uma porta cuja existência eu ignorava e pela qual ela desapareceu.
— Cathy — disse Chris, obrigando-se a afastar os olhos da porta e examinando a biblioteca para notar a presença de Bart e da avó. — Vim buscá-la. Tenho más notícias. Precisamos ir imediatamente para Clairmont!
Antes que eu pudesse responder Bart indagou:
— Você é Chris, irmão de Cathy?
— Sim, naturalmente. Vim buscar Cathy. A presença dela é necessária em outro lugar.
Estendeu a mão e me encaminhei para ele.
— Espere um momento — disse Bart. — Preciso fazer-lhe algumas perguntas. Tenho necessidade de conhecer toda a verdade. Aquela mulher de vestido vermelho é sua mãe?
Primeiro Chris olhou para mim. Meneei a cabeça para indicar que Bart já sabia. Só então Chris encarou Bart, com certa hostilidade.
— Sim. É minha mãe, mãe de Cathy e foi mãe de dois gêmeos chamados Cory e Carrie.
— E manteve vocês quatro trancados num quarto durante mais de três anos? — quis saber Bart, como se ainda não quisesse acreditar.
— Sim: três anos, quatro meses e dezesseis dias. E quando levou Cory consigo certa noite, voltou depois para dizer-nos que ele morrera de pneumonia. E se deseja maiores detalhes, terá que esperar, pois há outras pessoas de quem precisamos cuidar agora. Venha, Cathy — acrescentou, estendendo outra vez a mão para mim. — Precisamos ir depressa!
Olhando para a avó, lançou-lhe um sorriso irônico.
— Feliz Natal, Avó. Eu esperava jamais tornar a vê-la, mas estou percebendo que o tempo exerceu sua própria vingança.
Virou-se novamente para mim:
— Vamos depressa, Cathy! Onde está seu casaco? Jory e a Sra. Lindstrom estão esperando em meu carro.
— Por quê? — quis saber eu.
Entrei em pânico. O que acontecera?
— Não! — protestou Bart. — Cathy não pode partir: espera um filho meu e quero que fique comigo!
Bart avançou para abraçar-me carinhosamente e fitar-me com os olhos cheios de amor.
— Tirou-me a venda dos olhos, Cathy. Tinha razão. Eu certamente fui feito para coisas melhores que isto aqui. Talvez consiga redimir minha existência fazendo algo útil, para variar.
Lancei um olhar triunfante à avó e evitei fitar Chris. Com o braço de Bart passado em meus ombros, abandonamos a biblioteca e a avó, atravessando todos os outros salões até chegarmos ao grandioso salão de bailes.
O tumulto explodira! Todos gritavam, corriam, procuravam uma esposa ou um marido. Fumaça! Senti cheiro de fumaça!
— Meu Deus! A casa está em chamas! — exclamou Bart, empurrando-me na direção de Chris. — Leve-a para fora e trate de mantê-la em segurança! Preciso encontrar minha esposa!
Olhou desesperadamente em volta, chamando:
— Corrine! Corrine! Onde está você?
A multidão apavorada procurava simultaneamente a mesma porta de saída. Grandes rolos de fumaça negra desciam pelas escadas. Pessoas caíam e eram pisadas pelas outras. Os alegres participantes da festa lutavam agora para fugir dali e pobre de quem não tivesse forças para abrir caminho até a porta. Frenética, tentei acompanhar Bart com os olhos. Vi-o pegar um telefone, sem dúvida para chamar os bombeiros. Em seguida, subiu correndo o lado direito da dupla escadaria, indo diretamente para o fogo!
— Não! — gritei. — Bart... não suba! Morrerá aí em cima! Não, Bart! Volte!
Creio que ele me escutou, pois fez uma pausa no meio da escada e sorriu para mim, que acenei em desespero. Li-lhe nos lábios as palavras “eu a amo”! Então ele apontou para o leste. Não compreendi o gesto, mas Chris presumiu que Bart nos apontava outro caminho de saída.
Engasgados, tossindo, Chris e eu corremos através de outro salão e, afinal, tive oportunidade de avistar o grandioso salão de jantar, que também estava cheio de fumaça.
— Veja! — exclamou Chris, puxando-me pela mão. — Idiotas! Devem existir ao menos uma dúzia de saídas no andar térreo, mas todos correm para a porta principal! Veja as portas do terraço!
Conseguimos sair da casa e, afinal, chegamos ao carro de Chris, do qual Emma, com Jory no colo, observava a mansão incendiar-se. Chris enfiou o braço pela janela do carro e pegou um agasalho para colocar em meus ombros. Então abraçou-me quando me apoiei contra ele, chorando por Bart. Onde ele estaria? Por que não saía da casa? Escutei as sirenas dos carros dos bombeiros nas estradas da montanha, gemendo na noite já tumultuada pelo vento e a neve. Esta caía sobre a casa em chamas, formando bolotas vermelhas que se derretiam, fervendo ao calor do fogo. Jory estendeu os braços, querendo o meu colo. Peguei-o e Chris passou o braço em torno de mim, protegendo-nos.
— Não se preocupe, Cathy — disse ele, tentando reconfortar-me. — Bart deve conhecer todas as saídas.
Então avistei minha mãe em seu vestido vermelho como o fogo, sendo contida por dois homens. Não parava de gritar o nome do marido e depois o de sua mãe.
— Minha mãe! Está lá dentro! É paralítica! Bart já chegara aos degraus do pórtico quando escutou os gritos de minha mãe. Girou nos calcanhares e tornou a entrar na casa incendiada.
Oh! Meu Deus! Ele voltava para salvar a avó, que não merecia viver! Arriscava a própria vida, fazendo todo o possível para provar que, afinal, não era apenas um cãozinho de estimação.
Aquele era o incêndio de meus pesadelos na infância! Era o que eu mais temia, acima de tudo! Era o motivo pelo qual eu insistira em que fizéssemos a escada com lençóis rasgados em tiras, a fim de podermos escapar e chegar ao solo, caso necessário. Foi mais que horrível ver a imensa mansão consumir-se em chamas, quando outrora eu ficaria alegre ao assistir a tal espetáculo. O vento soprava implacavelmente, aumentando as labaredas até que estas iluminavam a noite e davam a impressão de incendiarem o céu. Com que facilidade a madeira antiga queimava, junto com os genuínos móveis de estilo e os objetos de valor inestimável, impossíveis de substituir. Seria um milagre sobrar alguma coisa, a despeito dos heróicos bombeiros que lutavam como loucos, manipulando mangueiras que lançavam jatos de espuma contra o fogo! Alguém gritou:
— Há pessoas presas lá dentro! Salvem-nas!
Creio que fui eu. Os bombeiros agiam com rapidez e agilidade sobre humanas para salvar quem estava lá dentro, enquanto eu gritava, desvairada e frenética:
— Bart! Não quero matá-lo! Quero apenas que me ame! Não morra, Bart! Não morra, por favor!
Minha mãe me escutou e correu para o local onde Chris continuava a me abraçar.
— Você! — berrou ela, com a expressão selvagem de uma louca. — Acha que Bart a amava? Que se casaria com você? Idiota! Você me traiu! Como sempre! E agora Bart morrerá por sua causa!
— Não, mãe — replicou Chris, ainda me abraçando e falando num tom frio como gelo. — Não foi Cathy quem gritou para lembrar a Bart de que a avó ainda estava lá dentro. Foi você. E deve ter percebido que ele não poderia voltar ao interior da casa e sobreviver. Talvez preferisse ver seu marido morto que casado com sua filha.
Ela esbugalhou os olhos, movendo nervosamente as mãos. Seus olhos azuis como o céu apresentavam manchas escuras de maquilagem derretida. Enquanto Chris e eu observávamos, algo em seus olhos cedeu, algo que lhes emprestava clareza e inteligência dissolveu-se. E ela pareceu murchar.
— Christopher, meu filho, meu amor, sou sua mãe. Não me ama mais, Christopher? Por quê? Não lhe trago tudo que precisa ou que me pede? Novos livros, jogos e roupas? O que lhe falta? Diga-me, para que possa ir comprar para você. Por favor, diga-me o que deseja, Christopher. Farei tudo, trarei tudo para compensar o que você está perdendo. Será recompensado mil vezes quando meu pai morrer. E ele deve morrer a qualquer dia, qualquer hora, qualquer minuto, tenho certeza! Juro-lhe que não precisará permanecer aqui muito mais tempo! Não muito tempo, não muito tempo, não muito tempo...
E não parou de dizer aquilo, até que tive ímpetos de gritar. Em vez disso, tapei os ouvidos com as mãos e apertei o rosto de encontro ao peito largo de Chris. Meu irmão fez algum sinal para um dos motoristas da ambulância. Os enfermeiros se aproximaram cautelosamente de minha mãe, que os avistou, soltou um berro e tentou fugir correndo. Ela tropeçou quando o salto do sapato se prendeu na bainha do vestido vermelho brilhante. Caiu de bruços na neve, esperneando, gritando, esmurrando o solo. Levaram-na embora numa camisa-de-força, ainda berrando que eu a traíra, enquanto Chris e eu permanecíamos abraçados, observando-a com os olhos esbugalhados. Sentíamo-nos crianças outra vez, indefesos ante o luto recente e a vergonha que se abatera sobre nós. Acompanhei Chris enquanto ele fazia o possível para aliviar os sofrimentos das pessoas queimadas. Embora só conseguisse atrapalhá-lo, não permiti que se afastasse de minha vista.
O corpo de Bart Winslow foi encontrado no chão da biblioteca, com a esquelética avó ainda em seus braços; ambos morreram sufocados pela fumaça, sem serem tocados pelo fogo. Aos tropeções, cambaleando, fui até lá puxar o cobertor verde para fitar-lhe o rosto e convencer-me de que, mais uma vez, a morte interferia em minha vida. Estava sempre interferindo! Beijei o rosto de Bart e chorei sobre seu peito inerte. Ergui a cabeça e percebi que ele me fitava, sem ver mais nada, tendo partido para onde eu jamais poderia alcançá-lo e confessar-lhe que o amara desde o princípio, quinze anos atrás.
— Cathy, por favor — disse Chris, puxando-me. Chorei quando a mão de Bart me escapou dos dedos. — Precisamos ir! Não temos motivos para ficar, agora que tudo terminou.
Tudo terminou, terminou; estava acabado. Meus olhos acompanharam a ambulância que levou o corpo de Bart, junto com o de minha avó. Não sofri por ela, pois levara da vida aquilo que a ela trouxera. Voltei-me para Chris e chorei novamente em seus braços, pois quem viveria tempo bastante para me permitir manter o amor de que eu necessitava? Quem? Horas e horas se passaram enquanto Chris me implorava que abandonasse aquele lugar que nada nos trouxera senão sofrimento e infelicidade. Por que não me lembrara disso? Tristemente, abaixei-me para pegar pedaços de cartolina que outrora tinham sido roxos e alaranjados. Outras peças de nossa decoração do sótão eram sopradas pelo vento: pétalas rasgadas, folhas arrancadas dos talos.
Amanheceu antes que o incêndio fosse controlado. A essa altura, a imensa grandiosidade que antes fora Foxworth Hall estava reduzida a ruínas fumegantes. As oito chaminés permaneciam eretas em seus robustos alicerces de pedra e, por mais estranho que pudesse parecer, a dupla escadaria curva continuava no lugar, subindo para o nada. Chris estava ansioso por partir, mas tive que sentar-me e observar até a última nesga de fumaça ser soprada para longe, desaparecendo para sempre. Foi minha saudação final a Bartholomew Winslow, que eu vira pela primeira vez aos doze anos de idade. E dera-lhe meu coração à primeira vista. A tal ponto que convencera Paul a deixar crescer o bigode, a fim de parecer-se mais com Bart. E de me casar com Julian porque seus olhos eram escuros, como os de Bart... Oh! Deus! Como poderia eu continuar vivendo com o conhecimento de que matara o homem a quem mais amara?
— Por favor, Cathy, a avó já se foi e não posso dizer que me entristeça com isso, embora sinta muito a respeito de Bart. Deve ter sido nossa mãe quem iniciou o incêndio. Pelo que diz a polícia, o fogo começou no sótão, naquele quartinho junto à escada.
A voz de Chris parecia vir de muito longe, pois eu me mantinha isolada como numa concha. Sacudi a cabeça, tentando clarear as idéias. Quem era eu? Quem era o homem a meu lado? Quem era o menino que dormia no banco traseiro do carro, no colo de uma mulher mais idosa?
— O que há com você, Cathy? — indagou Chris, impaciente. — Ouça: Henny sofreu um grave infarto, hoje! Ao tentar ajudá-la, Paul também teve um ataque cardíaco! Ele precisa de nós! Você pretende ficar sentada aí o dia inteiro, também, lamentando-se por causa de um homem do qual jamais se deveria ter aproximado e permitir que morra o único homem que fez alguma coisa de bom por nós?
A avó dissera muitas coisas certas. Eu era má, nascera cheia de pecado. Tudo ocorrera por minha culpa! Tudo! Se eu nunca tivesse vindo, se eu nunca tivesse vindo... A frase se repetia em meu cérebro enquanto eu chorava lágrimas amargas por ter perdido Bart.
Colhendo o que foi plantado
Estávamos novamente em outubro, o mês das paixões. Naquele ano as árvores pareciam labaredas vermelhas, tocadas pelo frio precoce. Eu me encontrava na varanda dos fundos da grande casa branca de Paul, descascando ervilhas e observando o pequenino filho de Bart correr atrás de seu meio-irmão mais velho, Jory. Déramos ao filho de Bart o mesmo nome do pai, julgando que seria o mais certo, embora seu sobrenome fosse Sheffield e não Winslow. Eu agora era esposa de Paul. Dentro de poucos meses, Jory completaria sete anos e, embora a princípio tivesse um pouco de ciúmes, agora mostrava-se deleitado por ter um irmão mais moço com o qual compartilhar a vida; alguém a quem ele podia dar ordens, ensinar, ser condescendente. Embora ainda pequeno, Bart não era do tipo ao qual se dão ordens. Sempre teve muita personalidade e foi independente desde o início.
— Catherine — chamou a voz fraca de Paul.
Deixei de lado a vasilha de ervilhas verdes e corri para o quarto dele, no andar térreo. Agora Paul conseguia ficar sentado algumas horas por dia numa poltrona, embora no dia de nosso casamento estivesse de cama. Passamos a noite de núpcias abraçados e nada mais que isto. Paul perdera muito peso; estava magro e abatido. Toda sua juventude e vitalidade, às quais ele se apegara tão corajosamente, haviam desaparecido quase da noite para o dia. Não obstante, jamais me comovera tanto como quando sorriu para mim, estendendo-me os braços.
— Chamei apenas para verificar se você atenderia. Ordenei-lhe que saísse de casa, para variar.
— Está falando demais — adverti. — Sabe que não deve falar muito.
Era difícil para ele escutar as conversas sem tomar parte, mas tentava aceitar o fato. Suas palavras seguintes pegaram-me totalmente de surpresa e só consegui fitá-lo, calada e boquiaberta, com os olhos esbugalhados.
— Paul, não pode estar falando sério!
Ele meneou solenemente a cabeça, os olhos ainda lindos e iridescentes fixos nos meus.
— Catherine, meu amor, já faz quase três anos que você vem sendo uma escrava para mim, esforçando-se ao máximo para alegrar meus últimos dias de vida. Todavia, jamais ficarei bom. Talvez continue vivendo assim durante anos e anos, como seu avô, enquanto você fica cada vez mais velha e jogando fora os melhores anos de sua vida.
— Não estou jogando nada fora — repliquei, sufocando um soluço na garganta.
Ele me sorriu docemente e estendeu os braços. Pressurosamente, aninhei-me em seu colo, embora os braços que me envolveram já não tivessem força. Beijou-me. Prendi a respiração. Oh! Ser amada outra vez... Mas não permitiria – não podia permitir!
— Pense bem no assunto, querida. Seus filhos precisam de um pai; o tipo de pai que já não poderei ser agora.
— A culpa é minha! — exclamei. — Se me tivesse casado com você há muitos anos, em vez de Julian, poderia ter cuidado bem de você e impedido que trabalhasse tanto, esforçando-se sem descanso dia e noite. Paul, se Chris, Carrie e eu não tivéssemos entrado em sua vida, você não teria necessidade de ganhar tanto dinheiro para custear os estudos de Medicina de Chris e minhas aulas de balé...
Ele me tapou os lábios com a mão e replicou que, se não fosse por nós já teria morrido há muitos anos por excesso de trabalho.
— Três anos, Catherine — repetiu. — E se você refletir bem, constatará que é tão prisioneira nesta casa quanto foi em Foxworth Hall, esperando que seu avô morresse. Não quero que Chris e você terminem odiando-me... Portanto, reflita bastante e converse com ele a esse respeito. Então, tome uma decisão.
— Paul, Chris é médico! Você sabe que ele não concordaria!
— O tempo está correndo, Catherine, não apenas para mim, mas para você e Chris também. Em breve Jory completará sete anos. Passará a lembrar-se mais nitidamente de tudo. Saberá que Chris é seu tio. Contudo, se vocês partirem agora e me esquecerem, Jory considerará Chris seu padrasto e não tio.
Comecei a soluçar.
— Não! E Chris não concordaria!
— Escute-me, Catherine: não seria errado! De agora em diante, você não poderá gerar outros filhos. Embora eu sofresse muito quando você deu à luz seu filho mais novo, talvez tenha sido uma bênção disfarçada. Sou impotente; não sou um marido de verdade. E logo você ficará viúva outra vez. Além disso, Chris já esperou tanto tempo. Será que não consegue pensar nele e esquecer essa estória de pecado?
E assim, como mamãe, nós também escrevemos nossos roteiros, Chris e eu. E talvez os nossos não fossem melhores que o dela, embora eu jamais tivesse planejado assassinar alguém, nem tivesse a intenção de empurrá-la para além dos limites da sanidade mental, de modo que o resto de seus dias se passariam numa instituição para “convalescentes”. E, ironia das ironias: tudo que ela herdara do pai lhe fora tirado, revertera à sua mãe. O testamento da avó foi aberto e toda a sua fortuna, incluindo o que restava de Foxworth Hall, pertencia agora a uma mulher que só conseguia permanecer numa instituição para doentes mentais, sentada e olhando para quatro paredes. Oh! Mamãe, se ao menos você conseguisse prever o futuro quando pensou em levar seus quatro filhos de volta a Foxworth Hall! Amaldiçoada por todos os seus milhões de dólares e incapaz de gastar um mísero centavo! E nem um só vintém nos caberia. Quando nossa mãe morresse, o dinheiro seria distribuído entre diversas instituições de caridade.
Na primavera do ano seguinte, sentamo-nos perto do riacho para onde Júlia levara Scotty e o segurara sob a superfície, de modo que ele se afogasse na água rasa e esverdeada em que meus dois filhinhos brincavam com veleiros e vadeavam num local onde a água lhes chegava apenas aos tornozelos.
— Chris — comecei, hesitante, embaraçada, mas, ao mesmo tempo, feliz. — Paul fez amor comigo esta noite, pela primeira vez. Ficamos ambos tão felizes que chegamos a chorar. Não é perigoso, é?
Meu irmão baixou a cabeça para ocultar a expressão do rosto e o sol lhe iluminou os cabelos dourados.
— Sinto-me feliz por ambos. Ora, o sexo não é perigoso agora, desde que você não o conduza a um grau muito elevado de excitação.
— Tivemos cuidado.
Após quatro graves ataques cardíacos, o sexo tinha que ser feito com muito cuidado.
— Ótimo!
Naquele instante Jory gritou que fisgara um peixe. Era pequeno demais? Seria obrigado a devolver mais um peixe ao riacho?
— Sim — respondeu Chris. — É apenas um bebê. Não comemos peixes bebês, só os grandes.
— Venham! — chamei. — Vamos voltar para casa. Está quase na hora do jantar.
Meus dois filhos vieram correndo, tão parecidos que davam a impressão de irmãos inteiros, não apenas pela metade. E ainda não lhes contáramos a verdade. Jory não perguntara e Bart ainda era pequeno demais para indagar tais coisas. Contudo, quando quisessem saber, revelaríamos a verdade, por mais difícil que isso fosse para nós.
— Temos dois papais! — gritou Jory, atirando-se nos braços de Chris enquanto eu pegava Bart no colo. — Ninguém na escola tem dois papais e não compreendem quando eu digo... mas talvez eu não saiba explicar direito.
— Tenho certeza de que você não explica direito — disse Chris com um leve sorriso.
No novo carro azul de Chris, voltamos à grande casa branca que tanto nos dera. Como na primeira vez em que ali chegamos, vimos um homem na varanda da frente, com os sapatos brancos apoiados na balaustrada. Enquanto Chris levava meus filhos para o interior da casa, fui até Paul e sorri ao vê-lo cochilar com um sorriso de satisfação nos lábios. O jornal que ele estivera lendo escapara-lhe dos dedos relaxados e caíra no chão da varanda.
— Subirei para dar banho nos meninos — sussurrou Chris. — E você pode pegar os jornais antes que o vento os arraste para os jardins dos vizinhos.
Por mais silenciosamente que se tente apanhar folhas de jornal e dobrá-las, sempre se produz algum barulho. Paul entreabriu os olhos e sorriu para mim.
— Olá — disse ele, sonolento. — Divertiram-se? Fisgaram algum peixe?
— Apanhamos dois, na linha de Jory, mas ele teve que devolvê-los à água, porque eram muito pequenos. Com o que sonhava antes de acordar? — indaguei, debruçando-me para beijá-lo. — Parecia tão feliz... foi um sonho libidinoso?
Ele tornou a sorrir, desta vez com um ar levemente tristonho.
— Estava sonhando com Júlia — respondeu. — Scotty estava com ela e ambos sorriam para mim. Sabe, ela pouco sorriu para mim depois que nos casamos.
— Pobre Júlia! — comentei, tornando a beijá-lo. — Perdeu tanta coisa. Prometo-lhe que meus sorrisos compensarão todos os que ela lhe negou.
— Já compensaram — replicou ele, estendendo o braço para acariciar-me o rosto e os cabelos. — Foi o meu dia de sorte quando você galgou os degraus de minha varanda naquele domingo...
— Naquele maldito domingo — corrigi.
Ele sorriu.
— Dê-me dez minutos antes de me chamar para o jantar. Eu gostaria de encontrar aquele motorista de ônibus e lhe dizer que nenhum domingo é maldito quando você estiver no ônibus.
Entrei para ajudar Chris a cuidar dos meninos e, enquanto ele abotoava o pijama de Jory, vesti um pijama amarelo em Bart Scott Winslow Sheffield. Comíamos cedo, a fim de podermos fazer companhia às crianças. Logo os dez minutos se escoaram e tornei a voltar à varanda, a fim de acordar Paul. Chamei-o baixinho por três vezes, acariciando-lhe o rosto. Afinal soprei-lhe a orelha. Ele continuou a dormir. Comecei a chamá-lo novamente, em voz mais alta, quando ele produziu um som gutural semelhante ao meu nome. Já trêmula e cheia de medo, olhei-o com mais atenção. Só o modo estranho como ele falara foi suficiente para encher-me de um terrível pavor.
— Chris — chamei com voz sumida. — Venha depressa examinar Paul!
Meu irmão devia estar no hall, enviado por Emma para verificar o motivo de nossa demora, pois saiu imediatamente da casa e correu para junto de Paul. Pegou-lhe a mão, tomou-lhe as pulsações e, logo em seguida, tombou-lhe a cabeça para trás, tapando-lhe o nariz e fazendo respiração boca a boca. Quando isto não deu resultado, desferiu várias pancadas fortes no peito de Paul. Corri ao telefone para chamar uma ambulância. Mas, naturalmente, tudo foi inútil. Nosso benfeitor, nosso salvador, meu marido, estava morto. Chris passou o braço por meus ombros e me puxou para si.
— Ele se foi, Cathy, do modo que mais gostaria, e eu também. Dormindo, sentindo-se bem e feliz. É um ótimo modo de morrer, sem dor ou sofrimento. Portanto, não fique assim, a culpa não é sua!
Nunca nada era minha culpa. Havia às minhas costas um rastro de homens mortos. Mas eu não era responsável pela morte de um só dentre eles, era? Não, claro que não. Era de espantar que Chris tivesse coragem de embarcar no carro e sentar-se a meu lado, dirigindo na direção oeste. Engatado ao carro de Chris, vinha um reboque alugado contendo todas as nossas coisas. Íamos para o Oeste, como os antigos pioneiros à procura de um novo futuro, de um tipo diferente de vida. Paul me legara tudo o que possuía, inclusive a casa de sua família. No testamento, declarava que, caso eu desejasse vender a casa, ele gostaria que Amanda tivesse prioridade para adquiri-la. Assim, finalmente a irmã de Paul tomou posse da residência de seus antepassados, que ela tanto desejava e tantos esquemas armara para possuí-la. Contudo, certifiquei-me de que o preço foi bastante elevado.
Chris e eu alugamos uma casa na Califórnia até podermos construir uma residência térrea, no estilo de rancho, segundo nossas especificações: quatro dormitórios, dois banheiros completos e um menor. Além disso, haveria um quarto com banheiro anexo para nossa empregada, Emma Lindstrom. Meus filhos chamam meu irmão de Papai. Ambos sabem que tiveram pais diferentes, que foram para o céu antes que eles nascessem. Até o momento ainda não sabem que Chris é apenas seu tio. Jory já se esqueceu disso há muito tempo. Talvez as crianças também consigam esquecer o que desejam ignorar e não façam perguntas embaraçosas de responder.
Ao menos uma vez por ano fazemos uma viagem ao Leste para visitar amigos, inclusive Madame Marisha e Madame Zolta. Ambas fazem grande estardalhaço quanto ao talento de bailarino de Jory e tentam ardorosamente transformar também Bart em bailarino. Até o momento, porém, a única inclinação demonstrada por Bart é a Medicina. Visitamos todos os túmulos dos entes queridos que já se foram, lá depositando flores. Sempre flores vermelhas e roxas para Carrie; rosas de qualquer tonalidade para Paul e Henny. Até mesmo encontramos o túmulo de nosso pai, em Gladstone, e também lhe apresentamos nosso respeito por meio de flores. Além disso, nunca esquecemos Julian, nem Georges.
Por fim, visitamos Mamãe. Ela vive num lugar imenso, a que tentam inutilmente dar um aspecto acolhedor. Geralmente começa a berrar quando me avista. Em seguida ergue-se de um salto e tenta arrancar-me os cabelos. Quando é contida, volta toda a fúria contra si mesma, procurando repetidamente mutilar o próprio rosto e livrar-se para sempre de qualquer semelhança física comigo. Como se já não se olhasse nos espelhos, que podem mostrar nitidamente que já não nos parecemos atualmente. O remorso transformou-a em algo horrível de se ver. E outrora ela foi tão linda! Os médicos permitem que apenas Chris a visite durante cerca de uma hora, enquanto espero lá fora com os meus filhos. Chris afirma que ela não terá que enfrentar uma acusação de homicídio, pois mesmo que se recupere, ele e eu já negamos a existência de um quarto irmão chamado Cory. Entretanto, ela não confia plenamente em Chris, sentindo que este sofre a minha influência maligna e temendo que, se deixar desmoronar a fachada de demente por detrás da qual se protege, seja condenada à morte na cadeira elétrica. Portanto, os anos transcorrem enquanto ela se apega à calculada farsa como meio de escapar também de um futuro sem ter ninguém que goste dela. Ou, talvez, mais verdadeiramente, procure atormentar-se através de Chris e da piedade que este insiste em ter por ela. De fato, ela constituiu o único ponto que impede nosso relacionamento de ser perfeito.
Portanto, deixei de lado os sonhos de perfeição, fama, fortuna, amor imorredouro e sem defeitos; tornei-me adulta demais para eles, da mesma forma que ocorreu em relação aos brinquedos da infância e às fantasias da juventude.
Freqüentemente, olho para Chris e imagino o que ele vê em mim, o que o une a mim de forma tão permanente? Procuro adivinhar também o motivo pelo qual ele não teme o futuro ou a duração que este venha ter, pois é certo que sei cuidar melhor da sobrevivência de mascotes do que de maridos. Entretanto, ele sempre volta para casa com um andar animado, um sorriso feliz, aceitando alegremente os braços que estendo para recebê-lo com a mesma frase de costume:
— Beije-me se me ama!
Sua clientela é grande, mas não demais, de modo que ele dispõe de tempo para cuidar de nossos dois hectares de jardins, enfeitados com as estátuas de mármore que trouxemos dos jardins de Paul. Na medida do possível, copiamos os jardins de Paul, exceto pelo musgo espanhol; o belo parasita que se agarra às árvores até conseguir matá-las. Emma Lindstrom, nossa governanta, cozinheira e amiga, mora conosco como Henny morava com Paul. Sua família somos nós; ela nos é leal e não se intromete em nossos assuntos particulares.
Pragmático, jovial, o eterno otimista, Chris canta quando trabalha nos jardins. Ao barbear-se pela manhã, cantarola melodias de balé, sem trepidações ou lamentos, como se há muitos anos fosse ele o homem que dançava comigo nas sombras do sótão e jamais permitia que eu lhe visse o rosto. Saberia desde o início que, da mesma forma como me vencera em todos os tipos de jogos, acabaria vencendo o mais importante dentre todos? Por que eu não soubera? Quem me tapara os olhos? Deve ter sido Mamãe quem me disse um dia:
— Case-se com um homem de olhos escuros, Cathy. Olhos escuros sentem tudo com terrível intensidade.
Que piada! Como se olhos azuis não possuíssem profundidade e firmeza. Ela deveria ter aprendido... E eu também deveria ter aprendido. Preocupo-me porque ontem subi ao nosso sótão. Numa pequena alcova lateral, encontrei duas camas de solteiro, com suficiente comprimento para dois meninos se utilizarem delas até a idade adulta. “Oh! Meu Deus!” pensei comigo mesma, “Quem fez isto?” Eu jamais trancaria meus filhos, mesmo que Jory se lembrasse algum dia de que Chris não é seu pai, mas tio. Eu não os trancaria mesmo que Bart, o menor dos dois, fosse informado da verdade pelo irmão. Eu seria capaz de enfrentar a vergonha, o embaraço e a publicidade que arruinariam Chris profissionalmente. Não obstante... não obstante, comprei hoje uma cesta de piquenique, do tipo com tampa dupla que se abre nas pontas: exatamente a mesma espécie de cesta que a avó usava para levar-nos comida.
Portanto, deito-me nervosa e permaneço acordada, temendo o que existe de pior em mim e esforçando-me para agarrar-me ao que tenho de melhor. Tenho a impressão, ao virar-me na cama para aconchegar-me ao homem que amo, de poder escutar o vento frio soprando das montanhas azuladas tão distantes. É o passado que jamais consigo esquecer, que lança sombras sobre todos os meus dias e se esconde furtivamente pelos cantos quando Chris está em casa. Esforço-me realmente para ser como Chris, sempre otimista, quando estou muito longe de ser o tipo capaz de esquecer o azinhavre no reverso da mais brilhante das moedas.
Mas... não sou como ela! Posso parecer-me fisicamente com ela, mas, por dentro, sou honrada! Sou mais forte e mais decidida! No final de tudo, vencerá o que tenho de melhor. Tenho certeza. O melhor tem que vencer, às vezes... não é mesmo?
V. C. Andrews
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