Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PIXOTE / José Louzeiro
PIXOTE / José Louzeiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

P I X O T E

A Lei do Mais Forte

 

Mais pessoas são assassinadas por ano, no Brasil, do que o número total de perdas norte-americanas na Guerra do Vietnã. A eliminação brutal de vidas humanas nas grandes cidades do país tornou-se tão corriqueira, tão banal que é comum verse nos jornais fotografias de "presuntos”(que é o indecoroso apelido que policiais e mal-feitores dão a cadáveres que semeiam a esmo pelos terrenos baldios) servindo como balisas de improvisadas campos de futebol, onde sorridentes garotos só lhes prestam alguma atenção quando vão apanhar bolas extraviadas...

As favelas cariocas e as vilas-miséria que a cada ano alargam mais os degradantes cinturões de Bangladesh exibidos pelas metrópoles nacionais constituem, pela compreensível tensão permanente em que vivem seus moradores, grandes centros produtores de presuntos. Centenas deles são desovados semana após semana, alguns dos quais merecendo a inglória honra de ilustrar a primeira página dos jornais sensacionalistas quando tém características pitorescas que os distingam da "produção" rotineira.

Este amargo livro de José Louzeiro se ocupa de um deles. Um presunto com nome conhecido, passado notório, sonhos e esperanças quase realizados de vir a ser alguém com carreira artística que mereces-se admiração, estima e respeito: Fernando Ramos da Silva, que se tornara famoso em todo o Brasil como o trombadinha Pixote, figura central do romance-reportagem Infância dos Mortos (do próprio Louzeiro) e do filme de Hector Babenco, nele baseado, Pixote - A Lei do Mais Fraco, grande sucesso de bilheteria e de crítica, que mereceu significativos prêmios internacionais.

Pois no final da tarde de 25 de agosto de 1987, com apenas 19 anos de idade, Pixote foi encurralado pela polícia paulistana numa casa pobre do paupérrimo Jardim Canheme, em Diadema, na periferia da maior e mais rica cidade brasileira, onde sua curta e infeliz existência chegou a abrupto fim com oito tiros à queima-roupa, disparados contra uma vítima desarmada e indefesa.

A efêmera notoriedade desse episódio sangrento, um a mais entre tantos outros do dia-a-dia se deveu, sem dúvida, ao fato de ser ele quem era: um brilhante meteoro humano que, pelo seu talento natural, voara da marginalidade para a fama internacional, mas à sarjeta fora reconduzido pela sua também natural ignorância, pelo seu despreparo cultural, social e psicológico. Não é um final feliz, de novela ou de filme. A realidade não depende de bilheteria. Mas José Louzeiro, que conheceu Pixote de perto, que lhe deu a mão para que ele saísse brevemente do limbo, sabe que milhares e milhares de outros Pixotes prosseguem o trágico cortejo que transita da miséria para a morte, passando pelo bulevar do crime, e não quer que sua história seja esquecida. Pretende despertar-nos do torpor da indiferença culposa, ainda que, para isso, tenha de acicatar-nos com esporas de fogo.

 

 

As histórias nos acompanham. Umas são nossa aura. Outras, nosso carma. Não surgem por acaso. Resultam de duras lutas. Mais de erros que de acertos.

Histórias de amor e ódio. De vida e morte.

 

Filho de operário, fui criado em um bairro pobre, na periferia de São Luís, Maranhão, chamado Camboa do Mato. O nome do lugar cortado pela linha do trem, definia tudo. Mas eu gostava de lá.

 

Camboa dos jenipapeiros, da goiaba araça, do mangue vermelho com suas raízes-escoras, penetrândo fundo na lama salgada onde, também, eu pegava caranguejos e navegava na solidão dos igarapes, em precárias canoas roubadas.

Moleque de rua, atendia pelo apelido de Zezico, e fazia parte da turminha do Zeca, ao lado de Esmagado, Moacir, Cara de Castanha e Pixita.

 

Nessa época, com uns 10/11 anos, freqüentava a escola (Curso de Aplicação Gilberto Costa) com absoluta má vontade. Ocupava-me, exclusivamente, com as marés, as tardes ensolaradas e os ventos, que faziam os papagaios de papel de seda se aproximarem do céu, presos na linha 30 que surrupiava da caixinha de costura de minha mãe.

 

Embora muito ativo, era um garoto sem histórias, sem nada interessante para contar. Nunca viajara, ninguém na minha família sofrera um acidente, eu me esforçava para quebrar o braço, a fim de ir engessado para a escola.

 

Cara de Castanha falava do pai, bêbado, que batia na mãe e colocava-o de castigo sobre caroços de milho. Num final de tarde o velho caiu no poço, quebrou o pescoço. Os vizinhos trabalharam quase a noite inteira, sob a luz de uma fogueira, para resgatar o corpo inchado, o rosto coberto de lama.

 

Kinzinho, irmão mais velho de Esmagado, magarefe no Matadouro do Cagaosso, morreu chifrado por um boi, na hora em que ia sangrá-lo.

 

Dona Dirce, mãe de Zeca e Moacir, sofria dos nervos. Certa noite, quando o trem cargueiro vinha se aproximando da nossa rua, resfolegando e apitando, ela deitou nos trilhos para morrer. Meu pai, minha mãe e pessoas da vizinhança trataram de salvá-la, mas dona Dirce gritava e agarrava-se aos dormentes.

 

Ficou um mês no hospício. Rasparam-lhe a cabeça, deram-lhe choque elétrico. Quando voltou para casa nunca mais falou, nem riu. Mantinha-se sentada em uma cadeira preguiçosa, diante da janela da sala.

 

Vovó Dorotéia contava histórias de pessoas esquecidas pelos parentes no hospício do Caminho Grande e das que eram levadas, à força, para o leprosário.

 

Eu adormecia embalado por sua doce voz e por temer seus personagens: Tamancão, era assassino de leprosos na Colônia do Bonfim. Fora condenado a vagar pelas noites de São Luís, subindo e descendo ladeiras. Depois, vinha a história de Dona Candoca, degolada pelo marido com um machado. Ela comandava a procissão das mulheres sem cabeça, que passava à meia-noite, antes que o primeiro galo cantasse. Se eu ainda estivesse resistindo ao sono, Vovó atacava com a lenda do Caçador louco, pai de 5 filhas. Cada semana sumia com uma delas na floresta. Decidiu acabar com as meninas porque elas se pareciam com a mãe que fugiu com o trapezista do Circo Garcia.

 

Nos sonhos, via o CaÇador, puxando Pixita e Esmagado para dentro do mato.

Entrava em desespero. Procurava localizar Zeca, Moacir, Cara de Castanha.

Onde se meteram? Gritava por eles, cáia da rede.

 

Pixita, o menor do grupo era, também, o mais petulante. Provocador que só ele. Esmagado, ao contrário, pouco falava, quase não ria. Um menino-velho.

Trocava socos e pontapés com garotos bem maiores. Tinha fama de mau. Matava os pintos da vizinha Nazaré com laço de arame, divertia-se colocando caranguejos na lata com água fervendo.

 

Zeca e Moacir, irmãos, viviam em brigas. Zeca, já com uns 13 anos, preocupava-se com as garotas. Moacir, Esmagado, Pixita e eu tinhamos compromisso só com a aventura: quem seria capaz de atravessar o igarapé grande, na vazante da maré? Quem ia correr atrás do fogo-fátuo na campina do Matadouro? Quem tirava o engate do vagão do trem, que passava pela Camboa, a caminho dê Teresina?

 

Foi numa noite de chicote-queimado e maré cheia, entrando pelo quintal lá de casa, que dona Nazaré, muito nervosa, disse a minha mãe:

 

"Mataram o pai de Pixita!"

 

Corri para o mercado de peixe. Um policial fazia anotações. O homem de paletó e gravata tirava fotos. Seu Joca estava no chão, coberto com um lençol manchado de sangue, velas acesas. Pixita chorou. E como já não tinha mãe, ficou lá em casa uns tempos. Não comia direito. Perdeu a vontade de brincar.

Certa manhã, sumiu. Passamos dias procurando por ele e nada. Um pescador contou: Pixita foi pescar fora da barra, no oceano, com mestre Tadeu, dono do barco de dois mastros.

 

Do barco ele passou a trabalhar com os catraieiros e, mais tarde, com os homens dos batelões, que recebiam carga dos navios e traziam para a Rampa Campos Melo.

 

Pixita virou lenda. Nós o imaginávamos no leme de embarcações poderosas, enfrentando banzeiros. Pixita, o atrevido. Arteiro que só ele.

 

Minha história

 

Quando a turminha se reunia na velha draga, na praia do Jenipapeiro, o assunto era Pixita. Zeca explicava o alcance de um barco de dois mastros.

Podia ir até o Pará. E Pixita estava viajando nele. Vai ser um barqueiro e tanto, dizia Esmagado.

 

Foi a partir daí que minha história pessoal começou a ganhar corpo.

 

De noite, quando Vovó Dorotéia descrevia Tamancão perseguindo os leprosos, eu via Pixita, tão perto e tão distante, numa terra de silêncio e luz, por onde transitavam somente os que tinham coragem de desvendar mistérios e não temiam banzeiros.

 

Cara de Castanha tornou-se motorista de caminhão. Zeca fazia biscates e casou com Marta Verde, filha de dona Nazaré. Moacir aprendeu o oficio de sapateiro. Esmagado acabou preso, após assaltar a quitanda de seu Maneco, que vendia fiado a todos nós, inclusive a meu pai. No dia em que pude vê-lo na prisão, estava todo roxo, de tanto apanhar.

 

Vadiar nas ruas perdeu a graça. Sempre, que passava pela Rampa Campos Melo, com tantos barcos atracados, procurava Pixita, embora soubesse que ele estava longe, na baía de São Marcos. Trocou a terra pelo mar.

 

Eu consegui emprego como auxiliar de revisor no jornal O Imparcial.

Trabalharia à noite para estudar de dia. Quase sem perceber, fui me deixando atrair pelas leituras. Não sabia que pudesse existir serviço tão bom. Lia a respeito de casos interessantíssimos e ainda ganhava por isso. Passei a ler livros. Depois, a adquirir livros. Nunca esqueci Pixita. Ele se foi, esquiando sobre banzeiros; encantou-se na transparência das águas. Virou o protagonista da minha história.

 

Fim de um sonho

 

Na madrugada de janeiro de 1954, quando seguia para o aeroporto do Tirirical, a caminho do Rio de Janeiro, meu pai pôs-se a falar, o que não era seu habito. Pixita não viajou no barco de mestre Tadeu. Não brincou nas praias submersas do oceano. Meteu-se na canoinha de João Cavalo, um pescador de linha, remou para o canal do Matadouro, mergulhou nas águas infestadas de tubarões.

 

"Pixita se suicidou e isso Deus condena", disse meu pai.

 

Minha história de sol e banzeiros, com Pixita segurando a cana do leme, perdeu o brilho. Virou lenda de doer a vida inteira.

 

Quando pude me movimentar pelas ruas do Rio, já como repórter, um ano após ter descido, no Santos Dúmont, de um velho avião do Loide Aéreo, deparei-me com o que viria a ser uma outra parte da minha história.

 

Pixita vira Pixote

 

Incumbido de fazer uma reportagem com meninos de rua, iniciei a peregrínação por volta das 22 horas, em Copacabana, acompanhado pelo fotógrafo Mendes, foca como eu. Às duas da madrugada estávamos na Central do Brasil, onde encontramos alguns garotos preparando-se para dormir sobre folhas de jornais. Eram cinco ou seis. O maior devia ter 12 anos, o menor uns 7 ou 8. Moreninho e agitado. Perguntei seu nome, ele disse, risonho como Pixita: sou Pixote. Mostrou a ficha do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), onde assinou com ch e as letras eram imprecisas, coisa de quem estava aprendendo a escrever. Pixote explicou, sem perder o bom humor:

 

"Minha mãe me botou naquela ratoeira mas eu dei o pinote."

 

Sempre que fazia reportagem nas imediações da Central, procurava localizar Pixote. Sem saber ele se integrava à minha história: sapatos velhos e grandes, calças frouxas, um blusão sujo e esburacado.

 

Muitos anos depois, quando imaginei escrever um livro sobre meninos de rua, pensei em Pixita, na sua aventura desventurada, na sua alegria comida pelos tubarões. Pensei em Pixote, que via a cidade como sua casa, imensa casa, com apenas duas portas: a que fechava no sono, a que abria no amanhecer.

 

Nesse tempo, final da década de 50, o Rio ainda tinha certo jeito romântico e o extermínio de crianças pobres não era sequer imaginado. Mas no SAM a Polícia já promovia matanças de garotos indefesos, que se rebelavam por falta de liberdade, por viverem como bichos, perseguidos pelos monitores e seus cúmplices.

 

Durante anos, minha história pessoal foi crescendo. Agora, a partir de um processo de fusão, com Pixita e Pixote, podia ver muitos outros rostinhos assustados, sofridos. Entre eles, duas menininhas: Sueli, que vendia balas na porta do cinema Plaza, na Lapa, e queria ser atriz; Beth, que pedia esmola nas escadarias do cine Asteca, no Catete, para ajudar a mãe tuberculosa, moradora numa cabeça-de-porco na rua Santo Amaro, na Glória.

 

Beth estava com 10 anos. Sueli era um pouco mais velha. Virou prostituta no Mangue. Beth foi ser faxineira em um rendez vous, na rua Conde de Lajes.

Eu continuei repórter, cujo ofício é ouvir as histórias dos outros.

 

A partir de 1964, com o golpe militar, a difícil vida de jornalista tornou-se quase impossível. Entrar nas delegacias era um problema, os policiais sonegavam informações, os assassinatos misteriosos se multiplicavam, na maioria das vezes não eram sequer abertos inquéritos.

Fecharam o SAM, instalaram a Funabem, para "resolver de vez o problema dos menores abandonados". Eu fui para Brasília, tentando sobreviver. Era co-autor de um livro contra os golpistas (Assim Marcha a Familia), havia trabalhado durante anos no Correio da Manhã, jornal que os ditadores odiavam. Na Capital Federal, recém-inaugurada, demorei-me três anos. Fundei uma pequena editora que faliu, resolvi tentar a vida em São Paulo.

 

Meninos torturados

 

Consegui emprego na redação da Folha de S. Paulo, após obter um "visto" no DOPS. Morava pertinho do trabalho, na avenida Duque de Caxias, esquina de Barão de Limeira.

 

A chefia da reportagem estava a cargo de J. Baptista Lemos. Meus companheiros eram: José Nêumanne, Théo Dutra, Paulo Sérgio Markum, Giba Nahum, Sidney Basile, Luiz Carlos Ventura, Wladyr Nader e Henrique Nunes.

 

Um domingo, pela manhã, o plantonista recebeu telefonema de uma senhora, de Camanducaia, cidade mineira que faz fronteira com São Paulo. A Polícia prendera uns 50 garotos, quase todos nus, feridos, expostos ao frio intenso.

Mandaram me chamar em casa. O fotógrafo Barros me aguardava. Antes de 2 da tarde, numa caminhonete Veraneio, dupla carburação, chegávamos lá.

 

Em vez de ir para a delegacia, achei melhor dar umas voltas pela cidade; por sinal bem pequena, a fim de ouvir algumas pessoas, antes de entrevistar o doutor delegado. Um velho hábito. Nunca acreditei em versões oficiais.

 

Tinha chovido bastante, as casas mântinham as janelas fechadas. Ninguém na pracinha dos namorados, em frente à igreja, ninguém nas ruas. Na delegacia fui recebido pelo policial João Domingo, gordo e bonachão.

 

"Vai ser hoje! Daqui a pouco, tudo que é de repórter estará báixando aqui", queixou-se.

 

O delegado Paulo Emílio tinha ido almoçar. João Domingo prontificou-se a mostrar as celas onde estavam os garotos. Eram 52. Chegaram nus, alguns com braços destroncados, costelas quebradas, quase todos descalços.

 

Um deles - o Dito - dizia que tinham sido desovados uns três quilômetros antes de Camanducaia. João Domingo não acreditava. Por isso, esperava que o doutor delegado chegasse, para que o competente inquérito fosse iniciado.

 

Entrei na cela. Dito encarou-me como se eu fosse seu pior inimigo. Cuspiu de banda. Tentei puxar conversa. Nada. O pivetinho Sete, testa esfolada, decidiu falar.

 

Na noite anterior, policiais da Rota começaram a pegá-los pelas ruas, no centro de São Paulo. Eram levados para o ônibus, estacionado nas proximidades do Teatro Municipal.

 

Iam fazer uma excursão, dizia o motorista, debochado. Dito resolveu aproximar-se. Falava com raiva, atropelando as palavras.

 

"Meia-noite, quando havia cem garotos na merda do ônibus, entraram uns tiras, com dois cachorros. Tava todo mundo na pior, amontoado nos bancos, entre os bancos e no corredor. As cortinas foram puxadas, aí o ônibus começou a rodar."

 

Depois de quase uma hora quis saber para onde eram levados. Berrou o mais alto que pôde. Um PM segurou-o pelo blusão, deu-lhe tapas, disse que estavam cumprindo um programa turístico. Ordens superiores.

 

"É turismo noturno, moçada!", gritou o motorista.

 

PM 2 sacou da arma e, apontando para Dito, mandou que se deitasse no assoalho do carro, as mãos na cabeça. Exigiu que os demais garotos acompanhassem o coleguinha. Os cães movimentavam-se por cima deles, arranhando-os com as unhas. Policiais e cachorros ocuparam algumas poltronas, ficando todas as outras vazias, até o final da viagem.

 

A chuva caía forte, o ônibus rodava devagar. Dito sabia que a região era elevada, pois de vez em quando o motorista passava marcha de força. Para onde estariam sendo levados?

 

Quando o carro parou, a chuva mantinha-se forte. Os garotos continuavam amontoados. Um policial andou por cima deles, pisando-os com suas botas. O motorista ergueu-se, bateu palmas.

 

"Vamos lá, cachorrada! O conforto acabou..."

 

Três PMs colocaram-se junto à porta, ao lado do motorista, outros dois permaneceram no corredor.

 

"Os filhos da puta botaram cachorro na gente, enquanto nos davam porrada.

O sacana do motorista rasgou nossa roupa. Ficou todo mundo pelado", queixava-se Dito.

 

João Domingo piscava o olho. Não acreditava nem um pouco em Dito. O garoto percebia a indiferença mas seguia falando, falando. Custou a querer recordar o caso, agora não tinha como parar. Descia a detalhes: o PM que o empurrou, para que quebrasse o vidro da janela co o rosto, era o mesmo que fez um cão morder lhe os testículos. Dito acabou jogado para fora do ônibus, completamente nu.

 

"Tava muito escuro. Caí numa encosta e rolei, até perder os sentidos.

Quando acordei, ainda chovia mas o dia começava a clarear. Meio zonzo, fui encontrando o pessoal. Muitos não güentaram o tranco. Mas quem podia se mexer, tratou de cair fora daquele buraco."

 

Nessa altura da história o delegado Paulo Emílio apareceu. Esquivo e frio como bom funcionário da ditadura. Era outubro,1974, governo do general Ernesto Geisel.

 

Dr. Paulo Emílio sabia muito bem que aquele caso não devia converter-se num escândalo. Da minha parte, tinha plena consciência das limitações do meu trabalho como repórter. Os jornais viviam amordaçados pela censura. Mesmo assim, fiz as perguntas necessárias ao titular da delegacia.

 

Paulo Emílio recusava-se a acreditar na versão de um trombadinha. "Os garotos", dizia ele, "foram detidos em um restaurante, na estrada, proximidades de Camanducaia, quando promoviam baderna." Dito já contara essa passagem. Entraram no restaurante para pedir café e roupas velhas. Dois ou três funcionários tentaram expulsá-los, o pau quebrou. O motorista de um caminhão, que fazia entregas, foi à delegacia comunicar o fato.

 

Prostitutas ajudam

 

Após ouvir os garotos e o delegado que não sabia o que fazer com eles, fui entrevistar Elizena Mendes, mineira de Extrema, a mais antiga prostituta da cidade.

 

As "casas das mulheres" ficavam na rua da Usina. Quando lá cheguei elas estavam ocupadas, fazendo roupas para os meninos. Conseguiram pano desmanchando os próprios vestidos.

 

De volta ao jornal escrevi a matéria que ficou com umas oito laudas.

Passei a J. Baptista Lemos, chefe da Reportagem. No dia seguinte, não deu outra: foram publicadas apenas 60 linhas e, assim mesmo, sem qualquer destaque. Orientação dos censores de plantão.

 

Tempos depois, por minha conta e risco, voltei a Camanducaia. Fui em companhia de Ednalva Tavares, companheira, amiga, fotógrafa, e de José Medeiros, saudoso diretor de fotografía do cinema brasileiro, "o poeta da luz".

 

Ficamos um dia inteiro pelas "casas das mulheres". Conversamos com Elizena e suas amigas. Uma coisa me intrigava no episódio dos garotos: eram 100, conforme Dito. O delegado Paulo Emílio garantia que, no ônibus da Polícia, estavam 93. Na delegacia, encontrei 52. Os que retornaram a São Paulo. E os outros 41? Essa pergunta jamais foi respondida.

 

O próprio coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança do Estado, governo Laudo Natel, conhecido pela truculência, declarou-se chocado com o fato e tomou medidas administrativas no DEIC. Pelo menos 12 delegados foram remanejados e alguns policiais da Rota viram-se envolvidos em um inquérito que se transformou em processo, mas os 41 garotos continuaram sumidos, para sempre.

 

Foi a partir dái que Pixote, Sueli, Beth e Dito entraram de corpo e alma na minha história pessoal, que já contava com personagens como Zeca, Cara de Castanha, Moacir, Esmagado e Pixita. Como a época era de ditadura, decidi encerrar a carreira de repórter e passar a escrever livros, a fim de livrar me da censura.

 

Ednalva me dava força, mas o dificil seria sobreviver os primeiros meses.

De outra parte corria o risco de o livro não ter repercussão. E aí? As dúvidas eram muitas, mas estava certo de uma coisa: não seguiria produzindo reportagens para os censores jogarem no lixo.

 

Justiça indiferente

 

Em março de 1975, era divulgada a decisão do procurador geral da Justiça de São Paulo, Oscar Xavier de Freitas. Por entender que não havia crime a punir, determinou o arquivamento do processo que apurava o caso Camanducaia.

Isentou de culpa os policiais acusados.

 

Mudei-me para o Rio. Em 1977, num apartamento em Botafogo, escrevi Infância dos Mortos, livro onde estão meninos e meninas de rua que conheci.

Píxita e Pixote são a mesma pessoa. Esmagado é Dito. Beth e Sueli, somadas, lembram Maria Verde, pois o casamento com Zeca não deu certo, ela foi ser prostituta na "zona" de São Luís, pensão da Maroca.

 

Quando entreguei os originais do Infância dos Mortos ao editor Alfredo Machado Jr., Editora Record, a questão do menor abandonado, como era chamado na época, tinha pouca ou nenhuma importância. A sociedade não se sentia prejudicada por eles. Mas as estatísticas já assinalavam que havia 15 milhões de crianças em estado de absoluta carência no país.

 

A repercussão do livro foi pequena. Nem de longe comparada ao êxito de Lúcio Flávio, o Passageiro da agonia e de Aracelli, Meu Amor, editados nos anos de 1975 e 1976 por Enio Silveira, da Civilização Brasileira.

 

Relações com o cinema

 

Pouco depois da publicação do Lúcio Flávio, fui procurado por alguns cineastas que desejavam levar a história para o cinema. O primeiro, foi Roberto Farias, que dirigia a Embrafilme. O segundo, foi um argentino, na epoca desconhecido. Disse-me ao telefone:

 

"Olha, quem tá falando aqui é Hector Babenco. Sou argentino mas resido em São Paulo. Já fiz um filme que posso te mostrar. Já li seu livro várias vezes. Estou interessado em rodar uma fita, com um par de bons atores. Peço que acredite em mim. Essa história é o roteiro que sempre quis filmar."

 

A partir de colocações como essa Babenco me ganhou. E não me arrependo. A fita, com "um par" de bons atores, foi lançada num circuito organizado pelo exibidor Lívio Bruni, que reuniu 100 cinemas em todo o país.

 

Embalado pelo êxito, Babenco resolveu adquirir os direitos do Infância dos Mortos. O contrato foi assinado dia 29 de abril de 1978.

 

Menino de talento

 

Babenco caprichou na formação do elenco de garotos. Mas não foi ele quem "descobriu" Fernando Ramos da Silva, que viveria o papel do Pixote. O menino já participara, em 1977, da peça O último Carro, de João das Neves,

apresentada na Bienal Internacional, no Ibirapuera, como "arte não catalogada".

 

A peça ganhou prêmios, alcançou repercussão na imprensa, e de "Fernandinho" o teatrólogo João das Neves guarda a seguinte lembrança:

 

"Era um garotinho tímido. Muito tímido. Participava com interesse dos ensaios que se estenderam por quase dois meses. O que marcava nele era o rosto. Ficou na peça os dez meses em que ela esteve em cartaz."

 

Para que Fernando chegasse a João das Neves, há outra história: ele, a mãe Josefa Carvalho da Silva, Paulinho, Valdemar, o Dema e três ou quatro irmãos menores moravam no barraco mais pobre de Vila Ester-Diadema, periferia de São Paulo. Foram para lá quando vieram de Jandaia do Sul, no Paraná, logo após a morte do chefe da família João Ramos da Silva. Josefa, sem profissão definida, tornou-se vendedora de bilhetes de loteria.

 

Em 1976, durante as festas de fim de ano, uma senhora chamada Amélia, do grupo paroquial de Diadema, decidiu levar um pouco de alegria "ao lar" de Josefa. Reuniu católicos que integravam o coral. Cantaram hinos da igreja.

Fernando emocionou-se, os olhos ficaram cheios de lágrimas.

 

"Dona Amélia trabalhava com um grupo que ia participar de uma peça. Pediu permissão a minha mãe para que eu fizesse um teste. No dia seguinte - recordava ele - já estava me exercitando na expressão corporal e procurando decorar o texto. Meu problema maior era a leitura. Muita coisa eu não entendia mas não pedia ajuda a João das Neves. Tinha vergonha:"

 

Durante os meses em que participou da peça, ao lado de muitos outros garotos, Fernando foi entendendo que tinha facilidade de movimentar se no palco. E, embora quase toda noite a casa estivesse cheia, não sentia nenhum constrangimento. Pelo contrário, gostava.

 

"Eu ganhava um salário de Cr$ 1.500,00. Na época era bem razoável", dizia Fernando. "Pude dar uma ajuda em casa. Alguns diretores de cinema foram ao Ibirapuera ver a peça. Recebi convite para participar do filme Alíce no País das Maravílhas. Aceitei, minha mãe ficou satisfeita de me ver progredindo, João das Neves me dava a maior força. Acontece que o pessoal do filme não conseguiu dinheiro pra produção. Lá em casa só quem achava que eu tava perdendo tempo era o Dema, meu irmão mais velho'. Ele dizia que, como ator, nunca eu ia ganhar dinheiro pra sair da favela. Por causa disso a gente brigou."

 

Quando Babenco começou a reunir garotos para o elenco do filme, soube da atuação de Fernando Ramos da Silva na peça O Último Carro. Foi a Vila Ester, Diadema, conversar com ele e com dona Josefa. Tirou fotografias de Fernando, como já fizera com outros meninos. Mostrava as fotos, entusiasmado.

 

Personagem persegue ator

 

Iniciadas as filmagens Fernando tornou-se Píxote. Para sempre. Um apelido que o marcou como cicatriz e que seria, também, o motivo maior da sua fama e danação.

 

Um dia antes de começar o filme ele quebrou a perna jogando bola. Fez seis semanas de filmagem indo de uma cadeira de rodas para o platô e do platô para a cadeira de rodas, conforme declaração de Babenco.

 

Quando estava quase sarando, pisou numa garrafa de Coca-Cola, levou quatro pontos no pé. Mesmo com a perna engessada, mexia-se e falava com naturalidade diante da câmera. Era como se não houvesse todo aquele pessoal por ali, mais o diretor distribuindo ordens, o que provocava ciumeira a certos atores do elenco adulto.

 

Pixote não tinha problema com o texto, pois fazia no cinema seu próprio papel. Quando os spotligfis se apagavam, outro momento especial do garoto, sentado diante de um pratão de comida: seu apetite também causava inveja.

 

Nas poucas vezes que pude participar das filmagens, fiquei tocado com a paciência de Babenco, lidando com Pixote e os outros meninos, base dramática da fita. Os trabalhos desenvolviam-se em um velho quartel da rua Conselheiro Brotero, a uns cem metros do "minhocão" que vai para a Lapa, o que representava grande economia para a produção. Havia ruas de paralelepípedos, galerias com celas, dormitório, banheiros, salão de barbeiro, cozinha, refeitório e quadra de esportes. Ali dentro, em ambientes completamente diversos, Babenco realizou boa parte do seu trabalho, um dos mais importantes da cinematografía mundial, conforme a crítica.

 

Em dezembro de 1981, Pixote, a Lei do Mais Fraco ganhou dois prêmios significativos: da Associação de Críticos de Cinema de Nova York e da Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles. Foi apontado, unanimemente, como o melhor filme estrangeiro daquele ano.

 

Juizado contra filmagem

 

As coisas mais curiosas ocorrem quando um filme está sendo rodado. Com Pixote, a Lei do Mais Fraco, não seria diferente.

 

Um belo dia apareceu na produtora um tipo de paletó e gravata, todo circunspecto. Era agente do Juizado de Menores. Queria que Babenco mostrasse as autorizações dos pais dos meninos que integravam o elenco. Sem isso, os trabalhos seriam interrompidos, por tempo indeterminado. Foi uma grita geral.

Muitos garotos não sabiam por onde andavam os familiares.

 

Outros, interessados que estavam em prosseguir no filme, declaravam não ter pais, nem parentes ou aderentes. Eram da "geração espontânea".

 

Diante da confusão que se formou, Pixote figurava como um privilegiado: Morava com a mãe Josefa, tinha endereço fixo. Babenco gastou horas procurando resolver o problema com o funcionário do Juizado.

 

Jardel, o bom amigo

 

Entre os atores adultos, segundo Pixote, Jardel Filho era o que mais conversava com ele. Ouvia suas histórias, aconselhava-o, recomendava-lhe prudencia e paciência. Foi a primeira pessoa a falar lhe de um ator rebelde, forte presença na tela, chamado James Dean.

 

Pixote estava sempre lembrando Jardel.

 

"Ele também começou fázendo teatro, com o grupo Os comediantes: Me tratava como se fosse meu pai. Mandava que eu estudasse, que visse os filmes de James Dean. Gostava de ouvir Jardel contar histórias dos tempos em que tava se iniciando. Às vezes não tinha dinheiro nem pra comer. Comigo até que tava sendo mais fácil. Comecei ajudado pelo João das Neves, fui escolhido por Babenco pra trabalhar num filme, daqui em diante não vou deixar a peteca cair."

 

Enquanto Fernando falava, ingênuo e sofrido, recordava-me dos personagens anteriores, os que se tornaram lembrança, e que ele procurava viver no cinema: Pixita/Pixote. Dois meninos, e uma soma imensa de sofrimentos, no mundo de perversões que não podiam entender.

 

Pixita saiu de manhã cedo, entrou na canoa de João Cavalo, remou para o canal do Matadouro, onde os tubarões disputavam vísceras e sangue dos bois abatidos todos os dias. Atirou-se para a morte.

 

Pixote brincava de viver, driblando policiais e bandidos, nas calçadas da Central. Correu no cemitério por não acreditar que seria derrubado a tiros.

 

Fernando confundiu-se com a ficção, a partir do filme de Babenco. Entendia que o sucesso era logo ali. Bastava mais um filme ou o papel de destaque em novela de grande audiência e se transformaria no James Dean brasileiro. Feio, pobre, mas com muito talento.

 

Analfabetismo, uma doença

 

Havia sérios problemas a serem enfrentados por Fernando. O principal deles, o mais imediato: aprender a ler direito. Bem. E o que era pior: tinha vergonha de pedir ajuda. No platô, fingia decorar suas falas, atento ao roteiro. As pessoas que contracenavam com ele eram levadas a supor que tivesse alguma dificuldade em memorizar.

 

Desde essa época ou a partir do momento em que trabalhou sob a direção de João das Neves, Fernando passou a viver momentos de angústia: devia estudar, seu futuro dependia disso, mas faltava-lhe força de vontade. Não havia, de outra parte, o menor estínulo em casa.

 

Fernando prometia a si mesmo que estudaria à noite, aproveitaria todo o tempo disponível para debruçar-se sobre os livros. No dia seguinte adiava o projeto.

 

Por não saber ler corretamente foi adquirindo complexo de inferioridade.

Tornou-se frágil. Enquanto o Pixote na tela seguia fazendo admiradores, o Pixote da vida real quebrava a cara.

 

A luta solitária

 

Na semana seguinte à que deixou de atuar no filme de Babenco, já estava sem dinheiro. Muitas vezes pegava carona até a cidade. Insistia. Procurava trabalho, principalmente nos teatros e nas emissoras de televisão. Ao retornar, tarde da noite, seu irmão Waldemar, o Dema, continuava no barzinho.

 

"Vem cá, Pixote. Sai dessa, cara!"

 

Fernando metia-se na cama, o barraco na penumbra, os irmãos menores dormindo, a mãe fingindo dormir. Ficava horas pensando numa saída, embora soubesse que só havia um caminho: a escola.

 

Colou um poster de James Dean na parede do quarto, adquiriu livros e cadernos para estudar. Não conseguiu. Faltava-lhe concentração. Dema estaria certo? As ruas e as garotas o chamavam. Já não achava tão necessárias as recomendações de Jardel.

 

Não apareceram mais convites para filmes e peças, ninguém lhe dava oportunidade nas emissoras de televisão, em São Paulo.

 

Procurando livrá-lo dos perigos que o cercavam, época em que Pixote, a Lei do Mais Fraco estava em cartaz, Babenco teria influído para que fosse contratado pela Globo. Ganhou um papel na novela O Amor É Nosso, de Roberto Freire e Wilson Aguiar Filho, posteriormente "retocada" pelo veterano do folhetim eletrônico que é Walter Negrão.

 

Experiência lamentável?

 

A novela, transmitida no horário das 7, começava complicada por apresentar duas histórias:

 

1 - Pedro (Fábio Jr.) é jovem e ambicioso. Seu sonho: vencer na vida como músico. Mas depara-se com Nina (Myriam Rios) e passa a querer conquistá-la.

 

2 - Cynthia (Simone Carvalho) sente amor pelo padre Leonardo (Stênio Garcia), mas isso não fica muito bem definido.

 

Elenco: Fábio Jr., Myrian Rios, Stênio Garcia, Stepan Nercessian, Tônia Carrero, Marlene, Jorge Dória, Pepita Rodrigues, Walmor Chagas, Isabel Ribeiro, Milton Moraes, Osmar Prado, Yolanda Cardoso, Kátia D'Angelo, Simone Carvalho, Aracy Cardoso, Yara Amaral e tantos outros.

 

Quando a novela estava bastante desencontrada, e com baixo índice de audiência, eis que aparece Pixote, apontado como menino prodígio do cinema.

Badalado nos jornais e nas revistas especializadas.

 

Deram-lhe um papel que poderia ser importante: ele era o Pingo, filho adotivo de Gilda (Tônia Carrero).

 

A fama precoce foi seu primeiro problema. Jovens e bons atores, que compunham o elenco, logo passaram a detestá-lo, o que se confundia, também, com certa inveja.

 

Em vez de esforçar-se para conquistar os inimigos gratuitos, quase todos com trabalhos anteriores na Globo, Pixote partiu para o confronto. Não tinha condições de avaliar o momento que vivia.

 

Julgando-se apoiado por Babenco, acreditava que o cinema fosse seu caminho. Encarava a televisão como "bico", enquanto "a nova fita pintaria".

Se demorasse procuraria João das Neves, para intermediar contato com um diretor de teatro. Permaneceria uns tempos no Rio, tentando a vida como ator, como todo mundo fazia. Jardel estava sempre lutando. Começou em São Paulo, tornou-se famoso no Rio de Janeiro. Era mais ou menos isso o que passava pela cabeça do garoto, metido nos bastidores da TV, sem amigos, sem orientação de ninguém.

 

Não demorou para que surgissem as queixas contra Pixote: chegava atrasado às gravações, exibia baseados, dava problema na casa onde estava hospedado por conta da emissora, queria ir às sextas-feiras para São Paulo, encantou-se por Ana Beatris, uma menininha que morava em Paquetá. Quando decidia não ir a São Paulo, tomava a barca, a fim de encontrar se com Aninha nos recantos mais poéticos da ilha.

 

As pequenas fálhas de Pixote teriam sido toleradas pela produção se ele estivesse dando o rendimento que autores e diretores de O amor é nosso esperavam.

 

Aconteceu o contrário: com dificuldade de entender os roteiros, Pixote deixou-se caracterizar como "garoto problema". Perturbava durante o trabalho, botava apelido nas pessoas, fingia saber ler. Mas, na hora de gravar, era um desastre. Gaguejava ou falava sem convicção. Atores do primeiro elenco foram deixando de ser condescendentes com ele. Virou o "trombadinha" da novela. O ladrãozinho contra o qual era prudente manter-se alerta.

 

"O que ele faz no filme pode fazer com a gente", diziam os que desejavam derrubá-lo.

 

Foi curta e acidentada a passagem de Pixote pela Globo. Ele próprio não entendia por que se comportara tão mal, se necessitava de trabalho, e encontrou pessoas que tentaram ajudá-lo.

 

Havia nele, por essa época, a necessidade de exibir se, de mostrar que era um ator de projeção. Criticava a novela, exaltava o trabalho de Babenco.

Quando o diretor repetia a cena, ficava irritado, reclamava. Resultado: O Amor É Nosso continuou caindo nas pesquisas, a presença de Pixote de nada adiantou. Muito ao contrário.

 

Um dia, quando retornava de São Paulo com algumas horas de atraso para as gravações, foi mandado embora, com a promessa de que poderia ser aproveitado em outro trabalho, provavelmente uma minissérie.

 

Rua da amargura

 

Como não fez amigos, durante o tempo em que permaneceu na Globo, ficou sem condições de manter se no Rio. Sendo menor, não podia instalar se num hotel, nem mesmo naquele bem modesto, de uma única estrela. Tentou localizar João das Neves, ele estava viajando.

 

Pixote retornou a São Paulo e à vidinha em Diadema, onde estavam os mesmos conhecidos, os amigos e os inimigos, inclusive o policial Walter Polli que, sabendo a essa altura das atividades delituosas de Paulinho e Dema, passou a considerá-lo, também, um delinqüente. E sempre que estava de serviço em Diadema, procurava saber dos passos de Pixote. Tinha raiva do menino famoso, que aparecia nos jornais, era notícia no rádio e na televisão.

 

O dinheiro ganho na Globo acabou. Fernando comprou roupas e drogas, foi a festas com as garotas, alugou motos, nas refeições feitas em casa havia do bom e do melhor.

 

Polli rondava por perto, esperando o momento de agarrá-lo. Mesmo que não se alinhasse como parceiro dos irmãos, já fichados, poderia prendê-lo por envolvimento com drogas.

 

Por sua vez, Dema insistia. Se topasse, poderia ganhar, em dois meses, o dobro do que recebera na TV. Pixote sonhava em ser ator. Resistia.

 

Com roupas novas e caras, tênis da moda, tratou de procurar trabalho. E até que não teve de lutar muito. Conseguiu papel no filme Eles Não Usam Black-tie, dirigido por Leon Hirszman. Sentiu as esperanças renascerem.

Gostou de Leon, tão paciente quanto Babenco. E o filme fez sucesso. E muita gente o viu em cena, isso o deixava vaidoso.

 

Com o dinheiro pago por Leon, tentou comprar uma Yamaha. Era necessário muito mais do que havia economizado. Aguardaria outra oportunidade. Sem muita difículdade, também, acabou sendo contratado pela TV Bandeirantes, a fim de fazer parte da produção do programa semanal de Flávio Cavalcanti.

 

"Fiquei sete meses trabalhando na Bandeirantes. Minha tarefa era a mais idiota do mundo", dizia-me ele. - "Havia um quadro em que eu aparecia e sorteava cartas. Ajudei a realizar o sonho de muita gente, menos o meu.

Quando abria o envelope, dizia um número, o felizardo se levantava no auditório, debaixo de aplausos."

 

"Aquela coisa, toda semana, enchia o saco. Mas eu ia tocando. Melhor ficar por ali até aparecer um outro filme ou uma peça. O Flávio gostava de mim.

Vivia prometendo que ia me apresentar como ator. Não sei bem o que imaginava, mas era isso que dizia. Ocorre que no final de sete meses ele foi contratado por outra emissora, a SBT, e a equipe da Bandeirantes dispensada."

 

"As dificuldades aumentaram. Não tinha dinheiro para nada. Telefonei algumas vezes pro Rio, a fim de falar com pessoas da Globo, mas nunca encontrava ninguém. Foi ái que me ocorreu uma idéia. Coisa muito louca.

Imaginei virar notícia nacional. Aparecer de corpo inteiro em todas as emissoras de televisão, de rádio, nos jornais e nas revistas. E como seria isso? Botando em prática o que Pixote fazia no filme."

 

"De noite, entrei numa casa, na rua Obelize, Vila Irã, lá mesmo em Diadema. Meu parceiro era o Brega, foragido da Febem. Ele pegou o aparelho de som, eu resolvi levar a televisão. Havia duas: uma em cima da mesa, outra no chão. Deu o maior auê. A mulher e o filhote dela abriram o berreiro. Mas a gente conseguiu ir em frente."

 

"No intrujão foi que entendi minha mancada. A TV que peguei tava com defeito. Tubo queimado. Vai ver, a boa, ficou no chão. Juro que tive vontade de voltar lá naquela casa e trocar. Que otário que fui"

 

"Brega sartou fora, eu peguei cana dura, levei porrada. Havia um policial que tinha prazer de me torturar. Os outros pediam pra ele manerar, mas não adiantava. O tira dizia que eu era um artistinha de merda, tocava no meu pau com um fo ligado na tomada."

 

O que Pixote não contou, fiquei sabendo no dia em que recebi os inquéritos das suas atividades, como aprendiz de delinqüente. Durante o roubo na casa da Vila Irã, ele e o Brega, armados com revólveres, ameaçaram Roselita de Melo Silva e seu filho Rodney, de dois anos. Pixote dominou a mulher, enquanto o parceiro cuidava de retirar o aparelho de som. Quase que no mesmo instante, chegava Sidney Soares da Silva, marido de Roselita. Partiu em perseguição à dupla, um dos assaltantes tentou alvejá-lo com dois disparos.

 

Roselita e Sidney vão à delegacia. Os policiais - entre eles Walter Polli - mostram um exemplar do Diário do Grande ABC, onde havia matéria de cinema, com fotografias de Pixote. Polli induz Roselita a dizer que o ator parecia com o assaltante.

 

Dor, medo e paixão

 

Quando Píxote foi preso pela primeira vez, uma menina de 15 anos, chamada Maria Aparecida Venâncio da Silva - Cida - esteve na delegacia, querendo visitá-lo. Acabou barrada pelos policiais. Marginal não tinha direito a visita, disseram.

 

Cida decidiu procurar Pixote porque, sendo menor, estava proibida de ver o filme. Por isso, contentava-se em olhar as fotografías dele nos jornais, nas revistas, na televisão.

 

Achava-o encantador. Nessa época era bem magra e nas festinhas imitava Michael Jackson, embora tivesse Elvis Presley como ídolo. Lia sobre a vida dos artistas, morava na Favela da Promissão, em Diadema.

 

Na casa de Cida todos trabalhavam para ajudar nas despesas. Após adquirir experiência como balconista, em uma loja de calçados, conseguiu emprego na fábrica de brinquedos. Tinha uma porção de colegas da mesma idade.

 

As conversas giravam em torno das novelas de televisão, do cinema e dos astros do rock. Os artistas famosos e suas histórias espetaculares. A vida de luxo que levavam. Os casamentos de contos de fadas. Amores fáceis, mulheres encantadoras. Todos ganhando rios de dinheiro. Morando em mansões com muitos empregados. E alguns tinham sido pobres, o que enchia Cida de esperança.

 

O sonho de cada garota da fábrica de brinquedos era encontrar um príncipe encantado e casar com ele, como acontece nas novelas da TV.

 

Cida participava das divagações, mas seu artista predileto chamava-se Pixote. Era ele que desejava conhecer de perto. Era com ele que sonhava namorar.

 

As colegas consideravam o sonho de Cida coisa absurda. Umas diziam que Pixote fizera um único filme e já ninguém mais se ligava nele. Outras argumentavam que, além de esquecido, tinha se transformado num bandidinho da pior espécie.

 

Nada disso alterava a disposição da garota: queria um encontro com Pixote, nem que tivesse de escrever uma carta ao Secretário de Segurança do Estado.

 

Enquanto Cida procurava um meio de aproximar-se do pequeno ator, cuja imagem percorría as principais cidades do mundo, sempre causando impacto, os jornalistas davam destaque à sua prisão. Eu escrevi uma reportagem para a revista Manchete, criticando a violência policial e as aberrações inseridas no inquérito, a fim de comprometê-lo ainda mais.

 

Inguérito forjado

 

"Sidney chegara em casa à noite. Sua mulher Roselita acabara de ser assaltada, os delinqüentes estavam fugindo. Sidney subiu o muro, viu dois garotos. O que disparou contra ele era Pixote, Sidney tinha certeza, embora estivesse escuro. Mas, na delegacia, ao lado da mulher, não reconheceu Pixote, quando Polli mostrou-lhes as fotos no jornal."

 

O delegado Antônio Mesquita encaminhou o garoto ao Juizado e ele acabou sendo entregue à mãe, Josefa, sob custódia. Fernando prometeu que não se envolveria em outra complicação. Ia estudar. Quando soubesse ler corretamente se mudaria para o Rio. Procuraria Jardel Filho. Ficaria na cola dele, até conseguir ser um ator de verdade.

 

Josefa enxugou as lágrimas e disse que chorava por ele, Paulinho e Dema, também envolvidos em assaltos. Somente aí Pixote ficou sabendo que a mãe tinha conhecimento do que faziam os irmãos, embora, até então, fingisse ignorar o que se passava com eles.

 

Estirou-se na cama, mas não dormiu. Pensava nos vexames que passara na prisão, escutava os berros do Polli, mostrando suas fotos no jornal e dizendo que era o mais perigoso bandido do ABC. Lembrava das senhoras da igreja cantando hinos comoventes. Do quanto chorou. De como tudo começou, da peça de João das Neves, do filme de Babenco, dos vizinhos olhando-o com admiração, dos elogios, das menininhas que se ofereciam, da passagem pela Globo, as intrigas, os ciúmes, suas demonstrações de garoto debochado e egoísta. Uma sucessão de erros que terminaram culminando com a prisão, sua cara em todos os jornais e telinhas de TV.

 

Teria forças, sozinho, de reverter tantos fatos negativos? Foi maluquice a idéia de meter se num assalto, para chamar a atenção da imprensa? Alguém acreditava nisso, ou será que ingressara de verdade no crime?

 

Pixote não sabia. Estava confuso. Mas, de uma coisa tinha certeza: era necessário estudar. Do contrário suas possibilidades seriam ainda menores.

Soubesse ler direito, teria feito do Pingo, na novela O Amor É Nosso, um bom personagem. No começo a atriz Tônia Carrero fora camarada com ele. Depois, a coisa começou a deteriorar. Pixote achava-se o melhor de todos. Sua imagem estava sendo vista no Brasil e no exterior, em um filme sério, graças ao talento do diretor Hector Babenco.

 

Segunda Parte

 

Paixão de menina

 

Foi esse Pixote, agora decepcionado, ressentido e amedrontado, que Cida terminou encontrando um dia, graças à interferência da amiga Ana Lúcia, que trabalhava na mesma fábrica de brinquedos.

 

No seu livro Pixote, Nunca Mais, ela nos diz como estava, emocionalmente, horas antes de avistar-se com o jovem ator que decidiu partir para o crime, a fim de fazer-se notar.

 

"Confesso que no caminho eu cheguei a pensar em tudo aquilo que falavam sobre ele. Que não passava de um bandidinho; que, se fosse um artista de verdade, estaria fazendo sucesso na Globo e não assaltando... e que isso, mais aquilo. Pro inferno, tudo! Era o dia de eu conhecer não o Pixote, mas o Fernando."

 

"Tive uma vontade grande de me abrir com a Ana Lúcia, mas sei lá, eu só esperava a hora de vê-lo na minha frente. Fomos andando até a casa dele. Suava frio, tremia por dentro e por fora. Não conseguia pensar em nada.

 

"Fernando, esta é Cida.

 

"Muito prazer, Fernando ao seu dispor", ele respondeu.

 

"Só depois de ouvir a voz dele que eu voltei para a terra e percebi que ele estava lá. Firmei os olhos e nem me lembro se falei algo. Ele tinha um olho torto, era magrô, desajeitado. Acho que me decepcionei. Mas, mesmo assim, queria abraçá-lo."

 

Quando Ana Lúcia disse a Fernando que estavam indo embora, Cida teve que disfarçar sua irritação. Desejava ficar um pouco mais, olhando-o em silêncio.

Logo percebi que tratava-se de um menino triste, que não conseguia falar com facilidade. Fazia um risinho amarelo, como se concordasse.

 

Cida, um tanto decepcionada, recordava das fotos que vira do Pixote nas revistas e nos jornais. Completamente diferentes. Ele explicou que tinha crescido, mas era o mesmo. Não falaram do filme, muito menos da prisão.

 

Um beijo e estava selada a grande amizade. Um menino e uma menina que pouco ou nada sabiam do mundo. Que conheciam apenas miséria e violência, mas sonhavam com o futuro.

 

A sorte grande

 

Sem saber da paixão de Cida por Pixote, procurei criar condições para que ele e sua família fossem ajudados. Um pouco tardiamente, é verdade, mas ainda com muitas chances de que as coisas se arranjassem. Tinha conhecimento, pela imprensa, da ligação do garoto com pequenos delinqüentes, mas desconhecia que seus irmãos Dema e Paulinho fossem fichados na polícia.

 

A reportagem que escrevi na revista Manchete saiu no mês de junho de 84.

Hydekel Freitas, prefeito de Duque de Caxias, falou comigo por telefone.

Estava disposto a apoiar o garoto e sua família. A ajuda reforçaria o projeto, que iniciara no município, de amparo aos meninos de rua.

 

Fui conversar com Hydekel. Na prefeitura ele me entregou a seguinte carta:

 

"Senhora Josefa Carvalho da Silva:

 

cientificado dos sérios problemas que a senhora está enfrentando, comprometo-me a prestar-lhe toda a colaboração que me for possível, visando minorá-los. Assim, e com esse propósito, garanto-lhe um emprego, bolsas de estudo para os filhos e recursos para aquisição de uma casa.

 

Rogo-lhe que não veja neste gesto uma tentativa de aproveitamento político. Estou agindo como homem, como cidadão, como pai, até porque, como político, já conquistei postos e posições muito mais importantes do que meu real merecimento.

 

Peço-lhe, isto sim, sua compreensão e apoio para, valendo-me do seu doloroso exemplo, sacudir a sociedade, despertando-a para a gravidade do problema e alertando as nossas autoridades maiores para o fato de que "menor carente é problema de segurança nacional".

 

Permita-me, com a senhora e seus filhos, dar os primeiros passos na longa caminhada em busca de soluções, concitando a caminharem conosco, de mãos dadas, todos os homens de coração bem formado.

 

Não perca a fé, confíe em Deus. Ele, que é bom e justo, há de ajudar a todos nós, na construção de uma sociedade mais humana e mais justa."

 

Hydekel Freitas.

 

De posse da carta, fui à revista Manchete, que também ofereceu apoio à família do pequeno ator. Cheguei a Diadema um dia de tarde. Fernando estava em casa. Li a carta de Hydekel. Expliquei a ele que Duque de Caxias era uma cidade tão boa quanto qualquer outra. E mais: lá poderia começar vida nova, longe daquilo que eu considerava perseguição policial.

 

Quando terminei a leitura da carta, Fernando estava emocionado. Josefa, chorando, disse que aceitava o oferecimento e agradecia.

 

"Já não tinha esperança de sair deste lugar (Diadema), onde meus filhos são perseguidos. Um oferecimento como o que faz o prefeito é uma graça de Deus."

 

Em menos de uma semana Hydekel adquiriu uma casa, primeira locação, no bairro Paulicéia, na Vila São Luís, com três quartos, sala grande, terraço coberto, jardim, garagem, área de serviço, cozinha espaçosa e pequeno quintal.

 

Sandra Freitas, mulher de Hydekel, incumbiu-se do mobiliário. Eu ajudei a instalar uma estante cheia de livros. Sandra abasteceu a despensa com os mais variados alimentos. Fui para o aeroporto Santos Dumont esperar a família.

Havia uma kômbi da prefeitura à disposição.

 

O gabinete de Hydekel Freitas ficou,cheio de jornalistas. Nenhum deles acreditava na história da casa. Pixote estava radiante. Vivia o dia mais feliz da sua vida.

 

Terminado o encontro fomos à Vila São Luís. Os repórteres mostravam-se surpresos. A casa era das mais bonitas do bairro. Havia um lustre na sala, televisão a cores, aparelhos de rádio, geladeira, liqüidificador e fogão.

Tudo novo. A despensa estava cheia de alimentos. Por volta das 13 horas o prefeito entregou as chaves a Josefa. As gambiarras das equipes de TV se acenderam. Alguém lembrou de chamar Pixote, mas ele não foi encontrado.

 

Tião, motorista de Hydekel, saiu para tentar localizá-lo. A cerimônia terminou e Pixote não apareceu.

 

Paulinho mostrava-se preocupado. Josefa, também. Mas a casa era um luxo só e logo eles começaram a tomar posse do seu novo espaço. Paulinho sentava e levantava das confortáveis poltronas. Josefa movimentava-se na cozinha sem acreditar no que via.

 

Em dado momento perguntou se o cartório demorava a entregar a escritura.

Disse que não. Até porque funcionava do lado da prefeitura, qualquer problema eu falaria com Hydekel. Não tinha do que se preocupar. A casa lhe pertencia, com ou sem escritura.

 

No dia seguinte, o primeiro fato desagradável: Tião localizou Pixote numa boca-de-fumo, distante do bairro onde ficava sua casa.

 

Procurei me entender com o garoto. Lembrei-lhe que, daquele dia em diante, e enquanto residisse em Caxias, suas atitudes se refletiriam de imediato sobre o prefeito. Ele prometeu comportar-se.

 

Na semana em que se instalou na Vila São Luís, Josefa foi indicada para trabalhar em uma clínica geriátrica. Fernando ganhou seis meses de estudos no Tablado, de Maria Clara Machado, pagos pelo ator Lourenço Carvalho. Além disso, Hydekel já lhe conseguira trabalho na gráfica de um amigo, na rua Moncorvo Filho. Horário das atividades: de 14 às 18 horas. Nos dias de aula no Tablado estaria dispensado.

 

Paulinho trabalharia, sempre à tarde, no escritório de um advogado, também amigo de Hydekel. Ganharia dois salários mínimos, desde que se dispusesse a estudar à noite, o que ele topou.

 

Valdemar, o Dema, seria motorista de uma empresa transportadora, em Caxias. Depois de um ano, Hydekel compraria um caminhão para ele. Os filhos pequenos de Josefa, um menino com aproximadamente 12 anos e duas meninas na faixa dos 7/8, estudariam em escolas da municipalidade.

 

Eu terminei me tornando quase que avalista de todo esse pessoal perante o prefeito. Vivíamos uma ditadura. O município de Duque de Caxias situava-se em área de segurança nacional. Como jornalista e escritor eu era visto com desconfiança pelos poderosos. Tinha livros que denunciavam as mazelas do regime, como Assim Marcha a Familia e Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, primeira. denúncia contra policiais que integravam o Esquadrão da Morte. Além disso, era autor do romance Aracelli, Meu Amor, censurado pelo fascista Armando Falcão, então Ministro da Justiça, governo Geisel.

 

Por isso, mantinha-me com cuidado, perto de Hydekel, a fim de não prejudicá-lo. Se Pixote se deixasse caracterizar como delinqüente e viciado em drogas, a coisa se complicaria. Muita gente, em Caxias, apontava o prefeito como protetor de um marginalzinho paulista, assessorado por "um escritor que defendia bandidos".

 

Poucos dias após a mudança da família de Pixote, Renato Campos, meu colega de reportagem no Diário do Grande ABC, telefonou. Sentia-se satisfeito com minha "boa ação", mas pedia que ficasse atento. E por quê? Valdemar, o Dema, e Paulo Ramos da Silva, o Paulinho, estavam envolvidos em roubo de carros e assaltos à mão armada.

 

A informação de Renato deixou-me preocupado. Como colocar Hydekel a par da situação, a fim de que não fosse surpreendido pelos fatos? Resolvi falar primeiro com Dema, que jurou inocência. Jamais se metera com delinqüentes, tinha uma vida limpa. Perguntei sobre Paulinho. Respondeu que o irmão era um garoto sério. Os vizinhos é que inventavam os crimes, por inveja da sua família, desde que Pixote despontou como ator e começou a aparecer na televisão.

 

Os argumentos do Dema não me convenceram. Transmiti a Hydekel o que Renato Campos dissera. A advertência vinha de um companheiro de absoluta confiança.

 

Antes de uma semana de trabalho, na empresa transportadora, Dema criou problema grave: tentou roubar a camioneta que dirigia. Foi afastado das funções e Hydekel sugeriu que saísse de Caxias. Aluguei um quarto para que ficasse morando temporariamente no Méier.

 

Dema ocupou o quarto, tomou banho, trocou de roupa e sumiu. Falei a respeito com Pixote e Paulinho. Não se mostraram surpresos. Pixote disse:

 

"O mano é meio pirado. De repente vai embora, de repente aparece."

 

Josefa cobrava a escritura da casa. Eu dizia que o cartório estava preparando, ela se mostrava impaciente. Atribuía seu nervosismo ao fato de jamais ter tido uma casa de verdade. Necessitava da escritura para melhor acreditar no que via. Ocorre que Josefa elaborava um plano tolo, calcado na sua desconfiança de mulher da rua e colaborava, sem saber, para que minha história pessoal se tornasse ainda mais complicada e, por que não dizer, surpreendente.

 

Vicio e malandragem

 

Paulinho estava sempre em casa. Chamado ao escritório de advocacia, pediu tempo. Precisava resolver "umas coisas" em São Paulo. Pixote saía de manhã, reaparecia tarde da noite. Seu primeiro dia de aula no Tablado foi a glória: os jornalistas estavam por lá, esperando-o. Acabou sendo obrigado a relembrar problemas com a polícia de Diadema e com o Juizado de Menores.

 

A estréia do aluno Pixote, se assim podemos dizer, acabou sendo tumultuada. E ele aproveitou para posar de ator famoso, indispondo-se desde o primeiro momento com os colegas. Em vez de fazer amigos, como era de esperar-se, arranjou inimigos e terminou sendo chamado de "trombadinha".

 

Um outro incidente marcou a curta temporada de Pixote no Rio. Prometeu a uma repórter da revista Fatos e Fotos que podia aparecer ao lado de Marilia Pera, de quem se considerava amigo.

 

Cada vez que procurava Marília, repórter do lado, a atriz dava uma desculpa para não atendê-lo. A incistência de Pixote e a indiferença de Marília estenderam-se por quase uma semana. Esse pequeno problema afêtou bastante o garoto que, ingenuamente, confundia relações de trabalho com amizade.

 

Após faltar a algumas aulas no Tablado, sob o argumento de que estava atarefado com os jornalistas, Pixote reapareceu para o curso. Dessa vez, sem grandes demonstrações de importância. Um aluno como outro qualquer.

 

Procurou-me, intrigado com o que dissera o professor, sobre a necessidade de o ator dominar a "desenvoltura", a "forma", a "beleza", a "integridade".

Abri o livro de Michael Chekhov, li o que significava. Por mais que explicasse ele não entendia e ainda fazia risinho irônico.

 

"João das Neves e Babenco nunca falaram disso" dizia.

 

Quando Pixote foi embora, fiquei preocupado: como podia assimilar as sutilezas da dramaturgia se não sabia ler direito?

 

Sua passagem pelo Tablado corría o risco de ser perda de tempo e uma forma de inibição, à medida em que fosse ficando para trás, já que não entendia, também, o discurso dos professôres.

 

Vergonha de não saber ler

 

Muitas vezes Pixote me procurou para conversar e pedir dinheiro. Sentava ao lado da mesa onde eu trabalhava. Mantinha-se calado. Esperava que falasse primeiro. Era educado e silencioso. Para que não ficasse de mãos abanando, mandava que pegasse livros na estante. Procurava os que tinham ilustrações.

Abria-os, lia primeiro as legendas das fotos. Perguntei se entendia o que lia. Encarou-me com surpresa.

 

"Leio qualquer coisa. Qualé?"

 

"Então, lê essa página, aqui."

 

Esforçava-se. Entendia bem umas palavras, as mais simples, os monossílabos, confundia-se com as outras. Fazia pausas, tentando adivinhar, soletrava.

 

"Quem disse que eu não sei ler?"

 

"Não interessa. Você acaba de provar que lê mal."

 

Fechou o livro, zangado. Olhava-me, nervoso. Disse não ter vindo ao Rio para ouvir sermão.

 

"Então, pra que veio? Pra bancar o malandro?"

 

"Quero estudar mas não consigo. Quando abro um livro, sinto sono."

 

"Dorme e quando acordar pega o livro de novo. Mas, para fazer isso, tem que ficar em casa. Esquece as ruas e as bocas-de-fumo."

 

Ficou furioso. Levantou-se, disse que ia embora. Não voltaria. Mesmo assim, agradecia o que tinha feito por ele.

 

"O que eu fiz não conta, garoto. Importa saber se você está disposto a ser um ator de verdade ou se vai virar um fracasso, lembrando sempre o que passou."

 

"Gosto de lembrar. Quando tou na pior, recordo os momentos da filmagem.

Era tão legal que nem acredito tenha sido verdade."

 

Pixote falava dos amigos, especialmente de Gilberto Moura, José Nilson dos Santos, Jorge Julião. Ria, repetia as brincadeiras.

 

"Lilica (Jorge Julião) virou bicha de verdade no filme. Não sei como conseguia. Taí. Se tivesse que fazer um papel daquele, não fazia."

 

"Por quê? Ator que tem talento faz qualquer papel. É só estudar bem o texto e encarar a coisa sem preconceito."

 

"Jorge lia legal. Até inglês. Nas folgas lia a revista dos artistas. Eu ficava escutando."

 

"Contou a ele que você não sabia ler direito?"

 

"Não. Não gosto de falar disso. Mas vou estudar e quando tiver lendo bem, consigo nova chance na Globo. Se eles ficaram pensando que sou desmemoriado, por não gravar as falas marcadas no roteiro, vão ver o que é bom. Vou ler e dizer tudo muito bem explicado. Como Jardel me ensinava."

 

Dei novos livros para que procurasse ler e guardasse na sua estante: O Pôço do Visconde, de Monteiro Lobato; Espumas Flutuantes, de Castro Alves; o texto da peça de Gianfrancesco Guarnieri Eles Não Usam Black-tie, de onde saiu o filme homônimo.

 

Dias depois reapareceu com a peça, satisfeito com o que havia entendido.

 

"Se conseguisse alguém que me desse umas aulas, em casa, juro que aprendia a ler, em um mês."

 

"Todo dia?"

 

"Até sábado e domingo. Quero aprender o mais rápido que puder."

 

Conversei com Hydekel, falei com a professora Nilza que, por sinal, morava no bairro Paulicéia, não muito distante da casa de Pixote. Nilza estava acostumada com os alunos mais rebeldes. Aceitou o desafio. Com uma condição: o garoto iria a sua casa.

 

Não me recordo se as aulas seriam todas as noites ou três vezes por semana. O certo é que Pixote jamais apareceu para estudar. Reclamei. Falei firme com ele. Procurou Nilza, olhos vermelhos, palavras engroladas, todos os sintomas de quem estava drogado. Ela deu seu compromisso por encerrado.

 

Esperei que Pixote voltasse a me procurar, o que não demorou.

 

"Você optou pela vagabundagem. É ou não é?"

 

"Tou no maior sufoco."

 

"O que houve dessa vez? Qual é a desculpa?"

 

"Não consigo me concentrar. Me esforço pra pular fora da droga, mas não é fácil. Além disso, há uma outra coisa que precisa saber..."

 

Encarei Pixote que enxugou os olhos na ponta da camisa.

 

"Tou gamadão numa garota em Diadema. A Cida. Acontece que ela não deve entrar nessa de gostar de mim... Ninguém deve gostar de mim..."

 

"Por quê? Que maluquice é essa?"

 

"Me botaram na linha de pênalti, tá sabendo como que é? O tal do Polli e os amiguinhos dele. Quando eu for a Diadema, vão me grampear."

 

Procurava concentrar-me no trabalho, mas era impossível não me preocupar com Pxote que, além de viciado em drogas, metera-se em complicações de vida e morte.

 

Estávamos praticamente no final de setembro de 1984 e ele não frequentara com assiduidade as aulas no Tablado, não comparecera um dia sequer ao emprego na gráfica, onde cumpria horário mínimo, não fora estudar com Nilza.

 

"Sou um caso perdido", disse-me. "Pensando bem, não devia ter me metido na porcaria do filme."

 

Pedi que explicasse melhor.

 

"Ora, quando eu fazia um ganho, ninguém se incomodava comigo. Eu era um bunda suja. Depois do filme, fiquei visado. Vírei Pixote. E não adiantou nada."

 

"Você não ia conseguir ser trombadinha a vida inteira. Ou procurava um trabalho ou acabaria em cana. Sabe qual é o futuro dos que caem nas garras da polícia?"

 

"O Dema se dá bem. Nem sei o que veio fazer no Rio. A turma dele fatura alto no AhCDM'."

 

Era difícil desviar Pixote do caminho que o ligava ao submundo. Pedi que falasse da família. Dos irmãos maiores.

 

Disse que o Paulinho já estivera preso, na delegacia de Diadema. Além disso, atuava em São Bernardo do Campo. Sua turma, a mesma do Dema, escondia-se no Eldorado. Entre os parceiros havia um tal de Donizetti, ladrão decarros. Mestre em silenciar os mais sofisticados alarmas. Paulinho funcionava como articulador da gangue. por isso, adiou sua estréia como funcionário do escritório de advocacia. Seu plano era fazer "um ganho de responsa", a fim de cair fora de Diadema e de São Paulo.

 

"E você acha que virar bandido é o caminho?"

 

Ficava chateado. Estava consciente de que tinha que estudar. Mas, para isso, devia passar horas a fio diante dos livros. Esse o seu problema.

 

Dei a ele um exemplar do Passageiro da Agonia, dizendo:

 

"Sabe quantos rapazes agiam na gangue do Lucio Flávio? Uns 50. Foi uma das maiores quadrilhas já organizadas no país. Sabe quantos ficaram vivos para contar a história? Dois: Wilsão e Portuguesinho."

 

Pixote fez uma careta, coçou a cabeça.

 

"Eu sei que Paulinho e Dema vão terminar quebrando a cara. Acontece que, até lá, eles tão numa boa. E eu? Sabe o que mais quero, além de estudar? Ter uma motoca que seja minha. Que possa estacionar em qualquer lugar sem bronca com a Polícia. E quando que vou ter minha motoca? Nunca!"

 

Pedia que tivesse calma. O mais difícil havia acontecido: acabavam de ganhar uma casa nova e mobiliada, com despensa e geladeira cheias de comida, mais emprego para Josefa, Paulinho, ele e Valdemar, além de escola para os irmãos menores. Lembrei que era a hora da contrapartida: se demonstrasse boa vontade e interesse em progredir nos estudos, estava claro que novos caminhos se abririam.

 

Em poucas semanas Pixote movimentava-se pelo Rio com absoluto desembaraço.

Mas não freqüentava o curso do Tablado. Passeava por Copacabana, metia-se nos inferninhos, via filmes violentos e pornográficos.

 

Certo dia, para surpresa minha, apareceu lá em casa com a peça de Guarnieri, Eles Não Usam Black-tie. Colocou-a na ponta da mesa.

 

"Sei tudo que tá nesse livro."

 

"Não acredito."

 

"Paulinho leu pra mim. Só o que eu não entendia."

 

Soube, então, que Paulinho passara três semanas em Diadema, acertando os ponteiros com sua turma. E fiquei preocupado. Pixote contava a verdade ou o irmão planejava um golpe em Duque de Caxias?

 

Pixote gostava de conversar comigo. Por isso, decidiu falar de um novo problema que o preocupava:

 

"Paulinho, também, tá marcado pra morrer."

 

"Quem te disse?"

 

"Polli arroxou ele. E sabe por quê? É meu irmão. Polli e os cupinchas dele. Filhos da puta! Acham que escapei da tranca por causa do filme. Têm inveja."

 

"Só porque você é o Pixote no cinema vão acabár com Paulinho?"

 

"Por isso e porque ele não deixa a peteca cair. Se conseguir driblar o Polli, me dá uma Kawasaki. Zerinho."

 

"Como vai arranjar tanto dinheiro?"

 

"Sei lá. Deve ser um ganho legal que tá bolando."

 

Enquanto Paulinho fazia a ponte Rio-São Paulo, trasendo informações as mais preocupantes, Josefa criava problemas no emprego. Dizia não estar acostumada com "aquele ti po de serviço", preocupava-se com os filhos menores, sozinhos em casa.

 

Na verdade, Josefa habituara-se a uma vida marginal, vendendo bilhetes de loteria nas ruas, os garotos por perto. Como, agora, colocá-la em um emprego, fazê-la aceitar a casa limpa? Como exigir que fosse racional, que se esforçasse para recuperar o tempo perdido, se a visão que tinha do mundo era outra?

 

Em menos de duas semanas, os alimentos estocados para no mínimo um mês sumiram da despensa e Josefa, angustiada, telefonava-me, querendo mais ajuda do prefeito.

 

Estranhas relações

 

Valdemar, sumido durante semanas, reaparecera. Procurei ter uma conversa com ele mas, ao contrário de Pixote, não tinha "acessos" de franqueza. Pelo contrário. Fazia risinhos, mentia. Não acreditava em nada do que eu dizia e estava sempre esperando pelo pior: que policiais de São Paulo surgissem no Rio, à procura dele.

 

Combinei com o motorista Tião que Ficaríamos nas imediações da então decadente galeria Imperator, no Méier, onde eu sabia que Dema mantinha encontros com amigos. Quem deu a dica foi Alberto Trentino, dono da casa, na rua Aristides Caire, onde aluguei o quarto para ele.

 

Meio nervoso, Trentino dizia não entender o comportamento do rapaz.

Passara semanas sem aparecer, desde que o quarto fora alugado. Lá deixara, unicamente, a mala, umas peças de roupas, jornais velhos. Quando Trentino já não contava mais com o inquilino, Dema reaparecia, sempre de madrugada, fazia barulho, abrindo e fechando a mala. Antes do amanhecer, sumia. O senhorio não tinha certeza mas suspeitava:

 

"Algumas vezes ele estava acompanhado."

 

Tião voltou para o carro. Contou uma história inacreditável. Em um barzinho, na galeria Imperator, Dema movimentava-se como o dono da casa. Na mesa, três jovens, sendo um negro, mais velho e forte, provavelmente trinta anos. Os outros estavam na faixa dezoito, vinte.

 

Não punha em dúvida o que Tião dizia, mas queria ver de perto. Com os próprios olhos. E como fazer, se Dema me conhecia? Tião disse que, em frente ao barzinho, havia uma loja de consertos de sapatos.

 

Pedi cadarços novos ao artesão, sentei em um banquinho e, de lá, parcialmente escondido pelo balcão, pude ver Dema e seus amigos tomando cerveja. Não escutava o que diziam, mas era Dema quem mais falava. Não havia outros clientes no barzinho. Somente eles e o dono, ao lado da registradora, lendo jornal.

 

Comentei com o artesão sobre o grupo. Em pleno dia de trabalho e os boas-vidas tomando cerveja. O homem respondeu em voz baixa como se temesse ser ouvido. O negão era o famoso Tindó, traficante de cocaína e chefe de uma gangue especializada no roubo de carros.

 

"É aí que eles discutem os planos", disse o artesão piscando um olho.

 

"E o dono do bar?"

 

"Pelo que dizem, tá metido com os vagabundos."

 

"O magricela tem pinta de ser o chefe."

 

"Mas é novato. Tindó se encontra, aí, com muita gente, fique o senhor sabendo."

 

"E a polícia?"

 

"Hum!... Tindó é cheio da grana, chefe. Não tem medo de polícia nem de ninguém. Dizem que já matou uns dez. É o rei do Morro do Adeus."

 

Tião me deixou na Prefeitura de Caxias. Tinha que alertar Hydekel. Mas, nessa tarde, as ante-salas do seu gabinete estavam repletas. Por sorte, encontrei com Dalva Lazaroni que participava do Projeto Pixote, criado para amparar meninos de rua.

 

Sempre amável, Hydekel perguntou como estava o pessoal na casa nova. Eu quis saber se a escritura já havia sido entregue a Josefa. Disse que não, mas o tabelião prometera para o final da semana. Passei ao que interessava.

 

Falei do que acabara de ver na galeria Imperator, disse das esquisitices do Dema no quarto alugado, no Méier. Hydekel já havia telefonado para a delegacia de Diadema, São Paulo, estava a par dos desmandos do moço. Assumiu a responsabilidade. Não viriam policiais para seguir Pixote e seus irmãos.

 

A polícia de Duque de Caxias resolveria o problema, caso fosse necessário.

A partir daí passei a entender que o projeto de instalar Josefa e os filhos, na Baixada Fluminense, dificilmente daria certo.

 

Mãe coragem

 

Josefa decidira compensar, com carinho e muito amor, a carência em que viviam os filhos. Por isso, esforçou-se para que, mesmo pobres, se mantivessem unidos.

 

Todos os dias, durante anos, vendeu bilhetes de loteria no Viaduto do Chá e adjacências. Os garotos estavam sempre com ela, aprendendo as lições das ruas. Boas e más lições. Era tal seu zelo, que nunca se interessou em contratar uma vizinha, na favela onde morava, para tomar conta dos garotos.

Queria-os bem perto, ainda que corressem o risco de virar trombadinhas.

 

Josefa temia ver a família desgarrada. O excesso de amor pelos filhos talvez tenha sido seu erro. Amor e pobreza. Amor e falta de condições mínimas para educá-los. Amor e medo.

 

O "espírito" das ruas também afetou Josefa. Habituou-se a uma vida de convivência fugaz com os que diziam gracejos, perturbavam, faziam promessas de apoio não cumpridas. Mentiras e verdades tinham o mesmo peso; tudo terminava em ruidoso vazio. E a multidão passando, passando. Somente ela permanecia parada, âncora da solidão e do envelhecimento precoce, oferecendo a sorte, quando vivia na mais profunda miséria.

 

Relacionando-se com tanta gente, principalmente com os homens, seus principais clientes, jamais um deles a encarou como mulher. Josefa morrera para o mundo, em plena multidão inquieta, no Viaduto do Chá. Josefa aturdida pelas frustrações, sem sonhos, sem esperanças. A morte do marido foi uma dor tão grande que doía sempre. Há momentos em que se recordava de Jandaia do Sul e, sem dúvida, embora pernambucana de Caruaru, era para lá que gostaria de voltar. De onde, quem sabe, talvez nunca devesse ter saído.

 

Josefa envelheceu no sol das ruas e aprendeu o riso cínico dos mercadores, dos especuladores, a submissão dos ladinos. Josefa personificando a derrotada, mas um imenso amor pelos filhos, na cidade dos indiferentes.

 

"Minha mãe", dizia Pixote, "é uma sombra do que foi. Era bonita. Se cuidava. Depois da morte do pai ficou assim. Só pensa em trabalhar e economizar pra gente ter o que comer, ao menos uma vez por dia."

 

Indiferente da sorte

 

Na tarde em que li a carta de Hydekel ela deu uma olhada no barraco, como quem se despede. Disse que ia gostar de viver em Caxias. Por fim, como imaginavámos, havia chegado o momento de sorte para Josefa e seus filhos.

Sorte que não saiu de um número da loteria, mas do coração de um homem importante, preocupado com os que sofrem, com os que necessitam de tão pouco para sobreviver.

 

Nessa tarde, apenas Fernando estava em casa. Ficou feliz com a idéia da mudança. Foi buscar o Infância dos Mortos, que havia encapado mas, pelo jeito, jamais fora lido. Pediu que autografasse.

 

"Mudar daqui é uma boa, não é, mãe? Já não dá pra viver em Diadema.

Quando não se tem amolação com os vizinhos, são os tiras que perseguem. Um tal de Polli fica o tempo todo no pé do Paulinho e do Dema. Não dá folga."

 

O que Pixote não disse: nessa época (1984) Dema já era considerado "elemento de alta periculosidade" pela polícia. Por sua vez, Paulinho estivera preso e o primeiro assalto de Pixote rendeu-lhe um belo inquérito.

Foi salvo da prisão pela imprensa e a interveniência do Juizado de Menores.

 

Josefa não acreditava, como não acredita até hoje, no que diziam os policiais. Como se estivesse anestesiada, ignorava a culpabilidade dos filhos. Paulinho, Dema e Pixote assaltantes? Nunca!

 

Os policiais batiam freqüentemente à sua porta porque eram invejosos. Não se conformavam em ver um garotinho criado na favela, como Fernando, transformado no Pixote do cinema.

 

"E ele só não ficou na TV Globo por causa de outros inimigos que apareceram por lá", lembrava. "O senhor foi mandado por Deus, seu Louzeiro.

Agradeça ao prefeito de Caxias. Que homem bom! Nunca vou esquecer da oportunidade que tá nos dando. Pixote vai gostar de morar em Caxias. Paulinho e Dema vão ficar satisfeitos. Eles são muito injustiçados por aqui."

 

Ocupação diferente

 

O trabalho de Josefa, na clínica geriátrica, marcou o início de uma série de aborrecimentos. Reclamava de quase tudo e dos filhos que ficavam sozinhos em casa. Na verdade, sentia falta da liberdade das ruas. Nas novas atividades, inseria-se em um regime hierárquico. A prática que adquirira de pedir deveria ser refreada. O salário seria pago somente no final do mês. Não havia vales ou empréstimos, tudo ao contrário do que estava acostumada na sua relação com as casas lotéricas.

 

Josefa fora colocada em um sistema organizado, burocratizado, ela que jamais fizera qualquer coisa dentro de horários ou padrões determinados, que somente conhecia as ruas e sua filosofia; que se acostumara ao jogo da desconfiança, sempre com um risinho matreiro de quem se deixa iludir para tirar vantagem. Josefa sem constrangimentos, capaz de encarar doutores e malandros no fundo do olho. Josefa agressiva e guerreira, nas batalhas da sobrevivência.

 

Agora, tudo havia mudado. Bastava limpar os banheiros, os quartos dos internos, tirar o pó dos tapetes e esperar o salário no final do mês.

 

"E se os donos venderem a clínica, antes do dia"

 

Não haveria problema, dizia-lhe. Quem comprasse, assumiria os encargos.

 

"E se eles não tão gostando do que faço e deixam de me pagar?"

 

"Você tem carteira profissional assinada por um período de três meses, o que é a praxe. Se no final do mês acharem que não serve, pagam o que devem e tratam de substituí-la."

 

Josefa perguntava pela escritura da casa. Era outro motivo da sua desconfiança.

 

"Gosto muito do senhor, seu Louzeiro, mas só acredito que esta casa é minha e dos meus filhos no dia que receber o papel do cartório. Já sonhei com essa escritura. Deve ser um documento e tanto."

 

Pedia que tivesse paciência. O importante, agora, seria adaptar-se ao trabalho. Josefa não entendia, mas se esforçava na limpeza da clínica.

 

De volta à casa, desdobrava-se em atenção aos filhos. Às vezes Pixote aparecia para jantar, os olhos vermelhos de drogas. Paulinho ia com freqüência a Diadema, passava semanas por lá. Quanto ao Dema, Josefa não sabia por onde andava.

 

O que Dema tramava?

 

Na terceira semana em que Josefa estava instalada em Caxias, recebo telefonema do cartório: a escritura fora concluída. A proprietária devia recebê-la, pessoalmente. Hydekel estaria presente, junto com o dono da imobiliária. Apareceram alguns repórteres. Josefa mostrava-se satisfeita, embora fizesse seu risinho de vendedora de bilhetes.

 

"O que houve?"

 

Ela olhava o papel timbrado. Uma única folha, escrita na frente e no verso, devidamente carimbada e assinada. Para Josefa não bastava. Suspeitava.

Alguma coisa estava faltando.

 

"Como, faltando? 'Tudo que precisa constar em uma escritura está aí."

 

Em casa, Josefa abriu o jogo. Esperava receber não apenas um papel, mas vários. Todos com muitas letras e muitas cláusulas. Coisa pesada, substancial. Aquele papelucho pouco representava para ela.

 

Passei semanas sem visitá-la. Que ficasse sozinha, tentando adaptar se à casa, aos vizinhos, ao emprego da clínica geriátrica. Pixote aparecia com freqüência. Queria que a professora Nilza voltasse a tentar alfabetizá-lo.

Entendia que ela devia cobrá-lo com maior rigor. Se quisesse, podia até espancá-lo ou colocá-lo no castigo.

 

"Tá certo que ainda não engrenei nessa de estudar, mas se ela fosse dura comigo, juro que eu acabava topando."

 

"Quer dizer que a professora é culpada por tua preguiça!"

 

"Quando eu pegar gosto, ninguém me segura."

 

"Tudo bem, Pixote. Acontece que estudar é coisa muito pessoal. Precisa haver seu interesse. Sem isso, a tarefa torna-se impossível."

 

O garoto ficava pensativo. Perdido.

 

"Onde anda tua cabeça, Pixote?"

 

"Numa pá de coisa. Tão querendo fechar Paulinho. Dema vai terminar se encalacrando aqui no Rio. Prometi a minha garota que ia a Diadema este fim de semana e não tenho um puto. Cida é legal. A gente se conhece faz tempo. Acho que vou casar com ela. Antes, tenho que conseguir bastante dinheiro, pra comprar um carro ou uma moto. Não vou aceitar a motoca que Paulinho prometeu.

Pode dar rolo."

 

"E o Tablado? E a relação com as pessoas do teatro e do cinema?"

 

"Sei lá. Por mais que me esforce, não consigo fazer amizade por aqui. Até agora, tirando você e o prefeito, não conheço ninguém. Nem o Lourenço Carvalho que pagou meu curso."

 

"Posso dizer uma verdade, Pixote?"

 

Manteve-se calado, olhos de menino acuado.

 

"Você está se transformando em delinqüente, sabia? E mais: ou fica no Rio e cria raízes, inicia vida nova ou vira bandido."

 

"Você disse na Manchete que eu era inocente."

 

"Mentira. Não falei da sua inocência. Disse que a polícia havia praticado um ato de violência e que você era um garoto de talento, protagonista de um filme importante. Foi isso que disse."

 

"Tudo bem. Acabo sendo um problema pra todo mundo. Mas eu vou sair dessa.

Juro que vou.”

 

Somente aí, viu a cópia em 16 mm, da fita Pixote, a Lei do Mais Fraco, sobre a mesa.

 

"Posso dizer mais uma coisa?"

 

"Sou todo ouvidos.”

 

"Qualquer hora dessa quero ver o filme, numa boa.”

 

"Você não viu a própria fita em que trabalhou? "

 

"Pela metade. Sempre vejo o começo, lá pelo meio. O filme todo nunca quis ver.”

 

"Pode explicar por quê?"

 

"Não quero que esse filme acabe."

 

"Tá pirado, tá?"

 

"Tou de cara limpa, tá sabendo? E quando não tou drogado é que fico lembrando dos dias que trabalhei com Babenco, no quartel velho. Na minha cabeça o filme tá sempre rodando. Uma porção de gente, muita luz, eu na frente da câmera, dando meu recado. Foi a coisa mais legal que já aconteceu comigo!"

 

Terceira Parte

 

Brincando de cinema

 

Nos fins de semana, quando fugia do Rio, Pixote ia a São Paulo, com dois objetivos: encontrar-se com Cida, a namorada, e revistar o velho quartel da rua Conselheiro Brotero. Ficava sozinho, na calçada em frente, sentado no meio-fio, comendo sanduíche, tomando refrigerante e recordando as filmagens.

Por não gostar das esquisitices do irmão, Dema dizia:

 

"A porcaria do filme acabou com o garoto. Ele nem sabe mais que um dia se chamou Fernando. E por causa dessa mania de querer ser ator, Paulinho e eu tamos no maior sufoco. Desde quando ele ficou famoso, os tiras tão baixando.

Tem uma porrada de neguinho esperto em Diadema, mas só nós dois tamos na mira dos home. A gente é irmão do Pixote. Basta isso."

 

Dessa vez, um dos nossos últimos encontros, na pracinha em frente à antiga Prefeitura de Caxias, Dema estava disposto a jogar conversa fora, como costumava dizer. Ia embora para São Paulo, não retornaria. Não queria dar problema ao prefeito Hydekel Freitas, sabia que os policiais andavam à sua procura. Falou de Paulinho. Disse que estava se virando. Perguntei sobre o trabalho no escritório de advocacia. Dema fez um arzinho de riso.

 

"Negócio do Paulinho é outro."

 

Argumentei que ele aceitara o oferecimento do prefeito. O escritório era conceituado. Poderia trabalhar, ganhar algum dinheiro e estudar. Dema pôs-se a rir. Fiquei chateado com a exibição de cinismo.

 

"Paulinho tá numa pesada, seu Louzeiro", disse Dema. "E com aquela cara de garotão, atrai muita gatinha, o que complica o lado dele. Comigo não tem essa. Namoro só no motel. Vai daí que a gente tem um trato: vou fazer um ganho logo que volte pra São Paulo. Os tiras, que já me conhecem, vão correr em cima. Minha função vai ser essa: segurar os home enquanto Paulinho e uns amigos estouram o banquinho maneiro, dentro de uma fábrica, em São Bernardo."

 

"Não tem medo de me contar uma coisa dessa? E se resolvo te denunciar, como que fica?"

 

"A gente sabe que o senhor não faz isso. E mesmo que denunciasse, ia ser sua palavra contra a minha. Com a grana que Paulinho vai pegar, compra nosso sossego. Quando nada por uns tempos. Se Pixote ainda tiver por ai, na pior, damos um empurrão nele. Sabe o que que ele mais quer no mundo? Uma motoca. Paulinho bota ele montado numa 400 cilindradas e adeus brincadeirinha de cinema. Lance de pobre é outro: enquanto pode mexer os braços e as pernas, tem mais é que se dar bem, ou apodrece na favela."

 

"Quantos assaltos você já praticou Dema?"

 

"Aqui no Rio, nenhum. Tentei armar, só de brincadeirinha, o Tião quase morre."

 

"Quantos assaltos?"

 

"Lá em São Paulo, uns cinco ou seis. Mas tudo micha. Com esse lance do Paulinho é que a gente vai levantar a cabeça."

 

"E o Tindó, onde entra na história?"

 

Dema encara-me entre surpreso e indignado. Seus olhos se estreitam de raiva.

 

"Não gosto de ser fiscalizado, tá sabendo? "

 

"Ninguém gosta. Mas a pessoa que te viu com Tindó, na galeria Imperator, está querendo teu bem. Tindó é um bandidão. Traficante de drogas dos bons.

Responde a pelo menos uns dez processos, inclusive por seqüestro e contrabando de armas. Sabia disso?"

 

"Claro. Tindó é pedra noventa. Transa lá em São Paulo, também. A gente fez um acerto. Mas não vou me meter em complicação por aqui. Não quero que o prefeito tenha qualquer problema por minha causa. O que ele fez por minha coroa foi legal. Legal, mesmo. Quando botar o pé em Diadema, aí mando vê.

Tindó tá prometendo rachar os ganho. Cinqüenta por cento pra cada um. O tipo da proposta que não se recusa. E sabe por quê? Tindó só lida com gente que decide. E comigo não tem vacilo."

 

"E o Fernando, como fica?"

 

"Se eu me der bem, fica numa boa. Nunca mais vai mendigar grana com Babenco nem com ninguém."

 

Depois dessa conversa na pracinha da Prefeitura, em Caxias, Dema saiu de circulação, como era comum dizer se na reportagem de polícia. Conseguiu trabalho em uma metalúrgica, em São Bernardo do Campo, onde havia uma agência do Bradesco, marcada para ser assaltada. Sua função, além de posar como operário, seria observar o movimento dos seguranças, a chegada e sáida dos carros fortes, dias de maior movimento, etc.

 

Estratégia de ensino

 

Pixote continuava lutando consigo próprio, a fim de conseguir estudar.

Hydekel o recebeu diversas vezes, conversava com ele, procurava encorajá-lo.

 

"Quando vencer essa resistência, vai ver que estudar é a melhor coisa do mundo, rapaz", dizia Hydekel, como se falasse a um filho.

 

Foi nessa ocasião que lembrei: e se escrevesse uma cartilha sobre o velho quartel onde Babenco havia rodado boa parte da fita? Falei com Pixote, que se mostrou interessado. Como eu não conhecia a locação em detalhes, pedi que me ajudasse.

 

"Faço uma planta do local. Aí você não esquece de nada", disse Pixote.

"Nem da barbearia, onde cortaram meu cabelo. Nem do dormitório, onde houve o quebra-quebra e a gente tacou fogo nos colchões."

 

Enquanto falava, ia riscando uma folha de papel ofício.

 

"Isso aqui é a ruazinha, logo na entrada. Era calçada com pedras (não sabia dizer paralelepípedos). No primeiro prédio ficava a cozinha e o refeitório. Em frente, a barbearia. Depois, vinham as celas e a quadra de esportes. Desse lado - fez uma quadradinho - há uma passagem estreita. A gente puxa uma tampa enferrujada, sai num salão legal. Sabe o que que eles faziam nessa sala? Torturavam os comunista."

 

"Mentira, lá não havia nenhuma passagem secreta."

 

"E quem falou em passagem secreta?", argumentava Pixote. "Era uma portinha que, pra entrar, eu tinha de me abaixar."

 

"Por que gostava da tal sala?"

 

"Ora. Fechava a portinhola, pelo lado de dentro, ninguém sabia que eu tava lá. Sempre quis ter um lugar só meu."

 

"Por que isso?"

 

"É legal. Eu espiava por um buraco, via o pessoal da filmagem ralando. O maluco do Dito corria atrás do Fumaça, Garotão comia Lilica no escurinho, numa boa."

 

"E você, onde entra nesse novo filme. No filme que não acabou?"

 

"Eu queria comer dona Sueli.* Quando ela me beijou, na hora que a gente tava jantando, naquele restaurante do filme, fiquei com o maior tesão.

Depois, Dito trepou com ela, na minha frente. Quase dou porrada nele."

 

"E a chupada no peito? Como que começou?"

 

"Dona Sueli me segurou, como se eu fosse um bebezinho. Me balançou. Minha cara encostou nos peito dela. Aí eu meti a boca. Ela respirava forte e me apertava. Tava era gostando não. Custei a largar. Aposto que Babenco ficou grilado."

 

* Sueli, personagem vivida por Marilia Pera, em Pixote, a Lei do Mais Fraco.

 

Quase cartilha

 

Organizei uma "cartilha do quartel" para Fernando. As palavras, divididas em sílabas, eram relativas à locação, material de filmagem e a nomes de membros da equipe: Jar-del, Síl-via, Ro-dol-fo, pro-du-Ção, câ-ma-ra, len-te, fu-são, ce-no-gra-fia, ne-ga-ti-vo, pla-tô, ro-tei-ro, etc. Em cada palavra, marcava as consoantes e as vogais.

 

Rapidamente, e com o maior interesse, Pixote lia e relia. Um sucesso. De fazer inveja ao método Paulo Freire. Dias depois, quando nos encontramos na Prefeitura, ele continuava com os papéis no bolso. Já sabia ler quase tudo, mas escrevia com dificuldade. A palavra paralelepipedo ele não conseguia dizer.

 

"Tem muito lele pra meu gosto", brincava.

Também, não distinguia os fonemas consoantes dos vogais, nem compreendia a classificação das palavras: monossílabos, dissílabos, trissílabos. De qualquer forma, a coisa parecia funcionar. Tivesse continuado em Caxias, teria se alfabetizado. Acontece que Josefa decidiu surpreender-nos. E conseguiu. De posse da escritura da casa, tratou de negociá-la com um oficial da Marinha, que dizia ser o 3º sargento Pedro Manoel.

 

Pelo imóvel Ydekel pagou 18 milhões, à vista. Josefa passou-o adiante, nas seguintes condições: 6 milhões em dinheiro e outros 6 em promissórias mensais de 1 milhão, sem reajuste, sem nada. Um verdadeiro presente caído do céu nas mãos do marujo. Teriam sido pagas as promissórias? Ninguém sabe. O certo é que, de repente, Josefa resolveu deixar Caxias. Tinha que voltar o mais depressa possível a Diadema, embora não explicasse por quê.

 

Na véspera da mudança ela me telefonou, envergonhada. Hydekel ficou triste. Pixote esteve na Prefeitura. Quase não falou. Conversamos no barzinho. Exigi explicação. A atitude de Josefa não era correta, mas parecia um golpe. Fernando disse que Paulinho tinha sido preso, durante um assalto.

Josefa não podia ficar longe do filho, ainda que tivesse de perder tudo.

 

"Paulinho é duro na queda", afirmou Pixote, "mas na tortura ninguém segura o tranco. Ele entregou uma porção de gente. Disse até que eu sou do bando, o que não é verdade."

 

"E, agora?"

 

"Se a mãe vai, vou com ela."

 

"E se te pegarem? Numa segunda prisão a imprensa não vai mais te dar apoio. Muito ao contrário."

 

"Seja como for, acompanho minha mãe."

 

Foi a última coisa que Pixote me disse, emocionado.

 

O bom começo

 

Em outubro de 1980, o filme Pixote, a Lei do Mais Fraco fazia sucesso em São Paulo. Lançado, exclusivamente, no Cine Gazetinha, lá ficou quatro semanas, a casa sempre cheia. Depois, teve relançamento num circuito que compreendia os cinemas Copan, Regina, Paromount 4, Center Lapa, Ibirapuera 1, Grande São Paulo e Interior do Estado.

 

Nessa época Pixote (Fernando Ramos da Silva) já estava contratado pela Globo. O programa Fantástico mostrou o bairro e a casinha em que residiam o pequeno ator e sua família: cinco irmãos homens, quatro mulheres, a mãe Josefa Ramos da Silva, vendedora de bilhetes de loteria nas ruas de São Paulo.

 

Em uma entrevista ao jornal Diário Popular, São Paulo, Fernando contava com certo orgulho que, ao fazer o teste para o filme de Hector Babenco, havia uma multidão de garotos. Ficou entre os 30 selecionados. Mas os testes continuaram por muitos dias e ele terminou sendo o escolhido para protagonizar a fita. O diretor ofereceu-lhe 15 mil por mês. Como o filme terminou atrasando, ganhou 60 mil a mais, que passou à mãe.

 

Na entrevista Pixote dizia: "Poderia ter sido melhor diante da câmera, se já tivesse alguma experiência anteriorno cinema." O que não aconteceu. Havia trabalhado apenas como um menino que vendia doces, na peça O Último Carro, de João das Neves, encenada no Ibirapuera.

 

Nas sessões especiais Fernando e os garotos do elenco tiveram a oportunidade de ver a fita. Mas a emoção era tanta que ele não se preocupou em assimilar a história. Via sua parte, eufórico, não havia condições de concentrar se. Por isso, queria ver tudo de novo e sozinho, sem ninguém para perturbar.

 

Quando terminaram as pré-estréias foi ao Cine Regina, onde Pixote, a Lei do Mais Fraco estava sendo exibido. Apresentou-se como o ator principal do filme. Não permitiram que entrasse. Alegação: a fita era imprópria a menores de 18 anos e ele, na época, estava com 14, parecendo ter 10.

 

Na entrevista ao Diário Popular Pixote fazia planos. Para todos os efeitos era um garoto que havia conseguido o impossível. Graças ao seu talento, ia poder viver melhor, em companhia da família, ocuparia uma casa de verdade, instalaria um aparelho de vídeo para ver os filmes de James Dean, estudaria e, nas folgas, jogaria pelada com os amigos.

 

Na mesma entrevista falava dos momentos dificeis da sua atuação na fita.

Foi quando viveu o papel de trombadinha, assaltando pessoas nas ruas. Outra situação que o impressionou: a seqüência em que fura a corista (Elke Maravilha) com um canivete, dentro da boate.

 

As cenas era tão reais que o garoto temia ser preso e levado para a Funabem. Lembrava que seu bom desempenho acontecera por causa das lições que recebera do diretor de teatro João das Neves.

 

"Caso não tivesse aprendido com ele, não teria passado no teste do filme.

Dos 30 escolhidos pela produção, todos foram caindo fora, por eliminação, até que fui premiado com o papel de personagem principal."

 

Contratado pela Globo, lembrava o jornal, Pixote seria convocado para trabalhos em especiais e poderia até aparecer numa novela.

 

"Mas nada disso modificará sua cabeça", dizia o repórter, "pois ele continuará sendo o moleque, o piá, o pivete, o menino, o guri, o Pixote de Diadema."

 

Problemas com a fama

 

Enquanto o filme fazia carreira, e Fernando recebia o salário mensal da Globo, foi assumindo a postura de reizinho do bairro. Por um momento, tornou-se o garoto mais popular de Diadema. Era apontado nas ruas.

 

A vida em casa modificou-se. Tinham comida garantida. Almoçavam e jantavam, compravam roupas, Pixote passou a usar uns tênis caros, que causavam inveja aos garotos da vizinhança.

 

Josefa saldou os débitos na padaria e no açougue. Já não precisava trabalhar todo dia. Se chovia, não pegava bilhetes para vender. Ficava cuidando dos filhos. Mas Fernando, em vez de estudar, ia para a rua jogar bola ou disputar partidas de sinuca com os amiguinhos.

 

Nos botecos, diante dos curiosos, falava dos planos, já com certo ar de vitorioso. E, além dos planos, fazia críticas a atores famosos que integravam o elenco do filme de Babenco.

 

Pixote foi se tornando antipático. Impertinente. Esnobava com suas roupas novas, os tênis caros, o relógio de pulso sofisticado. Podia bancar quantos tempos de sinuca desejasse. E o dono do salão, embora sabendo que um menor não devia jogar, fazia vista grossa. Pixote falava do seu futuro na Globo.

 

"Primeiro, faço um Caso Especial, ou até uma minissérie: depois entro de cabeça numa novela. Se for alguma coisa parecida com o filme do Babenco, tiro de letra."

 

Ao redor dele, garotos sem chance observavam. E, além dos garotos, homens fracassados, sem emprego, que passaram a vida esperando uma oportunidade e, enquanto esperavam, tomavam umas e outras, que ninguém é de ferro.

 

Na pequena platéia, o japônes Zurkawa, inspetor de quarteirão, cujo salário dependia da boa vontade dos moradores do Jardim São Judas Tadeu, provavelmente o primeiro lugar do ABCDM em que os justiceiros começaram a atuar. Zurkawa pertencia a grupos de matadores.

 

Falastrão e exibicionista, Fernando pagava o tempo de jogo de quem se declarava sem dinheiro. No segundo mês de salário, deu só metade do que recebeu à mãe. O resto, estourou com as namoradinhas, passeios, aluguel de motos. Os estudos iam ficando de lado.

 

Sempre que chegava em casa, havia visitas: mocinhas da vizinhança. Queriam falar com ele, tocá-lo, abraçá-lo pois, além de famoso, tinha amigos como Marília Pera, Elke Maravilha e Jardel Filho, na época fazendo o maior sucesso nas novelas.

 

De um simples menininho, maltrapilho e feio, Fernando, o Pixote, transformava-se em mito. Como se estivesse vivendo um conto de fadas. Cercado de atenções, contava histórias, falava de suas relações de amizade com os grandes astros.

 

Já nessa época Dema não escondia a inveja que tinha do irmão. Como que Fernandinho podia estar com aquela corda toda, com tantas garotas, se ele, o mais esperto da família, não conseguia atrair a atenção de nenhuma delas?

 

Todos queriam Pixote

 

Nos programas de rádio e televisão, nos jornais e revistas, Pixote continuava sendo solicitado. Não raramente, carros de reportagem paravam diante do seu barraco. Quando aparecia uma "unidade móvel" da TV Globo, juntava gente.

 

No meio dos jornalistas, no clarão dos spotlights, lá estava ele dando as cartas. Falando e falando, fazendo críticas aos atores com os quais trabalhara, e dos quais não gostava.

 

Enquanto a fama de Fernando crescia, diretores de teatro e de cinema, da chamada boca do lixo, o adulavam. Todos tinham projetos, gostariam que o garoto assumisse um papel. Fernando era Pixote, Pixote vendia a fita de Babenco, dentro e fora do país.

 

Esperto, Fernando recusava as ofertas. Dizia que assinara um contrato de exclusividade com a Globo. Qualquer trabalho extra poderia criar-lhe problema. Estava na mira para a próxima novela das 8. No dia seguinte a conversa era reproduzida nos jornais. Nas colunas de fofoca, nos noticiários das emissoras de rádio.

 

Por um momento, breve momento, Fernando Pixote Ramos da Silva foi o garoto favelado mais importante do país. Os fotógrafos caprichavam nos ângulos e ele, tão feio, começava a ficar até simpático. As entrevistas versavam sobre dois temas: o filme e o contrato.

 

Por sua vez, Babenco sentia-se feliz. Trabalhando na televisão, Fernando deixaria de persegui-lo com dinheiro. Josefa já havia conseguido advogado para cobrar da H.B. Filmes um certo percentual prometido a Pixote. Seria, obviamente, sobre a renda líquida da fita, coisa dificil de ser calculada no nosso cinema...

 

Abanado pela sorte, Pixote crescia. Tornou-se nome nacional, com projeção no exterior. O personagem dominou Fernando Ramos da Silva por completo. Virou uma espécie de encosto, entidade demonista. O que, no começo, parecia alegria, logo se transformaria em tragédia.

 

De volta ao inferno

 

Josefa deixou a casa, em Duque de Caxias, como quem foge. Botou na bolsa o dinheiro que recebera do marinheiro, guardou bem guardadas as notas promissórias e se mandou, pagando o alto custo de uma mudança do Rio para São Paulo.

 

Pelos cálculos de Josefa, estava tudo resolvido. Com o dinheiro poderia viver um bom tempo, sem problemas, que ela jamais pensou no dia de amanhã, nem podia.

 

Pixote, também, fizera planos: tomaria parte do dinheiro da mãe, que na verdade era dele, compraria uma Yamaha, arranjaria um trabalho, partiria para os estudos, enfim, tudo que não conseguira no Rio.

 

A partir dessa época, isto é, da volta de Pixote e família a Diadema, o que se deu em fins de 1984, perdi contato com o garoto.

 

Vez ou outra, lendo jornais de São Paulo, sabia de sua peregrinação pelos teatros. Nas entrevistas - agora raras - ele falava do passado e até da temporada em que ficou no Rio, praticamente como turista.

 

Dados mais concretos a respeito de Pixote e família chegavam-me através de amigos como Renato Campos, repórter como eu. Certo dia ligou. Pixote estava na pior. Vivia drogado, havia aderido aos irmãos Paulinho e Dema, entrara de cabeça no crime. E mais: polícia acompanhava-lhe os passos.

 

O amor que era deles

 

Desiludido e carente, Pixote buscava compensações. Já que não conseguira ser o ator que imaginava, na novela O Amor É Nosso, passou a viver esse amor na prática, com uma menina da favela, sua fã incondicional, Cida Venâncio.

 

Conheceram-se antes da mudança para o Rio. Foram, sem dúvida, os momentos de felicidade e ternura que Pixote viveu. A ela, contava suas "mágoas artísticas", falava do quanto fora inconseqüente na Globo, dos problemas que causara.

 

Os dias difíceis voltaram. As rou pas se acabaram, os tênis de luxo nem pensar. Mal tinha dinheiro para a passagem de ônibus até o centro da cidade.

Mas, na boca do povo, continuava sendo Pixote.

 

E foi graças a Cida que conseguiu despertar, novamente, para a carreira artística. Afinal, ela se apaixonara por um artista. Feio e desengonçado, um olho torto, mas artista. Fernando fez das fraquezas forças, a fim de não desapontar a companheira.

 

Andaram pelos lugares que ele conhecia. Falaram com representantes, assessores, assistentes, secretárias. Já não conseguia contato direto com quem decidia. Todos fugiam. Cida argumentava. Qualquer coisa servia. Um pequeno papel no programa dominical de Sílvio Santos. Uma pontinha no J. Silvestre.

Fernando Ramos da Silva impunha só uma condição: nunca mais seria Pixote.

E como ninguém o conhecia, perambulava por São Paulo, insistindo em uma nova oportunidade.Cida discutia com ele. Ser ou não ser Pixote? Quantas vezes se perguntaram. Em quantas portas bateram.

 

Fernando dispunha-se a fazer qualquer teste, mas ninguém tinha tempo para ele. O programa estava no ar. O ensaio geral havia começado. Passasse outra hora. E a peregrinação se estendia: teatros, shows pornô, o restaurante Gigetio, ponto de encontro do pessoal da noite.

 

Sem dinheiro para jantar, ficavam peruando por entre grupos barulhentos, como se procurassem alguém. Fernando sentia vontade de subir nas mesas e gritar: "Olhem pra mim, seus idiotas! Sou protagonista de um filme importante, que correu mundo. Estou sem trabalho. Não vou cometer os erros do passado." Não era ator bastante para fazer o que imaginava.

 

No seu livro, Píxote, Nunca Mais, Cida explica:

 

"...Tomei a iniciativa de ajudar o Fernando a voltar a trabalhar na televisão. O programa do Sílvio Santos estava procurando mulheres de artistas conhecidos. Eu pensei: Vou lá, me apresento como mulher do artista famoso Fernando Ramos da Silva, que trabalhou no filme Pixote e pronto: ele começaria tudo de novo, nem que fosse atrás das câmeras, até surgir uma boa oportunidade."

 

Cida apresentou-se à produção do programa. Foi com a amiga Jô para sentir-se mais segura.

 

"O rapaz que nos atendeu", conta ela "não queria dizer na nossa cara, mas acabou dizendo que a Fernando não era mais famoso; que as pessoas não se lembravam mais do Pixote e uma porção de desculpas esfarrapadas." Até que ele falou: "E depois não pega bem, um cara que ficou famoso porque fez o papel de um bandidinho, um trombadinha.”

 

Indignada, Cida voltou para casa, grande vontade de chorar, e chorou.

 

Trabalhador braçal

 

Certo dia, depois de tanto fracasso, uma bela notícia: Cida estava grávida. Fernando abraçou-a, beijou-a, na maior felicidade. Ia ser pai, independente da vontade de quem quer que fosse.

 

Outra novidade: declarava-se disposto a insistir na carreira artística.

Procuraria trabalho num circo, se necessário. Faria o papel de gigolô no show das putas, na Avenida São João, ou num inferninho, na Rego Freitas. Para sustentar a família, arranjaria uma ocupação qualquer durante o dia.

 

Geraldinho, irmão de Cida, tinha um caminhão velho. Fazia mudanças, removia entulho, transportava pequenas cargas. Pixote passou a trabalhar com o cunhado. Durante quase todo o ano de 1985 viveu como ajudante-de-caminhão.

Deixou as funções quando teve que se apresentar ao Exército. Obteve dispensa, argumentando ser arrimo de família.

 

Cida entrara no nono mês de gravidez e Fernando lhe fizera três promessas:

 

  1. Deixaria as drogas.

 

  1. Retomaria suas atividades como ator, ainda que fora de São Paulo.

 

  1. Arranjaria dinheiro com Babenco pra comprar um caminhão.

 

Depois das promessas ele próprio fez o jantar. Caprichou. Uma homenagem à quase mãe. Foi um momento bonito, conforme revela Cida. Fernando falou do seu futuro como ator. Dos estudos que faria. E, sonhando acordado, adormeceu.

 

Tarde da noite Cida chamou por ele. Levantou-se, surpreendeu-o na cozinha, fumando maconha. Ficou envergonhado, procurou desculpar-se. Cida o abraçou, preocupada.

 

Fernando expôs seus motivos. Quando foi à Junta de Alistamento, no Cambuci, viu em um jornal o anúncio que interessava: uma agência de modelos estava precisando de rapazes de boa aparência para fotos que apareceriam em revistas e comerciais de televisão.

 

"Fui lá. Até que não havia tantos candidatos. Em menos de meia hora um cara me atendeu. Começou a falar comigo, na maior animação. De repente, disse estar se recordando de mim, de algum lugar. Fiquei gelado. Torci para que estivesse enganado. Mas logo fez um rizinho: "Já sei. Você trabalhou no filme Pixote", e desconversou. Procurei argumentar. Expliquei que isso tinha sido há muito tempo. E, quanto ao fato de ter sido preso, foi apenas uma maluquice de garoto. O Juiz de Menores, dr. Paulo Pinotti, me tirou da prisão. Não adiantou. O cara me deu ficha para preencher. Quando viu minha letra, senti que não tinha a menor chance. Os rapazes que chegaram depois de mim terminaram sendo aproveitados. Sei disso porque me plantei na calçada, esperando.

 

"Disseram que iam receber um adiantamento e começar o trabalho. Voltei à tal agência. Dei um esporro no careta. Havia umas donas, todas frescas, que se assustaram quando souberam que eu tinha feito o papel de trombadinha num filme. Mandei todo mundo que tava lá pra puta que os pariu!"

 

Foi uma semana de acontecimentos desencontrados: aproximava-se o momento mais bonito da vida de Cida - o nascimento de Jacqueline -, aumentava o desespero de Fernando por sentir se rejeitado.

 

Policiais de Diadema passaram a rondar a casa. Quando ele apareceu, foi preso. A denúncia partiu do inspetor de quarteirão e alcaguete Zurkawa.

 

Pixote teria roubado o revólver calibre 38 de um motorista de táxi. Levado à delegacia, entrou no pau. Durante a sessão de tortura, denunciou alguns parceiros, além de confessar que estava metido nos assaltos.

 

Quando o liberaram, por falta de provas, foi para casa, arrasado. Não se queixava das pancadas recebidas. Preocupava-se com os nomes que mencionara e com as investigações que seriam desenvolvidas até os suspeitos serem capturados. Um deles era Donizetti, parceiro do Dema. Desses detalhes Fernando não falou a Cida. Disse, apenas, que fora espancado.

 

Dia 3 de dezembro de 85. Cida arrumou a maleta, foi sozinha para o hospital. Logo que soube, Fernando correu ao encontro dela. Pouco depois da meia-noite nascia Jacqueline. Era o melhor presente de fim de ano que tanta alegria traria ao casal pobre, mas não vencido.

 

"Quem sabe, agora, Fernando procuraria encarar a vida com mais realismo?", pensava Cida.

 

Greve de fome e amor

 

No hospital, durante o parto, Cida enfrentou problemas. Teve que reoperar-se pois estava perdendo muito sangue. No berçário, Jacqueline mostrava sua inquietação. Fernando passava horas admirando a filha.

 

Quando Cida melhorou, não tinha vontade de comer. Fernando foi ficando preocupado e decidiu agir. Mas a mulher reclamáva que ele é que estava magro.

 

Fernando revelou seu plano: decretara greve de fome desde que ela deixara de se alimentar. E continuaria em greve, até que decidisse comer. Se era verdade ou não o que dizia, ninguém jamais saberá. O certo é que ficara magérnmo, o olho direito mais torto, a cara amarela.

 

Nas proximidades do casebre, rondavam os inimigos. Um deles: era o assaltante e assassino Donizetti. Por ter dormido no hospital quase uma semana, acompanhando Cida, Fernando escapou de ser surpreendido.

 

Recuperada, Cida trouxe Jacqueline para casa. Fernando passou a sentir-se o homem mais responsável do mundo. Primeira medida a tomar: pedir a Babenco que o ajudasse a comprar um caminhão novo. Não queria presente e, sim, um empréstimo.

 

Babenco o recebeu na H.B. Filmes. Fernando disse que trabalhava com o cunhado Geraldinho, tinha prática da coisa. Sabia como conseguir cargas. Se o caminhão fosse novo, maiores seriam as possibilidades. Babenco sugeriu que se tornasse sócio do cunhado, no que ajudaria. Fernando deu-se por satisfeito com a proposta.

 

Durante boa parte do ano de 86 foi à luta, ao lado de Geraldinho. Gastaram uma nota na reforma do caminhão, lançaram-se ao trabalho. Fernando procurava relacionar se. Fez contatos até com o pessoal da Prefeitura de Diadema, onde sempre havia serviço.

 

Pixote é humilhado

 

Em um fim de tarde, perto de casa, quando Fernando retornava do trabalho, cansado mas alegre com os negócios, eis que é surpreendido por Donizetti e dois parceiros. Recebeu um soco no rosto e vários pontapés. Quando tentou reagir, os desconhecidos sacaram das armas. Donizetti bateu e bateu. Fernando caiu. Foi chutado no rosto. Ficou no chão como um trapo. Arrastando-se, chegou à casa de Josefa, que não estava. Terminou sendo ajudado por Dema que, de início, não acreditou na história contada pelo irmão.

 

No dia seguinte Paulinho confirmava: Donizetti espancou Fernando por ter sido denunciado por ele na delegacia de Diadema. E mais: Fernando estava envolvido no roubo de um revólver e de uma motocicleta. O policial Walter Polli e o inspetor Zurkawa esperavam o momento certo para prendê-lo.

 

A moto roubada era do tipo Honda, XLX 250R, preta, chassi nº 250BR2003950, placa AS-364, Jaboticabal. Dema dizia-se surpreso. Várias vezes convidara o irmão para entrar "nos ganhos" e ele recusara. Como agora, se metera naquela fria ?

 

Novas mentiras

 

Quando Pixote pôde aparecer em casa, hematomas no rosto e ferimentos nos braços, decidiu mentir. Havia comprado a motocicleta para passear com Jacqueline. "Verdadeira pechincha!" Na rua deserta dois homens tentaram assaltá-lo, fechando-o com um carro. Lutou com eles, conseguiu safar-se.

 

A história dessa moto arrastou-se. Foi, provavelmente, o grande e último problema de Fernando Ramos da Silva, Pixote em tudo, até no crime.

 

A Honda XLX, cujo verdadeiro dono era Hermínio Luiz Borghi, segurada pela Companhia Paulista de Seguros, fora roubada em abril de 87, na jurisdição da 16 DP, capital. O ladrão foi identificado como sendo Elieazar Galdino da Silva, 30 anos, vulgo Baleia.

 

Com a documentação falsificada e o chassi remarcado Baleia passou a Honda a Josias Alves de Souza, 21 anos, motorista, conhecido como Gordo. Os policiais que investigaram o caso descobriram: pouco depois do negócio (ou no ato?), Baleia terminou sendo assassinado.

 

Para Pixote, Josias Alves ofereceu a moto por 40 mil e aceitou que esse lhe desse um aparelho de som no valor de 14 mil, sendo o restante em duas parcelas de 13 mil. Seria o som que Brega levara da casa de Sidney Soares da Silva?

 

Pixote mentia, dizendo a Cida que a transação era limpa. Sabia até o endereço do Gordo: rua Bituva,12, Eldorado. Assustado mas feliz, rodou com a moto pelo bairro, imitando James Dean, seu grande ídolo: casaco de napa, já que não podia ter de couro, óculos escuros. Parecia movimentar se diante das câmeras.

 

Na fase em que trabalhou com Babenco, Pixote transitava com freqüência pelas Avenidas São João, Ipiranga, Praça da República e Rua Aurora. Certa ocasião parou diante de um cinema, onde estava sendo exibido o filme Juventude Transviada, com James Dean, Natalie Wood, Jim Backus, Sal Mineo, Ann Doran, Dennis Hopper, Corey Allen e Edward Platt. Direção de Nicholas Ray.

 

Ficou xeretando na porta, olhando fotos de cenas. Não tinha idade para ver filmes fortes, mas era protagonista de uma fita violenta... A sessão começou e ele disfarçando. Em um momento de descuido do bilheteiro, correu para a sala de projeção, acomodou-se no primeiro lugar que encontrou. Pixote gostava de relembrar:

 

"Juventude Transviada é a história legal de um careta cheio da grana (James Dean) que muda de cidade e faz amizade com uma turminha braba. Aí, James Dean se mete numa pior, com pilantrinhas da pesada. Mas não esquenta. Ninguém no grupo dirige melhor. Ele tem um sangue frio do capeta. A gatinha mais bonita da turma fica gamadona nele."

 

Pixote falava de James Dean com Jardel Filho e, mais tarde, com Cida. O que mais comprou no Rio foram posters e camisetas com imagens do ator.

Dirigindo a Honda pelas ruas de Diadema, é quase certo que procurasse incorporar seu ídolo. Só havia uma diferença nisso tudo: no filme de Nicholas Ray, Dean mete-se em encrencas, levado pelos "conflitos de gerações". O menino de Diadema envolvia-se em delitos por causa da extrema pobreza. Do inconformismo. De não ter conseguido ser o ator que imaginava.

 

Pobreza que assusta

 

Cida enfrentava dificuldades com as despesas da casa, mas Jacqueline crescia saudável. Geraldinho insistia com Pixote para que se dedicasse ao trabalho no caminhão, principalmente agora que eram sócios. O garoto estava dividido. A moto o conduzia a mundos misteriosos, de onde voltava modificado: muita angústia, medo de haver fracassado, de estar condenado a ser um pobre diabo. Foi ator por acaso. Diante das câmeras da TV Globo o talento acabou.

 

No dia de chuva, quando Cida amamentava a Jacqueline, apareceram uns homens sinistros. Queriam falar com Pixote. Cida lembrou que o nome do marido era Fernando. Um deles, o mais arrogante, berrou:

 

"Pra mim ele é Pixote, dona. E vamos ter um particular! "

 

Jacqueline dormiu, Cida ficou de plantão, rezando para que nada de ruim acontecesse.

 

"Quem seriam aqueles homens? Por que procuravam Pixote?"

 

Submundo

 

A família de Pixote viveu seu ano bom em 1984: casa nova e confortável, escola para os filhos menores de Josefa, escola e trabalho para Pixote, Paulinho e Dema.

 

Quando ela resolveu vender a casa, por um preço bem inferior ao que Hydekel havia pago, não foram poucas as pessoas que a advertiram. Voltar a Diadema seria entregar Píxote, Paulinho e Valdemar nas mãos dos seus perseguidores.

 

Na véspera da mudança Josefa me ligou. Disse a ela que sua atitude era insensata. Com seu excesso de zelo, empurrava os garotos no despenhadeiro.

Josefa nada ouvia. Apoiava os filhos, por maiores que fossem seus erros.

 

Quando aparecia um policial, na sua casa, procurando pelo Dema, recusava-se a saber da trapalhada do moço, fazia declarações emocionadas aos jornais, dizia-se perseguida, tudo por causa de Pixote que ficara famoso no cinema.

 

Mas já não eram poucos os delitos de Dema, Paulinho e Pixote. Os dois primeiros estavam envolvidos em quadrilhas que roubavam carros e praticavam assaltos à mão armada.

 

Valdemar havia sido condenado a um ano e meio de cadeia. Puxou um terço da pena, saiu na condicional. Continuou no crime, teve a pena aumentada. Ao ser morto, estava foragido. Josefa nada sabia ou não queria saber?

 

O dinheiro obtido com a venda da casa acabou rapidamente. Pixote incumbiu-se de gastar uma boa parte em passeios, aluguel de motos, festinhas e namoradas, drogas.

 

Em janeiro de 87 Paulinho foi surpreendido pelos policiais, nos arredores de Diadema, dirigindo um carro roubado. Mandaram parar, ele não atendeu, iniciou-se o tiroteio. Morreu atingido por inúmeros disparos na cabeça e no peito. Tinha 25 anos. Josefa disse aos jornalistas que os policiais mataram seu filho porque ele tinha um irmão famoso.

 

Segundo detetives da 54 DP, Paulinho pertencia à gangue do Dema, daí a razão de serem tão unidos. Valdemar não gostava de Pixote porque ele não queria "entrar pro bando". Atuava de forma independente. Quando Paulinho foi morto, a divergência aumentou: Dema passou a admitir, baseado nas afirmações de Josefa aos jornais, que estava sendo perseguido por causa de Pixote.

 

Em plena confusão, Cida agia: esforçava-se ao máximo, e com muito carinho, para que Fernando se afastasse do Jardim Canheme, onde ela identificava o foco das intrigas e complicações que Dema continuava armando. A própria Josefa considerava o filho meio louco, por "não ter medo de nada".

 

Fernando tentava seguir a orientação de Cida. Mesmo envolvido com a polícia, se tivesse uma nova chance como ator, procuraria zerar seus desmandos. Mudaria de vida e de lugar. Agora, não tinha dúvida: um dos seus problemas era o próprio irmão Valdemar.

 

Por sua vez, Dema perdia o controle da quadrilha. Ilda, sua amante e parceira de tropelias, avisara: Donizetti já não queria repartir os "ganhos" meio a meio. Esperava o momento certo para eliminá-lo.

 

Cida trabalhava para transformar sonhos em realidade. Meteu na cabeça de Pixote que ainda havia uma esperança. Em São Caetano o diretor de teatro Carlinhos Lyra organizava um grupo e estava precisando de atores jovens.

Fernando foi lá. Conseguiu um papel. Lyra o tratou com muito respeito. Eis como Cida descreve essa passagem:

 

"A peça não era lá essas coisas, mas ajudava a fazer com que se afastasse do nosso bairro. Fernando acabou se entusiasmando com os ensaios de sábado à noite e até dizia que Carlinhos estava sendo um cara legal com ele. Queria ajudar."

 

Cida lembra: "Josias Alves, o Gordo, reapareceu num sábado em que Fernando estava ensaiando. Contou que a polícia já sabia da moto roubada."

 

"Durante o depoimento na delegacia, Pixote entregou todo mundo", queixou-se o Gordo.

 

Pesadelos

 

Cida respondeu que o marido não tinha nada a ver com moto roubada. Josias deu um risinho. O problema, agora, era outro: Elieazar Galdino da Silva, o Baleta, estava morto. Ele e Pixote corriam risco de ser indiciados. Por isso, havia pedido que seu nome não fosse mencionado na delegacia.

 

A Honda XI.X, preta, placa AS-364, tinha sido originalmente de Hermínio Luiz Borghi, que a vendera, anos antes, a Nelson Franceschini. A confusão era tamanha, que Cida preferiu nem entrar em detalhes quando Fernando voltou do ensaio.

 

Disse ter recebido a visita de Josias Alves de Souza, queria saber do que se tratava. Fernando procurou simplificar, no que tinha grande habilidade.

Mas, desse dia em diante, tornou-se muito estranho. Pouco falava, quase não ria, estava sempre preocupado.

 

De noite, dormindo, tinha pesadelos, acordava em pânico, suando e dizendo-se perseguido por desconhecidos que queriam matá-lo.

 

A peça em São Caetano acabou não dando certo. Fernando já não tinha cabeça para concentrar se em nada. Mesmo assim Carlinhos Lyra queria que o acompanhasse numa excursão pelo Nordeste.

 

Em João Pessoa, Paraíba, havia uns trabalhos de publicidade a fazer. Podia ganhar um bom dinheiro pelos comerciais que gravasse. Cida ficou preocupada.

Fernando voltaria a se apresentar como Píxote, o que havia prometido nunca mais fazer.

 

Quarta Parte

 

Convivendo com o medo

 

"Quem nasceu pra Pixote nunca chega a James Dean", dizia Fernando quando estava down. E o ano de 87 era particularmente difícil. A situação agravou-se com a história da moto roubada.

 

Depois da visita do Gordo, uma irmã de Fernando disse a Cida que "maus elementos do bairro", levados para a delegacia, haviam denunciado Pixote.

Estava, segundo os parceiros, envolvido em diversos delitos. Na maioria dos casos, assaltos.

 

Cida falou sério com Fernando, que apontou Pixote como o grande culpado. Não fosse o filme, nada daquilo estaria ocorrendo. A partir desse momento, passou a mostrar o lado cínico da sua personalidade, marca de quase todo delinqüente reincidente.

 

Cida escondeu as chaves da moto. Fernando não podia continuar desfilando na Honda, num lugar em que um grande número de pessoas o odiava.

 

"Os bandidinhos entregaram você, dizendo que anda aprontando", escreve Cida na página 54 do seu livro.

 

"Aprontando o quê? Tem alguma coisa aqui dentro dessa casa que seja roubada? E depois, tem outra: se esses bostinhas tinham inveja de mim por causa da fama do filme Pixote, imagina agora que eu tenho a minha moto. Você acredita em mim ou neles?"

 

A contrariedade de Cida foi grande. Passaram uma noite de cão. Ela cuidando de Jacqueline, Fernando tentando dormir e não conseguindo. Temia os pesadelos.

 

Na manhã seguinte, um sábado, Fernando voltou às boas. Desculpou-se, acarinhou a filha. Podiam ir de moto ao casamento de um amigo, não muito distante de onde moravam. Cida recusou-se. Nem pensar.

 

Fernando saiu para comprar cigarros. Cida escutou gritos. Abriu a porta, deparou-se com os policiais da ROTA que reviraram tudo, subiram para a laje.

 

"Vocês têm mandado de busca para invadir minha casa?"

 

"Que mandado o quê, menina! Mandado pra bandido é isso aqui", disse um policial e mostrou o revólver.

 

Fernando apareceu, em pânico. Dois PMs o seguravam pelas calças e o empurravam brutalmente contra o camburão. Cida gritou. Pixote ia responder, recebeu um soco no rosto. Cida tentou aproximar se, um PM deu-lhe uma pancada violenta.

 

"Não faz isso com ela, filho da puta!", berrou Fernando.

 

Era o que desejavam para massacrá-lo diante dos vizinhos. Depois da surra, roupas rasgadas, rosto sangrando, foi jogado na caçapa da viatura como um saco de batatas.

 

Cida preferiu acreditar que a prisão ocorrera por causa da maconha que Pixote continuava puxando. Mas a verdade era outra. É a que consta no l30 3426, de 19 de julho de 1987: Fernando prestou novo depoimento e disse (sem poder apresentar recibo) que comprara a Honda de Josias Alves, o Gordo.

 

Intimado a depor, Josias apresentou sua versão. Adquirira a moto de Eleazar Galdino da Silva, o Baleia. Como o vendedor tinha sido assassinado, ambos passaram a figurar como suspeitos de latrocínio.

 

Pedindo dinheiro emprestado a pessoas amigas, Cida reuniu 8 mil, correu para a delegacia. A fiança fora estabelecida em 10 mil. Um advogado de porta de xadrez parlamentou com o doutor delegado, que fez abatimento. Ficou por 8 mil.

 

Fernando reapareceu em casa, no dia seguinte. Nada tinha a dizer. Cida não tinha o que perguntar. Humilhado, olhava a filha no berço que, inocentemente, ria para ele.

 

Caminho sem volta

 

Fernando resolveu procurar Carlinhos Lyra, em São Caetano, a fim de saber se ele ainda pensava na via gem à Paraíba. Pouco depois, despedia-se de Cida, dizendo que ia para João Pessoa.

 

"Me telefonou de lá, contente porque tinha feito um comercial e iria ganhar 3 mil."

 

A essa altura Cida havia levado a filha para a casa dos pais, no bairro do Eldorado. A intranqüilidade era grande. A todo momento apareciam homens estranhos, ameaçando Fernando. Os vizinhos começaram a ficar assustados.

 

" Justo naquela época", diz Cida no seu livro, "aconteceu um grande assalto numa firma lá perto, no bairro do Eldorado. Era o que faltava: polícia e mais polícia batendo por lá e perguntando onde estava o pixote.

Teve gente que jurou ter visto ele fazendo o assalto! E meu Principe Pixote lá longe, tentando mais uma vez mudar de sorte."

 

Quando Fernando reapareceu, disse não ter recebido o dinheiro do comercial. Viria depois, atraves do Carlinhos Lyra. Pixote estava sem iniciativa, encurralado. Voltaram à casa do Lyra. Cida insistia com ele que não fosse ao Jardim Canheme, onde morava Josefa, a mãe.

 

Carlinhos e Fernando sáiram, Cida ficou só. Bateram na porta, ela abriu.

Entraram dois homens, um deles com um punhal. Revistaram tudo, mas não falaram no nome de Pixote.

 

Carlinhos Lyra não conseguia entender a invasão da sua casa. Fernando já não tinha disposição para comentários. Tarde da noite, quando foram dormir, um novo problema: Pixote berrava em pânico com os pesadelos.

 

Enquanto Fernando vivia seus momentos de amargura e Dema tratava de defender sua liderança na gangue, policiais de São Paulo (capital) e de Diadema tentavam surpreender os dois.

 

Após cumprir pena de dez meses, Valdemar conseguira a condicional, mas continuara na vida de crimes e, o que é pior: envolvendo os irmãos Paulinho e Pixote. Este último custou a aceitar os convites mas terminou cedendo, depois que Paulinho foi morto.

 

O estranho é que tanto Dema quanto Fernando viviam sem dinheiro. Mas o Donizetti estava sempre abonado. Os policiais nunca conseguiram desvendar esse mistério.

 

Lembranças de Duque de Caxias

 

Sentado ao lado da mulher e da filha, Fernando tentava reorganizar-se mentalmente. Desde que fora afastado da novela da Globo, nunca mais acertara a mão. Não apareceu outro filme para fazer, os pequenos papéis nas fitas Eles Não Usam Black-tie, de Leon sman e Dona Flor e seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, eram insignificantes.

 

Com grande esforço, conseguiu arranjar um empreguinho na produção do programa de Flávio Cavalcanti, TV Bandeirantes. Depois, a peregrinação pelos teatros. O contato com grupos e mais grupos amadores, todos com muitas idéias e nenhum dinheiro para montar as peças.

 

Fernando recordava a oportunidade que lhe fora dada pelo prefeito Hydekel Freitas, da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminence, e que Josefa jogou fora. Perdia horas, num balanço praticamente mudo, do que fizera ou deixara de fazer. Momentos bons e maus. Não aprendera a ler direito, não tinha vontade de estudar, optara pelas brincadeirinhas, a ociosidade, o caminho da malandragem e do crime.

 

"Cida, jura que não tem importância se eu não conseguir ser ator de novo?"

 

Com tantos problemas de vida e morte ele queria livrar-se do peso maior: a obstinação de ser artista. De profissionalizar se, de igualar se a James Dean, de ser ao menos o "James Dean dos pobres".

 

Fernando morreu como Pixote

 

Final de tarde,25 de agosto de 1987. Pixote, 19 anos, trajando calça jeans e camiseta branca, corre por uma rua do Jardim Canheme, zona pobre de Diadema. Atrás dele, armas nas mãos, correm os policiais Francisco Salles (sargento) e os soldados Vanderlei Assis e Walter Polli.

 

Salta o muro baixo, entra na casa, àquela hora ria penumbra. Desce a escadinha circular, degraus estreitos, sai no salão onde funcionara a confecção, por isso havia tantos móveis empoeirados, bancadas para corte de roupas, manequins cabeludos e carecas, algumas velhas máquinas de costura enferrujando, outras cobertas com pedaços de oleado. Tenta abrir a porta, está trancada a chave. Esconde-se no meio dos manequins, amontoados entre o pesado armário e a parede.

 

No salão, silêncio e sombras. Da rua chegavam ruídos: pessoas falando alto, passos dos soldados nos degraus da escadinha em caracol. O coração de Fernando batia tão forte que ele apertava as mãos contra o peito. Puxou o vaso com a planta seca para mais perto. A mulher voltou a gritar. Reclamava que sua casa estava sendo invadida. Walter Polli colocou a cadeira escorando a porta.

 

"Vamos lá, Pixote. Mostra tua cara. A gente veio ter uma conversinha contigo, é ou não é, sargento?"

 

"Claro. Se contar o que se quer ouvir, garanto que sai dessa."

 

Do seu canto Pixote via somente as botas em movimento.

 

"Aparece aí, Pixotinho. Vem lamber o cano do meu revólver."

 

As luzes se acenderam. Nos grandes espelhos manchados, as imagens dos militares receosos apontando as armas. E se estivessem na mira de Pixote? Botas do sargento vão se aproximando. Pixote pára de respirar. Mete a cara entre os rostos dos manequins. Na rua o falatório aumentou.

 

"Esse trombadinha tá querendo nos passar a perna."

 

Bota chuta a planta seca, vaso se quebra, libertando bolinhas de gude, azuis, vermelhas, amarelas e roxas. Bolinhas deslizam por entre as botas, saem do campo de visão de Pixote, perdem-se.

 

Mulher que fala alto, bate na porta, exigindo que os policiais se retirem da sua casa. Vanderlei e Polli reforçam a segurança da porta. Sargento, berra, indignado:

 

"Não se meta no nosso trabalho, dona. Do contrário será presa!"

 

Pixote aproveita o descuido dos PMs, mete-se por baixo da cama, transformada em depósito de retalhos.

 

"Será que o pilantrinha vai apárecer ou temos que virar isso tudo aqui pelo avesso?"

 

Sargento já localizou o garoto mas finge procurar. Pisca o olho para os companheiros. Pixote encolhe-se, bem encolhidinho, como se estivesse com frio. Bota reluzente empurra a cama com violência, retalhos caem por cima dele.

 

"Olha o moleque aí, sargento."

 

"Artistinha viado!"

 

"Dá tua arma particular pra ele, Polli."

 

"Qualé, chefia?"

 

"Faz o que tou mandando."

 

Polli pega o 38, com o lenço, entrega-o a Pixote.

 

"Ouve bem o que vou te dizer, bandidinho de merda. Aponta nos manequins e, enquanto tiver bala, arrebenta com eles... Tão querendo te ver com a boca cheia de formiga."

 

Pixote segura a arma com mãos trêmulas, os disparos se sucedem, na rua as vozes silenciam. Polli e Vanderlei Assis acham graça.

 

"Agora é nossa vez, nojentinho."

 

"Não façam isso comigo. Tenho uma tilha pra criar", grita Pixote em pânico, recuando, pisando nas bolinhas de vidro e caindo.

 

"Mão na cabeça, filho da puta!"

 

Polli, risinho sádico, demora caprichando na pontaria. Acerta o garoto quatro vezes, no estômago, e no peito. Vanderlei faz três disparos. Sargento dá o tiro de misericórdia. Filetes de sangue alongam-se dos oito ferimentos e alcançam as bolinhas de gude. Polli empurra o corpo com a bota, o rosto de Pixote no chão empoeirado, olhos espantados com a vida que se foi.

 

Na delegacia, os matadores declaram que Fernando Ramos da Silva sacou primeiro, quase derruba Valter Polli. O revólver que recolheram com o delinqüente - sargento coloca-o sobre a mesa do delegado - é encaminhado para exame de balística e, obviamente, com muitas impressões digitais do Pixote.

 

Josefa esbravejou contra a polícia e ninguém sabe como pôde suportar tanta dor. Mas o sofrimento não ficaria aí. A maldição dos Pixotes continuaria.*

 

Na noite de 31 de março de 90, Valdemar, o Dema, tombou furado de balas. Quatro disparos de escopeta e seis de revólver destroçaram-lhe o peito. O corpo foi encontrado na Estrada do Alvarengano, Eldorado, Diadema, dentro de um Passat roubado. A região era usada para a desova de cadáveres. Um pouco adiante, proximidades da favela Inamar, também no Eldorado, estava sua amante e cúmplice nos roubos, Ilda Barreto,19 anos, estuprada, ferida a bala e esfaqueada. Os policiais apontaram Vitor José de Cazvalho como responsável pelo crime. Em bora preso ele comandava o upo de extermínio "10 Justiceiros", que fez o "serviço." Vitor fora colega de prisão de Valdemar, de quem se declarava amigo.

 

A lei do mais forte

 

O mundo de sonhos, idealizado por Cida, tornou-se universo de dores e frustrações. Seu propósito de lutar para que Fernando viesse a ser um ator de verdade, como Jardel Filho e James Dean, já não tinha sentido. Tudo que lhe restou foi Jacqueline e a lembrança de uma paixão tumultuadaa mas verdadeira.

Pixote, soma de Pixita, Cara de Castanha, Esmagado, Zeca e Moacir, personagens da minha história pessoal, agora habita as planícies da imortalidade. Virou mito. Será, para sempre, o menininho petulante e doce, inocente e bagunceiro, anjo da cara suja do cinema Paradiso.

 

                                                                                José Louzeiro  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"