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Em Outubro de 1827, ao alvorecer, um rapaz de cerca de dezasseis anos, cuja aparência denunciava o que a fraseologia moderna denomina tão insolentemente um proletário (3) [(3) Esta palavra, de origem antiga - designava em Roma os cidadãos mais pobres que não podiam ser úteis ao Estado senão pela sua "prole" (família) - caiu em desuso durante muitos séculos; retomada no século XVIII (Littré dá um exemplo do seu uso por J. J. Rousseau), voltou à vida.], deteve-se numa pequena praça que existe na parte baixa de Provins. Àquela hora, pôde examinar, sem ser observado, as diferentes casas que se erguem na praça, que forma um longo quadrilátero. Os moinhos das margens do Provins já estavam a funcionar. O seu ruído, repetido pelos ecos da cidade alta, em harmonia com o ar límpido e as pomposas claridades da manhã, fazia ressaltar a profundidade do silêncio, que permitia ouvir o rodar duma diligência, a uma légua de distância, na estrada real.
As duas mais longas filas de casas, separadas por um dossel de tílias, mostram edificações singelas nas quais transparece a existência pacífica e definida dos burgueses. Neste trecho não há o menor indício de comércio. Vêem-se ali, apenas, os luxuosos portões das casas ricas! Raramente, porém, eles giram sobre os gonzos, excepto o do Sr. Martener, um médico obrigado a possuir um cabriolé e a usá-lo. Algumas fachadas apareciam ornadas duma guia de videira, outras de roseiras de trepar que sobem até ao primeiro andar, onde as flores perfumam as janelas com seus tufos ralos. Uma extremidade dessa praça vai até quase à rua principal da cidade baixa. A outra extremidade é delimitada por uma rua paralela à principal e cujos jardins se desdobram por um dos dois riachos que regam o vale do Provins.
Nessa extremidade, a mais sossegada da praça, o jovem operário reconheceu a casa que lhe haviam indicado: uma fachada de pedra branca, listrada de linhas profundas para fingir carreiras, cujas janelas guarnecidas de estreitas grades de ferro, decoradas com rosáceas amarelas, são fechadas por persianas cinzentas. Por cima dessa fachada, que abrange um pavimento térreo e um primeiro andar, aparecem três clarabóias de mansarda num tecto coberto de ardósias, num de cujos pinhões gira um cata-vento novo. Este moderno cata-vento representa um caçador em posição de alvejar uma lebre. Sobe-se à porta bastarda por três degraus de pedra. Dum lado da porta, a extremidade dum cano de chumbo dá escoamento às águas servidas para um pequeno rego e anuncia a cozinha. Do outro lado, duas janelas, cuidadosamente fechadas por postigos cinzentos nos quais dois corações partidos deixam passar um pouco de luz, pareceram-lhe ser as da sala de jantar. Sob as janelas vêem-se os respiradouros do porão, fechados por portinhas de folha pintada e recortada em pretensiosos desenhos. Tudo, então, era novo. Naquela casa reformada, cujo luxo ainda fresco contrastava com a vetusta aparência das outras, um observador teria imediatamente percebido as ideias mesquinhas e a perfeita satisfação do pequeno comerciante aposentado. O rapaz examinou esses pormenores com uma expressão de prazer misturado de tristeza: os seus olhos corriam da cozinha às mansardas numa atitude que denotava uma deliberação. Os rosados raios do Sol mostraram numa das janelas das águas-furtadas uma cortina de algodão que faltava nas demais. A fisionomia do rapaz tornou-se, então, completamente alegre. Recuou alguns passos, encostou-se a um pé de tília e cantou, no tom arrastado peculiar à gente do Oeste, esta canção bretã publicada por Bruguière, um compositor a quem devemos encantadoras melodias. Na Bretanha, os rapazes das aldeias cantam estes versos às esposas no dia do casamento.
Um feliz casamento desejamos,
Risonho e venturoso
A si e a seu esposo.
Senhora esposa, acabam de prendê-la
Num laço de ouro, forte,
Sagrado até à morte.
Não irá mais a bailes nem a festas.
Enquanto formos lá
Em casa ficará.
Compreende bem quanto terá de ser
Fiel a seu marido
Que deve ser querido?
Aceite as flores que hoje lhe ofereço.
Ai! Seus vãos esplendores
Murcharão como as flores.
Esta música (4) [(4) O original desta canção (que começa por Nous v'nons vous souhaiter bonheur en Mariage), é conhecido não somente na Bretanha, como em várias outras regiões da França.] nacional, tão deliciosa como a adaptada por Chateaubriand à Minha irmã, lembras-te ainda (5) [(5) Letra que Chateaubriand escreveu para uma melodia popular que ouvira em Auvergne.], cantada no meio duma cidadezinha da Brie campesina, devia ser para uma bretã objecto de imperiosas recordações, tão fielmente descreve os costumes, a bonomia e os lugares daquela antiga e nobre região. Reina ali uma certa melancolia causada pelo aspecto da vida real, que comove profundamente. Este poder de despertar um mundo de coisas graves, doces e tristes por meio dum ritmo familiar e muitas vezes alegre é a característica destas canções populares que são as superstições da música, se se quiser aceitar a expressão superstição como significando tudo quanto resta após a ruína dos povos e escapa às suas revoluções.
Ao terminar a primeira estrofe, o operário, que não cessava de olhar para as cortinas da mansarda, não percebeu nenhum movimento. Porém, enquanto cantava a segunda, notou certa agitação. Quando cantou as palavras: "Aceite as flores", apareceu o rosto duma jovem. Uma mão branca abriu cautelosamente a janela e a moça cumprimentou com um aceno de cabeça o viajante, no momento em que ele concluía o pensamento triste expresso por estes dois versos tão simples:
Ai! Seus vãos esplendores
Murcharão como as flores.
Imediatamente o operário tirou de sob as vestes e mostrou à jovem uma flor amarelo-dourada muito comum na Bretanha e que certamente achara na planície da Brie, onde é rara, a flor do junco marinho.
- És tu, Brigaut? - perguntou a jovem em voz baixa.
- Sim, Pierrette, sou eu. Estou em Paris, ando a fazer um giro pela França. Mas, sou capaz de ficar a morar neste lugar, já que estás aqui.
No mesmo momento, o fecho duma janela ringiu no quarto do primeiro andar, sob o de Pierrette. A bretã manifestou o mais vivo temor e disse a Brigaut: "Foge!" O operário correu como uma rã assustada para a curva que, para contornar um moinho, faz aquela rua que desemboca na principal, artéria da cidade baixa. Apesar da sua rapidez, porém, os seus sapatos ferrados ressoaram sobre o calçamento de Provins, produziram um som fácil de distinguir da música do moinho e que foi ouvido pela pessoa que abrira a janela.
Essa pessoa era uma mulher. Homem algum se deixa arrancar às doçuras do sono matinal para escutar um trovador. Só a uma moça solteira uma canção de amor pode despertar. Assim, essa criatura era uma moça solteira, e uma solteirona. Depois de abrir as persianas com um gesto de morcego, olhou em todas as direcções e ouviu apenas vagamente os passos de Brigaut, que fugia. Haverá alguma coisa mais horrível que a aparição matinal duma solteirona feia à janela? De todos os espectáculos grotescos que divertem os viajantes na sua travessia pelas pequenas cidades, não é esse o mais desagradável? É demasiado triste e repugnante para que se ria dele. E essa solteirona, de ouvido tão alerta, apareceu despojada dos artifícios de toda a espécie que usava para embelezar-se: não trazia os cabelos postiços nem a gola de renda. Estava com esse horrível saquinho de tafetá preto com que as solteironas envolvem o occipício e que aparecia por debaixo da touca de dormir, levantada pelos movimentos do sono. Este desarranjo dava àquela cabeça a expressão ameaçadora que os pintores emprestam às bruxas. As têmporas, as orelhas e a nuca, insuficientemente cobertas, deixavam ver a pele seca e árida. As rugas rígidas caracterizavam-se por tons avermelhados pouco agradáveis à vista, o que fazia ressaltar ainda mais a cor quase branca da camisola amarrada ao pescoço por cordões enfiados em ilhós. Os orifícios da camisola entreaberta mostravam um busto comparável ao duma velha camponesa pouco preocupada com a sua fealdade. O braço descarnado dava a impressão dum pedaço de pau coberto com um pano. Vista à janela, essa mulher parecia grande em virtude da energia e do comprimento do rosto, que recordava a incrível amplitude de certas gravuras suíças. A sua fisionomia, cujos traços pecavam por falta de harmonia, tinha como característica principal uma rigidez de linhas, uma aspereza de tons e uma insensibilidade que teria desgostado um fisionomista. As expressões então visíveis modificavam-se habitualmente por uma espécie de sorriso comercial, por uma estupidez burguesa que fingia tão bem a bonomia que toda a gente com quem essa senhora convivia podia muito bem tomá-la por uma boa pessoa. A casa pertencia-lhe em indiviso com o irmão. Este dormia tão tranquilamente no seu quarto que nem a orquestra da Ópera o teria acordado; e como se sabe, o diapasão desta orquestra é famoso! A idosa senhora meteu a cabeça pela janela, ergueu para a mansarda os olhinhos dum azul pálido e amortecido com pestanas curtas, implantadas em rebordos palpebrais quase sempre edemaciados; tentou ver Pierrette. Mas, após reconhecer a inutilidade da sua manobra, recuou a cabeça para dentro do quarto com um gesto semelhante ao duma tartaruga que esconde a cabeça após tê-la posto para fora da carapaça. As persianas fecharam-se e o silêncio da praça não foi mais perturbado senão pelos camponeses que chegavam ou por pessoas madrugadoras. Nas casas em que há uma solteirona, os cães de guarda são inúteis: nada acontece ali que ela não veja ou comente, deduzindo todas as consequências possíveis. Assim, essa circunstância ia dar curso a graves suposições e iniciar um desses dramas obscuros que, por permanecerem secretos, não são menos terríveis se permitirdes aplicar o nome de drama a essa cena interior.
Pierrette não tornou a deitar-se. Para ela, a chegada de Brigaut era um acontecimento extraordinário. Durante a noite, esse Éden dos infelizes, ela sentia-se livre dos aborrecimentos e dos tormentos que tinha de suportar durante o dia. À semelhança dos heróis de não sei que balada alemã ou russa, o sono parecia-lhe uma vida feliz e o dia um mau sonho. Depois de três anos, esse fora o primeiro despertar agradável que tivera. As recordações da infância haviam entoado melodiosamente poesias na sua alma. A primeira estrofe, ouvira-a em sonho. A segunda despertou-a em sobressalto e a terceira deixara-a na dúvida: os infelizes são da escola de S. Tomás. À quarta estrofe, chegando descalça e em camisa à janela, reconhecera Brigaut, seu amigo de infância. Sim! Era o mesmo casaco quadrado de abas curtas bruscamente cortadas e cujos bolsos se movem à altura dos rins, o casaco de tecido azul clássico na Bretanha, o colete de algodão grosseiro, a camisa de algodão abotoada com um coração dourado, o grande colarinho revirado, os brincos, as calças de pano cru irregularmente desbotado, enfim, todas essas coisas humildes e resistentes que constituem o trajo dum pobre bretão. Os grandes botões brancos de chifre do colete e do casaco fizeram palpitar o coração de Pierrette. Ao ver o ramo de junco, os seus olhos humedeceram-se de pranto. Depois, um horrível terror esmagou na sua alma as flores da recordação momentaneamente desabrochadas. Pensou que a prima podia tê-la ouvido levantar-se e encaminhar-se para a janela. Pressentiu a solteirona e fez a Brigaut aquele gesto de pavor a que o pobre bretão se apressara a obedecer sem nada compreender. Não retrata, essa instintiva submissão, uma dessas afeições inocentes e absolutas que surgem de século em século nesta terra, onde florescem como o aloés na Isolda Bella (6) [(6) A mais famosa das quatro Ilhas Barromeias, no Lago Maggiore (Alta Itália).], duas ou três vezes em cem anos?
Quem visse Brigaut fugir, teria apreciado o mais sincero heroísmo do mais sincero sentimento. Jacques Brigaut era digno de Pierrette Lorrain, que completara catorze anos: duas crianças! Pierrette não pôde evitar de chorar ao vê-lo partir com o pavor que o seu gesto lhe comunicara. Depois, foi sentar-se numa velha poltrona, diante da qual havia uma mesa encimada por um espelho. Com os cotovelos fincados na mesa e a cabeça entre as mãos, permaneceu pensativa durante uma hora, rememorando o Marais, o povoado de Pen-Hoël (7) [(7) Povoado que deu o nome à família Pen-Hoël, de antiga nobreza, à qual pertence melle. Pen-Hoël, personagem de Beatriz.], as perigosas viagens empreendidas pelo lago num barco que o pequeno Jacques desamarrava dum velho salgueiro para ela; depois, os rostos envelhecidos da avó, do avô, a cabeça sofredora da mãe e a bela fisionomia do major Brigaut, enfim, toda uma infância sem preocupações! Isso foi ainda um sonho: luminosas alegrias sobre um fundo escuro.
Pierrette estava com os belos cabelos em desordem sob uma touquinha amarrotada durante o sono, uma touquinha de percal pregueado que ela mesma fizera. De cada lado das têmporas caíam cachos soltos dos papelotes de cor parda. Sobre as costas caía uma grande trança achatada. A alvura excessiva do rosto denunciava uma dessas horríveis enfermidades das raparigas, a que a Medicina deu o gracioso nome de clorose e que priva o corpo das suas cores naturais, perturba o apetite e atesta grandes alterações no organismo. Esse tom de cera existia em todo o corpo. O pescoço e as espáduas explicavam, pela sua palidez de planta estiolada, a magreza dos braços projectados para diante e cruzados. Os pés de Pierrette pareciam amolecidos, atrofiados pela doença. A camisola descia apenas até meio das pernas e deixava ver tendões fatigados, veias azuladas e uma carnação debilitada. O frio dava aos seus lábios uma bela coloração violácea. A um sorriso triste que lhe entreabriu a boca também delgada, apareceram dentes dum fino marfim e de formato miúdo, belos dentes transparentes que se harmonizavam com as orelhas finas, o nariz um pouco pontudo, mas bonito, com o perfil que apesar de arredondado era delicado. Toda a animação desse rosto encantador encontrava-se nos olhos, cuja íris, cor de tabaco da Espanha e pontilhada de negro, brilhava com reflexos dourados em torno duma pupila viva e penetrante. Pierrette devia ser alegre, mas, era triste. A sua alegria perdida conservava-se ainda na vivacidade dos contornos dos olhos, na graça ingénua da fronte e na forma do queixo curto. Os longos cílios desenhavam-se como pincéis sobre as maçãs do rosto alteradas pela doença. A palidez excessiva tornava, por outro lado, muito puros os traços da fisionomia. A orelha era uma pequena obra-prima de escultura; dir-se-ia de mármore. Pierrette sofria de diversas maneiras. Quereis, acaso, conhecer a sua história? Ei-la.
OS LORRAIN
A mãe de Pierrette era uma tal sra. Auffray, de Provins, irmã consanguínea da sra. Rogron, mãe dos actuais proprietários daquela casa.
Casado pela primeira vez aos dezoito anos, o Sr. Auffray contraíra, aos sessenta e nove anos, um segundo casamento. Do primeiro, resultara uma filha única, muito feia, que desposara aos dezasseis anos um hoteleiro de Provins, chamado Rogron. Do segundo, Auffray também tivera uma filha. Esta, porém, era encantadora. Assim, por uma circunstância singular, havia uma enorme diferença de idade entre as duas filhas do Sr. Auffray: a do primeiro casamento tinha cinquenta anos quando a do segundo nasceu. Quando o seu velho pai lhe deu uma irmã, a Sr.a Rogron já tinha dois filhos maiores.
Aos dezoito anos, a filha do ancião amoroso casou-se por amor com um oficial bretão chamado Lorrain, capitão da guarda imperial. O amor muitas vezes torna-se ambicioso. O capitão, que quis subir rapidamente a coronel, passou para as forças combatentes. Enquanto o chefe do batalhão e a esposa, muito felizes com a pensão que lhe concedera o Sr. e a sra Auffray, brilhavam em Paris ou corriam à Alemanha ao sabor das batalhas e das pazes imperiais, o velho Auffray, antigo merceeiro de Provins, morreu aos oitenta e oito anos sem ter tido tempo de fazer qualquer disposição testamentária. A herança do bom velho foi tão habilmente manobrada pelo antigo hoteleiro e pela mulher, que estes absorveram a sua maior parte, não deixando à viúva do velho Auffray mais que a casa do defunto na praça e algumas jeiras de terra. Esta viúva, mãe da jovem sra. Lorrain, tinha apenas trinta e oito anos quando o marido morreu. Como muitas viúvas, teve a infeliz ideia de casar-se novamente. Vendeu à enteada, a velha sra. Rogron, as terras e a casa que recebera em virtude do contrato de casamento, a fim de poder desposar um jovem médico chamado Néraud, que devorou todos os seus haveres. Morreu de pesar e na miséria dois anos depois.
A parcela que poderia ter revertido à sra. Lorrain na herança Auffray desapareceu, assim, em grande parte e ficou reduzida a cerca de oito mil francos. O major Lorrain morreu no campo de batalha em Montereau (8) [(8) Travou-se em 14 de Fevereiro de 1814], deixando a viúva de vinte e um anos com o encargo duma filhinha de catorze meses, sem outros bens além da pensão a que tinha direito e da futura herança do Sr. e da sra. Lorrain, comerciantes em Pen-Hoël, povoação vendeana situada na região chamada Marais. Esses Lorrain, pai e mãe do oficial morto, avô e avó paternos de Pierrette Lorrain, vendiam madeiras para construções, ardósias, telhas, canos, etc. O seu negócio, por incapacidade ou falta de sorte, ia mal e apenas lhes dava para viver. A falência da famosa casa Colinet, de Nantes, causada pelos acontecimentos de 1814 que provocaram uma súbita baixa nos géneros coloniais, fizera-lhes perder vinte e quatro mil francos que tinham lá em depósito. Assim, a nora foi bem recebida. A viúva do major trazia uma pensão de oitocentos francos, quantia enorme em Pen-Hoël. Os oito mil francos que o seu cunhado e a sua irmã Rogron lhe enviaram após mil formalidades exigidas pela distância, ela confiou-os aos Lorrain, que lhe hipotecaram uma casinha que possuíam em Nantes, alugada por cem escudos e que valia apenas dez mil francos.
A jovem sra. Lorrain morreu três anos após o segundo e fatal casamento da mãe, em 1819, quase ao mesmo tempo que ela. A filha do velho Auffray e da sua jovem esposa era franzina, pouco desenvolvida e doentia; o ar húmido do Marais foi-lhe nocivo. A família do marido, a fim de conservá-la consigo, persuadiu-a de que em nenhum outro lugar do mundo ela encontraria uma região mais salubre nem mais agradável que o Marais, testemunha dos feitos de Charrette (9) [(9) Segundo o seu costume, Balzac mistura, para alcançar maior verosimilhança, seres reais e personagens imaginários. François-Athanase Charrette de la Contrie, um dos chefes da revolta realista organizada na Vendeia em 1793, foi fuzilado em Nantes pelos republicanos; Pierre Mercier, outro chefe dos revoltosos monarquistas. os Chouans, aprisionado em 1794, conseguiu evadir-se e enfrentou a República ora com as armas na mão, ora como agente dos Chouans, junto aos membros exilados da dinastia. O Marquês de Montauban, figura imaginada por Balzac, desempenhará um dos papéis principais em A Bretanha em 1799; o Barão du Guénic, também personagem balzaquiana, já foi encontrado em Beatriz]. Os Lorrain cercaram-na de todos os cuidados e carinhos. Pretendem alguns que Brigaut, um antigo vendeano, um desses homens de ferro que haviam servido com Charrette, Mercier, o marquês de Montauban e o barão du Guénic, nas guerras contra a República, muito contribuíra para a resignação da jovem sra. Lorrain. Se assim foi, ele o fez, sem dúvida, com imenso amor e dedicação. Toda a Pen-Hoël, aliás, via Brigaut, respeitosamente chamado o major (posto que tinha nos exércitos católicos), passava as tardes e os serões na sala, ao lado da viúva do major imperial. Ultimamente, o cura de Pen-Hoël permitira-se dar algumas sugestões à velha sra. Lorrain. Pedira-lhe que decidisse a sua nora a casar com Brigaut, prometendo conseguir que o major fosse nomeado juiz de paz do distrito de Pen-Hoël por intermédio do visconde de Kergarouët (10) [(10) Marido da Viscondessa de Kergarouet, que procurou em vão casar a filha Carlota com Calisto du Guénic (em Beatriz)]. A morte da pobre jovem senhora tornou a proposta inútil. Pierrette ficou com os avós, que lhe deviam quatrocentos francos de juros por ano, que eram, naturalmente, gastos na sua manutenção. Os velhos, cada vez mais desastrados no comércio, encontraram um concorrente activo e engenhoso, contra quem proferiam injúrias sem nada tentarem como defesa. O major, seu conselheiro e amigo, morreu seis meses depois da amiga, talvez de pesar e talvez em virtude dos ferimentos recebidos, que eram em número de vinte e sete. Como bom comerciante, o mau vizinho procurou arruinar os adversários a fim de acabar com a concorrência. Fez com que emprestassem dinheiro aos Lorrain, prevendo que eles não poderiam resgatar a promissória e forçou-os a requerer falência na velhice. A hipoteca de Pierrette foi sobrepujada pela hipoteca legal da avó, que se aferrou aos seus direitos para conservar um pedaço de pão para o marido. A casa de Nantes foi vendida por nove mil e quinhentos francos e a operação consumiu mil e quinhentos francos de despesas. Os oito mil francos restantes reverteram à sra. Lorrain, que os colocou sobre hipoteca a fim de poderem viver em Nantes numa casa de religiosas semelhante à de Sainte-Périne (11) [(11) Espécie de asilo para inválidos civis, foi fundada em 1801, na Rua de Chaillot], em Paris, e denominada Saint-Jacques, onde os dois anciãos encontraram casa e comida mediante uma módica pensão. Na impossibilidade de conservarem consigo a neta arruinada, os velhos Lorrain lembraram-se dos seus tios Rogron, aos quais escreveram. Os Rogron de Provins haviam morrido. A carta dos Lorrain aos Rogron parecia, assim, destinada a perder-se. Mas, se existe neste mundo alguma coisa capaz de substituir a Providência, essa coisa é o Correio. A imaginação do Correio, incomparavelmente superior à imaginação do público, que, aliás, não é muito grande, ultrapassa em engenho a imaginação dos mais hábeis romancistas. Quando o Correio recebe uma carta, que para ele vale apenas dois ou três sous, e não encontra imediatamente aquele ou aquela a quem deve remetê-la, manifesta uma solicitude financeira que só encontra analogia na dos credores mais intrépidos. O Correio movimenta-se em todas as direcções, investiga nos oitenta e seis departamentos. As dificuldades superexcitam as faculdades inventivas dos empregados, que frequentemente são literatos e que então se empenham na busca do desconhecido com o ardor dos matemáticos do Escritório das Longitudes. Esquadrinham todo o reino. Ao menor clarão de esperança, os escritórios de Paris entram em acção. Acontece muitas vezes ficardes estupefactos ante as garatujas que enchem as duas faces do sobrescrito, atestados gloriosos da persistência administrativa com que a carta foi movimentada. Se um homem empreendesse o trajecto que a carta acaba de vencer, gastaria dez mil francos em viagens, tempo e dinheiro para recuperar doze sous. O Correio tem, decididamente, mais espírito do que o que conduz. A carta dos Lorrain, endereçada ao Sr. Rogron, de Provins, falecido há um ano, foi enviada pelo Correio ao Sr. Rogron, seu filho, comerciante de fazendas à Rua S. Dinis, em Paris. Este facto põe em relevo o engenho do Correio. Um herdeiro sempre está mais ou menos preocupado em saber se recolheu tudo duma herança, se não esqueceu créditos ou alguns restos. O fisco descobre tudo, mesmo os caracteres. Uma carta dirigida ao velho Rogron de Provins, falecido, devia excitar a curiosidade de Rogron filho, de Paris, ou de melle. Rogron, sua irmã, ambos seus herdeiros. Assim, o fisco ganhou os seus sessenta cêntimos (12) [(12) O porte das cartas, geralmente, era pago pelo destinatário].
Os Rogron, aos quais os velhos Lorrain, no desespero de separar-se da neta, estendiam as mãos súplices, deviam, pois, ser os árbitros do destino de Pierrette Lorrain. Torna-se, por isso, indispensável descrever os seus antecedentes e o seu carácter.
OS ROGRON
Rogron pai, aquele hoteleiro de Provins a quem o velho Auffray dera a filha do primeiro casamento, era um homem de rosto afogueado, nariz cheio de veias, e umas faces a quem Baco aplicara os seus sarmentos avermelhados e bolbosos. Embora nédio, baixo e barrigudo, de pernas gordas e mãos grossas, era dotado da sagacidade dos hoteleiros da Suíça, aos quais se assemelhava. O rosto representava vagamente um vasto parreiral açoitado pelo granizo. Realmente, não era bonito, mas a sua mulher parecia-se com ele. Nunca houve um casal mais parelho.
Rogron gostava dos bons pratos e de ser servido por belas moças. Pertencia à seita dos egoístas de comportamento brutal, que se entregam aos seus vícios e satisfazem as suas vontades diante de todo o mundo. Ambicioso, interesseiro, pouco delicado, cheio de fantasias a custear, devorou os lucros até ao dia em que os dentes lhe faltaram. A avareza permaneceu. Ao envelhecer, vendeu o hotel, apanhou, como se viu, quase toda a herança do sogro e retirou-se para a casinha da praça, adquirida por um pedaço de pão à viúva do velho Auffray, avó de Pierrette.
Rogron e a mulher tinham cerca de dois mil francos de renda, provenientes da locação de vinte e sete terrenos situados nas redondezas de Provins, e os juros dos vinte mil francos que apuraram na venda do hotel. A casa do velho Auffray, embora em péssimo estado, foi ocupada, tal como se achava, pelos antigos hoteleiros, que se preservaram, como da peste, de fazer qualquer reforma: os ratos velhos gostam dos buracos das paredes e das ruínas. O antigo hoteleiro, que se afeiçoou à jardinagem, empregou as economias na ampliação do jardim. Estendeu-o à margem do riacho, dando-lhe uma forma de quadrilátero alongado, metido entre dois muros e terminado por uma cerca de pedra que a natureza aquática abandonada a si mesma cobriu com a pujança da sua flora.
No começo da sua vida matrimonial, os Rogron haviam tido, com um intervalo de dois anos, uma filha e um filho: como tudo degenera, os filhos saíram horríveis. Amamentados no campo mediante baixa remuneração, as infelizes crianças voltaram para casa com a terrível educação da aldeia, habituadas a gritar demoradamente, muitas vezes, pelo seio da ama, que saía para o campo e os deixava encerrados num desses quartos escuros, húmidos e baixos que servem de moradia ao camponês francês. Com esse sistema, as feições das crianças tornaram-se grosseiras e a sua voz ficou alterada. Assim, pouco lisonjearam o amor-próprio da mãe, que tentou corrigir os seus maus hábitos por meio dum rigorismo que o amor-próprio do pai convertia em ternura. Deixaram que corressem pelo pátio, estrebarias e dependências do hotel ou perambulassem pela cidade. Deram-lhes alguns açoites. Enviavam-nos, às vezes, à casa do avô Auffray, que os estimava muito pouco. Essa injustiça constituiu uma das razões que encorajaram os Rogron a apoderar-se duma grande parte da herança daquele velho celerado. Entrementes, Rogron pôs o filho na escola. Pagou a um dos seus carroceiros para substituí-lo no recrutamento militar. Quando a filha Sílvia completou treze anos, enviou-a para Paris como aprendiza duma casa comercial. Dois anos depois, expediu o filho Jerónimo Dinis pelo mesmo caminho. Quando os amigos, os compadres carroceiros ou os fregueses lhe indagavam que queria fazer dos filhos, Rogron explicava o seu sistema com uma concisão que tinha, sobre o da maior parte dos pais, o mérito da franqueza.
- Quando estiverem em idade de compreender-me, dou-lhes um pontapé - sabem onde? - dizendo-lhes: "Vão ganhar dinheiro!" - respondia ele, bebendo ou enxugando os lábios com as costas da mão. Depois, olhava para o interlocutor piscando o olho com uma expressão astuta: - Ah! Ah! Eles não são mais burros do que eu - acrescentava. - Meu pai deu-me três pontapés, eu quero dar-lhes apenas um. Pôs um luís na minha mão, porei dez na deles. Serão, portanto, mais felizes do que eu. Assim é que se deve agir! Quando eu morrer, o que sobrar sobrará. Os tabeliões saberão encontrá-lo. Seria tolice preocupar-se com os filhos!... Os meus devem-me a vida, criei-os e não lhes peço nada. Então, não estão quites, vizinho? Comecei como carreteiro e isso não me impediu de desposar a filha desse velho celerado tio Auffray.
Sílvia Rogron foi enviada como aprendiza à casa de comerciantes nascidos em Provins e estabelecidos na Rua S. Dinis, em Paris, pagando cem escudos de pensão. Dois anos depois, ela estava "ao par": não ganhava nada, mas os seus pais pagavam o mesmo pela hospedagem. Isto é o que se chama estar ao par, à Rua S. Dinis. Dois anos mais tarde, durante os quais a mãe lhe mandou cem francos para as despesas, Sílvia começou a receber cem escudos de ordenado. Assim, com a idade de dezanove anos Sílvia Rogron obteve a sua independência. Aos vinte anos, era a segunda moça da casa Julliard, negociante de seda em meadas, no Bicho da Seda Chinês, à Rua S. Dinis. A história da irmã foi igual à do irmão. Jerónimo Dinis entrou para a casa dum dos maiores comerciantes da Rua S. Dinis, a casa Guépin, Três Rocas. Se, aos vinte e um anos, Sílvia era a primeira empregada, com mil francos de ordenado, Jerónimo Dinis, mais favorecido pelas circunstâncias, era aos dezoito anos primeiro caixeiro, com mil e duzentos francos, na casa dos Guépin, também naturais de Provins. O irmão e a irmã encontravam-se todos os domingos e dias feriados. Passavam-nos em diversões baratas. Jantavam fora de Paris, iam visitar Saint-Cloud, Meudon, Belleville, Vincennes. No fim do ano de 1815, reuniram o dinheiro que haviam juntado com o suor dos seus rostos, cerca de vinte mil francos, e compraram à sra. Guénée o famoso estabelecimento comercial Irmã de Família, uma das mais fortes casas de venda, a retalho, de objectos de costura e artigos de capelista e retroseiro. A irmã encarregou-se da caixa, do balcão e da escrituração. O irmão foi, ao mesmo tempo, o gerente e o primeiro caixeiro, como Sílvia foi durante algum tempo a sua primeira empregada. Em 1821, após cinco anos de actividade, a concorrência tornou-se tão intensa e tão animada no comércio de retrosaria que os irmãos mal haviam podido salvar a compra do estabelecimento e sustentar a sua antiga reputação. Embora Sílvia Rogron não tivesse, nessa época, mais que quarenta anos, a sua fealdade, os seus constantes trabalhos e uma certa expressão carrancuda que lhe emprestava a disposição das suas feições, bem como as inquietações, faziam-na parecer uma mulher de cinquenta anos. Aos trinta e oito anos, Jerónimo Dinis Rogron apresentava a fisionomia mais inocente que jamais algum balcão tenha mostrado aos fregueses. A fronte chata, deprimida pela fadiga, era atravessada por três rugas secas. Os escassos cabelos grisalhos, cortados rente, exprimiam a indefinível estupidez dos animais de sangue frio. Os olhos azulados não projectavam nem luz nem ideias. O rosto redondo e achatado não atraía a mínima simpatia e nem mesmo levava o riso aos lábios daqueles que se dedicam ao exame das variedades do parisiense: entristecia. Finalmente, embora fosse, como o pai, gordo e baixo, as suas formas, desprovidas da brutal obesidade do hoteleiro, denunciavam nos mínimos pormenores um acabrunhamento ridículo. A excessiva vermelhidão do pai era substituída nele, pela lividez baça peculiar às pessoas que vivem em quartinhos sem ar atrás das lojas, em choças gradeadas chamadas caixas, sempre enrolando e desenrolando os fios, pagando ou recebendo, repreendendo os caixeiros ou repetindo as mesmas coisas aos fregueses. A escassa inteligência do irmão e da irmã havia sido inteiramente absorvida pelo aprendizado do seu negócio, pelo Deve e Haver, pelo estudo das leis especiais e dos costumes da praça de Paris. A linha, as agulhas, as fitas, os alfinetes, os botões, os aviamentos de alfaiate, enfim, a imensa quantidade de artigos que compõem o comércio a retalho parisiense haviam gasto a sua memória. As cartas a escrever e a responder, as facturas e os balanços haviam consumido toda a sua capacidade. Fora do seu negócio, não sabiam absolutamente nada. Desconheciam mesmo Paris. Para eles, Paris era alguma coisa espalhada em derredor da Rua S. Dinis. O seu carácter mesquinho tivera como campo de acção a loja. Sabiam admiravelmente atormentar os empregados e as caixeiras e apanhá-los em falta. A sua felicidade consistia em ver todas as mãos agitadas como patas de ratos sobre o balcão, manuseando a mercadoria ou ocupadas em pôr em ordem os artigos. Quando ouviam sete ou oito vozes de moças e moços a repetir as frases consagradas pelas quais os caixeiros respondem às observações dos compradores, o dia era belo, fazia bom tempo! Quando o azul do éter avivava Paris, quando os parisienses saíam a passear, preocupados apenas com os adornos que levavam: "Mau tempo para os negócios", dizia o imbecil patrão. A grande ciência que tornava Rogron objecto da admiração dos aprendizes era a sua arte de atar e desatar, reatar e confeccionar um pacote. Rogron podia fazer um embrulho e observar ao mesmo tempo o que se passava na rua ou vigiar a loja até ao fundo. Tinha visto tudo, quando, ao entregá-lo à freguesa, dizia: "Aqui está, minha senhora. Precisa de mais alguma coisa?" Não fosse a irmã, esse cretino ter-se-ia arruinado. Sílvia tinha bom-senso e talento para vender. Dirigia o irmão nas compras de fábrica e enviava-o sem compaixão aos confins da França para conseguir um sou a menos no preço dum artigo. Como a sagacidade que todas as mulheres, em maior ou menor grau, possuem, não estava ao serviço do amor, ela dirigira-a para a especulação. Um estabelecimento a pagar! - este pensamento era o pistão que fazia funcionar aquela máquina e lhe comunicava uma actividade espantosa. Rogron, que permanecera primeiro caixeiro, não compreendia o conjunto dos negócios: o interesse pessoal, o maior veículo do espírito, não lhe fizera dar um só passo em frente. Frequentemente ficava apalermado quando a irmã mandava vender um artigo com prejuízo ao prever que ele ia sair da moda e mais tarde admirava sinceramente a irmã Sílvia. Não raciocinava bem nem mal: era incapaz dum raciocínio. Tinha, porém, o bom-senso de submeter-se à irmã, baseado numa circunstância estranha ao comércio: "É minha irmã mais velha" - dizia. É possível que uma existência constantemente solitária, reduzida à satisfação das necessidades, desprovida de dinheiro e dos prazeres da mocidade, explique aos fisiologistas e aos pensadores a expressão embrutecida do rosto, a fraqueza da inteligência, a atitude atoleimada deste comerciante. A sua irmã sempre o impedira de casar-se, receando talvez perder a sua influência na casa e pressentindo uma causa de despesa e de ruína numa mulher infalivelmente mais jovem e sem dúvida menos feia do que ela.
A estupidez tem duas maneiras de ser: cala-se ou fala. A estupidez muda é suportável, mas a estupidez de Rogron era tagarela. Este retalhista habituara-se a repreender asperamente os caixeiros, explicar-lhes as minúcias do comércio de objectos de costura e artigos de capelista e retroseiro, ornando-os com esses gracejos vulgares que constituem o bagout das lojas. Esta expressão, que antigamente designava o espírito de réplica estereotipada, foi destronada pela expressão soldadesca de blague. Rogron, necessariamente escutado por um mundo doméstico, satisfeito consigo mesmo, acabara criando uma fraseologia própria. Esse conversador julgava-se orador. A necessidade de explicar aos fregueses o que eles precisam, de sondar os seus desejos, de fazê-los querer o que não querem, desata a língua do retalhista. O pequeno comerciante acaba por adquirir a faculdade de fazer frases cujas palavras não contêm nenhuma ideia e que alcançam êxito. Além disso, expõe aos fregueses processos pouco conhecidos. Daí lhe advém uma certa superioridade momentânea sobre a freguesia, mas, uma vez fora das mil e uma explicações exigidas pelos seus mil e um artigos, torna-se, relativamente às ideias, como um peixe na palha e ao sol.
Rogron e Sílvia, esses dois autómatos ilicitamente baptizados, não tinham, em estado rudimentar nem em actividade, os sentimentos que conferem ao coração uma existência própria. Além disso, esses dois temperamentos eram excessivamente fibrosos e secos, endurecidos pelo trabalho, pelas privações e pela recordação dos sofrimentos suportados durante um longo e rude aprendizado. Nem um nem outro jamais se compadecia de alguma desgraça. Eram ambos, não propriamente implacáveis, mas intratáveis para com as pessoas em dificuldade. Para eles, a virtude, a honra, a lealdade, todos os sentimentos humanos consistiam em pagar pontualmente as contas. Intrigantes, desalmados e duma sovinice sórdida, o irmão e a irmã tinham uma horrível reputação no comércio da Rua S. Dinis. Sem relações em Provins, aonde iam três vezes por ano, nas épocas em que podiam fechar a loja durante dois ou três dias, não conseguiriam caixeiros para o estabelecimento. Além disso, Rogron enviava aos filhos todos os desgraçados destinados ao comércio pelos pais. Fazia, para eles, o tráfico dos aprendizes e das aprendizas em Provins, onde louvava, por vanglória, a fortuna dos filhos. Seduzidos pela perspectiva de ver o filho ou a filha bem instruído e bem vigiado e pela possibilidade de vê-lo suceder um dia a Rogron filho, mandavam a criança, que estava a incomodar em casa, para uma habitação mantida pelos dois celibatários. Logo, porém, que o aprendiz ou a aprendiza a cem escudos de pensão encontrava um meio de deixar aquela galera, fugia com um contentamento que aumentava ainda mais a terrível fama dos Rogron. O infatigável hoteleiro descobria-lhes sempre novas vítimas. Desde a idade de quinze anos, Sílvia Rogron, obrigada a caracterizar-se para vender, usava duas caras: a fisionomia amável da vendedora e a fisionomia peculiar às solteironas encarquilhadas. A fisionomia adquirida era duma mímica maravilhosa. Tudo nela sorria: a voz tornada doce e bajuladora, exercia um encanto comercial sobre a freguesia. A sua verdadeira fisionomia era a que apareceu entre as duas persianas entreabertas e que teria posto em fuga o mais decidido dos cossacos de 1815, que, entretanto, gostavam de qualquer espécie de francesa.
Quando chegou a carta dos Lorrain, os Rogron, de luto pelo pai, haviam herdado a casa mais ou menos furtada à avó de Pierrette, as terras adquiridas pelo antigo hoteleiro e, finalmente, algum dinheiro proveniente de empréstimos usurários em hipotecas sobre propriedades compradas por camponeses e que o velho beberrão esperava expropriar. O balanço anual já fora encerrado. A casa irmã de Família estava paga. Os Rogron possuíam cerca de sessenta mil francos de mercadorias em "stock", uns quarenta mil francos em caixa ou em títulos e o valor do imóvel. Sentados sobre a banqueta de veludo de Utrecht verde listrado com faixas lisas, num nicho quadrado situado atrás do balcão, em frente ao qual havia um outro semelhante para a primeira caixeira, os dois irmãos trocavam ideias sobre os seus futuros projectos. Todo o comerciante aspira à burguesia. Liquidando os seus bens comerciais, os irmãos ficariam com cerca de cento e cinquenta mil francos, sem contar a herança paterna. Colocando o capital disponível a juros, cada um deles teria três ou quatro mil francos de renda, mesmo destinando à restauração da casa paterna o valor da sua propriedade, que, sem dúvida, lhes seria pago à vista. Podiam, pois, ir viver juntos em Provins, numa casa própria. A sua primeira caixeira era filha dum rico agricultor de Donnemarie, que tinha nove filhos aos quais precisava dar uma posição, pois, dividindo a sua fortuna em nove partes, tocaria uma quantia muito pequena a cada um. Em cinco anos, o agricultor perdera sete filhos: assim, essa primeira caixeira tornara-se uma criatura tão interessante que Rogron tentara, inutilmente, fazê-la sua esposa. A jovem manifestou pelo patrão uma aversão que desconcertava qualquer tentativa. Por outro lado, Sílvia pouco o auxiliava nisso; opunha-se, mesmo, ao casamento do irmão e queria que aquela moça tão astuta os substituísse na loja. Adiava o casamento de Rogron para depois de se instalarem em Provins.
Ninguém, entre os transeuntes, pode compreender o objectivo da existência de certos lojistas. Contemplam-nos e perguntam-se: - "De que e para que vivem? Que vêm a ser eles? De onde vêm?" Quem quiser elucidar essa gente, acabará por se perder em minúcias. Para descobrir a escassa poesia que germina nessas cabeças e vivifica essas existências, é necessário escavá-las; logo, porém, se encontrará a pedra dura sobre a qual tudo repousa. O lojista parisiense nutre-se duma esperança mais ou menos realizável e sem a qual certamente pereceria: este sonha em construir ou administrar um teatro; aquele sente inclinação pelas honras da administração municipal; outro possui uma casa de campo a três léguas de Paris, um pretenso parque onde espalha estátuas de gesso colorido, ou instala repuxos que se assemelham a nascentes e onde gasta somas enormes; outro mais sonha com os postos superiores da guarda nacional. Provins, esse paraíso terrestre, excitava nos dois retalhistas o fanatismo que todas as belas cidades da França inspiram a seus habitantes. Seja dito, para glória da Champanha: esse amor é legítimo. Provins, uma das mais encantadoras cidades da França, rivaliza com o Frangistan e o vale de Caxemira (13) [(13) A Caxemira é uma das regiões mais férteis e amenas da Índia. Quanto ao Frangistan, trata-se, certamente, de lapso de Balzac: com efeito, segundo a carta de um leitor do Mercure de France (nº do 1.o de Junho de 1947, p. 392), ele parece tomá-lo aqui por uma parte da Índia ou da Pérsia, quando a palavra significa em árabe "terra dos Francos", quer dizer, Europa]; não somente encerra a poesia de Saad (14) [(14) Saadi (1184-1293) é o autor do famoso Gulistan ou Jardim das Rosas. O mesmo leitor implicante observa que as suas poesias breves e leves dificilmente poderiam ser comparadas às grandes epopeias de Homero; mas talvez Balzac quisesse apenas comparar a importância dos dois poetas nas respectivas literaturas], o Homero da Pérsia, mas, também fornece virtudes farmacêuticas à Ciência médica. Os Cruzados trouxeram as rosas de Jericó (15) [(15) Flores de um belo vermelho, chamadas também "rosas de França" e "rosas de Provins"] para este delicioso vale, onde, por acaso, adquiriam qualidades novas, sem nada perderem das suas cores. Provins não é apenas a Pérsia francesa; poderia ser também Bade, Aix, Bath: tem águas! Tal é a paisagem anualmente revista e que de vez em quando aparecia aos dois retalhistas sobre o calçamento lodoso da Rua S. Dinis.
Após terdes atravessado as planícies monótonas que se encontram entre a Ferté-Gaucher e Provins, verdadeiro deserto, porém produtivo, um deserto de trigo, chegareis a uma colina. Logo depois, vereis a vossos pés uma cidade banhada por dois riachos: ao pé do rochedo estende-se um vale verde, de lindos contornos e horizontes fugazes. Se vierdes de Paris, entrareis em Provins directamente, por essa eterna estrada real da França que passa ao pé da colina, cortando-a, com os seus cegos e mendigos que vos acompanham com lamentos, enquanto admirais essa pitoresca região inesperada. Se vierdes de Troyes, entrareis pela região plana. O castelo, a cidade velha e as suas antigas muralhas erguem-se sobre a colina. A cidade nova estende-se na parte baixa. Existe a alta e a baixa Provins. A primeira, uma cidade arejada, com ruas íngremes, de lindo aspecto, circundada por estradas escavadas, orladas de nogueiras e que crivam com seus vastos sulcos a aresta viva da colina; cidade silenciosa, asseada, solene, dominada pelas ruínas imponentes do castelo. A outra, uma cidade de moinhos, banhada pelo Voulzie e o Durtain, dois riachos de Brie, pequenos, vagarosos e profundos; uma cidade de hotéis, de comércio, de burgueses aposentados, percorrida por diligências, caleças e carretas. Essas duas cidades, ou essa cidade, com as suas lembranças históricas, a melancolia das suas ruínas, a alacridade do seu vale, os seus deliciosos córregos cheios de sebes crespas e de flores, a sua ribeira serrilhada de jardins, excita de tal modo o amor dos seus filhos que eles conduzem-se como os auverneses, os saboianos e os franceses: os que saem de Provins em busca de fortuna acabam sempre por voltar para lá. O provérbio: morrer na toca, criado para os coelhos e as pessoas fiéis, parece ser a divisa da gente de Provins.
Assim, os dois Rogron não pensavam senão na sua querida Provins! Enquanto vendia linhas, o irmão revia a cidade alta. Ao empilhar os cartões cheios de botões, contemplava o Vale. Enrolando e desenrolando fitilho, seguia o curso brilhante dos riachos. Enquanto examinava os armários, subia as azinhagas para onde outrora acorria, fugindo da cólera dos pais, para comer nozes e saborear amoras. A praça de Provins, sobretudo, ocupava a sua imaginação: pensava em embelezar a casa, sonhava com a fachada que queria remodelar, com os quartos, a sala de visitas, a sala de bilhar, a casa de jantar e a horta, que a sua fantasia transformava num jardim inglês com canteiros de relva, grutas, repuxos, estátuas, etc. Os quartos onde dormiam o irmão e a irmã, no segundo andar da casa de três janelas e seis pavimentos, alta e amarela, como tantas outras da Rua S. Dinis, tinham apenas a mobília estritamente necessária. Mas ninguém possuía, em Paris, um mobiliário mais rico que esse retalhista. Quando andava pela cidade, permanecia na atitude dos "teriakis" (16) [(16) Fumadores e comedores de ópio, no Oriente], contemplando os belos móveis em exposição e examinando as cortinas com que enchia a casa. Ao voltar, dizia à irmã: "Vi em tal loja tal móvel de sala de visitas que nos ficaria muito bem!" No dia seguinte, comprava outro, e assim por diante. Ruminava, no mês corrente, os móveis do mês passado. O orçamento da despesa pública não bastaria para custear as suas volubilidades de arquitectura: queria tudo e sempre dava preferência às últimas invenções. Quando contemplava as sacadas das casas recentemente construídas, quando estudava os tímidos ensaios de ornamentação externa, achava as molduras, as esculturas e os desenhos deslocados. "Ah! - dizia consigo - essas belas coisas ficariam muito melhor em Provins do que aqui!" Enquanto ruminava o almoço, no limiar da porta, encostado à fachada, com o olhar embrutecido, o retroseiro via uma casa fantástica, dourada pelo sol do seu sonho; passeava pelo seu jardim, escutava a água do repuxo a cair em pérolas brilhantes sobre uma lâmina redonda de lioz. Jogava no seu bilhar, plantava flores. Se a irmã ficava com a pena na mão, meditando e esquecendo-se de repreender os caixeiros, é porque se imaginava estar a receber os burgueses de Provins; contemplava-se adornada de toucas maravilhosas nos espelhos da sua sala de visitas. O irmão e a irmã começavam a achar a atmosfera da Rua S. Dinis insalubre e o odor da lama do mercado fazia-lhes desejar o perfume das rosas de Provins. Tinham simultaneamente uma nostalgia e uma monomania contrariadas pela necessidade de vender os últimos pedaços de linha, os carretéis de seda e os botões. A terra prometida do vale de Provins atraía ainda mais fortemente esses hebreus porque eles haviam realmente sofrido durante muito tempo e atravessado, ofegantes, os desertos arenosos do comércio de retrosaria e outros artigos.
A carta dos Lorrain chegou no meio duma meditação inspirada por essa bela perspectiva. Os lojistas mal conheciam a sua prima Pierrette Lorrain. A questão da herança Auffray, provocada muito antes pelo velho hoteleiro, tivera lugar durante a sua instalação e Rogron falava muito pouco sobre os seus bens. Mandados muito cedo para Paris, o irmão e a irmã conservavam uma vaga lembrança da tia Lorrain. Foi necessária uma hora de discussão para que se recordassem da tia, filha do segundo casamento do avô Auffray, irmã consanguínea de sua mãe. A mãe da sra. Lorrain surgiu-lhes na memória como sra. Néraud, morta de desgosto. Verificaram, assim, que o segundo casamento do avô fora uma coisa funesta para eles, pois resultara na partilha da herança. Por outro lado, tinham ouvido algumas recriminações do pai, sempre um pouco folgazão e homem de hospedaria.
Os dois retroseiros examinaram a carta dos Lorrain através dessas recordações pouco favoráveis à causa de Pierrette. Encarregar-se duma órfã, uma menina, uma prima, que, apesar de tudo, seria sua herdeira no caso de nenhum dos dois se casar, era um assunto que devia ser discutido. A questão foi estudada sob todos os seus aspectos. Em primeiro lugar, nunca haviam visto Pierrette. Além disso, seria aborrecido ter de cuidar duma menina. Não assumiriam assim, obrigações para com ela? Seria impossível despedi-la se ela não lhes conviesse? E por fim, não seria necessário casá-la? E se Rogron encontrasse um partido conveniente entre as herdeiras de Provins, não seria melhor reservar toda a fortuna para os filhos? Segundo Sílvia, um partido conveniente para o irmão seria uma moça estúpida, rica e feia, que se deixasse governar por ela. Os dois comerciantes resolveram recusar. Sílvia incumbiu-se da resposta. A marcha dos negócios estava, porém, suficientemente animada para que Sílvia considerasse urgente a resposta e a solteirona deixou de pensar nela desde que a sua primeira caixeira consentiu em tratar da compra do estabelecimento da Irmã de Família. Sílvia Rogron e o irmão partiram para Provins quatro anos antes do dia em que a vinda de Brigaut ia despertar tanto interesse pela vida de Pierrette. As actividades dessas duas pessoas na província exigem uma explicação tão necessária como sobre a sua existência em Paris, pois Provins não devia ser menos funesta a Pierrette que os antecedentes comerciais dos dois primos.
PATOLOGIA DOS MERCEEIROS APOSENTADOS
Quando o pequeno comerciante que foi da província para Paris, retorna de Paris para a província, leva, no regresso, algumas iniciativas. Mais tarde, perde-as na monotonia da vida provinciana em que se afunda e na qual as suas veleidades de renovação se desmoronam. Disso resultam essas pequenas transformações, lentas, sucessivas, pelas quais Paris acaba por arranhar a superfície das cidades departamentais e que assinalam essencialmente a transição de ex-lojista a provinciano consumado. Essa transição constitui uma verdadeira enfermidade. Nenhum retalhista passa impunemente da tagarelice contínua ao silêncio e da actividade parisiense à imobilidade provinciana. Quando essa gente conseguiu juntar alguma fortuna, gasta uma certa parte dela com a paixão incubada durante tanto tempo e nela consome as derradeiras oscilações dum impulso que não pode ser interrompido à vontade. Os que não acariciaram uma ideia fixa põem-se a viajar e atiram-se às actividades políticas do município. Uns vão à caça ou à pesca, atormentam os rendeiros ou os locatários. Outros tornam-se avarentos como o velho Rogron ou accionistas como tantos desconhecidos. Sabeis muito bem qual era o tema dos dois irmãos: precisavam satisfazer a sua imponente fantasia de manejar a colher de pedreiro, de construir para seu gozo uma casa encantadora. Esta ideia fixa forneceu à praça da baixa Provins a fachada que Brigaut acabava de examinar, as divisões internas da casa e o luxuoso mobiliário. O empreiteiro não meteu um prego sem consultar os Rogron, sem fazer com que assinassem as plantas e os orçamentos, sem lhes explicar demoradamente, em pormenores, a natureza do objecto de discussão, onde era fabricado e quais eram os seus diferentes preços. Quanto às coisas extraordinárias, tinham sido empregadas na casa do Sr. Tiphaine, ou na da jovem sra. Julliard ou na do Sr. Garceland, administrador municipal. Uma semelhança qualquer com um dos ricos burgueses de Provins encerrava sempre o combate, com vantagem para o empreiteiro.
- Já que o senhor Garceland tem isto em sua casa, ponha! - dizia melle. Rogron. - Deve estar certo, ele tem bom gosto.
- Sílvia, ele propõe-nos óvalos na cornija do corredor.
- Chama a isso óvalos?
- Sim, mademoiselle.
- E porquê? Que nome estranho! Nunca ouvi falar nisso.
- Mas, já viu alguma vez?
- Sim.
- Sabe latim?
- Não.
- Pois bem, isso quer dizer ovos. Os óvalos são ovos.
- Como vocês, arquitectos, são engraçados! - exclamava Rogron. - Isso mostra quanto são sovinas! Oferecem os ovos aos outros em vez de comê-los, para não terem que jogar a casca fora.
- Vamos pintar o corredor? - perguntava o empreiteiro.
- Deus me livre! - exclamava Sílvia. - São mais quinhentos francos!
- Oh! A sala de visitas e a escada são tão bonitas que é uma pena não decorar o corredor - dizia o empreiteiro. - A senhora Lesourd mandou pintar o dela o ano passado.
- Entretanto, o seu marido, como procurador do rei, pode não ficar em Provins.
- Ora! Qualquer dia destes será presidente do tribunal - dizia o empreiteiro.
- E então, para onde irá o senhor Tiphaine?
- O senhor Tiphaine tem uma esposa encantadora. Não tenho preocupações com ele: irá para Paris.
- Vamos pintar o corredor?
- Sim, pelo menos os Lesourds ficarão sabendo que valemos tanto como eles! - exclamava Rogron.
O primeiro ano após a instalação dos Rogron em Provins foi inteiramente consumido por essas deliberações, pelo prazer de ver os operários trabalhar, pelas surpresas e os ensinamentos de toda a natureza que daí resultaram e pelas tentativas que o irmão e a irmã fizeram para estreitar relações com as principais famílias de Provins.
Os Rogron nunca haviam frequentado sociedade alguma, nunca saíam da loja. Não conheciam ninguém em Paris e eram sedentos das delícias da sociedade. No seu regresso, os emigrados encontraram, em primeiro lugar, o Sr. e a sra. Julliard, do Bicho da Seda Chinês, com os filhos e netos. Depois, a família dos Guépin, ou melhor, o clã dos Guépin, cujos netos ainda mantinham as Três Rocas. E por fim, a sra. Guénée, que lhes vendera a Irmã de Família e cujos três filhos eram casados em Provins. Essas três grandes famílias, os Julliard, os Guépin e os Guénée estendiam-se pela cidade como a grama num prado. O administrador municipal, Sr. Garceland, era genro do Sr. Guépin. O cura, o Padre Péroux, era irmão da sra. Julliard, que era uma Péroux. O presidente do Tribunal, Sr. Tiphaine, era irmão da sra. Guénée, que se assinava: nascida Tiphaine.
A rainha da cidade era a bela sra. Tiphaine, filha única da sra. Roguin, rica esposa dum antigo tabelião de Paris (17) [(17) Foi o notário Roguin que com duas manipulações desonestas arruinou Guilherme Grandet, o tio de Eugénio. Encontramo-lo, ainda, em A Vendetta, onde representa os interesses de Ginevra de Piombo contra os pais desta] de quem nunca se falava. Delicada, bonita e inteligente, casada na província por desejo expresso da mãe, que não a queria junto de si e que a tirara do pensionato alguns dias antes do casamento. Melânia Roguin considerava-se exilada em Provins e conduzia-se ali admiravelmente bem. Ricamente dotada, tinha ainda belas esperanças. Quanto ao Sr. Tiphaine, seu velho pai fizera à sua filha mais velha, a sra. Guénée, tais adiantamentos de herança que umas terras que produziam oito mil libras de renda, situadas a cinco léguas de Provins, reverteriam ao presidente. Assim, os Tiphaine, casados com vinte mil libras de renda, sem contar o cargo nem a casa do presidente, viriam a ter, um dia, mais vinte mil libras de rendimento. Não eram infelizes, segundo se dizia. A grande, a única aspiração da bela sra. Tiphaine era conseguir a eleição do Sr. Tiphaine como deputado. O deputado tornar-se-ia juiz em Paris; e do Tribunal, ela prometia fazê-lo subir rapidamente à Corte real. Para isso, lisonjeava o amor-próprio de todos, esforçava-se por agradar. E - coisa mais difícil! - conseguia-o. Duas vezes por semana, recebia toda a burguesia de Provins na sua bela casa da cidade alta. Essa jovem senhora de vinte e dois anos ainda não cometera nenhum disparate no terreno escorregadio em que se colocara. Satisfazia o amor-próprio de todos, lisonjeava as manias de todos: austera com as pessoas austeras, rapariga com as raparigas, essencialmente mãe com as mães, alegre com as senhoras jovens e sempre pronta a servi-las, amável com todos. Era, enfim, uma pérola, um tesouro, o orgulho de Provins. Ainda não pronunciara uma única palavra e já os eleitores de Provins esperavam que o seu querido presidente atingisse a idade requerida para elegê-lo. Cada um em particular, de acordo com a sua especialidade, fazia dele seu homem, seu protector. Ah! O Sr. Tiphaine subiria, seria ministro da Justiça, interessar-se-ia por Provins!
Eis os meios pelos quais a ditosa sra. Tiphaine chegara a imperar sobre a pequena cidade de Provins. A sra. Guénée, irmã do Sr. Tiphaine, após ter casado a sua primeira filha com o Sr. Lesourd, procurador do rei, a segunda com o Sr. Martener, médico, e a terceira com o Sr. Auffray, tabelião, desposara, em segundas núpcias, o Sr. Galardon, colector. As sras. Lesourd, Martener, Auffray e sua mãe, a sra. Galardon, viram no presidente o homem mais rico e mais capaz da família. O procurador do rei, sobrinho político do Sr. Tiphaine, tinha todo o interesse em empurrar o tio para Paris a fim de tornar-se presidente em Provins. Assim, as quatro senhoras (a sra. Galardon adorava o irmão) passaram a constituir a corte da sra. Tiphaine, de quem recebiam sugestões e conselhos em tudo. O primogénito dos Julliard, que se casara com a filha única dum rico agricultor, foi tomado duma bela paixão, súbita e desinteressada, pela presidente, esse anjo descido dos céus parisienses. A astuta Melânia, que não era mulher que se atrapalhasse com um Julliard e se sabia bastante hábil para conservá-lo no estado de Amadis (18) [(18) Herói de um famoso romance português de cavalaria, autor de fabulosas proezas para merecer a mão da bela Oriana, princesa da Dinamarca: citado como o tipo do amante constante e respeitoso] e explorar a sua tolice, sugeriu-lhe que fundasse um jornal, ao qual ela serviria de Egéria. (19) [(19) Ninfa de quem o rei Numa, segundo a lenda, ia receber conselhos no bosque de Arícia] Dois anos mais tarde, Julliard, animado pela sua paixão romântica, fundou, pois, um jornal e uma linha de diligência pública para Provins. O jornal, denominado A COLMEIA, Jornal de Provins, continha artigos literários, arqueológicos e médicos, redigidos em família. Os anúncios das redondezas cobriam as despesas. Os assinantes, em número de duzentos, constituíam o lucro. Apareciam nele estâncias melancólicas, incompreensíveis na Brie e dedicadas A ELA!!! com estes três pontos. Assim, o jovem casal Julliard, que cantava os méritos da sra. Tiphaine, unira o clã dos Julliard ao dos Guénée. Desde então, a sala de visitas do presidente tornou-se, naturalmente, a primeira da cidade. O pouco de aristocracia que existe em Provins reúne-se num único salão, na cidade alta, na casa da velha Condessa de Bréautey.
Durante os seis primeiros meses da sua transplantação, favorecidos pelas suas antigas relações com os Julliard, os Guénée, e após se terem apoiado no seu parentesco com o Sr. Auffray, o tabelião, sobrinho-bisneto de seu avô, os Rogron foram recebidos, em primeiro lugar, pela velha Julliard e pela sra. Galardon. Mais tarde, chegaram, com muita dificuldade, à sala de visitas da bela sra. Tiphaine. Todos quiseram estudar os Rogron antes de admiti-los. Era difícil recusar-se a receber comerciantes da Rua S. Dinis, nascidos em Provins e que para lá voltavam a fim de viver dos rendimentos. O objectivo de toda a sociedade, entretanto, será sempre congregar pessoas de fortuna, educação, costumes, cultura e caracteres semelhantes. Ora, os Guépin, os Guénée e os Julliard eram pessoas muito altamente colocadas, mais antigas na burguesia que os Rogron, filhos dum hoteleiro avarento que outrora merecera algumas censuras sobre o seu comportamento privado e relativamente à herança Auffray. O tabelião Auffray, genro da sra. Galardon, nascida Tiphaine, tinha elementos para sabê-lo: a questão fora resolvida no cartório do seu predecessor. Esses antigos comerciantes, que haviam voltado há doze anos, haviam-se colocado no nível de instrução, trato social e boas maneiras daquela sociedade, à qual a sra. Tiphaine imprimia um certo cunho de elegância, um certo verniz parisiense. Tudo ali era homogéneo: compreendiam-se uns aos outros, todos sabiam manter-se e falar de maneira a tornar-se mutuamente agradáveis. Conheciam os seus respectivos temperamentos e haviam-se habituado uns aos outros. Logo que foram recebidos na casa do Sr. Garceland, administrador municipal, os Rogron convenceram-se de que dentro em breve estariam nas melhores relações com a mais fina sociedade do lugar. Sílvia aprendeu, então a jogar bóstone. Rogron, incapaz de participar em qualquer jogo, girava os polegares e engolia as frases logo que acabava de falar na sua casa. As suas frases eram como um remédio: pareciam atormentá-lo muito. Levantava-se, dava a impressão de querer falar, sentia-se intimidado, voltava a sentar-se e ficava com convulsões cómicas nos lábios. Sílvia manifestava livremente o seu temperamento no jogo. Intrigante, lamentando-se quando perdia e tornando-se insolentemente alegre quando ganhava, reclamadora, teimosa, impacientou os adversários e os parceiros e tornou-se o flagelo da sociedade. Devorados por uma inveja inocente e franca, Rogron e a irmã tiveram a pretensão de representar um papel numa cidade sobre a qual doze famílias estendiam uma rede de malhas cerradas, onde todos os interesses e todas as vaidades formavam um soalho sobre o qual os recém-chegados precisavam saber manter-se para não esbarrar de encontro a alguma coisa nem escorregar. Supondo que a restauração da casa custasse trinta mil francos, o irmão e a irmã ficariam com dez mil libras de renda. Julgaram-se muito ricos, importunaram a sociedade com a descrição do seu luxo futuro e deram a perceber a sua mesquinhez, a sua ignorância crassa e a sua tola inveja. Na noite em que foram apresentados à bela sra. Tiphaine, que já os havia observado na casa da sra. Garceland, na da sua cunhada Galardon e na da sra. Julliard mãe, a rainha da cidade disse confidencialmente a Julliard filho, que, depois de terem saído todos, ficou um momento em conversa com ela e o presidente:
- Então, estão encantados com esse Rogron?
- Eu? - perguntou o Amadis de Provins. - Eles aborrecem a minha mãe e importunam a minha mulher. Quando a senhora foi mandada como aprendiza, há trinta anos, para a casa de meu pai, ele já não podia suportá-la.
- Tenho muita vontade - observou a bela presidente, colocando o pé pequenino na barra da estufa - de dar a entender que a minha sala de visitas não é uma hospedaria.
Julliard ergueu os olhos para o tecto, como para dizer: "Meu Deus, quanto espírito, quanta subtileza!"
- Quero que a minha sociedade seja selecta. E, se eu recebesse os Rogron, certamente deixaria de sê-lo.
- Eles não têm coração, nem inteligência nem boas maneiras - afirmou o presidente. - Quando, após ter vendido linhas durante vinte anos, como fez minha irmã, por exemplo...
- Meu amigo, a sua irmã não ficaria deslocada em nenhum salão - interveio, entre parênteses, a sra. Tiphaine.
- Se se comete a tolice de continuar lojista - disse o presidente, prosseguindo -, se a gente não se civiliza, se se confunde os condes de Champanha com uma qualidade de vinho, como fizeram os Rogron esta noite, deve-se ficar em casa.
- São muito gabarolas - observou Julliard. - Parece que não há outra casa em Provins além da deles. Querem esmagar todos nós. E afinal de contas, mal têm com que viver.
- Se fosse apenas o irmão - replicou a sra. Tiphaine - podíamos suportá-lo. Ele não incomoda. Bastaria dar-lhe um quebra-cabeça chinês para que ficasse quieto num canto. Levaria um Inverno inteiro para conseguir uma combinação. Mas melle. Sílvia, que voz de hiena fanhosa! Que patas de lagosta! Não vá repetir nada disto, Julliard.
Quando Julliard saiu, a jovem senhora disse ao marido:
- Meu caro, já bastam os indígenas que sou obrigada a receber. Com mais esses dois, eu morreria. Se me permitires, deixaremos esses de lado.
- És senhora absoluta em tua casa - respondeu o presidente. - Mas assim faremos inimigos. Os Rogron lançar-se-ão na oposição, que até agora não tem força alguma em Provins. Esse Rogron já anda muito amiúde com o barão Gouraud e o advogado Vinet.
- Ora! - exclamou Melânia, sorrindo. - Assim, eles prestar-te-ão um serviço. Onde não há inimigos, não há triunfos. Uma conspiração liberal, uma associação ilegal, uma luta qualquer pôr-te-ia em evidência.
O presidente olhou para a jovem esposa com uma espécie de admiração receosa.
No dia seguinte, na casa da sra. Garceland, uns segredaram aos outros que os Rogron não haviam sido bem sucedidos na casa da sra. Tiphaine, cuja expressão a respeito de hospedaria obteve um êxito imenso. A sra. Tiphaine retribuiu a visita de melle. Silvia só um mês depois. Essa insolência é muito notada na província. Sílvia teve, no bóstone, na casa da sra. Tiphaine, uma cena desagradável com a sra. Julliard mãe, a propósito duma insignificância que a sua antiga patroa lhe fez perder, segundo dizia, maldosamente e por gosto. Sílvia, que gostava de troçar dos outros, nunca admitia que lhe pudessem fazer o mesmo. A sra. Tiphaine tomou a iniciativa, organizando as partidas antes da chegada dos Rogron, de modo que Sílvia foi constrangida a errar de mesa em mesa olhando o jogo dos outros, que a contemplavam de soslaio com uma expressão dissimulada. Na casa da sra. Julliard mãe, passaram a jogar uíste, que Sílvia não conhecia. A solteirona acabou por compreender a sua exclusão, sem compreender as razões da mesma. Julgou-se alvo da inveja de toda aquela gente. Logo depois, os Rogron não foram mais convidados para casa de ninguém; insistiam, porém, em passar os serões na cidade. As pessoas de espírito divertiram-se com eles, sem fel, docemente, fazendo com que eles dissessem grossas asneiras sobre os óvalos da sua casa e sobre um certo licoreiro que não tinha igual em Provins. Entrementes, a reforma da casa dos Rogron chegou ao fim. Naturalmente, eles deram alguns sumputosos jantares, tanto para retribuir as cortesias recebidas como para exibir o seu luxo. Os convidados compareceram apenas por curiosidade. O primeiro jantar foi oferecido às principais pessoas do lugar, sra. e Sr. Tiphaine, em cuja casa, entretanto, os Rogron não haviam jantado uma única vez; Sr. e sra. Julliard, pai e filho, mãe e nora; Sr. Lesourd, Sr. cura e Sr. e sra. Galardon. Foi um desses jantares de província, em que se fica na mesa das cinco às nove horas. A sra. Tiphaine introduzia em Provins os hábitos elegantes de Paris, onde as pessoas distintas deixam o salão logo após o café. Ela tinha reunião em casa e quis evadir-se. Os Rogron, porém, acompanharam o casal até à rua e quando voltaram, admirados por não terem conseguido reter o Sr. Presidente e a sra. Presidente, os outros convivas defenderam a atitude distinta da sra. Tiphaine, imitando-a com uma celeridade cruel na província.
- Não verão o nosso salão iluminado - disse Sílvia - e a iluminação é que o torna notável!
Os Rogron haviam desejado armar uma surpresa para os convidados. Ninguém ainda tivera permissão para visitar aquela casa famosa. Assim, todos os frequentadores do salão da sra. Tiphaine esperavam com impaciência as suas impressões sobre as maravilhas do palácio Rogron.
- A senhora já viu o Louvre - disse-lhe a sra. Martener. - Pois bem, conte-nos tudo.
- Não é grande coisa. Está de acordo com o jantar.
- Mas, como é?
- Pois bem. Aquela porta bastarda, da qual necessariamente já admirámos as travessas de ferro fundido dourado que a senhora conhece - explicou à sra. Tiphaine - dá acesso a um longo corredor que divide assimetricamente a casa, pois à direita fica só uma janela para a rua, ao passo que à esquerda ficam duas. Do lado do jardim, o corredor termina pela porta envidraçada da escadaria que dá para um relvado, relvado ornado dum pedestal sobre o qual se ergue a estátua de gesso de Espártaco (20) [(20) Chefe de uma revolução de escravos, executado no ano 71 a.C., após ter combatido durante dois anos as legiões de Roma] pintada de bronze. Atrás da cozinha, o empreiteiro colocou no vão da escada um quartinho para provisões, que não nos mostraram. Essa escada, inteiramente pintada, imitando mármore preto com veios amarelos, tem um corrimão chanfrado, retorcido, como esses que, nos cafés, levam do pavimento térreo aos gabinetes da galeria. Esse prodígio de nogueira, duma fragilidade perigosa, com balaustrada enfeitada de cobre, foi-nos mostrado como sendo uma das sete novas maravilhas do mundo. A porta da adega fica por baixo dela. Do outro lado do corredor, sobre a rua, está a casa de jantar, que comunica por uma porta de duas folhas com um salão do mesmo tamanho, cujas janelas dão para o jardim.
- Então não há vestíbulo?
- O vestíbulo, certamente, é esse longo corredor, no qual se fica numa corrente de ar - respondeu a sra. Tiphaine. - Tivemos a ideia eminentemente nacional, liberal, constitucional e patriótica de só empregar madeiras da França - continuou. - Assim, na sala de jantar, o soalho é de nogueira com tacos oblíquos e paralelos. Os armários, a mesa e as cadeiras são igualmente de nogueira. Nas janelas, cortinas de algodão branco ladeadas por faixas vermelhas, presas com ordinárias braçadeiras vermelhas sobre pateras espalhafatosas, com rosáceas partidas, dum dourado fosco e cujo centro sobressai sobre um fundo avermelhado. Essas magníficas cortinas correm sobre varas terminadas em extravagantes ornatos em forma de palma e às quais se prendem por garras de leão de cobre estampado, dispostas no alto de cada prego. Sobre um dos armários, vê-se um relógio de café suspenso por uma espécie de guardanapo de bronze dourado, uma dessas ideias que agradam singularmente aos Rogron. Quiseram obrigar-me a admirar esse achado. Não encontrei nada melhor para dizer-lhes do que, se eu algum dia pensasse em pôr um guardanapo em torno dum relógio, seria numa sala de jantar. Sobre o armário, há dois grandes candeeiros, semelhantes a esses que adornam o balcão dos restaurantes célebres. Sobre o outro, existe um barómetro excessivamente enfeitado, que parece desempenhar um grande papel na sua existência: Rogron contempla-o como se contemplasse a noiva. Entre as duas janelas, o construtor colocou uma estufa de faiança branca num nicho horrivelmente rico. Nas paredes brilha um magnífico papel vermelho e dourado, como o que se vê nesses mesmos restaurantes e que certamente Rogron escolheu propositadamente. O jantar foi servido numa coberta de mesa de porcelana branca e dourada e a sobremesa num aparelho azul-claro com flores verdes. Abriram, entretanto, um dos aparadores para mostrar-nos um outro conjunto de louça para o uso diário. Diante de cada aparador, um grande armário guarda a roupa de mesa. Tudo isso é polido, limpo, novo, cheio de tons gritantes. Eu ainda admitiria essa sala de jantar: tem personalidade. Por desagradável que seja, retrata fielmente os donos da casa. Mas, não há meio de se tolerar cinco daquelas gravuras escuras contra as quais o ministro do Interior deveria baixar uma lei e que representam Poniatowski (21) [(21) O príncipe Joseph Poniatowski (1763-1813), general polaco que combateu contra os Russos ao lado dos Franceses, nomeado marechal da França por Napoleão. Devendo impedir o inimigo de transpor o Elster e não tendo tropas suficientes para fazê-lo, preferiu saltar ao rio a render-se. Existe sobre o episódio um quadro, famoso na época, de Horace Vernet] a saltar no Elster, a defesa da barreira de Clichy, (22) [(22) A defesa de Clichy: feito heróico de Moncey. Este oficial francês defendeu em 1814 com muita bravura a barreira de Clichy, em Paris, contra os Aliados, até ser-lhe notificada a capitulação da cidade. Existe um famoso quadro de Horace Vernet sobre o episódio], Napoleão ajustando a pontaria dum canhão, e os dois Mazeppa (23) [(23) Jovem herói cossaco da Ucrânia, personagem de um famoso poema de Byron. Surpreendido pelo marido da sua amante, Mazeppa é por ele atado às costas de um cavalo indomável que se solta mundo afora. Por milagre, salva-se, apesar dos mil perigos que atravessa entre os quais estes: o animal é perseguido durante uma noite inteira pelos lobos; depois, chegado à estepe, é rodeado por inúmeros cavalos selvagens. Estes dois episódios foram reproduzidos em famosos quadros do mesmo Horace Vernet], todos em molduras douradas cujo tipo vulgar convém a tais gravuras, capazes de fazer odiar a celebridade! Oh! Como prefiro os pastéis da sra. Julliard, que representam frutas, esses excelentes pastéis executados na época de Luís XV e que estão em harmonia com aquela boa sala de jantar antiga, com os forros das paredes pardos e um pouco carunchados, mas que, na verdade, possuem o carácter da província e combinam com a abundante prataria da família, com a porcelana antiga e nossos hábitos! A província é a província; torna-se ridícula quando quer imitar Paris. Talvez vocês me digam: "Sois ourives, senhor Josse"; (24) [(24) Resposta que dá Sganarelle, na comédia O Amor Médico, de Molière, à personagem chamada Josse, que lhe recomenda que procure curar a melancolia da filha comprando-lhe jóias. Costuma-se citá-la para indicar o carácter interessado de um conselho] mas, prefiro este velho salão do senhor Tiphaine pai, com as suas pesadas cortinas de seda verde e branca, com a sua estufa à Luís XV, com os vãos das janelas arredondados, os seus espelhos antigos de colunas perladas e as suas veneráveis mesas de jogo; os meus vasos de Sèvres antigo, em azul antigo, montados em cobre antigo; a minha pêndula de flores estranhas, o meu lustre rocócó e a minha mobília estofada, a todos os esplendores do seu salão.
- Como é ele? - perguntou o Sr. Martener, radiante com o elogio que a bela parisiense acabara de fazer tão habilmente da província.
- Quanto ao salão, é de um belo vermelho, o vermelho de melle. Sílvia quando se enfurece por perder uma ninharia.
- Vermelho, Sílvia! - disse o presidente, cuja expressão permaneceu no vocabulário de Provins.
- As cortinas das janelas?... vermelhas! Os móveis?... vermelhos! A lareira?... de mármore vermelho com veios amarelos! Os candelabros e o relógio?... mármore vermelho com veios amarelos, montados em bronze dum desenho vulgar grosseiro: vinhetas romanas apoiadas em ramos de folhagens gregas. Do alto da pêndula, contempla-nos com uma expressão aparvalhada, à maneira dos Rogron, esse grande leão bom-menino chamado leão ornamental e que durante muito tempo envergonhará os verdadeiros leões. Esse leão faz rolar sob uma das patas uma grande bola, um pormenor dos costumes dum leão ornamental; passa a vida inteira a segurar uma grande bola preta, exactamente como um deputado da esquerda. É possível que ele seja um mito constitucional. O mostrador da pêndula é trabalhado duma maneira estranha. O espelho da estufa está emoldurado por esse sistema de pastas aplicadas, que dá uma aparência mesquinha, reles, apesar da novidade. Mas, onde o génio do estofador atinge o clímax, é nas dobras radiantes de pano vermelho que saem duma patera colocada no centro do frontal da estufa, um poema romântico composto expressamente para os Rogron, que se extasiam ao mostrá-lo. Do centro do tecto pende um lustre cuidadosamente envolvido num sudário de percalina verde. É justo que assim seja: o lustre é de imenso mau gosto. O bronze, de tom agressivo, tem como ornatos filetes de ouro polido ainda mais detestáveis. Debaixo dele, uma mesa de chá, redonda, com o mesmo mármore vermelho com veios amarelos, ostenta uma bandeja de metal ondeado, onde resplandecem taças de porcelana pintada - e que pinturas! - e agrupadas em torno dum açucareiro de cristal tão atrevidamente lapidado que nossas filhinhas arregalarão os olhos ao admirar os círculos de cobre das bordas e as faces talhadas como um gibão da Idade Média, e a pinça de pegar o açúcar, da qual provavelmente nunca se servirão. Esse salão tem as paredes cobertas dum papel vermelho imitando veludo, formando almofadas com vinhetas de cobre presas nos quatro cantos por enormes ornatos em forma de palma. Cada almofada é encimada por uma litocromia com molduras cheias de festões de massa que simulam as nossas belas esculturas de madeira. A mobília, de casimira e raiz de olmo, compõe-se, classicamente, de dois sofás, duas poltronas maiores, seis menores e seis cadeiras. O consolo tem como enfeite um vaso de alabastro dito à Médicis, em redoma de vidro, e aquele magnífico licoreiro tão famoso. Fomos suficientemente prevenidos de que não existe um igual em Provins! Em cada vão de janela, guarnecido de magnífica cortina de seda vermelha forrada de filó, acha-se uma mesa de jogo. O tapete é de Aubusson (25) [(25) Cidade francesa do departamento de Creuze; possui famosa manufactura de tapetes]. Os Rogron não deixaram de lançar mão desse fundo vermelho com rosáceas floridas, o mais vulgar dos desenhos vulgares. O salão não parece habitado: não se vêem ali livros nem gravuras nem esses objectos delicados que enfeitam as mesas - disse ela, olhando para a sua mesa cheia de objectos modernos, álbuns, belas coisas que lhe davam. Não há flores nem qualquer desses pequenos nadas que se renovam. É frio e seco como mademoiselle Sílvia. Buffon tem razão: o estilo é o homem e, sem dúvida, os salões têm um estilo.
A bela sra. Tiphaine continuou a sua descrição epigramática. De acordo com essa amostra, cada um imaginou facilmente o apartamento que o irmão e a irmã ocupavam no primeiro andar e que mostraram aos convidados; ninguém, porém, seria capaz de imaginar as rebuscadas tolices a que o espirituoso empreiteiro arrastara os Rogron, as molduras das portas, os postigos internos trabalhados, as massas de ornatnentação nas cornijas, as belas pinturas, as mãos de cobre dourado, as campainhas, os interiores de estufa de sistema fumívoro, as invenções para evitar a humidade, os quadros de marchetaria figurados pela pintura da escada, as vidraças e serralharias superfinas; enfim, todos esses adornos que enriquecem uma construção e que agradam aos burgueses, haviam sido prodigalizados em excesso.
Ninguém quis comparecer aos serões dos Rogron, cujas pretensões abortaram. Não faltavam razões para a recusa: todos os dias estavam prometidos à sra. Garceland, à sra. Galardon, às sras. Julliard, à sra. Tiphaine, ao subprefeito, etc. Os Rogron julgavam que para criar uma sociedade própria bastava dar jantares: tiveram, assim, a presença de moços galhofeiros e os jantares que se encontram em qualquer país do mundo; todas as pessoas sérias, porém, deixaram de visitá-los. Apavorada com a perda total de quarenta mil francos enterrados sem proveito na casa que ela chamava de querida casa, Sílvia quis recuperar essa soma por meio de economias. Renunciou, assim, imediatamente, aos jantares que custavam trinta a quarenta francos, sem contar os vinhos, e que não satisfaziam a sua esperança de possuir um círculo de amigos, empresa tão difícil na província como em Paris. Sílvia despediu a cozinheira e arranjou uma rapariga do campo para o trabalho pesado. Ela mesmo passou a cozinhar, por prazer.
Catorze meses depois da sua chegada, o irmão e a irmã caíram, assim, numa vida solitária e ociosa. O seu banimento da sociedade gerara no coração de Sílvia um ódio pavoroso contra os Tiphaine, os Julliard, os Auffray, os Garceland, enfim, contra a sociedade de Provins, que ela denominava a súcia e com a qual as suas relações se tornaram excessivamente frias. Vontade não lhe faltou de formar, em oposição a ela, uma segunda sociedade. A burguesia inferior, porém, era constituída inteiramente de pequenos comerciantes, que só estavam livres nos domingos e dias feriados, ou de gente tarada como o advogado Vinet e o médico Néraud, de bonapartistas inadmissíveis como o coronel barão Gouraud, com os quais Rogron muito imprudentemente se ligou e contra os quais a alta burguesia tentara em vão preveni-lo. O irmão e a irmã viram-se, assim, obrigados a ficar ao pé do fogo da estufa, na sala de jantar, a rememorar os negócios, os rostos dos fregueses e outras coisas igualmente agradáveis. O segundo Inverno não chegou ao fim sem que o tédio começasse a pesar assustadoramente sobre eles. Tinham mil dificuldades em encher as horas da noite. Quando iam para a cama, diziam consigo: "Mais um que passou!" Custavam a levantar-se, ficavam no leito, vestiam-se demoradamente. Rogron barbeava-se todos os dias, examinava o rosto e entretinha a irmã com as alterações que julgava notar em si. Discutia com a empregada sobre a temperatura da água quente. Ia até ao jardim, observava se as flores tinham desabrochado. Aventurava-se à beira da água, onde fizera construir um quiosque. Examinava as obras de marcenaria da casa: Teria empenado? Ter-se-ia fendido algum quadro? A pintura estaria firme? Voltava a falar dos seus temores sobre uma galinha doente ou sobre um lugar onde a humidade produzia manchas, a irmã que fingia assustar-se enquanto punha a mesa, repreendendo a criada. O barómetro era o objecto mais útil a Rogron. Consultava-o sem motivo, dava-lhe palmadinhas familiares como se fosse um amigo e dizia: "Que tempo horrível!" A irmã respondia: "Ora, faz o tempo próprio da estação". Quando alguém ia visitá-lo, ele elogiava a excelência do instrumento. O almoço consumia mais um pouco de tempo. Com que lentidão as duas criaturas mastigavam cada bocado! Graças a isso, a sua digestão era perfeita, não precisavam ter medo do cancro do estômago. Chegavam ao meio-dia com a leitura da Colmeia e do Constitutionnel (26) [(26) Jornal liberal fundado em 1815. As suas manhas contra Carlos X prepararam a Revolução de 1830]. A assinatura do jornal parisiense era colectiva, tocando as outras duas terças partes ao advogado Vinet e ao coronel Gouraud. Rogron ia pessoalmente levar os jornais ao coronel, que morava na praça, na casa do Sr. Martener, e cujas longas narrativas lhe davam imenso prazer. Rogron indagava a si mesmo de que modo o coronel seria perigoso. Cometeu a asneira de falar-lhe no ostracismo que lhe haviam imposto e contar-lhe as referências que a súcia lhe dera sobre o coronel. Só Deus sabe o que Gouraud, tão temível na pistola como na espada e que não receava ninguém, disse a respeito da Tiphaine e seu Julliard, bem como dos ministeriais da cidade alta, pessoas vendidas ao estrangeiro, capazes de tudo para obter posição, que liam os nomes trocados nos boletins das eleições, etc. Pelas duas da tarde, Rogron empreendia um pequeno passeio. Sentia-se muito contente quando um comerciante o detinha diante da porta, perguntando-lhe: "Como vai, tio Rogron?" Conversava e pedia informações sobre a cidade; escutava e retransmitia os falatórios, os pequenos boatos de Provins. Subia à cidade alta e passava pelas azinhagas, conforme o tempo. Às vezes, encontrava velhos a passear, como ele. Esses encontros constituíam acontecimentos felizes. Havia em Provins pessoas desiludidas da vida parisiense, sábios que viviam com os seus livros. Imaginai a atitude de Rogron ao escutar um juiz substituto chamado Desfondrilles, mais arqueólogo que magistrado, dizer ao homem instruído, o velho Sr. Martener pai, mostrando-lhe o vale:
- Explique-me por que os ociosos da Europa vão a Spa em vez de virem a Provins? As águas de Provins têm uma superioridade reconhecida pela medicina francesa, uma acção e uma marcialidade dignas das propriedades medicinais das nossas rosas.
- Que quer? - replicava o homem instruído. - É um desses caprichos do capricho, inexplicável como ele mesmo. Há cem anos atrás o vinho de Bordéus era desconhecido: o marechal de Richelieu (27) [(27) Louis-François-Armand Duplessis de Richelieu (1696-1788), sobrinho-neto do famoso cardeal: diplomata e militar, nomeado governador da Guiana em 1755; deve a celebridade principalmente às suas aventuras amorosas], uma das maiores figuras do século passado, o Alcibíades francês, foi nomeado governador da Guiana. Estava com o peito estragado - e o mundo inteiro sabe porquê! - e o vinho da região curou-o, restabeleceu-o. Bordéus adquiriu, então, cem milhões de renda e o marechal ampliou o território de Bordéus até Angoulême, até Cahors, enfim, numa extensão de quarenta léguas de raio! Quem sabe onde terminam os parreirais de Bordéus? E no entanto, o marechal não tem uma estátua equestre em Bordéus!
- Ah! Se acontecer coisa semelhante com Provins, num ou noutro século, espero que vejamos aqui - replicou então o Sr. Desfondrilles - na praça da cidade baixa ou no castelo da cidade alta, algum baixo-relevo de mármore branco representando a cabeça do senhor Opoix (28) [(28) Christophe Opoix (1745-1840), farmacêutico, depois deputado de Provins, autor de monografias sobre as águas minerais daquela cidade], o restaurador das águas minerais de provins!
- Meu caro senhor, talvez seja impossível reabilitar Provins - dizia o velho Sr. Martener pai. - Esta cidade faliu.
Aqui, Rogron arregalava os olhos e exclamava:
- Como?
- Antigamente ela era uma capital que lutava vitoriosamente com Paris, no século doze, quando os condes de Champanha (29) [(29) De 958 a 1285, a Champanha, independente, foi governada por uma dinastia de Condes; só depois foi anexada ao reino da França] tinham aqui a sua corte, com o rei René (30) [(30) René d'Anjou, Conde de Provença, onde ficou popular pelo carácter patriarcal e pacífico do seu governo, era também grande protector das letras e das artes] tinha a sua na Provença - respondia o homem instruído. - Naquele tempo, a civilização, a alegria, a poesia, a elegância, as mulheres, todos os esplendores sociais, enfim, não estavam exclusivamente em Paris. As cidades reerguem-se tão dificilmente da sua ruína como as casas comerciais: não nos resta de Provins mais que o perfume da nossa glória histórica, o das nossas rosas e uma subprefeitura.
- Ah! Que seria da França se ela tivesse conservado todas as suas capitais feudais? - dizia Desfondrilles. - Poderão os subprefeitos substituir a raça poética, galante e guerreira dos Thibault (31) [(31) Nome de vários Condes de Champanha, o mais famoso dos quais era Thibault IV (1201-1235), rei da Navarra, ilustre guerreiro e poeta], que haviam feito de Provins o que era Ferrara (32) [(32) Cidade do vale do Pó, cuja época de esplendor coincidiu com o reino dos príncipes da casa d'Este, nos séculos XV e XVI] na Itália e Weimar (33) [(33) Sob o reino do príncipe Carlos-Augusto (1775-1828), Weimar, capital da Turíngia, foi brilhante centro intelectual e artístico, com a grande figura de Goethe no primeiro plano] na Alemanha e, talvez, actualmente, Munique?
- Provins foi uma capital? - perguntou Rogron.
- De onde vem o senhor, então? - respondeu o arqueólogo Desfondrilles.
O juiz substituto batia, então, com a bengala no solo da cidade alta e exclamava:
- Então não sabe que toda esta parte de Provins está construída sobre criptas?
- Criptas?
- Justamente. Criptas duma altura e extensão inexplicáveis..São como naves de catedral, têm colunas.
- O senhor Desfondrilles está a realizar uma grande obra arqueológica, na qual pretende explicar essas singulares construções - dizia o velho Martener, que via o juiz agarrar-se à sua mania.
Rogron voltava encantado com o facto de a sua casa ser construída no vale. As criptas de Provins consumiram cinco a seis dias em explorações e forneceram assunto para as palestras de várias noites dos dois celibatários. Assim, Rogron ia aprendendo todos os dias alguma coisa mais sobre a velha Provins, sobre as alianças das famílias ou antigas notícias políticas, que ele retransmitia à irmã. Enquanto passeava, dizia cem vezes, e muitas vezes à mesma pessoa: "Então, que é que se diz?" "Então que há de novo?" Ao voltar para casa, atirava-se a um sofá do salão como um homem moído de fadiga, mas, na verdade, apenas cansado pelo próprio peso. Esperava a hora do jantar indo vinte vezes da sala de visitas à cozinha, consultando o relógio, abrindo e fechando as portas. Enquanto o irmão e a irmã frequentavam os serões na cidade, viam chegar logo a hora de dormir; mas, quando foram constrangidos a ficar em casa, a noite passou a ser um deserto a atravessar. Às vezes, as pessoas que, de volta para casa, atravessavam a praça após terem passado um serão na cidade, ouviam gritos na casa dos Rogron, como se o irmão estivesse assassinando a irmã: viram nisso os horríveis bocejos dum comerciante reduzido ao último extremo. Como os dois autómatos não tinham nada para triturar entre as suas engrenagens enferrujadas, gritavam. Desesperado, o irmão falou em casar-se. Sentia-se envelhecido, fatigado: a ideia duma esposa apavorava-o. Sílvia, compreendendo a necessidade de ter uma terceira pessoa em casa, lembrou-se, então, da sua pobre prima, de quem ninguém lhe tinha pedido notícias porque em Provins todos julgavam a pequena Lorrain e a filha mortas. Sílvia Rogron nunca perdia nada, já era demasiadamente solteirona para extraviar o que quer que fosse! Fingiu encontrar de novo a carta dos Lorrain, a fim de falar naturalmente de Pierrette ao irmão, que se sentiu quase feliz com a possibilidade de ter uma menina em casa. Sílvia escreveu meio comercialmente e meio afectuosamente aos velhos Lorrain, desculpando-se da demora da resposta com a liquidação dos negócios, a mudança para Provins e a instalação. Mostrou-se desejosa de ficar com a prima em casa, dando a entender que Pierrette herdaria um dia doze mil libras de renda se o Sr. Rogron não se casasse. Era preciso ter sido, como Nabucodonosor (34) [(34) Rei da Caldeia de 605 a 562 a.C., vencedor do reino de Judá e destruidor de Jerusalém. Segundo a tradição judaica, Deus castigou-o, enlouquecendo-o e fazendo-o viver sete anos entre animais selvagens], um pouco animal selvagem encerrado numa jaula do Jardim das Plantas (35) [(35) Jardim botânico de Paris, que possui também uma secção zoológica], sem outra presa além da carne de açougue trazida pelo guarda, ou negociante aposentado sem caixeiros para repreender, para saber com que impaciência o irmão e a irmã esperaram a prima Lorrain. Assim, três dias depois de expedida a carta, o irmão e a irmã já se perguntavam quando chegaria a prima.
Sílvia percebeu na sua falsa bondade para com a prima um meio de fazer a sociedade de Provins mudar de opinião a seu respeito. Foi à casa da sra. Tiphaine, que os havia ofendido com a sua reprovação e que queria criar em Provins uma primeira sociedade, como em Genebra, e alardeou a chegada da prima Pierrette, filha do coronel Lorrain, penalizando-se dos seus infortúnios e fingindo sentir-se feliz por ter uma bela e jovem herdeira para oferecer à sociedade.
- Descobriu-a muito tarde - respondeu ironicamente a sra. Tiphaine, que se mantinha como uma rainha, num sofá, junto à estufa.
Com algumas palavras pronunciadas em voz baixa, enquanto dava as cartas, a sra. Garceland recordou a história da herança do velho Auffray. O tabelião descreveu as iniquidades do hoteleiro.
- Onde está a pobre moça? - perguntou polidamente o presidente Tiphaine.
- Na Bretanha - respondeu Rogron.
- Mas a Bretanha é muito grande - observou o Sr. Lesourd, procurador do rei.
- Seu avô e sua avó Lorrain escreveram-nos. Quando foi, querida? - perguntou Rogron.
Sílvia, ocupada em indagar da sra. Garceland onde comprara ela a fazenda do seu vestido, não previu o efeito da sua resposta e disse:
- Antes da venda da nossa casa comercial.
- E só respondeu há três dias, mademoiselle! - exclamou o tabelião.
Sílvia tornou-se vermelha como os carvões mais incandescentes.
- Escrevemos para a instituição Saint-Jacques - acrescentou Rogron.
- Lá existe uma espécie de asilo para velhos - disse um juiz que fora juiz substituto em Nantes. - Mas ela não pode estar lá, porque lá só recebem pessoas acima dos sessenta anos.
- Está lá com sua avó Lorrain - esclareceu Rogron. - Ela tinha um pequeno capital, os oito mil francos que seu pai... não, quero dizer seu avô lhe deixara - disse o tabelião, enganando-se propositadamente.
- Ah! - exclamou Rogron com uma expressão aparvalhada, sem compreender o epigrama.
- Então não conhecem as condições de fortuna nem a situação da sua prima-irmã? - perguntou o presidente.
- Se o senhor as conhecesse, não a deixaria numa casa que não passa de um asilo regular - replicou severamente o juiz. - Lembro-me de ter visto vender em Nantes, por expropriação, uma casa pertencente ao senhor e à senhora Lorrain, e a senhora Lorrain perdeu o dinheiro de que era credora, pois eu era então comissário.
O tabelião falou do coronel Lorrain que, se estivesse vivo, ficaria muito admirado de saber que sua filha se encontrava numa instituição como a de Saint-Jacques. Os Rogron, então, bateram em retirada, dizendo intimamente que o mundo é muito mau. Sílvia compreendeu o precário êxito obtido pela notícia que proclamara: sabia-se perdida no espírito de todos. Desse momento em diante, tornara-se impossível para ela conviver com a alta sociedade de Provins. A partir desse dia, os Rogron não ocultaram mais o seu ódio contra as grandes famílias burguesas de Provins e seus partidários. O irmão ensinou então à irmã as canções liberais que o coronel Gouraud e o advogado Vinet lhes haviam metido na cabeça sobre os Tiphaine, os Guénée, os Garceland, os Guépin e os Julliard.
- Olha, Sívia, não sei por que é que a senhora Tiphaine renega o comércio da Rua S. Dinis. O que ela tem de melhor provém de lá. A senhora Roguin, sua mãe, é prima dos Guillaume do Chat Qui pelote e que cederam o estabelecimento a Joss Lebas, seu genro. O seu pai é aquele tabelião Roguin que faliu em 1819 e arruinou a casa Birotteau. Assim, a fortuna da Tiphaine provém do roubo. Sim, pois que outra coisa fazer duma mulher que se livra dum negócio arriscado deixa o marido fazer uma falência fraudulenta? Isso está no sangue! Ah! Agora compreendo: ela casou a filha em Provins devido às suas relações com o banqueiro du Tillet (36) [(36) Personagem de relevo da Comédia Humana] E é essa gente que se dá ares de importância; além disso... Enfim, assim é o mundo!
No dia em que Dinis Rogron e sua irmã Sílvia se puseram a bradar contra a súcia, tornaram-se, sem o saber, pessoas de relevo e ficaram na iminência de conseguir um círculo de amigos: o seu salão ia tornar-se o centro de interesses que procuravam um teatro. Com isso, o ex-lojista assumiu proporções históricas e políticas, pois deu, sempre sem o saber, força e unidade aos elementos até então dispersos do partido liberal de Provins. Eis como foi. Os primeiros passos dos Rogron foram curiosamente observados pelo coronel Gouraud e pelo advogado Vinet, que se haviam aproximado graças às ideias e ao isolamento em que viviam. Ambos professavam o mesmo patriotismo pelas mesmas razões: queriam tornar-se figuras importantes. Se, porém, estavam dispostos a tornarem-se chefes, faltavam-lhes soldados. Os liberais de Provins compunham-se dum velho soldado que se fizera botequineiro; um hoteleiro; o Sr. Cournant, tabelião, competidor do Sr. Auffray; o médico Néraud, adversário do Sr. Martener; algumas pessoas independentes, agricultores espalhados pelo distrito e adquiridores de bens nacionais. O coronel e o advogado, satisfeitos por atrair a si um imbecil, cuja fortuna poderia ajudar as suas manobras, que assinalaria as suas subscrições, que, em certos casos, sacudiria os guizos e cuja casa serviria de quartel-general do partido, aproveitaram-se da inimizade dos Rogron contra os aristocratas da cidade. O coronel, o advogado e Rogron já tinham uma ligação na sua assinatura colectiva do Constitutionnel. Assim, não seria difícil ao coronel Gouraud transformar o ex-retroseiro num liberal, embora Rogron soubesse tão pouco de política que nem conhecia os feitos do sargento Mercier (37) [(37) Personagem conhecida na época, a quem Balzac faz várias alusões e que parece ter sido um dos mártires do liberalismo, possivelmente implicado numa das numerosas conspirações contra os governos da Restauração], que ele julgava que fosse dono de alguma mercearia. A próxima chegada de Pierrette contribuiu para apressar o nascimento das ideias inspiradas pela ignorância e pela estupidez dos dois celibatários. Ao ver toda a possibilidade de ingresso no círculo dos Tiphaine perdida para Sílvia, o coronel teve uma ideia. Os velhos militares já viram tantos horrores em tantos países, tantos cadáveres nus retorcendo-se em tantos campos de batalha, que já não se assustam mais de nenhuma fisionomia e Gouraud apontou a espingarda para a fortuna da solteirona. Esse coronel, homem baixo e gordo, usava enormes argolas nas orelhas que, entretanto, já estavam guarnecidas de enorme quantidade de pêlos. As suas suíças bastas e grisalhas chamavam-se, em 1799, costeletas. O rosto grande e corado era um pouco trigueiro, como o de todos os que saíram da Berezina (38) [(38) Rio da Rússia, a cujas margens o exército de Napoleão, durante a sua retirada de 1812, sofreu terrível derrota, perdendo metade dos seus efectivos]. O ventre volumoso e pontudo descrevia, na parte inferior, esse ângulo recto que caracteriza o antigo oficial de cavalaria. Gouraud comandara o segundo regimento de hussardos. O bigode grisalho ocultava uma enorme boca trocista, se permitem empregar essa expressão soldadesca, a única capaz de descrever esse abismo: não comia, mas, devorava! Um golpe de sabre mutilara-lhe o nariz. Devido a isso, a sua voz tornara-se surda e profundamente nasalada, como a que atribuem aos capuchinhos. As pequenas mãos, curtas e largas, eram dessas que fazem as mulheres dizer: "Você tem as mãos dum sujeito terrivelmente mau." As pernas pareciam franzinas sob o tronco. Nesse volumoso corpo ágil, vibrava um espírito subtil, a mais completa experiência das coisas da vida, oculta sob a aparente displicência dos militares, e um desprezo total pelas convenções sociais. O coronel Gouraud tinha como fortuna a cruz de oficial da Legião de Honra e dois mil e quatrocentos francos como oficial reformado, num total de mil escudos.
O advogado, alto e magro, tinha como único talento as suas opiniões liberais e como única renda os proventos muito parcos da sua banca. Em Provins, os avoués (39) [(39) "Avoué": procurador judicial (licenciado em Direito) junto aos tribunais civis para representar partes, redigir actas, etc.; em geral, o avoué só pode advogar no tribunal quando o número de advogados da cidade é insuficiente. Deve ter sido este o caso em Provins] defendem pessoalmente as suas causas. Devido às suas opiniões, o Tribunal escutava sempre desfavoravelmente o advogado Vinet. Assim, mesmo os mais liberais agricultores, quando tinham um processo, recorriam, de preferência, a outro advogado do lugar que gozava da confiança do Tribunal. Esse homem seduzira, segundo se dizia, nas vizinhanças de Coulommiers, uma moça rica, obrigando os pais a concedê-la em casamento. Sua esposa pertencia aos Chargeboeuf, antiga família nobre da Brie, cujo nome provém da proeza dum escudeiro na expedição de S. Luís ao Egipto (40) [(40) A expedição de S. Luís ao Egipto, isto é, a sétima cruzada (1248-1252) acabou pela derrota do rei em Mansurá, onde foi preso. A "proeza do escudeiro" parece uma invenção de Balzac]. Ela incorrera na inimizade dos pais, que providenciaram, com o conhecimento de Vinet, para deixar toda a fortuna ao filho mais velho, que sem dúvida ficaria encarregado de transmitir uma parte dela aos filhos da irmã. Assim, a primeira tentativa ambiciosa desse homem fracassara. Logo depois, perseguido pela miséria, e envergonhado por não poder dar à esposa uma aparência conveniente, o advogado fizera vãos esforços para ingressar na carreira do Ministério Público. O ramo rico da família Chargeboeuf, porém, negou-se a auxiliá-lo. Moralistas como eram, aqueles realistas desaprovaram um casamento forçado; além disso, o seu pretenso parente chamava-se Vinet e eles não podiam proteger um plebeu. O advogado foi, assim, repelido de galho em galho, quando quis servir-se da esposa junto aos parentes. A sra. Vinet só encontrou simpatia numa Chargeboeuf, pobre viúva com uma filha e que vivia com ela em Troyes. Mais tarde, Vinet recordou-se do acolhimento dado por essa Chargeboeuf à esposa. Repelido por todos, cheio de ódio contra a família da mulher, contra o governo que lhe recusava um cargo e contra a sociedade de Provins que não queria recebê-lo, Vinet conformou-se com a miséria. O seu ressentimento cresceu e deu-lhe energia para resistir. Vendo que a sua sorte estava ligada à vitória da oposição, tornou-se liberal e vegetou numa péssima casinha da cidade alta, de onde a mulher pouco saía. Essa moça, destinada a melhor sorte, ficava em casa com um filho. Há misérias nobremente aceitas e alegremente suportadas. Vinet, porém, sentindo-se em falta para com uma rapariga seduzida, ocultava uma cólera sombria: a sua dignidade tornou-se elástica e passou a admitir todos os meios para vencer. A sua fisionomia jovem alterou-se. Às vezes, algumas pessoas assustavam-se no Tribunal ao ver o seu rosto viperino, a cabeça achatada, a boca rasgada e os olhos a luzir através dos óculos, ouvindo a sua vozinha áspera, persistente e que irritava os nervos. A sua tez indistinta, de tons doentios, esverdeados ou amarelados em vários pontos, denunciava a sua ambição recalcada, as suas contínuas desilusões e as suas misérias secretas. Sabia discutir, falar. Não lhe faltavam ideias nem imagens. Era instruído e astuto. Habituado a tudo conceber pelo seu desejo de triunfo, podia tornar-se político. Um homem que não recua diante de nada, desde que tudo seja legal, tem uma força enorme: a força de Vinet provinha disso. Esse futuro atleta dos debates parlamentares, um daqueles que deviam proclamar a realeza da Casa d'Orléans (41) [(41) O último representante da Casa d'Orléans no trono francês, Luís-Filipe (1773-1850), que reinou de 1830 a 1848, foi hostilizado por Balzac, legitimista, isto é, partidário dos Bourbons, destronados pela Revolução de 1830], exerceu uma terrível influência sobre a sorte de Pierrette. No momento, queria conseguir uma arma fundando um jornal em Provins. Após ter estudado de longe, com o auxílio do coronel, os dois celibatários, o advogado concluiu que podia contar com Rogron. Desta vez, fez bem os seus cálculos, e a sua miséria devia cessar após sete anos penosos durante os quais mais de uma vez lhe faltara o pão em casa. Quando Gouraud, na praça, anunciou a Vinet que os Rogron haviam rompido com a aristocracia burguesa e ministerial da cidade alta, o advogado deu-lhe uma cotovelada significativa.
- Uma mulher ou outra, bonita ou feia, são a mesma coisa para si - disse. - Devia, por isso, casar-se com mademoiselle Rogron. Assim, poderíamos organizar alguma coisa aqui.
- Já estive a pensar nisso. Mas, eles mandaram buscar a filha do pobre coronel Lorrain, sua herdeira - respondeu o coronel.
- Faria com que lhe deixassem a fortuna por testamento. Ah, teria uma casa bem montada!
- Por outro lado, vamos ver essa menina, hem? - disse o coronel, com uma expressão brincalhona e profundamente perversa, que revelou a um homem da têmpera de Vinet o quanto uma menina representava pouca coisa aos olhos do velho soldado.
A ESTREIA DE PIERRETTE
Desde que as avós entraram para aquela espécie de asilo, onde encerraram tristemente a sua vida, Pierrette, jovem e altiva, sofria tão horrivelmente por viver lá por caridade que ficou muito contente ao saber que tinha parentes ricos. Ao ter conhecimento da sua partida, Brigaut, o filho do major, seu camarada de infância, que se tornara marceneiro em Nantes, foi oferecer-lhe a quantia necessária para fazer a viagem de carro, sessenta francos, todo o tesouro das suas gratificações como aprendiz, penosamente acumuladas e aceite por Pierrette com a sublime naturalidade das amizades sinceras e que revela que, num caso semelhante, ela se teria ofendido com um agradecimento. Brigaut ia todos os domingos a Saint-Jacques para brincar com Pierrette e consolá-la. O vigoroso operário já fizera o delicioso aprendizado da protecção completa e abnegada devida à involuntária escolha das nossas afeições. Já por mais de uma vez Pierrette e ele, aos domingos, sentados a um canto do jardim, haviam traçado sobre o véu do futuro os seus projectos infantis: o aprendiz de marceneiro, montando na sua plaina, percorria o mundo e fazia fortuna para Pierrette, que o esperava. No mês de Outubro de 1824, época em que completou onze anos, Pierrette foi, pois, confiada pelos dois velhos e pelo jovem operário, todos eles terrivelmente tristes, ao condutor da diligência de Nantes a Paris, com a recomendação de passá-la, em Paris, para a diligência de Provins e de cuidar bem dela. Pobre Brigaut! Correu como um cão atrás da diligência, acompanhando com o olhar a sua querida Pierrette tanto quanto lhe foi possível. Apesar dos gestos que fazia a pequena bretã, ele correu uma légua fora da cidade. E quando se sentiu esgotado, lançou um derradeiro olhar cheio de lágrimas a Pierrette, que chorou quando deixou de vê-lo. Pierrette meteu a cabeça pela portinhola e viu o amigo parado, e a pesada diligência afastar-se. Os Lorrain e Brigaut tinham tal ignorância da vida que a bretã não possuía mais nem um sou ao chegar a Paris. O condutor, a quem a menina falou nos parentes ricos, pagou a sua despesa de hotel, em Paris, e cobrou-a do condutor do carro de Troyes, encarregando-o de entregar Pierrette à família e receber lá a importância que pagara, tal como se fosse um frete. Quatro dias após a sua partida de Nantes, pelas nove horas duma segunda-feira, o velho condutor das Messageries reais tomou Pierrette pela mão e, enquanto descarregavam, na rua principal, os objectos e os viajantes destinados à agência de Provins, levou-a, tendo como única bagagem dois vestidos, dois pares de meias e duas camisas, à casa de melle. Rogron, que lhe foi indicada pelo gerente da agência.
- Bom-dia, mademoiselle e companhia - disse o condutor. - Trago-lhe uma prima, veja. É bem bonitinha! Tem de me dar quarenta e sete francos. E embora a sua menina não traga nenhuma carga, assine a minha folha.
Sílvia e o irmão entregaram-se a manifestações de alegria e admiração.
- Desculpe - continuou o condutor. - A minha diligência está à espera. Assine a minha folha, dê-me quarenta e sete francos e sessenta cêntimos... e o que quiser para o conudutor de Nantes e para mim, que cuidámos da pequena como se fosse nossa própria filha. Adiantámos dinheiro para pagar-lhes a pousada, alimento, a sua passagem para Provins e algumas coisinhas mais.
- Quarenta e sete francos e doze sous! - disse Sílvia.
- Acho que não vai pedinchar! - exclamou o condutor.
- Mas, onde está a factura? - indagou Rogron.
- A factura? Veja a folha.
- Em vez de estares a falar, paga! - recomendou Sílvia ao irmão. - Estás a ver que não há remédio senão pagar. Rogron foi buscar quarenta e sete francos e doze sous.
- E não há nada para o meu colega e para mim? - perguntou o condutor.
Sílvia tirou quarenta sous do fundo do seu velho saco de veludo, cheio de chaves.
- Muito obrigado! Fique com isso para a senhora - resmungou o condutor. - Preferimos ter cuidado da pequena por ela mesma.
Apanhou a folha e saiu, dizendo à criada:
- Que choça! E dizer-se que há crocodilos como esse fora do Egipto!
- Que gente grosseira! - comentou Sílvia, que ouviu as palavras do condutor.
- Ora! Eles cuidaram da pequena - respondeu Adélia, fincando as mãos nas cadeiras.
- Não temos obrigação de viver com ela - disse Rogron.
- Onde é que ela vai dormir? - perguntou a criada.
Tais foram a chegada e a recepção de Pierrette Lorrain na casa do primo e da prima, que a contemplavam com uma expressão aparvalhada e no meio dos quais ela foi atirada como um pacote, sem transição alguma entre o deplorável quarto onde morava em Saint-Jacques junto dos avós e a sala de jantar dos primos, que lhe deu a impressão dum salão de palácio. Sentia-se constrangida e envergonhada. Para qualquer outra pessoa a não ser esses ex-retalhistas, a pequena bretã teria parecido adorável na sua saia de grosseira lã azul, avental de algodão cor-de-rosa, grandes sapatos, meias azuis, gola branca, as mãos enfiadas em mitenes de lã vermelha, debruadas de branco, que o condutor comprara para ela. Realmente, a sua touquinha bretã que haviam engomado em Paris (amarrotara-se no trajecto de Nantes) parecia uma auréola sobre a sua fisionomia alegre. Essa touca nacional, de fina cambraia, guarnecida de renda engomada e pregueada em forma de tubos achatados, é tão elegante e singela que merecia uma descrição. A luz, filtrando-se através da fazenda e da renda, produz uma penumbra, uma semiobscuridade no rosto, dando-lhe essa graça virginal que os pintores procuram nas suas palhetas e que Lépold Robert (42) [(42) Pintor francês, autor de um quadro célebre, Parada de Ceifeiros nos Pântanos Pontinos, exposto no salão de 1831. Nasceu em 1794 e faleceu em 1835] soube encontrar para a fisionomia rafaélica da mulher que segura um menino no quadro dos Ceifeiros. Sob essa grinalda de luz, brilhava um rosto claro e rosado, inocente, animado pela mais vigorosa pureza. O calor da sala fez afluir o sangue, que emprestou um vivo colorido às orelhas pequeninas, aos lábios e à ponta do nariz muito fino, o que, por contraste, fez com que a tez parecesse ainda mais cara.
- Então, não dizes nada? - disse Sílvia. - Sou a tua prima Rogron. Esse é teu primo.
- Queres comer? - perguntou-lhe Rogron.
- Quando saíste de Nantes? - perguntou Sílvia.
- É muda - disse Rogron.
- Pobrezinha, quase não tem roupa! - exclamou a gorda Adélia, abrindo a trouxa feita com um lenço do velho Lorrain.
- Beija o teu primo - pediu-lhe Sílvia.
Pierrette beijou Rogron.
- Beija a tua prima - solicitou Rogron.
Pierrette beijou Sílvia.
- A pequena está atordoada com a viagem. Talvez precise dormir - sugeriu Adélia.
Pierrette experimentou instantaneamente, pelos parentes, uma invencível aversão, sentimento que ninguém ainda lhe inspirara. Sílvia e a criada foram deitar a pequena bretã no quarto do segundo andar onde Brigaut vira a cortina de algodão branco. Havia ali uma cama de solteiro com a flecha pintada de azul de onde pendia um cortinado de algodão, uma cómoda de nogueira sem tampo de mármore, uma mesinha de nogueira, um espelho, uma vulgar mesinha de cabeceira e três cadeiras velhas. As paredes, inclinadas no lado da fachada, estavam revestidas de um horrível papel azul semeado de flores pretas. O soalho, pintado e encerado, gelava os pés. Só havia um delgado tapete de ourela junto à cama. A lareira, de mármore comum, era guarnecida dum espelho, dois castiçais de cobre dourado, um vulgar vaso de alabastro onde bebiam dois pombos formando as alças e que Sílvia tinha no seu quarto em Paris.
- Ficarás bem aqui, minha pequena? - perguntou-lhe a prima.
- Oh! É muito bonito! - exclamou a menina com a sua voz argentina.
- Não é exigente - resmungou a gorda criada. - Não será preciso aquecer a cama? - perguntou.
- Sim - respondeu Sílvia. - Os lençóis podem estar húmidos.
Adélia trouxe o aquecedor de cama e Pierrette, que até então só se deitara em lençóis de grossa fazenda bretã, ficou surpresa com a delicadeza e a maciez dos lençóis de algodão. Quando a menina se deitou, Adélia, ao descer, não pôde deixar de gritar-lhe:
- A bagagem dela não vale três francos, mademoiselle. Depois que adoptara o regime de economia, Sílvia fazia a criada ficar na sala de jantar, a fim de que não houvesse na casa mais de uma luz e um fogo acesos. Quando, porém, o coronel Gouraud e Vinet iam visitá-los, Adélia retirava-se para a cozinha. A chegada de Pierrette animou o resto do serão.
- É preciso fazer-lhe um enxoval amanhã mesmo - alvitrou Sílvia. - Ela não tem nada.
- Só os grossos sapatos que tem nos pés e que pesam uma libra - respondeu Adélia.
- Naquela região é assim o uso - esclareceu Rogron.
- Como ela admirava o quarto, que, no entretanto, não é bonito demais para ser o de uma prima, mademoiselle!
- Está bem, cala-te - recomendou Sílvia. - Bem viste como ela ficou encantada.
- Meu Deus, que camisas! Devem arranhar a pele. Não tem nada que preste - disse Adélia, esvaziando a trouxa de Pierrette.
O patrão, a patroa e a criada ficaram entretidos até às dez horas a decidir sobre o percal e o preço das camisas, quantos pares de meias, de que fazenda, quantas saias de baixo, e a calcular o preço do enxoval de Pierrette.
- Não a vestiremos com menos de trezentos francos disse à irmã Dinis Rogron, que ia retendo o preço de cada coisa e fazendo mentalmente a soma, por um antigo hábito.
- Trezentos francos? - exclamou Sílvia.
- Sim, trezentos! Faze a conta.
O irmão e a irmã recomeçaram os cálculos e atingiram os trezentos francos, sem contar o feitio.
- Trezentos francos numa só redada! - exclamou Sílvia, que adormeceu sobre o pensamento tão engenhosamente traduzido por essa expressão proverbial.
Pierrette era uma dessas filhas do amor que o amor dotou da sua ternura, vivacidade, alegria, nobreza, abnegação; nada, até então, havia alterado nem maculado o seu coração, duma delicadeza quase selvagem, e o acolhimento dos dois parentes confrangeu-a penosamente. Se a Bretanha, para ela, fora cheia de miséria, fora, também, cheia de afeições. Se os velhos Lorrain foram os comerciantes mais inábeis, foram, também, as criaturas mais amorosas, mais francas, mais carinhosas do mundo, como todas as criaturas desinteressadas. Em Pen-Hoël, a sua neta não tivera outra educação além da oferecida pela Natureza. Pierrette saía à vontade a passear de barco pelos lagos; corria pela povoação e pelos campos em companhia de Jacques Brigaut, seu camarada, exactamente como Paulo e Virgínia (43) [(43) Título de um romance famoso de Bernardin de Saint-Pierre (1787), em que o autor conta o inocente idílio de duas crianças no meio da linda paisagem da Ilha de França]. Festejados, afagados, ambos, por todos, livres como o ar, corriam em busca das infinitas alegrias da infância: no Verão, iam assistir à pesca, apanhavam insectos, colhiam flores e cuidavam do jardim; no Inverno, deslizavam no gelo, construíam lindos palácios, bonecos ou bolas de neve com que travavam combate. Sempre bem-vindos, recebiam sorrisos de toda a parte. Quando chegou a época de aprender, começaram os desastres. Tendo ficado sem recursos, após a morte do pai, Jacques foi empregado, pelos parentes, como aprendiz na casa dum marceneiro, onde era mantido por caridade, tal como Pierrette o foi mais tarde em Saint-Jacques. Mesmo nessa instituição particular, porém, a gentil Pierrette fora ainda mimada, querida e protegida por todos. Essa menina, habituada a tanta afeição, não encontrava, nos parentes tão desejados e tão ricos, esse ambiente, essa palavra, esses olhares e essas atenções com que todos, mesmo os estranhos e os condutores de diligência, a haviam cercado. Assim, o seu espanto, já grande, foi agravado pela mudança da atmosfera moral em que entrava. O coração, como o corpo, sente subitamente frio ou calor. Sem saber porquê, a pobre menina sentiu vontade de chorar: estava fatigada e adormeceu. Habituada a levantar-se muito cedo, como todas as crianças que vivem no campo, Pierrette acordou no dia seguinte duas horas antes da cozinheira. Vestiu-se, caminhou pelo quarto, que ficava por cima do da prima, admirou a praça, tentou descer e ficou admirada com a beleza da escada; examinou-a nos seus pormenores, as pateras, os ornatos de cobre, a pintura, etc. Depois, desceu e, não tendo podido abrir a porta do jardim, tornou a subir e desceu novamente quando Adélia se levantou, e correu para o jardim. Chegada lá, correu até à ribeira, ficou admirada diante do quiosque e entrou nele; teve muito que ver e admirar até ao momento em que Sílvia se levantou. Durante o almoço, disse-lhe a prima:
- Então eras tu, minha pequena, que andavas a correr desde a madrugada pela escada, fazendo barulho? Acordaste-me e não pude mais dormir. Precisas ser muito cautelosa, muito prudente, e brincar sem fazer ruído. O teu primo não gosta de barulho.
- E também precisas de ter mais cuidado com os pés - interveio Rogron. - Entraste no quiosque com os sapatos embarrados e sujaste o soalho. A tua prima gosta muito do asseio. Uma menina como tu deve ser asseada. Não eras asseada na Bretanha? Mas, agora me lembro, sempre que eu ia lá comprar linha, dava-me pena ver aqueles selvagens! Em todo o caso, ela tem bom apetite - concluiu Rogron, olhando para a irmã. - Dir-se-ia que não come há três dias.
Assim, desde o primeiro momento, Pierrette foi ferida pelas observações da prima e do primo, ferida sem saber porquê. O seu comportamento recto e franco, até então abandonado a si mesmo, ignorava a reflexão. Incapaz de descobrir em que pecavam a prima e o primo, devia ser lentamente instruída pelo sofrimento. Após o almoço, a prima e o primo, satisfeitos com a admiração de Pierrette e desejosos de desfrutá-la, mostraram-lhe a sala de visitas para a ensinar a respeitar a sua sumptuosidade. Como consequência do seu isolamento e impelidos por essa necessidade moral de tomar interesse por alguma coisa, os celibatários são levados a substituir as afeições naturais por afeições artificiais, a amar cães, gatos, canários, a criada ou o confessor. Assim, Rogron e Sílvia haviam chegado a um amor exagerado pelo mobiliário e pela casa, que lhes haviam custado tão caro. Sílvia acabara por habituar-se a ajudar Adélia todas as manhãs, achando que ela não sabia tirar o pó dos móveis, limpá-los e conservá-los em estado de novo. Essa limpeza passou a constituir, imediatamente, uma ocupação para ela. Com isso, longe de perderem valor, os móveis valorizavam-se. Usá-los sem gastá-los, sem manchá-los, sem arranhar a madeira, sem tirar o polimento, tal era o problema. Essa ocupação transformou-se, logo, numa mania de solteirona. Sílvia pôs num armário retalhos de lã, cera, verniz e escovas; aprendeu a manejá-los tão bem como um entalhador; tinha os seus espanadores, as suas toalhas para enxugar; enfim, encerava o soalho sem correr o menor risco de ferir-se: era tão forte! O seu olhar azul, frio e rígido como o aço, deslizava até por baixo dos móveis a todo o momento. Assim, seria mais fácil encontrar uma corda sensível no seu coração do que pó debaixo duma poltrona.
Depois do que se dissera na casa da sra. Tiphaine, foi impossível a Sílvia recuar diante dos trezentos francos. Durante a primeira semana, Sílvia esteve, pois, inteiramente ocupada, e Pierrette constantemente distraída com os vestidos a encomendar, a experimentar, camisas e saias de baixo a cortar e a mandar coser por costureiras pagas ao dia. Pierrette não sabia costurar.
- Que bela educação! - disse Rogron. - Então, não sabes fazer nada, minha menina?
Pierrette, que só sabia amar, fez, como única resposta, um encantador gesto de menina.
- Como passavas o tempo na Bretanha? - perguntou-lhe Rogron.
- Brincando - respondeu ela ingenuamente. - Todos brincavam comigo. A avó e o avô contavam-me histórias. Ah! Gostavam muito de mim.
- Ah! - replicou Rogron. - Então, pegavas no menos pesado.
Pierrette não compreendeu o gracejo da Rua S. Dinis e arregalou os olhos.
- É muito tolinha - disse Sílvia a melle. Borain, a mais hábil costureira de Provins.
- É tão criança! - exclamou a costureira, olhando para Pierrette, cujo rosto fino se voltava para ela com uma expressão perspicaz.
Pierrette preferia as costureiras aos dois parentes. Era amável com elas, contemplava-as no trabalho, dizia-lhes essas belas palavras, as flores da infância, que Rogron e Sílvia reprimiam pelo medo, pois eles gostavam de imprimir aos subordinados um terror salutar. As costureiras estavam encantadas com Pierrette. O enxoval, porém, não se aprontava sem terríveis interjeições.
- Essa menina vai custar-nos os olhos da cara! - lamentava Sílvia para o irmão.
- Está quieta, minha pequena! Que diabo! Isto é para ti, e não para mim - dizia ela a Pierrette, quando lhe tiravam as medidas.
- Deixa a melle. Borain trabalhar, não és tu que lhe pagarás o dia! - dizia, ao vê-la perguntar alguma coisa à primeira costureira.
- É preciso coser isto com ponto atrás? - perguntava melle. Borain.
- Sim. Costure solidamente. Não tenho vontade de recomeçar um enxoval desses todos os dias.
Passou-se com a prima o que se passara com a casa. Pierrette devia vestir-se tão bem como a menina da sra. Garceland. Ganhou sapatos modernos, de pelica bronzeada, como os da menina Tiphaine. Recebeu meias de algodão muito finas, um colete da melhor fabricação, um vestido de reps azul, uma bela romeira forrada de tafetá branco, tudo isto para rivalizar com a menina da jovem sra. Julliard. A roupa interna ficou em harmonia com a externa, pois Sílvia temia o exame e o olhar das mães de família. Pierrette ganhou belas camisas de madapolão. melle. Borain disse que as filhas da senhora do subprefeito usavam calcinhas de percal bordadas e guarnecidas de rendas, última moda, enfim. Pierrette ganhou calcinhas com rendas. Encomendaram para ela uma encantadora capa de veludo azul forrado de cetim branco, semelhante à da menina Martener. Pierrette tornou-se, assim, a menina mais encantadora de toda a Provins. No domingo seguinte, na igreja, ao sair da missa, todas as senhoras a abraçaram. As sras. Tiphaine, Garceland, Galardon, Auffray, Lesourd, Martener, Guépin e Julliard gostaram muito da linda bretã. Esse alvoroto lisonjeou o amor-próprio da velha Sílvia, que no seu gesto de bondade via menos Pierrette que uma vitória da vaidade. Sílvia, porém, devia acabar por ofender-se com os sucessos da prima, e eis como: convidaram Pierrette e, sempre para triunfar daquelas senhoras, ela mandou Pierrette. Vinham buscar Pierrette, que brincava e fazia pequenos jantares com as meninas daquelas senhoras. Pierrette alcançou muito maior êxito que os Rogron. Sílvia chocou-se ao ver Pierrette convidada a visitar as outras sem que viessem visitá-la. A inocente criança não dissimulou a satisfação que sentia na casa das sras. Tiphaine, Martener, Galardon, Julliard, Lesourd, Auffray e Garceland, cujas demonstrações de estima contrastavam singularmente com as altercações da prima e do primo. Uma mãe teria ficado contentíssima com a felicidade da sua filha. Os Rogron, porém, haviam tomado Pierrette por eles mesmos e não por ela: os seus sentimentos, longe de serem paternais, eram enodados de egoísmo e duma espécie de exploração comercial.
O belo enxoval, os belos vestidos domingueiros e os de todos os dias deram início ao infortúnio de Pierrette. Como todas as crianças entregues aos folguedos e habituadas a seguir as inspirações da sua fantasia, ela rompia terrivelmente depressa os sapatos, os borzeguins, os vestidos e, principalmente, as calcinhas de rendas. Quando uma mãe repreende um filho, pensa apenas nele; a sua palavra é doce, só eleva a voz quando é obrigada a fazê-lo e quando o filho comete faltas. Na grande questão das roupas, entretanto, os escudos dos dois primos eram o assunto principal: tratava-se deles e não de Pierrette. As crianças são dotadas do faro da raça canina para as faltas dos que as governam: sentem admiravelmente se são amadas ou toleradas. Os corações puros são mais fortemente impressionados pelas gradações que pelos contrastes: antes mesmo de compreender o mal, a criança já percebe quando ofendem o sentimento do belo de que a Natureza a dotou. Os conselhos que Pierrette atraía sobre si, a propósito do porte que devem ter as meninas bem-educadas, sobre modéstia e economia, eram o corolário desse tema principal: Pierrette arruína-nos. Essas repreensões, que tiveram um funesto resultado sobre Pierrette, reconduziram os dois celibatários à antiga rotina comercial de que a mudança para Provins os afastara e na qual o seu temperamento ia desabrochar e florir. Habituados a dominar, a fazer observações, a mandar, a repreender violentamente os caixeiros, Rogron e a irmã consumiam-se por falta de vítimas. Os espíritos estreitos necessitam de despotismo para que os seus nervos funcionem, do mesmo modo que as almas grandes têm sede de igualdade para que o seu coração continue a pulsar. Ora, os seres mesquinhos manifestam-se com a mesma força na perseguição como no benefício: podem manifestar o seu poder por um império cruel ou caridoso sobre outrem; são sempre levados, porém, para o lado do qual os impele o temperamento. Acrescentai a isso o veículo do interesse e tereis a chave do enigma da maioria das coisas sociais. Desde então, Pierrette tornou-se extremamente necessária à existência dos primos. Desde a sua chegada, os Rogron haviam estado muito ocupados com o enxoval e depois, com a novidade da comensalidade. Toda a novidade, uma afeição ou mesmo uma tirania, segue um caminho certo. Sílvia começou por tratar Pierrette de minha pequena; trocou o minha pequena por Pierrette apenas. As repreensões, inicialmente agridoces, tornaram-se enérgicas e duras. Depois que tomaram esse caminho, o irmão e a irmã fizeram rápidos progressos; não se entediavam mais! Não foi a conspiração de seres maus e cruéis e sim o instinto duma tirania imbecil. O irmão e a irmã julgaram-se úteis a Pierrette, como antigamente se julgavam úteis aos aprendizes. Pierrette, cuja sensibilidade sincera, nobre, excessiva, era a antípoda da secura dos Rogron, tinha horror às repreensões: sentia-as tão intensamente que imediatamente as lágrimas humedeciam os seus belos olhos puros. Teve de travar duros combates antes de reprimir a sua adorável vivacidade, que tanto agradava fora de casa; expandia-a na casa das mães das suas amiguinhas; em casa, porém, no fim do primeiro mês, começou a mostrar-se apática e Rogron perguntou-lhe se estava doente. Ao ouvir essa estranha interrogação, correu para a extremidade do jardim a fim de chorar à margem do riacho, onde as suas lágrimas caíram como um dia ela própria devia cair na torrente social. Um dia, apesar dos cuidados, a menina deu um rasgão no belo vestido de reps azul, na casa da sra. Tiphaine, onde fora brincar num lindo dia. Imediatamente desfez-se em lágrimas, prevendo a cruel repreensão que a esperava em casa. Interrogada, escaparam-lhe algumas palavras sobre a terrível prima, no meio do pranto. A bela sra. Tiphaine tinha um reps igual e ela mesma substituiu a parte rasgada. Rogron soube da partida que, segundo a sua expressão, lhe pregara a endiabrada menina. Desse momento em diante, não consentiu mais em confiar Pierrette àquelas senhoras.
A nova existência que Pierrette ia levar em Provins devia dividir-se em três fases bem distintas. A primeira, durante a qual desfrutou uma espécie de felicidade composta pela associação das carícias frias dos dois celibatários e pelas repreensões, violentas para ela, durou três meses. A proibição de visitar as amiguinhas, apoiada na necessidade de começar a aprender tudo o que devia saber uma menina bem-educada, encerrou a primeira fase da vida de Pierrette em Provins, a única época em que a existência lhe pareceu suportável.
HISTÓRIA DAS PRIMAS POBRES EM CASA DOS PARENTES RICOS
Os movimentos interiores produzidos nos Rogron pela permanência de Pierrette foram estudados por Vinet e pelo coronel com a precaução de raposas que se propõem entrar num galinheiro e se inquietam ao encontrar lá um novo ser. Ambos se aproximavam aos poucos, para não assustar melle. Sílvia; conversavam com Rogron sob diversos pretextos e iam-se adonando da casa com uma reserva e uma cautela que o grande Tartufo teria admirado. O coronel e o advogado passaram o serão com os Rogron, no mesmo dia em que Sílvia recusara, em termos muito amargos, mandar Pierrette à casa da bela sra. Tiphaine. Ao saberem da recusa, o coronel e o advogado entreolharam-se como conhecedores de Provins.
- Positivamente, ela quis desfeiteá-la - disse-lhe o advogado. - Há muito que vínhamos prevenindo o Rogron do que lhe aconteceu. Não se tem nada a ganhar com aquela gente.
- Que se pode esperar do partido antinacional? - exclamou o coronel, retorcendo o bigode e interrompendo o advogado. - Se tivéssemos procurado afastá-los deles, teriam pensado que o fazíamos por ódio. Mas, se a mademoiselle, gosta de jogar cartas, por que não organiza uma partida de bóstone, em sua casa? Será impossível substituir cretinos como os Julliard? Vinet e eu conhecemos o bóstone e acabaremos por conseguir um quarto parceiro. Vinet pode apresentar-lhe a esposa. É uma senhora gentil e, além disso, é uma Chargeboeuf. Acho que não farão como essas macacas da cidade alta, não exigirão vestidos de duquesa a uma boa dona de casa, que se vê obrigada, pela infâmia da família, a fazer todos os trabalhos domésticos e que alia a coragem dum leão à doçura dum cordeiro.
Sílvia Rogron exibiu os longos dentes amarelos ao sorrir para o coronel, que resistiu bravamente a esse horrível fenómeno e chegou até a assumir uma expressão lisonjeira.
- Se formos apenas quatro, não poderemos jogar bóstone todas as noites - respondeu ela.
- Que quer que faça um velho rabugento como eu, que não tem outra coisa a fazer além de gastar as pensões? O advogado está sempre livre à noite. Por outro lado, a mademoiselle formará um círculo de relações, prometo-lhe - acrescentou, com uma expressão misteriosa.
- Bastará - disse Vinet - colocar-se francamente contra os ministeriais de Provins e enfrentá-los. Verão, então, como os estimarão em Provins, e formarão uma sociedade própria. Enfurecerão os Tiphaine, opondo o seu salão ao deles. Que tal? Se os outros riem de nós, riremos deles. A súcia não se preocupa, aliás, muito consigo!
- Como? - perguntou Sílvia.
Na província, há mais de uma válvula pela qual os falatórios escapam duma sociedade para outra. Vinet tivera conhecimento de todas as referências feitas sobre os Rogron nos salões dos quais os ex-retroseiros haviam sido definitivamente banidos. O juiz substituto, o arqueólogo Desfondrilles, não pertencia a nenhum partido. Esse juiz, como algumas outras pessoas independentes, contava, por hábito de província, tudo o que ouvia dizer, e Vinet tirara proveito dessas tagarelices. O malicioso advogado envenenou os gracejos da sra. Tiphaine ao repeti-los. Revelando as mistificações a que Rogron e Sílvia se haviam prestado, inflamou a cólera e despertou o espírito de vingança daqueles dois temperamentos áridos, que desejavam um alimento para as suas paixões mesquinhas.
Alguns dias mais tarde, Vinet levou a esposa, pessoa bem-educada, tímida, nem feia nem bonita, muito meiga e que deixava transparecer vivamente a sua desventura. A sra. Vinet era loura, um pouco fatigada pelos trabalhos do seu lar pobre e muito singelamente vestida. Mulher alguma poderia agradar mais a Sílvia. A sra. Vinet suportou as atitudes de Sílvia e curvou-se diante dela, como mulher habituada a curvar-se. Havia na sua testa arqueada, nas suas faces de rosa de Bengala, no seu olhar tranquilo e meigo, os traços dessas meditações profundas, desse pensamento perspicaz que as mulheres habituadas a sofrer sepultam num absoluto silêncio. A influência do coronel, que cercava Sílvia de galanteios aparentemente arrancados à sua brusquidão militar, e a do esperto Vinet, logo atingiram Pierrette. Encerrada em casa, de onde só saía em companhia da velha prima, Pierrette, esse belo esquilo, passou a ser, a todo o momento, atacada por "Não toques nisso, Pierrette!" e por sermões contínuos sobre a maneira de comportar-se. Pierrette curvava o peito e inclinava as costas; a prima queria-a empertigada como ela, que parecia um soldado apresentando armas ao coronel; dava-lhe, às vezes, palmadinhas nas costas para endireitá-la. A livre e alegre filha do Marais aprendeu a reprimir os impulsos, a imitar um autómato.
Uma noite, que assinalou o início da segunda fase, Pierrette, que os três frequentadores não haviam visto no salão durante o serão, foi beijar os parentes e cumprimentar as visitas antes de ir deitar-se. Sílvia apresentou friamente a face à encantadora menina, como para desembaraçar-se do beijo. O gesto foi tão cruelmente significativo que as lágrimas de Pierrette jorraram.
- Feriste-te, minha pequena Pierrette? - perguntou-lhe o atroz Vinet.
- Que tens? - interrogou severamente Sílvia.
- Nada - respondeu a pobre menina, indo beijar o primo.
- Nada? - replicou Sílvia. - Não se chora sem razão.
- Que tens, minha belezinha? - perguntou-lhe a sra. Vinet.
- A minha prima rica não me trata tão bem como a minha pobre avó!
- A tua avó tirou-te toda a tua fortuna - disse Sílvia - e a tua prima deixar-te-á a dela.
O coronel e o advogado entreolharam-se furtivamente.
- Prefiro ser roubada e estimada - desabafou Pierrette.
- Está bem! Vamos mandar-te embora.
- Mas, que é que fez a queridinha? - perguntou a sra. Vinet.
Vinet lançou à mulher esse olhar terrível, fixo e frio, das pessoas que exercem um domínio absoluto. A pobre hilota, constantemente punida por não ter tido a única coisa que queriam dela, a fortuna, retomou as cartas.
- Que é que ela fez? - exclamou Sílvia, erguendo a cabeça com um gesto tão brusco que os enfeites amarelos da sua touca se agitaram. - Ela não sabe mais o que inventar para contrariar-nos: abriu o meu relógio para ver o mecanismo, deu corda e quebrou a mola grande. Essa menina não escuta nada. Estou a recomendar-lhe o dia inteiro que tenha cuidado com as coisas e é como se eu falasse a esta lamparina.
Pierrette, envergonhada por ter sido repreendida na presença de estranhos, saiu de mansinho.
- Vivo a perguntar-me como se há-de dominar a turbulência dessa menina - disse Rogron.
- Mas, ela tem bastante idade para ir para um internato - acrescentou a sra. Vinet.
Um novo olhar de Vinet impôs silêncio à esposa, a quem evitara de confiar os seus planos e os do coronel sobre os dois celibatários.
- Eis no que dá a gente tomar conta dos filhos dos outros! - exclamou o coronel. - A mademoiselle ainda pode ter filhos seus, bem como seu irmão. Por que não se casam, um ou outro?
Sílvia olhou muito amavelmente para o coronel: pela primeira vez na vida encontrava um homem a quem a ideia de que ela podia casar-se não parecia absurda.
- A senhora Vinet tem razão - exclamou Rogron - isso faria Pierrette ficar quieta. Um professor não custará grande coisa!
A frase do coronel preocupava Sílvia de tal modo que ela não respondeu a Rogron.
- Se ao menos o senhor quisesse financiar o jornal oposicionista de que falamos, teria um professor para a nossa priminha no editor responsável; tomaríamos esse pobre mestre-escola vítima da invasão do clero. Minha mulher tem razão: Pierrette é um diamante bruto que é preciso polir - disse Vinet a Rogron.
- Pensei que o senhor fosse barão - declarou Sílvia ao Coronel, enquanto davam as cartas e após uma longa pausa durante a qual todos os jogadores se conservavam pensativos.
- Sim. Mas, tendo sido nomeado em 1814, após a batalha de Nangis (44) [(44) A Batalha de Nangis (localidade no departamento de Seine-et-Marne), travou-se em 17 de Fevereiro de 1814 entre Franceses e Austríacos, e acabou com a derrota destes últimos], na qual o meu regimento fez milagres, não tive o dinheiro nem as protecções necessárias para regularizar a minha situação na chancelaria. Dá-se com o baronato o mesmo que com o posto de general, que recebi em 1815: só uma revolução mos poderá restituir.
- Se o senhor pudesse garantir o financiamento com uma hipoteca - respondeu finalmente Rogron - eu poderia fazê-lo.
- Mas, isso pode-se arranjar com Cournant - replicou Vinet. - O jornal trará a vitória do coronel e tornará o seu salão mais poderoso que o dos Tiphaine e sua súcia.
- Como é isso? - perguntou Sílvia.
No momento em que, enquanto sua esposa dava as cartas, o advogado explicava a importância que Rogron, o coronel e ele, Vinet, adquiriam com a publicação dum jornal independente para o distrito de Provins, Pierrette desfazia-se em lágrimas; o seu coração e a sua inteligência estavam de acordo: achava a prima mais em falta do que ela. A menina do Marais compreendia instintivamente o quanto a caridade e a bondade devem ser absolutas. Odiava os belos vestidos e tudo o que se fazia por ela. Vendiam-lhe muito caro os benefícios. Chorava de despeito por ter deixado que tomassem conta dela e tomava a resolução de comportar-se de. maneira a reduzir os parentes ao silêncio. Pobre criança! Pensava, então, no quanto Brigaut fora grande ao dar-lhe as suas economias. Julgava que a sua desventura chegara ao auge e ignorava que naquele momento se estava a decidir, na sala de visitas, um novo infortúnio para ela. Com efeito, alguns dias mais tarde, Pierrette passou a ter um professor. Devia aprender a ler, escrever e contar. A educação de Pierrette causou enormes transtornos na casa dos Rogron. Era a tinta derramada nas mesas, nos móveis, nas roupas; depois, cadernos de escrita e penas espalhadas por toda a parte, pó sobre os estofamentos, livros rasgados, despedaçados, enquanto ela aprendia as lições. Já lhe falavam - e em que termos! - da necessidade de ganhar o seu pão, de não ser pesada a ninguém. Ao ouvir estes terríveis conselhos, Pierrette sentia uma dor na garganta: produzia-se ali uma contracção violenta, o seu coração batia precipitadamente. Era obrigada a conter o pranto, pois pediam-lhe explicação das suas lágrimas como duma ofensa à bondade dos seus magnânimos parentes. Rogron encontrara a vida que lhe era peculiar: repreendia Pierrette como outrora repreendia os caixeiros; ia arrancá-la dos brinquedos para obrigá-la a estudar, fazia que ela lhe repetisse as lições, era o feroz mestre-de-estudo da pobre menina. Sílvia, por sua vez, considerava um dever ensinar a Pierrette o pouco que sabia de trabalhos femininos. Nem Rogron nem a irmã tinham doçura de carácter. Esses espíritos mesquinhos, que, além disso, sentiam um prazer real em atormentar a pobrezinha, passaram insensivelmente da brandura à mais excessiva severidade. A sua severidade foi estimulada pela pretensa má vontade da criança que, começando a aprender muito tarde, tinha o entendimento difícil. Os seus professores ignoravam a maneira de dar às lições uma forma apropriada à inteligência da aluna, o que assinala a diferença entre a educação particular e a educação pública. Assim, a culpa era menos de Pierrette que dos parentes. Ela levou um tempo enorme para aprender as primeiras noções. Por um nada qualquer, era chamada burra e estúpida, boba e inepta. Pierrette, constantemente maltratada com palavras, não encontrou nos parentes senão olhares frios. Assumiu a atitude embrutecida das ovelhas: não ousou fazer mais nada, ao ver as suas acções mal julgadas, mal recebidas e mal interpretadas. Em todas as coisas esperava o consentimento, as ordens da prima. Assim, passou a guardar os seus pensamentos para si mesma e encerrou-se numa obediência passiva. As suas cores brilhantes começaram a extinguir-se. Queixou-se algumas vezes, de dores. Quando a prima lhe perguntou: "Onde?", a pobrezinha, que sentia dores generalizadas, respondeu: "Por toda a parte."
- Onde já se viu sofrer por toda a parte? Se tivesses dores por toda a parte, já estarias morta! - repetiu Sílvia.
- A gente sente dores no peito - dizia Rogron, o epilogador -, tem dores de dentes, de cabeça, nos pés, no ventre. Nunca, porém, se viu ter dores por toda a parte. Que quer dizer isso, por toda a parte? Ter dores por toda a parte é não ter dor em parte alguma. Sabes que é que estás a fazer? Falas só por falar.
Pierrette acabou por se calar, ao ver as suas ingénuas observações de criança, as flores do seu espírito nascente, acolhidas por lugares-comuns que o seu bom-senso lhe mostrava serem ridículos.
- Tu queixas-te, e tens um apetite de monge! - dizia-lhe Rogron.
A única pessoa que não ofendia essa querida flor tão delicada era a gorda criada, Adélia. Adélia aquecia o leito da menina, às escondidas, desde a noite em que, surpreendida a proporcionar esse conforto à herdeira dos patrões, foi censurada por Sílvia.
- É preciso educar as crianças com rigor, é assim que se formam temperamentos fortes. Acaso ficámos menos fortes de saúde com esse regime, meu irmão e eu? - disse Sílvia. - Farias de Pierrette uma achacada! - expressão do vocabulário de Rogron para descrever as pessoas doentias e choramingas.
As expressões carinhosas desse anjo eram recebidas como fingimentos. As rosas da afeição que brotavam tão frescas, tão graciosas naquela alma jovem e queriam desabrochar, eram impiedosamente esmagadas. Pierrette recebia os golpes mais rudes nos pontos ternos do coração. Se tentava abrandar aqueles dois temperamentos ferozes por meio de agrados, era acusada de mostrar-se meiga por interesse.
- Dize-me logo o que é que queres! - exclamava brutalmente Rogron. - Não há-de ser por nada que me estás a adular.
Nem a irmã nem o irmão admitiam a afeição, e Pierrette era toda afeição. O coronel Gouraud, ansioso por agradar a melle. Rogron, dava-lhe razão em tudo o que se referia a Pierrette. Vinet apoiava igualmente os dois parentes em tudo quanto diziam contra Pierrette; atribuía todos os pretensos defeitos desse anjo à teimosia do carácter bretão, e achava que nenhuma força, nenhuma vontade conseguiria dominá-la. Rogron e a irmã eram lisonjeados com uma astúcia exagerada por esses dois cortesãos, que haviam acabado por obter de Rogron o financiamento do jornal Correio de Provins, além de cinco mil francos de acções de Sílvia. O coronel e o advogado puseram-se em campo. Colocaram cem acções de quinhentos francos entre os eleitores proprietários de bens nacionais, aos quais os jornais liberais inspiravam temores, entre os granjeiros e entre as pessoas chamadas independentes. Acabaram, mesmo, estendendo as suas ramificações pelo departamento e mesmo além, em algumas comunas limítrofes. Cada accionista foi, naturalmente, incluído como assinante. Além disso, os anúncios judicionários e outros dividiram-se entre a Colmeia e o Correio. O primeiro número do jornal fez um pomposo elogio de Rogron. Rogron era apresentado como o Laffitte (45) [(45) Jacques Laffitte (1767-1844), famoso homem de Estado, governador do Banco de França de 1814 a 1819] de Provins. Quando o espírito público ficou orientado, pôde verificar facilmente que as próximas eleições seriam vivamente disputadas. A bela sra. Tiphaine ficou desesperada.
- Infelizmente - comentava ela, lendo um artigo dirigido contra ela e contra Julliard - esqueci-me de que sempre há um patife perto dum tolo e que a tolice atrai sempre um homem inteligente da espécie das raposas.
Depois que o jornal começou a brilhar num raio de vinte léguas, Vinet adquiriu uma casaca nova, sapatos, um colete e calças decentes. Arvorou o famoso chapéu cinzento dos liberais e deixou ver a roupa branca. A mulher arranjou criada e apareceu vestida como deve fazê-lo a esposa dum homem influente. Comprou bonitas toucas. Por interesse, Vinet mostrou-se grato. O advogado e o seu amigo Cournant, o tabelião dos liberais e o adversário de Auffray, tornaram-se conselheiros dos Rogron, aos quais prestaram dois grandes serviços. Os arrendamentos feitos pelo velho Rogron em 1815, em circunstâncias desastrosas, iam expirar. A horticultura e as demais plantações haviam adquirido enorme desenvolvimento nos arredores de Provins. O advogado e o tabelião procuraram proporcionar aos Rogron um aumento de mil e quatrocentos francos nos seus rendimentos por meio de novas locações. Vinet ganhou dois processos relativos a plantações de árvores, contra duas comunas, representando um total de quinhentos álamos. O dinheiro dos álamos e o das economias de Rogron, que há três anos produziam seis mil francos a alto juro, foram muito habilmente empregados na compra de várias terras encravadas. Finalmente, Vinet empreendeu e levou a termo a expropriação de alguns camponeses a quem o velho Rogron emprestara dinheiro e que se haviam matado a cultivar e melhorar as terras, sem resultado. Os danos causados pela construção da casa ao capital dos Rogron foram, assim, largamente sanados. As suas propriedades, situadas nas redondezas de Provins, escolhidas pelo pai como só os hoteleiros sabem escolher, divididas em pequenas lavouras, a maior das quais não ocupava nem cinco jeiras, arrendadas a pessoas perfeitamente solvíveis, quase todas possuidoras de fracções de terra e com hipotecas garantidas pelas herdades, trouxeram no dia de S. Martinho, de Novembro de 1826, cinco mil francos. Os impostos estavam a cargo dos rendeiros e não havia nenhuma construção a reparar ou a segurar contra incêndio. Cada um dos irmãos possuía quatro mil e seiscentos francos a cinco por cento e, como esses valores estavam acima do par, o advogado sugeriu-lhes que empregassem o capital em terras, prometendo-lhes, com o auxílio do tabelião, não deixar que perdessem um liard de juros com a transferência.
No fim desse segundo período, a vida ficou tão dura para Pierrette, a indiferença dos frequentadores da casa, a estupidez repreensora e a falta de afeição dos parentes tornaram-se tão corrosivas e ela sentiu tão nitidamente soprar sobre ela o frio húmido da sepultura, que concebeu o ousado projecto de ir embora, a pé, para a Bretanha, para juntar-se a sua avó e seu avô Lorrain. Dois acontecimentos vieram impedir que ela efectivasse esse intento. O bom velho Lorrain morreu; Rogron foi nomeado tutor da prima por um conselho de família reunido em Provins. Se a avó tivesse falecido em primeiro lugar, é de crer que Rogron, aconselhado por Vinet, teria reclamado os oito mil francos de Pierrette e reduzido o avô à indigência.
- Mas, o senhor pode herdar de Pierrette - disse-lhe Vinet, com um sorriso terrível. - Nunca se sabe quem ficará vivo e quem morrerá.
Com este esclarecimento, Rogron não deu tréguas à viúva Lorrain, devedora de sua neta, senão após ter-lhe feito assegurar a Pierrette a nua propriedade dos oito mil francos por doação intervivos, cujas despesas foram pagas por ele.
Pierrette foi singularmente abalada por essa morte. No momento em que recebeu o golpe terrível, tratavam da sua primeira comunhão: outro facto cujas obrigações retiveram Pierrette em Provins. Essa cerimónia necessária e tão singela ia causar grandes alterações entre os Rogron. Sílvia soube que o padre Péroux estava a preparar as pequenas Julliard, Lesourd, Garceland e outras. Sentiu-se ferida na sua dignidade e quis que Pierrette fosse preparada pelo próprio vigário do padre Péroux, o padre Habert, homem que passava por pertencer à congregação, muito zeloso pelos interesses da Igreja, muito temido em Provins e que ocultava uma grande ambição sob uma severidade de princípios absolutos. A irmã desse padre, de cerca de trinta anos, mantinha uma pensão de senhoras na cidade. O irmão e a irmã pareciam-se: ambos magros, amarelados, de cabelos pretos, atrabiliários. Como bretã embalada nas práticas e na poesia do catolicismo, Pierrette abriu o coração e o ouvido à palavra daquele imponente vigário. Os sofrimentos predispõem à devoção e quase todas as mulheres, impelidas por uma ternura instintiva, são propensas ao misticismo, o lado profundo da religião. Assim, o padre semeou o grão do Evangelho e os dogmas da Igreja num terreno excelente. Alterou completamente as disposições de Pierrette. Pierrette amou Jesus Cristo apresentado na comunhão às meninas como um noivo celestial; os seus sofrimentos físicos e morais passaram a ter um sentido; foi instruída para ver em tudo o dedo de Deus. A sua alma, tão cruelmente ferida naquela casa sem que ela pudesse acusar os parentes, refugiou-se na esfera a que se elevam todos os desgraçados, levados nas asas das três virtudes teologais. Abandonou, assim, as suas ideias de fuga. Sílvia, surpresa com a metamorfose operada em Pierrette pelo padre Habert, encheu-se de curiosidade. Desse momento em diante, enquanto preparava Pierrette para a primeira comunhão, o padre Habert conquistou para Deus a alma, até então transviada, de melle. Sílvia. Sílvia caiu na devoção. Dinis Rogron, a quem o pretenso jesuíta não pôde morder, porque então o espírito de Sua Majestade liberal falecido Constitucional (46) [(46) Alusão irónica a Luís-Filipe] era mais forte sobre certos tolos que o espírito da Igreja. Dinis conservou-se fiel ao coronel Gouraud, a Vinet e ao liberalismo.
Melle. Rogron, naturalmente, travou relações com melle. Habert, com quem simpatizou perfeitamente. As duas solteironas amaram-se como duas irmãs que se amam. melle. Habert ofereceu-se para ficar com Pierrette em sua casa e poupar a Sílvia os aborrecimentos e os embaraços duma educação, mas o irmão e a irmã responderam que a ausência de Pierrette determinaria um grande vácuo em sua casa. A afeição dos Rogron à priminha pareceu exagerada. Ao verem melle. Habert entrar em campo, o coronel Gouraud e o advogado Vinet atribuíram ao ambicioso vigário, no interesse de sua irmã, o plano matrimonial concebido pelo coronel.
- Sua irmã quer casá-lo - disse o advogado ao ex-comerciante.
- Com quem? - perguntou Rogron.
- Com essa velha sibila da preceptora - exclamou o coronel, cofiando o bigode.
- Ela não me disse nada - respondeu ingenuamente Rogron.
Uma moça independente como Sílvia devia fazer progressos no caminho da salvação. A influência do padre ia crescer naquela casa, apoiada por Sílvia que dispunha do irmão. Os dois liberais, que se assustaram com razão, compreenderam que se o padre resolvera casar a irmã com o Rogron, união infinitamente mais viável que a de Sílvia e o coronel, ele arrastaria Sílvia às práticas mais violentas da religião e faria entrar Pierrette num convento. Estavam, assim, em risco de perder dezoito meses de esforços, de infâmias e de bajulação. Foram acometidos dum ódio surdo e terrível contra o padre e a irmã; sentiram, entretanto, a necessidade de viver em harmonia com eles a fim de segui-los passo a passo. O padre Habert e sua irmã, que conheciam o uíste e o bóstone, passaram a frequentar a casa dos Rogron todas as noites. A assiduidade de uns estimulou a assiduidade dos outros. O advogado e o coronel sentiram-se em face de adversários tão fortes como eles, pressentimentos de que partilhavam o padre Habert e a irmã. As suas respectivas situações já constituíam um combate. Assim como o coronel fazia Sílvia saborear as doçuras inesperadas dum pedido de casamento, pois ela acabara por ver em Gouraud um homem digno dela, melle. Habert envolveu o ex-retroseiro na camada de algodão das suas atenções, das suas palavras e dos seus olhares. Nenhum dos dois partidos podia pronunciar essa grande palavra de alta política: "Partilhemos!". Cada qual queria a sua presa. Por outro lado, as duas astutas raposas da oposição provinense, oposição que crescia, cometeram o erro de se julgarem mais fortes que o sacerdote: foram os primeiros a abrir fogo. Vinet, cuja gratidão foi despertada pelos dedos aduncos do interesse pessoal, foi procurar melle. de Chargeboeuf e sua mãe. Essas duas mulheres possuíam cerca de dois mil francos de renda e viviam parcamente em Troyes. Melle. Bathilde de Chargeboeuf era uma dessas magníficas criaturas que acreditam nos casamentos por amor e que aos vinte e cinco anos mudam de opinião ao verificar que continuam solteiras. Vinet soube persuadir melle. de Chargeboeuf a juntar os seus dois mil francos com os mil escudos que ele ganhava desde a fundação do jornal e ir viver com ele em Provins, onde, segundo disse, Bathilde desposaria um imbecil chamado Rogron e poderia, inteligente como era, rivalizar com a bela sra. Tiphaine. A adesão da sra. de Chargeboeuf e de sua filha ao lar e às ideias de Vinet deu a máxima consistência ao partido liberal. Essa coligação consternou a aristocracia de Provins e o partido dos Tiphaine. A sra. de Breautey, desesperada por ver duas mulheres nobres assim transviadas, convidou-as a irem à sua casa. Queixou-se das faltas cometidas pelos realistas e tornou-se furiosa contra os de Troyes ao saber da situação da mãe e da filha.
- Como é isso? Então não apareceu nenhum velho fidalgo camponês para desposar essa querida menina, nascida para tornar-se castelã? - dizia ela. - Deixaram que ela ficasse velha e agora ela vai atirar-se a um Rogron.
Revolveu todo o departamento sem poder encontrar um único fidalgo capaz de desposar uma moça cuja mãe não tinha mais de dois mil francos de renda. O partido dos Tiphaine e o subprefeito também se puseram à procura desse desconhecido, mas, muito tarde. A sra. de Breautey fez terríveis acusações contra o egoísmo que devorava a França, fruto do materialismo e do poder conferido pelas leis ao dinheiro: a nobreza não era mais nada! A beleza, idem! Os Rogron e os Vinet entravam em luta contra o rei da França!
Bathilde de Chargeboeuf não tinha sobre a rival apenas a incontestável vantagem da beleza, mas também a do vestuário. Era duma alvura resplandecente. Aos vinte e cinco anos, com as espáduas completamente desenvolvidas, as suas belas formas tinham uma plenitude estranha. A harmonia do pescoço, a pureza dos atractivos, a abundância da cabeleira dum louro encantador, a graça do sorriso, a distinção da cabeça, a expressão e a forma do rosto, os belos olhos bem situados sob uma fronte bem talhada, os gestos nobres e fidalgos e a silhueta ainda esbelta, tudo nela se harmonizava. Tinha uma bela mão e um pé pequeno. A sua saúde conferia-lhe, talvez, o aspecto duma bela empregada de hotel; "esse pormenor, porém, não seria um defeito aos olhos dum Rogron" - disse a bela sra. Tiphaine. Melle. de Chargeboeuf apresentou-se pela primeira vez muito singelamente. O vestido de merino escuro com bordado verde era decorado; um lenço de filó, bem preso por cordões interiores, cobria as espáduas, as costas e os seios, entreabrindo-se, porém, na frente, embora o lenço estivesse preso por uma sévigné. Sob essa rede delicada, os encantos de Bathilde tornavam-se ainda mais atraentes, mais sedutores. Tirou o chapéu de veludo e o xale ao chegar, deixando ver as belas orelhas ornadas de brincos de ouro. Usava uma pequena cruz presa a uma fita de veludo que se salientava no seu pescoço como um anel negro que a natureza extravagante põe na cauda dum angorá branco. Conhecia todas as astúcias das moças casadouras: agitar as mãos para ajeitar o cabelo que não está desarranjado, mostrar os pulsos ao pedir a Rogron que lhe abotoasse um punho, pedido a que o desgraçado, deslumbrado, se recusava brutalmente, ocultando, assim, as suas emoções sob uma falsa indiferença. A timidez do único amor que o retroseiro devia experimentar na vida revestiu-se de todos os indícios do ódio. Tanto Sílvia como Celeste Habert iludiram-se com isso, mas não o advogado, o homem superior daquela sociedade estúpida e que só tinha por adversário o padre, pois o coronel foi durante muito tempo seu aliado.
O coronel, por seu lado, conduziu-se desde então em relação a Sílvia como Bathilde com Rogron. Passou a mudar a roupa branca todas as noites, comprou gravatas de veludo sobre as quais sobressaía nitidamente a sua fisionomia marcial posta em relevo pelas duas extremidades do colarinho branco da camisa; adoptou o colete de piqué branco e mandou fazer uma sobrecasaca nova de fazenda azul, na qual brilhava a roseta vermelha, tudo sob o pretexto de honrar a presença da bela Bathilde. Passou a não fumar mais depois das duas horas. Os cabelos grisalhos foram assentados em ondas sobre o crânio de tonalidade ocre. Adquiriu, enfim, a aparência e a atitude dum chefe de partido, dum homem que se dispunha a levar os inimigos da França, os Bourbons, numa palavra, a toque de caixa.
O satânico advogado e o astucioso coronel pregaram ao padre Habert e a sua irmã uma peça ainda mais cruel do que a apresentação da bela melle. de Chargeboeuf, considerada pelo partido liberal e pelo Breautey dez vezes mais bela que a bela sra. Tiphaine. Esses dois grandes políticos de cidade pequena espalharam, cautelosamente, que o padre Habert estava a aderir às suas ideias. Logo Provins começou a falar dele como sendo um padre liberal. Chamado imediatamente ao bispado, o padre Habert foi obrigado a renunciar aos serões na casa dos Rogron; a irmã, porém, continuou a frequentá-los. O salão Rogron ficou então constituído e tornou-se uma potência.
Em meados desse ano, as intrigas políticas, por sua vez, não foram menos intensas no salão dos Rogron do que as intrigas matrimoniais. Se os interesses surdos, sepultados nos corações, travaram combates encarniçados, a luta política adquiriu uma fatal celebridade. Todos sabem que o ministério Villèle foi derrubado pelas eleições de 1826. No colégio eleitoral de Provins, Vinet, candidato liberal, a quem o Sr. Cournant proporcionara a elegibilidade pela aquisição duma propriedade cujo pagamento ficaram a dever, quase venceu o Sr. Tiphaine. O presidente teve apenas uma maioria de dois votos. Às sras. Vinet e de Chargeboeuf, a Vinet e ao coronel, juntaram-se, às vezes, o Sr. Cournant e a esposa, depois, o médico Néraud, um homem cuja mocidade fora muito tormentosa, mas que encarava seriamente a vida. Entregara-se, segundo se dizia, ao estudo e tinha, no entender dos liberais, faculdades superiores. às do Sr. Martener. Os Rogron não compreendiam o seu triunfo, como não haviam compreendido o seu ostracismo.
A bela Bathilde de Chargeboeuf, a quem Vinet mostrou Pierrette como sua inimiga, desprezava-a terrivelmente. O interesse geral exigia a humilhação da pobre vítima. A sra. Vinet não podia fazer nada pela menina, esmagada entre os interesses implacáveis que acabara por compreender. Se não fosse a vontade imperiosa do marido, não teria ido mais à casa dos Rogron; sofria muito lá, ao ver maltratar aquela encantadora criaturinha que se achegava a ela percebendo uma protecção secreta e lhe pedia que ensinasse tal ou tal ponto, ou um bordado. Pierrette, dessa forma, mostrava que, tratada brandamente, compreendia e se saía maravilhosamente bem. A sra. Vinet já não era útil e não apareceu mais. Sílvia, que ainda afagava a ideia do casamento, viu finalmente em Pierrette um obstáculo: Pierrette tinha quase catorze anos; a sua alvura doentia, cujos sintomas eram negligenciados pela ignorante solteirona, tornavam-na encantadora. Sílvia concebeu, então a bela ideia de cobrar as despesas que Pierrette lhe causava fazendo dela uma criada. Vinet, em seu nome e no das de Chargeboeuf, melle. Habert, Gouraud, todos os frequentadores influentes convenceram Sílvia a despedir a gorda Adélia. Pierrette não podia cozinhar e arrumar a casa? Quando houvesse trabalho em excesso, podia chamar a governanta do coronel, pessoa muito entendida e uma das melhores cozinheiras de Provins. Pierrette devia saber cozinhar, encerar o soalho - disse o sinistro advogado -, varrer, manter uma casa limpa, ir ao mercado e aprender o preço das coisas. A pobrezinha, cuja dedicação rivalizava com a generosidade, ofereceu-se espontaneamente, feliz por pagar assim o pão duro que comia naquela casa. Adélia foi despedida. Pierrette perdeu, assim, a única pessoa que poderia protegê-la. Apesar da sua resistência, ficou, desse momento em diante, abatida física e moralmente. Os dois celibatários tiveram com ela menos cuidados que com uma criada: ela pertencia-lhes! Assim, censuravam-na por nada, por um pouco de poeira esquecido sobre o mármore da lareira ou sobre um globo de vidro. Os objectos de luxo, que ela tanto admirara, tornaram-se-lhe odiosos. Apesar do seu desejo de bem fazer as coisas, a inexorável prima sempre encontrava que repreender no que ela fazia. Em dois anos, Pierrette não recebeu um elogio, não ouviu uma palavra afectuosa. A felicidade, para ela, resumia-se em não ser censurada. Suportava com uma paciência angélica os humores tétricos dos dois celibatários, aos quais os sentimentos doces eram inteiramente desconhecidos e que todos os dias lhe faziam sentir a sua dependência. Esta existência, que fazia a moça sentir-se apertada entre os dois retalhistas, como entre os dois ramos dum torno, agravou a sua doença. Experimentou perturbações internas tão intensas, pesares secretos tão súbitos em suas explosões, que o seu desenvolvimento ficou irremediavelmente prejudicado. Pierrette chegou, assim, lentamente, através de dores terríveis, mas ocultas, ao estado em que a viu o amigo de infância ao saudá-la, na praça, com a sua canção bretã.
Antes de entrar no drama doméstico que a chegada de Brigaut determinou na casa Rogron, é necessário, para não interrompê-lo, explicar a instalação do bretão em Provins, pois ele constituiu, de certo modo, um personagem mudo dessa cena.
Ao fugir, Brigaut ficou não somente assustado com o gesto de Pierrette, mas, também, com a transformação da sua jovem amiga; apenas pôde reconhecer a voz, os olhos e os gestos que lhe recordaram a pequena camarada tão viva, tão alegre e, não obstante, tão terna. Quando se viu longe da casa, sentiu um tremor nas pernas e um calor nas costas! Vira a sombra de Pierrette, e não Pierrette. Subiu à cidade alta, pensativo, inquieto, até um ponto de onde pôde avistar a praça e a casa de Pierrette; contemplou-a dolorosamente, perdido em pensamentos indefinidos como uma desgraça na qual se entra sem saber onde ela se detém. Pierrette sofria, não era feliz, tinha saudades da Bretanha! Que teria ela? Todas essas questões passaram e repassaram pelo coração de Brigaut, despedaçando-o, e revelaram-lhe a extensão do seu afecto por sua irmãzinha adoptiva. É extremamente raro que as paixões entre crianças de sexos diferentes subsistam. O encantador romance de Paulo e Virgínia, assim como o de Pierrette e Brigaut, não resolvem a questão que suscita esse facto moral tão estranho. A história moderna não oferece mais que a ilustre excepção da sublime marquesa de Pescara (47) [(47) Em solteira princesa Vittoria Colonna (1492-1547), ilustre poetisa italiana, a qual, depois da morte do marido, ocorrida em 1525 numa batalha, permaneceu fiel à sua memória, recusando a mão de vários príncipes] e seu marido: destinados um ao outro, pelos pais, desde a idade de catorze anos, adoraram-se e casaram-se; a sua união, no século XVI, ofereceu o espectáculo dum amor conjugal infinito, sem nuvens. Enviuvando aos trinta e quatro anos, a marquesa, bela, inteligente, universalmente adorada, recusou reis e enterrou-se num convento, onde não viu e não ouviu mais senão as religiosas. Esse amor tão completo desabrochou subitamente no coração do pobre operário bretão. Pierrette e ele haviam-se tantas vezes protegido mutuamente, ele ficara tão contente ao levar-lhe o dinheiro para a viagem, ele quase morrera por ter acompanhado a diligência, e Pierrette não soubera de nada! Essa recordação confortara muitas vezes as horas frias da sua existência penosa durante aqueles três anos. Aperfeiçoara-se por Pierrette, aprendera uma profissão por Pierrette e por Pierrette fora a Paris decidido a enriquecer para ela. Após ter passado lá quinze dias, não resistiu à ideia de vê-la e caminhou desde a tarde de sábado até àquela manhã de segunda-feira. Pensava voltar a Paris. A patética aparição de sua amiguinha, porém, prendia-o a Provins. Um admirável magnetismo, ainda contestado, apesar de tantas provas, agia sobre ele sem que ele o percebesse: as lágrimas rolavam dos seus olhos enquanto outras lágrimas obscureciam os de Pierrette. Se, para ela, ele representava a Bretanha e a mais feliz infância, para ele, Pierrette era a vida! Aos dezasseis anos, Brigaut não sabia ainda desenhar nem projectar uma cornija, ignorava muitas coisas; mas, com o seu trabalho, ganhava quatro a cinco francos por dia. Podia, pois, viver em Provins, lá ficaria perto de Pierrette, completaria o aprendizado da sua profissão escolhendo como mestre o melhor marceneiro da cidade e cuidaria de Pierrette.
Repentinamente, Brigaut tomou uma decisão. O operário correu a Paris, fez as suas contas, apanhou a sua caderneta, a bagagem e os instrumentos. Três dias mais tarde, estava como operário na casa do Sr. Frappier, o primeiro marceneiro de Provins. Os trabalhadores activos, ordeiros, inimigos de brigas e de farras são bastante raros para que os mestres de ofício se afeiçoem a um rapaz como Brigaut. Para encerrar a história do bretão neste ponto, no fim de uma quinzena ele tornou-se oficial marceneiro e passou a morar e fazer as refeições na casa de Frappier, que lhe ensinou cálculo e desenho linear. Esse marceneiro morava na Rua Larga, a uns cem passos da praça longa, na extremidade da qual ficava a casa dos Rogron. Brigaut enterrou o amor no coração e não cometeu a menor indiscrição. Fez com que a sra. Frappier lhe contasse a história dos Rogron; ela narrou-lhe a maneira pela qual o velho hoteleiro se apoderara da herança do bom velho Auffray. Brigaut obteve informações sobre o carácter do lojista Rogron e de sua irmã. Surpreendeu Pierrette no mercado, pela manhã, e estremeceu ao vê-la com um cesto cheio de provisões no braço. Reviu Pierrette no domingo, na igreja, onde a bretã apareceu com todos os seus adornos. Lá, pela primeira vez, Brigaut viu que Pierrette era a melle. Lorrain. Pierrette viu o amigo, mas, ele fez-lhe um sinal misterioso para aconselhá-la a ficar escondida. Havia um mundo de coisas nesse gesto, como naquele pelo qual, quinze dias atrás, ela o havia aconselhado a fugir. Que fortuna não devia ele conseguir em dez anos para poder casar-se com a sua amiguinha de infância, a quem os Rogron deviam deixar uma casa, cem jeiras de terra e doze mil libras de renda, sem contar com as suas economias! O perseverante bretão não quis tentar fortuna sem ter adquirido os conhecimentos que lhe faltavam. Instruir-se em Paris ou instruir-se em Provins, tratava-se apenas de teoria e ele preferiu ficar perto de Pierrette, a quem, além disso, quer~a expor os seus projectos e a espécie de protecção com que ela poderia contar. Finalmente, não queria deixá-la sem ter penetrado no mistério daquela palidez que já havia atingido a vida nos órgãos de onde ela desaparece em último lugar, os olhos, sem saber de onde provinham os sofrimentos que lhe davam a expressão de uma moça curvada sob a foice da morte e prestes a sucumbir. Esses dois sinais comovedores, que não desmentiam a sua amizade, mas que recomendavam a máxima reserva, lançaram o terror na alma do bretão. Evidentemente, Pierrette pedia-lhe que a esperasse e não procurasse encontrá-la. De outra forma, ela correria perigo. Ao sair da igreja, ela pôde dirigir-lhe um olhar e Brigaut viu os olhos de Pierrette cheios de lágrimas. Seria mais fácil para o bretão encontrar a quadratura do círculo do que descobrir o que se passara na casa dos Rogron depois da sua chegada.
A TIRANIA DOMÉSTICA
Não foi sem vivas apreensões que Pierrette desceu do quarto na manhã em que Brigaut surgira no meio do seu sonho matinal como um outro sonho. Para levantar-se e abrir a janela, melle. Rogron devia ter ouvido a canção e aquelas palavras tão comprometedoras ao ouvido duma solteirona; Pierrette, porém, ignorava os factos que tornavam a sua prima tão alerta. Sílvia tinha poderosas razões para levantar-se e chegar à janela. Nos últimos oito dias, estranhos acontecimentos secretos, sentimentos cruéis agitavam os principais personagens do salão Rogron. Esses acontecimentos ocultos, cuidadosamente escondidos por uma e outra parte, iam desabar como uma avalancha fria sobre Pierrette. Essa infinidade de coisas misteriosas, que talvez se devessem chamar as imundícies do coração humano, residem na base das maiores revoluções políticas, sociais e domésticas; mas, ao descrevê-las, talvez seja extremamente útil explicar que a sua tradução algébrica, embora exacta, é infiel no que se refere à forma. Esses cálculos profundos não falam tão brutalmente como a história os exprime. Pretender descrever as circunvoluções, as precauções oratórias, as longas conversações em que o espírito obscurece propositadamente a luz que possui, em que a palavra melíflua, dissolve o veneno de certas intenções, seria tentar um livro tão longo como o magnífico poema intitulado Clarisse Harlowe (48) [(48) A 1ª edição deste famoso romance de Richardson era de sete volumes]. Melle Habert e a melle. Sílvia estavam igualmente ansiosas para casar-se, mas, uma tinha dez anos menos que a outra e as probabilidades permitiam a Celeste Habert esperar que os seus filhos viessem a receber toda a fortuna dos Rogron. Sílvia chegava aos quarenta e dois anos, idade em que o casamento pode oferecer perigos. Trocando ideias à procura duma aprovação mútua, Celeste Habert, manobrada pelo vingativo padre, esclarecera Sílvia sobre os prováveis perigos da sua situação. O coronel, homem violento, duma saúde militar, forte rapaz de quarenta e cinco anos, devia praticar a moral de todos os contos de fadas: foram felizes e tiveram muitos filhos. Essa felicidade fez estremecer Sílvia. Ela teve receio de morrer, ideia que arrasa completamente os celibatários. Entrementes, o ministério Martignac, essa segunda vitória da Câmara que derrubou o ministério Villèle, foi nomeado. O partido Vinet marchava de cabeça erguida em Provins. Vinet, agora o primeiro advogado da Brie, conseguia tudo o que queria, segundo uma expressão popular. Vinet era uma pessoa ilustre. Os liberais profetizavam o seu triunfo: seria, certamente, deputado, procurador-geral. Quanto ao coronel, seria o administrador municipal de Provins. Ah! Reinar como reinava a sra. Garceland, ser esposa do administrador municipal, constituía uma esperança a que Sílvia não pôde resistir. Quis consultar um médico, embora uma consulta pudesse cobri-la de ridículo. As duas solteironas, uma vitoriosa e a outra certa de tê-la segura, inventaram um desses ardis que as mulheres aconselhadas por um padre sabem preparar tão bem. Consultar o Sr. Néraud, o médico dos liberais, o adversário do Sr. Martener, seria uma falta. Celeste Habert propôs a Sílvia ocultá-la no seu quarto de vestir e consultar para si mesma, sobre o assunto, o Sr. Martener, médico do seu pensionato. Cúmplice ou não de Celeste, Martener respondeu à cliente que tal perigo já existia, embora fraco, numa moça de trinta anos.
- A sua constituição, porém - disse-lhe, ao terminar - permite-lhe que não tema nada.
- E para uma mulher que já passou dos quarenta anos? - perguntou melle. Celeste Habert.
- Uma mulher de quarenta anos, casada e que teve filhos, não tem nada a temer.
- Mas, uma moça casta, castíssima, como melle. Rogron, por exemplo?
- Casta! Não há dúvida - disse o Sr. Martener. - Um parto feliz é, então, um desses milagres que só muito raramente Deus concede.
- E porquê? - perguntou Celeste Habert.
O médico respondeu com uma descrição patológica assustadora; explicou como a elasticidade dada pela natureza, na mocidade, aos músculos e aos ossos, já não existia mais numa certa idade, principalmente nas mulheres a que a profissão tornara sedentárias durante muito tempo, como melle. Rogron.
- Então, depois dos quarenta anos uma moça virtuosa não deve casar-se?
- Ou, então, esperar mais uns anos - respondeu o médico. - Mas, neste caso, não é mais casamento; é uma associação de interesses: e de outra forma, que seria?
Resultou, enfim, desta entrevista, clara, séria, científica e racional, que, depois dos quarenta anos, uma moça virtuosa não se devia mais casar. Quando o Sr. Martener se retirou, melle. Celeste Habert encontrou melle. Rogron verde e amarela, com as pupilas dilatadas, num estado horrível, enfim.
- Então, ama muito o coronel? - perguntou-lhe.
- Eu esperava ainda - respondeu a solteirona.
- Pois bem. Espere! - exclamou jesuitamente melle. Habert, que sabia muito bem que o tempo faria justiça ao coronel.
A moralidade desse casamento, entretanto, era duvidosa. Sílvia foi sondar a sua consciência no confessionário. O severo confessor citou as opiniões da Igreja, que não vê no casamento mais que a propagação da humanidade, que reprova as segundas núpcias e condena as uniões sem finalidade social. As perplexidades de Sílvia Rogron foram extremas. Essas lutas íntimas deram uma força estranha à sua paixão e emprestaram-lhe o inexplicável atractivo que, desde Eva, as coisas proibidas exercem sobre as mulheres. A perturbação de melle. Rogron não pôde escapar ao olho clarividente do advogado.
Uma noite, após o jogo, Vinet aproximou-se da sua cara amiga Sílvia, tomou-a pela mão e foi sentar-se com ela num sofá.
- Tem alguma coisa? - perguntou-lhe ao ouvido.
Ela inclinou tristemente a cabeça. O advogado deixou Rogron sair, ficou a sós com a solteirona e tirou-lhe as preocupações do coração.
- Bem jogado, padre! Mas, jogaste a meu favor! - exclamou intimamente, após ter ouvido todas as consultas secretas feitas por Sílvia, a última das quais era a mais terrível.
A astuta raposa judiciária foi ainda mais assustadora que o médico nas suas explicações; aconselhou o casamento, mas, somente uns dez anos mais tarde, para maior segurança. O advogado jurou que toda a fortuna dos Rogron pertenceria a Bathilde. Esfregou as mãos, o seu rosto afilou-se, enquanto corria ao encontro da sra. e de melle. de Chargeboeuf, que deixara na rua acompanhadas dum criado com uma lanterna. A influência que exercia o padre Habert, médico da alma, era perfeitamente contrabalançada por Vinet, o médico da bolsa. Como Rogron era muito pouco devoto, o homem da Igreja e o homem da lei, as duas vestes negras, estavam em posição idêntica. Ao saber da vitória alcançada por melle. Habert, que estava certa de casar-se com Rogron, sobre Sílvia, hesitante entre o medo de morrer e a ventura de ser baronesa, o advogado entreviu uma possibilidade de fazer o coronel desaparecer do campo de batalha. Conhecia suficientemente Rogron para descobrir um meio de casá-lo com a bela Bathilde. Rogron não pudera resistir aos ataques de melle. de Chargeboeuf. Vinet sabia que na primeira vez que Rogron ficasse a sós com Bathilde e com ele, o casamento seria resolvido. Rogron chegara ao ponto de fixar os olhos em melle. Habert, tanto temia fitar Bathilde. Vinet acabara de ver a que ponto Sílvia amava o coronel. Compreendeu a extensão de semelhante paixão numa solteirona, tão roída pela devoção. E imediatamente concebeu o meio de perder ao mesmo tempo Pierrette e o coronel, esperando desembaraçar-se dum por meio do outro.
Na manhã seguinte, após a audiência, encontrou, como de hábito, o coronel em passeio com Rogron.
Quando os três homens andavam juntos, a sua reunião sempre dava que falar à cidade. Este triunvirato, que odiava o subprefeito, a magistratura e o partido dos Tiphaine, constituía um tribunal de que os liberais de Provins se orgulhavam. Vinet redigia o Correio sozinho, era a cabeça do partido; o coronel, gerente responsável do jornal, era o braço; Rogron, com o seu dinheiro, era o nervo; era considerado o traço de união entre o comité director de Provins e o comité director de Paris. No dizer dos Tiphaine, os três homens estavam sempre a maquinar alguma coisa contra o Governo, enquanto os liberais os admiravam como defensores do povo. Quando o advogado viu Rogron na praça, voltando para casa na hora do jantar, impediu o coronel, tomando-lhe o braço, de acompanhar o ex-lojista.
- Olhe, coronel - disse-lhe - vou tirar-lhe um peso das costas. O senhor há-de casar-se com uma coisa melhor do que Sílvia. Se tiver jeito, poderá casar-se dentro de dois anos com a pequena Pierrette Lorrain.
E contou-lhe os efeitos secretos da manobra do jesuíta.
- Que golpe secreto e como foi bem estudado! - exclamou o coronel.
- Coronel - continuou, gravemente, Vinet - Pierrette é uma criatura encantadora. O senhor pode ser feliz o resto da vida e tem uma saúde tão boa que esse casamento não terá para o senhor os inconvenientes habituais das uniões desproporcionadas. Não creia que seja fácil, porém, essa troca duma sorte horrível por uma sorte agradável. Transformar a sua apaixonada em confidente é uma operação tão perigosa como, na sua profissão, transpor um rio sob o fogo inimigo. Perspicaz como um oficial de cavalaria que é, o senhor estudará a posição e manobrará com a superioridade que temos tido até agora e que nos valeu a nossa actual situação. Se eu for um dia procurador-geral, o senhor governará o departamento. Ah! Se o senhor fosse eleitor, estaríamos mais adiantados; tivesse eu comprado os votos desses dois empregados, desinteressando-os da perda dos empregos, teríamos alcançado a maioria. Eu sentar-me-ia ao lado dos Dupin (49) [(49) André-Marie-Jean-Jacques Dupin (1783-1865), advogado e homem político, partidário de Luís-Filipe, de 1832 a 1839, presidente de Câmara], dos Casimir Périer (50) [(50) Banqueiro e homem político, presidente da Câmara em 1830, presidente do Conselho de 1831 a 1832, quando morreu de cólera], e...
O coronel pensava há muito tempo em Pierrette, mas, ocultava esse pensamento com uma profunda dissimulação: a sua brutalidade em relação a Pierrette era apenas aparente. A criança não compreendia por que o pretenso amigo de seu pai a tratava tão mal, se, ao encontrá-la só, lhe passava a mão pelo queixo fazendo uma carícia paternal. Depois da confidência de Vinet relativamente ao terror que o casamento inspirava a Sílvia, Gouraud procurava ocasiões de encontrar Pierrette sozinha e então o rude coronel mostrava-se meigo como um gato; dizia-lhe o quanto Lorrain fora bravo e o quanto era lamentável, para ela, que ele tivesse morrido!
Alguns dias antes da chegada de Brigaut, Sílvia surpreendera Gouraud e Pierrette. O ciúme entrara, então, naquele coração com uma violência monástica. O ciúme, paixão eminentemente crédula e desconfiada, é aquele em que a fantasia exerce maior acção; além disso, não dá inteligência, mas, tira-a; e, para Sílvia, essa paixão devia trazer ideias estranhas. Sílvia imaginou que o homem que acabara de pronunciar a frase Senhora esposa a Pierrette fora o coronel. Atribuindo o encontro ao coronel, Sílvia pensava ter razão, pois havia uma semana que as maneiras de Gouraud lhe pareciam mudadas. Esse homem fora o único que, na solidão em que ela vivera, se ocupara com ela; assim, ela o observava com todos os seus olhos e todo o seu entendimento; e, à força de entregar-se a esperanças ora florescentes, ora murchas, ela transformara-as numa coisa tão grande que experimentou com isso os efeitos duma miragem moral. Segundo uma bela expressão vulgar, à força de olhar ela, frequentemente, não via mais nada. Repelia e combatia vitoriosa e alternadamente a suposição dessa rivalidade quimérica. Estabelecia um paralelo entre si e Pierrette: ela tinha quarenta anos e os cabelos grisalhos; Pierrette era uma moça de deliciosa alvura, com uns olhos capazes de reanimar um coração morto. Ela ouvira dizer que os homens de cinquenta anos gostam das moças do género de Pierrette. Antes que o coronel se arranjasse na vida e começasse a frequentar a casa de Rogron, Sílvia ouvira, no salão dos Tiphaine, estranhas coisas sobre Gouraud e os seus costumes. As solteironas têm, sobre o amor, as ideias platónicas exageradas alimentadas pelas moças de vinte anos; conservam doutrinas absolutas, como todos aqueles que não experimentaram a vida e não sentiram o quanto as irresistíveis forças sociais modificam, mutilam e aniquilam essas belas e nobres ideias. Para Sílvia, ser enganada pelo coronel era um pensamento que lhe martelava o cérebro. Durante o tempo que todo o celibatário costuma ficar na cama, entre o despertar e o levantar, a solteirona ocupara-se dela, de Pierrette e da canção que a despertara com a palavra casamento. Na sua estupidez, em vez de espiar o apaixonado através das persianas, abrira a janela, sem pensar que Pierrette a ouviria. Se ela tivesse tido a vulgar inteligência do espião, teria visto Brigaut e o drama fatal então iniciado não se teria desenrolado.
Pierrette, apesar da sua fraqueza, tirou as trancas de madeira que prendiam os postigos da cozinha, abriu-os e calçou-os; depois, foi abrir a porta do corredor que dava para o jardim. Apanhou as diferentes vassouras para varrer o tapete, a casa de jantar, o corredor, as escadas, enfim, para limpar tudo com um cuidado e um rigor que nenhuma criada, mesmo holandesa, poria no seu trabalho: odiava tanto as repreensões! Para ela, a felicidade consistia em ver os olhitos azuis, amortecidos e frios da prima, não satisfeitos, pois eles jamais o pareciam, mas, pelo menos calmos, após ter corrido por tudo o seu olhar de proprietária, esse olhar inexplicável que vê o que escapa aos olhos dos mais observadores. Pierrette já estava com a pele coberta de suor quando voltou à cozinha para pôr tudo em ordem e acender os fogões a fim de poder levar fogo aos quartos do primo e da prima quando levasse a cada um deles água quente para lavar o rosto, ela que nunca a tinha para si! Pôs a mesa para o almoço e acendeu a estufa da sala de jantar. Nessas diferentes tarefas, ela ia algumas vezes ao porão buscar um feixe de lenha e assim passava de um lugar fresco para um lugar quente e de um lugar quente para um frio e húmido. Essas transições súbitas, feitas com o afã da mocidade para evitar, muitas vezes, uma palavra áspera, para obedecer a uma ordem, agravavam irremediavelmente o seu estado de saúde. Pierrette ignorava que estivesse doente. Começava, entretanto, a sofrer; tinha desejos estranhos e ocultava-os; sentia apetite por saladas cruas e devorava-as em segredo. A inocente criança ignorava completamente que a sua situação constituía uma doença grave e exigia as maiores precauções. Antes da chegada de Brigaut, se Néraud, que se podia censurar pela morte da avó, tivesse revelado esse perigo mortal à menina, Pierrette teria sorrido: achava a vida tão amarga que a ideia da morte lhe faria sorrir. Desde alguns momentos, porém, ela, que aliava aos seus sofrimentos corporais os sofrimentos da nostalgia bretã, doença moral tão conhecida que os coronéis a tomam em consideração nos bretões que se acham nos seus regimentos, ela amava Provins! A vista daquela flor dourada, a canção, a presença do seu amigo de infância haviam-na reanimado, como uma planta, privada de água durante muito tempo, reverdece após uma longa chuva. Queria viver, parecia-lhe que nunca sofrera! Encaminhou-se timidamente para o quarto da prima, acendeu a estufa, deixou a chaleira de água quente, trocou algumas palavras; em seguida, foi acordar o tutor e desceu para buscar o leite, o pão e todas as provisões que os fornecedores traziam. Ficou só durante algum tempo no limiar da porta, esperando que Brigaut tivesse a ideia de voltar; Brigaut, porém, já ia a caminho de Paris. Já havia arrumado a sala e estava a tratar da cozinha quando ouviu a prima descer a escada. Melle. Sílvia Rogron apareceu com o roupão de tafetá de cor carmelita, uma touca de filó enfeitada, a camada de cabelos postiços muito mal colocada, o camisão por cima do vestido e arrastando os pés metidos em chinelas. Passou revista a tudo e foi ao encontro da prima, que a esperava para saber de que se comporia o almoço.
- Ah! Estás aí, menina apaixonada? - disse Sílvia a Pierrette, num tom meio alegre e meio zombeteiro.
- Está contente, prima?
- Entraste no meu quarto como uma sonsa e saíste de lá da mesma maneira. Devias, entretanto, saber que preciso falar contigo.
- Comigo?
- Tiveste, esta manhã, uma serenata, nem mais nem menos do que uma princesa.
- Uma serenata? - exclamou Pierrette.
- Uma serenata? - repetiu Sílvia, imitando-a. - E tens um namorado.
- Prima, que é um namorado?
Sílvia evitou de responder e disse-lhe:
- Tens a coragem de dizer que não veio um homem à tua janela falar-te em casamento?
A perseguição ensinara a Pierrette as astúcias necessárias aos escravos. Respondeu corajosamente:
- Não sei o que quer dizer...
- Meu cão! - disse asperamente a solteirona.
- Minha prima! - replicou humildemente Pierrette.
- Então não te levantaste e não foste com os pés descalços à janela, o que te fará adoecer? Pois sim! Será bem feito para ti. E acaso não falaste com o teu apaixonado?
- Não, prima.
- Eu já conhecia muitos defeitos em ti, menos o de mentir. Pensa bem nisto, menina! Precisas contar e explicar a teu primo e a mim a cena desta manhã, sem o que o teu tutor adoptará medidas rigorosas.
A solteirona, devorada pela inveja e pela curiosidade, recorria à intimidação. Pierrette fez como as pessoas que sofrem além das suas forças: ficou em silêncio. Esse silêncio é, para todas as pessoas atacadas, o único meio de triunfar: cansa as cargas cossacas dos invejosos, as selvagens escaramuças inimigos; dá uma vitória esmagadora e completa. Na verdade, que há de mais completo que o silêncio? Ele é absoluto; não é ele uma das maneiras de ser do infinito? Sílvia examiou Pierrette furtivamente. A menina estava ruborizada; o seu rubor, porém, em vez de ser geral, dividia-se em placas desiguais nas maçãs do rosto, em manchas ardentes e dum tom significativo. Ao perceber esses sintomas de doença, qualquer mãe teria logo mudado de tom; teria tomado a filha sobre os joelhos, tê-la-ia interrogado, já teria há muito tempo percebido as inúmeras provas da completa, da sublime inocência de Pierrette, teria descoberto a sua doença e compreendido que os humores e o sangue desviados do seu trajecto se lançavam nos pulmões após haverem perturbado as funções digestivas. Essas manchas eloquentes ter-lhe-iam indicado a iminência dum perigo mortal. Mas, uma solteirona, em quem os sentimentos que nutrem a família nunca haviam sido despertados, a quem as necessidades da infância e as precauções exigidas pela adolescência eram desconhecidas, não podia ter nenhuma das indulgências e das compaixões inspiradas pelos múltiplos acontecimentos da vida conjugal. Os sofrimentos da miséria, em vez de lhe abrandarem o coração, tinham-no endurecido.
Corou, está em falta! - pensou Sílvia.
O silêncio de Pierrette foi, pois, interpretado no pior sentido.
- Pierrette - disse ela - antes que o teu primo desça, vamos conversar. Vem - acrescentou, com um tom mais suave. - Fecha a porta da rua. Se chegar alguém, baterá e nós ouviremos.
Apesar do nevoeiro húmido que se erguia acima do riacho, Sílvia conduziu Pierrette pela alameda coberta de areia que serpeava por entre a relva até à borda do terraço de rochas pedregosas, cais pitoresco povoado de íris e plantas aquáticas. A velha prima mudou de sistema: quis tentar apanhar Pierrette pela brandura. A hiena ia fazer-se gata.
- Pierrette, não és mais uma criança. Daqui a pouco entrarás nos quinze anos e não seria de admirar que tivesses um namorado.
- Mas, prima - retrucou Pierrette, erguendo os olhos com uma doçura angélica para o rosto áspero e frio da prima, que assumira a sua antiga expressão de vendedeira - que é um namorado?
Foi impossível a Sílvia definir, com exactidão e decência, um namorado à pupila do irmão. Em vez de ver nessa pergunta a demonstração duma adorável inocência, ela viu nela falsidade.
- Um namorado, Pierrette, é um homem que nos ama e quer casar connosco.
- Ah! - exclamou Pierrette. - Quando a gente se entende, na Bretanha, chamamos então noivo a esse rapaz.
- Muito bem. Não há o menor mal em confessares os teus sentimentos por um homem, minha pequena. O mal está no segredo. Agradaste, acaso, a algum dos homens que vêm cá?
- Acho que não.
- Não gostas de nenhum?
- Nenhum.
- Tens a certeza?
- Tenho.
- Olha para mim, Pierrette.
Pierrette olhou para a prima.
- Um homem, porém, chamou-te da praça, esta manhã?
Pierrette baixou os olhos.
- Foste à janela, abriste-a e falaste com ele?
- Não, prima. Quis ver como estava o tempo e vi um camponês na praça.
- Pierrette, depois da tua primeira comunhão, melhoraste muito, tens sido obediente e piedosa, amas a teus parentes e a Deus. Estou contente contigo, não digo isto para que fiques inchada de orgulho.
A terrível solteirona tomava o abatimento, a submissão, o silêncio da miséria por virtudes! Uma das coisas mais doces gue possam consolar os sofredores, os mártires e os artistas, no acesso da paixão divina que lhes impõem a inveja e o ódio, é encontrar o louvor onde sempre encontraram a censura e a má fé. Pierrette ergueu, pois, para a prima, dois olhos enternecidos e sentiu-se disposta a perdoar-lhe todas as dores que ela lhe havia causado.
- Mas, se isso tudo for uma hipocrisia, terei de considerar-te uma serpente que eu tivesse reanimado no peito, serias uma infame, uma criatura horrível!
- Acho que não tenho motivo para me censurar - declarou Pierrette, sentindo um terrível aperto no coração, pela súbita mudança daquele elogio inesperado ao terrível acento de hiena.
- Sabes que a mentira é um pecado mortal?
- Sim, prima.
- Pois bem, estás diante de Deus! - disse a solteirona, mostrando-lhe com um gesto solene os jardins e o céu. - Jura que não conhecias esse camponês.
- Não jurarei - retorquiu Pierrette.
- Ah! Não era um camponês, viborazinha!
Pierrette fugiu como uma corça assustada pelo jardim, apavorada com aquela questão moral. A prima chamou-a com uma voz terrível.
- Estão a bater - respondeu ela.
- Ah! Que pequena fingida! - pensou Sílvia. - É finória, e agora estou certa de que esta serpentezinha está a seduzir o coronel. Ouviu-nos dizer que ele é barão. Ser baronesa! Louquinha! Oh! Eu desembaraçar-me-ei dela, metendo-a no aprendizado, e já.
Sílvia ficou tão absorta nos seus pensamentos que não viu o irmão que descia pela alameda, a examinar os estragos causados pela geada às suas dálias.
- Então, Sílvia, em que pensas? Julguei que estivesses a ver os peixes! Às vezes há alguns que saltam fora da água.
- Não - respondeu ela.
- Que tal, como passaste a noite? - E começou a contar-lhe os sonhos que tivera. - Não achas que estou com a cara enfarruscada? (outra palavra do vocabulário Rogron.)
Depois que Rogron amava, - não profanemos este termo - desejava melle. de Chargeboeuf, preocupava-se muito com a sua fisionomia e consigo mesmo. Neste momento, Pierrette desceu a escadaria e anunciou de longe que o almoço estava pronto. Ao ver a prima, o rosto de Sílvia ficou manchado de verde e depois tornou-se amarelado: toda a sua bílis se agitava. Observou o corredor e achou que Pierrette devia tê-lo encerado.
- Se a senhora quiser, posso encerá-lo - respondeu o anjo, ignorando o perigo a que tal trabalho expõe uma moça.
A casa de jantar estava irrepreensivelmente arrumada. Sílvia sentou-se e fingiu, durante todo o almoço, precisar de coisas em que não teria pensado num estado calmo e que pedia só, para fazer Pierrette levantar-se justamente no momento em que a pobrezinha ia começar a comer. Não lhe bastava, porém, importuná-la; procurou motivos para censurá-la e encolerizou-se intimamente por não os encontrar. Se houvesse ovos frescos, ela certamente ter-se-ia queixado da maneira como haviam sido cozidos. Mal respondia às tolas perguntas do irmão e, entretanto, não olhava senão para ele. Os seus olhos evitavam Pierrette. Pierrette era excessivamente sensível a essa manobra. Pierrette trouxe o café da prima e o do primo numa grande tigela de prata onde aquecia o leite misturado com creme em banho-maria. O irmão e a irmã misturavam, eles mesmos, o café preto feito por Sílvia, na dose conveniente. Depois de preparar minuciosamente a sua delícia, notou um pouco de pó de café; apanhou-o com afectação no meio do turbilhão amarelo, contemplou-o, inclinou-se para ver melhor. A tempestade desabou.
- Que tens? - perguntou Rogron.
- O que tenho é que essa senhorita pôs cinza no meu café. Como é agradável tomar café com cinza!... Não é de admirar: não se pode fazer bem duas coisas ao mesmo tempo. Ela pensava muito no café! Um melro poderia ter voado pela cozinha, e ela não notaria, esta manhã! Como, então, poderia ter visto a cinza! E depois, é o café da prima! Tanto faz, para ela!
Falou neste tom enquanto punha na borda do pires o pó de café que passara através do coador e alguns torrões de açúcar que não se dissolviam.
- Mas, prima, é café - esclareceu Pierrette.
- Ah! Então estou a mentir? - exclamou Sílvia, fitando Pierrette e fulminando-a com o terrível clarão que o seu olhar adquiria nos momentos de cólera.
Esses organismos que a paixão não devastou dispõem de grande quantidade de fluido vital. O fenómeno da excessiva luminosidade do olhar nos acessos de fúria estabelecera-se ainda mais poderosamente em melle. Rogron, que antigamente, na loja, costumava empregar a força do seu olhar abrindo desmesuradamente os olhos, sempre para inspirar um terror salutar aos subordinados.
- Eu só quero ver tu desmentires-me - replicou. - Merecias sair da mesa e ir comer sozinha na cozinha.
- Que tendes as duas? - indagou Rogron. - Estais com os cabelos em pé, esta manhã.
- A senhorita sabe o que é que eu tenho contra ela. Dou-lhe tempo para tomar uma decisão antes de falar-te nisso, pois terei com ela mais bondade do que merece.
Pierrette olhava para a praça, através da vidraça, a fim de evitar os olhos da prima, que a assustavam.
- Ela não me presta mais atenção do que se eu falasse a este açucareiro! E no entanto, tem o ouvido apurado, fala do alto duma casa e responde a quem se encontre em baixo... É duma perversidade, esta tua pupila! Duma perversidade sem nome, e não deves esperar nada de bom da parte dela, estás a ouvir, Rogron?
- Que fez ela assim tão grave? - perguntou o irmão à irmã.
- Na idade dela! É começar cedo - exclamou a solteirona enfurecida.
Pierrette levantou-se para tirar a mesa, a fim de fazer alguma coisa. Não sabia como ficar. Embora essa linguagem não fosse nova para ela, nunca se pudera habituar a ela. A cólera da prima fazia-lhe pensar nalgum crime. indagou-se qual seria o seu furor se soubesse da escapada de Brigaut. Talvez lhe tirasse Brigaut. Teve num mesmo momento os mil pensamentos duma escrava, tão rápidos e profundos, e resolveu manter um silêncio absoluto sobre um facto no qual a sua consciência não lhe apontava nada de mal. Teve de ouvir palavras tão cruéis, tão ásperas, tão suspeitas e tão ofensivas, que, ao entrar na cozinha, foi acometida duma contracção no estômago e dum vómito terrível. Não teve coragem de queixar-se, pois não estava certa de obter cuidados. Voltou muito branca, lívida, disse que não se sentia bem e subiu para deitar-se, agarrando-se ao corrimão da escada e julgando que a hora da morte chegara. "Pobre Brigaut!" - pensava.
- Ela está doente - disse Rogron.
- Ela, doente! Ora, isso é manha - respondeu Sílvia em voz alta, de modo a ser ouvida. - Ela não estava doente esta manhã!
Este último golpe abateu Pierrette, que se deitou em pranto, pedindo a Deus que a levasse deste mundo.
Há cerca de um mês, Rogron não precisava de levar o Constitutionnel à casa de Gouraud; o coronel vinha obsequiosamente buscar o jornal, conversar um pouco e depois saía com Rogron quando estava bom tempo. Certa de ver o coronel e de poder interrogá-lo, Sílvia vestiu-se de modo atraente. Pelo menos, julgou-se atraente num vestido verde e um pequeno xale de casimira amarela com debrum vermelho, um chapéu branco enfeitado com umas pobres penas cinzentas. Na hora em que o coronel devia chegar, Sílvia ficou à espera na sala de visitas com o irmão, a quem obrigara a ficar de chinelas e roupão.
- Belo dia, coronel! - exclamou Rogron, ao ouvir os passos lerdos de Gouraud. - Mas, não me vesti, parece que a minha irmã queria sair e deixou-me a cuidar da casa. Espere-me.
Rogron deixou Sílvia a sós com o coronel.
- Onde quer ir? Está vestida como uma divindade - disse Gouraud, que notou uma certa expressão solene no amplo rosto bexigoso da solteirona.
- Queria sair. Mas, como a pequena não está bem, vou ficar.
- Que tem ela?
- Não sei, pediu para deitar-se.
A prudência, para não dizer a desconfiança de Gouraud, permanecia sempre alerta pelos resultados da sua aliança com Vinet. Evidentemente, a mais bela parte tocava ao advogado. Este redigia o jornal, mandava nele como senhor e aplicava as suas rendas na redacção; ao passo que o coronel, editor responsável, ganhava pouca coisa. Vinet e Cournant haviam prestado enormes serviços aos Rogron; o coronel reformado nada podia junto deles. Quem seria deputado? Vinet. Quem era o grande eleito? Vinet. Quem era consultado? Vinet. Enfim, conhecia, pelo menos tão bem quanto Vinet, a profundeza da paixão despertada em Rogron pela bela Bathilde de Chargeboeuf. Essa paixão tornara-se insensata, como sempre acontece com as últimas paixões dos homens. A voz de Bathilde fazia estremecer o celibatário. Absorvido pelos seus desejos, Rogron ocultava-os: não ousava esperar tal aliança. Para sondar o lojista, o coronel tivera a ideia de dizer-lhe que ia pedir a mão de Bathilde; Rogron empalidecera ao ter conhecimento dum rival tão temível e tornara-se indiferente e quase rancoroso com Gouraud. Assim, Vinet imperava livremente na casa, ao passo que ele, coronel, estava ligado a ela apenas pelos laços hipotéticos duma afeição mentirosa da sua parte e que em Sílvia ainda não se declarara. Revelando-lhe a manobra do padre, ao aconselhar-lhe a romper com Sílvia e voltar-se para Pierrette, Vinet lisonjeara a inclinação de Gouraud, analisando, porém, o sentido profundo dessa confidência, examinando bem o terreno em derredor de si, o coronel acreditou descobrir no aliado a possibilidade de intrigá-lo com Sílvia e de aproveitar-se do medo da solteirona para fazer cair toda a fortuna de Rogron nas mãos de melle. de Chargeboeuf. Assim, quando Rogron o deixara a sós com Sílvia, a perspicácia do coronel surpreendeu os leves indícios que denunciavam uma preocupação em Sílvia. Percebeu nela o plano formado de ficar em armas e durante um momento a sós com ele. O coronel, que já suspeitava veementemente que Vinet quisesse pregar-lhe alguma partida, atribuiu essa confidência a alguma secreta insinuação daquele macaco judiciário; ficou alerta, como quando fazia um reconhecimento em território inimigo, com os olhos fixos no campo, atento ao menor ruído, o espírito vigilante, a arma na mão. O coronel tinha o defeito de nunca acreditar numa só palavra do que diziam as mulheres. E, quando a solteirona falou em Pierrette e disse que ela estava deitada ao meio-dia, o coronel pensou que Sílvia simplesmente a pusera de castigo no quarto, por ciúme.
- Está a ficar muito bonitinha, a pequena - disse ele, num tom despreocupado.
- Ela será bonita - respondeu melle. Rogron.
- Devia mandá-la, agora, para uma loja, em Paris - acrescentou o coronel. - Lá, ela faria fortuna. Hoje em dia exigem-se moças muito bonitas nas casas de modas.
- Essa é mesmo a sua opinião? - perguntou Sílvia, com a voz perturbada.
- "Por aqui vou bem - pensou o coronel. - Vinet deve ter aconselhado que eu me casasse com Pierrette para perder-me no espírito dessa velha bruxa..." - Ora - disse em voz alta - que mais pretende fazer? Não está a ver essa moça duma beleza incomparável, Bathilde de Chargeboeuf, uma moça nobre, bem aparentada, obrigada a ficar para tia? Ninguém a quer. Pierrette não tem nada, nunca se casará. Acredita que a mocidade e a beleza possam representar alguma coisa para mim, por exemplo, eu que, capitão de cavalaria na guarda imperial, desde que o imperador constituiu a sua guarda, pus os pés em todas as capitais e conheci as mais belas mulheres dessas mesmas capitais? A mocidade e a beleza sãoo danadamente vulgares e tolas!... Não me fale mais nisso. Aos quarenta e oito anos - acrescentou ele, envelhecendo-se -, quando se sofreu a derrota de Moscovo, quando se fez a terrível campanha da França, já se está com o lombo meio arrebentado. Sou um velho pacato. Uma mulher como a senhora cuidaria de mim, rodear-me-ia de conforto; e a sua fortuna, unida aos meus pobres mil escudos de pensão, garantir-me-ia um confortável bem-estar para a velhice e eu prefiro-a mil vezes a uma delambida que me causaria muitos dissabores, que apenas contaria trinta anos e algumas paixões quando eu tivesse sessenta anos e reumatismos. Na minha idade, a gente calcula. Escute, aqui para nós, se eu me casasse não quereria ter filhos.
A fisionomia de Sílvia fora clara para o coronel durante essa declaração e a sua exclamação acabou de convencer o coronel da perfídia de Vinet.
- Então - perguntou ela - não ama Pierrette?
- Ora essa! Está louca, minha querida Sílvia! - exclamou o coronel. - Será quando já não se tem dentes que se vai tentar quebrar nozes? Graças a Deus, estou no meu juízo perfeito e conheço-me.
Sílvia não quis arriscar-se mais. Julgou-se muito astuta fazendo falar o irmão.
- Meu irmão - declarou ela - teve a ideia de fazer-lhe o casamento.
- Mas, seu irmão não poderia ter tido uma ideia mais inconveniente. Há poucos dias, para descobrir o seu segredo, eu disse-lhe que amava Bathilde. Ele ficou branco como a gola do seu vestido.
- Ele ama Bathilde? - perguntou Sílvia.
- Loucamente! E, com certeza, Bathilde quer apenas o seu dinheiro... (Toma, Vinet! - pensou o coronel.) Como teria ele então falado de Pierrette? Não, Sílvia - respondeu ele, tomando-lhe a mão e apertando-a de certo modo - uma vez que tocou no assunto... (Aproximou-se de Sílvia). Pois bem... (Beijou-lhe a mão; era coronel de cavalaria, já dera outra prova de coragem) fique sabendo que não quero outra esposa senão você. Embora este casamento dê a impressão dum casamento de conveniência, da minha parte, sinto afeição pela Sílvia.
- Mas, era eu que queria que casasse com Pierrette. E se eu lhe desse a minha fortuna... hem, coronel?
- Não quero ser desgraçado em casa e daqui a dez anos ver um jovem peralvilho, como Julliard, a rondar a minha mulher e a dedicar-lhe versos no jornal. Sou um pouco homem demais nesse ponto! Nunca faria um casamento desproporcionado sob o ponto de vista da idade.
- Pois bem, coronel, falaremos nisso tudo, seriamente - replicou Sílvia, dirigindo-lhe um olhar que ela julgou cheio de amor e que parecia o olhar duma sogra. Os seus lábios frios e duma cor violeta e dura esticaram-se sobre os dentes amarelos e ela pensou estar a sorrir-se.
- Vamos - interveio Rogron, levando o coronel, que cumprimentou cortesmente a solteirona.
Gouraud resolveu apressar o seu casamento com Sílvia e tornar-se, assim, chefe da casa, prometendo desembaraçar-se, pela influência que adquiriria sobre Sílvia durante a lua-de-mel, de Bathilde e Celeste Habert. Assim, durante o passeio, disse a Rogron que se divertira com ele, no outro dia, pois não tinha nenhuma pretensão sobre o coração de Bathilde e não era suficientemente rico para casar-se com uma mulher sem dote; depois, confiou-lhe o seu projecto: escolhera sua irmã há muito tempo, pelas suas belas qualidades. Aspirava, enfim, à honra de tornar-se seu cunhado.
- Ah! coronel! Ah! barão! Se falta apenas o meu consentimento, toda a demora será apenas a exigida pelas leis! - exclamou Rogron, feliz por se ver livre daquele terrível rival.
Sílvia passou toda a manhã no apartamento a examinar se havia ali lugar para a instalação dum casal. Resolveu construir um segundo andar e reformar convenientemente o primeiro para ela e o marido. Ao mesmo tempo, porém, por uma fantasia comum a todas as solteironas, resolveu submeter o coronel a algumas provas, para julgar do seu coração e dos seus hábitos, antes de se decidir. Ainda tinha dúvidas e queria certificar-se de que entre Pierrette e o coronel não existia alguma familiaridade.
Pierrette desceu à hora do jantar para pôr a mesa. Sílvia fora obrigada a cozinhar e manchara o vestido, exclamando: "Maldita Pierrette". Era evidente que, se Pierrette tivesse feito o jantar, Sílvia não teria aquela mancha de gordura no vestido de seda.
- Estás aí, bela melindrosa? És como o cachorro do marechal, que desperta com o ruído das panelas e dorme com o barulho da forja! Queres dar a entender que estás doente, mentirosazinha?
Esta ideia: "Não me confessaste a verdade sobre o que se passou esta manhã, pois mentes em tudo que dizes", foi como um martelo com que Sílvia ia bater incessantemente no coração e na cabeça de Pierrette.
Com grande espanto de Pierrette, Sílvia mandou que ela se fosse vestir para o serão, depois do jantar. Mesmo a imaginação mais alta fica abaixo da actividade que a suspeita empresta ao espírito duma solteirona. Em tal circunstância, a solteirona sobrepuja os políticos, os advogados e os tabeliões, os agiotas e os avarentos. Sílvia resolveu consultar Vinet, após ter examinado tudo em redor de si. Quis conservar Pierrette a seu lado a fim de saber, pela atitude da pequena, se o coronel dissera a verdade. As sras. de Chargeboeuf foram as primeiras a chegar. Seguindo o conselho do primo Vinet, Bathilde redobrara de elegância. Estava com um delicioso vestido azul de veludo de algodão, trazia o mesmo lenço claro, cachos de uva de granada e ouro nas orelhas, os cabelos em anéis, a cruzinha ardilosa, sapatinhos de cetim preto, meias de seda cinzentas e luvas da Suécia; e, além disso, atitudes de rainha e seduções de moça capaz de prender todos os Rogrons da ribeira. A mãe calma e digna, conservava, como a filha, uma certa insolência aristocrática com que as duas mulheres salvavam tudo e na qual transparecia o espírito da sua casta. Bathilde era dotada duma inteligência superior, que somente Vinet soubera descobrir após dois meses de convívio das sras. de Chargeboeuf em sua casa. Depois de medir a grandeza daquela moça magoada pela inutilidade da sua mocidade e da sua beleza, esclarecida pelo desprezo que lhe inspiravam os homens duma época em que o dinheiro era o seu único ídolo, Vinet, surpreso, exclamou:
- Se fosse consigo que eu me tivesse casado, Bathilde, estaria hoje em vésperas de ser guarda dos selos. Teria passado a chamar-me Vinet de Chargeboeuf e sentar-me-ia à direita.
Bathilde não encerrava no seu desejo de casamento nenhuma ideia vulgar: não se casaria para ser mãe, não se casaria para ter um marido; queria casar-se para ser livre, para ter um editor responsável, para chamar-se senhora e poder agir como agem os homens. Rogron era um nome para ela; esperava fazer alguma coisa daquele imbecil, um deputado votante de quem seria a alma; queria vingar-se da família, que não se interessara por uma moça pobre. Vinet tinha alargado e fortalecido muito as suas ideias, admirando-as e aprovando-as.
- Querida prima - dizia, expondo-lhe a influência que as mulheres exercem e mostrando-lhe a esfera de acção que lhe era própria -, acredita que Tiphaine, homem de extrema mediocridade, chegue por si mesmo a um tribunal de primeira instância em Paris? Ora, foi a senhora Tiphaine que fez com que o elegessem deputado e que o está a encaminhar para Paris. A sua mãe, a senhora Roguin, é uma esperta mexeriqueira, que faz o que bem entende do famoso banqueiro Tillet, um dos colegas de Nucingen (51) [(51) Personagem balzaquiana, banqueiro poderoso e inescrupuloso, marido da Delfina Goriot], ambos ligados com os Keller (52) [(52) Três irmãos banqueiros, Francisco, Carlos e Adolfo, personagens da Comédia Humana], e essas três casas prestam serviços ao governo ou a seus homens mais dedicados; as repartições públicas têm as melhores relações com os linces do banco; e essa gente conhece toda a Paris. Não há razão para que Tiphaine não chegue a presidente de alguma corte real. Case-se com Rogron; faremos dele um deputado de Provins, quando eu tiver conquistado para mim um outro colégio de Seine-et-Marne. Terão, então, uma recebedoria-geral, um desses cargos em que Rogron apenas terá que assinar. Seremos da oposição se ela triunfar; mas, se os Bourbons ficarem, inclinar-nos-emos, suavemente, para o centro! Além disso, Rogron não viverá eternamente e mais tarde você casar-se-á com um homem possuidor de algum título. Finalmente, conquiste uma bela posição e os de Chargeboeuf colocar-se-ão às nossas ordens. A sua pobreza, como a minha, certamente já lhe deu uma ideia do que valem os homens; precisamos servir-nos deles como nos servimos dos cavalos de posta. Um homem ou uma mulher leva-nos duma etapa a outra.
Vinet fizera de Bathilde uma pequena Catarina de Médicis. Deixava a mulher contente em casa com os dois filhos e acompanhava sempre as sras. de Chargeboeuf à casa dos Rogron. Chegou em todo o seu esplendor de tribuno campesino. Levava belos óculos com aros de ouro, um colete de seda, gravata branca, calças pretas, sapatos finos e uma casaca preta feita em Paris, um relógio de ouro e uma corrente. Em lugar do antigo Vinet pálido e magro, rabugento e sombrio, via-se no Vinet actual o garbo do político; andava, confiante na sua sorte, com a segurança peculiar ao palaciano, que conhece as cavernas da justiça. A sua pequena cabeça astuta estava tão bem penteada, o queixo bem barbeado dava-lhe uma expressão tão delicada, embora fria, que parecia amável no género de Robespierre. Realmente, podia ser um delicioso procurador-geral de eloquência elástica, perigosa e assassina, ou um orador duma finura igual à de Benjamin Constant (53) [(53) O autor do romance Adolphe era também político. Defensor das ideias liberais, foi um dos oradores mais espirituosos e brilhantes da Câmara, de 1819 a 1830]. A aspereza e o ódio que o haviam animado até então estavam substituídos por uma brandura pérfida. O veneno transformara-se em remédio.
- Bom-dia, querida, como vai? - disse a sra. de Chargeboeuf a Sílvia.
Bathilde encaminhou-se para a estufa, tirou o chapéu, mirou-se no espelho e pôs o belo pezinho na barra da lareira para que Rogron o admirasse.
- Que tem o senhor? - perguntou-lhe, fitando-o. - Não me cumprimenta? Pois sim, hei-de pôr vestidos de veludo para você...
Passou diante de Pierrette para levar para uma poltrona o chapéu, que a menina lhe tirou das mãos e que ela entregou como se a bretã fosse uma criada. Os homens são considerados muito ferozes e os tigres também; mas, nem os tigres, nem as víboras, nem os diplomatas, nem os oficiais de justiça, nem os carrascos, nem os reis podem, nas suas grandes atrocidades, aproximar-se das crueldades doces, das doçuras envenenadas, dos desprezos selvagens das moças entre si, quando umas se julgam superiores às outras pelo nascimento, pela fortuna, pela graça e quando têm em vista casamentos, precedências, enfim, as mil rivalidades femininas. O "obrigada, menina", que Bathilde disse a Pierrette foi um poema em doze cantos.
Ela chamava-se Bathilde e a outra Pierrette. Ela era uma Chargeboeuf e a outra uma Lorrain! Pierrette era pequena e doente, ela era grande e cheia de vida! Pierrette era mantida por caridade, Bathilde e a mãe eram independentes! Pierrette usava um modesto vestido de fazenda ordinária, Bathilde fazia ondular o veludo azul do seu; Bathilde possuía as mais ricas espáduas do departamento e braços de rainha, Pierrette tinha as omoplatas e os braços descarnados! Pierrette era Cendrillon, Bathilde era a fada! Bathilde ia casar-se, Pierrette morreria solteira! Bathilde era adorada, Pierrette não era estimada por ninguém! Bathilde tinha uma cabeleira encantadora, tinha elegância; Pierrette ocultava os cabelos numa touquinha e não conhecia a moda! Epílogo: Bathilde era tudo, Pierrette nada era. A altiva bretã compreendeu perfeitamente esse terrível poema.
- Bom-dia, minha pequena - disse-lhe a sra. Chargeboeuf do alto da sua grandeza e com o acento que lhe dava o nariz apertado na extremidade.
Vinet levou ao auge essas injúrias, olhando para Pierrette e dizendo-lhe:
- Oh! Oh! Oh! - em três tons. - Como estais bonita esta noite, Pierrette!
- Bonita! - exclamou a pobre menina. - Não é a mim, mas sim à sua prima, que deve dirigir essa palavra.
- Oh! Minha prima sempre o é - retorquiu o advogado. - Não é, tio Rogron? - disse, voltando-se para o dono da casa e batendo-lhe na mão.
- Sim - respondeu Rogron.
- Por que fazê-lo dizer o contrário do que pensa? Ele nunca me achou do seu agrado - replicou Bathilde, colocando-se diante de Rogron. - Não é verdade? Olhe para mim.
Rogron contemplou-a dos pés à cabeça e cerrou docemente os olhos como um gato a que se coça a cabeça.
- Você é muito bonita e muito perigosa - disse.
- Porquê?
Rogron olhou para os tições da lareira e não deu resposta. Neste momento, entrou melle. Habert, seguida do coronel. Celeste Habert, tornada inimiga comum, contava apenas com Sílvia a seu favor, mas todos lhe testemunhavam considerações, cortesias e atenções amáveis tanto maiores porque todos a combatiam ocultamente, de sorte que ela vivia entre essas demonstrações de simpatia e a desconfiança que o irmão despertava no seu espírito. O vigário, embora afastado do teatro da guerra, descobria tudo quanto ali se passava. Assim, quando chegou à conclusão de que as esperanças da irmã estavam mortas, tornou-se um dos maiores antagonistas de Rogron. Todos se representarão imediatamente a melle. Habert, quando souberem que mesmo que ela não tivesse sido directora e arquidirectora de internato, daria sempre a impressão de ser uma preceptora. As preceptoras têm uma maneira própria de pôr a touca. Assim como as velhas inglesas adquiriram o monopólio dos turbantes, as preceptoras têm o monopólio dessas toucas; nelas, a carcaça domina as flores, as flores são mais do que artificiais; guardada durante muito tempo em armários, a touca está sempre nova e sempre velha, mesmo no primeiro dia. Estas moças resumem a sua dignidade a imitar os bonecos dos pintores; sentam-se sobre as suas próprias cadeiras, e não sobre as cadeiras. Quando se fala com elas, voltam o busto inteiro, em bloco, em vez de voltarem apenas a cabeça: e quando os seus vestidos farfalham, somos levados a crer que as molas desses autómatos estão estragadas. Melle. Habert, o protótipo desse género, tinha o olhar severo, a boca retorcida e sob o queixo cheio de rugas as fitas da touca, moles e amarrotadas, iam e vinham ao sabor dos seus movimentos. Tinha um certo fraco por dois sinais um pouco fortes, um pouco escuros, enfeitados de pêlos que deixava crescer como clematites desgrenhadas. Por fim, usava rapé e usava-o sem graça. Organizou-se o bóstone. Sílvia ficou defronte de melle. Habert e o coronel foi colocado ao lado, diante da sra. de Chargeboeuf. Bathilde ficou junto da mãe e de Rogron. Sílvia pôs Pierrette entre si e o coronel. Rogron preparou outra mesa, para o caso de chegarem os srs. Néraud, Cournant e a esposa. Vinet e Bathilde sabiam jogar o uíste, que o Sr. e a sra. Cournant jogavam. Depois que essas damas de Chargeboeuf, como dizia a gente de Provins, passaram a frequentar a casa dos Rogron, as duas lamparinas brilhavam sobre a lareira, entre os candelabros e a pêndula, e as mesas eram iluminadas por velas de dois francos a libra, que, aliás, eram pagas com o barato do jogo.
- Pierrette, pega no teu trabalho, minha filha - recomendou Sílvia à prima, com uma pérfida doçura, ao ver que ela estava a olhar para as cartas do coronel.
Ela sempre fingia em público que tratava bem de Pierrette. Esta infame dissimulação irritava a leal bretã e inspirava-lhe desprezo pela prima. Pierrette começou a bordar; mas, enquanto fazia os pontos, continuava a olhar para as cartas de Gouraud, que parecia ignorar que tinha uma menina a seu lado. Sílvia observava-o e começava a achar aquela indiferença excessivamente suspeita. Num dado momento, a solteirona iniciou uma jogada de copas em que a vitória consistia em não fazer nenhuma vaza; o pires estava cheio de fichas e continha, além disso, vinte e sete sous. Os Cournant e Néraud haviam chegado. O velho juiz substituto, Desfondrilles, em quem o ministério da Justiça encontrava qualidades de juiz, encarregando-o das funções de juiz de instrução, mas que nunca tinha suficiente talento quando se tratava de ser juiz efectivo e que, há dois meses, abandonara o partido dos Tiphaine e se voltava para o partido Vinet, estava diante da lareira, com as costas para o fogo e as abas da casaca erguidas. Contemplava o magnífico salão onde brilhava melle. de Chargeboeuf, pois parecia que aquela decoração vermelha fora feita expressamente para realçar os encantos daquela esplêndida pessoa. Reinava o silêncio. Pierrette assistia à jogada e a atenção de Sílvia fora desviada pelo interesse do jogo.
- Jogue aqui - aconselhou Pierrette ao coronel, apontando para as copas.
O coronel fez uma sequência de copas; as copas estavam repartidas entre Sílvia e ele; o coronel recebeu o ás, embora tivesse sido retido por Sílvia por cinco cartas pequenas.
- A jogada não é leal! Pierrette viu o meu jogo e o coronel foi aconselhado por ela.
- Mas, mademoiselle - interveio Celeste - o jogo do coronel era este de continuar em copas, pois ele sabia quem as tinha!
Esta frase fez sorrir o Sr. Desfondrilles, homem perspicaz que se divertia com todos os interesses em jogo em Provins, onde representava o papel de Rigaudin da Casa em Loteria (54) [(54) Rigaudin: personagem da comédia La Maisnn en Loterie, de Picard et Radet, representada pela primeira vez no teatro do Odéon em 1817; desempenha o papel de um intrigante que, sentado à sua janela, sem ser visto, se diverte a criar complicações e brigas entre os vizinhos, os transeuntes, etc], de Picard.
- Esse era o jogo do coronel - acrescentou Cournant, sem saber de que se tratava.
Sílvia dirigiu a melle. Habert um desses olhares de solteira para solteira, atroz e suave.
- Pierrette, viste o meu jogo - disse Sílvia, cravando os olhos na prima.
- Não, prima.
- Eu estava a olhar para todos - acudiu o juiz arqueólogo - e posso garantir que a pequena só viu as cartas do coronel.
- Ora! Estas jovens - disse Gouraud, admirado - sabem correr os olhos sem que se perceba.
- Ah! - exclamou Sílvia.
- Sim - replicou Gouraud. - Ela pode ter olhado para as suas cartas para lhe fazer uma partida. Não é, simpática?
- Não - respondeu a leal bretã. - Sou incapaz disso e, se tivesse interesse por algum jogo, seria pelo da prima.
- Bem sabes que és uma mentirosa e, além disso, uma tolinha - refutou Sílvia. - Como é que se vai acreditar nas tuas palavras depois do que se passou esta manhã? És uma...
Pierrette não deixou a prima terminar na sua presença o que ia dizer. Prevendo uma torrente de injúrias, levantou-se, desapareceu e foi para o quarto. Sílvia ficou pálida de raiva e ameaçou entre dentes: - Ela pagar-me-á.
- Pague a mademoiselle a parada - ripostou a sra. Chargeboeuf.
Neste momento, a pobre Pierrette bateu com a testa na porta do corredor, que o juiz deixara aberta.
- Foi bem feito! - exclamou Sílvia.
- Que foi que lhe aconteceu? - perguntou Desfondrilles.
- Apenas o que ela merece - respondeu Sílvia.
- Acho que ela se magoou - disse melle. Habert.
Sílvia tentou não pagar a parada, levantando-se para ir ver o que acontecera a Pierrette. A sra. de Chargeboeuf, porém, deteve-a.
- Pague-nos primeiro - disse-lhe, sorrindo - pois, certamente ao voltar já não se lembraria de mais nada.
Esta proposta, baseada na desonestidade da ex-lojista nas suas dívidas de jogo, teve a aprovação geral. Sílvia tornou a sentar-se, não pensou mais em Pierrette e esta indiferença não surpreendeu a ninguém. Durante todo o serão, Sílvia manteve uma preocupação constante.Quando o bóstone terminou, pelas nove horas e meia, ela mergulhou numa poltrona junto à lareira e só se levantou para as despedidas. O coronel torturava-a, e ela não sabia o que pensar dele.
- Os homens são tão falsos! - exclamou ela ao adormecer.
OS AMORES DE PIERRETTE E DE BRIGAUT
Pierrette sofrera um golpe terrível ao bater com a cabeça na porta, na altura da orelha, no lugar em que as moças separam do resto dos cabelos aquela porção que põem em papelotes. No dia seguinte, tinha ali fortes equimoses.
- Deus castigou-te - disse-lhe a prima durante o almoço, no dia seguinte. - Tu desobedeceste-me, faltaste com o respeito que me deves não me escutando e afastando-te no momento em que eu falava contigo. Tens justamente o que mereces.
- Mesmo assim - aconselhou Rogron - é preciso pôr uma compressa de salmoura.
- Ora, não há-de ser nada, primo - respondeu Pierrette.
A pobre menina chegara a ver uma prova de simpatia na observação do tutor.
A semana chegou ao fim como começara, em contínuos tormentos. Sílvia tornou-se engenhosa e levou os refinamentos da sua tirania aos mais selvagens requintes. Os Illinois, os Cherokes e os Moicanos (55) [(55) Illinois, cherokes e moicanos: tribos índias autóctenes dos Estados Unidos, já extintas, e que grangearam celebridade na Europa graças aos romances de Fenimore Cooper] poderiam instruir-se com ela. Pierrette não teve coragem de queixar-se dos sofrimentos vagos, das dores que sentia na cabeça. A origem do descontentamento da prima residia na não revelação a respeito de Brigaut e, por uma teimosia bretã, Pierrette obstinava-se em manter um silêncio muito explicável. Todos compreenderão agora qual foi o olhar que a menina dirigiu a Brigaut, que julgou perdido para si no caso de ser descoberto e que queria ter junto de si, feliz por sabê-lo em Provins. Que alegria para ela ver Brigaut! Ver o seu camarada de infância era comparável ao olhar que o exilado dirige de longe à pátria, ao olhar do mártir para o céu onde os seus olhos, armados do dom da vidência, têm o poder de penetrar durante as angústias do suplício. O último olhar de Pierrette fora tão perfeitamente compreendido pelo filho do major, que, enquanto ele aplainava as tábuas, abria o compasso, tomava medidas e ajustava os pedaços de madeira, o seu cérebro trabalhava em busca dum meio de se poder corresponder com Pierrette. Brigaut chegou, por fim, a este plano de extrema simplicidade. A uma certa hora da noite, Pierrette estenderia um cordão na extremidade do qual ele amarraria uma carta. No meio dos horrríveis sofrimentos que causava a Pierrette a sua dupla enfermidade (um abcesso que se formara na cabeça e o depauperamento do organismo), ela era sustentada pela ideia de corresponder-se com Brigaut. Um mesmo desejo agitava os dois corações; separados, entendiam-se. A cada golpe recebido no coração, a cada pontada na cabeça, Pierrette pensava: "Brigaut está aqui!" E então, sofria sem queixa.
No primeiro dia de feira que se seguiu ao primeiro encontro na igreja, Brigaut ficou à espreita da amiguinha. Embora a visse trémula e pálida como uma folha de Outono prestes a cair no galho, Brigaut, sem se perturbar, pôs-se a discutir o preço das frutas na mesma tenda onde a terrível Sílvia estava a pechinchar na compra de provisões. Brigaut conseguiu passar um bilhete a Pierrette e passou-o com toda a naturalidade, enquanto gracejava com a vendedora. E fê-lo com o garbo dum espertalhão, como se nunca se tivesse dedicado a outra coisa, tal o sangue-frio com que executou a sua acção apesar do sangue quente que latejava nas suas orelhas e que saía em borbotões do seu coração como se quisesse romper-lhe as veias e as artérias. Teve, externamente, a decisão dum velho condenado e, internamente, os tremores da inocência, exactamente como certas mães nas suas crises mortais, em que ficam presas entre dois perigos, entre dois precipícios. Pierrette sentiu as mesmas vertigens de Brigaut; guardou o bilhete no bolso do avental. As placas rosadas das faces passaram ao vermelho cereja dos fogos violentos. As duas crianças experimentaram, de parte a parte, sem querer, sensações capazes de nutrir dez amores vulgares. Esse mesmo deixou nas suas almas uma fonte viva de emoções. Sílvia, que não conhecia o tipo bretão, não podia ver um amoroso em Brigaut e Pierrette voltou para casa com o seu tesouro.
As cartas das duas crianças deviam servir de documentos num terrível debate judiciário; sem essas fatais circunstâncias, elas nunca teriam sido conhecidas. Eis, pois, o que Pierrette leu, à noite, no quarto:
Minha querida
Pierrette:
Na hora em que todos estiverem a dormir, mas em que estarei a velar por ti, chegarei todas as noites à janela da cozinha. Podes fazer descer da tua janela um cordão bastante comprido para que chegue até mim, o que não fará barulho, e nele amarrarás o que me tiveres escrito. Eu responder-te-ei pelo mesmo meio. Sei que eles te ensinaram a ler e a escrever, esses miseráveis parentes que te deviam fazer tanto bem e te fazem tanto mal! Tu, Pierrette, filha dum coronel morto pela França, reduzida por esses monstros a cozinhar para eles... Eis aí no que se consumiram as tuas belas cores e a tua bela saúde! Que foi feito da minha Pierrette? Que fizeram eles de ti? Vejo perfeitamente que não estás satisfeita. Oh! Pierrette, voltemos para a Bretanha. Posso ganhar o suficiente para dar-te tudo o que te falta: poderás dispor de três francos por dia, pois ganho de quatro a cinco e trinta sous bastam-me. Ah! Pierrette, como implorei ao bom Deus por ti depois que te revi! Pedi-lhe que transferisse para mim todos os teus sofrimentos e te concedesse todas as alegrias. Que fazes com eles, para que te conservem em seu poder? A tua avó é mais do que eles. Esses Rogron são venenosos, tiram-te a alegria. Já não andas, em Provins, como andavas na Bretanha. Voltemos para a Bretanha! Estou aqui para servir-te, para cumprir as tuas ordens, e para me dizeres o que queres. Se precisares de dinheiro, tenho para nós sessenta escudos e será com pesar que tos enviarei pelo cordão em vez de beijar com respeito as tuas queridas mãos ao depositá-los nelas. Ah! Há quanto tempo, minha querida Pierrette, o céu está nublado para mim. Não tive duas horas de prazer desde o dia que te pus naquela diligência da desgraça; e quando te revi como uma sombra, aquela bruxa da parente veio perturbar a nossa felicidade. Enfim, teremos, todos os domingos, o consolo de rezar juntos a Deus: é possível que assim ele nos ouça melhor. Não te digo adeus, querida Pierrette, mas até logo à noite.
Esta carta comoveu de tal modo Pierrette que ela ficou mais de uma hora a relê-la e a contemplá-la. Verificou, porém, com pesar, que não tinha nada com que escrever. Empreendeu, por isso, a difícil viagem da sua mansarda à casa de jantar, onde encontraria tinta, pena e papel e pôde realizá-la sem despertar a terrível prima. Pouco antes da meia-noite, já tinha escrito a seguinte carta, que foi, igualmente, citada no processo:
Meu amigo, oh! sim, meu amigo; pois tu, Jacques, e minha avó são os únicos que me estimam. Que Deus me perdoe, mas, sois também as únicas pessoas que amo, tanto uma como a outra, nem mais nem menos. Eu era muito pequena para poder conhecer minha mãezinha; mas, tu, Jacques, a minha avó e o meu avô também, que Deus tenha no céu pois ele sofreu muito com a sua ruína, que foi também a minha; enfim, vós dois que ficastes, amo-vos tanto quanto sou infeliz! Assim, para saberes quanto te amo, precisarias saber o quanto sofro; e não o desejo, pois isso magoar-te-ia muito. Falam comigo como não falamos aos cães! Tratam-me como a última das últimas! E é em vão que me examino como se estivesse diante de Deus, não encontro faltas para com eles. Antes do dia em que me cantaste a canção das recém-casadas, eu reconhecia a bondade de Deus nas minhas dores, pois, como eu lhe implorava que me levasse deste mundo e me sentia muito doente, pensava: "Deus ouve-me!" Mas, Brigaut, já que estás aqui, quero partir contigo para a Bretanha, para voltar a ver a minha avó que me ama, embora eles me tenham dito que ela me roubou oito mil francos. Brigaut, se eles me pertencem, podes sabê-lo! Mas, é mentira; se tivéssemos oito mil francos, a minha avó não estaria em Saint-Jacques. Não quis perturbar os últimos dias dessa boa santa senhora com a narração dos meus tormentos: ela seria capaz de morrer. Ah! Se ela soubesse que fazem a sua neta lavar a louça, ela que me dizia: "Deixa isso, queridinha" quando, na sua pobreza, eu queria ajudá-la; "deixa, deixa, minha querida, vais estragar as tuas belas mãozinhas". Ainda bem que conservo as unhas limpas! Geralmente não posso carregar o cesto das compras, que me corta o braço quando volto do mercado. Entretanto, não creio que o meu primo e a minha prima sejam maus; o pior é o seu costume de repreender e parece que não posso deixá-los. O meu primo é meu tutor. Um dia, quando lhe disse que me queria ir embora por sofrer demais, a minha prima Sílvia respondeu que a polícia iria atrás de mim, que a lei apoia o meu tutor e então compreendi que os primos não substituem o nosso pai ou a nossa mãe, como os santos não substituem o bom Deus. Que queres, meu pobre Jacques, que eu faça com o teu dinheiro? Guarda-o para a nossa viagem. Oh! Como eu pensava em ti, no Pen-Hoël e no grande lago! Foi lá que comemos o nosso pão branco, juntos. Sinto que vou mal. Estou muito doente, Jacques! Tenho dores de cabeça de gritar, bem como nos ossos e nas costas; e mais não sei o quê, nos rins, que me mata; só sinto apetite para coisas esquisitas, como raízes e folhas. E além disso tudo, gosto de sentir o cheiro do papel impresso. Há momentos em que choraria se estivesse só, pois não me deixam fazer nada do que quero e não tenho licença nem para chorar. Preciso esconder-me para oferecer as minhas lágrimas àquele de quem todos nós recebemos essas graças que chamamos de aflições. Não foi ele que te deu a feliz ideia de vir cantar sob a minha janela a canção das recém-casadas? Ah! Jacques, a minha prima, que te ouviu, disse-me que eu tinha um namorado. Se queres ser meu namorado, ama-me muito; prometo amar-te sempre, como no passado, e ser tua fiel serva.
Pierrette Lorrain
Vais amar-me sempre, não é?
A bretã apanhou na cozinha uma côdea de pão, na qual fez um buraco para meter a carta e, assim, dar peso ao cordão. À meia-noite, após ter aberto a janela com excessiva precaução, fez descer a carta e o pão, que não podiam fazer barulho algum ao roçar pela parede ou pelas persianas. Sentiu o fio puxado por Brigaut, que o rompeu e depois afastou-se lentamente, pé ante pé. Quando ele chegou ao centro da praça, ela pôde vê-lo indistintamente à luz das estrelas; ele, porém, contemplava-a na zona luminosa do clarão projectado pela lamparina. As duas crianças ficaram assim durante uma hora, Pierrette fazendo-lhe sinais para que se fosse embora, ele afastando-se e ela ficando à janela, ele voltando ao seu posto e Pierrette recomendando-lhe novamente que deixasse a praça. Esta manobra repetiu-se várias vezes, até que a pequena fechou a janela, deitou-se e apagou a luz. Uma vez na cama, adormeceu feliz, embora doente: tinha a carta de Brigaut sob o travesseiro. Dormiu como dormem os perseguidos, num sono embelezado pelos anjos, esse sono de atmosferas douradas e azuis, cheios de arabescos divinos, entrevistos e retransmitidos pelo pincel de Rafael.
A natureza moral exercia tal domínio sobre aquela delicada natureza física que no dia seguinte, Pierrette despertou contente e lépida como uma cotovia, radiosa e sorridente. Tal mudança não podia escapar aos olhos da prima, que, desta vez, em lugar de censurá-la, ficou a observá-la com a atenção duma pega. "De onde lhe vem tanta felicidade?" foi um pequeno pensamento de ciúme e não de tirania. Se o coronel não estivesse a ocupar a atenção de Sílvia, ela certamente teria dito a Pierrette como das outras vezes: "Pierrette, és muito turbulenta ou muito descuidada com o que te dizem!" A solteirona resolveu espiar Pierrette como o sabem fazer as solteironas. O dia decorreu sombrio e silencioso como o momento que precede um temporal.
- Então, não estás mais doente, menina? - perguntou Sílvia ao jantar. - Quando eu te dizia que ela faz tudo isso só para nos atormentar! - acrescentou, dirigindo-se ao irmão, sem esperar a resposta de Pierrette.
- Pelo contrário, prima. Acho que estou com febre...
- Febre de quê? Estás alegre como um tentilhão. Viste algum conhecido?
Pierrette estremeceu e baixou os olhos para o prato.
- Hipócrita! - exclamou Sílvia. - Aos catorze anos! Já! Que disposições! Mas, és então uma mulher perdida?
- Não sei o que quer dizer - replicou Pierrette, fixando os belos olhos castanhos-brilhantes na prima.
- Hoje - ordenou ela - ficarás na casa de jantar com uma lamparina, a trabalhar. Estás a mais no salão e não quero que olhes para as minhas cartas para aconselhar os teus predilectos.
Pierrette nem pestanejou.
- Fingida! - exclamou Sílvia, ao sair.
Rogron, que não compreendia nada das palavras da irmã, disse a Pierrette:
- Que há entre as duas? Trata de agradar a tua prima, Pierrette; ela é muito indulgente, muito bondosa, e se a enfureces certamente é porque estás a fazer alguma coisa errada. Por que motivo se zangam? Gosto de viver em sossego. Olha para mademoiselle Bathilde, toma-a como modelo.
Pierrette podia suportar tudo: Brigaut viria, sem dúvida, à meia-noite, trazer-lhe uma resposta, e essa esperança era o viático do seu dia. Estava, porém, a consumir as suas últimas forças! Não dormiu, ficou de pé, a escutar o bater das horas nas pêndulas, temendo fazer ruído. Finalmente, soou a meia-noite. Abriu docemente a janela e dessa vez usou um cordão que conseguira, amarrando uns aos outros diversos pedaços de linha. Ouviu os passos de Brigaut; e quando puxou o cordão, leu a seguinte carta, que a encheu de alegria:
Minha querida
Pierrette:
Se sofres tanto, não te deves cansar à minha espera. Ouvir-me-ás gritar como os Chouans (56) [(56) Nome dos revoltosos monarquistas da Bretanha, cujo grito se parecia com o do mocho (chouette). Balzac escreveu um romance sobre eles, A Bretanha em 1799]. Felizmente, o meu pai ensinou-me a imitar o seu grito. Assim, gritarei três vezes e saberás então que estou aí e que deves soltar o cordão. Não voltarei, porém, antes de alguns dias. Espero dar-te uma boa notícia. Oh! Pierrette, morrer! Mas, Pierrette, pensas nisso? O meu coração estremeceu; julguei-me morto, eu mesmo, a essa ideia. Não, minha Pierrette, não morrerás, viverás feliz e logo serás libertada dos teus perseguidores. Se eu não tiver êxito no gue vou empreender para salvar-te, irei reclamar à Justiça e direi diante de todo o mundo como te tratam os indignos parentes. Estou certo de que não terás mais que poucos dias de sofrimento: tem paciência. Pierrette! Brigaut vela por ti como na época em que íamos deslizar sobre o lago, quando te retirei do grande buraco onde quase perecemos juntos. Adeus, minha querida Pierrette. Dentro de alguns dias seremos felizes, se Deus quiser. Ai de mim! Não ouso dizer-te a única coisa que se poderia opor à nossa união. Mas, Deus ama-nos! Daqui a alguns dias poderei, pois, ver a minha querida Pierrette em liberdade, sem preocupações, sem que alguém me impeça de contemplar-te, pois tenho muita sede de te ver, oh! Pierrette! Pierrette gue se digna amar-me e dizê-lo. Sim, Pierrette, serei o teu namorado, mas somente quando tiver conseguido a fortuna que mereces e até lá não quero ser para ti mais que um dedicado servidor de cuja vida podes dispor. Adeus., Jacques Brigaut
Eis o que o filho do major não disse a Pierrette. Brigaut escreveu a seguinte carta à sra. Lorrain, em Nantes:
Sra. Lorrain:
A sua neta morrerá, sob o peso dos maus tratos, se a senhora não a reclamar. Mal pude reconhecê-la, e para que a senhora bem possa julgar os factos, junto a esta a carta que recebi de Pierrette. Dizem aqui que a senhora conserva em seu poder o dinheiro da sua neta e deve defender-se dessa acusação. Se puder, venha logo; ainda podemos ser felizes e mais tarde a senhora encontraria Pierrette morta.
Sou, respeitosamente, seu devotado servidor.
Jacques Brigaut
Na casa do Sr. Frappier, marceneiro,
Rua Larga, Provins
Brigaut tinha receio de que a avó de Pierrette houvesse morrido.
Embora a carta daquele que, em sua inocência, ela chamava o seu namorado, fosse quase um enigma para a bretã, ela acreditou nas suas palavras com a sua fé virgem. O seu coração experimentou a sensação que os viajantes do deserto experimentam ao avistar de longe, as palmeiras em torno dos poços. Dentro de poucos dias o seu infortúnio cessaria, Brigaut dizia-lho; adormeceu sobre a promessa do seu amigo de infância. Mas, enquanto guardava a carta junto com a outra, teve uma ideia horrível, horrivelmente expressa:
"Pobre Brigaut - pensou - não sabe em que abismo cai!"
Sílvia ouvira Pierrette, do mesmo modo que ouvira Brigaut sob a sua janela; levantou-se, precipitou-se para examinar a praça através das persianas e viu, ao luar, um homem afastando-se em direcção à casa onde morava o coronel e diante da qual Brigaut parou. A solteirona abriu cuidadosamente a porta, subiu, ficou admirada de ver luz no quarto de Pierrette, espiou pelo buraco da fechadura e não pôde ver nada.
- Pierrette - chamou. - Estás doente?
- Não, prima - respondeu Pierrette, surpreendida.
- Então, por que estás com a luz acesa à meia-noite? Abre. Preciso saber o que é que estás a fazer.
Pierrette foi abrir a porta, descalça, e a prima viu o cordão enrolado que Pierrette não tivera a precaução de guardar, por não imaginar que seria apanhada. Sílvia atirou-se sobre o cordão.
- Para que queres isto?
- Para nada, prima.
- Para nada? Muito bem! Sempre a mentir. Assim não irás para o céu. Vai-te deitar, estás com frio.
Não perguntou mais nada e retirou-se, deixando Pierrette pasmada de terror com essa clemência. Em vez de explodir, Sílvia resolvera subitamente surpreender o coronel e Pierrette, apanhar as cartas e confundir os dois namorados que a enganavam. Pierrette, inspirada pelo perigo, meteu as duas cartas no espartilho e cobriu-as com um pedaço de chita.
Aí terminaram os amores de Pierrette e Brigaut.
Pierrette sentiu-se muito feliz com a resolução do amigo, pois as suspeitas da prima iam ser desfeitas por falta de motivo. Sílvia, com efeito, passou três noites de pé e três serões a espiar o inocente coronel, sem ver, nem em Pierrette, nem na casa, nem fora, nada que denunciasse um entendimento entre ambos. Mandou Pierrette à confissão e aproveitou o momento para revolver tudo no quarto da menina, com o hábito e a perspicácia dos espiões e dos cobradores da Alfândega de Paris. Não encontrou nada. O seu furor atingiu o auge dos sentimentos humanos. Se Pierrette estivesse lá, certamente teria sido espancada sem piedade. Para uma solteirona daquela têmpera, o ciúme era menos um sentimento que uma ocupação: vivia, sentia bater o coração, experimentava emoções até então completamente desconhecidas para ela; o menor movimento a alertava, ouvia os mais leves ruídos, observava Pierrette com uma sombria preocupação.
- Essa pequena miserável há-de matar-me! - vociferava.
As severidades de Sílvia para com a prima chegaram à mais refinada crueldade e agravaram a situação deplorável em que Pierrette se encontrava. A pobrezinha tinha febre constantemente e as dores de cabeça tornavam-se intoleráveis. No espaço de oito dias, os frequentadores da casa Rogron puderam vê-la com uma fisionomia de sofrimento que, sem dúvida, teria enternecido seres menos cruéis; o médico Néraud, porém, talvez aconselhado por Vinet, ficou mais de uma semana sem aparecer. O coronel, suspeito aos olhos de Sílvia, teve receio de fazer fracassar o seu casamento manifestando a mais leve solicitude por Pierrette. Bathilde explicava a transformação da menina por uma crise esperada, natural e sem perigo. Enfim, num domingo à noite, quando Pierrette estava no salão cheio de gente, não pôde resistir a tantos sofrimentos e desmaiou; e o coronel, que foi o primeiro a notar o desmaio, tomou-a nos braços e deitou-a num sofá.
- Fez de propósito - afirmou Sílvia, olhando para melle. Habert e para os que jogavam com ela.
- Garanto-lhe que a sua prima está muito mal - interveio o coronel.
- Ela estava muito bem nos seus braços - replicou Sílvia ao coronel, com um sorriso terrível.
- O coronel tem razão - acudiu a sra. de Chargeboeuf. - A mademoiselle deve chamar um médico. Esta manhã, na igreja, à saída da missa, todos falavam no estado de saúde da jovem Lorrain, que salta aos olhos.
- Estou a morrer - balbuciou Pierrette.
Desfondrilles chamou Sílvia e pediu-lhe que desapertasse as roupas da prima. Sílvia correu e disse:
- É fita!
Desabotoou as roupas e ia tocar no espartilho; Pierrette, então, adquiriu forças sobre-humanas; ergueu-se e exclamou:
- Não! Não! Vou-me deitar.
Sílvia apalpara o espartilho e a sua mão sentira ali o maço de papéis. Deixou Pierrette retirar-se, dizendo a todos:
- E então, que dizem da sua doença? É tudo fita! Não podem imaginar a perversidade desta menina.
Após o serão, ela deteve Vinet; estava furiosa e queria vingar-se; foi grosseira com o coronel ao despedir-se. O coronel dirigiu a Vinet um certo olhar que o ameaçava no ventre e parecia assinalar ali o lugar duma bala. Sílvia pediu a Vinet que ficasse. Quando ficaram sós, a solteirona confessou:
- Nunca, na minha vida nem em meus dias, hei-de casar com o coronel!
- Bem, agora que tomou essa resolução, posso falar. O coronel é meu amigo, mas sou mais amigo seu que dele: Rogron prestou-me serviços que nunca esquecerei. Sou tão bom amigo como implacável inimigo. Quando eu estiver na Câmara, hão-de ver até onde hei-de chegar. Rogron será, com toda a certeza: recebedor-geral nomeado por mim... Pois bem, jure-me que nunca repetirá nada da nossa conversa. (Sílvia fez um gesto afirmativo). Em primeiro lugar, esse bravo coronel é um jogador incorrigível.
- Ah! - fez Sílvia.
- Se não fossem os embaraços em que a sua paixão pelo jogo o meteu, ele seria talvez marechal da França - continuou o advogado. - Assim, ele seria capaz de devorar a sua fortuna. Além disso, é um homem impenetrável. Não creia que os esposos possam resolver se terão ou não terão filhos e, no primeiro caso, a mademoiselle sabe o que aconteceria. Não, se quiser casar-se, espere que eu esteja na Câmara e então poderá desposar esse velho Desfondrilles, que será presidente do Tribunal. Para vingar-se, case o seu irmão com mademoiselle de Chargeboeuf. Encarrego-me de obter o seu consentimento: ela terá dois mil francos de renda e a mademoiselle ficará aliada aos Chargeboeuf como eu. Fique certa, os Chargeboeuf hão-de receber-nos um dia como primos.
- Gouraud ama Pierrette - foi a resposta de Sílvia.
- Ele é bem capaz disso - comentou Vinet. - É capaz de casar-se com ela depois da sua morte.
- É um belo projecto! - observou ela.
- Já lhe disse, ele é finório como o diabo! Case o seu irmão anunciando que quer ficar solteira para deixar os seus bens a seus sobrinhos ou sobrinhas; atingirá, com um só golpe, Pierrette e Gouraud e verá com que cara ele há-de ficar.
- Ah! É isso mesmo! - exclamou a solteirona. - Apanhei-os! Ela irá para uma loja, não terá nada. Ela não tem dinheiro algum. Que faça como nós, que trabalhe!
Vinet saiu após ter metido o seu plano na cabeça de Sílvia, cuja obstinação bem conhecia. A solteirona acabaria por acreditar que o projecto partira dela mesma. Vinet encontrou na praça o coronel a fumar um cigarro, à sua espera.
- Alto lá! - disse Gouraud. - Você demoliu-me, mas na demolição há pedras suficientes para sepultá-lo.
- Coronel!
- Não há coronel nem coisa nenhuma... Vou tratá-lo com todo o rigor; e, para começar, o senhor nunca será deputado...
- Coronel!
- Disponho de dez votos e a eleição depende de...
- Coronel, escute-me. Não haverá mais ninguém aqui além da velha Sílvia? Acabo de tentar defendê-lo; o senhor é acusado de escrever a Pierrette: ela viu-o sair da sua casa, à meia-noite, para ir à janela da menina...
- Bem imaginado!
- Ela vai casar o irmão com Bathilde e reservar a fortuna aos filhos deles.
- Rogron será capaz de ter filhos?
- Sim - afirmou Vinet. - Mas, prometo arranjar-lhe uma criatura jovem e agradável, com cento e cinquenta mil francos. Está louco? Acaso podemos discutir? As coisas, mau grado meu, estão voltadas contra o senhor; e o senhor ainda não me conhece.
- Pois bem, é bom que nos conheçamos - replicou o coronel. - Faça-me desposar uma mulher com cinquenta mil escudos antes das eleições; senão, arranje-se. Não gosto de maus companheiros de cama e o senhor puxa toda a coberta para si. Boas-noites.
- Vai ver - prometeu Vinet, apertando afectuosamente a mão do coronel.
O CONSELHO DE FAMÍLIA
À uma da madrugada, os três gritos claros e agudos do mocho, admiravelmente bem imitados, ressoaram na praça; Pierrette ouviu-os no seu sono febril; levantou-se banhada em suor, abriu a janela, viu Brigaut e atirou-lhe uma bolinha de seda à qual ele amarrou uma carta. Sílvia, agitada pelos acontecimentos da noite, e pelas suas irresoluções, não dormia; pensou que fosse mesmo um mocho.
- Ah! Que ave de mau agouro. Mas, não! Pierrette levantou-se! Que terá ela?
Ao perceber que se abria a janela da mansarda, Sílvia correu à sua janela e ouviu o roçar da carta de Brigaut ao longo das persianas. Amarrou os cordões do camisão e subiu lestamente ao quarto de Pierrette, que foi encontrar a desamarrar a seda para tirar a carta.
- Ah! Apanhei-te! - exclamou a solteirona, indo à janela e vendo Brigaut que fugia a todo o pano. - Vais dar-me essa carta.
- Não, prima - respondeu Pierrette, que, por uma dessas imensas inspirações da mocidade e sustentada pela sua alma, se elevou à grandiosidade da resistência que admiramos na História de alguns povos, levados ao desespero.
- Ah! Não queres?... - exclamou Sílvia, avançando para a prima e mostrando-lhe uma horrível fisionomia cheia de ódio e enrugada de furor.
Pierrette recuou para ter tempo de segurar a carta, mantendo a mão fechada por uma força invencível. Ao ver essa manobra, Sílvia prendeu nas suas patas de lagosta a delicada, a branca mão de Pierrette e tentou abri-la. Foi um combate terrível, um combate infame, como tudo o que atenta contra o pensamento, o único tesouro que Deus põe a salvo de toda a força e preserva como um laço sagrado entre si e os infelizes. As duas mulheres, uma moribunda e a outra cheia de vigor, olharam-se fixamente. Os olhos de Pierrette dirigiram ao seu carrasco o olhar do templário, ao ser golpeado no peito com um balanceiro diante de Filipe, o Belo (57) [(57) A Ordem dos Templários, fundada em 1118, teve como objectivo combater os infiéis e assinalou-se por uma série de façanhas na Terra Santa. Expulsos de lá pelos sarracenos, espalharam-se os Templários nos países ocidentais e adquiriram grande poder e muitos bens, que provocaram a inveja de Filipe, o Belo, rei da França. Instigado por este, o Papa Clemente V deu ordem à Inquisição, no começo do século XIV, para instaurar o processo dos Templários. Eles foram, na sua maioria, perseguidos, aprisionados e executados; ficou célebre a cena da execução de 56 templários na presença de Filipe, o Belo, que em vão os concitou a reconhecerem os seus pecados para se salvarem: todos preferiram morrer queimados, após as torturas mais atrozes], que não pôde suportar esse raio terrível e deixou a praça fulminado. Sílvia, mulher e ciumenta, respondeu a esse olhar magnético com raios sinistros. Reinava um silêncio medonho. Os dedos apertados da bretã opunham às tentativas da prima uma resistência igual à dum bloco de aço. Sílvia torturava o braço de Pierrette, procurava abrir-lhe os dedos, e, nada conseguindo, cravava-lhe inutilmente as unhas na carne. Por fim, enraivecendo-se, meteu-lhe os dentes no pulso para tentar morder-lhe os dedos e subjugar Pierrette pela dor. Pierrette continuava a desafiá-la com o terrível olhar da inocência. O furor da solteirona cresceu a tal ponto que chegou à alucinação; segurou o braço de Pierrette e pôs-se a bater com o punho no peitoril da janela e no mármore da lareira, como quando se quer quebrar uma noz para retirar-lhe o fruto.
- Socorro! Socorro! - exclamou Pierrette. - Estão a matar-me!.
- Ah! Estás a gritar, e eu apanho-te com um namorado no meio da noite...
E batia sem piedade.
- Socorro! - gritou Pierrette, com o punho todo ensanguentado.
Neste momento, bateram violentamente à porta. Igualmente fatigadas, as duas primas detiveram-se.
Rogron, acordado, inquieto, não sabendo do que se tratava, levantou-se, correu ao quarto da irmã e não a encontrou; ficou com medo, desceu, abriu a porta e quase foi derrubado por Brigaut, que entrou acompanhado duma espécie de fantasma. Justamente nesse instante os olhos de Sílvia perceberam o espartilho de Pierrette e lembrou-se de ter notado papéis dentro dele; precipitou-se sobre ele como um tigre sobre a presa, enrolou o espartilho no punho e exibiu-o diante dela, sorrindo como um iroquês sorri para o inimigo antes de arrancar-lhe o couro cabeludo.
- Ai! Estou a morrer... - murmurou Pierrette, caindo ajoelhada. - Quem me salvará?
- Eu! - exclamou uma mulher de cabelos brancos que mostrou a Pierrette um rosto velho de pergaminho onde brilhavam dois olhos cor de cinza.
- Ah! avó, chegaste muito tarde! - exclamou a pobre criança, a desfazer-se em lágrimas.
Pierrette ia cair na cama, abandonada pelas forças e aniquilada pelo abatimento que, numa enferma, sucede a uma luta tão violenta. O grande fantasma seco tomou-a nos braços como as amas tomam as crianças e saiu acompanhado de Brigaut, sem dizer uma única palavra a Sílvia, a quem acusou majestosamente por meio dum olhar trágico. A aparição da augusta velha no seu trajo bretão encapuzada na sua touca, que é uma espécie de peliça de pano preto, acompanhada do terrível Brigaut, assustou Sílvia: ela pensou ter visto a morte. A solteirona desceu, ouviu a porta fechar-se e deu de cara com o irmão, que lhe perguntou:
- Então, não te mataram?
- Vai-te deitar - aconselhou Sílvia. - Amanhã de manhã veremos o que vamos fazer.
Ela voltou para a cama, abriu o espartilho e leu as duas cartas de Brigaut, que a confundiram. Adormeceu na mais estranha perplexidade, sem a mínima suspeita da terrível questão que o seu procedimento ia provocar.
As cartas enviadas por Brigaut à viúva Lorrain haviam-na encontrado numa inefável alegria, que a sua leitura perturbou. A pobre septuagenária estava a morrer do desgosto de viver sem Pierrette a seu lado; consolava-se de havê-la perdido, considerando-se sacrificada pelos interesses da neta. Possuía um desses corações sempre jovens, que a ideia do sacrifício sustenta e anima. O seu velho marido, cuja única alegria era aquela neta, ficara com saudades de Pierrette; diariamente a procurara em torno de si. Foi uma saudade de ancião, da qual os anciãos vivem e acabam morrendo. Todos podem agora avaliar o contentamento que deve ter experimentado a pobre velha encerrada num asilo, ao ter a notícia duma dessas acções raras, mas que, entretanto, ainda se verificam na França. Após os seus desastres, Francisco José Collinet, chefe da casa Collinet, partira para a América com os filhos. Tinha demasiado brio para permanecer arruinado, sem crédito, em Nantes, no meio das desgraças que a sua falência ali causara. De 1814 a 1824, o bravo negociante, auxiliado pelos filhos e o caixa da casa, que se conservou fiel e lhe forneceu os primeiros recursos, recomeçara corajosamente nova fortuna. Após inauditos trabalhos coroados de êxito, voltou a Nantes, depois duma ausência de dez anos, para se reabilitar, deixando o filho mais velho à frente da sua casa transatlântica. Encontrou a sra. Lorrain de Pen-Hõel em Saint-Jacques e foi testemunha da resignação com que a mais infortunada das suas vítimas suportava a miséria.
- Deus o perdoe! - murmurou a velha - pois, à beira do meu túmulo, o senhor dá-me os meios de assegurar a felicidade da minha neta; eu, porém, nunca mais poderei reabilitar o meu pobre marido!
O Sr. Collinet trazia à sua credora, entre capital e juros, cerca de quarenta e dois mil francos. Os seus outros credores, comerciantes activos, ricos, inteligentes, haviam resistido ao prejuízo, ao passo que a desgraça dos Lorrain pareceu irremediável ao velho Collinet, que prometeu à viúva reabilitar a memória do marido, uma vez que se tratava apenas duma quarentena de mil francos a mais. Quando a Bolsa de Nantes foi informada desse rasgo de generosidade reparadora, quis receber Collinet antes da sentença da corte real de Rennes; o negociante, porém, recusou essa honra e submeteu-se ao rigor do código de comércio. A sra. Lorrain recebeu, pois, quarenta e dois mil francos na véspera do dia em que o Correio lhe levou as cartas de Brigaut. Ao dar a sua quitação, a sua primeira frase foi: "Poderei agora viver com a minha Pierrette e casá-la com o pobre Brigaut, que ficará rico com o meu dinheiro!. Não conseguia sossego, agitava-se, queria partir para Provins. Assim, quando acabou de ler as duas fatais cartas, saiu a correr pela cidade como louca, perguntando como poderia ir a Provins com a rapidez do raio. Partiu pela mala-posta, quando lhe falaram na celebridade governamental desse veículo. Em Paris, tomou o carro de Troyes e pelas onze e meia, chegava à casa de Frappier, onde Brigaut, ao ver o sombrio desespero da velha bretã, imediatamente lhe prometeu trazer-lhe a neta, descrevendo-lhe, em poucas palavras, o estado de Pierrette. Essas poucas palavras apavoraram de tal modo a avó que ela não pode dominar a sua impaciência: correu para a praça. Quando Pierrette gritou, a bretã sentiu o coração atingido por esse grito, tão intensamente como Brigaut. E ambos teriam, sem dúvida, acordado todos os habitantes, se Rogron, por temor, não lhes tivesse aberto a porta. Esse grito duma moça em extremo desespero deu, subitamente, à avó, tanto força como terror, levou a sua querida Pierrette para a casa de Frapier, cuja esposa arrumara apressadamente o quarto de Brigaut para a avó de Pierrette. Foi, assim, nessa pobre habitação, num leito recém-preparado, que a doente foi deitada; e ali desmaiou, conservando o punho cerrado, ferido, sangrando, com as unhas cravadas na carne. Brigaut, Frappier, sua esposa e a velha contemplavam Pierrette em silêncio, dominados por um indizível espanto.
- Porque será que a sua mão está a sangrar? - foi a primeira pergunta da avó.
Pierrette, vencida pelo sono que sucede aos grandes dispêndios de energia e sabendo-se a salvo de qualquer violência, abriu os dedos. A carta de Brigaut caiu como uma resposta.
- Quiseram apanhar-lhe a minha carta - esclareceu Brigaut, caindo de joelhos e apanhando o bilhete que escrevera para dizer à amiguinha que deixasse tranquilamente a casa dos Rogron. Depois, beijou piedosamente a mão da mártir.
Houve, então, alguma coisa que fez estremecer os marceneiros: o espectáculo da velha Lorrain, esse espectro sublime, de pé à cabeceira da neta. O terror e a vingança comunicavam as suas flamejantes expressões aos milhares de rugas que pregueavam a sua pele de marfim amarelado. A sua fronte coberta de cabelos grisalhos em desalinho exprimia a cólera divina. Lia, com esse poder de intuição conferido aos anciãos na proximidade da sepultura, toda a vida de Pierrette, em quem pensara durante toda a viagem. Percebeu a doença da moça que ameaçava de morte a sua querida menina! Duas grossas lágrimas, penosamente brotadas dos seus olhos brancos e gris, aos quais os desgostos haviam arrancado as pestanas e as sobrancelhas, duas pérolas de dor se formaram, comunicaram-lhe um admirável frescor, engrossaram e rolaram pelas suas faces encarquilhadas sem humedecê-las.
- Mataram a minha neta! - exclamou, por fim, jutando as mãos.
Caiu de joelhos, produzindo duas batidas secas no soalho; foi, sem dúvida, para fazer uma promessa à Santa Ana d'Auray, a mais poderosa das madonas da Bretanha.
- Um médico de Paris - alvitrou ela a Brigaut. - Vá depressa, Brigaut!
Tomou o artesão pelo ombro e fê-lo partir com um gesto despótico.
- Eu estava para vir, Brigaut, estou rica, olhe! - exclamou, chamando-o. Desamarrou o cordão que prendia as duas partes da jaqueta sobre o peito; tirou dali um maço de papéis que continham quarenta e duas cédulas e disse-lhe:
- Tire quanto precisar. Traga o maior médico de Paris. - Guarde isso - disse Frappier. - Ele não poderá trocar uma dessas cédulas a esta hora. Tenho dinheiro, a diligência vai passar agora e certamente ele encontrará um lugar. Mas, antes disso, não seria melhor consultar o senhor Martener, que nos indicaria um médico de Paris? A diligência só chegará daqui a uma hora, temos tempo para isso.
Brigaut foi despertar o Sr. Martener. Levou o médico, que se surpreendeu ao ver a jovem Lorrain na casa de Frappier. Brigaut descreveu-lhe a cena que acabara de ocorrer na casa dos Rogron. A indiscrição dum apaixonado em desespero desvendou esse drama doméstico ao médico, sem que suspeitasse do seu horror nem da sua extensão. Martener deu o endereço do famoso Horário Bianchon (58) [(58) Uma das personagens preferidas de Balzac; ainda estudante, desempenhou belo papel junto ao velho Goriot moribundo (O Pai Goriot). Encontramo-lo também em A Missa do Ateu. Desde então, como vemos, já se tornou um médico ilustre] a Brigaut, que saiu com o patrão ao ouvir o barulho da diligência. O Sr. Martener sentou-se, examinou em primeiro lugar as equimoses e os ferimentos da mão, que pendia para fora do leito.
- Não foi ela mesma que fez estes ferimentos? - perguntou.
- Não! A terrível moça a quem tive a desventura de confiá-la estava a massacrá-la - respondeu a avó. - A minha pobre Pierrette gritava: "Socorro! Estou a morrer!" num tom capaz de enternecer o coração dum carrasco.
- E porquê? - indagou o médico, tomando o pulso de Pierrette. - Está muito doente - acrescentou, aproximando-se do leito. - Ah! Dificilmente poderemos salvá-la - declarou, após ter-lhe examinado o rosto. - Deve ter sofrido muito e não compreendo como não tenham tratado dela.
- A minha intenção - interveio a avó - é queixar-me à justiça. Essa gente, que me mandou pedir a neta por meio duma carta, dizendo-se possuidora de doze mil francos de renda, tinha o direito de fazer dela sua cozinheira, de obrigá-la a serviços acima das suas forças?
- Então eles não quiseram ver a mais visível das doenças a que as moças estão frequentemente sujeitas e que exige os maiores cuidados? - exclamou o Sr. Martener.
Pierrette foi despertada pela luz que a sra. Frappier segurava para melhor iluminar-lhe o rosto e pelas horríveis dores de cabeça, que a reacção moral da luta lhe causava.
- Oh, senhor Martener, estou muito mal! - lamentou com a sua bela voz.
- Onde sente dor, minha amiguinha? - indagou o médico.
- Aqui - respondeu ela, mostrando o alto da cabeça, acima da orelha esquerda.
- Há um abcesso aqui! - exclamou o médico, após ter-lhe demoradamente apalpado a cabeça e interrogado Pierrette sobre os seus padecimentos. - Precisas contar-nos tudo, minha filha, para que possamos curar-te. Por que é que a tua mão está assim? Não foste tu mesma que causaste tais ferimentos?
Pierrette descreveu singelamente a sua luta com a prima Sílvia.
- Faça-a falar - pediu o médico à avó - e preste atenção a tudo. Esperarei a chegada do médico de Paris e depois reunir-nos-emos ao cirurgião-chefe do hospital para uma conferência: tudo isto me parece muito grave. Vou mandar-lhe uma poção calmante que a senhora dará à menina para que ela durma; ela precisa dormir.
Ficando a sós com a neta, a velha bretã fez com que ela lhe revelasse tudo fazendo uso da sua ascendência sobre ela, informando-a de que estava suficientemente rica para os três e prometendo-lhe que Brigaut ficaria com elas. A pobre menina confessou o seu martírio, sem prever o caso que ia criar com isso. As monstruosidades daqueles dois seres sem afeição e destituídos da menor noção de família desvendaram à velha senhora mundos de dor tão estranhos ao seu pensamento como os costumes das raças selvagens o eram aos primeiros viajantes que penetraram nas savanas da América. A chegada da avó, a certeza de ficar daí por diante com ela e de ser rica, adormeceram os pensamentos de Pierrette como a poção lhe adormecera o corpo. A velha bretã ficou a cuidar da neta, beijando-lhe a fronte, os cabelos e as mãos como as santas mulheres devem ter beijado Jesus ao colocá-lo na sepultura.
Às nove da manhã, o Sr. Martener foi à casa do presidente, a quem narrou a cena da noite entre Sílvia e Pierrette, citando as torturas morais e físicas, as sevícias de toda a espécie que os Rogron haviam infligido à pupila e as duas enfermidades mortais que se haviam declarado em consequência desses maus tratos. O presidente mandou chamar o tabelião Auffray, parente de Pierrette pelo lado materno.
Entrementes, a guerra entre o partido Vinet e o partido Tiphaine chegava ao auge. Os comentários que os Rogron e os seus partidários faziam circular em Provins sobre a conhecida ligação da sra. Roguin com o banqueiro Tillet, sobre as circunstâncias da bancarrota do pai da sra. Tiphaine, um falsário, segundo se dizia, atingiram o partido dos Tiphaine tanto mais intensamente porque constituíam uma maledicência e não uma calúnia. Essas ofensas feriam em cheio, atacavam directamente os seus interesses. Tais comentários, transmitidos aos partidários dos Tiphaine pelas mesmas bocas que comunicavam aos Rogron os gracejos da bela sra. Tiphaine e das suas amigas, alimentavam os ódios, até então refreados, do elemento político. As indignações que então causava na França o espírito de partido, cujas violências foram excessivas, ligavam-se, em toda a parte, como em Provins, a interesses ameaçados, a individualidades ofendidas e militantes. Cada uma das facções apegava-se com ardor ao que podia prejudicar a facção rival. A animosidade dos partidos misturava-se, tanto como o amor-próprio, às mesmas questões, que muitas vezes iam muito longe. Uma cidade apaixonava-se por certas lutas e dava-lhes a extensão dum debate político. Assim, o presidente viu na questão entre Pierrette e os Rogron um meio de abater, de desconsiderar, de desonrar os chefes daquele salão onde se elaboravam planos contra a monarquia e onde nascera o jornal da oposição. O procurador do rei foi chamado. O Sr. Lesourd, o Sr. Auffray, tabelião, subtutor de Pierrette, e o presidente examinaram, então, no mais rigoroso sigilo, com o Sr. Martener, as providências a tomar. O Sr. Martener incumbiu-se de dizer à avó de Pierrette que fosse apresentar queixa ao subtutor. O subtutor convocaria o conselho de família e, de posse do parecer de três médicos, requeriria, em primeiro lugar, a destituição do tutor. A questão assim instruída chegaria ao Tribunal e o Sr. Lesourd procuraria dar-lhe um carácter criminal, exigindo uma diligência. Ao meio-dia, Provins inteira estava agitada pela estranha notícia do que se passara durante a noite na casa Rogron. Os gritos de Pierrette haviam sido vagamente ouvidos na praça, mas, haviam durado pouco; ninguém se levantara, apenas uns perguntaram aos outros: "Ouviu barulho e gritos à uma hora?" Que era?" As narrativas e os comentários haviam ampliado tão singularmente esse drama horrível que a multidão se aglomerou diante da oficina de Frappier, a quem todos pediram informações, e o bravo marceneiro descreveu a chegada da pequena à sua casa, com o punho ensanguentado e os dedos quebrados. À uma da tarde, a sege de posta do Dr. Bianchon, ao lado de quem se achava Brigaut, parou diante da casa de Frappier, cuja mulher foi avisar no hospital o Sr. Martener e o cirurgião-chefe. Assim, os falatórios da cidade receberam uma confirmação. Os Rogron foram acusados de maltratar deliberadamente a prima e de a deixar em perigo de morte. A notícia chegou ao conhecimento de Vinet quando este se encontrava no Tribunal; pôs tudo de parte e foi à casa dos Rogron. Rogron e a irmã haviam acabado de almoçar. Sílvia hesitava em contar ao irmão o que acontecera durante a noite e deixava-se acossar por perguntas, às quais respondia apenas por: "- Não tens nada com isso." Ia e vinha da cozinha à sala de jantar para evitar a discussão. Estava só quando Vinet chegou.
- Então, não sabe o que se passa? - perguntou o advogado.
- Não.
- Pelo modo como vão as coisas a respeito de Pierrette, a mademoiselle vai ter de responder a um processo criminal.
- Um processo criminal! - exclamou Rogron, chegando nesse momento. - Porquê? Como?
- Antes de mais nada - pediu o advogado, olhando para Sílvia - descreva-me sem rodeios o que aconteceu esta noite e faça como se estivesse na presença de Deus, pois falam em amputar a mão de Pierrette.
Sílvia ficou lívida e estremeceu.
- Houve mesmo alguma coisa? - perguntou Vinet.
Sílvia descreveu a cena, procurando desculpar-se, mas, instada por perguntas, confessou as graves circunstâncias daquela horrível luta.
- Se a mademoiselle apenas lhe tivesse quebrado os dedos, iria somente para a polícia correccional; mas, se for preciso amputar a mão, pode ir a um tribunal criminal. Os Tiphaine farão tudo para levá-la até lá.
Sílvia, mais morta que viva, confessou o seu ciúme e, o que foi mais cruel de dizer, o quanto as suas suspeitas eram erróneas.
- Que processo! - exclamou Vinet. - A senhora e o seu irmão poderão sucumbir a isto. Serão abandonados por muita gente, mesmo ganhando o processo. Se não triunfarmos, terão de deixar Provins.
- Ah! Meu caro senhor Vinet, o senhor que é tão grande advogado - disse Rogron, assustado -, aconselhe-nos, salve-nos!
O esperto Vinet levou o terror dos dois imbecis ao auge e declarou positivamente que a sra. de Chargeboeuf e a filha hesitariam em voltar a sua casa. Perder a relação dessas duas fidalgas constituiria uma terrível condenação. Enfim, após uma hora de hábeis manobras, chegou-se à conclusão de que, para determinar Vinet a salvar os Rogron, ele devia ter aos olhos de toda a Provins um interesse de maior monta para defendê-los. Assim, durante o serão, o noivado de Rogron com melle. de Chargeboeuf seria anunciado. Os editais seriam publicados no domingo. O contrato seria lavrado imediatamente no cartório de Cournant e melle. Rogron compareceria a ele para, em homenagem ao noivado, entregar, por uma doação entre vivos, a propriedade dos seus bens ao irmão. Vinet mostrara a Rogron e à irmã a necessidade de arranjar um contrato de casamento minutado dois ou três dias antes do facto, a fim de comprometer a sra. de Chargeboeuf e sua filha aos olhos do público e dar-lhes um motivo para continuar a frequentar a casa Rogron.
- Assine o contrato e eu me encarregarei de livrá-lo desse processo - prometeu o advogado. - Será, sem dúvida, uma luta terrível, mas, eu me empenharei a fundo nela e o senhor ainda me ficará a dever uma vela!
- Como não! - exclamou Rogron.
Às onze e meia, o advogado recebeu plenos poderes para lavrar o contrato e acompanhar o processo. Ao meio dia, o presidente foi surpreendido com um recurso intentado por Vinet contra Brigaut e a sra. viúva Lorrain por terem retirado a menor Lorrain do domicílio do tutor. Assim, o ousado Vinet apresentava-se como agressor e colocava Rogron na posição de homem irrepreensível. Falou, nesse mesmo sentido, no Tribunal. O presidente fixou as quatro horas para ouvir as partes. É desnecessário dizer a que ponto a cidadezinha de Provins estava agitada por estes acontecimentos. O presidente sabia que às três horas a conferência dos médicos estaria terminada; ele queria que o subtutor, falando em nome da avó, se apresentasse munido do laudo médico. A notícia do casamento de Rogron com a bela Bathilde de Chargeboeuf e as vantagens que Sílvia concedia no contrato afastaram, subitamente, duas pessoas dos Rogron: melle. Habert e o coronel, pois ambos viram as suas esperanças desfeitas. Celeste Habert e o coronel conservaram-se aparentemente ligados aos Rogron para prejudicá-los com maior segurança. Assim, quando o Sr. Martener comunicou que havia um abcesso na cabeça da pobre vítima dos dois lojistas, Celeste e o coronel falaram no golpe que Pierrette recebera durante o serão em que Sílvia a obrigara a deixar o salão e recordaram as cruéis e bárbaras exclamações de melle. Rogron. Narraram as provas de insensibilidade dadas pela solteirona em relação à sua pupila enferma. Assim, os amigos da casa admitiam faltas graves dando a impressão de defender Sílvia. Vinet previra essa tempestade; a fortuna dos Rogron, porém, ia ser entregue a melle. de Chargeboeuf e ele prometia vê-la habitar, dentro de poucas semanas, a bela casa da praça e imperar com ela em Provins, pois já estava planeando uma fusão com os Breautey no interesse das suas ambições. Do meio-dia às quatro horas, todas as mulheres do partido Tiphaine, as Garceland, as Guépin, as Julliard, Galardon, Guénée, a subprefeita, mandaram pedir notícias da jovem Lorrain. Pierrette ignorava completamente o rumor que se criara na cidade a seu respeito. No meio das suas intensas dores, experimentava uma inefável ventura por se encontrar entre a avó e Brigaut, os alvos da sua afeição. Brigaut tinha constantemente os olhos cheios de lágrimas e a avó acariciava a neta querida. Só Deus sabe se a avó omitiu aos três homens de ciência alguns dos pormenores que obtivera de Pierrette a respeito da sua vida na casa Rogron. Horácio Bianchon exprimiu a sua indignação em termos veementes. Espantado com semelhante selvajaria, exigiu que fossem chamados os demais médicos da cidade, de modo que o Sr. Néraud teve de comparacer e foi convidado, como amigo de Rogron, a contradizer, se houvesse motivo, as terríveis conclusões da conferência que, infelizmente para os Rogron, foram adoptadas por unanimidade. Néraud, que já era acusado de ter feito morrer de desgosto a avó de Pierrette, estava numa má situação, de que se aproveitou o esperto Martener, encantado por abater os Rogron e comprometer no caso o Sr. Néraud, seu antagonista. É desnecessário transcrever o texto das conclusões da conferência, que também constituiu uma das peças do processo. Se os termos da medicina de Molière eram bárbaros, os da medicina moderna têm a vantagem de ser tão claros que a descrição da doença de Pierrette, embora natural e desgraçadamente comum, assustaria os ouvidos. A conferência era, por outro lado, peremptória, por ser apoiada por um nome tão famoso como o de Horácio Bianchon. Após a audiência, o presidente permaneceu no seu posto, vendo a avó de Pierrete acompanhada do Sr. Auffray, de Brigaut e duma verdadeira multidão. Vinet estava só. Este contraste impressionou o auditório, que foi engrossado por grande número de curiosos. Vinet, que conservava a beca, ergueu para o presidente o rosto frio, fixou os óculos sobre os olhos verdes e depois, com a sua voz fina e persistente, declarou que estranhos se haviam introduzido à noite na casa dos Rogron e haviam raptado de lá a menor Lorrain. a razão devia estar com o tutor, que reclamava a pupila. O Sr. Auffray levantou-se, na qualidade de subtutor, e pediu a palavra.
- Se o senhor presidente - declarou - quiser tomar conhecimento do parecer emanado dum dos mais eminentes médicos de Paris e de todos os médicos e cirurgiões de Provins, compreenderá quanto a reclamação do senhor Rogron é insensata e que graves motivos compeliram a avó da menor a arrancá-la imediatamente dos seus algozes. Eis o facto. Uma conferência médica, que reuniu a unanimidade de opinião dum ilustre médico de Paris, chamado com urgência, e de todos os médicos da cidade, atribui o estado quase mortal em que se encontra a menor aos maus tratos que recebeu do senhor e de mademoiselle Rogron. Pelo direito, o conselho de família será convocado dentro do mais curto prazo e consultado sobre a questão de saber se o tutor deve ser destituído da tutela. Requeremos que a menor não volte ao domicílio do tutor e seja confiada ao membro da família que o senhor presidente designar.
Vinet quis replicar dizendo que a acta da conferência lhe devia ser dada a conhecer, a fim de contradizê-la.
- Não à parte do senhor Vinet - disse severamente o presidente - mas, talvez, ao senhor procurador do rei. Está encerrada a discussão.
O presidente lavrou à margem do requerimento a sentença seguinte:
"Considerando que, duma conferência médica unanimemente aprovada pelos médicos desta cidade e pelo Dr. Bianchon, doutor da Faculdade de Medicina de Paris, resulta que a menor Lorrain, reclamada pelo Sr. Rogron, seu tutor, se encontra num estado de saúde extremamente grave, causado por maus tratos e sevícias a ela infligidos no domicílio do tutor pela irmã deste,
"nós, presidente do Tribunal de Primeira Instância de Provins,
"decidindo sobre o requerimento, ordenamos que, até à deliberação do conselho de família, o qual, atendendo ao requerimento do subtutor, será convocado, a menor não voltará ao domicílio pupilar e será transferida para a casa do subtutor.
"Subsidiariamente, tendo em vista o estado em que se encontra a menor e os sinais de violência que, conforme a conferência dos médicos, existem na sua pessoa, designamos o médico-chefe e o cirurgião-chefe do hospital de Provins, para tratá-la; e, no caso de serem confirmadas as suspeitas de sevícias, reservamo-nos a acção que ao Ministério Público cabe no caso, sem prejuízo da acção civil promovida pelo Sr. Auffray, subtutor."
Esta terrível sentença foi pronunciada pelo Presidente Tiphaine em voz alta e clara.
- E por que não as galés duma vez? - perguntou Vinet. - Todo esse barulho por causa de uma menina que mantinha um namoro com um aprendiz de marceneiro! Se a questão prosseguir deste modo - acrescentou, insolentemente - requeremos outros juízes devido a suspeição legítima.
Vinet deixou o Tribunal e foi à casa dos principais elementos do seu partido expor a situação de Rogron, que nunca dera um piparote sequer na prima e em quem o Tribunal via - disse - menos o tutor de Pierrette que o grande eleitor de Provins. Segundo ele, os Tiphaine estavam a fazer muito barulho por nada. A montanha daria à luz um ratinho. Sílvia, moça eminentemente sensata e religiosa, descobrira um namoro entre a pupila do seu irmão e um operariozinho marceneiro, um bretão chamado Brigaut. Esse patife sabia muito bem que a menina ia receber uma fortuna da avó e queria suborná-la... Vinet ousava falar em suborno!... melle. Rogron, que possuía cartas nas quais se manifestava a perversidade da menina, não era tão censurável como os Tiphaine pretendiam. E no caso de ela se ter permitido uma violência para obter uma carta, o que se explicava, aliás, pela indignação que a teimosa bretã causava a Sílvia, que culpa tinha Rogron?
O advogado fez, pois, do processo, uma questão partidária e soube dar-lhe uma cor política. Assim, daquela tarde em diante, houve divergências na opinião pública.
- Antes de julgar devem ouvir-se as duas partes - afirmavam os que queriam parecer sensatos. - Já ouviram o que diz Vinet? Vinet explica muito bem as coisas.
A casa de Frappier fora julgada inabitável para Pierrette, devido às dores de cabeça que lhe causaria o barulho. Transferi-la para a casa do subtutor era tão necessário sob o ponto de vista médico como sob o ponto de vista judiciário. O transporte fez-se com precauções inauditas e calculadas de modo a produzir grande efeito. Pierrette foi colocada numa maca forrada de almofadas, carregada por dois homens, acompanhada duma irmã de caridade que levava um frasco de éter e seguida da avó, Brigaut, a sra. Auffray e a sua criada. Muita gente chegou às janelas e portas para ver passar o cortejo. Realmente, o estado em que se encontrava Pierrette, a sua palidez de moribunda, tudo isso dava imensas vantagens aos antagonistas dos Rogron. Os Auffray empenharam-se em provar a toda a cidade o acerto da sentença do presidente. Pierrette e avó foram instaladas no segundo andar da casa do Sr. Auffray. O tabelião e a esposa prodigalizaram-lhe os cuidados da mais ampla hospitalidade; puseram, mesmo, ostentação nisso. Pierrette teve a avó como enfermeira e naquela mesma noite o Sr. Martener foi visitá-la, em companhia do cirurgião.
Começaram, então, os exageros de ambas as partes. Naquela noite, o salão dos Rogron ficou repleto. Vinet trabalhou o partido liberal para isso. As duas sras. de Chargeboeuf jantaram na casa dos Rogron, pois o contrato devia ser assinado naquela noite. Pela manhã, Vinet mandara afixar os editais na administração municipal. Referiu-se ao processo relativo a Pierrette como uma coisa sem importância. Se o Tribunal de Provins o julgasse apaixonadamente, a corte real saberia apreciar os factos - dizia - e os Auffray reflectiriam bastante antes de se lançarem a uma questão dessas. A aliança de Rogron com os Chargeboeuf constituiu uma enorme prova de consideração aos olhos de certa gente. Para tais pessoas, os Rogron eram alvos como a neve e Pierrette era uma menina terrivelmente perversa, uma serpente reanimada no seu seio. No salão da sra. Tiphaine, vingavam-se das horríveis maledicências que o partido Vinet vinha a espalhar há dois anos: os Rogron eram monstros e o tutor seria chamado ao Tribunal. Para os que moravam na praça, Pierrette ia maravilhosamente bem de saúde; para os da cidade alta, morreria infalivelmente; na casa Rogron, ela tinha arranhões no pulso; na da sra. Tiphaine, tinha os dedos quebrados e iam amputar um. No dia seguinte, o Correio de Provins continha um artigo extremamente manhoso, bem escrito, uma obra-prima de insinuações misturadas a considerações jurídicas e que punha Rogron inteiramente fora da questão. A Colmeia, que só aparecia dois dias mais tarde, não podia responder sem cair na difamação; a isso replicou-se que, em semelhante processo, o melhor seria confiar a sua marcha à Justiça.
O conselho de família foi constituído pelo juiz de paz do distrito de Provins, presidente legal, e teve como membros principais Rogron e os dois Auffray, que eram os parentes mais próximos; além desses, figuravam o Sr. Ciprey, sobrinho da avó materna de Pierrette, o Sr. Habert, confessor de Pierrette e o coronel Gouraud, que sempre se declarara camarada do coronel Lorrain. Foi muito aplaudida a imparcialidade do juiz de paz, que incluiu no conselho de família o Sr. Habert e o coronel Gouraud, que Provins inteira julgava muito amigos dos Rogron. Na grave circunstância em que se encontrava, Rogron requereu a assistência de Vinet ao conselho de família. Por essa manobra, evidentemente sugerida por Vinet, Rogron conseguiu que o conselho de família não se reunisse antes do fim de Dezembro. Nessa época, o presidente e a esposa transferiram-se para Paris, instalando-se na casa da sra. Roguin, devido à convocação das Câmaras. Assim o partido ministerial ficou privado do seu chefe. Vinet já subornara secretamente Desfondrilles, juiz de instrução, para o caso de o processo assumir o carácter correccional ou criminal que o presidente lhe tentara dar. Vinet discutiu a questão durante três horas diante do conselho de família: afirmou que havia um namoro entre Brigaut e Pierrette, a fim de justificar as severidades de melle. Rogron; demonstrou o acerto com que agira o tutor, confiando a pupila aos cuidados duma mulher; sustentou a não participação do seu constituinte na maneira pela qual a educação de Pierrette era entendida por Sílvia. Apesar dos esforços de Vinet, o conselho opinou unanimemente pela retirada da tutela de Rogron. Foi designado tutor o Sr. Auffray e o Sr. Ciprey, subtutor. O conselho de família ouviu Adélia, a criada, que acusou os antigos patrões; melle. Habert, que citou as palavras crueis pronunciadas por melle. Rogron na noite em que Pierrette sofrera aquele golpe terrível que todos ouviram e a observação feita sobre a saúde de Pierrette pela sra. de Chargeboeuf. Brigaut exibiu a carta que recebera de Pierrette e que provava a sua mútua inocência. Ficou demonstrado que o estado deplorável em que se encontrava a menor provinha da falta de cuidados por parte do tutor, responsável por tudo quanto dizia respeito à sua pupila. A enfermidade de Pierrette impressionara a todos, mesmo às pessoas da cidade estranhas à família. A acusação de sevícias foi, pois, mantida contra Rogron. O caso ia tornar-se público.
Aconselhado por Vinet, Rogron contestou a homologação da deliberação do conselho de família pelo Tribunal. O Ministério Público interveio, tendo em vista a crescente gravidade do estado patológico em que se encontrava Pierrette Lorrain. O curioso processo, embora incluído imediatamente na lista dos julgamentos, só teve andamento no mês de Agosto de 1823.
Nessa época, o casamento de Rogron com melle. de Chargeboeuf já fora celebrado. Sílvia morava no segundo andar da sua casa, onde haviam sido feitas reformas para a sua instalação e a da sra. de Chargeboeuf, pois o primeiro andar ficou inteiramente ocupado pela sra. Rogron. A bela sra. Rogron sucedeu, daí por diante, à bela sra. Tiphaine. A influência desse casamento foi enorme. As visitas não iam mais ao salão de melle. Sílvia, mas sim à casa da bela sra. Rogron.
Auxiliado pela sogra e apoiado pelos banqueiros realistas Tillet e Nucingen, o presidente Tiphaine teve ocasião de prestar serviços no Ministério; foi um dos oradores mais estimados do centro, tornou-se juiz do Tribunal de primeira instância do Sena e fez nomearem o sobrinho, Lesourd, presidente do Tribunal de Provins. Esta nomeação magoou muito o juiz Desfondrilles, arqueólogo como sempre e substituto mais do que nunca. O ministro da Justiça mandou um dos seus protegidos para o lugar de Lesourd. A promoção do Sr. Tiphaine, portanto, não determinou promoção alguma no Tribunal de Provins. Vinet explorou muito habilmente essas circunstâncias. Ele sempre dissera à gente de Provins que ela estava a servir de trampolim para as vaidades da astuta sra. Tiphaine. O presidente estava a enganar os amigos. A sra. Tiphaine desprezava in petto a cidade de Provins e não voltaria mais para lá. O Sr. Tiphaine pai morreu; o seu filho herdou a propriedade do Fay e vendeu a sua bela casa da cidade alta ao Sr. Julliard. Vinet ficou com a razão, Vinet profetizara. Estes factos tiveram grande influência sobre o processo relativo à tutela de Rogron.
Assim, o pavoroso martírio infligido a Pierrette por dois imbecis tiranos e que, nas suas consequências médicas, levara o Sr. Martener, com a aprovação do Dr. Bianchon, a indicar a terrível operação de trepanação; esse drama pavoroso, reduzido às proporções judiciárias, caía no lodaçal imundo que no Tribunal se chama a forma. O processo demorava-se em prorrogações, no emaranhado inextricável dos autos, retardado pelo circunlóquio dum advogado rancoroso, enquanto Pierrette, caluniada, definhava e sofria as mais espantosas dores conhecidas em Medicina. Não será necessário descrever essas estranhas reviravoltas da opinião pública e a marcha lenta da Justiça, antes de voltar ao quarto onde ela vivia, ou melhor, morria?
O JULGAMENTO
O Sr. Martener, do mesmo modo que a família Auffray, ficou, em poucos dias, encantado com o adorável carácter de Pierrette e pela velha bretã, cujos sentimentos, ideias e atitudes tinham o cunho duma antiga distinção romana. A matrona do Marais assemelhava-se a uma mulher de Plutarco (59) [(59) Historiador e moralista grego, autor de Vida dos Homens ilustres da Grécia e de Roma, em que exalta exemplos de grandeza moral]. O médico quis disputar aquela presa à morte, pois desde o primeiro dia, o médico de Paris e o médico da província desenganaram Pierrette. Travou-se entre a doença e o médico, auxiliado pela mocidade de Pierrette, um desses combates que só os médicos conhecem, e cuja recompensa, em caso de êxito, nunca está no preço venal dos cuidados nem no doente: ela consiste na doce satisfação da consciência e numa certa palma ideal e invisível recolhida pelos verdadeiros artistas após o contentamento que lhes causa a certeza de haver realizado uma bela obra. O médico vive para o bem, como o artista vive para o belo, impelido por um admirável sentimento que denominamos virtude. Este combate de todos os dias extinguira no homem da província as mesquinhas irritações da luta travada entre o partido Vinet e o partido dos Tiphaine, tal como sucede aos homens que se encontram face a face com uma grande miséria a vencer.
O Sr. Martener começara a querer exercer a sua profissão em Paris; mas a tremenda actividade dessa cidade, a insensibilidade que o número espantoso de doentes e a multiplicidade dos casos graves conferem ao médico, haviam amedrontado a sua alma delicada e feita para a vida da província. Achava-se, além disso, preso à sua bela terra natal. Assim, voltou para Provins a fim de casar-se, instalar-se ali e cuidar quase afectuosamente duma população que podia considerar como uma grande família. Durante todo o tempo em que Pierrette esteve doente, ele procurou não falar na sua paciente. A sua repugnância de responder quando alguém lhe pedia notícias da pobrezinha era tão visível que cessaram de interrogá-lo a esse respeito. Pierrette foi para ele justamente o que devia ser, um desses poemas misteriosos e profundos, ricos em dores, que se encontram na atribulada existência dos médicos. Sentia pela delicada menina uma admiração que não quis revelar a ninguém.
Essa afeição do médico pela enferma comunicara-se, como todos os sentimentos sinceros, ao Sr. e à Sra. Auffray, cuja casa se tornou calma e silenciosa enquanto Pierrette permaneceu nela. As crianças, que outrora se haviam divertido com Pierrette em tão agradáveis brinquedos, empenharam-se, com a graça da infância, em não ser barulhentas nem importunas. Fizeram questão de comportar-se bem porque Pierrette estava doente.
A casa do Sr. Auffray fica na cidade alta, abaixo das ruínas do castelo, construída numa das bordas de terreno produzidas pela demolição das antigas muralhas. De lá, os moradores avistam o vale ao passear por um pequeno pomar cercado de grossos muros, dos quais se vê a cidade lá em baixo. Os telhados das outras casas chegam ao cordão externo do muro que sustenta o pomar. Ao longo do terraço há uma alameda que leva à porta-janela do gabinete do Sr. Auffray. Na sua extremidade erguem-se um caramanchão de videira e uma figueira, sob as quais há uma mesa redonda, um banco e cadeiras pintadas de verde. Deram a Pierrette um quarto em cima do gabinete do novo tutor. A sra. Lorrain ficou numa cama-de-vento ao lado da neta. Da sua janela, Pierrette podia, pois, contemplar o magnífico vale dos Provins, que ela mal conhecia: saíra tão raramente de casa dos Rogron! Nos dias bonitos, ela gostava de arrastar-se pelo braço da avó até ao caramanchão. Brigaut, que não fazia mais nada, ia visitar a amiguinha três vezes por dia; consumia-se numa dor que o tornava surdo à vida; espreitava com a sagacidade dum cão de caça o Sr. Martener, acompanhava-o sempre e saía com ele. É difícil imaginar as loucuras que cada um fazia pela querida doentinha. Ébria de dor, a avó ocultava o seu desespero; mostrava à neta a fisionomia risonha que tinha em Pen-Hoël. No seu desejo de iludir-se, vestia-a e punha-lhe a touca nacional com que Pierrette chegara a Provins. A jovem doente parecia-lhe, assim, assemelhar-se mais a si mesma: era delicioso vê-la com o rosto emoldurado dessa auréola de cambraia de linho, guarnecida de renda engomada. O rosto, alvo da alvura da porcelana, a fronte, a que o sofrimento imprimia uma aparência de profunda reflexão, a pureza das feições emagrecidas pela doença, a calma do olhar e a fixidez momentânea dos olhos, tudo fazia de Pierrette uma admirável obra-prima de melancolia. Serviam-na com uma espécie de fanatismo. Achavam-na tão meiga, tão terna e tão carinhosa! A sra. Martener mandara o seu piano para a casa da irmã, a sra. Auffray, com a intenção de divertir Pierrette, a quem a música causou arrebatamentos. Era um verdadeiro poema vê-la escutar um trecho de Weber, de Beethoven ou de Hérold, com os olhos voltados para cima, silenciosa e lastimando, sem dúvida, a vida que sentia fugir-lhe. O padre Péroux e o Sr. Habert, os seus dois consoladores religiosos, admiraram a sua piedosa resignação. Não constitui um facto notável e igualmente digno da atenção dos filósofos e dos indiferentes a perfeição seráfica das jovens e dos jovens assinalados pela morte no meio da multidão, como árvores novas numa floresta? Quem já viu um desses mortos sublimes não pode permanecer ou tornar-se descrente. Esses seres exalam um perfume celeste, os seus olhares falam de Deus, a sua voz é eloquente nas frases mais singelas e soa, muitas vezes, como um instrumento divino, exprimindo os segredos do futuro! Quando o Sr. Martener felicitava Pierrette por ter cumprido alguma prescrição difícil, aquele anjo dizia, em presença de todos (e com que olhares!):
- Desejo viver, meu caro senhor Martener, menos por mim que por minha avó, por meu Brigaut e por vós todos, a quem a minha morte afligiria.
Na primeira vez que saiu a passear, no mês de Novembro, aproveitando o belo sol do dia de São Martinho, acompanhada de todos os da casa, a sra. Auffray perguntou-lhe se estava cansada, e ela respondeu:
- Agora que não tenho mais que suportar outros sofrimentos além dos enviados por Deus, posso resistir. Na ventura de ser amada encontro forças para sofrer.
Essa foi a única vez que, de modo indirecto, ela se referiu ao seu horrível martírio na casa dos Rogron, de quem não falou mais, e a sua recordação devia ser-lhe tão penosa que ninguém falava neles.
- Querida senhora Auffray, - disse uma vez, ao meio-dia, no terraço, enquanto contemplava o vale iluminado por um lindo sol e adornado pelos encantadores tons dourados do Outono -, a minha agonia em sua casa ter-me-á proporcionado mais felicidades que estes três últimos anos.
A sra. Auffray olhou para a irmã e a sra. Martener segredou-lhe ao ouvido:
- De quanto amor é ela capaz!
Com efeito, a inflexão da voz e o olhar de Pierrette davam às suas palavras um incalculável valor.
O Sr. Martener correspondia-se com o Dr. Bianchon e não tentava nada de importância sem a sua aprovação. Esperava, em primeiro lugar, controlar a evolução natural da doença e depois drenar o abcesso da cabeça pelo ouvido. Quanto mais intensas eram as dores de Pierrette, mais esperanças ele concebia. Conseguiu leves êxitos na primeira parte e isso constituiu um grande triunfo. Durante alguns dias o apetite de Pierrette voltou e satisfez-se com alimentos substanciais para os quais a doença lhe dera até então uma repugnância característica; a cor do rosto transformou-se; as condições da cabeça, porém, eram horríveis. Diante disso, o doutor chamou o grande médico que era seu conselheiro. Bianchon foi a Provins, permaneceu lá dois dias e indicou uma operação. Secundou todas as solicitudes do pobre Martener e foi pessoalmente buscar o famoso Desplein (60) [(60) Personagem inventada por Balzac; mestre de Bianchon. Conhecemo-lo em A Missa do Ateu]. Deste modo, a operação foi efectuada pelo maior cirurgião dos tempos antigos e modernos; o terrível arúspice, porém, declarou a Martener, quando saía com Bianchon, seu discípulo predilecto:
- Só por um milagre poderão salvá-la. Como Horácio já lhe disse, a cárie já tomou conta dos ossos. Nessa idade, os ossos são muito delicados!
A operação foi efectuada no começo de Março de 1828. Durante todo o mês, o Sr. Martener, atemorizado com as dores pavorosas que Pierrette sofria, fez várias viagens a Paris. Lá, ele conferenciava com Desplein e Bianchon, aos quais chegou a propor uma operação do género da litotrícia e que consistia em introduzir na cabeça um instrumento oco por meio do qual procurariam aplicar um remédio heróico para deter os progressos da cárie. O audacioso Desplein não ousou tentar esse atrevido recurso cirúrgico que o desespero inspirara a Martener. Por isso, ao voltar da sua última viagem a Paris, o médico pareceu aos amigos triste e desanimado. Viu-se obrigado a anunciar, numa noite fatal, à família Auffray, à sra. Lorrain, ao confessor e a Brigaut reunidos, que a ciência não podia fazer mais nada por Pierrette, cuja salvação estava somente nas mãos de Deus. A consternação foi horrível. A avó fez uma promessa e pediu ao padre que celebrasse todos os dias, pela madrugada, antes de Pierrette se levantar, uma missa, a que ela e Brigaut assistiriam.
O processo estava em andamento. Enquanto a vítima dos Rogron estava a morrer, Vinet caluniava-a no Tribunal. O Tribunal homologou a deliberação do conselho de família e o advogado interpôs imediatamente recurso. O novo procurador do rei fez uma exposição dos motivos que determinaram uma diligência. Rogron e a irmã viram-se obrigados a dar uma caução para não serem presos. A diligência exigia um interrogatório de Pierrette. Quando o Sr. Desfondrilles foi à casa dos Auffray, Pierrette estava a agonizar: tinha o confessor à cabeceira do leito e ia receber os sacramentos. Justamente nesse momento, ela suplicava à família reunida que perdoasse ao primo e à prima como ela própria os perdoava, dizendo, com admirável bom-senso, que o julgamento dessas coisas competia somente a Deus.
- Avó - suplicou Pierrette -, deixa todos os teus bens a Brigaut. (Brigaut chorava.) - E dá mil francos a essa boa Adélia, que me aquecia a minha cama às escondidas. Se ela tivesse ficado na casa dos meus primos, eu não morreria...
Foi às três horas, na terça-feira da Páscoa, num dia explêndido, que o anjinho deixou de sofrer. A sua heróica avó quis velar-lhe o corpo durante a noite, com os padres, e cosê-la com as suas velhas mãos ásperas na mortalha. À noite, Brigaut saiu da casa dos Auffray e desceu à dos Frappier.
- Não preciso pedir-te notícias, meu pobre rapaz - disse-lhe o marceneiro.
- Sim, tio Frappier, tudo está acabado para ela, mas não para mim.
O operário examinou com um olhar, ao mesmo tempo sombrio e perspicaz, todas as madeiras da oficina.
- Compreendo-te, Brigaut - acrescentou o bom Frappier. - Aqui tens o que precisas.
E mostrou-lhe umas tábuas de carvalho de duas polegadas.
- Não me ajude, senhor Frappier - suplicou o bretão. - Quero fazer tudo sozinho.
Brigaut passou a noite inteira a aplainar e a ajustar as tábuas do caixão de Pierrette e mais de uma vez arrancou com um só golpe de plaina uma fita de madeira humedecida com as suas lágrimas. O bom Frappier fumava enquanto observava o seu trabalho. Dirigiu-lhe apenas duas palavras, quando o seu primeiro oficial reuniu as quatro partes do caixão:
- Faze a tampa corrediça; assim, os seus pobres parentes não ouvirão pregá-lo.
Pela madrugada, Brigaut foi buscar o chumbo necessário para forrar o caixão. Por um acaso extraordinário, as folhas de chumbo custaram exactamente a quantia que ele dera a Pierrette para a sua viagem de Nantes a Provins. O corajoso bretão, que resistira à dor de fazer com as suas próprias mãos o caixão da sua querida companheira de infância, ao ver acrescentado às folhas fúnebres o peso das suas recordações, não pôde suportar essa sobrecarga: desfaleceu e não pôde carregar o chumbo. O chumbador ajudou-o, oferecendo-se para acompanhá-lo, a fim de soldar a quarta folha, uma vez que o corpo seria envolvido em mortalha. O bretão queimou a plaina e toda a ferramenta de que se servira; fez as contas com Frappier e despediu-se. O heroísmo com que o pobre rapaz se ocupava, com a avó, em prestar os últimos serviços a Pierrette fez com que ele interviesse na cena suprema que coroou a tirania dos Rogron.
Brigaut e o chumbador chegaram bem a tempo à casa do Sr. Auffray para resolver pela força bruta uma infame e horrível questão judiciária. A câmara mortuária, cheia de gente, ofereceu aos dois operários um espectáculo singular. Os Rogron haviam-se erguido, hediondos, junto ao cadáver da vítima, para torturá-la mesmo depois da morte. O corpo sublime de beleza da pobre menina jazia na cama-de-vento da avó. Pierrette tinha os olhos fechados, os cabelos em bandós, o corpo envolto numa grossa fazenda de algodão.
Ajoelhada diante do leito, com os cabelos em desalinho, as mãos estendidas, o rosto afogueado, a velha Lorrain gritava:
- Não, não, não farão isso!
Ao pé do leito estavam o tutor, Sr. Auffray, o padre Péroux e o Sr. Habert. Os círios ainda ardiam.
Diante da avó estavam o cirurgião do hospital e o Sr. Néraud, acompanhados do pavoroso e melífluo Vinet. Havia também um oficial de justiça. O cirurgião do hospital estava metido no seu avental de dissecção. Um dos auxiliares abrira a sua maleta e entregava-lhe, naquele momento, um bisturi.
Esta cena foi perturbada pelo ruído do caixão, que Brigaut e o chumbador deixaram cair. Brigaut, que chegou na frente, ficou apavorado com o aspecto da velha Lorrain, que chorava.
- Que há por aqui? - perguntou Brigaut, colocando-se ao lado da avó e empunhando convulsivamente um formão que trazia na mão.
- Há - esclareceu a velha - há, Brigaut, que eles querem abrir o corpo da minha filha, partir-lhe a cabeça, cortar-lhe o coração depois da morte como fizeram enquanto viva.
- Quem? - perguntou Brigaut, com uma voz capaz de romper os tímpanos dos oficiais da Justiça.
- Os Rogron.
- Pelo santo nome de Deus!...
- Um momento, Brigaut - pediu o Sr. Auffray, ao ver o bretão a brandir o formão.
- Senhor Auffray - replicou Brigaut, tão pálido como a jovem morta - atendo-o porque é o senhor Auffray; mas, neste momento, eu não atenderia nem...
- A Justiça - exclamou Auffray.
- Será que existe uma Justiça? - perguntou o bretão. - A Justiça está aqui! - gritou, ameaçando o advogado, o cirurgião e o oficial da Justiça com o formão que brilhava ao sol.
- Meu amigo - interveio o padre -, a Justiça foi invocada pelo advogado do senhor Rogron, que se acha sob o peso duma grave acusação. Não se pode recusar a um inculpado os meios de defesa. Segundo o advogado do senhor Rogron, se a pobre menina sucumbiu devido ao abcesso da cabeça, o seu antigo tutor não será incomodado, pois está provado que Pierrette ocultou durante muito tempo o golpe que sofrera...
- Basta! - ordenou Brigaut.
- O meu cliente... - começou Vinet.
- O teu cliente - replicou o bretão - irá para o inferno e eu para o cadafalso, pois se alguém de vós se atrever a tocar naquela que o teu cliente matou e se aquele cirurgião não guardar os ferros, eu mato-o.
- Há rebelião - disse Vinet. - Vamos informar disso o juiz.
Os cinco estranhos retiraram-se.
- Oh! meu filho! - suplicou a velha, erguendo-se e atirando-se ao pescoço de Brigaut. - Vamos enterrá-la em seguida. Eles voltarão!...
- Uma vez chumbado o caixão - opinou o chumbador - eles talvez não se atrevam mais.
O Sr. Auffray correu à casa do cunhado, Sr. Lesourd, para tratar de resolver o caso. Vinet não queria outra coisa. Com a morte de Pierrette, o processo relativo à tutela, que ainda não fora julgado, estava extinto sem que ninguém pudesse arguir a favor ou contra Rogron: a questão ficava indecisa. O esperto Vinet previra muito bem o efeito que o seu requerimento ia causar.
Ao meio-dia, o Sr. Desfondrilles fez a sua comunicação ao Tribunal sobre a diligência relativa a Rogron e o Tribunal baixou uma sentença de improcedência perfeitamente fundamentada.
Rogron não se animou a acompanhar o enterro de Pierrette, a que toda a cidade assistiu. Vinet quisera obrigá-lo a comparecer, mas o antigo comerciante ficou com receio de provocar uma indignação geral.
Brigaud deixou Provins após ter visto fechar a cova em que Pierrette foi enterrada e dirigiu-se a pé para Paris. Redigiu uma petição à Delfina (61) [(61) Maria Teresa, esposa do Duque de Angoulême, filho de Carlos X] para, em consideração pelo nome do seu pai, ingressar na guarda-real, onde foi imediatamente admitido. Quando se realizou a expedição a Argel, escreveu novamente à Delfina a pedir para participar da mesma. Era, então, sargento; o marechal Bourmont (62) [(62) General de Napoleão; ministro da Guerra em 1929; comandante da expedição de Argel] nomeou-o subtenente das forças combatentes. O filho do major conduziu-se como quem quisesse morrer. A morte, porém, tem respeitado até agora Jacques Brigaut, que se tem distinguido em todas as expedições recentes sem receber um só ferimento. Actualmente é comandante de batalhão no activo. Não há nenhum oficial melhor e mais taciturno do que ele. Fora do serviço, conserva-se silencioso, passeia sozinho e vive mecanicamente. Todos adivinham e respeitam uma dor secreta. Possui quarenta e seis mil francos que lhe foram legados pela velha sra. Lorrain, morta em Paris em 1829.
Nas eleições de 1830, Vinet foi eleito deputado. Os serviços que prestou ao novo governo valeram-lhe o lugar de procurador-geral. Actualmente a sua influência é tamanha que continuará a ser eleito deputado. Rogron é recebedor-geral na mesma cidade em que Vinet exerce as suas funções e, por um acaso surpreendente, o Sr. Tiphaine é o primeiro presidente da Corte Real, pois o justiceiro aderiu sem hesitação à dinastia de Julho. A ex-bela sra. Tiphaine vive em boa harmonia com a bela sra. Rogron. Vinet mantém as melhores relações com o presidente Tiphaine.
Quanto ao imbecil Rogron, diz frases como esta:
- Luís Filipe não será verdadeiramente rei enquanto não puder fazer nobres.
Esta frase, evidentemente, não é sua. A sua precária saúde dá à sra. Rogron esperanças de poder casar-se dentro em breve com o general marquês de Montriveau (63) [(63) Este casamento não se realizará. O Marquês de Montriveau é protagonista de A Duguesa de Langeais, cuja acção, porém, é anterior à de Pierrette], par da França, que governa o departamento e lhe dedica muitas atenções. Vinet limita-se a exigir cabeças; nunca acredita na inocência dum acusado. Esse procurador-geral de puro sangue é considerado um dos homens mais amáveis do organismo judiciário e obtem tanto êxito em Paris como na Câmara; na Corte, é um delicioso cortesão.
Conforme a promessa de Vinet, o general barão Gouraud, esse nobre sobrevivente dos nossos gloriosos exércitos, desposou uma melle. Matifat, de vinte e cinco anos de idade, filha dum droguista da Rua dos Lombardos, cujo dote era de cinquenta mil escudos. Governa, como Vinet profetizara, um departamento vizinho de Paris. Foi nomeado par da França graças à sua conduta nas revoltas surgidas durante o ministério Casimir Périer. O barão Gouraud foi um dos generais que tomaram a igreja Saint-Merri (64) [(64) Em 5 de Junho de 1832, por ocasião do enterro do General Lamarque, irrompeu uma tentativa de revolução republicana, sufocada em dois dias. Os revoltosos defenderam com grande heroísmo o seu último reduto, a igreja de Saint-Merri], satisfeitíssimo por esbordoar os paisanos que o haviam humilhado durante quinze anos e o seu ardor foi recompensado com a grande fita da Legião de Honra.
Nenhum dos personagens ligados à morte de Pierrette conserva o mínimo remorso. O Sr. Desfondrilles continua arqueólogo, mas, no interesse da sua eleição, o procurador Vinet teve o cuidado de nomeá-lo presidente do Tribunal. Sílvia tem um pequeno círculo de amigos e administra os bens do irmão. Empresta dinheiro a juros altos e não gasta nem mil e duzentos francos por ano.
De vez em quando, na praça, quando um filho de Provins volta de Paris para instalar-se lá, e sai da casa de melle. Rogron, um antigo partidário dos Tiphaine diz:
- Os Rogron tiveram, há tempo, uma triste questão por causa duma pupila...
- Foi uma questão política - responde o presidente Desfondrilles. - Quiseram atribuir-lhes monstruosidades. Por pura bondade, eles recolheram em casa uma tal Pierrette, menina muito fraca e pobre. Em plena adolescência, ela teve um namoro com um aprendiz de marceneiro; ela ia, descalça, à janela, para falar com o rapaz, que ficava ali - está a ver? Os dois namorados trocavam cartas de amor por meio dum cordão. O senhor compreende que no período que estava a atravessar, nos meses de Outubro e Novembro, era só o que faltava para fazer adoecer uma menina débil. Os Rogron conduziram-se admiravelmente bem; não reclamaram a sua parte na herança da menina, deixaram tudo para a avó dela. A moral deste facto, meus amigos, é que o diabo sempre nos pune pelos benefícios que praticamos.
- Ah! Mas, isto é muito diferente. O tio Frappier contou-me a história de modo completamente diverso.
- O tio Frappier consulta mais a sua adega que a sua memória - disse então um frequentador do salão de melle. Rogron.
- Mas, o velho senhor Habert...
- Ora! Ele! Conhece a história dele?
- Não.
- Pois bem. Ele pretendia que a sua irmã casasse com o senhor Rogron, o recebedor-geral.
Dois homens pensam diariamente em Pierrette: o médico Martener e o major Brigaut, os únicos que conhecem a espantosa verdade.
Para dar a isto imensas proporções, basta relembrar que, transportando a cena à Idade Média, em Roma, neste vasto teatro, uma sublime donzela, Beatriz Cenci (65) [(65) Moça de ilustre família romana; foi torturada e executada por ter, com auxílio da madrasta e do irmão, assassinado o próprio pai, que abusara dela. Segundo certas versões, ela não teve nenhuma parte no assassínio. A sua sorte mereceu a compaixão do povo de Roma e inspirou vários artistas, entre eles Guido Reni], foi conduzida ao suplício por motivos e por intrigas quase análogas às que levaram Pierrette ao túmulo. Beatriz Cenci teve como único defensor um artista, um pintor. Hoje, a História e os vivos, baseados no retrato de Guido Reni, condenam o Papa e fazem de Beatriz uma das mais patéticas vítimas das paixões infames e das facções.
Convenhamos, aqui entre nós, que a legalidade seria uma bela coisa para as patifarias sociais, se Deus não existisse.
Honoré de Balzac
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