A mulher jovem, que surgira à vista deles, olhava, nervosa, em torno. Jondalar notou de imediato que a moça tinha muito pouca idade. Era quase uma menina. Ayla notou que esperava um bebê.
— O que é, Cavoa? — perguntou S'Armuna.
— Epadoa acaba de voltar com suas caçadoras. E Attaroa está gritando com ela.
— Obrigada por vir contar-me — disse S'Armuna. E voltou-se para os seus hóspedes: — As paredes desta casa são tão grossas que é difícil ouvir o que se passa do lado de fora. Talvez devamos sair.
Passaram rápido pela mulher grávida, que tentou encolher-se para que pudessem passar. Ayla agradeceu com um sorriso.
— A espera chega ao fim, não é? — disse, em S'Armunai.
Cavoa sorriu, nervosa. Depois baixou os olhos para o chão.
Ayla achou que ela estava assustada e infeliz, o que era incomum para uma futura mãe. Mas, afinal de contas, muitas mulheres que esperam o primeiro filho ficam nervosas.
Logo que saíram puderam ouvir Attaroa, que esbravejava.
— ...e me diz que achou o lugar onde acamparam! Pois perdeu uma bela oportunidade. Bonita Mulher-Loba é você, que não sabe nem mesmo rastrear — dizia a líder, zombando da outra.
Vestida com suas peles de lobo, Epadoa permanecia ereta, lábios comprimidos, olhos fuzilando de raiva, porém muda. Havia muita gente em volta, mas não perto demais das duas. De repente notou que as pessoas desviavam a atenção da disputa para olhar em outra direção. Olhou também e viu, com espanto, que era a mulher loura que se aproximava, acompanhada, fato mais surpreendente ainda, pelo alto Zelandonii. Jamais vira nenhum homem voltar ao acampamento.
— O que estão eles fazendo aqui?
— Eu já lhe disse. Você perdeu a oportunidade — escarneceu Attaroa. — Eles vieram por conta própria.
— E por que não viríamos? — disse Ayla. — Não fomos convidados para um festim?
S'Armuna traduzia.
— O banquete não está pronto. Será à noite — disse Attaroa aos hóspedes. E logo para Epadoa: — Venha comigo, tenho algo a dizer-lhe. — E logo entrou, seguida pela comandante da sua guarda.
Depois que se foram, Ayla procurou Racer e Huiin com os olhos. Afinal, Epadoa e suas mulheres caçavam cavalos. Ficou aliviada ao ver que os dois estavam lá e pastavam o capim seco e quebradiço, a pequena distância. Estudou, então, a mata cerrada na colina próxima do Acampamento, com vontade de avistar Lobo, mas contente por não ver nada Queria que ele permanecesse escondido, mas fazia questão de mostrar-se, na esperança de que ele a pudesse ver.
Voltaram com S'Armuna para os aposentos dela. No caminho, Jondalar se reportou a um comentário que a Xamã fizera e que lhe despertara a curiosidade.
— Como conseguiu manter Brugar a distância? Você disse que ele tentou bater-lhe um dia, como fazia com as outras mulheres. Como fez para impedir um novo ataque?
A mulher parou, olhando severamente para o rapaz e, em seguida, para a mulher ao lado dele. Ayla sentiu sua indecisão. Era como se estivesse resolvendo até onde podia confiar nos dois.
— Ele me tolerava porque sou Xamã. Sempre se referiu a mim, aliás, como curandeira. Mais do que tudo, porém, temia o mundo dos espíritos.
A observação levantou uma dúvida na mente de Ayla.
— As curandeiras têm um status privilegiado no Clã — disse. — Mas são apenas curandeiras. Os Mog-urs é que se comunicam com os espíritos.
— Com os espíritos conhecidos dos cabeças-chatas, talvez. Mas Brugar temia o poder da Mãe. Acho que ele sabia que Ela podia ver todo o mal que fazia e o mal que lhe roía a alma, por dentro. Temia o castigo. Quando lhe demonstrei que eu podia recorrer a Ela com êxito, Brugar me deixou em paz.
— Você pode conseguir que Ela atue em seu favor? Como? — perguntou Jondalar.
S'Armuna meteu a mão na saia e tirou uma figurinha de mulher, de uns dez centímetros de altura. Ayla e Jondalar já haviam visto imagens daquelas, esculpidas habitualmente em marfim, osso ou madeira. Jondalar já vira até umas poucas estatuetas talhadas em pedra com amor e infinito cuidado. Eram feitas exclusivamente com ferramentas de pedra e representavam a Mãe. À exceção do Clã, todo grupo que tinham encontrado, desde os Caçadores de Mamutes, a leste, até o povo de Jondalar, a oeste, fazia alguma representação d'Ela.
Muitas dessas imagens eram toscas, outras esculpidas com extremo requinte. Algumas, altamente abstratas; outras, figurativas — retratos bem proporcionados de mulheres maduras, gordas. Muitas dessas representações procuravam dar ênfase aos atributos da maternidade e da fecundidade — seios volumosos, ventre protuberante, bacia larga — e reduziam deliberadamente ao mínimo as outras características. Muitas vezes havia apenas uma sugestão de braços, ou as pernas terminavam em ponta, sem pês, para que a figura pudesse ser fincada na terra. O que não tinham eram feições faciais, e isso invariavelmente. Não deviam ser cópias de uma determinada mulher, e por certo nenhum artista poderia saber como seria a face verdadeira da Grande Mãe Terra. Às vezes o rosto era deixado liso. Às vezes tinha marcas enigmáticas, ou o cabelo era estilizado e continuava à volta toda da cabeça, escondendo as feições.
O único retrato realista de um rosto de mulher que os dois conheciam era o de Ayla que Jondalar havia esculpido com ternura quando viviam sozinhos no vale, pouco depois de se conhecerem. Mas o próprio Jondalar às vezes lamentava essa indiscrição impulsiva. Ele não quisera fazer uma imagem materna, talhara aquilo porque estava apaixonado por Ayla e queria captar o seu espírito. Mas verificou, uma vez pronta, que a imagem tinha um tremendo poder. Teve medo que pudesse prejudicá-la, principalmente se caísse nas mãos de alguém que a quisesse dominar. Mesmo assim, teve medo de destruir o retrato: isso também poderia fazer mal ao modelo. Deu-o a Ayla, então, para que ficasse para sempre em segurança. E Ayla gostava da pequena escultura com um rosto que lembrava o seu, por ter sido feita por Jondalar. Jamais pensou se teria ou não algum poder. Achava-a apenas bela.
Embora as imagens tradicionais da Mãe fossem também, muitas vezes, consideradas belas, não eram, em geral, representações de mulheres jovens núbeis, feitas em obediência a algum cânon masculino de beleza. Eram representações simbólicas da Mulher, da sua faculdade de criar e produzir vida de dentro do próprio corpo, e de nutrir essa vida com os recursos da sua própria e generosa plenitude. Por analogia, tais figuras representavam a Grande Mãe Terra, a Qual criava e produzia toda vida do Seu corpo e alimentava Seus filhos com a Sua assombrosa munificência. As figuras eram também receptáculos para o espírito da Grande Mãe de Todos, um espírito capaz de assumir um sem-número de formas.
Mas aquela figura da Mãe diferia de todas. S'Armuna passou a munai a Jondalar.
— Diga-me de que é feita — disse.
Jondalar virou a figura nas mãos, examinando-a detidamente. Tinha seios pendulares e cadeiras avantajadas, os braços eram sugeridos apenas até o cotovelo, as pernas se afunilavam para baixo. Embora houvesse uma vaga indicação de cabelos, o rosto fora deixado em branco. A imagem não diferia grandemente em tamanho ou forma de muitas que conhecia, mas o material de que era feita lhe pareceu invulgar, senão insólito. Tinha uma cor uniforme, escura. Experimentou-o com a unha: não ficava riscado. Não era madeira, nem osso, nem marfim, nem chifre. Duro como a pedra, mas liso, nele não havia marca de ferramenta. Não era nenhuma espécie conhecida de pedra.
Virou-se para S'Armuna com uma expressão de perplexidade.
— Jamais vi nada igual — disse.
Jondalar passou a figura para Ayla e ela teve um arrepio no momento em que a tomou nas mãos. Eu devia ter usado minha parka de pele quando saí, pensou. Mas não pôde deixar de admitir que a causa daquele arrepio era mais que friagem.
— Essa munai começou como pó da terra — explicou a mulher.
— Pó? — disse Ayla. — Mas é pedra!
— Sim, é pedra. Agora. O pó foi transformado em pedra.
— Você fez isso? Como pode transformar pó em pedra? — perguntou Jondalar, incrédulo.
A mulher sorriu.
— Se eu lhe disser você acreditará nos meus poderes?
— Terá de convencer-me.
— Vou contar-lhe, mas não vou procurar convencê-lo. Você terá de convencer-se a si mesmo. Comecei com argila dura, seca, da margem do rio. Que pulverizei com uma pedra. Depois misturei pó com água. — S'Armuna fez uma pausa, pensando se deveria dizer mais alguma coisa sobre a mistura. Resolveu que não o faria ainda. — Quando estava da consistência apropriada, dei-lhe forma. O fogo e o ar quente lhe deram essa consistência dura de pedra — concluiu a Xamã, de olhos neles, vigiando sua reação. Mostrariam desdém ou ficariam impressionados? Duvidariam da sua palavra ou acreditariam nela?
Jondalar fechou os olhos, procurando lembrar-se.
— Lembro ter ouvido... da boca de um homem dos Losadunai, se não me engano... alguma coisa sobre imagens da Mãe feitas de barro.
S'Armuna sorriu.
— Sim, você pode dizer que fazemos munais de barro. Fazemos também animais, quando queremos invocar os seus espíritos. Muitas espécies de animais: ursos, leões, mamutes, rinocerontes, cavalos. O que quisermos. Mas eles são de barro só enquanto estão sendo modelados. Uma figura feita com o pó da terra misturado com água, mesmo depois de endurecida, amolece na água e retorna ao barro original de que se formou. E volta ao pó. Mas uma vez despertada para a vida pela chamas sagrada da Mãe, fica transmudada para todo o sempre. Passadas pelo calor da Mãe as figuras adquirem a rigidez da pedra. O espírito vivo do fogo confere-lhes a permanência do granito.
Ayla notou o fogo da excitação no olhar da mulher. Lembrava-lhe excitação de Jondalar ao conceber o propulsor de azagaias. Sentiu que S'Armuna também ardia na excitação da descoberta, e acreditou nela.
— As figurinhas são frágeis, mais frágeis que o sílex — continuou a mulher. — A Própria Mãe já mostrou que elas se quebram. Mas a água não consegue alterá-las. Munais feitas de barro, uma vez tocadas pelo Seu fogo ardente, podem ser deixadas ao relento, debaixo de chuva ou de neve, podem ser postas de molho na água. Nunca desmancharão.
— Você, de fato, tem parte no poder da Mãe — disse Ayla.
A mulher hesitou um momento. Depois perguntou: — Você gostaria de ver?
— Oh, sim, gostaria muito! — disse Ayla.
— Eu teria o maior interesse — respondeu Jondalar ao mesmo tempo.
— Então venham. Eu lhes mostro.
— Posso vestir minha parkca? — perguntou Ayla.
— Naturalmente que sim. Nós todos usaremos agasalhos. Mas se estivéssemos celebrando a Cerimónia do Fogo, teríamos tanto calor que não precisaríamos de peles, nem mesmo num dia como este. Tudo está quase pronto. Temos só de acender o fogo e começar a cerimónia esta noite. Mas a coisa leva tempo e exige concentração. Esperemos até amanhã. Hoje temos um importante banquete — lembrou S'Armuna.
S'Armuna se calou e cerrou os olhos, como se escutasse, ou considerasse um pensamento que lhe ocorrera.
— Sim, um banquete muito importante, repetiu, olhando diretamente para Ayla. Será que ela tem ideia do perigo que corre?, disse consigo mesma. Se ela é quem penso, terá.
Vestiram os agasalhos, Ayla notou que a moça se fora. S'Armuna os conduziu a alguma distância da casa até os fundos do estabelecimento, onde algumas mulheres estavam grupadas em torno de uma construção de aspecto inocente, um pavilhão simples, de teto inclinado. As mulheres traziam excrementos secos, lenha e ossos. Materiais para um fogo, pensou Ayla. Reconheceu a moça grávida e lhe sorriu. Cavoa sorriu timidamente, em resposta.
S'Armuna passou curvando a cabeça pela entrada, demasiado baixa da pequena estrutura, depois chamou os hóspedes com a mão quando eles hesitaram, sem saber se deviam entrar com ela. Dentro havia uma lareira onde chamas irrequietas lambiam carvões em brasa. O recinto, exíguo, circular, já estava quente. Pilhas separadas de osso, madeira e bosta seca enchiam toda a metade esquerda do espaço. Do lado direito, ao longo da parede curva, havia prateleiras rústicas, feitas de ossos chatos do pélvis e do ombro de mamutes apoiados em pedras, em que se expunham muitos objetos pequenos.
Eles se aproximaram e viram, com surpresa, que eram figurinhas em vulto, feitas de argila e postas ali para secar. Várias delas representavam mulheres, figuras da deusa-Mãe, mas várias delas não eram completas, mostravam só as partes distintivas da mulher, a parte inferior do ventre, pernas inclusive, por exemplo; ou os seios. Em outras prateleiras havia animais, também incompletos em sua maioria, cabeças de leões ou de ursos e as formas características dos mamutes, com crânio alto, curto e pontudo, presas alongadas e encurvadas para baixo.
As figurinhas pareciam ter sido feitas por diferentes pessoas. Algumas eram sumárias, mostravam pouco talento artístico. Mas havia objetos bem-feitos, de composição sofisticada. Embora Ayla e Jondalar não soubessem por que os autores tinham dado às peças aquelas formas, percebiam que cada uma fora inspirada por algum motivo ou sentimento individual.
De frente para a entrada havia uma abertura na parede que dava para um espaço menor no interior da estrutura. Esse espaço fora escavado no solo de loess de uma colina. Era aberto do lado mas lembrava a Ayla um grande forno enterrado, dos que ela mesma costumava fazer no chão e forrar de pedras quentes. Mas sentia que nenhum alimento fora jamais posto ali. Quando foi olhar de perto, viu uma lareira no aposento imediato.
Dos restos de material calcinado nas cinzas viu que os ossos eram usados ali como combustível e verificou que o modelo de lareira era semelhante ao dos Mamutói, se bem que mais fundo. Ayla olhou em torno, à procura da entrada de ar. A fim de queimar ossos é necessário um fogo muito quente, e para isso há que insuflar dentro dele uma corrente de ar. Nos fornos dos Mamutói, o vento de fora, que sopra constantemente, era canalizado para dentro por aberturas como chaminés, controladas por registros. Jondalar examinou atentamente o interior do segundo recinto e tirou conclusões semelhantes. A julgar pela coloração e dureza das paredes, fogos muito quentes eram mantidos ali por períodos prolongados. Os objetos das prateleiras seriam submetidos ao mesmo tratamento.
Ele estava certo ao dizer que nunca vira antes material semelhante ao da estatueta da deusa-Mãe que S'Armuna lhe mostrara. A figura, modelada pela mulher que ali estava, não fora manufaturada pela modificação — talha, modelagem, polimento — de material encontrado na natureza. Fora feita de cerâmica, isto é, de barro cozido, ou seja, terracota, primeiro material jamais criado pela mão e inteligência do homem. A câmara de aquecimento não era um forno comum, era uma fornalha de cozer argila.
E o primeiro forno desse tipo não foi inventado com o propósito de fabricar vasilhame à prova d'água. Muito antes de cozer louça, os fornos queimaram pequenas esculturas cerâmicas até adquirirem dureza e impermeabilidade. As figuras das prateleiras tinham semelhança com gente e animais, mas as representações de mulheres — não se faziam homens, só mulheres — e outros viventes não eram consideradas retratos no rigor da palavra. Eram símbolos, metáforas, buscavam representar (re-apresentar) a realidade e não copiá-la. Sugeriam uma afinidade, uma analogia, uma similaridade espiritual. Eram arte. A arte precedeu a utilidade.
Jondalar mostrou o espaço que ia ser aquecido e perguntou à Xamã:
— É este o lugar onde arde o fogo sagrado da Grande Mãe? — Era mais uma afirmação que uma pergunta.
S'Armuna fez que sim com a cabeça, sabendo que ele não acreditava nela. A mulher intuíra tudo antes de ver o lugar. O homem precisara de um pouco mais de tempo.
Ayla ficou contente quando S'Armuna os tirou de lá. Não sabia se o motivo era o calor ou o confinamento. Talvez fossem os objetos de argila. O fato é que se sentia mal, inquieta. Achava o lugar perigoso.
— Como você descobriu isso? — perguntou Jondalar, abrangendo num gesto todo o complexo: cerâmicas e forno.
— A Mãe me inspirou — disse a Xamã.
— Não duvido. Mas como? — insistiu ele.
S'Armuna sorriu em face daquela persistência. Parecia apropriado que o filho de Marthona quisesse compreender.
— A primeira ideia me veio quando estávamos construindo uma dessas nossas casas de barro. Você sabe como são feitas?
— Penso que sim. As de vocês são como as dos Mamutói, e nós ajudamos Talut e os outros a fazerem um anexo ao Acampamento do Leão — adisse Jondalar. — Eles começaram com o arcabouço do prédio, feito de ossos de mamute. Sobre esse "esqueleto" puseram uma grossa camada de galhos de salgueiros; e, por cima dela, uma segunda camada, de capins e caniços. Cobriram tudo de barro atirado com a mão, a sopapo. E como revestimento, uma pasta semifluida de argila de rio, que fica dura depois de seca.
— É, essencialmente, o que nós fazemos — disse S'Armuna. — E foi quando estávamos aplicando essa última demão, cosmética, que a Mãe me revelou a primeira parte do Seu segredo. O serviço estava quase pronto, mas já escurecia, de modo que fizemos uma grande fogueira. O revestimento de argila começava a ficar perigosamente espesso, e uma seção dele caiu no fogo. Era um fogo poderoso, alimentado com muito osso, e ardeu a maior parte da noite. Pela manhã, Brugar mandou que eu limpasse a lareira. Encontrei, então, o barro cozido. Notei, em particular, uma peça que se parecia a um leão.
— O totem protetor de Ayla é o leão — comentou Jondalar.
A Xamã olhou para a mulher e assentiu, refletindo:
— Quando descobri que aquela figura de leão não desmanchava em água, resolvi fazer outras, e ver o que acontecia. Tive diversos malogros e precisei de algumas dicas suplementares da Mãe, mas afinal aprendi o Processo.
— Por que nos conta os seus segredos? Como demonstração de força? — perguntou Ayla.
A pergunta era direta e apanhou a mulher desprevenida, mas depois de um instante ela voltou a sorrir.
— Não pense que estou revelando todos os meus segredos. Estou apenas mostrando o óbvio. Brugar também pensava que conhecia os meus segredos, mas acabou tendo a prova de que se enganara.
— É claro que Brugar teve conhecimento de suas experiências — disse Ayla — Você não pode fazer um fogaréu num lugar desses sem que todo mundo saiba. Como conseguia esconder alguma coisa dele?
— De começo ele pouco se importava com o que eu fazia ou não, até que viu alguns dos resultados. Então quis fazer estatuetas ele também, mas não sabia tudo o que a Mãe me revelara. — O sorriso Daquela que Servia era agora triunfante. — A Mãe rejeitou os esforços dele com a maior fúria. As figuras de Brugar explodiam com grande fragor e se partiam em mil pedaços quando ele tentava coze-las no forno. A grande Mãe as arremessava fora com tal violência que feriam quem estivesse por perto. Brugar passou a ter medo de mim depois disso e desistiu de dominar-me.
Ayla podia imaginar a situação de alguém confinado naquela pequena ante-sala com pedaços de argila quente voando para todo lado, a grande velocidade.
— Mas isso ainda não explica por que você nos conta todas essa coisas sobre os seus poderes. É possível que alguém, familiarizado com a maneira de ser da Mãe, roube os seus segredos.
S'Armuna assentiu. Ela esperara alguma coisa desse género por parte da mulher e decidira que uma completa franqueza seria o melhor curso a seguir.
— Você está certa. Eu tenho um motivo. Preciso que me ajudem Com essa mágica, a Grande Mãe me deu poder até sobre Attaroa. Ela teme esses poderes, mas é astuta e imprevisível, e um dia vai superar o medo. Estou convencida disso. Então ela me matará. — A Xamã olhou para Jondalar. — Minha morte não terá maior importância, exceto para mim. São os outros que me preocupam, o resto deste Acampamento, meu povo. Quando você falou sobre Marthona passando a liderança ao filho, compreendi como as coisas degeneram por aqui. Eu sei que Attaroa jamais deixará o poder voluntariamente. E quando ela morrer, talvez não haja mais Acampamento digno desse nome.
— O que lhe dá tamanha certeza? Se ela é tão caprichosa como diz, não poderá, com a mesma facilidade, desistir de tudo, saturar-se? — perguntou Jondalar.
— É que ela já matou a única pessoa para a qual poderia deixar o legado da autoridade, carne da sua carne, sangue do...
— Ela fez isso? — perguntou Jondalar. — Quando você disse que Attaroa causou a morte daqueles três jovens, entendi que fora um acidente.
— Não foi um acidente. Attaroa os envenenou, embora não admita isso.
— Que horror! — disse Jondalar. — E por quê?
— Por quê? Por conspirarem para ajudar uma amiga. Cavoa, a moça que vocês já conhecem. Ela estava apaixonada e queria ir embora com seu homem. O irmão dela também estava procurando ajudar o casal. Os quatro foram apanhados. Attaroa perdoou Cavoa apenas por estar grávida. Mas a ameaçou: se o filho for do sexo masculino matará os dois.
— Por isso ela parece tão infeliz e assustada — disse Ayla.
— Eu também sou responsável pela desgraça — disse S'Armuna, empalidecendo com as próprias palavras.
— Você? Mas o que tinha contra eles? — perguntou Jondalar.
— Nada. A criança de Attaroa era como minha própria criança, me acolitava, inclusive, no serviço divino. Eu gosto de Cavoa, eu sofro por ela. Mas sou tão responsável pela morte dos outros três como se lhes tivesse ministrado o veneno com minhas próprias mãos. Sem mim, Attaroa não teria sabido onde consegui-lo ou como utilizá-lo.
Ambos podiam ver a angústia da mulher, embora ela se controlasse bem.
— Como pôde Attaroa fazer isso! — disse Ayla, sacudindo a cabeça como se quisesse livrar-se da ideia. Estava horrorizada.
— É uma longa história. Vou contar-lhes o que sei, mas acho que devemos voltar para os meus aposentos — sugeriu S'Armuna, olhando em torno com apreensão. Não queria falar mais tempo de Attaroa em lugar tão aberto.
Ayla e Jondalar a seguiram para o interior do pavilhão, tiraram as parkas e acomodaram-se junto da lareira enquanto a Xamã punha mais lenha no fogo e pedras para aquecer, la fazer chá. Só quando estavam todos sentados, com a quente infusão nas mãos, ela retomou o relato, depois de pôr as ideias em ordem.
— É difícil saber como tudo começou. Talvez com as desavenças entre Attaroa e Brugar, mas não se esgotou com elas. Mesmo quando a gravidez de Attaroa já ia adiantada, Brugar persistia em espancá-la. Quando ela entrou em trabalho de parto, ele não me mandou chamar. Eu soube do que acontecia ouvindo-lhe os gritos. Fui ter com ela, mas ele não me deixou atendê-la. E não foi um parto fácil. Brugar sequer deixou que alguém tentasse minorar-lhe as dores. Estou convencida de que queria vê-la sofrer. É de crer que o bebê tenha nascido com alguma deformidade. Causada, na minha opinião, pelos maus-tratos de que Attaroa fora vítima durante a gestação. Embora o defeito não fosse evidente nos primeiros dias, logo se viu que a espinha da criança era fraca e encurvada. Nunca me permitiram fazer um exame, de modo que não tenho certeza disso, mas havia outros problemas, possivelmente — disse S'Armuna.
— O bebê era menino ou menina? — perguntou Jondalar. Lembrava-se de que o sexo do cadáver não lhe parecera óbvio.
— Não sei — declarou S'Armuna.
— Perdão — disse Ayla. — Como pode não saber?
— Ninguém sabia, exceto Brugar e Attaroa, e, por algum motivo, fizeram segredo disso. Mesmo quando pequena, a criança nunca apareceu em público sem roupa, quando nossos bebês, meninos e meninas, andam nus. Também o nome que escolheram era comum dos dois sexos, não tinha uma desinência indicativa do masculino ou do feminino: Omel.
— E a própria criança, nunca falou disso? — perguntou Ayla.
— Não. Omel guardou o segredo. Brugar pode ter ameaçado mulher e criança com os piores castigos se não obedecessem.
— E nada se descobriu? — perguntou Jondalar. — Afinal de contas, Omel cresceu. O corpo que vi sepultar era, já, de idade adulta.
— Omel não fazia a barba, mas poderia ser um macho de desenvolvimento retardado, ou naturalmente glabro. É difícil saber se a criança desenvolveu seios. As roupas de Omel eram sempre frouxas e informes. Tinha estatura alta para mulher, a despeito da espinha torta, e uma alarmante magreza. Talvez por causa da debilidade congénita, mas a própria Attaroa é muito alta, e havia uma certa delicadeza na criatura que homens, em geral, não têm.
— Mas você mesma não teve qualquer intuição sobre o sexo da criança durante esse tempo em que ela crescia?
A mulher é esperta, enxerga longe, pensou S'Armuna. E concordou.
— No meu foro íntimo, sempre considerei Omel uma garota mas talvez simplesmente por querer que fosse... Brugar desejava, ao contrário, que a criança fosse considerada por todos como do sexo masculino.
— Você julga Brugar acertadamente — disse Ayla. — No Clã, todo mundo quer que sua companheira dê à luz meninos. Todo pai se considera diminuído se não tem pelo menos um filho macho. Pode parecer que seu espírito é fraco. Se a criança fosse uma menina, Brugar estaria escondendo o fato, para ele infamante, de que a mulher parira uma fêmea — explicou Ayla. Em seguida fez uma pausa e considerou o assunto sob um novo ponto de vista: — Por outro lado, bebês defeituosos são, em geral abandonados à própria sorte, deixados expostos para morrer. De modo que, se o bebê nasceu deformado, principalmente se era do sexo masculino... incapaz, por exemplo, de aprender a caçar e outras coisas que se esperam de um homem... Brugar pode ter querido esconder isso.
— Não é fácil interpretar as motivações dele. Mas, independente de quais fossem, Attaroa ficou solidária com o marido.
— Mas como morreu Omel? E os outros dois jovens? — perguntou Jondalar.
— É uma história estranha, complicada — disse S'Armuna, que tinha a intenção de contar o que sabia a seu modo, sem pressa ou imposição. — A despeito de todas as deficiências da criança, a despeito do segredo que a envolvia, ela se tornou a pessoa mais querida de Brugar. A única em quem ele nunca bateu e a quem nunca fez mal. Isso me alegrava, e, no entanto, muitas vezes me perguntei o porquê dessa predileção.
— Será que ele desconfiava ter sido o causador da deformidade, por ter maltratado Attaroa? — perguntou Jondalar. — Ou estaria apenas procurando reparar o que fizera?
— Não sei. Mas Brugar culpava Attaroa pela anormalidade da criatura. Muitas vezes ele lhe disse que ela era incapaz como mãe, incapaz de parir uma criança como as outras. E quando dizia isso, batia-lhe. Mas esses maus-tratos já não eram, como antes, um prelúdio de Prazeres com a companheira. Em vez disso, ele fazia pouco de Attaroa e se desmanchava em cuidados com a criança. Então Omel passou a trata/ a mãe como o pai o fazia, e a mulher passou a sentir-se cada vez mais marginalizada. Passou a ter ciúmes da criatura, ciúmes da afeição com que Brugar tratava, e, mais ainda, do amor que Omel sentia por Brugar.
— Isso deve ter sido muito duro de suportar — disse Ayla.
— Sim. Brugar descobrira mais uma maneira de infligir sofrimento a Attaroa. Mas não era só ela que sofria por causa dele — continou S'Armuna. — Com o passar do tempo, as mulheres passaram a ser tratadas cada vez com mais desprezo e brutalidade... por Brugar e pelos outros homens. Os homens que resistiam ou procuravam resistir eram castigados ou expulsos. Finalmente, depois de um entrevero que deixou Attaroa com um braço e várias costelas fraturados, ela se rebelou. Jurou matá-lo e me implorou que lhe desse alguma coisa para acabar com ele.
— Você o fez? — perguntou Jondalar, incapaz de resistir à curiosidade.
— Uma que Serve à Mãe fica sabendo de muita coisa secreta, Jondalar. Toma conhecimento de segredos perigosos, sobretudo os que aprendeu com a zelandonia — explicou S'Armuna. — Mas aqueles que são admitidos à elevada honra de Servir têm de jurar pelas Cavernas Sagradas e pelas Lendas dos Antigos jamais usar o que sabem para o mal. Uma que Serve à Mãe abandona seu nome e identidade e adota o nome e identidade do seu povo, tornando-se desse modo um elo entre a Grande Mãe Terra e aqueles Seus filhos, o canal através do qual os Filhos da Terra se comunicam com o mundo dos espíritos. De modo que Servir à Mãe corresponde a servir a Seus filhos também.
— Posso entender isso — disse Jondalar.
— Mas talvez não entenda que o povo fica inscrito e gravado no espírito Daquela que Serve. A necessidade de levar em conta o bem-estar do povo é muito forte e menor apenas que as obrigações que ela tem perante a Mãe. Muitas vezes, isso é uma questão de liderança. Não diretamente, de regra, mas no sentido de mostrar o caminho a trilhar. Uma que Serve à Mãe se torna um veículo de boa vontade e entendimento e também de decifração do desconhecido. Parte do seu aprendizado consiste em aprender a doutrina, em decifrar sinais, visões e sonhos enviados os Seus filhos pela Mãe comum. Há instrumentos de apoio e maneiras de buscar orientação no mundo dos espíritos, mas no fundo tudo reflui e converge para a avaliação da Mãe. Lutei para descobrir como Servir melhor, mas temo que meu discernimento estivesse nublado por minha própria amargura e por meu ódio. Cheguei aqui com ódio dos homens e, observando Brugar, passei a odiá-los mais ainda.
— Você disse que se sente responsável pela morte dos três jovens. Terá ensinado a Attaroa como usar os venenos? — perguntou Jondalar. Queria uma definição clara. Achava que era tempo.
— Ensinei muita coisa a Attaroa, filho de Marthona, mas ela não se preparou comigo para ser Uma que Serve. No entanto, tem inteligência viva e é capaz de aprender mais do que a gente quis ensinar-lhe... Mas eu sabia disso. — S'Armuna interrompeu o que dizia. Estivera a ponto de admitir uma transgressão grave. Fora bastante clara. Cabia a eles, agora, tirar suas próprias conclusões. Esperou até que viu Jondalar fechar o cenho e Ayla dizer, com a cabeça, que compreendera.
— Seja como for, ajudei Attaroa a consolidar seu poder sobre os homens. Mas isso foi no começo. Talvez eu quisesse poder sobre mim mesma. Na verdade, fiz mais que isso. Eu a incitei, encorajei, convenci-a de que a Grande Mãe Terra queria que as mulheres liderassem, e colaborei com ela no convencimento das mulheres, de parte delas pelo menos a maior parte. Depois da maneira como haviam sido tratadas por Brugar e pelos homens, a indoutrinação não foi difícil. Dei-lhe algo para pôr na bebida favorita dos homens — um decocto fermentado à base de seiva de bétula.
— Os Mamutói fazem uma bebida semelhante, comentou Jondalar, tomado de assombro.
— Quando os homens adormeceram, as mulheres os amarraram. Elas fizeram isso com alegria. Era um jogo, uma forma de vingança. Mas Brugar jamais voltou do soporífero. Attaroa alegou que ele era mais suscetível que os demais à droga, mas estou certa de que ela pôs algo mais na bebida do marido. Ela dizia que queria matá-lo, e eu sabia que era verdade. Ela chega quase a admitir que foi assim, mas, seja verdade ou não, a convenci de que as mulheres estariam muito mais felizes sem os homens. Convenci-a de que, uma vez livres deles, os espíritos das mulheres se misturariam aos espíritos de outras mulheres para criarem novas vidas, e que só nasceriam meninas.
— Mas você acredita nisso? — perguntou Jondalar, com estranheza.
— Estive a ponto de persuadir-me disso. Mas não, não acredito. E não foi o que disse... não podia arriscar-me a encolerizar a Grande Mãe... mas sei que ela entendeu assim. Attaroa pensa que a gravidez de umas poucas mulheres confirma a tese.
— Ela está errada — disse Ayla.
— Claro que sim, e eu devia ter tido mais senso. A Mãe não se deixou embair pela minha artimanha. Sei, no meu coração, que os homens estão no mundo por terem parte do plano da Grande Mãe. Se ela não quisesse homens, não os teria criado. Os espíritos deles são necessários. Mas se os homens são fracos, seus espíritos, por débeis, não podem ser usados para os propósitos da Mãe. É por isso que tão poucas crianças nascem aqui. — E sorrindo para Jondalar: — Você é um rapaz tão forte. Não me surpreenderia se seu espírito já tivesse sido utilizado por Ela.
— Se os homens forem libertados, você verá que são suficientemente fortes, mais do que fortes, para engravidarem mulheres — disse Ayla —, sem qualquer colaboração de Jondalar.
— O homem olhou para ela e riu.
— Terei o maior prazer em ajudar, se for o caso — disse Jondalar, sabendo exatamente o que ela queria dizer, embora não tivesse muita certeza de concordar com aquela opinião.
— Talvez devesse — disse Ayla. — O que eu disse foi apenas que talvez não haja necessidade disso.
— Jondalar deixou de sorrir. Ocorreu-lhe que ele não tinha motivo para garantir que fosse capaz de engendrar um filho.
— S'Armuna olhou de um para o outro, sabendo que faziam referência a alguma coisa que lhe escapava. Aguardou, mas quando ficou obvio que o assunto estava encerrado e, por sua vez, esperavam que ela retomasse a palavra, continuou.
— Ajudei Attaroa, encorajei-a, mas não sabia que seria pior com ela como líder do que fora com Brugar. A rigor, logo que ele morreu, foi melhor... para as mulheres, pelo menos. Mas não para os homens, e não para Omel. O irmão de Cavoa compreendeu que a situação era desesperadora. Ele era um grande amigo de Omel. Aquela criança foi a única pessoa a importar-se com ele.
— O que é compreensível, nas circunstâncias — disse Jondalar.
— Attaroa não via assim — disse S'Armuna. — Omel, convencido de que Attaroa era responsável pela morte de Brugar, e tomado de indignação, enfrentou-a. Apanhou por isso. Attaroa me disse uma vez que queria apenas fazer com que Omel entendesse o que ela e as outras mulheres tinham sofrido nas garras de Brugar. Embora ela não tenha dito isso, imagino que pensava, ou esperava, que uma vez removido Brugar, a criatura se aproximasse dela, que a amasse.
— Maus-tratos não fazem ninguém amar ninguém — disse Ayla.
— Certo. Omel nunca levara uma surra, e passou a odiar Attaroa mais ainda, depois disso. Eram sangue do mesmo sangue, mas não podiam estar juntos, ao que parece. Foi por isso que me ofereci para tomar a criatura como acólita — explicou ela.
S'Armuna se calou, pegou a xícara para beber, verificou que estava seca, deixou-a em cima da mesa.
— Attaroa parecia contente livrando-se da companhia de Omel no seu pavilhão. Mas, rememorando, compreendi que ela descontou, por assim dizer, a defecção de Omel nos homens. Depois que Omel saiu de casa, Attaroa ficou pior. Tornou-se mais cruel do que Brugar. Eu deveria ter pensado nisso. Em vez de separá-la de Omel, cumpria encontrar meios e modos de reconciliar os dois. O que fará agora que Omel morreu? E que morreu abatido por sua própria mão? — falou ela.
A mulher fixou os olhos no ar que dançava um pouco acima do fogo. Parecia ver alguma coisa que ninguém mais via.
— Oh, Grande Mãe! Eu estava cega! — disse ela, de repente. — Attaroa mandou aleijar Ardoban e botá-lo no Depósito. E eu sei que ela gostava desse menino. E matou Omel e os outros.
— Aleijou? — perguntou Ayla. — Deliberadamente? Aqueles meninos no Depósito?
— Sim, para enfraquecer os rapazes, acho, para assustá-los — disse S'Armuna, sacudindo a cabeça. —- Attaroa perdeu a medida das coisas. Está insana. Temo por todos nós. — E, de súbito, a Xamã sucumbiu e escondeu o rosto nas mãos. — Como vai acabar tudo isso? Essa dor, esse sofrimento, pelos quais sou também responsável. — Chorava.
— Mas não a única responsável, S'Armuna — disse Ayla. — Você pode ter permitido que a coisa se instalasse, pode ter encorajado Attaroa, mas não assuma toda a culpa. A raiz do mal é Attaroa, e talvez ele incumba também aos que a maltrataram tanto, no passado. — Ayla abanou a cabeça. — A crueldade gera a crueldade, a dor produz mais dor, a violência promove a violência.
— E quantos dos jovens que ela feriu passarão essa herança de ódio à nova geração? — disse a Xamã com uma voz tão angustiada que era como se ela mesma estivesse sofrendo naquele momento. Começou a balançar o corpo para a frente e para trás, doente de pesar. — Qual dos jovens por trás daquela paliçada terá recebido o terrível legado de Attaroa? Qual das moças vai querer seguir-lhe o exemplo? Vendo Jondalar aqui, relembrei o meu aprendizado. Eu, principalmente, não podia ter pactuado com essa infâmia toda. É por isso que me sinto culpada. Oh, Grande Mãe, o que foi que eu fiz?
A questão não é o que fez. É o que pode fazer agora — disse Ayla.
— Tenho de ajudá-los! Não sei como, mas tenho de fazer alguma coisa.
— É tarde demais para ajudar Attaroa, mas é preciso detê-la. Os homens do Depósito e as crianças precisam ser salvos. Cumpre, no entanto, libertá-los primeiro. Então pensaremos na melhor maneira de ajudá-los.
S'Armuna olhou para a outra, tão positiva naquela hora, tão decidida e forte, e se perguntou quem realmente ela seria. Aquela que Serve à Mãe vira o mal que fizera e sabia que abusara da sua autoridade. Temia por sua própria sanidade bem como pela vida de todos no Acampamento.
O silêncio se fez no aposento. Ayla se levantou e pegou a tigela que S'Armuna usara para fazer chá.
— Permita que eu faça o chá desta vez. Tenho uma excelente mistura de ervas aqui comigo — disse. E quando a outra concordou sem dizer palavra, ela apanhou sua bolsa de remédios.
— Tenho pensado naqueles dois aleijadinhos do Depósito — disse Jondalar Mesmo sem conseguir andar direito, poderiam aprender um ofício, como desbastar núcleos de sílex. Precisam apenas de alguém que os ensine a trabalhar nisso. Deve haver alguém capacitado, entre os S'Armunai. Talvez você possa encontrar uma pessoa disposta a isso na próxima Reunião de Verão.
— Nós não frequentamos as Reuniões de Verão como os outros S’Armunai — disse S'Armuna.
— Por que não? — perguntou ele.
— Attaroa não quer — disse S'Armuna, num tom de voz surdo e igual. — As pessoas de fora nunca foram particularmente gentis com ela. Seu próprio Acampamento mal a suportava. Depois que ela se fez líder, não quis mais qualquer contato com estranhos. Pouco depois de sua posse, aliás, os Acampamentos nos enviaram uma delegação, com um convite. Tinham ouvido que dispúnhamos de muitas mulheres solteiras. Attaroa insultou os emissários e os mandou embora. Em poucos anos havia alienado todos os outros grupos. Agora, ninguém mais aparece: nem parentes, nem amigos. Todos nos evitam.
— Ficar atado a um poste, como alvo, é mais que um insulto — disse Jondalar.
— Eu lhes disse que ela está piorando. Você não foi o primeiro. O que ela fez com você já fez antes — disse a mulher. — Há alguns anos, veio um homem, de visita. Estava numa Jornada. Vendo tantas mulheres aparentemente sozinhas, ele se mostrou arrogante e superior. Assumiu que seria não só bem-vindo mas que estaria em grande demanda. Attaroa brincou com ele como uma leoa brinca com a presa. Depois matou-o. Mas gostou tanto do jogo que passou a deter todos os estranhos. Fazia a vida deles miserável, animava-os com promessas, voltava a atormentá-los. Por fim, livrava-se deles. Tinha esse mesmo plano para você, Jondalar.
Ayla estremeceu. Estava acrescentando alguns calmantes suaves aos ingredientes da tisana de S'Armuna.
— Você tinha razão quando disse que ela não é humana. Mog-ur falava, às vezes, de espíritos malignos, mas sempre imaginei que se tratasse de lendas, histórias para assustar crianças e dar calafrios nas pessoas grandes. Mas Attaroa não é uma lenda. Attaroa é o Mal.
— Sim. E quando não vinham mais viajantes, ela começou a divertir-se com os homens do Depósito — continuava S'Armuna, incapaz de parar, uma vez que começara a contar o que tinha visto, ouvido e guardado no peito, tanto tempo.
"Ela pegou os mais fortes primeiro, ou os mais rebeldes, os líderes. O número de homens foi ficando cada vez menor. Os que lá estão hoje estão perdendo o ânimo de reagir, de revoltar-se. Ela os mantém num regime de fome, expostos ao frio e às intempéries. Fecha-os em gaiolas ou manda amarrá-los. Muitos morreram de maus-tratos, vitimados pelas insuportáveis condições de vida que ela impõe. E não há crianças em número suficiente para substituí-los. Com o desaparecimento dos homens, o Acampamento vai acabando, devagarinho. Todas nós ficamos surpresas quando Cavoa engravidou.
— Ela deve ter ido ao Depósito e dormido com um dos homens — disse Ayla. — Provavelmente com esse por quem se apaixonou. Você sabe disso, estou certa.
S'Armuna sabia. Mas como podia Ayla saber?
— Sim, algumas das mulheres vão lá, secretamente. Levam-lhes comida, às vezes. Jondalar deve ter contado isso a você.
— Não — disse Jondalar —, não lhe contei nada. Mas não compreendo como as mulheres permitem que os homens sejam confinados assim.
— Elas têm medo de Attaroa. Poucas são partidárias dela, devotas. Muitas, no entanto, gostariam de ter seus homens em casa. E agora ela ameaça aleijar-lhes os filhos.
— Diga às mulheres que os homens têm de ser soltos, ou não haverá mais filhos — disse Ayla num tom que deu calafrios em S'Armuna e em Jondalar. Os dois a encararam com espanto. Jondalar reconheceu a expressão no rosto dela. Tinha aquele olhar distante de quando sua mente estava ocupada com algum doente ou ferido, mas naquele caso havia também uma ira fria que ele não conhecia, que nunca tinha visto antes.
Mas a outra considerava Ayla diferentemente e interpretou o que ela acabava de dizer como uma profecia ou uma sentença.
Depois que Ayla serviu a infusão, ficaram sentados em silêncio, cada um profundamente comovido. Ayla sentia uma forte compulsão de sair e respirar o ar puro e revigorante. Queria também verificar se os cavalos estavam bem. Mas, observando S'Armuna, achou que não era uma boa hora para deixá-la. Sabia que a outra ficara arrasada, e sentia que precisava de alguma coisa significativa a que apegar-se.
Jondalar pensava nos homens que deixara no Depósito e no que estariam fazendo. Sem dúvida sabiam que ele voltara. Por que não fora posto lá com eles? Quisera poder falar com Ebulan e S'Amodun, tranquilizar Doban, mas precisava ele mesmo de alguém que o animasse. Estavam em terreno perigoso e não tinham feito nada, até então, senão conversar. Uma parte dele queria sair de lá o mais depressa possível, mas a outra parte, que era mais forte, queria ficar e ajudar. Mas se iam fazer alguma coisa, que fosse logo. Detestava ficar como estava, sentado, à espera.
Finalmente, por desespero, disse:
— Quero fazer algo por aqueles homens do Depósito. O que posso fazer?
— Você já fez muito, Jondalar — disse S'Armuna. — Quando a rejeitou, os homens ganharam alma nova, mas isso por si só não teria bastado. Houve quem a refugasse antes, por algum tempo. Mas essa foi a primeira vez em que um homem lhe deu as costas e, mais importante ainda, voltou. Attaroa ficou desacreditada, e isso deu esperança a todos.
— A esperança não vai tirá-los de lá.
— Não. E Attaroa não os libertará facilmente. Nenhum homem sai vivo daqui se ela puder impedi-lo, embora poucos tenham conseguido fugir. Mulheres, porém, não fazem Jornadas. Não com frequência, pelo menos. Para estas bandas, você é a primeira, Ayla.
— Attaroa será capaz de matar uma mulher? — perguntou Jondalar, achegando-se a Ayla, sem se dar conta disso, para protegê-la.
— Será difícil para Attaroa justificar o sacrifício de uma fêmea ou, até, o confinamento de mulheres no Depósito. Embora muitas das mulheres aqui vivam no acampamento involuntariamente, não têm uma ceca em volta. Mas seus filhos e companheiros estão ameaçados e elas deixam ficar por amor. É por isso que sua vida, Ayla, está em perigo. Você não tem ligações, e ela não tem como dominá-la. Se conseguir mata-la, poderá dispor das outras com mais facilidade. Digo isso não so para preveni-la, mas por causa do perigo que representa para todo o Acampamento. Vocês dois podem, ainda, ir embora, e talvez seja isso o que devam fazer.
— Não posso ir embora — disse Ayla. — Como posso abandonar essas crianças? Ou esses homens? As mulheres precisam de ajuda também. Brugar a chamou de curandeira, S'Armuna. Não sei se você conhece a expressão. Mas eu sou uma curandeira do Clã.
— Você, uma curandeira? Ah, eu devia ter desconfiado — disse S'Armuna. — Ela não sabia exatamente o que era uma curandeira, mas passara a ser tão considerada depois que Brugar a agraciou com o título que tinha pela posição que ocupava o maior respeito.
— É por isso que não posso desertar — disse Ayla. — Não se trata de algo que eu queira fazer, mas que alguém como eu tem de fazer. É o meu papel. Uma parte do meu espírito já habita o outro mundo — continuou, tocando com a mão o amuleto que levava ao pescoço — em troca da obrigação de servir àqueles que necessitem de mim. É difícil de explicar, mas não posso permitir que Attaroa continue a destruí-los, e este acampamento precisará de reorganização depois que os homens do Deposito forem libertos. Devo ficar e enquanto for preciso.
S'Armuna achou que entendia. Aquele não era, de fato, um conceito fácil de pôr em palavras. Comparava o fascínio de Ayla com a arte de curar, e sua compaixão pelos outros, com seus próprios sentimentos depois de chamada para Servir à Mãe, e se sentia solidária com a outra.
— Vamos ficar enquanto pudermos — emendou Jondalar, lembrando-se de que tinham ainda de atravessar uma geleira naquele inverno. — A questão é: como persuadir Attaroa a soltar os homens?
— Ela tem medo de você, Ayla — disse a Xamã —, assim como a maior parte das suas Mulheres-Lobas. — As que não a temem têm por você uma espécie de respeito religioso. Os S'Armunai são caçadores de cavalos. Caçamos outros animais também, inclusive mamutes, mas entendemos principalmente de cavalos. Para o norte há um despenhadeiro de onde lançamos cavalos há várias gerações. Você não pode negar que seu domínio sobre cavalos é uma poderosa mágica. Tão poderosa que parece inverossímil, mesmo depois de comprovada.
— Não há nada de misterioso nisso — disse Ayla. — Eu criei aquela égua desde pequena. Vivia sozinha, ela era minha única amiga. Huiin me obedece porque quer, porque gosta de mim.
Tal como Ayla o pronunciava, o nome era uma onomatopéia perfeita da voz do cavalo. Viajando só com Jondalar e os animais, ela revertera ao hábito de dizer o nome da sua égua na sua forma original. Aquele som, emitido por voz de mulher, deixou S'Armuna espantada. A própria idéia de fazer amizade com um cavalo era inconcebível. Não adiantava que Ayla pretendesse que aquilo não se tratava de magia. Acabava de convencer S'Armuna do contrário.
— Talvez — disse a Xamã. Mas ficou pensando. Não importa quão simples queira tornar um prodígio desses. As pessoas não podem impedir-se de indagar quem você de fato é, ou por que veio.
“As pessoas pensam e esperam que você tenha vindo para salvá-las. Todos temem Attaroa, mas, apoiados por você e por Jondalar, podem ter coragem de enfrentá-la. Podem perder o medo.
Ayla de novo sentia a vontade compulsiva de sair daquela casa.
— Com todo esse chá — disse, pondo-se de pé —, preciso urinar. Aonde devo ir, S'Armuna? — Depois de ouvir as instruções, acrescentou: — Temos de ver se os cavalos estão bem. Posso deixar essas tigelas aqui? — Erguera uma tampa e estava vistoriando o conteúdo. — Está esfriando bem rápido. É uma pena não poder servir o chá quente. Tem mais sabor.
— Não se incomode, deixe ficar — disse S'Armuna, tomando a propria xícara e bebendo o resto do seu chá. Depois ficou olhando os estranhos, que já iam a caminho da porta. Talvez Ayla fosse um avatar da Grande Mãe e Jondalar de fato o filho de Marthona, mas a ideia de que algum dia a Mãe lhe iria pedir contas pesava muito naquela que A Servia. Afinal, ela era S'Armuna. Renunciara à sua identidade pessoal em troca do poder sobre o mundo dos espíritos, e aquele Acampamento era província sua, como todo o povo, homens e mulheres. A essência espiritual do estabelecimento lhe fora confiada, e as filhas d'Ela dependiam da sua atuação. Do ponto de vista dos estranhos, daquele homem que servira para chamá-la aos seus deveres, e daquela mulher de poderes extraordinários, ela falhara. S'Armuna tinha consciência disso. Apenas esperava que ainda fosse possível redimir-se e ajudar o Acampamento a recobrar uma vida normal, saudável.
S'Armuna saiu e viu os dois estranhos a caminho dos limites do Acampamento. Viu que Attaroa e Epadoa, de pé diante da casa da líder, também os acompanhavam com o olhar. A Xamã ia entrar quando percebeu que Ayla mudara subitamente de direção e tomara o rumo da paliçada. Attaroa e a chefe das suas Mulheres-Lobas também viram isso e foram, a passos largos, interceptá-la. Chegaram à cerca simultaneamente. A Xamã chegou um momento depois.
Através das fendas, Ayla olhou diretamente nos olhos e rostos dos que a observavam, mudos, do outro lado dos fortes moirões da cerca. Vistos assim de perto, eles eram uma visão lamentável, sujos e malcuidados, vestidos de trapos de couro. O pior, porém, era o fedor que emanava do recinto. Para o nariz treinado da curandeira, aquele cheiro compósito era revelador. Odores naturais, do corpo, quando sadio e limpo, não a incomodavam, nem mesmo uma certa quantidade de excreções. Mas o que ela respirava, ali, era doentio. O hálito podre da inanição, a imundice repulsiva de excrementos resultantes de problemas de estômago e febre, a fedentina que sai do pus de feridas infectadas, e, até, a pútrida catinga da gangrena, tudo isso lhe feriu os sentidos, indignando-a.
Epadoa procurou intrometer-se entre ela e a paliçada, mas Ayla já vira o bastante. Virou-se para confrontar Attaroa.
— Por que esses homens estão segregados por trás dessa cerca, como animais num curral?
Houve um movimento de espanto entre os que se haviam juntado nas proximidades para ver o que se passava quando S'Armuna traduziu. Ficaram de respiração suspensa, à espera da reação da líder. Ninguém jamais ousara perguntar-lhe aquilo.
Attaroa fuzilou a intrusa com os olhos, mas Ayla cominou a encará-la intrépida na sua indignação. Tinham aproximadamente a mesma altura, embora a mulher de olhos escuros fosse um pouco maior. Ambas eram fisicamente fortes, mas Attaroa era musculosa como atributo natural da hereditariedade, ao passo que Ayla tinha a musculatura nervosa e rija do exercício. Attaroa era mais velha que a forasteira, mais experiente, ardilosa, e totalmente imprevisível. A visitante era uma rastreado-ra incomparável, hábil na caça, rápida para observar detalhes, tirar conclusões e reagir.
Attaroa respondeu com uma risada. Tocado de insânia, aquele riso, que Jondalar conhecia, lhe deu um frio na espinha.
— Estão porque merecem estar! — disse.
— Ninguém merece essa espécie de tratamento — atalhou Ayla, antes que S'Armuna tivesse tempo de traduzir. A mulher então traduziu o comentário de Ayla.
— Como sabe disso? Você não estava aqui. Não tem ideia de como eles nos tratavam, antes.
— Deixaram-na fora, no frio? Privaram-na de roupa, de comida? — Algumas das mulheres presentes pareceram contrafeitas. — Serão vocês melhores do que eles se os tratam pior do que foram tratadas?
Attaroa não fez caso de responder às palavras repetidas pela Xamã, mas seu sorriso era duro e cruel.
Ayla percebeu algum movimento atrás da cerca, e viu que os homens abriam caminho para que os dois meninos que estavam até então no abrigo se aproximassem, coxeando. Os demais se amontoaram em torno deles. Ayla ficou mais revoltada, à vista deles, e de outros meninos, emaciados e arrepiados de frio. Enfureceu-se também ao ver que algumas das lanceiras entravam, armadas, no Depósito. Mal podia conter a emoção que sentia. Dirigiu-se, então, diretamente às mulheres.
— E esses meninos também as maltrataram? O que fizeram eles que justifique isso?
S'Armuna cuidou que todas entendessem.
— Onde estão as mães dessas crianças? — perguntou Ayla a Epadoa.
A líder das Mulheres-Lobas olhou para Attaroa depois de ouvir as palavras que Ayla dissera em S'Armunai. Pedia instruções, mas a Líder se contentou em sorrir, malévola, como se quisesse ver o que a outra responderia.
— Muitas morreram — disse Epadoa.
— Mortas quando tentavam fugir com os filhos — retrucou uma das mulheres comuns, do meio da multidão. — As outras têm medo de fazer alguma coisa que seja descontada nas crianças.
Ayla viu que a oradora era uma velha. A mesma, constatou Jondalar, que chorara tanto no funeral dos três jovens. Epadoa lhe lançou um olhar ameaçador.
— O que mais você me pode fazer, Epadoa? — perguntou a anciã avançando audaciosamente. — Você já me tirou meu filho; e minha filha logo irá atrás dele. Estou velha demais para importar-me se vivo ou morro.
— Eles nos traíram — disse Epadoa. — Foi um exemplo. Agora os outros sabem o que lhes acontecerá se tentarem fugir.
— Attaroa não deu sinal de aprovação ou desaprovação ao que Epadoa dizia. Não se podia saber se a outra expressava os seus sentimentos. Com uma expressão de tédio, ela deu as costas ao grupo e se retirou para sua casa, deixando a Epadoa e suas lanceiras a responsabilidade de guardar o Depósito. Mas parou e voltou-se ao ouvir um assovio alto e estridente. Uma expressão de terror substituiu no seu rosto o sorriso cruel que ainda arvorava. Os dois cavalos, mantidos até então quase fora das vistas de todos do outro lado do campo, vinham juntos, a galope, em direção a Ayla. Ela entrou rapidamente, enquanto murmúrios de assombro se elevavam da multidão. A mulher loura e o homem, de cabelo ainda mais claro, saltaram nas costas dos animais e partiram a toda velocidade. Muitos dos presentes desejaram poder fugir assim e se perguntaram se voltariam a ver aqueles dois.
— Desejaria ir em frente, ir embora — disse Jondalar, depois que reduziram a marcha e ele fez com que Racer emparelhasse com Ayla e Huiin.
— Eu também — disse Ayla. — Aquele Acampamento é insuportável e me enche de tristeza e fúria. Como pôde S'Armuna permitir que essa situação se eternizasse? Mas sinto pena dela, ao mesmo tempo, e compreendo o remorso que hoje sente. Como vamos livrar aqueles homens e meninos?
— Teremos de discutir isso com S'Armuna — disse Jondalar. — É óbvio, a meu ver, que muitas das mulheres querem que as coisas mudem, e estou certo de que nos ajudarão se souberem o que fazer. S'Armuna saberá encontrá-las.
Tinham deixado o campo e entrado na mata. Cavalgaram protegidos pelo dossel das árvores, se bem que espaçadas, por vezes, até o rio. Foram, depois, de volta, até o lugar onde tinham deixado o lobo. Ao aproximarem, Ayla chamou, com um assobio leve, e Lobo acorreu para saudá-los, com grandes demonstrações de alegria. Ele ficara obedientemente de atalaia no lugar que Ayla determinara, e ambos o festejaram muito por sua fidelidade. Ayla notou que ele caçara e trouxera a caça consigo, o que mostrava que deixara o posto pelo menos por algum tempo. Isso era perigoso, pois estavam muito perto do Acampamento das mulheres-Lobas. Mas era difícil brigar com ele por essa infraçao. Ficou, porém, determinada a tirá-lo o mais depressa possível do alcance daquelas lanceiras que comiam carne de lobo.
— Puxaram os cavalos até a água e, depois, até o bosque onde tinham condido as bagagens. Ayla partiu em dois um dos últimos blocos de carne prensada que tinham, deu a parte maior para Jondalar, e comeram sentados no chão, contentes por estarem longe da atmosfera depressiva do Acampamento de Attaroa.
— De repente, ela ouviu que Lobo rosnava, baixo, e os cabelos da sua nuca ficaram logo arrepiados.
— Vem vindo alguém — disse Jondalar, falando baixo, mas também um tanto alarmado com o aviso recebido do animal.
Juntos, ele e Ayla examinaram a área, certos de que os sentidos aguçados de Lobo haviam detectado algum perigo iminente. Indo na direção que o focinho do lobo apontava, Ayla olhou através da folhagem e viu duas mulheres que se aproximavam. Uma, estava quase certa disso, era Epadoa. Tocou no braço de Jondalar e apontou. Ele as viu também.
— Você fica. Mantenha os cavalos quietos — disse Ayla, na linguagem gestual do Clã. — Eu escondo Lobo. Vou tocaiar as mulheres. Vou mantê-las a distância.
— Eu vou — respondeu Jondalar, também por gestos.
— Mulheres me ouvem melhor — ponderou Ayla. Jondalar concordou com relutância.
— Fico de sobreaviso com o propulsor de azagaias. Leve o seu. Ayla fez que sim.
— Funda também.
— Sim.
Com extrema cautela, Ayla adiantou-se às mulheres, andando em círculo, e esperou. Quando as duas se aproximaram, caminhando devagar, ela pôde ouvir o que diziam.
— Estou certa de que vieram nesta direção quando saíram do nosso acampamento a noite passada, Unavoa — disse a chefe das Mulheres-Lobas.
— Mas eles já estiveram no Acampamento depois da noite passada. Por que estamos ainda procurando por eles aqui?
— Podem voltar. E mesmo que não voltem, podemos descobrir alguma coisa a respeito deles.
— Estão dizendo no acampamento que eles desaparecem, que se transformam em pássaros ou cavalos — disse a Mulher-Loba.
— Não seja tola — retrucou Epadoa. — Pois não encontramos o acampamento deles? Por que acampariam se virassem animais?
Ela tem toda a razão, pensou Ayla. Pelo menos usa a cabeça e pensa. Também não se pode dizer que não saiba rastrear. Pode ser até uma boa caçadora. Que pena que esteja tão ligada a Attaroa!
Agachada por trás da macega cerrada e do capim amarelo, que lhe batia pelos joelhos, Ayla ficou à espreita até que se aproximassem. E num momento em que as duas olhavam para o chão, surgiu diante delas sem ruído, com o lançador de azagaias em posição.
Epadoa teve um sobressalto, e a outra mulher, mais jovem, recuou de um salto e soltou um grito, assustada, quando viu a loura estrangeira à sua frente.
— Estão procurando por mim? — perguntou Ayla, na língua delas. — Eis-me aqui.
Unavoa pareceu a ponto de fugir e até Epadoa se mostrou nervosa.
— Nós estávamos... caçando — disse.
— Aqui não há cavalos nem precipícios — disse Ayla.
— Não estávamos caçando cavalos.
— Eu sei. Estão caçando Ayla e Jondalar.
A sua aparição intempestiva e a qualidade estranha da sua pronúncia faziam-na parecer exótica e remota como um ser de algum lugar longínquo ou, até, de outro mundo. Ambas desejaram distância daquela mulher cujos atributos eram mais que humanos.
— Acho que essas duas mulheres devem voltar para seu Acampamento ou arriscam perder o grande banquete de hoje à noite.
A voz saía do mato, e falava Mamutói, mas as duas mulheres conheciam a língua e reconheceram que era Jondalar quem falava. Olhando para a direção de onde vinha o som viram que o alto homem louro estava recostado languidamente ao tronco de uma grande bétula de casca branca, com uma lança curta já em posição de arremesso.
— Sim. Tem razão. Não queremos perder a festa — disse Epadoa. E empurrando a companheira, que perdera a fala, fez meia-volta e partiu. Quando as viu pelas costas, Jondalar não pôde deixar de rir.
O sol já se deitava ao fim daquele curto dia de inverno quando Ayla e Jondalar voltaram ao Acampamento no lombo dos seus cavalos. Tinham mudado o esconderijo de Lobo, que estava agora ainda mais perto. Logo ficaria escuro, e as pessoas raramente se aventuravam à noite longe das fogueiras. Ayla, mesmo assim, temia que o capturassem.
S'Armuna estava saindo de casa quando eles desmontaram, no fundo do campo, e sorriu de alívio ao vê-los. A despeito das promessas feitas, receava que não voltassem. Afinal de contas, por que dois estranhos correriam riscos por pessoas que nem conheciam? Nem mesmo os parentes vinham. Fazia vários anos já que ninguém aparecia para saber se estavam bem. Naturalmente, parentes e amigos já haviam sido destratados por Attaroa.
Jondalar removeu o cabresto de Racer para que ele se sentisse à vontade, e ambos deram tapinhas na garupa dos cavalos para que se afastassem do acampamento. S'Armuna veio ao encontro deles.
— Estamos terminando os preparativos para a Cerimónia do fogo, amanhã. Sempre fazemos uma fogueira de véspera. Gostariam de vir comigo, para se aquecerem um pouco?
— Faz frio — disse Jondalar. E ambos foram com ela até o forno da cerâmica, na outra extremidade do acampamento.
— Descobri como esquentar a comida que você trouxe, Ayla. Você disse que ela é mais gostosa quente. Tem um perfume delicioso, aliás — disse S'Armuna, sorrindo.
— Como esquentar uma mistura assim tão grossa, em cestas?
— Eu lhe mostro — disse a Xamã, entrando na ante-sala do pavilhão em que morava. Ayla a seguiu, e Jondalar fechou a marcha. Embora não houvesse fogo na pequena lareira central, fazia calor lá dentro. S'Armuna foi diretamente ao arco que abria para a outra sala e removeu o osso de ombro de mamute que vedava a passagem. O ar, no interior, estava tão quente que se poderia cozinhar com ele, pensou Ayla. Viu que tinham acendido um fogo e que, logo à porta, a alguma distância do fogo estavam as suas duas cestas.
— Que perfume delicioso! — disse Jondalar.
— Vocês não imaginam quanta gente já veio perguntar quando começa o banquete — disse S'Armuna. — Sentem o cheiro da comida até no Depósito. Ardemun veio perguntar se os homens serão contemplados com alguma coisa. E não é só isso. Attaroa mandou que as mulheres preparassem comida para o festim e que fizessem bastante para todos. Nem me lembro mais quando tivemos nossa última festa. Também, não temos muito motivo para celebrações. O que me lembra uma coisa: qual o pretexto da festa de hoje?
— Visitas — disse Ayla. — Vocês estão honrando visitantes.
— Sim — disse a mulher. — Muito bem. Mas lembrem-se: essa foi uma desculpa que ela inventou para fazê-los voltar. Devo preveni-los: não comam nada que ela não tenha comido antes. Attaroa conhece muito veneno mortal que pode passar despercebido. Em último caso, comam só do que trouxeram... e que eu tenho vigiado todo o tempo.
— Mesmo aqui? — perguntou Jondalar.
— Ninguém ousa entrar aqui sem minha permissão — disse Aquela que Servia à Mãe —, mas fora deste lugar todo cuidado é pouco. Attaroa e Epadoa conspiraram o dia inteiro, aos cochichos. Estão tramando alguma coisa.
— E tem muita gente do lado delas, todas as Mulheres-Lobas. Com quem podemos contar? — disse Jondalar.
— Quase todo mundo quer ver mudanças — disse S'Armuna.
— Mas com quem podemos contar efetivamente para ajudar? — disse Ayla.
— Com Cavoa, minha acólita, por exemplo.
— Mas ela está grávida — disse Jondalar.
— Mais um motivo para ajudar. Tudo indica que terá um menino. Estará lutando pela vida do filho tanto quanto pela sua própria. Mesmo se o bebê for uma menina, Attaroa não a deixará viver muito, depois do parto. Cavoa sabe disso.
— E a mulher que protestou, hoje? — indagou Ayla.
— Essa é Esadoa, mãe de Cavoa. Sem dúvida, podem contar com ela também, mas Esadoa me culpa, tanto quanto a Attaroa, pela morte de seu filho.
— Lembro-me de que, nos funerais — disse Jondalar —, ela atirou coisas na cova, o que enfureceu Attaroa.
— Sim, foram ferramentas para a outra vida. Attaroa havia proibido que lhes dessem qualquer coisa que pudesse ajudá-los no mundo dos espíritos.
— Você a enfrentou, na ocasião.
S'Armuna deu de ombros, como se aquilo não tivesse importância maior.
— Eu lhe disse que, uma vez dadas, as ferramentas não podiam ser recolhidas da sepultura. Nem ela se atreveu a fazê-lo.
— Acredito que todos os homens do Depósito nos ajudariam — disse Jondalar.
— Sim, mas será preciso que estejam do lado de fora — disse S'Armuna. — E as guardas estarão mais atentas do que nunca. Não creio que alguém conseguisse entrar lá, sub-repticiamente, agora. Dentro de alguns dias, talvez. Isso nos dará tempo para conversar com as mulheres com calma. Quando soubermos quantas estão do nosso lado, podemos fazer um plano para derrubar Attaroa e as Mulheres-Lobas. Vai ser preciso lutar com elas. Não há outra maneira de soltar os homens.
— Creio que tem razão — disse Jondalar, amargamente.
Ayla abanou a cabeça, desconsolada ao pensar na violência. O Acampamento já fora palco de tantas desgraças, que a ideia de provocar mais sangue lhe era penosa. Quisera que houvesse outro meio.
— Você nos disse haver dado alguma coisa a Attaroa para fazer os homens dormirem. Não pode pôr para dormir Attaroa e suas mulheres? — perguntou Ayla.
— Attaroa não bebe nem come o que não for provado antes por outra pessoa. Doban se encarregou disso, em certa época. Ela pode usar hoje qualquer das crianças — disse S'Armuna. Depois, olhou para fora. — Já está escurecendo. Se vocês estão prontos, acho que é tempo de começarmos.
Ayla e Jondalar retiraram as cestas da câmara interior e Aquela que Servia fechou-a outra vez. Uma vez no pátio, viram que uma grande fogueira fora acesa diante do alojamento de Attaroa.
— Eu me perguntava se ela iria convidá-los para entrar, mas parece que o banquete será servido aqui fora, apesar do frio — disse S'Armuna. Quando se aproximaram, com as cestas, Attaroa se virou para recebê-los.
— Como quiseram que os homens participassem da celebração, achei que devíamos ficar do lado de fora. Assim, poderão vê-los — disse.
S'Armuna traduziu, embora Ayla tivesse entendido a mulher perfeitamente. Até Jondalar sabia o bastante para perceber o que ela dissera.
— É difícil vê-los no escuro — disse Ayla. — Seria melhor se mandasse acender uma outra fogueira, do lado deles.
Attaroa digeriu a sugestão, riu, mas não fez nada que indicasse que ia atender ao pedido.
O festim parecia extravagante, com grande número de iguarias, mas constava, essencialmente, de carnes magras, quase sem gordura, poucos legumes, grãos, ou tubérculos mais nutritivos e substanciosos. Não serviram doçaria, nem frutas secas, nem casca interna de árvore. Como bebida, um cozimento fermentado de seiva de bétula, que Ayla não provou. Tinha experiência dos que Talut fazia e que toldavam a cabeça. Precisava estar lúcida e alerta aquela noite. E foi com satisfação que viu uma das mulheres distribuindo cuias de chá de ervas para quem quisesse.
Em suma, um festim bastante pobre, pensou Ayla, embora os moradores do Acampamento pensassem de maneira diversa. Os pratos eram como os que se fazem no fim da estação, não os que se esperaria no meio do inverno. Poucas peles tinham sido postas no chão, perto do fogo e nos pés da plataforma elevada de Attaroa para os convidados. As outras pessoas levavam as suas e nelas se sentavam para jantar.
S'Armuna acompanhou Ayla e Jondalar até onde Attaroa se encontrava, e eles esperaram ao lado do estrado que a líder do Acampamento se acomodasse. Ela vestia suas roupas de pele de lobo e tinha no pescoço colares de dentes, osso, marfim e madrepérola, decorados com penas e pedacinhos de pele. Ayla se interessou pelo cetro que ela empunhava e que era feito de um dente inteiro, endireitado, de mamute.
Attaroa mandou servir o jantar e, com um olhar incisivo para Ayla, determinou que a porção para os homens fosse levada logo ao Depósito, inclusive a cesta que Ayla e Jondalar tinham trazido para eles. Todo mundo tomou isso como um sinal de que era permitido sentar-se. Ayla notou que o assento de Attaroa lhe dava posição singular. Ela ficava sobranceira a todo mundo, o que lhe permitia ver por cima da cabeça deles, e também dominá-los. Ayla se lembrou de que, por vezes, as pessoas subiam em pedras ou toras de madeira quando tinham algo para dizer a um grupo, mas isso fora sempre uma posição temporária.
Attaroa tinha, assim, lugar privilegiado, de onde podia observar as posturas e gestos dos convivas. E todos pareciam ter para com Attaroa a mesma atitude de deferência que as mulheres do Clã costumavam assumir, em silêncio, diante de um homem, à espera do toque no ombro que lhes permitiria expressar qualquer pensamento. Mas havia uma diferença, difícil de identificar. No Clã, jamais vira ressentimento por parte das mulheres, coisa que havia ali; ou falta de respeito para com os homens. Era um estilo de comportamento inerente, herdado, e não imposto por tem quer que fosse. Servia para garantir que as duas partes se comunicassem ordeiramente, em geral, ou primariamente, por sinais e gestos.
Enquanto aguardavam que fossem servidos, Ayla procurou ver melhor o bastão de Attaroa. Era semelhante ao Bastão Falante de Talut e do Acampamento do Leão, exceto por um particular: a obra de talha era muito original, não lembrava em nada o bastão de Talut e, todavia, lhe parecia familiar. Ayla se lembrava de que o Bastão Falante fazia sua aparição com certa frequência, era usado por Talut mesmo em cerimónias, mas principalmente durante reuniões e debates.
Esse bastão investia quem o empunhasse do direito de falar e dava a todos a oportunidade de emitir uma opinião ou expressar um ponto de vista sem serem interrompidos. Quem quisesse fazer uso da palavra tinha de pedir o bastão. Em princípio, só quem estivesse com ele falava, se bem que no Acampamento do Leão, sobretudo em meio a um debate vigoroso, nem sempre todo mundo tinha vez. Talut era, em geral, capaz de impor a obediência à praxe.
— Esse é um Bastão Falante dos mais belos e originais que já vi. Posso examiná-lo? — indagou Ayla.
Attaroa sorriu, ouvindo a tradução de S'Armuna. Ela o estendeu em direção a Ayla e à luz do fogo, mas não o largou. Ficou logo óbvio que não tinha a intenção de cedê-lo a ninguém, e Ayla sentiu que a mulher o usava como insígnia de comando, para investir-se do seu poder. Enquanto Attaroa o tivesse na mão, quem quisesse falar tinha de pedir-lhe licença e, por extensão, outras ações — quando servir a comida, quando começar a comer, por exemplo, ficavam dependendo dela. Como o alto estrado em que sentava, era um recurso para impor-se a todos e controlar a maneira pela qual eles se comportavam em relação a ela. Aquilo deu a Ayla o que pensar.
O próprio bastão era incomum. Que não fora feito recentemente, ficava logo evidente. A cor do marfim de mamute começava a ficar amarelada, e a área em que a mão o segurava estava cinza e brilhante, marcada pela sujeira acumulada e pelo óleo das muitas peles que tinham tido contato com ele. Estava em uso havia gerações.
O desenho entalhado na presa era uma abstração geométrica da Grande Mãe Terra: ovais concêntricos sugeriam os seios caídos, o ventre arredondado, as coxas voluptuosas. O círculo era o símbolo da plenitude, de tudo o que existia, da totalidade dos mundos conhecidos e desconhecidos, e simbolizava a Grande Mãe de Todos. O fato de serem círculos concêntricos, principalmente por serem usados daquele modo para representar os importantes elementos maternais, reforçava o simbolismo.
Havia, na parte superior, um triângulo invertido. A ponta formava o queixo de uma cabeça estilizada; e a base, curvada ligeiramente em domo, o crânio. O triângulo que apontava para baixo era o símbolo universal da Mulher. Era a forma externa do seu órgão gerador e, portanto, simbolizava também a maternidade e a Grande Mãe de Todos. A área da face continha uma série horizontal de incisões paralelas, a que se juntavam linhas oblíquas, laterais, que iam do queixo pontudo à região dos olhos. No largo espaço entre o conjunto de linhas horizontais do alto e as linhas arredondadas paralelas à curva do crânio viam-se três conjuntos de linhas duplas, perpendiculares, que se reuniam onde os olhos estariam normalmente.
Mas esses desenhos geométricos não eram um rosto. A não ser pelo fato de estar o triângulo invertido na posição de uma cabeça, as marcas sequer teriam sugerido um rosto. Uma representação figurativa do semblante da Grande Mãe seria impensável: ninguém suportaria contemplá-la. Os poderes d'Ela eram tão grandes que Sua simples Aparência era assoberbante. O simbolismo abstrato do Bastão Falante de Attaroa transmitia esse sentido de poder com sutileza e elegância.
Ayla recordou seu aprendizado inconcluso com Mamute sobre o sentido profundo de alguns daqueles símbolos. Os três lados do triângulo — três era o número primário d'Ela — representavam as três principais estacões do ano, primavera, verão e inverno, embora duas estações menores e adicionais fossem por todos reconhecidas: outono e meio-inverno, estações que anunciavam mudanças por vir, o que fazia um total de cinco. Cinco, como Ayla sabia, era o Seu número secreto, Seu número de força, mas os triângulos invertidos eram de compreensão geral.
Ayla se lembrou das formas triangulares das esculturas da mulher-ave, representando a Mãe no ato de Se transformar em Sua forma de ave que Ranec fizera... Ranec... e, de chofre, lembrou-se onde vira a figura gravada no Bastão Falante de Attaroa. Na camisa de Ranec! Na bela camisa de couro macio, de uma alvura cremosa, de nata de leite, que ele usara na cerimónia de sua adoção. Ficara na sua memória por causa do estilo incomum, afilado, com mangas muito largas; por causa da cor, que tão bem combinava com sua pele morena; mas, principalmente, pela decoração.
A camisa fora bordada com espinhos de porco-espinho tingidos de cores vivas e costurados no couro com linha de fibra animal, dos tendões O motivo era uma abstração da figura da Grande Mãe, que poderia ter sido copiado do bastão de Attaroa. Tinha os mesmos círculos concêntricos, a mesma cabeça triangular. Os S'Armunai deviam ser aparentados com os Mamutói, de onde a camisa de Ranec provinha. Se eles tivessem tomado a rota do norte, como Talut sugerira, teriam passado necessariamente por aquele Acampamento.
Quando partiram, o filho de Nezzie, Danug, o jovem que ia ficando cada dia mais parecido com Talut, anunciara que algum dia faria uma Jornada à terra dos Zelandonii para visitá-la e a Jondalar. E se Danug resolvesse mesmo fazer essa viagem quando ficasse um pouco mais velho e viesse ter no acampamento das Mulheres-Lobas? E se Danug ou outro Mamutói fosse capturado e torturado? Essa ideia fortaleceu sua intenção de pôr fim ao poder de Attaroa.
Esta já recolhia o bastão e oferecia a Ayla uma tigela de madeira.
— Uma vez que você é a nossa convidada de honra, e uma vez que contribuiu com um prato que está sendo tão elogiado — disse com uma nota pesada de sarcasmo, gostaria que provasse isto, especialidade de uma das nossas mulheres.
A tigela continha cogumelos. Mas uma vez que eram picados e cozidos não havia como identificá-los.
S'Armuna traduziu, acrescentando.
— Cuidado!
Mas Ayla não precisava nem da tradução nem do aviso.
— Não quero cogumelos, por enquanto.
Attaroa riu quando S'Armuna traduziu as palavras de Ayla. Era como se esperasse aquela resposta.
— Que pena! — disse, metendo a mão na tigela e tirando uma grande porção. Quando engolira o bastante para poder falar, acrescentou: — Estão uma delícia!
Comeu, em seguida, várias outras porções, depois passou a tigela a Epadoa, sorriu maliciosamente, e esvaziou sua xícara da infusão de bétula.
Bebeu muito mais, depois. E começou a falar alto e a dizer inconveniências. Uma das Mulheres-Lobas, que estivera de guarda ao Depósito — elas se alternavam, nessa noite, para que todas pudessem participar da festa —, veio falar com Epadoa, que passou o que ela dissera, em voz baixa, a Attaroa.
— Parece que Ardemun quer sair para agradecer, em nome dos homens, o que lhes foi dado — disse Attaroa, e soltou uma gargalhada de deboche. — Estou certa de que não é a mim que querem agradecer. É à nossa ilustre convidada. — E para Epadoa: — Traga o velho.
A guarda foi mandada de volta e logo Ardemun apareceu, manquejando. Jondalar ficou surpreso com a alegria que sentiu ao revê-lo e se deu conta de que não tinha notícia dos homens desde que saíra do Depósito. Como estariam?
— Então, os homens querem agradecer pelo banquete? — disse a líder.
— Sim, S'Attaroa. Eles me pediram que viesse como seu porta-voz.
— Diga-me, velho. Por que não acredito em você?
Ardemun era ladino demais para responder. Ficou simplesmente lá, de pé, olhos no chão, como se quisesse sumir terra adentro.
— É um inútil! Um imprestável! Não tem fibra nenhuma! — disse Attaroa. E cuspiu para o lado, enojada. — Como todos os outros, aliás — completou. E virando-se para Ayla: — Por que você fica atada a esse homem? — disse, apontando para Jondalar. — Será que não tem forças para livrar-se dele?
Ayla esperou até que S'Armuna terminasse a tradução. Isso lhe deu tempo para preparar a resposta.
— Gosto de viver com ele. Já vivi muito tempo sozinha.
— De que lhe servirá o Zelandonii quando ficar velho e fraco com Ardemun? — continuou Attaroa, com um olhar de desprezo para o ancião. Quando o instrumento do Zelandonii estiver mole demais para dar Prazer, ele será tão sem serventia quanto os demais.
De novo Ayla esperou pela tradução, embora tivesse entendido muito bem cada palavra de Attaroa.
— Ninguém permanece jovem para sempre. Há mais num homem que seu instrumento.
— Mas você deveria livrar-se desse aí. Ele não vai durar muito acredite. — E de novo, apontando para Jondalar: — O louro parece forte, mas é só exibição. Ele não teve sustância para copular com Attaroa, ou talvez não tivesse coragem. — Attaroa riu, bebeu mais uma tigela, depois se dirigiu diretamente a Jondalar — Foi medo. Admita-o! Você tem medo de mim. Por isso não quis nada.
Jondalar também entendeu o que ela dissera e se irritou.
— Há uma diferença entre medo e falta de desejo, Attaroa. O desejo não obedece a comandos. Não partilhei o Dom da Mãe com você por não sentir desejo.
S'Armuna olhou apreensiva para Attaroa e teve de obrigar-se a traduzir.
— Mentira! — gritou Attaroa, insultada. Ela se pôs de pé, dominando-o do seu alto estrado. — Você teve medo de mim, Zelandonii. Pude ver isso na sua expressão. Já lutei com homens antes, e você teve medo também de lutar comigo.
Jondalar se pôs de pé, e Ayla com ele. Várias das mulheres o cercaram.
— Eles são nossos hóspedes — disse S'Armuna, pondo-se igualmente de pé- — Foram convidados a participar do nosso banquete. Será que você se esqueceu como tratar convidados?
— Bonitos hóspedes! — disse Attaroa, com desprezo. — Temos de ser corteses e hospitaleiros ou a mulher vai pensar mal de nós. Pois eu lhe mostro que importância tem para mim a opinião dela. Vocês dois saíram daqui sem minha permissão. E sabem o que fazemos com aqueles que fogem daqui? Nós os matamos! Assim como vou matá-la — gritou, e se lançou sobre Ayla, armada de uma fíbula de cavalo, delgada e afiada, uma formidável adaga.
Jondalar procurou intervir, mas as Mulheres Lobas de Attaroa já o rodeavam, com as pontas de suas lanças apertadas com tanta força contra seu peito, barriga e costas, que perfuraram a pele e tiraram sangue. Num segundo, seus braços tinham sido forçados para trás e suas mãos atadas. Enquanto isso Attaroa derrubava Ayla, escarranchava-se em cima dela, no chão, e erguia a adaga sem o menor sinal da embriaguez que mostrava anteriormente.
Ela planejara tudo aquilo, pensava Jondalar. Enquanto eles conversavam, discutindo como solapar-lhe o poder, ela se preparava para liquidá-los. Ele devia ter visto isso, ele que jurara proteger Ayla. Fora estúpido, ingênuo. E ali estava agora, espectador inerme, temendo pela vida da mulher que amava e que forcejava ainda por livrar-se da sua atacante. Era por aquele motivo que todos temiam Attaroa. Ela matava sem hesitação e sem remorso.
Ayla fora apanhada de surpresa. Não tivera tempo de sacar de uma faca ou da funda — e não tinha experiência de lutar corpo a corpo. Jamais tivera de fazer isso na sua vida. E Attaroa estava em cima dela, com um perónio de cavalo na mão, a ponto de matá-la. Ayla apertou com força o pulso da mulher, e procurou desviar-lhe o braço da sua garganta. Ayla era forte, mas Attaroa também. Era, além disso, astuta e determinada, e estava levando a melhor, dominando a resistência de Ayla, para cortar-lhe o pescoço.
Instintivamente, Ayla rolou no último momento, mas a adaga riscou-lhe a pele, assim mesmo, deixando nela uma linha vermelha antes de afundar-se a meio na terra. E ela continuava imobilizada pelo peso da outra, a quem o ódio e a demência davam uma força insuspeitada. Attaroa arrancou a adaga do chão, atordoou Ayla com um murro na cabeça, cavalgou-a outra vez, e ergueu a arma para enterrá-la na garganta da mulher.
Jondalar fechou os olhos para não ver a morte de Ayla. Sua vida não lhe importava mais, se ela se fosse... Então, por que se debatia ali, de pé, confrontado com lanças ameaçadoras, se pouco lhe importava viver ou morrer? Suas mãos estavam presas, mas não suas pernas. Poderia ainda avançar para as duas, chutar Attaroa, talvez.
Havia um tumulto no portão do Depósito quando ele resolveu ignorar as lanças para salvar Ayla. A confusão na área dos homens distraiu as guardas e, quando menos esperavam, ele se soltou daquele círculo de pontas aceradas, partindo para as duas mulheres emboladas no chão.
E eis que um vulto escuro passou como um raio pelas pessoas que olhavam, raspou-lhe a perna, saltou sobre Attaroa. O ímpeto do ataque derrubou a mulher, que caiu de costas e sentiu presas afiadas se enterrarem na sua garganta. Em vão, procurou Attaroa defender-se contra a fúria daquela fera, que era toda caninos e pêlos. Conseguiu dar ainda uma incerta punhalada no corpo hirsuto e pesado. Deixou, depois, cair a arma, mas isso apenas provocou um rosnado surdo e terrível e um aperto maior das mandíbulas poderosas que lhe tiravam o ar.
A escuridão começou a envolvê-la, e ela não pôde sequer armar um grito. O dente afiado da fera cortou-lhe a carótida e o som que emergiu foi um horrendo gorgolejo de sufocação. A mulher amoleceu e se imobilizou. Ainda rosnando, Lobo sacudiu-a na boca para ter certeza de que toda resistência cessara.
— Lobo! — exclamou Ayla, superando o choque e sentando-se — Oh, Lobo!
Quando o animal soltou a presa, o sangue jorrou da artéria rompida e espirrou nele. Lobo se aproximou lentamente de Ayla, com o rabo entre as pernas. Gania apologeticamente. Sabia que agira contra os desejos dela. A mulher lhe dissera que ficasse escondido, mas quando viu o ataque e sentiu que ela estava em perigo, teve de acorrer para defendê-la. Só não sabia agora como sua desobediência ia ser recebida. Mais do que tudo no mundo, detestava ser repreendido por ela.
Mas Ayla abriu-lhe os braços. Vendo que agira bem e que sua transgressão estava perdoada, ele correu para ela alegremente. Ayla o abraçou, enfiando a cabeça nos seus pêlos, com lágrimas de alivio. Soluçava.
— Lobo, Lobo, você salvou minha vida! — dizia. Lobo a lambia, sujando o rosto dela com o sangue quente de Attaroa que ainda tinha no focinho.
Os habitantes do Acampamento haviam recuado, em bloco, diante dessa cena. Olhavam boquiabertos, incapazes de compreender o que viam. A forasteira loura apertava nos braços um lobo enorme que acabava de matar outra mulher num furioso assalto. Ela falava com ele usando a palavra da língua Mamutói para "lobo", que era semelhante à deles para o mesmo caçador carnívoro, e viam que conversava com o animal, como se ele a estivesse entendendo, exatamente como conversava antes com os cavalos.
Não admirava que uma criatura dessas não tivesse medo de Attaroa. Sua mágica era tão forte que cavalos lhe obedeciam e, até, lobos! O homem também não demonstrara o menor temor, pois viram quando se ajoelhara junto da mulher e do lobo. Ele ignorara, até, as lanças das mulheres da guarda, que tinham, como os demais presentes, recuado, e a tudo assistiam tomadas de estupor. De súbito, viram um homem atrás de Jondalar. E o homem brandia uma faca! Onde a teria arranjado?
— Deixe-me cortar essas cordas para você, Jondalar — disse Ebulan, libertando-lhe as mãos.
Jondalar fez meia-volta e viu homens que se misturavam à multidão e outros que vinham correndo do Depósito.
— Quem o soltou?
— Você — disse Ebulan.
— O que quer dizer? Eu estava amarrado.
— Você nos deu as facas... e a coragem de tentar — disse Ebulan. — Ardemun se esgueirou por trás da guarda e bateu-lhe na cabeça com seu cajado. Depois cortou as cordas que fechavam o portão. Todos nós assistíamos à luta, e aí veio o lobo... — Sua voz se apagou, e ele ficou abanando a cabeça, incrédulo, diante da mulher abraçada ao lobo.
Jondalar não percebeu que o homem estava emocionado demais para falar. Havia coisas mais prementes.
— Você está bem, Ayla? Chegou a ser ferida? — disse, abraçando mulher e Lobo ao mesmo tempo. O animal, que lambia Ayla, passou a lambê-lo também.
— Ela me fez um arranhão no pescoço. Não é nada — disse, aninhada nos dois. Acho que Lobo foi ferido, mas vejo que não se importa muito com isso.
— Eu não teria deixado você vir se imaginasse que ela tentaria matá-la em plena festa. Mas devia ter sabido. Foi estupidez subestimá-la.
— Não, você não foi estúpido. Não me passou também pela cabeça que ela poderia atacar-me, e eu não soube defender-me. Se não fosse Lobo... — E os dois olharam com gratidão para o bravo animal.
— Tenho de admitir, Ayla, que houve momentos durante a viagem em que tive vontade de deixar Lobo para trás. Pensei que ele era uma carga, que nos atrasava e atrapalhava. Quando vi que você foi procurá-lo depois que passamos o Rio da Irmã, fiquei furioso. A ideia de você arriscara a vida por esse animal me deixou indignado — disse Jondalar.
Jondalar tomou a cabeça do lobo nas mãos e olhou dentro dos olhos dele.
— Lobo, prometo jamais deixá-lo para trás no futuro. Prometo arriscar minha vida para salvar a sua, sua fera danada, gloriosa! — disse, fazendo-lhe festas no pescoço e atrás das orelhas.
Lobo lambeu o pescoço e o rosto de Jondalar. Depois, abrindo as maxilas, abocanhou carinhosamente a garganta e o queixo do homem numa demonstração de afeto. Lobo gostava tanto de Jondalar quanto de Ayla e manifestou com rosnados e resmungos seu contentamento com a atenção que recebia.
Para o povo que assistia, aquilo era pura maravilha. Jamais se vira um homem expor assim a garganta, tão vulnerável, a uma fera daquelas. Tinham visto o lobo estraçalhar a garganta de Attaroa com os mesmos poderosos maxilares. Para eles, o que Jondalar fizera denotava um domínio de natureza sobrenatural sobre os espíritos dos animais.
Ayla e Jondalar se puseram de pé, com o lobo entre eles, e encararam a multidão. Não sabiam muito bem o que esperar. Muitos olharam, expectantes, para S'Armuna. Ela marchou para os dois, olhando, ressabiada, para o lobo.
— Estamos, finalmente, livres dela — disse.
Ayla sorriu. Sentia a apreensão da mulher.
— Lobo não lhe fará mal. Ele só atacou porque era preciso. Para defender-me.
S'Armuna notou que Ayla não dissera o nome para lobo na língua Zelandonii, e entendeu que usava a palavra como nome para o animal.
— É apropriado que o fim de Attaroa tivesse vindo através de um lobo. Eu sabia que vocês estavam aqui por um motivo. Já não estamos mais nas garras dela, prisioneiros da sua insânia. Mas o que faremos agora?
Era uma pergunta retórica. A mulher falava mais consigo mesma o que com qualquer dos ouvintes.
Ayla contemplou o corpo imóvel da mulher, que ainda momentos antes fora tão malévola mas também tão vibrante, e tomou consciência mais uma vez da fragilidade da vida. Não fora Lobo, e ela é que estaria ali, morta. Estremeceu a esse pensamento.
— Acho que alguém deve levar o corpo de Attaroa e prepara-lo para o sepultamento — disse. Falara em Mamutói, para que todos entendessem sem necessidade de tradução.
— Mas Attaroa merece um funeral? Por que não colocamos seu cadáver no pasto para animais carniceiros?
Era uma voz de homem.
— Quem falou? — perguntou Ayla.
Jondalar conhecia o homem, que deu um passo à frente, e se apresentou, com alguma hesitação.
— Eu me chamo Olamun.
Ayla cumprimentou, de cabeça.
— Você tem direito ao seu ódio, Olamun. Mas Attaroa foi levada à violência pelas muitas violências de que fora vítima. O mal que havia em seu espírito gostaria de perpetuar-se, de deixar-lhes um legado de violência. Desistam. Não permitam que a sua justa cólera os faça cair nas armadilhas que o espírito inquieto de Attaroa montou. É hora de mudar. Attaroa era humana. Enterrem-na com a dignidade que ela não foi capaz de achar em vida, e que o espírito da mulher descanse em paz.
Jondalar ficou surpreso com esse discurso. Era uma resposta de Zelandoni, sábia e contida.
Olamun concordou.
— Mas quem a enterrará? Quem vai preparar o corpo? Attaroa não tinha família.
— A responsabilidade incumbe Àquela que Serve à Mãe — disse S'Armuna.
— Talvez com a ajuda das que a acolitaram antes — sugeriu Ayla. O cadáver era, evidentemente, pesado demais para a Xamã.
Todos se voltaram para Epadoa e as Mulheres-Lobas. Elas se tinham grupado instintivamente, como que para tirarem forças umas das outras.
— E que, depois, devem acompanhá-la ao outro mundo.
Era, de novo, uma voz de homem. Outras lhe fizeram coro, e houve um movimento coletivo em direção às lanceiras.
Então, uma jovem Mulher-Loba se adiantou.
— Não pedi para ser o que sou. Queria apenas aprender a caçar para não passar fome.
Epadoa a olhou com severidade, mas a outra não baixou os olhos.
— Que Epadoa descubra o que é passar fome — disse a mesma voz de homem. — Vamos deixá-la sem comer até que entre no mundo dos espíritos. Então seu espírito também passará fome.
Aquele movimento em direção às caçadoras — e a Ayla — provocou um rosnado ameaçador de Lobo. Jondalar ajoelhou-se rapidamente para aquietá-lo, mas a reação do animal fez com que os mais afoitos recuassem. Olhavam para Ayla com algum temor.
Ayla não perguntou dessa vez quem falara.
— O espírito de Attaroa ainda mora entre vocês — disse —, animando a violência e o revanchismo.
— Mas Epadoa deve pagar pelo mal que fez.
Ayla viu que a mãe de Cavoa dera um passo à frente. A filha, moça e grávida, estava logo atrás dela e lhe dava apoio moral.
Jondalar se pôs de pé e ficou ao lado de Ayla. Não havia dúvida de aquela anciã tinha o direito de vingar-se pela morte do filho. Olhou para S'Armuna. Achava que cabia à Xamã responder, mas ela também esperava que Ayla o fizesse.
— A mulher que matou seu filho já não é deste mundo. Por que Epadoa deve pagar pelo mal que Attaroa fez?
— Epadoa tem mais que essa conta para acertar. E o mal causado a estes dois rapazinhos? — disse Ebulan. E recuou, para que Ayla pudesse ver os meninos, apoiados num velho solene e cadavérico.
Ayla se espantou com o aspecto do homem. Por um instante pensou estar diante de Creb. Ele era alto e magro, quando o santo do Clã fora baixo e atarracado, mas o rosto e os olhos tinham a mesma expressão de bondade e dignidade, e, como Creb, gozava, obviamente, da estima geral.
Ayla pensou em prestar-lhe a homenagem de respeito que era de rigor no Clã, sentando-se aos pés dele e esperando, para falar, que ele lhe batesse no ombro. Mas sabia que essa pantomima seria mal interpretada ali. Optou, então, pela cortesia mais formal.
— Jondalar — disse —, não posso dirigir-me corretamente a este homem sem uma apresentação.
Ele entendeu logo o que Ayla tinha em mente. Também se deixara impressionar pelo ancião. Adiantou-se, então, e conduziu Ayla pela mão até ele.
— S'Amodun — disse —, figura altamente respeitável dos S'Armunai, permita que lhe apresente Ayla, do Acampamento do Leão, dos Mamutói, Filha da Lareira do Mamute, Escolhida pelo espírito do Leão das Cavernas, e protegida pelo Urso das Cavernas.
Ayla se espantou com a última parte. Ninguém jamais mencionara o Urso das Cavernas como seu protetor. Mas, pensando bem, a coisa fazia sentido — pelo menos através de Creb. O Urso das Cavernas o escolhera — era o totem do Mog-ur —, e Creb figurava com tanta frequência nos seus sonhos que ela tinha certeza de que ele velava por ela e guiava seus passos. Possivelmente com a ajuda do Grande Urso das Cavernas, do Clã.
— S'Amodun dos S'Armunai acolhe a Filha da Lareira do Mamute — disse o velho, tomando nas suas as duas mãos de Ayla. Ele não era o primeiro a escolher a Lareira do Mamute como o título mais relevante. Muitas pessoas ali sabiam da importância da Lareira do Mamute para os Mamutói. A referência fazia dela o equivalente de S'Armuna, Aquela que Servia à Mãe.
A Lareira do Mamute! Naturalmente, pensou S'Armuna. Era inevitável. Aquilo respondia a muitas perguntas não formuladas que tinha na cabeça. Mas onde estava a tatuagem de Ayla? Não eram todos os eleitos marcados com uma tatuagem?
— Fico feliz com a sua acolhida, Muito Respeitado S'Amodun — disse Ayla, falando em S'Armunai.
O homem sorriu.
— Vejo que aprendeu muito da nossa língua, mas disse agora a mesma coisa duas vezes. Meu nome é Amodun. S'Amodun já quer dizer Muito Respeitado ou Digníssimo, ou o que quer que você tenha tido a intenção de dizer. Foi um título imposto pela vontade do Acampamento. Não sei se o mereço.
Ela achava que sim.
— Eu agradeço, S'Amodun — disse Ayla, baixando os olhos e fazendo um sinal afirmativo de cabeça. Assim de perto, ele se parecia ainda mais com Creb, com seus olhos grandes, fundos, luminosos, o nariz proeminente, as sobrancelhas fartas, os traços em geral marcantes. Tinha de vencer sua educação do Clã — mulheres não olham diretamente para os homens a quem dirigem a palavra —, olhar para aquele velho e conversar com ele.
— Desejo fazer-lhe uma pergunta — disse, falando em Mamutói, por ser mais fluente nessa língua.
— Responderei se puder — disse ele.
Ela olhou os dois rapazes, que o enquadravam.
— Os membros deste Acampamento querem que Epadoa pague pelo mal que fez. Esses rapazes, em particular, sofreram nas mãos dela. Amanhã verei se posso fazer alguma coisa em favor deles, mas que castigo merece Epadoa por obedecer às ordens de sua líder?
Involuntariamente, muitas pessoas olharam para o cadáver de Attaroa, ainda estirado onde Lobo a deixara. Depois voltaram a atenção para Epadoa. A mulher permanecia ereta e impassível, pronta para receber a punição que lhe fosse imposta. Sempre soubera que um dia teria de pagar.
Jondalar olhou para Ayla com maior respeito ainda. Ela fizera o que devia fazer. Mesmo com a admiração de todos, nada que ela dissesse, como estranha, teria a força das palavras de um homem como S'Amodun.
— Acho que Epadoa deve pagar — disse. Muitos manifestaram aprovação, principalmente Cavoa e sua mãe. — Mas não no outro mundo: neste mesmo. Ayla disse bem quando disse que é hora de mudar. Já houve um excesso de violência e de mal neste Acampamento. Os homens sofreram muito nos últimos anos, mas tinham feito sofrer as mulheres, antes. É tempo de acabar com esse círculo vicioso.
— Então, como Epadoa pagará? — perguntou a que perdera o filho — Que castigo receberá?
— Não haverá castigo, Esadoa. Mas reparação. Epadoa terá de dar tanto quanto tomou, e mais. Pode começar com Doban. Por mais que a filha da Lareira do Mamute faça por ele, é improvável que se recupere inteiramente. Terá efeitos do que lhe fizeram pelo resto da vida. Odevan também, mas esse tem mãe e outros parentes. Doban não tem mãe nem ninguém que cuide dele, ninguém que por ele se responsabilize ou veja que aprenda um ofício e exerça uma profissão. Eu faria Epadoa responsável por ele como se fora seu próprio filho. Ela pode não ter amor por ele, ele pode ter ódio por ela. Não importa. Ela precisa pagar pelo que fez.
Nem todo mundo concordou, mas houve sinais de aprovação. Alguém tinha de cuidar de Doban. Embora todos sentissem pena dele, agora que era inválido, ninguém o queria em casa. Lembravam-se da peste que tinha sido, quando morava com Attaroa. Por isso, se não concordassem com S'Amodun, poderiam ser obrigados por ele a receberem o rapaz em vez de Epadoa.
Ayla sorria. Achava perfeita a solução do velho. Embora pudesse haver rancor e desconfiança no princípio, era provável que o relacionamento ficasse mais caloroso com o tempo. S'Amodun era um sábio A ideia de restituição era muito superior à de punição e lhe dava uma outra.
— Gostaria de oferecer uma sugestão — disse. — Este Acampamento não tem reservas suficientes para o inverno; de modo que pode haver fome na primavera. Os homens estão enfraquecidos e não caçam há vários anos. Muitos podem ter perdido a agilidade. Epadoa e suas mulheres são hoje, caçadoras exímias. Penso que seria bom que elas continuassem a caçar. Mas ficariam obrigadas a dividir os resultados da caça com toda a comunidade.
Muitos concordaram. A ideia de passar fome os assustava.
— Logo que alguns homens se recuperarem e quiserem voltar às caçadas, Epadoa terá a obrigação de ajudá-los, e de caçar com eles. A única maneira de evitar a fome na próxima primavera é o trabalho em comum, de homens e mulheres. Todo Acampamento depende desse tipo de colaboração para prosperar. O resto das mulheres, e os homens mais velhos ou mais fracos, recolherão os alimentos que puderem encontrar.
— Mas já é inverno! Não há nada para colher — disse uma das Mulheres-Lobas mais jovens.
— Não há muito, concordo, e o que há dá trabalho para achar e colher. Mas tudo o que for trazido ajuda — disse Ayla.
— Ela está certa. Eu mesmo tenho comido do que Ayla encontra e coleta, mesmo no inverno. Vocês todos comeram do que ela cozinhou, esta noite. Os pinheiros foram colhidos aqui perto, junto do rio.
— Aqueles liquens de que as renas gostam podem ser comidos — disse uma das mulheres mais velhas. — Basta saber prepará-los.
— E muitos trigos, painços e outros capins ainda têm sementes que podem ser apanhadas — disse Esadoa.
— É verdade. Mas cumpre ter cuidado com o azevém, que pode ser fatal. Se tem mau aspecto, ou mau cheiro, talvez esteja cheio de ergotina e deve ser evitado — alertou Ayla. — Mas certas bagas comestíveis e muitas frutas ficam no pé, mesmo no inverno. Achei até maçãs, outro dia. E a casca interna de muita árvore pode ser comida.
— Precisaríamos de facas para isso — disse Epadoa. — As nossas não prestam.
— Eu farei facas novas para vocês — disse Jondalar.
— Você me ensina a fazer facas, Zelandonii? — perguntou Doban.
Jondalar ficou contente.
— Ensino você a fazer facas e outras ferramentas também.
— Eu também quero aprender mais — disse Ebulan. — Vamos precisar de armas para caçar.
— Estou disposto a ensinar-lhes o que quiserem, ou pelo menos mostrar-lhes o caminho. Talvez no próximo verão, se forem à Reunião dos S'Armunai, encontrem quem continue de onde eu tiver deixado.
O sorriso do rapaz se apagou. Via que o Zelandonii não ia ficar.
— Mas enquanto estiver aqui, ajudarei — disse Jondalar. — Tivemos de fazer muitas armas de caça nesta Jornada.
— E aquela... vara... de arremesso, para lanças curtas, que ela usou para cortar sua corda?
A pergunta era de Epadoa, e todo mundo se virou para ela. Era a primeira vez que a comandante das Mulheres-Lobas abria a boca, mas sua intervenção fez com que todos se lembrassem do longo e acurado arremesso de azagaia com que Ayla tirara Jondalar do poste em que fora amarrado. A coisa lhes parecera a todos tão miraculosa que ninguém imaginara fosse uma arte que se pudesse aprender.
— Ah! O propulsor de azagaias. Sim, mostro a quem quiser ver como funciona.
— Inclusive às mulheres? — perguntou Epadoa.
— Por que não? — disse Jondalar. — Quando vocês tiverem armas de caça de boa qualidade, não precisarão mais ir até o Rio da Grande Mãe para lançar cavalos de um despenhadeiro abaixo. Vocês têm um dos melhores terrenos de caça aqui mesmo, que vi, às margens deste rio vizinho.
— Temos. É verdade — concordou Ebulan. — Lembro-me muito bem de que caçavam mamutes. Quando eu era menino, usavam pôr uma sentinela no morro para acender umas fogueiras de aviso se viesse alguma coisa.
— Eu sei — disse Jondalar.
Ayla sorria.
— Vejo que a mudança está em curso. Já não sinto o espírito de Attaroa andando por aí — disse, afagando o pescoço de Lobo.
Em seguida, dirigiu a palavra à chefe das lanceiras:
— Epadoa, aprendi a caçar animais de quatro pernas quando comecei, inclusive lobos. A pele do lobo pode ser quente e servir para fazer um bom capuz. E se um lobo representa uma séria ameaça para alguém, deve ser destruído. Mas você pode aprender mais observando lobos vivos do que pegando-os em armadilhas e comendo-os depois de mortos.
As Mulheres-Lobas se entreolharam, com expressões de culpa. Como poderia ela saber? A carne de lobo era proibida para os S'Armunai, e considerada especialmente contra-indicada para mulheres.
A chefe das caçadoras estudou a estranha loura, procurando ver se havia nela mais do que à primeira vista se descobria. Agora que Attaroa estava morta, e que ela sabia que não teria o mesmo fim como castigo de seus atos, sentia um grande alívio. A líder fora tão dominadora que a jovem Epadoa ficara enamorada e fizera muitas coisas para ser-lhe agradável — coisas em que não queria nem pensar. Muitas já lhe pesavam quando as fizera, embora ela não quisesse admiti-lo na época, nem mesmo para si mesma. Quando encontrou o estranho alto e louro, no curso de uma caça, esperava que, o levando como um brinquedo para Attaroa, esta liberasse para seu uso um dos homens do Depósito.
Ela não quisera prejudicar Doban, mas tinha medo de desobedecer. Attaroa o mataria. Pois não matara aquela criatura que ela mesma tinha gerado? Por que a Filha do Lar do Mamute escolhera S'Amodun em vez de Esadoa para pronunciar a sua sentença? Essa escolha lhe salvara a vida. Mas não seria fácil viver doravante no Acampamento. Muita gente a odiava. Agradecia, mesmo assim, a chance que lhe fora dada de redimi-se. Ela cuidaria do rapaz, mesmo se ele a odiava. Devia-lhe isso, afinal de contas.
Mas quem era, de fato, essa Ayla? Teria vindo expressamente para destruir Attaroa como todo mundo pensava? E o homem que andava com ela? Que mágica teria que as lanças não o atingiam? E onde tinham os homens do Depósito conseguido aquelas facas? Fora o Zelandonii o responsável por isso? Será que montavam cavalos, os dois, por serem esses animais os que as Mulheres-Lobas mais caçavam, quando os outros grupos dos S'Armunai caçavam mamutes como seus primos, os Mamutói? E aquele lobo não seria, na verdade, um espírito de lobo, vindo para vingar a sua raça? De uma coisa sabia com certeza: jamais mataria outro lobo na vida. E nunca mais se diria Mulher-Loba.
Ayla se dirigiu para o lugar onde estava o corpo de Attaroa e viu S' Armuna. Aquela que Servia à Mãe observara tudo e não comentara quase nada. Ayla se lembrava bem do seu desespero e dos seus remorsos. Falou com ela em particular, e num tom de voz neutro.
— S'Armuna, mesmo que o espírito de Attaroa esteja deixando este Acampamento, não será fácil reinstaurar o modelo antigo de vida e de comportamento. Os homens saíram do Depósito, e alegro-me que se tenham libertado eles mesmos, pois se lembrarão disso com orgulho, mas levarão muito tempo para esquecer Attaroa e seus anos de confinamento. Só você pode ajudar na instauração de uma nova atmosfera, e essa é uma pesada responsabilidade.
A mulher concordou de cabeça. Sentia que lhe davam a oportunidade de redimir os abusos cometidos na sua qualidade de Servidora da Grande Mãe. Era mais do que esperara. A primeira coisa era sepultar Attaroa e enterrar, com ela, o passado. Precisava falar à multidão.
— Sobrou comida. Vamos terminar este jantar todos juntos. E tempo de pôr abaixo a cerca erguida neste Acampamento entre homens e mulheres. Tempo de partilhar a comida, o fogo, o calor da convivência. Tempo de nos unirmos outra vez como um povo, e sem que haja grandes e pequenos. Cada um tem sua competência e seu papel na comunidade. Se todos contribuírem para o bem-comum, o Acampamento florescerá.
Homens e mulheres expressaram seu apoio. Muitos já se confraternizavam após separados por tanto tempo. Outros mais vieram sentar-se à mesa, em busca de alimento, calor e companhia.
— Epadoa — chamou S'Armuna. E quando a mulher foi ter com ela: — É tempo de levarmos o corpo de Attaroa e prepará-lo para o enterro.
— Para onde levaremos o cadáver? Para dentro de casa?
— Não. Vamos levá-lo para o Depósito. Pode ficar debaixo da coberta. Os homens devem dormir esta noite com conforto e no calor da casa de Attaroa. Muitos estão doentes. Todos estão enfraquecidos. Talvez tenhamos de alojá-los no pavilhão por algum tempo. Você tem onde dormir?
— Sim. Quando eu podia escapar de Attaroa, dividia um quarto com Unavoa no pavilhão em que ela mora.
— Talvez deva mudar-se para lá, se ela estiver de acordo, e se você achar que isso lhe convém.
— Acho que nós duas gostaremos desse arranjo.
— Mais tarde discutimos uma instalação permanente, com Doban.
— Muito bem.
Jondalar ficou observando Ayla, quando ela acompanhou Epadoa e as caçadoras que levavam o corpo de Attaroa, e teve orgulho dela. Mas estava também um tanto surpreso. De certo modo, ela assumira o status e a sabedoria da própria Zelandoni. Antes daquele dia só vira Ayla dominar uma situação dessa forma quando alguém estava doente, ferido ou carente de cuidados especiais. Mas, pensando bem, aquela gente estava carente, doente e machucada. Talvez por isso não fosse tão estranho que precisasse dela e que ela soubesse, tão bem, o que fazer.
De manhã, Jondalar pegou os cavalos e foi buscar a bagagem maior que tinham deixado quando foram atrás de Huiin. Tanta coisa acontecera desde então que ele agora se dava conta de que a Jornada se atrasara. Tinham estado com tal folga antes que ele achara que teriam tempo de sobra para atravessar o glaciar antes do inverno. Agora o inverno já chegara, e eles, longe.
Aquele Acampamento precisava deles, e Jondalar sabia muito bem que Ayla não partiria sem antes fazer tudo o que julgasse indispensável. Ele também prometera cooperação e ficava empolgado com a perspectiva de ensinar Doban e os outros a desbastarem núcleos de sílex e a outros que o desejassem o manejo do propulsor de azagaias. Aquele nódulo de preocupação, no entanto, se instalara: eles tinham de atravessar a geleira antes que a fusão dos gelos na primavera tornasse a travessia muito arriscada. Era preciso partir o quanto antes.
Ayla e S'Armuna trabalharam em equipe para recuperar os homens do Depósito. Para um homem a ajuda vinha tarde demais. Ele morreu de gangrena nas duas pernas naquela primeira noite em casa de Attaroa. Dos outros, muitos precisavam de tratamento a longo prazo ou de curativos imediatos. E estavam, todos, subnutridos. Cheiravam mal por causa da imundície do Depósito e estavam inacreditavelmente sujos.
S’Armuna decidiu adiar a queima dos objetos de argila. Não tinha tempo e não havia clima para aquilo. Ela achava, no entanto, que a cerimônia, realizada oportunamente, contribuiria para a pacificação dos ânimos no Acampamento. Usaram o fogo da cerâmica para esquentar água para o banho e tratamento dos homens. Eles precisavam mesmo era de comida e calor. Os que tinham mães, esposas ou parentes foram morar com as famílias depois dos primeiros cuidados.
A situação dos meninos e adolescentes era o que mais indignava Ayla. Até S'Armuna ficou horrorizada. Afinal, ela fechara os olhos à gravidade da situação.
Naquela noite, depois de mais uma refeição coletiva, Ayla e S'Armuna expuseram alguns dos problemas que tinham encontrado e responderam perguntas. Foi exaustivo, e Ayla finalmente se rendeu: precisava repousar. Quando se levantou para retirar-se, um dos presentes fez uma pergunta sobre o caso de um menino. Ayla respondeu. Logo uma das mulheres fez um comentário sobre Attaroa, responsabilizando-a por tudo e absolvendo a si mesma de qualquer culpa. Exasperada, Ayla fez uma declaração que era fruto da sua raiva acumulada e das canseiras daquele dia interminável.
— Attaroa tinha uma personalidade forte, dominadora. Por mais forte que fosse, porém, duas, cinco, dez pessoas são mais fortes. Se todas vocês lhe tivessem resistido, ela poderia ter sido contida muito antes. De modo que todos neste Acampamento, mulheres e homens, são em parte responsáveis pelo sofrimento desses menores. Por isso eu lhes digo que se algum deles, como resultado dessa... abominação, vier a sofrer por muito tempo, terá de ser cuidado coletivamente pelo Acampamento. Todos são responsáveis por eles e pelo resto das suas vidas. Eles sofreram e por isso são favoritos de Muna. Quem lhes recusar auxílio terá de haver-se com Ela — avisou ela.
Ayla lhes deu as costas e saiu, seguida de Jondalar. Suas palavras tiveram mais efeito do que imaginara. Muita gente já achava que ela não era uma pessoa comum, e havia até quem dissesse que era uma encarnação, um avatar, da própria Grande Mãe, munai vivente, em forma humana, que viera para remover Attaroa e libertar os homens. Como explicar de outro modo que cavalos atendessem a um assovio seu? Ou que um lobo, grande até para os padrões da sua espécie, a seguisse por toda parte e ficasse sentado e quieto quando ela mandasse? Não fora a Grande Mãe quem dera vida às formas espirituais de todos os bichos?
Segundo o que constava, a Mãe criara homens e mulheres por uma boa razão e lhes dera o Dom dos Prazeres para que eles A honrassem Os espíritos combinados do homem e da mulher eram necessários para criação de vidas novas. Muna em pessoa viera para esclarecer que todo aquele que procurasse criar Seus Filhos de outra maneira qualquer eram para Ela uma abominação. Pois não tinha mandado o Zelandonii para mostrar o que Ela sentia? Um homem que era a encarnação do Seu amante e companheiro? Mais alto e mais belo que muitos homens, tão branco e tão claro quanto a lua. Jondalar notava uma diferença na maneira como o Acampamento passara a tratá-lo. E não gostava nada disso. Com tanta coisa para fazer naquele primeiro dia, mesmo com a colaboração de S’Armuna e da maior parte dos membros do Acampamento, Ayla adiara o tratamento especial que pretendia dar aos meninos de perna deslocada. Ja S'Armuna adiara os funerais de Attaroa. Na manhã seguinte, um terreno foi escolhido e a cova aberta Houve uma cerimónia simples, oficiada por Aquela que Servia à Mãe, e a antiga líder voltou ao pó de onde viera, isto é, ao seio da Grande Mãe Terra.
Poucos lamentaram sua morte. Epadoa imaginara que não sentiria nada — mas sentiu. Como a maior parte das pessoas no Acampamento pensava diferente dela, a chefe das caçadoras não podia expressar seus sentimentos. Mas Ayla soube ler na linguagem muda do seu corpo, em suas posturas e expressões, que ela lutava contra a emoção. Doban também teve comportamento surpreendente, e ela concluiu que ele estava lutando para organizar a confusão de emoções de que era o vértice. Na maior parte da sua vida, Attaroa fora uma espécie de mãe para ele — a única que conhecera. Sentiu-se atraiçoado quando ela se voltou contra ele, mas o amor daquela mulher sempre fora errático, e ele não podia abrir mão de todo do sentimento de a feto que tinha por ela.
Mágoas tinham de ser postas para fora. Ayla sabia disso, pois também perdera entes queridos. Pretendia tratar da perna do garoto depois do funeral, mas estava em dúvida se não deveria esperar mais. Aquele dia podia não ser o mais indicado. Mas, por outro lado, ter alguma outra coisa em que pensar poderia ser bom para ela e para o menino. Falou com Epadoa quando voltavam para o Acampamento depois do enterro.
— Vou tentar pôr a perna deslocada de Doban no lugar. Preciso de alguém que me auxilie. Você pode fazer isso?
— Não será por demais doloroso? — indagou Epadoa. Lembrava-se muito bem dos urros que ele soltara, e começava a assumir seu papel protetora do rapaz. Se não era seu filho, estava sob seus cuidados agora, e ele tomava a obrigação a sério. Sua vida, achava, dependia disso.
— Vou botá-lo para dormir. Ele não sentirá nada. Só depois, quando acordar, e, por algum tempo, terá de ser transportado de um lugar para o outro com toda cautela. Estará impossibilitado de andar por algum tempo.
— Eu o carrego — disse Epadoa.
Quando voltaram para o Acampamento, Ayla comunicou ao rapaz que estava disposta a consertar a perna dele. la tentar, pelo menos. Ele fugiu, muito nervoso. Quando viu Epadoa, correu para ela, com os olhos cheios de medo.
— Não quero! Ela vai me torturar! — gritou Doban. Se fosse capaz de fugir, teria fugido.
Epadoa permaneceu de pé, dura e imóvel, junto da plataforma de dormir em que ele estava sentado.
— Eu não o machucarei. Prometo-lhe. Nunca mais. E não vou permitir que ninguém o faça, nem mesmo essa mulher.
Ele a encarou, apreensivo, mas desejando muito acreditar nela. Querendo desesperadamente acreditar nela.
— S'Armuna, por favor. Faça com que ele entenda o que vou dizer — pediu Ayla. Depois inclinou a cabeça para poder olhar dentro dos olhos do rapaz.
— Doban, vou dar-lhe alguma coisa para beber. Não tem gosto a agradável, mas gostaria que você bebesse tudo assim mesmo. Depois de algum tempo, você terá sono. Muito sono. E quando isso acontecer, quero que se deite aqui mesmo. Durante o tempo em que estiver dormindo vou tentar pôr sua perna no lugar. Você não sentirá nada, porque estará dormindo pesadamente. Quando acordar, terá um pouco de dor, mas também se sentirá melhor, decerto modo. Se doer muito, você dirá... a mim a S'Armuna, a Epadoa. Haverá sempre alguém aqui, com você, todo o tempo. E quem estiver aqui lhe dará algo para tomar que aliviará a dor Entendeu?
— Será que Zelandon pode vir aqui falar comigo?
— Sim. Vou chamá-lo, se quiser.
— E S'Amodun?
— Sim. Os dois. Se quiser.
Doban olhou para Epadoa.
— E você não deixará que ela me faça mal?
— Prometo. Não deixarei que ela lhe faça mal. Nem ela nem ninguém.
Doban olhou para S'Armuna, depois de volta para Ayla.
— Onde está o que tenho de beber?
O processo foi semelhante ao que ela usara para corrigir o braço de Roshario. A poção relaxava os músculos e anestesiava o paciente. Depois, puxar a perna era uma questão de força física, mas quando ela voltou ao lugar isso ficou patente para qualquer um. Alguma coisa se quebrara, porém, como Ayla descobriu, e a perna não ficaria como nova. Mas o corpo pareceu quase normal outra vez.
Epadoa retornou à casa em que morara por tanto tempo, uma vez que, na maior parte, os homens e rapazes tinham ido morar com as famílias, e ficou junto de Doban a maior parte do tempo. Ayla notou que eles começavam a confiar um no outro. Era isso, achava ela, o que S'Amodun tivera em vista.
O mesmo processo foi tentado com Odevan, mas Ayla achou que, no caso dele, o processo de cura seria mais difícil, e que a perna do menino ficaria permanentemente com uma tendência de saltar fora da junção de vez em quando.
S'Armuna estava impressionada com Ayla e tinha por ela uma espécie de temor respeitoso. Imaginava se os rumores a respeito. Imaginava se os rumores a respeito da mulher não teriam algum fundamento, afinal de contas. Ela parecia igual às outras, falava, dormia, tinha lá Prazeres com aquele homenzarrão louro como qualquer mulher, mas seus conhecimentos das plantas e de suas propriedades medicinais eram fenomenais. Todo mundo falava disso. S'Armuna ganhava prestígio por associação. E embora a Xamã se tivesse acostumado com Lobo e não mais o temesse, era quase impossível vê-lo com Ayla e não verificar que ela controlava o espírito do animal. Quando o lobo não a acompanhava, seus olhos a seguiam por toda parte. O homem fazia a mesma coisa, mas era menos óbvio que o bicho.
A Xamã não notava muito os cavalos porque eram deixados a pastar a maior parte do tempo. Ayla dizia que era bom para eles descansar um pouco e que se alegrava com isso — mas S'Armuna tinha visto os dois cavalgando. O homem montava o cavalo escuro com facilidade, sem dúvida, mas quem visse a mulher em cima da égua julgaria que eram feitas da mesma carne.
Mas, embora se maravilhasse, Aquela que Servia à Mãe ficava também cética. Fora treinada pela zelandônia, e sabia que tais ideias eram, frequentemente, encorajadas. Aprendera e muitas vezes empregara técnicas de enganar os outros, de fazer acreditar o que ela, e eles, queriam acreditar. Não considerava isso como embuste ou fraude — ninguém tinha tanta convicção quanto ela da dignidade da sua vocação —, empregava apenas os meios a seu alcance para tornar o caminho mais fácil e persuadir as pessoas. Muitos podiam ser ajudados assim, principalmente aqueles cujos problemas e doenças não tinham causa discernível, exceto, talvez, alguma praga rogada por gente ruim e poderosa.
Embora ela mesma não quisesse aceitar todos os rumores que corriam, S'Armuna não os coibia. A gente do Acampamento queria crer que tudo o que Ayla e Jondalar diziam era um pronunciamento da Mãe, e ela se valia dessa convicção geral para implementar reformas necessárias. Quando Ayla mencionou os Conselhos Mamutói de Irmãs e de Irmãos, por exemplo, S'Armuna organizou Conselhos semelhantes, ou inspirou sua organização. Quando Jondalar sugeriu que se encontrasse alguém de outro Acampamento para prosseguir no ensino da arte de desbastar núcleos de pedras-de-fogo, ela reforçou com sua autoridade o envio de uma delegação a diversos acampamentos S'Armunai, para renovar ligações de parentesco e restabelecer contatos rompidos.
Numa noite clara e fria, de firmamento estrelado, um grupo de pessoas se reuniu à porta da antiga residência de Attaroa, que se convertera, dadas as suas vastas dimensões, num centro de atividades comunitárias, depois de ter servido, no primeiro momento, como hospital de pronto-socorro e clínica de recuperação. Falavam do mistério daquelas luzes que Peavam no céu, e S'Armuna respondia perguntas e dava explicações, Ela passava tanto tempo ali ultimamente, curando com remédios e cerimonias, e reunindo-se com diferentes grupos para fazer planos e discutir problemas, que acabara por levar alguns pertences para lá, deixando os dois estranhos sozinhos em seu pequeno pavilhão. De tal modo que o Acampamento começava a ficar parecido com outros Acampamentos e Cavernas que Ayla e Jondalar conheciam, e nos quais o alojamento Daquela que Servia à Mãe funcionava como um foco e centro de reunião para todo o povo.
Depois que os dois hóspedes se retiraram, com Lobo nos calcanhares, alguém fez uma pergunta a S'Armuna sobre aquele animal que seguia Ayla por toda parte. Aquela que Servia à Mãe apontou uma das luzes do céu.
— Aquela é a Estrela do Lobo. — Foi tudo o que disse.
Os dias passavam-se bem rápido. Quando os homens e meninos começaram a recuperar-se e já não precisavam dela como médica e enfermeira, Ayla passou a sair com as equipes de coleta, em busca dos escassos alimentos vegetais do inverno. Jondalar fez progressos no ensino das suas artes de britador e armeiro, demonstrando como fazer e usar a máquina de lançar azagaias a distância.
O Acampamento começou a armazenar suprimentos de uma variedade de alimentos, fáceis de estocar e preservar em temperaturas glaciais, principalmente carne. De começo, houve problemas de adaptação, quando os homens começaram a reivindicar alojamentos que as mulheres consideravam seus de direito, mas aos poucos a situação se normalizou.
S'Armuna achou, então, que o tempo era chegado para queimar no forno suas figurinhas de argila, e começou a falar na realização de uma Cerimónia do Fogo, com seus dois hóspedes. Estavam na sala da olaria preparando o material do seu forno combustível que ela reunira no verão e no outono para alimentar o fogo. Explicou que seria preciso muito mais lenha e que cortar lenha representava um trabalho insano.
— Você não será capaz de fazer ferramentas melhores de cortar lenha, Jondalar? — perguntou a Xamã.
— Farei, com prazer, machados, marretas, cunhas e o mais que vocês quiserem, mas a madeira verde não queima direito — disse.
— Pretendo usar também ossos de mamute, mas precisamos de fogo forte desde o começo, e ele tem de arder, sem interrupção, muito tempo. Uma Cerimónia dessas gasta um monte de lenha.
Quando deixaram o pavilhão, Ayla olhou, através do Acampamento, para o antigo Depósito. As pessoas vinham retirando pedaços dele. Mesmo assim, estava ainda de pé. Ela sugerira que a paliçada fosse usada como base de um curral, para onde animais podiam ser levados. A partir daí, os moradores não tiraram mais madeira da cerca e agora que estavam acostumados com aquela estrutura nem notavam mais sua existência.
Contemplando-a da porta da casa de S'Armuna, Ayla teve uma ideia.
— Não vai ser preciso cortar árvores. Jondalar pode fazer ferramentas para deitar abaixo o Depósito. — Os três olharam e viram a paliçada com novos olhos. S'Armuna viu mais que os outros, viu os contornos da sua nova cerimónia. .
— Mas é perfeito! — exclamou. — A destruição daquele lugar de infâmia para criar uma cerimónia inédita e purificadora! Todos poderão tomar parte nela e todos ficarão contentes com a desaparição do Depósito. O ato simbolizará um novo começo para nós, e vocês estarão presentes também.
— Disso não tenho certeza — disse Jondalar. — Quanto tempo levara a organização da cerimónia?
— Não é coisa que comporte açodamento. É importante demais.
— Foi o que pensei. Temos de partir muito em breve — disse Jondalar.
— Mas logo entraremos no período mais frio do inverno — objetou S'Armuna.
— E em seguida vem o degelo da primavera. Você já atravessou aquele glaciar, S'Armuna. Sabe, então, que isso só pode ser feito no inverno. E eu prometi a alguns Losadunai que iria visitar a Caverna deles na volta. Vamos passar uns dias lá, com esses amigos. Não podemos ficar muito tempo, mas será um bom lugar para fazer escala e preparar a passagem.
S'Armuna concordou:
— Então uso minha Cerimónia do Fogo para abençoar a viagem de vocês. Muitos esperavam que ficassem conosco para sempre, e todos sentirão sua falta.
— Eu gostaria muito de ver cozer as argilas — disse Ayla — e de conhecer o bebê de Cavoa, mas Jondalar tem razão. É hora de dizer adeus.
Jondalar decidiu fazer as ferramentas de S'Armuna de imediato. Localizou uma boa concentração de sílex nas imediações e foi com dois homens recolher algumas pedras de que pudesse tirar machados e outras ferramentas de cortar. Quanto a Ayla, começou a preparar as bagagens e a ver o que mais seria necessário na viagem. Esparramara tudo no chão quando viu que alguém estava à porta. Era Cavoa.
— Estou incomodando, Ayla?
— De maneira nenhuma. Entre.
A moça, grávida de nove meses, entrou e se sentou na beirada do estrado de dormir, de frente para Ayla.
— S'Armuna me disse que vocês estão de partida.
— Sim, dentro de um ou dois dias.
— Pensei que ficariam para a cerimónia.
— Eu queria ficar, mas Jondalar está ansioso por partir. Ele diz que precisamos atravessar a geleira antes da primavera.
— Fiz algo para você, que só ia dar depois de cozido — disse Cavoa, tirando da saia um pequeno embrulho de couro. — Agora vou ter de dar assim mesmo, mas se ficar molhado estará perdido — concluiu, passando o presente às mãos de Ayla.
Era a cabeça de uma leoa, modelada em argila.
— Que beleza, Cavoa! É mais que bonita. Você captou a essência de urna leoa das cavernas. Não sabia que tinha esse talento.
Cavoa sorriu.
— Você gosta?
— Conheci um homem, um Mamutói, que esculpia em marfim. Era um grande artista. Foi ele quem me ensinou a apreciar coisas entalhadas ou pintadas. Estou certa de que admiraria a sua leoa.
— Tenho feito coisas de marfim, de madeira, de chifre desde que me entendo por gente. Foi por isso que S'Armuna me chamou para trabalhar com ela. S'Armuna tem sido maravilhosa comigo. Ela tentou ajudar a gente... Foi boa para Omel também. Permitiu-lhe guardar segredo e nunca exigiu nada dele, como outros teriam feito, nas circunstância. Tanta gente tinha curiosidade de saber! — Cavoa baixou os olhos e pareceu lutar para conter as lágrimas.
— Sei que você sente saudade dos seus amigos — disse Ayla, com doçura. — Deve ter sido difícil para Omel guardar um segredo desses.
— Omel tinha de fazer segredo. Por causa de Brugar? S'Armuna disse que ele fez ameaças.
— Não. Não por Brugar, mas por Attaroa. Eu não gostava de Brugar e me lembro de como ele a responsabilizou brutalmente por Omel, embora eu fosse pequena. Mas penso que ele sentia mais medo de Omel do que Omel dele, e Attaroa sabia por quê.
Ayla intuiu o que afligia Cavoa.
— E você também sabia, não?
A moça franziu a testa.
— Sim — disse em voz muito baixa. Depois olhou dentro dos olhos de Ayla. — Eu queria tanto que você estivesse aqui quando fosse a minha hora! Quero que tudo saia direito para o bebê, e não sei como...
Não era preciso dizer mais nada ou entrar em detalhes. Cavoa temia que a criança nascesse com alguma anormalidade, e nomear o mal apenas serve para fortalecê-lo, como todo mundo sabe.
— Bem, não estou partindo já, e quem sabe? A meu ver, você pode ter esse bebê a qualquer momento — disse Ayla. — Talvez ainda estejamos aqui.
— Espero que sim. Você fez tanto por nós. Como teria sido bom que tivesse vindo antes que Omel e os outros...
Ayla viu que a moça tinha os olhos marejados.
— Eu sei, você sente saudades, mas logo vai ganhar um bebê, que será só seu. Isso ajuda, vai ver. Já pensou em um nome?
— Por muito tempo não pensei. Não adiantava muito escolher um nome de menino, e eu não sabia se me deixariam dar nome a uma menina. Agora, se for menino, não sei se lhe dou o nome de meu irmão ou... de outro homem que conheci. Se for mulher, quero dar-lhe o nome de S'Armuna. Ela me ajudou a... vê-lo...
Um soluço de angústia interrompeu a frase. Ayla tomou a moça nos braços. A dor não precisa de palavras. Era bom para ela desabafar. Aquele Acampamento ainda estava cheio de sofrimento que precisava ser posto para fora. Ayla esperava que a cerimónia imaginada por S'Armuna ajudasse. Quando o choro finalmente passou, Cavoa se endireitou e enxugou os olhos com as costas da mão. Ayla procurou alguma coisa que pudesse servir para secar-lhe as lágrimas e abriu um embrulhinho que levava consigo havia anos. Cavoa poderia usar o couro, que era macio. Mas quando Cavoa viu o que havia dentro ficou pasma. Era uma munai, uma figurinha de mulher esculpida em marfim. Só que essa munai tinha um rosto, e o rosto era o de Ayla.
Cavoa tirou os olhos, como se tivesse visto algo indevido. Depois, saiu rapidamente. Ayla guardou a talha que Jondalar fizera para ela. Estranhava a reação da moça. Cavoa ficara visivelmente assustada.
Procurou tirar aquilo da cabeça, enquanto empacotava as coisas. Apanhou a bolsa das pederneiras para contá-las e saber quantas daquelas pedras de pirita de ferro, amarelo-acinzentado, ainda lhe restavam. Queria dar uma a S'Armuna, mas não sabia se seriam comuns na região de Jondalar, e precisava ter algumas com que presentear os parentes dele. Resolveu dar uma assim mesmo, só uma, e escolheu um nódulo de bom tamanho. Depois guardou as demais.
Saindo, depois, para ir à casa de Attaroa, viu que Cavoa deixava o edifício justamente quando ela entrava. Sorriu-lhe, viu que a outra correspondia nervosamente, mas quando encontrou S'Armuna achou que a Xamã também a fitava com estranheza. A munai de Jondalar criara um problema, ao que parecia. Ayla esperou até ficar sozinha com S'Armuna para dar-lhe a pederneira.
— Tenho um presentinho. É uma coisa que descobri quando vivia sozinha no meu vale — disse, abrindo a palma para mostrar-lhe a pedra. — Pensei que poderia usá-la na sua cerimónia.
S'Armuna olhou para a pedra e depois para Ayla, sem compreender.
— Eu sei que não parece, mas há fogo aí dentro. Deixe que lhe mostre.
Ayla foi até a lareira, reuniu gravetos e aparas e riscou a pedra. Uma grande faísca saltou fora e caiu no material inflamável. Ela soprou, e logo, miraculosamente, uma pequenina chama apareceu. Ayla juntou-lhe um pouco mais de matéria combustível e quando ergueu os olhos S'Armuna a contemplava com a incredulidade estampada no rosto.
— Cavoa me contou que viu uma munai com seu rosto, e agora você tira fogo de uma pedra. Você será... quem eles dizem que é?
Ayla sorriu.
— Jondalar fez aquela talha. Por amor. Disse que ia captar o meu espírito. Depois me deu o marfim. Não é um doni nem uma munai. Representa apenas um símbolo do seu afeto. Quanto ao fogo, terei prazer em ensinar a você como se faz. Não é arte minha, é algo que está na pedra.
— Não sou demais? — A voz vinha da entrada, e ambas se viraram para ver quem era. Cavoa.
— Esqueci minhas mitenes e voltei para apanhá-las.
S'Armuna olhou para Ayla.
— Não vejo por que não — disse Ayla.
— Cavoa é minha acólita — disse S'Armuna.
— Então vou mostrar às duas como a pedra-de-fogo funciona — disse Ayla.
Repetiu a operação, deixou que as duas experimentassem, e elas ficaram mais tranquilas, mas não menos extáticas com as propriedades da pedra. Cavoa ganhou coragem e falou sobre a munai.
— Aquela figura que vi...
— Foi feita por Jondalar, pouco depois de nos conhecermos. Era uma prova de seu amor por mim.
— Você quer dizer que se eu quisesse mostrar a uma pessoa o quão importante ela é para mim eu poderia fazer um retrato daquela pessoa? — perguntou Cavoa.
— Claro. Quando você faz uma munai, sabe por que a está fazendo, tem um sentimento qualquer dentro de você, não é mesmo?
— Sim, e o processo é acompanhado de certos rituais — disse a moça.
— Acho que é o sentimento que você põe na obra que faz a diferença.
— Então, posso fazer o rosto de uma pessoa se o sentimento que ponho no trabalho é bom?
— Sim, não vejo nada de errado nisso. Você é uma excelente artista, Cavoa.
— Mas talvez fosse melhor não fazer a figura toda — disse S'Armuna. — Se fizer só a cabeça, não haverá confusão.
Cavoa concordou. Depois as duas mulheres encararam Ayla, esperando pela aprovação dela. No fundo, ambas ainda se perguntavam quem era, de fato, aquela estranha.
Ayla e Jondalar acordaram na manhã seguinte com a firme intenção de partir, mas havia do lado de fora uma forte nevasca. Tão forte que não se via nada à frente.
— Acho que não podemos ir embora hoje, não com uma tempestade feito essa — disse Jondalar, detestando o adiamento. — Espero que passe logo.
Ayla foi até o campo, chamou os cavalos, para ver se estavam bem. Ficou feliz quando eles surgiram da cerração e levou-os para uma área mais próxima do acampamento e mais protegida do vento. Na volta, pensava no itinerário de retorno ao Rio da Grande Mãe, pois a partir dali era ela quem conhecia o caminho.
— Ayla!
Alguém chamou, mas tão baixo que ela não ouviu. Foi preciso que a pessoa repetisse seu nome. Voltando-se, viu Cavoa, junto do pavilhão da Xamã, pedindo-lhe com um aceno que fosse ter com ela.
— O que foi, Cavoa?
— Quero mostrar-lhe uma coisa, para saber se gosta — disse a moça.
Quando Ayla chegou mais perto, ela tirou a mitene. Tinha na palma da mão um objeto diminuto, da cor de marfim de mamute. Botou-o cuidadosamente na mão de Ayla.
— Acabei de fazê-lo.
Ayla contemplou o objeto e ficou maravilhada.
— Cavoa! Eu sabia que você era boa nisso. Mas não tão boa assim! —disse, examinando com atenção o pequeno retrato de S'Armuna.
Ela fizera só a cabeça da mulher, sem sugestão de corpo, nem mesmo de pescoço. Mas não havia dúvida de quem era a pessoa representada. O cabelo estava puxado para cima, formando um coque no alto. A face, estreita, era ligeiramente oblíqua, com um lado um pouco menor que o outro. Mas a beleza e dignidade da mulher eram evidentes. Pareciam emanar do interior da pequenina obra de arte.
— Acha que ficou bom? Será que ela gostará? — disse Cavoa — Quis fazer alguma coisa especial para S'Armuna.
— Eu gostaria — disse Ayla-, e penso que expressa muito bem seus sentimentos de afeto por ela. Você tem um dom muito precioso e muito raro, Cavoa, mas deve usá-lo bem. Pode haver grande poder nisso S'Armuna agiu muito bem escolhendo-a para acólita.
A noite, a tempestade estava ainda mais forte. Ficou até perigoso andar mais do que uns poucos passos fora dos alojamentos. S'Armuna se ocupava em puxar um feixe de ervas secas pendurado do teto, junto da entrada, Para acrescentá-lo a outros ingredientes de uma forte bebida que preparava para a Cerimónia do Fogo. Ayla e Jondalar tinham ido deitar-se e só havia brasas na lareira. A mulher pretendia também retirar-se logo que acabasse o que estava fazendo.
Mas de súbito a pesada cortina da entrada da ante-sala foi aberta entrou uma lufada de ar frio e neve por baixo da segunda cortina, esta foi empurrada com violência, e Esadoa apareceu.
— S'Armuna! Depressa! É Cavoa! A hora dela chegou.
Ayla já estava fora da cama e se vestia antes que a Xamã tivesse podido responder.
— Bonita noite ela arranjou para ter criança! — disse S'Armuna, conservando a calma, em parte para tranquilizar a avó, que torcia as mãos. — Vai dar tudo certo, Esadoa. Ela não terá o bebê antes que a gente chegue à sua casa.
— Ela não está na minha casa. Insistiu em sair, com esta nevasca toda. Esta na casa grande, de Attaroa. Não sei por que, mas é lá que ela quer ter o bebê. Pediu que Ayla também viesse. Ela diz que só assim terá certeza de que não haverá nada de errado com a criança.
S'Armuna franziu a testa.
— Não há ninguém lá, esta noite, e Cavoa não devia ter saído com um tempo assim.
— Eu sei, mas não consegui dissuadi-la. — Fez meia-volta para ir-se embora.
— Espere, mulher — disse S'Armuna. — Vamos todas juntas, é melhor assim. A gente pode perder-se numa tempestade dessa, indo de uma casa para outra.
— Com Lobo não nos Perdemos — disse Ayla, chamando o animal, enrodilhado no pé da cama.
— Será pouco apropriado que eu vá também? — perguntou Jondalar. Não que quisesse estar Presente ao parto, mas se preocupava com a segurança de Ayla, na neve. S'Armuna consultou Esadoa com um olhar.
— Por mim, pode vir. Mas é certo homem em parto?
— Errado não é — disse S'Armuna. — Não há motivo por que não venha. Pode ser bom um homem por perto, uma vez que a moça não tem companheiro.
Enfrentaram, todos juntos, a violência da ventania. Quando alcançaram a casa grande de Attaroa, viram a mulher, dobrada sobre si mesma, ao lado de uma lareira apagada e fria, com o corpo tenso de dor e olhos arregalados de medo. Ela respirou melhor ao vê-los. Em uma questão de minutos, Ayla tinha acendido o fogo — para grande espanto de Esadoa —, e Jondalar saíra a apanhar neve numa vasilha para derreter e fazer água. Esadoa encontrara a roupa de cama, que fora guardada fez um leito na plataforma, e S'Armuna escolheu ervas de que poderiam precisar, de um lote que levara para lá anteriormente.
Ayla acomodou a moça na cama, arranjando tudo de modo a que ela se sentisse confortável, sentada ou deitada, como preferisse, mas esperou por S'Armuna, e as duas a examinaram juntas. Depois de tranquilizarem Cavoa e deixá-la com a mãe, as duas curandeiras confabularam em voz baixa, num canto.
— Você notou? — perguntou S'Armuna.
— Notei — disse Ayla. — E você sabe o que isso quer dizer?
— Acho que sim, mas vamos esperar para ver.
Jondalar procurara não atrapalhar, mas agora alguma coisa na expressão das mulheres lhe fez ver que estavam preocupadas. Aproximou-se delas em silêncio, mas não disse nada. Sentou-se numa plataforma e ficou afagando o pescoço do lobo. Ele também ficara ansioso. Queria que o tempo passasse mais depressa, e acabou andando de um lado para o outro, enquanto as mulheres aguardavam. Jondalar queria que a neve cessasse ou que ele tivesse alguma coisa para fazer. Falou com a parturiente um pouco, procurando encorajá-la, sorriu-lhe repetidas vezes, mas se sentia um inútil. Por fim, e como a noite se eternizasse, cochilou um pouco em uma das camas, enquanto os sons fantasmagóricos da tempestade de neve continuavam lá fora, em contraponto aos periódicos gritos e gemidos dos trabalhos de parto, que, vagarosa mas inexoravelmente, caminhavam, paralelos, para um desfecho.
Foi acordado por vozes excitadas e um surto frenético de atividade. Viu luz pelas fendas em torno do orifício do teto. Levantou-se, espreguiçou, esfregou os olhos e saiu, ignorado pelas três mulheres, e urinar no lado de fora. Alguns flocos de neve ainda rodopiavam ao vento, mas a tempestade amainara de forma considerável, o que muito o alegrou.
Quando se preparava para voltar, ouviu o berreiro inconfundível de um recém-nascido. Sorriu, mas esperou do lado de fora. Não sabia se podia entrar. Mas, de repente, e para grande surpresa dele, ouviu outro choro, que se juntou ao primeiro, em dueto. Dois berreiros sucessivo? não pôde resistir e entrou.
Ayla, com um menino já enfaixado nos braços, sorriu-lhe mal o viu à porta.
— Um menino, Jondalar!
S'Armuna erguia no ar um segundo bebê, preparando-se para atar o cordão umbilical.
— E uma menina — disse. — Gémeos! É um bom augúrio. Tão poucos bebês nasceram quando Attaroa era líder! Mas agora penso que a tendência vai mudar. Acho que a Mãe nos dá com isso um sinal de que o Acampamento das Três Irmãs logo estará crescendo e ficará cheio de vida outra vez.
— Vocês voltarão, algum dia? — perguntou Doban. Estava andando agora com muito maior desembaraço, embora ainda usasse a muleta que Jondalar fizera para ele.
— Creio que não, Doban. Uma longa Jornada é bastante. Agora é tempo de voltar para casa, deitar raízes, fundar meu lar.
— Gostaria que você morasse mais perto, Zelandon.
— Eu também gostaria. Você vai ser um excelente artesão, e eu gostaria de continuar a prepará-lo para isso. E você bem que poderia chamar-me de Jondalar.
— Não. Você é Zalandon.
— Quer dizer Zelandonii?
— Não, Zelandon mesmo.
S'Amodun sorriu.
— Ele não se refere ao nome do seu povo. Arranjou outro nome para você: Elandon. Mas prefere honrá-lo com essa fórmula de respeito: S'Elandon.
Jondalar corou de prazer e acanhamento.
— Obrigado, Doban. Talvez eu devesse chamá-lo S'Ardoban.
— Ainda não. Um dia, quando eu souber trabalhar o sílex como você, aí sim, pode ser que me chamem S'Ardoban.
Jondalar deu um abraço apertado no rapaz, bateu no ombro de alguns outros e conversou um pouco com o grupo. Os cavalos, já com todos os petrechos no lombo, e prontos para partir, estavam um pouco afastados. Lobo, porém, deitara-se no chão, de olhos em Jondalar. levantou-se quando viu que Ayla saía da casa comunal com S'Armuna. Jondalar também se alegrou ao vê-las.
— ...sim, sem dúvida, é uma beleza — dizia a Xamã —, e eu estou emocionada que ela tenha querido fazer isso, mas... você não acha... perigoso?
— Enquanto tiver em seu poder a reprodução do seu rosto, que mal lhe poderá advir? Nenhum. Pode, até, servir para aproximá-la ainda mais da Grande Mãe, dar-lhe uma compreensão mais aprofundada dos Seus mistérios — disse Ayla.
As duas abraçaram-se e S'Armuna deu também um grande abraço em Jondalar. Recuou, depois, quando ele chamou os cavalos, mas tocou-o pelo braço, depois, para mais uma palavra.
— Jondalar, quando estiver com Marthona, diga-Ihe que S'Armu... não, diga-lhe que Bodoa manda lembranças.
— Certamente. Ela ficará feliz — disse ele, montando.
Voltaram-se uma vez para acenar, ele e Ayla, mas era um alívio para Jondalar seguir viagem. Jamais seria capaz de recordar aquele Acampamento sem uma sensação conflitante.
A neve começou a cair, de leve, quando já se afastavam. Os moradores do Acampamento das Três Irmãs deram adeus, de longe.
— Boa viagem, S'Elandon!
— Boa viagem, S'Ayla!
E quando desapareceram por trás daquela cortina de neve dançante não houve uma só pessoa que não acreditasse — ou quisesse acreditar — que os dois tinham estado lá para livrá-los de Attaroa e libertar os homens do Acampamento. Logo que os dois estivessem longe da vista deles a transformação se operaria. Convertidos na Grande Mãe Terra e seu Louro Companheiro Celestial, cavalgariam o vento, céus afora, acompanhados por sua fiel protetora, a Estrela do Lobo.
Voltaram em direção ao Rio da Grande Mãe, com Ayla liderando a marcha, pela mesma trilha que tinham seguido para encontrar o Acampamento dos S'Armunai, mas quando chegaram ao cruzamento resolveram vadear o pequeno afluente e depois rumar para sudoeste. Cavalgavam pelo mato, acompanhando as planícies serpenteantes da antiga bacia que separava os dois grandes sistemas montanhosos, sempre na direção do rio.
Apesar de nevar pouco, tinham muitas vezes de se proteger do vento cortante. No frio intenso, os flocos secos de neve eram atirados de um lado para outro pelos ventos incessantes, até se transformarem numa poeira de gelo, às vezes misturada com as partículas pulverizadas de pô de pedra — loess —, que vinham das margens das geleiras móveis. Quando o vento se tornava especialmente forte, esfolava-lhes a pele. As ervas crestadas, nos lugares mais expostos, já havia muito tinham sido aplanadas, mas os ventos, que impediam que a neve se acumulasse, a não ser em locais abrigados, expunham a forragem amarelada o suficiente para que os cavalos pastassem.
Para Ayla, a viagem de volta pareceu muito mais rápida, já que não procurava seguir uma trilha em terreno difícil, mas Jondalar surpreendeu-se com a distância que tiveram de percorrer antes de chegarem ao rio. Não se dera conta do quanto tinham ido na direção do norte. Acreditava que o Acampamento dos S'Armunai não estivesse distante do Grande Gelo.
Seu cálculo estava correto. Se houvessem seguido para o norte, poderiam ter alcançado a colossal muralha do lençol de gelo continental numa caminhada de dois dias ou pouco mais. No começo do verão, pouco antes de haverem iniciado a Jornada, haviam caçado mamutes na face gelada afiada de uma vasta barreira setentrional, mas bem para leste. Desde então, tinham descido toda a extensão da vertente oriental de um imenso arco recurvado de montanhas, em torno da base sul, e subido o flanco ocidental da cordilheira, quase chegando de novo à geleira.
Deixando para trás os últimos afloramentos e as encostas das montanhas que haviam dominado suas viagens, viraram para oeste ao atingir o Rio da Grande Mãe e começaram a se aproximar dos contrafortes setentrionais da cadeia ocidental, ainda maior e mais alta. Estavam refazendo o caminho percorrido, procurando o lugar onde haviam deixado o equipamento e as provisões, seguindo a mesma rota que tinham começado no início da estação, quando Jondalar acreditara que tivessem tempo de sobra... até a noite em que Huiin fora levada pelo rebanho selvagem.
— Os sinais parecem conhecidos... Deve ser por aqui — disse ele.
— Acho que você tem razão. Eu me lembro daquele penhasco, mas o resto parece tão diferente — disse Ayla, contemplando com desalento a paisagem modificada.
Uma quantidade maior de neve tinha-se acumulado naquela área. A margem do rio estava congelada, e, com a neve juntando-se em montes e enchendo todas as depressões, era difícil determinar onde a margem terminava e o rio começava. Os ventos fortes e o gelo, que se formara nos galhos durante períodos alternados de congelamento e degelo, no princípio da estação, haviam derrubado várias árvores. Ramos e galhos pendiam sob o peso da água congelada; cobertos de neve, muitas vezes se afiguravam aos viajantes como outeiros ou montes de pedras, até se romperem quando tentavam subir neles.
A mulher e o homem detiveram-se junto de um arvoredo e examinaram com cuidado a área, tentando descobrir alguma coisa que lhes desse uma pista do local onde haviam guardado a tenda e a comida.
— Devemos estar perto. Sei que o lugar é este, mas está tudo tão diferente — disse Ayla. Depois fez uma pausa e olhou para o homem. — Muitas coisas são diferentes do que parecem ser, não é, Jondalar?
Ele a olhou com uma expressão de quem não entendia.
— Bem, no inverno realmente as coisas são diferentes do verão.
— Não me refiro somente ao lugar — respondeu Ayla. — É difícil explicar. É como aconteceu quando partimos e S'Armuna lhe pediu que dissesse à sua mãe que ela mandava lembranças, mas ela falou que era Bodoa que as mandava. Era por esse nome que sua mãe a chamava, não era?
— É, tenho certeza que foi isso que ela quis dizer. Quando pequena, provavelmente era chamada de Bodoa.
— Mas ela teve de abandonar seu nome quando se tornou S'Armuna. Tal pai como o Zelandoni de quem você fala, o que você conheceu como Zolena — disse Ayla.
— O nome foi abandonado espontaneamente. Faz parte das obrigações de uma pessoa que se torna Aquele que Serve à Mãe — disse Jondalar.
— Compreendo. Foi a mesma coisa quando Creb se tornou O Mogur. Ele não tinha de renunciar ao nome com que nasceu, mas quando ele estava oficiando uma cerimónia como O Mog-ur, era outra pessoa. Quando ele era Creb, era como seu totem de nascimento, o Gamo, acanhado e sossegado, sempre caladão, quase como se estivesse espiando de um esconderijo. Mas quando ele era Mog-ur, então se tornava poderoso e autoritário, como seu totem do Urso da Caverna — disse Ayla. — Nunca era exatamente como parecia ser.
— Você é um pouco assim, Ayla. Na maior parte do tempo você presta muita atenção e não fala muito, mas quando alguém está sofrendo ou em dificuldades, você quase se transforma em outra pessoa. Assume o controle. Diz às pessoas o que devem fazer e elas fazem.
Ayla franziu a testa.
— Nunca pensei nisso. Tudo o que quero é ajudar.
— Eu sei. Mas é mais do que querer ajudar. Você em geral sabe o que fazer, e a maioria das pessoas percebe isso. Acho que é por isso que fazem o que você manda. Acho que você poderia ser Aquela que Serve à Mãe, se quisesse — disse Jondalar.
Ayla franziu ainda mais a testa.
— Não creio que eu desejasse isso. Não gostaria de perder meu nome. É a única coisa que me sobrou de minha verdadeira mãe, da época em que eu vivia com o Clã — disse a moça. De repente, ficou tensa e apontou para um montículo coberto de neve, estranhamente simétrico. —Jondalar! Olhe ali!
O homem olhou para onde ela apontava, e demorou um pouco para perceber do que se tratava. Depois deu-se conta da estranheza da forma.
— Seria aquilo...? — murmurou, fazendo Racer dar um salto adiante.
O montículo situava-se em meio a um emaranhado de espinhos, o que os animou ainda mais. Desmontaram. Jondalar achou um galho resistente e avançou, abrindo caminho na moita. Ao chegar junto do montículo simétrico, bateu nele e a neve caiu, deixando à mostra o bote virado.
— É aí! — exclamou Ayla.
Bateram e sacudiram os galhos espinhemos, até conseguirem chegar ao bote e aos pacotes sob ele, cuidadosamente embalados.
O esconderijo não fora inteiramente eficaz, e a primeira indicação disso lhes foi dada por Lobo. Era óbvio que ele estava agitado com um cheiro que ainda pairava por ali, e quando acharam excrementos de lobo, descobriram o porquê. O esconderijo fora depredado por lobos e, em alguns casos, haviam conseguido rasgar alguns dos pacotes cuidadosamente amarrados. Até mesmo a tenda se achava rasgada, mas surpreendeu-os que a situação não fosse ainda pior. Em geral os lobos não conseguiam ficar longe de couro, material que adoravam mastigar.
— O repelente! Deve ter sido ele que evitou que causassem ainda maior dano! — disse Jondalar. Alegrava-o que a mistura de Ayla tivesse não só mantido seu companheiro de viagem canino afastado de suas coisas como mais tarde mantivera também outros lobos a distância. — E dizer que durante todo o tempo achei que Lobo estivesse dificultando nossa Jornada! Pelo contrário, se não fosse ele, provavelmente não teríamos agora nem mesmo a tenda. Chegue aqui, rapaz — disse Jondalar, batendo no peito e convidando o animal para apoiar as patas nele. — Outra vez! Salvou nossas vidas, ou ao menos nossa tenda.
Ayla ficou a observá-lo, enquanto o homem metia a mão no pêlo do animal, e sorriu. Estava satisfeita por vê-lo mudar de atitude em relação a Lobo. Não que Jondalar algum dia tivesse sido mau com ele, ou mesmo que não o aprovasse. Mas nunca fora assim tão amistoso e gentil. Era óbvio que também Lobo apreciava aquela atenção.
O dano teria sido muito maior se não fosse o repelente, mas o preparado não mantivera os lobos longe de suas provisões, que haviam sido reduzidas em muito. Desaparecera a maior parte da carne-seca e dos alimentos prontos, e muitos pacotes de frutas secas, legumes e cereais tinham sido abertos ou estavam faltando, talvez levados por outros animais depois da partida dos lobos.
— Acho que devíamos ter aceitado mais daquela comida que os S'Armunai nos ofereceram quando saímos — disse Ayla. — Mas o que tinham não bastava para eles mesmos. Quem sabe podemos voltar?
— Eu preferiria não fazer isso — disse Jondalar. — Vamos ver o que sobrou. Caçando, poderemos dispor de comida suficiente para chegar até os Losadunai. Thonolan e eu encontramos alguns deles e passamos uma noite em sua companhia. Convidaram-nos para voltar e ficar com eles um tempo.
— Eles nos dariam alimentos para prosseguirmos a Jornada? — perguntou Ayla.
— Acho que sim — respondeu Jondalar. Depois sorriu. — Na verdade, sei que farão isso. Eles têm uma dívida comigo!
— Dívida? — perguntou Ayla, com expressão interrogativa. — São Seus parentes? Como os Xaramudói?
— Não, não são parentes, mas são amigos, e já comerciaram com os Zelandonii. Alguns sabem falar a língua.
— Você já falou disso antes, mas nunca entendi direito o que significa "dívida", Jondalar.
— Uma dívida é uma promessa de dar qualquer coisa que for pedida em algum momento futuro, em troca de alguma coisa que tenha sido dada ou, em geral, ganha no passado. No mais das vezes, trata-se de pagar o que se perdeu no jogo e não se pôde pagar na ocasião, mas é usado em outros sentidos também — explicou o homem.
— Quais outros sentidos? — quis saber Ayla. Tinha a sensação de que ainda não captara tudo, e que lhe seria importante compreender.
— Bem, às vezes pagar a uma pessoa por alguma coisa que ela fez, em geral algo de especial, mas de difícil avaliação — disse Jondalar. — Como não tem limites especificados, uma dívida pode ser uma obrigação pesada, mas a maioria das pessoas não pede mais do que o justo. Muitas vezes, o simples fato de aceitar a obrigação de uma dívida demonstra confiança e boa-fé. É uma maneira de oferecer amizade.
Ayla assentiu. Havia mais coisas a compreender.
— Laduni tem para comigo uma dívida — continuou o homem. — Não se trata de uma coisa grande, mas ele está no dever de me dar turdo o que eu pedir, e eu poderia pedir qualquer coisa. Creio que ele terá prazer de saldar sua obrigação apenas com um pouco de comida. Aliás, com certeza ele nos daria isso de toda maneira.
— Daqui até os Losadunai é longe? — perguntou Ayla.
— Um bom estirão. Eles vivem no extremo ocidental daquelas montanhas, e nós estamos no extremo oriental, mas a viagem não será difícil se acompanharmos o rio. No entanto, vamos ter de atravessá-lo. Eles vivem do outro lado, mas podemos fazer isso no curso alto do rio.
Decidiram passar a noite ali, e cuidadosamente revisaram tudo o que tinham. A maior parte do que haviam perdido era formada por comida. Depois de juntarem tudo que podia ser aproveitado, a pilha era pequena mas compreenderam que a situação poderia ter sido pior. Teriam de caçar e coletar durante grande parte da viagem, mas a maior parte do equipamento estava intacto e prestaria bons serviços com alguns consertos. No entanto, a bolsa de carne tinha sido despedaçada. O bote protegera o esconderijo do tempo, embora não dos lobos. De manhã teriam de decidir se continuariam ou não a arrastar o bote arredondado, coberto de pele.
— Estamos entrando numa região mais montanhosa. Dará mais trabalho levá-lo do que deixá-lo por aí — disse Jondalar.
Ayla estivera verificando os mastros. Dos três que ela usara para manter a comida longe dos animais, um estava quebrado, mas só precisavam de dois para o trenó.
— Acho que por enquanto devemos levá-lo. Depois, se ele se transformar num problema sério, sempre podemos abandoná-lo.
Rumando para oeste, logo deixaram para trás a bacia deprimida das planícies ventosas. O curso leste-oeste do Rio da Grande Mãe, que acompanhavam, assinalava a linha de uma portentosa batalha entre as mais poderosas forças da Terra, uma batalha travada no ritmo infinitamente lento do tempo geológico. Para o sul ficavam os contrafortes das altas montanhas ocidentais, cujos cumes mais altaneiros jamais eram aquecidos pelos dias suaves do verão. Os pináculos acumulavam neve e gelo ano após ano, e, mais além, os picos da cordilheira refulgiam no ar claro e frio.
Os planaltos ao norte eram constituídos pelas rochas cristalinas básicas de um imenso maciço, vestígios arredondados e aplainados de antigas montanhas desgastadas no decurso de um sem-fim de eras. Haviam-se soerguido nos primórdios da formação do planeta e estavam ancorados no escudo rochoso mais profundo. Contra aquela fundação inabalável, a força irresistível dos continentes, que subiam lenta e inexoravelmente do sul, havia esmagado e dobrado a crosta pétrea da Terra, levantando o descomunal sistema de montanhas que se estendia pela região.
No entanto, o antigo maciço não escapara incólume às grandes forças que tinham criado a cordilheira majestosa. As inclinações, as falhas e a fratura das rochas, percebidas na descontinuidade de sua solidificada estrutura cristalina, contavam, na pedra, a história dos violentos dobramentos e compressões que ela sofrera ao resistir às pressões inconcebíveis que vinham do sul. Na mesma época haviam-se formado não somente a vasta cadeia ocidental que tinham à esquerda, soerguida pelo empurrão de continentes que forcejavam contra o escudo resistente, como também alonga e curva cadeia oriental que tinham contornado, bem como toda a série de montanhas que continuavam, na direção leste, até os mais altos picos do mundo.
Mais tarde, durante a Idade dos Gelos, quando as temperaturas anuais se tornaram mais baixas, a coroa congelada desceu bastante pelas encostas das colossais cordilheiras, recobrindo até elevações modestas com um rebrilhante revestimento de cristal. Preenchendo e ampliando vales e ravinas, à medida que lentamente avançava, o gelo glacial deixou atrás de si lençóis e terraços de cascalho, esculpiu afiladas torres de pedra nos pináculos mais jovens. A neve e o gelo haviam também recoberto os planaltos setentrionais no inverno. Entretanto, apenas a maior elevação, mais próxima às montanhas nevadas, sustentava uma geleira real, uma duradoura camada de gelo que persistia no verão e no inverno.
Como os contrafortes em meia-lua das montanhas erodidas ao norte se espraiavam em mesetas e terraços relativamente planos, os cursos altos dos rios que corriam por aquela área antiga tinham vales rasos e gradientes modestos, embora se tornassem mais acidentados na parte média do curso. A não ser os que se precipitavam em cachoeira diretamente da face do maciço, os rios que desciam pelas encostas mais íngremes da vertente sul eram mais rápidos. A demarcação entre o suave planalto norte e o sul montanhoso era a fértil área de rico loess pelo qual corria o Rio da Grande Mãe.
Ayla e Jondalar estavam seguindo em linha quase reta para oeste, enquanto prosseguiam a Jornada, seguindo pela margem norte do imponente rio, através das planícies do vale fluvial. Embora já não fosse o gigantesco e caudaloso Rio da Grande Mãe que tinha sido anteriormente, na parte alta de seu curso, ele ainda era imponente, e depois de alguns dias novamente se dividiu em vários canais.
Com mais meio dia de viagem, chegaram a outro grande afluente cuja confluência turbulenta, pois ele provinha de uma região mais alta, mostrava-se estupenda, com pingentes de gelo que se desdobravam em cortinas congeladas e barrancos de gelo quebrado, bordeando ambas as margens. Os rios que se juntavam no norte já não provinham dos planaltos contrafortes das conhecidas montanhas que estavam deixando para trás Esse caudal descia da região desconhecida a oeste. Em vez de atravessar o rio perigoso ou de tentar segui-lo corrente acima, Jondalar decidiu-se por voltar atrás e cruzar as várias ramificações do próprio Rio da Grande Mãe.
A decisão mostrou-se acertada. Conquanto alguns dos canais fossem largos e estivessem atulhados de gelo nas margens, na maior na maior parte das vezes a água gélida mal chegava às ilhargas das montarias. Só mais tarde, naquela noite, deram pela coisa, mas Ayla e Jondalar, os dois cavalos e o lobo tinham, afinal, atravessado o Rio da Grande Mãe. Depois de suas perigosas e traumáticas aventuras em outros rios, fizeram-no com tão poucos incidentes que quase se decepcionaram, mas nem por isso se aborreceram.
No frio enregelante do inverno, o simples ato de viajar já era perigoso. A maioria das pessoas estavam aconchegadas em cabanas aquecidas e amigos e parentes apressavam-se a procurar quem quer que ficasse fora de casa por muito tempo. Ayla e Jondalar estavam inteiramente entregues a si próprios. Se alguma coisa acontecesse, só podiam contar um com o outro e com seus companheiros quadrúpedes.
O terreno gradualmente tornou-se ascendente, e começaram a observar uma mudança sutil na vegetação. Abetos e lariços surgiam entre os pinheiros perto do rio. Nas planícies dos vales fluviais, a temperatura era extremamente baixa; devido a inversões atmosféricas, com frequência mais baixas do que em pontos mais altos das montanhas circundantes. Embora neve e gelo branquejassem nos cumes, a neve raramente caía no vale fluvial. A pouca neve que caía, leve e seca, produzia um pequeno lençol sobre o chão gelado, exceto em ravinas e depressões, e às vezes nem mesmo ali. Quando faltava neve, o único modo de conseguirem água de beber, para eles e para os animais, consistia em usarem os machados de pedra para arrancar lascas de gelo do rio congelado e as derreterem.
Aquilo fez com que Ayla prestasse mais atenção nos animais que vagueavam pelas planícies junto do vale do Rio da Grande Mãe. Eram as mesmas variedades que tinham visto nas estepes ao longo do percurso, mas predominavam as criaturas que gostavam do frio. Ayla sabia que tais animais podiam subsistir alimentando-se da vegetação seca, fácil de encontrar nas planícies despojadas de neve, mas se pôs a imaginar de que modo encontrariam água.
Pensou que talvez os lobos e outros carnívoros provavelmente bebessem o sangue dos animais que caçavam, já que vagueavam por um amplo território, e podiam encontrar locais com neve ou gelo solto. Mas o que dizer dos cavalos e outros herbívoros? Como encontrariam água numa região que no inverno se convertia num deserto gelado? Em certos pontos havia neve suficiente, mas em geral a região era nua, coberta apenas de rochas e gelo. No entanto, por mais que uma região fosse árida, se houvesse alguma forragem ela seria habitada por animais.
Conquanto ainda raros, Ayla viu mais rinocerontes lanudos do que já observara em um único local, e embora não formassem rebanhos, sempre que avistavam rinocerontes em geral viam também bois almiscarados. Ambas as espécies preferiam as planícies abertas, frias e batidas pelo vento, mas os rinocerontes gostavam de ervas e carriços, enquanto os bois-almiscarados, como capriniformes que eram, mordiscavam os arbustos mais altos. Grandes veados e os gigantescos megacervídeos, de enormes aspas, também partilhavam a terra congelada, assim como equinos de grossas capas de inverno. Mas se havia animais que se destacavam entre as populações do vale do curso alto do Rio da Grande Mãe, eram os mamutes.
Ayla jamais se cansava de observar essas enormes bestas. Embora de vez em quando fossem objeto de caça, eram tão destemidas que pareciam quase dóceis. Muitas vezes permitiam que o homem e a mulher chegassem bem perto deles, não os julgando ameaçadores. Se perigo havia, era para os seres humanos. Embora os mamutes lanosos não fossem as criaturas mais gigantescas de sua espécie, eram porém os maiores animais que os seres humanos já tinham visto, ou que a maioria deles chegaria a ver. Com os pêlos ainda mais eriçados por causa do frio e com as imensas presas recurvas, pareciam ainda maiores, de perto, do que Ayla se recordava.
Suas presas colossais começavam, nos filhotes, com colmilhos de três dedos de comprimento — incisivos superiores ampliados. Depois de um ano, caíam e eram substituídos por presas permanentes que, a partir daí, cresciam continuamente. Embora as presas dos mamutes fossem adornos sociais, importantes em interações no seio da própria espécie, tinham também uma função mais prática. Eram usados para quebrar gelo, coisa para a qual os mamutes tinham extraordinária capacidade.
Da primeira vez que Ayla vira mamutes fazendo isso, estivera observando um grupo de fêmeas aproximar-se do rio gelado. Várias delas usavam as presas, um pouco menores e mais retilíneas que as dos machos, para arrancar pedaços de gelo presos em buracos de rochas. Ayla a princípio não entendeu o que se passava, até notar uma fêmea pequena erguer um pedaço de gelo com a tromba e metê-lo na boca.
— Água! — exclamou Ayla. — É assim que conseguem água, Jondalar. Eu estava pensando em como faziam.
— Tem razão. Nunca pensei muito nisso antes, mas agora acho que Dalanar comentou alguma coisa a respeito. Mas existem muitos ditados sobre os mamutes. O único de que me recordo é: "Se para o norte os mamutes vão, não viajar é boa decisão", embora se possa dizer o mesmo com relação aos rinocerontes.
— Não entendi esse ditado — disse Ayla.
— Significa que vem por aí uma tempestade — respondeu Jondalar — Eles sempre parecem pressentir. Esses grandalhões peludos não gostam muito da neve. Ela encobre o alimento deles. Podem usar as presas e as trombas para afastar parte da neve, mas quando ela fica realmente espessa, atolam nela. O pior de tudo é quando começa a degelar. Eles se deitam de noite, quando a neve ainda está mole por causa do sol da tarde, e de manhã o pêlo está grudado no chão. Não conseguem mover-se. Nessa hora é fácil caçá-los, mas se não há caçadores por perto e a neve não derreter, podem lentamente morrer de fome. Sabe-se de alguns que morreram de frio, principalmente filhotes.
— O que isso tem a ver com seguirem para o norte?
— Quanto mais perto se chega do gelo, menos neve. Lembra-se de quando estávamos caçando com os Mamutói? A única água que havia era a corrente que descia da própria geleira, e isso foi no verão. No inverno, tudo está congelado.
— É por isso que há tão pouca neve por aqui?
— Sim, essa região sempre foi fria e seca, principalmente no inverno. Todo mundo diz que é porque as geleiras estão muito perto. Ficam nas montanhas ao sul, e o Grande Gelo não está muito distante, no norte. A maior parte da região entre esses dois pontos é de cabeça-chatas... Eu me refiro à região dos Clãs. Ela começa um pouco a oeste daqui. — Jondalar notou a expressão de Ayla diante de seu lapso, e ficou embaraçado. — De qualquer modo, existe outro ditado a respeito de mamutes e de água, mas não me lembro direito como é. É alguma coisa assim: "Se não conseguir achar água, procure um mamute.”
— Isso eu entendo — disse Ayla, lançando a vista para além dele. Jondalar virou-se para olhar.
As fêmeas haviam subido a corrente e juntado forças com alguns machos. Diversas fêmeas estavam trabalhando num banco de gelo estreito, quase vertical, que se formara ao longo da margem do rio. Os machos maiores, entre os quais um mais idoso, com riscas de pêlo grisalho, cujas presas majestosas, ainda que menos úteis, tinham crescido tanto que se cruzavam na frente, arranhavam enormes blocos de gelo das margens. Depois, levantando-os bem alto com as trombas, os mamutes os atiravam ao chão com estrépito, para quebrá-los em pedaços mais fáceis de usar, tudo isso acompanhado de urros, zurros, coices e gritos. As enormes criaturas pareciam estar-se divertindo com aquilo.
Essa barulhenta atividade era uma coisa que todos os mamutes aprendiam. Até mesmo filhotes de apenas dois ou três anos, que mal tinham perdido os colmilhos, já mostravam desgaste nas extremidades externas de suas minúsculas presas de cinco centímetros, de tanto arranhar gelo, e as pontas das presas de mamutes de dez anos, já com meio metro, mostravam-se lisas de anos de moverem a cabeça para cima e para baixo encontra as superfícies verticais. Quando os jovens mamutes chegavam aos 25 anos, suas presas já começavam a crescer para a frente, para cima e para dentro, e mudavam então o modo de usá-las. As superfícies inferiores começavam a revelar algum desgaste, causado por quebrar o gelo e empurrar para o lado a neve que caía sobre as ervas e as plantas secas das estepes. No entanto, essa atividade de quebrar gelo podia ser perigosa, pois muitas vezes as presas se quebravam junto com o gelo. Mas mesmo os tocos quebrados muitas vezes também se desgastavam, pois os animais continuavam a usá-los para romper pedaços de gelo.
Ayla notou que outros animais tinham-se reunido em torno. Os rebanhos de animais lanudos, com suas presas poderosas, quebravam gelo suficiente para si, até mesmo para os animais jovens e os idosos, e também para uma comunidade de vizinhos. Muitos animais se beneficiavam por seguir nas pegadas dos mamutes em migração. Os enormes animais lanudos não só formavam pilhas de pedaços soltos de gelo no inverno, que eram chupados por outros animais, como no verão às vezes usavam as presas e os pés para cavar buracos nos leitos secos de rios, que se enchiam de água. Os bebedouros assim criados também eram usados por outros animais para mitigar a sede.
Ao acompanharem o rio congelado, a mulher e o homem cavalgavam, e muitas vezes caminhavam, bem perto das margens do Rio da Grande Mãe. Com tão pouca neve, não havia nenhum macio manto branco a cobrir a terra, e a vegetação latente expunha sua pardacenta face invernal. Os altos caules dos juncos do verão erguiam-se valentes do leito pantanoso congelado, ao passo que fetos e carriços mortos se prostravam junto do gelo amontoado ao longo das margens. Liquens agarravam-se às rochas como escaras de contusões, e os musgos haviam se transformado em estiolados tapetes quebradiços.
Os dedos longos e esqueléticos de galhos desfolhados estalavam no vento feroz e cortante, embora somente um olho treinado pudesse distinguir se eram de salgueiros, bétulas ou o quê. As coníferas de verde mais escuro — abetos, lanços e pinheiros — eram mais fáceis de identificar, e embora as bétulas tivessem perdido as agulhas, sua forma era reveladora. Quando os dois viajantes subiam colinas um pouco mais altas para caçar, viam bétulas anãs e pinheirinhos dobrados rentes ao chão.
Pequenos animais de caça constituíam a maior parte de suas refeições; a caça grossa em geral exigia mais tempo para abater do que estavam dispostos a perder, conquanto não hesitassem em tentar matar um veado quando o viam. A carne congelava depressa, e até Lobo durante algum tempo não precisava caçar. Coelhos, lebres e um castor ocasional, abundantes nas montanhas, eram o que mais os alimentavam, mas havia também animais da estepe, de climas mais continentais, marmotas e roedores gigantes, e os viajantes sempre se alegravam ao ver ptármigas, as gordas aves brancas de pés emplumados.
A funda de Ayla era sempre usada com destreza; eles preferiam poupar as lanças para caça de maior porte. Era mais fácil achar pedras do que fazer novas lanças para substituir as que se perdiam ou quebravam. entretanto, havia dias em que a caça lhes consumia mais tempo do que desejavam, e tudo quanto consumisse tempo deixava Jondalar nervoso.
Às vezes suplementavam a dieta, constituída de carne concentrada ou magra, com a casca interior de coníferas e outras árvores, em geral transformada numa sopa com carne, e ficavam satisfeitos ao encontrar bagas, congeladas mas ainda presas aos arbustos. As bagas de zimbro, particularmente boas com carne, se não usadas em excesso, eram as mais comuns; as amoras eram menos comuns, porém abundantes quando encontradas, e sempre mais doces depois de se congelarem; as camarinheiras, com sua folhagem espinhenta, tinham pequeninas bagas pretas que muitas vezes persistiam inverno adentro, tal como as uvas-ursinas azuis e outras bagas vermelhas.
Às sopas de carne também se acrescentavam grãos e sementes, colhidas laboriosamente em ervas secas que ainda tinham as sementeiras embora encontrá-las demandasse tempo. A maior parte da folhagem das ervas que davam sementes havia muito tinha-se desintegrado, e as plantas se mantinham latentes à espera dos degelos da primavera que as despertariam para uma nova vida. Ayla lembrava-se com pesar das frutas e legumes secos que tinham sido destruídos pelos lobos, embora não lamentasse as provisões que dera aos S'Armunai.
Huiin e Racer eram quase exclusivamente herbívoros no verão, mas Ayla notou que agora tinham passado a mordiscar pontas de paus, mascando a casca interna de árvores, e que chegavam a se alimentar de uma determinada espécie de líquen, também apreciada pelas renas. Juntou um pouco desse líquen e preparou para ela e Jondalar. Acharam o sabor forte, mas tolerável, e Ayla passou a experimentar maneiras de cozinhá-lo.
Outra fonte de alimentação de inverno eram pequenos roedores como arganazes, ratos e lemingues; não os animais propriamente — em geral Ayla permitia que Lobo ficasse com eles, como recompensa por farejá-los —, mas seus ninhos. Ficava à espreita dos sinais sutis que indicavam uma toca, e depois quebrava a terra gelada em volta com um pau. Encontrava os animaizinhos cercados pelas sementes, nozes e bulbos que haviam guardado.
E Ayla tinha também sua bolsa de remédios. Quando se lembrava de todo o dano que fora causado às coisas que tinham deixado no esconderijo, estremecia ao pensar no que poderia ter ocorrido se ela tivesse deixado ali a bolsa de remédios. Não que ela pudesse ter feito isso, mas o simples fato de pensar na possibilidade lhe revoltava o estômago. Era uma coisa tão ligada a ela que teria se sentido perdida se não a tivesse consigo. O importante era que os materiais na bolsa de pele de lontra, assim como os antigos conhecimentos acumulados por experiência e erro, conhecimentos que lhe haviam sido transmitidos, mantinham os viajantes mais saudáveis do que se davam conta.
Por exemplo, Ayla sabia que várias ervas, cascas e raízes podiam ser usadas para tratar e evitar determinadas doenças. Embora ela não as chamasse de doenças carenciais, não tivesse um nome para as vitaminas e minerais, em doses vestigiais, que as ervas continham, e nem mesmo soubesse direito como atuavam, carregava muitas delas em sua bolsa de remédios. Regularmente preparava, com essas ervas, chás que ambos bebiam.
Ayla usava também a vegetação fácil de encontrar até mesmo no inverno, como as agulhas de plantas sempre-verdes, especialmente os rebentos novos nas pontas dos ramos, ricas em vitaminas que preveniam o escorbuto. Regularmente as acrescentava aos chás diários, sobretudo por apreciarem o sabor crítico e adstringente, muito embora ela soubesse que faziam bem e tivesse uma boa ideia de quando e como usá-los. Com frequência havia preparado chá de agulhas para pessoas com gengivas sanguinolentas, cujos dentes ficavam soltos depois de longos invernos em que se alimentavam basicamente de carnes secas, por opção ou necessidade.
À medida que avançavam para oeste haviam definido um estilo de caça e coleta que lhes deixava o máximo de tempo possível para viajar. Embora uma ou outra refeição fosse frugal, raramente eliminavam de todo uma refeição, e consumindo tão pouca gordura e exercitando-se duro todos os dias, perdiam peso. Não falavam muito a respeito, mas ambos estavam se cansando da viagem e ansiavam por chegar a seu destino. De dia, aliás, mal falavam.
Cavalgando ou caminhando a pé, puxando os cavalos, Ayla e Jondalar muitas vezes seguiam um atrás do outro, bastante perto para escutar um comentário se feito em voz alta, mas não o suficiente para manterem uma conversa. Em resultado disso, ambos dispunham de muito tempo para dedicar a seus próprios pensamentos, sobre os quais às vezes conversavam de noite, quando estavam comendo ou deitados, um ao lado do outro, sobre as peles de dormir.
Ayla muitas vezes pensava nas experiências recentes deles. Estivera refletindo sobre o Acampamento das Três Irmãs, comparando os S'Armunai e seus líderes cruéis, como Attaroa e Brugar, com seus parentes, os Mamutói e seus co-Líderes, cooperativos e amistosos. E ficava a pensar sobre os Zelandonii, a gente do homem a quem ela amava. Jondalar tinha tantas boas qualidades que Ayla tinha certeza de que eles eram basicamente pessoas boas; mas considerando os sentimentos deles em relação ao Clã, ela ainda se perguntava se a aceitariam. Até mesmo S'Armuna fizera referências indiretas à forte aversão que sentiam pelos que chamavam de cabeças-chatas, mas Ayla tinha certeza de que nenhum Zelandonii seria um dia tão cruel quanto a mulher que fora a líder dos S'Armunai.
— Não imagino como Attaroa pôde fazer tanta maldade, Jondalar — observou Ayla, ao terminarem a refeição certa noite. Não sei como é possível.
— Em que está pensando?
— Em meu tipo de gente, os Outros. Quando conheci você, fiquei tão feliz por finalmente encontrar uma pessoa como eu. Foi um alívio saber que eu não era a única no mundo. Depois, quando você se mostrou uma pessoa tão maravilhosa, tão bom, carinhoso e amigo, imaginei que toda minha gente fosse como você e isso me fez sentir bem — disse ela. Esteve para acrescentar que se sentira assim até ele reagir com tanta má vontade quando ela lhe contou a respeito de sua vida com o Clã, mas mudou de ideia ao ver Jondalar sorrir, enrubescido de prazer.
Ele sentira um assomo de alegria diante das palavras dela, pensando no quanto também aquela mulher era maravilhosa.
— Depois, quando encontramos os Mamutói, Talut e o Acampamento Leão — continuou Ayla —, tive certeza de que os Outros eram boa gente. Ajudavam-se uns aos outros, e todos participavam das decisões. Eram cordiais e riam muito, não rejeitavam uma idéia só porque nunca a tinham ouvido antes. Havia Frebec, é claro, mas no final das contas ele não era tão mau. Mesmo aqueles na Reunião de Verão, que ficaram contra mim durante algum tempo por causa do Clã, e até alguns dos Xaramudói... fizeram aquilo tudo por medo, e não porque tivessem más intenções. Mas Attatora era perversa como uma hiena.
— Attatora não passava de uma pessoa — lembrou-lhe Jondalar.
— É, mas veja como era influente. S'Armuna usou o conhecimento sagrado que possuía para ajudar Attaroa a matar e ferir pessoas, mesmo que depois se arrependesse disso, e Epadoa estava disposta a fazer tudo quanto Attaroa quisesse — disse Ayla.
— Tinham motivos para isso. As mulheres tinham sido maltratadas — respondeu Jondalar.
— Eu conheço os motivos. S'Armuna achava que estava fazendo o certo, e creio que Epadoa gostava de caçar e amava Attaroa por deixar que o fizesse. Conheço essa sensação. Eu também adoro caçar e me indispus com o Clã e fiz coisas que não devia fazer, só para caçar.
— Bem, agora Epadoa pode caçar para todo o Acampamento e não acho que ela fosse tão má — disse Jondalar. — Ela parecia estar descobrindo o tipo de amor que uma mãe sente. Doban me disse que ela lhe prometeu que nunca mais lhe faria mal e que jamais permitiria que alguém lhe fizesse mal — disse Jondalar. — Os sentimentos dela por Doban podem ser até mais fortes porque ela lhe fez tanto mal e agora tem oportunidade de compensá-lo.
— Epadoa não desejava fazer mal àqueles rapazes. Contou a S'Armuna que tinha medo de que, se não fizesse o que Attaroa desejava, ela os mataria. Foram esses os motivos dela. Até Attaroa tinha seus motivos. Houve tanta coisa de ruim na vida dela que se tornou má. Não era mais uma pessoa humana, mas nenhum motivo basta para desculpá-la. Como lhe foi possível fazer as coisas que fez? Até Broud, por pior que fosse, não era tão ruim, e ele me odiava. Nunca fez mal a crianças de propósito. Eu costumava pensar que minha gente era excelente, mas já não tenho essa certeza — disse ela, com uma expressão triste e desolada.
— Ayla, existe gente boa e gente má, e todo mundo tem aspectos bons e aspectos maus — disse Jondalar. A testa franzida demonstrava preocupação. Percebia que ela estava tentando ajustar as novas percepções que juntara, depois de sua mais recente experiência desagradável, em seu modo de ver as coisas, e ele sabia que isso era importante. — Mas a maioria das pessoas é decente e procura ajudar umas às outras. Elas sabem que isso é necessário, pois afinal nunca se sabe quando se vai precisar de auxílio, e em geral as pessoas preferem ser cordiais.
— Mas existem certas pessoas deformadas, como Attaroa — disse Ayla.
— É verdade — anuiu o homem, obrigado a concordar. — E existem outras que só dão o que têm se obrigadas, e prefeririam não isso. Mas nem por essa razão são más.
— Mas uma pessoa ruim Pode tirar o que existe de pior em pessoas boas, como Attaroa fez com S'Armuna e Epadoa.
— Acho que o máximo que podemos fazer é impedir que as pessoas más e cruéis cometam perversidades em excesso. Talvez devamos nos sentir felizes por não haver muita gente como ela. Mas Ayla, não deixe que uma pessoa má estrague a visão que você tem das pessoas em geral.
— Attaroa não pode fazer com que eu mude de opinião a respeito das pessoas que conheço, e tenho certeza de que você tem razão em relação à maioria das pessoas, Jondalar. Mas ela me tornou mais prudente, mais cautelosa.
— Não há mal algum em você ser um pouco cautelosa, a princípio, mas de as pessoas a oportunidade de mostrar seu lado bom antes de considerá-las más.
O planalto do lado norte do rio os acompanhava à proporção que prosseguiam na trilha rumo a oeste. Árvores deformadas pelo vento, nos topos arredondados e nos platôs planos do maciço, eram silhuetadas contra o céu. O rio voltou a dividir-se em vários canais numa planície baixa que formava um recôncavo. As fronteiras sul e norte do vale mantinham suas diferenças características, mas o escudo rochoso se mostrava fendido e falhado até grandes profundidades entre o rio e o contraforte calcário da alta montanha meridional. Para o lado oeste avistava-se a íngreme encosta calcária de uma linha de falha. O curso do rio voltou-se para noroeste.
A extremidade sul da planície era também bordejada por uma crista de falha, causada menos pelo soerguimento do calcário do que pela depressão do recôncavo. Para as bandas do sul, o terreno se estendia plano por alguma distancia, antes de elevar-se em direção às montanhas, porém o plato granítico no norte aproximava-se mais do rio, até subir abruptamente, bem do outro lado da corrente.
Acamparam no recôncavo. No vale junto ao rio, a casca lisa e cinzenta dos ramos nus de faias apontava entre bétulas, abetos, pinheiros lariços; a área era suficientemente protegida para permitir o crescimento de algumas arvores decíduas latifoliadas. Perto do arvoredo vagueava, um tanto perplexas, uma pequena manada de mamutes, tanto fêmeas quanto machos. Ayla chegou mais perto para ver o que se passava.
Havia um mamute no chão, um animal idoso e gigantesco, com as enormes presas cruzadas na frente. Ayla ficou a imaginar se aquele era o mesmo grupo que ela vira antes, quebrando gelo. Poderiam haver dois manutes tao velhos na mesma região? Jondalar caminhava a seu lado.
— Acho que ele está morrendo. Gostaria de poder fazer alguma coisa por ele — disse Ayla.
— E provável que ele não tenha mais dentes. Quando isso acontece, não se pode fazer coisa alguma, a não ser o que eles estão fazendo. Ficar com ele fazer-lhe companhia — disse Jondalar.
— É possível que nenhum de nós possa pedir mais do que isso — disse Ayla.
Apesar de serem relativamente compactos, cada mamute adulto consumia uma enorme quantidade de comida a cada dia, sobretudo ervas altas e, vez por outra, arbustos. Por causa dessa dieta, seus dentes eram essenciais. Tinham tamanha importância que a duração da vida de um mamute era determinada por seus dentes.
Um mamute lanudo desenvolvia vários conjuntos de molares no decorrer de sua vida, que alcançava cerca de setenta anos, em geral seis de cada lado, em cima e embaixo. Cada dente pesava aproximadamente três quilos e meio e estava especialmente adaptado a triturar ervas grosseiras. Sua superfície era formada por muitas cristas extremamente duras, finas e paralelas — chapas de dentina recobertas de esmalte —, e tinham coroas maiores e mais cristas do que os dentes de qualquer animal de seu género, antes ou depois dele. Os mamutes eram essencialmente herbívoros. As tiras de cascas que arrancavam às árvores, principalmente no inverno, bem como as folhas, ramagens e arbustos ocasionais, ocupavam uma posição secundária em sua alimentação, constituída basicamente de duras ervas fibrosas.
Os primeiros molares, os menores, formavam-se perto da frente de cada maxilar, enquanto os demais cresciam atrás deles e se moviam para a frente numa progressão constante durante a vida do animal, sendo que somente um ou dois dentes eram usados ao mesmo tempo. Por mais dura que fosse, a superfície trituradora se desgastava ao passar para a frente, e as raízes se dissolviam. Por fim, os últimos fragmentos inúteis de dente caíam quando os novos passavam a lhes ocupar o lugar.
Os dentes finais estavam usados por volta dos cinquenta anos de idade, e quando já estavam por desaparecer, o idoso animal já não tinha condições de mascar a erva dura. Na primavera, folhas e plantas mais macias podiam ser consumidas, porém em outras estações elas não existiam. Tomado de desespero, o velho desnutrido muitas vezes deixava o rebanho, em busca de pastagens mais verdes, mas só encontrava a morte. A manada sabia quando o fim estava iminente, e não era incomum ver os animais compartilhando os últimos dias do ancião.
Os outros mamutes protegiam os moribundos tanto quanto os recem-nascidos, e juntavam-se em torno, tentando erguer o companheiro prostrado. Quando tudo terminava, enterravam o ancestral morto debaixo de pilhas da terra, ervas, folhas ou neve. Sabia-se que os mamutes enterravam os cadáveres de outros animais, até mesmo de homens.
Ayla e Jondalar, bem como seus companheiros quadrúpedes, verificaram que a rota se tornava mais íngreme e mais difícil depois que deixaram para atrás a planície e os mamutes. Estavam se aproximando de uma garganta. Um dos contrafortes do antigo maciço setentrional havia- se estendido muito longe em direção ao sul e achava-se dividido pelas águas do rio. Os viajantes subiram ainda mais quando o rio se precipitou pelo estreito desfiladeiro, com suas águas demasiado rápidas para se congelarem, mas carregando pedaços de gelo em trechos mais tranquilos a oeste. Era estranho ver água corrente depois de tanto gelo. Diante das muralhas alcantiladas no sul havia platôs, montes de topos planos, com densos grupos de coníferas, os galhos pintalgados de neve. As ramagens finas de arvores e arbustos estavam como que gravadas em branco, devido a uma cobertura de chuva congelada, que destacava cada ramo e cada galho, extasiando Ayla com sua beleza invernal.
A altitude continuava a aumentar, e as planícies entre as cristas nunca eram da mesma altitude que a anterior. O ar era frio e claro, e, mesmo quando o céu se mostrava nublado, não caía neve. A única umidade presente no ar provinha da respiração exalada pelos dois viajantes e seus mimais.
O rio de gelo se tornava menor a cada vez que passavam por um vale congelado. No extremo ocidental da planície havia outra garganta. Escalaram a crista rochosa e, ao chegarem ao ponto mais elevado, se detiveram, pasmos diante do panorama. Em frente deles, o rio se dividira mais uma vez. Não sabiam os viajantes que era a última vez que ele se dividia nas ramificações e canais que haviam caracterizado seu progresso pelas planícies pelas quais correra por tanto tempo. A garganta logo diante da planície descrevia uma curva acentuada ao juntar em um só os diversos canais, provocando um remoinho furioso que atirava pedaços de gelo e detritos flutuantes em suas profundidades, antes de vomitá-los numa corredeira mais à frente, onde as águas logo voltavam a se congelar.
Pararam no ponto mais alto, olharam para baixo e ficaram a contemplar um pequeno tronco a girar e girar, descendo mais fundo a cada volta.
— Eu não gostaria de cair ali — disse Ayla, com um estremecimento.
— Nem eu — concordou Jondalar.
O olhar de Ayla fixou-se em outro ponto a distância.
— De onde vêm aquelas nuvens, Jondalar? Está gelando, e os morros estão cobertos de neve.
— Há fontes de águas termais por ali, águas aquecidas pelo hálito quente da Doni em pessoa. Muita gente tem medo de chegar perto desses lugares, mas as pessoas que quero visitar moram perto de uma dessas fontes termais, ou pelo menos assim me disseram. As fontes termais são sagradas para eles, ainda que algumas delas tenham um cheiro nauseabundo. Dizem que usam a água para curar doenças.
— Quanto tempo levaremos para chegar até essas pessoas que você conhece? Essas que usam a água para curar doenças? — perguntou Ayla. Tudo quanto lhe pudesse aumentar o cabedal de conhecimentos médicos lhe despertava o interesse. Além disso, a comida começava a escassear, ou não se dispunham a perder tempo à procura de alimentos. De qualquer modo, já haviam dormido com fome algumas vezes.
— O aclive do terreno aumentou perceptivelmente depois da última planície fluvial. Agora estavam cercados por montanhas de ambos os lados. A Plataforma de gelo, ao sul, aumentava de tamanho à medida que seguiam para oeste. Para os lados do sul, mas ainda na direção geral oeste, dois picos se alteavam bastante acima de todos os demais cumes, um mais elevado que o outro, como um casal que vigiasse a prole.
No ponto em que o planalto se tornou plano, perto de um vau do rio, Jondalar enveredou para o sul, afastando-se do rio, na direção de uma nuvem de vapor que subia a distância. Subiram um morro e lá de cima olharam para baixo; do outro lado de uma campina recoberta de neve, via-se um manancial de águas fumegantes, perto de uma caverna.
Várias pessoas haviam notado que eles chegavam e os fitavam, consternados, demasiado chocadas para se moverem. Um homem, entretanto, brandia uma lança na direção deles.
— Acho melhor apearmos e nos aproximarmos deles a pé — disse Jondalar, enquanto observava vários homens e mulheres, armados de lanças, que se aproximavam. — A esta altura, eu devia ter me lembrado de que as pessoas sentem medo e desconfiança de quem monta cavalos. Provavelmente deveríamos tê-los deixado fora da vista e chegado a pé, e só buscar os animais depois que tivéssemos tempo de explicar a situação.
Desmontaram, e Jondalar lembrou-se de repente, com tristeza, do "irmãozinho" Thonolan, com seu sorriso largo e amistoso, caminhando com segurança na direção de uma Caverna ou um Acampamento de estranhos. Considerando a recordação um sinal, o homem louro e alto abriu-se num sorriso, acenou, empurrou para trás o capuz de seu parka, para que pudesse ser visto com mais facilidade, e adiantou-se com as mãos estendidas. Procurava demonstrar que vinha em paz, sem nada a esconder.
— Estou à procura de Laduni, dos Losadunai. Eu sou Jondalar, dos Zelandonii. Meu irmão e eu viajamos juntos na direção do leste, numa Jornada, faz alguns anos, e Laduni nos pediu que quando voltássemos lhe fizéssemos uma visita.
— Eu sou Laduni — falou um homem, com um ligeiro sotaque Zelandonii. Caminhou na direção deles, com a lança em riste, examinando com cuidado o estranho para verificar se era mesmo a pessoa que dizia ser. — Jondalar? Dos Zelandonii? Você é parecido com o homem que conheci.
Jondalar percebeu o tom de cautela.
— Porque sou eu mesmo! Que bom vê-lo de novo, Laduni — disse ele, afável. — Não tinha certeza de que este fosse o lugar certo. Fui até o final do Rio da Grande Mãe, e ainda mais além. Depois, mais perto de casa, tive dificuldade de encontrar sua Caverna, mas o vapor das fontes termais me ajudou. Trouxe comigo uma pessoa que eu gostaria de lhe apresentar.
O homem mais velho fitou Jondalar, buscando detectar algum sinal de que não fosse o que parecia ser: um homem que ele conhecia e que acabava de chegar de modo inusitado. Parecia um pouco mais velho, o que era de esperar, e ainda mais semelhante a Dalanar. Havia visto o velho lascador de sílex novamente alguns anos antes, quando ele viera numa missão de comércio. E também, suspeitava Laduni, para descobrir se o filho de seu fogo e seu irmão haviam passado por ali. Dalanar vai ficar feliz por vê-lo, pensou Laduni. Caminhou na direção de Jondalar, segurando a lança com menos hostilidade, mas ainda numa posição em que ela poderia ser arremessada facilmente. Lançou um olhar para os dois cavalos invulgarmente dóceis, e percebeu então que quem estava perto deles era uma mulher.
— Esses cavalos não são nada parecidos com os que temos por aqui. Os cavalos do leste são mais dóceis? Devem ser mais fáceis de caçar — disse Laduni.
De repente o homem se retesou, levou a lança à posição de arremesso e apontou-a para Ayla.
— Não se mova, Jondalar!
Tudo acontecera tão depressa que Jondalar não tivera tempo para reagir.
— Laduni! O que está fazendo?
— Vocês foram seguidos por um lobo. Um lobo bastante corajoso para se expor à vista de homens.
— Não! — bradou Ayla, atirando-se entre o lobo e o homem com a lança.
— Esse lobo viaja conosco. Não o mate! — exclamou Jondalar, e correu para interpor-se entre Laduni e Ayla.
Ayla ajoelhou-se e envolveu o animal com os braços, segurando-o com firmeza, em parte para protegê-lo, em parte para proteger o homem da lança. Os pêlos de Lobo estavam eriçados, os lábios repuxados de modo a mostrar os dentes, e um rosnado selvagem lhe saia da garganta.
Laduni ficou atónito. Adiantara-se para proteger os visitantes, porém estes se comportavam como se ele pretendesse fazer-lhes mal. Dirigiu a Jondalar um olhar interrogativo.
— Abaixe essa lança, Laduni. Por favor — pediu Jondalar. — O lobo é nosso companheiro, do mesmo modo que os cavalos. Já salvou nossas vidas. Afirmo que ele não fará mal a ninguém, desde que não o ameacem, ou ameacem a mulher. Sei que parece estranho, mas se me derem uma oportunidade, explicarei tudo.
Laduni lentamente abaixou a lança, fitando o lobo com cautela. Uma vez afastado o perigo, Ayla acalmou o animal. Depois se levantou e saiu na direção de Jondalar e Laduni, fazendo um sinal a Lobo para que seguisse a seu lado.
— Por favor, desculpe Lobo por se mostrar agressivo — disse Ayla. — Na verdade, ele gosta das pessoas, depois que as conhece, mas teve uma experiência ruim com certas pessoas no leste. Isso o tornou mais nervoso diante de estranhos, e agora ele se mostra mais protetor.
Laduni notou que ela falava Zelandonii muito bem, mas seu sotaque a marcou como estrangeira de imediato. Notara também... outra coisa... não tinha certeza. Era algo que ele não conseguia definir especificamente. Já vira antes muitas mulheres louras e de olhos azuis, mas seus malares, a forma do rosto, alguma coisa lhe dava um aspecto estrangeiro também. Fosse o que fosse, aquilo em nada diminuía o fato de tratar-se de uma mulher de extraordinária beleza. Talvez apenas acrescentasse um elemento de mistério.
Laduni olhou para Jondalar e sorriu. Ao lembrar-se da última visita do homem, não era de admirar que aquele alto e garboso Zeladonii voltasse de uma longa Jornada com uma beldade exótica; mas ninguém poderia ter esperado recordações viventes de suas aventuras, como cavalos e um lobo. Mal podia esperar para ouvir as histórias que eles tinham para contar.
Jondalar percebera o olhar de apreciação de Laduni ao ver Ayla, e quando o homem sorriu, ele começou a serenar.
— Aqui está a pessoa que eu queria lhe apresentar — disse Jondalar. — Laduni, caçador dos Losadunai, esta é Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutói, Eleita do Leão da Caverna, Protegida pelo Urso da Caverna e Filha do Fogo do Mamute.
Ayla erguera as mãos, com as palmas para cima, numa saudação de franqueza e amizade, quando Jondalar começou a apresentação formal.
— Eu o saúdo, Laduni, Mestre-Caçador dos Losadunai — disse ela.
Laduni ficou a imaginar como poderia ela saber ser ele o chefe das caçadas entre seu povo. Jondalar não o dissera. Talvez lhe houvesse dito alguma coisa antes, mas ela mostrara ser astuta ao mencionar o fato. Entretanto, era de esperar que ela compreendesse tais coisas. Com tantos títulos e ligações, deveria ser uma pessoa de alta linhagem entre seu povo, pensou ele. Eu deveria ter adivinhado que qualquer mulher que ele trouxesse consigo seria desse porte, considerando-se que tanto a mãe dele como o homem de sua casa conheceram as responsabilidades do mando. No filho revela-se o sangue da mãe e o espirito do homem.
Laduni segurou as mãos de Ayla.
— Em nome de Duna, a Grande Mãe Terra, seja bem-vinda, Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutói, Eleita do Leão, Protegida pelo Grande Urso e Filha do Fogo do Mamute.
— Agradeço-lhe as boas-vindas — respondeu Ayla, ainda em tom formal. — E se me permite, gostaria de lhe apresentar Lobo, para que ele saiba que tem um novo amigo.
Laduni franziu a testa, sem saber ao certo se realmente queria conhecer um lobo, mas nas circunstâncias não tinha outra opção.
— Lobo, este é Laduni dos Losadunai — disse Ayla, pegando a mão do homem e levando-a perto do focinho do lobo. — Amigo. — Depois de ter cheirado a mão do estranho, cujo cheiro se misturava com o de Ayla, Lobo pareceu demonstrar que se tratava de alguém que ele deveria aceitar. Farejou os órgãos genitais do homem, para consternação de Laduni.
— Agora chega, Lobo — disse Ayla, fazendo-lhe um sinal para que voltasse. Depois, para Laduni, acrescentou: — Agora ele sabe que é um amigo, e um homem. Se quiser lhe dar as boas-vindas, ele gosta de ser afagado na cabeça e coçado atrás das orelhas.
Embora ainda precavido, a ideia de tocar num lobo vivo despertou o interesse de Laduni. Estendeu a mão e tateou o pêlo áspero; vendo que seu soque era aceito, afagou a cabeça do animal e a seguir deu uma esfregadela atrás de suas orelhas, demonstrando certo interesse. Já tocara pele de lobo antes, mas nunca num animal vivo.
— Desculpe por ter ameaçado seu companheiro. Mas nunca, até hoje, eu tinha visto um lobo acompanhar pessoas por livre e espontânea vontade. Aliás, nem cavalos.
— É compreensível — concordou Ayla. — Mais tarde vou levá-lo para conhecer os cavalos. Em geral eles são tímidos diante de estranhos, e precisam de algum tempo para se habituar a pessoas novas.
— Todos os animais no leste são tão mansos? — quis saber Laduni, insistindo em ter resposta para uma pergunta que seria de interesse para qualquer caçador.
Jondalar sorriu.
— Não, os animais são iguais em toda parte. Esses são especiais por causa de Ayla.
Laduni assentiu, resistindo ao impulso de lhes fazer novas perguntas, sabendo que toda a Caverna gostaria de ouvir as histórias deles.
— Eu lhes dei as boas-vindas e agora os convido a entrar para dividir conosco o calor e o alimento, mas creio que devo ir antes e falar a respeito de vocês ao resto da Caverna — avisou.
Laduni caminhou de volta na direção do grupo reunido diante de uma larga abertura, ao lado de uma parede rochosa. Contou que havia conhecido Jondalar alguns anos antes, quando ele estava começando sua Jornada, e que o convidara a visitá-lo quando retornasse. Mencionou o fato de Jondalar ser parente de Dalanar, e frisou tratar-se de pessoas, e não de algum tipo de espíritos malfazejos, e que eles lhes falariam a respeito dos cavalos e do lobo.
— Devem ter histórias espantosas a narrar — concluiu, sabendo o quanto isso despertaria o interesse de um grupo de pessoas que tinha passado praticamente todo o inverno enfiado numa caverna e que começava a demonstrar tédio.
A língua que utilizou não foi o Zelandonii que usara com os viajantes, mas depois de escutar durante algum tempo, Ayla teve certeza de perceber semelhanças. Constatou que embora a língua tivesse entoação e pronúncia diferentes, o Losadunai era aparentado ao Zelandonii do mesmo modo que o S'Armunai, e aliás também o Xaramudói, aproximava-se do Mamutói. A língua chegava a ter alguma coisa do S'Armunai. Ela entendera algumas palavras e captara a essência de um ou outro comentário. Dentro de mais alguns dias estaria conversando com aquelas pessoas.
O talento linguístico de Ayla não lhe parecia notável. Ela não procurava conscientemente aprender línguas, porém sua aguda percepção de nuances e inflexões e sua capacidade de perceber as conexões facilitavam-lhe o aprendizado. Suas aptidões linguísticas, inatas, tinham sido realçadas pelo fato de perder sua própria língua quando ainda muito pequena, em meio ao trauma de perder sua gente, e também por ter sido obrigada a aprender um modo de comunicação que, conquanto diferente, utilizava as mesmas áreas cerebrais que a linguagem oral. Sua necessidade de aprender a comunicar-se novamente, ao descobrir que não era capaz de assimilar aquele modo novo, lhe dera um incentivo inconsciente, mas profundo, de aprender todo e qualquer idioma desconhecido. Era a combinação de aptidão natural e das circunstâncias que a tornava tão hábil.
— Losaduna diz que vocês são bem-vindos ao fogo dos visitantes — disse-lhes Laduni após sua explicação.
— Precisamos descarregar os animais e cuidar deles primeiro — disse Jondalar. — Esse campo bem diante da caverna parece ter boa pastagem de inverno. Alguém se importaria se os deixássemos ali?
— Vocês têm autorização de usar o campo — disse Laduni. — Creio que todos ficarão admirados de ver cavalos tão próximos. — Não resistiu ao impulso de lançar um olhar a Ayla, imaginando o que ela teria feito aos animais. Parecia óbvio que ela detinha poder sobre espíritos poderosíssimos.
— Tenho de pedir mais uma coisa — disse Ayla. — Lobo está acostumado a dormir perto de nós. Ele se sentiria muito infeliz em outro lugar. Se o fato de ele ficar conosco desagradar a seu Losaduna, ou à Caverna, podemos armar nossa tenda e dormir do lado de fora.
Laduni dirigiu-se novamente à sua gente e, depois de uma breve conversa, voltou-se para os visitantes.
— Eles querem que vocês entrem, mas algumas mães temem pelos filhos.
— Compreendo o medo delas. Posso prometer que Lobo não fará mal a quem quer que seja, mas se isso não bastar, ficaremos fora.
— Seguiu-se mais algum tempo de conversa, ao fim da qual Laduni disse.
— Eles concordam com que vocês durmam dentro.
Laduni saiu com eles quando Ayla e Jondalar foram descarregaras as montarias, e ficou tão excitado ao conhecer Huiin e Racer quanto ficara diante de Lobo. Já participara de caçadas a cavalos, mas nunca tocara um deles, exceto por acaso, quando chegava bem perto de um animal. Ayla percebeu sua satisfação, e pensou em mais tarde sugerir que Laduni cavalgasse Huiin.
Ao retornarem à caverna, arrastando as coisas no bote, Laduni perguntou a Jondalar sobre seu irmão. Quando percebeu que um esgar de dor perpassava o rosto do amigo, antes mesmo que ele respondesse, percebeu que acontecera uma tragédia.
— Thonolan morreu. Foi morto por um leão de caverna.
— Sinto muito. Eu gostava dele — disse Laduni.
— Todos gostavam dele.
— Estava tão ansioso por acompanhar o Rio da Grande Mãe até onde fosse possível. Chegou até o fim?
— Sim, ele chegou até o extremo do Donau antes de morrer, mas já então estava desalentado. Havia-se apaixonado por uma mulher, com quem se casou, mas ela morreu de parto — disse Jondalar. — Aquilo o modificou, tirou-lhe o ânimo. Depois disso, perdeu a vontade de viver.
Laduni balançou a cabeça.
— Que pena! Era uma pessoa tão cheia de vida. Filonia ficou pensando nele muito tempo depois de vocês partirem. Não parava de esperar que ele regressasse.
— Como está Filonia? — indagou Jondalar, lembrando-se da formosa filha da casa de Laduni.
O ancião riu.
— Agora está casada, e Duna sorri para ela. Tem dois filhos. Pouco depois que você e Thonolan partiram, ela descobriu que fora abençoada. Quando correu a notícia de que estava grávida, creio que todos os homens Losadunai elegíveis acharam um motivo para visitar nossa Caverna.
— Imagino que sim. Ao que me lembro, era uma moça muito bonita. Fez uma Jornada, não foi?
— Sim, com um primo mais velho.
— E tem dois filhos? — perguntou Jondalar.
Os olhos de Laduni brilharam de satisfação.
— Uma filha da primeira bênção... Thonolia. Filonia tinha certeza de que fora gerada pelo espírito de seu irmão. E não faz muito tempo, teve um menino. Ela mora na Caverna do companheiro. Tinham lá mais espaço, mas não fica longe e nós a vemos, regularmente. — Havia prazer e alegria na voz de Laduni.
— Espero que Thonolia seja filha do espírito de Thonolan. Eu gostaria de imaginar que ainda resta um fragmento de seu espírito no mundo - disse Jondalar.
Poderia aquilo ter acontecido tão depressa?, pensou Jondalar. Seu irmão só passara uma noite com ela. Seria seu espírito tão potente? Ou, se Ayla tiver razão, poderia Thonolan ter feito uma criança começar a crescer dentro de Filonia com a essência de sua virilidade, naquela noite que passamos com eles? Jondalar lembrava-se da mulher com quem ele ficara.
— Como vai Lanalia? — perguntou.
— Muito bem. Está visitando parentes em outra Caverna. Estão tentando arranjar um casamento para ela. Há um homem que perdeu a companheira e ficou com três crianças pequenas em seu fogo. Lanalia nunca teve filhos, apesar de sempre os ter desejado. Se ela se agradar dele, hão de casar-se e ela adotará as crianças. Poderia ser um acordo muito conveniente, e ela está animada.
— Fico feliz por ela, e lhe desejo muitas felicidades — disse Jondalar, encobrindo seu desapontamento. Esperava que ela houvesse engravidado depois de partilhar os Prazeres com ele. Seja o que for, o espírito de um homem ou a essência de sua virilidade, Thonolan comprovou a força que tinha, mas, e eu? Serão minha essência ou meu espírito pouco fortes?, cismou Jondalar.
Ao penetrarem na caverna, Ayla olhou em torno com interesse. Já vira muitas moradias dos Outros: abrigos leves ou portáteis, usados no verão, ou estruturas permanentes mais robustas, capazes de resistir aos rigores do inverno. Algumas eram construídas com ossos de mamute e recobertas de terra ou argila, algumas de madeira e recuadas sob uma tapada ou plataforma flutuante. Mas ela nunca vira uma caverna como aquela desde que deixara o Clã. Uma larga abertura dava para sudeste, e seu interior era agradável e espaçoso. Brun teria apreciado esta caverna pensou.
Assim que seus olhos se habituaram à penumbra e ela viu o interior, ficou pasma. Esperava encontrar várias lareiras em diversos pontos, os fogos de cada família. Com efeito, havia lareiras familiares no interior da caverna, mas ficavam dentro ou perto das aberturas de estruturas feitas de pele presas a postes. Assemelhavam-se a tendas, não de forma cónica, mas abertas no alto, já que prescindiam de proteção contra chuvas e neve dentro da caverna. Até onde ela percebia, aquelas tendas eram usadas como biombos para vedar o espaço interior a olhares casuais. Ayla lembrou-se da regra do Clã que proibia olhar diretamente para o espaço de moradia, definido por pedras de divisa, do fogo de outra pessoa. Era uma questão de tradição e autocontrole, mas o objetivo, percebia ela, era o mesmo: privacidade.
Laduni os conduzia na direçâo de um dos espaços de moradia vedados.
— Sua experiência ruim não foi causada por um bando de malfeitores, foi?
— Não. Por quê? Houve problemas? — quis saber Jondalar. — Quando nos conhecemos, você falou a respeito de um jovem que reunira diversos seguidores. Estavam se divertindo com o Cl... com os cabeças-chatas. — Olhou de lado para Ayla, mas sabia que Laduni jamais compreenderia a palavra "Clã". — Estavam espancando os homens, e depois obtendo seus Prazeres com as mulheres. Alguma coisa a respeito de altos espíritos conduzindo a problemas para todos.
Ao ouvir a menção a "cabeças-chatas", Ayla apurou os ouvidos, curiosa de saber se havia muita gente do Clã ali por perto.
— Isso, são esses. Charoli e seu bando — respondeu Laduni. — Aquilo pode ter começado com altos espíritos, mas foi muito além disso.
— Pensei que a essa altura esses rapazes houvessem parado com esse tipo de conduta — disse Jondalar.
— Trata-se de Charoli. Individualmente, creio, não são maus rapazes, mas ele os incentiva. Losaduna faia que ele quer mostrar que é valente, mostrar que é homem, porque cresceu sem um homem em seu fogo.
— Muitas mulheres têm criado rapazes sozinhas, rapazes que se converteram em bons homens — disse Jondalar. Estavam tão absortos na conversa que tinham parado de caminhar e estavam no meio da caverna. As pessoas se reuniam ao redor deles.
— Claro que sim. Mas o companheiro da mãe dele desapareceu quando Charoli ainda era bebe, e nunca mais ela tomou outro companheiro, Em vez disso, prodigalizava toda sua atenção sobre ele, cobrindo-o de mimos quando ele já era crescido, em vez de fazer com que ele aprendesse um ofício e os deveres de um adulto. Agora compete a todos detê-lo.
— O que sucedeu? — perguntou Jondalar.
— Uma moça de nossa Caverna estava perto do rio, pondo armadilhas. Acabara de tornar-se moça algumas luas antes, e ainda não havia passado pelos Ritos dos Primeiros Prazeres. Estava ansiosa pela cerimônia, que se realizaria na próxima reunião. Charoli e seu bando deram com ela sozinha, e todos eles a pegaram...
— Todos eles? Pegaram-na? À força? — espantou-se Jondalar. — Uma moça, que ainda não era uma mulher. É inacreditável!
— Todos eles — disse Laduni, com uma cólera fria que era pior do que qualquer indignação. — E nós não vamos tolerar isso! Não sei se eles se cansaram das mulheres cabeças-chatas, ou que desculpa deram a si próprios, mas isso foi demais. Causaram à moça dor e sangramento. Ela diz que não quer mais saber de homens, nunca mais. Tem-se recusado a passar pelos ritos femininos.
— Isso é terrível, mas não há como culpá-la. Não é esse o modo de uma moça tomar conhecimento do Dom de Doni — disse Jondalar.
— A mãe dela está com medo. Acha que se ela deixar de honrar a Mãe com a cerimónia, nunca terá filhos.
— Talvez tenha razão, mas o que se há de fazer? — perguntou Jondalar.
— A mãe dela deseja a morte de Charoli, e quer que declaremos uma rixa de sangue contra a Caverna dele — respondeu Laduni. — Ela tem direito à vingança, porém uma rixa de sangue pode destruir a todos. Além disso, não foi a Caverna de Charoli que causou o problema. Foi aquele bando dele, e alguns de seus membros sequer são da Caverna de nascimento de Charoli. Enviei uma mensagem a Tomasi, o chefe da caça de lá, e lhe passei uma ideia.
— Uma ideia? Qual é seu plano?
— Acredito que seja dever de todos os Losadunai deter Charoli e seu bando. Tenho esperança de que Tomasi se una a mim para tentar convencer todos a repor esses jovens sob a supervisão das Cavernas. Cheguei até a sugerir que ele permita à mãe de Madenia tirar sua vingança, em vez de ter de suportar o derramamento de sangue de uma rixa com eles. Mas Tomasi é parente da mãe de Charoli.
— Seria uma decisão bem difícil — disse Jondalar. Notou que Ayla estivera prestando muita atenção. — Alguem sabe onde se esconde o bando de Charoli? Não é possível que estejam com alguma pessoa de seu povo. Não posso crer que alguém da Caverna dos Losadunai desse guarida a tais vilões.
— Ao sul daqui existe uma área erma, com rios subterrâneos e muitas cavernas. Dizem que ele se esconde numa das cavernas perto da fronteira dessa região.
— Poderia ser difícil localizá-los, se existem muitas cavernas.
— Mas não podem ficar ali todo o tempo. Eles têm de obter alimento, e podem ser descobertos e seguidos. Um bom rastreador poderia acha-los mais depressa do que a um animal, mas necessitamos da cooperação de todas as Cavernas. Assim, não tardaríamos em encontrá-los.
— O que farão depois de encontrá-los? — dessa vez foi Ayla quem fez a pergunta.
— Acredito que tão logo todos esses jovens facínoras estejam separados, não levaria muito tempo para que os laços entre eles se rompessem. Cada Caverna pode lidar com um ou dois de seus próprios rapazes, como bem entender. Duvido que a maior parte deles queira realmente viver apartada dos Losadunai e não fazer parte de uma Caverna. Algum dia hão de querer companheiras, e não há muitas mulheres que se disponham a viver como eles.
— Acho que tem razão — disse Jondalar.
— Sinto muito por essa moça — disse Ayla. — Como é mesmo o nome dela? Madenia? — Sua expressão revelava o quanto estava contristada.
— Eu também — aduziu Jondalar. — Gostaria de podermos ficar para ajudar, mas se não cruzarmos a geleira logo, talvez tenhamos de esperar até o próximo inverno.
— Talvez já seja tarde demais para cruzar a geleira neste inverno — disse Laduni.
— Tarde demais? Mas está frio, é inverno. Tudo está congelado. Todas as fendas devem estar cheias de neve.
— Realmente é inverno, mas ele já vai tão adiantado que nunca se sabe. Você poderia conseguir, mas se os ventos foehn vierem mais cedo... e isso poderia acontecer... toda a neve há de derreter depressa. A geleira às vezes é traiçoeira durante o primeiro degelo de primavera. E nas circunstâncias, não acho que seja seguro viajar pela terra dos cabeças-chatas em direção ao norte. Não se têm mostrado muito corteses. O bando de Charoli os antagonizou. Até os animais tendem a proteger suas fêmeas e lutam para isso.
— Eles não são animais — interpôs Ayla, saltando em defesa deles. — São gente, apenas de um tipo um pouco diferente.
Laduni calou-se. Não queria ofender uma visita, uma hóspede. Como aquela mulher era tão chegada a animais, talvez considerasse a todos eles como gente. Se um lobo a protege, e se ela o trata como a um ser humano, será de admirar que ela também considere os cabeças-chatas humanos?, pensou. Sei que podem ser ardilosos, mas não são humanos.
Várias pessoas tinham-se reunido em torno deles enquanto conversam. Uma mulherzinha magra, de meia-idade, perguntou, com um sorriso tímido:
— Não acha que deve deixar que se instalem, Laduni?
— Estou começando a imaginar se você não fará com que fiquem aqui falando o dia inteiro — acrescentou a mulher que estava ao lado dele. Era uma mulher roliça, um pouquinho mais baixa que o homem, de rosto jovial.
— Desculpem. Vocês têm razão, é claro. Permita-me apresentá-los — disse Laduni. Olhou para Ayla primeiro, depois virou-se para o homem. — Losaduna, Aquele que Serve à Mãe para a Caverna da Fonte Termal dos Losadunai, esta é Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutói, Eleita do Leão, Protegida pelo Grande Urso e Filha do Fogo do Mamute.
— O Fogo do Mamute! Então você é também Aquela que Serve à Mãe — disse o homem, com um sorriso surpreso, antes mesmo de saudá-la.
— Não, eu sou uma Filha do Fogo do Mamute. Mamute estava a me treinar, mas nunca passei pela iniciação — explicou Ayla.
— Mas nasceu para isso! Você deve ser eleita da Mãe, também juntamente com todo o resto — disse o homem, com evidente satisfação.
— Losaduna, você ainda não a saudou — repreendeu a mulher roliça.
O homem ficou perplexo por um instante.
— Ah, creio que não. Sempre essas formalidades! Em nome de Duna, a Grande Mãe Terra, permita oferecer-lhe as boas-vindas, Ayla dos Mamutói, Eleita do Acampamento do Leão e Filha da Caverna do Mamute.
A mulher a seu lado suspirou e balançou a cabeça.
— Ele misturou as coisas, mas se fosse alguma cerimónia pouco conhecida ou uma lenda sobre a mãe, haveria de lembrar-se de cada pormenor.
Ayla não pôde deixar de sorrir. Jamais havia conhecido um Servidor da Mãe tão pouco afeito aos formalismos da função. Os que conhecera antes eram pessoas seguras de si, fáceis de reconhecer, de presença magnética; nada tinham que lembrasse aquele homem distraído e inseguro, desdenhoso de aparências, de porte agradável, um tanto acanhado. Mas a mulher parecia saber o que ele valia, e Laduni evidentemente o tratava com respeito. Obviamente, Losaduna era mais importante do que parecia.
— Está certo — disse Ayla à mulher. — Na verdade, ele não errou. — Afinal de contas, ela fora eleita pelo Acampamento do Leão, também; adotada, não nascida ali, pensou Ayla. Depois dirigiu-se ao homem, que lhe segurara as mãos e ainda as tinha nas suas. — Saúdo Aquele que Serve à Grande Mãe de Todos, e agradeço-lhe por sua acolhida, Losaduna.
O homem sorriu ao ouvir Ayla usar outro dos nomes da Duna, enquanto Laduni se punha a falar.
— Solandia dos Losadunai, nascida na Caverna do Rio do Monte, Companheira do Losaduna, esta é Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutói, Eleita do Leão, Protegida pelo Grande Urso e Filha do Fogo do Mamute.
— Eu a saúdo, Ayla dos Mamutói, e a convido a nossas habitações — disse Solandia. Os títulos e ligações completas tinham sido proclamados suficientes vezes. A mulher achou desnecessário repeti-los.
— Obrigada, Solandia —.disse Ayla.
Laduni olhou então para Jondalar.
— Losaduna, Aquele que Serve à Mãe para a Caverna da Fonte Termal dos Losadunai, este é Jondalar, Mestre Lascador de Sílex da Nona Caverna dos Zelandonii, filho de Marthona, no passado chefe da Nona Caverna, irmão de Joharran, chefe da Nona Caverna, nascido no Fogo de Dalanar, chefe e fundador dos Lanzadonii.
Ayla jamais escutara antes todos os títulos e afiliações de Jondalar, e ficou surpresa. Conquanto não lhes entendesse o pleno significado, pareciam importantes. Depois de Jondalar repetir a litania e ser formalmente apresentado, foram finalmente conduzidos ao amplo espaço de habitação e cerimónia atribuído a Losaduna.
Lobo, que estivera sentado, quieto, junto da perna de Ayla, emitiu um ligeiro ganido ao chegarem à entrada do espaço de moradia. Vira uma criança lá dentro, mas sua reação assustou Solandia. Ela correu e levantou a criança do chão.
— Tenho quatro filhos. Não sei se esse lobo deve ficar aqui — disse, como o medo a lhe esganiçar a voz. — Micheri ainda nem sabe andar. Como hei de saber que o animal não vai atacar meu filho?
— Lobo não fará mal algum à criancinha — disse Ayla. — Ele nasceu com crianças e é louco por elas. Na verdade, é mais gentil com crianças do que com adultos. Ele não quis atacar o menino; apenas ficou feliz ao vê-lo.
Ayla tinha feito sinal a Lobo para que se sentasse, mas o animal não conseguia esconder o prazer de ver crianças. Solandia fitou o carnívoro de soslaio. Não saberia dizer se ele demonstrava alegria ou fome, mas também estava curiosa em relação aos visitantes. Uma das melhores vantagens de ser a companheira de Losaduna era poder ser a primeira a conversar com os raros visitantes, e ela podia passar mais tempo com eles porque em geral eram instalados no fogo cerimonial.
— Bem, eu disse que ele podia ficar — respondeu ela.
Ayla conduziu Lobo para o interior, levou-o para um desvão e fez-lhe um sinal para que não saísse dali. Ficou a seu lado, pois sabia que a ordem lhe seria bastante penosa. No momento, porém, o simples fato de haver crianças por perto pareceu consolá-lo.
O comportamento do animal tranquilizou Solandia. Depois de lhe servir um chá quente, apresentou os filhos e depois voltou para os fundos da gruta, a fim de preparar a refeição que tinha começado. Esqueceu-se da presença do animal, porém as crianças ficaram fascinadas. Ayla os observava, procurando ser discreta. O mais velho dos quatro, Larogi, era um garoto de seus dez anos, calculou. Havia uma menina de aproximadamente sete anos, Dosalia, e uma outra que teria uns quatro, Neladia. Embora o bebê ainda não andasse, nem por isso se mantinha imóvel. Começara a engatinhar e mostrava-se rápido de gatinhas.
As crianças mais velhas sentiam medo de Lobo, mas a maior das meninas levantou o bebê e o segurou enquanto olhavam o animal. Como depois de algum tempo nada acontecesse, ela o pôs no chão. Enquanto Jondalar conversava com Losaduna, Ayla começou a arrumar as coisas deles. Havia peles de dormir extras para os hóspedes, e Ayla imaginou que teria tempo de limpar as suas enquanto permanecessem ali.
De repente escutaram como que uma gargalhada de criança pequena. Ayla susteve a respiração e olhou para o canto onde deixara Lobo. Seguiu-se um silêncio absoluto no resto do espaço de moradia, enquanto todos fitavam o bebê, com espanto e admiração. Ele rastejara até o canto e estava sentado ao lado do enorme lobo, puxando-lhe o pêlo. Ayla olhou para Solandia e a viu estática, enquanto seu precioso menininho continuava a cutucar, empurrar e puxar o lobo, que simplesmente abanava a cauda e parecia estar-se divertindo.
Por fim, Ayla foi até lá, levantou o garoto e o levou para a mãe.
— Você tinha razão! — exclamou Solandia, atarantada. — Esse lobo realmente adora crianças! Se eu não tivesse visto isso com meus próprios olhos, jamais teria acreditado!
Não demorou muito para que os outros filhos de Solandia se aproximassem do lobo, que gostava de brincadeiras. Depois de um pequeno incidente com o menino mais velho, a que Lobo reagiu pegando a mão do garoto com os dentes e rosnando, mas sem morder, Ayla explicou que tinham de tratá-lo com respeito. A reação de Lobo assustou o menino o suficiente para que ele prestasse atenção ao aviso de Ayla. Quando saíram ao ar livre, todas as crianças da comunidade ficaram a olhar os quatro filhos de Solandia e o lobo, tomados de fascínio. Os filhos de Solandia foram alvo de inveja pelo privilégio especial que tinham de conviver com o animal.
Antes que caísse a noite, Ayla saiu para ver as montarias. Ao pôr os pés fora da caverna, ouviu Huiin relinchar em saudação, e percebeu que a amiga estivera um tanto preocupada. Quando ela relinchou de volta, fazendo com que várias cabeças se virassem em sua direção, surpresas Racer respondeu com um zurro um pouco mais alto. Ayla atravessou o campo, coberto de muita neve perto da caverna, para dedicar aos cavalos alguma atenção e ter certeza de que ambos estavam bem. Huiin ergueu a cauda, alerta. Quando a mulher se aproximou, ela baixou a cabeça e logo depois a levantou bem alto, descrevendo um círculo no ar com o focinho. Racer, também feliz por ver Ayla, escoiceou e empinou-se nas patas traseiras.
Para eles era uma situação nova estar no meio de tanta gente outra vez, e a mulher conhecida lhe trazia tranquilidade. Racer arqueou o pescoço e levou as orelhas à frente quando Jondalar apareceu na entrada da caverna, e foi encontrar-se com o dono no meio do campo. Depois de abraçar, afagar e conversar com a égua, Ayla resolveu que pentearia Huiin no dia seguinte, pois isso seria relaxante para ambas.
Lideradas pelos quatro filhos de Solartdia, todas as crianças tinham-se juntado e estavam avançando na direção dos cavalos. Os incríveis visitantes permitiram-lhes tocar ou acariciar um ou outro dos animais Ayla deixou que algumas montassem Huiin, enquanto muitos adultos assistiam com um ar de inveja. Ayla tinha intenção de deixar os adultos que quisessem também montar, mas achou que ainda era cedo demais para isso. Os animais precisavam descansar, e ela não queria que ficassem tensos.
Com pás feitas de grandes chifres de rena, ela e Jondalar puseram-se a limpar a neve de parte do pasto mais perto da caverna, a fim de facilitar a alimentação dos animais. Várias outras pessoas os ajudaram, fazendo com que o trabalho terminasse depressa, mas o ato de trabalhar na neve trouxe ao espírito de Jondalar uma preocupação que ele estivera tentando resolver já havia algum tempo. Como iriam encontrar alimento e forragem, e, mais importante, água em quantidade suficiente para eles próprios, um lobo e dois cavalos enquanto atravessassem uma enorme região glacial?
Mais tarde, naquela noite, todos se reuniram no amplo espaço cerimonial para ouvir Jondalar e Ayla falarem de suas viagens e suas aventuras. Os Losadunai estavam interessados principalmente nos animais. Solandia já começara a confiar em Lobo, deixando que ele brincasse com os filhos, e até os adultos se distraíam ao observar o animal junto das crianças. Era difícil acreditar. Ayla não entrou em detalhes com relação ao Clã, ou a respeito da maldição de morte que a obrigara a partir, embora desse a entender que haviam surgido divergências.
Os Losadunai achavam que o Clã fosse apenas um grupo de pessoas que viviam no extremo leste. Por mais que ela explicasse que o processo de fazer os animais se habituarem a pessoas nada tivesse de sobrenatural, ninguém lhe dava crédito. A ideia de que uma pessoa comum fosse capaz de domesticar um cavalo selvagem ou um lobo era absurda demais. A maioria das pessoas julgava que o período em que ela vivera sozinha num vale fora um tempo de provação e abstinência, cumprido por muitos que se sentiam chamados a Servir à Mãe, e que a facilidade que demonstrava no trato com os animais corroborava a propriedade de sua Vocação. Se ela ainda não era Servidora da Mãe, isso era apenas questão de tempo.
No entanto, os Losadunai ficaram pesarosos ao saber das dificuldades dos visitantes com Attaroa e os S'Armunai.
— Não é de admirar, então, que recebêssemos tão poucos visitantes vindos do leste nos últimos anos. E estão dizendo que um dos homens detidos ali era um Losadunai? — perguntou Laduni.
— Isso mesmo. Não sei como ele se chamava aqui, mas lá o nome dele era Ardemun — respondeu Jondalar. — Havia se machucado e estava aleijado. Não podia caminhar muito bem, e decerto não seria capaz de fugir, de modo que Attaroa lhe permitia andar pelo Acampamento em liberdade. Foi ele quem libertou os homens.
— Lembro-me de um rapaz que partiu numa Jornada — disse uma mulher. — Naquele tempo eu sabia como ele se chamava. Mas não me lembro mais... Um momento... ele tinha um apelido... Ardemun... Ardi... não, Mardi. Ele era chamado de Mardi!
— Você se refere a Menardi? — perguntou um homem. — Eu me lembro dele das Reuniões de Verão. Era chamado de Mardi, e realmente partiu numa Jornada. Então foi isso que lhe aconteceu. Ele tem um irmão que vai gostar de saber que está vivo.
— E bom saber que já se pode viajar para aqueles lados em segurança outra vez. Tiveram sorte em não se encontrar com eles a caminha do leste — observou Laduni.
— Thonolan tinha pressa em chegar o mais longe possível, seguindo o Rio da Grande Mãe - explicou Jondalar. - Ele não queria parar e ficamos deste lado do rio. Tivemos sorte.
Quando a reunião se desfez, Ayla sentiu-se feliz por deitar-se num lugar quente e seco, sem ventos, e caiu no sono rapidamente.
Ayla sorriu para Solandia, que estava sentada ao lado da lareira, embalando Michen. Acordara cedo e resolvera preparar o chá matinal para ela e Jondalar. Procurou a pilha de lenha ou de excrementos secos, não sabendo que combustível eles usavam, porém tudo que viu foi uma pilha pedras castanhas.
— Quero fazer um pouco de chá — disse — O que vocês queimam? Se me disser onde está, vou buscar.
— Não é preciso. Existe muito aqui — respondeu Solandia.
Ayla olhou em torno e, como ainda não viu a lareira ardendo, ficou a imaginar que a mulher não a compreendera.
Solandia percebeu-lhe o embaraço e sorriu. Estendeu a mão e pegou uma das pedras castanhas. — Nós usamos isso, pedra de queimar.
Ayla pegou a pedra e a examinou com atenção. Viu um claro grão de madeira, mais evidentemente aquilo não era nem pedra nem madeira. Nunca vira nada de semelhante. Era linhita, carvão de pedra, um material a meio caminho entre a turfa e o carvão betuminoso. Jondalar acordara e foi falar com ela. Ayla lhe sorriu e passou-lhe a pedra.
— Solandia disse que é isso que eles queimam na lareira — disse, notando a mancha que apedra deixara em sua mão.
Foi a vez de Jondalar examinar a pedra e assumir uma expressão de pasmo.
— Parece madeira, mas é Pedra. Entretanto, não se trata de uma pedra dura como pedra-de-fogo. Essa aqui deve quebrar-se com facilidade.
— Quebra mesmo — disse Solandia. — A pedra de queimar quebra fácil.
— De onde vem? — indagou Jondalar.
— No sul, na direção das montanhas, existem campos cheios delas. Algumas pessoas ainda usam madeira e fazem fogueiras, mas essa pedra produz mais calor e durante mais tempo — explicou a mulher.
Ayla e Jondalar se entreolharam e entre eles passou uma comunicação de cumplicidade.
— Vou buscar uma — disse Jondalar. Quando ele regressou, Losaduna e o menino mais velho, Larogi, já haviam acordado. — Vocês têm pedras de queimar e nós temos uma pedra de fogo, que serve para começar o fogo.
— E foi Ayla quem a descobriu? — perguntou Losaduna. Era mais uma afirmação do que uma pergunta.
— Como descobriu? — quis saber Jondalar.
— Talvez porque foi ele quem descobriu as pedras que queimam — redarguiu Solandia.
— Eram tão parecidas com madeira que resolvi tentar queimá-las E deu certo — disse Losaduna.
Jondalar sacudiu a cabeça.
— Ayla, por que não mostra a eles? — perguntou, passando-lhe o pedaço de pirita e a pederneira, junto com a isca.
Ayla dispôs a isca em posição, e depois girou a pedra de um amarelo metálico em torno da mão até senti-la bem ajustada. O sulco na pirita, produzido pelo uso contínuo, estava virado para o lado certo. A seguir, pegou o fragmento de pederneira. Seus movimentos eram tão hábeis que quase nunca era preciso mais de um golpe para produzir uma faísca. Com umas poucas sopradelas, a isca se incendiou. Os presentes emitiram um suspiro coletivo.
— Isso é incrível — disse Losaduna.
— Não mais do que suas pedras de queimar — respondeu Ayla. — Temos algumas de sobra. Vou lhe dar uma, para a Caverna. Talvez possamos fazer uma demonstração durante a Cerimónia.
— Isso! A ocasião seria perfeita, e terei todo prazer de aceitar seu presente para a Caverna — disse Losaduna. — Mas temos de lhe dar alguma coisa em troca.
— Laduni já nos prometeu dar tudo de que precisarmos para ultrapassar a geleira e prosseguir nossa Jornada. Ele tem para comigo uma dívida, muito embora tivesse nos atendido de qualquer jeito. Lobos invadiram nosso esconderijo e levaram a comida — disse Jondalar.
— Vocês tencionam cruzar a geleira com os cavalos? — perguntou Losaduna.
— Claro que sim — disse Ayla.
— Como farão para alimentá-los? E dois cavalos têm de beber muito mais água do que duas pessoas. Como conseguirão água se tudo está congelado? — perguntou Aquele que Serve.
Ayla olhou para Jondalar.
— Estive pensando nisso — respondeu ele. — Creio que poderíamos levar um pouco de ervas secas no bote.
— E quem sabe, também pedras de queimar? Se conseguirem a achar um lugar para armar uma fogueira em cima do gelo. Não teriam de se preocupar com o fato de elas se molharem, e seria muito menos peso para carregar — disse Losaduna.
Jondalar pensou um pouco e depois seu rosto se abriu num sorriso largo e contente.
— Está aí a resposta! Podemos colocá-las dentro do bote... que desliza pelo gelo mesmo quando carregado... e acrescentar algumas outras pedras para serem usadas como base para um fogão. Estive pensando nisso há tanto tempo... Não tenho como lhe agradecer, Losaduna.
Por acaso Ayla descobriu, ao escutar algumas pessoas conversando sobre ela, que julgavam seu estranho maneirismo ao falar um sotaque Mamutói, embora Solandia acreditasse que se tratava de uma ligeira dificuldade de fala. Por mais que ela tentasse, não conseguia superar a dificuldade que tinha de articular certos sons, mas ficou satisfeita ao perceber que mais ninguém parecia atentar para aquilo.
Durante os dias que se seguiram, Ayla conheceu melhor o grupo dos Losadunai que viviam perto da fonte termal — o grupo era chamado "a Caverna", vivesse ou não numa delas. Apreciava particularmente as pessoas que a hospedavam em seu espaço de moradia, Solandia, Losaduna e as crianças, e percebeu o quanto sentira falta de gente amiga que se comportasse de maneira normal. A mulher falava a língua da gente de Jondalar razoavelmente, misturando algumas palavras Losadunai, mas ela e Ayla não tinham dificuldades para se fazerem entender mutuamente.
Sentiu-se ainda mais atraída pela companheira do Servidor da Mãe ao descobrir que tinham um interesse comum. Embora fosse Losaduna que devesse entender de plantas, ervas e remédios, na verdade era Solandia quem acumulara maior soma de conhecimentos. O casal lhe lembrava Iza e Creb, pois Solandia tratava as doenças da Caverna com uma flora medicinal prática, deixando o exorcismo de espíritos e outras desconhecidas emanações nocivas a cargo do companheiro. Ayla admirava também o interesse que Losaduna demonstrava por histórias, lendas, mitos e pelo mundo dos espíritos — pelos aspectos intelectuais a que ela tivera o acesso proibido quando vivia com o Clã —, e começava a espantar-se com o volume de conhecimentos que ele possuía.
Assim que ele descobriu que ela nutria um genuíno interesse pela Grande Mãe Terra e pelo mundo imaterial dos espíritos, e ao se dar conta de sua vívida inteligência e sua extraordinária capacidade de memorização, Losaduna dispôs-se a lhe transmitir tudo quanto sabia. Mesmo sem compreendê-los plenamente, em breve Ayla recitava longos poemas e historias, assim como o conteúdo e a ordem exata de rituais e cerimónias. Lasaduna era fluente em Zelandonii, embora o falasse com um forte sabor Losadunai, nas expressões e na fraseologia, tornando as duas línguas tão Parecidas que a maior parte do ritmo e da métrica dos versos se mantinha, embora parte das rimas se perdesse. Ainda mais fascinantes para eles eram as sutis diferenças e as muitas semelhanças entre a interpretação dele e as tradições dos Mamutói. Losaduna queria ficar a par das variações e das divergências, e Ayla acabou por se ver não como uma acólita, como fora com Mamute, mas como uma espécie de mestra, explicando a cultura oriental, ou ao menos o que ela conhecia.
Jondalar também estava apreciando o clima da caverna, e tomava consciência do quanto perdera por não conviver com pessoas. Passava muito tempo com Laduni e vários caçadores, mas Solandia surpreende-se com o interesse que ele demonstrava pelos filhos dela. Realmente Jondalar gostava de crianças, mas se interessava principalmente por observar as relações entre eles e a mãe. Sobretudo quando Solandia amamentava o bebê, ele se entristecia por Ayla ainda não ter tido um filho, um filho de seu espírito, como ele esperava, mas ao menos um filho ou uma filha para o seu fogo.
O bebê de Solandia, Micheri, despertava sentimentos análogos em Ayla, mas ela continuava a preparar seu chá anticoncepcional a cada manhã. As descrições da geleira que ainda teriam de atravessar eram tão aterradoras que ela não queria sequer pensar na possibilidade de ter um filho com Jondalar por enquanto.
Embora se sentisse grato por isso não ter acontecido enquanto viajavam, Jondalar não se sentia de todo tranquilo. Começava a se preocupar com o fato de a Grande Mãe Terra não abençoar Ayla com uma gravidez, achando que de algum modo aquilo era culpa sua. Certa tarde ele levou suas apreensões a Losaduna.
— A Mãe decidirá quanto ao tempo certo — disse o homem. — Talvez Ela saiba o quanto as viagens de vocês serão difíceis. Entretanto, creio que chegou o momento de uma cerimónia em Sua honra. Nessa ocasião, você poderá pedir-Lhe que dê um filho a Ayla.
— Talvez você tenha razão — concordou Jondalar. — Decerto não haverá mal nisso. — Riu, desdenhoso. — Uma vez me disseram que eu era um protegido da Mãe e que Ela jamais me recusaria um pedido. — A seguir uma sombra lhe toldou o semblante. — Ainda assim, Thonolan morreu.
— Você chegou a pedir-lhe que não o deixasse morrer? — perguntou Losaduna.
— Bem... não. Tudo aconteceu tão depressa — admitiu Jondalar — Aquele leão também me feriu.
— Pense nisso um dia. Tente lembrar-se se você já lhe pediu alguma coisa, e se Ela atendeu ou rejeitou seu pedido. De qualquer modo, vou conversar com Laduni e com o conselho a respeito de uma cerimónia em honra da Mãe — disse Losaduna. — Quero fazer alguma coisa que possa ser de ajuda a Madenia, e uma Cerimónia de Honra talvez seja a coisa mais acertada. Ela se recusa a sair da cama. Não quis nem mesmo levantar-se para ouvir as suas histórias, e Madenia antes gostava tanto de histórias de viagens!
— Que provação terrível isso deve ter sido para ela — disse Jondalar, sentindo um arrepio.
— Realmente. Eu esperava que ela já estivesse se recuperando. É bem possível que um ritual de purificação na Fonte Termal ajude — disse ele, mas era evidente que não esperava uma resposta de Jondalar. Sua mente já estava longe dali, pois ele começava a refletir sobre o ritual. De repente, ergueu os olhos. — Sabe onde está Ayla? Acho que vou pedir-lhe que participe do ritual conosco. Com certeza ela ajudaria.
— Losaduna esteve explicando, e estou muito interessada no ritual que estamos planejando — disse Ayla. — Mas não estou tão certa com relação à Cerimónia em Honra da Mãe.
— É uma cerimónia importante — disse Jondalar, com o cenho franzido. — A maioria das pessoas a espera com ansiedade. — Se Ayla não estivesse interessada no rito, teria ele alguma eficácia?
— E possível que se eu soubesse mais a respeito, também me interessasse. Ainda tenho muito que aprender e Losaduna está disposto a me ensinar. Gostaria de ficar por aqui mais tempo.
— Mas temos de partir em breve. Se esperarmos muito, chegará a primavera. Vamos ficar para a Cerimónia em Honra da Mãe, e depois partiremos — disse Jondalar.
— Quase me atrevo a dizer que deveríamos ficar por aqui até o próximo inverno. Estou tão cansada de viagens — disse Ayla. No entanto, não verbalizou seu pensamento completo, que a vinha atormentando: estas pessoas estão dispostas a me aceitar; não sei se a sua gente fará o mesmo.
— Também estou cansado de viajar, mas assim que transpusermos a geleira, o destino não estará longe. Vamos parar para uma visita a Dalanar e para que ele saiba que voltei. Depois, o resto do caminho será fácil.
Ayla sacudiu a cabeça, concordando, mas ainda com a sensação de que lhe restava um longo caminho a percorrer. Falar sobre a viagem de certo era mais fácil do que realizá-la.
— Você quer que eu faça alguma coisa? — perguntou Ayla.
— Ainda não sei — disse Losaduna. — Acho que, nessas circunstancias, deveríamos ter uma mulher conosco. Madenia sabe que eu sou Aquele que Serve à Mãe, mas eu sou homem, e ela agora tem medo de homens. Acho que seria muito útil se ela falasse sobre isso, pois às vezes é mais fácil conversas com um desconhecido com quem se simpatiza. As pessoas têm medo de que os conhecidos se lembrem sempre dos seus segredos mais íntimos; além disso, toda vez que os vêem, lembram-se de sua dor e de sua raiva.
— Há alguma coisa que eu não deva dizer, ou fazer?
— Você é uma pessoa sensível e saberá por si mesma o que fazer. Você também tem uma rara habilidade para línguas. Estou realmente impressionado com a rapidez com que aprendeu a falar Losadunai, e também sou-lhe grato por Madenia — disse Losaduna.
Esse elogio constrangeu Ayla, que desviou o olhar. Para ela, seu talento não era tão surpreendente.
— A língua parece muito com Zelandonii — comentou.
Ele percebeu o desconforto de Ayla, e não tocou mais no assunto. Ambos observaram Solandia chegar.
— Está tudo pronto. Vou levar as crianças e preparar este lugar para vocês, para quando tiverem terminado. Ah! Isso me lembrou de uma coisa, Ayla. Você se importa se eu levar Lobo? O neném se apegou tanto a ele, e ele mantém todos ocupados. — A mulher soltou um riso nervoso. — Quem diria que eu chegaria a pedir a um lobo para tomar conta de minhas crianças?
— Acho melhor ele ir com você — disse Ayla. — Madenia não conhece Lobo.
— Vamos buscá-la, então? — sugeriu Losaduna.
No caminho para a moradia de Madeina e sua mãe, Ayla notou que ela era mais alta que o homem. Isso lhe recordou a primeira impressão sobre ele: baixo e tímido. Surpreendeu-se ao ver como sua maneira de vê-lo mudara. Embora Losaduna fosse baixo e reservado, seu intelecto decidido emprestava-lhe estatura, e sua calma dignidade escondia uma sensibilidade profunda, além de uma forte presença.
Losaduna arranhou o couro firme, esticado entre estacas finas. A porta de entrada abriu-se para fora e uma mulher mais velha fê-los entrar. Sua expressão franziu-se quando viu Ayla, a quem lançou um olhar de desagrado.
A mulher foi logo ao assunto, cheia de amargura e rancor.
— Já encontraram aquele homem? Aquele que roubou os meus netos, antes mesmo de terem oportunidade de nascer?
— Achar Charoli não vai devolver seus netos, Verdegia, e eu não estou preocupado com ele, agora. Com Madenia, sim; como vai ela. — inquiriu Losaduna.
— Ela não quer sair da cama e só com muita dificuldade comeu alguma coisa. Nem mesmo falou comigo. Era uma criança muito bonita e estava se transformando numa linda mulher. Não teria dificuldade para encontrar um companheiro, até que Charoli e seus homens a arruinaram. Por que a senhora acha que ela está arruinada? — perguntou Ayla.
A mulher encarou Ayla, como se ela fosse imbecil.
— Essa mulher não sabe de nada? — falou, dirigindo-se a Lossduna. Em seguida, voltou-se para Ayla: — Madenia nem chegou a cumprir seus Primeiros Ritos. Ela foi estragada, arruinada. Agora, a Mãe jamais a abençoará.
— Não esteja tão certa disso. A Mãe não é tão rancorosa — afirmou o homem. — Ela conhece os caminhos de seus filhos e tem meios, outras formas de ajudá-los. Madenia pode ser purificada, renovada, de maneira que ainda possa ter seus Ritos dos Primeiros Prazeres.
— Isso não vai resolver. Ela não quer saber de nada ligado a homens, nem mesmo os Primeiros Ritos — atalhou Verdegia. — Todos os meus filhos foram viver com suas companheiras: todos disseram que não tínhamos lugar em nossa caverna para tantas novas famílias. Só restou Madenia, minha única filha. Desde que meu homem morreu, espero vê-la trazer um companheiro para cá, ter por perto um homem que ajude a manter os filhos que ela teria, meus netos. Agora não terei mais netos morando aqui. Tudo por causa... daquele homem — prosseguiu ela, confusa —, e ninguém está fazendo nada.
— Você sabe que Laduni está aguardando notícias de Tomasi — explicou Losaduna.
— Tomasi! — Verdegia cuspiu o nome. — Para que serve ele? Foi sua caverna que gerou aquele... aquele homem.
— Você tem de dar-lhes uma oportunidade. Mas nós não precisamos esperar por eles para ajudar Madenia. Quando ela for purificada e renovada, talvez mude de ideia a respeito de seus Primeiros Ritos. Pelo menos, precisamos tentar.
— Você pode tentar, mas ela não vai se levantar — asseverou a mulher.
— Talvez possamos encorajá-la — argumentou Losaduna. — Onde está ela?
— Lá, atrás da cortina — respondeu Verdegia, apontando para um espaço fechado próximo à parede de pedra.
— Losaduna dirigiu-se para o lugar e puxou a cortina, deixando a luz entrar. A garota, na cama, levantou a mão para tapar a claridade.
— Madenia, levante-se agora — ordenou. Seu tom era firme, porém delicado. Ela desviou o rosto. — Ajude-me, Ayla.
Juntos, eles a sentaram e depois a puseram em pé. Madenia não opunha resistência, mas também não cooperava. Um de cada lado, levaram-na para fora do espaço fechado e, em seguida, saíram da caverna. Embora descalça, a menina não parecia sentir o terreno gelado, coberto de neve. Conduziram-na a uma tenda cónica que Ayla não notara antes. Escondia-se ao lado da caverna, entre pedras e moitas, e saía vapor pela chaminé, no topo. Um forte cheiro de enxofre permeava o ar.
Assim que entraram, Losaduna empurrou uma cobertura de couro que tapava a passagem e prendeu-a. Encontraram-se então numa pequena ante-sala, separada do aposento principal por pesadas cortinas de couro; pele de mamute, pensou Ayla. Embora no exterior o frio fosse cortante, lá dentro estava quente. A tenda, de parede dupla, fora erigida em volta de uma fonte aquecida, que proporcionava calor. Entretanto, apesar do vapor, as paredes mostravam-se razoavelmente secas. Embora houvesse alguma umidade, que se condensava no alto sob a forma de gotículas e escorria pelas paredes inclinadas até a borda do pano que revestia o chão a maior parte da condensação ocorria no lado interno da parede exterior, onde o frio lá de fora encontrava-se com o calor de dentro. O ar entre as duas paredes era mais quente, o que mantinha o revestimento interno quase seco.
Losaduna ordenou-lhes que tirassem as roupas; ao ver Madenia permanecer imóvel, mandou Ayla despi-la. Quando Ayla começou a remover as vestimentas de Madenia, esta agarrou-se às suas roupas, enquanto fitava, de olhos fixos e arregalados, Aquele que Serve à Mãe.
— Tente tirar a roupa dela; se ela não deixar, traga-a vestida mesmo — disse Losaduna. Em seguida, desapareceu atrás da pesada cortina deixando escapar um bocado de vapor. Assim que o homem saiu, Ayla conseguiu tirar as vestes da jovem; despiu-se, também, e conduziu Madenia ao aposento além da cortina.
Nuvens de vapor obscureciam o recinto com uma fumaça quente que manchava os contornos e ocultava os detalhes, mas Ayla pôde distinguir uma piscina cercada de pedras, ao lado de uma fonte quente natural. O buraco que as ligava estava fechado por um batoque de madeira. Do outro lado da piscina, um tronco oco, que trazia água fria de um riacho próximo, fora levantado para impedir o fluxo de chegar à piscina. Quando a densa cortina de vapor clareou por alguns instantes, ela pôde ver que o interior da tenda era decorado com pinturas de animais, muitas delas representando fêmeas grávidas, ao lado de enigmáticos triângulos, círculos, trapezóides e outras figuras geométricas. A maioria das pinturas fora esmaecida pela condensação da água.
Em volta das piscinas, embora sem alcançar a parede da tenda, o chão era recoberto por grossos chumaços de feltro de lã de carneiro, que transmitiam aos pés descalços uma sensação maravilhosa de maciez e quentura. Suas formas e linhas conduziam à parte mais rasa da piscina, à esquerda. Sob a água, junto à parede da parte mais funda, à direita da piscina, podiam-se distinguir bancos de pedra. Na parte traseira, sobre uma plataforma elevada de terra, bruxuleavam as luzes de três lamparinas de pedra — tigelas cheias de gordura derretida, em cujo centro flutuava um pavio de alguma substância aromática — que cercavam a pequena estátua de uma mulher de formas generosas. Ayla reconhecei na figura uma representação da Grande Mãe Terra.
No interior de um círculo quase perfeito de pedras redondas, quase idênticas em forma e tamanho, havia uma lareira cuidadosamente construída em frente ao altar de terra. Losaduna surgiu no meio da névoa e pegou um pequeno bastão que jazia ao lado de uma das lamparinas. Numa das extremidades, via-se uma bolha de material escuro, que Losaduna colocou sobre a chama. Logo ela pegou fogo e, pelo cheiro, Ayla percebeu que a ponta do bastão fora mergulhada em piche. Losaduna levou o pequeno tição, protegendo a chama com a mão em concha, até a lareira, onde acendeu o fogo. Desprendeu-se então um aroma forte, mas agradável, que mascarava o odor de enxofre.
Sigam-me — ordenou. Em seguida, colocando o pé esquerdo sobre um dos chumaços de lã entre duas linhas paralelas, começou a andar em volta da piscina, sobre um caminho delineado com precisão. Madenia arrastava os pés atrás dele, sem se importar com o caminho seguido. Ayla, porém, seguiu os passos dele. Completaram o circuito da piscina e da fonte quente, pulando a entrada de água fria e a vala de escoamento. Ao iniciar a segunda volta, Losaduna começou a cantar em ritmo monótono, invocando a Mãe através de nomes e títulos.
Ó Duna, Grande Mãe Terra, Grande e Beneficente Provedora, Grande Mãe de Todos, Mãe Primeira e Original, Aquela que Abençoa Todas as Mulheres, Mãe Plena de Compaixão, ouve as nossas súplicas — o homem repetiu diversas vezes as invocações, enquanto circundavam a água pela segunda vez.
Ao colocar o pé esquerdo entre as linhas paralelas da esteira inicial para começar o terceiro circuito, Losaduna pediu:
— Mãe Compassiva, ouve nossa súplica. Ó Duna, Grande Mãe Terrestre, uma das Tuas filhas foi ferida, violada. Por isso, deve ser purificada para receber Tua bênção. Grande e Beneficente Provedora, uma de Tuas filhas precisa de ajuda. Ela precisa ser curada. Renova-a, Grande Mãe de Todos, faze com que ela conheça a alegria de Tuas Dádivas. Ajuda-a, Mãe Primeira, a conhecer Teus Ritos dos Primeiros Prazeres. Permite, Mãe Primeira, que ela receba Tua Bênção. Mãe Compassiva, ajuda Madenia, filha de Verdegia, filha dos Losadunai, as Crianças da Terra que vivem perto das montanhas.
O discurso e a cerimónia fascinaram Ayla, que pareceu notar, para sua alegria, alguns sinais de interesse em Madenia. Terminada a terceira volta, Losaduna conduziu-as — com os mesmos passos marcados e as mesmas invocações — ao altar de terra, onde as três lamparinas iluminavam a imagem da Mãe. Ao lado de uma das candeias havia um objeto em forma de faca, talhado em osso. Era razoavelmente grande e dotado de dois gumes, com ponta arredondada. Losaduna pegou-o e conduziu ambas as Mulheres até a lareira.
Sentaram-se juntos em volta da lareira, voltados para a piscina, Madenia entre ambos.
O homem pegou de uma pilha próxima algumas pedras marrons de queimar e colocou-as no fogo. Pegou também a tigela guardada em um nicho ao lado da plataforma elevada. Feito de pedra, o objeto deveria ter inicialmente tido o formato de tigela, mas tora escavado com um martelo de pedra. O fundo estava escurecido. Losaduna encheu o recipiente com água de um pequeno saco que também se encontrava no nicho, acrescentou folhas secas que tirara de uma cestinha e colocou a tigela sobre as brasas.
Em seguida, marcou com a faca de osso uma área plana e lisa de solo seco, cercada por chumaços de lã. De repente, Ayla compreendeu o que era o instrumento de osso. Os Mamutói haviam usado uma ferramenta semelhante para fazer marcas no barro e registrar resultados do jogo, planejar estratégias de caça e ilustrar com desenhos as histórias que contavam. À medida que Losaduna traçava as marcas, Ayla percebeu que ele estava usando a faca para contar uma história, mas não daquelas que o visam apenas entreter. Enquanto contava a história com a mesma cantoria monótona das invocações iniciais, Losaduna desenhava pássaros para enfatizar alguns trechos. Ayla logo notou que a história era uma recriação alegórica do ataque sofrido por Madenia, em que os personagens eram os pássaros.
A jovem começou a reagir, identificando-se com o pássaro fêmea a que ele se referia, e subitamente, com um forte soluço, começou a chorar. Com o lado achatado da faca de desenhar, Aquele que Servia à Mãe apagou toda a cena.
— Acabou! Nunca aconteceu — disse. Em seguida, desenhou apenas o pássaro fêmea. — Ela está inteira de novo, assim como era no início. Com o auxílio da Mãe, é justamente isso que vai acontecer com você, Madenia. Tudo desaparecerá, como se nunca houvesse acontecido.
Um forte cheiro de hortelã começou a tomar conta da tenda enevoada. Losaduna verificou a água que esquentava sobre as brasas e dela retirou uma xícara.
— Beba isso — ordenou.
Surpresa, antes que tivesse tempo para pensar ou objetar, Madenia engoliu o líquido. Ayla e Losaduna também beberam. Depois, ele se levantou e conduziu-as à piscina.
Losaduna entrou devagar na água fumegante. Madenia foi atrás e Ayla, sem nada pensar, seguiu-a. Quando, porém, colocou o pé na água, retirou-o imediatamente. Que calor! Essa água está quase no ponto para cozinhar, pensou ela. Só depois de muito concentrar a vontade é que conseguiu colocar o pé de novo na água, mas demorou um pouco até dar um novo passo. Ayla sempre banhara-se ou nadara nas águas frias dos rios, córregos e piscinas, alguns deles tão frios que ela, para entrar, tinha de quebrar a pequena camada de gelo que os recobria. Algumas vezes, banhara-se com água aquecida no fogo, mas jamais entrara antes nas águas de uma fonte termal.
Embora Losaduna as conduzisse lentamente, para permitir que se acostumassem ao calor, Ayla demorou muito para alcançar os bancos de pedra. No entanto, à medida que foi mais para o fundo, sentiu-se invadida por uma suave sensação de aquecimento. Quando sentou-se e a água atingiu seu queixo, começou a relaxar. Não era tão ruim, se se acostumasse, pensou. O calor, na verdade, era agradável.
Uma vez instalados e acostumados à água, Losaduna mandou Ayla prender o fôlego e mergulhar a cabeça. Quando ela levantou a cabeça, sorrindo, Losaduna disse a Madenia que fizesse o mesmo. Após também mergulhar, ele as conduziu para fora da piscina. Dirigiram-se para o vestíbulo encortinado, onde ele pegou uma tigela de madeira. Dentro do recipiente havia uma matéria densa, de um amarelo pálido, que parecia espuma grossa. Losaduna colocou a tigela no chão, sobre um piso de pedras achatadas. Retirou com a mão um pouco da espuma, espalhou-a pelo corpo; mandou Ayla fazer o mesmo em Madenia e, depois, nela mesma, sem se esquecer dos cabelos.
O homem entoou uma canção sem palavras enquanto se esfregava com a substância macia e escorregadiça, mas Ayla percebeu na cantoria mais uma sensação de prazer que propriamente uma obrigação ritual. Também ela sentia-se leve, o que atribuía talvez ao chá que tomara.
Quando esgotaram todo o conteúdo tigela, Losaduna foi até a piscina e encheu-a de agua; voltou para o piso de pedra e derramou o liquido sobre a cabeça para retirar a espuma. Repetiu a operação duas vezes; depois fez o mesmo com Ayla e Madenia. A seguir, Aquele que Servia a Mae Levou-as de volta a piscina, cantando a mesma melodia que entoara no inicio da ablução.
Assim que entraram na água mineral e sentaram-se, quase flutuando, no banco submerso, Ayla sentiu-se totalmente relaxada. A piscina quente lembrava-lhe os agradáveis banhos Mamutói, mas era, talvez, ainda melhor. Quando Losaduna julgou o tempo suficiente, mergulhou no fundo da piscina e retirou um tampão de madeira. Assim que a água começou a escorrer, iniciou uma gritaria que, a princípio, chocou Ayla.
— Espíritos do mal, desapareçam! Água purificadoras da Mae, levem embora todos os vestígios do toque de Charoli e seus homens. Impurezas, vão embora com a agua, deixem este lugar. Quando a água for embora, Madenia estará limpa, purificada. Os poderes da Mae fizeram-na ficar como era antes. — Saíram da água.
Deixaram a tenda sem pegar as roupa. Sentiam tanto calor que o vento gelado sobre a pele nua transmitia-Ihe uma sensação refrescante. As poucas pessoas com que cruzaram pareciam ignora-los, ou viravam a cabeça quando passavam. Um sentimento desagradável apossou-se subitamente de Ayla quando lembrou-se de outra ocasião em que as pessoas, embora olhassem-na fixamente, fingiam ignora-la. Mas agora não era como ser amaldiçoada pelo Clã. Ayla sabia que os moradores do lugar os viam, mas tingiam não vê-los, mais por cortesia que por animosidade. O passeio te-los estriar com rapidez e quando chegaram ao abrigo cerimonial receberam com prazer os aconchegantes cobertores e o fumegante chá de hortelã.
Ayla observou suas mãos curvadas em volta da xícara de chá: embora enrugadas, estavam absolutamente limpas! Quando se penteou com um instrumento denteado feito de osso, notou que os cabelos rangiam ao serem puxados pelos dedos.
— O que era aquela espuma macia e escorregadiça? - perguntou.
— Ela limpa como erva-de-banho, mas é muito mais penetrante.
— E Solandia quem faz — respondeu Losaduna. — Tem algo a ver com cinza de madeira e gordura, mas você terá de perguntar a ela.
Depois de aprontar os cabelos, Ayla começou a pentear os de Madenia.
— Como você faz aquela água ficar tão quente?
O homem sorriu.
— É uma dádiva da Mãe aos Losadunai. Há várias fontes termais nessa região. Algumas são sempre usadas por todos, outras são mais sagradas. Consideramos essas como os centros de onde irradiam-se todas as outras; isso faz com que sejam as mais sagradas. É por esse motivo que nossa Caverna é tão respeitada. Também é isso que torna tão difícil a saída das pessoas. A Caverna, porém, está ficando tão cheia que um grupo de jovens está pensando em fundar uma nova. Há um lugar do outro lado do rio, corrente abaixo, onde eles gostariam de fixar-se, mas é um território de cabeças-chatas, e eles ainda não decidiram ao certo o que fazer.
Ayla balançou afirmativamente a cabeça: sentia-se tão aquecida e relaxada que não queria mover-se. Notou que Madenia relaxara também abandonando parte da tensão e do alheamento anteriores.
— Que dádiva maravilhosa é aquela água! — regozijou-se Ayla.
— É importante que aprendamos a apreciar todas as dádivas da Mãe — completou o homem —, sobretudo seu Dom de Prazer.
Madenia retesou-se.
— Esse Dom é uma mentira! Não há prazer, só dor! — Era a primeira vez que ela falava. — Por mais que eu implorasse, eles não paravam. Apenas riam, e quando um terminava, outro começava! Eu queria morrer — relembrou com um soluço.
Ayla levantou-se, dirigiu-se para a moça e a abraçou.
— Era a minha primeira vez, e eles não paravam! Não paravam — repetia aos gritos. — Nenhum homem jamais me tocará novamente!
— Você tem o direito de estar revoltada. Você tem o direito de chorar. O que eles fizeram com você foi terrível. Eu sei como você se sente — disse Ayla.
A jovem desvencilhou-se dos braços de Ayla e gritou, com a voz cheia de amargura e raiva.
— Como você pode saber como eu me sinto?
— Eu também já passei pela dor e pela humilhação — afirmou Ayla.
A revelação surpreendeu a jovem, mas Losaduna balançou a cabeça, como se houvesse subitamente compreendido algo.
— Madenia — contou Ayla suavemente —, quando eu tinha mais ou menos a sua idade, um pouco menos, talvez, mas não muito depois do início de minhas luas, eu também fui forçada. Era minha primeira vez, e eu não sabia que aquilo era destinado ao Prazer. Para mim, era só dor.
— Mas foi só um homem? — perguntou Madenia.
— Só um, mas ele me exigiu diversas vezes depois daquele dia, e eu odiava aquilo! — desabafou Ayla, surpresa com o ódio que ainda sentia.
— Muitas vezes? Mesmo após ser forçada pela primeira vez? Por que ninguém o obrigou a parar? — indagou Madenia.
— Achavam que ele tinha direito. Julgavam que eu estava errada por sentir tanta raiva e ódio e não compreendiam por que eu sentia dor. Comecei a pensar que havia algo de errado comigo. Depois de algum tempo, deixei de sentir dor, mas também não senti Prazer. Aquilo era para me humilhar, e jamais deixei de sentir ódio. No entanto... parei de ligar. Ocorreu, então, algo de maravilhoso: não importa o que ele fizesse, eu pensava em outra coisa, algo alegre, e o ignorava. Quando ele não conseguiu me fazer sentir mais nada, nem mesmo raiva, penso que se sentiu humilhado e finalmente parou. Mas eu não queria que homem nenhum jamais voltasse a me tocar.
— Nenhum homem jamais me tocará! — garantiu Madenia.
— Nem todos os homens são como Charoli e seu bando, Madenia. Alguns são como Jondalar. Foi ele que me ensinou a alegria e o Prazer do Dom da Mãe, e eu lhe asseguro, é um Dom maravilhoso. Dê a você mesma a oportunidade de conhecer um homem como Jondalar e você também descobrirá a alegria.
Madenia balançou a cabeça.
— Não! Não! É terrível!
— Sei que foi terrível. Mesmo os melhores Dons podem ser mal utilizados e o bem transformado em mal. Algum dia, porém, você vai querer ser mãe, mas nunca conseguirá ter um filho, Madenia, se não dividir o Dom da Mãe com um homem — ponderou Ayla.
Madenia chorava, tinha o rosto encharcado de lágrimas.
— Não diga isso. Não quero ouvir isso.
— Sei que você não quer, mas é a verdade. Não deixe que Charoli estrague as boas coisas a que você tem direito. Cumpra seus Primeiros Ritos e verá que não tem de ser terrível. Acabei por aprender, embora sem qualquer cerimónia para festejar. A Mãe descobriu um modo de me proporcionar essa alegria. Enviou-me Jondalar. O Dom é mais do que Prazeres, Madenia, muito mais, quando compartilhado com carinho e amor. Se a dor que senti na primeira vez foi o preço que tive de pagar, pagaria com satisfação muitas outras vezes para obter o amor que conheci. Você tem sofrido tanto que talvez a Mãe, se você Lhe der essa oportunidade, também lhe traga alguém especial. Pense nisso, Madenia, não diga não antes de refletír.
Ayla acordou com uma rara sensação de descanso e frescor. Deu um sorriso lânguido e procurou por Jondalar, mas ele já havia saído. Após um instante de desapontamento, lembrou-se que ele a acordara cedo para lembrar-lhe que iria caçar com Laduna e outros do grupo e perguntara se ela queria ir junto. Ayla não aceitou o convite, que já havia sido feito na noite anterior, porque tinha outros planos para esse dia. Despediu-se dele e voltou a dormir, desfrutando do agradável prazer proporcionado pelas quentes cobertas de pele.
Agora, ela decidira levantar. Espreguiçou-se e levou as mãos aos cabelos, deleitando-se com sua sedosa maciez. Solandia lhe prometera ensinar como preparar a espuma que a fizera sentir-se tão limpa e com os cabelos tão macios.
O desjejum era o mesmo desde que haviam chegado: sopa de peixe seco, pescado no início do ano no Rio da Grande Mãe.
Jondalar lhe contara que os suprimentos da Caverna estavam baixos, o que fazia os homens irem à caça, embora não fossem a carne e o peixe os alimentos mais desejados. Ninguém passava fome, nem a comida era escassa: tinham o suficiente. Acontece que já estavam no final do inverno e a variedade era pouca. Todos estavam cansados de comer carne e peixe secos. Assim até mesmo a carne fresca seria bem-vinda, mas o que todos, na verdade, queriam, eram verduras, brotos de vegetais e frutas, primeiros produtos da primavera. Ayla explorara a área em volta da caverna, mas os Losadunai haviam colhido tudo durante a estação. Ainda dispunham de um estoque razoável de gordura, cujas proteínas e calorias garantiam-lhes saúde.
A festa que acompanharia a Cerimónia da Mãe, no dia seguinte, teria suas limitações. Ayla já decidira contribuir com o resto do seu sal e com algumas ervas que não só condimentariam os alimentos, como ainda os enriqueceriam com as vitaminas e sais minerais tão necessários e desejados por todos. Solandia mostrara-lhe o pequeno suprimento de bebidas fermentadas, em sua maior parte cerveja de vidoeiro, que, segundo afirmava, faria com que a ocasião se tornasse festiva.
A mulher também usaria parte do seu estoque de gordura para fazer mais sabão. Quando Ayla expressou a preocupação de que, com isso, estariam gastando comida, Solandia disse que Losaduna gostava de usar o sabão nas cerimónias e que as reservas do produto também já estavam no fim. Enquanto as demais mulheres cuidavam das crianças e preparavam a cerimónia, Ayla saiu com Lobo para ver como estavam Huiin e Racer e passar algum tempo com eles.
Solandia dirigiu-se à ampla abertura da caverna para avisar Ayla que estava pronta. Lá chegando, porém, ficou alguns momentos a observar a visitante. Ayla acabara de retornar de uma corrida e ria enquanto brincava com os animais. A maneira como a moça brincava com os bichos sugeriu à mulher mais velha que eles pareciam filhos de Ayla.
Alguns adolescentes da Caverna, entre eles dois filhos de Solandia, também olhavam e chamavam por Lobo, que, por sua vez, olhava para Ayla com vontade de participar dos folguedos, mas esperando permissão. Ao ver a mulher na entrada da caverna, Ayla correu para ela.
— Queria que Lobo entretivesse o neném — comentou Solandia. — Verdegia e Madenia estão vindo para ajudar, mas a tarefa requer concentração.
— Mãe! — disse Dosalia, a filha mais velha, que também tentava atrair Lobo. — O neném sempre brinca com ele.
— Bem, se em vez disso você quiser tomar conta do neném...
A jovem franziu as sobrancelhas; depois sorriu.
— Podemos levá-lo para fora? Não está ventando, e eu posso agasalhá-lo.
— Acho que sim — concordou Solandia.
Ayla olhou para o lobo, que a observava com expectativa.
— Tome conta do neném, Lobo — disse ela, recebendo um latido em resposta.
— Tenho um pouco de gordura de mamute que ganhei no outono passado — comentou Solandia ao se dirigirem para sua morada no interior da caverna. — Ano passado tivemos sorte na caça aos mamutes. É por isso que ainda temos tanta gordura. Sem ela, teríamos tido um duro inverno. Já comecei a derreter a gordura. — Alcançaram a entrada no momento em que as crianças, correndo, saíam com o mais novo. — Não percam os manguitos de Micheri — gritou-lhes.
Verdegia e Madenia já estavam lá.
— Trouxe algumas cinzas — comunicou Verdegia. Madenia apenas sorriu, um pouco hesitante.
Solandia alegrou-se ao vê-la sair da cama e juntar-se às pessoas. Seja lá o que fizeram na fonte, parece que ajudou.
— Coloquei algumas pedras de cozinhar no fogo para o chá. Madenia, você pode fazer um pouco para nós? Assim poderei usar o resto para requentar a água de derreter a gordura.
— Onde coloco essas cinzas? — indagou Verdegia.
— Pode misturá-las às minhas. Já comecei a lixiviá-las, mas não faz muito tempo.
— Losaduna disse que você usa gordura e cinzas — comentou Ayla.
— E água — acrescentou Solandia.
— Parece uma combinação estranha.
— E é.
— O que a fez decidir misturar essas coisas? Quero dizer, como você chegou a isso, na primeira vez?
Solandia esboçou um sorriso.
— Na verdade, foi um acidente. Estávamos caçando, e eu tinha acendido um fogo ao ar livre, num buraco que fiz no chão, e estava assando um pedaço de carne gorda de mamute. De repente, começou a chover forte. Peguei a carne, espeto e tudo e corri para um abrigo. Assim que a chuva passou, voltamos para a caverna, mas eu havia esquecido uma boa tigela de madeira e voltei no dia seguinte para buscá-la. O buraco estava cheio de água, com uma grossa espuma flutuando na superfície. Não teria dado importância à espuma se não tivesse deixado cair nela uma concha, que tive de pegar com a mão. Fui lavar-me no córrego. A espuma lembrava erva-de-banho, mas era mais macia e escorregadiça. Minhas mãos ficaram tão limpas! A concha também. Toda a gordura havia saído. Voltei à lareira, coloquei a espuma na tigela e trouxe para casa.
— É fácil de fazer? — perguntou Ayla.
— Não, não é mesmo. Não que seja difícil, mas requer um pouco de prática — explicou Solandia. — Na primeira vez, tive sorte. Tudo deve ter saído direito. Desde então, venho trabalhando nisso, mas às vezes dá errado.
— Como você faz? Deve ter aperfeiçoado alguns métodos que funcionam na maioria das vezes.
— É difícil de explicar. Derreto a gordura cortada e limpa... qualquer tipo de gordura serve, mas cada uma é um pouco diferente. Prefiro a de mamute. Pego, então, cinzas de madeira, misturo-as com água quente e deixo-as empapar um pouco. Depois faço-as escorrer numa cesta de fundo furado. A mistura que passa é forte e pode pinicar ou mesmo queimar a pele, e você tem de lavar-se imediatamente. E essa substância forte que se põe na gordura; com um pouco de sorte, obtém-se uma espuma suave, capaz de limpar tudo, até couro.
— Mas nem sempre você tem sorte — atalhou Verdegia.
— Não, muitas coisas podem dar errado. Às vezes você mexe, mexe, mexe, e os ingredientes não se misturam. Quando isso acontece, é bom dar mais um pouco de calor. Às vezes o composto se separa e forma duas camadas, uma muito forte e outra muito gordurosa. Em outras ocasiões a mistura produz coágulos. Também há casos em que a espuma fica muito dura, mas isso não é um problema muito grave porque ela tem uma tendência natural para endurecer com o passar do tempo.
— Mas às vezes dá certo, como na primeira vez — quis saber Ayla.
— Uma coisa que aprendi é que tanto a gordura como o líquido das cinzas têm de ter aproximadamente a mesma temperatura da pele do pulso — ensinou Solandia. — Quando você espalha a mistura nessa região, não deve senti-la nem quente, nem fria. O líquido das cinzas é um pouco mais difícil de avaliar, porque ele é forte e pode queimar, o que obriga a retirá-lo imediatamente com água fria. Quando ele queima muito, já se sabe que é preciso adicionar mais água. Em geral, a queimadura não é grave, mas eu não gostaria que esse líquido caísse nos meus olhos: basta chegar perto da fumaça, que eles ardem.
— E pode dar mau cheiro — lembrou Madenia.
É verdade — confirmou Solandia. — Pode cheirar mal. É por isso que em geral faço a mistura lá no meio da caverna, embora tenha aqui tudo que preciso.
— Mãe! Mãe! Venha rápido! — Neladia, a segunda filha de Solandia, passou correndo e saiu novamente da caverna.
— Que houve? Aconteceu algo com o neném? — indagou a mulher, enquanto corria atrás da menina. Todos a seguiram e correram para a boca da caverna.
— Vejam! — gritou Dosalia. — O neném está andando!
Lá estava Micheri em pé, ao lado do lobo, segurando no pêlo do animal, com um sorriso largo e satisfeito, dando passos incertos à medida que o animal, lento e cuidadoso, deslocava-se para a frente. Todos sorriram, a princípio com alívio, depois com alegria.
— O lobo está sorrindo? — indagou Solandia — Parece-me que sim. Parece estar tão contente que sorri.
— Também acho que sim — concordou Ayla. — Penso com frequência que ele sabe sorrir. — Não é so para cerimonias, Ayla — disse Losaduna. — Também usamos as águas quentes para nos banharmos. Se você quiser levar Jondalar só para fazer um relaxamento, não temos objeções. As Águas Sagradas da Mãe são como os demais Dons que Ela concede a Seus filhos. Têm por finalidade ser usados, desfrutados e apreciados. Da mesma forma como esse chá que você fez — concluiu, segurando a xícara.
Quase todos os moradores, à exceção dos que tinham ido caçar, estavam sentados em volta da lareira, numa ampla área no centro da caverna. Exceto nas ocasiões especiais, o modo de tomar as refeições variava bastante; uns comiam com as respectivas famílias, outros com amigos. Dessa vez, devido ao interesse pelos visitantes, reuniram-se todos para a refeição do meio-dia. O cardápio consistia em uma substanciosa sopa de carne seca de veado, reforçada com gordura de mamute. Agora encerravam o almoço com um chá que Ayla fizera e que ganhara elogios gerais pelo seu sabor.
— Quando ele voltar, talvez usemos a piscina. Acho que ele apreciaria um banho quente, e eu gostaria de acompanhá-lo — confirmou Ayla.
— É melhor você alertá-la, Losaduna — disse uma mulher, com um sorriso maroto. A mulher fora-lhe apresentada como a companheira de Laduni.
— Alertar-me de quê, Laronia? — indagou Ayla.
— Às vezes você tem de escolher entre os Dons da Mãe.
— O que você quer dizer com isso?
— Ela quer dizer que as Águas Sagradas podem ser excessivamente relaxantes — explicou Solandia.
— Ainda não consigo entender — disse Ayla, percebendo que todos falavam sobre o assunto com uma certa dose de humor.
— A imersão na água quente diminuirá a virilidade de Jondalar — falou Verdegia, de maneira mais direta —, e ele precisará de algumas horas para recuperar-se. Assim, não espere muito dele logo depois de um banho. Alguns homens recusam-se a banhar-se nas Águas Sagradas da Mãe por esse motivo. Temem que sua virilidade seja absorvida pelas Águas Sagradas e jamais retorne.
— Isso pode acontecer? — perguntou Ayla, olhando para Losaduna.
— Não que eu já tenha visto ou ouvido falar — disse o homem. — Pelo contrário, o oposto é que parece ser verdadeiro. Algum tempo depois, o homem torna-se mais ardente, uma vez que está relaxado e sente-se bem.
— Eu me senti maravilhosa depois do banho e dormi muito bem, mas achei que isso se deveu mais do que à água — ponderou Ayla. — Talvez o chá?
— O homem sorriu.
— Foi um ritual importante. Sempre há mais coisas numa cerimónia.
— Bem, estou pronta para voltar às Águas Sagradas, mas acho que esperarei por Jondalar. Você acha que os caçadores chegarão logo?
— Estou certa — garantiu Laronia. — Laduni sabe que há coisas a fazer antes do Festival da Mãe, amanhã. Acho que só foram hoje porque Laduni queria ver como funciona a arma de longo alcance de Jondalar. Como ela se chama?
— Arremessador de lanças, e funciona muito bem — respondeu Ayla. — Mas, como tudo, requer prática. Praticamos bastante ao longo da viagem.
— Você sabe usá-lo? — perguntou Madenia.
— Tenho o meu — confirmou Ayla. — Sempre gostei de caçar.
— Por que você não foi com eles hoje? — quis saber a jovem — Porque eu queria aprender a fazer essa espuma de limpeza. Também tinha algumas roupas para lavar e consertar — disse Ayla, levantando-se e dirigindo-se para a tenda cerimonial. Súbito, parou. — Também tenho algo que gostaria de mostrar-lhes. Alguém já viu um puxador de linhas? — Ayla observou olhares intrigados e cabeças que balançavam. — Se esperarem um instante, trarei o meu para que vejam.
Ayla voltou do espaço de moradia com sua caixa de costura e algumas roupas que desejava consertar. Cercada por todos, que desejavam conhecer mais uma daquelas coisas maravilhosas que os viajantes haviam trazido, tirou da caixa um pequeno cilindro — feito de um osso oco de ave — de onde tirou duas agulhas de marfim. Entregou uma delas a Solandia.
A mulher examinou de perto a pequena haste polida. Uma das pontas era fina, lembrando um furador. Na outra, mais grossa, havia um buraco. Após raciocinar um pouco, formou uma ideia da utilidade do objeto.
— Você disse que isso era um puxador de linhas? — indagou, estendendo a agulha para Laronia.
— Sim. Vou mostrar-lhes como usá-lo — confirmou Ayla, separando um pedaço de tendão de um cordão fibroso mais grosso. Molhou e alisou a ponta; em seguida, deixou-a secar. A linha de tendão endureceu um pouco e tomou forma. Feito isso, enfiou a linha no buraco da agulha e colocou-a de lado por um momento. Pegou então uma ferramenta de pedra com uma ponta afiada e começou a abrir buracos próximo à beirada da roupa, cujos pontos haviam-se rompido, alguns deles rasgando o próprio couro. Os novos buracos localizavam-se um pouco atrás dos antigos.
Quando terminou os buracos da nova costura, Ayla instalou-se para demonstrar o novo instrumento. Enfiou a agulha no buraco do couro e puxou-a, conduzindo a linha e concluindo a operação com um arremata.
— Oh! — Os espectadores mais próximos, sobretudo as mulheres, soltaram um suspiro de admiração. — Veja isso! — Ela não teve que pegar a linha, puxou-a de uma vez através do couro. — Posso tentar.
Ayla passou a roupa de mão em mão, deixando que experimentassem; explicou, demonstrou e contou-lhes como tivera essa ideia e como todos no Acampamento do Leão a haviam auxiliado a aperfeiçoar e fabricar o invento.
— É um furador muito bem-feito — comentou Solandia, examinando-o detidamente.
— Foi Wymez, do Acampamento do Leão, quem fabricou. Também criou o perfurador do buraco por onde a linha passa — contou Ayla.
— Deve ser uma ferramenta muito difícil de fazer — comentou Losaduna.
— Jondalar diz que Wymez é o único artesão tao hábil quanto Dalanar, talvez um pouco mais.
— É um grande elogio para ele — disse Losaduna. — Todos reconhecem Dalanar como um grande artesão do sílex. Sua habilidade é conhecida até neste lado da geleira, entre os Losadunai.
— Mas Wymez também é um mestre.
Todos voltaram-se, surpresos, para o lugar de onde partira a voz e viram Jondalar, Laduni e vários outros entrando na caverna com um cabrito-montês que haviam caçado.
— Tiveram sorte! — elogiou Verdegia. — Se ninguém se importar, gostaria de ficar com a pele. Estou precisando de lã de cabrito-montês para fazer a roupa de cama do Matrimónio de Madenia. — Verdegia queria antecipar-se a qualquer outro pedido.
— Mãe! — retrucou Madenia, envergonhada. — Como pode falar de Matrimónio?
— Madenia deve antes cumprir os Primeiros Ritos. Só depois é que se poderá pensar em Matrimónio — afirmou Losaduna.
— Por mim ela pode ficar com a pele — concordou Laronia —, seja qual for o uso que pretenda fazer. — Laronia estava certa que havia um pouco de avareza no pedido de Verdegia. Não se caçava com frequência o arisco cabrito-montês. Sua pele era rara e, portanto, valorizada, sobretudo no final do inverno, após crescer durante toda uma estação, tornando-se grossa e densa.
— Também não me importo. Verdegia pode ficar com ela — anuiu Solandia. — A carne fresca de cabrito-montês será uma novidade bem-vinda, e não interessa com quem fique a pele. Será especialmente bom para o Festival da Mãe.
Vários outros aquiesceram, e ninguém discordou. Verdegia sorriu e procurou não demonstrar afetaçâo. Ao se adiantar no pedido, assegurara a valiosa pele, como esperara.
— A carne fresca de cabrito-montês vai bem com a cebola seca que eu trouxe. Também tenho mirtilos.
Mais uma vez, todos olharam para a entrada da caverna. Ayla viu uma moça desconhecida, com um bebê no colo e uma menininha pela mão, seguida por um rapaz.
— Filonia! — entoaram em coro.
Laronia e Laduni correram em sua direçâo e os outros foram atrás. A jovem certamente não era uma estranha no lugar. Após alegres abraços de boas-vindas, Laronia pegou o bebê e Laduni a menina, que havia corrido para ele. Colocou-a sobre os ombros, de onde ela apreciava a todos com um sorriso feliz.
Jondalar estava ao lado de Ayla, sorrindo satisfeito com a felicidade da cena.
— Aquela garota poderia ser minha irmã — comentou.
— Filonia, veja quem está aqui — disse Laduni, conduzindo até eles a recém-chegada.
— Jondalar? É você? — exclamou, tomada de surpresa. — Não pensei que voltaria. Onde está Thonolan? Há alguém que eu queria apresentar a ele!
— Sinto muito, Filonia. Ele agora vive no outro mundo — respondeu Jondalar.
— Oh! Sinto muito ouvir isto. Queria que ele conhecesse Thonolia Estou certa que ela é filha do seu espírito.
— Também tenho certeza. Ela parece muito com minha irmã e ambas nasceram no mesmo fogo. Gostaria que minha mãe pudesse vê-la, mas acho que ela ficará feliz por saber que restou algo dele neste mundo, uma criança do seu espírito — disse Jondalar.
— A jovem olhou para Ayla.
— Mas você não voltou sozinho — comentou.
— Não — confirmou Laduni —, e espere até ver alguns dos seus companheiros de viagem. Você não vai acreditar.
— Você chegou na hora certa. Amanhã teremos um Festival da Mãe informou Laronia.
A gente da Caverna das Sagradas Fontes Termais aguardava o Festival em Honra da Mãe com enorme entusiasmo. No auge do inverno, quando a vida em geral era enfadonha e cansativa, a chegada de Ayla e Jondalar provocara suficiente emoção para manter a Caverna estimulada por muito tempo. Sem dúvida esse interesse perduraria por anos, devido à narração de histórias sobre os viajantes. A partir do instante em que haviam chegado, montados em cavalos e seguidos pelo Lobo que Gostava de Crianças, toda a comunidade se entregara a especulações. Os viajantes tinham histórias inacreditáveis a contar sobre suas aventuras, ideias fascinantes a dividir e ainda instrumentos utilíssimos, como arremessador de lanças e puxador de fios.
Agora todos estavam falando sobre a coisa mágica que a mulher lhes mostraria durante a cerimónia, alguma coisa relacionada com o fogo, tal como as pedras de queimar. Losaduna fizera menção ao fato durante a refeição da noite. Os visitantes haviam também prometido uma demonstração do arremessador de lanças no campo fronteiro à caverna, para que todos vissem suas possibilidades, e Ayla iria demonstrar do que era capaz com uma funda. No entanto, nem mesmo as prometidas demonstrações lhes despertavam tanto interesse como o mistério relacionado com o fogo.
Ayla descobriu que ser o constante centro das atenções era tão exaustivo, de certa forma, como viajar sem descanso. Durante todo o cair da noite, as pessoas a haviam atazanado com perguntas ansiosas e lhe pedido opiniões sobre assuntos a respeito dos quais ela nada sabia. Quando o sol finalmente se pôs, ela estava fatigada e não tinha mais vontade de conversar. Logo que escureceu, deixou o grupo reunido em torno do fogo, na área central da caverna, para ir deitar-se. Lobo foi com ela, e Jondalar os seguiu pouco depois, deixando a Caverna livre para mexericar e especular sem a presença deles.
Na área de dormir que lhes fora destinada, dentro do espaço de moradia e cerimónia de Losaduna, fizeram os preparativos para o dia seguinte, e depois meteram-se em suas peles. Jondalar a abraçou e cogitou em passar às abordagens preliminares que Ayla considerava ser os seus "sinais" para o amor, mas ela parecia nervosa e perturbada, e ele queria se poupar. Nunca se sabia o que esperar de um Festival da Mãe, e Losaduna dera a entender que talvez fosse conveniente portarem-se com contenção e esperarem para honrar a Mãe depois dos ritos especiais que haviam planejado.
Jondalar conversara com Aquele que Servia à Mãe sobre suas apreensões concernentes à sua capacidade de ter filhos nascidos em seu fogo, se a Mãe julgaria seu espírito aceitável para uma nova vida. Haviam decidido por um ritual privado antes do festival, a fim de apelarem diretamente à Mãe, em busca de Sua ajuda.
Ayla permaneceu acordada durante muito tempo depois de ouvir o ressonar do homem a seu lado; sentia-se cansada, mas não conseguia dormir. Mudava de posição com frequência, procurando não despertar Jondalar com seus movimentos. Embora cochilasse, o sono profundo tardava, e seus pensamentos vagueavam por caminhos estranhos, enquanto ela oscilava entre ideias conscientes e sonhos ocasionais...
A campina tinha o verde dos novos rebentos da primavera, alegrado Pelas tonalidades diversas de flores multicoloridas. A distância, a face escarpada de um rochedo, de um branco de marfim, pontilhado de caverna e marcado por riscas negras em torno de amplos patamares, quase fulgia na luz que se precipitava do céu azul de anil. Do rio que corria pela base da penedia vinham reflexos de luz, ora dançando no rochedo, ora se afastando, traçando em geral os contornos da parede rochosa, mas sem a acompanhar de modo preciso.
Mais ou menos no meio do campo que se estendia da planície que margeava o rio, havia um homem que a olhava, um homem do Clã. Depois ele se virou e caminhou na direção do rochedo, apoiando-se num cajado e arrastando um pé, mas sem retardar-se. Embora ele nada disses-se, nem fizesse sinal algum, Ayla subiu que o homem desejava que o acompanhasse. Correu em sua direção, e quando estavam um junto do outro, ele a olhou com o único olho que possuía. Era um olho castanho e profundo, cheio de simpatia e força. Ayla sabia que a capa de pele do homem encobria o coto de um braço que fora amputado na altura do cotovelo quando ainda menino. Sua avó, uma curandeira de renome, lhe cortara fora o membro inútil e paralisado quando ele gangrenara, depois do ataque de um urso da caverna. Creb havia perdido o olho no mesmo incidente.
Ao se aproximarem do rochedo, ela notou uma estranha formação no alto de um ressalto. Uma pedra em forma de coluna, um tanto achatada, mais escura do que a matriz de calcário que a sustinha, pendia sobre a beirada do ressalto como se tivesse sido congelada ali, no momento em que começava a cair. A pedra não só dava a impressão de que cairia a qualquer momento, tornando-a intranquila, como Ayla sabia também que ela encerrava alguma coisa de importante. Uma coisa de que ela deveria lembrar-se, alguma coisa que ela fizera ou que deveria fazer — ou que não deveria fazer.
Fechou os olhos, procurando recordar-se. Viu a escuridão, um negrume denso, aveludado, palpável, tão impenetrável como só poderia ser uma caverna no recesso de uma montanha. Uma minúscula chama surgiu na distância, e ela tateou a parede, seguindo por uma passagem estreita, em sua direção. Ao se aproximar, viu Creb com outros mog-urs, e de repente sentiu muito medo. Não queria aquela lembrança e rapidamente abriu os olhos.
Viu-se na margem de um ribeiro que serpenteava na base do rochedo. Olhou para a outra margem e viu Creb a subir com dificuldade, na direção da pedra que estava para cair. Ela se colocara às costas dele e agora não sabia como atravessar a corrente para ir ter com o homem. Gritou:
— Creb, sinto muito. Eu não queria seguir você na caverna.
O homem virou-se e acenou de novo para ela, demonstrando muita pressa.
— Rápido! — chamou-a, com um sinal, do outro lado da corrente, que se tornara mais larga e mais funda, cheia de gelo. — Não espere mais! Venha logo!
O gelo aumentava, fazendo com que ele se afastasse cada vez mais.
— Espere por mim! Creb, não me deixe aqui! — bradou ela.
— Ayla! Ayla, acorde! Está sonhando de novo — disse Jondalar, sacudindo-a de leve.
Ela abriu os olhos e sentiu uma enorme sensação de perda e medo. Notou as paredes do espaço de moradia, recobertas de peles, e o brilho avermelhado que vinha da lareira, enquanto contemplava a silhueta do homem ao seu lado. Estendeu a mão e agarrou-se nele.
— Temos de nos apressar, Jondalar! Temos de sair daqui agora mesmo.
— Vamos fazer isso — concordou Jondalar. — Assim que pudermos. Mas amanhã é o dia do Festival da Mãe, e depois temos de resolver o que precisaremos levar para cruzar a geleira.
— Gelo! — exclamou Ayla. — Temos de atravessar um rio de gelo!
— Eu sei — respondeu ele, abraçando-a e procurando acalmá-la. — Mas temos de planejar como fazer isso com os cavalos e com o Lobo. Vamos precisar de comida e de uma maneira de obter água para todos nós. Lá o gelo está duro como pedra.
— Creb disse que nos apressássemos. Temos de ir embora!
— Assim que pudermos, Ayla. Prometo. Assim que pudermos — disse Jondalar, sentindo uma acabrunhante ponta de medo. Realmente, tinham de partir e atravessar a geleira o mais cedo possível. Mas não havia como partir antes do Festival da Mãe.
Embora pouco contribuísse para aquecer o ar enregelante, o sol da tarde se filtrava pelas ramagens, que quebravam os raios coruscantes, mas não bloqueavam a cegante luz que vinha do poente. Do lado leste, os picos montanhosos, refletindo o astro reluzente que descia sobre nuvens de fogo, estavam banhadas por um suave fulgor rosado que parecia emanar do próprio gelo. A luz daí a pouco começaria a sumir, mas Jondalar e Ayla ainda se achavam no campo fora da caverna. Ele assistia à demonstração, como todos os outros.
Ayla respirou fundo e prendeu a respiração, pois não queria obstruir a visão com a névoa de seu hálito, enquanto fazia pontaria com cuidado. Sopesou duas pedras na mão, depois colocou uma delas na funda, girou-a sobre a cabeça e soltou uma das pontas. A seguir, começando da extremidade que ainda segurava, fez com que ela corresse rapidamente por sua mão a fim de pegar de novo a ponta solta, meteu a segunda pedra na funda, girou-a e arremessou. Era capaz de atirar duas pedras mais depressa do que alguém poderia imaginar.
— Oh! Vejam só! — As pessoas reunidas na entrada da caverna durante as demonstrações de arremesso de lanças e do uso da funda também soltaram a respiração, até então contida, e fizeram comentários de surpresa e admiração. — Ela quebrou as duas bolas de neve do outro lado do campo!
— Achei-a hábil com as lanças, mas é ainda melhor com essa funda — disse alguém.
— Ela disse que é preciso treinamento para aprender a arremessar lanças com precisão, mas quanto treinamento será necessário para atirar pedras desse jeito? — perguntou Larogi. — Acho que usar o arremessador de lanças deve ser mais fácil.
A demonstração terminara. Quando a noite já caía, Laduni parou diante das pessoas e anunciou que a festa estava quase pronta.
— Será servida no fogo central, mas primeiro Losaduna vai dedicar o festival da Mãe no Fogo Cerimonial, e Ayla vai fazer outra demonstração. O que ela vai lhes mostrar é extraordinário.
Enquanto as pessoas, excitadas, começavam a voltar para a caverna, afastando-se da larga entrada, Ayla observou que Madenia conversava com alguns amigos e ficou satisfeita ao ver que ela sorria. Muita gente já comentara sobre a alegria que todos sentiam por vê-la participar das atividades do grupo, embora ela ainda se mostrasse tímida e reservada Ayla pensou em como as coisas eram diferentes quando as pessoas demonstravam interesse. Ao contrário da experiência dela própria, na qual todos consideravam que Broud tinha o direito de forçá-la a qualquer momento que desejasse, e a julgassem excêntrica por resistir e odiá-lo, Madenia tinha o apoio de sua gente. Tomavam seu partido. Sentiam raiva daqueles que a haviam forçado, compreendiam o quanto ela sofrera e desejavam corrigir o mal de que ela fora vítima.
Assim que todos se instalaram no espaço do Fogo Cerimonial, Aquele que Servia à Mãe saiu das sombras e se postou atrás de uma fogueira cercada por um círculo de pedras redondas. Levantou um bastonete com ponta de piche, levou-o ao fogo até arder, depois virou-se e caminhou na direção da parede rochosa da caverna.
Como o corpo dele bloqueava a visão, Ayla não pôde perceber o que fazia. Mas quando uma luz brilhante se espalhou em torno dele, compreendeu que ele acendera um fogo, com toda certeza uma candeia. Losaduna fez alguns movimentos e começou a entoar uma litania familiar, a mesma repetição dos vários nomes da Mãe que ele entoara durante o ritual de purificação de Madenia. Estava invocando o espírito da Mãe.
Quando ele recuou e virou-se para os que o observavam, Ayla viu que o fulgor vinha de uma candeia de pedra que ele acendera num nicho na parede. O fogo projetava sombras cambiantes, maiores que o tamanho natural, de uma pequenina dunai, e destacava a estatueta, esculpida com muito esmero, de uma mulher de formas exuberantes — seios grandes e estômago arredondado, não grávida, mas dotada de reservas de gordura.
— Grande Mãe Terra, Ancestral Original e Criadora de Toda a Vida, Teus filhos aqui estão para Te prestar homenagem, para agradecer-Te por todos os Teus Dons, grandes e pequenos, para honrar-Te — entoou Losaduna, e todos o acompanharam. — Pelas rochas e pelas pedras, pelos ossos da terra, que renunciam a seu espírito para nutrir o solo, por tudo isso viemos honrar-Te. Pelo sol que renuncia a seu espírito para nutrir as plantas que crescem, por isso também viemos honrar-Te. Pelas plantas que crescem e que renunciam a seu espírito para nutrir os animais, viemos aqui para honrar-Te. Pelos animais que renunciam a seu espírito para nutrir os carnívoros, estamos aqui para honrar-Te. E por tudo aquilo que renuncia a seu espírito para alimentar, vestir e proteger Teus filhos, aqui viemos para honrar-Te.
Todos conheciam as palavras. Mesmo Jondalar, como Ayla notou, juntara sua voz à litania, embora pronunciasse as palavras em Zelandonii. Daí a pouco ela começou a repetir a parte que se referia a “honrar” , e embora não conhecesse as palavras restantes, sabia que eram importantes, sabia que jamais as esqueceria.
— Por Teu glorioso filho fulgente que ilumina o dia e por Tua bela companheira luminosa que guarda a noite, aqui viemos para honrar-Te. Por Tuas águas vivificantes que enchem os rios e os mares e que formam as chuvas que descem dos céus, viemos aqui para honrar-Te. Por Teu Dom da Vida e por Tua bênção às mulheres que geram a vida, como Tu fazes, aqui viemos para honrar-Te. Pelos homens, que foram feitos para ajudar as mulheres a prover a nova vida, e cujo espírito Tu utilizas para ajudar as mulheres a criá-la, aqui viemos para honrar-Te. E por Teu Dom dos prazeres, que homens e mulheres usufruem entre si, e que abre uma mulher para que ela possa dar à luz, aqui viemos para honrar-Te. Grande Mãe Terra, Teus filhos juntam-se todos nesta noite para honrar-Te.
Um silêncio profundo tomou conta da caverna depois de finda a invocação comunitária. Uma criança começou a chorar, e o som de seu choro pareceu muito apropriado à ocasião.
Losaduna recuou e foi como se desaparecesse nas sombras. A seguir Solandia pôs-se de pé, levantou uma cesta que estava perto do Fogo Cerimonial e despejou cinzas e terra sobre as chamas da fogueira, extinguindo o fogo cerimonial e mergulhando o ambiente nas trevas. Interjeições de surpresa subiram da multidão, e as pessoas chegaram-se para a frente, ansiosas. A única luz vinha da candeia que queimava no nicho; fazia com que as sombras cambiantes da figura da Mãe parecessem crescer, até encher todo o espaço. Embora o fogo nunca tivesse sido apagado daquele modo antes, Losaduna percebeu seu efeito.
Os dois visitantes e as pessoas que viviam no espaço do Fogo Cerimonial haviam ensaiado o ritual e sabiam o que fazer. Depois que todos se aquietaram, Ayla entrou na área escurecida, caminhando em direção a outra lareira. Haviam decidido que a pedra-de-fogo seria demonstrada melhor, com muito mais dramaticidade, se Ayla acendesse um novo fogo, numa lareira fria, da maneira mais rápida possível, depois que o fogo cerimonial fosse apagado. Uma isca de musgo seco fora colocada na segunda lareira, ao lado de gravetos; havia também achas de lenha maiores para queimar. Depois acrescentariam linhita para manter as labaredas.
Enquanto ensaiavam, haviam descoberto que o vento ajudava a atiçar o fogo, particularmente a lufada que penetrava quando a porta de couro do espaço cerimonial era aberta, e Jondalar estava de pé ao seu lado. Ayla ajoelhou-se e, segurando o pedaço de pirita numa das mãos e o fragmento de pederneira na outra, bateu um contra o outro, provocando uma fagulha que podia ser vista com nitidez na área escura. Bateu os dois pedaços de pedra outra vez, segurando-os num ângulo ligeiramente diferente, o que fez com que a faísca saltasse sobre a isca.
Este foi o sinal para Jondalar, que abriu a porta de entrada. No momento em que sentiu a lufada de ar frio, Ayla abaixou-se sobre a fagulha que crepitava no musgo seco e soprou de leve. De repente o musgo ardeu e a chama provocou um coro de exclamações surpresas e excitadas. Na caverna ensombrecida, a labareda lançou um fulgor rubro que iluminou os rostos de todos e pareceu maior do que realmente era.
As pessoas puseram-se a falar, depressa e atônitas, e aquilo aliviou a tensão que Ayla provocara com tanto mistério. Daí a momentos — para a Caverna foi como se apenas um segundo houvesse transcorrido — o fogo já ia alto. Ayla ouviu alguns comentários.
— Como foi que ela fez isso?
— Como alguém pode acender um fogo tão depressa?
Uma segunda fogueira foi acesa, a partir do Fogo Cerimonial. A seguir, Aquele que Servia à Mãe postou-se entre as duas fogueiras e falou:
— Em geral, as pessoas que não as conhecem não acreditam que pedras queimem, a menos que possamos mostrar uma delas, porém as pedras de queimar são o Dom da Grande Mãe Terra aos Losadunai. Nossos visitantes também receberam uma dádiva, uma pedra-de-fogo. Uma pedra capaz de produzir uma faísca geradora de fogo quando golpeada com uma pederneira. Ayla e Jondalar se dispõem a dar-nos um pedaço de pederneira, não apenas para que a usemos, mas também para que possamos reconhecê-la se viermos a encontrá-la. Em troca disso, desejam comida suficiente e outras provisões que os ajudem a transpor a geleira.
— Já lhes prometi isso — disse Laduni. — Tenho uma dívida para com Jondalar e foi isso que ele pediu... e se trata de coisa de pouca monta. De qualquer modo, nós lhes ofereceríamos o alimento e tudo de que precisassem. — Um murmúrio de assentimento correu pela caverna.
Jondalar sabia que os Losadunai lhes teriam dado alimentos, do mesmo modo que Ayla e ele teriam oferecido à Caverna uma pedra-de-fogo, mas não queria que mais tarde eles se arrependessem de lhes haver presenteado provisões que poderiam ser valiosas se a primavera tardasse. Queria que todos ali julgassem ter levado a melhor e também desejava outra coisa. Ficou de pé.
— Oferecemos a Losaduna uma pedra-de-fogo para benefício de todos — disse. — Mas minha dívida de Laduni para comigo parece ser maior do que ele pensa. Não bastam alimentos e instrumentos para a nossa viagem. Não estamos sós. Temos como companheiros dois cavalos e um lobo, e precisamos ajudá-los a chegar do outro lado da geleira. Precisamos de comida para nós e para eles, porém também precisaremos de água. Se fôssemos apenas Ayla e eu, poderíamos carregar um saco cheio de neve ou gelo sob nossas túnicas, junto da pele, para derretermos uma quantidade de água suficiente para nós e talvez para Lobo, mas os cavalos bebem muita água. Não podemos derreter uma quantidade de gelo suficiente para eles. Vou lhes dizer a verdade. Temos de descobrir um meio de transportar ou derreter água suficiente para conseguirmos chegar ao outro lado da geleira.
Levantaram-se várias vozes, com sugestões e propostas, porém Laduni fez com que se calassem.
— Vamos pensar no assunto e nos reuniremos amanhã com sugestões. Esta noite é o Festival.
Jondalar e Ayla já haviam contribuído com emoções e mistérios, que animariam os meses em geral silenciosos de inverno, e que renderiam histórias a serem narradas nas Reuniões de Verão. Agora havia o presente da pedra-de-fogo e, como bónus, o desafio de solucionarem um problema inédito, um fascinante enigma prático e intelectual que lhes daria oportunidade de exercitar a força da mente. Os viajantes podiam contar com auxílio voluntário e prestimoso.
Madenia comparecera ao Fogo Cerimonial para assistir à demonstração da pedra-de-fogo, e Jondalar não deixou de notar que ela o observara atentamente. Sorrira para ela várias vezes, e a moça reagira desviando o olhar e enrubescendo. Quando a reunião estava para terminar, ele caminhou em sua direção.
— Olá, Madenia. O que achou da pedra-de-fogo?
Ele sentia a atração que nutria por moças acanhadas antes de seus Primeiros Ritos, moças que não sabiam o que esperar e que se mostravam um pouco assustadas, sobretudo aquelas que ele fora incumbido de introduzir no Dom dos Prazeres da Mãe. Sempre apreciara mostrar-lhes o Dom da Mãe durante seus Primeiros Ritos, e tinha um modo todo especial de fazê-lo, motivo pelo qual era convocado com tanta frequência. O medo de Madenia tinha fundamento, não era a apreensão amorfa da maioria das mocinhas, e para Jondalar teria sido uma satisfação toda especial, um desafio, levá-la a ver o Dom como fonte de alegria e não de sofrimento.
Jondalar a fitava com seus olhos azuis espantosamente vívidos, e desejou que pudessem permanecer ali tempo suficiente para que participassem dos rituais de verão dos Losadunai. Desejava genuinamente ajudá-la a superar seus temores, e sentia-se sinceramente atraído por ela, o que trazia à tona todo seu encanto, seu magnetismo viril. Aquele homem formoso e sensível sorriu para Madenia, deixando-a quase sem fôlego.
Madenia jamais conhecera uma sensação como aquela. Todo seu corpo sentia-se abrasado, quase em fogo, e ela sentiu uma vontade insopitável de tocá-lo, de que ele a tocasse, mas não tinha nenhuma ideia de como lidar com esses sentimentos. Tentou sorrir; depois, embaraçada, abriu bem os olhos e espantou-se com sua audácia. Recuou e saiu quase a correr na direção de seu espaço de moradia. A mãe a viu ir embora e seguiu-a. Jondalar tinha visto a reação de Madenia antes. Não era incomum que moças tímidas reagissem daquela forma, e aquilo somente a tornou mais cativante.
— O que fez com essa pobre criança, Jondalar?
Ele olhou para a mulher que falara, dirigindo-lhe seu sorriso.
Ou não preciso perguntar? Lembro-me de uma época em que esse olhar quase me esmagava. Mas seu irmão também tinha encantos.
E a deixou abençoada — disse Jondalar. — Está com muito bom aspecto, Filonia. Feliz.
— Realmente, Thonolan deixou um pedaço de seu espírito comigo, e estou feliz. Você também parece feliz. Onde foi que conheceu essa Ayla?
— É uma longa história, mas ela salvou minha vida. Foi tarde demais para Thonolan.
— Soube que um leão o pegou. Que pena.
Jondalar assentiu e fechou os olhos, perturbado pela dor, sempre presente a uma menção ao irmão.
— Mamãe! — chamou uma menina. Era Thonolia, de mãos dadas com a filha mais velha de Solandia. — Posso comer no fogo de Salia e brincar com o lobo? Ele gosta de crianças.
Filonia olhou para Jondalar com uma expressão apreensiva.
— Lobo não lhe fará mal. É verdade que gosta de crianças. Pergunte a Solandia. Ela usa o animal para distrair o bebê — respondeu Jondalar. — Lobo foi criado na companhia de crianças e Ayla o treinou. É uma mulher extraordinária, principalmente com animais.
— Então está bem, Thonolia. Não acredito que este homem a deixasse fazer alguma coisa que pudesse feri-la. Ele é irmão do homem de quem você recebeu o nome.
Houve uma agitação. Procuraram ver do que se tratava, enquanto as meninas saíam correndo.
— Quando é que alguém vai tomar uma providência... Esse Charoli! Por quanto tempo uma mãe tem de esperar? — Era Verdegia queixando-se com Laduni. — Quem sabe se não precisamos convocar um Conselho de Mães, já que os homens nada fazem? Tenho certeza de que elas haveriam de compreender o que vai no coração de uma mãe, e logo tomariam uma decisão.
Losaduna havia-se reunido a Laduni, para lhe dar apoio. A convocação de um Conselho de Mães era, em geral, um recurso supremo. Podia ter sérias repercussões e só era utilizado quando não se encontrava nenhuma outra maneira de resolver uma situação.
— Não sejamos precipitados, Verdegia. O mensageiro que enviamos a Tomasi deve estar de volta a qualquer momento. É claro que podemos esperar um pouco mais. E Madenia está muito melhor, você não acha?
— Não tenho tanta certeza. Ela correu para nosso fogo e não quer me dizer o que está havendo. Disse que não foi nada e que não devo me preocupar, mas como? — disse Verdegia.
— Eu poderia dizer a ela o que está havendo — sussurrou Filonia —, mas não tenho certeza de que Verdegia entenderia. Mas ela tem razão. Realmente, é preciso fazer alguma coisa com relação a esse Charoli. Todas as Cavernas estão falando sobre ele.
— O que se pode fazer? — perguntou Ayla, juntando-se aos dois.
— Não sei — respondeu Filonia, sorrindo para a mulher. Ayla viera ver o filhinho dela e era evidente que sentira prazer em embalá-lo. — Mas creio que o plano de Laduni é sensato. Ele acha que todas as Cavernas deveriam atuar juntas, para descobrir os rapazes e trazê-los de volta. Ele gostaria de ver os membros do bando separados uns dos outros, longe da influência de Charoli.
— Parece mesmo uma boa ideia — concordou Jondalar.
— O problema é a Caverna de Charoli, e se Tomasi, que é parente da mãe de Charoli, vai concordar com o plano — disse Filonia. — teremos mais condições de avaliar quando o mensageiro voltar, mas entendo a posição de Verdegia. Se uma coisa dessas um dia acontecesse a Thonolia... — A mulher balançou a cabeça, sem encontrar palavras.
— Acho que a maioria das pessoas compreende a sensação de Madenia e de sua mãe — disse Jondalar. — Em geral as pessoas são decentes, mas basta uma pessoa ruim para criar problemas para todas as demais.
Ayla estava se lembrando de Attaroa e pensando a mesma coisa.
— Aí vem alguém! Aí vem alguém! — Larogi e vários de seus amigos entraram correndo na caverna gritando a notícia, e Ayla se pôs a imaginar o que estariam fazendo do lado de fora, no frio e no escuro, Momentos depois, foram seguidos por um homem de meia-idade.
— Rendoli! Não poderia ter chegado em melhor hora — disse Laduni, demonstrando um óbvio alívio. — Venha, deixe que eu cuido de suas coisas e beba algo quente. Você voltou a tempo de participar do Festival da Mãe.
— Esse é o mensageiro que Laduni mandou a Tomasi — disse Filonia, surpresa ao vê-lo.
— Bem, o que disse ele? — perguntou Verdegia.
— Verdegia! — censurou-a Losaduna. — Espere o homem recuperar o fôlego. Ele acabou de chegar.
— Não tem importância — disse Rendoli, depondo um saco no chão e aceitando uma taça de chá quente das mãos de Solandia. — O bando de Charoli atacou a Caverna que vive perto da área erma onde eles estão escondidos. Roubaram armas e comida, e quase mataram uma mulher que tentou detê-los. Ela ainda está muito ferida, mas talvez se recupere. Todas as Cavernas estão revoltadas. Quando souberam do caso de Madenia, isso foi o golpe final. Apesar de seu parentesco com a mãe de Charoli, Tomasi está disposto a aliar-se às outras Cavernas para persegui-los e pôr fim a essas estripulias. Tomasi convocou uma reunião com o maior número possível de Cavernas... e foi por isso que demorei tanto a voltar. Esperei a reunião. A maioria das Cavernas próximas mandou várias pessoas. Eu tive de tomar algumas decisões em nosso nome.
— Tenho certeza de que foram sensatas — respondeu Laduni. — Acho ótimo você ter participado. O que acharam de minha sugestão?
— Já a haviam tomado, Laduni. Cada Caverna vai mandar rastreadores para localizá-los... e alguns já partiram. Assim que o bando de Charoli for descoberto, a maioria dos caçadores de cada caverna vai sair atrás deles para trazê-los aqui. Ninguém suporta mais essa situação. Tomasi quer agarrá-los antes da Reunião de Verão. — O homem virou-se para Verdegia: — E eles desejam que você esteja lá para fazer uma acusação e pedir desagravo.
Verdegia mostrou-se quase apaziguada, mas ainda não estava satisfeita com a relutância de Madenia de participar da cerimónia que a transformaria oficialmente em mulher e, com sorte, lhe possibilitaria ter filhos, dar-Ihe netos.
— Irei com todo prazer — disse Verdegia —, e se ela não concordar com os Primeiros Ritos, podem ter certeza de que não esquecerei isso. — Tenho esperança de que, quando o verão chegar, ela tenha mudado de opinião.
— Tenho notado progressos desde o ritual de purificação. Ela tem saído e conversado mais com as pessoas. Acho que Ayla ajudou — disse Losaduna.
Depois que Rendoli se dirigiu a seu espaço de moradia, Losaduna chamou a atenção de Jondalar e fez-lhe um sinal. O homem alto pediu licença e acompanhou Losaduna ao Fogo Cerimonial. Ayla gostaria de segui-los, mas percebeu, pela discrição deles, que queriam ficar a sós.
— Aonde será que eles vão? — perguntou.
— Acho que se trata de algum tipo de ritual pessoal — respondeu Filonia, o que deixou Ayla ainda mais curiosa.
— Trouxe alguma coisa feita por você? — indagou Losaduna.
— Fiz uma lâmina. Não tive tempo de poli-la, mas foi o melhor que pude fazer — respondeu Jondalar, tirando de dentro da túnica um pacotinho envolvido em pele. Abriu-o e exibiu uma pequena ponta de pedra, com um fio suficientemente amolado para fazer a barba. Uma extremidade terminava em ponta. A outra tinha um prolongamento que poderia ser adaptado a um cabo de madeira.
Losaduna examinou-a com cuidado.
— Excelente artesanato — comentou. — Tenho certeza de que será aceitável.
Jondalar suspirou, aliviado, embora até então não houvesse percebido a extensão de seu nervosismo.
— E trouxe alguma coisa dela?
— Isso foi mais difícil. Temos viajado praticamente com o essencial, e ela sabe onde põe todas as suas coisas. Possui alguns objetos guardados, presentes de pessoas na maior parte, e eu não quis mexer. Depois me lembrei de que você disse que não importava que fosse uma coisa pequena, desde que muito pessoal — disse Jondalar, pegando um objeto minúsculo que estava também no pacote de pele, e continuou a explicação. — Ela usa um amuleto, um saquinho enfeitado que contém objetos de sua infância. É uma coisa muito importante para ela, e só o tira do pescoço para nadar ou banhar-se, e mesmo assim, nem sempre. Ela o deixou quando foi às fontes quentes sagradas, e eu cortei uma das contas de decoração.
Losaduna sorriu.
— Ótimo! Está perfeito! Muita habilidade sua. Já notei esse amuleto, e sei que é uma coisa muito pessoal dela. Amarre-os um junto do outro e os passe para mim.
Jondalar fez o que ele pedia, mas Losaduna notou uma expressão de dúvida em seu rosto.
— Não posso lhe dizer onde vou colocá-los, mas Ela há de saber. Agora, preciso lhe explicar certas coisas e fazer algumas perguntas — disse Losaduna.
Jondalar anuiu.
— Tentarei responder.
— Você quer que nasça um filho em seu fogo, da mulher Ayla, não é verdade?
— Sim.
— Compreende que um filho nascido para seu fogo pode não ser de seu espírito?
— Sim.
— O que pensa disso? Importa-lhe o espírito que for usado?
— Gostaria que fosse de meu espírito, mas... o espírito pode não ser o certo. Talvez não seja bastante forte ou a Mãe não o possa usar, ou talvez não queira. De qualquer forma, ninguém jamais sabe de quem é o espírito, mas se um filho nascesse de Ayla, e para meu fogo, isso seria o suficiente. Acho que eu mesmo quase me sinto uma mãe — disse Jondalar, e sua convicção era patente.
Losaduna assentiu.
— Muito bem. Esta noite vamos honrar a Mãe, de modo que a ocasião é das mais propícias. Você sabe que as mulheres que mais A honram são as abençoadas com mais frequência. Ayla é uma bela mulher e não terá dificuldade em encontrar um homem, ou homens, com quem partilhar os Prazeres.
Quando Aquele que Servia à Mãe viu a expressão de contrariedade do homem alto, percebeu que Jondalar era um daqueles que achavam difícil ver a mulher escolhida ficar com outra pessoa, mesmo que fosse somente para uma cerimónia.
— Você a deve incentivar, Jondalar. Isso honra a Mãe e é da máxima importância você ser sincero ao dizer que deseja que Ayla dê um filho a seu fogo. Já vi isso dar certo antes. Muitas mulheres engravidaram quase pede imediato. A Mãe ficará muito satisfeita com você, e talvez Ela até use o seu espírito, sobretudo se você também a honrar bem.
Jondalar fechou os olhos e fez que sim com a cabeça, mas Losaduna percebeu que ele rilhava os dentes. Não seria fácil para aquele homem.
— Ela nunca participou de um Festival em Honra da Mãe. E se ela... Não quiser uma outra pessoa? — perguntou Jondalar. — Deverei recusá-la?
— Você a deve incentivar a partilhar com outros, mas é claro que a opção é dela. Você nunca deve recusar uma mulher, se puder, no Festival da Mãe, mas sobretudo, não a que você escolheu como companheira. Eu não me preocuparia com isso, Jondalar. Muitas mulheres percebem .o espírito da cerimónia e não encontram dificuldade para apreciar o Festival — disse Losaduna. — Mas é estranho que Ayla não tenha sido criada no conhecimento da Mãe. Eu não sabia que há gente que não A reconhece.
— As pessoas que a criaram eram... muito estranhas — respondeu Jondalar.
— Com toda certeza — disse Losaduna. — Agora, vamos pedir à Mãe.
Pedir à Mãe. Pedir à Mãe. As palavras pairaram sobre os pensamentos de Jondalar enquanto se dirigiam ao fundo do espaço cerimonial. Lembrou-se, de repente, que lhe haviam dito que ele era um dos favoritos da Mãe, a tal ponto que nenhuma mulher seria capaz de rejeitá-lo nem mesmo a Doni em Pessoa. Tão favorito que se algum dia ele pedisse alguma coisa à Mãe, Ela lhe concederia a mercê. Fora também advertido de que tivesse cuidado com tal favor; ele poderia receber o que tivesse pedido. Naquele momento, desejou ardentemente que isso fosse verdade.
Pararam diante do nicho onde a candeia ainda ardia.
— Levante a dunai e segure-a — ordenou Aquele que Servia à Mãe.
Jondalar levou a mão ao nicho e suavemente pegou a estatueta da Mãe. Era uma das esculturas mais bem-feitas que já vira. O lavor do corpo era perfeito. A estatueta em suas mãos parecia ter sido esculpida como cópia de um modelo vivo, uma mulher bem-proporcionada e de porte esbelto. Já vira com frequência mulheres nuas, na vida cotidiana normal para saber como eram. Os braços, repousando sobre os seios fartos da estatueta, eram apenas sugeridos, mas ainda assim os dedos eram definidos, assim como as pulseiras nos braços. As pernas juntavam-se numa espécie de cavilha que terminava no chão.
O mais surpreendente era a cabeça. A maioria das donii que ele já vira em geral tinham apenas uma espécie de bolha no lugar da cabeça, às vezes com o rosto definido pela linha do cabelo, mas sem fisionomia clara. Aquela, porém, tinha um penteado complicado, formado por fileiras de anéis apertados, que lhe cobriam toda a cabeça e o rosto. Excetua-da a diferença de forma, não havia diferença alguma entre a parte frontal e a posterior da cabeça.
Olhando com atenção, surpreendeu-se ao ver que a estatueta fora esculpida em calcário. O marfim, o osso ou a madeira eram muito mais fáceis de trabalhar, e a figura tinha pormenores tão perfeitos e um acabamento de tal forma esmerado que era difícil imaginar que alguém a tivesse talhado em pedra. Muitos instrumentos de sílex devem ter sido gastos para produzir essa maravilha, pensou ele.
Aquele que Servia à Mãe estava cantando, percebeu Jondalar. Estivera tão absorto em examinar a donii que nem dera conta do som. Entretanto, aprendera o suficiente do Losadunai para, prestando atenção, captar alguns dos nomes da Mãe, e entendeu que Losaduna iniciara o ritual. Esperava que o fato de ter-se distraído apreciando as qualidades estéticas da escultura não atrapalhasse a essência espiritual da cerimónia. Conquanto a donii fosse um símbolo da Mãe e, segundo se acreditava, constituísse um possível lugar de repouso para uma de suas muitas formas espirituais, ele sabia que a figura entalhada não era a Grande Mãe Terra.
— Agora, pense com clareza no que deseja e, em suas próprias palavras, peça à Mãe aquilo que você quer — disse Losaduna. — Segurar a dunai lhe ajudará a concentrar todos os seus pensamentos e sentimentos no pedido. Não hesite em dizer qualquer coisa que lhe ocorrer. Lembre-se de que aquilo que você está pedindo é agradável à Mãe de Todos.
Jondalar fechou os olhos para pensar, para melhor se concentrar.
— Ó Doni, Grande Mãe Terra — começou. — Houve momentos em minha vida em que eu pensei... algumas coisas que Te podem ter desagradado. Eu não pretendia ofender-Te, mas... as coisas aconteceram. Houve uma época em que pensei que jamais encontraria uma mulher que eu pudesse amar, e julguei que fosse porque Tu estavas zangada com... aquelas coisas.
Alguma coisa muito ruim deve ter acontecido na vida desse homem. Ele é tão bondoso e parece tão seguro de si; é difícil acreditar que possa ter sofrido tamanha vergonha e preocupação, pensou Losaduna.
— Então, depois de haver viajado até o fim de Teu rio e de perder... meu irmão, a quem eu amava mais que a tudo, Tu puseste Ayla em minha vida, e finalmente descobri o que significava o amor. Sou grato por Ayla. Se não houvesse mais ninguém em minha vida, nem família, nem amigos, a mim bastaria a presença de Ayla. Mas, se for de Teu desejo, Grande Mãe, eu gostaria... eu anseio... queria mais uma coisa. Quero pedir... um filho. Um filho, nascido de Ayla, nascido para meu fogo, e, se possível, nascido de meu espírito, ou nascido de minha própria essência, como Ayla acredita. Se não for possível, se meu espírito não é... suficiente, então que Ayla tenha o filhinho que ela quiser, e que ele nasça para meu fogo, de modo que seja meu de coração.
Jondalar começou a repor a donii no lugar, mas ainda não terminara. Deteve-se e segurou a estatueta com as mãos.
— Mais uma coisa. Se algum dia Ayla engravidar com um filho do meu espírito, eu gostaria de saber que se trata de um filho do meu espírito.
Interessante pedido, pensou Losaduna. Talvez a maioria dos homens gostasse de saber, mas na verdade isso não importa tanto. Por que isso é tão importante para ele? E o que ele quis dizer com filho de sua essência... como Ayla acredita? Gostaria de perguntar a ela, mas isto é um ritual privado. Não posso dizer a ela o que foi dito aqui. Talvez possamos discutir o assunto de um ponto de vista filosófico, algum dia.
Ayla viu os dois homens saindo do Fogo Cerimonial. Tinha certeza de que haviam feito o que pretendiam, mas o homem mais baixo tinha uma expressão interrogativa e algo em sua postura mostrava que estava insatisfeito, ao passo que o mais alto parecia tenso e infeliz, embora resoluto. Aquelas sensações estranhas a deixaram ainda mais curiosa com relação ao que acontecera.
— Espero que ela mude de opinião — Ayla ouviu Losaduna dizer, ao se aproximarem. — Acho que a melhor maneira de ela vir a superar sua terrível experiência consiste em levar adiante seus Primeiros Ritos. Entretanto, teremos de ser muito cuidadosos com relação à pessoa que escolhermos para ela. Gostaria que você ficasse, Jondalar. Ela parece ter-se interessado por você. Em minha opinião, é bom vê-la sentir alguma coisa em relação a um homem.
— Eu gostaria de ajudar, mas não podemos ficar. Temos de parti assim que for possível, amanhã ou depois de amanhã, se pudermos.
— É claro que você tem razão. A estação pode mudar a qualquer momento. Preste atenção para ver se algum de vocês se torna irritadiço —disse Losaduna.
— O Mal-estar — disse Jondalar?
— O que é o Mal-estar? — perguntou Ayla.
— Ele vem com o foehn, que derrete a neve, o vento da primavera — respondeu Losaduna. — O vento chega do sudoeste, quente e seco, com força suficiente para arrancar árvores pelas raízes. Derrete a neve tão depressa que bancos altos de neve podem desaparecer em um dia, e se ele pegar vocês na geleira é possível que não consigam cruzá-la. O gelo pode derreter sob seus pés e atirá-los numa fenda, ou pode criar um rio diante do caminho ou abrir um desfiladeiro a seus pés. O vento chega tão depressa que os espíritos maléficos que apreciam o frio não conseguem fugir dele. O vento varre-os, arranca-os de lugares escondidos, empurra-os para diante. É por isso que os espíritos maléficos viajam nas primeiras rajadas do derretedor da neve, e em geral chegam antes delas. Eles trazem o Mal-estar. Se souberem o que esperar e puderem controlá-los, eles podem ser um aviso, mas são sutis e não é fácil tirar proveito dos espíritos maléficos.
— Como se sabe que os espíritos maléficos chegaram? — perguntou Ayla.
— Como eu disse, prestem atenção se começarem a sentir irritação. Eles podem fazer com que adoeçam e, se já estiverem enfermos, podem agravar seu estado, porém em geral apenas querem que discutam ou briguem. Algumas pessoas são tomadas de fúria, mas todos sabem que isso é provocado pelo Mal-estar, de modo que não lhes é imputada culpa... a menos que causem graves danos ou ferimentos, e mesmo nesse caso a acusação é atenuada. Mais tarde as pessoas ficam felizes com o derretedor de neve, pois ele traz novos cultivos, nova vida, mas ninguém quer conhecer o Mal-estar.
— Venham comer! — Era Solandia quem falava, e não a tinham visto chegar. — A pessoas já estão começando a repetir. Se não se apressarem, vão ficar sem comida.
Caminharam em direção ao fogo central, atiçado por lufadas de ar que vinham da entrada da caverna. Embora não estivessem agasalhados para o frio intenso que fazia lá fora, a maioria das pessoas usava roupas quentes nas áreas abertas da caverna, expostas ao frio e aos ventos. O pernil de cabrito-montês estava vermelho no meio, embora o calor do do fogo o estivesse assando um pouco mais; todos acolhiam com satisfação a carne fresca. Havia também um grosso caldo de carne, preparado com carne-seca, gordura de mamute, pedaços de raízes secas e bagas silvestre — quase tudo quanto lhes sobrava de frutos e hortaliças. O inverno já cansava a todos, e ansiavam pela chegada da primavera.
No entanto, o frio estava ainda bem presente, e por mais que desejasse a primavera, Jondalar queria, de todo coração, que o inverno se prolongasse um pouquinho mais, pelo menos até atravessarem a geleira que os aguardava.
Terminada a refeição, Losaduna anunciou que alguma coisa estava sendo oferecida no Fogo Cerimonial. Ayla e Jondalar não compreenderam a palavra, mas dentro em pouco ficaram sabendo que se tratava de uma bebida que era servida quente. O gosto era agradável e vagamente familiar. Ayla julgou que deveria ser um tipo de suco de fruta ligeiramente fermentado e ao qual tivessem acrescentado ervas. Surpreendeu-se quando Solandia lhe informou que o principal ingrediente era seiva de vidoeiro, embora o suco de fruta fosse apenas parte da receita.
Verificaram, por fim, que o sabor era ilusório. A bebida era mais forte do que Ayla pensara; interrogada, Solandia confidenciou que as ervas contribuíam, em larga medida, para sua potência. Ayla percebeu então que o sabor vagamente familiar provinha de losna maior, uma erva poderosa que podia ser perigosa se ingerida em excesso ou com demasiada frequência. Sua detecção fora difícil por causa da aspérula, de gosto agradável, porém forte perfume, e de outras substâncias aromáticas. Ayla ficou a imaginar o que mais haveria na bebida, o que a levou a prová-la e analisá-la mais seriamente.
Perguntou a Solandia a respeito da erva forte, mencionando seus possíveis perigos. A mulher explicou que a planta, que ela chamava de absinto, raramente era utilizada, salvo naquela bebida, reservada tão-somente para os Festivais da Mãe. Em virtude de sua natureza sagrada, em geral Solandia relutava em revelar os ingredientes específicos da bebida, mas as perguntas de Ayla foram tão precisas e mostravam tamanho conhecimento botânico que ela não pôde deixar de responder. Ayla descobriu então que a mistura não era em absoluto o que parecia ser. O que, à primeira vista, dera a impressão de ser apenas uma bebida simples e suave, de sabor agradável, era na realidade um preparado potente, que se destinava a incentivar o relaxamento, a espontaneidade e a naturalidade desejáveis durante o Festival em Honra da Mãe.
À medida que as pessoas começavam a chegar ao Fogo Cerimonial, Ayla notou, de início, uma maior agudez de percepção, resultante dos muitos goles que tomara da bebida, mas aquela sensação logo cedeu lugar a uma disposição de espírito langorosa e cordial que a fez esquecer-se da prévia atitude analítica. Notou que Jondalar e vários outros homens conversavam com Madenia e, deixando Solandia abruptamente, caminhou na direção deles. Cada um dos homens percebeu sua aproximação e gostou do que viu. Ayla sorriu ao chegar, e Jondalar teve consciência do enorme amor que aquele sorriso sempre evocava. Não seria fácil seguir as recomendações de Losaduna e incentivá-la a entregar-se plenamente ao Festival da Mãe, mesmo depois do efeito relaxante da bebida que Aquele que Servia à Mãe lhe oferecera. Jondalar suspirou e engoliu o resto do líquido no fundo da taça.
Filonia e, especialmente seu companheiro, Daraldi, a quem ela fora apresentada antes, estavam entre os que saudaram Ayla com efusão.
— Sua taça está vazia — disse ele, tirando uma concha de um vaso de madeira e enchendo a taça de Ayla.
— Pode servir um pouco mais para mim também — disse Jondalar num tom de excessiva cordialidade. Losaduna notou a jovialidade forçada, mas achou que os demais não prestariam muita atenção. No entanto uma pessoa notou. Ayla olhou para ele, percebeu que sua boca tremia e viu que alguma coisa o incomodava. Notou também a reação rápida de Losaduna. Alguma coisa estava acontecendo entre aqueles dois, observou, mas a bebida a estava afetando, e resolveu pensar no assunto mais tarde. De repente, o som de tambores encheu o recinto.
— As danças vão começar! — avisou Filonia. — Vamos, Jondalar. Vou lhe ensinar os passos. — Pegou-o pela mão e o conduziu ao centro da área.
— Madenia, vá também — disse Losaduna.
— Isso mesmo — falou Jondalar. — Venha também. Sabe os passos? — Sorriu para ela, e Ayla achou que ele começava a relaxar.
Jondalar estivera conversando com Madenia e prestando atenção nela durante todo o dia, e embora ela se sentisse acanhada e silenciosa, sentira uma aguda consciência da presença do homem alto. A cada vez que ele a fitava com os olhos penetrantes, ela sentia o coração disparar. Quando ele a pegou pela mão e conduziu à área da dança, ela sentiu um arrepio de frio e calor ao mesmo tempo, e não poderia ter resistido mesmo que tentasse.
Por um instante Filonia franziu a testa, mas depois sorriu para a moça.
— Nós duas podemos ensinar os passos a ele — disse, levando-os para a área de dança.
— Posso lhe mostrar... — começou Daraldi a dizer a Ayla, no exato momento em que Laduni dizia: — Eu ficaria feliz em... — Sorriram, cada qual tentando deixar que o outro falasse.
Ayla dirigiu um sorriso a ambos.
— Talvez vocês dois me pudessem ensinar os passos — disse.
Daraldi sacudiu a cabeça, concordando, e Laduni dirigiu a ela um sorriso de contentamento, enquanto cada um deles pegava uma das mão dela e a conduzia à área onde os dançarinos se reuniam. Enquanto se colocavam em círculo, mostraram aos visitantes os passos básicos; depois todos se deram as mãos ao ouvir o som de uma flauta. Ayla surpreendeu-se com o som. Não ouvia uma flauta desde que Manem tocara na Reunião de Verão dos Mamutói. Seria possível que houvesse transcorrido menos de um ano desde então? Parecia ter sido havia tanto tempo, e ela nunca mais o veria.
Seus olhos se marejaram ao pensar naquilo, mas quando a dança começou teve pouco tempo para dedicar a recordações pungentes. No começo foi fácil seguir o ritmo, mas ele se tornou mais vivo e complicado com o prosseguimento da dança. Ayla era, inquestionavelmente, o centro das atenções. Todos os homens a achavam irresistível. Juntavam-se em torno dela, competindo por sua atenção, fazendo insinuações e até convites explícitos, mal disfarçados como brincadeiras. Jondalar namorava Madenia com discrição, e também Filonia, mais abertamente, mas não deixava de perceber que todos os homens buscavam chamar a atenção de Ayla.
A dança tornou-se mais complicada, com passos complexos e mudanças de lugar, e Ayla dançou com todos. Ria de suas facécias e observações lúbricas, enquanto as pessoas se afastavam para encher de novo sua taça, ou casais procuravam desvãos escuros. Laduni foi para o meio da área e executou um enérgico solo de dança. Ao fim do bailado, sua companheira juntou-se a ele.
Ayla sentia sede, e várias pessoas foram com ela tomar outra bebida. Daraldi caminhava a seu lado.
— Eu também quero um pouco mais — disse Madenia.
— Sinto muito, minha querida — disse Losaduna, pondo a mão sobre a taça da moça —, mas você ainda não passou pelos Ritos dos Primeiros Prazeres. Terá de tomar chá. — Madenia fechou o rosto e começou a protestar. Depois saiu para buscar uma taça da bebidas inócua que estivera tomando.
Losaduna não tinha intenção de permitir-lhe nenhum dos privilégios da condição de mulher adulta até ela haver passado pela cerimónia que conferia essa condição, e estava fazendo tudo a seu alcance para incentiva-la concordar com o importante ritual. Ao mesmo tempo, estava procurando fazer com que todos soubessem que, apesar de sua horrível experiência, ela fora purificada, restaurada ao estado anterior, e que deveria ser submetida às mesmas restrições e tratada com o mesmo cuidado e atenção especiais dedicados a qualquer outra moça prestes a se tornar mulher. Sentia que esse era o único meio de fazer com que ela se recuperasse inteiramente do ataque despropositado e do múltiplo estupro que sofrera.
Ayla e Daraldi foram os últimos a beber. Depois os outros saíram numa outra direção e eles ficaram a sós. Daraldi virou-se para ela.
— Ayla, como você é bonita.
Na juventude ela fora sempre a alta feiosa, e por mais que Jondalar lhe dissesse que era bonita, ela sempre julgava que tais palavras se devessem ao amor que sentia por ela. Não se julgava bela, e o comentário a surpreendeu.
— Não — respondeu, rindo. — Não sou bonita.
Aquela observação deixou Daraldi perplexo. Não era o que ele esperara.
— Mas... você é — disse.
Daraldi passara toda a noite tentando despertar-lhe o interesse, e embora ela se mostrasse amistosa e simpática, e fosse evidente que estivesse gostando da dança, movimentando-se com uma sensualidade natural que o estimulava a prosseguir em seus esforços, Daraldi não fora capaz de provocar a faísca que levaria a convites mais ousados. Sabia que não era um homem sem atrativos, e aquele era um Festival da Mãe, mas não conseguia transmitir àquela mulher as suas intenções. Por fim, decidiu-se por uma abordagem mais direta.
— Ayla — disse, passando a mão em volta da cintura dela. Sentiu-a retesar-se por um momento, mas persistiu, aproximando-se dela para lhe sussurrar no ouvido: — Saiba ou não, você é uma mulher bonita.
Ayla virou-se para ele, mas em vez de aproximar-se ainda mais, numa reação carinhosa, recuou. Daraldi pôs a mão no outro lado de sua cintura, a fim de puxá-la para si. Ayla endireitou os ombros, pôs as mãos nos ombros dele e olhou-o de frente.
Ayla ainda não compreendera inteiramente o verdadeiro significado do Festival da Mãe. Julgara tratar-se apenas de uma reunião alegre e festiva, muito embora eles falassem a respeito de "honrar" a Mãe e ela soubesse o significado habitual da expressão. Ao notar que pares, ou mesmo trios, se afastavam para os cantos mais escuros em torno das divisórias de couro, começou a entender melhor o que se passava, mas só ao encarar Daraldi e notar o desejo estampado em seus olhos foi que finalmente entendeu o que ele esperava.
Daraldi a puxou contra si e tentou beijá-la. Ayla sentiu-se atraída por ele e reagiu com a mesma paixão. A mão do homem encontrou seu seio, e ele tentou enfiá-la por baixo da túnica que ela usava. Era um homem atraente e a sensação não era ruim. Ela se sentia tranquila e disposta a ceder, mas queria tempo para pensar. Era difícil resistir, seus pensamentos não estavam claros. Nesse momento ela ouviu sons rítmicos.
— Vamos voltar para a dança — disse.
— Por quê? Já não são muitos os que dançam.
— Quero mostrar uma dança Mamutói — disse ela. Daraldi aquiesceu. Ayla havia correspondido. Ele podia esperar um pouco mais.
Quando chegaram à área central, Ayla notou que Jondalar não estava ali. Estava dançando com Madenia, segurando-lhe as duas mãos e ensinando-lhe um passo de dança que aprendera com os Xaramudói. Filonia, Losaduna, Solandia e algumas outras pessoas batiam palmas. O flautista e o rapaz encarregado dos ritmos haviam encontrado parceiras.
Ayla e Daraldi começaram a bater palmas também. Os olhares de Ayla e Jondalar se cruzaram, e ela deixou de bater palmas para golpear as coxas, ao modo dos Mamutói. Madenia parou para olhar, e depois se afastou quando Jondalar juntou-se a Ayla num ritmo complicado, também batendo as mãos nas pernas. Daí a pouco estavam-se movimentando juntos, dando passos para trás e rodeando um ao outro, olhando-se por cima dos ombros. Quando ficaram frente a frente, deram-se as mãos. A partir do momento em que seu olhar cruzara com o de Jondalar, Ayla não vira mais ninguém senão ele. A simpatia que sentira por Daraldi perdeu-se na reação violenta que ela experimentou diante do desejo, da necessidade e do amor que ela viu nos olhos azuis, muito azuis, que a fitavam naquele momento.
A intensidade do sentimento entre os dois era patente a todos. Losaduna os observou por um instante, e depois sacudiu a cabeça imperceptivelmente. Era evidente que a Mãe estava manifestando os Seus desejos. Daraldi balançou os ombros e sorriu para Filonia. Os olhos de Madenia se arregalaram. Sabia que estava assistindo a algo raro e maravilhoso.
Ao pararem de dançar, Ayla e Jondalar estavam abraçados, esquecidos de todos ao redor. Solandia começou a bater palmas e daí a pouco todos os demais juntaram-se a ela no aplauso. O som das palmas finalmente chegou aos ouvidos deles. Afastaram-se um do outro, um pouco constrangidos.
— Acho que ainda restou uma ou duas bebidas — disse Solandia. - Vamos acabar com elas?
— Boa ideia! — exclamou Jondalar, com o braço em torno de Ayla. Não estava disposto a sair mais de perto dela.
Daraldi pegou o grande vaso de madeira para servir o resto da bebida especial, e depois olhou para Filonia. Na verdade, tenho muita sorte, pensou. É uma bela mulher e trouxe duas crianças para meu fogo. O fato de estarem realizando um Festival da Mãe não significava que ele tivesse de honrá-La com outra pessoa que não sua companheira.
Jondalar tomou sua bebida de um só gole, depôs a taça e, de repente, levantou Ayla no colo e a carregou para seu leito. Ela se sentia estranhamente tonta, tomada de felicidade, quase como se tivesse escapado a um destino desagradável, porém sua alegria não se comparava à de Jondalar. Ele a observara toda a noite, vira como todos os homens a queriam, tentara lhe dar todas as oportunidades, como Losaduna aconselhara e tivera certeza de que ela acabaria escolhendo outra pessoa.
Ele próprio poderia ter saído com outra mulher várias vezes, mas não faria isso antes de ter certeza de que Ayla saíra. Em vez disso, tinha ficado com Madenia, pois sabia que ela ainda não estava disponível a homem algum. Gostou de lhe dar atenção, vendo-a tranquilizar-se, apreciando os começos da mulher que ela viria a ser. Não teria censurado Filonia se houvesse saído com alguém, e ela tivera muitas oportunidades, mas agradou-lhe que ela tivesse ficado perto dele. Teria achado horrível ficar sozinho se Ayla houvesse escolhido alguma outra pessoa. Conversa-ram sobre muitas coisas. Thonolan e as viagens que tinham feito juntos; os filhos dela, principalmente Thonolia; Daraldi e o quanto ela gostava dele... Mas Jondalar não se dispunha a falar muito sobre Ayla.
Então, por fim, quando ela viera ter com ele, Jondalar mal pudera acreditar. Deitou-a com todo cuidado nas peles de dormir, olhou para ela e viu amor em seus olhos, sentiu um aperto dolorido na garganta, reprimindo as lágrimas. Ele fizera tudo quanto Losaduna dissera, dera a ela todas as oportunidades, chegara mesmo a incentivá-la, mas ela viera para ele. Seria aquilo um sinal da Mãe, a lhe dizer que se Ayla engravidasse, o filho seria de seu espírito?
Jondalar mudou a posição dos biombos, e quando Ayla começou a levantar-se e tirar as roupas, ele a empurrou com doçura de volta às peles.
— Esta noite é minha. Quero fazer tudo.
Ayla deitou-se e assentiu com um leve sorriso, com um arrepio de expectativa. Jondalar transpôs os biombos, trouxe de volta um tição aceso, acendeu uma candeia e ajeitou-a num nicho. A luz não era forte, apenas o suficiente para que enxergassem. Jondalar começou a despi-la, depois parou.
— Acha que conseguiríamos chegar até as fontes termais com isso? — perguntou, indicando a candeia.
— Dizem que as águas exaurem um homem, que tornam flácida sua virilidade — disse Ayla.
— Acredite em mim, isso não há de acontecer esta noite — respondeu ele, rindo.
— Nesse caso, acho que poderá ser bom — disse ela.
Vestiram as parkas, pegaram a candeia e em silêncio saíram. Losaduna imaginou que iriam aliviar-se, mas depois pensou outra coisa e sorriu. As fontes termais nunca o haviam debilitado por muito tempo. Apenas lhe exigiam um pouco mais de autocontrole, às vezes. Mas Losaduna não era o único a vê-los saírem da caverna.
As crianças jamais eram excluídas dos Festivais da Mãe. Observando os adultos, aprendiam aquilo que deveriam conhecer quando crescessem. Ao brincarem, muitas vezes imitavam os mais velhos, e antes de serem realmente capazes de atos sexuais sérios, meninos subiam em cima de meninas, como faziam os pais, e as meninas simulavam dar à luz bonecas, imitando as mães. Logo depois da puberdade, passavam à condição de adultos, com rituais que lhes conferiam também responsabilidades de adultos, conquanto ainda pudessem passar vários anos sem escolher companheiros. Os bebês nasciam a seu tempo, quando a Mãe decidia abençoar uma mulher, mas, surpreendentemente, era raro nascerem de mulheres muito jovens. Todos os bebês eram bem-vindos, sustentados e cuidados pela família ampliada e pelos íntimos que constituíam uma Caverna.
Madenia observara Festivais da Mãe desde que se entendia por gente, mas dessa vez a cerimónia ganhara um novo sentido. Ela observara vários casais — aquilo não parecia ferir ninguém, não do modo como ela fora ferida, mesmo quando algumas mulheres escolhiam vários homens —, mas estivera particularmente interessada em Ayla e Jondalar. Assim que eles deixaram a caverna, ela vestiu a parka e os seguiu.
O casal encontrou o caminho até a tenda de paredes duplas e entrou na segunda divisão, alegrando-se com o calor fumegante. Olharam em torno e depois colocaram a candeia sobre o altar de terra. Tiraram as parkas e sentaram-se nos tapetes almofadados que cobriam o chão.
Jondalar tirou as botas de Ayla e depois as suas. Beijou-a longamente e com ternura, enquanto desfazia os laços que lhe prendiam a túnica e a roupa de baixo, puxando-os por sobre a cabeça, e depois abaixou-se para beijar-lhe os seios. Desamarrou-lhe as perneiras revestidas de pele e a roupa de baixo, parando para acariciar-lhe o púbis, coberto de pêlos macios. Depois Jondalar se despiu e tomou-a nos braços, deliciando-se ao sentir-lhe a pele perto da sua, e a quis naquele mesmo instante.
Conduziu-a à piscina fumegante, mergulharam e depois foram para a área de banho. Jondalar pegou um punhado de sabão mole da tigela e começou a esfregá-lo nas costas de Ayla e em seus montes gémeos, evitando por ora os órgãos genitais. O sabão proporcionava uma sensação de maciez e prazer. Ayla fechou os olhos, sentiu as mãos dele acariciá-la como ele sabia que ela mais gostava, e entregou-se toda àquele toque maravilhosamente suave, sentindo cada ponto de seu corpo.
Jondalar pegou mais um pouco de sabão e passou-o nas pernas dela, sentindo o ligeiro espasmo de Ayla ao lhe esfregar as solas dos pés. Depois virou-a de frente mas se deteve a beijá-la, explorando suavemente seus lábios e a língua, sentindo sua reação. Quanto a ele próprio, sua virilidade parecia movimentar-se como que animada de vontade própria, esforçando-se por chegar até ela.
Com outro punhado de sabão, Jondalar começou a afagá-la sob os braços, descendo a espuma escorregadia até os seios cheios e firmes, sentindo os bicos endurecerem sob as palmas de suas mãos. Como relâmpagos, arrepios de prazer correram pelo corpo de Ayla quando Jondalar tocou-lhe os seios, assombrosamente sensíveis. Quando ele desceu as mãos para seu ventre e suas coxas, Ayla emitiu um gemido que foi quase de agonia. Com as mãos ainda cheias de sabão, ele encontrou nela a fonte dos Prazeres, acariciando-a de leve. Depois pegou uma pequena bacia, encheu-a de água quente e começou a despejá-la sobre a companheira. Verteu ainda a água quente sobre ela várias vezes antes de conduzi-la de volta à fonte.
Sentaram-se nos degraus de pedra e se abraçaram com força, comprimindo pele contra pele, apenas com as cabeças fora da água. Depois, pegando-a pela mão, Jondalar tirou Ayla da fonte mais uma vez. Deitou-a nos tapetes macios e a contemplou por um instante, fulgente e molhada à espera dele.
Para surpresa de Ayla, Jondalar primeiro abriu-lhe as pernas e correu a língua por toda a extensão de seu sexo. Não sentiu gosto de sal, e surpreendeu-se ao perceber que o gosto especial de Ayla desaparecera. Era uma experiência nova, aquela ausência de sabor, e daí a pouco a ouviu gemer e começar a emitir sons roucos. Tudo aconteceu de repente, mas percebeu que ela estava pronta. Ayla sentiu que a excitação do companheiro aumentava, chegando ao clímax, e espasmos de prazer a invadiram novamente.
Ayla estendeu os braços para puxá-lo contra si, ajudando-o a penetrá-la. Lançava o corpo para cima enquanto ele mergulhava nela, e ambos suspiravam, tomados de profunda satisfação. Quando ele recuava. Ayla ansiava por tê-lo de volta dentro de si. Jondalar sentia a maciez dela engolfar completamente seu membro, e procurava controlar-se para prolongar o Prazer. Em dado momento ele recuou um pouco e ela sentiu que estava pronto. Apertou-o com força contra si, e Jondalar não pôde suportar mais a tensão, liberando a explosão de Prazer, enquanto ambos proclamavam em uníssono o triunfo da alma e da carne.
Jondalar repousou sobre ela por alguns instantes, pois sabia que Ayla gostava de sentir seu peso sobre ela. Quando, enfim, rolou para o lado, ele a olhou, viu seu sorriso lânguido e a beijou. Suas línguas se enroscaram com suavidade, e Ayla começou a sentir novamente o fogo da paixão. Jondalar sentiu-lhe a reação e correspondeu. Sem o açodamento de antes, ele lhe beijou os lábios, cada um dos olhos, as orelhas, as dobras do pescoço. Desceu os lábios a seus seios, beijando um dos bicos enquanto comprimia o outro inverteu a posição até ela puxá-lo com força mais uma vez, desejando-o mais e mais à proporção que aumentava seu prazer.
Jondalar sentia novamente crescer sua virilidade, e de repente Ayla tomou-lhe o membro na boca, provocando nele espasmos desconhecidos. Jondalar gemia e ao não suportar mais saltou sobre ela, lançando-se com fúria contra seu corpo, até sentir, maravilhado, o grande Dom do Prazer propiciado pela Mãe.
Ambos caíram então de lado, exaustos, langorosamente exaustos. Respiraram fundo, mas não se mexeram, chegando até mesmo a cochilar um pouco. Quando despertaram, levantaram-se e banharam-se de novo nas águas tépidas. Quando saíram da fonte, descobriram surpresos que alguém deixara para eles toalhas de pele, macias, para se enxugarem.
Madenia voltou devagar para a caverna, experimentando sensações que nunca conhecera. Comovera-se com a paixão de Jondalar, intensa mas controlada, e com as reações de Ayla, que se dispusera a entregar-se inteiramente, a confiar-se ao companheiro sem reservas. O que eles haviam feito juntos em nada se assemelhava à experiência pela qual ela passara. Os Prazeres tinham sido intensos e físicos, mas sem nenhuma brutalidade; não significavam tirar de um para servir à luxúria do outro, mas dar-se mutuamente, para gratificação recíproca. Ayla lhe dissera a verdade. Os Prazeres da Mãe podiam ser um sentimento prazenteiro, uma celebração feliz e exultante do amor.
E embora ela não identificasse com exatidão o que sentia, estava modificada emocionalmente. Tinha lágrimas nos olhos. Naquele momento, ela quis Jondalar. Oxalá pudesse ser ele que partilhasse com ela os ritos da feminilidade, conquanto soubesse que isso não era possível. Mas decidiu, naquele momento, que, se pudesse ter alguém como ele, concordaria em passar pela cerimónia e aceitar os Ritos dos Primeiros Prazeres na próxima Reunião de Verão. Ninguém se mostrava muito animado de manhã. Ayla preparou a bebida da "manhã seguinte", que inventara para tomar depois das celebrações no Acampamento do Leão, embora só dispusesse de ingredientes suficientes para as pessoas do Fogo Cerimonial. Verificou com cuidado seu suprimento do chá anticoncepcional que tomava toda manhã e concluiu que deveria durar até a primavera, quando poderia colher mais. Felizmente, a quantidade que tinha de tomar era pequena.
Madenia veio ver os visitantes antes do meio-dia. Sorrindo timidamente para Jondalar, anunciou que decidira passar pelos Primeiros Ritos.
— Que notícia maravilhosa, Madenia. Não vai se arrepender — disse o homem alto, bonito e gentil. A moça olhou-o com tal expressão de adoração, que ele se curvou e beijou-a na face. Depois endireitou o corpo e sorriu para Madenia, que se perdeu em seus extraordinários olhos azuis, seu coração batia tão depressa que ela mal conseguia respirar. Naquele momento, mais do que nunca, Madenia desejou que fosse Jondalar o escolhido para seus Ritos dos Primeiros Prazeres. Mas ficou embaraçada, temerosa de que ele lhe adivinhasse os pensamentos. De repente, saiu correndo.
— É uma pena não morarmos mais perto dos Losadunai — disse ele. — Eu gostaria de ajudar essa moça, mas tenho certeza de que hão de encontrar alguém.
— Tenho certeza disso, mas só espero que as expectativas dela não sejam altas demais. Eu disse a ela que um dia encontraria uma pessoa como você, Jondalar, que ela sofrera demais e que merecia isso. Espero que isso aconteça — disse Ayla. — Mas não existem muitos como você.
— Todas as mocinhas têm grandes esperanças e expectativas — disse Jondalar. — Mas antes da primeira vez tudo é imaginação.
— Mas ela tem alguma coisa em que basear a imaginação.
— Claro, todas sabem mais ou menos o que esperar, uma vez que sempre conviveram com homens e mulheres.
— É mais do que isso, Jondalar. Em sua opinião, quem deixou para nós aquelas toalhas ontem à noite?
— Pensei que fosse Losaduna, ou talvez Solandia.
— Eles foram deitar-se antes de nós; também queriam honrar a Mãe. Eu perguntei a eles. Nem sabiam que tínhamos ido à fonte sagrada... embora Losaduna tenha ficado satisfeito com isso.
— Se não foram eles, quem foi então... Madenia?
— Estou quase convicta de que sim.
Jondalar franziu a testa, concentrado.
— Temos viajado sozinhos durante tanto tempo que... Eu nunca disse isso antes, mas... Eu me sinto um pouco... Não sei... arrependido, acho, de ser tão impetuoso, tão despreocupado quando estamos perto de pessoas. Pensei que estivéssemos sozinhos na noite passada. Se eu soubesse que ela estava ali, talvez me tivesse portado com... mais comedimento — disse ele.
Ayla sorriu
— Eu sei. — Verificava, cada vez mais, que ele não gostava de revelar o lado profundamente sensível de sua natureza, e agradava-lhe que se abrisse com ela, com palavras e atos. — Acho que foi bom você não saber que ela estava ali, tanto por mim quanto por ela.
— Por que por ela?
— Acho que foi isso que a persuadiu a aceitar a cerimónia da iniciação. Ela já vira tantas vezes homens e mulheres compartilharem os prazeres que nem se dava ao trabalho de pensar no assunto, até aqueles homens a violentarem. Depois daquilo, ela só pôde pensar na dor e no horror de ser usada como uma coisa, por pessoas que não a viam como uma mulher. É difícil explicar, Jondalar. Uma coisa dessas faz a pessoa se sentir... terrível.
— Tenho certeza disso, mas acho que não foi só isso — concordou o homem. — É depois das primeiras luas, mas antes de passar pelos Primeiros Ritos, que uma mulher se torna mais vulnerável... e mais desejável. Todo homem é atraído por ela, talvez porque não possa ser tocada. Em qualquer outra época, uma mulher é livre para escolher qualquer homem, ou para não querer nenhum, mas naquele período isso é perigoso para ela.
— Lembro-me de que Latie não podia olhar nem para os irmãos — disse Ayla. — Mamute explicou isso tudo.
— Talvez não tudo — disse Jondalar. — Compete à moça-mulher demonstrar recato nessa época, e nem sempre é fácil. Ela é o centro das atenções. Todo homem a deseja, principalmente se é novinha, e para ela pode ser difícil resistir. Eles a seguem, tentando de todos os modos convencê-la a ceder. E algumas moças cedem, principalmente aquelas que têm de esperar muito tempo pela Reunião de Verão. Mas se ela permite ser aberta sem os rituais apropriados, ela... não é bem considerada. Se descobrem, e muitas vezes a Mãe a abençoa antes dos Primeiros Ritos, mostrando a todos que ela foi aberta... As pessoas podem ser cruéis. Elas a culpam e zombam dela.
— Mas por que haveriam de culpá-la? Deveriam acusar os homens que não a deixaram em paz — disse Ayla, irritada com a injustiça.
— Dizem as pessoas que se ela não for capaz de mostrar comedimento, faltam-lhe as qualidades necessárias para assumir as responsabilidades da Maternidade e da Liderança. Ela jamais há de ser escolhida para participar do Conselho das Mães, ou das Irmãs, seja lá qual for o nome que derem ao conselho supremo, de modo que perde prestígio, o que a torna menos desejável como companheira. Não que ela perca o prestigio atribuído à sua mãe ou a seu fogo... Nada daquilo com que nasceu lhe é tirado... mas ela nunca será escolhida por um homem de posição elevada, ou mesmo por um homem que tenha potencial para chegar a essa posição. Acho que isso foi o que Madenia mais temeu — disse Jondalar.
— Não é de admirar que Verdegia dissesse que ela estava arruinada. — O cenho de Ayla franziu de preocupação. — Jondalar, você acredita que a gente dela há de aceitar o ritual de purificação de Losaduna? Na verdade, depois que uma moça é aberta, nada pode fazê-la voltar à condição anterior.
— Creio que sim. No caso dela, não houve falta de recato. Ela foi violentada, e as pessoas estão de tal modo indignadas corn Charoli que usarão isso contra ele. Talvez algumas pessoas tenham certas reservas, mas ela também encontrará muitos defensores.
Ayla se manteve em silêncio por algum tempo.
— As pessoas são complicadas, não é mesmo? Às vezes fico a imaginar se alguma coisa realmente é o que parece ser.
— Acho que vai dar certo, Laduni — disse Jondalar — Realmente acho que vai dar certo! Vou repassar tudo de novo. Vamos usar o bote para transportar ervas secas e uma carga suficiente de pedras de queimar para derreter gelo, além de pedras extras para servirem de base do fogão, e ainda a pele pesada de mamute que sustentará as pedras, para que não afundem no gelo quando esquentarem. Podemos carregar comida para nós, e provavelmente Lobo, em cestas e em nossas mochilas.
— Será uma carga pesada — disse Laduni —, mas vocês não terão de ferver a água... e isso poupará as pedras de queimar. Só precisam derreter o gelo o suficiente para que os cavalos possam beber. E também vocês e o lobo. A água não terá de ser quente, bastando que não esteja congelada. E não se esqueçam de beber o suficiente; não tentem poupar água. Se dispuserem de agasalhos, descansem bastante e bebam água suficiente. Com isso poderão resistir ao frio.
— Acho conveniente fazermos um teste prévio, para vermos do quanto precisarão — disse Laronia.
Ayla ouviu a sugestão da companheira de Laduni.
— É uma boa ideia — concordou.
— Mas Laduni tem razão, a carga será pesada — acrescentou Laronia.
— Nesse caso temos de examinar nossas coisas e nos livrarmos de tudo quanto pudermos — disse Jondalar. — Não precisaremos de muita coisa. Assim que cruzarmos a geleira, estaremos perto do Acampamento de Dalanar.
Já estavam reduzidos ao mínimo essencial. Do que mais poderiam descartar-se?, pensou Ayla ao fim da reunião. Madenia caminhou a seu lado, enquanto voltavam. A moça-mulher não só se apaixonara por Jondalar coito cultuava Ayla como uma heroína, o que a deixava um tanto constrangida. Mas ela gostava de Madenia e lhe perguntou se gostaria de ficar em sua companhia um pouco, enquanto ela passava em revista suas coisas.
Ao começar a desfazer a bagagem e espalhar seus pertences, Ayla tentou lembrar-se de quantas vezes já fizera aquilo antes naquela Jornada. Seria difícil fazer escolhas. Tudo tinha para ela algum significado, mas para conseguirem transpor aquela aterradora geleira que tanto preocupava Jondalar desde o começo, com Huiin e Racer, além de Lobo, ela teria de eliminar o máximo possível.
O primeiro pacote que abriu continha um belo traje de camurça macia, que Roshario lhe dera. Ergueu-o e depois estendeu a roupa diante de si.
— Ah! Que lindo! As aplicações costuradas, e o corte... nunca vi uma coisa igual — admirou-se Madenia, incapaz de resistir ao impulso de tocar no vestido. — E é tão macio! Nunca senti uma coisa assim tão macia!
Quem me deu foi uma mulher dos Xaramudói, gente que vive muito longe daqui, perto do fim do Rio da Grande Mãe, onde ele é realmente um rio enorme. Você não acreditaria se eu lhe dissesse como o Rio da Grande Mãe fica imenso. Na verdade, os Xaramudói são dois povos. Os Xamudói vivem em terra e caçam camurças. Você conhece esse animal? — perguntou Ayla.
Madenia fez que não.
— É um animal montês, parecido com um cabrito, mas menor.
— Ah, eu o conheço, mas nós lhe damos outro nome — respondeu Madenia.
— Os Ramudói são o Povo do Rio e pescam o grande esturjão... um peixe gigantesco. Todos eles conhecem um método especial de curtir a pele da camurça, para que ela fique macia e flexível assim — disse.
Ayla pegou a túnica bordada e pensou nos Xaramudói que conhecera. Aquilo parecia ter sido havia tanto tempo! Ela poderia ter ficado com eles; ainda sentia a mesma vontade, e sabia que nunca mais os veria. Achava horrível ter de deixar o presente de Roshario para trás. Depois viu os olhos brilhantes de Madenia e tomou uma decisão.
— Gostaria de ficar com isso, Madenia?
A moça deu um salto, como se tivesse tocado em alguma coisa em brasa.
— Não posso! Foi um presente para você.
— Mas temos de diminuir nossa carga. Acho que Roshario ficaria feliz se você o aceitasse, já que gostou tanto. Foi feito para ser um traje matrimonial, mas já tenho um.
— Tem certeza? — perguntou Madenia.
Ayla percebia-lhe a emoção. Madenia ainda não acreditava que estivesse ganhando uma roupa tão maravilhosa e diferente.
— Claro que sim. Considere isso seu traje matrimonial, se for apropriado. É um presente para que se lembre de mim.
— Não preciso de presente algum para me lembrar de você — disse Madenia, com os olhos marejados. — Nunca hei de esquecê-la. Por sua causa, talvez, um dia, eu tenha um Matrimónio, e se isso acontecer, vou usar essa roupa. — Madenia mal podia esperar para mostrar o traje a mãe, às amigas e a todos os companheiros na Reunião de Verão.
Ayla ficou satisfeita com sua decisão de presenteá-la.
— Gostaria de ver meu traje de Matrimonio?
— Ah, claro!
Ayla desembrulhou a túnica que Nezzie fizera para ela quando se decidira a casar-se com Ranec. Era de um amarelo ocre, a mesma cor de seus cabelos. Do lado de dentro havia a efígie de um cavalo, junto com dois pedaços de âmbar cor de mel. Madenia não conseguia acreditar que Ayla possuísse dois trajes de beleza tão exótica, mas tão diferentes entre si, mas não disse o que pensava, receosa de que Ayla se sentisse na obrigação de dar-lhe também aquele traje.
Ayla o examinou, tentando decidir o que fazer. Depois balançou a cabeça. Não, não podia separar-se dele, era sua túnica Matrimonial. Poderia usá-la quando tomasse Jondalar como companheiro. De certa forma, havia nela também uma parte de Ranec. Pegou o cavalinho entalhado em marfim de mamute e o acariciou, distraída. Guardaria também aquilo. Pensou em Ranec, imaginando por onde andaria ele. Ninguém a amara mais que ele, e ela jamais o esqueceria. Poderia tê-lo tomado como companheiro e ser feliz com ele, se não tivesse amado tanto Jondalar.
Madenia procurara conter a curiosidade, mas por fim teve de perguntar.
— O que são essas pedras?
— São chamadas de âmbar. Quem as deu foi a chefe do Acampamento do Leão.
— Essa efígie representa seu cavalo?
Ayla sorriu.
— Sim, é uma representação de Huiin. Quem a fez para mim foi um homem de olhos sorridentes e que tinha a pele da cor do pêlo de Racer. Até Jondalar disse que nunca conhecera melhor escultor.
— Um homem de pele escura? — perguntou Madenia, incrédula.
Ayla sorriu. Não podia censurá-la por duvidar.
— Isso mesmo. Era um Mamutói e chamava-se Ranec. Da primeira vez que o vi, fiquei pasma, olhando para ele. Creio que fui muito mal educada. Disseram-me que a mãe dele era escura como... um pedaço de pedra de queimar. Ela vivia muito ao sul daqui, do outro lado de um enorme mar. Um homem Mamutói chamado Wymez fez uma longa Jornada. Tomou-a como companheira, e o filho dela nasceu no fogo dele. A mulher morreu enquanto voltavam, de modo que ele chegou em casa somente com o menino. A irmã do homem o educou.
Madenia teve um sobressalto de emoção. Julgara que a única coisa existente para o sul eram montanhas, que continuavam para sempre e sempre. Ayla viajara a lugares tão distantes e conhecia muitas coisas! Talvez um dia ela própria fizesse uma Jornada como a de Ayla e conhecesse um homem escuro que esculpisse um cavalo lindo para ela, talvez conhecesse cavalos que lhe permitiriam montá-los, um lobo que gostava de crianças e um homem como Jondalar, que montaria os cavalos e faria a longa Jornada em sua companhia. Madenia perdeu-se em devaneios, sonhando com a aventura.
Nunca conhecera uma pessoa como Ayla. Idolatrava a mulher linda, de vida tão aventurosa, e esperava poder tornar-se como ela algum dia. Ayla falava com um sotaque diferente, o que apenas lhe aumentava o mistério, e não tinha também ela sofrido um ataque e sido forçada por um homem quando era menina? Ayla superara o trauma, mas compreendia o que outra pessoa sentia. Por causa da simpatia, do amor e da compreensão das pessoas que a cercavam, Madenia começava a se recuperar do horror do incidente. Começou a imaginar-se, amadurecida e sábia, falando a uma menina que tivesse sido vítima do mesmo ataque, a respeito de sua experiência, para ajudá-la a vencer as más lembranças.
Enquanto Madenia sonhava de olhos abertos, via Ayla pegar um pacote bem embrulhado. A mulher o ergueu mas não o abriu; sabia exatamente o que continha, e não pretendia deixá-lo para trás.
— O que é isso? — perguntou a moça, enquanto Ayla o punha de lado.
Ayla pegou novamente o embrulho. Fazia algum tempo que não o via. Olhou em torno para ter certeza de que Jondalar não estava por ali e depois abriu os nós. Dentro do pacote havia uma túnica de um branco puríssimo, enfeitada com caudas de arminho. Os olhos de Madenia se arregalaram.
— É branca como a neve! Nunca vi um couro pintado de branco como esse.
— O preparo de couro branco é um segredo do Fogo da Cegonha. Aprendi a fazê-lo com uma velha que aprendera com a mãe — explicou Ayla. — Ela não tinha ninguém a quem transmitir esse conhecimento, de modo que quando lhe pedi que me ensinasse, ela concordou.
— Foi você quem fez isso? — perguntou Madenia.
— Fui eu. Para Jondalar, mas ele não sabe. Vou dar a ele essa roupa quando chegarmos à nossa casa, acho que para nosso Matrimónio.
Quando Ayla o levantou, outro pacote caiu de seu interior. Madenia podia ver que se tratava de uma túnica masculina. Com exceção das caudas de arminho, a roupa não tinha outros enfeites. Não havia aplicações bordadas ou desenhos, conchas ou contas, mas não era preciso. Enfeites teriam estragado o efeito. Em sua simplicidade a brancura da cor a tornava assombrosa.
Ayla abriu o pacote menor. Dentro dele havia a figura estranha de uma mulher, de rosto esculpido. Se não houvesse contemplado maravilha após maravilha, aquilo teria assustado a moça; as dunai nunca tinham rostos. Mas, por algum motivo, era apropriado que a de Ayla o tivesse.
— Jondalar fez para mim. Falou que o esculpira para capturar meu espírito, e para minha cerimónia de feminilidade, a primeira vez que me mostrou o Dom do Prazer da Mãe. Não havia mais ninguém com quem o compartilharmos, mas nem precisávamos. Jondalar fez com que aquilo fosse uma cerimónia. Mais tarde deu-me essa escultura para que eu a guardasse, por que, segundo ele, ela tem muito poder.
— Acredito — respondeu Madenia. Não sentia vontade algum de tocá-la, mas não duvidava que Ayla fosse capaz de controlar todo o poder que ela encerrasse.
Ayla percebeu o mal-estar da moça, e voltou a embrulhar a figura. Meteu-a no interior da túnica branca, cuidadosamente dobrada, e envolveu tudo nas peles de coelho costuradas, e por fim atou os laços de cordel.
Outro pacote continha alguns dos presentes que ganhara em sua cerimônia de adoção, ao ser aceita pelos Mamutói. Ficaria com eles. Sua bolsa de remédios a acompanharia, é claro, além das pedras-de-fogo e da pirita e da pederneira, seus instrumentos de costura e as armas de caça. Ayla inspecionou as vasilhas e os objetos de cozinha e eliminou tudo que não fosse absolutamente essencial. Teria de esperar Jondalar para tomar uma decisão acerca das tendas, das cordas e outros materiais.
No momento em que Madenia e ela estavam para sair, Jondalar entrou no espaço de moradia. Com outros homens, tinha acabado de voltar com uma carga de carvão marrom, e fora ali para separar suas coisas. Várias outras pessoas o acompanhavam, entre as quais Solandia e as crianças, na companhia de Lobo.
— Para dizer a verdade, hoje em dia eu preciso desse animal e vou sentir falta dele. Mas não creio que vocês pudessem deixá-lo conosco — disse ela.
Ayla fez um sinal a Lobo. Apesar de todo seu carinho pelas crianças, ele a atendeu imediatamente e ficou a seus pés, mirando-a, esperando suas ordens.
— Não, Solandia. Não creio que isso fosse possível.
— Não pensei que fosse, mas eu tinha de perguntar. Também vou sentir falta de você, como sabe.
— E eu vou sentir saudades de vocês. A parte mais difícil dessa Jornada foi fazer amigos e depois nos separarmos, sabendo que com toda certeza nunca mais nos veremos — disse Ayla.
— Laduni — disse Jondalar, carregando um pedaço de marfim de mamute que tinha estranhas marcas gravadas. — Talut, o chefe do Acampamento do Leão, preparou este mapa da região que fica no leste e que mostra a primeira parte de nossa Jornada. Eu tinha esperança de conservá-lo como lembrança dele. Não é essencial, mas não consigo me dispor a jogá-lo fora. Quer guardá-lo para mim? Quem sabe se um dia não volto para buscá-lo?
— Com todo prazer — respondeu Laduni, pegando o mapa de marfim e examinando-o. — Parece interessante. Talvez você possa explicá-lo antes de partir. Espero que você realmente volte, mas se não voltar, talvez alguém vá para as suas bandas, e eu possa mandá-lo para você.
— Vou deixar também algumas ferramentas. Pode ficar com elas ou não. Sempre detesto renunciar a uma acha a que me acostumei, mas tenho certeza de que poderei substituí-las assim que alcançar os Lanzadonni. Dalanar sempre possui bons suprimentos. Vou deixar meus martelos de osso e algumas lâminas, também. Mas vou ficar com uma enxó e um machado para cortar gelo.
Depois que chegaram à área de dormir, Jondalar perguntou: — O que você vai levar, Ayla?
— Está tudo aqui, no estrado da cama.
Jondalar viu o misterioso pacote entre as outras coisas.
— Seja o que for, essas coisas devem ser muito valiosas disse.
— Vou levá-las — respondeu ela.
Madenia sorriu, satisfeita por conhecer o segredo. Aquilo lhe fazia sentir-se importante. —— O que é isso? — perguntou ele, apontando outro pacote.
— São presentes do Acampamento do Leão — disse Ayla, abrindo o embrulho para que ele visse as coisas. Jondalar viu a bela ponta de lança que Wymez lhe presenteara, e pegou-a para mostrá-la a Laduni.
— Veja só isso — disse.
Era uma lâmina grande, maior que sua mão e da largura de sua palma. No entanto, a espessura era menor que a ponta de seu dedo mínimo e tinha as bordas bem afiadas.
— Foi trabalhada nas duas faces — disse Laduni, virando-a ao contrário. — Mas como ele conseguiu talhá-la com essa espessura? Sempre pensei que trabalhar os dois lados de uma pedra fosse uma técnica rudimentar, usada para machados simples e coisas assim, mas isso nada tem de rudimentar. É uma das peças de artesanato mais bem-feitas que já vi.
— Foi Wymez quem a fez — respondeu Jondalar. — Eu lhe disse que ele era hábil. Ele esquenta o sílex antes de trabalhá-lo. Isso altera a qualidade da pedra, facilita retirar lascas pequenas, e é por isso que consegue uma espessura tão mínima. Mal consigo esperar para mostrar isso a Dalanar.
— Tenho certeza de que ele há de apreciar o trabalho — disse Laduni.
Jondalar devolveu a peça a Ayla, que a embrulhou com todo o cuidado.
— Acho que devemos levar apenas uma tenda, mais para usá-la como quebra-vento — observou ele.
— O que acha de uma pele para o chão? — perguntou Ayla.
— Temos uma carga tão grande de rochas e pedras que detesto levar tudo o que não for de necessidade absoluta.
— Mas a geleira... Eu gostaria de ter uma cobertura para o chão.
— Acho que tem razão — disse ele.
— E estas cordas?
— Vamos realmente precisar delas?
— Sugiro que as levem — disse Laduni. — Cordas são coisas da maior utilidade numa geleira.
— Se você pensa assim, vou seguir seu conselho — aquiesceu Jondalar.
Haviam arrumado muitas coisas na noite anterior, e passaram o restante da tarde despedindo-se de pessoas a quem se haviam afeiçoado no pouco de permanência ali. Verdegia fez questão de ir conversar com Ayla.
— Quero lhe agradecer, Ayla.
— Não há por que me agradecer. Nós é que temos de agradece a todos aqui.
— Refiro-me ao que você fez por Madenia. Para ser honesta, não sei o que você fez ou o que lhe disse, mas você a modificou. Antes de sua chegada, ela vivia escondida pelos cantos, querendo morrer. Não conversava comigo, nem queria pensar em se tornar mulher. Pensei que tudo estivesse perdido. Agora, está quase como era antes e concordou com os Primeiros Ritos. Só espero que nada aconteça e que ela não mude de opinião antes do verão.
— Acho que ela vai ficar bem, desde que todos continuem a lhe dar apoio — respondeu Ayla. — Essa foi a maior ajuda, você sabe.
— Mas ainda quero que Charoli seja punido — disse Verdegia.
— Todos querem isso. Agora que concordaram em ir ao encalço dele, acho que será castigado. Madenia será vingada, terá seus Primeiros Ritos e se tornará mulher. Você ainda terá netos, Verdegia.
De manhã, acordaram cedo, terminaram de fazer os últimos preparativos e voltaram à caverna para uma última refeição com os Losadunai. Todos estavam ali para se despedir. Losaduna fez Ayla decorar mais alguns poemas tradicionais e quase rompeu em lágrimas quando ela o abraçou para se despedir. Ele se afastou depressa, para ir ter com Jondalar. Solandia não escondeu a emoção que lhe ia na alma, e disse que estava muito triste por vê-los partir. Até Lobo parecia saber que nunca mais veria as crianças, e o mesmo acontecia com elas. O animal lambeu o rosto do bebê, e pela primeira vez Micheri chorou.
No entanto, ao saírem da caverna, foi Madenia quem os surpreendeu. Havia vestido o magnífico traje com que Ayla a presenteara, e ao abraçar-se a ela procurou não chorar. Jondalar lhe disse que estava linda, e falava com sinceridade. As roupas lhe emprestavam um ar de beleza incomum e de maturidade, revelando algo da verdadeira mulher que um dia ela viria a ser.
Ao montarem nos cavalos, repousados e ansiosos por partir, olharam mais uma vez as pessoas reunidas na boca da caverna, e era Madenia quem ali se destacava. Mas ainda era jovem e, quando acenou, correram-lhe lágrimas pelo rosto.
— Nunca vou esquecê-los, a nenhum dos dois — gritou ela, e entrou correndo na caverna.
Ao se afastarem, de volta ao Rio da Grande Mãe, que se reduzira a um riacho, Ayla pensou que jamais se esqueceria de Madenia e de sua gente. Jondalar também emocionou-se ao dizer adeus, mas seus pensamentos estavam fixos nas enormes dificuldades que ainda tinham a arrostar. Sabia que a parte mais difícil da Jornada ainda estava pela frente.
Jondalar e Ayla rumaram para norte, de volta ao Donau, o Rio da Grande Mãe que lhes orientara os passos durante uma parte tão grande da Jornada. Quando o alcançaram, viraram de novo para oeste e continuaram a seguir a corrente na direção de suas nascentes, mas o grande rio mudara de caráter. Já não era um gigantesco caudal serpenteante, a rolar com imponente dignidade pelas planícies, recebendo incontáveis afluentes enormes volumes de sedimento, para depois quebrar-se em canais e formar lagos.
Perto de sua fonte, o rio era mais vivo, mais lépido, uma corrente mais rasa que corria aos saltos por seu largo leito rochoso, ao precipitar-se pela encosta íngreme. Mas a rota dos viajantes em direção a oeste, margeando o rio cheio de corredeiras, havia-se tornado uma escalada contínua, que os conduzia cada vez mais para perto do inevitável encontro com a espessa camada de gelos eternos que encobriam o amplo planalto da região que tinham à frente.
As formas das geleiras acompanhavam os contornos da área. As que se situavam nas montanhas eram serrilhados picos de gelo, enquanto as do terreno plano se estendiam como panquecas, de espessura quase uniforme, soerguendo-se um pouco mais na parte central, deixando para trás bancos de cascalho e abrindo depressões que se tornavam lagos e lagoas. Em seu avanço mais ousado, o lobo meridional da vasta extensão continental de gelo, cujo nível máximo era tão elevado quanto as montanhas em torno deles, deixava de encontrar, apenas por cinco graus de latitude, os contrafortes setentrionais das geleiras montanhosas. O terreno que se estendia entre as duas formações era o mais gélido que existia em todo o planeta.
Ao contrário das geleiras das montanhas, que lembravam rios congelados a escorrerem morosamente pelas encostas, o gelo eterno no planalto arredondado, quase plano — a geleira que tantas apreensões causava a Jondalar, e que ainda os aguardava mais a oeste —, era uma versão em miniatura da espessa camada de gelo que se espraiava pelas planícies do continente, mais ao norte.
À medida que Ayla e Jondalar avançavam rio acima, ganhavam altitude a cada passo. Faziam a escalada pensando sempre em poupar os cavalos, muitas vezes puxando-os pelas rédeas, em vez de montá-los. Ayla se preocupava sobretudo com Huiin, que arrastava a maior parte das pedras de queimar, as pedras que, segundo esperavam, haveriam de garantir a sobrevivência de seus companheiros de viagem quando atravessassem a superfície gelada, uma região pela qual os animais nunca se aventuram sozinhos.
Além do trenó de Huiin, ambas as cavalgaduras transportavam cargas pesadas, embora a carga sobre o dorso da égua fosse menor, para compensá-la pelo veículo que arrastava. A carga de Racer era tão grande que quase se desequilibrava sobre o animal, mas também as mochilas homem e da mulher eram enormes. Apenas o lobo estava livre de cargas adicionais, e Ayla começava a prestar atenção em seus movimentos livres, imaginando se também ele não poderia carregar uma parte.
— Todo esse esforço para carregar pedras — observou Ayla certa manhã, enquanto depunha a mochila no chão. — Algumas pessoas nos considerariam loucos por arrastar essa carga de pedra pelas montanhas.
— Muita gente nos considera loucos por viajarmos com dois cavalos e um lobo — contrapôs Jondalar. — Mas para chegarmos do outro lado da geleira, temos de transportar essas pedras. Nossas vidas dependem delas. E há uma coisa que me alegra.
— O quê?
— A facilidade que encontraremos ao chegarmos do outro lado.
O curso alto do rio atravessava os contrafortes setentrionais da cadeia de montanhas do sul, tão imensa que os viajantes mal conseguiam dar-se conta de sua verdadeira escala. Os Losadunai viviam numa região, um pouco ao sul do rio, de montanhas calcárias mais arredondadas, com extensas áreas de planaltos relativamente planos. Embora desgastados por eras e eras de ventos e águas, os cumes erodidos eram suficientemente altos para ostentar coroas fulgentes de gelo durante todo o ano. Entre o rio e as montanhas estendia-se uma paisagem de latente vegetação sobreposta a uma zona de arenitos. Estes, por sua vez, eram recobertos por um leve manto de neve invernal que apagava a fronteira mais baixa do gelo eterno, mas o tremeluzir do azul glacial lhe revelava a natureza.
Mais para sul, rebrilhando ao sol como gigantescos cacos de alabastro, as penedias altaneiras da zona central, quase uma cordilheira separada dentro da colossal massa de terra soerguida, sobrepunha-se aos picos mais próximos. Enquanto os viajantes prosseguiam na escalada em direção à cadeia ocidental mais elevada dentro da complexa cordilheira, a marcha silenciosa das montanhas centrais acompanhava-lhes o avanço, vigiado por um silencioso par de picos serrilhados que se alteavam muito mais que os outros.
Ao norte, do outro lado do rio, o antigo maciço cristalino se erguia ingreme, com a superfície ondulada marcada, aqui e ali, por rochedos coberta por campinas. À frente, morros em meia-lua mais altos, alguns cobertos também por pequenas coroas de gelo, transpunham o rio congelado, sem nenhuma fronteira a congelar, para juntar-se às dobraduras mais jovens da cadeia meridional.
A neve seca e pulverulenta caía com menos frequência à medida que a Jornada os levava à parte mais fria do continente, a região entre a área mais setentrional da geleira montanhosa e amplidões mais meridionais dos vastos lençóis de gelo, de extensão continental. Nem mesmo o frio das estepes ventosas das planícies orientais se igualava, em severidade, ao daquelas paragens. Só a moderadora influência marítima do oceano a oeste salvava a região da desolação dos congelados lençóis de gelo.
Sem o ar aquecido pelo oceano, que resistia ao avanço do gelo, a geleira que tencionavam atravessar se haveria ampliado e se tornado inexpugnável. As influências marítimas que davam passagem às estepes e tundras ocidentais também mantinham as geleiras distantes da terra dos Zelandonii, poupando-a da grossa camada de gelo que cobria outras regiões na mesma latitude.
Jondalar e Ayla reacostumaram-se com facilidade à rotina de viagem, embora Ayla tivesse a impressão de que viajavam eternamente. Ansiava por chegar ao fim da Jornada. Lembranças do inverno muito mais brando no Acampamento do Leão lhe passavam pela mente enquanto avançavam a custo pela monotonia da paisagem hibernal. Ela recordava pequenos incidentes com prazer, esquecida da infelicidade que lhe havia toldado a vida na época em que pensara que Jondalar a deixara de amar.
Embora toda a água tivesse de ser derretida, em geral de pedaços de gelo do rio, e não de neve, Ayla concluiu que o frio enregelante trazia alguns benefícios. Os afluentes do Rio da Grande Mãe eram menores, e estavam congelados, o que lhes facilitava atravessá-los. Mas invariavelmente se precipitavam pelas aberturas da margem direita, por causa dos ventos violentos que zuniam pelos vales dos rios e pelas correntes. Essas rajadas faziam afunilar para ali um ar frígido que descia das áreas de alta pressão das montanhas do sul, aumentando ainda mais a sensação de frio insuportável.
Tremendo, apesar das peles grossas, Ayla sentiu-se aliviada quando finalmente cruzaram um largo vale, chegando à barreira protetora de um planalto próximo.
— Tenho tanto frio! — comentou ela, batendo os dentes. — Gostaria que esquentasse um pouco.
Jondalar teve uma expressão de alarma.
— Não queira isso, Ayla!
— Por quê?
— Temos de cruzar a geleira antes que o tempo mude. Um vento quente indica o foehn, o derretedor de neves, que porá fim à estação. Nesse caso, teremos de seguir para o norte, atravessando terras dos Clã. Isso exigirá muito mais tempo, e por causa de todos os problemas que Charoli vem causando, não sei se eles nos receberão bem — disse Jondalar.
Ayla assentiu, com os olhos postos na margem norte do rio. Depois de estudá-lo durante algum tempo, disse:
— Eles estão do lado melhor.
— O que a faz pensar assim?
— Mesmo daqui pode-se ver que existem planícies com boas pastagens, e isso traz a presença de animais de caça. Deste lado quase só existem pinheiros... isso significa terra arenosa e grama ruim, a não ser em alguns lugares. Este lado deve ser menos rico por causa da proximidade do gelo.
— Talvez você tenha razão — anuiu Jondalar, pensando na justeza de sua avaliação. — Não sei como é no verão. Só estive aqui durante o Inverno.
A observação de Ayla fora correta. Os solos das planícies ao norte do vale do portentoso rio compunham-se basicamente de loess, sobreposto a um escudo de calcário, e eram mais férteis que os do lado sul. Além disso, as geleiras montanhosas no sul achavam-se mais próximas, o que tornava os invernos mais rudes e refrescava os verões, cujo calor mal bastava para derreter as neves acumuladas e a geada superficial do inverno, fazendo-se recuar até a linha da neve do último verão. A maior parte das geleiras estava crescendo de novo, devagar, mas o suficiente para assinalar uma modificação do clima reinante, o intervalo ligeiramente mais quente, de volta ao frio do passado, e um último avanço glacial antes do prolongado degelo que só deixaria gelo nas regiões polares.
Como as árvores estavam meio mortas, muitas vezes Ayla não tinha como identificá-las, até provar a ponta de um ramo, um botão de flor ou um pedaço da casca interna. Nos pontos onde o amieiro dominava, perto do rio, e ao longo dos vales mais baixos de seus afluentes, ela sabia que estariam viajando por florestas pantanosas e turfosas, se fosse verão; onde os amieiros se misturavam com salgueiros e choupos, seriam as partes mais úmidas; e ocasionais freixos, olmos e carpinos, pouco mais que arbustos, indicavam terrenos mais secos. O raro carvalho-anão, lutando pela sobrevivência em nichos mais protegidos, era um indício dos vastos carvalhais que um dia cobririam uma terra mais temperada. As árvores estavam inteiramente ausentes dos solos arenosos das charnecas elevadas, capazes de nutrir apenas urzes, tojos, gramas esparsas, musgos e liquens.
Mesmo naquele clima frígido, prosperavam algumas aves e animais; abundavam espécies das montanhas e das estepes, adaptadas ao frio, e a caça era fácil. Só de raro em raro tinham os viajantes de lançar mão das provisões que lhes haviam sido dadas pelos Losadunai. Aliás, desejavam mesmo guardá-las para a travessia da geleira. Somente quando chegassem ao ermo gelado teriam de alimentar-se dos mantimentos que transportavam.
Ayla avistou um mocho-das-neves pigmeu e mostrou-o a Jondalar. Ele se tornara mestre em caçar tetrazes, que tinham o mesmo gosto da ptármiga de penas brancas de que passara a gostar tanto, principalmente do modo como Ayla a preparava. Sua coloração mista lhe proporcionava melhor camuflagem num ambiente não coberto inteiramente pela neve. Jondalar tinha a impressão de que houvera mais neve da última vez que passara por ali.
A região sofria influência tanto do leste, continental, quanto do oeste, marítimo, o que era revelado pela inusitada mistura de plantas e animais raramente vistos juntos. Exemplo disso eram as pequenas criaturas peludas observadas por Ayla, ainda que raramente vissem camundongos, cabaias e hamsters, exceto quando ela buscava num ninho os vegetais por eles armazenados. Embora Ayla as vezes pegasse também os animais para Lobo, ou, sobretudo se encontrava hamsters gigantes, para eles próprios, os animaizinhos mais comumente serviam de alimento a martas, raposas e ao pequenos gatos selvagens.
Nas planícies elevadas e ao longo dos vales fluviais, era frequente darem com mamutes lanudos, em geral em manadas de fêmeas aparentadas, com um ou outro macho a lhes fazer companhia, ainda que no inverno muitas vezes se reunissem grupos de machos. Os rinocerontes invariavelmente viviam solitários, com exceção de fêmeas com um ou dois filhotes. Nas estações mais quentes, bisontes, auroques e todas as variedades de veados, desde as espécies gigantes até os anões, eram numerosíssimos, mas apenas as renas subsistiam no inverno. O carneiro selvagem a camurça e o cabrito-montês haviam migrado de seu habitat de verão, áreas mais altas, e Jondalar nunca vira tantos bois-almiscarados.
Naquele ano a população de bois almiscarados parecia ter chegado ao auge de um ciclo. No ano seguinte, com toda probabilidade, se reduziriam a um número diminuto, mas nesse ínterim Ayla e Jondalar comprovavam a utilidade do arremessador de lanças. Quando ameaçados, os bois-almiscarados, sobretudo as fêmeas, mais beligerantes, formavam uma falange cerrada de chifres enristados, dispostos em círculo para proteção dos filhotes e de certas fêmeas. Essa tática era eficaz contra a maioria dos predadores, mas não contra o arremessador de lanças.
Sem precisarem aproximar-se o suficiente para serem ameaçados por um ataque repentino, Ayla e Jondalar podiam escolher o animal que desejavam abater, fazendo pontaria de uma distância segura. Era quase fácil demais, mas a pontaria tinha de ser certeira e era necessário arremessar a lança com força, para que ela penetrasse no couro duro.
Tendo à sua disposição muitas variedades de animais, era raro que lhes faltasse alimento, e muitas vezes deixavam os pedaços menos saborosos de carne para outros carnívoros e rapinantes. Não era uma questão de desperdício, mas de necessidade. A dieta de carne magra e de alto teor proteico muitas vezes os fazia sentirem-se insatisfeitos, mesmo quando haviam comido bastante. Cascas de árvores e chás preparados de ramos proporcionavam um alívio limitado.
Como seres onívoros, os humanos podiam subsistir com uma ampla diversidade de alimentos, mas, embora essenciais, as proteínas não eram adequadas, se fossem o único alimento. Viajando no final do inverno, com muito pouca disponibilidade de vegetais, eles precisavam de gorduras para sobreviver, mas o inverno ia tão adiantado que os animais que caçavam já tinham usado a maior parte de suas reservas. Os viajantes escolhiam a carne e as vísceras que continham mais gordura, e deixavam de lado as partes mais magras, ou as davam a Lobo. O animal encontrava, ele próprio, abundância de alimentos nas matas e planícies por que passavam.
Havia outro animal que habitava a região, e embora sempre o notassem, nem Jondalar nem Ayla se dispunham a caçar cavalos. Seus companheiros de viagem alimentavam-se bem, comendo ervas secas, musgo e liquens, e até mesmo ramos pequenos e cascas finas de árvores.
Ayla e Jondalar seguiam rumo ao oeste, acompanhando o curso do grande rio, e desviando-se ligeiramente para o norte, sempre à vista do maciço do outro lado do rio. A depressão entre o antigo planalto setentrional e as montanhas do sul tornava-se mais alta na direção de uma paisagem inóspita, que aflorava em rochedos. Passaram pelo local onde três corantes juntavam-se para formar o começo reconhecível do Rio da Grande Mãe, depois atravessaram a corrente e seguiram pela margem esquerda do curso médio, a Mãe Média. Aquele rio, segundo haviam dito a Jondalar, era considerado o verdadeiro Rio Mãe, conquanto qualquer um dos três pudesse sê-lo.
Alcançar o ponto que era, essencialmente, o começo do grande rio não representou a experiência emocionante que Ayla esperara. O Rio da Grande Mãe não brotava de um local claramente definido, como o grande mar interior onde ele terminava. Não havia um começo nítido, e até mesmo o limite do território setentrional, considerado região dos cabeças-chatas, era incerto, porém Jondalar tinha a impressão de que a área onde estavam lhe era familiar. Achava ele que estavam perto da margem da geleira, embora fizesse algum tempo que viajavam sobre neve e fosse difícil determinar com precisão.
Ainda era de tarde, mas resolveram começar a procurar um local onde acampar, e seguiram até a margem direita da corrente mais elevada. Decidiram parar um pouco adiante, além do vale de um rio bastante largo que descia do lado norte.
Ao ver um depósito de cascalho junto ao rio, Ayla parou para pegar várias pedras lisas e redondas, muito apropriadas para sua funda, e meteu-as na bolsa. Talvez pudesse ir caçar ptármigas ou lebres, mais de tarde ou no outro dia.
As lembranças da breve estada deles com os Losadunai já esmaeciam, substituídas por apreensões com relação à geleira que os esperava, principalmente por parte de Jondalar. A pé e muito carregados, eles vinham viajando mais devagar do que tinham esperado, e Jondalar temia que o fim do inverno estivesse próximo. A chegada da primavera era sempre imprevisível, mas ele só desejava que naquele ano ela tardasse mais.
Descarregaram os cavalos e acamparam. Como ainda era cedo, resolveram caçar carne fresca. Entraram numa mata rala e encontraram pegadas de veado, o que surpreendeu a ambos e deixou Jondalar preocupado. Oxalá os veados, que regressavam, não fossem um sinal da iminência da primavera. Ayla fez um sinal para Lobo e seguiram pela mata em fila, encabeçada por Jondalar. Ayla caminhava logo atrás, acompanhada por Lobo. Ela não queria que ele se pusesse a correr, espantando a presa.
Chegaram a um afloramento rochoso que lhes bloqueava a visão. Ayla percebeu que os ombros de Jondalar relaxavam e que ele se tornava menos tenso. Compreendeu o porquê quando as pegadas do veado mostraram que ele se havia afastado. Era óbvio que alguma coisa o espantara.
Ambos se imobilizaram ao ouvir o rosnado baixo de Lobo. Ele pressentira alguma coisa, e os viajantes já haviam aprendido a respeitar seus avisos. Ayla tinha certeza de ter ouvido barulho de passos do outro da grande pedra, que se projetava da terra e lhes bloqueava o caminho. Ela e Jondalar se entreolharam; o homem também escutara o barulho. Rastejaram lentamente, olhando em torno da pedra. De repente, soaram gritos, ouviu-se o barulho de uma coisa que caía com força e, quase ao mesmo tempo, um grito de agonia.
Havia naquele grito alguma coisa que fez correr um arrepio pela espinha de Ayla, um arrepio de reconhecimento.
— Jondalar! Alguém está em dificuldade — disse, correndo ao redor da pedra.
— Espere, Ayla! Pode ser perigoso! — disse ele, mas era tarde demais. Com a lança em riste, ele correu para alcançá-la.
Do outro lado da rocha, vários rapazes estavam lutando com uma pessoa prostrada, que tentava resistir sem muito sucesso. Outros faziam comentários grosseiros a um homem de joelhos, estendido sobre uma pessoa que dois outros tentavam segurar.
— Depressa, Danasi! Ainda precisa de mais ajuda? Esta aqui está resistindo.
— Talvez ele precise de ajuda para achar o que quer.
— Ele nem sabe o que fazer.
— Então dê uma oportunidade a outro.
Ayla teve um vislumbre de cabelos louros e, com uma indignada sensação de mal-estar, compreendeu que eles estavam segurando uma mulher e o que tentavam fazer. Enquanto corria na direção deles, percebeu outra coisa. Talvez fosse a forma de uma perna ou de um braço, ou o som de uma voz, mas de repente ela entendeu que se tratava de uma mulher do Clã — uma mulher loura do Clã! Ficou estupefata... mas apenas por um instante.
Lobo rosnava, ansioso, mas olhava para Ayla e se continha.
— Deve ser o bando de Charoli! — disse Jondalar, alcançando a companheira.
Pôs no chão a mochila de caça e a aljava de lanças, e com algumas passadas largas havia alcançado os três homens que molestavam a mulher. Agarrou o que estava em cima dela pela parka e o puxou com força. Depois o rodeou e, cerrando o punho, desferiu um murro no homem, que caiu ao chão. Os outros dois, surpresos, largaram a mulher e voltaram o ataque contra o estranho. Um deles saltou-lhe às costas, enquanto o outro dava socos em seu rosto e seu peito. O homem desvencilhou-se do que lhe pulara às costas, recebeu um golpe forte no ombro e revidou com um violento chute contra a barriga do que estava à sua frente.
A mulher rolou de lado, recuou para se afastar quando os dois homens atacaram Jondalar e correu na direção do outro grupo de homens que lutavam. Enquanto um dos homens se contorcia de dor, Jondalar virou-se para o outro. Ayla viu que o primeiro se levantava.
— Lobo! Ajude Jondalar! Pegue aqueles homens! — gritou, fazendo um sinal para o animal.
O enorme lobo correu para a refrega, enquanto ela punha a mochila no chão, tirava a funda enrolada no pescoço e procurava pedras na bolsa. Um dos três homens havia caído de novo, e ela viu que um outro, de olhos esbugalhados de terror, levantava o braço para se proteger do imenso lobo que corria em sua direção. O animal saltou nas patas traseiras, meteu os dentes no braço de um pesado capote de inverno e arrancou-Ihe a manga, enquanto Jondalar desferia um murro no rosto do terceiro.
Metendo uma pedra na funda, Ayla desviou a atenção para o outro grupo de homens que lutavam. Um deles erguera um pesado bastão de osso com as mãos e estava pronto para vibrar um golpe mortífero. Rapidamente ela atirou a pedra e viu o homem do bastão cair ao chão. Outro homem, que segurava uma lança em posição ameaçadora, apontando-a para alguém no solo, viu o amigo cair, com uma expressão de incredulidade. Balançou a cabeça e não viu a segunda pedra vir em sua direção, mas gritou de dor quando ela o atingiu. A lança rolou por terra enquanto ele segurava o braço machucado.
Seis homens tinham estado a lutar com o que estava no chão, mas enfrentando enorme resistência. A funda de Ayla derrubara dois, e a mulher que fora atacada estava batendo num terceiro, que levantava os braços para se defender. Outro, que se aproximara demais do homem que estavam tentando segurar, foi atingido por um golpe violento e cambaleou. Ayla tinha ainda duas pedras prontas para atirar. Disparou uma delas, apontada para uma perna, dando ao homem derrubado — o homem do Clã, como Ayla percebera — tempo para se recuperar. Embora ainda estivesse sentado, ele agarrou o homem que estava mais perto dele, levantou-o do chão e o atirou contra outro homem.
A mulher do Clã renovou seu ataque encolerizado, finalmente afugentando o homem com que estava lutando. Embora não tivessem o hábito de brigar, as mulheres do Clã eram tão fortes quanto os homens, em proporção a seu tamanho. E conquanto tivesse preferido ceder a lutar para se defender contra um homem que desejava usá-la para aliviar suas necessidades, aquela mulher se dispusera a brigar para defender o companheiro ferido.
No entanto, a nenhum dos rapazes restava disposição para a luta Um deles jazia inconsciente junto da perna do homem do Clã, com um ferimento na cabeça, do qual escorria um fio de sangue que lhe empapava os cabelos louros sujos e se transformava num hematoma sem cor. Outro esfregava o braço, fitando a mulher que trazia a funda já preparada de novo. Os demais se achavam machucados e derrotados, um deles com o olho inchado. Os três que haviam atacado a mulher estavam acovardados no chão, as roupas em frangalhos, com medo de um lobo que os vigiava com os dentes à mostra e um rosnado malévolo na garganta.
Jondalar, que recebera seu quinhão de golpes mas não parecia dar por isso, foi certificar-se de que Ayla estava ilesa, e depois olhou com atenção o homem no chão. Compreendeu, de repente, que se tratava de um homem do Clã. Entendera isso num átimo, no momento em que chegaram ali, mas só agora se detinha na ideia. Por que o homem ainda estava no chão? Jondalar puxou o homem inconsciente para longe dele e rolou-o, colocando-o de barriga para cima. Respirava. E então ele entendeu por que o homem do Clã não se punha de pé.
A razão tornou-se clara. Sua coxa direita estava dobrada num ângulo esquisito, pouco acima do joelho. Jondalar olhou para ele com espanto. Com uma perna quebrada, ele estivera resistindo a seis homens! Sabia que os cabeças-chatas eram fortes, mas não imaginara o quanto, nem como eram resolutos. O homem só podia estar sofrendo fortes dores, mas não o demonstrava.
De repente, outro homem, que não participara da luta, apareceu. Olhou em torno, para o bando derrotado, e ergueu as sobrancelhas. Os rapazes pareceram contorcer-se de vergonha ante seu desdém. Não sabiam explicar o que tinha acontecido. Num dado momento, estavam surrando e se divertindo com os dois cabeças-chatas que haviam tido a infelicidade de cruzar o caminho deles; no outro estavam à mercê de uma mulher capaz de arremessar pedras, de um homenzarrão de punhos duros como pedra e do mais gigantesco lobo que já tinham visto! Para não falar dos dois cabeças-chatas.
— O que aconteceu? — perguntou ele.
— Seus homens finalmente levaram uma boa sova — respondeu Ayla. — E logo vai chegar a sua vez.
A mulher era inteiramente desconhecida. Como sabia que se tratava do bando dele, ou qualquer outra coisa com relação a eles? Falava a sua língua, mas com um sotaque estranho. Quem seria? A mulher do Clã virou a cabeça ao escutar a voz de Ayla, e a examinou com atenção, embora ninguém o percebesse. O homem do hematoma na cabeça estava acordando, e Ayla adiantou-se para examiná-lo.
— Afaste-se dele — disse o homem, mas a fanfarronada era desmentida pelo medo que ela detectou em sua voz.
Ayla fez uma pausa, avaliou o homem de alto a baixo e percebeu que ele dissera aquilo para se exibir aos subordinados, e não por que se importasse sinceramente com o homem ferido.
Ayla continuou a examinar o rapaz machucado.
— Ele terá dores de cabeça durante alguns dias, mas vai melhorar. Se eu tivesse desejado machucá-lo de verdade, seria diferente. Ele estaria morto, Charoli.
— Como sabe meu nome? — cuspinhou o homem, assustado, mas procurando disfarçar. Como sabia aquela estranha quem ele era?
Ayla deu de ombros.
— Sabemos mais do que seu nome — disse ela.
Olhou na direção do homem e da mulher do Clã. Para a maioria dos presentes, pareciam impassíveis, mas Ayla percebia-lhes o choque e a intranquilidade nas sutis mudanças de expressão e postura. Estavam vigiar com cuidado a gente dos Outros, tentando entender aquela estranha reviravolta.
Por ora, pensou o homem, não corriam perigo de um novo ataque, mas aquele homem grande... Por que os teria ajudado? Ou teria ele alguma segunda intenção? Por que um homem dos Outros lutaria com homens de sua própria espécie para ajudá-los? E a mulher? Se realmente era uma mulher. Usava uma arma, que ele entendia, melhor do que a maioria dos homens que conhecia. Que tipo de mulher usava armas? Contra homens de sua própria espécie? Mais inquietante ainda era o lobo, um animal que parecia estar ameaçando aqueles homens que haviam machucado sua mulher... Sua mulher nova muito especial. Talvez o homem alto tivesse um Totem do Lobo, mas os totens eram espíritos, e aquele lobo era real. Tudo quanto ele podia fazer era esperar. Aguentar a dor que sentia e esperar.
Vendo que o homem do Clã lançara um olhar sutil a Lobo, e adivinhando-lhe os temores, Ayla resolveu acabar com todos os receios de uma vez por todas. Assoviou, um som claro e imperativo que se assemelhava ao produzido por uma ave, mas nenhuma ave que alguém já tivesse ouvido. Todos a fitaram, apreensivos, mas como nada aconteceu imediatamente, relaxaram. Cedo demais. Antes que se passasse muito tempo, ouviram o som de cascos e logo dois cavalos dóceis, uma égua e um corcel de um castanho invulgar, apareceram e se dirigiram diretamente para a mulher.
Que esquisitice era aquela? Estaria ele morto, no mundo dos espíritos?, cismou o homem do Clã.
Os animais pareceram assustar os rapazes ainda mais que à gente do Clã. Embora o escondessem debaixo de uma capa de sarcasmo e de bravata, animando-se mutuamente a cometer atos cada vez mais ousados e degradantes, cada um deles levava dentro de si um nó apertado de culpa e medo. Algum dia, tinham certeza, seriam descobertos e responsabilizados por seus crimes. Alguns chegavam até a desejar que isso acontecesse, para que tudo terminasse antes que a situação até piorasse, se já não era tarde demais.
Danasi, aquele de quem haviam zombado porque tivera dificuldades para submeter a mulher, conversara sobre isso com alguns companheiros em quem podia confiar. As mulheres cabeças-chatas eram uma coisa, mas aquela moça, que nem era ainda mulher, que chorara e lutara. Com efeito, o ataque fora excitante no momento — as mulheres naquela fase eram sempre excitantes —, mas depois ele sentira vergonha e medo da retribuição da Duna. O que Ela lhes faria?
E agora, ali estava subitamente uma mulher, uma estranha, com um homem enorme e de cabelos claros — não se sabia que o amante d'Ela era maior e mais claro do que os outros homens? — E um lobo! E com cavalos que atendiam a seu chamado. Ela falava de maneira esquisita, devia ter vindo de muito longe, mas sabia a língua deles. De onde ela viera havia línguas? Seria uma dunai? Um espírito da Mãe em forma humana? Danasi estremeceu.
— O que quer conosco? — perguntou Charoli. — Não estávamos a incomodá-la. Apenas nos divertíamos um pouco com esses cabeça-chatas. O que há de errado em a gente se divertir com alguns animais?
Jondalar notou que Ayla fazia força para se controlar.
— E Madenia? — perguntou. — Também ela era um animal?
Eles sabiam! Os rapazes se entreolharam e depois olharam para Charoli. O sotaque do homem não era o mesmo dela. Era um Zelandonii Se os Zelandonii sabiam, não poderiam esconder-se na terra deles se precisassem, fingindo fazer uma Jornada, como haviam planejado. Quem mais sabia? Havia algum lugar onde pudessem ocultar-se?
— Essas pessoas não são animais — disse Ayla, com uma raiva fria que fez Jondalar olhar para ela. Nunca a vira tão irada, mas Ayla estava tão controlada que ele não teve certeza de que os rapazes o percebiam. Se fossem animais, vocês tentariam forçá-los? Forçam lobos? Forçam cavalos? Não, vocês estão à procura de uma mulher, e nenhuma mulher quer saber de vocês. Essas são as únicas que vocês conseguem encontrar. Mas essas pessoas não são animais. — Ayla olhou para o casal do Clã. — Vocês são os animais! Vocês são hienas! Farejando a carniça e cheirando a podridão, cheirando aos animais que são. Ferindo pessoas, violentando mulheres, roubando o que não lhes pertence. Vou lhes dizer uma coisa: se não voltarem agora, hão de perder tudo. Vocês não têm família, nem Caverna, nem amigos, jamais terão uma mulher em seu fogo. Vão passar a vida inteira como hienas, sempre a tirar o que é dos outros, tendo de roubar de sua própria gente.
— Eles sabem disso também! — exclamou um dos homens.
— Não diga nada! — gritou Charoli. — Eles não sabem, estão apenas dando palpites.
— Nós sabemos — respondeu Jondalar. — Todo mundo sabe. — Não dominava a língua, mas eles o compreendiam.
— Isso é o que você diz, mas nós nem o conhecemos — disse Charoli. — Você não é daqui, não é nem mesmo um Losadunai. Nós não vamos voltar. Não precisamos de ninguém. Temos a nossa própria Caverna.
— É por isso que precisam de roubar comida e forçar mulheres? — perguntou Ayla. — Uma Caverna sem mulheres em seus fogos não é Caverna.
— Charoli procurou falar com naturalidade:
— Não queremos ouvir bobagens. Pegamos o que quisermos e quando bem entendermos... comida, mulheres. Ninguém nos deteve antes, e isso não vai acontecer agora. Vamos embora daqui — disse ele, virando-se.
— Charoli! — gritou Jondalar, alcançando-o com poucas passadas.
— O que quer?
— Tenho uma coisa a lhe dar — respondeu o homenzarrão.
A seguir, sem aviso, Jondalar cerrou o punho e desferiu um murro no rosto do rapaz, cuja cabeça dobrou-se para trás, enquanto ele era erguido do chão pelo golpe atordoante.
— Isso é por Madenia! — disse Jondalar, olhando para o homem prostrado. Depois girou nos calcanhares e se afastou.
Ayla olhou para o jovem meio inconsciente. Um fio de sangue lhe escorria do canto da boca, mas ela não fez menção de socorrê-lo. Dois de seus amigos o ajudaram a erguer-se. Ela dirigiu então a atenção ao bando de rapazes, examinando cada um deles individualmente. Estavam em condições lastimáveis, com as roupas esfarrapadas e imundas. Seus rostos magros indicavam fome também. Não era de admirar que tivessem roubado comida. Estavam necessitados de ajuda e de apoio da família e dos amigos de uma Caverna. Talvez a vida de vagabundagem com o bando de Charoli tivesse começado a perder o encanto, e eles estivessem dispostos a voltar.
— Estão procurando vocês — disse ela. — Todos concordam que vocês foram longe demais. Até Tomasi, que é parente de Charoli. Se voltarem às suas Cavernas e aceitarem o castigo, talvez tenham oportunidade de se reunir às suas famílias de novo. Se esperarem ser encontrados, talvez tenham pior sorte.
Será por isso que Ela está aqui? Teria Ela vindo para os avisar?, pensou Danasi. Antes que fosse tarde demais? Se voltassem antes de serem descobertos, e tentassem ser perdoados, suas Cavernas os aceitariam?
Depois que o bando de Charoli se afastou, Ayla aproximou-se do casal do Clã. Tinham assistido com assombro à confrontação direta de Ayla e ao golpe de Jondalar que derrubara o homem. Os homens do Clã nunca batiam em outros homens do Clã, mas os homens dos Outros eram estranhos. Eram um pouco parecidos com homens, mas não agiam como se fossem, principalmente o homem que fora esmurrado. Todos os clãs sabiam de sua existência, e o homem no chão teve de admitir que sentira certa satisfação ao ver aquele ser prostrado. Ficara ainda mais feliz ao vê-los ir embora.
Agora desejava que os outros dois também partissem. Seus atos tinham sido de tal modo inesperados que ele ficara intranquilo. Tudo que queria era retornar a seu Clã, embora não soubesse como fazê-lo com uma perna quebrada. O gesto seguinte de Ayla deixou tanto o homem como a mulher aturdidos. Até mesmo Jondalar pôde perceber-lhes a perplexidade. Graciosamente, ela se sentou de pernas cruzadas diante do homem e olhou para o chão com humildade.
O próprio Jondalar se surpreendeu. Ela fizera aquilo com ele, de vez em quando, em geral quando tinha alguma coisa de importante a lhe dizer, e estava frustrada por não encontrar as palavras certas com que se apressar, mas aquela era a primeira vez que a via assumir tal posição em seu contexto apropriado. Era um gesto de respeito. Ela estava pedindo permissão para se dirigir a ele, mas o homem alto ficou atónito ao ver Ayla, sempre tão independente e capaz, abordar aquele cabeça-chata, aquele homem do Clã, com tamanha deferência. Ela tentara explicar-lhe, de certa feita, que se tratava de um gesto de cortesia tradicional, da maneira como eles se comunicavam, e não necessariamente aviltante para quem o fazia, mas Jondalar sabia que nenhuma mulher Zelandonii, ou nenhuma outra mulher que ele conhecesse, jamais se dirigiria a alguém, homem ou mulher, daquela maneira.
Enquanto Ayla esperava, com paciência, que o homem lhe batesse no ombro, sequer tinha certeza de que a linguagem gestual daquela gente fosse a mesma do Clã que a educara. A distância entre eles era grande, e aquelas pessoas tinham um ar diferente. Mas ela observara semelhanças nas línguas faladas, ainda que quanto mais separados vivessem os grupos, menos parecidas fossem as línguas. Ela só podia esperar que a linguagem gestual daquelas pessoas também fosse parecida.
No entender de Ayla, as linguagens gestuais das pessoas, como grande parte de seus conhecimentos e atividades, provinham de suas memórias. Das memórias rácicas, aparentadas ao instinto, com que cada criança nascia. Se aquelas pessoas do Clã vinham dos mesmos começos antigos das que ela conhecera, a linguagem deveria ser ao menos parecida.
Enquanto esperava, nervosa, começou a imaginar se o homem tinha alguma ideia do que ela estava tentando fazer. Aí sentiu uma pancadinha no ombro e respirou fundo. Fazia muito tempo que não falava à gente do Clã, desde que fora amaldiçoada... Tinha de esquecer aquilo. Não podia permitir que aquelas pessoas soubessem que ela estava morta no que dizia respeito ao Clã, pois nesse caso elas as deixariam de enxergar, como se não existisse. Levantou os olhos para o homem, e se estudaram.
O homem não via nela nenhum sinal do Clã. Era uma mulher dos Outros. Não parecia uma daquelas estranhamente deformadas por uma mistura de espíritos, como muitas que nasciam naquela época. Mas onde aquela mulher dos Outros aprendera a maneira correta de se dirigir a um homem?
Ayla não via um rosto do Clã havia muitos anos, e aquele era um verdadeiro rosto clânico, mas diferente dos rostos das pessoas que conhecera. Os cabelos e a barba do homem eram de um castanho mais claro e pareciam macios e menos encaracolados. Também os olhos eram mais claros, castanhos, mas não eram como os olhos profundos, aquosos, quase negros da gente dela. Os traços dele eram mais fortes, mais acentuados. As sobrancelhas mais pesadas, o nariz mais afilado... A testa até parecia recuar de modo mais abrupto, a cabeça era mais longa. De algum modo ele parecia pertencer mais ao Clã do que as pessoas do Clã dela.
Ayla começou a conversar com os gestos e as palavras da língua cotidiana do Clã de Brun, a língua do Clã que ela aprendera em criança. Ficou logo claro que ele não a compreendia. A seguir o homem produziu alguns sons. Tinham o tom e a qualidade da voz do Clã, um tanto gutural, com as vogais quase engolidas, e ela se esforçou por entender.
O homem estava com uma perna quebrada, e ela desejava ajuda-lo mas também queria saber mais sobre eles. De certa forma, Ayla se sentia mais à vontade na companhia deles do que na dos Outros. Mas para ajudá-lo tinha de comunicar-se com ele, fazer com que a compreendesse O homem falou de novo e fez sinais. Ayla achou os gestos levemente familiares, mas não conseguiu entendê-los. Seria a linguagem de se Clã tão diferente que ela não conseguia comunicar-se com os clãs daquela região?
Ayla pôs-se a imaginar de que maneira conseguiria fazer-se compreender pelo homem, ao mesmo tempo em que olhava para a mulher. Sentada perto dali, ela parecia nervosa e perturbada. Depois, lembrando-se da Reunião do Clã, tentou a linguagem antiga, formal e basicamente silenciosa, utilizada por uma pessoa para se dirigir ao mundo dos espíritos e para se comunicar com clãs que usavam uma linguagem cotidiana diferente.
O homem sacudiu a cabeça e fez um gesto. Ayla sentiu um profundo alívio ao constatar que ele a compreendia. Aquela gente provinha dos mesmos começos que o Clã dela! Algum dia, no passado muito distante, aquele homem tivera os mesmos ancestrais de Creb e Iza. Ayla recordou-se de uma estranha visão e compreendeu que também ela partilhava de raízes, ainda mais antigas, com ele, mas sua linhagem divergira, seguindo por um caminho diferente.
Jondalar assistiu, fascinado, começarem a conversar por meio de sinais. Era difícil acompanhar os rápidos movimentos ondulantes que faziam, o que o fez perceber que a linguagem era muito mais complexa e sutil do que ele imaginara. Ao ensinar às pessoas do Acampamento do Leão parte da linguagem de sinais do Clã, para que Rydag pudesse comunicar-se com eles pela primeira vez em sua vida — a linguagem formal, mais fácil para os jovens —, Ayla lhes mostrara apenas os rudimentos básicos. O rapaz sempre gostara mais de conversar com ela do que com qualquer outra pessoa. Jondalar adivinhara que Rydag podia comunicar-se com ela mais plenamente, mas estava agora começando a entender a amplitude e a profundidade da linguagem.
Ayla surpreendeu-se quando o homem pulou algumas das formalidades de apresentação. Não fixou nomes, lugares ou linhas de parentesco.
— Mulher dos Outros, este homem gostaria de saber onde aprendeu a falar.
— Quando esta mulher era menina, família e povo se perderam num terremoto. Esta mulher foi criada por um Clã — explicou ela.
— Este homem não conhece Clã algum que tenha tomado uma criança dos Outros — sinalizou o homem.
— O Clã desta mulher vive muito longe. O homem conhece o rio que os Outros chamam de da Grande Mãe?
— É a fronteira — indicou ele, impaciente.
— O rio percorre uma distância maior do que muita gente sabe, até um enorme mar, ao leste. O Clã desta mulher vive além do fim do Rio da Grande Mãe — mostrou Ayla.
O homem pareceu não acreditar, e depois estudou-a. Sabia que, ao contrário da gente do Clã, cuja linguagem incluía a compreensão de inconscientes movimentos e gestos corporais, o que tornava quase impossível dizer uma coisa e pensar outra, as pessoas dos Outros, que falavam com sons, eram diferentes. Ele não podia ter absoluta certeza com relação a ela. Não percebia sinais de dissimulação, mas sua história parecia absurda.
— Esta mulher vem viajando desde o começo da última estação quente — acrescentou Ayla.
O homem mostrou-se impaciente de novo, e Ayla percebeu que ele sofria dores atrozes.
O que a mulher quer? Os Outros já foram embora, por que a mulher não vai? — Ele sabia que ela, com certeza, lhe salvara a vida e ajudara sua companheira, o que significava que ele lhe devia uma obrigação. Isso os tornava quase parentes. O pensamento era inquietante.
Esta mulher é Xamã. Esta mulher quer examinar a perna do homem — explicou Ayla.
O homem teve um gesto de desdém.
— A mulher não pode ser Xamã. A mulher não é do Clã.
Ayla não discutiu. Pensou por um momento e decidiu adotar outra atitude.
— Esta mulher quer falar com o homem dos Outros — pediu. O homem assentiu com a cabeça. Ayla levantou-se e depois caminhou de costas, antes de virar-se e dirigir-se até onde estava Jondalar.
— Consegue comunicar-se bem com ele? — perguntou-lhe Jondalar. — Sei que você está tentando, mas o Clã com quem você viveu é de um local muito distante. Fico a imaginar se estará tendo sucesso.
— Comecei usando a linguagem cotidiana de meu Clã, mas não conseguimos nos entender. Eu deveria ter imaginado que os sinais e as palavras deles não seriam os mesmos, mas quando passei a utilizar a antiga linguagem formal, não tivemos dificuldade em nos comunicar — explicou Ayla.
— Estou entendendo bem? Você está dizendo que o Clã pode comunicar-se de uma maneira compreensível por todos eles? Não importa onde vivam? É difícil acreditar nisso.
— Talvez seja — respondeu ela. — Mas os costumes antigos deles estão em suas memórias.
— Você está dizendo que eles já nascem sabendo falar dessa maneira? Qualquer bebê pode fazê-lo?
— Não é bem assim. Eles nascem com suas memórias, mas precisam ser "ensinados" a usá-las. Não sei ao certo como funciona, não tenho as memórias, mas parece que se trata mais de "recordar-lhes” o que ja sabem. Em geral só é preciso recordar-lhes uma vez e pronto. Foi por isso que alguns deles acharam que eu não era muito inteligente. Eu aprendia devagar, até aprender, sozinha, a decorar depressa, e mesmo assim não era fácil. Rydag tinha as memórias, mas não havia ninguém que lhe ensinasse... a recordar-se delas. Foi por isso que ele não conhecia a linguagem dos sinais, até eu chegar.
— Você aprendendo devagar! Nunca vi alguém aprender uma língua tão depressa — disse Jondalar.
Ayla deu de ombros.
— É diferente. Acho que os Outros têm memória para a linguagem com palavras, mas nós aprendemos a falar os sons das pessoas com quem convivemos. Para aprender uma língua diferente, basta decorar outro conjunto de sons e às vezes outra maneira de juntá-los — disse. — Mesmo que vocês não falem com perfeição, conseguem se fazer entender uns pelos outros. Para nós, a linguagem dele é mais difícil, mas o problema que estou tendo com ele não é de comunicação. O problema é a obrigação.
— Obrigação? Não entendi — disse Jondalar.
— Ele está sofrendo uma dor fortíssima, embora não demonstre. Eu quero ajudá-lo e examinar sua perna. Não sei como eles hão de retornar a seu Clã, mas podemos pensar nisso depois. Primeiro, tenho de tratar da perna dele. Ele já está em dívida conosco, e sabe que se compreendo sua língua, compreendo a obrigação. Se ele acreditar que nós lhe salvamos a vida, passa então a ter uma dívida de parentesco. Ele não quer dever ainda mais — disse Ayla, tentando explicar um relacionamento dos mais complexos com palavras simples.
— O que é uma dívida de parentesco?
— É uma obrigação... — Ayla tentou imaginar uma maneira de explicar com clareza. — Isso em geral acontece entre caçadores de um Clã. Se um homem salva a vida de outro, passa a "possuir" um pedaço do espírito desse outro. O homem que teria morrido renuncia a um pedaço para ser devolvido à existência. Como um homem não deseja que nenhum pedaço de seu espírito morra... para viver no mundo do além antes que ele... se outro homem possui um pedaço de seu espírito, ele fará qualquer coisa a fim de salvar a vida de tal homem. Isto os torna parentes, mais próximos do que irmãos.
— Faz sentido — concordou Jondalar, sacudindo a cabeça.
— Quando os homens caçam juntos — prosseguiu Ayla —, têm de ajudar-se mutuamente, e muitas vezes um salva a vida do outro, de forma que um pedaço do espírito de cada um deles em gera! pertence a cada um dos demais. Isso os torna parentes de uma maneira que transcende a família. Os caçadores de um Clã podem ser aparentados, mas os laços de sangue não podem ser mais fortes que o vínculo que existe entre os caçadores, pois não podem gostar mais de um companheiro do que de outro. Todos têm dívidas recíprocas.
— Isso é muito sábio — disse Jondalar, pensativo.
— Chama-se dívida de parentesco. Este homem não conhece os costumes dos Outros, nem tem em grande conta o pouco que conhece.
— Depois de Charoli e seu bando, como censurá-lo?
— É muito mais do que isto, Jondalar. Mas ele não está satisfeito por ter uma dívida conosco.
— Ele lhe disse tudo isto?
— Não, claro que não, mas a linguagem do Clã envolve mais do que sinais feitos com as mãos. Implica também a maneira como a pessoa se senta ou fica em pé, expressões faciais, pequenas coisas, porém tudo tem significado. Eu cresci com um clã. Essas coisas são tanto parte minha quanto dele. Eu sei o que o está incomodando. Se ele conseguisse me aceitar como uma Xamã do Clã, seria útil.
— Que diferença faria? — perguntou Jondalar.
— Significa que já possuo um pedaço de seu espírito.
— Mas você nem o conhece! Como pode possuir um pedaço de seu espírito?
— Uma Xamã salva vidas. Ela poderia reivindicar um pedaço do espírito de cada pessoa que ela salvar, poderia ser "dona" de pedaços de todo mundo, em poucos anos. Por isso, quando ela se transforma em Xamã, renuncia a um pedaço de seu espírito em favor do Clã, e recebe uma parte de cada pessoa do Clã em troca. Assim, por mais pessoas que ela salvar, a dívida já está paga. É por isso que uma Xamã tem uma condição social inerente à função. — Ayla pensou um pouco, e disse: — Esta é a primeira vez em que estou feliz com o fato de os espíritos do Clã não terem sido tomados de volta... — Fez uma pausa.
Jondalar começou a falar. Notou então que ela fitava o vazio e compreendeu que ela olhava para dentro de si.
— ...quando fui amaldiçoada com a morte — continuou Ayla. — Tenho me preocupado com isso durante muito tempo. Depois que Iza morreu, Creb pegou de volta todos os pedaços de espíritos, para que não a acompanhassem ao outro mundo. Mas quando Broud fez com que eu fosse amaldiçoada, ninguém os tirou de mim, ainda que para o Clã eu esteja morta.
— O que aconteceria se eles soubessem disso? — indagou Jondalar, indicando com um leve movimento de cabeça as duas pessoas do Clã, que os observavam.
— Eu deixaria de existir para eles. Não me veriam. Não permitiriam que eu os visse. Eu poderia colocar-me na frente deles e gritar, e ainda assim não me veriam. Julgar-me-iam um espírito mau que estivesse tentando atraí-los para o outro mundo — disse Ayla, fechando os olhos e estremecendo.
— Mas por que você disse que está feliz por ainda ter os pedaços de espíritos? — perguntou Jondalar.
— Porque não posso dizer uma coisa e pensar outra. Não posso mentir-lhe. Ele saberia. Mas posso abster-me de falar no assunto. Isso é permitido, por cortesia, por uma questão de privacidade. Não tenho de dizer nada sobre a maldição, muito embora ele, provavelmente, percebesse que eu estava a omitir alguma coisa, mas posso dizer que sou uma Xamã do Clã, porque isso é verdade. Ainda sou. Ainda possuo os pedaços de espíritos. — Ayla franziu a testa, preocupada. — Mas algum dia vou realmente morrer, Jondalar. Se eu for para o outro mundo com os pedaços de espíritos de todos no Clã, o que lhes acontecerá?
— Não sei, Ayla.
Ela deu de ombros, afastando o pensamento.
— Bem, agora tenho de me preocupar com este mundo. Se ele me aceitar como uma Xamã do Clã, então não terá de preocupar-se em ter uma dívida para comigo. Já é muito ruim para ele ter uma dívida de parentesco com uma pessoa dos Outros, mas pior ainda é ser com uma mulher, sobretudo uma mulher que usa armas.
— Mas você caçava quando vivia com o Clã — lembrou-lhe Jondalar.
— Isso foi uma exceção especial, e apenas porque sobrevivi a uma maldição de morte com duração de um ciclo lunar, por caçar e usar uma funda. Brun o permitiu porque meu totem do Leão da Caverna me protegia. Considerou isso um teste, e acho que o fato finalmente lhe deu um motivo para aceitar uma mulher com um totem tão forte. Foi ele quem me deu o talismã de caçada e o nome de Mulher que Caça.
Ayla tocou a sacolinha de couro que sempre usava em torno do pescoço e lembrou-se da primeira, a bolsinha simples que Iza fizera para ela. Na qualidade de sua mãe, Iza colocara em seu interior o pedaço de ocre vermelho quando Ayla foi aceita pelo Clã. Aquele amuleto não se comparava, de modo algum, com a peça enfeitada que ela usava agora, e que lhe fora dada na cerimónia de adoção dos Mamutói, mas ainda continha seus símbolos especiais, entre eles aquele pedaço de ocre vermelho. Estavam ali todos os sinais que seu totem lhe dera, assim como o oval manchado de vermelho, extraído da ponta de uma presa de mamute que era seu talismã de caça, e a pedra negra, o fragmento de dióxido de manganês que encerrava os pedaços de espíritos do Clã. Recebera-o ao se tornar a Xamã do Clã de Brun.
— Jondalar, acho que ajudaria se você conversasse com ele. O homem está em dúvida. Seus costumes são muito tradicionais, e aconteceram aqui coisas demasiado inusitadas. Se ele conversasse com um homem, mesmo que seja um homem dos Outros, e não com uma mulher, isso lhe tranquilizaria o espírito. Lembra-se do sinal para um homem saudar outro homem?
Jondalar fez um movimento, e Ayla assentiu. Sabia que o gesto carecia de elegância, mas o significado era claro.
— Não tente saudar a mulher ainda. Seria de mau gosto, e ele poderia considerar isso um insulto. Não é habitual ou correto que um homem converse com mulheres sem uma boa razão, sobretudo no caso de estranhos, e mesmo nesse caso você precisaria da permissão dele. Se são parentes, há menos formalidades, e um amigo íntimo poderia até aliviar suas necessidades... dividir Prazeres... com ela, ainda que seja considerado cortês pedir a permissão dele antes.
— Pedir permissão a ele, mas não a ela? Por que as mulheres permitem que sejam tratadas como se fossem menos importantes que os homens?
— Elas não encaram a situação assim. Sabem, no fundo, que mulheres e homens têm a mesma importância, mas os homens e as mulheres do Clã são muito diferentes entre si — tentou explicar Ayla.
— Claro que são diferentes. Todos os homens e mulheres são diferentes. .. Para alegria deles.
— Não me refiro apenas nesse aspecto. Você pode fazer tudo de que uma mulher é capaz, Jondalar, exceto ter um filho, e embora você seja mais forte, posso fazer quase tudo que você. Mas os homens do Clã não podem fazer muitas coisas que as mulheres fazem, do mesmo modo que as mulheres não podem fazer as mesmas coisas que os homens. Não têm as memórias para isso. Quando aprendi, sozinha, a caçar, muitas pessoas ficaram mais surpresas com o fato de eu ter capacidade de aprender a fazer aquilo ou mesmo o desejo do que aborrecidas por eu ter contrariado as normas do Clã. Ficaram atônitas, como se você de repente tivesse dado à luz um filho. Creio que as mulheres ficaram mais surpresas do que os homens. A ideia jamais ocorreria a uma mulher do Clã.
— Mas lembro que você disse que as pessoas do Clã e os Outros são muito parecidos — disse Jondalar.
— E são. Mas, em certos aspectos, são mais diferentes do que você conseguiria imaginar. Nem eu consigo, e fiz parte deles, durante certo tempo. Está pronto para falar com ele?
— Acho que sim — respondeu Jondalar.
O homem alto e louro caminhou na direção do homem forte, que continuava sentado no chão, com a perna dobrada num ângulo estranho. Ayla o seguiu. Jondalar abaixou-se para sentar na frente dele, lançando um olhar a Ayla, que aprovou com a cabeça.
Ele nunca estivera tão perto de um cabeça-chata adulto, e o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi uma lembrança de Rydag. Olhar para aquele homem deixava ainda mais patente que o rapazinho não fazia parte inteiramente do Clã. Ao se recordar do estranho menino, inteligente e doentio, ele compreendeu que os traços de Rydag tinham sido bastante modificados em comparação com os daquele homem — abrandados foi a palavra em que pensou. O rosto do homem era grande, tanto comprido como largo, e de certa forma pontudo, pois terminava num nariz afilado e saliente. Sua barba de pêlos finos, que mostrava ter sido aparada havia pouco tempo, não escondia de todo sua falta de queixo.
Os pêlos faciais misturavam-se a uma massa de densos cabelos macios, castanho-claros, que lhe cobriam a cabeça comprida e enorme, cheia e arredondada atrás. Mas a pesada fronte do homem ocupava a maior parte da testa, sobretudo porque a linha dos cabelos começava baixa. Jondalar teve de se conter para não levar a mão à sua própria testa, alta. Entendeu por que eram chamados de cabeças-chatas. Era como se alguém houvesse pegado uma cabeça que tinha a mesma forma da sua, porém um pouco maior e feita de um material maleável como argila úmida, e lhe dado uma nova forma, empurrando a testa para baixo e para trás.
A fronte pesada do homem era acentuada por sobrancelhas hirsutas, e os olhos claros mostravam curiosidade, inteligência e também dor. Jondalar compreendeu o motivo por que Ayla desejava ajudá-lo.
Sentiu um certo desajeitamento ao fazer o gesto de saudação, mas se tranquilizou com a expressão de surpresa no rosto do homem, que retribuiu o gesto. Não soube ao certo o que fazer em seguida. Pensou no que ele próprio faria se estivesse se encontrando com um estranho de outra Caverna ou Acampamento, e tentou lembrar-se dos sinais que aprendera com Rydag.
Sinalizou:
— Este homem se chama... — depois pronunciou seu nome e afiliação principal. — Jondalar dos Zelandonii.
Os sons eram demasiado melódicos, com excesso de sílabas, para que o homem do Clã compreendesse de uma vez só. Ele balançou a cabeça, como se tentasse destapar os ouvidos. Inclinou a cabeça, como se aquilo o ajudasse a escutar melhor, e depois bateu no peito de Jondalar.
Não era difícil entender o que ele pretendia transmitir, pensou Jondalar. Fez de novo os sinais de "Este homem se chama..." e depois disse seu nome, mas apenas o primeiro e mais devagar:
— Jondalar.
O homem fechou os olhos, concentrando-se. Depois os abriu e, respirando fundo, falou em voz alta:
— Dyondar.
Jondalar sorriu e assentiu. O nome fora pronunciado de modo meio desarticulado, com as vogais um tanto engolidas, mas era compreensível. E estranhamente familiar. Então lhe ocorreu! Claro! Ayla! As palavras dela ainda tinham aquela mesma articulação, embora menos forte. Estava nisso seu sotaque peculiar. Não era de admirar que ninguém o identificasse. Ela falava com um sotaque do Clã, e ninguém sabia que fossem capazes de falar!
Ayla surpreendeu-se ao ouvir o homem pronunciar o nome de Jondalar tão bem. Duvidava que ela própria o tivesse falado tão bem da primeira vez que tentara, e ficou a imaginar se aquele homem já tivera contatos anteriores com os Outros. Se tivesse sido escolhido para representar seu povo ou fazer alguma forma de contato com os que eram chamados de Outros, isso seria uma indicação de alta estirpe. Maior motivo, pensou, para que ele se preocupasse em não criar laços de parentesco com Outros, sobretudo pessoas de posição social desconhecida. O homem não desejaria desvalorizar sua própria posição, mas uma obrigação era uma obrigação, e, quisessem ou não, ele ou a companheira, admiti-lo, precisavam de ajuda. Ayla precisava de achar um meio de persuadi-lo de que ele e Jondalar eram Outros que compreendiam o significado da associação e eram dignos dela.
O homem diante de Jondalar bateu no próprio peito e depois chegou-se para a frente ligeiramente.
— Guban — disse.
Jondalar teve tanta dificuldade para repetir aquele nome quanto o homem enfrentara com "Jondalar". Mas foi generoso e aceitou a pronúncia má de Jondalar, do mesmo modo que este aceitara a sua.
Ayla sentiu-se aliviada. Uma troca de nomes não representava muita coisa, mas era um começo. Olhou para a mulher, ainda surpresa por ver cabelos mais claros que os seus ou de qualquer mulher do Clã. A cabeça da mulher era coberta por cachos macios, tão claros que eram quase brancos, mas era jovem e muito atraente. Provavelmente uma segunda mulher em seu fogo. Guban era um homem na flor da idade, e aquela mulher com toda certeza, pertencia a um clã diferente e representava uma aquisição das mais valiosas.
A mulher olhou para Ayla e afastou o olhar, rapidamente. Por quê? pensou Ayla. Percebera preocupação e medo nos olhos da mulher è estudou-a de novo, mas com a mesma sutileza que a jovem do Clã usara. Havia um engrossamento na barriga? Sua roupa estava um pouco justa demais nos seios? Está grávida! Não era de admirar que estivesse preocupada. Um homem cuja perna quebrada fosse malcuidada já não teria a mesma força de antes. E embora aquele homem pudesse ser de elevada estirpe, sem dúvida tinha também altas responsabilidades. Era imperioso, pensou Ayla, convencer Guban a permitir que ela o ajudasse.
Os dois homens continuavam sentados um diante do outro. Jondalar não sabia o que fazer e Guban esperava para ver o que ele faria. Por fim, tomado de desespero, Jondalar voltou-se para ela.
— Essa mulher é Ayla — disse, usando sinais simples e depois pronunciando-lhe o nome.
De início Ayla julgou que ele houvesse cometido uma gafe social, mas ao ver a reação de Guban, decidiu que talvez não. Apresentá-la tão depressa era indicação da alta estima em que a tinha, apropriada para uma Xamã. Depois, à medida que ele continuava, ficou a imaginar se Jondalar não teria lido seus pensamentos.
— Ayla é curandeira. Curandeira muito boa. Remédios bons. Quer ajudar Guban.
Para o homem do Clã, os sinais de Jondalar mais lembravam o balbuciar de uma criancinha. Não havia nuances em suas indicações, nada de sombras sugestivas, graus de complexidade, mas a sinceridade era patente. Já era surpresa descobrir um homem dos Outros capaz de falar corretamente. A maioria deles tagarelava, resmungava ou rosnava como animais. Eram como crianças, por usar sons em excesso: mas, afinal, os Outros não eram considerados muito inteligentes.
A mulher, por outro lado, mostrava uma surpreendente profundidade de entendimento, com excelente apreensão de nuances. E uma clara e expressiva capacidade de falar. Com discrição e bom gosto, traduzira algumas das intenções mais sutis de Dyondar, facilitando a comunicação entre eles sem embaraçar a ninguém. Por mais difícil que fosse acreditar que fora criada por um clã e que viajara uma distância tão grande, expressava-se com tamanha facilidade que quase se podia acreditar que Pertencesse ao Clã.
Guban jamais ouvira falar do Clã a que a mulher se referira, e conhecia muitos, mas a linguagem comum por ela utilizada era inteiramente desconhecida. Até a linguagem do clã da sua cabelos-amarelos não era tão estranha, mas aquela mulher dos Outros conhecia os antigos sinais sagrados e sabia usá-los com muita habilidade e precisão. Coisa rara numa mulher. Havia a sensação de que ela talvez estivesse omitindo alguma coisa, mas ele não tinha certeza. Era, afinal, uma mulher dos Outros, e de qualquer maneira ele não poderia perguntar. As mulheres, sobretudo as Xamãs, gostavam de guardar algumas coisas para si.
A dor causada pela perna quebrada latejou e ameaçou escapar a seu controle, e ele teve de concentrar-se em suportá-la.
Mas, como poderia ela ser uma Xamã? Não pertencia ao Clã. Não possuía memórias para aquilo. Dyondar afirmava que era uma curandeira, e falava de sua habilidade com muita convicção... E sua perna estava quebrada... Guban estremeceu interiormente, mas rilhou os dentes. Talvez ela fosse mesmo uma curandeira. Os Outros precisariam de curandeiros também, mas isso não a tornava uma Xamã do Clã. A obrigação dele já era grande. Uma dívida de obrigação com aquele homem já seria ruim, mas para com uma mulher? E, além de tudo, uma mulher que usava armas?
No entanto, o que seria dele e de sua cabelos-amarelos sem a ajuda deles? Sua cabelos-amarelos... E já estava esperando um pequeno. Pensar nela fez com que ele amolecesse um pouco por dentro. Sentira uma raiva que nunca conhecera no passado quando aqueles homens saltaram sobre ela, ferindo-a, tentando tomá-la. Fora por isso que ele saltara do alto da pedra. Levara muito tempo para chegar até lá e não podia esperar o mesmo tempo para descer.
Tinha visto pegadas de veado e subira na pedra para examinar a área, para ver o que poderia caçar, enquanto ela colhia cascas de árvores e fazia incisões para juntar a seiva que em breve começaria a escorrer. Ela dissera que logo o tempo esquentaria, ainda que alguns dos demais não lhe tivessem dado crédito. Ainda era uma estranha, mas disse que tinha as memórias e que sabia. Ele desejara que ela o provasse para os demais, e por isso concordara em levá-la à caça, embora conhecesse os perigos... causados por aqueles homens.
Mas fazia frio, e ele julgara que os evitariam mantendo-se próximos ao gelo. O topo da pedra parecera um bom lugar de onde inspecionar a área. A dor agonizante que sentira ao cair com força e quebrar a perna o deixara tonto, mas ele não podia sucumbir. Os homens estavam em cima dele, e era preciso lutar, com ou sem dor. Sentiu-se feliz ao lembrar como ela correra em sua direção. Ficara surpreso ao vê-la bater naqueles homens. Nunca ouvira dizer que uma mulher procedesse assim, nem contaria aquilo a quem quer que fosse, mas ficara satisfeito ao ver que ela tentara denodadamente ajudá-lo.
Mudou de posição, controlando as agulhadas de dor. Mas o que menos o afligia era a dor. Havia muito aprendera a resistir à dor. Mais difíceis de controlar eram outros medos. O que aconteceria se nunca mais ele pudesse caminhar? Uma perna ou um braço quebrados podiam levar muito tempo para sarar, e se os ossos se juntassem de maneira errada tortos, desalinhados... E se ele não pudesse mais caçar?
Se não pudesse caçar, perderia prestígio. Já não seria mais o chefe Prometera ao chefe do Clã de cabelos-amarelos que tomaria conta dela Ela fora uma favorita, mas o prestígio dele era alto, e ela quis acompanhá-lo. Chegara mesmo a lhe dizer, na privacidade de suas peles de dormir que o desejara.
Sua primeira mulher não ficara muito satisfeita ao vê-lo chegar com uma segunda, jovem e bonita, mas ela era uma boa mulher do Clã. Cuidara bem de seu fogo e conservaria a condição de Primeira Mulher. Ele prometeu cuidar dela e das duas filhas. Ele não se importara com isso. Sempre desejara ter um filho homem, mas era delicioso ter as filhas de sua companheira em seu fogo, ainda que em breve houvessem de crescer e ir embora.
Mas se ele não pudesse caçar, não teria condições de cuidar de ninguém. Tal como um ancião, seria ele que dependeria do resto do Clã. E sua bela cabelos-amarelos, que lhe poderia dar um filho homem, como haveria de cuidar dela? A moça não encontraria dificuldade para encontrar um homem que a quisesse, mas ele a perderia.
Não poderia sequer retornar ao Clã se não pudesse andar. Ela teria de ir pedir ajuda, e teriam de voltar ali para buscá-lo. Se não conseguisse retornar por seus próprios meios, valeria menos aos olhos do Clã; porém muito pior seria se a perna quebrada o fizesse andar devagar, se ele perdesse a aptidão para caçar ou nunca mais pudesse fazê-lo.
Talvez eu deva conversar com essa curandeira dos Outros, pensou, ainda que seja uma mulher e use armas. Deve ser de alta linhagem, pois Dyondar a tem em elevada consideração, e também a posição dele deve ser magnífica, ou não teria como companheira uma Xamã. Tanto quanto o homem, ela contribuíra para que aqueles homens fugissem... ela e o lobo. Por que um lobo os ajudaria? Ele a vira conversar com o animal. O sinal era simples e direto, ela lhe dissera que esperasse ali, junto da árvore perto dos cavalos, mas o lobo a compreendera e obedecera. Ainda estava ali, à espera.
Guban desviou o olhar. Era difícil até mesmo pensar naqueles animais sem sentir um medo profundo de espíritos. Que outra coisa atrairia para eles o lobo ou os cavalos? Que outra coisa faria com que animais se comportassem de maneira... tão pouco animalesca?
Percebia que sua cabelos-amarelos estava preocupada. Como censura-la? Já que Dyondar julgara apropriado identificar sua mulher, talvez ele devesse mencionar a sua. Não queria que pensassem que a posição social que ela ganhara ao tê-lo como companheiro fosse menor que a de Dyondar. Guban fez um gesto muito sutil para a mulher, que a tudo vira e observara, mas que, como uma boa mulher do Clã, procurara não chamar a atenção.
— Essa mulher é... — sinalizou. Depois bateu no ombro dela e disse: — Yorga.
Jondalar teve a impressão de duas andorinhas separadas por um erre rolado. Sequer poderia começar a reproduzir o som. Ayla percebeu sua dificuldade e pensou numa maneira de resolver gentilmente a situação. Repetiu o nome da mulher de uma maneira que Jondalar pudesse repetido, mas se dirigiu a ela como mulher.
— Yorga — sinalizou —, esta mulher a saúda. Esta mulher se chama... — e muito devagar e com cuidado, disse: — Ayla. — A seguir, usando tanto palavras como sinais, de modo que Jondalar a entendesse: — O homem chamado Dyondar deseja também saudar a mulher de Guban.
Não seria assim que se procederia no Clã, pensou Guban, mas afinal essas pessoas eram dos Outros, e o procedimento deles não era ofensivo. Teve curiosidade de ver o que faria Yorga.
Ela dirigiu o olhar na direção de Jondalar, muito rapidamente, e depois voltou a olhar para o chão. Guban mudou de posição o suficiente para ela perceber que ele estava satisfeito. Ela acusara a existência de Dyondar, mas nada mais que isso.
Jondalar foi menos sutil. Jamais estivera tão perto de pessoas do Clã... e estava fascinado. Seu olhar durou muito mais tempo. Os traços dela eram semelhantes aos de Guban, com modificações femininas, e ele observara antes que era robusta, mas baixa, da altura de uma menina Estava longe de ser bonita, pelo menos em sua opinião. Só tinha de bonitos os cabelos macios e cacheados, mas ele entendia por que Guban a julgaria atraente. De repente, notando que Guban o observava, ele fez um gesto de cabeça e desviou o olhar. O homem do Clã estava furioso. Ele tinha de tomar cuidado.
A Guban não agradara a atenção que Jondalar dedicara à sua mulher, mas entendeu que não havia em sua maneira falta de respeito voluntária, e a cada momento tornava-se mais difícil controlar a dor. Precisava saber mais a respeito daquela curandeira.
— Eu gostaria de falar à sua... curandeira, Dyondar — sinalizou Guban.
Jondalar entendeu o sentido da comunicação e assentiu. Ayla, que estivera prestando atenção, adiantou-se depressa e sentou-se na posição de respeito diante do homem.
— Dyondar disse que a mulher é curandeira. A mulher diz ser uma Xamã. Guban gostaria de saber como uma mulher dos Outros pode ser uma Xamã do Clã.
Ayla falava enquanto fazia os sinais, de modo que Jondalar pudesse atender exatamente o que ela estava dizendo a Guban.
— A mulher que me aceitou, que me educou, era uma Xamã da maior linhagem. Iza vinha da mais antiga estirpe de Xamãs. Iza foi como mãe para esta mulher, treinou esta mulher junto com a filha nascida na linhagem — explicou. Percebia que ele estava cético, mas interessado em ouvir mais. — Iza sabia que esta mulher não possuía as memórias, como sua verdadeira filha as tinha.
Guban assentiu. Claro que não.
— Iza fez esta mulher recordar-se, fez esta mulher repetir a Iza muitas vezes, mostrar muitas vezes, até que a Xamã teve certeza de que esta mulher não perderia as memórias. Esta mulher gostava de praticar, de repetir muitas vezes para aprender os conhecimentos de uma Xamã.
Embora seus gestos continuassem estilizados e formais, as palavras se tornaram mais descontraídas à medida em que ela continuava a exposição.
— Iza me disse que achava que esta mulher vinha de uma longa linhagem de Xamãs também, Xamãs dos Outros. Iza disse que eu pensava como uma Xamã, mas me ensinou a pensar o xamanismo como uma mulher do Clã. Esta mulher não nasceu com as memórias de uma Xamã, mas as memórias de Iza agora são minhas.
Todos ouviam sua narrativa, fascinados.
— Iza adoeceu, uma doença de tosse que nem ela era capaz de curar, e eu comecei a fazer mais coisas. Até o chefe ficou satisfeito quando tratei de uma queimadura, porém Iza dava prestígio ao Clã. Mais tarde ela piorou demais, ficando incapacitada de viajar para uma Reunião do Clã, e sua filha verdadeira ainda era jovem demais. O chefe e o Mog-ur resolveram então transformar-me em Xamã. Disseram que, como eu tinha as memórias de Iza, era uma Xamã de sua linhagem. No começo os outros mog-urs e chefes, presentes na Reunião, não gostaram da ideia, mas por fim também me aceitaram.
Ayla percebia que Guban estava interessado e que desejava acreditar nela, mas ainda nutria dúvidas. Tirou a sacola enfeitada que trazia ao pescoço, desfez os nós e pôs parte de seu conteúdo na palma da mão. Pegou uma pedrinha preta e estendeu-a para ele.
Guban sabia do que se tratava. Mesmo um fragmento mínimo daquela pedra era capaz de conter os espíritos de toda as pessoas do Clã, e era dada a uma Xamã quando um pedaço de seu espírito era tomado. O amuleto que ela usava era estranho, pensou ele, bem característico do modo como os Outros faziam as coisas, mas até então ele nem sabia que usavam amuletos. Talvez os Outros não fossem tão ignorantes e embrutecidos.
Guban apontou para outro objeto.
— O que é isso?
Ayla repôs os objetos restantes no amuleto.
— É meu talismã de caça — respondeu.
Aquilo não podia ser verdade, pensou Guban. Isso comprovava que eia mentia.
— As mulheres do Clã não caçam.
— Sei disso, mas eu não nasci no Clã. Fui escolhida por um totem do Clã, que me protegeu e me conduziu ao Clã que se tornou o meu, e meu totem queria que eu caçasse. Nosso mog-ur encontrou os espíritos antigos, que lhe falaram. Fizeram uma cerimónia especial. Passei a ser chamada de Mulher que Caça.
— Qual foi esse totem que a escolheu?
Para surpresa de Guban, Ayla levantou a túnica, soltou os cordéis em torno da cintura da peça de baixo e a baixou o suficiente para exibir a coxa esquerda. Apareciam ali, claramente, quatro linhas paralelas, as cicatrizes deixadas pelas garras que lhe haviam marcado a coxa quando ainda menina.
— Meu totem é o Leão da Caverna.
A mulher do Clã prendeu a respiração. O totem era demasiado forte para uma mulher. Seria difícil ela ter filhos.
Guban resmungou alguma coisa. O Leão da Caverna era o mais forte dos totens de caça, um totem masculino. Nunca soubera que uma mulher o tivesse, mas no entanto aquelas eram as marcas feitas na coxa direita de um menino que o tivesse como totem. Eram gravadas depois que ele abatia uma presa importante e se tornava homem.
— Está na perna esquerda. A marca é feita na perna direita de um homem.
— Eu sou mulher, não homem. O lado da mulher é o esquerdo.
— O mog-ur marcou você aí?
— Quem me marcou foi o próprio Leão da Caverna, quando eu era menina, pouco antes que meu Clã me achasse.
— Isso explica o uso de armas — sinalizou Guban. — Mas e filhos? Esse homem com cabelos da cor dos de Yorga tem um totem suficientemente forte para vencer o seu?
Jondalar se perturbou. Ele próprio já pensara na questão.
— O Leão da Caverna também o escolheu, e deixou sua marca. Sei disso porque o Mog-ur me disse que o Leão da Caverna me escolheu e pôs as marcas em minha perna para demonstrá-lo, do mesmo modo que o Urso da Caverna o havia escolhido, e tirou seu olho...
Guban ergueu o corpo, visivelmente abalado. Deixou de lado a linguagem formal, porém Ayla o compreendeu.
— Mogor Um-Olho! Você conhece Mogor Um-Olho?
— Eu morei em seu fogo. Ele me criou. Ele e Iza eram irmãos de sangue, e depois que o companheiro dela morreu, ele recebeu a ela e aos filhos em seu fogo. Na Reunião do Clã ele era chamado de Mog-ur, mas Para os que viviam em seu fogo, era apenas Creb.
— Até mesmo em nossas Reuniões fala-se de Mogor Um-Olho e de sua poderosa... — Guban ia dizer alguma coisa, mas calou-se. Os homens não deviam falar a respeito das cerimónias masculinas esotéricas perto de mulheres. Se ela fora ensinada por Mogor Um-Olho, isso explicava também sua habilidade com os sinais antigos. E Guban realmente se lembrava de que o grande Mogor Um-Olho tinha uma irmã que era uma respeitada Xamã de linhagem antiga. De repente, foi como se Guban relaxasse, e ele permitiu que uma fugaz expressão de dor lhe toldasse o rosto. Respirou fundo e depois olhou para Ayla, que estava sentada de pernas cruzadas, de olhos baixos, na posição apropriada a uma mulher do Clã. Ele bateu em seu ombro.
— Respeitada Xamã, este homem tem um... pequeno problema — sinalizou Guban na antiga linguagem silenciosa do Clã do Urso da Caverna. — Este homem gostaria de pedir à Xamã que examine a perna A perna pode estar quebrada.
Ayla fechou os olhos e soltou a respiração. Conseguira convencê-lo e ele lhe permitia tratar de sua perna. Fez um sinal para Yorga, instruindo-a a preparar um lugar onde ele pudesse dormir. O osso fraturado não rompera a pele, e Ayla achou que havia boas possibilidades de ele poder voltar a usá-lo perfeitamente. Entretanto, para que isso acontecesse, seria preciso endireitar a perna, repô-la no lugar e, depois, fazer uma forma de casca de bétula, de modo que ele não pudesse movê-la.
— Juntar os ossos vai doer muito, mas tenho uma coisa que fará a perna relaxar. Depois ele vai dormir. — Ayla voltou-se para Jondalar: — Pode transferir nosso acampamento para cá? Sei que é trabalhoso, por causa de todas aquelas pedras de queimar, mas eu quero armar a tenda para ele. Os dois não tencionavam voltar para casa de noite, e ele precisa ser tirado do frio, principalmente quando eu lhe der uma coisa para dormir. Vamos precisar também de um pouco de lenha. Não quero usar as pedras de queimar e vamos precisar de cortar umas lascas. Vou apanhar casca de bétula quando Guban dormir, e talvez eu possa fazer-lhe umas muletas. Mais tarde ele vai querer se movimentar.
Jondalar deixou que ela assumisse o comando e sorriu. Achava muito ruim aquela demora e até mesmo um dia parecia tempo excessivo, mas também queria ajudar. De qualquer maneira, Ayla não iria embora agora. Só podia esperar que não perdessem tempo demais.
Jondalar levou os cavalos para o primeiro acampamento, rearrumou as coisas, voltou para onde estavam e descarregou tudo de novo. Depois conduziu Huiin e Racer até uma clareira onde os animais poderiam encontrar capim seco. Havia ali um pouco de feno ainda de pé, porém muito mais enterrado debaixo de neve antiga. A clareira ficava a certa distância do novo local do acampamento, de modo que os cavalos incomodariam menos a gente do Clã. Eles pareciam julgar que os animais domesticados fossem mais uma manifestação do estranho comportamento dos Outros, porém Ayla notou que tanto Guban como Yorga se mostraram um tanto aliviados com os animais fora da vista. Ficou satisfeita por Jondalar ter pensado nisso.
Assim que ele voltou, Ayla tirou a bolsa de remédios de unia cesta. Apesar de ter resolvido aceitar a ajuda dela, na qualidade de Xamã, Guban ficou aliviado ao ver sua antiga bolsa de remédios de pele de lontra, funcional e sem enfeites, ao estilo do Clã. Ela fez questão de manter Lobo também afastado dali. Estranhamente, o animal, embora em geral mostrasse curiosidade pelos amigos de Ayla e Jondalar, não procurou aproximar-se da gente do Clã. Pareceu satisfeito por se manter a distância, vigilante mas não ameaçador, e Ayla ficou a imaginar se ele percebia a inquietude que causava.
Jondalar ajudou Yorga e Ayla a levar Guban para a tenda. O peso do homem era surpreendente, mas afinal se tratava de um caçador musculoso, que fora capaz de resistir a seis homens de uma vez só. Jondalar percebeu também que ele estava sentindo dores lancinantes, embora seu rosto impassível não o demonstrasse. A recusa do homem em admitir a dor fez Jondalar imaginar se ele a sentia verdadeiramente, até Ayla lhe explicar que o estoicismo era uma virtude que os homens do Clã praticavam desde a meninice. Aumentou então o respeito de Jondalar pelo homem. Sua raça nada tinha de fraca.
Também a mulher era espantosamente forte. Era menor que o companheiro, mas não muito. Podia erguer tanto peso quanto Jondalar, quando se dispunha a fazer força; no entanto, ele a vira usar as mãos com muita precisão e controle. Era com espanto que ele descobria tanto semelhanças como diferenças entre a gente do Clã e a de sua própria espécie. Não poderia precisar com exatidão quando foi que aconteceu, mas em dado momento ele se deu conta de que já não questionava, em absoluto, o fato de que eram humanos. Eram decerto diferentes, mas com toda segurança eram humanos, e não animais.
Ayla acabou tendo de usar algumas pedras de queimar para gerar uma temperatura mais alta, a fim de preparar a tisana mais depressa, pondo pedras de queimar quentes diretamente na água, para fazê-la ferver. No entanto, Guban resistiu em beber a quantidade que ela julgava necessária, alegando que não gostava da ideia de ter de esperar demais para que os efeitos passassem, mas ela ficou a pensar que parte do problema decorria do fato de ele duvidar que ela fosse capaz de preparar a beberagem corretamente. Com ajuda de Yorga e Jondalar, ela reduziu a fratura e fez uma tala forte. Quando tudo terminou, Guban finalmente adormeceu.
Yorga insistiu em preparar a refeição, embora o interesse de Jondalar pelos processos e pelos paladares a embaraçasse. De noite, à beira do fogo, ele começou a fazer um par de muletas para Guban, enquanto Ayla conversava com Yorga e lhe explicava como preparar remédios para dores Descreveu o uso das muletas e falou da necessidade de almofadas sob os braços. Yorga surpreendia-se a cada instante com o conhecimento que Ayla tinha do Clã, mas já notara antes seu sotaque "clânico". Por fim, falou sobre si mesma a Ayla, que traduziu seu relato para Jondalar.
Yorga desejara colher cascas de árvore e seivas. Guban a acompanhara para protegê-la, porque eram tantas mulheres que tinham sido atacadas pelo bando de Charoli que já não tinham permissão de sair sozinhas, o que acarretava problemas para o Clã. Os homens dispunham de menos tempo para caçar, já que eram obrigados a acompanhar as mulheres. Fora por isso que Guban resolvera escalar o rochedo, a fim de procurar animais que pudesse caçar enquanto Yorga colhia as cascas que desejava. Provavelmente os homens de Charoli pensaram que ela estivesse sozinha Talvez não a atacassem se tivessem visto Guban, mas quando ele os viu atacarem-na, saltou do alto da rocha para defendê-la.
— O que me surpreende é que só tenha quebrado uma perna — comentou Jondalar, olhando para o alto.
— Os ossos da gente do Clã são muito fortes — disse Ayla. — E grossos. Não quebram com facilidade.
— Aqueles homens não precisavam me maltratar tanto — disse Yorga, com sinais. — Eu teria ficado na posição se eles fizessem o sinal e se eu não tivesse escutado o grito de Guban. Foi então que percebi que acontecera um acidente.
Yorga prosseguiu a narrativa. Vários homens tinham saltado sobre Guban, enquanto três outros tentavam forçá-la. Quando ele gritou de dor ela percebeu que acontecera alguma coisa e tentou fugir dos homens. Foi aí que os outros dois a seguraram. De repente, porém, Jondalar estava ali, batendo nos homens dos Outros, enquanto o lobo saltava contra eles e os mordia.
Yorga olhou para Ayla, com ar trocista.
— Seu homem é muito alto e o nariz dele é pequeno demais, mas quando o vi ali, lutando com os outros homens, esta mulher seria capaz de considerá-lo uma criança.
Ayla pareceu não entender, mas depois sorriu.
— Não entendi direito o que ela disse ou quis dizer — comentou Jondalar.
— Ela fez uma brincadeira.
— Uma brincadeira? — admirou-se ele. — Não pensei que fossem capazes de brincadeiras.
— O que ela falou, mais ou menos, é que embora você seja feio, quando começou a defendê-la, ela teve vontade de beijá-lo — disse Ayla, e explicou para Yorga.
A mulher ficou um pouco sem graça, mas olhou para Jondalar e depois para Ayla.
— Sou grata a seu homem alto. Quem sabe... Se o filho que tenho na barriga for homem e se Guban me permitir sugerir um nome, eu direi a ele que Dyondar não é um nome ruim.
— Isso não foi brincadeira... Ou foi, Ayla? — disse Jondalar, surpreso.
— Não, não creio que tenha sido, mas ela só pode sugerir. E seria um nome inadequado para um menino do Clã, porque é muito esquisito. Mas é possível que Guban concorde. Ele é excepcionalmente aberto a novas ideias, para um homem do Clã. Yorga me contou como se uniram Acho que eles se apaixonaram, o que é muito raro. Em geral as uniões são planejadas e arrumadas.
— Por que acha que eles se apaixonaram? — perguntou Jondalar. Estava interessado em ouvir uma história de amor do Clã.
— Yorga é a segunda mulher de Guban. O Clã dela vive muito longe daqui, mas ele viajou até lá para dar a notícia de uma grande Reunião do Clã e falar sobre nós, os Outros. Por exemplo, sobre o fato de Charoli estar molestando suas mulheres... Eu comentei com ela sobre os planos dos Losadunai de acabar com isso... mas se entendi direito, um grupo dos Outros procurou alguns clãs para propor comércio.
— Isso é surpreendente!
— É mesmo. O maior problema é de comunicação, mas os homens do Clã, inclusive Guban, não confiam nos Outros. Enquanto Guban visitava o Clã distante, viu Yorga e ela o viu. Guban a quis, mas o motivo que ele deu foi o de estabelecer vínculos mais estreitos com alguns dos clãs distantes, de modo que pudessem trocar notícias, principalmente sobre todas essas novas ideias. E ele a trouxe consigo! Os homens do Clã não procedem assim. A maioria deles teria comunicado sua intenção ao chefe, regressado e debatido o assunto com seu próprio Clã. Daria à sua primeira mulher tempo para se habituar à ideia de partilhar seu fogo com outra — disse Ayla.
— A primeira mulher em seu fogo não sabia? Homem corajoso, esse.
— A primeira mulher dele tem duas filhas, e ele quer uma mulher que faça um filho homem. Os homens do Clã atribuem alto valor aos filhos homens de suas companheiras, e é claro que Yorga espera que o filho que ela está gerando seja o menino que ele deseja. Teve certa dificuldade para se acostumar ao novo Clã... demoraram a aceitá-la... e se a perna de Guban não sarar direito e ele baixar na escala social, ela tem medo de que ele a culpe.
— Não admira que estivesse tão perturbada.
Ayla absteve-se de dizer a Jondalar que contara a Yorga que estava a caminho da terra de seu homem, que também ela se apartara de sua própria gente. Não via motivos para aumentar-lhe ainda mais as preocupações, mas também ela temia o modo como a gente dele a receberia.
Tanto Ayla como Yorga gostariam de poder visitar-se e dividir seus conhecimentos. Julgavam-se quase parentes, já que havia, provavelmente, uma dívida de parentesco entre Guban e Jondalar, e Yorga se sentia mais ligada a Ayla, apesar de se conhecerem havia muito pouco tempo, do que se sentia a todas as outras mulheres que conhecera. Mas a gente do Clã e a dos Outros não se visitavam.
Guban acordou no meio da noite, mas ainda meio inconsciente. De manhã estava alerta, mas a reação às tensões da véspera o deixara exausto. Quando Jondalar olhou para dentro da tenda, de tarde, Guban surpreendeu-se com a satisfação que sentiu ao ver o homem alto, mas não soube o que fazer com as muletas que ele lhe estendia.
— Eu usei a mesma coisa depois que o leão me atacou — explicou Jondalar. — Ajuda a andar.
Guban ficou interessantíssimo e quis experimentar as muletas, mas Ayla não o permitiu. Era cedo demais. Por fim, Guban aquiesceu, mas só depois de anunciar que as experimentaria no dia seguinte. De noite, Yorga foi dizer a Ayla que Guban queria conversar com Jondalar sobre assuntos muito importantes e que pedia a ajuda dela como tradutora. Ayla pressentiu que era coisa séria, imaginou do que se tratava e conversou com Jondalar de antemão, para que pudesse ajudá-lo a compreender as possíveis dificuldades.
Guban ainda estava preocupado com vir a ter para com Ayla uma dívida de parentesco, além da aceitável troca de espíritos de uma Xamã, já que ela lhe salvara a vida usando uma arma.
— Precisamos convencê-lo de que a dívida é com você, Jondalar. Se você lhe disser que é meu companheiro, pode dizer-lhe que, corno é responsável por mim, qualquer dívida de que eu for credora na verdade é devida a você.
Jondalar concordou e, depois de algumas formalidades introdutórias, começaram a discussão mais séria.
— Ayla é minha companheira, ela me pertence — disse, enquanto Ayla traduzia, usando toda a amplitude de inflexões. A seguir, para surpresa dela, Jondalar acrescentou: — Também eu tenho uma obrigação que pesa em meu espírito. Tenho uma dívida de parentesco com o Clã.
Guban ficou curioso.
— Essa dívida tem pesado muito em meu espírito porque nunca soube como saldá-la.
— Fale sobre isso — sinalizou Guban. — Talvez eu possa ajudar.
— Fui atacado por um leão de caverna, como contou Ayla. Marcado, escolhido pelo Leão da Caverna, que é agora meu totem. Foi Ayla quem me encontrou. Eu estava perto da morte, e meu irmão, que me acompanhava, já vagava pelo mundo dos espíritos.
— Sinto muito. É duro perder um irmão.
Jondalar apenas assentiu.
— Se Ayla não me houvesse encontrado, também eu estaria morto, mas quando Ayla era criança e estava próxima da morte, o Clã a adotou e a criou. Se Ayla não houvesse sobrevivido e uma mulher do Clã não lhe houvesse ensinado a curar, eu não estaria vivo. Estaria agora vagando pelo outro mundo. Devo minha vida ao Clã, mas não sei como pagar essa dívida... nem a quem.
Guban sacudiu a cabeça, pensativo. Era um problema sério, uma dívida grande.
— Gostaria de fazer uma proposta a Guban — continou Jondalar. — Como Guban tem comigo uma dívida de parentesco, peço-lhe que aceite a minha dívida ao Clã em troca.
O homem do Clã considerou o pedido com gravidade, mas ficara satisfeito. Trocar uma dívida de parentesco era muito mais aceitável do que simplesmente dever a vida a um homem dos Outros e lhe dar um pedaço de seu espírito. Por fim, anuiu.
— Guban vai aceitar a troca — respondeu, com muito alívio.
Guban pegou seu amuleto, preso ao pescoço, e o abriu. Pôs o conteúdo na mão e apanhou um dos objetos, um dente, um dos primeiros molares dele próprio. Embora não tivessem cáries, seus dentes estavam desgastados de uma maneira muito especial, pois ele os utilizava como ferramenta. O dente em sua mão estava desgastado também, tanto quanto os permanentes.
— Por favor, aceite isso como sinal de parentesco — disse.
Jondalar ficou embaraçado. Não imaginara que haveria uma troca de objetos pessoais, para assinalar a liquidação das dívidas, e não sabia o que dar ao homem do Clã. Viajavam com pouquíssimas coisas, e ele não tinha quase nada a oferecer. De repente, teve uma ideia.
Tirou uma bolsa de uma alça do cinturão e despejou o conteúdo na mão. Havia ali várias garras e dois dentes caninos de um urso cavernícola, o urso que ele matara no verão anterior, pouco depois de terem começado a longa Jornada. Estendeu ao homem um dos dentes.
— Por favor, aceite isso como sinal de parentesco.
Guban conteve a ansiedade. Um dente de urso cavernícola era um símbolo poderoso, apropriado a pessoas de alta estirpe, e a oferta de um deles representava honra elevada. Agradava-lhe pensar que aquele homem dos Outros houvesse reconhecido sua posição. Causaria boa impressão quando ele contasse aos demais sobre aquela troca. Aceitou o presente e fechou-o na mão, que apertou com força.
— Muito bem! — disse, como se completasse uma transação. A seguir, fez um pedido: — Já que agora somos parentes, talvez devêssemos conhecer a localização do Clã um do outro e o território que ocupam.
Jondalar descreveu a localização genérica de sua terra. A maior parte do território do outro lado da geleira era Zelandonii ou assemelhado, e depois descreveu especificamente a Nona Caverna dos Zelandonii. Guban descreveu sua área, e Ayla teve a impressão de que não eram tão distantes uma da outra como ela supusera de início.
O nome de Charoli veio à baila mais tarde. Jondalar falou dos problemas que o rapaz vinha criando para todos e explicou com alguns detalhes o que estavam planejando para solucionar aquele problema. Guban considerou a informação importante para os outros clãs, e ficou a pensar que talvez a perna quebrada acabasse lhe rendendo vantagens excepcionais.
Guban teria muito o que contar a seu Clã. Não somente que até os Outros tinham problemas com o homem e que tencionavam tomar providências, mas também alguns dos Outros estavam dispostos a lutar com sua própria espécie para ajudar a gente do Clã. Havia até mesmo alguns que falavam adequadamente! Uma mulher que sabia comunicar-se muito bem, e um homem de capacidade limitada mas útil, uma capacidade de certa forma ainda mais valiosa, já que se tratava de um homem e, agora, parente seu. Tais contatos com os Outros, bem como as informações e os dados a respeito deles, poderiam render-lhe ainda mais prestígio, sobretudo se ele voltasse a poder usar bem a perna.
De noite, Ayla aplicou a forma de casca de bétula. Guban foi deitar-se com excelente disposição. E sua perna quase não o incomodava.
Ayla acordou na manhã seguinte sentindo enorme inquietação. Tivera outro sonho, muito claro, no qual apareciam cavernas e Creb. Falou sobre ele a Jondalar. Depois conversaram sobre o que fariam para devolver Guban à sua gente. Jondalar sugeriu que usassem os cavalos mas estava aflito com a perda de tempo. Ayla achou que Guban jamais consentiria. Os cavalos domesticados o perturbavam.
Quando se levantaram, ajudaram Guban a sair da tenda, e enquanto Ayla e Yorga preparavam uma refeição matinal, Jondalar demonstrou o uso das muletas. Guban insistiu em experimentá-las, apesar das objeções de Ayla, e depois de algum treino, ficou surpreso ao ver como eram eficazes. Podia caminhar sem depositar peso algum sobre a perna.
— Yorga, prepare-se para partirmos — disse ele, depois de pôr as muletas de lado. — Depois da refeição, iremos embora. Chegou a hora de voltarmos ao Clã.
— Ainda é cedo — respondeu Ayla, usando também os gestos do Clã. — Precisa descansar sua perna, pois de outra forma ela não ficará bem curada.
— Minha perna há de descansar enquanto eu andar com isso. — Guban apontou para as muletas.
— Se precisam ir agora, pode montar em um dos cavalos — ofereceu Jondalar.
Guban sobressaltou-se.
— Não! Guban caminha com as próprias pernas. Com a ajuda desses paus de andar. Vamos dividir mais uma refeição com os parentes novos, e depois partimos.
Depois da refeição da manhã, os dois casais prepararam-se para seguir viagem. Quando terminaram os preparativos, Guban e Yorga simplesmente olharam para Jondalar e Ayla por um instante, evitando o lobo e os dois cavalos carregados. Apoiando-se então nas muletas, Guban começou a andar. Yorga foi atrás dele.
Não houve despedidas nem agradecimentos, coisas desconhecidas pela gente do Clã. Ao partir, uma pessoa não fazia comentários (era óbvio que estava indo embora), e atitudes de ajuda e cortesia eram esperadas com naturalidade, sobretudo quando se tratava de parentes. As obrigações convencionais não exigiam agradecimento, apenas reciprocidade, caso fosse necessário. Ayla sabia o quanto seria difícil para Guban retribuir a obrigação, se um dia fosse obrigado a isto. Na opinião de Guban, ele lhes devia mais do que poderia pagar. Ganhara deles mais do que a vida — a possibilidade de conservar sua posição social e seu prestígio, o que para ele valia mais do que simplesmente estar vivo, sobretudo se isso significasse viver aleijado.
— Espero que eles não tenham de andar muito. Percorrer qualquer distância com muletas não é fácil — disse Jondalar. — Espero que ele consiga chegar.
— Ele há de conseguir — respondeu Ayla —, por mais longe que seja. Mesmo sem as muletas, ele voltaria, ainda que tivesse de rastejar. Não se preocupe, Jondalar. Guban é um homem do Clã. Ele vai conseguir... ou morrerá tentando.
Jondalar ficou pensativo. Viu Ayla puxar Huiin pelo cabresto. Depois, ele pegou o de Racer. Apesar das dificuldades que Guban enfrentaria, ele teve de admitir que ficara satisfeito ao Guban recusar-se a voltar para o Clã a cavalo. Já houvera retardos excessivos.
Continuaram a cavalgar por campos abertos até chegarem a uma elevação. Dali contemplaram a região que haviam atravessado. Pinheiros altos, eretos como sentinelas, guardavam as margens do Rio da Grande Mãe por um longo trecho. Formavam como que uma serpenteante coluna de árvores que se afastava da legião de coníferas que avistavam lá embaixo, e que subia pelos flancos das montanhas ao sul.
Mais adiante, o terreno, continuamente ascendente, tornou-se plano por uma certa extensão, e um prolongamento do pinheiral, começando no rio, atravessou um pequeno vale. Desmontaram para conduzir os animais pelo arvoredo denso, e logo penetraram num espaço penumbroso, de um silêncio profundo e fantasmagórico. Troncos escuros e retos sustentavam uma ramagem baixa que bloqueava o sol e impedia o crescimento de ervas. Uma camada de agulhas, que se acumulavam havia séculos, abafava o som dos cascos dos cavalos.
Ayla notou um acúmulo de cogumelos na base de uma árvore e abaixou-se para examiná-los. Estavam congelados. Haviam endurecido depois de uma repentina geada no outono, uma geada que não mais cessara. Era como se a época da colheita tivesse sido capturada e mantida em suspensão, preservada na floresta ainda gelada. Lobo encostou o focinho na luva de Ayla. Ao lhe afagar a cabeça, ela teve a sensação fugaz de que o pequeno grupo de viajantes eram os únicos seres vivos do planeta.
Do outro lado do vale, a subida tornou-se íngreme e surgiram abetos prateados, cuja presença era acentuada pelo majestoso verde-escuro das bétulas. Os pinheiros tornaram-se mais mirrados à medida que aumentava a altitude, e por fim desapareceram, deixando que apenas os abetos e as bétulas ladeassem o curso médio do rio.
Enquanto viajavam, Jondalar não cessava de pensar na gente do Clã Que haviam conhecido. Nunca mais poderia deixar de pensar neles como Pessoas humanas. Tenho de convencer meu irmão. Talvez ele pudesse tentar um contato com o Clã... se ainda for chefe. Ao pararem para descansar e preparar um pouco de chá, Jondalar conversou a respeito com Ayla.
— Quando chegarmos, vou conversar com Joharran sobre a gente do Clã. Se outras pessoas comerciam com eles, podemos fazer o mesmo, e meu irmão deve ficar sabendo que clãs distantes estão se reunindo para debater os problemas que estão tendo conosco. Isso pode terminar em briga, e eu não gostaria de lutar com gente como Guban.
— Não creio que haja motivo para pressa. Eles demorarão muito tempo para tomar decisões. Para eles, mudar é difícil — disse Ayla.
— E com relação ao comércio? Você acha que eles o quererão?
— Creio que Guban estaria mais disposto do que a maioria. Está interessado em saber mais sobre nós, e se dispôs a experimentar as muletas, embora nem quisesse ouvir falar nos cavalos. E o fato de trazer uma mulher tão diferente, de um clã remoto, também mostra seu caráter. Ele correu um risco, ainda que ela seja bonita.
— Você a julga bonita?
— Você não?
— Entendo por que Guban achou — respondeu Jondalar.
— Em minha opinião, o que um homem considera belo depende de sua personalidade — disse Ayla.
— É verdade, e eu acho você linda.
— Ayla sorriu, convencendo-o ainda mais de sua beleza.
— É bom saber que você pensa assim.
— Você sabe que é verdade. Lembra-se de toda a atenção que lhe dispensaram durante a Cerimónia da Mãe? Por acaso eu já lhe disse como fiquei contente por você ter escolhido a mim? — perguntou ele, sorrindo ao se lembrar.
Ayla se lembrou de uma coisa que ele dissera a Guban.
— Bem, eu lhe pertenço, não é? — respondeu, e depois riu. — É bom você não saber bem a língua do Clã. Guban teria percebido que você não estava dizendo a verdade quando falou que eu era sua companheira.
— Não, ele não perceberia. É verdade que ainda não passamos pelo Matrimónio, mas em meu coração nós somos companheiros. Não foi mentira — disse Jondalar.
Ayla comoveu-se.
— Eu também sinto isso — disse baixinho e de olhos baixos, pois desejava demonstrar deferência pelas emoções que a dominavam. — Sinto isso desde o vale.
Jondalar sentiu em si tal arroubo de paixão que pensou que ia explodir. Estendeu os braços e a apertou contra si, sentindo naquele momento, com aquelas poucas palavras, que ele se submetera a uma Cerimónia de Casamento. Não importava que ele tivesse ou não uma cerimónia reconhecida por sua gente. Ele passaria pela cerimónia, para agradar a Ayla, mas não tinha necessidade dela. Tudo de que precisava era levá-la ao destino em segurança.
Uma súbita rajada de vento enregelou Jondalar, afugentando o calor que ele sentira e deixando-o com uma estranha ambivalência. Levantou-se e, afastando-se do calor da pequena fogueira, respirou fundo. Arquejou ao sentir o hausto de ar gelado e ressecante queimar-lhe os pulmões. Protegeu-se com o capuz de pele e apertou-o com força junto ao rosto, para que o calor de seu corpo aquecesse o ar que respirava. Embora a última coisa que ele desejava fosse um vento quente, sabia que aquele frio cortante era extremamente perigoso.
Ao norte da região onde se achavam, a grande geleira continental prolongara-se na direção sul, como se procurasse incluir as belas montanhas geladas em seu amplexo colossal. Eles se encontravam agora na mais frígida área do planeta, entre os reluzentes pináculos montanhosos e o infindável gelo setentrional. O inverno ia no auge. O próprio ar era ressecado pelas geleiras, que gulosamente usurpavam cada gota de umidade para expandir suas massas inchadas e esmagadoras, acumulando reservas para suportar o avanço do calor do verão.
A batalha entre o frio glacial e o calor fundente, pelo controle da Grande Mãe Terra, chegara quase a um impasse, mas a maré estava mudando, com o triunfo da geleira. Ela faria mais um avanço, alcançando seu mais distante ponto meridional, antes de ser rechaçada para as regiões polares. Mesmo ali, porém, estaria apenas em compasso de espera.
À proporção que prosseguiam na escalada, cada momento parecia mais frio que o anterior. A crescente altitude os levava inexoravelmente mais perto do encontro com o gelo. Era cada vez mais difícil os animais encontrarem alimento. A grama murcha e queimada, junto da corrente sólida, estava comprimida contra o solo gelado. A única neve que caía era formada de grânulos duros e secos, soprados pelo vento uivante.
Avançaram em silêncio, mas depois de terem acampado e estarem agasalhados dentro da tenda, conversaram.
— Os cabelos de Yorga são bonitos — disse Ayla, ajeitando-se em suas peles.
— São mesmo — concordou Jondalar, com sincera convicção.
— Gostaria que Iza, ou qualquer pessoa do Clã de Brun, os tivesse visto. Sempre achavam meus cabelos muito esquisitos, ainda que Iza sempre dissesse que eram o que eu tinha de melhor. Eram claros como os dela, mas agora estão mais escuros.
— Gosto muito da cor de seus cabelos, Ayla, e da maneira como eles caem em ondas quando você os usa soltos — disse Jondalar, tocando num cacho perto do rosto dela.
— Eu não imaginava que gente do Clã vivesse tão longe da península.
Jondalar percebia quê os pensamentos dela não estavam em cabelos ou em nada de pessoal. Ela estava pensando nas pessoas do Clã, tal como ele pensara anteriormente.
— Mas Guban parece ser diferente. É como se... Não sei, é difícil explicar. Sua fronte é mais pesada, o nariz é maior, o rosto mais... pontudo. Tudo nele parece mais... pronunciado, mais Clã de certa forma. Acho que ele é ainda mais musculoso do que era Brun. Sua pele era quente ao toque, mesmo quando ele estava deitado no chão congelado. E o coração dele batia mais rápido.
— Talvez eles tenham se acostumado ao frio. Laduni disse que muitos deles vivem ao norte daqui, onde quase nunca faz calor, mesmo no verão — disse Jondalar.
— Pode ser isto. Mas eles pensam do mesmo modo. O que fez você dizer a Guban que estava saldando uma dívida de parentesco com o Clã? Foi o melhor argumento que você poderia ter usado.
— Não sei direito. Mas foi verdade. Realmente devo a vida ao Clã. Se eles não a tivessem adotado, você não estaria viva, e por isso nem eu.
— E ao lhe dar aquele dente de urso, você não poderia ter-lhe oferecido presente melhor. Aprendeu depressa os costumes dele, Jondalar.
— Não são tão diferentes dos nossos. Os Zelandonii também são ciosos de suas obrigações. Se você vai para o outro mundo e deixa obrigações não saldadas, seu credor pode ter controle sobre seu espírito. Já ouvi dizer que alguns Servidores da Mãe tentam manter pessoas em dívida, para que possam controlar os espíritos delas, mas talvez isso não passe de balela. O fato de alguém dizer uma coisa não significa que seja verdade — disse o homem.
— Guban acredita que o espírito dele e o seu estão agora entrelaçados, nesta vida e na outra. Um pedaço de seu espírito estará sempre com ele, do mesmo modo que um pedaço do espírito dele sempre estará com você. Era por isso que ele se mostrava tão preocupado. Ele perdeu o pedaço dele quando você lhe salvou a vida, mas você lhe deu também um pedaço, de modo que não há nenhum buraco, nenhum vazio.
— Não fui apenas eu quem lhe salvou a vida. Você fez tanto quanto eu, ou mais.
— Mas eu sou mulher, e uma mulher do Clã não é a mesma coisa que um homem do Clã. Não é uma troca equitativa, porque um não pode fazer o que o outro faz. Não possui as memórias para isso.
— Mas você consertou a perna dele, para que pudesse voltar.
— Ele teria voltado. Não era isso que me preocupava. Eu temia que a perna dele não sarasse direito. Nesse caso ele não poderia caçar.
— É tão ruim não poder caçar? Ele não poderia fazer outra coisa? Como aqueles rapazes S'Armunai?
— O prestígio de um homem do Clã depende de sua capacidade de caçar, e prestígio significa para ele mais do que a própria vida. Guban tem responsabilidades. Possui duas mulheres em seu fogo. Sua primeira mulher tem duas filhas, e Yorga está grávida. Ele prometeu cuidar de todas elas.
— E se não pudesse? — perguntou Jondalar. — O que aconteceria a elas?
— Não passariam fome, pois o Clã as protegeria, mas a condição social delas... o modo como vivem, seus alimentos e suas roupas, o respeito de que gozam... depende do prestígio dele. E, além disso, ele perderia Yorga. Ela é jovem e bonita, outro homem teria prazer em ficar com ela. Mas se ela tiver o filho que Guban sempre desejou, ela o levaria consigo.
— O que acontecerá quando ele ficar velho demais para caçar?
— Um ancião pode abandonar a caça aos poucos, com dignidade. Irá viver com os filhos homens de sua companheira, ou com as filhas, se ainda viverem com o mesmo Clã, e não será um ónus para todo o Clã. Zoug aprimorou a pontaria com uma funda, para que pudesse continuar a contribuir, e até os conselhos de Dorv ainda eram prezados, embora ele já quase não enxergasse. Mas Guban é um homem na flor da idade e um chefe. Perder tudo isso ao mesmo tempo o deixaria acabrunhado.
Jondalar assentiu.
— Acho que compreendo. O fato de não poder caçar não me incomodaria tanto. Mas eu acharia horrível se acontecesse alguma coisa que me impedisse de trabalhar o sílex. — Fez uma pausa reflexiva e disse: — Você fez muito por ele, Ayla. Mesmo que as mulheres do Clã sejam diferentes, isso não conta alguma coisa? Ele não poderia ao menos ter agradecido?
— Guban expressou sua gratidão, Jondalar, mas foi uma coisa sutil, como tinha de ser.
— Deve ter sido sutil mesmo. Eu nada vi — respondeu Jondalar, com uma expressão de surpresa.
— Ele se comunicou diretamente a mim, não através de você, e prestou atenção às minhas opiniões. Permitiu que a mulher dele se dirigisse a você, o que representou reconhecer-me como igual a ela... Já que ele é um homem de elevada condição social, também ela é. E ele teve você em alta conta, como sabe. Fez-lhe um elogio.
— Foi.
— Achou seus instrumentos bem-feitos e admirou seu artesanato. Não fosse assim, não teria aceitado as muletas ou mesmo seu presente — explicou Ayla.
— O que ele poderia ter feito? Eu tinha aceitado o dente dele. Achei um presente esquisito, mas entendi o significado. Eu teria aceitado o presente dele, qualquer que fosse.
— Se ele o julgasse inapropriado, não o teria aceitado, mas aquele sinal foi mais do que um presente. Ele aceitou uma obrigação séria. Se ele não respeitasse você, não teria aceitado o pedaço de seu espírito em troca do dele. Guban valoriza demais o espírito dele. Preferiria ficar com um vazio, um buraco, a aceitar um pedaço de um espírito indigno.
— Tem razão. Essa gente do Clã tem muitas sutilezas, nuances de significado dentro de nuances de significado. Não sei se um dia eu seria capaz de distinguir tudo isso — disse Jondalar.
— Você acha os Outros tão diferentes? Eu ainda tenho dificuldade de entender todas as nuances dentro de nuances — disse Ayla —, mas sua gente é mais tolerante. Sua gente faz mais visitas, viaja mais do que os do Clã e está mais acostumada com estranhos. Tenho certeza de que cometi erros, mas acho que sua gente os relevou porque sou visitante e porque eles entendem que os costumes de meu povo devem ser diferentes.
— Ayla, minha gente é também a sua gente — respondeu Jondalar.
Ela o contemplou como se de início não o compreendesse completamente. Depois disse:
— Espero que sim, Jondalar. Espero que sim.
Os abetos e as bétulas raleavam e tornavam-se mais mirrados à medida que os viajantes subiam, mas o caminho deles ao longo do rio os fazia passar por afloramentos rochosos e por vales profundos que bloqueavam a visão das montanhas que os cercavam. Numa curva do rio, uma corrente despenhou-se no curso médio do Rio da Grande Mãe, que se precipitava, ele próprio, de terrenos mais elevados. O ar, capaz de enregelar a medula dos ossos, capturara e imobilizara as águas no ato da queda e os fortes ventos secos haviam esculpido nelas formas estranhas e grotescas. Caricaturas de criaturas vivas capturadas pelo gelo, na atitude de começarem um vôo rio abaixo, pareciam suportar uma espera impaciente, como se soubessem que a virada da estação, que lhes traria a liberdade, não estava distante.
O homem e a mulher conduziram os animais com cuidado sobre o gelo quebrado, deram a volta até a parte mais alta da cachoeira congelada e aí pararam, maravilhados, ao contemplarem diante de si a gigantesca geleira. Tinham tido vislumbres dela antes. Agora ela parecia quase ao alcance de suas mãos, mas o efeito provocava uma ilusão de ótica. O gelo majestoso, um platô quase plano, estava mais distante do que parecia.
A corrente congelada ao lado deles não se mexia, porém seus olhos acompanharam-lhe ó caminho tortuoso, com suas curvas e voltas, até desaparecer de vista. O rio ressurgia mais ao alto, juntamente com vários canais estreitos que, separados por intervalos regulares, escorriam da face da geleira como um punhado de fitas prateadas a enfeitar o imenso gorro glacial. Montanhas distantes e cristas mais próximas emolduravam o planalto com seus cumes ásperos e afiados, de um branco tão intenso que seus matizes de azul glacial pareciam apenas refletir o azul profundo do céu.
Os altos picos gémeos do sul, que durante algum tempo haviam acompanhado suas viagens recentes, já havia muito tinham ficado para trás. Um novo pináculo que surgira mais a oeste retrocedia para leste, e os picos da cordilheira meridional que lhes marcara o caminho ainda exibiam suas coroas coruscantes.
Ao norte havia serras duplas de rochas mais antigas, porém o maciço que formara a borda norte do vale fluvial ficara para trás na curva em que o rio voltava de seu ponto mais setentrional, antes do lugar onde tinham encontrado o casal do Clã. O rio estava mais próximo do novo planalto de calcário que passara agora a constituir a fronteira norte, enquanto subiam na direção sudoeste, em direção à nascente do rio.
A vegetação continuava a mudar à proporção que subiam. Os abertos cediam lugar a lariços e pinheiros nos solos ácidos que recobriam, aqui e ali, o escudo rochoso impermeável. Entretanto, não eram como as imponentes sentinelas das elevações mais baixas. Os viajantes tinham chegado a um trecho da taiga montanhosa, árvores enfezadas cujas copas ostentavam uma cobertura de neve e gelo, que pareciam cimentados aos galhos durante a maior parte do ano. Embora as ramagens fossem densas em certos locais, qualquer galho valente que se projetasse acima dos outros era rapidamente podado pelo vento e pelo frio, que reduziam todas as árvores a uma mesma altura.
Animaizinhos corriam pelas trilhas que eles próprios haviam marcado debaixo das árvores, mas a caça grossa era obrigada a abrir caminho a força bruta. Jondalar decidiu afastar-se do ribeirão sem nome que vinham acompanhando, um dos muitos que por fim formariam o começo de um grande rio, e seguir uma trilha de caça através da mata espessa de coníferas anãs.
Ao se aproximarem da linha de vegetação puderam ver que a região adiante era inteiramente desprovida de árvores. No entanto, a vida é tenaz. Ainda floresciam arbustos baixos e ervas, assim como extensos campos de capim, parcialmente soterrados sob um manto de neve.
Embora muito mais amplas, regiões semelhantes existiam nas elevações baixas dos continentes do norte. Espécies arbóreas temperadas conservavam-se em certos pontos protegidos e nas latitudes mais baixas, sendo que espécies mais resistentes apareciam nas regiões boreais mais ao norte. Ainda mais perto do pólo, eram em geral anãs, e mirradas, isso quando chegavam a existir. Devido às extensas geleiras, os equivalentes das campinas elevadas que cercavam o gelo perpétuo das montanhas eram as vastas estepes e tundras, onde sé sobreviviam, rapidamente, as plantas capazes de completar seus ciclos vitais.
Acima da linha de vegetação, muitas plantas robustas adaptavam-se à rudeza do ambiente. Conduzindo sua égua, Ayla observava as mudanças com interesse e desejava dispor de mais tempo para examinar as diferenças. A região onde ela crescera ficava muito mais ao sul, e devido à influência aquecedora do mar interior, a vegetação era basicamente do tipo temperado frio. As plantas das elevações maiores das regiões frigidíssimas a fascinavam.
Salgueiros majestosos, que ornamentavam quase todo rio, ribeirão ou riacho capaz de sustentar vestígios de umidade, cresciam como arbustos baixos, enquanto bétulas e pinheiros altos tornavam-se matos que rastejavam pelo chão. Os mirtilos e arandos espalhavam-se como grossos tapetes, de meio palmo de altura. Ayla imaginava se, tal como as bagas que cresciam perto da geleira do norte, eles davam frutos de tamanho natural, porém mais doces e mais silvestres. Embora os esqueletos nus de ramos fenecidos comprovassem a presença ali de muitas plantas, ela nem sempre sabia a que variedade pertenciam ou que aspecto assumiam plantas conhecidas. Qual seria a aparência daquelas campinas em estações mais quentes?
Por viajarem no auge do inverno, Ayla e Jondalar não viam a beleza primaveril e estival dos planaltos. Nem rosas silvestres nem rododendros coloriam a paisagem com explosões róseas; nem o açafrão nem a anémona, nem as gencianas azuis e os narcisos amarelos enfrentavam o vento da montanha; não havia prímulas ou violetas que brilhassem com policrômico esplendor até o primeiro calor da primavera. Não havia campânulas, rapúncios, tasneiras, margaridas, lírios, saxífragas, cravos, acônitos ou pequeninas edelvais que quebrassem a inóspita monotonia dos campos gelados de inverno.
No entanto, outra visão, esta assustadora, estendia-se diante deles Uma ofuscante fortaleza de gelo rebrilhante lhes fechava o caminho. Fulgia ao sol como diamante magnífico, de muitas facetas. Seu branco cristalino faiscava com luminosas sombras azuis que lhes ocultavam as falhas: as fendas, os túneis, as cavernas e as cavidades que pontilhavam a gema colossal.
Haviam alcançado a geleira.
Ao se aproximarem da crista da montanha primeva que ostentava a coroa plana de gelo, sequer estavam seguros de que a estreita corrente ao lado deles fosse ainda o mesmo rio que lhes fizera companhia durante tanto tempo. A diminuta trilha de gelo era indistinguível dos muitos regatos congelados que esperavam que a primavera libertasse seus caudais cascateantes, que se precipitariam pelas rochas cristalinas do planalto.
O Rio da Grande Mãe, que haviam acompanhado desde seu largo delta onde ele se atirava ao mar interior, a grande corrente que lhes guiara os passos durante uma parte tão longa da árdua Jornada, desaparecera. Até mesmo a sombra congelada de um riachinho selvagem em breve ficaria para trás. Aos viajantes faltaria a segurança consoladora do rio a lhes indicar a rota. Teriam de prosseguir a Jornada calculando às cegas, com somente o sol e as estrelas como guias, e também os marcos que Jondalar esperava recordar.
Acima da alta campina, a vegetação era mais intermitente. Apenas algas, liquens e musgos, típicos das rochas e seixos, logravam sobreviver, a duras penas, depois do matagal e tapete e de algumas outras espécies raras. Ayla começara a alimentar as montarias com parte das ervas que transportavam para eles. Sem os pêlos grossos, nem os cavalos nem o lobo sobreviveriam, mas a natureza os preparara para o frio. Carecendo de pêlos, os seres humanos haviam feito suas próprias adaptações. Usavam os pêlos dos animais que caçavam. Sem eles, também não sobreviveriam. E sem a proteção das peles e do fogo, seus antepassados não teriam jamais se aventurado naquelas paragens setentrionais.
O cabrito-montês e a camurça estavam à vontade nas campinas montanhosas, mesmo nas áreas mais penhascosas, e também frequentavam terrenos mais elevados, ainda que em geral não o fizessem quando o inverno ia tão adiantado. No entanto, cavalos eram uma anomalia em tais altitudes. Mesmo as encostas mais brandas do maciço em geral não os estimulavam a uma escalada tão ousada, porém Huiin e Racer sabiam onde pisavam.
De cabeça baixa, os animais subiram o aclive, na base do gelo, arrastando suprimentos e as pedras de queimar que significariam a diferença entre a vida e a morte para todos eles. Os seres humanos, que os conduziam a locais aonde ordinariamente eles não se disporiam a ir, estavam à procura de um terreno plano para armarem a tenda.
Estavam cansados de lutar contra o frio intenso e o vento cortante, de escalar o terreno íngreme. Era um faina exaustiva. Até mesmo Lobo se satisfazia em seguir adiante, em vez de correr por ali e explorar a área.
— Estou tão fatigada — disse Ayla, enquanto preparavam o acampamento, tiritando de frio. — Cansada do vento, cansada do frio. Acho que nunca mais vou me esquentar. Não imaginava que pudesse existir tanto frio.
Jondalar concordou, mas sabia que o frio que ainda teriam de enfrentar seria bem pior. Viu Ayla olhar de relance para a massa de gelo e depois desviar os olhos, como se não a quisesse ver, e suspeitou que ela se preocupava com mais alguma coisa além do frio.
— Vamos ter mesmo de atravessar todo aquele gelo? — perguntou ela, manifestando enfim seus temores. — Poderemos fazê-lo? Não sei nem mesmo como vamos chegar lá em cima.
— Não é fácil, mas é possível — respondeu Jondalar. — Thonolan e eu fizemos. Enquanto ainda está claro, eu gostaria de procurar o melhor meio de levarmos os cavalos até lá.
— Tenho a impressão de que estamos viajando eternamente. Quanto ainda temos de viajar, Jondalar?
— Ainda falta certo tempo até a Nona Caverna, mas não é demasiado longe, e assim que tivermos ultrapassado o gelo, a distância é pequena até a Caverna de Dalanar. Vamos parar ali durante algum tempo. Será uma oportunidade de você conhecer a ele, Jerika e todos... Mal posso esperar para mostrar a Dalanar e Joplaya algumas técnicas de trabalhar o sílex que aprendi com Wymez. Mas mesmo que façamos uma visita a eles, estaremos em casa antes do verão.
Ayla desalentou-se. Verão! Mas ainda estamos no inverno, pensou. Tivesse ela realmente compreendido o quão longa seria a Jornada, talvez não se dispusesse com tanta ânsia a acompanhar Jondalar até onde ele morava. Poderia ter insistido mais ao tentar persuadi-lo a ficar com os Mamutói.
— Vamos ali dar uma olhada melhor na geleira — propôs Jondalar — e planejar o melhor meio de chegarmos lá em cima. Depois teremos de nos certificar de que dispomos de tudo quanto será necessário para atravessar o gelo.
— Esta noite vamos ter de usar algumas pedras de queimar para fazer uma fogueira — disse Ayla. — Por aqui não há nada que possamos queimar. E vamos ter de derreter gelo para beber água... Mas gelo é o que não falta.
Exceto algumas cavidades sombreadas onde a acumulação era desprezível, não havia neve alguma na área onde tinham acampado, tal como na maior parte do caminho que tinham percorrido no aclive. Jondalar só estivera ali uma vez, mas toda a área lhe pareceu mais seca do que antes. E tinha razão. Estavam do lado chuvoso do planalto; as poucas neves que chegavam a cair na região em geral chegavam um pouco mais tarde depois da estação ter começado a virar. Ele e Thonolan tinham enfrentado uma tempestade de neve ao descerem.
Durante o inverno, o ar mais quente e úmido, empurrado pelos ventos oriundos do oceano ocidental, subia pelas encostas até alcançar a ampla área plana de gelo e de alta pressão. Exercendo o efeito de um gigantesco funil apontado para o maciço, o ar úmido se resfriava, condensava-se e se transformava em neve, que caia apenas sobre o gelo lá embaixo, alimentando as fauces famintas da exigente geleira.
O gelo que recobria todo o desgastado cume do maciço antigo espalhava a precipitação por toda a área, criando uma superfície quase plana, exceto na periferia. O ar resfriado, a que fora tirada toda a umidade, baixava e escorria pelas encostas, sem trazer neve alguma além das bordas do gelo.
Enquanto Ayla e Jondalar caminhavam em torno da base da geleira, em busca do melhor caminho para subir, observaram áreas que pareciam ter sido perturbadas recentemente, com terra e rochas estranguladas por tenazes do gelo que avançava. A geleira crescia.
Em muitas áreas, a rocha antiga do planalto achava-se exposta na base da geleira. O maciço, dobrado e soerguido pela pressões descomunais que haviam criado as montanhas no sul, fora no passado um bloco sólido de granito cristalino, incorporando um planalto semelhante a oeste. As forças que comprimiam a antiga montanha inabalável, formada pelas mais velhas rochas da Terra, tinham deixado sua marca na forma de uma fenda, uma falha que havia rachado o bloco ao meio.
Bem do outro lado, na direção do oeste, na parte oposta da geleira, a vertente ocidental do maciço era íngreme e a ela correspondia uma borda paralela, voltada para leste, do outro lado do vale. Ao longo do meio do largo leito da falha, protegido pelas elevadas encostas do maciço fendido, passava um rio. No entanto, Jondalar tencionava seguir para sudoeste, cortar a geleira em diagonal e descer por um caminho menos abrupto. Desejava atravessar o rio num ponto mais próximo à sua nascente, no alto das montanhas do sul, antes que ele contornasse o maciço congelado e cruzasse o vale fendido.
— De onde veio isso? — perguntou Ayla, exibindo o objeto em questão. Consistia em dois discos de madeira, ovais, montados numa moldura que os mantinha bem juntos, com correias de couro presas às bordas externas. Uma renda delgada corria no sentido longitudinal, no meio dos discos, de cima em baixo, quase dividindo-os ao meio.
— Eu o fiz antes de partirmos. Tenho um para você também. É para seus olhos. Às vezes o brilho da geleira é tão intenso que não se vê nada além da brancura... Chamam a isso cegueira das neves. Em geral essa cegueira desaparece depois de algum tempo, mas seus olhos podem ficar muito vermelhos e doloridos. Isso vai proteger seus olhos. Ponha-o — disse Jondalar. A seguir, ao vê-la sem saber direito como agir, ele acrescentou: — Vou mostrar-lhe como é. — Pôs na própria cabeça as palas esquisitas e atou as tiras de couro atrás da cabeça.
— Como vou enxergar? — perguntou Ayla. Mal conseguia divisar-lhe os olhos atrás das longas fendas horizontais, mas prendeu no rosto o par que ele lhe deu. — Pode-se ver quase tudo! Só que é preciso virar a cabeça para enxergar de lado. — Ayla mostrou-se surpresa, e depois sorriu: — Você está tão engraçado com esses olhões, como se fosse algum espírito estranho... Ou um besouro. Talvez o espírito de um besouro.
— Você também está engraçada — respondeu ele, retribuindo o sorriso —, mas esses olhos de besouro podem salvar-lhe a vida. A gente tem de saber onde pisa no gelo.
— São ótimos esses forros de lã para botas que a mãe de Madenia nos deu — comentou ela, ao colocá-los num lugar mais à mão, para que pudesse pegá-los com facilidade. — Mesmo quando molhados, mantêm os pés quentes.
— Vai ser bom termos o par extra quando estivermos no gelo — disse Jondalar.
— Eu costumava rechear as coberturas de pés com grama, quando vivia com o Clã.
— Grama?
— Isso mesmo. Ela mantém os pés quentes e seca depressa.
— É bom saber disso — respondeu Jondalar, pegando uma bota. — Use as botas com sola de couro de mamute. São quase impermeáveis e têm muita resistência. Às vezes as lâminas de gelo são afiadas. E como as botas são ásperas, não se escorrega, principalmente na subida. Vejamos, vamos precisar da enxó para quebrar gelo. — Pôs a ferramenta no alto de uma pilha. — E cordas. Além disso, cordéis fortes. Vamos precisar da tenda, de peles de dormir e, naturalmente, comida. Podemos deixar aqui alguns utensílios de cozinha? Não vamos precisar de muitos no gelo, e poderemos conseguir outros com os Lanzadonii.
— Vamos usar comida pronta. Não vou cozinhar, e resolvi usar o panelâo de pele, preso à armação que ganhamos de Solandia, para derreter gelo para água, colocando-o diretamente sobre o fogo. É mais depressa assim, pois não precisamos ferver a água. Apenas derretê-la — disse Ayla.
— Não se esqueça de levar uma lança.
— Por quê? Não existem animais no gelo, não é?
— Não, mas você pode usá-la para ter certeza de que o gelo à sua frente está sólido. E esta pele de mamute? — indagou Jondalar. — Nós a estamos carregando desde que partimos, mas precisamos mesmo dela? É pesada.
— É uma boa pele, agora flexível, e uma boa cobertura impermeável para o bote. Você disse que neva no gelo. — Para Ayla era doloroso deixarem a pele ali.
— Mas podemos usar a tenda como cobertura.
— É verdade... Mas... — Ayla comprimiu os lábios, pensativa. A seguir, notou outra coisa. — Onde você conseguiu esses archotes?
— Com Laduni. Vamos nos levantar antes da aurora e precisaremos de luz para arrumar as coisas. Quero chegar ao alto do platô antes que o sol esteja muito alto, enquanto tudo ainda estiver solidificado — respondeu Jondalar. — Mesmo com todo esse frio, o sol pode derreter o gelo um pouco e dificultar a ascensão ao topo.
Foram deitar-se cedo, porém Ayla não conseguia conciliar o sono. Aquela era a geleira de que Jondalar falara desde o começo.
— O quê... O que foi? — perguntou Ayla, acordando sobressaltada.
— Não foi nada. Hora de levantar — respondeu Jondalar, erguendo o archote. Meteu o cabo nos seixos para que ele ficasse de pé e estendeu a ela uma taça de chá fumegante. — Eu fiz fogo. Tome um pouco de chá.
Ayla sorriu, com expressão feliz. Preparara o chá matinal para ele quase todos os dias da Jornada e ficou satisfeita ao ver que, pelo menos uma vez, ele se levantara primeiro e preparara o chá para ela. Na verdade, em nenhum momento ele adormecera. Não conseguira. Estava nervoso demais — e preocupado.
Lobo observava os humanos, com os olhos a refletirem a luz. Percebendo alguma coisa de inusitada, brincava e saltava de um lado para outro. Também os cavalos estavam agitados, relinchando muito e soprando nuvens de vapor. Usando as pedras de queimar, Ayla derreteu gelo, deu-lhes de beber e alimentou-os com grãos. Deu a Lobo um pedaço da comida de viagem dos Losadunai e tirou outro para ela e Jondalar. À luz do archote, arrumaram a tenda, as peles de dormir e alguns utensílios. Deixaram alguma coisa para trás: um recipiente vazio de grãos, alguns instrumentos de pedra, mas no último momento Ayla jogou a pele de mamute sobre o carvão, dentro do bote.
Jondalar pegou o archote para iluminar o caminho. Puxando Racer pela corda, começou a caminhar, mas a luz incomodava. Ele via um pequeno círculo iluminado nas proximidades, mas quase nada adiante, mesmo erguendo o archote. Era quase plenilúnio, e ele começou a achar que descobria o caminho com mais facilidade sem o archote. Por fim, atirou-o ao chão e prosseguiu o caminho no escuro. Ayla o acompanhou, e daí a pouco os olhos de ambos se habituaram. Atrás deles, o archote ainda ardia no chão de seixos, enquanto se afastavam.
A luz de uma lua à qual faltava somente uma fatia mínima para estar inteiramente cheia, o monstruoso bastião de gelo fulgia com uma luz espectral e evanescente. O céu, negro, ganhava uma bruma de estrelas, o ar seco estalava de frio. Um éter amorfo exibia uma vida toda própria.
Por mais frio que estivesse, o ar enregelante tornava-se ainda mais gélido à medida que se aproximavam da muralha de gelo, porém o tremor de Ayla era causado pela emoção da expectativa e da ansiedade. Jondalar observava-lhe os olhos brilhantes, a boca ligeiramente aberta enquanto ela sorvia haustos de ar mais fundos e mais rápidos. As emoções de Ayla sempre o excitavam, e ele sentiu um calor bem conhecido... Mas balançou a cabeça. Não havia tempo agora. A geleira estava à espera.
Jondalar tirou uma longa corda da mochila.
— Temos de nos amarrar um ao outro — disse.
— Os cavalos também?
— Não. Um de nós pode aguentar o peso do outro, mas se os cavalos escorregarem, hão de nos arrastar juntos. — Por pior que fosse a ideia de perderem Racer ou Huiin, era com Ayla que ele mais se preocupava.
Ayla franziu a testa, mas concordou com um gesto.
Falavam em sussurros abafados, pois o gelo silencioso lhes amortecia as vozes. Não queriam perturbar-lhe o opressivo esplendor ou adverti-lo da iminente investida que fariam.
Jondalar prendeu uma das pontas da corda em torno da cintura e a outra ponta em volta de Ayla, enrolando o restante e metendo o braço no rolo para carregá-lo no ombro. Cada um deles pegou a corda do cabresto de um dos animais. Lobo teria de acompanhá-los por seus próprios meios.
Jondalar sentiu um momento de pânico antes de partir. O que imaginara? O que o levara a pensar que poderia atravessar a geleira com Ayla e os cavalos? Deviam ter optado pelo longo caminho em torno dela. Mesmo que mais demorado, seria mais seguro. Ao menos teriam certeza de chegar ao destino. A seguir, ele pisou no gelo.
Ao pé de uma geleira havia com frequência uma separação entre o gelo e a terra, que criava um espaço cavernoso sob o gelo, ou um ressalto saliente que se estendia sobre o cascalho acumulado de aglomerados glaciais. No ponto escolhido por Jondalar para começar, a saliência desmoronara, proporcionando uma ascensão gradual. Estava também misturada com cascalhos, o que permitia mais segurança. Começando na borda desmoronada, uma forte acumulação de seixos — uma morena — subia pela encosta gelada como uma trilha bem marcada e, a não ser perto do topo, não parecia íngreme demais para eles ou para os animais. Transpor a borda, no alto, poderia ser um problema, mas Jondalar não saberia dizer até chegar ali.
Com Jondalar abrindo a fila, começaram a subir a encosta. Racer relutou por um momento. Embora a houvessem reduzido, a carga que ele levava ainda lhe atrapalhava os passos, e a mudança no aclive, de moderado para íngreme, o desequilibrava. Um casco deslizou firmou-se e, com certa hesitação, o jovem animal começou a subir. A seguir foi a vez de Ayla, com Huiin arrastando o trenó. No entanto a égua puxara a carga durante tanto tempo, atravessando terrenos tão variados, que se acostumara a ela, e ao contrário da grande carga que Racer transportava no lombo, as varas muito espaçadas facilitavam o equilíbrio.
Lobo fechava a coluna. Para ele era mais fácil. Seu corpo ficava mais perto do chão, e as patas calosas não o deixavam deslizar. No entanto, ele percebia o perigo para os companheiros e os acompanhava como que fechando a retaguarda, vigilante, em busca de perigos invisíveis.
Ao luar claro, os reflexos dos afloramentos serrilhados de gelo tremeluziam, e as superfícies espelhadas das áreas planas tinham algo de líquido, como imóveis lagoas negras. Não era difícil ver a morena que escorria, como um rio de areia e seixos em câmara lenta, porém a iluminação noturna obscurecia o tamanho e a perspectiva dos objetos e escondia os pormenores.
Jondalar estabeleceu um ritmo lento e cauteloso, fazendo com que seu cavalo contornasse as obstruções. Ayla mais se preocupava em encontrar o melhor caminho para a égua que ela conduzia do que com sua própria segurança. À medida que a encosta se tornava mais íngreme, os animais, desequilibrados pelo aclive e pela carga, esforçavam-se por firmar os cascos. Em dado momento, quando um casco deslizou, enquanto Jondalar tentava fazer Racer transpor um trecho mais alcantilado perto do topo, o cavalo rinchou e tentou empinar.
— Vamos, Racer — animou-o Jondalar, esticando a corda, como se pudesse puxá-lo encosta acima a força. — Já estamos chegando, você vai conseguir!
O animal fez um esforço, mas seus cascos deslizaram no gelo traiçoeiro, sob uma fina camada de neve, e Jondalar sentiu-se arrastado para trás pela corda do cabresto. Aliviou um pouco a tensão, e por fim soltou de todo a corda. Havia na carga coisas que ele de modo algum desejaria perder, tal como lhe doeria perder o cavalo, mas temia que o animal não conseguisse completar a subida.
Entretanto, quando os cascos encontraram cascalho, Racer parou de deslizar e, sem ser puxado, ergueu a cabeça e saltou para a frente. De repente o garanhão estava além da borda, ultrapassando com cuidado uma estreita fenda, a partir da qual o caminho se tornava plano. Enquanto afagava o cavalo e o elogiava, Jondalar notou que a cor do céu passara de negro para azul-escuro, com uma tonalidade um pouco mais clara no horizonte oriental.
Nesse momento, sentiu um puxão na corda. Ayla devia ter escorregado, pensou, e deu-lhe um pouco mais de corda. Devia ter chegado o trecho íngreme. De repente a corda começou a correr por sua mão, até ele sentir um puxão forte na cintura. Ela devia estar segurando na corda do cabresto de Huiin, pensou ele. Ela precisava soltá-la.
Jondalar agarrou a corda com as duas mãos e gritou:
— Solte, Ayla! A égua vai arrastar você com ela!
No entanto, Ayla não o ouviu; ou se ouviu, não compreendeu. Huiin começara a subir na inclinação, mas seus cascos não se firmavam e ela não parava de deslizar para trás. Ayla estava agarrada à corda do cabresto, como se fosse capaz de impedir que a égua caísse, mas também ela estava deslizando para baixo. Jondalar sentiu que ele próprio era perigosamente arrastado para perto da borda. Procurando alguma coisa em que se agarrar, segurou na corda do cabresto de Racer. O garanhão relinchou.
Entretanto, foi o trenó que deteve a descida de Huiin. Um dos varais prendeu-se numa fenda e foi detido por tempo suficiente para que a égua se equilibrasse. Seus cascos enterraram-se num pedaço de neve que lhe deu firmeza, e ela achou cascalho. Ao sentir que o puxão cessava, Jondalar soltou o cabresto de Racer. Apoiando o pé na rachadura do gelo, Jondalar puxou a corda em torno da cintura.
— Dê-me um pouco de folga — gritou Ayla, enquanto se firmava na corda do cabresto e Huiin forçava o corpo para o alto.
De repente, milagrosamente, ele viu Ayla surgir na borda e acabou de puxá-la. A seguir apareceu Huiin. Com um salto para a frente, ela transpôs a fenda e suas patas se firmaram no gelo plano. Os varais do trenó ainda se projetavam no ar e o bote repousava na borda que tinham vencido. Uma risca cor-de-rosa apareceu no céu da manhã, definindo a fímbria da terra, e Jondalar soltou um suspiro.
Lobo pulou pela borda de repente e correu para Ayla. Começou a saltar sobre ela, mas, sentindo-se ainda trémula, a moça lhe fez sinal para que se aquietasse. Lobo recuou, olhou para Jondalar e depois para os cavalos. Erguendo a cabeça e iniciando com alguns ganidos preliminares, entoou em alto e bom som sua canção lupina.
Conquanto tivessem transposto uma elevação íngreme e o gelo agora fosse plano, ainda não haviam alcançado a superfície mais alta da geleira. Havia fendas perto da borda, assim como blocos quebrados de gelo dilatado. Jondalar atravessou um outeiro nevado que cobria um banco além da borda e, finalmente, pisou uma superfície plana do platô gelado. Racer o seguiu, fazendo com que fragmentos de gelo rolassem e saltassem pela borda. O homem manteve a corda bem tesa em volta da cintura, enquanto Ayla o acompanhava, imitando-lhe os passos. Lobo corria na frente, enquanto Huiin fechava a fila.
O céu se colorira inteiro com uma fugaz e passageira tonalidade de azul, enquanto raios coruscantes radiavam, ainda ocultos, sobre o disco da Terra. Ayla lançou os olhos para a encosta íngreme e ficou a imaginar como tinham conseguido subir até ali. Do ponto onde estavam, a ascensão parecia impossível. Depois ela se virou para prosseguir e susteve a aspiração.
O sol nascente assomara sobre o horizonte com uma explosão cegante que iluminava uma cena inacreditável. A oeste, uma planície inteiramente nua, de um branco deslumbrante, estendia-se diante deles. No alto, o céu tinha um matiz de azul que ela jamais vira no passado. Absorvera o reflexo do vermelho, assim como a tonalidade verde-azulada da geleira, mas ainda continuava a ser azul. Mas um azul de um brilho tão assombroso que parecia fulgurar com sua própria luz numa cor indescritível. No horizonte distante, a sudoeste, ele adquiria uma tonalidade nevoenta negro-azulada.
Enquanto o sol subia a leste, a imagem esmaecida de um círculo quase perfeito que tanto reluzira no céu negro ao despertarem antes do alvorecer descambava no extremo oposto do céu, a oeste — uma vaga memória de sua passada glória. No entanto, nada interrompia o esplendor extraterreno do vasto deserto de águas congeladas. Nenhuma árvore, rocha, movimento algum de qualquer natureza prejudicava a majestade da superfície aparentemente ininterrupta.
Ayla soltou a respiração com um arquejo. Não se dera conta de que parara de respirar.
— Jondalar! É esplêndido! Por que não me disse? Eu teria percorrido o dobro da distância só para ver isto — disse, estupefata.
— É espetacular — respondeu ele, sorrindo ante a reação dela, mas também pasmo. — Entretanto, eu não podia dizer-lhe. Nunca vi um nascer do sol como este antes. Nem sempre é assim. As nevascas aqui também podem ser inacreditáveis. Vamos embora enquanto ainda podemos ver o caminho. O gelo não é tão sólido como parece, e com esse céu limpo e o sol brilhante, não é impossível que se abra uma fenda ou uma saliência desmorone.
Partiram pela planície de gelo, precedidos por suas longas sombras. Antes que o sol houvesse subido muito, já transpiravam sob as roupas pesadas. Ayla começou a tirar a parka de pele externa.
— Tire-a, se quiser — avisou Jondalar —, mas mantenha a cabeça coberta. Uma pessoa pode se queimar seriamente aqui, e não só por causa do sol. Quando o sol incide sobre o gelo, ele também pode queimar.
Pequenos cúmulos começaram a formar-se durante a manhã. Ao meio-dia, haviam-se encastelado em nuvens imensas. O vento pôs-se a soprar de rijo à tarde. Quando os viajantes decidiram parar para derreter gelo e neve, Ayla ficou satisfeita por poder vestir de novo a pele externa. O sol se escondera por trás de cúmulos-nimbos, carregados de umidade, que espargiam uma leve poeira de neve sobre os viajantes. A geleira crescia.
A geleira de planalto que atravessavam fora gerada nos picos escarpados que ficavam bem mais ao sul. O ar úmido, que subia pelas barreiras elevadas, condensava-se em gotículas nevoentas, mas era a temperatura que decidia se haveriam de cair como chuva fria ou, percorrendo uma distância bem menor, em forma de neve. Não era o congelamento perpétuo que produzia as geleiras; em vez disso, um acúmulo de neve de um ano para o outro dava origem a geleiras que, com o tempo, se transformavam em lençóis de gelo que por fim cobriam continentes inteiros. Apesar de alguns dias quentes, invernos frigidíssimos em combinação com verões frescos de intensa nebulosidade que não chegam a derreter o que sobrou de neve e de gelo ao fim de um inverno — uma temperatura média anual mais baixa — modificam a situação geral no sentido de uma época glacial.
Logo abaixo das agulhas altíssimas das montanhas do sul, demasiado íngremes para que nelas a neve se acumulasse, formavam-se pequenas bacias, circos ou anfiteatros naturais que se aninhavam de encontro aos picos; e eram esses círculos os berços das geleiras. À medida que os leves flocos de neve, secos e rendilhados, depositavam-se nas depressões do alto das montanhas — depressões criadas por minúsculas quantidades de água que congelava em fendas e depois se dilatava, soltando toneladas de rochas — a neve se acumulava. Por fim o peso da massa de água congelada quebrava os delicados flocos em pedaços que se aglutinavam em pequenas bolas de gelo.
Essa neve granulosa não se formava na superfície, mas no fundo do circo, e quando mais neve caía, as esferas compactas mais pesadas eram empurradas para cima e para fora da borda do berço. À proporção que uma quantidade maior delas se acumulava, as bolas de gelo quase circulares eram comprimidas entre si com tamanha força, pelo peso que sustentavam, que uma fração da energia era liberada como calor. Apenas por um instante, fundiam-se nos muitos pontos de contato e imediatamente recongelavam, soldando-se entre si. Ao se aprofundarem as camadas de gelo, a maior pressão redispunha a estrutura das moléculas em gelo cristalino, sólido, mas com uma diferença sutil: o gelo fluía.
O gelo glaciário, formado sob tremenda pressão, era mais denso. No entanto, nas altitudes inferiores a grande massa de gelo sólido escoava como qualquer líquido. Bifurcando-se em torno de obstruções como os cumes alcandorados de montanhas, e voltando-se a reunir-se do outro lado — muitas vezes levando consigo uma grande parte da rocha e deixando atrás ilhas pontiagudas —, uma geleira acompanhava os contornos do terreno, aplainando-o e remoldando-o em seu progresso.
O rio de gelo sólido tinha suas correntes e remoinhos, remansos e corredeiras, mas se movia num outro ritmo, de uma lentidão que nada ficava a dever a seu gigantismo. Podia levar anos para percorrer um palmo. Todavia, o tempo não importava. Aquele rio sólido tinha todo o tempo do mundo. Desde que a temperatura média se mantivesse abaixo da linha crítica, a geleira se alimentava e crescia.
Os circos montanhosos não eram seus únicos berços. As geleiras formavam-se também em terreno plano, e tão logo cobriam uma área de tamanho suficiente, o efeito resfriante espalhava a precipitação da chaminé de anticiclone, situada no meio, para as margens extremas. A espessura do gelo mantinha-se quase a mesma em toda a extensão.
As geleiras nunca estavam inteiramente secas. Alguma água sempre vazava da fusão provocada pela pressão. Enchia pequenas cavidades e fendas, e quando esfriava e recongelava, dilatava-se em todas as direções O movimento de uma geleira era centrífugo e sua velocidade dependia da inclinação da superfície, não da inclinação do terreno subjacente. Se a inclinação superficial era grande, a água contida no interior da geleira escoava encosta abaixo mais depressa através das frestas no gelo e espalhava o gelo à medida que se recongelava. As geleiras cresciam mais depressa quando jovens ou quando próximas a grandes oceanos ou mares ou em montanhas, onde os pináculos asseguravam fortes nevascas. Seu crescimento diminuía depois que se espalhavam; a vasta superfície refletia a luz, e o ar sobre seu centro se fazia mais frio e mais seco devido à menor quantidade de neve.
As geleiras das montanhas ao sul haviam-se expandido a partir dos picos elevados, enchendo os vales até a altura de altos desfiladeiros e transbordando além deles. Durante um anterior período de avanço, as geleiras das montanhas preencheram a funda depressão de uma linha de falha que separava os contrafortes das montanhas e o maciço antigo. Cobriu o planalto, depois espalhou-se até atingir as velhas montanhas erodidas na franja setentrional. O gelo recuou durante o aquecimento temporário — que já chegava ao fim — e derreteu no vale de falha da planície, criando um portentoso rio e um longo lago, represado por uma morena, mas a geleira planaltina que estavam atravessando continuou congelada.
Como não podiam acender uma fogueira diretamente sobre o gelo, haviam planejado usar o bote como base para as pedras que tinham levado. Antes, porém, tinham de retirar todas as pedras de queimar de dentro do bote redondo. No momento em que Ayla levantou a pesada pele de mamute, ocorreu-lhe que poderiam usá-la como base para o fogo. O couro ficou um pouco queimado, mas não tinha importância. Ayla ficou satisfeita por tê-lo trazido. Todos, incluindo os cavalos, beberam e comeram.
Enquanto estavam ali, o sol desapareceu inteiramente por trás de nuvens densas, e antes que retomassem a caminhada, uma neve espessa começou a cair com força. O vento do norte uivava sobre a imensidão gelada, nada sobre o vasto lençol que cobria o maciço lhes obstava o avanço. Uma nevasca de grandes proporções se formava.
Ao adensar-se a nevasca, a força do vento noroeste aumentou subitamente. Atingiu os viajantes com uma rajada de ar frio que os empurrou para a frente como se não passassem de um fragmento insignificante da cortina horizontal de gelo que os cercava.
— Acho melhor esperarmos isso passar — gritou Jondalar, para ser ouvido em meio à tormenta.
Lutaram para armar a tenda, enquanto as rajadas geladas insistiam em virar o pequeno abrigo, arrancar as estacas fincadas no gelo e agitar a cobertura de pele. O vento furioso ameaçava carregar a pele das mãos dos dois seres viventes, que tentavam avançar pelo gelo, ousando apresentar um obstáculo à nevasca que sacudia a superfície plana.
— Como vamos prender a tenda? — perguntou Ayla. — É sempre ruim assim?
— Não me lembro de um vento forte corno este, mas não estou surpreso.
Os cavalos estavam imóveis, de cabeça baixa, enfrentando estoicamente a tempestade. Lobo achava-se bem perto deles, cavando um buraco para si.
— Talvez pudéssemos fazer um dos cavalos segurar a ponta solta até firmarmos as estacas — sugeriu Ayla.
Com uma coisa levando a outra, chegaram a uma solução improvisada, usando os cavalos tanto como prendedores e colunas. Jogaram a pele sobre os dorsos dos dois animais, enquanto Ayla convencia Huiin a pisar numa das pontas, passava por baixo, esperando que a égua não mudasse muito de posição, e erguia a pele. Ayla e Jondalar lutavam juntos, com o lobo debaixo dos joelhos dobrados deles, quase debaixo dos ventres dos cavalos, sentado em cima da outra ponta da tenda.
Já escurecera quando a tormenta amainou, e tiveram de passar a noite no mesmo lugar, mas antes ajeitaram a tenda. De manhã, Ayla ficou intrigada com algumas manchas escuras perto da tenda, onde Huiin se colocara. Ficou a imaginar do que se tratava, enquanto se apressavam a desmanchar o acampamento.
Avançaram mais no segundo dia, apesar de serem obrigados a transpor trechos de gelo quebrado e de percorrerem uma área onde havia várias fendas, todas orientadas na mesma direção. De tarde sobreveio nova tormenta, embora o vento não fosse tão forte como na véspera e terminasse mais depressa, permitindo que eles continuassem a Jornada até o cair da noite.
Ayla notou, quando estavam para interromper a caminhada, que Huiin mancava. Sentiu o coração bater mais rápido e uma onda de medo quando a examinou mais de perto e viu manchas vermelhas no gelo. Ergueu a pata da égua e examinou-lhe o casco. Estava machucado, em carne viva, e sangrava.
— Jondalar, veja isto. Os pés dela estão cortados. Qual terá sido a causa disso?
O homem olhou e depois foi examinar os cascos de Racer, enquanto Ayla inspecionava as outras patas de Huiin. Encontrou o mesmo tipo de lesão e franziu a testa.
— Deve ser o gelo — disse ele. — Verifique as patas de Lobo também.
As patas do lobo estavam feridas, porém menos que os cascos dos cavalos.
— Que vamos fazer? — perguntou Ayla. — Estão aleijados, ou estarão em breve.
— Nunca me ocorreu que o gelo pudesse ser afiado a ponto de lhes cortar os cascos — respondeu Jondalar, muito preocupado. — Procurei pensar em tudo, mas não me ocorreu isso. — Suas palavras traíam remorso.
— Os cascos são duros, mas não são de pedra. Parecem mais unhas. Podem ferir-se. Jondalar, os cavalos não podem continuar. Dentro de mais um dia estarão de tal maneira feridos que não poderão andar — disse Ayla. — Vamos ter de ajudá-los.
— O que podemos fazer?
— Bem, ainda tenho minha bolsa de remédios. Posso tratar dos ferimentos.
— Mas não podemos esperar aqui até sararem. E assim que começarem a andar de novo, voltarão a ferir-se. — O homem calou-se e fechou os olhos. Não queria nem pensar no que estava pensando, muito menos dizê-lo em voz alta, mas só conseguia imaginar uma saída para o dilema. — Ayla, vamos ter de abandoná-los — disse, com a voz mais calma que conseguiu articular.
— Abandoná-los? O que quer dizer com "abandoná-los"? Não podemos largar Huiin ou Racer aqui. Onde encontrariam água? E comida? Não há nada que possam comer no gelo, nem gravetos. Iriam morrer de fome ou de frio. Não podemos fazer isso! — exclamou Ayla, transtornada. — Não podemos abandoná-los assim! Não podemos, Jondalar!
— Tem razão, não podemos abandoná-los assim. Não seria justo. Eles sofreriam demais... No entanto... Temos lanças e o arremessador de lanças...
— Não! Não! — gritou Ayla. — Não permitirei!
— Seria melhor do que deixá-los aqui para morrerem lentamente, sofrerem. Cavalos já foram... caçados. É o que a maioria das pessoas faz.
— Mas esses animais não são como os outros. Huiin e Racer são amigos. Faz muito tempo que estamos juntos. Eles nos ajudaram. Huiin salvou minha vida. Não posso abandoná-la.
— Sofro com isso tanto quanto você — disse Jondalar. — Mas o que podemos fazer? — A ideia de matar o garanhão, depois de percorrerem juntos uma distância tão grande, era quase insuportável, e ele conhecia os sentimentos de Ayla em relação a Huiin.
— Vamos voltar. Temos de voltar. Você disse que havia outro caminho!
— Já viajamos dois dias neste gelo, e os cavalos estão quase aleijados. Podemos tentar retornar, Ayla, mas não acre dito que eles consigam. — Jondalar não tinha certeza de que mesmo Lobo suportaria o regresso. Encheu-se de culpas e remorso. — Sinto muito, Ayla. Foi culpa minha. Foi estupidez minha imaginar que poderíamos atravessar esta geleira com os cavalos. Devíamos ter escolhido o caminho de contorno, mas acho que agora é tarde demais.
Ayla viu lágrimas em seus olhos. Pouquíssimas vezes o vira chorar. Embora não fosse raro que os homens dos Outros chorassem, era do feitio de Jondalar esconder essas emoções. De certa forma, aquilo tornou o amor dela mais intenso. Ele se dera, quase completamente, somente a ela, e Ayla o amava, mas não podia renunciar a Huiin. A égua era sua amiga, a única com que ela contava no vale até Jondalar aparecer.
— Temos de fazer alguma coisa, Jondalar! — soluçou.
— Mas, o quê? — Nunca se sentira tão frustrado diante da impossibilidade de achar uma solução.
— Bem, no momento — disse Ayla, enxugando as lágrimas que lhe congelavam o rosto —, vou tratar dos ferimentos deles. Ao menos isso eu posso fazer. — Abriu a bolsa de remédios. — Vamos ter de fazer uma fogueira, esquentar água. Não será apenas derreter gelo.
Ayla tirou a pele de mamute de cima das pedras de queimar e estendeu-a no gelo. Notou algumas marcas de fogo na pele macia, mas o fogo não furara o couro. Dispôs as pedras do rio num lugar diferente, perto do meio, como base sobre a qual acender o, fogo. Pelo menos não tinham mais que se preocupar em conservar combustível. Podiam deixar para trás a maior parte.
Nada falava, pois as palavras não lhe saíam da garganta, e Jondalar também não achava o que dizer. Todos os planos e preparativos feitos para a travessia da geleira... frustrados por uma coisa que nem mesmo fora cogitada! Ayla olhou para a pequena fogueira. Lobo arrastou-se até ela e ganiu, não de dor, mas por perceber que alguma coisa ia mal. Ayla examinou-lhe as patas de novo. Não estavam tão mal. Ele podia controlar melhor onde punha os pés, e cuidadosamente lambia neve e gelo quando paravam. Mas Ayla não queria pensar na possibilidade de perder também a ele.
Fazia algum tempo que ela não pensava conscientemente em Dure, embora ele estivesse sempre presente em sua memória, como uma dor fria que ela jamais haveria de esquecer. Agora, porém, pôs-se a pensar nele. Teria começado já a caçar com o Clã? Teria aprendido a usar uma funda? Uba seria uma boa mãe para ele, cuidaria do menino, faria sua comida, prepararia para ele roupas quentes de inverno. Ayla estremeceu, pensando no frio, e lembrou-se então das primeiras roupas de inverno que Iza fizera para ela. Como tinha gostado do gorro de pele de coelho, que tinha o pêlo voltado para dentro! Também as coberturas de pés para o inverno tinham o pêlo virado para dentro. Lembrou-se da vez que usara um par de coberturas novas, artefatos simples que ela ainda sabia fazer. Eram formadas somente por um pedaço de couro, arregaçado e preso no tornozelo. Depois de certo tempo, ajustavam-se à forma dos pés, embora de início incomodassem um pouco. Mas até isso era engraçado, esperar que as coberturas novas se ajustassem direito.
Ayla se deteve a olhar para o fogo, vendo a água começar a borbulhar. Alguma coisa a afligia. Era uma coisa importante, tinha certeza. Alguma coisa ligada a...
De repente, ela prendeu a respiração.
— Jondalar! Ah, Jondalar!
Ela lhe pareceu nervosa.
— O que há de errado, Ayla?
— De errado, nada. Vai dar certo — gritou ela. — Acabei de me lembrar de uma coisa!
Jondalar achou o comportamento dela estranho.
— Não estou entendendo — disse. Por acaso a ideia de perder os cavalos fora demasiado penosa para ela? Ayla puxou a pesada pele de mamute, atirando uma brasa diretamente em cima do couro.
— Dê-me uma faca, Jondalar. Sua faca mais afiada.
— Minha faca?
— Isso mesmo, sua faca. Vou fazer botas para os cavalos!
— Como vai fazer isso?
— Vou fazer botas para os cavalos, e também para Lobo. Com esse couro de mamute!
— Como vai fazer isso?
— Vou cortar círculos de pele. Depois, corto buracos em torno das bordas, passo um cordel por eles e os amarro em volta da perna dos animais. Se o couro de mamute impede que o gelo corte nossos pés, vai proteger também os cascos deles — explicou Ayla.
Jondalar pensou por um momento, visualizando o que ela descrevera. Depois sorriu.
— Ayla! Acho que vai dar certo. Pela Grande Mãe, acho que vai dar certo! Que ideia maravilhosa! Como foi que pensou nisso?
— Era assim que Iza fazia botas para mim. É assim que a gente do Clã faz coberturas para os pés. E também para as mãos. Estou tentando me lembrar se eram desse tipo as que Guban e Yorga usavam. Pode não acreditar, mas depois de algum tempo elas se ajustam à forma de seus pés.
— E haverá couro suficiente?
— Creio que sim. Enquanto a fogueira está acesa, vou terminar de preparar esse remédio para os ferimentos, e talvez um pouco de chá para nós. Faz dois dias que não tomamos chá e é provável que não tenhamos outra oportunidade, até termos passado por todo esse gelo. Vamos ter de conservar combustível, mas acho que uma taça de chá viria em boa hora.
— Acho que tem razão! — concordou Jondalar, sorrindo outra vez.
Ayla examinou com cuidado cada um dos cascos dos cavalos, limpou as partes sujas, aplicou o medicamento e depois prendeu as botas de couro de mamute neles. No começo, os animais tentaram tirar as estranhas coberturas, mas estavam bem presas e logo se habituaram a elas. Ayla pegou o conjunto que preparara para Lobo e prendeu as botas nele. O animal tentou mastigadas, procurando livrar-se delas, mas daí a pouco também ele desistiu.
Na manhã seguinte, diminuíram um pouco a carga sobre cada um dos animais. Haviam queimado um pouco do carvão, e o pesado couro de mamute estava agora nas patas deles. Ayla descarregou os cavalos quando pararam para descansar, e passou a transportar um pouco mais ela própria. No entanto, não podia nem pensar em transportar a carga que os cavalos robustos eram capazes de levar. Apesar da distância percorrida, os cascos e patas pareciam muito melhor naquela noite. As patas de Lobo pareciam perfeitamente normais, o que representou um enorme alívio para Ayla e Jondalar. As botas tinham ainda uma vantagem inesperada: funcionavam como uma espécie de sapatos de neve quando havia neve funda, e com isso os animais, grandes e pesados, não afundavam tanto.
Com algumas variações, manteve-se o modelo do primeiro dia. Progrediam mais na parte da manhã; de tarde havia sempre neve e vento, com maior ou menor intensidade. Às vezes conseguiam viajar um pouco mais depois da tormenta, às vezes tinham de ficar onde tinham parado e ali passar a noite. De certa feita, tiveram de esperar no acampamento dois dias, mas nenhuma das nevascas foi tão feroz quanto a que tinham enfrentado no primeiro dia.
A superfície da geleira não era tão regular e lisa como parecera naquela primeira alvorada estonteante. Os viajantes encontravam, por vezes, enormes bancos de neve, causados por tempestades localizadas. Aqui e ali, onde ventos impetuosos limpavam a superfície, tinham de superar saliências rugosas ou caíam em valas pouco profundas, prendendo os pés em buracos e quase torcendo os tornozelos. Rajadas repentinas sopravam sem aviso prévio, os ventos eram quase incessantes e a todo momento tinham de preocupar-se com fendas invisíveis, recobertas por frágeis camadas de gelo ou bancos de neve.
Contornavam rachaduras abertas, sobretudo perto do centro, onde o ar seco continha tão pouca umidade que as neves não eram pesadas o suficiente para preencher as cavidades. E jamais cessava o frio — feroz, cortante, enregelante. O hálito congelava-se no pêlo de seus capuzes, em torno da boca; uma gota d'água que caísse de uma taça congelava-se antes de chegar ao chão. Seus rostos, expostos aos ventos e ao sol crestante, estavam rachados, pelados, enegrecidos. A queimadura pelo gelo era urna ameaça constante.
A exaustão começava a cobrar seu tributo. Suas reações já se tornavam mais lentas, tal como o raciocínio. Uma tremenda tempestade vespertina continuara noite adentro. De manhã, Jondalar estava ansioso por prosseguir viagem. Haviam perdido muito mais tempo do que ele planejara. No frio inimaginável, a água levava mais tempo para esquentar, e o suprimento de pedras de queimar estava diminuindo.
Ayla procurava alguma coisa na mochila; depois começou a vasculhar em torno da pele de dormir. Não conseguia lembrar-se havia quantos dias estavam na geleira, mas achava que já eram excessivos, pensava enquanto procurava.
— Depressa, Ayla! Por que está demorando tanto? — perguntou Jondalar, impaciente.
— Não acho meus protetores de olhos.
— Eu lhe avisei que não os perdesse. Quer ficar cega? — explodiu ele.
— Não, não quero ficar cega. Por que acha que estou à procura deles? — replicou a moça.
Jondalar arrancou-lhe a pele das mãos e sacudiu-a vigorosamente. Os protetores caíram ao chão.
— Da próxima vez, preste atenção neles — disse Jondalar. — Agora, vamos logo.
Terminaram rapidamente de arrumar as coisas, mas Ayla estava amuada e se recusava a conversar. Ele se aproximou e conferiu os aprestos dela, como em geral fazia. Ayla pegou a corda de Huiin e partiu na frente, saindo antes que Jondalar pudesse examinar os atacadores da mochila.
— Pensa que não sei fazer isso? Você disse que queria ir logo. Por que está perdendo tempo? — gritou ela, por cima do ombro.
Ele só tentara ser cuidadoso, pensou Jondalar com raiva. Ela nem sabe qual é o caminho. Vamos esperar até começar a rodar em círculos. Aí ela virá me pedir que a ajude, pensou ele, seguindo-a.
Ayla estava com frio e exausta da marcha sem fim. Avançava resoluta, sem atentar onde pisava. Se ele quer tanto correr, então vamos correr, pensou. Se algum dia sairmos desse gelo, nunca mais quero voltar a ver uma geleira.
Lobo corria, nervoso, entre Ayla e Jondalar. Não estava gostando da súbita mudança de posição. O homem alto sempre ia na frente. O lobo saltou à frente da mulher, que caminhava às cegas, desatenta a tudo menos ao frio infernal e a seu amor-próprio ferido. De repente, parou bem diante dela, bloqueando-lhe o caminho.
Puxando a égua, Ayla contornou-o e continuou. Lobo correu de novo e mais uma vez postou-se à sua frente. Ela não lhe deu atenção. O animal lambeu-lhe as pernas, mas ela o empurrou. Correu um breve trecho e depois sentou-se, uivando para chamar-lhe a atenção. Ayla passou por ele sem olhar. Lobo correu na direção de Jondalar, estacou e ganiu diante dele, deu alguns saltos na direção de Ayla, ganindo, e depois avançou de novo para o homem.
— Alguma coisa de errado, Lobo? — perguntou Jondalar, notando enfim a agitação do animal.
De repente, ouviu um som aterrorizante, um estrondo abafado. Ergueu a cabeça no momento em que fontes de neve diáfana encheram o ar.
— Não! Ah, não! — gritou Jondalar, tomado de angústia, e correndo. Quando a neve amainou, havia um animal, sozinho, na beira de uma fenda abissal. Lobo apontou o focinho para o céu e pôs-se a uivar, desolado.
Jondalar estendeu-se no gelo, na borda da fenda, e olhou para baixo.
— Ayla! — bradou, desesperado. — Ayla! — Sentiu um nó no estômago. Sabia que era inútil. Ela jamais o escutaria. Estava morta, no fundo de um precipício aberto no gelo.
— Jondalar?
Ele ouviu uma vozinha fraca e assustada, que vinha de muito longe.
— Ayla? — Sentiu uma onda de esperança e olhou para baixo. Lá embaixo, bem distante, em pé num estreito ressalto de gelo, em torno da parede glacial, estava a mulher aterrorizada. — Ayla, não se mexa! — ordenou. — Fique inteiramente imóvel. Esse ressalto pode desabar também.
Está viva, pensou ele. Nem posso acreditar. É um milagre. Mas como vou tirá-la dali?
No interior do abismo gelado, Ayla encostava-se na parede, agarrando-se desesperadamente a uma rachadura e a um fragmento saliente, petrificada de medo. Estivera avançando com neve até os joelhos, perdida em seus pensamentos. Estava cansada de tudo: cansada do frio, cansada de lutar na neve, cansada da geleira. A caminhada na neve lhe esgotara as energias, e ela se achava à beira da exaustão física e mental. Embora prosseguisse sempre, tinha o pensamento fixo em chegar ao fim da geleira angustiante.
Fora arrancada de seu ensimesmamento por um estalo sonoro. Teve a sensação nauseante de que o gelo sólido cedia sob seus pés, e de repente se lembrara de um terremoto ocorrido muitos anos antes. Instintivamente, procurara agarrar-se em alguma coisa, mas o gelo e a neve não ofereciam apoio. Sentiu-se caindo, quase a sufocar em meio ao desabamento da ponte de neve que ruíra debaixo de seus pés, e não fazia ideia de como terminara naquele ressalto estreito.
Olhou para cima, temerosa de mexer-se, com medo de que a mais ligeira mudança de peso soltasse seu precário apoio. Lá em cima, o céu se mostrava quase negro, e ela julgou ver o bruxuleio de estrelas. Vez por outra, uma fatia ocasional de gelo ou flocos de neve caíam lentamente.
O ressalto onde ela se encontrava era uma extensão saliente de uma superfície mais antiga, havia eras sepultada por neves mais novas. Prendia-se num matacão áspero que fora arrancado à rocha quando a neve encheu um vale e transbordou pelas encostas de um outro, adjacente. O rio de gelo, fluindo majestosamente, acumulava enormes quantidades de pó areia, cascalho e matacões, que se desprendiam da rocha dura e que eram morosamente transportados em direção à corrente mais rápida em seu centro. Essas morenas formavam longas fitas de detritos na superfície, à medida que avançavam. Quando a temperatura por fim se elevava o suficiente para derreter as gigantescas geleiras, deixavam marcas de sua passagem em cristas e colinas de rochas heterogéneas.
Enquanto esperava, com medo de mexer-se e procurando manter-se quieta, Ayla escutava leves murmúrios e ruídos abafados na profunda caverna de gelo. A princípio pensou que fosse imaginação sua. No entanto, a massa de gelo não era tão sólida como parecia na superfície. Estava continuamente a se reajustar, dilatar, deslocar-se, deslizar. O estrondo explosivo de uma nova fenda que se abria ou fechava em um ponto distante, na superfície ou nas profundezas da geleira, enviava vibrações através do sólido de estranha viscosidade. A grande montanha de gelo achava-se pontilhada de catacumbas: passagens que terminavam de repente, longas galerias que davam voltas, desciam ou lançavam-se para o alto; bolsões e cavernas que se abriam, convidativas... e depois se fechavam.
Ayla pôs-se a olhar em torno. As nuas paredes de gelo brilhavam com uma tonalidade luminosa, incrivelmente azul, que tinham um matiz de verde. Com um sobressalto, lembrou-se de que tinha visto aquela cor antes mas apenas em um lugar. Os olhos de Jondalar eram daquele mesmo azul profundo e assombroso! Voltaria a vê-los outra vez? Os planos fraturados do imenso cristal de gelo davam-lhe a sensação de misteriosos movimentos fugazes, um pouco além de sua visão periférica. Ela percebia que se virasse a cabeça com suficiente rapidez, veria uma sombra efémera desaparecer nas paredes espelhadas.
Mas tudo aquilo era ilusão, provocada por ângulos e luzes. O cristal de gelo filtrava a maior parte dos raios vermelhos do orbe ardente no céu, deixando o profundo verde-azulado, enquanto as bordas e os planos das superfícies matizadas, espelhadas, faziam jogos de refração e reflexão.
Ayla olhou para o alto ao sentir um chuveiro de neve. Viu a cabeça de Jondalar assomar na borda do precipício, depois o pedaço de corda que descia, como uma serpente, em sua direção.
— Ayla, amarre a corda na cintura — gritou ele — e amarre com força. Avise quando estiver pronta.
Estava cometendo o mesmo equívoco, pensou Jondalar. Por que ele sempre conferia o que ela fazia, se sabia que Ayla era mais do que capaz de fazer as coisas direito? Por que dizer-lhe alguma coisa que era da maior obviedade? Ela sabia que a corda tinha de ser presa com segurança. Fora por isso que ela se aborrecera, saindo na frente, e estava agora naquela situação mais do que perigosa... Mas devia ter pensado melhor.
— Estou pronta, Jondalar — gritou ela, depois de passar a corda em torno de si e dar-lhe muitos nós. — Esses nós não vão soltar-se.
— Muito bem. Agora, segure-se na corda. Vamos puxá-la para cima.
Ayla sentiu a corda retesar-se, depois erguê-la do ressalto. Seus pés pendiam no ar e ela se sentia subindo devagar em direção à borda do abismo. Viu o rosto de Jondalar e seus belos olhos azuis. Agarrou a mão que ele estendeu para ajudá-la a transpor a borda. Daí a um instante estava na superfície de novo, e Jondalar a estreitava nos braços. Ela se apertou a ele com força.
— Pensei que nunca mais a veria — disse ele, beijando-a com ardor. — Desculpe por ter gritado com você, Ayla. Eu sei que você sabe arrumar suas coisas. É que me preocupo demais.
— Não, foi culpa minha. Não devia ter sido tão negligente com meus protetores de olhos, nem devia ter saído correndo em sua frente. Ainda não conheço bem o gelo.
— Mas eu deixei que você agisse assim, e devia ter pensado melhor.
— Eu devia ter pensado melhor — disse Ayla ao mesmo tempo. Sorriram um para o outro, achando graça da inadvertente coincidência de palavras.
Ayla sentiu um puxão na cintura e viu que a outra ponta da corda estava presa ao garanhão. Racer a puxara de dentro do abismo. Ela logo desfez os nós na cintura, enquanto Jondalar cuidava do animal. Por fim, ela teve de usar uma faca para cortar a corda. Fizera tantos nós e os apertara tanto — tinham ficado ainda mais apertados enquanto o cavalo a arrastava — que era impossível desfazê-los.
Contornando a fenda que provocara tamanho desastre, continuaram na marcha pelo gelo, em direção ao sudoeste. Começavam a preocupar-se seriamente com o suprimento de pedras de queimar.
— Quanto tempo ainda falta para chegarmos ao outro lado, Jondalar? — perguntou Ayla de manhã, depois de derreter gelo para todos. — Não nos sobram muitas pedras.
— Eu sei. Segundo meus planos, já deveríamos estar lá, mas as tormentas causaram atrasos maiores do que imaginei, e estou preocupado com a possibilidade de o tempo virar enquanto ainda estivermos na geleira. Isso pode acontecer muito depressa — respondeu Jondalar, sondando o céu com cuidado. — Acho que a mudança virá em breve.
— Por quê?
— Estive pensando naquela discussão boba que tivemos antes de você cair no precipício. Lembra-se que todos nos avisaram sobre os espíritos maus que são empurrados pelo derretedor das neves?
— Foi mesmo! — exclamou Ayla. — Solandia e Verdegia disseram que eles fazem a gente se irritar, e eu estava muito nervosa. Ainda estou. Sinto-me tão cansada e doente que tenho de me forçar para continuar andando. Poderia ser por causa disso?
— Era o que eu estava pensando. Ayla, se isso for verdade, temos de correr. Se o foehn chegar enquanto ainda estivermos na geleira, todos nós podemos cair nas fendas — disse ele.
Daí em diante procuraram racionar as pedras castanhas de turfa, bebendo água mal derretida. Ayla e Jondalar passaram a carregar suas bolsas de água cheias de neve, debaixo das parkas, para que o calor de seus corpos derretesse o suficiente para eles e Lobo. Mas isso não bastava. Seus corpos não eram capazes de derreter gelo suficiente para os cavalos, e logo a última pedra de queimar foi consumida. Além disso, acabara também o alimento para os animais. Ayla notou que eles mascavam gelo, mas isso a deixou preocupada. Tanto a desidratação como o consumo direto de gelo poderia resfriá-los, e com isso não manteriam uma temperatura corporal suficiente para suportar o frio glacial da geleira.
Os dois cavalos tinham-se chegado a ela, à procura de água, depois de terem armado a tenda, mas tudo que Ayla pôde fazer foi dar-lhes alguns goles de sua própria água e quebrar um pouco de gelo para eles. Não houvera a habitual tormenta da tarde naquele dia, e tinham caminhado até quase ao cair da noite escura. Tinham percorrido uma boa distância e deviam estar contentes, mas Ayla sentia um estranho mal-estar. Teve dificuldade para dormir naquela noite. Tentou convencer-se de que estava apenas preocupada com os animais.
Jondalar também permaneceu acordado por muito tempo. Achava que o horizonte parecia mais próximo, mas tinha medo de que isso fosse fruto de sua ansiedade e não quis tocar no assunto. Finalmente adormeceu, mas despertou no meio da noite e deu com Ayla também acordada. Levantaram-se ao primeiro raio ténue, e quando partiram as estrelas ainda luziam no firmamento.
No meio da manhã, o vento mudara, e Jondalar teve certeza de que seus piores temores estavam para materializar-se. O vento não era quente, apenas menos frio, mas soprava do sul.
— Depressa, Ayla! Temos de correr — disse, quase saindo em disparada. Ela assentiu e o acompanhou.
Ao meio-dia o céu estava claro, e a brisa que lhes roçava os rostos era cálida, quase um bálsamo. A força do vento cresceu, tornando-se bastante forte para retardar-lhes os movimentos quando se apoiavam nele. E seu calor, varrendo a superfície dura do gelo, era uma carícia mortífera. As rajadas de neve seca logo se tornaram úmidas e compactas, transformando-se depois em chuva. Pequenas poças de água começaram a formar-se em pequenas depressões. Tornaram-se mais fundas e ganharam um azul vívido que parecia irradiar do meio do gelo, mas nem a mulher nem o homem tinham tempo ou disposição para apreciar tal beleza. Agora os cavalos dispunham de água com fartura, mas isso representava um triste consolo.
Uma névoa branca começou a subir, mantendo-se próxima à superfície. O vento quente do sul a dissipava antes que ela pudesse subir de mais. Jondalar passou a usar uma lança comprida para testar o caminho, e estava quase correndo, e Ayla se esforçava para acompanhá-lo. Desejava poder saltar em cima de Huiin e deixar que o animal a levasse, porém um número cada vez maior de fendas se abria no gelo. Jondalar tinha quase certeza de que o horizonte estava mais próximo, mas agora o nevoeiro baixo tornava as distâncias ilusórias.
Pequenos riachos começaram a formar-se na superfície do gelo, ligando as poças e tornando a caminhada mais perigosa. Os viajantes espadanavam água, sentindo o frio gélido penetrar e depois esguichar das botas. De repente, a poucos passos diante deles, um enorme trecho do que parecia ser gelo sólido desabou, expondo um abismo hiante. Lobo ganiu e uivou. Os cavalos recuaram, guinchando de medo. Jondalar virou-se e acompanhou a borda da fenda, procurando um caminho.
— Jondalar, não consigo mais continuar. Estou exausta. Tenho de parar — disse Ayla com um soluço, e pôs-se a chorar. — Nunca vamos conseguir.
Jondalar parou, voltou e a consolou.
— Estamos quase chegando, Ayla. Olhe. Já podemos ver como a borda está próxima.
— Mas quase caímos dentro de um precipício, e algumas dessas poças se transformaram em lagoas.
— Você quer ficar aqui? — perguntou ele.
Ayla respirou fundo.
— Não, claro que não — respondeu. — Não sei por que estou chorando assim. Se ficarmos aqui, com certeza morreremos.
Jondalar rodeou a enorme fenda, mas ao se voltarem outra vez para o sul, os ventos tinham-se tornado tão fortes como tinham sido os do norte, e eles podiam sentir a temperatura subindo. Riachos convertiam-se em torrentes que cruzavam o gelo de um lado para outro e se juntavam em rios. Contornaram mais duas fendas e puderam ver o que havia além da geleira. Percorreram em passadas largas a pequena distância, e depois puseram-se a olhar para baixo, do alto da borda.
Haviam atingido o outro lado da geleira.
Logo debaixo deles esguichava, da parte mais baixa do gelo, uma catadupa de água leitosa. A distância, abaixo da linha das neves, havia uma ténue película verde-claro.
— Quer parar aqui e descansar um pouco? — perguntou Jondalar, mas com expressão preocupada.
— Tudo que quero é sair desse gelo. Podemos descansar ao chegarmos àquela campina — respondeu Ayla.
— Ela está mais distante do que parece. Aqui não é lugar para se correr ou ser negligente. Vamos nos amarrar uns aos outros, e acho que você deve descer primeiro. Se escorregar, posso suportar seu peso. Escolha o caminho com cuidado. Podemos puxar os cavalos.
— Não, não acho que devamos fazer isso. Creio que o melhor é tirarmos seus cabrestos e as cargas, e também os varais, e deixarmos que eles mesmos achem o caminho de descida.
— Talvez você tenha razão, Ayla, mas nesse caso teremos de deixar a carga aqui... a menos...
Ayla viu para onde ele olhava.
— Vamos pôr tudo dentro do bote e deixar que ele deslize! — disse ela.
— A não ser uma pequena mochila com alguns objetos de necessidade mais imediata, que podemos carregar — propôs ele, sorrindo.
— Se prendermos tudo bem e vermos por onde o bote desce, com certeza poderemos achá-lo depois.
— E se ele se quebrar?
— O que poderia quebrar?
— A estrutura — respondeu Jondalar. — Mas mesmo que isso aconteça, provavelmente o revestimento de couro há de aguentar a carga.
— E tudo o que estiver dentro dela, não é?
— Com certeza. — Jondalar sorriu. — Acho que é uma boa ideia.
Depois de rearrumarem a carga dentro do barco de fundo redondo, Jondalar pegou uma pequena mochila com objetos essenciais, enquanto Ayla puxava Huiin. Ainda que um pouco assustados, seguiram pela borda à procura de um caminho. Como que para compensar as demoras e os perigos que haviam enfrentado na travessia, logo encontraram o declive suave de uma morena, com seu cascalho, que prometia passagem, logo depois de uma subida um pouco mais íngreme de gelo liso. Arrastaram o bote até ali, e Ayla soltou o trenó. Retiraram os cabrestos e as cordas dos cavalos, mas não as botas de couro de mamute. Ayla examinou-as para ter certeza de que estavam bem presas; haviam-se ajustado à forma dos cascos. Depois conduziram os animais até o alto da morena.
Huiin relinchou, e Ayla a aquietou, falando na linguagem de sinais, sons e palavras inventadas.
— Huiin, você precisa descer sozinha — disse a mulher. — Ninguém está mais capacitada a encontrar o caminho no gelo do que você.
Jondalar animou o jovem garanhão. A descida seria perigosa, tudo poderia acontecer, mas pelo menos tinham atravessado a geleira com os cavalos. Agora, eles teriam de descer por si sós. Lobo andava de um lado para outro, nervoso, tal como fazia quando tinha de saltar num rio.
Instada por Ayla, Huiin foi a primeira a transpor a borda, pisando com cuidado. Racer a seguiu e logo se distanciou. Ao chegarem a um trecho liso, deslizaram um pouco, mas procuraram descer mais depressa para se equilibrar. Estariam lá embaixo, em segurança ou não, quando Ayla e Jondalar completassem a descida.
Lobo gania na beirada da geleira, com o rabo entre as pernas, sem disfarçar o medo que sentiu ao ver os cavalos descerem.
— Vamos empurrar o bote para baixo e sair também. O caminho é longo e não será fácil — disse Jondalar.
Ao empurrarem o bote para a beirada do gelo, Lobo de repente saltou para dentro dele.
— Ele deve estar pensando que vamos atravessar um rio — disse Ayla. — E bem que eu gostaria de flutuar nesse gelo.
Os dois se entreolharam e começaram a sorrir.
— O que você acha? — perguntou Jondalar.
— Por que não? Você disse que o casco aguentaria.
— Mas, e nós?
— Vamos descobrir!
Mudaram algumas coisas de lugar, para abrir espaço, e entraram no bote, com Lobo. Jondalar enviou um pensamento de esperança à Mãe e, usando um dos varais do trenó, empurrou o barco para baixo.
— Segure-se! — disse, quando começaram a descer.
Ganharam velocidade depressa, a princípio numa rota retilínea. Bateram então num montículo, e o bote saltou e rodopiou. Deram uma guinada para o lado, subiram por um leve aclive e viram-se literalmente a voar. Ambos gritaram de emoção e susto. Caíram com um solavanco que os fez pular, inclusive o lobo, rodopiaram novamente enquanto se seguravam com força. O lobo tentava agachar-se no fundo do bote e ao mesmo tempo meter o focinho para fora.
Ayla e Jondalar suportavam como podiam a descida veloz. Não tinham controle algum sobre a embarcação que deslizava pela encosta da geleira. Corria para a esquerda e a direita, saltava e derrapava, como se tomada de selvagem alegria, mas estava muito carregada, o que a impedia de virar de cabeça para baixo. Embora o homem e a mulher gritassem involuntariamente, não podiam deixar de rir. Nunca nenhum dos dois tinha passado por experiência tão emocionante, mas ela tardava a chegar ao fim.
Não haviam pensado em como seria o fim da descida, mas ao se aproximarem do fundo da geleira, Jondalar lembrou-se da habitual fenda que separava o gelo do solo. Uma queda violenta no cascalho poderia atirá-los para fora do bote, causando-lhes ferimentos ou coisa pior, mas o barulho não lhe causou grande impressão quando o escutou pela primeira vez. Só ao caírem com um baque forte e um espadanar de água no meio de uma trovejante corredeira de águas turvas foi que ele se deu conta de que a descida pelo gelo molhado e escorregadio os levara ao rio de águas derretidas que tinham visto a esguichar do fundo da geleira.
Foram cair no final das corredeiras com outro espadanar de água, e logo estavam a flutuar serenamente no meio de um laguinho de leitosas águas esverdeadas. Lobo demonstrava felicidade, lambendo-lhes os rostos. Por fim, sentou-se e levantou a cabeça num uivo de comemoração.
Jondalar olhou para a mulher.
— Ayla, nós conseguimos! Conseguimos! Descemos da geleira!
— Foi mesmo, não? — Ayla era toda sorrisos.
— Mas foi uma loucura perigosa — disse ele. — Podíamos ter ficado machucados, ou até morrido.
— Pode ter sido perigoso, mas foi divertido — respondeu Ayla, com os olhos brilhando de emoção.
Diante de seu entusiasmo contagiante, Jondalar teve de sorrir, apesar de sua preocupação em levá-la até o destino em segurança.
— Tem razão. Foi divertido, e bem que merecemos. Não acredito que eu venha a querer atravessar uma geleira de novo. Duas vezes na vida basta, mas será bom poder dizer que o fiz. E nunca me esquecerei dessa descida.
— Agora tudo o que temos a fazer é chegar à terra — disse Ayla, apontando para a margem —, e depois encontrar Huiin e Racer.
O sol se punha, e no lusco-fusco era difícil enxergar. A friagem da noite fizera a temperatura cair abaixo de zero outra vez. Podiam ver a segurança confortadora da massa escura de terra firme, misturada com trechos de neve, em torno do perímetro do lago, mas não sabiam como chegar lá. Não tinham um remo, e haviam deixado o varal do trenó em cima da geleira.
Entretanto, embora o lago parecesse parado, o degelo glacial criava sob a superfície uma corrente que estava a empurrá-los lentamente para a margem. Quando se aproximaram dela, ambos saltaram do bote, seguidos pelo lobo, e puxaram a embarcação para terra. Lobo se sacudiu, espalhando água, mas nem Ayla nem Jondalar o notaram. Estavam nos braços um do outro, expressando seu amor e o alívio por terem finalmente alcançado terra firme.
— Nós conseguimos. Estamos quase em casa, Ayla. Estamos quase em casa — disse Jondalar, apertando-a com alegria.
A neve em torno do lago começava a recongelar, transformando-se numa camada de gelo duro. Atravessaram o trecho de cascalho quase no escuro e de mãos dadas, até chegarem a um campo. Não havia lenha com que acender uma fogueira, mas não se importaram. Comeram o alimento concentrado que os mantivera na geleira e depois beberam água das bolsas que haviam enchido. A seguir, armaram a tenda e estenderam as peles de dormir, mas antes de se recolherem Ayla lançou um olhar a distância, imaginando onde estariam os cavalos.
Assoviou, chamando Huiin, e esperou ouvir o barulho de cascos, mas nada aconteceu. Depois de observar as nuvens que rodopiavam no céu, assoviou de novo. Agora estava escuro demais para procurar os animais. Aquilo teria de ficar para a manhã seguinte. Ayla aninhou-se em suas peles de dormir, ao lado do homem alto, e estendeu a mão para afagar o lobo enrodilhado ao lado dela. Pensava nos cavalos ao mergulhar num sono profundo. O homem olhou para a desalinhada cabeleira loura da mulher a seu lado, cuja cabeça repousava no ombro dele, e mudou de ideia com relação a levantar-se. Não havia mais necessidade de pressa, mas a ausência de preocupações imediatas o deixava desnorteado. Ele precisava lembrar-se continuamente que haviam atravessado a geleira. Caso quisessem, podiam ficar deitados o dia inteiro.
A geleira ficara agora para trás, e Ayla estava em segurança. Jondalar estremeceu ao lembrar-se de que ela escapara por um triz e apertou-a com mais força. A mulher levantou o corpo no cotovelo e olhou para ele, como tanto gostava de fazer. A luz mortiça do interior da tenda suavizava o azul forte de seus olhos, e sua testa, sempre franzida de concentração ou desassossego, estava relaxada agora. Ayla correu um dedo pelas rugas de sua testa, e depois desenhou-lhe os traços.
— Sabe de uma coisa? Antes de eu conhecer você, ficava a pensar em como seria um homem. Não um homem do Clã, mas um homem de minha raça. Nunca consegui. Você é bonito, Jondalar.
Ele riu.
— Ayla, as mulheres é que são bonitas. Os homens, não.
— Então, um homem é o quê?
— Você pode dizer que ele é forte ou valente.
— Você é forte e valente, mas isso não é a mesma coisa que ser bonito. O que você diria de um homem que é bonito?
— Acho que "bem-apessoado". — Jondalar ficou um pouco embaraçado. Fora qualificado assim muitas vezes.
— Bem-apessoado... — repetiu Ayla. — Gosto mais de "bonito". É uma coisa que eu entendo.
— Jondalar riu de novo, com aquela sua risada surpreendentemente luxuriosa. O calor desinibido do gesto foi inesperado, e Ayla ficou a olhar para ele. Estivera tão sério durante a viagem! Havia sorrido, mas raramente rira alto.
— Se quer me chamar de bonito, tudo bem — disse ele, puxando-a mais para si. — Como posso objetar que uma mulher bonita me chame de bonito?
Ayla sentiu os espasmos do riso dele, e começou também a rir.
— Adoro ver você rindo, Jondalar.
— E eu adoro você, mulher engraçada.
Ele a abraçou quando pararam de rir. Sentindo-lhe o calor e os seios macios e cheios, levou a mão a um deles e se abaixou para beijá-la. Ayla meteu a língua em sua boca e percebeu que reagia com um surpreendente desejo por ele. Já fazia algum tempo... Durante todo o período que haviam passado na geleira, ambos estavam sempre tão ansiosos e cansados que nunca entravam no clima. E não poderiam fazê-lo, mesmo que quisessem.
Jondalar entendeu a ânsia da companheira e também seu próprio desejo repentino. Rolou-a de lado enquanto se beijavam. Depois, afastando as peles, beijou-a no pescoço e na nuca, a caminho do seio. Envolveu o bico duro com os lábios e o comprimiu.
Ayla gemeu ao sentir um estremecimento de inacreditável Prazer correr por todo o corpo, com uma intensidade que a deixou arquejante. Estava pasma com sua própria reação. Ele mal a tocara, e ela já estava pronta, sentia tamanha volúpia. Não havia passado tanto tempo assim, não era? Comprimiu o corpo contra o dele.
Jondalar tocou com a mão a sede dos Prazeres entre as coxas dela, sentiu o botão túrgido e o massageou. Com alguns gritos, ela atingiu um súbito clímax e estava pronta. Desejava-o.
Jondalar sentiu-lhe o repentino calor molhado. Sua fome era agora igual à dela. Empurrando as peles para o lado, ela se abriu para ele. Jondalar lançou-se com ardor a ela.
Ayla comprimiu-se nele ao ser penetrada profundamente. Jondalar ouviu-lhe os gritos de felicidade. Ela precisara de sua virilidade, e ele encarara a tudo com naturalidade. Aquilo era mais do que alegria, mais do que Prazer.
Estava tão pronto quanto ela. Recuou, penetrou-a de novo, somente uma vez mais e, de repente, não havia como retardar mais. Sentiu sua seiva crescer, assomar e transbordar. Com alguns movimentos finais, exauriu-se e depois descansou sobre ela.
Ayla ficou muito quieta, de olhos fechados, sentindo-lhe o peso e aquela sensação maravilhosa. Não queria mexer-se. Quando ele enfim se levantou e olhou para ela, teve de beijá-la. Ayla abriu os olhos.
— Foi maravilhoso, Jondalar — disse, lânguida e satisfeita.
— Foi rápido. Você estava pronta. Nós dois estávamos. E você está com um sorriso muito estranho no rosto até agora.
— É porque estou muito feliz.
— Eu também — disse ele, voltando a beijá-la. Depois, rolou para o lado.
Ficaram ali deitados por algum tempo e adormeceram de novo. Jondalar despertou antes de Ayla, e pôs-se a observá-la enquanto ela dormia. O sorriso estranho reapareceu. Com que ela estaria sonhando? Não pôde resistir. Beijou-a de leve e acariciou-lhe o seio. Ela abriu os olhos. Estavam dilatados, grandes e líquidos, cheios de segredos profundos.
Ele beijou cada uma de suas pálpebras, mordiscou uma orelha e depois o bico do seio. Ela sorriu quando ele levou a mão à macia colina dos Prazeres e tateou seus pêlos macios e receptivos, fazendo-o desejar que estivessem apenas começando, em vez de terem terminado havia pouco. De repente ele a abraçou com força, beijou-a com voluptuosidade, afagou-lhe o corpo, os seios e as nádegas. Não conseguia afastar as mãos dela, como se o fato de quase a ter perdido no precipício criasse uma necessidade tão profunda quanto aquele abismo que a quisera roubar. Não se cansava de tocá-la, apertá-la, amá-la.
— Nunca imaginei que eu me apaixonasse — disse ele, relaxando de novo e afagando preguiçosamente sua nuca. — Por que será que tive de viajar além do fim do Rio da Grande Mãe para encontrar uma mulher que eu pudesse amar?
Ele estivera pensando nisso desde o momento em que, despertando, ocorreu-lhe que já estavam quase em casa. Era bom estar daquele lado da geleira, mas estava cheio de expectativas, pensando em todos, ansioso por vê-los.
— Foi porque meu totem destinou você a mim. O Leão da Caverna guiou você.
— Então, por que a Mãe fez com que nascêssemos tão distantes um do outro?
Ayla levantou a cabeça e olhou para ele.
— Estive aprendendo, mas ainda sei muito pouco sobre os desígnios da Grande Mãe Terra, nem sobre os espíritos protetores dos totens do Clã, mas de uma coisa eu sei: você me achou.
— E depois, quase a perdi. — Uma torrente de medo frio apertou-lhe o peito. — Ayla, o que seria de mim se a perdesse? — disse ele, com a voz embargada pela emoção, que raramente demonstrava. Rolou de lado, cobrindo o corpo dela com o seu, e enterrou a cabeça no pescoço dela, apertando-a com tanta força que ela mal conseguia respirar. — O que seria de mim?
Ayla comprimiu-se contra ele, desejando que houvesse algum meio de tornar-se parte dele, e foi com gratidão que abriu-se de novo para ele ao sentir que novamente crescia o desejo de Jondalar. Com uma ansiedade tão exigente quanto seu amor, ele a tomou quando ela se ofereceu, dadivosa.
Tudo terminou ainda mais depressa, e com o espasmo final a tensão da feroz emoção deles fundiu-se num cálido ocaso. Quando ele fez menção de se afastar para o lado, ela o segurou, por querer prolongar a intensidade do momento.
— Eu não desejaria viver sem você, Jondalar — disse, retomando a conversa de antes. — Um pedaço de mim iria com você para o mundo dos espíritos, eu nunca mais seria uma pessoa inteira. Mas tenho sorte. Pense em todas as pessoas que nunca encontram o amor, e naquelas que amam alguém que não pode amá-las.
— Como Ranec?
— É, como Ranec. Ainda sinto uma dor dentro de mim quando penso nele.
Jondalar rolou de lado e sentou-se.
— Sinto pena dele. Eu gostava de Ranec... ou poderia ter gostado. — De repente, sentiu-se ansioso por prosseguir a viagem. — Desse jeito, nunca vamos chegar à caverna de Dalanar — disse, começando a enrolar as peles de dormir. — Estou com muita vontade de revê-lo.
— Mas antes temos de encontrar os cavalos — disse Ayla.
Ayla levantou-se e saiu da tenda. Uma névoa pairava perto do solo, e o ar úmido lhe gelava a pele nua. Podia escutar o estrondo da cachoeira a distância, mas o vapor se adensava num nevoeiro espesso do outro lado do lago, uma longa e estreita massa de agua esverdeada, tao turva que era quase opaca.
Peixe algum vivia em tal água, ela tinha certeza, do mesmo modo que nenhuma vegetação medrava nas margens. O lago era demasiado jovem para sustentar vida. Só havia ah aguas e pedras, alem de uma sensação de tempo antes do tempo, de primórdios antigos, anteriores ao inicio da vida Ayla estremeceu e teve um vislumbre da terrível solidão da Grande Mãe Terra, antes que Ela desse à luz todos os seres viventes.
Atravessou correndo o trecho de cascalho ate a margem entrou na água e mergulhou. O lago era gélido e cheio de partículas. Ayla desejava banhar-se - isso não fora possível enquanto atravessavam a geleira —, mas não naquela água. Não se importava tanto com o frio, mas queria água clara e doce.
Voltou para a tenda, a fim de vestir-se e ajudar Jondalar a arrumar as coisas No caminho, olhou através da névoa que envolvia a paisagem dedada e viu a sombra de um arvoredo. De repente, sorriu.
— Então vocês estão aí! - disse, emitindo um sonoro assovio.
Jondalar saiu da tenda num salto. Sorriu tanto quanto Ayla ao ver os cavalos galopando na direção deles. Lobo os seguia, e Ayla achou que ele estava satisfeito consigo mesmo. Não estivera ali por perto de manhã, e provavelmente desempenhara algum papel na volta dos cavalos. Balançou a cabeça ao se dar conta de que nunca viria a saber.
Saudaram os animais com abraços, carícias, brincadeiras e palavras de afeto Ao mesmo tempo, Ayla os examinava com cuidado, para ter certeza de que não tinham-se ferido. Faltava a bota da pata traseira direita de Huiin e a égua pareceu sentir dor quando Ayla lhe examinou a perna Quem sabe ela teria irrompido pelo gelo na borda da geleira e, ao se livrar dele, arrancado a bota e machucado a perna? Era a única explicação a seu alcance.
Ayla tirou as outras botas da égua, levantando cada uma das patas para desfazer os nós enquanto Jondalar segurava o animal. Racer conservava ainda suas botas, embora Jondalar notasse que já mostravam sinais de desgaste nas bordas. Nem mesmo o couro de mamute durava muito tempo quando usado em cima de cascos.
Depois de terem juntado todas as coisas e arrastado o bote para mais perto, descobriram que seu fundo estava molhado. Surgira um furo.
— Acho que eu não tentaria mais atravessar um rio com isso — comentou Jondalar. - Acho que devemos deixa-lo por aqui?
— Temos de fazer isso, a não ser que nós mesmos o arrastemos. Não temos mais os varais para fazer o trenó. Nós os deixamos lá em cima quando descemos pelo gelo, e não há árvores aqui para fazermos outros.
— Bem, então está resolvido — disse Jondalar. — É bom não termos mais de arrastar pedras, e aliviamos tanto nossa carga que acho que poderíamos carregar tudo nós mesmos, sem os cavalos.
— Se eles não tivessem voltado, seria isso o que faríamos enquanto os procurássemos. Estou feliz por eles terem descoberto a nós.
— Eu também estava preocupado — disse Jondalar.
Enquanto desciam a íngreme encosta sudoeste do antigo maciço, caiu uma chuva fina, enchendo buracos de neve suja na floresta de coníferas por que passavam. Entretanto, uma tonalidade verde de aquarela coloria a terra marrom de uma campina ondulada e tocava de leve as pontas de arbustos próximos. Lá embaixo, através de aberturas na bruma, lobrigaram um rio que corria de oeste para norte, forçado pelas montanhas circundantes a seguir pelo leito de um vale profundo. Do outro lado do rio, na direção do sul, os alcantilados contrafortes alpinos esmaeciam-se numa névoa púrpura, da qual se alteava, espectral, a alta cordilheira, com as encostas cobertas de gelo até o meio.
— Você vai gostar de Dalanar — disse Jondalar, enquanto cavalgavam lado a lado. — Vai gostar de todos os Lanzadonii. A maioria deles eram Zelandonii como eu.
— O que o levou a começar uma nova Caverna?
— Não sei ao certo. Eu era pequeno quando ele e minha mãe se separaram, e na verdade só vim a conhecê-lo quando fui morar em sua companhia. Foi ele quem ensinou-nos, a Joplaya e a mim, a trabalhar a pedra. Não acredito que ele tivesse resolvido iniciar uma nova Caverna antes de conhecer Jerika, mas escolheu aquele local porque descobriu a mina de sílex. As pessoas já falavam a respeito das pedras dos Lanzadonii quando eu era menino — explicou Jondalar.
— Jerika é a companheira dele, e... Joplaya... é prima sua, não é assim?
— Isso mesmo. Príma-primeira. Filha de Jerika, nascida no fogo de Dalanar. Ela também é boa artífice de sílex, mas nunca lhe diga que falei isso. É muito brincalhona, sempre a inventar das suas. Será que já tem um companheiro? Grande Mãe! Já faz tanto tempo! Vão ficar surpresos ao nos ver.
— Jondalar! — disse Ayla, num sussurro. Ele estacou. — Olhe ali, perto daquelas árvores. É um veado!
O homem sorriu.
— Vamos pegá-lo! — disse, tirando uma lança, enquanto segurava o arremessador e dava um sinal a Racer com os joelhos. Embora seu método de guiar a montaria não fosse exatamente igual ao de Ayla, depois de quase um ano de viagens já era tão bom cavaleiro quanto ela.
Ayla fez Huiin virar quase ao mesmo tempo — a égua mostrava-se satisfeita por estar livre enfim do trenó — e ajustou a lança no arremessador. Ao percebê-los, o veado pôs-se a fugir aos saltos, mas saíram em sua perseguição, cada qual de um lado dele, e, com a ajuda das lanças, abateram o animal jovem e inexperiente com facilidade. Tiraram as partes de que mais gostavam, selecionaram outras para levarem de presente à gente de Dalanar e depois deixaram que Lobo comesse as partes restantes.
Ao cair da tarde, encontraram um ribeiro borbulhante e de bom aspecto. Seguiram-no até chegarem a um campo aberto com algumas árvores e um matagal à margem. Resolveram acampar mais cedo e assar um pouco da carne do veado. A chuva cessara e não tinham mais pressa, embora a todo momento tivessem de lembrar isso um ao outro.
Na manhã seguinte, ao sair da tenda, Ayla ficou boquiaberta com o que viu. A paisagem parecia irreal, lembrando um sonho de particular clareza. Parecia impossível que tivessem enfrentado a mais pungente intensidade do inverno poucos dias antes e que agora, de súbito, fosse primavera!
— Jondalar! Ah, Jondalar, venha ver!
O homem meteu a cabeça para fora do abrigo, ainda sonolento, e ela viu seu sorriso se abrir.
Achavam-se numa pequena elevação, e o chuvisco e a bruma da véspera tinham dado lugar a um sol brilhante e claro. O céu era de um anil profundo, enfeitado com montanhosas nuvens brancas. As árvores e arbustos cobriam-se de rebentos verdes e o capim tinha um aspecto tão bonito que quase dava vontade de comê-lo. Havia flores em profusão — junquilhos, lírios, aquilégias, íris e muitas mais. Pássaros de todas as cores e variedades riscavam o ar, chilreando e cantando.
Ayla reconheceu a maioria deles — tordos, cotovias, pica-paus — e pôs-se a cantar junto com as avezinhas. Jondalar levantou-se e saiu da tenda a tempo de ver com admiração que ela, pacientemente, brincava com um picanço cinzento na mão.
— Não sei como você faz isso — comentou, quando a ave voou.
Ayla sorriu.
— Vou procurar alguma coisa fresca e deliciosa para comermos hoje de manhã — disse.
Lobo sumira de novo, e Ayla tinha certeza de que ele estava explorando as redondezas ou caçando. Também para ele a primavera trazia aventuras. Saiu na direção dos cavalos, que estavam no meio da campina, apascentando-se das magníficas hastes de erva tenra. Aquela era a estação da fartura, o tempo da abundância generalizada.
Durante a maior parte do ano, as amplas planícies que cercavam os quilométricos lençóis de gelo, assim como as campinas das montanhas, apresentavam-se secas e frias. Toda a precipitação se restringia a chuvas esparsas ou neve; em geral as geleiras capturavam a maior parte da umidade que circulava pelo ar. Os ventos glaciais mantinham áridos os verões, tornavam a terra seca e dura, com poucos pântanos. No inverno, os ventos faziam com que as neves ralas corressem pelo ar, deixando grandes trechos do solo gelado despido de neve, mas cobertos de ervas ressecadas — uma pastagem que sustentava os números incontáveis de gigantescos herbívoros.
No entanto, nem todos os prados são iguais. A rica abundância da; planícies da Época Glacial dependia menos da quantidade da precipitação — desde que fosse suficiente — que da época em que ocorria; a diferença devia-se à combinação de umidade e ventos ressecantes na proporção certa e no momento correto.
Devido ao ângulo de incidência dos raios solares, nas latitudes mais baixas o sol começa a aquecer a terra não muito depois do solstício de inverno. Nos locais onde se acumulou neve ou gelo, a maior parte da luz solar, no começo da primavera, reflete-se de volta ao espaço, e o pouco que é absorvido e convertido em calor tem de ser utilizado para derreter a cobertura de neve antes que as plantas possam medrar.
Nos prados antigos, porém, onde os ventos haviam desnudado as planícies, o sol despejava sua energia sobre o solo escuro e recebia cálidas boas-vindas. As camadas superiores do gelo, ressequidas e duras, começavam a se aquecer e degelar, e embora ainda fizesse frio, a abastança de energia solar impelia as sementes e as raízes a preparar-se para germinar. Entretanto, para que florescessem era necessário água em forma utilizável.
O gelo cintilante resistia aos raios quentes da primavera, refletindo a luz. No entanto, dada a grande quantidade de umidade nos lençóis gelados das montanhas, não conseguia rechaçar de todo as investidas do sol ou suas carícias de ventos tépidos. Os topos das geleiras começavam a degelar, um pouco de água escorria pelas fissuras e, lentamente, punha-se a formar correntes, depois rios, que levavam o precioso líquido à terra estorricada durante o verão. Mais importantes, porém, eram os nevoeiros e as brumas, que faziam evaporar as massas glaciais de água congelada, já que enchiam os céus com nuvens de chuvas.
Na primavera, o calor do sol fazia com que a grande mole de gelo emitisse umidade, em vez de capturá-la. Quase que pela única vez durante todo o ano, a chuva não caía sobre a geleira, mas na terra sedenta e fértil que a circundava. O verão da Época Glacial podia ser quente, mas era breve; a primavera era longa e úmida, levando a um explosivo e profuso desenvolvimento vegetal.
Também os animais da Época Glacial cresciam na primavera, quando tudo estava verde e renovado, além de carregado dos nutrientes de que necessitavam, e exatamente na época propícia. Luxuriante ou seca, a primavera é a época do ano em que os animais adicionam tamanho aos ossos jovens, a velhas presas ou cornos, quando adquirem galhadas novas e maiores ou perdem as densas pelagens de inverno para ganhar outras, novas. Como a primavera começava cedo e se prolongava bastante, a estação do crescimento para os animais também era longa, o que lhes proporcionava tamanhos inauditos, bem como imponentes adornos córneos.
Durante a prolongada primavera, todas as espécies partilhavam indiscriminadamente da fartura herbácea, mas ao fim da estação verdejante enfrentavam uma feroz competição entre si pelas ervas e gramas maduras, menos nutritivas ou digeríveis. A concorrência não se manifestava em discórdias quanto a quem comeria primeiro ou mais, ou em defender fronteiras. Os animais manadios das planícies não demarcavam territórios. Percorriam, em suas migrações, enormes distâncias e eram altamente gregários, buscando sempre a companhia de sua espécie e dividindo os pastos com outros animais adaptados às pradarias abertas.
No entanto, sempre que mais de uma espécie de animal mostrava hábitos alimentares ou sociais quase idênticos, era invariável que somente uma delas prevalecesse. As demais adquiriam novas maneiras de explorar outro habitat, utilizavam algum outro elemento da alimentação disponível, migravam para uma nova área ou morriam. As muitas espécies diferentes de animais herbívoros jamais se punham em competição direta pelo mesmo alimento.
As lutas davam-se sempre entre machos da mesma espécie, e se restringiam à época de acasalamento, quando muitas vezes a mera exibição de galhadas particularmente imponentes ou de um opulento par de presas ou cornos bastava para estabelecer o domínio e o direito de reproduzir-se — razões geneticamente imperiosas para os esplêndidos ornamentos, estimulados pelo viçoso desenvolvimento primaveril.
Todavia, finda a saciedade da primavera, a vida para os nômades das estepes voltava à rotina, e nunca era fácil. No verão, tinham de manter o espetacular crescimento engendrado pela primavera, crescer e acumular gorduras para a estação rigorosa que se avizinhava. O outono constituía, para alguns, o período da reprodução; para outros, era o tempo de ganhar pelagens grossas e outras medidas protetoras. No entanto, a época mais difícil era o inverno; nela, tinham de sobreviver.
O inverno determinava a capacidade demográfica da terra; decidia quem haveria de viver e quem morreria. O inverno era penoso para os machos, que tinham maior tamanho e pesados ornamentos sociais a conservar ou readquirir. O inverno era penoso para as fêmeas, que tinham de nutrir não só a si mesmas com uma quantidade essencialmente igual do alimento disponível, como também a próxima geração, estivesse a desenvolver-se em seu ventre ou a amamentar-se — ou ambas as coisas. Mas o inverno era particularmente penoso para os filhotes, que não tinham o tamanho dos adultos para armazenar reservas e consumiam no crescimento o pouco que haviam acumulado. Se fossem capazes de sobreviver ao primeiro ano, suas possibilidades se tornavam muito melhores.
Nas secas e frias pradarias das geleiras, os animais dividiam entre si o fruto da terra complexa e produtiva; e sobreviviam, apesar de sua diversidade, porque os hábitos alimentares e sociais de uma espécie não coincidiam com os de outra. Até mesmo os carnívoros tinham presas pre-diletas. Entretanto, uma espécie nova — inventiva e criativa —, uma espécie que menos se adaptava ao ambiente do que o modificava, segundo suas conveniências, começava a impor sua presença.
Ayla se achava estranhamente quieta quando pararam para descansar perto de outra corrente gorgolejante, dispostos a terminar de consumir a carne de veado e as verduras que tinham cozinhado de manhã.
— Agora não está muito longe. Thonolan e eu paramos aqui durante a vinda — disse Jondalar.
— É emocionante — respondeu ela, mas com apenas uma parte da atenção voltada para a vista emocionante.
— Por que está tão calada, Ayla?
— Estive pensando em seus parentes. Isso me fez lembrar que não tenho nenhum parente.
— Mas você tem! E os Mamutói? Você não é Ayla dos Mamutói?
— Não é a mesma coisa. Sinto saudades deles, e sempre os amarei, mas não foi difícil partir. Foi mais duro da outra vez, quando tive de abandonar Dure. — Uma expressão de dor lhe toldou o semblante.
— Ayla, sei que deve ter sido difícil deixar um filho. — Tomou-a nos braços. — Isso não o trará de volta, mas a Mãe pode lhe dar outros filhos... algum dia... talvez até filhos do meu espírito.
— Foi como se ela não tivesse escutado.
— Disseram que Dure era deformado, mas não era verdade. Ele pertencia ao Clã, mas era também meu. Era parte deles e de mim. Não me achavam deformada, apenas feia, e eu era mais alta do que qualquer homem do Clã... Grande e feia...
— Ayla, você não é grande e feia. Você é bonita e, lembre-se, meus parentes são seus parentes.
Ela o encarou.
— Até você aparecer, eu não tinha ninguém, Jondalar. Agora tenho você para amar e um dia, talvez, terei um filho seu. Isso me faria feliz — disse ela, sorrindo.
Seu sorriso o aliviou. Mais ainda, a referência a um filho. Jondalar conferiu a posição do sol.
— Não chegaremos à caverna de Dalanar hoje se não nos apressarmos. Vamos, Ayla, os cavalos precisam de uma boa corrida. Vou galopar atrás de você pela campina. Não gostaria de passar outra noite na tenda, agora que estamos tão perto.
Lobo saiu correndo da mata, muito enérgico e brincalhão. Deu um salto, apoiou as patas no peito de Ayla e a lambeu. Essa é a minha família, pensou ela, enquanto o agarrava pelo pescoço peludo. Esse esplêndido lobo, a égua fiel e paciente, o cavalo corajoso e o homem, esse homem maravilhosamente carinhoso. Em breve ela iria conhecer a família dele.
Mergulhou no silêncio enquanto arrumava seus poucos pertences. De repente, começou a tirar coisas de dentro de um outro saco.
— Jondalar, vou tomar um banho nessa corrente e vestir uma túnica limpa e perneiras — disse ela, despindo a túnica de couro que vinha usando.
— Por que não espera até chegarmos lá? Você vai se congelar, Ayla. É provável que essas águas venham diretamente da geleira.
— Não me importo. Não quero que sua família me veja, pela primeira vez, toda suja e com ar cansado.
Chegaram a um rio, do mesmo verde leitoso das águas da geleira, e muito cheio, embora o caudal houvesse de engrossar muito mais quando alcançasse seu pleno volume de primavera. Viraram para leste, subindo a corrente, até acharem um ponto que pudessem vadear. Depois tomaram o rumo sudeste, subindo um aclive. A tarde caía quando chegaram a uma inclinação que se tornava plana perto de uma parede rochosa. Debaixo de uma saliência escondia-se a abertura escura de uma caverna.
Havia uma jovem sentada no chão, de costas para eles, cercada por lascas e cacos de sílex. Segurava um furador, um pedaço de pau pontiagudo, com o qual trabalhava uma pedra cinza-escuro, concentrando-se no ponto exato e preparando-se para golpear o furador com um pesado malho de osso. Tão absorta estava em seu trabalho que não notou Jondalar, que se colocava em silêncio às suas costas.
— Continue treinando, Joplaya. Um dia você será tão hábil quanto eu — disse ele, rindo.
O martelo de osso desceu de maneira errada, despedaçando a lâmina que ela estava para retirar, pois ela girou o corpo de repente, com uma expressão de atónita incredulidade.
— Jondalar! Ah, Jondalar! Será mesmo você? — exclamou, atirando-se em seus braços. Enlaçando-a pela cintura, ele a ergueu e a rodou no ar. A moça se agarrava a ele como se nunca fosse largá-lo. — Mãe! Dalanar! Jondalar voltou! Jondalar voltou! — gritou ela.
Várias pessoas saíram da caverna, e um homem mais idoso, alto como Jondalar, correu para ele. Lançaram-se um ao outro. Depois de recuarem, abraçaram-se de novo.
Ayla fez um sinal a Lobo, que se pôs a seu lado enquanto ela retrocedia e olhava, segurando as cordas dos cabrestos dos cavalos.
— Então você voltou! Esteve tanto tempo fora que pensei que não voltaria mais — disse o homem.
Foi então que, por cima do ombro de Jondalar, o homem mais velho viu algo de inacreditável. Dois cavalos, que carregavam no lombo cestas e trouxas, com peles estendidas sobre eles, e um lobo imenso, parados ao lado de uma mulher alta, que vestia uma parka de pele e perneiras cortadas de maneira inusitada e enfeitadas com desenhos desconhecidos. Jogado para trás, o capuz deixava ver uma densa cabeleira loura que lhe caía em torno do rosto em ondas. Havia em sua fisionomia algo que a marcava de forma inequívoca como estrangeira, tal como o corte estranho das vestes, porém tudo isso só lhe acentuava a extrema beleza.
— Não vejo seu irmão, mas você não voltou sozinho - disse o homem.
— Thonolan está morto — respondeu Jondalar, fechando os olhos involuntariamente. E eu também estaria, se não fosse Ayla.
— Sinto muito ouvir isso. Eu gostava do rapaz. Willomar e sua mãe ficarão pesarosos. Mas noto que seu gosto em relação as mulheres não mudou. Você sempre mostrou inclinação por belas zelandônias
Por que será que ele achou que Ayla é uma Servidora da Mãe?, pensou Jondalar. Depois olhou para ela cercada pelos animais e, de súbito viu-a como a veria o homem mais velho. Sorriu. Caminhou até a beirada da clareira, pegou a corda de Racer e voltou, seguido por Ayla, Huiin e Lobo.
— Dalanar dos Lanzadonii de as boas-vindas a Ayla dos Mamutói — disse.
Dalanar estendeu as mãos, comas palmas viradas para cima, na saudação de franqueza e amizade. Ayla as segurou.
— Em nome de Doni, a Grande Mãe Terra, eu a Saúdo, Ayla dos Mamutói — disse Dalanar.
— Eu o saúdo, Dalanar dos Lanzadonii — respondeu Ayla, com o apropriado formalismo. — Você fala bem a nossa língua para alguém que veio de tão longe. Tenho enorme prazer em conhece-la. — Seu formalismo era abrandado pelo sorriso. Ele notara seu modo de falar e o achava dos mais curiosos.
— Jondalar ensinou-me a língua - disse ela, sem conseguir afastar os olhos do homem. Relanceou um olhar para Jondalar, depois fitou novamente Dalanar, assombrada com a semelhança entre ambos.
Os cabelos longos de Dalanar eram um pouco mais ralos no alto, e a cintura sena um tanto mais grossa, mas ele tinha os mesmos olhos intensamente azuis - com algumas rugas nos cantos - e a mesma testa alta, com sulcos um pouco mais profundos. Também a voz era igual o mesmo timbre, o mesmo tom. Até mesmo realçara a palavra prazer do mesmo modo, dando-lhe uma sombra de duplo significado. Era fantástico. O calor das mãos dele fez passar por ela uma incipiente onda de excitação. A semelhança de Dalanar com Jondalar até mesmo confundira seu corpo por um instante.
Dalanar percebeu sua reação e sorriu como Jondalar, compreendendo a razão e gostando ainda mais dela por isso. Com aquele sotaque estranho, pensou, ela devia ser de um lugar muito distante Ao largar-lhe as mãos, o lobo aproximou-se dele de repente, sem medo embora o homem não pudesse dizer que sua reação fosse a mesma. Lobo meteu a cabeça sob a mão de Dalanar, querendo sua atenção, como se o conhecesse. Para sua própria surpresa, Dalanar deu consigo a afagar o belo animal, como se fosse perfeitamente natural brincar com um enorme lobo vivo.
Jondalar riu.
— Lobo está pensando que você sou eu. Todo mundo sempre disse que somos parecidos. Daqui a pouco você vai estar montado em Racer. — Estendeu a corda do animal na direção do homem.
— Você disse "montando em Racer"? — admirou-se Dalanar.
— Isso mesmo. Viajamos montados nesses cavalos durante a maior parte de nossa viagem para cá. Dei ao garanhão o nome de Racer — explicou Jondalar. — A égua de Ayla chama-se Huiin, e essa fera que gostou tanto de você chama-se Lobo. Em Mamutói quer dizer lobo.
— Como foi que você arranjou um lobo e cavalos... — começou Dalanar.
— Dalanar, que modos são esses? Não acha que as outras pessoas querem conhecê-la e ouvir o que ela tem a contar?
Ainda ligeiramente aturdida com a espantosa semelhança entre Dalanar e Jondalar, Ayla virou-se para a pessoa que falara... E mais uma vez não pôde deixar de espantar-se. A mulher não se parecia com ninguém que ela já tivesse visto. Os cabelos, repuxados e presos num rolo atrás da cabeça, eram de um negro reluzente, riscado de cinza nas têmporas. Mas foi o rosto que mais chamou a atenção de Ayla. Era redondo e chato, com malares altos, um nariz diminuto e escuros olhos oblíquos. O sorriso da mulher contradizia-lhe a voz severa, e Dalanar sorriu ao olhar para ela.
— Jerika! — exclamou Jondalar, sorrindo de alegria.
— Jondalar! Que bom ter você de volta! — Abraçaram-se com óbvia afeição. — Já que esse urso que é meu homem não tem educação, por que não me apresenta à sua companheira? E pode também me dizer por que esses animais estão parados aí e não saem correndo?
Ela se interpôs entre os dois homens, que pareciam gigantes perto dela. Tinham exatamente a mesma altura, e o alto da cabeça de Jerika mal chegava ao meio do peito deles. No entanto, a mulherzinha tinha gestos rápidos e enérgicos. Lembrava a Ayla uma ave, uma impressão realçada por seu porte diminuto.
— Jerika dos Lanzadonii, por favor, saúde Ayla dos Mamutói. É ela a responsável pelo comportamento dos animais — disse Jondalar, sorrindo para a mulherzinha com a mesma expressão de Dalanar. — Melhor do que eu, ela pode lhe explicar por que eles não fogem.
— Você é bem-vinda, Ayla dos Mamutói — disse Jerika, estendendo as mãos. — E também os animais, se você puder prometer que eles manterão essa conduta tão esquisita. — Mirava Lobo enquanto fa lava.
— Eu a saúdo, Jerika dos Lanzadonii. — Ayla retribuiu-lhe o sorriso. A mulher tinha uma força surpreendente nas mãos. E também, percebeu Ayla, um caráter compatível com essa força. — O lobo não fará mal a ninguém, a menos que alguém nos ameace. Ele é gentil, mas muito protetor. Os cavalos ficam um pouco nervosos perto de estranhos, e poderão empinar se muita gente os rodear, e isso pode ser perigoso. Seria melhor as pessoas se manterem distantes no começo, até eles conhecerem todos melhor.
— Isso faz sentido, mas estou satisfeita por nos ter dito — respondeu Jerika. A seguir, olhou para Ayla com fixidez desconcertante. — Você veio de muito longe. Os Mamutói vivem além da foz do Donau.
— Conhece a terra dos Caçadores de Mamutes? — perguntou Ayla, surpresa.
— Sim, e ainda mais além, a leste, embora eu não me lembre de tudo. Hochaman gostará de falar com você sobre isso. Nada lhe agradaria mais do que haver mais uma pessoa disposta a escutar suas histórias. Minha mãe e ele vieram de uma terra perto do Mar Sem Fim, o ponto mais a leste onde há terras. Eu nasci no caminho. Vivemos com muitas pessoas, às vezes durante vários anos. Lembro-me dos Mamutói. Boa gente. Ótimos caçadores. Queriam que ficássemos com eles — relatou Jerika.
— Por que não ficaram?
— Hochaman ainda não estava disposto a radicar-se em lugar algum. Seu sonho era viajar até o fim do mundo, até onde ainda houvesse terras. Conhecemos Dalanar algum tempo depois que minha mãe morreu, e decidimos ficar para ajudá-lo a explorar a mina de sílex. Mas Hochaman viveu o suficiente para realizar seu sonho — disse ela, olhando para o companheiro, um homem alto. — Viajou desde o Mar Sem Fim, a leste, até as Grandes Águas, a oeste. Dalanar o ajudou a terminar sua Jornada, isso há alguns anos, e teve de carregá-lo nas costas a maior parte do caminho. Hochaman derramou lágrimas ao ver o grande mar ocidental, e depois as lavou com água salgada. Agora já não pode caminhar muito, mas ninguém fez uma Jornada tão longa como Hochaman.
— Ou você, Jerika — acrescentou Dalanar, com orgulho. — Você percorreu quase a mesma distância.
— Hummm. — Jerika deu de ombros. — Não foi por decisão minha. Mas estou a censurar Dalanar, é que falo demais.
Jondalar enlaçou a cintura da mulher a quem causara surpresa.
— Gostaria de conhecer sua companheira de viagem — disse ela.
— Desculpe — disse Jondalar. — Ayla dos Mamutói, esta é minha prima, Joplaya dos Lanzadonii.
— Eu a saúdo, Ayla dos Mamutói — disse a moça, estendendo as mãos.
— Eu a saúdo, Joplaya dos Lanzadonii — disse Ayla. Sentia-se, de repente, constrangida por causa de seu sotaque e satisfeita por ter vestido uma túnica limpa debaixo da parka. Joplaya era tão alta quanto ela, talvez um pouquinho mais. Tinha os malares pronunciados da mãe, mas o rosto não era tão chato e o nariz era como o de Jondalar, apenas mais delicado e bem-feito. As sobrancelhas escuras combinavam-se bem com os longos cabelos pretos, e espessos cílios negros emolduravam olhos que tinham algo do amendoado dos olhos da mãe. No entanto, eram luminosamente verdes!
Joplaya era uma mulher de pasmosa beleza.
— Estou feliz por conhecê-la — disse Ayla. — Jondalar tem falado muito a seu respeito.
— Que bom! Então ele não me esqueceu por completo — respondeu a moça. — Deu um passo atrás, mas Jondalar a abraçou de novo.
Muitas outras pessoas haviam-se reunido ali, e Ayla foi apresentada formalmente a cada um dos membros da Caverna. Todos estavam curiosos em relação à mulher que Jondalar tinha trazido, mas as perguntas e os olhares a deixaram embaraçada, e Ayla ficou satisfeita quando Joplaya interveio.
— Acho que devemos guardar algumas perguntas para depois. Tenho certeza de que ambos têm muitas histórias a contar, mas devem estar cansados. Venha, Ayla, vou lhe mostrar onde poderá ficar. Os animais precisam de alguma coisa em especial?
— Só tenho de tirar as cargas de cima deles e achar um lugar onde possam pastar. Lobo ficará lá dentro conosco, se vocês não objetarem — disse Ayla.
Percebeu que Jondalar estava entretido numa animada conversa com Joplaya, e ela própria tirou as cargas dos dorsos dos animais, mas se apressou a levar as coisas para dentro da caverna.
— Acho que me lembro de um lugar ideal para os cavalos — disse Jondalar. — Vou levá-los lá. Quer manter o cabresto de Huiin? Vou prender Racer com uma corda comprida.
— Não, acho que não. Ela vai ficar perto de Racer. — Ayla notou que ele estava felicíssimo, nem era preciso ter feito aquela pergunta. Mas, por que não? Aquelas pessoas eram a sua parentela. — Mas eu vou com você.
Caminharam até um pequenino vale, atravessado por um regato. Lobo foi com eles. Depois de ter prendido bem a corda de Racer, Jondalar fez menção de voltar à caverna.
— Não vai voltar? — perguntou.
— Vou ficar com Huiin um pouco mais — respondeu Ayla.
— Nesse caso, posso carregar suas coisas.
— Por favor. — Ele parecia ansioso por regressar à Caverna, e Ayla não o censurava. Fez um sinal a Lobo para que ficasse com ela. Todos eles, menos Jondalar, precisavam de um pouco de tempo para se habituar ao local. Ao voltar, Ayla o procurou e o encontrou conversando com Joplaya. Hesitou em interromper.
— Ayla — disse ele ao vê-la —, eu estava falando a Joplaya sobre Wymez. Mais tarde você lhe mostra a ponta de lança que ele lhe deu?
Ayla assentiu, e Jondalar virou-se de novo para Joplaya.
— Espere só até vê-la. Os Mamutói são excelentes caçadores de mamutes, e usam nas lanças pontas de sílex, e não de osso. A pedra fura melhor o couro grosso, sobretudo se as lâminas forem finas. Wymez criou uma nova técnica. A ponta é talhada nas duas faces, mas não como se fosse um machado grosseiro. Ele esquenta a pedra... e aí está a diferença. Com isso ele retira lascas mais delicadas e mais finas. Ele consegue produzir uma ponta mais comprida do que minha mão, mas muito estreita e afiadíssima. Sem ver, você não acredita.
Estavam tão próximos um do outro que seus corpos se tocavam enquanto Jondalar explicava animadamente os pormenores da nova técnica, e a descontraída intimidade entre os dois deixou Ayla inquieta. Haviam vivido juntos durante a adolescência. Que segredos ele contara a ela? Que alegrias e tristezas tinham partilhado? Que frustrações e triunfos haviam dividido entre si enquanto aprendiam a difícil arte de talhar o sílex? Até onde Joplaya o conhecia muito melhor do que ela?
Antes, ambos tinham sido estranhos para as pessoas que encontravam durante a Jornada. Agora, somente ela era uma estranha.
Jondalar voltou-se para Ayla.
— Aliás, vou lá buscar essa ponta. Em qual cesta está? — perguntou, já a caminho.
Ela lhe disse e sorriu nervosamente para a moça de cabelos escuros depois que ele se foi, mas nenhuma das duas disse uma palavra. Jondalar voltou quase de imediato.
— Joplaya, eu pedi a Dalanar que viesse aqui... Há muito tempo quero mostrar a ele essa ponta. Espere até você vê-la — disse Jondalar.
Abriu o pacote e mostrou uma ponta de sílex de esmerado lavor, no momento exato em que Dalanar chegava. Ao ver a obra-prima, Dalanar tirou-a da mão de Jondalar e examinou-a com atenção.
— É inigualável! Nunca vi um artesanato de tamanha qualidade — exclamou Dalanar. — Veja só isto, Joplaya. É trabalhada nas duas faces, mas é delgadíssima, pois foram tirados flocos muito finos. Pense no controle, na concentração que esse trabalho terá exigido. Até o toque dessa ponta é diferente. E o brilho! Parece quase... oleosa! Onde você conseguiu isto? No leste o tipo de sílex é diferente?
— Não, é um novo processo, criado por um Mamutói chamado Wymez. É o único artífice que já conheci que pode ser comparado a você, Dalanar. Ele aquece a pedra. É isso que lhe dá esse brilho, e essa textura. Mas o melhor de tudo é que, depois de aquecida, podem-se remover essas lascas. — Jondalar falava com muita animação.
Ayla pôs-se a observá-lo.
— A pedra quase solta as lascas por si só... é isso que permite esse controle. Vou mostrar como ele fez. Não sou tão hábil quanto ele... preciso treinar para aprimorar a técnica... mas vocês vão compreender. Quero encontrar alguns bons pedaços de sílex enquanto estivermos aqui. Com os cavalos, podemos carregar um peso maior, e eu gostaria de levar para casa algumas boas pedras dos Lanzadonii.
— Aqui também é sua casa — disse Dalanar, com tranquilidade. — Mas é claro que amanhã podemos ir à mina e retirar pedras novas. Eu gostaria de ver como se faz isto, mas será mesmo uma boa ponta de lança? Parece tão fina, tão bonita, até frágil demais para ser usada numa caçada real.
— Eles usam essas pontas de lança para caçar mamutes. Realmente, quebram-se com mais facilidade, mas o sílex afiado rompe o couro grosso melhor do que uma ponta de osso e penetra entre as costelas — disse Jondalar. — Quero também mostrar a vocês uma outra coisa. Criei isso quando estava me recuperando do ataque do leão da caverna, no vale de Ayla. É um arremessador de lança. Com ele, uma lança atinge uma distância duas vezes maior. Esperem até ver como isso funciona!
— Acho que estão esperando a gente para a refeição, Jondalar — disse Dalanar, ao notar pessoas que acenavam na boca da caverna. — Todos hão de querer ouvir suas histórias. Entre ali, onde você poderá estar à vontade e todo mundo o escutará. Você nos desperta a curiosidade com esses animais que obedecem às suas ordens e com seus comentários sobre ataques de leões, arremessadores de lanças e novas técnicas de talhar o sílex. Quais outras aventuras e prodígios tem a nos contar?
Jondalar riu.
— Nós ainda nem começamos. Você acreditaria se lhe disséssemos que vimos pedras que produzem fogo e pedras que queimam? Habitações feitas de ossos de mamute, pontas de marfim que puxam fios, e barcos imensos, usados para matar peixes tão grandes que seriam necessários cinco homens de seu tamanho, um em cima do outro, para ir do focinho até o rabo...
Ayla jamais vira Jondalar tão feliz e descontraído, tão solto e desinibido, e percebeu o quanto ele estava feliz por reencontrar sua gente.
Ele enlaçou Ayla e Joplaya enquanto caminhavam na direção da caverna.
— Ainda não escolheu um companheiro, Joplaya? — perguntou. — Não vi ninguém que parecesse ser seu dono.
Joplaya riu. — Não, estive à sua espera, Jondalar.
— Lá vem você com suas brincadeiras — disse Jondalar, rindo. Virou-se para explicar a Ayla. — Primos-irmãos não podem ser companheiros, você sabe.
— Eu já planejei tudo — continuou Joplaya. — Pensei em fugirmos e começar nossa própria Caverna, como fez Dalanar. Mas é claro que só aceitaríamos talhadores de sílex. — Seu riso pareceu forçado, e ela olhou apenas para Jondalar.
— Eu não disse, Ayla? — falou Jondalar, virando-se para ela, mas apertando o braço de Joplaya. — Sempre com brincadeiras. Joplaya não pára de brincar.
Ayla não teve certeza de haver compreendido a brincadeira.
— Falando sério, Joplaya, você deve estar prometida.
Echozar me pediu, mas ainda não resolvi.
Echozar? Acho que não o conheço. Ele é Zelandonii?
— É Lanzadonii. Ligou-se a nós faz alguns anos. Dalanar salvou-lhe a vida, ao encontrá-lo quase afogado. Acho que ele ainda está na caverna. É acanhado. Quando o conhecer, você vai entender por quê. Ele parece... bem, ele é diferente. Não gosta de conhecer estranhos, diz que não quer ir conosco à Reunião de Verão dos Zelandonii. Mas é um doce de pessoa e faria tudo por Dalanar.
— Você irá à Reunião de Verão este ano? Espero que sim, ao menos para o Matrimónio. Ayla e eu vamos nos tornar companheiros. — Dessa vez ele apertou o braço de Ayla.
— Não sei — respondeu Joplaya, olhando para o chão. Depois, levantou o olhar para ele. — Sempre soube que você nunca iria ficar com aquela mulher Marona que estava à sua espera no ano em que você partiu, mas não imaginei que você trouxesse uma mulher.
Jondalar enrubesceu ante a menção da mulher que ele prometera tomar como companheira e abandonara, mas não notou que Ayla se retesou no momento em que Joplaya saiu correndo em direção a um homem que aparecera na entrada da caverna.
— Jondalar! Aquele homem! — Ele captou o tom de sobressalto em sua voz e olhou para ela. Estava branca como cera.
— O que houve, Ayla?
— Ele se parece com Dure! Ou talvez como meu filho será quando crescer. Jondalar, aquele homem faz parte do Clã!
Jondalar olhou com mais atenção. Era verdade. O homem que Joplaya estava chamando na direção deles tinha o aspecto do Clã. Mas, ao se aproximarem, Ayla observou uma diferença importante entre aquele homem e os homens do Clã que ela conhecia. Ele era quase de sua altura.
Quando ele chegou perto, ela fez um movimento com uma das mãos. Foi sutil. praticamente imperceptível a todos os demais, porém os grandes olhos castanhos do homem arregalaram-se, surpresos.
— Onde aprendeu isso? — perguntou ele, fazendo o mesmo gesto. Tinha a voz grave, mas clara e articulada. Ele não tinha problema algum para falar, sinal claro de que era mestiço.
— Fui criada por um Clã. Eles me acharam quando eu era muito pequena. Não me lembro de nenhuma outra família antes disso.
— Foi criada por um Clã? Eles amaldiçoaram minha mãe pelo fato de eu ter nascido — respondeu ele com amargura. — Qual Clã a criou?
— Eu achei mesmo que o sotaque dela não era Mamutói — interpôs Jerika. Várias pessoas estavam perto deles.
Jondalar respirou fundo. Soubera desde o início que as origens de Ayla viriam à baila mais cedo ou mais tarde.
— Quando eu a conheci, Jerika, ela não sabia nem falar, ao menos com palavras. Mas salvou minha vida quando fui atacado por um leão. Foi adotada pelos Mamutói no Fogo dos Mamutói por ser muito versada na arte das curas.
— Ela é Mamute? Aquela que Serve à Mãe? Onde está a marca? Não vejo tatuagem alguma em seu rosto — disse Jerika.
— Ayla aprendeu a ser curandeira com a mulher que a criou, uma Xamã da gente que ela chama de Clã... cabeças-chatas... mas é tão hábil quanto qualquer Zelandoni. O Mamute estava apenas começando a treiná-la para Servir à Mãe quando partimos. Ela não foi iniciada. É por isso que não tem marca — explicou Jondalar.
— Eu sabia que ela era Zelandoni. Tinha de ser, para controlar animais assim, mas como pôde aprender a curar com uma mulher cabeça-chata? — exclamou Dalanar. — Antes de eu conhecer Echozar, achava que eles eram pouco mais do que animais. Com ele vim a saber que podem falar, de certa forma, e agora você me informa que eles têm curandeiros. Devia ter-me dito isto, Echozar.
— Como iria saber? Não sou um cabeça-chata. — Echozar pronunciou a palavra como se a cuspisse. — Só conheci minha mãe e Andovan.
Ayla surpreendeu-se com a raiva em sua voz.
— Disse que sua mãe foi amaldiçoada? E no entanto ela sobreviveu, para poder criá-lo? Deve ter sido uma mulher extraordinária.
Echozar fitou diretamente os olhos azuis-acinzentados da mulher alta e loura. Não houve hesitação, nenhum movimento tendente a evitar-Ihe o olhar. Sentiu-se estranhamente atraído por aquela mulher a quem nunca vira, à vontade com ela.
— Ela não falava muito sobre o assunto — disse Echozar. — Foi atacada por alguns homens, que mataram seu companheiro quando ele quis defendê-la. Era irmão do líder do Clã dela, e culparam-na pela morte dele. O líder disse que ela trazia azar. Mais tarde, porém, quando ela soube que estava esperando um filho, ele a tomou como uma segunda mulher. Quando nasci, ele disse que meu nascimento só comprovava que ela era portadora de azar. Não só provocara a morte de seu companheiro como dera à luz uma criança deformada. A seguir ele lhe lançou uma maldição... de morte — disse ele.
Estava conversando com aquela mulher com mais franqueza do que lhe era habitual, e ele próprio se surpreendeu.
— Não sei ao certo o que isso significa... uma maldição de morte — prosseguiu Echozar. — Ela só me contou uma vez, e mesmo assim não pôde terminar. Disse que todo mundo se afastava dela, como se não a enxergassem. Diziam que ela estava morta, e mesmo quando ela tentava fazer com que a olhassem, era como se ela não existisse, como se estivesse morta. Deve ter sido terrível.
— Foi — disse Ayla, baixinho. — É difícil continuar a viver se você não existe para as pessoas a quem ama. — Seus olhos marejaram ao recordar-se.
— Minha mãe me pegou e os abandonou, para ir embora e morrer, como esperavam que fizesse, mas Andovan a encontrou. Já nessa época era velho, e vivia sozinho. Nunca me contou por que havia deixado sua Caverna, era alguma coisa ligada a um líder cruel...
— Andovan... — interrompeu Ayla. — Ele era S'Armunai?
— Era, acho que era — respondeu Echozan. — Ele não falava muito sobre sua gente.
— Sabemos a respeito desse líder cruel — disse Jondalar com raiva.
— Andovan cuidou de nós — continuou Echozar. — Ensinou-me a caçar. Aprendeu a falar a língua do Clã com minha mãe, mas ela nunca pronunciava mais do que algumas poucas palavras. Aprendi as duas línguas, e ela me admirava por poder pronunciar os sons dele. Andovan morreu há poucos anos, e depois disso minha mãe perdeu a vontade de viver. A maldição de morte finalmente a levou.
— O que você fez então? — perguntou Jondalar.
— Passei a viver sozinho.
— Não é fácil — disse Ayla.
— Não, não é fácil. Tentei achar alguém com quem pudesse viver. Nenhum Clã deixava que eu me aproximasse. Jogavam-me pedras e diziam que eu era deformado e azarado. E também nenhuma Caverna queria saber de mim. Diziam que eu era uma abominação de espíritos misturados, meio-homem e meio-animal. Depois de algum tempo, parei de tentar. Não queria mais ficar sozinho. Um dia pulei no no do alto de uma pedra. A próxima coisa que vi foi Dalanar olhando para mim. Ele me levou para sua Caverna. Agora eu sou Echozar dos Lanzadonii — concluiu com orgulho, lançando um olhar para o homem alto a quem idolatrava.
Ayla pensou no filho, feliz por ele ter sido aceito em criança e por existirem pessoas que o tinham amado e desejado quando ela fora obrigada a deixá-lo.
— Echozar, não odeie a gente de sua mãe — disse ela. — Não são ruins. Mas são tão antigos que para eles é difícil mudar. Suas tradições são antiquíssimas, e não compreendem as coisas novas.
— E eles são gente - disse Jondalar a Dalanar. - Esta foi uma das coisas que aprendi nessa Jornada. Conhecemos um casal, pouco antes de começarmos a travessia da geleira... isso é outra historia... Mas estão planejando reuniões para tratar de problemas que vêm enfrentando com alguns de nós, principalmente com alguns rapazes Losadunai. Alguém ate os procurou para falar sobre comércio.
— Cabeças-chatas fazendo reuniões? Comércio? Este mundo esta mudando mais depressa do que posso compreender — disse Dalanar. — Até eu conhecer Echozar, não teria acreditado em nada disso.
— As pessoas podem chamá-los de cabeças-chatas e animais mas você sabe que sua mãe foi uma mulher valente, Echozar — disse Ayla, estendendo-lhe as mãos. - Eu sei o que significa não ter ninguém. Agora eu sou Ayla dos Mamutói. Vai me dar as boas-vindas, Echozar dos Lanzadonii?
Ele lhe tomou as mãos, e Ayla sentiu que tremiam.
— Você é bem-vinda aqui, Ayla dos Mamutói — disse.
Jondalar deu um passo à frente com as mãos estendidas.
— Eu o saúdo, Echozar dos Lanzadonii — disse.
— Eu lhe dou as boas-vindas, Jondalar dos Zelandonii — disse Echozar —, mas você não precisa de que lhe dêem boas-vindas aqui. Já ouvi falar do filho do fogo de Dalanar. Você é muito parecido com ele.
Jondalar riu.
— É o que todo mundo diz, mas não acha que o nariz dele é um pouco maior do que o meu?
— Eu não acho. Acho que o seu é maior do que o meu — disse Dalanar, rindo, batendo no ombro do homem mais jovem. — Entre. A comida está esfriando.
Ayla ficou ali um pouco mais, conversando com Echozar. Quando se virou para entrar, Joplaya a deteve.
— Quero conversar com Ayla, Echozar, mas não entre ainda. Quero falar com você também — disse.
O homem se afastou rapidamente, para deixar as moças a sós, mas não antes de Ayla perceber a expressão de adoração com que ele fitou Joplaya.
— Ayla, eu... — começou Joplaya. — Eu... acho que sei por que Jondalar a ama. Eu quero dizer... que desejo felicidades a vocês dois.
Ayla estudou a moça de cabelos escuros. Percebeu nela uma mudança, como se ela se fechasse dentro de si, uma sensação de resoluta decisão. De repente, Ayla entendeu por que se sentira tão perturbada com a moça.
— Obrigada, Joplaya. Eu o amo muito. Seria difícil viver sem ele. Perdê-lo deixaria dentro de mim um enorme vazio e seria difícil suportar isso.
— É, muito difícil de suportar — disse Joplaya, fechando os olhos por um instante.
— Vocês não vão entrar para comer? — perguntou Jondalar, saindo da caverna.
— Vá você na frente, Ayla. Primeiro tenho de fazer uma coisa.
— Echozar deu uma olhada no grande pedaço de obsidiana, mas logo desviou a vista. As ondulações do brilhante vidro negro lhe distorciam a imagem, mas nada poderia mudá-la e hoje ele não queria ver-se. Vestia-se com uma túnica de pele cujas extremidades eram decoradas com penachos, contas de ossos de ave, plumas e pontudos dentes de animais. Nunca trajara algo tão fino. Fora Joplaya quem lhe confeccionara a rica vestimenta, destinada à cerimónia de sua adoção oficial na Primeira Caverna dos Lanzadonii.
Ao penetrar no grande espaço da caverna, sentiu a maciez do couro, o qual alisou com reverência, lembrando-se de que tinham sido as mãos dela que haviam confeccionado aquelas vestes. A lembrança da amada quase o feriu. Amara-a desde o início. Fora ela quem lhe dirigira a palavra, ouvira-o, instigara-o. Jamais ele enfrentaria todos esses Zelandonii na Reunião de Verão daquele ano se não fosse por ela, e ao vê-la cercada por tantos pretendentes, teve vontade de morrer. Foram precisos meses para juntar a coragem necessária para declarar-se: como alguém como ele poderia atrever-se a sonhar com tal mulher? A ausência de uma recusa imediata alimentara seus sonhos. O sim, porém, tardava tanto que ele o interpretava como uma forma de dizer não.
Enfim, no dia em que Ayla e Jondalar chegaram, ela perguntou se ele ainda a queria. Echozar não acreditou. Querê-la? Jamais a quisera tanto na vida. Aguardou o momento apropriado para falar a sós com Dalanar. As visitas, porém, não o largavam, e Echozar não queria perturbá-las. Também tinha receio de perguntar. Apenas o medo de perder sua única oportunidade de ser feliz instilou-lhe a necessária coragem.
Dalanar respondeu-lhe, então, que ela era filha de Jerika. Ele precisava, pois, conversar com a mãe da moça, mas tudo que Dalanar perguntara era se Joplaya concordava com o romance e se ele a amava. Se ele a amava? Se a amava? Ó, Mãe, como a amava!
Echozar postou-se em meio ao grupo que aguardava com expectativa. Sentiu o coração bater mais rápido ao ver Dalanar levantar-se e caminhar em direção a uma lareira situada no meio da caverna, em frente à qual havia a pequena escultura de uma mulher de formas generosas. Retratava os seios grandes, o acentuado estômago e as nádegas avantajadas das donii. A cabeça, porém, era pouco maior que um botão e as pernas e braços eram apenas sugeridos. Dalanar parou ao lado da lareira e voltou-se para o grupo.
— Primeiro, desejo anunciar que este ano iremos novamente à Reunião de Verão dos Zelandonii — começou Dalanar — e convidamos quem quiser ir conosco. A viagem é longa, mas espero convencer um jovem Zelandoni a retornar e viver conosco. Não temos nenhum Lanzadoní e precisamos ter um Servidor a Mãe. Estamos crescendo e breve haverá uma Segunda Caverna. Algum dia, os Lanzadonii terão suas próprias Reuniões de Verão. Há outra razão para ir. Não somente será santificada a união de Jondalar e Ayla no Matrimónio, como ainda teremos este ano outro motivo para celebrar — disse ele.
Dalanar pegou o ícone de madeira que representava a Grande Mãe e balançou a cabeça. Echozar estava nervoso, embora soubesse que essa era apenas uma cerimónia de comunicação, bem mais informal que um Matrimónio, com seus tabus e rituais de purificação. Quando ambos postaram-se à sua frente, Dalanar começou.
— Echozar, Filho de Mulher abençoada pela Doni, da Primeira Caverna de Lanzadonii, pediste Joplaya, Filha de Jerika, companheira de Dalanar, para ser tua companheira. Confirmas isto?
— É verdade — disse Echozar, tão baixo que mal se podia escutar.
— Joplaya, Filha de Jerika, companheira de Dalanar...
Embora as palavras não fossem as mesmas, o significado era idêntico, e Ayla, soluçante, tremeu ao relembrar a cerimónia em que se postara ao lado de um homem moreno que a olhava do mesmo modo que Echozar contemplava Joplaya.
— Não chore, Ayla, esta é uma ocasião alegre — instou Jondalar, abraçando-a com ternura.
Ayla mal podia falar. Sabia como uma mulher se sente ao lado do homem errado. Para Joplaya não havia, porém, nenhuma esperança, nem mesmo o sonho de que, algum dia, o homem que ela amava pudesse desafiar os costumes por seu amor. Ele nem sabia que era tão amado, e ela nada podia dizer. Tratava-se de um primo próximo, quase um irmão, um amor impossível e, além disso, ele amava outra mulher. Ayla sentiu a dor da outra como se fosse sua e soluçou ao lado do homem que ambas amavam.
— Estive me lembrando de quando fiquei assim ao lado de Ranec — desabafou ela.
Jondalar foi tomado por uma viva recordação. Sentiu um aperto no peito e uma dor na garganta. Abraçou-a com força:
— É, mulher, assim você logo me fará chorar.
O homem olhou para Jerika, sentada com inflexível dignidade, enquanto as lágrimas escorriam-lhe pela face. Por que as mulheres sempre choram nessas ocasiões?, refletiu.
Jerika olhou para Jondalar com uma expressão insondável, depois para Ayla, soluçando baixinho em seus braços.
— É hora de casar, hora de afastar sonhos impossíveis. Nem todas podem ter o homem perfeito — murmurou, voltando-se para a cerimónia.
— ...A Primeira Caverna dos Lanzadonii aceita essa união? — perguntou Dalanar, levantando os olhos.
— Aceitamos — responderam todos em coro.
— Echozar, Joplaya, vocês prometeram unir-se. Que Doni, Grande Mãe da Terra, abençoe essa união — concluiu o líder, tocando com a imagem de madeira o alto da cabeça de Echozar e o estômago de Joplaya. Em seguida, recolocou a donii na frente da lareira, fincando na terra as pernas em forma de cavilha para que a imagem permanecesse em pé.
O casal virou-se para o grupo e começou a andar lentamente em volta da lareira. No silêncio solene, o inefável ar de melancolia que cercava a linda mulher tornava-a ainda mais adorável.
O homem ao seu lado era um pouco mais baixo. Seu narigão adunco avançava sobre o forte maxilar sem queixo que se projetava para a frente. A enorme fronte saliente destacava-se ainda mais devido às grossas e desalinhadas sobrancelhas que cruzavam a testa de ponta a ponta, numa linha contínua de pêlos. Os braços eram muito musculosos, enquanto o enorme peitoral e o corpo alongado sustentavam-se sobre pernas curtas, peludas e arqueadas. Eram essas características que o marcavam como pertencente ao Clã. Contudo, ele não poderia ser chamado de cabeça-chata. Ao contrário dos demais, não tinha a testa curta e inclinada que terminava num largo topo — a aparência achatada em forma de abóbora que lhes valera a designação. Em vez disso, a fronte de Echozar erguia-se acima dos supercílios salientes com a mesma regularidade e altura encontrada em todos os outros habitantes da caverna.
Echozar, porém, era incrivelmente feio. A antítese da mulher ao seu lado. Somente seus olhos, grandes e castanhos, não justificavam a afirmação. Estavam tão cheios de terna adoração pela mulher amada que até abafavam a indescritível tristeza que pairava na atmosfera por onde Joplaya se movia.
No entanto, nem mesmo o amor de Echozar conseguia vencer a dor que Ayla sentia por Joplaya. Ela enterrou a cabeça no peito de Jondalar para fugir à visão que tanto a feria, embora lutasse para dominar a desolação.
Quando o casal completou a terceira volta, os votos de boa sorte quebraram o silêncio. Ayla deteve-se para se recompor. Finalmente, instada por Jondalar, aproximaram-se para externar seus votos de felicidade.
— Joplaya, estou contente por você estar celebrando seu Matrimónio conosco — disse Jondalar, abraçando-a. A noiva agarrou-se a ele, que se surpreendeu com a intensidade do abraço. Jondalar sentiu uma desconfortável sensação de que ela se despedia, como se jamais fosse voltar a vê-lo.
— Não preciso desejar-lhe felicidade, Echozar — afirmou Ayla. — Em vez disso, direi que desejo que você seja sempre tão feliz como está agora.
— Com Joplaya, como poderia ser de outra forma? — respondeu. Num gesto espontâneo, Ayla o abraçou. Para ela, ele não era feio. Tinha uma confortadora aparência familiar. Ele demorou um pouco para retribuir. Afinal, as mulheres bonitas não o abraçavam com frequência, e ele sentia uma cálida afeição por essa mulher loura.
Ayla voltou-se então para Joplaya. Ao contemplar aqueles olhos, tão verdes quanto os de Jondalar eram azuis, as palavras que pretendia pronunciar prenderam-se em sua garganta. Com um choro dolorido abraçou Joplaya, que lhe deu tapinhas nas costas, como se fosse Ayla quem necessitasse de consolo.
— Está tudo bem, Ayla — disse Joplaya com uma voz que soava oca, vazia. Seus olhos estavam secos. — Que mais eu poderia fazer? Jamais encontrarei um homem que me ame como Echozar. Sei há muito tempo que me casaria com ele. Não havia, pois, nenhum motivo para esperar mais.
Ayla retrocedeu, lutando para controlar as lágrimas que vertia pela mulher que não as podia derramar. Viu Echozar aproximar-se e pousar o braço, timidamente, na cintura de Joplaya, como se ainda não conseguisse acreditar que tudo era verdade. Temia acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Echozar não sabia que tinha apenas o invólucro da mulher amada. Que importava? O exterior era suficiente.
— Bem... não. Não vi com meus próprios olhos — desconversou Hochaman — e não posso afirmar que acreditei quando me contaram. Mas se você é capaz de montar num cavalo e ensinar um lobo a segui-lo, por que então alguém não poderia aprender a andar de mamute?
— Onde foi que você disse que isso aconteceu? — perguntou Dalanar.
— Foi bem ao leste, pouco depois de nossa partida. Deve ter sido um mamute de quatro dedos — explicou Hochaman.
— Um mamute de quatro dedos? Nunca ouvi falar nisso — contestou Jondalar —, nem mesmo entre os Mamutói.
— Você sabe que eles não são os únicos caçadores de mamutes — defendeu-se Hochaman. — Além do mais, não vivem muito longe no leste. Acredite-me, em comparação com a distância a que estou me referindo, eles são nossos vizinhos. Quando se vai bem para o leste, quase perto do Mar Sem Fim, os mamutes têm quatro dedos nas patas traseiras. Também tendem a ser mais escuros. Alguns deles são quase pretos.
— Bem, se Ayla foi capaz de montar um leão, não duvido que alguém haja conseguido montar um mamute. O que você acha? — perguntou Jondalar, dirigindo-se a Ayla.
— Se você conseguir um filhote suficientemente jovem — ponderou ela —, acho que quase todo animal criado no meio das pessoas pode aprender alguma coisa. Pelo menos, não ter medo de gente. Os mamutes são inteligentes, podem aprender muitas coisas. Já observamos seu modo de quebrar gelo para obter água. Diversos outros animais agem da mesma forma.
— Eles também a farejam de longe — emendou Hochaman. — Lá no leste é bem mais seco, e as pessoas sempre dizem "se sua água acabar, procure um mamute". Caso precisem, são capazes de passar bastante tempo sem água, mas sempre acabam por encontrá-la.
É bom saber disso — comentou Echozar.
Sim. Especialmente quando se viaja muito — completou Joplaya.
Não pretendo viajar muito — adiantou Echozar.
Mas vocês irão à Reunião de Verão dos Zelandonii — sugeriu Jondalar.
Para o nosso Matrimónio, claro — esclareceu Echozar —, e gostaria de encontrá-los de novo. Seria ótimo se você e Ayla morassem aqui.
Sim. Espero que ambos considerem a oferta — concordou Dalanar. — Você sabe que esta será sempre a sua casa, Jondalar, e que nós não possuímos um curandeiro, à exceção de Jerika, que não tem treinamento suficiente. Também precisamos de uma lanzadoni e achamos que Ayla seria perfeita para a função. Você poderia visitar sua mãe e voltar conosco após a Reunião de Verão.
Creia-me, Dalanar, sua oferta muito nos lisonjeia — agradeceu Jondalar —, e iremos considerá-la.
Ayla olhou para Joplaya. Ela estava distante, fechada em si mesma. Ayla gostava de Joplaya, mas ambas só conversavam sobre assuntos superficiais. Ayla não conseguia superar sua tristeza pelo compromisso de Joplaya, pois ela mesma vivera situação muito semelhante, e sua própria felicidade transformara-se num lembrete do pesar de Joplaya. Por isso, embora houvesse simpatizado com todos, sentia-se alegre por terem de partir pela manhã.
Sentiria uma falta especial de Jerika e Dalanar e de suas inflamadas "discussões". Jerika era uma mulher pequena: quando Dalanar esticava os braços, ela podia passar por baixo e ainda sobrava espaço. Era, porém, dona de uma vontade indómito. Exercia sobre a Caverna uma liderança tão grande quanto ele e discutia ferozmente quando sua opinião diferia da dele. Dalanar a escutava com atenção, mas nem sempre concordava. Sua principal preocupação era o bem-estar do seu povo, a quem frequentemente submetia as questões polémicas. A maioria das decisões, porém, era fruto de sua própria deliberação, como costuma acontecer com qualquer líder natural. Ele nunca dava ordens, apenas impunha respeito.
No início Ayla estranhou, mas assim que compreendeu o relacionamento, passou a adorar as discussões, pouco se importando em deixar transparecer o sorriso que lhe aflorava aos lábios ao ver uma mulher pouco maior que uma criança manter um acalorado debate com um homem gigantesco. O que mais a surpreendia era como ambos conseguiam interromper uma violenta discussão com uma terna palavra de afeto, ou falar sobre outras coisas como se não tivessem acabado de avançar nas respectivas gargantas e, em seguida, retomar o combate verbal como se fossem os piores inimigos. Assim que chegavam a uma conclusão, tudo era esquecido. Ambos, porém, pareciam gostar dos duelos intelectuais e, diferenças físicas à parte, era uma batalha de iguais. Não apenas se amavam, como nutriam profundo respeito mútuo. O tempo esquentava, e a primavera explodia em florações quando Ayla e Jondalar novamente partiram. Dalanar desejou os melhores votos para a Nona Caverna dos Zelandonii e lembrou ao casal sua oferta. Ambos haviam sido bem recebidos, mas os sentimentos de Ayla em relação a Joplaya impossibilitavarn-na de viver com os Lanzadonii. Seria extremamente penoso para ambas, mas ela não tinha como explicar isso a Jondalar.
Ele notara uma certa dificuldade no relacionamento entre as duas mulheres, embora elas parecessem gostar uma da outra. Joplaya também mostrava-se diferente com ele. Mantinha-se distante, sem as brincadeiras e as provocações de antes. Seu último abraço, porém, o impressionara. Os olhos dela estavam tomados de lágrimas, embora ele lhe lembrasse que sua viagem não seria longa e que ambos voltariam a encontrar-se em breve, na Reunião de Verão.
Jondalar sentira-se aliviado com a calorosa recepção que ambos receberam e iria pensar seriamente na oferta de Dalanar, sobretudo se os Zelandonii não se mostrassem muito receptivos com relação a Ayla. Era bom saber que tinham onde ficar, mas no fundo do coração não esquecia que, embora gostasse muito de Dalanar e dos Lanzadonii, os Zelandonii eram o seu povo. Era junto deles que Jondalar gostaria de viver com Ayla.
Quando partiram, Ayla sentiu-se livre de um fardo. Apesar da chuva, ela estava contente por sentir a elevação da temperatura e, quando fazia sol, os dias eram bonitos demais para que alguém ficasse triste por muito tempo. Ela era uma mulher apaixonada que viajava com seu homem em direção à terra dele, onde construiriam um lar. Embora repleta de expectativas e receios, Ayla estava feliz.
Chegaram a uma região que Jondalar já conhecia. Cada marco familiar era saudado com excitação e, quase sempre, com um comentário ou uma história. Percorreram a passagem entre duas cadeias de montanhas e chegaram a um rio que serpenteava e dobrava à direita. Seguiram o rio até a nascente, atravessaram diversos rios caudalosos que corriam no sentido norte-sul pelo profundo vale e subiram um grande maciço do qual se elevavam vulcões, um deles ainda ativo, os demais extintos. Ao cruzarem um platô, próximo à nascente de um rio, passaram por algumas fontes termais.
Estou certo de que aqui começa o rio que passa em frente da Nona Caverna! — exclamou Jondalar, cheio de entusiasmo. — Estamos quase lá, Ayla! Poderemos chegar em casa antes do cair da tarde.
São essas as fontes quentes de que você me falou? — perguntou Ayla.
Sim. Meu povo chamava-as de Águas Curativas da Doni.
Vamos passar a noite aqui — sugeriu ela.
Mas já estamos quase lá — ponderou Jondalar —, quase no fim da nossa viagem, e estou fora há tanto tempo...
É por isso que quero passar a noite aqui. É o fim da nossa viagem. Quero banhar-me na água quente e passar uma última noite a sós com você, antes de reencontrarmos os nossos parentes.
Jondalar olhou-a e sorriu.
Você tem razão. Depois de tanto tempo, que significa uma noite a mais? E é a última vez que ficaremos sozinhos, por um bom tempo. Além disso — deu um sorriso maroto —, gosto de ficar com você nas fontes termais.
Armaram a tenda num local que obviamente já fora usado. Ayla teve a impressão de que os cavalos estavam agitados quando foram soltos para pastar no capim fresco do platô, mas ela vira pegadas de potros e de um garanhão. Ao recolher os cavalos, encontrou cogumelos novos, flores e brotos de maçã silvestre. Voltou para o acampamento com a frente de sua túnica parecendo uma cesta, cheia de verduras e outras guloseimas.
Parece que você vai dar uma festa — comentou Jondalar.
Não é má ideia. Vi um ninho e vou voltar lá para ver se encontro ovos — confirmou Ayla.
E o que você acha disso? — indagou ele, exibindo uma truta. Ayla sorriu de satisfação. — Achei que a tinha visto no córrego. Fiz ponta num galho verde e enrosquei uma minhoca. O peixe mordeu na mesma hora; parecia que estava esperando por mim.
Sem dúvida, os preparativos para uma festa!
Mas a festa pode esperar, não pode? — insinuou Jondalar. — Acho que agora prefiro um banho quente. — As intenções expressas pelos olhos azuis despertaram nela os mesmos desejos.
Maravilhosa ideia — respondeu Ayla. Esvaziou a túnica junto ao local do fogo e correu para os braços dele.
Sentaram-se lado a lado, próximos ao fogo. Sentiam-se repletos, satisfeitos e completamente relaxados, enquanto apreciavam a dança das fagulhas, que desenhavam arabescos e desapareciam na noite. Lobo cochilava por perto. Súbito, levantou a cabeça e apontou-a, orelhas em pé, para o platô escuro. Ouviram um relincho forte, porém desconhecido. A égua emitiu um guincho e Racer um relincho lamuriento.
Há um cavalo desconhecido no campo — disse Ayla, levantando-se num pulo. Não havia lua, e era difícil enxergar.
Você vai se perder lá. Deixe-me procurar algo para fazer uma tocha.
Huiin guinchou de novo, o cavalo desconhecido relinchou e ouviram-se os galopes distanciando-se na noite.
Não dá mais — conformou-se Jondalar. — Já é muito tarde da noite. Acho que ela se foi. Um cavalo capturou-a outra vez.
Desta vez acho que ela foi porque quis. Achei-a nervosa, hoje. Deveria ter prestado mais atenção — queixou-se Ayla. — Ela está no cio, Jondalar. — Tenho certeza de que era um garanhão e acho que Racer foi com eles. Ele ainda é muito jovem, mas estou certa de que há outras éguas no cio. Ele foi atrás delas.
Está muito escuro para procurá-los agora, mas conheço essa região. Podemos seguir os rastros pela manhã.
Da outra vez o garanhão a levou, ela voltou por si mesma e depois teve Racer. Acho que agora ela foi começar um outro bebê — comentou Ayla, sentando-se perto do fogo. Olhou para Jondalar com um sorriso malicioso. — Parece coerente, nós duas grávidas ao mesmo tempo.
Ele levou algum tempo para perceber o significado da notícia.
As duas... grávidas... ao mesmo tempo? Ayla! Você está dizendo que está grávida? Vai ter um bebê?
Sim — respondeu, concordando com a cabeça —, vou ter um bebê seu, Jondalar.
Um bebê meu? Você vai ter um bebê meu? Ayla! Ayla! — Ele a levantou, rodopiou-a pelo ar e beijou-a. — Tem certeza? Quero dizer, tem certeza que vai ter um bebê? O espírito pode ter vindo de um dos homens da Caverna de Dalanar, ou mesmo dos Losadunai... Está bem, se é isso que a Mãe quer.
Passei minha lua sem sangrar e sinto-me grávida. Até já senti um pouco de enjoo de manhã. Mas nada sério. Acho que o começamos quando descemos a geleira — avaliou Ayla —, e o bebê é seu, Jondalar, estou certa disso. Não pode ser de mais ninguém. Começou com a sua essência. A essência da sua masculinidade.
Meu bebê? — repetiu ele com um suave deslumbramento no olhar. Pousou a mão sobre o estômago dela. — Você está com o meu bebê aqui? Eu desejava tanto isso — revelou, com o olhar perdido e as pálpebras piscando. — Sabe, cheguei até a pedir à Mãe.
Você não me disse que a Mãe atende a todos os seus pedidos, Jondalar? — Ela sorria pela felicidade dele, e também pela sua. — Diga-me, você pediu menino ou menina?
Só um bebê, Ayla, não importa qual.
Então você não se importa se eu desta vez torcer por uma menina?
Ele balançou a cabeça.
Só seu bebê e, talvez, meu.
O problema de seguir cavalos a pé é que eles andam bem mais rápido que a gente — reclamou Ayla.
Mas acho que sei para onde devem estar indo — tranquilizou-a Jondalar —, e conheço um atalho para o alto do maciço.
E se eles não estiverem lá, onde você pensa que estão?
Teremos então que voltar e seguir a trilha de novo, mas os rastros estão levando à direção certa. Não se preocupe, Ayla, vamos encontrá-los.
Temos de encontrá-los, Jondalar. Estamos juntas há muito tempo, não posso mais deixá-la voltar para o bando.
Jondalar conduziu-a para um campo abrigado onde os cavalos selvagens costumavam reunir-se. De fato, ao chegarem lá viram diversos cavalos, e Ayla não demorou muito a reconhecer sua amiga. Desceram a encosta abrupta, até a borda do plano capinzal. Durante a árdua descida, Jondalar observou Ayla com muita atenção, preocupado com que ela se esforçasse em excesso. Lá embaixo, ela emitiu um assobio familiar.
Huiin levantou as orelhas e galopou em direção à mulher, seguida pelo grande garanhão claro e por um cavalo marrom, mais novo. O garanhão voltou para ameaçar o jovem pretendente, que fugiu. Embora excitado pela presença de fêmeas no cio, ele ainda não tinha condições de enfrentar o garanhão, mais forte e experiente. Jondalar correu para Racer com a lança na mão, para proteger-se do poderoso animal. O cavalo jovem, porém, distraíra a atenção do garanhão que, após persegui-lo, voltou para junto da fêmea.
Ayla abraçava o pescoço de Huiin quando o garanhão chegou e empinou, mostrando todo o seu potencial. A égua afastou-se de Ayla para responder ao chamado. Jondalar aproximou-se, com um olhar preocupado, puxando Racer por uma forte corda presa ao cabresto do animal.
— Você pode tentar botar o cabresto nela — aconselhou Jondalar.
— Não. Teremos de acampar por aqui esta noite. Eles estão fazendo um bebê, e Huiin deseja um. Não quero impedi-la — disse Ayla.
Jondalar encolheu os ombros em aquiescência.
— Por que não? Não há pressa. Poderemos acampar um pouco aqui. — Sentiu Racer puxar na direção do bando. — Ele quer se juntar aos outros. Você acha que seria seguro deixá-lo ir?
— Não acho que vão a lugar nenhum. Este campo é bastante amplo e, caso eles saiam, poderemos subir e ver lá de cima para onde estão indo. Pode ser bom para ele ficar um pouco com os outros cavalos. Talvez aprenda alguma coisa — disse Ayla.
— Acho que você tem razão — concordou Jondalar, retirando o cabresto e observando Racer galopar pelo campo afora. — Será que algum dia ele chegará a ser um garanhão de bando? E compartilhar os Prazeres com todas as fêmeas? — E, talvez, fazer crescer novos cavalos dentro delas, pensou.
— Também precisamos encontrar um local para acampar e ficar à vontade — sugeriu Ayla — e caçar algo para comer. Talvez haja galos silvestres entre os salgueiros próximos ao córrego.
— Pena que não haja fontes termais por aqui — lamentou-se Jondalar. — É impressionante como um banho quente relaxa.
Ayla contemplou, de grande altura, uma infinita extensão de água. Na direção oposta, a grande planície relvada estendia-a até onde seus olhos podiam alcançar. Perto dali, situava-se uma familiar campina que terminava numa parede rochosa, onde se localizava uma caverna cuja entrada se escondia atrás de aveleiros.
Ayla tinha medo. A neve que caía lá fora bloqueava a entrada, mas quando ela afastou os arbustos e saiu, era primavera. As flores cresciam e os pássaros cantavam. A vida se renovava por toda parte. O choro robusto de um recém-nascido vinha da caverna.
Ela seguia alguém montanha abaixo, carregando um bebê no quadril, dentro de um manto. O homem que a conduzia era manco. Andava com um bastão e levava algo num manto, cujo volume sobressaía em suas costas. Era Creb, que protegia o recém-nascido. A caminhada parecia não ter fim. Após percorrer uma longa distância através das montanhas e grandes planícies, finalmente alcançaram um vale que abrigava um campo relvado. Os cavalos iam sempre lá.
Creb parou, tirou das costas seu cheio manto e colocou-o no chão. Ela julgou ver um osso branco lá dentro, mas um jovem cavalo marrom saiu do manto e correu para uma égua clara. Ayla assobiou para o cavalo, mas ele afastou-se a galope junto com um garanhão claro. Creb voltou-se e acenou, mas ela não conseguiu compreender o sinal. Era uma linguagem corriqueira que ela não conhecia. Ele fez outro sinal.
— Venha, poderemos chegar lá antes do anoitecer.
Ela estava num cumprido túnel dentro de uma caverna. Uma luz bruxuleava lá na frente. Era uma abertura para o exterior. Ela andava por um caminho íngreme ao longo de uma parede feita de uma rocha branca e cremosa, seguindo um homem que se movimentava a passos largos. Ela conhecia o lugar e se apressava para alcançar o homem.
— Espere! Espere por mim. Estou chegando — gritava.
— Ayla! Ayla! — Jondalar sacudia-a. — Você está tendo um sonho ruim?
— Um sonho estranho, mas não ruim — explicou ela. Ayla levantou-se, sentiu náuseas e deitou-se outra vez, na esperança de que passassem. Jondalar batia com a vestimenta de couro no garanhão claro, enquanto Lobo latia e acuava para permitissem que Ayla colocasse o cabresto na cabeça de Huiin. Ayla carregava apenas um pequeno fardo. Racer, bem amarrado a uma árvore, levava a maior parte da carga.
Ayla montou no dorso da égua e fê-la galopar, guiando-a pela beirada do grande campo. O garanhão, a princípio, perseguiu-as, mas diminuiu o galope à medida que se afastaram das demais éguas. Finalmente parou, empinou e relinchou, chamando por Huiin. Novamente empinou e voltou para o bando. Diversos garanhões já haviam tentado se aproveitar da sua ausência. Ao se aproximar, empinou outra vez, gritando em desafio.
Ayla continuou a cavalgar Huiin, mas diminuiu o ritmo do galope. Quando ouviu o barulho de cascos, parou e esperou por Jondalar e Racer, que chegaram seguidos por Lobo.
— Se nos apressarmos, poderemos chegar antes do anoitecer — previu Jondalar.
Ayla e Huiin emparelharam com eles. Ela sentiu uma estranha sensação de que já fizera isso antes.
Avançaram num ritmo confortável.
— Acho que, agora, ambas teremos um bebê — disse Ayla. — Nosso segundo bebê, e ambas tivemos machos da outra vez. Acho isso bom. Poderemos compartilhar esses momentos.
Você terá muita gente para compartilhar sua gravidez — lembrou Jondalar.
Estou certa de que você tem razão, mas vai ser bom compartilhá-la também com Huiin, uma vez que ambas engravidamos durante esta viagem. — Permaneceram um pouco em silêncio. — Ela, porém, é bem mais nova do que eu. Estou velha para ter um bebê.
— Você não é tão velha assim, Ayla. O velho aqui sou eu.
— Vou completar dezenove anos nessa primavera. É muita idade para ter um bebê.
— Sou bem mais velho. Já passei dos vinte e três anos. É muita idade para um homem constituir família pela primeira vez. Você imagina que estive fora por cinco anos? Tenho dúvidas se alguém ainda irá lembrar-se de mim — especulou Jondalar.
— É claro que se lembram de você. Dalanar não teve nenhuma dificuldade, nem Joplaya — tranquilizou-o Ayla. Todos o reconhecerão, mas ninguém irá me conhecer, pensou Ayla.
— Olhe! Está vendo aquela rocha lá? Logo depois da curva do rio? Foi onde abati minha primeira caça! — exclamou Jondalar, forçando Racer a apressar a marcha. — Era um veado enorme. Não sei o que mais temia, se a ameaça daqueles grandes cornos ou a vergonha de perdê-lo e voltar para casa de mãos vazias.
Ayla sorria, contente com as lembranças dele, mas ela nada tinha a relembrar. Seria de novo uma estranha. Todos a olhariam e perguntariam sobre seu sotaque estrangeiro e o lugar de onde viera.
— Certa vez tivemos uma Reunião de Verão aqui — relembrou Jondalar. — Havia fogueiras por toda parte. Foi a minha primeira, depois que me tornei homem. Ah! Como me mostrei, tentando aparentar mais idade. Meu maior medo era que nenhuma jovem me convidasse para seus Primeiros Ritos. Acho que me preocupei à toa, pois recebi três convites, o que me deixou ainda mais apavorado!
— Há algumas pessoas lá na frente observando-nos, Jondalar — alertou Ayla.
— É a Décima Quarta Caverna! — esclareceu ele, acenando. Ninguém respondeu aos seus acenos. Em vez disso, desapareceram sob uma profunda saliência.
— Devem ser os cavalos — especulou Ayla.
Ele franziu as sobrancelhas, depois balançou a cabeça.
— Eles irão se acostumar.
Espero, pensou Ayla, e comigo também. A única coisa familiar por aqui será Jondalar.
— Ayla! Lá está! — exclamou Jondalar. — A Nona Caverna dos Zelandonii.
Ela olhou na direçâo em que ele apontava e sentiu que empalidecia.
— É fácil reconhecê-la devido ao afloramento no alto. Vê, onde parece que uma pedra está prestes a cair? Não cairá, porém, a menos que desabe todo o resto. — Jondalar voltou-se para ela. — Ayla, você está doente? Está tão pálida.
Ela parou.
— Já vi este lugar antes, Jondalar.
— Como poderia ter visto? Você nunca esteve aqui.
De repente, tudo se juntou. Era a caverna que via em meus sonhos! Aquela que vinha das lembranças de Creb, pensou ela. Agora sei o que ele tentava me dizer em meus sonhos.
— Disse-lhe que meu totem queria que você fosse meu e o enviou para me buscar. Ele queria que você me levasse para casa, o lugar onde o meu espírito do Leão da Caverna irá sentir-se feliz. É isso. Também voltei para casa, Jondalar. Sua casa é minha casa — concluiu Ayla.
Ele sorriu, mas antes, pudesse responder ouviu gritarem seu nome.
— Jondalar! Jondalar!
Olharam para cima e, num caminho sobre um penhasco saliente, viram uma jovem.
— Mãe! Venha rápido! — gritou a moça. — Jondalar voltou. Voltou para casa!
Eu também, pensou Ayla.
J. M. Auel
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