Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ESPAÇONAVE ORION
A Patrulha das Estrelas
PLANETA FORA DE CURSO
ERA um espetáculo grandioso, único; mas por trás de sua estonteante beleza, ocultavam-se perigos mortais. Uma ramificação da violenta tempestade de radiação que irrompia do sol terrestre estendia-se pelas trevas formando um ângulo reto com a eclíptica do sistema. Tinha o aspecto de um cone aguçado; o diâmetro da base não devia passar de uma unidade astronômica, enquanto que a altura media, seguramente, mais de quinze dessas unidades, ou seja, pouco mais de 2 bilhões de quilômetros.
Essa protuberância cintilante, entremeada de véus em cores raramente vistas, apontava para a constelação da Ursa Menor. O cubo espacial Um/001 estava em alvoroço.
Ganhando em intensidade e alastrando-se cada vez mais, a erupção tinha se destacado do Sol e atravessava, com velocidade considerável, o cubo espacial, provocando interferências em todos os comprimentos de onda. Um turbilhão nas cores do espectro estendia-se, em espirais, da base do cone até a ponta, branca e incandescente, voltada em direção à constelação citada. Os poucos astronautas que já tinham visto este fenômeno não se atreviam a chegar sequer nas proximidades de uma tempestade de radiação; e aqueles que conheciam este espetáculo multicolorido tinham razões de sobra para temê-lo.
Retornando do hiperespaço para pousar, a Hydra caiu em cheio nas garras do cone da morte. Se não acontecesse um milagre, a nave estava irremediavelmente perdida. E os milagres eram raros nessa época...
Lydia van Dyke, general das Formações Espaciais Rápidas, estava sentada diante da grande tela circular.
— Vê alguma outra possibilidade, astronavegador? — perguntou, em voz alta.
O astronavegador, um homem alto, de cabelos grisalhos e curtos, mal levantou o olhar e sacudiu a cabeça. Lydia viu o gesto e compreendeu.
A Hydra estava à mercê do turbilhão como uma folha seca na ventania do outono. Solicitados ao máximo, os propulsores uivavam irregularmente. Um cheiro acre escapava do sistema de renovação de ar: as capas isolantes dos cabos estavam fundindo. Mais outro tentáculo magnético agarrou o maltratado casco metálico da nave.
Lydia tentou usar, de novo, os comandos, mas os controles não obedeciam; sabia que a única salvação era conseguir voltar ao hiperespaço.
Dois homens e uma mulher encontravam-se a bordo do cruzador rápido Hydra, o astronavegador e o oficial da Vigilância Espacial. E Lydia van Dyke. Todos os três estavam a par de um segredo do qual dependia a existência do sistema solar. Um novo impacto fez a nave estremecer até os anteparos; rebites foram arrancados e estilhaçados os vidros dos mostradores de vários instrumentos. O cheiro tornou-se mais intenso; eram poucos os aparelhos ainda não danificados. Sem rumo, a nave cambaleava pelas ondas da tempestade.
— Vigilância Espacial! — chamou Lydia.
— Pronto! — respondeu o oficial, com a voz embargada pelo pânico.
— Tente enviar uma mensagem à Terra!
Com um olhar rígido, o oficial examinou seus controles e instrumentos. Depois virou, cuidadosamente, um botão para a direita. No mesmo instante, um barulho ensurdecedor invadiu a cabine de controle; silvos agudos misturaram-se a crepitações secas, abafando, por completo, o sinal característico da Estação Avançada.
— Não adianta! — disse van Dyke, desalentada. Só a expressão dos seus olhos traía o que estava pensando.
Os campos magnéticos da tempestade, que variavam de intensidade a cada instante, não soltavam a nave. A velocidade era insuficiente para voltar ao hiperespaço. A nave parecia perdida.
— Tente estabelecer uma comunicação hiperradiofônica! — disse Lydia e soltou o acelerador.
— Está bem — respondeu o telegrafista. — Vou tentar!
Lydia van Dyke tinha uns trinta e cinco anos de idade, mas aparentava ter cinco anos menos. Sua atitude era reservada, característica das altas patentes militares. Trajava um uniforme escuro, e abaixo da clavícula destacava-se a plaqueta de identificação com os quadradinhos do seu código individual.
— Este tufão está bloqueando todos os comandos! — disse Lydia, com raiva. — Nossa sorte é que ainda não atingimos o seu centro!
O astronavegador observou, com vagar, as telas destruídas, os vidros estilhaçados dos instrumentos do painel de controle e o espetáculo furta-cor no disco circular em frente à mesa de controle; depois, virou-se para Lydia e disse:
— Infelizmente, isso ainda pode acontecer, general!
Um redemoinho magnético agarrou a nave e a impeliu em direção à borda da ramificação da tempestade. O delgado disco tombou de lado, capotou várias vezes e caiu num vazio entre feixes luminosos.
— Estabeleci o contato hiperradiofônico! — avisou o telegrafista.
Lydia reconheceu a pequena chance que ainda tinham e começou a alterar o curso com auxílio dos poucos instrumentos que continuavam intactos. Os propulsores arrancaram a Hydra dos tentáculos vorazes e flamejantes da radiação e conseguiram acelerar a nave bruscamente. Enquanto a velocidade aumentava, Lydia disse, medindo as palavras:
— Mensagem hiperradiofônica para Terra: D... HS... urgente... aqui Hydra, general van Dyke falando!
A nave estava conseguindo escapar do alcance das ávidas protuberâncias luminosas. As mortíferas tenazes não conseguiam mais fechar-se sobre a Hydra que, a esta altura, já possuía velocidade muito superior à da radiação, mas suficiente apenas para entrar na escuridão do entre-espaço.
— Da nave espacial Hydra para todos: Atenção... Um corpo estranho desloca-se na direção da constelação dos Cães de Caça. Parece tratar-se de um sol de fraca luminosidade e está seguindo um curso de colisão com o sistema solar terrano; encontra-se no cubo espacial Um/Sul 008. A velocidade inicial deste corpo foi calculada em cento e quarenta e seis mil quilômetros por segundo. Tudo indica que arrasta consigo uma atmosfera incandescente em contínua expansão. Nossos aparelhos constataram que esta atmosfera apresenta todas as características de uma Nova. Dentro de alguns dias o corpo estranho interceptará a órbita da Terra. Atenção... do general van Dyke para todos... Chamado de alerta da nave espacial Hydra.
Subitamente, todas as luzes se apagaram mas a iluminação de emergência entrou em funcionamento numa fração de segundo. O silvo dos propulsores tornou-se mais intenso e uma violenta pancada pareceu abrir a nave ao meio. Em seguida, a Hydra mergulhou no hiperespaço.
No mesmo instante, os três tripulantes ouviram um uivo agudo, estranho. Depois, só houve silêncio.
Os fenômenos luminosos, muiticoloridos, haviam sumido das telas. A Hydra encontrava-se no hiperespaço mas parecia que a instalação eletrônica da nave estava completamente destruída. Lydia trocou um olhar com os dois oficiais.
— Ao menos escapamos do perigo de sermos esfacelados pelos dedos magnéticos dessa tempestade!
Resignadamente, o oficial da Vigilância Espacial acenou com a cabeça.
— Em compensação — continuou Lydia — estamos boiando no hiperespaço com não sei quantos instrumentos destruídos e queimados. Corte a energia!
O subcomandante manejou uma série de controles. A nave deslocava-se lenta mente através do hiperespaço sem qualquer rumo; os motores silenciavam. A energia nos acumuladores de bordo ainda era suficiente para manter em funcionamento as instalações de abastecimento.
— Antes de mais nada — decidiu Lydia — precisamos de um transmissor hiperradiofônico que funcione. Podemos consertar os aparelhos com os meios disponíveis a bordo?
— Só se não foi tudo destruído — respondeu o telegrafista.
— Dependemos deste aparelho para pedir socorro; o resto é secundário.
O subcomandante levantou-se, praguejando. Começou a examinar os estragos que havia por toda a cabine e perguntou, por cima do ombro:
— Será que receberam nossa mensagem?
— Pela experiência que tenho, eu diria que sim — respondeu o telegrafista. — Resta saber se a potência de emissão era suficiente para alcançar o satélite mais próximo.
— Ao menos — disse Lydia meio pensativa — estamos no cubo espacial Um, portanto, não longe da Terra. Não demora e uma nave qualquer nos descobre.
— Bote tempo nisso! — foi a resposta.
— Não conseguiremos fornecer nossas coordenadas!
— E por que não? — perguntou Lydia, aturdida por um terrível pressentimento.
— Porque as lâmpadas de controle indicam que o nosso computador digital está pifado; e este nós não conseguimos consertar de jeito algum!
— E isto significa — prosseguiu o subcomandante — que estamos sem condições de calcular um único curso sequer; significa, ainda, que ninguém pode controlar o nosso curso e que o nosso retorno do hiper-espaço pode se dar em algum ponto totalmente imprevisível. Se tivermos azar, voltamos ao espaço normal fora dos limites do nosso domínio.
Seguiu-se um longo e deprimente silêncio. Finalmente, Lydia levantou-se e disse, com voz controlada e fria:
— Não adianta desesperar. Precisamos pensar menos e trabalhar mais. Se conseguirmos soltar nosso grito de socorro podem nos localizar, mesmo se nos encontramos no hiperespaço. Portanto, mãos à obra! Eu me encarrego dos controles.
Vários cabos estavam derretidos, o que tinha provocado o colapso quase total dos comandos. Lydia substituiu as partes mais importantes pelas peças sobressalentes, catalogadas, que encontrou no pequeno almoxarifado de bordo. Mesmo no espaço normal, seria muito difícil dirigir a nave com os comandos precariamente consertados, mas o general van Dyke ainda conhecia meia dúzia de truques que podiam ser de alguma valia numa situação como aquela.
A nave estava isolada do mundo exterior; todos os aparelhos radiofônicos haviam sido destruídos. Era totalmente impossível emitir ao menos um único impulso. O oficial da Vigilância Espacial procedeu a um exame minucioso das avarias e descobriu que a parte receptora da instalação estava intacta.
Ligou um segundo cabo alimentador à antena, examinou as conexões e substituiu uma peça semigasta. Após algumas manipulações dos controles, constatou que estavam em condições de captar impulsos do hiperespaço, mas não de responder a qualquer chamado.
— General van Dyke? — a voz do telegrafista soava cavernosa; a parte superior do seu corpo estava enfiada no interior do volumoso aparelho. — Podemos receber sinais hiperradiofônicos, mas o nosso transmissor não tem mais jeito!
— Por outro lado — respondeu Lydia, laconicamente — existem algumas coisas que funcionam. Assim, não vamos ser asfixiados, não vamos morrer de fome e ainda podemos ouvir o noticiário! Quer dizer que o transmissor não pode ser consertado?
— Acho muito difícil! De qualquer maneira, levaria horas!
— Vou lhe ajudar assim que acabar com os cabos. Desmonte as peças destruídas!
As horas passavam e a Hydra pairava no hiperespaço. Ninguém podia precisar a sua posição; ninguém podia localizá-la. Enquanto isto, um planeta em brasa lançava-se, vertiginosamente, em direção ao sistema solar.
No setor compreendido entre os 180 e 210 graus do hemisfério boreal encontram-se as constelações da Ursa Maior, do Boieiro e da Cabeleira de Berenice. No meio destas, uma outra, a dos Cães Caçadores, distingue-se por um objeto visível que foi registrado, no New General Catalogue, com o número 5194: uma nebulosa espiral de braços bem delineados com um núcleo irradiante e circundada por algumas estrelas isoladas.
E diante deste expressivo cenário, se bem que mais perto da Terra e seu sistema, tinha se desenrolado a tragédia de uma catástrofe cósmica. Sob a linha imaginária que une a Terra à região daquela nebulosa havia um sol e esse sol tinha liberado um dos seus planetas... ninguém sabia o nome do sol, nem do planeta. Sabia-se, porém, que o planeta começou a chamejar e se deslocar com uma velocidade inacreditável. Os instrumentos da Hydra haviam descoberto este fato, sem sombra de dúvida. E mais: a sua trajetória interceptaria a órbita da Terra que, naquele instante, se encontraria exatamente no ponto de intersecção. O planeta seguia um curso de colisão com a Terra...
Dois fatos contribuíram para tornar ainda mais misterioso o súbito aparecimento deste perigo mortal que ameaçava de extinção a espécie humana no nosso planeta.
Cento e quarenta e seis mil quilômetros por segundo... O planeta deslocava-se com uma velocidade quase cinco mil vezes maior que a da Terra e apresentava todas as propriedades de um sol em vias de explodir. Era inconcebível que pudesse atingir tal velocidade no cosmos sem interferência de forças estranhas. Além disso, ardia em chamas...
A camada gasosa que o envolvia evidenciava todas as características físicas de uma Nova, nome com que se designa as violentas erupções luminosas de um sol, e cujas causas ainda são desconhecidas.
A erupção de uma Nova realiza-se em questão de horas; no máximo, de dias. A intensidade luminosa da estrela atinge, em média, um valor 25 mil vezes maior que o normal e como a erupção é acompanhada de uma expansão do envoltório gasoso, durante a qual a velocidade dos gases atinge vários milhares de quilômetros por segundo, o diâmetro da estrela sofre um enorme aumento, crescendo à razão da segunda potência.
Se um planeta apresentava tais características, raciocinava a tripulação da Hydra, isto deixava de ser um fenômeno natural. Era, seguramente, o resultado de emprego de meios artificiais habilmente manipulados. Por quem, não se sabia.
Sem um segundo de hesitação, Lydia van Dyke havia comunicado a descoberta que iria deixar em polvorosa as autoridades competentes na Terra e teria provocado o pânico entre a população se tivesse sido divulgada.
Enquanto a Hydra pairava, semidestruída, no hiperespaço, o estranho planeta seguia em direção à Terra. Aquilo que tinha sido a sua atmosfera era, agora, uma imensa capa incandescente que irradiava uma luminosidade ameaçadora. A superfície começou a se derreter; matéria transformava-se em energia...
A intensidade luminosa do pequeno sol aumentava a cada minuto. Dentro de pouco" tempo, uma imensa Nova artificial invadiria o sistema da Terra.
Até o presente momento, poucos tinham tomado conhecimento do comunicado da Hydra. Um deles era o oficial de dia do Serviço de Segurança Galático. Leu, estarrecido, a folha que o teletipo acoplado ao receptor hiperradiofônico tinha fornecido e dispensou, imediatamente, o encaminhamento pelas vias burocráticas protocolares. Arrancou a folha e saiu correndo em direção ao gabinete do coronel Villa. Villa, um homenzinho ágil, de uns sessenta anos, estava sentado atrás da sua mesa de trabalho e levantou um olhar surpreso quando o oficial de dia entrou às carreiras. Mal teve tempo de desligar a barreira eletrônica que o protegia contra intrusos indesejáveis.
— Qual o motivo da invasão? — perguntou, com sua voz cansada e irônica.
— Coronel, leia isso aí! — disse o oficial, ofegante.
Villa franziu as sobrancelhas e, por alguns instantes, observou o rosto pálido e nervoso do homem à sua frente. Em seguida, pegou a folha da mão do oficial e leu o texto sem mudar de expressão.
— Além de nós dois, quem mais conhece o teor desta mensagem? — perguntou, calmamente.
O oficial encolheu os ombros.
— Provavelmente os telegrafistas das diversas estações retransmissoras; tenho certeza apenas de Meyers, da Estação Avançada-IV. Por que pergunta, coronel?
— Porque, no momento, não podemos divulgar esta notícia. O pânico seria incontrolável!
— O que eu devo fazer, então? — perguntou o homem após alguns segundos.
Villa dirigiu-lhe um olhar decidido e disse:
— Nada! Absolutamente nada! Volte aos seus afazeres e mantenha a boca fechada!
— Mas, coronel! — retrucou o oficial, visivelmente nervoso. — Esse planeta errante vai se chocar com a Terra!
— Isso não está provado. Além disso, o perigo não é iminente, ainda temos tempo.
— E o que vamos fazer enquanto ele continua se aproximando? — perguntou o homem, que estava quase imóvel diante da mesa e não tirava os olhos do rosto de Villa.
— Vamos empregar todos os meios ao nosso dispor para impedir que esse petardo cósmico nos destrua — respondeu Villa. — Afinal, temos algumas frotas não de todo imprestáveis e também homens à altura da situação. Pode ficar tranqüilo, meu amigo, que não temos o menor interesse na nossa própria morte.
O oficial bateu continência e deixou o gabinete. Villa recostou-se e começou a pensar nas possíveis evoluções da situação. Enquanto sua mente divagava pelo terreno das especulações, seu olhar estava fixado na projeção do domínio terrano, aquela esfera espacial com um diâmetro de novecentos parsec e subdividida em dez fatias. Um ponto luminoso deslocava-se na região inferior, que se assemelhava a uma esfera quadripartida. Ainda não era visível. Até então os aparelhos de busca não o tinham enquadrado. Não tardaria, pensou Villa, e um ponto flamejante iria se aproximar do centro daquela esfera. Em todos os mapas astronômicos da Terra...
Villa afugentou seus pensamentos e apertou o botão do videofone que o comunicava com a ante-sala. O rosto do ordenança apareceu na tela:
— Sim, coronel?
— Entre! Temos que resolver uma situação delicada.
GROOTE Eylandt. Era quase meio-dia.
O sol estava a pino e a superfície da piscina reluzia como prata. Na sombra de um extenso toldo só se via uma enorme espreguiçadeira e um alto-falante esférico. Trajando apenas um calção branco, Cliff Allistair McLane tinha se refestelado numa confortável cadeira e estava consumindo o segundo volume da pilha de livros de bolso, que havia colocado bem ao alcance da mão.
Uma melodia emanava do globo sonoro que girava lentamente. Tamara tinha chamado a atenção de McLane para aquele compositor durante a missão, na qual a Orion VII resolveu o caso de MZ 4. De Thomas Peter: "Estrelas Perigosas".
McLane deitou a cabeça de lado e olhou para o céu azul. A calmaria devia ser quase absoluta, pois as nuvens mal se deslocavam. A ponta setentrional da Austrália, uma das gigantescas bases espaciais da Terra, jazia sob a inclemência do sol de verão.
Nada havia no ar; nenhuma nave a jato ou espacial em vias de pousar. Só esta calma sonolenta. McLane e sua equipe estavam gozando as férias normais entre duas missões; e, como não sabia que tarefa os esperava, julgou conveniente tratar de fortalecer o sistema nervoso onde e quando podia. Nervos debilitados não resistiriam muito tempo a Tamara...
Mas nesta manhã ensolarada, tudo contribuía para uma irresistível sonolência; a música, o calor, o longo e farto café da manhã, o repouso na confortável cadeira, a lembrança de uma certa loura, seu compromisso para a noite... tudo, enfim. Cliff adormeceu.
A música continuava a tocar. Um minuto passou-se.
— Comandante McLane? — perguntou uma voz impessoal.
Cliff abriu os olhos e viu a sombra de dois homens no piso do terraço a seu lado. Sentou-se, virou a cabeça e analisou os dois homens. Fitaram-no com olhos rígidos, sem qualquer expressão.
— Sim? O que é?
— Serviço de Segurança Galático. Cliff franziu a testa e retrucou, com agressividade na voz:
— Alguma vez já ouviram falar em invasão de domicílio?
Um dos dois homens respondeu:
— Quanto a isso, queixe-se a Villa. Cliff começou a prender seu rádio de pulso e perguntou, desconfiado:
— Serviço de Segurança? Que querem de mim?
— Apenas que nos acompanhe.
Cliff olhou para os dois agentes. Trajavam o uniforme cinza-escuro da corporação cuja insígnia se destacava no peito: o grande S inscrito num círculo. Um dos homens era alto, de cabelos escuros; o outro, de cabelos louros, era um pouco mais baixo que o companheiro. Pareciam estar desarmados. Com a melhor boa vontade, Cliff não conseguia se lembrar de ter infringido, nos últimos dias, algum regulamento.
— Suas identificações! — pediu, bruscamente.
Ambos meteram a mão no bolso superior do jaquetão e exibiram as plaquetas retangulares com os característicos quadradinhos do código individual. Debaixo deles, as três letras: SSG.
— E eu devo acompanhá-los? — perguntou McLane, ainda duvidando que o assunto era com ele. — Para onde?
— Vamos ao quartel-general do SSG.
— O quê?! — exclamou Cliff, surpreso. — O próprio Villa me espera? Em pessoa?
— Correto! Por favor, entregue-nos o seu rádio de pulso.
McLane recuou dois passos e postou-se atrás da cadeira.
— Os senhores sabem muito bem — disse devagar e sublinhando as palavras — que estou proibido de entregar meu aparelho a quem quer que seja!
— Não crie dificuldades, comandante!
— disse o homem de cabelos escuros e lançou um olhar sombrio para McLane.
— É uma ordem! — lembrou o louro e estendeu a mão, num gesto imperativo.
McLane hesitou durante alguns segundos; depois retirou o aparelho do braço e entregou-o ao agente do SSG.
— É só para evitar — explicou este — que entre em contato com sua equipe.
McLane não estava entendendo mais nada.
— A coisa está ficando cada vez mais misteriosa! — disse. — O que significa essa trabalheira toda? Afinal, não sou nenhum criminoso!
Os dois encolheram os ombros.
— Não querem ou não podem dizer de que se trata? — perguntou Cliff, irritado. — Posso, ao menos, saber para onde vamos?
— Sydney! — foi a resposta. — Venha! McLane torceu os lábios num sorriso irônico e perguntou:
— Certamente vão permitir que me vista. Ou posso me apresentar a Villa em trajes de banho?
— Mas ande ligeiro! — disse o louro. Acompanharam McLane até o bangalô.
Cliff vestiu o uniforme e os três puseram-se a caminho. McLane começou a sentir uma sensação desagradável...
As poucas telas que ainda funcionavam mostravam o aspecto, sempre igual, do hiperespaço: uma estranha parede, escura e poeirenta, sem um único ponto luminoso. Não havia estrela, nem planeta; tudo parecia inerte. As lâmpadas da iluminação de emergência tremeluziam. Vez por outra, ouviam-se sons emitidos pelos alto-falantes ou ruídos produzidos pelos instrumentos. Pequenas chamas clareavam os painéis e conexões dos comandos; finos raios saltitavam pelos flancos dos condensadores. Os três tripulantes da Hydra estavam tentando consertar as instalações hiperradiofônicas.
— Como é que está indo, Morris? — Lydia van Dyke ergueu-se por trás do quadro de controle aberto.
— Mais ou menos — respondeu o telegrafista. — É claro que ainda tenho que ajustar todas as peças e substituir os tubos e escalas. Estão todos queimados!
Lydia respirou profundamente.
— Acredita — perguntou, pensativa — que vamos conseguir consertar a instalação?
— Creio que sua pergunta está superada, general!
Lydia virou-se rapidamente e olhou, surpresa, para o astronavegador que apontava para a tela circular da Hydra. Estava fornecendo uma imagem. Lydia aproximou-se mais um pouco, num misto de incredulidade e euforia. Mal podia acreditar que as três horas de esforço não tinham sido em vão.
— Transferiu as ligações do radiofoto para a minha tela, Morris? — perguntou, enquanto analisava, minuciosamente, os detalhes da imagem.
— Não que eu saiba — respondeu Morris em voz alta.
Sua cabeça já estava, outra vez, entre os componentes mecânicos do transmissor.
— Provavelmente, a ligação estabeleceu-se por acaso, enquanto estávamos experimentando — acrescentou Morris, uns dois segundos depois.
— Estou vendo uma imagem bastante clara e nítida — constatou van Dyke.
O telegrafista reapareceu e dirigiu-se ao painel dianteiro do transmissor. Observou os sinais luminosos e os ponteiros que oscilavam por trás dos vidros estilhaçados.
— Tudo perfeito! — resmungou. — Não há dúvida de que estamos recebendo impulsos hiperradiofônicos. Uma imagem foi emitida e os rastreadores conseguiram captá-la. Isto mostra...
— ...que a emissora deve estar a uma distância; enorme, não é? — interrompeu o astronavegador, excitado.
— Correto! Pode descobrir de onde vem essa emissão? — perguntou van Dyke.
— Infelizmente, não!
A imagem na tela circular tornava-se cada vez mais nítida. Pouco a pouco, as linhas difusas e áreas coloridas transformaram-se em traços firmes, contornos bem delineados e vultos em movimento. Num pressentimento obscuro Lydia e o astronavegador perceberam que estavam testemunhando um acontecimento estranho, irreal.
— As ondas desses impulsos vêm de alguma parte da galáxia — insistiu o telegrafista, e voltou a mexer nos botões dos potenciômetros e sintonizadores. — Só as captamos porque nossos aparelhos receptores ainda não foram ajustados. Em condições normais, jamais usamos ou auscultamos a faixa de ondas na qual estão transmitindo essa imagem.
A imagem que viam...
Uma superfície escura, azulada, alastrava-se pela tela; parecia o interior de uma gigantesca caverna. Bem ao centro havia uma plataforma inclinada, encimada por uma esfera imóvel de cujo interior emanava a cintilação de minúsculos pontos luminosos. E na frente desse cenário estavam dois vultos, esbeltos e leitosos. Um deles apontava para o alto, onde um traço oblíquo atravessava a esfera.
— Ondas de impulsos... — gaguejou o astronavegador. — Mas... e esta imagem?
— Estes são os extraterranos que a turma de McLane descobriu na toca — sussurrou Lydia.
— Por um acaso incrível, descobrimos a sua maneira de comunicação, ou seja lá o que for! — disse o telegrafista, abismado. — Estamos vendo o interior de uma nave!
— O que estamos vendo, realmente — explicou Lydia van Dyke — é o mapa do domínio terrano.
O oficial da Vigilância Espacial olhou-a de lado e admirou-se, novamente, do autocontrole daquela mulher.
— Mas é claro! — disse. — Aquele planeta errante...
Olhou para o astronavegador. Entenderam-se sem proferir uma única palavra.
— Extraterranos e planetas errantes... — disse Lydia com uma estranha aspereza na voz. — Os ataques vêm de dois lados. MZ 4 está no setor Dez/Norte 219 e o planeta desviado vem do sul!
A imagem modificou-se ligeiramente. Os dois vultos, de formas bem humanóides, estavam, agora, diante da esfera e examinavam a projeção do fino traço que apontava exatamente para o centro do mapa astronômico. E nesse centro só havia uma única coisa: a Terra!
— Eu devo estar sonhando! — gemeu o astronavegador.
Fascinados, não tiravam os olhos da imagem. A nave continuava a errar pelo hiperespaço, sem rumo, sem propulsão e sem meios de orientação. Por uma casualidade inacreditável, o aparelho hiperradiofônico, defeituoso, havia interceptado a comunicação dos estranhos e estava reproduzindo o que tinham a dizer. A conclusão era óbvia: eram eles que dirigiam o planeta.
Lydia estava atônita; sem ocultar a surpresa na voz, sussurrou:
— Será que a técnica deles não conhece limites? Já mostraram que são capazes de arrancar um planeta de sua órbita e dirigi-lo, daí em diante, a seu bel-prazer. E com que precisão incrível! Numa esfera com novecentos parsec de diâmetro, conseguiram descobrir uma órbita planetária de apenas duas unidades astronômicas! E ainda determinaram a posição da Terra no instante da intersecção das duas trajetórias! Mas o pior de tudo é que conseguiram transformar um planeta num sol! Isto... beira a loucura total!
Interferências tremiam sobre a tela. Tiveram que esperar alguns minutos antes que a imagem voltasse a ficar nítida. E tinha-se modificado mais uma vez.
Agora apareciam as órbitas dos planetas em torno do sol terrano: Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Uma reta interceptava essas órbitas e, em três dos pontos de intersecção, encontrava-se um planeta. Ainda não estavam lá, na realidade, mas já se dirigiam para esses pontos de encontro...
— Três planetas: Vênus, Marte e a Terra! — disse o telegrafista, com voz rouca.
— Vão todos três ser destruídos por um planeta em brasas. Um plano diabólico!
— Não precisa ter receio de que isso vá passar despercebido pelo pessoal da Terra
— disse Lydia van Dyke. — Sem dúvida, a Central de Computação vai descobrir o perigo. Mas nós, o que podemos fazer?
Olhou para o rosto sério do astronavegador e depois para Morris. Ambos encolheram os ombros.
— Vamos tentar consertar nossa aparelhagem. Depois, informamos nossa posição e damos o alerta geral. Temos que esperar! Dispomos de água, oxigênio, comida e energia. Só não podemos sair do hiperespaço.
— OK! — disse Lydia. — E essa imagem?
— Está sendo gravada em fita há quatro minutos. Pode ser que o resultado não seja uma reprodução de primeira, mas tudo que vimos na tela foi registrado pela eletrônica — e o telegrafista sorriu.
Lydia lançou-lhe um olhar agradecido.
— Obrigada, Morris! — murmurou. Continuaram a observar a estranha central de operações dos invasores; notaram as cores diferentes e os poucos objetos cuja finalidade não sabiam explicar. Eram, obviamente, produtos de uma técnica que diferia em tudo da que a Terra conhecia. As próprias concepções básicas já eram diferentes — e como eram diferentes! Uma nova interferência extinguiu a imagem de vez.
— Continuamos sincronizados na onda que pegamos por acaso? — perguntou o astronavegador, analisando o esquema de um circuito. — Ou vamos prosseguir com o trabalho? Se mexermos em alguma coisa, modificamos a ligação casual, isso é certo!
Lydia pensou por alguns segundos, com uma expressão de silenciosa concentração no rosto. Finalmente, decidiu-se:
— Já vimos o suficiente! Vamos continuar!
— Entendido, general! — disse Morris. — Pode me ajudar? — Lydia fez um gesto afirmativo.
Assim que calibraram e ligaram o primeiro condensador, a tela se apagou. Trabalharam em silêncio, obstinadamente, tentando consertar o transmissor. Sabiam que a sua sobrevivência dependia do funcionamento desse aparelho.
Levaram duas horas para completar as conexões entre a antena e o primeiro jogo de filtros. A Hydra continuava a boiar, desamparada, no hiperespaço, envolvida peia matéria sem essência dessa dimensão de ordem superior.
— Parece que a tempestade de radiação também teve uma boa dose de culpa nisso! — disse o telegrafista, cansado, e jogou uma chave de fenda sobre a mesa do transmissor.
— Culpa, em quê? — perguntou o astronavegador, curioso. Também Lydia lançou um olhar surpreso a Morris. Os três tinham os dedos e o cabelo chamuscados pelas fagulhas das soldas.
— Culpa no fato de termos conseguido captar aqueles impulsos hiperradiofônicos. Se empregaram antenas direcionais, é provável que a radiação tenha desviado as ondas.
Lydia consultou o cronômetro de bordo.
— Já faz seis horas que estamos no hiperespaço — constatou.
Depois, com um sorriso confiante, continuou:
— Morris, será que nossas baterias ainda dão para fazer três xícaras de café?
— Sem dúvida! — Morris teve que rir. — Quer que eu prepare?
Sentaram-se nos cantos das mesas e tomaram o café quente. Em seguida, registraram as gravações que Morris tinha feito, numa outra fita e testaram a instalação radiofônica, o que lhes custou mais meia hora.
— Será que vamos conseguir? — perguntou Lydia, apreensiva.
— Estou convencido — disse Morris e acenou com a cabeça — que a estação hiperradiofônica mais próxima vai retransmitir nossa mensagem; ao menos, até a Estação Avançada-IV.
— Muito bem! — respondeu Lydia. — Vamos lá!
E Morris começou:
— De Hydra para Suprema Comissão Espacial e Serviço de Segurança Galático... urgente... urgente... por acaso nave conseguiu captar ondas de impulsos entre duas naves ou estações inimigas... segue-se registro na nossa fita...
O transmissor separava os impulsos da fita segundo um esquema que os receptores utilizariam para reconstituir as imagens. Alguns pontos fracos nos consertos realizados sobrecarregaram a capacidade do transmissor; em conseqüência, algumas séries de radiofotos saíram pouco nítidas e com a tonalidade das cores alterada.
— Fim! — disse Morris e desligou algumas chaves no painel.
— Resta-nos a esperança — resmungou o astronavegador — de que nos localizaram e vêm nos apanhar!
MCLANE notou logo que o coronel Villa não era, naquele dia, o homem ágil e loquaz de outras ocasiões. Falava de maneira ríspida e lacônica e a expressão tensa do seu rosto mostrava que não conseguia desviar o pensamento de alguma preocupação muito grave. Algo de inédito devia ter acontecido. Flanqueado por dois oficiais do SSG, Villa estava sentado atrás da sua mesa de trabalho, coberta de documentos que quase escondiam os botões dos aparelhos de comunicação. Cinco poltronas completavam a mobília do espartano gabinete. Villa levantou um olhar atento para McLane e rompeu o silêncio:
— Quais os cubos espaciais que percorreu durante o seu último vôo de patrulha-mento, McLane?
Cliff virou a cabeça e estudou, por alguns segundos, o perfil de Tamara. Depois, respondeu:
— O satélite retransmissor encontra-se no cubo Dez/Norte 219. A Challenger vinha de Dez/Norte 360. Eu me deslocava no primeiro e, provavelmente, também nos seis cubos adjacentes.
Cliff tinha respondido em tom irritado. Não sabia aonde Villa queria chegar. A lâmpada cintilante no meio da mesa era prova de que perguntas e respostas estavam sendo gravadas.
— O senhor não esteve no cubo Sul/ Dois 5112? — continuou Villa. Os homens que o flanqueavam mantinham-se imóveis, de caras fechadas, e observavam Cliff e Tamara com uma expressão de interesse impessoal.
— Não estive nesse cubo! — exclamou McLane, em voz alta e agressiva.
— Não viu nada de extraordinário, comandante? — perguntou Villa e fez um gesto impaciente com a mão. Seus dedos começaram, de novo, a tamborilar sobre o tampo da mesa.
McLane respondeu com a voz um pouco mais controlada:
— Claro que não vi! Sem levar em conta o que aconteceu lá em MZ 4. Viu alguma coisa, Tamara?
Virou-se na poltrona e olhou para a agente do SSG. Sem alterar sua expressão calma e reservada, Tamara limitou-se a responder com um lacônico "não!".
McLane pigarreou e cravou seus olhos nos de Villa. Com voz baixa, perguntou:
— Afinal, posso saber o que está havendo? Primeiro fomos arrancados das nossas escassas horas de lazer e arrastados para cá; e agora estamos sendo interrogados como bandidos com a cabeça a prêmio... E ninguém se digna me dizer por quê!
Com voz impassível e baixa, Villa disse:
— Duas horas atrás recebemos uma mensagem hiperradiofônica. Bastante truncada. E o registro magnético de uma radiofoto. Era um dos dois pedidos de socorro da Hydra, que...
McLane ergueu-se de um salto e os pés da sua poltrona estalaram no piso.
— Um pedido de socorro! — exclamou, alarmado — da Hydra?
Villa acenou, em silêncio, depois acrescentou: — ...que está voando sob o comando de van Dyke. Sim, o que é? — olhou para o videofone.
Tamara também se levantou e postou-se ao lado da poltrona.
— Um momento! — disse Villa e apertou o botão que extinguia a barreira eletrônica. Um oficial atravessou a moldura, aproximou-se da mesa do coronel e bateu continência. Villa levantou os olhos e perguntou, com sua voz disciplinada:
— Já tem os resultados, tenente? Lançando um furtivo olhar em direção a
McLane, o oficial disse, solícito:
— Examinamos os registros eletrônicos do livro de bordo e também do tacógrafo.
Cliff estava a ponto de estourar de raiva.
— E os resultados? — perguntou Villa.
— Os informes do comandante McLane estão corretos!
Cliff sentou-se no braço da poltrona, cruzou as pernas e perguntou, friamente:
— Não vai me dizer, coronel, que esperava por um resultado diferente?
Villa permitiu-se esboçar um sorriso.
— Não, certamente que não. Afinal, o senhor tinha um oficial do SSG a bordo, comandante.
— Será que podemos saber agora — disse Tamara, visivelmente irritada — o que realmente aconteceu?
Villa encarou-a durante um segundo; depois olhou para o oficial e disse:
— Está bem. Obrigado; é só!
O oficial recuou alguns passos até ficar por trás de Cliff e Tamara.
— Muito bem! — disse Villa, resolvido a falar. — Vou pô-los a par de tudo.
— Pedimos isso, encarecidamente! — disse McLane.
— Poupe seu sarcasmo — disse Villa, impassível. — A coisa é muito mais séria do que imaginam. Recebemos duas mensagens radiofônicas da Hydra, que penetrou no hiperespaço mais ou menos na altura de Sul/Um ou Dois e, desde então, não temos notícia dela. As mensagens evidenciaram que um grande planeta está se aproximando, com uma velocidade enorme, de três órbitas planetárias do nosso sistema. Sua atmosfera e, obviamente, parte da sua superfície, estão em total incandescência, como se fosse uma Nova. E este planeta está sendo teleguiado sem sombra de dúvida. Van Dyke conseguiu transmitir os registros magnéticos da imagem de uma estação dos estranhos. Vou-lhes exibir esta fita daqui a alguns instantes.
McLane olhava, incrédulo, ora para Tamara, ora para Villa e acabou por sussurrar, atônito:
— Um planeta... transformado numa Nova? Isto não pode ser verdade!
— Nossas estações de busca já o localizaram. Sua velocidade é tamanha que, dentro de dez dias, vai alcançar primeiro Marte, depois a Terra e, finalmente, Vênus. Além disso, seu envoltório gasoso em brasas alastra-se constantemente, como numa Nova. Primeiro, os três planetas serão consumidos pelo fogo; depois, vão colidir. Que diz agora?
— Nada! — Cliff sacudiu a cabeça num gesto de total espanto.
— É claro que unidades da frota estão mantendo o objeto sob constante observação. Além disso, estamos tentando destruir a substância básica do planeta por meio dos raios laser. Destacamos algumas baterias pesadas para essa tarefa. Só que, até agora, não obtivemos qualquer resultado satisfatório.
— Ninguém acreditava que uma coisa dessas fosse possível, comandante — disse o homem à direita de Villa. — Mas a realidade é esta. O estado-maior está em reunião permanente.
— Uma Nova é algo concebível — disse Cliff, falando para si mesmo. — Um planeta que se desvia da sua órbita, vá lá. Mas um planeta que se transforma em uma Nova e que, além disso, é teleguiado!... Isto é inconcebível. E quem é que controla essa aberração?
— Seus novos amigos de MZ 4. Não estão apenas na fronteira Norte; este novo ataque vem do Sul. E apontaram uma arma mortal para o coração do nosso domínio: para a Terra.
— Posso ver a gravação? — perguntou Cliff girando em sua poltrona.
— Claro! Só um momento, por favor! Na parede dos fundos do gabinete havia dois objetos que chamavam a atenção: a enorme projeção do domínio terrano e um anel metálico, gigantesco e vazio, sem finalidade aparente. De súbito, todas as luzes se apagaram.
Dentro do anel apareceu uma imagem. A projeção do relatório gravado era realizada no curioso aparelho. Inicialmente, ouviram a voz de Lydia van Dyke. A maneira como falava revelava o seu estado emocional e Cliff sentiu que um medo gélido lhe apertava o coração.
Depois, reconheceu as imagens. Lá estavam as cores embotadas, as silhuetas difusas dos extraterranos... Após o incidente em MZ 4, Atan havia-os apelidado de sapos; mas, para McLane, eram mais estranhos que qualquer sapo gigante da Terra. E sua inteligência e recursos técnicos eram assustadores.
De repente, a superfície no interior do anel-projetor ficou vazia, as luzes voltaram a se acender e iluminaram seis rostos pálidos e apavorados. Os três homens do SSG, Tamara e Cliff viraram-se e concentraram os olhares sobre a face esgotada do coronel Henryk Villa.
Com um tremor incontrolável na voz, McLane perguntou:
— O general van Dyke foi o meu superior imediato durante seis anos. Resta ainda uma esperança de salvar Lydia van Dyke?
Villa ergueu-se; parecia um homem velho, alquebrado.
— Não sei dizer, McLane. A nave de van Dyke está no hiperespaço. Tudo indica que todos os sistemas entraram em colapso, com exceção do aparelho hiperradiofônico. Não sabemos se podemos entrar em contato com a Hydra.
— Ainda há esperança para Lydia? — insistiu McLane.
— Esperança, ainda há! — respondeu Villa. — Mas não muito mais do que isso!
— O que está em jogo é o destino da Terra, Cliff! — disse Tamara. E olhou para McLane, passando a mão pela testa suada. Villa parou diante do tenente que tinha entrado por último.
— Sim, coronel? — perguntou o oficial, com voz quase inaudível.
— Chegou a hora! — disse Villa cheio de amargura. — Plano: DX-Alpha... Salvem a Terra!
As palavras pareciam ecoar no silêncio. Lado a lado, Cliff e Tamara deixaram o gabinete, atravessaram, calados, a ante-sala e, minutos depois, pegaram o expresso subterrâneo que os levou para Wyangala. De lá, retornaram a Groote Eylandt.
A Nova estava cada vez mais veloz... O planeta em brasas lançava-se através das regiões desertas do universo com uma velocidade que beirava a impossibilidade física para um corpo de tamanho tão descomunal: 150 mil quilômetros por segundo.
Agora se encontrava no cubo espacial Um/Sul 018, vindo de 008. Ao menos, foi nesse cubo que a Hydra tinha conseguido localizá-lo e determinar seu curso. Um corpo com uma circunferência equatorial de oitenta mil quilômetros projetava-se em direção a Marte, Terra e Vênus. A atmosfera, transformada na capa irradiante de uma estrela, alastrava-se incessantemente. Os aparelhos medidores das naves que o acompanhavam funcionavam sem parar. E forneceram a análise perfeita da destruição.
Comparações com os resultados das observações feitas em Novas autênticas permitiram avaliar o seu ciclo de evolução em onze dias. Além disso, a intensidade luminosa do planeta agonizante ainda atingiria um valor 50 mil vezes maior que o atual. A velocidade de erupção tinha sido calculada em 4500 quilômetros por segundo e era com este valor que a camada de gás flamejante se lançava pelo cosmos em direção à Terra... E as temperaturas elevavam-se sem parar.
O envoltório gasoso em chamas possuía uma temperatura de 5 mil graus Kelvin. Este calor consumiria o que lhe aparecesse no caminho.
Era provável que os estranhos, aqueles sapos das profundezas da galáxia, tivessem levado a matéria do planeta a um estado que gerava esse gás. A sublimação era incessante: o material do planeta era destruído, transformando-se, instantaneamente, em gás chamejante. As naves que acompanhavam o colosso em seu vôo vertiginoso através das dimensões do universo penetravam, com audácia, alguns milhares de quilômetros na névoa cintilante e disparavam os raios laser. Tencionavam fragmentar a matéria sólida do planeta mas, invariavelmente, viam-se frustradas nas suas tentativas. Era inútil.
Os cascos externos incandesciam e tiveram que bater em retirada com avarias diversas. Nada mais podiam fazer a não ser esperar, observar e enviar as imagens à Terra. O planeta-sol prosseguia, inexoravelmente, na sua trajetória de morte.
Os cálculos indicavam que, dentro de poucos dias, a enorme bola de fogo iria atingir Marte. E então, tudo que a civilização humana havia construído neste planeta seria destruído numa fração de segundos. E nem era preciso que houvesse uma colisão — bastava que o monstro chamejante passasse a trinta mil quilômetros de distância do planeta vermelho para que este fosse estraçalhado por um gigantesco abalo tectônico. Dias após, o mesmo destino alcançaria a Terra e Vênus, já que os três planetas se encontravam numa só linha em relação ao curso do implacável destruidor. Ainda faltavam 239 horas...
A reunião estava se realizando sob o signo da indisfarçada ameaça. Com base nos dados fornecidos pela Central de Computação, havia se marcado um traço no interior da projeção tridimensional; um dos pontos extremos aproximava-se do centro da esfera espacial: da Terra.
Os representantes de todas organizações que tinham algum vínculo com a navegação espacial estavam sentados em volta da mesa de conferência. A voz incisiva de Kublai-Krim fez-se ouvir:
— Comandante McLane! O senhor afirmou que não viu o planeta, ou a Nova. Isto corresponde aos fatos?
Cliff encolheu os ombros e respondeu:
— Nem Tamara Jagellovsk, nem eu e menos ainda a minha equipe ou os instrumentos notamos algo de incomum ou captamos o mais leve sinal. Por que razão não acredita no que digo?
Um astrônomo, que exercia a função de consultor junto à Comissão de Defesa, levantou a mão e interrompeu Kublai-Krim com um gesto brusco.
— Nem o comandante McLane nem outra nave qualquer, que não se encontrasse, casualmente, no setor Um/Sul 008 poderia ter visto essa Nova. Foi avistada há exatamente trinta e seis horas pela nave Hydra. Não falta um único sol sequer nesta região do espaço. Isto nós verificamos em todos os catálogos existentes.
— E isso leva a que conclusão? — perguntou Kublai-Krim.
Com a empáfia que, em todos os tempos, caracterizou o tratamento dispensado pelos cientistas aos leigos, o astrônomo respondeu:
— Somente uma estrela pode se transformar em uma Nova. Acontece, porém, que até uma distância de quatrocentos e cinqüenta parsec não há um único sol nesta região que tivesse mudado de posição. Afinal de contas, essas estrelas já permanecem nos seus lugares há alguns milhões de anos. O que aconteceu foi que arranjaram um outro planeta e o colocaram lá. Eis a solução do enigma!
— Outro planeta!... Arranjar um planeta!... Simplesmente arranjar...! — Sir Arthur gemeu.
— Isso mesmo! — confirmou o astrônomo. — Sem que os nossos aparelhos de busca o percebessem, os estranhos colocaram um outro planeta naquele ponto. E um planeta com um diâmetro duas vezes maior que o da Terra e cuja existência nenhum instrumento acusou... Não me perguntem como o fizeram; se o empurraram ou puxaram, se o tiraram à força da sua órbita e, depois, o aceleraram... Eu não sei. Nenhum de nós sabe. E, em seguida, desencadearam uma reação atômica que transformou o corpo inteiro em energia pura. Mas, antes da Hydra, ninguém conseguiu ver o planeta chamejante. Suponho que não duvidam da minha competência.
Sir Arthur e Kublai-Krim sacudiram a cabeça, mudos.
— Neste caso — prosseguiu o astrônomo — o comandante McLane deixa de ser suspeito!
O coronel Villa meteu-se na conversa.
— Os registros no livro de bordo e o tacógrafo foram cuidadosamente analisados. Fizemos o mesmo nas naves de outros comandantes e nenhum desses homens viu coisa alguma dessa Nova. E eu não creio que haja um único tripulante em toda a esquadra terrana que, descobrindo um planeta incandescente, não comunique o fato imediatamente.
Villa sentou-se e viu o olhar agradecido de Cliff.
Uma infinidade de fotos, diagramas, mapas astronômicos, blocos de apontamentos e canetas estavam esparramados pela mesa. Os videofones, ligados, comunicavam os homens com seus gabinetes e seus secretários. Com o enorme torso inclinado por cima da mesa, o marechal Wamsler parecia um Buda negro. Estava pensando e os seus olhos não paravam, analisando as imagens coloridas que estavam sendo projetadas sobre telas na extensa parede em frente à mesa. E em todas elas aparecia a mesma coisa: o planeta em chamas.
Tamara estava sentada ao lado de Cliff. Durante o vôo, Cliff havia lhe explicado porque o mistério parecia tão insolúvel. Agora ela sabia qual era a diferença entre uma Nova, uma Supernova e um planeta que ardia. Conhecia, também, o perigo que ameaçava a humanidade. A voz de Wamsler soava como um trovão distante.
— As nossas intenções eram as melhores possíveis e, até certo ponto, ainda são válidas. Queríamos tentar estabelecer contatos amistosos com os estranhos. Tudo indica que eles sabem disso, por absurdo que possa parecer. Agora, porém, estou convencido de que eles não têm a menor intenção de manter relações amigáveis com a Terra. Meu amigo, o coronel Villa, sabe do que estou falando. E, tenho certeza de que também vai aconselhar a adoção de uma atitude mais enérgica. Afinal, não se pode considerar planetas em chamas como saudações intergaláticas. Porém, antes de pensarmos em vingança, retaliação ou coisa que o valha, precisamos descobrir, e já, um meio de eliminar o perigo que nos ameaça.
Kublai-Krim fez um aceno de aprovação.
O representante do governo terrano pediu a palavra. Von Wennerstein era um homenzinho magro, com o corpo de um adolescente espichado. Um solitário tufo de cabelo grisalho, cuidadosamente penteado, adornava-lhe a testa calva.
— Não vamos perder tempo com discussões infrutíferas a respeito da competência deste ou daquele! — disse, quase gritando. — Nossas preocupações imediatas são de outra natureza. Que vai acontecer, afinal? Alguma coisa precisa ser feita!
Kublai-Krim largou o punho sobre a mesa.
— Fala como um principiante, Wennerstein! — disse, asperamente. — É claro que precisamos fazer algo. Mas, o quê, homem! Até hoje ainda não lutei contra um planeta!
O sangue começou a afluir ao rosto de Wennerstein. Largou o bloco de apontamentos sobre a mesa e disse:
— O que não podemos é ficar sentados, discutindo, e esperar pela hora do grande estouro! O governo aguarda, com urgência, as sugestões do Serviço Secreto e da Suprema Comissão Espacial, sem falar nos planos das Forças Armadas Espaciais! Villa pigarreou, sarcástico.
— O governo aguarda estas sugestões com a máxima urgência! — repetiu Wennerstein. — Com urgência urgentíssima, se me fiz entender!
Sir Arthur levantou as sobrancelhas e respondeu:
— Até parece que o senhor acredita poder eliminar uma ameaça cósmica de tais proporções com meia dúzia de tiros de uma pistola energética! Infelizmente a nossa técnica ainda não atingiu este ponto de evolução!
Wennerstein deu um sorriso e respondeu, com um ar de superioridade:
— O seu negócio, meus senhores, é exatamente este: dar tiros e coisas do gênero. Portanto, o problema é seu! A propósito: pelo que eu soube, o planeta é teleguiado. E pelos extraterranos, se não me engano. Como e quando as Forças Espaciais vão lançar um ataque ao inimigo? Ou será que ninguém sequer cogita de um ataque?
Wamsler fez um gesto desdenhoso com a mão; McLane ia se manifestar mas não acreditou que sua opinião pudesse ter algum peso nessa roda. Sir Arthur virou-se para o marechal:
— De quantas naves espaciais dispõe, Wamsler?
Wamsler sabia os números de cor:
— Cinco mil seiscentas e noventa naves: das quais dez só podem participar de missões de apoio e outras trinta foram avariadas durante as primeiras ações contra o planeta.
— O que dá um total de cinco mil seiscentas e cinqüenta naves! — finalizou Sir Arthur.
— E quando podem entrar em ação? — perguntou Von Wennerstein.
— Pouco menos da metade até hoje de noite. O resto, dentro de quatro dias, na melhor das hipóteses.
— ESTOU pensando seriamente... — disse McLane, voltando-se para Tamara.
— Em fazer o quê? — perguntou Tamara, em voz baixa.
— Cair fora daqui, decolar e ver se a nossa velha e fiel Orion ainda é capaz de umas tantas proezas!
— Atreva-se! — Tamara sorriu, com uma surpreendente expressão de cordialidade.
— Estamos sentados aqui para quê?
Para ouvir um punhado de velhos decrépitos brigarem pelo direito de dar o primeiro tiro? A esta altura já estaríamos longe, bem no meio do hiperespaço!
— Tenha mais um pouco de paciência
— disse Tamara. — Não demora e você vai entrar em ação, McLane, ou eu não conheço Wamsler. Afinal, você conseguiu tornar-se tristemente famoso na frota.
— Está bem! — disse McLane, sufocando a raiva. — Vamos esperar pelo que der e vier. — refestelou-se na poltrona, mas estava possuído por uma impaciência febril.
— O que precisamos — observou Sir Arthur, num tom de voz que todos ouviram
— é de todas as naves das bases avançadas. E precisamos delas já! Por que isto ainda não foi providenciado?
Kublai-Krim, o comandante-em-chefe da Forças Armadas Espaciais, não cedeu.
— Julgo de suma importância manter suficiente liberdade operacional em torno da Terra, não me importa qual seja a decisão do governo!
Sir Arthur esforçou-se para não perder o controle. Como presidente da Suprema Comissão Espacial, cabia-lhe a ingrata e difícil tarefa de conciliar os pontos de vista divergentes. Contendo, a muito custo, a impaciência que o dominava, disse:
— O governo aguarda nossas sugestões! Todos nós ouvimos Wennerstein dizer isso. Muito bem; a minha sugestão é a seguinte: vamos evacuar a população da Terra! Mas... como posso providenciar isso, se não disponho de todas as naves espaciais? Será que não entendem isso?
O astrônomo pediu a palavra.
— Sim, fale, por favor! — disse Villa.
— Se entendi direito, os senhores pretendem levar a população terrana, e mais os homens e mulheres da base em Marte, bem como as guarnições em Vênus, para o planeta de Larsen? É isso mesmo? Sim, porque, no momento, é o único que oferece possibilidade de sobrevivência!
— Correto! — disse Wamsler. — É o que tínhamos em mente!
Von Wennerstein levantou-se, rápido. Seu dedo indicador apontava para Sir Arthur.
— E eu crente que estivessem planejando um ataque aos estranhos! Os senhores estão falando em evacuação?
O marechal Wamsler ergueu-se e colocou as mãos enormes sobre a mesa. Olhou, com vagar, para os rostos tensos em seu redor e disse:
— Quanto à idéia de uma evacuação, permitam-me observar o seguinte: mesmo que dispuséssemos de todas as cinco mil naves, só poderíamos evacuar, no máximo, quinze por cento da população da Terra, e isto não inclui o pessoal de Marte e Vênus. Como disse: quinze por cento, na melhor das hipóteses. Conclusão: uma evacuação está fora de cogitação!
A voz contundente de Wennerstein apoiou as palavras de Wamsler:
— Perfeitamente, marechal! Não haverá evacuação. Isto, o governo já decidiu e estou autorizado a comunicar-lhes esta decisão!
A resposta de Sir Arthur era de puro cinismo:
— Ah! Quer dizer que o governo já decidiu? É claro que isto modifica a situação radicalmente! E então, meu mui estimado senhor Secretário de Estado, talvez possa me dizer que diabo está fazendo o Supremo Conselho Planetário em Kallisto, na quarta lua de Júpiter? O governo se manda, discretamente, e deixa a população entregue à própria sorte. É um pormenor que vou abordar, com afinco, por ocasião das próximas eleições, eu lhe garanto!
Kublai-Krim fez um gesto indefinido e observou, com ironia:
— Os políticos sempre encontram algo para governar, mesmo que os planetas tenham sido totalmente queimados. Estou divulgando alguma novidade?
A perplexidade geral dominou o ambiente durante alguns minutos. Finalmente, Von Wennerstein tentou fazer um resumo da situação:
— Isso significa, portanto, que os militares assumem uma posição de total resignação?
— Significa coisa alguma! — explodiu Sir Arthur. — Parece que o senhor está confundindo tudo isso com uma inofensiva escaramuça da segunda guerra interplanetária!
— Se o governo tivesse decidido pela evacuação — respondeu Wennerstein — não precisava ter consultado os militares. Neste caso, estamos perdidos: assim ou assado. Isso é tudo que os senhores têm a propor?
Com voz ferina, Villa observou:
— A retirada do Conselho Planetário para Júpiter foi, realmente, uma ação precipitada e irrefletida. Se quisermos, podemos até considerá-la como um ato de covardia. Mas, no fundo, essa atitude do governo é tão incoerente quanto a pretendida transferência do Alto Comando para Thetis.
— Por quê? — perguntou Kublai-Krim.
— Não posso garantir que essa... digamos, transferência, das mais altas autoridades permaneça em sigilo.
— Quer dizer que, se isso transparecer, vai estourar o pânico entre a população, Villa? — perguntou Wennerstein, alarmado.
— Interpretou corretamente meu raciocínio — disse o coronel Villa, com voz amargurada. — E o que isso significa, não preciso explicar a nenhum dos presentes.
— O que propõe, Villa? — perguntou o Secretário de Estado.
— De maneira alguma, a catástrofe iminente deve se tornar do conhecimento público. Além disso, temos que evitar todo e qualquer ato que possa fornecer algum indício da existência desse perigo — disse Villa.
McLane aproveitou a pausa que se seguiu às palavras do chefe do SSG e fez um sinal para Wamsler.
— Sim, McLane? — perguntou o marechal.
— Quanto tempo nos sobra? — indagou McLane.
Um dos ajudantes de Villa consultou seu relógio, raciocinou por um instante, e informou:
— Segundo os nossos cálculos, comandante, faltam ainda 235 horas. Determinamos o instante da colisão entre esse planeta e a Terra. Deve ocorrer dentro desse prazo.
— Portanto, dentro de pouco menos de dez dias.
— Correto! É o tempo que nos separa do choque ou da passagem do planeta rente à Terra.
— Este será apenas o último ato — disse o cientista, esgotado. — Antes disso já não vai haver mais vida na superfície terrana. Tudo terá sido devorado pelas chamas.
Parecia que Von Wennerstein ainda não tinha entendido a natureza do perigo que os ameaçava.
— E qual a diferença entre essas constatações? — perguntou, demonstrando insegurança.
O astrônomo voltou a exibir toda a empáfia:
— O planeta desloca-se em direção à Terra. Percorre uma trajetória muito bem calculada, pois vai passar por três planetas, a saber: Marte, Terra e Vênus. Acontece, entretanto, que esse planeta possui um envoltório irradiante, em chamas, que se expande à razão de quatro mil e quinhentos quilômetros por segundo. Ou seja: a capa gasosa dessa esfera ígnea aumenta o seu diâmetro de nove mil quilômetros a cada segundo. Isso pode significar o fim de todo o sistema solar pois, se houver desequilíbrio entre as forças das órbitas planetárias, o sistema se desfaz. Resta-nos o triste consolo de que também as luas de Júpiter não vão poder sobreviver. Dentro das condições que acabei de expor, podem imaginar o tamanho que a bola de fogo terá, quando nos atingir, daqui a dez dias.
— Portanto, o prazo está se escoando? — perguntou Sir Arthur.
— E rapidamente! — acrescentou o astrônomo. — A distância que nos separa do aniquilamento é de aproximadamente 383 bilhões de quilômetros. A Terra não será atingida diretamente, vai ser estraçalhada pelas forças gravitacionais. O mesmo destino está reservado para Marte e Vênus.
— Não há alguma maneira de conter o avanço desse planeta? — Wamsler estava pensando em voz alta. Procurava, desesperadamente, uma resposta para a própria pergunta. — Se pudéssemos retardar seu deslocamento, ou desviá-lo da sua trajetória? Uma coisinha de nada já seria o suficiente para alterar o seu curso de tal forma que, dentro de dez dias, passaria ao largo do sistema!
— Isso seria perfeitamente viável — disse o astrônomo.
— Como? — quis saber McLane, em voz alta.
Todos os olhos se dirigiram a ele e Tamara, que estava a seu lado.
— Se soubéssemos de que lado os estranhos estão dirigindo o planeta!
— O senhor acredita, portanto — continuou McLane — que basta destruir o posto de controle, ou a central de comando dos invasores para que o sistema direcional do planeta entre em colapso fazendo com que passe longe do nosso sistema?
— Isto é possível — respondeu o astrônomo e empurrou um bilhete para Cliff. — Mas é altamente improvável.
— Então, precisamos descobrir o posto de controle dos estranhos! — disse Wamsler. — É a nossa única chance!
McLane estudou o bilhete, cheio de cálculos e diagramas esquemáticos. Começou a raciocinar febrilmente. Precisaria de algumas coisas: seria necessário captar as ondas radiofônicas dos estranhos; Atan se incumbiria disso. Mas isto não bastaria; Atan teria necessidade de um colaborador em outra nave para descobrir essas ondas de um outro ângulo. Então, por meio de uma triangulação trigonométrica, poderiam localizar a central de comando. Depois, um ataque... Mas isto já seria um problema secundário.
— Não! De forma alguma!
Sir Arthur fez a objeção com voz alta e autoritária. Tinha se levantado e estava apontando para uma das projeções estelares na parede.
— Não posso assumir a responsabilidade de despachar todas as naves numa operação de busca aos estranhos sem ter a menor noção de onde se encontra a maldita estação de controle. Pode estar em algum ponto da nossa esfera espacial; não o sabemos. E não temos certeza alguma de que podemos destruir este posto de controle. Posso refrescar-lhes a memória? Pois bem; graças a intervenção decidida dos homens de McLane, nos apoderamos daquelas naves em MZ 4. E a que ponto chegaram, até agora, os nossos técnicos nas suas tentativas insanas de decifrar a misteriosa técnica dos extraterranos? Não houve progresso digno de nota. Continuam tateando no escuro. Portanto, mesmo se descobrirmos a estação de controle, a tentativa de destruí-la não passa de puro diletantismo. Isto não é estratégia!
— Essa também não é uma guerra normal! — observou Villa, baixinho.
— Ainda existe a possibilidade, ao menos teórica, de tentar destruir o planeta com antimatéria — disse o cientista.
— Como? — perguntou McLane, demonstrando um súbito interesse.
— A cada partícula de um átomo corresponde uma antipartícula. Podemos determinar a natureza da radiação que emana do planeta. Se conseguíssemos criar as respectivas antipartículas e aproximá-las uma das outras, então se destruiriam mutuamente, numa tremenda explosão. McLane raciocinou com rapidez.
— Se interpreto corretamente as suas fórmulas, a estruturação do planeta corresponde à de uma estrela jovem mas, bem entendido, de uma estrela, na qual o carbono intervém na reação termonuclear? — os participantes da reunião começaram a prestar atenção. — Podemos, portanto, supor que, para uma determinada temperatura na zona de reação, um átomo de carbono-12 vai se transformar em nitrogênio-13; um próton é capturado. Finalmente, na zona externa, irradiante, vão se formar núcleos de hélio e de carbono-12?
— Foi isso que os nossos cálculos indicaram. Não estamos lidando com um sol normal mas, sim, com um processo artificial, comandante — disse o cientista, parecendo satisfeito em poder discutir o assunto com um especialista.
— Nesse caso, peço-lhe que calcule os valores com os quais podemos enfrentar hidrogênio a temperaturas entre 4500 e 5000 graus Kelvin. Após a minha partida, pode entrar em contato comigo através da Estação Avançada-IV. Está bem assim?
O cientista acenou. Tinha compreendido o plano que Cliff tinha em mente e sabia, também, como McLane tencionava realizá-lo. A rapidíssima expansão do hidrogênio em combustão tornava muito difícil qualquer avaliação do momento exato, em que se efetuaria a reação. E isto era ainda agravado pelo fato de que todos os processos se realizariam naquela velocidade enorme com que o planeta, juntamente com as naves que o acompanhavam, estava se lançando em direção a Terra. Mesmo que o planeta errante explodisse ou se dissolvesse ainda podia constituir-se numa ameaça para alguns planetas.
— Então, chegou a hora de nos decidirmos por um plano ou outro — disse Villa. — Meu voto é a favor de uma tentativa. Uma tentativa de descobrir e destruir o posto de controle.
Alguns dos presentes mostraram-se de acordo com a proposição. Villa dirigiu-se a Sir Arthur:
— Não temos outra alternativa. Peço-lhe que concorde.
Wamsler anunciou, com sua voz grave:
— Proponho que coloquemos em marcha, sob condições especiais, duzentas naves com a missão específica de descobrir o posto de controle. As perspectivas de êxito desta operação parecem-me maiores do que, no momento, talvez possamos admitir. Há uma série de fatores imponderáveis que entram em jogo.
Sir Arthur baixou a cabeça.
— Muito bem! — disse, com voz decidida. — Pode emitir as ordens!
— Obrigado! — disse Von Wennerstein, intrometendo-se no debate. — Com um pouco menos de obstinação já teríamos chegado a uma definição há muito tempo.
Wamsler levantou-se e chamou Cliff com um gesto do indicador.
— McLane, a Orion é uma das naves mais velozes que possuímos. Vai partir imediatamente!
McLane fez uma rápida continência e acenou para o marechal.
— Só mais uma pergunta — disse, baixinho. — Ainda temos contato com a Hydra?
Wamsler encolheu os largos ombros.
— Não temos, não! — disse, suspirando. — Depois que recebemos a última série de radiofotos, o contato rompeu-se de vez. Tentamos tudo, mas talvez a antena tenha se derretido. Ou, o que é mais provável, a tripulação está morta.
McLane conseguiu manter-se calmo.
— Quer dizer que já riscou a tripulação da Hydra do rol dos vivos?
— Infelizmente, sim! — disse Wamsler. — Agora venha! A senhorita também, Tenente Jagellovsk.
Utilizando o rádio de pulso, McLane convocou a sua equipe. Meia hora depois estavam todos reunidos e, munidos de uma autorização especial de Wamsler, fizeram carregar a Orion com uma série de aparelhos e ferramentas de aspecto incomum. Finalmente, estavam todos a bordo.
— Muito bem! — disse McLane. — O negócio é diabólico, mas a Orion vai vencer mais esta parada. Trabalhe direitinho, Mario!
Mario de Monti já estava tratando da programação do curso. Durante a maior parte da missão, teriam que voar no espaço normal e com os controles manuais. Helga foi a última a ocupar seu lugar; uma jovem esbelta, de cabelos negros e vinte e quatro anos de idade. Carregava um fardo pesado sobre os ombros estreitos: cabia a ela tentar captar as ondas utilizadas pelos estranhos.
— Tudo pronto? — perguntou Cliff pelo microfone.
Já estavam todos amarrados nas largas poltronas, com os dedos pousados sobre os teclados dos instrumentos.
— De comandante para livro de bordo — disse Cliff. — Vamos decolar. Hora: meia-noite.
Receberam a autorização e a estação avançada assumiu o controle. Mais uma vez apareceu o gigantesco redemoinho no golfo de Carpentaria — e outra vez, as ondas se erguiam. O diafragma protetor do enorme cilindro de aço abriu-se e a Orion VII elevou-se em posição horizontal partindo velozmente em direção às estrelas. Seu alvo: Um/Sul 008.
Nas telas apareciam os últimos véus da atmosfera luminescente da Terra; depois, as estrelas emergiram da escuridão da noite. A nave começou a descrever uma curva e acelerava incessantemente.
— Como pretende agir, comandante? — perguntou Tamara.
— Primeiro, vou tentar localizar aquela estação de controle com o auxílio de outras naves. Se formos bem sucedidos, vamos atacar. O SSG tem alguma objeção quanto a esse plano?
Tamara sorriu. Já tinha aprendido alguma coisa. E esta era a segunda missão em que acompanharia o comandante McLane a bordo da Orion VII.
Tinha chegado a vez dos geradores antigravitacionais. Entraram em colapso. A imponderabilidade artificial a bordo da Hydra deixou de existir e os três tripulantes na cabine de controle semidestruída começaram a escorregar pelo piso agora transformado em parede com inclinação de noventa graus. Tinha cessado a perfeita ilusão que o campo de gravitação artificial no interior da nave vinha transmitindo aos ocupantes, permitindo-lhes ocupar qualquer posição com a sensação de estarem com os pés no chão. A Hydra e sua tripulação estavam, novamente, sujeitos à ação do campo gravitacional externo.
O transmissor hiperradiofônico estava em operação, mas não funcionava a contento. Ninguém conseguia descobrir o defeito, ninguém sabia por que a Hydra nada ouvia e nada podia emitir. Havia um vago pressentimento a bordo que também a última mensagem não tinha alcançado a Terra; aquela mensagem com o relato da descoberta dos estranhos...
Inúmeros instrumentos estavam quebrados.
— General van Dyke?
Lydia girou sua poltrona com esforço; estava esgotada. Todos três já vestiam os trajes espaciais.
— Descobriu alguma coisa?
Morris apontou para a tubulação da instalação renovadora de ar.
— Descobri, sim. O casco foi avariado em alguns pontos; por causa disso houve o rompimento de quatro condutores e a conseqüente destruição de quatro tanques. O oxigênio escapou, só que para o cosmos, não para dentro da nave.
— Verificou os manômetros?
— O suprimento dá para oitenta e duas horas. Mas temos uma certa reserva a bordo. Como último recurso, dispomos das baterias dos trajes espaciais.
Morris aproximou-se lentamente e observou as escalas coloridas do transmissor inútil. Depois, olhou para Lydia van Dyke que estava encolhida na sua poltrona semi-inclinada.
— O que está fazendo? — perguntou Morris.
— Estou tentando determinar a nossa posição — respondeu Lydia, fazendo algumas anotações num mapa astronômico.
Ao menos a iluminação de emergência ainda estava funcionando, criando ilhas de luz no meio da escuridão da cabine.
— É muito bom quando a gente pode se ocupar com alguma coisa — disse Morris. O astronavegador havia espalhado as peças componentes do comando manual e começou a examiná-las à procura de algum defeito. Ao fim de alguns minutos, levantou o olhar e estendeu os braços.
— Estou em condições de consertar tudo — disse, com resignação — mas, de que adianta isso, se a cada minuto descobrimos novas avarias na nave?
O telegrafista encolheu os ombros. A Hydra ainda pairava em algum lugar do hiperespaço. Ninguém sabia quando e em que ponto podiam sair desse meio. As máquinas estavam desligadas, o nível da energia caía constantemente. E o fato de conhecerem o terrível perigo que ameaçava todo o sistema solar tornava a situação mais desesperadora.
— Não podemos abandonar a Hydra com auxílio de uma das Lancet e retornar ao espaço normal? — perguntou Lydia van Dyke.
— Não! — respondeu Morris, laconicamente, e caminhou a passos curtos pelo convés inclinado até que pôde agarrar-se na escora que prendia o chassis do transmissor ao teto da cabine.
— O que houve? — perguntou o astro-navegador. Morris fez um gesto com a mão, pedindo silêncio. Um pequeno sinal luminoso piscava em intervalos irregulares. Era um indício que ondas radiofônicas estavam alcançando a Hydra. Morris girou o botão de um amplificador e ligou os alto-falantes.
— General! — disse, com um tom de esperança na voz. — Impulsos!
Lydia levantou-se e, escorregando em cacos de vidro, cambaleou até o transmissor, agarrando-se ao braço de Morris para não cair. O astronavegador juntou-se a eles; trazia um complicado aparelho de teste nas mãos sujas.
— É a Estação Avançada-IV? — perguntou Lydia.
— Não é, não!
Ruídos emanavam dos alto-falantes; impulsos duros em altas freqüências. Os sinais eram transmitidos em grupos de três, os intervalos entre os grupos e entre os próprios impulsos eram variáveis.
— Que barulheira mais esquisita! — exclamou Morris. — Escutem só...!
Lydia van Dyke e o astronavegador ouviam em silêncio e aproximaram a cabeça dos alto-falantes. Os estranhos sinais martelavam o silêncio da cabine destruída como chuva de granizo. O telegrafista girou o botão do volume; os sinais tornaram-se mais intensos e mais ameaçadores.
— Não — disse Lydia — não são sinais de um transmissor terrano. Isto aí são os impulsos dos inimigos! Morris, quer tentar localizar a emissora deles?
— Provavelmente não está no hiperespaço — respondeu Morris. — Se esses forem os sinais com os quais dirigem o maldito planeta, então a emissora não pode estar no hiperespaço; vou tentar localizá-la, general!
— Por favor! — disse Lydia.
Morris sentou-se e puxou o pequeno computador para perto, ligou a alimentação de emergência e a máquina começou a funcionar, emitindo um débil matraquear. Morris estava mais do que descrente. Ainda faltavam duzentos e trinta e uma horas...
COM um estalo quase inaudível, os algarismos saltavam através de uma das pequenas telas acima do painel de controle do comandante. Dentro de 300 horas — pouco mais de onze dias — o planeta teria percorrido a distância que separava a Terra do ponto onde a Hydra o havia descoberto. Trezentas horas... progredindo à razão de 150 mil quilômetros por segundo... uma hora equivalia a 3600 segundos... portanto,... 1080...
— O que significa este número? — perguntou Tamara, que estava ao lado de Cliff e acompanhava, atentamente, os cálculos que o comandante fazia.
— É a distância, em unidades astronômicas, a que se encontrava o planeta chamejante quando Lydia van Dyke o descobriu.
— Sim, mas que tem isto a ver com a Orion?
— No espaço de uma hora, o planeta percorre 3,6 unidades astronômicas; unidade astronômica é a distância entre a Terra e o Sol do nosso sistema.
— Corresponde a quantos quilômetros? — perguntou Tamara.
— A cerca de 150 milhões de quilômetros; mais precisamente, a 149.596.850 quilômetros...
Os propulsores funcionavam perfeitamente, emitindo seu zumbido característico. A Orion lançava-se em direção ao planeta que, vindo aproximadamente do sul, se dirigia à Terra. Só umas poucas horas ainda os separavam do corpo sinistro. Shubashi estava martelando o teclado da unidade de entrada do computador de bordo.
— Esses grupos de impulsos que Helga está captando — perguntou Tamara — será que não são os pedidos de socorro da Hydra, meio truncados?
Cliff sacudiu a cabeça e desligou as pequenas telas.
— Não são, não! — disse. — Por certo não são sinais terranos. Neste momento, Atan está alimentando o computador com os grupos de impulsos e vai tentar estabelecer um programa para o elemento aritmético. Talvez consigamos decifrar o significado do código dessa maneira; nem que seja parcialmente.
— Impulsos dos extraterranos? — conjeturou Tamara. — Então esses estranhos devem dispor de amplificadores de campo tremendamente possantes, comandante.
Na tela circular diante de Cliff estava a imagem da constelação dos Cães de Caça; em frente à névoa nos fundos, apareceu um pequeno ponto luminoso. A uma distância de oitocentos e vinte e oito unidades astronômicas, as energias do sol artificial, da Nova, realizavam a sua dança macabra no cosmos.
— E por que acha que eles não dispõem de tais aparelhos? — respondeu Cliff. — Seres que conseguem arrancar um planeta de sua órbita e depois ainda o aceleram e dirigem para onde querem devem poder realizar outras coisas que nem imaginamos. Foram até capazes de transformar a matéria do planeta em hidrogênio incandescente com uma temperatura de 5 mil graus Kelvin!
— Nesse caso — disse Mario, sentado em frente ao teclado do computador — não tenho dúvidas de que podemos esperar mais uma meia dúzia de surpresas por parte dos nossos amigos!
Cliff acenou com a cabeça, depois, disse:
— Quando estivermos nas proximidades da Nova, vamos nos meter nos trajes espaciais, mas sem os capacetes. Esses, nós colocamos num instante, se for preciso.
— Entendido!
Helga Legrelle diminuiu o volume dos sinais dos estranhos. Ela e Atan já tinham conseguido determinar um ponto de referência, mas ainda faltava o outro. Girou o seu assento e perguntou:
— Cliff, você acha que eles vão nos atacar?
Cliff balançou enfaticamente a cabeça.
— Estou convencido disso. Caso cheguemos perto demais para o gosto deles.
Cliff ficou observando o misterioso planeta durante mais alguns segundos. Depois, virou-se para o astronavegador.
— Conseguiu fazer o programa? Sem se virar, Shubashi respondeu:
— Espere mais um momentinho! Esse negócio não é tão simples assim, Cliff! Dispomos de poucos valores de comparação para esses sinais.
Mario de Monti olhou para Cliff e Tamara.
— E se nos atacam...? — perguntou, meio inseguro.
— Temos que nos antecipar a eles — respondeu McLane. — Com tudo de que dispomos. Começaremos com as armas de longa distância. Quanto mais perto deles chegarmos, tanto maior número de armas empregaremos. Só que eu não sei se vai dar certo.
De Monti engoliu em seco.
— O plano não é ruim. Mas o que vamos fazer se eles realmente são os gênios técnicos que tudo leva a crer que são?
— Na hora, alguma coisa vai nos ocorrer, Mario. Lembre-se, até hoje sempre tivemos alguma inspiração. Afinal, não é à toa que a imaginação da equipe da Orion é tão respeitada, não é mesmo, camarada Jagellovsk?
Tamara manteve-se impassível.
— Chamando-me de "camarada", McLane, provavelmente acredita ter expressado o máximo em matéria de charme astronáutico, não é? Quanto à sua pergunta, sei perfeitamente com que letras garrafais se escreve a palavra imaginação a bordo desta nave!
— Quer dizer que você não tem certeza quanto ao desenrolar desse encontro, Cliff? — perguntou De Monti.
Cliff sacudiu a cabeça.
— Pretendo aguardar a evolução da situação, que vai nos mostrar logo o que podemos fazer. As máquinas estão funcionando direito?
O rosto de Hasso estava nas telas dos videofones. Exibiu um largo sorriso e anunciou, com calma exagerada:
— Estão perfeitas. O sujeito encarregado da manutenção deve ser um gênio... E ainda dispomos de reservas na ordem de quarenta por cento!
Cliff arreganhou os dentes num riso malicioso:
— Ótimo!
Atan virou-se, de repente, e disse, meio afobado:
— Cliff... rápido!
McLane reagiu prontamente.
— O que é?
— São os estranhos mesmo. Consegui decifrar a maioria dos significados pelo computador!
Em três tempos, Cliff ligou o canal de saída do computador digital a dois dos pequenos alto-falantes acima da tela de imagens. Fortes pancadas sonoras invadiram a cabine, logo substituídas por estalidos curtos e agudos. Eram os impulsos decifrados de um código de sinais que os astronautas utilizavam.
— Isto aí — disse Helga — são os sinais de aparelhos de busca. As leituras mudam a toda hora.
Cliff já estava calculando os valores correspondentes e registrou-os no teclado do computador. Tudo se resumia aos dados referentes a distância, cada vez menor, de um objeto móvel. E este objeto podia ser tanto o planeta, quanto a Orion...
Outros impulsos tornaram-se audíveis e visíveis.
Formando determinados ângulos entre si, uma série de traços e circunferências começou a aparecer nas pequenas telas negras. Não mantinham a posição inicial, mas deslocavam-se constantemente uns em relação aos outros.
— E isto aí que vocês estão vendo — disse Cliff, com voz dura. — São as complicadas projeções tridimensionais de um curso. Para ser mais preciso, do nosso curso!
— Vou checar o nosso, só para efeito de verificação. — disse Helga e voltou à sua mesa. Rápido, Mario estendeu três mapas astronômicos cobertos de linhas e valores de referência na frente da telegrafista que agradeceu e começou a anotar dados.
— Quer dizer que nos descobriram e estão calculando o nosso curso — constatou Tamara, e apontou para duas longas faixas luminosas, superpostas, nas quais algarismos eram separados por sinais de pontuação e símbolos matemáticos. — E aqui está a prova: as duas linhas são idênticas. O nosso cálculo e o dos estranhos!
— Já calculei a distância — anunciou Helga. — Cem unidades astronômicas.
— Portanto eles vem seguindo o planeta de perto — disse De Monti —já que ele está a noventa UA de nós. E nós nos aproximamos cada vez mais!
— Agora eu só preciso de mais um ponto de referência no espaço para determinar as coordenadas exatas — lamentou-se Helga.
Durante alguns segundos, os membros da tripulação mantiveram-se em silêncio. Depois, McLane deu um soco no encosto da sua poltrona e rosnou, com raiva:
— E onde é que eu vou arranjar outro ponto de referência? Alguém sabe?
Ninguém respondeu. Helga sugeriu:
— Quer que chame uma das naves que acompanham o planeta?
— Mais tarde, sim! — disse McLane, em tom sombrio. — Precisamos descobrir essa estação de controle. E como eu conheço os meus colegas comandantes, eles devem estar muito ocupados, tentando destruir o planeta. Não têm tempo para recalibrar seus transmissores.
Mario insistiu:
— E como é que vamos destruir uma estação emissora, se não temos nem noção das suas coordenadas?
Finalmente, Atan se manifestou:
— Das duas uma: ou uma das naves está correndo atrás do planeta, ou um minúsculo asteróide está se deslocando na sombra radiofônica do brutamontes.
Uma distância de noventa unidades astronômicas até o planeta. E um prazo de duzentas e trinta horas...
Um poliedro de rocha negra destacava-se na escuridão da noite do universo pela fraca iluminação que recebia de uma esfera em brasas a dez unidades astronômicas de distância... Um bilhão e meio de quilômetros terranos...
Nove saliências, em forma de cúpulas, erguiam-se de outras tantas facetas desse corpo de muitas arestas que seguia o planeta artificialmente incandescido e o dirigia com mão de ferro. Gigante e anão lançavam-se em direção ao sistema da Terra com uma velocidade de cento e cinqüenta mil quilômetros por segundo. Os sistemas propulsores já tinham sido desligados...
Nove cúpulas... Seu diâmetro media, no máximo, dez metros. Por cima delas, uma antena parabólica de forma bizarra. Parecia uma flor metálica provinda de um mundo que olhos humanos jamais avistariam. Havia luz por trás das abóbadas. Difusas formas azuladas permeadas de saltitantes impulsos cor de laranja. E ninguém via esta estação de controle...
Uma vida estranha pulsava no interior do asteróide. Havia sido capturado para servir de posto de comando e. de lá, os invasores dirigiam o avanço de sua imensa e devastadora arma. Após o fracasso da primeira tentativa de abrir uma brecha no cinturão do domínio da Terra, iniciaram esta nova operação que tinha um só objetivo: eliminar toda e qualquer resistência e conquistar a esfera espacial terrana. A infiltração silenciosa em MZ 4 tinha resultado em derrota; agora, aplicariam a violência.
O asteróide era uma mostra impressionante da técnica daqueles invasores implacáveis. No seu interior... Numa parede de fraca autoluminescência estava a projeção bidimensional de um sistema. Um sol central e nove órbitas planetárias. E três pontos luminosos que representavam as posições de outros tantos planetas. Se não se levasse em consideração o centro absoluto do sistema, os três pontos eram colineares. O traço do curso interceptava duas das órbitas e tangenciava a terceira. Marte... Terra... Vênus...
A continuação do traço passava ao largo da órbita de Mercúrio e do Sol e penetrava no espaço interplanetário onde terminava sem transição. Na frente desse mapa, em toda extensão da sala, havia um painel de instrumentos e quatro dos estranhos estavam manipulando os controles...
Seres esbeltos, elásticos, feitos de uma substância leitosa, transparente e nervurada por veios negros que pulsavam incessantemente. As cabeças redondas estavam enfiadas em capacetes que consistiam de uma malha de fios metálicos, coberta por finos retângulos prateados e eram encimados por uma antena que irradiava uma ofuscante luminosidade.
Uma segunda projeção encerrava, em escala fortemente reduzida, o sistema planetário da Terra. Um ponto amarelado deslocava-se, lentamente, ao longo de uma fina linha: o planeta chamejante. E em torno desse ponto vagueavam minúsculos pontos luminosos: as naves espaciais terranas. Mas havia um outro ponto luminoso nessa projeção. Este movia-se paralelamente àquela reta da destruição, em direção ao asteróide que seguia o seu escravo flamejante a uma distância de dez unidades astronômicas. Era a Orion VII.
Grupos ternários de sons estridentes e trancados enchiam o interior do asteróide com um martelar frenético. Os estranhos deviam se comunicar por ondas radiofônicas ou alguma onda sonora fora da faixa dos 40 aos 16000 Hertz. Seu metabolismo era capaz de armazenar substâncias vitais por longos períodos de tempo, o que os tornava ainda mais invulneráveis.
O volume das seqüências de sons aumentou de súbito. Talvez estivessem recebendo uma mensagem... Um dispositivo circular deslocou-se sobre a projeção e acabou por emoldurar o minúsculo ponto que se deslocava ao lado da trajetória do planeta: o objeto veloz havia sido localizado. E a insistência com que se aproximava do asteróide não deixava dúvidas quanto às suas intenções hostis. Pontos luminosos começaram a se deslocar sobre as telas, rastejando em direção ao objeto. A Orion estava sendo cercada...
Uma flagrante inquietação apoderou-se dos cem extraterranos. As antenas tremiam nervosamente no alto dos estranhos capacetes. Um adversário decidido havia aparecido no campo de batalha.
Apenas dez unidades astronômicas ainda separavam a Orion do planeta errante. A gigantesca bola de fogo expandia-se no espaço, aumentando o seu diâmetro à razão de 9 mil quilômetros por segundo e transformava hidrogênio em chamas com uma temperatura de 5 mil graus Kelvin. Encolhido na sua poltrona, Cliff observava, atentamente, o fulgurante espetáculo na tela à sua frente.
— Estamos cada vez mais perto, Cliff — disse o astronavegador. — E, se não me engano, a estação de controle deles está na esteira do colosso; visto daqui, é claro! — os olhos de Atan fuzilavam.
— Que armas empregamos primeiro? — perguntou De Monti.
— Os lançadores de energia. Apronte-os, sim?
— Entendido!
Mario levantou-se e atravessou a cabine de comando a caminho do posto de combate. Observando a gigantesca bola de fogo, Cliff começou a acreditar que a catástrofe não podia mais ser evitada. A incontida brasa já estava encobrindo as estrelas. Bem fundo, no interior da Nova artificial, aparecia o núcleo: o planeta primitivo. Como a misteriosa energia necessitava de um constante suprimento de matéria, ela consumia a crosta do planeta de fora para dentro. Helga Legrelle tinha colocado os audiofones e girava os botões do transmissor. Estava tentando ouvir alguma coisa na faixa das ondas longas. De repente: palavras! Truncadas e distorcidas; pouco nítidas e difusas. Mas indiscutivelmente proferidas por vozes humanas.
— ...sição ignorada... boiamos no hiper-espaço... Hydra... suprimento de oxigênio... escasseando...
Helga fixou o sintonizador, acoplou os amplificadores e tentou filtrar os ruídos da estática e da interferência do planeta. Depois, ligou os alto-falantes.
— Aqui fala a nave espacial Hydra! — ribombava a voz pela cabine. — Pedimos resposta!
Cliff quis saltar da poltrona, mas foi retido pelo cinto de segurança. De um só golpe, abriu o fecho e, em um segundo, estava ao lado de Helga, escutando.
— O general está vivo! — exclamou Helga, atônita. — Descobrimos a Hydra!
— Ligue o registro de bordo, Atan! Novamente a voz cansada, mas ainda enérgica, de Lydia van Dyke ressoou dos alto-falantes:
— Aqui fala a nave espacial Hydra. Estamos irradiando no hiperespaço e esperamos que alguém possa captar o nosso pedido de socorro. Sofremos pesadas avarias e ignoramos a nossa posição. Solicitamos resposta imediata.
— Ligue a radiofonia hiperespacial, Helga! — disse Cliff e agarrou o microfone.
— Pronto, chefe! — avisou Helga.
— Orion chamando nave espacial Hydra! — gritou Cliff.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual só se ouviam os ruídos da estática e o crepitar da irradiação do planeta em chamas. Depois, a voz de Lydia van Dyke voltou, fraca e distorcida:
— Hydra chamando... quem respondeu, foi a Orion?
— Comandante McLane ao microfone — disse Cliff, nervoso. — É a senhora, general van Dyke?
— Sim, sou eu. Parece que não estamos longe da Orion, se bem que no hiperespaço. Não sabemos se nosso transmissor está com defeito. Aparentemente, está funcionando bem. Qual a sua missão, McLane?
— Missão de ataque, general — respondeu McLane, falando rapidamente. — Está correndo sério perigo?
— Ainda não. Aquele... planeta está nas imediações?
Cliff virou-se, lançou um olhar para a tela circular e disse:
— Está, sim. A oito unidades astronômicas.
— Que veio fazer aqui? — a intensidade da voz aumentava para depois decrescer de novo. A potência de emissão do transmissor hiperradiofônico da Hydra parecia ser muito fraca.
— Estamos à cata do posto de controle do qual os estranhos estão dirigindo o planeta.
Silêncio. Mais uma vez a cascata de ruídos do universo lançou seus silvos e crepitações pelos alto-falantes.
— Prossiga, McLane. Ainda está falando?
— Temos ordens expressas de localizar e destruir o posto de comando. O estado-maior acredita que aquele monstro possa passar ao largo do sistema se deixar de ser dirigido.
— Não quero ofender os cavalheiros do estado-maior — disse Lydia — mas parecem ter esquecido que um corpo com tamanho impulso cinético a partir deste momento não vai mais errar o alvo. Mesmo assim, ainda há uma chance.
— Duvido que seja tão simples assim — respondeu McLane. — Não consegue retornar ao espaço normal?
— Por enquanto, não — disse Lydia. — Acredita que a tal estação possa ser destruída?
— Não sei dizer, general. Sabe de uma coisa? Vou apanhar a senhora e sua tripulação.
A voz de Lydia tornou-se gélida.
— Não vai fazer nada disso!
Tamara afiou o ouvido e aproximou-se. Helga olhava ora para Cliff, ora para Tamara; pressentia a tormenta que iria desabar dali a instantes. McLane insistiu:
— É claro que vou buscar todo mundo aí... Só leva alguns segundos, não mais do que isso!
Apesar da recepção mais que deficiente, era possível ouvir que Lydia van Dyke enrijecia a voz, francamente contrária à proposição de McLane.
— Proíbo-lhe terminantemente, McLane, de preocupar-se com a Hydra enquanto não cumprir a sua tarefa. O senhor sabe o que está em jogo?
McLane não deu resposta. Tamara Jagellovsk parou a um passo do comandante e disse, em tom severo:
— McLane!
Uma advertência clara e inconfundível. Após alguns segundos, McLane chamou novamente:
— General van Dyke?
Antes que McLane pudesse proferir outra palavra, Lydia van Dyke disse:
— Se o estado-maior estiver certo nas suas suposições, então a única chance de sobrevivência do sistema reside no êxito da sua missão, McLane. Ou será que isto não entra nessa sua cabeça teimosa?
Contrafeito, McLane respondeu:
— Entendi, sim, general.
A Orion aproximava-se cada vez mais do planeta. Seu aspecto era aterrador. A incandescência igualava-se à da capa de uma estrela do tipo G, irradiando uma ofuscante claridade amarela, ligeiramente alaranjada. Um planeta em brasas...
Hiperespaço, eterna penumbra. A nave adernava fortemente. A instalação antigravitacional estava defeituosa e gerou um campo mais intenso e, depois, entrou, repentinamente, em colapso. Em conseqüência disso, todos os objetos tornaram-se, de súbito, mais pesados e os homens torciam-se nos seus assentos. Um único movimento irrefletido os levaria até o teto da cabine. Ofegante, Lydia van Dyke desabou sobre a mesa do transmissor.
— McLane! — sussurrou com dificuldade, os lábios quase colados ao microfone. — Tem que destruir aquela estação de controle de qualquer jeito. Não tem um segundo a perder. Com toda certeza está sendo rastreado por eles!
A voz de McLane ressoou nos maltratados alto-falantes da Hydra.
— Eu sei. Já determinei a distância, mas preciso de um outro ponto de referência. Ninguém sabe onde essa maldita estação se encontra. É impossível vasculhar todo o trajeto!
— Escute, McLane... — disse Lydia. — A intensidade do campo gravitacional começou a baixar — e Lydia agarrou-se no painel. — Eu também captei aqueles sinais, são audíveis mesmo no hiperespaço. Vou lhe dar as coordenadas.
— Formidável! — berrou McLane.
O oficial da Vigilância Espacial ergueu-se, desajeitadamente, da sua poltrona e apanhou a larga fita na qual estavam anotadas as coordenadas. Depois cambaleou até a mesa do transmissor e estendeu a fita em frente ao microfone de Lydia.
— Atenção, McLane! — disse van Dyke. — Está pronto?
— Estamos ouvindo! — confirmou McLane. — O gravador está ligado. — Pode falar!
Uma onda de esperança invadiu a mente de Lydia. Talvez McLane pudesse destruir o posto de controle dos estranhos e depois salvar a tripulação da Hydra...
Lydia respirou profundamente. Seus pulmões doíam. Depois, com voz clara e pausada, começou a ler as colunas de algarismos. Mais um impacto gravitacional abalou a nave. Lydia foi arrancada da mesa do transmissor e atirada ao piso. Vidros estalaram e ruídos indefiníveis vieram de vários pontos na parte inferior do disco. Parecia que o fim da Hydra era iminente.
— Atenção, Atan! — avisou Cliff. — Capriche nessa gravação!
Atan acenou com a cabeça sem desviar os olhos dos instrumentos. Seus dedos estavam prontos para mexer nos comandos e reguladores.
— Não há necessidade de código — disse a voz distorcida de Lydia van Dyke nos alto-falantes. — Calculamos o atraso que os impulsos sofrem no hiperespaço. Atenção que vou dar as coordenadas: Cubo Um/Sul 008. Quatro M elevado a sete... barra 196... oito gama vírgula dois... Entenderam? Orion, responda...
Notaram que a energia da Hydra esvaía-se rapidamente. Os dois pequenos tambores na mesa de Atan giravam lentamente. O astronavegador controlava o nível de registro dos débeis impulsos que Lydia ainda conseguia transmitir. Sua voz tornava-se cada vez mais baixa e distante.
— McLane?... Está me ouvindo?... Minha ordem expressa... atacar imediatamente... posto... controle... inimigo...
— Primeiro eu vou salvá-los, general! — gritou McLane.
Neste instante, a comunicação com a Hydra foi interrompida. Por alguns segundos, McLane ficou parado, imóvel, absorto num profundo pensamento. Depois, entregou o microfone a Helga e dirigiu-se à sua mesa. Sentou-se e girou uma pequena chave até o batente.
— Hasso! — chamou, com voz decidida. Olhou para o rosto do engenheiro na
tela do videofone e ordenou:
— Propulsores com carga total. Aprontar para salto no hiperespaço. Ativar geradores antigravitacionais!
Tamara Jagellovsk reagiu com rapidez incrível. Agarrando-se com a mão esquerda numa escora, girou-se em direção a McLane enquanto a direita arrancava a pesada HM-4 do cinto. Apontando o projetor para a peça central do painel de controle, Tamara disse, em voz baixa, mas incisiva:
— Comandante, tente rumar para a Hydra e eu derreto a sua instalação de comando todinha!
McLane ergueu-se, lentamente, respirando com dificuldade. Com os olhos quase fechados, avançou para Tamara.
— Está querendo me impedir de salvar a tripulação da Hydra, sua...
Tamara acenou, impassível.
— É exatamente o que vou fazer! — disse, em tom gélido.
— Eu vou mergulhar no hiperespaço — disse McLane por entre os dentes cerrados
— e a senhora, tenente Jagellovsk, não vai me impedir de fazê-lo.
— Estou lhe advertindo, comandante!
— disse Tamara calmamente. — Não tenho o menor escrúpulo em tornar realidade a minha ameaça!
McLane sacudiu a cabeça, estupefato e incrédulo.
— Ficou doida? — conseguiu sussurrar, com voz rouca.
— Doida? Eu? — respondeu Tamara. — Não, comandante, quem ficou louco não fui eu!
Os olhos de McLane fuzilavam mas Tamara não desviou o olhar um instante sequer. Apesar de sua raiva, McLane não pôde deixar de admirá-la: essa moça não tinha medo, nem dele, nem de perigos reais. Com voz controlada, perguntou:
— Faz idéia do que vai acontecer se derreter meu painel?
— Faço, sim. É suicídio puro, embora meio complicado, eu sei!
BAIXO, porém em tom firme, McLane advertiu:
— Não vá longe demais, tenente Jagellovsk!
Tamara encarou-o com uma expressão de indiferença. A ponta da sua arma não se mexia. Suas palavras chegaram aos ouvidos de todos.
— Nessa altura dos acontecimentos — disse, em voz alta e clara — não ligo a mais nada. Nada mesmo. Não ligo se morremos porque a nave ficou sem controles ou se o planeta em chamas destruir o sistema todo. Para mim, tanto faz que fiquemos boiando no espaço sem saber quando e onde podemos pousar, ou quando o nosso oxigênio vai acabar. O resultado é sempre o mesmo. Não estou mais ligando a nada, comandante.
Uma longa pausa seguiu-se às palavras de Tamara; o clima de tensão tornava-se insuportável. Enquanto isso, a Orion aproximava-se cada vez mais daquela bola de fogo...
— Eu vou saber me defender, tenente — disse Cliff, em tom ameaçador. — E eu tenho tão poucos escrúpulos quanto a senhorita!
Tamara largou a mão esquerda da escora e fez um gesto conciliatório. Sua voz continuou calma e extremamente controlada.
— Comandante — disse, em tom que denotava decepção. — Que o senhor é um cabeça-dura, é público e notório! Mas jamais eu poderia sequer sonhar que o senhor fosse tão simplório, inescrupuloso e irresponsável. Não está à altura do seu posto.
Cliff deu um passo para o lado. A arma continuou apontada para o painel.
A luz cintilante do planeta em chamas iluminava o confronto. De um lado, o comandante, o astronauta que queria salvar o seu superior; do outro, a agente do Serviço de Segurança Galático, que o obrigava a obedecer às suas ordens. Como centelhas de uma descarga invisível, o ódio irreconciliável chispava dos seus olhos. Helga pressentia o desfecho desse áspero diálogo. No momento, estava determinando a posição da estação de controle dos estranhos, valendo-se dos dados já armazenados e daqueles que Lydia havia há pouco fornecido. Não era uma tarefa fácil, uma vez que os dois sistemas de referência estavam em movimento: tanto a Orion quanto a estação dos inimigos. Aproximavam-se com velocidade um pouco inferior à da luz.
— E tem a coragem de me dizer isso na cara, com a arma na mão? — perguntou Cliff, tentando sufocar sua raiva.
Tamara respondeu, com voz amarga:
— Recebeu, claramente, uma única missão: tentar salvar a Terra e seu sistema mediante a destruição da estação de controle. Mas não recebeu ordem alguma de salvar a Hydra. O sistema solar vale mais que a vida de três seres humanos. Não há opção; a escolha é óbvia!
— Mas... — começou Cliff, procurando as palavras certas.
— Enquanto estiver empenhado nessa missão, pode continuar com seus gracejos bobos; não me atingem. Mas, de qualquer forma, leve a sua missão a cabo. É o que eu tenho que exigir do senhor como tenente do Serviço de Segurança Galático.
— Mas, o general van Dyke... — disse Cliff.
Tamara cortou-lhe a palavra.
— Está querendo contornar o problema, comandante. Acabamos de determinar a posição daquele posto de controle e a sua obrigação, agora, é destruí-lo. No momento, não tem a menor importância o que acontece com a tripulação da Hydra.
— Mas...
Cliff estava cada vez mais na defensiva e começou a se conscientizar disso.
— A Terra corre perigo. Não lhe resta muito tempo, comandante.
Cliff engoliu uma imprecação expressiva e baixou a cabeça.
— A propósito: pretende continuar aí, em pé, a... discutir comigo? Porque, nesse caso, está se arriscando a ser aniquilado pelos estranhos antes de emitir uma única ordem. É isso que quer?
Cliff cravou os olhos em Tamara; sua mente desanuviou-se. Raciocinou por um instante e deu-se por vencido. Ela tinha razão.
— Guarde sua arma, tenente! — disse, baixinho.
— Com prazer! — respondeu. Tamara em tom normal. — Se fizer o que pedi.
Com passos lentos, Cliff deu a volta pela sua mesa e tornou a sentar-se. Seus dedos trabalharam mecanicamente, prendendo o cinto de segurança.
— Já calculei as coordenadas da estação, Cliff! — disse Helga e conectou o painel do comandante à sua mesa.
— Obrigado, garota! — disse McLane e começou a analisar os valores. — Caramba!
— exclamou. — Só estão a doze unidades astronômicas de nós; e dez UA atrás do planeta!
Com auxílio do comando manual, mudou o curso da nave. A Orion não mais se dirigia diretamente àquele sol, mas passava ao largo, longe da perigosa camada ígnea.
— Do comandante para máquinas — disse Cliff. — Tudo pronto?
— De máquinas para comandante — respondeu Hasso, com um sorriso confiante.
— Tudo na mais perfeita ordem!
— Ótimo! Do comandante para posto de combate: pronto para disparo dirigido?
— Tudo pronto, comandante! — respondeu Mario. — Fogo cerrado?
— Vamos atirar até destruir a estação. Só tem uma coisa... Precisamos, primeiro, encontrá-la!
Lembrou-se da sua guardiã, sorriu meio encabulado e perguntou:
— Está satisfeita agora?
Sem mudar de expressão, Tamara murmurou:
— Inteiramente, comandante! — e prendeu o cinto de segurança. O capacete estava no piso, ao lado do assento.
Em constante aceleração, o disco descreveu uma curva, voltando a se aproximar do gigantesco planeta chamejante. E algo mais apareceu nas telas de radar.
— Vejam só isso aí! — exclamou Cliff, apontando para sua tela circular.
Diante do fundo estrelado do universo, pairava uma minúscula lua, um asteróide. Pouca coisa distinguia-se dentro daquele contorno irregular. Os instrumentos determinaram a velocidade e o diâmetro do objeto poliédrico. Todavia, segundos mais tarde, Cliff viu a grade da antena parabólica apontada para o planeta errante.
— Aí está o nosso alvo! — exclamou Cliff e apertou uma série de botões. Os minimotores, espalhados por toda a nave, se acenderam, reproduzindo a imagem que se apresentava na grande tela do comandante. Hasso e Mario também viam o bólido.
— Vou iniciar a manobra de aproximação e dar as ordens! — avisou Cliff. — O registro de bordo está ligado?
— Ligado! — confirmou Helga Legrelle.
Os minutos passavam lentamente, enquanto Cliff mantinha constantes a velocidade e o ângulo de ataque da Orion.
— Do comandante para todos — disse. — Espero encontrar forte resistência.
— Anteparos protetores estabilizados — respondeu Hasso, calmamente. Por um momento Cliff pensou em como apreciava a presença a bordo de Hasso, sempre alerta, sempre prudente... Não conseguia imaginar uma missão sem a companhia do amigo. Agora a distância era de apenas uma UA. E faltavam 229 horas...
Os estranhos tinham cometido um único erro. Observaram a mudança de curso daquela nave solitária e pressentiram, vagamente, que representava uma ameaça muito maior que todas aquelas outras que circulavam incessantemente em torno do planeta tentando destruir a sua matéria. O minúsculo ponto aproximava-se cada vez mais. Provido de um forte escudo magnético, que o deveria defender de ataques e casuais encontros com pequenos meteoros, o asteróide-guia não dispunha, porém, de qualquer arma ofensiva. E não conheciam as armas do inimigo. Os estranhos tinham confiado na rapidez da sua operação. Apesar disso a gigantesca bola de fogo continuava no seu inexorável e mortal avanço. Ao mesmo tempo, os estranhos trabalhavam, nervosamente, nos seus instrumentos. Reforçaram o anteparo magnético e viram que o adversário estava cada vez mais perto.
Crepitações e zumbidos emanavam dos incontáveis aparelhos do bólido. Um dos seres levantou-se e dirigiu-se, com movimentos felinos, a uma das projeções nas paredes. Efetuou uma série de manipulações num estranho painel e mais uma vez um dispositivo circular enquadrou o ponto luminoso que se aproximava. Neste instante, um possante aparelho começou a emitir intermináveis seqüências de sons, sempre em grupos de três impulsos. Um estridente alarma ressoou pelo asteróide.
Uma expectativa febril apossou-se dos seis ocupantes da Orion. Observavam os números constantemente alterados que indicavam a distância, cada vez menor, entre a nave e o asteróide.
— Comandante para posto de combate — disse Cliff, em voz alta e controlada, apesar dos nervos tensos. — Objeto claro e nítido. Atenção, Mario!
— Alvo enquadrado! — respondeu Mario, calmamente.
O bólido deslocava-se, veloz, em linha reta; e a Orion ia diretamente no seu encalço. Ao calcular o curso a seguir, Cliff tinha levado em consideração uma possível manobra de desvio dos estranhos. Colocariam em ação seus agregados? Por que não atiravam? As objetivas da tela central já focalizavam o objeto sem necessidade de qualquer ampliação e forneciam uma imagem nítida no disco fosco.
— Hora H menos 20 segundos, Mario! — disse Cliff, com o olhar cravado naquele pedaço de rocha negra que parecia se lançar em direção à Orion.
— Grupos de lançadores Um e Dois prontos! — comunicou Mario.
— Hasso? Daqui a dezoito segundos, ativar neutralizadores do campo gravitacional. O curso vai seguir por uma curva um bocado apertada ou por uma linha senoidal, ainda não sei!
— Unidades em ordem; prontas para ativação! — respondeu o engenheiro.
— Só mais quatorze segundos!
Os dois corpos aproximavam-se num segundo um curso de colisão. Se um deles não mudasse de direção, o choque frontal seria inevitável. Os dedos de Mario estavam pousados sobre os botões dos disparadores. As linhas nos dois dispositivos de mira cruzaram-se sobre a imagem do bólido. Um silêncio irreal alastrou-se pela Orion. Tamara mal ousava respirar.
— Mario... fogo!
Mario de Monti apertou os botões. Grossos jatos de fogo jorraram dos dois projetores na parte superior da Orion. Os jogos giratórios dos canhões energéticos lançaram os raios contra o bólido. Um espetáculo pirotécnico formou-se sobre o asteróide quando seu anteparo desviou a torrente de energia projetada pela Orion. Segundos depois, o escudo protetor rompeu-se e uma língua de fogo penetrou pela fenda e derreteu a possante antena parabólica. Os dois corpos enfrentavam-se a uma distância de nove mil quilômetros, que se reduzia a cada fração de segundo. Mario não tirou os dedos dos disparadores até que o bólido se desfez num turbilhão de escombros negros, descargas ofuscantes e extensas tochas energéticas. Por fim, uma violenta explosão estraçalhou a central de energia alojada em um dos fragmentos. Cliff puxou o manete. A Orion passou por cima dos pedaços de rocha em brasa, inclinou-se ligeiramente e entrou numa curva apertada. Logo, os dispositivos antigravitacionais entraram em ação, neutralizando os efeitos da atração aumentada.
— Não consigo mais captar qualquer impulso — disse Helga.
— É o que eu esperava — respondeu Cliff. — Destruímos o bólido e o planeta deixou de ser controlado pelo inimigo. Talvez ele agora mude de curso.
— Pode ser! — disse Mario, que estava ao lado da mesa de Cliff e esfregava as mãos. — É possível, mas altamente improvável. Em todo caso, o bólido já era!
— Temos que voltar e tentar deter, desviar ou destruir o planeta — disse Cliff. — Só que a Orion VII não tem poderio suficiente para realizar qualquer dessas três alternativas.
— Hiperespaço? — sugeriu Mario.
— Sim. Programe um curso que nos leve até 3,6 UA do seu envoltório gasoso. Entre o planeta e a Terra, compreende?
— Atan, por favor, os dados para a nossa posição! — pediu Mario, já sentado diante do teclado da unidade de entrada do computador.
Em questão de segundos, os dois homens calcularam as coordenadas. A velocidade da nave era ainda suficiente para arriscar o grande salto. Instantes após, a Orion mergulhou no hiperespaço.
— Vamos permanecer vinte minutos no hiperespaço — disse Mario. — Será que o nosso tenente do SSG arruma um café? Parti em jejum esta noite e não estou sendo pago para fazer regime alimentar a bordo... Já que estamos salvando a Terra...
— Pare com essas piadas de mau gosto, tenente! — disse Tamara, abrindo o fecho do cinto de segurança. — Ainda estamos longe disso!
— No entanto — disse Cliff, e recostou-se confortavelmente — fizemos uma estréia auspiciosa. A estação de controle foi-se para todo o sempre.
— Pode contar com os efusivos agradecimentos de Wamsler — retrucou Tamara; e recebeu um contundente olhar de Helga. — Isto, se ele conseguir sobreviver! — finalizou Tamara e pôs-se a caminho para tratar do café.
— E agora, o quê, Cliff McLane? — perguntou Helga Legrelle.
"Não sei!", pensou Cliff, atormentado. "Mas tenho que dar a impressão de que tenho a resposta."
Começou a raciocinar febrilmente. Voltaram ao espaço normal e lá estava aquele sol artificial, visível a olho nu... Ainda longe, mas com uma auréola branca.
— Vou calcular o curso desse monstro — disse Atan e pôs-se a trabalhar. Alguns minutos depois, atirou a caneta para longe e soltou um palavrão.
— Essa maldita Nova... Não se ressentiu da falta de controle; a massa e o impulso cinético são grandes demais. Mantém o curso sem o menor desvio. Está se dirigindo direitinho para a órbita de Marte!
Tamara estava removendo as xícaras vazias. Parou entre as mesas e arriscou um palpite:
— Como pode ter tanta certeza disso, Atan? Afinal, para se desviar da sua rota, o planeta não precisa dar uma guinada violenta.
Atan lançou, para Tamara, um olhar que exprimia muitas coisas. Lembrou-se das suas respostas e retrucou:
— Também me incluiu no rol dos idiotas?
— Não fiz nada disso! — disse Tamara.
— Não entendi sua observação.
— É que nem desconfia da quantidade de cursos que já calculei na minha vida! É maior que o número de planetas que a senhorita vai conseguir ver na sua!
— Portanto você não notou qualquer alteração no curso, Atan? — perguntou Cliff, calmamente.
Atan sacudiu a cabeça e franziu as sobrancelhas. Apontou para a tela em frente a Cliff e disse:
— Absolutamente nada!
— Helga? — disse Cliff. — Chame a Estação Avançada-IV! Tente estabelecer contato com aquele astrônomo que prometeu verificar a possibilidade de produzirmos antimatéria, entendido?
— Entendido, chefe.
— Muito bem! Confio em você!
A nave estava numa posição de espera, deslizando em baixa velocidade. Dentro de sessenta minutos, o planeta atingiria o ponto onde agora se encontrava o reluzente disco hipermoderno. Mario fitou o rosto de Cliff com olhos alarmados.
— Chefe, quanto tempo você pretende... — perguntou.
A face sulcada de Cliff estava pálida, o suor cobria-lhe a testa.
— Por favor, Mario, fique quieto! Estou pensando!
Mario ignorou o apelo e prosseguiu:
— Quanto tempo você ainda pretende ficar aí, sem fazer nada? Tem que compreender que a nossa ação, em si, foi um sucesso, mas não serviu ao fim proposto! O planeta continua a se lançar contra o sistema solar e é preciso que alguma idéia nova nos ocorra. Se não, era uma vez Terra, Cliff!
— Helga? — perguntou McLane e acenou para Mario. — Estabeleceu a comunicação?
Helga virou-se e apontou para uma faixa luminosa.
— Estou falando com a Estação Avançada, mas ainda estão tentando localizar o cientista.
— Está bem! — respondeu McLane. — Continue, por favor. Eu vou empregar tudo que temos: bombas, lançadores e barreiras magnéticas. Só que... vai dilapidar um bocado nossas reservas de energia!
— Se está tão descrente assim — perguntou Tamara — por quê, então, vai empregar todo este arsenal? — estava olhando, pensativa, para a imagem na tela.
— Quer que eu assista de braços cruzados ao avanço daquele monstrengo? — Cliff pegou um bloco de apontamentos e começou a rodar a caneta entre os dedos. — Ou tem algo melhor a propor, Tamara? — perguntou, em tom agressivo.
Tamara baixou a cabeça.
— Não tenho, não! — respondeu.
— Infelizmente, eu também não tenho! — disse a voz de Hasso do videofone.
— Então me deixem pensar um bocadinho — disse Cliff, com voz baixa e meditativa. — Não temos alternativa! Precisamos correr o risco.
Começou a desenhar. Primeiro, um ponto dentro de um círculo: o planeta e sua capa incandescente", depois, traçou uma reta oblíqua, passando pelo ponto.
— Este é o planeta e seu curso em direção a Terra — explicou.
Desenhou mais três circunferências, com o ponto por centro e que interceptaram a reta.
— Cada circunferência eqüivale à distância de um minuto-luz — continuou a explicar pacientemente e anotou os respectivos valores. — São três minutos-luz do planeta até a linha mais próxima, tempo de sobra para aprontar as armas.
Desenhou um asterisco numa das extremidades da reta.
— A grosso modo, esta é a nossa posição atual. Vamos designar a linha extrema por alfa, a do meio por beta e a mais próxima ao planeta por gama.
Atan Shubashi observou o desenho esquemático com ar pensativo.
— Está tudo muito bem — disse. — Mas para que as três zonas de distância?
— Vamos empregar quinze bombas de Theknita ao longo da linha alfa! — elucidou McLane e marcou as quinze posições.
"Vamos espalhá-las e esperar que o planeta as atinja. Não vamos ativar a ignição porque são capazes de resistir algum tempo ao hidrogênio incandescente e com isto, é possível que algumas só detonem rente à superfície, o que aumenta nossas chances de êxito."
— Aliás — disse Mario de Monti. — De qualquer forma, será o hidrogênio incandescente que vai se encarregar da ignição.
— Certo! — respondeu Atan. — E o que vamos empregar na linha beta?
Um pouco inseguro, Cliff disse:
— Uma barreira energética. A mais potente que as máquinas podem gerar. Talvez os projetores fiquem inutilizados, mas isso já não vai fazer a menor diferença. — desenhou a extensão da barreira junto à linha central. — E Hasso vai erigir um campo magnético em posição oblíqua à linha alfa.
— Com o maior prazer! — disse Hasso e exibiu um sorriso sombrio.
— Vamos tentar desviar o planeta por meio dessa barreira. Talvez possamos alterar ligeiramente o seu curso, o que já seria o suficiente. Se formos bem sucedidos, repetimos a história toda em conjunto com algumas outras naves. Entenderam a coisa?
Cliff girou a poltrona e examinou, uma por uma, as expressões da tripulação. Os homens mostraram-se decididos, calmos e confiantes, sem entusiasmo exagerado; e mesmo Tamara e Helga só deram mostras de uma ligeira inquietação.
— O que vocês acham desse plano? — perguntou Cliff, preocupado. Tinha um forte pressentimento de que nenhuma das três medidas traria o resultado almejado.
— É o melhor que podemos fazer! — disse a voz de Hasso nos alto-falantes. — E talvez possamos contar com um pouco de sorte.
Atan Shubashi finalizou, em tom peremptório:
— Seja como for, vamos tentar tudo isso!
Cliff deu uma risada seca, sem alegria.
— E se nada disso der certo, perdi o meu latim! Completamente!
Entreolharam-se em silêncio. Depois, quase ao mesmo tempo, levantaram o olhar e fitaram a estrela alaranjada que aparecia na tela do comandante. Distava apenas 3,3 unidades astronômicas.
A Orion parou, girou cento e oitenta graus e disparou no sentido contrário com velocidade pouco inferior à da luz.
— Se entendi direito, comandante McLane — disse Tamara, baixinho — pretende, primeiro, voltar para espalhar as bombas?
Cliff respondeu com um aceno da cabeça.
— Mas as duas barreiras exigem a presença da nave, não é? E isto aumenta o perigo?
— É isso mesmo — respondeu McLane, lacônico.
— E qual o curso que a Orion vai seguir após a linha alfa? — insistiu Tamara.
— Lançamos mão do que nos resta de energia e tentamos escapar da camada gasosa.
Tamara empalideceu; sabia o que significavam estas poucas palavras.
— Não receia que trechos do casco possam ser afetados pelo tremendo calor?
— Claro que receio isso! — respondeu McLane. — Mas se não tentarmos pôr em prática o nosso plano, acabamos com a única chance de sobrevivência do sistema solar, por ínfima que seja!
Atan estava furioso e largou a palma da mão sobre a mesa.
— Calculei e recalculei e o diabo do curso desse planeta não mudou um milímetro sequer! A destruição daquela estação de controle não teve a menor influência.
Com voz calma e quase fatalista, McLane perguntou:
— Tem certeza absoluta disso, Atan? Não há a mais remota possibilidade de um erro?
— Não, Cliff, não há!
Cliff encolheu os ombros, sem saber o que dizer. Reparou que Helga estava olhando para eleja há alguns segundos.
— Sim? O que é, garota? — perguntou e fitou o rosto deprimido da telegrafista.
— Mantive contato com o astrônomo. Ele analisou todas as possibilidades mas só chegou a conclusões negativas. Não há condições de carregar a Orion a ponto de transformá-la em antimatéria. E isto é ponto pacífico, disse ele.
Os lábios de McLane estreitaram-se numa expressão dura, amargurada.
— Muito bem! — disse. — Então vamos tentar o que propus. Nada mais nos resta a fazer.
A Orion parou diante do planeta em brasas. Na linha gama. E só faltavam 228 horas...
A LINHA gama: uma linha imaginária que distava um minuto-luz da torrente luminosa do planeta avassalador. Um tenso silêncio reinava a bordo, pouco afetado pela atividade febril que Cliff, Mario e Atan exerciam. Os seis ocupantes da Orion sabiam o que estava em jogo. E... o general van Dyke ainda estava esperando ser salvo. "Se Lydia e sua tripulação ainda estivessem vivos", pensou Tamara, esgotada. Ninguém havia solicitado sua ajuda. Para não ficar inativa, dirigiu-se à pequena cozinha da Orion e preparou uma grande quantidade de sanduíches. Depois, levou uma bandeja cheia para a sala de máquinas.
Poucos minutos antes, enquanto o interior da nave estava sendo iluminado pela claridade ameaçadora do mortífero planeta, Cliff havia declarado a Hasso que as bombas teriam que ser dispostas, ao longo da linha, com a maior precisão possível.
— Para isto — respondera Hasso — é necessário adaptar o dispositivo de lançamento no poço. Um trabalho que três homens realizam em dois minutos. Chame Mario, por favor.
Agora, os três trabalhavam, suando em bicas. Enquanto Cliff e Mario seguravam a pesada e comprida placa do dispositivo, Hasso ajustava os parafusos dos elementos lançadores esféricos. O lançamento das bombas seria efetuado segundo um ângulo menor, com menor dispersão.
Tamara colocou a bandeja sobre a mesa de controle de uma máquina e disse:
— Se alguém estiver com fome, está servido!
Mario riu, meio encabulado, e respondeu:
— Mulher... o eterno enigma! Ora irredutível, até o suicídio; ora terna, como uma mãe com não sei quantos filhos. É de endoidecer qualquer um! Eu jamais... ai! — enfiou o dedo machucado na boca, passando a língua pelo ferimento, depois completou a exposição:
"Eu jamais vou conseguir entender tamanha contradição. Por isso vou continuar solteiro. Não me agrada a idéia de estar casado com uma esfinge!"
— O quê? — fez Hasso, e olhou para Mario com uma expressão de profundo conhecedor do assunto. — Você se engana! No fim, fica tudo transparente!
Cliff agradeceu a Tamara com um aceno de cabeça. A agente do SSG retirou-se e levou uma bandeja de sanduíches para Atan e Helga.
A superfície flamejante tinha crescido assustadoramente e já não cabia nos limites da tela. Cliff retornou da casa de máquinas. Parecia esgotado, sonolento e distraído. Largou-se na sua poltrona e, de repente, mostrou-se refeito e novamente cheio de energia.
— Do comandante para máquinas! — disse. — Vou levar a Orion para o início da linha imaginária. A cada ordem, solte apenas uma bomba!
— Máquina para comandante! — respondeu Hasso. — Entendido!
A Orion estava parada. Subitamente, deu um salto para a direita que a levou a uma distância de meia unidade astronômica.
— Lançar bomba Um, Mario! — ordenou Cliff.
Com auxílio do transportador automático, Mario já havia carregado o poço de lançamento com um mortífero torpedo de Theknita. Apertou, então, os dois botões do disparador: primeiro um, depois o outro. O fecho central do tubo ejetor abriu-se em seguida e o dispositivo eletromagnético impeliu o torpedo para a frente. O projétil emergiu da nave e afastou-se lentamente pelo espaço.
— Bomba Um colocada!
Cliff acelerou o disco. A Orion deslocou-se dez milhões de quilômetros para a esquerda e foi brutalmente contida.
Mario lançou a segunda bomba.
Dez milhões de quilômetros, a décima quinta parte de uma unidade astronômica, era este o afastamento entre as quinze bombas que a Orion colocou no caminho do planeta sinistro. Em condições normais, seriam suficientes para transformar um planeta gigante em gás radioativo. Quinze torpedos pairavam no espaço, como um colar de pérolas mortais, aguardando a aproximação do planeta chamejante...
Após o lançamento da última bomba, Cliff fez a Orion girar cem graus e projetou-a em direção à linha beta.
— Comandante para máquinas! — gritou em meio aos ruídos das máquinas supersolicitadas. — Hasso, preste atenção! Da linha beta, temos que partir, em alta velocidade, através do gás incandescente. E isso, dentro de segundos! Entendeu? Agora quero saber quantos graus Kelvin o nosso casco agüenta antes que sofra sérias avarias?
— A temperatura do gás é de mais ou menos cinco mil graus Kelvin — disse Hasso. — Se aumentarmos o potencial dos nossos anteparos, podemos permanecer, no máximo, noventa segundos naquele inferno, Cliff. Não mais do que isso! Aí temos que partir senão explodimos. E mesmo durante esses noventa segundos vamos sofrer algumas avarias. É certo que as instalações externas vão ser consumidas ou, ao menos, parte delas.
— OK! — respondeu Cliff. — Noventa segundos!
Enquanto Atan Shubashi controlava curso e velocidade, Helga escutava, com os audiofones, as conversas entre as naves espaciais. Aquelas que, há horas, estavam tentando, em vão, destruir o planeta.
— Quanta energia pode empregar para a primeira barreira, Hasso?
Hasso fez uma avaliação rápida:
— Talvez um terço de todas as reservas, mas nem um único kilowatt-minuto a mais!
— Vou me lembrar disso, Hasso! — prometeu Cliff e consultou o cronômetro de bordo.
— Dentro de quatro segundos estamos na linha beta, chefe! — disse Atan guardando seus mapas astronômicos.
Cliff empurrou uma série de manches. A nave começou a perder velocidade. No momento exato, o comandante freou. A Orion estava, de novo, parada.
— E daqui a dez segundos o planeta está na linha alfa!
Cliff acoplou um outro jogo de lentes. A imagem do planeta em chamas reapareceu na tela. Todos, com exceção de Hasso, tinham o olhar cravado no monstro. Ninguém falava. O pequeno triângulo luminoso que marcava os segundos avançava inexoravelmente pelo mostrador.
— Doze segundos!
A bola de fogo tinha atingido a linha alfa. A camada limítrofe do hidrogênio varreu por cima dos quinze torpedos e o planeta, a superfície em chamas, continuou a se deslocar com alucinante velocidade. O material das bombas tinha-se aquecido: agora, incandesceu-se numa brancura ofuscante e quinze círculos vermelhos apareceram em meio ao hidrogênio amarelo, crescendo sem parar...
— Um segundo antes da hora, mas todas detonaram — disse Cliff baixinho, quase sussurrando. — Mas nada aconteceu!... Nada!
A velocidade do planeta manteve-se inalterada e o envoltório gasoso dessa Nova sintética continuava a se alastrar: 4500 quilômetros em cada segundo... Nada tinha se modificado, absolutamente nada...
— Não houve reação alguma! — anunciou Atan. — Nossa primeira operação foi um fracasso!
Cliff estendeu os braços e deixou-os cair, num gesto de profunda decepção.
— Bem, vamos tentar deter o planeta errante com a barreira energética.
A linha beta... 227 horas e 45 minutos... Ao fim deste prazo, a Terra seria aniquilada. A penumbra reinava na cabine de comando. A luminosidade que emanava da tela de imagem e se refletia no teto metálico era suficiente. Ainda não haviam erigido o anteparo protetor em torno da nave, mas os projetores da bateria energética já estavam de prontidão.
— Quanto tempo falta? — perguntou Mario. Nas últimas horas, tinha perdido sua expressão fleumática. A preocupação havia-lhe gravado profundos sulcos no rosto largo; um tique nervoso repuxava-lhe, sem cessar, os cantos da boca; estava altamente agitado.
— Falta exatamente um minuto para sermos envolvidos pelo gás!
Tinham todos colocado o cinto de segurança. Ninguém sabia se a nave resistiria às ações violentas que enfrentaria dali a instantes. Hasso observava, preocupado, os indicadores do nível de energia e os instrumentos das máquinas.
— Primeiro, a barreira! — disse Cliff. — Dez segundos depois, o nosso anteparo. Em seguida, oitenta e cinco segundos de projeção e, finalmente, fuga em direção à linha alfa. Entendido?
Helga não via sentido em ouvir apenas interferências e crepitações e girou a chave geral da aparelhagem radiofônica. A instalação estava desligada e a longa antena telescópica recolheu-se automaticamente.
— Silêncio radiofônico! — comunicou Helga secamente e recostou-se. Por alguns instantes, manteve os olhos fechados.
— Hasso, quarenta e cinco segundos! Cliff tinha falado baixo. Apesar disso, parecia que havia soltado um berro pela silenciosa cabine.
— Entendido! — confirmou Hasso.
Os dedos de Cliff estavam pousados sobre teclas e manetes. Hasso tinha conectado uma série de controles à mesa do comandante. Cliff podia verificar, de relance, a temperatura e a velocidade do gás, a distância do planeta sólido e a intensidade da radiação. O seu campo de visão abrangia, também, o grande contador regressivo dos projetores de energia. A contagem havia sido ajustada para oitenta e cinco segundos. E o tempo se escoava... rápido demais.
— Atenção, Hasso! — alertou Cliff. — Está quase na hora. Daqui a cinco segundos, carga total nos projetores. Está pronto?
— Estou, Cliff! — Hasso nem levantou os olhos.
— Três segundos... dois... um... agora! Hasso virou uma pesada chave e um terço da energia total acumulada jorrou dos projetores na parte inferior da nave. A treze mil quilômetros de distância, já bem próximo do gás incandescente, uma substância avermelhada formou uma barreira no universo. Era matéria pura, não saturada, que absorvia imediatamente todo átomo que contra ela se chocava. Um muro feito de cor vermelha e alicerçado em nada...
E o hidrogênio flamejante chegou, esbarrou no muro energético, pareceu hesitar e foi tragado. Brechas apareceram na torrente luminosa. Lá, onde se encontrava a barreira, uma larga fenda atravessava a esfera da Nova. Nas bordas da barreira, os ávidos átomos se saciaram.
— Os dez segundos já passaram! — disse Mario. — Nosso anteparo!
Cliff manipulou alguns controles e um campo magnético envolveu a Orion protegendo-a do calor e das radiações. A imagem do planeta ficou mais difusa. Já não irradiava aquela insuportável claridade ofuscante. A nave pairava, imóvel, em meio do hidrogênio e lançava torrentes de preciosa energia no meio hostil que a cercava.
— A barreira ainda está firme! — disse Helga, quase incrédula e observou os cintilantes mostradores do painel de comando. — É assombroso!
A velocidade do planeta era de 150 mil quilômetros por segundo. Por seu lado, os gases expandiam-se à razão de 4500 quilômetros por segundo. E com a soma dessas velocidades, a Nova artificial se projetava em direção à barreira e se chocava com ela. O muro energético resistia, mas nas suas bordas já apareciam os primeiros sinais de um incipiente esfarelamento...
— Já se passaram quarenta segundos! — alertou Hasso, em voz alta.
— Entendido! — respondeu Cliff, que estava atento ao espetáculo que aparecia na tela e que muito poucos homens deviam ter presenciado antes dele. Talvez fosse ele o último homem a poder observar coisas dessa natureza. A lacuna que o gás absorvido pela barreira tinha deixado não se fechava mais. Era como se um vale retangular tivesse sido rasgado na substância da Nova; e neste vale não havia mais nada: nem chamas de cinco mil graus, nem hidrogênio... nada. E então, subitamente, a barreira desmoronou: tinha sido sobrecarregada. A projeção pulverizou-se num gigantesco espetáculo pirotécnico no cosmos, perdeu-se no hidrogênio, foi tragada pela poderosa torrente energética.
— Cliff! — ouviu-se o grito lancinante de Atan. — Nossa nave!
Premido pela urgência, Cliff tentou fazer várias coisas ao mesmo tempo. Empurrou os manches para a frente, ajustou a direção e acelerou a nave ao máximo. A Orion lançou-se verticalmente para cima, atravessando a camada de hidrogênio. Os teletermômetros indicavam as temperaturas na vizinhança e do casco da nave. Os valores estavam subindo rápida e assustadoramente.
Segundos após, a nave passou por cima da esfera da Nova e inclinou-se um pouco. Cliff levou-a a alguns milhares de quilômetros de distância, até notar que a temperatura estava começando a baixar. Livre do perigo iminente, a nave ultrapassou a Nova, deixou-a para trás e dirigiu-se para a linha alfa.
— Eu tinha chegado à conclusão que as nossas chances de êxito eram boas — disse Cliff, como que se desculpando. — Pena que as coisas não deram certo.
Hasso anunciou-se pelo intercomunicador de bordo.
— Acabei de fazer uns cálculos. Para aniquilar toda a massa de hidrogênio em chamas, seria preciso empregar a capacidade conjunta de dois milhões de naves do tipo Orion. Portanto, você não tem nada de que se repreender, Cliff.
— Não estou me repreendendo, Hasso! — disse ele. — Lamento, apenas, que fracassamos mais uma vez.
— E se aumentarmos a capacidade dos projetores magnéticos, quando erigirmos a segunda barreira na linha alfa? — perguntou Tamara que, pálida, sentada ao lado de Cliff, roia as unhas.
— Nesse caso, ficamos sem a reserva mínima de que precisamos para cair fora! — disse Mario.
— Nossas ações estão limitadas a tentativas; nada mais podemos fazer — disse Cliff e reduziu a velocidade. — Estamos perto da linha alfa.
Mais uma vez, a nave pairava no espaço, tranqüila, reluzente, aparentemente sã e salva. E pronta para realizar uma terceira tentativa, ainda mais perigosa. Mesmo que a barreira magnética desviasse o planeta apenas de um nada da sua trajetória, isto já seria justificativa suficiente para empreender uma nova tentativa com as forças reunidas de todas as naves disponíveis.
Cliff dirigiu-se a Atan e disse, com voz grave e séria:
— Atan, as leituras que você vai fazer agora têm que ser as mais precisas que você já efetuou em toda sua vida. Basta conseguir desviar o curso do planeta de uma fração de grau para que a barreira magnética se constitua num êxito completo. Entendido?
— Perfeitamente! — respondeu Atan Shubashi, considerado um dos melhores astronavegadores de toda a frota. — Vou ligar todos os aparelhos de teste ao mesmo tempo!
Cliff acenou e levou a Orion a uma posição de espera.
A linha alfa... Cliff baseou um resto de esperança de êxito na suposição de que muito pouco era preciso para romper o estado de equilíbrio. O planeta que se aproximava da posição da nave possuía um impulso cinético extremamente elevado. McLane estava longe de pensar que pudesse conter ou desviar o planeta errante; acreditava, porém, que poderia influir na trajetória retilínea, por menor que fosse essa alteração. Talvez a centésima parte de um grau fosse o suficiente. Considerando as enormes distâncias cósmicas, isto equivaleria a uma acentuada modificação na trajetória. Uma nova tentativa, realizada por cinqüenta ou mais naves, poderia afastar a ameaça em definitivo, já que o planeta não podia mais ser dirigido pelos estranhos.
— Vamos tentar! — disse Mario.
— Na pior das hipóteses, também viramos gás incandescente! — observou Atan, sarcástico. Mas, neste estágio dos acontecimentos, os quatro homens pouco se importavam se alguma observação vinha revestida de humor negro ou não.
— Tem razão — murmurou Cliff. — Ainda temos quatro minutos.
Hasso apareceu na tela do videofone, de mão erguida.
— Sim...? — perguntou o comandante.
— Como você quer a barreira? Em ângulo reto ou com inclinação menor?
Cliff pensou durante alguns instantes, depois disse:
— A quarenta graus. Creio que é a melhor inclinação para as forças defletoras. O que você acha?
— Eu teria sugerido trinta graus — opinou Hasso. — Afinal, só queremos alterar a direção da trajetória.
— Está bem! — concordou Cliff. — Então calibre os projetores para este ângulo. Estou pronto dentro de segundos.
Deu uma curta acelerada e parou a Orion novamente. Após algumas manobras corretivas, constatou que o disco se encontrava bem sobre a trajetória do planeta.
— A nave está imóvel — disse o comandante. — Vamos proceder como na linha beta: primeiro, os projetores magnéticos; depois, o nosso escudo protetor. De acordo?
— Perfeitamente! — respondeu Atan e começou a aferir seus instrumentos.
— Entendido! — murmurou Mario, sentado junto à unidade de entrada do computador.
A voz de Hasso veio da casa de máquinas:
— Durante um instante, tive a impressão de que havia uma solução muito mais simples. Mas não consigo me lembrar dela. Pode ser que eu tenha me enganado, desculpem!
— Não se preocupe, Hasso! — disse Cliff. — Podemos começar?
— Agora mesmo!
Hasso verificou que as dobradiças das portinholas tinham sido derretidas apesar do anteparo protetor. Teve que aplicar toda a força dos servomotores para içar os projetores retrateis dos recessos na parte inferior da nave.
Dirigindo os raios-guia exatamente sobre a linha de fuga, Hasso gerou um campo magnético defletor que se estendia para ambos os lados da trajetória do planeta. O esquema defensivo estava montado. Agora, era preciso esperar que o monstro ígneo se chocasse contra a barreira...
Em seguida, Hasso desligou os aparelhos e controlou o nível das reservas de energia. Momentaneamente condenada à passividade, a tripulação voltou o pensamento para o destino que estava reservado ao sistema solar dali a umas duzentas horas... Seria a extinção de toda vida humana, o fim da cultura, o ponto final da civilização tão laboriosamente construída... Se não acontecesse algo... Algo parecido com um desses raros milagres...
Mario estava com os nervos à flor da pele e não pôde se conter.
— Maldita droga! — gritou.
Tamara e Cliff levaram um susto.
— O que há, Mario? — perguntou Helga, calmamente.
— O que há?... O que há? — perguntou, gritando. — Não há nada! Estamos boiando aqui na maior tranqüilidade esperando aquele mastodonte chegar e não podemos fazer nada! Absolutamente nada! Esbanjamos a nossa energia e ninguém, naqueles três planetas, desconfia que só tem duzentas horas, ou menos, de vida. Fico doente só de pensar nisso... Eu não agüento mais!
Nesse instante, Tamara pôde mostrar que era uma boa psicóloga.
— Tenente De Monti? — perguntou, em tom sereno.
— E logo a senhora tem alguma coisa a me dizer? — berrou Mario. — Logo a senhora, que por nossa vontade não estaria participando desse drama!
— É curioso! — disse Tamara, impassível. — Eu sempre o considerei um homem corajoso e um bom oficial. Ao menos quando namora as moças nas ante-salas dá a impressão de um autêntico herói. E agora o senhor perde as estribeiras de uma maneira... Já viu como Helga e eu ficamos decepcionadas com seu autocontrole?
— O quê...? — berrou Mario. Mas, depois, conscientizou-se do significado dessas palavras.
Evitou olhar para Tamara e disse, em voz baixa:
— Desculpem-me, não pude evitar. Essa maldita espera me tritura.
— A nós também! — respondeu Cliff. — Faltam sessenta segundos.
Pela terceira vez, o planeta em chamas aproximou-se. Atan mediu o núcleo: aquela matéria que uma inconcebível reação atômica transformava incessantemente em hidrogênio incandescente. Atan estava atento como nunca; notaria o menor desvio, o mais leve abalo daquele planeta.
Hasso estava controlando as reservas de energia. Com a testa sulcada pela preocupação, não tirava o olhar vigilante das escalas e dos ponteiros. Todos os instrumentos que não eram estritamente necessários haviam sido desligados.
— Só mais vinte segundos! — alertou Cliff.
E também esses segundos se passaram. A nave pairava, imóvel, em meio àquele inferno gasoso... um inferno de 5 mil graus Kelvin... A torrente ígnea parou diante da frágil linha dos anteparos. Hasso acionou os projetores.
E, mais uma vez, os olhos da tripulação acompanharam a formação de uma barreira; uma linha que, oblíqua à trajetória do planeta, se estendia por milhares de quilômetros pelo universo. Por trás dela, o gás começou a borbulhar e redemoinhar. Enquanto isto, o núcleo sólido aproximava-se. Cada vez mais. Uma enervante expectativa, silenciosa, apossou-se das seis pessoas a bordo da Orion VII. Em que resultaria esta nova tentativa? Os segundos escoavam-se rapidamente. Oitenta e cinco segundos, não mais um único sequer, poderiam permanecer naquele inferno. Então, o planeta tocou em uma das extremidades da barreira.
Uma violenta pancada abalou a nave. O uivo das máquinas tornou-se mais intenso; combatiam a força que ameaçava lançar a nave a distância. O planeta chocou-se frontalmente com a barreira e a rompeu. Não sofreu o menor tremor. Uma cacofonia de ruídos e estalos invadiu a nave, os instrumentos de Atan registraram valores inteiramente loucos. Os projetores tinham resistido à tremenda sobrecarga; agora, estouraram.
— Cliff! Partida rápida! — gritou Hasso. — Estamos derretendo!
Cliff empurrou os manetes e arrancou o disco, em posição horizontal, da trajetória do planeta. Com uma velocidade alucinante, a Orion atravessou o hidrogênio em brasas e alcançou a liberdade do universo no exato instante em que os anteparos entraram em colapso. Abaixo dela, majestosa e imperturbada, a Nova artificial corria pelo espaço. Uma calma ilusória alastrou-se na cabine. O ruído das máquinas reduziu-se.
— Atan? — perguntou Cliff.
Atan Shubashi sacudiu a cabeça, mudo.
— Nada? — o sussurro de Cliff ressoou como um grito no silêncio amedrontador.
— Nada! — confirmou Atan. — Esse cão não se mexeu um mícron sequer!
— Esta foi a nossa última chance! — declarou Cliff. — Não temos mais nada que possamos empregar.
Tamara Jagellovsk perguntou, inquieta:
— E o que vai ser da Terra?
Cliff olhou para a tela. Lá estava a Nova, afastando-se e tornando-se cada vez menor. Então, o comandante encolheu os ombros e disse, controlando a voz:
— Pó... cinzas!
226 horas. Com passos lentos, Kublai-Krim entrou na sala, olhou de relance para os rostos perplexos dos demais membros do estado-maior e dirigiu-se ao seu lugar. Cravou as unhas no espaldar da cadeira e disse, em tom resignado:
— Até agora, nenhum aviso de missão cumprida.
Depois, sentou-se, com um gemido. A sua frente estava a projeção do sistema solar e do cubo espacial Um/Sul. O traço tinha-se prolongado e continuava apontado para os três planetas.
— Todavia — continuou Kublai-Krim — podemos registrar um pequeno êxito.
— O que houve com McLane? — perguntou o marechal-do-espaço Wamsler.
— Enviou um comunicado — explicou Kublai-Krim; falava como se economizando palavras. — Conseguiu destruir o posto de controle do planeta.
— Fabuloso! — disse Wamsler. — Onde o encontrou?
Kublai-Krim levantou as densas sobrancelhas, estendeu os braços e prosseguiu:
— Meu ordenança falou com Helga Legrelle — disse, visivelmente esgotado. — A telegrafista informou que a Hydra tinha fornecido as coordenadas que faltavam para poderem localizar a tal estação de controle. Era um bólido com uma enorme antena parabólica. E McLane destruiu a estação com os lançadores de energia logo no primeiro ataque.
Wamsler bateu com o punho sobre a mesa e declarou, em voz alta:
— Esse sujeito tem o diabo no corpo! Ao menos, temos alguém em quem podemos confiar! E como continua a história?
— Silêncio radiofônico! — disse Kublai-Krim. — Depois do comunicado, McLane só entrou em contato mais uma vez para saber das chances. Quero dizer, quis saber se havia possibilidade de abastecer a Orion com antimatéria. Disseram-lhe que qualquer tentativa era inútil.
Wamsler deu um aceno cansado com a enorme cabeça. O estado-maior estava em sessão permanente... E a Nova aproximava-se, veloz.
Sir Arthur virou-se para Wamsler.
— Eu não devia ter dado ouvidos às suas ponderações — disse, com uma expressão de profunda fadiga. — Era um empreendimento fadado ao fracasso.
Os participantes da reunião estavam obviamente esgotados devido às noites em claro. Profundas olheiras marcavam-lhes os rostos pálidos, contraídos; seus gestos eram lentos, sem vida.
Alem dos quatro membros do estado-maior, a reunião contava com a presença do Secretário de Estado Von Wennerstein e do astrônomo-chefe que, juntamente com sua equipe, havia sido convocado para assessorar as Forças Armadas Espaciais. Falando lentamente, Wamsler respondeu a Sir Arthur:
— Estamos fazendo tudo que está em nosso poder. Mais do que isso é impossível! Nem podemos exigir mais das nossas tripulações.
Kublai-Krim acenou.
— Parece que tínhamos razão, não é, Wennerstein?
— Onde está esse planeta agora? — perguntou o Secretário de Estado, nervoso.
O astrônomo-chefe levantou-se e se dirigiu à projeção estelar esférica.
— Está aqui! — disse e apontou para o ponto terminal do longo traço. — A passagem dos dois corpos deve se realizar daqui a duzentas e vinte e seis horas. É o que revelam os últimos cálculos.
— Nove dias e dez horas! — disse Von Wennerstein.
— O hidrogênio chega primeiro! — observou Wamsler. — Daqui a sete dias.
Sir Arthur girou a poltrona em direção ao Secretário de Estado e perguntou, em tom incisivo:
— Ainda não quer iniciar a evacuação, Wennerstein?
Com obstinação, o Secretário de Estado respondeu:
— Ainda não! Resolvemos esperar mais um pouco. Afinal, ainda deve haver uma chance, ou não?
A paciência de Kublai-Krim estava chegando ao fim. Em voz baixa e resignada, perguntou:
— Resolveram esperar mais um pouco? Posso saber quanto?
Wennerstein encolheu os ombros estreitos.
— Tenho a ligeira impressão — continuou Kublai-Krim, com indisfarçada ironia — que o senhor não tem a mais rudimentar noção da envergadura de uma operação dessa natureza. Parece pensar que se trata de um alarme-alfa das Forças Armadas Espaciais: em trinta minutos, meio milhar de naves está no espaço!
Com um ar de menosprezo, o secretário respondeu:
— Imaginei que tivesse nervos mais fortes e, acima de tudo, maior coragem pessoal!
O coronel Villa, que vinha mantendo silêncio o tempo todo, meteu-se na conversa.
— Meus senhores! — foi quase um grito, todos viraram a cabeça em sua direção. — Creio que escolheram o momento mais inadequado possível para trocarem as suas gentilezas!
Uma pausa embaraçosa seguiu-se às palavras de Villa. Foi Wennerstein quem rompeu o silêncio:
— Uma frota inteira foi posta em marcha. Além disso, McLane está participando da operação. Acredito que todos podemos concordar em esperar mais um dia. Lembrem-se do pânico que vamos provocar se decretamos a imediata evacuação. Poupemo-nos a esse desgosto!
Wamsler disse a Villa:
— McLane vai dar um jeito. Já destruiu a estação de controle e vai descobrir um meio de desviar o planeta. Confio na sua capacidade e na dos outros comandantes.
Villa ergueu os ombros.
— Acha que consegue?
— Estou convencido disso. Até agora McLane nunca me decepcionou. Exceto quanto a sua indisciplina inata.
— E neste ínterim, nós fazemos o quê?
— quis saber Wennerstein.
Villa permitiu-se um sorriso e espalmou as mãos num gesto inconfundível.
— Nós vamos esperar mais um pouco...!— disse.
HASSO arrastou-se, cansado, pela cabine de comando e largou-se na poltrona do comandante. Esticou as longas pernas e soltou, com toda nitidez, um conhecido palavrão.
— Cliff McLane! — disse, depois, com voz preguiçosa. — Parece que esgotamos todos os nossos recursos, não é?
A tripulação rodeava a poltrona, comendo e bebendo.
— Infelizmente, você tem razão! — murmurou Mario; seu rosto trazia as marcas do cansaço e da resignação.
— Pois é! — continuou Hasso. — E é exatamente aí que todo mundo está enganado!
— Como é? — perguntou Cliff, sentindo a esperança renascer. Quando Hasso Sigbjörnson se dispunha a encetar longas palestras, isso não se devia apenas a uma súbita vontade de monologar.
— Aceito sim, obrigado! — disse Hasso, pegando a xícara de café quente que Tamara lhe oferecia. — Bem, agora eu só continuo a falar depois de uma farta distribuição de bebidas alcoólicas de qualquer tipo!
— Hasso! — sussurrou Atan, atônito. — Você ficou maluco? Estamos quebrando a cabeça tentando descobrir um meio de destruir o planeta e você solta piadas de mau gosto!
— Atan Shubashi! — disse Hasso, sem o menor traço de humor ou alegria na voz. — Você já me conhece há não sei quantos anos. Alguma vez teve motivos para duvidar das minhas faculdades mentais?
Shubashi sacudiu a cabeça, mudo.
— Você se lembra do caso MZ 4? — indagou Hasso, tranqüilo.
—- Se me lembro! — exclamou Atan. — Quase morremos de medo naquele maldito asteróide!
— Pois é! — disse Hasso, acenando com a cabeça. — Medo! E nós estávamos com medo de quê, Atan?
A pancada de McLane quase quebrou o ombro de Hasso.
— Garotão! — berrou.
As duas moças se assustaram. Hasso e Cliff estavam rindo às gargalhadas. Atan sacudiu a cabeça, estupefato.
— Dois loucos! — murmurou. — Completamente varridos!
McLane sentou-se na sua mesa e fitou os rostos dos tripulantes.
— Nós vamos sustar o avanço do planeta! — anunciou. — E devemos isso única e exclusivamente a Hasso. Ele teve uma idéia que só ocorre a alguém a cada cem anos!
Shubashi empertigou-se diante do comandante e disse em voz alta e exaltada:
— Eu estive com Hasso em MZ 4! E daí? Remodelamos o aparelho hiperradiofônico e aguardamos a chegada da Challenger...!
Neste instante, compreendeu e o sangue lhe afluiu ao rosto.
— É a salvação! — balbuciou, tomado de uma eletrizante emoção.
Naquela ocasião, McLane havia sido transferido, em caráter punitivo, para o Serviço de Patrulhamento Espacial. E logo na primeira missão, Atan e Hasso iriam descobrir os estranhos seres no asteróide, defendendo-se deles com sucesso. Mas o cruzador-laboratório Challenger deslocava-se através do hiperespaço em direção ao satélite num curso de colisão...
Um choque entre dois corpos em meios diferentes: um no hiperespaço e o outro no espaço normal, libertaria forças e emissões de energia de tal magnitude que, numa vasta extensão, a estruturação cósmica seria destruída. No último segundo, Atan e Hasso tinham conseguido evitar a catástrofe. Comandada pelos impulsos que emitiram, a Challenger retornou ao espaço normal e espatifou-se contra o anteparo dos estranhos. Explodiu sem causar maiores danos.
— Compreenderam o que temos que fazer? — perguntou Hasso.
Cliff acenou com a cabeça.
— Transpomos a Orion para o hiperespaço e a apontamos em direção ao planeta. No choque, a Nova e a Orion serão destruídas. Mas, e nós?
— Acho que ninguém aqui está cansado da vida!
— Certamente que não! — disse Tamara. — Ainda temos as Lancet, só que, pelo que eu sei, não se prestam para vôos hiperespaciais!
— Podemos fazer o seguinte — começou a explicar Hasso. — Desmontamos os dois pequenos computadores de uma das Lancet, levando-os para a outra juntamente com os respectivos suprimentos. E, na primeira, instalamos um dos propulsores da Orion.
— Boa idéia! — disse Mario, num tom alegre. — Claro que vamos ter que dar duro. As máquinas são pesadas, mas ainda transportáveis dentro de uma nave.
Hasso prosseguiu:
— Depois, quando tudo estiver preparado, chamamos a Hydra e pedimos a eles para ejetarem uma das suas Lancet a fim de desocupar o poço de pouso. Em seguida, nos dirigimos à Hydra pelo hiperespaço, lançamos a Orion contra o planeta e aguardamos o nosso resgate. Que tal?
— Seria um plano, Hasso! — disse Cliff, pensativo. — Quanto tempo levamos para fazer tudo isso?
— Assim, por alto, creio que umas três horas — respondeu Hasso.
— Então, meu caro — disse Cliff e arrancou Hasso da poltrona do comandante — saia daqui, que eu vou levar a Orion para bem longe deste lugar!
Dentro de segundos, a Orion estava acelerada e projetou-se em direção à Terra, seguindo a mesma trajetória do planeta. Cliff só a parou depois que percorreram quatorze unidades astronômicas. Atan sugeriu:
— Escute, Cliff, você, Mario e eu podíamos começar a desmontar uma das máquinas hiperespaciais sob orientação de Hasso, é claro. Enquanto isso, as senhoritas tratariam de equipar uma das Lancet!
— Vou desmontar os computadores da Lancet I! — avisou Helga. — Dentro de uma hora está tudo pronto.
— De acordo! — disse Cliff. — Tamara, por favor, encarregue-se do abastecimento da nave auxiliar: oxigênio, comes-e-bebes, trajes espaciais, aparelhagem radiofônica, etc.!
O plano infundiu-lhes uma nova esperança. A Terra poderia ser salva por este truque, mas a tarefa era laboriosa e, na última fase, mais que perigosa. Começaram a equipar a Lancet II. Auxiliada por Tamara, Helga desmontou os computadores da Lancet I e, juntas, carregaram-nos para a outra nave auxiliar. Depois, Tamara trouxe as baterias de oxigênio, dois aparelhos radiofônicos de reserva e os outros suprimentos que Cliff tinha especificado. Enquanto isso, os quatro homens estavam trabalhando na casa de máquinas da Orion. Desmontaram um dos propulsores hiperespaciais e transportaram as peças para a Lancet. Hasso indicou o lugar onde a possante máquina devia ser instalada e começou a pensar na melhor maneira de ligá-la ao sistema geral da nave auxiliar. Uma outra questão era o suprimento de energia.
— Não se esqueçam! — advertiu Cliff. — Temos que ter condições de dirigir a Orion!
— Fique tranqüilo — disse Hasso, sorrindo ligeiramente. — Isso eu não esqueço de jeito algum!
Instalaram uma bateria suplementar de energia a bordo da lancet.
— Vamos aos testes, Mario. As comportas e a partida automática do ejetor magnético.
Mario testou as vedações da câmara de lançamento e os ímãs: a Lancet estava em condições de ser catapultada.
— Contatos radiofônicos — lembrou Cliff. — Será que podemos ser ouvidos pela Hydra ou por outras naves?
— Podemos, sim! — resmungou Helga, enfronhada em estudar circuitos e conectar cabos. — Já estou tratando disso!
— Ótimo!
Continuaram a trabalhar denodada-mente e em silêncio.
Cento e setenta minutos mais tarde, a tripulação já tinha vestido os trajes espaciais e calçado as luvas; os capacetes estavam ao alcance da mão.
— Helga — disse Cliff — chame a Hydra e peça a posição deles... Se Lydia estiver em condições de fornecê-la. Depois, ponha-os a par do nosso plano.
Helga sentou-se diante do transmissor. Subiu a antena telescópica, conectou o dispositivo hiperespacial e chamou a Hydra. Segundos depois, ouviu-se a voz de Morris. A recepção era péssima; as interferências da Nova, que se aproximava, distorciam as palavras e tornavam-nas quase inaudíveis.
— Aqui fala a Orion VII! — disse Helga e explicou o plano de Hasso. — Pode determinar sua posição?
— É impossível, Orion! — veio a resposta, fraca e difusa. — Tudo que podemos fazer é emitir um sinal-piloto constante, se bem que a nossa reserva de energia já está quase no fim.
Helga virou-se para o comandante.
— Cliff, quanto tempo falta até o desembarque?
— Uns vinte minutos — respondeu McLane.
— Comece a emitir o sinal-piloto daqui a vinte minutos — avisou Helga. — E ejete uma das Lancet. Vamos precisar do poço de pouso.
— Entendido; e boa sorte! Espero que a continuidade das dimensões não atrapalhe em nada!
— Todo mundo a bordo da Lancet! — ordenou Cliff. — Vou colocar a Orion num curso de colisão.
— Vou esperar na câmara de lançamento da Lancet — disse De Monti e retirou-se. Os outros o seguiram.
223 horas...
Cliff estava só no recinto escuro da cabine de comando e observava os instrumentos e as numerosas ligações que conectavam a Lancet à rede de bordo. Mario já tinha ocupado seu lugar na câmara de lançamento; o resto da tripulação encontrava-se na segurança ilusória da nave auxiliar. Cliff acionou os propulsores. A Orion moveu-se.
Devagar, mas ganhando velocidade a cada segundo. Mario havia programado um curso que conduziria a Orion, inevitavelmente, ao centro do planeta; ou melhor, ao ponto no qual a Nova incandescente se encontraria no espaço normal. Assim que a tripulação tivesse abandonado a nave, o piloto automático a dirigiria ao alvo. A Orion descreveu um gigantesco arco de circunferência, aumentando sempre a velocidade.
— Comandante para livro de bordo — disse Cliff, com voz dura. — O instante da transição aproxima-se... Hora do salto: menos trinta segundos... Piloto automático sincronizado.
Na tela, a imagem do planeta em brasas: ameaçador, ominoso... Cliff sabia que estava jogando a última cartada. Dentro de segundos, a sorte da Terra estaria decidida. E também a da tripulação, se tudo não decorresse na maior perfeição. Bastava que houvesse a menor falha no plano para que... Cliff arrepiou-se ao pensar nas conseqüências dessa alternativa, mas manteve-se firme no seu intento. A nave já estava com velocidade suficiente para mergulhar no hiperespaço. A voz de Atan veio dos alto-falantes acoplados à Lancet modificada:
— Todos os aparelhos estão sincronizados, Cliff!
— Ligue o piloto automático! — respondeu o comandante.
— Já está ligado!
O som metálico do piloto automático que era controlado pelo computador digital assemelhava-se ao zumbido de um marimbondo gigantesco. Em seguida, a Orion desapareceu no hiperespaço.
Silêncio. Através das minúsculas vigias e nas poucas telas ligadas só se via aquele cinza isento de qualquer coloração. A partir deste instante, a tripulação de McLane dispunha de quatrocentos segundos para abandonar a nave. Cliff observou, atentamente, os instrumentos. Estava tudo perfeito. O plano estava em andamento.
Os movimentos e gestos de McLane eram rápidos, precisos e objetivos, evidenciando a prática adquirida em longos anos de navegação espacial. Cliff colocou o capacete, ajustou os dispositivos de abastecimento do traje e entrou no elevador que o levou ao convés inferior. Rápido, juntou-se a Mario na câmara de lançamento. Agora, a conversa tinha que ser feita através dos fones do capacete.
— Comandante para todos. Podemos produzir vácuo espacial?
Todos responderam à chamada nominal.
— Muito bem! — ouviu-se a voz de McLane. — Mario, abra a comporta da câmara de ejeção da Lancet.
Mario virou uma alavanca e a comporta recolheu-se, liberando o acesso ao poço, de uns nove metros de diâmetro, no qual se encontrava a Lancet. Ao longo dos seus flancos enxergava-se o universo, o hiperespaço. E, agora o hiperespaço estava sendo inundado por urna intensa luminescência púrpura, ameaçadora!
— Ajustou o contador regressivo, Mario? — perguntou Cliff.
— Está ajustado para cinco segundos. Quando eu apertar este botão teremos cinco segundos para entrar na Lancet e fechar a escotilha.
Cliff ainda hesitou por alguns instantes.
— As naves que estavam vagueando em torno do planeta ouviram o nosso aviso de alerta, Helga?
— Ouviram, sim! Pode ficar sossegado! — respondeu a telegrafista.
— Então, aperte o botão! — disse Cliff. Mario acionou o dispositivo automático destinado a catapultar a nave auxiliar para fora da Orion e galgou a escada que levava à câmara de pressurização da Lancet seguido de perto por Cliff. A câmara fechou-se e os seis tripulantes esperaram pela forte compressão da manobra de ejeção. Os cinco segundos se passaram. Cliff e Mario entreolharam-se, os rostos banhados em suor.
— Alguma coisa... na ligação... estava com defeito!... — balbuciou Mario.
Olharam para fora.
A parte central da instalação da câmara de lançamento estava ao rubro. Os vidros protetores dos instrumentos derreteram-se e, um após o outro, os fusíveis de praládio estouraram. Um medo mortal apossou-se de McLane.
— Para fora! — arquejou. — Ativar instalação de emergência!
A escotilha escancarou-se. Cliff, Hasso e Mario desceram a escada aos pulos. Imperturbável, a Orion seguia a sua rota de colisão. E com os tripulantes presos a bordo. Segundos preciosos passaram-se em total passividade.
OS cinco homens estavam profundamente desalentados. Kublai-Krim estava acocorado num banquinho em frente ao teletipo e não tirava os olhos cansados da boca de Sir Arthur. O chefe do estado-maior fazia a larga fita deslizar entre os dedos e lia, mecanicamente, as notícias que se sucediam sem parar.
— Será que esse governo vai resolver-se a tomar uma decisão? — perguntou Kublai-Krim.
— Se Wennerstein expor a situação com clareza e for capaz de dar as explicações necessárias, e isto com muita ênfase, talvez! Mas tenho minhas dúvidas. Pessoalmente, não acredito nisso. — Sir Arthur encolheu os ombros num gesto fraco e desanimado. O marechal Wamsler andava, inquieto, de um lado para o outro; as mãos largas entrelaçadas nas costas. Vez por outra lançava um olhar preocupado sobre a projeção estelar.
— Ouçam bem isto! — disse Villa, desta vez sem o tom sarcástico que todos conheciam. — O parecer da Central de Computação é inteiramente contrário à evacuação!
Quatro olhares de indagação dirigiram-se ao homem grisalho que, de alguma maneira, ainda conseguia manter-se calmo e controlado. O coronel Villa deu repetidos acenos de cabeça.
— E isto tem as suas razões — comentou, baixinho. — Eu lhes pergunto: quem são aqueles privilegiados quinze por cento da população, com direito à sobrevivência? Vão ser escolhidos a dedo? E, se for o caso, quem vai querer arcar com a responsabilidade dessa seleção?
Villa não recebeu resposta.
— E o que vai acontecer depois que a notícia da pavorosa catástrofe se espalhar?
Acreditam, seriamente, que os outros oitenta e cinco por cento da humanidade vão ficar de braços cruzados? E como imaginam que essa operação possa ser realizada? Vai estourar um pânico de tal magnitude que, muito antes do aparecimento do planeta, a Terra já estará arrasada e a ordem do mundo inteiramente perturbada. Já pensaram nisso?
— Provavelmente — disse Wamsler, sem interromper a sua caminhada irrequieta — não fazemos outra coisa há dias.
— Se o tivessem feito — continuou Villa, impassível — ninguém entre nós, neste círculo restrito, teria sequer cogitado uma evacuação. Não faz sentido! Não sei o que seria mais desastroso: o pânico ou o aniquilamento pelo planeta. E esses quinze por cento de sobreviventes... Não pensem os senhores que eles vão dar pulos de contentamento pelo simples fato de ainda estarem vivos! Vivos, para quê? Sem a Terra sob os pés e o céu por cima, desterrados em algum planeta primitivo! Repito: não faz o menor sentido!
Kublai-Krim levantou-se e largou a fita do teletipo no chão.
— Está ficando sentimental, coronel! — constatou.
— Claro. Mantive-me calado o tempo todo enquanto aqui se discutia e eu invejo homens como McLane que estão no campo de operações e podem, ao menos, tentar fazer alguma coisa de útil. Os senhores são todos inacessíveis a um certo tipo de argumentação!
"E tem mais! — disse o chefe do Serviço de Segurança Galático, em tom contundente. — Von Wennerstein não é tão ingênuo quanto parece. Na minha opinião, mostrou uma habilidade fora do comum ao conseguir que os senhores acabassem joguetes nas mãos dele!"
O astrônomo levantou-se e postou-se ao lado de Wamsler que observava a projeção da trajetória do planeta. O longo traço continuava apontando para o centro do sistema.
— Onde está o planeta agora? — perguntou Wamsler.
O cientista indicou o ponto terminal da linha.
— Está aqui. Por assim dizer, a 222 horas de distância. Não, a quase 223 horas — disse, depois de consultar seu relógio.
— Alguma notícia de McLane? — perguntou Wamsler.
Kublai-Krim agachou-se e apanhou a fita do teletipo. Analisou os últimos trechos e disse:
— Nada!
— Seu ídolo... esse McLane! — comentou o astrônomo. — Dá a impressão de ser um homem decidido.
Wamsler não respondeu de imediato. Depois, disse:
— Só me resta desejar boa sorte. A ele e a nós. Fora disso... nada!
Wamsler retomou sua caminhada irrequieta.
Trinta minutos mais tarde, a cena tinha mudado.
Uma verdadeira multidão de oficiais e ordenanças rodeava os cinco homens solitários. Um tenente entregou uma folha datilografada a Kublai-Krim. Era um comunicado.
— Novidades, senhores! — gritou Krim. Não conseguiu, porém, despertar maior interesse entre os presentes. Ninguém acreditava que, a esta altura, ainda pudesse surgir alguma notícia auspiciosa; muito pelo contrário...
— Sim, o que há? — perguntou Wamsler. — Leia em voz alta!
— As naves que estavam tentando desviar o planeta mantiveram contato radiofônico com a Orion VII.
— O quê?! — exclamou Villa, estupefato. — McLane?
— O oficial de segurança a bordo da Orion, tenente Jagellovsk — e um longo e significativo olhar foi dirigido a Villa, que fez uma cara da mais completa consternação — emitiu uma ordem grau alfa: ordenou a retirada imediata de todas as naves. Parece que McLane tem algo em mente que quer experimentar.
Villa possuía um extraordinário poder de percepção.
— Meu Deus! — disse, atônito. — Ele pretende causar o choque entre um objeto no hiperespaço e outro no espaço normal! Lembrem-se do caso MZ 4! E isto não passa de puro suicídio! — continuou Villa, quase sussurrando. — Além disso, nem sabemos se a massa da Orion é suficiente! Vai ser uma catástrofe! Uma catástrofe inimaginável!
— As naves se retiraram? — perguntou o astrônomo ao oficial que havia trazido o comunicado.
Kublai-Krim estremeceu e dirigiu o olhar irrequieto ao tenente, que fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Mesmo numa situação confusa como esta — disse — uma ordem grau alfa não deixa de ser obedecida. As naves praticamente fugiram.
Um vozerio emanou de algum lugar e, de repente, uma gritaria confusa invadiu o gabinete.
— O que está havendo? — berrou Wamsler. Sua voz estentórea impôs-se à barulheira. Com empurrões resolutos, um oficial abriu caminho pela multidão e parou diante de Wamsler.
— Marechal!... Marechal! — gaguejou, trêmulo.
— Controle-se, homem! — berrou Wamsler.
— Recebemos um comunicado da Estação Avançada-IV! — conseguiu exclamar o oficial, ofegando.
Wamsler olhou-o de alto a baixo. Num segundo, os presentes tinham formado um anel compacto de curiosos em torno de Wamsler e o oficial.
— Continue!... — animou Wamsler.
— A imagem do planeta sumiu de todas as telas, Marechal!
Já estava em condições de fazer um relato coerente:
— Inicialmente, os telescópios de Jodrell Banks registraram um alastramento do hidrogênio interestelar. Uma súbita expansão tornou a Nova dez vezes maior. A radiação, captada na freqüência dos 1420 Megahertz e na faixa de onda de 21 centímetros, intensificou-se e depois se extinguiu completamente, afora alguns restos desprezíveis.
— Isto significa — disse o astrônomo, numa voz que até os mais afastados puderam ouvir — que a Nova artificial inflou-se e, depois, desabou.
— Correto! — respondeu o oficial. — É o que diz no comunicado. Em seguida, constataram que, no local daquele sol brilhante, não havia mais nada além de fragmentos voando em todas as direções e um resto de hidrogênio incandescente. O planeta foi destruído por uma explosão. E, neste mesmo local, o espaço fendeu-se: uma parte da massa do planeta deve ter desaparecido no hiperespaço. Desde aquele instante, toda a comunicação radiofônica na nossa esfera espacial de novecentos parsec entrou em colapso.
— Isto — disse Villa, num tom de infinito alívio — não vai tirar o sono de ninguém. Ademais, noventa por cento das mensagens trocadas na nossa esfera espacial não passam de besteira mesmo.
Por um instante, o silêncio no gabinete era total. Mas, então, o verdadeiro significado daquele comunicado penetrou nas mentes martirizadas e fatigadas dos presentes. E o gabinete de Wamsler transformou-se num pandemônio de júbilo e alegria incontida. Villa, Wamsler e o oficial que havia trazido a boa nova permaneceram juntos. A expressão de Wamsler continuava séria.
— E... tem alguma mensagem de McLane?
O oficial sacudiu a cabeça, em silêncio. Estava pensando que fim teria levado seu colega. Depois, respondeu:
— Nenhum contato com McLane, Marechal Wamsler.
— Meu melhor homem — murmurou Wamsler. — Sacrificou-se pela Terra!
Sir Arthur aproximou-se do grupo e viu-se diante de semblantes frios, controlados. Arthur segurava um copo quase vazio na direita e deu um tapinha no ombro de Wamsler. Villa estremeceu, indignado.
— Estamos salvos, Wamsler! — gritou Sir Arthur. — A Terra está salva!
— Isso mesmo — disse Wamsler, em tom formal e frio. — E a equipe de McLane está morta.
— Sabe... — disse Arthur, num falsete estranho e com uma expressão de alegria quase infantil — ...sabe, eu já não acreditava mais que fosse possível. Entende? Não conseguia mais visualizar essa catástrofe. Perdi a noção do perigo. Era monstruoso demais. Mas o fato de que conseguimos escapar mais uma vez... Wamsler, o que é que há?
Em voz baixa, o marechal-do-espaço respondeu:
— Estou preocupado com McLane! É isso o que tenho!
— Preocupado com McLane? O senhor? Logo o senhor, Wamsler? — perguntou Sir Arthur, num tom cínico e condescendente.
— Não vai acreditar, mas é verdade! — respondeu Wamsler.
Sir Arthur tornou-se mordaz:
— Que eu me lembre, nunca subestimou McLane antes. Vai ver que nada lhe aconteceu.
Villa intrometeu-se com sua temida ironia.
— Meu caro senhor — disse — não se trata propriamente de McLane. Trata-se, isto sim, do fato de que um homem sacrifica a si mesmo, sua tripulação e uma nave para salvar a vida de gente como o senhor e eu. Isto aconteceu. E, na minha humilde opinião, isto deveria ser respeitado.
Villa virou-se abruptamente e abandonou o grupo. Por alguns segundos, Sir Arthur permaneceu parado, indeciso. Finalmente, resolveu retirar-se, não sem ter dado mais um tapinha no ombro de Wamsler. O astrônomo dirigiu-se ao marechal:
— Sir Arthur está ficando velho, não acha?
Wamsler acenou lentamente com a cabeça enorme e disse, enquanto se postaram diante da projeção da esfera espacial:
— Todos esses sujeitos aqui estão festejando o êxito da operação como uma vitória pessoal. Na realidade, só houve um único vitorioso: McLane! Aliás, por que não deu certo aquela história de carregar uma nave com antimatéria? Afinal, teria sido uma maneira eficaz... ou estou enganado?
O cientista sacudiu a cabeça.
— A razão é muito simples: a nave não tem condições de produzir essa antimatéria. Eliminada essa possibilidade, só restava uma última: e foi essa que McLane aproveitou!
Juntos, saíram do ambiente barulhento e agitado do gabinete de Wamsler.
— E tinha que ser logo o comandante punido que vislumbrou o último recurso! — comentou o astrônomo.
Wamsler não respondeu. Não havia mais nada a dizer. McLane estava morto. Morto, como Jagellovsk, Legrelle, Monti, Sigbjörnson e Shubashi.
— Com mil diabos! — gritou Mario. — A instalação magnética está emperrada!
Estavam nervosos diante da instalação que se deformava e retorcia em brasas. Hasso agarrou a alavanca do disparador e puxou-o para baixo. Imediatamente, sua luva começou a derreter, fumegando. O rosto de Hasso contorceu-se numa careta de dor.
— Partida manual! — gritou Cliff. — Arranquem os ímãs!
Virou-se apressadamente e agarrou um dos pesados pés-de-cabra do encaixe na parede. Correu em direção ao mais próximo dos três ímãs que ligavam a Lancet aos trilhos do poço de partida. O primeiro golpe separou o ímã do casco da nave, mas o ímã já estava soldado ao trilho. Cliff reparou que o pequeno trecho do hiperespaço, visível no alto do poço, irradiava agora uma luminosidade bem mais intensa. Ao que parecia, também esta dimensão era afetada pelas forças capazes de transformar matéria sólida de um planeta em hidrogênio. O segundo ímã despencou.
Como não havia atmosfera no ambiente, tudo se processou no mais absoluto silêncio. Somente a respiração ofegante dos homens e as palavras que trocavam eram transmitidas pelos fones dos capacetes. Conseguiram arrancar o terceiro ímã. Hasso estava por baixo da Lancet e arrancou o selo de uma pequena alavanca. Uma dor lancinante atravessou-lhe as mãos queimadas quando empurrou a alavanca para a frente. Conseguiu encaixá-la na endentação do dispositivo de ignição e, então, uma labareda, envolta em fumaça branca, lançou-se para o interior da câmara. Os foguetes convencionais arrancaram a Lancet para o alto. A nave elevou-se, cambaleante, atritando as arestas contra os trilhos. A chama reduziu-se. A Lancet estava livre.
Um registro na tubulação de óleo sob alta pressão começou a vibrar. Instantes após, a carcaça estourou e um jato de óleo fervente impeliu Cliff contra a parede. Só o traje espacial salvou-o da morte certa.
— Liguem os ejetores individuais! — gritou Mario.
Ficou parado no meio do poço, até certificar-se de que Cliff estava firmemente agarrado por Hasso. Em seguida, ligou a ignição do pequeno ejetor nas costas do traje e foi projetado para cima com uma aceleração de 5 g que parecia dilacerar os músculos e nervos. Uma dor aguda varou-lhe o peito. Segundos depois, Mario emergiu da Orion e desapareceu no meio amarelado do hiper-espaço, a exemplo da Lancet. Cliff e Hasso estavam sozinhos no piso do poço de lançamento e a Orion prosseguia rumo ao planeta que já estava bem perto. Perto demais!
— Cliff — gritou Hasso. — Ligue seu ejetor individual!
Os dedos de Cliff procuraram o botão de ignição no cinto. Encontraram-no. Juntos, os dois homens foram projetados para fora do poço; a mão de Hasso firmemente agarrada ao cinto de Cliff. Pouco depois, estavam livres. Abaixo deles, a Orion afastava-se velozmente, dirigida pelo computador. Quatro corpos flutuavam na difusa escuridão: a Lancet e três membros da tripulação. Helga mostrou, então, que sabia agir com rapidez e decisão. De súbito, os três homens ouviram uma voz nos fones do capacete:
— Aqui fala Helga, na Lancet. Vejo vocês três na tela. Respondam, por favor!
— Até que enfim! — ofegou Mario De Monti. — Está na horinha de nos apanhar, garota! Daqui a segundos, um pedaço do universo vai explodir e vai ser aqui por perto! Depressa!
— Hasso falando! — disse Sigbjörnson com sua calma costumeira; apesar de um ligeiro tom de apreensão na voz. — Agarrei Cliff pelo cinto. Parece que vai desmaiar.
— Desliguem os ejetores individuais! — comandou Helga. — Vamos buscar vocês! Hasso e Cliff primeiro.
As minúsculas chamas dos três propulsores extinguiram-se. As esferas de vidro na parte superior da Lancet aproximavam-se através da luminosidade difusa. A comporta estava escancarada. Hasso agarrou-se a um travessão e içou-se para dentro, sem largar o cinto de Cliff, apesar da mão queimada.
— Estamos a bordo! — disse Hasso e sentiu que Helga acelerava a Lancet.
Instantes depois, Mario alçou-se para dentro da câmara e fechou a comporta, empurrando os trincos de segurança com as duas mãos.
— De Monti a bordo! — anunciou em voz alta. Imediatamente, a comporta interna foi aberta. Hasso reparou que Atan já estava sem o capacete e começou a desatarraxar o de Cliff. O rosto do comandante estava lívido. Seus lábios estavam ficando azulados.
— Oxigênio! — disse Atan, que reconheceu logo os sintomas da asfixia.
— Mas foram apenas alguns segundos! Hasso abriu a válvula do seu pequeno tanque e enfiou a extremidade do tubo na boca de Cliff. Os pulmões do comandante encheram-se de oxigênio puro.
— Vamos, garota! — disse Mario. — O negócio agora é cair fora o mais depressa possível!
O propulsor da Orion acelerava a Lancet sem cessar. Atan tinha calculado em que direção teriam que fugir e Helga manteve a nave auxiliar nesse rumo. A explosão ainda não havia ocorrido, mas a qualquer momento iria rachar aquela esquisita penumbra. Cliff recobrou os sentidos. Ao abrir os olhos, viu o rosto preocupado de Hasso.
Enquanto Cliff estava desmaiado, Hasso descobriu que o jato de óleo fervente havia destruído o tanque de oxigênio do comandante.
— Onde é que estamos? — perguntou Cliff, respirando profundamente.
— Estamos na Lancet e fugindo a todo vapor! — explicou Mario, também já sem o capacete.
E, de repente, desapareceu aquela cintilação clara que tinha inundado o cinza do hiperespaço. A Lancet ainda se encontrava nesse meio sem limites e sem estrelas e se deslocava com uma velocidade que não podia ser medida com os instrumentos disponíveis. A fuga transcorria em profundo silêncio. Quase não ousavam respirar. Seis olhares aflitos furavam as pequenas cúpulas de Plexol, tentando enxergar alguma coisa naquele meio insondável...
Nada estava resolvido. Tudo ainda podia acontecer. A Lancet seria atingida pela violenta explosão? E também a Hydra, que estava vagando pelas proximidades? Ninguém o sabia. E os últimos segundos se passaram...
Cento e cinqüenta mil quilômetros por segundo...
Esta era a velocidade de uma esfera constituída de matéria planetária que possuía uma circunferência equatorial de uns 80 mil quilômetros e, aproximadamente, a densidade do planeta Terra. E estava envolta num halo de hidrogênio. Hidrogênio luminoso e quente. Hidrogênio com uma temperatura de 5 mil graus Kelvin. E esta esfera se projetava através do espaço tridimensional. Um sol irradiante que se expandia 9 mil quilômetros em cada segundo. O gás incandescente alastrava-se sem cessar. Nas telas das estações de controle e nos telescópios da Terra o sol crescia sem parar. E representava o fim do sistema terrano.
Duzentos e sessenta mil quilômetros por segundo...
Esta era a velocidade de um disco feito de aço, vidro e matéria plástica e repleto de máquinas, aparelhos e suprimentos de todos os tipos. E este disco cruzava o hiperespaço, dirigido pelo piloto automático, em direção a um ponto fixado por cálculos matemáticos. Para o mesmo ponto dirigia-se, também, aquele sol... ou planeta. Aquela Nova. Era o ponto de encontro de dois objetos, provenientes de mundos com sistemas de referência diferentes.
O planeta errante e a Orion VII...
Caso se chocassem, um destruiria o outro. E era isso que se almejava. Mas ninguém sabia quais seriam as conseqüências secundárias. O universo seria estraçalhado? Ou o hiperespaço seria consumido pelas chamas? O choque libertaria forças cósmicas inconcebíveis? Ou aniquilaria outras? E o diâmetro da explosão, que magnitude alcançaria? Só mais quatro segundos... só mais três... dois... um segundo... E então um relâmpago ofuscante rompeu a escuridão.
Um tremendo trovão parecia percorrer o universo de ponta a ponta através do hiperespaço. A fenda luminosa fechou-se novamente e uma esfera rubra apareceu no local do choque. Como num movimento em câmara lenta, a esfera esfacelou-se em centenas de pedaços, alguns dos quais permaneceram no espaço normal, enquanto outros mergulharam no hiperespaço, vagueando em todas as direções e soltando descargas fulgurantes. E todas as naves que se encontravam no hiperespaço, num raio de cem anos-luz, sofreram as mais variadas avarias. Eram poucas, mas a Hydra e a Lancet contavam-se entre elas.
E, como todas as regiões do universo desembocavam, simultaneamente, no hiperespaço, ocorreram fatos inacreditáveis no sistema solar, no setor da Terra. Porém, estes só foram constatados depois de algum tempo e causaram a maior estranheza.
Assim, verificou-se que Phobus, uma das duas luas de Marte, estava coberto por uma camada vitrificada de Samarium. A camada tinha uma espessura de 192 mícrons e era ligeiramente radioativa.
A energia da detonação estendeu seus tentáculos em direção à Lancet...
O pequeno esferóide começou a balançar e arfar ao mesmo tempo. A violência da explosão estava começando a fazer sentir seus efeitos.
— Mario! — alertou Helga, que operava os manetes da direção manual. — Os estabilizadores!
Mario calcou uma série de botões vermelhos. O propulsor que tinham retirado da Orion começou a uivar numa cadência irregular. Uma tela fosca e alguns mostradores estouraram, flamejando. Os tripulantes agarraram-se aos assentos. Um relê foi expelido do suporte e atravessou a cabine, zumbindo, arrancando uma apara metálica junto ao encaixe de uma das cúpulas no teto. Mario inclinou-se sobre o velocímetro e recuou bruscamente. No mesmo instante, a lâmpada estalou e um estilhaço da rosca metálica atingiu o rosto do subcomandante, cortando a pele da têmpora ao queixo. Mario soltou um forte gemido, cobriu o rosto com as duas mãos e desabou. Helga recorreu a um método simples para minimizar os efeitos da explosão: determinou a direção das ondas de choque e manobrou a Lancet até que o seu deslocamento coincidisse com essa direção. Agora, a pequena nave era impelida para a frente pelos sucessivos impactos e os esforços verticais eram absorvidos com facilidade.
— Que droga, também! — gritou Cliff e levantou-se de um só pulo para socorrer Mario. Mas cambaleou sob o efeito do abalo seguinte.
— Acelere, Helga! Acelere! — gritou Hasso, agitado.
A Lancet deu mais um salto. A força normal voltou a atuar de repente, anulou-se e não retornou. Mas uma tremenda compressão vertical imprensou os seis tripulantes contra as poltronas e os pequenos painéis. Fenômenos luminosos apareceram nas telas, instrumentos fundiram-se e vários ponteiros estavam loucos. Por cima do caos pairava um gemido cavernoso, animalesco.
— Desligar a propulsão! — ordenou McLane, apressadamente. — Fechar registros das baterias! Cortar energia latente... ou a nave vai explodir!
Um novo impacto lançou Helga contra o braço da poltrona. Ela ficou sem fôlego, incapaz de se mexer. Num esforço sobre-humano, Hasso ergueu-se, espalmando as mãos queimadas e, com duas pancadas do cotovelo direito, empurrou as duas teclas largas para dentro do painel. Imediatamente, o gemido das máquinas sobrecarregadas transformou-se num silvo estridente cuja intensidade diminuía aos poucos. Gradativamente, a pressão normalizou-se. Ainda havia tinidos de vidros. Depois, silêncio!
McLane lançou um olhar cansado para sua equipe e para Tamara que estava sentada ao lado de Atan e Helga e tinha observado aquele inferno com olhos apavorados. O olhar de McLane exprimia, ao mesmo tempo, resignação, esgotamento e a euforia do vencedor.
Com voz grave, Tamara perguntou:
— Que foi que aconteceu, Major? Cliff baixou as mãos.
— Estávamos perto demais do local da explosão para escapar ilesos. Um pouco mais de distância e tudo teria sido mais brando.
Atan desatarraxou o capacete de Hasso, enquanto Helga mexia na bateria de oxigênio para aumentar a concentração na cabine. O rosto de Mario estava ensangüentado. Havia sangue, também, em algumas telas e em trechos do painel de controle. McLane virou-se.
— Eu tive culpa, Cliff? — perguntou Mario, falando com dificuldade. — Eu me refiro à fracassada ejeção da Lancet!
McLane deu um sorriso cansado e respondeu:
— Não teve, não, Mario! Ninguém podia prever que a energia invadisse o hiperespaço. Menino! Desconfio que a Orion estava pertinho do núcleo do gigante! Depois, descreveu aquele arco enorme e colidiu. Nós só sofremos os efeitos do gás.
Tamara abriu o estojo de primeiros socorros e retirou um objeto em forma de pistola. Depois, umedeceu um tufo de algodão com desinfetante e aproximou-se de Mario, que fez um gesto de inconfundível desaprovação, olhando desconfiado para o objeto. Impassível, Tamara limpou a extensa ferida. A pistola emitiu um leve zumbido e uma tênue película transparente cobriu toda a parte atingida que parou de sangrar na hora. Uma agradável sensação de frescor fez o resto. Mario exibiu um sorriso de agradecimento.
Tamara virou-se para Cliff e perguntou:
— E a Terra? Que fim terá levado?
— Suponho — respondeu McLane, bastante preocupado — que o nosso planeta foi estraçalhado.
Nas imediações, mas a uma distância que não oferecia perigo, flutuava um dos escombros azulados, girando lentamente. A Lancet deslocava-se em vôo calmo. Só vez por outra algum vidro tinia ou uma interferência crepitava nos alto-falantes.
— E a Hydra! — quis saber Hasso e olhou para as mãos queimadas. Tamara pôs-se a medicá-las.
— Os pobres-diabos! — disse Atan. — Se a nave deles já não estava intacta e teve que permanecer no hiperespaço, essa tempestade deve ter acabado com eles de vez. Devíamos tratar de encontrá-los.
— É exatamente isto que vamos fazer agora — disse Cliff, em tom decidido. — Eu assumo os controles, Helga, e você vai procurar estabelecer contato com Lydia van Dyke.
Helga fez um gesto afirmativo e entregou os controles a McLane.
O ASPECTO era o de um naufrágio. O casco da Hydra estava corroído pelas energias do hiperespaço revolto. No lugar dos dois diafragmas na curvatura superior que tampavam os poços das Lancet, havia apenas duas enormes aberturas com bordas irregulares e retorcidas. As duas naves auxiliares tinham sido arrancadas dos poços. As antenas estavam derretidas e os projetores quebrados. Com exceção de uns poucos dispositivos de emergência, a instalação interna havia sido totalmente destruída. O pedaço da antena hiperespacial ainda emitia uma seqüência contínua de débeis impulsos. E era só. Nem uma única lâmpada-piloto estava acesa.
A pilha atômica tinha explodido...
A parte inferior da nave era uma paisagem radioativa de vigas rompidas, escoras entortadas e chapas retorcidas, em formas bizarras. Metal havia derretido, escorrendo pelas peças de aço destruídas. E, solidificando de novo, formava estranhos pingos que brilhavam de maneira ameaçadora. As cabines estavam devastadas e os depósitos, vazios. Ligeiramente à deriva, a Hydra afastava-se do sol, no hiperespaço. Somente a cabine de comando ainda estava intacta ou, melhor, estanque e dispunha de alguns recursos. Ainda havia calor no recinto e umas poucas luzes, fracas, continuavam acesas por trás dos mostradores estilhaçados. Três luminárias auxiliares, amareladas, difundiam uma claridade irreal. O general van Dyke estava dormindo.
Lydia estava refestelada na poltrona, a cabeça recostada no espaldar. O capacete encontrava-se ao alcance da mão, em cima da tela inutilizada. Ainda havia oxigênio na cabine mas a qualidade do ar piorava a cada minuto.
Morris, o oficial da Vigilância Espacial, estava sentado, desolado, em frente ao aparelho radiofônico. Nem por um passe de mágica, conseguiria operar a instalação semidestruída, mas tinha quase certeza de que impulsos hiperespaciais ainda estavam sendo emitidos pelo que sobrou da antena. Aferrava-se à idéia de que McLane tinha conseguido destruir o planeta e estava, agora, à procura da Hydra, conforme havia prometido. Afinal, McLane era um ás. Saberia como proceder. Mas e essa detonação ainda agora?... Morris sacudiu a cabeça. Quem teria explodido? O planeta? Ou a Orion VII? Ninguém o sabia.
— Morris? — sussurrou o astronavegador.
— Sim, Kensigtoon? O que é?
— Quanto tempo acha que ainda agüentamos? — perguntou o astronavegador, mantendo a voz baixa para não acordar Lydia.
— No mínimo, mais vinte e quatro horas — afirmou Morris. — Está com medo?
— Estou. Será que McLane foi bem sucedido?
— Não tenho a menor idéia, mas espero que sim. Pessoalmente, acredito que Cliff vem nos buscar.
Alguns segundos se passaram. Em algum lugar, metal rangia, vidros estalavam. Lydia acordou.
— Morris... Kensigtoon? — chamou, em voz alta.
— Aqui, General! — veio a resposta.
— Então ainda estamos todos vivos! — constatou Lydia, secamente. Morris teve que admirar o sangue-frio daquela mulher.
— Ainda! — enfatizou Morris.
— Sabem — disse Lydia, como que falando consigo mesma — desde o momento em que McLane descobriu os estranhos em MZ 4, eu me pergunto qual o sentido que tudo isso faz. Esses extraterranos e nós humanos... É óbvio que não temos interesses comuns. Eles não conseguem sobreviver em atmosferas que contêm oxigênio. Conosco, acontece o contrário. Por que razões eles nos atacaram duas vezes e a última com indisfarçadas intenções de nos eliminar de vez?
Morris refletiu por alguns instantes. Depois, respondeu:
— Seria muito elementar, defini-los apenas como hienas do cosmos ou como seres belicosos. Talvez a explicação se encontre no fato de possuírem uma mentalidade bastante diferente da nossa.
— Acredita, então, que o código de ética deles diverge fundamentalmente do nosso? — perguntou Lydia, em tom des.-crente. — Mas eu não consigo admitir que uma raça, com o nível de perfeição técnica deles, possa agir cega e agressivamente, só porque descobriu outros seres dotados de inteligência.
Morris deu um sorriso cansado.
— Eu também não consigo conceber isso — respondeu. — Mas, parece ser a realidade. A senhora quer um café quente?
Lydia fez que sim.
— Esse sono me fez bem — admitiu. — Suponho que a nave virou sucata.
— Não está supondo, acertou em'cheio! — respondeu o astronavegador. — Há pouco tentei passar pelos corredores. O aspecto é desolador. Está na hora de McLane aparecer.
— Ou algum outro comandante — observou Morris.
Lydia ergueu-se e movimentou os braços para ativar a circulação.
— Não, Morris! — disse, em tom enérgico. — Espero ser salva por McLane em pessoa!
Morris entregou-se à única tarefa que ainda prometia algum êxito naquele amontoado de destroços: esquentar o café. Depois, continuaram a espera angustiada.
Cliff estava pensando em como deviam proceder, a fim de encontrar a Hydra o mais rapidamente possível.
— Tamara — chamou, manipulando uma série de controles.
— Sim, major? — perguntou a agente do SSG, que estava arrumando o estojo de primeiros socorros.
— Já tratou das mãos de Hasso?
— Já. Acabei de aplicar os curativos necessários.
— Ótimo! Então, Hasso, quer ir às máquinas, por favor?
Equipada com um dos possantes propulsores e duas baterias de energia da Orion VII, a Lancet possuía grande mobilidade no hiperespaço, mas não podia retornar ao espaço normal porque não dispunha das instalações para o vôo de transição entre os dois sistemas de referência. Além disso, o casco fraco da Lancet não tinha sido projetado para a realização deste salto.
— Helga, procure captar algum impulso!
Helga estava girando os botões do transmissor, verificando toda a gama de freqüências.
— Já estou fazendo isso há dois minutos, Cliff!
McLane agradeceu e começou a acelerar a Lancet, enquanto Helga continuava à cata de algum sinal. Quando a nave seguia numa determinada direção, a variação na modulação dos impulsos significava que esta direção levava à fonte emissora... ou não. Helga precisava prestar bastante atenção.
— Provavelmente a Hydra foi destruída — comentou Mario.
Hasso acenou com a cabeça e procurou não olhar para as mãos. Tamara havia removido os restos das luvas queimadas e aplicado um lenitivo, mitigando as dores que Hasso sentia nas palmas das mãos.
— Está certo! — respondeu. — Mas não se esqueçam que a Hydra é da mesma série da Orion VII. Portanto, a célula da cabine de comando possui uma estabilidade fora do comum, e está apoiada em amortecedores a prova de abalos fortíssimos. Se os três não estavam nas câmaras das Lancet ou na casa de máquinas, tiveram muitas chances de sobreviver.
— Isso me tranqüiliza, Hasso — disse Cliff e iniciou uma outra manobra. Helga sacudia a cabeça, em silêncio.
— Nenhum sinal?
— Até agora, nada!
A detonação ocorreu nas imediações do sistema solar terrano e fatos inexplicáveis, além do ocorrido em Phobos, aconteceram, no mesmo segundo, em todos os pontos. Na Terra, entre o Japão e a costa russa, uma lombada ergueu-se do mar. Três dos mais produtivos poços de petróleo secaram de uma hora para outra. No satélite da Terra, Luna, o solo fendeu-se. Na cratera lunar Bullialdus, uma agulha rochosa elevou-se a cento e dez metros do centro. O cone afilado media noventa metros de altura e a base tinha um diâmetro de doze metros. A agulha consistia de elementos cristalóides que desabaram no decorrer de três noites lunares, formando um anel em torno da base da agulha. Um funcionário do Laboratório de Ensaios do Departamento de Material Bélico estava passando pelo local no seu veículo lunar e descobriu a estranha configuração. A análise do material revelou que se tratava de carbono cristalino, ou seja, de diamantes. A divulgação desta descoberta ocasionou uma violenta flutuação nos preços dos diamantes naturais e industriais.
A tensão nervosa tornava-se insuportável. As horas passadas em claro, os perigos, a imprevisibilidade das situações que balançavam no fio da navalha tinham deixado profundas marcas nos seis tripulantes. Cliff mantinha-se num silêncio total, alternando, constantemente, as manobras da Lancet. Helga havia acoplado todos os amplificadores disponíveis e procurava, sem cessar, captar algum impulso da Hydra. Tamara estava recostada na poltrona lutando contra o sono. Atan Shubashi mantinha-se ocupado com seus cálculos, cobrindo folha após folha do bloco de apontamentos com fórmulas matemáticas e desenhos. Estava tentando determinar as chances que tinham de encontrar a Hydra e quando. Hasso estava dormindo. Roncava baixinho mas a esta altura dos acontecimentos ninguém se incomodava. Mario de Monti, ainda com um tique nervoso a contorcer-lhe os cantos da boca, estava atrás de Cliff, observando as manobras do comandante.
— Cliff... — sussurrou Helga — creio que captei alguma coisa!
Os homens estremeceram. Cliff estabilizou a nave no curso que tinha acabado de adotar.
— Tem certeza? — perguntou Cliff, em voz alta.
Helga esticou o braço para cima e fez um gesto giratório com a mão. Todos sabiam o que significava.
— Transfira o sinal para os alto-falantes! — ordenou Cliff, passando o dorso da mão pela barba crescida. Estalos emanaram dos alto-falantes. Depois, todos ouviram. Hasso acordou.
Um zumbido trêmulo, surdo. Durou um segundo. Seguiu-se uma pausa de três segundos.
— São eles! — gritou Atan. — Analise os impulsos, Helga!
Helga já estava tentando determinar a direção da qual vinham os sinais. Em questão de segundos, determinou a distância a que a Hydra devia estar flutuando e entregou os dados ao comandante. Cliff acelerou a nave e controlou a direção. Injetou pouca energia no propulsor para não ter que frenar depois com violência excessiva.
— Esse aparelho está funcionando com fita gravada — informou Helga. — Nenhum telegrafista conseguiria manter intervalos tão precisos. Quanto a isso, não há dúvidas!
Um frio gélido subiu pela espinha de Cliff.
— Isto pode significar... — sussurrou; e deixou a frase por terminar.
"Podia significar," pensava Hasso, "que não havia mais ninguém vivo a bordo da outra nave e somente uma fita magnética se desenrolando. Um aparelho funcionando alimentado por uma fonte em vias de se esgotar..."
Arrancou-se, bruscamente, das suas divagações e disse, em tom rude:
— Besteira! Foi Lydia van Dyke quem ensinou o nosso jovem herói aí. Tudo que ele faz, ela faz melhor!
Cliff deu um sorriso fraco.
— Quer que eu dê um sinal luminoso? — perguntou Atan.
— Não! — respondeu Cliff. — Vamos poupar energia. Você podia ligar o radar e vasculhar na direção do vôo para evitar uma colisão com a Hydra.
— Entendido, Cliff.
Atan pôs-se a manipular os comandos do aparelho de radar. A extensão do hiper-espaço criou uma cintilação verde na tela circular. Ainda não se via qualquer ponto, qualquer silhueta em forma de disco.
— Vou continuar — disse Atan e girou as antenas. Lentamente, a Lancet flutuava em direção ao alvo. Uma sensação de incerteza apossou-se dos seis tripulantes. Todos, com exceção de Tamara que era leiga no assunto, sabiam o que estava em jogo. O espaço cósmico e, em especial, o hiperespaço ofereciam perigos redobrados a quem não estivesse devidamente preparado ou suficientemente equipado. E tanto a Hydra destroçada quanto a Lancet, com suas instalações improvisadas, não dispunham do equipamento adequado. A sobrevivência seria obra do acaso ou questão de pura sorte.
— Ecos no radar! — avisou Atan. — Objeto em forma de disco a uma distância que corresponde a mil e trezentos quilômetros no espaço normal.
— Entendido! — disse Cliff. — Vou manter a direção.
— O disco está exatamente sobre nossa trajetória! — respondeu Atan, alarmado. — Não observo qualquer movimento, afora uma ligeira derivação.
A Lancet prosseguia na rota. Cliff desligou as máquinas.
— Daqui a pouco — disse Mario — vamos ver se todo esse esforço valeu a pena. Espero que sim!
— Meu Deus! — exclamou Mario De Monti, abalado. Estava ao lado de Tamara, olhando para fora, através de uma das cúpulas hemisféricas. A dez metros de distância, boiava a Hydra. Atan manejava o holofote e o jato de luz iluminou as bolhas e os orifícios no casco da nave em ruínas.
— Ali não ha mais nada que se possa ser salvo! — murmurou Tamara.
— Nada de conclusões precipitadas! — gritou Hasso. — Como vamos proceder agora?
Cliff estava refletindo e foi interrompido por Atan que tinha dirigido o jato do holofote para dentro de uma das aberturas de bordas lascadas, antes fechada pelo diafragma de vedação. O poço de lançamento da Lancet estava vazio.
— Foi catapultada! — observou Atan, laconicamente.
— Isso me dá uma idéia — disse Cliff. — Pousamos nesse poço, abrimos caminho através dos corredores e forçamos a entrada para a cabine de controle. Se necessário, destruímos qualquer obstáculo com as HM-4. De acordo?
— De acordo, Cliff! — disse Hasso. — Pode funcionar. E levantou-se. Cliff barrou-lhe o caminho:
— Você vai ficar aqui, Hasso! — explicou. — Pense nas suas mãos!
— Estou pensando mais no general van Dyke! — corrigiu Hasso.
Cliff tornou-se categórico.
— Só Atan, Mario e eu vamos sair da Lancet após o pouso! E isto é uma ordem!
Atan acendeu mais um holofote.
— Vai tentar mesmo? — perguntou.
— Vou, sim!
O perigo em nada tinha diminuído. Estava a espreita naquela nave destroçada que podia explodir a qualquer momento.
— Fechar trajes, calçar luvas e ligar fones! — comandou Cliff. — Vou iniciar a manobra de pouso!
Cautelosamente, com reduzida velocidade, a Lancet aproximou-se da superfície destruída da nave espacial. Atan controlava o afastamento lateral que, em condições normais, era mantido constante por um engenhoso sistema de pequenos campos antichoque. Mas este dispositivo também havia sido destruído.
— Pode descer direto! — avisou Atan. — Os afastamentos estão certos!
A Lancet baixou no poço a intervalos mínimos. Segundos após, pousou. Os elementos de suporte ainda existiam.
— Atan, Mario... estão prontos? — perguntou Cliff.
O astronavegador e o subcomandante já estavam à sua frente e ajudaram-no a fechar o traje e colocar o capacete. Cliff calçou as luvas e examinou a carga do projetor. Depois, ligou os fones e perguntou:
— Estão com as armas prontas? Colocaram carregadores novos?
Responderam que sim. Afinal, eram astronautas experimentados.
Entraram na câmara de pressurização e fecharam a comporta interna. Não cabia mais ninguém no apertado compartimento. A escotilha externa recolheu-se num recesso da parede externa da nave. Acenderam as lanternas dos cintos. Os cones de luz revelaram um quadro desolador. O fogo e a destruição tinham grassado à vontade.
— Conforme a disposição na nossa nave, de saudosa memória, esta deve ser a câmara número um — disse Atan, que caminhava quatro passos à frente de Cliff. Atrás do comandante, Mario tropeçava através da escuridão de arma na mão.
— Portanto, temos que seguir em frente até o primeiro cruzamento. Depois, é só virar para a direita e subir o poço ao lado do elevador! — resmungou Cliff que se sentia imensamente cansado e moído.
A HM-4 de Atan flamejou. Um fino raio atingiu a chapa de aço retorcida, que pendia perigosamente do teto. Esta despencou, silenciosamente, em meio a um chuviscar de fagulhas. O baque inaudível propagou-se pelo piso.
— Adiante!...
Seguiram os feixes de luz. Tropeçaram em cabos arrebentados e pisaram em algum material elástico. Suas botas estalavam no chão, mas ninguém ouvia os ruídos porque não havia meio gasoso para propagá-los. Chegaram ao primeiro cruzamento e pararam.
— Estou ouvindo algo! — gritou Kensigtoon. No mesmo instante, uma breve pancada abalou a nave. Os cacos de vidro no piso tiniram. O ar na cabine já estava quase irrespirável e malcheiroso. A instalação renovadora também tinha entrado em colapso.
— Alguém acostou à Hydra! — disse Lydia van Dyke. — Quando repararem o aspecto da nave vão tentar abrir caminho até aqui. Vamos fechar os trajes e ligar os rádios.
Auxiliaram-se mutuamente. Depois, os alto-falantes estalaram e no mesmo momento ouviram a voz de McLane:
— O que eu vejo dá até para desanimar! Ajude-me aqui, Mario!
— Não tenha receios, major! — disse Lydia, com voz áspera e controlada. — O conteúdo desta lata ainda está intacto!
Durante três segundos só se ouvia a respiração ofegante dos três homens. Depois, McLane respondeu:
— Estou cansado demais para gritar.
Não acreditava mais em encontrar alguém com vida nessa desgraça. Quantos são?
— Somos três, McLane. Onde você está?
— No pé do acesso ao lado do elevador. Ainda tem oxigênio?
— Temos, sim!
— Mas acabamos de fechar os trajes — disse Morris. — Vamos ao seu encontro. Aqui nada mais nos prende!
A voz de Atan soava rouca. O alívio havia lhe secado a garganta.
— Então, desçam! — disse. — Pousamos a Lancet no poço um.
Os tripulantes da Hydra levantaram-se e dirigiram-se a um alçapão rente à porta circular do elevador. Morris acionou uma válvula de compensação e levantou a tampa que vedava a abertura. Viram um túnel circular com uma escada vertical. E, sete metros abaixo, luzes que se mexiam.
Morris foi o primeiro a descer. Atan e Mario receberam-no ao pé da escada, sorrindo. Três homens fatigados entreolharam-se.
— Atenção, lá vem a chefe! — murmurou Morris.
Lydia pulou do último degrau e apertou a mão de McLane.
— Obrigada, Cliff! — disse, controlando a emoção. — Vocês são formidáveis!
— É uma constatação que eu aceito! — respondeu Cliff, não menos emocionado. — Há mais alguém na escada?
— Tem sim; eu! — disse Kensigtoon e saltou.
— Então, vamos depressa! — ordenou o comandante. — E já para dentro da Lancet! Não estou me sentindo nada bem a bordo desse balde furado. Pode acontecer algo a qualquer momento!
Corram o mais que podiam. Era um verdadeiro milagre que os dispositivos antigravitacionais ainda estivessem funcionando. De outra forma, haveria mais um empecilho a vencer. Por fim, a comporta interna da Lancet fechou-se pela última vez e Cliff ligou a ignição. A Lancet projetou-se para fora da nave destruída e estava novamente no hiperespaço. Imediatamente, Helga começou a emitir uma série de comunicados. Um minuto mais tarde chegou a resposta.
— Aqui fala Wamsler das F.R.E.T. Vamos resgatá-los imediatamente. Dez naves estão recebendo, neste momento, ordem grau alfa para se dirigirem para sua posição. Favor emitir sinal-piloto nítido. Ao que parece, encontram-se nas imediações da Estação Avançada-III. Desempenho magnífico, McLane. Tripulação, idem. Volto a falar mais tarde.
Cliff desligou todas as máquinas.
— Muito bem! — disse. — Meu papel nesse drama acabou. A partir deste momento considero-me apenas um passageiro necessitando demais de repouso.
Lydia van Dyke não desviava o olhar dos olhos de Cliff. Finalmente, disse:
— Eu não tinha certeza, comandante, de que ia obedecer à minha ordem.
Com total falta de respeito, Cliff pendurou as pernas por cima do braço da poltrona.
— A que ordem se refere, general? — perguntou, já bastante distraído.
— De se preocupar com a Hydra somente após ter levado a cabo sua tarefa, desde que ainda houvesse oportunidade para isso.
Cliff apontou um dedo acusador em direção a Tamara.
— Nisso, eu contei com a colaboração eficaz do tenente Jagellovsk. Senão teria buscado a senhora antes. E, nesse caso, teria tido a oportunidade de participar das fantásticas aventuras da nave espacial Orion. Mas, por razões notórias, ficou privada desse privilégio. Não é mesmo, camarada Tamara?
— Tamara basta, camarada comandante, poupe sua ironia! — respondeu Tamara com voz gélida.
— Agora, posso voltar a ser alegre e contente! — resmungou Cliff. — Uma nave virá e aí eu vou me deitar e dormir até dizer chega!
— Aquele episódio — disse Tamara — foi a pior coisa que já passei com você!
— Coisas piores virão! — prometeu Atan, arreganhando os dentes. Seu auditório tinha aumentado.
— E nunca falei mais sério na minha vida — continuou Tamara. Lydia van Dyke divertia-se com o diálogo. — Porque, se eu não tivesse interferido, aquela estação de controle ainda existiria.
Cliff acenava com a cabeça a cada palavra de Tamara; no momento, tudo aquilo o deixava indiferente.
— Esta foi a sétima Orion, que o senhor conseguiu transformar em sucata — disse Lydia van Dyke. — Agora, deve ter chegado a vez da oitava.
— Se soubesse o quanto isso me emociona! — respondeu Cliff, lentamente. A força de vontade que o tinha mantido em pé até este momento começou a se evaporar.
"Se ao menos as pessoas não falassem tanto" — pensou McLane — "principalmente as mulheres... Parecem gravadores defeituosos!"
— Provavelmente será a primeira vez que ninguém vai censurá-lo.
— É, parece!
A resposta de Cliff não passava de reflexo condicionado. E como se tudo isso não bastasse, Helga também entrou na conversa. A pequena cabine da Lancet não oferecia o menor conforto. Fazia calor e o ar, apesar de filtrado, cheirava mal.
— O que é, Helga? — perguntou Cliff.
— Mensagem do Comando Operacional — disse Helga.
— Não estou a bordo! — disse Cliff. — Diga que eu saí!
Helga balançou a cabeça, num aceno compreensivo.
— Deve ser para você — disse van Dyke, com extrema cordialidade. — As primeiras congratulações estão chegando.
— É! — disse Cliff.
Atan soltou uma gargalhada.
— Vai ver que é o chefe do Departamento de Logística exigindo uma comunicação de perda total em dez vias manuscritas e assinada por toda a tripulação...
— ...e com um extraterrano servindo de testemunha! — completou Hasso.
— Nada disso! — avisou Helga. — São os nomes das naves que se dirigem para cá. Quer que leia em voz alta?
Cliff levantou a cabeça um centímetro da tela na qual havia estendido os braços.
— Não! — gritou com o que lhe restava de força.
— Pobrezinho! — disse Tamara. — Deve estar muito cansado, não é?
Cliff arregalou os olhos para Tamara, espantado.
— Cansado? Eu? De forma alguma! — respondeu. — E logo a senhorita achou isso?
A gargalhada das oito pessoas quase abalou as paredes da Lancet.
Trinta minutos depois, a primeira das dez naves apareceu na monotonia cinza do hiperespaço. Todas as luzes de pouso estavam acesas.
— Assumimos a manobra, McLane! — disse a voz do telegrafista. — Por favor, imobilize a Lancet.
Cliff já estava a sono solto.
— Entendido! — disse Mario e soltou o microfone.
A Lope de Vega colocou-se por baixo da pequena nave auxiliar, abriu o poço de pouso e acionou os campos magnéticos. A Lancet foi sugada para dentro do poço e baixou suavemente até o fundo. De repente, os nove tripulantes estavam envoltos em claridade, calor e vozes.
A segunda nave a chegar tinha ordens de destruir a Hydra. Um destacamento de sapadores ativou uma reação atômica retardada. Depois, as dez naves partiram em formação rumo à Terra. Distância: três unidades astronômicas.
Cliff enganou-se redondamente ao supor que a operação estivesse encerrada. Nos próximos dias, ainda iria se aborrecer com ela.
POR ocasião da detonação, um corpo de forma cúbica apareceu entre os anéis A e B do planeta Júpiter. Sua aresta media um quilômetro de extensão e tornou-se o mais novo satélite daquele planeta, efetuando uma revolução completa a cada 11 horas, acompanhando Mimas, Enceladus e Thetis, os outros satélites. Verificou-se que o cubo consistia de americium sem qualquer impureza. Este elemento era um metal considerado, até aquele momento, um superelemento artificial. As teorias que se ocupavam com os três fenômenos descritos e com uma série de outros acontecimentos iriam proliferar durante os meses seguintes como cogumelos em solo úmido.
Mas isto McLane desconhecia e, no momento, estava observando os seus convidados. Não chegavam a superlotar seu confortável bangalô em Groote Eylandt, mas a música e o tinir dos copos, os uniformes coloridos e os cintilantes vestidos das senhoras, trouxeram vida à calma do seu lar. Certamente alguém cairia na piscina esta noite. O marechal Wamsler baixou o volume do som estereofônico para ouvir melhor o que Tamara estava lhe contando. Helga Legrelle conversava com Lydia van Dyke.
Mario de Monti estava acompanhado por uma das belas moças do gabinete de Wamsler e, no momento, parecia fazer um relato completo de uma das suas numerosas façanhas audaciosas. Hasso e Ingrid também estavam presentes. Atan Shubashi, meio tristonho, bebia uísque, recostado numa das poltronas. Wamsler aproximou-se de McLane, um braço paternal nos ombros de Tamara.
— Como é, Cliff? — disse o marechal, em voz altíssima. — Está se sentindo como um verdadeiro herói da galáxia?
— Hein?! Hein?! — fez o comandante. — Tenho motivos para isso? É verdade que salvei a Terra e, de tabela, mais dois outros planetas mas continuam me prendendo ao Serviço de Patrulhamento! Que bela gratidão!
— Está esquecendo uma coisa! — objetou Tamara. E mostrou os dentes naquele sorriso falso que McLane conhecia tão bem.
— Estou? O quê? — perguntou Cliff e aspirou o cheiro do seu copo, quase vazio.
— Aquela caixa de madeira legítima com as doze garrafas de autêntico, legítimo e garantido usige beatha, cortesia das F.R.E.T.
— Certo! — concedeu Cliff. — Já é alguma coisa!
As Formações de Reconhecimento Espacial da Terra, ou F.R.E.T., tinham-se mostrado bastante generosas, presenteando Cliff com uma dúzia de garrafas de uísque autêntico, o que o motivou a dar aquela recepção.
— Uma pergunta, marechal — disse Cliff, com uma expressão insondável. — Aqueles estranhos... Descobriu-se, afinal, por que nos atacaram com tamanha violência sem que tivesse havido a menor tentativa de um entendimento?
— Não descobrimos nada. Só podemos supor que têm uma concepção de vida ou de civilização inteiramente diversa da nossa. Estamos nos preparando para coisas piores nesse sentido. Não sabemos de nada.
Cliff encolheu os ombros no bem talhado uniforme.
— Também não sei nada a esse respeito! — disse, pensativo. — Só sei que me fizeram correr através do cosmos como um cadete qualquer, expondo-me, sem a menor contemplação, aos mais inenarráveis perigos. E ninguém se lembra de me devolver o meu lugar na gloriosa frota. E essa mágoa eu não consigo afogar nem num navio-tanque cheio de uísque, marechal Wamsler!
Wamsler arreganhou os dentes num sorriso largo.
— Uma punição tem sua vez, meu caro McLane! Se você fosse um astronauta comportado, que não criasse problemas, ninguém jamais teria dito coisa alguma. Não é por nada, mas, anteontem, conseguiu registrar a sétima perda total de uma nave!
— Faço tudo isso por vingança! — explicou Cliff.
— Além disso — disse Tamara e estendeu-lhe seu copo vazio — seu comportamento continua abaixo da crítica!
— Sua taxa de ouro no meu caixão! — exclamou Cliff, reabastecendo o copo. — Logo quem vem me dizer isto!
— Parece-me que ainda não estão morrendo de amores um pelo outro — comentou Wamsler, seus olhos negros fitando ora Cliff, ora Tamara.
— Prefiro ficar noivo de um robô! — declarou Cliff, categoricamente. Dirigiram-se, lado a lado, para o espaçoso salão de estar.
Hasso e Ingrid estavam junto do bar e divertiam-se com a inscrição acima da prateleira das garrafas.
O TRABALHO É A MALDIÇÃO DA CLASSE ALCOÓLATRA, dizia a inscrição.
— Boazinha, não é? — perguntou Cliff, distraído; quase não ouviu a campainha da porta. Decididamente, a composição de Thomas Peter, "Canção do Astronauta Bêbado", estava sendo tocada muito alto. Cliff apertou um botão no bar e um videofone iluminou-se, mostrando a imagem de um funcionário das F.R.E.T.
— Comandante McLane? — perguntou. Cliff baixou o volume da música.
— Sim. O que deseja?
— Preciso da sua assinatura num relatório. Posso entrar?
Wamsler recebeu um longo e desconfiado olhar de McLane. Sorriu e devolveu o olhar, firme.
— Entre! — disse Cliff, reservado. — Não há nada como mais um convidado alegre.
Acionou o controle remoto da porta. Um olho mágico examinou o funcionário, classificou-o e decidiu que era, sem sombra de dúvida, do sexo masculino. Por causa disto, não houve os toques de clarim que, em outras circunstâncias, davam as boas-vindas a quem chegasse. O funcionário apresentou-se ao seu chefe e, depois, pediu que Cliff o acompanhasse para algum recanto mais calmo. Cliff ofereceu-lhe um copo.
— Nem um golezinho sequer? — perguntou Cliff, estupefato. Entre os seus conhecidos, não havia um único que dissesse "não". E este homem não aceitava um drinque! A desconfiança de McLane triplicou.
— Tem certeza de que não quer um uísque? — perguntou, mais uma vez.
— Não, obrigado! — respondeu o homem. — Agradeço, mas estou de serviço.
Os convidados aproximaram-se, aos poucos, e rodearam os dois. O funcionário apontou para uma mesa e encolheu os ombros, algo encabulado. Cliff entendeu e sentou-se em frente ao outro. O homem abriu o canudo que vinha tentando ocultar o mais que podia e retirou onze folhas de papel.
— Sua assinatura, comandante — pediu.
Cliff levou um susto e começou a examinar, com cuidado, a primeira folha. Era uma declaração de perda, já preenchida, relativa a "uma nave espacial, em operação, da série 3000 Bardy, Reg. n." 0789/11, n." de catálogo 16 — Orion VII — Perda total ocasionada por adoção de curso arbitrário e voluntarioso através do hiperespaço em direção a um planeta..." etc., tudo redigido na melhor burocracia. McLane tirou o grampo diamagnético da plaqueta de identificação e pressionou-a sobre o quadrinho demarcado na folha. O funcionário tirou a folha e apontou para a primeira cópia.
— Esta aqui, também, por favor! — disse e lançou um olhar furtivo para o marechal Wamsler, que se tinha plantado perto da mesa, firme como uma rocha.
McLane assinou a segunda cópia e mais a terceira. Quando chegou à quarta e quinta, sua equipe já estava rindo e Lydia também. Impassível, dedicou-se à sexta e sétima. As outras estavam no chão. Assinou a oitava.
— Se não for incômodo, comandante — disse o funcionário sentindo-se, de repente, inteiramente deslocado no ambiente e esquecendo a presença do seu chefe — eu gostaria de tomar um golezinho daquele uísque!
— Com prazer, meu caro! — disse McLane e levantou-se.
Abriu caminho por entre rostos risonhos, pegou a garrafa e encheu dois copos. Ergueu o seu e assinou a nona cópia.
— É para o senhor ver! — explicou ao aturdido funcionário, que lhe estendia a décima e última cópia. — Um pobre comandante de nave só ganha um uísque dessa qualidade uma vez na vida. É um presente da entidade para a qual o senhor trabalha. Permitiram que eu mesmo escolhesse o presente, imagine só! Podia ser algo fora do comum. E, pela primeira vez na vida, o seu chefe conseguiu vencer a sua avareza.
O funcionário nem ousou olhar para Wamsler.
— E por que pediram que o senhor escolhesse um presente?
Cliff contemplou Wamsler com um longo olhar. O sorriso do marechal congelou um pouco mas Wamsler ainda não sabia onde Cliff queria chegar.
— Por quê? Porque eu destruí a Orion VII! — disse Cliff.
— E isto é recompensado?
— É, sim! — respondeu Cliff, com a maior seriedade. — É que na F.R.E.T., as coisas são feitas segundo um esquema bastante curioso. Se a gente dá um espirro fora do tom, digamos, em lá sustenido, perde o emprego. Agora, quando se transforma em sucata uma nave que custa milhões, a gente é recompensada com uísque e menções especiais. Não sabia disso?
O funcionário sacudiu a cabeça, mudo, e acabou entrando na risada geral sem saber por quê. Wamsler não estava rindo. Finalmente, McLane liquidou a décima cópia. O funcionário levantou-se, grampeou as folhas e enfiou-as no canudo.
— Posso saber, major — perguntou — qual foi a verdadeira razão para a destruição intencional da nave?
— Escreva isto: na tentativa de salvar a nave Hydra, McLane teve que abandonar a nave Orion VII no hiperespaço. Aceita esta versão, McLane? — perguntou Wamsler. Estava sério e pensativo.
— Aceito a versão! — disse McLane. — Desde que o general van Dyke concorde.
Lydia acenou, afirmativamente.
— Nesse caso — disse Cliff — eu lhe desejo uma noite agradável, general, assinando não sei quantos formulários, pois a senhora também perdeu uma nave. E lembre-se: o marechal recompensa cada nave destruída com doze garrafas, ou seja, exatamente 8400 centímetros cúbicos de uísque! É um direito seu, líquido e insofismável. Vou ser convidado?
Lydia deu uma gostosa gargalhada.
— É exatamente o que pretendo fazer! Wamsler, McLane, Lydia e o funcionário já estavam diante da porta, quando Cliff se virou para o homem, dizendo, em tom confidencial:
— Pode espalhar a notícia entre os pilotos da frota. Cada nave perdida é paga em uísque. Uma nave, uma caixa! Vai se lembrar disso?
— Prometo que sim! — balbuciou o homem e saiu, apressado.
McLane dirigiu-se, radiante, a Wamsler.
— Marechal! — disse. — Viu alguma outra possibilidade de ocultar do conhecimento público o fato de que um planeta em chamas estava avançando em direção a Marte e Vênus?
— A maioria dos meus funcionários — respondeu Wamsler, com voz séria e serena — desconhece a diferença entre planetas flamejantes e Novas. Quanto mais a diferença entre o espaço normal e o contínuo riemanniano.
— E não são os únicos! — McLane ergueu seu copo. — A parte oficial da noite acabou? Então posso pensar em manter uma encantadora discussão com meu oficial de segurança.
Tamara retribuiu com um sorriso gélido.
— O que o senhor deve fazer — respondeu, calmamente — é encher meu copo. A não ser que ache o seu uísque de herói muito caro para uma dama.
Wamsler virou-se para Lydia e murmurou:
— Falam como se estivessem casados!
Hans Kneifel
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